Frankenstein O Clássico Está Vivo - Mary Shelley

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FRANKENSTEIN

Copyright © 2017 by DarkSide Entretenimento Ltda.


Título origina: Frankenstein, or, The Modern Prometheus
Diretor Editorial
Christiano Menezes
Diretor Comercial
Chico de Assis
Editor
Bruno Dorigatti
Editor Assistente
Ulisses Teixeira
Capa e Projeto Gráfico
Retina 78
Designers Assistentes
Pauline Qui
Raquel Soares
Revisão
Cecília Floresta
Retina Conteúdo
Impressão e acabamento
Gráfica Geográfica
Créditos das Ilustrações
AndreasVesalius, De Humani Corporis Fabrica. Pádua, 1543: guarda; p. 2, 5, 9, 11, 13–14, 30–31,
230, 234–235, 237, 241–242, 257–258, 268, 286, 299, 302–303, 304 Etienne de la Rivière, De Dissecti-
one Partium Corporis Humani. Paris, 1545: p. 285 William Cowper, Myotomia Reformata. Londres,
1694: p. 6–7 Unknown woman, formerly known as Mary Wollstonecra Shelley, by Samuel John
Stump. Óleo sobre tela, 1831.1270 mmx 1010 mm National Portrait Gallery, Londres: capa Pedro
Franz: p. 32, 70–71, 77, 96, 116, 144, 170–171, 184–185, 206–207, 228–229
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
Angélica Ilacqua CRB-8/7057

Shelley, Mary
Frankenstein / Mary Shelley ; tradução de Márcia Xavier de
Brito, Carlos Primati ; ilustrações de Pedro Franz.
— Rio de Janeiro : DarkSide Books, 2017.
304 p. : il., color.
ISBN: 978-85-9454-018-8
Titulo original: Frankenstein; or, the Modern Prometheus
1. Ficção inglesa 2. Ficção científica I. Título II. Brito, Márcia
Paiva Xavier de III. Primati, Carlos IV. Franz, Pedro
16-1186 | CDD 823
Índices para catálogo sistemático:
1. Ficção inglesa

[2017]
Todos os direitos desta edição reservados à
DarkSide® Entretenimento LTDA.
Rua do Russel, 450/501 – 22210-010
Glória – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
www.darksidebooks.com

eBook: Argon | Design: Hyperion | Versão: v1.0.0


Sumário

Página de título
Créditos
Epígrafe
Dedicatória

Introdução: Darkside
Prefácio à edição de 1818
Introdução à edição de 1831

Carta I. À Sra. Saville, Inglaterra


Carta II. À Sra. Saville, Inglaterra
Carta III. À Sra. Saville, Inglaterra
Carta IV. À Sra. Saville, Inglaterra
Cap. I.
Cap. II.
Cap. III.
Cap. IV.
Cap. V.
Cap. VI.
Cap. VII.
Cap. VIII.
Cap. IX.
Cap. X.
Cap. XI.
Cap. XII.
Cap. XIII.
Cap. XIV.
Cap. XV.
Cap. XVI.
Cap. XVII.
Cap. XVIII.
Cap. XIX.
Cap. XX.
Cap. XXI.
Cap. XXII.
Cap. XXIII.
Cap. XXIV.
Carta a Walton

Sobre Frankenstein, ou, O Prometeu Moderno

Contos sobre a Imortalidade


Introdução aos Contos
Valério: O Romano Reanimado
Roger Dodsworth: O Inglês Reanimado
Transformação
O Imortal Mortal

Contos Extras
Um Fragmento, por Lorde Byron
O Vampiro: Um Conto, por John William Polidori

Sobre a autora
Pedi eu,
oh, Criador,
que do barro
Me fizestes homem?
PEDI PARA QUE
Me arrancasses das trevas?

Paraíso Perdido, X, 743–45, DE


JOHN MILTON
A William Godwyn,
AUTOR DE POLITICAL JUSTICE,
CALEB WILLIAMS ETC.,
esta obra é respeitosamente dedicada
PELA AUTORA
DarkSide.
INTRODUÇÃO

Nuvens negras cobriam os céus da villa Diodati, uma luxuosa casa às


margens do lago Genebra, na Suíça. Em uma noite de tempestade, no
ano de 1816, daquele que foi considerado “o verão que nunca aconte-
ceu”, um grupo de jovens amigos reuniu-se ao redor da lareira para
contar histórias de terror. O cenário não poderia ser mais perfeito. A
luz bruxuleante das velas nos castiçais entrecortadas pela claridade dos
relâmpagos que, de tempos em tempos, iluminavam as janelas e o ri-
bombar dos trovões incitavam a imaginação do grupo de jovens ilustres.
O narrador e anfitrião era o famoso Lorde Byron. Já considerado,
aos vinte e oito anos, o maior poeta inglês da época, cuja fama equipara-
va-se à que hoje seria a de um astro de rock, Byron era protagonista dos
maiores escândalos na sociedade inglesa. Encontrava-se na Suíça para
escapar à acusação de incesto com sua meia-irmã, rumor que fizera com
que fosse abandonado pela mulher.
Dois outros membros do grupo também eram poetas. Um deles era
o médico e companheiro de viagem de Byron, John Polidori, filho de
um imigrante italiano e de uma inglesa, que se graduara em medicina na
Universidade de Edimburgo dois anos antes, aos dezenove anos. De
personalidade frágil, Polidori teria desistido da carreira médica pela po-
esia, não fossem as constantes chacotas de Byron a respeito de seu ta-
lento artístico. Alvo predileto das brincadeiras e piadas de mau gosto do
poeta, Polidori tentava impressionar Byron, a quem admirava como
uma figura paterna, muito embora este não apreciasse sua companhia,
mantida por estrita necessidade de saúde durante o exílio forçado.
O outro poeta presente na ocasião era o vizinho do chalé que ficava
na outra margem do lago, Percy Bysshe Shelley, na época com vinte e
três anos, que viajava pelo país na companhia de duas adolescentes. Ao
contrário de Polidori, Shelley ganhara o respeito intelectual de Byron, e
naquele verão começaram uma amizade que duraria por toda a vida.
Mary Wollstonecraft Godwin, filha única de dois famosos defenso-
res de ideias progressistas do século XVIII, o filósofo anarcoutilitarista e
literato William Godwin e a revolucionária feminista Mary Wollstone-
craft, tornara-se amante de Shelley e fugira com ele dois anos antes, aos
dezesseis, apesar de o poeta, na ocasião, ser casado e ter deixado na In-
glaterra a mulher grávida e a filha de dois anos.
A última componente do grupo era a bela e sedutora meia-irmã de
Mary, Claire Clairmont, que se insinuou para Byron, manteve um caso
com ele e escondeu de todos a consequente gravidez.
Os jovens vizinhos tinham por hábito se reunir à noite, em especial
nas noites de mau tempo, para ler ou apenas conversar até tarde. Byron
adorava aterrorizar as pessoas. Naquele sombrio 16 de junho, escolheu,
para entreter os convidados, um volume de histórias de terror alemãs
traduzidas para o francês, intitulado Fantasmagoriana, termo que faz
menção à arte de fazer surgir fantasmas e espectros por meio de ilusão
de óptica em espetáculos públicos, famosos naquele início de século. Os
contos escolhidos foram lidos com voz sonora e emotiva, aproveitando
todos os efeitos das sombras e dos trovões para aumentar a emoção dos
ouvintes.
“Cada um de nós escreverá uma história de fantasmas”, propôs By-
ron após a leitura, satisfeito com o efeito provocado e o desejo dos ou-
vintes de emular os contos. Por alguma razão, ele deu um estímulo adi-
cional a Mary, convidando-a para publicarem juntos a história.
Anos depois, ao recordar aquela noite, Mary afirma que começou a:
[…] pensar uma história — uma história que rivalizasse com aque-
las que nos incitaram a tal tarefa. Uma que falasse aos medos miste-
riosos de nossa natureza e despertasse um horror eletrizante —
uma história que fizesse o leitor olhar ao redor apavorado, que fi-
zesse o sangue gelar e acelerasse o pulsar do coração. Caso não
conseguisse fazê-lo, minha história de terror não seria digna deste
nome.[1]
Curiosamente, o que parecia ser um passatempo banal de amigos deu
origem a dois dos maiores mitos do gênero do terror. Além do monstro
inominado de Mary Shelley, nasce, da pena do dr. Polidori, nessa mes-
ma noite, o vampiro Lorde Ruthven, personagem de The Vampyre
(1819), um romance inacabado. Esse foi o primeiro vampiro de forma
humana da história literária e influenciou todos os autores subsequen-
tes, de Bram Stoker a Anne Rice. Curiosamente, Byron também come-
çara uma história de vampiros e a abandonou incompleta, visto que ele
e Percy Shelley preferiam se ocupar de doutrinas filosóficas, e não de
histórias de fantasmas. A questão dos vampiros foi o tópico de várias
conversas do grupo em encontros anteriores e estava presente em mui-
tas culturas como metáfora para pessoas extremamente centradas em si
mesmas que se “alimentavam” de outras, como os poetas. O vampiro
aristocrata que vivia de sangue humano foi imediatamente identificado
pelos presentes como uma referência ao próprio Byron.
A fonte da vida e o que distinguia as coisas vivas das inanimadas foi
um dos assuntos preferidos das tertúlias noturnas naquele verão. Mary,
que tinha certa iniciação cientifica e treino filosófico pelo ambiente cul-
tural do lar paterno, era uma ouvinte atenta das discussões de Byron e
Shelley. Eles falavam da aplicação da corrente elétrica, descoberta por
Benjamin Franklin e grande novidade cientifica da época. Comentaram
acerca dos experimentos de Erasmus Darwin, avô de Charles Darwin, o
grande teórico da evolução, e de Francis Galton, o primeiro promotor
do eugenismo, que foi citado nos prefácios às edições de Frankenstein
publicadas em 1818 e 1831. Muitos atribuíam a Erasmus a descoberta da
animação da matéria, cujas pistas tinham sido dadas pelo cientista italia-
no Galvani por meios extraordinários.
Galvani descobrira o movimento criado pelo estimulo elétrico nos
músculos de animais dissecados. Contudo, outro italiano, Alessandro
Volta, em 1800, ao discordar dos experimentos de Galvani sobre a ne-
cessidade de matéria animal para a condução da eletricidade, advogou a
existência de condução elétrica por diferença de potencial em meio ina-
nimado e inventou a primeira pilha eletroquímica com cobre, zinco e
ácido sulfúrico, chamada de pilha Voltaica, que produzia uma corrente
elétrica constante; mesmo assim, não conseguiu criar vida. Não obstan-
te os experimentos fracassados para a geração de vida, a ideia da possi-
bilidade de ser descoberto o seu mistério pela ciência povoava o imagi-
nário do início do século XIX.
Ao ouvir tais conversas, Mary levou suas especulações para outro
nível e conjecturou sobre a possibilidade de animação de uma criatura
composta por partes de corpos mortos. O assunto do élan vital varou a
noite, e mesmo depois de se recolher para dormir, ela não conseguia
apagar a “imagem mental” de um
[…] pálido estudioso das artes profanas ajoelhado atrás da coisa
que agregara. Vi o terrível espectro de um homem esticado e, en-
tão, por obra de um mecanismo potente, observei-o mostrar sinais
de vida e agitar-se em um movimento desajeitado, quase vivo. As-
sustador; porém, supremamente mais apavorante seria o efeito de
qualquer esforço humano de escarnecer do estupendo mecanismo
do Criador do mundo. O sucesso aterrorizaria o artista, ele corre-
ria para longe do oficio odioso de suas mãos, horrorizado. Espera-
ria que, deixada sozinha, a centelha de vida que comunicara extin-
guir-se-ia; que essa coisa, receptáculo de tal animação imperfeita,
voltaria a tornar-se matéria morta e dormiria na crença de que o si-
lêncio do túmulo destruiria para sempre a existência efêmera do ca-
dáver medonho que considerara como o berço da vida. Ele dorme,
mas é despertado; abre os olhos; eis que vê a coisa disforme à beira
da cama, a abrir as cortinas do dossel e fitar-lhe com olhos fulvos,
lacrimosos, mas especulativos.[2]
Ao abrir os olhos, ela ainda estava tomada pelo medo e desejou poder
transmitir aquela sensação aos leitores de sua história de fantasmas. O
“espectro hediondo” não saia de sua cabeça. Percebeu o que acontecera.
A centelha da inspiração a visitara. Nascera Frankenstein.
I

AS VERSÕES DO ROMANCE FRANKENSTEIN


OU, O PROMETEU MODERNO

Infelizmente, a primeira transcrição dos terrores noturnos de Mary, ini-


ciada no dia seguinte ao sonho do verão chuvoso de 1816, não sobrevi-
veu, nem mesmo parte alguma dos rascunhos que continuou a escrever
durante julho e agosto daquele mesmo ano.
Sabemos, no entanto, que, em meados daquele mês de agosto, a au-
tora escreveu uma história que se tornou a base para o primeiro rascu-
nho completo do romance. A maior parte deste rascunho completo está
preservada até hoje, juntamente com uma parte da versão final manus-
crita pela própria autora, na Bodleian Library, da Universidade de Ox-
ford. Na versão revisada, é possível notar a ajuda editorial de Percy
Bysshe Shelley através de algumas anotações nas margens.
A primeira edição do romance Frankenstein contou com apenas
quinhentas cópias e foi publicada em três tomos, em Londres, no ano-
novo de 1818. A versão corrigida da cópia de 1818, apresentada em
1823 para a sra. Thomas em Gênova, contém uma série de acertos feitos
pela própria Mary Shelley. Nessa cópia encontramos uma nota da auto-
ra, ao final do segundo capitulo, tomo 1, afirmando que deveria reescre-
ver aquele capitulo, caso fosse reeditar a obra, pois a escrita estava mui-
to infantil e o enredo, mal desenvolvido. Essa cópia encontra-se atual-
mente na Pierpont Morgan Library, em Nova York. Ainda em 1823, o
pai da autora, William Godwin, mandou imprimir uma nova edição em
dois tomos, com algumas modificações. Dessa edição, acredita-se que
foram feitas apenas entre duzentos e cinquenta a quinhentas cópias.
No Halloween de 1831, Mary Shelley publicou ainda uma nova edi-
ção em um tomo revisado e corrigido, que incorporava a maioria das
mudanças de 1823 e muitas outras revisões da própria autora, entre elas
um capítulo adicional.
Os textos das três edições diferem entre si, bem como distam subs-
tancialmente dos textos do primeiro rascunho de 1816 e da primeira có-
pia manuscrita feita pela própria autora, em especial na numeração e es-
trutura de divisão dos capítulos. Muito embora a estrutura geral do en-
redo não apresente grandes mudanças, há algumas alterações, como a
apresentação de Elizabeth como “prima” de Victor na edição de 1818 e
sua transformação em “órfã” criada pela família na edição de 1831 ou,
ainda, a ênfase na obsessão pela filosofia natural no primeiro diálogo de
Victor com o professor Waldman na edição de 1831 e que não consta na
edição de 1818. Vale também notar que, na edição revisada de 1831,
Mary Shelley se aprofunda de maneira consciente na tradição do dop-
pelgänger e ressalta as relações de Victor com o monstro e com outras
personagens para apresentar os conflitos internos do cientista. Walton
espelha Victor na busca pelo conhecimento e na disposição de sacrificar
a vida de outros nessa empreitada; Clerval, por sua vez, espelha o me-
lhor do antigo eu de Victor, curioso por adquirir conhecimento e expe-
riência.
A versão mais publicada e conhecida da história, portanto, desde o
século XIX até os dias de hoje, acabou sendo a versão revisada de 1831 e
é esta que trazemos aqui em nova tradução. Acrescentamos também, na
presente edição, o “Prefácio à edição de 1818”, atribuído pela própria
autora, anos mais tarde, a Percy Shelley. Ao final deste livro, acrescenta-
mos como anexo uma resenha do romance, também de autoria de Percy
Shelley, publicada após sua morte.

II

O PROMETEU MODERNO E O MONSTRO

A figura de Prometeu, que aparece no título completo da obra de Mary


Shelley, foi outra constante naquele verão. Segundo a mitologia, Pro-
meteu foi um titã que roubou o fogo dos deuses, ato que o fez sofrer a
sina cruel de ter o fígado comido por uma águia todos os dias, durante
trinta mil anos. Na variante das Metamorfoses, de Ovídio, Prometeu
criou um homem do barro e de partes de animais e lhe conferiu vida
com a centelha do fogo celestial que roubara da carruagem do sol. Essa
versão da história de Prometeu era a preferida de Mary na infância, vis-
to que seu pai a publicara em uma coletânea de mitos clássicos.
Nas noites daquele verão, Shelley estivera lendo e traduzindo do
grego Prometeu acorrentado, de Ésquilo. Dois anos mais tarde, começa-
ria a escrever um poema com a sua versão de continuação, chamado
“Prometeu desacorrentado”. Prometeu era uma personagem com quem
Percy Shelley se identificava. Na versão de Shelley, o titã se livraria da
punição de Zeus e seria saudado como salvador da raça humana. Talvez
a leitura de Esquilo feita por Shelley tenha inspirado o poema curto de
Byron, “Prometeu”, escrito no verão de 1816.
Prometeu é uma figura simbólica do romantismo da rebelião à or-
dem instituída. No entanto, as interpretações do mito de Percy Shelley
e Byron e de Mary Shelley são bem diferentes.
Percy e Byron, na realidade, acreditavam ser excepcionais e únicos,
como a maioria dos “gênios”. Para eles, Prometeu não era um mito, mas
uma realidade; não era um protótipo, mas uma ilustração da profecia
que vinham anunciar. Não renunciavam às dificuldades inerentes à or-
dem do mundo, mas sabiam que a ambição que possuíam não seria re-
mediada de maneira simples. Acreditavam que, com a desordem e a re-
belião, comunicariam o “sublime” e o metafísico. Assim, em suas obras,
afirmam a figura de um Prometeu novo e diferente, livre de toda a sujei-
ção natural ou sobrenatural, portador de um fogo novo.
Mary era sábia. Utilizou imagens de maneira bastante apropriada,
não para mostrar a rebelião ou a audácia de desafiar os deuses, mas para
contrastar a arrogância prometeica com a humildade sagrada face à na-
tureza. Ela usa esse mito como analogia para expressar uma verdade
fundamental sobre as perigosas consequências da busca e da aquisição
do conhecimento. Assim, Frankenstein torna-se uma fábula moderna
para os riscos do orgulho intelectual desmedido.
Quem é o verdadeiro monstro em Frankenstein? A criatura sem no-
me, de aparência repugnante, ou o criador, Victor Frankenstein, com
seu egoísmo, seu orgulho e seus conhecimentos monstruosos, que desa-
fia a natureza usurpando a tarefa de criar vida destruindo todos os seres
que ama? Mary Shelley desafia o leitor a julgar o caráter de suas perso-
nagens e nos torna vigilantes dos elementos grotescos de sofreguidão,
arrogância e autossuficiência que trazemos dentro de nós.
Na raiz da palavra “monstro” — que aparece mais de trinta vezes no
romance —, está o verbo latino monere, que significa “avisar, prevenir”.
Uma análise detida do romance reforça a ideia de Frankenstein como
uma história moral. A ambição desordenada, o desejo não contido pelo
conhecimento a qualquer preço, um senso de cumprimento do destino e
o perigo de isolar-se do amor e da amizade ameaçam transformar qual-
quer homem em monstro. Ao expor a vilania do herói, Victor
Frankenstein, e a humanidade do vilão, a criatura, fica claro o caráter de
advertência quanto aos limites do conhecimento, bem como faz ressal-
tar os benefícios do companheirismo e da amizade, além de incitar a
prudência e a responsabilidade no campo da ação.
A imagem popular do monstro de Frankenstein criada pelos primei-
ros filmes retratava a criatura como um ser bruto, quase irracional, inca-
paz de um discurso inteligível. Esta imagem está muito distante da cria-
ção de Mary Shelley. A criatura, no romance, é eloquente e bastante ins-
truída. Leitor ávido, é por sua aguda sensibilidade que tomamos ciência
do senso de isolamento, de seu ódio e sua aversão à própria figura e ao
seu criador. A criatura reconhece ser monstruosa e dolorosamente per-
cebe seu isolamento absoluto no universo. No entanto, tem necessidade
de amar e de ser amada de uma maneira eminentemente humana. Sabe
que sua forma horrível e nada natural é um obstáculo quase insuperável
para sua aceitação na comunidade. A humanidade do monstro reforça,
complementa e se contrapõe ao racionalismo científico de Victor, que
não nutre afeição ou simpatia alguma pela criatura. Consumido pelo de-
sejo de vingança, Victor toma-se tão insensível, monstruoso e solitário
quanto sua criação.
É raro que um desafio literário entre amigos seja tão bem-sucedido
quanto o daquele verão de 1816. Mary Shelley e o dr. Polidori criaram
personagens que assumiram um lugar de destaque no imaginário de ge-
rações por séculos. Representam polos opostos de uma mesma imagem.
A criatura monstruosa, um pária por sua aparência hedionda, nutre o
desejo de amar e fazer parte de uma comunidade; no entanto, a feiura
esconde e impede que seja notada sua bondade interior. Por outro lado,
o vampiro — o outro ícone fruto de tal concurso —, seja lorde Ru-
thven, conde Drácula ou Lestat, é uma criatura fisicamente atraente, so-
fisticada e até mesmo sensual, embora tais traços escondam o mal e a
corrupção de seu coração.
O tema escolhido por Mary, contudo, por ter um escopo maior —
os perigos da ciência e da busca desmedida por conhecer o mistério da
vida —, faz com que sua criação tenha ainda hoje um significado impor-
tante, visto que as descobertas da ciência moderna para prolongar, mo-
dificar ou criar vida evocam as mesmas questões: o que é a vida? O que
é o ser humano?
— Márcia Xavier de Brito,
SÃO PAULO, outubro de 2016.
PREFÁCIO
À EDIÇÃO
de 1818.*

O evento em que está baseada esta ficção foi suposto pelo dr. Darwin[1]
e por alguns autores de fisiologia da Alemanha como uma ocorrência
não de toda impossível. Não devo julgar, segundo o grau mais remoto
de grave convicção, tal imaginação; contudo, ao admiti-la como base de
uma obra de fantasia, não me considero mera narradora de uma série de
terrores sobrenaturais. O evento em que se baseia a ação da história está
isento das desvantagens de um simples conto de espectros ou de encan-
tamento. Foi recomendado pela novidade das situações que revela e,
embora inexequível como fato físico, proporciona um ponto de vista à
imaginação para o delineamento das paixões humanas mais amplo e in-
fluente do que quaisquer relações costumeiras de eventos existentes
possam consentir.
Esforcei-me, portanto, para preservar a verdade dos princípios ele-
mentares da natureza humana, se bem que não tive escrúpulos em ino-
var nas combinações. A Ilíada, a poesia trágica da Grécia, Shakespeare
em A Tempestade e Sonho de uma Noite de Verão e, mais particular-
mente, Milton em Paraíso Perdido, conformam-se a essa regra; e a mais
humilde romancista, que busca conferir ou receber distração dos labo-
res, pode, sem presunção, fazer uso na prosa fictícia de uma licença, ou
melhor, de uma norma que, pela adoção de tantas combinações primo-
rosas de sentimentos humanos, resultou nos mais sublimes exemplos de
poesia.
A circunstância em que se apoia meu enredo foi sugerida em uma
conversa casual. Teve início, em parte como fonte de divertimento, em
parte como um expediente para usar quaisquer recursos ainda não exer-
citados de minha mente. Outros motivos se misturaram a estes, confor-
me a obra prosseguia. Não sou, de modo algum, indiferente à maneira
como as tendências morais existentes nos sentimentos ou nas persona-
gens possa afetar o leitor; no entanto, minha principal preocupação a es-
se respeito ficou limitada a evitar os efeitos irritantes dos romances de
hoje em dia, a demonstração de amabilidade nas afeições domésticas e a
excelência de uma virtude universal. As opiniões que naturalmente bro-
tam das personagens e da situação do herói não devem ser, de modo al-
gum, concebidas como sempre existentes em minhas próprias convic-
ções; nem se deve inferir de tais passagens uma predisposição para qual-
quer tipo de doutrina filosófica.
É um assunto de interesse adicional da autora que esta história co-
mece na região majestosa onde se passa principalmente a cena e em uma
sociedade que não deixa de ser lastimada. Passei o verão de 1816 nos ar-
redores de Genebra. A temporada estava fria e chuvosa e, à noite, nos
reuníamos ao redor das achas ardentes; às vezes, nos entretínhamos
com histórias alemãs de fantasmas, que calharam de cair em nossas
mãos. Essas histórias despertaram em nós o desejo divertido de as emu-
lar. Dois outros amigos (de cuja pena qualquer conto seria muito mais
aceitável para o público do que qualquer coisa que eu venha a ter espe-
rança de produzir) e eu aceitamos escrever, cada um, uma história base-
ada em algum acontecimento sobrenatural.[2]
O tempo, no entanto, subitamente tornou-se límpido; e meus dois
amigos partiram em uma viagem para os Alpes e, perderam, no cenário
magnífico que presenciaram, toda a lembrança das visões de fantasmas.
A história a seguir foi a única concluída.
MARLOW, setembro de 1817.
INTRODUÇÃO
À EDIÇÃO
de 1831.*

Os editores da Standard Novels,[1] ao selecionar Frankenstein para um


dos volumes da série, expressaram o desejo de que eu lhes oferecesse
um relato sobre a origem da história. Dispus-me a aquiescer, pois darei
uma resposta geral à pergunta inúmeras vezes feita: “Como eu, na oca-
sião uma jovem, vim a conceber e narrar minuciosamente uma ideia tão
horrível?”. É verdade que sou avessa a apresentar minhas considerações
em letras impressas, porém, como meu relato aparecerá apenas como
apêndice de uma produção anterior e, em particular, confinar-se-á so-
mente aos tópicos que possuem relação com minha profissão de autora,
é difícil que possam acusar-me de intrusão pessoal.
Não é de estranhar que, como filha de duas pessoas de distinta noto-
riedade literária, eu devesse muito cedo na vida ter pensado em escrever.
Quando criança, rabiscava, e meu passatempo favorito nas horas dadas
à recreação era “escrever histórias”. Entretanto, tenho um prazer ainda
mais caro que este, que era devanear — permitia-me sonhar acordada
—, deixar fluir linhas de pensamento que tinham por objetivo a criação
de uma sequência de incidentes imaginários. Minhas fantasias eram, ao
mesmo tempo, mais fantásticas e agradáveis que os escritos. Nestes, era
uma copista limitada — mais propriamente fazendo como os outros
têm feito do que confiando nas sugestões da mente. O que eu escrevia
destinava-se ao olhar de, ao menos, uma outra pessoa — minha compa-
nheira de infância e amiga —,[2] mas os sonhos eram todos meus, a nin-
guém lhes confiava, eram o meu refúgio quando aborrecida — o prazer
mais estimado quando livre.
Vivi no interior durante a maior parte da infância e passei um tempo
considerável na Escócia. Fiz visitas fortuitas às regiões pitorescas, mas
minha residência habitual ficava no ermo e triste litoral norte de Tay,
perto de Dundee. Em retrospecto, digo que é ermo e triste, mas não me
parecia assim na ocasião. Foi o meu ninho de liberdade e a região agra-
dável onde, despercebida, pude conversar intimamente com as criaturas
de minha imaginação. Escrevi então, ainda que em um estilo mais trivi-
al. Foi debaixo das árvores das terras que pertenciam à casa ou nas en-
costas desoladas das descampadas montanhas das proximidades que mi-
nhas verdadeiras composições, os voos airosos da imaginação, nasceram
e foram acalentados. Não me fiz heroína de minhas histórias. Quanto a
mim mesma, a vida parecia um assunto bastante banal. Não conseguia
imaginar desventuras românticas ou acontecimentos maravilhosos co-
mo minha sina, mas não estava confinada à minha identidade e podia
povoar as horas com criações para mim, nessa idade, bem mais interes-
santes que as próprias sensações.
Depois disso, minha vida tornou-se mais atarefada, e a realidade su-
plantou a ficção. Meu marido, contudo, mostrou-se desde o início mui-
to desejoso de que eu provasse estar à altura de meus pais e que ingres-
sasse no rol das celebridades. Sempre me incitou a adquirir uma reputa-
ção literária, o que importava-me na época, embora, desde então, tenha
me tornado imensamente alheia a isso. Nessa ocasião, ele desejava que
escrevesse, não com a ideia de que fosse produzir algo digno de atenção,
mas para que pudesse julgar se guardava a promessa de coisas melhores
na vida futura. Entretanto, nada fiz. As viagens e o cuidado da família
tomaram-me o tempo, e o estudo, em forma de leituras ou do polimen-
to das ideias em diálogo com a mente mais erudita de meu marido, era
tudo o que, em termos literários, ocupava minha atenção.
No verão de 1816, visitamos a Suíça e tornamo-nos vizinhos de
Lorde Byron. No início, passávamos horas agradáveis no lago ou cami-
nhando ao longo de suas margens, e Lorde Byron, que estava escreven-
do o terceiro canto de A peregrinação de Childe Harold,[3] era o único
de nós que colocava as ideias no papel. Estas, à medida que nos eram le-
vadas, revestidas de toda a leveza e harmonia da poesia, pareciam cu-
nhar como divinas as glórias do céu e da Terra, cujas influências parti-
lhávamos com o autor.
No entanto, aquele provou ser um verão chuvoso, desfavorável, e a
chuva incessante muitas vezes encerrava-nos por dias dentro de casa.
Alguns volumes de histórias de fantasmas, traduzidos do alemão para o
francês, caíram em nossas mãos. Havia a “História do amante incons-
tante”, que, quando pensou ter abraçado a noiva a quem fizera os votos,
descobriu-se nos braços do fantasma pálido daquela que abandonara.
Havia também a “História do pecaminoso fundador de sua raça”, cujo
miserável destino era dar o beijo de morte em todos os filhos mais no-
vos de sua malfadada família, justamente quando chegavam à idade de
serem prometidos. Sua forma gigantesca, indistinta, vestida como o fan-
tasma de Hamlet, de armadura completa, mas com a viseira do elmo
aberta, era vista à meia-noite, aos raios vacilantes da lua, a avançar lenta-
mente ao longo da tenebrosa alameda. A forma confundia-se com as
sombras das muralhas do castelo, mas, tão logo os portões fossem aber-
tos, ouviam-se passos, a porta do quarto se abria e o espectro avançava
para onde repousavam os jovens na força da juventude, embalados em
um sono plácido. Sua face apresentava um sofrimento eterno ao curvar-
se, beijava as frontes dos meninos, que dali em diante murchavam como
flores arrancadas das hastes. Desde então, não soube mais dessas histó-
rias, mas seus incidentes estão frescos na lembrança como se as tivesse
lido ontem.[4]
“Cada um de nós escreverá uma história de fantasmas”, disse Lorde
Byron, e sua proposta foi aceita. Éramos quatro. O nobre autor come-
çou um conto, cujo fragmento foi publicado ao final do poema Mazep-
pa.[5] Shelley, mais apto a encarnar ideias e sentimentos no esplendor de
imagens cintilantes e na música do verso mais melodioso que adorna
nossa língua do que na combinação mecânica de uma história, iniciou
uma história com base nas primeiras experiências de sua vida. Pobre
Polidori! Teve uma ideia terrível sobre uma mulher que tinha por cabe-
ça uma caveira e que, assim, fora punida por olhar através do buraco da
fechadura — para ver o que, não recordo —, algo muito ofensivo e erra-
do, é claro. No entanto, quando reduzida a uma condição pior que a do
afamado Tom de Coventry,[6] ele não sabia o que fazer com a tal mulher
e foi obrigado a enviá-la para a tumba dos Capuletos, o único lugar para
o qual parecia servir. Os ilustres poetas, também aborrecidos pela vul-
garidade da prosa, rapidamente desistiram das tarefas desagradáveis.
Ocupei-me em pensar uma história — uma história que rivalizasse
com aquelas que nos incitaram a tal tarefa. Uma que falasse aos medos
misteriosos de nossa natureza e despertasse um horror eletrizante —
uma história que fizesse o leitor olhar ao redor apavorado, que fizesse o
sangue gelar e acelerasse o pulsar do coração. Caso não conseguisse fa-
zê-lo, minha história de terror não seria digna deste nome. Pensei e
ponderei em vão. Senti a incapacidade vazia da invenção que é a grande
miséria da autoria, quando um nada tedioso responde às nossas invoca-
ções aflitas. Já pensou em uma história? Eu era questionada todas as ma-
nhãs, e cada manhã era forçada a responder com uma negativa mortifi-
cante.
Tudo deve ter um começo, para usar um dito de Sancho Pança, e es-
se começo deve estar relacionado a alguma coisa que já existiu antes. Os
hindus deram ao mundo um elefante para que o carregasse, mas fizeram
o elefante postar-se em cima de uma tartaruga. A invenção, devemos ad-
mitir humildemente, não consiste em criar do nada, mas do caos; os ma-
teriais devem, em primeiro lugar, ser concedidos; ela pode dar forma a
substâncias disformes, negras, mas não pode trazer à existência a pró-
pria substância. Em todas as questões de descoberta e invenção, mesmo
as que pertençam à imaginação, somos continuamente lembrados da
história do ovo de Colombo.[7] A invenção consiste na capacidade de
apreender as possibilidades de um objeto e no poder de moldar e adap-
tar as ideias que lhe são sugeridas.
Muitas e longas eram as conversas entre Lorde Byron e Shelley, as
quais eu ouvia devotada, mas praticamente silenciosa. Durante uma de-
las, debateram várias doutrinas filosóficas e, entre elas, a natureza do
princípio da vida e se acaso existia alguma possibilidade de este ser des-
coberto e comunicado. Falaram dos experimentos do dr. Darwin[8] (não
me refiro ao que o doutor realmente fez ou ao que afirmou ter feito,
contudo, tanto mais para meu propósito, falo daquilo que, na ocasião,
se dizia que fizera), que preservou em uma caixa de vidro um punhado
de aletria até que, por algum meio extraordinário, começou a mover-se
voluntariamente. Não era, portanto, a vida que tinha de ser dada. Talvez
um cadáver pudesse ser reanimado. O galvanismo[9] já dera uma amos-
tra de tais coisas. Talvez as partes que compõem uma criatura pudessem
ser manufaturadas, ajuntadas e dotadas de ardor vital.
A noite avançava nessa conversa e passara até mesmo da meia-noite,
antes que fôssemos descansar. Quando coloquei minha cabeça no tra-
vesseiro, não dormi, nem poderia dizer que pensei. Minha imaginação,
instintivamente, possuiu-me e guiou-me, trazendo as sucessivas ima-
gens que brotavam em minha mente com uma vivacidade muito além
dos laços habituais do devaneio. Vi — com os olhos fechados, mas em
uma imagem mental aguçada — o pálido estudioso das artes profanas
ajoelhado atrás da coisa que agregara. Vi o terrível espectro de um ho-
mem esticado e, então, por obra de um mecanismo potente, observei-o
mostrar sinais de vida e agitar-se em um movimento desajeitado, quase
vivo. Assustador; porém, supremamente mais apavorante seria o efeito
de qualquer esforço humano de escarnecer do estupendo mecanismo do
Criador do mundo. O sucesso aterrorizaria o artista, ele correria para
longe do oficio odioso de suas mãos, horrorizado. Esperaria que, deixa-
da sozinha, a centelha de vida que comunicara extinguir-se-ia; que essa
coisa, receptáculo de tal animação imperfeita, voltaria a tornar-se maté-
ria morta e dormiria na crença de que o silêncio do túmulo destruiria
para sempre a existência efêmera do cadáver medonho que considerara
como o berço da vida. Ele dorme, mas é despertado; abre os olhos; eis
que vê a coisa disforme à beira da cama, a abrir as cortinas do dossel e
fitar-lhe com olhos fulvos, lacrimosos, mas especulativos.
Aterrorizada, abri meus próprios olhos. A ideia, então, tomou posse
de minha mente, uma sensação de medo perpassou-me e desejei trocar a
imagem pavorosa de minha imaginação pelas realidades ao redor. Ainda
os vejo: o mesmo cômodo, o parquê escuro, as persianas fechadas pelas
quais o luar tentava se infiltrar e a sensação de que, além, achava-se o la-
go vítreo e os imensos Alpes brancos. Não podia livrar-me tão facil-
mente de meu espectro hediondo, ele ainda me assombrava. Devia ten-
tar concentrar-me em outra coisa. Voltei a pensar em minha história de
fantasmas — minha fatigante e infeliz história de terror! Ah! Se ao me-
nos pudesse inventar uma que aterrorizasse o leitor tanto quanto fora
aterrorizada naquela noite!
Foi então que irrompeu a ideia, rápida como um raio e bastante ani-
madora. “Achei! O que me havia aterrorizado certamente encheria os
outros de pavor; apenas preciso descrever o espectro que me assombra-
ra à meia-noite!” Pela manhã, anunciei que pensara em uma história.
Comecei naquele dia com as palavras: Foi em uma noite sombria de no-
vembro, fazendo meramente a transcrição dos terrores cruéis de meu
sonhar acordada.
Primeiramente, pensei apenas em algumas páginas, um conto curto,
mas Shelley incitou-me a desenvolver a ideia com mais fôlego. Por certo
não devo a sugestão de um só incidente nem dificilmente de uma linha
sequer de pensamento ao meu marido, e ainda assim, não fosse por seu
estímulo, a história nunca teria tomado a forma que apresentei ao mun-
do. Dessa declaração, devo excetuar o prefácio. Tanto quanto me recor-
do, foi totalmente escrito por ele.
Agora, mais uma vez, ofereço minha criação hedionda para que siga
adiante e prospere. Tenho-lhe afeição, pois foi o fruto de dias felizes,
quando morte e pesar nada significavam senão palavras que não encon-
travam verdadeiro eco em meu coração. As várias páginas exprimem
muitas caminhadas, diversos passeios e inúmeras conversas quando não
estava só; e meu companheiro foi alguém que, neste mundo, não mais
verei. Mas isso é cá comigo; meus leitores nada têm com essas associa-
ções.
Acrescentaria apenas uma palavra quanto às alterações que fiz. São,
principalmente, no estilo. Não mudei parte alguma da história nem in-
troduzi novas ideias ou circunstâncias. Corrigi a linguagem onde estava
tão pobre que pudesse interferir no interesse da narrativa. Essas mudan-
ças aconteceram quase exclusivamente no início do primeiro volume.
Estão confinadas, todas, a tais partes como meros acessórios à história,
deixando intocados o âmago e a substância.
—M.W.S.,
LONDRES, 15 de outubro de 1831.
CARTA I.

À Sra. Sa vil le,


IN GLA TER RA

SÃO PETERSBURGO, 11 de dezembro de 17—


Ficará alegre em saber que nenhum desastre me acompanhou no come-
ço de uma empreitada que considerou com tantos maus presságios.
Cheguei aqui ontem e minha primeira tarefa foi assegurar à minha que-
rida irmã acerca de meu bem-estar e aumentar a confiança no sucesso de
minha empresa.
Encontro-me já bem ao norte de Londres; e, ao caminhar pelas ruas
de São Petersburgo, sinto no rosto o vento frio do norte que revigora os
nervos e enche-me de prazer. Compreende essa sensação? Essa brisa,
que veio das regiões para as quais me dirijo, dá-me o antegosto daqueles
climas gélidos. Animado por esse vento cheio de promessa, meus deva-
neios tornam-se mais ardentes e vividos. Tentei, em vão, deixar-me per-
suadir de que o polo é o lugar do gelo e da desolação; apresenta-se sem-
pre à minha imaginação como uma região de beleza e delícia. Lá, Mar-
garet, o sol sempre está visível; seu disco amplo na orla do horizonte di-
fundindo um esplendor perpétuo. Lá — com sua permissão, minha ir-
mã, confiarei nos navegadores que me precederam — a neve e o gelo fo-
ram banidos, e navegando pelo mar calmo, podemos ser gentilmente le-
vados para uma terra que supera, em maravilhas e belezas, qualquer re-
gião descoberta até agora no globo habitável. Sua produção e caracterís-
ticas podem não ter comparação, como sem dúvida o fenômeno dos
corpos celestes nessas solidões desconhecidas. O que não deve se espe-
rar no país da luz eterna? Devo descobrir, lá, o prodigioso poder que
atrai a agulha da bússola e regula milhares de observações celestiais que
necessitam somente desta viagem para traduzir suas aparentes excentri-
cidades em algo para sempre consistente. Deverei saciar minha curiosi-
dade ardente com a visão de uma parte do mundo nunca antes visitada e
pisarei em uma terra que jamais conheceu as pegadas do homem. Esses
são meus encantos e eles bastam para dominar todo o medo do perigo e
da morte, para motivar-me a começar essa viagem laboriosa com a ale-
gria que uma criança experimenta ao embarcar em um bote com os ami-
gos de folguedos em uma expedição de descoberta ao rio de sua região
natal. Supondo, contudo, que todas essas conjecturas sejam falsas, não
poderá contestar o benefício inestimável que conferirei a toda a huma-
nidade, até a última geração, ao descobrir uma passagem próxima ao
polo para aqueles países cuja travessia, atualmente, requer tantos meses,
ou por averiguar o segredo do magnetismo que, se for possível, só pode
ser levado a cabo em um empreendimento como o meu.
Essas reflexões dissiparam a agitação com que comecei esta carta e
sinto meu coração brilhar com um entusiasmo que me eleva ao céu, pois
nada contribui mais para tranquilizar a mente do que um propósito fir-
me — um ponto em que a alma fixa o olhar intelectual. Essa expedição
foi o sonho predileto de minha juventude. Li com ardor os relatos de
várias viagens feitas com propósitos de chegar ao Pacífico Norte pelos
mares que circundam os polos. Deve lembrar que uma história de todas
as viagens feitas com propósitos de descoberta compunha o acervo da
biblioteca do bom tio Thomas. Minha educação foi descuidada, mas eu
era apaixonadamente afeiçoado à leitura. Esses volumes foram meu es-
tudo, dia e noite, e a familiaridade com eles aumentou o remorso que
senti, quando criança, ao saber da determinação de nosso pai de, após
sua morte, proibir meu tio de me deixar embarcar na vida das viagens
marítimas.
Essas visões extinguiram-se quando examinei, pela primeira vez,
aqueles poetas cujas efusões arrebataram minha alma e levaram-na ao
céu. Tornei-me poeta e, por um ano, vivi em um paraíso de minhas cria-
ções. Imaginei que também poderia obter um nicho no templo onde
nomes como Homero e Shakespeare são consagrados. Está bem familia-
rizada com meu fracasso e como suportei tamanha decepção. No entan-
to, naquele momento, herdei a fortuna de meu primo e os pensamentos
se voltaram para a via da inclinação anterior.
Seis anos se passaram desde que me decidi pela presente empreitada.
Posso, mesmo agora, recordar-me do momento em que me dediquei a
essa grande tarefa. Comecei a habituar meu corpo à privação. Acompa-
nhei os caçadores de baleia em várias expedições ao mar do Norte; vo-
luntariamente suportei o frio, a fome, a sede e o desejo de dormir. Mui-
tas vezes, trabalhei com mais afinco do que os marinheiros comuns du-
rante o dia e dediquei minhas noites ao estudo da matemática, da teoria
da medicina e aos ramos da ciência física dos quais um grande aventu-
reiro naval pode auferir maiores vantagens práticas. Por duas vezes, na
verdade, empreguei-me como ajudante em um baleeiro na Groenlândia
e comportei-me com galhardia. Devo admitir que me senti orgulhoso
quando o capitão me ofereceu o segundo posto na embarcação e rogou
para que permanecesse com eminente solenidade, tão valiosos foram
meus serviços.
E agora, querida Margaret, não mereço realizar um grande propósi-
to? Minha vida pode ter transcorrido em confortos e luxos, mas preferi
a glória à toda tentação que a riqueza pôs em meu caminho. Ah! Se al-
guma voz encorajadora pudesse responder com uma afirmativa! Minha
coragem e resolução são firmes, mas as esperanças flutuam, e o espirito
muitas vezes deprime. Estou prestes a prosseguir em uma viagem longa
e difícil cujas emergências dependem de toda a força de vontade que te-
nho. É necessário não apenas levantar os ânimos dos outros, mas, às ve-
zes, manter o meu quando o deles falhar.
Esse é o período mais favorável para viajar na Rússia. Voa-se veloz-
mente pela neve nos trenós, o movimento é agradável e, na minha opi-
nião, muito mais aprazível do que as diligências inglesas. O frio não é
excessivo ao se agasalhar com peles — uma vestimenta que já adotei,
pois há grande diferença entre caminhar e permanecer sentado sem se
mover por horas, quando não há exercício que impeça o sangue de con-
gelar nas veias. Não pretendo perder a vida na estrada principal entre
São Petersburgo e Arcangel.
Devo partir desta última cidade em quinze dias ou três semanas e
minha intenção é alugar um navio lá, o que pode ser facilmente realiza-
do desde que um seguro seja pago ao proprietário e tantos marinheiros
quanto crer necessários entre os que estão acostumados com a pesca da
baleia sejam atraídos. Não pretendo zarpar até o fim do mês de junho; e
quando retornarei? Ah, querida irmã, como responderei tal pergunta?
Caso seja bem-sucedido, muitos, muitos meses, talvez anos se passarão
antes que possamos nos encontrar. Caso falhe, você me verá novamente
em breve, ou nunca mais.
Adeus, minha querida, magnífica Margaret. Que os céus lancem
bênçãos sobre ti e me protejam e que possa repetidas vezes testemunhar
minha gratidão por todo o seu amor e sua bondade.
De seu afetuoso irmão,
R. Walton.
CARTA II.

À Sra. Sa vil le,


IN GLA TER RA

ARCANGEL, 28 de março de 17—


Como o tempo custa a passar por aqui, cercado como estou pelo gelo e
pela neve! Entretanto, dei um segundo passo na minha empreitada.
Aluguei uma embarcação e me ocupo agora em contratar marinheiros;
aqueles que já consegui parecem ser homens com os quais posso contar
e, certamente, detentores de coragem intrépida.
Tenho, todavia, um anseio que nunca fui capaz de satisfazer, e essa
ausência me faz sentir neste momento um mal mais severo. Não tenho
um amigo, Margaret: quando estou cheio de entusiasmo pelo sucesso,
não há ninguém que participe de minha alegria; se sou assaltado pelo
desapontamento, ninguém empenhar-se-á para sustentar-me no desâni-
mo. Confiarei meus pensamentos ao papel, é verdade; mas este é um
meio pobre para a comunicação dos sentimentos. Desejo a companhia
de um homem que possa compreender-me, cujos olhos possam respon-
der aos meus. Considerar-me-á um romântico, querida irmã, mas sinto
amargamente a necessidade de um amigo. Não tenho ninguém próximo
a mim, gentil, mas corajoso, possuidor de uma mente culta, bem como
capacitada, cujos gostos sejam como os meus, para aprovar e aperfeiço-
ar meus planos. Como um amigo assim restauraria as faltas de seu po-
bre irmão! Sou demasiado entusiasta na execução e muito impaciente
ante as dificuldades. No entanto, ainda é um grande mal ser autodidata:
nos primeiros catorze anos de vida, corri à solta pelos campos como um
qualquer e nada li senão os livros de viagem de nosso tio Thomas. Na
mesma idade, familiarizei-me com os poetas célebres de nosso país. No
entanto, somente quando deixou de estar em meu poder receber os be-
nefícios mais importantes de tais convicções foi que percebi a necessida-
de de conhecer outras línguas que não a de minha terra natal. Agora es-
tou com vinte e oito anos e, na realidade, mais iletrado que muitos estu-
dantes de quinze. É verdade que pensei mais do que eles e que meus de-
vaneios são mais vastos e magníficos, todavia estes requerem (como di-
zem os pintores) harmonia; e preciso demasiado de um amigo que seja
suficientemente sensível para não me desprezar como um romântico e
que tenha afeição suficiente para se empenhar em harmonizar minha
mente.
Bem, essas são queixas inúteis; por certo, não encontrarei amigo no
vasto oceano e nem mesmo aqui em Arcangel, entre os mercadores e os
marinheiros. Entretanto, alguns sentimentos, alheios à escória da natu-
reza humana, atingem até mesmo esses peitos rudes. Meu imediato, por
exemplo, é um homem de maravilhosa coragem e iniciativa; deseja lou-
camente a glória, ou melhor, para formular a frase de modo mais apro-
priado, o progresso em sua profissão. É um inglês e, em meio aos pre-
conceitos nacionais e profissionais, não abrandados pelo refinamento,
mantém alguns dos mais nobres dotes da humanidade. Conheci-o pri-
meiro a bordo de um baleeiro. Vindo a descobrir que estava desempre-
gado nesta cidade, resultou-me fácil contratá-lo para ajudar na emprei-
tada.
O mestre é uma pessoa de excelente disposição e se faz notar no na-
vio por sua gentileza e brandura na disciplina. Essa circunstância, acres-
cida à sua bem conhecida integridade e coragem audaz, fizeram-me de-
sejoso de contratá-lo. A juventude passada na solidão, meus melhores
anos vividos sob sua proteção gentil e feminina, refinou de tal modo a
base de meu caráter que não posso vencer uma aversão intensa à bruta-
lidade usual exercida a bordo de um navio: nunca acreditei ser necessá-
ria e quando soube de um marinheiro igualmente famoso pela gentileza
de coração, pelo respeito e pela obediência que a tripulação lhe tributa-
va, senti-me singularmente afortunado por conseguir obter seus servi-
ços. Ouvi falar dele, pela primeira vez, de um modo um tanto românti-
co, por uma senhora que lhe deve a felicidade de sua vida. Eis, em suma,
sua história: há anos, ele amou uma jovem dama russa de relativa fortu-
na e, tendo acumulado uma considerável soma em prêmios, o pai da
moça consentiu com o casamento. Viu a amada uma vez antes da ceri-
mônia designada; ela, porém, estava banhada em lágrimas e, lançando-se
aos seus pés, implorou que a poupasse, confessando, ao mesmo tempo,
que amava outro alguém. No entanto, o rapaz era pobre, e o pai nunca
consentiria com a união. Meu generoso amigo tranquilizou a suplicante
e, ao ser informado do nome do amado, instantaneamente abandonou a
causa. Já tinha comprado uma fazenda com seu dinheiro, na qual pre-
tendia passar o restante da vida, mas concedeu-a ao rival, juntamente
com o que sobrou do dinheiro do prêmio para comprar suprimentos.
Depois, pediu ao pai da moça que consentisse no casamento dela com o
seu amado. O velho decididamente recusou, crendo possuir uma dívida
de honra com meu amigo, o qual, ao perceber o pai inexorável, abando-
nou o pais e não retornou até saber que a antiga noiva estava casada de
acordo com suas inclinações. “Que sujeito nobre!”, você exclamará. De
fato, mas é totalmente rude: calado como um turco, e uma espécie de ig-
norância negligente o assiste, o que, enquanto torna sua conduta sur-
preendente, deprecia o interesse e a simpatia que ele, de outro modo,
mereceria.
Não suponha, contudo, por reclamar um pouco ou por conceber
um consolo para a fadiga que jamais conhecerei, que vacilo em minhas
resoluções. Elas são tão firmes quanto o destino, e minha viagem agora
foi adiada até que o tempo permita o embarque. O inverno está terrivel-
mente severo, mas a primavera vem cheia de promessas e parece que
chegará mais cedo, de modo que, talvez, eu deva zarpar antes do espera-
do. Não devo fazer nada às pressas: conhece-me o suficiente para confi-
ar na minha prudência e atenção sempre que a segurança dos outros es-
tiver sob meus cuidados.
Não posso descrever a você as sensações ao aproximar-se a perspec-
tiva de minha empresa. É impossível comunicar a ideia de uma sensação
de tremor, meio agradável e meio assustadora, com a qual preparo-me
para partir. Zarparei para regiões inexploradas, para “a terra de brumas
e neve”;[1] mas não matarei nenhum albatroz, portanto, não fique preo-
cupada com minha segurança ou se voltarei para ti tão extenuado e pe-
saroso quanto o “Velho Marinheiro”. Você sorrirá à minha alusão, mas
revelarei um segredo. Muitas vezes imputei meu afeto, meu entusiasmo
apaixonado pelos perigosos mistérios do oceano à produção dos poetas
modernos mais imaginativos. Há algo que não compreendo agindo em
minha alma. Sou praticamente industrioso — diligente; um trabalhador
apto para agir com perseverança e labor — mas, além disso, há um amor
pelo maravilhoso, uma crença no maravilhoso entrelaçada em todos os
meus projetos, que me precipita além das veredas comuns dos homens,
até mesmo para o mar bravio e para regiões nunca visitadas que estou
prestes a explorar.
Entretanto, retornemos a considerações mais queridas. Deverei vê-la
novamente após atravessar mares imensos e retornar pelos cabos meri-
dionais da África ou da América? Não ouso esperar tamanho sucesso;
contudo, não posso suportar a visão reversa do quadro. Continue a me
escrever em todas as oportunidades: deverei receber suas cartas em al-
gumas ocasiões, quando as necessitar sobremaneira para amparar meu
espirito. Amo você com ternura. Lembre-se de mim com afeição, caso
não ouça mais nada a meu respeito.
Seu afeiçoado irmão,
Robert Walton.
CARTA III.

À Sra. Sa vil le,


IN GLA TER RA

7 de julho de 17—
Querida irmã,
Escrevo poucas linhas apressadas para dizer que estou a salvo e bem
adiantado em minha viagem. Esta carta chegará à Inglaterra por um na-
vio mercante que agora volta de Arcangel para casa; mais afortunado do
que eu, que talvez não possa mais ver minha terra natal, quem sabe por
muitos anos. Estou, contudo, com boa disposição; meus homens são
corajosos e aparentemente firmes nos propósitos; nem as placas de gelo
que com frequência passam flutuando por nós, indicando os perigos da
região para a qual nos dirigimos, parecem desanimá-los. Já atingimos
uma latitude bem alta, mas estamos no auge do verão e, embora não se-
jam tão quentes quanto na Inglaterra, os ventos do sul, que nos condu-
zem com rapidez para as costas que com tanto ardor desejo alcançar, in-
suflam um grau de calidez renovadora e inesperada.
Até agora não ocorreu nenhum incidente que pudesse impressionar
em carta. Um ou dois ventos fortes e o começo de um vazamento são
acidentes que navegadores experimentados mal se recordam de regis-
trar, e ficarei bastante satisfeito se nada pior do que isso acontecer du-
rante a viagem.
Adieu, minha querida Margaret. Esteja certa de que, tanto para o
meu próprio bem quanto para o seu, não irei ao encontro do perigo
com precipitação. Serei calmo, perseverante e prudente.
Entretanto, o sucesso deverá coroar meus esforços. Por que não?
Assim, terei ido longe, ao traçar um caminho seguro pelos mares inex-
plorados, com as próprias estrelas como testemunho e prova de meu
triunfo. Por que não prosseguir ainda no elemento indomado, agora
obediente? O que pode parar um coração determinado e a vontade re-
soluta de um homem?
Meu coração túrgido, involuntariamente, assim verte; contudo, devo
terminar. Que os céus abençoem minha amada irmã!
R.W.
CARTA IV.

À Sra. Sa vil le,


IN GLA TER RA

5 de agosto de 17—
Tão estranho foi o acidente que nos ocorreu que não posso deixar de re-
gistrá-lo, embora seja provável que me veja antes que estes papéis che-
guem a você.
Na última segunda-feira (31 de julho), estávamos quase totalmente
rodeados pelo gelo, que cercou o navio por todos os lados, mal deixan-
do espaço para que a embarcação flutuasse. Nossa situação era um tanto
perigosa, especialmente por estarmos envolvidos em um nevoeiro es-
pesso. Posicionamo-nos da maneira adequada, esperando que alguma
mudança acontecesse na atmosfera ou no tempo.
Por volta das duas horas, o nevoeiro se dissipou e observamos, es-
praiadas em todas as direções, as vastas e irregulares planícies de gelo,
que pareciam não ter fim. Alguns de meus camaradas resmungaram, e
minha mente começou a ficar vigilante com pensamentos inquietos,
quando, de repente, uma estranha visão chamou nossa atenção e desvi-
ou as preocupações da situação em que estávamos. Percebemos uma pe-
quena carruagem afixada em um trenó e puxada por cães que se dirigia
rumo ao norte, a uma distância de uns oitocentos metros: uma criatura
com forma de homem, mas aparentemente de estatura gigantesca, estava
sentada no trenó e guiava os cães. Observamos o rápido progresso do
viajante pelas lunetas, até que ele se perdesse nos distantes acidentes do
gelo.
Isso excitou nossa desmedida admiração. Acreditávamos estar a
muitos quilômetros de qualquer terra, mas essa aparição pareceu deno-
tar que não estávamos, na realidade, tão distantes quanto supúnhamos.
Presos, no entanto, pelo gelo, era impossível seguir seu rastro, que ob-
servávamos com a maior atenção.
Duas horas depois dessa ocorrência, ouvimos o mar dilatar e, antes
do anoitecer, o gelo se partiu e libertou nosso navio. Nós, entretanto, ali
ficamos até a aurora, temendo encontrar no escuro aquelas enormes
massas soltas que flutuam depois que o gelo se quebra. Aproveitei esse
tempo para descansar algumas horas.
Pela manhã, todavia, assim que ficou claro, fui ao convés e encontrei
todos os marinheiros ocupados em um dos lados da embarcação, apa-
rentemente retirando alguém do mar. Era, na realidade, um trenó como
o que havíamos visto antes, que foi trazido pela correnteza até nós du-
rante a noite em um grande fragmento de gelo. Somente um cão estava
vivo, mas havia um ser humano dentro do trenó, a quem os marinheiros
estavam tentando persuadir para que embarcasse. Ele não era, como pa-
recia ser o outro viajante, um habitante selvagem de alguma ilha desco-
nhecida, mas um europeu. Quando apareci no convés, o mestre disse:
— Eis nosso capitão, e ele não permitirá que você pereça no mar
aberto.
Ao me notar, o desconhecido endereçou-se a mim em inglês, embo-
ra tivesse um sotaque estrangeiro. “Antes de subir a bordo de seu na-
vio”, disse, “teria a bondade de informar-me para onde se dirige?”
Você pode conceber meu espanto ao ouvir tal pergunta endereçada a
mim, feita por um homem à beira da morte, para quem meu barco seria
um recurso que ele não trocaria pela riqueza mais preciosa que a Terra
pudesse oferecer. Respondi, entretanto, que estávamos em uma viagem
de exploração rumo ao polo Norte.
Ele pareceu satisfeito com o meu esclarecimento e consentiu em em-
barcar. Pelo bom Deus! Margaret, se você tivesse visto aquele homem
que assim se rendeu por sua segurança, teria uma surpresa sem tama-
nho. Seus membros estavam quase congelados, e o corpo terrivelmente
emaciado pela fadiga e pelo sofrimento. Nunca vi um indivíduo em
condição tão deplorável. Tentamos carregá-lo para a cabine, mas tão lo-
go deixou o ar fresco, desmaiou. Em consequência, trouxemo-lo de vol-
ta para o convés e o reanimamos aplicando-lhe conhaque na pele e for-
çando-o a ingerir uma pequena quantidade da bebida. Tão logo de-
monstrou sinais de vida, o enrolamos em cobertores e o pusemos perto
da chaminé do fogão da cozinha. Ele foi se recuperando aos poucos e
tomou uma pequena quantidade de sopa, o que o revigorou estupenda-
mente.
Dois dias se passaram desta maneira antes que ele fosse capaz de fa-
lar, e muitas vezes temi que seus sofrimentos o tivessem privado de
compreensão. Quando, de certa forma, se recuperou, levei-o para mi-
nha cabine e cuidei dele tanto quanto meus afazeres permitiam. Nunca
vi criatura mais interessante: os olhos carregam, em geral, uma expres-
são de impetuosidade, até mesmo de loucura, mas há momentos em
que, se alguém lhe concede um ato de bondade ou lhe presta o mais in-
significante serviço, todo o seu rosto se acende, por assim dizer, com
um raio de benevolência e docilidade que jamais vi igual. Porém, via de
regra, é melancólico e desanimado e, às vezes, range os dentes, como se
incapaz de suportar o peso dos infortúnios que o oprimem.
Quando meu convidado se recuperou um pouco, tive dificuldades
em manter os homens afastados, pois eles desejavam perguntar mil coi-
sas; contudo, eu não permitiria que ele fosse atormentado pela vã curio-
sidade, em um estado físico e mental cuja recuperação, evidentemente,
dependia de total repouso. Uma vez, no entanto, o imediato perguntou
por que tinha se afastado tanto no gelo em um veículo tão estranho.
De pronto, seu rosto assumiu um aspecto de profunda melancolia, e
ele respondeu:
— Para buscar alguém que fugiu.
— E o homem a quem buscava viajou da mesma maneira?
— Sim.
— Então, creio que o vimos, pois, um dia antes de lhe resgatar, avis-
tamos alguns cães puxando um trenó com um sujeito, a cruzar o gelo.
Isso despertou a atenção do desconhecido, que fez um sem-número
de perguntas a respeito da rota que o demônio, como ele o chamava, se-
guira. Logo depois, quando estava a sós comigo, disse:
— Não há dúvidas de que estimulei vossa curiosidade, bem como a
dessas boas pessoas, mas os senhores são muito corteses para fazer per-
guntas.
— Por certo, seria demasiado impertinente e desumano de minha
parte importuná-lo com qualquer curiosidade.
— E, ainda assim, me resgatou de uma situação estranha e perigosa;
foi benevolente e restaurou a vida.
Logo depois, perguntou se eu achava que o rompimento do gelo
destruira o outro trenó. Disse que não me era possível responder com
grau de certeza algum, pois o gelo não rompera senão perto da meia-
noite, e o viajante poderia ter chegado a um lugar seguro antes disso;
porém, eu não era capaz de afirmá-lo com total convicção.
A partir desse momento, um novo espírito animou a figura decaden-
te do desconhecido. Manifestou maior avidez por estar no convés, a fim
de observar o trenó que aparecera antes. Eu o persuadi a permanecer na
cabine, no entanto, pois ele estava muito fraco para tolerar a crueza da
atmosfera. Prometi que alguém cuidaria da vigilância e que ele seria in-
formado sem demora, caso algum novo objeto fosse avistado.
Assim é meu diário no que diz respeito a essa estranha ocorrência
até o presente momento. A saúde do desconhecido melhorou gradual-
mente, mas ele é muito calado e se mostra desconfortável quando al-
guém, que não seja eu, entra na cabine. Entretanto, suas maneiras são
tão conciliadoras e gentis que todos os marinheiros estão interessados
nele, embora estabeleçam pouca comunicação. De minha parte, começo
a amá-lo como a um irmão, e seu pesar constante enche-me de simpatia
e compaixão. Deve ter sido uma criatura nobre em melhores dias, pois
mesmo agora, em frangalhos, demonstra-se tão atraente e amigável.
Afirmei, em uma de minhas cartas, querida Margaret, que não en-
contraria um amigo no vasto oceano; contudo, encontrei um homem
que, antes de seu espírito ser partido pela angústia, me faria feliz em tê-
lo por irmão de coração.
Continuarei meu diário a respeito do forasteiro aos poucos, se hou-
ver algum incidente novo para registrar.

13 de agosto de 17—
A afeição por meu hóspede aumenta a cada dia. Ele incita, ao mesmo
tempo, minha estima e piedade em um grau surpreendente. Como pos-
so vislumbrar tão nobre criatura destruída pela angústia sem sentir o
mais acerbo pesar? Ele é tão gentil, porém tão sábio; seu intelecto, mui-
to refinado e, quando fala, embora as palavras sejam escolhidas com fina
arte, fluem com rapidez e eloquência sem par.
Está agora bem recuperado da doença e permanece no convés, apa-
rentemente procurando o trenó que antecedeu o seu. Até o momento,
ainda que infeliz, não está de todo ocupado da própria miséria, mas in-
teressa-se profundamente pelos projetos dos outros. Com frequência
conversa comigo sobre meus planos, os quais comuniquei sem dissimu-
lação. Considerou com atenção todos os argumentos em favor de meu
eventual sucesso e cada mínimo detalhe das medidas que tomei para as-
segurá-lo. Por sua simpatia, fui facilmente conduzido a usar a lingua-
gem de meu coração, expressando o ardor abrasador de minha alma, e a
declarar, com todo o fervor que me possuía, a alegria com que sacrifica-
ria a fortuna, a existência, a esperança para alcançar meu objetivo. A vi-
da ou a morte de um homem seriam preços irrisórios a se pagar pela
aquisição do conhecimento que busco, pelo domínio que devo conquis-
tar e legar sobre os inimigos mais elementares de nossa raça. Enquanto
eu falava, uma tristeza profunda se espalhava no semblante de meu ou-
vinte. De início percebi que ele tentava reprimir a emoção: colocava as
mãos diante dos olhos, e minha voz tremeu e falhou ao observar as lá-
grimas vertendo rapidamente por entre seus dedos — um gemido re-
bentou de seu peito arfante. Parei. Finalmente, em um tom débil, ele
disse:
— Homem infeliz! Compartilha de minha loucura? Também sorveu
um liquido intoxicante? Ouvi, deixai-me revelar minha história, e você
arrancará a taça de seus lábios!
Tais palavras, como pode imaginar, provocaram enormemente mi-
nha curiosidade; mas o paroxismo da dor que tomou conta do forastei-
ro superou suas forças enfraquecidas, e foram necessárias muitas horas
de repouso e conversa tranquila para que sua compostura fosse restau-
rada.
Após ter dominado a violência dos sentimentos, pareceu menospre-
zar-se por ser escravo da paixão; e reprimindo a tirania tenebrosa do de-
sespero, levou-me mais uma vez a conversar a meu próprio respeito,
pessoalmente. Perguntou-me sobre a história de meus primeiros anos.
A narrativa foi breve, mas despertou em mim uma série de reflexões.
Comentei sobre meu desejo de ter um amigo — de minha sede por en-
contrar um camarada com quem tivesse grande afinidade e familiaridade
de espirito, o que jamais calhou de acontecer comigo; e expressei a con-
vicção de que um homem que nunca tenha desfrutado dessa bênção po-
de vangloriar-se de pouca felicidade.
— Concordo com o senhor — replicou o desconhecido. — Somos
criaturas sem forma, mas ficamos pela metade, caso alguém mais sábio,
melhor, mais estimado que nós, assim deve ser tal amigo, não nos ajude
a aperfeiçoar nossa natureza fraca e imperfeita. Certa vez tive um ami-
go, a mais nobre das criaturas humanas, e tenho condições, portanto, de
ponderar a respeito da amizade. Você tem esperança e o mundo diante
de si, não há motivos para o desespero. Mas eu… eu perdi tudo e não
posso começar a vida de novo.
Ao dizer isso, seu rosto tomou uma expressão de calma, de um pe-
sar enraizado que me tocou o coração. Entretanto, estava em silêncio, e
dentro em pouco me retirei da cabine.
Mesmo com o espírito alquebrado, ninguém poderia sentir mais
profundamente do que ele as belezas da natureza. O céu estrelado, o
mar e cada visão concedida por essas regiões maravilhosas ainda pareci-
am ter o poder de elevar sua alma. Um homem nessas condições tem
uma existência dupla: poderia sofrer a angústia e ser oprimido por desa-
pontamentos; contudo, quando voltado para si mesmo, se transformaria
em algo como um espirito celestial dotado de um halo ao redor, em cujo
círculo não poderiam se aventurar pesar ou tolice.
Você sorrirá diante do entusiasmo que expresso a respeito desse va-
gamundo divino? Não o faria caso o visse. Foi educada e refinada por
livros e no isolamento do mundo, vindo a ser, portanto, um pouco exi-
gente, mas isso só a torna mais apta para apreciar os méritos extraordi-
nários desse homem maravilhoso. Algumas vezes esforcei-me para des-
cobrir que espécie de qualidade poderia elevá-lo tão imensuravelmente
acima de qualquer outro indivíduo que já conheci. Creio que seja um
discernimento intuitivo, um poder de julgamento rápido, mas nunca fa-
lho, um penetrar na causa das coisas, inigualável pela clareza e precisão;
acrescento a isso uma facilidade de expressão e uma voz cujas variadas
entonações compõem uma música que embala a alma.

19 de agosto de 17—
Ontem o forasteiro disse:
— Pode facilmente perceber, capitão Walton, que sofri infortúnios
grandes e incomparáveis. Resolvera, certa vez, que a memória desses
males morresse comigo, mas o senhor me obrigou a alterar minha de-
terminação. Busca conhecimento e sabedoria, como outrora o fiz, e ar-
dentemente espero que a gratificação de seus desejos não se transforme
na serpente que o morderá, como aconteceu comigo. Não sei se a rela-
ção de meus desastres seria-lhe útil; no entanto, quando penso que bus-
ca o mesmo curso, expondo-se aos mesmos perigos que me tornaram o
que sou, imagino que deva deduzir a inclinação moral de minha histó-
ria; que possa direcionar-lhe caso seja bem-sucedido nos esforços e con-
solar-lhe em caso de falha. Prepare-se para ouvir acontecimentos que,
em geral, são considerados maravilhas. Estivéssemos entre as dóceis ce-
nas da natureza, temeria encontrar no senhor a descrença, talvez o ridí-
culo; mas muitas coisas parecerão possíveis nestas regiões selvagens e
misteriosas que provocariam o riso nos que desconhecem os sempre va-
riados poderes da natureza; nem posso duvidar, mas minha história car-
rega em si uma série de comprovações internas da verdade dos aconteci-
mentos de que é composta.
Pode facilmente imaginar que estava muito satisfeito pela comunica-
ção oferecida; contudo, não poderia suportar que revivesse pesares ao
narrar seus infortúnios. Fiquei muito ansioso por ouvir a narrativa pro-
metida, em parte por curiosidade, mas também por um forte desejo de
aliviar seu fardo, caso isso estivesse em meu poder. Expressei esses sen-
timentos em resposta.
— Agradeço-lhe — respondeu — por sua compaixão, mas é inútil;
minha sina está quase cumprida. Espero apenas por um acontecimento
e, então, repousarei em paz. Compreendo seu sentimento — continuou
ele, percebendo que desejava interrompê-lo —, mas está equivocado,
meu amigo, se assim me permite chamá-lo; nada pode alterar meu desti-
no. Ouça minha história e compreenderá como ela está irrevogavelmen-
te decidida.
Disse-me então que iniciaria a narrativa no dia seguinte, quando eu
dispusesse de tempo livre. Essa promessa rendeu, de minha parte, calo-
rosos agradecimentos. Decidi registrar todas as noites, quando não esti-
vesse imperativamente ocupado pelos deveres, o mais fielmente possível
e em suas próprias palavras, o que ele relatara durante o dia. Caso tenha
muito o que fazer, ao menos tomarei notas. Esse manuscrito, sem dúvi-
da, lhe proporcionará o maior prazer; mas para mim, que o conheço e
ouço a história de seus lábios — com que interesse e simpatia o lerei no
futuro! Mesmo agora, ao começar minha tarefa, sua voz ressonante se
dilata em meus ouvidos; seus olhos brilhantes pousam em mim com
melancólica suavidade, vejo sua mão magra levantada em animação, en-
quanto as feições irradiam o intimo da alma. Estranha e angustiosa deve
ser essa história, terrível a tempestade que abraçou o navio heroico em
seu curso e o fez soçobrar — assim!
Cap. I.

Sou genebrino de origem, descendente de uma das famílias mais impor-


tantes da república. Meus ancestrais foram, por muitos anos, conselhei-
ros e síndicos,[1] e meu pai ocupou vários postos públicos com honra e
renome. Era respeitado, por todos que o conheciam, pela integridade e
infatigável atenção aos negócios públicos. Passou os dias de juventude
sempre ocupado com os assuntos do país; uma variedade de circunstân-
cias o impediram de que se casasse cedo e foi somente no declínio da vi-
da que veio a ser marido e pai de família.
Como as circunstâncias do matrimônio ilustram seu caráter, não
posso deixar de relatá-las. Um de seus amigos mais íntimos era um co-
merciante que, de um estado próspero, caiu, por inúmeros infortúnios,
na pobreza. Esse homem, cujo nome era Beaufort, tinha uma disposição
orgulhosa e inflexível e não podia suportar a vida na pobreza e no es-
quecimento no mesmo país em que se notabilizara por sua posição soci-
al e magnificência. Ao pagar as dívidas, portanto, da maneira mais hon-
rada, retirou-se com a filha para a cidade de Lucerna, onde viveu incóg-
nito e miseravelmente. Meu pai amava Beaufort com verdadeira amiza-
de e estava profundamente triste por sua retirada em tais circunstâncias
infelizes. Deplorou, com amargor, o orgulho falso que levou seu amigo
a ter uma conduta tão indigna do afeto que os unia. Não perdeu tempo
a esforçar-se por procurá-lo, com a esperança de persuadi-lo a recome-
çar a vida por intermédio de seu crédito e sua assistência.
Beaufort tomara medidas efetivas para esconder-se, e dez meses se
passaram até que meu pai encontrasse seu domicilio. Radiante pela des-
coberta, precipitou-se para a casa, situada em uma rua desprezível em
Reuss. Entretanto, ao adentrar a residência, a miséria e o desespero de-
ram-lhe as boas-vindas. Beaufort poupara apenas uma quantia ínfima de
dinheiro dos destroços de sua fortuna, o suficiente para proporcionar o
sustento por alguns meses. Nesse meio-tempo, esperou encontrar algu-
ma ocupação respeitável em uma casa de comércio. Esse período, por
consequência, foi vivido na inação; sua miséria só se tornou mais pro-
funda e exasperante quando tinha por reflexão o tempo livre e, enfim,
isso se apoderou de modo tão rápido de sua mente que, findos três me-
ses, caiu doente de cama, incapaz de qualquer esforço.
A filha o assistiu com a maior ternura, mas percebia com desespero
que os parcos recursos estavam diminuindo rapidamente e que não ha-
via outra perspectiva de sobrevivência. Caroline Beaufort, contudo, ti-
nha uma mente de feitio incomum e a coragem surgiu para apoiá-la na
adversidade. Buscou trabalhos simples, trançou palha e de vários modos
conseguiu ganhar uma ninharia que mal dava para o sustento.
Vários meses se passaram dessa maneira. O pai piorou, o tempo dela
foi cada vez mais ocupado em assisti-lo e os meios de subsistência min-
guaram. No décimo mês, o pai morreu em seus braços, deixando-a órfã
e pobre. Esse último golpe a arrasou; e ela estava ajoelhada diante do
caixão de Beaufort, chorando amargamente, quando meu pai entrou no
aposento. Foi anunciado como um espirito protetor para a pobre moça,
que se entregou aos seus cuidados; então, após o enterro do amigo, con-
duziu-a para Genebra e a colocou sob a proteção de um parente. Dois
anos depois desse acontecimento, Caroline tornou-se sua mulher.
Havia uma diferença considerável de idade entre meus pais, mas essa
circunstância parecia uni-los ainda mais em laços de devotada afeição.
Era notável um senso de justiça na mente correta de meu pai que torna-
va necessário demonstrar o amor com todas as forças. Talvez, durante
os primeiros anos, sofrera pela descoberta tardia da indignidade de uma
amada e, portanto, estava disposto a conferir grande valor ao mérito
comprovado. Demonstrava gratidão e veneração no relacionamento
com minha mãe, diferindo absolutamente dos carinhos tolos de sua ida-
de, pois era inspirado pela reverência às virtudes dela e pelo desejo de
representar, em algum grau, um meio de recompensá-la pelo sofrimento
por que passara, o que, porém, emprestava uma graça inexprimível à sua
postura em relação a ela. Tudo era feito para ceder aos seus desejos e à
sua conveniência. Empenhou-se em protegê-la como uma planta exótica
é protegida pelo jardineiro, defendendo-a de qualquer vento mais brus-
co e cercando-a de tudo que pudesse excitar emoções prazerosas em sua
mente suave e benévola. Sua saúde, e mesmo a tranquilidade de seu es-
pirito, até aqui constantes, foram abaladas pelas situações que vivencia-
ria depois. Durante os dois anos que antecederam o casamento, meu pai
foi aos poucos renunciando a todas as funções públicas; então, imedia-
tamente após a união, eles buscaram o clima agradável da Itália, e a mu-
dança de cenário e os novos interesses que acompanham uma viagem
por essas terras maravilhosas serviram como um tônico para a constitui-
ção frágil da jovem.
Após a Itália, visitaram a Alemanha e a França. Eu, o filho mais ve-
lho, nasci em Nápoles e, quando criança, os acompanhei nas andanças.
Permaneci por vários anos como filho único. Eram tão unidos um ao
outro que pareciam extrair quantidades inesgotáveis de afeição de uma
mina de amor para conferi-lo a mim. As ternas carícias de minha mãe e
o sorriso de meu pai, que expressava um prazer benevolente quando
olhava para mim, são minhas primeiras lembranças. Eu era o brinquedo,
o ídolo deles e algo mais — o filho, a criatura inocente e indefesa que
lhes foi dada pelos céus, que seria educada para o bem, e cujo destino
estava em suas mãos apontar para a felicidade ou para o tormento, con-
forme cumprissem seus deveres em relação a mim. Com essa consciên-
cia profunda do que deviam ao ser a que deram vida, além do espírito
ativo de ternura que animava a ambos, pode-se imaginar que, durante
todas as horas de minha infância, recebi lições de paciência, caridade e
autocontrole. Fui conduzido por um cordel de seda e tudo parecia ape-
nas uma sequência de prazeres.
Por um bom tempo, fui o único objeto da atenção deles. Minha mãe
desejara muito uma filha, mas permaneci filho único. Quando estava
com uns cinco anos, durante uma excursão além das fronteiras da Itália,
passaram uma semana às margens do lago Como.[2] A disposição bene-
volente de meus pais fazia com que, muitas vezes, frequentassem os ca-
sebres dos mais pobres. Isso, para minha mãe, era mais do que um de-
ver; era uma necessidade, uma paixão — recordando-se do que sofrera e
como fora socorrida — para ela agir, por sua vez, como um anjo da
guarda para os aflitos. Durante uma de suas andanças, uma choupana
miserável localizada nas dobras de um vale chamou-lhe a atenção por
parecer singularmente triste, ao mesmo tempo que uma série de crianças
maltrapilhas que se agrupavam ao seu redor mostravam a penúria em
seu pior estado. Em um dia em que meu pai viajara para Milão, minha
mãe, acompanhada por mim, visitou essa habitação. Encontrou um
camponês e a mulher, que trabalhavam arduamente, abatidos pela inqui-
etação e pelo labor, a distribuir uma refeição escassa para cinco crianças
famintas. Entre elas, uma despertou o interesse de minha mãe muito
mais do que as outras. Parecia oriunda de uma linhagem diferente. As
outras quatro tinham olhos escuros, verdadeiramente pequenos vaga-
bundos; essa criança era esguia e muito clara. Seu cabelo resplandecia o
dourado mais brilhante e, apesar da pobreza das vestes, parecia ostentar
sobre a cabeça uma coroa de distinção. Sua fronte era clara e larga, os
olhos azuis, límpidos, e seus lábios e o contorno do rosto exprimiam ta-
manha sensibilidade e doçura que era impossível contemplá-la sem per-
cebê-la como pertencente a uma espécie distinta, uma criatura enviada
pelos céus e portadora de uma marca celestial em cada traço.
A camponesa, ao perceber que minha mãe fixara os olhos maravilha-
dos e admirados nessa adorável menina, imediatamente contou a histó-
ria dela. Aquela criança não era sua, mas filha de um nobre milanês. Sua
mãe era alemã e morreu ao dar à luz.[3] A criança fora entregue aos cui-
dados daquelas boas pessoas, pois tinham melhores condições na época.
Não estavam casados há muito tempo, e o filho mais velho acabara de
nascer então. O pai da custodiada era um daqueles italianos que acalen-
tavam na memória a antiga glória da nação — um dos schiavi ognor fre-
menti[4] que se esforçaram para obter a liberdade de seu país. Tornou-se
vítima da fraqueza. Se morrera ou ainda penava nos calabouços da Áus-
tria não se sabia. Sua propriedade fora confiscada; sua filha tornara-se
órfã e pobre. A menina permaneceu com os pais adotivos e floresceu, na
rude residência, mais bela que um jardim de rosas entre sarças negras.
Quando meu pai retornou de Milão, encontrou, a brincar comigo
no saguão de nossa villa, uma criança mais bela que a pintura de um
querubim — uma criatura que parecia irradiar brilho e cuja forma e ges-
tos eram mais suaves que os dos cabritos monteses. A aparição foi logo
explicada. Com a permissão dele, minha mãe conseguiu persuadir os
guardiões rústicos a lhe entregarem o encargo. Eram muito afeiçoados à
doce órfã. Sua presença representava uma bênção, mas seria injusto
mantê-la na pobreza e na necessidade quando a Providência lhe conferi-
ra tamanha proteção. Consultaram o padre do vilarejo e o resultado foi
que Elizabeth Lavenza se tornou uma protegida da casa de meus pais —
mais que minha irmã —, a companhia bela e adorável de todas as mi-
nhas ocupações e prazeres.
Todos amavam Elizabeth. O afeto apaixonado e quase reverencial
com que a consideravam tornou-se, para mim, motivo de orgulho e de-
leite. Na noite anterior à sua chegada, minha mãe dissera de maneira di-
vertida: “Tenho um belo presente para o meu Victor — amanhã o rece-
berá”. E quando, no dia seguinte, ela presenteou-me com Elizabeth co-
mo prometera, eu, com seriedade infantil, interpretei suas palavras lite-
ralmente e olhei para Elizabeth como minha — minha para proteger,
amar e acalentar. Recebia como se fossem meus todos os louvores a ela
concedidos. Chamávamo-nos familiarmente de primos. Nenhuma pala-
vra ou expressão poderia definir a espécie de vinculo que ela representa-
va para mim — minha mais que irmã, uma vez que até a morte haveria
de ser unicamente minha.
Cap. II.

Fomos criados juntos, não tínhamos nem bem um ano de diferença.


Não preciso dizer que éramos estranhos a qualquer espécie de desunião
ou controvérsia. Harmonia era a alma de nossa relação, e a diversidade e
o contraste que subsistiam em nossos temperamentos nos tornavam
ainda mais próximos. Elizabeth tinha uma disposição mais calma e con-
centrada, enquanto eu, com todo o meu ardor, era capaz de uma dili-
gência mais intensa, sendo atingido de maneira mais profunda pela sede
de conhecimento. Ela se ocupava em seguir as criações etéreas dos poe-
tas; e nos cenários majestosos e maravilhosos que circundavam nossa
casa na Suíça — as formas sublimes das montanhas, as mudanças das es-
tações, a tempestade e a bonança, o silêncio do inverno e a vida e turbu-
lência de nossos verões nos Alpes —, encontrava ampla margem para
admiração e encanto. Enquanto minha companheira contemplava com
espírito sério e satisfeito a magnífica aparência das coisas, eu me delicia-
va em investigar as causas. O mundo era para mim um segredo que de-
sejava desvendar. A curiosidade, a pesquisa séria para aprender as leis
ocultas da natureza, a alegria semelhante ao êxtase à medida que se reve-
lavam para mim, acham-se entre as primeiras sensações de que me re-
cordo.
Após o nascimento de um segundo filho, sete anos mais jovem,
meus pais deixaram totalmente de lado a vida errante e fixaram residên-
cia em seu país natal. Possuíamos uma casa em Genebra e uma campag-
ne em Belrive, na margem oriental do lago, a uma distância de mais ou
menos quatro quilômetros da cidade. Moramos a maior parte do tempo
nessa segunda casa, e a vida de meus pais transcorria em considerável
reclusão. Era próprio de meu temperamento evitar a multidão e unir-me
com fervor a poucos. Em geral, eu era indiferente, portanto, a meus co-
legas de escola, mas criei laços da mais profunda amizade com um deles.
Henry Clerval era filho de um comerciante de Genebra. Um menino de
enorme imaginação e talento singular. Amava a iniciativa, a dificuldade
e mesmo o perigo por amor à aventura. Era versado em livros de cavala-
ria e romances. Compunha canções heroicas e começou a escrever his-
tórias de encantamento e aventuras cavaleirescas. Tentava nos fazer atu-
ar em peças e a participar de mascaradas em que as personagens eram
inspiradas nos heróis de Roncesvalles,[1] da távola redonda do rei Artur
e da série de cavalheiros que derramaram seu sangue para resgatar o
Santo Sepulcro das mãos dos infiéis.
Ser humano algum poderia ter tido uma infância mais feliz do que a
minha. Meus pais possuíam o mesmo espirito de bondade e satisfação.
Sentíamos que não eram tiranos a governar nossa sorte segundo algum
capricho, mas agentes e criadores das diversas alegrias de que desfrutá-
vamos. Quando interagi com outras famílias, distingui com nitidez co-
mo éramos peculiarmente afortunados e a gratidão assistia à evolução
do amor filial.
Meu temperamento era, por vezes, violento e as paixões, veementes;
porém, por influência de alguma disposição interior, elas não se volta-
vam para ocupações infantis, mas para um desejo ávido por aprender
todas as coisas indiscriminadamente. Confesso que nem a estrutura das
línguas, nem o código dos governos, nem a política dos vários estados
atraíam-me. Eram os segredos do céu e da Terra que desejava aprender.
Ainda que ocupado com a substância externa das coisas ou com o âma-
go da natureza e a misteriosa alma do homem, minhas investigações
eram dirigidas para o metafísico ou, no sentido mais supremo, para os
segredos físicos do mundo.
Enquanto isso, Clerval ocupava-se, por assim dizer, das relações
morais das coisas. A fase ativa da vida, as virtudes dos heróis e as ações
dos homens eram seus temas. Seu sonho e sua esperança era tornar-se,
entre os nomes gravados na história, um dos benfeitores nobres e cora-
josos de nossa espécie. A alma santa de Elizabeth brilhava como uma
lamparina votiva na capela de paz do lar. Sua compaixão era nossa; seu
sorriso, sua voz suave, o doce vislumbre de seus olhos celestiais sempre
estavam presentes para nos abençoar e animar. Era o espirito vivo do
amor que abranda e atrai. Poderia ter me tornado intratável pelos meus
estudos, áspero pelo ardor de minha natureza, mas lá estava ela para su-
jeitar-me à semelhança da própria gentileza. E Clerval — que mal pode-
ria se entrincheirar no nobre espirito de Clerval? No entanto, não po-
deria ser um homem tão perfeito, tão atento em generosidade, tão cheio
de bondade e ternura em meio à sua paixão pela proeza corajosa se ela
não lhe tivesse revelado a verdadeira graciosidade da beneficência e
transformado o benfazer no fim e propósito de sua ambição crescente.
Sinto um prazer extraordinário ao alongar-me nas lembranças de in-
fância, antes do infortúnio macular minha mente e transformar essas vi-
sões brilhantes de grande utilidade em reflexões sombrias e exíguas so-
bre meu eu. Ademais, ao traçar o quadro de meus primeiros dias, recor-
do-me também daqueles acontecimentos que levaram, por passos in-
conscientes, à minha posterior história de tormento; pois, quando re-
monto o nascimento daquela paixão que depois governou meu destino,
a vejo surgir, como um rio de montanha, das fontes mais ignóbeis e
quase esquecidas; todavia, avolumando-se no seguir do curso, varre pa-
ra longe todas as minhas esperanças e alegrias.
A filosofia natural é o gênio que controlou meu destino. Desejo,
portanto, nesta narrativa apresentar os fatos que levaram à minha predi-
leção por tal ciência. Quando contava com treze anos, fomos todos a
uma agradável excursão aos banhos perto de Thonon; a inclemência do
clima obrigou-nos a permanecer confinados durante o dia na hospeda-
ria. Nesta casa, por acaso, deparei-me com as obras de Cornélio Agrip-
pa.[2] Abri o livro com apatia. A teoria que o autor tentava demonstrar e
os fatos maravilhosos que relatava logo transformaram essa sensação em
entusiasmo. Uma nova luz pareceu despontar em mim e, vibrando de
alegria, comuniquei a descoberta ao meu pai. Ele olhou descuidadamen-
te a folha de rosto da obra e disse:
— Ah! Cornélio Agrippa! Meu caro Victor, não percas teu tempo
com isso; é um lixo deplorável.
Se, em vez dessa observação, meu pai tivesse se esforçado para expli-
car que os princípios de Agrippa estavam totalmente ultrapassados e
que um sistema cientifico moderno fora introduzido, o qual possuía
uma força muito maior que o antigo porque os poderes do sistema de
outrora eram quiméricos, ao passo que os princípios da ciência moder-
na eram reais e práticos, certamente, nessas circunstâncias, teria posto
Agrippa de lado e contentado minha imaginação, animada como era, ao
retornar com maior ardor para os estudos de antes. É até possível que o
fluxo de ideias nunca tivesse recebido o impulso fatal que levou à minha
ruína. Entretanto, o olhar apressado de meu pai de modo algum garan-
tiu-me que estava familiarizado com o conteúdo do livro, de maneira
que continuei a lê-lo com imensa avidez.
Quando voltei para casa, minha primeira preocupação foi procurar
as obras completas daquele autor e, depois, de Paracelso e de Alberto
Magno.[3] Li e estudei as fantasias selvagens desses autores com prazer.
Pareciam-me tesouros conhecidos por poucos além de mim. Já me des-
crevi como constantemente imbuído de um desejo fervente em penetrar
os segredos da natureza. Em que pese o trabalho intenso e as descober-
tas maravilhosas dos filósofos modernos, sempre concluía meus estudos
descontente e insatisfeito. Dizem que Sir Isaac Newton declarara que se
sentia como uma criança catando conchas junto ao grande e inexplora-
do oceano da verdade. Aqueles que o sucederam em cada um dos ramos
da filosofia natural, com os quais estava habituado, pareciam, mesmo
para minhas apreensões de menino, aprendizes devotados à mesma bus-
ca.
O camponês iletrado observava os elementos ao seu redor e acostu-
mou-se com os usos práticos. O filósofo erudito sabe pouco mais. Des-
velara parcialmente a face da natureza, mas seus contornos imortais ain-
da são maravilha e mistério. Era capaz de dissecar, anatomizar e dar no-
mes, mas, para não falar de uma causa final, causas em graus secundá-
rios e terciários permaneciam completamente desconhecidas. Contem-
plei as fortificações e impedimentos que pareciam obstar os seres huma-
nos de ingressar na cidadela da natureza e, com precipitação e ignorân-
cia, lamentei.
No entanto, havia livros e homens que penetraram mais fundo e sa-
biam mais. Tomei por certo tudo o que afirmaram e tornei-me discípu-
lo. Pode parecer estranho que tal coisa acontecesse no século XVIII, mas,
enquanto seguia a rotina educativa nas escolas de Genebra, fui, em
grande medida, autodidata em relação aos meus estudos favoritos. Meu
pai não era científico e fui abandonado a uma luta cega acrescida de uma
sede discente por conhecimento. Sob a orientação de meus novos pre-
ceptores, comecei a me envolver com a maior das diligências em busca
da pedra filosofal e do elixir da vida; porém este último logo ganhou to-
da a minha atenção. A riqueza era um objeto inferior, mas com que gló-
ria assistiria à descoberta capaz de banir a doença do corpo humano,
tornando o homem invulnerável a qualquer coisa, exceto à morte vio-
lenta!
Essas não eram minhas únicas visões. A evocação de fantasmas ou
demônios era uma promessa livremente concedida por meus autores fa-
voritos, cujo cumprimento eu buscava com a maior impaciência e, se
meus feitiços jamais tiveram êxito, atribuía a falha, antes, à minha pró-
pria inexperiência e erros do que ao desejo de proficiência ou fidelidade
em minhas instruções. E assim, por um tempo, ocupei-me de sistemas
obsoletos, misturando, como um inábil, milhares de teorias contraditó-
rias e chafurdando desesperadamente em um atoleiro de conhecimentos
múltiplos, guiado por imaginação ardente e raciocínio infantil, até que
um acidente, mais uma vez, mudou o curso de minhas ideias.
Estava com uns quinze anos quando fomos para nossa casa perto de
Belrive; na ocasião, testemunhamos a tempestade mais violenta e terrí-
vel. Vinha por detrás das montanhas de Jura e, logo, um trovão ribom-
bou, com um som terrível, em vários quarteirões do céu. Permaneci, en-
quanto durou o temporal, assistindo ao seu desenrolar com curiosidade
e encanto. De pé na porta, de repente, observei um raio de fogo expeli-
do de um carvalho antigo e belo que ficava a uns vinte metros de nossa
casa. Assim que a luz ofuscante sumiu, nada restou senão um cepo des-
truído. Quando o visitamos na manhã seguinte, encontramos a árvore
destruída de maneira singular. Não fora estilhaçada pelo choque, mas
totalmente reduzida a finas tiras de madeira. Jamais vira algo aniquilado
tão completamente.
Antes disso já travara conhecimento com as leis mais óbvias da ele-
tricidade. Nessa ocasião, estava conosco um grande pesquisador de filo-
sofia natural que, excitado com a catástrofe, começou a explicar uma te-
oria sobre a questão da eletricidade e do galvanismo que era para mim,
ao mesmo tempo, nova e surpreendente. Tudo o que ele disse pôs nas
sombras Cornélio Agrippa, Alberto Magno e Paracelso, os mestres de
minha imaginação, mas, por alguma fatalidade, a queda desses homens
indispôs-me a seguir os estudos de costume. Parecia-me que nada fosse
ou pudesse ser conhecido. Tudo o que durante tanto tempo ocupou mi-
nha atenção, de repente, tornou-se desprezível. Por um desses caprichos
da mente a que estamos mais sujeitos, talvez, no início da juventude, no
mesmo instante desisti de minhas antigas ocupações, inscrevi a história
natural e toda a sua progênie como criação deformada e abortiva e nutri
grande desdém por uma ciência do porvir que nunca pisou na soleira do
verdadeiro conhecimento. Com essa disposição mental, vali-me da ma-
temática e dos ramos dos estudos pertencentes a essa ciência como
construídos em fundamentos seguros e, portanto, dignos de minha con-
sideração.
Assim, estranhamente, nossas almas são construídas, e por tais deli-
cados ligamentos somos compelidos à prosperidade ou à ruína. Quando
olho para trás, parece-me que essa mudança quase milagrosa de inclina-
ção e de vontade representou uma sugestão imediata do anjo da guarda
de minha vida — o último esforço empreendido pelo espírito de preser-
vação a fim de evitar a tempestade que estava, já nessa ocasião, suspensa
nas estrelas e pronta para me envolver. Sua vitória foi anunciada por
uma tranquilidade incomum e uma alegria d’alma que se seguiram ao
abandono de meus antigos e tormentosos estudos. Assim, estava-me
sendo ensinado a associar o mal ao prosseguimento deles e a felicidade à
sua negligência.
Foi um grande esforço do espírito do bem, embora ineficaz. O des-
tino era muito poderoso e suas leis imutáveis haviam decretado minha
absoluta e terrível destruição.
Cap. III.

