Barbosa Moreira - Motivação

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: .

A MOnVI1(AO DA SENTENC!(OMO GARANTIAINERENTE


AO
ESTADO DE DIREITO ::~

JOSÉ CARtOS BARBOSA MOREIRA (**)

IlGood decisions are such decisions


for which good reasons can be given".
(B'ENTHAM)

u. DADOS HISTÓRICOS E DE DIREITO COMPARADO

1 . Registra a história do direito. precedentes antigos de deci-


sões judiciais que precisavam ou costumavam ser motivadas. A partir
da segunda metade do século XVIII, porém, é que se começou a
generalizar, nas legislações ocidentaisl a exigência feita aos juízes
de declarar, em seus pronunciamentos decisórios, as razões em que
se baseavam - imposição em regra qualificada pelo requisito da
publicidade. Consagrou-a a Revclução Francesa, primeiro no artigo
15, título VI da lei de organização judiciária de 1790, e depois no
artigo 208 da Constituição do ano 111. Na mesma época, adotou-se
.na Prússia a AlIgem'eine Gerichtsordnung de 1793, ao passo que na
península itálica a inovação se vira introduzida por anteriores refor-
mas, em Nápoles (1774) e no Principado de Trento (1788).
A obrigatoriedade da motivação constituiria traço comum a qua-
'se todas as grandes codificações processuais do século XIX. Em Fran-
ça, reafirmava-a o artigo 141 do Code de procédure civile de 1807,
corroborado o preceito pela lei de organização judiciária de 1810,
que cominou a sanção de nulidade para os trrêts desprovidos de
motivação. Acolheram tarribém o princípio o Codice di procedura
eti civile de 1865 (artigo 436), a Ley de Eniui.ciamiento Civil espanhola,
-, de 1881 (artigo 372), e as duas famosas Ordenações germânicas, a
~+ alemã de 1877 (§ 284, hoje 313) e ai austríaca de 1895 (§ 414). À
, mesma orientação vêm-se mantendo fiéis os legisladores processuais
----------
(*) Tese apresentada à VII Conferência Nacional da Ordem das Advogados do Brasil.
(U) Professor de Direito Processual Civil na Faculdade de Direito da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro.
282 A MOTIVAÇÃO DA SENTENÇA COMO. . .

civis na atual centúria: para apenas reco.rdarmos alguns dos mais te!
importantes códigos surgidos nos últimos quarenta anos, vejam-se o a
novo estatuto italiano de 1940 (artigo 132), o português de 1967 en
(artigo 659), o belga de 1967 (artigo 780), o argentino de 1970 me
(artigos 34, 161, 163), o. francês de 1975 (artigo 455). xa
2. Dado relevante é a atribuição de dignidade constitucional, ca
em mais de um país, ao dever, imposto aos juízes, de motivar as de- zõ
cisões. O fenômeno não esgota sua significação no acréscimo de
estabilidade que assim se imprime à norma, colocada ao abrigo das
0;'
,.
.. ,êt.

