Ungulani Ba Ka Khosa - Choriro
Ungulani Ba Ka Khosa - Choriro
Ungulani Ba Ka Khosa - Choriro
Ungulani Ba Ka Khosa
alcance
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Titulo: CHORIRO
Autor: UNGULANI BA KA KHOSA
© A L C A N C E E D IT O R ES
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Maputo, 1.a edição, Setembro de 2009
R LIN LD N.° 5999
Yukio M ishim a
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O quarto não era de todo estranho a Chicuacha, pois nele entrara nos
princípios da doença dc G regódio. E fora num a m anhã. Os raios de sol
entravam pelas frestas do tecto de palha e espalhavam-se pelo quarto amplo
onde, além da cam a artesanalm ente trabalhada, pontificavam potes, cinze
lados uns, lisos outros, cheios dc raízes e folhas secas, zagaias, peles de
anim ais e lanças desordenadam ente expostas. As espingardas de fabrico
caseiro e de carregar pela boca que os nativos chamam de gogodelas ou
gugudas, dependendo da pronúncia, alinhavam-se ao acaso e em número de
sete, pela parede à cabeceira da cama. Os acatem o, designação local para
os machados de caça, espalhavam-se sobre as peles de cabrito e de leopardo
que cobriam grande parte do chão dc adobe. N a borda da cama, como que
a precaver-se dc qualquer incidente, estava a espingarda dc percursão que
Gregódio não dispensava nos seus adereços dc rei, por ser m oderna em re
lação às gogodelas c às espingardas dc pederneira. A isso e expostos sobre
a corda que atravessava a largura do quarto, acresciam os panos das trocas
com erciais e vários chimpote - denom inação dos colares de missangas que
reluziam aos fiapos dc luz semelhantes às estalactites brilhando em peque
nas grutas dc sombras fugidias que o quarto meio soturno projectava, dando
ao aposento o tom lusco-fusco, próprio de quartos afeitos a refregas do
amor, mas que Gregódio, assumido rei de um estado militar, transform ara
em cenário predilecto aos solitários e interm ináveis conluios à sua
manutenção no poder quando se sentava na cadeira adornada com peles de
leão e leopardo que ora ofereceu, com um ligeiro descair da mão direita, a
Chicuacha para se sentar.
Relutante, dissim ulando trem ores dos m om entos dc im previsão,
roçando com a calça dc ganga um a bacia com chocalhos, afastando com o
pc um acatcmo, Chicuacha estendeu vagarosam ente as mãos pelos braços
da cadeira real e assentou o traseiro com as cautelas de um intruso com
olhos atentos à desordenada geom etria de objectos expostos no quarto com
luz difusa, silêncio carregado, objectos inertes. Era a África de sons e vozes
ausentes. Era a África dos chocalhos e am uletos repousando num quarto
meio soturno. Era a África de cores novas expostas num espaço preenchido
de objectos que outros cham ariam de bricabraques, mas que ali assumiam
um significado presente e não passado.
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im aginário a África era mais profunda e densa que aquele povoado de ruas
poeirentas, sombras dispersas, gente indolente, casas mortas ao sol, o rio,
largo e silencioso, espreitando e seguindo, com desdém, curva adiante, em
direcção à costa. Para ele, aqueles sons tristes e secos que ecoavam cm cada
esquina, sobre as pedras e galhos que os cabritos teimavam em levar à boca,
não eram a África do seu imaginário. A sua África era das densas encostas
que iam diminuindo de densidade ao atingirem a planície de chitas velozes
que cortavam a savana à caça de gazelas, que em saltos rápidos, se im is
cuíam na floresta de ram os densos que se batiam quando bandos de
pássaros se faziam aos céus de nuvens brancas e dispersas. A sua África,
sonhada e vista, era a das manadas de elefantes abrindo ruidosamente carreiros
por entre a folhagem alta e verde, onde leões e leopardos se acoitavam ,
atentos e participantes no inevitável equilíbrio da m ãe natureza na caça de
kudus e im palas e búfalos em cavalgadas vibrantes ao longo das savanas.
A sua África estava nos m isteriosos crocodilos que em ergiam das turvas
águas do Zambeze, espalhando-se, depois, em grupos, ao longo das manhãs,
pelas m argens onde diligentes pássaros os esperavam para a quotidiana
limpeza de parasitas nos desnivelados c pontiagudos dentes que sobressaíam
das largas e profundas mandíbulas. Essa era a Á frica idealizada que foi
avistando à m edida que navegava à m ontante do rio, ao tem po da sua
chegada ao continente e à região dos rios Sena e Tete.
De Sena à Tete, os canoeiros, em alm adias ou em outras barcaças
apropriadas, bastante experim entados nas navegações fluviais, sabiam
como enfrentar as traiçoeiras correntes do rio que se tom avam fatais na
época das chuvas. Mas em período bom a navegação fazia-se sem grandes
sobressaltos, exceptuando os m om entos em que os hipopótam os, querendo
dar largas ao domínio que tinham das águas, mantinham os olhos à super
fície, obrigando os canoeiros a parar e esperar, por largos minutos, que eles
submergissem e voltassem a emergir, de m odo a conhecerem a rota a tomar.
Caso não fizessem essas paragens, bem ao gosto desses gigantes fluviais,
corriam o risco de ver as canoas abarloadas.
Era frequente, em presença de uma m anada, os canoeiros fazerem-se
à margem e esperarem por bons m om entos, porque o m ais perigoso nas
andanças fluviais eram as canoas interporem-se entre uma fêm ea e a cria.
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desde que ele assentou nas terras, Gregódio qui-lo como cronista e confi
dente. Deu-lhe terras e bandázios, outro nom e por que eram conhecidos os
bichos. Abriu-lhe as portas da confiança junto aos grandes e pequenos do
reino. Ao tom ar Fita como sua prim eira esposa, Chicuacha teve em G regó
dio o padrinho à altura. Depois, e fazendo ju stiça às práticas locais,
Chicuacha tomou a liberdade de ter outras mulheres. Hábitos novos foram-se
grudando ao corpo, enquanto o espírito rem ovia com a paciência do tempo
as lianas mais endurecidas dos costum es de outrora.
A proxim idade ao Gregódio não o afastou do com panheiro de jo r
nada, o João Alfai Sabão. Os laços entre os dois rem ontavam aos saudáveis
conluios na pequena e solitária igreja de Tete, local onde os dois, fartos de
árvores sem sombra, resolveram tom ar a estrada da aventura. De sorriso
fechado, poucas falas, gestos com edidos, andar silencioso e um a afabili
dade de difícil percepção a um indivíduo m enos atento, João Alfai tinha
passos lestos e curtos. A sua quase anã altura, de m etro e meio, em muito
contribuía para a fala sussurrante. Chicuacha, que não era dado a grandes
alturas, para ouvi-lo, enquanto cam inhavam, via-se obrigado a curvar-se.
Como muitos negros serviçais, João Alfai nasceu em Tete. Seu pai,
Alfai Sokire, estabelecera-se ainda jovem , como liberto, na vila, exercendo
trabalhos de servente em lojas, a pedido do avô trafegante de m ercadorias
pelo sertão a mando de portugueses. Cedo aprendeu os rudim entos da lín
gua portuguesa com o pároco habitualm ente etilizado e pouco atento a
Deus, sempre às m oscas na igreja vazia de crentes, e a maldizer, com a lín
gua picara, o clim a tórrido e seco da vila de Tete. D a escrita, o seu domínio
reduziu-se ao estritamente necessário e palpável. Com Chicuacha. já adulto,
deu-se ao luxo de redigir, de forma tosca e aos solavancos, pequenos dita
dos. M as era na fala, frequente e diária, o seu cam po de eleição e de outros
indígenas residentes na vila. O sotaque sibilado, cortante, seco, a fazer lem
brar os caniços a racharem-se à beira do rio, ao sabor do vento m atinal e
vespertino, era o som dom inante a cobrir a vila carenciada de árvores de
som bra quando o português tom ava o corpo dos pretos. Em presença desse
precioso presente dos brancos, a língua m ãe era subalternizada e quando
dela se socorriam m anifestavam estados de alm a que o português não
conseguia exprimir. Os em préstim os nas línguas locais eram, ao tempo, tão
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Antes, muito antes dc se fixar nas vastas terras a norte da vila de Tete,
Gregódio estabelecera-se primeiro na vila de Sena, precisamente na fortaleza
de S. M arçal, por a sua condição de soldado de infantaria assim o obrigar.
A fortaleza, situada a m enos de uma légua da vila, perdera, na entrada dos
anos oitocentos, a grandiosidade de outrora. De pedra e cal, sím bolo da
conquista e da grandeza do império, ficara a porta de entrada da fortaleza,
encim ada pelo escudo real esculpido na pedra, e os seus quatro bastiões. O
resto do forte eram edifícios de tijolos cozidos ao sol e de adobe simples que
ruía facilm ente com o tempo, m ostrando a decadência da vila de Sena no
trato do com ércio com o interior, face à anarquia vigente com a inclusão,
no tráfico de escravos, de escravos guerreiros, atrás referenciados como
achicundas, que eram o sustentáculo das entidades prazeiras no trato mer
cantil.
Da trintena de soldados que existiam no forte, G regódio encontrou
uma dúzia deles, equipados com cinco peças de artilharia de calibre oito,
três de cinco e duas de três, perfazendo um lote que pouca segurança ofere
cia à vila aberta aos desmandos dos prazos em ruína e de outros emergentes
que se faziam passear com escravos guerreiros armados de espingardas de
carregar pelo cano e outros artefactos de guerra. Alguns desses senhores
deviam ainda lealdade à coroa portuguesa que lhes outorgava títulos, mas
muitos não prestavam foros à coroa por se acharem independentes e livres
de qualquer coacção, daí o capitào-m or de Sena, em presença de um a
enfraquecida artilharia, de soldados em constante defecção, de uma popu
lação europeia, canarim e patrícia, entregue a negociatas à margem da lei,
sentir-se incapaz de enfrentar qualquer levante. O ofício dos soldados de
caserna era entregar-se, por meios que a consciência de cada um ditava, à
acum ulação de riqueza, ou a outros misteres que não obedeciam à disci
plina castrense.