Quando completei dezessete anos, meus pais decidiram que eu deveria


ingressar na Universidade de Ingolstadt.[1] Até então frequentara as es-
colas de Genebra, mas meu pai achava necessário, para completar minha
educação, que me habituasse com costumes diferentes daqueles de meu
pais. Minha partida foi, portanto, logo estipulada, mas antes que o dia
acertado tivesse chegado, ocorreu o primeiro infortúnio de minha vida
— um augúrio, por assim dizer, de meu tormento futuro.
Elizabeth contraíra escarlatina; sua doença era grave e ela corria ver-
dadeiro perigo. Durante a enfermidade, discutimos muito a fim de per-
suadir minha mãe a não cuidar da doente. De início, ela se rendeu às
nossas súplicas, mas ao saber que a vida de sua favorita estava em risco,
não lhe foi mais possível controlar a inquietação. Assistiu o leito da en-
ferma — seus cuidados atentos venceram a malignidade da doença —,
Elizabeth foi salva, mas as consequências da imprudência foram fatais
para quem a preservou. No terceiro dia, minha mãe adoeceu. Sua febre
foi acompanhada pelos sintomas mais alarmantes, e a expressão dos mé-
dicos que a acudiam prognosticava o pior. No leito de morte, a fortale-
za e a benignidade não abandonaram essa mulher excepcional. Uniu mi-
nhas mãos às de Elizabeth:
— Meus filhos — disse —, minhas maiores esperanças de felicidade
futura foram postas na perspectiva da união de vocês. Essa expectativa,
agora, será a consolação de seu pai. Elizabeth, meu amor, deve assumir
meu lugar junto às crianças mais novas. Ai de mim! Lamento ter de dei-
xá-los; feliz e amada como fui, não é difícil desistir? Esses, todavia, não
são pensamentos condizentes. Esforçar-me-ei para resignar-me alegre-
mente com a morte e acarinharei o desejo de encontrá-los no outro
mundo.
Morreu pacificamente e suas feições expressavam ternura mesmo na
morte. Não preciso descrever os sentimentos daqueles cujos laços mais
queridos são rompidos pelo mal mais irreparável, o vazio que se apre-
senta à alma e o desespero exibido no semblante. Isso foi muito antes de
minha mente persuadir-se de que aquela que víamos todos os dias, cuja
própria existência parecia parte de nós mesmos, pudesse ter nos deixado
para sempre — que o brilho de um olhar amoroso pudesse ter extingui-
do e o som de uma voz tão familiar e querida aos nossos ouvidos fosse
capaz de ser silenciada e nunca mais ouvida. Essas são as reflexões dos
primeiros dias; no entanto, quando o lapso temporal prova a realidade
do mal, então inicia-se a verdadeira amargura do pesar. A quem, contu-
do, não terá essa mão rude apartado uma relação querida? E por que
deveria descrever um pesar que todos sentimos e devemos sentir? O
tempo, finalmente, chega quando o pesar é mais uma indulgência que
uma necessidade; e o sorriso que toca de leve os lábios, embora seja
considerado um sacrilégio, não é banido. Minha mãe estava morta, mas
nós ainda tínhamos deveres a cumprir. Devemos continuar nosso curso
com os demais e aprender a nos julgar afortunados enquanto existirem
aqueles que não foram arrebatados pela ceifadora.
Minha partida para Ingolstadt, que fora postergada por esses acon-
tecimentos, agora estava novamente decidida. Obtive de meu pai um
adiamento de algumas semanas. Pareceu-me uma impropriedade deixar
tão cedo o repouso, semelhante à morte, da casa de luto para a agitação
da plenitude da vida. O pesar era algo novo e não me alarmou absoluta-
mente. Não estava disposto a perder de vista os que permaneceram co-
migo e, sobretudo, desejava me assegurar que, de alguma maneira, mi-
nha doce Elizabeth estivesse consolada.
Ela, de fato, velou a dor e esforçou-se arduamente para confortar a
todos. Encarou com firmeza a vida e assumiu seus deveres com cora-
gem e zelo. Dedicou-se àqueles a quem fora ensinada a chamar de tio e
primos. Nunca foi tão encantadora quanto nessa ocasião, quando seus
sorrisos recordavam um raio de sol. Ela até mesmo esqueceu o próprio
pesar em seus esforços de nos fazer esquecer o nosso.
O dia de minha partida, por fim, chegou. Clerval passou a última
noite conosco. Tinha se empenhado em persuadir o pai a consentir que
me acompanhasse para tornar-se meu colega nos estudos, mas em vão.
Seu pai era um comerciante de espirito tacanho e via ociosidade e ruína
nas aspirações e ambição do filho. Henry sentiu profundamente o in-
fortúnio de ser impedido de buscar uma educação liberal. Pouco disse,
mas, quando falou, li em seus olhos bondosos e no olhar animado uma
resolução contida, embora firme, de não ser acorrentado aos insignifi-
cantes pormenores do comércio.
Ficamos acordados até tarde. Não conseguimos nos separar nem
nos convencer a dizer a palavra “adeus”. O momento chegou e nos reti-
ramos sob o pretexto de repousar, cada um imaginando que o outro fo-
ra enganado; mas quando, na aurora, desci para tomar a carruagem que
me levaria embora, estavam todos lá — meu pai novamente a me aben-
çoar, Clerval para apertar-me a mão mais uma vez, minha Elizabeth pa-
ra renovar as súplicas de que eu lhe escrevesse sempre e para conferir as
últimas atenções femininas ao seu amado e amigo.
Atirei-me no cabriolé que me levaria embora e cedi à mais melancó-
lica reflexão. Eu, que sempre estive rodeado de companheiros agradá-
veis, continuamente engajados na tentativa de conferir prazer mútuo,
estava agora sozinho. Na universidade para onde iria, teria de fazer
meus próprios amigos e de ser meu próprio protetor. Até agora, minha
vida fora extraordinariamente reclusa e doméstica, e isso conferira uma
repugnância invencível a novos rostos. Amava meus irmãos, Elizabeth e
Clerval; esses eram “os velhos rostos familiares”, mas acreditava ser to-
talmente inapto para a companhia de estranhos. Tais eram minhas refle-
xões ao começar a jornada; contudo, enquanto seguia, meus espírito e
ânimo melhoraram. Desejei ardentemente adquirir conhecimento. Inú-
meras vezes, em casa, pensei ser difícil viver a juventude enfiado em um
só lugar e desejei ingressar no mundo para tomar meu lugar entre os
outros seres humanos. Naquele momento, meus desejos se cumpriam e,
de fato, seria tolo arrepender-me.
Tive tempo livre o bastante para essas e outras reflexões durante
meu trajeto até Ingolstadt, que foi longo e cansativo. Por fim, o alto
campanário branco da cidade surgiu em meu campo de visão. Sai do ca-
briolé e fui levado ao meu apartamento solitário para passar a noite
conforme desejasse.
Na manhã seguinte, entreguei minhas cartas de apresentação e visitei
os principais professores. O acaso — ou melhor, a má influência, o anjo
da destruição, que afirmara seu domínio onipotente sobre mim no mo-
mento em que dei meus passos relutantes para fora da casa de meu pai
— levou-me primeiro ao sr. Krempe, professor de filosofia natural. Era
um homem grosseiro, mas profundamente impregnado dos segredos de
sua ciência. Perguntou-me várias coisas sobre meu progresso nos dife-
rentes ramos das ciências pertencentes à filosofia natural. Respondi com
cuidado e, em parte, com displicência, mencionando o nome dos alqui-
mistas como os principais autores que estudara. O professor olhou-me
fixamente.
— Passou mesmo seu tempo estudando tamanhos disparates? —
perguntou.
Respondi afirmativamente.
— Cada minuto — prosseguiu o sr. Krempe com veemência —, cada
instante que gastou nesses livros foram completa e totalmente perdidos.
Você sobrecarregou sua memória com sistemas obsoletos e nomes inú-
teis. Por Deus! Em que terras desertas viveu, onde ninguém foi gentil o
bastante para informá-lo que essas fantasias que tão avidamente absor-
veu datam de mil anos e são tão bolorentas quanto antigas? Jamais espe-
rei, nesta era ilustrada e científica, encontrar um discípulo de Alberto
Magno e de Paracelso. Meu caro senhor, deve recomeçar todos os seus
estudos.
Ao dizer isso, ele se afastou e escreveu uma lista de vários livros re-
lacionados à filosofia natural que desejava que eu adquirisse e despediu-
se após comentar que, no começo da semana seguinte, pretendia dar iní-
cio a uma série de palestras sobre filosofia natural e suas relações gerais,
e que o sr. Waldman, outro professor da instituição, falaria sobre quími-
ca em dias alternados, quando não palestrasse.
Não retornei a casa desapontado, pois, como disse, há muito consi-
derava inúteis esses autores desaprovados pelo professor, mas não vol-
tei, de modo algum, mais inclinado a recorrer a tais estudos. O sr.
Krempe era um homem atarracado, com uma voz dura e feições repul-
sivas. O professor, portanto, não me predispunha a favorecer suas pes-
quisas. Em um esforço demasiado filosófico e associado, talvez, foi pos-
sível relatar as conclusões a que cheguei em meus primeiros anos.
Quando criança não estivera contente com os resultados prometidos
pelos professores modernos das ciências naturais. Em uma confusão de
ideias, que só pode ser explicada por minha extrema juventude e meu
desejo de contar com alguma orientação para tais assuntos, tive de refa-
zer os passos do conhecimento junto aos caminhos do tempo e troquei
as descobertas dos pesquisadores recentes pelos sonhos dos alquimistas
esquecidos. Ademais, sentia desprezo pelos usos da filosofia natural
moderna. Era muito diferente quando os mestres da ciência buscavam a
imortalidade e o poder; tais visões, embora fúteis, eram grandiosas; ago-
ra, porém, o cenário mudara, A ambição do pesquisador pareceu limi-
tar-se a aniquilar aquelas visões sobre as quais baseava-se fundamental-
mente meu interesse nas ciências. Era necessário trocar as quimeras de
grandezas ilimitadas por realidades de pouco valor.
Tais eram minhas reflexões durante os primeiros dois ou três dias de
residência em Ingolstadt, que ocupava principalmente familiarizando-
me com as localidades e com os principais moradores de minha nova
habitação. No entanto, no início da semana seguinte, pensei na informa-
ção que o sr. Krempe havia dado a respeito das conferências. E, embora
não pudesse consentir em comparecer e ouvir aquele camarada vaidoso
proferir algumas frases do púlpito, rememorei o que foi dito a respeito
do sr. Waldman, a quem nunca tinha visto, pois estava até então fora da
cidade.
Por curiosidade e também por falta do que fazer, fui à sala de confe-
rências, onde o sr. Waldman entrou pouco tempo depois. Esse professor
era muito diferente de seu colega. Parecia ter uns cinquenta anos, mas
com um aspecto expressivo de grande benevolência; alguns poucos ca-
belos grisalhos cobriam-lhe as têmporas, mas o restante da cabeça era
quase preto. Seu tipo era baixo, mas invulgarmente ereto; tinha a voz
mais encantadora que já ouvira. Começou a conferência recapitulando a
história da química e os vários aperfeiçoamentos realizados por diferen-
tes homens eruditos, pronunciando com fervor os nomes dos mais céle-
bres descobridores. Então, apresentou uma visão geral do estado atual
da ciência e explicou muitos de seus termos elementares. Depois de ter
feito alguns experimentos preparatórios, concluiu com um panegírico
sobre a química moderna, de cujos dizeres nunca esquecerei:
— Os antigos mestres desta ciência — afirmou — prometeram im-
possibilidades e nada cumpriram. Os mestres modernos prometem
muito pouco; sabem que metais não podem ser transmutados e que o
elixir da vida é uma fábula. No entanto, esses filósofos, cujas mãos pare-
cem ser feitas somente para revolver a sujeira e os olhos, para se debru-
çarem sobre o microscópio ou o cadinho, de fato, realizaram milagres.
Penetraram nos recessos da natureza e demonstraram como ela funcio-
na em seus recônditos. Subiram aos céus e descobriram como circula o
sangue e a natureza do ar que respiramos.[2] Adquiriram poderes novos
e quase ilimitados; podem comandar os trovões do céu, imitar um terre-
moto e até mesmo escarnecer do mundo invisível e de suas sombras.
Tais foram as palavras do professor — melhor, deixe-me dizer, as
palavras da sina — enunciadas para destruir-me. Enquanto prosseguia,
senti que minha alma estava atracada a um inimigo palpável; uma por
uma, eram tocadas as várias peças que formavam o mecanismo de meu
ser; corda após corda se fez soar, e logo minha mente foi preenchida por
um único pensamento, uma concepção, um propósito. Tanto foi feito,
exclamou a alma de Frankenstein — mais, muito mais realizarei; seguin-
do os passos já marcados, serei pioneiro em um novo caminho, explora-
rei os poderes desconhecidos e revelarei ao mundo os mistérios mais
profundos da criação.
Não fechei os olhos naquela noite. Internamente, meu ser se encon-
trava em um estado de insurreição e tumulto. Senti que a ordem surgiria
dali, mas não tinha condições de produzi-la. Aos poucos, depois do
amanhecer, o sono chegou. Quando acordei, a noite anterior me parecia
um sonho. Só permaneceu a resolução de voltar aos antigos estudos e
dedicar-me à ciência para a qual acreditava ter um talento natural. No
mesmo dia fiz uma visita ao sr. Waldman. No particular, seus modos
eram ainda mais suaves e atraentes que em público, pois havia certa dig-
nidade em seu semblante durante a palestra que, em casa, fora substituí-
da por grande afabilidade e bondade. Expus-lhe quase o mesmo relato
que havia contado ao outro professor sobre minhas antigas atividades.
Ele ouviu com atenção a breve narrativa a respeito de meus estudos e
sorriu ao ouvir os nomes de Cornélio Agrippa e Paracelso, mas sem de-
monstrar o desdém evidente do sr. Krempe. Disse:
— Os filósofos modernos devem muito a esses homens cujo zelo in-
fatigável tornou possível a maioria das bases do conhecimento. Eles nos
deixaram, como tarefa mais fácil, dar novos nomes e organizar classifi-
cações relacionadas aos fatos que, em grande medida, eles trouxeram à
luz. Os esforços dos homens de gênio, embora erroneamente direciona-
dos, quase nunca falharam ao se transformarem, por fim, em sólidos be-
nefícios para a humanidade.
Ouvi sua preleção sem nenhuma soberba ou afetação e, então, acres-
centei que sua palestra removera meus preconceitos em relação aos quí-
micos modernos. Expressei-me em termos ponderados, com a modéstia
e a deferência que um jovem deve ao seu instrutor, sem deixar escapar (a
minha inexperiência teria me envergonhado) nada do entusiasmo que
estimulava meus pretensos trabalhos. Pedi conselhos acerca dos livros
que deveria adquirir.
— Estou feliz — afirmou o sr. Waldman — de ter adquirido um dis-
cípulo; e se a dedicação igualar sua capacidade, não tenho dúvidas a res-
peito de seu sucesso. A química é um ramo da filosofia natural em que
os maiores aperfeiçoamentos foram e podem ser feitos. Realizei esse es-
tudo particular com base nela; no entanto, ao mesmo tempo, não negli-
genciei outros ramos da ciência. Um homem faria figura triste como
químico caso cuidasse apenas desse viés do conhecimento. Se seu desejo
é se tornar realmente um homem de ciência, e não um mero experimen-
tador sem importância, aconselho-o a explorar todos os ramos da filo-
sofia natural, incluindo a matemática.
Então, conduziu-me ao laboratório e explicou-me os usos de várias
máquinas, instruindo-me sobre o que deveria adquirir e prometeu-me
disponibilizar os próprios instrumentos quando meus conhecimentos
estivessem avançados o suficiente para não desarranjar os mecanismos.
Deu-me também a lista de livros que requisitei e despedi-me.
Assim terminou um dia memorável, que foi determinante para meu
futuro.
Cap. IV.

A partir desse dia, a filosofia natural, em particular a química, no senti-


do mais abrangente do termo, tornou-se quase minha única ocupação.
Li com ardor aquelas obras, tão cheias de genialidade e discernimento,
que os pesquisadores modernos escreveram sobre esses assuntos. Assisti
às palestras e cultivei o relacionamento com os homens de ciência da
universidade, encontrando, mesmo no sr. Krempe, um grande bom sen-
so e genuína erudição, combinados, é verdade, com uma fisionomia e
maneiras repulsivas, mas não por isso menos valiosos. No sr. Waldman,
encontrei um verdadeiro amigo. Sua gentileza nunca era tingida de dog-
matismo; e suas instruções eram passadas com um ar de franqueza e boa
índole, eliminando qualquer traço de pedantismo. De mil maneiras,
aplainou-me o caminho do conhecimento e tornou claras e fáceis ao
meu entendimento as investigações mais abstrusas. Minha dedicação
era, a princípio, flutuante e incerta; ganhou força conforme continuava
e logo se tornou tão ardorosa e impaciente que, muitas vezes, quando as
estrelas desapareciam à luz da manhã, eu ainda estava ocupado em meu
laboratório.
Como trabalhava com tamanho rigor, é fácil imaginar que meu pro-
gresso também foi rápido. Meu ardor, de fato, espantava os alunos e mi-
nha proficiência admirava os mestres. O professor Krempe muitas ve-
zes perguntava, com um sorriso astucioso, como Cornélio Agrippa ia
passando, ao passo que o sr. Waldman expressou a mais sincera satisfa-
ção por meu progresso. Dois anos se findaram dessa maneira, durante
os quais não visitei Genebra, envolvido de corpo e alma na busca das
novas descobertas que pretendia fazer. Ninguém, a não ser aqueles que
as tenham experimentado, pode compreender as seduções da ciência.
Em estudos de natureza diversa, alcançamos apenas os limites estabele-
cidos por nossos antecessores e nada mais há para conhecer; porém, na
pesquisa cientifica há um alimento contínuo para descoberta e estupor.
Uma mente de capacidade moderada que busca estudar deve, infalivel-
mente, atingir uma grande proficiência nesse campo; e eu, que continua-
mente buscava a consecução de um objetivo e estava envolvido apenas
nisso, melhorei de modo tão rápido que, ao final de dois anos, fiz algu-
mas descobertas no aprimoramento de alguns instrumentos químicos, o
que me garantiu estima e admiração na universidade. Quando cheguei a
esse ponto e já estava tão familiarizado com a teoria e a prática da filo-
sofia natural a ponto de não mais depender das lições de nenhum pro-
fessor de Ingolstadt, a residência ali não deixou de ser proveitosa para
meu aprimoramento. Pensei em retornar aos amigos e à cidade natal
quando ocorreu um incidente que prolongou minha estada.
Um dos fenômenos que atraíram de modo peculiar minha atenção
foi a estrutura do corpo humano e, decerto, de qualquer animal dotado
de vida. Por isso, muitas vezes perguntei-me de onde procedia o princí-
pio da vida. Era uma pergunta arrojada e considerada sempre um misté-
rio; no entanto, quantas coisas estaríamos prestes a conhecer se a covar-
dia ou o descuido não impedissem nossas pesquisas? Revolvi essas cir-
cunstâncias em minha mente e, dali em diante, estabeleci que iria apli-
car-me, de modo particular, àqueles ramos da filosofia natural relacio-
nados à fisiologia. Não fosse estar animado por um entusiasmo quase
sobrenatural, minha dedicação a esse estudo resultaria cansativa e quase
intolerável. Para analisar as causas da vida, primeiro devemos recorrer à
morte. Inteirei-me da ciência da anatomia, mas não foi suficiente. Tam-
bém deveria observar a decadência natural e a corrupção do corpo hu-
mano. Em minha educação, meu pai tomou as maiores precauções para
que eu não me impressionasse com horrores sobrenaturais. Nem mes-
mo recordo-me de estremecer com um conto de superstição ou temer a
aparição de um espírito. As trevas não tinham efeito sobre minha imagi-
nação, e o adro de uma igreja era para mim tão somente o receptáculo
de corpos privados de vida, que, antes fonte de beleza e vigor, torna-
ram-se alimento para os vermes. Agora, eu era levado a analisar a causa
e o progresso dessa decadência e forçado a passar dias e noites em jazi-
gos e sepulturas. Minha atenção se voltava para cada um dos objetos
mais insuportáveis para a sensibilidade humana. Vi quanto a boa forma
do homem era degradada e perdida; contemplei a corrupção da morte
que se sucedia às faces rubras da vida; observei como os vermes herda-
vam as maravilhas do olho e do cérebro. Demorei-me em examinar e
analisar todas as minúcias das relações de causa e efeito exemplificadas
na transição da vida para a morte e da morte para a vida, até que, do
meio dessas trevas, uma luz subitamente recaiu sobre mim — uma luz
tão brilhante e maravilhosa, embora tão singela, que, enquanto entonte-
cia com a imensidão do panorama que se ilustrava, fui surpreendido pe-
lo fato de que, entre tantos homens de gênio que dedicavam pesquisas à
mesma ciência, somente a mim pudesse estar reservada a descoberta de
um segredo tão surpreendente.
Lembre, não registro a visão de um louco. O que afirmo é tão ver-
dadeiro quanto o sol que brilha nos céus. Alguns milagres tornaram is-
so possível; contudo, as etapas da descoberta eram nítidas e prováveis.
Depois de incríveis dias e noites de trabalho e fadiga, obtive êxito ao
descobrir a causa da geração de vida; mais que isso, tornei-me capaz de
animar matéria sem vida.
O espanto que primeiramente experimentei diante dessa descoberta
logo deu lugar ao deleite e ao êxtase. Depois de muito tempo dispendi-
do em um trabalho penoso, atingir de imediato o cume de meus desejos
representava a consumação mais gratificante de minha labuta. Essa des-
coberta, no entanto, era tão grande e esmagadora que todos os passos
que a ela progressivamente conduziram foram obliterados e contemplei
apenas o resultado. O que fora objeto de estudo e desejo dos homens
mais sábios desde a criação do mundo estava agora ao meu alcance. Não
que isso tenha se revelado a mim de pronto, como um cenário mágico: a
informação que obtivera era mais propensa a dirigir meus esforços tão
logo pudesse apontá-los na direção do objeto de minha busca do que a
revelar tal objeto já concluído. Vivia o mesmo dilema do árabe que fora
enterrado com um cadáver e descobriu uma passagem para a vida, auxi-
liado tão somente por uma luz fraca e aparentemente ineficaz.[1]
Vejo, por sua ansiedade, seu maravilhamento e sua esperança expres-
sos em seus olhos, meu amigo, que esperais ser informado do segredo
que conheço; isso é impossível; ouça pacientemente até o final da histó-
ria e perceberá por que sou reservado quanto a esse assunto. Não o
conduzirei, sem defesas e cheio de ardor, como fui na ocasião, para sua
destruição e miséria infalível. Aprenda de mim — se não de meus ensi-
namentos, ao menos de meu exemplo — quão perigosa é a aquisição do
conhecimento e quão mais feliz é o homem que vê o mundo como sua
cidade natal do que aquele que aspira tornar-se maior do que permite
sua natureza.
Quando descobri um poder tão assombroso posto em minhas mãos,
hesitei por um bom tempo no tocante ao modo pelo qual deveria em-
pregá-lo. Embora possuísse a capacidade de animar, mesmo que tivesse
de preparar uma compleição para recepcionar tal animação com todos
os meandros de fibras, músculos e veias, ainda restava uma obra de in-
concebível dificuldade e labor. No princípio, duvidei se deveria tentar a
criação de um ser como eu ou uma organização mais simples, mas mi-
nha imaginação estava demasiado exaltada com meu primeiro sucesso
para permitir-me duvidar da capacidade de dar vida a um animal tão
complexo e maravilhoso quanto o homem. Os materiais de que dispu-
nha não pareciam adequados para uma tarefa tão árdua, mas não duvi-
dei que, ao final, seria bem-sucedido. Preparei-me para uma multidão
de reveses; minhas operações poderiam ser incessantemente frustradas
e, por fim, meu trabalho resultaria imperfeito. Contudo, levando em
conta os aperfeiçoamentos que a cada dia se dão na ciência e na mecâni-
ca, encorajei-me a esperar que minhas tentativas, ao menos, poderiam
lançar os fundamentos de um sucesso futuro. Via-me incapaz de consi-
derar a magnitude e a complexidade de meu plano ou elaborar qualquer
argumento em relação à sua impraticabilidade. Foi munido de tais senti-
mentos que comecei a criação de um ser humano. Ainda que as minú-
cias dos órgãos representassem um grande obstáculo à pressa, resolvi,
contrário à minha primeira intenção, criar um ente de estatura gigantes-
ca; ou seja, com aproximadamente dois metros e meio de altura e pro-
porcionalmente grande. Depois de tomar essa decisão e passados alguns
meses colecionando e arrumando os materiais, iniciei a empreitada.
É difícil conceber a variedade dos sentimentos que me impulsiona-
ram, como um furacão, no primeiro entusiasmo de sucesso. Vida e mor-
te pareciam para mim fronteiras ideais que deveria, primeiramente,
transpor, despejando uma torrente de luz em nosso mundo sombrio.
Uma nova espécie abençoar-me-ia como criador e origem; muitas per-
sonalidades felizes e excelentes deveriam a mim a própria existência.
Nenhum pai poderia reivindicar a gratidão de seu filho de maneira tão
completa quanto eu reivindicaria a deles. Após essas reflexões, pensei
que se era capaz de animar matéria inerte, poderia, com o decorrer do
tempo (embora agora creia impossível), restabelecer a vida onde a morte
aparentemente entregou o corpo à corrupção.
Esses pensamentos conferiam-me ânimo enquanto continuava mi-
nha tarefa com um ardor ininterrupto. Em virtude dos estudos, meu
rosto empalidecera e minha pessoa tornara-se emaciada com o confina-
mento. Às vezes, na iminência da certeza, falhava; no entanto, ainda me
aferrava à expectativa de que no próximo dia ou na próxima hora pu-
desse vencer. Um segredo que só eu possuía era a esperança a que tinha
me dedicado. A lua fitava-me à meia-noite, ao passo que, com avidez
incontida e ansiosa, perscrutei a natureza em seus esconderijos. Quem
poderá conceber os horrores de minha labuta secreta enquanto estava
imerso na profana umidade da tumba ou torturava um animal vivo para
animar o barro inanimado? Meus membros agora tremem e meus olhos
transbordam com as lembranças, mas então um impulso irresistível e
quase desvairado lançou-me adiante. Tinha a impressão de ter perdido a
alma ou me afastado de qualquer sensação, a não ser por essa busca.
Era, de fato, um transe passageiro que me fazia sentir com grande inten-
sidade, mas, tão logo o estimulo antinatural deixou de operar, retornei
aos antigos hábitos. Colecionei ossos de jazigos e perturbei, com dedos
profanos, os segredos tremendos da figura humana. Em uma câmara so-
litária, ou melhor, em uma cela, na parte superior da casa, separada de
todos os outros apartamentos por um corredor e uma escadaria, manti-
ve minha oficina de criação imunda: meus olhos saltavam das órbitas ao
cuidar dos detalhes de minha ocupação. A sala de dissecação e o mata-
douro forneciam muitos de meus materiais; e inúmeras vezes minha na-
tureza humana voltou-se com repugnância para a tarefa, embora, ainda
instigado por uma avidez que aumentava perpetuamente, tenha condu-
zido meu trabalho para demasiado perto de sua conclusão.
Os meses do verão se passaram enquanto estava assim ocupado, de
corpo e alma, nessa atividade. Foi a estação mais bela do ano, nunca os
campos nos deram uma colheita mais abundante ou as vinhas produzi-
ram uma safra tão luxuriante, mas meus olhos estavam insensíveis aos
encantos da natureza. E os mesmos sentimentos que me levaram a ne-
gligenciar as paisagens ao redor também me fizeram esquecer os amigos
distantes, separados por tantos quilômetros, que há muito não via. Sabia
que meu silêncio os inquietava e recordo-me bem das palavras de meu
pai: “Sei que enquanto estiver satisfeito consigo, pensará em nós com
afeição e que teremos regularmente notícias suas. Deve me perdoar se
tomar qualquer interrupção de sua correspondência como prova de que
seus outros deveres foram igualmente negligenciados”.
Sabia bem, portanto, quais eram os sentimentos de meu pai, mas não
podia dividir meus pensamentos a respeito da tarefa, detestável por si
só, mas que irresistivelmente tomara posse de minha imaginação. Dese-
jei, por assim dizer, procrastinar tudo relacionado aos meus sentimentos
ou às minhas afeições até que o grande propósito, que engoliu todos os
hábitos de minha natureza, fosse completado.
Pensei, então, que seria injusto da parte de meu pai atribuir a negli-
gência de seu filho ao vicio ou a alguma falta de minha parte, mas estava
convencido agora de que ele tinha razão em conceber que eu não pode-
ria me encontrar, de todo, livre de culpa. Um ser humano maduro deve
sempre preservar a mente calma e pacífica e nunca permitir que a paixão
ou o desejo transitório perturbe sua tranquilidade. Não creio que a bus-
ca pelo conhecimento seja uma exceção à regra. Se o estudo a que a pes-
soa se dedica tende a enfraquecer seus afetos e a destruir o gosto pelos
prazeres simples que não admitem mistura alguma, então esse estudo
certamente é ilegítimo, ou seja, não condizente com a razão humana. Se
essa regra fosse sempre observada, se a nenhum homem fosse permitida
qualquer atividade que interfira nas afeições domésticas, a Grécia não
teria sido escravizada, César teria poupado seu pais, a América teria si-
do descoberta aos poucos e os impérios do México e do Peru não teri-
am sido destruídos.
Esqueci-me, todavia, que estou moralizando a parte mais interessan-
te de minha narrativa e sua aparência lembra-me de que devo prosse-
guir.
Meu pai não me repreendeu nas cartas e só notou meu silêncio ao
perguntar mais detalhadamente sobre minhas ocupações. Inverno, pri-
mavera e verão se passaram durante meus trabalhos, mas não assisti à
floração ou ao brotar das folhas — visões que antes costumavam me dar
um prazer supremo —, tão absorto estava em minha ocupação. As fo-
lhas daquele ano secaram antes que meu trabalho se aproximasse de
uma conclusão e agora todos os dias mostravam-me, de modo mais cla-
ro, como tinha sido bem-sucedido. Meu entusiasmo, no entanto, era
provado pela aflição, e mais parecia alguém condenado à escravidão nas
minas ou qualquer outro negócio insalubre do que um artista ocupado
de sua tarefa favorita. A cada noite eu era oprimido por uma febre baixa
e fiquei nervoso em um grau deveras aflitivo; a queda de uma folha as-
sustava-me e afastei-me das criaturas como se fosse culpado de um cri-
me. Ás vezes, ficava alarmado com a ruína que percebia ter me tornado;
somente a energia de meu propósito sustentava-me: meus trabalhos lo-
go terminariam e acreditava que o exercício e a diversão dispersariam a
doença incipiente; então, prometi a mim mesmo ambas as coisas quan-
do minha criação estivesse completa.
Cap. V.

Foi em uma noite triste de novembro que contemplei o sucesso de mi-


nha obra. Com uma inquietação que quase chegava à agonia, reuni ao
meu redor os instrumentos vitais que pudessem infundir uma centelha
de existência na coisa sem vida que jazia aos meus pés. Era quase uma
da manhã; a chuva triste tamborilava nas vidraças e minha vela já quase
se apagava quando, por um bruxuleio de uma luz semiextinta, vi o olho
amarelo e baço da criatura; ela respirou fundo e um movimento convul-
sivo agitou seus membros.
Como posso descrever as emoções ante a catástrofe ou como retra-
tar o infeliz que com dores e cuidados infinitos esforcei-me por formar?
Seus membros eram proporcionados e escolhera belas feições. Belas!
Bom Deus! Sua pele amarelada mal cobria o contorno dos músculos e
das artérias que apareciam por baixo; seus cabelos eram de um preto
lustroso e ondulante, os dentes possuíam uma alvura perolada, mas es-
sas exuberâncias só faziam um contraste mais horrendo ainda com os
olhos úmidos que pareciam se diluir nas cavidades em que jaziam, sua
compleição ressequida e os lábios retilíneos, enegrecidos.
Os diferentes acidentes da vida não são tão mutáveis como os senti-
mentos da natureza humana. Trabalhei com afinco por quase dois anos
com o único propósito de infundir vida em um corpo inanimado. Para
isso, privei-me do descanso e da saúde. Desejara esse projeto com um
ardor que em muito excedia minha moderação; mas agora que termina-
ra, a beleza do sonho se desvaneceu, e meu coração estava repleto de
desgosto e horror. Incapaz de suportar o aspecto do ser que criara, corri
para fora do cômodo e continuei a andar por meu quarto por um bom
tempo, sem conseguir aquietar a cabeça para dormir. Finalmente, a las-
sidão se sucedeu ao tumulto que antes suportara e lancei-me na cama
sem me trocar, empenhando-me para conseguir uns poucos momentos
de esquecimento. Entretanto, foi em vão. Dormi, é verdade, mas fui
perturbado pelos sonhos mais ferozes. Pensei ter visto Elizabeth, no au-
ge de sua saúde, andando pelas ruas de Ingolstadt. Satisfeito e surpreso,
abracei-a, mas, ao dar-lhe o primeiro beijo em seus lábios, eles torna-
ram-se lívidos, com um tom da morte; suas feições pareceram mudar e
pensei que segurava o cadáver de minha falecida mãe nos braços; uma
mortalha envolvia-lhe o corpo e vi os vermes da tumba rastejando-se
nas dobras do tecido. Acordei do sono horrorizado. Um suor frio co-
bria minha testa, meus dentes rangiam e todos os membros se convulsi-
onaram quando, à luz turva e amarelada da lua, forçando a passagem
pelas persianas das janelas, avistei o desgraçado — o monstro miserável
que criara. Afastou o reposteiro da cama e seus olhos, se é que poderia
chamá-los dessa forma, fixaram-se em mim. Abriu a boca e murmurou
alguns sons inarticulados, enquanto um sorriso de esgar enrugava-lhe as
bochechas. Era possível que tivesse falado, mas não pude ouvi-lo. Es-
tendeu uma das mãos, aparentemente para me deter, mas escapei e desci
correndo pelas escadas. Refugiei-me no pátio da casa em que morava,
onde permaneci durante o restante da noite, andando de um lado para o
outro em grande agitação, escutando atentamente, captando e temendo
cada som como anunciadores da chegada daquele corpo demoníaco
que, tão miseravelmente, dotei de vida.
Oh! Nenhum mortal poderia suportar o horror daquele semblante.
Uma múmia ressuscitada não seria tão medonha quanto aquele infeliz.
Contemplei-o quando ainda não estava terminado; na ocasião, era feio,
mas quando seus músculos e suas articulações foram capazes de se mo-
ver, tornou-se uma coisa tão horrenda que nem Dante poderia tê-la
concebido.
Passei uma noite horrível. Ás vezes, minha pulsação acelerava tão
rápido e era tão intensa que sentia a palpitação de cada artéria; outras
vezes, quase caí no chão tomado pelo langor e por uma fraqueza extre-
ma. Junto a esse terror, senti a amargura do desapontamento. Sonhos
que foram meu alimento e o aprazível descanso por um extenso período
agora tinham se tornado um inferno; e a mudança foi tão brusca, a der-
rota, tão completa!
A manhã, sombria e úmida, por fim despontou e revelou aos meus
olhos insones e doloridos a igreja de Ingolstadt, o campanário branco e
o relógio que indicava a hora sexta. O porteiro abriu os portões do pá-
tio, que naquela noite fora meu refúgio, e saí para as ruas, caminhando a
passos rápidos, como se buscasse evitar o desgraçado que receava en-
contrar a cada esquina. Não ousei retornar ao apartamento que morava,
mas senti-me impelido a apressar-me, embora encharcado pela chuva
que caía de um céu negro e desconsolado.
Continuei andando desse modo por algum tempo, empenhando-me,
pelo exercício físico, em acalmar o fardo que pesava em meus pensa-
mentos. Atravessei as ruas sem nenhuma concepção clara de onde esta-
va ou do que fazia. Meu coração palpitava na moléstia do medo e apres-
sei-me com passos irregulares, não ousando olhar ao redor:
Como quem vai com medo e horror
Num caminho deserto,
E após virar pra trás avança,
Só olhando a frente, certo
De que algum demônio medonho
O segue bem de perto.[1]

Assim prosseguindo, cheguei, por fim, defronte à estalagem em que vá-


rias diligências e carruagens normalmente paravam. Fiz uma pausa, não
sei por quê, mas permaneci alguns minutos com os olhos fixos em um
coche do outro lado da rua que vinha em minha direção. Ao se aproxi-
mar, observei que se tratava de uma diligência suíça; parou justamente
onde eu estava e, quando a porta se abriu, notei Henry Clerval, que, ao
avistar-me, no mesmo instante saltou.
— Meu caro Frankenstein — disse —, como estou feliz em vê-lo!
Quanta sorte estar aqui no exato momento em que desembarco!
Nada poderia igualar ao prazer que senti em ver Clerval. Sua pre-
sença conduziu meus pensamentos ao meu pai, Elizabeth e todas aque-
las cenas domésticas tão caras à minha lembrança. Apertei-lhe a mão e,
por um momento, esqueci de meu horror e infortúnio. Senti, de repen-
te, e pela primeira vez em muitos meses, uma alegria calma e serena. Dei
as boas-vindas ao meu amigo, portanto, da maneira mais cordial, e ca-
minhamos juntos até a faculdade. Clerval continuou a falar por um
tempo sobre nossos amigos em comum e de como teve sorte por ser au-
torizado a ingressar em Ingolstadt.
— Você pode facilmente crer — disse ele — como foi grande a difi-
culdade para persuadir meu pai de que todo o conhecimento necessário
não se resumia à nobre arte da escrituração e, na verdade, acho que ele
permaneceu incrédulo até o fim, pois sua resposta constante aos meus
incansáveis rogos foi a mesma do mestre-escola holandês em O vigário
de Wakefield: “Ganho dez mil florins por ano sem saber o grego, como
muito bem sem saber o grego”.[2] Entretanto, sua afeição por mim final-
mente superou a aversão pelo aprendizado e permitiu-me empreender
essa viagem de descoberta pela terra do conhecimento.
— Sinto o maior dos prazeres por vê-lo aqui, mas diga-me como
deixou meu pai, meus irmãos e Elizabeth.
— Muito bem e felizes, apenas um tanto apreensivos por tão rara-
mente receberem notícias suas. A propósito, eu mesmo quero dizer-lhe
algo por conta deles. No entanto, meu caro Frankenstein — prosseguiu,
parando de súbito e olhando-me diretamente —, não tinha reparado an-
tes como está com a aparência de um doente; tão magro e pálido. Parece
que esteve acordado por várias noites.
— Adivinhou. Nos últimos tempos estive muito envolvido em um
trabalho que não me permitiu descansar o suficiente, como vê, mas es-
pero, sinceramente espero, que todas essas ocupações estejam agora ter-
minadas e que por fim esteja livre.
Tremi demasiado. Não era capaz de suportar qualquer pensamento e
muito menos fazer menção às ocorrências da noite anterior. Caminhei a
passos rápidos, e logo chegamos à faculdade. Então pensei, e minha re-
flexão causou-me calafrios, que a criatura que deixara em meu aparta-
mento ainda poderia estar lá, viva e perambulando. Receava olhar para
o monstro, mas temia ainda mais que Henry pudesse vê-lo. Supliquei-
lhe, portanto, que permanecesse por alguns minutos ao pé da escada e
segui rapidamente para meu aposento. Minha mão já estava no trinco da
porta antes que desse por mim. Fiz, então, uma pausa e senti um arrepio
gélido. Escancarei a porta, como as crianças costumam fazer quando es-
peram encontrar um espectro à espera do outro lado. Entrei com medo:
o apartamento estava vazio e meu quarto de dormir, livre do convidado
medonho. Quase não podia acreditar na sorte com que fora agraciado,
mas, ao certificar-me de que meu inimigo de fato partira, bati palmas de
júbilo e corri ao encontro de Clerval.
Subimos para meu quarto e o criado imediatamente serviu o café da
manhã, mas não pude me conter. Não era apenas a alegria que me pos-
suía, sentia a carne formigar, extremamente sensível, e o pulso latejando
de maneira veloz. Era incapaz de permanecer por um instante no mes-
mo lugar; pulei por sobre as cadeiras, bati palmas e ri alto. De início,
Clerval atribuiu meu ânimo invulgar à alegria por sua chegada, porém,
ao observar-me mais detidamente, percebeu uma turbulência inexplicá-
vel em meus olhos, e minha gargalhada estridente, incontida, cruel, o
amedrontou e surpreendeu.
— Meu caro Victor! — exclamou — Pelo amor de Deus, qual é o
problema? Não ria dessa maneira. Como está doente! O que causou tu-
do isso?
— Não me pergunte — gritei, colocando as mãos diante dos olhos,
pois pensei ver o temido espectro entrar no quarto sem ser notado. —
Ele pode dizer. Ah, salva-me! Salva-me! — Imaginei que o monstro me
agarrara, lutei feroz e caí por terra, desmaiado.
Pobre Clerval! Quais não devem ter sido seus sentimentos? Um en-
contro que ansiava com tanta alegria, tão estranhamente transformado
em amargura. No entanto, não testemunhei seu pesar, pois estava inerte
e só recobrei os sentidos muito tempo depois.
Esse foi o início de uma febre nervosa que me confinou por vários
meses. Durante todo esse tempo, Henry foi meu único protetor. Soube
depois que, reconhecendo a idade avançada de meu pai e sua inaptidão
para empreender uma jornada tão longa e quão miserável minha enfer-
midade faria Elizabeth se sentir, poupou-lhes da dor ocultando a gravi-
dade dela. Sabia que não poderia ter um cuidador mais atencioso; e, fir-
me na esperança de minha recuperação, estava certo de que, sem recair
em falta, realizava o ato mais generoso que poderia dedicar aos meus
entes queridos.
Entretanto eu estava, na verdade, muito doente e, por certo, nada se-
não as atenções desprendidas e constantes de meu amigo poderiam ter
restabelecido minha vida. A forma do monstro ao qual conferi existên-
cia estava para sempre diante de meus olhos, e delirei sem cessar a tal
respeito. Não há dúvidas de que as palavras que proferi causaram sur-
presa. Henry, de início, acreditou que se tratavam de devaneios de mi-
nha imaginação perturbada, mas a pertinácia com a qual recorria conti-
nuamente ao mesmo assunto persuadiu-lhe de que a desordem em que
me encontrava, de fato, devia sua origem a algum acontecimento inco-
mum e terrível.
Recuperei-me muito devagar e com recaídas frequentes que alarma-
vam e afligiam meu amigo. Lembro-me da primeira vez que fui capaz
de observar os objetos externos com algum tipo de prazer, percebi que
as folhas caídas haviam desaparecido e que os jovens brotos estavam
despontando das árvores que resguardavam minha janela. Era uma pri-
mavera divina, e a estação contribuiu muito para minha recuperação.
Senti a alegria e a afeição reviverem em meu peito; meu pesar desapare-
ceu e, em pouco tempo, senti-me tão bem-disposto quanto antes de ser
atacado pela paixão fatal.
— Querido Clerval — falei —, como você é bom, como é maravi-
lhoso! Todo o inverno, em vez de passá-lo a estudar, como prometeu a
si mesmo, foi consumido neste meu quarto de doente. Como um dia
poderei recompensá-lo? Sinto imenso remorso pelo desapontamento
que teve na ocasião, mas perdoe-me.
— Retribuirá totalmente se não se desarranjar, mas fique bom o
mais rápido possível; e, já que parece estar em tão excelente disposição,
posso falar-lhe sobre um tópico ou não?
Tremi. Um tópico! O que poderia ser? Aludiria a um objeto sobre o
qual não ouso nem pensar?
— Componha-se — disse Clerval, que observou minha mudança de
cor. — Não falarei sobre o assunto, caso isso o perturbe, mas seu pai e
sua prima ficariam muito felizes se recebessem de você uma carta de
próprio punho. Não sabem ao certo quão enfermo esteve e encontram-
se apreensivos com seu longo silêncio.
— Isso é tudo, meu querido Henry? Como poderia supor que meu
primeiro pensamento não pairaria naqueles caros, caríssimos amigos
amados que tanto merecem meu amor?
— Se esta é sua presente índole, meu camarada, talvez fique feliz de
ver a carta que cá repousa há alguns dias, esperando-lhe; é de tua prima,
creio.
Cap. VI.

Clerval, então, pôs a seguinte missiva em minhas mãos. Era de minha


Elizabeth:
“Meu querido primo,
Você esteve doente, muito doente, e mesmo as cartas constantes do
querido Henry não foram suficientes para assegurar-me a seu respeito.
Está proibido de escrever — de segurar uma pena; no entanto, uma pa-
lavra sua, caro Victor, é necessária para acalmar nossas apreensões. Por
um longo tempo pensei que cada correio traria essa carta, e minha cren-
ça impediu meu tio de empreender uma jornada para Ingolstadt. Evitei
que ele encontrasse as inconveniências e, talvez, os perigos de uma jor-
nada tão longa; contudo, quantas vezes lamentei não ser eu mesma ca-
paz de realizá-la! Imaginei que a tarefa de assistir-lhe em seu leito fora
entregue a uma velha enfermeira mercenária, que nunca poderia adivi-
nhar seus desejos nem ministrá-los com o cuidado e a afeição de sua po-
bre prima. Entretanto, agora tudo está acabado: Clerval afirmou que, de
fato, está melhorando. Espero sofregamente que confirme esse entendi-
mento de próprio punho.
Melhore e volte para nós. Encontrará um lar feliz e alegre, com ami-
gos que o amam muito. A saúde de seu pai é boa e ele nada pede senão
vê-lo para se certificar de que você está bem, e nenhuma ansiedade ja-
mais obscurecerá suas feições benevolentes. Como ficará satisfeito em
ver como nosso Ernest faz progressos! Está com dezesseis anos e cheio
de energia e ânimo. Deseja tornar-se um verdadeiro suíço e ingressar na
diplomacia, mas não podemos nos separar dele agora, a menos que seu
irmão mais velho volte para nós. Meu tio não está satisfeito com a ideia
de uma carreira militar em um país distante, mas Ernest nunca demons-
trou sua capacidade de aplicação. Vê o estudo como um grilhão odioso;
passa o tempo ao ar livre, a subir as montanhas e a remar no lago. Temo
que ele se torne um ocioso, a menos que façamos uma concessão e per-
mitamos que ingresse na profissão que escolheu.
Poucas coisas mudaram, exceto o crescimento de nossas queridas
crianças, desde que você nos deixou. O lago azul e as montanhas cober-
tas de neve nunca mudam, e penso em nosso lar plácido e nossos cora-
ções contentes regidos pelas mesmas leis imutáveis. Minhas ocupações
triviais tomam-me tempo, entretêm e sou recompensada por qualquer
esforço quando não vejo nada além de rostos felizes e amáveis ao meu
redor. Desde que nos deixou, uma mudança aconteceu em nosso lar.
Recorda-se das circunstâncias em que Justine Moritz ingressou em nos-
sa família? Provavelmente não; narrarei a história, portanto, em poucas
palavras. A sra. Moritz, a mãe dela, era uma viúva com quatro crianças,
das quais Justine era a terceira. Essa menina sempre fora a favorita do
pai, mas, por uma perversidade estranha, a mãe não a tolerava e, depois
da morte do sr. Moritz, tratou-a muito mal. Minha tia observara esse
cenário e, quando Justine fez doze anos, convenceu a mãe a deixá-la vi-
ver em nossa casa. As instituições republicanas de nosso pais produzi-
ram costumes mais simples e felizes do que os que predominam nas
grandes monarquias que o cercam. Por isso, há menos distinção de clas-
ses entre os habitantes; e os de condição mais baixa, não sendo tão po-
bres ou desprezados, têm costumes mais refinados e morais. Um servo
em Genebra não significa a mesma coisa que um serviçal na França e na
Inglaterra. Justine, assim, recebida em nossa família, aprendeu os deve-
res de uma criada, uma condição que, em nosso país afortunado, não re-
mete à ideia de ignorância e sacrifício da dignidade humana.
Justine, como deve lembrar, era uma grande favorita sua e recordo
que uma vez observou que, se estivesse de mau humor, um vislumbre
da jovem o dissiparia pela mesma razão dada por Ariosto em relação à
beleza de Angélica[1] — ela parecia ter um coração tão sincero e feliz.
Minha tia exprimia por ela grande afeto, pelo qual foi induzida a ofere-
cer-lhe uma educação superior àquela que primeiramente tencionava. O
benefício foi totalmente retribuído: Justine foi a criatura mais grata do
mundo; não digo que tenha feito uma declaração solene, nunca ouvi na-
da de seus lábios, mas percebia-se por seus olhos que ela quase adorava
sua protetora. Embora sua disposição fosse alegre e, em muitos aspec-
tos, irrefletida, prestava a maior atenção em cada gesto de minha tia. Via
nela um modelo de excelência e esforçava-se por imitá-la na maneira de
se expressar e nos modos, de forma que, mesmo agora, muitas vezes, ela
me faz lembrar de titia.
Quando a querida tia morreu, todos estavam por demais ocupados
com a própria dor para notar a pobre Justine, que a assistira na doença
com a maior das afeições. A pobre Justine estava deveras aflita; contu-
do, outros desafios ainda lhe aguardavam.
Um por um, seus irmãos e suas irmãs morreram; e sua mãe, com ex-
ceção da filha negligenciada, ficou sem filhos. A consciência da mulher
estava perturbada. Começou a pensar que a morte de seus favoritos era
um julgamento divino para castigá-la pela parcialidade. Era católica e
creio que seu confessor confirmou essa ideia por ela concebida. Conse-
quentemente, poucos meses depois de sua partida para Ingolstadt, Justi-
ne foi chamada para voltar à casa da mãe arrependida. Pobre moça!
Chorou quando deixou nosso lar; estava muito alterada desde a morte
de titia. A dor tinha conferido uma suavidade e benignidade insinuante
aos seus modos, que antes eram dignos de nota pela vivacidade. Tam-
pouco a estadia na casa da mãe pôde restaurar sua alegria. Aquela mu-
lher lamentável era muito oscilante no arrependimento. Às vezes, im-
plorava a Justine para perdoá-la pela indelicadeza, mas com muito mais
frequência a acusava de ter causado as mortes dos irmãos e da irmã. O
desgaste perpétuo, por fim, enfraqueceu a sra. Moritz, que em um pri-
meiro momento aumentou sua irritabilidade, mas agora ela descansa em
paz para sempre. Morreu na primeira aproximação do tempo frio, no
início do inverno passado. Justine voltou para nós, e asseguro a você
que a amo ternamente. Ela é muito inteligente, gentil e extremamente
bela, como mencionei antes; seu semblante e expressões continuamente
recordam-me de minha querida tia.
Também devo dizer umas breves palavras, querido primo, sobre o
pequeno e querido William. Gostaria que pudesse vê-lo; está muito alto
para a idade, tem doces olhos azuis sorridentes, cílios escuros e cabelos
cacheados. Quando sorri, duas covinhas aparecem em cada lado do ros-
to rubro de saúde. Já teve uma ou duas pequenas esposas, mas Louisa
Biron é sua favorita, uma bela menina de cinco anos.
Agora, querido Victor, ousaria perguntar se gostaria de ser agraciado
com um pequeno mexerico a respeito da boa gente de Genebra. A bela
srta. Mansfield já recebeu as visitas de congratulação pelo casamento
com um jovem inglês, John Melbourne, ilustríssimo cavalheiro. Sua ir-
mã horrorosa, Manon, casou-se com o sr. Duvillard, o banqueiro rico,
no outono passado. Seu companheiro de escola predileto, Louis Ma-
noir, sofreu reveses desde a partida de Clerval. No entanto, já recupe-
rou o ânimo e dizem que está a ponto de casar com uma francesa muito
vivaz e bela, a madame Tavernier. É viúva e muito mais velha que Ma-
noir, mas é a favorita de todos e muitíssimo admirada.
Escrevo com o melhor dos ânimos, querido primo; mas minha afli-
ção retorna ao concluir esta carta. Escreva, querido Victor; uma linha,
uma palavra será uma bênção para nós. Dez mil agradecimentos a
Henry por sua gentileza, sua afeição e suas muitas cartas; somos since-
ramente gratos. Adieu!, meu primo. Cuide-se e suplico: escreva!
Elizabeth Lavenza,
Genebra, 18 de março de 17 —.”

— Querida, querida Elizabeth! — exclamei ao ler a carta. — Escreverei


imediatamente e lhes aliviarei da aflição que estarão sentindo.
Escrevi e esse esforço muito me fatigou, mas minha recuperação co-
meçara e seguia com regularidade. Em quinze dias já foi possível deixar
meus aposentos.
Uma das primeiras obrigações durante a recuperação era apresentar
Clerval aos vários professores da universidade. Ao fazer isso, vi-me
submetido a uma espécie de comportamento grosseiro, que pouco con-
dizia com as chagas que carregava nos pensamentos. Desde a noite fatal,
ao fim de meus trabalhos e no início dos infortúnios, exprimi uma anti-
patia violenta até mesmo ao nome filosofia natural. Apesar de recupera-
do, a simples visão de um instrumento químico renovava toda a agonia
dos sintomas nervosos. Henry percebeu isso e removeu os aparatos de
minha vista. Também mudou o meu apartamento, pois notara que eu
adquirira uma aversão pelo cômodo que anteriormente fora meu labo-
ratório. Esses cuidados de Clerval, todavia, não foram capazes de aju-
dar-me nas visitas aos professores. O sr. Waldman torturou-me ao elo-
giar, com bondade e entusiasmo, os avanços surpreendentes que fiz nas
ciências. Logo percebeu que não apreciei o assunto, mas, sem condições
de adivinhar a verdadeira causa, atribuiu os meus sentimentos à modés-
tia e mudou a direção da conversa, passando de minhas próprias con-
quistas para a ciência em si, com o intuito, como evidentemente percebi,
de instigar-me. O que poderia fazer? Ele queria me agradar, mas me
atormentava. Senti como se ele tivesse colocado diante de mim, um por
um, aqueles instrumentos que depois seriam usados para infligir-me
uma morte cruel. Contorci-me ante suas palavras; contudo, não ousei
demonstrar a dor que senti. Clerval, cujos olhos e sentimentos sempre
foram ágeis em discernir as sensações dos outros, encerrou o assunto,
alegando, como desculpa, total ignorância, e a conversa tomou um ru-
mo mais geral. Agradeci ao amigo do fundo do coração, mas não disse
mais nada. Percebi que ele estava claramente surpreso; entretanto, nun-
ca tentou arrancar meu segredo e, embora me amasse com um misto de
afeição e reverência que não conheciam limites, nunca pude me conven-
cer a lhe confiar aquele acontecimento que tantas vezes se apresentava à
minha lembrança, mas que me fazia temer que, caso o contasse a ou-
trem, causaria uma impressão ainda mais profunda.
O sr. Krempe não foi igualmente dócil, e na minha condição naquela
época, de insuportável sensibilidade, seus elogios acres e bruscos causa-
ram-me uma dor ainda maior do que a aprovação benevolente do sr.
Waldman.
— Danado esse rapaz! — exclamou. — Ora, sr. Clerval, asseguro-
lhe que ele os ultrapassou a todos. Sim, encare dessa forma, se desejar,
mas, não obstante, é verdade. O jovem que há alguns anos acreditava
em Cornélio Agrippa com tanta segurança quanto no Evangelho colo-
cou-se entre os melhores da universidade e, se não for logo deposto, fi-
caremos todos desconcertados. Sim, sim — prosseguiu, ao observar mi-
nha expressão de sofrimento. — O sr. Frankenstein é modesto, uma
qualidade excelente em um jovem. Os jovens devem desconfiar de si
mesmos, você sabe, sr. Clerval. Eu mesmo, quando jovem, era assim,
mas isso passa em pouquíssimo tempo.
O sr. Krempe começara agora um elogio a si mesmo, o que feliz-
mente desviou a conversa de um assunto que tanto estava me incomo-
dando.
Clerval nunca simpatizara com meu gosto pelas ciências naturais e
suas atividades literárias diferiam por completo daquelas que me absor-
viam. Viera para a universidade com o intuito de tornar-se um mestre
pleno em línguas orientais, já que isso deveria abrir caminho para o pla-
no de vida que traçara para si. Decidido a buscar uma carreira nada in-
glória, voltou os olhos para o Oriente, de modo a proporcionar oportu-
nidade para seu espírito empreendedor. As línguas persa, árabe e o sâns-
crito atraíam sua atenção, e fui facilmente induzido a ingressar nos mes-
mos estudos. A indolência sempre me foi aborrecida e agora que deseja-
ra fugir da reflexão, detestando meus antigos estudos, senti grande alí-
vio em ser o pupilo de meu amigo, encontrando não apenas instrução,
mas consolação na obra dos orientalistas. Não tentei, como ele, obter
um conhecimento crítico dos dialetos, pois não esperava fazer deles uso
algum, vendo-os tão somente como um divertimento temporário. Lia
simplesmente para compreender o significado, e meus esforços foram
recompensados. Sua melancolia era confortante e a alegria, inspiradora,
de uma maneira que jamais experimentara ao estudar os autores de
quaisquer outros países. Quando lemos esses escritos, a vida parece
consistir em um sol cálido e um jardim de rosas, nos sorrisos e olhares
severos de um inimigo justo e no fogo que consome nosso próprio co-
ração. Como é diferente da poesia heroica e viril da Grécia e de Roma!
O verão transcorreu nessas preocupações, e meu retomo a Genebra
foi marcado para o final do outono, mas adiado por vários incidentes;
chegaram o inverno e a neve, as estradas foram consideradas intransitá-
veis e minha jornada foi postergada até a primavera seguinte. Senti
amargamente o adiamento, pois desejava rever minha cidade natal e
meus queridos amigos. O retorno só fora adiado porque não queria dei-
xar Clerval em um local estranho antes que pudesse se familiarizar com
qualquer um dos habitantes. O inverno, no entanto, transcorreu alegre
e, embora a primavera tenha chegado singularmente tarde, sua beleza
compensou a demora.
O mês de maio já havia começado, e eu esperava diariamente a carta
que estabeleceria a data de minha partida, quando Henry propôs uma
caminhada pelos arredores de Ingolstadt para despedir-me pessoalmen-
te do país que residira por tanto tempo. Acedi com prazer ao convite:
apreciava o exercício físico e Clerval sempre fora meu companheiro fa-
vorito em passeios dessa natureza, que realizava entre os cenários de
minha terra de origem.
Passamos uma quinzena nessas perambulações; minha saúde e meu
espirito, há muito já recuperados, adquiriram força especial com ar sa-
lubre que respirei, os incidentes naturais de nosso progresso e as con-
versas na companhia de meu amigo. Antes, o estudo excluíra-me do re-
lacionamento com as outras criaturas e tornara-me antissocial, mas
Clerval trouxe à tona os melhores sentimentos de meu coração; ensi-
nou-me novamente a adorar a visão da natureza e a feição alegre das cri-
anças! Amigo excelente! Como amava-me sinceramente e esforçara-se
para elevar minha mente ao nível da sua! A busca egoísta impedira e li-
mitara-me até que sua gentileza e afeição animaram e aguçaram meus
sentidos. Voltei a ser aquele homem feliz que, há poucos anos, amava e
era amado por todos, sem pesar ou cautela. Quando feliz, a natureza
inanimada tinha o poder de conferir-me as mais deleitosas sensações.
Um céu sereno e campos verdejantes enchiam-me de enlevo. A atual es-
tação era, de fato, divina; as flores primaveris resplandeciam nas cercas
vivas, enquanto aquelas que abririam no verão já surgiam em botão.
Não me sentia perturbado pelos pensamentos que no ano anterior acos-
savam-me, a despeito das tentativas de expulsá-los, como um fardo in-
vencível.
Henry encheu-se de contentamento por minha boa disposição e
partilhava sinceramente de meus sentimentos; esforçava-se por divertir-
me ao expressar as impressões que ocupavam-lhe a alma. Seus recursos
mentais na ocasião se mostravam verdadeiramente surpreendentes; seu
discurso era cheio de imaginação e, muitas vezes, imitando os escritores
persas e árabes, inventava contos maravilhosos de fantasia e paixão. Vez
ou outra recitava meus poemas favoritos ou instigava-me com seus ar-
gumentos, que defendia com grande talento.
Voltamos para a faculdade no domingo à tarde. Os camponeses dan-
çavam e todos que encontramos pareciam alegres e felizes. Estava bem-
disposto e obrigava-me a exercitar sentimentos de alegria e satisfação
desenfreados.
Cap. VII.

Ao retornar, encontrei a seguinte carta de meu pai:


“Querido Victor,
Provavelmente esperou com impaciência por uma carta para decidir
o dia em que retornaria para nós, e estive, de início, tentado a escrever-
lhe somente umas poucas linhas, apenas mencionando o dia em que de-
veria esperar por você. Entretanto, esta seria uma amabilidade cruel, e
não ouso cometê-la. Qual seria sua surpresa, meu filho, ao esperar bo-
as-vindas felizes e alegres, contemplar, ao contrário, lágrimas e miséria?
E como, Victor, posso narrar nossos infortúnios? Não é possível que a
ausência tenha tornado-o insensível às nossas alegrias e aos nossos pesa-
res e como poderia infligir dor ao meu filho há tanto ausente? Gostaria
de prepará-lo para a noticia mais lastimável, mas sei que é impossível; e
mesmo agora, seus olhos passam por sobre a página em busca das pala-
vras que darão a horrível nova.
William está morto! Aquela doce criança, cujos sorrisos encantavam
e aqueciam-me o coração, que era tão gentil e alegre! Victor, ele foi as-
sassinado!
Não tentarei lhe consolar, mas simplesmente relatarei as circunstân-
cias da transação.
Na última quinta-feira, dia 7 de maio, minha sobrinha, seus dois ir-
mãos e eu fomos caminhar em Plainpalais. A tarde estava quente e sere-
na e prolongamos a caminhada mais do que o costume. Já tinha caído a
noite antes que pensássemos em retornar e então descobrimos que Wil-
liam e Ernest, que tinham seguido à frente, não podiam ser encontrados
em lugar algum. Sentamo-nos, portanto, até que retornassem. Dentro
em pouco, Ernest voltou e perguntou se havíamos visto seu irmão. Dis-
se-nos que estivera brincando com ele, que William correra para escon-
der-se e que, em vão, procurou-o. Depois, esperou por um bom tempo,
mas ele não retornou.
Tal relato nos alarmou e continuamos a procurar por ele até o cair
da noite, quando Elizabeth conjecturou que William poderia ter volta-
do para casa. Não estava lá. Retornamos com tochas, pois não sossega-
ria com o pensamento de que meu doce menino estava perdido, expon-
do-se ao frio e ao sereno da noite. Elizabeth também estava deveras afli-
ta. Por volta das cinco horas da manhã, descobri meu adorável menino,
a quem na noite anterior vira resplandecente e ativamente saudável, esti-
rado na grama, lívido e inerte; as marcas dos dedos do assassino estavam
em seu pescoço.
Foi levado para casa, e a angústia visível em meu rosto entregou o
segredo para Elizabeth. Ela estava terminantemente decidida a ver o ca-
dáver. De início, tentei impedi-la, mas minha sobrinha persistiu, entrou
no aposento onde o corpo jazia, examinando, pressurosa, o pescoço da
vítima e, apertando as mãos, disse: “Oh, Deus! Eu matei minha criança
querida!”.
Então desmaiou e só recobrou os sentidos com extrema dificuldade.
Quando voltou à vida, era toda choro e suspiros. Contou-me que, na-
quela mesma tarde, William a importunara para deixá-lo usar uma joia
muito valiosa com o retrato de sua mãe. Esse pingente sumiu e, sem dú-
vida, foi o que impeliu o assassino a cometer o ato. Não temos pista de-
le no presente momento, ainda que nossos esforços para descobrir se-
jam ininterruptos; contudo, não restituirão nosso amado William!
Vem, querido Victor; somente você pode consolar Elizabeth. Ela
chora o tempo todo e acusa-se injustamente de ter sido a causa da tragé-
dia; as palavras dela ferem o meu coração. Todos estamos infelizes, mas
este não seria um motivo adicional, querido filho, para voltar e confor-
tar-nos? Sua querida mãe! Ai de mim, Victor! Agora digo, graças a
Deus ela não está viva para testemunhar a morte cruel, miserável, de seu
amado filho mais novo!
Vem, Victor; sem alimentar pensamentos de vingança contra o assas-
sino, mas com sentimentos de paz e gentileza que curarão, em vez de
ulcerar ainda mais as feridas de nossas mentes. Entre em nossa casa de
luto, meu amigo, mas com bondade e afeição por aqueles que amam vo-
cê, e não com ódio pelos seus inimigos.
De seu afeiçoado e aflito pai,
Alphonse Frankenstein,
Genebra, 12 de maio de 17 —.”

Clerval, que observava minhas feições enquanto lia a carta, ficou sur-
preso ao notar o desespero que sucedeu à alegria que expressei, de iní-
cio, ao receber notícias de minha família. Joguei a missiva na mesa e co-
bri meu rosto com as mãos.
— Meu caro Frankenstein! — exclamou Henry quando percebeu
que eu chorava amargamente. — É sempre tão infeliz? Meu querido
amigo, o que aconteceu?
Fiz-lhe sinal para que pegasse a carta, enquanto andava de um lado
para o outro no quarto em extrema agitação. As lágrimas jorraram dos
olhos de Clerval ao ler o relato de meu infortúnio.
— Não posso oferecer-lhe nenhuma consolação, meu amigo — afir-
mou. — Seu desastre é irreparável. O que pretende fazer?
— Seguir imediatamente para Genebra. Vem comigo, Henry, para
arranjar os cavalos.
Durante nossa caminhada, Clerval tentou dizer algumas palavras de
consolação; podia apenas expressar sua sincera compaixão.
— Pobre William! — exclamou. — Querida criança que agora dor-
me com sua angélica mãe. Quem o viu tão brilhante e esfuziante de be-
leza juvenil deve chorar sua perda prematura! Morrer tão miseravel-
mente; sentir a força do assassino! Quanto mais um assassino que pode
destruir uma inocência tão radiante! Pobrezinho! Temos uma única
consolação; seus amigos lamentam-no e pranteiam-no, mas ele descan-
sa. Acabou o tormento, os sofrimentos terminaram para sempre. A rel-
va cobre sua delicada figura, e ele não conhece a dor. Não é mais objeto
de pena; devemos reservá-la aos míseros sobreviventes.
Clerval assim falou enquanto precipitávamo-nos por entre as ruas,
as palavras gravaram-se em minha mente e eu as recordava depois, em
solidão. Naquele momento, contudo, assim que os cavalos chegaram,
entrei às pressas no cabriolé e disse adeus ao amigo.
A viagem foi muito melancólica. Inicialmente, desejei seguir depres-
sa, pois queria consolar e transmitir meus sentimentos com os amigos
amados e pesarosos, mas, quando me aproximei de minha cidade natal,
diminuí a velocidade do curso. Quase não podia suportar o turbilhão de
sentimentos que me povoavam. Passei pelos cenários familiares de mi-
nha juventude, que não contemplava há quase seis anos. Como tudo de-
veria ter se alterado durante esse tempo! Uma mudança súbita e desola-
dora acontecera; todavia, milhares de pequenas circunstâncias poderiam
ter operado outras transformações graduais que, embora tenham se da-
do tranquilamente, não deixavam de ser menos definitivas. O medo do-
minou-me; não ousei avançar, temendo uma centena de demônios ino-
mináveis que me fizeram tremer, ainda que fosse incapaz de defini-los.
Permaneci dois dias em Lausanne nesse estado mental doloroso.
Contemplei o lago; as águas eram plácidas, tudo ao redor estava calmo e
as montanhas encobertas de neve, “os palácios da natureza”[1] não ti-
nham mudado. Aos poucos a paisagem calma e celestial restaurou-me e
continuei a viagem até Genebra.
A estrada corria às margens do lago e se tornava mais estreita con-
forme me aproximava de minha cidade natal. Explorei com maior clare-
za as margens negras do Jura e o pico resplendente do mont Blanc.
Chorei como uma criança.
— Montanhas queridas! Meu belo lago! Como dão as boas-vindas
ao vosso vagamundo? Seus cimos são claros, o céu e o lago, azuis. Seria
um prenúncio de paz ou um escárnio de minha infelicidade?
Temo, meu amigo, parecer tedioso ao repisar tais circunstâncias pre-
liminares, mas foram dias de felicidade relativa e penso neles com pra-
zer. Minha terra, minha amada terra! Quem, a não ser um nativo, pode-
ria descrever as delicias que desfrutei ao contemplar seus regatos, suas
montanhas e, sobretudo, seu lago adorável!
Entretanto, ao aproximar-me de casa, o pesar e o medo subjugaram-
me. A noite caiu e, quando mal podia vislumbrar as montanhas escuras,
senti-me ainda mais melancólico. O quadro parecia um cenário maléfi-
co vasto e obscuro, e antevi, confuso, que estava destinado a tornar-me
o mais desventurado dos seres humanos. Ai de mim! Previ a verdade e
errei em uma única circunstância: que de toda a miséria que imaginei e
temi, não pude prever a centésima parte da angústia que estava destina-
do a suportar.
Já era noite quando cheguei nos arredores de Genebra. Os portões
da cidade estavam fechados e fui obrigado a pernoitar em Secheron,
uma vila que fica a aproximadamente dois quilômetros da cidade. O céu
estava sereno e, como não podia descansar, resolvi visitar o local onde
meu pobre William fora assassinado. Como não era possível passar pela
cidade, fui obrigado a cruzar o lago em um barco para chegar a Plainpa-
lais. Durante a curta viagem, vi os raios formando no cume do mont
Blanc as figuras mais belas. A tempestade pareceu aproximar-se rapida-
mente e, ao chegar, subi em uma colina baixa, de modo que podia ob-
servar seu desenrolar. Avançava; o céu estava nublado e logo senti a
chuva chegando devagar em grandes gotas cuja intensidade aumentou
velozmente.
Deixei meu posto e caminhei, embora a escuridão e a tempestade
aumentassem a cada minuto e os trovões ribombassem com estrondos
terríveis por sobre minha cabeça. Ecoou desde Salève, da cordilheira do
Jura, e dos alpes de Savoy. Os clarões vívidos dos relâmpagos ofusca-
vam meus olhos, iluminando o lago, fazendo-o parecer um imenso len-
çol de fogo. Então, por um instante, tudo parecia um breu, até a visão
recobrar-se do relâmpago anterior. A tempestade, como muitas vezes
acontece na Suíça, deixava-se mostrar ao mesmo tempo em vários pon-
tos do céu. A tormenta mais brutal concentrava-se exatamente ao norte
da cidade, sobre aquela parte do lago que fica entre o promontório de
Belrive e o vilarejo de Copêt. Uma tempestade iluminou o Jura com
clarões fracos e outra escureceu e, por vezes, revelou o Môle, um pico
montanhoso localizado ao leste do lago.
Enquanto apreciava a chuva, tão bela e, contudo, tão terrível, pe-
rambulava a passos ligeiros. Essa nobre guerra nos céus elevou meu es-
pírito; apertei as mãos e exclamei alto:
— William, querido anjo! Este é seu funeral! Este é seu hino fúne-
bre!
Ao proferir tais palavras, notei, nas trevas, uma figura que se esguei-
rava por detrás de um arvoredo próximo. Olhei atenta e fixamente; não
podia estar enganado. Um clarão de luz iluminou a coisa e percebi cla-
ramente sua forma. A estatura gigantesca e a deformidade do aspecto,
mais medonho do que humano, instantaneamente fizeram-me perceber
que se tratava do desgraçado, do demônio imundo ao qual eu dera vida.
O que fazia ali? Seria ele (e tremi ao concebê-lo) o assassino de meu ir-
mão? Tão logo essa ideia cruzou minha imaginação, convenci-me da
verdade dela; meus dentes rangiam e fui forçado a me apoiar em uma
árvore para não cair. O vulto passou por mim rapidamente e o perdi na
escuridão. Nada humano teria destruído aquela linda criança. Ele era o
assassino! Não havia dúvidas. A simples presença de tal pensamento era
prova irrefutável do fato. Pensei em procurar o demônio, mas teria sido
em vão, pois outro relâmpago revelou-o a mim por entre as rochas da
subida quase perpendicular do mont Salève, uma colina que faz frontei-
ra com Plainpalais no lado sul. Logo que chegou ao topo, desapareceu.
Permaneci imóvel. A trovoada cessou, mas a chuva continuou e o
cenário foi envolvido por uma escuridão impenetrável. Revolvi em mi-
nha mente os acontecimentos que até então tinham ocorrido e procura-
va esquecer: toda a sucessão de progressos rumo à criação, a aparência
do trabalho fruto de minhas próprias mãos vivo à cabeceira da cama,
sua partida. Dois anos tinham se passado desde a noite em que ganhara
vida e aquele fora seu primeiro crime? Ai de mim! Soltara no mundo
um infeliz depravado cujo prazer estava na carnificina e no tormento;
não teria ele assassinado meu irmão?
Ninguém seria capaz de conceber a angústia que sofri durante o res-
tante da noite, que passei encharcado, vulnerável ao frio e ao relento.
No entanto, não senti a inconveniência do tempo. Minha imaginação
estava ocupada com as cenas do mal e do desespero. Considerei o ente
que lançara em meio à humanidade e que dotara de vontade e capacida-
de de executar propósitos horrendos, tais como o ato que acabara de
cometer, praticamente à luz de meu próprio vampiro, de meu próprio
espirito libertado do túmulo, que se via forçado a destruir todos os que
me eram caros.
Veio a alvorada e dirigi-me para a cidade. Os portões estavam aber-
tos e precipitei-me para a casa de meu pai. Meu primeiro pensamento
foi revelar o que sabia do assassino e organizar uma busca imediatamen-
te. Refreei, todavia, quando refleti sobre a história que teria de contar.
Uma criatura que eu mesmo gerara, dotada de vida, encontrara-me à
meia-noite entre os despenhadeiros de uma montanha inacessível. Lem-
brei-me também da febre nervosa que apanhara justamente na época em
que deparara com minha criação e que emprestaria um ar de delírio à
história, de outra feita, completamente improvável. Sabia bem que se
qualquer outra pessoa me apresentasse tal narrativa, eu a teria olhado
como se estivesse no frenesi da insanidade. Ademais, a natureza estra-
nha do animal frustraria a busca, mesmo que eu tivesse crédito para
convencer meus parentes a iniciá-la. E depois, de que adiantaria tal per-
seguição? Quem poderia prender uma criatura capaz de escalar as en-
costas íngremes do mont Salève? Essas reflexões me decidiram a perma-
necer calado.
Por volta das cinco da manhã, entrei na casa de meu pai. Pedi aos
criados que não perturbassem a família e dirigi-me à biblioteca para es-
perar a hora em que usualmente despertavam.
Seis anos haviam passado como um sonho, a não ser por um traço
indelével, e achava-me no mesmo lugar em que abraçara meu pai pela
última vez antes da partida para Ingolstadt. Meu amado e venerado pai!
Ainda estava comigo. Contemplei o retrato de minha mãe que ficava
sobre a cornija. Era uma cena histórica, pintada segundo o desejo de
meu pai, que representava Caroline Beaufort na agonia do desespero,
ajoelhada ao lado do caixão do pai morto. Os trajes eram rústicos e as
faces, pálidas, mas havia um ar de dignidade e beleza que dificilmente
permitiria o sentimento de pena. Abaixo dessa pintura, via-se um retra-
to de William, e minhas lágrimas se precipitaram ao contemplar-lhe. No
momento em que estava assim entretido, Ernest entrou. Ouvira-me
chegar e apressou-se para desejar as boas-vindas. Expressou um prazer
tristonho ao ver-me:
— Seja bem-vindo, querido Victor — saudou-me. — Ah! Quem de-
ra tivesse vindo há três meses. Teria nos encontrado alegres e felizes.
Vem a nós agora para partilhar de uma angústia que nada pode aliviar;
contudo, sua presença, espero, reanimará seu pai, que parece afundar
nesse infortúnio, e sua persuasão induzirá a pobre Elizabeth a deixar de
se atormentar em vão com autoacusações. Pobre William! Era nosso
bem-amado e nosso orgulho!
Lágrimas incontidas brotavam dos olhos de meu irmão; um senso de
agonia mortal apoderou-se de meu corpo. Antes, apenas podia imaginar
a miséria de meu lar desolado; agora, no entanto, a realidade avançava
sobre mim como um novo, mas não menos terrível, desastre. Tentei
acalmar Ernest. Perguntei mais detalhadamente a respeito de meu pai e
daquela a quem chamava de prima.
— Ela, mais do que todos — afirmou Ernest —, precisa de consolo.
Acusa-se de ter causado a morte de meu irmão e diz que o que fez foi
muito lamentável. Porém, já que o assassino foi descoberto…
— O assassino foi descoberto! Bom Deus! Como pode ser? Quem
tentaria caçá-lo? É impossível; esse alguém poderia tentar dominar os
ventos ou confinar um rio de montanha com palha. Eu também o vi; es-
tava livre noite passada!
— Não entendo o que diz — respondeu meu irmão em tom de es-
panto. — Contudo, para nós, essa descoberta completou nosso tormen-
to. Ninguém pôde acreditar de início, e mesmo agora Elizabeth não está
convencida, apesar de todas as provas. De fato, quem diria que Justine
Moritz, que era tão amável e afeiçoada de toda a família, poderia, de re-
pente, ser capaz de um crime tão medonho e apavorante?
— Justine Moritz! Pobre, pobre moça, ela é a acusada? Mas está er-
rado; todos sabem disso. Ninguém acredita, não é, Ernest?
— A princípio, ninguém acreditou, mas surgiram várias circunstân-
cias que quase forçaram nosso convencimento, e seu próprio comporta-
mento pareceu tão confuso, como se acrescentasse provas aos fatos que
pesavam contra ela, que temo não haver esperança de dúvida. Entretan-
to, ela será julgada hoje, e você ouvirá tudo.
Contou que, na manhã em que o pobre William foi descoberto as-
sassinado, Justine ficara doente e confinada na cama por vários dias.
Durante esse intervalo, um dos criados, vindo a examinar os trajes que
ela usara na noite do crime, descobrira no bolso o retrato de minha mãe,
que fora tido como a tentação do assassino. O criado imediatamente
mostrou-o para outro empregado que, sem dizer uma palavra para al-
guém da família, foi ao magistrado. Após o testemunho deles, Justine
foi presa. Ao ser acusada do fato, a pobre moça confirmou a suspeita,
em grande parte, pela extrema confusão de sua conduta.
Era uma história singular, mas não abalou minha convicção e res-
pondi seriamente:
— Estão todos equivocados; conheço o assassino. Justine, a coitada
de Justine, é inocente.
Nesse instante meu pai entrou. Vi a infelicidade profundamente im-
pressa em seu rosto, mas ele se esforçou em dar-me as boas-vindas com
alegria; e depois de termos trocado nossa saudação de pesar, teria intro-
duzido um tópico diverso de nosso desastre, não tivesse Ernest excla-
mado:
— Por Deus, papai! Victor diz que sabe quem é o assassino do po-
bre William.
— Também o sabemos, infelizmente — respondeu meu pai. — Pre-
feriria permanecer ignorante para sempre a ter descoberto tanto vício e
ingratidão em alguém que tinha em tão grande estima.
— Meu querido pai, está enganado; Justine é inocente.
— Se ela o é, Deus não permita que sofra como culpada. Ela deve
ser julgada hoje e espero, sinceramente, que seja absolvida.
Esse discurso acalmou-me. Estava firmemente convencido de que
Justine, e na verdade qualquer outro ser humano, não tinha culpa nesse
assassinato. Não temia, portanto, que qualquer prova circunstancial
apresentada poderia ter força o bastante para prendê-la. Minha história
não poderia ser anunciada em público; seu horror assombroso seria vis-
to como loucura pelo vulgo. Será que, de fato, existiria alguém exceto
eu, o criador, que acreditaria, a menos que os sentidos o convencessem,
na existência do monumento vivo à presunção e à ignorância impruden-
te que eu soltara no mundo?
Logo juntamo-nos a Elizabeth. O tempo a mudara desde a última
vez que a vira; conferira-lhe um encanto que superava a beleza de seus
anos de menina. Havia a mesma candura, a mesma vivacidade, porém
aliadas a uma expressão mais plena de sensibilidade e intelecto. Ela rece-
beu-me com a maior das afeições.
— Sua chegada, querido primo — disse ela —, enche-me de esperan-
ça. Talvez encontrará algum meio de explicar minha pobre e inocente
Justine. Ai de mim! Quem estará seguro, caso ela seja presa pelo crime?
Creio na inocência dela como confio na minha. Nosso infortúnio nos é
duplamente penoso; não só perdemos aquele menino querido e amável,
mas também essa pobre moça, a quem amo com toda sinceridade e está
para ser destruída por uma sina ainda pior. Se for condenada, nunca
mais terei alegria. Não será, todavia, estou certa de que não será, e então
me verei feliz de novo, mesmo com a morte triste de meu querido Willi-
am.
— Ela é inocente, minha Elizabeth — respondi-lhe. — E isso será
comprovado; nada tema, mas deixa seu espirito se animar pela certeza
da absolvição.
— Quão gentil e generoso você é! Todos acreditam na culpa, e isso
deixou-me infeliz, pois sabia que era impossível; e ver todos prejulgan-
do-a tão fatalmente deixou-me sem esperanças e desanimada — lamen-
tou.
— Querida sobrinha — consolou meu pai —, enxugue as lágrimas.
Se ela é, como crê, inocente, confie na justiça de nossas leis e na provi-
dência que tomarei para evitar a menor sombra de parcialidade.
Cap. VI II.

