Resumo Historia Portugal Medieval AJP
Resumo Historia Portugal Medieval AJP
Resumo Historia Portugal Medieval AJP
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1096-1325
Existem dois modelos fundamentais que é necessário ter em conta para definir as
estruturas fundamentais da sociedade medieval portuguesa de antes do século XIV: o modelo de
organização senhorial e o modelo de organização concelhio.
O espaço.
O Entre Douro e Minho. Área muito acidentada, com proximidade da costa, com terras
altas, entrecurtada por cursos de água, com serranias, vales e colinas. Muito beneficiada pelas
chuvas é a mais húmida de todo o terrritório nacional.
Na 1ª (dos vales, planícies e colinas) vivem comunidades que praticam uma agricultura
intensiva em zonas demográficas muito densas; mas os camponeses estão distribuídos por
pequenas unidades de exploração familiar autónoma. Estas comunidades são as predominantes. É
aqui que se vai implantar mais cedo o regime senhorial. A densidade demográfica e a fertilidade
do solo desde cedo proporcionaram a criação de excedentes, os quais foram apropriados por uma
minoria, tendo como consequência uma hierarquização social.
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Apertada rede de transporte terrestres e fluviais, no entanto, a região está isolada do resto
da Península. Era mais fácil entrar na região através das vias fluviais; as terrestres não eram
muito frequentadas. As montanhas a leste formavam uma barreira natural não facilitando os
contactos.
Estabelecem-se pólos de dominação --» a \supremacia é traduzida pelo poder sobre áreas
especialmente férteis ou mais densamente povoadas e no controle das vias de comunicação que
unam essas áreas entre si. Os seus detentores extraem o Poder da abundância de bens ou da
concentração de homens nos lugares que dominam, ou do domínio das vias de comunicação.
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No mapa pode-se verificar a posição dos solares e castelos e a sua relação com os
caminhos e por outro lado com o relevo.
No séc. XIII os termos encontram-se concentrados numa mancha que abrange Lanhoso,
Braga, Guimarães e Lousada.
Em torno desta mancha, para o litoral, a Norte do Cávado, e no vale do Tâmega, usa-se o
nome de – terra.
As terras associam-se mais frequentemente a castelos do que os termos. Por outro lado,
os castelos nem sempre dão o seu nome à terra, o que significa que muitas terras existiam antes
de nelas dominarem os respetivos castelos. Eram talvez áreas sem centros definidos como por
exemplo os vales da zona do Cantábrico do Douro. Situarem-se na mancha da zona de termos de
1220 parece confirmar essa hipótese.
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Assim os castros e castelos contribuíram para a ordenação do território segundo áreas de
influência, as quais se sobrepõem a um ordenamento anterior. É imposto o domínio senhorial a
espaços que se organizavam de formas diferentes.
Povoamento. O Entre Douro e Minho era densamente povoado, mas dentro do seu
território existiam diferenças consideráveis. A rede de igrejas da arquidiocese de Braga e do Porto
mostra que estas atingem a sua densidade máxima numa mancha que coincide com a dos termos.
A densidade das igrejas volta a aumentar entre a Foz do Ave e a Foz do Douro, ou seja,
na Maia, até ao Porto, onde mais uma vez aparecem solos graníticos. Este tipo de solos existe
para sul do Douro até às montanhas do Vouga, aí aliados aos xistos.
Resumindo: a associação:
está relacionada com a densidade demográfica – onde se encontra esta associação é onde vamos
encontrar maior densidade demográfica.
A terra e o regime senhorial. Foi nestes viveiros humanos que se desenvolveu o regime
senhorial.
Uma grande quantidade de senhores prospera, à custa de sujeitarem pelas armas e pelo
serviço de poderes públicos uma grande massa de camponeses. Para sustentar a sua superioridade
apropriam-se da capacidade produtiva dos camponeses.
O seu poder parece, portanto, não se basear tanto na posse de terras de cultivo, mas no
domínio público sobres vastos territórios, sustentado por forças militares capazes de percorrer
rapidamente longas distâncias a cavalo, de exigir prestações pela administração da justiça e pela
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proteção militar, não só de agricultores, mas também de pastores e caçadores das áreas
montanhosas. Exemplos: senhores de Sousa e de Bragança.
Já os da Maia talvez devessem a sua prosperidade ao poder militar que lhes permitia fazer
incursões para sul, em terras não cristãs, e ao seu domínio sobre as vias de comunicação em torno
do Porto.
Nas regiões mais densamente povoadas existe uma enorme quantidade de nobres, mas em
geral de nível médio e inferior. É possível que a acumulação de muitas famílias nobres
neutralizasse os concorrentes e impedisse a emergência de famílias mais poderosas. A sorte dos
camponeses nem por isso foi melhor aqui, pois a magreza de recursos dos senhores fazia-os mais
exigentes. Uma outra característica desta área é a presença considerável de comerciantes,
burgueses e intermediários, que promove as trocas e investe os seus lucros em terras e assim
contamina, com a sua independência das estruturas feudais, as relações de dominação existentes
entre senhores e camponeses.
Na Beira Alta aconteceu o mesmo desta vez apropriando-se dos direitos senhorais
principalmente os monges cistercienses de Tarouca e de Salzedas e senhores como os Cunhas e
os Lumiares.
Nas abas ocidentais da serra da Estrela estabeleceram-se cavaleiros de Coimbra, uns eram
de origem estrangeira, francos ou asturianos, outros eram da própria região, moçárabes.
Mais a sul, o rei entregou aos Templários terras à volta de Pombal e uma região no vale
do Zêzere com o intuíto de estes assegurarem a defesa de Lisboa e Santarém.
Aos cistercienses de Alcobaça permitiu a criação de senhorios que eles tornaram muito
produtivos.
A vaga senhorial avançou para sul do Tejo, com concessões às ordens militares.
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O rei, por sua vez, também se adapta ao regime senhorial. Estende as exacções
senhoriais aos herdadores, isto é, aos descendentes de cultivadores livres ou proprietários de
alódios que ainda viviam à margem dos senhorios. Exige deles prestações de ordem pública como
se fossem senhoriais (a fossadeira, a voz e a coima). Confia aos mordomos e juízes, depois aos
meirinhos a administração senhorial dessas terras.. Organiza as inquirições para fixar os seus
direitos senhoriais.
O rei torna-se o promotor da expansão senhorial e usa-a para seu benefício. O facto de ser
responsável pelo poder público altera a natureza das suas relações senhoriais com os dependentes.
Este facto, que é o mais sério obstáculo à senhorialização, mostra-se mais nas cidades e centros
urbanos, onde a concessão de cartas de foral preserva ou cria instituições de direito público, as
quais no 1º caso prolongam organizações comunitárias anteriores e, no 2º caso, as imitam,
fazendo de todos eles a principal base do processo de centralização régia.
Os priores das ordens militares, os eclesiásticos e alguns leigos que se fixaram no Centro
e Sul, levados pela necessidade de colaboração militar, enquanto foram terras de fronteira, depois
pela prosperidade dos concelhos urbanos de dependência régia e pela necessidade em atrair
povoadores, concedem cartas de foral idênticas às que o rei atribuía, garantindo certa autonomia
aos minicípios emantendo uma uniformidade regional das instituições concelhias.
Assim se ciou um regime híbrido, em que se associa o regime senhorial com o concelhio.
Os senhores.
Para compreender o funcionamento do regime senhorial durante os séc. XII e XIII, temos
de compreender a natureza dos privilegiados – dos nobres. Verifica-se que as bases da
superioridade estão no sangue, na força das armas, no poder económico e na autoridade sobre os
outros homens.
As famílias de nobres associam-se a uma outra instância que não possui força militar mas
que é detentora de superioridade social e que a elas é parcialmente assimilada – o clero.
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nobres por nascimento. ---» Estes são os vocábulos que se utilizam para indicar a categoria social
que se transmite pelo nascimento.
- Vocábulo que engloba poder herdado e não herdado - boni homines - termo
utilizado quase sempre a sul do Douro, pressupõe que o Poder não é necessariamente herdado,
mas próprio e pode referir-se a pessoas de todas as categorias, desde os cavaleiros-vilões dos
concelhos até aos condes. Utiliza-se até às primeiras décadas do séc.XIII.
O uso de – nobilis começa por se fazer como adjectivo; no fim do séc. XII aparece como
substantivo e é precedido da expressão nobilis homo como sinónimo de – rico-homem. Em
considerável número de textos é reservado para nobres da corte régia ou condal. Nos séculos
seguintes é usado novamente como adjectivo.
Verifica-se que existe um pequeno grupo que está no topo da escala, perto do poder
régio, e que representa o modelo para todos os outros da mesma classe, mas situados mais abaixo.
Estes são mais numerosos, obviamente, e formam um grupo que se opõe aos homens comuns e
transmite a sua superioridade através da hereditariedade.
As armas. Os termos que designam a profissão das armas, miles e cabalarius, podem
tambem ser usados com conotação social.
No final do séc. XII indica um membro da nobreza mas de condição inferior e que vive
da profissão das armas. Aliás, « Cavaleiro» será, até meados do séc. XIII, um termo que não
inclui as categorias mais altas da nobreza de sangue. A condição de cavaleiro só tem sentido para
estabelecer a diferença entre o nobre e os não previligiados. O seu uso só interessa, portanto, a
nobres de categoria mais baixa que não querem ser confundidos com cavaleiros-vilões.
A osmose social, favorecida pela participação dos vilões na guerra, nas fronteiras com o
Islão, acaba por dar lugar ao “fechamento” social da nobreza, 1º com a intervenção das ordens
militres, depois com a transferência dos combates mais para o sul e, finalmante, com a conquista
definitiva do território
Todavia, a ligação dos senhores com a terra e os agricultores implica um tipo de poder
público com uma componente mais administrativa que militar, ou seja, mais «policial».
O vínculo inicial com o poder régio justifica que o espaço do domínio fundiário atribuído
pelo rei ao seu delegado, para recompensar e justificar o poder público se chame honor, termo
que também designa a própria autoridade pública. Este é um fenómeno interessante do regime
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senhorial português: o termo passa a indicar o domínio principal de uma família nobre, aquele
que lhe dá o nome, o que é transmitido ao herdeiro principal e que está imune das prestações
devidas ao rei.
Assim honra significa não só a qualidade superior de quem deve ser venerado e
respeitado por desempenhar uma função pública mas também o domínio nobre por excelência.
Por estas razões, o modelo de nobreza que até ao fim do séc. XIII transparece da
terminologia é mais o do “detentor do poder” do que o do “guerreiro” (miles), o que significa
que a sociedade não considera a força das armas, só por si, como justificadora do poder e
superioridade. O termo que melhor os exprime é senior que signigfica o mais velho, o patriarca, o
chefe da linhagem; aparece não como guerreiro ou rei, mas como o que tem poder sobre a sua
domus, isto é, não só na sua casa mas todos os que nela habitam, ou seja, aparece como o dono da
“casa”, que estende sobre os seus descendentes, sobre o seu domínio e nas terras em redor um
poder de patriarca: gere os bens materiais, dá as filhas em casamento para selar alianças, escolhe
o herdeiro, envia os mais novos para a guerra, protege a igreja ou mosteiro familiar.
Podemos estabelecer uma relação entre os termos senior e domnus. Em meados do séc.
XIII donus e dom não eram ainda exclusivos dos nobres; aplicava-se a proprietários que
suscitavam respeito aos outros membros da comunidade, assim como ao rei ou a membros da alta
nobreza. Mais tarde usa-se a palavra como título reverencial que se vai estender a todos os
membros da nobreza.
À medida que se avança para sul, prefere-se, para indicar a superioridade social, o
qualificativo bonus, que denota prosperidade material (boni homines), e identifica-se os potentes
com os milites. Aqui a relação entre a superioridade social e o nascimento é secundária. A
osmose social é maior e os cavaleiros vilãos equiparam-se aos infanções no território do concelho
em que dominam.
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Esta distinção geográfica verifica-se no séc. XII.
No séc. XIII a ideia de que a verdadeira nobreza implica não só o sangue herdado de
antepassados já nobres, mas também a profissão de armas e o poder efectivo sobre uma terra com
os seus homens estende-se a todo o reino.
Acentuam-se as diferenças regionais. A classe dominante é-o cada vez mais de todo o
território nacional e constitui um modelo único e tem de ter todos os 3 elementos: o sangue, as
armas e o Poder.
Cavaleiro – é o que vive do serviço militar. Em época tardia indica o que recebeu a
investidura das armas em oposição ao escudeiro, podendo indicar, em especial se for jovem
alguém de alta nobreza. Em geral, aplica-se aos nobres sem fortuna que vivem na dependência de
outrem e o servem no seu séquiro militar. Membro da categoria mais baixa da nobreza portuguesa
a qual se dividia tradicionalmente em 3 categorias.
Até ao fim do século XII a monarquia guerreira tem dois tipos de vassalos:
- Uma nobreza de serviço, de categoria modesta, porque composta sobretudo por nobres
sem fortuna, que vivem do serviço das armas na estrita dependência do rei (entre os quais os
filhos segundos de famílias poderosas).
- Os Ricos-homens, a quem o rei confia o governo das terras e que possuem um poder
próprio efectivo, com o qual o podem contestar e até combater.
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1º - como o principal grupo executante da centralização régia, e isto torna-a rival da
nobreza senhorial, ou seja, dos ricos-homens governadores de terras, com poder para fazer face
ao rei, e dos nobres mais modestos que vivem nas suas honras e que tentam aumentar o seu poder
à custa do património régio;
2º - com Afonso III (1248- 1279) a nobreza de serviço torna-se cortesã, isto é, igualmente
dependente do rei, mas com uma cuidada superioridade simbólica, cultivada através do vestuário,
fala, das boas maneiras e da manipulação do código ambíguo da vassalidade com os seus
processos de submissão ao senhor e de participação no seu poder superior.
A partir desta altura, a nobreza da corte procura apresentar-se como um modelo de toda a
sua classe o que traz como consequência o desprezo dos rudes nobres de província.
Este processo conduz também a uma recomposição da nobreza e da sua hierarquia. Até
meados do séc.XIV ela não aceita o que o rei pretende impor-lhe e resiste através das armas ou
através da ridicularização dos vassalos muito submissos.
Mas o rei passa a dominar a hierarquia mais diretamente ao criar a nobreza titular, desde
a nomeação do 1º conde de Barcelos em 1298 ---» inicia, assim, uma nova classificação
aristocrática, que nos séculos XIV e XV define de forma mais nítida os escalões superiores. Dá-
lhes mais prestígio, mas agrava a dependência em relação ao rei.
Os monges e sacerdotes desempenhavam outra função social mas eram “senhores” como
os nobres, porque não trabalhavam pessoalmente a terra e sujeitavam os camponeses, seus
dependentes, a uma autoridade semelhante.
O clero não se pode confundir com uma classe social. Tanto fazem parte dele os bispos e
abades, que são efectivamente “senhores”, quer pelos seus poderes quer muitas vezes pelo
sangue, como os párocos e monges que vivem modesta ou até pobremente. Não podemos, pois,
falar do clero como de um conjunto unitário. Temos de distinguir nele diversos componentes.
Monges. Os monges têm uma relação mais íntima com a nobreza senhorial.
Desde o fim do séc. XI e durante todo o séc. XII, houve uma concentração das
comunidades monásticas de Entre Douro e Minho. A região tinha até ao fim do séc. XI muitos
pequenos mosteiros. Estes desapareceram e tornaram-se igrejas seculares, dependentes de
mosteiros maiores, ricos em propriedades fundiárias e com organização senhorial. Tanto as
autoridades eclesiásticas, como as civis e a aristocracia favoreceram este movimento que criou
abadias poderosas. Estas comunidades religiosas tornaram-se poderosos instrumentos de
senhorialização. Conhecedores da escrita podiam acumular bens de geração em geração e registar
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os foros a pagar, assim como podiam guardar os títulos de propriedade e exibi-los quando fosse
necessário.
Mosteiros
fundados no
Norte de
Portugal entre
o século IX e
o século XIII.
Observando a concentração dos mosteiros de Entre Douro e Minho nos séc. XI e XII
verificamos:
Concluímos o seguinte:
- as fundações do séc. XII são quase todas anteriores a 1150, sendo mais resistentes do
que as anteriores. Estas representam comunidades mais organizadas e que conseguem absorver
muitas fundações anteriores.
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Assim verifica-se que a concorrência religiosa tem limites: os da própria saturação das
instituições eclesiásticas, que, a partir de certo momento entram em oposição com a própria
estrutura senhorial aristocrática. De facto, a região que acumula o maior número de famílias
diferente é também aquela onde a rede paroquial é mais densa, a que tem mais mosteiros e onde a
terra é mais fecunda.
- a maioria dos mosteiros protegidos pelos nobres mais ligados à corte condal e das
primeiras décadas afonsinas, sendo de fundação antiga, deixam os seus usos hispânicos para
adoptarem a regra beneditina e os costumes cluniacenses.
Mas se é necessário resistem aos nobres, reivindicam a sua “liberdade” como coisa
sagrada, ameaçam-nos com maldições e castigos divinos, aliam-se aos bispos, pedem a protecção
da cúria romana, queixam-se ao rei quando os nobres abusam da sua força.
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Este sistema foi primeiro utilizado por famílias de governadores de terras nas regiôes
periféricas de Entre Douro e Minho, para imitar o modelo sucessório da monarquia e depois
generalizou-se durante a 2ª metade do séc. XII.
Daí que adopte o hábito de preterir os filhos segundos, mandando-os servir o rei ou um
senhor poderoso, alistando-os nos exércitos da reconquista, fazendo-os entrar num mosteiro ou
proibindo-os de casar e sustentando-os como cavaleiros do senhor da linhagem.
Para as filhas, o seu casamento servia para selar alianças com outras famílias, sobretudo
daquelas de quem se esperavam serviços. As outras tinham ou de ficar celibatárias na casa
paterna ou iam para mosteiros professar como monjas. Isto levou a um aumento considerável de
fundações monásticas femininas a partir da 2ª metade do séc. XII sob a Regra de S. Bento e
depois, sob a refroma cisterciense, no séc. XIII das Clarissas ou Dominicanas.
A estratégia da restrição linhagística de linha única parece dar resposta a uma situação de
grande aumento de natalidade, a qual ocorre no Ocidente europeu nos séc. XI e XII, e
particularmente a de Entre Douro e Minho.
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A vassalagem foi objecto de negação pela historiografia portuguesa mas é tde tal forma
um ideal dominante para a mentalidade aristocrática, que fazia da fidelidade pessoal o mais
sagrado princípio da vida social e política, como também um conjunto de instituições que,
embora menos codificada do que em França ou na Catalunha, nem por isso é menos efectiva.
- Sub-enfeudação de castelos.
- De séquitos de senhores compostos por nobres que lhes faziam serviço de cavaleiros ou
outras funções domésticas.
Estes testemunhos provam, pois, que existiu feudalismo entre nós. Todavia apenas cria
vínculos ténuos, fragentários e instáveis, faz da vassalagem um serviço marcado por uma efectiva
inferioridade e nunca chega a ligar os grandes senhores entre si.
Os serviços vassálicos são frequentemente compensados por doações plenas, que não
mantém o vínculo feudal, ou por benefícios em dinheiro, panos ou outros bens móveis, que
aproximam o vassalo do mercenário.
O seu desenvolvimento foi impedido quer pela perda de varonia das linhagens principais,
quer pela concorrência da coroa, que a partir de Afonso II (1211-1223) procurou sempre impedir
a proliferação de casas senhoriais fora do seu território de origem. Quando existe a possibilidade
de se deselvolverem nas regiões do Centro e Sul, têm de competir com as ordens militares e
monásticas com os concelhos e sobretudo com o rei. Poucos conseguem vencer estes obstáculos.
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Quando finalmente se constituem casas senhoriais no Centro ou Sul, já a monarquia está
tão solidamente implantada que só o podem fazer com a sua ajuda e na sua dependência. Assim,
nenhuma consegue vassalos suficientes para recompensar vassalos poderosos, nem para reunir
mesnadas capazes de os dominar quando hesitam em manter a fidelidade.