A ntes dc aportar as terras de Sena, já diziam a Gregódio que Sena
era uma vila de malcriados, de gente desobediente, pouco tem erosa a Deus
e entregue à sorte de todo o tipo de superstições. N a verdade, a vila tinha
seis igrejas, sendo cinco particulares, não havendo para a sede e circunscrições
vizinhas, onde outras igrejas afloravam, um único vigário perpétuo para a
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administração das mesm as c das almas que se perdiam no trato com as con
fissões cafreais. Com a expulsão, no século do terram oto de Lisboa, dos
padres jesuítas, os dom inicanos, proprietários de vastas terras e cscravos,
entregavam -se com m aior afinco à actividade com ercial e à cobrança de
dízimos restando-lhes, como é natural, pouco tem po à conversão dos indí
genas. A autoridade civil estava entregue a um ju iz que mal arbitrava as
contendas, pois havia leis para os portugueses e goeses e outras para os
negros, e a estes o ju iz mal arbitrava os litígios por a sua autoridade não
conseguir sobrepor-sc aos donos dos pretos. Os três vereadores que a vila
possuía passavam o tempo na gestão das suas terras, aparecendo em público
só cm dias de procissões e condecorações aos insignes da vila e arredores.
O procurador e o escrivão, por mais que se afoitassem na fixação dos preços
agrícolas, estes não eram cum pridos porque os agricultores, os poucos que
ainda se davam ao gosto dc am anhar a terra, ditavam os preços dos m anti
m entos à sua benquerença. A vila, ao tem po de G regódio, vivia do con
senso dos mais notáveis.
Situada na m argem esquerda do rio Zam beze, a vila de Sena era, nos
meses de Junho e Julho, invadida por moradores do sertão que vinham em
almadias, cochos, batéis e palas comerciar as suas mercadorias. A vila libcr-
tava-se do seu tom sombrio e tomava cores alegres. As brigas eram constantes.
Mas em período morto, mom entos em que a vila vivia de si, era frequente
verem -sc as D onas, título que as filhas de portugueses, brancas, raras,
mestiças, muitas, exibiam , passeando pela vila com mais de vinte escravas
serviçais, mostrando os vestidos de seda e guarda-sóis coloridos, sob o olhar
nada repreensível dos párocos cm as perm itir assistir à m issa com as es
cravas não convertidas. Herdeiras de títulos e fortunas, muitas destas alti
vas e flatulentas patrícias, nome por que eram conhecidas as m estiças,
tom aram -se, com o tempo, donas de vastos territórios ao longo do vale do
Zambeze. Ao tempo, segundo quartel dos anos oitocentos, destacavam-se,
entre outras, pela opulência, as D onas U rsula de S. Gom es, Ignes Alm eida
e Domingas Cordeira. Quando se faziam à rua, eram acom panhadas por
mais de cinquenta escravas que as seguiam por estradas sem grandes de
lim itações, pois as casas, bastante afastadas um as das outras, não se
prestavam aos arruamentos típicos de vilas ordenadas. Nesses momentos de
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grave, eolocou-a sempre entre outros achados de pouca importância, ate que
em um dos dias de rem em orações dela se lembrou e em jeito de desem
baraço, apressou-se a depositá-la nas mâos de Chicuacha, seu confidente e
cronista, em terras já suas e com título de M ambo, e não de Governador, ou
Capitão General, ou Juiz e Procurador, mas Rei, como o é de Portugal, mas
em terras de m enor lonjura.
S. Marçal era um a rota do seu percurso, m arca de um passado de que
pouco se orgulhava, não prestando por isso a devida atenção a Chicuacha
quando lhe afiançou, com a certeza dos seus conhecimentos eclesiásticos,
que S. Marçal teria sido um dos setenta c dois discípulos de Cristo que o
teria seguido fervorosam ente, sendo baptizado por Pedro sob as ordens dc
Jesus. Ele seria o garoto que na Biblia tinha os cinco pães e os dois peixes
com os quais Cristo realizou o prim eiro milagre da m ultiplicação desses
alimentos. Esteve presente na últim a Ceia, ajudando Cristo a lavar os pés
dos seus discípulos. Ficou fam oso por ressuscitar os m ortos, curar os
paralíticos e debelar incêndios apenas com o toque do seu cajado mágico.
A fé nele fez com que muitas das chamas do terram oto dc Lisboa fossem
extinguidas por um a simples oração em seu louvor. S. M arçal é o padroeiro
daqueles que se prestam a socorrer os necessitados, Gregódio.
- Se é protector dos necessitados, como dizes, nunca, em tem po da
m inha estada na fortaleza de S. Marçal de Sena, o vi estender a mão aos es
cravos em pranto contido que passavam pela vila com destinos que só Deus
sabe.
- Ele é o defensor dos que se convertem na fé do Senhor, Gregódio.
- Balelas... Aqui as regras são mais simples. N ão são precisas missas
c orações chatas para que tenhas a protecção dos espíritos. A fé está em
aceitares as regras que a dura vida nos impõe.
- São maneiras diferentes de encarar a fé.
- S im ... São m aneiras diferentes... Aqui não são precisas batinas,
Chicuacha.
- Tens a tua razão.
- Se tenho...
Eram outros tempos e não a época em que Gregódio, mal conhecendo a
lenda de S. Marçal, vagueava pela vila de Sena, preocupava-se com o negócio
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cala dom éstica, escravos. Os escravos que foi com prando serviam como
carregadores, domésticos e trabalhadores agrícolas.
Ao tempo de caçador profissional de elefantes, Gregódio conheceu
proprietários de terras que foram perdendo homens que fugiam à anarquia
crescente na captura de escravos que tocava, pela ganância, pessoas das
próprias herdades. Os achicundas, braço armado dos prazeiros, face à anar
quia e ao risco de se converterem em escravos de destino incerto, foram
abandonando os prazos, carregando arm as e refugiando-se em terras do
interior, ou entregando-se a novos senhores. Por outro lado e fruto de lutas
intestinas entre clãs nguni, os grupos de Zw angendaba e Nguana M aseko,
fugidos de Tchaka Zulu e à procura de um exílio m ais seguro, foram
arrasando prazos e pequenos reinos ao longo do vale. M ulheres e jovens
foram capturados pelas hostes nguni à medida que avançavam em direcção
a terras m ais a norte do Zam beze. M uitas aldeias achavam -se abandonadas
ao longo do vale. Culturas apodreciam ao abandono dos campos. O Zam
beze estava em chamas.
Tyago Chicandari, responsável dos messiri, contaria, anos mais tarde,
a Chicuacha que ao chegarem à terra dos ansengas, na região do Zum bo, os
chefes locais m ostraram -se desconfiados porque experiência ruim com
gente guerreira tiveram com as hostes nguni que por ali passaram. M as o
tacto dem onstrado por Gregódio no trato com os chefes cedo se m ostrou
frutífero, pois os indígenas, que jam ais haviam convivido com um branco
que se am bientou na língua e nos costum es, acolheram -no como um dos
seus. De aniamatanga, o mesmo que branco, passaram a chamá-lo Nhabezi,
o curandeiro, por mostrar grandes habilidades no trato de ervas e mezinhas.
O seu sentido de orientação pelas estrelas era tão certeiro que muitos guias
com ele aprenderam a m elhor m aneira de se posicionar na floresta. A
introdução do arroz, milho e feijão junto aos reinos ansengas e outros con
tribuiu para que lhe dessem, em definitivo, terras de cinco dias de com pri
mento e três de largura. A cim entar os laços, o rei ofertou-lhe a filha N fuca
como esposa e conselheira nos rituais do M bona, o culto das chuvas. Junto
à capital ficaram mubalas, invocadores da chuva, como chefes espirituais
do reino que nascia.
Gregódio deixou de ser o simples caçador branco que acampava em
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terras estranhas e ofertava, em pom posas cerim ónias, o prim eiro dente
caido em terra e pedaços dc carne aos reis e senhores de terras. A gora era
um igual. Aos seus homens de confiança, o círculo da prim eira quinzena de
caçadores, foi-lhes adstrita terra para gerirem como governadores ou fumos,
como os cham avam . Ao longo do território em crescendo foi construindo
aringas que o protegiam. As populações passaram a prestar-lhe tributo de
rei. Com os reis vizinhos foi celebrando alianças m atrim oniais e alargando
as suas influências.
Querendo um a autonom ia espiritual que o levasse a invocar os es
píritos ancestrais achicundas a que cham avam de muzimu, Nhabezi foi in
troduzindo espécies de árvores apropriadas aos rituais aos antepassados
achicunda. Sem se divorciar dos cerim oniais clânicos matrilineares, rituais
patrilineares típicos dos achicundas foram -se introduzindo, graças à
chegada de mais guerreiros fugidos da escravidão, de gente proscrita e p e
ssoas que desertavam das secas cíclicas das agrestes terras próxim as de
Tete. A todos, N habezi recebia. Uns quebravam o m itete, outros inte
gravam-se simplesmente. O cxcrcito era respeitado nas redondezas. Grupos
nguni não se atreviam a m olestar as populações na colecta dos habituais
impostos. O branco N habezi era rei e senhor de vastas terras na confluên
cia dos rios Lângua e Zam beze. Cruzavam-se no seu reino povos matrilineares
e patrileneares, mas o poder achicunda, tipicam ente patrilienar, foi prevale
cendo sobre os casam entos e sucessões.
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E não mais João Alfai ousou praticar os rudim entos da escrita que havia
aprendido nos tempos de estudante sasonal e sacristão dedicado. E isso não
o m agoou, porque a preocupação em grafar tinha em vista o seu rápido
aprendizado e não a preservação do conhecim ento para gerações que não
o preocupava. Diziam que a estranha abnegação ao trabalho de ferreiro
devia-sc ao apego à vida celibatária, prática incom um àquele m undo
poligâm ico que levava frades a abandonarem os altares dos envagelhos e a
concubinarem -se com as cafres. O utros divisavam um fracasso à vida
m onogâm ica pela proxim idade a Suna, m ulher escrava de Nzinga, um a das
principais consortes de Nhabezi. Habituados a vê-los em posições próximas
à confidência, as pessoas auguravam a A lfai um a prolongada vida celi
batária por Suna nunca, em terras de Gregódio, ter mostrado simpatias aos
hom ens que a rodeavam . Fiel à sua senhora, Suna em pedrava-se aos
olhares masculinos. Alfai é um ornamento, diziam. Vai m orrer solteiro, se
insistir nessa m ulher, rem atavam . Alheio a tudo, Alfai entregava-se com
devota paixão ao trabalho de messire. Por isso, e por mérito próprio, foi,
gradualmente, ocupando o posto im ediato, em term os de responsabilidade,
ao de Tyago.
Distante do amigo, Chicuacha esforçava-se por dizer aos que lhe per
guntavam que a vida celibatária era a doença dos que se entregavam com
alma ao Deus branco. A cura está em se tom ar infiel a certas doutrinas de
Deus, rematava Chicuacha.
- A vida vai e vem, disse Tyago.
- E o traço do destino, anuiu Chicuacha.
