Beleza e Tristeza - Yasunari Kawabata

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 318

Multibrasil Download - www.multibrasil.

net
O AUTOR
YASUNARI KAWABATA nasceu em Osaka, no Japo, em
1899. rfo de pai e me ainda muito pequeno, foi criado pelos
avs. Com a morte deles, continua os estudos em regime de in-
ternato. Alguns crticos acham que esses traumas de infncia
deram subsdios para o senso de perda e de arrependimento
presente em sua literatura.
Em 1920, ingressa na Universidade Imperial de Tquio para
estudar literatura. Em 1921, funda a revista Xin-Xicho
[Pensamento Novo]; posteriormente colabora na criao da
revista Bunguei Xunju [Anais Literrios], que lana o movi-
mento Xinkankakuha [Sensaes literrias], o qual se ope
escola realista e interessava-se pelas vanguardas literrias
europias. Iniciou sua carreira de escritor com narrativas
breves, mais tarde denominadas Tanagohoro no shsetsu
[Contos que cabem na palma da mo], hoje considerado um
gnero tpico de Kawabata. O romance The Izu Dancer, de
1925, foi seu primeiro sucesso.
Em 1931, j casado, Kawabata muda-se para Kamakura, an-
tiga capital dos samurais, ao norte de Tquio. Em 1954, lana
o que talvez seja seu mais famoso romance: The Sound of the
Mountains, que descreve uma srie de crises familiares. Apesar
de ter permanecido neutro durante a Segunda Guerra Mundi-
al, no fm dos anos 1960 engajou-se em manifestaes polticas,
participou de campanhas de candidatos conservadores e con-
denou a Revoluo Cultural chinesa. Alm disso foi presidente
do PEN Club japons, sendo bastante prestativo com es-
critores iniciantes.
Em seus trabalhos iniciais, Kawabata fez experimen-
taes com tcnicas surrealistas, mas seu estilo naturalista
tornou-se cada vez mais impressionista, combinando a
esttica japonesa com narrativas psicolgicas e erotismo.
Tornou-se conhecido no Ocidente com os romances Yuki-
guni [Pas das neves] (1937) e Senbazuru [Nuvens de ps-
saros brancos] (1951).
Ganhou o prmio Nobel de Literatura em 1968 e, em
seu discurso, condenou o suicdio, lembrando vrios ami-
gos escritores que haviam morrido dessa forma. Em 1972,
no entanto, aps longo sofrimento devido sade
precria, Kawabata suicidou-se.
ALBERTO ALEXANDRE MARTINS nasceu em Santos, em
1958. Poeta e artista plstico, ganhou o prmio Jabuti por seu
livro Goeldi - Histria de horizonte, em 1996. Publicou Poemas
(1990), Charbonneau - Ensaio e retrato (1997) e A foresta e o
estrangeiro (2001).
JOS TEIXEIRA COELHO NETTO autor, entre outros
livros, de Niemeyer: um romance e Fliperama sem creme,
Moderno ps moderno, Artaud: posies da carne e Arte e uto-
pia.
Colaborador do suplemento Mais! e da revista Bravo!, co-
ordenador do Observatrio de Polticas Culturais e professor
da Escola de Comunicao e Artes da Universidade de So
Paulo. Foi diretor do Museu de Arte Contempornea da USP.
ROBERTO KAZUO YOKOTA nasceu em Bela Vista do
Paraso (PR), em 1963. Graduado em arquitetura pela USP,
pela qual mestre em flosofa, professor de histria da arte,
do design e da arquitetura na Escola de Artes, Arquitetura,
Design e Moda da Universidade Anhembi Morumbi, assim
como pesquisador de cultura japonesa contempornea.
Yasunari Kawabata
Prmio Nobel de Literatura de 1968
BELEZA E TRISTEZA
traduzido do japons para o ingls por Howard S. Hibbet
traduzido do ingls por Alberto Alexandre Martins
prefcio: Teixeira Coelho
posfcio: Roberto Kazuo Yokota
Copyright(c) 1961, 1962, 1963, 1964, 1965 by The Heirs of
Yasunari Kawabata
Copyright da traduo (c) 1988 by Editora Globo S.A.
Este livro foi traduzido a partir da edio norte-americana
Beauty and Sadness de Howard S. Hibbet e cotejado com a
edio francesa Tristesse et beaut de Amina Okada, ambas
traduzidas diretamente do japons.
Ttulo original: Ustukushisa to kanashimi to
Reviso: Beatriz de Freitas Moreira, Eugnio Vinci de Mor-
aes e Denise Padilha Lotito
Ttulo original: Utsukushisa to kanashimi to "Prmio Nobel
de Literatura de 1968"
* * *
PREFCIO
NA LTIMA EXTREMIDADE "Mas um romance tem de ser
necessariamente uma coisa bela?", pergunta uma personagem
ainda no incio de Beleza e tristeza. A pergunta fca suspensa
no ar, ningum lhe responde. Nem o autor, Kawabata, o faz,
como narrador. A resposta seria: talvez no. Ou talvez sim, um
romance se torna necessariamente uma coisa bela ainda que
feito de coisas "feias". O que um romance no tem necessari-
amente de ser incmodo. Quem sabe apenas os grandes ro-
mances incomodem.
Pode ser inadequado iniciar um prefcio dizendo ao leitor,
prestes a entrar num romance, que este provavelmente o in-
comodar. Se assim for, ser preciso ento lembrar, num mo-
mento em que a cultura est sendo domesticada ou outra vez
domesticada, que o incmodo em uma obra de arte um dos
sinais seguros de que se est diante de uma obra de valor. Seria
o caso de lembrar, numa palavra, que o incmodo uma posit-
ividade da obra de arte. Nummomento emque os flmes de su-
cesso no devem incomodar ningum - nenhuma minoria, nen-
huma religio, nenhum partido, nenhum poltico, nenhuma
comunidade - e quando a literatura, ou "literatura", deve ser a
mais digestiva possvel para atenuar o desconforto de uma sala
de espera de aeroporto ou da prpria e atroz viagem de avio,
ou para amenizar o desassossego de um dramtico corredor de
hospital onde se espera uma notcia sobre a vida ou a morte,
nesse momento a grande literatura no pode esquecer que no
existe para reafrmar as pessoas em seus costumes cotidi-
anos mas, exatamente, para arranc-las de seu torpor con-
formista e faz-las sentir alguma coisa, seno pensar al-
guma coisa. No se trata do incmodo da brutalidade e
da violncia, como costume hoje e que quase no mais
incomoda: isso fcil de conseguir-se. Trata-se do inc-
modo da normalidade aparente, o incmodo do que no
se consegue evitar, embora a causa do incmodo seja a
mais comum possvel, o incmodo da singeleza (ou da
enormidade) que ser humano; o incmodo, mesmo, do
esforo de exercer a delicadeza, o incmodo das coisas be-
las; o incmodo de lidar com o real e o concreto e com o
simblico e o abstrato. Oincmodo, enfm, provocado por
este romance, incmodo que principia sorrateiro at se in-
stalar no leitor com uma intensidade que melhor, agora,
no qualifcar.
Provocar o incmodo como recurso de estilo (estilo
bem a palavra, no tcnica): questo central e um dos
principais atrativos deste romance que recorre ao sim-
blico e ao abstrato para tocar mais fundo no concreto
e no real, como diz que procurava fazer, desde jovem, o
escritor representado nestas pginas. E recurso que con-
siste em aprofundar essa "qualidade de expresso", ar-
mada sobre o concreto e o real, para, inversamente, alcan-
ar o simblico e a abstrao. Aqui se aninha, para o leit-
or atento, um outro fator de interesse de Beleza e tristeza:
a busca do modo contemporneo de expressar alguma
coisa que de contemporneo nada tem: o amor e o amor
difcil ou indevido ou no assumido ou abandonado, e o
cime e a vingana, e a indeciso e o sexo e a perverso ou
aquilo que a normalidade chama de perverso. Kawabata
escreve este romance em meados dos anos 60 do sculo
passado - o vigsimo, na contagem costumeira -, quando
uma das linguagens da arte que ento fazia furor, embora
dividindo a cena com outras, era exatamente a do abstra-
cionismo, em especial a do abstracionismo informal. A
busca de um modo contemporneo de expresso literria,
e de um modo que se proponha na literatura como o equi-
valente daquele abstracionismo, no uma suposio at-
revida ou indevida por parte do crtico, mas tema demasi-
ado explcito nesta histria com duas personagens pintor-
as e na qual h mais de uma referncia a artistas plsti-
cos (modernos, seno contemporneos) largamente con-
hecidos.
verdade que os artistas citados expressamente por
Kawabata - Rodin, Chagall, Odilon Redon - so antes
expoentes de um certo simbolismo (os dois ltimos, at
mesmo de um certo surrealismo) que do abstracionismo,
em especial do abstracionismo informal, tambm cha-
mado de expressionismo abstrato, que agitou aqueles
anos 60. A aproximao entre abstracionismo e simbol-
ismo que faz Kawabata no , no entanto, indevida: h
entre os dois uma vinculao certa, ainda que nem
sempre aparente.
E isso tanto na arte ocidental, qual Kawabata se ref-
ere de modo direto neste livro, quanto na arte japonesa
"clssica" qual ele tambm alude e na qual essas duas
linguagens igualmente se fundem sob mais de um aspec-
to (nesse sentido, so eloqentes as hesitaes das duas
pintoras do romance em relao s telas que produzem,
que ora lhes parecem abstratas, ora no tanto, ou ora
parecem abstratas a uma delas e no tanto outra). No
sempre para ser simblico um desenho ou pintura precisa
mostrar-se abstrato; mas o processo de abstrao a que se
submete uma imagem realista e concreta um caminho
seguro para dar-lhe um signifcado simblico, se a ab-
strao no chegar s ltimas conseqncias. Em que
ponto deter-se para que a obra consiga um efeito ou
outro, a questo - para o artista plstico e para aquele
que opera com as palavras. Kawabata pergunta-se clara-
mente a si mesmo, pela voz da personagem do escritor
e ao lado dela, se ele prprio conseguir ser um escritor
de seu tempo e assim propor uma literatura abstrata at
o ponto em que uma literatura pode ser abstrata. Ele quer
testar uma hiptese, quer experimentar uma linguagem.
(Talvez apenas para descobrir, ao fnal, que aquilo que
fazia antes j era sufcientemente abstrato e sufciente-
mente de seu tempo, embora sendo tambm de outro
tempo.) A crtica costuma falar da infuncia que o real-
ismo e o naturalismo ocidentais exerceram sobre
Kawabata; mas se pelo menos o realismo visvel, em
seus traos centrais, nas pginas de Beleza e tristeza, fca
igualmente visvel que eles ali no surgem na verso
padronizada do ocidente mas, sim, na transcriao pr-
pria no s literatura de Kawabata como literatura
japonesa de sua poca e de pocas anteriores. E nisso
Kawabata, inspirando-se em formas tradicionais de sua
cultura, simultaneamente um homem de seu tempo, do
tempo do mundo mais largo que o envolve e a seu pas de
origem. No conheo sufcientemente a biografa cotidi-
ana de Kawabata para saber se ele era um freqentador
do mundo futuante japons - os bares, cafs literrios, ga-
lerias e sales variados -, feito das discusses artsticas,
estticas e flosfcas e que s vezes recebe o nome curioso
de bomia. Mesmo que no comparecesse aos ambientes
menos ou mais existencialistas onde esses tpicos corri-
am ento soltos poca em que escrevia este livro, in-
egvel que tambm ele, embora na solido eventual de al-
gum estdio como o do escritor descrito no romance, fu-
tuava nesse mundo, no estava imune a ele e quer saber
a resposta a esta pergunta atormentadora: escrevo como
meu tempo me permite e pede, pinto como meu tempo
me permite e pede?, questo to ou mais central para um
criador que aquela outra mais conhecida: escrevo de um
modo meu, pinto de um modo que s meu, tenho uma
voz prpria?
Se Beleza e tristeza tivesse sido escrito hoje, provvel
que a questo a atormentar suas personagens, e o autor
dessas personagens, fosse a que j sabemos: escrevo,
pinto de um modo ps-moderno ou "apenas" moderno?
No poderei ou deverei operar com o instrumental ps-
moderno (o equivalente, digamos, em carga provocadora,
ao abstracionismo dos anos 60 quando comparado com
o fgurativismo moderno e mesmo modernista, como
aquele, na cena brasileira, de Anita Malfati e Tarsila do
Amaral) para desse modo tocar mais fundo nas questes
desta vida que vivo agora? difcil, quase impossvel
imaginar Kawabata indiferente a esse debate, tivesse ele
sobrevivido aos primeiros anos da dcada de 70.
Alimentando-se do Japo arcaico, como se pode ler em
seu discurso (O Japo, a beleza e eu mesmo] de recebi-
mento do prmio Nobel, Kawabata mostrou-se, como tan-
tos outros artistas japoneses, intensamente sensvel s
idias de seu prprio tempo - no s quelas de seu pas
como s do mundo. O grande artista no se encerra nas
fronteiras estreitas e sufocantes de nenhum nacionalismo:
o grande artista no apenas internacional como, e aqui
solta-se a palavra que irrita as mentes que se acreditam
corretas, cosmopolita. Uma cultura nacional estreita de-
mais para a grande arte, e os grandes artistas japoneses
mostram-se acaso mais sensveis a essa verdade do que
muitos outros do lado de c. Isso, talvez porque o Japo,
sendo to tradicional como ou como costuma ser repres-
entado, ao mesmo tempo uma das culturas mais dens-
amente ps-modernas - e isso, paradoxalmente, desde
muito tempo, desde antes do ps-modernismo. Prova-o
o fato de que quando socilogos, antroplogos e flso-
fos necessitam estudar e citar fatos concretos da ps-mod-
ernidade, a referncia escolhida sempre o Japo (uma
das duas referncias, emtodo caso: a outra o Brasil - mas
essa outra histria). Para fcar apenas num exemplo su-
perfcial (no entanto, essa a questo: o ps-modernismo
se desenrola todo superfcie das coisas, o que no quer
dizer que seja, ele, superfcial), pense-se nas fachadas
eltricas de Tquio que deslumbram, desnorteiam, mara-
vilham as duas personagens recm-chegadas do no ent-
anto super-moderno EUA no flme Lost in Translation, de
Sophie Coppola (2003) - assim como deslumbram e des-
norteiam tantas outras personagens da fco e da, como
se diz, vida real, quer dizer, ns, cada um de ns. Um in-
dcio de que Kawabata no deixaria de entrar no debate
e na prtica do ps-modernismo est na recorrncia, em
suas pginas, do tema da beleza, tema claramente ps-
moderno. Por vezes, o ndice dessa presena insistente
aparece j no ttulo de suas obras: Existncia e descoberta
da beleza, Beleza imortal, O Japo, a beleza e eu mesmo
(ensaios), A casa das belas adormecidas (fco), estou
usando o termo beleza quando poderia ter optado por
aquele que talvez mais correto ou mais comumpor aqui,
belo; fao-o em simetria ao ttulo deste romance e para re-
forar o ponto. Outras vezes, a beleza vem manifesta nas
personagens ou nos motores, nos focos das narrativas (be-
las mulheres, mulheres que no so apenas belas circun-
stanciais, belas de passagem, ocasionalmente belas, mas
de fato belas, mulheres que fazem da beleza sua essn-
cia; ou as artes visuais que se colocam a questo do be-
lo; ou a dana, com a questo inevitvel da beleza dos
gestos, dos movimentos e dos corpos), caso de Escuna
da plancie, Histrias da palma da mo e Pas das neves,
obras de fco. E, ainda e at mesmo, em A velha capital,
escrito logo depois da destruio imensa acarretada pela
segunda guerra mundial e que chamou a ateno do rep-
resentante da Academia Sueca destacado para apresentar
Kawabata na premiao do Nobel, em 1968, por se tratar,
disse ele, de um romance que, "mesmo na onda de viol-
enta americanizao do ps-guerra, delicadamente lem-
brava a necessidade de salvar algo da beleza e individu-
alidade do novo tpicos do antigo Japo". que a beleza
uma idia que reconquistou seu direito de presena
nesta ps-modernidade depois de banida de cena por
uma modernidade que se ocupava centralmente de seu
oposto, o Feio (ainda que para transform-lo em categoria
do Belo), esse mesmo Feio visvel ainda hoje nas peas
dessa jovem arte britnica atual dos irmos Chapman (em
suas bonecas de tamanho natural com pnis no lugar do
nariz e nus no lugar da boca) ou de Marc Quinn (e
seu molde em cera da prpria cabea contendo sangue
verdadeiro tirado de seu prprio corpo) e que so bem
mais modernos ou bem menos ps-modernos do que se
crem e do que se acredita. desnecessrio destacar que
a beleza uma questo central da cultura japonesa, como
o prprio Kawabata sublinha em O Japo, a beleza e eu
mesmo - beleza da natureza ( qual pertence a bela mulh-
er, tanto quanto pertence ela ao mundo da cultura), beleza
dos sentimentos, beleza da refexo, beleza da vida e
beleza da morte, beleza de encontrar foras para con-
tinuar vivendo e beleza de encontrar foras para o suic-
dio e no suicdio; beleza da arte e beleza do erotismo e
beleza do sexo, a beleza do pescoo longo e alvo da mul-
her amada e a beleza da navalha que por um instante se
cogita de mergulhar naquela carne sedosa por nenhuma
outra razo alm daquela quase exigida por essa mesma
carne ou pelo ato em si Assim, quase sem dar nen-
hum passo adicional e especfco nessa direo, o Japo
tornou-se ps-moderno como resultado de seu esforo
moderno de aproximao com o ocidente (a partir da res-
taurao Meii, que signifca "governo esclarecido", entre
1868 e 1912) e como resultado da pacincia que mostrou
esperando que o ocidente ele mesmo se transformasse
naquele ps-moderno que convinha ao Japo Desne-
cessrio destacar que o recurso ao abstrato ou ao sim-
blico, seno como instrumento nico para tanto pelo
menos como um instrumento para tanto privilegiado,
abre o caminho para tratar do belo, para fazer do belo
um tema central da literatura e com isso, e mesmo assim,
e apesar disso, tocar nas coisas concretas e realistas
E o que, ainda, pode haver de mais ps-moderno ou,
simplesmente, contemporneo, do que esse desejo de que
a arte (talvez no s a arte) mude e desaparea, se extinga,
desejo expresso pela mais jovem das personagens de
Beleza e tristeza, Keiko, ela mesma uma pintora que, de-
fendendo esse princpio, assusta a artista mais velha,
"mais moderna" ou "menos abstrata", Otoko, num pos-
tulado esttico e existencial que reaparece, em modo ad-
equadamente simblico, mais ao fnal do livro, na histria
do cadver de uma princesa encontrado com uma foto
evanescente sobre uma placa de vidro segura pelas mos
inertes porm retesadas Um desejo que talvez assom-
brou a arte moderna, que a arte moderna quis material-
izar mas no conseguiu e que deixou ento como heran-
a inconclusa para a arte ps-moderna do conceitualismo,
que se nega como objeto, ou para a arte ps-moderna da
performance, de vida curta e precria a caminho da auto-
anulao, no fnal dos anos 60 e incio dos 70 Difcil,
quase impossvel deixar de ver nesse romance da metade
do sculo passado as reverberaes precursoras de uma
questo esttica comum ao Kawabata daquele momento
e cultura japonesa multisecular e que segue ativa agora,
quando visivelmente - e at que enfm, se pode acres-
centar - perderam foras (embora no ainda de todo e no
em toda parte) as estticas modernas e modernistas de in-
spirao sociolgica para as quais a simples meno ao
belo constitua um crime social
O instigante incmodo que o romance provoca, e que
torna impossvel larg-lo antes do fnal, como se fora um
thriller, no deriva diretamente (ou apenas) da presena,
na trama, da questo da beleza. Resulta, antes, do en-
frentamento da beleza, resulta daquilo que o ttulo ap-
resenta quase como complemento necessrio da beleza
- em todo caso, daquilo que est altura da beleza, se
justape a ela e com ela no entra em nenhuma sntese
dialtica, algo que com ela no se compe e que s pode
permanecer a seu lado, em vibrao: a tristeza. Na obra
de Kawabata, isso tem tambm outro nome, que no
seu sinnimo perfeito mas que vai mais longe e mais
fundo que isso: o vazio, o nada, a sensao do nada que o
autor insiste que no se pode confundir com o niilismo do
ocidente. Muito bem, se ele diz que no se deve fazer essa
confuso, no a faremos. Diz ele em O Japo, a beleza e eu
mesmo que os fundamentos espirituais do vazio japons
e do niilismo ocidental so diferentes; portanto, suposta-
mente, em princpio tambm os signifcados e os efeitos
de um e outro so distintos. Seria interessante saber dele,
se ainda fosse possvel fazer-lhe a pergunta, em que me-
dida seu vazio, seu nada, no sendo da mesma natureza
do niilismo comum que Nietzsche identifcava com o
pessimismo e com este rejeitava, se aproximaria ou no
do niilismo reativo que, para o autor alemo, propunha-
se como a nica alternativa para a mente digna. Essa res-
posta no mais ser dada diretamente por Kawabata.
Pistas se espalham pelo seu livro, em todo caso: como
no era incomum num intelectual japons de sua poca, o
existencialismo (o existencialismo que se tornou person-
agem de Sartre e que aparece por exemplo, em roupagem
prxima, em livros como Bom dia, tristeza de Franoise
Sagan, lanado em 1954 e que difcilmente Kawabata
desconheceu) oferecia-se como um princpio de vida
seguido no Japo to ou mais intensamente do que no
ocidente. (Outro modo de dizer a mesma coisa, e quem
sabe um modo melhor, seria propor que a flosofa de
vida "tipicamente japonesa", em especial para os espritos
mais cultivados, desde muito antes e tambm poca de
Kawabata, era exatamente aquilo que o ocidente veio a
chamar de existencialismo, razo pela qual a cultura con-
tempornea japonesa rapidamente o reconheceu e com
ele conversou.) E tal como no livro central do fccionista
Sartre, a nusea toma conta de pelo menos uma person-
agem de Beleza e tristeza. E a beleza, esse o ponto, no
basta para superar a nusea. Digamos, quem sabe de um
modo mais kawabatiano, que a nusea indiferente
beleza, que nenhuma das duas pode cancelar a outra, que
a justaposio de ambas em tenso e em tenso instvel
representa um estado natural das coisas ao redor do qual
instala-se o vazio: digamos que o vazio feito de ambas
as coisas, que no podero nunca eliminar-se reciproca-
mente a no ser de modo passageiro, fctcio. O leitor no
sentir essa nusea, talvez, mas sim sua verso possvel
na leitura, a verso que Kawabata ter procurado: o inc-
modo diante da expectativa dos eventos narrados e a ser-
em narrados e que, em vez de repeli-lo como acontecer-
ia numa obra menor, o prende e arrasta at o fnal: um
incmodo que tem de ser eliminado e que para tanto ex-
ige que se v at seu fm, at sua extremidade, ainda que
se suspeite que ele no ser resolvido como nas obras de
cultura contempornea domesticadas pelas exigncias do
mercado ou pelas armadilhas do pensamento socialmente
correto (ou do pensamento ao social) que hoje se apre-
senta como norte hegemnico das polticas culturais de
qualquer dos cortes ideolgicas. Um incmodo, ento.
Mas um incmodo belo, um incmodo do qual se
pode extrair o belo. Como do vazio.
Outro motivo pelo qual o incmodo de Kawabata no
repele o leitor talvez esteja em um trao adicional de seu
estilo que de novo o liga tanto a suas tradies culturais
nacionais quanto s mais recentes propostas seno deste
pelo menos para este momento atual: a leveza, associada
elegncia (ou traduzida na elegncia). _Da elegncia ele
mesmo fala em seus escritos - por exemplo a propsito do
sacerdote e poeta Ryokan (1758-1831), que recusava a vul-
garidade moderna de sua poca, como diz Kawabata, essa
mesma vulgaridade que hoje faz as delcias do pblico
dos reality shows e dos cinemas ocidentais (e vrios ja-
poneses tambm) de grande bilheteria e dos shows pop-
ularescos de televiso que infestam tanto os canais daqui
como de l, e tanta outra coisa. Da leveza, Kawabata no
fala diretamente: mas que outra coisa pode ser a elegncia
seno leve - e, nestes tempos de agora, insuportavelmente
leve porque incompatvel com a barbrie e a grosseria
transformadas em cdigo global, preguioso e in-
teresseiro, de expresso e comunicao Aqui, outra vez,
mais um indcio da contemporaneidade, para no dizer
ps-modernidade, da literatura de Kawabata, e que
aparece, ntido, quando se convoca ao centro da cena as
Seis lies para o prximo milnio de talo Calvino (1987),
das quais uma era exatamente a lio da leveza.
E com a leveza se compreende um pouco melhor,
quem sabe, a necessidade do recurso abstrao e ao
simbolismo, talvez a personagem central por trs das
personagens-tipo deste romance (quer dizer, por trs das
personagens que superfcie se reconhecem como tais:
as duas pintoras, o escritor, sua mulher, seu flho): recor-
rer elegncia e leveza do abstracionismo e do sim-
bolismo para tocar nas coisas mais concretas e realistas.
Ser estimulante, provavelmente, para apreender melhor
o sentido da proposta de Kawabata, recordar como outros
artistas japoneses do mesmo momento resolveram situ-
aes anlogas. Penso em Nagisa Oshima: como
Kawabata, um criador que no desconheceu o existencial-
ismo sartreano e que como Kawabata quis pr o dedo no
real mais concreto - mas que optou por soluo estilstica
distinta, para no dizer oposta: no polmico flme Imprio
dos Sentidos, 1976 (no Brasil exibido pela primeira vez
durante a ditadura militar mais recente, numa sesso da
Mostra de Cinema de So Paulo que provocou confuso
na rua), o real concreto do sexo mostrado em toda sua
veracidade primeira e direta, sem representao, em toda
sua iconicidade e tambmemtoda sua indicialidade, quer
dizer, os artistas de Oshima fzeramsexo de fato diante da
cmera e o que eles fzeram o que se v na tela. O sexo,
em Beleza e tristeza, est presente, superfcie ou latente,
em quase todo o romance, no modo homossexual e no
modo heterossexual: e um sexo to marcado como o de
Oshima: ali esto tambm, tal como aparecem no flme de
Oshima, a navalha e a tentao da asfxia do parceiro na
busca de intensifcar o prazer desse parceiro ou o prprio
prazer, na condio de ato justaposto ao sexo. Sexo im-
plcito, como descrito na casa do escritor, ou explcito, ou
to explcito quanto possa ser ou deva ser em Kawabata,
em outros instantes mais delicados de um homossexual-
ismo que hoje parece tmido e que no entanto , sob a
aparncia, arrasador, como uma corrente no mar pode ser
arrasadora: arrastadora. Mas sua chave de representao
de todo distinta daquela de Oshima. Os motivos para
tanto sero vrios, porm o que importa destacar essa
diferena de estilo entre dois criadores que foram con-
temporneos um do outro. Uma representao do sexo
melhor que a outra, mais forte que a outra, mais artstica
ou mais esttica ou mais potica ou mais apropriada ou
mais de seu tempo que a outra? No o caso de decidi-lo,
quando se trata de dois autores maiores.
