Povos Migrantes
Povos Migrantes
Povos Migrantes
Migrantes latino-americanos
na escola em São Paulo:
um relato de prática sobre história
e cultura dos povos andinos
O
presente artigo trata do relato de prática pedagógica de-
senvolvida com as crianças da EMEI Armando de Arruda
Pereira (DRE Ipiranga), nos anos de 2016 e 2017, pelas
professoras Ritta Minozzi Frattini Ueda e Simone Benig-
no Martins. Essa Unidade Educacional localiza-se na região central de São
Paulo e possui um número significativo de crianças migrantes de países da
América Latina. O trabalho desenvolvido teve como objetivo proporcionar
aos estudantes conhecimentos sobre história e cultura dos povos andinos, o
respeito à diversidade e a aproximação de todas as crianças da turma à cultu-
ra das famílias migrantes de países sul-americanos. Essa prática conseguiu en-
volver toda a comunidade escolar, valorizar a cultura de origem das famílias
migrantes, aumentar a comunicação entre essas famílias e a escola, desenvol-
ver relações de respeito à diversidade e possibilitar a descoberta, por parte de
professores e crianças, da história e da cultura dos povos andinos.
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Introdução
O Brasil, desde o século XIX até o famílias com o propósito de pensar sobre
presente, é o destino escolhido por muitos a história e a cultura dos países de origem
migrantes que buscam uma vida melhor. dessas pessoas para, então, implementar
Ainda hoje, assim como no decorrer da his- práticas pedagógicas de valorização dessa
tória, é a falta de trabalho, e, por sua vez, a diversidade cultural. Elegeram a história e
falta de alimento, que geralmente faz com a cultura andina como tema central para a
que as pessoas deixem seu lugar de origem. nossa proposta didática, em especial da ci-
Mas a vida em outro país geralmente apre- vilização Inca, uma vez que a maioria das
senta dificuldades e muitos migrantes têm crianças migrantes é originária de países
de enfrentar o preconceito, o trabalho in- localizados no território que pertenceu ao
formal sem benefícios da lei, os baixos salá- antigo Império Inca.
rios, entre outros problemas.
Assim que a coordenadora pedagógica
Considerando que os migrantes latino- da escola dialogou com o grupo de profes-
-americanos vêm morar no Brasil, especial- sores sobre a necessidade de um trabalho
mente na cidade de São Paulo, trazendo pedagógico voltado para a diversidade
consigo suas famílias ou, então, formando étnico-cultural, especialmente no que se
suas famílias na capital paulista, mesmo refere às crianças migrantes latino-ameri-
que indocumentados, os filhos desses mi- canos, eu, enquanto estudante de História
grantes têm direitos fundamentais, como o e professora de Educação Infantil, propus
da educação1. pesquisar e escrever um trabalho de modo
a oferecer subsídios teórico-práticos para
A EMEI Armando de Arruda Pereira,
que as (os) professoras (es) da instituição pu-
localizada na Praça da República, região
dessem conhecer a história e a cultura dos
central da capital paulista, possui grande
países de origem de grande parte de seus
número de alunos (as) de origem boliviana,
alunos e, com isso, realizar práticas peda-
peruana, paraguaia, colombiana, equato-
gógicas que proporcionassem vivências e
riana etc., cujos pais, em sua maioria, tra-
aprendizagens sobre os povos Incas.
balham em indústrias têxteis localizadas
em bairros do entorno da escola. Diante O levantamento de dados sobre a na-
desse contexto particular da comunidade cionalidade das famílias, a fundamenta-
escolar e do território em que está inseri- ção teórica e a proposta didática foram
da a referida instituição de ensino, surgiu a elaboradas por mim. Contudo, contei
preocupação, por parte das professoras e da com a colaboração da professora Simone
coordenação pedagógica da unidade, em Benigno Martins para que a prática aqui
acolher os(as) alunos(as) migrantes e suas apresentada fosse implementada. A profes-
1 Estudos recentes abordam como está sendo realizado o direito humano à educação para migrantes da
Bolívia que vivem em São Paulo. Consultar: MAGALHÃES, Giovanna Modé; SCHILLING, Flávia. Imigrantes da
Bolívia na escola em São Paulo: fronteiras do direito à educação. Pro-Posições: Campinas, SP, vol. 23, n. 1, 2012.
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sora Simone (MARTINS, 2021) menciona A nossa prática alinhou-se ao projeto
que aceitou participar do projeto, porque político-pedagógico da escola, que busca
acredita “que valorizar a cultura de uma valorizar a diversidade étnico-cultural da
criança é valorizar o seu ser, é respeitá-la comunidade escolar. A direção colaborou
e é promover a valorização de sua cultura com o fornecimento dos materiais a serem
dentro da escola”. utilizados durante o projeto e a coordena-
ção pedagógica contribuiu na construção do
De acordo com Munanga (2005, p.
conhecimento do grupo de professores pro-
31): “Identificar e corrigir a ideologia, en- movendo formações e visitas pedagógicas ao
sinar que a diferença pode ser bela, que Memorial da América Latina e ao Museu
a diversidade é enriquecedora e não é si- da Imigração do Estado de São Paulo. Essa
nônimo de desigualdade, é um dos passos proposta teve início no ano de 2016 e em
para a reconstrução da autoestima, do 2017 a professora Simone deu continuidade
autoconceito, da cidadania e da abertura às atividades. Nesse ano, 2017, eu apenas
para o acolhimento dos valores das di- acompanhei de longe, pois tive que fixar lo-
versas culturas presentes na sociedade”. tação em outra unidade educacional.
