O Mito Da Liquidez
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"O contador não está invariavelmente
apresentando demonstrações de
empresas na falência
"(1).
O mito da lliquidez
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Também a classificação do estoque das dívi- operação por elas desenvolvidas e cuja renovação
das da empresa em circulante e não circulante, depende de novas negociações, a custos eventual-
tomada de forma estrita, é falaciosa e não tem mente crescentes. Mesmo aqui, pouca informação
grande conteúdo informacional. Muito mais útil, útil pode ser obtida pela comparação das dívidas
para efeito de diagnóstico empresarial, como contratadas com os ativos realizáveis a curto pra-
sugere Heath, seria a divisão das dívidas em zo. Mais importante é a comparação do lucro
financiamentos espontâneos e financiamentos operacional que a empresa obtém com os juros
contratados?', Os financiamentos espontâneos em que ela incorre (índice de cobertura das
são aqueles que nascem da própria operação despesas financeiras), tanto em empréstimos de
desenvolvida pela empresa (fornecedores, curto como os de longo prazos. No caso dos
impostos indiretos a recolher, imposto de renda financiamentos contratados, é essencial conhecer
a pagar, salários e outras contas a pagar que se em detalhe o perfil do endividamento total,
originam do fato de estar a empresa operando), importante informação que deveria vir obrigato-
enquanto que financiamentos contratados são riamente no rodapé das demonstrações publi-
aqueles contraídos pela empresa junto a agentes cadas pelas empresas. Para facilitar a previsão do
financeiros e que resultam de um processo fluxo de caixa da empresa em análise, esse perfil
decisório financeiro. Do ponto de vista da poderia ser subdividido em períodos convenien-
empresa em operação, essa distinção é funda- temente curtos (como um trimestre ou um
mental porque financiamentos espontâneos são semestre), para que o analista pudesse localizar
recorrentes e, geralmente, não são onerosos. Um acumulações de vencimentos das amortizações. O
fabricante de bebidas ou cigarros, por exemplo, custo médio de cada linha de crédito contratada
tenderá a acumular altos níveis de passivo circu- também deveria ser informado no rodapé.
lante através do item "impostos indiretos a reco-
lher"; quanto mais ele vende, mais ele deve. PREVENDO A FALÊNCIA
Segundo o "Balanço Anual" da Gazeta Mercantil
de 1988, a mediana dos índices de liquidez cor- É surpreendente como se tenta enxergar
rente de 40 empresas do subsetor de refrige- através do balanço a possibilidade da falência,
rantes e águas era de 1,00 (dessas 40 empresas, como se um demonstrativo essencialmente estáti-
apenas 7 tinham índices superiores a 1,39). O co pudesse dispensar o incômodo e arriscado
sub setor de cervejas e chopes apresentava a exercício da previsão. Na verdade, a estatística e
mediana de 1,03 (20 empresas) e o de cigarros e informações extra-contábeis, mais do que rela-
fumos, de 1,05 (8 empresasl'", cionamentos de débitos e créditos, constituem
O balanço patrimonial consolidado do Grupo instrumentos mais adequados para essa finali-
Souza Cruz em 31.12.88 revelava uma liquidez dade.
corrente de 1,51, aparentemente modesta quando Inúmeras pesquisas foram realizadas para se
julgada pelo velho padrão de liquidez corrente de determinar a capacidade dos índices financeiros
2:1. Tentando classificar as contas do Passivo Cir- em prever falências. Baruch Lev dedica inteira-
culante, entretanto, estima-se que apenas 0,58% mente o capítulo 9("The Prediction of Corporate
das dívidas a curto prazo da empresa se referem a Failure") de seu livro Financiai Statement Anaiysis:
financiamentos contratados, enquanto que 48,24% A New Approach ao levantamento e comentário
desse grupo do passivo eram constituídos por IPI desses estudos?', Em particular, a pesquisa rea-
a recolher, outros Impostos a Recolher e Provisão lizada por William H. Beaver merece atenção
para o Imposto de Renda. A participação dos especial'",
Fornecedores e Contas a Pagar no passivo circu-
lante era de 24,16%,enquanto que 16,25%se refe-
riam a dividendos a pagar (o restante do passivo 5. HEATH cita Pearson Hunt, Charles M. Williams e
Gordon Donaldson como proponentes dessa classifi-
circulante era constituído por Encargos Sociais a cação - veja notas de rodapé números 18 e 19 do artigo
Recolher e outras provisões). A propósito, os de HEATH, Loyd C. Op. cit., p.59.
financiamentos contratados com vencimento a 6. BALANÇO Anual. Gazeta Mercantil, outubro de
curto prazo eram os únicos do passivo total e re- 1988,p.156.
presentavam 0,21% do ativo total. Como é possí-
vel torcer o nariz diante do índice de liquidez cor- 7. LEV, Baruch. Financiai Statement Analysis: A New
Approach. Englewood Cliffs, Prentice Hall, 1974, pp.
rente de 1,51? 133-151.