- M as há os que têm o privilégio de traçar o seu destino.
- O que está para além da morte só a D eus cabe definir, Tyago.
-A q u i os reis transm utam -se em espíritos de leão, Chicuacha.
- Não sei se ainda terei vida para ver e acreditar.
- Vamos aguardar.
- No fundo não acreditas na mudança.
- A questão não está em acreditar. É necessário que a alma seja aceite.
- Por quem?
- N ão perguntes a mim.
- É a cor?
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até as noites de prazer. Via virtudes, candura, pureza. Com o tempo e o con
vívio profundo com os hom ens, foi hierarquizando os rom antism os dos
tempos da descoberta. Mas os dentes ficaram como um indicador de beleza,
do contraste entre o branco e o preto, entre a luz e a noite. Depois eram os
seios, os botões em ergindo no cum e das encostas lisas e duras que elas os
tentavam ao sol e à lua sem a vergonha dos corpetes que ocultavam os flá
cidos seios das raras e chatas m ulheres europeias tostadas pelo inclemente
sol dos trópicos que as deixavam indolentes.
- Espero que não mc desiludas, Chiponda.
- É uma graça, mambo Nhabezi.
N zinga era um a m oça de m ediana altura e traços alongados como
um a gazela. D e uma cintura delgada e ancas de fraca protuberância, ela não
apresentava os traços fortes das conterrâneas de coxas fartas. Tinha dezoito
anos. Os olhos apresentavam o brilho fugidio das águas ao amanhecer. Os
dentes, com pactos, eram o marfim dos desejos de Nhabezi. Como muitas
da sua elasse, ela sabia que os casam entos eram negociados. A mãe, Norina
de nome, havia sido entregue em casam ento aos soli. Pertencia aos lenjes,
etnia que mais ao interior se situava e à qual os portugueses nunca deram
nota de realee por se situar fora das jurisdições almejadas, mas que Capelo
e ívens, dois exploradores portugueses que ligaram o Atlântico ao Índico
através das terras continentais, fizeram rasgados elogios por estes os terem
acolhido com sim patia e generosidade quando já se achavam perdidos no
interior da selva. Deram-lhes guias e carregadores que lhes permitiram per
correr com m aior celeridade as terras do interior, passando como m eros
fantasm as pelas terras dos soli, longe de im aginarem que anos atrás um
conterrâneo havia desposado um a m ulher de ascendência local. A História
havia-lhes traçado destinos diferentes. A H erm enegildo Carlos de Brito
Capelo c Roberto Ivens, destem idos exploradores da causa imperial, como
ficaria registado à posteridade na H istória das explorações coloniais, não
lhes interessava os hom ens e os seus hábitos, m as os traços sinuosos dos
rios, os m ontes e vales, a geografia da exploração. O sextante e o m ag-
netóm etro eram instrum entos de m aior valia que os cansados carregadores
de amostras da selva e savana africanas. A Nhabezi, trânsfuga do exército im
perial, os hábitos e costum es das gentes da terra im pregnaram -se no
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dos gostos dc Nzinga. Vivia para Nzinga. Os m aus hum ores desta recaiam
sempre na escrava. Dois anos m ais velha e com um corpo mais avantajado
nas ancas, cabia-lhe pôr-se na dianteira em situações de perigo. Cumpria-
-lhe defender N zinga da agressividade de outras crianças da corte. As lutas
entre crianças rivais faziam-se com as respectivas escravas. Suna esmerava-
-se por defender Nzinga. M uitas histórias ficaram desse tem po de alegrias
contidas e incontidas. M as as duas, já em terras de N habezi, haveriam de
se recordar, de entre outras façanhas, da cobra que paralisara o corpo dc
Nzinga. A serpente, enrodilhada sob as cobertas de Nzinga, assustou-se e
pôs-se em posição de ataque. Era uma serpente venenosa. N zinga não
m exeu um músculo.
- Sempre tiveste medo de cobras. Com os crocodilos pouco te preo
cupavas, disse Suna.
- As serpentes são mais traiçoeiras.
- Os crocodilos atacam , as cobras defendem-se, retrucou Suna.
- N ão importam as m anhas, mas as cobras perturbam -m e. Mas de
fendeste-me.
- Libertei-me do medo.
- N ã o me vou esquecer dos teus olhos...
- De medo.
- De raiva, Suna.
- De medo.
- É o segredo que fica.
- N u n c a tivem os segredos.
M aneiras suaves de term inar conversas. Hábitos herdados da infân
cia habitada por longos silêncios cortados por frases simples e leves. Em
adultas, mais do que na adolescência, achavam -se am igas e até íntimas,
pois entrcgavam -sc com m aior frequência a confidências que não se es
tendiam a outras m ulheres da corte. N a verdade e para sc ser mais preciso,
a am izade entre as duas cim entou-se quando perderam a virgindade. Até aí
a relação tocava o superficial, navegava em generalidades e pontuava-se
no óbvio. A grande virada na vida delas deu-se precisam ente na noite em
que Suna propôs-se dorm ir com o branco Nhabezi.
Ainda aturdida com as palavras de Suna, N orina levou tem po a
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ler o seu m apa interior. Os anos de observação perm itiram -lhe decifrar os
seus códigos de conduta, as estradas temperamentais, os lagos das emoções
e as escarpas dos seus desesperos. E ela pouco sabia da sua escrava. M as
em parte asscm elhavam -se, pensava. Como ela, Suna nunca fora m ulher
de espaços abertos, de libertar a voz ao vento, de trocar segredos no rio. Os
seus passos não despertavam curiosidade e pouco se preocupava cm puxar
as sementes à sua esteira. Sabia que havia escravas que se abriam ao terreiro,
que se davam aos segredos nos poços de água, que se entregavam como
am ásias c que sc faziam de correios dos segredos da alcova. Suna esteve
sempre longe das intrigas da corte. E tal distanciam ento deveu-se à força
m atrilinear de Norina. N as poucas, e foram duas, tentativas em desposá-la,
Suna refugiou-se em prantos à m ãe Norina, dizendo preferir a morte a ter
que separar-se dc Nzinga. Na prim eira ela tinha dezasseis anos c N zinga
catorze. Um guerreiro de etnia vizinha, encantado com o rosto de sorriso
fechado, quis esposá-la, m as as lágrimas de N zinga e o incontrolado choro
de Suna levaram Norina a afastar o pretendente. Na segunda, Suna interpôs-se
com a razão dc m ulher adulta entre os pais biológicos e a mãe N orina, afir
m ando que seu desejo não estava no casam ento, m as na protecção de
Nzinga. Tinha dezoito anos. O destino estava traçado.
- U m a escrava não entra nos aposentos mais íntimos do rei sem que
ele levante a mão da anuência. Tu não és nada, Suna.
- Eu só quero ajudar.
- Sei, disse Norina. Nervosa e com pouco espaço de manobra, N orina
andava de um lado para o outro. A palhota tom ara-se pequena para os seus
passos angustiados. Queria ajudar a filha. iMas não encontrava o meio apro
priado. De fora, m as m uito de fora, a hipótese de solicitar o apoio ao rei. E
cada vez que tal im agem lhe perpassava p ela m ente, ela repelia-a com
veem ência. Onde sc viu um rei interferir em assuntos de alcova m al re
solvidos? O rei fica de fora, pensou. Cabia-lhe a ela e só a ela, a tarefa de
encontrar uma solução ao problema. As conselheiras pouco se prestavam às
decisões do mom ento. E foi nesse ínterim que a filha resolveu sair dos seus
devaneios e dizer a m ãe que ela e a Suna iriam resolver o problema.
- Como?, perguntou a mãe.
- Encontrarem os a maneira.
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- O caso passou...
- Houve chatices com a mãe. N ão me largava. Quase que levantava
suspeitas. Para o Nhabezi o caso ficou entre nós. M ais ninguém devia saber.
Aliás, na m anhã seguinte, só me disse que foi agradável o desbaste da mata.
São m ulheres m aravilhosas, sentenciou. E não falamos mais do assunto. A
mãe é que queria notícias.
- Que notícias?
- Não acreditava na filha. Dizia que a moça ocultava-lhe a verdade.
- Porquê?
- Pela tranquilidade de N habezi. Achava que a filha não seria feliz.
Queria, a todo o custo, a opinião do rei.
- Preocupação legítima.
- Mas calci-lhe com panos. Dissc-lhe que eram oferta do rei pela generosi
dade da filha e da cscrava. Mas ela continuou desconfiada. Nunca lhe ocorrera tal
situação na vida.
N a verdade N orina não esteve cm si durante a noite de núpcias. Após
a saída da filha, tratou de rejeitar a com panhia das conselheiras, dizendo-
-lhes que estava tranquila e que passaria bem a noite e que fossem à von
tade e que nada dissessem a terceiros sobre a conversa que tiveram. Con
trariadas, as conselheitras retiraram-se. Ficou só e às voltas com os seus
pensamentos. Sorte sua foi o rei não a solicitar. Caso a cham asse notaria o
seu não à vontade. E isso contrastaria com a natural alegria das mães em noites
dc núpcias. M as na m anhã seguinte o rei M bada quis pormenores. Aliás, a
corte soli estava expectante. Todos queriam saber das qualidades da carne
branca em entranhas negras. Em tais ocasiões os rum ores correm rápido.
D iziam à boca pequena que N zinga virara palha revolvida até à exaustação
pelo m usculado branco, m etam orfoseado em elefante que urrou de satis
fação na noite de trem ores na palhota de hóspedes. Os cabelos do branco
transform aram -se em trom bas inquietas sobre os seios erectos que am ole
ceram como o m uchém atacado pela fúria devoradora de pangolins fam éli
cos. Outros afirm avam que o branco e a preta conubiaram -se de tal ordem
que tom aram a forma de zebras felizes no preto e branco das cores de paz
e tranquilidade. A felicidade estava com eles. Os mais cruéis, dado o silêncio
que tocava a palhota de hóspedes na m anhã das incertezas, aventaram a
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distava da vila em uma manhã e meia tarde de marcha e abriu o seu coração
às recordações que o tem po agastara. Sem o saber, m orreria de sono tran
quilo, m eses depois da visita de Chiponda e A daliano Gregódio.
- O António não saberá da morte do pai, disse Adaliano a Chiponda.
- Isso não o afcctará.
E era facto, pois Nhabezi, ao tomar conhecimento da existência de um
filho com a finada Luiza dos serviços auxiliares de Sena, qui-lo em suas terras
no convite formulado por C hiponda na segunda e última viagem que fez à
vila dc Sena. M as .António recusou viver com o pai e outros pretos do sertão
profundo.