Ainda mais quando geram um mesmo efeito: impedir
que se pare de olhar, que se pare de ler, at o instante
culminante: olhos na ltima extremidade, como diz
Kawabata citando Ryokan. Mesmo assim, seria um tanto
hipcrita (ou mostra de excessivo relativismo) no recon-
hecer uma certa vulgaridade inerente ao cinema (a todo o
cinema, em graus variados por certo) quando comparado
literatura (Claro que essa elegncia e leveza que
permitem ao Nobel - atribudo tambm a Sartre e por
ele recusado - premiar Kawabata, ao passo que Oshima
nunca receberia nem o (de longe) mais vulgar Oscar, nem
qualquer outra distino do gnero, indcio quase seguro
do valor agregado, para usar uma expresso dos tempos,
que tambm Oshima gera.
A questo do prmio Nobel para Kawabata, de resto,
faz parte do contexto cultural em que ele apreciado e
no pode fcar fora de uma refexo sobre sua obra. A
apresentao de Kawabata feita pela instituio do No-
bel, na cerimnia de premiao, faz pensar em motivos
desencontrados ou confusos para a distino outorgada
- no caso dele como em tantos outros que se conhecem.
Ali se disse, como exemplo, que Kawabata era premiado
(tambm, seno essencialmente) por "expressar a essncia
da mente japonesa", por preservar e veicular um valor
cultural nacional, essa qualidade nipnica secular que se
pensa reconhecer em sua obra, demonstrao de que o
Nobel funcionava ento, como agora, mediante o princ-
pio do nacionalismo e das identidades nacionais, um
anacronismo agora como poca. A isso o prprio
Kawabata responde, indireta e adequadamente, pergunt-
ando como poderia ser diferente, j que ele era japons -
o que faz pensar nas razes pelas quais se premia algum
que no pode deixar de ser o que : a distino talvez
devesse vir em decorrncia do exerccio da liberdade, no
da submisso a uma condio (que alis no o caso de
Kawabata, ao contrrio do que pareceu pensar o Nobel).
Depois, o prmio destaca, em Kawabata, aquilo pelo que
a entidade sueca sempre parece procurar: valores morais
e estticos combinados numa arte nica - e interessante
notar que os "valores morais e estticos" aparecem men-
cionados antes do "estilo singular". O problema que os
"valores morais" de Kawabata, pelo menos como apare-
cem neste romance, so no mnimo sui generis, o leitor
ver: no se trata nem da elevao moral, nem da con-
denao moral, nem da tica, nem da moral que o No-
bel procura recompensar na arte (e que no entanto ele
parece encontrar em Kawabata) ao mesmo tempo em que
desconhece que a arte no se preocupa com isso essen-
cialmente: em Kawabata trata-se, de fato, da vida sem a
retido falsifcada, sem a reta retifcada dos programas
virtuais e virtuosos de poltica sociocultural. (E o caso, sob
esse aspecto, torna-se ainda mais complicado quando se
percebe a convergncia de traos identitrios entre a bio-
grafa pessoal de Kawabata e a biografa imaginria da
personagem Keiko que, de modo to afrmativo quanto
amoral, move a parte fnal da narrativa - ela que, como
Kawabata, era flha de pais mortos quando ainda estava
na infncia: aproximao forte demais entre escritor e per-
sonagem para ser ignorada, mesmo reconhecendo-se as
impropriedades da interpretao literria de base bio-
grfca ou, pior, psicanaltica; e o signifcado dessa iden-
tifcao que o escritor deixa explcita entre ele mesmo e
sua personagem, o leitor descobrir chegando ao fnal da
narrativa.) Comea-se a pensar que o Nobel no sabia por
que premiava Kawabata, afnal, alm do fato de ser ele o
primeiro japons (critrio da nacionalidade) a reunir, na
viso da entidade, condies para distino - justifcada,
semdvida, mas no pelas razes dadas, no todas elas. E
h ainda pelo menos mais uma passagemna apresentao
de Kawabata pelo prmio Nobel que ajuda a entender,
embora pela contestao desses mesmos argumentos, a
fascinao do incmodo que Kawabata: aquela onde se
l que "Embora nos sintamos excludos de sua narrativa
pelos efeitos de uma matriz, a ns mais ou menos es-
tranha, feita de arcaicos instintos e idias japoneses, po-
demos nos ver tentados a buscar em Kawabata certas
similitudes de temperamento com os escritores europeus
de nosso tempo". A questo que, como leitores dos anos
60 ou de agora, incio do sculo 21, nos aproximamos dos
textos de Kawabata no apesar de nos sentirmos exclu-
dos de sua matriz arcaica a ns mais ou menos estranha
mas porque nos sentimos em alguma medida excludos
dessa matriz. Na grande arte no se procura pelo mesmo,
procura-se a diferena, o desigual, o desconforme, o ir-
regular, o que escapa do perfl reconhecvel (do perfl de
nossas coisas reconhecveis e do perfl no qual em princ-
pio se enquadraria o prprio autor desses estranhamen-
tos - no caso, o prprio perfl nipnico da literatura de
Kawabata). Quer dizer, gostamos de Kawabata porque
ele nos diz outra coisa alm daquela que conhecemos,
aqui, e outra coisa alm daquilo que se poderia esperar
em princpio de um escritor japons. A apresentao feita
pelo Nobel acerta, em todo caso, quando menciona que
essa matriz nos mais ou menos estranha. A moral de
Kawabata, ou seus "valores pessoais", como diz o prmio,
no nos de fato de todo desconhecida (embora o Nobel
tenha certamente buscado enfatizar aquilo que em
Kawabata restava desconhecido).
Refro-me, quando penso na moral do escritor, a essa
viso das coisas como estando umas ao lado das outras - a
justaposio da beleza tristeza, da vida morte, de Eros
destruio, do amor ao dio, do apego ao cime, numa
palavra: do bem ao mal -, existindo umas ao lado das out-
ras sem que uma queira sobrepor-se outra e anular-se
na outra ou anular a outra. A operao contrria, essa que
procura a sntese entre os opostos (implicando o mtuo
aniquilamento e a mtua superao dos dois opostos na
direo de umterceiro), foi tpica do pensamento europeu
que atingiu o auge em formas como a da dialtica hegel-
iana depois geradora da dialtica marxista e que deixou
em seguida um longo legado de confito entre os contrri-
os cujo preo pagamos ainda hoje, simbolicamente e com
sangue e dor, concretamente.
Ver as coisas emjustaposio, umas ao lado das outras
sem que uma supere ou anule a outra, poderia ser tam-
bm a nossa viso hoje assim como foi tambm a nossa
antes dos exerccios de simplifcao e falsifcao a que o
pensamento dito ocidental se entregou a partir do sculo
18 e que espritos autnomos como o de Kawabata,
colocando-se na extremidade ltima da observao do
humano que a literatura e a arte, repelem sem alarde
mas com frmeza, isso - aceitar o princpio da justa-
posio, rejeitar o esquematismo moral - sem dvida
merece um prmio, se os prmios forem necessrios.
E isso que, afnal, incomoda em Kawabata: a soluo
no resolve, o desenlace no se d, cada um responsvel
por sua escolha ainda que ela parea conformar algo
maior que a prpria pessoa, maior que a capacidade de
opo da prpria pessoaIsso incomodaE umpouco
triste, embora terrivelmente belo
TEIXEIRA COELHO
Fim do prefcio
* * *
SINOS DE FIMDE ANO
Cinco cadeiras giratrias alinhavam-se ao longo da janela no
vago panormico do expresso de Kyoto. Oki Toshio notou
que a ltima cadeira da fla rodopiava mansamente sobre si
mesma ao sabor das oscilaes do trem. Ele no conseguia des-
viar os olhos dessa cadeira. Na fleira onde estava sentado,
as poltronas eram baixas e fxas e, evidentemente, no ro-
dopiavam sobre si mesmas.
Oki estava sozinho no vago panormico. Profundamente
imerso em sua poltrona, ele olhava a cadeira girar sua frente.
Ela no girava sempre na mesma direo nem na mesma ve-
locidade. s vezes ganhava embalo ou fazia-se mais lenta ou
at mesmo parava, para em seguida retomar seu movimento
em sentido contrrio. Ao ver essa cadeira rodopiar assim no
vago onde se encontrava s, Oki experimentou uma sensao
de isolamento, e diversos pensamentos emergiram de seu es-
prito.
Era 29 de dezembro. Oki dirigia-se a Kyoto para ouvir os si-
nos de fm de ano.
H quantos anos Oki adquirira o hbito de ouvir pelo rdio,
na vspera do Ano-Novo, o repicar dos sinos anunciando a
passagem de um ano a outro? Desde quando existia essa trans-
misso? Oki, provavelmente, nunca deixara de escut-la, assim
como os comentrios dos locutores que apresentavam, uns
aps os outros, os sinos clebres dos velhos monastrios es-
palhados pelo pas. Como o ano fndo ia ceder seu lugar ao
Ano-Novo, os apresentadores sentiam-se inclinados, em
seus comentrios, a pronunciar belas frases em tom de-
clamatrio. Com longos intervalos, o velho sino de um
monastrio budista soava, e o eco que deixava atrs de si
fazia sonhar com a alma do velho Japo e com o tempo
que escoa. Aos sinos dos monastrios situados ao norte
do pas sucediam-se os sinos de Kyushu, mas toda en-
trada de Ano-Novo culminava com os sinos de Kyoto. Os
templos em Kyoto eram tantos que s vezes o rdio trans-
mitia os sons simultneos de inmeros sinos.
Ao mesmo tempo, sua mulher e sua flha preparavam
na cozinha diversos pratos para festejar o Ano-Novo,
punham um pouco de ordem na casa, arrumavam seus
quimonos ou arranjavam as fores, e, enquanto elas se en-
tregavam a esses afazeres, Oki sentava-se na sala e ouvia
o rdio. medida que soavam os sinos, seu pensamento
se voltava, no sem emoo, para o ano que fndava. Con-
forme os anos, a emoo que experimentava revelava-se
dolorosa ou violenta. s vezes, a tristeza e o remorso o
atormentavam. Mas o repicar dos sinos ecoava sempre
em seu corao, mesmo quando Oki discernia na voz e
nos votos dos locutores um sentimentalismo que o repug-
nava.
Por isso, a idia de estar em Kyoto num 31 de dezem-
bro para ouvir diretamente de l os sinos dos velhos mon-
astrios o tentava havia muitos anos.
A idia lhe surgira repentinamente no fm deste ano
e ele se pusera a caminho de Kyoto. Secretamente em
seu corao, ele tambm ansiava reencontrar, em Kyoto,
Ueno Otoko, que no via h muitos anos, e ouvir os sinos
em sua companhia. Desde que ela se mudara para Kyoto
e que sua pintura no estilo tradicional lhe trouxera certa
notoriedade, Oki praticamente no mais tivera notcias de
Otoko. No imaginava que ela pudesse ter se casado.
Como agira por impulso e no era de seu tempera-
mento fxar com antecedncia datas para reservar suas
passagens de trem, Oki fora estao de Yokohama e em-
barcara, sem reserva, no vago panormico do expresso
de Kyoto. Devido s festas de fm de ano, era bem pos-
svel que o trem estivesse lotado na linha de Tokaido, mas
Oki conhecia o velho empregado do vago e dizia a si
mesmo que ele lhe encontraria um lugar.
Oki apreciava bastante esse trem que partia de Tquio
e de Yokohama no comeo da tarde, chegava a Kyoto ao
anoitecer e, na volta, saa igualmente de Osaka e Kyoto
no comeo da tarde. Ele o tomava sempre que ia a Kyoto,
e quase todas as moas encarregadas de atender aos pas-
sageiros de segunda classe o conheciam de vista.
Uma vez dentro do trem, ele se surpreendeu ao encon-
trar o vago de segunda classe vazio. Talvez fossem raros
os viajantes num 29 de dezembro e o trem s fcasse real-
mente lotado no dia 30 ou 31.
Enquanto observava a cadeira giratria rodar, a
meada de seus pensamentos levou-o de repente a se ind-
agar sobre o destino. Nesse instante o velho empregado
trouxe-lhe ch.
- Estou sozinho? - perguntou Oki.
- Sim, h apenas cinco ou seis passageiros hoje, senhor.
- Estar lotado no dia de Ano-Novo?
- No, normalmente fca quase vazio. O senhor pre-
tende regressar nesse dia?
- Temo que sim
- No trabalho no dia de Ano-Novo, mas me encarre-
garei para que atendam bem ao senhor.
- Obrigado.
Quando o velho empregado partiu, Oki lanou um ol-
har pelo compartimento e divisou duas valises de couro
branco ao p da ltima poltrona da fla. De um modelo
novo, quadradas e bem pequenas, eram feitas em couro
branco com constelaes de manchas plidas quase
castanhas. Tratava-se de valises de um gnero descon-
hecido no Japo, bagagens de qualidade superior. Havia
tambm, colocada sobre uma cadeira, uma enorme bolsa
de pele de jaguar. Os proprietrios dessa bagagem eram,
sem dvida, norte-americanos e deviam estar no vago-
restaurante.
Do outro lado da janela, as rvores dos bosques fu-
tuavam numa bruma espessa e clida. Acima da bruma,
uma tnue claridade que parecia emanar do cho ilu-
minava longnquas nuvens brancas. Mas, medida que
o trem avanava, o cu tornava-se mais luminoso. Pela
janela, os raios de sol invadiram o compartimento. Como
o trem passava perto de uma montanha coberta de pin-
hos, Oki pde ver que o cho estava juncado de folhinhas
secas pontiagudas. Um bosque de bambus tinha as folhas
todas amarelas. Vagas brilhantes quebravam-se contra
um promontrio sombrio.
Dois casais norte-americanos de meia-idade retorn-
aram do vago-restaurante e, assim que o trem passou
por Numazu e o monte Fuji fcou vista, lanaram-se s
janelas e no pararam de tirar fotografas. Mas quando f-
nalmente o monte Fuji se perflou com nitidez e a plancie
a seus ps tornou-se visvel, eles pareciam cansados de fo-
tografar e viraram as costas para a janela.
O dia de inverno j se aproximava do fm. Oki acom-
panhou com os olhos a curva prateada e baa de um rio;
da, erguendo a cabea, voltou seu olhar em direo ao
pr-do-sol.
Os ltimos raios, brancos e gelados, fnalmente se in-
fltraram nas fendas em forma de arco, rompendo as
nuvens negras e ali fcando bastante tempo antes de desa-
parecer.
No compartimento, as luzes haviam sido acesas e as
cadeiras giratrias, em resposta a um solavanco do trem,
deram, repentinamente, todas de uma vez, meia-volta
sobre si mesmas. Mas somente a ltima cadeira da fla
continuou a girar sem parar.
Quando chegou a Kyoto, Oki se instalou no hotel
Miyako. Imaginando que talvez Otoko viesse v-lo no
hotel, ele pediu um quarto tranqilo. O elevador pareceu
subir seis ou sete andares, mas como o hotel fora con-
strudo em degraus na encosta ngreme das Colinas do
Leste, depois de atravessar um longo corredor Oki se en-
controu novamente numa ala do andar trreo. Tamanho
silncio reinava nos quartos situados de ambos os lados
do corredor que eles pareciam vazios. Mas, pouco depois
das dez horas, Oki ouviu subitamente umestardalhao de
vozes estrangeiras nos quartos vizinhos ao seu. Ele inter-
rogou o camareiro sobre isso.
- So duas famlias que tm, juntas, doze crianas - foi
a resposta.
As crianas no apenas berravam nos quartos como
tambm entravam e saam dos aposentos a toda velocid-
ade, fazendo grande algazarra no corredor. Por que, en-
to, j que o hotel estava praticamente vazio, o quarto que
lhe fora destinado se encontrava rodeado de hspedes to
turbulentos? Oki, porm, esperando que as crianas logo
adormecessem, procurou no se irritar com o fato, mas
como a viagem as havia sem dvida excitado, elas no
se acalmaram to cedo. O barulho de seus passos indo
e vindo pelo corredor era especialmente desagradvel a
seus ouvidos. Ele acabou por se levantar da cama.
O rudo de vozes em lngua estrangeira que provinha
dos quartos vizinhos aumentava ainda mais a sensao
de solido que ele experimentava. A cadeira rodopiando
sobre si mesma no vago panormico veio-lhe ao esprito
e pareceu-lhe ver sua prpria solido girar silen-
ciosamente em seu corao.
Oki viera a Kyoto para ouvir os sinos de fm de ano e
para reencontrar Ueno Otoko, mas ele se perguntou mais
uma vez qual havia sido o verdadeiro motivo. Se estava
seguro de ouvir os sinos, no tinha tanta certeza de poder
encontrar Otoko. Seria possvel que os sinos no fossem
seno um pretexto e que, secretamente, seu nico desejo
fosse reencontrar Otoko? Ele viera a Kyoto para ouvir os
sinos em companhia de Otoko. No acreditava que fosse
uma esperana irrealizvel. Contudo, muitos anos sep-
aravam Oki e Otoko. Alm do mais, embora parecesse
no ter se casado, no era impossvel que Otoko se recus-
asse a rever seu amante de outros tempos e a aceitar um
convite de sua parte.
"No, no uma mulher como ela!", murmurou Oki.
Mas ele ignorava se essa mulher se transformara ou no.
Otoko parecia ter alugado um pavilho prximo a um
monastrio e ali vivia com uma jovem que era sua aluna.
Oki havia visto sua foto numa revista de arte; ela no
morava num apartamento de um ou dois cmodos, mas
numa verdadeira casa com um vasto quarto em estilo
japons que utilizava como estdio. Havia tambm um
jardim encantador.
Na foto, Otoko tinha um pincel em uma das mos e se
debruava sobre um quadro; da testa at a ponta do nariz,
Oki no pde deixar de reconhec-la. Ela no engordara
nem um pouco com o passar dos anos e estava mais es-
belta do que nunca. viso dessa fotografa, e antes ainda
que o passado irrompesse em sua memria, Oki sentiu
o remorso rondando-o ao pensar que privara essa mul-
her das alegrias do matrimnio e da maternidade. Ob-
viamente, de todos os que veriam aquela foto, ele seria o
nico a reagir dessa maneira. Os outros, para quemOtoko
era apenas uma estranha, veriam nela somente o retrato
de uma artista que se estabelecera em Kyoto e se tornara
uma das belezas tpicas dessa cidade.
Como chegara no dia 29 noite, Oki decidiu telefonar
para Otoko ou ir procur-la em sua casa no dia seguinte,
30 de dezembro. Mas, no outro dia pela manh, depois
que o alarido das crianas o havia despertado, uma es-
pcie de timidez o invadiu e ele comeou a se sentir hes-
itante. Instalando-se em sua mesa, ele decidiu enviar-lhe
uma carta. E enquanto se deixava fcar ali, com o olhar
fxo na folha branca do papel de carta fornecido pelo
hotel, Oki imaginou que no tinha nenhuma necessidade
de rever Otoko, que lhe bastaria s ouvir os sinos de fm
de ano e voltar para casa.
Oki despertara cedo com a movimentao nos quartos
vizinhos, mas voltara a dormir assim que as duas famlias
saram. Eram quase onze horas quando ele despertou.
Dava lentamente o n na gravata quando se recordou
das palavras de Otoko: "Eu darei o n para voc. Deixe-
me".
Otoko tinha dezesseis anos e foram as primeiras pa-
lavras que ela pronunciou depois que ele a desvirginara.
Oki ainda no dissera nada. No havia encontrado nada
para dizer. Ele a havia atrado ternamente para seus
braos, havia acariciado seus cabelos, mas no conseguira
pronunciar uma palavra. Ento, Otoko se desvencilhou
de seus braos e comeou a se vestir. Ele se levantou, en-
fou a camisa e, no momento de dar o n na gravata, sur-
preendeu o olhar de Otoko fxo sobre si. Ela no chorava,
mas seus olhos estavam midos e brilhantes. Oki evitou
seu olhar. Alguns minutos antes, enquanto ele a abraava,
Otoko mantivera os olhos abertos at que ele os fechasse
com um beio.
Havia qualquer coisa de infantil e carinhoso em sua
voz quando Otoko lhe props dar o n em sua gravata.
Oki sentiu uma onda de alvio. O oferecimento era in-
teiramente inesperado! Mais que uma maneira de lhe per-
doar, o gesto da moa signifcava antes de tudo um jeito
de fugir de si mesma, e suas mos tinham toques delic-
ados enquanto ajeitava a gravata, embora parecesse ter al-
guma difculdade em dar o n.
- Voc sabe como dar o n? - perguntou Oki.
- Acho que sim. Vi meu pai fazer.
O pai de Otoko havia morrido quando ela tinha doze
anos.
Oki sentou-se numa cadeira, ps Otoko sobre seus
joelhos e ergueu o queixo a fm de lhe facilitar a tarefa.
Otoko curvou-se ligeiramente e, em duas ou trs tent-
ativas, desfez e refez o n que acabara de comear. Em
seguida desceu dos joelhos de Oki, deslizou os dedos por
seu ombro direito e observou a gravata, dizendo-lhe: - A
est, menino. Ser que fcou bom assim?
Oki se levantou e foi at o espelho. O n de sua
gravata estava impecvel. Com a palma da mo, enxugou
de forma enrgica o rosto suado e ligeiramente en-
gordurado.
Depois de haver violado esta criana, no podia
suportar a viso de seu prprio rosto. Viu no espelho a
face da jovem que avanava em sua direo. Estupefato
com seu frescor e sua beleza profunda, Oki virou-se.
Otoko ps a mo sobre seu ombro e, encostando doce-
mente a cabea no seu peito, disse-lhe: - Eu te amo.
Oki achara curioso que uma criana de dezesseis anos
chamasse de "menino" um homem de 31.
Vinte e quatro anos haviam se passado desde ento.
Oki tinha hoje 55 anos e Otoko devia ter quarenta.
Oki saiu do banho e quando ligou o rdio que havia
em seu quarto soube que uma fna camada de gelo re-
cobria Kyoto naquela manh. Mas, segundo as previses
meteorolgicas, o inverno continuaria a ser ameno dur-
ante as festas de fm de ano.
No desjejum, Oki se contentou comcaf e torradas ser-
vidos no quarto, em seguida saiu de carro. Incapaz de
se decidir a ver Otoko, e no sabendo mais o que fazer,
resolveu ir ao monte Arashi. Do carro, viu que certas
montanhas que se estendiam ao norte e ao oeste estavam
banhadas de sol, enquanto outras estavam invadidas pela
sombra e que alguma coisa em suas silhuetas arredonda-
das deixava transparecer o frio dos invernos de Kyoto.
O brilho do sol sobre as montanhas empalidecia, pare-
cendo que a noite cairia em breve. Oki desceu do carro
diante da ponte de Togetsu, mas, em vez de atravess-la,
dirigiu-se ao parque de Kameyama tomando o caminho
que margeia o rio.
Nesse 30 de dezembro, o monte Arashi, que pencas
de turistas costumam invadir da primavera ao outono, es-
tava deserto e tinha um aspecto inteiramente diferente.
Diante de Oki, no mais profundo silncio, erguia-se a
antiga montanha em toda a sua nudez. A seus ps, o
rio formava um espelho lmpido e verde. Ao longe
ressoavam os estrondos de troncos de madeira sendo
transportados em canoas pelo rio e carregados nos camin-
hes. Com certeza era para ver o monte Arashi erguer-se
assim frente ao rio que as pessoas vinham at aqui, mas a
montanha estava, no momento, mergulhada na sombra e
o sol iluminava apenas um de seus fancos que descia em
declive acompanhando o curso do rio.
Oki planejara almoar sozinho num lugar tranqilo
perto da montanha. Em suas visitas anteriores havia con-
hecido dois restaurantes, mas a porta do primeiro, situ-
ado no muito longe da ponte, encontrava-se fechada.
Parecia pouco provvel que, quase no fm do ano, as pess-
oas se dessem ao trabalho de vir a um lugar to desolado.
Oki seguia seu caminho lentamente, perguntando-se
se o pequeno e antigo restaurante, rio acima, estaria tam-
bm fechado. Nada, no entanto, o obrigava a almoar
no monte Arashi. Enquanto subia os gastos degraus de
pedra, uma jovemmandou-o embora, dizendo-lhe que to-
do o pessoal do restaurante partira para Kyoto. Quantos
anos haviam se passado desde que comera, nesse mesmo
restaurante, grandes rodelas de brotos de bambu - era a
estao - cozidas com postas de bonito defumado? En-
quanto descia o caminho ao longo do rio, Oki sur-
preendeu, sobre os degraus de pedra que conduziam do-
cemente ao restaurante vizinho, uma velha mulher var-
rendo folhas secas de falsos pltanos. sua pergunta,
a velha respondeu que acreditava que o restaurante est-
ivesse aberto. Oki parou por um instante ao lado dela e
observou como o lugar era calmo.
- Sim, pode-se ouvir distintamente as pessoas falarem
do outro lado do rio - disse-lhe a velha.
Escondido sob algumas rvores, o restaurante tinha
um velho teto de palha, espesso e mido, e uma entrada
sombria que no possua nenhum aspecto de entrada, di-
ante da qual crescia um bosque de bambus. Os troncos
de quatro ou cinco esplndidos pinheiros vermelhos
erguiam-se do outro lado do teto de palha. Oki foi con-
duzido a uma sala em estilo japons. O restaurante pare-
cia vazio. Diante das portas de vidro corredias viam-se
somente as manchas vermelhas das bagas de aoki
1
. Oki
descobriu uma azalia forindo fora de estao. As bagas
de aoki, os bambus e os pinhos vermelhos obstruam-lhe
a viso, mas, pelas frestas das folhagens, ele podia distin-
guir uma superfcie de gua cor de jade claro, profunda,
lmpida e imvel. Em sua imobilidade, o monte Arashi
era semelhante a essa superfcie de gua.