Quanto às dívidas contratadas, estamos diante
de decisões de financiamento tomadas pelas 8. BEAVER, William H. "Alternative Accounting
Measures as Predictors of Failure". In: Accounting
empresas que representam fontes onerosas de Review, janeiro, 1968pp. 113-122,apud LEV,Baruch. Op.
recursos que não nascem espontaneamente da cit, p. 141.
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Os resultados obtidos por Beaver indicam que fluxos de caixa da empresa em análise e, por isso
o índice mais adequado para previsão de falên- mesmo, a análise da solvência torna-se mais com-
cias é a relação entre o fluxo de caixa (lucro líqui- plexa e mais arriscada do que a simples conferên-
do + depreciação) e o total da dívida. O segundo cia se o índice de liquidez corrente supera ou não
melhor índice, segundo esse estudo, é a relação o nível de 2. Para realizar esse diagnóstico, é
entre lucro líquido e ativo total. "Surpreendente- indispensável o domínio de técnicas de previsão.
mente, o índice de liquidez corrente estava entre os
piores previsores (de falências)"<9J. Por outro lado, NEM SEMPRE MAIS É MELHOR
relações entre fluxos de caixa e estoques de dívi-
das parecem mais efetivos na avaliação da sol- A tradicional análise de liquidez nos legou um
vência. terrível cacoete que é partir inconscientemente do
Com efeito, a previsão de falências (um evento princípio de que, quanto maior for o índice, me-
raro) e a previsão de dificuldades financeiras (um lhor a situação da empresa em análise, como se
evento mais comum) são exercícios de anteci- fosse esse um indicador da qualidade do
pação de cenários operacionais críticos para a empreendimento.
empresa, os quais somente podem ser esboçados Nesta época de juros estratosféricos, o único
a partir de um razoável conhecimento da ope- agente econômico disposto a assumir emprésti-
ração que ela desenvolve e das condições do setor mos é o governo que, por ter o monopólio da
específico onde ela está esfabelecida. Dados con- emissão de moeda, não se intimida diante do
tábeis constituem apenas parte da base de infor- absurdo do custo financeiro incorrido ao se tomar
mações sobre a qual apoiaremos nosso diagnósti- emprestado. As empresas, por outro lado, sub-
co, nossas previsões e nossas decisões. metidas ao mandamento da lucratividade, pas-
Com relação, especificamente, à contribuição sam a fugir do endividamento como o diabo da
de análise econômico-financeira tradicional ao cruz. Suas disponibilidades são canalizadas para
exercício da previsão de falências ou de crises de o Open Market, onde é possível ganhar um retomo
liquidez, cremos que ela tem sido supervaloriza- satisfatório e, em princípio, livre de riscos. Em
da. Um detalhado exame da seqüência de de- conseqüência, os índices de liquidez, especial-
monstrativos de fluxo de caixa irá ilustrar melhor mente os de liquidez imediata, começam a se ele-
a iminência de uma deterioração financeira que é var demasiadamente, não sendo incomum encon-
conseqüência e não causa do malogro econômico. trar empresas não financeiras na praça com
Num contexto analítico mais amplo, mais dinâmi- índices superiores a 0,40. Será que o fato de uma
co e menos sujeito a arbitrariedades contábeis, o empresa manter no disponível 40% do valor de
centro do diagnóstico será a análise, através de suas dívidas vencíveis em um ano é um sinal po-
uma série histórica suficientemente longa, das sitivo? Não é isto uma evidênca clara de que suas
tendências que governam a evolução do fluxo de operações estão rendendo menos que o Open
caixa gerado pelas operações. As dificuldades Market e que ela já não consegue fazer pelo seu
financeiras nascem da disritmia entre entradas e acionista mais do que ele pode fazer sozinho
saídas de caixa que somente pode ser detectada emprestando diretamente suas poupanças ao go-
pelo minucioso estudo de uma coleção de de- verno, sem a intermediação financeira da empresa
monstrativos de fluxo de caixa recentes da empre- (homemade leverage)?
sa em análise. O ritmo das entradas de caixa Em matéria de crises da economia brasileira, o
provenientes das operações deve estar coerente mais sensato que podemos dizer é que não se fa-
com os desembolsos por elas provocado e com a bricam mais crises como antigamente... Com
cobertura do serviço da dívida. O ritmo dos efeito, nas fases críticas anteriores às da década de
investimentos permanentes novos deve estar 80, altos endividamentos coincidiam com baixos
coerente com a disponibilidade de fundos levan- índices de liquidez, retração da demanda e
tados junto a acionistas, credores de longo prazo, explosão das despesas financeiras. Atualmente, a
ou acumulados pelas próprias operações. O diag- nova crise brasileira é caracterizada pelo baixo
nóstico se resume, portanto, numa análise de endividamento e alta liquidez das empresas
tendências desses fluxos, de forma dinâmica, por nacionais que, literalmente, estão encolhendo sob
um analista não apenas inteirado dos demonstra- o nefasto efeito da postergação indefinida dos
tivos financeiros básicos da empresa, mas, sobre- investimentos permanentes. O nosso parque
tudo, bem informado sobre o negócio da empresa
industrial está sendo precocemente sucateado
e situação do seu setor; jamais esse diagnóstico
pode se limitar a uma divisão elementar de saldos
devedores por saldos credores. O produto final do
diagnóstico deve constituir-se de projeções dos 9. LEV, Baruch.Op. cit.,p.142.