- N ão nasci para viver em aringas, disse. E em tom sentencioso,
rematou: O pai é um foragido da coroa. Eu sou português.
Ante as estranhas palavras, Chiponda e Adaliano não se deram ao tra
balho de entender o que era coroa e foragido e m uito m enos o ser por
tuguês. Trataram dos seus negócios e, no fim, limitaram-se à despedida de
rotina. N ão mais se cruzaram. A ntónio term inaria os seus dias como um
simples e obscuro funcionário das alfândegas de Quelimane. Pensara que
a sua cor mestiça seria de grande valia na vila onde, em núm ero crescente,
outros mestiços se firm avam em grandes famílias que locupletavam a vida
urbana, pródiga de histórias que as Donas, senhoras mestiças de prestígio
firm ado, protagonizavam . Mas a condição de m estiço do interior e sem
apelido nobre, rem eteria António Escrivão à condição de cidadão subal
terno. Casado com uma m estiça da vila interior do Chinde, António deixaria
a vida com a m esm a pacatez com que a vivera e uma prole de seis filhos que
renegariam, por incompatibilidade, à nobre condição de mestiço, raça desta
cada do ordinário cafrc que assumia, sem se importunar, apelidos detestáveis
como João Sem Vontade, ou Francisco Pega Merda, o apelido de Escrivão,
retomando o do desconhecido Gregódio que morrera feliz em terras altas da
Zambézia.
Em proles num erosas a relação afectiva é m uito ténue e quando
irm ãos crescem em m undos diferentes a relação tende a tom ar-se m ais
precária. Adaliano adm irou em António o conhecim ento deste da língua
portuguesa que a sua postura urbana. N ão o cativou aquela vida sedentária,
cheia de regras e poses e aqueles maneirismos no trato da roupa e do cabelo.
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CHO RIRO
A ele se referiria, anos mais tarde, como um hom em sem carácter. O An
tónio é uma pessoa sem vida. Ele não tem cheiro, dizia. Sempre m etido
naquelas roupas engom adas, o tipo não sabia a nada. Era com o a água: não
consegues segurar. Um hom em sem sab o r... Outra lem brança que ficou do
fugaz relacionam ento foi um alm anaque de banalidades com o qual se ape
gou com fervor de um neófito ao longo de toda a sua existência, la sole
trando as mesm as letras e frases com o à vontade de um principiante. D a
vida do irmão nada dc assinalável ficou para a história senão que João de
Andrade o registou com o nom e de António, em lem brança do pai de des
tino incerto, e Escrivão, em alusão à profissão alm ejada por Andrade para
a criança que cresceria na repartição, aprendendo as regras dc assentamento
para a alegria do tutor que m uito se entristecera por os filhos não se
quedarem à escrita e aos afazeres burocráticos.
E tudo começou quando aos dois anos perdeu a mãe e João de An
drade, cm presença do órfão sem outra ancestralidade que o pai desconhecido,
tratou de o registar e m andar à escola paroquial onde se destacou nas con
tas c cópias. N ão se lhe conheciam amigos de peito. Os filhos de Andrade
tratavam -no com cordialidade e distância, em parte devido ao seu carácter
recatado e sombrio. D istanciava-se dos colegas c agarrava-se a Andrade,
fazendo-se de moleque para todos os afazeres da administração de Sena. Ao
tem po da prim eira visita de Chiponda ele desem penhava as funções de es
crivão auxiliar por a raça não perm itir ocupar lugar cimeiro, mas que no
quotidiano a escritura c outros trabalhos burocráticos ficavam à sua inteira
responsabilidade, dado que o escrivão de nomeação entregava-se com maior
dinamismo às demandas das suas terras que às escrituras públicas.
N a m anhã em que A ndrade os apresentou, ele estava absorto na pilha
de livros de assentam ento na casa civil da administração. Com uma caneta
de aparo entre o polegar e o indicador, o homem ia arrumando letras nas linhas
horizontais. A casa, com três divisões, era um edifício de tijolos queimados
coberto de telhas. De dimensões modestas, o edifício ficava a poucos passos das
largas e imponentes casas onde outrora viveram os Exmos Governadores da
A dm inistração c os G enerais dos Rios de Scnna, hoje desgastadas e
habitadas por oficiais e funcionários de baixa patente, por os superiores se
encontrarem em Tete, vila que assumira a responsabilidade administrativa do
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- O quê?...
- Ele vai conseguir?
-A h !... N ão sei, Adaliano.
- M as tu é que levaste os curandeiros.
- Isso não quer dizer nada. Há outros que tentaram viver para além
da m orte, m as nada conseguiram . N ão é qualquer espírito que entra no
m undo dos espíritos m pondoro. Não basta ser rei. E preciso ter espírito de
rei.
- Ele conseguiu ter.
- É. Teve espírito de rei.
O olhar de Chiponda abriu-se à noite dos tempos. E as imagens foram
chegando, em catadupa. D ezenas, centenas e centenas de achicundas
entregavam-se a Nhabezi, fugindo à fome, à deportação e à razia dos reinos
de M onom otapa e dos Angunis. Estes, subindo e descendo pelo vale em
vagas sucessivas, durante anos, foram arrasando prazos na margem norte e
sul do rio Zambeze.
Os prazos, sistema que os portugueses criaram ao longo do século
dezasseis, dezassete e que consistiam no aforamento de terras por três vidas,
c por via uterina, iam desaparecendo, fruto de grandes convulsões que
abalaram o vale. Fangala, jovem chicunda, contara à chegada às terras de
N habezi que fugira da escravização e da fome que assolava o prazo onde
servia a A lberto Lacerda, branco exilado em Quelimane, dono dc terras de
mais de dois dias de m archa e com dez povoações de mais de três centenas
de colonos, entre machos e fêmeas, que se dedicavam ao am anho da terra,
produzindo milho, mexoeira, mandioca, feijão de todas as qualidades e fruta
a perder-se em pomares dc laranjas, limas, limões, bananas c outras que os
nomes, por serem com plicados, não se fixavam por tem po longo na mente,
mas que produziam fruta boa que a todos alim entava, trazendo alegria ao
prazo que os achicunda guarneciam e alim entavam de carne farta, caçada
nas incursões ao interior em busca de presas de elefantes. Mas a ganância
do filho de A lberto Lacerda, o mestiço Timóteo Lacerda, levou à ruína do
prazo. Tom ara-se hábito, ao longo do vale, os senhores de prazos deixarem
o marfim por acharem que os escravos eram mais lucrativos nas trocas comer
ciais. A procura era tanta que os donos dos prazos viravam -se para os seus
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silêncio - criou um lar para muitos. Não temos outra terra que não a que o
N habezi nos deu. Estão lá as árvores que plantám os aos nossos antepassa
dos. As nossas memórias encontram-se resguardadas em cada canto de terra
que ele marcou como sua c nossa. Ele c o símbolo da nossa existência. E
a raiz não pode morrer.
- U m a raiz bem branca.
- N unca sentim os isso. Q uando desposou a tua prim eira m ãe, a
Nfuca, não estranhou os espíritos locais. O culto à chuva dos ansengas foi
por nós absorvido. Não tínhamos terra ainda. Não tínhamos as nossas árvores,
os nossos panteões. Socorrem o-nos aos invocadores da chuva ansenga.
Depois im portám os as nossas próprias árvores. Das terras N iunguc vieram
os nossos swequiros. Com eçám os a invocar os nossos espíritos, os muzi-
m os da nossa gente. O que nos falta agora é esse grande espírito que é o
mpondoro. Se N habezi se transform ar em mpondoro, o domínio das terras,
dos frutos e dos homens estará para todo o sempre estabelecido entre nós.
Os nossos filhos e netos c bisnetos invocarão na felicidade e desgraça Nhabezi.
A terra será, de facto, nossa.
- E livres de verdade.
- E ... O im portante para nós, achicundas hom ens de diversas ori
gens, é ter um espírito territorial que nos proteja.
- Assim espero, Chiponda.
- É . .. Ele virá.
- Chicuacha não partilha dessa fé.
- Ele tem o seu Deus.
- De que não ouvimos a voz.
- As palavras Dele estão nos livros. Nós temos a voz encarnada pelos
swequiros.
- Temos que esperar.
- E. Vamos esperar.
A noite já havia coberto a floresta, o vale e a planície que teriam ainda
de percorrer até chegar ao reino. Da fam iliar terra dos soli trocaram panos
c missangas, armas e pólvora, por m arfim e cera. O com ércio com esses e
outros povos do interior já não era lucrativo como outrora. Agora, por esses
e outros recantos, andavam outros com erciantes e vários caçadores com
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do Zam beze, assistiu à descuidada morte dc três dos seus caçadores, ver
gonhosam ente trespassados pelas pontiagudas estacas de paus enterradas
em armadilhas destinadas a elefantes; o passo em falso, inadmissível em
caçadores experim entados, deveu-se, numa prim eira leitura, ao susto que
tiveram dos urros do elefante à borda da armadilha, mas, segundo se veio
a saber, tal cena incaracterística teve a ver com o não cum prim ento do
mukho - proibição de ter relações sexuais com esposas ou concubinas em
noites que precediam a caça. Quem quebrasse o tabu veria a caça fugir-lhe
ou corria o risco de ser abatido pelo elefante. Sabiam que quem infringisse
o interdito seria perseguido pelo elefante, pois este, dotado de um faro
incom um , detectava os odores sexuais im pregnados na carne. E esses
olores, no dizer dos caçadores, embriagavam os elefantes que já pouco con
trole tinham de si em épocas dc acasalamentos.
Sabendo, por outro lado, que o tem po de estada nas matas era, em
geral, superior a duas semanas, os achicundas estenderam a abstinência às
mulheres que em casa aguardavam pelos seus homens. E para que a fideli
dade fosse efectiva os achicunda impuseram o likankho. Para tal, os homens
m atavam uma cobra venenosa donde extraiam o pâncreas que secavam e
m oíam . O pó, conservado longe de olhares intrusos, era m isturado, em
quantidades bem sopesadas, em véspera de partida à caça, na com ida da
mulher. Se ela ousasse m anter relações sexuais, o hom em m orreria, e o
m arido, em plena caça, sentiria dores e febres prenunciadoras do adultério.
Temendo o vitupério e o ostracism o, muitas suicidavam-se, e outras,
como Laika, mulher de um dos homens de Kambamula, o responsável pelos
caçadores, aqui designados necum balum es, preferiam internar-se nos pân
tanos dos afluentes do Zam beze que suicidar-se e deixar o corpo insepulto,
entregue aos abutres como sinal de infâmia. Como m edida dissuasória, as
m ulheres adúlteras viam o cabelo rapado com o o das viúvas e, para as
distinguir das que a morte separara dos maridos, usavam argolas de baixa
categoria que tilintavam com relativa frequência no pescoço que vergava dc
vergonha. M uitos dos hom ens preferiam entregar as m ulheres adúlteras
com o escravas dom ésticas a outras com unidades que assisti-las ostra-
cizadas. Mas em geral poucos foram os casos de infedilidade publicamente
assistidos em vida de Nhabezi.