Objetivos
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A nacionalidade das crianças
5º D 26 2
5º E 24 1 1
6º A 22 1 1 1
6º B 24 1
6º D 21 1
6º E 28 1 1 1
6º F 26 3
Total 332 1 26 5 4 3 2 1
2 América Latina compreende quase a totalidade dos países da América do Sul (exceto Suriname e
Guiana Britânica) e da América Central. A palavra “Latina” refere-se a países onde se fala espanhol, português
e francês, idiomas derivados do latim. O latim, originário do Lácio, região da Itália, tornou-se a língua oficial da
cultura romana, que a disseminou pelo mundo com a expansão do Império Romano.
3 Período anterior à chegada de Cristóvão Colombo à América em 1492.
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Nacionalidade das famílias dos estudantes da EMEI Ar-
mando de Arruda Pereira (2016)
Países do
Países do Continente Africano Continente
Turmas
Asiático
República
Tanzânia Democrática Angola Marrocos Camarões Nigéria Senegal Guiné Palestina China Observações
do Congo
5º A
5º B
5º C 1 1
5º D 1
Estudante 1: pai - Tanzânia,
5º E 1 1 2
mãe - Brasil (RJ)
5º F 1 1
6º A
6º B 1
6º C 1
6º D
6º E
6º F
Estudante: pai - Nigéria,
6º G 1 2 1
mãe - Camarões
Estudante 2: pai - China,
6º H 1 1
mãe - Brasil (BA)
Total 1 1 2 1 1 2 2 1 1 5
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mílias migrantes por meio de questionário de 2016, sendo que a realização da proposta
bilíngue na tentativa de conhecer melhor com as turmas ocorreu nos meses de setem-
as práticas culturais de seus países de ori- bro, outubro, novembro e dezembro deste
gem (crenças, festas e roupas típicas, músi- mesmo ano e durante o ano de 2017.
cas, danças, culinária etc.).
Para a realização do projeto foram uti-
A partir do estudo da bibliografia e das lizados os espaços das salas de aula, ateliê
respostas das famílias, reformularam-se prá- de arte, sala de leitura e quadra. Os espaços
ticas pedagógicas sobre aspectos da cultura foram escolhidos de acordo com a proposta
andina a serem trabalhados com as crian- de cada atividade. A produção de cerâmica
ças. A prática foi desenvolvida com quatro com argila e a pintura foram feitas no ate-
turmas: uma de infantil I e três de infantil liê de arte e, em dias chuvosos, na sala de
II. O momento de concepção e escrita do aula. Na sala de leitura foi contada a lenda
projeto, a leitura bibliográfica necessária da fundação de Cuzco, as brincadeiras fo-
para compreender o universo Inca no perío- ram realizadas na quadra, já os jogos de
do pré-colombiano e o planejamento peda- quebra-cabeça e desenhos tiveram a sala
gógico ocorreu nos meses de julho e agosto de aula como espaço interativo.
Procedimentos didáticos
Roda de conversa
Para introduzir as crianças no uni- e informações acerca dos temas que nos
verso incaico foi realizada uma roda de propusemos a trabalhar.
conversa em que apresentamos imagens
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Imagem 1: Desenhos do projeto para artesanato em argila inspirado
na cerâmica Inca, Infantil I, 2016.
Imagem 2: Produções artísticas das crianças expostas na Mostra Cultural, Infantil I e II, 2016.
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Lenda sobre a fundação de Cuzco (principal
capital do Império Inca)
No trabalho com a linguagem oral e es- Por fim, junto ao monte Wanakauri6 , os
crita sobre a história dos povos andinos, as filhos do Sol enterraram o cajado. Quan-
professoras contaram a lenda da fundação do a terra o tragou, um arco-íris ergueu-
de Cuzco, cidade localizada na Cordilheira -se no céu.
dos Andes, há cerca de 3.400 metros de al- Então o primeiro dos incas disse à sua
irmã:
titude, e que hoje faz parte do Peru. Cuzco
– Convoquemos as pessoas.
foi considerada a mais importante cidade
Entre a cordilheira e o altiplano estava
do Império Inca, que se iniciou em 1.200 o vale coberto de arbustos. Ninguém ti-
d. C. Seu nome, Qosqo, na língua quéchua nha casa. As pessoas viviam em buracos
(ou quíchua), ainda falada nas montanhas e ao abrigo de rochedos, comendo raízes,
da região andina, significa “umbigo do e não sabiam tecer o algodão nem a lã
mundo” ou “centro do mundo”. Confor- para defender-se do frio.
