Resenha - Misérias Do Processo Penal

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 5

Resenha da obra “Misérias do processo penal” – Francesco Carnelutti

CARNELUTTI, Francesco. As misérias do Processo Penal. 3. ed. São Paulo: CL


Edijur, São Paulo, 2019.

Rodrigo Garcia Duarte


(180108878)

A obra em análise é de autoria de Francesco Carnelutti, um dos mais


renomados processualistas italianos da história, que, junto com juristas como
Chiovenda e Calamandrei, contribuiu para a formação do que se convencionou
chamar de período da reconstrução científica do direito processual civil, consolidando
a noção de lide como o centro do processo.

No livro “Misérias do Processo Penal”, Carnelutti apresenta-nos suas


reflexões advindas tanto de seus estudos como acadêmico, quanto de suas
experiências profissionais como advogado acerca dos méritos e deméritos do
processo penal, suas necessidades e contradições, sua civilidade e barbaridade.

Logo no prefácio temos uma possível revelação dos propósitos que motivaram
a escrita do livro: o interesse crescente do público pelo processo penal1, mas não um
interesse vigilante em prol dos direitos e garantias processuais, mas sim um interesse
macabro pelo sofrimento alheio, tal qual o interesse que tinham os romanos pelas
lutas nos coliseus. O que pretende o autor é desmistificar essas ilusões que
fabricamos a respeito das lides penais, que se transpõem do público externo para o
próprio interior dos tribunais, pois a verdade é que os grandes julgamentos penais são
hoje, ainda mais do que nos tempos de Carnelutti, negativamente influenciados pela
opinião pública2.

1 Confira-se, por exemplo, o seguinte trecho do livro: “a função judiciária está ameaçada pelos opostos
perigos da indiferença ou do clamor: indiferença pelos processos pequenos, clamor pelos célebres” (p.
16).
2 Tome-se como exemplo a superlotação do auditório no julgamento de Adriana Villela. Informações

disponíveis em:
https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2019/10/01/interna_cidadesdf,793094/publi
co-lota-auditorio-no-julgamento-de-adriana-villela.shtml
Assim, em linguagem poética e de fácil compreensão, Carnelutti se propõe a
colaborar para uma compreensão mais realista e humanista acerca dos dramas dos
acusados e do papel dos defensores, dos juízes e do Ministério Público, instituições
que deveriam colaborar para a construção de uma civilização mais justa e harmônica,
mas que acabam colaborando para os antagonismos e contradições do sistema.

Logo no primeiro capítulo, e há razão para essa escolha, o jurista italiano


disseca o principal adereço utilizado por aqueles que litigam e julgam no processo
penal: a toga, esse importante elemento da liturgia que anda vilipendiado perante a
opinião pública. O autor aborda esse tema a partir da simbologia que esse adereço
incute. Uma simbologia, em primeiro lugar, de autoridade, mas, indo mais afundo, de
distinção e de união, união de todas as partes para a produção da justiça.

O juiz, essa figura hoje glamourizada nas mídias e jornais, é objeto de


interessantes reflexões no livro, a começar pela constatação de que perante o juiz
estão as partes – esta simples frase quer dizer mais do que uma primeira impressão
deixa transparecer, quer dizer que o juiz não é parte. Disso decorre que a posição do
juiz no tribunal e no processo, está acima das partes, inclusive topograficamente.

Aliás, se deveriam as partes estar igualmente posicionadas abaixo do Juízo,


por que então é destinado ao Ministério Público (MP) um assento ao lado do juiz em
diversos julgamentos3? Carnelutti não aborda a fundo essa questão no livro, limitando-
se a dizer que “isso constitui um erro, que com maior compreensão em torno da
mecânica do processo terminará por se corrigir”4.

Todavia, por ser um questionamento contumaz, dispensar-se-ão algumas


linhas para comentá-lo. Em síntese, o STJ vem decidindo que tais prerrogativas são
devidas, uma vez que o MP é uma instituição permanente e essencial à justiça5 e que,
quando como custos legis, e não como parte ou órgão agente, há de ter preservada
essa prerrogativa em nome da proteção da lei e dos direitos fundamentais.