Passamos alguns momentos tristes até as onze horas, quando dariam


início ao julgamento. Meu pai e o restante da família foram compelidos
a comparecer como testemunhas, e eu os acompanhei até a corte. Du-
rante todo esse arremedo de justiça, sofri uma acentuada tortura. Estava
para ser decidido se o resultado de minha curiosidade e meus projetos
desregrados teria causado a morte de dois entes queridos: um deles,
uma criança sorridente cheia de inocência e alegria; o outro, uma jovem
que seria assassinada de modo muito mais terrível, com o agravante da
desonra que tornaria o assassinato algo a ser recordado com horror. Jus-
tine também era uma moça de mérito e possuía qualidades que prometi-
am conferir-lhe uma vida feliz; agora tudo estava obliterado por um se-
pulcro infame, e eu era a causa! Preferia mil vezes ter confessado minha
culpa pelo crime imputado a Justine, mas estava ausente quando fora
cometido e tal declaração seria considerada como o delírio de um cele-
rado, sendo-me impossível impedir que ela sofresse por uma falta mi-
nha.
A aparência de Justine era calma. Vestia-se de luto, e suas feições,
sempre atraentes, estavam tomadas, dada a solenidade dos sentimentos,
por uma beleza extraordinária. No entanto, aparentava confiante ino-
cência e não tremia, embora tivesse o olhar fixo e fosse execrada por mi-
lhares; toda a bondade que sua beleza pudesse de outro modo ter incita-
do foi apagada da mente dos espectadores pela imaginação da enormi-
dade do crime que supostamente cometera. Estava tranquila; contudo,
transparecia uma tranquilidade evidentemente reprimida; e como sua
confusão fora aduzida como prova de culpa, buscava aparentar cora-
gem. Quando entrou no tribunal, lançou os olhos ao redor e rapida-
mente descobriu onde estávamos sentados. Uma lágrima pareceu turvar
seus olhos quando nos viu, mas se recompôs de imediato e uma imagem
de afeição pesarosa pareceu atestar sua absoluta ausência de culpa.
O julgamento começou, e depois de o defensor apresentar a acusa-
ção, várias testemunhas foram chamadas. Foram combinados contra ela
diversos fatos estranhos que poderiam ter confundido qualquer um que
não tivesse a prova de sua inocência como eu. Tinha estado fora toda a
noite em que o assassinato fora cometido, e durante a manhã fora vista
por uma mercadora em um local não muito distante de onde o corpo da
criança foi, posteriormente, encontrado. A mulher perguntara-lhe o que
fazia ali, mas a moça parecera muito estranha e respondera de modo
confuso e ininteligível. Voltou a casa por volta das oito e, quando per-
guntaram onde passara a noite, respondeu que estivera procurando por
William, perguntando avidamente se tinham ouvido algo a respeito de-
le. Quando lhe apresentaram o corpo, foi abatida por uma histeria vio-
lenta e caiu de cama por vários dias. O retrato que o criado achou em
seu bolso foi exibido, e quando Elizabeth, com voz vacilante, provou
ser o mesmo que uma hora antes colocara ao redor do pescoço da crian-
ça que se perdera, um burburinho de horror e indignação encheu o tri-
bunal.
Justine foi chamada para se defender. Conforme o julgamento avan-
çava, suas feições se modificavam. Surpresa, horror e angústia foram ex-
pressos com vigor. Às vezes, lutava contra as lágrimas, mas, quando de-
sejava apresentar sua posição, reunia forças e falava em tom audível,
embora oscilante.
— Deus sabe — afirmou — que sou totalmente inocente; todavia,
não pretendo que minhas declarações me absolvam. Minha inocência
baseia-se em uma pura e simples explicação dos fatos que foram impu-
tados contra mim, e espero que o caráter que sempre demonstrei con-
vença os juízes a criar uma interpretação favorável em quaisquer cir-
cunstâncias que parecerem duvidosas ou suspeitas.
Então relatou que, com a permissão de Elizabeth, passara o cair da
noite do assassinato na casa da tia, em Chêne, um vilarejo situado a cer-
ca de cinco quilômetros de Genebra. Ao retornar, por volta das nove
horas da noite, encontrou um homem que lhe perguntou se tinha algu-
ma notícia sobre a criança perdida. Ficou alarmada com o relato e pas-
sou várias horas procurando por William, até que os portões de Gene-
bra foram fechados e ela se viu forçada a permanecer várias horas no ce-
leiro de um chalé, relutando em chamar os moradores, dos quais era
bem conhecida. Passou boa parte da noite ali, em vigília; ao chegar a
manhã, acreditou que dormira por alguns minutos. Foi acordada por
um ruído de passos. O dia raiava, e ela deixou o abrigo, a fim de que
pudesse continuar sua busca. Se chegou perto do local onde jazia o cor-
po, fê-lo sem saber. Que estivera aturdida quando questionada pela
mercadora não era de admirar, já que passara uma noite insone e o des-
tino do pobre William ainda era incerto. Acerca do retrato, não pôde
dar explicação alguma.
— Sei — disse a vítima infeliz — o quanto essa única circunstância
pesa fatalmente contra mim, mas não tenho como explicá-la, e quando
expresso minha total ignorância, restam-me apenas conjecturas sobre as
probabilidades de como o objeto poderia ter sido colocado em meu
bolso. Aqui também encontro um contratempo. Acredito não ter inimi-
go na Terra e sou da opinião de que ninguém seria tão perverso a ponto
de destruir-me de forma tão arbitrária. Será que o assassino o colocou
lá? Não vejo oportunidade para que assim o fizesse; ou se o fez, por que
teria roubado a joia para livrar-se dela tão rapidamente? Entrego minha
causa à justiça de meus julgadores, contudo não vejo lugar para espe-
rança. Peço permissão para a análise dos poucos testemunhos acerca de
meu caráter e, caso isso não suplante minha suposta culpa, devo ser
condenada, embora jure inocência, por minha salvação.
Várias testemunhas que a conheciam há muitos anos foram chama-
das — e falaram bem, mas o temor e o ódio pelo crime que supunham
que tivesse cometido deixou-as receosas e relutantes a favorecê-la. Eli-
zabeth percebeu que mesmo este último recurso, sua excelente disposi-
ção e conduta irrepreensível, estavam prestes a trair a acusada, e, embo-
ra muito agitada, pediu permissão para dirigir-se ao tribunal.
— Sou a prima da criança infeliz que foi assassinada — declarou —,
ou melhor, sua irmã, pois fui educada e vivi com os mesmos pais desde
sempre, mesmo antes de seu nascimento. Portanto, pode parecer incon-
veniente apresentar-me nestas circunstâncias, mas quando vejo uma cri-
atura prestes a perecer pela covardia dos supostos amigos, gostaria de
ser autorizada a falar, a fim de declarar o que sei sobre seu caráter. Co-
nheço bem a acusada. Vivi na mesma casa que ela, de certa feita, por
cinco anos e, de outra, por quase dois. Durante todo esse tempo, pare-
ceu-me a mais amável e benevolente das criaturas humanas. Cuidou da
sra. Frankenstein, minha tia, em seu quadro terminal, com grande afei-
ção e cuidado e, depois, assistiu a própria mãe em uma doença penosa,
atraindo, assim, a admiração de todos que a conheciam; depois, voltou a
viver na casa de meu tio, onde era amada pela família. Era calorosamen-
te afeiçoada à criança, agora morta, e agia como a mais carinhosa das
mães. De minha parte, não hesito em dizer que, apesar de todas as pro-
vas produzidas contra ela, creio e confio em sua inocência perfeita. Não
possuía ímpeto para tal ação; o mesmo em relação ao pingente sobre o
qual se baseia a prova principal: caso o tivesse de fato desejado, eu lhe
teria dado, tal a estima e valor que lhe dedico.
Ouviu-se um murmúrio de aprovação após a súplica simples e po-
tente de Elizabeth, mas isso foi suscitado por sua interferência generosa,
e não em favor da pobre Justine, sobre quem a indignação pública vol-
tava-se com renovada violência, acusando-a da mais tenebrosa ingrati-
dão. Ela mesma chorou enquanto Elizabeth falava, mas não respondeu.
Minha própria agitação e angústia foram extremas durante o julgamento
inteiro. Acreditava em sua inocência; sabia disso. Será que o demônio
que matou meu irmão (eu não duvidava nem por um minuto), também
em seu passatempo infernal, desviou uma inocente para a morte e a in-
fâmia? Não podia tolerar o horror de minha situação e quando percebi
que a voz do povo e os rostos dos juízes já haviam condenado a infeliz
vítima de meus atos, sai às pressas e em agonia do tribunal. As torturas
da acusada não se equiparavam às minhas. Ela amparava-se na inocên-
cia, mas as garras do remorso rasgavam meu peito e não soltavam.
Passei uma noite absolutamente miserável. Pela manhã, fui ao tribu-
nal. Meus lábios e minha garganta estavam ressequidos. Não ousei fazer
a pergunta fatal, mas o fato era conhecido, e o funcionário adivinhara o
motivo da visita. As cédulas já haviam sido lançadas; todas eram negras
e Justine fora condenada.
É impossível para mim descrever o que senti na ocasião. Já tinha ex-
perimentado sensações de horror e já tentara empenhar-me para confe-
rir-lhes as expressões adequadas, mas as palavras não expressam a ideia
do abatimento desesperado em que me encontrava. A pessoa a quem me
dirigi acrescentou que Justine já confessara a culpa.
— Essa prova — observou — dificilmente é exigida em um caso tão
evidente, mas fico feliz com isso e, de fato, nenhum de nossos juízes
gosta de condenar um criminoso com base em provas circunstanciais,
mesmo que elas sejam bastante decisivas.
Esse era um entendimento estranho e inesperado. O que significa-
ria? Será que meus olhos tinham me enganado? Estaria eu realmente tão
louco que todos acreditariam em mim caso revelasse o objeto de minhas
suspeitas? Apressei-me para chegar em casa e Elizabeth exigiu avida-
mente o resultado.
— Prima — respondi —, foi decidido como esperava: os juízes pre-
ferem que dez inocentes sofram a absolver um culpado. Contudo, ela
confessou.
Aquele foi um golpe terrível para a pobre Elizabeth, que confiara
firmemente na inocência de Justine.
— Ai de mim! — exclamou. — Como poderei acreditar novamente
na bondade humana? Como Justine, a quem amava e estimava como ir-
mã, era capaz de sorrisos tão inocentes com o intuito de tão somente
trair? Seus olhos meigos pareciam incapazes de qualquer severidade ou
artimanha e, no entanto, ela cometeu um assassinato.
Logo depois soubemos que a pobre vitima expressara o desejo de
ver minha prima. Meu pai não queria que ela fosse, mas disse que confi-
ava em seus critérios e sentimentos.
— Eu vou — afirmou Elizabeth —, embora ela seja culpada. E você,
Victor, me acompanhará; não posso ir sozinha.
A ideia da visita era para mim uma tortura; todavia, não era possível
recusá-la.
Entramos na cela sombria da prisão e vislumbramos Justine sentada
na palha em um canto distante. Suas mãos estavam algemadas e a cabeça
repousava nos joelhos. Levantou-se ao nos ver entrar e, quando fomos
deixados a sós com ela, lançou-se aos pés de Elizabeth, chorando amar-
gamente. Minha prima também chorou.
— Oh, Justine! — exclamou. — Por que me privou de meu último
consolo? Confiei em sua inocência e, embora estivesse muito infeliz,
não o estava tanto quanto agora.
— E você também acredita que sou muitíssimo má? Uniu-se aos
meus inimigos para esmagar-me, para condenar-me como assassina? —
A voz dela estava sufocada pelos soluços.
— Levante-se, pobre menina — ordenou Elizabeth. — Por que se
submeteu se é inocente? Não sou sua inimiga; acreditei que era inocen-
te, não obstante todas as provas, até ouvir que se declarou culpada. Esse
relato, diz, é falso; e esteja certa, querida Justine, que nada pode abalar
minha confiança em você por um momento sequer, senão sua própria
confissão.
— Confessei, mas confessei uma mentira. Confessei de modo que
pudesse obter absolvição, mas agora essa falsidade pesa ainda mais em
meu coração que todos os outros pecados. Deus do céu que me perdoe!
Desde que fui condenada, meu confessor assediou-me, ameaçou-me e
hostilizou-me até eu quase começar a pensar ser o monstro que julgava.
Ameaçou-me de excomunhão e com o fogo do inferno em meus últi-
mos momentos, caso continuasse obstinada. Cara senhora, não tenho
ninguém para amparar-me; todos me olham como uma miserável con-
denada à infâmia e à perdição. O que poderia fazer? Em uma hora ruim,
sujeitei-me à mentira e agora estou totalmente desgraçada.
Fez uma pausa, chorando e, então, continuou.
— Pensei com horror, doce senhora, que poderia acreditar que sua
Justine, a quem sua santa tia tinha em tão alta estima e a quem você
amou, seria uma criatura capaz de um crime que ninguém, a não ser o
próprio diabo, conseguiria perpetrar. Pobre William! Querida e abenço-
ada criança! Logo o verei no paraíso, onde todos seremos felizes, e isso
me consola, visto que sofrerei desonra e morte.
— Oh, Justine! Perdoe-me por ter desconfiado de sua pessoa. Por
que confessou? Mas não lamente, querida. Não tema. Tornarei conheci-
da e provarei sua inocência. Farei derreter os corações de pedra de seus
inimigos com minhas lágrimas e orações. Não será morta! Você, minha
colega, minha companheira, minha irmã, morrerá no cadafalso? Não!
Não! Nunca sobreviverei a tamanho infortúnio!
Justine balançou a cabeça pesarosamente.
— Não temo a morte — disse. — Essa aflição faz parte do passado.
Deus exalta minha fraqueza e me dá coragem para suportar o pior. Dei-
xo um mundo triste e cruel; e caso se lembre de mim como alguém in-
justamente condenada, estarei resignada ao destino que me aguarda.
Aprende comigo, cara senhora, a se submeter com paciência aos desíg-
nios dos céus!
Durante essa conversa, retirei-me para um canto da cela da prisão,
onde pude dissimular a angústia que me dominava. Desespero! Quem
ousava falar aquilo? A pobre vítima que no dia seguinte passaria a fron-
teira terrível entre a vida e a morte não sentia, como eu, tal agonia pro-
funda e amarga. Rilhei e cerrei os dentes, emitindo um gemido que veio
do fundo da alma. Justine surpreendeu-se. Quando viu quem era, apro-
ximou-se de mim e disse:
— Caro senhor, é muito gentil em visitar-me; espero que não acredi-
te que sou culpada.
Não consegui responder.
— Não, Justine — disse Elizabeth —, ele está mais convencido de
sua inocência que eu, pois, mesmo quando ouviu que confessou, não
deu crédito.
— Agradeço-lhe de verdade. Nestes últimos momentos, sinto a mais
sincera gratidão para com aqueles que pensam em mim com ternura.
Como é cativante a afeição das pessoas por uma miserável como eu! Re-
tira mais da metade de meu infortúnio e sinto como se pudesse morrer
em paz agora que minha inocência é reconhecida por você, querida se-
nhora, e por seu primo.
Assim, a pobre sofredora tentou confortar os outros e a si mesma.
Ela, de fato, conseguiu a resignação que desejava. No entanto, eu, o ver-
dadeiro assassino, senti o verme imortal vivo em meu seio que não per-
mitia esperança ou consolação alguma. Elizabeth também chorou e es-
tava infeliz, mas sua infelicidade era a miséria da inocência que, como
uma nuvem que passa sobre uma bela lua, oculta, mas não pode emba-
çar seu brilho. Angústia e desespero penetraram no âmago de meu cora-
ção; ergui um inferno dentro de mim que não poderia ser extinto de ne-
nhuma maneira. Ficamos várias horas com Justine e foi com grande di-
ficuldade que Elizabeth conseguiu apartar-se.
— Quem me dera — bradou — morrer contigo! Não posso viver
nesse mundo de aflição.
Justine assumiu um ar de alegria, enquanto, de maneira árdua, repri-
mia lágrimas dolorosas. Abraçou Elizabeth e disse, em uma voz um tan-
to embargada pela emoção:
— Adeus, doce senhora, querida Elizabeth, amada e única amiga;
possa o céu, em sua bondade, abençoá-la e preservá-la. Que este seja o
último infortúnio que sofra! Viva, seja feliz e faça outros felizes.
E, no dia seguinte, Justine morreu. A eloquência desoladora de Eli-
zabeth falhou ao comover os corações dos juízes de suas convicções ar-
raigadas a respeito da criminalidade da santa sofredora. Meus apelos
passionais e indignados foram em vão. E quando recebi respostas frias e
ouvi o raciocínio severo e insensível daqueles homens, a pretensa con-
fissão morreu em meus lábios. Assim, podia proclamar-me louco, mas
não revogar a sentença conferida à vítima desditosa. Morreu no patíbu-
lo como uma assassina!
Das torturas de meu coração, voltei a contemplar o lamento profun-
do e silencioso de minha Elizabeth. Aquilo também foi minha culpa! E
o pesar de meu pai e a desolação daquela casa outrora tão sorridente —
tudo obra de minhas mãos três vezes amaldiçoadas! Chorem, infelizes,
mas estas não serão suas últimas lágrimas! Novamente se lamuriarão em
funerais, e o som de suas lamentações serão ouvidos por muitas vezes!
Frankenstein, seu filho, seu compatriota, seu jovem e estimado amigo;
ele, que daria cada gota de sangue por vocês, que não tem pensamentos
ou senso de alegria a não ser quando espelhados em seus queridos ros-
tos, que preencheria o ar de bênçãos e passaria a vida a lhes servir; orde-
na que chorem, que derramem incontáveis lágrimas; feliz seria ele, além
de suas esperanças, se o destino inexorável estivesse satisfeito e a des-
truição terminasse antes que a paz da sepultura suceda aos seus tristes
tormentos!
Assim falou minha alma profética, despedaçada por remorso, horror
e desespero, ao contemplar aqueles que amei despendendo um vão pe-
sar por sobre as tumbas de William e Justine, as primeiras vítimas desa-
fortunadas de minhas artes profanas.
Cap. IX.

Nada é mais doloroso para a mente humana, após os sentimentos serem


instigados por uma sucessão rápida de acontecimentos, que a calma
mortal da inação e a certeza que se segue e priva a alma tanto da espe-
rança quanto do medo. Justine morreu, descansou, e eu estava vivo. O
sangue fluía livre em minhas veias, mas o peso do desespero e do re-
morso pressionava meu coração, e nada podia removê-los. O sono fugia
de meus olhos; vagava como um espirito do mal, pois cometera atos ex-
tremamente injuriosos e mais, muito mais (convenci-me) ainda estava
por vir. No entanto, meu coração transbordava de bondade e amor pela
virtude. Começara a vida com intenções benevolentes e ansiava pelo
momento em que pudesse colocá-las em prática, tornando-me útil para
os seres humanos. Agora tudo foi arruinado; em vez da serenidade de
consciência que me permitia olhar para o passado com satisfação íntima
e daí reunir promessas de novas esperanças, fui apanhado pelo remorso
e pela sensação de culpa que me conduziram rapidamente para um in-
ferno de torturas tão intensas que nenhuma língua seria capaz de des-
crever.
Esse estado mental atacou minha saúde que, talvez, nunca tenha se
recuperado totalmente do primeiro choque que sofrera. Esquivei-me da
vista dos homens; qualquer som de alegria ou complacência significava
um tormento para mim. A solidão era meu único consolo — a solidão
profunda, escura, mortal.
Meu pai observou angustiado a alteração perceptível de minha dis-
posição e meus hábitos e empenhou-se em apresentar argumentos
oriundos dos sentimentos de sua consciência serena e vida pura a fim de
inspirar-me fortaleza e coragem para dispersar a nuvem negra que pai-
rava sobre mim.
— Acha que também não sofro, querido Victor? — perguntou. —
Ninguém jamais amou uma criança como amei seu irmão. — Ao dizer
isso, lágrimas brotaram de seus olhos. — No entanto, não é obrigação
dos que sobreviveram refrear a infelicidade sem aparentar um pesar
imoderado? É um dever para consigo mesmo, pois o pesar excessivo
impede a melhoria e a satisfação ou até mesmo a execução das tarefas
diárias, sem as quais nenhum homem está apto para a sociedade.
Esse conselho, ainda que bom, era totalmente inaplicável ao meu ca-
so. Eu deveria ter sido o primeiro a esconder meu pesar e a consolar
meus amigos, se o remorso não tivesse misturado a amargura, e o terror,
o alerta, às minhas outras sensações. Agora só poderia responder ao
meu pai com uma aparência de desespero e empenho em esconder-me
de sua vista.
Por volta dessa época, retiramo-nos para a casa em Belrive. Essa
mudança era particularmente agradável a mim. O fechamento dos por-
tões às dez horas da noite e a impossibilidade de permanecer no lago
depois desse horário tornaram a casa dentro dos muros de Genebra
muito aborrecida. Agora eu estava livre. Muitas vezes, depois que o res-
tante da família se recolhia, tomava o barco e passava muitas horas na
água. Às vezes, com as velas armadas, era levado pelo vento; em outras
ocasiões, após remar até o meio do lago, deixava o barco seguir o pró-
prio curso e cedia às minhas reflexões miseráveis. Não raro, quando tu-
do estava em paz ao meu redor, e eu era a única coisa que vagava inquie-
ta em um cenário tão belo e celestial — senão eu, algum morcego ou as
rãs, cujo coaxar desagradável e ininterrupto só era ouvido quando me
aproximava da margem —, amiúde, digamos, era instigado a lançar-me
ao lago silencioso, de modo que as águas se fechassem sobre mim e mi-
nhas calamidades para sempre. Entretanto, ficava impedido de fazê-lo
quando pensava no sofrimento heroico de Elizabeth, a quem amava
com ternura e cuja existência estava unida à minha. Também pensei em
meu pai e no irmão ainda vivo. Será que deveria, por uma deserção fun-
damental, deixá-los desprotegidos e expostos à malícia do espírito ma-
ligno que libertei em meio a eles?
Nesses momentos, chorava amargamente e desejava que a paz vol-
tasse a visitar minha mente apenas para que pudesse encontrar consolo e
felicidade. Todavia, não era possível. O remorso extinguira toda a espe-
rança. Fui o autor de males irreparáveis e vivi um medo diário com re-
ceio de que o monstro que criara perpetrasse alguma nova maldade. Ti-
nha o pressentimento obscuro de que tudo ainda não havia acabado e
de que ele cometeria algum crime extraordinário, que, por sua enormi-
dade, pudesse apagar a lembrança do anterior. Sempre existe oportuni-
dade para o medo, uma vez que alguma coisa que amei tenha sido dei-
xada para trás. Não conseguia expressar minha repugnância por esse de-
mônio. Quando pensava nele, trincava os dentes, meus olhos se infla-
mavam e desejava ardentemente exterminar a vida que lhe concedi sem
pensar. Quando refletia sobre seus crimes e sua malícia, meu ódio e mi-
nha vingança rompiam todos os limites da moderação. Teria feito uma
peregrinação ao pico mais alto dos Andes, para, lá de cima, precipitá-lo
do alto. Desejaria vê-lo de novo para descarregar todo o meu ódio so-
bre sua cabeça e vingar as mortes de William e Justine.
Nossa casa era um lar de luto. A saúde de meu pai estava profunda-
mente abalada pelo horror dos recentes acontecimentos. Elizabeth esta-
va triste e abatida; não tinha mais prazer nas ocupações cotidianas, qual-
quer contentamento parecia sacrilégio para com os mortos. O pesar
eterno e as lágrimas, pensava, eram o justo tributo que pagava à inocên-
cia tão golpeada e destruída. Não era mais a criatura feliz que no início
da juventude andava comigo pelas margens do lago e falava com enlevo
de perspectivas futuras. O primeiro desses sofrimentos que são envia-
dos para nos apartar da Terra a visitara, e sua influência ofuscante arre-
feceu o mais amado dos sorrisos.
— Quando reflito, querido primo — disse-me ela —, sobre a morte
desgraçada de Justine Moritz, não vejo mais o mundo e suas obras co-
mo antes se mostravam para mim. No passado, julgava os relatos de ví-
cios e injustiças que lia nos livros ou ouvia de outros como histórias de
dias antigos ou males imaginários; ao menos eram remotos e mais fami-
liares à razão do que à imaginação. Agora, porém, a infelicidade chegou
e os homens se mostram a mim como monstros sedentos pelo sangue de
seus semelhantes. Por certo, sou injusta. Todos acreditam que a pobre
moça é culpada, e se ela tivesse cometido o crime pelo qual sofreu, cer-
tamente teria sido a mais depravada das criaturas. Por conta de uma
joia, assassinar o filho de seu benfeitor e amigo, uma criança de quem
ela cuidou desde o nascimento e parecia amar como seu próprio filho!
Não posso consentir com a morte de ser humano algum, mas certamen-
te pensaria que tal criatura não estaria apta a permanecer na sociedade
humana. Entretanto, ela era inocente. Sei, sinto, que era inocente; você é
da mesma opinião, e isso me confirma. Ai! Victor, quando a mentira po-
de parecer tanto com a verdade, quem pode assegurar-se de alguma ale-
gria? Sinto como se estivéssemos andando na beira de um precipício,
onde se aglomeram milhares de pessoas que tentam lançar-me no abis-
mo. William e Justine foram assassinados, e o assassino escapa; anda li-
vre neste mundo e talvez até seja respeitado. Entretanto, mesmo que eu
seja condenada a sofrer no cadafalso pelos mesmos crimes, não trocaria
de lugar com tal infeliz.
Ouvi o discurso em extrema agonia. Eu, não em ato, mas em efeito,
era o verdadeiro assassino. Elizabeth leu a angústia em meu rosto e, to-
mando minha mão com gentileza, disse:
— Querido amigo, deve se acalmar. Esses eventos afetaram-me,
Deus sabe quão profundamente, mas não de modo tão desventurado
quanto a ti. Há uma expressão de desespero e, às vezes, de vingança em
seu rosto que me fazem tremer. Querido Victor, expulsa essas paixões
sombrias. Lembre-se dos amigos ao seu redor, que centram todas as es-
peranças em você. Perdemos a capacidade de fazê-lo feliz? Ah! Enquan-
to nos amarmos, enquanto formos verdadeiros um para com o outro,
aqui nesta terra de paz e beleza, nossa terra natal, poderemos receber
todas as bênçãos tranquilamente. O que pode perturbar nossa paz?
E não poderiam tais palavras vindas dela, a quem eu carinhosamente
estimava mais do que qualquer outro presente do destino, ser o bastante
para afugentar o demônio que espreitava meu coração? Ainda enquanto
falava, aproximei-me, como se cheio de terror, para que, naquele exato
momento, o destruidor não pudesse roubá-la de mim.
Dessa forma, nem a ternura da amizade, nem a beleza da terra ou do
céu eram capazes de redimir minha alma da aflição; os próprios tons do
amor eram ineficazes. Estava envolvido por uma nuvem que nenhuma
influência benéfica poderia penetrar. Como um cervo ferido arrastando
o membro claudicante para algum matagal escondido, para então con-
templar a flecha que o perfurou e morrer — assim eu estava.
Às vezes, podia lidar com o desespero taciturno que me dominava
por completo, mas, em outras situações, o redemoinho de paixões de
minha alma levava-me a buscar, pelo exercício físico e a mudança de lu-
gar, algum alívio das sensações intoleráveis. Foi durante um acesso des-
se tipo que, de repente, deixei a casa e, desviando meus passos para os
vales alpinos mais próximos, busquei na magnificência, na eternidade de
tais cenários, esquecer-me de mim e de meus pesares efêmeros, posto
que humanos. Meus passeios dirigiam-se ao vale de Chamounix. Visita-
ra-o com frequência na juventude. Seis anos tinham se passado desde
então: eu estava destruído — mas nada mudara naqueles cenários selva-
gens e perenes.
Fiz a primeira parte de minha jornada a cavalo. Depois aluguei uma
mula, que era mais apropriada e menos suscetível a sofrer lesões naque-
las estradas acidentadas. O tempo estava bom. Estávamos em meados
de agosto, quase dois meses após a morte de Justine, aquela época infe-
liz, marco de todo o meu infortúnio. O peso em meu espírito era alivia-
do de maneira sensível à medida que adentrava na ravina de Arve. As
montanhas imensas e os precipícios que pairavam sobre mim de todos
os lados, o som do rio furioso abrindo caminho por entre as rochas e o
ímpeto das cascatas ao redor falavam de uma força onipotente — e dei-
xei de temer ou de curvar-me diante de qualquer ser menos poderoso
do que aquele que criara e regia os elementos aqui exibidos em seu as-
pecto mais terrível. Ainda assim, conforme subia, o vale assumia um as-
pecto ainda mais magnífico e surpreendente. Ruínas de castelos pendi-
am de abismos em montanhas cobertas de pinheiros, o impetuoso Arve,
chalés, aqui e acolá, aparecendo por entre as árvores, formavam um ce-
nário de beleza singular. Entretanto, tudo era ampliado e apresentado
de modo sublime pelos poderosos alpes, cujas pirâmides brancas e bri-
lhantes nos topos erguiam-se sobre todas as coisas, pertencentes a uma
outra terra, morada de outra raça de seres.
Cruzei a ponte de Pélissier, onde a ravina formada pelo rio abria-se
diante de mim, e comecei a subir a montanha que o beirava. Logo entrei
no vale de Chamounix. Esse vale é mais maravilhoso e sublime, mas não
tão belo e pitoresco quanto o de Servox, pelo qual tinha acabado de
passar. As montanhas altas e nevadas se mostravam como marcos ime-
diatos, mas não vi mais ruínas de castelos e campos férteis. Glaciares
imensos ficavam próximos da estrada; ouvi o trovão estrondoso da que-
da de uma avalanche e notei a nuvem de sua passagem. Mont Blanc, o
supremo e magnífico mont Blanc, erguia-se das agulhas ao redor e seu
tremendo pico abrangia todo o vale.
Uma sensação de prazer entorpecida, há muito olvidada, voltou a
mim diversas vezes durante essa viagem. Algumas curvas da estrada, al-
guns novos objetos percebidos e reconhecidos, de repente, lembravam-
me dos dias de outrora e associavam-se aos dias de alegria da mocidade.
Até mesmo os ventos sussurravam notas suaves, e a natureza, maternal,
convidava-me a não mais chorar. Então, novamente, a gentil influência
cessou — encontrei-me agrilhoado mais uma vez ao pesar, cedendo ao
tormento da reflexão. Piquei o animal com as esporas, lutando para es-
quecer o mundo, meus medos e, acima de tudo, de mim mesmo — ou
de maneira mais desesperada, apeei e lancei-me na relva, vergado pelo
horror e desespero.
Finalmente, cheguei ao vilarejo de Chamounix. A exaustão sucedeu
à extrema fadiga que suportara tanto do corpo quanto da mente. Por
um curto espaço de tempo, fiquei na janela assistindo aos relâmpagos
pálidos que dançavam por sobre o mont Blanc e ouvindo a fúria do Ar-
ve que, lá embaixo, seguia seu curso turbulento. Os mesmos sons cal-
mantes agiram como uma canção de ninar para sensações tão fortes;
quando coloquei a cabeça no travesseiro, o sono tomou conta de mim;
eu o senti chegar e o abençoei por dotar-me do esquecimento.
Cap. X.

Passei o dia seguinte vagando pelo vale. Fiquei ao lado da nascente do


Arveiron, que brota de um glaciar e vagarosamente desce do cimo das
montanhas para ser represado no vale. As encostas íngremes das vastas
montanhas se mostravam adiante; a parede da geleira pairava sobre
mim. Uns poucos pinheiros se espalhavam ao redor, e o silêncio solene
dessa gloriosa sala de audiências da natureza imperial somente era rom-
pido por ondas ruidosas ou pela queda de algum fragmento grande, o
som ribombante de uma avalanche ou o estalido, reverberado pelas
montanhas, do gelo acumulado, que, pelo trabalho silencioso das leis
imutáveis era, de tempos em tempos, fendido e rasgado, como se fosse
um brinquedo em suas mãos. Esses cenários sublimes e magníficos me
proporcionaram o maior dos consolos que eu era capaz de receber. Ele-
varam-me de toda a pequenez de sentimentos e, ainda que não afastas-
sem, suavizavam e tranquilizavam o pesar. Até certo ponto, também
distraíram minha mente dos pensamentos que a povoaram no mês ante-
rior. Fui descansar à noite; meu sono, por assim dizer, servia-se e era di-
rigido pela conjunção das grandes configurações que contemplara du-
rante o dia. Reuniam-se ao meu redor; o pico nevado sem mácula, o pi-
náculo brilhante, as florestas de pinheiros e a ravina áspera e nua; a
águia planando entre as nuvens — todos se uniam para me deixar em
paz.
Para onde teriam ido quando acordei na manhã seguinte? Toda a
inspiração de alma foi-se com o sono e a negra melancolia enevoava
meus pensamentos. A chuva caía em torrentes e a névoa espessa escon-
dia o topo das montanhas, de modo que quase não via as faces daquelas
poderosas companhias. Mesmo assim, penetraria em seu véu enevoado,
procurando-as nos abrigos entre as nuvens. O que eram, para mim,
chuva e tempestade? Minha mula foi levada até a porta e decidi subir ao
topo de Montanvert. Lembrei-me do efeito que a visão da geleira enor-
me e sempre em movimento causara em minha mente quando a vi pela
primeira vez. Enchera-me de um êxtase sublime que deu asas à minha
alma e permitiu elevar-me desse mundo obscuro em direção à luz e à
alegria. A visão da natureza impressionante e majestosa, de fato, sempre
me fizera esquecer as ansiedades passageiras da vida. Decidi seguir sem
um cicerone, pois estava familiarizado com a trilha e a presença de outra
pessoa destruiria a grandeza solitária da paisagem.
A subida é escarpada, mas o caminho era cortado por curvas curtas e
contínuas que permitiam vencer a perpendicularidade da montanha. É
um cenário soberbamente desolado. Em milhares de pontos podiam ser
percebidos os vestígios da avalanche de inverno onde as árvores esta-
vam quebradas e espalhadas pelo chão, algumas completamente destruí-
das, outras tombadas, apoiadas nas rochas salientes das montanhas ou
atravessadas sobre outras árvores. O caminho, ao subir, é cruzado por
ravinas de neve pelas quais sempre rolam pedras; uma delas é particular-
mente perigosa, pois, ao menor som, como o falar em voz alta, produz
um abalo violento no ar suficiente para causar danos ao falante. Os pi-
nheiros não são altos ou luxuriantes, mas sombrios e dão um ar de seve-
ridade à paisagem. Olhei para o vale abaixo; uma neblina imensa emer-
gia dos rios e subia em grandes espirais em torno das montanhas em
frente, cujos picos estavam ocultos por nuvens uniformes, enquanto a
chuva caia do céu nublado e acrescentava algo à impressão de tristeza
que recebia dos objetos ao meu redor. Ah! Por que o homem se vanglo-
ria de sensibilidades superiores ao aparentemente selvagem? Isso só os
torna seres mais escravizados a causas exteriores.[1] Se nossos impulsos
fossem confiados à fome, à sede e ao desejo, poderíamos ser quase li-
vres, mas agora somos movidos por cada vento que sopra, por cada ter-
mo aleatório ou cenário que as palavras possam comunicar.
Em sono — vêm os sonhos, venenosos;
Vigília — desvarios poluem a hora;
Sentir, pensar, alegres, lastimosos;
Guardar a mágoa ou lançá-la embora:
É a mesma coisa! — ao júbilo ou tormento,
Para sua fuga ainda há liberdade:
Ao homem vai-se e não volta o momento;
Nada dura — só Mutabilidade.[2]

Era quase meio-dia quando cheguei ao topo da subida. Por um tempo,


sentei-me em uma rocha de onde era possível avistar o mar de gelo.
Uma névoa cobria tanto ele quanto as montanhas ao redor. Logo, uma
brisa dissipou a nuvem e desci pela geleira. A superfície era muito irre-
gular, subia como as ondas em um mar revolto, descia e era intercalada
por fendas profundas. O campo de gelo tinha a largura de uns cinco
quilômetros, mas levei quase duas horas para cruzá-lo. A montanha de-
fronte é uma rocha nua, perpendicular. Montavert estava no lado opos-
to de onde estou no momento, a aproximadamente cinco quilômetros; e
acima ficava o mont Blanc, em solene majestade. Permaneci no recesso
da rocha, admirando essa paisagem maravilhosa e estupenda. O mar, ou
melhor, o imenso rio de gelo, serpeava por entre as montanhas subalter-
nas, cujos cumes etéreos pairavam sobre os recantos. Os picos gelados e
brilhantes resplandeciam à luz do sol sobre as nuvens. Meu coração, an-
tes pesaroso, agora dilatava-se com algo como alegria. Exclamei:
— Espíritos errantes, se, de fato, peregrinam e não repousam em
seus leitos estreitos, permitam-me esta felicidade débil ou levem-me co-
mo seu companheiro para longe dos prazeres da vida.
Ao dizer isso, avistei, subitamente, a silhueta de um homem a certa
distância, vindo em minha direção com velocidade sobre-humana. Sal-
tava sobre as fendas do gelo, entre as quais eu andara com cuidado; além
disso, sua estatura, ao aproximar-se, parecia exceder a de uma pessoa
comum. Estava perplexo: uma penumbra toldou-me os olhos e senti
que iria desmaiar, mas rapidamente recuperei-me com o vento gelado
das montanhas. Notei, conforme a figura se aproximava (uma visão me-
donha e abominável!), que se tratava do infeliz que eu criara. Tremi de
ira e horror, decidido a esperar sua aproximação e, então, estreitar com
ele um combate mortal. Aproximou-se; seu semblante sugeria uma an-
gústia amarga, mesclada com desprezo e malignidade; ao mesmo tempo,
a fealdade sobrenatural já o tornava demasiado horrível para olhos hu-
manos. Entretanto, mal podia percebê-lo; de início, a raiva e o ódio pri-
varam-me de expressão e consegui recuperá-la apenas para destruí-lo
com expressões de repulsa furiosa e menosprezo.
— Demônio! — exclamei. — Como ousa aproximar-se de mim?
Não teme a vingança feroz de meu braço sobre sua cabeça miserável?
Vá embora, vil insignificância! Ou melhor, fica para que possa esmagar-
lhe até que vire pó! E, oh, que possa, ao aniquilar sua existência desgra-
çada, restaurar as vítimas que diabolicamente assassinou!
— Esperava por esta recepção — disse o espirito maligno. — Todos
os homens odeiam o ignóbil; como devo ser odiado, eu, a mais miserá-
vel de todas as coisas vivas! Não obstante, você, meu criador, detesta-
me e trata-me com desprezo, sua própria criatura, a quem é unido por
laços que só se dissolverão com a destruição de um de nós. Pretende
matar-me. Como se atreve a brincar com a vida? Cumpre o seu dever
para comigo e cumprirei o meu para contigo e para com o restante da
humanidade. Se consentir com minhas condições, eu os deixarei em paz,
e a você; mas caso se recuse, fartarei os lábios da morte até que se saci-
em com o sangue do restante de seus amigos.
— Monstro abominável! Quão maldito é! As torturas do inferno
são vinganças muito brandas para seus crimes. Demônio infeliz! Re-
preende-me com sua criação: então, venha para que eu extinga a cente-
lha que tão negligentemente concedi a você.
Minha ira não tinha limites; saltei sobre ele, impelido por todos os
sentimentos com os quais um indivíduo possa armar-se contra a exis-
tência de outro.
Com facilidade, a criatura esquivou-se de mim e disse:
— Acalme-se! Rogo para que me ouça antes que desafogue seu ódio
sobre minha cabeça infeliz. Não terei sofrido o bastante para que você
aumente minha desgraça? A vida, ainda que possa ser apenas um reposi-
tório de angústias, é cara a mim e a defenderei. Lembre, você me fez
mais forte do que a si mesmo; minha estatura é superior à sua, minhas
articulações, mais flexíveis. Entretanto, não estou tentado a colocar-me
contra você. Sou sua criatura e serei manso e dócil com meu senhor e rei
natural se também quiser cumprir sua parte, a parte que me deve. Oh,
Frankenstein, não seja justo com todos os outros e somente maltrate a
mim, a quem está obrigado a conceder ainda mais justiça e até clemên-
cia. Lembre-se de que sou sua criatura. Deveria ser seu Adão, mas, em
vez disso, sou um anjo caído a quem afastou da alegria sem, no entanto,
ter cometido nenhuma falta. Em todo lugar vejo a felicidade que so-
mente a mim é irrevogavelmente negada. Fui benevolente e bom; a infe-
licidade transformou-me em um demônio. Faça-me feliz e serei virtuo-
so novamente.
— Vá embora! Não lhe darei ouvidos. Não pode haver sociedade
entre mim e você; somos inimigos. Vá ou testemos nossas forças em um
combate em que um de nós deva sucumbir.
— Como posso persuadi-lo? Súplicas lhe farão voltar os olhos favo-
ravelmente para a criatura que implora à sua bondade e compaixão?
Creia-me, Frankenstein, fui benevolente; minha alma ardeu de amor e
de humanidade; mas não estou só, miseravelmente só? Você, meu cria-
dor, me abomina; que esperanças posso ter de seus semelhantes, que na-
da me devem? Tratam-me com desprezo e detestam-me. As montanhas
desertas e as geleiras lúgubres são meu refúgio. Vaguei aqui por muitos
dias; as cavernas de gelo que somente eu não temo são minha morada, e
a única que o homem não inveja. Estes céus ermos, eu os saúdo, pois
são mais amáveis comigo que seus semelhantes. Se a maioria da humani-
dade soubesse de minha existência, faria como você, e se prepararia para
minha destruição. Então não deveria detestar quem me abomina? Não
manterei relações com meus inimigos. Sou miserável, e partilharão de
minha desgraça. Está, contudo, em seu poder recompensar-me e livrar-
lhes de um mal que só cabe a você tornar grandioso, de modo que não
só o senhor e sua família, mas milhares de outros devam ser engolidos
nos redemoinhos de fúria. Sê compassivo e não me desprezes. Ouça mi-
nha história. Quando a tiver escutado, abandone-me ou tenha pena de
mim, como julgar que mereço; mas ouça. Aos culpados é permitido, pe-
las leis humanas, sejam eles os mais cruéis, falar em defesa própria antes
da condenação. Escute-me, Frankenstein. Acusa-me de assassinato e,
todavia, com consciência tranquila, destruiria a própria criação. Oh,
louvo a eterna justiça do homem! No entanto, peço que não me dispen-
se: ouça-me e, então, se puder, destrua a obra de suas mãos!
— Por que me recorda — perguntei — de circunstâncias que me dão
calafrios ao pensar que fui a origem miserável e o autor? Amaldiçoado
seja o dia, abominável demônio, em que viu a primeira luz! Malditas
(embora eu me amaldiçoe) as mãos que o formaram! Fez de mim um
desgraçado indescritível. Não me restou capacidade de considerar se
sou ou não justo contigo. Vá embora! Poupe-me da visão de sua figura
detestável.
— Então, eu o livro, meu criador — disse, e colocou as mãos abomi-
náveis diante de meus olhos, que arranquei com violência —, poupo-lhe
de uma visão que odeia. Entretanto, ainda pode me ouvir e conceder-me
sua compaixão. Pelas virtudes que algum dia possuí, exijo isso de você.
Escute minha história. É longa, estranha e a temperatura deste local não
é conveniente para sua sensibilidade delicada; vem para a cabana no alto
da montanha. O sol ainda está alto; antes que ele se ponha por trás dos
abismos nevados e ilumine outro mundo, terá escutado minha história e
poderá decidir. Ao senhor compete decidir se devo deixar para sempre
o convívio dos homens e levar uma vida inofensiva ou se devo tornar-
me o flagelo de seus semelhantes e o autor de sua ruína célere.
Ao dizer isso, avançou pelo gelo, e eu o segui. Meu coração estava
absorto e não lhe respondi, mas, ao continuar, ponderei os vários argu-
mentos que utilizara e decidi, pelo menos, ouvir o relato. Em parte, es-
tava impelido pela curiosidade, e a compaixão confirmou meu desígnio.
Até aqui tinha acreditado que ele era o assassino de meu irmão e avida-
mente buscava confirmar ou negar esse julgamento. Pela primeira vez,
também, senti quais eram os deveres do criador para com a criatura e
que deveria fazê-la feliz antes de me queixar de sua maldade. Esses mo-
tivos persuadiram-me a atender à exigência. Então, atravessamos o gelo
e escalamos a rocha em frente. O ar estava frio e a chuva voltara a cair.
Entramos na cabana, o demônio com um ar de triunfo e eu com o cora-
ção pesado e o ânimo abatido. Consenti, todavia, em lhe escutar. Sentei-
me ao pé do fogo que minha odiosa companhia acendera e, deste modo,
ele começou sua narrativa.
Cap. XI.

— É com grande dificuldade que recordo o período inicial de minha


existência; todos os acontecimentos daquela época parecem confusos e
indistintos. Uma estranha multiplicidade de sensações tomou-me de
surpresa e, simultaneamente, vi, senti, ouvi e experimentei odores; e de-
morou um bom tempo antes que aprendesse a distinguir as operações
dos vários sentidos. Aos poucos, lembro, uma luz mais forte forçou
meus nervos e fui obrigado a fechar os olhos. A escuridão recaiu sobre
mim e me confundiu; mas tão logo a senti, ao abrir os olhos, como ago-
ra suponho, a luz inundou-me novamente. Andei e, creio, desci, mas,
dentro em pouco, senti grande alteração nos sentidos. Antes, corpos es-
curos e opacos me rodeavam, insensíveis ao toque ou à visão; mas então
descobri que podia perambular em liberdade, sem obstáculos que não
pudesse transpor ou evitar. A luz se tornou cada vez mais opressiva, e o
calor fatigava-me ao caminhar. Busquei um lugar onde pudesse encon-
trar sombra. Achei o bosque perto de Ingolstadt e ali deitei-me à beira
do riacho para descansar, até que fui atormentado pela fome e pela sede.
Isso despertou-me de um estado de quase torpor e comi alguns frutos
que pendiam das árvores ou estavam caídos no chão. Abrandei a sede
no riacho e, depois, deitei-me e fui tomado pelo sono.
“Estava escuro quando acordei; também senti frio e estava, por as-
sim dizer, instintivamente atemorizado por encontrar-me tão só. Antes
de deixar seu apartamento, quando sentia frio, cobrira-me com algumas
roupas, mas foram insuficientes para proteger-me do sereno da noite.
Era um desgraçado pobre, desamparado, miserável. Nada compreendia
e distinguia, mas a dor, essa sim, invadia-me por todos os lados. Sentei-
me e chorei.
“Logo, uma claridade suave desceu furtivamente do céu e conferiu-
me uma sensação de prazer. Levantei-me e contemplei uma forma radi-
ante que surgia entre as árvores. Admirei-a com uma espécie de estupor.
Movia-se lentamente, mas iluminava meu caminho e mais uma vez saí
em busca de frutos. Ainda estava com frio quando, embaixo de uma da-
quelas árvores, achei uma capa enorme com a qual me cobri, sentando-
me no chão. Nenhuma ideia marcante ocupou minha mente; tudo esta-
va confuso. Senti a luz, a fome, a sede e a escuridão; sons inumeráveis
soavam em meus ouvidos e, por todos os lados, várias fragrâncias vi-
nham me saudar. O único objeto que eu podia distinguir era a lua bri-
lhante, e nela firmei os olhos com prazer.
“Várias mudanças se sucederam no dia e na noite, e o orbe noturno
atenuara imensamente quando comecei a distinguir as sensações. Aos
poucos, vi com clareza o córrego límpido que me fornecia água e as ár-
vores que me resguardavam com suas folhagens. Fiquei encantado ao
descobrir pela primeira vez que o som agradável sempre apresentado
aos meus ouvidos vinha das goelas de pequenos animais alados que
muitas vezes interceptavam a luz de meus olhos. Também comecei a ob-
servar com maior acurácia as formas ao meu redor e a perceber os con-
tornos da radiante cobertura de luz que me cobria como um dossel.
“Às vezes, tentei imitar as canções agradáveis dos pássaros, mas era
incapaz. De vez em quando, desejei expressar minhas sensações a meu
modo, mas os sons rudes e inarticulados que saíram de mim assusta-
ram-me e calaram-me novamente.
“A lua desaparecera na noite e, mais uma vez, apresentou-se reduzi-
da enquanto ainda estava no bosque. As sensações tinham, nessa ocasi-
ão, se tornado distintas e minha mente recebia, a cada dia, ideias com-
plementares. Meus olhos acostumaram-se à luz e à percepção dos obje-
tos nas formas apropriadas. Percebia um inseto da grama e, em graus,
conseguia diferenciar uma erva de outra. Descobri que o pardal nada
emitia senão notas desagradáveis, ao passo que os cantos do melro e do
tordo eram doces e atraentes.
“Certo dia, atormentado pelo frio, encontrei uma fogueira deixada
por andarilhos e fui dominado pelo prazer ao experimentar seu calor.
Na minha alegria, lancei as mãos nas brasas vivas, mas rapidamente as
retirei com um grito dolorido. Como é estranho, pensei, que a mesma
causa produza efeitos tão opostos! Analisei os materiais da fogueira e,
para minha alegria, descobri que era composta de madeira. Rapidamen-
te coletei alguns galhos, mas estavam úmidos e não queimavam. Esfor-
cei-me para acender e sentei-me imóvel, assistindo à ação do fogo. A
madeira úmida que coloquei perto do calor secou e se inflamou. Refleti
sobre isso e, ao tocar os vários galhos, descobri a causa e me ocupei em
coletar uma grande quantidade de madeira que poderia secar, proven-
do-me um formidável suprimento de fogo. Quando caiu a noite, tra-
zendo com ela o sono, estava muitíssimo temeroso de que minha fo-
gueira se extinguisse. Cobri-lhe cuidadosamente com madeira e folhas
secas e pus galhos úmidos em cima. Então, estiquei a capa, deitei-me no
chão e adormeci.
“Era manhã quando acordei. Minha primeira precaução foi checar a
fogueira. Descobri-a, e uma brisa gentil rapidamente a ventilou e levan-
tou as chamas. Observei isso e confeccionei um abanador com ramos,
que usava para atiçar o fogo quando estava prestes a se extinguiu Nova-
mente, ao cair da noite, descobri com prazer que a fogueira produzia
luz, além de calor, e a descoberta desse elemento foi útil para mim na
alimentação, pois me dei conta de que alguns dos restos que os viajantes
deixaram tinham sido assados e apresentavam um paladar muito mais
saboroso que os frutos que colhera das árvores. Tentei, portanto, cozi-
nhar meu alimento da mesma maneira, colocando-o nas brasas vivas.
Descobri que os frutos estragavam nessa operação e que as nozes e raí-
zes melhoravam sobremaneira.
“O alimento, no entanto, tornou-se escasso e muitas vezes passei o
dia todo procurando em vão, e encontrando apenas algumas bolotas pa-
ra aliviar as pontadas de fome. Quando descobri isso, decidi deixar o lu-
gar que até então habitara a fim de encontrar um local em que os pou-
cos desejos que experimentara pudessem ser mais facilmente satisfeitos.
Nessa migração lamentei profundamente a perda da fogueira que conse-
guira por acaso e não sabia como reproduzir. Dispendi várias horas
considerando seriamente essa dificuldade, mas fui obrigado a abandonar
todas as tentativas de produzi-la e, agasalhando-me em minha capa, en-
veredei pelo bosque em direção ao sol poente. Passei três dias perambu-
lando e, por fim, descobri um descampado. Uma grande nevasca ocor-
rera na noite anterior e os campos eram de um branco uniforme; a apa-
rência era desolada e notei meus pés gelados pela substância fria e úmi-
da que cobria o chão.
“Era por volta das sete horas da manhã e desejava obter comida e
abrigo; finalmente, percebi uma pequenina cabana em uma elevação
que, sem dúvida, fora construída para a comodidade de algum pastor.
Era para mim uma nova visão e examinei a estrutura com grande curio-
sidade, descobrindo a porta aberta. Entrei. Um velho estava sentado
perto da lareira, onde preparava o café da manhã. Virou-se ao ouvir um
barulho, gritou alto quando percebeu minha presença e, abandonando a
cabana, correu pelos campos com uma velocidade cuja figura debilitada
dificilmente pareceria capaz de alcançar. Sua aparência, diferente de
qualquer uma que eu já vira, e a fuga, de certa maneira, surpreenderam-
me. Estava, contudo, encantado pela cabana. A neve e a chuva não pe-
netravam ali; o chão estava seco e parecia a mim um abrigo tão extraor-
dinário e sublime quanto o Pandemônio pareceu aos demônios do in-
ferno após os sofrimentos no lago de fogo.[1] Devorei com avidez os
restos do café da manhã do pastor, composto de pão, queijo, leite e vi-
nho; no entanto, não apreciei essa bebida. Então, vencido pela fadiga,
deitei-me sobre umas palhas e dormi.
“Já era meio-dia quando acordei e, fascinado pelo calor do sol que
brilhava no campo branco, resolvi recomeçar minhas viagens. Coloquei
o restante do café da manhã do camponês em um alforje que encontrei e
segui pelos campos por várias horas até que, ao pôr do sol, cheguei a
um vilarejo. Como parecia milagroso! As choupanas, os chalés mais ar-
rumados e as casas imponentes, um após o outro, atraiam minha admi-
ração. Os vegetais nas hortas, o leite e o queijo postos nas janelas de al-
guns chalés despertaram meu apetite. Entrei em um dos melhores, po-
rém, mal terminei de cruzar a porta, as crianças gritaram aterrorizadas e
uma das mulheres desmaiou. Todo o vilarejo se inflamou; alguns fugi-
ram, outros me atacaram, até que, gravemente ferido por pedras e mui-
tos outros tipos de projéteis, fugi para o campo aberto e refugiei-me,
apreensivo, em um casebre pobre, bem simples, de aparência lamentável
se comparado aos palacetes que vislumbrei no vilarejo. Esse casebre,
contudo, era ligado a um chalé de aspecto asseado e agradável, mas,
após a última experiência, não ousei entrar. Meu refúgio era feito de ma-
deira, porém tão baixo que só podia sentar-me ereto com dificuldade.
Entretanto, apesar de seco, o chão era de terra batida; e, embora o vento
entrasse por inúmeras frestas, achei que era um agradável abrigo da ne-
ve e da chuva.
“Ali, então, abriguei-me e deitei feliz por ter encontrado um refú-
gio, embora miserável, da inclemência do tempo e, mais ainda, da bar-
baridade do homem.
“Tão logo raiou a manhã, sai rastejando de minha casinhola para
checar o chalé adjacente e descobrir se poderia permanecer na habitação
que encontrara. Situava-se nos fundos do chalé e era cercada nas laterais
por um chiqueiro e um tanque de água limpa. Tinha entrado por um
dos lados que estava aberto; todavia, imediatamente cobri cada abertura
que poderia tornar-me perceptível com pedras e madeira, de modo que
pudesse movê-las na ocasião de sair. Toda a luz disponível vinha através
do chiqueiro e aquilo me bastava.
“Desse modo, ao arrumar minha habitação e atapetá-la com palha
limpa, abriguei-me, pois vi o vulto de um homem à distância e lembrei-
me muito bem do tratamento da noite anterior antes de confiar-me ao
seu poder. Primeiramente, contudo, provi meu sustento do dia com um
pedaço de pão ordinário que furtei e um copo em que poderia beber,
com mais conveniência do que com as mãos, da água limpa que jorrava
ao lado do abrigo. O piso era um tanto elevado, de modo que se manti-
nha perfeitamente seco e, pela proximidade da chaminé do chalé, a tem-
peratura era aceitável.
“Por estar assim provido, decidi morar nesse casebre até que algo
ocorresse e pudesse mudar minha resolução. Foi, de fato, um paraíso
comparado ao bosque ermo, minha antiga residência de galhos gotejan-
tes e solo úmido. Tomei meu desjejum com prazer e estava para retirar a
tábua a fim de buscar um pouco de água quando ouvi um passo e, ao
olhar por uma fresta estreita, contemplei uma criatura jovem, com uma
selha na cabeça, passando diante de meu casebre. A moça era nova e
possuía modos delicados, diferente dos camponeses e serviçais que vira
até então. No entanto, trajava-se sem esmeros com uma saia azul gros-
seira e uma camisa de linho; o cabelo claro estava trançado, mas não ti-
nha enfeites. Aparentava ser paciente, embora triste. Perdi a moça de
vista e, cerca de quinze minutos depois, ela voltou trazendo a selha que
agora estava quase completamente cheia de leite. Ao caminhar, aparen-
tando incomodar-se com o fardo, encontrou um rapaz cujo semblante
demonstrava um desânimo ainda maior. Ao proferir poucas palavras
com um ar melancólico, pegou a selha da cabeça da moça e carregou-a
ele mesmo até o chalé. Ela o seguiu e ambos desapareceram. Dentro em
pouco, voltei a ver o rapaz, carregando algumas ferramentas, a cruzar o
campo atrás do chalé; e a moça também estava atarefada: ora na casa,
ora no quintal.
“Ao inspecionar minha moradia, descobri que uma das janelas do
chalé fizera parte dela, mas as vidraças tinham sido substituídas por ma-
deira. Em uma delas, havia uma fresta pequena e imperceptível pela qual
eu conseguia enxergar. Por essa fenda, avistava-se um pequeno cômodo,
caiado e limpo, mas quase desprovido de mobília. Em um canto, perto
de uma pequena lareira, um velho estava sentado, apoiando a cabeça nas
mãos, em atitude desconsolada. A jovem estava ocupada na arrumação
do chalé, mas, naquele momento, tirou alguma coisa de uma gaveta que
ocupou suas mãos e sentou-se ao lado do ancião que, pegando o instru-
mento, começou a tocar e a produzir sons mais suaves que o canto do
tordo ou do rouxinol. Era uma visão adorável, até mesmo para mim,
pobre infeliz, que jamais contemplara o belo! O cabelo prateado e as
feições benevolentes do aldeão idoso ganharam minha admiração, ao
passo que os modos delicados da moça incitaram meu amor. Ele tocou
uma melodia triste e harmoniosa, que percebi fazer brotar lágrimas dos
olhos de sua adorável companhia, o que não foi notado pelo velho até
que ela soluçou alto. Então, ele pronunciou uns poucos sons e a bela
criatura, deixando o trabalho, ajoelhou-se aos seus pés. Ele a ergueu e
sorriu com tamanha bondade e afeição que fui tomado por sensações de
natureza peculiar e avassaladora; formavam uma mistura de dor e pra-
zer, como nunca experimentara antes, nem pela fome ou pelo frio, pelo
calor ou pelo alimento, e abandonei a janela, incapaz de suportar essas
emoções.
“Logo depois, o rapaz voltou, trazendo nos ombros uma grande
quantidade de lenha. A moça o encontrou à porta, ajudou a descarregar
o fardo e, levando um pouco de madeira para o chalé, lançou-a ao fogo.
Ela e o rapaz, então, retiraram-se para um canto da casa e ele lhe mos-
trou um grande pão e um pedaço de queijo. Ela pareceu satisfeita e foi
para a horta colher algumas raízes e plantas, que colocou na água e, de-
pois, sobre o fogo. Então, retomou o trabalho, enquanto o rapaz seguiu
para a horta e pareceu ocupado em cavar e arrancar as raízes. Depois de
ocupar-se disso por cerca de uma hora, a moça juntou-se a ele e ambos
voltaram para o chalé.
“O velho, entrementes, estivera melancólico, mas, com a presença
dos companheiros, adotou um ar mais alegre e os três se sentaram para
comer. A refeição foi preparada rapidamente. A moça, mais uma vez,
ocupou-se da arrumação do chalé; o velho andava diante da casa, ao sol,
por uns minutos, apoiado nos braços do rapaz. Nada superava em bele-
za o contraste entre essas duas criaturas excepcionais. Uma era idosa,
com cabelos grisalhos e feições que irradiavam benevolência e amor; a
mais jovem tinha o aspecto esbelto e gracioso e os traços modelados
com a maior das simetrias; contudo, os olhos e a postura expressavam
grande tristeza e desalento. O velho voltou ao chalé e o jovem, com fer-
ramentas diferentes das que usara pela manhã, cruzou os campos.
“A noite logo caiu, mas, para meu grande espanto, descobri que os
moradores dos chalés possuíam mecanismos para prolongar a luminosi-
dade pelo uso de velas e encantava-me descobrir que o pôr do sol não
punha fim ao prazer que experimentara em observar os humanos próxi-
mos. Durante a noite, a moça e seu companheiro se dedicavam a várias
ocupações incompreensíveis para mim; então o velho, mais uma vez,
pegou o instrumento que produziu sons maravilhosos e que me encan-
tara pela manhã. Assim, tão logo terminou, o rapaz começou não a to-
car, mas a proferir sons monótonos e que em nada se pareciam com a
harmonia do estranho instrumento do homem ou com o canto dos pás-
saros. Depois vim a descobrir que ele lia em voz alta, mas, naquela épo-
ca, eu desconhecia a ciência das palavras ou das letras.
“A família, depois de permanecer assim por um tempo breve, apa-
gou as luzes e recolheu-se, como conjecturei, para descansar.”
Cap. XII.

— Deitei-me na palha, mas não consegui dormir. Pensei nos aconteci-


mentos do dia. O que sobretudo me impressionou foram os modos
gentis dessas pessoas e ansiei por juntar-me a elas. Todavia, não ousei
fazê-lo. Lembrei muitíssimo bem do tratamento dispensado pelos alde-
ões bárbaros na noite anterior e decidi, qualquer que fosse o rumo da
conduta que daquele momento em diante acreditasse ser a correta, que
no momento permaneceria quieto em minha choupana, assistindo e
procurando descobrir os motivos que influenciaram suas ações.
“Os moradores do chalé acordaram na manhã seguinte antes do nas-
cer do sol. A jovem arrumou a casa e preparou algo para comer, e o ra-
paz partiu depois da primeira refeição.
“Esse dia seguiu a mesma rotina do anterior. O rapaz estava sempre
ocupado do lado de fora, e a moça, em vários afazeres dentro de casa. O
velho, que logo notei ser cego, ocupava as horas de lazer com seu ins-
trumento ou em contemplação. Nada excedia o amor e o respeito que
os jovens moradores do chalé demonstravam ao companheiro venerá-
vel. Faziam para ele todo tipo de tarefa com afeição e cumpriam os de-
veres com gentileza; ele os recompensava com sorrisos benevolentes.
“Não eram totalmente felizes. O jovem e sua companheira muitas
vezes se separavam e pareciam chorar. Eu não via motivo para a infelici-
dade, mas fui profundamente tocado por isso. Se criaturas tão adoráveis
eram infelizes, não era de estranhar que eu, um ser imperfeito e solitá-
rio, devesse ser miserável. Entretanto, por que aquelas criaturas delica-
das eram infelizes? Tinham uma casa adorável (assim parecia aos meus
olhos) e todos os luxos; dispunham de uma lareira para aquecê-las
quando estavam com frio e deliciosas viandas quando tinham fome; ves-
tiam roupas excelentes e, mais ainda, desfrutavam da companhia e da
conversa um do outro, trocando todos os dias olhares de afeição e gen-
tileza. O que significavam as lágrimas? Será que realmente expressavam
dor? De início, fui incapaz de responder a tais perguntas, mas a obser-
vação contínua e o tempo explicaram os muitos aspectos que, em um
primeiro momento, se mostraram enigmáticos.
“Passou-se um tempo considerável antes que pudesse descobrir uma
das causas da apreensão dessa amável família: era a pobreza, e sofriam
desse mal em grau bem alto. A alimentação consistia apenas de vegetais
da horta e do leite de uma vaca que provia muito pouco durante o in-
verno, quando os donos mal conseguiam algo para alimentá-la. Não ra-
ro, lamentavelmente, acredito que passavam fome, em especial os dois
moradores mais jovens, pois inúmeras vezes punham comida para o an-
cião quando nada tinham reservado para si mesmos.
“Esse traço de bondade me sensibilizou. Fora acostumado, durante
a noite, a roubar parte de suas provisões para meu sustento, mas quan-
do descobri que, ao fazê-lo, apenava os moradores do chalé, me abstive
da prática e passei a me satisfazer com frutos, nozes e raízes que colhia
em um bosque próximo.
“Também descobri outro meio que me permitia ajudá-los nos afaze-
res. Percebi que o rapaz passava grande parte do dia coletando lenha pa-
ra a lareira da família e, durante a noite, muitas vezes pegava suas ferra-
mentas, cujo uso rapidamente desvendei, e trazia madeira suficiente pa-
ra vários dias de consumo.
“Lembro-me da primeira vez que fiz isso; a moça, quando abriu a
porta pela manhã, pareceu muito admirada ao ver uma grande pilha de
lenha do lado de fora. Pronunciou algumas palavras em voz alta e o ra-
paz veio ao seu encontro, também expressando surpresa. Notei, com
prazer, que ele não foi ao bosque naquele dia, mas passou a consertar o
chalé e cultivar a horta.
“Aos poucos fiz uma descoberta de importância ainda maior. Cons-
tatei que aquelas pessoas tinham um método de comunicar as experiên-
cias e os sentimentos uns aos outros por sons articulados. Observei que
as palavras que falavam, às vezes, produziam prazer ou dor, sorrisos ou
tristeza nas mentes e feições dos ouvintes. Era, com certeza, uma ciência
própria de deuses e desejei ardorosamente familiarizar-me com ela. En-
tretanto, frustrei-me a cada tentativa feita nesse propósito. A pronúncia
deles era rápida, e as palavras que proferiam não possuíam qualquer co-
nexão aparente com objetos visíveis. Era incapaz de descobrir qualquer
indício que pudesse desenredar o mistério de suas referências. Com
enorme dedicação, no entanto, e após ter permanecido durante o perío-
do de várias luas em meu casebre, descobri os nomes que eram dados a
alguns dos objetos mais familiares ao discurso. Aprendi e utilizei as pa-
lavras fogo, leite, pão e lenha. Também aprendi os nomes dos moradores
do chalé. O rapaz e sua companheira tinham, cada um, vários nomes,
mas o ancião só tinha um, que era pai. A moça era chamada de irmã ou
Ágata; o rapaz era Felix, irmão ou filho. Não consigo descrever o prazer
que senti quando aprendi as ideias associadas a cada um desses sons e
fui capaz de pronunciá-las. Distingui muitos outros termos, ainda que
não fosse capaz de compreendê-los ou aplicá-los, tais como bom, queri-
do e infeliz.
“Passei o inverno dessa maneira. Os modos delicados e a beleza dos
moradores do chalé tornaram-se deveras caros para mim. Quando esta-
vam infelizes, sentia-me deprimido; quando celebravam, partilhava de
suas alegrias. Vi poucos seres humanos além deles, e se acontecesse de
qualquer outro entrar no chalé, o comportamento ríspido e os modos
rudes de andar apenas realçavam os dotes superiores de meus amigos. O
velho, pude perceber, muitas vezes tentava encorajar os filhos, como
consegui identificar nas ocasiões em que os chamava para afastar-lhes a
melancolia. Falava em tom alegre, com uma expressão de bondade que
dava prazer até a mim. Ágata ouvia com respeito, seus olhos enchiam-se
de lágrimas que tentava enxugar disfarçadamente; porém, em geral, no-
tei que suas feições e seu tom de voz ficavam mais alegres após ouvir as
exortações do pai. O mesmo não ocorria com Félix. Era sempre o mais
triste do grupo, e até para meus sentidos inexperientes, parecia ter sofri-
do mais que seus companheiros. No entanto, se seu semblante era mais
tristonho, a voz era mais jovial do que a da irmã, especialmente quando
se dirigia ao ancião.
“Poderia mencionar os inúmeros momentos que, embora insignifi-
cantes, indicavam a índole desses adoráveis camponeses. Em meio à po-
breza e à necessidade, Félix presenteava com prazer a irmã com a pri-
meira florzinha branca que brotava do chão coberto de neve. Pela ma-
nhã bem cedo, antes que a moça despertasse, ele limpava a neve que
obstruía o caminho que conduzia ao estábulo, tirava água do poço e tra-
zia lenha do depósito, onde, para sua contínua admiração, via o estoque
sempre reposto por uma mão invisível. Durante o dia, creio que, por
vezes, trabalhava para um fazendeiro vizinho, pois sempre saía e não
voltava até o jantar, sem trazer lenha consigo. Outras vezes trabalhava
na horta, mas, como havia pouco a fazer na estação das geadas, lia para
o velho e para Ágata.
“A princípio, a leitura me intrigava, mas aos poucos descobri que,
ao ler, ele pronunciava muitos dos mesmos sons que falava. Conjectu-
rei, portanto, que encontrava no papel os sinais para dizer o que com-
preendia, e também desejei avidamente entender aquilo; mas como isso
seria possível quando nem mesmo entendia os sons que eles tomavam
como signos? Aprimorei-me sensivelmente nessa ciência, mas não o su-
ficiente para acompanhar qualquer tipo de conversa, conquanto dedi-
casse toda a minha inteligência à tarefa, pois percebi facilmente que, em-
bora estivesse ansioso para revelar-me aos moradores do chalé, não de-
veria tentar fazê-lo até que dominasse sua língua, cujo conhecimento
poderia fazer com que tolerassem a deformidade de minha figura, pois
tal contraste era perpetuamente apresentado aos meus olhos e com ele
me familiarizara.
“Admirava as formas perfeitas dos moradores do chalé: a graça, a
beleza e as compleições delicadas, mas quão aterrorizado ficava quando
me via refletido na transparência da água![1] De início, recuei, incapaz
de acreditar que era, de fato, eu quem estava refletido no espelho.
Quando enfim me convenci de que era, na realidade, o monstro que
sou, fui tomado pelas sensações mais amargas de desânimo e mortifica-
ção. Ai de mim! Ainda não conhecia totalmente os efeitos fatais de mi-
nha deformidade miserável.
“O sol foi se tornando mais quente e a claridade do dia mais dura-
doura, a neve desapareceu e contemplei as árvores desnudas e o solo ne-
gro. Nessa ocasião, Félix estava mais ocupado, e os indícios comoventes
de penúria iminente desapareceram. A comida deles, como descobri
posteriormente, não era refinada, embora saudável, e conseguiam-na em
abastança. Várias espécies novas de plantas surgiam na horta que culti-
vavam e esses sinais de conforto aumentavam diariamente conforme
avançava a estação.
“O velho, amparado no filho, andava todos os dias à tarde, quando
não chovia, como aprendi que se dizia quando dos céus jorrava água.
Isso ocorria com frequência, mas um vento forte secava rapidamente o
solo e a estação tornou-se muito mais agradável do que antes.
“Minha rotina no casebre era constante. Pela manhã, acompanhava
os movimentos dos moradores do chalé e, quando se dispersavam em
várias ocupações, dormia. O restante do dia era ocupado na observação
de meus amigos. Quando se recolhiam para descansar, se tivesse algum
luar ou a noite estivesse estrelada, eu ia para o bosque e coletava minha
comida e lenha para o chalé. Quando voltava, sempre que necessário,
limpava a neve do caminho e fazia as tarefas que vira Félix realizando.
Depois, percebi que os trabalhos levados a cabo por uma mão invisível
lhes causavam admiração e, uma ou duas vezes, os ouvi, nessas ocasiões,
proferirem as palavras espírito bom e maravilhoso, mas não entendia o
significado desses termos.
“Meus pensamentos agora eram mais ativos e ansiava por descobrir
as motivações e os sentimentos daquelas adoráveis criaturas. Estava cu-
rioso para saber por que Félix parecia tão miserável, e Ágata, tão triste.
Pensei (tolo infeliz!) que pudesse estar ao meu alcance recuperar a feli-
cidade daquelas pessoas dignas. Quando dormia ou estava ausente, as
imagens do pai idoso e venerável, a bondosa Ágata e o formidável Félix
agitavam-se diante de mim. Considerava-os seres superiores que seriam
os árbitros de meu destino. Imaginei milhares de cenas de minha apre-
sentação para eles e a maneira como me receberiam. Supus que ficariam
enojados, até que, através de minha conduta e minhas palavras concilia-
doras, cairia nas graças deles, conquistando, depois, seu amor.
“Tais pensamentos estimulavam-me e fizeram aplicar-me com novo
ardor na aquisição da arte da linguagem. Meus órgãos, de fato, eram
brutos, mas maleáveis e, embora minha voz não fosse em nada seme-
lhante à música doce dos tons que saiam de suas bocas, pronunciava as
palavras conforme as compreendia com tolerável facilidade. Era como a
história do asno e do cão;[2] ainda que os modos do asno, cujas inten-
ções certamente eram boas, fossem rudes, ele merecia um tratamento
melhor que golpes e execração.
“As chuvas amenas e o calor temperado da primavera alteraram
muito o aspecto da terra. Os homens, que antes dessa mudança pareci-
am escondidos em cavernas, dispersaram-se e ocuparam-se nas várias
artes de cultivo. Os pássaros cantavam as notas mais alegres, e as folhas
começaram a brotar nas árvores. Oh, terra feliz! Lar próprio dos deuses
que, pouco antes, era lúgubre, úmida e insalubre. Meu estado de espíri-
to foi elevado pela aparência encantadora da natureza. O passado estava
eclipsado na memória, o presente se mostrava tranquilo e o futuro, ilu-
minado pelos raios fúlgidos da esperança e pelos prenúncios da alegria.”
Cap. XI II.

— Agora, vou adiantar para a parte mais comovente de minha história.


Narrarei os acontecimentos que imprimiram os sentimentos que me
tornaram o que sou.
“A primavera avançava rapidamente. O tempo melhorava e o céu
estava sem nuvens. Fiquei surpreso que, daquilo que fora ermo e en-
sombrado, agora brotasse as mais belas flores e verduras. Meus sentidos
estavam satisfeitos e renovados por mil odores agradáveis e milhares de
belas visões.
“Foi em um desses dias, quando os moradores do chalé costumavam
descansar de suas tarefas — o velho tocava seu violão e os filhos o ouvi-
am —, que observei no semblante de Félix uma enorme melancolia; o
rapaz suspirava com frequência e, uma vez que o pai cessou a música,
deduzi que tenha perguntado a causa do pesar do filho. Félix respondeu
em tom jovial e o velho estava prestes a recomeçar a melodia quando al-
guém bateu à porta.
“Era uma senhora a cavalo, acompanhada de um camponês local que
lhe servia de guia. A senhora usava trajes escuros e estava coberta com
um véu negro espesso. Ágata fez uma pergunta à qual a estranha res-
pondeu apenas pronunciando, em tom doce, o nome de Félix. Sua voz
era musical, mas diferente da voz de meus amigos. Félix prontamente
achegou-se à senhora que, ao vê-lo, retirou o véu e mostrou um rosto
de beleza e expressão angelicais. Seu cabelo era de um negro brilhante
como as penas do corvo e curiosamente trançados. Os olhos eram escu-
ros, mas gentis e animados. As feições, proporcionais, formavam uma
compleição maravilhosamente bela, suas bochechas com um tom de um
adorável cor-de-rosa.
“Felix parecia arrebatado de prazer ao vê-la, e cada traço de pesar
desapareceu de seu rosto. No mesmo instante, expressou certo êxtase
alegre do qual dificilmente acreditei ser capaz. Seus olhos brilhavam en-
quanto as faces coravam de satisfação. Naquele momento, pensei que
ele era tão belo quanto a estranha. Ela pareceu tocada por sentimentos
diversos. Ao secar algumas lágrimas de seus olhos adoráveis, deu a mão
para Félix, que a beijou de maneira enlevada e a chamou, até onde pude
compreender, de sua doce árabe. Ela não pareceu compreendê-lo, mas
sorriu. Ele a ajudou a desmontar e, dispensando o guia, dirigiu-se ao
chalé. Houve alguma conversa entre ele e o pai, e a jovem estrangeira
ajoelhou-se aos pés do idoso e teria beijado sua mão, mas ele a levantou
e abraçou-a afetuosamente.
“Logo percebi que, embora a estranha pronunciasse sons articulados
e parecesse ter uma língua própria, ela não era compreendida e tampou-
co compreendia os moradores do chalé. Faziam sinais que eu não en-
tendia, mas percebi que sua presença infundiu alegria por toda a casa,
dispersando a tristeza assim como o sol afasta as névoas da manhã. Félix
parecia particularmente feliz e, com sorrisos satisfeitos, dava boas-vin-
das à sua árabe. Ágata, a sempre delicada Ágata, beijou as mãos da es-
trangeira adorável e, apontando para o irmão, fez sinais que pareciam-
me significar que ele estivera triste até sua chegada. Assim, algumas ho-
ras se passaram enquanto, pelos semblantes, expressavam alegria cuja
causa eu não compreendia. De início, julguei, pela frequência recorrente
de determinado som que a estrangeira repetia depois deles, que ela ten-
tava aprender a língua e ocorreu-me a ideia de que deveria utilizar essas
instruções para a mesma finalidade. Ela aprendeu cerca de vinte palavras
na primeira lição; por certo, já havia aprendido a maioria, mas aprovei-
tei-me das outras.
“Ao cair da noite, Ágata e a árabe recolheram-se cedo. Quando se
separaram, Félix beijou a mão da estrangeira e disse: ‘Boa noite, doce
Safie’. Sentou-se por mais um tempo para conversar com o pai e, pela
repetição frequente do nome da moça, deduzi que a adorável hóspede
era o assunto da conversa. Desejei com ardor compreendê-los e dedi-
quei cada uma de minhas faculdades para tal propósito, mas descobri
ser totalmente impossível.
“Na manhã seguinte, Félix saiu para o trabalho; então, concluídas as
tarefas usuais de Ágata, a árabe sentou-se aos pés do ancião e, tomando
o violão, tocou algumas melodias tão extasiantes e belas que imediata-
mente arrancaram lágrimas de tristeza e prazer de meus olhos. Ela can-
tava e sua voz fluía em uma cadência sonora, crescendo ou diminuindo
como um rouxinol do bosque.
“Quando terminou, ofereceu o violão para Ágata, que, inicialmente,
recusou. Depois, tocou uma melodia simples e sua voz a acompanhou
em tons suaves, mas diferente da maravilhosa toada da estrangeira. O
velho pareceu arrebatado e disse algumas palavras que Ágata se esfor-
çou para explicar a Safie e com as quais pareceu expressar que ela lhe
conferira o maior dos prazeres com sua música.
“Os dias passavam tão pacíficos quanto antes, com a única diferença
de que a alegria substituira o pesar nos rostos de meus amigos. Safie es-
tava sempre sorridente e feliz. Eu e ela aperfeiçoamos rapidamente o
conhecimento da língua, de modo que, em dois meses, já compreendia
grande parte das palavras proferidas por meus protetores.
“Nesse meio-tempo, o solo negro estava coberto de grama e as mar-
gens verdejantes, entremeadas de inúmeras flores, agradáveis ao olfato e
aos olhos, estrelas de brilho pálido nos bosques banhados pela luz da
lua; o sol tornava-se mais quente, as noites claras e cálidas e minhas ca-
minhadas noturnas proporcionavam um grande prazer, ainda que en-
curtadas de maneira considerável pelo pôr do sol tardio e a alvorada an-
tecipada, pois nunca arrisquei sair durante o dia, temendo encontrar o
mesmo tratamento que anteriormente recebi no vilarejo.
“Meus dias eram passados com muita atenção, de modo que pudesse
dominar a língua mais rapidamente e ufanar-me de ter aprendido mais
rápido que a árabe, que muito pouco compreendia e conversava com
um sotaque ruim, ao passo que eu assimilava e podia imitar quase todas
as palavras faladas.
“Enquanto melhorava minha fala, também aprendi a ciência das le-
tras como era ensinada a um estrangeiro, e isso abriu para mim um
imenso campo de encantamento e prazeres.
“O livro que Félix ensinava a Safie chamava-se Ruínas do império,
de Volney.[1] Não teria sido capaz de compreender o teor da obra se Fé-
lix não tivesse, durante a leitura, dado explicações minuciosas. Escolhe-
ra este título, disse, porque o estilo declamatório foi concebido como
imitação dos autores orientais. Com o livro, obtive um conhecimento
superficial da história e uma visão de vários impérios que existiam no
mundo. Conferiu-me um entendimento dos hábitos, dos governos e das
religiões de diferentes nações da Terra. Ouvi a respeito dos asiáticos in-
dolentes, da genialidade estupenda e da atividade mental dos gregos, das
guerras e das virtudes magníficas dos primeiros romanos e de sua poste-
rior degeneração, do declínio daquele poderoso império, da cavalaria,
do cristianismo e dos reis. Ouvi a respeito da descoberta do continente
americano e chorei com Safie pela sina desafortunada de seus habitantes
originais.
“Essas narrativas maravilhosas inspiraram-me sentimentos estra-
nhos. Seria o homem, ao mesmo tempo, de fato, tão poderoso, virtuoso
e magnífico e, no entanto, tão vicioso e desprezível? Pareceu-me, simul-
taneamente, um mero herdeiro do princípio do mal e, por outro lado,
tudo o que pode ser concebido como nobre e divino. Ser um homem
grande e digno é a maior honra que pode caber a um ser sensível; ser vil
e impuro, como muitos o foram, parece a mais baixa degradação, uma
condição mais abjeta que a de uma toupeira cega ou a de um verme ino-
fensivo. Por muito tempo não pude conceber como um homem poderia
assassinar o próximo ou mesmo por que havia leis e governos, mas
quando ouvi detalhes dos vícios e das matanças, deixei de pensar e afas-
tei-me com desgosto e aversão.
“Cada conversa dos moradores do chalé agora apresentava-me no-
vas maravilhas. Enquanto ouvia as instruções que Félix dava à forastei-
ra, o sistema estranho da sociedade humana era também explicado a
mim. Ouvi sobre a divisão da propriedade, da riqueza imensa e da po-
breza miserável; a respeito de classe social, de descendência e nobreza
de sangue.
“As palavras induziram a voltar-me para mim mesmo. Aprendi que
os bens mais estimados pelas criaturas eram a alta e pura descendência e
riquezas. Um homem apenas poderia ser respeitado caso possuísse uma
dessas vantagens, mas, sem nenhuma das duas, exceto em casos muito
raros, era considerado como vagabundo e escravo, condenado a desper-
diçar suas capacidades em prol do lucro de uns poucos escolhidos! E o
que eu era? Ignorava totalmente minha criação e meu criador, mas sabia
que não tinha dinheiro, amigos e nenhuma espécie de propriedade. Era,
ademais, dotado de uma figura abominavelmente deformada e detestá-
vel. Não pertencia nem à mesma natureza que o homem. Era mais ágil e
podia subsistir com uma dieta mais escassa. Suportava os extremos do
calor e do frio com menos danos ao meu corpo; minha estatura era mai-
or que a deles. Quando olhava ao redor, não via ou ouvia ninguém co-
mo eu. Será que, então, era um monstro, uma nódoa na face da Terra, da
qual os homens corriam e a quem todos repudiavam?
“Não posso descrever a você a agonia que essas reflexões me infligi-
am. Tentei afastá-las, mas o pesar só aumentava com o conhecimento.
Oh! Quisera eu ter permanecido para sempre no bosque nativo, sem
conhecer nada além das sensações da fome, da sede e do calor!
“Que natureza estranha é a do conhecimento! Adere à mente e, uma
vez que lá esteja, domina como um líquen na rocha. Por alguns instan-
tes, desejei banir todo o pensamento e sentimento, mas aprendi que só
havia um meio para superar a sensação de dor, e era a morte — um esta-
do que eu temia, embora não entendesse. Admirei a virtude e os bons
sentimentos e amei os modos gentis e as qualidades afáveis dos morado-
res do chalé, mas estava impedido de relacionar-me com eles, a não ser
por meios furtivos, quando não era visto ou conhecido e que, ao con-
trário, aumentavam em vez de satisfazer o desejo de tornar-me um entre
meus companheiros. As palavras gentis de Ágata e os sorrisos animados
da encantadora árabe não eram para mim. As exortações suaves do anci-
ão e a conversa animada do amado Félix não eram para mim. Miserável,
desgraçado infeliz!
“Outras lições impressionaram-me ainda mais profundamente. Ou-
vi sobre a diferença dos sexos e o nascimento e crescimento das crian-
ças. Como o pai tinha um fraco pelo sorriso de seu bebê e sobre os ím-
petos animados dos filhos mais velhos. Como toda a vida e os cuidados
da mãe eram envolvidos em um encargo precioso. Como a mente do jo-
vem desenvolvia e adquiria conhecimento, de irmão, de irmã e dos vá-
rios relacionamentos que unem um ser humano ao outro em laços mú-
tuos.
“Porém, onde estavam meus amigos e minhas relações? Nenhum pai
velara pelos meus dias de infância, nenhuma mãe abençoara-me com
sorrisos e carícias ou, se o fizeram, toda a minha vida pregressa se mos-
trava então como uma mancha, uma lacuna cega em que não distinguia
nada. Desde a primeira lembrança, era como ainda sou em estatura e
proporção. Não tinha visto ser algum que se parecesse comigo ou que
pretendesse qualquer comunicação. O que eu era? A pergunta, mais
uma vez, voltara a ser respondida somente com gemidos.
“Logo explicarei a que se inclinaram tais sentimentos, mas permita-
me voltar aos moradores do chalé, cuja história estimulava-me inúmeras
sensações de indignação, prazer e maravilhamento, mas que conduziam
a mais amor e reverência por meus protetores (pois assim amava cha-
mar-lhes, em uma ilusão inocente e um tanto ou quanto dolorosa).”
Cap. XIV.

— Algum tempo se passou antes que aprendesse a história de meus


amigos. Ela não pôde deixar de ficar impressa em minha mente, a reve-
lar inúmeras circunstâncias, cada uma delas interessante e maravilhosa
para alguém com tão pouca experiência como eu.
“O nome do velho era De Lacey. Era descendente de uma boa famí-
lia da França, onde vivera por muitos anos em riqueza, respeitado pelos
superiores e amado pelos pares. Seu filho foi treinado para o serviço de
seu país e Ágata estava entre as senhoritas das mais altas honras. Poucos
meses antes de minha chegada, eles viviam em uma cidade grande e lu-
xuosa chamada Paris, cercados de amigos, e possuíam todos os prazeres
que a virtude, o intelecto refinado ou o gosto, acompanhados de uma
fortuna moderada, podiam proporcionar.
“O pai de Safie fora a causa da ruína deles. Era um mercador turco
que morava em Paris há muitos anos quando, por alguma razão que eu
nunca soube, tornou-se antipático ao governo. Foi capturado e manda-
do para a prisão no mesmo dia em que Safie chegou de Constantinopla
para ficar com ele. O homem foi julgado e condenado à morte. A injus-
tiça de sua sentença era demasiado flagrante; toda a cidade estava indig-
nada e julgaram que sua religião e sua riqueza, e não o pretenso crime a
ele imputado, foram a causa de sua condenação.
“Félix, por acaso, estivera presente ao julgamento. Seu horror e in-
dignação foram incontroláveis quando ouviu a decisão da corte. Fez, no
momento, um voto solene de libertá-lo e, então, olhou ao redor em
busca dos meios. Depois de muitas tentativas infrutíferas para ser admi-
tido na prisão, encontrou uma janela fortemente gradeada em uma parte
desprotegida do edifício que iluminava o calabouço do infeliz maome-
tano que, oprimido pelas correntes, esperava em desespero a execução
da sentença bárbara. Félix esteve na grade à noite e fez com que o prisi-
oneiro soubesse de suas intenções ao seu favor. O turco, pasmo e en-
cantado, empenhou-se em inflamar o zelo de seu libertador com pro-
messas de recompensas e riquezas. Félix rejeitou as ofertas com contu-
mácia, no entanto, quando viu a adorável Safie, que tinha permissão de
visitar o pai e que, pelos gestos, expressava vívida gratidão, o rapaz não
pôde deixar de dizer a si mesmo que o prisioneiro tinha um tesouro que
o recompensaria plenamente da fadiga e do risco.
“O turco percebera rapidamente a impressão que a filha causara no
coração do jovem e tentou assegurar-lhe plenamente tal interesse ao
prometer a mão dela em casamento tão logo fosse levado a um local se-
guro. Félix era por demais delicado para aceitar a oferta; contudo, ansia-
va pela probabilidade do evento assim como pela consumação de sua fe-
licidade.
“Durante os dias seguintes, enquanto ocorriam os preparativos para
a fuga do mercador, o zelo de Félix foi acalentado por várias cartas que
recebeu da adorável moça, que descobriu um meio de expressar os pen-
samentos na língua do amado com a ajuda de um velho, servo de seu
pai, que entendia francês. Ela o agradeceu nos termos mais ardentes pe-
los serviços que pretendia prestar ao seu pai e, ao mesmo tempo, gentil-
mente lamentava o próprio destino.
“Tenho cópias dessas cartas, pois achei meios, durante minha resi-
dência na casinhola, de obter as ferramentas da escrita, e as cartas esta-
vam sempre nas mãos de Félix ou de Ágata. Antes de partir, darei-as a
você; provarão a veracidade de minha história. Entretanto, no momen-
to, como o sol há muito já se pôs, só terei tempo de repetir o conteúdo
delas.
“Safie contava que sua mãe era uma árabe cristã, capturada e escravi-
zada pelos turcos. Admirada pela beleza, conquistou o coração do pai
de Safie, com quem se casou. A jovem falava da mãe em termos eleva-
dos e entusiásticos, que, nascida em liberdade, desprezava a servidão à
qual então estava reduzida. Instruiu a filha nos dogmas de sua religião,
ensinou-lhe a aspirar as altas capacidades do intelecto e incutiu-lhe uma
independência de espirito proibida às mulheres seguidoras de Maomé.
Essa senhora faleceu, mas as lições ficaram impressas de modo indelével
na mente de Safie, que adoecia diante da perspectiva de retornar à Ásia e
ser enclausurada em um harém, sendo-lhe permitido ocupar-se apenas
de divertimentos infantis, inadequados para o temperamento de sua al-
ma, agora acostumada às grandes ideias e à nobre emulação da virtude.
A perspectiva de casar-se com um cristão e permanecer em um país on-
de as mulheres podem assumir uma posição na sociedade era encanta-
dora.
“O dia da execução do turco foi marcado, mas, na noite anterior, ele
já tinha deixado a prisão e, antes do amanhecer, estava a muitos quilô-
metros de distância de Paris. Félix obtivera passaportes em seu nome,
no do pai e no da irmã. Comunicara antes o plano ao pai, que o ajudou
no logro ao sair de casa para uma pretensa viagem, escondendo-se com
a filha em uma parte obscura da cidade.
“Félix guiou os fugitivos através da França até Lion e cruzaram o
mont Cenis até Livorno, onde o mercador decidira esperar uma oportu-
nidade favorável de atravessar para alguma parte do território turco.
“Safie decidiu ficar com o pai até o momento da partida, e antes dis-
so, o turco renovou a promessa de que ela deveria se unir ao seu liberta-
dor. Félix permaneceu com eles, aguardando esse acontecimento. Entre-
mentes, aproveitou a sociedade dos árabes, que lhe demonstravam a
mais simples e terna das afeições. Conversavam entre si por meio de um
intérprete e, muitas vezes, através de olhares; para ele, Safie cantou me-
lodias divinais de seu país natal.
“O turco permitiu essa intimidade e encorajou as esperanças dos jo-
vens amantes, enquanto, no coração, forjava planos bem diferentes. De-
plorava a ideia de ver a filha unida a um cristão, mas temia o ressenti-
mento do rapaz caso parecesse reticente, pois sabia que ainda estava em
poder de seu libertador e este poderia decidir entregá-lo para o estado
italiano onde viviam. Revolveu milhares de planos capazes de prolongar
a tapeação até que não fosse mais necessária e, secretamente, levaria a fi-
lha ao partir. Seus planos foram facilitados pelas notícias que chegaram
de Paris.
“O governo da França estava muito enfurecido com a fuga do turco
e não poupava esforços para encontrar e punir o libertador. O plano de
Félix foi rapidamente descoberto, e De Lacey e Ágata foram levados à
prisão. A notícia chegou ao rapaz e o despertara de seu sonho de prazer.
O pai velho e cego e a irmã meiga presos em um calabouço fétido en-
quanto ele desfrutava do ar livre e do convívio daquela que amava. Essa
ideia era, para ele, torturante. Imediatamente combinou com o turco
que, se ele encontrasse uma oportunidade favorável para escapar antes
que pudesse voltar para a Itália, Safie deveria permanecer como hóspede
em um convento em Livorno. Então, despedindo-se da árabe adorável,
foi às pressas para Paris e entregou-se à vingança da lei, esperando liber-
tar De Lacey e Ágata com tal proceder.
“Não teve sorte. Eles continuaram presos por cinco meses antes do
julgamento, cujo resultado privou-lhes da fortuna e os condenou ao
exílio perpétuo de sua terra.
“Encontraram um refúgio miserável em um chalé na Alemanha, on-
de os descobri. Félix logo aprendeu que o turco traiçoeiro, por quem
ele e a família suportaram uma opressão inaudita, ao descobrir que seu
libertador estava reduzido à pobreza e à ruína, traiu os bons sentimen-
tos e a honra e foi-se embora da Itália com a filha, enviando para Félix,
de maneira insultante, uma ninharia de dinheiro para ajudá-lo, como
disse, em algum plano de sustento futuro.
“Tais eram os acontecimentos que oprimiam o coração do rapaz e o
tornavam, quando o vi pela primeira vez, o mais infeliz membro da fa-
mília. Ele teria suportado a pobreza e, uma vez que esse infortúnio fora
o prêmio da virtude, nele gloriava-se, mas a ingratidão do turco e a per-
da da amada Safie eram desgraças deveras amargas e irreparáveis. A che-
gada da forasteira infundira, agora, nova vida em sua alma.
“Quando chegou em Livorno a notícia de que Félix perdera a fortu-
na e a posição social, o mercador ordenou que a filha não mais pensasse
no amado e que preparasse a volta ao país de origem. A natureza gene-
rosa de Safie sentia-se ultrajada com essas ordens. Tentou suplicar ao
pai, mas ele, reiterando a ordem tirânica, deixou-a irada.
“Poucos dias depois, o turco entrou nos aposentos da filha e orde-
nou que se apressasse porque tinha motivos para acreditar que a casa
em Livorno fora descoberta e que deveriam ser entregues rapidamente
ao governo francês. Por consequência, alugara um barco para transpor-
tá-lo até Constantinopla, cidade para a qual velejaria em poucas horas.
Pretendia deixar a filha sob os cuidados de um servo de confiança, para,
em uma ocasião oportuna, ir ao seu encontro com a maior parte de seus
bens que ainda não havia chegado a Livorno.
“Sozinha, Safie elaborou um plano de ação que seguiria nessa emer-
gência. A casa na Turquia era-lhe detestável, e a religião e os sentimen-
tos, igualmente adversos. Por alguns papéis do pai que caíram em suas
mãos, soube do exílio do amante e descobriu o nome do local onde mo-
rava. Hesitou por algum tempo, mas, por fim, determinou-se. Levando
consigo algumas joias que lhe pertenciam e uma soma em dinheiro, foi-
se embora da Itália com uma acompanhante, uma nativa de Livorno que
entendia a língua comum da Turquia, e partiu para a Alemanha.
“Chegou em segurança na cidade, a cerca de cem quilômetros do
chalé de De Lacey, quando sua acompanhante ficou perigosamente do-
ente. Safie tomou conta dela com a maior das afeições; porém, a pobre
moça morreu e a árabe ficou sozinha, sem conhecer a língua do país e
ignorando totalmente os costumes do mundo. Entretanto, caiu em boas
mãos. A italiana mencionara o nome do local para onde se dirigiam e,
após sua morte, a mulher da casa em que viviam cuidou para que Safie
chegasse em segurança ao chalé do amado.”
Cap. XV.

