A Obra em Negro (Colecao Classi - Marguerite Yourcenar
A Obra em Negro (Colecao Classi - Marguerite Yourcenar
A Obra em Negro (Colecao Classi - Marguerite Yourcenar
Direitos de edição da obra em língua portuguesa no Brasil adquiridos pela Editora Nova
Fronteira Participações S.A. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra
pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em
qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação etc., sem a permissão do
detentor do copirraite.
1. Ficção francesa. 2. Livros eletrônicos. I. Junqueira, Ivan. II. Título. III. Série.
A vida errante
Nec certam sedem, nec propriam faciem, nec munus ullum peculiare
tibi dedimus, o Adam, ut quam sedem, quam faciem, quae munera
tute optaveris, ea, pro voto, pro tua sententia, habeas et possideas.
Definita ceteris natura intra praescriptas a nobis leges coercetur. Tu,
nullis angustiis coercitus, pro tuo arbitrio, in cuius manu te posui, tibi
illam praefinies. Medium te mundi posui, ut circumspiceres inde
commodius quicquid est in mundo. Nec te caelestem neque
terrenum, neque mortalem, neque immortalem fecimus, ut tui ipsius
quasi arbitrarius honorariusque plastes et fictor, in quam malueris
tute formam effingas…
Soube-se mais tarde que, antes de tudo, passara ele algum tempo
em Gand, hospedado na casa do Abade Mitrado de São Bavo, que
se ocupava de alquimia. Julgaram depois vê-lo em Paris, na Rua da
Carvoaria, onde os estudantes dissecavam cadáveres em segredo e
adquiriam um como que sinistro aspecto de partidários do
pirronismo e da heresia. Outros, mais dignos de fé, asseguravam
que ele trazia nas mãos os diplomas que lhe conferira a
Universidade de Montpellier, fato que alguns desmentiam,
esclarecendo que ele não fizera senão inscrever-se no célebre
estabelecimento de ensino e que renunciara aos pergaminhos da
doutoração unicamente em favor da prática experimental,
desdenhando assim Galeno e Celso. Acreditou-se reconhecê-lo no
Languedoc na pessoa de um mágico que seduzia mulheres e, pela
mesma época, na Catalunha, sob o hábito de um peregrino
procedente de Montserrat e procurado por causa da morte de um
jovem numa hospedaria frequentada por vagabundos, marinheiros,
cavalariços, agiotas suspeitos de judaísmo e árabes
semiconvertidos. Sabia-se vagamente que ele se interessava por
especulações fisiológicas e anatômicas, e a história do menino
assassinado, que não constituía para os ignorantes ou os crédulos
mais do que uma instância de magia ou de negra libertinagem,
transformou-se entre os lábios dos mais doutos na de uma
intervenção cujo objetivo era transfundir sangue fresco para as veias
de um abastado hebreu enfermo. Mais tarde ainda, pessoas
chegadas de longas viagens e de mais longas mentiras, pretendiam
tê-lo visto na região dos sármatas, [15] entre os berberes e até
mesmo na corte do Grão-Dair. Uma nova fórmula de fogo grego,
utilizado em Argel pelo Paxá Khayr al-Dïn, mais conhecido por
Barba-Roxa, prejudicou seriamente, por volta de 1541, uma
emboscada espanhola; atribuiu-se-lhe a sinistra invenção, que,
segundo se dizia, o enriqueceu. Um monge franciscano, enviado em
missão à Hungria, encontrou em Buda um médico flamengo que se
abstinha de declinar o nome: era ele, sem dúvida. Sabia-se também
de fonte segura que teria sido chamado para uma consulta em
Gênova por Joseph Ha-Cohen, médico particular do Doge, mas que,
em seguida, teria insolentemente recusado o cargo desse judeu
punido com uma sentença de exílio. Como se considera que as
audácias da carne, amiúde com razão, acompanham as da
inteligência, atribuíram-lhe prazeres não menos insólitos do que
seus trabalhos, e sobre ele se divulgaram diversas histórias, que
variavam, bem entendido, segundo o gosto dos que difundiam ou
inventavam tais aventuras. Mas, dentre todas as ousadias, a mais
chocante talvez foi aquela que, dizia-se, o levara a aviltar a nobre
profissão de médico e consagrar-se de preferência à grosseira arte
da cirurgia, que lhe sujava as mãos de sangue e pus. Nada podia
subsistir se um espírito inquieto afrontava assim a boa ordem e os
bons costumes. Após um longo eclipse, acreditou-se revê-lo em
Basileia durante uma epidemia de peste negra: uma sequência de
inesperadas curas granjeara-lhe por aqueles anos a reputação de
taumaturgo. Pouco depois, entretanto, tais rumores de novo
cessaram. Esse homem parecia temer os tímbales da glória.
A venda da casa e dos móveis foi o último bom negócio feito por
Simão. Como sempre, sua indiferença para com o dinheiro
resguardava-lhe a fortuna, evitando-lhe ao mesmo tempo os erros
devidos ao receio de perder e os que resultam da pressa em ganhar
muito. Os exilados voluntários deixaram Amsterdã cercados pelo
respeito de que, apesar de tudo, desfrutam os ricos, ainda que
tomem escandalosamente o partido dos pobres. Um barco
transportou-os a Deventer, de onde seguiram em carroças através
das colinas cobertas de folhas jovens da Guéldria. O grupo se
deteve nas estalagens da Vestfália para degustar um presunto
defumado; a estrada para Münster adquiria para esses moradores
da cidade um aspecto de passeio campestre. Uma criada de nome
Joana, a quem Simão venerava por já haver sido torturada em razão
de sua fé anabatista, acompanhava Hilzonda e a criança.