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vastidão do seu rumorejar, na loucura das suas ondas e nos pescados que à
superfície chegavam para o contento dos pescadores, transportados, não
em canoas ou alm adias do Zam beze distante, m as em barcos com velas
desfraldando ao sabor dos ventos acalorados ou calm os, dependendo da
hora e da época.
D epressa se adaptou à vila de Q uelim ane, mercê dos dotes em de
senho na nobre função de topógrafo que o levou a conhecer pessoas, lu
gares c a dem arcar com precisão terrenos conflituantes. A m ãe não
reconheceria o filho, assum ido cidadão português dc terceira categoria. E
esse desconhecim ento fê-la impetrar, com m aior fervor, aos ancestrais es
píritos a protecção do filho contra as maleitas dos brancos. Coisa que não
fez à Luiza, filha que fugira com um dos homens de D avid Livingstone, e
se instalara no baixo Chire, tom ando-se uma das dam as de grande prestí
gio na corte do famoso estado dos makololos. Por ela, quando as imagens
afloravam, abanava fervorosamente a cabeça, em sinal de esconjuro. Coisa
que ora fazia, despertando a atenção de Salinda, que passava pela varanda
com um com penetrado ar de viúva recente e preocupada.
-A p e n s a r, N fuca, perguntou Salinda, segunda consorte de N habezi,
accrcando-se dela.
- A noite está prestável.
- Não há nuvens.
- Nem vento.
- O tem po está m uito bom.
- .. .para pensar.
- N o nosso homem.
- N o dia de amanhã, Salinda...
- Tens razão. O teu filho Lefasso terá estas terras às costas.
- É o que me preocupa.
- Porquê?
- O batuque não foi bem esticado.
- O fogo que arde para as crianças, aos adultos já não serve.
- N ada se pode mudar.
- O que foi gerado não faz vomitar.
- É ... Q uem deu à luz não sc admira.
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com o intenso coriscar de olhos de felino que tom aram conta de José de
Araújo Lobo, agora chamado Mataquenha, por suas atitudes assemelharem-se
a esse m inúsculo e introm etido anim al, cientificam ente conhecido por
«tunga penetrans», dotado de capacidades de se alojar em carne hum ana e,
sem dó de qualquer espécie, corroer o tecido humano com toda a ferocidade
de um parasita hem atófago feito dono e senhor dum território conquistado
na falsidade, no embuste, na perfídia e na violência que se tomou característica
dos métodos de conquista de espaços quando a m áscara da im postura se
tom ou evidente para m uitos dos reinos A nsengas, Am bos, laias, e outros
que com frequência se submetiam às forças de Matakenya, deixando, como
relatavam os anciãos, que «em cada aldeia houvesse um chicunda repre
sentante de M atakenya responsável pela cobrança dos im postos da popu
lação local em benefício dele. Estes chicundas controlavam o com ércio de
m arfim, escravos e cobre em nom e de M atakenya. A dquiriam estes artigos
pela força junto dos habitantes locais, ameaçando m atar a tiro ou escravizar
qualquer aldeão e respectiva fam ília que vendesse m ercadorias destas sem
autorização do representante local de M atakenya». Este m étodos nada
suaves para com as populações locais ficaram grafados nos apontamentos
de um expedicionário inglês de nome Sharpe que, em passagem pelas terras
dc M ataquenha, cscrcveu ser « ... verosímil que estejam a ir para a caça aos
elefantes, mas isso quer indubitavelm ente dizer que, tal com o em todas as
incursões de M atakenya, vão fazer guerra de extermínio a todas as tribos
mais fracas que encontrarem pela frente, roubar, matar, etc., e afigura-se- me,
pela grande quantidade de provisões que trazem , segundo se diz, devem
fazer tenção de sc instalar perm anentem ente no luapula onde, diz-se, abun
dam os elefantes». A alta Zam bézia m udava dc paisagem e de canto. M as
Lucrécia pouco se preocupará com as actividades de M ataquenha. Bastou-
-Ihe aquele olhar profundo e negro que reluzia quando molestado c os ca
belos negros c corridos, bem lustrados com óleo, para se em bevecer com o
príncipe pouco afeito aos Nhabezi, muito em particular a Lefasso, que tanto
menosprezará, por o achar inútil na governação das terras e na perm anente
hesitação em se entregar ao tráfico de escravos, m ercadoria em grande
procura nos mercados paralelos que se montavam na costa indica, longe
das naus fiscalizadoras que sulcavam as águas dos oceanos, com destino às
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Que ela se m antenha no seu leito e dê as cam balhotas que quiser, mas que
deixe o rei cm paz dc espírito... Vocês não sc m elindram com o sorriso de
Salinda, mas com a incapacidade de se colocarem ao lado do N habezi, e
com ele se rirem das coisas banais da vida, tom arem -se com uns, humanas,
e gozarem o sol com o vosso hom em , e não im pacientarem -se com a
dem ora aos prazeres da noite!...
- Entreguem -se às vossas vidas de mexericos longe da Salinda!... E
contentem -se com as parcas noites que o N habezi vos dispensa. Vá,
andem !..., sentenciava N fuca, visivelm ente nervosa.
E elas, M assita, de olhos atrevidos, Sajinga, dc ancas fartas, aci
catadas por M alidza, a mais jovem das m ulheres, sempre m etida em quere
las de tudo e nada, ávida em ocupar lugares cimeiros, lá onde a atenção de
Nhabezi é m ais cuidada, recuavam , pouco convencidas das falas de Nfuca,
m ulher que respeitavam mais por ser a prim eira do rei e responsável por
elas no dia a dia da corte, do que pelos seus dotes dissuasórios.
Longe delas e rem etida ao seu mundo, estava Nzinga, terceira esposa
de Gregódio e pouco m etida nos assuntos da corte com outras consortes.
Passava grande parte do seu tempo com a escrava Suna. Era frequente vê-las
passeando pelos mais de dois quilóm etros de extensão da aringa real,
dando-sc ao respeito dos súbditos que as viam sem as penas da jactância de
algumas m ulheres de N habezi, pródigas em vitupérios às niapungo, anciãs
que se dedicavam à iniciação de jovens, por estas não prestarem a devida
educação às raparigas pouco afeitas às genuflexões de tudo e nada, sempre
acom panhadas pelas escravas que tam bém se davam ao deslustre de
afrontarem as anciãs, para além do tratam ento vexatório que dispensavam
às simples mulheres com que se cruzavam, no dia a dia da aringa real, local
de residência de mais dc três mil pessoas, divididas em seus múltiplos afazeres,
c querendo sempre distância das coisas da corte, por acharem um mundo
melindroso às suas vidas de súbditos já privilegiados por viverem na aringa
real e executarem tarefas de m aiores privilégios e não sujeitos a adm oes
tações ou trabalhos forçados a que os acutemos, os chamados escravos agrí
colas, estavam sujeitos, a trabalhar, m anhã e tarde, em terras altas,
cham adas m efala, cultivando m exoeira, m apira e milho, ou em zonas ad
jacentes ao rio, conhecidas por dimbas, onde afloravam os vegetais, batata-doce,
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m ilho e arroz, em quantidades invejáveis, por serem zonas irrigadas pelo rio
Aruângua que também se mostrava generoso no abundante fornecimento de
peixe à aringa real, afastando o ccnário de fom e que muitos dos achicunda
conheceram em recuados tempos de serviços a senhores de outras regiões do
vale do Zam beze e que agora, com a abundância das vitualhas prendadas
pela terra e água em dem asia, agradeciam a N habezi por este os tratar com
a respeitabilidade hum ana que não viam em muitos brancos e mestiços, não
desejando, portanto, que as suas mulheres, em quezílias sem im portância,
fossem mal vistas junto à corte, daí a sujeitarem -se aos esgares e insultos
das mulheres escravas de algumas das consortes de Nhabezi, coisa que não
viam em Suna, m ulher de m uito respeito para com as esposas dos achi
cunda c outras, solteiras e jovens, ligadas às niapungas que as adestravam
para a sexualidade e outras urgências de m ulheres adultas.
A dm iravam Suna por ser das poucas, senão a única, a conseguir
arrancar um sorriso, uma gargalhada funda, de João Alfai, homem de que
se desconhecia relação com mulher, facto sujeito a mexericos das escravas
da cortc e não só, m as que Suna, pelo seu silêncio, não deixava avivar, m o
rrendo o boato, ou circunscrevendo-se à pequena corte dc intriguistas,
invejosas em ver os seios de Suna ainda hirtos, provocadores, não sujeitos
aos estragos dos afagos nocturnos ou à am am entação, causa prim eira do
am olecim ento dos seios e não as carícias, que essas não existiam, pois os
prelúdios sexuais não eram prática nos achicunda, ou em outros povos do
sertão, lim itando-se as m ulheres, nos frequentes encontros am orosos, a
entregar a vulva e a m enear as coxas, em ritmos cadenciados ou convul
sivos, dependendo dos estrebuchos do companheiro.
- Ele virá?, perguntou Salinda, tentando sair do silêncio que a
perturbava.
- E o que todos nós esperam os, respondeu Nfuca.
- E o que será de nós?
- Nós o quê?
- A nossa vida.
- Ele vai dizer.
- O quê?
- N ã o sei.
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das águas onde os hipopótam os, afastados das margens, sacudiam os pesa
dos lom bos a cam inho da m ata do dejejum. O rio A ruângua brilhava na
noite. Os crocodilos, em respeito ao espírito que se libertava do corpo, va
gavam à superfície das águas sem o apetite egoísta de séculos.
- O N yazim bire aguarda-nos, disse N fuca, olhando para Salinda
debruçada sobre a varanda de madeira da casa grande.
- Vamos.
As viúvas dirigiram -se à palhota de N yazim bire, local onde recebe
riam m ezinhas a m isturar nas águas do banho purificador. A ntes de o sol
raiar teriam que tom ar o banho de ervas e envergarem os panos do luto.