me relata Eduardo Galeano (1996, p. 63), Todos os seguiram. Todos acreditaram
segundo a lenda, o surgimento de Cuzco neles. Pelos fulgores das palavras e dos
teria ocorrido da seguinte maneira: olhos, todos souberam que os filhos do
Sol não estavam mentindo, e os acom-
Wiracocha4, que tinha afugentado as som- panharam até o lugar onde os esperava,
bras, ordenou ao Sol que enviasse uma fi- sem ter ainda nascido, a grande cidade
lha e um filho à Terra, para iluminar o de Cuzco.
caminho aos cegos. Após a leitura da lenda da criação de
Os filhos do Sol chegaram às margens do Cuzco, as professoras fizeram uma roda
lago Titicaca5 e começaram a viagem pelas de conversa com as seguintes perguntas
quebradas da cordilheira. Traziam um ca- às crianças: quem era Wiracocha? O que
jado. No lugar onde afundasse o primeiro o filho e a filha do Sol vieram fazer na
golpe do cajado, fundariam um novo rei- Terra? O que os filhos do Sol deveriam
no. Do tronco, atuariam como seu pai, que fazer com o cajado? Como viviam as pes-
dá a luz, a claridade e o calor, derrama a soas antes dos filhos do Sol chegarem à
chuva e o orvalho, empurra as colheitas, Terra? Como era a paisagem do lugar
multiplica as manadas e não deixa passar onde foi construída a cidade de Cuzco?
nenhum dia sem visitar o mundo.
Por todas as partes tentaram enterrar o ca- Para que as crianças vivenciassem o ar-
jado de ouro. A terra recusava, e eles conti- remesso do cajado de ouro pelos filhos do
nuavam buscando. Sol, o qual afundou no lugar onde se fun-
Escalaram picos e atravessaram corrente- daria um novo reino, o reino dos Incas, foi
zas e planaltos. Tudo que seus pés tocavam realizada a brincadeira de salto à distância
ia se transformando: faziam fecundas as como experiência corporal.
terras áridas, secavam os pântanos e de-
volviam os rios a seus leitos. Na alvorada, Em seguida, foi proposta a realização
eram escoltados pelos gansos, e pelos condo- de um desenho para ilustrar a lenda da
res ao entardecer. criação de Cuzco.
4 Wiracocha era deus dos povos antigos da América, da cidade de Tiahuanaco, considerado como o
criador do Universo e de tudo o que existe nele: a terra, o Sol, os seres humanos, os animais e as plantas.
5 Lago localizado entre Peru e Bolívia, em uma região muito alta da cordilheira dos Andes. Fica cerca de
3.800 metros de altitude em relação ao nível do mar.
6 Montanha perto de Cuzco.
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Imagem 3: Ilustrações da lenda de fundação da cidade de Cuzco (Peru), Infantil II, 2017.
Nas linguagens oral e escrita, além da Bolívia” e “O nascimento dos Andes e ou-
lenda de fundação de Cuzco no Peru, a tras lendas pré-colombianas”. A mãe da
professora Simone trabalhou a contação criança Nicolas, de origem peruana, foi à
de história da literatura infantil peruana: escola ler a história “Quién tiene miedo de
“A Kantuta Tricolor e outras histórias da qué?” em castelhano.
Culinária andina
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Música e dança
Avaliação
A avaliação das crianças foi realizada rava de origem indígena, enquanto o pai
de forma contínua, considerando-se o en- do estudante Jhonatan, também de família
volvimento e a participação nas atividades, peruana, se apresentou como índio.
o reconhecimento do outro como ser diver-
Todas as crianças demonstraram inte-
so e o conhecimento de histórias e culturas
resse pelo tema e atividades, especialmente
de diferentes povos. Durante a realização
das vivências, as crianças expressavam a produção do objeto com argila, fizeram
sentimentos e sensações, como “a argila é perguntas e representaram de diferentes
fria” ou então “minha mãe veio desse país maneiras o conhecimento obtido. Obser-
[Peru]”. Quando a professora explicou que vou-se que, por meio da arte, essas crian-
a turma iria aprender sobre um país cha- ças, filhas de famílias migrantes latino-a-
mado Peru, uma das crianças peruanas ex- mericanas, assim como todas as crianças
clamou: “Do Peru? No creo!”, e sorriu. das turmas, tiveram a oportunidade de co-
nhecer aspectos históricos, artísticos e cul-
A menina Pahua, de origem peruana,
turais das populações andinas e valorizar
me perguntava constantemente quando
saberes e práticas de outros povos.
iríamos aprender mais sobre os “índios”.
Eu não havia utilizado a denominação Simone Martins (2021) avalia que com
“índios” durante as aulas, no entanto esta o projeto “conseguimos envolver a comuni-
criança relacionou os Incas aos povos in- dade, mostrar aos familiares que sua cultu-
dígenas. E percebi que ela não se conside- ra de origem é valorizada em nossa escola”.
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Considerações finais
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Referências Bibliográficas
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Acesso em: 13 jul. 2021.
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