Frankenstein O Clássico Está Vivo - Mary Shelley
Frankenstein O Clássico Está Vivo - Mary Shelley
Frankenstein O Clássico Está Vivo - Mary Shelley
Shelley, Mary
Frankenstein / Mary Shelley ; tradução de Márcia Xavier de
Brito, Carlos Primati ; ilustrações de Pedro Franz.
— Rio de Janeiro : DarkSide Books, 2017.
304 p. : il., color.
ISBN: 978-85-9454-018-8
Titulo original: Frankenstein; or, the Modern Prometheus
1. Ficção inglesa 2. Ficção científica I. Título II. Brito, Márcia
Paiva Xavier de III. Primati, Carlos IV. Franz, Pedro
16-1186 | CDD 823
Índices para catálogo sistemático:
1. Ficção inglesa
[2017]
Todos os direitos desta edição reservados à
DarkSide® Entretenimento LTDA.
Rua do Russel, 450/501 – 22210-010
Glória – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
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Página de título
Créditos
Epígrafe
Dedicatória
Introdução: Darkside
Prefácio à edição de 1818
Introdução à edição de 1831
Contos Extras
Um Fragmento, por Lorde Byron
O Vampiro: Um Conto, por John William Polidori
Sobre a autora
Pedi eu,
oh, Criador,
que do barro
Me fizestes homem?
PEDI PARA QUE
Me arrancasses das trevas?
II
O evento em que está baseada esta ficção foi suposto pelo dr. Darwin[1]
e por alguns autores de fisiologia da Alemanha como uma ocorrência
não de toda impossível. Não devo julgar, segundo o grau mais remoto
de grave convicção, tal imaginação; contudo, ao admiti-la como base de
uma obra de fantasia, não me considero mera narradora de uma série de
terrores sobrenaturais. O evento em que se baseia a ação da história está
isento das desvantagens de um simples conto de espectros ou de encan-
tamento. Foi recomendado pela novidade das situações que revela e,
embora inexequível como fato físico, proporciona um ponto de vista à
imaginação para o delineamento das paixões humanas mais amplo e in-
fluente do que quaisquer relações costumeiras de eventos existentes
possam consentir.
Esforcei-me, portanto, para preservar a verdade dos princípios ele-
mentares da natureza humana, se bem que não tive escrúpulos em ino-
var nas combinações. A Ilíada, a poesia trágica da Grécia, Shakespeare
em A Tempestade e Sonho de uma Noite de Verão e, mais particular-
mente, Milton em Paraíso Perdido, conformam-se a essa regra; e a mais
humilde romancista, que busca conferir ou receber distração dos labo-
res, pode, sem presunção, fazer uso na prosa fictícia de uma licença, ou
melhor, de uma norma que, pela adoção de tantas combinações primo-
rosas de sentimentos humanos, resultou nos mais sublimes exemplos de
poesia.
A circunstância em que se apoia meu enredo foi sugerida em uma
conversa casual. Teve início, em parte como fonte de divertimento, em
parte como um expediente para usar quaisquer recursos ainda não exer-
citados de minha mente. Outros motivos se misturaram a estes, confor-
me a obra prosseguia. Não sou, de modo algum, indiferente à maneira
como as tendências morais existentes nos sentimentos ou nas persona-
gens possa afetar o leitor; no entanto, minha principal preocupação a es-
se respeito ficou limitada a evitar os efeitos irritantes dos romances de
hoje em dia, a demonstração de amabilidade nas afeições domésticas e a
excelência de uma virtude universal. As opiniões que naturalmente bro-
tam das personagens e da situação do herói não devem ser, de modo al-
gum, concebidas como sempre existentes em minhas próprias convic-
ções; nem se deve inferir de tais passagens uma predisposição para qual-
quer tipo de doutrina filosófica.
É um assunto de interesse adicional da autora que esta história co-
mece na região majestosa onde se passa principalmente a cena e em uma
sociedade que não deixa de ser lastimada. Passei o verão de 1816 nos ar-
redores de Genebra. A temporada estava fria e chuvosa e, à noite, nos
reuníamos ao redor das achas ardentes; às vezes, nos entretínhamos
com histórias alemãs de fantasmas, que calharam de cair em nossas
mãos. Essas histórias despertaram em nós o desejo divertido de as emu-
lar. Dois outros amigos (de cuja pena qualquer conto seria muito mais
aceitável para o público do que qualquer coisa que eu venha a ter espe-
rança de produzir) e eu aceitamos escrever, cada um, uma história base-
ada em algum acontecimento sobrenatural.[2]
O tempo, no entanto, subitamente tornou-se límpido; e meus dois
amigos partiram em uma viagem para os Alpes e, perderam, no cenário
magnífico que presenciaram, toda a lembrança das visões de fantasmas.
A história a seguir foi a única concluída.
MARLOW, setembro de 1817.
INTRODUÇÃO
À EDIÇÃO
de 1831.*
7 de julho de 17—
Querida irmã,
Escrevo poucas linhas apressadas para dizer que estou a salvo e bem
adiantado em minha viagem. Esta carta chegará à Inglaterra por um na-
vio mercante que agora volta de Arcangel para casa; mais afortunado do
que eu, que talvez não possa mais ver minha terra natal, quem sabe por
muitos anos. Estou, contudo, com boa disposição; meus homens são
corajosos e aparentemente firmes nos propósitos; nem as placas de gelo
que com frequência passam flutuando por nós, indicando os perigos da
região para a qual nos dirigimos, parecem desanimá-los. Já atingimos
uma latitude bem alta, mas estamos no auge do verão e, embora não se-
jam tão quentes quanto na Inglaterra, os ventos do sul, que nos condu-
zem com rapidez para as costas que com tanto ardor desejo alcançar, in-
suflam um grau de calidez renovadora e inesperada.
Até agora não ocorreu nenhum incidente que pudesse impressionar
em carta. Um ou dois ventos fortes e o começo de um vazamento são
acidentes que navegadores experimentados mal se recordam de regis-
trar, e ficarei bastante satisfeito se nada pior do que isso acontecer du-
rante a viagem.
Adieu, minha querida Margaret. Esteja certa de que, tanto para o
meu próprio bem quanto para o seu, não irei ao encontro do perigo
com precipitação. Serei calmo, perseverante e prudente.
Entretanto, o sucesso deverá coroar meus esforços. Por que não?
Assim, terei ido longe, ao traçar um caminho seguro pelos mares inex-
plorados, com as próprias estrelas como testemunho e prova de meu
triunfo. Por que não prosseguir ainda no elemento indomado, agora
obediente? O que pode parar um coração determinado e a vontade re-
soluta de um homem?
Meu coração túrgido, involuntariamente, assim verte; contudo, devo
terminar. Que os céus abençoem minha amada irmã!
R.W.
CARTA IV.
5 de agosto de 17—
Tão estranho foi o acidente que nos ocorreu que não posso deixar de re-
gistrá-lo, embora seja provável que me veja antes que estes papéis che-
guem a você.
Na última segunda-feira (31 de julho), estávamos quase totalmente
rodeados pelo gelo, que cercou o navio por todos os lados, mal deixan-
do espaço para que a embarcação flutuasse. Nossa situação era um tanto
perigosa, especialmente por estarmos envolvidos em um nevoeiro es-
pesso. Posicionamo-nos da maneira adequada, esperando que alguma
mudança acontecesse na atmosfera ou no tempo.
Por volta das duas horas, o nevoeiro se dissipou e observamos, es-
praiadas em todas as direções, as vastas e irregulares planícies de gelo,
que pareciam não ter fim. Alguns de meus camaradas resmungaram, e
minha mente começou a ficar vigilante com pensamentos inquietos,
quando, de repente, uma estranha visão chamou nossa atenção e desvi-
ou as preocupações da situação em que estávamos. Percebemos uma pe-
quena carruagem afixada em um trenó e puxada por cães que se dirigia
rumo ao norte, a uma distância de uns oitocentos metros: uma criatura
com forma de homem, mas aparentemente de estatura gigantesca, estava
sentada no trenó e guiava os cães. Observamos o rápido progresso do
viajante pelas lunetas, até que ele se perdesse nos distantes acidentes do
gelo.
Isso excitou nossa desmedida admiração. Acreditávamos estar a
muitos quilômetros de qualquer terra, mas essa aparição pareceu deno-
tar que não estávamos, na realidade, tão distantes quanto supúnhamos.
Presos, no entanto, pelo gelo, era impossível seguir seu rastro, que ob-
servávamos com a maior atenção.
Duas horas depois dessa ocorrência, ouvimos o mar dilatar e, antes
do anoitecer, o gelo se partiu e libertou nosso navio. Nós, entretanto, ali
ficamos até a aurora, temendo encontrar no escuro aquelas enormes
massas soltas que flutuam depois que o gelo se quebra. Aproveitei esse
tempo para descansar algumas horas.
Pela manhã, todavia, assim que ficou claro, fui ao convés e encontrei
todos os marinheiros ocupados em um dos lados da embarcação, apa-
rentemente retirando alguém do mar. Era, na realidade, um trenó como
o que havíamos visto antes, que foi trazido pela correnteza até nós du-
rante a noite em um grande fragmento de gelo. Somente um cão estava
vivo, mas havia um ser humano dentro do trenó, a quem os marinheiros
estavam tentando persuadir para que embarcasse. Ele não era, como pa-
recia ser o outro viajante, um habitante selvagem de alguma ilha desco-
nhecida, mas um europeu. Quando apareci no convés, o mestre disse:
— Eis nosso capitão, e ele não permitirá que você pereça no mar
aberto.
Ao me notar, o desconhecido endereçou-se a mim em inglês, embo-
ra tivesse um sotaque estrangeiro. “Antes de subir a bordo de seu na-
vio”, disse, “teria a bondade de informar-me para onde se dirige?”
Você pode conceber meu espanto ao ouvir tal pergunta endereçada a
mim, feita por um homem à beira da morte, para quem meu barco seria
um recurso que ele não trocaria pela riqueza mais preciosa que a Terra
pudesse oferecer. Respondi, entretanto, que estávamos em uma viagem
de exploração rumo ao polo Norte.
Ele pareceu satisfeito com o meu esclarecimento e consentiu em em-
barcar. Pelo bom Deus! Margaret, se você tivesse visto aquele homem
que assim se rendeu por sua segurança, teria uma surpresa sem tama-
nho. Seus membros estavam quase congelados, e o corpo terrivelmente
emaciado pela fadiga e pelo sofrimento. Nunca vi um indivíduo em
condição tão deplorável. Tentamos carregá-lo para a cabine, mas tão lo-
go deixou o ar fresco, desmaiou. Em consequência, trouxemo-lo de vol-
ta para o convés e o reanimamos aplicando-lhe conhaque na pele e for-
çando-o a ingerir uma pequena quantidade da bebida. Tão logo de-
monstrou sinais de vida, o enrolamos em cobertores e o pusemos perto
da chaminé do fogão da cozinha. Ele foi se recuperando aos poucos e
tomou uma pequena quantidade de sopa, o que o revigorou estupenda-
mente.
Dois dias se passaram desta maneira antes que ele fosse capaz de fa-
lar, e muitas vezes temi que seus sofrimentos o tivessem privado de
compreensão. Quando, de certa forma, se recuperou, levei-o para mi-
nha cabine e cuidei dele tanto quanto meus afazeres permitiam. Nunca
vi criatura mais interessante: os olhos carregam, em geral, uma expres-
são de impetuosidade, até mesmo de loucura, mas há momentos em
que, se alguém lhe concede um ato de bondade ou lhe presta o mais in-
significante serviço, todo o seu rosto se acende, por assim dizer, com
um raio de benevolência e docilidade que jamais vi igual. Porém, via de
regra, é melancólico e desanimado e, às vezes, range os dentes, como se
incapaz de suportar o peso dos infortúnios que o oprimem.
Quando meu convidado se recuperou um pouco, tive dificuldades
em manter os homens afastados, pois eles desejavam perguntar mil coi-
sas; contudo, eu não permitiria que ele fosse atormentado pela vã curio-
sidade, em um estado físico e mental cuja recuperação, evidentemente,
dependia de total repouso. Uma vez, no entanto, o imediato perguntou
por que tinha se afastado tanto no gelo em um veículo tão estranho.
De pronto, seu rosto assumiu um aspecto de profunda melancolia, e
ele respondeu:
— Para buscar alguém que fugiu.
— E o homem a quem buscava viajou da mesma maneira?
— Sim.
— Então, creio que o vimos, pois, um dia antes de lhe resgatar, avis-
tamos alguns cães puxando um trenó com um sujeito, a cruzar o gelo.
Isso despertou a atenção do desconhecido, que fez um sem-número
de perguntas a respeito da rota que o demônio, como ele o chamava, se-
guira. Logo depois, quando estava a sós comigo, disse:
— Não há dúvidas de que estimulei vossa curiosidade, bem como a
dessas boas pessoas, mas os senhores são muito corteses para fazer per-
guntas.
— Por certo, seria demasiado impertinente e desumano de minha
parte importuná-lo com qualquer curiosidade.
— E, ainda assim, me resgatou de uma situação estranha e perigosa;
foi benevolente e restaurou a vida.
Logo depois, perguntou se eu achava que o rompimento do gelo
destruira o outro trenó. Disse que não me era possível responder com
grau de certeza algum, pois o gelo não rompera senão perto da meia-
noite, e o viajante poderia ter chegado a um lugar seguro antes disso;
porém, eu não era capaz de afirmá-lo com total convicção.
A partir desse momento, um novo espírito animou a figura decaden-
te do desconhecido. Manifestou maior avidez por estar no convés, a fim
de observar o trenó que aparecera antes. Eu o persuadi a permanecer na
cabine, no entanto, pois ele estava muito fraco para tolerar a crueza da
atmosfera. Prometi que alguém cuidaria da vigilância e que ele seria in-
formado sem demora, caso algum novo objeto fosse avistado.
Assim é meu diário no que diz respeito a essa estranha ocorrência
até o presente momento. A saúde do desconhecido melhorou gradual-
mente, mas ele é muito calado e se mostra desconfortável quando al-
guém, que não seja eu, entra na cabine. Entretanto, suas maneiras são
tão conciliadoras e gentis que todos os marinheiros estão interessados
nele, embora estabeleçam pouca comunicação. De minha parte, começo
a amá-lo como a um irmão, e seu pesar constante enche-me de simpatia
e compaixão. Deve ter sido uma criatura nobre em melhores dias, pois
mesmo agora, em frangalhos, demonstra-se tão atraente e amigável.
Afirmei, em uma de minhas cartas, querida Margaret, que não en-
contraria um amigo no vasto oceano; contudo, encontrei um homem
que, antes de seu espírito ser partido pela angústia, me faria feliz em tê-
lo por irmão de coração.
Continuarei meu diário a respeito do forasteiro aos poucos, se hou-
ver algum incidente novo para registrar.
13 de agosto de 17—
A afeição por meu hóspede aumenta a cada dia. Ele incita, ao mesmo
tempo, minha estima e piedade em um grau surpreendente. Como pos-
so vislumbrar tão nobre criatura destruída pela angústia sem sentir o
mais acerbo pesar? Ele é tão gentil, porém tão sábio; seu intelecto, mui-
to refinado e, quando fala, embora as palavras sejam escolhidas com fina
arte, fluem com rapidez e eloquência sem par.
Está agora bem recuperado da doença e permanece no convés, apa-
rentemente procurando o trenó que antecedeu o seu. Até o momento,
ainda que infeliz, não está de todo ocupado da própria miséria, mas in-
teressa-se profundamente pelos projetos dos outros. Com frequência
conversa comigo sobre meus planos, os quais comuniquei sem dissimu-
lação. Considerou com atenção todos os argumentos em favor de meu
eventual sucesso e cada mínimo detalhe das medidas que tomei para as-
segurá-lo. Por sua simpatia, fui facilmente conduzido a usar a lingua-
gem de meu coração, expressando o ardor abrasador de minha alma, e a
declarar, com todo o fervor que me possuía, a alegria com que sacrifica-
ria a fortuna, a existência, a esperança para alcançar meu objetivo. A vi-
da ou a morte de um homem seriam preços irrisórios a se pagar pela
aquisição do conhecimento que busco, pelo domínio que devo conquis-
tar e legar sobre os inimigos mais elementares de nossa raça. Enquanto
eu falava, uma tristeza profunda se espalhava no semblante de meu ou-
vinte. De início percebi que ele tentava reprimir a emoção: colocava as
mãos diante dos olhos, e minha voz tremeu e falhou ao observar as lá-
grimas vertendo rapidamente por entre seus dedos — um gemido re-
bentou de seu peito arfante. Parei. Finalmente, em um tom débil, ele
disse:
— Homem infeliz! Compartilha de minha loucura? Também sorveu
um liquido intoxicante? Ouvi, deixai-me revelar minha história, e você
arrancará a taça de seus lábios!
Tais palavras, como pode imaginar, provocaram enormemente mi-
nha curiosidade; mas o paroxismo da dor que tomou conta do forastei-
ro superou suas forças enfraquecidas, e foram necessárias muitas horas
de repouso e conversa tranquila para que sua compostura fosse restau-
rada.
Após ter dominado a violência dos sentimentos, pareceu menospre-
zar-se por ser escravo da paixão; e reprimindo a tirania tenebrosa do de-
sespero, levou-me mais uma vez a conversar a meu próprio respeito,
pessoalmente. Perguntou-me sobre a história de meus primeiros anos.
A narrativa foi breve, mas despertou em mim uma série de reflexões.
Comentei sobre meu desejo de ter um amigo — de minha sede por en-
contrar um camarada com quem tivesse grande afinidade e familiaridade
de espirito, o que jamais calhou de acontecer comigo; e expressei a con-
vicção de que um homem que nunca tenha desfrutado dessa bênção po-
de vangloriar-se de pouca felicidade.
— Concordo com o senhor — replicou o desconhecido. — Somos
criaturas sem forma, mas ficamos pela metade, caso alguém mais sábio,
melhor, mais estimado que nós, assim deve ser tal amigo, não nos ajude
a aperfeiçoar nossa natureza fraca e imperfeita. Certa vez tive um ami-
go, a mais nobre das criaturas humanas, e tenho condições, portanto, de
ponderar a respeito da amizade. Você tem esperança e o mundo diante
de si, não há motivos para o desespero. Mas eu… eu perdi tudo e não
posso começar a vida de novo.
Ao dizer isso, seu rosto tomou uma expressão de calma, de um pe-
sar enraizado que me tocou o coração. Entretanto, estava em silêncio, e
dentro em pouco me retirei da cabine.
Mesmo com o espírito alquebrado, ninguém poderia sentir mais
profundamente do que ele as belezas da natureza. O céu estrelado, o
mar e cada visão concedida por essas regiões maravilhosas ainda pareci-
am ter o poder de elevar sua alma. Um homem nessas condições tem
uma existência dupla: poderia sofrer a angústia e ser oprimido por desa-
pontamentos; contudo, quando voltado para si mesmo, se transformaria
em algo como um espirito celestial dotado de um halo ao redor, em cujo
círculo não poderiam se aventurar pesar ou tolice.
Você sorrirá diante do entusiasmo que expresso a respeito desse va-
gamundo divino? Não o faria caso o visse. Foi educada e refinada por
livros e no isolamento do mundo, vindo a ser, portanto, um pouco exi-
gente, mas isso só a torna mais apta para apreciar os méritos extraordi-
nários desse homem maravilhoso. Algumas vezes esforcei-me para des-
cobrir que espécie de qualidade poderia elevá-lo tão imensuravelmente
acima de qualquer outro indivíduo que já conheci. Creio que seja um
discernimento intuitivo, um poder de julgamento rápido, mas nunca fa-
lho, um penetrar na causa das coisas, inigualável pela clareza e precisão;
acrescento a isso uma facilidade de expressão e uma voz cujas variadas
entonações compõem uma música que embala a alma.
19 de agosto de 17—
Ontem o forasteiro disse:
— Pode facilmente perceber, capitão Walton, que sofri infortúnios
grandes e incomparáveis. Resolvera, certa vez, que a memória desses
males morresse comigo, mas o senhor me obrigou a alterar minha de-
terminação. Busca conhecimento e sabedoria, como outrora o fiz, e ar-
dentemente espero que a gratificação de seus desejos não se transforme
na serpente que o morderá, como aconteceu comigo. Não sei se a rela-
ção de meus desastres seria-lhe útil; no entanto, quando penso que bus-
ca o mesmo curso, expondo-se aos mesmos perigos que me tornaram o
que sou, imagino que deva deduzir a inclinação moral de minha histó-
ria; que possa direcionar-lhe caso seja bem-sucedido nos esforços e con-
solar-lhe em caso de falha. Prepare-se para ouvir acontecimentos que,
em geral, são considerados maravilhas. Estivéssemos entre as dóceis ce-
nas da natureza, temeria encontrar no senhor a descrença, talvez o ridí-
culo; mas muitas coisas parecerão possíveis nestas regiões selvagens e
misteriosas que provocariam o riso nos que desconhecem os sempre va-
riados poderes da natureza; nem posso duvidar, mas minha história car-
rega em si uma série de comprovações internas da verdade dos aconteci-
mentos de que é composta.
Pode facilmente imaginar que estava muito satisfeito pela comunica-
ção oferecida; contudo, não poderia suportar que revivesse pesares ao
narrar seus infortúnios. Fiquei muito ansioso por ouvir a narrativa pro-
metida, em parte por curiosidade, mas também por um forte desejo de
aliviar seu fardo, caso isso estivesse em meu poder. Expressei esses sen-
timentos em resposta.
— Agradeço-lhe — respondeu — por sua compaixão, mas é inútil;
minha sina está quase cumprida. Espero apenas por um acontecimento
e, então, repousarei em paz. Compreendo seu sentimento — continuou
ele, percebendo que desejava interrompê-lo —, mas está equivocado,
meu amigo, se assim me permite chamá-lo; nada pode alterar meu desti-
no. Ouça minha história e compreenderá como ela está irrevogavelmen-
te decidida.
Disse-me então que iniciaria a narrativa no dia seguinte, quando eu
dispusesse de tempo livre. Essa promessa rendeu, de minha parte, calo-
rosos agradecimentos. Decidi registrar todas as noites, quando não esti-
vesse imperativamente ocupado pelos deveres, o mais fielmente possível
e em suas próprias palavras, o que ele relatara durante o dia. Caso tenha
muito o que fazer, ao menos tomarei notas. Esse manuscrito, sem dúvi-
da, lhe proporcionará o maior prazer; mas para mim, que o conheço e
ouço a história de seus lábios — com que interesse e simpatia o lerei no
futuro! Mesmo agora, ao começar minha tarefa, sua voz ressonante se
dilata em meus ouvidos; seus olhos brilhantes pousam em mim com
melancólica suavidade, vejo sua mão magra levantada em animação, en-
quanto as feições irradiam o intimo da alma. Estranha e angustiosa deve
ser essa história, terrível a tempestade que abraçou o navio heroico em
seu curso e o fez soçobrar — assim!
Cap. I.
Clerval, que observava minhas feições enquanto lia a carta, ficou sur-
preso ao notar o desespero que sucedeu à alegria que expressei, de iní-
cio, ao receber notícias de minha família. Joguei a missiva na mesa e co-
bri meu rosto com as mãos.
— Meu caro Frankenstein! — exclamou Henry quando percebeu
que eu chorava amargamente. — É sempre tão infeliz? Meu querido
amigo, o que aconteceu?
Fiz-lhe sinal para que pegasse a carta, enquanto andava de um lado
para o outro no quarto em extrema agitação. As lágrimas jorraram dos
olhos de Clerval ao ler o relato de meu infortúnio.
— Não posso oferecer-lhe nenhuma consolação, meu amigo — afir-
mou. — Seu desastre é irreparável. O que pretende fazer?
— Seguir imediatamente para Genebra. Vem comigo, Henry, para
arranjar os cavalos.
Durante nossa caminhada, Clerval tentou dizer algumas palavras de
consolação; podia apenas expressar sua sincera compaixão.
— Pobre William! — exclamou. — Querida criança que agora dor-
me com sua angélica mãe. Quem o viu tão brilhante e esfuziante de be-
leza juvenil deve chorar sua perda prematura! Morrer tão miseravel-
mente; sentir a força do assassino! Quanto mais um assassino que pode
destruir uma inocência tão radiante! Pobrezinho! Temos uma única
consolação; seus amigos lamentam-no e pranteiam-no, mas ele descan-
sa. Acabou o tormento, os sofrimentos terminaram para sempre. A rel-
va cobre sua delicada figura, e ele não conhece a dor. Não é mais objeto
de pena; devemos reservá-la aos míseros sobreviventes.
Clerval assim falou enquanto precipitávamo-nos por entre as ruas,
as palavras gravaram-se em minha mente e eu as recordava depois, em
solidão. Naquele momento, contudo, assim que os cavalos chegaram,
entrei às pressas no cabriolé e disse adeus ao amigo.
A viagem foi muito melancólica. Inicialmente, desejei seguir depres-
sa, pois queria consolar e transmitir meus sentimentos com os amigos
amados e pesarosos, mas, quando me aproximei de minha cidade natal,
diminuí a velocidade do curso. Quase não podia suportar o turbilhão de
sentimentos que me povoavam. Passei pelos cenários familiares de mi-
nha juventude, que não contemplava há quase seis anos. Como tudo de-
veria ter se alterado durante esse tempo! Uma mudança súbita e desola-
dora acontecera; todavia, milhares de pequenas circunstâncias poderiam
ter operado outras transformações graduais que, embora tenham se da-
do tranquilamente, não deixavam de ser menos definitivas. O medo do-
minou-me; não ousei avançar, temendo uma centena de demônios ino-
mináveis que me fizeram tremer, ainda que fosse incapaz de defini-los.
Permaneci dois dias em Lausanne nesse estado mental doloroso.
Contemplei o lago; as águas eram plácidas, tudo ao redor estava calmo e
as montanhas encobertas de neve, “os palácios da natureza”[1] não ti-
nham mudado. Aos poucos a paisagem calma e celestial restaurou-me e
continuei a viagem até Genebra.