Dispostas em redor do N yazim bire, as viúvas contiveram sorrisos
ao verem outras consortes com as cabeças totalm ente rapadas. Pareciam
escravas recém aprisionadas a cam inho do cativeiro. Numas sobressaiam
socalcos, pequenos vales, noutras, cordilheiras alcandorando-sc em planí
cies ponteadas de pequenas elevações a condizerem com term iteiras aban
donadas. Envergonhadas da nudez do couro cabeludo, as viúvas olhavam,
de soslaio, para as outras, para se sentirem fortificadas na solidão da viu
vez. Pela natureza da poligam ia, as consortes de Nhabezi raram ente se en
contravam e entre cias form avam laços de solidariedade em função de
interesses e sim patias. Daí que a Salinda se sentasse ao lado de N fuca, à
direita de Nyazimbire, seguida de Malidza, M assita e Sanjinga, estas muito
juntas e defronte ao Nyazim bire. A esquerda deste e ligeiram ente afastada
das dem ais estava N zinga, m ãe de A daliano, filho único do seu ventre,
jovem dado a aprendizagens de costum es. Silenciosas, e trocando olhares
de expectativa, iam-se respeitando no silêncio da viuvez comum, respondendo,
quando necessário, com o menear da cabeça e um ocasional sim ou não aos
falares de Nyazimbire. A dizer algo só a Nfuca cabia discursar em nome delas.
O curandeiro ia abanando, em movimentos circunvolares com o pulso
direito, a cauda de hipopótamo, enquanto espalhava pós e líquidos sobre os
corpos das viúvas sentadas nas peles de gazelas e cabritos e leopardos e
outros animais que cobriam o chão de adobe da casa de cerim ónias do ofi
ciante N yazim bire. Tirando N fuca, nenhum a das outras cinco m ulheres
havia entrado na casa das rezas dc Nyazimbire, curandeiro de confiança de
Nhabezi e que afiançara ao rei, cm sucessivas consultas ao ossículos, da
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em razias que faziam às terras sob sua protecção. Sentia-se algum a fres
cura no hom em . Os cabelos brancos davam um brilho hum ano ao rosto
marcado pela dureza das noites sem tecto e dos dias de febres exaltadas,
m olificadas pelas ervas dos niangas, nom e que os curandeiros tinham.
N kam bam ula recordou-se de o ver, nos dias que antecederam à partida, re
unido com os seus lugar tenentes, ouvindo c ditando ordens a serem exe
cutadas; via-o circulando pela aringa, prestando atenção às árvores, ao latir
dos cães c às preocupações dos homens. Naqueles dias alegres, Nhabezi deu-
-se ao luxo de visitar, em pleno dia, as casas das mulheres, demorando-se em
conversas que provocaram risos prolongados pela tarde e noite adentro.
Acompanhado por Ngulube, responsável pela sua segurança, Gregódio passou
m anhãs e tardes entre as bigornas, vendo os m essiris tratando o ferro e
fabricando a pólvora. Agradava-lhe estar na m ata cerrada, verdadeira ilha
dentro da aringa, vendo as gogodas tom ando forma. As oficinas de armas
eram o seu orgulho.
- E difícil acreditar que o hom em que vim os circulando pela aringa
tenha m orrido, disse N kam bam ula, virando-se para Sejunga, filho de
Gregódio e terceira sorte de Nfuca.
- Ele já se queixava dos ossos.
- É um a doença que o vinha atacando há anos.
- Terá morrido disso?
- Não morreu, Sejunga. Libertou-se dos ossos que o incomodavam há
anos. A gora virá de uma outra forma. O seu espírito irá habitar na carne de
uma pessoa por ele escolhida.
- Seremos nós, os filhos?
- N inguém da família.
- É pesado alguém transportar duas almas.
- Mas c uma honra que cabe a poucos.
- Se o espírito for bom.
-N h a b e z i não m orreu contrafeito com a vida. E ninguém lhe lançou
pragas.
- G ostava de ouvir Chicuacha.
- Não é pessoa para se ouvir, Sejunga. Ele ainda tem alma branca. É
diferente do teu pai.
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-N u n c a gostaste dele.
- Para te ser sincero, não.
E cra verdade. H á anos que se evitavam . E sem razões aparentes.
Nkambamula, pura e simplesmente, nunca se deu com Chicuacha. Achava-o
um intrometido na corte, um vigarista como muitos que vira em tempos do
falecido Bento Roiz Perdigão. Tivera, na época, oportunidade de ver bran
cos com sotainas açoitando, sem motivos plausíveis, homens e mulheres nas
propriedades que iam erguendo pelo vale do rio Chire e outras zonas cir
cundantes ao rio Zam beze. Recordava-se do padre D om enico, hom em de
barba farta, entroncado em músculos e grosso na fala semelhante aos grunhi
dos de porco, cujos hábitos, em dias santos, era obrigar os escravos a
assistir à missa aprisionados por cordas e forquilhas; dizia ser a única forma
de os indígenas se libertarem da vida dissoluta e inerente ao Senhor. Era dc
se ver, aos domingos, cerca de duzentos pretos, em terreiro circundante à
igreja, ouvindo m issa em língua que os pretos e brancos como Roiz não
entendiam , pois Dom enico m inistrava as liturgias num latim que soava a
cana-de-açúcar a rachar-se. Fora isso e o apregoado celibatarismo que só os
céus podiam entender, os pretos fingiam acreditar que o número crescente
de patrícios, designação que se dava aos mestiços, era fruto da devoção das
m ulheres ao Deus que resolveu aclarar, em gerações abençoadas, a tez
negra do pecado. Desses e outros acontecim entos que vivenciou, levaram
N kam bam ula a apartar-se dos actos genuflexivos que muitos prestavam a
esses servidores de Deus que rasgavam o interior africano com as suas bati
nas e cruzes e bíblias. C hicuacha, filho dessas seitas dc corpos enver
gonhados, não o convencia.
- Ele tem-se mostrado um bom homem, disse Sejunga, cortando o silêncio.
- Q uando a cobra resolve m udar dc pele finge-se morta.
- Chicuacha já é da casa.
-V a i-te fiando...
- São vossas zan g as...
- E possível, m as o coração dos homens de batina bate de maneira
diferente ao nosso. E entra ardilosam ente nas nossas m entes. Vê o que
fizeram ao Alfai.
- Boa pessoa.
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metido nos interiores da caça, pouco espaço tinha a entregar à mãe. Quando
se encontravam, os diálogos eram curtos e rápidos, seguidos de silêncios de
dias e meses. Lefasso, fisicamente próxim o, dialogava com a màe através
de oferendas de esculturas representando o m agôa, nom e que o abutre
tom ava nas línguas locais. G ostava desses animais que apareciam em ban
dos, grasnando ruidosamente quando a carne morta exalava o cheiro pútrido
pela savana. Os abutres em ferro e m adeira que esculpia aproxim avam -se
a essa espécie em abundância nas terras de Nhabezi: os abulres-dc-capuz,
animais de cabeça cor de rosa e sem penas, ostentando um capuz acinzen
tado, num corpo coberto por um a plum agem castanho escura.
Por o acharem um a palhota sem tecto, poucos se preocuparam , de
início, em entender a ligação de Lefasso aos anim ais da morte, do m au
agoiro, do luto. Para ele e fora do socialm ente aceite, os abutres eram os
purgadores das im purezas terrestres, seres talhados a retocar a natureza,
devolvendo o odor natural que a carne pútrida em pesta à terra. Ninguém
dava im portância aos seus devaneios. E poucos lhe deram ouvidos quando
a natureza se enganou c fez chegar às terras ansengas os abutres barbudos,
espécie típica das montanhas, animais de cabeças e pescoços em plumados,
pormenores ausentes nos primos da savana e outras zonas áridas e semi-áridas,
bichos que Lefasso considerava de elite por se alimentarem quase exclusi
vam ente de ossos donde retiravam a m edula óssea, daí não terem o pescoço
nu, por não se entregarem à desgastante tarefa de introduzir a cabeça e o
pescoço entre os ossos à procura de restos. São os eleitos, dizia Lefasso.
N inguém ligava, por acharem norm al, depois do espanto da novidade, a
natureza ofertar-lhes visitas de espécies de outras latitudes, como há tem
pos acontecera com a chegada de chimpanzés que alarmaram centenas de
babuínos em permanente atalaia ante a inédita espécie que não quis guerrear
pelo espaço, por se acharem minoritários e perdidos, dado o seu habitat situar-se
na região dos grandes lagos c não nas terras do vale de A ruângua, zona
privilegiada de babuínos que não encontravam concorrentes da sua espécie
na disputa de espaços terrestres. Havia os de vida m ais arborícola. M as os
babuínos gostavam de se locom over pela terra. E os chim panzés também.
D aí o receio, os pequenos tem ores dos donos dos espaços terrestres. Em
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silêncio chegaram e retiraram -sc, passado pouco tempo, para alívio dos
babuínos.
De princípio, as palavras encom iásticas de Lefasso soavam a vento.
M as quando os abutres barbudos, também conhecidos por quebra-ossos,
ou abutres-das-m ontanhas, acam param por um a tem porada relativamente
longa, a inquietação tom ou conta das pessoas e as palavras de Lefasso
passaram a ser tomadas em conta. Ele pode ter razão. Interpretemos ao con
trário o que ele diz, afirmavam.
A m edrontadas com o novo, as populações aliaram a presença dos
desconhecidos necrófagos a um sério aviso à eterna desgraça que se abate
ria sobre as terras com a crescente invasão de caçadores desonestos,
invadindo terras sem o respeito pelas regras secularm ente instituídas. O
N yazim bire, o conhecido curandeiro-mor, que acabara de accitar os prés
tim os de C hatula nos assuntos da m acom a, alvitrou o aparecim ento dos
quebras-ossos ao anuim ento dos espíritos de terras desconhecidas à trans
m utação de N habezi em espírito aglutinador dos achicundas. Por isso, e
fazendo uso das suas qualidades prestidigitadoras, tratou de apaziguar os es
píritos m ais cépticos, as almas mais frágeis e os ouvidos menos selectivos.
Os quebra-ossos são a benção da natureza, a saudação dos espíritos dis
tantes cm aceitar a transm utação de um branco em protector espiritual dos
pretos que dera terra e segurança, dizia aos da corte de modo a trasm itirem
confiança nos achicundas e população em geral. Animais assim, acrescen
tava, não vinham de terras onde pessoas, com intenso calor, pouco valor
davam à vestimenta, mas de terras onde o frio e a areia branca obrigavam
as pessoas a refugiarem -se em vestes incómodas que lhes dificultavam os
passos e a fala. Estes magôas não são nossos, vêm de longe, lá de terras de
fraco sol. A legrai-vos com a presença destes visitantes que não procuram
carne morta, mas ossos do branco que perm anecerá entre nós com o seu
espírito protector. M anhã e tarde, com sol ou chuva, os quebra-ossos
postavam -se nas paliçadas da aringa real como que à espera dos ossos do
branco Nhabezi.