ou
vicissitudes legislativas em nível ordinário; sugere, ademais, visua- ex
lização diversa da matéria, pela adequada valoração de seu enqua-
dramento num sistema articulado. de garantias fundamentais. O exem..
pio mais conhecido é o da Itália, onde o artigo 111 da Constituição
de 1948 reza na primeira alínea: IITuttii p.rovvedimenti giurisdizionali
devono essere motivati"; podem citar-se ainda a Constituição Belga
de 1831 (artigo 97), as Constituições Gregas de 1952 (artigo; 93) e
de 1968 (artigo 117) e as de vários países latino-americanos: Colôm-
bia, Haiti, México, Peru C) çã,
do
Importa, aliás, registrar a ponderável tendência que se mani-
festa, mesmo onde não existe regra constitucional expressa, a pro-
curar na sistemática da Lei Maior um suporte para o preceito da
motivação obrigatória. Assim é que, na República Federal da Alema-
nha, doutrina autorizada enxerga na obrigatoriedade da fundamenta-
ção reflexo direto de princípios constitucionais, notadamente da ga-
rantia do rechtliches Gehor (direito de ser ouvido em Juízo) e da
subordinação do juiz à lei, consagrada aquela no, artigo 103, primei-
ra alínea, esta no artigo 20, terceira alínea, da Grundgesetz. e)
3. Consideração à parte merecem os ordenamentos de com-
mon law. Não se depara neles norma escrita de alcance genérico que
obrigue os órgãos judiciais a motivar seus prcnunciamentos. Todavia,
ao menos no que concerne ao direito inglês, seria errôneo interpretar
o fato como sinal de que a. idéia é estranha à concepção dominante. be
Muito ao ccntrário, os estudiosos da matéria assinalam que a moti- in1
vação constitui procedimento constante, incorporado à tradição, prin- dê
cipalmente nas Cortes Superiores (3). Se não se tratou de editar regra trc
------------
01Para a indicação e a transcrição (em língua francesa) dos dispositivos, vide FIX.ZAMUDIO,
Les garanties constitutionelles des parties dans le preces civil en América Latine, no vo!u-
me Fundamental gua.rantees of the parties in civil litigation, editado por CAPPEllETTI e 73
TAllON, Milão - Dobbs Ferry, 1973, pág. 90 e, aí, notas 205 a 208. o
02 leia-se, ao propósito, BRUGGEMAN, Die richterliche Begründungsspflicht, Berlim, 1971,
págs. 108, 125 e segs. 152 e segs. to
03 VARANO, Organiz:zazione e garanzie deUa giustizia civile nell Inghilterra moderna, --
Milão, 1973, págs. 502 e segS.i TARUFFO, La motivazione della sentenza civile, pádua,. 04
1975, p~gs. 363 e segs.j JOlOWICZ, Fundamental guarantees in civil litigation: England,,,-, OS
no vol. cit em a nota 1, págs. 168/9. ' 06
JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA
- 283

legal genericamente impositiva da fundamentação, é que, com toda


a probabilidade, não se terá julgado necessário formular a exigência
em texto escrito. (4) Mas parece inconcebível uma mudança de ru~
mos na praxe judiciária: chega-se a afirmar que, se os Tribunais dei~
xassem de fundamentar suas decisões, todo o sistema do case law
cairia por terra. (5) Basta pensar, com efeio, na importância das ra~
zões de decidir para a atuação do mecanismo dos precedentes.

Não deixa de surpreender, por isse, mesmo, que a situação seja


outra nos Estados Unidos, onde, na verdade, igualmente sem norma
expressa que imponha a motivação, a prática tem permanecido, até
certo ponto, indiferente ao problema. Se as decisões dos órgãos
superiores - aliás cem relevantes exceções - costumam ser motiva~
das, o mesmo não se pode dizer dos pronunciamentos judiciais de
primeiro grau. (6) Força é reconhecer, no particular, a posição singu-
laríssima do direito norte-americano.

4. A obrigatoriedade da motivação tem fundas raízes na tradi~


ção ,luso-brasileira. No Código Filipino, assim estatuía a Ordenação
do livro 111,Título LXVI, § 7, principio:

"E para as partes saberem se Ihes convém apelar, ou agra~


var as sentenças definitivas, ou' vir com embargos a elas,
e os Juízes da mor alçada entenderem melhor os funda~
mentos, por que os Juízes inferiores se movem a cond~
nar, ou abselver, mandamos que todos nossos Desembar-
gadores, e quaisquer outros Julgadores, ora sejam letra-
dos, ora o não sejam, declarem especificamente em suas
sentenças definitivas, assim na primeira instância, como no
I' caso da apelação, ou agravo, ou revista, as causas, em
que se fundaram a condenar, ou absolver, ou a confirmar,
ou revogar".

Acrescente-se que ficava sujeito ao pagamento de multa, em


,., benefício da parte, o juiz que infringisse tal preceito. Não obstante,
~,infrações ocorreram; e, já nos primeiros tempos de nossa independên~
\ da, uma portaria de 31 .03. 1824 vinha lembrar aos juízes recalci~
trantes o. dever a que estavam sujeitos.