Assim, os vassalos “criados” nas casas senhoriais são sobretudo filhos segundos de
parentes modestos, que não podem fazer exigências, mas que, não tendo muito a perder,
facilmente abandonam tal proteção para procurar outra mais vantajosa. Os vassalos devem ser
quase todos domésticos e raramente dotados de préstimos fundiários: os seus benefícios são em
bens móveis, panos ou dinheiro.
E de facto o rei é o único grande senhor feudal: o que tem muitos vassalos, força para lhe
exigir fidelidade, terras e “contias” para os recompensar e hostes para os castigar.
Esses costumes funcionam como valores e inspiram actividades como a caça, a guerra, a
familiaridade com o clero, o gosto pelas hierarquias que se espelham nos sinais exteriores em
especial vestuário e armas, o culto das tradiçoes, a defesa da honra, a valorização da vingança,
etc.
Até meados do séc. XIII predominaram costumes ancestrais que valorizavam os laços
que prendiam o senhor a um espaço concreto e aos homens e mulheres do senhorio ou da sua
parentela, às rivalidades e conflitos com os vizinhos, à rebeldia para com o rei. Nessa altura a
força prevalece sobre a cultura (no sentido de cultura intelectual).
A partir de Afonso III ( 1248 -1279 ), a corte torna-se mais poderosa e com maior
prestígio e concentra a prática dos valores “de cortesia”, baseados na repressão da violência e no
culto da palavra, no domínio da aparência e no jogo da obtenção do Poder pelo serviço e
submissão ao rei.
Passa a ditar o gosto, as opiniões, os valores, as preferências e difunde tudo isto através
de agentes da palavra – os trovadores e jograis. Torna-se, então, determinante na construção da
ideologia nobiliárquica.
Os nobres sentem desprezo pelos vilões ( justificando-o pelo seu mau cheiro, a pele
escura, os cabelos desgrenhados e precocemente brancos, a abundância de pêlos, o vestuário
miserável) não pelo camponês cuja distância é tão grande que ele só muito raramente aparece no
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seu horizonte, mas sim pelos cavaleiros vilões que pretendem imitá-lo, mas no exército do rei se
apresentam com cabelos e barbas animalescos, vestuário ridículo, armas rudes, cavalos mal
aparelhados. Só servem para acompanhar os transportes de rectaguarda não para entrar em
batalha pois têm medo dos ginetes mouros. Além do mais são ignorantes, deixam-se enganar e
engam os seus senhores, desconhecem as barreiras sociais e assim expôem-se ao desprezo de
todos.
Os nobres consideram a estabilidade social como um princípio quase absoluto, tal como a
própria ordem cósmica. As categorias sociais devem manter-se estáveis e separadas. Não dve
haver transferências de umas para outras. Ainda os favoritos sejam feitos nobres pelo rei não
basta isso para se saberem vestir ou combater como os nobres da velha cepa.
Todos devem, portanto, comportar-se como está prescrito, segundo os costumes e regras
de conduta que a sus posição social impõe. É esse o segredo da preservação da ordem que Deus
estabelecu no Mundo e que nele deve reinar até ao fim dos tempos.
Aqueles cujas prerrogativas se fundam apenas na posse dos seus corpos e terras têm de
fatalmente se sujeitar.
O sistema senhorial acaba não só por multiplicar os senhores, mas também por lhes
equiparar o rei e tornar o seu poder análogo ao deles. Os dependentes do rei terão também um
estatuto semelhante: deixam de ser livres para ficarem sujeitos a ele.
As categorias.
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(considerado como “senhor”). Nota-se aí que a sua dependência é recente: pertencem ao rei
porque todo o homem tem de ter senhor (como dizem as leis de 1211).
Na sua maioria estavam estavam obrigados à voz e coima e, como foros, pagavam apenas
a fossadeira e não outras prestações senhoriais. O primeiro indicava que eram julgados no
tribunal público e não no do senhor da terra; o segundo, considerado até aqui como substitutivo
do fossado, ou serviço militar (que só obrigava os homens livres), deve ser antes interpretado
como um imposto público sobre a terra, equivalente à jugada da Beira. Normalmente não pagam
uma porção do vinho e do cereal que as suas terras produzem, nem as miunças ou «direituras »,
que correspondem à ocupação da casa e do quintal. A terra pertence-lhes: herdaram- na dos
antepassados. Em algumas freguesias, conseguem preservar o direito de eleger o pároco - outro
vestígio da sua antiga liberdade -, embora tenham de o sujeitar à confirmação real. Um certo
número deles paga prestações senhoriais, como a pousadia ou jantar, mais raramente a ramada, a
entroviscada, a anúduva. Não se conhecem as razões para as inúmeras situações que se encontram
em Entre Douro e Minho, a não ser admitindo que se devam aos diferentes factores que
determinaram a implantação do sistema senhorial em cada lugar.
Colonos - Não existe um termo para designar os vilãos que não trabalham terra própria,
mas a que o senhor lhes entregou. Chamemos-lhes «colonos». O facto de não serem
originariamente livres explica que, em geral, não paguem fossadeira nem voz e coima. Cultivando
terra alheia, pagam por ela uma parte da produção de vinho e de cereal, e produtos caseiros
(miunças ou direituras) pelo uso da casa e do quintal. São a maioria dos cultivadores dos
«reguengos».
Servos - Mais dura devia ser a dos antigos escravos. Apesar do processo de libertação ter
decorrido entre no Baixo Império e o século X, a maioria deles não recebeu a liberdade total: foi
colocada no domínio e dotada de terras, passando à categoria de servos. Com a Reconquista
multiplicaram-se os escravos mouros, que se dedicavam normalmente a trabalhos domésticos e
artesanais, mas também foram muitas vezes colocados no domínio e dotados de um casal ou
unidade de exploração familiar. No fim do século XIII os mouros que permaneceram eram
considerados propriedade do rei e dedicavam-se normalmente a trabalhos artesanais ou à pesca.
Aparentemente, a condição dos antigos escravos é muito semelhante à dos «colonos». A
tendência niveladora pode ter funcionado em seu favor, fazendo esquecer a antiga inferioridade.
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entrega das rendas ou para enviar mensagens. Dotados de poderes quase discricionários,
são odiados pelos camponeses e tiram proveito da sua situação para prosperarem. Não se
sabe, todavia, até que ponto podiam tornar-se completamente livres e investir os seus
ganhos em propriedades suas.
Juiz - Outro intermediário é o juiz. Se exerce o seu ofício nas terras da coroa
pode até ser eleito pelos herdadores; este caso é raro no Minho, mas frequente em Trás-
os-Montes. Não sabemos como evoluiu a sua figura no século XIII. As inquirições e o
desenvolvimento da justiça régia parece terem-lhe dado prerrogativas consideráveis, e
mesmo um papel na luta anti-senhorial, mas o relevo cada vez maior dos mordomos
régios, com funções judiciais nos reguengos, pode ter produzido o efeito contrário. De
qualquer maneira, o juiz régio parece ser diferente do juiz senhorial, que, pelo menos nos
coutos, aplicava a justiça em nome do senhor e que devia ser tão odiado como o
mordomo.
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Embora fosse do interesse das comunidades rurais o reforço dos laços familiares, só se
encontram testemunhos de um sistema de parentesco unilinear, como o que prevaleceu para a
nobreza, embora a sucessão campesina não seja sempre por via masculina. Os próprios senhores
tendem a impor aos seus caseiros a transmissão numa linha única, para evitar a divisão das
explorações, ou então impõem que haja um responsável pelo pagamento das rendas: o cabeça-de-
casal. Nos contratos rurais (prazos) vai-se impondo a fórmula em «três vidas»: vigente durante a
vida do contraente, do cônjuge e de um filho. Mas em certas zonas, onde o crescimento
demográfico é maior, estas precauções não impedem a proliferação de casais, e a sua divisão em
fracções. As necessidades de associação e de controlo da sucessão devem ter contribuído para
tornar frequente o sistema de circulação de mulheres, à semelhança do que acontecia com a
nobreza.
As comunidades rurais, quer pela sua natureza, quer pelas restrições geográficas, quer
pelas imposições do regime senhorial, não criam qualquer vínculo umas com as outras. Pelo
contrário, cultivam a rivalidade e a concorrência. O único elemento que permite ultrapassar a sua
compartimentação são as romarias a santuários situados no cruzamento dos caminhos, em
lugares ermos. Aqui preservam-se formas de culto quase pré-histórico, que a igreja oficial tolera e
que seduzem não só os camponeses, mas também os nobres. Ao fornecerem lugar para a
celebração de feiras, onde a troca de bens tem uma conotação quase religiosa, abrem caminho a
uma das mais conhecidas formas de ligação dos últimos vestígios da Pré-História com as novas
formas da economia.
O espaço próprio do regime feudal e senhorial era o Entre Douro e Minho: o dos
concelhos, o resto do País. O esquema é artificial. Queremos reconstituir um modelo e para tal
procurámos as situações mais típicas. Neste caso são os concelhos do interior do país; mas é
necessário, logo de seguida, considerar as cidades do litoral e Sul, que adotam igualmente a
organização municipal.
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Convém não esquecer que, mesmo no território tipicamente concelhio, se fez sentir um
domínio que, em alguns pontos, não coincidia com a organização municipal, ou seja, que o
feudalismo contaminou, em fórmulas variáveis conforme as épocas e os poderes prevalecentes, o
território fora de Entre Douro e Minho. Mas o resto do país nem por isso deixou de manter o
sistema concelhio como organização de base.
A vastidão do espaço concelhio obriga a fazer outras distinções, já que o meio geográfico
condiciona decisivamente as formas dos respetivos concelhos. De facto, as condições do litoral
diferem das do interior e as do Norte opõem-se em muita coisa às do Sul. Assim, verifica-se uma
série de características fundamentais nas quatro áreas, mas no seu interior encontram-se outras
ainda mais específicas, que as recortam em áreas menores; em algumas predomina o carácter de
zonas de transição, noutras os caracteres são nitidamente antagónicos. Assim o que se diz do
Alentejo não se aplica ao Ribatejo, etc. A divergente evolução histórica de cada uma destas
regiões acentuou frequentemente as diferenças impostas pelo meio físico ou climático.
O espaço.
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Assim, formavam-se no interior do país comunidades concentradas sobre si mesmas, com
sistemas colectivos de defesa, preservando os laços de solidariedade, fortemente tradicionais,
propensas à violência, dotadas de códigos penais muito cruéis. Estas características verificam-se
mais no interior do que no litoral. Os hábitos sociais são muito mais estáveis e persistentes nas
comunidades do interior do que nas do litoral.
Aí, no litoral, a maior fertilidade da terra atrai homens de outras regiões, a facilidade das
comunicações propicia os contactos, mistura as tradições culturais, permite aos mais
empreendedores triunfar e abre caminho ao individualismo. No interior, mesmo quando as
oligarquias municipais alteram os processos de domínio social, os hábitos de controlo colectivo e
de vigilância mútua mantêm-se: são precisos séculos para se alterarem, mesmo quando
desaparece a pressão da guerra. Nas cidades do litoral, pelo contrário, tudo muda rapidamente.
Campo e cidade. Perante a total ausência de dados acerca da população dos centros
urbanos nos séculos XII e XIII, teremos de limitar-nos a observações elementares.
Verificamos:
- 1º uma distribuição das cidades apenas na área litoral, numa faixa contínua de sentido
norte-sul. O interior tem apenas centros de dimensão reduzida.
- 2º alteração das suas funções ao deixarem de estar integradas em dois grandes espaços
económicos – o cristão e o muçulmano – passando a formar o eixo fundamental de todas as
relações económicas e políticas do espaço nacional definido em 1249.
- 4º a oposição entre uma evolução rápida e profunda das cidades e a estabilidade dos
campos, ao mesmo tempo que as cidades têm uma influência progressiva sobre os campos.
A geografia urbana de Portugal revela um grande contraste entre o litoral e o interior.As
cidades com alguma dimensão situam-se num eixo norte-sul paralelo à costa, tendo como pólos
principais Braga, Guimarães, Porto, Coimbra, Santarém, Lisboa e Évora. Daqui bifurca-se para
Badajoz e para o Guadiana, que permite alcançar o Mediterrâneo a partir de Mértola. No extremo
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Norte, este eixo segue para Santiago de Compostela. Até ao fim do século XII era um dos mais
importantes meios de comunicação entre o mundo cristão e o muçulmano. Os entrepostos
principais foram Coimbra, Lisboa e Évora. Lisboa passa a desempenhar o papel de grande
entreposto do comércio marítimo nas trocas entre o Atlântico e o Mediterrâneo.
A guerra obrigava os centros urbanos a tirar partido dos seus próprios recursos. Quando
as condições militares se alteraram e foi possível organizar os transportes, as cidades
desenvolveram-se rapidamente, sobretudo as que estavam perto do mar, já que a deterioração das
vias terrestres e a compartimentação do espaço favorecia o transporte fluvial ou marítimo. As
cidades a norte do Mondego beneficiaram com a peregrinação a Santiago e com as cruzadas; a
conquista de Lisboa transferiu para aí o comércio marítimo atlântico; a de Évora deu-lhe um
papel fundamental nas comunicações da área atlântica, a partir de Lisboa, com a mediterrânica. A
conquista do Algarve assegurou melhor o domínio destas vias, mas teve mais impacte sobre a
circulação marítima do que sobre a terrestre.
A relação entre a cidade (vila) e o espaço circundante (termo) foi sempre fundamental. A
cidade não podia existir sem esse espaço e vivia em grande parte do domínio fiscal que sobre ele
exercia. Mas a prosperidade urbana dependia ainda mais das relações que estabelecia com centros
económicos mais distantes e de grandes dimensões. O crescimento destes pólos, por sua vez,
levou à multiplicação de núcleos-satélites à sua própria volta, como foi o caso do Porto, Coimbra,
Santarém, Lisboa, Évora e Silves. As manchas urbanas são tanto mais densas quanto mais
habitados os pólos de que dependem.
Mais para o interior, a situação é diferente: a dificuldade dos transportes torna moroso o
processo de desenvolvimento urbano, tanto mais que a guerra santa criou uma zona de combates
constantes, onde a economia se baseava quase exclusivamente na pecuária e na pilhagem. Só
depois da conquista de Cáceres, Mérida, Badajoz e de Sevilha é que ela se alterou. Reconstituídos
os eixos de comunicação norte-sul no interior da Península, desenvolveram- se os pólos
principais na meseta ibérica e a seguir as vias transversais, que a pouco e pouco, os foram ligando
ao litoral português. Assim aconteceu com Bragança e com a Guarda. Assim se explica o quase
desaparecimento de Egitânia, que tinha sido diocese na época romana e visigótica. Viseu e
Lamego, que exerceram uma função militar importante, desenvolveram-se com dificuldade.
Constantim de Panóias, importante no fim do século XI, quase desapareceu, para ressurgir em
Vila Real. Beja definhou, para voltar a recuperar lentamente no século XIV.
A função económica das cidades foi determinante para o seu destino. Dependeu da sua
posição dentro de uma rede comercial, que assegurasse o abastecimento e que concentrasse os
compradores e outros serviços necessários.
Mas a função política não foi menos importante. Como pólos de transmissão de Poder,
fixaram a corte régia e concentraram as autoridades intermédias, as forças militares e os serviços
burocráticos que permitiam estender a justiça e a fiscalidade régia a todo o reino. A sua eficácia
baseou-se principalmente na sua capacidade de concentrar uma grande força económica.
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O contraste entre a evolução rápida das cidades e a estabilidade dos campos é um aspecto
da fundamental diferença de comportamento entre ambos.
A função política contribui mais do que tudo para acentuar a uniformização: os agentes
do monarca regem-se pelos mesmos princípios, têm a mesma linguagem, aferem pelos mesmos
padrões. Estendem estes princípios aos campos, tornando-se, com os bispos e os mercadores, os
agentes de expansão da mentalidade urbana no meio rural.
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Identificar o contributo da cultura islâmica na organização do mundo concelhio
e, através deste, do reino.
---» Deu-se então uma verdadeira síntese de culturas diferentes. A área em que ela se
processou foi mais a concelhia mas a sua resultante depois refluiu sobre a área senhorial, na
mediada em que foi particularmente assumida pelos agentes da centralização régia, que a
difundiram por toda a parte.
Nas regiões situadas na área de fronteira oscilante entre o Douro e o Tejo, as populações
de cultura moçárabe devem ter obtido uma certa liberdade. Quer os seus chefes fossem
moçárabes quer muladis, adoptaram numerosas instituições, técnicas e costumes de origem árabe,
constituindo, assim, o meio onde a assimilação cultural foi mais precoce e efectiva. Aí, e mais a
sul, adoptaram-se muitas palavras árabes: na pecuária, na vida marítima e em tudo o que diz
respeito à civilização urbana, como por exemplo, vestuário, tecidos, pesos, medidas, etc. Não
faltam os elementos de origem moçárabe na nossa cultura artística: a produção literária de Santa
Cruz de Coimbra e de São Vicente de Fora é inspirada pela cultura hispano-romana veiculada por
moçárabes. Acrescente-se a cultura científica, a medicina, a astronomia, a geografia.
Tudo isto são fenómenos da área concelhia do País, sobretudo da que sofreu a influência
islâmica; assim, não se pode atribuir à visão do mundo senhorial o principal papel na formação da
cultura portuguesa, tanto mais que as instituições do Sul deram um contributo mais decisivo para
a centralização régia do que as do Norte, onde imperavam as concepções feudais. Não admira,
por isso, que a monarquia tenha utilizado a linguagem institucional, os conceitos e as técnicas
vigentes no Sul e assimilado rapidamente o direito de Justiniano, principal suporte teórico-
jurídico da centralização régia.
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Judeus. O papel dos judeus na sociedade portuguesa medieval assenta na vida financeira,
o que lhes permitiu activar a economia monetária, serem utilizados pelo rei na organização do
fisco e como arrendatários da cobrança de rendas. Não se pode atribuir-lhes nenhum contributo
específico noutras actividades, com excepção da medicina e da astronomia, devido ao facto de, a
partir da segunda metade do século XIII, os clérigos terem deixado de cultivar estes
conhecimentos. A sua habilidade para a especulação financeira fez com que fossem invejados e
se tivesse criado um antagonismo latente para com eles desde a época de Afonso III. De qualquer
maneira, as comunas judaicas proliferaram de sul para norte desde a conquista de Lisboa. A sua
presença num aglomerado urbano é claro indício do respectivo grau de urbanização, juntamente
com a presença de conventos mendicantes e de confrarias. Os judeus contribuem assim para
uniformizar a fisionomia urbana do País.
Origens e definição
Descartemos a ideia jurisdicista que atribui ao Estado a fonte de toda a legalidade e que
os concelhos foram criados por decisão régia. A investigação tem mostrado cada vez mais a
capacidade organizativa dos grupos humanos independentemente de qualquer autoridade ou
sancionamento superior. Temos de conceber a formação dos concelhos como um processo
autónomo.
De facto, na perspectiva do Prof. Mattoso o que constitui a sua natureza própria é
precisamente a sua capacidade autónoma. O foral ou o sancionamento régio resultam muito mais
de um pacto entre a autoridade superior e a comunidade local do que de uma autorização
unilateral do soberano.
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As condições em que se foi difundido o regime senhorial, a situação de guerra
permanente e a implantação lenta da autoridade régia permitiram a algumas destas comunidades
preservar vestígios das suas prerrogativas autonómicas mesmo depois da expansão do regime
feudal, e a outras, que haviam subsistido em zonas de fronteira graças à sua intervenção na
guerra, negociar com os soberanos o sancionamento dos seus direitos, mediante o
reconhecimento da autoridade real.
-----» historicamente falando, houve concelhos porque antes deles existiram comunidades
autónomas que conseguiram sobreviver à implantação do regime senhorial e da autoridade
monárquica.