Oki debruou-se sobre o kotatsu (Pequeno fogareiro
encravado no cho e sobre o qual se coloca uma grelha
recoberta por uma espessa cobertura. (N. do T.), no qual
ardia um fogo de lenha. Ouviu um pssaro cantar. Os
estrondos dos troncos de madeira sendo carregados nos
caminhes ressoavam atravs do vale. Discerniu, vindo
das Montanhas do Oeste, o apito de um trem que entrava
ou saa de umtnel deixando atrs de si umeco taciturno.
Esse eco o fez pensar no grito dbil de um recm-nas-
cido
Com dezessete anos, no oitavo ms de gravidez,
Otoko dera luz uma criana prematura.
O beb era uma menina.
A recm-nascida no pde ser salva e Otoko no pde
ter sua flha a seu lado. Quando a criana morreu, o
mdico dissera a Oki: - Na minha opinio, seria prefervel
esperar at que ela esteja um pouco mais restabelecida
para lhe dar a notcia.
- Sr. Oki - dissera-lhe a me de Otoko -, conte minha
flha, eu lhe imploro. No posso conter as lgrimas
quando penso em tudo o que ela teve de suportar,
quando ainda uma criana.
A raiva e o ressentimento da me de Otoko para com
Oki tinhamsido esquecidos nesse momento. Ela se sentira
assim por Oki ter engravidado Otoko sendo casado e pai
de famlia, mas, como sua flha nica era tudo que lhe
restava, sua raiva acabara por se dissipar. E esta mulh-
er, cuja determinao era ainda maior do que a de Otoko,
parecia ter cedido repentinamente. No tivera, afnal de
contas, de se reconciliar com Oki para assegurar o nasci-
mento secreto da criana e os cuidados que ela deveria re-
ceber aps o parto? Alm disso, a gravidez tornara Otoko
muito nervosa e ela ameaara se matar se alguma vez sua
me falasse mal de Oki.
Assim que Oki voltou cabeceira de sua cama, Otoko
ftou-o com seu olhar claro, afetuoso e sereno de jovem
me, depois, de repente, grossas lgrimas formaram-se no
canto de seus olhos e rolaram sobre o travesseiro.
"Ela compreendeu", pensou Oki.
Otoko chorava, sem conseguir se conter. Oki via as l-
grimas formarem sulcos em suas faces e descerem at as
orelhas. Apressou-se em enxug-las. A jovem agarrou sua
mo e, pela primeira vez, deixou escapar soluos aud-
veis. Suas lgrimas e soluos tinham a violncia de uma
barragem que se rompe.
- Ele est morto? O beb est morto, no verdade?
Ele est morto!
Ela se contorcia de dor, o corpo deformado pelo sofri-
mento. Oki tentou control-la, apertando-a inteiramente
contra si. Ele podia sentir seus diminutos seios de criana,
midos, mas inchados de leite, roando levemente no seu
brao.
A me de Otoko, que devia estar observando do outro
lado da porta, entrou chamando a flha.
Sem lhe dar a menor ateno, Oki continuou a apertar
Otoko em seus braos.
- No consigo respirar. Solte-me - pediu Otoko.
- Voc vai fcar calma? No vai se mexer mais?
- Ficarei calma.
Oki afrouxou o aperto e os ombros de Otoko despen-
caram. Novamente, as lgrimas rolaram de suas plpeb-
ras fechadas.
- Me, vo inciner-lo?
No houve resposta.
- Um beb to pequeno?
Sua me no respondia.
- Voc no disse, me, que quando nasci eu tinha os
cabelos todos pretos?
- Sim, bem pretos.
- Meu beb tambm tem os cabelos pretos? Me, voc
no poderia guardar uma mecha de seus cabelos para
mim?
- No sei, Otoko - disse sua me com embarao, e
acrescentou num mpeto: - Otoko, voc poder ter outra
criana.
Depois, como se se arrependesse de suas palavras,
franziu as sobrancelhas e desviou a cabea.
No tinham, a me de Otoko e o prprio Oki, desejado
secretamente que essa criana no visse a luz do dia?
Otoko tivera seu beb numa clnica srdida dos subrbios
de Tquio. Oki se encheu de remorsos ao pensar que a cri-
ana poderia ter sido salva se tivesse sido cuidada em um
bom hospital. Oki conduzira Otoko clnica sozinho.
Sua me no se resolvera a ir. O mdico era um
homem de rosto avermelhado pelo lcool, beirando a vel-
hice. A jovem enfermeira ftava Oki com os olhos repletos
de reprovao. Otoko vestia um quimono vermelho de
seda ordinria e corte infantil.
Vinte e trs anos mais tarde, sobre o monte Arashi,
Oki reviu nitidamente a imagem de um beb de cabelos
cor de azeviche, nascido prematuramente, que parecia se
esconder entre os bosques invernais ou imergir na su-
perfcie de gua verde. Bateu palmas para chamar a ser-
vente. Compreendera, desde o comeo, que nenhum cli-
ente era esperado hoje e que seria preciso aguardar pa-
cientemente at que sua refeio estivesse pronta. A ser-
vente veio sala de estilo japons e, certamente para
entret-lo, serviu-lhe uma xcara de ch, antes de sentar a
seu lado.
Na sua conversao descosida, a servente contou-lhe
a histria de um homem que fora enfeitiado por um
texugo
2
. Descobriram-no ao amanhecer chafurdando no
rio e gritando: "'Eu vou morrer! Socorro! Eu vou morrer,
ajudem-me!' Ele estava a se debater embaixo da ponte de
Togetsu, num lugar onde o rio pouco profundo e pode-
se subir facilmente pela margem. Quando vieram em seu
auxlio e ele j tinha voltado a si, contou ento que tinha
errado pela montanha como sonmbulo desde as dez hor-
as da noite anterior e que acabara por se encontrar dentro
do rio sem compreender o que havia acontecido."
Da cozinha, uma servente trouxe a refeio. Oki havia
escolhido, como entrada, um prato com tiras de carpa
crua. Bebeu, em pequenos goles, um pouco de saque.
Ao sair, lanou novamente um olhar sobre o grosso
teto de palha. Havia um certo encanto naquele teto
coberto de musgo e quase em runas, mas a dona do res-
taurante explicou-lhe que aquele teto no conseguia se se-
car nunca, pois estava sob as rvores. No fazia sequer
dez anos que tinham trocado toda a palha e j h oito
que ele estava assim. No cu, direita do teto, brilhava
uma meia-lua branca. Eram trs e meia. Como ele des-
cia o caminho ao longo do rio, Oki observou os martins-
pescadores que voavam rasantes gua. Distinguia clara-
mente a cor de sua plumagem.
Perto da ponte de Togetsu, subiu novamente no carro
com a inteno de dirigir-se ao cemitrio de Adashino.
Nesta tarde de inverno, diante de uma infnidade de
pedras sepulcrais e de efgies de Jizo
3
, ele teria como que
um antegosto da precariedade das coisas humanas. Mas
quando viu a penumbra dos bosques de bambu entrada
do monastrio de Gio, ordenou ao motorista que desse
meia-volta. Resolveu parar no Templo dos Musgos antes
de retornar ao hotel. Ojardimdo monastrio estava vazio,
com exceo de um jovem casal que parecia em viagem
de npcias. O musgo estava juncado de folhas de pinhos
secos, e as sombras das rvores que se refetiam no lago
moviam-se medida que ele caminhava. Oki retornou
ao hotel pelas Colinas do Leste, s quais os raios do sol
poente davam uma colorao alaranjada.
Depois de ter tomado um banho para se aquecer,
procurou na lista o nmero do telefone de Ueno Otoko. A
voz de uma jovem - provavelmente a aluna de Otoko - re-
spondeu e passou em seguida para Otoko.
- Al!
- Oki quem est falando.
- Oki, Oki Toshio.
- Sim. J faz tanto tempo - Otoko falava com a
pronncia de Kyoto.
Oki no sabia o que dizer; assim, a fm de evitar frases
embaraosas e para dar a impresso de que agira por im-
pulso, falou com volubilidade, sem sequer escutar sua in-
terlocutora.
- Vim a Kyoto para ouvir aqui os sinos de fm de ano.
- Os sinos?
- Por que no ouvi-los juntos?
Durante um longo momento, Otoko permaneceu sem
responder. Surpresa, ela provavelmente no sabia o que
dizer.
- Al! Al! - chamou Oki.
- Voc veio sozinho?
- Sim. Sim, estou sozinho. Otoko calou-se novamente.
- Vou voltar no dia 1 de janeiro pela manh, depois
de ter ouvido os sinos. Vim porque tive vontade de ouvir
a seu lado os sinos que marcam a passagem de um ano
a outro. J no sou to jovem. H quantos anos no nos
vemos? J faz tanto tempo que jamais teria ousado fazer-
lhe esse convite, se no fosse por essa ocasio.
- Posso passar amanh para apanh-la?
- No - precipitou-se Otoko. - Eu passarei para
apanh-lo. s oito horas Talvez seja um pouco cedo,
marquemos ento por volta das nove, no seu hotel. Eu me
encarrego das reservas.
Oki pensara em jantar tranqilamente com Otoko,
mas s nove horas ela j teria jantado. Pelo menos ela
havia consentido em v-lo. A imagem que guardava dela
em suas longnquas recordaes retornou vida pouco a
pouco.
No dia seguinte, fcou o dia inteiro no hotel, at as
nove horas da noite. Por ser o ltimo dia do ano, o tempo
parecia se escoar com uma lentido ainda maior. Oki
nada tinha para fazer. Apesar de ter alguns amigos em
Kyoto, nesta vspera de Ano-Novo, espera de Otoko,
ele no sentia vontade de ver ningum. Embora no fal-
tassem restaurantes que ofereciam especialidades de
Kyoto, ele se contentou com um jantar simples no hotel.
Assim, o ltimo dia do ano foi repleto de recordaes de
Otoko.
medida que as lembranas afuam ao seu esprito,
elas adquiriam fora e frescor. Fatos ocorridos h vinte
anos possuam mais vida do que eventos ocorridos na
vspera.
Oki estava afastado demais da janela para ver a rua
do hotel, mas podia ver, alm dos tetos da cidade, as Co-
linas do Oeste. Comparada com Tquio, Kyoto era uma
cidadezinha tranqila, na qual at as Colinas do Oeste
pareciam ao alcance da mo. Enquanto mirava na direo
das colinas, uma tnue nuvemtransparente e dourada ad-
quiriu um tom cinza e frio e a noite caiu.
Quais eram suas lembranas? Que passado era esse
que ele recordava to claramente? Quando Otoko viera
se instalar em Kyoto com sua me, Oki havia pensado
que essa partida assinalaria a separao entre ambos, mas
haviam eles realmente se separado? Ele no podia banir
de seu corao o remorso de ter transtornado a existncia
de Otoko, de t-la impedido de se desabrochar enquanto
esposa e me, e se perguntava o que essa jovem mulher
que nunca havia se casado podia estar pensando dele de-
pois de tantos anos. Em suas recordaes, Otoko era a
mulher mais apaixonada que j conhecera. E se a lem-
brana que tinha dela era, ainda hoje, assim to viva,
isso no signifcava que no houvera nenhuma separao
entre eles? Apesar de no ter nascido em Kyoto, as luzes
da cidade ao cair da noite pareceram familiares a Oki.
Talvez Kyoto fosse de alguma maneira o bero de todo ja-
pons, mas para Oki era tambm a cidade onde morava
Otoko. Sem conseguir fcar tranqilo, ele tomou um
banho, trocou inteiramente de roupa e andou de um lado
para outro do quarto, mirando-se algumas vezes no es-
pelho, enquanto esperava Otoko.
Eram nove e vinte quando telefonaram da recepo
anunciando que a srta. Ueno havia chegado.
- Diga a ela para me esperar no saguo, descerei agora
mesmo - respondeu Oki.
Em seguida indagou-se se no teria sido melhor
convid-la a subir.
No avistou Otoko no vasto saguo. Uma jovem se
aproximou e perguntou polidamente: - o sr. Oki?
- Sim.
- A srta. Ueno encarregou-me de vir procur-lo.
- mesmo? - Oki esforou-se por parecer vontade. -
muito gentil de sua parte
Oki esperava que Otoko viesse busc-lo sozinha, mas
ela havia se esquivado. As imagens vivas que povoaram
seu dia pareceram se dissipar subitamente.
Quando entrou no carro que os esperava, Oki per-
maneceu em silncio um momento. Depois perguntou: -
Voc a aluna da srta. Ueno?
- Sou.
- A srta. Ueno e voc moram juntas?
- Sim, h uma empregada que tambm vive conosco.
- Voc de Kyoto?
- No, de Tquio, mas como fquei apaixonada pelas
obras da srta. Ueno, eu a segui at aqui e ela me acolheu
em sua casa.
Oki voltou a cabea e observou a jovem. Desde o mo-
mento em que ela lhe dirigira a palavra no hotel, ele havia
notado o quanto ela era bela. Agora podia ver seu per-
fl encantador, com o pescoo longo e delgado, e o form-
ato gracioso de suas orelhas. A beleza de seus traos no
podia deix-lo indiferente. Alm disso, ela falava pausa-
damente, mas com evidente reserva para com ele. Oki se
perguntava se esta jovem estava a par do que havia se
passado entre ele e Otoko, dessa relao que existira antes
que ela houvesse nascido. De repente perguntou-lhe de
uma maneira um tanto incongruente: - Voc sempre usa
quimono?
- No. Em casa, como ando de um lado para o outro,
uso cala, embora essa seja uma conduta desleixada. Mas
como o Ano-Novo chegar enquanto estivermos ouvindo
os sinos, a srta. Ueno sugeriu-me que vestisse um qui-
mono para a ocasio - disse a jovem, mais vontade.
Ela no apenas viera busc-lo no hotel, como ia, ao
que parece, ouvir os sinos em sua companhia. Oki com-
preendeu nesse momento que Otoko procurava evitar
encontrar-se a ss com ele.
O carro atravessou o parque de Maruyama e dirigiu-
se para o monastrio de Chion. Oki avistou, esperando
por eles num aposento em estilo tradicional de uma velha
e elegante casa de ch, alugado para a noite, Otoko acom-
panhada de duas maiko
4
. De novo, fcou estupefato.
Apenas Otoko estava sentada perto do kotatsu, os joelhos
sob a sua cobertura. As duas maiko sentavam-se frente a
frente, uma de cada lado de um braseiro. A jovem que o
trouxera ajoelhou-se na entrada e disse, inclinando-se: -
Aqui estamos.
Otoko retirou os joelhos de sob a cobertura do kotatsu
para saud-lo.
- J faz tanto tempo - disse ela. - Pensei que voc
gostaria de ouvir os sinos deste monastrio e por isso
que escolhi este lugar. Mas tudo por aqui j est fechado
e no sei se o acolhimento no deixar algo a desejar
- Eu agradeo. Desculpe-me por ter lhe causado tanto
incmodo - foi tudo o que Oki encontrou para dizer.
Otoko fzera-se acompanhar no apenas por sua
aluna, mas tambm por duas jovens gueixas. Ele no po-
dia, portanto, se permitir nenhuma aluso ao seu passado
comum, nem permitir que seu rosto trasse os sentimen-
tos que experimentava. Na vspera, depois de ter rece-
bido seu telefonema, Otoko devia ter se sentido num tal
embarao e to ameaada que lhe viera mente a idia
de convidar duas gueixas. Seria possvel que a desconf-
ana que ela sentia ante a perspectiva de se encontrar a
ss com Oki fosse reveladora de seus sentimentos para
com ele? Oki tivera essa impresso assim que entrara no
aposento e se encontrara face a face com ela. Desde o
primeiro olhar, percebera que representava ainda alguma
coisa para Otoko. Talvez os outros no houvessem not-
ado. Ou talvez a jovem que vivia com Otoko tivesse per-
cebido, bem como as duas gueixas que, apesar de serem
ainda bem jovens, possuam a experincia das casas de
prazer. Nenhuma delas, porm, deixou transparecer coisa
alguma.
Otoko fez sinal a Oki para que se sentasse, em seguida
indicou jovem o seu lugar. Esta fcou de frente para Oki,
do outro lado do kotatsu. Otoko lhe cedera o seu lugar e
colocara-se ao lado, no longe das duas gueixas. Parecia
estar evitando Oki novamente.
- Srta. Sakami, j se apresentou ao sr. Oki? - perguntou
Otoko docemente jovem, depois fez as apresentaes:
- Esta a srta. Sakami, que mora comigo. Embora no
parea, ela um pouco louca, voc sabe!
- Oh! Srta. Ueno!
- Ela pinta quadros abstratos num estilo que lhe
bastante prprio. Sua pintura to apaixonada que
parece obra de um crebro doentio, mas suas telas me
agradame, s vezes, eu a invejo. Enquanto pinta, ela entra
em transe.
Uma moa trouxe saque e aperitivos. As gueixas ser-
viram o saque.
- Eu no podia imaginar que ouviria os sinos do fm
de ano em semelhante companhia - disse Oki.
- Pensei que seria mais agradvel ouvi-los com essas
jovens. triste quando soam os sinos e fcamos um ano
mais velhos - disse Otoko mantendo os olhos baixos. -
Muitas vezes eu me pergunto por que vivi at hoje
Oki lembrou-se de que dois meses depois da morte de
seu beb, Otoko tentara suicdio engolindo uma grande
dose de sonfero. Teria Otoko igualmente se lembrado?
Ele se lanara sua cabeceira assim que a me de Otoko
lhe dera a notcia. De tanto pedir flha que o aban-
donasse, sua me a levara ao suicdio. Ainda assim, ela
chamara Oki, que permaneceu alguns dias na casa delas
para cuidar de Otoko. Minuto a minuto, ele massageava
suas coxas, enriecidas por uma enorme quantidade de in-
jees. A me de Otoko ia e vinha da cozinha trazendo
toalhas quentes. Otoko estava nua sob o quimono. Com
dezessete anos suas coxas eram muito fnas e as injees
haviam-nas feito inchar de maneira grotesca. s vezes,
quando a presso se tornava muito forte, as mos de
Oki escorregavam por entre as coxas de Otoko. Quando
sua me no estava por perto, ele enxugava as secrees
de cor repugnante que dali escorriam. As lgrimas de
piedade e de vergonha que ele derramava acabavam se
mesclando a essa secrees, e ele jurou a si mesmo que
salvaria Otoko no importa o que acontecesse e no a
abandonaria nunca. Os lbios da jovem arroxeavam. Oki
ouviu sua me soluar na cozinha. Ele a encontrou
crispada e cada sobre si mesma em frente ao aquecedor a
gs.
- Ela vai morrer! Ela vai morrer!
-A senhora sempre a amou e fez tudo o que pde por
ela. - A estas palavras, a me de Otoko agarrou-se mo
de Oki.
- O senhor tambm, sr. Oki, o senhor tambm
Oki permaneceu trs dias sem dormir cabeceira de
Otoko, at que ela abriu os olhos.
- Di! Di!
Otoko, os olhos brilhantes, retorcia-se de dor, como se
quisesse dilacerar o rosto e o peito. Seus olhos pareciam
encarar Oki.
- No, no! V embora!
Dois mdicos haviam conjugado seus esforos para
salvar Otoko, mas Oki sabia que fora graas aos cuidados
que fervorosamente lhe dispensara que ela pudera ser
salva.
Certamente, a me de Otoko no pusera a flha a par
dos cuidados que Oki lhe havia dedicado. Mas isso era
algo que ele, Oki, no esqueceria jamais. Por ter tido o
corpo dela em seus braos, Oki revia nitidamente as coxas
de menina a meio caminho entre a vida e a morte, as coxas
que tinha, durante tanto tempo, massageado.
Ele as revia vinte anos mais tarde, enquanto Otoko
estava sentada sob a cobertura do kotatsu, naquele
aposento onde viera ouvir os sinos de fm de ano.
Mal as gueixas ou Oki lhe serviam, Otoko esvaziava o
copo. Ela parecia resistir bem ao lcool. Uma das gueixas
disse que seria necessrio contar uma hora at que os si-
nos tivessem soado as 108 badaladas. As duas gueixas
no estavam com trajes para a noite e usavam simples
quimonos. Tampouco utilizavam presilhas de cabelo em
forma de for, apenas discretos pentes prendiam suas
madeixas. Seus obi (Larga tira de tecido utilizada sobre
o quimono. (N. do T.)), no entanto, eram elegantes e de
boa qualidade. Ambas pareciam muito ligadas a Otoko,
mas Oki no conseguia compreender por que elas tinham
vindo vestidas de modo to ordinrio. Enquanto bebia
ouvindo a conversao frvola das gueixas, entoada na
pronncia de Kyoto, seu corao subitamente se aliviou.
Otoko se mostrara excessivamente astuciosa. Se assim
quisera evitar o encontro a ss com Oki, era talvez para
no trair, neste inesperado reencontro, sua prpria
emoo. O simples fato de estarem sentados juntos ali
criava entre ambos uma espcie de corrente.
O grande sino do monastrio de Chion soou.
Na sala, todos se calaram. O sino, carcomido pelo
tempo, tinha umtimbre quase trincado, mas deixava atrs
de si ecos profundos. Depois de uma pausa, soou nova-
mente.
Parecia estar de fato muito prximo.
- Estamos perto demais. Disseram-me que era umbom
lugar para ouvir o sino do monastrio, mas eu me per-
gunto se no seria prefervel ouvi-lo um pouco mais de
longe, da margem do rio Kamo, por exemplo - disse
Otoko, dirigindo-se a Oki e sua jovem aluna.
Oki empurrou o shoji
5
e viu que o campanrio se en-
contrava logo abaixo do pequeno jardim.
- bem ali. Pode-se ver tocar o sino - disse ele.
- Estamos realmente perto demais - repetiu Otoko.
- No. Aqui est bem. Depois de tantos anos a escutar
os sinos pelo rdio, maravilhoso poder ouvi-los to de
perto - disse Oki. Todavia, faltava encanto ao lugar.
Diante do campanrio, sombras negras tinham se
amontoado. Oki fechou o shoji e voltou para o kotatsu.
Ele j deixara de aguar o ouvido quando escutou um
som que apenas um velho sino oxidado pelo tempo podia
produzir e que ressoava com toda a potncia virtual de
mundos longnquos.
Em seguida, deixaram o monastrio e andaram at o
santurio de Gion para assistir cerimnia tradicional de
fm de ano. No caminho, viram inmeras pessoas voltar-
em para casa balanando os pequenos barbantes com as
extremidades em chamas, que tinham acendido no san-
turio. Um velho costume dizia que esse fogo servia para
acender o forno onde se cozinhavam os zoni
6
, prepara-
dos na ocasio das festas de fm de ano.
* * *
PRIMAVERA PRECOCE
Oki estava de p no alto de uma colina, o olhar perdido no
claro prpura do sol poente. Estivera sentado sua escrivan-
inha trabalhando desde a uma e meia da tarde, e sara assim
que terminara de escrever o captulo de um folhetim que pub-
licava num jornal vespertino. Sua casa fcava nas colinas ao
norte de Kamakura. A oeste, o cu esplendia mais e mais. Seu
tom prpura era to intenso que Oki chegou a se perguntar se
no estava velado pela nvoa ou por leves nuvens. Esse esplen-
dor violceo parecia-lhe inslito. Nele havia vrios tons que
iam do claro ao escuro e se mesclavam como se um largo pincel
tivesse deslizado sobre uma folha de papel-arroz umedecido.
A doura desse cu fazia pressentir a chegada iminente da
primavera. Via-se num canto uma mancha rosada, sem dvida
onde o sol iria se pr.
Oki lembrou-se de que no primeiro dia do ano, no trem que
o trazia de volta de Kyoto, os trilhos brilhavam com um fulgor
rubro refetindo os raios do sol poente.
Via-os brilhar ao longe. De um lado havia o mar. Quando,
numa curva, os trilhos desapareceram na sombra das montan-
has, o claro vermelho extinguiu-se. O trem entrou numa gar-
ganta e, de repente, a noite caiu. Mas o refexo rubro dos trilhos
recordara a Oki os poucos momentos passados em companhia
de Otoko. Apesar de ela ter se feito acompanhar por sua jovem
aluna Sakami Keiko e de at mesmo ter convidado duas
gueixas para evitar encontrar-se a ss com ele, Oki sentia,
mesmo assim, e talvez justamente por causa das pre-
caues com que ela se cercara, que representava ainda
alguma coisa para Otoko. Enquanto caminhavam pela
Quarta Avenida, retornando do santurio de Gion, al-
guns bbados no meio da multido tinham se aproxim-
ado e feito gestos de tocar o alto penteado das gueixas. Tal
comportamento no era comum em Kyoto. Oki caminhou
ao lado das duas mulheres para proteg-las. Otoko e sua
aluna seguiam alguns passos atrs.
No primeiro dia do ano, quando se preparava para
subir no trem e se perguntava, com alguma ansiedade, se
Otoko viria ou no estao, Oki avistou Sakami Keiko.
- Feliz Ano-Novo! A srta. Ueno fazia questo de lhe
acompanhar, mas, como todos os anos, hoje ela tem vis-
itas a fazer e, tarde, algumas pessoas viro nossa casa
para v-la. Assim, eu vim em seu lugar.
- Ah! muito gentil de sua parte - respondeu Oki.
A beleza da jovem atraa os olhares dos raros viajantes
nesse primeiro dia do ano.
- a segunda vez que a incomodo a primeira,
quando voc foi me buscar no hotel, e agora na estao.
- Isso no me incomoda absolutamente.
Keiko usava o mesmo quimono da vspera: de cetim
azul com pssaros pintados entre focos de neve. A cor
das aves alegrava o conjunto, mas, para uma jovem da id-
ade de Keiko, era uma roupa discreta demais e um pouco
triste para um dia de festa.
- Que lindo quimono! Foi pintado pela srta. Ueno? -
perguntou Oki.
- No. Fui eu que pintei, mas o resultado no o
que eu esperava- respondeu Keiko, enrubescendo leve-
mente. O tom um pouco triste do quimono ressaltava
ainda mais o rosto encantador da jovem. Havia tambm
algo de juvenil na combinao das cores, nas vrias
formas dos pssaros e at nos focos de neve, que pare-
ciam danar.
Keiko entregou a Oki, da parte de Otoko, um pacote
de guloseimas e legumes conservados na salmoura, que
eram uma especialidade de Kyoto.