O mesmo princípio inspirou o artigo 232 do Regulamento n.o


737, de 1850, verbis "A sentença deve ser clara, sumariando o juiz
o pedido e a contestação com os fundamentos respectivos, motivando
'<',' com precisão o seu julgado, e declarando sob sua responsabilidade a
------------
" 04 Observação de Taruffo, ob. cito pág. 345.
05 JOLOWICZ, ob. cit., pág. 169, nota 158.
06 Vide Taruffo, ob. cit., págs. 368/9.
284 A MOTIVAÇÃO DA SENTENÇA COMO.. .

lei, uso ou estilo em que se funda". Sob redação idêntica passaria a


regra ao antigo Código de Processo Civil e Comercia! do Rio Grande
do Sul (artigo 499), e com ligeiras alterações ao do Distrito Federal
(artigo 273, cap,ut), onde já anteriormente a acolhera o Decreto n.O
9.263, de 28.09. 1911, que regulamentou a Justiça local (artigo
259). -Em igual sentido dispuseram, entre tantos outros, o Código
baiano (artigo 308), o mineiro (artigo 382), o paulista (artigo 333),
o pernambucano (artigo 388). Não se afastc,u da linha o Código
Nacional de 1939, conforme ressaltava dos artigos 118, parágrafo
único, e 280, n.O 11,aquele a determinar que o juiz indicasse "os fatos
e circunstâncias que motivaram o seu convencimento"! este a exigir
que a sentença contivesse "os fundamentos de fato e de direito".

Hoje, têm-se no diploma de 1973 o artigo 131 ("o juiz apreciará


livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes
dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar,
na sentença, os motivos que lhe fo'rma,ram o conve'ncime'ntd'); o arti-
go 458, que arrola, entre os "requisitos essenciais da sentença", no
inciso 11, IIOS fundamentos! em que o juiz analisará as questões de
fato e de direito"; e, ainda, o artigo 165, que estende aos acórdãos
a incidência do artigo 458, acrescentando; que "as demais decisõesll
(isto é, as interlocutórias) também I1serão fundamentadas, ainda que
de modo conciso". A conjugação desses dispositivos não deixa mar-
gem a qualquer dúvida sobre a adoção categórica e irrestrita do prin-
cípio da obrigato,riedade da motivação.

11. o PRO'BlEMA DA JUSTIFICAÇÃO DO DEVER DE MOTIVAR

5. Como transparece dos dados que se alinharam na primeira


parte deste trabalho, o reconhecimento do dever de motivar as deci-
sões judiciais firmou-se, nos diferentes ordenamentos, sob circunstân-
cias históricas, poHticas, sociais e culturais bastante diversificadas.
Parece inviável qualquer tentativa de filiar a um princípio inspirador
comum a emergência da regra nos muitos países em que ela se impôs
(1). Tem variado, inclusive! no tempo e no espaço, o próprio, entendi-
mento de IIdecisão motivadal1,ou, em outras palavras, a extensão dos
requisitos que se hão. de satisfazer para que se tenha por cumprido
o dever de fundam~ntar os pronunciamentos judiciais.
Isso não impede que, focalizada a questão ao ângulo da política
legislativa, se formulem razões capazes de justificar a exigência. Não
são poucas as recordadas nos trabalhos que versam o assuntol. Numa
----------
07 Nesse sentido, ao nosso ver com razão, TARUFFO, ob. cit., págs. 320, 325, cf., do mesmo
autor, L'obbligo d imotivaxione della sentenxa civile tra diritto comune e iluminismo, In,!
Riv. di dir. proc., vol. XXIX (1974), págs. 265 e segs.
JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA 285

linha tradicional de pensamento, elas se relacionam sobretudo com


certa preocupação de racionalizar a atividade jurisdicional, assumin-
do, em primeiro plano, significação técnica. Assim é que se registra,
por exemplo, a importância da motivação para a correta interpretação
do julgado, para a determinação precisa do respectivo conteúdo -
o que pode revestir grande significação quando se queira delimitar
o âmbito da res iudicata. Com maior vigor ainda, costuma-se acentuar
o papel da motivação na economia das impugnações: mesmo deixan-
do de lado, porque freqüentemente desmentido na prática, o suposto
Ir valor persuasivo das boas fundamentações, a que se pretende atribuir
o efeito de desencorajar a interposição de recursos, restam outro.s
aspectos de inegável relevância: só o conhecimento das razões de