A estrada corria às margens do lago e se tornava mais estreita con-
forme me aproximava de minha cidade natal. Explorei com maior clare-
za as margens negras do Jura e o pico resplendente do mont Blanc.
Chorei como uma criança.
— Montanhas queridas! Meu belo lago! Como dão as boas-vindas
ao vosso vagamundo? Seus cimos são claros, o céu e o lago, azuis. Seria
um prenúncio de paz ou um escárnio de minha infelicidade?
Temo, meu amigo, parecer tedioso ao repisar tais circunstâncias pre-
liminares, mas foram dias de felicidade relativa e penso neles com pra-
zer. Minha terra, minha amada terra! Quem, a não ser um nativo, pode-
ria descrever as delicias que desfrutei ao contemplar seus regatos, suas
montanhas e, sobretudo, seu lago adorável!
Entretanto, ao aproximar-me de casa, o pesar e o medo subjugaram-
me. A noite caiu e, quando mal podia vislumbrar as montanhas escuras,
senti-me ainda mais melancólico. O quadro parecia um cenário maléfi-
co vasto e obscuro, e antevi, confuso, que estava destinado a tornar-me
o mais desventurado dos seres humanos. Ai de mim! Previ a verdade e
errei em uma única circunstância: que de toda a miséria que imaginei e
temi, não pude prever a centésima parte da angústia que estava destina-
do a suportar.
Já era noite quando cheguei nos arredores de Genebra. Os portões
da cidade estavam fechados e fui obrigado a pernoitar em Secheron,
uma vila que fica a aproximadamente dois quilômetros da cidade. O céu
estava sereno e, como não podia descansar, resolvi visitar o local onde
meu pobre William fora assassinado. Como não era possível passar pela
cidade, fui obrigado a cruzar o lago em um barco para chegar a Plainpa-
lais. Durante a curta viagem, vi os raios formando no cume do mont
Blanc as figuras mais belas. A tempestade pareceu aproximar-se rapida-
mente e, ao chegar, subi em uma colina baixa, de modo que podia ob-
servar seu desenrolar. Avançava; o céu estava nublado e logo senti a
chuva chegando devagar em grandes gotas cuja intensidade aumentou
velozmente.
Deixei meu posto e caminhei, embora a escuridão e a tempestade
aumentassem a cada minuto e os trovões ribombassem com estrondos
terríveis por sobre minha cabeça. Ecoou desde Salève, da cordilheira do
Jura, e dos alpes de Savoy. Os clarões vívidos dos relâmpagos ofusca-
vam meus olhos, iluminando o lago, fazendo-o parecer um imenso len-
çol de fogo. Então, por um instante, tudo parecia um breu, até a visão
recobrar-se do relâmpago anterior. A tempestade, como muitas vezes
acontece na Suíça, deixava-se mostrar ao mesmo tempo em vários pon-
tos do céu. A tormenta mais brutal concentrava-se exatamente ao norte
da cidade, sobre aquela parte do lago que fica entre o promontório de
Belrive e o vilarejo de Copêt. Uma tempestade iluminou o Jura com
clarões fracos e outra escureceu e, por vezes, revelou o Môle, um pico
montanhoso localizado ao leste do lago.
Enquanto apreciava a chuva, tão bela e, contudo, tão terrível, pe-
rambulava a passos ligeiros. Essa nobre guerra nos céus elevou meu es-
pírito; apertei as mãos e exclamei alto:
— William, querido anjo! Este é seu funeral! Este é seu hino fúne-
bre!
Ao proferir tais palavras, notei, nas trevas, uma figura que se esguei-
rava por detrás de um arvoredo próximo. Olhei atenta e fixamente; não
podia estar enganado. Um clarão de luz iluminou a coisa e percebi cla-
ramente sua forma. A estatura gigantesca e a deformidade do aspecto,
mais medonho do que humano, instantaneamente fizeram-me perceber
que se tratava do desgraçado, do demônio imundo ao qual eu dera vida.
O que fazia ali? Seria ele (e tremi ao concebê-lo) o assassino de meu ir-
mão? Tão logo essa ideia cruzou minha imaginação, convenci-me da
verdade dela; meus dentes rangiam e fui forçado a me apoiar em uma
árvore para não cair. O vulto passou por mim rapidamente e o perdi na
escuridão. Nada humano teria destruído aquela linda criança. Ele era o
assassino! Não havia dúvidas. A simples presença de tal pensamento era
prova irrefutável do fato. Pensei em procurar o demônio, mas teria sido
em vão, pois outro relâmpago revelou-o a mim por entre as rochas da
subida quase perpendicular do mont Salève, uma colina que faz frontei-
ra com Plainpalais no lado sul. Logo que chegou ao topo, desapareceu.
Permaneci imóvel. A trovoada cessou, mas a chuva continuou e o
cenário foi envolvido por uma escuridão impenetrável. Revolvi em mi-
nha mente os acontecimentos que até então tinham ocorrido e procura-
va esquecer: toda a sucessão de progressos rumo à criação, a aparência
do trabalho fruto de minhas próprias mãos vivo à cabeceira da cama,
sua partida. Dois anos tinham se passado desde a noite em que ganhara
vida e aquele fora seu primeiro crime? Ai de mim! Soltara no mundo
um infeliz depravado cujo prazer estava na carnificina e no tormento;
não teria ele assassinado meu irmão?
Ninguém seria capaz de conceber a angústia que sofri durante o res-
tante da noite, que passei encharcado, vulnerável ao frio e ao relento.
No entanto, não senti a inconveniência do tempo. Minha imaginação
estava ocupada com as cenas do mal e do desespero. Considerei o ente
que lançara em meio à humanidade e que dotara de vontade e capacida-
de de executar propósitos horrendos, tais como o ato que acabara de
cometer, praticamente à luz de meu próprio vampiro, de meu próprio
espirito libertado do túmulo, que se via forçado a destruir todos os que
me eram caros.
Veio a alvorada e dirigi-me para a cidade. Os portões estavam aber-
tos e precipitei-me para a casa de meu pai. Meu primeiro pensamento
foi revelar o que sabia do assassino e organizar uma busca imediatamen-
te. Refreei, todavia, quando refleti sobre a história que teria de contar.
Uma criatura que eu mesmo gerara, dotada de vida, encontrara-me à
meia-noite entre os despenhadeiros de uma montanha inacessível. Lem-
brei-me também da febre nervosa que apanhara justamente na época em
que deparara com minha criação e que emprestaria um ar de delírio à
história, de outra feita, completamente improvável. Sabia bem que se
qualquer outra pessoa me apresentasse tal narrativa, eu a teria olhado
como se estivesse no frenesi da insanidade. Ademais, a natureza estra-
nha do animal frustraria a busca, mesmo que eu tivesse crédito para
convencer meus parentes a iniciá-la. E depois, de que adiantaria tal per-
seguição? Quem poderia prender uma criatura capaz de escalar as en-
costas íngremes do mont Salève? Essas reflexões me decidiram a perma-
necer calado.
Por volta das cinco da manhã, entrei na casa de meu pai. Pedi aos
criados que não perturbassem a família e dirigi-me à biblioteca para es-
perar a hora em que usualmente despertavam.
Seis anos haviam passado como um sonho, a não ser por um traço
indelével, e achava-me no mesmo lugar em que abraçara meu pai pela
última vez antes da partida para Ingolstadt. Meu amado e venerado pai!
Ainda estava comigo. Contemplei o retrato de minha mãe que ficava
sobre a cornija. Era uma cena histórica, pintada segundo o desejo de
meu pai, que representava Caroline Beaufort na agonia do desespero,
ajoelhada ao lado do caixão do pai morto. Os trajes eram rústicos e as
faces, pálidas, mas havia um ar de dignidade e beleza que dificilmente
permitiria o sentimento de pena. Abaixo dessa pintura, via-se um retra-
to de William, e minhas lágrimas se precipitaram ao contemplar-lhe. No
momento em que estava assim entretido, Ernest entrou. Ouvira-me
chegar e apressou-se para desejar as boas-vindas. Expressou um prazer
tristonho ao ver-me:
— Seja bem-vindo, querido Victor — saudou-me. — Ah! Quem de-
ra tivesse vindo há três meses. Teria nos encontrado alegres e felizes.
Vem a nós agora para partilhar de uma angústia que nada pode aliviar;
contudo, sua presença, espero, reanimará seu pai, que parece afundar
nesse infortúnio, e sua persuasão induzirá a pobre Elizabeth a deixar de
se atormentar em vão com autoacusações. Pobre William! Era nosso
bem-amado e nosso orgulho!
Lágrimas incontidas brotavam dos olhos de meu irmão; um senso de
agonia mortal apoderou-se de meu corpo. Antes, apenas podia imaginar
a miséria de meu lar desolado; agora, no entanto, a realidade avançava
sobre mim como um novo, mas não menos terrível, desastre. Tentei
acalmar Ernest. Perguntei mais detalhadamente a respeito de meu pai e
daquela a quem chamava de prima.
— Ela, mais do que todos — afirmou Ernest —, precisa de consolo.
Acusa-se de ter causado a morte de meu irmão e diz que o que fez foi
muito lamentável. Porém, já que o assassino foi descoberto…
— O assassino foi descoberto! Bom Deus! Como pode ser? Quem
tentaria caçá-lo? É impossível; esse alguém poderia tentar dominar os
ventos ou confinar um rio de montanha com palha. Eu também o vi; es-
tava livre noite passada!
— Não entendo o que diz — respondeu meu irmão em tom de es-
panto. — Contudo, para nós, essa descoberta completou nosso tormen-
to. Ninguém pôde acreditar de início, e mesmo agora Elizabeth não está
convencida, apesar de todas as provas. De fato, quem diria que Justine
Moritz, que era tão amável e afeiçoada de toda a família, poderia, de re-
pente, ser capaz de um crime tão medonho e apavorante?
— Justine Moritz! Pobre, pobre moça, ela é a acusada? Mas está er-
rado; todos sabem disso. Ninguém acredita, não é, Ernest?
— A princípio, ninguém acreditou, mas surgiram várias circunstân-
cias que quase forçaram nosso convencimento, e seu próprio comporta-
mento pareceu tão confuso, como se acrescentasse provas aos fatos que
pesavam contra ela, que temo não haver esperança de dúvida. Entretan-
to, ela será julgada hoje, e você ouvirá tudo.
Contou que, na manhã em que o pobre William foi descoberto as-
sassinado, Justine ficara doente e confinada na cama por vários dias.
Durante esse intervalo, um dos criados, vindo a examinar os trajes que
ela usara na noite do crime, descobrira no bolso o retrato de minha mãe,
que fora tido como a tentação do assassino. O criado imediatamente
mostrou-o para outro empregado que, sem dizer uma palavra para al-
guém da família, foi ao magistrado. Após o testemunho deles, Justine
foi presa. Ao ser acusada do fato, a pobre moça confirmou a suspeita,
em grande parte, pela extrema confusão de sua conduta.
Era uma história singular, mas não abalou minha convicção e res-
pondi seriamente:
— Estão todos equivocados; conheço o assassino. Justine, a coitada
de Justine, é inocente.
Nesse instante meu pai entrou. Vi a infelicidade profundamente im-
pressa em seu rosto, mas ele se esforçou em dar-me as boas-vindas com
alegria; e depois de termos trocado nossa saudação de pesar, teria intro-
duzido um tópico diverso de nosso desastre, não tivesse Ernest excla-
mado:
— Por Deus, papai! Victor diz que sabe quem é o assassino do po-
bre William.
— Também o sabemos, infelizmente — respondeu meu pai. — Pre-
feriria permanecer ignorante para sempre a ter descoberto tanto vício e
ingratidão em alguém que tinha em tão grande estima.
— Meu querido pai, está enganado; Justine é inocente.
— Se ela o é, Deus não permita que sofra como culpada. Ela deve
ser julgada hoje e espero, sinceramente, que seja absolvida.
Esse discurso acalmou-me. Estava firmemente convencido de que
Justine, e na verdade qualquer outro ser humano, não tinha culpa nesse
assassinato. Não temia, portanto, que qualquer prova circunstancial
apresentada poderia ter força o bastante para prendê-la. Minha história
não poderia ser anunciada em público; seu horror assombroso seria vis-
to como loucura pelo vulgo. Será que, de fato, existiria alguém exceto
eu, o criador, que acreditaria, a menos que os sentidos o convencessem,
na existência do monumento vivo à presunção e à ignorância impruden-
te que eu soltara no mundo?
Logo juntamo-nos a Elizabeth. O tempo a mudara desde a última
vez que a vira; conferira-lhe um encanto que superava a beleza de seus
anos de menina. Havia a mesma candura, a mesma vivacidade, porém
aliadas a uma expressão mais plena de sensibilidade e intelecto. Ela rece-
beu-me com a maior das afeições.
— Sua chegada, querido primo — disse ela —, enche-me de esperan-
ça. Talvez encontrará algum meio de explicar minha pobre e inocente
Justine. Ai de mim! Quem estará seguro, caso ela seja presa pelo crime?
Creio na inocência dela como confio na minha. Nosso infortúnio nos é
duplamente penoso; não só perdemos aquele menino querido e amável,
mas também essa pobre moça, a quem amo com toda sinceridade e está
para ser destruída por uma sina ainda pior. Se for condenada, nunca
mais terei alegria. Não será, todavia, estou certa de que não será, e então
me verei feliz de novo, mesmo com a morte triste de meu querido Willi-
am.
— Ela é inocente, minha Elizabeth — respondi-lhe. — E isso será
comprovado; nada tema, mas deixa seu espirito se animar pela certeza
da absolvição.
— Quão gentil e generoso você é! Todos acreditam na culpa, e isso
deixou-me infeliz, pois sabia que era impossível; e ver todos prejulgan-
do-a tão fatalmente deixou-me sem esperanças e desanimada — lamen-
tou.
— Querida sobrinha — consolou meu pai —, enxugue as lágrimas.
Se ela é, como crê, inocente, confie na justiça de nossas leis e na provi-
dência que tomarei para evitar a menor sombra de parcialidade.
Cap. VI II.
— Maldito, maldito criador! Por que vivi? Por que, naquele instante,
não extingui a centelha de existência que você tão promiscuamente me
conferiu? Não sei; o desespero ainda não havia tomado conta de mim, e
meus sentimentos eram de fúria e vingança. Poderia, com prazer, ter
destruído o chalé e seus moradores, fartando-me com os gritos pene-
trantes e a desgraça.
“Ao cair da noite, saí de meu esconderijo e vaguei pela mata. E ago-
ra, não mais inibido pelo receio de ser descoberto, dei vazão à angústia
com uivos terríveis. Era como uma fera selvagem que escapara da arma-
dilha, destruindo os objetos que me obstruíam a passagem e andejando
pelo bosque com a rapidez de um cervo. Ah! Que noite miserável pas-
sei! As estrelas frias brilhavam com escárnio e as árvores desnudas ba-
lançavam os galhos sobre mim; de vez em quando, o canto doce de um
pássaro irrompia em meio à quietude universal. Tudo, menos eu, estava
em paz ou em alegria. Eu, como o arqui-inimigo, trazia um inferno
dentro de mim. Encontrando-me incompreendido, desejei arrancar as
árvores, espalhar ruína e destruição ao meu redor e, então, sentar-me a
apreciar os destroços.
“Entretanto, esse era um luxo que não podia perdurar. Fiquei cansa-
do com o excesso de esforço corporal e afundei-me na relva úmida, na
impotência doentia do desespero. Não havia ninguém, entre a miríade
de homens existentes, que pudesse ter pena ou ajudar-me; e deveria ser
bondoso para com meus inimigos? Não. Desde aquele momento, decla-
rei guerra eterna contra a espécie e, sobretudo, contra aquele que me
criou, abandonando-me nesta angústia insuportável.
“O sol raiou; ouvi as vozes dos homens e sabia que seria impossível
voltar ao esconderijo naquele dia. Consequentemente, escondi-me em
uma densa vegetação rasteira, determinado a dedicar as horas seguintes
à reflexão acerca de minha situação.
“A claridade agradável e o ar puro do dia deram-me alguma tranqui-
lidade, e quando considerei o que sucedera no chalé, não podia deixar
de crer que fora demasiado precipitado em minhas conclusões. Era evi-
dente que a conversa travada cativara o pai em meu favor e fui tolo ao
expor minha pessoa ao horror dos filhos. Deveria ter me familiarizado
com o velho De Lacey e, aos poucos, revelar-me ao restante da família,
quando estivessem preparados para tal aproximação. No entanto, não
acreditava que meus erros fossem irreparáveis e, depois de muito pon-
derar, decidi voltar ao chalé, procurar pelo ancião e, através dos fatos,
trazê-lo para meu lado.
“Esses pensamentos acalmaram-me e, à tarde, mergulhei em um so-
no profundo, mas o fervor do sangue não permitiu que fosse visitado
por sonhos pacíficos. A cena horrível do dia anterior passava continua-
mente diante de meus olhos. As mulheres correndo e o enfurecido Félix
arrancando-me dos pés do pai. Despertei exausto e descobri que já era
noite, esgueirei-me do esconderijo e saí em busca de alimento.
“Quando a fome foi aplacada, dirigi os passos para o caminho bem
conhecido que conduzia ao chalé. Tudo estava em paz. Fui discretamen-
te para minha casinhola e lá permaneci em uma espera silenciosa pelo
momento em que a família costumava despertar. Esse momento passou,
o sol estava a pino nos céus, mas os moradores do chalé não aparece-
ram. Estremeci violentamente, receando algum infortúnio terrível. O
interior do chalé estava escuro e não ouvi nenhum movimento. É im-
possível para mim descrever a agonia daquele suspense.
“Naquele momento, passaram por ali duas figuras locais que come-
çaram a conversar gesticulando impetuosamente quando se aproxima-
ram do chalé; contudo, não compreendi o que diziam, pois falavam a
língua do país, diferente do idioma de meus guardiões. A seguir, Félix
chegou com outro homem. Estava surpreso, pois sabia que não deixara
o chalé pela manhã e aguardei ansioso para descobrir, por seu discurso,
o significado dessas aparições nada usuais.
“— Já considerou — disse o companheiro para ele — que será obri-
gado a pagar o aluguel de três meses e perder a produção de sua horta?
Não quero levar vantagem indevida alguma e peço, portanto, que leve
alguns dias para tomar sua decisão.
“— É totalmente inútil — respondeu Félix. — Jamais poderemos vi-
ver em seu chalé. A vida de meu pai está em grande perigo em virtude
da circunstância desagradável que relatei. Minha mulher e minha irmã
nunca se recuperarão do horror. Rogo que não argumente mais comigo.
Retoma a posse de seu bem e deixe-me partir deste lugar.
“Félix tremia violentamente ao dizer aquelas palavras. Ele e seu
companheiro entraram no chalé, ficaram poucos minutos e depois par-
tiram. Nunca mais vi ninguém da família De Lacey.
“Continuei na casinhola pelo restante do dia em um estado de de-
sespero total e estúpido. Meus protetores tinham partido, e eu rompera
o único elo que me prendia ao mundo. Pela primeira vez, os sentimen-
tos de vingança e ódio encheram meu peito e não lutei para controlá-
los, mas, permitindo-me dar vazão ao fluxo, voltei a mente para pensa-
mentos de injúrias e morte. Quando pensava em meus amigos, na voz
suave de De Lacey, nos olhos gentis de Ágata e na beleza rara da árabe,
essas considerações se esvaiam e uma torrente de lágrimas, de certo mo-
do, me acalmava. Entretanto, mais uma vez, quando lembrava que ti-
nham me tratado com desprezo e me deserdado, a ira retornava, um fu-
ror de raiva; e, impossibilitado de danificar qualquer coisa humana, vol-
tei a fúria para objetos inanimados. Ao avançar da noite, posicionei uma
variedade de combustíveis ao redor do chalé e depois de ter destruído
todos os vestígios de cultivo na horta, esperei com grande impaciência
até que a lua desaparecesse para iniciar minhas operações.
“Conforme a noite se adiantava, veio do bosque um vento feroz que
rapidamente dispersou as nuvens que tinham ficado no céu. Uma rajada
de ar veio com toda a força, como uma poderosa avalanche, produzindo
uma espécie de insanidade em meu espírito, que rompeu todos os limi-
tes da razão e da reflexão. Ateei fogo em um galho seco e dancei com
fúria ao redor do infeliz chalé, meus olhos fixos no horizonte ao oeste,
cuja borda a lua mal tocava. Uma boa parte de seu orbe estava oculta e
sacudi meu tição; ela desapareceu e, com um grito sonoro, acendi a pa-
lha, o mato e os arbustos que coletara. O vento espalhou o fogo e o cha-
lé logo estava envolto pelas chamas, que nele pegaram e o lamberam
com línguas bifurcadas e destruidoras.
“Assim que me convenci de que nada poderia salvar qualquer parte
da casa, deixei o local e busquei refúgio no bosque.
“E agora, com o mundo diante de mim, para onde meus passos de-
veriam me levar? Decidi deixar o cenário de meus infortúnios; mas, para
mim, que era odiado e desprezado, todos os países se apresentariam
igualmente horríveis. Por fim, o pensamento sobre você cruzou minha
mente. Aprendi em seus escritos que era meu pai, meu criador; e de
quem poderia requerer uma oportunidade senão de você, que me con-
cedeu a vida? Entre as lições que Félix dera a Safie, não faltou geografia.
Aprendera dela as situações relativas dos diferentes países da Terra.
Mencionaste Genebra como o nome de sua cidade natal e foi para lá que
decidi encaminhar-me.
“Entretanto, como iria? Sabia que tinha de viajar na direção sudoes-
te para chegar ao meu destino, mas o sol era meu único guia. Não sabia
o nome das cidades que passaria no caminho, nem podia pedir informa-
ção a nenhum ser humano, mas não me desesperei. Só de você poderia
esperar por socorro, embora não tivesse nenhum sentimento por sua
pessoa, a não ser o ódio. Criador insensível e sem coração! Dotou-me
de percepções e paixões e depois dispensou-me como um objeto de es-
cárnio e horror da humanidade! De ti, no entanto, só peço piedade e re-
paração e espero obter apenas a justiça que em vão tentei conseguir de
qualquer outro ser que tivesse forma humana.
“Minhas viagens foram longas e os sofrimentos pelos quais passei,
intensos. O outono já terminava quando deixei o local em que vivera
por tanto tempo. Viajava somente à noite, temeroso de encontrar o ros-
to de um ser humano. A natureza ao meu redor declinava e o sol ficava
menos quente. Chuva e neve caíam sobre mim, rios caudalosos estavam
congelados e a superfície da terra mostrava-se endurecida, fria, nua, e
não encontrei abrigo. Oh, terra! Quantas vezes roguei maldições à cau-
sa de meu ser! A suavidade da natureza se fora e tudo dentro de mim
tornava-se amargo e mordaz. Quanto mais me aproximava de sua casa,
sentia mais profundamente o sentimento de vingança inflamar meu co-
ração. A neve caia e as águas se solidificavam, mas não descansei. Al-
guns acidentes, vez ou outra, me direcionavam, e eu tinha comigo o ma-
pa do país, mas em inúmeras situações desviei-me do caminho. A ago-
nia de meus sentimentos não me permitia parar. Não aconteceu inciden-
te algum que pudesse diminuir minha ira e infelicidade, mas uma cir-
cunstância dada no momento em que cheguei aos limites da Suíça,
quando o sol recobrara o calor e a terra novamente começara a parecer
verde, confirmou de maneira especial a amargura e o horror de meus
sentimentos.
“Em geral, eu descansava durante o dia e viajava apenas à noite,
quando estava a salvo da vista dos homens. Em uma manhã, no entanto,
ao descobrir que meu caminho levava para um bosque denso, arrisquei
continuar minha jornada após o nascer do sol. O dia, que era um dos
primeiros da primavera, animou até mesmo a mim pela beleza da lumi-
nosidade e suavidade do ar. Senti emoções de ternura e prazer, que há
muito pareciam mortas, reviverem dentro de mim. Um tanto surpreso
pela novidade dessas sensações, permiti-me ser conquistado por elas e,
esquecendo minha solidão e deformidade, ousei ser feliz. Lágrimas sua-
ves novamente banharam meu rosto e ergui meus olhos úmidos em gra-
tidão ao sol bendito que me concedeu tamanha alegria.
“Continuei a serpentear pelos caminhos do bosque, até que cheguei
ao limite, que era contornado por um rio profundo e veloz, sobre o
qual muitas árvores pendiam os galhos que rebentavam em botões com
o vigor da estação. Ali parei, não sabendo ao certo que caminho seguir,
quando ouvi o som de vozes que fizeram com que me escondesse de-
baixo da sombra de um cipreste. Mal havia me ocultado quando uma
menina veio correndo em direção ao local onde eu estava, rindo, como
se fugisse de alguém por brincadeira. Continuou seu curso ao longo das
margens escarpadas do rio, quando, de repente, seu pé escorregou e ela
caiu na correnteza veloz. Sai rapidamente de meu esconderijo e, vencen-
do com esforço a força da correnteza, salvei-a e a arrastei até a margem.
Ela tinha perdido os sentidos e tentei a qualquer custo restaurar-lhe a
vida, quando, de súbito, fui interrompido pela chegada de um campo-
nês, que era provavelmente a pessoa de quem ela corria ao brincar. As-
sim que me viu, o homem partiu para cima de mim e, arrancando a me-
nina de meus braços, precipitou-se para as partes mais profundas do
bosque. Segui rapidamente, e é difícil saber o motivo, mas, percebendo-
me por perto, o homem apontou-me uma arma e atirou. Cai no chão, e
meu agressor, com a maior rapidez, escapou pela mata.
“Eis a gratificação pela minha benevolência! Salvara um ser humano
da destruição e, como recompensa, agora contorcia-me com uma dor
miserável por um ferimento que estilhaçara minha carne e meus ossos.
Os sentimentos de bondade e gentileza que cogitara há poucos momen-
tos deram lugar a uma fúria infernal e ao ranger de dentes. Inflamado
pela dor, jurei ódio eterno e vingança à espécie humana. A agonia do fe-
rimento, contudo, venceu; a pulsação parou e desmaiei.