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híbridos os de Santarém, Coimbra e Lisboa, depois aplicados a povoações da Estremadura e
Alentejo. Estes forais continham prescrições de ordem económica, mas também privilégios
destinados a favorecer os cavaleiros vilãos, pois nessa altura a zona do Tejo estava ainda em
situação de guerra.
Até aqui referimos o caso típico e predominante dos concelhos sujeitos ao rei, que
podiam considerar-se mais independentes do regime senhorial. Vejamos agora as variantes
introduzidas no sistema quando o senhorio era um particular:
- em algumas cidades a estrutura urbana entra em conflito com ele, como acontece por
várias vezes no Porto e em Leiria;
Estas distinções são importantes para perceber a relação entre as normas jurídicas de cada foral,
geralmente copiadas e com poucas modificações de um modelo anterior, e as características da
povoação. Mas estas nem sempre se podem deduzir do foral, visto que ele é geralmente copiado,
com poucas modificações, de um anterior, que reproduz modelos criados para povoações com
características diferentes.
Os concelhos e o regime senhorial. Para compreender até que ponto o regime concelhio
constitui ou não um sistema peculiar de organização social, é importante examinar em que pontos
se afasta do regime senhorial. Podemos apontar os seguintes:
3 - exclusão dos privilegiados ou, pelo menos, do exercício das suas prerrogativas
dentro do território do concelho.
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Como o regime senhorial se tornou hegemónico em todo o território nacional, apesar de
inicialmente vigorar apenas numa pequena parte dele, (mas a mais habitada e dotada de maior
capacidade de expansão) não admira que tivesse também alastrado sobre os concelhos. Em que
pontos?
Em primeiro lugar, devido ao facto de se ter generalizado a ideia de que não havia
homem sem senhor. O senhor dos homens dos concelhos era, portanto, o rei. Sendo assim, as
prestações que ele cobrava podem-se considerar como senhoriais: não só as propriamente ditas
(pousadia, o quinto dos despojos de guerra, o monopólio dos instrumentos de produção), como
também as de origem pública (voz e coima, fossadeira, jugada).
Além disso, o rei podia exercer a sua autoridade por meio do senhor da terra ou de um
prestameiro, e controlava a administração da justiça através do alcaide ou alcaldes e como
instância de apelo.
Por fim, os homens livres dos concelhos estavam sujeitos às prestações clericais,
sobretudo ao dízimo.
Apesar disso, não se pode esquecer que o sistema concelhio permite aos mesteirais,
mercadores e proprietários rurais exercerem um papel no desenvolvimento da economia de
produção e consumo, o que constitui o principal fator de desagregação do regime senhorial, e
favorece o progresso da centralização régia, que prenuncia o Estado moderno, fazendo dos
concelhos uma “ponte” entre o regime coletivo pré-feudal e a modernidade pós-medieval.
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Esta interpretação é confirmada pelo facto de as designações das categorias sociais nos
concelhos se inspirarem na terminologia militar: peões e cavaleiros, o que pressupõe um estado
normal de guerra na época da formação do regime municipal. Àquelas duas categorias deve-se
acrescentar a dos dependentes, que, por não terem praticamente direitos jurídicos, surgem em
lugar à parte na legislação municipal.
Os vizinhos. O que confere direitos aos habitantes dos concelhos é morarem na sua área
e terem bens suficientes para pagarem os tributos. São habitualmente designados como vizinhos
(em Ribacoa também se chamam «posteros» e em Santarém «raigados» ou «soldadeiros». A
quantidade de bens necessária para serem contribuintes chamava-se em Ribacoa a «valia»), tanto
em concelhos do interior como no litoral e no Sul do País. Os costumes municipais pressupõem
que viviam em casa própria e com família constituída.
Só os vizinhos tinham direitos; os de outros concelhos podem ter direitos noutros lugares,
mas não ali, são “fora da lei”. Como é evidente, a sobreposição do direito régio sobre o
municipal alterou este princípio; foi o ponto de partida para que se atribuissem direitos e
deveresaos cidadãos, qualquer que fosse o lugar onde moravam. Isto não altera, porém, o facto de
as prescrições próprias dos concelhos ignorarem esta circunstância ou mencionarem
expressamente os não moradores como não podendo exercer nele qualquer direito.
Existiam outras categorias de homens livres, como caçadores, pescadores, cabaneiros e
jornaleiros. Mas o direito concelhio ignora-os ou apenas os considera por referência aos vizinhos
«normais». Na lógica do regime eram categorias marginais, ou admitia-se que as suas actividades
eram praticadas em acumulação por quem possuía terra e casa.
O espaço concelhio não era uniforme. Os vizinhos são propriamente os que vivem na vila
ou centro do concelho. Os que só têm casa no termo, ou alfoz, têm menos direitos. Assim, as
multas pagas por quem pratica um crime sobre o morador do termo são muito menores do que as
que reprimem quem agride o morador da vila. Os moradores da vila ou centro do cencelho estão,
portanto, muito mais protegidos do que os outros do termo ou alfoz. Além disso, para ser
cavaleiro exige-se a quem vive na vila uma quantia de bens superior do que a quem vive no
termo. As diferenças parecem, por vezes, tão marcadas que se pode perguntar se os habitantes do
alfoz participavam nas assembleias em pé de igualdade com os outros vizinhos.
Os cavaleiros vilãos. A distinção social de base é a que separa o cavaleiro do peão. Para
se ter cavalo, o que é simultaneamente um direito e um dever, os forais estabelecem normalmente
um rendimento-limite, que em Ribacoa se calcula em moeda, e nos forais do tipo de Ávila em
bens móveis e fundiários. Mas, em ambos, dá-se uma importância fundamental ao gado, o que
mostra a importância da pecuária nos concelhos do interior.
Dado o elevado preço do equipamento militar, incluindo o cavalo, nos séc. XII e XIII, é
evidente que os seus possuidores formavam uma verdadeira aristocracia.A sua superioridade
social e económica confirma-se pelo facto de possuírem normalmente armas de ferro e, inclusive,
armaduras, de terem escudeiros e dependentes (em Ribacoa chamam-se «aportelados») e
depossuírem terras em lugares distantes da vila e mesmo fora do concelho.
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Os cavaleiros têm numerosos privilégios: não sofrerem penas corporais, castigam-se os
que os atiram abaixo de suas montadas, são julgados como se fossem infanções (isto é, têm
direito a multas e reparações idênticas e o seu testemunho vale tanto como o deles), não pagam
jugada nem fornecerem pousadia e, pelo menos a partir de 1273, não pagam anúduvas.
Encontram-se frequentemente prescrições destinadas a proteger os cavaleiros velhos ou doentes,
os que perdem o cavalo, bem como as suas viúvas.
O facto de muitos cavaleiros só terem a fortuna mínima exigida para o serem, obrigou- os
a criarem laços de solidariedade para manter o estatuto. Daí as prescrições foralengas que
garantem a sucessão numa linha masculina única e que protegem as viúvas que transmitam a sua
condição a um parente. Ajudando-se, formavam germanitas, como lhe chamam os de Ribacoa, e
procuram, por meio da manutenção de uma estrutura cognática do parentesco, proceder à
constante redistribuição dos bens, de forma a evitar a sua concentração nas mãos de um dos
membros do grupo. O sistema de «bandos», a vingança privada, o controlo do casamento e da
herança dos menores completavam o quadro de uma sociedade dominada por uma elite que
buscava normas para subsistir.
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guerra com o Islão, a designação de «cavaleiros» para a aristocracia municipal tornou-se obsoleta
e difundiu-se o conceito de «homem-bom», que evocava a riqueza e a honra e não a função
militar. A partir desta altura, a oligarquia municipal deixa de imitar a nobreza, adquirindo
consciência de que a sua condição não depende já das armas, mas da riqueza e dos cargos
públicos.
Nas terras do interior os cavaleiros vilãos só podiam exercer os seus direitos no próprio
concelho, onde perdiam um pouco a sua individualidade, pois o que contava era o grupo. Nas
cidades, pelo contrário, os mercadores contactam com outras comunidades e têm, muitas vezes,
um papel de relevo em vários concelhos. São sobretudo estes que começam a adquirir uma
consciência do seu papel na sociedade do reino e a procurar formas de associação não integradas
nas estruturas municipais. A bolsa de mercadores do reino, sancionada por D. Dinis, é disso um
sinal importante. A legislação régia também contribui para normalizar a hierarquização social da
gente dos concelhos, levando em conta os sinais externos das categorias na fixação das custas nos
tribunais régios.
Quanto às obrigações militares dos cavaleiros vilãos para com o rei, temos de distinguir
duas situações:
- Uma, que abrange todos os cavaleiros e peões, obrigados a responder, sem
contrapartida, a uma convocatória geral por força da prescrição foralenga de «ir ao exército do
rei», tal como têm de participar no fossado.
- Outra, que afecta os que têm de combater no exército régio com cavalo e armas como
contrapartida da concessão da cavalaria, e que consiste na atribuição de bens fundiários. Os
detentores de cavalarias, em princípio, não pagavam prestações sobre o rendimento do respectivo
prédio. Embora as cavalarias fossem concedidas a título precário, tornaram-se hereditárias e
passaram a serem transaccionadas como se de bens próprios se tratassem.
A prestação do serviço militar em virtude das cavalarias foi caindo em desuso, apesar de
ainda requerida na primeira metade do século XIV. A instituição dos besteiros do conto tornou-a
inadequada na nova organização militar, que exigia uma preparação quase profissional e obtinha
uma eficácia muito superior. Os besteiros, que passaram a ser a tropa convocada pelos alcaides,
gozavam de isenção da jugada, mas mantinham a categoria de peões: os seus privilégios não os
equiparavam a cavaleiros vilãos. Eram pagos em dinheiro, o que os aproximava da condição de
mercenários, e parece terem sido recrutados entre os homens que viviam da caça.
Os peões. Constituem a grande massa dos habitantes dos concelhos. Os forais e costumes
só falam deles para os apresentar como contribuintes: têm de pagar a jugada, dar a pousadia e
estão obrigados a algumas prestações militares. Para além dos besteiros, falados imediatamente
atrás, os peões tinham outras categorias.
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vizinhas, nas épocas dos trabalhos mais intensos. Só em anos de maior produção teriam alguns
excedentes, mas, nestes, a baixa dos preços impossibilitava-os de conseguirem alguns lucros. Os
seus filhos engrossam os grupos marginais e os que procuram a sobrevivência nas cidades e em
terras novas.
Nas cidades e seus arredores, alguns peões conseguem melhorar um pouco os seus
problema trabalhando como mesteirais. Aí, contam com o rendimento do trabalho artesanal e com
a produção de hortas e vinhas. Nos poucos casos em que conhecemos a distribuição profissional
de áreas urbanas e rurais, verificamos que a maioria dos mesteirais vivia nas povoações. Os mais
numerosos parecem ser os sapateiros e a seguir os alfaiates. Juntam-se em ruas ou bairros
próprios e raramente exercem magistraturas municipais. Os que possuem melhores rendimentos
são os almocreves e os de mais baixa condição são os pescadores. Entre eles contam-se também
os caçadores e os ferreiros, relevantes nas povoações do interior e em tempo de guerra. Com o
tempo a sua importância decresce, pois as armas passam a ser fabricadas pelo alfageme ou
importadas.
A última categoria dos peões é formada pelos cabaneiros, cavões, mancebos por soldada
jornaleiros, etc., que deviam ser mais numerosos do que se poderia esperar, mesmo em meios
rurais. Na periferia de zonas mais densamente habitadas viviam em grupo, em cabanas (daí o seu
nome). Descobrem-se manchas deles na periferia do Porto, ao serviço de mosteiros como Santa
Cruz de Coimbra e Grijó. Aumentam constantemente, apesar de uma lei de Afonso II tentar
absorvê-los nas estruturas senhoriais da época, ao determinar que todo o homem devia ter senhor
que por ele respondesse.
Os colaços devem designar uma categoria sinónima dos solarengos, segundo uma
terminologia corrente em território castelhano e leonês e pouco usada em Portugal. Alguns dos
dependentes deviam ter um estatuto próximo do do criado rural, como acontecia com os
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hortelãos, que trabalhavam na horta do senhor, mas moravam em casa fornecida por ele e podiam
semear terra dele com sementes suas.
A última categoria de dependentes nas terras do interior é a dos mouros, que trabalham
em serviços domésticos e artesanais (que são, em geral, capturados em expedições de guerra) em
condições cuidadosamente regulamentadas.
Nos concelhos do tipo de Ávila (Alto Alentejo e Beira Baixa), o nome genérico do
dependente é vassalo de solar ou vassalo de herdade. Aqui aparecem também os solarengos e os
hortelãos. Outras designações são específicas destas regiões. Assim, os quarteiros, que
correspondem talvez aos jugueiros de Ribacoa, admitindo-se que pagassem um quarto da
produção, em vez de um quinto; os mancebos, ou criados de lavoura; e os conductarios, ou seja
os jornaleiros pagos com uma ração de comida (conductos).
Pela abundância de menções aos mancebos pode-se presumir que os trabalhadores à jorna
são numerosos no Sul e que a sua condição é próxima da dos proletários. É o amo que responde
pelos seus dependentes: recebe a coima se alguém os matar; mas se um deles matar alguém fora
da vila e fugir, o senhor é dispensado da respectiva multa.
Nas cidades, pelo menos nas que adoptavam os foros de Santarém, o senhor é
responsável pelos prejuízos ou roubos do seu mancebo, excepto em caso de assassinato; pode
castigá-lo corporalmente e negar-lhe o salário. Mas há pequenas restrições às suas
arbitrariedades: não pode «tolher-lhe» nenhum membro; se o expulsar sem razão, tem de lhe
pagar a soldada até ao fim do ano; se é ferido pelo amo, não tem de compensar os danos a ele
causados. Os vínculos que o unem ao senhor são mais frouxos nas cidades do litoral do que nas
zonas do interior, tanto a norte como a sul. Tal é o resultado das relações sociais que se instauram
em meios urbanos, mais marcados pelo individualismo e pela mutabilidade dos vínculos sociais.
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Reconhecer traços simbólicos e processuais da existência dos concelhos
enquanto entidade colectiva.
As funções
Ao contrário do que acontece a partir do século XIV, são raros ou mesmo inexistentes os
edifícios da câmara municipal. A reunião da assembleia faz-se num espaço aberto: a «praça do
concelho», um carvalho, o adro da igreja ou um claustro. Avisados por pregão, todos tinham de
comparecer, por vezes sob pena de multa. Essas reuniões não serviam só para deliberar acerca de
assuntos que a todos interessavam, como a marcação de expedições militares, o início dos
grandes trabalhos agrícolas, as posturas municipais, a reparação das muralhas, a eleição de novos
alcaldes e outros magistrados. Era aí também que se julgavam os delitos, se proclamava a
vindicta contra os aleivosos do concelho, se leiloavam os escravos mouros, se repartiam as presas
de guerra.
A assembleia devia ter um carácter bastante diferente nas povoações do interior e nas
cidades do litoral. Com efeito, ali o poder dos laços de parentesco era enorme, ao passo que aqui
o individualismo diluía as imposições. De facto, ali as regras da aliança cognática e uma certa
endogamia contribuíam para criar grupos de solidariedade que podiam opor-se entre si e criar um
estado de tensão permanente. Os crimes eram julgados pelo sistema de «conjuradores», isto é, de
pessoas que juravam solenemente pela inocência do acusado ou pela razão do acusador e
depreende-se que pertenciam ao bando de cada um deles. Os alcaldes limitavam-se a vigiar a
formalidade do processo, e as causas mais graves eram decididas, segundo parece, pela maior ou
menor força dos grupos em presença. Se não era possível chegar a uma sentença aceite pelas
partes, recorria-se ao duelo entre acusador e acusado ou entre os seus respectivos representantes.
Nas cidades usava-se a prova das testemunhas; o processo era desencadeado pelo queixoso; a
mulher era menos dependente da família; a parentela exercia uma influência diminuta em matéria
judicial.
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Dada a enorme coesão dos concelhos do interior, é surpreendente a aparente facilidade
com que se recebiam estranhos que pretendiam aí fixar-se, mesmo quando eram criminosos
perseguidos noutros lugares. Mas compreende-se: o direito municipal era exclusivo do próprio
concelho e, portanto, nada tinha a ver com crimes cometidos fora dele. Por outro lado, os que
chegavam só podiam integrar-se na massa anónima dos peões ou procurar a protecção de um
cavaleiro vilão, como dependentes. Vinham reforçar o potencial militar e a mão-de-obra
disponível, sem perturbar o poder instituído.
A forte coesão levava ao quase total desinteresse pelo que se passava nos concelhos
vizinhos: não se permitia à justiça alheia perseguir nenhum criminoso no território; se alguém
prendesse ou matasse um proveniente do território vizinho a multa seria leve se o fizesse sem
razão, e nula se a tivesse. A resolução dos pleitos entre duas comunidades era tentada mediante a
reunião das duas assembleias num local de fronteira, (medianido). Mesmo assim, as lutas entre
concelhos podiam ser violentas e mortíferas.
Não admira também que as relações económicas entre os concelhos fossem débeis,
inexistentes ou mesmo antagónicas. A tendência geral favorecia a importação de bens e onerava a
exportação, o que mostra que o grande problema era o abastecimento da população local. Nas
cidades, porém, as prescrições acerca do comércio tornam-se frequentes, à medida que as relações
económicas se intensificam.
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execução. As fontes mostram que os encantamentos e as acções divinatórias eram correntes entre
os nobres e nas cidades, pelo que é de crer que fossem mais frequentes no campo. Não admira
que nas regiões do Norte se guardem respeitosamente as porcas da época castreja, que nas
ermidas se misturem antigos cultos com os recentes, e que as romarias tenham preservado rituais
de origem pagã.
Outras vezes o sagrado cristão é invocado em acções judiciais, como a celebração da
missa antes dos duelos, ou nos juramentos e maldições, cujas fórmulas de sabor pagão se
misturam com as de origem cristã, ou ainda a utilização de objectos sagrados e de imagens de
santos para a protecção contra os maus espíritos, que os clérigos identificam cada vez mais com
demónios.
Perante estas tendências, os bispos insistem na instrução dos clérigos, que conheçam o
latim, vistam com decência, não usem armas, não pratiquem nem deixem praticar encantamentos,
não exerçam profissão secular.
Em segundo lugar, sem contestar, de início, a eleição dos párocos pelas comunidades, os
bispos exigem que os concelhos reconheçam a sua autoridade em matéria eclesiástica, que os
clérigos sejam julgados em tribunal diocesano e, finalmente, que o pároco, qualquer que seja a
sua forma de nomeação, receba a ordenação sacerdotal e seja confirmado pelo bispo. Tudo
apoiado numa norma clara, o Decretum de Graciano, redigido em Itália em meados do séc. XII,
que recebeu o sancionamento papal e constitui a base do direito canónico, permitindo um
procedimento uniforme em todo o lado e uma grande eficácia a longo prazo.
Noutros pontos, a acção dos bispos foi mais lenta: no combate ao divórcio e na difusão
do casamento sacramental, uma vez que a forma matrimonial corrente para os vilãos dos
concelhos continuava a ser a da simples coabitação ou do casamento «de juras». Aqui, a acção da
legislação régia foram decisivas, ao insistir na noção de contrato legal por oposição ao
concubinato e à barregania, e como critério de legitimidade da prole.
A invocação das forças ocultas e da magia foi combatida por meio da atribuição de todas
as práticas mágicas ao demónio. Isto permitiu associá-lo à actuação das almas do outro mundo e
encorajar os sufrágios pelos defuntos como forma de libertar as suas almas das penas e de evitar a
perturbação que causavam no mundo dos vivos.
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Paralelamente, a implantação simultânea da justiça régia e dos tribunais eclesiásticos
durante o século XIII, com casos reivindicados por ambos os poderes, levava também os
magistrados dos concelhos a intervirem contra as exigências da cúria diocesana.