- Assim, o senhor ter o que comer no transcorrer da
viagem.
Durante os poucos minutos que o trem esperou na es-
tao antes de partir, Keiko manteve-se perto da janela.
Vendo assim emoldurado o busto da jovem, Oki pensou
que sua beleza estava realmente no apogeu. Ele no con-
hecera Otoko na for de sua beleza. Ela tinha dezessete
anos quando eles se separaram, e ontem, ao rev-la, j es-
tava com quarenta. Ainda era cedo quando Oki abriu, no
meio da tarde, o pacote de Otoko. Era um sortimento de
comidas tpicas de Ano-Novo, alm de bolinhos de arroz
cuidadosamente modelados e que lhe pareciam traduzir
os sentimentos de uma mulher. Sem dvida alguma, a
prpria Otoko os tinha preparado em inteno daquele
que, h muitos anos, destrura sua juventude. Ao mast-
igar pequenos bocados de arroz, Oki podia sentir em sua
lngua e entre seus dentes o sabor do perdo de Otoko.
No, no era seu perdo, mas antes de tudo seu amor,
um amor ainda bem vivo em seu corao. Tudo o que Oki
sabia de Otoko, desde que ela passara a viver em Kyoto
com sua me, era que tinha conseguido construir, por si
mesma, um nome como pintora. Talvez tivesse tido out-
ras aventuras e vivido outros amores. Oki estava conven-
cido, entretanto, de que o sentimento que ela tinha por ele
era ainda um desesperado amor de adolescente. Depois
de Otoko existiram outras mulheres na vida de Oki. Mas
ele estava certo de nunca ter amado nenhuma delas com
um amor to doloroso.
"Este arroz delicioso", pensou Oki, "talvez venha do
Kansai" Ele comia as pequenas bolas de arroz uma at-
rs da outra. Estavam temperadas e salgadas na medida
exata.
Aos dezessete anos, cerca de dois meses depois de seu
parto prematuro e sua tentativa de suicdio, Otoko foi in-
ternada num hospital psiquitrico e trancada num quarto
com barras de ferro na janela. Oki soube da notcia pela
me de Otoko, mas no foi autorizado a visit-la.
- O senhor poder v-la do corredor, mas eu acharia
melhor que no fosse - disse-lhe a me de Otoko. -
Preferiria que o senhor no visse o estado em que ela se
encontra hoje. E, se o reconhecer, ela fcar perturbada.
- A senhora acha que ela me reconheceria?
- Certamente. Pois no por sua causa que ela se en-
contra nesse estado?
Oki no respondeu.
- Mas parece que ela no perdeu a razo. O mdico me
tranqilizou dizendo que no a prender aqui por muito
tempo. A pobre menina repete sempre este gesto. - Com
estas palavras, a me de Otoko fez o gesto de abraar e
ninar uma criana. - Ela quer seu beb. Pobre menina!
Trs meses mais tarde, Otoko deixou o hospital. Sua
me foi visitar Oki e lhe disse: - Sr. Oki, sei que o senhor
tem mulher e flhos e Otoko certamente no ignorava isso
quando o conheceu. Talvez o senhor pense que eu estou
louca de, na minha idade e conhecendo sua situao, vir
aqui lhe pedir semelhante coisa, mas - A me de Otoko
tremia.
- O senhor no poderia se casar com minha flha? -
Com lgrimas nos olhos, ela mantinha a cabea baixa e os
dentes fortemente cerrados.
- J pensei nisso - respondeu dolorosamente Oki.
Como era de esperar, tinham surgido brigas por causa de
Otoko entre Oki e sua mulher, Fumiko, que, naquela po-
ca, tinha 24 anos. - J sonhei com isso no sei quantas
vezes.
- O senhor livre para no prestar ateno s minhas
palavras e acreditar que, como minha flha, estou com o
esprito perturbado. Nunca mais vou lhe pedir isso.
No estou dizendo para casar agora com Otoko. Ela
pode esperar dois, trs, cinco ou at mesmo sete anos.
Ela uma mulher que sabe esperar. E s tem dezessete
anos
Ouvindo-a, Oki concluiu que fora de sua me que
Otoko herdara o temperamento impetuoso.
No se passara nem um ano quando a me de Otoko
vendeu sua casa de Tquio e partiu para se instalar em
Kyoto com a flha. Otoko entrou num colgio para moas
em Kyoto, onde perdeu um ano. Quando deixou o col-
gio, matriculou-se numa escola de arte.
Mais de vinte anos depois, tinham escutado juntos o
sino do monastrio de Chion, na vspera do Ano-Novo,
e ela mandava lhe entregar uma pequena refeio para
ele comer no trem. Todas as comidas que Otoko fzera em
sua inteno pertenciam mais pura tradio de Kyoto,
pensava Oki, enquanto levava boca os pedaos presos
entre os palitos. No hotel Miyako, no caf-da-manh,
tinham-lhe servido formalmente uma tigela de zoni, mas
o verdadeiro sabor das comidas de Ano-Novo se encon-
trava nesta refeio fria. Em sua casa de Kamakura, os
pratos servidos por ocasio do Ano-Novo no tinham
mais nada de japons e faziam lembrar aquelas fotograf-
as coloridas que se vem nas revistas femininas.
Como havia dito sua aluna, Otoko, sendo pintora,
tinha diversas visitas a fazer, mas assim mesmo poderia
ter reservado dez ou quinze minutos para acompanhar
Oki estao. Foi certamente para evit-lo, como havia
feito naquela noite, no hotel, que ela enviara a jovem
aluna estao. Entretanto, na vspera, na presena de
Keiko e das duas gueixas, Oki no pudera se permitir
nenhuma aluso ao seu passado com Otoko, mas, ainda
assim, havia sentido uma espcie de corrente entre am-
bos.
Acontecia o mesmo agora com esse lanche. Quando o
trem principiou a se pr em movimento, Oki bateu com
a palma da mo na face interna da janela, mas, temendo
que Keiko no o escutasse, abaixou o vidro cerca de dois
centmetros e lhe disse: - Mais uma vez, obrigado por
tudo. Voc deve ir a Tquio de vez em quando, no, j
que sua famlia de l? Venha me visitar, ento. Voc en-
contrar o endereo facilmente, a cidade no grande,
s perguntar o caminho ao sair da estao de Kamakura.
E mande uma ou duas daquelas telas abstratas que a srta.
Ueno chamou de obras de um crebro doentio.
- Fiquei to embaraada quando a srta. Ueno disse
aquilo - Por um segundo uma cintilao estranha luziu
no olhar de Keiko.
- Mas, a srta. Ueno no disse tambm que inveja suas
telas?
A parada do trem fora breve e a conversa entre eles
igualmente curta.
Oki j escrevera alguns romances com toques fantsti-
cos, mas at o momento nunca tinha escrito romances ab-
stratos. Como as palavras de que ele se servia diferiam
daquelas que so empregadas na linguagem cotidiana,
tinha se falado, a respeito de algumas de suas obras, de
abstrao ou simbolismo; j em sua mocidade, Oki, que
no demonstrava nem gosto nem talento para essas
tendncias literrias, tinha se esforado para elimin-las
de seus escritos. Ele amara a poesia simbolista francesa, o
shin-kokin-shu
7
e os haikai
8
e, desde muito jovem, apren-
dera a empregar termos abstratos ou simblicos, a fm
de se expressar de uma maneira concreta e realista. Ele
pensava que, aprofundando esta qualidade de expresso,
acabaria por atingir o simbolismo e a abstrao.
Entretanto, que relao havia, por exemplo, entre a
Otoko de seu romance e a verdadeira Otoko? Era difcil
dizer.
De todos os livros de Oki, aquele que permanecera
mais tempo em voga e que ainda hoje gozava de grande
prestgio do pblico era o romance onde relatava seu
amor por Otoko, quando ela tinha dezesseis ou dezessete
anos. Ao ser publicado, esse livro certamente prejudicou
Otoko, chamando a ateno sobre ela, o que, sem dvida,
constituiu um obstculo para um eventual casamento.
Ainda assim, por que, depois de mais de vinte anos, a
personagem baseada em Otoko continuava a seduzir tan-
tos leitores? Sem dvida seria mais correto dizer que era
Otoko, tal como ela aparecia no romance de Oki, que
seduzia os leitores, e no a adolescente que lhe serviu
de modelo. O romance no era a verdadeira histria de
Otoko, mas simplesmente alguma coisa que Oki havia es-
crito. O fccionista que ele era acrescentara algo de sua
imaginao, e sua fantasia havia, evidentemente, ideal-
izado a personagem. Mas, pondo isso de lado, qual era
a verdadeira Otoko - aquela que Oki havia descrito ou
aquela que a prpria Otoko poderia ter criado ao narrar
ela mesma sua histria?
Ainda assim, a jovem adolescente de seu romance era
realmente Otoko. Sem esse caso de amor o livro no teria
existido. E era, sem dvida, por causa de Otoko que esse
romance continuava a ser lido, vinte anos depois de es-
crito. Se no tivesse conhecido Otoko, Oki jamais teria
vivido esse amor. Ele no saberia dizer se o fato de ter
encontrado a jovem e t-la amado, quando tinha 31 anos,
fora um infortnio ou uma felicidade, mas o certo que
esse encontro lhe proporcionara, como escritor, um incio
promissor.
Oki intitulara seu romance de Uma garota de dezes-
seis anos. Era um ttulo comum e pouco original, mas,
vinte anos atrs, as pessoas se chocavam com a idia de
uma estudante de dezesseis anos possuir um amante, dar
luz um beb prematuro e em seguida perder a razo por
algum tempo. Oki, por sua vez, no via nisso nada de ex-
traordinrio.
Naturalmente, ele no escrevera esse livro com o in-
tuito de escandalizar as pessoas, nem tampouco consid-
erava Otoko uma personagem bizarra. Assim como o
ttulo de seu romance sugeria, o autor fora banal ao
descrever Otoko como uma adolescente pura e apaixon-
ada. Ele tinha tentado retratar seu rosto, sua silhueta, seus
gestos.
Em sntese, ele tinha posto nesse romance toda a ex-
uberncia desse amor de juventude e era sem dvida por
esse motivo que o livro fazia tanto sucesso. Uma histria
que narrava o amor trgico de uma adolescente e de um
homem ainda jovem, porm casado e pai de famlia. Oki
se empenhara em ressaltar apenas a beleza desse amor e
se negara a discutir seu aspecto moral.
Na poca em que se viam secretamente, Otoko uma
vez surpreendeu Oki, ao dizer-lhe: - Voc o tipo de
homem que se pergunta constantemente o que os outros
pensam de voc. Deveria ser um pouco mais corajoso.
- E eu que pensava ser algum sem escrpulos. Agora
no sou mais?
- No, no se trata de ns. Voc deveria ser mais voc
mesmo em todas as coisas.
Oki, sem saber o que responder, refetira sobre si
mesmo. Depois de todos esses anos, ele no pudera es-
quecer as palavras de Otoko. Pensou que, por t-lo
amado, essa criana de dezesseis anos pudera ler assim
seu carter e sua vida. Durante muito tempo, Oki fora in-
dulgente consigo mesmo, mas depois que se separara de
Otoko, todas as vezes que comeava a dar importncia s
opinies dos outros, recordava-se de suas palavras.
Oki deixara de acariciar Otoko. Pensando que fosse
por causa do que tinha dito, ela apoiou a cabea na curva
do seu brao e, sem uma palavra, comeou a morder-lhe
a carne na altura do cotovelo. Mordia cada vez mais forte.
Oki, suportando a dor, no tentou se desvencilhar. Podia
sentir no brao as lgrimas de Otoko.
- Voc est me machucando! - disse afnal, agarrando-
a pelos cabelos e empurrando-a. Em seu brao, os dentes
de Otoko tinham deixado uma marca onde o sangue
aforava.
Otoko lambeu o ferimento.
- Morda-me, voc tambm - ela pediu. Oki observou-
lhe o brao, era realmente o brao de uma criana, e o aca-
riciou desde a ponta dos dedos at o ombro. Beiou-lhe o
ombro e Otoko enrodilhou-se de prazer.
No foi porque Otoko lhe dissera "voc deveria ser
mais voc mesmo em todas as coisas" que Oki escrevera
Uma garota de dezesseis anos, mas se lembrara muito
dessas palavras enquanto escrevia. O romance foi pub-
licado dois anos depois da separao. Otoko estava em
Kyoto com sua me. Ela resolvera deixar Tquio certa-
mente por no ter obtido uma resposta da parte de Oki
quando lhe pediu que se casasse com sua flha. Sem
dvida, no conseguira suportar mais a amargura e a
tristeza que compartilhava com a flha. O que ambas po-
diam ter pensado, ao ler em Kyoto esse romance do qual
Otoko era a herona, esse livro que tornara Oki clebre e
cujos leitores eram cada vez mais numerosos?
Ningum procurou descobrir a identidade daquela
que tinha servido de modelo para o livro. Somente
quando Oki tinha passado dos cinqenta anos e j frmara
sua fama de escritor comearam a vasculhar seu passado
e a identifcar Otoko como a protagonista de Uma garota
de dezesseis anos. A me de Otoko j havia morrido.
A aproximao ganhou ainda mais evidncia por Otoko
ter-se tornado uma artista clebre. Algumas revistas
chegaram a publicar sua foto com a legenda: "A herona
de Uma garota de dezesseis anos". Oki calculou que, se
Otoko se recusara a ser fotografada como a personagem
do livro, ela no podia se furtar a isso enquanto pintora.
Naturalmente, ela no revelara aos jornais seus sentimen-
tos a esse respeito. E, mesmo quando o romance apareceu,
Oki no teve nenhuma notcia de Otoko, nem de sua me.
Como era de esperar, foi em sua prpria casa que
os aborrecimentos comearam. Antes de seu casamento,
a mulher de Oki, Fumiko, trabalhava como datilografa
numa agncia de notcias. Dessa forma, Oki deixava sua
jovem esposa a incumbncia de bater seus manuscritos
mquina. Era uma espcie de jogo entre recm-casad-
os, um tipo de divertimento amoroso, mas no se tratava
apenas disso. _Quando seu trabalho apareceu pela
primeira vez numa revista, Oki fcou admirado com a
diferena de efeito entre o manuscrito redigido pena
e os pequenos caracteres impressos. E quando tinha ad-
quirido maior experincia como escritor, ele adivinhava
naturalmente, diante de seu manuscrito, o efeito que
produziriam os caracteres impressos. No que ele pensas-
se nesse efeito ao escrever; na verdade essa nunca fora
sua preocupao, mas a distncia entre o manuscrito e a
pgina impressa havia desaparecido. Aprendera a escre-
ver em funo da pgina impressa, e no do manuscrito.
At mesmo os trechos que, em sua caligrafa, pareciam
insignifcantes e sem grande interesse adquiriam outra
dimenso quando impressos. No queria isso dizer que
tinha aprendido seu ofcio? Ele costumava dizer aos
jovens escritores: "Mande imprimir alguma coisa que vo-
c tenha escrito. totalmente diferente de ummanuscrito,
voc fcar surpreso com o quanto isso pode lhe ensinar".
Os livros eram publicados em caracteres midos. Mas
Oki tambm experimentara a surpresa inversa: por exem-
plo, ele tinha lido sempre a Lenda de Genji
9
em edies
de bolso com letras midas, mas, quando o leu certa vez
numa edio gravada em madeira, teve um impacto total-
mente diverso. Imaginou o que deveriam ter sentido
aqueles que leram essa obra no Perodo Heian
10
, numa
soberba verso em Kana
11
. Alm disso, a Lenda de Genji,
que hoje um clssico com mil anos de idade, era, no
Perodo Heian, um romance moderno. Os estudos sobre
esse romance poderiam prosseguir vontade, porm nin-
gum mais nos dias de hoje poderia ler a Lenda de Genji
como uma obra moderna. Tambm o prazer que se exper-
imentava ao l-la na antiga edio gravada em madeira
era maior do que aquele que se sentia com a leitura de
uma verso impressa. E a mesma coisa acontecia com
a poesia do Perodo Heian. Oki tentara ler as obras de
Saikaku
12
num fac-smile datado da Era Genroku
13
. No
agira dessa forma por amor ao passado, mas por ne-
cessidade de chegar o mais prximo possvel da realidade
da obra. Porm, seria levar o refnamento ao extremo ler,
hoje em dia, em verso manuscrita, romances que eram
feitos para ser impressos, e no para ser decifrados na fas-
tidiosa grafa de seu autor.
Na ocasio de seu casamento com Fumiko, no havia
mais um fosso entre os manuscritos de Oki e sua verso
impressa, e, sendo Fumiko datilgrafa, Oki confava-lhe
o trabalho de copi-los mquina. Os textos, datilografa-
dos numa mquina de escrever japonesa, aproximavam-
se muito mais de uma pgina impressa do que os
manuscritos.
Oki tambm sabia que os manuscritos dos escritores
ocidentais eram ou diretamente redigidos mquina ou
datilografados depois. Seus romances datilografados,
porm, sem dvida porque no estava acostumado com
isso, pareciam-lhe mais inspidos e mais frios do que em
sua verso manuscrita ou impressa. Assim, via os defeitos
mais claramente e era-lhe mais fcil proceder correo.
Criara assim o hbito de entregar todos os seus manuscri-
tos a Fumiko.
Mas poderia agir da mesma maneira com o
manuscrito de Uma garota de dezesseis anos? Deixando
que sua mulher o copiasse, ele a faria sofrer e a humil-
haria. Seria crueldade de sua parte. Quando conheceu
Otoko, sua mulher tinha 22 anos e seu flho acabara de
nascer. Naturalmente, ela desconfou da relao de seu
marido com Otoko, e, s vezes, noite, perambulava com
seu beb sem destino, ao longo da via frrea. Um dia,
depois de uma ausncia de duas horas, Oki encontrou-a
apoiada contra a velha ameixeira do jardim, recusando-se
a entrar em casa. Ao sair para procur-la, ele ouvira seus
soluos junto ao porto do jardim.
- Que diabo est fazendo a? O beb vai apanhar frio!
Era em meados de maro e a temperatura ainda era baixa.
O beb apanhou frio e foi hospitalizado com incio de
pneumonia. Fumiko permaneceu no hospital para cuidar
dele.
- Seria melhor para voc se ele morresse. Assim seria
mais fcil me deixar - dissera Fumiko a Oki. At mesmo
nessa ocasio, Oki se aproveitara da ausncia de sua mul-
her para rever Otoko. O beb foi salvo.
No ano seguinte, quando Otoko teve seu parto pre-
maturo, Fumiko fcou sabendo ao abrir uma carta da me
dela, vinda do hospital. Que uma jovem de dezessete
anos tivesse um flho no era em si nada de ex-
traordinrio, mas era algo que Fumiko nunca tinha ima-
ginado, nem mesmo em sonho. Enfurecida ao pensar em
tudo o que seu marido fzera quela jovem, Fumiko
cobriu-o de injrias e depois mordeu a lngua at sangrar.
Quando Oki viu o sangue escorrer dos lbios de sua mul-
her, tentou abrir-lhe a boca fora, com a mo. Fumiko
comeou a sufocar, foi tomada por nuseas e acabou per-
dendo as foras. Oki tirou a mo. Seus dedos traziam a
marca dos dentes de sua mulher e pingavam sangue. Ao
v-los, Fumiko acalmou-se um pouco, lavou a mo de
Oki, passou-lhe um remdio e ps uma atadura.
Fumiko tambm sabia que Otoko abandonara Oki e
que fora morar em Kyoto com sua me. Sua partida se
deu antes de Oki terminar Uma garota de dezesseis anos.
Deixar sua mulher copiar o manuscrito seria remexer na
ferida com um punhal, voltando a provocar sua dor e
seu cime. Porm, mantendo-a distncia, Oki tinha a
sensao de lhe esconder alguma coisa. No sabendo o
que fazer, acabou por dar o manuscrito a Fumiko. Ele
queria, antes de mais nada, confessar-lhe tudo. E antes
mesmo de datilograf-lo, Fumiko leu o manuscrito do
comeo ao fm.
- Eu devia ter deixado voc partir. No sei por que no
o fz - disse Fumiko, empalidecendo. - Todos os que lerem
estas pginas tero simpatia por Otoko.
- No queria escrever sobre voc.
- Sei que no posso me comparar sua mulher ideal.
- No isso que eu quis dizer.
- Eu estava louca de cime.
- Otoko partiu. E comvoc que vou viver por muitos,
muitos anos. Alm disso, muito do que pus neste livro
pura fco de escritor e no se parece em nada com a ver-
dadeira Otoko. Por exemplo, eu no tenho idia do que
aconteceu quando ela esteve internada.
- Essa fco nasce de seu amor por ela.
- Eu no poderia ter escrito este livro se no a tivesse
amado - disse Oki de maneira explcita. - Voc vai
datilograf-lo para mim? Me custa muito pedir isso
- Vou. Afnal de contas, uma mquina de escrever
apenas um instrumento. Serei, eu tambm, apenas um in-
strumento.
Mas, apesar do que dissera, Fumiko no podia se com-
portar como uma mquina. Ela parecia errar freqente-
mente, e Oki ouviu muitas vezes o rudo de folhas de pa-
pel sendo rasgadas. Quando ela interrompia o trabalho
para descansar, Oki ouvia-a soluando baixinho. Como a
casa era pequena e a mquina de escrever se encontrava
num canto da exgua ala de quatro tatamis
14
e pegada ao
modesto quarto de seis tatamis que lhe servia de lugar
de trabalho, Oki estava muito consciente da presena de
sua mulher. Era-lhe difcil permanecer sentado tranqila-
mente sua escrivaninha.
Fumiko, no entanto, no fez nenhum comentrio a re-
speito de Uma garota de dezesseis anos. Talvez pensasse
que como instrumento no deveria falar. O romance tinha
cerca de 350 pginas e mesmo para uma datilgrafa ex-
periente eram necessrios muitos dias para terminar de
copi-lo. Fumiko estava plida e tinha o rosto encovado.
Muitas vezes fcava sentada, o olhar perdido no vazio,
de repente recomeava a bater a mquina com fria. Uma
noite, antes do jantar, vomitou um lquido amarelado e
desabou. Oki aproximou-se dela para esfregar-lhe as cos-
tas.
- gua, gua, por favor - pediu Fumiko, sem flego.
As lgrimas brotavam nos cantos de seus olhos avermel-
hados.
- Eu fz mal. No devia ter pedido a voc que copiasse
este romance - disse Oki. - Mas o fato de manter voc
afastada de tudo isso Mesmo se uma tal dissimulao
no fosse sufciente para causar a runa de seu casamento,
ela tambm teria deixado, por muito tempo, uma ferida
aberta.
- Ao contrrio. Apesar de ser uma experincia terrvel,
estou contente que voc tenha me confado - disse Fu-
miko, tentando esboar um plido sorriso. - a primeira
vez que copio um romance to longo e isso me deixa es-
gotada.
- Quanto mais longo o romance, mais longa sua tor-
tura. Talvez seja esse o destino da mulher de um escritor.
- Graas ao seu romance, pude compreender melhor
Otoko. Apesar de todo o mal que isso me fez, senti que
esse encontro foi bom para voc.
- Eu no lhe disse que a idealizei?
- Sei disso. Na realidade no existem jovens como ela.
No entanto, gostaria que voc tivesse falado mais de mim;
mesmo se tivesse me descrito como uma horrvel megera
devorada pelo cime, eu no lhe quereria mal.
Oki custou a responder: - Voc nunca foi assim.
- Voc nunca soube o que havia em meu corao.
- Eu no queria contar todos os nossos segredos.
- mentira. Voc estava to envolvido com sua
pequena Otoko que s queria escrever sobre ela. Talvez
pensasse que, falando de mim, mancharia sua beleza e
aviltaria sua obra. Mas um romance tem de ser necessari-
amente uma coisa bela?
O simples fato de no ter mencionado os cimes ter-
rveis de sua mulher havia provocado uma nova crise de
cime nela. Oki, porm, no se omitira totalmente. Ao
contrrio, seu prprio laconismo no lhe dera assim mais
fora? Fumiko, no entanto, parecia frustrada por ele no
ter entrado em detalhes. Oki no conseguia compreender
o estado de esprito de sua mulher. Teria se sentido negli-
genciada, desdenhada em benefcio de Otoko? Mas, como
o romance estava centrado em sua trgica relao com
a jovem, era inevitvel que o papel atribudo a Fumiko
fosse menor que o de Otoko. Alm disso, Oki tinha acres-
centado muitos detalhes que at o momento escondera de
sua mulher.
Isso era o que o preocupava mais: no entanto, ela pare-
cia magoada principalmente pelo pouco espao dedicado
a ela no livro.
- Eu no queria me servir de seus cimes no meu ro-
mance, isso tudo! - disse Oki.
- porque voc no consegue falar de algum por
quem no sente amor e nem mesmo dio. Enquanto co-
pio seu manuscrito, no paro de me perguntar por que
no o deixei ir embora.
- Vai comear a falar bobagens novamente.
- Estou falando srio. Foi um crime da minha parte
no t-lo deixado partir. Vou sentir remorsos at o fm da
minha vida.
- O que que est dizendo? - disse Oki, agarrando Fu-
miko pelos ombros e sacudindo-a com fora. Ela estreme-
ceu da cabea aos ps e, outra vez, vomitou um lquido
amarelado. Oki a largou.
- No nada. Acho acho que estou grvida.
- Como?
Oki estremeceu. Fumiko cobriu o rosto com as mos e
ps-se a soluar.
- Voc precisa tomar mais cuidado agora. E vai parar
de copiar esse manuscrito.
- No, quero continuar. Deixe-me copiar, por favor.
Est quase acabado e, alm disso, so s meus dedos que
trabalham.
Fumiko recusou-se a ouvir Oki. Pouco depois de ter
terminado de copiar o manuscrito, ela abortou. Mais que
o esforo fsico, parecia ter sido o contedo do manuscrito
que lhe causara um verdadeiro choque. Ela permaneceu
alguns dias na cama. Seus cabelos, que eram macios, es-
pessos e caam em tranas, pareciam mais fnos do que
antes. A pele de seu rosto, sem sangue e sem pintura,
parecia aveludada. Apenas os lbios estavam levemente
cobertos de batom. Por ser to jovem, Fumiko se recuper-
ou bastante bem de seu aborto.
Oki guardou o texto datilografado num arquivo. No
o rasgou, no o queimou, mas tambm no o releu. Con-
siderando o parto prematuro de Otoko e o aborto de Fu-
miko, no havia nestas pginas alguma coisa de funesto?