“Por algumas semanas levei uma vida miserável no bosque, esfor-
çando-me para curar o ferimento. A bala entrara no meu ombro, e eu
não sabia se tinha se alojado ou transpassado; de qualquer modo, não ti-
nha como retirá-la. Meus sofrimentos também foram ampliados pela
sensação opressiva de injustiça e ingratidão que me infligiram. Jurava
diariamente por vingança — uma vingança intensa e mortal, como se
apenas isso pudesse compensar os ultrajes e a angústia que sofrera.
“Após algumas semanas, o ferimento sarou e continuei minha jorna-
da. As dores pelas quais passei não eram mais atenuadas pelo sol bri-
lhante ou pelas brisas suaves da primavera; toda alegria não era nada se-
não um deboche que insultava meu estado desolador e fazia-me sofrer
ainda mais por não ter sido feito para desfrutar tais prazeres.
“No entanto, minha labuta agora aproximava-se do fim e, dois me-
ses depois, alcancei os arredores de Genebra.
“Era noite quando cheguei e procurei abrigo nos campos que cir-
cundavam a cidade para refletir de que maneira poderia ir até você. Es-
tava atormentado pelo cansaço e pela fome e demasiado infeliz para
desfrutar das brisas suaves da noite ou da perspectiva do sol nascendo
por trás das montanhas estupendas do Jura.
“Naquele momento, um sono leve me aliviou da dor que era pensar,
sendo perturbado pela aproximação de uma bela criança que corria para
o esconderijo que escolhera, com toda a esportividade da infância. De
repente, ao olhar para ele, ocorreu-me a ideia de que tal criaturinha não
teria preconceitos e que vivera muito pouco para estar impregnada do
horror pela deformidade. Se, portanto, pudesse capturá-lo e educá-lo
como meu companheiro e amigo, não ficaria tão desolado nesta terra
povoada.
“Tomado por esse impulso, agarrei o menino enquanto ele passava e
o trouxe para junto de mim. Assim que viu minha figura, colocou as
mãos diante dos olhos e deu um grito estridente. Tirei suas mãos à força
do rosto e disse:
“— Menino, o que significa isso? Não quero machucá-lo; escute-
me.
“Ele lutou com violência.
“— Deixe-me ir! — gritava — Monstro, patife horrendo! Deseja de-
vorar-me e rasgar-me em pedaços! É um ogro. Deixe-me ir ou contarei
tudo ao meu pai.
“— Menino, nunca verá seu pai outra vez, deve ficar comigo.
“— Monstro medonho! Deixe-me ir. Meu pai é síndico, o sr.
Frankenstein, e o punirá. Não se atreva a capturar-me.
“— Frankenstein! Pertence ao meu inimigo, a quem jurei vingança
eterna; será minha primeira vítima.
“A criança ainda lutava e oprimia-me com epítetos que levavam
meu coração ao desespero. Apertei sua garganta para silenciá-lo e, em
um momento, ele caiu morto aos meus pés.
“Olhei fixamente para minha vítima e meu coração encheu-se de
exultação e de um triunfo infernal. Aplaudindo, exclamei:
“— Eu também gerei desolação, meu inimigo não é invulnerável.
Esta morte lhe trará desespero e milhares de outras infelicidades o ator-
mentarão e o destruirão!
“Ao deter meus olhos na criança, vi algo brilhando em seu peito.
Peguei. Era um pingente com o retrato da mais adorável das mulheres.
Apesar de minha malignidade, ele me abrandou e me atraiu. Por breves
momentos, observei com prazer os olhos escuros, emoldurados por
longos cílios, e os lábios adoráveis, mas logo a ira retornou. Lembrei
que estava para sempre privado das delícias que tão bela criatura pode-
ria conferir e que ela, cuja imagem contemplava, perderia o ar de benig-
nidade divinal para mostras de expressivo desgosto e medo ao me ver.
“Ficaria admirado em saber que tais pensamentos excitaram minha
ira? Apenas me perguntava se, naquele momento, em vez de desafogar
meus sentimentos em clamores e agonia, não deveria precipitar-me en-
tre os homens e perecer na tentativa de destruí-los.
“Enquanto estava tomado por tais sentimentos, deixei o local onde
cometera o assassinato e, em busca de um esconderijo mais isolado, en-
trei em um celeiro que me parecera vazio. Uma mulher dormia sobre a
palha. Era jovem e, em verdade, não tão bela quanto a do retrato que
trazia comigo, mas tinha um aspecto agradável e resplandecia os encan-
tos da juventude e da saúde. Este, pensei, é um daqueles sorrisos de ale-
gria que são conferidos a todos, menos a mim. E então curvei-me sobre
ela e sussurrei:
“— Desperta, bela, seu amor se aproxima; ele, que daria a vida para
obter um olhar de afeto de seus olhos; desperta, minha amada!
“A jovem adormecida moveu-se; senti um arrepio de terror. Será
que ela realmente deveria acordar, ver-me, amaldiçoar-me e denunciar o
crime? Seguramente agiria assim se abrisse os olhos escuros e me visse.
A ideia era enlouquecedora; atiçou o demônio em mim — não eu, mas
ela, deveria sofrer. Cometi o assassinato porque fui para sempre privado
de tudo que ela poderia me conceder; assim, ela deveria penar. O crime
teve nela a fonte; que dela seja a punição! Graças aos ensinamentos de
Félix e das leis sanguinárias dos homens, aprendi a causar danos. De-
brucei-me sobre a moça e coloquei o retrato em segurança em uma das
pregas do vestido. Ela moveu-se novamente e fugi.
“Durante alguns dias visitei com frequência o local onde ocorreram
tais fatos, algumas vezes desejando ver você e em outras decidido a dei-
xar o mundo e suas misérias para sempre. Por fim, caminhei em direção
às montanhas e vaguei pelos imensos recessos, consumido por uma pai-
xão que somente você poderia satisfazer. Não nos separaremos até que
prometa aquiescer à minha solicitação. Sou solitário e miserável; a hu-
manidade não se associará comigo, mas um ser tão deformado e horrí-
vel quanto eu não se oporia a mim. Minha companhia deve ser da mes-
ma espécie e ter os mesmos defeitos. Você deverá criar tal ser.”
Cap. XVII.
Dia após dia, semana após semana de meu regresso a Genebra se passa-
ram, e não pude reunir coragem para recomeçar o trabalho. Temia a
vingança do demônio desapontado; contudo, era incapaz de superar a
repugnância à tarefa que me foi intimada. Descobri que não podia com-
por uma fêmea sem dedicar-me, por vários meses, ao estudo profundo e
à laboriosa pesquisa. Ouvi que foram feitas certas descobertas por um
filósofo inglês, conhecimento que era útil para meu sucesso e, por ve-
zes, pensei em obter o consentimento de meu pai para visitar a Inglater-
ra com esse intento. No entanto, apoiava-me em qualquer pretexto para
procrastinar e retrocedi em dar o primeiro passo em direção a um em-
preendimento cuja necessidade imediata começava a parecer-me menos
absoluta. Uma mudança de fato ocorreu: minha saúde, que previamente
declinara, estava agora bem recuperada, e meu ânimo, quando não re-
cordava a promessa infeliz, aumentou proporcionalmente. Meu pai ob-
servou com prazer essa mudança e concentrou-se em encontrar o me-
lhor método de erradicar os resquícios de melancolia que, de vez em
quando, retornava em crises e com um negrume devastador, impedindo
a aproximação da luz do sol. Nesses momentos, refugiava-me na mais
profunda solidão. Passei dias inteiros sozinho no lago em um barqui-
nho, observando as nuvens e ouvindo o murmúrio das ondas, taciturno
e lânguido. Porém, o ar fresco e o sol brilhante raramente deixaram de
me restaurar certo grau de compostura e, ao voltar, ia ao encontro das
boas-vindas dos amigos com um sorriso disposto e o coração mais ale-
gre.
Foi após o retorno de um desses passeios que meu pai, chamando-
me de parte, dirigiu-se a mim do seguinte modo:
— Estou contente por observar, querido filho, que tem retomado os
antigos prazeres e parece estar voltando a si. E, ainda assim, está infeliz
e evita nossa sociedade. Por algum tempo, estive perdido em conjectu-
ras quanto à causa disso, mas, ontem, surgiu uma ideia e, se bem funda-
mentada, imploro que a admita. Reservas nesse ponto não só seriam
inúteis como multiplicariam por três a infelicidade em todos nós.
Estremeci violentamente diante desse exórdio, e meu pai prosseguiu:
— Confesso, meu filho, que sempre aguardei seu casamento com
nossa querida Elizabeth como um laço de nosso bem-estar doméstico e
o apoio em meus anos de declínio. Vocês foram afeiçoados desde a tenra
infância, estudaram juntos e pareceram, em disposições e gostos, total-
mente apropriados um ao outro. No entanto, a experiência do homem é
tão cega que o que concebi como os melhores auxiliares de meu plano
podem tê-lo destruído. Você, talvez, a veja como irmã, sem nenhum de-
sejo de que se torne sua esposa. Mais do que isso, pode ter encontrado
outra mulher a quem ame, considerando-se ligado a Elizabeth pela hon-
ra; essa contenda talvez ocasione a infelicidade pungente que parece
sentir.
— Meu querido pai, tranquilize-se. Amo minha prima terna e since-
ramente. Nunca vi mulher alguma que incite, como Elizabeth, minha
admiração e afeição mais ardentemente. Minhas esperanças e perspecti-
vas futuras estão inteiramente atadas à expectativa de nossa união.
— A expressão de seus sentimentos nesses assuntos, meu querido
Victor, dá-me mais prazer do que tenho provado faz algum tempo. Se
estes são seus sentimentos, certamente deveremos ficar felizes. No en-
tanto, os acontecimentos presentes podem lançar tristeza sobre nós. É
essa melancolia, contudo, que parece ter tomado com tanta força sua
mente, que desejo dissipar. Diz-me, portanto, se objeta à celebração
imediata do casamento. Não temos tido boa sorte, e os acontecimentos
recentes nos tiraram a tranquilidade cotidiana condizente com meus
anos e enfermidades. Você é mais jovem; todavia, não suponho que, de-
tentor como é de uma fortuna apropriada, um casamento repentino in-
terferiria em quaisquer planos futuros de honra e utilidade que possa ter
concebido. Não imagine, porém, que quero ditar-lhe felicidade ou que
um adiamento de sua parte possa causar-me qualquer preocupação sé-
ria. Interprete minhas palavras com franqueza e responde-me, rogo-lhe,
com confiança e sinceridade.
Ouvi meu pai em silêncio e fiquei por algum tempo impossibilitado
de oferecer qualquer resposta. Revolvi, de modo veloz, em minha men-
te, uma infinidade de pensamentos e esforcei-me por chegar a algumas
conclusões. Ai de mim! A ideia de uma união imediata com Elizabeth
trazia-me horror e desalento. Estava unido por uma promessa solene
que ainda não se cumprira e não ousava quebrá-la, pois, se o fizesse,
que múltiplas infelicidades não poderiam recair sobre mim e minha
querida família! Poderia eu ingressar em uma festividade com esse peso
mortal ainda pendendo em meu pescoço e dobrando-me ao chão? De-
veria arcar com meu compromisso e deixar o monstro partir com sua
companheira antes de poder desfrutar da delicia de uma união da qual
esperava paz.
Lembrei-me também da necessidade imposta de viajar para a Ingla-
terra ou ingressar em uma longa correspondência com os filósofos da-
quele pais cujos conhecimentos e descobertas eram de utilidade indis-
pensável para mim na presente tarefa. Este último método era demora-
do e insatisfatório; ademais, tinha uma aversão insuperável à ideia de
ocupar-me em uma tarefa detestável na casa de meu pai enquanto me
privasse de ligações familiares com aqueles que amava. Sabia que milha-
res de acidentes assustadores poderiam ocorrer e que o menor deles re-
velaria uma história que estremeceria de horror todos aqueles a mim re-
lacionados. Também estava ciente de que muitas vezes perderia o auto-
controle e a capacidade de esconder as sensações lancinantes que me to-
mariam durante a evolução de um encargo que não é deste mundo. De-
vo abster-me de todos os meus entes queridos enquanto estiver envolvi-
do nessa ocupação. Uma vez iniciada, rapidamente seria levada a cabo,
quando enfim poderia retornar à minha família em paz e felicidade.
Com a promessa cumprida, o monstro partiria para sempre. Ou (assim
imaginou o desejo amável) algum acidente poderia acontecer nesse ínte-
rim e destruí-lo, pondo um fim definitivo à minha escravidão.
Esses sentimentos ditaram a resposta ao meu pai. Expressei a vonta-
de de visitar a Inglaterra, mas, ocultando as verdadeiras razões do pedi-
do, envolvi meus desejos sob um disfarce que não levantou suspeitas, ao
passo que instiguei meu anseio com uma seriedade que facilmente indu-
ziu meu pai a concordar. Depois de um período tão longo de melancolia
contagiosa que parecia loucura em virtude de sua intensidade e efeitos,
ele estava feliz em saber que eu era capaz de sentir prazer com a ideia de
uma viagem e esperou que a mudança de cenário e a diversão variada
pudesse, antes de meu retorno, restaurar-me por completo.
A duração de minha ausência foi deixada por minha conta. Uns
poucos meses ou, no máximo, um ano, era o período contemplado. Um
tipo de precaução paternal tomada foi assegurar-me companhia. Sem
comunicar-me previamente, em pacto com Elizabeth, meu pai provi-
denciou que Clerval se uniria a mim em Estrasburgo. Isso interferiu na
solidão que cobiçara para a realização de minha tarefa. No entanto, no
início de minha jornada, a presença do amigo de modo algum poderia
ser um impedimento, e regozijei-me verdadeiramente, pois assim seria
poupado de muitas horas de reflexões solitárias e perturbadoras. Mais
do que isso, Henry deveria se postar entre mim e a intrusão de meu ad-
versário. Se estivesse sozinho, não imporia ele a própria presença abo-
minável para recordar minha tarefa ou a fim de contemplar o progres-
so?
Para a Inglaterra, portanto, dirigi-me e ficou entendido que minha
união com Elizabeth aconteceria logo após meu retorno. A idade de
meu pai o tornara extremamente avesso a adiamentos. Para mim, havia a
recompensa prometida pelos labores odiosos, um consolo para meus
sofrimentos sem par: a perspectiva do dia em que, liberto de minha mi-
serável escravidão, pudesse reivindicar Elizabeth e esquecer o passado
ao casar-me com ela.
Dessa forma, iniciei os preparativos para a viagem, mas um senti-
mento pairava e enchia-me de medo e agitação. Durante a ausência, se-
ria obrigado a deixar os amigos ignorantes a respeito da existência do
inimigo e desprotegidos de seus ataques, exasperado como poderia ficar
com minha partida. Ele, no entanto, que prometera seguir-me onde
quer que fosse, não me acompanharia até a Inglaterra? Essa imagem era
terrível por si só, mas me acalmava, visto que pressupunha a segurança
de meus familiares. Agonizava com a ideia da possibilidade de um cená-
rio oposto. Durante, todavia, a época em que fui escravo de minha cria-
tura, permiti-me ser governado pelos impulsos do momento; e as sensa-
ções de então insinuavam fortemente que o demônio me seguiria e pou-
paria minha família do perigo de suas maquinações.
Foi no final de agosto[1] que parti de meu país natal. A viagem fora
minha própria sugestão, e Elizabeth, portanto, aquiesceu, mas estava
cheia de inquietação pela ideia de que sofresse longe dela, em minhas in-
cursões pela infelicidade e pelo pesar. Fora seu carinho que proporcio-
nara a companhia de Clerval — e, ainda assim, um homem é cego para
as diversas e pequenas circunstâncias que invocam a atenção diligente
de uma mulher. Ela ansiava por pedir que apressasse meu retorno; mi-
lhares de emoções conflituosas fizeram-na emudecer ao me dar um
adeus choroso e silente.
Entrei na carruagem que me levaria embora, sem saber ao certo para
onde iria e sem me importar com o que se passava ao redor. Recordei
apenas, e foi com angústia amarga que refleti sobre isso, de recomendar
que meus instrumentos químicos fossem embalados para a viagem. Re-
pleto de ideias lúgubres, passei por muitos cenários belos e majestosos,
mas meus olhos estavam fixos e desatentos. Era-me permitido pensar
apenas na meta de minha viagem e no trabalho que me ocuparia en-
quanto a jornada durasse.
Depois de alguns dias passados em uma indolência desinteressada,
durante os quais atravessei muitos quilômetros, cheguei a Estrasburgo,
onde esperei dois dias por Clerval. Então, ele chegou. Ai! Como era
grande o contraste entre nós! Ele estava atento a todos os novos cená-
rios, alegrava-se quando via as belezas do pôr do sol e se mostrava ainda
mais feliz quando contemplava a alvorada e um novo dia começava. As-
sinalava para mim as cores desiguais da paisagem e as aparências do céu.
— Isto é que é viver! — exclamava. — Agora tenho prazer em exis-
tir! Mas você, meu caro Frankenstein, por que está desanimado e triste?
Na verdade, ocupava-me de pensamentos sombrios e nem vi o sur-
gimento da estrela da noite, tampouco o nascer dourado do sol refletido
no rio Reno. E o senhor, meu amigo, estaria muito mais entretido com
o diário de Clerval, que observava o cenário com um olhar de emoção e
deleite, que ao ouvir minhas reflexões. Eu, um miserável patife, assom-
brado por uma maldição que obstruía qualquer caminho para o conten-
tamento.
Concordáramos em descer o rio Reno em um barco de Estrasburgo
a Roterdã, de onde deveríamos tomar um navio para Londres. Durante
essa viagem, passamos por muitas ilhas graciosas e vimos diversas cida-
des belas. Permanecemos um dia em Mannheim, e no quinto dia de nos-
sa partida de Estrasburgo, chegamos a Mainz. O curso do Reno abaixo
de Mainz se torna muito mais pitoresco. O rio desce rapidamente e ser-
penteia as colinas, não altas, mas escarpadas e de belas formas. Vimos
muitos castelos em ruínas à beira dos precipícios, rodeados de florestas
negras, altas e inacessíveis. Essa parte do Reno, na verdade, apresenta
uma paisagem variegada e única. Em um local, verdes colinas escarpa-
das, castelos em ruínas divisando precipícios tremendos com o Reno
quase negro correndo por baixo e, na curva inesperada de um promon-
tório, vinhedos florescentes com margens verdejantes em declive, um
rio sinuoso e cidades populosas ocupam a cena.
Viajamos na época da vindima e ouvimos o canto dos trabalhadores
ao deslizar rio abaixo. Até mesmo eu, de mente deprimida e com o âni-
mo continuamente agitado por sentimentos melancólicos, estava satis-
feito. Deitei-me no fundo do barco e, olhando para o céu azul sem nu-
vens, tive a impressão de absorver uma tranquilidade que há muito me
era estranha. E se essas eram minhas sensações, quem poderia descrever
as de Henry? Sentia-se como se transportado para o reino encantado e
desfrutava de uma felicidade raramente experimentada pelo homem.
— Vi — disse ele — os cenários mais belos de meu país; visitei os la-
gos de Lucerna e Uri, onde as montanhas nevadas descem quase per-
pendicularmente até a água, lançando sombras negras e impenetráveis
que trariam um aspecto lúgubre e pesaroso, não fossem as ilhas verde-
jantes que aliviam a vista com sua aparência alegre. Vi o lago agitado
por uma tempestade, quando o vento fez redemoinhos na água e dá
uma ideia do que deve ser uma tromba-d’água no grande oceano; e as
ondas que colidem com fúria na base da montanha onde o padre e sua
amante foram soterrados por uma avalanche e ainda se fazem ouvir suas
vozes mortas ao cessar do vento noturno.[2] Vi as montanhas de La Va-
lais e o Pays de Vaud, mas este lugar, Victor, agrada-me mais do que to-
das essas maravilhas. As montanhas da Suíça são mais majestosas e es-
tranhas, mas existe um charme nas margens deste rio divino que nunca
vi igual. Observe o castelo que pende acolá no precipício, e aquele tam-
bém, na ilha, quase escondido pela folhagem daquelas árvores adorá-
veis, e agora, o grupo de trabalhadores voltando por entre as vinhas, e
aquela vila quase escondida no recesso da montanha. Ah, certamente o
espirito que habita e guarda este local tem uma alma em maior harmo-
nia com os homens que aqueles que contêm as geleiras ou se retiram pa-
ra os picos inacessíveis das montanhas de nossa terra.
Clerval! Querido amigo! Mesmo agora apraz-me relembrar suas pa-
lavras e alongar-me no louvor que você merece de modo tão eminente.
Ele era um ser formado da “mesma poesia da natureza”.[3] Sua imagina-
ção bravia e entusiástica era moderada pela sensibilidade de seu coração.
Sua alma transbordava com afeições ardentes, e sua amizade possuía
uma natureza dedicada e maravilhosa que o mundano nos ensina a bus-
car apenas na imaginação. Entretanto, mesmo as simpatias humanas não
eram suficientes para satisfazer sua mente ávida. O cenário da natureza
exterior, que outros só veem com admiração, despertava-lhe um amor
ardente:
A catarata retumbante
Obcecava-lhe como uma paixão: a rocha alta,
A montanha e a floresta profunda e lúgubre,
Suas cores e suas formas, eram para ele
Um apetite; um sentimento e um amor,
Não necessitava de um encanto mais remoto,
Pelo pensamento produzido ou qualquer interesse
Não dispensado da visão.[4]
E onde ele vive agora? Esse ser gentil e amável estaria perdido para sem-
pre? Será que sua mente, tão repleta de ideias, imaginações fantasiosas e
magníficas, que formavam um mundo cuja existência dependia da vida
de seu criador — essa mente pereceu? Agora existe apenas em minha
memória? Não, não é assim; sua figura, trabalhada tão divinamente e ir-
radiando beleza, morreu, mas seu espirito ainda visita e consola seu
amigo infeliz.
Perdoe essa torrente de dor; tais palavras ineficazes nada são senão
um tributo ao valor ímpar de Henry, mas abrandam meu coração,
transbordante pela angústia que sua lembrança me traz. Continuarei
meu relato.
Acima de Colônia descemos para as planícies da Holanda e decidi-
mos viajar em cavalos de posta[5] pelo restante do percurso, pois o ven-
to era contrário e a corrente do rio estava demasiado suave para nos aju-
dar.
Nossa jornada, neste ponto, perdeu o interesse oriundo do belo ce-
nário, mas chegamos em poucos dias a Roterdã, de onde partimos por
mar para a Inglaterra. Foi em uma manhã clara, nos últimos dias de se-
tembro, que vi pela primeira vez as falésias da Grã-Bretanha. As mar-
gens do rio Tâmisa apresentaram uma nova cena. Eram planas, mas fér-
teis, e quase toda cidade era marcada pela lembrança de alguma história.
Vimos o forte Tilbury e recordamos a armada espanhola; Gravesend,
Woolwich e Greenwich, lugares sobre os quais ouvi falar até mesmo em
meu país.
Por fim, vimos os inúmeros campanários de Londres, o de St. Paul
elevando-se acima de todos e a Torre tão famosa na história inglesa.
Cap. XIX.
Wal ton,
CONTINUAÇÃO EM CARTAS
26 de agosto de 17—
Leste essa história estranha e terrível, Margaret, e não sentes seu sangue
congelar de horror como até hoje ocorre comigo? Ás vezes, tomado de
agonia súbita, era-lhe impossível prosseguir o relato; em outras, sua voz
falha, embora penetrante, proferia com dificuldade as palavras repletas
de angústia. Seus olhos belos e adoráveis iluminavam-se nos momentos
de indignação, agora baixos, dominados por uma tristeza desalentadora
e arrefecidos pela miséria infinita. Em certas ocasiões, controlava as ex-
pressões faciais e o tom, relatando os incidentes mais horríveis com voz
tranquila, suprimindo qualquer sinal de agitação; então, como o irrom-
per de um vulcão, suas faces mudavam, de repente, para exprimir a fúria
mais feroz quando gritava imprecações ao perseguidor.
Sua narrativa é conexa e fora contada com a aparência da verdade
mais simples; contudo, devo revelar a você que as cartas de Félix e Safie
que ele me apresentou e a aparição do monstro visto de nosso navio
convenceram-me mais da verdade do relato que as afirmações, embora
zelosas e coerentes. Esse monstro, então, existia de verdade! Não posso
duvidar, embora esteja desnorteado pela surpresa e admiração. Por ve-
zes, tentei conseguir de Frankenstein os detalhes da formação de sua
criatura, mas, nesse particular, era impenetrável.
— Está louco, meu amigo? — perguntou-me. — Até que ponto sua
curiosidade disparatada o levará? Faria também para você e para o mun-
do um inimigo demoníaco? Aquiete-se, aquiete-se! Aprenda de meus
infortúnios e não busque aumentar os seus.
Frankenstein descobriu que fiz anotações a respeito de sua história.
Pediu para vê-las e, assim, ele mesmo corrigiu-as e ampliou-as em mui-
tos pontos, mas, principalmente, ao dar vida e espírito aos diálogos que
travou com o inimigo.
— Já que preservou minha narração — disse —, não gostaria que
passasse-a mutilada à posteridade.
Assim transcorreu uma semana, durante a qual ouvi o conto mais
estranho que minha imaginação poderia imaginar. Meus pensamentos e
cada sentimento de minha alma foram embebidos pelo interesse que
meu hóspede despertara, tanto por essa narrativa quanto por seus mo-
dos elevados e gentis. Gostaria de acalmá-lo; no entanto, estaria ao meu
alcance trazer à vida alguém tão infinitamente miserável, tão destituído
de esperanças de consolação? Oh, não! A única alegria que agora pode-
rá conhecer será a integração de seu espirito alquebrado na paz e na
morte. Desfruta, contudo, de um alento, o fruto da solidão e do delírio.