Os mendicantes implantaram-se nas cidades, sobretudo nas mais populosas e com mais
marginais. A sua organização, instrução e dinamismo punham em causa a autoridade do clero
diocesano. Explica-se assim uma rivalidade que, todavia, acabou por dar lugar a uma convivência
menos conflituosa a partir do fim do século XIII, quando os mendicantes deixaram os seus
humildes santuários para construírem imponentes igrejas góticas à beira das muralhas, no meio
dos bairros de gente pobre que afluía às cidades. Em algumas delas, como Coimbra, Lisboa e
Leiria, os Franciscanos competiram com os tradicionais Cónegos Regrantes de Santo Agostinho.
Na Beira Alta e na Estremadura implantam-se os Cistercienses durante o repovoamento. No
Centro e Sul muitos concelhos ficam sujeitos às ordens militares do Templo, Santiago, Avis e
Hospital, de que resultou a perda de uma parte da sua autonomia. Parece, contudo, que isso não
provocou conflitos violentos, pelo menos antes de meados do século XIV .
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O clero urbano encontra, sobretudo nas cidades mais próximas do litoral, uma forma de
organização intermediária entre a vida diocesana e a religiosa. São as colegiadas de cónegos
seculares, fundadas entre os séculos XII e XIII, para receber clérigos que queriam viver em
comum mas sem adoptarem a estreiteza da vida religiosa. Apareceram em Cedofeita, Santarém,
Torres Vedras e em outras cidades, tendo normalmente várias igrejas dependentes. Este fenómeno
relaciona-se com o crescimento demográfico da época e o recurso dos celibatários impedidos de
casar pelas estruturas familiares, a estas instituições. Enquadram-se no mesmo contexto as
capelas, que sustentavam um ou mais capelães e os hospitais para clérigos pobres.
39
época de guerra permanente, tornou-se o responsável por serviços de carácter mais policial do
que militar.
A justiça parece ter estado nas mãos dos magistrados. O código penal é feroz: abundam
as penas de enforcamento, de fustigação, a quebra dos dentes, o arrancar da barba, o cortar de
uma das mãos. Para vários crimes vigora a vingança privada; para outros conta a justiça familiar e
não o tribunal público. Nos concelhos do Centro e do Sul, as autoridades judiciais têm uma
actuação mais vasta, a parentela menos influência e procura-se restringir a vingança privada. Com
o decorrer do tempo verifica-se uma maior intervenção da justiça régia, sobretudo desde Afonso
III, com a reivindicação da execução dos condenados à morte, embora a sentença pertença aos
juízes concelhios. Foi este rei quem criou os meirinhos-mores para assegurar a ordem e D. Dinis
quem instituiu os corregedores, incumbidos de vigiar os tribunais concelhios. Finalmente, este
mesmo rei instruiu os magistrados régios e municipais a comunicarem entre si, de forma a
perseguirem os criminosos que fugiam para outros concelhos. Terminava assim o princípio da
independência de cada concelho em matéria penal.
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1325 - 1480
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CONDICIONANTES BÁSICOS
A ORDEM
d) Que os méritos individuais podem ser um veículo para a promoção política – mas tão-só
dentro de cada «grau», nunca para transgredir a ordem estatutária fundada por Deus;
Nessas mesmas ordenações, noutro texto (Livro I, Título 63) verificamos a utilização do
modelo dos 3 estados, ou ordens, ou como a partir de 1477 se lhes chamará também, os 3 braços
da sociedade : oradores, defensores e mantenedores: clero, nobreza e povo.
Este modelo, surgido na época de Carlos Magno, como justificativo da ordem feudal, é de
uma impressionante fixidez, e vigorará durante 1000 anos, até à revolução Francesa. É o
fundamento ideológico do Antigo Regime.
Nos séc. XIV e XV, dadas as transformações sociais, culturais e políticas verificadas a partir
dos séc. X e XI, este modelo já não traduzia bem os factos. Era mais um referencial de juristas do
que um espelho da sociedade. No entanto, as grandes linhas eram essas: 3 ordens às quais
41
estavam distribuídas 3 funções. Mesmo sendo verdade que as 3 ordens não eram mais estanques
nem as funções exclusivas. E se o “trabalho” a “nobreza” e o “clero” e a oposição “leigo-clérigo”
não eram já a mesma coisa, e se em muitos lados a própria estratificação social parecia mais de
configuração vertical, em pilares, do que horizontal, em pirâmide, quando era útil um apelo ao
sentido social, o velho modelo surgia como o ideal da ordem.
Mas quando se fala em instrumentos de controlo social está-se a pensar, antes de tudo,
em corpos de leis e de penas, bem como nas instituições encarregadas de as fazer aplicar.
O «controlo social», enquanto garantia da ordem, é tema vasto. Falemos apenas das leis
(do direito) como instrumento ordenador do País.
Em 1325 já muito tinha sido feito nesta matéria. Havia um território bem demarcado e
uma população que se ia habituando a ser dirigida por leis emanadas da coroa. Clero, nobreza e
concelhos sentiam que a centralização do Poder nas mãos do rei era definitiva.
D. Afonso III e D. Dinis foram os artífices do Estado português, mas só puderam levar a
cabo o seu trabalho porque se apoiaram numa elite de legistas e no direito romano. A partir de
Afonso III a receptividade ao direito romano começa-se a processar com continuidade. Isso
deveu-se ao conhecimento do Corpus Juris Civilis, de Irnério, e à aceitação de obras castelhanas
que estavam impregnadas da letra e do espírito do direito romano, nomeadamente, as Flores de
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las Leyes, o Fuero Real e as Siete Partidas. Quando se funda a Universidade de Lisboa, por volta
de 1289, uma das razões da sua fundação é a necessidade de estudar esse direito, o direito civil.
D. Afonso III publicou mais de 200 leis, as quais acusam inspiração romano-canónica; os
reis seguintes prosseguiram o afã legislativo, promulgando «leis», «decretos», «posturas»,
«ordenações». Ia-se assim formando um acervo de «leis régias» nacionais, que, juntamente com
os «forais», os «costumes» e as «concórdias» estabelecidos com o clero, compunham um todo
disperso e nem sempre harmonizável.
43
Reconhecer a língua e o sentimento de pertença a um território enquanto traços
de identidade do reino de Portugal nos finais da Idade Média.
A língua
A língua é o traço mais eficaz de uma identidade. Em 1325 a língua portuguesa estava
praticamente feita. As outras línguas novilatinas, comparadas com as suas formas actuais,
estavam muito mais atrasadas. O português é essencialmente galego-português enriquecido de
vocabulário e fonética moçárabes. Excluindo a reduzida área do mirandês, ocupou todo o
território. No período do nosso estudo, o português é a língua do quotidiano, das leis, da escrita,
dos tratados, da literatura e da poesia. Enfim, uma língua madura. Em 1500 a sua fisionomia está
fixada.
A terra
Depois da língua, a terra, outro vector da unidade nacional. Os naturais da terra eram os
«nossos», por oposição aos estrangeiros. De «naturais» far-se-á a ideia de «nação» e daí a de
«pátria». Isto é, a ideia de terra que os « avós» moldaram e transmitiram aos netos. Toda a
Crónica de D. João I respira o sentimento forte e indefinido de pátria. Vê-se que é um sentimento
eminentemente popular, ou seja, gerado e desenvolvido no meio do terceiro estado. O clero,
«classe supranacional» pelos seus altos representantes, e a nobreza, internacionalizada por
casamentos, não estariam preparados para se deixarem invadir por sentimentos de puro
patriotismo. Com o povo e as franjas inferiores das outras duas classes era diferente. O
sentimento de nacionalidade e de patriotismo é gerado por efeito de oposição a um estrangeiro,
naturalmente quando guerras e invasões põem em perigo a «nossa» terra, a «nossa gente», a
«nossa» história. Quando é que se detecta em Portugal esse sentimento? Fernão Lopes atribui-o
ao povo que fez a revolução de 1383-1385. Logo, terá surgido durante as guerras da
independência, ou alguns anos antes, durante as guerras fernandinas. Mas temos de admitir que o
cronista poderia ter projectado na época que narrava os sentimentos que ele e os seus
contemporâneos experimentavam. Nomeadamente, o que todos experimentaram na «revolução»
de 1439, altura em que outra vez o povo, notoriamente o de Lisboa, teve de intervir na política
para apoiar um herói (infante D. Pedro) e preservar a nação de perigos estrangeiros.
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O nome «Portugueses», como designativo comum dos habitantes de Portugal e do
Algarve não ocorre com muita frequência, a não ser nas crónicas de Fernão Lopes. Os textos
preferem dizer «naturais», «moradores», englobando nestes conceitos todos os habitantes não
estrangeiros, sejam eles do clero, da nobreza ou do povo.
(1) A expressão aparece durante o período das guerras com Castela, pelo menos no
Parlamento.
(2) Essa expressão foi usada para distinguir os naturais de Portugal dos castelhanos:
significou os «nossos», por oposição aos «outros», os adversários.
(3) Refere-se a pessoas radicadas no território, súbditas do mesmo rei, com a mesma
história, empenhadas no mesmo destino, falantes da mesma língua e comprometidas com a
mesma identidade - se bem que pessoas diferentes do ponto de vista étnico, religioso, social,
económico e geográfico.
Em 1325 a nação existe, tem já a sua coerência e a sua autonomia, os seus caracteres
próprios, a sua capacidade de resistência, mas a consciência deste facto é sentida apenas por uma
minoria, geralmente próxima do poder político. Ou seja, há um corpo-nação, mas não há
nacionalismo ou consciência colectiva de uma identidade nacional. Há um território que define e
demarca os “naturais” em relação aos estrangeiros, ou seja, um espaço comum – o espaço
geográfico, que encerra uma unidade política e cultura ao qual se associa uma comunidade de
referência e pertença.
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Avaliar o avanço das formas de centralização enquanto um dos vectores de
unidade do reino nos séc. XIV e XV.
O rei
Em 1325, a nação pode ainda não ter uma consciência clara de si, mas a igreja, os nobres
e os municípios sabiam que havia um poder central, um Estado cujo vértice e denominador era o
rei. . Com D. Dinis e D. Afonso IV o rei tornou-se definitivamente «cabeça e senhor» do reino, e
o referencial da ordem do País e da unidade da Nação. Será a cabeça e o senhor da nação e dos
seus habitantes, clero, nobreza e povo, ou seja, a palavra polarizadora da unidade e da ordem.
Afonso IV e seus sucessores não fizeram senão acentuar essa convicção.
A centralização prosseguiu e com ela a afirmação do rei como figura e símbolo da nação;
qualquer prática de condescendência feudal era encarada como fraqueza. Os povos importunavam
os reis e essa prática existia tanto no Parlamento como na rua, em revoltas. O Parlamento traduzia
a convicção generalizada das forças municipais, ou seja, das camadas superiores do povo, por sua
vez representativas da maioria esmagadora da nação. “El-rei” era uma instituição e uma pessoa
colectiva.
A partir de Afonso IV o poder monárquico beneficia de uma valorização revolucionária.
O rei passa a ser imperator no seu território. Centralizar era a palavra de ordem, pôr olhos,
ouvidos e mãos do rei em todo o lado. Exemplos são as inquirições, os juízes de fora, os
corregedores, os tabeliões, os besteiros do conto, as apelações, e muitos outros mecanismos,
instituições e leis que fizeram com que os monarcas se vissem e fossem vistos, como símbolos e
figuras de um poder que se sobrepunha a todos os outros. Não mais um rei se equipara a um
senhor feudal como primeiro entre iguais. Com D. Dinis e D. Afonso IV o rei torna-se “cabeça e
senhor” do reino, e simultaneamente o referencial da ordem do País e da unidade da Nação.
Nesses dois séculos valia quem era. Quem era por nascimento ou segregação imposta por
ritos sagrados, aqueles que produziam clérigos e cavaleiros. Portanto: clero, nobreza e povo.
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Mas a moeda irrompera e irá subverter tudo e gerar outra ordem, já no século XV, com a
desactualização da ideologia trinitária da sociedade e com as contradições dos estatutos socio-
profissionais. O burguês, o nobre de toga e o fidalgo mercador surgirão nessa estrutura em
viragem.
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Reconhecer o modelo de divisão da sociedade em ordens como um quadro
mental de referência generalizado.
Os membros do grupo mais elevado em Portugal, nos séculos XIV e XV, foram os
clérigos, os letrados e os agentes da monarquia feudal. Verificamos a arrumação clássica: clero,
nobreza e povo. Ou seja, a arrumação da sociedade em ordens.
A sociedade portuguesa nos séculos XIV e XV era pensada em termos de sociedade de ordens,
trinitária e trifuncional: clero, nobreza e povo. Mas pensada e não vivida. Era um modelo ideal
para juristas e políticos; um refúgio argumentativo contra inovações prejudiciais, a que todos
recorriam quando convinha - cleros contra povos, povos contra cleros, nobres contra os dois. Mas
precisamente porque todos invocam o modelo quando discursam, e todos o desacatam quando
vivem a vida, ele revela-se como um resíduo ideológico meramente mental.
Testemunhos
Registámos entre 1325 e 1484 duas dezenas e meia de alusões à sociedade de ordens,
como sendo a que vigorava ou devia vigorar. A ideia é pelo menos tão familiar e tão antiga
quanto as assembleias dos estados que, iniciadas em 1254 ou antes, foram estruturadas em
conformidade com o modelo trinitário da sociedade. Os procuradores dos concelhos, que só
excepcionalmente integravam clérigos e altos letrados, mostram-se tão familiarizados com a
teoria trifuncional, como reis, cronistas e homens de leis. Isso faz pressupor que a teoria fazia
parte do saber comum, popular até, inculcado pelas mais variadas formas: pregação, entradas
régias, teatro de rua, folclore.
Faz sentido com o que dissemos: nos séculos XIV e XV o modelo de sociedade em
ordens havia-se tornado referência ideológica, um estereótipo mental, e a sociedade era
imaginada por toda a gente como dividida em três ordens.
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com a de hierarquia e desigualdade necessária e tudo com a de mando-sujeição destino. Exemplo:
texto das Cortes de 1418, cap. 20 “ Os lavradores com os seus trabalhos, mantêm os oradores e
defensores...”.
Resumindo: a sociedade portuguesa nos séc. XIV e XV era uma sociedade de ordens?
Em termos globais sem dúvida que não; mas era uma sociedade que se penasva segundo esse
modelo. Digamos assim: uma mentalidade colectiva com propensão para ver ordens onde
realmente funcionavam estados (ver mais à frente – estado). Pelo menos nas cidades.
Hierarquias
À medida que as ordens se desfasam da realidade (que já não é a feudal, digo eu) a
superestrutura ideológica que as informava manteve-se e passou a aplicar-se ao interior de cada
uma, sempre na sua função de justificar as injustiças, explicar as desigualdades, manter o status
quo.
O povo utiliza a ideia de ordem social hierárquica, e de tudo o que ela implica, para
combater “inovações subversivas”, temidas “desordens”, não já na sociedade global, mas no
interior de um estado – o 3º.
Estados. Uma sociedade de estados não é a mesma coisa que uma sociedade de ordens.
«Ordens» evoca o sagrado, a arquitectura divina.
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Os estados surgem na Europa por volta de 1200, em face da inadequação do conceito de
«ordem» em exprimir a realidade sociológica, designadamente a popular e urbana. Estado tem
conotação socio-profissional.
Assim, «estados» e «estado» eram, nos séculos XIV e XV, palavras muito ambíguas e,
por regra, são os contextos que revelam os exactos sentidos. Mas algumas vezes sucede que,
apesar de todo o esforço hermenêutico, as ambiguidades persistem, podendo o mesmo texto ser
interpretado com igual rigor de diferentes modos. De modo que é pertinente pôr as questões: das
acepções de «estados», quais são as mais frequentes nas fontes? Será possível escaloná-las
segundo prioridades? Por aquilo que sabemos, afigurasse-nos inteiramente credível o seguinte
escalonamento:
1. Estados-estatutos
2. Estados-ofícios ou profissões
3. Estados-riqueza
4. Estados-ordens
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5. Estados-situações
6. Estados-graus
Estados-estatutos
Estados-ofícios ou profissões
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séculos XIV e XV, é uma estrutura de espírito feudal. Não é assim a cidade. Aí, tarefa é
profissão.
Estados-riqueza
A riqueza dava estatuto. Não admira, por conseguinte, que no período do nosso estudo
«estados» signifique riqueza. Para a mentalidade burguesa não se devem ostentar «maiores
estados» do que os permitidos pelas posses. Um princípio que achamos nos discursos
parlamentares dos concelhos e que é enunciado tanto contra oficiais régios, como contra
mesteirais e gente do campo: chega-se a sugerir que os vilãos sejam proibidos de vestir como
vestem os das vilas e cidades. Os burgueses defendem esta visão porque entendem que estes usos,
ao nível do terceiro estado, irão consagrar a distinção que vem da riqueza, a discriminação
vil/honra - o segundo um critério plutocrático. Entre o povo, ter “estado" é ter bens. E não se
entende abusivo ostentar riqueza, se efectivamente riqueza se possuir. Mas uma mentalidade
formada no apego à sociedade de ordens, mentalidade fidalga, tomaria aquele princípio
exactamente ao contrário: cada um deve mostrar o estado a que pertence, apesar da riqueza -
riqueza que compete ao rei assegurar, mediante ofícios, tenças, casamentos. Duas mentalidades
opostas, que no século XV colidem abertamente.
Sobre a acepção de «estados» como «ordens» já dissemos até aqui o suficiente: quando aparece e
em que contextos deve entender-se. É provável que ocorra, de forma explícita, nos séculos XIV e
XV, mais frequentemente do que a acepção anterior, a de riqueza. Mas, de forma implícita, não.
«Estados» no sentido de «situações» significa relato do panorama judicial, administrativo,
económico e criminal de uma terra ou região. Aparece muitas vezes nas fontes, tanto na
expressão «estados da terra» como na de «estados» somente, como até na de «estados gerais».
Esta acepção tem muito pouco a ver com o ordenamento social e rigorosamente nada com
ideologias ou utopias societárias.
Em conclusão
A palavra procurada para traduzir realidades sociais atinentes a distinções de grupos e de pessoas
é «estado» e «estados». Muito mais que «ordem», «ordens» ou outra qualquer. Só que essa
palavra é extremamente polissémica e fluída. Tentámos repartir, com base nos textos e
respectivos contextos, as diversas acepções em categorias distintas. E achámos seis, dos quais
quatro são sociologicamente muito pertinentes e historiograficamente muito reveladoras: estados-
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estatutos, estados-ofícios/profissões, estados-riqueza/ ostentação e estados-ordens. Apesar de
estas categorias terem sido inferidas de discursos parlamentares dos deputados do povo, cremos
que traduzem esquemas perceptivos da «razão sociológica» da época, comuns a todos os
contemporâneos. Por isso, iremos utilizá-los no esboço de sistematização da sociedade trecentista
e quatrocentista.
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b) Os ditos membros detiverem, cada um, uma soma de capital reconhecida por todos como
dentro da média necessária - capital económico (terras, meios de produção, rendas ou dinheiro) e,
simultaneamente, capital cultural (político, social, simbólico).
Testemunhos
Burgueses
A palavra burgueses é raríssima nas fontes que temos estudado. Só aparece uma vez: em
Fernão Lopes, na Crónica de D. João I, atribuída a cidadãos do Porto. No contexto, a palavra
refere-se à elite local distinguida pela riqueza, prestígio e exercício do poder municipal. Homens
do burgo (da parte nobre da cidade ou da vila), livres de submissões prelatícias (submissões
económicas, que não honoríficas), os mais ricos do lugar, os mais prestigiados e, por isso,
detentores, efectivos ou reconhecidamente efectiváveis, da governança municipal.