— Assim era a história dos amados donos do chalé. Ela impressionou-


me profundamente. Aprendi, do ponto de vista da vida social que de-
senvolvi, a admirar suas virtudes e a reprovar os vícios da humanidade.
“Até então via o crime como um mal distante. A benevolência e a
generosidade sempre se fizeram presentes para mim, incitando o desejo
de tornar-me ator em um cenário em que tantas qualidades admiráveis
eram exigidas e apresentadas. Entretanto, ao fazer um relato do pro-
gresso de meu intelecto, não devo omitir uma circunstância que se deu
no início do mês de agosto do mesmo ano.
“Certa noite, durante minha visita costumeira ao bosque das vizi-
nhanças onde coletava alimento para mim e lenha para a casa de meus
protetores, descobri no chão uma valise de couro com vários artigos de
vestir e alguns livros. Ávido, apoderei-me do prêmio e voltei para mi-
nha casinhola. Felizmente, os livros estavam na língua cujos elementos
adquirira no chalé; eram o Paraíso perdido, um volume de Vidas parale-
las, de Plutarco, e Os sofrimentos do jovem Werther.[1] A posse desses
tesouros me proporcionou um prazer enorme. Agora, estudava e exer-
citava a mente nessas histórias de modo continuo, enquanto meus ami-
gos dedicavam-se às ocupações rotineiras.
“Quase não consigo descrever o efeito desses livros. Produziram em
mim uma infinidade de imagens e sentimentos inéditos que, por vezes,
levavam-me ao êxtase, mas com maior frequência faziam-me sucumbir
a uma profunda melancolia. Em Os sofrimentos do jovem Werther, além
do interesse na história simples e comovente, tantas opiniões são discu-
tidas e tantas luzes lançadas sobre o que tinham sido para mim até então
assuntos obscuros. Nessa obra descobri uma fonte infindável de espe-
culação e surpresas. Os costumes corteses e domésticos, combinados
com juízos e sentimentos sublimes, que tinham por objeto algo fora do
próprio eu, harmonizavam bem com minha experiência entre meus pro-
tetores e com os desejos que estavam para sempre vivos em nosso ínti-
mo. No entanto, acreditava que o próprio Werther era um ser mais divi-
nal do que jamais vi ou imaginei. Seu caráter não era presunçoso, mas
tocava fundo em minha alma. As disquisições sobre morte e suicídio fo-
ram calculadas para encher-me de admiração. Não tencionava entrar
nos méritos do caso, contudo, tendia às opiniões do herói, cujo fim
chorei sem exatamente compreendê-lo.
“Conforme lia, considerei pessoalmente meus sentimentos e minha
condição. Vi-me semelhante, ainda que ao mesmo tempo estranhamente
distinto, dos seres sobre os quais lia e cuja conversa ouvia. Partilhava de
seus sentimentos e, em parte, os compreendia, mas minha razão era
amorfa. Não dependia de ninguém e não tinha relação com pessoa algu-
ma. ‘A via de partida estava livre’,[2] ninguém lamentaria meu pereci-
mento. Minha pessoa era medonha e minha estatura, gigante. O que is-
so significava? Quem eu era? O que era? De onde vim? Qual era minha
finalidade? Essas perguntas recorriam continuamente, mas via-me inca-
paz de respondê-las.
“O volume de Vidas paralelas de Plutarco que possuía continha as
histórias dos primeiros fundadores das repúblicas antigas. Esse livro te-
ve sobre mim um efeito bastante diverso daquele que encontrei na leitu-
ra de Os sofrimentos do jovem Werther. Aprendi com Werther a ter de-
vaneios de desânimo e melancolia, mas Plutarco ensinou-me a cultivar
pensamentos elevados. Alçou-me acima da maldita esfera de minhas re-
flexões, a admirar e amar os heróis dos tempos passados. Muitas coisas
que li superavam minha compreensão e experiência. Tinha um entendi-
mento confuso dos reinos, grandes extensões de terra, rios vastos e ma-
res infinitos. Entretanto, não estava nada familiarizado com cidades ou
grandes aglomerados de homens. O chalé de meus protetores fora a
única escola em que tinha estudado a natureza humana, mas esse livro
expandiu novas cenas de ação. Li sobre homens envolvidos em assuntos
públicos, a governar ou massacrar a própria espécie. Senti grande ardor
pela virtude e a aversão ao vicio, tão logo compreendi o significado des-
ses termos, relativos como são, ao aplicá-los somente ao prazer e à dor.
Induzido por esses sentimentos, fui levado a admirar, é claro, os legisla-
dores pacíficos, Numa, Sólon e Licurgo, em detrimento de Rômulo e
Teseu. As vidas patriarcais dos protetores gravaram essas impressões em
minha mente; talvez, se minha primeira apresentação à humanidade ti-
vesse sido a um jovem soldado desejoso de glória e morticínio, eu pode-
ria estar imbuído de sensações diferentes.
“No entanto, Paraíso perdido despertou emoções diferentes e muito
mais profundas. Eu o li, assim como os outros livros que caíram em mi-
nhas mãos, como uma história verídica. Suscitou todos os sentimentos
de estupefação e reverência que a imagem de um Deus onipotente em
luta com suas criaturas era capaz de incitar. Muitas vezes relacionei as
várias situações, conforme descobria semelhanças, às minhas. Como
Adão, estava aparentemente unido a nenhum outro ser existente, mas
esse estado era muito diferente do meu em todos os outros aspectos. Ele
viera das mãos de um Deus, uma criatura perfeita, feliz e próspera, pro-
tegido pelo cuidado especial de seu criador. Podia com ele conversar e
adquirir conhecimento de seres de natureza superior; mas eu era um in-
feliz, desamparado e solitário. Não raro considerei Satã como um sím-
bolo mais apropriado para minha condição, pois diversas vezes, como
ele, quando via a satisfação de meus protetores, exasperava uma inveja
acre dentro de mim.
“Outra circunstância fortaleceu e confirmou esses sentimentos. Lo-
go depois de voltar para a casinhola, descobri alguns papéis no bolso da
roupa que pegara no laboratório. De início eu os negligenciara, mas
agora era capaz de decifrar os caracteres nos quais estavam escritos. Co-
mecei a estudá-los com diligência. Era o seu diário dos quatro meses
que precederam minha criação. Descreveu minuciosamente nesses pa-
péis cada passo dado no desenvolvimento de seu trabalho; essa história
foi entremeada com relatos de ocorrências domésticas. Sem dúvida re-
corda-se desses escritos. Cá estão. Tudo o que está relacionado à minha
origem amaldiçoada está relatado neles; todos os detalhes da série de
circunstâncias desagradáveis que me criaram estão aí para serem con-
templados. A descrição detalhada de minha odiosa e abominável pessoa
é dada, em uma linguagem que retrata seus horrores e tomou os meus
permanentes. Tive náuseas durante a leitura. ‘Maldito o dia em que ga-
nhei vida!’, exclamei em agonia. ‘Execrável criador! Por que fez um
monstro tão odioso que até você me dispensou com repugnância? Deus,
em sua misericórdia, fez o homem belo e encantador, segundo a própria
imagem; mas minha forma é um protótipo obsceno da sua, mais terrível
que a própria semelhança. Satã teve companheiros, demônios, para ad-
mirá-lo e apoiá-lo, mas eu sou solitário e abominável.’
“Essas foram as reflexões nas horas de desânimo e solidão, mas
quando contemplei as virtudes dos moradores do chalé, suas disposi-
ções amistosas e benevolentes, me convenci de que, tão logo se familia-
rizassem com a admiração que nutria por suas virtudes, seriam compas-
sivos e não prestariam atenção na minha deformidade pessoal. Fechari-
am a porta para alguém que, embora monstruoso, clamasse pela sua
compaixão e amizade? Decidi, por fim, não perder as esperanças, mas
preparar-me de todas as maneiras para um encontro que decidiria meu
destino. Posterguei essa tentativa por mais alguns meses, pois a impor-
tância atribuída ao sucesso inspirava-me o temor de falhar. Ademais,
percebi que minha compreensão melhorou muito com a experiência
diária e relutei para começar a tarefa até que a espera de uns poucos me-
ses aumentasse minha argúcia.
“Várias mudanças aconteceram no chalé nesse ínterim. A presença
de Safie irradiava alegria entre os moradores e também achei que a far-
tura ali aumentara. Félix e Ágata passavam mais tempo se divertindo e
conversando e eram auxiliados nas tarefas por criados. Não pareciam ri-
cos, mas estavam satisfeitos e felizes; seus sentimentos eram serenos e
pacíficos, ao passo que os meus, a cada dia, tornavam-se mais desorde-
nados. A maior compreensão só me fez descobrir com mais clareza que
malfadado pária eu era. Acalentei esperanças, é verdade, mas elas desva-
neceram quando contemplei minha pessoa refletida na água ou minha
sombra ao luar, mesmo como uma imagem débil ou escuridão incons-
tante.
“Esforcei-me em romper com esse medo e fortalecer-me para a pro-
va à qual decidira me submeter em poucos meses e, às vezes, permiti
que o pensamento, não contido pela razão, divagasse nos campos do pa-
raíso, ousando imaginar criaturas amistosas e adoráveis que partilhavam
de meus sentimentos e davam vivas de alegria. As feições angelicais exa-
lavam sorrisos de consolação, mas tudo era um sonho. Nenhuma Eva
abrandara os pesares ou tinha os mesmos pensamentos do que eu. Esta-
va só. Lembrei-me da súplica de Adão ao Criador.[3] No entanto, onde
estava o meu? Abandonara-me; e, na amargura de meu coração, o mal-
disse.
“Assim transcorreu o outono. Vi, com espanto e pesar, o amarelecer
e a queda das folhas e a natureza assumir novamente a aparência estéril
e sem vida que tivera quando, pela primeira vez, contemplei os bosques
e a lua encantadora. Não notei, contudo, a tristeza da estação. Estava
mais adaptado, por minha compleição, ao frio que ao calor. Contudo,
minha maior delicia era a visão das flores, dos pássaros e de todo o or-
namento alegre do verão. Quando estes me deixaram, voltei-me com
maior atenção para os moradores do chalé. A felicidade deles não dimi-
nuira pela ausência da estação anterior. Amavam-se e eram compreensi-
vos uns aos outros; as alegrias, confiadas entre si, não eram interrompi-
das pelos incidentes que aconteciam ao redor. Quanto mais os observa-
va, maior era o desejo de pedir-lhes proteção e benevolência. Meu cora-
ção clamava por ser conhecido e amado por aquelas criaturas adoráveis:
ver seus olhares cativantes voltados para mim com afeto era minha mai-
or ambição. Não ousei pensar que poderiam desviar o olhar com des-
dém e horror. Os pobres que batiam à porta nunca eram dispensados.
Pedia, é verdade, tesouros maiores que um pouco de comida e um pou-
so: requeria bondade e compaixão; todavia, não acreditava ser indigno
disso.
“O inverno se adiantava e toda uma revolução das estações ocorrera
desde que acordei para a vida. Minha atenção nessa época estava direci-
onada somente para meu objetivo de apresentar-me no chalé de meus
protetores. Andei às voltas com muitos planos, mas o que por fim ado-
tei foi entrar na casa quando o velho cego estivesse sozinho. Eu era sa-
gaz o bastante para saber que a hediondez nada natural de minha pessoa
era o principal objeto de horror daqueles que anteriormente me viram.
Minha voz, embora desagradável, não tinha nada de terrível. Pensei,
portanto, que se na ausência dos filhos conseguisse ganhar a boa vonta-
de e mediação do velho De Lacey, poderia, por seu intermédio, ser tole-
rado por meus protetores mais jovens.
“Certo dia, quando o sol brilhou nas folhas rubras que caíam no
chão e difundiam alegria ainda que lhes faltasse vivacidade, Safie, Ágata
e Félix partiram para uma longa caminhada pelo campo, e o ancião, por
escolha, ficou sozinho no chalé. Quando os filhos partiram, pegou o vi-
olão e tocou várias melodias tristes mas doces; ainda mais doces e tristes
do que qualquer uma que o ouvira tocar antes. No início, seu rosto es-
tava iluminado pelo prazer, mas, conforme prosseguia, expressava preo-
cupação e tristeza. Por fim, pondo de lado o instrumento, ficou senta-
do, absorto em reflexões.
“Meu coração bateu depressa: aquele era o momento da prova que
confirmaria minhas esperanças ou tornaria real meus temores. Os cria-
dos tinham saído para uma feira na vizinhança. Tudo estava silencioso
dentro e ao redor do chalé. Era uma excelente oportunidade. Entretan-
to, ao seguir adiante para executar o plano, meus membros falharam e
cai no chão. Mais uma vez, levantei e, empregando toda a resolução que
tinha, arranquei as tábuas que colocara diante da casinhola para ocultar
meu esconderijo. O ar fresco recuperou-me os sentidos, e, com renova-
da determinação, aproximei-me da porta do chalé.
“Bati.
“— Quem é? — perguntou o velho. — Entre.
“Entrei.
“— Perdoe a intromissão — falei. — Sou um viajante e desejo des-
cansar um pouco. Ficaria muito grato se permitisse que permanecesse
alguns minutos diante do fogo.
“— Entre — ordenou De Lacey. — E tentarei fazer o que puder pa-
ra atender seus desejos, mas, infelizmente, meus filhos estão fora de casa
e, como sou cego, temo ser difícil achar-lhe algo para comer.
“— Não se preocupe, gentil anfitrião. Tenho comida; é de calor e
descanso que necessito.
“Sentei e seguiu-se o silêncio. Tinha consciência de que cada minuto
era precioso, contudo, não sabia muito bem de que modo dar início ao
colóquio, quando o velho se dirigiu a mim:
“— Por seu linguajar, forasteiro, suponho que seja meu conterrâneo:
é francês?
“— Não, mas fui educado por uma família francesa e compreendo
apenas esta língua. Agora peço a proteção de alguns amigos que amo
sinceramente e de cujo favor nutro certas esperanças.
“— São alemães?
“— Não, franceses. Mudemos, todavia, de assunto. Sou uma criatu-
ra desafortunada e abandonada. Olho ao redor e não vejo parentes ou
amigos sobre a Terra. Esses indivíduos amigáveis que me receberão
nunca me viram e pouco sabem sobre mim. Estou cheio de temores,
pois, se fracassar, serei para sempre um pária no mundo.
“— Não se desespere. Não ter amigos é deveras lamentável, mas o
coração dos homens, quando não deteriorado por algum egoísmo mani-
festo, é repleto de amor fraternal e caridade. Confie, portanto, em suas
esperanças e, caso esses amigos sejam bons e amáveis, não perca a fé.
“— São gentis, são as criaturas mais excelsas deste mundo; entretan-
to, infelizmente, têm ideias preconcebidas ao meu respeito. Tenho um
bom caráter, minha vida tem sido, até então, inofensiva e, até certo pon-
to, benéfica; porém, um preconceito fatal lhes obnubila a visão e, onde
deveriam ver um amigo gentil e terno, veem tão somente um monstro
detestável.
“— Isso é, de fato, desafortunado; mas se é realmente inocente, não
pode fazer com que não se iludam?
“— Estou prestes a intentar tal tarefa e é por conta disso que sinto
tantos temores pungentes. Amo profundamente esses amigos. Tenho,
sem que saibam, cultivado o hábito de lhes conceder gentilezas diárias,
mas eles acreditam que tenciono machucá-los e é esse preconceito que
desejo superar.
“— Onde residem os amigos do senhor?
“— Perto daqui.
“O velho fez uma pausa e prosseguiu.
“— Se me confiasse incondicionalmente os detalhes de sua história,
talvez possa ser útil para esclarecer-lhes. Sou cego, não tenho como jul-
gar por seu semblante, mas há algo em suas palavras que me leva a crer
que o senhor é sincero. Sou pobre e exilado, mas me dará verdadeiro
prazer ser, de alguma maneira, útil a uma criatura humana.
“— Homem formidável! Agradeço-lhe e aceito esta generosa oferta.
Tirou-me da lama com tal bondade e confio que, com seu auxilio, não
serei banido da sociedade e da simpatia de seus semelhantes.
“— Deus não permita! Ainda que fosse um verdadeiro criminoso,
isso só o levaria ao desespero, e não o instigaria a praticar a virtude.
Também sou um infeliz. Eu e minha família fomos condenados, embora
sejamos inocentes; julgue, portanto, caso não reconheça seus infortú-
nios.
“— Como posso agradecê-lo, meu melhor e único benfeitor? De
seus lábios ouvi a voz da bondade; serei eternamente grato, e sua huma-
nidade assegura-me do sucesso com aqueles amigos que estou prestes a
encontrar.
“— Poderia saber os nomes e a residência desses amigos?
“Fiz uma pausa. Aquele, pensei, era o momento de decisão que me
roubaria ou me conferiria felicidade para sempre. Lutei em vão a fim de
ter firmeza suficiente para respondê-lo, mas o empenho acabou com
minhas forças. Afundei-me na poltrona e solucei alto. Então, ouvi os
passos de meus jovens benfeitores. Não tinha um segundo a perder; as-
sim, tomando a mão do ancião, clamei:
“— Eis o momento! Salve-me e proteja-me! O senhor e sua família
são os amigos que procuro. Não me abandonem na hora do julgamen-
to!
“— Bom Deus! — exclamou o velho. — Quem é você?
“Naquele instante, a porta do chalé se abriu, e Félix, Safie e Ágata
entraram. Quem poderia descrever o horror e a consternação deles ao
me ver? Ágata desmaiou, e Safie, incapaz de socorrer a amiga, saiu cor-
rendo do chalé. Félix veio em minha direção e, com uma força sobrena-
tural, apartou-me de seu pai, cujos joelhos agarrei. Em um êxtase de fú-
ria, lançou-me ao chão e golpeou-me violentamente com um bastão. Eu
poderia tê-lo destroçado, membro a membro, como o leão rasga o antí-
lope. No entanto, meu coração apertou no peito como uma moléstia
aguda e me contive. Vi que ele estava prestes a repetir o golpe quando,
tomado de dor e aflição, deixei o chalé e no tumulto escapei, desaperce-
bido, para minha casinhola.”
Cap. XVI.

— Maldito, maldito criador! Por que vivi? Por que, naquele instante,
não extingui a centelha de existência que você tão promiscuamente me
conferiu? Não sei; o desespero ainda não havia tomado conta de mim, e
meus sentimentos eram de fúria e vingança. Poderia, com prazer, ter
destruído o chalé e seus moradores, fartando-me com os gritos pene-
trantes e a desgraça.
“Ao cair da noite, saí de meu esconderijo e vaguei pela mata. E ago-
ra, não mais inibido pelo receio de ser descoberto, dei vazão à angústia
com uivos terríveis. Era como uma fera selvagem que escapara da arma-
dilha, destruindo os objetos que me obstruíam a passagem e andejando
pelo bosque com a rapidez de um cervo. Ah! Que noite miserável pas-
sei! As estrelas frias brilhavam com escárnio e as árvores desnudas ba-
lançavam os galhos sobre mim; de vez em quando, o canto doce de um
pássaro irrompia em meio à quietude universal. Tudo, menos eu, estava
em paz ou em alegria. Eu, como o arqui-inimigo, trazia um inferno
dentro de mim. Encontrando-me incompreendido, desejei arrancar as
árvores, espalhar ruína e destruição ao meu redor e, então, sentar-me a
apreciar os destroços.
“Entretanto, esse era um luxo que não podia perdurar. Fiquei cansa-
do com o excesso de esforço corporal e afundei-me na relva úmida, na
impotência doentia do desespero. Não havia ninguém, entre a miríade
de homens existentes, que pudesse ter pena ou ajudar-me; e deveria ser
bondoso para com meus inimigos? Não. Desde aquele momento, decla-
rei guerra eterna contra a espécie e, sobretudo, contra aquele que me
criou, abandonando-me nesta angústia insuportável.
“O sol raiou; ouvi as vozes dos homens e sabia que seria impossível
voltar ao esconderijo naquele dia. Consequentemente, escondi-me em
uma densa vegetação rasteira, determinado a dedicar as horas seguintes
à reflexão acerca de minha situação.
“A claridade agradável e o ar puro do dia deram-me alguma tranqui-
lidade, e quando considerei o que sucedera no chalé, não podia deixar
de crer que fora demasiado precipitado em minhas conclusões. Era evi-
dente que a conversa travada cativara o pai em meu favor e fui tolo ao
expor minha pessoa ao horror dos filhos. Deveria ter me familiarizado
com o velho De Lacey e, aos poucos, revelar-me ao restante da família,
quando estivessem preparados para tal aproximação. No entanto, não
acreditava que meus erros fossem irreparáveis e, depois de muito pon-
derar, decidi voltar ao chalé, procurar pelo ancião e, através dos fatos,
trazê-lo para meu lado.
“Esses pensamentos acalmaram-me e, à tarde, mergulhei em um so-
no profundo, mas o fervor do sangue não permitiu que fosse visitado
por sonhos pacíficos. A cena horrível do dia anterior passava continua-
mente diante de meus olhos. As mulheres correndo e o enfurecido Félix
arrancando-me dos pés do pai. Despertei exausto e descobri que já era
noite, esgueirei-me do esconderijo e saí em busca de alimento.
“Quando a fome foi aplacada, dirigi os passos para o caminho bem
conhecido que conduzia ao chalé. Tudo estava em paz. Fui discretamen-
te para minha casinhola e lá permaneci em uma espera silenciosa pelo
momento em que a família costumava despertar. Esse momento passou,
o sol estava a pino nos céus, mas os moradores do chalé não aparece-
ram. Estremeci violentamente, receando algum infortúnio terrível. O
interior do chalé estava escuro e não ouvi nenhum movimento. É im-
possível para mim descrever a agonia daquele suspense.
“Naquele momento, passaram por ali duas figuras locais que come-
çaram a conversar gesticulando impetuosamente quando se aproxima-
ram do chalé; contudo, não compreendi o que diziam, pois falavam a
língua do país, diferente do idioma de meus guardiões. A seguir, Félix
chegou com outro homem. Estava surpreso, pois sabia que não deixara
o chalé pela manhã e aguardei ansioso para descobrir, por seu discurso,
o significado dessas aparições nada usuais.
“— Já considerou — disse o companheiro para ele — que será obri-
gado a pagar o aluguel de três meses e perder a produção de sua horta?
Não quero levar vantagem indevida alguma e peço, portanto, que leve
alguns dias para tomar sua decisão.
“— É totalmente inútil — respondeu Félix. — Jamais poderemos vi-
ver em seu chalé. A vida de meu pai está em grande perigo em virtude
da circunstância desagradável que relatei. Minha mulher e minha irmã
nunca se recuperarão do horror. Rogo que não argumente mais comigo.
Retoma a posse de seu bem e deixe-me partir deste lugar.
“Félix tremia violentamente ao dizer aquelas palavras. Ele e seu
companheiro entraram no chalé, ficaram poucos minutos e depois par-
tiram. Nunca mais vi ninguém da família De Lacey.
“Continuei na casinhola pelo restante do dia em um estado de de-
sespero total e estúpido. Meus protetores tinham partido, e eu rompera
o único elo que me prendia ao mundo. Pela primeira vez, os sentimen-
tos de vingança e ódio encheram meu peito e não lutei para controlá-
los, mas, permitindo-me dar vazão ao fluxo, voltei a mente para pensa-
mentos de injúrias e morte. Quando pensava em meus amigos, na voz
suave de De Lacey, nos olhos gentis de Ágata e na beleza rara da árabe,
essas considerações se esvaiam e uma torrente de lágrimas, de certo mo-
do, me acalmava. Entretanto, mais uma vez, quando lembrava que ti-
nham me tratado com desprezo e me deserdado, a ira retornava, um fu-
ror de raiva; e, impossibilitado de danificar qualquer coisa humana, vol-
tei a fúria para objetos inanimados. Ao avançar da noite, posicionei uma
variedade de combustíveis ao redor do chalé e depois de ter destruído
todos os vestígios de cultivo na horta, esperei com grande impaciência
até que a lua desaparecesse para iniciar minhas operações.
“Conforme a noite se adiantava, veio do bosque um vento feroz que
rapidamente dispersou as nuvens que tinham ficado no céu. Uma rajada
de ar veio com toda a força, como uma poderosa avalanche, produzindo
uma espécie de insanidade em meu espírito, que rompeu todos os limi-
tes da razão e da reflexão. Ateei fogo em um galho seco e dancei com
fúria ao redor do infeliz chalé, meus olhos fixos no horizonte ao oeste,
cuja borda a lua mal tocava. Uma boa parte de seu orbe estava oculta e
sacudi meu tição; ela desapareceu e, com um grito sonoro, acendi a pa-
lha, o mato e os arbustos que coletara. O vento espalhou o fogo e o cha-
lé logo estava envolto pelas chamas, que nele pegaram e o lamberam
com línguas bifurcadas e destruidoras.
“Assim que me convenci de que nada poderia salvar qualquer parte
da casa, deixei o local e busquei refúgio no bosque.
“E agora, com o mundo diante de mim, para onde meus passos de-
veriam me levar? Decidi deixar o cenário de meus infortúnios; mas, para
mim, que era odiado e desprezado, todos os países se apresentariam
igualmente horríveis. Por fim, o pensamento sobre você cruzou minha
mente. Aprendi em seus escritos que era meu pai, meu criador; e de
quem poderia requerer uma oportunidade senão de você, que me con-
cedeu a vida? Entre as lições que Félix dera a Safie, não faltou geografia.
Aprendera dela as situações relativas dos diferentes países da Terra.
Mencionaste Genebra como o nome de sua cidade natal e foi para lá que
decidi encaminhar-me.
“Entretanto, como iria? Sabia que tinha de viajar na direção sudoes-
te para chegar ao meu destino, mas o sol era meu único guia. Não sabia
o nome das cidades que passaria no caminho, nem podia pedir informa-
ção a nenhum ser humano, mas não me desesperei. Só de você poderia
esperar por socorro, embora não tivesse nenhum sentimento por sua
pessoa, a não ser o ódio. Criador insensível e sem coração! Dotou-me
de percepções e paixões e depois dispensou-me como um objeto de es-
cárnio e horror da humanidade! De ti, no entanto, só peço piedade e re-
paração e espero obter apenas a justiça que em vão tentei conseguir de
qualquer outro ser que tivesse forma humana.
“Minhas viagens foram longas e os sofrimentos pelos quais passei,
intensos. O outono já terminava quando deixei o local em que vivera
por tanto tempo. Viajava somente à noite, temeroso de encontrar o ros-
to de um ser humano. A natureza ao meu redor declinava e o sol ficava
menos quente. Chuva e neve caíam sobre mim, rios caudalosos estavam
congelados e a superfície da terra mostrava-se endurecida, fria, nua, e
não encontrei abrigo. Oh, terra! Quantas vezes roguei maldições à cau-
sa de meu ser! A suavidade da natureza se fora e tudo dentro de mim
tornava-se amargo e mordaz. Quanto mais me aproximava de sua casa,
sentia mais profundamente o sentimento de vingança inflamar meu co-
ração. A neve caia e as águas se solidificavam, mas não descansei. Al-
guns acidentes, vez ou outra, me direcionavam, e eu tinha comigo o ma-
pa do país, mas em inúmeras situações desviei-me do caminho. A ago-
nia de meus sentimentos não me permitia parar. Não aconteceu inciden-
te algum que pudesse diminuir minha ira e infelicidade, mas uma cir-
cunstância dada no momento em que cheguei aos limites da Suíça,
quando o sol recobrara o calor e a terra novamente começara a parecer
verde, confirmou de maneira especial a amargura e o horror de meus
sentimentos.
“Em geral, eu descansava durante o dia e viajava apenas à noite,
quando estava a salvo da vista dos homens. Em uma manhã, no entanto,
ao descobrir que meu caminho levava para um bosque denso, arrisquei
continuar minha jornada após o nascer do sol. O dia, que era um dos
primeiros da primavera, animou até mesmo a mim pela beleza da lumi-
nosidade e suavidade do ar. Senti emoções de ternura e prazer, que há
muito pareciam mortas, reviverem dentro de mim. Um tanto surpreso
pela novidade dessas sensações, permiti-me ser conquistado por elas e,
esquecendo minha solidão e deformidade, ousei ser feliz. Lágrimas sua-
ves novamente banharam meu rosto e ergui meus olhos úmidos em gra-
tidão ao sol bendito que me concedeu tamanha alegria.
“Continuei a serpentear pelos caminhos do bosque, até que cheguei
ao limite, que era contornado por um rio profundo e veloz, sobre o
qual muitas árvores pendiam os galhos que rebentavam em botões com
o vigor da estação. Ali parei, não sabendo ao certo que caminho seguir,
quando ouvi o som de vozes que fizeram com que me escondesse de-
baixo da sombra de um cipreste. Mal havia me ocultado quando uma
menina veio correndo em direção ao local onde eu estava, rindo, como
se fugisse de alguém por brincadeira. Continuou seu curso ao longo das
margens escarpadas do rio, quando, de repente, seu pé escorregou e ela
caiu na correnteza veloz. Sai rapidamente de meu esconderijo e, vencen-
do com esforço a força da correnteza, salvei-a e a arrastei até a margem.
Ela tinha perdido os sentidos e tentei a qualquer custo restaurar-lhe a
vida, quando, de súbito, fui interrompido pela chegada de um campo-
nês, que era provavelmente a pessoa de quem ela corria ao brincar. As-
sim que me viu, o homem partiu para cima de mim e, arrancando a me-
nina de meus braços, precipitou-se para as partes mais profundas do
bosque. Segui rapidamente, e é difícil saber o motivo, mas, percebendo-
me por perto, o homem apontou-me uma arma e atirou. Cai no chão, e
meu agressor, com a maior rapidez, escapou pela mata.
“Eis a gratificação pela minha benevolência! Salvara um ser humano
da destruição e, como recompensa, agora contorcia-me com uma dor
miserável por um ferimento que estilhaçara minha carne e meus ossos.
Os sentimentos de bondade e gentileza que cogitara há poucos momen-
tos deram lugar a uma fúria infernal e ao ranger de dentes. Inflamado
pela dor, jurei ódio eterno e vingança à espécie humana. A agonia do fe-
rimento, contudo, venceu; a pulsação parou e desmaiei.
“Por algumas semanas levei uma vida miserável no bosque, esfor-
çando-me para curar o ferimento. A bala entrara no meu ombro, e eu
não sabia se tinha se alojado ou transpassado; de qualquer modo, não ti-
nha como retirá-la. Meus sofrimentos também foram ampliados pela
sensação opressiva de injustiça e ingratidão que me infligiram. Jurava
diariamente por vingança — uma vingança intensa e mortal, como se
apenas isso pudesse compensar os ultrajes e a angústia que sofrera.
“Após algumas semanas, o ferimento sarou e continuei minha jorna-
da. As dores pelas quais passei não eram mais atenuadas pelo sol bri-
lhante ou pelas brisas suaves da primavera; toda alegria não era nada se-
não um deboche que insultava meu estado desolador e fazia-me sofrer
ainda mais por não ter sido feito para desfrutar tais prazeres.
“No entanto, minha labuta agora aproximava-se do fim e, dois me-
ses depois, alcancei os arredores de Genebra.
“Era noite quando cheguei e procurei abrigo nos campos que cir-
cundavam a cidade para refletir de que maneira poderia ir até você. Es-
tava atormentado pelo cansaço e pela fome e demasiado infeliz para
desfrutar das brisas suaves da noite ou da perspectiva do sol nascendo
por trás das montanhas estupendas do Jura.
“Naquele momento, um sono leve me aliviou da dor que era pensar,
sendo perturbado pela aproximação de uma bela criança que corria para
o esconderijo que escolhera, com toda a esportividade da infância. De
repente, ao olhar para ele, ocorreu-me a ideia de que tal criaturinha não
teria preconceitos e que vivera muito pouco para estar impregnada do
horror pela deformidade. Se, portanto, pudesse capturá-lo e educá-lo
como meu companheiro e amigo, não ficaria tão desolado nesta terra
povoada.
“Tomado por esse impulso, agarrei o menino enquanto ele passava e
o trouxe para junto de mim. Assim que viu minha figura, colocou as
mãos diante dos olhos e deu um grito estridente. Tirei suas mãos à força
do rosto e disse:
“— Menino, o que significa isso? Não quero machucá-lo; escute-
me.
“Ele lutou com violência.
“— Deixe-me ir! — gritava — Monstro, patife horrendo! Deseja de-
vorar-me e rasgar-me em pedaços! É um ogro. Deixe-me ir ou contarei
tudo ao meu pai.
“— Menino, nunca verá seu pai outra vez, deve ficar comigo.
“— Monstro medonho! Deixe-me ir. Meu pai é síndico, o sr.
Frankenstein, e o punirá. Não se atreva a capturar-me.
“— Frankenstein! Pertence ao meu inimigo, a quem jurei vingança
eterna; será minha primeira vítima.
“A criança ainda lutava e oprimia-me com epítetos que levavam
meu coração ao desespero. Apertei sua garganta para silenciá-lo e, em
um momento, ele caiu morto aos meus pés.
“Olhei fixamente para minha vítima e meu coração encheu-se de
exultação e de um triunfo infernal. Aplaudindo, exclamei:
“— Eu também gerei desolação, meu inimigo não é invulnerável.
Esta morte lhe trará desespero e milhares de outras infelicidades o ator-
mentarão e o destruirão!
“Ao deter meus olhos na criança, vi algo brilhando em seu peito.
Peguei. Era um pingente com o retrato da mais adorável das mulheres.
Apesar de minha malignidade, ele me abrandou e me atraiu. Por breves
momentos, observei com prazer os olhos escuros, emoldurados por
longos cílios, e os lábios adoráveis, mas logo a ira retornou. Lembrei
que estava para sempre privado das delícias que tão bela criatura pode-
ria conferir e que ela, cuja imagem contemplava, perderia o ar de benig-
nidade divinal para mostras de expressivo desgosto e medo ao me ver.
“Ficaria admirado em saber que tais pensamentos excitaram minha
ira? Apenas me perguntava se, naquele momento, em vez de desafogar
meus sentimentos em clamores e agonia, não deveria precipitar-me en-
tre os homens e perecer na tentativa de destruí-los.
“Enquanto estava tomado por tais sentimentos, deixei o local onde
cometera o assassinato e, em busca de um esconderijo mais isolado, en-
trei em um celeiro que me parecera vazio. Uma mulher dormia sobre a
palha. Era jovem e, em verdade, não tão bela quanto a do retrato que
trazia comigo, mas tinha um aspecto agradável e resplandecia os encan-
tos da juventude e da saúde. Este, pensei, é um daqueles sorrisos de ale-
gria que são conferidos a todos, menos a mim. E então curvei-me sobre
ela e sussurrei:
“— Desperta, bela, seu amor se aproxima; ele, que daria a vida para
obter um olhar de afeto de seus olhos; desperta, minha amada!
“A jovem adormecida moveu-se; senti um arrepio de terror. Será
que ela realmente deveria acordar, ver-me, amaldiçoar-me e denunciar o
crime? Seguramente agiria assim se abrisse os olhos escuros e me visse.
A ideia era enlouquecedora; atiçou o demônio em mim — não eu, mas
ela, deveria sofrer. Cometi o assassinato porque fui para sempre privado
de tudo que ela poderia me conceder; assim, ela deveria penar. O crime
teve nela a fonte; que dela seja a punição! Graças aos ensinamentos de
Félix e das leis sanguinárias dos homens, aprendi a causar danos. De-
brucei-me sobre a moça e coloquei o retrato em segurança em uma das
pregas do vestido. Ela moveu-se novamente e fugi.
“Durante alguns dias visitei com frequência o local onde ocorreram
tais fatos, algumas vezes desejando ver você e em outras decidido a dei-
xar o mundo e suas misérias para sempre. Por fim, caminhei em direção
às montanhas e vaguei pelos imensos recessos, consumido por uma pai-
xão que somente você poderia satisfazer. Não nos separaremos até que
prometa aquiescer à minha solicitação. Sou solitário e miserável; a hu-
manidade não se associará comigo, mas um ser tão deformado e horrí-
vel quanto eu não se oporia a mim. Minha companhia deve ser da mes-
ma espécie e ter os mesmos defeitos. Você deverá criar tal ser.”
Cap. XVII.

A criatura terminou de falar e fixou o olhar em mim na expectativa de


uma resposta. Eu estava, todavia, aturdido, perplexo e era incapaz de
agrupar suficientemente as ideias a fim de compreender todo o alcance
de sua proposição. Prosseguiu:
— Deverá criar para mim uma fêmea com quem eu possa viver o in-
tercâmbio daquela compreensão amistosa necessária ao meu ser. Isso
somente você pode fazer e exijo como um direito que você não deve se
recusar a conceder.
A última parte da narrativa reacendeu em mim a fúria que eu afasta-
ra enquanto ele expunha a vida pacífica entre os habitantes do chalé e,
ao dizer isso, não pude mais conter a raiva que ardia em meu peito.
— Pois recuso-me — respondi. — E nenhuma tortura extorquirá
meu consentimento. Pode tornar-me o mais miserável dos homens, mas
nunca fará sentir-me vil aos meus próprios olhos. Deverei criar outra
criatura como você, cuja maldade conjunta poderá desolar o mundo? Vá
embora! Eis minha resposta: pode torturar-me, mas jamais consentirei.
— Está errado — falou o demônio — e, em vez de sentir-me amea-
çado, fico contente de debater. Sou malicioso porque sou infeliz. Não
fui afastado e odiado pela humanidade? Você, meu criador, rasgara-me,
triunfante, em pedaços. Pense e diga-me por que devo ter pena dos ho-
mens mais do que eles têm pena de mim? Se pudesse lançar-me em uma
dessas fendas de gelo e destruir minha carcaça, o trabalho de suas pró-
prias mãos, decerto não consideraria isso um assassinato. Devo, então,
respeitar o homem quando me ofende? Deixe-o viver comigo a trocar
amabilidades e, em lugar de danos, concederia-lhe todas as benesses
com lágrimas de gratidão por aceitar-me. Porém, não pode ser assim.
Os juízos humanos são barreiras intransponíveis para nossa união. No
entanto, minha não será a submissão à escravidão abjeta. Vingarei-me
de minhas dores. Se não puder inspirar amor, causarei medo, e princi-
palmente a você, meu arqui-inimigo pois meu criador, juro um ódio
inextinguível. Tenha cuidado: trabalharei para sua destruição, não cessa-
rei até que desole seu coração, de modo que amaldiçoará a hora de seu
nascimento.
Uma raiva diabólica o animava ao dizer essas palavras; seu rosto
contorceu-se de modo deveras horrível para a visão de olhos humanos,
mas imediatamente acalmou-se e continuou:
— Pretendia argumentar. Essa paixão é prejudicial a mim, pois não
pensa que você é a causa desse excesso. Se qualquer ser sentiu emoções
de benevolência para comigo, devo retribuir-lhe centenas de vezes mais,
pois, pelo bem de uma criatura, faria as pazes com toda a espécie! En-
tretanto, satisfaço-me agora com sonhos impossíveis de felicidade. O
que peço é razoável e moderado. Exijo uma criatura de outro sexo, mas
tão horrenda quanto eu. A gratificação é pequena, mas é tudo que posso
receber, e isso deverá me contentar. É verdade, seremos monstros bani-
dos do mundo; no entanto, por conta disso, seremos mais unidos um ao
outro. Nossas vidas não serão felizes, mas inofensivas e livres da angús-
tia que sinto agora. Oh, meu criador, faça-me feliz! Deixe-me sentir
gratidão para com sua pessoa! Deixe-me ver que desperto a compaixão
de alguma coisa existente; não negue meu pedido!
Eu estava comovido. Estremeci quando pensei nas possíveis conse-
quências de meu assentimento, mas percebi alguma justiça no argumen-
to. Sua história e os sentimentos que agora expressava comprovaram
que era uma criatura de sentimentos belos, e não devia eu, enquanto cri-
ador, conceder-lhe a porção de felicidade que estava em meu poder? Ele
percebeu a mudança de sentimentos e continuou:
— Caso consinta, nem você nem nenhum outro ser humano jamais
nos verá novamente. Irei para as vastidões solitárias da América do Sul.
Meu alimento não é o humano; não destruo o cordeiro e a criança para
saciar meu apetite. Bolotas e frutos me proporcionam a nutrição neces-
sária. Minha companheira será da mesma natureza e se contentará com
as mesmas refeições. Faremos nossa cama de folhas secas e o sol brilhará
sobre nós e sobre o homem e amadurecerá nosso alimento. O quadro
que apresento é pacífico e humano, e deve sentir que só pode negar isso
pela malícia do poder e por crueldade. Desapiedado como tem sido para
comigo, vejo agora compaixão em seus olhos. Deixa-me agarrar a esse
momento favorável e persuadi-lo a prometer aquilo que desejo com ta-
manho ardor.
— Propõe — respondi — fugir das habitações dos homens, viver
nas regiões selvagens onde as feras do campo serão suas únicas compa-
nheiras. Como poderá, você que deseja o amor e a simpatia do homem,
perseverar nesse exílio? Retornará e, mais uma vez, buscará por bonda-
de, encontrando a repulsa. Suas paixões malignas serão reavivadas e te-
rá, então, uma companheira para ajudá-lo na tarefa da destruição. Isso
não pode ser; deixe de argumentar sobre essa questão, pois não posso
consentir.
— Quão inconstantes são seus sentimentos! Um momento atrás es-
tava comovido por minha exposição; por que agora endurece diante de
minhas queixas? Juro, pela terra que habito e por você, que me criou,
que a companheira que me der satisfará a proximidade do homem e
permanecerá no mais selvagem dos locais. Meus impulsos malignos se
esvairão, pois encontrarei compaixão! Minha vida transcorrerá silencio-
samente e, nos momentos derradeiros, não amaldiçoarei meu criador.
Suas palavras causaram um efeito estranho sobre mim. Tive piedade
dele e, por vezes, desejei consolá-lo, mas quando olhava para minha cri-
atura, quando via a massa infecta que se movia e falava, meu coração
sentia náuseas e os sentimentos se transformavam em horror e aversão.
Tentei sufocar tais sensações. Pensei que, como não podia simpatizar
com ele, não tinha o direito de tirar-lhe a pequena porção de felicidade
que ainda estava em meu poder conferir-lhe.
— Jura ser inofensivo — falei —, mas já não mostrou um grau de
malícia que razoavelmente devesse me fazer desconfiar de você? Não
seria esse um estratagema que aumentaria seu triunfo ao conceder-lhe
maior oportunidade para vingança?
— Como assim? Não devo ser menosprezado e exijo uma resposta.
Se não tenho laços e afeições, ódio e depravação serão minha sina. O
amor de outrem destruirá a causa de meus crimes e me tornarei uma
coisa cuja existência todos ignorarão. Meus vícios são frutos de uma so-
lidão forçada que abomino e minhas virtudes necessariamente surgirão
quando viver em comunhão com um par. Sentirei as afeições de um ser
sensível e me tornarei unido ao elo da existência e dos acontecimentos
dos quais agora estou excluído.
Pausei por certo tempo para refletir sobre tudo que ele relatara e os
vários argumentos que empregara. Pensei na promessa das virtudes que
apresentara no início de sua existência e a influência maligna imediata a
todo sentimento amável pela repugnância e desdém que os protetores
manifestaram. Seu vigor e suas ameaças não ficaram fora de meus cálcu-
los; uma criatura que podia sobreviver em cavernas frigidas nas geleiras
e esconder-se da perseguição entre os cumes de precipícios inacessíveis
era um ente de faculdades poderosas e debalde lidaria com isso. Depois
de um longo intervalo para reflexão, concluí que a justiça devida a ele e
aos meus semelhantes exigia que aquiescesse ao pedido. Voltando-me à
criatura, portanto, disse:
— Consinto em seu pedido, sob o juramento solene de que deixará a
Europa para sempre e qualquer outro local vizinho aos homens tão lo-
go entregue em suas mãos uma fêmea que o acompanhará no exílio.
— Prometo — bradou — pelo sol, pelo céu azul do firmamento e
pelo fogo do amor que arde em meu coração que, se conceder minha
súplica, enquanto eles existirem, nunca mais me verá novamente. Vai
para sua casa e começa seus trabalhos. Devo testemunhar o avanço com
uma ansiedade indescritível. Não tema; deverei aparecer senão quando
terminar.
Ao dizer isso, subitamente, partiu, com receio, talvez, de alguma
mudança em meus sentimentos. Vi-o descer a montanha com mais velo-
cidade do que o voo de uma águia, e rapidamente o perdi entre as ondu-
lações do mar de gelo.
Seu relato tomara um dia inteiro e o sol estava na orla do horizonte
quando a criatura se foi. Sabia que tinha de apressar minha descida para
o vale, pois logo seria envolvido pela escuridão, mas meu coração estava
pesado e meus passos, vagarosos. O trabalho de andar entre os mean-
dros dos caminhos estreitos das montanhas e de manter os pés firmes ao
progredir deixaram-me desorientado, preocupado como estava com as
emoções dos acontecimentos que o dia proporcionara. A noite já estava
bastante adiantada quando cheguei a meio caminho do local de repouso
e sentei-me ao lado da fonte. As estrelas brilhavam em intervalos, en-
quanto as nuvens passavam sob elas. Os pinheiros escuros surgiam di-
ante de mim e, aqui e acolá, uma árvore quebrada jazia no chão. Era um
cenário de gravidade maravilhosa, que me despertou pensamentos estra-
nhos. Chorei amargamente e, ao apertar as mãos em agonia, exclamei:
— Oh, estrelas, nuvens e ventos, estão prestes a zombar de mim! Se
realmente se apiedam de minha pessoa, esmaguem os sentidos e a me-
mória; deixem que me torne um nada; mas, se não o fizerem, partam,
partam e abandonem-me à escuridão.
Esses eram pensamentos bravios e míseros, mas não posso descre-
ver-lhe como o eterno cintilar das estrelas pesava sobre mim e de que
modo ouvia qualquer rajada de vento como se fosse um siroco[1] abor-
recido e repulsivo a ponto de consumir-me.
A manhã despontou antes que chegasse ao vilarejo de Chamounix.
Não descansei, mas voltei imediatamente para Genebra. Mesmo em
meu coração não podia expressar minhas sensações — oprimiam-me
com o peso de uma montanha e seus excessos destruíam a agonia que se
escondia aos seus pés. Assim, retornei a casa e apresentei-me à minha
família. A aparência abatida e selvagem despertou grande alarme, mas
não respondi a pergunta alguma, parcamente falei. Senti-me como se es-
tivesse sob interdito — como se não tivesse direito de reclamar sua
compaixão, como se nunca mais pudesse desfrutar da companhia deles.
Entretanto, mesmo assim, eu os amava à adoração e, para salvá-los, de-
cidi dedicar-me à tarefa mais detestável. A perspectiva de tal ocupação
fazia qualquer outra circunstância da existência passar diante de meus
olhos como um sonho, e toda a realidade da vida parecia concentrada
nesse pensamento.
Cap. XVI II.

Dia após dia, semana após semana de meu regresso a Genebra se passa-
ram, e não pude reunir coragem para recomeçar o trabalho. Temia a
vingança do demônio desapontado; contudo, era incapaz de superar a
repugnância à tarefa que me foi intimada. Descobri que não podia com-
por uma fêmea sem dedicar-me, por vários meses, ao estudo profundo e
à laboriosa pesquisa. Ouvi que foram feitas certas descobertas por um
filósofo inglês, conhecimento que era útil para meu sucesso e, por ve-
zes, pensei em obter o consentimento de meu pai para visitar a Inglater-
ra com esse intento. No entanto, apoiava-me em qualquer pretexto para
procrastinar e retrocedi em dar o primeiro passo em direção a um em-
preendimento cuja necessidade imediata começava a parecer-me menos
absoluta. Uma mudança de fato ocorreu: minha saúde, que previamente
declinara, estava agora bem recuperada, e meu ânimo, quando não re-
cordava a promessa infeliz, aumentou proporcionalmente. Meu pai ob-
servou com prazer essa mudança e concentrou-se em encontrar o me-
lhor método de erradicar os resquícios de melancolia que, de vez em
quando, retornava em crises e com um negrume devastador, impedindo
a aproximação da luz do sol. Nesses momentos, refugiava-me na mais
profunda solidão. Passei dias inteiros sozinho no lago em um barqui-
nho, observando as nuvens e ouvindo o murmúrio das ondas, taciturno
e lânguido. Porém, o ar fresco e o sol brilhante raramente deixaram de
me restaurar certo grau de compostura e, ao voltar, ia ao encontro das
boas-vindas dos amigos com um sorriso disposto e o coração mais ale-
gre.
Foi após o retorno de um desses passeios que meu pai, chamando-
me de parte, dirigiu-se a mim do seguinte modo:
— Estou contente por observar, querido filho, que tem retomado os
antigos prazeres e parece estar voltando a si. E, ainda assim, está infeliz
e evita nossa sociedade. Por algum tempo, estive perdido em conjectu-
ras quanto à causa disso, mas, ontem, surgiu uma ideia e, se bem funda-
mentada, imploro que a admita. Reservas nesse ponto não só seriam
inúteis como multiplicariam por três a infelicidade em todos nós.
Estremeci violentamente diante desse exórdio, e meu pai prosseguiu:
— Confesso, meu filho, que sempre aguardei seu casamento com
nossa querida Elizabeth como um laço de nosso bem-estar doméstico e
o apoio em meus anos de declínio. Vocês foram afeiçoados desde a tenra
infância, estudaram juntos e pareceram, em disposições e gostos, total-
mente apropriados um ao outro. No entanto, a experiência do homem é
tão cega que o que concebi como os melhores auxiliares de meu plano
podem tê-lo destruído. Você, talvez, a veja como irmã, sem nenhum de-
sejo de que se torne sua esposa. Mais do que isso, pode ter encontrado
outra mulher a quem ame, considerando-se ligado a Elizabeth pela hon-
ra; essa contenda talvez ocasione a infelicidade pungente que parece
sentir.
— Meu querido pai, tranquilize-se. Amo minha prima terna e since-
ramente. Nunca vi mulher alguma que incite, como Elizabeth, minha
admiração e afeição mais ardentemente. Minhas esperanças e perspecti-
vas futuras estão inteiramente atadas à expectativa de nossa união.
— A expressão de seus sentimentos nesses assuntos, meu querido
Victor, dá-me mais prazer do que tenho provado faz algum tempo. Se
estes são seus sentimentos, certamente deveremos ficar felizes. No en-
tanto, os acontecimentos presentes podem lançar tristeza sobre nós. É
essa melancolia, contudo, que parece ter tomado com tanta força sua
mente, que desejo dissipar. Diz-me, portanto, se objeta à celebração
imediata do casamento. Não temos tido boa sorte, e os acontecimentos
recentes nos tiraram a tranquilidade cotidiana condizente com meus
anos e enfermidades. Você é mais jovem; todavia, não suponho que, de-
tentor como é de uma fortuna apropriada, um casamento repentino in-
terferiria em quaisquer planos futuros de honra e utilidade que possa ter
concebido. Não imagine, porém, que quero ditar-lhe felicidade ou que
um adiamento de sua parte possa causar-me qualquer preocupação sé-
ria. Interprete minhas palavras com franqueza e responde-me, rogo-lhe,
com confiança e sinceridade.
Ouvi meu pai em silêncio e fiquei por algum tempo impossibilitado
de oferecer qualquer resposta. Revolvi, de modo veloz, em minha men-
te, uma infinidade de pensamentos e esforcei-me por chegar a algumas
conclusões. Ai de mim! A ideia de uma união imediata com Elizabeth
trazia-me horror e desalento. Estava unido por uma promessa solene
que ainda não se cumprira e não ousava quebrá-la, pois, se o fizesse,
que múltiplas infelicidades não poderiam recair sobre mim e minha
querida família! Poderia eu ingressar em uma festividade com esse peso
mortal ainda pendendo em meu pescoço e dobrando-me ao chão? De-
veria arcar com meu compromisso e deixar o monstro partir com sua
companheira antes de poder desfrutar da delicia de uma união da qual
esperava paz.
Lembrei-me também da necessidade imposta de viajar para a Ingla-
terra ou ingressar em uma longa correspondência com os filósofos da-
quele pais cujos conhecimentos e descobertas eram de utilidade indis-
pensável para mim na presente tarefa. Este último método era demora-
do e insatisfatório; ademais, tinha uma aversão insuperável à ideia de
ocupar-me em uma tarefa detestável na casa de meu pai enquanto me
privasse de ligações familiares com aqueles que amava. Sabia que milha-
res de acidentes assustadores poderiam ocorrer e que o menor deles re-
velaria uma história que estremeceria de horror todos aqueles a mim re-
lacionados. Também estava ciente de que muitas vezes perderia o auto-
controle e a capacidade de esconder as sensações lancinantes que me to-
mariam durante a evolução de um encargo que não é deste mundo. De-
vo abster-me de todos os meus entes queridos enquanto estiver envolvi-
do nessa ocupação. Uma vez iniciada, rapidamente seria levada a cabo,
quando enfim poderia retornar à minha família em paz e felicidade.
Com a promessa cumprida, o monstro partiria para sempre. Ou (assim
imaginou o desejo amável) algum acidente poderia acontecer nesse ínte-
rim e destruí-lo, pondo um fim definitivo à minha escravidão.
Esses sentimentos ditaram a resposta ao meu pai. Expressei a vonta-
de de visitar a Inglaterra, mas, ocultando as verdadeiras razões do pedi-
do, envolvi meus desejos sob um disfarce que não levantou suspeitas, ao
passo que instiguei meu anseio com uma seriedade que facilmente indu-
ziu meu pai a concordar. Depois de um período tão longo de melancolia
contagiosa que parecia loucura em virtude de sua intensidade e efeitos,
ele estava feliz em saber que eu era capaz de sentir prazer com a ideia de
uma viagem e esperou que a mudança de cenário e a diversão variada
pudesse, antes de meu retorno, restaurar-me por completo.
A duração de minha ausência foi deixada por minha conta. Uns
poucos meses ou, no máximo, um ano, era o período contemplado. Um
tipo de precaução paternal tomada foi assegurar-me companhia. Sem
comunicar-me previamente, em pacto com Elizabeth, meu pai provi-
denciou que Clerval se uniria a mim em Estrasburgo. Isso interferiu na
solidão que cobiçara para a realização de minha tarefa. No entanto, no
início de minha jornada, a presença do amigo de modo algum poderia
ser um impedimento, e regozijei-me verdadeiramente, pois assim seria
poupado de muitas horas de reflexões solitárias e perturbadoras. Mais
do que isso, Henry deveria se postar entre mim e a intrusão de meu ad-
versário. Se estivesse sozinho, não imporia ele a própria presença abo-
minável para recordar minha tarefa ou a fim de contemplar o progres-
so?
Para a Inglaterra, portanto, dirigi-me e ficou entendido que minha
união com Elizabeth aconteceria logo após meu retorno. A idade de
meu pai o tornara extremamente avesso a adiamentos. Para mim, havia a
recompensa prometida pelos labores odiosos, um consolo para meus
sofrimentos sem par: a perspectiva do dia em que, liberto de minha mi-
serável escravidão, pudesse reivindicar Elizabeth e esquecer o passado
ao casar-me com ela.
Dessa forma, iniciei os preparativos para a viagem, mas um senti-
mento pairava e enchia-me de medo e agitação. Durante a ausência, se-
ria obrigado a deixar os amigos ignorantes a respeito da existência do
inimigo e desprotegidos de seus ataques, exasperado como poderia ficar
com minha partida. Ele, no entanto, que prometera seguir-me onde
quer que fosse, não me acompanharia até a Inglaterra? Essa imagem era
terrível por si só, mas me acalmava, visto que pressupunha a segurança
de meus familiares. Agonizava com a ideia da possibilidade de um cená-
rio oposto. Durante, todavia, a época em que fui escravo de minha cria-
tura, permiti-me ser governado pelos impulsos do momento; e as sensa-
ções de então insinuavam fortemente que o demônio me seguiria e pou-
paria minha família do perigo de suas maquinações.
Foi no final de agosto[1] que parti de meu país natal. A viagem fora
minha própria sugestão, e Elizabeth, portanto, aquiesceu, mas estava
cheia de inquietação pela ideia de que sofresse longe dela, em minhas in-
cursões pela infelicidade e pelo pesar. Fora seu carinho que proporcio-
nara a companhia de Clerval — e, ainda assim, um homem é cego para
as diversas e pequenas circunstâncias que invocam a atenção diligente
de uma mulher. Ela ansiava por pedir que apressasse meu retorno; mi-
lhares de emoções conflituosas fizeram-na emudecer ao me dar um
adeus choroso e silente.
Entrei na carruagem que me levaria embora, sem saber ao certo para
onde iria e sem me importar com o que se passava ao redor. Recordei
apenas, e foi com angústia amarga que refleti sobre isso, de recomendar
que meus instrumentos químicos fossem embalados para a viagem. Re-
pleto de ideias lúgubres, passei por muitos cenários belos e majestosos,
mas meus olhos estavam fixos e desatentos. Era-me permitido pensar
apenas na meta de minha viagem e no trabalho que me ocuparia en-
quanto a jornada durasse.
Depois de alguns dias passados em uma indolência desinteressada,
durante os quais atravessei muitos quilômetros, cheguei a Estrasburgo,
onde esperei dois dias por Clerval. Então, ele chegou. Ai! Como era
grande o contraste entre nós! Ele estava atento a todos os novos cená-
rios, alegrava-se quando via as belezas do pôr do sol e se mostrava ainda
mais feliz quando contemplava a alvorada e um novo dia começava. As-
sinalava para mim as cores desiguais da paisagem e as aparências do céu.
— Isto é que é viver! — exclamava. — Agora tenho prazer em exis-
tir! Mas você, meu caro Frankenstein, por que está desanimado e triste?
Na verdade, ocupava-me de pensamentos sombrios e nem vi o sur-
gimento da estrela da noite, tampouco o nascer dourado do sol refletido
no rio Reno. E o senhor, meu amigo, estaria muito mais entretido com
o diário de Clerval, que observava o cenário com um olhar de emoção e
deleite, que ao ouvir minhas reflexões. Eu, um miserável patife, assom-
brado por uma maldição que obstruía qualquer caminho para o conten-
tamento.
Concordáramos em descer o rio Reno em um barco de Estrasburgo
a Roterdã, de onde deveríamos tomar um navio para Londres. Durante
essa viagem, passamos por muitas ilhas graciosas e vimos diversas cida-
des belas. Permanecemos um dia em Mannheim, e no quinto dia de nos-
sa partida de Estrasburgo, chegamos a Mainz. O curso do Reno abaixo
de Mainz se torna muito mais pitoresco. O rio desce rapidamente e ser-
penteia as colinas, não altas, mas escarpadas e de belas formas. Vimos
muitos castelos em ruínas à beira dos precipícios, rodeados de florestas
negras, altas e inacessíveis. Essa parte do Reno, na verdade, apresenta
uma paisagem variegada e única. Em um local, verdes colinas escarpa-
das, castelos em ruínas divisando precipícios tremendos com o Reno
quase negro correndo por baixo e, na curva inesperada de um promon-
tório, vinhedos florescentes com margens verdejantes em declive, um
rio sinuoso e cidades populosas ocupam a cena.
Viajamos na época da vindima e ouvimos o canto dos trabalhadores
ao deslizar rio abaixo. Até mesmo eu, de mente deprimida e com o âni-
mo continuamente agitado por sentimentos melancólicos, estava satis-
feito. Deitei-me no fundo do barco e, olhando para o céu azul sem nu-
vens, tive a impressão de absorver uma tranquilidade que há muito me
era estranha. E se essas eram minhas sensações, quem poderia descrever
as de Henry? Sentia-se como se transportado para o reino encantado e
desfrutava de uma felicidade raramente experimentada pelo homem.
— Vi — disse ele — os cenários mais belos de meu país; visitei os la-
gos de Lucerna e Uri, onde as montanhas nevadas descem quase per-
pendicularmente até a água, lançando sombras negras e impenetráveis
que trariam um aspecto lúgubre e pesaroso, não fossem as ilhas verde-
jantes que aliviam a vista com sua aparência alegre. Vi o lago agitado
por uma tempestade, quando o vento fez redemoinhos na água e dá
uma ideia do que deve ser uma tromba-d’água no grande oceano; e as
ondas que colidem com fúria na base da montanha onde o padre e sua
amante foram soterrados por uma avalanche e ainda se fazem ouvir suas
vozes mortas ao cessar do vento noturno.[2] Vi as montanhas de La Va-
lais e o Pays de Vaud, mas este lugar, Victor, agrada-me mais do que to-
das essas maravilhas. As montanhas da Suíça são mais majestosas e es-
tranhas, mas existe um charme nas margens deste rio divino que nunca
vi igual. Observe o castelo que pende acolá no precipício, e aquele tam-
bém, na ilha, quase escondido pela folhagem daquelas árvores adorá-
veis, e agora, o grupo de trabalhadores voltando por entre as vinhas, e
aquela vila quase escondida no recesso da montanha. Ah, certamente o
espirito que habita e guarda este local tem uma alma em maior harmo-
nia com os homens que aqueles que contêm as geleiras ou se retiram pa-
ra os picos inacessíveis das montanhas de nossa terra.
Clerval! Querido amigo! Mesmo agora apraz-me relembrar suas pa-
lavras e alongar-me no louvor que você merece de modo tão eminente.
Ele era um ser formado da “mesma poesia da natureza”.[3] Sua imagina-
ção bravia e entusiástica era moderada pela sensibilidade de seu coração.
Sua alma transbordava com afeições ardentes, e sua amizade possuía
uma natureza dedicada e maravilhosa que o mundano nos ensina a bus-
car apenas na imaginação. Entretanto, mesmo as simpatias humanas não
eram suficientes para satisfazer sua mente ávida. O cenário da natureza
exterior, que outros só veem com admiração, despertava-lhe um amor
ardente:
A catarata retumbante
Obcecava-lhe como uma paixão: a rocha alta,
A montanha e a floresta profunda e lúgubre,
Suas cores e suas formas, eram para ele
Um apetite; um sentimento e um amor,
Não necessitava de um encanto mais remoto,
Pelo pensamento produzido ou qualquer interesse
Não dispensado da visão.[4]

E onde ele vive agora? Esse ser gentil e amável estaria perdido para sem-
pre? Será que sua mente, tão repleta de ideias, imaginações fantasiosas e
magníficas, que formavam um mundo cuja existência dependia da vida
de seu criador — essa mente pereceu? Agora existe apenas em minha
memória? Não, não é assim; sua figura, trabalhada tão divinamente e ir-
radiando beleza, morreu, mas seu espirito ainda visita e consola seu
amigo infeliz.
Perdoe essa torrente de dor; tais palavras ineficazes nada são senão
um tributo ao valor ímpar de Henry, mas abrandam meu coração,
transbordante pela angústia que sua lembrança me traz. Continuarei
meu relato.
Acima de Colônia descemos para as planícies da Holanda e decidi-
mos viajar em cavalos de posta[5] pelo restante do percurso, pois o ven-
to era contrário e a corrente do rio estava demasiado suave para nos aju-
dar.
Nossa jornada, neste ponto, perdeu o interesse oriundo do belo ce-
nário, mas chegamos em poucos dias a Roterdã, de onde partimos por
mar para a Inglaterra. Foi em uma manhã clara, nos últimos dias de se-
tembro, que vi pela primeira vez as falésias da Grã-Bretanha. As mar-
gens do rio Tâmisa apresentaram uma nova cena. Eram planas, mas fér-
teis, e quase toda cidade era marcada pela lembrança de alguma história.
Vimos o forte Tilbury e recordamos a armada espanhola; Gravesend,
Woolwich e Greenwich, lugares sobre os quais ouvi falar até mesmo em
meu país.
Por fim, vimos os inúmeros campanários de Londres, o de St. Paul
elevando-se acima de todos e a Torre tão famosa na história inglesa.
Cap. XIX.

Londres era nosso porto de chegada; estávamos determinados a passar


vários meses nessa cidade célebre e maravilhosa. Clerval desejava o con-
vívio dos homens de gênio e talento que despontavam na época, mas is-
so era, para mim, um objetivo secundário. Estava ocupado principal-
mente com os meios de obter as informações necessárias para cumprir
minha promessa e rapidamente vali-me das cartas de apresentação que
trouxera comigo, endereçadas aos filósofos naturais mais notáveis.
Se essa viagem tivesse acontecido durante meus dias de estudo e de
felicidade, teria me proporcionado uma satisfação inexprimível. No en-
tanto, uma influência maligna se abatera sobre minha existência e so-
mente visitei essas pessoas por conta das informações que poderiam me
oferecer acerca do assunto de meu mais profundo interesse. A compa-
nhia era, para mim, penosa; quando sozinho, podia preencher a mente
com visões do céu e da terra. A voz de Henry me acalmava e, assim, po-
dia iludir-me com uma paz transitória. Entretanto, rostos atarefados,
desinteressantes e alegres levavam desespero ao meu coração. Entre
mim e meus semelhantes, enxergava uma barreira intransponível, selada
com o sangue de William e Justine; além disso, as reflexões acerca dos
acontecimentos relacionados a esses nomes enchiam minha alma de an-
gústia.
Em Clerval, contudo, via a imagem de meu antigo eu. Era curioso e
ávido por adquirir experiência e instrução. A diferença de costumes que
observava era uma fonte inesgotável de estudo e entretenimento para
ele. Também estava a buscar um objetivo que há muito tinha em mente.
Seu plano era visitar a Índia, na crença de dominar seus vários idiomas,
e, com as ideias que obtivera dessa sociedade, teria os meios de auxiliar
materialmente o progresso da colonização e comércio europeus. So-
mente na Inglaterra poderia dar prosseguimento ao plano. Estava eter-
namente ocupado e a única restrição ao seu prazer era meu ânimo aflito
e abatido. Tentei esconder meus sentimentos o mais que pude, de modo
que não o privasse dos prazeres naturais de quem está ingressando em
uma nova etapa da vida, isento das perturbações de cautela ou lembran-
ças amargas. Muitas vezes recusei acompanhá-lo, alegando outro com-
promisso, para que pudesse ficar sozinho. Na ocasião, começara a cole-
tar o material necessário para minha nova criação e isso era, para mim,
como uma seção de tortura, gota a gota caindo sem cessar sobre minha
cabeça. Cada pensamento a isso dedicado representava uma agonia ex-
trema, e qualquer palavra proferida a tal respeito fazia meus lábios es-
tremecerem e meu coração palpitar.
Depois de alguns meses em Londres, recebemos uma carta de uma
pessoa na Escócia, que anteriormente se hospedara em nossa casa em
Genebra. Mencionou as belezas de sua terra natal e perguntou se não
eram encantos suficientes para nos induzir a prolongar a viagem ao nor-
te, até Perth, onde residia. Clerval desejou ardorosamente aceitar o con-
vite, e eu, embora abominasse agremiações, ficaria feliz em, mais uma
vez, contemplar as montanhas, os riachos e todas as obras maravilhosas
com que a natureza adorna os locais em que habita.
Chegáramos à Inglaterra no início de outubro e já estávamos em fe-
vereiro. Portanto, decidimos iniciar nossa jornada ao norte no fim do
mês seguinte. Nessa excursão, não pretendíamos seguir a rota principal
para Edimburgo, mas visitar Windsor, Oxford, Matlock e os lagos de
Cumberland, determinados a concluir o circuito nos últimos dias de ju-
lho. Acondicionei os equipamentos químicos e o material que coletara,
disposto a terminar minhas tarefas em algum recanto obscuro nas high-
lands do norte da Escócia.
Deixamos Londres em 27 de março, e passei uns poucos dias em
Windsor, passeando por seu belo bosque. Aquele era um cenário novo
para nós, montanheses. Os carvalhos majestosos, a quantidade de caça e
os rebanhos de cervos imponentes eram, para nós, novidades.
De lá, seguimos para Oxford. Ao entrar nessa cidade, nossas imagi-
nações foram tomadas pela lembrança dos acontecimentos que ali foram
levados a cabo um século e meio antes. Fora naquele local que Carlos I
reunira suas forças. Esta cidade permanecera-lhe fiel após toda a nação
abandonar sua causa para se unir ao estandarte do parlamento e da li-
berdade. A memória desse rei desafortunado e seus companheiros, o
agradável Falkland, o insolente Goring,[1] sua rainha e o filho, conferiu
especial interesse a cada parte da cidade em que supostamente pudessem
ter habitado. O espirito dos dias antigos encontrou morada ali e deleita-
mo-nos em traçar seus passos. Se esses sentimentos não tivessem confe-
rido uma gratificação imaginária, a aparência da cidade já tinha, por si
só, beleza suficiente para despertar nossa admiração. Os colleges eram
antigos e pitorescos; as ruas eram quase magníficas e o adorável Isis,[2]
que corre junto aos prados de esplêndido verdor, estende-se em um plá-
cido lençol d’água que reflete o conjunto imponente de torres, pinácu-
los e domos, rodeados por árvores ancestrais.
Apreciei esse cenário, porém meu desfrute era azedado tanto pela
lembrança do passado quanto pela expectativa do futuro. Fui feito para
a felicidade pacífica. Durante meus dias de juventude, o descontenta-
mento nunca visitara meu espirito; e se nunca fui subjugado pelo tédio,
a visão do belo na natureza ou o estudo daquilo que é excelente e subli-
me nas produções do homem sempre puderam interessar meu coração,
permitindo-me animar o gênio. Entretanto, era uma árvore rebentada;
minha alma fora atingida por um raio. Senti, então, que deveria sobrevi-
ver para exibir o que em breve eu deixaria de ser — um espetáculo mi-
serável de humanidade devastada, deplorável aos outros e intolerável
para mim mesmo.
Passamos um período considerável em Oxford, vagueando pelos ar-
redores e tentando identificar cada local que pudesse se relacionar ao
período mais animado da história inglesa. Nossas breves incursões de
exploração eram, muitas vezes, prolongadas pelos sucessivos objetos
que se apresentavam. Visitamos o túmulo do ilustre Hampden[3] e o
campo em que esse patriota sucumbiu. Por um momento, minha alma
foi alçada dos medos aviltantes e desgraçados para contemplar as ideias
divinas de liberdade e autossacrifício, das quais esses locais eram monu-
mentos e memoriais. Por um instante, ousei livrar-me das cadeias e
olhar o entorno com um espirito livre e altaneiro, mas o ferro penetrara
em minha carne e sucumbi novamente, temeroso e sem esperanças, em
meu mísero ser.
Deixamos Oxford com pesar e seguimos para Matlock, que era nos-
so próximo pouso. A região ao redor desse vilarejo lembrava muito a
paisagem da Suíça, embora as coisas se mostrassem em uma escala me-
nor, e as colinas verdes careciam da coroa dos distantes alpes brancos
que sempre sucedem as montanhas de pinheiros de minha terra natal.
Visitamos as cavernas maravilhosas e as pequenas câmaras de história
natural, em que curiosidades estão dispostas da mesma maneira que as
coleções de Servox e Chamounix.[4] Este nome fez-me estremecer
quando pronunciado por Henry e, associando o lugar com aquele terrí-
vel encontro, apressei-me por deixar Matlock.
De Derby, ainda rumando para o norte, passamos dois meses em
Cumberland e Westmoreland.[5] Agora podia imaginar-me nas monta-
nhas suíças. Os pequenos trechos nevados que permaneciam nas faces
setentrionais das montanhas, os lagos e o ímpeto das corredeiras pedre-
gosas eram, para mim, cenários familiares e queridos. Aqui também fiz
alguns conhecidos, que quase conseguiram iludir-me com a felicidade.
O prazer de Clerval era proporcionalmente maior que o meu; seu racio-
cínio se desenvolvia na companhia de homens de talento, e ele encon-
trou, na própria natureza, capacidades e recursos que jamais poderia
descobrir enquanto estivesse em contato com mentes inferiores.
— Poderia passar a vida aqui — falou — e entre essas montanhas,
dificilmente sentiria saudades da Suíça e do Reno.
Descobriu, todavia, que a vida do viajante incluía muito sofrimento
entre os prazeres. Os sentimentos estavam para sempre no limite e
quando começava a entrar em repouso, via-se obrigado a deixar o des-
canso para buscar deleite em algo novo, que mais uma vez lhe toma a
atenção e, em seguida, será abandonado por outras novidades.
Mal tínhamos visitado os lagos de Cumberland e Westmoreland e
criado afeição por alguns dos habitantes da região, quando chegou o
momento do encontro com o amigo escocês, de maneira que os deixa-
mos para seguir viagem. De minha parte, não estava triste. Naquela oca-
sião, já negligenciara minha promessa por algum tempo e temia os efei-
tos do desapontamento do demônio. Poderia permanecer na Suíça e sa-
ciar a vingança em meus parentes. Essa ideia perseguia-me e atormenta-
va-me a cada momento em que, de outra maneira, poderia ter encontra-
do um bocado de repouso e paz. Esperava minha correspondência com
impaciência febril; caso atrasassem, ficava em frangalhos e era tomado
por milhares de medos. Quando chegavam, via o remetente: Elizabeth
ou meu pai. Dificilmente ousava ler e averiguar minha sina. Ás vezes,
acreditava que o inimigo me seguira e decretaria minha desídia ao assas-
sinar meu companheiro. Quando tais pensamentos me tomavam, não
deixava Henry por sequer um momento, seguindo-o como uma sombra
para protegê-lo da suposta ira de seu destruidor. Sentia como se tivesse
cometido um grande delito cuja consciência me assombrava. Era ino-
cente, mas, de fato, descera sobre minha cabeça uma maldição horrível,
tão mortal quanto a de um crime.
Visitei Edimburgo com olhos e mente lânguidos e, mesmo assim, a
cidade poderia ter interessado ao mais desafortunado dos seres. Clerval
não gostou tanto dela quanto de Oxford, pois a antiguidade da última
era-lhe mais agradável. No entanto, a beleza e a regularidade da nova ci-
dade de Edimburgo, o castelo romântico e os arredores, os mais agradá-
veis do mundo, o Arthur’s Seat, o poço de São Bernardo e as Pentland
Hills[6] compensaram-no pela mudança e encheram-no de alegria e ad-
miração. Entretanto, estava impaciente para chegar ao término da jorna-
da.
Deixamos Edimburgo em uma semana, passando por Coupar, St.
Andrew e pelas margens do rio Tay até Perth, onde nosso amigo nos
aguardava. Não estava, todavia, com disposição para rir e falar com es-
tranhos ou ingressar em seus sentimentos ou planos com o bom humor
esperado de um hóspede. Portanto, informei a Clerval que desejava fa-
zer a excursão pela Escócia sozinho.
— Divirta-se — falei — e deixe que este seja nosso ponto de encon-
tro. Posso ausentar-me por um mês ou dois, mas não interfira em meus
movimentos, rogo-lhe! Deixe-me em paz e em solidão por um curto
período e, quando retornar, espero estar com o coração mais leve, mais
conveniente ao seu próprio temperamento.
Henry desejou dissuadir-me, mas, percebendo minha inclinação,
deixou de protestar. Suplicou-me que escrevesse com frequência.
— Preferiria estar com você — afirmou — em suas peregrinações
solitárias do que com esses escoceses que não conheço. Apresse-se, en-
tão, caro amigo, para retornar, de modo que me sinta, de alguma manei-
ra, em casa, o que parece impossível em sua ausência.
Separando-me do amigo, decidi visitar algum lugar remoto da Escó-
cia e terminar minha obra em solidão. Não tinha dúvidas de que o
monstro me seguia e se revelaria quando terminasse, para que pudesse
receber a companheira.
Com essa determinação, atravessei as highlands do norte e estabeleci
como cenário de meus trabalhos um dos lugares mais remotos das Ór-
cades. Era um local apropriado para tal tarefa, por ser pouco mais do
que uma rocha cujas laterais eram continuamente açoitadas pelas ondas.
O solo era estéril; quase não havia pasto para umas míseras vacas e aveia
para os moradores: cinco pessoas de membros descarnados e esqueléti-
cos que davam mostras de sua alimentação pobre. Vegetais e pão, quan-
do se permitiam algum luxo, e até mesmo água fresca, deviam ser busca-
dos no continente, a cerca de oito quilômetros de distância.
Em toda a ilha não havia senão três choupanas miseráveis, uma das
quais estava livre quando cheguei. Aluguei-a. Tinha dois cômodos e exi-
biam toda a sordidez da mais indigente penúria. O sapê do teto havia
caído, as paredes estavam sem reboco e a porta encontrava-se fora das
dobradiças. Solicitei os reparos necessários, comprei alguma mobília e
instalei-me; um incidente que teria causado certa surpresa não estives-
sem os sentidos dos moradores entorpecidos pela necessidade e pobreza
abjeta. Desse modo, vivi fora do alcance dos olhares e sem ser molesta-
do, mal recebendo agradecimentos pela pouca comida e roupas que do-
ava, tamanha a influência do sofrimento nos homens, que atenua até
mesmo os sentimentos mais vulgares.
Nesse retiro, dedicava as manhãs ao trabalho, mas à noitinha, quan-
do o tempo permitia, andava ao longo da praia pedregosa para ouvir o
ruído das ondas que se derramavam aos meus pés. Era uma cena monó-
tona, mas em constante mudança. Pensava na Suíça: era muito diferente
dessa paisagem desolada e apavorante. As colinas são cobertas de vinhe-
dos, e os chalés se espalham densamente nas planícies. Os belos lagos
refletem um céu pacífico e Cerúleo e, quando agitados pelos ventos,
causam um pequeno tumulto que poderia ser considerado brincadeira
de criança se comparado ao bramido de um oceano gigantesco.
Dessa maneira, distribui minhas ocupações quando inicialmente
cheguei, mas, ao prosseguir nos afazeres, estes fizeram com que os dias
se tornassem mais horríveis e penosos para mim. Às vezes, não conse-
guia me convencer, por vários dias, a entrar no laboratório e, em outras
ocasiões, labutava dia e noite para terminar o trabalho. Estava envolvi-
do em um projeto realmente obsceno. Durante meu primeiro experi-
mento, um tipo de entusiasmo frenético me cegara à repulsa da ocupa-
ção; minha mente estava completamente absorta na consumação da ta-
refa e meus olhos se fecharam para o horror dos procedimentos. Neste
momento, contudo, envolvia-me a sangue-frio e meu coração quase
adoeceu com a obra de minhas mãos.
Isto posto, dediquei-me à mais detestável das ocupações, imerso em
uma solidão em que nada podia, nem sequer por um instante, desviar
minha atenção daquilo que me envolvia. Meu ânimo tornou-se incons-
tante, fiquei inquieto e nervoso. Temia encontrar meu perseguidor a
qualquer momento. Às vezes, sentava-me com os olhos fixos no chão,
com medo de levantá-los e encontrar o objeto que tanto receava con-
templar. Temendo que viesse reclamar a companheira quando estivesse
sozinho, tinha receio de me afastar da companhia de meus semelhantes.
Nesse ínterim, continuei trabalhando, e minha obra estava conside-
ravelmente adiantada. Contemplava sua conclusão com uma esperança
receosa e impaciente, a qual não me atrevo questionar, mas que se mes-
clava com maus e obscuros pressentimentos que faziam o coração adoe-
cer em meu íntimo.
Cap. XX.