Bernardo Rottmann recebeu-os às portas de Münster em meio a
um aglomerado de carroças, sacos e barris. A instalação da nova sé
lembrava a caótica atividade de certas vésperas de festa. Enquanto
as duas mulheres faziam descer do veículo um berço e peças de
roupa, Simão escutava as explicações do Grande Restaurador:
Rottmann era calmo; assim como a turba por ele doutrinada que
arrastava pelas ruas hortaliças e madeiras dos campos vizinhos, ele
contava com a ajuda de Deus. Não obstante, Münster precisava de
dinheiro. E mais ainda necessitava do apoio dos pequenos, dos
insatisfeitos, dos indignados dispersos pelo mundo, que não
esperavam libertar-se do jugo de todas as idolatrias senão através
da primeira vitória do novo Cristo. Simão continuava rico, dispondo
de créditos restituíveis em Lübeck, em Elbing e até na Jutlândia ou
na longínqua Noruega; era seu dever recuperar tais somas que
pertenciam apenas ao Senhor. Ao longo das estradas, saberia
transmitir aos corações piedosos a mensagem dos Santos
revoltados. Sua reputação como homem de responsabilidade e de
dinheiro, suas roupas de fino tecido e de couro macio o tornariam
capaz de ser ouvido em lugares aos quais um pregador em farrapos
jamais teria acesso. Esse rico convertido era o melhor emissário do
Conselho dos Pobres.
E Simão percorreu esses itinerários. Era preciso ser rápido para
escapar às ciladas dos príncipes e dos padres. Tendo abraçado
apressadamente a mulher e a filha, partiu imediatamente, levado
pela mula mais descansada que vinham de trazer às portas da Arca.
Alguns dias depois, as pontas de ferro das espadas dos lansquenês
afloraram no horizonte; as tropas do príncipe-bispo acamparam ao
redor da cidade sem tentar o assalto, mas dispostas a permanecer
ali o tempo que fosse necessário para submeter pela fome os
indigentes.
Bernardo Rottmann instalou Hilzonda e a filha na casa do
Burgomestre Knipperdolling, que era em Münster o mais antigo
protetor dos Puros. Esse obeso homem plácido e cordial tratava-a
como irmã. Sob a influência de Jan Matthyjs, que modelava um
novo mundo como outrora amassava seus pães num porão de
Haarlem, todas as coisas da vida se tornavam diferentes, fáceis,
simplificadas. Os frutos da terra pertenciam a todos como o ar e a
luz de Deus; os que dispunham de roupa branca, louças ou móveis,
os levavam para a rua a fim de que fossem partilhados com os
demais. Amando-se com um rigoroso amor, todos se ajudavam, se
criticavam, se vigiavam uns aos outros para advertir-se de seus
pecados; as leis civis estavam abolidas, abolidos os sacramentos; o
açoite punia os blasfemos e os deslizes carnais; as mulheres
ocultas em véus insinuavam-se aqui e ali como grandes anjos
inquietos, e ouviam-se na praça os soluços das confissões públicas.
A pequena cidadela dos Bons, sitiada pelas tropas católicas, vivia
no fervor de Deus. Sermões ao ar livre reanimavam todas as noites
a coragem de cada um; Bockhold, o Santo preferido, era o que mais
atraía a todos porque suavizava a visão das imagens sangrentas do
Apocalipse com seus gracejos de ator. Os enfermos e os primeiros
feridos do cerco, deitados sob as arcadas da praça durante a tépida
noite de verão, misturavam os gemidos às agudas vozes de
mulheres que imploravam a ajuda do Pai. Hilzonda era das mais
fervorosas. De pé, esguia, pontiaguda como uma flama, a mãe de
Zênon denunciava as ignomínias romanas. Medonhas visões
enchiam-lhe os olhos enevoados de lágrimas; derreando-se sobre si
própria, de súbito retorcida como um grande círio muito delgado,
Hilzonda chorava de contrição, ternura e esperança pela morte.
O primeiro luto público foi a morte de Jan Matthyjs, abatido durante
um ataque ensaiado contra o exército do bispo, quando ia à frente
de trinta homens e de um batalhão de anjos. Hans Bockhold, a
cabeça cingida por uma coroa real, montado num cavalo que se
ajaezara com uma manta sacerdotal, foi sem demora proclamado
Profeta do Rei no adro da igreja; ergueu-se um estrado sobre o qual
o novo Davi se pavoneava toda manhã, decidindo sem apelação
assuntos da terra e do céu. Algumas incursões bem-sucedidas,
durante as quais se reviraram as cozinhas do bispo, delas trazendo-
se um espólio de porcos e galinhas, foram festejadas sobre o
estrado ao som de pífanos; Hilzonda ria como todos os outros
quando os auxiliares de cozinha do inimigo, feitos prisioneiros,
viram-se obrigados, antes de serem mortos pela multidão a socos e
pontapés, a preparar as iguarias do repasto.
Pouco a pouco, tinha lugar uma transformação no íntimo das
almas, como aquela que, certas noites, converte insensivelmente
um sonho em pesadelo. O êxtase conferia aos Santos um titubeante
caminhar de bêbados. O novo Cristo-Rei ordenava, jejum após
jejum, que se poupassem os víveres todavia estocados nas adegas
e celeiros da cidade; às vezes, porém, se uma barrica de arenques
marinados exalava excessivo mau cheiro, ou se apareciam nódoas
à superfície dos presuntos, todos então se empanturravam.