decidir pode permitir que os interessados recorram adequadamente
~s
e que os órgãos superiores controlem cem segurança a justiça e a le-
r,
ii~
galidade das decisões submetidas à sua revisão. Considerações aná-
logas caberiam quanto às chamadas "ações impugnativas autônomas",
10
nos ordenamentos que as possuem, como é o caso do brasileiro (ação
le
rescisória (8), mandado de segurança contra ato judicial). A obrigato-
)S
.11
)
riedade da motivação é vista, ademais, como condição do funciona-
le
mento eficaz dos mecanismos destinados a promover a uniformização
.r-
da jurisprudência, para a qual são as teses jurídicas que importam, e
n- não as conclusões nuas dos julgados.
Tais argumentos têm peso variável. Os mais importantes serão
talvez os que concernem à problemática: da impugnação das decisões:
já os levara em conta o legislador filipino, segundo ressalta do texto
acima transcrito (item 4). Mesmo a esses, contudo, só se pode reco-
ra " nhecer alcance -limitado. Desde lego se vê que, quando muito, justifi-
.
:1- c' . cariam a obrigatoriedade da motivação apenas para as decisões sus-
n- .~." cetíveis de revisão, mediante recurso ou ação impugnativa autônoma.
). Mas é concebível - e há exemplos históricos a amparar a objeção (9)
:>r - que se propiciem, quer às partes, quer aos órgãos revisores, os
)5 elementos de que necessitam, sem adotar o sistema da fundamenta-
J'
11- .. ção obrigatória e pública das decisões: estabelecendo, v.g., que as
:>5 razões de decidir sejam comunicadas, mediante requerimento, ao in-
jo teressado em manifestar impugnação, ou transmitidas, em caráter
::1..

reservado, ao juízo ad quem.


::a 6. O tratamento mais moderno do problema utiliza outro en-
io foque. Não. se nega a importância dos aspectos puramente técnicos,
la
ou pelo menos de alguns deles; mas é alhures que se coloca a tônica.
----------
'110
08 Sirva de exemplo o caso de ação rescisória proposta com invocação do artigo 485, n.o IX,
In
do Código de Processo Civil, absolutamente impensável sem o conhecimento da motivação
da sent~nça rescindenda.
09 Vide ainda TARUFFO, La motivo dliUa sento civ. cit., págs. 329/30, 334, 382/3.
286 A MOTIVAÇÃO DA SENTENÇA COMO. . .

Vai-se firmando a convicção de que o problema se põe, antes de tudo; té


no plano dos princípios fundamentais, de ordem política - no mais té
nobre sentido da palavra - que devem presidir à disciplina da ativi- h
dade estatal, in genere, e da atividade jurisdicional, in sp-=cie. Nesse ~, Ci
contexto, avulta a idéia de garantia como inspiração básica e fim ti
precípuo da imposição do dever de enunciar, publicamente, as razões a
justificativas da decisão proferida. ç.
o
Várias são as manifestações dessa função de garantia que se te
atribui à obrigatoriedade (e à publicidade) da motivação. Ela começa ti
por ministrar elementos para a aferição, in concreto, da imparciaUdade
do iuiz: só pelo exame dos motivos em que se apóia a conclusão,
poder-se-á verificar se o julgamento constitui ou não o produto da
apreciação objetiva da causa.-em clima de neutralidade diante das
partes. J:
o mesmo se dirá da tegalidade
da decisão: sem conhecer as o
razões que a inspiraram, impossível saber se ela é ou não cenforme r:
+I
à lei. Vale acentuar que a necessidade da motivação se torna mais
premente na medida em que se reconheceo papel desempenhado, no r
processo decisório, pelas opções valorativas do ju.lgador, por exemplo ~
ao cencretizar conceitos jurídicos indeterminados, como os de "bons c
costumes", "exercício regular de direito", "interesse público" e outros
análogos; e que as hipóteses de discrição concedida pelo ordenamen- c
to ao órgão judicial marcam justamente os pontos mais sensíveis do
problema: ao contrário do que pareceria à primeira vista, a motiva- t
ção é tanto mais necessária quanto mais forte o teor de discricionarie- r
dade da decisão, já que apenas à vista dela se pode saber se o juiz ~.
usou bem ou mal a sua liberdade de escolha, e sobretudo se não E
terá ultrapassado os limites da discrição para cair no arbítrio. (1°). Ain- C
da fora, porém, deses casos-limites, é ocioso frisar a importância da
motivação para o controle da solução dada quer às questiones iuris,
quer às questiones facti, e em particular da observância de normas
como a que veda ao juiz ,levar em conta elementos não constantes
dos autos (Código de Processo Civil, artigo 131, primeira parte, a
contrario sensu), ou a que o proíbe de conhecer de questões não
suscitadas, a cujo respeito se exija a iniciativa da parte (artigo 128,
fi,ne), ou as regras legais sobre valoração das provas (artigos 364,
365, 366, 367, etc.).
Last bust not least, trata-se de garantir o direito que têm as par-
tes de ser ouvidas e de ver examinadas pe.lo órgão, julgador as ques-
-------
10 Do preceito da mAivação dizia lOPES DA COSTA, Direito Processual Civil Brasileiro, 28.
ed., Rio, 1959, vol. 111, pág. 297: "Ele é que põe a administração da justiça a coberto
da suspeita dos dois piores ví cios que possam manchá-Ia: o arbítrio e a parcialidade".
JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA 287