Crê que, quando em sonho, conversa com os amigos, auferindo de tal
comunhão consolo para suas infelicidades ou entusiasmo para a vingan-
ça, que tais criaturas não são fruto da fantasia, mas acredita na presença
real dos seres que o visitam das regiões de um mundo remoto. Essa fé
confere solenidade aos devaneios que se apresentam a mim quase como
uma imposição, tão interessantes quanto a verdade.
Nossas conversas nem sempre estão restritas à sua própria história e
infortúnios. Em todos os assuntos de literatura geral, apresenta um co-
nhecimento sem limites e uma compreensão rápida e penetrante. Sua
eloquência é convincente e tocante; não consigo ouvi-lo, quando relata
um incidente patético ou se esforça em evocar pena ou amor, sem derra-
mar lágrimas. Que criatura gloriosa deveria ser nos dias de prosperida-
de, quando é assim tão nobre e divino na ruína! Parece sentir o próprio
valor e a grandeza de sua destruição.
— Quando mais jovem — disse ele —, acreditei-me destinado a um
grande empreendimento. Meus sentimentos eram profundos, mas pos-
suía uma frieza de julgamento que me talhava para feitos ilustres. Esse
sentimento do valor de minha natureza me sustentava quando a outros
teria oprimido, pois julgava criminoso desperdiçar, em preocupações
inúteis, os talentos que poderiam ser valiosos para meus semelhantes.
Quando refleti a respeito da obra que completara, nada menos que a
criação de um animal sensitivo e racional, não podia classificar-me no
rebanho dos artífices comuns. Esse pensamento, todavia, que me auxili-
ava no início da carreira, agora só serve para afundar-me cada vez mais
no pó. Todas as minhas especulações e esperanças são como nada e, co-
mo o arcanjo que aspirou a onipotência, estou acorrentado ao inferno
eterno. Minha imaginação era vívida, entretanto, a capacidade de análise
e aplicação eram intensas. Com a união dessas qualidades, concebi a
ideia e executei a criação de um homem. Mesmo agora, não posso re-
cordar sem paixão de meus delírios enquanto a obra estava incompleta.
Em meus pensamentos, entrara no céu, exultando, naquele momento,
em minhas capacidades, abrasado pela ideia de seus efeitos. Desde a in-
fância, fui imbuído de grandes esperanças e ambições elevadas, mas co-
mo sucumbi! Oh, meu amigo, acaso tivesse me conhecido como fui ou-
trora, não me reconheceria nesse estado de degradação. O desânimo ra-
ramente visitava meu coração; parecia amparado por um destino ímpar,
até cair para nunca, nunca mais levantar.
Devo, então, perder esse ser admirável? Desejei um amigo, busquei
um que pudesse simpatizar comigo e amar-me. Veja, nestes mares deser-
tos encontrei tal ser, mas temo que o ganhei somente para conhecer seu
valor e perdê-lo. Congraçaria-lhe com a vida, mas ele repudia a ideia.
— Agradeço-lhe, Walton — declarou —, por suas boas intenções
para com um ser tão infeliz quanto eu, porém, quando fala de novos la-
ços e afeições revigoradas, pensa que alguém pode substituir aqueles
que se foram? Poderá algum homem ser o que Clerval foi para mim?
Ou qualquer mulher, outra Elizabeth? Mesmo onde as afeições não são
fortemente movidas por uma excelência superior, os companheiros de
nossa infância sempre possuem certo poder sobre nossas mentes, o qual
dificilmente um amigo mais recente poderá obter. Conhecem nossas
disposições pueris que, conquanto sejam posteriormente modificadas,
nunca são erradicadas. E podem julgar nossas ações com conclusões
mais acertadas quanto à integridade de nossos motivos. Uma irmã ou
um irmão nunca podem, a menos que, de fato, tais sintomas sejam de-
monstrados de forma prematura, suspeitar mutuamente uma fraude ou
acordos falsos, ao passo que outro amigo, não obstante quão forte seja
o laço, pode, a despeito de si mesmo, ser contemplado com tal suspei-
ção. No entanto, desfrutei dos amigos, meu caro, não só por hábito e
associação, mas por seus próprios méritos e, onde quer que esteja, a voz
branda de minha Elizabeth e as conversas de Clerval sempre murmura-
rão em meus ouvidos. Estão mortos, e apenas um sentimento pode per-
suadir-me a preservar minha vida. Caso estivesse envolvido em algum
empreendimento elevado ou projeto de plena utilidade para meus seme-
lhantes, então deveria viver para completá-lo. Esta, todavia, não é mi-
nha sina. Devo perseguir e destruir o ente a quem dei existência e, en-
tão, terei cumprido meu fado neste mundo, vendo-me livre para morrer.
2 de setembro—
Amada irmã, escrevo-lhe rodeado de perigos e ignoro se me será permi-
tido ver novamente a amada Inglaterra e os caros amigos que lá residem.
Estou cercado por montanhas de gelo que não admitem escapatória e
ameaçam, a todo momento, esmagar minha embarcação. Os bravos
companheiros, aos quais convenci que me acompanhassem, olham para
mim em busca de socorro, mas nada posso lhes oferecer. Há alguma
coisa terrivelmente apavorante em nossa situação, ainda assim, a cora-
gem e as esperanças não me deserdaram. Entretanto, é terrível refletir
que a vida de todos esses homens esteja em risco por minha causa. Se
estamos perdidos, meus planos insanos são o porquê.
E qual seria, Margaret, seu estado de espirito? Ouvirá acerca de mi-
nha destruição e aguardará ansiosamente meu retorno. Os anos passa-
rão e será afligida pelo desespero e, ainda assim, torturada pela esperan-
ça. Oh! Querida irmã, o nauseante colapso das expectativas de seu cora-
ção é, em perspectiva, mais terrível para mim que a própria morte. Mas
tem marido e filhos adoráveis; pode ser feliz. Que os céus a abençoem e
assim conservem!
Meu hóspede desafortunado olha para mim com a mais tenra com-
paixão. Esforça-se para incutir-me esperança e fala como se a vida fosse
um bem que devesse ser estimado. Recorda-me quantas vezes os mes-
mos acidentes aconteceram com outros navegadores que tentaram cru-
zar este mar e, a despeito de mim mesmo, enche-me de felizes augúrios.
Até mesmo os marinheiros sentem o poder de sua verve. Quando fala,
não se desesperam mais. Faz despertar as energias e, enquanto escutam
sua voz, acreditam que essas vastas montanhas são montículos de tou-
peiras que desvanecerão diante das resoluções dos homens. Esses senti-
mentos são transitórios. Cada dia de expectativa postergada enche-lhes
de medo, e quase temo um motim por tal desespero.
5 de setembro—
Ocorreu um incidente de interesse tão incomum que, apesar de ser mui-
tíssimo provável que esses papéis nunca a alcancem, não posso deixar de
registrar.
Ainda estamos cercados por montanhas de gelo, no perigo iminente
de sermos esmagados com uma colisão. O frio é excessivo e muitos ca-
maradas desafortunados já foram para a cova em meio a este cenário de-
solador. A saúde de Frankenstein piora a cada dia: uma chama febril
ainda brilha em seus olhos, mas está exausto e quando, de repente, é in-
citado a realizar qualquer esforço, rapidamente mergulha em aparente
inércia.
Mencionei, em minha última carta, os temores que nutria em relação
a um motim. Nessa manhã, enquanto estava sentado a observar o rosto
lívido de meu amigo — os olhos semicerrados e os membros pendentes,
lânguidos —, fui despertado por meia dúzia de marinheiros que exigiam
ser admitidos em meu camarote. Entraram, e o líder endereçou-se a
mim. Disse-me que ele e os companheiros foram escolhidos pelos ou-
tros tripulantes para propor, em delegação, o que, por justiça, não pode-
ria ser recusado. Estávamos emparedados pelo gelo e, provavelmente,
nunca escaparíamos; mas temiam que, se as montanhas se dissipassem,
liberando a passagem, eu pudesse ser imprudente o bastante para conti-
nuar a viagem e colocá-los em novos perigos. Insistiram, portanto, que
deveria prometer solenemente que, se a embarcação fosse liberada, mu-
daria no mesmo instante o curso rumo ao sul.
Esse discurso desconsertou-me. Não tinha perdido as esperanças
nem tinha considerado ainda a ideia de retornar caso fosse libertado.
Entretanto, poderia eu, por justiça ou mesmo como possibilidade, recu-
sar esse pedido? Hesitei antes de responder; então, Frankenstein, que de
início estivera calado e, na verdade, dificilmente parecia ter forças o bas-
tante para escutar, nesse momento, despertou. Os olhos brilharam e as
faces coraram com vigor momentâneo. Voltando-se para os homens,
disse:
— O que querem dizer com isso? O que pedem de seu capitão?
Desviam tão facilmente de seu propósito? Não chamam esta de uma ex-
pedição gloriosa? E, portanto, foi ela gloriosa? Não porque o caminho
foi fácil e plácido como o mar do sul, mas porque foi repleto de perigos
e terror, porque a cada novo incidente foi exigida sua fortaleza e cora-
gem. Porque o perigo e a morte o cercavam e foram valentes e se supe-
raram. Por isso, esta foi uma expedição gloriosa, por isso foi um em-
preendimento honroso. Devem, de hoje em diante, ser aclamados como
benfeitores da espécie, seus nomes adorados como se pertencessem aos
homens bravos que encontraram a morte pela honra e para o benefício
da humanidade. E agora, vejam, à primeira ideia de perigo ou, caso de-
sejam, o primeiro teste extremo e terrível de coragem, vocês correm e
contentam-se em ser tidos como homens que não tiveram força sufici-
ente para suportar o gelo e o perigo; e assim, pobres almas, estavam
com frio e voltaram para suas lareiras cálidas. Ora, isso não requer pre-
paro; não precisavam chegar tão longe e arrastar o capitão à ignomínia
da derrota simplesmente porque se mostram covardes. Oh! Sejam ho-
mens ou sejam mais que homens. Sejam firmes em seus propósitos e fir-
mes como rocha. Este gelo não é feito do mesmo material de seus cora-
ções; é mutável e não resistirá se disserem que não vai resistir. Não re-
tornem às suas famílias com o estigma da desgraça impresso nas frontes.
Retornem como heróis que lutaram e venceram e que não sabem o que
é dar as costas ao inimigo.
Fez esse discurso com uma voz tão modulada pelos diversos senti-
mentos expressos na fala, com um olhar tão cheio de propósitos subli-
mes e heroísmo que pode imaginar como esses homens ficaram tocados.
Olhavam uns para os outros e eram incapazes de responder. Falei. Dis-
se-lhes que se retirassem e considerassem o que fora dito: que não os le-
varia mais ao norte se desejassem tenazmente o contrário, mas esperava
que, com a reflexão, a coragem deles pudesse retornar.
Saíram e voltei-me para meu amigo, mas ele estava mergulhado em
langor e quase sem vida.
Como isso terminaria, não sei, mas preferiria morrer a retornar de-
sonrado, com meu objetivo inconcluso. Temo, contudo, que esse será
meu destino. Os homens, não amparados por ideias de glória e honra,
jamais poderiam continuar, de bom grado, a suportar as atuais dificul-
dades.
7 de setembro—
A sorte está lançada. Concordei em retornar se não fôssemos destruí-
dos. Assim estão minhas esperanças, arruinadas pela covardia e indeci-
são; volto ignorante e desapontado. Requer mais filosofia do que a que
possuo para suportar essa injustiça com paciência.
12 de setembro—
É passado; estou retornando à Inglaterra. Perdi as esperanças de utilida-
de e glória — perdi meu amigo. No entanto, esforçarei-me para detalhar
essas circunstâncias amargas para você, querida irmã, e enquanto nave-
go para nosso pais e para você, não desanimarei.
No dia 9 de setembro, o gelo começou a se mover e ouvimos ribom-
bos como trovões à distância enquanto as ilhas se partiam e rachavam
em todas as direções. Estávamos em perigo iminente, mas como só era
possível nos manter passivos, minha atenção estava voltada para meu
hóspede desafortunado, cuja doença aumentava em um grau tal que es-
tava totalmente confinado à cama. O gelo atrás de nós estalou e foi leva-
do com força para o norte. A brisa originou-se do oeste e, no dia 11, a
passagem para o sul ficou perfeitamente livre. Quando os marinheiros
perceberam isso e que o retorno para a terra natal estava aparentemente
assegurado, fez-se ouvir um grito tumultuoso de júbilo, alto e continua-
do. Frankenstein, que estava dormitando, acordou e perguntou o moti-
vo da balbúrdia.
— Gritam — respondi — porque logo retornarão à Inglaterra.
— Então, realmente retornará?
— Pobre de mim! Sim, não posso opor-me a eles. Não posso condu-
zi-los contra a vontade para o perigo e devo retornar.
— Faça isso, se quiser, mas eu não vou. Pode desistir de seu propó-
sito, mas o meu foi-me dado pelos céus, e não me atrevo. Estou fraco,
mas decerto os espíritos que assistem minha vingança me dotarão de
força suficiente.
Ao dizer isso, tentou levantar-se da cama, mas o esforço foi tão
grande para ele que caiu para trás e desmaiou.
Isso foi muito antes de recuperar-se e, por diversas vezes, pensei que
sua vida havia se extinguido completamente. Muito depois abriu os
olhos, respirou com dificuldade e estava incapacitado de falar. O médi-
co ministrou-lhe um calmante e ordenou que o deixássemos descansar.
Nesse meio-tempo, disse-me que o amigo decerto não teria muitas ho-
ras de vida.
Sua sentença fora dada e podia somente lamentar e ser paciente. Sen-
tei ao pé da cama, observando-o. Seus olhos estavam fechados e pensei
que dormia, mas no mesmo momento ele me chamou com uma voz dé-
bil e, pedindo que me aproximasse, disse:
— Ai de mim! A força que me sustentava se foi. Sinto que em breve
morrerei, e ele, meu inimigo e perseguidor, continuará a existir. Não
pense, Walton, que nos últimos momentos de minha existência sustento
aquele ódio abrasador e o ardente desejo de vingança que outrora ex-
pressei, mas sinto-me justificado em desejar a morte de meu adversário.
Durante esses últimos dias, estive ocupado em examinar minha conduta
passada, não que a creia censurável. Em um achaque de loucura apaixo-
nada, criei uma criatura racional e estava comprometido a assegurar-lhe,
até onde estava em meu alcance, sua felicidade e bem-estar. Este era meu
dever; mas havia um ainda mais proeminente. Os deveres para com os
seres de minha própria espécie tinham mais direito à minha atenção,
porque incluíam maior proporção de felicidade ou infelicidade. Incitado
por essa visão, recusei e tinha o direito de recusar a criar uma compa-
nheira para a primeira criatura. Demonstrou uma malignidade ímpar e
um egoísmo maléfico: destruiu meus amigos, dedicou-se à aniquilação
de seres que possuíam sensações requintadas, felicidade e sabedoria;
nem eu sei onde esse desejo de vingança pode terminar. Miserável, deve
morrer para que não torne mais ninguém infeliz. A tarefa de sua des-
truição era minha, mas falhei. Quando agi por motivos egoístas e per-
versos, pedi a você que aceitasse minha tarefa inacabada. Agora renovo
este pedido, quando movido somente pela razão e virtude.
“No entanto, não posso pedir que renuncie ao seu país e aos seus
amigos para cumprir tal tarefa. E, neste momento em que retorna à In-
glaterra, terá poucas oportunidades de encontrá-lo. As considerações
sobre tais pontos, todavia, e a ponderação bem-feita daquilo que julga
ser seu dever, deixo para você. Meu juízo e minhas ideias já estão per-
turbados pela aproximação da morte. Não ouso perguntar-lhe o que
pensa ser certo, pois ainda posso estar corrompido pela paixão.
“Que ele possa viver para ser um instrumento de injúrias, perturba-
me; em outros aspectos, este momento em que espero minha libertação
imediata traz uma felicidade que não desfruto há anos. As figuras dos
amados mortos passaram diante de mim e precipitei-me para seus bra-
ços. Adeus, Walton! Busque felicidade na tranquilidade e evite a ambi-
ção, mesmo que seja com o inocente desejo de distinguir-se nas ciências
e descobertas. Por que, no entanto, digo isso? Eu mesmo fui destruído
nessas esperanças, porém, outro poderá ser bem-sucedido.”
Sua voz tornou-se mais fraca enquanto falava e, por fim, exaurido
pelo esforço, mergulhou em silêncio. Cerca de meia hora depois, tentou
falar novamente, mas não foi capaz; apertou minha mão debilmente e
seus olhos se fecharam para sempre, enquanto um sorriso gentil desapa-
recia de seus lábios.
Margaret, que comentário posso fazer a respeito do fim prematuro
desse espírito glorioso? O que poderei dizer que faça com que com-
preenda a profundidade de meu pesar? Tudo o que está ao meu alcance
expressar seria inadequado e diminuto. As lágrimas fluem; minha mente
é ensombrada por uma nuvem de desapontamento. Entretanto, viajo
para a Inglaterra e aí devo encontrar consolo.
Sou interrompido. O que esses sons pressagiam? É meia-noite; a
brisa sopra ligeira e o vigia no convés quase não se move. Mais uma vez,
há um som como o de voz humana, todavia, mais rouca. Vem do cama-
rote onde ainda repousa o cadáver de Frankenstein. Devo levantar-me e
averiguar. Boa noite, minha irmã.
Bom Deus! Que cena acabara de acontecer! Ainda estou atordoado
com a lembrança. Quase não sei se tenho capacidade de descrevê-la; no
entanto, a história que relatei estaria incompleta sem essa catástrofe fi-
nal e espantosa.
Entrei no camarote onde jaziam os restos de meu malfadado amigo
admirável. Sobre ele, curvava-se uma figura que não encontro palavras
para descrever; de estatura gigantesca, embora canhestro e de propor-
ções distorcidas. Enquanto se inclinava sobre o caixão, seu rosto estava
escondido por longas madeixas de um cabelo desigual, mas uma mão
imensa estendia-se, em cor e aparência semelhantes a de uma múmia.
Quando percebeu que me aproximava, cessou de proferir exclamações
de pesar e horror e saltou em direção à claraboia. Jamais contemplei al-
go tão horrível quanto seu rosto, de tamanha repugnância e fealdade
apavorante. De maneira involuntária, cerrei os olhos e tentei recordar
quais eram meus deveres em relação ao destruidor. Insisti que ficasse.
Pausou, olhando-me espantado e, mais uma vez, voltando-se para a
figura inerte de seu criador, aparentou esquecer minha presença. Cada
traço e gesto seu pareciam instigados pela fúria selvagem de uma paixão
incontrolável.
— Esta também é minha vítima! — exclamou. — Neste assassinato,
meus crimes estão consumados; o curso miserável de minha existência
conheceu seu fim, oh, Frankenstein! Ser generoso e dedicado! De que
importa se agora peço que me perdoe? Eu, que irremediavelmente o
destruí ao exterminar todos que amou. Pobre de mim! Está frio, não
pode responder-me.
Sua voz parecia sufocada, e meus primeiros impulsos, que sugeriam-
me obedecer ao pedido de meu amigo feito no leito de morte, foram
sustados por um misto de curiosidade e compaixão. Aproximei-me des-
se ser enorme; não ousava levantar os olhos para seu rosto, havia algu-
ma coisa deveras apavorante e sobrenatural em sua feiura. Tentei falar,
mas as palavras morriam em meus lábios. O monstro continuava a pro-
ferir censuras ferozes e incoerentes a si mesmo. Por fim, tomei a decisão
de dirigir-me a ele, aproveitando-me de uma pausa da tormenta de sua
paixão.
— Seu arrependimento — afirmei — agora é supérfluo. Se tivesse
ouvido a voz da consciência e atendido as ferroadas do remorso antes
de insistir em sua vingança diabólica ao extremo, Frankenstein ainda es-
taria vivo.
— Você sonha? — perguntou o demônio. — Pensa que, então, esta-
va imune à agonia e ao remorso? — continuou, apontando para o cor-
po. — Ele não sofreu na consumação da façanha. Oh! Nem um décimo
de milésimo do que foi minha angústia durante o prolongado pormenor
de sua execução. Um egoísmo assustador impelia-me, à medida que
meu coração era envenenado pelo remorso. Pensa que os gemidos de
Clerval foram música para meus ouvidos? Meu coração foi feito para
ser suscetível ao amor e à compaixão e, quando conduzido pela infelici-
dade ao vício e ao ódio, não suportou a violência da mudança sem afli-
gir-se de um modo que jamais poderá imaginar.
“Após o assassinato de Clerval, voltei para a Suíça, de coração parti-
do e derrotado. Tinha pena de Frankenstein; meu pesar importava em
horror, abominava-me. No entanto, quando descobri que ele, o autor,
apesar de minha existência e de seus inexprimíveis tormentos, ousava
esperar pela felicidade; que, enquanto acumulava em mim miséria e de-
sespero, buscava o deleite próprio em sentimentos e paixões das quais
eu seria para sempre privado, então, a inveja impotente e a indignação
amarga encheram-me de uma sede insaciável por vingança. Recordei
minha ameaça e decidi que seria realizada. Sabia que preparava para
mim uma tortura mortal, mas era o escravo, e não o mestre, de um im-
pulso que detestava e que, no entanto, não podia desobedecer. Entre-
tanto, quando ela morreu! Não, não estava extremamente infeliz. Tinha
abandonado todo o sentimento, dominado toda a angústia para malba-
ratar o excesso de meu desespero. O mal, daí em diante, tornou-se meu
bem. Uma vez nesse extremo, não tive escolha senão adaptar minha na-
tureza a um elemento que escolhera de bom grado. O término de meu
desígnio demoníaco tornou-se uma paixão insaciável. E agora está ter-
minado; eis minha última vítima!”
Em um primeiro momento fiquei comovido pela expressão de sua
infelicidade; contudo, quando rememorei o que Frankenstein dissera
sobre sua capacidade de eloquência e persuasão e quando, mais uma
vez, lancei os olhos para a figura sem vida de meu amigo, a indignação
reacendeu em mim.
— Miserável! — exclamei. — Está bem que venha aqui lamuriar a
respeito da desolação que causou. Lança uma tocha em uma pilha de
prédios e, quando são consumidos pelo fogo, senta entre as ruínas e la-
menta a queda. Demônio hipócrita! Se aquele que pranteia ainda vives-
se, continuaria sendo o objetivo, mais uma vez seria a presa de sua mal-
dita vingança. Não é pena o que sente; lamenta somente porque a vítima
de sua malignidade foi retirada de seu poder.
— Oh, não é assim! Não desse modo! — interrompeu a criatura. —
Muito embora essa seja a impressão que teve daquilo que parece ser o
propósito de minhas ações. No entanto, não busco comiseração em mi-
nha angústia. Jamais encontrarei compaixão. Quando primeiramente a
busquei, o que desejava comunicar era o amor à virtude, os sentimentos
de felicidade e afeição que transbordavam de todo o meu ser. Agora,
porém, que a virtude tornou-se para mim uma sombra, e a felicidade e a
afeição transformaram-se em um desespero amargo e repugnante, em
que deveria buscar simpatia? Contento-me em sofrer sozinho enquanto
perdurarem as penas. Quando morrer, fico satisfeito que a aversão e o
opróbrio adulterem minha lembrança. Outrora minhas fantasias eram
amainadas com sonhos de virtude, de fama e de divertimento, uma vez
que esperei, enganosamente, encontrar-me com seres que, perdoando
minha forma exterior, me amariam pelas qualidades superiores que era
capaz de ostentar. Estava nutrido por pensamentos elevados de honra e
lealdade. Agora, contudo, o crime degradou-me e pôs-me abaixo do pi-
or dos animais. Não há culpa, ofensa, malignidade, miséria existente
que possa ser comparada à minha. Quando percorro o catálogo medo-
nho de meus crimes, não acredito ser a mesma criatura cujos pensamen-
tos, certa vez, estavam repletos de visões sublimes e transcendentes da
beleza e da excelência da bondade. Mas é assim; o anjo decaído torna-se
um diabo maligno. Entretanto, mesmo esse adversário de Deus e dos
homens tinha amigos e companheiros na desolação. Eu estou só.
“Você, que chama Frankenstein de amigo, parece ter conhecimento
de meus crimes e dos infortúnios dele. Os detalhes, porém, que ele ofe-
receu de tais feitos não resumem as horas e os meses de desdita que su-
portei, perdido em paixões impotentes. Enquanto destruía suas espe-
ranças, não satisfiz meus desejos. Eram eternamente impetuosos e po-
tentes; ainda desejava amor e companhia, que me eram recusados com
desprezo. Não havia nisso injustiça? Devo ser considerado o único cri-
minoso, quando toda a humanidade pecou contra mim? Por que não
odeia Félix, que afugentou seu amigo da porta com insolência? Por que
não execra o homem rude que tentou destruir o salvador de sua crian-
ça? Não, esses são seres virtuosos e imaculados! Eu, o miserável e o
abandonado, sou um aborto a ser rejeitado, chutado e pisado. Mesmo
agora, meu sangue ferve ao rememorar tais injustiças.
“Mas é verdade que sou um desgraçado. Matei seres adoráveis e de-
samparados. Estrangulei o inocente enquanto dormia e apertei com for-
ça o pescoço que nunca causou mal a mim ou a qualquer outro ser vi-
vente. Entreguei meu criador, um espécime em tudo digno de amor e
admiração entre os homens, à miséria. Persegui-o até a ruína irremediá-
vel. Ei-lo aqui; jaz alvo e gélido pela morte. Detesta-me, mas seu des-
dém não se equipara ao que nutro por mim mesmo. Olho para as mãos
que executaram o ato. Penso na alma em que ele foi imaginado e anseio
pelo momento em que tais mãos encontrarão meus olhos, quando a
imaginação não assombrará mais meus pensamentos.