À tardinha, sentei em meu laboratório; o sol havia se posto e a lua co-


meçava a surgir no mar. Não dispunha de luminosidade suficiente para
meu empreendimento e permaneci parado, em um entreato, a conside-
rar se deveria abandonar o trabalho à noite ou apressar-me para con-
cluí-lo em atenção ininterrupta. Enquanto estava ali sentado, uma su-
cessão de pensamentos levou-me a considerar os resultados daquilo a
que me dedicava naquele momento. Três anos antes, estava envolvido
em tarefa semelhante e criara um demônio cuja barbaridade sem par de-
solara meu coração e o enchera para sempre do mais amargo remorso.
Estava, agora, em vias de criar outra criatura cujas inclinações igual-
mente ignorava. Ela poderia se tornar dez mil vezes mais maligna que
seu par e ter prazer, por interesse próprio, em matanças e calamidades.
Ele jurara abandonar o convívio dos homens e esconder-se em desertos,
mas ela não. Ela, que provavelmente se tornaria um animal pensante e
racional, poderia recusar-se a cumprir um pacto feito antes de sua cria-
ção. Poderiam até mesmo se detestar; o ente já vivo abominava a pró-
pria deformidade, e não poderia lhe gerar aversão quando visse surgir
diante de si uma versão feminina? Ela também poderia voltar-se para ele
com desgosto diante da beleza superior do homem. Poderia deixá-lo, e
ele tornaria a ficar só, exasperado pela nova provocação de ser abando-
nado por um ser da própria espécie.
Mesmo que deixassem a Europa e fossem habitar os ermos do Novo
Mundo, ainda assim, um dos primeiros resultados da vida comum que o
demônio ansiava seriam os filhos, o que propagaria uma raça de demô-
nios pela Terra, tornando a existência da espécie humana precária e re-
pleta de terror. Teria o direito, para beneficiar-me, de infligir essa maldi-
ção às gerações vindouras pela eternidade? Já fora motivado pelos sofis-
mas da coisa que havia criado. Fora atingido em cheio por suas ameaças
demoníacas, mas agora, pela primeira vez, irrompera em mim a perver-
sidade de minha promessa. Arrepiei-me ao pensar que as eras futuras
poderiam amaldiçoar-me como seu flagelo, cujo egoísmo não hesitara
em comprar a própria paz ao preço, talvez, da existência de toda a raça
humana.
Estremeci, e meu coração desfaleceu quando, ao olhar para cima, vi,
à luz do luar, o demônio na janela. Ostentava em seus lábios um medo-
nho riso de esgar e olhava fixamente para mim, que estava sentado cum-
prindo a tarefa que me impusera. Sim, ele me seguira nas viagens, anda-
ra lentamente pelos bosques, escondera-se em grutas ou refugiara-se em
charnecas vastas e ermas e agora vinha certificar-se de meu progresso e
reclamar o cumprimento da promessa.
Olhei-o; suas feições expressavam malícia e perfídia extremas. Pen-
sei, com um sentimento de loucura, na promessa de criar um ser seme-
lhante e, trêmulo de cólera, despedacei a coisa de que me ocupava. O
infeliz viu-me destruir a criatura a cuja existência futura confiava sua fe-
licidade e, com um bramido demoníaco de desespero e vingança, reti-
rou-se.
Deixei o cômodo e, ao trancar a porta, jurei solenemente a mim
mesmo jamais retomar os trabalhos. Então, com passos vacilantes, bus-
quei meus aposentos. Estava só; ninguém por perto para dissipar as tre-
vas e livrar-me da opressão doentia dos devaneios mais terríveis.
Passaram-se várias horas e permaneci junto à janela, contemplando
o mar. Estava quase inerte, pois os ventos tinham amainado e toda a na-
tureza estagnara sob o olhar da lua mansa. Alguns barcos de pesca pon-
tilhavam as águas e, de vez em quando, a brisa suave trazia o som das
vozes dos pescadores que chamavam uns aos outros. Senti o silêncio,
embora mal estivesse consciente de sua profundidade, até que meus ou-
vidos, de repente, detiveram-se no chapinhar de remos perto da costa, e
uma pessoa desembarcou próxima à minha casa.
Em poucos minutos, ouvi o ranger da porta, como se alguém tentas-
se abri-la de mansinho. Estremeci dos pés à cabeça; pressenti quem seria
e pensei em despertar um dos aldeões que morava em um chalé não
muito distante do meu. No entanto, fui tomado pela sensação de impo-
tência, tantas vezes sentida em sonhos apavorantes, quando, debalde,
tentava fugir de um perigo iminente, mas estava preso.
Logo ouvi o som de passos no corredor; a porta se abriu e o desgra-
çado que eu tanto temia apareceu. Ao fechar a porta, aproximou-se e
disse em voz abafada:
— Destruiu o trabalho que começara. Que pretende? Ousa quebrar
a promessa? Amarguei na labuta e na penúria, parti da Suíça com você.
Rastejei pelas margens do Reno, entre as belas ilhas e pelos picos das
colinas. Abriguei-me por muitos meses nas charnecas da Inglaterra e na
solidão da Escócia. Suportei um cansaço incalculável, além de frio e fo-
me. Como se atreve a destruir minhas esperanças?
— Vá embora! Quebrei a promessa; nunca criarei outro como você,
igual em deformidade e malvadez.
— Ser desprezível! Antes, argumentei, mas provou não ser merece-
dor de minha condescendência. Lembre-se de que tenho poder; acredita
ser miserável, mas o tornarei tão infeliz que a luz do dia lhe será detes-
tável! É meu criador, porém sou seu senhor: obedeça!
— Minha indecisão é passado, e chegou a hora de findar seu poder.
Suas ameaças não podem obrigar-me a realizar um ato de perversidade,
mas confirmam em mim a determinação de não criar para ti uma com-
panheira no vicio. Devo eu, a sangue-frio, lançar na face da Terra um
demônio cujo prazer está na morte e na malícia? Vá-se daqui! Estou de-
cidido, e suas palavras só aumentam minha ira.
O monstro viu a determinação em meu rosto e trincou os dentes na
impotência da fúria.
— Deverá todo homem — bradou — encontrar uma mulher para
cuidar, toda fera ter seu par, e eu permanecer sozinho? Nutri sentimen-
tos de afeição, e eles foram recompensados com repulsa e escárnio. Ho-
mem! Pode odiar, mas tenha cautela! Suas horas transcorrerão em pavor
e infortúnio, e não tardará o raio que fará desaparecer para sempre sua
alegria. Deverá ser feliz enquanto mergulho na imensidão de minha des-
dita? Pode destruir minhas outras paixões, mas a vingança permanece;
vingança, daqui por diante, mais estimada que a luz ou o alimento! Pos-
so morrer; mas morrerá primeiro, meu tirano e algoz, maldizendo o sol
que testemunhará sua miséria! Cuidado, pois sou destemido e, portan-
to, poderoso. Hei de vigiá-lo com a astúcia de uma serpente, de modo
que possa inocular meu veneno. Homem, há de se arrepender dos males
que me infligiu!
— Demônio, basta! Pare de envenenar o ar com esses sons malicio-
sos. Declarei minha resolução e não me acovardarei para curvar-me às
suas palavras. Deixe-me! Sou inflexível.
— Muito bem. Irei; mas lembre: estarei com você em sua noite de
núpcias.
Avancei na direção dele e exclamei:
— Patife! Antes de assinar minha sentença de morte, tenha certeza
de que você mesmo está a salvo.
Eu o teria agarrado, mas ele se esquivou e deixou a casa precipitada-
mente. Em poucos instantes, avistei-o no barco que atravessou as águas
com a ligeireza de uma flecha e logo se perdeu entre as ondas.
Tudo estava novamente em silêncio, mas suas palavras ressoavam em
meus ouvidos. Ardia de raiva, desejando partir atrás do carrasco de mi-
nha paz e lançá-lo no oceano. Pus-me a andar de um lado para o outro
pelo quarto, lívido e perturbado, enquanto minha imaginação conjurava
milhares de imagens para atormentar-me e aguilhoar-me. Por que não o
seguira, irrompendo em uma luta mortal? No entanto, deixei que par-
tisse rumo ao continente. Estremeci ao tentar imaginar quem poderia
ser a próxima vítima sacrificada à sua vingança insaciável. E então pen-
sei de novo naquelas palavras: estarei com você em sua noite de núpcias.
Era essa, afinal, a data estipulada para o cumprimento de minha sina.
Naquele momento, eu deveria morrer e, imediatamente, satisfazer e ex-
tinguir sua malícia. A perspectiva não me trazia medo; contudo, quando
pensava em minha querida Elizabeth — em seu choro e no pesar infini-
to que sentiria quando visse seu amado ser arrebatado de maneira tão
bárbara —, as lágrimas, as primeiras que derramaria em muitos meses,
jorraram de meus olhos e decidi não sucumbir diante do inimigo sem
lutar de forma implacável.
A noite acabou e o sol surgiu do oceano. Meus sentimentos acalma-
ram-se, se é que posso considerar calma a violência da cólera mergu-
lhando nas profundezas do desespero. Deixei a casa, o cenário repug-
nante do embate da noite anterior, e caminhei pela praia, que eu quase
considerei como uma barreira intransponível entre mim e meus seme-
lhantes. Mais do que isso, fui tomado por uma vontade de que aquilo se
provasse verdadeiro. Desejei passar a vida naquela rocha árida, cansado,
é verdade, mas não seria mais surpreendido por desditas repentinas. Se
retornasse, seria sacrificado ou veria morrer meus entes mais caros, su-
cumbidos ao domínio do demônio que eu mesmo criara.
Andei pela ilha como um espectro inquieto, apartado de tudo que
amava e desolado por tal separação. Quando chegou o meio-dia e o sol
estava a pino, deitei-me na relva e fui tomado por um sono profundo.
Passara a noite anterior acordado, meus nervos estavam agitados e meus
olhos, inflamados pela vigília e pela tristeza. O sono em que caíra reno-
vou-me e, ao acordar, senti-me como se pertencesse novamente à raça
dos seres humanos e comecei a refletir sobre o que ocorrera com maior
compostura, ainda que as palavras do inimigo soassem em meus ouvi-
dos como um dobre de finados; era como um sonho, porém nítido e
opressivo como a realidade.
O sol há muito se pusera e até aquele momento estava sentado na
praia, satisfazendo o apetite, que se tornara voraz, com um pão de aveia,
quando vi um barco de pesca aportar perto de mim e dele sair um ho-
mem que me trazia um pacote. Continha cartas de Genebra e uma de
Clerval, suplicando que me unisse a ele. Dizia que, em seu atual para-
deiro, nada fazia a não ser desperdiçar o tempo de modo infrutífero, e
que as cartas dos amigos que fizera em Londres manifestavam o desejo
de que retornasse para concluir a negociação que iniciara para a viagem
à Índia. Ele não poderia mais postergar a partida; contudo, como a via-
gem para Londres seria seguida — ainda mais cedo do que pensara —
por outra mais longa, rogava-me que lhe fizesse companhia pelo máxi-
mo de tempo possível. Suplicou-me, portanto, que deixasse a ilha solitá-
ria e o encontrasse em Perth, de modo que pudéssemos rumar juntos
para o sul. Essa carta, de certa maneira, chamou-me à vida, e decidi par-
tir da ilha ao fim de dois dias.
No entanto, antes de partir, deveria cumprir uma tarefa cuja lem-
brança me fez estremecer: tinha de embalar os instrumentos químicos e,
para isso, deveria entrar no cômodo que fora o cenário de tão odiosa ta-
refa, sendo obrigado a lidar com os utensílios cuja visão me repugnava.
Na manhã seguinte, ao raiar do dia, reuni coragem suficiente e destravei
a porta do laboratório. Os restos da inacabada criatura que destruira ja-
ziam espalhados pelo chão e, ao vê-los, senti como se tivesse destroçado
a carne viva de um ser humano. Parei para recobrar-me e, então, entrei
no aposento. Com a mão trêmula, transportei os instrumentos para fora
do cômodo, mas ponderei que não poderia abandonar as relíquias de
minha obra a fim de não suscitar horror e suspeita entre os campônios;
dessa forma, coloquei-as em um cesto, cobri-lhes com uma grande
quantidade de pedras, assentando-as, e estava decidido a lançá-lo ao
mar naquela mesma noite. Nesse ínterim, sentei-me na praia, ocupado
em limpar e arrumar os instrumentos químicos.
Nada poderia ser mais completo do que a mudança que ocorrera em
meus sentimentos desde a noite da aparição do demônio. Antes, encara-
ra a promessa feita com um desespero lúgubre, como uma coisa que, in-
dependente das consequências, deveria ser cumprida. Entretanto, agora,
tinha a impressão de que uma membrana fora retirada de meus olhos e,
pela primeira vez, enxergava com clareza. A ideia de reiniciar os traba-
lhos não me ocorreu por momento algum; a ameaça que recebi pesou
no julgamento, mas não refleti que um ato voluntário meu poderia re-
vertê-la. Decidira que a concepção de outro ser semelhante ao demônio
que criara seria um ato da maior vilania, do egoísmo mais atroz, e bani
da cabeça qualquer pensamento que pudesse levar a uma conclusão di-
ferente.
Entre duas e três da manhã, a lua levantou-se e, então, colocando o
cesto a bordo de um pequeno barco a remo, naveguei cerca de seis qui-
lômetros da costa. Era um cenário de perfeita solidão: alguns poucos
barcos retornavam à terra, mas distanciei-me deles. Sentia-me como se
estivesse prestes a cometer o mais pavoroso dos crimes e evitei, com
aflição, qualquer encontro com meus semelhantes. Nesse instante, a lua,
que antes estivera clara, de repente foi coberta por uma nuvem densa.
Aproveitando-me desse momento de escuridão, lancei o cesto ao mar.
Ouvi o borbulhar enquanto afundava e, então, deixei o local. O céu fi-
cou nublado, mas o ar estava limpo, embora frio devido à brisa nordeste
que começara a soprar. Entretanto, essa brisa refrescou-me e encheu-me
de sensações tão agradáveis que decidi prolongar minha estadia na água.
Prendendo o leme em posição firme, deitei-me no fundo do barco. As
nuvens ocultavam a lua, tudo estava escuro e ouvia-se apenas o som do
barco que cortava as ondas com a quilha. O murmúrio embalou-me e,
rapidamente, cai em sono profundo.
Não sei quanto tempo permaneci ali, mas, quando acordei, descobri
que o sol já ia bem alto. O vento soprava forte e as ondas ameaçavam
com insistência a segurança do barquinho. Constatei que soprava um
vento nordeste que deveria ter me levado para longe da costa onde em-
barcara. Empenhei-me por mudar o curso, mas em um instante desco-
bri que, se continuasse tentando, o barco se encheria de água. Assim, a
única solução era rumar na direção do vento. Confesso que senti um
pouco de medo. Não levava uma bússola e estava tão pouco familiariza-
do com a geografia daquela parte do mundo que o sol era de pouca aju-
da. Poderia ser levado para o imenso oceano Atlântico e previ todas as
torturas da fome ou de ser tragado nas águas imensuráveis que ribom-
bavam e fustigavam ao redor. Já estava assim há muitas horas e fui ator-
mentado por uma sede abrasadora, prelúdio de outros sofrimentos.
Olhei para o firmamento, que estava recoberto de nuvens que flutua-
vam na direção do vento, continuamente sucedidas por outras. Então
contemplei o mar, que seria minha sepultura.
— Demônio, sua tarefa está cumprida! — exclamei.
Pensei em Elizabeth, em meu pai e em Clerval: todos deixados para
trás e contra os quais o monstro poderia se erguer a fim de satisfazer su-
as paixões sanguinárias e impiedosas. Essa ideia precipitou-me em um
devaneio tão desesperador e medonho que, mesmo agora, quando as
cortinas estão a ponto de se cerrar para sempre, estremeço ao lembrar.
Algumas horas assim transcorreram, mas, aos poucos, à medida que
o sol se escondia no horizonte, o vento transformou-se em uma brisa
suave e o mar ficou livre da ressaca. No entanto, as águas se avoluma-
vam; senti-me enjoado e quase não fui capaz de firmar o leme quando,
de repente, avistei uma estreita linha de terra na direção sul.
Quase exaurido como estava pela fadiga e pelo suspense terrível que
suportara por várias horas, essa súbita certeza de vida assaltou-me com
uma torrente de cálida alegria no coração, e as lágrimas brotaram dos
olhos.
Como nossos sentimentos são mutáveis e como é estranho o amor
com que nos apegamos à vida mesmo quando nos resta apenas a infeli-
cidade! Confeccionei outra vela com parte de minhas vestes e, impaci-
ente, segui rumo à terra. O lugar tinha uma aparência selvagem e rocho-
sa, mas, conforme me aproximava, percebia áreas de cultivo. Avistei em-
barcações junto ao litoral e vi-me, subitamente, transportado para as
cercanias do homem civilizado. Observei com cuidado os meandros do
relevo e saudei um campanário que, à distância, vi surgir por trás de um
pequeno promontório. Como estava em um estado de extrema debili-
dade, decidi navegar em direção à cidade, onde poderia facilmente en-
contrar alimento. Felizmente, trazia dinheiro comigo. Ao contornar o
promontório, notei uma cidadezinha agradável e um bom cais, em que
aportei com o coração saltando de alegria diante da salvação inesperada.
Enquanto estava ocupado em arrumar o barco e arranjar as velas,
várias pessoas se reuniram no local. Pareciam muito surpresas com mi-
nha chegada, mas, em vez de me oferecer assistência, cochichavam com
gestos que em qualquer outra ocasião teriam suscitado alguns cuidados
de minha parte. Porém, em meu estado, apenas observei que falavam in-
glês e, portanto, dirigi-me a eles nesse idioma.
— Meus bons amigos — disse — podem, por gentileza, dizer-me o
nome desta cidade e informar onde estou?
— Saberá muito em breve — respondeu um homem de voz rouca.
— Chegou, talvez, a um lugar que provará não ser muito ao seu gosto,
mas garanto que não será consultado acerca de suas acomodações.
Fiquei extremamente surpreso por receber uma resposta tão rude de
um estranho e também desconcertado ao perceber os rostos carrancu-
dos e agressivos de seus companheiros.
— Por que me respondeu com tamanha rudeza? — repliquei. —
Decerto não é o costume dos ingleses receber estranhos de modo tão
inospitaleiro.
— Não sei — disse o homem — quais costumes devem ter os ingle-
ses, mas é costume na Irlanda detestar patifes.
Enquanto prosseguia esse estranho diálogo, percebi a multidão au-
mentar rapidamente. Seus rostos expressavam um misto de curiosidade
e raiva, que, em certa medida, me perturbavam e incomodavam. Per-
guntei o caminho para a estalagem, mas ninguém respondeu. Então, se-
gui adiante e a multidão murmurava enquanto me perseguia e rodeava,
até que um homem de aspecto desagradável se aproximou, bateu em
meu ombro e disse:
— Vem, senhor, deve acompanhar-me até o sr. Kirwin para prestar
declarações.
— Quem é o sr. Kirwin? Por que devo prestar contas de quem sou?
Este não é um pais livre?
— Sim, senhor, livre o bastante para tipos honestos. O sr. Kirwin é o
magistrado, e você deve prestar conta da morte de um cavalheiro que
foi assassinado aqui na noite passada.
Essa resposta assustou-me, mas imediatamente me recompus. Era
inocente; isso poderia ser comprovado sem demora. Assim, acompanhei
o homem em silêncio e fui levado a uma das melhores casas da cidade.
Estava prestes a cair de cansaço e fome, mas, vendo-me cercado por
aquela multidão, acreditei ser de bom alvitre reunir todas as minhas for-
ças, de modo que nenhuma debilidade física pudesse ser interpretada
como apreensão ou consciência culpada. Na ocasião, mal podia imagi-
nar a calamidade que em pouco tempo haveria de me destruir, transfor-
mando em horror e desespero qualquer receio da ignomínia ou da mor-
te.
Devo fazer uma pausa aqui, pois preciso de toda a fortaleza de espí-
rito para recordar os acontecimentos medonhos que estou prestes a re-
latar, em detalhes, conforme me vêm à memória.
Cap. XXI.

Fui logo levado à presença do magistrado, um ancião benevolente de


modos calmos e moderados. Olhou para mim, todavia, com certo grau
de severidade e, então, voltando-se para meus condutores, perguntou
quem compareceria como testemunha na ocasião.
Quase meia dúzia de homens se prontificou. Um deles, escolhido
pelo magistrado, relatou que estivera pescando na noite anterior com o
filho e o cunhado, Daniel Nugent, quando, por volta das dez da noite,
observaram uma forte rajada de vento norte e, portanto, se encaminha-
ram para o porto. Era uma noite muito escura, pois a lua ainda não ha-
via surgido; não aportaram no ancoradouro, mas, como de costume, em
uma enseada cerca de quatro quilômetros abaixo. Ele saiu primeiro, car-
regando parte dos apetrechos de pesca, e seus companheiros o seguiram
a alguma distância. Ao seguir pela areia, deu com o pé em algo e foi ao
chão. Os companheiros vieram ajudá-lo e, com a luz da lanterna, desco-
briram que caíra sobre o corpo de um homem que parecia estar morto.
A primeira suposição foi de que era o corpo de uma pessoa que se afo-
gara e fora lançada na praia pelas ondas, mas, ao analisar mais detida-
mente, descobriram que as roupas não estavam molhadas e que o corpo
não estava frio. Imediatamente carregaram-no para a casa de uma se-
nhora de idade que vivia perto do local e tentaram, em vão, recobrar-lhe
a vida. Parecia ser um jovem bonito, de uns vinte e cinco anos. Aparen-
temente fora estrangulado, pois não havia sinais de qualquer violência, a
não ser marcas negras em seu pescoço.
A primeira parte desse depoimento não me interessou de maneira
alguma, mas, quando foram mencionadas marcas de dedos, recordei do
assassinato de meu irmão e fiquei extremamente agitado. Estremeci e
uma névoa cobriu meus olhos, o que fez com que me amparassem em
uma cadeira para não cair. O magistrado me observava com olhos afia-
dos e, é claro, pelos meus modos, teve um impressão desfavorável.
O filho confirmou o relato do pai, e quando Daniel Nugent foi cha-
mado, ele jurou afirmativamente que, pouco antes da queda do compa-
nheiro, avistara um barco que levava um único homem a pouca distân-
cia da costa; e, até onde podia julgar pela luminosidade das poucas es-
trelas, era a mesma embarcação que acabara de aportar.
Uma mulher depôs que vivia perto da praia e estava na porta de sua
casa aguardando o retorno dos pescadores, cerca de uma hora antes de
ouvir sobre a descoberta do corpo, quando viu um barco com um único
homem saindo daquela parte do litoral onde o cadáver foi encontrado
depois.
Outra mulher confirmou o relato dos pescadores que levaram o ca-
dáver para sua casa. Não estava frio. Colocaram-no na cama e o esfrega-
ram. Daniel foi à cidade em busca de um boticário, mas a vida já tinha
deixado aquele corpo.
Vários homens foram arguidos a respeito de minha chegada e con-
firmaram que, com o forte vento norte que surgira durante a noite, era
bem provável que eu tivesse bordejado por muitas horas, sendo obriga-
do a voltar para perto do local de partida. Ademais, observaram que,
aparentemente, o corpo fora trazido de outro local e, talvez, como pare-
cia não conhecer o litoral, eu pudesse ter aportado sem conhecer a dis-
tância entre a cidade e o local onde o cadáver fora depositado.
O sr. Kirwin, ao ouvir esse depoimento, desejou que eu fosse levado
ao cômodo onde o corpo aguardava o sepultamento, de modo que pu-
desse ser observado o efeito que essa visão produziria em mim. A ideia,
com certeza, foi sugerida pela agitação extrema que exibira ao conhecer
a possível causa da morte. Fui devidamente conduzido pelo magistrado
e várias outras pessoas à estalagem. Não pude deixar de ser atingido pe-
las estranhas coincidências que ocorreram durante aquela noite agitada,
mas, lembrando-me das conversas que travei com diversos moradores
da ilha que habitara na época em que o corpo foi encontrado, estava
perfeitamente tranquilo quanto às consequências do incidente.
Entrei no aposento onde o corpo jazia em um caixão. Como posso
descrever as sensações ao contemplá-lo? Ainda me sinto inflamado de
horror, é impossível refletir a respeito daquele momento terrível sem
apreensão e agonia. O exame, a presença do magistrado e das testemu-
nhas, desapareceram como um sonho quando vi a forma inerte de
Henry Clerval à minha frente. Ofeguei, e atirando-me para o cadáver,
exclamei:
— Minhas maquinações assassinas privaram-lhe da vida, querido
Henry? Já destruí dois e outras vítimas aguardam seu destino; mas você,
Clerval! Meu amigo, meu benfeitor…
Minha composição humana não podia mais suportar as agonias pe-
las quais passei e fui retirado do aposento em fortes convulsões.
A isso sucedeu uma febre. Estive por dois meses a ponto de morrer;
os delírios, como soube posteriormente, foram aterradores. Disse ter si-
do o assassino de William, de Justine e de Clerval. Às vezes, supliquei
aos meus assistentes que ajudassem na destruição do demônio por
quem era atormentado e, em outras ocasiões, senti os dedos do monstro
agarrando meu pescoço e gritei alto, tomado de agonia e terror. Feliz-
mente, como falava meu idioma nativo, somente o sr. Kirwin me com-
preendia, mas os gestos e os gritos pungentes eram o bastante para ame-
drontar os presentes.
Por que não morri? Mais infeliz do que qualquer outro homem ja-
mais fora, por que não mergulhei no esquecimento e no repouso? A
morte arrebata muitos filhos na flor da idade, levando o sonho de inú-
meros pais amorosos. Quantos noivos e amantes jovens foram, um dia,
no auge da saúde e da esperança, as próximas presas dos vermes e da de-
cadência da sepultura! De que material eu era feito para que pudesse re-
sistir a tantos choques que, como o girar de uma roda, continuamente
renovavam minha tortura?
Entretanto, estava condenado a viver; e, em dois meses, como se
despertasse de um sonho, vi-me na prisão, estirado em um catre, cerca-
do de guardas, carcereiros, ferrolhos e todo o aparato infeliz de um ca-
labouço. Era de manhã, lembro, quando despertei para esse cenário. Es-
quecera os detalhes do que tinha se passado e sentia como se um grande
infortúnio, de repente, tivesse me dominado por completo; porém,
quando olhei ao redor e vi as barras de ferro nas janelas e a sordidez do
local em que me encontrava, tudo, de súbito, voltou à memória e la-
mentei amargamente.
Esse som perturbou a velha que dormia na cadeira ao meu lado. Era
uma enfermeira contratada, esposa de um dos carcereiros, e seu rosto
expressava todas as más qualidades que quase sempre caracterizam essa
classe. As linhas de sua face eram fortes e rudes, como é próprio de pes-
soas que são acostumadas a presenciar situações de miséria sem de-
monstrar nenhuma compaixão. Seu tom de voz expressava total indife-
rença. Dirigia-se a mim em inglês, e a voz parecia com uma daquelas
que ouvi durante meus padecimentos:
— Está melhor, senhor? — perguntou.
Respondi no mesmo idioma, com um tom débil.
— Creio que sim, mas se tudo isso é verdade e se, de fato, não estou
sonhando, lamento ainda estar vivo para passar por tal infelicidade e
horror.
— Quanto a isso — replicou ela —, caso esteja se referindo ao cava-
lheiro que assassinou, creio que seria melhor que estivesse morto, pois
imagino que para o senhor será difícil! No entanto, isso não é de minha
conta. Fui enviada como enfermeira e já melhorou. Cumpri meu dever
de consciência limpa e seria bom que todos fizessem o mesmo.
Afastei-me com asco da mulher que proferira um discurso tão in-
sensível para uma pessoa recém-recuperada das raias da morte, mas sen-
ti-me langoroso e incapaz de refletir sobre tudo que passara. O conjun-
to de minha vida parecia-me um sonho. Por vezes duvidava se, de fato,
tudo era verdade, pois isso jamais se mostrara a mim com a força da rea-
lidade.
À medida que desfilavam diante de meus olhos, as imagens iam se
tornando mais distintas, e a febre aumentava. A escuridão me compri-
mia e não havia ninguém por perto para aliviar-me com a voz suave do
amor, nenhuma mão querida para me ajudar. O médico veio, prescreveu
remédios e a velha os preparou para mim; contudo, era visível o descui-
do absoluto e a expressão de hostilidade se mostrava firme em seu ros-
to. Quem poderia interessar-se pelo destino de um assassino senão o
carrasco que ganharia sua paga?
Essas foram minhas primeiras reflexões, mas logo descobri que o sr.
Kirwin demonstrava-me extrema bondade. Tinha feito com que a me-
lhor cela da prisão fosse preparada para mim (sórdida, porém a melhor)
e foi ele quem providenciou um médico e uma enfermeira. É verdade
que quase nunca ia me visitar, pois, embora desejasse ardentemente ali-
viar os sofrimentos de todas as criaturas humanas, não lhe agradava pre-
senciar as agonias e os delírios de um assassino. Foi, portanto, algumas
vezes certificar-se de que eu não estava sendo negligenciado, mas suas
visitas eram curtas e ocorriam em intervalos longos.
Certo dia, enquanto aos poucos me recuperava, estava sentado em
uma cadeira, de olhos semicerrados e com as faces lívidas como a dos
mortos. Fui surpreendido pela tristeza e infelicidade e, com frequência,
refleti que seria melhor morrer a permanecer em um mundo que, para
mim, estava repleto de adversidades. Antes, considerei se não deveria
declarar-me culpado e sofrer as penas da lei, menos inocente do que a
pobre Justine havia sido. Esses eram meus pensamentos quando a porta
do aposento foi aberta e o sr. Kirwin entrou. Suas feições expressavam
simpatia e compaixão; pôs uma cadeira perto de mim e começou a falar
em francês:
— Temo que este lugar seja para o senhor deveras ofensivo. Posso
fazer algo para deixá-lo mais confortável?
— Agradeço, mas tudo que mencionou não é nada para mim: não
conseguiria encontrar conforto em parte alguma do mundo.
— Sei que a compaixão de um estranho pode ser de pouco consolo
para alguém vencido por um infortúnio tão estranho. Espero, no entan-
to, em breve, dar cabo a esta estadia melancólica, visto que provas indu-
bitáveis podem ser, com facilidade, apresentadas para libertá-lo da acu-
sação criminal.
— Essa é a última de minhas preocupações. Tornei-me, no decorrer
de acontecimentos estranhos, o mais miserável dos mortais. Perseguido
e torturado como sou e fui, poderia a morte me infligir algum mal?
— De fato, nada seria mais desditoso e agonizante que as possibili-
dades invulgares que ocorreram ultimamente. Foi lançado, por algum
acidente imprevisto, nesta costa, famosa pela hospitalidade, e imediata-
mente preso e acusado de homicídio. A primeira visão que se descorti-
nou diante de seus olhos foi o corpo de seu amigo, assassinado de ma-
neira tão inexplicável e colocado no seu caminho, por assim dizer, por
algum inimigo.
Enquanto o sr. Kirwin dizia isso, não obstante a agitação que supor-
tei ao repassar meus sofrimentos, senti considerável surpresa diante do
conhecimento que ele parecia possuir acerca de minha pessoa. Suponho
que deixei aparentar alguma perplexidade em minhas feições, pois o ma-
gistrado apressou-se em dizer:
— Logo depois que foi tomado pela doença, todos os papéis que es-
tavam com o senhor foram levados a mim e os examinei a fim de desco-
brir alguma indicação que me permitisse fazer chegar aos seus parentes
o relato de sua tragédia e enfermidade. Encontrei várias cartas e, entre
outras, uma que descobri, pelo cabeçalho, ser de seu pai. Escrevi imedi-
atamente para Genebra. Quase dois meses se passaram desde a remessa
de minha carta. Entretanto, o senhor está doente, mesmo agora treme.
Não está apto para qualquer tipo de agitação.
— Esse suspense é mil vezes pior do que o acontecimento mais ter-
rível. Diga: qual nova cena de morte foi executada e a quem devo la-
mentar agora?
— Sua família está perfeitamente bem — afirmou o sr. Kirwin com
gentileza. — E alguém, um amigo, vai vir visitá-lo.
Não sei por qual linha de raciocínio afigurou-se a ideia, mas, por um
instante, veio à mente que o assassino viera para zombar de minha infe-
licidade e escarnecer da morte de Clerval, como um novo incentivo para
que cedesse aos seus desejos infernais. Pus a mão diante dos olhos e gri-
tei em agonia:
— Oh! Leve-o embora! Não posso contemplá-lo, pelo amor de
Deus, não o deixe entrar!
O sr. Kirwin fitou-me com uma expressão conturbada. Não podia
deixar de considerar minha exclamação como a presunção de minha
culpa e disse em tom um tanto severo:
— Acreditei, meu jovem, que a presença de seu pai, em vez de inspi-
rar-lhe uma repugnância tão impetuosa, seria bem-vinda.
— Meu pai! — gritei, enquanto minhas feições e meus músculos re-
laxavam, indo da angústia ao prazer. — Meu pai realmente veio? Que
gentil! Que imensa gentileza! Mas onde ele está? Por que não veio logo
até mim?
Minha mudança de atitude surpreendeu e agradou o magistrado.
Talvez ele pensasse que a exclamação anterior fora uma volta momentâ-
nea ao delírio e agora, em um instante, retomava a antiga benevolência.
Levantou-se, deixando o cômodo com a enfermeira, e, em poucos se-
gundos, meu pai ingressou.
Nada, nesse momento, poderia dar-me maior prazer que a chegada
de meu pai. Estendi-lhe a mão e clamei:
— Então, está seguro? E Elizabeth? E Ernest?
Meu pai acalmou-me reafirmando o bem-estar deles e esforçou-se,
ao se alongar nesses assuntos tão caros ao meu coração, em animar meu
espírito abatido, mas logo sentiu que a prisão não poderia abrigar a ale-
gria.
— Que lugar é este que habita, meu filho! — exclamou, olhando pe-
saroso para as janelas com grades e aparência lamentável. — Viajou em
busca da felicidade, mas uma fatalidade parece persegui-lo. E pobre
Clerval…
O nome de meu infeliz amigo morto causou uma agitação muito
grande para meu estado enfraquecido. Derramei lágrimas.
— Ai de mim! Sim, meu pai — respondi —, um destino da mais
abominável espécie recaiu sobre minha pessoa e devo viver para supor-
tá-lo ou certamente teria morrido sobre o caixão de Henry.
Não nos foi permitido conversar por mais tempo, pois o estado pre-
cário de minha saúde exigia todo o cuidado necessário para assegurar-
me a tranquilidade. O sr. Kirwin entrou e insistiu que minhas forças
não fossem exauridas por demasiado esforço. No entanto, a visita de
meu pai foi, para mim, como a aparição de um anjo bom e, aos poucos,
recuperei a saúde.
Conforme a doença me deixava, fui consumido por uma melancolia
densa e tenebrosa que nada podia dissipar. A imagem de Clerval estava
sempre diante de mim, pavorosa e morta. Mais uma vez, a agitação em
que tais reflexões me lançaram fizeram meus amigos temerem uma reca-
ída perigosa. Ai! Por que preservaram uma vida tão infame e detestável?
Decerto para que pudesse cumprir minha sina, que agora se aproxima-
va. Em breve, muito em breve, a morte extinguiria essas palpitações e
me livraria do fardo pesado que resiste a tornar-me pó; e, ao conferir o
prêmio da justiça, também devo encaminhar-me à morte! Na ocasião, a
aparência da morte era distante, embora o desejo sempre estivesse pre-
sente em meus pensamentos e, diversas vezes, sentava-me imóvel e mu-
do, por horas, ansiando por alguma revolução poderosa, que pudesse
enterrar a mim e ao meu destruidor em suas ruínas.
A temporada do inquérito judicial se aproximava. Já estava há três
meses na prisão e, embora ainda estivesse enfraquecido e em perigo de
uma recidiva, fui obrigado a viajar quase uns cento e sessenta quilôme-
tros para o condado que abrigava o tribunal. O sr. Kirwin ocupou-se,
com toda a diligência, de reunir as testemunhas e providenciar minha
defesa. Fui poupado da desgraça de aparecer em público como crimino-
so, pois o caso não foi levado à corte que decidia sobre vida e morte. O
grande júri rejeitou a denúncia, ao ser provado que estava nas Órcades
na hora em que o corpo de meu amigo foi encontrado; então, quinze di-
as após a retirada, fui libertado.
Meu pai estava entusiasmado ao me ver livre do aborrecimento de
uma acusação criminal e que a mim era permitido, novamente, respirar
ar puro e voltar ao meu país de origem. Não partilhava desses sentimen-
tos; para mim, as paredes de um calabouço ou de um palácio eram
igualmente detestáveis. A taça da vida estava envenenada para sempre e,
embora o sol brilhasse sobre meu corpo, sobre a vida feliz e alegre, nada
via ao redor senão uma escuridão densa e assustadora, que não passava
pela luz, mas pelo bruxuleio de dois olhos que fixamente estavam volta-
dos para mim. Por vezes, eram os olhos expressivos de Henry, debilita-
dos pela morte, as órbitas escuras semicobertas pelas pálpebras e os lon-
gos cílios que as adornavam; outras, eram os olhos úmidos e enevoados
do monstro, como os vi pela primeira vez em meu quarto em Ingols-
tadt.
Meu pai tentou despertar-me sentimentos de afeição. Falou de Ge-
nebra, que logo visitaria, de Elizabeth e de Ernest, mas essas palavras
somente arrancaram de mim gemidos profundos. Ocasionalmente, de
fato, sentia um desejo de felicidade e pensava com deleite melancólico
em minha amada prima ou anelava, com uma devastadora maladie du
pays,[1] uma vez mais contemplar o lago azul e o veloz Reno que me
eram tão caros na primeira infância. No entanto, estava tomado por um
torpor tão grande que a prisão me parecia uma residência tão bem-vin-
da quanto a paisagem mais divina da natureza. Essas crises raras vezes
eram interrompidas, senão por paroxismos de angústia e desespero.
Nesses momentos, com frequência, esforçava-me para pôr fim à exis-
tência que abominava, o que demandava incessante assistência e vigilân-
cia para coibir-me de cometer um ato de violência medonho.
Entretanto, permaneceu um dever, a reminiscência que, por fim,
venceu o desespero egoísta. Foi necessário que retornasse sem tardar a
Genebra, para lá velar sobre as vidas daqueles que amava tão encareci-
damente e ficar à espreita do assassino que, se por algum acaso me le-
vasse ao local de seu esconderijo ou se ousasse novamente arruinar-me
com sua presença, me daria a oportunidade infalível de pôr fim à exis-
tência da figura monstruosa que eu revestira com o arremedo de uma
alma ainda mais horrenda. Meu pai desejava adiar nossa partida, teme-
roso de que seu filho não pudesse suportar as fadigas de uma jornada,
pois estava destroçado — era a sombra de um ser humano. Minha força
se fora. Era um simples esqueleto e, noite e dia, a febre atormentava mi-
nha carcaça desgastada.
Como, no entanto, insistia em deixar a Irlanda com tanta inquietude
e impaciência, ele achou melhor render-se. Fizemos a passagem a bordo
de um navio para Havre de Grace e partimos das praias da Irlanda com
um vento razoável. Era meia-noite. Deitei-me no deque observando as
estrelas e ouvindo o bater das ondas. Saudei a escuridão que baniu a Ir-
landa de minha visão e meu coração pulsava com alegria febril ao refle-
tir que logo veria Genebra. O passado se mostrava como envolvido pela
luz de um sonho apavorante; contudo, a embarcação em que estava, o
vento que me levava do litoral detestável, disseram-me, à força, que não
fora enganado por uma visão e que Clerval, meu amigo e querido com-
panheiro, fora uma vítima minha e do monstro que criei. Repassei na
memória toda a minha vida; a felicidade tranquila de meus dias com a
família em Genebra, a morte de minha mãe e a partida para Ingolstadt.
Lembrei-me, com arrepios, do entusiasmo enlouquecido que me preci-
pitou na criação do mais odioso inimigo, e veio à memória a noite em
que, pela primeira vez, ele ganhou vida. Era incapaz de encontrar uma
linha de raciocínio. Milhares de sentimentos me oprimiam e chorei
amargamente.
Desde que me recuperei da febre, adquiri o costume de tomar, toda
noite, uma pequena quantidade de láudano,[2] pois somente com essa
droga conseguia obter o descanso necessário para preservar a vida.
Oprimido pela lembrança dos vários infortúnios, tomei, naquela ocasi-
ão, o dobro da quantidade habitual e, logo, dormi profundamente. O
sono, contudo, não deu trégua aos pensamentos e à infelicidade. Os so-
nhos revelaram milhares de imagens assustadoras. Quase de manhã, fui
possuído por uma espécie de pesadelo. Senti a garra do monstro em
meu pescoço e não podia libertar-me dela. Gemidos e gritos soavam em
meus ouvidos. Meu pai, que velava por mim, ao perceber minha inquie-
tação, acordou-me. As ondas impetuosas nos cercavam e o céu de nu-
vens se mostrava acima de nós, o inimigo não estava ali: uma sensação
de segurança, o sentimento de que uma trégua fora concedida entre o
momento presente e o futuro irresistível, desastroso, transmitiram-me
uma espécie de esquecimento brando ao qual a mente humana é parti-
cularmente suscetível.
Cap. XXII.

A viagem chegou ao fim. Desembarcamos e seguimos para Paris. Logo


descobri que exigira demais de minhas forças e que deveria repousar an-
tes que pudesse continuar a jornada. Os cuidados e a atenção de meu
pai eram infatigáveis, mas ele não conhecia a origem de meus sofrimen-
tos e buscava métodos errôneos para remediar uma doença incurável.
Desejava que buscasse diversão na sociedade. Eu abominava os rostos
dos homens. Oh! Não abominava! Eram meus irmãos, meus semelhan-
tes e sentia-me atado mesmo ao mais repulsivo entre eles como às cria-
turas de natureza angélica e estrutura celestial. No entanto, sentia que
não tinha o direito de partilhar de seu convívio. Libertara um inimigo
entre eles, cuja alegria era derramar sangue e deleitar-se com seus gemi-
dos. Como iriam, todos, detestar-me e banir-me do mundo caso sou-
bessem dos atos profanos e dos crimes que tinham a mim como sua
fonte!
Meu pai submeteu-se, por fim, ao meu desejo de evitar a sociedade e
procurou arduamente vários argumentos para combater meu desespero.
Por vezes, pensava que sentira muito intensamente a degradação de ser
obrigado a responder à acusação de assassinato e tentava provar-me a
futilidade do orgulho.
— Ai de mim, meu pai! — exclamei. — Como me desconhece. Seres
humanos, seus sentimentos e suas paixões, seriam, na verdade, degrada-
dos se um ser infausto como eu sentisse orgulho. Justine, a pobre e infe-
liz Justine, era tão inocente quanto eu e sofreu a mesma condenação.
Morreu por isso, e eu sou a causa: eu a matei. William, Justine e Henry:
todos morreram por minhas mãos.
Meu pai ouvira tais afirmações muitas vezes durante a prisão. Quan-
do assim me acusava, às vezes aparentava desejar uma explicação; em
outras, parecia considerá-las fruto do delírio, julgando que, durante mi-
nha enfermidade, alguma ideia desse tipo apresentara-se à minha imagi-
nação, cuja recordação permanecera na convalescença. Evitei a explica-
ção e mantive um silêncio continuo acerca do demônio que criara. Ti-
nha certeza de que deveria ser tido como louco e isso, por si só, era o
bastante para travar minha língua para sempre. Ademais, não revelaria
um segredo que encheria meu ouvinte de consternação, tomando o me-
do e o horror antinatural seus habitantes do coração. Parei, portanto,
por anelar por simpatia e me mantive em silêncio quando teria dado tu-
do para confidenciar o segredo fatal. Ainda assim, palavras como essas
que assinalei escapavam, incontroláveis, de mim. Não podia oferecer
explicações, mas a verdade delas, em parte, aliviava o fardo de minha
dor misteriosa.
Nessa ocasião, meu pai falou com uma expressão de espanto desme-
surada no rosto:
— Meu querido Vitor, que tolice é esta? Caro filho, suplico que
nunca repita tal afirmação.
— Não estou louco! — gritei energicamente. — O sol e os céus, que
viram minhas operações, podem testemunhar a verdade. Sou o assassino
das vítimas mais inocentes; morreram graças às minhas maquinações.
Mil vezes derramaria meu próprio sangue, gota a gota, para salvar-lhes
as vidas; mas não posso, pai, em verdade, não posso sacrificar toda a ra-
ça humana.
A conclusão desse discurso convenceu-o de que minhas ideias esta-
vam desordenadas e, logo, mudou o objeto da conversa, tentando alte-
rar o curso de meus pensamentos. Desejou, tanto quanto possível, apa-
gar a memória das cenas que ocorreram na Irlanda e nunca as aludia ou
deixava-me falar sobre os infortúnios.
Com o passar do tempo, fui ficando mais calmo. A infelicidade ti-
nha morada em meu peito, mas não falava mais de maneira incoerente
de meus próprios crimes; para mim, bastava a consciência deles. Com
um extremo autoflagelo, refreei a voz imperiosa da miséria que, por ve-
zes, desejava declarar-se a todo mundo; e meus modos se mostravam
mais calmos e compostos do que jamais foram desde minha viagem ao
mar de gelo.
Poucos dias antes de deixarmos Paris a caminho da Suíça, recebi a
seguinte carta de Elizabeth:

“Meu caro amigo,


Senti imenso prazer ao receber uma missiva de meu tio datada de
Paris; não está mais a uma distância formidável e posso esperar vê-lo em
menos de uma quinzena. Pobre primo, quanto deve ter sofrido! Imagi-
no que vou encontrá-lo ainda mais adoentado do que quando deixou
Genebra. Este inverno transcorreu da maneira mais miserável, torturada
como estive por um suspense ansioso; contudo, torço para ver paz em
seu rosto e descobrir que seu coração não está totalmente privado de
conforto e tranquilidade.
No entanto, temo que os sentimentos presentes sejam ainda os mes-
mos que o tornaram tão infeliz há um ano, talvez até aumentados pelo
tempo. Não importunarei-o neste período, quando tantas desventuras
pesam sobre você, mas uma conversa que tive com meu tio antes de sua
partida torna necessária alguma explicação antes que nos encontremos.
Explicação! Pode possivelmente perguntar: o que Elizabeth tem de
explicar? Se de fato diz isso, minhas perguntas estão respondidas e to-
das as dúvidas, sanadas. No entanto, está distante de mim e é possível
que possa recear, mas, ainda assim, ver-se satisfeito com essa explicação.
Na probabilidade de ser este o caso, não ouso mais adiar escrever o que,
durante sua ausência, muitas vezes desejei expressar-lhe, mas nunca tive
coragem de começar.
Sabe bem, Victor, que nossa união foi o plano favorito de nossos
pais desde a infância. Contaram-nos isso quando éramos jovens e fomos
ensinados a ansiá-la como um fato que certamente aconteceria. Fomos
companheiros afeiçoados durante a infância e, creio, amigos queridos e
estimados depois de crescidos. No entanto, como irmão e irmã sempre
nutrem uma afeição vívida entre si sem desejar uma união mais íntima,
não seria este nosso caso? Diga, querido Victor. Responda-me, imploro,
pela nossa felicidade mútua, com uma verdade simples: ama outra pes-
soa?
Viajou; passou vários anos de sua vida em Ingolstadt e, confesso,
meu amigo, que, quando o encontrei no outono passado, tão infeliz, fu-
gindo do convívio de todas as criaturas ao abrigo da solidão, não pude
deixar de supor que pudesse lamentar nossa ligação e acreditar-se obri-
gado, pela honra, a cumprir os desejos de seus pais, embora opostos às
suas inclinações. Isso, todavia, é falso raciocínio. Declaro, meu amigo,
que o amo, e, em meus tênues sonhos de futuro, tem sido meu amigo e
minha companhia constante. Entretanto, é sua felicidade que desejo
tanto quanto a minha quando declaro que nosso casamento me faria
eternamente infeliz, a menos que fosse ditado por sua livre escolha.
Mesmo agora, choro ao pensar nisso, sobrecarregado como está pelo
mais cruel dos infortúnios, que possa reprimir, pela honra, todo o amor
e toda a felicidade que, por si sós, restaurariam-lhe. Eu, que tenho um
afeto tão desinteressado por você, posso aumentar suas misérias dez ve-
zes mais ao ser um obstáculo para seus desejos. Ah! Victor, tenha certe-
za de que sua prima e companheira de folguedos tem por você um amor
sincero, não para fazê-lo infeliz por assim supor. Seja feliz, meu amigo,
e, caso não obedeça ao meu pedido, contente-se de que nada nesta Terra
terá o poder de roubar minha tranquilidade.
Não deixa esta carta perturbá-lo. Não responda amanhã, ou no dia
seguinte, ou mesmo até que chegue, se isso lhe causar dor. Meu tio envi-
ará notícias de sua saúde, e se vir um só sorriso em seus lábios quando
nos encontrarmos, ocasionado por esta mensagem ou qualquer outro
empenho meu, não precisarei de outra felicidade.
Elizabeth Lavenza,
Genebra, 18 de maio de 17 —.”

A carta reviveu em minha memória o que já esquecera: a ameaça do ini-
migo — estarei com você em sua noite de núpcias. Tal era minha senten-
ça e, naquela noite, o demônio empregaria todas as artes para destruir-
me e arrancar-me do vislumbre da felicidade que prometia, parcialmen-
te, consolar meus sofrimentos. Naquela noite determinara consumar
seus crimes com minha morte. Bem, que assim seja; uma luta mortal de-
certo ocorreria, e, se ele fosse vencedor, eu estaria em paz e seu poder
sobre mim acabaria. Caso ele fosse derrotado, tornaria-me um homem
livre. Pobre de mim! Que liberdade? Semelhante àquela de que desfruta
o camponês quando presencia o massacre de sua família, a casa queima-
da, as terras devastadas, ficando à deriva, sem lar, sem dinheiro e só, em-
bora livre. Assim seria minha liberdade, salvo que em minha Elizabeth
possuía um tesouro capaz de amainar os horrores do remorso e da cul-
pa que me perseguiriam até a morte.
Doce e amada Elizabeth! Leio e releio sua carta e alguns sentimen-
tos meigos invadem meu coração e ousam sussurrar sonhos paradisíacos
de amor e alegria, mas o fruto já fora comido e o braço do anjo se arma-
ra para tirar-me toda a esperança. No entanto, eu morreria para fazê-la
feliz. Se o monstro executasse sua ameaça, a morte seria inevitável. Mais
uma vez, contudo, considerei se meu casamento precipitaria esse desti-
no. A destruição chegaria meses mais cedo, porém, se o torturador sus-
peitasse de que a adiaria, influenciado por suas ameaças, por certo en-
contraria outro meio de vingança, talvez mais terrível. Jurou estar comi-
go em minha noite de núpcias; todavia, não considerou a ameaça como
algo que lhe conferisse paz nesse intervalo, pois, como uma maneira de
mostrar-me que sua sede de sangue ainda não estava saciada, assassinara
Clerval logo após proferir a paresta. Decidi, portanto, que, se a união
imediata com minha prima contribuiria para a felicidade dela e de meu
pai, os desígnios de meu adversário contra minha vida não deveriam re-
tardá-la uma única hora.
Nesse estado mental, escrevi para Elizabeth. Minha carta era calma e
afetuosa. “Receio, minha amada menina”, escrevi, “que ainda nos resta
um pouco de felicidade nesta Terra; ainda mais: toda a alegria de que
poderei desfrutar está centrada em você. Afugente seus temores inúteis;
só a você consagro minha vida e minhas tentativas de felicidade. Tenho
um segredo, Elizabeth, um segredo terrível. Quando revelá-lo, ficará ar-
repiada de horror e, então, longe de surpreender-se com minha infelici-
dade, apenas imaginará como consegui sobreviver ao que passei. Confi-
denciarei essa história de infortúnio e terror no dia seguinte ao nosso
matrimônio, pois, doce prima, deve existir uma confiança perfeita entre
nós. No entanto, até lá, peço que não mencione ou aluda a isso. Supli-
co-lhe fervorosamente e sei que consentirá.”
Cerca de uma semana após a chegada da carta de Elizabeth, retorna-
mos a Genebra. A doce moça deu-me as boas-vindas com afeição calo-
rosa, porém, as lágrimas vieram-lhe aos olhos ao contemplar minha fi-
gura emaciada e as faces febris. Também observei nela uma mudança.
Estava mais magra e perdera muito da vivacidade celestial que antes me
encantara, mas sua brandura e aparência suave de compaixão tornavam-
na uma companheira apropriada para um ser amaldiçoado e miserável
como eu.
A tranquilidade que desfrutei no momento não perdurou. A lem-
brança trouxe consigo a loucura e, ao pensar no que ocorrera, era pos-
suído de verdadeira insanidade. Às vezes, ficava furioso e ardia de ira;
outras, cabisbaixo e deprimido. Não falava ou olhava para ninguém,
mas sentava-me imóvel, aturdido pela multidão de misérias que me
ocorreram.
Somente Elizabeth tinha a capacidade de tirar-me dessa crise. Sua
voz delicada me aliviaria quando transportada pela paixão e inspiraria
sentimentos humanos quando mergulhado em torpor. Choraria comigo
e por mim. Quando a razão voltasse, logo me admoestaria e se esforça-
ria para inspirar-me resignação. Ah! É bom para o infeliz resignar-se,
mas não há paz para o culpado. As agonias do remorso envenenavam a
intemperança que, de outra maneira, por vezes, é encontrada no excesso
de pesar.
Logo após minha chegada, meu pai falou do casamento imediato
com Elizabeth. Permaneci em silêncio.
— Tem, então, algum outro compromisso?
— Nenhum. Amo Elizabeth e com prazer anseio por nossa união.
Que seja estipulado o dia e, então, consagrarei-me, na vida ou na morte,
à felicidade de minha prima.
— Querido Victor, não fale assim. Grandes infortúnios nos atingi-
ram, mas apeguemo-nos ao que ficou e transmitamos o amor dos que
perdemos aos que ainda estão vivos. Nosso círculo será pequeno, mas
bem unido pelos laços de afeição e infelicidades mútuas. E quando o
tempo suavizar seu desespero, seres novos e queridos nascerão para
substituir aqueles de quem fomos tão cruelmente privados.
Assim eram as lições de meu pai. Para mim, entretanto, a lembrança
da ameaça voltava: nem pode imaginar que, onipotente como fora o ini-
migo em seus atos sanguinários, eu o via como invencível e, quando
pronunciara as palavras estarei com você em sua noite de núpcias, via o
destino prenunciado como inevitável. A morte, contudo, não era para
mim um mal, caso a perda de Elizabeth pudesse ser compensada. Dessa
forma, com expressão animada e até feliz, concordei com meu pai que,
se minha prima consentisse, a cerimônia deveria ocorrer em dez dias,
antepondo, como imaginava, um selo à minha sina.
Bom Deus! Se por um instante tivesse adivinhado a intenção infer-
nal de meu adversário demoníaco, preferiria ter me exilado para sempre
de minha terra, vagando como um pária sem amigos pelo mundo, do
que ter consentido naquele casamento miserável. Entretanto, como se
imbuído de poderes mágicos, o monstro disfarçara suas verdadeiras in-
tenções e, quando pensei que preparara somente minha própria morte,
apressava o aniquilamento de uma vítima ainda mais querida.
Conforme se aproximava a data de nosso casamento, por covardia
ou sentimento profético, sentia o coração comprimindo-se em meu pei-
to. No entanto, escondi meus sentimentos com uma aparência de satis-
fação que trouxe sorrisos e alegria às feições de meu pai, mas dificilmen-
te enganou o olhar sempre vigilante e gentil de Elizabeth. Ela aguardava
nossa união com um contentamento plácido, demonstrando certo re-
ceio cunhado pelas desgraças passadas, de modo que o que agora pare-
cia uma felicidade certa e tangível logo poderia se dissipar em um sonho
etéreo e não deixar rastros senão um arrependimento profundo e eter-
no.
Foram feitos os preparativos para a ocasião, recebemos visitas con-
gratulatórias e todos tinham aspecto sorridente. Guardei em meu cora-
ção, tanto quanto pude, a angústia que o atormentava e lancei-me com
zelo nos planos de meu pai, embora pudessem servir apenas como orna-
mentos de minha tragédia. Com o empenho dele, uma parte da herança
de Elizabeth fora-lhe restituída pelo governo austríaco. Uma pequena
propriedade às margens do lago Como lhe pertencia. Ficou acordado
que, imediatamente após nossa união, deveríamos nos encaminhar para
villa Lavenza e ali passar nossos primeiros dias de felicidade às margens
do belo lago.
Enquanto isso, tomei todas as precauções para defender-me, caso o
inimigo desejasse atacar-me abertamente. Levava comigo pistolas e um
punhal e estava sempre vigilante a fim de evitar seus truques. Assim, ad-
quiri mais tranquilidade. De fato, com o passar do tempo, a ameaça me
parecia cada vez mais uma ilusão indigna de perturbar minha paz, ao
passo que a felicidade que esperava com meu casamento adquiria ares
de maior convicção conforme o dia da cerimônia se aproximava, e eu
ouvia as outras pessoas falarem dela como um fato que jamais poderia
ser impedido por nenhum tipo de imprevisto.
Elizabeth parecia feliz; meu comportamento tranquilo contribuiu
enormemente para acalmá-la. No dia, contudo, em que meus desejos e
meu destino se realizariam, ela estava melancólica e foi tomada por um
pressentimento ruim. Talvez pensasse no segredo terrível que promete-
ra lhe revelar no dia seguinte. Meu pai estava, nesse meio-tempo, radi-
ante e, na agitação dos preparativos, reconheceu na melancolia da sobri-
nha tão somente o acanhamento de uma noiva.
Finda a cerimônia, meu pai deu uma grande festa em sua casa, mas
ficou acordado que Elizabeth e eu começaríamos nossa viagem por bar-
co, dormindo naquela noite em Evian e seguindo viagem no dia seguin-
te. O céu estava claro e o vento, favorável. Tudo eram flores em nossa
embarcação nupcial.
Esses foram os últimos momentos de minha vida em que pude des-
frutar de um sentimento de felicidade. Avançamos rapidamente. O sol
estava quente, mas uma espécie de toldo nos abrigava de seus raios en-
quanto desfrutávamos da beleza da paisagem, às vezes em um dos lados
do lago, onde víamos o mont Salève, as margens aprazíveis de Montalè-
gre e, à distância, dominando tudo, o mont Blanc e o conjunto de mon-
tanhas nevadas que, em vão, tentavam emulá-lo; outras vezes, costeando
a margem oposta, avistávamos o imenso Jura, contrapondo as encostas
negras à ambição de deixar o pais natal e formando uma barreira quase
intransponível ao invasor que desejasse submetê-lo.
Tomei a mão de Elizabeth.
— Está triste, meu amor! Ah! Se soubesse o que sofri e o que ainda
devo suportar, você se esforçaria por deixar-me experimentar a paz e a
libertação do desespero que este dia, ao menos, permite-me desfrutar.
— Fique feliz, meu querido Victor — respondeu Elizabeth. — Não
há com o que afligir-se e esteja certo de que, se uma alegria vívida não se
deixa transparecer em meu rosto, meu coração está contente. Algo me
diz para não confiar demasiado na perspectiva que se abre diante de
nós, mas não darei ouvidos a uma voz tão sinistra. Observa como nos
movemos com rapidez e como as nuvens, que às vezes obscurecem e,
em outras, se elevam acima do firmamento do mont Blanc, conferem ao
cenário uma beleza ainda mais interessante. Veja também os inumerá-
veis peixes que nadam nas águas claras, onde podemos distinguir cada
pedrinha do fundo. Que dia divino! Como toda a natureza parece feliz
e serena!
Dessa maneira, Elizabeth procurava distrair meus pensamentos, e
também os dela, de qualquer reflexão sobre assuntos melancólicos. Seu
temperamento variava. A alegria, por poucos instantes, brilhava em seus
olhos, mas dava lugar, logo depois, à distração e aos devaneios.
O sol baixou ainda mais no céu. Passamos pelo rio Drance e obser-
vamos seu caminho pelas ravinas dos montes mais altos e os vales es-
treitos das colinas. Os Alpes, neste ponto, se acercavam do lago e nos
aproximamos do anfiteatro das montanhas que marcam a fronteira ori-
ental. O pináculo do Evian refulgia sob os bosques que o circundavam e
a série de montanhas após montanhas sob as quais pairava iminente.
O vento, que desde então nos transportara com incrível rapidez, ao
pôr do sol transformou-se em uma leve brisa. O sopro ameno apenas
encrespava as águas, produzindo um movimento agradável entre as ár-
vores, ao nos aproximarmos da costa, de onde emanava o mais delicioso
perfume de flores e de grama aparada. O sol se pôs no horizonte quan-
do chegamos e, ao pisar na praia, senti reviverem as preocupações e os
medos que, em breve, me envolveriam e se agarrariam em mim para
sempre.
Cap. XXI II.

Eram oito horas quando desembarcamos. Caminhamos por um tempo


pela praia, desfrutando da luminosidade efêmera, e então nos recolhe-
mos à estalagem e contemplamos o cenário adorável das águas, dos bos-
ques e das montanhas, obscurecidos pelo negrume, que ainda revelava,
contudo, os contornos escuros.
O vento, que diminuira ao sul, agora surgia com grande violência do
oeste. A lua chegara ao zênite nos céus e começava a cair. As nuvens
passavam mais rapidamente que o voo do abutre e turvavam o luar, ao
passo que o lago refletia a cena do céu conturbado e apresentou-se ain-
da mais alvoroçado pelas ondas agitadas que iam aparecendo. De repen-
te, caiu uma tempestade.
Estivera calmo durante o dia, mas, tão logo a noite obscurecera as
formas dos objetos, milhares de temores surgiram em minha mente. Fi-
quei inquieto e vigilante, enquanto, na mão direita, empunhava uma
pistola escondida sob minhas vestes. Todos os sons me aterrorizavam,
mas decidi que sem muito custo daria a vida e não me furtaria do confli-
to até que minha própria existência ou a de meu adversário fosse exter-
minada.
Elizabeth observou minha agitação por algum tempo em um silên-
cio tímido e temeroso, mas havia algo em meu olhar que lhe transmitia
terror e, trêmula, perguntou:
— O que o perturba, querido Victor? O que teme?
— Oh! Fique em paz, em paz, meu amor! — repliquei. — Após esta
noite, tudo estará a salvo; no entanto, esta noite é terrível, muito terrí-
vel.
Passei uma hora nesse estado mental, quando, de repente, refleti
quão assustador o combate que esperava a qualquer momento seria para
minha esposa e, diligentemente, pedi que se retirasse, decidido a não me
unir a ela até que conhecesse alguma coisa acerca da situação de meu
inimigo.
Ela me deixou e continuei, por certo tempo, a andar de um lado para
o outro nos corredores da casa, inspecionando todos os cantos que pu-
dessem oferecer abrigo ao meu adversário. Entretanto, não descobri tra-
ço algum dele e começava a conjecturar se, por sorte, o acaso interferira
na execução das ameaças quando, subitamente, ouvi um grito agudo e
medonho. Vinha do quarto em que Elizabeth se recolhera. Ao ouvi-lo,
a realidade precipitou-se em minha mente, meus braços caíram, o movi-
mento de cada músculo e de cada fibra cessou. Podia sentir o sangue
correr nas veias, entorpecendo as extremidades de meus membros. Esse
estado não durou mais que um instante, o grito se repetiu e precipitei-
me para o cômodo.
Meu Deus! Por que não morri naquele instante? Por que ainda vivo
para relatar a destruição da maior esperança e da criatura mais pura do
mundo? Lá estava ela, sem vida, inanimada, jogada na cama, a cabeça
pendendo e as feições pálidas e desfiguradas recobertas parcialmente pe-
los cabelos. Para onde quer que me volte, vejo a mesma figura — os
braços exangues e a forma flácida violentamente atirada pelo assassino
no esquife de núpcias. Poderia contemplar tal cenário e continuar vivo?
Ai de mim! A vida é obstinada e aferra-se fervorosamente onde é mais
detestada. Perdi a consciência por um instante e cai sem sentidos no
chão.
Quando me recobrei, vi-me cercado pelas pessoas da estalagem. Su-
as faces expressavam um terror aflito, mas o horror de outrem parecia
apenas zombaria, um espectro dos sentimentos que me oprimiam. Esca-
pei para o quarto em que estava o corpo de Elizabeth, meu amor, minha
mulher, há pouco viva, tão querida, tão valorosa. Mudaram-na de posi-
ção e agora, deitada, sua cabeça estava apoiada sobre o braço e trazia um
lenço que lhe cobria o rosto e o pescoço. Podia crer que estava dormin-
do. Lancei-me em sua direção e abracei-a com ardor, mas o langor mor-
tal e a frieza dos membros disseram-me que o que agora tinha nos bra-
ços deixara de ser a Elizabeth que amei e estimei. A marca mortal da
garra do assassino estava em seu pescoço e a respiração cessara de sair
por seus lábios.
Enquanto ainda estava inclinado sobre seu corpo em agonia e deses-
pero, calhei de levantar os olhos. As janelas do quarto foram escureci-
das por um momento e senti uma espécie de pânico ao ver a pálida luz
amarelada da lua iluminar o cômodo. As venezianas foram, então, afas-
tadas e, com uma sensação de horror indescritível, vi, na janela aberta, a
mais medonha e abominável figura. O monstro trazia no rosto um sor-
riso de esgar; parecia escarnecer enquanto apontava, com o dedo demo-
níaco, para o cadáver de minha mulher. Fui em direção à janela e, sacan-
do a pistola, atirei, mas ele se esquivou, lançou-se de seu posto e, cor-
rendo com a rapidez de um raio, mergulhou no lago.
O barulho do disparo atraiu um grupo de indivíduos para o quarto.
Apontei para o local onde o monstro desaparecera e seguimos a trilha
com barcos; foram lançadas redes, mas em vão. Depois de várias horas,
retornamos sem esperanças, e a maioria de meus companheiros acredi-
tava que o objeto de nossa busca não passava de uma forma conjurada
por minha fantasia. Após desembarcar, começaram a busca por terra,
dividindo-se em grupos que partiram em direções variadas entre os bos-
ques e vinhedos.
Tentei acompanhá-los e segui até uma curta distância da casa, mas
minha cabeça girava, andava como um ébrio e, por fim, caí em um esta-
do de extrema exaustão. Uma névoa cobriu-me os olhos e minha pele
estava ressequida pelo calor da febre. Assim, fui conduzido para dentro
e acomodado em uma cama, quase inconsciente do que acontecera. Os
olhos vagavam pelo quarto como se buscassem algo que haviam perdi-
do.
Depois de algum tempo, levantei-me e, como se por instinto, arras-
tei-me para o quarto onde jazia o corpo de minha amada. Havia mulhe-
res chorando ao seu redor — debrucei-me sobre o cadáver e juntei mi-
nhas lágrimas tristes às delas —, e a todo instante era tomado por ideias
indistintas, mas os pensamentos divagavam por vários assuntos, a refle-
tir confusamente sobre meus infortúnios e sua causa. Estava atônito,
envolto por uma nuvem de assombro e horror. A morte de William, a
execução de Justine, o assassinato de Clerval e, por fim, o de minha es-
posa; e, mesmo naquele momento, não sabia se meus amigos que resta-
ram estavam a salvo da malignidade. Meu pai, naquele instante, poderia
estar se contorcendo nas mãos do assassino e Ernest estaria morto aos
seus pés. Essa ideia fez-me estremecer e recordou-me que tinha de agir.
Ergui-me e decidi voltar a Genebra o mais rápido possível.
Não havia cavalos disponíveis e tive de voltar pelo lago, mas o vento
não estava favorável e a chuva caía torrencialmente. Entretanto, estava
amanhecendo, e poderia, sensatamente, esperar chegar a noite. Contra-
tei homens para remar e eu mesmo peguei em um dos remos, pois sem-
pre obtive alívio do tormento mental ao exercitar o corpo. A infelicida-
de transbordante, todavia, que ora experimentava, e o excesso de agita-
ção pelo qual passara fizeram-me incapaz de qualquer esforço. Lancei
fora o remo, e apoiando a cabeça nas mãos, dei azo a todas as ideias te-
nebrosas que surgiram. Se levantasse os olhos, veria paisagens familiares
de uma época mais feliz, as quais contemplara um dia antes na compa-
nhia daquela que agora não passava de sombra e lembrança. Lágrimas
brotaram de meus olhos. A chuva cessara por um momento e vi peixes
saltando da água, como fizeram algumas horas antes. Eles foram obser-
vados por Elizabeth. Nada é tão doloroso para a mente humana como
uma mudança grande e súbita. O sol poderia brilhar, as nuvens poderi-
am baixar, mas nada pareceria como no dia anterior. O demônio arreba-
tara-me qualquer esperança de felicidade futura; nenhuma criatura ja-
mais fora tão miserável quanto eu. Um acontecimento tão medonho é
único na história do homem.
Entretanto, por que deveria alongar-me nos incidentes que se segui-
ram a esse acontecimento inconteste? Minha história é um conto de
horror. Atingira o ápice e o que agora relatarei parecerá ao senhor tedi-
oso. Saiba que, um por um, meus amigos foram arrebatados; fiquei de-
solado. Minha força está exaurida e devo contar-lhe, em poucas pala-
vras, o que resta de minha narrativa terrível.
Cheguei a Genebra. Meu pai e Ernest ainda viviam, mas o primeiro
abateu-se pelas notícias que trouxe. Vejo-o agora, admirável e digno an-
cião! Seus olhos tornaram-se vagos, pois perdera seu encanto e sua ale-
gria — sua Elizabeth, mais do que uma filha, a quem dotou de todo
aquele afeto que um homem dedica quando, no declínio da vida, por ter
poucas afeições, apega-se mais resolutamente aos entes que lhe restam.
Maldito, maldito seja o demônio que trouxe infelicidade para sua cabeça
encanecida, condenando-o à miséria! Não podia viver com os horrores
que se acumulavam ao seu redor e, de repente, as fontes da existência
sucumbiram. Era incapaz de levantar-se da cama e, em poucos dias, fa-
leceu em meus braços.
O que restava de mim? Não sei. Perdi o interesse; os grilhões e as
trevas eram as únicas coisas que persistiam. Às vezes, de fato, sonhei
que caminhava por campos floridos e vales aprazíveis com os amigos da
juventude, mas acordava e via-me em um calabouço. Seguia-se a melan-
colia, mas, aos poucos, adquiri uma ideia clara de minhas misérias e da
situação e, nessa altura, fui libertado da prisão. Pois haviam me julgado
louco e, por muitos meses, conforme vim a saber, uma cela solitária ti-
nha sido minha morada.
A liberdade, no entanto, fora um dom inútil para mim, não tivesse,
ao acordar para a razão, ao mesmo tempo despertado para a vingança.
À medida que as lembranças das infelicidades passadas perseveravam,
comecei a refletir sobre suas causas — o monstro que criara, o demônio
miserável que trouxera ao mundo para minha própria destruição. Era
tomado por uma cólera enlouquecedora quando pensava nele. Desejei e
ardentemente rezei para que pudesse tê-lo ao meu alcance e saciar a
grande e evidente vingança em sua cabeça maldita.
Nem meu ódio restringiu-se a desejos inúteis. Comecei a refletir so-
bre os melhores meios de alcançá-lo e, para tal propósito, cerca de um
mês após minha libertação, recorri a um juiz criminal na cidade e con-
tei-lhe que tinha uma acusação a fazer, que conhecia o destruidor de mi-
nha família e que exigia o emprego de toda a sua autoridade para a cap-
tura do assassino.
O magistrado ouviu-me com atenção e bondade:
— Esteja certo, senhor, que não serão poupados trabalho ou esforço
de minha parte para descobrir o vilão.
— Agradeço-lhe — respondi-lhe. — Ouça, portanto, o testemunho
que tenho de prestar. É, de fato, uma história tão estranha que temo que
o senhor não acreditaria nela não fosse a verdade contida nos fatos que,
embora espantosos, poderão convencê-lo. A história é muito bem cons-
truída para ser confundida com um sonho, e não tenho motivos para
falseá-la.
O modo como me enderecei a ele foi impressionante, ainda que cal-
mo. Formara no coração a resolução de perseguir meu destruidor até a
morte e esse propósito aquietou minha agonia, congraçando-me vida.
Nesse momento, relatei minha história brevemente, mas com firmeza e
precisão, marcando as datas com acurácia e nunca desviando para invec-
tivas ou exclamações.
Primeiramente, o magistrado pareceu incrédulo, mas conforme
prosseguia, mostrou-se mais atento e interessado. Vi, por vezes, que es-
tremeceu de horror; em outras ocasiões, uma surpresa vívida, misturada
à descrença, afigurava-se em seu rosto.
Quando concluí minha narração, falei:
— Esse é o ser que acuso e cuja apreensão e punição peço que exerça
com todo o seu poder. É seu dever como magistrado; creio e espero que
seus sentimentos como homem não se repugnem com a execução de tais
funções neste caso.
Esse discurso causou uma mudança considerável na fisionomia de
meu ouvinte. Ouvira meu relato com uma espécie de descrença parcial
conferida às histórias de espíritos ou acontecimentos sobrenaturais,
mas, ao ser convocado a agir oficialmente, foi tomado mais uma vez pe-
la influência da incredulidade. Ele, no entanto, respondeu com brandu-
ra:
— Estaria, de bom grado, disposto a lhe dar toda a ajuda em sua ca-
çada, mas a criatura de quem falais parece ter poderes que desafiariam
completamente meus esforços. Quem pode perseguir um animal capaz
de atravessar um mar de gelo, habitar cavernas e grutas onde nenhum
homem ousaria adentrar? Ademais, alguns meses se passaram desde a
ocorrência dos crimes e ninguém pode supor em que lugares andou ou
em que região habita agora.
— Não duvido que ande por perto de onde moro e se, de fato, refu-
giou-se nos Alpes, pode ser caçado como o cabrito montês e destruído
como um predador. No entanto, compreendo seu raciocínio. Não dá
crédito à minha narrativa e não pretende perseguir meu inimigo com a
punição que merece.
Conforme falava, meus olhos faiscavam de ira; o magistrado ficou
intimidado.
— Está enganado — afirmou. — Esforçarei-me e, caso esteja em
meu poder capturar o monstro, esteja certo de que ele sofrerá a devida
punição por seus crimes. Temo, todavia que, de acordo com o que des-
creve serem suas propriedades, a captura se mostre improvável. Portan-
to, enquanto todas as medidas cabíveis são buscadas, deve preparar-se
para uma decepção.
— Isso é impossível, mas tudo o que disser será de pouco ou ne-
nhum proveito. Minha vingança não interessa ao senhor; contudo, em-
bora seja um vício, confesso que é a única e devastadora paixão de mi-
nha alma. Sinto uma cólera indizível quando penso que o assassino, a
quem soltei na sociedade, ainda existe. Recuse minha justa demanda: te-
nho somente um recurso e me dedicarei, na vida ou na morte, à destrui-
ção do monstro.
Ao dizer isso, estremeci por excesso de agitação. Havia furor em
meus modos e alguma coisa, não duvido, da ferocidade altiva que, di-
zem, os mártires de outrora possuíam. No entanto, para um magistrado
genebrino, cuja mente estava ocupada por muitas outras ideias que não
as de dedicação e heroísmo, esses arroubos aparentavam loucura. Esfor-
çou-se por me acalmar como a babá tranquiliza a criança e referiu-se à
minha história como efeito de um delírio.
— Homem — exclamei aos brados — quão ignorante é em sua so-
berba de sabedoria! Basta! Não sabe o que diz.
Deixei a casa furioso e abalado, retirando-me para meditar a respeito
de outro plano de ação.
Cap. XXIV.

Encontrava-me naquele momento em um estado em que todos os pen-


samentos voluntários tinham sido tragados e perdidos. Afastei-me de-
pressa por fúria. Somente a vingança me conferia força e compostura;
moldara meus sentimentos e permitia que fosse calculista e calmo em
ocasiões que, do contrário, o delírio ou a morte teriam sido meu qui-
nhão.
A primeira resolução era deixar Genebra para sempre. Minha terra
que, quando fui feliz e amado, era querida; agora, na adversidade, tor-
nara-se detestável. Munira-me de uma quantia de dinheiro, juntamente
com poucas joias que pertenceram à minha mãe, e parti.
Nesse momento começaram andanças que não cessariam senão com
a vida. Cruzei uma imensa porção da Terra e suportei todas as adversi-
dades que viajantes em desertos e países bárbaros estão acostumados a
enfrentar. Como sobrevivi, nem eu mesmo sei. Muitas vezes estiquei os
membros enfraquecidos nas planícies arenosas e supliquei pela morte. A
vingança, porém, mantinha-me vivo. Não ousava morrer e deixar vivo
meu adversário.
Quando parti de Genebra, minha primeira ocupação foi conseguir
alguma pista que me permitisse traçar os passos do inimigo diabólico.
No entanto, o plano era incerto e vaguei por muitas horas ao redor dos
confins da cidade, sem saber ao certo que caminho deveria seguir. À
noite, encontrei-me na entrada do cemitério onde repousavam William,
Elizabeth e meu pai. Entrei e acerquei-me do mausoléu em que jaziam
sepultados. Tudo estava em silêncio, exceto pelas folhas das árvores
gentilmente agitadas pelo vento. A noite não estava muito escura e o ce-
nário era solene e comovente até mesmo para um observador indiferen-
te. Os espíritos dos falecidos pareciam flutuar acima daqueles que os
pranteavam, lançando uma sombra que podia ser sentida, mas não vista.
O pesar profundo desse cenário que, no início, me causou forte im-
pressão, rapidamente deu lugar à raiva e ao desespero. Estavam todos
mortos, e eu vivia. O assassino também vivia e, para destruí-lo, deveria
prolongar minha penosa existência. Ajoelhei-me na relva, beijei o chão
e, com lábios frementes, exclamei:
— Pelo solo sagrado em que me ajoelho, pelos espectros que pairam
à minha volta, pelo pesar profundo e eterno que sinto, eu prometo; e
por você, oh, noite, e pelos espíritos que a regem, juro perseguir o de-
mônio que causou essa miséria até que um de nós pereça em um embate
mortal. Para tal propósito, resguardarei minha vida. A fim de executar
essa vingança tão cara, contemplarei novamente o sol e trilharei as ver-
des pastagens da terra que, de outro modo, deveriam apagar-se de meus
olhos para sempre. Invoco-lhes, espíritos dos mortos, e a vocês, prófu-
gos ministros da vindita, para que me auxiliem e conduzam em meu la-
bor. Deixem que o monstro amaldiçoado e infernal sorva profunda ago-
nia; deixem-lhe sentir o desespero que ora me atormenta.
Começara o abjuramento com tanta solenidade e temor que tinha
quase certeza de que os espectros dos falecidos amigos ouviram e apro-
varam minha lealdade, mas, ao concluir, fui tomado de furores, e a ira
sufocou a elocução.
Através da quietude noturna, obtive a resposta de uma sonora gar-
galhada diabólica. Soou longa e forte aos meus ouvidos, ecoou nas
montanhas e senti como se o inferno inteiro me cercasse de zombarias e
risos. Por certo, naquele momento poderia ter sido tomado pelo frenesi
e acabado com minha existência miserável, mas meu juramento fora ou-
vido e eu estava reservado à minha vingança. A gargalhada esvaneceu,
quando uma voz muito conhecida e abominada, aparentemente próxi-
ma de meus ouvidos, endereçou-se a mim em um sussurro audível:
— Sinto-me satisfeito, desgraçado! Está determinado a viver, e fico
exultante.
Precipitei-me em direção ao local de onde vinha o som, mas o de-
mônio esquivou-se de meu alcance. De repente, surgiu o grande disco
da lua e brilhou sobre sua forma disforme e sinistra enquanto escapava
a uma velocidade fora do comum.
Eu o persegui; e por muitos meses essa foi minha tarefa. Guiado por
uma pista fraca, segui pelas curvas do Reno, mas em vão. Apareceu o
Mediterrâneo azul e, por um estranho acaso, vi o inimigo esconder-se
em uma embarcação que tinha por destino o mar Negro. Consegui em-
barcar no mesmo navio, mas, não sei como, ele escapou.
Entre as regiões selvagens da Tartária e da Rússia, embora empreen-
dendo fuga, seguia constantemente seu rastro. Por vezes, os campone-
ses, assustados pela aparência horrenda da criatura, informavam-me sua
direção. Às vezes, ele mesmo, receando por meu desespero e minha
morte caso perdesse totalmente a pista, deixava alguma marca para me
guiar. A neve caia em minha cabeça quando vi pegadas imensas na pla-
nície branca. Como o senhor, ao ingressar na vida pela primeira vez, pa-
ra quem a cautela é algo novo e a agonia, desconhecida, como poderia
compreender o que senti e ainda sinto? Frio, privações e cansaço eram
as menores dores que estava destinado a suportar. Fora amaldiçoado
por um demônio e trazia comigo meu inferno eterno. Entretanto, um
espírito do bem seguiu e guiou meus passos e, quando mais lamentava,
subitamente, desenredava-me das aparentes dificuldades intransponí-
veis. Às vezes, quando minha natureza, sobrepujada pela fome, sucum-
bia de exaustão, no deserto era preparado um repasto que me restaurava
e animava. A comida era, de fato, rústica, tal como se alimentavam os
camponeses da região, mas não tenho dúvidas de que era posta pelos es-
píritos que invoquei para me auxiliar. Muitas vezes, quando tudo estava
seco, o firmamento limpo e eu me via ressequido de sede, uma nuvem
débil ofuscava o céu e derramava umas parcas gotas que me reviviam,
desaparecendo logo após.
Segui, quando pude, o curso dos rios, mas, em geral, o demônio os
evitava, pois era ali que principalmente se reuniam os habitantes da re-
gião. Em outros lugares raramente eram vistos seres humanos e, em ge-
ral, alimentava-me de animais selvagens que cruzavam meu caminho.
Trazia dinheiro comigo e ganhei a amizade dos aldeões ao distribui-lo;
ou, levando alguma caça, servia-me de uma pequena porção e oferecia o
restante àqueles que me forneciam fogo e utensílios para cozinhá-la.
Minha vida, da maneira como transcorria, era para mim, na verdade,
odiosa e apenas durante o sono podia experimentar alegria. Oh, sono
bendito! Muitas vezes, quando me sentia deveras infeliz, repousava, e os
sonhos embalavam-me até o êxtase. Os espíritos que me guardavam
proporcionaram esses momentos, ou melhor, as horas de felicidade que
conservavam em mim forças para completar a peregrinação. Privado
desse repouso, teria sucumbido ante as dificuldades. Durante o dia era
sustentado e inspirado pela esperança da noite, pois em sonhos via meus
amigos, minha esposa e meu amado país; mais uma vez via a face bene-
volente de meu pai, ouvia o tom eloquente da voz de Elizabeth e con-
templava Clerval esbanjando saúde e juventude. Inúmeras vezes, quan-
do esgotado por uma caminhada penosa, convencia-me de que estava
sonhando até que viesse a noite e, então, pudesse desfrutar a realidade
nos braços dos amigos queridos. Que afeto agonizante sentia por eles!
Como apegava-me às suas imagens queridas, assim como, por vezes,
mesmo durante a vigília, assombravam-me e me convenciam de que ain-
da estavam vivos! Nesses momentos, a vingança, que ardia dentro de
mim, morria no coração e então eu procurava o caminho para a destrui-
ção do demônio mais como uma tarefa ordenada pelos céus, como um
impulso mecânico de alguma potência desconhecida, do que como um
desejo ardente de minha alma.
Os sentimentos daquele que perseguia eram a mim desconhecidos.
Ocasionalmente, na verdade, deixava marcas por escrito nos troncos das
árvores ou gravadas nas pedras que me guiavam e instigavam minha fú-
ria. “Meu reinado ainda não acabou” (tais palavras eram legíveis em
uma dessas inscrições); “Viva, e meu poder é total. Siga-me; busco os
gelos eternos do norte, onde sentirá o tormento do frio e das geadas,
aos quais sou impassível. Encontrará-me próximo a esse local; caso ve-
nha em meu encalço, não se atrase e encontrará uma lebre morta; coma
e reanime-se. Venha, meu inimigo; ainda temos de lutar por nossas vi-
das; todavia, deve suportar muitos momentos difíceis e infelizes até que
chegue essa hora.”
Demônio zombador! Mais uma vez juro vingança; mais uma vez
prometo a ti, inimigo miserável, tortura e morte. Jamais desistirei dessa
busca até que um de nós pereça e, então, com que enlevo unirei-me à
minha Elizabeth e aos finados amigos que, mesmo agora, preparam para
mim a recompensa dessa tediosa labuta e horrível peregrinação!
À medida que seguia para o norte, a neve se acumulava e o frio era
insuportável. Os camponeses estavam trancados em seus abrigos e ape-
nas alguns dos mais intrépidos se aventuravam a caçar, forçados a sair
dos esconderijos para procurar presas. Os rios estavam cobertos de gelo
e não se via peixe algum. Dessa forma, fiquei sem minha principal fonte
de sustento.
O triunfo de meu inimigo aumentou com as dificuldades da labuta.
Uma inscrição que deixou continha as seguintes palavras: “Prepare-se!
Suas fadigas apenas começaram; envolva-se em peles e consiga alimento,
pois logo entraremos em uma jornada em que seus sofrimentos satisfa-
rão meu ódio eterno”.
Minha coragem e perseverança foram revigoradas por tais palavras
de escárnio. Decidi não falhar em meu propósito; e, clamando aos céus
por ajuda, prossegui com fervor inquebrantável, atravessando desertos
imensos, até que o oceano surgiu à distância e tornou-se o limite último
do horizonte. Oh! Como ele era diferente nos sítios azuis do sul! Co-
berto de gelo, distinguia-se da terra apenas pela turbulência e irregulari-
dade mais acentuadas. Os gregos choraram de alegria ao ver o Mediter-
râneo das colinas da Ásia e saudaram, extasiados, o marco de seu duro
empenho.[1] Não chorei, mas ajoelhei-me, com o coração pleno, e agra-
deci ao espirito guia por conduzir-me em segurança ao local em que es-
perava, não obstante o sarcasmo do adversário, encontrá-lo e abordá-lo.
Algumas semanas antes conseguira um trenó e cães e, desse modo,
atravessei as neves com uma rapidez incrível. Não sabia se o inimigo
possuía as mesmas vantagens, mas descobri que, apesar de diariamente
perder terreno na busca, agora ganhava: tanto que, ao avistar o oceano
pela primeira vez, ele estava apenas a um dia de distância. Eu esperava
interceptá-lo antes que pudesse chegar à praia. Com coragem renovada,
portanto, apressei-me e, em dois dias, cheguei a um lugarejo miserável à
beira-mar. Inquiri os moradores a respeito do inimigo e obtive informa-
ções precisas. Um monstro gigantesco, contaram, chegara na noite ante-
rior, munido de uma espingarda e muitas pistolas, pondo a correr os ha-
bitantes de um chalé solitário por temor de seu aspecto terrível. Levou
consigo o estoque de alimentos para o inverno, arrumando-os em um
trenó e, para arrastá-lo, capturara uma numerosa matilha de cães treina-
dos; arreara-os e, naquela mesma noite, para a alegria dos aldeões hor-
rorizados, seguiu viagem pelo mar em direção a terra alguma. Conjectu-
raram que deveria ser rapidamente destruído pelo gelo que se partia ou
congelado pelas geadas eternas.
Ao ouvir essa informação, tive um acesso de desespero temporário.
Ele me escapara e tinha de começar uma jornada destrutiva e quase sem
fim pelas montanhas de gelo do oceano, em meio ao frio que poucos
nativos conseguiriam suportar por muito tempo, em um ambiente onde
eu, natural de um clima ensolarado e ameno, não poderia esperar sobre-
viver. No entanto, com a ideia de que o demônio poderia viver e triun-
far, a ira e a vingança retornaram e, como uma corrente poderosa, soter-
raram qualquer outro sentimento. Após um breve descanso, durante o
qual os espíritos dos mortos pairaram ao meu redor e instigaram-me à
luta e à desforra, preparei-me para a viagem.
Troquei o trenó de terra por um apropriado para as irregularidades
de um oceano congelado e, após adquirir um bom estoque de provisões,
parti da terra.
Não posso dizer quantos dias se passaram desde então; mas experi-
mentei tormentos que nada, senão o sentimento de retribuição justa que
ardia em meu coração, teria permitido suportar. Montanhas de gelo
imensas e encrespadas muitas vezes bloqueavam a passagem e ouvi, com
frequência, o estrondo do assoalho marítimo que ameaçava me destruir.
Entretanto, mais uma vez, veio a geada, tornando seguros os caminhos
do mar.
Pela quantidade de provisões que consumira, suponho que tenham
transcorrido três semanas nessa jornada e a continua delonga das espe-
ranças, retornando ao coração, muitas vezes fez derramar de meus
olhos lágrimas amargas de prostração e pesar. O desespero, na verdade,
quase garantira sua presa e logo deveria sucumbir a essa angústia. Certa
vez, depois que os pobres animais que me carregavam com imenso la-
bor chegaram ao cume de uma íngreme montanha de gelo e um deles,
entregue à fadiga, morreu, vislumbrei a imensa superfície que se esten-
dia diante de mim com aflição, quando, de repente, meus olhos avista-
ram um ponto negro na planície sombria. Apurei a vista para descobrir
o que poderia ser e soltei um grito de entusiasmo selvagem quando dis-
tingui um trenó e, nele, as proporções disformes de uma figura bastante
conhecida. Oh! Com que júbilo ardente a esperança voltou ao meu co-
ração! Lágrimas cálidas encheram-me os olhos, as quais prontamente
enxuguei para que não obstruíssem a visão que tinha do demônio; po-
rém, ainda assim, minha vista turvou-se com umas lágrimas quentes até
que, dando vazão às emoções que me oprimiam, chorei abertamente.
Entretanto, não era a hora para estender-me em delongas. Livrei os
cães do companheiro morto, dei-lhes uma boa porção de ração e, depois
de uma hora de descanso absolutamente necessária, embora cruelmente
penosa para mim, prossegui viagem. O trenó ainda era visível e não o
perdi de vista, a não ser quando, por breves momentos, algum rochedo
gelado o ocultava entre os penhascos. Era perceptível que eu ia ganhan-
do terreno e quando, após quase dois dias de viagem, contemplei meu
inimigo a não mais que um quilômetro e meio de distância, o coração
saltou em meu peito.
Agora, contudo, quando parecia estar quase ao alcance de meu ini-
migo, subitamente as esperanças se extinguiram e perdi por completo
seu rastro, como jamais ocorrera antes. Ouvi o assoalho do mar: o ri-
bombar de seu curso, conforme as águas rolavam e ondulavam aos
meus pés, tornaram cada momento mais ameaçador e terrível. Apressei-
me, mas em vão. O vento aumentou, o mar rugiu e, com o abalo poten-
te de um terremoto, o solo de gelo rachou e partiu-se com um som tre-
mendo e opressivo. O trabalho logo estaria terminado: em poucos mi-
nutos, um mar tumultuado revolvia ao redor de mim e de meu inimigo,
e fiquei à deriva em uma placa de gelo que diminuía continuamente,
preparando-me, dessa maneira, para uma morte medonha.
Assim, muitas horas apavorantes se passaram; vários cães faleceram
e eu mesmo estava prestes a sucumbir ao acúmulo de dificuldades quan-
do vislumbrei sua embarcação ancorada, oferecendo-me esperança de
socorro e vida. Não tinha ideia de que os barcos chegassem tão ao norte
e fiquei espantado diante de tal visão. Rapidamente destruí parte do tre-
nó para confeccionar remos e, assim, fui capaz, com cansaço infinito, de
mover a balsa de gelo na direção do navio. Havia decidido que, se esti-
vesse indo para o sul, preferiria me entregar à mercê do mar a abando-
nar meu propósito. Esperava induzi-los a me dar um bote com o qual
pudesse perseguir o adversário. A direção que seguiam, porém, era nor-
te. Trouxe-me a bordo quando minhas energias se exauriam e logo, tra-
gado pelas múltiplas privações, veria a morte que ainda abomino, pois
minha tarefa está inacabada.
Oh! Quando o espirito guia me conduzirá ao demônio, permitindo-
me o repouso que tanto anseio? Ou deverei morrer enquanto ele ainda
vive? Se assim for, jure-me, Walton, que ele não escapará. Que você ha-
verá de buscá-lo, satisfazendo minha vingança com sua morte. Mas ou-
so pedir-lhe para aceitar minha peregrinação, suportando as dificulda-
des pelas quais passei? Não. Não sou tão egoísta. Entretanto, quando
eu estiver morto, caso ele apareça, se os ministros da vingança lhe con-
duzirem, prometa que ele não viverá — prometa que ele não fará brava-
tas do conjunto de meus sofrimentos, sobrevivendo para acrescentá-los
à lista de seus crimes nefastos. Ele é eloquente e persuasivo e, certa vez,
suas palavras tomaram meu coração; mas não confie nele. A alma é tão
infernal quanto a forma, cheia de perfídia e malícia diabólica. Não lhe
dê ouvidos; invoque os nomes de William, Justine, Clerval, Elizabeth,
de meu pai e do infeliz Victor, e trespasse sua espada no coração dele.
Estarei pairando próximo a você e conduzirei a lâmina para que seja
certeira.
CARTA

Wal ton,
CONTINUAÇÃO EM CARTAS

26 de agosto de 17—
Leste essa história estranha e terrível, Margaret, e não sentes seu sangue
congelar de horror como até hoje ocorre comigo? Ás vezes, tomado de
agonia súbita, era-lhe impossível prosseguir o relato; em outras, sua voz
falha, embora penetrante, proferia com dificuldade as palavras repletas
de angústia. Seus olhos belos e adoráveis iluminavam-se nos momentos
de indignação, agora baixos, dominados por uma tristeza desalentadora
e arrefecidos pela miséria infinita. Em certas ocasiões, controlava as ex-
pressões faciais e o tom, relatando os incidentes mais horríveis com voz
tranquila, suprimindo qualquer sinal de agitação; então, como o irrom-
per de um vulcão, suas faces mudavam, de repente, para exprimir a fúria
mais feroz quando gritava imprecações ao perseguidor.
Sua narrativa é conexa e fora contada com a aparência da verdade
mais simples; contudo, devo revelar a você que as cartas de Félix e Safie
que ele me apresentou e a aparição do monstro visto de nosso navio
convenceram-me mais da verdade do relato que as afirmações, embora
zelosas e coerentes. Esse monstro, então, existia de verdade! Não posso
duvidar, embora esteja desnorteado pela surpresa e admiração. Por ve-
zes, tentei conseguir de Frankenstein os detalhes da formação de sua
criatura, mas, nesse particular, era impenetrável.
— Está louco, meu amigo? — perguntou-me. — Até que ponto sua
curiosidade disparatada o levará? Faria também para você e para o mun-
do um inimigo demoníaco? Aquiete-se, aquiete-se! Aprenda de meus
infortúnios e não busque aumentar os seus.
Frankenstein descobriu que fiz anotações a respeito de sua história.
Pediu para vê-las e, assim, ele mesmo corrigiu-as e ampliou-as em mui-
tos pontos, mas, principalmente, ao dar vida e espírito aos diálogos que
travou com o inimigo.
— Já que preservou minha narração — disse —, não gostaria que
passasse-a mutilada à posteridade.
Assim transcorreu uma semana, durante a qual ouvi o conto mais
estranho que minha imaginação poderia imaginar. Meus pensamentos e
cada sentimento de minha alma foram embebidos pelo interesse que
meu hóspede despertara, tanto por essa narrativa quanto por seus mo-
dos elevados e gentis. Gostaria de acalmá-lo; no entanto, estaria ao meu
alcance trazer à vida alguém tão infinitamente miserável, tão destituído
de esperanças de consolação? Oh, não! A única alegria que agora pode-
rá conhecer será a integração de seu espirito alquebrado na paz e na
morte. Desfruta, contudo, de um alento, o fruto da solidão e do delírio.
Crê que, quando em sonho, conversa com os amigos, auferindo de tal
comunhão consolo para suas infelicidades ou entusiasmo para a vingan-
ça, que tais criaturas não são fruto da fantasia, mas acredita na presença
real dos seres que o visitam das regiões de um mundo remoto. Essa fé
confere solenidade aos devaneios que se apresentam a mim quase como
uma imposição, tão interessantes quanto a verdade.
Nossas conversas nem sempre estão restritas à sua própria história e
infortúnios. Em todos os assuntos de literatura geral, apresenta um co-
nhecimento sem limites e uma compreensão rápida e penetrante. Sua
eloquência é convincente e tocante; não consigo ouvi-lo, quando relata
um incidente patético ou se esforça em evocar pena ou amor, sem derra-
mar lágrimas. Que criatura gloriosa deveria ser nos dias de prosperida-
de, quando é assim tão nobre e divino na ruína! Parece sentir o próprio
valor e a grandeza de sua destruição.
— Quando mais jovem — disse ele —, acreditei-me destinado a um
grande empreendimento. Meus sentimentos eram profundos, mas pos-
suía uma frieza de julgamento que me talhava para feitos ilustres. Esse
sentimento do valor de minha natureza me sustentava quando a outros
teria oprimido, pois julgava criminoso desperdiçar, em preocupações
inúteis, os talentos que poderiam ser valiosos para meus semelhantes.
Quando refleti a respeito da obra que completara, nada menos que a
criação de um animal sensitivo e racional, não podia classificar-me no
rebanho dos artífices comuns. Esse pensamento, todavia, que me auxili-
ava no início da carreira, agora só serve para afundar-me cada vez mais
no pó. Todas as minhas especulações e esperanças são como nada e, co-
mo o arcanjo que aspirou a onipotência, estou acorrentado ao inferno
eterno. Minha imaginação era vívida, entretanto, a capacidade de análise
e aplicação eram intensas. Com a união dessas qualidades, concebi a
ideia e executei a criação de um homem. Mesmo agora, não posso re-
cordar sem paixão de meus delírios enquanto a obra estava incompleta.
Em meus pensamentos, entrara no céu, exultando, naquele momento,
em minhas capacidades, abrasado pela ideia de seus efeitos. Desde a in-
fância, fui imbuído de grandes esperanças e ambições elevadas, mas co-
mo sucumbi! Oh, meu amigo, acaso tivesse me conhecido como fui ou-
trora, não me reconheceria nesse estado de degradação. O desânimo ra-
ramente visitava meu coração; parecia amparado por um destino ímpar,
até cair para nunca, nunca mais levantar.
Devo, então, perder esse ser admirável? Desejei um amigo, busquei
um que pudesse simpatizar comigo e amar-me. Veja, nestes mares deser-
tos encontrei tal ser, mas temo que o ganhei somente para conhecer seu
valor e perdê-lo. Congraçaria-lhe com a vida, mas ele repudia a ideia.
— Agradeço-lhe, Walton — declarou —, por suas boas intenções
para com um ser tão infeliz quanto eu, porém, quando fala de novos la-
ços e afeições revigoradas, pensa que alguém pode substituir aqueles
que se foram? Poderá algum homem ser o que Clerval foi para mim?
Ou qualquer mulher, outra Elizabeth? Mesmo onde as afeições não são
fortemente movidas por uma excelência superior, os companheiros de
nossa infância sempre possuem certo poder sobre nossas mentes, o qual
dificilmente um amigo mais recente poderá obter. Conhecem nossas
disposições pueris que, conquanto sejam posteriormente modificadas,
nunca são erradicadas. E podem julgar nossas ações com conclusões
mais acertadas quanto à integridade de nossos motivos. Uma irmã ou
um irmão nunca podem, a menos que, de fato, tais sintomas sejam de-
monstrados de forma prematura, suspeitar mutuamente uma fraude ou
acordos falsos, ao passo que outro amigo, não obstante quão forte seja
o laço, pode, a despeito de si mesmo, ser contemplado com tal suspei-
ção. No entanto, desfrutei dos amigos, meu caro, não só por hábito e
associação, mas por seus próprios méritos e, onde quer que esteja, a voz
branda de minha Elizabeth e as conversas de Clerval sempre murmura-
rão em meus ouvidos. Estão mortos, e apenas um sentimento pode per-
suadir-me a preservar minha vida. Caso estivesse envolvido em algum
empreendimento elevado ou projeto de plena utilidade para meus seme-
lhantes, então deveria viver para completá-lo. Esta, todavia, não é mi-
nha sina. Devo perseguir e destruir o ente a quem dei existência e, en-
tão, terei cumprido meu fado neste mundo, vendo-me livre para morrer.