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novos índices que relacionem adequadamente lantes). Se a hipótese de liquidação for afastada, a
números retirados do balanço do demonstrativo classificação circulante/não circulante também é
de resultados e, principalmente, do demonstrati- inócua. Com efeito, como nos diz Loyd C. Heath
vo do fluxo de caixa. em sua resposta às críticas ao seu artigo, "o argu-
O analista externo cada vez mais deverá apoiar mento que o capital circulante líquido e o índice de li-
seu diagnóstico no estudo detalhado da demons- quidez corrente medem o grau de cobertura do passivo
tração do fluxo de caixa e em informações não circulante pelo ativo circulante está baseado na suposta
contábeis, como as condições específicas do setor mas inexistente relação entre fontes e usos de caixa.
de atividade da empresa em análise e sua posição Uma empresa gera caixa pela utilização conjunta de
relativa frente à concorrência. E a flexibilidade todos os seus ativos e não somente de seus ativos circu-
financeira da empresa que precisa ser avaliada lantes. É tão sem sentido se perguntar se o caixa da
diante de cenários macroeconômicos e setoriais empresa vem do uso de seus ativos circulantes ou não
alternativos, entendendo-se por "flexibilidade circulantes como se perguntar se a produção de uma
financeira" a "capacidade da empresa em controlar pessoa provém de seu coração, ou de seu fígado, ou de
seus recebimentos e pagamentos de forma a sobreviver seu pulmão"?".
em períodos de adversidade financeira"(!O). Análise econômico-financeira não pode estar
Quanto à classificação de circulante/não circu- cercada por classificações ambíguas e por í~dices
lante, cremos (como recomenda Heath em seu cujas fórmulas são, no mínimo, discutíveis. E pre-
artigo) que ela deva ser abandonada dando lugar ciso enxergar além dos números para se ter um
a uma nova classificação de maior conteúdo diagnóstico mais preciso. E preciso que nos li-
informacional (como, por exemplo, financiamen- bertemos dos mitos.?" O
tos espontâneos e contratados). De qualquer for-
ma, entretanto, não se trata de abandonar a tradi-
cional ordem de liquidez para a apresentação dos
ativos e dos prazos de vencimento para a dos ABSTRACT: The traditional financiaI analysis sup-
passivos. Como diz Heath, "ativos devem conti- poses that the company will be closed in a short period
nuar a ser classificados na ordem convencional (de li- of time and, arbitrarilly, classifies the so calIed liquidi-
quidez) porque alterá-la corresponderia a confundir os ty ratios in pre-established standards.
usuários da mesma forma que alterar a ordem das Though these ratios are easy to be calculated it is
teclas de uma máquina de escrever confundiria o mandatory that the users be aware of the Static condi-
datilógrafo"(!!) . tion of the information and that the liabilities will be
O artigo de Loyd C. Heath?" mereceu respostas paid by the funds produced by using the various assets
de três eminentes autoridades em teoria contábil: and not by its liquidation.
Leopold A. Bernstein, Kenneth S. Most e Max The [inancial ratios has been overvalued as an
Block. A defesa do conceito de Capital Circulante efficient tool for bankruptcy forecast but lately the
Líquido e dos índices de liquidez por esses três cash flow has been considered as a better tool in
autores consagrados aparecem na edição de forecasting the financiai problems of companies.
dezembro de 1981do Journal of Accountancy junta-
mente com a resposta de Loyd C. Heath a essas KEY TERMS: Debt ratio, going concern hypothesis, ,
críticas?", current asset, current liability, net working capital,
Resumindo essas críticas, pode-se dizer que o cash flow.
argumento mais forte em favor do conceito con-
vencional de liquidez está na sua grande popula-
ridade e na tradição que o cerca. Parece que o des- 10. HEATH, Loyd C. Op. cit., p.58 (nota de rodapé
tino dos índices de liquidez é o destino dos mitos: no. 17).
são aceitos sem discussão porque são populares.
11. Idem, ibidem,p. 61.
Entretanto, o conceito de liquidez é algo a ser
revisto pelo mundo acadêmico e pela profissão 12. Idem, ibidem.
contábil. A classificação circulante/não circulante 13. PROFESSIONAL Notes and Letters. In: Journal of
deve ser abandonada e substituída por uma clas- Accountancy,dezembro de 1981, pp. 82, 84, 86, 88,90,92
sificação de maior conteúdo informacional. Nem e 94.
mesmo diante da hipótese de liquidação da 14. HEATH,Loyd C. Resposta às críticas ao seu arti-
empresa essa classificação resiste às críticas. Afi- go - "Is Working Capital Really Working?" - in: [our-
nal, nessa hipótese, todos os ativos (e não apenas nal of Accountancy, dezembro de 1981, p. 94.
os circulantes) serão liquidados para o pagamento 15. Este texto faz parte do convênio PRICE/FGV de
de todas as obrigações (e não apenas as circu- estímulo à criação acadêmica.
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