“Não temas. Não serei o instrumento de danos futuros. Minha obra
está quase completa. Nem sua morte, nem a de qualquer homem é ne-
cessária para consumar o curso de minha existência e realizar o que de-
ve ser feito, apenas a minha é exigida. Não pense que serei lento em rea-
lizar tal sacrifício. Deixarei seu navio na balsa de gelo que me trouxe pa-
ra cá e rumarei para o extremo norte do globo. Farei uma pira funerária
e consumirei nas chamas esta carcaça miserável, de modo que meus res-
tos não possam lançar luzes para nenhum patife curioso e ímpio que
possa criar outro como eu. Morrerei. Não sentirei mais as agonias que
neste momento me consomem ou serei presa de sentimentos insatisfei-
tos e inextinguíveis. Aquele que me trouxe à vida está morto; e quando
eu deixar de existir, a própria lembrança de ambos se esvairá rapida-
mente. Não mais verei o sol ou as estrelas ou sentirei o vento bater em
meu rosto. Luz, sentimentos e sentidos morrerão. Alguns anos atrás,
quando as imagens que o mundo oferece mostraram-se a mim pela pri-
meira vez, quando senti a calidez consoladora do verão, ouvi o rumor
das folhas nas árvores, o gorjeio dos pássaros e isso era tudo para mim,
teria lamentado a morte que, agora, é meu único consolo. Contaminado
por crimes e destruído pelo mais amargo remorso, onde encontrar re-
pouso senão na morte?
“Adeus! Deixo-o e, em ti, o último ser humano que estes olhos ja-
mais contemplarão. Adeus, Frankenstein! Caso ainda estivesse vivo e
acalentasse o desejo de vingar-se de mim, este seria mais bem saciado
por minha vida do que por minha destruição. No entanto, não foi o ca-
so. Buscou minha extinção, de modo que não causasse tanta miséria e,
ainda assim, de uma maneira por mim desconhecida, não cessou de pen-
sar e sentir, não desejou contra mim uma vingança maior do que aquela
que sinto. Maldito como foi, minha agonia se mostrou ainda mais excel-
sa que a sua, pois o aguilhão amargo do remorso não deixará de infla-
mar-se em minhas chagas até que a morte as cure para sempre.
“Todavia, em breve — bradou com entusiasmo triste e solene —
morrerei, e o que agora sinto não terá mais lugar. Logo, essa sina chega-
rá ao fim. Subirei triunfante em minha pira fúnebre e exultarei na agonia
das chamas torturantes. O clarão desse fogo se desvanecerá; minhas cin-
zas serão varridas pelo vento em direção ao mar. Meu espírito repousará
em paz; ou se raciocinar, certamente, assim não o fará. Adeus.”
Assim que terminou de proferir tais palavras, a criatura saltou pela
janela do camarote para a balsa de gelo próxima à embarcação. E logo
foi levada para longe pelas ondas, perdendo-se na escuridão e na distân-
cia.
—fim—
SOBRE FRANKENSTEIN
OU
o Prometeu moderno.*
Por volta das onze horas da manhã, no mês de setembro, dois estranhos
desembarcaram na pequena baía formada pela ponta extrema do cabo
Miseno e do promontório de Bauli. O céu era de um azul sereno e o
mar refletia sua profundidade com uma tonalidade ainda mais escura.
Através da água clara, era possível ver as algas de várias e belas cores
crescendo nos destroços dos palácios romanos agora engolidos pelo
oceano. O sol brilhava forte, provocando um calor insuportável. Os es-
tranhos, ao desembarcar, imediatamente procuraram um lugar à sombra
onde pudessem se refrescar e se abrigar até que o sol começasse a se pôr
no horizonte. Eles buscaram os Campos Elíseos e, serpenteando entre
os choupos e as amoreiras adornadas pelas uvas que pendiam em cachos
abastados e maduros, sentaram-se sob a sombra das tumbas ao lado do
mar Morto.
Um desses estranhos era um inglês de alta posição, como podia ser
facilmente percebido por sua carruagem nobre e maneirismos cheios de
dignidade e liberdade. Seu companheiro — não posso compará-lo a na-
da que existe agora — tinha uma aparência semelhante à da estátua de
Marco Aurélio, na praça do Capitólio, em Roma. Plácidas e autoritá-
rias, suas feições eram romanas; à exceção de suas vestes, você o teria
imaginado como uma estátua de um dos romanos trazida à vida. Ele
usava roupas agora comuns em toda a Europa, mas que pareciam inade-
quadas para o homem, como se estivesse pouco habituado a elas. Assim
que se sentaram, ele começou a falar desta maneira:
— Prometi relatar-lhe, meu amigo, quais foram minhas primeiras
impressões em meu renascimento e como a aparência deste mundo, de-
cadente em comparação a como era antes, me surpreendeu quando a luz
do sol revisitou meus olhos depois de tê-los abandonado há muitas cen-
tenas de anos. E não poderia escolher um lugar melhor para esse relato.
Este foi o local escolhido por nossa antiga e venerável religião, por ser o
que melhor representava a ideia que os oráculos ofereceram ou que os
profetas receberam dos alegres descansos após a morte. Estes são túmu-
los de romanos. Este lugar foi muito mudado pela mão sacrílega do ho-
mem desde aqueles tempos, mas ainda preserva o nome de Campos Elí-
seos. Averno fica a uma curta distância daqui, e este mar que observa-
mos é o Mediterrâneo, azul e impassível, enquanto todo o resto carrega
as marcas da servidão e da degradação.
“Perdoe-me; você é um homem inglês e dizem que é livre em seu
país, um pais desconhecido na época em que vivi, mas os miseráveis ita-
lianos, que usurpam o solo antes pisado por heróis, enchem-me com
um desdém amargo. Eles ousam usurpar o nome dos romanos; ousam
imaginar que descendem dos lordes e governantes do mundo? Esque-
cem que, quando a república morreu, todas as famílias romanas antigas
foram aos poucos se extinguindo e que seus descendentes podem usur-
par o nome, mas nunca foram e nunca serão romanos.
“Quando vivi antes, foi no tempo de Cícero e de Cato. Minha clas-
sificação não era a maior nem a menor em Roma: eu era um cavaleiro
romano. Não vivi para ver meu país escravizado por César, que durante
minha existência se notabilizava apenas por seu comportamento debo-
chado. Morri quando tinha cerca de quarenta e cinco anos, defendendo
minha nação contra Catilina. Naquele tempo, os bons homens de Roma
lamentavam amargamente o declínio moral na cidade. Mário e Sula já
haviam nos ensinado algumas das angústias da tirania, e eu estava acos-
tumado a lamentar o dia em que o Senado parecia um conjunto de semi-
deuses. No entanto, que homens viveram naquela época? A república se
manteve gloriosamente como o sol de um dia brilhante de verão. Como
eu poderia me desesperar com meu país enquanto homens como Cíce-
ro, Cato, Lúculo e muitos outros que eu conhecia como cheios de vir-
tude e sabedoria, que eram meus amigos íntimos e queridos, ainda exis-
tiam?
“Não preciso incomodá-lo com a história de minha vida. Nos tem-
pos modernos, as circunstâncias domésticas parecem ser a parte da his-
tória de cada homem que mais vale a pena investigar. Em Roma, a histó-
ria de um indivíduo era a de sua terra. Vivíamos no Fórum e na sede do
Senado. Minha família sofreu com as guerras civis: meu pai foi morto
por Mário, e meu tio, que cuidou de mim durante a infância, foi banido
por Sula e assassinado por seus emissários. Minha fortuna foi diminuída
consideravelmente por tais desgraças domésticas, mas eu vivia frugal-
mente e preenchi com honra alguns dos mais altos cargos do estado.
Cheguei, inclusive, a ser cônsul.
“Nem tampouco relatarei agora o que seria de grande interesse para
você. Tudo que sei a respeito desses grandes homens cujas ações, mes-
mo a esta distância no tempo, lhe são intimamente familiares. Esses te-
mas têm formado, e vão formar, uma fonte inesgotável de conversa du-
rante o tempo que permanecermos juntos, mas, por ora, prometi relatar
o que senti e vi quando revisitei, três anos atrás, esta decadente Itália.
“Quando me aproximei de Roma, fiquei agitado por milhares de
emoções. Recusei-me a ver qualquer coisa ou a falar com qualquer pes-
soa. Mudo em um canto da carruagem, reunia meus pensamentos: em
alguns momentos, achando que meu companheiro era indigno de minha
atenção; em outros, ainda me agarrando obstinadamente ao meu amado
país, como uma mãe faria à memória de seu filho perdido, duvidando de
tudo que eu tinha escutado, de tudo que aqueles padres tinham me dito.
Achava que era uma conspiração contra mim. Recusei-me a falar com
aqueles que encontramos pela estrada, para que seu dialeto alterado não
esmagasse minha última esperança. Não queria visitar paisagem alguma.
A cidade eterna sobreviveu em toda a sua glória. Ela não pode morrer;
no entanto, ainda que estivesse morta, eu ficaria em silêncio entre as ru-
ínas de seu Fórum até derramar minha última lágrima, e minhas pala-
vras despertariam os mortos para que me ouvissem. ‘Cícero… Cato…
Pompeu… Estão realmente mortos? Todos os vestígios de seus trajetos
desgastaram-se. Ainda assombram o Fórum? Levantem-se, acordem…
Deem as boas-vindas a mim!’
“O padre se esforçou em vão para me tirar do devaneio. Minhas fei-
ções foram estampadas pela tristeza, mas não respondi. Depois de al-
gum tempo, ele exclamou: ‘Contemple o Tibre!’. Adorável rio! Para
sempre rolará em suas águas eternas; suas ondas cintilam ao sol ou são
sombreadas pelas nuvens trovejantes; seu nome age como um feitiço.
Lágrimas jorraram de meus olhos. Desci da carruagem, corri até a mar-
gem e, de joelhos, ofereci-lhes, nomes sagrados de Júpiter e Palas, juras
que fizeram meus lábios tremerem e a luz quase sumir de meus olhos:
‘Oh, Júpiter… Júpiter do Capitólio… você, que contemplou tantos
triunfos, que ainda possam existir seus templos, que ainda as vítimas se-
jam levadas aos seus altares! Minerva, proteja sua Roma’. Naquele mo-
mento de oração agonizante, o destino de meu país parecia ainda inde-
ciso; a espada ainda estava pendente. Eu não podia acreditar que tudo
de grande e bom havia partido.
“Em vão meu companheiro tentou me afastar das margens do divi-
no rio. Permaneci sentado imóvel perto dele; meus olhos não se perde-
ram na paisagem circundante que tinha mudado, mas se fixaram nas
águas ou se elevaram ao céu azul brilhante acima. ‘Estas… estas, pelo
menos, são as mesmas… sempre, sempre as mesmas!’, eram as únicas
palavras que eu proferia quando, de tempos em tempos, a queda de meu
país, com a feroz agonia do fogo, passava pela minha mente. O padre
tentou me acalmar, e fiquei em silêncio. Passado algum tempo, a força
da paixão se apoderou de mim e, após muitas horas de um combate in-
sano, fui levado com sofrimento para a carruagem; então, depois de fe-
char as cortinas, entreguei-me a um devaneio cuja amargura só era en-
fraquecida por minha força perdida.
“Era noite quando entramos em Roma. ‘Amanhã’, disse meu com-
panheiro, ‘vamos visitar o Fórum.’ Assenti. Não queria que ele me
acompanhasse e, portanto, recolhi-me cedo sem revelar minhas inten-
ções. Porém, tão logo me encontrei livre de impertinência, requisitei um
guia e fui depressa visitar o local de toda a grandeza humana. A lua ti-
nha se erguido e lançava uma luz brilhante sobre a cidade de Roma; se é
que posso chamar de Roma esta que em nada se assemelha à rainha das
nações, como eu a recordava. Passamos ao longo do Corso e vi diversos
obeliscos magníficos, os quais pareciam me dizer que a glória de minha
terra não tinha morrido. Demorei-me ao lado da Coluna de Antonino,
que tinha afundado no solo e, cercada por ruínas de quarenta outras co-
lunas, imprimiu a ideia de decadência em minha mente. Meu coração
batia com receio e indignação quando me aproximei do Fórum por ca-
minhos que desconhecia. E o feitiço se rompeu quando contemplei as
colunas destruídas e os templos em ruínas do Campo Vaccino — por
esse nome vergonhoso, era agora conhecido o Fórum Romano. Olhei
ao redor, mas nada era como antes — vi ruínas de templos construídos
depois do meu tempo. O Coliseu era estranho para mim, e eu tinha a
impressão de que o estado alterado destas magníficas ruínas tivesse su-
bitamente saciado o entusiasmo de indignação que meu coração antes
possuía. Jamais ousara me sujeitar à imagem do Fórum Romano, degra-
dado e despedaçado, mas uma vaga ideia de colunas quebradas flutuava
em minha mente, como recordava as imagens caídas de deuses ainda
deixadas para se decompor em um local onde eu anteriormente os ado-
rava; entretanto, tudo estava mudado, e até mesmo as colunas que resta-
vam do templo erguido por Camilo perderam sua identidade, rodeadas
pelos novos candidatos à imortalidade. Voltei-me calmamente para meu
guia e perguntei: ‘Estas são as ruínas do Fórum Romano, e o que é
aquele prédio imenso, cuja sombra ao luar parece evidenciar algo mara-
vilhoso e magnífico, que vejo no final da avenida arborizada?’. ‘Aquele
é o Coliseu.’ ‘E o que é o Coliseu?’ ‘Você não sabe? É a famosa arena
construída por Vespasiano, imperador de Roma.’ ‘Ele foi imperador de
Roma? Bem, vamos visitar o monumento.’ Entramos no Coliseu, aque-
la nobre relíquia da imperial grandeza; imperial, é verdade, mas romana.
E o entusiasmo que as colunas quebradas do Fórum haviam suprimido
foi mais uma vez despertado por esta maravilhosa construção. A lua
brilhava através dos arcos quebrados e resplendecia pelas paredes desa-
badas, cobertas por ervas daninhas e espinheiros. Olhei em volta e um
assombro sagrado se apoderou de mim. Senti como se tendo desertado
Campo Vaccino, este se tornou o refúgio de meus nobres compatriotas.
O selo da eternidade estava neste prédio, e meu coração se agitou com
as sensações avassaladoras com as quais foi trabalhado. Não emiti uma
única palavra.
“Ai de mim! Esta é a imagem da Roma decadente, destruída, degra-
dada por uma superstição odiosa; mas ainda inspirando amor e honra; e
ainda despertando na imaginação dos homens tudo que pode purificar e
enobrecer a mente. O Coliseu é o estilo de Roma. Seus arcos, seus már-
mores, seu aspecto nobre, que deve ter inspirado assombro em todos,
algo que, na mente do homem, é semelhante à adoração; sua maravilho-
sa e indescritível beleza — tudo fala de sua grandeza. Suas paredes em
ruínas, seus contrafortes cobertos de ervas daninhas e, mais do que tu-
do, as ofensivas imagens com as quais está preenchido — tudo retrata
sua decadência.
“Dispensei meu guia. Pretendia nunca mais sair do Coliseu; esta de-
via ser minha morada durante minha segunda residência na Terra. Visi-
tei cada pedaço dele. De seu alto, observei Roma dormindo sob os raios
frios da lua: a cúpula de São Pedro e as diversas outras cúpulas e torres
que formam uma segunda cidade, as habitações dos deuses acima das
habitações dos homens; o Arco de Constantino aos meus pés; o Tibre e
a grande mudança na disposição da cidade nos tempos modernos; tudo
me chamava a atenção, embora despertando apenas um vago e passagei-
ro interesse. Desde então, o Coliseu se tornou o mundo para mim, mi-
nha morada eterna. É verdade que a curiosidade e a urgência me arrasta-
ram agora para longe dele — mas minha ausência será curta, e meu co-
ração ainda está lá. Objetivo retornar. E naqueles recintos sagrados,
derramarei, antes de morrer, minha última chamada de despertar para os
romanos e para a liberdade.
“É verdade que agora eu já estava convencido da queda de Roma,
que seus cônsules e triunfos estavam no fim, os templos de seu Capitó-
lio, destruídos. No entanto, o Coliseu tinha suavizado esses sentimen-
tos cujo vigor, de outra maneira, teria me destruído. Raiva, desespero;
toda forma de paixão humana se extinguiu dentro de mim. Dediquei-
me, peregrinando por alguns anos, a um mundo de cujas atrações sou
um espectador desatento. Se Roma está morta, fugirei de seus restos,
tão repugnantes quanto aqueles da vida humana. É somente no Coliseu
que reconheço a grandeza de meu pais, aquele é o único refúgio digno
para um romano antigo.
“No entanto, subitamente, a sensação tão terrível para a mente hu-
mana, que é o sentimento de solidão absoluta, operou uma nova mu-
dança em meu coração. Lembrei-me como se fosse ontem de toda a os-
tentação que a antiga Roma apresentava. Sentado sob um dos arcos do
edifício e escondendo o rosto entre as mãos, revivi em minha imagina-
ção a memória do que eu deixara quando perdi pela última vez a luz do
dia. Deixara os cônsules desfrutando de pleno poder. Alguns anos antes,
o império, subjugado por Mário e Sula e não suportado pela virtude de
nenhum deles, parecia cambalear à beira da rendição. Porém, durante
minha vida, um novo espirito havia surgido: homens foram novamente
vivificados pela chama sagrada que queima nas almas de Camilo e Fa-
brício, e eu regozijava com uma alegria excessiva por ser amigo de Cíce-
ro, Cato e Lúculo; os homens mais jovens, filhos de meus amigos, Bru-
to e Cássio, surgiam com a promessa de igual virtude. Quando morri,
fui tomado pela forte convicção de que, uma vez que a filosofia e as le-
tras estavam agora unidas a uma força sem precedentes sobre a terra,
Roma estava se aproximando de uma perfeição impassível ao retroces-
so; e que, embora os homens ainda tivessem medo, era um temor salutar
que lhes despertou para a ação e melhor garantiu o triunfo do bem.
“Quando acordei, Roma não existia mais. Aquela luz, que eu tinha
saudado como uma precursora da perfeição, transformara-se nas tochas
que acrescentaram esplendor ao seu funeral, e aqueles homens, cujas al-
mas eram como templos da perfeição, foram as vítimas sacrificadas em
sua pira funerária. Oh! Nunca uma nação sofreu tal morte, e seus assas-
sinos celebraram tais jogos ao redor de seu túmulo, destruindo quase
metade do mundo. Não eram os combates de gladiadores e feras, mas a
luta feroz das paixões em disputa, uma guerra de milhões.
“Todavia, tudo isso agora acabou. O regozijo do tirano desaparece-
ra. O monumento de Roma, tão esplêndido ao longo dos séculos e
adornado pelos despojos de reinos, está agora degradado e coberto pela
poeira. Certas colunas e alguns arcos espalhados sobreviveram para de-
marcar seu lugar, mas o povo dela está morto. Os estranhos que se
apossaram da terra perderam todas as características dos romanos; afas-
taram-se de sua santa religião. A Roma moderna é a capital do cristia-
nismo, e esse título coroa e sublima meu desespero.
“Porém a linguagem humana fracassa no esforço de descrever a
enorme mudança operada no mundo; é verdade que tenha se dado no
lento fluxo de muitos séculos, embora me pareça, em minha singular si-
tuação, um trabalho de poucos dias. Não posso recordar a agonia da-
queles momentos sem estremecer. Não eram pensamentos amargos; não
se tratava de um desespero que dava nos nervos sem deixar marcas ex-
ternas, tampouco era a primeira pontada de dor pela perda daqueles que
amamos. Foi um incêndio feroz que envolveu florestas e cidades em su-
as chamas; uma tremenda avalanche que abateu árvores, fez desmoronar
pedras e inverteu o curso dos rios; foi um terremoto que sacudiu o mar,
derrubou montanhas e ameaçou revelar aos olhos do homem os misté-
rios do interior da Terra. Oh! Era mais do que tudo isso! Mais do que
qualquer palavra pode expressar ou qualquer imagem retratar!”
O estranho fez uma pausa em sua narração, e um longo silêncio se
seguiu. Seus olhos estavam fixos nas águas inertes diante dele, e seu
companheiro o olhou com admiração e emoção. Uma brisa passou li-
geiramente acima do mar e o ondulou; seu sussurrar foi ouvido entre as
árvores. Essa mínima mudança despertou o romano de seu devaneio, e
ele continuou.
— Um ano se passou desde que estive pela primeira vez dentro do
Coliseu. As abundantes ervas daninhas parecem mais escuras sob os rai-
os da lua, e os arcos decadentes se erguem em quietude e beleza. O ar
estava em silêncio: era a calada da noite, e nenhum som vindo da cidade
chegava até mim, mas a lua havia descido aos poucos e raiou a luz do
dia. Os sons da vida humana começaram, e meus próprios pensamentos,
que durante a noite estavam relacionados apenas com recordações, ago-
ra se voltavam para a lamentável e degradada realidade. Ponderei minha
situação atual, pois desejava formular algum plano para o futuro. Não
gostava nem um pouco do padre que me acompanhava. Durante o cur-
tíssimo período de residência desde meu retorno à vida, desenvolvera
uma enorme aversão à classe de homens à qual ele pertencia. Eu me
opunha à superstição católica e desejava não me envolver com seus pas-
tores e empregados. As joias e o dinheiro que eu tinha eram suficientes
para meu sustento, e eu queria me livrar da submissão que a presença
dele parecia me impor. Contudo, embora fosse minha Roma nativa, eu
estava em uma cidade estranha, com costumes desconhecidos. Pouco
compreendia a língua, e as lembranças de minha vida anterior apenas
me fariam incorrer em erros ridículos. Foi então que uma divindade
bondosa interferiu e, enviando um gênio bom para cuidar de mim, li-
vrou-me das dificuldades.
“O velho padre, quando descobriu, na manhã seguinte, que eu tinha
desaparecido, enviou o guia que tinha me conduzido na noite anterior,
para me levar de volta, e ele mesmo iniciou uma série de visitas para di-
fundir a singularidade que tinha sob sua guarda. Entre outros, visitou
lorde Harvey, que era há muito tempo residente de Roma e a quem co-
nhecia muito bem. Você conhece lorde Harvey e sua família. Não preci-
so, portanto, descrevê-los; e, conhecendo o caráter de sua jovem esposa,
pode facilmente imaginar o interesse e a curiosidade que o relato do ve-
lho padre inspirou nela. Ela ordenou que trouxessem sua carruagem e,
levando o padre consigo, seguiu às pressas ao hotel para me ver. Eu não
havia retornado; o guia que tinha ido me buscar informou que eu me
recusara a sair do Coliseu. Ela deixou o padre na estalagem e, acompa-
nhada apenas de seu filho pequeno, veio ao meu retiro.
“Eu estava sentado sob os arcos em ruínas do lado sul quando a vi
se aproximando, trazendo o filho pela mão. Ela se sentou ao meu lado
e, após uma pausa de alguns segundos, dirigiu-se a mim em italiano:
‘Perdoe-me se o estou interrompendo. Falei com o padre Giuseppe e sei
quem você é. Você está infeliz e foi atirado em nosso mundo moderno
sem amigos ou conexões. Permite que eu lhe ofereça minha amizade?’.
Fiquei confuso com esse discurso, dirigido a mim por uma moça bonita
que era a mim completamente estranha, e fiz uma pausa antes de res-
ponder sua muito gentil, ainda que incomum, oferta. Ela continuou:
‘Considere-me, eu lhe peço, como uma velha amiga, e não uma italiana
moderna, pois de fato não o sou, mas como um daqueles muitos estra-
nhos que sua antiga cidade atraia para contemplá-la. Venho de um pais
distante e, portanto, desconheço sua língua e suas leis. Você precisa me
ensinar tudo que era grande e valoroso em seus dias, e eu lhe ensinarei
os hábitos e costumes dos nossos’.
“Expressou-se dessa maneira e me conquistou com seus doces sorri-
sos e suave eloquência, de forma que confiasse inteiramente nela. ‘Você
deve me considerar como sua filha’, disse, ‘se é que uma garota escocesa
pode ter tal honra. Venho daquela terra distante descoberta por César,
mas desconhecida em seus dias. Sou casada com um cavalheiro inglês
muito mais velho do que eu, mas que tem prazer em cultivar minha
mente. Venha comigo para nossa casa; lá será apreciado e homenageado,
e tentaremos aliviar as dores que o estado arruinado de seu país deve lhe
infligir.”
“Eu a segui até a casa e, naquele dia, comecei essa amizade que é a
única esperança e o conforto atípico de minha existência. Se em meu re-
torno à vida meu afeto nunca tivesse sido despertado, não teria sobrevi-
vido por muito tempo. Isabell, contudo, amenizou meu desespero e cu-
rou com carinho angelical todas as feridas de meu coração. Não sei nem
dizer o quanto a amo, o quão caro o som de sua voz é para mim. Cícero
não ama sua Túlia tanto quanto amo esta criatura divina. Não pode
imaginar sequer a metade de suas virtudes ou de sua sabedoria. Ela é tão
sincera de coração e, ainda assim, tão sensível, que conquistou minha al-
ma e me prendeu na dela de uma maneira que jamais experimentei em
minha vida anterior. Ela é meu país, meus amigos — tudo, tudo que
perdi, ela significa para mim.
“E agora cumpri a promessa de lhe relatar as primeiras impressões
que tive ao despertar para a vida. Não é necessário fazer uma narrativa
formal do que tenho aprendido desde então. Durante nossa viagem, te-
remos muitas oportunidades de conversar e discutir. Você me despertou
um desejo de conhecer seu pais, e amanhã embarcaremos. Despeço-me
de Roma, do Coliseu e de Isabell — tal é minha natureza inquieta. An-
tes de morrer mais uma vez, desejo examinar as alardeadas melhorias
dos tempos modernos e julgar se, depois da grande dedicação aos as-
suntos humanos, o homem está mais próximo da perfeição do que esti-
vera em meu tempo.”
O sol havia descido bastante quando os amigos se levantaram e vol-
taram para o barco. Conforme remavam de volta para Nápoles, o astro
se pôs, emprestando uma rica tonalidade alaranjada ao céu que queima-
va sobre as águas, enquanto o cabo Miseno e as ilhas se destacavam por
um contorno escuro no horizonte. A lua surgiu do outro lado da baia e
contrastava sua luz prateada com as cores incandescentes do pôr do sol
italiano. A noite avançava e as luzes dos barcos pesqueiros cintilavam
pelo mar, enquanto um ou dois grandes navios passavam como enormes
sombras entre os observadores e a lua. O brilhante espetáculo do poen-
te e a suave luz do luar convidavam ao devaneio, e às palavras não era
permitido perturbar a magia da cena. O velho romano talvez tenha pen-
sado nos dias que havia passado em Baia, quando o sol eterno tinha se
retirado como fazia agora, em uma época em que vivia outros dias e na
companhia de outros homens.