2 de setembro—
Amada irmã, escrevo-lhe rodeado de perigos e ignoro se me será permi-
tido ver novamente a amada Inglaterra e os caros amigos que lá residem.
Estou cercado por montanhas de gelo que não admitem escapatória e
ameaçam, a todo momento, esmagar minha embarcação. Os bravos
companheiros, aos quais convenci que me acompanhassem, olham para
mim em busca de socorro, mas nada posso lhes oferecer. Há alguma
coisa terrivelmente apavorante em nossa situação, ainda assim, a cora-
gem e as esperanças não me deserdaram. Entretanto, é terrível refletir
que a vida de todos esses homens esteja em risco por minha causa. Se
estamos perdidos, meus planos insanos são o porquê.
E qual seria, Margaret, seu estado de espirito? Ouvirá acerca de mi-
nha destruição e aguardará ansiosamente meu retorno. Os anos passa-
rão e será afligida pelo desespero e, ainda assim, torturada pela esperan-
ça. Oh! Querida irmã, o nauseante colapso das expectativas de seu cora-
ção é, em perspectiva, mais terrível para mim que a própria morte. Mas
tem marido e filhos adoráveis; pode ser feliz. Que os céus a abençoem e
assim conservem!
Meu hóspede desafortunado olha para mim com a mais tenra com-
paixão. Esforça-se para incutir-me esperança e fala como se a vida fosse
um bem que devesse ser estimado. Recorda-me quantas vezes os mes-
mos acidentes aconteceram com outros navegadores que tentaram cru-
zar este mar e, a despeito de mim mesmo, enche-me de felizes augúrios.
Até mesmo os marinheiros sentem o poder de sua verve. Quando fala,
não se desesperam mais. Faz despertar as energias e, enquanto escutam
sua voz, acreditam que essas vastas montanhas são montículos de tou-
peiras que desvanecerão diante das resoluções dos homens. Esses senti-
mentos são transitórios. Cada dia de expectativa postergada enche-lhes
de medo, e quase temo um motim por tal desespero.

5 de setembro—
Ocorreu um incidente de interesse tão incomum que, apesar de ser mui-
tíssimo provável que esses papéis nunca a alcancem, não posso deixar de
registrar.
Ainda estamos cercados por montanhas de gelo, no perigo iminente
de sermos esmagados com uma colisão. O frio é excessivo e muitos ca-
maradas desafortunados já foram para a cova em meio a este cenário de-
solador. A saúde de Frankenstein piora a cada dia: uma chama febril
ainda brilha em seus olhos, mas está exausto e quando, de repente, é in-
citado a realizar qualquer esforço, rapidamente mergulha em aparente
inércia.
Mencionei, em minha última carta, os temores que nutria em relação
a um motim. Nessa manhã, enquanto estava sentado a observar o rosto
lívido de meu amigo — os olhos semicerrados e os membros pendentes,
lânguidos —, fui despertado por meia dúzia de marinheiros que exigiam
ser admitidos em meu camarote. Entraram, e o líder endereçou-se a
mim. Disse-me que ele e os companheiros foram escolhidos pelos ou-
tros tripulantes para propor, em delegação, o que, por justiça, não pode-
ria ser recusado. Estávamos emparedados pelo gelo e, provavelmente,
nunca escaparíamos; mas temiam que, se as montanhas se dissipassem,
liberando a passagem, eu pudesse ser imprudente o bastante para conti-
nuar a viagem e colocá-los em novos perigos. Insistiram, portanto, que
deveria prometer solenemente que, se a embarcação fosse liberada, mu-
daria no mesmo instante o curso rumo ao sul.
Esse discurso desconsertou-me. Não tinha perdido as esperanças
nem tinha considerado ainda a ideia de retornar caso fosse libertado.
Entretanto, poderia eu, por justiça ou mesmo como possibilidade, recu-
sar esse pedido? Hesitei antes de responder; então, Frankenstein, que de
início estivera calado e, na verdade, dificilmente parecia ter forças o bas-
tante para escutar, nesse momento, despertou. Os olhos brilharam e as
faces coraram com vigor momentâneo. Voltando-se para os homens,
disse:
— O que querem dizer com isso? O que pedem de seu capitão?
Desviam tão facilmente de seu propósito? Não chamam esta de uma ex-
pedição gloriosa? E, portanto, foi ela gloriosa? Não porque o caminho
foi fácil e plácido como o mar do sul, mas porque foi repleto de perigos
e terror, porque a cada novo incidente foi exigida sua fortaleza e cora-
gem. Porque o perigo e a morte o cercavam e foram valentes e se supe-
raram. Por isso, esta foi uma expedição gloriosa, por isso foi um em-
preendimento honroso. Devem, de hoje em diante, ser aclamados como
benfeitores da espécie, seus nomes adorados como se pertencessem aos
homens bravos que encontraram a morte pela honra e para o benefício
da humanidade. E agora, vejam, à primeira ideia de perigo ou, caso de-
sejam, o primeiro teste extremo e terrível de coragem, vocês correm e
contentam-se em ser tidos como homens que não tiveram força sufici-
ente para suportar o gelo e o perigo; e assim, pobres almas, estavam
com frio e voltaram para suas lareiras cálidas. Ora, isso não requer pre-
paro; não precisavam chegar tão longe e arrastar o capitão à ignomínia
da derrota simplesmente porque se mostram covardes. Oh! Sejam ho-
mens ou sejam mais que homens. Sejam firmes em seus propósitos e fir-
mes como rocha. Este gelo não é feito do mesmo material de seus cora-
ções; é mutável e não resistirá se disserem que não vai resistir. Não re-
tornem às suas famílias com o estigma da desgraça impresso nas frontes.
Retornem como heróis que lutaram e venceram e que não sabem o que
é dar as costas ao inimigo.
Fez esse discurso com uma voz tão modulada pelos diversos senti-
mentos expressos na fala, com um olhar tão cheio de propósitos subli-
mes e heroísmo que pode imaginar como esses homens ficaram tocados.
Olhavam uns para os outros e eram incapazes de responder. Falei. Dis-
se-lhes que se retirassem e considerassem o que fora dito: que não os le-
varia mais ao norte se desejassem tenazmente o contrário, mas esperava
que, com a reflexão, a coragem deles pudesse retornar.
Saíram e voltei-me para meu amigo, mas ele estava mergulhado em
langor e quase sem vida.
Como isso terminaria, não sei, mas preferiria morrer a retornar de-
sonrado, com meu objetivo inconcluso. Temo, contudo, que esse será
meu destino. Os homens, não amparados por ideias de glória e honra,
jamais poderiam continuar, de bom grado, a suportar as atuais dificul-
dades.

7 de setembro—
A sorte está lançada. Concordei em retornar se não fôssemos destruí-
dos. Assim estão minhas esperanças, arruinadas pela covardia e indeci-
são; volto ignorante e desapontado. Requer mais filosofia do que a que
possuo para suportar essa injustiça com paciência.

12 de setembro—
É passado; estou retornando à Inglaterra. Perdi as esperanças de utilida-
de e glória — perdi meu amigo. No entanto, esforçarei-me para detalhar
essas circunstâncias amargas para você, querida irmã, e enquanto nave-
go para nosso pais e para você, não desanimarei.
No dia 9 de setembro, o gelo começou a se mover e ouvimos ribom-
bos como trovões à distância enquanto as ilhas se partiam e rachavam
em todas as direções. Estávamos em perigo iminente, mas como só era
possível nos manter passivos, minha atenção estava voltada para meu
hóspede desafortunado, cuja doença aumentava em um grau tal que es-
tava totalmente confinado à cama. O gelo atrás de nós estalou e foi leva-
do com força para o norte. A brisa originou-se do oeste e, no dia 11, a
passagem para o sul ficou perfeitamente livre. Quando os marinheiros
perceberam isso e que o retorno para a terra natal estava aparentemente
assegurado, fez-se ouvir um grito tumultuoso de júbilo, alto e continua-
do. Frankenstein, que estava dormitando, acordou e perguntou o moti-
vo da balbúrdia.
— Gritam — respondi — porque logo retornarão à Inglaterra.
— Então, realmente retornará?
— Pobre de mim! Sim, não posso opor-me a eles. Não posso condu-
zi-los contra a vontade para o perigo e devo retornar.
— Faça isso, se quiser, mas eu não vou. Pode desistir de seu propó-
sito, mas o meu foi-me dado pelos céus, e não me atrevo. Estou fraco,
mas decerto os espíritos que assistem minha vingança me dotarão de
força suficiente.
Ao dizer isso, tentou levantar-se da cama, mas o esforço foi tão
grande para ele que caiu para trás e desmaiou.
Isso foi muito antes de recuperar-se e, por diversas vezes, pensei que
sua vida havia se extinguido completamente. Muito depois abriu os
olhos, respirou com dificuldade e estava incapacitado de falar. O médi-
co ministrou-lhe um calmante e ordenou que o deixássemos descansar.
Nesse meio-tempo, disse-me que o amigo decerto não teria muitas ho-
ras de vida.
Sua sentença fora dada e podia somente lamentar e ser paciente. Sen-
tei ao pé da cama, observando-o. Seus olhos estavam fechados e pensei
que dormia, mas no mesmo momento ele me chamou com uma voz dé-
bil e, pedindo que me aproximasse, disse:
— Ai de mim! A força que me sustentava se foi. Sinto que em breve
morrerei, e ele, meu inimigo e perseguidor, continuará a existir. Não
pense, Walton, que nos últimos momentos de minha existência sustento
aquele ódio abrasador e o ardente desejo de vingança que outrora ex-
pressei, mas sinto-me justificado em desejar a morte de meu adversário.
Durante esses últimos dias, estive ocupado em examinar minha conduta
passada, não que a creia censurável. Em um achaque de loucura apaixo-
nada, criei uma criatura racional e estava comprometido a assegurar-lhe,
até onde estava em meu alcance, sua felicidade e bem-estar. Este era meu
dever; mas havia um ainda mais proeminente. Os deveres para com os
seres de minha própria espécie tinham mais direito à minha atenção,
porque incluíam maior proporção de felicidade ou infelicidade. Incitado
por essa visão, recusei e tinha o direito de recusar a criar uma compa-
nheira para a primeira criatura. Demonstrou uma malignidade ímpar e
um egoísmo maléfico: destruiu meus amigos, dedicou-se à aniquilação
de seres que possuíam sensações requintadas, felicidade e sabedoria;
nem eu sei onde esse desejo de vingança pode terminar. Miserável, deve
morrer para que não torne mais ninguém infeliz. A tarefa de sua des-
truição era minha, mas falhei. Quando agi por motivos egoístas e per-
versos, pedi a você que aceitasse minha tarefa inacabada. Agora renovo
este pedido, quando movido somente pela razão e virtude.
“No entanto, não posso pedir que renuncie ao seu país e aos seus
amigos para cumprir tal tarefa. E, neste momento em que retorna à In-
glaterra, terá poucas oportunidades de encontrá-lo. As considerações
sobre tais pontos, todavia, e a ponderação bem-feita daquilo que julga
ser seu dever, deixo para você. Meu juízo e minhas ideias já estão per-
turbados pela aproximação da morte. Não ouso perguntar-lhe o que
pensa ser certo, pois ainda posso estar corrompido pela paixão.
“Que ele possa viver para ser um instrumento de injúrias, perturba-
me; em outros aspectos, este momento em que espero minha libertação
imediata traz uma felicidade que não desfruto há anos. As figuras dos
amados mortos passaram diante de mim e precipitei-me para seus bra-
ços. Adeus, Walton! Busque felicidade na tranquilidade e evite a ambi-
ção, mesmo que seja com o inocente desejo de distinguir-se nas ciências
e descobertas. Por que, no entanto, digo isso? Eu mesmo fui destruído
nessas esperanças, porém, outro poderá ser bem-sucedido.”
Sua voz tornou-se mais fraca enquanto falava e, por fim, exaurido
pelo esforço, mergulhou em silêncio. Cerca de meia hora depois, tentou
falar novamente, mas não foi capaz; apertou minha mão debilmente e
seus olhos se fecharam para sempre, enquanto um sorriso gentil desapa-
recia de seus lábios.
Margaret, que comentário posso fazer a respeito do fim prematuro
desse espírito glorioso? O que poderei dizer que faça com que com-
preenda a profundidade de meu pesar? Tudo o que está ao meu alcance
expressar seria inadequado e diminuto. As lágrimas fluem; minha mente
é ensombrada por uma nuvem de desapontamento. Entretanto, viajo
para a Inglaterra e aí devo encontrar consolo.
Sou interrompido. O que esses sons pressagiam? É meia-noite; a
brisa sopra ligeira e o vigia no convés quase não se move. Mais uma vez,
há um som como o de voz humana, todavia, mais rouca. Vem do cama-
rote onde ainda repousa o cadáver de Frankenstein. Devo levantar-me e
averiguar. Boa noite, minha irmã.
Bom Deus! Que cena acabara de acontecer! Ainda estou atordoado
com a lembrança. Quase não sei se tenho capacidade de descrevê-la; no
entanto, a história que relatei estaria incompleta sem essa catástrofe fi-
nal e espantosa.
Entrei no camarote onde jaziam os restos de meu malfadado amigo
admirável. Sobre ele, curvava-se uma figura que não encontro palavras
para descrever; de estatura gigantesca, embora canhestro e de propor-
ções distorcidas. Enquanto se inclinava sobre o caixão, seu rosto estava
escondido por longas madeixas de um cabelo desigual, mas uma mão
imensa estendia-se, em cor e aparência semelhantes a de uma múmia.
Quando percebeu que me aproximava, cessou de proferir exclamações
de pesar e horror e saltou em direção à claraboia. Jamais contemplei al-
go tão horrível quanto seu rosto, de tamanha repugnância e fealdade
apavorante. De maneira involuntária, cerrei os olhos e tentei recordar
quais eram meus deveres em relação ao destruidor. Insisti que ficasse.
Pausou, olhando-me espantado e, mais uma vez, voltando-se para a
figura inerte de seu criador, aparentou esquecer minha presença. Cada
traço e gesto seu pareciam instigados pela fúria selvagem de uma paixão
incontrolável.
— Esta também é minha vítima! — exclamou. — Neste assassinato,
meus crimes estão consumados; o curso miserável de minha existência
conheceu seu fim, oh, Frankenstein! Ser generoso e dedicado! De que
importa se agora peço que me perdoe? Eu, que irremediavelmente o
destruí ao exterminar todos que amou. Pobre de mim! Está frio, não
pode responder-me.
Sua voz parecia sufocada, e meus primeiros impulsos, que sugeriam-
me obedecer ao pedido de meu amigo feito no leito de morte, foram
sustados por um misto de curiosidade e compaixão. Aproximei-me des-
se ser enorme; não ousava levantar os olhos para seu rosto, havia algu-
ma coisa deveras apavorante e sobrenatural em sua feiura. Tentei falar,
mas as palavras morriam em meus lábios. O monstro continuava a pro-
ferir censuras ferozes e incoerentes a si mesmo. Por fim, tomei a decisão
de dirigir-me a ele, aproveitando-me de uma pausa da tormenta de sua
paixão.
— Seu arrependimento — afirmei — agora é supérfluo. Se tivesse
ouvido a voz da consciência e atendido as ferroadas do remorso antes
de insistir em sua vingança diabólica ao extremo, Frankenstein ainda es-
taria vivo.
— Você sonha? — perguntou o demônio. — Pensa que, então, esta-
va imune à agonia e ao remorso? — continuou, apontando para o cor-
po. — Ele não sofreu na consumação da façanha. Oh! Nem um décimo
de milésimo do que foi minha angústia durante o prolongado pormenor
de sua execução. Um egoísmo assustador impelia-me, à medida que
meu coração era envenenado pelo remorso. Pensa que os gemidos de
Clerval foram música para meus ouvidos? Meu coração foi feito para
ser suscetível ao amor e à compaixão e, quando conduzido pela infelici-
dade ao vício e ao ódio, não suportou a violência da mudança sem afli-
gir-se de um modo que jamais poderá imaginar.
“Após o assassinato de Clerval, voltei para a Suíça, de coração parti-
do e derrotado. Tinha pena de Frankenstein; meu pesar importava em
horror, abominava-me. No entanto, quando descobri que ele, o autor,
apesar de minha existência e de seus inexprimíveis tormentos, ousava
esperar pela felicidade; que, enquanto acumulava em mim miséria e de-
sespero, buscava o deleite próprio em sentimentos e paixões das quais
eu seria para sempre privado, então, a inveja impotente e a indignação
amarga encheram-me de uma sede insaciável por vingança. Recordei
minha ameaça e decidi que seria realizada. Sabia que preparava para
mim uma tortura mortal, mas era o escravo, e não o mestre, de um im-
pulso que detestava e que, no entanto, não podia desobedecer. Entre-
tanto, quando ela morreu! Não, não estava extremamente infeliz. Tinha
abandonado todo o sentimento, dominado toda a angústia para malba-
ratar o excesso de meu desespero. O mal, daí em diante, tornou-se meu
bem. Uma vez nesse extremo, não tive escolha senão adaptar minha na-
tureza a um elemento que escolhera de bom grado. O término de meu
desígnio demoníaco tornou-se uma paixão insaciável. E agora está ter-
minado; eis minha última vítima!”
Em um primeiro momento fiquei comovido pela expressão de sua
infelicidade; contudo, quando rememorei o que Frankenstein dissera
sobre sua capacidade de eloquência e persuasão e quando, mais uma
vez, lancei os olhos para a figura sem vida de meu amigo, a indignação
reacendeu em mim.
— Miserável! — exclamei. — Está bem que venha aqui lamuriar a
respeito da desolação que causou. Lança uma tocha em uma pilha de
prédios e, quando são consumidos pelo fogo, senta entre as ruínas e la-
menta a queda. Demônio hipócrita! Se aquele que pranteia ainda vives-
se, continuaria sendo o objetivo, mais uma vez seria a presa de sua mal-
dita vingança. Não é pena o que sente; lamenta somente porque a vítima
de sua malignidade foi retirada de seu poder.
— Oh, não é assim! Não desse modo! — interrompeu a criatura. —
Muito embora essa seja a impressão que teve daquilo que parece ser o
propósito de minhas ações. No entanto, não busco comiseração em mi-
nha angústia. Jamais encontrarei compaixão. Quando primeiramente a
busquei, o que desejava comunicar era o amor à virtude, os sentimentos
de felicidade e afeição que transbordavam de todo o meu ser. Agora,
porém, que a virtude tornou-se para mim uma sombra, e a felicidade e a
afeição transformaram-se em um desespero amargo e repugnante, em
que deveria buscar simpatia? Contento-me em sofrer sozinho enquanto
perdurarem as penas. Quando morrer, fico satisfeito que a aversão e o
opróbrio adulterem minha lembrança. Outrora minhas fantasias eram
amainadas com sonhos de virtude, de fama e de divertimento, uma vez
que esperei, enganosamente, encontrar-me com seres que, perdoando
minha forma exterior, me amariam pelas qualidades superiores que era
capaz de ostentar. Estava nutrido por pensamentos elevados de honra e
lealdade. Agora, contudo, o crime degradou-me e pôs-me abaixo do pi-
or dos animais. Não há culpa, ofensa, malignidade, miséria existente
que possa ser comparada à minha. Quando percorro o catálogo medo-
nho de meus crimes, não acredito ser a mesma criatura cujos pensamen-
tos, certa vez, estavam repletos de visões sublimes e transcendentes da
beleza e da excelência da bondade. Mas é assim; o anjo decaído torna-se
um diabo maligno. Entretanto, mesmo esse adversário de Deus e dos
homens tinha amigos e companheiros na desolação. Eu estou só.
“Você, que chama Frankenstein de amigo, parece ter conhecimento
de meus crimes e dos infortúnios dele. Os detalhes, porém, que ele ofe-
receu de tais feitos não resumem as horas e os meses de desdita que su-
portei, perdido em paixões impotentes. Enquanto destruía suas espe-
ranças, não satisfiz meus desejos. Eram eternamente impetuosos e po-
tentes; ainda desejava amor e companhia, que me eram recusados com
desprezo. Não havia nisso injustiça? Devo ser considerado o único cri-
minoso, quando toda a humanidade pecou contra mim? Por que não
odeia Félix, que afugentou seu amigo da porta com insolência? Por que
não execra o homem rude que tentou destruir o salvador de sua crian-
ça? Não, esses são seres virtuosos e imaculados! Eu, o miserável e o
abandonado, sou um aborto a ser rejeitado, chutado e pisado. Mesmo
agora, meu sangue ferve ao rememorar tais injustiças.
“Mas é verdade que sou um desgraçado. Matei seres adoráveis e de-
samparados. Estrangulei o inocente enquanto dormia e apertei com for-
ça o pescoço que nunca causou mal a mim ou a qualquer outro ser vi-
vente. Entreguei meu criador, um espécime em tudo digno de amor e
admiração entre os homens, à miséria. Persegui-o até a ruína irremediá-
vel. Ei-lo aqui; jaz alvo e gélido pela morte. Detesta-me, mas seu des-
dém não se equipara ao que nutro por mim mesmo. Olho para as mãos
que executaram o ato. Penso na alma em que ele foi imaginado e anseio
pelo momento em que tais mãos encontrarão meus olhos, quando a
imaginação não assombrará mais meus pensamentos.
“Não temas. Não serei o instrumento de danos futuros. Minha obra
está quase completa. Nem sua morte, nem a de qualquer homem é ne-
cessária para consumar o curso de minha existência e realizar o que de-
ve ser feito, apenas a minha é exigida. Não pense que serei lento em rea-
lizar tal sacrifício. Deixarei seu navio na balsa de gelo que me trouxe pa-
ra cá e rumarei para o extremo norte do globo. Farei uma pira funerária
e consumirei nas chamas esta carcaça miserável, de modo que meus res-
tos não possam lançar luzes para nenhum patife curioso e ímpio que
possa criar outro como eu. Morrerei. Não sentirei mais as agonias que
neste momento me consomem ou serei presa de sentimentos insatisfei-
tos e inextinguíveis. Aquele que me trouxe à vida está morto; e quando
eu deixar de existir, a própria lembrança de ambos se esvairá rapida-
mente. Não mais verei o sol ou as estrelas ou sentirei o vento bater em
meu rosto. Luz, sentimentos e sentidos morrerão. Alguns anos atrás,
quando as imagens que o mundo oferece mostraram-se a mim pela pri-
meira vez, quando senti a calidez consoladora do verão, ouvi o rumor
das folhas nas árvores, o gorjeio dos pássaros e isso era tudo para mim,
teria lamentado a morte que, agora, é meu único consolo. Contaminado
por crimes e destruído pelo mais amargo remorso, onde encontrar re-
pouso senão na morte?
“Adeus! Deixo-o e, em ti, o último ser humano que estes olhos ja-
mais contemplarão. Adeus, Frankenstein! Caso ainda estivesse vivo e
acalentasse o desejo de vingar-se de mim, este seria mais bem saciado
por minha vida do que por minha destruição. No entanto, não foi o ca-
so. Buscou minha extinção, de modo que não causasse tanta miséria e,
ainda assim, de uma maneira por mim desconhecida, não cessou de pen-
sar e sentir, não desejou contra mim uma vingança maior do que aquela
que sinto. Maldito como foi, minha agonia se mostrou ainda mais excel-
sa que a sua, pois o aguilhão amargo do remorso não deixará de infla-
mar-se em minhas chagas até que a morte as cure para sempre.
“Todavia, em breve — bradou com entusiasmo triste e solene —
morrerei, e o que agora sinto não terá mais lugar. Logo, essa sina chega-
rá ao fim. Subirei triunfante em minha pira fúnebre e exultarei na agonia
das chamas torturantes. O clarão desse fogo se desvanecerá; minhas cin-
zas serão varridas pelo vento em direção ao mar. Meu espírito repousará
em paz; ou se raciocinar, certamente, assim não o fará. Adeus.”
Assim que terminou de proferir tais palavras, a criatura saltou pela
janela do camarote para a balsa de gelo próxima à embarcação. E logo
foi levada para longe pelas ondas, perdendo-se na escuridão e na distân-
cia.

—fim—
SOBRE FRANKENSTEIN
OU
o Prometeu moderno.*

O romance Frankenstein ou o Prometeu moderno é, sem dúvida, como


mera história, uma das produções mais originais e completas de nossos
dias. Perguntamo-nos, maravilhados, enquanto o lemos, qual poderia
ter sido a série de pensamentos — ou que espécie de experiências pecu-
liares poderia tê-la despertado —, conduzindo, na mente da autora, até
as combinações surpreendentes de motivos e incidentes e às catástrofes
alarmantes que compõem a narrativa. Existem, talvez, alguns pontos de
importância secundária que provam ser este o primeiro experimento li-
terário de Mary Shelley. Nesse juízo, entretanto, que requer um exce-
lente discernimento, podemos estar errados, pois o trabalho foi condu-
zido do começo ao fim com mão firme e segura. O interesse pouco a
pouco multiplica-se e progride rumo ao desfecho com a célere rapidez
de uma rocha que desce a montanha. O suspense e a comiseração tira-
nos o fôlego, acumulamos incidente após incidente e assistimos ao ope-
rar de paixão em paixão. Exclamamos: “Pare! Pare! Estou cansado!”[1]
— mas ainda há algo à espreita e, assim como a vítima cuja história rela-
ta, julgamos que não somos capazes de superar nada mais; no entanto,
mais ainda está por vir. Pélion é colocado sobre Ossa, e Ossa, no Olim-
po.[2] Subimos cume após cume, até que o horizonte diante dos olhos
figure vazio, vago e ilimitado, a cabeça tonteie e o chão pareça faltar aos
pés.
Este romance pretende ser a fonte de uma emoção potente e profun-
da. Os sentimentos elementares da razão humana são revelados aos
olhos, e aqueles acostumados a raciocinar profundamente acerca de sua
origem e tendência serão, talvez, os únicos capazes de compreender in-
teiramente o proveito das ações que deles resultam. Entretanto, funda-
dos na natureza como são, talvez não exista leitor incapaz de sentir to-
car no mais fundo da alma uma fibra responsiva, pois nada assimila
além de uma nova história de amor. Os sentimentos são tão afetuosos e
inocentes, as personagens dos agentes subalternos deste drama inco-
mum são revestidas por uma mente tão gentil e tenra. As descrições dos
hábitos domésticos demonstram o mais simples e afetuoso caráter. O
pathos[3] é irresistível e profundo. Nem são os crimes e a iniquidade da
singular criatura, apesar de intimidantes e tremendos, o fruto de alguma
propensão inexplicável para o mal, mas derivados imperiosamente de
certas causas de todo adequadas à sua produção. São os rebentos, por
assim dizer, da necessidade e da natureza humana. Nisso consiste a mo-
ral deste livro, talvez a mais importante e de aplicação mais universal de
qualquer moral que possa ser compelida pelo exemplo. Trate mal uma
pessoa e ela se tornará perversa. Retribua o afeto com desprezo; deixe a
criatura ser tida, por qualquer motivo, como a escória da espécie; colo-
que-a à parte, como ser social, da comunidade e lhe imporá obrigações
irresistíveis: malevolência e egoísmo. É assim que, muitas vezes, na soci-
edade, os que são qualificados da melhor maneira para se tornarem ben-
feitores e ornatos são marcados, por algum acidente, pelo desdém e ape-
nados, por abandono e solidão do coração, como flagelo e maldição.
A coisa em Frankenstein é, sem dúvida, uma criatura medonha. Era
impossível que não recebesse dos homens o tratamento que levou às
consequências de sua natureza em caráter social. Era um aborto e uma
anomalia; e, embora sua mente fosse tal como mostravam as primeiras
impressões, afetuosas e cheias de sensibilidade moral, as circunstâncias
de seu existir, contudo, eram tão monstruosas e incomuns que, quando
tais consequências se desdobraram em ação, a bondade original foi aos
poucos transformada em uma misantropia inextinguível e vingança. A
cena do diálogo entre a criatura e o cego De Lacey no chalé é uma das
circunstâncias mais profundas e extraordinárias do pathos que sempre
recordamos. É impossível ler esse diálogo — e decerto muitos outros de
natureza um tanto semelhante — sem sentir o coração suspender o pul-
sar, maravilhado, e as lágrimas correrem pelo rosto! O encontro e a dis-
cussão entre Frankenstein e a criatura no mar de gelo quase se asseme-
lha, na realidade, às admoestações de Caleb William a Falkland.[4] Re-
corda-nos, de fato, algo do estilo e do caráter desse admirável escritor a
quem a autora dedicou a obra e cujas produções parece ter estudado.
Há somente uma instância, no entanto, em que podemos notar um mí-
nimo aspecto de imitação; e ei-la: o incidente de Frankenstein aportan-
do na Irlanda. No mais, o traço geral do conto, de fato, em nada se asse-
melha a algo precedente. Após a morte de Elizabeth, a história, como
uma corrente que flui cada vez mais rápida e profunda ao seguir o cur-
so, adquire uma solenidade irresistível, a energia magnífica e a rapidez
de uma tempestade.
A cena do adro da igreja, em que Frankenstein visita as campas de
sua família, a partida de Genebra e a jornada pela Tartária ao litoral do
oceano congelado parecem, de imediato, a terrível reanimação de um
cadáver e o curso sobrenatural de um espírito. A cena na cabine do na-
vio de Walton — o entusiasmo e a grandeza mais do que mortais da fala
da criatura diante do cadáver de sua vítima — é uma mostra de força in-
telectual e imaginativa, que, acreditamos, o leitor raramente reconhecerá
superada.
INTRODUÇÃO
AOS
Con tos

O nome de Mary Shelley, até meados da década de 1970, era conhecido


quase que exclusivamente pelo romance de horror e ficção científica
Frankenstein, lançado quando ela tinha vinte e um anos, e por seus es-
forços em publicar, postumamente, as obras do marido, o grande poeta
Percy Bysshe Shelley. Nascida em 1797, amiga e colega de luminares da
literatura do século XIX, como Lorde Byron e Washington Irving, hoje é
considerada uma das grandes figuras do romantismo inglês. Teve uma
produção literária consistente, escrevendo algumas dezenas de contos e
meia dúzia de romances — um deles voltado à ficção cientifica: o obs-
curo O último homem (1826), uma história pós-apocalíptica ambienta-
da no final do século XXI.[1]
Um caso exemplar em que a obra supera seu autor, Mary Shelley fi-
cou imortalizada por Frankenstein — livro que aborda precisamente a
busca pela perpetuação da vida. O sucesso imediato dessa obra causou
grande impacto na literatura e, mais ainda, em sua autora. O conceito da
criação de vida artificial e reanimação de tecidos mortos (ou adormeci-
dos) — tão inovador e ousado quanto grotesco e repugnante; por isso
mesmo, transitando entre a ficção especulativa e o horror gótico — re-
tornou em outros escritos da autora, em especial nos quatro contos fan-
tásticos que compõem a seleção a seguir e que tratam sobre a conquista
da imortalidade. A diferença é que, ao contrário do que acontece na
magnum opus de Shelley, há pouca ação da ciência; não há galvanismo,
eletromagnetismo, estudos sobre o poder da eletricidade em conceder
vida: os experimentos são de alquimia, magia ou mero acaso — às vezes,
não são sequer mencionados.
No conto “Valério: O romano reanimado”, escrito em 1819, apenas
um ano após a primeira edição de Frankenstein, a autora retorna ao te-
ma do morto trazido de volta à vida, desta vez sem qualquer explicação.
É o relato amargo de um cidadão da Roma Antiga que desperta no sé-
culo XIX e lamenta contemplar a condição arruinada de seu pais, uma
visão melancólica da inevitável passagem do tempo e da inadequação de
um homem que subitamente se encontra centenas de anos distante de
sua época natal. A escritora não chegou a concluir a obra: o fragmento
foi publicado pela primeira vez, a partir do manuscrito original, em
1976, na antologia Mary Shelley: Collected Tales and Stories, editada
por Charles E. Robinson. O conto é narrado, em sua primeira parte,
por Valério, o romano reanimado, e na parte final por sua protetora e
admiradora, Isabell Harvey. Os Shelley moravam na Itália nessa época e
o conto está repleto de referências a monumentos e figuras históricas da
Roma Antiga, embora com algumas inconsistências.
Em julho de 1826, Mary leu em jornais ingleses a história — supos-
tamente autêntica — de um cavalheiro britânico chamado Roger
Dodsworth, que havia sido encontrado congelado debaixo de uma ava-
lanche e foi reanimado depois de passar vários anos inanimado. A escri-
tora deve ter se maravilhado diante da semelhança desse relato com a
conclusão de seu livro Frankenstein, decidindo-se por redigir sua pró-
pria versão do ocorrido. O conto “Roger Dodsworth: O inglês reani-
mado” especula o que poderia ter acontecido ao peculiar personagem
quando despertou em um mundo tão mudado. A escritora o enviou pa-
ra a New Monthly Magazine, mas o conto foi recusado e seria publica-
do apenas postumamente, em 1863, na coletânea Yesterday and To-day.
A história da preservação criogênica do cavalheiro inglês logo se reve-
lou uma farsa, mas não sem antes o poeta Thomas Moore e o jornalista
William Cobbett também escreverem artigos sobre o sr. Dodsworth,
com abordagem mais irônica e muito distante do romantismo crédulo
de Mary Shelley.
O único dos quatro contos aqui reunidos que não aborda direta-
mente o tema da imortalidade é “Transformação”, de 1830, que também
é o primeiro dos dois únicos deste recorte que foi publicado na mesma
época em que foi escrito, no anuário literário The Keepsake for
MDCCCXXXI, no qual a escritora é identificada somente como “a autora
de Frankenstein”, epíteto que a acompanharia em grande parte de suas
obras menores publicadas em vida. “Transformação” conta a história de
um rapaz orgulhoso e irresponsável que, falido, desterrado e privado de
seu amor, é convencido por um anão sinistro a trocar de corpo com ele
pelo período de três dias, recebendo como pagamento um tesouro. O
conto teria sido inspirado no drama poético The Deformed Transfor-
med, de Lorde Byron, transcrito por Mary Shelley entre 1822 e 1823, a
pedido do autor, e publicado como fragmento em 1824. A obra de By-
ron relata a história de um corcunda atormentado que troca de corpo
com um estranho misterioso, que então passa a segui-lo. O autor reco-
nheceu ter se inspirado no romance The Three Brothers, de M.G.
Lewis, e no Fausto, de Goethe, mas o conceito do doppelgänger como
uma criatura sobrenatural, uma segunda personalidade maligna, que re-
presenta um dilema moral, está presente também em Frankenstein.
Por fim, temos “O imortal mortal”, conto escrito em 1833 e publi-
cado em dezembro do mesmo ano no livro The Keepsake for MDCCCXX-
XIV. Mary Shelley vendeu mais de vinte contos para coletâneas anuais
ao longo de dezessete anos, metade deles para The Keepsake, anuário
editado por Frederic Mansel Reynolds. “O imortal mortal” é, provavel-
mente, seu conto mais conhecido, republicado em inúmeras antologias
de literatura fantástica. Conta a história de Winzy, um jovem de vinte
anos, assistente de alquimista, que sofre uma desilusão amorosa e ad-
quire vida eterna depois de beber inadvertidamente um elixir da imorta-
lidade, acreditando tratar-se de uma poção que o curaria do amor. O
conto tem como personagem secundário o filósofo e ocultista Cornélio
Agrippa (1486–1535), que realmente existiu e é citado em Frankenstein
como um dos principais autores das leituras do cientista Victor
Frankenstein, juntamente com Alberto Magno e Paracelso. O conto é
inspirado no romance St. Leon: a Tale of the Sixteenth Century (1799),
escrito por William Godwin, pai de Mary Shelley, sobre um aristocrata
francês que perde sua fortuna em jogos de azar e recebe de um estranho
moribundo o elixir da vida, além do poder de multiplicar riquezas. Em
seu conto, Mary Shelley insere um pouco de leveza e humor em algu-
mas passagens, mas aborda de maneira trágica a imortalidade, como em
suas obras anteriores.
Uma série de tragédias pessoais na vida de Mary Shelley pode ter in-
fluenciado sua obsessão por temas como imortalidade e criação de vida
artificial. Sua mãe, a escritora feminista Mary Wollstonecraft, sofreu
uma infecção enquanto dava à luz e morreu dez dias depois. Três dos
quatro filhos de Percy e Mary faleceram ainda na infância, entre 1815 e
1819 — o mais velho deles, com três anos e meio —, e somente o quarto
filho chegou à idade adulta. No final de 1816, ano em que Frankenstein
foi escrito, a vida do casal foi abalada pelos suicídios de Fanny, meia-ir-
mã de Mary, e Harriet, a primeira esposa de Percy.
Mary havia fugido de casa aos dezesseis anos, para morar com
Percy, mas se casaram apenas depois que o poeta se tornou viúvo. Mu-
daram-se para a Itália em 1818 e, durante anos, enfrentaram graves pro-
blemas financeiros. Percy morreu em julho de 1822, pouco antes de
completar trinta anos, afogando-se no mar depois que seu veleiro foi
atingido por uma forte tempestade. Viúva aos vinte e cinco anos, Mary
Shelley nunca voltou a se casar, dedicando a maior parte de seus anos
restantes em imortalizar o nome do marido por meio de reedições e an-
tologias de obras do poeta, até sua morte, em 1851, aos cinquenta e três
anos.
— Carlos Primati,
JUNDIAÍ, novembro de 2016.
VALÉRIO:
O ROMANO REANIMADO

Por volta das onze horas da manhã, no mês de setembro, dois estranhos
desembarcaram na pequena baía formada pela ponta extrema do cabo
Miseno e do promontório de Bauli. O céu era de um azul sereno e o
mar refletia sua profundidade com uma tonalidade ainda mais escura.
Através da água clara, era possível ver as algas de várias e belas cores
crescendo nos destroços dos palácios romanos agora engolidos pelo
oceano. O sol brilhava forte, provocando um calor insuportável. Os es-
tranhos, ao desembarcar, imediatamente procuraram um lugar à sombra
onde pudessem se refrescar e se abrigar até que o sol começasse a se pôr
no horizonte. Eles buscaram os Campos Elíseos e, serpenteando entre
os choupos e as amoreiras adornadas pelas uvas que pendiam em cachos
abastados e maduros, sentaram-se sob a sombra das tumbas ao lado do
mar Morto.
Um desses estranhos era um inglês de alta posição, como podia ser
facilmente percebido por sua carruagem nobre e maneirismos cheios de
dignidade e liberdade. Seu companheiro — não posso compará-lo a na-
da que existe agora — tinha uma aparência semelhante à da estátua de
Marco Aurélio, na praça do Capitólio, em Roma. Plácidas e autoritá-
rias, suas feições eram romanas; à exceção de suas vestes, você o teria
imaginado como uma estátua de um dos romanos trazida à vida. Ele
usava roupas agora comuns em toda a Europa, mas que pareciam inade-
quadas para o homem, como se estivesse pouco habituado a elas. Assim
que se sentaram, ele começou a falar desta maneira:
— Prometi relatar-lhe, meu amigo, quais foram minhas primeiras
impressões em meu renascimento e como a aparência deste mundo, de-
cadente em comparação a como era antes, me surpreendeu quando a luz
do sol revisitou meus olhos depois de tê-los abandonado há muitas cen-
tenas de anos. E não poderia escolher um lugar melhor para esse relato.
Este foi o local escolhido por nossa antiga e venerável religião, por ser o
que melhor representava a ideia que os oráculos ofereceram ou que os
profetas receberam dos alegres descansos após a morte. Estes são túmu-
los de romanos. Este lugar foi muito mudado pela mão sacrílega do ho-
mem desde aqueles tempos, mas ainda preserva o nome de Campos Elí-
seos. Averno fica a uma curta distância daqui, e este mar que observa-
mos é o Mediterrâneo, azul e impassível, enquanto todo o resto carrega
as marcas da servidão e da degradação.
“Perdoe-me; você é um homem inglês e dizem que é livre em seu
país, um pais desconhecido na época em que vivi, mas os miseráveis ita-
lianos, que usurpam o solo antes pisado por heróis, enchem-me com
um desdém amargo. Eles ousam usurpar o nome dos romanos; ousam
imaginar que descendem dos lordes e governantes do mundo? Esque-
cem que, quando a república morreu, todas as famílias romanas antigas
foram aos poucos se extinguindo e que seus descendentes podem usur-
par o nome, mas nunca foram e nunca serão romanos.
“Quando vivi antes, foi no tempo de Cícero e de Cato. Minha clas-
sificação não era a maior nem a menor em Roma: eu era um cavaleiro
romano. Não vivi para ver meu país escravizado por César, que durante
minha existência se notabilizava apenas por seu comportamento debo-
chado. Morri quando tinha cerca de quarenta e cinco anos, defendendo
minha nação contra Catilina. Naquele tempo, os bons homens de Roma
lamentavam amargamente o declínio moral na cidade. Mário e Sula já
haviam nos ensinado algumas das angústias da tirania, e eu estava acos-
tumado a lamentar o dia em que o Senado parecia um conjunto de semi-
deuses. No entanto, que homens viveram naquela época? A república se
manteve gloriosamente como o sol de um dia brilhante de verão. Como
eu poderia me desesperar com meu país enquanto homens como Cíce-
ro, Cato, Lúculo e muitos outros que eu conhecia como cheios de vir-
tude e sabedoria, que eram meus amigos íntimos e queridos, ainda exis-
tiam?
“Não preciso incomodá-lo com a história de minha vida. Nos tem-
pos modernos, as circunstâncias domésticas parecem ser a parte da his-
tória de cada homem que mais vale a pena investigar. Em Roma, a histó-
ria de um indivíduo era a de sua terra. Vivíamos no Fórum e na sede do
Senado. Minha família sofreu com as guerras civis: meu pai foi morto
por Mário, e meu tio, que cuidou de mim durante a infância, foi banido
por Sula e assassinado por seus emissários. Minha fortuna foi diminuída
consideravelmente por tais desgraças domésticas, mas eu vivia frugal-
mente e preenchi com honra alguns dos mais altos cargos do estado.
Cheguei, inclusive, a ser cônsul.
“Nem tampouco relatarei agora o que seria de grande interesse para
você. Tudo que sei a respeito desses grandes homens cujas ações, mes-
mo a esta distância no tempo, lhe são intimamente familiares. Esses te-
mas têm formado, e vão formar, uma fonte inesgotável de conversa du-
rante o tempo que permanecermos juntos, mas, por ora, prometi relatar
o que senti e vi quando revisitei, três anos atrás, esta decadente Itália.
“Quando me aproximei de Roma, fiquei agitado por milhares de
emoções. Recusei-me a ver qualquer coisa ou a falar com qualquer pes-
soa. Mudo em um canto da carruagem, reunia meus pensamentos: em
alguns momentos, achando que meu companheiro era indigno de minha
atenção; em outros, ainda me agarrando obstinadamente ao meu amado
país, como uma mãe faria à memória de seu filho perdido, duvidando de
tudo que eu tinha escutado, de tudo que aqueles padres tinham me dito.
Achava que era uma conspiração contra mim. Recusei-me a falar com
aqueles que encontramos pela estrada, para que seu dialeto alterado não
esmagasse minha última esperança. Não queria visitar paisagem alguma.
A cidade eterna sobreviveu em toda a sua glória. Ela não pode morrer;
no entanto, ainda que estivesse morta, eu ficaria em silêncio entre as ru-
ínas de seu Fórum até derramar minha última lágrima, e minhas pala-
vras despertariam os mortos para que me ouvissem. ‘Cícero… Cato…
Pompeu… Estão realmente mortos? Todos os vestígios de seus trajetos
desgastaram-se. Ainda assombram o Fórum? Levantem-se, acordem…
Deem as boas-vindas a mim!’
“O padre se esforçou em vão para me tirar do devaneio. Minhas fei-
ções foram estampadas pela tristeza, mas não respondi. Depois de al-
gum tempo, ele exclamou: ‘Contemple o Tibre!’. Adorável rio! Para
sempre rolará em suas águas eternas; suas ondas cintilam ao sol ou são
sombreadas pelas nuvens trovejantes; seu nome age como um feitiço.
Lágrimas jorraram de meus olhos. Desci da carruagem, corri até a mar-
gem e, de joelhos, ofereci-lhes, nomes sagrados de Júpiter e Palas, juras
que fizeram meus lábios tremerem e a luz quase sumir de meus olhos:
‘Oh, Júpiter… Júpiter do Capitólio… você, que contemplou tantos
triunfos, que ainda possam existir seus templos, que ainda as vítimas se-
jam levadas aos seus altares! Minerva, proteja sua Roma’. Naquele mo-
mento de oração agonizante, o destino de meu país parecia ainda inde-
ciso; a espada ainda estava pendente. Eu não podia acreditar que tudo
de grande e bom havia partido.
“Em vão meu companheiro tentou me afastar das margens do divi-
no rio. Permaneci sentado imóvel perto dele; meus olhos não se perde-
ram na paisagem circundante que tinha mudado, mas se fixaram nas
águas ou se elevaram ao céu azul brilhante acima. ‘Estas… estas, pelo
menos, são as mesmas… sempre, sempre as mesmas!’, eram as únicas
palavras que eu proferia quando, de tempos em tempos, a queda de meu
país, com a feroz agonia do fogo, passava pela minha mente. O padre
tentou me acalmar, e fiquei em silêncio. Passado algum tempo, a força
da paixão se apoderou de mim e, após muitas horas de um combate in-
sano, fui levado com sofrimento para a carruagem; então, depois de fe-
char as cortinas, entreguei-me a um devaneio cuja amargura só era en-
fraquecida por minha força perdida.
“Era noite quando entramos em Roma. ‘Amanhã’, disse meu com-
panheiro, ‘vamos visitar o Fórum.’ Assenti. Não queria que ele me
acompanhasse e, portanto, recolhi-me cedo sem revelar minhas inten-
ções. Porém, tão logo me encontrei livre de impertinência, requisitei um
guia e fui depressa visitar o local de toda a grandeza humana. A lua ti-
nha se erguido e lançava uma luz brilhante sobre a cidade de Roma; se é
que posso chamar de Roma esta que em nada se assemelha à rainha das
nações, como eu a recordava. Passamos ao longo do Corso e vi diversos
obeliscos magníficos, os quais pareciam me dizer que a glória de minha
terra não tinha morrido. Demorei-me ao lado da Coluna de Antonino,
que tinha afundado no solo e, cercada por ruínas de quarenta outras co-
lunas, imprimiu a ideia de decadência em minha mente. Meu coração
batia com receio e indignação quando me aproximei do Fórum por ca-
minhos que desconhecia. E o feitiço se rompeu quando contemplei as
colunas destruídas e os templos em ruínas do Campo Vaccino — por
esse nome vergonhoso, era agora conhecido o Fórum Romano. Olhei
ao redor, mas nada era como antes — vi ruínas de templos construídos
depois do meu tempo. O Coliseu era estranho para mim, e eu tinha a
impressão de que o estado alterado destas magníficas ruínas tivesse su-
bitamente saciado o entusiasmo de indignação que meu coração antes
possuía. Jamais ousara me sujeitar à imagem do Fórum Romano, degra-
dado e despedaçado, mas uma vaga ideia de colunas quebradas flutuava
em minha mente, como recordava as imagens caídas de deuses ainda
deixadas para se decompor em um local onde eu anteriormente os ado-
rava; entretanto, tudo estava mudado, e até mesmo as colunas que resta-
vam do templo erguido por Camilo perderam sua identidade, rodeadas
pelos novos candidatos à imortalidade. Voltei-me calmamente para meu
guia e perguntei: ‘Estas são as ruínas do Fórum Romano, e o que é
aquele prédio imenso, cuja sombra ao luar parece evidenciar algo mara-
vilhoso e magnífico, que vejo no final da avenida arborizada?’. ‘Aquele
é o Coliseu.’ ‘E o que é o Coliseu?’ ‘Você não sabe? É a famosa arena
construída por Vespasiano, imperador de Roma.’ ‘Ele foi imperador de
Roma? Bem, vamos visitar o monumento.’ Entramos no Coliseu, aque-
la nobre relíquia da imperial grandeza; imperial, é verdade, mas romana.
E o entusiasmo que as colunas quebradas do Fórum haviam suprimido
foi mais uma vez despertado por esta maravilhosa construção. A lua
brilhava através dos arcos quebrados e resplendecia pelas paredes desa-
badas, cobertas por ervas daninhas e espinheiros. Olhei em volta e um
assombro sagrado se apoderou de mim. Senti como se tendo desertado
Campo Vaccino, este se tornou o refúgio de meus nobres compatriotas.
O selo da eternidade estava neste prédio, e meu coração se agitou com
as sensações avassaladoras com as quais foi trabalhado. Não emiti uma
única palavra.
“Ai de mim! Esta é a imagem da Roma decadente, destruída, degra-
dada por uma superstição odiosa; mas ainda inspirando amor e honra; e
ainda despertando na imaginação dos homens tudo que pode purificar e
enobrecer a mente. O Coliseu é o estilo de Roma. Seus arcos, seus már-
mores, seu aspecto nobre, que deve ter inspirado assombro em todos,
algo que, na mente do homem, é semelhante à adoração; sua maravilho-
sa e indescritível beleza — tudo fala de sua grandeza. Suas paredes em
ruínas, seus contrafortes cobertos de ervas daninhas e, mais do que tu-
do, as ofensivas imagens com as quais está preenchido — tudo retrata
sua decadência.
“Dispensei meu guia. Pretendia nunca mais sair do Coliseu; esta de-
via ser minha morada durante minha segunda residência na Terra. Visi-
tei cada pedaço dele. De seu alto, observei Roma dormindo sob os raios
frios da lua: a cúpula de São Pedro e as diversas outras cúpulas e torres
que formam uma segunda cidade, as habitações dos deuses acima das
habitações dos homens; o Arco de Constantino aos meus pés; o Tibre e
a grande mudança na disposição da cidade nos tempos modernos; tudo
me chamava a atenção, embora despertando apenas um vago e passagei-
ro interesse. Desde então, o Coliseu se tornou o mundo para mim, mi-
nha morada eterna. É verdade que a curiosidade e a urgência me arrasta-
ram agora para longe dele — mas minha ausência será curta, e meu co-
ração ainda está lá. Objetivo retornar. E naqueles recintos sagrados,
derramarei, antes de morrer, minha última chamada de despertar para os
romanos e para a liberdade.
“É verdade que agora eu já estava convencido da queda de Roma,
que seus cônsules e triunfos estavam no fim, os templos de seu Capitó-
lio, destruídos. No entanto, o Coliseu tinha suavizado esses sentimen-
tos cujo vigor, de outra maneira, teria me destruído. Raiva, desespero;
toda forma de paixão humana se extinguiu dentro de mim. Dediquei-
me, peregrinando por alguns anos, a um mundo de cujas atrações sou
um espectador desatento. Se Roma está morta, fugirei de seus restos,
tão repugnantes quanto aqueles da vida humana. É somente no Coliseu
que reconheço a grandeza de meu pais, aquele é o único refúgio digno
para um romano antigo.
“No entanto, subitamente, a sensação tão terrível para a mente hu-
mana, que é o sentimento de solidão absoluta, operou uma nova mu-
dança em meu coração. Lembrei-me como se fosse ontem de toda a os-
tentação que a antiga Roma apresentava. Sentado sob um dos arcos do
edifício e escondendo o rosto entre as mãos, revivi em minha imagina-
ção a memória do que eu deixara quando perdi pela última vez a luz do
dia. Deixara os cônsules desfrutando de pleno poder. Alguns anos antes,
o império, subjugado por Mário e Sula e não suportado pela virtude de
nenhum deles, parecia cambalear à beira da rendição. Porém, durante
minha vida, um novo espirito havia surgido: homens foram novamente
vivificados pela chama sagrada que queima nas almas de Camilo e Fa-
brício, e eu regozijava com uma alegria excessiva por ser amigo de Cíce-
ro, Cato e Lúculo; os homens mais jovens, filhos de meus amigos, Bru-
to e Cássio, surgiam com a promessa de igual virtude. Quando morri,
fui tomado pela forte convicção de que, uma vez que a filosofia e as le-
tras estavam agora unidas a uma força sem precedentes sobre a terra,
Roma estava se aproximando de uma perfeição impassível ao retroces-
so; e que, embora os homens ainda tivessem medo, era um temor salutar
que lhes despertou para a ação e melhor garantiu o triunfo do bem.
“Quando acordei, Roma não existia mais. Aquela luz, que eu tinha
saudado como uma precursora da perfeição, transformara-se nas tochas
que acrescentaram esplendor ao seu funeral, e aqueles homens, cujas al-
mas eram como templos da perfeição, foram as vítimas sacrificadas em
sua pira funerária. Oh! Nunca uma nação sofreu tal morte, e seus assas-
sinos celebraram tais jogos ao redor de seu túmulo, destruindo quase
metade do mundo. Não eram os combates de gladiadores e feras, mas a
luta feroz das paixões em disputa, uma guerra de milhões.
“Todavia, tudo isso agora acabou. O regozijo do tirano desaparece-
ra. O monumento de Roma, tão esplêndido ao longo dos séculos e
adornado pelos despojos de reinos, está agora degradado e coberto pela
poeira. Certas colunas e alguns arcos espalhados sobreviveram para de-
marcar seu lugar, mas o povo dela está morto. Os estranhos que se
apossaram da terra perderam todas as características dos romanos; afas-
taram-se de sua santa religião. A Roma moderna é a capital do cristia-
nismo, e esse título coroa e sublima meu desespero.
“Porém a linguagem humana fracassa no esforço de descrever a
enorme mudança operada no mundo; é verdade que tenha se dado no
lento fluxo de muitos séculos, embora me pareça, em minha singular si-
tuação, um trabalho de poucos dias. Não posso recordar a agonia da-
queles momentos sem estremecer. Não eram pensamentos amargos; não
se tratava de um desespero que dava nos nervos sem deixar marcas ex-
ternas, tampouco era a primeira pontada de dor pela perda daqueles que
amamos. Foi um incêndio feroz que envolveu florestas e cidades em su-
as chamas; uma tremenda avalanche que abateu árvores, fez desmoronar
pedras e inverteu o curso dos rios; foi um terremoto que sacudiu o mar,
derrubou montanhas e ameaçou revelar aos olhos do homem os misté-
rios do interior da Terra. Oh! Era mais do que tudo isso! Mais do que
qualquer palavra pode expressar ou qualquer imagem retratar!”
O estranho fez uma pausa em sua narração, e um longo silêncio se
seguiu. Seus olhos estavam fixos nas águas inertes diante dele, e seu
companheiro o olhou com admiração e emoção. Uma brisa passou li-
geiramente acima do mar e o ondulou; seu sussurrar foi ouvido entre as
árvores. Essa mínima mudança despertou o romano de seu devaneio, e
ele continuou.
— Um ano se passou desde que estive pela primeira vez dentro do
Coliseu. As abundantes ervas daninhas parecem mais escuras sob os rai-
os da lua, e os arcos decadentes se erguem em quietude e beleza. O ar
estava em silêncio: era a calada da noite, e nenhum som vindo da cidade
chegava até mim, mas a lua havia descido aos poucos e raiou a luz do
dia. Os sons da vida humana começaram, e meus próprios pensamentos,
que durante a noite estavam relacionados apenas com recordações, ago-
ra se voltavam para a lamentável e degradada realidade. Ponderei minha
situação atual, pois desejava formular algum plano para o futuro. Não
gostava nem um pouco do padre que me acompanhava. Durante o cur-
tíssimo período de residência desde meu retorno à vida, desenvolvera
uma enorme aversão à classe de homens à qual ele pertencia. Eu me
opunha à superstição católica e desejava não me envolver com seus pas-
tores e empregados. As joias e o dinheiro que eu tinha eram suficientes
para meu sustento, e eu queria me livrar da submissão que a presença
dele parecia me impor. Contudo, embora fosse minha Roma nativa, eu
estava em uma cidade estranha, com costumes desconhecidos. Pouco
compreendia a língua, e as lembranças de minha vida anterior apenas
me fariam incorrer em erros ridículos. Foi então que uma divindade
bondosa interferiu e, enviando um gênio bom para cuidar de mim, li-
vrou-me das dificuldades.
“O velho padre, quando descobriu, na manhã seguinte, que eu tinha
desaparecido, enviou o guia que tinha me conduzido na noite anterior,
para me levar de volta, e ele mesmo iniciou uma série de visitas para di-
fundir a singularidade que tinha sob sua guarda. Entre outros, visitou
lorde Harvey, que era há muito tempo residente de Roma e a quem co-
nhecia muito bem. Você conhece lorde Harvey e sua família. Não preci-
so, portanto, descrevê-los; e, conhecendo o caráter de sua jovem esposa,
pode facilmente imaginar o interesse e a curiosidade que o relato do ve-
lho padre inspirou nela. Ela ordenou que trouxessem sua carruagem e,
levando o padre consigo, seguiu às pressas ao hotel para me ver. Eu não
havia retornado; o guia que tinha ido me buscar informou que eu me
recusara a sair do Coliseu. Ela deixou o padre na estalagem e, acompa-
nhada apenas de seu filho pequeno, veio ao meu retiro.
“Eu estava sentado sob os arcos em ruínas do lado sul quando a vi
se aproximando, trazendo o filho pela mão. Ela se sentou ao meu lado
e, após uma pausa de alguns segundos, dirigiu-se a mim em italiano:
‘Perdoe-me se o estou interrompendo. Falei com o padre Giuseppe e sei
quem você é. Você está infeliz e foi atirado em nosso mundo moderno
sem amigos ou conexões. Permite que eu lhe ofereça minha amizade?’.
Fiquei confuso com esse discurso, dirigido a mim por uma moça bonita
que era a mim completamente estranha, e fiz uma pausa antes de res-
ponder sua muito gentil, ainda que incomum, oferta. Ela continuou:
‘Considere-me, eu lhe peço, como uma velha amiga, e não uma italiana
moderna, pois de fato não o sou, mas como um daqueles muitos estra-
nhos que sua antiga cidade atraia para contemplá-la. Venho de um pais
distante e, portanto, desconheço sua língua e suas leis. Você precisa me
ensinar tudo que era grande e valoroso em seus dias, e eu lhe ensinarei
os hábitos e costumes dos nossos’.
“Expressou-se dessa maneira e me conquistou com seus doces sorri-
sos e suave eloquência, de forma que confiasse inteiramente nela. ‘Você
deve me considerar como sua filha’, disse, ‘se é que uma garota escocesa
pode ter tal honra. Venho daquela terra distante descoberta por César,
mas desconhecida em seus dias. Sou casada com um cavalheiro inglês
muito mais velho do que eu, mas que tem prazer em cultivar minha
mente. Venha comigo para nossa casa; lá será apreciado e homenageado,
e tentaremos aliviar as dores que o estado arruinado de seu país deve lhe
infligir.”
“Eu a segui até a casa e, naquele dia, comecei essa amizade que é a
única esperança e o conforto atípico de minha existência. Se em meu re-
torno à vida meu afeto nunca tivesse sido despertado, não teria sobrevi-
vido por muito tempo. Isabell, contudo, amenizou meu desespero e cu-
rou com carinho angelical todas as feridas de meu coração. Não sei nem
dizer o quanto a amo, o quão caro o som de sua voz é para mim. Cícero
não ama sua Túlia tanto quanto amo esta criatura divina. Não pode
imaginar sequer a metade de suas virtudes ou de sua sabedoria. Ela é tão
sincera de coração e, ainda assim, tão sensível, que conquistou minha al-
ma e me prendeu na dela de uma maneira que jamais experimentei em
minha vida anterior. Ela é meu país, meus amigos — tudo, tudo que
perdi, ela significa para mim.
“E agora cumpri a promessa de lhe relatar as primeiras impressões
que tive ao despertar para a vida. Não é necessário fazer uma narrativa
formal do que tenho aprendido desde então. Durante nossa viagem, te-
remos muitas oportunidades de conversar e discutir. Você me despertou
um desejo de conhecer seu pais, e amanhã embarcaremos. Despeço-me
de Roma, do Coliseu e de Isabell — tal é minha natureza inquieta. An-
tes de morrer mais uma vez, desejo examinar as alardeadas melhorias
dos tempos modernos e julgar se, depois da grande dedicação aos as-
suntos humanos, o homem está mais próximo da perfeição do que esti-
vera em meu tempo.”
O sol havia descido bastante quando os amigos se levantaram e vol-
taram para o barco. Conforme remavam de volta para Nápoles, o astro
se pôs, emprestando uma rica tonalidade alaranjada ao céu que queima-
va sobre as águas, enquanto o cabo Miseno e as ilhas se destacavam por
um contorno escuro no horizonte. A lua surgiu do outro lado da baia e
contrastava sua luz prateada com as cores incandescentes do pôr do sol
italiano. A noite avançava e as luzes dos barcos pesqueiros cintilavam
pelo mar, enquanto um ou dois grandes navios passavam como enormes
sombras entre os observadores e a lua. O brilhante espetáculo do poen-
te e a suave luz do luar convidavam ao devaneio, e às palavras não era
permitido perturbar a magia da cena. O velho romano talvez tenha pen-
sado nos dias que havia passado em Baia, quando o sol eterno tinha se
retirado como fazia agora, em uma época em que vivia outros dias e na
companhia de outros homens.
[A narrativa acaba neste ponto; no entanto, outra versão, mais frag-
mentada, contada do ponto de vista de Isabell, segue no manuscri-
to.)

Depois que tirei meu singular amigo de sua solidão no Coliseu, instalei-
o, com o consentimento de lorde Harley, em um quarto de nossa casa.
A princípio, evitava a companhia de qualquer pessoa e estava com os
ânimos tão deprimidos que sua saúde foi afetada. Percebi que precisava
me empenhar mais a fim de despertar seu interesse e esforçar-me de to-
das as maneiras para afastá-lo da apatia em que mergulhara. Ele parecia
considerar todas as coisas ao redor como um espetáculo que não lhe di-
zia respeito. Era, de fato, um ser extirpado de nossa realidade; os víncu-
los que antes o ligavam ao mundo tinham se rompido muitos séculos
atrás; e, a menos que eu tivesse êxito em reconstruir pelo menos um de-
les, ele logo iria perecer. Queria convencê-lo a visitar algumas das impo-
nentes ruínas que atestam a antiga grandeza de Roma. Hesitei algum
tempo na minha escolha; as edificações mais majestosas tinham sido
construídas depois de sua época, mas achei que, por estarem situadas
em lugares familiares à sua memória, poderiam despertar-lhe um inte-
resse que, de outra forma, não seria aguçado pelo fato de lhe serem des-
conhecidas. De minha parte, deleitava-me ao visitar as termas de Anto-
nino, cujos montes de escombros de muros e torres, cobertos pela hera
e a mais bela vegetação, mais pareciam o cenário natural de uma monta-
nha do que qualquer coisa desenvolvida por mãos humanas. Eu estava
determinada a levá-lo até essas nobres ruínas.
Visitei-o, portanto, um dia; e, conduzindo a conversa para sua vida e
morte anteriores, disse-lhe: “Você foi feliz em morrer antes da queda de
seu país e em não testemunhar sua degradação pelas mãos dos impera-
dores. Estes, que se sucederam ao poder e à glória da república, desfru-
tavam de uma autoridade extensa e de uma receita da qual nunca se ou-
viu falar em épocas passadas ou futuras. Selvagens e tremendos foram
os atos e erros dos homens onipotentes. Seus inimigos não podiam fugir
deles. Pisotearam à vontade os pescoços de milhões. Poucos usaram sua
autoridade para fins benevolentes, mas muitos, inclusive os mais perver-
sos, investiram na magnificência. Abandonaram monumentos maravi-
lhosos, e não posso considerar tais maravilhas como atos de grandeza
imperial. Eles são o resultado, embora tenham sido executados por
mãos impróprias, da virtude e da força republicanas. Quando os visitei,
admirei-os como planejados e modificados por Camilo, Fabrício, Cipi-
ão, e considero Caracala e Nero, e até mesmo os mais virtuosos da tri-
bo, Tito e Adriano, como meros operários. Quando visitei o Coliseu,
não pensei em Vespasiano, que o construiu, ou no sangue dos gladiado-
res e das feras que o contaminou, mas idolatrei o espirito da Roma An-
tiga e daqueles nobres heróis que livraram seu pais dos bárbaros e que
iluminaram o mundo todo com sua milagrosa virtude. Eu o ouvi ex-
pressar uma aversão diante da visão de obras dos opressores de Roma,
mas visite-as comigo com este espírito e você se verá arrebatado por
aquele assombro e reverência que o poder, adquirido e acompanhado
pelo vicio, jamais poderá propiciar”.
Ele se permitiu ser persuadido, e passamos sob o Capitólio e na par-
te de trás do monte Palatino em nosso caminho para as termas. O prin-
cipal sitio da Roma Antiga estava deserto, e visitamos o Fórum e a mais
populosa das colinas da cidade por meio de trilhas cobertas de grama e
através de campos pelos quais poucas pessoas passaram. Isso é muito
bom; as ruínas teriam perdido metade de sua beleza se estivessem rode-
adas por edifícios modernos, e só temos a lamentar que o Capitólio não
tenha sido negligenciado como foram o monte Palatino e o monte Cé-
lio. Não sei dizer quais eram os sentimentos de Valério: suas emoções
eram fortes, mas ele permaneceu em silêncio, embora sempre lançando
os olhos ao céu; e uma vez disse: “Gosto de olhar para os céus, e só para
eles, pois não estão mudados”. Entramos nas termas e, depois de visitar
todos os recintos, subimos a escadaria despedaçada e passamos sobre os
imensos arcos e muros, os quais, quando se está sobre eles, parecem
campos, vales e colinas íngremes. Estávamos cercados por uma vegeta-
ção perfumada, cuja altura de cada lado da passagem enganava o olhar e
acrescentava ainda mais grandeza à extensão das ruínas pelas quais ca-
minhávamos. Às vezes, o topo de algum contraforte se espalhava por
um campo coberto pelas mais belas flores. E agora, serpenteando por
um caminho difícil, chegamos ao topo de uma torre e vimos Roma in-
teira, com as curvas do Tibre a uma curta distância de nós. Este é, de to-
dos os lugares, o que mais me agrada visitar em Roma: ele une a beleza e
a fragrância da natureza à ideia mais sublime do poder humano; e,
quando juntos dessa maneira, despertam um interesse e um sentimento
que penetra profundamente em meu coração.
Sentamo-nos sobre este cume, e busquei nos olhos de meu compa-
nheiro uma expressão de admiração e deleite que fazia cintilar os meus.
Seus olhos estavam cheios de lágrimas.
— Você me trouxe aqui — disse ele — para ver as obras dos roma-
nos, e não vejo nada além de destruição. Inúmeros belos templos redu-
zidos a pó. Meus olhos vagueiam sobre as sete colinas, e todas as suas
glórias estão esvanecidas. Quando as colunas de seu Fórum foram des-
truídas, o que poderia sobreviver em Roma? O Capitólio, menos feliz
do que a maioria dos outros montes que voltaram à solidão da natureza,
está contaminado por edifícios modernos. E estas ruínas são grandiosas,
mas que história miserável elas contam. Estas termas para banhos públi-
cos não existiam em minha época. Existiram, em toda sua magnificên-
cia, algumas centenas de anos depois de eu abandonar o mundo. Agora,
porém, seus tetos desabaram; suas calçadas desapareceram; estão toma-
das por grama, mato e ervas daninhas; em ruínas, mas ainda irredutíveis;
e tal é a imortalidade de Roma. As muralhas ainda estão de pé e descre-
vem um imenso circuito; a cidade moderna está preenchida com as ruí-
nas da antiga. Estranhos migram para ela e admiram a imensidão dos
destroços. Contudo, para mim, tudo parece vazio. Os antigos templos
onde eu adorava Quirino e os protetores do que eu então chamava de
cidade imortal… oh, fui despertado apenas para ser desiludido!
— Você insiste — respondi — nas ideias mais tristes. Roma está caí-
da, mas ainda é venerada. E, para mim, singular e até mesmo bonito ver
o cuidado e sofrimento com que seus filhos degenerados preservam su-
as relíquias. Cada um a visita com entusiasmo e se separa dela com
amargo pesar. Tudo parece excelso dentro de seus muros. Quando um
estrangeiro se hospeda em seus limites, ele se sente como habitando um
templo sagrado — sagrado, embora maculado; e com indignação e pie-
dade misturadas à admiração, sente essas sensações que suavizam seu
coração e que nunca podem ser esquecidas, nem mesmo em tempos de
aflição. Parece-me que, se eu fosse surpreendida pelas maiores desgra-
ças, ficaria parcialmente consolada pela lembrança de ter morado em
Roma. Se um homem da época de Péricles revivesse em Atenas, teria
muito mais motivos para lastimar o declínio de sua cidade do que você
teria para lamentar sobre a época e decadência de Roma.
Como eu desejava despertar os sentimentos de Valério, e não apenas
para mostrar-lhe o que restava de seu país, mas para fazer nascer nele
um senso de que ainda estava em algum nível ligado ao mundo. Dessa
forma, escolhi tanto quanto pude o que havia de mais perfeito e pitores-
co. Ele ainda não tinha visto o Panteão. Não queria levá-lo para vê-lo
durante o dia, pois sabia que sua conversão para uma igreja católica,
embora provavelmente o tivesse preservado, seria altamente repugnante
para Valério. Escolhi o momento em que a lua ainda estava em seu cres-
cente, pois, quando estivesse em sua altura máxima, ela brilharia sobre o
teto aberto do templo. Certa noite, por volta das sete horas, sem dizer-
lhe para onde estávamos indo, levei-o comigo. Contornamos o prédio
até uma porta nos fundos que estava aberta, e um homem nos iluminou
de um par de escadas sujas e estreitas; enquanto descíamos, falei: “Você
agora está prestes a ver um templo construído logo após seu tempo e
dedicado a todos os deuses”. Ele provavelmente esperava contemplar
mais ruínas, mas então entramos no mais belo templo ainda existente no
mundo. A lua brilhava diretamente sobre a abertura na parte superior,
iluminando a cúpula e o piso — algumas estrelas brilhantes piscaram ao
lado dela. As colunas resplandeciam vagamente ao redor. O espirito de
beleza parecia lançar seus raios sobre sua prole favorecida e penetrava
todas as coisas — até mesmo a mente humana — com um resplendor
suave, mas ainda assim brilhante. Ao contemplar esta cena, a admiração
humana separava-se do sentimento profundo que a inspirou — parecía-
mos desfrutar da presença de um deus. Se a obra provinha de mãos hu-
manas, o resplendor vinha da natureza; e ela derramava toda a sua bele-
za sobre este templo divino. O céu profundo, a lua brilhante e as estre-
las cintilantes espalhavam-se sobre ele, e sua luz e beleza penetravam-
lhe. Por que a linguagem dos homens não é capaz de expressar pensa-
mentos humanos? E como é possível que haja um sentimento inspirado
pelo excesso de beleza, que envolve o coração em uma chama suave,
mas ardente, capaz de inspirar virtude e amor, cuja essência é demasiado
intensa para ser exprimida? Ficamos em silêncio. Caminhamos ao redor
do templo e então nos sentamos nos degraus de um altar e permanece-
mos um longo tempo em contemplação. Em momentos como esse, sen-
timos a existência desse amor panteísta com que a natureza é penetrada
— quando uma forte empatia pela beleza, se tal expressão pode ser per-
mitida, é o único sentimento que anima a alma. Finalmente, enquanto se
levantava para partir, Valério disse: “Por que me falaram que está tudo
mudado? Não existe este templo aos nossos deuses?”. Não sei por que
— eu não deveria ter feito isso, pois, com essa atitude, envenenei um
momento de pura felicidade —, mas descuidadamente apontei para uma
cruz que ficava sobre o altar diante do qual queimava uma solitária lam-
parina. A cruz não alterou meus sentimentos, mas os de meu compa-
nheiro ficaram amargurados. A maçã tão agradável ao olhar havia se
tornado intragável. A cruz lhe revelou uma mudança tão grande, tão in-
tolerável, que essa única circunstância destruiu o amor e a satisfação que
tinham surgido em seu coração. Tentei em vão trazê-lo de volta à pro-
funda sensação de beleza e sagrada reverência com as quais ele havia se
inspirado há pouco. O feitiço havia se quebrado. A cúpula iluminada
pela lua, o piso reluzente, as quase escuras fileiras de adoráveis colunas
e o céu profundo tinham perdido para ele a santidade. Então apressou-
se para sair do templo.
Fiz meu primeiro esforço para despertar nele o desejo de saber o
que de grande e positivo tinha existido em seu pais após sua morte. Ele
não sabia nada de Virgílio, Horácio, Ovídio ou Lucano; de Lívio, Tácito
ou Sêneca. Você terá inúmeras oportunidades de conversar com ele, e
ele poderá lhe dizer, muito melhor do que eu, quais sentimentos essa
palestra despertou em sua mente. Costumávamos visitar um recanto
obscuro do Coliseu, onde nos deslocávamos com dificuldade e para on-
de poucos estariam dispostos a nos seguir; ou nos muros das termas de
Caracala e, mais frequentemente, ao pé do túmulo de Céstio, aquele lo-
cal adorável onde a morte aparece para desfrutar do brilho do sol e da
profundidade do céu azul que o cerca por todos os lados, líamos juntos
e discutíamos sobre nossas leituras — as discussões eram eternas. O sol
intenso de Roma brilhava sobre nós, e o ar e toda a cena envolviam-se
de felicidade e beleza. Meu coração estava alegre e esforçava-me cons-
tantemente para despertar sentimentos semelhantes no peito de meu
companheiro. Lemos as Geórgicas aqui, e senti uma felicidade tão gran-
de ao lê-las, a qual eu não acreditava que pudesse ser concedida pelas
palavras. Era um prazer inebriante, oferecido pelo clima agradável e pe-
la bela poesia ensolarada que ele inspira, o qual, em uma atmosfera nu-
blada, estou convencida de que jamais teria sentido. Após a leitura, visi-
távamos algumas das galerias de Roma; as horas de estudo de lorde
Harvey haviam terminado, então ele sempre nos acompanhava. A visão
das requintadas estátuas e pinturas em Roma continuou e muitas vezes
realçava esse sentimento de prazer. Será que Valério simpatizava comi-
go? Ai de mim! Não. Havia um tom melancólico dominando todos os
seus pensamentos; havia uma tristeza em seu comportamento que o sol
de Roma e os versos de Virgílio não eram capazes de dissipar. Ele sentia
profundamente, mas pouca alegria se misturava ao seu ânimo. Aos de-
mais sentimentos em relação a ele, tinha acrescentado um inexplicável
de que meu companheiro não era um ser da Terra. Muitas vezes eu me
detinha ansiosamente para saber se ele respirava o ar, como eu fazia, ou
se sua forma projetava uma sombra aos seus pés. Seu semblante era o de
um ser vivo; no entanto, ele pertencia aos mortos. Eu não sentia medo
ou terror; o amava e reverenciava. Estava ardentemente interessada em
sua felicidade, mas um temor se misturava a essas sensações mundanas
— não posso chamar de pavor, embora fosse algo levemente relaciona-
do a essa sensação repugnante; um sentimento para o qual não consigo
encontrar um nome, que se misturou a todos os meus pensamentos e
estranhamente caracterizou minha relação com ele. Muitas vezes, quan-
do estava em casa discorrendo sobre meus pensamentos, encontrei o
vislumbre de seus olhos brilhantes, ainda que serenos; embora irradias-
sem apenas simpatia, ainda assim me examinavam. Se ele colocava sua
mão sobre a minha, eu não estremecia, mas, por assim dizer, meus pen-
samentos paravam seu curso e meu coração se agitava com algo como
uma inquietação involuntária, até que ele a retirava. No entanto, tudo
isso era muito ligeiro; eu mal podia notar e não era capaz de diminuir
meu amor e interesse por ele. Talvez se eu conhecesse toda a verdade,
meu afeto aumentaria; e espontaneamente, sem esforço, empenhei-me
em retribuir com interesse e simpatia intelectual a barreira mundana
que parecia se colocar entre nós.
ROGER DODSWORTH:
O INGLÊS REANIMADO

Talvez vocês se lembrem de que, no 4 de julho passado, apareceu um


parágrafo em jornais importantes dizendo que o dr. Hotham, de Nor-
thumberland, quando voltava da Itália e passava pela montanha de São
Gotardo, cerca de vinte anos atrás, retirou, debaixo de uma avalanche
nos arredores do monte, um ser humano cuja animação havia sido sus-
pensa pela ação do congelamento. Após aplicar os remédios habituais, o
paciente foi ressuscitado e descobriu-se que se tratava do sr. Dodswor-
th, filho do antiquário Dodsworth, que faleceu durante o reinado de
Carlos I. Contava trinta e sete anos de idade no momento de sua inuma-
ção, ocorrida quando voltava da Itália, em 1654. Foi acrescentado que
retornaria para a Inglaterra tão logo estivesse suficientemente recupera-
do, sob a proteção de seu salvador. Desde então, não soubemos mais
nada sobre ele, e diversas iniciativas de interesse público, que surgiram
nas mentes filantrópicas à ocasião da leitura da notícia, retornaram sem
demora à sua insignificância. A sociedade dos antiquários abrira cami-
nho a vários votos de medalhas e já havia começado, como uma ideia, a
considerar quais valores poderiam se dar ao luxo de oferecer pelas rou-
pas velhas do sr. Dodsworth e a conjecturar que tesouros, na forma de
panfletos, canções antigas ou cartas manuscritas, seus bolsos poderiam
conter. Em todo canto, poemas começaram a ser rascunhados, de todos
os tipos: elegíacos, congratulatórios, burlescos e alegóricos. Por causa
de tais informações autênticas, o sr. Godwin suspendeu a história da co-
munidade que havia começado. É duro não apenas que o mundo seja
frustrado por dons destinados a surgir dos grandes talentos do país, mas
também que lhe seja prometido e, em seguida, furtado um novo objeto
de admiração romântica e interesse científico. Uma ideia nova vale mui-
to na rotina da vida comum, mas um fato novo, algo espantoso, um mi-
lagre, um desvio do curso palpável das coisas, adentrando em aparentes
impossibilidades, é uma circunstância à qual a imaginação deve agarrar-
se com deleite, e dizemos, mais uma vez, que é duro, muito duro, que o
sr. Dodsworth se recuse a aparecer, e que aqueles que acreditam em sua
ressurreição sejam obrigados a se sujeitar aos sarcasmos e aos argumen-
tos triunfantes dos céticos que sempre se mantêm no lado seguro do
muro.
Não acreditamos que qualquer contradição ou impossibilidade este-
jam relacionadas às aventuras desta jovem relíquia. A animação (creio
que os fisiologistas estejam de acordo) pode ser facilmente suspensa du-
rante cem ou duzentos anos, ou por alguns poucos segundos. Um cor-
po hermeticamente lacrado pelo congelamento fica necessariamente
preservado em sua inteireza original. É impossível acrescentar ou retirar
algo daquilo que fica absolutamente isolado da ação de agentes exter-
nos: não pode acontecer qualquer decomposição, pois algo jamais pode-
ria se tornar nada. Sob a influência desse estado do ser ao qual chama-
mos de morte, as mudanças — mas não a aniquilação — removem de
nossa vista o mundo corporal: a terra recebe sustento e o ar se alimenta
dele; cada elemento recebe o que lhe é devido, recuperando assim, de
forma forçada, o que lhe havia emprestado. No entanto, os elementos
que pairavam sobre a mortalha gelada do sr. Dodsworth não tinham
poder de superar o obstáculo representado por ela. Nenhuma brisa leve
poderia soprar um fio de cabelo de sua cabeça, nem a noite orvalhada
ou o amanhecer jovial seriam capazes de penetrar sua mais que intrans-
ponível armadura. A história dos sete adormecidos[1] se apoia sobre
uma miraculosa interposição: eles dormiram. O sr. Dodsworth não dor-
miu; seu peito nunca arfava, seus pulsos haviam parado; a morte mante-
ve o dedo pressionado sobre seus lábios para que nenhuma respiração
pudesse passar. Ele agora foi libertado e a sombra tenebrosa, superada,
para sua própria perplexidade. Sua vítima banira de si o feitiço gelado,
fazendo ressurgir um homem tão perfeito quanto era quando sucum-
biu, cento e cinquenta anos antes. Temos desejado ansiosamente ser su-
pridos com alguns pormenores de suas primeiras conversas, bem como
conhecer o modo pelo qual lhe foi possível adaptar-se ao novo cenário
de sua vida. Porém, como os fatos nos são negados, permitiremo-nos
entrar em conjecturas. Em relação às suas primeiras palavras, podemos
adivinhar a partir das expressões usadas por pessoas expostas a aciden-
tes mais curtos de natureza semelhante. Contudo, quando o assunto é o
retorno de suas forças, a trama torna-se mais densa. Seu modo de vestir
já provocou assombro no dr. Hotham: a barba pontiaguda, as mechas
de cabelo, o babado, que, até ser descongelado, mantinha-se rígido de-
vido à mistura de goma e gelo; suas roupas à moda dos retratos de Van
Dyck — ou (em uma semelhança mais familiar) ao traje do sr. Sapio na
ópera O oráculo, de Winter —, os sapatos pontudos… Tudo evocava
outros tempos. A curiosidade de seu salvador estava devidamente insti-
gada; a do sr. Dodsworth estava prestes a ser despertada. Porém, para
sermos capazes de especular com algum grau de precisão o teor de suas
primeiras perguntas, temos que nos empenhar em decifrar que tipo de
papel desempenhava em sua vida anterior. Viveu no período mais inte-
ressante da história inglesa: ele estava perdido para o mundo quando
Oliver Cromwell havia alcançado o ápice de sua ambição, e, aos olhos
da Europa inteira, a comunidade inglesa parecia tão estabelecida como
que para durar para sempre. Carlos I estava morto; Carlos II era um pá-
ria, um mendigo, pobre até mesmo em esperança. O pai do sr.
Dodsworth, o antiquário, recebia um salário do general republicano
lorde Fairfax, um grande amante de antiguidades, e morreu no mesmo
ano em que seu filho partiu para seu sono longo, porém não definiti-
vo… Uma curiosa coincidência esta, pois parece que nosso amigo con-
gelado estava regressando à Inglaterra por causa da morte do pai, pro-
vavelmente para reivindicar sua herança — quão efêmeros são os pon-
tos de vista humanos! Onde está agora o patrimônio do sr. Dodsworth?
Onde estão seus coerdeiros, executores e colegas legatários? Devemos
supor que sua ausência prolongada, levando em conta os atuais donos
de sua propriedade — a cronologia do mundo tornou-se cento e setenta
anos mais velha desde que ele saiu de cena; mãos após mãos cultivaram
seus hectares, tornando-se, depois, torrões de terra abaixo deles; e te-
mos o direito de duvidar que sequer uma única partícula de sua superfí-
cie tenha permanecido igual àquelas que deveriam ter sido suas —, por
si só faria o solo juvenil rejeitar a antiga argila de seu pretendente.
O sr. Dodsworth, se podemos julgá-lo pelo fato de ter ido para o
exterior, não era um homem que zelava pela comunidade; no entanto,
ter escolhido a Itália como destino e seu retorno programado para a In-
glaterra na ocasião da morte do pai tornam provável que não fosse um
legalista violento. Ele parece ser (ou ter sido) um desses homens que
não seguiam os conselhos de Gatão tal e qual registrados na Farsália;[2]
um grupo — se pertencer a algum grupo que não admite tal termo —
que Dante nos recomenda desprezar por completo e que não raramente
fica entre os dois bancos, um assento evitado com muito cuidado. Mes-
mo assim, o sr. Dodsworth dificilmente poderia deixar de se sentir ansi-
oso pelas últimas notícias procedentes de seu pais natal em um período
tão crítico, e sua ausência provavelmente teria colocado sua propriedade
em perigo. Podemos imaginar, portanto, que quando seus membros
sentiram o alegre retorno da circulação e após ter se revigorado com
produtos da terra que de maneira alguma poderia ter esperado viver pa-
ra saborear, depois de ter sido informado do perigo do qual tinha sido
resgatado e dizer uma oração que inclusive pareceu enormemente longa
para o dr. Hotham — podemos imaginar, podemos afirmar, que sua pri-
meira pergunta teria sido:
— Chegou alguma notícia recente da Inglaterra?
— Recebi cartas ontem. — Podemos muito bem supor que o dr.
Hotham tenha respondido isso.
— É verdade!? — exclamou o sr. Dodsworth. — Por favor, senhor,
ocorreu alguma mudança para melhor ou para pior naquele pobre e
confuso pais?
O dr. Hotham suspeita da presença de um radical e responde fria-
mente:
— Senhor, é difícil saber a que confusão se refere. As pessoas falam
de fabricantes passando fome, de falências e da queda das empresas de
capital aberto: destas excrescências; excrescências que existiriam em um
estado de boa saúde. A Inglaterra, de fato, nunca esteve em uma condi-
ção mais próspera.
O sr. Dodsworth então suspeita da presença de um republicano e,
com o que supomos ser uma cautela habitual, oculta por algum tempo
sua lealdade e, em tom moderado, pergunta:
— Nossos governantes veem com olhos descuidados os sintomas de
saúde em excesso?
— Se por “nossos governantes” — responde o salvador — você quer
dizer “nossos ministros”, eles estão muito atentos para o constrangi-
mento temporário. — Pedimos perdão ao dr. Hotham se o ofendemos
ao torná-lo um conservador; tal característica corresponde apenas à
nossa noção prévia de um doutor, e esta é a única informação que temos
deste cavalheiro. — Seria de se desejar que se mostrassem mais firmes…
O rei, Deus o abençoe!
— Senhor! — exclama o sr. Dodsworth.
O dr. Hotham continua, sem se dar conta do enorme espanto de-
monstrado por seu paciente:
— O rei, Deus o abençoe, desvia somas imensas de seus subsídios
privados para ajudar os súditos, e seu exemplo tem sido seguido por to-
da a aristocracia e a classe alta da Inglaterra.
— O rei! — exclama o sr. Dodsworth.
— Sim, senhor, o rei! — reitera enfaticamente seu salvador. — E fico
contente em dizer que os preconceitos que tão desgraçada e injustifica-
velmente possuía o povo inglês em relação à Sua Majestade deram lugar,
com algumas exceções… e posso dizer que são exceções desprezíveis, ao
amor obediente e à reverência, conforme merecem seus talentos, virtu-
des e cuidado paternal — completa ele, acrescentando severidade.
— Caro senhor, você me diverte — responde o sr. Dodsworth, en-
quanto sua lealdade, antes um minúsculo botão, de repente desabrocha
plenamente. — No entanto, quase não o compreendo; a mudança é
muito repentina, e o homem… Carlos Stuart, que agora posso chamar
de Carlos I… suponho que seu assassinato fora execrado como merece?
O dr. Hotham coloca a mão no pulso de seu paciente, temendo um
acesso de delírio em virtude da mudança de assunto. O pulso estava re-
gular, e o sr. Dodsworth continuou:
— Espero que esse desventurado mártir que nos olha do céu esteja
apaziguado pela reverência prestada ao seu nome e pelas orações dedi-
cadas à sua memória. Nenhum sentimento, creio que posso arriscar-me
a afirmar, é tão generalizado na Inglaterra quanto a compaixão e o amor
dedicados à memória deste infeliz monarca?
— E seu filho, que agora reina…?
— Certamente, senhor, você se esqueceu: nenhum filho; isso, claro,
é impossível. Nenhum descendente dele está no trono inglês, ocupado
agora dignamente pela casa de Hanover. A desprezível raça dos Stuart,
há muito tempo proscrita e errante, agora está extinta, e os últimos dias
do último pretendente à coroa daquela família justificaram, aos olhos
do mundo, a sentença que o ejetou do reino para sempre.
Esta deve ter sido a primeira lição do sr. Dodsworth na política.
Pouco depois, para assombro de preservador e preservado, o verdadeiro
estado do caso deve ter sido revelado. Durante algum tempo, a estranha
circunstância de seu longo transe pode ter ameaçado o sr. Dodsworth
com a perda total da sanidade. Enquanto cruzava a montanha de São
Gotardo, ele estava de luto por seu pai; e agora todo ser humano que
havia conhecido está “envolto em chumbo”, virou pó; cada voz que ou-
vira está emudecida. O próprio som da língua inglesa está alterado, con-
forme sua experiência ao conversar com o dr. Hotham lhe assegurou.
Impérios, religiões, raças de homens provavelmente surgiram e desapa-
receram; seu próprio patrimônio (o pensamento é inócuo, mas, sem ele,
como poderá sobreviver?) afundou no abismo voraz que se escancara
sempre ávido para engolir o passado; seu aprendizado e seus conheci-
mentos provavelmente são obsoletos; com um sorriso amargo, pensa
consigo mesmo: “Devo assumir a profissão de meu pai e me tornar um
antiquário. Os objetos familiares, os pensamentos e os hábitos de minha
infância agora são antiguidades”. Pergunta-se, então, onde estariam os
cento e sessenta volumes de manuscritos encadernados que seu pai ha-
via compilado, os quais, quando era rapaz, olhava com reverência religi-
osa; estão agora… onde… ah, onde? Seu colega de brincadeiras favorito,
o amigo dos anos posteriores, sua noiva prometida e encantadora… Lá-
grimas há muito tempo congeladas derretem e descem por suas jovens
velhas bochechas.
No entanto, não desejamos ser patéticos. Decerto, desde os dias dos
patriarcas, nenhuma dama teve sua morte lamentada por seu amante
tantos anos depois do fato ter ocorrido. A necessidade, tirana do mun-
do, de certa maneira reconciliou o sr. Dodsworth ao seu destino. A
princípio, ele se convenceu de que a geração mais recente do homem se
encontra muito deteriorada em relação aos seus contemporâneos: não
são nem tão altos, nem tão bonitos, nem tão inteligentes. Depois, aos
poucos, começou a duvidar de sua primeira impressão. As ideias que ti-
nham se apoderado de sua mente antes do acidente, e que permanece-
ram congeladas por tantos anos, começaram a derreter e a se dissolver,
abrindo espaço para outras. Veste-se ao estilo moderno e não faz muita
objeção a nada, exceto à gravata e ao chapéu de aba dura. Admira a tex-
tura de seus sapatos e suas meias e olha com admiração um pequeno re-
lógio genovês, o qual consulta com frequência, como se ainda não tives-
se certeza de que o tempo passou da maneira habitual e como se pudes-
se encontrar em seu marcador alguma demonstração visual de que havia
trocado seu trigésimo sétimo ano por seu ducentésimo e algo mais, dei-
xando para trás o ano 1654 d.C. para encontrar-se, de repente, como um
observador dos modos dos homens, neste iluminado século XIX. Sua cu-
riosidade é insaciável: quando lê, seus olhos não são capazes de suprir a
mente com a devida rapidez, e, de vez em quando, ele se detém em algu-
ma passagem inexplicável, uma descoberta ou um conhecimento famili-
ar para nós, mas nunca sequer sonhados em sua época, os quais lhe dei-
xam maravilhado e em interminável devaneio. Certamente podemos su-
por que passa muito de seu tempo nesse estado, interrompendo-se de
vez em quando para entoar uma canção monarquista contra o velho
Noll e os Cabeças Redondas, parando de súbito e olhando ao redor
com receio de ver quem pudesse estar escutando e, contemplando a
aparência moderna de seu amigo, o doutor, suspira ao pensar que já não
importa a ninguém se ele cantar uma canção cavalheiresca ou um salmo
puritano.
Seria uma tarefa interminável desenvolver todas as ideias filosóficas
que, naturalmente, a ressuscitação do sr. Dodsworth deu à luz. Gostarí-
amos muito de conversar com este cavalheiro e, mais ainda, poder ob-
servar o progresso de sua mente e a mudança de ideias em uma situação
tão nova. Se era um jovem vivaz, afeito aos espetáculos do mundo, des-
preocupado com as atividades humanas mais elevadas, poderia imedia-
tamente abandonar à sombra todos os vestígios de sua antiga vida, em-
penhando-se em se fundir imediatamente à corrente de humanidade que
flui agora. Seria bastante curioso observar os equívocos que ele comete-
ria e a confusão de costumes que isso resultaria. Poderia pensar em en-
trar na vida política, converter-se em liberal ou conservador, conforme
indicarem suas inclinações, obtendo uma cadeira no lugar antigamente
conhecido — inclusive por ele — como capela de Santo Estevão. Tam-
bém é possível contentar-se em virar um filósofo contemplativo, encon-
trando alimento suficiente para que sua mente trace o avanço do conhe-
cimento humano, as mudanças que foram moldadas nas disposições, de-
sejos e capacidades da humanidade. Será um defensor da perfectibilida-
de ou da deterioração? Deve admirar nossas indústrias, o progresso da
ciência, a difusão do conhecimento e o novo espirito empreendedor ca-
racterístico de nossos compatriotas. Encontrará indivíduos que sejam
comparáveis aos espíritos gloriosos de sua época? Supondo que tenha
pontos de vista moderados, provavelmente adotará de pronto a mentali-
dade temporizadora tão em voga nos dias atuais. Ficará satisfeito de en-
contrar um ambiente calmo na política; admirará muito o ministério
que conseguiu conciliar quase todos os partidos; encontrará paz onde
havia rixa. O mesmo caráter que possuía duzentos anos atrás vai influ-
enciá-lo agora: ele continuará sendo o sr. Dodsworth moderado, pacífi-
co e apático que era em 1647.
Pois, apesar da educação e das circunstâncias serem suficientes para
direcionar e formar o material bruto da mente, elas não podem criar
nem proporcionar intelecto, aspirações nobres e determinação constan-
te onde estão implantados pela natureza a apatia, a hesitação de propó-
sito e desejos baixos. Para nos entreter com essa crença que temos (es-
quecendo um pouco o sr. Dodsworth), muitas vezes fizemos suposições
de como este ou aquele herói da Antiguidade agiria se renascesse em
nossos tempos, e então a fantasia acordada passava ser imaginar que al-
guns deles de fato renasceram; que, de acordo com a teoria explicada
por Virgílio no livro sexto de sua Eneida, a cada mil anos os mortos
voltam à vida, e suas almas, dotadas das mesmas sensibilidades e capaci-
dades de antes, são colocadas desnudas de conhecimento neste mundo,
para mais uma vez recobrirem seus esqueletos com as habilidades que a
situação, a educação e a experiência lhes proporcionam. Dizem que Pi-
tágoras se lembrava de muitas transmigrações desse tipo que haviam
ocorrido com ele; ainda que, para um filósofo, fizera muito pouco uso
de suas memórias anteriores. Isso seria uma escola muito útil para reis e
estadistas — e, de fato, para todos os seres humanos; chamados assim
para desempenhar seu papel no palco do mundo, eles poderiam lembrar
o que tinham sido anteriormente. Desta maneira, seria possível obter
um vislumbre do paraíso e do inferno, pois, estando o segredo de nossa
identidade anterior confinado ao nosso próprio peito, nos encolhemos
ou triunfamos diante da culpa ou do louvor agraciado aos nossos anti-
gos eus. Enquanto o amor pela glória e pela reputação póstuma são tão
naturais ao homem quanto seu apego à própria vida, este deve se encon-
trar, sob tal estado de coisas, tremulamente vivo nos registros históricos
de sua honra ou vergonha. O espírito plácido de Fox teria ficado alivia-
do com a recordação de ter desempenhado um papel tão digno quanto
o de Marco Antônio… As experiências anteriores de Alcibíades ou
mesmo as do emasculado Steeny de Jaime I talvez tivessem feito Sheri-
dan recusar-se a trilhar novamente o mesmo caminho de brilho fulgu-
rante, porém fugaz. A alma de nossa Corina moderna teria ficado puri-
ficada e exaltada pela consciência de que uma vez havia dado vida à for-
ma de Safo. Se, na época atual, a memória encantada se entregasse ao ca-
pricho de fazer com que toda a presente geração se lembrasse de que,
cerca de dez séculos atrás, tinham sido outras pessoas, não iriam vários
de nossos mártires livre-pensadores ficar admirados ao descobrir que ti-
nham sofrido como cristãos sob o jugo de Domiciano, enquanto o juiz,
no momento em que decretava a sentença, de repente se dava conta de
que anteriormente havia condenado à tortura os santos da antiga Igreja,
por não renunciarem à religião que ele agora defendia? Nada além de
ações benevolentes e bondade verdadeira surgiriam, puras, desta prova-
ção. Da mesma maneira, seria estranho perceber como alguns grandes
homens de assuntos paroquiais se pavoneariam ao saber que suas mãos
antes seguravam um cetro; um artesão honesto ou um criado ladrão
descobririam que eles pouco mudaram quando transformados em um
nobre ocioso ou no diretor de uma companhia; em todos os sentidos,
podemos supor que os humildes seriam exaltados, e os nobres e orgu-
lhosos sentiriam suas estrelas e honras se reduzindo a insignificâncias e
a meras brincadeiras de criança quando fossem lembrados das posições
humildes que outrora ocuparam. Se os romances filosóficos estiverem
na moda, concebemos que uma obra excelente poderia ser escrita sobre
o desenvolvimento da mesma opinião em várias localizações e em dife-
rentes períodos da história do mundo.
Contudo, voltemos ao sr. Dodsworth para oferecer-lhe mais algu-
mas palavras de despedida. Suplicamos-lhe que não se enterre mais na
obscuridade; ou, se modestamente recusar a publicidade, imploramos
que se apresente pessoalmente a nós. Temos mil perguntas para formu-
lar, dúvidas a esclarecer, fatos para averiguar. Se existe algum receio de
que velhos hábitos ou a estranheza na aparência possam torná-lo ridícu-
lo diante daqueles acostumados a se associar aos requintados modernos,
pedimos para assegurar-lhe de que não somos propensos a ridicularizar
a mera aparência externa, e que a excelência valiosa e intrínseca sempre
merecerá nosso respeito.
Dizemos isso no caso de o sr. Dodsworth ainda se encontrar vivo. É
provável que ele novamente não mais esteja entre nós. Talvez tenha
aberto os olhos apenas para fechá-los de novo mais obstinadamente; tal-
vez seu barro antigo não pudesse prosperar nas safras dos novos dias.
Após um breve encantamento e um estremecimento por constatar ser
um morto de fato vivo — sem encontrar qualquer afinidade com o pre-
sente estado das coisas —, ele mais uma vez deu um adeus eterno ao sol.
Seguido até sua sepultura por seu preservador e pelos atônitos aldeões,
pode dormir o verdadeiro sono da morte no mesmo vale onde repousou
durante tanto tempo. O dr. Hotham talvez tenha erigido uma lápide
simples sobre seus restos mortais duas vezes enterrados, com a inscri-
ção:
À memória de R. Dodsworth,
Um inglês,
Nascido em 1º de abril de 1617;
falecido em 16 de julho de 1826, com 209 anos.