Burgueses não são apenas mercadores, nem são indivíduos exclusivamente acantonados
em cidades mercantis, como Lisboa, Porto ou Guimarães. Burguês não é um grupo profissional
determinado. É, antes de tudo, riqueza. É um conjunto de abastados, os «bons», os «honrados»,
os «nobres» dos lugares. Então, dir-se-á que existiram tantos grupos de burgueses quantas as
cidades e vilas do País. Se o fundamento distintivo é a riqueza, que houve de comparável entre
um cidadão rico de Braga e um de Lisboa? A resposta é esta: a riqueza que fazia grupos
burgueses no Norte, Centro, Sul, Litoral ou Interior não se media em cifrões, número de cabeças
de gado ou hectares de terra. Em cada localidade, talvez isso funcionasse, mas não em termos de
macrogrupo nacional. Contava a riqueza que proporcionasse liberdade, independência,
disponibilidade política, status. Quer dizer, o macrogrupo «burguesia» foi formado, nos séculos
XIV e XV, por subgrupos diferentes em razão do capital material, função da geografia
económica, mas análogos em termos de capital político, social e simbólico. São, pois, os critérios
superstruturais que justificam falar-se de classe social burguesa na Idade Média.
Os burgueses não são ordem, porque a sua função social não cabe no esquema trinitário
da arrumação dos homens: os do trabalho, os da defesa e os do oradores. Os burgueses não são
nada disso. Mesmo que sejam lavradores e criadores de gado, não é por o serem que se definem
como burgueses onde quer que vivam.
54
Por isso, burgueses são uma classe social.
A identidade burguesa
Isto verifica-se no interior de cada grupo burguês local: no Porto, Braga, Guimarães. E
adivinha-se que poderá verificar-se em Lisboa, Coimbra, Lamego. A nível supra-local, constata-
se a mesma coisa. Por exemplo, no Algarve. E a nível nacional, mudando a palavra «identidade»
para a de «equivalência», tira-se a mesma lição.
Donde se pode concluir que os burgueses foram, no século XIV e sobretudo no século
XV, uma classe urbana de abrangência nacional, multifacetada, mas coerente e mobilizada como
um bloco. A força mobilizadora dessa classe assentou no seu egoísmo e egotismo, e revela-se no
seu léxico, especialmente o da moral. As projecções dos seus medos fazem-se nos mesteirais, nos
ricos dos arrabaldes e nos lavradores de extramuros. Muito mais veementemente do que nos
fidalgos, clérigos ou gente miúda. E isto porque aqueles detêm posições vizinhas e fortes no
«espaço social». É numa estratégia de jogo em que devem ler-se as diatribes dos burgueses contra
os seus próximos vizinhos, assim como as suas ocasionais simpatias e vozes de protecção a favor
de escudeiros fidalgos. Estes, com efeito, tal como a ralé, não constituíam ameaça para o seu
poder e prestígio. Os burgueses eram animados por um «inconsciente de classe» e actuavam, nas
localidades e nos parlamentos, em conformidade com isso. Uma classe mobilizada, real.
Também não faltavam aos burgueses as outras propriedades, as de capital, que se exigem
a um grupo, em conjunto com a de identidade de modos de vida e de comportamento, para ser
uma classe social. Os burgueses, ou «homens-bons» das cidades e vilas, eram os moradores mais
ricos e abastados, tirando clérigos e fidalgos, ou judeus onde os houvesse. Mas a riqueza variava
de localidade para localidade, quer em montante quer em qualidade. Assim, resultaram
assimetrias enormes no seio da «classe». Um grande de Braga seria meão no Porto, ou dito de
outra forma, um homem-bom de Braga poderia ser um vil mesteiral no Porto.. Donde se
depreende que o capital económico e o capital social dos burgueses é função da geografia humana
concreta.
Em suma, os burgueses detiveram capital económico e social, sem dúvida; mas segundo
quantitativos e especificidades variáveis de cidade para cidade e de vila para vila. Em todo o caso,
o que os distingue e aproxima é essa consciência de apropriação material, o serem os melhores,
os mais ricos e os mais honrados dos lugares. Característica que até estava institucionalmente
objectivada nas cortes e nas câmaras municipais. O que quer dizer que o seu capital económico e
social era acompanhado por capital político.
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Capital que eles não largam. Todos os mecanismos de acesso ao poder local foram
concebidos em benefício deles, para os perpetuar à frente dos concelhos e das instituições
dependentes das câmaras. A história do poder municipal nos séculos XIV e XV é a história da
aliança ou divórcio monarcas/burgueses. O que significou degradação das autonomias locais e
cerceamento da promoção política do comum dos moradores. Contra este efeito há vozes, só que
essas vozes vêm de excluídos do Poder, mesteirais e lavradores marginalizados. Enfim, capital
económico, capital social e capital político constituíram os três grandes esteios da classe burguesa
medieval. Mas é de crer que o lado político tenha sido o mais distintivo, aquele que a nível
nacional mais tenha contribuído para a emergência e manutenção de uma identidade classista,
apesar das enormes diferenças económicas relativas. O capital simbólico da burguesia, que
dimana dos outros três capitais e se acumula de geração em geração, constituiu uma propriedade
de classe, não menos definitória dela do que a riqueza ou o Poder. Por isso não faltam casos em
que o grupo tenta salvar, em membros seus, esse tal capital simbólico, destituídos, embora, esses
membros, por culpa ou desgraça, de todas as outras formas de capital. Realmente, a perda de
capital simbólico implicava o encaminhar da classe para a autodestruição.
Os mesteirais
Voltemo-nos para os mesteirais, ou escalão médio dos moradores urbanos. Classe social
também ou gente aglomerada em estados-profissões? É o que vamos tentar discernir.
Vistos por si mesmos revelam-se muitíssimo mal pois ao contrário da nobreza, do clero e
da burguesia, os mesteirais praticamente não falam de si. Eles pertencem enquanto grupo social, a
uma multidão imensa que não teve acesso nem à escrita nem ao direito – o povo.
Realmente, só conhecemos sete textos em que eles fazem discurso na primeira pessoa. E,
pior, desses sete só um é assumidamente de mesteirais. Donde, saber o que pensavam de si os
mesteirais do País é tema historiográfico destituído de fontes. Um tema insusceptível de
conclusões seguras, mas abordável.
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ouvidos e voz dos miudos, dos excluídos e dos marginalizados. Querem ser fiscais da “república”
dizem. Ou quando muito parceiros.
Portanto, convicção de que são as pessoas mais idóneas para entender o povo simples e
zelar pelos seus interesses e, por conseguinte, os do reino e do rei. Como? Vigiando a governança
e denunciando os abusos aos agentes da monarquia, os corregedores. É tímida a sua ambição de
poder, a sua auto-estima política é mínima. Classificam-se a si próprios como de pouco valor e de
pequenos. Os mesteriais tinham consciência do seu baixo capital político, face ao que detinham
os homens-bons ou os burgueses.
Os poucos textos de que dispomos não permitem dar uma resposta satisfatória à pergunta
«Que pensavam os mesteirais de si mesmos como grupo socio-político?». Somos, portanto,
levados para as outras duas perspectivas da análise.
O assunto «mesteirais» só se torna parlamentar no século XV. Por outras palavras, e uma vez
que os mesteirais aparecem sempre hostilizados, é nesta centúria que eles preocupam os
burgueses. Isso pode significar duas coisas:
a) que houve modificação das elites concelhias a partir dos finais do século XIV;
b) ou que por essa altura se verificou, nas cidades e vilas, uma afirmação social deles, a qual
levasse os clãs das autarquias a temerem-nos.
Que houve uma alteração do perfil socio-económico das elites concelhias ressalta da
leitura das temáticas parlamentares. Em 1331, por exemplo, mercadores e mesteirais são postos
lado a lado como categoria de gente cúpida, prejudicial a todo o reino. Este modo de ver não dá
sinais de mudança senão em 1389, ano em que se regista nas Cortes de Lisboa o primeiro
requerimento dos concelhos favorável aos mercadores e, a partir daí, o tom irá sempre em
crescendo a favor da mercancia e dos homens que a asseguram, contrariamente àquele que se usa
para com os mesteirais.
O tom mudou porque o comércio tornou-se actividade de ponta, tanto que foi necessário
proibi-lo ao clero, à nobreza e aos corregedores. Por seu turno, Lisboa e Porto afirmam-se como
cidades mercantis e Portugal virou marítimo e urbano, comercial e expansionista. O Portugal
afonsino rural virou para o Portugal marítimo e urbano, comercial e expansionista de Avis. Como
não podia deixar de ser, as elites municipais acompanharam a viragem.
Ao mesmo tempo, e por idênticas razões, o trabalho alterou-se nos centros urbanos: de
trabalho ligado à terra desliza para trabalho de mester. As oficinas e as tendas multiplicam-se, as
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ruas tomam nomes de especializações laborais, a paisagem física e humana distancia-se da
ruralidade, as imigrações urbanas sucedem-se, afligindo os poderes. Os mesteirais ganham força
em número e importância social.
A hostilidade dos burgueses para com os mesteirais teve da parte destes sentimentos
correlativos. Não são conhecidas movimentações espontâneas dos dos mesteres em prol de
burgueses.
Em prol do reino e das cidades ou vilas sim, quando entendem que a “república” e os
interesses deles estão em causa, existem movimentações espontâneas dos mesteres.
Para os burgueses os mesteirais foram classe, pelo menos na segunda metade do século
XV. Uma classe odiada porque temida.
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controlando as câmaras. De modo que ficavam os mesteirais e os pequenos lavradores, que urgia
manter disponíveis e obrigados, a fim de que a máquina municipal funcionasse.
Vistos por nós, os mesteirais afiguram-se um grupo muito heterogéneo e difuso. Não é
fácil arranjar um critério classificativo claro e distinto que os arrume, independentemente das
circunstâncias geoeconómicas e jurídicas dos espaços em que viviam, ou mesmo das
circunstâncias ético-religiosas. Há, com efeito, mesteirais cristãos, mouros e judeus;
independentes ou adstritos ao rei, aos prelados, a fidalgos, aos municípios e às igrejas; ligados à
indústria, ao comércio e aos transportes; nacionais e estrangeiros. Até mesmo clérigos, vassalos e
nobres.
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Para maior confusão, uma carta régia exarava: «muitos lavradores, peões, besteiros e
mecânicos e gente outra miúda que vassalos nem escudeiros não são». Leia-se: os mesteirais
eram todos gente miúda, a menos que houvessem adquirido títulos nobilitantes.
O que se disse de barbeiros e almocreves valerá com certeza para outros profissionais.
Até porque na Idade Média, tal como ainda hoje sucede em vilas e cidades rurais, muitos homens
desempenharam, sem dúvida, mais que uma profissão ao mesmo tempo. O que torna
extremamente difícil falar de classes sociais.
Interpretação histórica
E com isto voltamos ao nosso ponto de interrogação: foram ou não os mesteirais uma classe
social? Eis a nossa opinião:
a) Em termos nacionais, e até regionais, nada prova que o tenham sido. Considerando-os
como grupo urbano adstrito ao sector secundário da economia, vemo-los demasiadamente
circunscritos aos seus espaços geográficos, mesmo em 1383-1385 e 1439, quando
assumiram atitudes revolucionárias de impacte nacional, e na onda de contestação
antiburguesa verificada em 1459. Dir-se-á: se houve convergência e consonância de
atitudes e comportamentos, e visto que os sujeitos eram todos mesteirais, estamos perante
uma classe real, tanto mais que até se revela mobilizada. Não é, porém, líquido, porque
de todas essas vezes nem só mesteirais convergiram e foram consonantes. Também
legistas, clérigos, fidalgos, burgueses e lavradores. De modo que não se pode tirar desses
casos fundamentos da existência de uma classe trabalhadora urbana dita «de mesteirais».
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Aliás, faltaria ainda averiguar a homogeneidade a nível nacional do quantum de capital
material e incorporado dessa hipotética classe trabalhadora enquanto classe. E o que é
que se veria? Extremas assimetrias. Norte, Centro e Sul. Mas isso também sucedeu com a
classe burguesa, objectar-se-á. Não. Na classe burguesa o capital económico foi, de facto,
assimétrico, mas o capital incorporado - social, político e simbólico - não foi. E, depois, a
classe burguesa teve modos de se relacionar nacionalmente, o que não aconteceu com os
mesteirais. Por isso, fale-se deles como classe, mas «uma classe no papel».
b) E agora os mesteirais no âmbito das suas cidades e vilas, perspectivados em relação com
os respectivos «homens-bons». Posta a questão nestes termos seríamos levados a
responder com toda a espontaneidade: os mesteirais foram e não foram classe, depende.
Depende dos perfis sócio-económicos e político-demográficos das diversas vilas e
cidades. Em Lisboa e no Porto, por exemplo, a afirmativa não repugnaria, como não
repugnaria a inversa aplicada a Braga, Vila Real ou Beja. Tais respostas fluiriam do
conhecimento das lutas perseguidas pelos dos mesteres no sentido de lucrarem presença e
voz nas vereações municipais, lutas coroadas de êxito em Lisboa, Santarém, Évora,
Porto. Não repugnaria, em princípio, que nestas localidades os mesteirais tenham
constituído no século XV uma classe social análoga e paralela à dos respectivos
burgueses. Não repugnaria, mas não é líquido. É que os mesteirais não constituíram um
agrupamento homogéneo em termos de capital material e de capital incorporado. Houve
enormes diferenças de profissão para profissão, de oficina para oficina, de trabalhador
para trabalhador dentro de cada oficina. De um alfaiate a um correeiro ia uma grande
distância. Ora, tais desigualdades, económicas, sociais e estatutárias, devem ter actuado
no seio do grupo como factores impeditivos da formação de uma homogeneidade de
ethos e habitus entre eles, ethos e habitus comuns, específicos e distintivos - condição
necessária para que grupos de natureza socioprofissional sejam classe. Pomos, por
conseguinte, sérias dúvidas à ideia de uma classe social de mesteirais nos séculos XIV e
XV. E a opinião dos «homens-bons» contemporâneos? A tal auto-imagem burguesa?
Cremos que essa auto-imagem foi isso mesmo, uma imagem, uma projecção.
Confundiram elites de mesteirais com mesteirais simplesmente. Porque era realmente a
essas elites e só a elas que os burgueses temiam. Sem embargo de o imaginário deles,
burgueses, apontar para uma visão dos mesteirais como se de classe se tratasse. Mas
classe real, não.
Conclusão
61
Assiste-se, já no século XIV mas mais visivelmente no XV, à insinuação do valor
dinheiro, enquanto motivo de distinção estatutária. Ele assume cada vez mais o papel de
instrumento dissolutivo das barreiras sociais centradas no nascimento. A onda do quantitativo a
todos atrai: reis, fidalgos, clérigos, burgueses e mesteirais. Todos apostam no monetário para ser
e para subir; mas todos o sentenciam de aviltante.
Nos séculos XIV e XV, mais neste do que naquele, a sociedade portuguesa apresenta-se
como uma confusão. Rigorosamente, é ordens, estados e classes. Mais correctamente, são
estados-ordens, estados-ofícios/profissões e uma classe, incipiente mas nítida, a dos burgueses.
Para se pôr arrumação nisto, comecemos por distinguir meios urbanos de meios rurais, e
contemplar em cada uma plurivisão de critérios. Será assim:
- nas cidades foi diferente. Em todas houve clero, regular e secular, rivalizante, entendido
como ordem. Clérigos administradores, ensinantes de letras, misseiros, benzedores. Houve de
tudo. Desde os simples tonsurados até aos arcebispos e bispos das urbes. Uns eram pobretanas e
néscios, casados até e proletários, outros senhores poderosíssimos, com lugar cativo nas cortes e
no conselho do rei. Enfim, uma chusma de machos, sumamente hierarquizados, díssonos no
prestígio, riqueza, influência e modos de viver e parecer, mas todos irmanados nessa coisa
extremamente importante que era a da transnacionalidade jurídica e, logo, a do privilégio forense
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e fiscal. Estado acima do Estado e dentro dele. Mas, mesmo desconjuntado das suas funções
ideais, era ordem. E todos como tal a viam.
Da nobreza pode dizer-se a mesma coisa: ordem. Ordem dos defensores. Análoga
hierarquia e análogas dissimetrias internas.
Na grande categoria do povo é que se verificaram as maiores e mais profundas
transformações. Nos séculos XIV e XV o povo urbano não é mais uma ordem. É um aglomerado
de estados-ofícios/profissões, divididos por critérios de riqueza-prestígio-poder em grupos mais
ou menos demarcados: os «homens-bons», ou burgueses - uma classe; os mesteirais - um estado
socio-profissional; e os braceiros e serviçais - ralé sociologicamente indefinível. Esta enorme
massa de moradores urbanos só teoricamente revela unidade quando contraposta ao clero e à
nobreza. O que acontece nos dispositivos jurídico-administrativos e nos rituais, como o das
procissões do Corpus Christi, rituais tipicamente urbanos, onde desfilavam as «ordens» e os
«estados-profissões» hierarquicamente, por ofícios e categorias. Dezenas e dezenas de ofícios. Na
prática, ou seja, no quotidiano vivido, impera a indefinição dos limites, com clérigos e nobres
abaixo de burgueses e mesteirais a confundirem-se com todos.
Nas páginas anteriores procurámos discernir os actores das realizações e realidades sociais
portuguesas dos séculos XIV e XV. Agora tentaremos responder a esta pergunta: que socialidade:
de consenso ou de conflito? De integração ou de luta?
Configuração social
Na categoria seguinte estão vigários, arcediagos e cónegos. São clérigos de alto nível
socio-cultural, muitos deles em trânsito para o episcopado. Provêm de boas famílias e vivem de
pingues rendas.
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Depois amontoa-se o baixo clero (párocos, prescíteros, monges, freires, frades, diáconos,
subdiáconos).
Por fim vinham os tonsurados por oportunismo, minoristas casados, das mais variadas
profissões e modos de vida, juntamente com candidatos às ordens sacras, provisoriamente
colocados nessa categoria transitória.
Passemos aos arcebispos e diga-se que havia dois: o de Braga (também chamado primaz
das Espanhas, em rivalidade com Toledo e exasperação de Compostela) e o de Lisboa. Se a
origem do de Braga se perde nas brumas do tempo, a do de Lisboa é datada de 1393. Em matéria
de precedências, primeiro Braga e só muito depois Lisboa.
64
Se bispos houve muitos, abades houve muitos mais. Porque do Mondego para norte
poucas terras terão existido sem a sombra de um mosteiro, especialmente no Entre Douro e
Minho. Mosteiros beneditinos, antes de mais; tanto os de observância cluniacense como os da de
Cister, logo seguidos pelos dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho. Abades eram os
superiores dos primeiros e priores os dos segundos. Só que os abades, peso da tradição e dos
coutos, manter-se-ão sempre à frente nas escalas do prestígio.
A seguir aos abades os mestres. Os mestres antes dos priores, precedência que não era
pacífica. Até porque o prior do Hospital (ou do Crato) era homólogo dos mestres de Cristo, de
Avis e de Santiago. Depois, eram também priores os responsáveis pelas colegiadas e pelas
claustras dos Agostinhos e dos Beneditinos, além dos superiores conventuais dominicanos e
franciscanos.
Finalmente, freires são os clérigos das ordens militares, e os diáconos e subdiáconos são
o segundo e o primeiro graus da hierarquia das ordens maiores, geralmente ignorados pelos textos
civis, se bem que muito referidos nos eclesiásticos. São categorias destituídas de impacte social
tanto como os minoristas em trânsito para o presbiterado.
65
tendiam para estacionar no presbiterado, pelo que, de uma perspectiva meramente estatística, a
hierarquia sacerdotal cristã é esmagadoramente presbiterial.
Uma palavra sobre capelães. Eram clérigos de ordens sacras, presbíteros certamente,
adstritos a um mosteiro, convento, corte, paço ou casa. Os seus serviços eram variados, desde os
de capelania até o de escrivães particulares e confessores. Os reis tiveram tantos, que formavam
uma categoria cortesã, os clérigos d'el-rei, capelão-mor à frente. Ser capelão d'el-rei era
credencial para boa carreira, certamente votada a filhos segundos de nobres. Os capelães
constituíram um grupo de clérigos numeroso e privilegiado.