[A narrativa acaba neste ponto; no entanto, outra versão, mais frag-
mentada, contada do ponto de vista de Isabell, segue no manuscri-
to.)
Depois que tirei meu singular amigo de sua solidão no Coliseu, instalei-
o, com o consentimento de lorde Harley, em um quarto de nossa casa.
A princípio, evitava a companhia de qualquer pessoa e estava com os
ânimos tão deprimidos que sua saúde foi afetada. Percebi que precisava
me empenhar mais a fim de despertar seu interesse e esforçar-me de to-
das as maneiras para afastá-lo da apatia em que mergulhara. Ele parecia
considerar todas as coisas ao redor como um espetáculo que não lhe di-
zia respeito. Era, de fato, um ser extirpado de nossa realidade; os víncu-
los que antes o ligavam ao mundo tinham se rompido muitos séculos
atrás; e, a menos que eu tivesse êxito em reconstruir pelo menos um de-
les, ele logo iria perecer. Queria convencê-lo a visitar algumas das impo-
nentes ruínas que atestam a antiga grandeza de Roma. Hesitei algum
tempo na minha escolha; as edificações mais majestosas tinham sido
construídas depois de sua época, mas achei que, por estarem situadas
em lugares familiares à sua memória, poderiam despertar-lhe um inte-
resse que, de outra forma, não seria aguçado pelo fato de lhe serem des-
conhecidas. De minha parte, deleitava-me ao visitar as termas de Anto-
nino, cujos montes de escombros de muros e torres, cobertos pela hera
e a mais bela vegetação, mais pareciam o cenário natural de uma monta-
nha do que qualquer coisa desenvolvida por mãos humanas. Eu estava
determinada a levá-lo até essas nobres ruínas.
Visitei-o, portanto, um dia; e, conduzindo a conversa para sua vida e
morte anteriores, disse-lhe: “Você foi feliz em morrer antes da queda de
seu país e em não testemunhar sua degradação pelas mãos dos impera-
dores. Estes, que se sucederam ao poder e à glória da república, desfru-
tavam de uma autoridade extensa e de uma receita da qual nunca se ou-
viu falar em épocas passadas ou futuras. Selvagens e tremendos foram
os atos e erros dos homens onipotentes. Seus inimigos não podiam fugir
deles. Pisotearam à vontade os pescoços de milhões. Poucos usaram sua
autoridade para fins benevolentes, mas muitos, inclusive os mais perver-
sos, investiram na magnificência. Abandonaram monumentos maravi-
lhosos, e não posso considerar tais maravilhas como atos de grandeza
imperial. Eles são o resultado, embora tenham sido executados por
mãos impróprias, da virtude e da força republicanas. Quando os visitei,
admirei-os como planejados e modificados por Camilo, Fabrício, Cipi-
ão, e considero Caracala e Nero, e até mesmo os mais virtuosos da tri-
bo, Tito e Adriano, como meros operários. Quando visitei o Coliseu,
não pensei em Vespasiano, que o construiu, ou no sangue dos gladiado-
res e das feras que o contaminou, mas idolatrei o espirito da Roma An-
tiga e daqueles nobres heróis que livraram seu pais dos bárbaros e que
iluminaram o mundo todo com sua milagrosa virtude. Eu o ouvi ex-
pressar uma aversão diante da visão de obras dos opressores de Roma,
mas visite-as comigo com este espírito e você se verá arrebatado por
aquele assombro e reverência que o poder, adquirido e acompanhado
pelo vicio, jamais poderá propiciar”.
Ele se permitiu ser persuadido, e passamos sob o Capitólio e na par-
te de trás do monte Palatino em nosso caminho para as termas. O prin-
cipal sitio da Roma Antiga estava deserto, e visitamos o Fórum e a mais
populosa das colinas da cidade por meio de trilhas cobertas de grama e
através de campos pelos quais poucas pessoas passaram. Isso é muito
bom; as ruínas teriam perdido metade de sua beleza se estivessem rode-
adas por edifícios modernos, e só temos a lamentar que o Capitólio não
tenha sido negligenciado como foram o monte Palatino e o monte Cé-
lio. Não sei dizer quais eram os sentimentos de Valério: suas emoções
eram fortes, mas ele permaneceu em silêncio, embora sempre lançando
os olhos ao céu; e uma vez disse: “Gosto de olhar para os céus, e só para
eles, pois não estão mudados”. Entramos nas termas e, depois de visitar
todos os recintos, subimos a escadaria despedaçada e passamos sobre os
imensos arcos e muros, os quais, quando se está sobre eles, parecem
campos, vales e colinas íngremes. Estávamos cercados por uma vegeta-
ção perfumada, cuja altura de cada lado da passagem enganava o olhar e
acrescentava ainda mais grandeza à extensão das ruínas pelas quais ca-
minhávamos. Às vezes, o topo de algum contraforte se espalhava por
um campo coberto pelas mais belas flores. E agora, serpenteando por
um caminho difícil, chegamos ao topo de uma torre e vimos Roma in-
teira, com as curvas do Tibre a uma curta distância de nós. Este é, de to-
dos os lugares, o que mais me agrada visitar em Roma: ele une a beleza e
a fragrância da natureza à ideia mais sublime do poder humano; e,
quando juntos dessa maneira, despertam um interesse e um sentimento
que penetra profundamente em meu coração.
Sentamo-nos sobre este cume, e busquei nos olhos de meu compa-
nheiro uma expressão de admiração e deleite que fazia cintilar os meus.
Seus olhos estavam cheios de lágrimas.
— Você me trouxe aqui — disse ele — para ver as obras dos roma-
nos, e não vejo nada além de destruição. Inúmeros belos templos redu-
zidos a pó. Meus olhos vagueiam sobre as sete colinas, e todas as suas
glórias estão esvanecidas. Quando as colunas de seu Fórum foram des-
truídas, o que poderia sobreviver em Roma? O Capitólio, menos feliz
do que a maioria dos outros montes que voltaram à solidão da natureza,
está contaminado por edifícios modernos. E estas ruínas são grandiosas,
mas que história miserável elas contam. Estas termas para banhos públi-
cos não existiam em minha época. Existiram, em toda sua magnificên-
cia, algumas centenas de anos depois de eu abandonar o mundo. Agora,
porém, seus tetos desabaram; suas calçadas desapareceram; estão toma-
das por grama, mato e ervas daninhas; em ruínas, mas ainda irredutíveis;
e tal é a imortalidade de Roma. As muralhas ainda estão de pé e descre-
vem um imenso circuito; a cidade moderna está preenchida com as ruí-
nas da antiga. Estranhos migram para ela e admiram a imensidão dos
destroços. Contudo, para mim, tudo parece vazio. Os antigos templos
onde eu adorava Quirino e os protetores do que eu então chamava de
cidade imortal… oh, fui despertado apenas para ser desiludido!
— Você insiste — respondi — nas ideias mais tristes. Roma está caí-
da, mas ainda é venerada. E, para mim, singular e até mesmo bonito ver
o cuidado e sofrimento com que seus filhos degenerados preservam su-
as relíquias. Cada um a visita com entusiasmo e se separa dela com
amargo pesar. Tudo parece excelso dentro de seus muros. Quando um
estrangeiro se hospeda em seus limites, ele se sente como habitando um
templo sagrado — sagrado, embora maculado; e com indignação e pie-
dade misturadas à admiração, sente essas sensações que suavizam seu
coração e que nunca podem ser esquecidas, nem mesmo em tempos de
aflição. Parece-me que, se eu fosse surpreendida pelas maiores desgra-
ças, ficaria parcialmente consolada pela lembrança de ter morado em
Roma. Se um homem da época de Péricles revivesse em Atenas, teria
muito mais motivos para lastimar o declínio de sua cidade do que você
teria para lamentar sobre a época e decadência de Roma.
Como eu desejava despertar os sentimentos de Valério, e não apenas
para mostrar-lhe o que restava de seu país, mas para fazer nascer nele
um senso de que ainda estava em algum nível ligado ao mundo. Dessa
forma, escolhi tanto quanto pude o que havia de mais perfeito e pitores-
co. Ele ainda não tinha visto o Panteão. Não queria levá-lo para vê-lo
durante o dia, pois sabia que sua conversão para uma igreja católica,
embora provavelmente o tivesse preservado, seria altamente repugnante
para Valério. Escolhi o momento em que a lua ainda estava em seu cres-
cente, pois, quando estivesse em sua altura máxima, ela brilharia sobre o
teto aberto do templo. Certa noite, por volta das sete horas, sem dizer-
lhe para onde estávamos indo, levei-o comigo. Contornamos o prédio
até uma porta nos fundos que estava aberta, e um homem nos iluminou
de um par de escadas sujas e estreitas; enquanto descíamos, falei: “Você
agora está prestes a ver um templo construído logo após seu tempo e
dedicado a todos os deuses”. Ele provavelmente esperava contemplar
mais ruínas, mas então entramos no mais belo templo ainda existente no
mundo. A lua brilhava diretamente sobre a abertura na parte superior,
iluminando a cúpula e o piso — algumas estrelas brilhantes piscaram ao
lado dela. As colunas resplandeciam vagamente ao redor. O espirito de
beleza parecia lançar seus raios sobre sua prole favorecida e penetrava
todas as coisas — até mesmo a mente humana — com um resplendor
suave, mas ainda assim brilhante. Ao contemplar esta cena, a admiração
humana separava-se do sentimento profundo que a inspirou — parecía-
mos desfrutar da presença de um deus. Se a obra provinha de mãos hu-
manas, o resplendor vinha da natureza; e ela derramava toda a sua bele-
za sobre este templo divino. O céu profundo, a lua brilhante e as estre-
las cintilantes espalhavam-se sobre ele, e sua luz e beleza penetravam-
lhe. Por que a linguagem dos homens não é capaz de expressar pensa-
mentos humanos? E como é possível que haja um sentimento inspirado
pelo excesso de beleza, que envolve o coração em uma chama suave,
mas ardente, capaz de inspirar virtude e amor, cuja essência é demasiado
intensa para ser exprimida? Ficamos em silêncio. Caminhamos ao redor
do templo e então nos sentamos nos degraus de um altar e permanece-
mos um longo tempo em contemplação. Em momentos como esse, sen-
timos a existência desse amor panteísta com que a natureza é penetrada
— quando uma forte empatia pela beleza, se tal expressão pode ser per-
mitida, é o único sentimento que anima a alma. Finalmente, enquanto se
levantava para partir, Valério disse: “Por que me falaram que está tudo
mudado? Não existe este templo aos nossos deuses?”. Não sei por que
— eu não deveria ter feito isso, pois, com essa atitude, envenenei um
momento de pura felicidade —, mas descuidadamente apontei para uma
cruz que ficava sobre o altar diante do qual queimava uma solitária lam-
parina. A cruz não alterou meus sentimentos, mas os de meu compa-
nheiro ficaram amargurados. A maçã tão agradável ao olhar havia se
tornado intragável. A cruz lhe revelou uma mudança tão grande, tão in-
tolerável, que essa única circunstância destruiu o amor e a satisfação que
tinham surgido em seu coração. Tentei em vão trazê-lo de volta à pro-
funda sensação de beleza e sagrada reverência com as quais ele havia se
inspirado há pouco. O feitiço havia se quebrado. A cúpula iluminada
pela lua, o piso reluzente, as quase escuras fileiras de adoráveis colunas
e o céu profundo tinham perdido para ele a santidade. Então apressou-
se para sair do templo.
Fiz meu primeiro esforço para despertar nele o desejo de saber o
que de grande e positivo tinha existido em seu pais após sua morte. Ele
não sabia nada de Virgílio, Horácio, Ovídio ou Lucano; de Lívio, Tácito
ou Sêneca. Você terá inúmeras oportunidades de conversar com ele, e
ele poderá lhe dizer, muito melhor do que eu, quais sentimentos essa
palestra despertou em sua mente. Costumávamos visitar um recanto
obscuro do Coliseu, onde nos deslocávamos com dificuldade e para on-
de poucos estariam dispostos a nos seguir; ou nos muros das termas de
Caracala e, mais frequentemente, ao pé do túmulo de Céstio, aquele lo-
cal adorável onde a morte aparece para desfrutar do brilho do sol e da
profundidade do céu azul que o cerca por todos os lados, líamos juntos
e discutíamos sobre nossas leituras — as discussões eram eternas. O sol
intenso de Roma brilhava sobre nós, e o ar e toda a cena envolviam-se
de felicidade e beleza. Meu coração estava alegre e esforçava-me cons-
tantemente para despertar sentimentos semelhantes no peito de meu
companheiro. Lemos as Geórgicas aqui, e senti uma felicidade tão gran-
de ao lê-las, a qual eu não acreditava que pudesse ser concedida pelas
palavras. Era um prazer inebriante, oferecido pelo clima agradável e pe-
la bela poesia ensolarada que ele inspira, o qual, em uma atmosfera nu-
blada, estou convencida de que jamais teria sentido. Após a leitura, visi-
távamos algumas das galerias de Roma; as horas de estudo de lorde
Harvey haviam terminado, então ele sempre nos acompanhava. A visão
das requintadas estátuas e pinturas em Roma continuou e muitas vezes
realçava esse sentimento de prazer. Será que Valério simpatizava comi-
go? Ai de mim! Não. Havia um tom melancólico dominando todos os
seus pensamentos; havia uma tristeza em seu comportamento que o sol
de Roma e os versos de Virgílio não eram capazes de dissipar. Ele sentia
profundamente, mas pouca alegria se misturava ao seu ânimo. Aos de-
mais sentimentos em relação a ele, tinha acrescentado um inexplicável
de que meu companheiro não era um ser da Terra. Muitas vezes eu me
detinha ansiosamente para saber se ele respirava o ar, como eu fazia, ou
se sua forma projetava uma sombra aos seus pés. Seu semblante era o de
um ser vivo; no entanto, ele pertencia aos mortos. Eu não sentia medo
ou terror; o amava e reverenciava. Estava ardentemente interessada em
sua felicidade, mas um temor se misturava a essas sensações mundanas
— não posso chamar de pavor, embora fosse algo levemente relaciona-
do a essa sensação repugnante; um sentimento para o qual não consigo
encontrar um nome, que se misturou a todos os meus pensamentos e
estranhamente caracterizou minha relação com ele. Muitas vezes, quan-
do estava em casa discorrendo sobre meus pensamentos, encontrei o
vislumbre de seus olhos brilhantes, ainda que serenos; embora irradias-
sem apenas simpatia, ainda assim me examinavam. Se ele colocava sua
mão sobre a minha, eu não estremecia, mas, por assim dizer, meus pen-
samentos paravam seu curso e meu coração se agitava com algo como
uma inquietação involuntária, até que ele a retirava. No entanto, tudo
isso era muito ligeiro; eu mal podia notar e não era capaz de diminuir
meu amor e interesse por ele. Talvez se eu conhecesse toda a verdade,
meu afeto aumentaria; e espontaneamente, sem esforço, empenhei-me
em retribuir com interesse e simpatia intelectual a barreira mundana
que parecia se colocar entre nós.
ROGER DODSWORTH:
O INGLÊS REANIMADO
Uma inscrição que, caso venha a ser preservada durante qualquer terrí-
vel convulsão que leve o mundo a começar novamente sua vida, provo-
caria muitas dissertações eruditas e teorias engenhosas a respeito de
uma raça cujos registros autênticos demonstram ter assegurado o privi-
légio de alcançar tão vasta idade.
TRANSFORMAÇÃO
16 de julho de 1833
Esta é uma data memorável para mim. Nela, completo os meus trezen-
tos e vinte e três anos!
O judeu errante?[1] Certamente não. Mais de dezoito séculos se pas-
saram sobre a cabeça dele. Em comparação, sou um imortal muito jo-
vem.
Seria, então, imortal? Essa é uma pergunta que me tenho feito, dia e
noite, pelos últimos trezentos e três anos, e ainda não fui capaz de res-
ponder. Hoje mesmo encontrei um fio de cabelo grisalho em meio aos
meus cachos castanhos, e isso sem dúvida significa decrepitude. No en-
tanto, ele pode ter ficado escondido ali por trezentos anos — afinal, al-
gumas pessoas ficam com o cabelo totalmente branco antes dos vinte.
Contarei minha história e o leitor deve julgar por si. Vou revelar mi-
nha vida e, assim, poderei passar algumas poucas horas de uma longa
eternidade que se tornou demasiadamente enfadonha para mim. Para
sempre! Isto seria possível: viver para sempre? Ouvi falar de encanta-
mentos em que as vítimas foram mergulhadas em um sono profundo e
acordaram, depois de cem anos, com a mesma disposição de antes; ouvi
falar dos sete adormecidos — desta maneira, ser imortal não seria um
fardo muito grande, mas o peso do tempo interminável, a tediosa passa-
gem das horas que se sucedem! Como foi feliz o lendário Nourjahad…!
[2] Mas vamos à minha história.
Todo mundo já ouviu falar de Cornélio Agrippa. Sua memória é tão
imortal quanto suas artes me tornaram. Todo mundo também conhece a
história de seu aprendiz que, por descuido, durante a ausência de seu
mestre, despertou um demônio do mal e foi destruído por ele. O rumor
desse acidente, verdadeiro ou falso, foi acompanhado por diversos in-
convenientes que se apresentaram ao renomado filósofo. Todos os seus
alunos o abandonaram de uma vez só; seus empregados desapareceram.
Ele não tinha ninguém por perto para colocar carvão em suas fornalhas
que queimavam sem descanso enquanto dormia, ou para observar as co-
res mutáveis de suas poções enquanto estudava. Os experimentos falha-
ram um após o outro porque apenas um par de mãos era insuficiente
para completá-los: os espíritos das trevas zombavam dele por não ser
capaz de manter um único mortal ao seu serviço.
Na época, eu era muito jovem, muito pobre e muito apaixonado.
Fora aluno de Cornélio por cerca de um ano, embora estivesse ausente
quando o acidente ocorreu. Quando retornei, meus amigos imploraram
para que não voltasse à residência do alquimista. Estremeci quando ouvi
a história pavorosa que me contaram; não foi necessário um segundo
aviso; e quando Cornélio me ofereceu um saco de ouro caso eu perma-
necesse sob seu teto, senti como se o próprio Satã me tentasse. Meus
dentes bateram, meu cabelo ficou em pé… e corri o mais rápido que
meus joelhos trêmulos permitiram.
Meus passos vacilantes se dirigiram para onde, durante dois anos,
eles eram atraídos todas as noites: uma nascente de água fresca e pura, a
borbulhar levemente, ao lado da qual se demorava uma garota de cabe-
los escuros, cujos olhos radiantes estavam fixos no caminho que eu cos-
tumava trilhar toda noite. Não me lembro de momento algum em que
não tenha amado Bertha; fomos vizinhos e companheiros de brincadei-
ras desde a infância — os pais dela, assim como os meus, eram de ori-
gem humilde mas respeitável, e nosso apego mútuo foi motivo de pra-
zer para eles. Em um mau momento, uma febre maligna levou seu pai e
sua mãe, deixando Bertha órfã. Ela teria encontrado um lar embaixo de
meu teto paterno, mas, infelizmente, uma velha senhora de um castelo
nas proximidades — rica, sem filhos e solitária — declarou sua intenção
de adotá-la. Desde então, Bertha passou a se vestir com seda, habitava
um palácio de mármore e consideravam-na altamente favorecida pela
sorte. Entretanto, em sua nova condição, entre novos companheiros,
Bertha manteve-se fiel ao amigo de seus dias mais modestos: ela inúme-
ras vezes visitou o chalé de meu pai e, quando foi proibida de continuar
indo, caminhava pelo bosque vizinho e ia me encontrar ao lado da fon-
te, à sombra.
Bertha declarava com frequência que não devia para sua nova prote-
tora obrigação alguma tão sagrada quanto a que nos unia. No entanto,
eu ainda era pobre demais para me casar, e ela se cansou de ficar aflita
por minha causa. Tinha um espirito altivo, porém impaciente, e ficava
irritada com os obstáculos que impediam nossa união. Reencontramo-
nos agora, depois de um tempo afastados, e ela havia sido insistente-
mente assediada em minha ausência; queixou-se de forma um tanto
amarga e quase me repreendeu por ser pobre. Respondi precipitada-
mente:
— Sou honesto, apesar de pobre! Se não fosse, poderia ficar rico em
breve!
Essa exclamação rendeu mil perguntas. Temi chocá-la se revelasse a
verdade, mas ela a arrancou de mim e, em seguida, lançando-me um
olhar de desprezo, disse:
— Você finge amar e tem medo de enfrentar o Diabo por minha
causa!
Protestei dizendo que somente temia ofendê-la, enquanto ela insistia
na magnitude da recompensa que eu receberia. Assim encorajado — hu-
milhado por ela —, guiado por amor e esperança, rindo de meus temo-
res recentes, com passos rápidos e coração leve, voltei para aceitar a
oferta do alquimista e na mesma hora instalei-me em meu posto.
Um ano se passou. Tornei-me possuidor de uma quantia de dinheiro
significante. O hábito havia afugentado meus medos. Apesar da mais
árdua vigilância, jamais deparara com o rastro de um casco fendido,
nem o silêncio zeloso de nossa moradia foi alguma vez perturbado por
uivos demoníacos. Prossegui com meus encontros furtivos com Bertha
e comecei a ter esperança — apenas esperança —, mas não perfeita ale-
gria, pois Bertha imaginava que amor e segurança eram inimigos, e seu
prazer era dividi-los em meu peito. Embora sincera de coração, tinha
modos um tanto levianos, e eu era ciumento como um turco. Despreza-
va-me de mil maneiras, mas nunca reconhecia estar errada. Deixava-me
louco de raiva e, em seguida, forçava-me a lhe pedir perdão. Às vezes,
considerava que eu não era suficientemente submisso e contava a histó-
ria de um rival favorito de sua protetora. Ela estava cercada por jovens
vestidos de seda — os ricos e alegres —; que possibilidade teria o aluno
de Cornélio, vestindo trajes deprimentes, se comparados a eles?
Em certa ocasião, o filósofo exigiu tanto do meu tempo que não fui
capaz de ir ao seu encontro, como de costume. Ele estava envolvido em
alguma obra grandiosa, e fui forçado a permanecer, dia e noite, alimen-
tando as fornalhas e vigiando os preparados químicos. Bertha ficou me
esperando perto da fonte em vão. Seu espirito arrogante se inflamou
com essa negligência, e quando enfim sai às escondidas durante os pou-
cos minutos que me eram atribuídos para descanso, esperando que me
consolasse, recebeu-me com desdém, dispensou-me com desprezo e ju-
rou que qualquer homem, que não aquele incapaz de estar em dois lu-
gares ao mesmo tempo por amor a ela, poderia possuir sua mão. Ela iria
se vingar! E, de fato, o fez. Em meu lúgubre retiro, fiquei sabendo que
ela tinha ido caçar acompanhada por Albert Hoffer. Ele era o favorito
de sua protetora, e os três passaram em cavalgada diante de minha janela
esfumaçada. Tive a impressão de que mencionaram meu nome, seguido
por um riso de escárnio, enquanto os olhos escuros de Bertha fitavam
com desprezo minha moradia.
O ciúme, com todo o seu veneno e tormento, entrou em meu peito.
Ora derramava uma torrente de lágrimas, pensando que nunca poderia
chamá-la de minha; e, sem demora, rogava mil pragas e maldições por
sua inconstância. Contudo, ainda precisava atiçar os fogos do alquimis-
ta e observar as mudanças de suas poções ininteligíveis.
Cornélio estava de vigília há três dias e três noites, sem fechar os
olhos. O progresso de seus alambiques mostrava-se mais lento do que
ele esperava: apesar da ansiedade, o sono pesava sobre suas pálpebras.
Repetidas vezes afastou a sonolência com energia sobre-humana; vez ou
outra, ela lhe roubou a consciência. Fitava os cadinhos melancolicamen-
te.
— Ainda não está pronto — murmurava. — Outra noite se passará
antes que o trabalho esteja concretizado? Winzy, você está alerta, é fi-
el… Você dormiu, meu rapaz, dormiu na noite passada. Olhe aquele
frasco de vidro. O liquido que ele contém é de uma cor rosa suave:
acorde-me no momento em que começar a mudar de cor; até lá, posso
fechar meus olhos. Primeiro ficará branco e depois emitirá lampejos
dourados, mas não espere até que isso aconteça; quando a cor rosada es-
maecer, desperte-me.
Mal pude ouvir as últimas palavras, pois foram murmuradas em so-
nolência. Nem assim ele cedeu totalmente à natureza.
— Winzy, meu rapaz — falou —, não toque no recipiente nem o co-
loque em seus lábios: é um filtro amoroso, um filtro para curar o amor;
não lhe agradaria deixar de amar sua Bertha. Cuidado, não beba!
E ele dormiu. Sua venerável cabeça se afundou no peito e eu mal ou-
via sua respiração regular. Por alguns minutos, observei o recipiente: o
tom rosado do líquido manteve-se inalterado. Então, meus pensamen-
tos devanearam — foram visitar a nascente e se estenderam em milhares
de cenas encantadoras que nunca mais se repetiriam… Nunca! Serpen-
tes e víboras habitavam meu coração enquanto metade da palavra
“Nunca!” se formava em meus lábios. Moça falsa; falsa e cruel! Nunca
mais sorriria para mim como sorriu aquela noite para Albert. Mulher
desprezível e detestável! Eu não ficaria sem vingança: ela veria Albert
expirar aos seus pés, morreria sob minha desforra. Sorrira desdenhosa e
triunfante; sabia de meu infortúnio e de seu próprio poder. Todavia, que
poder tinha ela? O poder de despertar meu ódio, meu desprezo absolu-
to, meu… ah, tudo, exceto indiferença! Se eu pudesse conseguir isso —
se fosse capaz de olhar para ela com desinteresse, transferindo meu
amor rejeitado para uma moça mais leal e sincera, isso seria de fato uma
vitória!