Durante algum tempo Oki e Fumiko evitaram tocar no as-
sunto. Fumiko foi a primeira a traze-lo tona.
- Por que no o publica? Tem medo de me magoar?
Esse tipo de coisa inevitvel quando uma mulher cas-
ada com um escritor, e se voc tem medo de ferir algum,
esse algum Otoko, ao que parece.
Durante a convalescena, a pele de Fumiko tinha re-
cuperado a beleza e o brilho. Era esse o milagre da ju-
ventude? O desejo que sentia por seu marido tambm se
aguara.
Na poca em que foi publicado Uma garota de dezes-
seis anos, Fumiko se encontrava novamente grvida.
O romance foi elogiado pela crtica. Alm do mais, foi
apreciado por um grande nmero de leitores. A dor e o
cime no tinham abandonado Fumiko, mas, sem deixar
que gestos ou palavras trassem sua amargura, ela se ale-
grava com o sucesso do marido. Foi esse romance - con-
siderado a obra da juventude mais representativa de Oki
- que alcanou a maior vendagem entre todos os seus liv-
ros. Esse sucesso permitiu a Oki e sua famlia melhorar
de vida, melhora que se traduziu para Fumiko em roupas
e jias, alm de dinheiro para cobrir as despesas escol-
ares de seu flho e sua flha. Teria Fumiko se esquecido
de que tudo aquilo se devia a uma jovem adolescente e
relao que seu marido tivera com ela? Consideraria esse
dinheiro uma renda normal de seu marido? Ser que, pelo
menos a seus olhos, a aventura entre Oki e Otoko no se
revestia mais de um carter trgico?
Oki no tinha nada contra esse estado de coisas, mas
se surpreendia s vezes a pensar que Otoko, que servira
de modelo para sua personagem, nada recebera em troca.
Nem ela nem sua me expressaram uma palavra de
reprovao sequer a seu respeito. Diversamente de um
pintor ou escultor realista, Oki, enquanto escritor, podia
penetrar nos pensamentos de Otoko, modelar seus traos
como quisesse, dar livre curso sua imaginao e fantas-
iar e idealizar a jovem, sem que, no entanto, ela deixasse
de ser ela mesma. Oki tinha permitido que seu amor se
expressasse com todo o seu mpeto e toda a sua juven-
tude, e no se preocupara um instante com a inconven-
incia que isso representaria para Otoko, nem com as di-
fculdades que poderia trazer para uma jovem solteira.
Fora isso, sem dvida, que seduzira seus leitores, mas
podia tambm se tornar um obstculo ao casamento de
Otoko. O romance lhe trouxera fama e dinheiro. Fumiko
parecia ter esquecido seus cimes, e a ferida talvez es-
tivesse cicatrizada. No havia tambm uma diferena
entre a criana prematura de Otoko e o aborto de Fu-
miko? Fumiko continuava a ser sua mulher. Depois de
uma convalescena normal, sem complicaes, ela dera
luz uma menina. Os meses e os anos passavam, e a nica
pessoa que no mudava era a jovem herona das pginas
de seu romance.
De um ponto de vista pessoal e mesquinho, e embora
isso constitusse uma das debilidades do livro, Oki
preferira no insistir muito nos cimes ferozes de sua
mulher.
Era isso, sem dvida, que tornava a leitura da obra to
agradvel, e a herona to benquista.
Ainda hoje, mais de vinte anos depois, as pessoas con-
tinuavam a citar Uma garota de dezesseis anos como sua
melhor obra. Mas Oki, como escritor, achava esse jul-
gamento angustiante e se sentia deprimido. No entanto,
pesando bem as coisas, no havia nesse livro todo o
frescor da juventude? Os protestos do autor no con-
seguiam dobrar a preferncia do pblico, tampouco uma
reputao j consolidada. A obra passara a ter vida pr-
pria, sem vnculo nenhum com seu autor. Mas Oki, s
vezes, se perguntava: "O que acontecera jovem Otoko?".
A nica coisa que sabia que mudara com a me para
Kyoto. Sem dvida era essa vida contnua do romance
que o levava a se indagar sobre o destino de Otoko.
Somente nos ltimos anos Otoko se tornara um nome
conhecido na pintura. At ento, ele permanecera sem
nenhuma notcia sobre ela. Oki imaginava que Otoko,
como todo mundo, se casara e levava uma vida normal:
era isso, ao menos, o que esperava. Contudo, no acred-
itava que Otoko tivesse temperamento para se contentar
com uma existncia comum. s vezes, ele se perguntava
se isso no queria dizer que o amor que sentira por ela
ainda no estava totalmente morto.
E, por essa razo, seu choque foi imenso quando
soube que Otoko se tornara pintora.
Oki ignorava os sofrimentos pelos quais Otoko havia
passado, as difculdades que havia superado at chegar
quele ponto, mas a notcia de seu sucesso lhe causou
uma viva alegria. Quando viu, por acaso, uma de suas
obras numa galeria, Oki vibrou de emoo. A exposio
no era unicamente de Otoko, apenas uma pintura sua,
em seda, representando uma penia, estava exposta entre
as obras de vrios artistas. Na parte superior do quadro,
Otoko pintara uma nica penia vermelha. A for era
vista inteiramente de frente, maior do que o normal, com
poucas folhas e, isolado, um nico boto branco despon-
tava na haste. Oki reconheceu, nessa for deliberadamente
aumentada, o orgulho de Otoko, assim como toda a sua
nobreza. Comprou o quadro imediatamente, mas como
tinha o carimbo e a assinatura de Otoko preferiu no lev-
lo para casa e o doou ao clube de escritores do qual era
membro. Assim, pendurada a uma boa altura na parede
do clube, a pintura causou-lhe uma impresso um pouco
diferente da que produzira na galeria repleta de pessoas.
Algo de fantstico emanava dessa enorme penia ver-
melha, o seu interior parecia irradiar uma profunda
solido. Foi na mesma poca que Oki viu, numa revista
feminina, uma fotografa de Otoko em seu estdio.
Havia muitos anos ele desejava ir a Kyoto para escutar
os sinos de fm de ano, mas foi essa pintura que lhe deu
ensejo de ouvi-los em companhia de Otoko.
Em Yamanouchi, ao norte de Kamakura, uma estrada
corria entre as colinas repletas de rvores em for. Logo,
ao longo dessa estrada, as fores anunciariam a chegada
da primavera. Oki costumava passear nas Colinas do Sul
e era de cima de uma delas que ele agora contemplava o
crepsculo.
O sol poente perdeu em breve seu tom prpura e
se transformou num azul frio e sombrio, manchado de
cinza. Como se a primavera, recm-chegada, cedesse
novamente seu lugar ao inverno. O sol, que em alguns
lugares dava bruma uma colorao rosada, cara.
O frio chegou rapidamente. Oki desceu at o vale e
voltou para casa, nas Colinas do Norte.
- Uma jovem chamada Sakami veio de Kyoto -
anunciou-lhe Fumiko. - Ela trouxe dois quadros e uns do-
ces.
- E j foi embora?
- Taichiro a acompanhou at a estao. Talvez estejam
procurando por voc.
- Ah, sim?
- Ela de uma beleza assustadora. Quem ? - indagou
Fumiko, os olhos fxos em Oki como para ler a resposta
em seu rosto. Oki se esforou em parecer vontade, mas a
intuio feminina de Fumiko deve ter-lhe feito adivinhar
que a jovem tinha alguma ligao com Ueno Otoko.
- Onde esto as telas? - perguntou Oki.
- No seu escritrio. Ainda esto embrulhadas, no
mexi nelas.
Sakami Keiko parecia ter mantido a promessa feita
a Oki na estao de Kyoto e ter vindo visit-lo com al-
gumas de suas obras. Oki foi logo ao seu escritrio e
abriu o pacote. As duas telas estavam emolduradas de
maneira simples. Uma se chamava Ameixeira, mas no
tinha tronco nem galhos; apenas uma for, to grande
como a cabea de uma criana, estava representada. Alm
disso, essa nica for tinha tanto ptalas vermelhas como
brancas. Cada uma das ptalas vermelhas fora pintada
com uma estranha combinao de tons claros e escuros de
vermelho.
Essa for imensa no estava particularmente distor-
cida, tampouco dava a impresso de ser apenas decor-
ativa. Uma espcie de vida misteriosa palpitava ali dentro
e ela parecia realmente se mover. Talvez isso se devesse
ao fundo que Oki, a princpio, tomara por um amontoado
de espessos fragmentos de gelo, mas que em seguida
reconhecera como uma cadeia de montanhas nevadas.
Nessa pintura, que no queria ser um refexo da realid-
ade, somente as montanhas recobertas de neve podiam
criar umefeito de tamanha vastido. Mas, evidentemente,
as montanhas verdadeiras no eram to recortadas, nem
to pontiagudas, nem se encolhiam assim em suas bases;
esse era o estilo abstrato prprio de Keiko. Mais do que
montanhas nevadas ou fragmentos de gelo, no era essa
a paisagem interior da pintora? Mesmo que se admitisse
ver ali uma cadeia de montanhas, no havia nela a bran-
cura fria da neve. Uma espcie de msica nascia do en-
contro entre a neve glacial e sua cor ardente. A neve no
era de um branco uniforme, diversas cores se compun-
ham numa cano, lembrando as variaes de branco e
vermelho das ptalas da for da ameixeira. Quer fosse
considerada fria ou no, essa pintura no deixava de rev-
elar a juventude e o estado de esprito da artista. Sem
dvida Keiko a tinha pintado para Oki, para estar de
acordo com a estao. Pelo menos, a for da ameixeira era
reconhecvel.
Enquanto contemplava a pintura, Oki ps-se a pensar
na velha ameixeira de seu jardim. Apesar das deformid-
ades e da m formao da rvore, Oki jamais questionara
as vagas noes de botnica de seu jardineiro. A velha
rvore dava fores brancas e vermelhas. O jardineiro no
havia feito nenhum enxerto e as fores vermelhas e bran-
cas brotavam no mesmo galho. Mas nem todos os galhos
da rvore eram assim; nuns s nasciam fores brancas,
noutros, apenas fores vermelhas. No entanto, quase
sempre as fores vermelhas se misturavam s brancas e
foriam cada ano em galhos diferentes. Oki amava essa
velha ameixeira cujos botes comeariam a desabrochar
em breve.
Keiko, sem a menor dvida, tinha simbolizado essa
estranha ameixeira por apenas uma de suas fores. Otoko
devia ter lhe falado dessa rvore. Apesar de nunca ter ido
casa de Oki, que j era casado com Fumiko, ela sabia de
sua existncia. Lembrara-se da rvore e, por sua vez, con-
tara sua aluna.
Teria Otoko feito alguma aluso a seu trgico amor de
outrora ao evocar essa ameixeira?
- de Otoko?
- Como? -voltou-se Oki. Absorto na contemplao da
tela, ele no percebera a presena de sua mulher.
- um quadro de Otoko?
- claro que no! Ela nunca faria algo to jovem. Foi
pintado pela moa que esteve aqui h pouco. Voc pode
ver que est assinado "Keiko"!
- Que pintura estranha! - observou Fumiko com voz
dura.
- Estranha, realmente! - respondeu Oki, esforando-
se para falar com doura. - Os jovens pintores de hoje,
mesmo no estilo japons
- isso que chamam de "arte abstrata"?
- Bem, talvez no se possa realmente falar de arte ab-
strata
- O outro quadro ainda mais estranho. No saberia
dizer se um peixe ou uma nuvem, com todas essas cores
espalhadas de qualquer jeito! - disse Fumiko, sentando-se
atrs de Oki.
- Hum! No tem muito a ver com um peixe ou uma
nuvem. Talvez no seja nem um nem outro.
- Nesse caso, o que que isso pode representar?
- Voc pode achar que um peixe ou uma nuvem, isso
no tem nenhuma importncia.
Pousou o olhar na pintura. Aproximou-se da parede
contra a qual a tela estava apoiada e examinou o dorso do
quadro.
- No tem ttulo.
Nenhuma forma podia ser identifcada nessa tela e as
cores empregadas eram ainda mais violentas e variadas
do que na Ameixeira. Fora sem dvida por causa da mul-
tiplicidade de linhas horizontais que Fumiko sups re-
conhecer ali um peixe ou uma nuvem. primeira vista,
parecia no haver harmonia alguma entre as cores. To-
davia, uma estranha paixo emanava dessa obra ex-
ecutada no estilo tradicional japons. Naturalmente, nada
ali era acidental. O fato de no ter ttulo deixava o campo
aberto a todas as interpretaes. Podia ser que a subjet-
ividade da artista, que parecia se dissimular na obra, ali
estivesse, ao contrrio, revelada. Oki tentava descobrir o
corao da pintura quando sua mulher lhe perguntou: -
Essa moa, afnal, o que ela de Otoko?
- Uma aluna que vive com ela - respondeu Oki.
- Mesmo? Voc me deixa rasgar essas telas ou p-las
no fogo?
- Pare de dizer bobagens! Por que essa raiva?
- Ela ps todo o seu corao nestas pinturas! Tudo a
fala de Otoko! No so coisas para se ter em casa.
Espantado por esse sbito acesso de cime, Oki per-
guntou calmamente: - Por que voc diz que tudo a fala
de Otoko?
- Ento voc no est vendo?
- Mas isso fruto da sua imaginao. Voc est
comeando a ver fantasmas!
Porm, ao mesmo tempo em que falava, uma pequena
chama acendeu-se em seu corao e ps-se a brilhar com
intensidade.
Era claro que a Ameixeira expressava o amor que
Otoko sentia por Oki. Quanto tela sem ttulo, ela dizia
sem dvida a mesma coisa. Nessa ltima, Keiko
empregara pigmentos minerais, sobre os quais aplicara
vrias camadas de cor, desde o centro da composio
at a parte inferior, esquerda. Oki acreditou enxergar a
alma dessa tela nesse espao estranho e claro que parecia
formar uma janela. Podia ver at o sinal de que o amor de
Otoko continuava vivo.
- Afnal, no obra de Otoko, mas de sua aluna - disse
ele.
Fumiko parecia suspeitar que Oki se encontrara com
Otoko emsua ida a Kyoto. Mas ela nada tinha dito no mo-
mento, talvez porque o dia em que seu marido retornara
fosse tambm um dia de festa.
- O que quer que seja, eu detesto estas telas! - disse Fu-
miko, as plpebras frementes de raiva. - Elas no fcaro
aqui!
- Quer voc goste ou no, elas pertencem a quem as
pintou. Mesmo que a pintora em questo seja apenas uma
menina, como pode pensar em destru-las assim, a seu
bel-prazer?
E, antes de tudo, voc tem certeza de que elas nos
foram oferecidas, ou a jovem veio simplesmente para
mostr-las?
Fumiko fcou silenciosa por um instante.
- Foi Taichiro quem a recebeu na entrada Depois ele
a conduziu at a estao e j faz um bom tempo que ele
saiu.
Essa demora tambm atormentava Fumiko? A estao
era perto da casa e havia trens a cada quarto de hora.
- Agora a vez de Taichiro ser seduzido. Uma jovem
to bela e de uma beleza quase maligna.
Oki juntou as duas pinturas e comeou a embrulh-las
lentamente.
- Chega de falar em seduo! No gosto disso. Se essa
moa to bonita, suponho que estas obras so apenas
um refexo, um narcisismo de jovem adolescente
- No. Elas so, sem a menor dvida, o refexo de
Otoko.
- Ento, talvez essa jovem e Otoko se amem.
- Lsbicas? - Fumiko foi pega de surpresa. - Voc acha
que elas so lsbicas?
- No sei de nada, mas isso no me admiraria. Elas
vivem juntas num velho mosteiro de Kyoto e as duas tm
um temperamento passional.
Fumiko fcou realmente perturbada com a idia de
duas mulheres serem lsbicas. Durante um instante, per-
maneceu em silncio.
- O que quer que seja, penso que estas telas exprimem
o amor que Otoko ainda tem por voc. - O tom de Fumiko
se suavizara. Oki sentiu vergonha de ter falado em ho-
mossexualidade para se livrar do assunto.
- Talvez estejamos errados os dois. Ns olhamos estas
pinturas com idias preconcebidas
- Mas por que pintar coisas to absurdas?
- Ora! Uma pintura, seja ela realista ou no, revela os
sentimentos e os pensamentos ntimos do artista.
Por covardia, Oki evitou continuar a discusso com
sua mulher.
Talvez a primeira impresso de Fumiko diante das tel-
as de Keiko tivesse sido, contra toda a expectativa, exata.
E talvez Oki tambm tivesse acertado ao falar em lesbian-
ismo.
Fumiko deixou o escritrio. Oki esperou a volta de seu
flho Taichiro.
Taichiro era professor de literatura japonesa numa
universidade particular. Nos dias em que no dava aula,
ia at a sala de estudos da universidade ou fazia
pesquisas em casa. No incio, ele quisera estudar liter-
atura moderna, isto , a literatura do Perodo Meii, mas,
seu pai tendo se oposto, ele se especializou em literatura
do Perodo Kamakura
15
e do Perodo Muromachi
16
. Ele
tinha o mrito, raro num especialista de literatura ja-
ponesa, de poder ler ingls, francs e alemo. Era um
rapaz muito dotado, calmo, mas que parecia um pouco
melanclico. Era o contrrio de sua irm mais nova, Ku-
miko, alegre e inconseqente, com seus conhecimentos
superfciais em matria de costura, jias, tric ou arranjos
forais. Quando Kumiko o convidava para patinar ou jog-
ar tnis, Taichiro sempre lhe respondia atravessado, e
sua irm acabara por consider-lo umexcntrico. Taichiro
no freqentava as amigas de Kumiko. Quando convi-
dava seus alunos para vir em casa, no se dignava a
apresent-los. Ela, apesar de no ter um temperamento
agastado, fcava amuada diante da acolhida calorosa que
sua me reservava aos alunos de Taichiro.
- Quando seu irmo recebe seus alunos, s temos de
lhes servir ch. Mas voc, voc remexe toda a geladeira,
os armrios e quando sente vontade telefona para en-
comendar sushis ou Deus sabe o qu, voc faz um
alvoroo incrvel - dizia sua me.
- Mas meu irmo s recebe seus alunos - replicava Ku-
miko, rindo.
Kumiko se casara, mas Taichiro, que ainda no era fn-
anceiramente independente, no pensava em casamento.
Oki comeava a se inquietar com a demora do flho.
Olhou pela janela do escritrio. A terra formava uma
pequena colina no lugar onde, durante a guerra, tinha
sido cavado um abrigo antiareo, hoje recoberto por ervas
daninhas. No meio das ervas daninhas, despontava uma
profuso de fores azuis. As ervas daninhas eram to dis-
cretas que se tornavam quase imperceptveis. As fores
tambm eram bem pequenas, mas de um azul profundo e
brilhante. Excetuando as daphnes, essas fores azuis eram
as primeiras a desabrochar no jardim de Oki e as que
mais tempo permaneciam abertas. Elas talvez no anun-
ciassem a primavera, mas foriam to perto da janela de
seu escritrio que Oki, s vezes, sentia vontade de des-
cer para colher uma dessas humildes fores e segur-la na
mo para estud-la atentamente. Mas ele nunca o fzera, e
isso contribua para aumentar o amor que tinha por essas
fores azuis.
Mais tarde, nessa moita de ervas, foi a vez de fores-
cerem as margaridas amarelas. Elas tambm tinham vida
longa. Mesmo agora, na luz de fm de tarde, Oki po-
dia distinguir o amarelo das margaridinhas e o azul ul-
tramarino das outras forzinhas. Por um longo momento,
permaneceu a contempl-las.
Taichiro ainda no voltara.
* * *
A FESTA DA LUA CHEIA
Otoko decidira levar Keiko ao templo do monte Kurama para
assistir festa da Lua cheia. A comemorao acontecia sempre
no ms de maio, mas numa data que no coincidia coma do an-
tigo calendrio lunar. Na noite anterior festa, a Lua ergueu-se
no cu lmpido acima das Colinas do Leste. Otoko, que a obser-
vava da varanda, disse a Keiko: - Acho que a Lua estar linda
amanh! Durante a festa, os participantes deveriam beber uma
taa de saque com a Lua cheia refetida, e seria frustrante se o
cu estivesse encoberto e a Lua, ausente.
Keiko veio at a varanda e ps a mo docemente nas costas
de Otoko.
- A Lua de maio - disse Otoko.
Keiko no disse nada, mas, depois de alguns segundos em
silncio, perguntou: - E se fssemos dar um passeio de carro
nas Colinas do Leste? Ou ento em Otsu, para vermos o refexo
da Lua no lago Biwa?
- A Lua no lago Biwa? No h nada de extraordinrio nesse
espetculo!
- Ser mais bonito ver a imagem da Lua numa taa de saque
do que num grande lago? - retomou Keiko, sentando-se aos ps
de Otoko. - Veja! Que cor engraada tem o jardim esta noite!
- mesmo! - Otoko mirou o jardim. - Keiko, voc quer me
trazer uma almofada e apagar a luz da casa?
Da varanda, s o jardim interno era visvel, pois o prdio
principal do monastrio obstrua a viso. Era um jardim oval e
desarmnico. Metade estava banhada pela Lua, de modo
que as pedras que formavam os caminhos ganhavam col-
oraes diferentes conforme estivessem na luz ou na som-
bra. Desabrochando na escurido, uma azalia branca
parecia futuar. O sicmoro vermelho, ao lado da
varanda, tinha as folhas novas enegrecidas pela noite. Na
primavera, as pessoas freqentemente confundiam seus
brotos brilhantes com fores e se perguntavam que es-
pcie de rvore era aquela. O jardim tambm tinha uma
espessa cobertura de musgo.
- E se eu fzesse um ch? O primeiro ch da estao? -
props Keiko.
Otoko continuava a mirar aquele jardim insignifc-
ante, como se no estivesse habituada a olh-lo assim
nas diferentes horas do dia e da noite. Mantinha-se ali,
a cabea levemente baixa, os olhos fxos na metade do
jardim iluminada pela Lua, com o ar de estar imersa em
algum pensamento. Keiko retornou varanda e comeou
a servir o ch: - Li em algum lugar que a moa que serviu
de modelo para O beio, de Rodin, ainda est viva e deve
ter uns oitenta anos. Difcil imaginar, se pensarmos na es-
cultura, no?
- Acha mesmo? Voc diz isso porque jovem! Acred-
ita que preciso morrer na for da idade s porque um
artista imortalizou a sua juventude em alguma obra-
prima?
um erro exigir tanto dos nossos modelos!
A rapidez da rplica de Otoko se devia ao fato de
as palavras de Keiko lhe recordarem o romance de Oki.
Otoko, no entanto, aos quarenta anos, ainda era bela.
Keiko, sem se dar conta, prosseguiu: - Lendo isso, tive
a idia de lhe pedir para fazer o meu retrato enquanto
ainda sou jovem.
- Farei com prazer, se for capaz. Mas por que voc
mesma no faz um auto-retrato?
- Eu? No fcaria muito parecido. Alm disso, o re-
trato correria o risco de revelar tudo o que h de mau em
mim e eu acabaria detestando esse quadro. Ou ento, se
eu me pintar de um modo realista, as pessoas certamente
acharo que tenho um conceito muito elevado de mim
mesma.
- Quer dizer que gostaria de um retrato realista? Isto
me surpreende. E, depois, voc ainda jovem e vai
mudar.
- Quero que seja voc a pintar o meu retrato.
- Com prazer, se for capaz - tornou Otoko.
- Ser que voc no me ama mais ou est com medo de
mim? - perguntou Keiko com voz mordaz. - Um homem
fcaria deslumbrado em me pintar. E mesmo me pintar
nua
Otoko pareceu no se inquietar com as palavras de
Keiko.
- J que voc me pede, tentarei.
- Fico to feliz com isso!
- Mas no vou pintar voc nua. Quando uma mulher
pinta outra mulher nua, o resultado, a meu ver, nunca
muito brilhante. Ainda mais no estilo da pintura tradi-
cional que o meu.
- Se eu fzer o meu auto-retrato, darei um jeito para
que ns duas estejamos juntas - disse Keiko num tom in-
sinuante.
- Eu me pergunto que tipo de quadro sairia.
A jovem tomou um ar de mistrio e riu abafado: -
Farei uma obra abstrata e ningum saber No se per-
turbe.
- No estou nem um pouco perturbada - respondeu
Otoko, bebendo um gole de ch perfumado.
Era o primeiro ch da estao e fora oferecido a Otoko
quando ela estava em Uji, fazendo alguns desenhos da
regio. Ela no desenhara nenhuma das jovens colhedor-
as de ch. Limitara-se a representar em toda a superfcie
da tela as ondulaes suaves dos arbustos sobrepostos.
Otoko voltara vrias vezes a Uji e fzera inmeros desen-
hos, observando os jogos de luz e sombra nas moitas de
ch. Keiko sempre a acompanhava.
Um dia Keiko lhe perguntara: - Isso que voc est
fazendo no arte abstrata?
- Se voc o tivesse pintado, sim. Embora seja at um
sinal de atrevimento de minha parte, estou tentando
apenas harmonizar o verde dos brotos recm-nascidos
com o das folhas velhas, assim como as ondulaes
suaves das moitas e as variaes de cor.
Em seu estdio, rodeada por numerosos desenhos,
Otoko fez um primeiro esboo de paisagem.
No entanto, no fora apenas o interesse pelas ondu-
laes verdes e seus diversos matizes, assim como as lin-
has sinuosas das moitas, que levara Otoko a pintar as
plantaes de ch de Uji. Depois de ter se separado de
Oki, ela partira para Kyoto com sua me, e retornara
a Tquio vrias vezes, mas no conseguia tirar da lem-
brana as plantaes de ch dos arredores de Shizuoka
vistas da janela do trem. s vezes, ela as via em pleno dia,
s vezes, durante a noite. Nessa poca, ela era apenas uma
estudante e no sonhava sequer emse tornar pintora. Mas
a viso dessas plantaes de ch reavivava ainda a dor
que ela experimentara ao ter-se separado de Oki. Ela no
saberia dizer por que essas modestas plantaes tocavam
o seu corao quando, nesta linha de Tokaido, ofereciam-
se ao seu olhar montanhas, lagos, o mar, e s vezes at
mesmo nuvens em tons delicados. Teria o verde morno
dos arbustos ou a melancolia das sombras noturnas es-
praiadas sobre os sulcos do campo despertado sua dor?