Extenuado e enfermo, Bernardo Rottmann guardava o leito e
endossava, sem dizer palavra, as decisões do novo Rei,
contentando-se em pregar ao povo reunido sob sua janela o Amor
que consome toda a escória terrestre e a esperança no Reino de
Deus. Knipperdolling fora solenemente promovido do posto de
burgomestre, já então abolido, ao de carrasco; esse homem
untuoso, de pescoço avermelhado, respirava o bem-estar no
exercício das novas funções, como se, toda a vida, sonhasse em
segredo com a profissão de açougueiro. Matava-se muito; o Rei
eliminava os frouxos e relaxados antes que infectassem os demais;
além disso, cada morte economizava uma ração. Conversava-se
sobre suplícios na casa em que Hilzonda residia, assim como
outrora, em Bruges, se discutia sobre a taxa das lãs.
Por humildade, Hans Bockhold consentia em que o chamassem de
João de Leyde, do nome de sua cidade natal, quando das
assembleias terrestres, embora diante de suas fiéis tomasse outro
nome, inefável, pois sentia dentro de si força e ardor sobre-
humanos. Dezessete esposas lhe testemunhavam o inesgotável
vigor de Deus. O medo ou a vaidade por coisas ínfimas levam os
burgueses a entregarem ao Deus vivo suas mulheres como se lhe
entregassem peças de ouro; indigentes arrancadas aos mais
sórdidos bordéis disputavam a honra de servirem aos prazeres
conjugais do Rei. Certo dia, foi ele à casa de Knipperdolling para
entreter-se com Hilzonda. Ela empalideceu ao contato daquele
homenzinho de olhos vivos, cujas mãos ávidas e curiosas, como as
de um alfaiate, lhe desabotoavam o corpete. Ela se lembrou então
(e não desejava lembrar-se) de que nos tempos de Amsterdã,
quando não passava de um dançarino faminto que se sentava à sua
mesa, esse homem aproveitara para bolinar-lhe as coxas no
momento em que ela se inclinava sobre ele com um prato nas
mãos. Hilzonda cedeu nauseada aos beijos da boca úmida, mas
todo o asco logo se transformou em êxtase; as derradeiras
decências da vida caíram como trapos, ou como a pele morta que
se raspa nos banhos públicos; submersa no hálito quente e insípido,
Hilzonda deixava de existir, e com ela os receios, os escrúpulos, os
dissabores de Hilzonda. Ao seu lado, o Rei se maravilhava do corpo
esguio cuja magreza parecia, dizia ele, fazer sobressair no mais alto
grau as benditas formas da mulher, os longos seios pendentes e o
ventre arqueado. Habituado às vagabundas ou às matronas sem
graça, o dançarino se extasiava com os refinamentos de Hilzonda:
as frágeis mãos pousadas sobre o doce tufo que lhe crescia no
monte de Vênus lembravam ao Rei as de uma dama que
distraidamente as deixasse sobre seu regalo ou seu carlin [17]
frisado. O Rei recapitulava para si próprio: desde a idade de
dezesseis anos, ele já se sabia Deus. Sofrera um primeiro ataque
de epilepsia na loja do alfaiate onde exercia as funções de aprendiz
e de onde o expulsaram; durante as crises e a ejeção da baba, ele
ascendia ao céu. Experimentara outra vez a convulsão que se
confundia com Deus nos bastidores da companhia ambulante na
qual desempenhava o papel de farsante espancado; numa granja,
onde pela primeira vez possuíra uma jovem, compreendeu que
Deus era a carne que freme, os corpos desnudos para os quais a
pobreza não existe mais do que a riqueza, o grande fluxo de vida
que leva em si também a morte e que corre como sangue de anjo.
Ele sustentava tais propósitos mediante um pretensioso jargão de
ator, esmaltado com erros de gramática dignos de um filho de
camponês.
Por diversas noites consecutivas, levou-a consigo a fê-la sentar-se
entre as Mulheres do Cristo à mesa do banquete. A multidão se
comprimia de encontro às mesas até fazê-las estalar; os esfaimados
abocanhavam o pescoço e os pés de galinha que o Rei se dignava
a lançar-lhes, implorando-lhe que os abençoasse. O pulso dos
jovens Profetas que serviam de guardas do corpo do Rei continha a
turba desordenada. Divara, rainha em exercício, egressa de um
local de má fama em Amsterdã, mastigava placidamente, exibindo a
cada bocado que engolia os dentes e a língua; tinha ela um ar de
vaca indolente e sadia. De quando em vez, o Rei erguia as mãos e
punha-se a rezar, e uma palidez teatral embelezava-lhe o rosto
cujas maçãs pareciam pintadas. Ou então soprava no nariz de um
conviva para comunicar-lhe o Espírito Santo. Certa noite, fez
Hilzonda entrar na sala dos fundos, e levantou-lhe as saias para
mostrar aos jovens Profetas a branca nudez da Igreja. Uma rixa
eclodiu entre a nova rainha e Divara, que, no vigor dos vinte anos,
chamou-a de velha. As duas mulheres se engalfinharam sobre as
lajes, arrancando uma à outra punhados de cabelos; o Rei as
pacificou, acalentando-as nessa noite em seu coração.