Um lampejo dardejou diante de meus olhos. Esquecera-me da po-
ção do perito; olhei para ela maravilhado: clarões de admirável beleza,
mais brilhantes do que os emitidos pelo diamante quando sobre ele in-
cidem os raios do sol, resplandeciam na superfície do líquido. Um agra-
dável odor perfumado tomou meus sentidos; o frasco parecia um globo
vivo resplandecente, adorável aos olhos e muito convidativo ao paladar.
O primeiro pensamento, instintivamente inspirado pelo sentido mais
grosseiro, foi: “Eu quero… preciso beber”. Levei o frasco aos lábios.
“Isso vai me curar do amor, da tortura!” Já tinha bebido metade do li-
quido mais delicioso jamais provado pelo paladar do homem quando o
filósofo começou a despertar. Assustei-me… derrubei o recipiente… o
fluido inflamou-se e se espalhou reluzente pelo chão, enquanto eu sen-
tia Cornélio apertando meu pescoço e gritando de maneira estridente:
— Desgraçado! Você destruiu o trabalho de minha vida!
O filósofo não percebeu que eu havia bebido parte de sua poção.
Sua noção, com a qual concordei tacitamente, era que eu tinha erguido
o frasco por curiosidade, e que, assustado com seu brilho e os clarões de
intensa luz que emanava, deixara-o cair. Nunca o desmenti. O fogo cau-
sado pela poção foi extinto, a fragrância evaporou-se, ele se acalmou,
como um filósofo deve fazer diante das mais duras provações, e dispen-
sou-me para que eu fosse descansar.
Não tentarei descrever o sono de glória e alegria que inundou minha
alma de serenidade durante as horas restantes daquela noite memorável.
As palavras seriam representações fracas e superficiais do prazer, ou da
felicidade, que tomou conta de meu peito quando acordei. Eu flutuava
— meus pensamentos estavam no céu. A terra parecia o paraíso, e a he-
rança que eu deixaria seria um rastro de prazer. “Isto é estar curado do
amor!”, pensei. “Verei Bertha hoje, e ela encontrará seu amado frio e in-
diferente: feliz demais para ser desdenhoso, porém completamente de-
sinteressado!”
As horas passaram voando. O filósofo, confiante de que havia sido
bem-sucedido e acreditando que poderia sê-lo mais uma vez, recome-
çou o preparo da mesma poção. Ocupou-se com seus livros e suas dro-
gas, e eu tinha um dia de folga. Vesti-me com cuidado; olhei-me em um
escudo antigo, mas muito bem polido, que me servia de espelho; achei
que minha aparência tinha melhorado maravilhosamente. Corri para
além dos limites da cidade, com alegria na alma e a beleza do céu e da
terra ao meu redor. Dirigi os passos rumo ao castelo — podia olhar suas
torres majestosas com leveza no coração, pois estava curado do amor.
Minha Bertha me viu de longe, enquanto eu subia a estrada. Não sei que
súbito impulso animou seu peito, mas, quando me viu, desceu os de-
graus de mármore saltitando com a leveza de uma corça, correndo em
minha direção. Porém, outra pessoa também me avistara. A velha bruxa
de alta estirpe, que se considerava sua protetora, embora fosse sua tira-
na, também tinha me visto; coxeou ofegante até o terraço; uma ama, tão
feia quanto ela, segurava a cauda de seu vestido e a abanava enquanto
ela andava apressada e detinha minha bela moça, dizendo:
— O que é isso, ousada senhora? Aonde vai com tanta pressa? Volte
para sua gaiola, os gaviões estão à solta!
Bertha agarrou as mãos da velha — seus olhos ainda voltados em
minha direção enquanto eu me aproximava. Percebi a disputa. Como eu
execrava a velha encarquilhada que impedia os bondosos impulsos do
coração mole da minha Bertha. Até aquele momento, o respeito por sua
posição fez com que eu evitasse a senhora do castelo; agora, desdenhava
essa fútil consideração. Estava curado do amor e alçado acima de todos
os temores humanos; adiantei-me rapidamente e logo cheguei ao terra-
ço. Como Bertha estava linda! Os olhos faiscantes, as bochechas afo-
gueadas de impaciência e raiva; estava mil vezes mais graciosa e encanta-
dora do que nunca. Eu não mais a amava — oh, não! Eu a adorava, ve-
nerava, idolatrava!
Naquela manhã, ela havia sido pressionada, com veemência mais
acentuada que a costumeira, para que consentisse em se casar de imedia-
to com meu rival. Foi recriminada pelo encorajamento que lhe havia de-
monstrado, ameaçada de ser colocada porta afora em desgraça e vergo-
nha. Seu espirito orgulhoso se rebelou diante da ameaça; mas quando
ela se lembrou do desprezo que tinha acumulado por mim e como, tal-
vez, por causa disso, tivesse perdido quem ela agora considerava seu
único amigo, chorou de remorso e raiva. Cheguei naquele instante.
— Oh, Winzy! — exclamou. — Leve-me para a casa de sua mãe; de-
sejo me livrar rapidamente dos detestáveis luxos e das angústias desta
nobre moradia. Conduza-me à pobreza e felicidade.
Apertei-a em meus braços com arrebatamento. A velha senhora fi-
cou sem palavras de tanto ódio e irrompeu em insultos somente quando
estávamos longe, a caminho de minha casa. Minha mãe recebeu a bela
fugitiva, que havia escapado de sua gaiola dourada para a natureza e li-
berdade, com ternura e alegria; meu pai, que nutria amor por ela, aco-
lheu-a de coração; foi um dia de regozijo, que dispensou o acréscimo da
poção celestial do alquimista para saciar-me de prazer.
Logo após esse dia agitado, tornei-me marido de Bertha. Deixei de
ser aluno de Cornélio, mas continuei seu amigo. Sempre lhe fui grato
por ter propiciado, inadvertidamente, aquele delicioso gole de um elixir
divino, o qual, em vez de curar-me do amor (triste cura, remédio solitá-
rio e melancólico para males que são lembrados como bênçãos!), inspi-
rou-me coragem e determinação, conquistando, assim, um tesouro ines-
timável em minha Bertha.
Frequentemente relembro com admiração aquele período de embri-
aguez extasiante. A bebida de Cornélio não cumpriu a tarefa para a
qual, segundo ele, havia sido preparada, mas seus efeitos foram mais po-
tentes e prósperos do que podem expressar as palavras. Eles tinham es-
vanecido aos poucos — embora tenham durado muito tempo —, pin-
tando a vida com cores esplendorosas. Bertha muitas vezes maravilha-
va-se com minha leveza de coração e singular alegria, pois antes eu era
bastante sério, ou até mesmo triste, em minha disposição. Ela me amava
mais por meu temperamento animado, e nossos dias eram repletos de
alegria.
Cinco anos depois, fui subitamente chamado à cabeceira de Corné-
lio, que estava à beira da morte. Tinha mandado me chamar às pressas,
implorando minha presença imediata. Encontrei-o estirado em sua ca-
ma, mortalmente debilitado; toda a vida que ainda lhe restava animava
seus olhos penetrantes, que estavam fixos em um recipiente de vidro
cheio de um liquido róseo.
— Contemple — disse ele com a voz frágil e entrecortada — a vai-
dade dos desejos humanos! Pela segunda vez, minhas esperanças esta-
vam prestes a se realizar; pela segunda vez, elas foram destruídas. Olhe
aquele liquido. Lembra-se de que cinco anos atrás preparei um igual,
com o mesmo êxito? E então, como agora, meus lábios sedentos espera-
vam saborear o elixir imortal, mas você o tirou de mim e é tarde demais!
Falou com dificuldade e desabou em seu travesseiro. Não pude dei-
xar de dizer:
— Como, venerado mestre, uma cura para o amor poderia lhe de-
volver a vida?
Um débil sorriso abrilhantou seu rosto enquanto eu ouvia atenta-
mente sua resposta quase ininteligível.
— Uma cura para o amor e para todas as coisas: o elixir da imortali-
dade. Ah, se eu agora pudesse bebê-lo, viveria para sempre!
Enquanto ele falava, um clarão dourado reluziu do fluido; uma fra-
grância que me era familiar espalhou-se pelo ar; ele se levantou, fraco
como estava — a força pareceu milagrosamente retornar ao seu corpo
—, e estendeu a mão. Uma forte explosão me assustou; um raio de fogo
brotou do elixir e o frasco de vidro que o continha foi reduzido a esti-
lhaços! Voltei os olhos para o filósofo: ele tinha caído para trás — seus
olhos estavam vidrados e as feições, rígidas. Estava morto!
No entanto, eu vivia e viveria para sempre! Assim disse o desafortu-
nado alquimista e, durante alguns dias, acreditei em suas palavras. Lem-
brei-me da embriaguez gloriosa que se seguiu ao meu gole roubado.
Refleti sobre a mudança que sentira em meu corpo, em minha alma. A
palpitante elasticidade de um, a leveza flutuante da outra. Olhei-me no
espelho e não pude perceber qualquer mudança em minha fisionomia
durante os cinco anos que se passaram. Lembrei-me das cores radiantes
e do aroma agradável daquela deliciosa bebida — digna da dádiva que
era capaz de conceder: eu era, então, imortal!
Poucos dias depois, ri de minha credulidade. O antigo provérbio
que diz “ninguém é profeta em sua própria terra” mostrava-se verda-
deiro no que dizia respeito a mim e ao meu falecido mestre. Eu o amava
como homem, respeitava-o como sábio, mas achava ridícula a noção de
que fosse capaz de dominar os poderes das trevas, e escarnecia do medo
supersticioso que as pessoas comuns tinham dele. Era um filósofo sá-
bio, mas não tinha familiaridade com quaisquer espíritos, exceto aqueles
feitos de carne e osso. Sua ciência era meramente humana; e as ciências
humanas, logo me convenci, jamais poderiam conquistar as leis da natu-
reza a ponto de aprisionar a alma para sempre dentro de sua morada
carnal. Cornélio tinha preparado uma bebida que refrescava a alma,
mais inebriante do que vinho, mais doce e perfumada do que qualquer
fruta: provavelmente possuía fortes poderes medicinais, dando alegria
ao coração e vigor aos membros; mas seus efeitos se desgastariam; já ha-
viam diminuído em meu corpo. Era um sujeito de sorte por ter bebido
espíritos de saúde e alegria, e talvez de vida longa, das mãos de meu
mestre; mas minha sorte terminava aí: longevidade era muito diferente
de imortalidade.
Continuei a alimentar essa crença por muitos anos. Às vezes, um
pensamento passava por minha cabeça: estaria o alquimista de fato en-
ganado? No entanto, minha crença habitual era a de que eu teria o mes-
mo destino de todos os filhos de Adão em meu tempo determinado —
um pouco tarde, mas ainda em uma idade natural. Contudo, era indis-
cutível que eu mantinha uma aparência maravilhosamente jovem. Riam
de mim por causa de minha vaidade em consultar o espelho com tanta
frequência, porém não o consultava em vão — minha fronte não tinha
rugas; minhas bochechas, meus olhos… toda a minha pessoa continuava
com a aparência imaculada de meu vigésimo aniversário.
Eu estava preocupado. Olhava a beleza desbotada de Bertha — eu
mais parecia seu filho. Pouco a pouco, nossos vizinhos começaram a fa-
zer observações semelhantes, e descobri finalmente que era chamado de
“estudante enfeitiçado”. A própria Bertha foi ficando apreensiva. Tor-
nou-se ciumenta e rabugenta, e finalmente começou a me questionar.
Não tivemos filhos; tínhamos apenas um ao outro; e embora, à medida
que envelhecia, seu espirito vivaz se misturasse um pouco ao mau hu-
mor, e sua beleza estivesse tristemente diminuída, acarinhava-lhe em
meu coração tal como a amante que idolatrara no passado, a esposa que
eu havia buscado e conquistado com um amor tão perfeito.
Nossa situação por fim se tornou intolerável: Bertha tinha cinquenta
anos, eu, vinte. Por pura vergonha, adotara, com certa moderação, hábi-
tos de uma idade mais avançada: já não me juntava à dança entre os jo-
vens alegres, mas meu coração saltitava com eles enquanto eu refreava
os pés; e forjei uma figura lamentável entre os patriarcas do povoado.
Porém, antes da época à qual me refiro, as coisas se alteraram: éramos
completamente evitados; éramos — pelo menos, eu era — acusados de
manter um relacionamento iníquo com alguns dos supostos amigos de
meu antigo mestre. Tinham pena da pobre Bertha, mas fugiam dela. Eu
era visto com horror e repulsa.
O que podíamos fazer? Ficávamos sentados ao pé da lareira — a po-
breza se fez sentir, pois ninguém queria comprar os produtos de minha
fazenda; e muitas vezes me vi forçado a viajar mais de trinta quilôme-
tros até algum lugar onde não fosse conhecido para vender nossas mer-
cadorias. É verdade que tínhamos economizado um pouco para um dia
ruim — e esse dia havia chegado.
Sentávamos diante da lareira solitária — o jovem de coração enve-
lhecido e sua esposa idosa. Bertha novamente insistiu em saber a verda-
de: recapitulou tudo o que já tinha ouvido falar sobre mim e acrescen-
tou suas próprias observações. Esconjurou-me para que eu rejeitasse o
feitiço; descreveu como cabelos grisalhos eram muito mais graciosos do
que meus cachos castanhos; discorreu sobre a reverência e o respeito
devido à idade, como eram preferíveis à consideração insignificante
prestada a simples crianças — eu imaginava que os desprezíveis dons da
juventude e a boa aparência prevaleceriam sobre a desgraça, o ódio e o
desprezo? Não; no final, eu seria queimado como um praticante de ma-
gia negra, enquanto ela, a quem eu não tinha me dignado a comunicar
qualquer parte de minha boa sorte, talvez fosse apedrejada como minha
cúmplice. Por fim, insinuou que eu deveria compartilhar meu segredo,
concedendo-lhe os mesmos benefícios dos quais desfrutava, senão ela
me denunciaria — e, então, se desfez em lágrimas.
Assediado desse modo, achei que era melhor contar a verdade. Re-
velei-lhe os fatos da maneira mais terna e mencionei apenas uma vida
muito longa, e não a imortalidade — o que, de fato, coincidia melhor
com minhas noções. Quando terminei, levantei-me e disse:
— E agora, Bertha, vai denunciar o amante de sua juventude? Eu sei
que não. Mas é duro demais, minha pobre esposa, que você deva sofrer
por causa de meu azar e das artes malditas de Cornélio. Vou deixá-la.
Você tem riqueza suficiente, e seus amigos retornarão em minha ausên-
cia. Vou embora; jovem como pareço e forte como sou, posso trabalhar
e ganhar meu pão entre estranhos, insuspeito e desconhecido. Eu a amei
na juventude; Deus é testemunha de que não a abandonaria na velhice,
mas sua segurança e felicidade exigem isso.
Peguei meu gorro e segui em direção à porta; no mesmo instante, os
braços de Bertha estavam em volta de meu pescoço e seus lábios pressi-
onados contra os meus.
— Não, meu marido, meu Winzy — disse —, não vá sozinho: leve-
me com você, vamos embora deste lugar e, como você mesmo disse, en-
tre estranhos ficaremos seguros e livres de suspeitas. Não sou velha de-
mais a ponto de envergonhá-lo, meu Winzy; e ouso dizer que o feitiço
em breve desaparecerá, e, com a bênção de Deus, você se tornará mais
idoso na aparência, como lhe convém. Você não deve me abandonar.
Retribui de coração o abraço da boa alma.
— Não vou, minha Bertha; mas se não fosse por sua causa, eu não
teria pensado em tal coisa. Serei seu marido fiel e sincero enquanto você
não for tirada de mim e cumprirei meu dever até o fim.
No dia seguinte, nos preparamos discretamente para emigrar. Fo-
mos obrigados a fazer grandes sacrifícios pecuniários — foi impossível
evitar. Conseguimos uma quantia suficiente para nos manter pelo me-
nos enquanto Bertha vivesse; e, sem nos despedirmos de ninguém, dei-
xamos nosso país natal para encontrar refúgio em uma parte remota no
oeste da França.
Foi cruel tirar a pobre Bertha de seu povoado natal e da convivência
com seus amigos de juventude, levando-a para outro país, com uma no-
va língua e costumes diferentes. O estranho mistério de meu destino
tornou essa mudança irrelevante para mim; mas eu tinha profunda com-
paixão por ela e fiquei contente ao perceber que encontrara compensa-
ção por seus infortúnios em uma variedade de circunstâncias um tanto
ridículas. Longe de todos os cronistas mexeriqueiros, ela procurava di-
minuir a evidente disparidade de idade entre nós por meio de uma infi-
nidade de artifícios femininos: ruge, roupas jovens e hábitos tipicamente
juvenis. Não poderia ficar zangado — eu próprio não usava uma másca-
ra? Por que implicar com a dela apenas pelo fato de ser menos bem-su-
cedida? Entristecia-me profundamente quando lembrava que minha
Bertha, a quem amara tão carinhosamente e que conquistara com tanta
emoção — a menina de olhos e cabelos escuros, com sorrisos de encan-
tadora malícia e passos de corça —, era essa velha ciumenta, amaneirada
e de sorriso afetado. Deveria reverenciar suas madeixas grisalhas e bo-
chechas murchas; mas nestas condições! Era culpa minha, eu sabia; no
entanto, assim deplorava esse tipo de fraqueza humana.
Seu ciúme nunca descansava. Sua principal ocupação era descobrir
que, apesar das aparências, eu estava envelhecendo. De fato, acredito
que a pobre alma me amava com sinceridade em seu coração, mas mu-
lher alguma jamais demonstrou carinho de maneira tão atormentada.
Ela percebia rugas em meu rosto e decrepitude em meu caminhar, en-
quanto eu prosseguia com vigor juvenil, parecendo o mais novo em
meio a vinte jovens. Nunca me atrevi a abordar outra mulher: em certa
ocasião, imaginando que a beldade do vilarejo me fitava com agrado,
trouxe-me uma peruca grisalha. Seu discurso constante entre conheci-
dos era que, embora eu parecesse tão jovem, a ruína agia dentro de
mim; e afirmava que o pior sintoma era minha saúde aparente. Minha
juventude era uma doença, ela dizia, e eu precisava estar preparado em
todos os momentos, se não para uma morte súbita e medonha, pelo me-
nos para despertar em uma manhã com cabelos brancos, encurvado e
com todas as marcas da idade avançada. Deixava-a falar — muitas vezes,
me juntei a ela em tais suposições. Suas advertências estavam de acordo
com minhas incessantes especulações a respeito de meu estado, e eu ti-
nha um interesse sincero, embora doloroso, em escutar tudo o que sua
sagacidade e imaginação fértil pudessem revelar sobre o assunto.
Por que insistir nesses pormenores? Vivemos ainda por muitos e
longos anos. Bertha ficou paralítica, confinada a uma cama; cuidei dela
como uma mãe cuidaria do filho. Ela se tornou irritadiça e continuou
batendo na mesma tecla: quanto tempo eu poderia sobreviver a ela. Ter
cumprido rigorosamente minhas obrigações em relação a Bertha sempre
foi uma fonte de consolo para mim. Ela havia sido minha na juventude,
foi minha quando envelheceu e, por fim, quando cobri de terra seu ca-
dáver, chorei ao sentir que tinha perdido a única coisa que realmente me
ligava à humanidade.
Desde então, muitos têm sido meus cuidados e minhas aflições, e
poucos e vazios meus prazeres! Interrompo aqui minha história; não se-
guirei adiante. Um marinheiro sem leme ou bússola, atirado a um mar
tempestuoso; um viajante perdido em um vasto deserto, sem um ponto
de referência ou uma rocha para se guiar — assim tenho sido: mais per-
dido, mais desesperado do que qualquer um deles. Um navio que se
aproxima ou a luz vinda de alguma choupana distante pode salvá-los;
mas não tenho um farol, exceto a esperança da morte.
Morte! Misteriosa e mal-encarada amiga da fraca humanidade! Por
quê, entre todos os mortais, apenas eu fui poupado de seu abrigo prote-
tor? Oh, a paz da sepultura, o silêncio profundo do túmulo de ferro!
Que os pensamentos cessassem de surgir em meu cérebro e que meu
coração não mais batesse com emoções variadas apenas por novas for-
mas de tristeza!
Sou imortal? Volto à minha primeira pergunta. Em primeiro lugar,
não seria mais provável que a poção do alquimista estivesse repleta de
longevidade, e não de vida eterna? Essa é minha esperança. E também é
preciso lembrar que bebi apenas metade da poção. Não seria necessária
sua totalidade para completar o encanto? Ter ingerido metade do elixir
da imortalidade me torna apenas meio imortal — meu para sempre fica,
portanto, truncado e nulo.
Todavia, indago novamente, quem sabe contar os anos de metade da
eternidade? Frequentemente tento imaginar por qual regra o infinito
pode ser dividido. Às vezes, imagino o avanço da idade sobre mim. Já
encontrei um fio de cabelo grisalho. Tolo! Eu lamento? Sim, o medo da
idade e da morte muitas vezes se instala friamente em meu coração; e
quanto mais eu vivo, mais temo a morte, mesmo abominando a vida.
Tal enigma é o homem — nascido para perecer — enquanto guerreia,
como eu, contra todas as leis estabelecidas de sua natureza.
Não fosse essa anomalia de sentimentos, eu certamente poderia
morrer: o remédio do alquimista não seria à prova de fogo, de espada
ou de águas sufocantes. Contemplei as profundezas azuis de muitos la-
gos plácidos e a correnteza turbulenta de muitos rios possantes, e posso
dizer que a paz habita essas águas; contudo, desviei meus passos para
viver mais um dia. Tenho me perguntado se o suicídio seria um crime
para alguém que somente desta maneira poderia abrir os portais do ou-
tro mundo. Tenho feito de tudo, exceto apresentar-me como soldado ou
duelista, uma objeção à destruição de meus… não, eles não são meus
companheiros mortais, e, portanto, eu me esquivei. Não são meus com-
panheiros. A força inesgotável de vida em meu ser e a efêmera existência
deles nos coloca em polos amplamente opostos. Eu não poderia levan-
tar a mão contra o mais desprezível ou o mais poderoso entre eles.
Desta maneira tenho continuado a viver por muitos anos, sozinho e
cansado de mim mesmo, desejoso da morte, sem poder nunca vir a fale-
cer; um imortal mortal. Nem a ambição, nem a avareza podem entrar
em meus pensamentos, e o amor ardente que corrói meu coração —
sem jamais ser correspondido, sem nunca encontrar um igual em quem
se consumir — vive ali apenas para me atormentar.
Hoje mesmo concebi um plano com o qual poderei encerrar tudo —
sem suicídio, sem fazer de outro homem um Caim: uma expedição à
qual nenhuma forma mortal jamais poderia sobreviver, mesmo que do-
tada com a juventude e a força que habitam o meu ser. Assim, porei mi-
nha imortalidade à prova e descansarei para sempre — ou retornarei co-
mo um prodígio e benfeitor da espécie humana.
Antes de partir, uma deplorável vaidade me levou a escrever estas
páginas. Não gostaria de morrer sem deixar um nome para trás. Três sé-
culos se passaram desde que emborquei a bebida fatal: outro ano não
deve se completar antes que, encontrando gigantescos perigos — en-
frentando o frio intenso em sua própria casa; agoniado pela fome, pela
fadiga e pela tempestade —, eu entregue aos elementos destrutivos do ar
e da água este corpo, uma jaula por demais tenaz para uma alma que
tem sede de liberdade; ou, caso sobreviva, meu nome deverá ficar regis-
trado como um dos mais famosos entre os filhos dos homens; então,
tendo cumprido minha tarefa, adotarei meios mais resolutos e, espa-
lhando e aniquilando os átomos que compõem meu ser, porei em liber-
dade a vida aprisionada dentro de mim e tão cruelmente impedida de
elevar-se desta terra obscura para uma esfera mais apropriada à sua es-
sência imortal.
CONTOS EXTRAS
UM FRAGMENTO*
por Lorde Byron
17 de junho de 1816
No ano de 17…, há algum tempo decidido a uma incursão por países
até ali não muito frequentados por viajantes, parti acompanhado de um
amigo, a quem chamarei de Augustus Darvell. Era alguns anos mais ve-
lho que eu e um homem de fortuna considerável e de família ancestral
— privilégios que sua vasta inteligência o impedia de subestimar ou exa-
gerar. Algumas circunstâncias peculiares de sua história pessoal fize-
ram-no objeto de minha atenção, de meu interesse e até de minha consi-
deração, o que nem seus modos reservados, nem ocasionais manifesta-
ções de uma inquietude às vezes próxima da alienação mental foram ca-
pazes de eliminar.