tões que houverem suscitado. Essa prerrogativa deve entender-se ínsi-


ta no direito de ação, que não se restringe, segundo a concepção
hoje prevak~cente, à mera possibilidade de por em movimento o me-
canismo judicial, mas inclui a de fazer razões em Juízo de modo efe..
tivo, e por conseguinte de reclamar do órgão áudicial a consideração
atenta dos argumentos e provas trazidas aos autos. Ora, é na motiva-
çãoque se pode averiguar se em que medida o juiz levou em conta
ou negligenciou o material oferecido pelos litigantes; assim, essa par-
te da decisão constitui "o mais válido ponto de referência" para con-
trolar-se o efetivo respeito daquela prerrogativa. e1)

111. A Significa'ç.ão do Princípio no Quadro do Estado dê Direito

7. No presente contexto, em atenção ao lema geral escolhido


para a Conferência, importa por em relevo a significação que assume
o princípio da obrigatoriedade da motivação das decisões judiciais
no quadro do Estado de Direito. Considerado nas cambiantes circuns-
tâncias históricas, políticas, sociais e culturais que lhe cercaram a afir-
mação, ele sem dúvida reflete a atuação de idéias díspares. Na pers-
pectiva em que nos situamos, porém, não se afigura difícil reconhe-
cer-lhe sentido preciso e, em certa medida, unívoco.
No Estado de Direito, todos os poderes sujeitam-se à lei. Qual-
quer intromissão na esfera jurídica das pessoas deve, por isso mes-
mo, justificar-se, o que caracteriza o Estado d~ Direito como IIrechtsfer-
tigender Sta,at",como "Estado que se justifica" (12).Distingue a doutri-
na dois aspectos complementares dessa "justificação": o material e o
forma1. A intromissão é materialmente justificada, quando para ela
existe funda.mento.: é formalmente iustificada, quando se expõe, se
declara, se demonstra o fundamento (13).
Compete ao Poder Judiciário - em regra, com exclusividade,
mas em todo caso com absoluta preeminência - a função de custodiar
a integridade da ordem jurídica. A ele podem ocorrer os que por-
ventura queiram pleitear a tutela de direito supostamente ameaçado
ou lesado. t no seu âmbito que se submete ao teste definitivo a
efetividade do ordenamento: não basta a este reconhecer direitos
in abstracto, senão que lhe cumpre assegurar a possibilidade de ob-
ter-se, in concreto, a proteção ou a reintegração dos direitos abstrata-
mente reconhecidos. A promessa contida na lei reduzir-se-ia a mero
flatus vocis sem a oportunidade, aberta. a todos e a cada qual, de re-
clamar do juiz que a faça cumprir.
---------
11 TROCKER, Processo Civile e Constitu:done, Milão, 1974, pág. 460.
12 BRUGGEMANN, cb. cit., pág. 161.
13 BRUGGEMANN, ob. cit., págs. 117, 178.
~