A vida imóvel
Obscurum per obscurius
Ignotum per ignotius
Divisa alquímica
Ir para o obscuro e o desconhecido
por aquilo que é ainda mais obscuro
e desconhecido.
O retorno a Bruges
Pouco a pouco, tal como um homem que absorve todo dia um certo
alimento finito para através dele ser modificado em sua essência e
mesmo em sua forma, engorda ou emagrece, extrai dessas iguarias
uma força, ou contrai, ao ingeri-las, males que desconhece,
mudanças quase imperceptíveis se operavam em Zênon, fruto dos
novos hábitos que adquirira. Contudo, a diferença entre o ontem e o
hoje se anulava a partir do instante em que o filósofo para ela
volvesse os olhos: exercia a medicina, como sempre o fizera, e
pouco importava se o fazia em benefício de príncipes ou de
indigentes. Sebastião Theus era um nome fictício, e seus direitos ao
de Zênon não eram dos mais tangíveis. Non habet nomen proprium:
[39] ele era um desses homens que não deixam de se assustar até o
fim pelo fato de terem um nome, como alguém, ao mirar-se num
espelho, se assusta por ter um rosto, e por ser precisamente aquele
rosto. Sua existência era clandestina e sujeita a certos
constrangimentos: sempre o fora. Silenciava sobre os pensamentos
que lhe eram mais caros; sabia de longa data que aquele que se
expõe através de suas palavras e pontos de vista não passa de um
tolo, quando é tão fácil deixar que os outros se sirvam de nossa
garganta ou de nossa língua para articular sons. Suas raras crises
verbais poderiam ser comparadas aos acessos lúbricos de um
homem casto. Vivia pouco menos do que enclausurado em seu
Asilo de São Cosme, prisioneiro de uma cidade, e nessa cidade de
um quarteirão, e nesse quarteirão de uma dezena de quartos que se
abriam, de um lado, para a horta e as dependências de um
convento, e, de outro, para uma parede nua. Suas peregrinações,
agora muito menos frequentes, em busca de espécies botânicas,
iam e vinham pelos mesmos campos cultivados e os mesmos
caminhos à beira dos mesmos canais, os mesmos bosquezinhos e
as fímbrias das mesmas dunas, e ele sorria, não sem amargura,
dessas idas e vindas de inseto que circula incompreensivelmente
sobre um palmo de terra. Contudo, o estreitamento do lugar, as
repetições quase mecânicas dos mesmos gestos ocorriam toda vez
que se ajustavam as faculdades em vista do cumprimento de uma
única tarefa delimitada e útil. Sua vida sedentária o acabrunhava
como uma sentença de encarceramento que houvesse por cautela
pronunciado contra si mesmo; a sentença, porém, continuava
revogável: muitas outras vezes, e sob outras céus, ele se reduzira
de forma semelhante — momentaneamente ou, supunha, para
sempre — àquele homem que tem em toda parte ou em parte
alguma direitos de cidadão. Nada fazia crer que ele não reiniciasse
de um dia para outro a existência errante que fora sua sina e sua
escolha. E, todavia, seu destino se agitava; um deslizamento se
operava à sua revelia. Como alguém que nadasse contra a corrente
numa noite escura, faltavam-lhe sinais para calcular exatamente o
grau de deriva.
Ainda há pouco, ao reencontrar seu caminho no emaranhado de
vielas de Bruges, julgou que aquela pausa à beira das grandes
estradas da ambição e do saber lhe proporcionaria algum descanso
após as agitações de trinta e cinco anos. Esperava fruir a inquieta
segurança de um animal que se tranquiliza com a modéstia e a
obscuridade do covil que escolheu para viver. Enganava-se. Aquela
existência imóvel borbulhava no mesmo lugar; o sentimento de uma
atividade quase terrível engrossava como as águas de um rio
subterrâneo. A angústia que o estrangulava era distinta da que
sente o filósofo perseguido por seus livros. O tempo, que imaginara
devesse pesar em suas mãos como um lingote de chumbo, fugia e
se fragmentava como os grãos do mercúrio. As horas, os dias e os
meses não mais obedeciam às divisões dos relógios, como
tampouco ao movimento dos astros. Parecia-lhe por vezes haver
permanecido toda a vida em Bruges, e não raro para ali haver
regressado na véspera. Os lugares também se moviam: as
distâncias estavam abolidas como os dias. Aquele açougueiro,
aquele pregoeiro que anunciava o preço dos víveres, poderiam
muito bem estar em Avignon ou em Vadstena; aquele cavalo
açoitado, ele o vira cair ao solo nas ruas de Andrinopla; [40] aquele
bêbado iniciara em Montpellier suas pragas e vômitos; aquela
criança que chorava nos braços de uma ama nascera em Bolonha
há vinte e cinco anos; aquela missa do domingo, à qual jamais
faltara, ele ouvira-lhe o Introito numa igreja da Cracóvia cinco
invernos antes. Pensava pouco nos incidentes de sua vida
pregressa, já diluídos como sonhos. Às vezes, sem razão aparente,
revia aquela mulher grávida a quem permitira abortar, apesar do
juramento hipocrático, para evitar-lhe uma morte ultrajante quando
voltasse para os braços do marido ciumento, num burgo do
Languedoc, ou a careta de Sua Majestade Sueca ao ingerir uma
poção, ou seu criado Aleí ao ajudar sua mula ao passar pelo vau de
um córrego, entre Ulm e Constança, ou o primo Henrique-
Maximiliano, que talvez já estivesse morto. Um caminho fundo, onde
as poças não secam, mesmo em pleno verão, recordou-lhe um certo
Perrotin que o espreitara sob a chuva, à beira de uma estrada
solitária, no dia seguinte ao de uma discussão cujos motivos não
mais eram claros. Ele reanimava dois corpos abraçados na lama,
uma lâmina caída na terra, e Perrotin esfaqueado por seu próprio
punhal a escorregar-lhe da mão, convertido ele mesmo em lama e
terra. Essa velha história não mais importava, e menos ainda
importaria se aquele cadáver flácido e quente fosse o de um clérigo
de vinte anos de idade. Este Zênon, que caminhava
apressadamente sobre as lajes escorregadias de Bruges, sentia
trespassar-lhe, como lhe trespassava as vestes puídas o vento
vindo do largo, o fluxo de milhares de seres que já repousavam
naquele ponto da esfera, ou que para ali viriam quando da
catástrofe a que chamamos o fim do mundo; esses fantasmas
percorriam absortos o corpo do homem que ainda não os admitia
vivos dentro de si, ou que não mais existiria a partir do instante em
que o estivessem. Os desconhecidos que pouco antes encontrara
na rua, percebidos de relance e logo resgatados pela massa informe
do que já passou, engrossavam sem cessar aquele bando de larvas.