Uma inscrição que, caso venha a ser preservada durante qualquer terrí-
vel convulsão que leve o mundo a começar novamente sua vida, provo-
caria muitas dissertações eruditas e teorias engenhosas a respeito de
uma raça cujos registros autênticos demonstram ter assegurado o privi-
légio de alcançar tão vasta idade.
TRANSFORMAÇÃO

Num ai, torceu a esta carcaça


Angústia a mais terrível,
Que me fez dar o meu relato,
Depois, deixou-me livre
Desde esse dia, em hora incerta,
Volta essa angústia extrema;
E se não conto a história horrível
O coração me queima.
— A Balada do Velho Marinheiro,
de Samuel Coleridge[1]—

Dizem que, quando acontece algum episódio estranho, sobrenatural ou


necromântico a uma pessoa, o ser humano em questão, por mais desejo-
so que possa estar de ocultar o ocorrido, sente-se, em determinados
momentos, como que dilacerado por um terremoto intelectual, forçado
a desnudar aos demais as profundezas de seu espirito. Sou testemunha
de que isso é verdade. Jurei solenemente a mim mesmo nunca revelar a
ouvidos humanos os horrores aos quais, certa vez, por excesso de orgu-
lho diabólico, entreguei-me. O homem santo que ouviu minha confis-
são, reconciliando-me com a Igreja, agora está morto. Ninguém sabe
que, certa vez…
Por que não deveria ser desse modo? Por que contar uma história de
ímpia tentação da Providência e humilhação que subjuga a alma? Por
quê? Responde-me você, que é versado nos segredos da natureza huma-
na! Sei apenas que assim é; e, apesar de forte determinação, de um orgu-
lho que muito me domina, da vergonha e até mesmo do medo de pare-
cer odioso à minha espécie, preciso falar.
Gênova, minha orgulhosa cidade natal, de onde contemplo as ondas
azuis do mar Mediterrâneo — você se lembra de mim, em minha infân-
cia, quando seus penhascos e promontórios, seu céu brilhante e alegres
vinhedos eram meu mundo? Época feliz em que, para o coração jovem,
o universo confinado que, em sua própria limitação, deixa espaço livre
para a imaginação, encadeia nossas energias físicas e, período único em
nossa vida, une inocência e diversão. Entretanto, quem pode olhar para
trás, para a infância, e não se lembrar de suas dores e temores angustian-
tes? Nasci com o mais imperioso, arrogante e indomável espírito com o
qual um mortal já foi agraciado. Fraquejava somente diante de meu pai;
e ele, generoso e nobre, porém caprichoso e tirânico, de imediato nutriu
e reprimiu a impetuosidade selvagem de meu caráter, tornando necessá-
ria a obediência, mas sem inspirar qualquer respeito pelos motivos que
guiavam suas ordens. Ser um homem livre e independente; ou, melhor
dizendo, insolente e dominador, era a esperança e a súplica de meu re-
belde coração.
Meu pai tinha um amigo, um rico nobre genovês, que, em meio a
uma turbulência política, foi subitamente sentenciado ao desterro, ten-
do sua propriedade confiscada. O marquês Torella foi sozinho para o
exílio. Assim como meu pai, era viúvo e tinha uma filha, a quase infante
Juliet, que ficou sob a tutela de meu genitor. Eu decerto teria sido gros-
seiro com a adorável menina, não tivesse sido forçado pela minha posi-
ção a tornar-me seu protetor. Vários incidentes pueris tenderam a um
ponto: fizeram Juliet enxergar em mim um refúgio seguro; e eu, nela, al-
guém que deveria perecer por meio da sensibilidade suave de sua natu-
reza tão rudemente castigada, e não pela minha posição de protetor.
Crescemos juntos. O desabrochar da rosa em maio não era mais doce
do que aquela menina querida. Uma irradiação de beleza se espalhava
em seu rosto. Sua silhueta, seu andar, sua voz… Meu coração soluça
ainda agora ao pensar em tudo de calmo, gentil, afetuoso e puro que fi-
cou preservado como relíquia em sua morada celeste. Quando eu tinha
onze anos de idade, e Juliet contava com oito, um primo meu, muito
mais velho do que nós dois — parecia-nos um adulto —, reparou com
grande interesse na minha companheira de brincadeiras; reclamou-a co-
mo noiva e pediu que se casasse com ele. Ela se recusou, mas ele insis-
tiu, puxando-a em direção a si contra a vontade. Com sanha e semblan-
te de um insano, atirei-me sobre ele — esforçando-me para sacar sua es-
pada — e agarrei seu pescoço com a determinação feroz de estrangulá-
lo; ele foi obrigado a pedir ajuda para se desvencilhar de mim. Naquela
noite, levei Juliet à capela de nossa casa: eu a fiz tocar nas relíquias sa-
gradas, agoniei seu coração de criança e profanei seus lábios infantis
com o juramento de que ela seria minha e somente minha.
Bem, esses dias se foram. O marquês Torella retornou poucos anos
depois e se tornou mais rico e próspero do que nunca. Quando eu tinha
dezessete anos, meu pai morreu; ele tinha ido da magnificência à prodi-
galidade, e Torella se encheu de alegria pelo fato de minha menoridade
permitir a oportunidade de recuperar a fortuna. Juliet e eu ficamos noi-
vos diante do leito de morte de meu pai — Torella viria a ser um segun-
do pai para mim.
Eu desejava ver o mundo e me entreguei a esse prazer. Fui para Flo-
rença, Roma, Nápoles; depois passei por Toulon e, finalmente, cheguei
ao que, há muito tempo, era o destino de meus desejos: Paris. Havia
muita agitação acontecendo em Paris na época. O pobre rei Carlos VI,
em um momento são, em outro louco, ora um monarca, ora um escravo
abjeto, era o próprio escárnio de ser humano. A rainha, o delfim, o du-
que de Borgonha, alternadamente amigos e inimigos, ora reunidos em
banquetes perdulários, ora derramando sangue em uma rivalidade —
estavam cegos para o estado miserável de seu país e para os perigos que
pairavam sobre ele, entregando-se inteiramente ao prazer dissoluto ou a
conflitos selvagens. Meu caráter permanecia o mesmo. Era presunçoso e
teimoso; adorava me exibir e, acima de tudo, mantinha longe de mim
qualquer forma de controle. Quem poderia me controlar em Paris?
Meus jovens amigos estavam ansiosos para acalentar paixões que lhes
preenchessem de prazeres. Eu era considerado bonito e dominava todas
as habilidades de um cavaleiro. Era desassociado de qualquer partido
político. Tornei-me favorito de todos: minha petulância e arrogância
eram perdoadas por ser muito jovem, e fiquei mimado. Quem poderia
me controlar? Não as cartas e os conselhos de Torella — a única neces-
sidade forte que me visitava vinha na forma abominável de um bolso
vazio. Porém, havia meios de preenchê-lo. Vendi acre após acre, propri-
edade após propriedade. Minhas vestimentas, minhas joias, meus cava-
los e seus jaezes, eram quase inigualáveis na deslumbrante Paris, en-
quanto as terras da minha herança tornavam-se posse de outras pessoas.
O duque de Orleans foi emboscado e assassinado pelo duque de
Borgonha. Medo e terror se apoderaram de toda a cidade. O delfim e a
rainha se recolheram; todos os prazeres foram suspensos. Fiquei farto
desse estado de coisas e meu coração ansiava pelos abrigos da minha in-
fância. Eu era praticamente um mendigo, mas ainda queria ir até lá rei-
vindicar minha noiva e reconstruir a fortuna. Alguns negócios oportu-
nos como mercador me tornariam rico de novo. No entanto, não volta-
ria com aparência humilde. Meu último ato foi dispor de minha propri-
edade remanescente, perto de Albaro, pela metade de seu valor para ob-
ter dinheiro de imediato. Então despachei todo tipo de artesão, tapeça-
rias, móveis de régio esplendor para mobiliar a última relíquia de minha
herança, meu palácio em Gênova. Demorei um pouco mais, envergo-
nhado com o papel do filho pródigo que retoma a casa, o qual eu temia
ter que interpretar. Enviei meus cavalos. Despachei para minha noiva
prometida um incomparável ginete espanhol; seus jaezes reluzindo com
joias e tecido dourado. Por toda parte, mandei estampar as iniciais en-
trelaçadas de Juliet e Guido. Meu presente encontrou favorecimento
nos olhos dela e de seu pai.
Todavia, voltar a ser proclamado um esbanjador, a marca do pródigo
impertinente, talvez até motivo de desprezo, e encontrar somente as in-
júrias ou os insultos de meus concidadãos não era uma perspectiva atra-
ente. Como um escudo entre mim e a censura, convidei alguns poucos
dos mais imprudentes companheiros para me acompanhar: assim, fui
armado contra o mundo, escondendo um sentimento ressentido, meta-
de medo e metade penitência, por bravata e uma insolente demonstra-
ção de vaidade satisfeita.
Cheguei a Gênova. Pus os pés no piso do palácio ancestral. O cami-
nhar orgulhoso não traduzia meu coração, pois sentia profundamente
que, embora cercado de todos os luxos, eu era um mendigo. O primeiro
passo que dei para reclamar Juliet deve ter me denunciado abertamente
como tal. Percebi desprezo ou piedade no olhar de todos. Imaginei —
tão inclinada é a consciência para imaginar o que merece — que ricos e
pobres, jovens e velhos, todos me olhavam com menosprezo. Torella
sequer se aproximou. Não me surpreendia que meu segundo pai espe-
rasse de mim a reverência de um filho, indo visitá-lo primeiro. Contu-
do, aflito e lacerado pela sensação de insensatez e demérito, esforçava-
me em jogar a culpa nos outros. Fazíamos orgias noturnas no palácio
Carega. Às noites desenfreadas sem dormir, seguiam-se manhãs apáticas
e indolentes. Na hora da Ave-Maria, exibíamos nossas graciosas perso-
nalidades nas ruas, zombando dos cidadãos sóbrios, lançando olhares
insolentes às mulheres que se retraiam. Juliet não estava entre elas —
não, não; caso estivesse, a vergonha teria me afugentado, se o amor não
me fizesse ajoelhar aos seus pés.
Cansei-me daquilo. Fiz uma visita repentina ao marquês. Ele estava
em sua casa de campo, uma entre as muitas que embelezavam o subúr-
bio de San Pietro d’Arena. Era maio, um mês de maio naquele jardim
do mundo: as flores das árvores frutíferas desapareciam em meio à den-
sa folhagem verde; as videiras avançavam; o solo se enchia de flores caí-
das de oliveira; os vagalumes mantinham-se na cerca viva de murta; o
céu e a terra vestiam um manto de extrema beleza. Torella me acolheu
com gentileza, embora de modo reservado, e até mesmo seu tom de
descontentamento logo abrandou. Alguma semelhança com meu pai —
algo no olhar e no tom de ingenuidade juvenil, ainda à espreita, a des-
peito de meus descaminhos — amoleceu o coração do bom velho. Ele
mandou chamar a filha — a quem me apresentou como seu noivo. O
aposento santificou-se por uma luz sagrada quando ela entrou. Tinha a
aparência de um querubim, aqueles olhos grandes e suaves, bochechas
com covinhas e a boca de uma doçura infantil que expressa a união rara
de felicidade e amor. A admiração então se apossou de mim: ela é mi-
nha! A seguir, senti brotar uma emoção vaidosa, e meus lábios se torce-
ram com um triunfo arrogante. Eu não teria sido o enfant gâté[2] das
beldades da França se não tivesse aprendido a arte de agradar o coração
mole de uma mulher. Se para os homens eu era petulante, a reverência
que eu prestava a elas era mais do que um contraste. Comecei a cortejá-
la demonstrando mil galanteios a Juliet, a qual, prometida para mim
desde a infância, jamais admitira a devoção de outros e que, embora
acostumada a manifestações de admiração, não era iniciada na lingua-
gem dos amantes.
Durante alguns dias, tudo correu bem. Torella nunca aludiu à minha
extravagância; tratou-me como a um filho favorito. No entanto, chegou
o momento, enquanto discutíamos os preparativos de minha união com
sua filha, em que a condição favorável das coisas tornou-se obscurecida.
Um contrato fora elaborado enquanto meu pai ainda estava vivo. Na
verdade, eu o anulara quando desperdicei toda a riqueza que deveria ter
sido partilhada por mim e Juliet. Torella, consequentemente, optou por
considerar cancelado esse vínculo e propôs outro no qual, embora a ri-
queza que ele concedia tivesse aumentado em enorme grau, havia tantas
restrições quanto ao modo de gastá-la que eu, vendo a independência
apenas na carreira livre dada à minha própria vontade imperiosa, insul-
tei-o por tirar proveito de minha situação e recusei-me terminantemen-
te a aceitar as condições. Com muita paciência, o velho se esforçou para
me trazer de volta à razão. O orgulho inflamado se tornou o tirano de
meus pensamentos: eu o ouvi com indignação e o rechacei com desdém.
— Juliet, você é minha! Não trocamos juras em nossa infância ino-
cente? Não somos um só aos olhos de Deus? E poderá seu pai, a san-
gue-frio e de coração gelado, nos separar? Seja generosa, meu amor, seja
justa; não negue uma dádiva, o último tesouro de seu Guido; não desdi-
ga suas juras; vamos desafiar o mundo e reduzir a nada os obstáculos de
momento, encontrando em nosso afeto mútuo um refúgio contra todos
os males.
Devo ter sido um demônio com tamanho sofisma no esforço de en-
venenar aquele santuário de pensamento puro e amor terno. Juliet se re-
traiu amedrontada. Seu pai era o melhor e mais amável dos homens, e
ela se esforçou para me mostrar como, sendo obediente a ele, tudo de
bom resultaria. Ele receberia minha submissão tardia com caloroso afe-
to, e um generoso perdão se seguiria ao meu arrependimento. Palavras
inúteis para uma filha jovem e meiga dirigir a um homem acostumado a
transformar em lei sua vontade e a sentir-se no coração um déspota tão
terrível e severo que rendia obediência a nada além de seus próprios de-
sejos imperiosos! Meu ressentimento cresceu com a resistência dela; e
meus indômitos companheiros estavam prontos para alimentar as cha-
mas. Elaboramos um plano para raptar Juliet. No início, parecia estar
coroado com êxito, mas, a meio caminho, durante nosso retorno, fomos
surpreendidos pelo pai agoniado e seus criados. Um combate se seguiu
e, antes da guarda da cidade chegar para decidir a vitória a favor de nos-
sos antagonistas, dois dos serviçais de Torella haviam sido gravemente
feridos.
Esta parte da história pesa mais fortemente em mim. Sendo um ho-
mem mudado agora, abomino-me ao relembrá-la. Tenho a esperança de
que ninguém jamais se sinta como eu ao ouvir este relato. Um cavalo
conduzido com fúria por um cavaleiro armado de esporas farpadas não
seria mais escravo do que eu da violenta tirania de meu temperamento.
Um demônio se apossou de minha alma, incitando-me à loucura. Eu
sentia a voz da consciência dentro de mim; mas se me rendi a ela por
um breve intervalo, foi apenas para um momento depois ser arrastado,
como por um redemoinho, e levado na torrente da ira desesperada —
joguete das tempestades provocadas pelo orgulho. Fui preso e, por in-
fluência de Torella, libertado. Mais uma vez, voltei a fim de levar am-
bos, ele e a filha, para a França; aquele país infeliz, na época saqueado
por flibusteiros e quadrilhas de soldados sem lei, oferecia um grato re-
fúgio a um criminoso como eu. Nossos planos foram descobertos. Fui
condenado ao desterro; e, como minhas dívidas já eram enormes, a pro-
priedade que me restava foi colocada nas mãos de encarregados para fa-
zer o pagamento. Torella mais uma vez ofereceu sua mediação, exigindo
apenas minha promessa de não renovar as malogradas tentativas em re-
lação a ele e sua filha. Rejeitei a oferta e imaginei que havia triunfado ao
ser expulso de Gênova para um exílio solitário e paupérrimo. Meus
companheiros foram embora: tinham sido expulsos da cidade algumas
semanas antes e já estavam na França. Encontrava-me sozinho, sem
amigos, sem uma espada ao meu lado e nenhum ducado no bolso.
Perambulava ao longo da beira-mar, um turbilhão de paixões se
apossando e dilacerando minha alma. Era como se uma brasa viva tives-
se sido colocada queimando em meu peito. A princípio, meditei sobre o
que deveria fazer. Juntaria-me a um bando de flibusteiros. Vingança! A
palavra parecia um bálsamo para mim: eu a abracei e acariciei até que,
como uma serpente, ela me picou. Então, eu novamente renegaria e des-
prezaria Gênova, aquele cantinho do mundo. Voltaria a Paris, para onde
muitos de meus amigos partiram; onde meus serviços seriam avidamen-
te aceitos; onde eu poderia entalhar uma fortuna com minha espada e
talvez, através do sucesso, fazer minha insignificante cidade natal e o
falso Torella lamentarem o dia em que expulsaram a mim, um novo Co-
riolano, de seus muros. Eu voltaria a Paris — dessa forma, a pé, um
mendigo — e me apresentaria em minha pobreza àqueles a quem antes
recebi tão suntuosamente? Senti brotar um rancor só de pensar nisso.
A realidade das coisas começou a surgir em minha mente, trazendo
desespero em seu rastro. Durante vários meses fui um prisioneiro: os
demônios da masmorra haviam açoitado minha alma até a loucura, mas
tinham subjugado minha forma corpórea. Eu estava débil e abatido. To-
rella recorrera a mil artifícios para me propiciar conforto; eu percebi e
rejeitei todos — e colhi os frutos de minha obstinação. O que tinha que
ser feito? Deveria rastejar diante de meu inimigo e lhe implorar perdão?
Antes morrer dez mil mortes! Eles jamais obteriam tal vitória! Ódio…
Jurei ódio eterno! Ódio de quem? Contra quem? De um pária errante
contra um poderoso nobre. Eu e meus sentimentos éramos nada para
eles: já teriam esquecido alguém tão indigno. E Juliet! Seu rosto angeli-
cal e sua forma silfídica fulguravam entre as nuvens de meu desespero
com inútil beleza; pois eu a tinha perdido — a glória e a flor do mundo!
Outro iria chamá-la de sua! Aquele sorriso do paraíso abençoaria ou-
tro!
Mesmo agora meu coração fraqueja dentro de mim quando percorro
essa rota de pensamentos sombrios. Ora subjugado quase às lágrimas,
ora enfurecido em minha agonia, ainda perambulava ao longo da mar-
gem pedregosa, que a cada passo se tornava mais selvagem e desolada.
Rochas pendentes e precipícios encanecidos contemplavam do alto o
mar sem ondas; cavernas negras bocejavam; e, para sempre, entre a ero-
são do refluxo, murmuravam e quebravam as águas infrutíferas. Agora,
meu caminho estava praticamente bloqueado por um abrupto promon-
tório, que se mostrava quase impraticável por fragmentos caídos do pe-
nhasco. A noite estava se aproximando quando, na direção do oceano,
surgiu, como se ao agitar da varinha de um mago, uma teia escura de
nuvens, maculando o brilho do céu azul de fim de tarde e escurecendo e
perturbando o até então plácido mar. As nuvens tinham estranhas for-
mas fantásticas; e mudavam, misturavam-se e pareciam impelidas por
um poderoso feitiço. As ondas levantaram suas cristas brancas; o trovão
primeiro murmurou, depois rugiu através de toda a vastidão das águas,
que adquiriram uma coloração púrpura, salpicadas de espuma. O local
onde eu estava dava, de um lado, para o vasto e largo oceano; do outro,
era barrado por um austero promontório. Contornando esse promon-
tório surgiu de repente, impulsionado pelo vento, um barco. Os mari-
nheiros tentaram em vão forçar seu caminho para o mar aberto — o
vendaval impelia a embarcação contra as rochas. O barco sucumbirá!
Todos a bordo vão sucumbir! Queria eu estar entre eles! E, em meu co-
ração jovem, a ideia da morte surgiu pela primeira vez misturada com
alegria. Era uma visão horrível observar aquele barco lutando contra
seu destino. Eu mal conseguia discernir os marinheiros, mas era capaz
de ouvi-los. Logo estaria tudo acabado! Um rochedo, mal coberto pelas
ondas agitadas, e ainda assim despercebido, estava à espera de sua presa.
Um trovão rompeu sobre minha cabeça no momento em que, com um
tremendo impacto, a embarcação projetou-se sobre seu inimigo invisí-
vel. Em um breve espaço de tempo, o barco foi despedaçado. Permaneci
ali, em segurança; e lá estavam meus semelhantes, lutando desesperada-
mente contra o aniquilamento. Pareceu-me tê-los visto lutando; certa-
mente ouvia seus gritos, que superavam as ondas ruidosas em sua ago-
nia estridente. A negra rebentação jogava para lá e para cá os fragmen-
tos do naufrágio; em pouco tempo eles desapareceram. Contemplei
aquilo fascinado até o fim; então, finalmente, caí de joelhos, cobri o ros-
to com as mãos e olhei para cima mais uma vez. Algo flutuava sobre as
ondas em direção à praia. Aproximava-se cada vez mais. Seria aquilo
uma forma humana? Ficou mais distinta e, enfim, uma poderosa onda,
erguendo toda a carga, colocou-a sobre uma pedra. Um ser humano
montando um baú de navio! Um ser humano! Mas seria mesmo? Certa-
mente nunca existira algo como aquilo: um anão disforme, olhos ves-
gos, feições distorcidas e corpo deformado; terrível de se olhar. Meu
sangue, pouco antes cálido por um semelhante que foi arrancado do tú-
mulo aquoso, gelou no coração. O anão desceu de seu baú e afastou o
cabelo liso e esparso de seu rosto odioso:
— Por São Belzebu! — exclamou. — Eu me livrei de uma boa.
Olhou ao redor e me viu.
— Oh, pelos demônios! Eis ali outro aliado do poderoso. Para qual
santo você oferece suas preces, amigo, se não para o meu? No entanto,
não me lembro de tê-lo visto a bordo.
Encolhi-me por causa do monstro e de sua blasfêmia. Mais uma vez,
ele me perguntou e murmurei alguma resposta inaudível. Ele conti-
nuou:
— Sua voz está abafada por este rugido dissonante. Que barulho o
grande oceano faz! Colegiais fugindo de seu cárcere não são mais ruido-
sos do que essas ondas se libertando para brincar. Elas me perturbam.
Não suporto mais esse barulho inoportuno. Silêncio, velhote! Ventos,
vão embora! Para suas casas! Nuvens, voem para os antípodas e deixem
nosso céu claro!
Enquanto falava, esticou os dois braços longos e esguios, semelhan-
tes a garras de aranha, e parecia abraçar a amplidão diante dele. Foi um
milagre? As nuvens se partiram e fugiram; o céu azul primeiro saiu para
espreitar e depois espalhou um amplo e suave campo acima de nós; o
vendaval foi trocado por uma brisa suave que soprava do oeste; o mar
se acalmou; as ondas diminuiram em marolas.
— Gosto de obediência, mesmo a desses elementos estúpidos — fa-
lou o anão. — Quanto mais da indomável mente do homem! Foi uma
tempestade e tanto, admita. E toda ela foi minha própria criação.
Era como tentar a Providência dialogar com aquele mago. Contudo,
o Poder, em todas as suas formas, é digno de veneração pelo homem.
Assombro, curiosidade e um fascínio irresistível me atraíram em dire-
ção a ele.
— Venha, não tenha medo, amigo — disse o infeliz. — Fico bem-
humorado quando agradado, e algo me agrada em seu corpo bem pro-
porcionado e seu rosto bonito, embora pareça um pouco desolado. Vo-
cê sofreu um acidente em terra; eu, um naufrágio no mar. Talvez eu pos-
sa aliviar a tempestade de sua sorte como fiz com a minha. Vamos ser
amigos?
E estendeu a mão; eu não consegui tocá-la.
— Bem, então seremos companheiros; isso também serve. E agora,
enquanto descanso após o desconforto que acabei de passar, diga-me
por quê, jovem e galante como parece, perambula assim sozinho e aba-
tido por esta costa selvagem.
A voz do desgraçado era estridente e pavorosa, e suas caretas en-
quanto falava eram medonhas. No entanto, exercia uma espécie de in-
fluência sobre mim, a qual eu não podia controlar, então lhe contei mi-
nha história. Quando terminei, ele riu alto e demoradamente; as rochas
ecoaram o som: o inferno parecia gritar ao meu redor.
— Oh, você, primo de Lúcifer! — disse. — Então também caiu por
sua soberba; e, embora brilhante como o filho da manhã, esteve dispos-
to a desistir de sua boa aparência, sua noiva e seu bem-estar, em vez de
se submeter à tirania do bem. Exalto sua escolha, por minha alma! En-
tão fugiu e se conformou; e pretende morrer de fome nestas pedras, dei-
xando que os pássaros biquem seus olhos mortos enquanto que seu ini-
migo e sua prometida regozijam com sua ruína. Sua soberba é estranha-
mente parecida com humildade, parece-me.
Enquanto ele falava, mil pensamentos com garras afiadas arranha-
vam meu coração.
— O que acha que eu deveria fazer? — gritei.
— Eu? Ah, nada, mas deite-se e diga suas preces antes de morrer.
Porém, se eu fosse você, saberia o que deve ser feito.
Aproximei-me. Seus poderes sobrenaturais fizeram dele um oráculo
aos meus olhos; ainda assim, uma estranha e arrepiante palpitação estre-
meceu meu corpo enquanto eu dizia:
— Fale! Oriente-me: que ação aconselha?
— Vingue-se, homem! Humilhe seus inimigos! Meta seu pé no pes-
coço do velho e se aposse de sua filha!
— Para leste e oeste eu me virei — gritei —, e não vi qualquer ma-
neira! Se eu tivesse ouro, poderia ter alcançado muita coisa; mas, pobre
e sozinho, sou incapaz.
O anão estava sentado em seu baú enquanto ouvia minha história.
Depois desceu, pressionou uma mola e o baú se abriu! Uma mina de ri-
queza — de joias faiscantes, ouro reluzente e prata pálida — estava con-
tida nele. Um louco desejo de possuir aquele tesouro brotou dentro de
mim.
— Sem dúvida — falei —, alguém tão poderoso quanto você é capaz
de fazer todas as coisas.
— Que nada! — disse o monstro humildemente. — Sou menos oni-
potente do que pareço. Possuo algumas coisas que você talvez cobice,
mas eu daria todas elas em troca de uma pequena parcela, ou mesmo
por um empréstimo, do que é seu.
— Minhas posses estão ao seu dispor — respondi amargamente. —
Minha pobreza, meu exílio, minha desgraça… Eu lhe dou tudo isso de
graça.
— Ótimo! Agradeço. Acrescente mais uma coisa ao seu presente, e
meu tesouro será seu.
— Levando em conta que minha herança é nada, o que além de nada
você aceitaria?
— Seu rosto formoso e os membros bem-feitos.
Estremeci. Será que esse monstro todo-poderoso me mataria? Eu
não tinha comigo um punhal. Esqueci de rezar, mas fiquei pálido.
— Peço um empréstimo, não um presente — disse a coisa assusta-
dora. — Empreste-me seu corpo por três dias. Você ficará com o meu
para abrigar sua alma enquanto isso, e, como pagamento, terá meu baú.
O que me diz dessa barganha? Três breves dias.
Dizem que é perigoso manter uma conversa ilícita; e posso muito
bem comprovar isso. Por escrito, pode parecer incrível que eu tenha da-
do ouvidos a essa proposta; mas, apesar de sua grotesca feiura, havia al-
go fascinante em um ser cuja voz era capaz de governar terra, ar e mar.
Senti um profundo desejo de ceder; pois, com aquele baú, eu poderia
comandar o mundo. Minha única hesitação resultava do medo de que
ele não cumprisse sua parte no acordo. Então, pensei que morreria em
breve naquelas areias solitárias, e os membros que ele cobiça não mais
seriam meus. Valia a pena arriscar. E, além disso, eu sabia que, pelas re-
gras da arte da magia, havia fórmulas e juramentos que nenhum de seus
praticantes ousaria quebrar. Hesitei em responder; e ele continuou, ora
exibindo sua riqueza, ora falando do preço insignificante que exigia em
troca, até parecer loucura recusar. Assim é: colocamos nosso barco na
corrente do riacho, e ele descerá correndo, caindo pela cachoeira; se de-
sistirmos de direcionar a selvagem torrente de paixão, nos distanciare-
mos sem saber para onde.
Ele fez muitos juramentos, e eu o esconjurei com muitos nomes sa-
grados; até que vi aquela maravilha de poder, aquele mestre dos elemen-
tos, tremer como uma folha de outono diante de minhas palavras; e, co-
mo se o espírito falasse a contragosto e forçosamente dentro dele, en-
fim, com a voz falhada, revelou o feitiço com o qual seria obrigado, ca-
so desejasse trapacear comigo, a devolver o espólio ilegítimo. Nosso
sangue vital quente teria de se misturar para fazer e desfazer o encanto.
Basta desse assunto profano. Fui persuadido — a coisa estava feita.
A manhã seguinte alvoreceu acima de mim enquanto eu estava deitado
sobre o cascalho, e não reconheci minha própria sombra que se projeta-
va. Senti-me mudado para uma silhueta horrível e amaldiçoei minha
crença fácil e credulidade cega. O baú estava ali; nele havia o ouro e as
pedras preciosas pelos quais eu tinha vendido a carcaça de carne que a
natureza me dera. A visão acalmou um pouco minhas emoções: três dias
passariam rápido.
Eles passaram. O anão tinha me fornecido um abundante suprimen-
to de comida. No começo, eu mal conseguia andar, tão estranhos e des-
conjuntados estavam meus membros; e minha voz era a do demônio.
Todavia, eu me mantinha calado e virava o rosto para o sol, para que as-
sim não pudesse ver minha sombra, e contava as horas, ruminando so-
bre minha conduta futura. Colocaria Torella aos meus pés — possuiria
minha Juliet, apesar dele —, tudo isso minha riqueza poderia facilmente
conseguir. Durante a noite escura, dormi e sonhei com a realização de
meus desejos. Dois sóis tinham se posto; o terceiro alvorecia. Eu estava
agitado, temeroso. Oh, expectativa, que coisa apavorante você é, quan-
do despertada mais pelo medo do que pela esperança! Como você deve
serpear em volta do coração, torturando suas pulsações! Como você de-
ve dardejar pontadas desconhecidas por todo nosso frágil mecanismo,
ora parecendo nos estilhaçar como vidro quebrado, reduzindo a nada;
ora nos dando força renovada, a qual de nada nos serve, e assim nos
atormenta com uma sensação, como a que o homem forte deve sentir
quando não consegue romper seus grilhões, embora estes se dobrem em
suas mãos. Lentamente caminhou para cima a brilhante esfera no céu
oriental; demorou-se muito em seu zênite, e ainda mais devagar vague-
ou para baixo, na direção oeste: tocou a borda do horizonte — estava
perdida! Seu resplendor estava no cume do penhasco — ele se tornava
pálido e cinzento. A estrela vespertina brilhava forte. Ele logo estará
aqui.
Ele não veio! Pelos céus viventes, ele não veio! Então, a noite arras-
tou sua exausta amplitude, e, no declínio de sua era, “o dia começou a
grisalhar seu cabelo escuro”, e o sol ergueu-se de novo sobre o mais
desgraçado miserável que já repreendeu sua luz. Três dias assim passei.
As joias e o ouro — oh, como eu os abominava!
Ora, ora… não vou enegrecer estas páginas com desvarios demonía-
cos. Eram demasiadamente terríveis os pensamentos, o feroz tumulto
de ideias que enchiam minha alma. Ao final desse período, dormi; não
dormia desde o terceiro pôr do sol; e sonhei que estava aos pés de Juliet,
e ela sorria, depois dava um grito estridente — ao perceber minha trans-
formação — e sorria mais uma vez, pois seu belo amado ainda estava
ajoelhado diante dela. Contudo, não era eu; era ele, o demônio, metido
em meus membros, falando com minha voz, cativando-a com meus
olhares de amor. Esforcei-me para alertá-la, mas minha língua recusou-
se ao seu oficio; esforcei-me para afastá-lo dela, mas estava enraizado no
solo. Acordei em agonia. Ali estavam os solitários precipícios encaneci-
dos; ali estava o mar se esparramando, a praia deserta e o céu azul acima
de tudo. O que aquilo significava? Teria sido o sonho somente um espe-
lho da verdade? Estaria ele cortejando e conquistando minha noiva? No
mesmo instante, eu voltaria para Gênova, mas fora banido. Dei uma ri-
sada — o grito do anão irrompeu dos meus lábios —, eu, banido! Oh,
não! Eles não exilaram os membros abomináveis que agora uso; talvez
eu consiga entrar com eles, sem receio de incorrer na ameaça da pena de
morte, em minha cidade natal.
Comecei a caminhar em direção a Gênova. Estava me acostumando
com os membros deformados; nenhum era adaptado para um movi-
mento simples e direto, e prossegui com infinita dificuldade. Também
quis evitar as aldeias espalhadas aqui e ali pelo litoral, pois não estava
disposto a exibir minha hediondez. Não tinha certeza de que, se me vis-
sem, os meninos não iriam me apedrejar até a morte quando eu passas-
se, por ser um monstro. Recebi algumas saudações indelicadas dos pou-
cos camponeses ou pescadores que por acaso encontrei. Já era noite es-
cura quando me aproximei de Gênova. O clima estava tão agradável e
suave que me ocorreu que o marquês e sua filha muito provavelmente
teriam deixado a cidade, dirigindo-se ao seu retiro no campo. Foi da
villa Torella que eu tentara raptar Juliet; tinha passado muitas horas ob-
servando o local e conhecia cada palmo de terreno nas proximidades.
Era lindamente situado, cercado de árvores, à beira de um riacho. Con-
forme me aproximava, ficou claro que minha suposição estava correta;
não apenas isso, mas aqueles momentos estavam sendo dedicados a fes-
tas e diversões. A casa estava toda iluminada; trechos de música suave e
alegre flutuaram na brisa em minha direção. Meu coração sucumbiu
dentro do peito. Tamanha era a generosa bondade do coração de Torella
que eu tinha certeza de que ele não estaria participando de manifesta-
ções públicas de contentamento pouco depois de meu infeliz banimen-
to, mas por uma causa que não me atrevia a imaginar.
O pessoal do campo estava animado e corria por todo lado; foi ne-
cessário que eu considerasse me esconder, e ainda assim desejava abor-
dar alguém, ouvir alguma conversa ou, de alguma maneira, saber o que
estava realmente acontecendo. Por fim, entrando nas alamedas que fica-
vam nas imediações da mansão, encontrei uma escura o suficiente para
ocultar minha excessiva feiura; e assim como eu, outros também perma-
neciam ociosamente em suas sombras. Em pouco tempo, reuni tudo o
que desejava saber — tudo o que primeiro fez meu coração parar hor-
rorizado e, em seguida, ferver de indignação. Amanhã, Juliet deveria ser
entregue ao arrependido, regenerado e amado Guido; amanhã, minha
noiva deveria fazer juras a um demônio do inferno! E isso por causa do
que eu fiz! Meu maldito orgulho, minha demoníaca violência e perversa
autoidolatria haviam causado esse ato. Se eu tivesse agido como o des-
graçado que roubou minha forma; se, com um semblante ao mesmo
tempo submisso e digno, tivesse me apresentado a Torella, dizendo:
“Eu errei, perdoe-me; sou indigno de sua filha angelical, mas permita-
me reivindicá-la de agora em diante, quando minha conduta alterada
mostrará que abdiquei de meus vícios, e me esforçarei para tornar-me,
de alguma maneira, digno dela. Lutarei contra os infiéis; e quando meu
fervor religioso e minha sincera penitência pelo passado aparecerem pa-
ra que você perdoe meus crimes, permita-me novamente me considerar
seu filho…”. Porém, assim falara o demônio, e o penitente foi bem rece-
bido, como o filho pródigo das Escrituras: o bezerro engordado fora
abatido para ele; e ele, ainda percorrendo o mesmo caminho, demons-
trou um arrependimento de coração aberto por seus desvarios, uma
concessão tão humilde de todos os seus direitos e uma resolução tão ar-
dente de readquiri-los com uma vida de contrição e virtude que ele ra-
pidamente conquistou o bondoso velho; e o pleno perdão e a entrega de
sua criança encantadora seguiram-se em rápida sucessão.
Oxalá tivesse um anjo do paraíso sussurrado para que eu agisse as-
sim! Agora, no entanto, qual seria o destino da inocente Juliet? Permiti-
ria Deus a abominável união ou alguma providência a destruiria, ligan-
do o desonrado nome de Carega ao pior dos crimes? Amanhã, na alvo-
rada, eles iriam se casar; só havia uma maneira de evitar isso: encontrar
meu inimigo e obrigá-lo à ratificação de nosso acordo. Eu sentia que is-
so só poderia ser feito por meio de uma luta mortal. Não possuía uma
espada — isso se, de fato, meus braços deformados conseguissem em-
punhar a arma de um soldado —, mas tinha um punhal, e nele repousa-
va toda a minha esperança. Não havia tempo para ponderar sobre a
questão ou avaliá-la adequadamente. Eu poderia morrer na tentativa,
mas, além do ciúme ardente e do desespero de meu próprio coração, a
honra e a mera humanidade exigiam que eu tombasse se não destruísse
as maquinações do demônio.
Os convidados foram embora, as luzes começaram a se apagar; era
evidente que os habitantes da mansão estavam indo repousar. Escondi-
me entre as árvores; o jardim estava deserto, os portões foram fechados.
Perambulei por ali e fui parar debaixo de uma janela… Ah! Eu bem que
a conhecia! Um suave crepúsculo bruxuleava no quarto; as cortinas es-
tavam semiabertas. Era um templo de inocência e beleza. Sua magnifi-
cência era temperada, por assim dizer, pelos ligeiros desarranjos ocasio-
nados pelo ser que o habitava, e todos os objetos espalhados em volta
demonstravam o gosto daquela que o santificava com sua presença. Eu
a vi entrar com passos rápidos e leves, aproximar-se da janela, abrir um
pouco mais a cortina e observar noite adentro. A brisa fresca brincava
entre suas madeixas e as afastava do mármore transparente de sua fron-
te. Ela apertou as mãos, ergueu os olhos para o céu. Ouvi sua voz.
— Guido! — murmurou suavemente. — Meu Guido!
E então, como que dominada pela plenitude de seu coração, caiu de
joelhos; os olhos erguidos, a atitude negligente, porém graciosa, e a gra-
tidão radiante que iluminava seu rosto. Oh, estas são palavras brandas!
Coração meu, você sempre pode imaginar, ainda que não possa retratar,
a beleza celestial daquela filha da luz e do amor.
Ouvi passadas — rápidas e firmes passadas — ao longo da alameda
sombreada. Logo vi avançar um cavalheiro, ricamente vestido, jovem e
bem-apessoado. Escondi-me, mas ainda me mantive perto. O jovem se
aproximou e parou debaixo da janela. Juliet se levantou e, novamente
olhando para fora, ela o viu e disse… Não consigo, não; neste momento
distante, não recordo seus termos de suave e eloquente ternura; eles fo-
ram ditos para mim, mas foram respondidos por ele.
— Não vou embora — gritou ele. — Permanecerei aqui, onde você
tem estado, onde sua memória paira como um fantasma visitante do
céu. Passarei as longas horas até nos encontrarmos, e nunca, minha Juli-
et, novamente, dia ou noite, iremos nos separar. Mas você, meu amor,
retire-se; a manhã fria e a brisa intermitente deixarão seu rosto pálido e
encherão de languidez seus olhos iluminados pelo amor. Ah, a mais do-
ce de todas! Se eu pudesse pousar um beijo sobre eles, penso que pode-
ria descansar.
E, então, ele chegou ainda mais perto, e pensei que estava prestes a
escalar para dentro do quarto dela. Eu tinha hesitado para não aterrori-
zá-la; agora, não era mais senhor de mim mesmo. Corri para frente, jo-
guei-me em cima dele, afastei-o e gritei:
— Oh, miserável repugnante e disforme!
Não preciso repetir epítetos, todos pretendendo, aparentemente,
afrontar uma pessoa por quem, no momento, sinto certa predileção.
Um grito esganiçado emergiu dos lábios de Juliet. Não ouvi e nem vi —
apenas senti meu inimigo, cuja garganta agarrei, segurando meu punhal;
ele lutou, mas não conseguiu escapar; finalmente, com a voz rouca, sus-
pirou estas palavras:
— Faça! Acerte-me! Destrua este corpo! Você ainda viverá, e que
sua vida seja longa e feliz!
O punhal que descia se deteve com tais palavras, e ele, sentindo rela-
xar meu aperto, desvencilhou-se e sacou sua espada, enquanto o alvoro-
ço na casa e o mover de tochas de um aposento a outro mostravam que
em breve seriamos separados — e eu… Oh, seria muito melhor morrer;
desde que ele não sobrevivesse, eu não me importava. Em meio ao meu
frenesi, havia muito cálculo: se eu sucumbisse e, dessa maneira, ele não
sobrevivesse, não me preocupava o golpe mortal que poderia desferir
contra mim mesmo. Portanto, enquanto ele ainda pensava que eu havia
parado, e percebendo o vilão determinado a tirar proveito de minha he-
sitação, no súbito golpe que desferiu contra mim, joguei-me contra sua
espada e, no mesmo instante, enfiei meu punhal, com uma mira verda-
deiramente desesperada, na lateral de seu corpo. Caímos juntos, rolan-
do um sobre o outro, e a onda de sangue que escorria dos ferimentos
abertos de cada um se misturou com a grama. Não sei de mais nada:
desmaiei.
Mais uma vez voltei à vida: fraco, quase à beira da morte, encontrei-
me estirado sobre uma cama, com Juliet ajoelhada ao lado. Estranha-
mente, meu primeiro e debilitado pedido foi por um espelho. Eu estava
tão pálido e medonho que a minha pobre menina hesitou a princípio,
como me contou mais tarde; mas, pelos deuses! Julguei-me um jovem
de boa aparência quando vi o agradável reflexo de minhas próprias fei-
ções tão bem conhecidas. Admito que é uma fraqueza, mas confesso
que me dou a satisfação de um considerável afeto pelo rosto e pelos
membros que vejo quando observo meu reflexo; tenho mais espelhos
em minha casa e os consulto com mais frequência do que qualquer bel-
dade em Veneza. Antes que muitos de vocês também me condenem,
permitam-me dizer que ninguém conhece melhor do que eu o valor de
seu próprio corpo; provavelmente nenhuma pessoa, exceto eu mesmo,
jamais o teve roubado de si.
Incoerentemente, primeiro falei do anão e de seus crimes e repreendi
Juliet por ter aceitado seu amor tão facilmente. Julgava que eu estava
delirando, assim como ela mesma poderia estar, e levou algum tempo
até que eu pudesse me convencer a admitir que o Guido cujo arrependi-
mento a tinha reconquistado era eu mesmo. E embora eu amaldiçoasse
amargamente o monstruoso anão, abençoando o golpe certeiro que o ti-
nha privado da vida, de repente me recompus quando a ouvi dizer
“Amém!”, sabendo que aquele a quem ela insultara era eu mesmo. Uma
pequena reflexão me ensinou a ficar em silêncio; um pouco de prática
me possibilitou falar daquela noite apavorante sem qualquer grande dis-
parate. O ferimento que eu tinha me infligido não era brincadeira — de-
morei muito para me recuperar — e enquanto o benevolente e generoso
Torella ficava sentado ao meu lado, falando com sabedoria e ensinando
como conquistar os amigos por meio do arrependimento, e com minha
querida Juliet perto de mim, cuidando de minhas necessidades e me ale-
grando com seus sorrisos, o trabalho de minha cura física e recuperação
mental seguiam juntos. Eu nunca, na verdade, recuperei totalmente a
força: minhas faces ficaram mais pálidas desde então e minha postura
um pouco curvada. Juliet, às vezes, faz menção de aludir amargamente
para a maldade que causou essa mudança, mas eu a beijo no mesmo ins-
tante e digo que foi tudo para melhor. Sou o mais apaixonado e mais fiel
dos maridos, e a verdade é esta: se não fosse aquele ferimento, eu nunca
poderia chamá-la de minha.
Não voltei a visitar a beira-mar nem procurei pelo tesouro do de-
mônio; contudo, quando reflito sobre o passado, frequentemente penso
— e meu confessor não se opõe a consentir a ideia — que pode ter sido
um espírito bom, e não um mau, enviado pelo meu anjo da guarda para
me mostrar a insensatez e a infelicidade do orgulho. Então, bem, pelo
menos aprendi essa lição tão rudemente ensinada que agora sou conhe-
cido por todos os meus amigos e conterrâneos pelo nome de Guido, o
Cortês.
O IMORTAL MORTAL

16 de julho de 1833
Esta é uma data memorável para mim. Nela, completo os meus trezen-
tos e vinte e três anos!
O judeu errante?[1] Certamente não. Mais de dezoito séculos se pas-
saram sobre a cabeça dele. Em comparação, sou um imortal muito jo-
vem.
Seria, então, imortal? Essa é uma pergunta que me tenho feito, dia e
noite, pelos últimos trezentos e três anos, e ainda não fui capaz de res-
ponder. Hoje mesmo encontrei um fio de cabelo grisalho em meio aos
meus cachos castanhos, e isso sem dúvida significa decrepitude. No en-
tanto, ele pode ter ficado escondido ali por trezentos anos — afinal, al-
gumas pessoas ficam com o cabelo totalmente branco antes dos vinte.
Contarei minha história e o leitor deve julgar por si. Vou revelar mi-
nha vida e, assim, poderei passar algumas poucas horas de uma longa
eternidade que se tornou demasiadamente enfadonha para mim. Para
sempre! Isto seria possível: viver para sempre? Ouvi falar de encanta-
mentos em que as vítimas foram mergulhadas em um sono profundo e
acordaram, depois de cem anos, com a mesma disposição de antes; ouvi
falar dos sete adormecidos — desta maneira, ser imortal não seria um
fardo muito grande, mas o peso do tempo interminável, a tediosa passa-
gem das horas que se sucedem! Como foi feliz o lendário Nourjahad…!
[2] Mas vamos à minha história.
Todo mundo já ouviu falar de Cornélio Agrippa. Sua memória é tão
imortal quanto suas artes me tornaram. Todo mundo também conhece a
história de seu aprendiz que, por descuido, durante a ausência de seu
mestre, despertou um demônio do mal e foi destruído por ele. O rumor
desse acidente, verdadeiro ou falso, foi acompanhado por diversos in-
convenientes que se apresentaram ao renomado filósofo. Todos os seus
alunos o abandonaram de uma vez só; seus empregados desapareceram.
Ele não tinha ninguém por perto para colocar carvão em suas fornalhas
que queimavam sem descanso enquanto dormia, ou para observar as co-
res mutáveis de suas poções enquanto estudava. Os experimentos falha-
ram um após o outro porque apenas um par de mãos era insuficiente
para completá-los: os espíritos das trevas zombavam dele por não ser
capaz de manter um único mortal ao seu serviço.
Na época, eu era muito jovem, muito pobre e muito apaixonado.
Fora aluno de Cornélio por cerca de um ano, embora estivesse ausente
quando o acidente ocorreu. Quando retornei, meus amigos imploraram
para que não voltasse à residência do alquimista. Estremeci quando ouvi
a história pavorosa que me contaram; não foi necessário um segundo
aviso; e quando Cornélio me ofereceu um saco de ouro caso eu perma-
necesse sob seu teto, senti como se o próprio Satã me tentasse. Meus
dentes bateram, meu cabelo ficou em pé… e corri o mais rápido que
meus joelhos trêmulos permitiram.
Meus passos vacilantes se dirigiram para onde, durante dois anos,
eles eram atraídos todas as noites: uma nascente de água fresca e pura, a
borbulhar levemente, ao lado da qual se demorava uma garota de cabe-
los escuros, cujos olhos radiantes estavam fixos no caminho que eu cos-
tumava trilhar toda noite. Não me lembro de momento algum em que
não tenha amado Bertha; fomos vizinhos e companheiros de brincadei-
ras desde a infância — os pais dela, assim como os meus, eram de ori-
gem humilde mas respeitável, e nosso apego mútuo foi motivo de pra-
zer para eles. Em um mau momento, uma febre maligna levou seu pai e
sua mãe, deixando Bertha órfã. Ela teria encontrado um lar embaixo de
meu teto paterno, mas, infelizmente, uma velha senhora de um castelo
nas proximidades — rica, sem filhos e solitária — declarou sua intenção
de adotá-la. Desde então, Bertha passou a se vestir com seda, habitava
um palácio de mármore e consideravam-na altamente favorecida pela
sorte. Entretanto, em sua nova condição, entre novos companheiros,
Bertha manteve-se fiel ao amigo de seus dias mais modestos: ela inúme-
ras vezes visitou o chalé de meu pai e, quando foi proibida de continuar
indo, caminhava pelo bosque vizinho e ia me encontrar ao lado da fon-
te, à sombra.
Bertha declarava com frequência que não devia para sua nova prote-
tora obrigação alguma tão sagrada quanto a que nos unia. No entanto,
eu ainda era pobre demais para me casar, e ela se cansou de ficar aflita
por minha causa. Tinha um espirito altivo, porém impaciente, e ficava
irritada com os obstáculos que impediam nossa união. Reencontramo-
nos agora, depois de um tempo afastados, e ela havia sido insistente-
mente assediada em minha ausência; queixou-se de forma um tanto
amarga e quase me repreendeu por ser pobre. Respondi precipitada-
mente:
— Sou honesto, apesar de pobre! Se não fosse, poderia ficar rico em
breve!
Essa exclamação rendeu mil perguntas. Temi chocá-la se revelasse a
verdade, mas ela a arrancou de mim e, em seguida, lançando-me um
olhar de desprezo, disse:
— Você finge amar e tem medo de enfrentar o Diabo por minha
causa!
Protestei dizendo que somente temia ofendê-la, enquanto ela insistia
na magnitude da recompensa que eu receberia. Assim encorajado — hu-
milhado por ela —, guiado por amor e esperança, rindo de meus temo-
res recentes, com passos rápidos e coração leve, voltei para aceitar a
oferta do alquimista e na mesma hora instalei-me em meu posto.
Um ano se passou. Tornei-me possuidor de uma quantia de dinheiro
significante. O hábito havia afugentado meus medos. Apesar da mais
árdua vigilância, jamais deparara com o rastro de um casco fendido,
nem o silêncio zeloso de nossa moradia foi alguma vez perturbado por
uivos demoníacos. Prossegui com meus encontros furtivos com Bertha
e comecei a ter esperança — apenas esperança —, mas não perfeita ale-
gria, pois Bertha imaginava que amor e segurança eram inimigos, e seu
prazer era dividi-los em meu peito. Embora sincera de coração, tinha
modos um tanto levianos, e eu era ciumento como um turco. Despreza-
va-me de mil maneiras, mas nunca reconhecia estar errada. Deixava-me
louco de raiva e, em seguida, forçava-me a lhe pedir perdão. Às vezes,
considerava que eu não era suficientemente submisso e contava a histó-
ria de um rival favorito de sua protetora. Ela estava cercada por jovens
vestidos de seda — os ricos e alegres —; que possibilidade teria o aluno
de Cornélio, vestindo trajes deprimentes, se comparados a eles?
Em certa ocasião, o filósofo exigiu tanto do meu tempo que não fui
capaz de ir ao seu encontro, como de costume. Ele estava envolvido em
alguma obra grandiosa, e fui forçado a permanecer, dia e noite, alimen-
tando as fornalhas e vigiando os preparados químicos. Bertha ficou me
esperando perto da fonte em vão. Seu espirito arrogante se inflamou
com essa negligência, e quando enfim sai às escondidas durante os pou-
cos minutos que me eram atribuídos para descanso, esperando que me
consolasse, recebeu-me com desdém, dispensou-me com desprezo e ju-
rou que qualquer homem, que não aquele incapaz de estar em dois lu-
gares ao mesmo tempo por amor a ela, poderia possuir sua mão. Ela iria
se vingar! E, de fato, o fez. Em meu lúgubre retiro, fiquei sabendo que
ela tinha ido caçar acompanhada por Albert Hoffer. Ele era o favorito
de sua protetora, e os três passaram em cavalgada diante de minha janela
esfumaçada. Tive a impressão de que mencionaram meu nome, seguido
por um riso de escárnio, enquanto os olhos escuros de Bertha fitavam
com desprezo minha moradia.
O ciúme, com todo o seu veneno e tormento, entrou em meu peito.
Ora derramava uma torrente de lágrimas, pensando que nunca poderia
chamá-la de minha; e, sem demora, rogava mil pragas e maldições por
sua inconstância. Contudo, ainda precisava atiçar os fogos do alquimis-
ta e observar as mudanças de suas poções ininteligíveis.
Cornélio estava de vigília há três dias e três noites, sem fechar os
olhos. O progresso de seus alambiques mostrava-se mais lento do que
ele esperava: apesar da ansiedade, o sono pesava sobre suas pálpebras.
Repetidas vezes afastou a sonolência com energia sobre-humana; vez ou
outra, ela lhe roubou a consciência. Fitava os cadinhos melancolicamen-
te.
— Ainda não está pronto — murmurava. — Outra noite se passará
antes que o trabalho esteja concretizado? Winzy, você está alerta, é fi-
el… Você dormiu, meu rapaz, dormiu na noite passada. Olhe aquele
frasco de vidro. O liquido que ele contém é de uma cor rosa suave:
acorde-me no momento em que começar a mudar de cor; até lá, posso
fechar meus olhos. Primeiro ficará branco e depois emitirá lampejos
dourados, mas não espere até que isso aconteça; quando a cor rosada es-
maecer, desperte-me.
Mal pude ouvir as últimas palavras, pois foram murmuradas em so-
nolência. Nem assim ele cedeu totalmente à natureza.
— Winzy, meu rapaz — falou —, não toque no recipiente nem o co-
loque em seus lábios: é um filtro amoroso, um filtro para curar o amor;
não lhe agradaria deixar de amar sua Bertha. Cuidado, não beba!
E ele dormiu. Sua venerável cabeça se afundou no peito e eu mal ou-
via sua respiração regular. Por alguns minutos, observei o recipiente: o
tom rosado do líquido manteve-se inalterado. Então, meus pensamen-
tos devanearam — foram visitar a nascente e se estenderam em milhares
de cenas encantadoras que nunca mais se repetiriam… Nunca! Serpen-
tes e víboras habitavam meu coração enquanto metade da palavra
“Nunca!” se formava em meus lábios. Moça falsa; falsa e cruel! Nunca
mais sorriria para mim como sorriu aquela noite para Albert. Mulher
desprezível e detestável! Eu não ficaria sem vingança: ela veria Albert
expirar aos seus pés, morreria sob minha desforra. Sorrira desdenhosa e
triunfante; sabia de meu infortúnio e de seu próprio poder. Todavia, que
poder tinha ela? O poder de despertar meu ódio, meu desprezo absolu-
to, meu… ah, tudo, exceto indiferença! Se eu pudesse conseguir isso —
se fosse capaz de olhar para ela com desinteresse, transferindo meu
amor rejeitado para uma moça mais leal e sincera, isso seria de fato uma
vitória!
Um lampejo dardejou diante de meus olhos. Esquecera-me da po-
ção do perito; olhei para ela maravilhado: clarões de admirável beleza,
mais brilhantes do que os emitidos pelo diamante quando sobre ele in-
cidem os raios do sol, resplandeciam na superfície do líquido. Um agra-
dável odor perfumado tomou meus sentidos; o frasco parecia um globo
vivo resplandecente, adorável aos olhos e muito convidativo ao paladar.
O primeiro pensamento, instintivamente inspirado pelo sentido mais
grosseiro, foi: “Eu quero… preciso beber”. Levei o frasco aos lábios.
“Isso vai me curar do amor, da tortura!” Já tinha bebido metade do li-
quido mais delicioso jamais provado pelo paladar do homem quando o
filósofo começou a despertar. Assustei-me… derrubei o recipiente… o
fluido inflamou-se e se espalhou reluzente pelo chão, enquanto eu sen-
tia Cornélio apertando meu pescoço e gritando de maneira estridente:
— Desgraçado! Você destruiu o trabalho de minha vida!
O filósofo não percebeu que eu havia bebido parte de sua poção.
Sua noção, com a qual concordei tacitamente, era que eu tinha erguido
o frasco por curiosidade, e que, assustado com seu brilho e os clarões de
intensa luz que emanava, deixara-o cair. Nunca o desmenti. O fogo cau-
sado pela poção foi extinto, a fragrância evaporou-se, ele se acalmou,
como um filósofo deve fazer diante das mais duras provações, e dispen-
sou-me para que eu fosse descansar.
Não tentarei descrever o sono de glória e alegria que inundou minha
alma de serenidade durante as horas restantes daquela noite memorável.
As palavras seriam representações fracas e superficiais do prazer, ou da
felicidade, que tomou conta de meu peito quando acordei. Eu flutuava
— meus pensamentos estavam no céu. A terra parecia o paraíso, e a he-
rança que eu deixaria seria um rastro de prazer. “Isto é estar curado do
amor!”, pensei. “Verei Bertha hoje, e ela encontrará seu amado frio e in-
diferente: feliz demais para ser desdenhoso, porém completamente de-
sinteressado!”
As horas passaram voando. O filósofo, confiante de que havia sido
bem-sucedido e acreditando que poderia sê-lo mais uma vez, recome-
çou o preparo da mesma poção. Ocupou-se com seus livros e suas dro-
gas, e eu tinha um dia de folga. Vesti-me com cuidado; olhei-me em um
escudo antigo, mas muito bem polido, que me servia de espelho; achei
que minha aparência tinha melhorado maravilhosamente. Corri para
além dos limites da cidade, com alegria na alma e a beleza do céu e da
terra ao meu redor. Dirigi os passos rumo ao castelo — podia olhar suas
torres majestosas com leveza no coração, pois estava curado do amor.
Minha Bertha me viu de longe, enquanto eu subia a estrada. Não sei que
súbito impulso animou seu peito, mas, quando me viu, desceu os de-
graus de mármore saltitando com a leveza de uma corça, correndo em
minha direção. Porém, outra pessoa também me avistara. A velha bruxa
de alta estirpe, que se considerava sua protetora, embora fosse sua tira-
na, também tinha me visto; coxeou ofegante até o terraço; uma ama, tão
feia quanto ela, segurava a cauda de seu vestido e a abanava enquanto
ela andava apressada e detinha minha bela moça, dizendo:
— O que é isso, ousada senhora? Aonde vai com tanta pressa? Volte
para sua gaiola, os gaviões estão à solta!
Bertha agarrou as mãos da velha — seus olhos ainda voltados em
minha direção enquanto eu me aproximava. Percebi a disputa. Como eu
execrava a velha encarquilhada que impedia os bondosos impulsos do
coração mole da minha Bertha. Até aquele momento, o respeito por sua
posição fez com que eu evitasse a senhora do castelo; agora, desdenhava
essa fútil consideração. Estava curado do amor e alçado acima de todos
os temores humanos; adiantei-me rapidamente e logo cheguei ao terra-
ço. Como Bertha estava linda! Os olhos faiscantes, as bochechas afo-
gueadas de impaciência e raiva; estava mil vezes mais graciosa e encanta-
dora do que nunca. Eu não mais a amava — oh, não! Eu a adorava, ve-
nerava, idolatrava!
Naquela manhã, ela havia sido pressionada, com veemência mais
acentuada que a costumeira, para que consentisse em se casar de imedia-
to com meu rival. Foi recriminada pelo encorajamento que lhe havia de-
monstrado, ameaçada de ser colocada porta afora em desgraça e vergo-
nha. Seu espirito orgulhoso se rebelou diante da ameaça; mas quando
ela se lembrou do desprezo que tinha acumulado por mim e como, tal-
vez, por causa disso, tivesse perdido quem ela agora considerava seu
único amigo, chorou de remorso e raiva. Cheguei naquele instante.
— Oh, Winzy! — exclamou. — Leve-me para a casa de sua mãe; de-
sejo me livrar rapidamente dos detestáveis luxos e das angústias desta
nobre moradia. Conduza-me à pobreza e felicidade.
Apertei-a em meus braços com arrebatamento. A velha senhora fi-
cou sem palavras de tanto ódio e irrompeu em insultos somente quando
estávamos longe, a caminho de minha casa. Minha mãe recebeu a bela
fugitiva, que havia escapado de sua gaiola dourada para a natureza e li-
berdade, com ternura e alegria; meu pai, que nutria amor por ela, aco-
lheu-a de coração; foi um dia de regozijo, que dispensou o acréscimo da
poção celestial do alquimista para saciar-me de prazer.
Logo após esse dia agitado, tornei-me marido de Bertha. Deixei de
ser aluno de Cornélio, mas continuei seu amigo. Sempre lhe fui grato
por ter propiciado, inadvertidamente, aquele delicioso gole de um elixir
divino, o qual, em vez de curar-me do amor (triste cura, remédio solitá-
rio e melancólico para males que são lembrados como bênçãos!), inspi-
rou-me coragem e determinação, conquistando, assim, um tesouro ines-
timável em minha Bertha.
Frequentemente relembro com admiração aquele período de embri-
aguez extasiante. A bebida de Cornélio não cumpriu a tarefa para a
qual, segundo ele, havia sido preparada, mas seus efeitos foram mais po-
tentes e prósperos do que podem expressar as palavras. Eles tinham es-
vanecido aos poucos — embora tenham durado muito tempo —, pin-
tando a vida com cores esplendorosas. Bertha muitas vezes maravilha-
va-se com minha leveza de coração e singular alegria, pois antes eu era
bastante sério, ou até mesmo triste, em minha disposição. Ela me amava
mais por meu temperamento animado, e nossos dias eram repletos de
alegria.
Cinco anos depois, fui subitamente chamado à cabeceira de Corné-
lio, que estava à beira da morte. Tinha mandado me chamar às pressas,
implorando minha presença imediata. Encontrei-o estirado em sua ca-
ma, mortalmente debilitado; toda a vida que ainda lhe restava animava
seus olhos penetrantes, que estavam fixos em um recipiente de vidro
cheio de um liquido róseo.
— Contemple — disse ele com a voz frágil e entrecortada — a vai-
dade dos desejos humanos! Pela segunda vez, minhas esperanças esta-
vam prestes a se realizar; pela segunda vez, elas foram destruídas. Olhe
aquele liquido. Lembra-se de que cinco anos atrás preparei um igual,
com o mesmo êxito? E então, como agora, meus lábios sedentos espera-
vam saborear o elixir imortal, mas você o tirou de mim e é tarde demais!
Falou com dificuldade e desabou em seu travesseiro. Não pude dei-
xar de dizer:
— Como, venerado mestre, uma cura para o amor poderia lhe de-
volver a vida?
Um débil sorriso abrilhantou seu rosto enquanto eu ouvia atenta-
mente sua resposta quase ininteligível.
— Uma cura para o amor e para todas as coisas: o elixir da imortali-
dade. Ah, se eu agora pudesse bebê-lo, viveria para sempre!
Enquanto ele falava, um clarão dourado reluziu do fluido; uma fra-
grância que me era familiar espalhou-se pelo ar; ele se levantou, fraco
como estava — a força pareceu milagrosamente retornar ao seu corpo
—, e estendeu a mão. Uma forte explosão me assustou; um raio de fogo
brotou do elixir e o frasco de vidro que o continha foi reduzido a esti-
lhaços! Voltei os olhos para o filósofo: ele tinha caído para trás — seus
olhos estavam vidrados e as feições, rígidas. Estava morto!
No entanto, eu vivia e viveria para sempre! Assim disse o desafortu-
nado alquimista e, durante alguns dias, acreditei em suas palavras. Lem-
brei-me da embriaguez gloriosa que se seguiu ao meu gole roubado.
Refleti sobre a mudança que sentira em meu corpo, em minha alma. A
palpitante elasticidade de um, a leveza flutuante da outra. Olhei-me no
espelho e não pude perceber qualquer mudança em minha fisionomia
durante os cinco anos que se passaram. Lembrei-me das cores radiantes
e do aroma agradável daquela deliciosa bebida — digna da dádiva que
era capaz de conceder: eu era, então, imortal!
Poucos dias depois, ri de minha credulidade. O antigo provérbio
que diz “ninguém é profeta em sua própria terra” mostrava-se verda-
deiro no que dizia respeito a mim e ao meu falecido mestre. Eu o amava
como homem, respeitava-o como sábio, mas achava ridícula a noção de
que fosse capaz de dominar os poderes das trevas, e escarnecia do medo
supersticioso que as pessoas comuns tinham dele. Era um filósofo sá-
bio, mas não tinha familiaridade com quaisquer espíritos, exceto aqueles
feitos de carne e osso. Sua ciência era meramente humana; e as ciências
humanas, logo me convenci, jamais poderiam conquistar as leis da natu-
reza a ponto de aprisionar a alma para sempre dentro de sua morada
carnal. Cornélio tinha preparado uma bebida que refrescava a alma,
mais inebriante do que vinho, mais doce e perfumada do que qualquer
fruta: provavelmente possuía fortes poderes medicinais, dando alegria
ao coração e vigor aos membros; mas seus efeitos se desgastariam; já ha-
viam diminuído em meu corpo. Era um sujeito de sorte por ter bebido
espíritos de saúde e alegria, e talvez de vida longa, das mãos de meu
mestre; mas minha sorte terminava aí: longevidade era muito diferente
de imortalidade.
Continuei a alimentar essa crença por muitos anos. Às vezes, um
pensamento passava por minha cabeça: estaria o alquimista de fato en-
ganado? No entanto, minha crença habitual era a de que eu teria o mes-
mo destino de todos os filhos de Adão em meu tempo determinado —
um pouco tarde, mas ainda em uma idade natural. Contudo, era indis-
cutível que eu mantinha uma aparência maravilhosamente jovem. Riam
de mim por causa de minha vaidade em consultar o espelho com tanta
frequência, porém não o consultava em vão — minha fronte não tinha
rugas; minhas bochechas, meus olhos… toda a minha pessoa continuava
com a aparência imaculada de meu vigésimo aniversário.
Eu estava preocupado. Olhava a beleza desbotada de Bertha — eu
mais parecia seu filho. Pouco a pouco, nossos vizinhos começaram a fa-
zer observações semelhantes, e descobri finalmente que era chamado de
“estudante enfeitiçado”. A própria Bertha foi ficando apreensiva. Tor-
nou-se ciumenta e rabugenta, e finalmente começou a me questionar.
Não tivemos filhos; tínhamos apenas um ao outro; e embora, à medida
que envelhecia, seu espirito vivaz se misturasse um pouco ao mau hu-
mor, e sua beleza estivesse tristemente diminuída, acarinhava-lhe em
meu coração tal como a amante que idolatrara no passado, a esposa que
eu havia buscado e conquistado com um amor tão perfeito.
Nossa situação por fim se tornou intolerável: Bertha tinha cinquenta
anos, eu, vinte. Por pura vergonha, adotara, com certa moderação, hábi-
tos de uma idade mais avançada: já não me juntava à dança entre os jo-
vens alegres, mas meu coração saltitava com eles enquanto eu refreava
os pés; e forjei uma figura lamentável entre os patriarcas do povoado.
Porém, antes da época à qual me refiro, as coisas se alteraram: éramos
completamente evitados; éramos — pelo menos, eu era — acusados de
manter um relacionamento iníquo com alguns dos supostos amigos de
meu antigo mestre. Tinham pena da pobre Bertha, mas fugiam dela. Eu
era visto com horror e repulsa.
O que podíamos fazer? Ficávamos sentados ao pé da lareira — a po-
breza se fez sentir, pois ninguém queria comprar os produtos de minha
fazenda; e muitas vezes me vi forçado a viajar mais de trinta quilôme-
tros até algum lugar onde não fosse conhecido para vender nossas mer-
cadorias. É verdade que tínhamos economizado um pouco para um dia
ruim — e esse dia havia chegado.
Sentávamos diante da lareira solitária — o jovem de coração enve-
lhecido e sua esposa idosa. Bertha novamente insistiu em saber a verda-
de: recapitulou tudo o que já tinha ouvido falar sobre mim e acrescen-
tou suas próprias observações. Esconjurou-me para que eu rejeitasse o
feitiço; descreveu como cabelos grisalhos eram muito mais graciosos do
que meus cachos castanhos; discorreu sobre a reverência e o respeito
devido à idade, como eram preferíveis à consideração insignificante
prestada a simples crianças — eu imaginava que os desprezíveis dons da
juventude e a boa aparência prevaleceriam sobre a desgraça, o ódio e o
desprezo? Não; no final, eu seria queimado como um praticante de ma-
gia negra, enquanto ela, a quem eu não tinha me dignado a comunicar
qualquer parte de minha boa sorte, talvez fosse apedrejada como minha
cúmplice. Por fim, insinuou que eu deveria compartilhar meu segredo,
concedendo-lhe os mesmos benefícios dos quais desfrutava, senão ela
me denunciaria — e, então, se desfez em lágrimas.
Assediado desse modo, achei que era melhor contar a verdade. Re-
velei-lhe os fatos da maneira mais terna e mencionei apenas uma vida
muito longa, e não a imortalidade — o que, de fato, coincidia melhor
com minhas noções. Quando terminei, levantei-me e disse:
— E agora, Bertha, vai denunciar o amante de sua juventude? Eu sei
que não. Mas é duro demais, minha pobre esposa, que você deva sofrer
por causa de meu azar e das artes malditas de Cornélio. Vou deixá-la.
Você tem riqueza suficiente, e seus amigos retornarão em minha ausên-
cia. Vou embora; jovem como pareço e forte como sou, posso trabalhar
e ganhar meu pão entre estranhos, insuspeito e desconhecido. Eu a amei
na juventude; Deus é testemunha de que não a abandonaria na velhice,
mas sua segurança e felicidade exigem isso.
Peguei meu gorro e segui em direção à porta; no mesmo instante, os
braços de Bertha estavam em volta de meu pescoço e seus lábios pressi-
onados contra os meus.
— Não, meu marido, meu Winzy — disse —, não vá sozinho: leve-
me com você, vamos embora deste lugar e, como você mesmo disse, en-
tre estranhos ficaremos seguros e livres de suspeitas. Não sou velha de-
mais a ponto de envergonhá-lo, meu Winzy; e ouso dizer que o feitiço
em breve desaparecerá, e, com a bênção de Deus, você se tornará mais
idoso na aparência, como lhe convém. Você não deve me abandonar.
Retribui de coração o abraço da boa alma.
— Não vou, minha Bertha; mas se não fosse por sua causa, eu não
teria pensado em tal coisa. Serei seu marido fiel e sincero enquanto você
não for tirada de mim e cumprirei meu dever até o fim.
No dia seguinte, nos preparamos discretamente para emigrar. Fo-
mos obrigados a fazer grandes sacrifícios pecuniários — foi impossível
evitar. Conseguimos uma quantia suficiente para nos manter pelo me-
nos enquanto Bertha vivesse; e, sem nos despedirmos de ninguém, dei-
xamos nosso país natal para encontrar refúgio em uma parte remota no
oeste da França.
Foi cruel tirar a pobre Bertha de seu povoado natal e da convivência
com seus amigos de juventude, levando-a para outro país, com uma no-
va língua e costumes diferentes. O estranho mistério de meu destino
tornou essa mudança irrelevante para mim; mas eu tinha profunda com-
paixão por ela e fiquei contente ao perceber que encontrara compensa-
ção por seus infortúnios em uma variedade de circunstâncias um tanto
ridículas. Longe de todos os cronistas mexeriqueiros, ela procurava di-
minuir a evidente disparidade de idade entre nós por meio de uma infi-
nidade de artifícios femininos: ruge, roupas jovens e hábitos tipicamente
juvenis. Não poderia ficar zangado — eu próprio não usava uma másca-
ra? Por que implicar com a dela apenas pelo fato de ser menos bem-su-
cedida? Entristecia-me profundamente quando lembrava que minha
Bertha, a quem amara tão carinhosamente e que conquistara com tanta
emoção — a menina de olhos e cabelos escuros, com sorrisos de encan-
tadora malícia e passos de corça —, era essa velha ciumenta, amaneirada
e de sorriso afetado. Deveria reverenciar suas madeixas grisalhas e bo-
chechas murchas; mas nestas condições! Era culpa minha, eu sabia; no
entanto, assim deplorava esse tipo de fraqueza humana.
Seu ciúme nunca descansava. Sua principal ocupação era descobrir
que, apesar das aparências, eu estava envelhecendo. De fato, acredito
que a pobre alma me amava com sinceridade em seu coração, mas mu-
lher alguma jamais demonstrou carinho de maneira tão atormentada.
Ela percebia rugas em meu rosto e decrepitude em meu caminhar, en-
quanto eu prosseguia com vigor juvenil, parecendo o mais novo em
meio a vinte jovens. Nunca me atrevi a abordar outra mulher: em certa
ocasião, imaginando que a beldade do vilarejo me fitava com agrado,
trouxe-me uma peruca grisalha. Seu discurso constante entre conheci-
dos era que, embora eu parecesse tão jovem, a ruína agia dentro de
mim; e afirmava que o pior sintoma era minha saúde aparente. Minha
juventude era uma doença, ela dizia, e eu precisava estar preparado em
todos os momentos, se não para uma morte súbita e medonha, pelo me-
nos para despertar em uma manhã com cabelos brancos, encurvado e
com todas as marcas da idade avançada. Deixava-a falar — muitas vezes,
me juntei a ela em tais suposições. Suas advertências estavam de acordo
com minhas incessantes especulações a respeito de meu estado, e eu ti-
nha um interesse sincero, embora doloroso, em escutar tudo o que sua
sagacidade e imaginação fértil pudessem revelar sobre o assunto.
Por que insistir nesses pormenores? Vivemos ainda por muitos e
longos anos. Bertha ficou paralítica, confinada a uma cama; cuidei dela
como uma mãe cuidaria do filho. Ela se tornou irritadiça e continuou
batendo na mesma tecla: quanto tempo eu poderia sobreviver a ela. Ter
cumprido rigorosamente minhas obrigações em relação a Bertha sempre
foi uma fonte de consolo para mim. Ela havia sido minha na juventude,
foi minha quando envelheceu e, por fim, quando cobri de terra seu ca-
dáver, chorei ao sentir que tinha perdido a única coisa que realmente me
ligava à humanidade.
Desde então, muitos têm sido meus cuidados e minhas aflições, e
poucos e vazios meus prazeres! Interrompo aqui minha história; não se-
guirei adiante. Um marinheiro sem leme ou bússola, atirado a um mar
tempestuoso; um viajante perdido em um vasto deserto, sem um ponto
de referência ou uma rocha para se guiar — assim tenho sido: mais per-
dido, mais desesperado do que qualquer um deles. Um navio que se
aproxima ou a luz vinda de alguma choupana distante pode salvá-los;
mas não tenho um farol, exceto a esperança da morte.
Morte! Misteriosa e mal-encarada amiga da fraca humanidade! Por
quê, entre todos os mortais, apenas eu fui poupado de seu abrigo prote-
tor? Oh, a paz da sepultura, o silêncio profundo do túmulo de ferro!
Que os pensamentos cessassem de surgir em meu cérebro e que meu
coração não mais batesse com emoções variadas apenas por novas for-
mas de tristeza!
Sou imortal? Volto à minha primeira pergunta. Em primeiro lugar,
não seria mais provável que a poção do alquimista estivesse repleta de
longevidade, e não de vida eterna? Essa é minha esperança. E também é
preciso lembrar que bebi apenas metade da poção. Não seria necessária
sua totalidade para completar o encanto? Ter ingerido metade do elixir
da imortalidade me torna apenas meio imortal — meu para sempre fica,
portanto, truncado e nulo.
Todavia, indago novamente, quem sabe contar os anos de metade da
eternidade? Frequentemente tento imaginar por qual regra o infinito
pode ser dividido. Às vezes, imagino o avanço da idade sobre mim. Já
encontrei um fio de cabelo grisalho. Tolo! Eu lamento? Sim, o medo da
idade e da morte muitas vezes se instala friamente em meu coração; e
quanto mais eu vivo, mais temo a morte, mesmo abominando a vida.
Tal enigma é o homem — nascido para perecer — enquanto guerreia,
como eu, contra todas as leis estabelecidas de sua natureza.
Não fosse essa anomalia de sentimentos, eu certamente poderia
morrer: o remédio do alquimista não seria à prova de fogo, de espada
ou de águas sufocantes. Contemplei as profundezas azuis de muitos la-
gos plácidos e a correnteza turbulenta de muitos rios possantes, e posso
dizer que a paz habita essas águas; contudo, desviei meus passos para
viver mais um dia. Tenho me perguntado se o suicídio seria um crime
para alguém que somente desta maneira poderia abrir os portais do ou-
tro mundo. Tenho feito de tudo, exceto apresentar-me como soldado ou
duelista, uma objeção à destruição de meus… não, eles não são meus
companheiros mortais, e, portanto, eu me esquivei. Não são meus com-
panheiros. A força inesgotável de vida em meu ser e a efêmera existência
deles nos coloca em polos amplamente opostos. Eu não poderia levan-
tar a mão contra o mais desprezível ou o mais poderoso entre eles.
Desta maneira tenho continuado a viver por muitos anos, sozinho e
cansado de mim mesmo, desejoso da morte, sem poder nunca vir a fale-
cer; um imortal mortal. Nem a ambição, nem a avareza podem entrar
em meus pensamentos, e o amor ardente que corrói meu coração —
sem jamais ser correspondido, sem nunca encontrar um igual em quem
se consumir — vive ali apenas para me atormentar.
Hoje mesmo concebi um plano com o qual poderei encerrar tudo —
sem suicídio, sem fazer de outro homem um Caim: uma expedição à
qual nenhuma forma mortal jamais poderia sobreviver, mesmo que do-
tada com a juventude e a força que habitam o meu ser. Assim, porei mi-
nha imortalidade à prova e descansarei para sempre — ou retornarei co-
mo um prodígio e benfeitor da espécie humana.
Antes de partir, uma deplorável vaidade me levou a escrever estas
páginas. Não gostaria de morrer sem deixar um nome para trás. Três sé-
culos se passaram desde que emborquei a bebida fatal: outro ano não
deve se completar antes que, encontrando gigantescos perigos — en-
frentando o frio intenso em sua própria casa; agoniado pela fome, pela
fadiga e pela tempestade —, eu entregue aos elementos destrutivos do ar
e da água este corpo, uma jaula por demais tenaz para uma alma que
tem sede de liberdade; ou, caso sobreviva, meu nome deverá ficar regis-
trado como um dos mais famosos entre os filhos dos homens; então,
tendo cumprido minha tarefa, adotarei meios mais resolutos e, espa-
lhando e aniquilando os átomos que compõem meu ser, porei em liber-
dade a vida aprisionada dentro de mim e tão cruelmente impedida de
elevar-se desta terra obscura para uma esfera mais apropriada à sua es-
sência imortal.
CONTOS EXTRAS
UM FRAGMENTO*
por Lorde Byron