As encostas onde crescia o ch eram baixas e pareciam
feitas pelo homem, com suas valas fundamente som-
breadas; as moitas macias faziam pensar num verde re-
banho de ternos carneirinhos.
Talvez a tristeza que Otoko experimentava j antes de
sair de Tquio se tornasse mais aguda quando o trem al-
canava Shizuoka.
Quando viu as plantaes de ch de Uji, a tristeza
apoderou-se de Otoko novamente e ela voltou ao vale
de Yuyan para fazer alguns esboos. Mesmo Keiko pare-
cia no ter notado sua tristeza. Mas as plantaes de Uji,
na primavera, no tinham a melancolia daquelas que ela
vira da janela do trem, ao longo da estrada de Tokaido;
o verde-claro das folhas recm-nascidas era brilhante de-
mais.
Embora houvesse lido Uma garota de dezesseis anos
e, durante as longas conversas na cama, Otoko no lhe
ocultasse nada a respeito de sua relao com Oki, Keiko
parecia no ter percebido nesses esboos feitos em Uji um
trao do antigo amor de Otoko.
Ela apreciava a maneira quase abstrata comque Otoko
tratara as moitas de ch com linhas brandas e ondulantes,
mas se surpreendia com o fato de aqueles croquis se
afastarem tanto da realidade. Quanto a Otoko, ela prpria
achava graa nesses esboos.
- Voc vai pintar o quadro todo verde, no ? - per-
guntou Keiko.
- Claro. Estou pintando as plantaes de ch na poca
da colheita Harmonia e variaes do verde!
- Eu me pergunto se no deveria usar um vermelho ou
um violeta. No me importo se no fcar mais parecido
com uma plantao de ch.
O desenho de Keiko estava pendurado na parede do
estdio ao lado do de Otoko.
- Que ch delicioso, este. Keiko, voc no quer pre-
parar mais no estilo "abstrato"? - disse Otoko, rindo.
- No estilo abstrato? To amargo que lhe seja impos-
svel beber?
- isso que voc chama de abstrato? - Otoko ouviu o
riso da jovem no outro quarto. - Keiko, quando voc foi a
Tquio, h alguns dias, voc parou em Kamakura, no?
- A voz de Otoko endurecera ligeiramente.
- Parei.
- Por qu?
- Na estao de Kyoto, o sr. Oki pediu para ver meus
quadros. - Otoko no respondeu.
Com a voz fria e pausada, Keiko continuou: - Otoko,
gostaria de ving-la.
- Vingar-me? - Otoko confundiu-se diante das palav-
ras inesperadas da jovem. - Vingar a mim?
- Exatamente.
- Venha aqui, Keiko, sente-se. Falemos um pouco
disso tudo bebendo este ch abstrato.
Keiko calou-se e se ajoelhou. Seus joelhos roavam os
de Otoko. Ela se serviu de uma xcara de ch.
- Deus, como est amargo! - disse, franzindo as so-
brancelhas. - Vou fazer outro.
- No importa - Otoko falou, retendo-a. - Por que di-
abo est falando em vingana?
- Voc sabe muito bem por qu.
- Nunca pensei em algo assim. No guardo nenhum
rancor.
- Porque voc ainda o ama. Porque no vai deixar de
am-lo, enquanto viver - Keiko falava com a voz estran-
gulada. - Eu quero ving-la.
- Mas por qu?
- No tenho o direito de sentir cime?
- Ento isso? - Otoko ps a mo sobre o ombro tenso
e trmulo da jovem.
- a verdade. Eu no consigo lhe explicar. Mas
odioso!
- Que criana impetuosa! - disse Otoko com doura. -
O que voc entende por vingana? O que pensa fazer?
Keiko, a cabea baixa, no se mexia. A luz da Lua ilu-
minava um trecho ainda maior do jardim.
- Por que voc foi a Kamakura? Sem ao menos falar
comigo
- Eu queria ver a famlia do homem que a fez to infe-
liz.
- E voc a viu?
- S vi seu flho, Taichiro. Sem dvida o retrato de
seu pai quando jovem. Parece que ele estuda literatura
das eras Kamakura e Muromachi. Ele foi muito gentil
comigo, me levou para visitar os monastrios, o Enkaku-ji
e o Kencho-ji e ainda me levou at Enoshima.
- Para voc, que foi criada em Tquio, tudo isso no
devia ser novidade.
- No era, mas eu tinha visitado todos esses lugares
muito rapidamente. Enoshima mudou bastante. E me di-
verti ouvindo a histria que se conta sobre o Enkiri-ji
17

- essa sua vingana? Seduzir esse menino ou se deix-
ar seduzir por ele? - disse Otoko, retirando a mo do om-
bro de Keiko. - Nesse caso, caberia a mim sentir cime.
- Voc, com cime? Eu fcaria to feliz! - Keiko passou
os braos ao redor do pescoo de Otoko e se pendurou
nela. - Est vendo como posso ser m e diablica com
qualquer outra pessoa, menos com voc?
- No entanto, voc levou para l dois de seus quadros
preferidos.
- Mesmo uma menina m como eu gosta de causar
uma boa impresso. Taichiro escreveu-me para dizer que
eles esto pendurados em seu escritrio.
- Verdade? - disse Otoko calmamente. - E essa a sua
maneira de me vingar? Esse o comeo de sua vingana?
- .
- Taichiro era apenas uma criana, no sabia o que se
passava entre seu pai e mim. Oque realmente me magoou
foi saber do nascimento de sua irm, pouco tempo de-
pois de terme separado de Oki. Hoje, quando penso nisso,
tenho certeza de que foi assim que eu me senti. Acho que
ela j deve ter se casado.
- Nesse caso, por que no destruir seu casamento?
- Que est dizendo, Keiko! Que arrogncia em brincar
assim com uma coisa dessas. Isso s lhe trar desgraas!
No se trata de um jogo nem de uma farsa!
- No me deixe, Otoko, s o que lhe peo. a nica
coisa de que tenho medo. Como poderia pintar sem voc
ao meu lado? No conseguiria nem pintar nem viver
- Ento, pare de dizer besteiras!
- Eu ainda me pergunto se voc no poderia ter es-
tragado o casamento do sr. Oki.
- Mas eu era apenas uma menina e eles tinham um
flho
- Eu, eu teria feito isso!
- Voc no sabe como uma famlia pode ser forte.
- Mais forte do que a arte?
- Bem - Otoko inclinou o rosto no qual transparecia
uma leve tristeza. - Naquele tempo eu no sonhava com
arte.
- Otoko! - Keiko virou para sua amiga e apertou-lhe
delicadamente o punho. - Por que voc mandou que eu
fosse buscar o sr. Oki no hotel Miyako e me pediu que o
acompanhasse estao?
- Porque voc jovem e bonita! E eu tenho orgulho de
voc!
- Detesto quando voc me esconde alguma coisa. Eu a
observei muito bem com meus olhos ciumentos
- Verdade? - Otoko ftou os olhos da jovem, que cin-
tilavam luz da Lua. - Eu no estava lhe escondendo
nada. Quando Oki e eu nos separamos, eu tinha mais ou
menos dezessete anos. Hoje, sou uma mulher madura que
comea a engordar na cintura. A verdade que eu no
tinha muita vontade de rev-lo. Tinha medo que ele fcas-
se decepcionado.
- Decepcionado? Ele, decepcionado? voc quem
deveria estar! Voc a mulher que eu mais respeito no
mundo e a mim que o sr. Oki decepcionou. Desde que
vim morar com voc, acho todos os rapazes enfadonhos
e pensei que o sr. Oki pudesse ser realmente algum in-
teressante. Que decepo quando o vi! Eu o tinha ima-
ginado muito melhor atravs das suas recordaes!
- Voc no pode julg-lo por um encontro to breve.
- claro que posso.
- Como assim?
- Eu no teria difculdade em seduzir o sr. Oki ou seu
flho
- Keiko, isso horroroso! - Otoko empalidecera. - Essa
arrogncia no lhe trar nada de bom!
- No estou to certa disso - replicou Keiko, sem se
perturbar.
- Isso no vai lhe trazer nada de bom - repetiu Otoko. -
Quem voc acha que ? Uma mulher fatal? Voc jovem
e bonita, mas isso no
- Se sou o que voc chama de mulher fatal, imagino
que a maioria das mulheres tambm o seja.
- De fato. Ento foi com essa inteno que voc levou
dois dos seus quadros preferidos ao sr. Oki?
- No. No preciso das minhas pinturas para seduzi-
lo.
Otoko parecia aterrada.
- que, sendo sua aluna, eu simplesmente queria que
ele visse meus melhores trabalhos.
- Eu lhe agradeo. Mas voc me disse que s havia tro-
cado umas poucas palavras com ele na estao. Por que,
ento, os quadros?
- Eu tinha lhe prometido e estava curiosa para saber
qual seria sua reao e que comentrios ele faria. Alm
disso, precisava de um pretexto para ver sua famlia.
- E ele no estava em casa?
- No. Imagino que ele deva ter visto as telas na volta.
Provavelmente no entendeu nada.
- Voc est sendo injusta.
- Mesmo como escritor, ele nunca escreveu nada mel-
hor do que Uma garota de dezesseis anos.
- No verdade. Esse romance o seu preferido
porque eu sou a herona e ele me idealizou. E, depois, os
jovens gostam de livros que falamda juventude. Suponho
que os romances que ele escreveu em seguida lhe pare-
ceram difceis ou cansativos.
- No entanto, se o sr. Oki morresse hoje, esse seria o
nico livro pelo qual ele seria lembrado, no?
- Pare de falar assim! - disse Otoko com voz furiosa.
Tirou seu punho dos dedos de Keiko e afastou seus joel-
hos dos dela.
- Voc continua ainda to ligada a ele! - A voz de
Keiko tambm endurecera. - Mesmo quando eu lhe falo
de vingana
- No que eu esteja ligada.
- O que ento amor?
- Talvez.
Abruptamente, Otoko ergueu-se e foi para dentro.
Keiko no se levantou, permaneceu na varanda semi-ilu-
minada pela Lua, o rosto escondido entre as mos.
- Otoko, voc sabe que eu vivo inteiramente por voc!
- disse com voz trmula. - Mas algum como o sr. Oki
- Desculpe-me, Keiko. Eu tinha apenas dezesseis anos
quando tudo isso aconteceu.
- Eu vou vingar voc.
- Mesmo a sua vingana no conseguiria acabar com o
meu amor.
Keiko, retorcida sobre si mesma, soluava na varanda.
O rosto ainda entre as mos.
- Faa o meu retrato, Otoko Antes que eu me torne
essa mulher fatal de que voc fala Por favor. Posarei
nua para voc.
- Est bem. Eu o farei com amor.
- Isso me deixa to feliz, Otoko.
Otoko guardara inmeros esboos da criana pre-
matura que havia posto no mundo. Ela os conservava
secretamente e nem mesmo a Keiko os mostrara. Os anos
tinham se passado, mas Otoko continuava a alimentar o
projeto de utiliz-los numa obra que teria como ttulo:
A ascenso de uma criana. Naturalmente, ela tinha fol-
heado nos lbuns de pintura ocidental as reprodues de
querubins ou do Cristo criana, mas suas caras rechon-
chudas e saudveis eram inconciliveis com sua tristeza.
Ela vira algumas pinturas antigas clebres representando
Kobo Daishi
18
jovem que a tinham comovido pela graa
e sensibilidade inteiramente japonesas, mas, nessas obras,
Kobo Daishi no era realmente uma criana e nunca as-
cendia ao cu. Otoko no desejava representar exata-
mente a ascenso da criana ao cu; procurava somente
sugeri-la. Mas terminaria ela essa pintura algum dia?
Agora que Keiko lhe pedira para fazer seu retrato,
Otoko lembrou-se desses desenhos que havia anos no
via. Por que no pintar a jovem tal como os artistas
haviam representado o santo homem quando jovem? Ser-
ia um retrato perfeitamente clssico de Virgem. Alm
disso, dessas pinturas de inspirao religiosa que so os
retratos dos Santos Monges do Budismo emanava uma
espcie de encanto inefvel.
- Vou fazer seu retrato, Keiko, e j tenho uma idia.
Farei uma obra de inspirao budista. Ento, de agora em
diante, tome bastante cuidado com as suas maneiras! -
disse Otoko.
- Uma obra de inspirao budista? - Keiko, um tanto
desconcertada, aprumou-se. - No tenho certeza se a idia
me agrada.
- Ento, deixe que eu fao. Algumas dessas obras so
absolutamente lindas. Eu poderia cham-la de "Abstrao
para uma jovem pintora"! Seria divertido, no?
- Voc est zombando de mim?
- Eu estou falando srio. Vou comear assim que tiver
acabado as plantaes de ch. - Otoko lanou um olhar
pelo estdio. Seus croquis e os de Keiko estavam contra a
parede. Logo acima estava pendurado um retrato que ela
fzera de sua me. Seu olhar se deteve.
Sua me ali estava, linda e jovem, talvez mais jovem
ainda do que ela. Otoko tinha trinta anos quando o pin-
tou. Teria ela prpria se representado nesse quadro? Ou
teria sua me simplesmente surgido linda e jovem sob os
pincis da flha?
Keiko, vendo-a pela primeira vez, exclamara: - o seu
auto-retrato, no? lindo! - Otoko no lhe disse que se
tratava de sua me e se perguntava se todo mundo via
nessa obra um auto-retrato.
Otoko se parecia com sua me. Seria por t-la amado
demais ou chorado tanto a sua morte que a sua semel-
hana transparecia a tal ponto nesse retrato? A princpio,
Otoko fzera vrios desenhos a partir de uma fotografa
da me, mas nenhum deles a emocionara. Ento, ela de-
cidiu ignorar a foto e l apareceu sua me sentada sua
frente. Parecia viva, no tinha nada de fantasmagrico.
Apressadamente, Otoko fez inmeros croquis, o corao
transbordando de emoo, mas, muitas vezes, seus olhos
se enchiam de lgrimas e era necessrio interromper. Ela
compreendeu, ento, que o que estava a ponto de pintar
era muito mais um auto-retrato do que o retrato de sua
me.
E era esse quadro que estava no momento pendurado
na parede, sobre os desenhos das plantaes de ch.
Otoko tinha queimado todos os estudos preliminares e
conservado somente essa ltima verso, embora se pare-
cesse muito com um auto-retrato. Todas as vezes que ol-
hava esse quadro, uma imperceptvel tristeza insinuava-
se em seus olhos. Otoko e o retrato de sua me pareciam
respirar juntos. Quanto tempo lhe fora preciso para dar
vida essa obra?
At o momento, Otoko nunca pintara outros retratos
alm desse. Havia se contentado em esboar algumas sil-
huetas humanas em suas paisagens. Mas, esta noite, pres-
sionada por Keiko, essa vontade lhe voltara repentina-
mente. Ela nunca imaginava que A ascenso de uma cri-
ana, que desejava pintar havia tanto tempo, pudesse vir
a ser um retrato. Mas no esquecera seu antigo desejo e
por isso que se lembrara de Kobo Daishi jovem e ima-
ginara representar Keiko sob os traos clssicos de uma
Virgem.
Ela fzera o retrato de sua me e desejava fazer o da
flha que perdera. No deveria tambm fazer o de Keiko?
No eram os trs seres que ela havia amado do mesmo
modo, embora fossem to diferentes uns dos outros?
- Otoko - Keiko a chamou. - Voc est olhando o re-
trato de sua me e se perguntando como pode me pintar,
no verdade? Est pensando que no capaz de sentir
to intenso amor por mim. - A jovem aproximou-se e sen-
tou ao lado de Otoko.
- Tola! No estou mais satisfeita com este retrato hoje
em dia. J fz alguns progressos desde ento, mas, mesmo
assim, gosto muito dele, apesar dos defeitos. Eu pus
muito de mim mesma enquanto o pintava.
- O meu retrato no precisa ser to doloroso assim.
Faa-o de uma s vez, como quiser.
- De modo algum - respondeu Otoko com o esprito
distante. Admirando o retrato de sua me, uma onda de
recordaes a envolvera.
De repente, Keiko tendo-a chamado de novo, Otoko
se pusera a sonhar com as pinturas de Kobo Daishi na
juventude. Em muitas dessas obras, o artista havia rep-
resentado o santo com os traos de uma bela menina ou
uma adolescente deslumbrante, no estilo cheio de graa e
elegncia caracterstico da arte de inspirao budista, da
qual no est ausente uma certa sensualidade. De algum
modo essas pinturas expressavam o amor homossexual
dos monastrios medievais - onde as mulheres no eram
admitidas - e o desejo dos monges por belos rapazes que
podiam ser confundidos com lindas jovens. Teria sido
esse o motivo pelo qual, logo que aceitara fazer o retrato
de Keiko, a imagem de Kobo Daishi se apresentara ao es-
prito de Otoko? Os cabelos do jovem Kobo Daishi no
diferiam em nada do penteado Joana d'Arc das moas
de hoje.
Mas ningum mais, hoje em dia, com exceo talvez
dos atores de teatro N, se vestia com to suntuosos qui-
monos ou hakama
19
cheios de brocados; tais vestimentas
pareciam fora de moda para uma moa moderna como
Keiko. Otoko lembrou-se dos retratos que o pintor
Kishida Ryusei
20
fzera de sua flha Reiko. Eram tanto
pinturas a leo como aquarelas delicadas, minu-
ciosamente executadas, semelhantes a obras religiosas e
nas quais a infuncia de Drer era visvel. Um desses
retratos impressionara Otoko mais do que os outros:
tratava-se de um esboo em tons claros, sobre meia folha
de papel chins e que representava Reiko sentada ereta,
o busto nu e os quadris envoltos numa tanga vermelha.
No era certamente uma das melhores obras de Ryusei,
e Otoko se perguntava por que ele fzera esse retrato de
sua flha num estilo to tipicamente japons, se j pintara
obras semelhantes empregando tcnicas ocidentais.
Ento, por que no pintar Keiko nua, tal como ela
lhe sugerira? Algumas pinturas budistas insinuavam at
mesmo as curvas dos seios femininos. Entretanto, se se
inspirasse no retrato de Kobo Daishi para pintar Keiko,
como faria o penteado da jovem? Otoko vira a clebre
tela de Kobayashi Kokei
21
intitulada A cabeleira: tratava-
se de uma obra de grande pureza, mas ela no conseguira
imaginar Keiko penteada daquele modo. Depois de muito
pensar, Otoko confessou para si mesma que pintar sua
aluna era uma tarefa acima de suas foras.
- Keiko, e se ns fssemos dormir?
- J? Quando a Lua est to bonita? - Keiko virou-se
para o relgio. - So s cinco para as dez.
- Estou um pouco cansada. Podemos conversar na
cama.
- Est bem.
Keiko preparou as camas rapidamente enquanto
Otoko tirava a maquiagem. Quando ela terminou, Keiko
ocupou seu lugar diante do espelho e comeou, por sua
vez, a limpar o rosto. Inclinando o pescoo longo e del-
gado, ela examinou seu rosto no espelho.
- Otoko, meus traos no so os de uma pintura
budista.
- Pouco importa, o que conta se o artista tem uma
alma religiosa.
Keiko retirou as presilhas do cabelo e sacudiu a
cabea.
- Voc est desfazendo seu cabelo?
- Sim. - Enquanto ela escovava as longas madeixas,
Otoko a observava de sua cama.
- Por que o est desfazendo agora noite?
- Esto comeando a fcar sujos. Eu deveria t-los
lavado. - Keiko agarrou uma mecha de cabelo e a cheirou.
- Otoko, que idade voc tinha quando seu pai morreu?
- Doze anos. Voc sabe muito bem. Por que me faz
sempre a mesma pergunta?
Keiko no respondeu. Fechou os shoji, puxou o
fusuma
22
que separava o quarto de dormir do estdio e
deitou-se ao lado de Otoko. As camas eram encostadas
uma na outra.
Durante vrias noites, elas tinham ido dormir sem
fechar as portas de madeira do lado de fora. Os shoji que
davam para o jardim luziam debilmente luz da Lua.
A me de Otoko morrera de cncer no pulmo sem
revelar flha que ela tinha uma irm consangunea.
Ainda hoje Otoko a ignorava.
Seu pai trabalhara no comrcio de seda. Muitas pess-
oas compareceram ao seu enterro. Haviam se inclinado
diante do caixo e queimado incenso de acordo com a
tradio, mas a me de Otoko percebera entre os
presentes uma jovem de sangue eurasitico. Quando a
moa ofereceu incensos e se inclinou diante da famlia do
defunto, ela notou seus olhos cheios de lgrimas. A me
de Otoko teve um choque. Ela, com um sinal de cabea,
chamou o secretrio de seu marido, que se mantinha um
pouco parte, e sussurrou-lhe ao ouvido: - Est vendo
aquela jovem mestia ali no canto? Gostaria de saber seu
nome e seu endereo.
Mais tarde, o secretrio informou-a de que a jovem
em questo tinha uma av canadense que se casara com
um japons, que ela mesma tinha nacionalidade japonesa,
havia estudado na Amrica e trabalhava como intrprete.
Ela morava numa pequena casa em Azabu.
- Suponho que ela no tem flhos.
- Parece que tem uma menina!
- Voc a viu?
- No, o que dizem as pessoas do bairro.
A me de Otoko estava convencida de que seu marido
era o pai da criana. Ela conhecia vrias maneiras de se ter
certeza, mas esperou que a jovem se manifestasse.
Ela nunca o fez. Cerca de seis meses mais tarde, o
secretrio do seu marido contou-lhe que a jovem se cas-
ara, levando a criana para o novo lar. As insinuaes
do homem deram-lhe a certeza de que essa mulher havia
sido amante de seu marido. Com o tempo, o cime e a in-
dignao cederam. Comeou a sonhar em adotar a crian-
a.
Agora que sua me havia se casado, a menina iria cres-
cer sem saber quem fora seu verdadeiro pai. A me de
Otoko sentiu como se tivesse perdido qualquer coisa pre-
ciosa e no apenas por ser Otoko sua nica flha. Mas era-
lhe certamente impossvel revelar flha, com a idade de
doze anos, que seu pai tinha uma amante e com ela uma
flha ilegtima. Quando sua me morreu, Otoko j tinha
atingido a idade de saber a verdade, mas mesmo em sua
agonia e em seu delrio sua me no lhe disse uma palav-
ra.
Assim, Otoko ignorava a existncia dessa meia-irm.
Hoje, ela provavelmente j estava casada e com flhos.
Mas, para Otoko, era como se no existisse
- Otoko! Otoko! - Keiko estava sentada na cama,
sacudindo-a para que acordasse. - Teve um pesadelo?
Voc parecia sofrer
Otoko respirava com difculdade. Apoiada sobre um
cotovelo, Keiko debruou-se sobre ela e massageou-lhe
suavemente o peito.
- Quando tive este pesadelo, voc estava me observ-
ando? - indagou Otoko.
- Sim. Por pouco tempo
- Voc realmente impossvel! Eu sonhei.
- Que tipo de sonho?
- Sonhei com uma pessoa verde. -A voz de Otoko
turvou-se novamente.
- Algum vestido de verde? - perguntou Keiko.
- No. No eram as suas roupas que eram verdes, mas
todo o seu corpo, os seus braos e as suas pernas.
- Ento, era Fudo?
23
.
- No ria de mim. Ela no tinha a cara assustadora de
Fudo. Era uma pessoa verde que futuava levemente em
volta da minha cama.
- Uma mulher?
Otoko no respondeu.
- Este um sonho bom, Otoko, tenho certeza. - Keiko
ps a palma da mo sobre os olhos abertos de Otoko e
os fechou. Depois, com a outra mo, pegou um dedo de
Otoko, colocou-o em sua boca e o mordeu.
- Voc est me machucando - disse Otoko, ar-
regalando os olhos.
- Otoko, voc disse que faria o meu retrato, no ?
Ento, eu me tornei verde como as plantaes de ch de
Uji, eis tudo - disse a jovem, tentando dar uma inter-
pretao ao sonho.
- Voc acha? Voc estava danando ao meu redor en-
quanto eu dormia? assustador!
Keiko escorregou a mo do rosto de Otoko para seu
peito e deixou escapar um riso abafado e um pouco
histrico: - Mas, seu sonho
No dia seguinte, elas subiram o monte Kurama, aonde
chegaram no comeo da noite. Os participantes j es-
tavam reunidos no saguo do templo. Depois desse longo
dia de maio, a noite tombava sobre os picos vizinhos e as
altas copas das rvores.
Acima das Colinas do Leste, alm de Kyoto, a Lua
cheia surgia. Fogueiras tinham sido acesas diante do pr-
dio principal do monastrio. Os monges avanaram e, em
resposta ao monge celebrante vestido com uma tnica es-
carlate, puseram-se a entoar em coro a leitura dos sutras
com um acompanhamento de harmnio: "D-nos uma
fora gloriosa, uma fora nova".
Cada participante segurava na mo uma vela acesa
guisa de oferenda. Diante do saguo principal fora colo-
cada uma enorme taa de prata de saque, cheia de gua,
na qual a Lua cheia se refetia. Um pouco dessa gua era
derramada nas mos em concha dos participantes, que,
um aps o outro, se aproximavam e a bebiam. Otoko e
Keiko fzeram o mesmo.
- Otoko, quando tivermos voltado para casa, tenho
certeza de que voc vai encontrar as pegadas verdes de
Fudo no seu quarto! - disse Keiko, exaltada com a atmos-
fera da festa.
* * *
UMCU CHUVOSO
Quando estava cansado de escrever ou suas idias comeavam
a se tornar confusas, Oki se esticava na espreguiadeira do
corredor. Depois do almoo acontecia-lhe muitas vezes de
cochilar ali por uma hora ou duas. Ele adquirira o hbito de
fazer essas pequenas sestas nos ltimos anos. Antes, Oki cos-
tumava passear, mas, depois de tanto tempo morando em Ka-
makura, os mosteiros e at mesmo as colinas da regio tinham-
se lhe tornado demasiado familiares. Alm disso, como se le-
vantava sempre muito cedo, Oki dava um breve passeio pela
manh. No era de seu temperamento permanecer
preguiosamente na cama depois de ter acordado, e ele preferia
fugir das espavoridas arrumaes da empregada. Antes de
jantar, ele dava outro passeio um pouco mais longo.