Relutante em aceitar a teoria de N yazim bire estava N habezi que em
vida nunca vira abutres de montanha e jamais lhe passara pelo imaginário con
frontar-se com abutres de pescoço coberto. A sós e longe dos ouvidos atentos
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da cortc, N habezi confessaria a N yazimbire que jam ais vira, em terras bran
cas, abutres daqueles, ao que este retorquia, dizendo que os ossículos foram
concludentes ao lhe apontarem terras com areia branca e gente coberta com
casacos de peles de animais e casas dc pedra. As casas, sim, Nyazim bire,
são de pedra, a areia branca em zonas de m ontanha têm aparecido e o frio
é intenso em época própria, nisso os ossículos dizem verdade, mas no que
toca aos abutres,... Isso, Nhabezi, é ciência tua achares que a areia branca
só devia cobrir a tua varanda c a dos teus avós; os osssículos falam de terras
altas e longíquas. É bem possível, povos há que não estão adestrados à
navegação por não possuírem m ar ao rebordo da terra. Estes m agoas não
conhecem o m ar c nem se aventuram por terras quentes, m as em sinal dos
teus antepassados de terras frias e altas, aqui se encontram para te dar forças
nos desígnios que te propuseste atingir ao quereres transform ar-te em
espírito protector que se alojará em pele preta, ou nas carnes do m pondoro
que rugirá dc satisfação em noites de precipitadas fugas de caçadores
furtivos nos teus espaços de caça. Se assim o dizes, satisfeito fico com as
adivinhações dos ossículos. Pouco preocupado estarei, agora, com a m inha
sucessão. Aí tc enganas, Nhabezi. O Lefasso terá que aprender os rudimentos
da cortc. Para isso estás tu e o Makula, o Chiponda e o Tyago e outros que o
protegerão das insuficiências no trato com reinos vizinhos e caçadores de es
cravos que vão espreitando as nossas terras. O perigo está em o suserano tomar
outros horizontes, Nhabezi. Para isso estará a mãe a refrear os desvios. A morte
de um louco nunca afecta a corte, Nyazimbire. Assim espero, Nhabezi.
-D e s c a n s a a cabeça, Sejunga, disse Mpuluka.
- Estou a lem brar-m e do Lefasso e dos abutres.
- Foi o prim eiro a dar-se conta dos quebra-ossos, introm eteu-se
Nkambam ula.
- É verdade... Eles não vieram das terras dos teus avós, M puluka?
- Era m iúdo quando de lá sai. N unca os vi.
- São animais esquisitos.
- E a alimentarem-se de carne do interior dos ossos, disse Nkambamula.
- E por isso que não se sujam e não chciram mal, avançou Mpuluka.
- Deixam que outros anim ais lim pem os ossos.
- D á para acreditar nas palavras de Nyazim bire, disse Sejunga.
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da aringa grande. Cortinas de água tom bavam do tecto das casas em sons
abafados c agudos na terra em papada e escorregadia, a fugir do tom
castanho escuro para o preto da lama que se enroscava nos tornozelos dos
bandázios em correrias de serventia de luto. Os cães dc caça, que para
espanto de m uitos haviam cessado de latir com o anúncio da m orte de
Nhabezi, ocupavam, com os rabos encolhidos e o olhar de felino espantado
com a caça perdida, os espaços vazios nas messaças, conhecidos lugares de
reunião e lazer, onde os m aiores dos reinos vizinhos conversavam sobre
tempos passados e presentes, augurando épocas difíceis com a morte do rei
branco que paz e concórdia trouxe às terras que margeam o Zam beze e o
Aruângua.
Sob a copa das árvores e com reforço de folhas e cestas c gravetos,
dezenas de homens, m ulheres e crianças teim avam em enfrentar o vento e
a chuva, por quererem ter os olhos c ouvidos presentes no acontecimento
prim eiro e único que a vida lhes dava a assistir: as cerim ónias fúnebres do
prim eiro rei branco em terras do alto Zambeze. Em grupos de dez a quinze,
as pessoas prendiam-se à volta das árvores com olhares suspensos. A chuva
não os dem ovia desses incómodos lugares no terreiro da aringa. Cientes do
seu papel secundário no curso da história do estado, os hom ens ou o vulgo,
ensopados e em silêncio, olhavam o presente m olhado sem pressas c sur
presas. Sabiam que N habezi preparava-sc para perpetuar a sua existência
para além da m orte física. Sabiam que m uitos curandeiros de nom eada
foram riscados no trato das mezinhas e que Chatula, curandeiro de fama,
fora o eleito na m edicação da macoma. N o íntimo das suas existências não
consultadas, pairava a dúvida sobre a possibilidade de o branco de pele
fraca e indefesa às arrem etidas violentas dos raios solares sobre o corpo
que sem pre se averm elhava resistir, em espírito, na selva nocturna das
almas protectoras. Era-lhes difícil conceber um branco que lhes servira com
o talento terreno como uma entidade espiritual tomando as rédeas dos vivos
no tum ulto da vida feita de incertezas. Desconfiavam dos espíritos antigos
em aceitar um a alma que tenha vivido em corpo que chegara, como outros
da sua raça, às terras pretas em galeões, vencendo ventos que zuniam nas
enxárcias e gáveas das naus com velas tesas, desafiando os revoltados es
píritos do mar, c fazendo-se à terra com a força dos canhões e m osquetes
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Nunca Ignácio, em sua estada por Q uelim ane, se dera conta da presença
mortiça de Escrivão. Casado, preocupado com as econom ias caseiras, A n
tónio Escrivão já não se esm erava na roupa e no cabelo que outrora aiisava
com a felicidade fugaz e ilusória de um funcionário de carreira. Não dava
nas vistas. N ão tinha padrinhos. Era mais um m estiço na selva de patrícios
que Quelimane engendrava e alimentava.
N a roda das poucas mas crescentes e risonhas Donas que enchiam de
alegria os luanes, pequenas propriedades que se erguiam em redor da vila
de Quelimane, onde o apimentado do oriente, as frutas c doces africaniza-
dos, os cânticos em sintonia com o rufar com passado dos tam bores, os
panos de cores vistosas engalanando corpos dengosos, davam ritm o e ale
gria aos brancos, canarins e patrícios que não se afadigavam com o tórrido
e húm ido calor que os palm ares em crescendo suavizavam em noites de
brisas suaves, António Escrivão não tinha espaço de convívio. Já Ignácio
frequentava, em bora em posição subalterna, os convívios crioulos, sem se
aventurar em atitudes públicas de libidinagem , por já se achar com pro
metido. Em com um e a revelar vivências dos interiores recolhidos, tinham,
António e Ignácio, o desfrute do m ar desconhecido que se abria às almadias,
aos escaleres, juncos e outras em barcações de passageiros e pesca. M as
esse cenário com um não se fruia à beira de Quelimane, porque a vila cra
serpenteada pelo rio em lento movimento ao m ar que se avistava a um a boa
distância das casas que form avam o perím etro do burgo e suas cercanias.
Se distância ou desnaturalização, difícil é a aferição, mas a verdade
é que Ignácio e António, não haviam recebido, como é comum em muitas
pessoas, o sinal da morte ou da gravidade da doença do parente próxim o,
no caso o pai, expresso, às vezes, em acontecimentos, sonhos ou em gestos
dc um a fortuidade duvidosa. A António, nado e crescido sem a mão
paterna, percebia-se a exclusão do sinal, o aviso agoirento, mas a Ignácio,
que de tem pos cm tempos se recordava da aringa real, dos irmãos, do pai,
e da mãe, o aceno ou prenúncio aziago, não se fez chegar ao corpo e es
pírito.
N o momento em que Adaliano mudava de roupa para se dirigir à casa
grande, sob a chuva que dim inuía de intensidade, Ignácio queim ava a
m anhã prcnunciadora de um calor incom um com croquis sem im portância
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M uito terá acontecido nas vésperas. Sabe-se que houve mais nasci
mentos que mortes na semana dc luto. As crianças nadas cm tal período c
em respeito ao finado, foram sendo nom eadas Nhabezi ou Gregódio. Entre
os m ais de três m il achicunda que constituíam o exército de N habezi,
reportaram -se casos dc luta que culminaram com trinta óbitos em todo o
território; núm ero insignificante para causar choros colaterais, mas sufi
ciente para recordar, em tempos vindouros, o choriro em memória de Nhabezi.
N a fronteira m ais a sul duas aldeias foram arrasadas por caçadores de
escravos. Foram saqueadas presas de elefante em trânsito. Homens c mulheres
tornaram -se prisioneiros. Trinta a quarenta cam poneses foram dizimados
pelo chum bo dos caçadores. D istantes e bastantes absorvidos com a
bebida c o luto, os achicundas responsáveis pela segurança não ripostaram.
A pessoa de M akula Ganunga, o muanamambo, fizeram chcgar, em hora de
balanço, a inform ação de que na euforia do álcool e do luto, duas aldeias
viram as casas comidas pelo fogo. O recenseamento populacional invocaria
o feitiço e doenças com o causadoras do fogo e das mortes. M as todos os
acontecim entos marginais à dor real ficaram ligados à m em ória dos acon
tecimentos reais. No calendário local, o tem po passou a ser dividido entre
antes e depois da m orte de Nhabezi.
Dos acontecimentos das vésperas, o que em letra ficou foram os registos
de Chicuacha, o andarilho. Do m undo vivido, da m em ória popular,
sobraram ecos, pequenos cacos. No entender de Chicuacha, N habezi viveu
o seu tempo. Fortaleceu o presente com o passado patrilinear achicunda.
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- Seremos um sonho.
- O sonho do Nhabezi feito espírito.
- E de proteger ninguém. Iremos desaparecer, Chicuacha.
- Estás a ser pessimista.
- E a realidade.
- Em exagero, Sebastiane...
- E o que assisto... Já não existem pesso a s como o Nhabezi,
Chicuacha. O Lobo que p o r aqui anda é outra história: lá está em namoros
com uma das filhas de Kanyemba. Aqui é a filh a do Nhabezi...
- O que sugeriste ao Makula?
- Que nos uníssemos mais aos chefes ansengas, bisas, solis, e outros.
A fo rça que vem do mar vai arrasar connosco.
- S ó trazes mais nuvens negras. Fita!...
-E sto u ...
- Manda alguém buscar as coisas do Sebastiane. Ele ficará connosco.
- Está certo.