O tempo, o lugar, a substância perdiam os atributos que para nós
constituem suas fronteiras; a forma nada mais era do que a casca
espedaçada da substância, enquanto esta definhava num vazio que
não era seu contrário; o tempo e a eternidade não eram senão uma
mesma coisa, como um veio de água negra que sulca as entranhas
de uma vasta e imutável superfície. Zênon se abismava nessas
visões como um cristão que meditasse sobre Deus.
As ideias também deslizavam. O ato de pensar o interessava
agora mais do que os duvidosos produtos do próprio pensamento.
Examinava-se a si mesmo ao pensar, tal como teria contado com o
dedo sobre o pulso os batimentos da artéria radial, ou auscultado
sob as costelas o vaivém de sua respiração. Durante toda a vida
admirara-se dessa faculdade que têm as ideias de se aglomerarem
friamente como cristais em estranhas e inúteis figuras, de se
desenvolverem como tumores devorando a carne que os concebe,
de assumirem monstruosamente as feições de pessoas humanas,
como essas massas inertes que certas mulheres dão à luz, e que
não são, afinal, senão a matéria que sonha. Um razoável número
dos produtos do espírito, aliás, apenas se constitui de disformes
bezerros de prata. [41] Outras noções, mais próprias e justas,
forjadas como que por um mestre de obras, eram as dos objetos
que nos iludem à distância; não se pode deixar de admirar seus
ângulos e paralelas; não obstante, não eram elas senão as grades
atrás das quais se enclausura o próprio entendimento, e a ferrugem
da falsidade já corroía essas abstratas ferragens. Por instantes,
tremia-se como se no limiar de uma transmutação: um pouco de
ouro parecia faiscar no cadinho do cérebro humano; não se
chegava, contudo, senão a uma equivalência; como nas
experiências desonestas através das quais os alquimistas da corte
se esforçavam por demonstrar a seus clientes principescos que
haviam descoberto alguma coisa, o ouro ao fundo da retorta era
apenas o de um mísero ducado passado de mão em mão e que o
alquimista pusera ali antes da fusão. Os conceitos morriam como os
homens: ao longo de meio século, ele vira muitas gerações de
ideias reverterem ao pó.
Uma metáfora mais fluida nele se insinuava, fruto de suas antigas
travessias marítimas. O filósofo que tentara considerar em sua
totalidade o entendimento humano via por debaixo dele um plasma
submetido a curvas calculáveis, estriado de correntes com as quais
se podem elaborar o mapa, sulcado de profundas rugas pelas
pressões atmosféricas e pela densa inércia das águas. Assim
também ocorria com as imagens assumidas pelo espírito, como as
grandes formas nascidas da água indiferenciada que arremetem ou
se revezam à superfície do abismo; cada conceito afinal se anulava
em seu próprio contrário, como duas vagas que, ao se chocarem,
sucumbem numa única e mesma espuma branca. Zênon olhava
fugir essa onda desordenada, levando como despojos o pouco de
verdades sensíveis de cuja existência não duvidamos. Por vezes,
parecia-lhe entrever sob o fluxo uma substância imóvel, que seria
para as ideias o que as ideias são para as palavras. Mas nada
provava que esse substrato fosse a derradeira camada, nem que
essa fixidez não ocultasse, afinal de contas, um movimento rápido
demais para o intelecto humano. Desde que renunciara a confiar de
viva voz seu pensamento (ou a consigná-lo por escrito) ao balcão
dos livreiros, essa desmama induzira-o a descer mais
profundamente do que nunca em busca de conceitos puros. Agora,
em favor de um exame mais percuciente, renunciara
temporariamente aos próprios conceitos; retinha o espírito, como se
retém a respiração, para melhor ouvir o ruído das rodas que giram
tão depressa que não se percebe estarem elas girando.