O corredor ao lado de seu escritrio era amplo, com uma
mesa e uma cadeira num dos cantos. Para Oki tanto fazia escre-
ver ali quanto instalado numa mesinha baixa, sobre as esteiras
de seu escritrio. A espreguiadeira no corredor era bastante
confortvel. Assim que se deitava nela, as preocupaes o
abandonavam. Era realmente estranho. Em geral, quando es-
tava escrevendo um romance, Oki tinha, mesmo durante a
noite, um sono muito leve e repleto de sonhos relacionados ao
que escrevia, porm, se se deitava nessa espreguiadeira, ad-
ormecia imediatamente e no pensava em mais nada. Em sua
juventude, Oki nunca fazia a sesta por causa das inmeras vis-
itas que recebia durante a tarde. Ele escrevia noite, da meia-
noite ao nascer do sol. Agora que escrevia durante o dia,
fazia a sesta, mas no em horas regulares. Quando no
lhe vinham mais idias e palavras, ele se alongava na es-
preguiadeira. s vezes, isso acontecia de manh, outras,
ao anoitecer. Desde que deixara de escrever noite, ele
no sentia mais, exceto em raras ocasies, que o cansao
estimulava seu esprito.
"Esses pequenos cochilos so os sinais da idade",
pensava Oki. "Mas, assim mesmo, esta espreguiadeira
deve ser mgica!"
Todas as vezes que nela se deitava, Oki adormecia e
despertava fresco e disposto. No era raro que achasse en-
to uma sada nova para as difculdades que encontrava
em seu ofcio de escritor. Uma espreguiadeira mgica.
Agora era a estao das chuvas, aquela que Oki mais
detestava. A cidade, apesar de distante do mar e pro-
tegida pelas colinas, fcava assim mesmo extremamente
mida.
O cu parecia mais baixo. Oki sentia um peso surdo
na tmpora direita, como se uma espcie de bolor tivesse
se formado entre as dobras de seu crebro. Em alguns di-
as, ele cochilava duas vezes na espreguiadeira mgica,
de manh e tarde.
- Uma certa srta. Sakami de Kyoto est a - anunciou-
lhe uma tarde a empregada.
Oki acabara de acordar, mas ainda estava deitado na
espreguiadeira. Ele no respondeu.
- Devo dizer que o senhor est descansando? - con-
tinuou a empregada.
- No. uma moa?
- Sim, senhor. Ela j veio aqui uma vez
- Est bem. Faa-a entrar na sala.
Oki deixou a cabea cair novamente contra o encosto
e fechou os olhos. A sesta tinha afastado o torpor que
sempre se apossava dele nesta estao do ano, e ele
sentiu-se revigorado ao saber da chegada de Keiko.
Ergueu-se, lavou o rosto, passou uma toalha mida pelo
corpo e entrou na sala. Vendo-o surgir assim diante dela,
Keiko levantou-se da cadeira e enrubesceu levemente.
- Como vai voc?
- Peo desculpas por esta visita repentina
- Ao contrrio. A ltima vez que voc veio, eu tinha
sado para passear nas colinas aqui perto. Voc devia ter
esperado um pouco mais antes de ir embora.
- Naquele dia, Taichiro me acompanhou at a estao.
- De fato, ele me disse. E ele lhe mostrou umpouco Ka-
makura?
- Sim.
- Para voc, que de Tquio, no deve ter lhe parecido
extraordinria. E depois, perto de cidades como Kyoto ou
Nara, no h muita coisa para se ver aqui em Kamakura.
Keiko ftou seus olhos: - Havia um pr-do-sol
belssimo no oceano.
Oki fcou surpreso ao saber que seu flho acompan-
hara a jovem at a praia.
- A ltima vez que nos vimos foi no dia do Ano-Novo,
quando voc veio se despedir na estao. Desde ento j
se passaram seis meses.
- Sim. Acha que j faz muito tempo, sr. Oki? Esses seis
meses lhe pareceram longos?
Oki no compreendeu aonde a jovem queria chegar
com essa pergunta.
- Eles podem parecer longos para algumas pessoas,
como podem parecer curtos para outras - respondeu ele.
Keiko permaneceu sria, como se Oki tivesse acabado
de dizer alguma bobagem.
- Suponhamos que voc esteja apaixonada e que no
possa ver aquele que ama durante seis meses. Isto no lhe
pareceria um longo tempo?
Keiko no achou necessrio responder a uma per-
gunta to tola. Apenas seus olhos, de refexos esverdea-
dos, pareciam desafar Oki, que fcou um pouco irritado.
- Quando uma mulher traz uma criana emseu ventre,
ela a sente mexer ao fm de seis meses. -A comparao
escolhida por Oki de propsito no embaraara Keiko ab-
solutamente.
- As estaes passam e o vero se segue ao inverno,
apesar de estarmos agora nesta horrvel estao chu-
vosa Keiko continuava sem dizer nada.
- At mesmo os flsofos, que sempre se interrogaram
a respeito do tempo, no parecem ter encontrado uma re-
sposta satisfatria. A crena popular de que o tempo re-
solve todas as coisas est no ntimo de muitas pessoas,
mas, de minha parte, eu duvido. Na sua opinio, Keiko, a
morte o fm de tudo?
- No sou to pessimista.
- No chamo isso de pessimismo - disse Oki, que bus-
cava a contradio. - verdade que seis meses para uma
jovem como voc e para um homem de minha idade no
representam a mesma coisa. E para aquele que, sofrendo
de uma doena incurvel, tem apenas alguns meses de
vida, este mesmo lapso de tempo poder ter um sentido
ainda mais diferente.
Mas pense que tambm h gente que encontra a morte
num acidente de carro inesperado ou na guerra E out-
ros ainda que so assassinados
- Mas o senhor, sr. Oki, no um artista?
- Temo s ter deixado atrs de mim coisas das quais
possa me envergonhar
- No precisa ter vergonha de nenhum de seus livros.
- Gostaria que voc tivesse razo. Mas talvez minhas
obras sejam todas esquecidas. Isso no me desgostaria.
- Como pode dizer isso? Por acaso no sabe que Uma
garota de dezesseis anos um livro que permanecer?
- Esse livro de novo! - O rosto de Oki crispou-se. - At
mesmo voc, sua aluna, diz isso!
- porque vivo com ela. Peo desculpas.
- No nada De resto, pouco importa
- Sr. Oki - o olhar de Keiko animara-se subitamente -,
o senhor amou outra mulher depois de Otoko?
- Sim, j me aconteceu. Porm, no foi to trgico
- Por que no escreveu nada a respeito?
- que - Oki hesitou ligeiramente. - Esse amor exi-
giu que eu no escrevesse nada sobre ele.
- Verdade?
- Talvez para umescritor como eu isso seja umsinal de
fraqueza. A verdade que jamais conseguiria pr nesse
segundo romance a paixo que pus no primeiro.
- De minha parte, eu no me incomodaria que o sen-
hor falasse de mim num livro.
- Ora! - Oki fcou surpreso.
Era apenas a terceira vez que ele encontrava Keiko,
se que isso podia ser chamado de encontro. Sendo as-
sim, como poderia ele escrever o que quer que fosse a
seu respeito? Talvez pudesse, no mximo, inspirar-se nos
traos deliciosos da jovem para compor uma das persona-
gens fctcias de seus romances. Keiko mencionara ter ido
praia com Taichiro. O que teria acontecido ento?
- Que bom! Encontrei um modelo encantador! - disse
Oki, rindo para esconder a dvida. Mas, enquanto mirava
Keiko, seu riso calou sob o olhar provocante e sedutor da
jovem. Seus olhos estavam to midos que pareciam em
lgrimas. Oki no encontrou nada para dizer.
- A srta. Ueno prometeu pintar meu retrato - re-
comeou Keiko.
- mesmo?
- E eu trouxe um outro quadro para lhe mostrar!
- No posso dizer que entendo muito de pintura ab-
strata, mas gostaria de v-lo. Vamos para a outra sala,
mais espaosa. Os dois quadros que voc trouxe da l-
tima vez esto pendurados no escritrio de meu flho.
- Ele no est em casa hoje?
- No. Est na universidade, e minha mulher foi assi-
stir a uma apresentao de Ningyo Joruri
24
.
- Agrada-me que esteja sozinho - murmurou Keiko
quase imperceptivelmente, e foi buscar o quadro que
havia deixado na entrada.
A tela estava numa moldura simples de madeira clara.
A cor dominante era o verde, mas Keiko ousadamente
empregara outras cores, ao sabor de sua fantasia, de
modo que toda a superfcie da tela parecia vibrar e ondu-
lar.
- Para mim, sr. Oki, esta uma pintura realista. So as
plantaes de ch em Uji.
- No diga! Plantaes de ch? - Oki observava a
tela. - Eu diria que elas so sacudidas por vagas e trans-
bordam de juventude. De incio pensei que se tratava, ab-
stratamente, de um corao em chamas.
- Isso me faz to feliz! Saber que o senhor a interpretou
dessa maneira
Keiko ajoelhou-se atrs de Oki, o queixo quase
roando seu ombro. Oki sentia a respirao doce e quente
em seus cabelos.
- Sr. Oki, fco to feliz que tenha reconhecido meu cor-
ao nesta pintura - insistiu Keiko -, embora s tenha re-
tratado algumas desajeitadas touceiras de ch
- H tanta juventude nelas!
- que estive nas plantaes de ch para desenhar
ao vivo, mas foi somente durante os primeiros trinta
minutos mais ou menos que vi os arbustos de ch e os sul-
cos na terra
- Como assim?
- Estava tudo muito calmo, de repente umas curvas de
um verde bem claro comearam a se mexer e a ondular, e
eis o resultado. No uma tela abstrata.
- Mesmo na poca dos novos brotos, sempre pensei
que o verde das plantaes de ch fosse mais discreto.
- Sr. Oki, desconheo a discrio, tanto na minha pin-
tura como nos meus sentimentos
- Mesmo nos seus sentimentos? - Ao se virar, o ombro
de Oki roou de leve os seios suaves da jovem. Seu olhar
se deteve numa de suas orelhas.
- Se voc continuar assim, vai acabar tendo uma des-
sas lindas orelhas cortada!
- No sou um gnio como Van Gogh! Vai ser preciso
que algum a arranque de mim com seus dentes
Surpreso com as palavras da jovem, Oki voltou-se
bruscamente. Keiko perdeu o equilbrio e agarrou-se a
ele.
- Tenho horror dos sentimentos discretos - disse ela,
sem alterar sua posio.
Seria sufciente uma simples presso do brao de Oki
para que Keiko casse sobre seus joelhos, a cabea para
trs como espera de um beio.
Oki, porm, no fez um gesto e Keiko tambm no se
moveu.
- Sr. Oki - murmurou Keiko, os olhos fxos nos dele.
- Suas orelhas so adorveis - observou Oki -, mas seu
perfl tem uma beleza deslumbrante!
- O que o senhor diz me d prazer! - O longo pescoo
delgado da jovem corou levemente. - Enquanto eu viver,
jamais esquecerei o que o senhor acaba de me dizer. Mas
quem sabe quanto tempo poder durar essa beleza? Para
uma mulher, um pensamento bem triste.
Oki no respondeu.
- Nada mais embaraoso para uma mulher do que
ser observada por um homem, mas qualquer mulher
fcaria feliz em parecer bela a algum como o senhor!
Oki fcou surpreso com o calor dessas palavras. Era
como se ela tivesse pronunciado um sussurro de amor.
- Eu tambm estou encantado - disse Oki com voz
grave. - Embora haja ainda tantas coisas lindas a descobrir
em voc.
- O senhor acha? Eu no sei, sou apenas uma pintora,
no uma modelo
- Um pintor pode ter um modelo que pose para ele,
um escritor no. Isso algo que eu invejo.
- Se posso lhe ser til
- Voc muito gentil.
- Eu lhe disse h pouco que no me importaria com o
que o senhor escrevesse a meu respeito. Sinto apenas no
ser to bonita quanto uma jovem nascida de seus sonhos
ou de sua imaginao.
- Eu deveria ser abstrato ou realista?
- Como preferir
- No entanto, o modelo de um pintor e o de um escrit-
or so totalmente diferentes.
- Sei disso. - Keiko moveu seus grossos clios. - No en-
tanto, este quadro que pintei, por mais infantil que seja,
no uma plantao de ch, retratada ao vivo.
Na verdade, acabei pintando a mim mesma
- assim com todos os quadros, no? Quer se trate de
pintura abstrata ou fgurativa. Para um pintor, o modelo
s um corpo. Para um escritor, deve ser antes de tudo
um ser humano, no importa o quanto ele escreva sobre
fores ou paisagens.
- Sr. Oki, eu sou um ser humano!
- Um ser humano de grande beleza - disse Oki, ofere-
cendo seu brao para ajud-la a se levantar. - Um modelo
que posa nu para umpintor necessita somente manter sua
pose, mas isso no seria sufciente para um escritor
- Eu sei.
- Sabe?
- Sim.
Oki fcou um pouco confuso com a determinao da
jovem.
- Talvez eu me inspire em seus traos para uma das
personagens de meu romance
- Isso no me parece muito interessante! - retorquiu
Keiko graciosamente.
- Ah, como as mulheres so estranhas! - Oki tentava se
esquivar. - Algumas j me disseram estar convencidas de
terem servido de modelo para este ou aquele de meus liv-
ros, ao passo que so para mim totalmente desconhecidas
e eu no tenho a menor ligao com elas Que tipo de
fantasia essa?
- Muitas mulheres so infelizes e encontram consolo
nas fantasias a que se entregam.
- No teriam o esprito um pouco transtornado?
- fcil transtornar o esprito de uma mulher. O sen-
hor j experimentou, sr. Oki? - Oki no soube o que re-
sponder a essa pergunta inesperada. - Ou talvez o senhor
apenas espere friamente at que isso acontea por si s?
Oki, embaraado novamente, fugiu pergunta.
- De qualquer maneira, bem diferente ser o modelo
de um escritor. , no fm das contas, um sacrifcio gra-
tuito.
- Eu adoro me sacrifcar! Fazer sacrifcios por algum
um pouco a razo de minha vida.
As afrmaes de Keiko continuavam a surpreender
Oki.
- No seu caso, um sacrifcio voluntrio. Mas, em
compensao, voc exige do outro o sacrifcio de
- No, sr. Oki. No verdade. Na origem de todo sac-
rifcio existe um amor, uma aspirao voltada para al-
guma coisa.
- por Otoko que voc est se sacrifcando agora? -
Keiko no respondeu. - Estou certo, no?
- Talvez estivesse, mas Otoko uma mulher, e h algo
de impuro quando uma mulher devota assim sua vida a
uma outra mulher.
- Isso eu no saberia dizer.
- Elas podem se destruir, uma outra
- Destruir?
- Sim. - Um segundo depois ela prosseguiu: - Entenda,
detesto ter qualquer dvida. Mesmo que dure s cinco ou
dez dias, quero me entregar a algum que me faa esque-
cer completamente de mim.
- Isto me parece difcil, mesmo no casamento!
- J tive propostas de casamento, mas no desse tipo
de sacrifcio que estou falando. Sr. Oki, no gosto de ter
de refetir sobre mim mesma. J lhe disse, tenho um ver-
dadeiro horror pelos sentimentos contidos.
- Voc parece acreditar que no lhe resta outro cam-
inho seno se suicidar alguns dias depois de ter encon-
trado o homem de sua vida!
- O suicdio no me amedronta. Viver desiludida, sem
vontade de viver, muito pior. Eu fcaria feliz se o senhor
me estrangulasse, mas, antes disso, teria de me tomar
como modelo
Oki tentou afastar o pensamento de que Keiko tivesse
vindo s para seduzi-lo. Talvez ela no fosse uma mulher
to astuciosa. De qualquer modo, podia se revelar um
modelo interessante para um de seus romances. No ent-
anto, era bem provvel que um caso amoroso seguido de
separao a conduzisse, tal como acontecera a Otoko, a
uma clnica psiquitrica.
Este ano, nos primeiros dias da primavera, quando
Oki sara para admirar o crepsculo nas colinas ao norte
de Kamakura, Keiko tinha se apresentado em sua casa
com duas de suas telas, e Taichiro a recebera. Segundo o
que a prpria Keiko contara, ele, em vez de acompanh-la
estao, a levara at a praia na beira do oceano.
Taichiro, sem dvida alguma, se deixara seduzir pelo
encanto da jovem.
"Ele no! Ela o destruiria!", pensou Oki, dizendo para
si mesmo que no experimentava nenhum cime em re-
lao a seu flho.
- Espero que o senhor pendure este quadro no seu es-
critrio - disse Keiko.
- Por que no? - respondeu Oki sem entusiasmo.
- Gostaria que o senhor o visse uma vez, j de noite,
num quarto pouco iluminado. Ento, o senhor ver o
verde das plantaes recuar e se dissolver l no fundo en-
quanto as diversas cores da minha fantasia viro futu-
ando para a frente.
- Imagino que isso me daria estranhos sonhos.
- Que espcie de sonhos?
- Sonhos de juventude, sem dvida.
- O senhor est sendo amvel!
- Afnal de contas, voc jovem! Pode-se ver a in-
funcia de Otoko nestas linhas curvas e ondulantes, mas
o verde surpreendente da folhagem inteiramente seu -
disse Oki.
- Basta pendurar este quadro por um dia. Depois, pou-
co me importa que ele ajunte p num canto de seu
armrio. uma pintura ruim. Voltarei em pouco tempo
para estraalh-la com o estilete!
- O qu?
- Estou falando srio. - O rosto de Keiko estava espan-
tosamente sereno. - uma pintura ruim. Mas, se o senhor
a pendurar s por um dia em seu escritrio
Oki no soube o que dizer. Keiko abaixou a cabea.
Da retomou: - Eu me pergunto, sr. Oki, se diante dessa
estranha pintura, o senhor ter realmente algum sonho
- Eu no deveria dizer isso, mas temo que ela me leve
a sonhar sobretudo com voc - respondeu Oki.
- Pouco importa, sonhe com o que quiser - Um leve
rubor tingiu as lindas orelhas de Keiko. - Todavia, sr. Oki,
o senhor nada fez que lhe permita sonhar comigo - ela
completou, erguendo para Oki seus olhos levemente ene-
voados.
- Deixe que eu a acompanhe, tal como fez meu flho na
ltima vez que voc veio. No h ningum em casa, por
isso no posso oferecer-lhe jantar. Chamarei um txi.
O txi atravessou Kamakura e seguiu para a praia de
Shichiri. Keiko mantinha-se em silncio.
Tanto o cu como o oceano estavam cinzentos. O txi
os deixou em frente ao marineland de Enoshima.
Oki comprou pedaos de polvo e de cavala para dar
aos golfnhos. Eles saltavam fora d'gua para apanhar
comida das mos de Keiko. Esta, entusiasmando-se cada
vez mais, segurava-a em alturas cada vez maiores. Os
golfnhos subiam sempre mais alto e roubavam rapida-
mente a isca. Keiko estava to deslumbrada quanto uma
menininha.
Nem se deu conta de que comeava a chover.
- Vamos embora antes que a chuva aumente - insistiu
Oki. - Sua saia j est molhada.
- Mas to divertido!
Quando tornaram a subir no txi, Oki disse: - Alguns
cardumes de golfnhos s vezes passam por aqui, do
outro lado da baa, um pouco alm de Ito. Parece que eles
so pescados perto da praia; os homens tiram as roupas,
entram na gua e os capturam com as prprias mos. Os
golfnhos no resistem quando se fazem ccegas debaixo
de suas barbatanas.
- Coitados
- Eu me pergunto se uma moa bonita resistiria.
- Que idia repugnante! Pois bem, imagino que ela iria
lufar, unhar e arranhar!
- Provavelmente os golfnhos so mais gentis
O txi chegou a um hotel no alto de uma colina que
dominava Enoshima. A ilha estava toda cinza e, es-
querda, a pennsula de Miura mergulhava na bruma.
Caam grossas gotas de chuva e um nevoeiro espesso,
bastante comum nessa poca do ano, envolvia todas as
coisas. Mesmo os pinheiros mais prximos estavam vela-
dos pela neblina.
Quando chegaram ao quarto, a umidade j tinha al-
canado suas peles.
- impossvel voltarmos - disse Oki. - Mesmo de
carro, seria perigoso com este nevoeiro.
Keiko aquiesceu. Oki surpreendeu-se ao ver que ela
no parecia nem um pouco aborrecida com isso.
- Estamos muito molhados. Vamos tomar um banho
antes do jantar- props Oki, esfregando a mo no rosto.
- Keiko, e se ns brincssemos de golfnhos?
- O senhor diz mesmo coisas repulsivas! Est me
colocando no mesmo saco com um peixe! Faz tanta
questo assim de me insultar? Brincar de golfnhos!
Keiko se apoiou contra a peitoril da janela.
- Como o oceano sombrio!
- Desculpe-me.
- Se, pelo menos, tivesse dito que queria me ver nua
ou sem dizer nada tivesse me tomado em seus braos
- Voc no resistiria?
- Sei l Mas propor brincar de golfnhos humil-
hante! Eu no sou uma vagabunda, saiba disso! O senhor
parece to depravado.
- Pareo? - disse Oki e foi para o banheiro.
Depois de tomar uma ducha, Oki lavou rapidamente a
banheira e comeou a ench-la. Quando saiu do banheiro
esfregando o corpo comuma toalha, seus cabelos estavam
todos espetados.
- V - disse ele, sem olhar para Keiko. - Preparei um
banho para voc, a banheira j deve estar quase cheia.
Keiko, o rosto grave, mirava o oceano.
- Est chuviscando, agora. Mal d para ver as ilhas ou
a pennsula
- Voc est triste?
- Odeio a cor dessas ondas.
- Voc deve estar toda molhada. Por que no toma um
banho? Vai se sentir melhor.
Keiko concordou e entrou no banheiro. Oki no ouviu
o rudo da gua. Keiko, porm, voltou com o corpo fresco
e lavado. Sentou-se diante do espelho de trs faces e abriu
a bolsa. Oki aproximou-se por trs.
- Lavei a cabea no chuveiro, meus cabelos esto todos
arrepiados Achei um pouco de brilhantina, mas no
gosto do cheiro.
- Experimente ento este perfume. - Keiko lhe ofereceu
um pequeno frasco.
Oki o cheirou.
- Devo usar isso junto com a brilhantina?
- S algumas gotas - respondeu Keiko, sorrindo.
Oki agarrou a mo da jovem.
- Keiko, no se pinte
- Est me machucando! - Keiko reclamou, virando-se
para Oki. - O senhor realmente estpido!
- Gosto do seu rosto assim como est. Esses dentes to
belos, essas sobrancelhas - Oki encostou os lbios na
face exuberante da jovem.
O banquinho da penteadeira balanou, Keiko perdeu
o equilbrio e deixou escapar um leve grito. Os lbios de
Oki caram sobre os seus.
Foi um longo beio.
Oki desviou a boca para tomar flego.
- No, no pare, beie-me - pediu Keiko, puxando-o
para si.
Oki, atordoado, tentou esconder sua perplexidade!
- Nem os pescadores de prolas conseguem fcar tanto
tempo debaixo d'gua. Voc vai desmaiar!
- Faa-me desmaiar!
- evidente que as mulheres tm mais flego que os
homens. - Como se fosse um jogo, Oki beiou-a de novo
longamente. Da, ofegante, tomou a jovem em seus braos
e a estendeu sobre a cama. Keiko enrodilhou-se como um
novelo.
Apesar de ela no opor nenhuma resistncia, Oki
custou a fazer com que ela se desenrolasse. Quando fcou
claro que Keiko no era virgem, ele passou a agir com um
pouco mais de agressividade.
Foi ento que Keiko gritou num lamento: - Oh!
Otoko, Otoko!
- O qu?
Oki pensou que a jovem tivesse gritado seu nome,
mas todas as suas foras o abandonaram quando com-
preendeu que era Otoko quem ela havia chamado.
- O que voc disse? Otoko? - Sua voz estava seca. Sem
responder, Keiko o empurrou para longe.
* * *
PAISAGENS DE PEDRA
Em Kyoto, ainda hoje, so muitos os monastrios com jardins
de pedra. Os mais clebres so os de Saiho-ji
25
, do Pavilho de
Prata, do Ryoan-ji
26
, do Daitoku-ji, do Myshinji.
Mas o mais famoso de todos aquele de Ryoan-ji, do qual se
diz, no semrazo, que encarna a essncia da esttica zen. Nen-
hum outro jardim de pedras pode se comparar s suas clebres
ordenaes de rochas.
Otoko conhecia bem todos esses jardins. Este ano, no fm da
estao de chuvas, ela foi ao Saiho-ji com a inteno de fazer
alguns desenhos. No que ela se julgasse capaz de pintar o seu
jardim de pedras; desejava apenas absorver um pouco de sua
fora.
No era esse um dos mais antigos e poderosos jardins de
pedra? Otoko realmente no desejava pint-lo. Que contraste
faziam os arranjos de pedras atrs do monastrio com a doura
do cho recoberto de musgos mais abaixo! No fossemas idas e
vindas dos visitantes, Otoko adoraria sentar-se ali em contem-
plao. Se ela abriu seu caderno de desenhos, foi sem dvida
para no despertar suspeitas nos passantes que a viam observ-
ando ora num canto, ora noutro.
O Saiho-ji foi restaurado em 1339 pelo bonzo Muso Kok-
ushi
27
, que reergueu o prdio principal e escavou umlago onde
construiu uma ilhota. Diz-se que ele costumava conduzir os
visitantes at um pavilho no alto da colina, de onde se
podia apreciar o panorama de Kyoto.
Todas essas construes foram caindo em runas e o
jardim, arrasado por inundaes, tambm tivera de ser
restaurado inmeras vezes. O jardim atual estava dis-
posto ao longo de um caminho margeado por lanternas
de pedra que conduzia ao antigo pavilho sobre a colina.
L estavam, representados na paisagem seca, um riacho e
uma cascata, que, provavelmente pela natureza do mater-
ial de que eram feitos, quase no haviam se transformado
com o passar do tempo.
Mais tarde, o flho mais novo de Sen Rikyu
28
, Shoan,
ali se refugiara. Essas referncias histricas, porm, no
tinham nenhum interesse para Otoko, que viera ao Saiho-
ji apenas para contemplar e desenhar as paisagens de
pedras. Keiko seguia-a como uma sombra.
- Otoko, todas as paisagens de pedras so abstratas,
no? - disse Keiko certa vez. - Em pintura, h um pouco
dessa mesma fora no quadro que Czanne pintou das
rochas de L'Estaque.