A noite havia entrado. Pela aringa os achicundas davam -se as
danças de costume: o malombo, o mafue e a goteca. Em grupos de dez a
quinze, e com um coro a afinar-se mais pelo timbre que pela letra em constante
improvisação, entregavam-se às danças guerreiras. Alinhados em Jilas de
três a cinco guerreiros, os achicunda ritmavam os passos ao som dos
chocalhos a agitarem -se nos tornozelos. Outros, sob o comando directo
dos sachicundas preparavam as gogodas p a ra as salvas em honra do
finado. E em outras fogueiras, contando e ouvindo histórias, o vulgo velava,
p ela última noite, o Nhabezi, o branco Gregódio, como os mais velhos
diziam...
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nos atávicos costum es não devia ser seguida por Lefasso não se apresentar
em perfeitas condições de sanidade mental ao m ais elevado cargo do reino,
pelo que Gregódio teria que ser sucedido por pessoa à altura aos tempos que
se avizinhavam . Na sua mente não via outro senão o com panheiro dos
nedare e goweros, o irmão Adaliano, filho de N zinga, terceira m ulher de
G regódio, hom em habilitado no trato com estrangeiros. Sabia, pela per
sistência de N yazim bire no direito consuetudinário, que a sua aposta não
vingaria nos próxim os tempos. A acontecer qualquer levante, o espírito de
Nhabezi rcvoltar-se-ia contra os vivos, imprecando-os de males tão funestos
que só a terceira geração os poderia aquietar com actos exorcizantes de
curandeiros da velha estirpe e não com niangas de plantas sucedâneas aos
que os ancestrais utilizavam nas mezinhas da cura. Teria que encontrar outros
aliados à altura de convencer Nyazim bire da inadaptabilidade de Lefasso
aos assuntos de poder. Sabia que podia contar com M akula Ganunga, pois
era homem de campo, caçador experimentado, guerreiro de incontestáveis
pelejas, pessoa averssa às puerilidades de Lefassso. Podia contar com ele e
com os achicunda, e com os necum balum es, porque N kam bam ula estaria
sem pre ao seu lado, em solidariedade a um poder m ais forte. Chiponda,
homem de peso diplomático, não sc oporia, pois tratar-se-ia de colocar o seu
delfim Adaliano nos destinos do reino. O senão estava em N yazim bire e
na capacidade deste em negociar com o espírito de Nhabezi. A acontecer a
transm utação, o poder de N yazim bire sairia fortificado, porque não se
negociaria com um espírito simples e linhageiro, mas com um a divindade
cuja anuência era de elevada im portância à manutenção do reino. A mãe
estava ao seu lado, apesar do desejo em o ver com o toucado de rei; era de
fácil m anipulação, por lhe bastar a inform ação de que o poder estaria, pela
sombra, nas suas mãos.
À m edida que o ferétro ia passando, os achicundas punham -se em
sentido, saudando marcialmente o defunto com a habitual cuquenga, m arca
indefcctível da identidade m ilitar achicunda. O céu estava limpo e os cân
ticos faziam-se ouvir, a um a só voz, pela aringa em luto carregado. Os cães,
em inusitada solenidade, continuavam silenciosos desde a hora em que
N habezi morrera. Quedos e com os rabos encolhidos, os cães observavam,
por entre as pernas dos populares, a passagem do corpo. O sabevira Leio
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Posfácio
A pesar da História, ou melhor, da natureza do saber histórico, não
ser já questão pertinente no dom ínio da historiografia, até m esm o para
alguns historiadores, a verdade é que também não deixou de ser um assunto
interessante. A com prová-lo estão gerações e gerações de pensadores, his
toriadores, estudiosos da história e não só, que lhe dedicaram, e continuam
a dedicar atenção, m esm o entre nós, M oçambicanos. O debate centra-se
entre aqueles que olham a H istória como «ciência», ou os que a preferem
como «saber» ou aqueles ainda que a consideram sobretudo uma «arte».
Esta questão não é, obviam ente, pacífica, o que pode ser ilustrado
pelo debate perm anente no campo da H istória c no confronto com disci
plinas como a Literatura e a Linguística, mas situa-se m ais no domínio da
pura epistem ologia, que apenas interessa a um núm ero restrito de estu
diosos, sobretudo os m ais académicos. Assim , fiquem os apenas com esta
evidência: se para uns a História é «um a ciência», já para outros ela é «uma
arte» e, para outros ainda, «um saber». De todo o modo, quer seja encarada
como «Ciência», quer se considere um «saber» ou uma «Arte», o que é im
portante é a m etodologia utilizada, pois é isso que influencia, m ais do que
tudo o resto, a história que se faz. Em todo o caso, na História tudo isto se
cruza porque, além das questões do m étodo c da interpretação das fontes,
estão também sempre presentes a estética, a narrativa e o estilo.
É esse tam bém o caso da Literatura. Creio, efectivam ente, que tanto
a Literatura, neste caso o romance ou a narrativa histórica, como a História,
são verdadeiras formas dc arte, diria de artesanato, colocando-se nas no
ssas tradições da m esm a forma que a culinária, as danças ou as artes plás
ticas. É, obviamente, necessário que se estabeleça um ponto de encontro
epistemológico entre Literatura e História, onde se confundem análises for
mais e estruturais com outros elementos como “a com preensão do tempo,
da singularidade, do verosím il”, como diria Certeau. Ao longo dos tempos,
a literatura sempre fecundou a História, tal como esta fecundou aquela.
Assim, Literatura e H istória reclaboram -se na arte dc apresentar as
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coisas. Se por vezes se pode dizer que não definem propriam ente a inves
tigação histórica, têm o mérito de lhe dar credibilidade, mais do que fun
dam entá-la. Enquanto o rom ancista tem a arte de escrever a H istória,
humanizando-a, o historiador, à sem elhança do rom ancista, é tam bém um
artista que põe todo o seu saber naquilo que produz e pretende transmitir,
tornando a H istória em verdadeira representação literária e, ao m esm o
tempo, tam bém em arte da encenação.
A narrativa histórica está, quanto a mim, profundamente marcada por
dois aspectos, porventura form as de «estilo», fundam entais e que agem
conjugadamcnte. O prim eiro tem a ver com a preocupação do autor cm pôr
prazer nas coisas que escreve, ou seja construindo um texto histórico em
que se enredam num a relação estreita a construção de um a tram a e o prazer
com que o faz. É o que se pode cham ar a arte da encenação sedutora: o
prazer de reatar relações com o passado, com preendendo-o com o se es
tivesse lendo coisas de um outro mundo. E este simulacro que faz aum en
tar, no autor, o prazer de escutar esse outro mundo, dc outra época (como
afinal o fazem todos os historiadores), fazendo vir à superfície tudo aquilo
que se calou e que o escritor, tal como o faria o historiador, substitui pelas
suas ficções.
O segundo aspecto diz respeito à preocupação do escritor com a
realidade da sociedade que procura descrever. Aqui entramos no universo
daquilo que já aqui foi mencionado: a história-ficção. Através das fontes,
o autor foi fabricando planos do passado, como que pretendendo desafiar
e pôr à prova (atitude essencial!) a credulidade do público para quem es
creve. E o que me apraz dizer acerca do trabalho que tenho a honra de «pos-
faciar». A firm o sem receio de espécie algum a estarm os num a daquelas
situações tão cara a Certeau, de reencontro com o real através da ficção.
Efectivam ente, acho que o êxito deste livro poderá vir a estar relacionado
com o facto de o autor se ter reencontrado com um a sociedade pouco
conhecida ou, pelo m enos, não perfeitam ente clara em todos os seus con
tornos sociais e culturais.
É isso também a História; para ser mais preciso, ela é ficção ou uma
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CHO RIRO
série de ficções. Sei, até por experiência própria, que a História carece de
algo que não foi ou não é perm itido afirm ar-se a partir de um ccrto número
de hipóteses e dados; aí entra então a construção da narrativa, isto é, a tra-
r
jectória possível nesse espaço ainda não ocupado. E o que faz o autor de
«Choriro»: por meio dc ficções, ele faz acreditar, residindo aqui a razão de
se poder falar da História ficção. O texto literário «fictício» tem tanto de
«verdade» como a produção especializada.
«Choriro» não é um livro de História; é sim uma narrativa histórica
em que factos e personagens verdadeiras se entrem eiam com factos e
personagens im aginados pelo autor, ele próprio um estudioso de História.
N ela sc misturam narrativas-m em órias de gente c terras conhecidas, narra
tivas quais crónicas de acontecimentos passados num a época histórica bem
determ inada e onde não faltam tam bém os factos im aginários tão colados
às tradições dos povos onde as tram as históricas se desenrolam. A qui se
representam, como num espaço cénico, o estilo e os fantasmas do actor/narrador,
a arte de fazer que o seu discurso se tom e credível, a habilidade com que
deixa o leitor ler nos subentendidos, fazendo-o esquecer das coisas de que
não fala.
Através de todas as m anhas, e artimanhas, da narrativa, tom ando a
parte pelo todo, o autor apresenta um argumento sólido em que aparenta
contar tudo o que na realidade se passou. A ilusão narrativa consiste, como
num passe de mágica, em transformar dados c elementos docum entais num
discurso sobre o real. Em «Choriro» não faltam ingredientes como a aven
tura, a lealdade, a traição, a crueldade e outros. Os locais, as personagens
e a m aior parte dos episódios são fictícios, em bora aqui e ali perpassem
figuras da vida real da época, como são os casos de Livingstone, o célebre
explorador inglês, Kaniem ba ou M atakenha, nom es de guerra de dois dos
mais destacados senhores de prazos à época. Uma ou outra das personagens
aparecc, porventura, deliberada ou inadvertidam ente travestido. Reais ou
im aginários, tudo o que a respeito delas é dito relaciona-sc com a História.
Neste m odesto contributo dc reconhecim ento do trabalho, nas ver
tentes teórica e m etodológica, resta-m e dizer que U ngulani dá à estampa o
seu segundo rom ance histórico (o prim eiro, «U alalapi», é de 1987),
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Ungulani Ba K a Khosa
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Porém , nem estes com entários, presum íveis lacunas ou lapsos que
porventura existam , nem mesm o divergências que certam ente suscitará,
fazem dim inuir a importância deste notável livro de Ungulani. Por tudo o
que escrevi, e muito haveria ainda a escrever, considero-m e honrado por ter
sido convidado para escrever este posfácio, o que, digo-o com a m aior
satisfação, fiz com enorm e prazer, respeito por um dos m ais representa
tivos e brilhantes escritores moçam bicanos da geração pós-indepcndência.
Aurélio Rocha
Maputo, 5 de Agosto de 2009
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U N G U L A N Í BA K A K H O S A
U m dos mais representativos e brilhantes
escritores m oçambicanos da geração pós-independência.