Configurações sociais
Diz-se que os clérigos tiveram uma vida moral péssima nos séculos XIV e XV. E tal
parece ter sucedido. Imoralidade, sim; ateísmo, não. O homem medieval, clérigos à frente, é
estruturalmente religioso. Há fiéis e infiéis, santos e pecadores, bruxas e feiticeiros - mas ateus
não há, no exacto sentido que a palavra tem. Nem sequer existia na linguagem corrente palavra
que dissesse ateísmo. Bem no interior de cada homem medieval, clérigo ou não, cristão ou não,
alojava-se esta certeza, freio de muitos crimes: toda a imoralidade será castigada. Por isso, a
religião cristã, ou muçulmana ou judaica, teve um papel insubstituível enquanto mecanismo de
controlo social. E os respectivos cleros também, apesar de todos os seus vícios.
Mas que vícios? Os da luxúria, antes de mais. Vício corrente e corruptor da ordem social
naquilo que ela tem de mais necessário: a família, o parentesco, a linhagem, o ordenamento
segundo a hereditariedade do sangue. Por isso, nenhuma sociedade pode absterse de controlar o
uso do sexo e o «comércio» das suas mulheres. O que faz definindo as formas de incesto, as
regras de casamento, os tabus sexuais e punindo os desviacionistas. Cremos que no período do
nosso estudo a repressão dos desmandos sexuais, incluindo adultérios e sacrilégios, nunca foi
levada a efeito de modo convicto e persistente. Pelo contrário, a sociedade afigura-se-nos
extremamente permissiva.
Com efeito a prostituição é vulgar e aceite. Pode crer-se que floresceu, e não só nas
cidades e vilas, onde o «trabalho» estava regulado pelas câmaras e pagava o soldo ao alcaide-
mor. Também nas guarnições militares, nas casas de nobres e até em mosteiros. Houve pedidos
vários para a sua regulação mas não para o seu desaparecimento.
66
A «barregania», outro caso. Fenómeno generalizado em todos os grupos sociais. Na
grande nobreza, a começar pelos reis e infantes, foi coisa desculpada e desculpável. No povo,
camadas superiores obviamente, ter manceba por conta era concubinato e deveras pecaminoso.
Com o clero passou-se a mesma coisa: um sacrilégio, crime religioso, canónico, pelo que à Igreja
competiria julgá-lo. Mas não há dúvida de que os clérigos de ordens sacras não podem ser ditos
como exemplares respeitadores do voto de castidade.
Esta conclusão, que é válida para a moral do sexo, aplica-se aos outros vícios: arrogância,
cupidez, ociosidade. Enfim, os vícios dos poderosos. E quanto mais se sobe na hierarquia mais
os vícios são evidentes. Porque os arcebispos, bispos, abades e priores, afinal, não eram mais do
que fidalgos que buscavam na Igreja o prestígio e a riqueza que lhes minguavam no século. Por
isso, não admira que lhes tenham faltado, em geral, aquelas virtudes que o seu estado requeria.
Convivialidade social
Os clérigos dos séculos XIV e XV revelam-se um grupo com muitos conflitos internos.
Bispos contra cabidos, uns e outros contra monges e frades, regulares contra seculares.
Privilégios
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Existem no período do nosso estudo, 1325 a 1484, 180 capítulos gerais de clerezia. Estes
importantes documentos, incorrectamente designados de concordatas, são a voz das cúpulas
eclesiásticas do País e revelam as estratégias do grupo face ao poder civil, corporizado nos reis.
São estratégias de um grupo que se sabe transnacional e que a todo o custo quer manter-se como
isso. A táctica é nunca largar mão das isenções, das competências, dos privilégios, das
jurisdições; e, perdidos alguns ou minguados outros, nunca abdicar deles, nem deixar que se
transformem em direitos adquiridos do poder secular. E em nome de quê? Do bem comum, do
serviço d'el-rei? Não. O clero move-se noutros parâmetros: o bem da Igreja-Cristandade, o sentir
do papa, o direito canónico.
E o médio e baixo clero: os párocos, frades e monges? Este clero mentalmente é povo. De
concordatas não sabia nada. Esse clero de direito, ética e filosofia política sabia nada. Conhecia
os seus privilégios fiscais, forenses e sociais e exigia o seu respeito. Mas fazia-o
pragmaticamente, sem arrogância, com a espontaneidade de quem defende direitos seus só por
serem seus direitos. O clérigo comum, quase analfabeto e oriundo do povo, sabia-se distinto por
ordenação e função, por vínculo a um bispo ou mosteiro, tudo nacional e local e não por
referência a Roma ou ao papa.
Conclusão
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capitulares, gente instruída e poderosa, rica e influente, supranacional de ideias e motivos,
incómoda para os reis e para as autoridades concelhias.
Esta gente viveu de honras e soberbas, alimentou entre si conflitos e discórdias, mas,
agredida ou contrariada do exterior, soube formar ala coesa e ser estado dentro do Estado. Roma,
o papa e os cânones habitaram suas mentes, de modo que Portugal, o rei e o direito pátrio não
acharam nelas grande espaço. Depois o médio e baixo clero. Clérigos oriundos de toda a espécie
de povo actuaram e sentiram em conformidade com o meio. Rurais entre os rurais e urbanos entre
os urbanos, esfumam-se na história da noite. Foram povo.
Nobres. Nos séculos XIV e XV os nobres são um grupo social tão poderoso quanto
reduzido. Menos de 1 % da população. Um grupo, porém, extremamente heterogéneo, de modo
que o epíteto «poderoso» cabe somente a um reduzidissimo escol – o mesmo que verificámos
atrás a respeito dos clérigos. Ver quadro.
Mas o facto de haver nobres «por decreto» significou desvirtuamento dessa ordem. No
acreditar no sangue, que foi social e político, se baseou a ordem, a inacessibilidade do grupo, a
sua coesão, a justificação dos seus privilégios.
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As Ordenações afonsinas classificam de fidalga a linhagem invocada e atribuída durante
quatro gerações, pelo menos. Isto para esconjurar usurpações, pois, argumenta-se, para cima de
bisavô poucos são os que podem guardar memória. Se conseguirem guardá-la, escrita ou por
outro modo, tanto mais sobem de honra quanto em número de graus.
Categorias
Ricos-homens
70
uso daqueles sinónimos e a proliferação dos títulos deverão interpretar-se como causa do
esvaziamento da expressão «ricos-homens», a qual continuará, todavia, até ao século XVI, mas
com profundas alterações de sentido. Quando é que «ricos-homens» deixa de significar escol da
alta nobreza? Data certa não se sabe. Trata-se, provavelmente, de um processo derrapante e
indagável em termos de cronologia precisa. Processo que se detecta em 1361 e que parece
ter produzido efeito completo antes de 1418. De tudo isto se tira:
a) Os «ricos-homens» são categoria social reconhecida, tanto pelos reis como pelo povo,
como escalão superior da nobreza, ao qual se segue o escalão médio dos cavaleiros e o
baixo dos escudeiros;
Vendo o quadro acima verificamos então que: “ricos-homens” são os grandes fidalgos de
linhagem, mesmo infantes ou titulados de conde, até meados do séc. XIV e provavelmente até
princípios do seguinte. A partir daqui, mais oou menos 1415, não. O termo deixa de ter
significado de alta nobreza e é reservado para distinguir pessoas promovidas por benevolência
régia. É um título honorífico.
«Grandes»
71
embora não o digam, também os marqueses, que hierarquicamente eram mais «grandes» do que
os condes. Assim, «grandes» no século XV é alta nobreza. Mas saiba-se que essa alta nobreza,
quando de si própria fala, não se diz por esse nome. Prefere autodesignar- se por «fidalgos e
vassalos», «vassalos e fidalgos», «fidalgos e cavaleiros» e simplesmente «fidalgos».
À cabeça dos «grandes» estão os infantes, como seria de esperar. A partir de 1415 terão
título: o de duque. Embora os infantes prefiram o “infante” a “duque”.
Diga-se que no século XV os bastardos de reis parecem excluídos do direito de chamar-se
infantes.
Os «grandes» foram sempre no período do nosso estudo um grupo reduzido de pessoas.
Cálculos apontam para 500 a 600 indivíduos, cerca de 10% dos nobres todos. Mas esta minoria
senhoreou, juntamente com o clero (e, à parte, o rei), o território, a economia e o poder político
do País. Duques, marqueses, condes, viscondes e barões, com os Braganças à frente. E como o
poder gera abusos, nunca se viu tamanha soltura da arrogância como nos anos que vão de 1451 a
1477.
Cavaleiros
Tudo isso fez com que os cavaleiros dos finais do século XV fossem em número, perfil e
obediência muito diferentes dos dos princípios do século XIV. Em 1305, ser cavaleiro era uma
alta distinção, que só o rei podia conferir, e conferia-a mediante a cerimónia da investidura. A
proliferação e aviltamento da categoria acentuou-se na centúria quatrocentista, efeito de três
factores: conquistas do Norte de Africa, burocratização da administração central e incremento do
comércio marítimo.
72
Vassalos
“Vassalo” havia significado homem que servia o rei na guerra com corpo e haveres e
que, por esse serviço, beneficiava de contrapartidas. Por isso, todos os nobres, de cavaleiro para
cima, eram vassalos e recebiam «contia» ou «tença».
No século XV, depois da conquista de Ceuta, «o estado dos vassalos» é invadido por
plebeus. As contias deixaram de se pagar, até porque aos plebeus bastavam os privilégios fiscais e
as isenções de muitos encargos concelhios que o estatuto outorgava - coisas que não contavam
para os vassalos fidalgos, que, por serem fidalgos, já as usufruíam. Assim, ser «vassalo» no
século XV só interessou aos do povo. Assim compreende-se que os nobres tenham deixado de se
autodesignar desta maneira.
Com D. João II as «tenças» continuaram e entrarão pelo século XVI dentro. Razões?
Económicas, financeiras, políticas. Mas também ideológicas. O rei tinha a obrigação de ser
magnânimo, largo na dispensa de bens. Ora, as tenças eram o modo de ele exercer e mostrar a sua
magnanimidade junto dos clérigos e dos povos. Inclusive dos concelhos. Pois os subsídios
restantes, «assentamentos», «moradias» e «casamentos», eram específicos de nobres ou de
moradores de suas casas, como dos da corte do rei. Não admira, portanto, que D. João II, um
monarca tão atento à sua imagem, tenha mantido essas despesas que o povo rotulava de sobejas,
desarrazoadas e até pecaminosas.
Os assentamentos eram pagos a nobres de título, a começar pelo rei, príncipes e infantes
ou infantas. Trata-se de um subsídio ordinário. Os assentamentos foram instituídos para que a
mais alta nobreza e os jovens que se emancipavam pudessem manter o seu estado. Face a esta
interpretação, os assentamentos não foram criados para substituir as contias, já que estas eram
concedidas por motivo militar e aqueles por motivo socio-político ou de exigências de estatuto.
As contias entraram em desuso no primeiro quartel do século XV, mas só porque os vassalos
depois de Ceuta se multiplicaram desmesuradamente. D. João II estabeleceu um número certo de
vassalos em todo o reino, que rondaria os 2000, aos quais garante pagamento de contias. São um
corpo militar análogo ao dos besteiros, popular por condição e caracterizado pela obrigação de ter
cavalo e armas adequadas à guerra de cavalaria. De resto, as próprias contias não têm outro
significado senão o de subsídio para manter o cavalo.
73
Há, por conseguinte, uma grande diferença entre assentamentos, contias e tenças. Os
assentamento, tendo começado pelos infantes da Inclita, revestiram-se de um significado
distintíssimo. Em 1473 os assentamentos exauriam 70% do orçamento do Estado e
contemplavam, além do rei, o príncipe herdeiro, a sua mulher, a irmã, os duques, os condes, o
condestável, os capitães das praças marroquinas, o bispo do Porto e diversos outros.
Moradias e casamentos
A honra e o proveito
Grupo heterogéneo o da nobreza, integrado por infantes, duques, marqueses, condes e por
aí abaixo até aos pelintras de espada a cinta. Irmanava-os uma ideia: a de serem superiores ao
comum dos Portugueses. Para a nobreza do século XV, o proveito cifra-se no dinheiro. Preparam-
se os tempos do fidalgo-mercador e são precisamente os mais altos, reis à frente, que os estão a
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preparar. Na segunda metade do século XV, a mercancia já não avilta e a corrida ao lucro
proporcionado pelo comércio entusiasma a nobreza, a qual segue os seus modos de sempre,
subjugando, oprimindo, coutando. A antiga noção, «proveito-terras-jurisdições» continua ainda,
sem dúvida. É prestígio, honra palpável. Mas a mobilidade social e geográfica, a transferência da
qualidade de vida para as cidades, o apreço cada vez maior do luxo, a compulsão para ter
escravos, tudo isso virou a cabeça dos nobres. Uns acompanham a história e revêem os
tradicionais valores; outros enquistam, ruralizam-se cada vez mais e contemplam as novidades
dos séculos com o desdém dos virtuosos. Todos fidalgos de segunda. Ficarão pelo Minho e pelas
Beiras, sempre iguais, quase até aos nossos dias.
Em 1398 o discurso dos nobres traduz receio. A guerra acabara e os fidalgos regressados
às terras dão-se conta de mudanças processadas por todo o lado. Umas reais, outras imaginárias.
Reais eram diversas medidas de natureza fiscal, como as sisas que pesavam sobre toda a gente.
Também uma inflação galopante consumia o valor da moeda, envilecendo as rendas e os tributos
em numerário, ao mesmo tempo que tornava insuportáveis os custos dos géneros e da mão-de-
obra. Ainda o panorama social, a bem dizer novo, pois o povo das grandes cidades e muitas vilas
obtivera regalias que conflituavam com os privilégios deles. De modo que os nobres
imaginavam-se perseguidos, cerceados nos antigos foros, usos e costumes do seu estado.
De qualquer modo, a nobreza que fala em 1398 é uma nobreza orgulhosa e exigente.
Reivindica em todas as direcções, no económico, no político-administrativo, no fiscal, no
jurisdicional. Exige actualização das rendas de dinheiro, isenção de sisas e portagens, pagamento
atempado e íntegro das contias, fruição plena do privilégio de aposentadoria e comedoria, isenção
jurisdicional completa nas suas terras face às justiças régias e concelhias. Reivindicam contra os
concelhos, os oficiais régios e a clerezia; enfim, contra o próprio rei. E em nome de quê? Do
«seu» direito, e dos «seus» privilégios.
Nas Cortes de Évora de 1408, os fidalgos voltaram a fazer discurso. É pena não ter ficado
o teor original dos fidalgos, mas sim resumos da chancelaria. Sabemos que se sentiam agravados
dos corregedores, do rei e de diversos funcionários da monarquia. Quer dizer, dez anos sobre
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1398, os receios nobiliárquicos estão confirmados e a sua arrogância submetida. Tanto que aquilo
que se pede é praticamente o devido. O próprio rei aparece agora a moderar o ímpeto zeloso dos
seus oficiais. Que não excedam os seus regimentos e competências, que respeitem os direitos e
privilégios dos fidalgos. Depois disto, só voltamos a ouvir a voz dos nobres em 1472-1473. Muita
coisa sucedeu entretanto: tomada de Ceuta, desastre de Tânger, histeria de Alfarrobeira, as
navegações e o alargar da economia, a afirmação da classe burguesa, a multiplicação dos
mesteirais, o apelo das cidades e, enfim, a complexificação da estrutura nobiliárquica - nobres de
título, nobres de sangue, nobres de benfeitoria, nobres de usurpação. E, para completar, vive-se
em Portugal o apogeu do neo-senhorialismo, que Afonso V deixa andar.
Estão aí os Braganças e os Viseus, além de condes. Não há arrogância nem medo, mas
segurança, tranquilidade e indisfarçada complacência no tocante ao rei. As cortes visavam
reformas, mas os fidalgos pensam sobretudo em si, nos privilégios do seu grupo. Os nobres não
querem reformas estruturais, ao contrário do que desejam os deputados concelhios. Querem
privilégios, acrescentamento dos que têm e recuperação de perdidos: exclusivo de familiaridade
com o rei, tenças e assentamentos, aposentadorias gratuitas, total isenção nas suas terras
relativamente aos corregedores, acompanhamento das inquirições que lhes digam respeito. E
mais: presença nas câmaras municipais; revogação de todos os capítulos de cortes feitos sobre
eles, de que eles não tiveram prévio conhecimento; imprescindibilidade de serem ouvidos antes
de qualquer acto legislativo a seu respeito, seja de quem for a iniciativa ou proposta. Razões para
isto tudo: antiquíssimos foros e costumes, a honra, o proveito, o prestígio.
Antagonismos internos
Grupo coeso e harmonioso, o dos nobres? Leva-nos a pensar que, por debaixo do tom
harmonioso e consensual dos discursos nobiliárquicos em cortes se escondia um fervilhar de
invejas e rancores, desaguisados e forças, orgulhos e desmesuras, rivalidades e ódios. A
convivialidade da nobreza, com efeito, parece ter discorrido sob o signo da discórdia. É ver as
guerras, as vindictas, as intrigas e as traições.
Credibilidade social
A nobreza de Portugal, nos finais da Idade Média, foi um grupo detestado pelo povo. Em
todo o período do nosso estudo, 1325 a 1484, a imagem dos povos a respeito dos nobres não pára
de enegrecer. Ano após ano. Eram aposentadorias e empréstimos forçados, impostos e tributos
privados, malfeitores protegidos, casamentos forçados e abusos sexuais, portagens e passagens,
preços de géneros desrespeitados, usurpações de toda a espécie. E, acima de tudo, abusos da força
e das jurisdições.
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E de nada valeram as medidas régias publicadas nem a sua consagração nas Ordenações
Afonsinas. Nas suas terras e pelos caminhos, o fidalgo abusava - ele pessoalmente e a cáfila que o
seguia: escudeiros e até assassinos a monte que ele arregimentava como guarda-costas e testas-
de-ferro. A soltura fidalguesca atingiu tais cúmulos que os povos chegaram a solicitar ao rei duas
coisas excessivas: primeira, mobilizar as populações quando fosse preciso ir às terras dos fidalgos
e obrigá-los a cumprir as leis; segunda, que as pessoas, de dentro de suas casas, pudessem «sem
coima» atirar à besta sobre os homens dos fidalgos publicamente reconhecidos como assaltantes e
violadores. À primeira, o rei, aliás o infante D. Pedro, disse que sim - desde que as populações
fossem mobilizadas e dirigidas pelos corregedores e justiças municipais; à segunda, D. Afonso V
disse nada.
A alta nobreza foi um grupo rico em terras, rendas, direitos, investimentos, tenças e
assentamentos. A média, foi mais ou menos. E a baixa, pobre na sua generalidade, dependente
das outras duas e de prelados, alienada de posses e vontade, foi formada de escudeiros. Muitos
misturavam-se com os assassinos que os amos acolheram e cumpriam missões punitivas,
dissuasoras ou de mero espavento. Eram os proletários da fidalguia. Esses a quem, mais que
nenhuns, o povo temia e odiava.
Povos. Os povos foi o grupo social mais heterogéneo nos séculos XIV e XV. É
extremamente difícil estabelecer-lhe os contornos. Invadiu franjas dos clérigos através dos
tonsurados e minoristas casados e invadiu a nobreza mediante os vassalos d'el-rei e a fidalguia de
usurpação, para não falarmos já dos escudeiros e cavaleiros burgueses, títulos destituídos de
conotação militar, e dos amos e colaços de fidalgos, parentela extra-linhagística cumulada de
distinção e privilégios. Além do mais, há que meter no seu seio os judeus, os mouros, os
estrangeiros e os escravos.
Configuração social
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Ou então por sectores: primário, secundário e terciário. E mais: honrados, meãos e baixos;
afazendados, remediados e pobres; urbanos e rurais; cidadãos, vizinhos, homens de outrem e
escravos.
Para a nossa intenção de momento bastaria desvendar dois tipos de socialidade: a urbana
e a camponesa. Mas desde logo se vê que isso é trabalho insano, porque não houve uma
socialidade rural face a outra citadina. Houve muitas. Porto e Braga, por exemplo, tão próximas
na geografia, ambas cidades bispais, quão diferentes!