'li ,

288 A MOTIVAÇÃO DA SENTENÇA COMO. . .

pOI
Mas a atuação eficaz da garantia jurisdicional exige que os ór- Ia
gãos incumbidos ds prestá-Ia igualmente se submetam - e até a me
foriiori - ao princípio da justificação necessária, no seu duplo mo- mt..
mento, material e formal. É preciso que o pronunciamento da Justiça, dei
d~stinado a assegurar a inteireza da ordem jurídica, realmente se há
funde na lei; e é preciso que esse fundamento se manifeste, para que mo
se possa saber se o império da lei foi na verdade assegurado. A não
qUi
ser assim, a garantia torna-se ilusória: caso se reconheça ao garante
órç;
a facu'ldade de silenciar os motivos por que concede ou rejeitq a pro- dec
teção na forma pleiteada, nenhuma certeza pode haver de que o
mecanismo assecuratório está funcionando corretamente, está deveras
preenchendo a finalidade para a qual foi criado.
8. Poderia talvez objetar-se que a exigência da justificação
formal, no tocante aos pronunciamentos judiciais, só é praticamente
útil na medida em que eles compo,rtem revisão a cargo de órgãos
siuperiores. A objeção prende-se à idéia, a que já se aludiu, de que
a necessidade de motivação precipuamente se explica pelo propósito' se
de facilitar à parte a tarefa de impugnar a decisão, e ao juízo revisor intE
a de investigar a ocorrência de erros ou vícios que porventura a tor- gri1
nem injusta eu ilegal. Corresponde,assim, a uma visualização do lon
problema através de prisma exclusivamente técnico. são

Ao ângulo em que nos coiocamos, ressa'lta a insuficiência dessa


maneira deequacionar o problema e a sua inidoneidade para atender
aos postulados do Estado de Direito. Não é a circunstância de estar
emitindo a última pa,lavra acerca de determinado litígio que exime
o órgão judicial de justificar-se. Muito ao contrário, é nesse instante
que a necessidade da justificação se faz particularmente aguda: o pro-
nunciamento final, exatamente porque se destina a prevalecer em
definitivo, e nesse sentido representa (ou deve representar) a expres-
são máxima da garantia, precisa, mais do que qualquer outro, mos-
con-
trar-se apto a corresponder à função delicadíssima que lhe toca. Não
é admissível que a garantia se esvazie, se despoje de eficácia, no tal
momento culminante do processo mediante o qual é chamada a atuar. resf
sere
a pensamento jurídico de nossos dias propugna concepção mais 6rg
ampla da controlabiUdiade das decisões judiciais, que não se adstrin- des
ge ao quadro das impugnações previstas nas leis do processo. Não tiça
é apenas o controle endopro,cessual que se precisa assegurar: visa-se tum
ainda, e sobretudo, "a tornar possível um controle "generalizado" e dên
"difuso" sobre o modo como o juiz administra justiça"; e "isso implica
que os destinatários da motivação não sejam somente as partes, seus
advogados e o juiz da impugnação, mas também a opinião pública
entendida seja no seu complexo, seja como opinião do quisquis d'e
JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA 289

populo" (14).A possibilidade de aferir a correção com que atua a tute-


Ia jurisdiciona! não deve constituir um como "privilégio" dos direta~
mente interessados, mas estender-se em geral aos membros da co~
munidade: é fora de dúvida que, se a garantia se revela falha, o
defeito ameaça potencialmente a todos, e cada qual, por isso mesmo,
há de ter acesso aos dados indi~pensáveis para formar juízo sobre o
modo de funcionamento do mecanismo assecuratório. Ora, a via ade~
quada não pode consistir senão no conhecimento das razões que o
órgão judicial levou -em conta para emitir seu pronunciamento; daí
decorre a necessidad~ da motivaçã.o obrigatória e pública.
9. O controle extra processu ai deve ser exercitável, antes de
mais nada, pelos jurisdicionadas in genere, como tais. A sua viabili-
dade é condição essencial para que, no seio da comunidade, se for-
taleça a confiança na tutela jurisdicional - fator inestimável, no Esta~
do de Direito, da coesão social e da solidez das instituições.
Impende observar, todavia, que no interior do grande conjunto
se distinguem conjuntos parciais, aos quais é justo reconhecer um
interesse qualificado no exercício do referido controle. O fenômeno
grita, por exemplo, no tratamento judicial de relações e situações que,
longe de circunscrever-se aos litigantes considerados individualmente,
são comuns a um número indeterminado. (e em r.egra vultoso) de
pessoas, cuja sorte pode ver-se afetada pela decisão - diretamente,
quando o ordenamento contempl,e uma extensão subjetiva de eficácia
da sentença, ou até da autoridade da coisa ju!gada (15); indiretamen-
te, mercê da influência que, senão de iure, ao menos de facto, venha
a pronunciamento a manifestar sobre outros subseqüentes, em cau-
sas análogas.
Em plano diverso, mas não secundário, situa-se aquele particular
setor da comunidade que, por dever de ofício, tem como ocupação
,,' habitual a análise, a explicação e a crítica do direito, não apenas
como s.e desenha nos textos 'legais, mas também, e necessariamente,
tal qual se revela, vivo, na prática judiciária. A doutrina tem suas
responsabilidades para com o corpo social, e a menor delas não
1: "será com certeza a de tentar, examinando as soluções adotadas pelos
" ~órgãos judicantes, para aplaudi-Ias ou para apontar-Ihes eventuais
desacertos, contribuir para o aprimoramento da administração da jus-
~i! tiça, e mesmo, eventualmente, para o aperfeiçoamento do ius posi-
tum, mediante sugestões que lhe inspire o estudo atento da jurispru-
""