17 de junho de 1816
No ano de 17…, há algum tempo decidido a uma incursão por países
até ali não muito frequentados por viajantes, parti acompanhado de um
amigo, a quem chamarei de Augustus Darvell. Era alguns anos mais ve-
lho que eu e um homem de fortuna considerável e de família ancestral
— privilégios que sua vasta inteligência o impedia de subestimar ou exa-
gerar. Algumas circunstâncias peculiares de sua história pessoal fize-
ram-no objeto de minha atenção, de meu interesse e até de minha consi-
deração, o que nem seus modos reservados, nem ocasionais manifesta-
ções de uma inquietude às vezes próxima da alienação mental foram ca-
pazes de eliminar.
Eu era ainda um novato na vida, a qual começara a enfrentar cedo; a
intimidade com meu amigo, porém, era recente. Fôramos educados nas
mesmas escolas e universidades; ele, contudo, passara por elas antes de
mim e já era um profundo iniciado naquilo a que se chama de vida
mundana, enquanto eu dava meus primeiros passos. Nessa época, eu ti-
nha ouvido falar muito tanto de seu passado quanto da vida que então
levava, e, embora em tais relatos houvesse muitas e irreconciliáveis con-
tradições, fui capaz de, a partir deles, deduzir que se tratava de alguém
incomum, que, não importava quanto esforço fizesse para evitar ser
percebido, ainda assim seria notável. Passei em seguida a cultivar sua
companhia, empenhando-me em conquistar sua amizade, mas esta últi-
ma condição parecia inatingível; quaisquer que fossem os afetos que ele
algum dia tivera pareciam, agora, alguns extintos, outros monopoliza-
dores. Que seus sentimentos eram intensos, isso tive suficientes oportu-
nidades de observar, pois, embora ele fosse capaz de controlá-los, não
podia disfarçá-los totalmente. Tinha, ainda assim, a capacidade de dar a
uma paixão a aparência de outra, de tal modo que era difícil definir a
natureza do que se passava em seu íntimo; e a expressão de seu sem-
blante variava tão rápido, mas sutilmente, que era inútil tentar remontá-
la a suas origens. Ficava evidente que Darvell era vítima de alguma an-
gústia incurável; se produto de ambição, amor, remorso, pesar, de uma
dessas coisas ou de todas elas, ou meramente de um temperamento
mórbido afeito à doença, eu não tinha como saber. Supunham-se cir-
cunstâncias capazes de justificar cada uma dessas hipóteses como causa;
conforme disse antes, porém, eram tão contraditórias e contraditadas
que se tornava impossível ser assertivo e preciso sobre qualquer uma
delas. Onde há mistério em geral imagina-se haver também o mal. Não
sei dizer como isso se dava com meu amigo, mas certamente havia nele
um, sem que no entanto eu pudesse afirmar a extensão do outro — e era
com repulsa, no que se referia a ele, que eu acreditava na existência do
mal. Minhas tentativas de aproximação foram recebidas com bastante
frieza, mas eu era jovem e não desistia com facilidade. Por fim consegui,
em certa medida, aquela relação trivial de moderada confiança no que
dizia respeito a preocupações comuns e cotidianas, criada e consolidada
com base em ambições similares e encontros frequentes, à qual se costu-
ma chamar de intimidade, ou amizade, concebida de forma diferente,
conforme a ideia que faz dela aquele que se utiliza de tais palavras para
expressá-la.
Darvell já viajara muito, e eu o consultara sobre como conduzir a vi-
agem que pretendia fazer. Era meu desejo secreto que ele pudesse ser
convencido a acompanhar-me: era também uma esperança viável, basea-
da numa quase imperceptível agitação que eu observara nele e à qual o
entusiasmo que parecia sentir por esses assuntos e sua aparente indife-
rença por tudo aquilo que o cercava mais proximamente conferiam re-
novada força. De início dei pistas de meu desejo e mais tarde o expres-
sei. Sua resposta, embora eu em parte a esperasse, foi recebida com todo
o prazer da surpresa — ele aceitou; após os preparativos de praxe, inici-
amos nossas andanças. Depois de viajarmos por vários países do sul da
Europa, voltamos nossa atenção ao leste, conforme nossa ideia original
de destino; e foi enquanto avançávamos por aquelas regiões que ocorreu
o incidente que motiva o que tenho a relatar.
A constituição física de Darvell, que por sua aparência devia ter si-
do, na juventude, robusta além da média, fazia algum tempo que min-
guava, sem que isso se devesse aparentemente a alguma doença. Ele não
apresentava sintomas como tosse ou a febre da tísica,[1] porém a cada
dia tornava-se mais fraco; mantinha hábitos moderados e não se entre-
gava ao cansaço nem se queixava dele, mas declinava a olhos vistos. Tor-
nou-se mais e mais calado e insone, e, por fim, seu comportamento tão
seriamente alterado fez aumentar meu sobressalto proporcionalmente
ao que eu considerava ser o risco que ele corria.
Tínhamos decidido que, ao chegarmos a Esmirna, faríamos uma in-
cursão às ruínas de Éfeso e Sárdis, mas empenhei-me em dissuadi-lo da
ideia em virtude de seu mal-estar — porém em vão: a opressão a que sua
mente parecia submetida e a solenidade de seu comportamento combi-
navam mal com a ânsia de seguir adiante naquilo que eu mesmo consi-
derava um mero passeio prazeroso, pouco recomendável a um conva-
lescente. Porém não continuei insistindo na oposição que lhe fiz e, al-
guns dias depois, partimos os dois acompanhados apenas de um serru-
gee e de um único janizary.[2]
A caminho das ruínas de Éfeso, já passando da metade do caminho e
tendo deixado para trás os arredores mais férteis de Esmirna, adentráva-
mos a trilha desabitada e selvagem que leva, por entre pântanos e vales,
às poucas cabanas ainda restantes sobre as arruinadas colunas de Diana
— paredes sem teto de onde foi expulsa a cristandade, e a mais recente,
mas completa desolação das mesquitas abandonadas —, quando, súbito,
a rápida evolução da enfermidade de meu amigo obrigou-nos a parar
num cemitério turco, cujas lápides esculpidas como turbantes eram a
única indicação de que a vida humana algum dia habitara aquele deser-
to. Fazia horas que passáramos por uma solitária caravansera,[3] não ha-
via vestígio de algum vilarejo ou mesmo um chalé à vista, ou que pudés-
semos ter a esperança de avistar, e aquela “cidade dos mortos” parecia
ser o único refúgio para meu desafortunado amigo, o qual parecia pres-
tes a se tornar seu mais novo habitante.
Diante dessa situação, olhei em torno buscando um local onde ele
pudesse descansar convenientemente. Ao contrário da característica co-
mum aos cemitérios maometanos, os ciprestes ali eram poucos e espa-
lhavam-se, esparsos, por toda a extensão do terreno; as lápides, em sua
maioria, achavam-se tombadas e desgastadas pelo tempo. Foi a uma das
mais destacadas entre elas, e debaixo de uma das árvores de maior copa,
que Darvell, com grande dificuldade, encostou-se em posição um tanto
reclinada. Pediu água. Tinha dúvidas se conseguiríamos encontrá-la ali
e, abatido e hesitante, já me preparava para a busca — mas meu amigo
desejava que eu permanecesse com ele. Voltando-se para Suleiman, nos-
so janizary, o qual acompanhava tudo de pé, ao nosso lado, fumando
muito tranquilamente, ele disse: “Suleiman, vebana su” (i.e., traga um
pouco de água), procedendo a uma descrição bastante minuciosa do lo-
cal onde ela podia ser encontrada, numa pequena fonte para camelos al-
gumas centenas de metros à direita: o janizary obedeceu. Perguntei a
Darvell: “Como sabias disso?”. Ele respondeu: “Pela nossa posição; é
perceptível que este lugar foi algum dia habitável, e não poderia ter sido
se não houvesse fontes d’água; e também porque já estive aqui antes”.
“Já estiveste aqui antes! E por que não me contaste? O que terias
vindo fazer num lugar onde, podendo evitar, ninguém permaneceria um
instante a mais?”
Não recebi resposta a essa pergunta. Enquanto isso, Suleiman vol-
tou com a água, deixando o serrugee e os cavalos na fonte. Ao matar a
sede, meu amigo pareceu reanimar-se por um momento e tive esperan-
ças de que talvez fosse capaz de continuar a viagem, ou ao menos de re-
gressar, e incentivei-o a uma tentativa. Ele ficou em silêncio — e parecia
estar preparando o espírito para o esforço de falar. Então começou.
“Este é o fim de minha jornada e de minha vida. Vim aqui para mor-
rer, mas tenho um pedido a fazer, uma ordem, uma vez que serão mi-
nhas últimas palavras. Tu a cumprirás?”
“Com toda certeza; mas não percas as esperanças.”
“Não tenho esperanças, tampouco desejos, exceto este — esconde
minha morte de todo e qualquer ser humano.”
“Espero que não venha a ser necessário; que tu te recuperarás e…”
“Descansa! Assim deve ser: promete o que te peço.”
“Prometo.”
“Jura por tudo que existe?” — e ele então pronunciou um juramen-
to com grande solenidade.
“Não há necessidade disso — cumprirei teu pedido, e duvidar de
minha palavra é…”
“Não tens como ajudar-me, e deves jurar.”
Pronunciei o juramento, o que pareceu aliviá-lo. Tirou do dedo um
anel com um sinete, no qual havia alguns caracteres arábicos gravados, e
o entregou a mim. Prosseguiu:
“No nono dia do mês (no mês que quiseres, mas deve ser nesse dia),
precisamente à meia-noite, deves atirar esse anel nas fontes salgadas que
deságuam na baía de Elêusis. No dia seguinte, à mesma hora, seguirás
até as ruínas do templo de Ceres e ali aguardarás por uma hora.”
“Por quê?”
“Vais descobrir.”
“Nono dia do mês, tu disseste?”
“Nono.”
Quando observei que aquele era o nono dia do mês, a expressão de
seu rosto mudou e ele fez uma pausa. Meu amigo estava ali, sentado,
tornando-se cada vez mais fraco a olhos vistos, e então uma cegonha,
com uma cobra no bico, pousou numa lápide perto de nós; sem devorar
sua presa, pareceu nos observar fixamente. Não posso dizer o que me
impeliu a espantá-la, mas a tentativa foi inútil; ela fez alguns círculos no
ar e voltou a pousar exatamente no mesmo local. Darvell apontou o
pássaro e sorriu; então disse, não sei se a si mesmo ou a mim, apenas as
seguintes palavras: “Está bem!”.
“O que está bem? Que queres dizer com isso?”
“Não importa: deves enterrar-me aqui nesta noite, e exatamente on-
de aquele pássaro está pousado. Já sabes o que mais te ordenei.”
Em seguida passou a dar diversas instruções sobre a melhor maneira
de ocultar sua morte. Quando terminou, disse: “Vês aquele pássaro?”.
“Certamente.”
“E a serpente que se debate em seu bico?”
“Sem dúvida. Nada há de anormal naquilo; é a presa natural da ce-
gonha. Mas é estranho que não a devore.”
Meu amigo sorriu, lívido, e disse com voz sumida: “Ainda não é a
hora!”. Assim que falou, a cegonha alçou voo. Segui-a com o olhar por
um instante, tempo em que mal daria para contar até dez. Senti Darvell
pesar-me, por assim dizer, no ombro e, ao olhar para seu rosto, vi que
estava morto!
Fiquei chocado com a súbita certeza de algo sobre o qual não podia
haver engano — em poucos minutos, seu rosto tornou-se quase negro.
Teria atribuído mudança assim tão rápida a envenenamento, não fosse
minha certeza de não haver chance de algo assim ter passado desperce-
bido. O dia terminava, o corpo rapidamente se deteriorava e não havia
nada a fazer senão atender seu pedido. Lançando mão do iatagã[4] de
Suleiman e de meu próprio sabre, cavamos uma cova rasa no local que
Darvell indicara: a terra cedeu facilmente, uma vez que ali já habitava
um inquilino maometano. Fizemos o buraco mais fundo que o tempo
disponível nos permitiu e, depois de jogar a terra seca por cima do que
restara daquela singular criatura tão precocemente desaparecida, arran-
camos alguns torrões de grama mais verde do solo menos seco que en-
contramos ali em torno e os depositamos sobre sua sepultura.
Entre o espanto e o pesar, eu tinha os olhos secos.
Fim
O VAMPIRO: UM CONTO
por John William Polidori

John William Polidori nasceu em 7 de setembro de 1795, filho de Gae-


tano Polidori, que deixara sua Itália natal para se estabelecer em Lon-
dres depois de trabalhar como secretário do poeta e dramaturgo Vitto-
rio Alfieri. Polidori père casou-se com uma inglesa, a srta. Pierce, e, cri-
ado pelos pais na vizinhança de expatriados do Soho, o jovem Polidori
foi então mandado para um colégio católico romano em Yorkshire. Da-
li, seguiu para a Universidade de Edimburgo, onde obteve o diploma de
médico em 1815 com a inédita idade de dezenove anos. (Aqui, a compa-
ração com o precoce Frankenstein dá o que pensar.)
No início de 1816, Lorde Byron fazia planos para sua partida defini-
tiva da Inglaterra para o continente e procurava um companheiro de vi-
agem. Sir Henry Halford recomendou o jovem médico. Desde logo im-
pressionado pelo conhecimento de Polidori tanto das ciências quanto
das humanidades, e satisfeito por ver que o rapaz tinha aspirações lite-
rárias, recrutou-o como seu médico particular e acompanhante. Viaja-
ram juntos pelo continente durante cinco meses, até que Byron, sem
conseguir mais suportar as altercações provocadas a todo momento por
seu vaidoso e ciumento companheiro, dispensou-o. Mais tarde, Byron
diria de Polidori que “não era um mau sujeito, apenas jovem de cabeça
quente, mais inclinado a causar doenças do que a curá-las”. Depois da
querela com Byron, o rapaz seguiu viagem sozinho, acabando por ir vi-
sitar conhecidos na Itália antes de regressar à Inglaterra. Começou a
prática da medicina em Norwich, onde, segundo consta, Harriet Marti-
neau, de quinze anos, apaixonou-se por ele. Sem conseguir se firmar na
carreira médica, passou a estudar para poder exercer a advocacia, proje-
to o qual também abandonou.
Polidori morreu em agosto de 1821 em circunstâncias lamentáveis,
seja qual for a versão dos acontecimentos que se aceite. Numa delas, o
médico teria cometido suicídio com ácido prússico em razão de suas
vultosas dívidas de jogo. Outra reza que teria morrido de um mal cau-
sado por ferimentos internos na cabeça depois de sofrer um acidente de
carruagem. A junta pericial que deliberou acerca da causa da morte pre-
coce do médico e literato de vinte e seis anos contentou-se, estranha-
mente, em registrar que o jovem morrera “pela visita de Deus”. Sua ir-
mã, Frances Polidori, casou-se com Gabriele Rossetti e deu à luz a poe-
ta Christina, o poeta e pintor Dante Gabriel e William Michael Rossetti,
responsável por uma edição do Diário de 1816, de Polidori, publicada
em 1911. (Ver detalhes na seção “Outras leituras”.)
“O vampiro: um conto”, de Polidori, foi publicado pela primeira
vez na New Monthly Magazine, em 1º de abril de 1819, e é esse o texto
aqui reproduzido. Ao que parece, Polidori forneceu informações ambí-
guas sobre a origem da história, a ponto de o editor da revista, Henry
Colburn, ter ficado confortável em publicá-la como “Um conto de Lor-
de Byron”, de modo a capitalizar o nome do famoso poeta. Hobhouse,
amigo de Byron, interveio e insistiu que Polidori desse uma explicação
pública da gênese do conto. O médico, então, escreveu uma carta ao
editor da New Monthly, publicada em 5 de maio de 1819 no Courier:
Caro senhor,
Uma vez que fui citado na carta de Genebra que introduz o conto
“O vampiro” na edição mais recente de sua publicação, peço per-
missão para aqui declarar que o correspondente equivoca-se ao atri-
buir esse conto, na forma como foi publicado, a Lorde Byron. O fa-
to é que, embora o argumento seja certamente de autoria de Lorde
Byron, o desenvolvimento é meu, feito a pedido de uma senhora
que duvidava da possibilidade de que os assuntos que Lorde Byron
dizia ter a intenção de explorar em sua História de Fantasmas pu-
dessem render alguma coisa.
Humildemente subscrevo-me,
J. W. Polidori
Apesar dessa explicação, “O vampiro” continuou a ser atribuído a
Byron por muitos anos, fato que deu à história de Polidori grande fama,
em especial no continente, onde foi adaptada na forma de melodramas
populares e óperas. O conto também teve influência direta em outras
duas das mais destacadas histórias de vampiros do século XIX, Carmilla
(1872), de Sheridan Le Fanu, e Drácula, de Bram Stoker (1897).
Se Byron, em seu “Fragmento”, usara a si próprio como modelo pa-
ra o aristocrático Darvell, com quase certeza Polidori baseou-se na per-
sonalidade de Byron e em sua própria relação com o poeta para o “de-
senvolvimento” de “O vampiro”. Lorde Byron é a inspiração para Lor-
de Ruthven, assim batizado em referência a Ruthven Glenarvon, herói
insolente e cínico do romântico Glenarvon (1816), de Lady Caroline
Lamb, um vingativo roman à clef escrito depois de o poeta ter se ente-
diado da obsessão da moça por ele. A Lady Mercer de Polidori parece
baseada em Lady Caroline. Alguns aspectos da relação Byron-Polidori
ecoam em vários momentos do vínculo entre Ruthven e Aubrey. Como
Polidori, Aubrey é um jovem e talentoso cavalheiro, cheio de admira-
ção por seu aristocrático e mundano mentor (Ruthven/Byron) e que, ao
partir para uma viagem pelo continente, deixa na Inglaterra uma irmã,
sentindo-se por isso repugnado quando vê que o companheiro mais ve-
lho abusa da honra das mulheres. Polidori foi alertado pelos pais sobre
associar-se com alguém com a reputação de Byron, da mesma forma
que os responsáveis por Aubrey o avisam sobre a fama de Ruthven.
Também como Polidori, Aubrey é um artista e antiquário amador.
Além de “O vampiro”, Polidori produziu duas coletâneas de poe-
mas pouco notáveis, uma das quais, Ximenes, em forma dramática, al-
guns ensaios e um romance cujo subtítulo parece influenciado pelo de
Frankenstein — Ernestus Berchtold, ou o Édipo moderno (1819). Na In-
trodução, Polidori conta tratar-se de uma história “iniciada em Coligny
[sic], quando Frankenstein foi planejado e quando um nobre autor, de-
cidido a descer de seu pedestal, dedicou algumas horas a um conto de
terror e escreveu o fragmento publicado ao final de Mazeppa”. Ernestus
Berchtold não contém nenhum vestígio da “moça cuja cabeça era um
crânio”, que Mary Shelley afirmou ser a ideia central do médico para
sua tentativa de uma história de fantasmas em 1816.

O VAMPIRO: UM CONTO

Aconteceu que, em meio às dissipações típicas de um inverno londrino,


passou a frequentar as várias festas das figuras mais badaladas da socie-
dade um cavalheiro que se fazia notar, mais do que pela posição, por su-
as singularidades. Observava a alegria em torno de si como se não pu-
desse participar dela. Aparentemente, o riso leve dos bem-nascidos só
atraía sua atenção para que pudesse, com o olhar, interrompê-lo, impin-
gindo medo àqueles corações onde reinava a displicência. Os que se vi-
am tomados dessa sensação de reverência não sabiam explicar de onde
ela vinha: alguns atribuíam-na ao olhar cinzento e apagado que, fixo no
rosto de seu alvo, se não parecia penetrante ou tampouco capaz de, num
vislumbre, alcançar as engrenagens mais íntimas do coração, atingia a
face do outro com uma radiação plúmbea, pressionando a pele que não
conseguia trespassar. Em razão de suas peculiaridades, o cavalheiro era
convidado a todas as casas; todos desejavam vê-lo, e aqueles habituados
a intensas emoções que estivessem sofrendo de ennui ficavam satisfeitos
por ter diante de si algo para capturar-lhes a atenção. Apesar da palidez
cadavérica de seu rosto, que nunca exibia uma cor mais quente nem ao
corar de modéstia nem pela emoção mais forte de uma paixão, ainda
que fosse um rosto de formato e contorno bonitos, muitas caçadoras de
celebridades tentavam fazer-se notar pelo personagem e ganhar ao me-
nos um ou outro sinal do que poderiam chamar de afeição. Lady Mer-
cer, a qual, desde seu casamento, tornara-se objeto do escárnio de todos
os cruéis frequentadores dos salões,[1] atirou-se a ele e só faltou fantasi-
ar-se de saltimbanco[2] para atrair-lhe a atenção — mas em vão. Quando
parou em frente ao cavalheiro, embora os olhos dele parecessem se de-
ter nos dela, foi como se estivessem absortos — ela, por causa desse im-
passível descaramento, ficou desconcertada e saiu de cena. Ainda que a
vulgar adúltera fosse incapaz até mesmo de fazê-lo desviar os olhos, is-
so não significava que havia uma total indiferença dele pelo sexo femini-
no; no entanto, a aparente cautela com que se dirigia à esposa virtuosa e
à filha inocente era tal que poucos reparavam que alguma vez tivesse
conversado com mulheres. Levava, contudo, a fama de ter uma boa lá-
bia; e, fosse porque com isso compensava o terror inspirado por sua
singular figura, fosse porque elas se impressionavam com seu aparente
ódio ao vício, era possível vê-lo com a mesma frequência entre as mu-
lheres que definem o sexo a que pertencem por suas virtudes domésticas
e as que o desonram com seus pecados.
Aproximadamente nessa mesma época, chegou a Londres um jovem
cavalheiro de nome Aubrey: ele e sua única irmã, órfãos desde a infân-
cia, tinham herdado grande fortuna dos pais. Deixado ao léu por seus
responsáveis, que consideraram ser seu dever apenas administrar a he-
rança, abandonando a tarefa mais importante da educação daquela men-
te a subalternos mercenários, Aubrey acabou por cultivar mais a imagi-
nação do que o juízo. Exibia, portanto, aquele pendor altamente ro-
mântico à honra e à franqueza que diariamente arruína tantos aprendi-
zes de chapeleiro. Ele acreditava que todas as pessoas apreciavam a vir-
tude e pensava que a maldade era introduzida pela Providência simples-
mente pelo efeito pitoresco acrescentado à cena, como se vê nos roman-
ces; achava que a miséria dos habitantes de um chalé era meramente a
aparência de suas roupas amarfanhadas em dobras irregulares e colori-
das de remendos, e tão quentes quanto quaisquer outras, apenas adapta-
das ao olho do pintor de quadros. Pensava, em suma, que os sonhos dos
poetas correspondiam às realidades da vida. Era bonito, sincero e rico;
por essas razões, assim que passou a frequentar círculos festivos, viu-se
cercado de mães empenhadas, cada uma, na descrição menos verdadeira
possível de suas suspirantes ou saltitantes meninas; as filhas, ao mesmo
tempo, com rostos radiantes ao abordá-lo, e pelo brilho nos olhos cada
vez que ele abria a boca, logo levavam o rapaz a acreditar em falsas no-
ções sobre seus talentos e valor. Apegado como era à sua romântica so-
lidão, surpreendeu-se ao descobrir que, com exceção das velas de sebo e
cera, cuja chama bruxuleava não pela presença de algum fantasma, mas
pela falta de quem as apagasse, não tinha base na vida real aquele amon-
toado de imagens e descrições aprazíveis contido nos volumes em que
estudara. Ao também descobrir, porém, que a satisfação de sua vaidade
servia de alguma compensação, estava prestes a abandonar seus sonhos,
quando a extraordinária criatura que descrevemos acima cruzou seu ca-
minho.
Contemplou-o; e viu a exata impossibilidade de formar alguma ideia
a respeito do caráter daquele sujeito tão absorto em si mesmo, o qual
dava tão poucos sinais de sua observação de objetos externos para além
do assentimento tácito de que existiam, implícito no resguardo ao con-
tato com tais objetos. Deixando à imaginação dar contornos a tudo
aquilo que lhe adulasse a propensão às ideias extravagantes, não demo-
rou a criar para si o herói de um romance e a resolver que observaria o
produto de sua imaginação, em vez da pessoa que tinha diante de si.
Apresentou-se, dedicou ao outro sua atenção e fez-se notar, a tal ponto
que sua presença era sempre reconhecida. Aos poucos descobriu que os
negócios de Lorde Ruthven iam mal e logo soube, a julgar pelos prepa-
rativos em curso cujos sinais eram visíveis no endereço da rua…, que o
outro viajaria em breve. Desejoso de obter alguma informação acerca
do singular personagem, o qual, até ali, só fizera aguçar sua curiosidade,
deu a entender a seus tutores que era chegada a hora de ele mesmo em-
preender uma viagem, o que por muitas gerações tem sido considerado
necessário para permitir aos jovens avançar alguns passos com mais ra-
pidez no caminho do vício, de modo a colocá-los em pé de igualdade
com os mais velhos e evitando que pareçam anjos caídos à menção de
intrigas escandalosas como matéria de gracejo ou de apologia, conforme
o grau de habilidade em conduzir tais assuntos. Os tutores consentiram,
e Aubrey, tendo imediatamente mencionado suas intenções a Lorde
Ruthven, surpreendeu-se ao receber a proposta de acompanhá-lo. Li-
sonjeado com tal demonstração de estima do outro, o qual, ao que pare-
cia, nada tinha em comum com os demais homens, aceitou alegremente,
e dali a poucos dias os dois já haviam cruzado o canal.
Aubrey, até então, não tivera a chance de estudar a personalidade de
Lorde Ruthven, e agora descobria que, mesmo com muitas outras de
suas ações à vista, o que resultava delas levava a diferentes conclusões
acerca de quais eram, aparentemente, os motivos para sua conduta. Ru-
thven exercia em profusão a prodigalidade — o indolente, o vagabundo
e o pedinte recebiam de sua mão mais que o suficiente para aliviar as ca-
rências imediatas. Aubrey, porém, não pôde deixar de notar que as doa-
ções não contemplavam aqueles que, virtuosos, viam-se reduzidos à in-
digência pelo infortúnio que se abate mesmo sobre a virtude; estes eram
escorraçados da porta com mal contidas expressões de escárnio, mas, se
um devasso aparecia pedindo alguma coisa, não para aliviar-lhe a neces-
sidade, e sim para permitir que chafurdasse na luxúria ou afundasse ain-
da mais na iniquidade, dali saía com uma polpuda esmola. O outro jus-
tificava tal atitude dizendo que os mais malandros costumavam ser mais
impertinentes, ao passo que o indigente virtuoso, envergonhado, não
insistia. Um aspecto da benevolência do lorde ficou gravado ainda mais
fundo na mente do jovem acompanhante: todos os agraciados com ela
vinham a descobrir, inevitavelmente, que era também uma maldição,
pois ou acabavam no cadafalso, ou enterrados na mais vil e abjeta misé-
ria. Em Bruxelas e em outras cidades pelas quais passaram, Aubrey sur-
preendeu-se com a aparente avidez com que seu companheiro de via-
gem procurava estar onde se concentravam os vícios mais em voga; ali,
ele entrava totalmente no espírito da mesa de faro:[3] apostava, e sempre
com sucesso. Quando encontrava pela frente o proverbial trapaceiro,
então perdia mais ainda do que ganhava, mas sempre com a mesma ex-
pressão impassível com que tinha o hábito de observar a sociedade a seu
redor; não era assim, contudo, quando deparava com o jovem inexperi-
ente ou com o pai azarado de uma numerosa família. Seu desejo, então,
parecia se transformar na lei do destino — aquela aparente abstração
mental era deixada de lado, e os olhos dele brilhavam com mais fogo
que os do gato que se diverte com o rato meio morto. Em cada cidade,
deixava um antes opulento jovem, arrancado ao círculo do qual era a
atração, abandonado à solidão de uma cela, destino a que era condenado
ao cair nas garras daquele demônio; ao passo que muito pai de família,
transtornado pelos olhares mudos de fome de suas crianças, acabava
sem nem um quarto de tostão de sua antiga e vasta fortuna para com-
prar o mínimo que lhes satisfizesse as necessidades. No entanto, o lorde
não ficava com dinheiro nenhum da mesa de apostas; imediatamente
perdia, para a desgraça de muitos, até a última moeda arrancada ao der-
radeiro esforço do inocente: aquilo talvez resultasse simplesmente de al-
gum grau de conhecimento, com o qual era incapaz, todavia, de comba-
ter a astúcia dos mais experientes. Aubrey muitas vezes desejava chamar
às falas o amigo e pedir-lhe que renunciasse a tais caridades e prazeres
que se provavam tão ruinosos para tantos, sem reverter em vantagem al-
guma para ele próprio; contudo adiava a conversa, pois a cada dia espe-
rava que o amigo lhe desse a oportunidade de falar franca e abertamen-
te. Isso, porém, jamais acontecia. Em sua carruagem, rodeado de vários
cenários belos e selvagens, Lorde Ruthven era sempre o mesmo: nele, o
olho falava menos que a boca; embora Aubrey estivesse próximo de seu
objeto de investigação, dele não obtinha mais que a satisfação do cons-
tante estímulo de em vão desejar desvendar o mistério, o qual, em sua
excitada imaginação, começava a assumir a forma de algo sobrenatural.
Logo chegaram a Roma, e Aubrey perdeu de vista o companheiro
por algum tempo. Deixou-o entregue ao convívio diário do círculo ma-
tutino de uma condessa italiana, enquanto saía em busca dos monumen-
tos de mais uma cidade quase deserta. Ocupava-se dessa rotina, quando
chegaram cartas da Inglaterra, as quais abriu com ávida impaciência. A
primeira era de sua irmã, e dela exalava apenas afeto; as demais eram de
seus tutores, e o espantaram. Se em algum momento lhe ocorrera que
em seu companheiro abrigava-se uma força maligna, aquelas cartas pa-
reciam ser quase razão suficiente para tal crença. Os tutores insistiam
em que abandonasse de imediato seu amigo, pois, alertavam, tratava-se
de alguém cujo caráter era terrivelmente perverso e cujos irresistíveis
poderes de sedução tornavam seus hábitos licenciosos ainda mais peri-
gosos para a sociedade. Descobrira-se que seu desprezo pela adúltera
não se devera ao fato de odiar sua índole; ao contrário, ele exigira, para
aumentar o prazer que sentia, que sua vítima, parceira de suas culpas, se
lançasse do impoluto pedestal da virtude para o mais fundo abismo de
infâmia e degradação. Constatava-se, em suma, que todas aquelas mu-
lheres que ele procurara, aparentemente porque virtuosas, haviam, des-
de sua partida, abandonado até mesmo as aparências, sem mais nenhum
escrúpulo de exibirem publicamente toda a deformidade de seus vícios.
Aubrey decidiu abandonar aquele cujo caráter não mostrara, até ali,
um único ponto luminoso onde pousar os olhos. Decidiu inventar al-
gum pretexto plausível para deixá-lo de vez, propondo-se, no tempo
que ainda lhe restava, a observar o companheiro mais de perto e não
permitir que nem a mais discreta particularidade passasse despercebida.
Começou a frequentar o mesmo círculo que o lorde e logo notou seu
empenho em aproveitar-se da inexperiência da filha da dama cuja casa
frequentava com mais assiduidade. Na Itália, é incomum encontrar no
convívio em sociedade uma moça solteira, portanto Ruthven obrigava-
se a conduzir seus planos em segredo. O olhar de Aubrey, porém, o se-
guia por todos os desvios que tomava, e não demorou a descobrir que
um encontro fora marcado, no qual muito provavelmente a vida de uma
jovem inocente, embora inconsequente, seria arruinada. Sem perda de
tempo, irrompeu nos aposentos de Lorde Ruthven e, de forma direta,
perguntou-lhe quais eram suas intenções com a moça, informando-o, ao
mesmo tempo, de que sabia que ele estava prestes a encontrá-la naquela
noite. O lorde respondeu que suas intenções eram as mesmas que, su-
punha, qualquer um teria em ocasião semelhante, e, ao ser pressionado
por uma resposta sobre se pretendia casar-se com a jovem, simplesmen-
te riu. Aubrey saiu dali e, tomando a providência imediata de escrever
um bilhete em que dizia renunciar, daquele momento em diante, à com-
panhia do lorde no restante da viagem planejada pelos dois, ordenou
que seus criados procurassem outro local de hospedagem, foi atrás da
mãe da jovem e a informou de tudo que sabia, não apenas sobre a filha,
mas também acerca do caráter de Ruthven. O encontro foi evitado. No
dia seguinte, Lorde Ruthven simplesmente enviou um criado para avi-
sar de seu total consentimento sobre cada um tomar o próprio rumo.
Não deu pistas, porém, de que desconfiava ter tido seus planos frustra-
dos pela intervenção de Aubrey.
Depois de deixar Roma, Aubrey seguiu para a Grécia e, cruzando a
península, logo estava em Atenas. Fixou residência na casa de um grego
e não demorou a ocupar-se da perseguição aos esmaecidos registros de
antiga glória em monumentos que, ao que parecia, sob o constrangi-
mento de serem testemunhos dos feitos daqueles que só foram homens
livres perante seus escravos, ocultavam-se debaixo da terra acolhedora
ou do limo multicolorido. Aubrey convivia, na mesma casa, com uma
criatura tão bela e delicada que poderia ter sido modelo de um pintor
que desejasse retratar em tela a esperança prometida aos crentes no pa-
raíso de Maomé, exceto que seus olhos revelavam uma mente por de-
mais ativa para quem quisesse achar que a moça pertencia à classe da-
queles que carecem de alma. Vê-la dançar na planície ou saltitar nas en-
costas da montanha fazia pensar na gazela como espécime modesto da-
quela espécie de beleza, pois quem haveria de trocar um olhar que era,
aparentemente, o olho vivo da natureza, por outro, sonolento e lascivo,
de um animal que tão somente ao gosto de um epicurista agradaria? O
andar leve de Ianthe era companhia frequente de Aubrey em sua busca
por antiguidades, e também com frequência a moça, distraída na perse-
guição a uma borboleta da Caxemira, exibia toda a beleza de sua forma,
flutuando ao vento, por assim dizer, aos olhos ávidos do rapaz, o qual,
ao contemplar aquela silhueta de sílfide, esquecia os caracteres que aca-
bara de decifrar numa tabuleta quase apagada. Muitas vezes, enquanto
ela circulava por ali, suas madeixas brilhavam ao sol em tons tão delica-
damente radiantes, fugidios e esmaecidos, que até se perdoava a desa-
tenção do antiquário, esquecido diante do objeto pouco antes conside-
rado de vital importância para a correta interpretação de uma passagem
do discurso de Pausânias. Mas por que tentar descrever o tipo de encan-
to que todos notam, mas ninguém é capaz de apreciar? Havia ali ino-
cência, juventude e beleza, intocadas pelos disputados salões e bailes su-
focantes. Enquanto ele desenhava as ruínas das quais desejava preservar
uma lembrança para momentos futuros, a moça, ao lado, observando os
efeitos mágicos do lápis, via surgirem os contornos de paisagens de sua
terra natal; ela, então, descrevia para o rapaz a dança circular na ampli-
dão da planície e, em todas as cores mais vívidas, pintava para ele a cena
de uma lembrança antiga, um casamento de grande pompa que presen-
ciara na infância. Em seguida, passando a assuntos que claramente cau-
savam impressão mais duradoura na mente dela, contava-lhe todas as
histórias sobrenaturais ouvidas da babá. A seriedade e a aparente credu-
lidade com que as narrava conseguiram despertar o interesse até mesmo
de Aubrey; ao ouvi-la relatar a história do vampiro vivo que passara
anos entre seus amigos e entes mais queridos, obrigado a dispor, ano
após ano, da vida de uma adorável moça, a fim de prolongar sua exis-
tência pelos meses seguintes, não era incomum Aubrey sentir o sangue
gelar, enquanto tentava, rindo, desviá-la de tais fantasias ociosas e horri-
pilantes. Ianthe, porém, enumerava os nomes de anciões que enfim ha-
viam detectado um desses demônios vivendo entre eles, depois de en-
contradas várias pessoas próximas com a marca do apetite do monstro.
Ao ver que Aubrey continuava cético, implorou que acreditasse nela,
pois afirmava-se que aqueles que ousavam duvidar da existência da cria-
tura sempre ganhavam alguma prova que os obrigava, pesarosos e de
coração partido, a admitir a verdade daquilo. A moça detalhou a apa-
rência habitual daqueles demônios, e o horror do rapaz só fez aumentar
ao ouvir dela uma descrição bastante precisa de Lorde Ruthven. Au-
brey, porém, insistia em convencê-la de que seus medos eram infunda-
dos, embora ao mesmo tempo se perguntasse acerca das muitas coinci-
dências que contribuíam, todas elas, para estimular a crença no poder
sobrenatural do lorde.
Aubrey foi-se tornando mais e mais apegado a Ianthe. A inocência
dela, que tanto contrastava com todas as afetadas virtudes das mulheres
entre as quais buscava satisfazer sua visão romântica, conquistou o co-
ração do rapaz, e, ainda que achasse ridícula a ideia do casamento de um
jovem de hábitos ingleses com uma moça grega sem instrução, via-se
cada vez mais ligado à figura quase de contos de fada que tinha diante
de si. Afastava-se dela de vez em quando, levando a cabo o plano de al-
guma pesquisa de antiquário, e partia determinado a só voltar depois de
cumprir seu objetivo; mas sempre achava impossível concentrar-se nas
ruínas ao redor, uma vez que em sua mente persistia uma imagem, ao
que parecia a única dona de seus pensamentos. Ianthe não tinha cons-
ciência do amor de Aubrey e continuava sendo a criatura infantil que
ele conhecera. Sempre dava a impressão de relutar ao se despedir dele;
era assim, porém, porque ela não tinha mais ninguém com quem con-
versar sobre suas assombrações prediletas, nas ocasiões em que seu pro-
tetor estava ocupado desenhando ou escavando algum fragmento into-
cado pela mão destruidora do tempo. Ela havia recorrido aos pais no as-
sunto dos vampiros, e ambos, na presença de várias pessoas, afirmaram
sua existência, pálidos de horror só de ouvirem falar daquilo. Logo de-
pois, Aubrey decidiu fazer uma de suas excursões, a qual o ocuparia por
algumas horas; quando souberam do lugar para onde ele seguiria, todos
no mesmo instante imploraram que não voltasse à noite, pois teria ne-
cessariamente de atravessar uma floresta que jamais, sob hipótese algu-
ma, um grego frequentaria depois do pôr do sol. Descreveram o lugar
como um antro dos vampiros para suas orgias noturnas e alertaram que
os mais pesados males eram iminentes para quem ousasse cruzar o ca-
minho dos demônios. Aubrey fez pouco desses avisos e tentou rir para
ver se demovia seus anfitriões de tais ideias. Porém, ao vê-los estreme-
cer por sua ousadia de zombar de um poder superior e infernal, o qual
bastava nomear para, ao que parecia, gelar-lhes o sangue, ficou quieto.
Na manhã seguinte, partiu desacompanhado para a tal excursão; fi-
cou surpreso ao ver a expressão melancólica de seu anfitrião, e preocu-
pado que suas palavras escarnecedoras da crença nos terríveis demônios
tivessem inspirado tamanho terror naquelas pessoas. Quando ia partin-
do, Ianthe foi até junto de seu cavalo e pediu, séria, que ele voltasse an-
tes que o anoitecer libertasse o poder de ação daqueles seres — e Au-
brey prometeu. Ficou, porém, tão entretido com sua pesquisa que não
percebeu que a luz do dia logo se extinguiria e que no horizonte surgia
um desses pontos negros que, em climas mais quentes, tão rapidamente
se aglutinam numa formidável massa para despejar sua fúria sobre a ter-
ra devota. Enfim, montou em seu cavalo, determinado a compensar o
atraso com velocidade: porém era tarde demais. Quase não se conhece
crepúsculo naqueles climas meridionais. Assim que o sol se põe, a noite
começa, e, antes que Aubrey tivesse ido muito longe, a força da tempes-
tade já estava sobre ele — os trovões ecoavam sem descanso, pratica-
mente um atrás do outro — e a chuva pesada e densa abria caminho en-
tre a folhagem das copas, enquanto raios azuis e bifurcados pareciam
lançar sua eletricidade bem aos pés do rapaz. Súbito o cavalo se assus-
tou, e ele se viu conduzido a uma velocidade assustadora floresta ema-
ranhada adentro. Por fim, de cansaço, o animal parou, e Aubrey desco-
briu, à luz dos raios, que se encontrava nas proximidades de uma chou-
pana, a qual mal se distinguia dos amontoados de folhas mortas e galhos
caídos que a cercavam. Apeou e se aproximou, esperando encontrar al-
guém que o guiasse de volta à cidade, ou confiando ao menos conseguir
abrigo da forte tempestade. Quando foi chegando mais perto, os tro-
vões aquietaram-se por um momento, o que lhe permitiu escutar gani-
dos terríveis de uma mulher, misturados, como se fossem um único só,
ao escárnio exultante de uma risada abafada; sobressaltou-se. Porém,
despertado pelo trovão que novamente ecoou sobre sua cabeça, num
súbito impulso forçou a porta da choupana e abriu-a. Viu-se em total
escuridão; os ruídos, porém, o guiaram. Aparentemente não percebiam
sua presença; mesmo com seus chamados, os sons prosseguiam, sem
que ninguém se desse conta de que ele estava ali. Percebeu que esbarra-
va em alguém, a quem imediatamente agarrou; então uma voz gritou:
“Perplexo outra vez!”, ao que se seguiu uma risada ruidosa, e Aubrey
sentiu que era seguro por um ser de uma força sobre-humana. Determi-
nado a vender bem caro sua vida, ele lutou; mas em vão. Foi suspenso
no ar e jogado ao chão com enorme violência: seu inimigo, atirando-se
sobre ele com o joelho em seu peito, já tinha as mãos postas em seu pes-
coço, quando a luz de várias tochas, penetrando por onde entrava a luz
do dia, veio perturbá-lo — no mesmo instante ele se levantou, abando-
nou sua presa e voou porta afora, e no minuto seguinte já não se ouvia o
som dos galhos quebrados à medida que se embrenhava na floresta. A
tempestade havia amainado. Aubrey, incapaz de se mover, logo foi ou-
vido pelos que estavam lá fora. Eles adentraram a choupana; a ilumina-
ção das tochas incidiu sobre as paredes de barro e o teto de sapê em que
cada palhinha achava-se carregada de flocos de fuligem. A pedido de
Aubrey, os outros saíram à procura daquela cujos gritos o haviam atraí-
do. Foi novamente deixado na escuridão, e com que horror não veio a
descobrir, quando a luz das tochas mais uma vez o iluminou, que ali es-
tava a forma etérea de seu belo chamariz, agora um cadáver inerte. Fe-
chou os olhos, na esperança de que não passasse de uma visão saída de
sua perturbada imaginação. Ao abri-los novamente, porém, viu a mes-
ma forma deitada a seu lado. Não havia cor em suas faces, tampouco
nos lábios; no entanto, a imobilidade daquele rosto parecia quase tão
atraente quanto a vida que um dia o habitara. Havia sangue no pescoço
e no busto e, na altura da garganta, marcas de dentes na veia aberta, ao
que os presentes, apontando horrorizados, gritaram em uníssono: “Um
vampiro!, Um vampiro!”. Uma liteira foi logo improvisada, e levaram
Aubrey deitado ao lado daquela que, recentemente, fora para ele objeto
de tantas visões encantadoras e radiantes, agora morta com a flor da vi-
da que carregava dentro de si. Ele não sabia o que pensar — sua mente
estava anestesiada e parecia recusar-se a refletir, refugiando-se no nada
— e, quase inconscientemente, segurou na mão uma adaga nua, de dese-
nho muito particular, encontrada na choupana. Logo outros grupos
também empenhados na busca da moça que se perdera da mãe foram ao
encontro daquele primeiro. Os uivos de lamentação, à medida que se
aproximavam da cidade, anunciaram aos pais alguma terrível catástrofe.
Seria impossível descrever o sofrimento deles, e, ao saberem da causa da
morte de sua criança, olharam para Aubrey e apontaram o cadáver. Es-
tavam inconsoláveis; morreram ambos de tristeza.
O rapaz, posto de cama, foi acometido da mais violenta das febres, e
com frequência delirava; nessas horas, chamava por Lorde Ruthven e
por Ianthe — por alguma surpreendente associação, parecia implorar a
seu antigo companheiro que poupasse a criatura que amava. Em outros
momentos, lançava imprecações nas quais amaldiçoava e esconjurava a
si próprio como responsável pela morte da amada. Por acaso Lorde Ru-
thven chegou a Atenas nessa mesma época e, fosse lá por que motivo,
ao saber do estado de Aubrey, foi imediatamente se hospedar na mesma
casa, tornando-se o enfermeiro permanente do rapaz. Quando, mais
tarde, recuperou-se de seus delírios, Aubrey ficou aterrorizado e so-
bressaltado com a visão daquele cuja imagem agora associava com a de
um vampiro. Lorde Ruthven, porém, com palavras gentis que indica-
vam quase arrependimento pelo erro que causara a separação dos dois, e
mais ainda porque agora mostrava-se atencioso, preocupado e dedica-
do, não demorou a ter sua presença aceita. O lorde dava a impressão de
estar bastante mudado; não parecia mais aquele sujeito indiferente que
tanto espantara Aubrey. No entanto, assim que este começou a melho-
rar mais rápido, o outro voltou a seu antigo estado mental, e Aubrey
não percebia mais diferença entre este e o homem de antes, exceto pelo
fato de que por vezes, surpreso, flagrava-o olhando-o fixamente com
um sorriso de maliciosa exultação nos lábios; não sabia por quê, mas es-
se sorriso o assombrava. Na última etapa da recuperação, Lorde Ru-
thven aparentemente já se concentrava nas ondas mansas sopradas pela
brisa fresca ou em observar o progresso de órbitas que, como a do nos-
so planeta, circundam o sol imóvel — parecia, de fato, querer evitar os
olhos de todos.
Com tal choque, a mente de Aubrey ficou bastante enfraquecida, e
aquela elasticidade de espírito que um dia tanto o distinguira parecia
agora para sempre perdida. Tornara-se, como Lorde Ruthven, um
amante da solidão e do silêncio; por mais que quisesse estar sozinho,
porém, sua mente não poderia encontrar tal condição nas cercanias de
Atenas. Se a buscava em meio às ruínas que havia se acostumado a fre-
quentar, a figura de Ianthe surgia a seu lado; se tentava a solidão da flo-
resta, o andar leve da jovem vinha perambular nos recantos profundos
da mata, à procura de uma modesta violeta. E súbito, ao se voltar, exibia
à imaginação selvagem do rapaz seu rosto pálido e a garganta ferida, nos
lábios um sorriso meigo. Decidiu evitar esses cenários nos quais cada
detalhe criava dolorosas associações em sua mente. Propôs a Lorde Ru-
thven, a quem se afeiçoara pelo terno cuidado recebido durante sua do-
ença, que visitassem aquelas partes da Grécia onde ninguém ainda esti-
vera. Rumaram para todas as direções possíveis e buscaram cada local
que remontasse a alguma memória; mas, transitando apressados de um
lugar a outro, não atentavam àquilo que viam. Ouviam muito falar de
assaltantes, no entanto aos poucos passaram a minimizar tais relatos, os
quais imaginaram não passar de invenção de indivíduos cujo interesse
era estimular a generosidade daqueles a quem protegiam de perigos
imaginários. Por assim negligenciarem o alerta dos moradores locais,
certa ocasião viajavam com apenas uns poucos guardas, mais para servi-
rem como guias do que seguranças. Quando, porém, adentraram um es-
treito desfiladeiro,[4] no fundo do qual corria o leito de um rio, e com
maciços enormes de rocha tombados dos precipícios em torno, tiveram
motivo para se arrepender de sua negligência — os últimos do grupo
mal haviam pisado na acanhada trilha, quando foram surpreendidos por
balas que assobiavam ao passar raspando por suas cabeças e pelo eco
dos tiros de várias armas. Num instante não viam mais seus guardas, os
quais, escondidos atrás de pedras, tinham passado a atirar na direção de
onde vinham os disparos. Lorde Ruthven e Aubrey, seguindo o exem-
plo deles, recolheram-se por um instante a uma reentrância protegida
do desfiladeiro; entretanto, constrangidos porque apanhados daquela
forma pelo inimigo, que aos gritos ordenava que avançassem, e vendo-
se expostos a um massacre sem reação possível, caso os assaltantes esca-
lassem a rocha e os atacassem pela retaguarda, decidiram imediatamente
ir ao encontro dos oponentes. Nem bem haviam abandonado o abrigo
na pedra, Lorde Ruthven levou um tiro no ombro que o derrubou. Au-
brey correu para socorrê-lo e, esquecendo de prestar atenção ao perigo
a que ele próprio se expunha, para sua surpresa logo foi cercado dos
rostos dos assaltantes. Os guardas do grupo, assim que viram Lorde
Ruthven ferido, entregaram as armas para se render.
Prometendo-lhes uma grande recompensa, Aubrey não demorou a
convencer os bandidos a levarem o amigo ferido a uma cabana nas pro-
ximidades, onde, uma vez acordado o resgate a ser pago, o lorde não foi
mais incomodado pela presença dos homens, os quais contentaram-se
com meramente montar guarda à porta até que seu companheiro regres-
sasse com o montante prometido, para o qual tinha uma ordem de pa-
gamento. As forças de Lorde Ruthven rapidamente diminuíam e, em
dois dias, estava moribundo, a morte avançando sobre ele a passos lar-
gos. Seu comportamento e sua aparência não haviam mudado; parecia
tão indiferente à dor quanto sempre se mostrara a tudo em volta. Po-
rém, quando foi chegando ao fim a última tarde, uma inquietação pare-
ceu apossar-se de sua mente e ele fixou o olhar em Aubrey, o qual viu-
se obrigado a atendê-lo com mais zelo que o habitual. “Ajuda-me! Po-
des salvar-me — podes fazer mais que isso. Não falo de minha vida,
pois vejo o fim de minha existência como nada mais que um dia que
passa, mas podes salvar minha honra, a honra de teu amigo.” “Como,
diz-me como. Eu faria qualquer coisa”, respondeu Aubrey. “Não preci-
so de muito, minha vida reflui rapidamente e não tenho como explicar-
te tudo, mas, se pudesses esconder o que sabes de mim, minha honra fi-
caria livre de máculas quando falarem a meu respeito; e se a notícia de
minha morte não chegasse à Inglaterra por algum tempo, eu… eu… mas
a vida…” “Ninguém saberá.” “Jura!”, exclamou o moribundo, erguen-
do-se em uma violenta exultação, “jura por tudo aquilo que tua alma
venera, por tudo que tua natureza teme, jura que por um ano e um dia
não revelarás o que sabes de meus crimes nem contarás de minha morte
a qualquer ser vivo, de forma nenhuma, aconteça o que acontecer e não
importe o que vejas.” Seus olhos pareciam saltar das órbitas; “Juro!”,
disse Aubrey; o outro submergiu no travesseiro com uma risada e pa-
rou de respirar.
Aubrey recolheu-se para descansar, mas não dormiu; as muitas par-
ticularidades de sua relação com aquele homem voltavam-lhe à mente,
sem que ele soubesse por quê. Ao lembrar seu juramento, um arrepio
gelado percorreu-lhe o corpo, como um pressentimento de algo ruim
que o aguardava. De manhã, levantou-se cedo e estava prestes a entrar
na cabana onde deixara o cadáver, quando um dos assaltantes o inter-
ceptou, dizendo que ele não estava mais ali e que, enquanto Aubrey re-
pousava, fora levado por ele e seus comparsas até o alto de um monte
próximo, conforme promessa feita ao lorde, para que o corpo ficasse
exposto ao primeiro raio frio da lua a surgir depois de sua morte. Au-
brey, chocado, recrutou vários homens, determinado a ir ao local e lá
mesmo enterrar o corpo. Mas não encontrou naquele cume vestígios
nem do cadáver nem de suas roupas, embora os assaltantes jurassem ter
indicado a rocha exata onde o haviam deixado. Por algum tempo, a
mente do rapaz foi tomada por conjecturas que o atordoaram, até que,
por fim, voltou convencido de que haviam enterrado o corpo para rou-
bar-lhe as roupas.
Cansado de um país onde se deparara com tamanhos e terríveis in-
fortúnios e no qual tudo, ao que parecia, conspirava para fazer crescer a
supersticiosa melancolia que lhe assaltava a mente, decidiu partir, e logo
chegou a Esmirna. Enquanto aguardava o navio que o levaria a Otranto
ou a Nápoles, dedicou-se à organização dos pertences de Lorde Ru-
thven que levava consigo. Entre outras coisas, havia uma valise conten-
do várias armas perfurantes, mais ou menos moldadas para assegurar a
morte de quem fosse vítima de seu uso. Encontrou diversas adagas e ia-
tagãs.[5] Quando os manuseava e examinava suas curiosas formas, qual
não foi sua surpresa ao encontrar uma bainha aparentemente ornamen-
tada em estilo idêntico ao da adaga que trouxera da choupana macabra;
estremeceu. Ansioso por obter mais provas, encontrou a arma, e pode-
se imaginar seu horror ao descobrir que servia na bainha que tinha em
seu poder, mesmo tratando-se de uma peça de formato peculiar. Seus
olhos pareciam não precisar de outra confirmação — pareciam não con-
seguir se desviar da adaga. Ele desejava não acreditar, mas a forma pecu-
liar e os mesmos tons variados adornando tanto a empunhadura quanto
a bainha não deixavam margem à dúvida; também havia gotas de sangue
em ambas.
Aubrey partiu de Esmirna e, a caminho de casa, em Roma, suas pri-
meiras perguntas foram sobre a dama que tentara livrar das garras e ar-
tes sedutoras de Lorde Ruthven. Seus pais estavam desesperados, a for-
tuna da família arruinada, e da moça não se tinha notícia desde a partida
do lorde. A mente de Aubrey quase cedeu ao peso de tantos e repetidos
horrores; temia que aquela jovem tivesse caído vítima do algoz de Ian-
the. Tornou-se taciturno e calado, e sua única providência consistiu em
pedir que andassem mais rápido, como se corresse para salvar a vida de
algum ente querido. Chegou a Calais; o vento, parecendo obedecer a
seu desejo, logo o fez deslizar em direção à costa inglesa. Correu para a
mansão dos pais e ali, entre abraços e carinhos da irmã, pareceu esque-
cer por um momento todas as lembranças do passado. Se antes, com seu
afeto infantil, ela conquistara a afeição dele, agora que começava a se
tornar uma mulher mostrava-se uma companheira à qual se apegar ain-
da mais.
A srta. Aubrey não possuía aquela graça conquistadora que atrai o
olhar e o aplauso dos salões. Nada daquele esplendor radiante que só
existe na atmosfera quente de uma concorrida recepção. Seus olhos
azuis jamais brilhavam por qualquer leviandade da mente. Havia neles
um encanto melancólico que não parecia se originar do infortúnio, mas
de um sentimento interior que aparentemente indicava uma alma cons-
ciente de uma outra e mais brilhante dimensão. O seu andar não era
aquele passo distraído que se deixa seduzir e desviar por uma borboleta
ou uma cor chamativa — era lento e reflexivo. Quando sozinha, seu
rosto jamais se iluminava com um sorriso de alegria; porém, quando o
irmão confidenciava-lhe seu afeto, e junto dela conseguia esquecer
aqueles pesares que, a srta. Aubrey sabia, tinham acabado com sua paz,
nessas horas quem haveria de trocar o sorriso da jovem pelo da volúpia?
Era como se aqueles olhos — aquele rosto — surgissem, então, à luz de
seu elemento natural. Ela tinha apenas dezoito anos e não fora apresen-
tada à sociedade; seus tutores julgaram mais adequado, para essa apre-
sentação, aguardar o regresso do irmão de sua viagem ao continente, de
modo que ele atuasse como seu protetor. Assim, ficara decidido que na
recepção seguinte, que já se aproximava, se daria a estreia da moça no
“cenário mundano”. Aubrey teria preferido ficar em casa, na mansão
dos pais, nutrindo-se da melancolia que o dominava. Não conseguia se
interessar pelas frivolidades de estranhos em voga, com a mente tão al-
quebrada pelos acontecimentos que testemunhara. No entanto, resolveu
sacrificar o próprio conforto para proteger a irmã. Logo chegaram à ci-
dade e se prepararam para o dia seguinte, em que se anunciava uma re-
cepção.
Havia gente demais — fazia muito tempo desde uma última festa
como aquela, e todos que estavam ansiosos por aquecer-se junto ao sor-
riso da realeza correram para lá. Aubrey compareceu com sua irmã. Pa-
rado a um canto, sozinho e indiferente ao que se passava em volta, dete-
ve-se na lembrança de que a primeira vez em que vira Lorde Ruthven
fora naquele mesmo lugar. Súbito sentiu que lhe agarravam o braço, e
uma voz que conhecia muito bem soou ao seu ouvido: “Lembra teu ju-
ramento”. Mal reunira coragem para se voltar, temeroso do impacto de
ver um fantasma, quando notou, a pouca distância, a mesma figura que
chamara sua atenção na primeira vez que, naquele mesmo lugar, compa-
recera a um salão. Contemplou-a, até que as pernas já quase se recusa-
ram a suportar-lhe o peso, obrigando-o a buscar apoio num braço ami-
go; depois de abrir passagem no meio da multidão, atirou-se à carrua-
gem e foi levado para casa. Andou de um lado a outro no quarto, com
passos inquietos, as mãos postas na cabeça, como se temessem que os
pensamentos lhe rebentassem o cérebro. Lorde Ruthven reaparecendo
diante dele: fora disparada a terrível sucessão de circunstâncias — a ada-
ga — o juramento. Agitou-se, não conseguia acreditar que fosse possí-
vel — mortos que voltam à vida! Pensou que sua imaginação é que evo-
cara a imagem na qual sua mente se concentrava. Impossível que fosse
real — portanto decidiu voltar aos salões, e também porque, embora
tentasse perguntar sobre Lorde Ruthven, aquele nome recusava-se a sair
de sua boca, e não tinha como obter informação. Algumas noites mais
tarde, foi com a irmã à recepção oferecida por uma pessoa próxima.
Deixou a srta. Aubrey aos cuidados de uma matrona e, recolhido a um
canto, entregou-se aos pensamentos que o devoravam. Ao perceber, por
fim, que muita gente começava a ir embora, despertou e, passando à ou-
tra sala, viu a irmã cercada de várias pessoas, aparentemente no meio de
uma conversa séria. Tentou abrir caminho para se aproximar dela, quan-
do um sujeito a quem pedira licença voltou-se para ele, revelando o
mais abominado dos rostos. Aubrey avançou de um salto, agarrou o
braço da irmã e, apressando o passo, forçou passagem até a rua. À por-
ta, viram-se barrados pela multidão de criados que aguardavam seus pa-
trões; enquanto tentavam vencer o obstáculo, novamente ouviu o sus-
surro a seu lado: “Lembra teu juramento!”. Não ousou se voltar e,
apressando a irmã, logo conseguiram voltar para casa.
Aubrey tornou-se quase absorto. Se antes sua mente estivera obce-
cada por uma só questão, quão mais completo não seria seu alheamento
agora que a certeza de que o monstro vivia novamente pesava em seus
pensamentos. As atenções da irmã não surtiam mais o mesmo efeito, e
foi em vão que ela tentou convencê-lo a explicar o que causara aquela
brusca mudança de comportamento. Tudo que ele disse foram umas
poucas palavras que a aterrorizaram. Quanto mais pensava, mais sentia-
se aturdido. O juramento o alarmava; teria então de permitir àquele
monstro, capaz de soprar a ruína por onde passasse, circular em meio a
todas as pessoas que mais prezava, sem poder detê-lo? Sua própria irmã
talvez caísse naquelas garras. Porém, ainda que quebrasse o juramento e
falasse abertamente de suas suspeitas, quem acreditaria nele? Pensou em
libertar o mundo da miserável criatura pelas próprias mãos, mas a mor-
te, lembrou, já fora ludibriada. Durante dias permaneceu nesse estado;
trancado em seu quarto, não via ninguém e só comia o que vinha lhe
trazer a irmã, a qual, com lágrimas correndo dos olhos, implorava que,
por ela, ele reagisse. Enfim, incapaz de continuar suportando aquela
inércia e aquela solidão, saiu de casa, perambulando de uma rua a outra
na ânsia de esquecer a aparição que o assombrara. Tornou-se negligente
com suas roupas e expunha-se tanto ao sol do meio-dia quanto à umi-
dade da meia-noite. Já não era possível reconhecê-lo. De início, voltava
para casa ao anoitecer, porém acabou se acostumando a deitar-se para
dormir onde quer que fosse tomado pelo cansaço. A srta. Aubrey, in-
quieta com a segurança do irmão, contratou quem o seguisse, mas era
frequente os perseguidores perderem de vista o rapaz, o qual era mais
rápido que qualquer um para fugir — até do pensamento. Seu compor-
tamento, no entanto, mudou repentinamente. Ao se dar conta de que,
com sua ausência, deixara entre seus amigos um demônio de cuja pre-
sença não estavam conscientes, resolveu voltar ao convívio em socieda-
de e observá-lo de perto, ansioso, apesar do juramento, por dar o alerta
a todos de quem Lorde Ruthven conquistasse a intimidade. Mas quan-
do Aubrey surgia em qualquer ambiente, seu olhar desvairado e des-
confiado era tão chocante, seu abalo íntimo tão perceptível, que a irmã
viu-se obrigada, por fim, a implorar que ele se abstivesse, por ela, de
buscar aquele convívio que tão intensamente o afetava. No entanto,
uma vez que o pedido dela revelou-se inútil, seus tutores acharam por
bem intervir e, temendo que Aubrey estivesse ficando mentalmente ali-
enado, decidiram que era chegado o momento de reassumirem a res-
ponsabilidade que lhes fora delegada pelos pais do rapaz.
A fim de poupá-lo das dores e dos sofrimentos aos quais ele estivera
diariamente exposto em suas andanças e de evitar que deixasse à vista
do público aqueles sinais que consideravam como de loucura, contrata-
ram um médico para morar na casa e dedicar-lhe cuidados permanentes.
Aubrey dava a impressão de mal ter reparado nessa providência, tão
completamente absorto estava por uma terrível questão. Quando seu
comportamento tornou-se, enfim, por demais incoerente, foi confinado
a seu quarto. Ali permaneceu por vários dias, incapaz de levantar-se da
cama. Estava muito magro, um brilho vítreo no olhar fixo; o único ves-
tígio de afeto e memória que lhe restava surgia quando a irmã ia vê-lo.
Então, às vezes reagia e, agarrando as mãos dela com uma expressão que
a impressionava fortemente, pedia que não o tocasse. “Ah, não toques
nele, se teu amor por mim é tudo, não te aproximes dele!” Quando, po-
rém, ela perguntava a quem ele se referia, a única resposta era: “Verda-
de! Verdade!”, e novamente o irmão submergia a um estado do qual
nem ela era capaz de resgatá-lo. Tal situação durou muitos meses. Aos
poucos, contudo, à medida que o ano avançava, as manifestações incoe-
rentes tornaram-se menos frequentes e a mente do rapaz parecia se li-
vrar de parte do abatimento; seus tutores o observavam, várias vezes no
dia, contar nos dedos determinado número e, em seguida, sorrir.
O tempo se esgotava, quando, no último dia do ano, um dos tutores
entrou no quarto e pôs-se a conversar com o médico sobre a circuns-
tância melancólica de que Aubrey, na véspera do casamento da irmã, se
encontrasse em estado tão deplorável. No mesmo instante, o rapaz teve
sua atenção despertada; ansioso, perguntou com quem a srta. Aubrey se
casaria. Contentes por vê-lo dar sinais de que recobrava um discerni-
mento que temiam ele houvesse perdido, mencionaram o nome do con-
de de Marsden. Achando tratar-se de um jovem conde que conhecera
nos salões, Aubrey pareceu satisfeito e surpreendeu os outros dois ao
manifestar a intenção de comparecer às núpcias e o desejo de ver a irmã.
Eles nada responderam, mas em poucos minutos a srta. Aubrey foi até
o quarto. O irmão parecia ter readquirido a capacidade de se deixar to-
car pelo adorável sorriso dela; apertou-a contra o peito e beijou-lhe o
rosto, molhado de lágrimas, porque ela imaginou que ele revivia para os
sentimentos do afeto. O rapaz pôs-se a falar com todo o seu habitual
entusiasmo, congratulando-a pelo casamento com pessoa de tão distinta
posição e de tantas realizações. De repente, ele notou um medalhão so-
bre o busto dela e abriu-o; qual não foi sua surpresa ao ali encontrar as
feições do monstro que por tanto tempo influenciara sua vida. Num
acesso de fúria, Aubrey agarrou o retrato e pisoteou-o. Quando ela per-
guntou por que ele destruía daquele jeito a imagem de seu futuro mari-
do, o irmão olhou-a como se não entendesse o que ela dizia e, agarran-
do as mãos da irmã e encarando-a com expressão desvairada, mandou-a
jurar que não se casaria com aquele demônio, pois ele… Contudo não
conseguiu prosseguir; parecia-lhe ouvir de novo a voz que lhe dizia pa-
ra lembrar-se do juramento. Voltou-se de súbito, acreditando que Lor-
de Ruthven estivesse a seu lado, mas não viu ninguém. Enquanto isso,
os tutores e o médico, que ouviam tudo e acharam que aquilo não era
senão uma recaída dos distúrbios que o acometiam, entraram e o obri-
garam a soltar a srta. Aubrey, pedindo-lhe que se afastasse do irmão.
Ele caiu de joelhos e implorou, suplicou que adiassem o casamento,
mesmo que apenas por um dia. Atribuindo o pedido à insanidade que se
apossara da mente de Aubrey, empenharam-se em acalmá-lo e, por fim,
saíram do quarto.
Na manhã seguinte à recepção em que Aubrey o vira, Lorde Ru-
thven fora à mansão, e sua entrada, como a de qualquer outra pessoa,
não fora consentida. Quando lhe contaram sobre a doença de Aubrey,
imediatamente compreendeu ser a causa dela; porém, ao saber que con-
denavam o rapaz como louco, mal pôde esconder dos que lhe transmiti-
am a notícia sua exultação e seu prazer. Correu à casa de seu ex-compa-
nheiro e, por sua insistente presença ali, ganhou a atenção da srta. Au-
brey, fingindo grande afeição e interesse pelo destino do irmão dela.
Quem poderia resistir aos poderes dele? Tinha uma lábia pródiga em
histórias e façanhas, era capaz de falar de si como um indivíduo despro-
vido de simpatia por qualquer criatura deste mundo repleto de gente,
exceção feita àquela a quem naquele momento se dirigia; e de dizer que,
desde que a conhecera, sua própria existência tornara-se digna de ser
preservada, nem que fosse apenas para ouvir-lhe a voz apaziguadora.
Em suma, sabia tão bem lançar mão da arte da serpente, ou tal era a
vontade do destino, que acabou conquistando a afeição da jovem. Uma
vez que herdara, finalmente, o título de nobreza de seus antepassados,
obteve a nomeação para uma importante embaixada, o que serviu de
pretexto para que o casamento (apesar do estado mental do irmão dela)
fosse antecipado para a véspera da partida dele para o continente.
Aubrey, ao ser deixado sozinho pelo médico e pelos tutores, tentou
subornar os criados, mas em vão. Pediu papel e caneta; trouxeram-lhe.
Escreveu uma carta à irmã, apelando para que, se prezava sua própria
felicidade, sua própria honra e a honra dos que já se encontravam mor-
tos e um dia, segurando-a nos braços, nela haviam depositado sua espe-
rança e a esperança de sua casa, adiasse por não mais que umas poucas
horas as núpcias, contra as quais ele lançava as mais pesadas impreca-
ções. Os criados prometeram entregar a carta; deram-na, porém, ao mé-
dico, o qual achou por bem não causar ainda mais perturbação à mente
da srta. Aubrey com o que considerava serem delírios de um maníaco.
A noite não ofereceu descanso aos atarefados ocupantes da mansão, e,
com um horror que será mais fácil imaginar do que descrever, Aubrey
escutava os ruídos dos agitados preparativos. Veio a manhã e chegou-
lhe aos ouvidos o som das carruagens. O comportamento de Aubrey
era quase frenético. A vigilância dos criados por fim foi vencida pela cu-
riosidade, e logo eles escaparam dali para observar a movimentação na
casa, deixando o rapaz sob os cuidados de uma velha desvalida. Ele
agarrou a oportunidade: de salto, saiu do quarto e no momento seguinte
encontrava-se no recinto onde quase todos já estavam reunidos. Lorde
Ruthven foi o primeiro a perceber sua presença: imediatamente o abor-
dou, pegando-o à força pelo braço, e tirou-o às pressas do recinto, sem
dizer palavra, furioso. Quando estavam na escadaria, o lorde cochi-
chou-lhe ao ouvido: “Lembra teu juramento e saibas que, se hoje tua ir-
mã não vier a ser minha noiva, ela estará desonrada. Mulheres são fra-
cas!”. Dizendo isso, entregou-o a seus guardiões, os quais, alertados pe-
la velha, tinham ido à procura dele. Aubrey não conseguiu mais susten-
tar-se de pé; sua raiva, não encontrando vazão, estourara-lhe uma veia, e
ele foi carregado de volta à cama. Esse ocorrido não chegou ao conheci-
mento da irmã, a qual não se achava presente quando da aparição de
Aubrey, pois o médico temeu inquietá-la. A cerimônia foi realizada e
noiva e noivo seguiram para Londres.
A fraqueza de Aubrey aumentava; o sangramento produzia os sin-
tomas de uma morte iminente. Ele pediu que os tutores da irmã fossem
chamados e, quando bateu a meia-noite, relatou com toda a calma o que
o leitor acaba de ler — morreu imediatamente depois disso.
Os tutores correram para tentar proteger a srta. Aubrey, mas quan-
do a encontraram era tarde demais. Lorde Ruthven havia desaparecido,
e a irmã de Aubrey, servido para aplacar a sede de um VAMPIRO!
Fim
SHELLEY, MARY nasceu em Londres, em 1797. Filha da pioneira do
feminismo Mary Wollstonecraft e do filósofo William Godwin, teve a
infância marcada pela tragédia da morte da mãe, ocorrida apenas onze
dias após seu nascimento, devido a complicações no parto. Em 1814,
conheceu Percy Bysshe Shelley. Após o suicídio da primeira esposa des-
te, casou-se com Shelley em 1816 — ato que a levou a ser repudiada pe-
lo pai. Entre 1818 e 1822, o casal viveu na Itália e teve quatro filhos,
sendo que apenas um, Percy Florence, sobreviveu. Após a morte do
marido em um naufrágio, Mary decidiu voltar para a Inglaterra com o
filho e viver como escritora profissional.
Além de Frankenstein, romance gótico fundamental na história do
horror moderno e um dos livros fundadores da ficção científica, Mary
Shelley escreveu contos, ensaios e romances entre os mais diversos gê-
neros, como Valperga (1828), The Last Man (1826), Perkin Warbeck
(1830) e Lodore (1835). Organizou também a antologia poética de P.B.
Shelley em 1839. No dia 10 de fevereiro de 1851, Mary Shelley morreu
em Londres. Entre seus diversos legados e sua importância ímpar, ela
deixa conosco acima de tudo a marca de um cientista enlouquecido pelo
poder e a sina de sua horrenda e infeliz criatura.

DE BRITO, MÁRCIA XAVIER é tradutora “por acaso” desde 1998.


Formada em Direito, mas leitora ávida, trocou o mundo das leis pelo
das letras e está feliz com a escolha. Já traduziu os mais diversos gêneros
e assuntos desde Fórmula 1 a filosofia. Sempre teve grande interesse na
Inglaterra do século XIX e nos temas relacionados às narrativas folclóri-
cas, fantásticas e aos contos de fadas. Além de tradutora, atua também
como editora. Fã dos gêneros terror e policial, ficou muito orgulhosa de
ser convidada pela Darkside® Books para traduzir Frankenstein.

VESALIUS, ANDREAS nasceu em Bruxelas, em 1514. Foi médico, ana-


tomista e autor de um dos mais influentes livros de anatomia humana:
De Humani Corporis Fabrica. É considerado o pai do estudo da anato-
mia humana moderna. Um dos seus legados foi a prática de dissecção
nas salas de aula, ferramenta fundamental para o estudo da anatomia,
que permitiu criar os mais completos escritos sobre o assunto até então
— apesar de, na época, a prática ir contra a ética medicinal e a lei. Após
ser acusado de dissecar um corpo vivo, fez uma peregrinação à Terra
Santa, mas, em seu retomo à Europa, sofreu um naufrágio na ilha grega
de Zaquintos e lá morreu, em 1564. Suas ilustrações foram utilizadas
para criar as capitulares destas duas páginas.

COWPER, WILLIAM nasceu na Inglaterra, em 1666. Cirurgião e ana-


tomista, publicou Myotomia Reformata em 1694, que lhe rendeu uma
afiliação na Royal Society. Em 1698, publicou The Anatomy of the Hu-
mane Bodies, com o qual ganhou notoriedade, embora tenha sido acu-
sado de plagiar o trabalho do anatomista holandês Govard Bidloo
(1649–1713). Faleceu em 1709. Suas ilustrações foram utilizadas para
criar as capitulares desta edição de Frankenstein.

FRANZ, PEDRO nasceu em 1983, em Florianópolis. Publicou diversas


HQs, entre elas, Incidente em Tunguska (2016) e Cavalos mortos perma-
necem no acostamento (2014). Vem participando de exposições e suas
histórias e ilustrações apareceram em diversas publicações no Brasil e
no exterior. Saiba mais em pedrofranz.com.br.
“As venezianas foram, então, afastadas e, com uma sensação de
horror indescritível, vi, na janela aberta, a mais medonha e abomi-
nável figura…”
VERÃO, 2017.

DARKSIDEBOOKS.COM
Notas
1. Mary Shelley, “Introdução à edição de 1831”, p. 27 deste volume. [As notas são da Tradutora,
salvo indicação contrária.]

2. Mary Shelley, “Introdução à edição de 1831”, p. 28 deste volume.


*. Aparentemente escrito por Percy Bysshe Shelley em setembro de 1817. Se Mary Shelley
escreveu um prefácio para a edição de 1818 (como sugere seu diário), o manuscrito nunca foi
impresso ou encontrado. Na “Introdução à edição de 1831”, a própria autora reconhece a
autoria de P.B. Shelley desta peça.

1. Erasmus Darwin (1731–1802), médico e naturalista inglês, avô de Charles Darwin. Inventou
muitos objetos, embora não tenha patenteado nenhum deles. Entre suas invenções, temos uma
máquina de falar (1799), uma máquina copiadora (1788) e um minucioso pássaro artificial
(invenção a que se refere Mary Shelley quando escreve “não me refiro ao que o doutor
realmente fez” na “Introdução à edição de 1831”).

2. Para uma descrição mais detalhada do que a levou a escrever Frankenstein, ver a “Introdução
à edição de 1831”.


*. Escrito por Mary W. Shelley para a terceira edição revista da obra em 1831.

1. Série de publicações lançada entre os anos de 1829–1832 que pretendiam recuperar, a preços
módicos, algumas obras de ficção que estavam fora de catálogo ou apenas disponíveis em
edições especiais. Os editores sempre solicitavam que os autores revisassem as obras, o que
permitiu a Mary Shelley polir o texto de 1818 e fazer alguns acréscimos.

2. A autora, aqui, provavelmente faz referência a Fanny Imlay, sua meia-irmã mais velha que
cometeu suicídio em 1816.

3. Obra que trouxe renome a Lorde Byron, é um longo poema narrativo altamente
autobiográfico, dividido em quatro partes. Publicado entre 1812 e 1818, narra as viagens e
reflexões de um jovem candidato a cavaleiro cansado do mundo e da vida dissoluta. Há uma
edição em português pela Ed. Anticítera, de 2015, traduzida por F.J.P. Guimarães.

4. As duas histórias de horror gótico mencionadas por Shelley fazem parte da coletânea
Fantasmagoriana e foram publicadas em inglês como Tales of the Dead somente em 1820. A
descrição de Mary Shelley dos contos “The History of the Inconstant Lover” e “The Tale of the
Sinful Father of his Race”, que aparece no mesmo volume em Portraits de Familie, não
corresponde muito bem às verdadeiras histórias, embora ela afirme o oposto, talvez porque as
memórias tenham sido escritas quinze anos depois dos fatos relatados.
5. Mazeppa é o poema narrativo de Byron baseado na vida do ucraniano Ivan Mazeppa,
publicado em 1819. Ao final, encontra-se o texto referido por Mary Shelley, chamado Fragment
of a Novel, uma das primeiras histórias de vampiros em inglês, mas que infelizmente nunca foi
terminada.

6. Referência a Peeping Tom, que, segundo a lenda, ficou cego como punição por ter espiado a
nudez de lady Godiva quando esta cavalgava nua pelas ruas de Coventry.

7. Diante dos espanhóis, após colocar um ovo em pé achatando uma das extremidades,
Colombo foi interpelado pelo grupo que afirmava que qualquer um poderia fazer aquilo. O
navegador respondeu: “Convenhamos, entretanto, que, apesar da simplicidade e facilidade, você
não descobriu a solução, e que apenas eu removi a dificuldade. O mesmo ocorreu com a
descoberta do Novo Mundo. Tudo que é natural parece fácil após conhecido ou encontrado. A
dificuldade está em ser o inventor, o primeiro a conhecer ou a demonstrar”.

8. Ver nota 1 do “Prefácio à edição de 1818”, p. 22 deste volume.

9. Teoria de Luigi Galvani (1737–1798), segundo a qual o cérebro dos animais produz
eletricidade que é transferida aos nervos e acumulada nos músculos e, uma vez disparada,
produz movimento. Na época, foram feitos muitos experimentos com animais e cadáveres, e
podemos dizer que nesses experimentos encontramos a origem remota do desfibrilador
cardíaco moderno.


1. Verso de “The Rime of the Ancient Mariner”, de Samuel Taylor Coleridge (1772–1834).
Coleridge foi uma influência significativa para Mary Shelley, visto que costumava frequentar a
casa da autora, pois era muito amigo de seu pai, William Godwin.


1. Os síndicos são magistrados em Genebra, membros escolhidos entre as famílias aristocráticas
mais importantes para governar a república.

2. Hoje, o lago Como está em território italiano. Na época em que o livro foi escrito, em 1816, a
região pertencia à Áustria, daí a referência “além das fronteiras da Itália”.

3. Na primeira versão de 1818, a menina Elizabeth é filha da irmã do pai do narrador e de um


cavalheiro italiano, portanto, sua prima.

4. Literalmente: “escravos sempre em fúria”. O termo se aplica a um grupo de cidadãos


milaneses que não queriam fazer parte da Áustria e gostariam de restaurar a Lombardia como
parte da Itália após o Congresso de Viena (1814–1815). Milão, a capital da região, serviu de
centro para as agitações, e muitos cidadãos importantes foram presos e condenados na década
de 1820. No entanto, há claro anacronismo histórico da autora na passagem, visto que o fato
situado na infância da personagem se passa ainda no século XVIII.


1. Roncesvalles é uma província de Navarra, na Espanha, lendária pela derrota de Carlos Magno
e a morte de Rolando, em 778, durante a Batalha de Roncesvalles. O poema épico “A canção de
Rolando”, do século XII, relata os feitos desse herói.

2. Heinrich Cornélio Agrippa von Nettesheim (1486–1535) foi um homem da Renascença


alemã. Dedicou-se aos estudos de medicina, alquimia, teologia, judaísmo e da cabala. Foi o
autor de Três livros de filosofia oculta (1531) (Madras, 2012. Compilação e notas por Donald
Tyson) e adquiriu a reputação de praticar necromancia e magia negra, embora negasse as
acusações e tenha morrido como católico. É uma das personalidades do livro The Lives of the
Necromancers (1834), de William Godwin, pai de Mary Shelley.

3. Theophrastus Paracelso ou Theophrastus Bombastus von Hohenheim (1493–1541), médico


suíço, alquimista e pioneiro da química científica. Grande personalidade da história da
medicina. Alberto Magno (1206–1280), cientista alemão, filósofo e teólogo. Considerado um
dos homens mais cultos de sua época, cuja erudição cobria todos os ramos científicos. Em
virtude dessa abrangência de conhecimento, criou-se a lenda de que era um bruxo e possuía
conhecimentos ocultos.


1. Importante universidade na Bavária (Alemanha), fundada em 1472. A referência aqui é a
fundação do grupo dos Illuminati, uma sociedade secreta de racionalistas iluminados, em 1776,
por Adam Weishaupt (1748–1830), um professor da universidade. Percy Shelley estudou
avidamente o assunto, pois pretendia reavivar o ideal iluminista e, por isso, Mary Shelley se
interessou pelo tema.

2. Referência aos feitos de William Harvey (1578–1657), o primeiro médico a descrever em


detalhes a circulação sanguínea, e a Robert Boyle (1627–1691), cujos estudos nos permitiram
compreender as propriedades do ar.


1. Referência à sexta viagem de Simbad no livro As mil e uma noites. Em português,
encontramos o relato nas seguintes edições: Livro das mil e uma noites, Vol. III: ramo egípcio.
Trad. Mamede Mustafa Jarouche. São Paulo: Globo, 2015. p. 211–14; e As mil e uma noites, Vol.
1. Versão de Antoine Galland. Trad. Alberto Diniz. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000. p. 245–46.


1. No original: Like one, that on a lonesome road / Doth walk in fear and dread, / And having
once turned round walks on, / And turns no more his head; / Because he knows, a frightful
fiend / Doth close behind him tread. Samuel Taylor Coleridge. The Rimer of the Ancient
Mariner. [ed. bras.: A balada do velho marinheiro, seguido de Kubla Khan. Trad. Alípio Correa
de Franca Neto. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005. p. 176].

2. Obra do escritor irlandês Oliver Goldsmith (1728–1774), publicada em 1766. Foi um dos
livros do século XVIII mais populares entre os vitorianos.

1. Heroína do poema épico Orlando furioso, datado de 1516, de Ludovico Ariosto (1474–1533).


1. Trecho do poema A peregrinação de Childe Harold, de Lorde Byron, em que descreve as
montanhas.


1. A autora inspirou-se em um conceito presente na obra Enquiry Concerning Political Justice
(1793), de autoria do próprio pai, William Godwin (livro 4, capítulo 8).

2. No original: We rest — A dream has power to poison sleep; / We rise — One wandering
thought pollutes the day; / We feel, conceive or reason, laugh or weep; / Embrace fond woe, or
cast our cares away: // It is the same! — For, be it joy or Sorrow, / The path of its departure
Still is free: / Man’s yesterday may ne’er be like his morrow; / Nought may endure but
mutability! Duas últimas estrofes do poema “Mutabilidade”, de Percy Bysshe Shelley, que
apareceu na coletânea Alastor, or The Spirit of Solitude: And Other Poems (1816) [ed. bras.:
Prometeu desacorrentado e outros poemas. Trad. Adriano Scandolara. Belo Horizonte:
Autêntica, 2015].


1. Ver livro 1 do poema épico Paraíso perdido, de John Milton (1608–1674).


1. A criatura tem uma experiência oposta à de Narciso, o deus mítico grego que se apaixona pela
própria aparência ao ver o seu reflexo no lago e acaba por transformar-se em uma flor.

2. Referência à fábula de Esopo, em que o asno decide imitar o cão para ganhar os favores do
dono, mas a única coisa que consegue é apanhar ainda mais.


1. Esta obra não foi editada no Brasil, mas em Portugal, sob os títulos: As ruínas de Palmira
(edição de 1960, pela editora Renascença), As ruínas de Palmira: Meditação acerca da destruição
dos impérios (1934, editora Renascença) e As ruínas ou Meditação sobre as revoluções dos
impérios (1822, Tip. Dizidério Marques Leão). [NE]


1. A criatura lê tais obras para aprender sobre civilização, sentimento e moralidade. Da leitura
de Paraíso perdido, depreende que deveria ser como o Adão retratado no poema, mas identifica-
se com o Satã de John Milton, como veremos adiante. Com Vidas paralelas, compilação de
biografias de nomes ilustres, de Plutarco, aprende os conceitos de honra, justiça e como portar-
se de modo correto. Já com a leitura da obra de Goethe, Os sofrimentos do jovem Werther,
compreende a paixão e a emoção. Esses três textos são cruciais para o romantismo e foram
importantes para a própria autora, que os tinha lido cerca de um ano antes de escrever
Frankenstein.

2. Trecho adaptado do poema “Mutabilidade”, de Percy Bysshe Shelley, citado no capítulo 10.

3. Referência à súplica que Adão fez ao Criador a fim de que este lhe concedesse uma consorte,
retratada no poema Paraíso perdido e escolhida como epígrafe do presente livro: “Pedi eu, oh,
Criador, / que do barro me fizestes homem?/ Pedi para que me arrancasses das trevas?”. John
Milton, Paraíso perdido, canto X.


1. Vento quente e muito seco que sopra da costa norte da África sobre o Mediterrâneo e em
algumas partes do sul da Europa.


1. Mantivemos aqui e nos meses citados a seguir a cronologia original, pois provavelmente
trata-se de erro tipográfico ocorrido na edição de 1831. Isso fica evidente no capítulo XIX, onde
Victor afirma que ele e Clerval chegaram na Inglaterra “no início de outubro”, p. 165 deste
volume. [NE]

2. Em sua viagem a Brunnen, durante as seis semanas de verão na Suíça, em 1814, Mary Shelley
ouviu a história do padre e da amante que moravam em um chalé no sopé da montanha.
Surpreendidos e mortos por uma avalanche em uma noite de inverno, suas vozes ainda podem
ser ouvidas em noites de tempestade, a pedir socorro.

3. Existe uma nota de Mary Shelley que se refere à citação como pertencente ao poema
narrativo The Story of Rimini (1816), de Leigh Hunt (1784–1859). Vale notar que Percy Shelley
estava voltando da casa de Leigh Hunt quando se afogou no golfo de La Spezia, também
conhecido como “golfo dos poetas”.

4. No original: The sounding cataract / Haunted him like a passion: the tall rock, / The
mountain, and the deep and gloomy wood, / Their colours and their forms, were them to him /
An appetite; a feeling, and a love, / That had no need of a remoter charm, / By thought
supplied, or any interest / Unborrow’d from the eye. William Wordsworth (1770–1850),
Tintern Abbey (1798), versos 76–83.

5. “Posta” é o nome da estação de cavalos colocada de distância a distância em uma estrada para
a muda da montaria cansada.


1. Personalidades pertencentes à história inglesa: Lucius Cary Falkland (1610–1643), segundo
visconde de Falkland. Embora tenha lutado ao lado do rei, não estava satisfeito com a posição
monárquica. Morreu na batalha de Newbury. Lorde George Goring (1608–1657), general da
facção real, notabilizado por ser inescrupuloso e oportunista.

2. Nome dado ao trecho do rio Tâmisa que corre pela cidade de Oxford, na Inglaterra.

3. John Hampden (1595–1634) foi um dos líderes parlamentaristas que desafiou a autoridade de
Carlos 1 no período da Revolução Inglesa.

4. Conjunto de cavernas na região de Derbyshire, chamado de Heights of Abraham.

5. Região do Distrito dos Lagos inglês. Na época da publicação de Frankenstein, era famosa por
ter abrigado poetas notáveis, como Wordsworth, Coleridge, De Quincey e Southey.

6. Arthur’s Seat: nome do pico mais alto do monte de colinas que domina a paisagem de
Edimburgo; mede duzentos e cinquenta e um metros e é um dos símbolos da cidade. São
Bernardo é um poço de água mineral localizado na margem sul do rio Leith, cujas águas são
reconhecidas por suas propriedades medicinais. E Pentland Hills é uma cadeia de colinas
localizada no sudoeste da Escócia, que se estende por trinta e dois quilômetros.


1. Saudades do lar, em tradução livre do francês.

2. Preparado à base de ópio usado para fins medicinais.


1. O melhor relato desse fato histórico é citado em Xenofonte, Anábase, livro IV.


*. Resenha de Percy Bysshe Shelley publicada após sua morte por Thomas Medwinem no
periódico The Athenaeum: Journal of English and Foreign Literature, Science and Fine Arts, em
10 de novembro de 1832.

1. Combinação das palavras de lady Macbeth (Macbeth, ato 1, cena V) e das últimas palavras de
Macbeth (Macbeth, ato v, cena VIII).

2. Alusão aos dois filhos de Poseidon que tentaram alcançar os céus ao amontoar o monte
Pélion sobre o monte Ossa para chegar ao Olimpo (ou, em alguns relatos, as duas montanhas
foram empilhadas em cima da morada dos deuses). A imagem foi usada por Shelley no sentido
de somar desafios a uma tarefa que dá mostras de inutilidade e presunção.

3. Expressão grega que designa aquilo que desperta emoções na audiência e evoca a lembrança
de algo que os ouvintes já percebiam.

4. Referência à personagem principal do romance Things as They Are; or, The Adventure of
Caleb Williams (1794), escrito por William Godwin, pai de Mary Shelley.

1. Landmark, 2012. Trad. Marcella Furtado. [NE]


1. Os sete adormecidos de Éfeso são personagens pertencentes à mitologia greco-romana. Uma
boa versão da lenda pode ser encontrada na obra Werner Verbeke e Herman Braet (orgs.). A
morte na Idade Média. São Paulo: Edusp, p. 86. [NE]

2. Epopeia do poeta romano Lucano (39–65 d.C.). [NE]


1. No original: Forthwith this frame of mine was wrenched/ With a woful agony, Which forced
me to begin my tale;/ And then it left me free.// Since then, at an uncertain hour, / That agony
returns:/ And till my ghastly tale is told/ This heart within me burns. Samuel Taylor Coleridge.
The Rimer of the Ancient Mariner. [ed. bras.: A balada do velho marinheiro, seguido de Kubla
Khan. Trad. Alípio Correa de Franca Neto. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005. p. 196 e 198].

2. Mimado predileto, em tradução livre do francês.


1. O judeu errante, ou Ahasverus, é um personagem pertencente à tradição oral cristã.
Ahasverus atravessou o caminho de Jesus, quando ele estava a caminho do Calvário, e este lhe
amaldiçoou, condenando-o a errar pelo mundo até o fim dos tempos. [NE]

2. Protagonista de uma história da irlandesa Frances Sheridan, The History of Nourjahad


Também aborda a questão da imortalidade na literatura e na mitologia. Lucy Morisson e Staci
Stone. A Mary Shelley Encyclopedia. London: GreenWood Press, 2003. p. 307.


*. O texto é o da versão impressa ao final da primeira edição de Mazeppa, a Poem (London:
John Murray, 1819), pp. 59–69.

1. No original, hectic, “Espécie de febre que acompanha a consumpção [nome antigo da


tuberculose, também chamada de tísica] ou outras doenças debilitantes, cujos sintomas são
rosto avermelhado e pele quente e seca” (Shorter Oxford English Dictionary).

2. Serrugee — ou, às vezes, suridgee — é a palavra turca que designa aquele que cuida dos
animais de carga. Janizary: soldado de infantaria turco pertencente à guarda pessoal do sultão,
criada no século XIV e dissolvida em 1826.

3. “Espécie de hospedaria no Oriente no formato de um grande retângulo cercando um


espaçoso pátio, onde as caravanas costumavam fazer suas paradas” (Shorter Oxford English
Dictionary).
4. Espada turca, curva, com lâmina cortante de um só lado.


1. No original, drawing-rooms, um recinto onde se recolher; aqui, refere-se a “recepções nas
quais as damas são apresentadas à corte” (Shorter Oxford English Dictionary), reunião de gente
variada em que a realeza, a aristocracia e o beau monde podem se exibir uns aos outros, fazer
intrigas e trocar fofocas corteses.

2. No original, mountebank, charlatão, palhaço, falsário.

3. “Jogo de baralho no qual os participantes apostam na ordem em que certas cartas, tiradas
uma a uma do monte, devem aparecer” (Shorter Oxford English Dictionary).

4. No original, defile; é também um termo militar que designa “uma trilha estreita ao longo da
qual os soldados só conseguem marchar em fila ou com uma linha de frente estreita” (Shorter
Oxford English Dictionary).

5. Espada turca, curva, com lâmina cortante de um só lado.

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