O trabalho
O grupo do povo define-se pelo trabalho. «Trabalhar» em todo o século XV é sofrer. Mas
o labor dos campos, passou para as cidades e mudou. Fez-se indústria, serviço e negócio. É
dinheiro ou riqueza, emblema e chave de poder. Por via dele os povos entram nas cúrias régias e
são inventadas as cortes. Por causa dele se vai esfacelar a teoria das ordens e a dos estados. Ele
foi a razão e o medo dos burgueses e a esperança dos mesteirais. Foi a oportunidade de os
concelhos falarem alto aos reis. Não queremos com o exposto afirmar que o dinheiro seja a
explicação de tudo no período que nos ocupa. Mas não podemos deixar de advertir que onde
houve explicações a dar, ele lá esteve. E, como cada vez mais foi produto do trabalho, o trabalho
virou direito do povo. Especialmente o trabalho dito «negócio», que era o mais lucrativo.
A dignificação das actividades laborais tem seu início no Ocidente durante o século XII.
Essa teologia foi pensada nas cidades e para servir a Cidade. Como é que as suas lições são
remetidas para o campo? Porque o trabalho por excelência, esse que mais aproxima o homem da
Natureza e de Deus, é o da agricultura. É de crer que esta atribuição de sentido dignificante à
lavoura tenha tido consequências na socialidade rural. Assim, é de suspeitar que a excelência do
rústico tenha transitado da posse da terra para o engenho de saber aproveitá-la.
Fora das cidades e vilas era o mundo dos lavradores, que se caracterizou pelo
monolitismo profissional: muitas tarefas, uma só profissão. Certamente que se distinguiam uns
dos outros, e cremos que a distinção, mais do que assente na propriedade da terra, se baseava na
extensão e qualidade dos espaços aproveitados, ou seja, na quantidade de riqueza apropriada. Por
isso, pôde o dono de uma propriedade ser menos na escala social aldeã do que o foreiro de uma
grande quinta. Eram as terras que se «faziam», próprias ou alugadas, que ditavam a importância
social relativa dos lavradores.
A distinção dos lavradores pelo usufruto predial era contemplada pelo fisco, pela
organização militar e pelo sistema político-judicial. A propriedade de bois de trabalho e seu
número decidia os escalões fiscais, a obrigatoriedade de ter cavalos de guerra e éguas de marca e
de ir ou não na hoste e com que arma; e ainda sobre posicionamento face ao direito penal,
aposentadorias passivas e obtenção de coutadas de pasto. O critério de ter ou não ter bois de
trabalho acabou por ser o melhor distintivo da «profissão», muito mais do que lavrar terra própria
ou alheia.
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Pode-se então concluir que nos campos não houve especialização laboral, que todos
viviam da terra e para a terra e que, excluídos os senhores, as distinções assentavam na
quantidade e qualidade das lavras? A resposta afirmativa é válida para as regiões do País
eminentemente agrícolas e de preferência caracterizadas pelo povoamento disperso. Para as
outras zonas há que estabelecer matizes. O Entre Douro e Minho, a Estremadura e a Beira
atlântica caberiam no quadro; Trás-os-Montes, Beira transmontana e Alentejo provavelmente
não; o Algarve litoral talvez sim, contrariamente ao Algarve da serra. Numa palavra, para a
compreensão das socialidades rurais há que contar com diversas variáveis, tais como: agricultura,
pesca, pastoreio, agricultura-pesca, agricultura-pastoreio, povoamento disperso-concentrado,
pastos-prados, pastos-campos e pastos-serras. A diferença agricultura versus pastoreio desde logo
implica diferença de necessidade de mão-de-obra, inclusive em termos de família e parentesco e
de valorização ou desvalorização do trabalho feminino. Por seu turno, a diferença povoamento
disperso versus concentrado, seja qual for a actividade económica, irá originar esquemas de
relações vicinais distintos, com efeitos na convivialidade global.
Ter ou não braços coadjuvantes era uma questão fulcral para os lavradores, tanto mais
premente quanto maior a extensão e qualidade das lavras, a qual se procurava resolver por modos
diferenciados: filhos, parentes, criados, jornaleiros e reciprocidades comunitárias. É bom de ver
que só o modo da parentela era seguro e barato. O das soldadas andou muito dispendioso nos
séculos XIV e XV, devido à crise demográfica posterior à peste negra e à fuga dos trabalhadores
para as cidades. Por seu turno, o processo das reciprocidades comunitárias era incapaz de
satisfazer ambições pessoais. Daí a disputa de órfãos - que a legislação municipal e central tenta
corrigir, especialmente no século XV; daí também a procura matrimonial de viúvas com filhos
menores; daí a ruína de bons lavradores a quem mortes repentinas arrebataram familiares. Três
ideias nítidas: primeira, a imprescindibilidade de vasta mão-de-obra para as fainas agrícolas;
segunda, a carência e carestia dela depois da peste negra; terceiro, o vale-tudo para a sua
obtenção.
Foi para resolver a carência, temperar a carestia e pôr ordem naquele vale-tudo que se
produziu uma vasta legislação atinente ao trabalho, a qual incide em dois itens: fomento da mão-
de-obra agrícola e sua subordinação aos patrões. Com o tempo, segunda metade do século XV,
veio acrescentar-se um terceiro: controlo do proletariado urbano, ou contenção das clientelas de
mesteirais. Trata-se de uma política repressiva da mobilidade socioprofissional estatutária e
geográfica, inspirada, primeiro, pela aristocracia rural e, depois, pelos aristocratas urbanos, a
qual, se bem que encabeçada pelas elites municipais, encontra sem dificuldade o apoio dos
fidalgos, do clero e dos reis.
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que o mundo do trabalho teimava em fugir às orientações que lhes impunham, ou seja, à política
de fixação dos trabalhadores ao modo de vida dos pais, submissão a salários estabelecidos
administrativamente, sujeição a tempos de serviço mínimos às ordens do mesmo patrão e
interdição de transitar de localidade para localidade.
Podemos afirmar que os monarcas mais liberais para com os trabalhadores foram D.
Duarte e D. João II, como também podemos afirmar que os maiores «inimigos» do trabalhador
rural e urbano foram os aristocratas municipais.
Contradições
De modo que as direcções e sentidos da actuação popular nos séculos XIV e XV tiveram
por razão o trabalho e a segurança. Que nas camadas mais baixas se bastava subsistir; e nas mais
altas se sublimavam no lucro, no prestígio e no poder. Mentalidades pequeninas, as primeiras;
mentalidades abrangentes, as segundas, abertas à largueza do País e ao confronto com o mundo.
As primeiras são autárcicas e bairristas; só as segundas são realmente nacionais. Mas quando há
perigos externos todos se unem na defesa das searas e das vinhas, das casas e dos currais, das
oficinas e dos armazéns, das mulheres e dos filhos, das igrejas e dos castelos, de Portugal e do rei.
Conclusão. Dissemos no princípio deste capítulo que iríamos tentar responder a estas questões:
Que socialidade? De consenso ou de conflito? De integração ou de luta? Depois de termos
passado em revista os nobres, os eclesiásticos e os povos, tentando perscrutar-lhes as atitudes e as
imagens, os modos de convivialidade e o relacionamento de uns com os outros, parece-nos poder
responder assim: a socialidade dos Portugueses naqueles dois séculos caracterizou-se pelo
conflito e a luta. Isso tanto no interior dos grupos como nos grupos entre si. São séculos de crise e
de rápida transformação. Guerras, pestes, fomes, centralização monárquica, tudo isso aliado a
uma contiguidade territorial com Castela portadora de ameaças e tentações, fizeram com que o
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clero, a nobreza e o povo geralmente andassem desavindos e usassem uns contra os outros as
armas que possuíam. Claro que os mais pobres foram os mais atingidos - que é como quem diz, o
povo. Nomeadamente esse povo que vivia submetido a senhores, laicos e eclesiásticos, ou
labutava em regiões de poder concelhio frágil e displicente. A clerezia tinha prestígio, autoridade,
privilégios e anátemas; a nobreza tinha armas, riqueza, regalias e poder; o povo tinha o trabalho e
o medo, ou então, aristocracia mínima, o dinheiro, as cidades, a força da denúncia. Os mesteirais,
e quase só os de Lisboa, depois de efémeras conquistas em 1383-1385, tiveram de se acomodar à
sua condição de proletários submetidos e vigiados. De modo que só um grupo parece ter
conseguido superar as conflitualidades internas, unir-se nacionalmente e formar classe de facto -
actuando politicamente de modo consensual e eficaz. Foi o grupo dos burgueses, homens ligados
ao comércio. Serão eles os principais geradores da ideologia não guerreira do interesse e valor
nacionais. Logo, do sentimento de patriotismo para uso quotidiano.
Mas não fica tudo dito. É que essa socialidade geral de luta e divisão conheceu
parênteses. Aqueles que as guerras abriram e fecharam. Pois nessas alturas, apartados os
Portugueses em dois grupos, amigos e traidores, os cleros, as nobrezas e os povos formaram
bloco coeso. Nessas alturas quebraram-se as barreiras das ordens e dos estados.
Conclusão geral
A socialidade portuguesa dos finais da Idade Média não foi simples. A gente procura
perscrutar-lhe as estruturas, as direcções e os sentidos e vê-se a cada passo desprovida de
instrumentos conceptuais adequados. Ordens? Estados? Classes? E depois: qual o sentido exacto
de cada uma destas categorias sociológicas? A sociedade portuguesa dos séculos XIV e XV já
não é de ordens. Mas gosta de pensar-se como tal. O velho modelo da tripartição trifuncional
virou topos retórico que toda a gente utiliza - cronistas, deputados, moralistas. Não passa, porém,
de um referencial irrealista, nem sequer ideológico. Mesmo nas cortes, cujos membros parecem
distribuir-se segundo o modelo, não há ordens, mas estados ou braços. É ver como as respectivas
funções se misturam e todos discutem tudo. Ora, não sendo sociedade de ordens, não tem
interesse falar-se de tripartição social nos séculos XIV e XV. De modo que as expressões «clero»,
«nobreza» e «povo» não passam de categorias lógicas, classificações sociologicamente ambíguas
- se bem que cómodas para arrumar discursos de primeiras abordagens.
Nos finais da Idade Média a sociedade portuguesa distribuiu-se por estados. Mas estados-
estatutos e estados-ofícios-profissões. O saber e a riqueza, ou o sucesso pessoal e de família,
insinuam-se cada vez mais como verdadeiros motores da mobilidade social, invadindo atribuições
anteriormente exclusivas do parentesco de filiação. A técnica rivaliza com o sangue. E assim
vimos que filhos do povo, graças aos estudos, se tornam técnicos das leis, dos cânones, dos dois
direitos, da medicina, da teologia e chegam a cónegos, a bispos, a ricos-homens. E vimos também
mesteirais que, dominando a técnica da escrita, se fizeram escrivães, porventura funcionários
superiores. E pense-se noutras técnicas promovedoras, desde a da contabilidade comercial até às
dos mestres de oficina, passando pelas dos ourives, pintores e músicos. É o trabalho, intelectual e
manual, a fazer estalar as fronteiras da sagração e do sangue. O trabalho a enobrecer o
trabalhador? Não própria nem imediatamente. Porque imediata e propriamente foi o prestígio do
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saber e o lucro do fazer, ambos traduzidos em riqueza, que fez o enobrecimento, ou a subida de
estado-estatuto. Mas há um grupo que escapa a isto: o dos burgueses.
Não estranhamos que tenham sido eles os reais catalisadores dos sentimentos nacionais
que cristalizam em «patriotismo». Reais catalisadores, porque só eles puderam reunir em cortes
com povo de todo o País, de modo assíduo, e tratando questões do reino todo. Patriotismo é
sentimento que pode nascer no bairro, mas tem de ser levado até aos limites do território e das
fronteiras da língua e corporizar-se em símbolos que irmanem a população, herdeira da mesma
história, empenhada no mesmo presente e apostada no mesmo futuro. E quem pôde fazer esse
trabalho? Alguém que se sentisse intérprete do povo, que pudesse dizer «Portugal» e
«Portugueses» com conhecimento do País e dos seus problemas e ansiedades, tanto os de
natureza intestina como os desencadeados por inimigos externos. Alguém que fosse capaz de
fazer a síntese local-regional-nacional e visse nessa síntese uma «ideia» diferente de estrangeiro
ou inimigo. É evidente que só um grupo podia ter feito isso: os burgueses.
Não podia ser os clérigos? Não os altos, que eram gente de motivações supranacionais,
com seu direito, suas obediências e sua sensibilidade acima de Pátria. Faça-se, porém, a excepção
dos mestres das ordens militares e priores do Hospital. Só que estes homens eram nobres e como
nobres pensavam e agiam. Cabem na categoria daqueles que actuavam por amor da «honra e
proveito». O médio e o baixo clero, no que toca a este assunto, foram povo. E como tal hão-de ser
«responsabilizados».
Os nobres, por outros motivos, correram parelhas com os clérigos. Não já em nome de
uma obediência supranacional, mas em nome de uma ética que não conhecia fronteiras: «a honra
e o proveito». Foi a honra e o proveito que atraiu fidalgos franceses, ingleses, castelhanos e
outros a Ceuta e todo o Marrocos, como também foi o mesmo motivo que levou portugueses aos
reinos da Cristandade. A honra e o proveito foram a pátria da nobreza. E só quando o proveito
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vira lucro burguês é que vemos os nobres atentos ao território, às ilhas e às navegações. Os
nobres fizeram a Pátria, sem dúvida, mas sem sentir o que faziam. Mesmo que por fidelidade o
tenham feito, tratou-se de fidelidade jurada a homens, sempre susceptível de se anular, ditassem-
no as conjunturas. Ora, o patriotismo não se compadece de conjunturas nem se fixa em
indivíduos. A genuína mentalidade nobiliárquica, votando sempre na honra e proveito,
considerava os sinais dos tempos e jogava no oportuno. Ao contrário, a mentalidade patriótica,
ancorada em valores considerados absolutos, desprendia-se de oportunismos e jogava no risco.
Poder-se-á crer então que o sentimento patriótico eclodiu entre o desespero e a raiva, só
em momentos de crise? E só no ínfimo povo? Lendo Fernão Lopes, poder-se-á dizer que sim.
Mas há que saber interpretar o cronista. Se ele viu patriotismo nas revoltas dos mesteirais de
1383-1384, ele que escreve por alturas da «revolução» de 1439, então o patriotismo é dele. É uma
experiência que ele retroprojecta nos primórdios da dinastia para branquear modos e mitificar
efeitos. Uma experiência que ele bebe, não em comportamentos do ínfimo povo, mas em
actuações de burgueses - precisamente aqueles que meteram o infante D. Pedro no governo do
País. Como historiador, Fernão Lopes interpreta, presente no passado, o sentir popular de 1383. E
chama-lhe «patriotismo». Mas não teria sido mais patriótico o discurso dos burgueses nas Cortes
de 1385? Exactamente aí, em que eles, com os interesses nacionais nos olhos, apontam medidas,
recriminam processos oportunistas - dos mesteirais, precisamente -, oferecem dinheiro e
acautelam a ordem da revolução e o futuro da dinastia? São eles, burgueses, que transformam as
emoções caóticas dos de baixo em força contra os invasores de Portugal. Porque, com efeito, em
1385 a revolução não é mais «liderada» pela arraia-miúda. Os movimentos emotivos e «de
bairro» não se identificam necessariamente com patriotismo. Podem ser o explodir de uma
retaliação. E, então, o patriotismo dos mesteirais e arraia-miúda, gente demasiado atracada à sua
terrinha e respectivos horizontes, é análogo, por paradoxal que pareça, ao dos prelados e dos
fidalgos. Rigorosamente nenhum.
O patriotismo é sentimento popular, sim. Mas burguês. Diz-nos a análise dos textos,
nomeadamente os das cortes, de todas as cortes ocorridas entre 1325 e 1484. Não propriamente os
assuntos versados, mas o aparato argumentativo de cada um deles - honra de Deus, serviço do rei,
bem da «república», proveito da terra e interesse do povo. Motivos retóricos, obviamente. Mas
proferidos como supremas razões - e isto é que importa, porque são razões centradas num
consenso: o consenso da indiscutibilidade dos valores «pátria» e «nação». Dos quais Deus era o
garante e o rei o símbolo. Ora esta ideologia não a achamos nos clérigos nem geralmente nos
fidalgos. É burguesa.
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Realizações Memoráveis
Existem memoráveis realizações entre 1325 e 1484. São feitos actos marcantes e
significativos que se traduzem em rumos duráveis para o reino.
Tais realizações podem ser agrupadas por categorias: realizações administrativas,
económicas, financeiras, fiscais, judiciais, jurídicas, militares, políticas, religiosas e sociais.
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Mas vamos abordar tudo isto através de certas questões: chegados a 1484 e olhando para
trás, Portugal é-nos revelado como quê? Que perfil mostra ter construído enquanto
individualidade geopolítica desde D. Dinis até aí? Que avanços? Que direcções?
A resposta a estas qustões parece ser assim: Portugal é um Estado e uma Pátria – uma
estrutura geopolítica e social madura ou adulta.
Logo duas memoráveis realizações: estado e Pátria e passos seguros na criação do
império. Vamos abordar o Estado visto que já falámos da pátria quando falámos da ordem, e não
falemos do império pois será tema que virá depois.
O Estado
Entendemos por Estado uma sociedade política, cuja unidade se revela permanente no
tempo e estável num espaço geográfico; que é dotada de instituições persistentes e impessoais; e
onde vigora a aceitação colectiva de uma autoridade suprema, à qual as pessoas se subordinam
por sentimentos de lealdade. Logo: história e território; mecanismos de autoridade e poder;
governo centralizado e consentido.
O território português, «Reino de Portugal», seria uma referência abstracta, a que só o rei
podia emprestar alguma consistência sensível. De modo que a ideia de unidade política
subsumida numa história e num espaço não existia no imaginário colectivo. A nação existe, tem
já a sua coerência, a sua capacidade de resistência, mas a consciência deste facto encontra-se
apenas na mente de uma minoria próxima do poder político. Portanto, em 1325 não há ideia de
Estado tal como o definimos atrás. Mas há duas condições fundamentais para que o Estado
irrompa: uma história e um território.
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nas do poder o direito, a justiça, a fiscalidade, a diplomacia e a guerra.
A instituição só existia enquanto funcionava, isto é, foi uma instituição identificada com
assembleia actuante. Nascia e renascia todas as vezes que o Poder, convocados os membros dela,
tratava com eles os negócios que entendia propor-lhes ou outros que aceitava discutir. Todavia,
pode falar-se do parlamento medieval como uma instituição virtualmente permanente. É devido
ao facto de as cortes só terem existido realmente enquanto funcionavam que é costume designá-
las, para as individualizar, exarando «anos (locais)»: assim 1385 (Coimbra), 1390-1391 (Évora),
1433 (Leiria-Santarém).
A periodicidade das cortes nunca foi taxativa. Houve diversas propostas nesse sentido,
sempre oriundas dos povos, mas jamais coroadas de sucesso prático. Reuniram quando reis ou
regentes as convocaram pressionados por motivos conjunturais, de natureza financeira as mais
das vezes. Dir-se-ia que os concelhos as desejavam e que os governantes as aborreciam. De modo
que as convocatórias foram o instrumento jurídico que lhes dava existência real e legitimidade.
As cortes eram integradas pelos detentores do poder monárquico e seus áulicos, pela
fidalguia, pelos prelados e delegados capitulares e por deputados dos concelhos. Mas isso não era
suficiente: importava que as convocatórias dissessem que a assembleia era de natureza
parlamentar ou os negócios da agenda o inculcassem. Assim, uma assembleia convocada para
jurar um príncipe herdeiro podia não ser de cortes, muito embora reunisse maior número de
pessoas e delegações do que o habitual nos parlamentos. Mais: podia suceder, e sucedeu, que
após a sessão inaugural uma ordem da sociedade fosse embora. Isso não prejudicaria o carácter
dos trabalhos posteriores.