- dência.
-----------
14 TARUFFO,La motivo delta sento civ., cit.. p~gs. 406/7.
15 Conforme sucede, V.g., na ação popular do direit:">brasileiro, com a decisão que julgue
procedente o pedido, ou que o julgue improcedente por motivo diverso da simples
deficiência de provas (Lei n.o 7.711, de 29.06.1965, artigo 18).
290 A MOTIVAÇÃO DA SENTENÇA COMO. . .

Nada disso é possível sem o conhecimento das razões por que F


o
s.e julga neste ou naquele sentido. Só a obrigatoriedade e a publici-
dade da motivação. permitem o exercício eficaz do controle extra- c
processua'l. e
c
10. Já tivemos ocasião de acentuar que, vista a fundamenta- n
ção obrigatória como garantia inerente ao Estado de Direito, desa- ' d
parece qualquer motivo para que a exigência se limite a decisões n
suscetíveis de revisão. Não há distinguir, portanto, nessa perspectiva, 9
entre pronunciamentos decisórios deste ou daquele órgão. Os tribu- ; a
nais que se situem na cúpula do aparelho judiciário hão de sujeitar-se,
como todos os outros órgãos judicantes, à necessidade da '''justificação J.
formal", tornando públicas as razões de decidir. Essa necessidade sub- d
siste mesmo nas hipóteses em que o tribunal esteja a julgar em té
último. grau, e a emitir pronunciamentos que nem sequer por meio d
de ação autônoma comportem impugnação. e
9
Conforme se lê em recente monografia alemã, "o dever de mo- c
tivar toca nesses casos a todos os tribunais sem restrição e não se a
limita .a domínios ou ramos singulares do Poder Judiciário". Recarda (é
o autor decisão da Comissão Européia de Direitos Humanos, de c'
17.01 . 1963, em que a tese foi expressamente confirmada, e acres- d
centa que o princípio. da obrigatoriedade da motivação há de ficar o
tanto menos sujeito a postergações quanto mais relevante para a ri
comunidade jurídica for a atividade do órgão (16). É uma observação c.
que merece total apaia: as cansiderações que nos induzem a reputar SI
essencial à vida do 'Estadade Direito a passibilidade de cantrolar-se p
extra'iudicialme,nte o funcianamento da Justiça, lange de perderem a
a razão. de ser, assumem ao. cantrária realce particular quando. apli- ir
cadas à "palavra definitiva" do Judiciário. Em relação. a essa - que
modela, na prática, o ius quod esf, e se vê canstantemente chamada
a cantribuir, de maneira paderasa, para o desenvolvimento. e o pro- p
Ci
gresso. da ordem jurídica - é que precisam os jurisdicianadas ter
mais seguro penhar de tranqüilidade e de ccnfiança na maneira por n
que ela desempenha sua função. assecuratória. q
Ct

IV. SITUA'ÇÃO DO DIRE,ITO BRASilEIRO q


9
11 . Inexiste na Constituição. de República texto que expressa-
mente co.nsagre a obrigatariedade da motivação. das decisões judiciais.
No. plane da legislação ordinária, entretanto., a Código de Process~
Civil (17), camo já se mostrau (item 4, fine, deste trabalho.t dá aO
----------
16 BRUGGEMANN,ob. cit., pág. 124.
17 No âmbito do proces'so penal, haveria que considerar o caso particularíssimo da decisãg
sobre os fatos, proferida pelo conselho de sentença nos feit:;;s da competência do i,

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