A prisão
Non è viltà, ne da viltà procede
S’alcun, per evitar più crudel sorte,
Odia la propria vita e cerca morte…
Júlio de Médicis
Não é vileza, e nem dela resulta,
Se alguém, para fugir à dura sina,
Odeia a vida e face à morte exulta…
Editora responsável
Ana Carla Sousa
Produção editorial
Adriana Torres
André Marinho
Revisão
Raquel Correa
Suelen Lopes
Capa
Victor Burton
Diagramação
Futura
Produção de ebook
S2 Books
[1] Nome dado à região de Milão, a qual, durante os reinados de Luís XII (1498-1515) e de
Francisco I (1515-47), constituiu possessão francesa, sendo depois restituída aos Sforzas.
Ainda durante o século XVI passou ao domínio dos Habsburgos e, doada pelo Imperador
Carlos V a seu filho Filipe (1540), tornou-se possessão espanhola. (N.T.)
[2] Lansquenet, nome dado na França do século XV aos soldados da infantaria alemã.
(N.T.)
[3] Do francês toise, antiga medida de comprimento equivalente a seis pés ou,
aproximadamente, 1,98m. (N.T.)
[4] Santiago de Compostela, cidade da Espanha, um dos maiores centros de romaria de
toda a cristandade. (N.T.)
[5] “Fâmulo”, isto é, criado, servidor, clérigo ou leigo a serviço da residência episcopal.
(N.T.)
[6] “Tolíssima futilidade”. (N.T.)
[7] Momento supremo da síntese alquímica, o mesmo que “mercúrio dos filósofos”, “pedra
filosofal”, “elixir da longa vida”, “crisopeia”, prima materia. (N.T.)
[8] “Este Zênon”. (N.T.)
[9] Marsílio de Pádua (1275-1343), teólogo italiano, Reitor da Universidade de Paris, que se
aliou a Luís IV da Baviera quando do conflito que opôs o imperador ao papa. (N.T.)
[10] Nome que se dá aos habitantes de Tournai, cidade da Bélgica, situada na Província de
Hainaut. (N.T.)
[11] “Ótimo trabalho, meu filho, ótimo trabalho”. (N.T.)
[12] Pratos açucarados servidos antes dos queijos. (N.T.)
[13] Grande taça de metal (prata, cobre, estanho) usada para beber durante a Idade Média.
(N.T.)
[14] Espécie de bolo muito comum em Flandres. (N.T.)
[15] Povo nômade da Sarmácia, originário da Ásia Central e que, dividido em tribos,
alcançou o Danúbio no início da era cristã, misturando-se depois aos godos, hunos e
vândalos. (N.T.)
[16] Espécie de minarete ou almádena de onde, nas cidades medievais, se anunciavam os
principais acontecimentos à população. (N.T.)
[17] Pequeno cão de focinho preto e achatado. (N.T.)
[18] Antiga moeda de cobre francesa, equivalente a um quarto de soldo. (N.T.)
[19] Caribde é o antigo nome dado a um temido torvelinho do Estreito de Messina, Grécia,
a pouca distância do qual se encontra o rochedo de Cila. O piloto que tentava escapar a
um desses perigos podia cair no outro. Daí a expressão: “fugir de Cila para cair em
Caribde”. (N.T.)
[20] Peixe teleósteo da família dos salmonídeos que habita o Lago Léman, em Genebra.
De carne muito delicada, costuma-se prepará-lo à la meunière. (N.T.)
[21] Nome dado a cada um dos membros das tribos nômades do sul do Neguev, dizimadas
pelos israelitas dos tempos de Saul e Davi. (N.T.)
[22] Vinho branco seco, do tipo Riesling, produzido no distrito de mesmo nome, na
Alemanha. (N.T.)
[23] Dança instrumental, viva e ligeira, em ritmo ternário, de origem popular bretã e que
pode ser inserida numa suíte, entre a sarabanda e a giga. (N.T.)
[24] Cão de água, de pelos longos e crespos, empregado sobretudo na caça aos patos
selvagens. (N.T.)
[25] “Não há mais remédio…” (N.T.)
[26] “Doutrina dos Mortos”. (N.T.)
[27] “Sonhos de doente”. (N.T.)
[28] Em hebraico, “esplendor”, ou Sepher Ha Zohar (O Livro dos Esplendores), o principal
livro da Cabala, cuja autoria se atribui a Simão ben Yochai (séc. II). A crítica textual
moderna atribui sua autoria ao cabalista espanhol Moisés de León, que viveu no séc. XII.
(N.T.)
[29] “A mesma coisa em toda a parte”. (N.T.)
[30] Antigo nome do atual bairro de Beyŏglu, em Istambul. (N.T.)
[31] Moeda de ouro que circulava em várias regiões da França. (N.T.)
[32] “O que cose, apenas isto”. (N.T.)
[33] “Sempiterna Tentação”. (N.T.)
[34] “Explorávamos cavernas…”. (N.T.)
[35] “Fala por divertimento” (…) “Este honrado viajante estudou outras coisas além das
celestes; conhece as virtudes dos venenos e, por outro lado, das plantas benéficas que
poderão curar os acessos auriculares de Seu Santíssimo Filho.” (N.T.)
[36] “Por Deus!” (N.T.)
[37] “E esses venenos, será verdade que você os tem em boa quantidade?” (N.T.)
[38] “Eu o fiz pelo senhor.” (N.T.)
[39] “Não tem nome próprio”. (N.T.)
[40] Antigo nome da cidade turca de Edirna. (N.T.)
[41] Em francês, veaux-de-lune. Trata-se, como indica o contexto, de um jogo de palavras
destinado a caracterizar os subprodutos do espírito, em oposição às suas culminâncias,
que seriam os veaux-d’or (“velocinos de ouro”). Advirta-se ainda que, na linguagem
alquímica, o termo francês lune equivale ao elemento químico conhecido por argentum, isto
é, “prata”. (N.T.)