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Em contrapartida, não há nenhum caso, parecer ou afirmação que dê estatuto
parlamentar a uma assembleia reunida sem a presença de delegados do povo. E isto é
extremamente importante para caracterizar o parlamento medieval português, e não se estranhe a
nossa insistência em qualificar as cortes como areópago do povo. O clero e os nobres dispunham
de outras assembleias para «trabalhar» com os reinantes. O povo, isto é, os representantes dos
concelhos congregados como corpo social representativo do terceiro estado, não.
A abertura das cortes fazia-se por uma sessão solene, em plenário. Todos os membros
estavam presentes, desde o rei e seus áulicos até aos delegados dos concelhos mais humildes. Se
o Parlamento servia também para jurar um rei acabado de subir ao trono, o cerimonial procurava
incutir nos participantes, sem pressa, faustosamente, a ideia da ordem social querida por Deus.
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As cortes foram uma estrutura política dotada, não de poder, mas de autoridade, que
advinha de serem a instância solene onde a vontade e os desígnios da Nação se exprimiam
buscando a conjugação.
Durante o período do nosso estudo deu-se muita importância aos conselhos e aos
conselheiros e inculca-se que os fracassos e sucessos dos reinantes se devem fundamentalmente a
eles.
Os reis e todos aqueles que por função ou missão deviam decidir sobre pessoas e
empresas eram obrigados, moral e politicamente, a tomar conselhos; a saber pesá-los, utilizando a
sua discrição pessoal e a autoridade de quem os dava; a seguir os de maior peso. É claro que este
modo de pensar não é exclusivo do nosso período histórico: onde quer que haja sociedades com
um mínimo de governo e de Estado aí achamos fatalmente conselhos e conselheiros.
Com D. João I, o conselho régio vai incluir clérigos, fidalgos, letrados e cidadãos, de
modo a traduzir o pensar da comunidade. Intervirá mais decididamente nos negócios da
governação e admitirá, quando se julgar momentoso, vozes de «especialistas» consultados ad
casum. Mas à medida que o reinado avança, voltar-se-á ao modo de D. Fernando: o conselho
régio como grupo de assessores.
A partir de D. João I, o assunto está por estudar. Com que atribuições, competências,
composição? Não se sabe. Uma coisa é certa: em todo o período do nosso estudo houve uma
instituição consultiva, permanente, adstrita ao poder monárquico, chamada «Conselho D'el-Rei».
Foi uma instituição de autoridade.
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O poder judicial andou misturado com o legislativo e o executivo, e disperso em muitas
mãos: as dos reis, as dos senhores e as dos autarcas municipais. É dispersão característica dos
sistemas feudais, contra a qual vão lutar os monarcas, apoiados no direito romano e,
simultaneamente, na razão que lhes advém da força. Assim: o rei pretende ser o guardião e
defensor da lei, e que o seu primeiro papel seja manter e impor a justiça. E se porventura outros a
aplicam, é na qualidade de delegados régios que a devem aplicar.
Isto na teoria, porque na prática o que se verifica é os senhores das terras, laicos e
eclesiásticos, deterem jurisdição cível e crime, que exercem fora da interferência dos agentes
judiciais do monarca.
Por outro lado, os concelhos, agarrados a tradições autonómicas, porfiam em manter
máquina judicial própria, gerida pelos homens-bons, segundo critérios tecnicamente muito frustes
e politicamente dispersivos da unidade da Nação e do Estado.
O trabalho da monarquia vai ser a criação dum direito comum nacional e lentamente
controlar e gerir a sua aplicação por todo o lado. Escapar-lhe-á a Igreja, mas ela verá reduzido e
«fiscalizado» o campo da sua jurisdição específica.
A Casa do Cível era um tribunal superior fixo, supostamente instituído por D. Afonso IV,
integrado pelos sobrejuízes e dois ouvidores, com alçada sobre feitos cíveis e feitos crimes. Feitos
cíveis de todo o reino, excepto do sítio onde estivesse a corte e das localidades a cinco léguas daí,
e dos feitos crimes de Lisboa e seu termo - isto a partir do momento em que o tribunal ficou
sediado em Lisboa.
A Casa de Justiça da Corte era o tribunal supremo que acompanhava o rei por onde quer
que ele andasse.
Tinha competência sobre apelações e agravos de natureza civil ou criminal provenientes
de um raio de cinco léguas do local onde a corte eventualmente se encontrava e, no que toca ao
crime, dos que provinham de todo o País, exceptuando Lisboa e seu termo.Tratava, além disso, de
todos os feitos que escapavam à alçada específica da Casa do Cível.
Digamos que a Casa de Justiça da Corte simbolizava e cumpria a dimensão judicial do
poder régio e que a Casa do Cível significava um distanciamento da função judiciária
relativamente à figura do soberano. Compreender-se-á então que o tribunal de última instância
por excelência tenha sido a Casa da Justiça da Corte, também chamada «Casa da Justiça d'el-
Rei», «Casa da Justiça» e «Casa da Suplicação». E compreender-se-á por que é que no tempo de
D. Pedro I, por amor da rapidez e porventura do temperamento do monarca, a Casa do Cível
perca prestígio em proveito da outra.
Já não se compreenderá tão bem, a não ser por razões de eficiência administrativa, que a
Casa da Justiça, estando a corte em Lisboa, não absorva os feitos crimes dessa cidade e seu
termo, deixando-os à Casa do Cível.
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A Casa da Justiça da Corte tem a sua origem no desmembramento da cúria em dois
tribunais e, portanto, embora herdeira directa do prestígio e simbolismo daquela, é
contemporânea da Casa do Cível. As duas, provavelmente fundadas por D. Afonso IV, denotam,
por um lado, progresso administrativo e autonomização rei/funções régias. E, por outro, esforço
de controlo centralizador do País ao nível da justiça.
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Para se ter uma ideia de como os povos entendiam em 1433 as funções dos
corregedores, resume-se o que eles apresentaram ao rei nas cortes desse ano: que o ofício de
corregedor seja andar pela sua correcção, de lugar em lugar, a reprimir abusos, despachar
agravos, fiscalizar a actuação dos juízes e tabeliães e prender malfeitores. O rei não aceita e
insiste em que as funções sejam as especificadas no Regimento de 1418, as quais eram muito
mais vastas, pois integravam alíneas que tinham a ver com obras públicas e administração local.
Assim as competências e atribuições desses funcionários, fundamentais para o poder central,
foram no sentido da expansão e não no inverso. Mesmo com D. Afonso V, o qual só cometeu o
desarranjo, perverso em matéria de centralização, de meter no ofício grandes fidalgos, mudando,
embora, o nome deles para «adiantados», «governadores» e «regedores da justiça» das comarcas.
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As populações preferem a justiça ditada e cumprida pelos oficiais régios. E pedem
que os corregedores prevaleçam sobre os ouvidores e que os fiscalizem. Tal será aceite por D.
João II.
Outros agentes do poder judicial régio, como os juízes de fora e os tabeliães, não
tiveram acção tão espectacular como os anteriores. Mas isso não significa que devam ser
desmerecidos no seu papel de construtores da centralização do poder monárquico e, logo, do
Estado. Eram tentáculos da monarquia postos ali, no quotidiano das populações e dos municípios.
Os primeiros surgem no reinado de D. Dinis e os segundos antes ainda, na primeira
metade do século XIII. D. Afonso IV, D. Pedro e D. Fernando aperfeiçoaram tecnicamente o
ofício, o qual foi vedado desde o princípio a clérigos, maiores e menores, seculares e religiosos, o
que mostra claramente tratar-se de um mecanismo destinado a afirmar o poder central régio.
Surgem com D. Fernando, para fins militares, mas por concessão excepcional dos povos,
outorgada provavelmente em cortes, e por um período limitado - três anos. As sisas, enquanto
imposto geral e permanente, são criação de D. João I em 1387, e sem ligação qualquer com o
povo miúdo revolucionário. Nas cortes do Porto deste ano, o rei manifestou a necessidade de
dinheiro, tanto para as despesas bélicas como para dar casa à mulher. Esse dinheiro havia de vir
dos clérigos e dos povos. Da nobreza não, que essa dava o corpo e a vida nos campos da honra. O
modo de se conseguir o dinheiro ficava ao cuidado daqueles dois estados do reino. Os quais,
acabadas as Cortes do Porto, vão reunir em Coimbra com a rainha e altos funcionários régios.
Nessa assembleia foi decidido outorgar ao rei «sisas gerais», ou seja, o imposto municipal que
incidia sobre compras e vendas de «todas as cousas», fosse qual fosse o comprador ou vendedor.
É claro que uma decisão deste género, se bem que dissesse respeito principalmente aos concelhos,
interessava a toda a sociedade, fidalgos incluídos. E os fidalgos não foram escutados. Por esta
razão, e também porque o montante a arrecadar se revelou insuficiente, houve necessidade de
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reunir cortes outra vez nesse ano, em Braga. E então aí, sim, todos os estados presentes, as sisas
são aprovadas, gerais e a dobrar. Por consentimento unânime.
A diplomacia, a guerra e o comércio são as três formas pelas quais o Poder se relaciona
com o exterior. A primeira é pacífica e é tida como expressão sublimada da agressividade. É
negócio - e como tal tem parentesco com o comércio externo. Só que o comércio visa a riqueza e
a diplomacia visa a segurança e o prestígio. No período do nosso estudo assiste-se à valorização
dos modos diplomáticos no relacionamento internacional. Isso deveu-se, sem dúvida, à
experiência europeia da Guerra dos Cem Anos, ao Cisma do Ocidente e à afirmação dos Estados
nacionais.
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nacionalista, patriótica e cultural; dos aliados europeus decorreu a abertura à Europa; e da
expansão ultramarina nasceu a vocação universalista, o império e a experiência dos mundos.
Em 1385 Portugal é país maduro, com fronteiras praticamente definitivas, língua própria,
estruturas políticas, administrativas e sociais confirmadas, rumos económicos definidos, alianças
diplomáticas internacionais escolhidas, consciência nacional, enfim, Portugal é País e é Nação.
O Rei
De todas as estruturas políticas, o rei foi a mais importante. Iam longe os tempos em que o
monarca era visto como um senhor entre senhores. Desde Afonso III esses tempos esgotaram-se.
Por efeito da influência de legistas imbuídos de direito romano e devido também a um maior
empenho administrativo, concluída que estava a Reconquista cristã. Iniciava-se a transformação
do reino em Estado.
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Para isso contribuíram medidas fiscais, administrativas, militares, legislativas e judiciais, de que
se destacam as inquirições e confirmações gerais, a outorga de forais a cidades e vilas, a criação
do corpo nacional de besteiros, a instituição dos tabeliães régios, a criação dos corregedores das
comarcas e dos juízes de fora, a organização dos tribunais de última instância, a transformação da
cúria régia em cortes ou parlamento, as leis de desamortização tendentes a evitar a concentração
de bens fundiários na posse da Igreja, a nacionalização das ordens militares, a imposição do
beneplácito régio sobre rescritos papais. Quando se chega à dinastia de Avis, pode dizer-se que o
reino de Portugal é um Estado, porque preenche as condições exigidas para assim ser
considerado: é uma unidade política já secular e dotada de fronteiras geográficas estabilizadas;
possui instituições permanentes e impessoais; é habitado por uma população que julga necessária
uma autoridade suprema, à qual aceita ligar-se por vínculos de lealdade.
Mas, ainda no século XV, e apesar dos esforços, outras estruturas políticas coexistirão com o rei,
discutindo territórios e súbditos, exercendo sobre eles jurisdição de mero e misto império,
dividindo a autoridade e dispersando as obediências directas (direito de justiça, de nomear
funcionários e cobrar impostos). Essas estruturas concorrentes são os senhorios laicos e
eclesiásticos e os municípios.
Os senhorios laicos
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Os senhorios laicos, ou enclaves territoriais de fidalgos, foram muitos no período do
nosso estudo, desde um extremo ao outro do País. Mas não tiveram todos o mesmo estatuto
jurídico-político.
Uns eram isentos do poder régio, possuídos de juro e herdade; outros eram concessões
vitalícias, só com jurisdição cível ou com as duas jurisdições. Os primeiros passavam de pais a
filhos e de reinado a reinado, sendo os reis obrigados a mantê-los mediante juramento que
prestavam quando subiam ao trono - até D. João II, que se recusou a jurar e obrigou todos os
titulares a prestarem-lhe vassalagem.
Os segundos, isto é, os senhores de jurisdições vitalícias, não podiam legar os títulos aos
herdeiros, assim como não continuavam automaticamente com eles de reinado para reinado.
Certo que os reis neófitos geralmente os confirmavam e, não havendo motivo grave, permitiam a
sucessão hereditária neles. Dessa feita, todos os senhorios jurisdicionais tenderam para perpétuos,
havendo apenas dois modos de fazê-los regressar efectivamente à coroa:
- a aplicação da Lei Mental e a expropriação por crime de heresia ou traição judicialmente
sentenciado. Ambos os modos foram utilizados.
Nas terras de jurisdição privada, o poder régio foi diminuto até D. João II. Os
corregedores, anadéis e almoxarifes não tinham alçada nessas terras. Mesmo os juízes
ordinários concelhios, a quem competia prender os criminosos foragidos e fazer seguir os apelos
e agravos, eram impedidos de exercer essas funções. De modo que os senhores laicos
constituíram verdadeiros enclaves de poder, paralelos ao rei e concorrentes dele.
Os senhorios eclesiásticos
Com os senhorios eclesiásticos o panorama foi ainda pior, e por causa da confusão poder
religioso/poder civil.
Os abusos que se lhes apontam são os mesmos que se apontavam aos laicos, de quem,
aliás, são parentes, mas com a agravante de fulminarem os súbditos desobedientes, assim como
oficiais régios ou concelhios demasiado zelosos, com excomunhões e interditos.
Donde se seguia esta coisa paradoxal e cínica: lançar uma pena religiosa, por motivos
profanos, contra homens do rei que agiam em nome dele, rei, e exigir que o monarca castigasse
com o braço secular aqueles cujo crime era serem-lhe dedicados. Claro que os reis não cediam
cegamente à exigência. E, porque não, as excomunhões foram caindo em impunidade civil e
descrédito social.
De modo que essa arma privativa dos senhores eclesiásticos, à força de ser brandida
como instrumento de persuasão política, acabou por envilecer.
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Das quatro ordens militares, sobressaiu a de Santiago. As grandes abadias e os mestrados
das ordens religiosas militares constituíram verdadeiros potentados terratenentes. E foi por isso
que as nomeações dos abades e dos mestres recaíram quase sempre em mãos seguras e fiéis:
validos e familiares da monarquia. Assim, a sucessão dos titulares era perfeitamente
domesticável, ao contrário do que sucedia com os senhorios laicos – que só por casamentos com
filhos dos reis ou pela força bruta podiam ser controlados.
Os concelhos
Nos séculos XIV e XV, os concelhos estão despidos da sua autonomia antiga e todos
gravitam na dependência de alguém: do rei ou de senhorios privados. E, por conseguinte, sujeitos
à fiscalização de funcionários externos e impostos: corregedores ou ouvidores; almoxarifes ou
porteiros e mesmo juízes nomeados de fora; e ainda alcaides-mores estranhos à autarquia.
As antigas liberdades e franquias, concretizadas na autogestão do território, da
economia, da justiça, da fiscalidade e da milícia, foram a pouco e pouco sendo cerceadas, seja
pela aceitação-imposição dos forais, pela apropriação monárquica das sisas, pela instituição dos
besteiros do conto, pela multiplicação de juizados especiais, pela subtracção de súbditos pagantes
e serventes efectuada por reis e senhores.
Enfim, o poder autárquico resumia-se praticamente a gerir as almotaçarias e as obras
públicas civis, a julgar com alçada absoluta apenas delitos menores, a vigiar a saúde e ordem
públicas, a administrar os bens camarários e, em muitos dos concelhos, a levar ao Parlamento
queixas, críticas, sugestões. E mesmo sobre quase tudo isso pairava o olhar fiscalizador do
almotacé-mor, dos fronteiros gerais e dos corregedores ou ouvidores.
Foi nas cortes que o poder político dos concelhos mais se distinguiu e se afirmou em
termos nacionais.
Nos lugares teve o peso que granjeavam os respectivos grupos oligárquicos - assinalável
em Lisboa, Évora, Porto, Santarém e quase nulo em localidades como Braga. No entanto, no seio
das comunidades urbanas, as câmaras detinham poder e foram disputadas por grupos rivais -
opostos em razão de parentesco e compadrio, de statu socio-profissional ou de residência intra e
extramuros.
De modo que o poder dos concelhos, jurídica, militar e economicamente diminuto, mais
simbólico do que real, foi apreciado nas terras e muito importante no País. Graças às cortes ele
funcionou como vontade dos povos, apoiando e criticando os reis, verberando a nobreza e o clero.
Diga-se, pois, que foi no Parlamento que o poder colectivo dos concelhos se afirmou e produziu
assinalável efeito político e social.
À medida que os monarcas vão interferindo neles, os concelhos, compelidos a
solidarizarem-se entre si, afirmam-se como estrutura política do Estado, fazendo das assembleias
representativas nacionais o seu areópago distintivo. Enfim, o poder político dos concelhos nos
séculos XIV e XV caracterizou-se fundamentalmente por ser força de denúncia e consciência da
Nação. Por isso teve a consideração dos reis e foi olhado com receio pela nobreza e clerezia.
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DEFINIÇÕES
BEETRIA – na alta Idade Média, povoação rural que tinha o direito de escolher
livremente os senhores que mais lhe conviessem para sua defesa e bem-estar. Terminam em
Portugal no final do séc. XVI.
BONI HOMINES – termo utilizado quase sempre a sul do Douro. Não se refere
exclusivamente a poder herdado e é usado para descrever todas as categorias da nobreza. Utiliza-
se até às primeiras décadas do séc.XIII.
CAVALEIRO – é o que vive do serviço militar. Em época tardia indica o que recebeu a
investidura das armas em oposição ao escudeiro, podendo indicar, em especial se for jovem
alguém de alta nobreza. Em geral, aplica-se aos nobres sem fortuna que vivem na dependência de
outrem e o servem no seu séquiro militar.
CLERO - conjunto de pessoas com ordens sacras dedicadas ao culto divino; classe
sacerdotal.
- clérigos regulares
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religiosos que combinam o apostolado sacerdotal com a vida religiosa regular
- clérigos seculares
clérigos que participam da vida civil
CLUNY, ORDEM - é uma ordem religiosa monástica católica que se originou dentro da
Ordem de São Bento , na cidade francesa de Cluny, no chamado movimento monacal.A ordem
nasce em um momento delicado do século X, onde a própria Igreja Católica estava entregue ao
materialismo, e chama novamente os homens à espiritualidade por meio de uma reforma
monástica baseada na Regra de São Bento com algumas modificações de Bento de Aniane.
COGNAÇÃO - relação de parentesco pela linha feminina.
COIMA – prestação devida ao rei.
CONTIA - pensão em dinheiro ou terras atribuída pelo rei aos vassalos por
serviços a presta.
COUTO – terra que não pagava impostos por pertencer a um nobre.
FIDALGO – surge início do no séc. XIII e designa nobres por nascimento. Subsitutui o
termo infanção e filli benenatorum.
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GINETE - cavaleiro armado de lança e adaga.
JOGRAL - indivíduo que, na Idade Média, tocava vários instrumentos e cantava versos
seus ou alheios, sendo pago para tal.
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são os seus representantes como governadores de terras, e que, por isso, têm para com ele uma
dependência vassálica. Mais tarde identificam-se com os nobres poderosos, independetemenete
de qualquer função pública ou relação de vassalagem com oo rei.
TROVADOR - nome dado aos antigos poetas provençais que cultivaram a poesia lírica,
e aos poetas peninsulares desse tempo que os imitaram.
VOZ E COIMA- direito a ser julgado no tribunal real e não no do senhor da terra e
prestação devida ao rei.
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