Pois bem, ainda sobre as considerações a respeito do papel do juiz, é


desconcertante a assertiva de Carnelutti de que a exigência de o juiz não ser parte no
processo é fictícia, pois tudo que existe é parte de algo, e se o juiz compõe o processo

3 Na legislação brasileira estas prerrogativas constam de dois dispositivos: o inciso XI do art. 41 da Lei
nº 8.625/93 e o art. 18, I, “a”, da Lei nº 75/94.
4 Op. Cit. p. 32.
5 RMS 23919/SP, Rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, Segunda Turma, DJe de 11/09/2013.
penal haverá sempre a tentação inarredável de ser ele também parte, e é nisso que
consiste o drama imbatível do julgador. Aqui, o autor quebra mais uma das nossas
ilusões: a da justiça imparcial, pois não há nada de imparcial na justiça humana, “tudo
o que se pode fazer é buscar diminuir esta parcialidade”6.

Todavia, tudo deve ser feito para que se tente alcançar a imparcialidade do
magistrado, e o princípio do colegiado, conforme bem anota Carnelutti, contribui para
isso, porque aí o juiz deixa de emitir uma nota só para compor um acorde, o que exige
muito mais harmonia. Não obstante, talvez a contribuição mais profunda desse livro a
esse tema seja o de que o juiz, para ser superior às partes, precisa apequenar-se,
colocar-se no degrau mais baixo da escada antes de subi-la.

Essa necessidade encontra razão na busca pela verdade, objetivo ideal de


um processo judicial. Mas não a verdade ilusória, total, porque essa não existe. O que
se busca é a composição imparcial das verdades parciais apresentadas pelas partes,
que apresentam razões diferentes e, não raras vezes, contraditórias, mas isso está
na essência do processo, que é tratar as partes como colaboradoras do juiz na
construção dos fatos, e não como inimigas, na linha do que está disposto, para o
campo do processo civil, no art. 6º do CPC, que trata do princípio da colaboração7.

As dificuldades envolvendo a imparcialidade do juiz é objeto de inúmeros


estudos relevantes, como a dissertação de mestrado “Discursos no sistema penal: a
seletividade no julgamento dos crimes de furto, roubo e peculato nos Tribunais
Regionais Federais do Brasil”, da professora e advogada Carolina Costa Ferreira. A
eminente jurista, após analisar 564 decisões judiciais proferidas pelos TRFs do país
no período de 2006 a 2008, chegou à conclusão de que os magistrados tendem a ser
bem mais brandos com os crimes de peculato do que com os demais crimes contra o
patrimônio, ao ponto de que a mera condição de funcionário público foi suficiente para
absolver o réu ou amenizar a punição do réu.

A essas características contraditórias do processo, ao choque de


parcialidades para a produção da imparcialidade, não está acostumado o grande
público, que encontra nos grandes julgamentos uma fonte mórbida de divertimento.

6 Op. Cit.p. 35
7 "Art. 6º. Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo
razoável, decisão de mérito justa e efetiva." Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. BRASIL.
Torna-se o processo um espetáculo televisivo semelhante a um evento esportivo,
sobre o qual lançam-se previsões, opiniões, críticas e, o que é pior, pré-julgamentos.
Perante o tribunal da opinião pública, condena-se ou absolve-se antecipadamente o
acusado sem que se tenha o direito ao contraditório ou à resposta, não se tem
recursos e não importa a sentença final, pois o dano à imagem do réu não se repara.

Carnelutti menciona que a Constituição italiana garante o direito à presunção


de inocência. Também a Constituição do Brasil o garante, ainda que sob turbulentas
idas e vindas do posicionamento da Corte Suprema8, mas como garantir também a
sua eficácia se a multidão já faz sofrer o réu antes mesmo de qualquer decisão
judicial?