Eu era ainda um novato na vida, a qual começara a enfrentar cedo; a
intimidade com meu amigo, porém, era recente. Fôramos educados nas
mesmas escolas e universidades; ele, contudo, passara por elas antes de
mim e já era um profundo iniciado naquilo a que se chama de vida
mundana, enquanto eu dava meus primeiros passos. Nessa época, eu ti-
nha ouvido falar muito tanto de seu passado quanto da vida que então
levava, e, embora em tais relatos houvesse muitas e irreconciliáveis con-
tradições, fui capaz de, a partir deles, deduzir que se tratava de alguém
incomum, que, não importava quanto esforço fizesse para evitar ser
percebido, ainda assim seria notável. Passei em seguida a cultivar sua
companhia, empenhando-me em conquistar sua amizade, mas esta últi-
ma condição parecia inatingível; quaisquer que fossem os afetos que ele
algum dia tivera pareciam, agora, alguns extintos, outros monopoliza-
dores. Que seus sentimentos eram intensos, isso tive suficientes oportu-
nidades de observar, pois, embora ele fosse capaz de controlá-los, não
podia disfarçá-los totalmente. Tinha, ainda assim, a capacidade de dar a
uma paixão a aparência de outra, de tal modo que era difícil definir a
natureza do que se passava em seu íntimo; e a expressão de seu sem-
blante variava tão rápido, mas sutilmente, que era inútil tentar remontá-
la a suas origens. Ficava evidente que Darvell era vítima de alguma an-
gústia incurável; se produto de ambição, amor, remorso, pesar, de uma
dessas coisas ou de todas elas, ou meramente de um temperamento
mórbido afeito à doença, eu não tinha como saber. Supunham-se cir-
cunstâncias capazes de justificar cada uma dessas hipóteses como causa;
conforme disse antes, porém, eram tão contraditórias e contraditadas
que se tornava impossível ser assertivo e preciso sobre qualquer uma
delas. Onde há mistério em geral imagina-se haver também o mal. Não
sei dizer como isso se dava com meu amigo, mas certamente havia nele
um, sem que no entanto eu pudesse afirmar a extensão do outro — e era
com repulsa, no que se referia a ele, que eu acreditava na existência do
mal. Minhas tentativas de aproximação foram recebidas com bastante
frieza, mas eu era jovem e não desistia com facilidade. Por fim consegui,
em certa medida, aquela relação trivial de moderada confiança no que
dizia respeito a preocupações comuns e cotidianas, criada e consolidada
com base em ambições similares e encontros frequentes, à qual se costu-
ma chamar de intimidade, ou amizade, concebida de forma diferente,
conforme a ideia que faz dela aquele que se utiliza de tais palavras para
expressá-la.
Darvell já viajara muito, e eu o consultara sobre como conduzir a vi-
agem que pretendia fazer. Era meu desejo secreto que ele pudesse ser
convencido a acompanhar-me: era também uma esperança viável, basea-
da numa quase imperceptível agitação que eu observara nele e à qual o
entusiasmo que parecia sentir por esses assuntos e sua aparente indife-
rença por tudo aquilo que o cercava mais proximamente conferiam re-
novada força. De início dei pistas de meu desejo e mais tarde o expres-
sei. Sua resposta, embora eu em parte a esperasse, foi recebida com todo
o prazer da surpresa — ele aceitou; após os preparativos de praxe, inici-
amos nossas andanças. Depois de viajarmos por vários países do sul da
Europa, voltamos nossa atenção ao leste, conforme nossa ideia original
de destino; e foi enquanto avançávamos por aquelas regiões que ocorreu
o incidente que motiva o que tenho a relatar.
A constituição física de Darvell, que por sua aparência devia ter si-
do, na juventude, robusta além da média, fazia algum tempo que min-
guava, sem que isso se devesse aparentemente a alguma doença. Ele não
apresentava sintomas como tosse ou a febre da tísica,[1] porém a cada
dia tornava-se mais fraco; mantinha hábitos moderados e não se entre-
gava ao cansaço nem se queixava dele, mas declinava a olhos vistos. Tor-
nou-se mais e mais calado e insone, e, por fim, seu comportamento tão
seriamente alterado fez aumentar meu sobressalto proporcionalmente
ao que eu considerava ser o risco que ele corria.
Tínhamos decidido que, ao chegarmos a Esmirna, faríamos uma in-
cursão às ruínas de Éfeso e Sárdis, mas empenhei-me em dissuadi-lo da
ideia em virtude de seu mal-estar — porém em vão: a opressão a que sua
mente parecia submetida e a solenidade de seu comportamento combi-
navam mal com a ânsia de seguir adiante naquilo que eu mesmo consi-
derava um mero passeio prazeroso, pouco recomendável a um conva-
lescente. Porém não continuei insistindo na oposição que lhe fiz e, al-
guns dias depois, partimos os dois acompanhados apenas de um serru-
gee e de um único janizary.[2]
A caminho das ruínas de Éfeso, já passando da metade do caminho e
tendo deixado para trás os arredores mais férteis de Esmirna, adentráva-
mos a trilha desabitada e selvagem que leva, por entre pântanos e vales,
às poucas cabanas ainda restantes sobre as arruinadas colunas de Diana
— paredes sem teto de onde foi expulsa a cristandade, e a mais recente,
mas completa desolação das mesquitas abandonadas —, quando, súbito,
a rápida evolução da enfermidade de meu amigo obrigou-nos a parar
num cemitério turco, cujas lápides esculpidas como turbantes eram a
única indicação de que a vida humana algum dia habitara aquele deser-
to. Fazia horas que passáramos por uma solitária caravansera,[3] não ha-
via vestígio de algum vilarejo ou mesmo um chalé à vista, ou que pudés-
semos ter a esperança de avistar, e aquela “cidade dos mortos” parecia
ser o único refúgio para meu desafortunado amigo, o qual parecia pres-
tes a se tornar seu mais novo habitante.
Diante dessa situação, olhei em torno buscando um local onde ele
pudesse descansar convenientemente. Ao contrário da característica co-
mum aos cemitérios maometanos, os ciprestes ali eram poucos e espa-
lhavam-se, esparsos, por toda a extensão do terreno; as lápides, em sua
maioria, achavam-se tombadas e desgastadas pelo tempo. Foi a uma das
mais destacadas entre elas, e debaixo de uma das árvores de maior copa,
que Darvell, com grande dificuldade, encostou-se em posição um tanto
reclinada. Pediu água. Tinha dúvidas se conseguiríamos encontrá-la ali
e, abatido e hesitante, já me preparava para a busca — mas meu amigo
desejava que eu permanecesse com ele. Voltando-se para Suleiman, nos-
so janizary, o qual acompanhava tudo de pé, ao nosso lado, fumando
muito tranquilamente, ele disse: “Suleiman, vebana su” (i.e., traga um
pouco de água), procedendo a uma descrição bastante minuciosa do lo-
cal onde ela podia ser encontrada, numa pequena fonte para camelos al-
gumas centenas de metros à direita: o janizary obedeceu. Perguntei a
Darvell: “Como sabias disso?”. Ele respondeu: “Pela nossa posição; é
perceptível que este lugar foi algum dia habitável, e não poderia ter sido
se não houvesse fontes d’água; e também porque já estive aqui antes”.
“Já estiveste aqui antes! E por que não me contaste? O que terias
vindo fazer num lugar onde, podendo evitar, ninguém permaneceria um
instante a mais?”
Não recebi resposta a essa pergunta. Enquanto isso, Suleiman vol-
tou com a água, deixando o serrugee e os cavalos na fonte. Ao matar a
sede, meu amigo pareceu reanimar-se por um momento e tive esperan-
ças de que talvez fosse capaz de continuar a viagem, ou ao menos de re-
gressar, e incentivei-o a uma tentativa. Ele ficou em silêncio — e parecia
estar preparando o espírito para o esforço de falar. Então começou.
“Este é o fim de minha jornada e de minha vida. Vim aqui para mor-
rer, mas tenho um pedido a fazer, uma ordem, uma vez que serão mi-
nhas últimas palavras. Tu a cumprirás?”
“Com toda certeza; mas não percas as esperanças.”
“Não tenho esperanças, tampouco desejos, exceto este — esconde
minha morte de todo e qualquer ser humano.”
“Espero que não venha a ser necessário; que tu te recuperarás e…”
“Descansa! Assim deve ser: promete o que te peço.”
“Prometo.”
“Jura por tudo que existe?” — e ele então pronunciou um juramen-
to com grande solenidade.
“Não há necessidade disso — cumprirei teu pedido, e duvidar de
minha palavra é…”
“Não tens como ajudar-me, e deves jurar.”
Pronunciei o juramento, o que pareceu aliviá-lo. Tirou do dedo um
anel com um sinete, no qual havia alguns caracteres arábicos gravados, e
o entregou a mim. Prosseguiu:
“No nono dia do mês (no mês que quiseres, mas deve ser nesse dia),
precisamente à meia-noite, deves atirar esse anel nas fontes salgadas que
deságuam na baía de Elêusis. No dia seguinte, à mesma hora, seguirás
até as ruínas do templo de Ceres e ali aguardarás por uma hora.”
“Por quê?”
“Vais descobrir.”
“Nono dia do mês, tu disseste?”
“Nono.”
Quando observei que aquele era o nono dia do mês, a expressão de
seu rosto mudou e ele fez uma pausa. Meu amigo estava ali, sentado,
tornando-se cada vez mais fraco a olhos vistos, e então uma cegonha,
com uma cobra no bico, pousou numa lápide perto de nós; sem devorar
sua presa, pareceu nos observar fixamente. Não posso dizer o que me
impeliu a espantá-la, mas a tentativa foi inútil; ela fez alguns círculos no
ar e voltou a pousar exatamente no mesmo local. Darvell apontou o
pássaro e sorriu; então disse, não sei se a si mesmo ou a mim, apenas as
seguintes palavras: “Está bem!”.
“O que está bem? Que queres dizer com isso?”
“Não importa: deves enterrar-me aqui nesta noite, e exatamente on-
de aquele pássaro está pousado. Já sabes o que mais te ordenei.”
Em seguida passou a dar diversas instruções sobre a melhor maneira
de ocultar sua morte. Quando terminou, disse: “Vês aquele pássaro?”.
“Certamente.”
“E a serpente que se debate em seu bico?”
“Sem dúvida. Nada há de anormal naquilo; é a presa natural da ce-
gonha. Mas é estranho que não a devore.”
Meu amigo sorriu, lívido, e disse com voz sumida: “Ainda não é a
hora!”. Assim que falou, a cegonha alçou voo. Segui-a com o olhar por
um instante, tempo em que mal daria para contar até dez. Senti Darvell
pesar-me, por assim dizer, no ombro e, ao olhar para seu rosto, vi que
estava morto!
Fiquei chocado com a súbita certeza de algo sobre o qual não podia
haver engano — em poucos minutos, seu rosto tornou-se quase negro.
Teria atribuído mudança assim tão rápida a envenenamento, não fosse
minha certeza de não haver chance de algo assim ter passado desperce-
bido. O dia terminava, o corpo rapidamente se deteriorava e não havia
nada a fazer senão atender seu pedido. Lançando mão do iatagã[4] de
Suleiman e de meu próprio sabre, cavamos uma cova rasa no local que
Darvell indicara: a terra cedeu facilmente, uma vez que ali já habitava
um inquilino maometano. Fizemos o buraco mais fundo que o tempo
disponível nos permitiu e, depois de jogar a terra seca por cima do que
restara daquela singular criatura tão precocemente desaparecida, arran-
camos alguns torrões de grama mais verde do solo menos seco que en-
contramos ali em torno e os depositamos sobre sua sepultura.
Entre o espanto e o pesar, eu tinha os olhos secos.
Fim
O VAMPIRO: UM CONTO
por John William Polidori
O VAMPIRO: UM CONTO
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Notas
1. Mary Shelley, “Introdução à edição de 1831”, p. 27 deste volume. [As notas são da Tradutora,
salvo indicação contrária.]
∴
*. Aparentemente escrito por Percy Bysshe Shelley em setembro de 1817. Se Mary Shelley
escreveu um prefácio para a edição de 1818 (como sugere seu diário), o manuscrito nunca foi
impresso ou encontrado. Na “Introdução à edição de 1831”, a própria autora reconhece a
autoria de P.B. Shelley desta peça.
1. Erasmus Darwin (1731–1802), médico e naturalista inglês, avô de Charles Darwin. Inventou
muitos objetos, embora não tenha patenteado nenhum deles. Entre suas invenções, temos uma
máquina de falar (1799), uma máquina copiadora (1788) e um minucioso pássaro artificial
(invenção a que se refere Mary Shelley quando escreve “não me refiro ao que o doutor
realmente fez” na “Introdução à edição de 1831”).
2. Para uma descrição mais detalhada do que a levou a escrever Frankenstein, ver a “Introdução
à edição de 1831”.
∴
*. Escrito por Mary W. Shelley para a terceira edição revista da obra em 1831.
1. Série de publicações lançada entre os anos de 1829–1832 que pretendiam recuperar, a preços
módicos, algumas obras de ficção que estavam fora de catálogo ou apenas disponíveis em
edições especiais. Os editores sempre solicitavam que os autores revisassem as obras, o que
permitiu a Mary Shelley polir o texto de 1818 e fazer alguns acréscimos.
2. A autora, aqui, provavelmente faz referência a Fanny Imlay, sua meia-irmã mais velha que
cometeu suicídio em 1816.
3. Obra que trouxe renome a Lorde Byron, é um longo poema narrativo altamente
autobiográfico, dividido em quatro partes. Publicado entre 1812 e 1818, narra as viagens e
reflexões de um jovem candidato a cavaleiro cansado do mundo e da vida dissoluta. Há uma
edição em português pela Ed. Anticítera, de 2015, traduzida por F.J.P. Guimarães.
4. As duas histórias de horror gótico mencionadas por Shelley fazem parte da coletânea
Fantasmagoriana e foram publicadas em inglês como Tales of the Dead somente em 1820. A
descrição de Mary Shelley dos contos “The History of the Inconstant Lover” e “The Tale of the
Sinful Father of his Race”, que aparece no mesmo volume em Portraits de Familie, não
corresponde muito bem às verdadeiras histórias, embora ela afirme o oposto, talvez porque as
memórias tenham sido escritas quinze anos depois dos fatos relatados.
5. Mazeppa é o poema narrativo de Byron baseado na vida do ucraniano Ivan Mazeppa,
publicado em 1819. Ao final, encontra-se o texto referido por Mary Shelley, chamado Fragment
of a Novel, uma das primeiras histórias de vampiros em inglês, mas que infelizmente nunca foi
terminada.
6. Referência a Peeping Tom, que, segundo a lenda, ficou cego como punição por ter espiado a
nudez de lady Godiva quando esta cavalgava nua pelas ruas de Coventry.
7. Diante dos espanhóis, após colocar um ovo em pé achatando uma das extremidades,
Colombo foi interpelado pelo grupo que afirmava que qualquer um poderia fazer aquilo. O
navegador respondeu: “Convenhamos, entretanto, que, apesar da simplicidade e facilidade, você
não descobriu a solução, e que apenas eu removi a dificuldade. O mesmo ocorreu com a
descoberta do Novo Mundo. Tudo que é natural parece fácil após conhecido ou encontrado. A
dificuldade está em ser o inventor, o primeiro a conhecer ou a demonstrar”.
9. Teoria de Luigi Galvani (1737–1798), segundo a qual o cérebro dos animais produz
eletricidade que é transferida aos nervos e acumulada nos músculos e, uma vez disparada,
produz movimento. Na época, foram feitos muitos experimentos com animais e cadáveres, e
podemos dizer que nesses experimentos encontramos a origem remota do desfibrilador
cardíaco moderno.
∴
1. Verso de “The Rime of the Ancient Mariner”, de Samuel Taylor Coleridge (1772–1834).
Coleridge foi uma influência significativa para Mary Shelley, visto que costumava frequentar a
casa da autora, pois era muito amigo de seu pai, William Godwin.
∴
1. Os síndicos são magistrados em Genebra, membros escolhidos entre as famílias aristocráticas
mais importantes para governar a república.
2. Hoje, o lago Como está em território italiano. Na época em que o livro foi escrito, em 1816, a
região pertencia à Áustria, daí a referência “além das fronteiras da Itália”.
∴
1. Roncesvalles é uma província de Navarra, na Espanha, lendária pela derrota de Carlos Magno
e a morte de Rolando, em 778, durante a Batalha de Roncesvalles. O poema épico “A canção de
Rolando”, do século XII, relata os feitos desse herói.
∴
1. Importante universidade na Bavária (Alemanha), fundada em 1472. A referência aqui é a
fundação do grupo dos Illuminati, uma sociedade secreta de racionalistas iluminados, em 1776,
por Adam Weishaupt (1748–1830), um professor da universidade. Percy Shelley estudou
avidamente o assunto, pois pretendia reavivar o ideal iluminista e, por isso, Mary Shelley se
interessou pelo tema.
∴
1. Referência à sexta viagem de Simbad no livro As mil e uma noites. Em português,
encontramos o relato nas seguintes edições: Livro das mil e uma noites, Vol. III: ramo egípcio.
Trad. Mamede Mustafa Jarouche. São Paulo: Globo, 2015. p. 211–14; e As mil e uma noites, Vol.
1. Versão de Antoine Galland. Trad. Alberto Diniz. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000. p. 245–46.
∴
1. No original: Like one, that on a lonesome road / Doth walk in fear and dread, / And having
once turned round walks on, / And turns no more his head; / Because he knows, a frightful
fiend / Doth close behind him tread. Samuel Taylor Coleridge. The Rimer of the Ancient
Mariner. [ed. bras.: A balada do velho marinheiro, seguido de Kubla Khan. Trad. Alípio Correa
de Franca Neto. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005. p. 176].
2. Obra do escritor irlandês Oliver Goldsmith (1728–1774), publicada em 1766. Foi um dos
livros do século XVIII mais populares entre os vitorianos.
∴
1. Heroína do poema épico Orlando furioso, datado de 1516, de Ludovico Ariosto (1474–1533).
∴
1. Trecho do poema A peregrinação de Childe Harold, de Lorde Byron, em que descreve as
montanhas.
∴
1. A autora inspirou-se em um conceito presente na obra Enquiry Concerning Political Justice
(1793), de autoria do próprio pai, William Godwin (livro 4, capítulo 8).
2. No original: We rest — A dream has power to poison sleep; / We rise — One wandering
thought pollutes the day; / We feel, conceive or reason, laugh or weep; / Embrace fond woe, or
cast our cares away: // It is the same! — For, be it joy or Sorrow, / The path of its departure
Still is free: / Man’s yesterday may ne’er be like his morrow; / Nought may endure but
mutability! Duas últimas estrofes do poema “Mutabilidade”, de Percy Bysshe Shelley, que
apareceu na coletânea Alastor, or The Spirit of Solitude: And Other Poems (1816) [ed. bras.:
Prometeu desacorrentado e outros poemas. Trad. Adriano Scandolara. Belo Horizonte:
Autêntica, 2015].
∴
1. Ver livro 1 do poema épico Paraíso perdido, de John Milton (1608–1674).
∴
1. A criatura tem uma experiência oposta à de Narciso, o deus mítico grego que se apaixona pela
própria aparência ao ver o seu reflexo no lago e acaba por transformar-se em uma flor.
2. Referência à fábula de Esopo, em que o asno decide imitar o cão para ganhar os favores do
dono, mas a única coisa que consegue é apanhar ainda mais.
∴
1. Esta obra não foi editada no Brasil, mas em Portugal, sob os títulos: As ruínas de Palmira
(edição de 1960, pela editora Renascença), As ruínas de Palmira: Meditação acerca da destruição
dos impérios (1934, editora Renascença) e As ruínas ou Meditação sobre as revoluções dos
impérios (1822, Tip. Dizidério Marques Leão). [NE]
∴
1. A criatura lê tais obras para aprender sobre civilização, sentimento e moralidade. Da leitura
de Paraíso perdido, depreende que deveria ser como o Adão retratado no poema, mas identifica-
se com o Satã de John Milton, como veremos adiante. Com Vidas paralelas, compilação de
biografias de nomes ilustres, de Plutarco, aprende os conceitos de honra, justiça e como portar-
se de modo correto. Já com a leitura da obra de Goethe, Os sofrimentos do jovem Werther,
compreende a paixão e a emoção. Esses três textos são cruciais para o romantismo e foram
importantes para a própria autora, que os tinha lido cerca de um ano antes de escrever
Frankenstein.
2. Trecho adaptado do poema “Mutabilidade”, de Percy Bysshe Shelley, citado no capítulo 10.
3. Referência à súplica que Adão fez ao Criador a fim de que este lhe concedesse uma consorte,
retratada no poema Paraíso perdido e escolhida como epígrafe do presente livro: “Pedi eu, oh,
Criador, / que do barro me fizestes homem?/ Pedi para que me arrancasses das trevas?”. John
Milton, Paraíso perdido, canto X.
∴
1. Vento quente e muito seco que sopra da costa norte da África sobre o Mediterrâneo e em
algumas partes do sul da Europa.
∴
1. Mantivemos aqui e nos meses citados a seguir a cronologia original, pois provavelmente
trata-se de erro tipográfico ocorrido na edição de 1831. Isso fica evidente no capítulo XIX, onde
Victor afirma que ele e Clerval chegaram na Inglaterra “no início de outubro”, p. 165 deste
volume. [NE]
2. Em sua viagem a Brunnen, durante as seis semanas de verão na Suíça, em 1814, Mary Shelley
ouviu a história do padre e da amante que moravam em um chalé no sopé da montanha.
Surpreendidos e mortos por uma avalanche em uma noite de inverno, suas vozes ainda podem
ser ouvidas em noites de tempestade, a pedir socorro.
3. Existe uma nota de Mary Shelley que se refere à citação como pertencente ao poema
narrativo The Story of Rimini (1816), de Leigh Hunt (1784–1859). Vale notar que Percy Shelley
estava voltando da casa de Leigh Hunt quando se afogou no golfo de La Spezia, também
conhecido como “golfo dos poetas”.
4. No original: The sounding cataract / Haunted him like a passion: the tall rock, / The
mountain, and the deep and gloomy wood, / Their colours and their forms, were them to him /
An appetite; a feeling, and a love, / That had no need of a remoter charm, / By thought
supplied, or any interest / Unborrow’d from the eye. William Wordsworth (1770–1850),
Tintern Abbey (1798), versos 76–83.
5. “Posta” é o nome da estação de cavalos colocada de distância a distância em uma estrada para
a muda da montaria cansada.
∴
1. Personalidades pertencentes à história inglesa: Lucius Cary Falkland (1610–1643), segundo
visconde de Falkland. Embora tenha lutado ao lado do rei, não estava satisfeito com a posição
monárquica. Morreu na batalha de Newbury. Lorde George Goring (1608–1657), general da
facção real, notabilizado por ser inescrupuloso e oportunista.
2. Nome dado ao trecho do rio Tâmisa que corre pela cidade de Oxford, na Inglaterra.
3. John Hampden (1595–1634) foi um dos líderes parlamentaristas que desafiou a autoridade de
Carlos 1 no período da Revolução Inglesa.
5. Região do Distrito dos Lagos inglês. Na época da publicação de Frankenstein, era famosa por
ter abrigado poetas notáveis, como Wordsworth, Coleridge, De Quincey e Southey.
6. Arthur’s Seat: nome do pico mais alto do monte de colinas que domina a paisagem de
Edimburgo; mede duzentos e cinquenta e um metros e é um dos símbolos da cidade. São
Bernardo é um poço de água mineral localizado na margem sul do rio Leith, cujas águas são
reconhecidas por suas propriedades medicinais. E Pentland Hills é uma cadeia de colinas
localizada no sudoeste da Escócia, que se estende por trinta e dois quilômetros.
∴
1. Saudades do lar, em tradução livre do francês.
∴
1. O melhor relato desse fato histórico é citado em Xenofonte, Anábase, livro IV.
∴
*. Resenha de Percy Bysshe Shelley publicada após sua morte por Thomas Medwinem no
periódico The Athenaeum: Journal of English and Foreign Literature, Science and Fine Arts, em
10 de novembro de 1832.
1. Combinação das palavras de lady Macbeth (Macbeth, ato 1, cena V) e das últimas palavras de
Macbeth (Macbeth, ato v, cena VIII).
2. Alusão aos dois filhos de Poseidon que tentaram alcançar os céus ao amontoar o monte
Pélion sobre o monte Ossa para chegar ao Olimpo (ou, em alguns relatos, as duas montanhas
foram empilhadas em cima da morada dos deuses). A imagem foi usada por Shelley no sentido
de somar desafios a uma tarefa que dá mostras de inutilidade e presunção.
3. Expressão grega que designa aquilo que desperta emoções na audiência e evoca a lembrança
de algo que os ouvintes já percebiam.
4. Referência à personagem principal do romance Things as They Are; or, The Adventure of
Caleb Williams (1794), escrito por William Godwin, pai de Mary Shelley.
∴
1. Landmark, 2012. Trad. Marcella Furtado. [NE]
∴
1. Os sete adormecidos de Éfeso são personagens pertencentes à mitologia greco-romana. Uma
boa versão da lenda pode ser encontrada na obra Werner Verbeke e Herman Braet (orgs.). A
morte na Idade Média. São Paulo: Edusp, p. 86. [NE]
∴
1. No original: Forthwith this frame of mine was wrenched/ With a woful agony, Which forced
me to begin my tale;/ And then it left me free.// Since then, at an uncertain hour, / That agony
returns:/ And till my ghastly tale is told/ This heart within me burns. Samuel Taylor Coleridge.
The Rimer of the Ancient Mariner. [ed. bras.: A balada do velho marinheiro, seguido de Kubla
Khan. Trad. Alípio Correa de Franca Neto. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005. p. 196 e 198].
∴
1. O judeu errante, ou Ahasverus, é um personagem pertencente à tradição oral cristã.
Ahasverus atravessou o caminho de Jesus, quando ele estava a caminho do Calvário, e este lhe
amaldiçoou, condenando-o a errar pelo mundo até o fim dos tempos. [NE]
∴
*. O texto é o da versão impressa ao final da primeira edição de Mazeppa, a Poem (London:
John Murray, 1819), pp. 59–69.
2. Serrugee — ou, às vezes, suridgee — é a palavra turca que designa aquele que cuida dos
animais de carga. Janizary: soldado de infantaria turco pertencente à guarda pessoal do sultão,
criada no século XIV e dissolvida em 1826.
∴
1. No original, drawing-rooms, um recinto onde se recolher; aqui, refere-se a “recepções nas
quais as damas são apresentadas à corte” (Shorter Oxford English Dictionary), reunião de gente
variada em que a realeza, a aristocracia e o beau monde podem se exibir uns aos outros, fazer
intrigas e trocar fofocas corteses.
3. “Jogo de baralho no qual os participantes apostam na ordem em que certas cartas, tiradas
uma a uma do monte, devem aparecer” (Shorter Oxford English Dictionary).
4. No original, defile; é também um termo militar que designa “uma trilha estreita ao longo da
qual os soldados só conseguem marchar em fila ou com uma linha de frente estreita” (Shorter
Oxford English Dictionary).