[42] A autora conserva aqui (como convém, aliás, ao contexto histórico da ação ficcional) a
antiga forma da palavra luz, cuja grafia e significado só conseguimos localizar no
Vocabulário Português e Latino de Raphael Bluteau (Coimbra, 1712). Segundo este, trata-
se de “hum certo ossinho, ao qual ossinho os Hebreos chamão luz, & he incorruptivel, nem
cede ao fogo (…); querem que como da semente nasce a planta, do dito ossinho, na
ressurreição dos mortos, o nosso corpo haja de renascer.” (N.T.)
[43] “Em alma comum”. (N.T.)
[44] “Fogo de natureza inferior”. (N.T.)
[45] “Saída racional”. (N.T.)
[46] Botânico grego (sécs. II-I a.C.), cognominado Rizotoma (“cortador de raízes”). Foi
contemporâneo de Mitridates VI Eupátor. (N.T.)
[47] “Um único somos eu e muitos em mim”. (N.T.)
[48] Ou Khosrô, rei arsácida dos partos (c. 110-130). Expulso de Ctesifonte por Trajano,
conseguiu retomar seu reino ao soberano imposto por Roma. (N.T.)
[49] “dissolve e coagula…”. (N.T.)
[50] “Obra negra”. (N.T.)
[51] “Morte filosófica”. (N.T.)
[52] Com maiúscula, como aqui aparece, é o nome que se dava aos fidalgos flamengos
que se uniram em 1566 contra a administração espanhola e católica de Filipe II. (N.T.)
[53] Jano (lat. Ianus) é o nome de um dos antigos deuses de Roma, sempre representado
com dois rostos opostos, como dá aqui a entender o contexto ao qual se refere a autora. É
também conhecido como o deus das portas e, como estas, tinha dupla face. (N.T.)
[54] Trata-se de óbvia referência ao patriota brabanção Conde Hendrik van Brederode
(Bruxelas, 1531 — Recklinghausen, 1568). Reformado, voltou-se ele contra o Cardeal de
Granvelle e apresentou um memorial cuja rejeição deu origem à revolta dos Gueux (1566).
(N.T.)
[55] “Ide, a missa terminou”. Fórmula litúrgica da missa, pronunciada pelo celebrante antes
da bênção final. (N.T.)
[56] Presença visível de Yahvé (Jeová), representada na arte judaica com raios de luz que
descem do céu. (N.T.)
[57] Trata-se de óbvia alusão ao pintor italiano Raffaello Santi ou Sanzio, dito Rafael. A
obra aí evocada é Disputa do Santo Sacramento, pintada nas stanze do Vaticano em 1508,
por encomenda do Papa Júlio II. (N.T.)
[58] “Odeio o homem de um único livro”. (N.T.)
[59] Região do norte da Bélgica, entre o rio Escaut (Escalda) e as regiões do Brabante e de
Hesbaye. (N.T.)
[60] “Alma do Mundo”. (N.T.)
[61] Espelhinho com que os médicos examinam a cavidade bucal dos pacientes. (N.T.)
[62] “Meu senhor” ou, simplesmente, “Senhor”. (N.T.)
[63] “Apagadas as luzes”. (N.T.)
[64] Nome das festas e feiras anuais que se celebram na Holanda, na Bélgica e em
Flandres, com grande júbilo, no dia do orago das paróquias. (N.T.)
[65] “… E os achou a dormir…”. Alusão aos Evangelhos (Mateus, 26, 40; Marcos, 14, 37; e
Lucas, 22, 45. Em Mateus, por exemplo, lê-se: Et venit ad discípulos suos et invenit eos
dormientes prae tristitia.) (N.T.)
[66] “… agora e na hora de nossa morte”. Oração à Virgem (Ave-Maria). (N.T.)
[67] Grande músico, dito também Roland de Latre ou Orlando di Lasso. (N.T.)
[68] Comuna da Bélgica (Flandres Ocidental), sete quilômetros a nordeste de Bruges.
(N.T.)
[69] “Verdura, verdor; vigor, energia, flor da idade”. O princípio alquímico da viriditas se
confunde, em plano genérico, com a própria crença no elixir da longa vida, ou seja, a pedra
filosofal. (N.T.)
[70] Trata-se de uma provável alusão irônica ao atleta grego de mesmo nome, também
chamado Milão ou Mílon de Crotona (entre 540 e 516 a.C. — ?), ao qual se atribuem
extraordinárias proezas físicas, assim como o comando do exército de seu país nas lutas
contra Síberis.
[71] Região do Noroeste da Europa, banhada pelo Mar do Norte e dividida entre os Países
Baixos e a Alemanha. (N.T.)
[72] Neste contexto, “cálculo numérico”. (N.T.)
[73] “Sobre a filosofia oculta ou hermética”. (N.T.)
[74] “Livro de Formação”. Trata-se de uma coletânea de conhecimentos místicos que não
se conservou. Não tem cabimento identificá-la com o livro homônimo que a tradição atribui
a Rabi Akiba e que foi a fonte primitiva da literatura da cabala. Apud A. Cohen, Le Talmude,
trad. de Jacques Marty, Payot, Paris, 1950. (N.T.)