O acusado, então, é um miserável, do início do processo até a sua cova, isso


porque Carnelutti nos provoca com a afirmação de que as consequências do processo
penal se fazem sentir antes mesmo da instrução processual e não se extinguem
jamais, nem com a extinção do julgamento nem com a extinção da pena, e não importa
se o réu foi condenado ou absolvido, o processo o perseguirá interminavelmente.

Aliás, até mesmo a sentença de absolvição por insuficiência de provas trará


suas mazelas, pois deixará para sempre em aberto, ao menos perante a opinião
pública, a possibilidade de o acusado ter cometido o delito, ainda que seja a melhor
solução para que se garanta a liberdade do réu.

Mais clara ainda é a complicada situação que envolve os condenados, pois


para eles aí sim o processo penal não terá fim nunca. As raízes canônicas do direito
penal são indisfarçáveis e muito estudadas, mas o que produzimos foi uma distorção
completa da ideia da pena cristã, em que se institui a punição para depois se ter o
benefício do perdão. A sociedade parece esquecer-se dessa segunda parte, pois o
perdão jamais é concedido, não vem nem com a liberdade9.

É justamente nessas constatações que temos uma clara ilustração do que o


autor quer dizer com o seu título: o processo é, ele mesmo, miserável, imperfectível,

8 Para ficar apenas em alguns exemplos: HC 152.752, HC 126.292, HC 84.078 e ADCs 43, 44 E 54.
9 Em entrevista à Rede Record, o autor do livro Richthofen, Roger Franchiniesc, afirma que Suzane
Richthofen jamais poderá levar uma vida normal fora da prisão. Disponível em:
https://noticias.r7.com/sao-paulo/videos/ela-nao-tem-direito-ao-esquecimento-diz-escritor-sobre-
futuro-de-suzane-von-richthofen-15102015 .
insuficiente, ainda que necessário, pois os seus mecanismos, ainda que funcionando
de acordo com a lei, produzem contradições.

O que Carnelutti exige, realmente, é que os juízes tenham simpatia pelos


acusados, que os conheçam, que façam um juízo honesto de sua história10, pois
“aquilo que o homem quis não se pode conhecer senão através daquilo que o homem
é”, e não se diga que isso comprometeria a imparcialidade do julgador, pois se trata
de exigência do nosso Código Penal, que, no seu art. 59, assim como o Código
italiano, determina que o juiz analisará, ao estabelecer a pena, a culpabilidade, os
antecedentes, a conduta social, a personalidade do agente, os motivos, as
circunstâncias e consequências do crime, bem como o comportamento da vítima.

Diversas associações podem ser feitas com a obra resenhada. Já nos


clássicos podemos encontrar críticas à justiça, como no livro francês “Os Miseráveis”,
de Victor Hugo, e na antiga comédia grega “As Vespas”, de Aristófanes (422 a.C).

Na cultura popular contemporânea, a série Olhos que condenam, da Netflix,


ao representar o caso dos “Cinco do Central Park”, nos mostra um completo
desvirtuamento das instituições policiais e de justiça, que bestializam os acusados,
especialmente se forem negros, e que se valem de tudo em prol da condenação. Da
mesma forma, a espetacularização e a deturpação do processo penal podem ser
observadas na série O povo contra Oj Simpson, que dramatiza aquele que foi
chamado, com algum exagero, de “O maior julgamento do século XX”.

Conclui-se, portanto, que o livro “Misérias do Processo Penal”, ainda que pelo
seu título indique o direcionamento aos juristas, foi escrito para todos, não tem público
específico, porque é um livro que quebra as nossas ilusões acerca do processo, e se
trata, ao fim e ao cabo, de uma obra sobre a civilização.

10
Op. Cit. P. 52.

Você também pode gostar

pFad - Phonifier reborn

Pfad - The Proxy pFad of © 2024 Garber Painting. All rights reserved.

Note: This service is not intended for secure transactions such as banking, social media, email, or purchasing. Use at your own risk. We assume no liability whatsoever for broken pages.


Alternative Proxies:

Alternative Proxy

pFad Proxy

pFad v3 Proxy

pFad v4 Proxy