[75] “Agora despede”. Trata-se das palavras com que se inicia o hino de ação de graças
entoado pelo velho Simeão ao tomar nos braços o Menino Jesus, apresentado no templo
por seus pais (Lucas 2, 29-32): Nunc dimittis servum tuum, Domine, secundum verbum
tuum in pace; quid viderunt oculi mei salutare tuum, quod parasti ante faciem omnium
populorum: lumen ad revelationem gentium et gloriam plebis tuae Israel. (N.T.)
[76] “Ó pai excelente”. (N.T.)
[77] “O nosso fogo”. (N.T.)
[78] “A Igreja tem horror a sangue”. (N.T.)
[79] “Não fica bem”. (N.T.)
[80] “Quem não experimenta não pensa”. Alusão evidente ao célebre princípio da
gnosiologia tomista: Nihil est in intellectu quod prius non fuerit in sensu (“Nada está no
intelecto sem haver antes estado nos sentidos”). (N.T.)
[81] “No lugar do cárcere”. (N.T.)
[82] “Um clérigo não pode, ordinariamente, ser torturado por um leigo”. (N.T.)
[83] “Se advierem novas provas”. (N.T.)
[84] “Novamente pequei”. (N.T.)
[85] “Em suprema serenidade”. (N.T.)
[86] “A alma que permanece de pé e não cai”. (N.T.)
[87] “Fugitivo, trânsfuga”. (N.T.)
[88] “Na eternidade”. (N.T.)
[89] “Morte ígnea”. (N.T.)
[90] “A água que permanece”. (N.T.)
[91] “Vamos dormir, meu coração”. (N.T.)
[92] O título da primeira narrativa do volume lançado em 1934 tinha o inconveniente —
como, aliás, as duas outras novelas da coletânea — de apresentá-las como se se tratasse
sistematicamente da imitação da obra de três pintores, o que não era o caso. D’après
Dürer fora escolhido devido à notável Melancholia, na qual uma sombria personagem, que
é sem dúvida o gênio humano, medita amargamente em meio a seus instrumentos de
trabalho; um leitor de espírito literal observou-me, porém, que a história de Zênon era mais
flamenga do que alemã. A observação é muito mais verdadeira hoje do que anteriormente,
pois a segunda e a terceira partes, então inexistentes, transcorrem inteiramente em
Flandres, e os temas boschianos e brueghelianos da desordem e do horror do mundo
inundam a obra, o que não acontecia no antigo esboço.
[93] Não me cabe discutir aqui as razões dessa atitude, admiravelmente analisada por
Léon Blanchet, em Campanella (Paris, 1920), no que concerne a um grande número de
filósofos do século XVI. O livro de J. Huizinga sobre Erasmo, que adota ponto de vista
inteiramente distinto, mostra, num caso particular, os mesmos efeitos e as mesmas causas.
Afirmemos apenas que o Prior dos Franciscanos não se equivocou ao discernir, nas
críticas endereçadas por Zênon a Lutero, um ataque enviesado ao próprio cristianismo.
[94] Para as experimentações médicas e cirúrgicas de Zênon, ver “Les Dissections
Anatomiques de Léonard da Vinci”, de E. Belt, e “Léonard da Vinci, Biologiste”, de F. S.
Bodenheimer, em Leonardo da Vinci et l’expérience scientifique au seizième siècle
(Presses Universitaires de France, 1953). Para o enunciado da teoria de Cesalpino, e em
geral para as pesquisas dos botânicos renascentistas, consultar, entre outras, a primeira
parte da obra de E. Guyénot, Les Sciences de la vie aux dix-septième et dix-huitième
siècles (Paris, 1941).
[95] No que respeita ao “fogo líquido”, durante muito tempo a arma secreta de Bizâncio,
uma vez que contribuiu para a conquista mongol, sua proibição no Ocidente pelo II Concílio
de Latrão (1139) foi parcialmente respeitada porque a nafta, matéria-prima indispensável,
estava fora do alcance dos engenheiros militares ocidentais; a pólvora de canhão relegou-o
depois até nossos dias, incluindo-o entre os “progressos” esquecidos. A invenção de Zênon
teria, portanto, consistido em retomar a velha fórmula bizantina e associá-la a novas
técnicas balísticas. Sobre o assunto, consultar R. J. Forbes, Studies in Ancient Technology
, vol. 1, Leyden, 1964.
[96] Paracelso, Das Busch Meteorum, ed. de Colônia, 1566, citado por B. de Telepnef,
Paracelsus (Saint-Gall, 1945).
[97] O fragmento 99 de Petrônio, tal como o cita Henrique-Maximiliano, está acrescido de
algumas linhas inautênticas que se supõem aqui, para as necessidades em causa,
compostas, não pelo inventivo Nodot no século XVII, mas por algum ardoroso humanista
do Renascimento, talvez pelo próprio Henrique-Maximiliano. In suma serenitate é um nobre
apócrifo.
[98] Para essas complexas questões de procedimento semieclesiástico e semicivil, ver os
imensos processos verbais coligidos por Luigi Amabili em Fra Tommaso Campanella (3
vols., Nápoles, 1882).
[99] Desclé de Brouwer (Bruges) e A. G. Berry (Londres, 1926).
[100] Com relação a esse assunto, assim como para diversos outros incidentes
mencionados no parágrafo anterior, consultar as Mémoires anonymes sur les troubles des
Pays Bas, editadas por J. B. Blaes (2 vols., Heussener, Bruxelas, 1859-1860).
O filho do homem
Mauriac, François
9788520943090
120 páginas