- Voc o viu? claro que ali era uma paisagem real,
talvez no penhascos imensos, mas blocos macios de
pedras ao longo da margem
- Otoko, se voc pintar este jardim, seu quadro ser
abstrato. Eu no teria a fora de representar estas pedras
nem de modo realista.
- Talvez. De minha parte, tambm no me sinto com
coragem bastante
- E se eu tentasse s um esboo grosseiro?
- Sem dvida, ser o melhor. Sua pintura das
plantaes de ch fcou muito interessante, cheia de vigor.
Voc tambm a levou para a casa do sr. Oki, no?
- verdade. A essa altura, sua mulher j deve t-la
rasgado e feito em pedacinhos Passei a noite com ele
num hotel em Enoshima. Ele me pareceu bastante de-
pravado, mas, quando gritei seu nome, ele se acalmou
num instante Ele ainda a ama e sente remorsos. Foi o
sufciente para despertar meu cime
- Mas que diabo est pensando em fazer?
- Quero destruir essa famlia. Para ving-la.
- Me vingar?
- No agento mais. Voc ainda est apaixonada por
ele. Apesar de tudo o que ele a fez passar, voc o ama.
Como as mulheres so burras! isso que no consigo
suportar!
- Calou-se. - por isso que sou ciumenta.
- mesmo?
- Sou.
- por cime que voc passou a noite com ele nesse
hotel de Enoshima? Se ainda o amo, no seria eu quem
deveria estar com cime?
- Mas voc est!
Otoko no respondeu.
- Eu gostaria tanto que voc estivesse com cime!
O pincel com que Keiko desenhava passou a se mover
com mais rapidez.
- No consegui pegar no sono l no hotel. O sr. Oki,
esse dormiu com ar satisfeito! Tenho horror dos homens
de cinqenta anos
Confusa, Otoko comeou a se perguntar se eles teriam
dormido numa grande cama de casal ou em camas de
solteiro, lado a lado; mas no teria coragem de perguntar
a Keiko.
- Ele dormia profundamente. Era uma sensao deli-
ciosa saber que eu podia estrangul-lo logo ali
- Voc uma pessoa perigosa!
- Foi apenas um pensamento. Mas to agradvel que
no consegui pegar no sono.
- E voc diz que fez tudo isso por mim? - A mo de
Otoko, que fazia alguns esboos do jardim de pedras, tre-
meu levemente. - No posso acreditar.
- claro que foi por voc que fz tudo isso.
O comportamento equivocado da jovem comeava a
assustar Otoko.
- Keiko, eu lhe peo, no volte mais quela casa. Nin-
gum sabe o que pode acontecer.
- Quando voc estava no hospital, Otoko, nunca pen-
sou em mat-lo?
- Nunca. Talvez eu estivesse com o esprito perturb-
ado, mas matar algum
- Voc no sentia dio dele? Voc o amava demais
para isso?
- E, alm do mais, havia o beb
- O beb? - Keiko hesitou. - Quem sabe eu poderia ter
um com ele?
- O qu?
- E a o levaria runa.
Atnita, Otoko ftou a jovem. Como podiam, desse
pescoo longo e delicado, desse perfl maravilhoso, brotar
palavras to monstruosas?
- Certamente, se quisesse, poderia ter uma criana dele
- disse Otoko, dominando-se. - Mas voc sabe o que isso
signifca? Se voc tiver um beb, no fcarei mais com vo-
c. E ver que, quando for me, no vai falar mais como
agora. Tudo mudar em voc.
- No mudarei jamais.
O que havia realmente se passado no hotel de Enoshi-
ma? Otoko se perguntou se os argumentos de Keiko no
escondiam alguma outra coisa. O que ela tentava afnal
dissimular por trs de expresses to violentas como
cime ou vingana?
Otoko fechou os olhos e refetiu: poderia ela, ainda ho-
je, sentir cime de Oki? As pedras do jardim permane-
ciam como uma sombra no fundo de seus olhos.
- Otoko, Otoko! - Keiko passou a mo em torno de seu
ombro. - Est tudo bem? Voc fcou to plida de repente.
- E beliscou-a com fora debaixo do brao.
- Di! - Otoko cambaleou e caiu sobre um joelho.
Keiko ajudou-a a se erguer.
- Otoko, voc tudo para mim. Tudo.
Sem dizer um palavra, Otoko enxugou o suor frio em
sua testa.
- Se voc continuar assim, Keiko, ser muito infeliz.
Terrivelmente infeliz pelo resto de sua vida
- No tenho medo da infelicidade.
- Diz isso porque jovem e bonita
- Enquanto puder estar com voc, serei feliz.
- Fico contente, mas, no fm das contas, eu sou uma
mulher.
- Odeio os homens - replicou Keiko num tom cort-
ante.
- No adianta - disse Otoko tristemente. - Mesmo os
nossos gostos emmatria de pintura so muito diferentes.
Se fcarmos muito tempo juntas
- Eu detestaria ter um professor que pintasse como
eu
- H muitas coisas que voc detesta - disse Otoko,
reencontrando um pouco a sua calma. - Quer me mostrar
seu caderno de desenhos?
- Sim.
- O que isso?
- No seja ruim. No v que o jardim de pedras?
Olhe bem Fiz uma coisa de que no me julgava capaz!
Enquanto o estudava, Otoko empalideceu outra vez.
primeira vista, no se compreendia o que represen-
tava esse desenho a nanquim, mas era possvel sentir ali a
vibrao de uma vida misteriosa. At o momento, Keiko
nunca fzera algo parecido.
- Ento aconteceu mesmo alguma coisa importante em
Enoshima. - Otoko tremia.
- Eu no chamaria de importante.
- Voc nunca fez um desenho como esse antes.
- Otoko, se quer saber, ele no nem capaz de dar um
beio demorado.
Otoko fcou calada.
- Ser que todos os homens so assim? Foi a minha
primeira experincia com um homem, voc sabe.
Hesitante quanto a que sentido dar a essa "primeira
experincia", Otoko continuou a examinar o desenho de
Keiko.
- Como eu gostaria de ser uma das pedras desse
jardim! - disse ela afnal.
Nesse jardim do monge Muso, sobre o qual sculos
haviam se escoado, as pedras revelavam tamanho ar de
antigidade e tinham adquirido uma patina tal que se po-
dia perguntar se fora a natureza ou a mo do homem
que as dispusera desse modo. Mas ao considerar suas
formas rgidas e angulosas, que pesavam sobre Otoko
quase como uma fora espiritual, no restava dvida de
que se tratava ali de obra humana.
- Keiko, e se ns voltssemos para casa? Essas pedras
esto comeando a me dar medo.
- Est bem.
- No estou conseguindo sentar aqui e meditar. Vamos
embora - disse Otoko, pisando em falso ao se levantar. -
Eu sabia que no chegaria a pint-las. So abstratas de-
mais, mas acho que voc conseguiu captar alguma coisa
nesse esboo que fez.
- Otoko - Keiko segurou-lhe o brao. - E se brincsse-
mos de golfnhos em casa?
- Brincar de golfnhos? Oque que voc est querendo
dizer?
Keiko riu um riso travesso e avanou para um bosque
de bambus, sua esquerda, parecido ao que se via em al-
gumas fotografas do jardim do templo.
Otoko parecia mais exausta que triste enquanto cam-
inhava na beira do bosque de bambus.
- Otoko! - Keiko chamou-a e bateu-lhe de leve no om-
bro. - Ser que essas pedras vo faz-la perder a cabea?
- No, mas eu adoraria passar aqui dias inteiros a
contempl-las, sem pincis nem cadernos de desenho
O rosto de Keiko, como de costume, explodia de vi-
talidade: - E, no entanto, so apenas pedras, no? Talvez
voc veja a uma espcie de fora que se irradia, assim
como certa beleza no musgo que as recobre, mas pedras
so pedras
Keiko prosseguiu: - Eu me lembro de um haikai de
Yamaguchi Seishi emque se fala de olhar o mar da manh
noite, dia aps dia, da retornar a Kyoto e compreender
o que um jardim de pedras realmente signifca.
- Omar e umjardim de pedras? Se se pensa no oceano,
os imensos rochedos, os penhascos, ento os arranjos de
pedras so s obra do homem Seja o que for, no me
sinto capaz de pint-los.
- Otoko, uma composio abstrata criada pelo
homem. Tenho a impresso de que eu poderia pintar
estas pedras minha maneira, utilizando as cores que
quisesse
Aps uma pausa, Keiko perguntou: - De quando so
estes jardins?
- No sei bem, mas creio que eles no existiam antes
do Perodo Muromachi.
- E essas pedras e essas rochas, que idade tero?
- No tenho a menor idia.
- Voc gostaria de pintar um quadro que durasse mais
tempo do que essas pedras?
- Nunca aspirei a uma coisa dessas. - Otoko parecia
inquieta. - Mas voc no acha que durante todos esses
sculos as rvores deste monastrio, assim como as do
jardim da Vila Imperial de Katsura
29
, cresceram, envelhe-
ceram, sofreramtempestades e so hoje bemdiferentes do
que eram no passado? As paisagens de pedra, essas sem
dvida permaneceram as mesmas.
- Otoko, prefro que as coisas mudem e desapaream.
A esta altura, a esposa do sr. Oki j deve ter feito em ped-
aos a minha pintura das plantaes de ch. Por causa
dessa noite em Enoshima - disse Keiko.
- No entanto, era uma pintura muito interessante!
- Acha?
- Keiko, voc tem a inteno de levar todas as suas
melhores obras para o sr. Oki?
- Sim, at que eu complete minha vingana.
- J lhe disse no sei quantas vezes que no quero mais
ouvir falar de vingana!
- Eu entendo. O que no posso entender bem esta
raiva, esta obstinao bem feminina que sinto em mim.
Este cime tambm
- Este cime - repetiu Otoko com a voz baixa e
trmula, agarrando os dedos de Keiko.
- Otoko, no fundo do seu corao, voc ainda ama o sr.
Oki. E ele tambm a ama secretamente. Compreendi isso
naquela noite em que ouvimos os sinos.
Otoko no respondeu.
- Eu me pergunto se no prprio dio que uma mulher
sente no h tambm um pouco de amor.
- Keiko, como voc pode dizer uma coisa dessas, ainda
mais num lugar como este?
- Talvez porque eu seja muito jovem. Quando vejo es-
sas pedras, imagino os homens que as dispuseram an-
tigamente nesta ordem. No entanto, ainda no consigo
ler seus coraes. Foram necessrios sculos para que as
pedras adquirissem essa ptina, mas eu me pergunto: que
aspecto elas teriam quando novas?
- Acho que fcaria desapontada.
- Se eu fosse pint-las, empregaria as formas e as cores
que me agradassem e mostraria essas pedras como se elas
tivessem acabado de ser dispostas assim.
- Talvez voc chegue a pint-las.
- Otoko, este jardim de pedras vai durar muito mais
tempo do que voc e eu.
- Certamente. Contudo, ele no durar eternamente
- A essas palavras, Otoko estremeceu repentinamente.
- Pouco me importa que minhas pinturas tenham vida
breve ou sejam destrudas imediatamente desde que eu
esteja ao seu lado
- Voc diz isso porque jovem
- Quase chego a gostar que a esposa de Oki destrua
meu quadro. A eu saberia que foi a violncia de sua
emoo que a levou a agir assim. - Keiko fez uma pausa. -
Minhas pinturas no merecem mesmo ser levadas a srio.
- Voc no deveria dizer isso.
- No possuo dom algum e no fao questo de deixar
nenhuma de minhas obras para a posteridade. Tudo o
que desejo fcar com voc. Eu estava feliz s em cuidar
de voc, me encarregar das tarefas domsticas Da voc
quis dar as minhas primeiras lies de pintura Otoko
estava perplexa.
- isto o que voc pensa, Keiko?
- o que sinto no mais fundo do meu corao
- Mas, Keiko, estou convencida do seu talento. Voc j
chegou a pintar coisas surpreendentes!
- Como desenhos de criana? Quando pequena, eles
eram sempre pendurados na sala de aula!
- O que voc faz muito mais original do que aquilo
que eu fao. Algumas vezes, chego at a sentir inveja de
voc. Por isso, pare de dizer bobagens!
- Est bem - Keiko concordou de bom humor. - En-
quanto eu puder fcar ao seu lado, darei o melhor de mim.
Otoko, e se falssemos de outra coisa?
- Voc compreendeu bem?
- Sim - Keiko aquiesceu novamente. - Se voc no me
abandonar
- Como poderia? - retrucou Otoko. - No entanto
- No entanto o qu?
- Uma mulher deve se casar, ter flhos
- Ah, quanto a isso - Keiko riu abertamente -
muito pouco para mim!
- Tudo isso culpa minha. Perdoe-me. - Otoko
afastou-se cabisbaixa e arrancou a folha de uma rvore.
Durante algum tempo, caminhou em silncio.
- Otoko, as mulheres so criaturas das quais se deve
ter pena. Um rapaz no se apaixonaria jamais por uma
mulher de sessenta anos, enquanto uma adolescente pode
fcar verdadeiramente apaixonada por um homem de cin-
qenta ou sessenta anos, sem estar agindo por interesse
No acha, Otoko?
Otoko no soube o que responder a essas palavras in-
esperadas.
- Realmente, um homem como o sr. Oki um caso sem
esperana. Ele me toma por uma prostituta!
Otoko empalideceu.
- E isso no tudo. No momento crtico, eu gritei seu
nome, sem querer. E ele foi incapaz de continuar! De fato,
como se, por sua causa, ele tivesse me insultado.
Otoko tornou-se ainda mais plida. Seus joelhos
fraquejaram.
- Em Enoshima? - indagou fnalmente.
- Sim.
Otoko foi incapaz de protestar. O txi as deixara em
casa.
- Talvez tenha sido isso que me salvou - Keiko no
conseguiu impedir que o rubor lhe subisse s faces. -
Otoko, e se eu tivesse esta criana por voc?
Num mpeto, Otoko esbofeteou a jovem. As lgrimas
brotaram em seus olhos.
- Ah, bom! - disse Keiko. - Bata de novo, Otoko!
Otoko tremia.
- Bata de novo - repetiu Keiko.
- Keiko, pare com isso! - Otoko balbuciou.
- No seria meu beb. Quero que seja seu. Eu o car-
regaria e, depois, o daria de presente a voc. Por voc eu
roubaria esse beb do sr. Oki
De novo, Otoko a esbofeteou violentamente. Keiko
comeou a soluar.
- Otoko, por mais que voc ame o sr. Oki, no pode
mais ter um flho dele. No pode mais! Para mim, pos-
svel. Seria um pouco como se voc tivesse colocado essa
criana no mundo
- Keiko! - Otoko foi at a varanda e, descala, deu um
pontap numa gaiola cheia de pirilampos, fazendo-a rolar
para o jardim.
Nesse instante, os pirilampos emitiram um brilho fo-
sco. O cu desse longo dia de vero comeava a se en-
cobrir e uma nvoa quase imperceptvel pairava sobre o
jardim.
Porm ainda era claro como de dia. Parecia quase im-
possvel que os pirilampos tivessemespalhado esse brilho
esbranquiado; talvez Otoko tivesse sonhado. Ela per-
maneceu de p, as pernas tensas a olhar fxamente a
gaiola de pirilampos revirada sobre a relva.
Keiko parou de soluar. Retendo a respirao, estudou
Otoko silenciosamente. Ela no tentara se esquivar da
bofetada. Ajoelhada na esteira do cho, apoiava-se sobre
a mo direita, permanecendo nessa posio sem fazer um
gesto. Por um instante, foi como se a rigidez de Otoko
tivesse se transmitido ao corpo da jovem.
- Ah, srta. Ueno! A senhora j chegou? - disse Omiyo.
- Eu lhe preparei um banho.
- Ah, obrigada. - A voz de Otoko custou a sair. Ela sen-
tia, sob o obi, seu quimono encharcado de suor colando-se
desagradavelmente em seu corpo. Seu peito estava igual-
mente coberto de suor frio. - No est to quente e, no en-
tanto, este tempo terrvel! Essa umidade Pelo jeito, a
estao das chuvas ainda no terminou.
Ou ento est de volta - Otoko prosseguia, sem ftar
Omiyo. - Obrigada pelo banho!
Omiyo trabalhava como empregada no monastrio e
tambm prestava alguns servios a Otoko. Ela arrumava
a casa, lavava as roupas, as louas, punha a cozinha em
ordem e, s vezes, preparava as refeies. Embora Otoko
gostasse de cozinhar e o fzesse at muito bem, estava por
demais absorvida em sua pintura, e cuidar da cozinha
tornara-se para ela uma tarefa entediante. Keiko, ao con-
trrio das aparncias, era bastante bem-dotada para pre-
parar algumas delicadas especialidades de Kyoto, mas
no se podia contar com ela. Dessa maneira, as duas mul-
heres normalmente se contentavam, no almoo e no
jantar, com os pratos simples de Omiyo.
Omiyo, que devia estar com 53 ou 54 anos, trabalhava
havia seis no monastrio e no permanecia nunca ociosa.
Como duas outras mulheres viviam no monastrio - a
me e a jovem esposa do mestre -, Omiyo podia consagrar
muito de seu tempo a Otoko. Ela era uma mulher de baixa
estatura, com punhos e tornozelos to inchados que pare-
ciam estar amarrados com cordas.
Corpulenta e de rosto radiante, Omiyo observou a
gaiola de pirilampos sobre a relva.
- A senhorita vai deixar os pirilampos assim no ser-
eno? - indagou ela, pisando nas pedras e aproximando-
se da gaiola revirada no cho. Abaixou-se e a endireitou,
mas no a tirou dali, como se achasse que seu lugar fosse
ali no jardim.
Otoko desaparecera no banheiro, e Omiyo encontrou-
se frente a frente com Keiko. Os olhos midos da jovem
tinham um brilho penetrante. Omiyo abaixou a cabea.
Parecia ter-se passado alguma coisa, pois, apesar da pal-
idez de seu rosto, uma das faces de Keiko estava total-
mente vermelha.
- Oque h, senhorita? - perguntou Omiyo, semquerer.
Keiko no respondeu e levantou-se, a expresso dos
olhos inalterada. Ouviu o rudo da gua no banheiro.
Otoko devia ter aberto a gua fria para temperar o banho.
A banheira j devia ter transbordado e, no entanto, a
gua continuava a correr.
Keiko aproximou-se do espelho na parede do estdio,
tirou de sua bolsa um estojo com o qual retocou a ma-
quiagem e, em seguida, penteou os cabelos com um
pequeno pente de prata. No quarto de vestir, diante do
banheiro, havia um espelho de corpo inteiro e uma pen-
teadeira.
Keiko hesitou em entrar nesse quarto em que Otoko
se despira. Pegou o primeiro quimono que encontrou na
gaveta de cima de um armrio, mudou as roupas de baixo
e vestiu o quimono, enfando as longas mangas de baixo
por entre as outras mangas, tentando acertar a gola. Seus
gestos, porm, eram desajeitados.
Nesse momento o nome de Otoko brotou em seus
lbios. Abaixando a cabea, Keiko enxergou Otoko nos
motivos impressos sobre as mangas e na parte inferior de
seu quimono.
Fora Otoko que os criara para ela. As fores de vero
ali representadas eram to audaciosamente abstratas que
mal se podia acreditar que fosse ela quem as tivesse
desenhado. Pareciam ipomias, mas eram na verdade
fores imaginrias comumcolorido cheio de matizes, con-
forme a moda reinante. Do conjunto emanava uma im-
presso de frescor e jovialidade. Otoko desenhara essas
fores na poca em que ela e Keiko eram inseparveis.
- Srta. Sakami, vai sair? - perguntou Omiyo do quarto
ao lado.
- Por que est me olhando assim? - tornou Keiko, sem
se voltar. - Venha aqui.
Keiko notara que Omiyo examinava, com ar desconf-
ado, os seus esforos para ajustar as golas e dar um n na
cintura.
- Vai sair? - repetiu Omiyo.
- No, no vou.
Suspendendo a beirada de seu quimono com a mo
direita e levando o seu obi por sobre o brao esquerdo,
Keiko se encaminhou para o quarto de vestir logo em
frente ao banheiro.
- Omiyo, eu me esqueci dos talai
30
. Traga-me um
outro par, sim? - ela disse bruscamente.
Ouvindo os passos de Keiko, Otoko pensou que esta
viesse ao seu encontro no banheiro e chamou-a: - Keiko, a
gua est uma delcia!
Mas Keiko se demorava diante do espelho, amarrando
a fta ao redor da cintura. Apertou-a tanto que esta quase
penetrou em sua carne.
Omiyo trouxe os tabi e, sem dizer uma palavra, os de-
ps aos ps de Keiko. Em seguida, saiu.
- Venha logo! - gritou Otoko novamente.
Sentada na banheira com gua at o peito, Otoko ob-
servava a porta de madeira, esperando que Keiko en-
trasse a qualquer instante. Mas Keiko no a abriu. Nen-
hum som atravessava a porta, nem mesmo o rumor de
roupas sendo despidas.
Uma dvida apoderou-se de Otoko: e se Keiko relu-
tasse em tomar banho com ela? Sentindo-se, de sbito,
oprimida, Otoko agarrou-se borda da banheira e saiu da
gua.
Ser que Keiko no queria mais se mostrar nua sua
frente, depois daquela noite em Enoshima?
J haviam se passado mais de duas semanas desde
que Keiko voltara de Tquio. Ela aproveitara sua estada
na capital para visitar Oki e ele a levara a Enoshima. De-
pois de seu regresso a Kyoto, Keiko se banhara muitas
vezes com Otoko e fcara nua diante dela sem demonstrar
nenhum constrangimento. No entanto, fora somente hoje
que, diante da paisagem de pedras do Saiho-ji, ela con-
fessara bruscamente sua amiga ter passado a noite com
Oki, em Enoshima. Para Otoko, essa confsso era ainda
mais extraordinria e incompreensvel.
Com o passar dos anos, Otoko aprendera a conhecer,
dia aps dia, a espcie de moa que era Keiko, por quem
se sentira atrada e fascinada. Otoko, certamente, tinha al-
guma responsabilidade no comportamento ambguo da
jovem e, embora no houvesse nenhuma dvida de que
ela havia, de alguma maneira, atiado o fogo, no podia
se considerar a nica responsvel.
Enquanto esperava no banheiro, gotas frias de suor
escorriam de sua testa.
- Keiko, voc no vem? - perguntou.
- No.
- No vai tomar banho?
- No.
- Mas voc deve estar toda suada
- No estou. - Depois de uma pausa, Keiko continuou:
- Otoko, estou arrependida. Peo que me perdoe - Sua
voz soava lmpida.
- Que me perdoe - Otoko ecoou as palavras da
jovem. - Fui eu que me equivoquei. Eu que devo pedir
desculpas.
Keiko no disse nada.
- O que est fazendo a de p?
- Dando o n no meu obi.
- Como? Seu obi? - Desconfada, Otoko enxugou-
se rapidamente e abriu a porta de madeira. Keiko estava
deslumbrante em seu quimono.
- Vai sair?
- Vou.
- Aonde vai?
- No sei - respondeu Keiko. Seus olhos, normalmente
to brilhantes, estavam enevoados pela tristeza.
Como se envergonhada com sua prpria nudez,
Otoko cobriu-se com um leve quimono de algodo.
- Vou com voc.
- Est bem.
- Isso a aborrece?
- Claro que no, Otoko - respondeu Keiko, voltando-
lhe as costas. Seu perfl refetia-se na penteadeira. - Estou
esperando por voc.
- Est bem. No vou demorar. Pode me deixar passar
um instante? - Ela passou por Keiko e sentou-se diante da
penteadeira. Seus olhares se encontraram no espelho.
- Que tal irmos a Kiyamachi? No Ofusa Telefone. Se
no houver uma mesa no terrao, ento que nos reservem
uma pequena salinha no primeiro andar ou no importa
onde, desde que tenhamos a vista do rio Se isso no for
possvel, iremos a outro lugar.
- Muito bem- concordou Keiko. - Otoko, voc quer um
copo de gua com gelo?
- Estou com cara de estar sentindo tanto calor?
- Est.
- No se preocupe, no vou atirar um pedao de gelo
em seu rosto - disse Otoko, derramando algumas gotas
de loo na palma da mo esquerda.
Ao beber o copo de gua, Otoko sentiu o lquido cair
fresco em seu estmago.
Para telefonar, era necessrio ir at o prdio principal
do monastrio. Quando Keiko retornou, Otoko ainda se
vestia apressadamente.
- Poderemos ter uma mesa no terrao, desde que
cheguemos antes das oito e meia.
- Antes das oito e meia? - resmungou Otoko. - Est
bem. Se nos apressarmos um pouco, conseguiremos
jantar tranqilamente. - Puxando para perto de si os dois
espelhos laterais da penteadeira, Otoko se examinou. -
Meus cabelos fcam bem assim, no? - Keiko concordou.
Em seguida aproximou-se de Otoko e ajustou suave-
mente as pregas da costura nas costas de seu quimono.
* * *
O LTUS ENTRE AS CHAMAS
Nas Cenas Ilustres da Capital, h um trecho que com fre-
qncia citado e evoca a frescura das noites nas margens do rio
Kamo: Os terraos das casas de prazer, a leste e a oeste, domi-
nam as margens do rio, e suas luzes se refetem como estrelas
na gua enquanto as pessoas festejam, instaladas em cadeiras
baixas. As toucas roxas dos atores de Kabuki futuam na brisa
do rio - intimidados pelo brilho do luar, esses lindos jovens se
abanam com tal graa que ningum pensa em desviar deles o
olhar. As cortess esto no auge de sua beleza, mais delicadas
do que as rosas da China, e, enquanto passeiam de l para c,
delas emana um perfume de orqudeas e de almscar
Ento aparecem os contadores de histrias cmicas e os
mmicos: Havia macacos que interpretavam farsas, cachorros
que lutavam entre si, cavalos de circo, malabaristas que equi-
libravam travesseiros e ainda outros que se balanavam sobre
as cordas. Ouviam-se os gritos de um vendedor ambulante, os
rudos de gua vindo das lojas de tokoroten
31
, o tinir dos copos
como um brinde brisa da noite. Estranhos pssaros da China
e do Japo, animais selvagens vindos do fundo das montan-
has fcavam expostos a todos os olhares, enquanto gente de to-
das as condies se reunia para beber e festejar nas margens do
rio
Em 1690, o poeta Basho
32
tambm esteve nesses lugares e
escreveu: do pr-do-sol at o ltimo brilho da Lua ao aman-
hecer, instalado nas margens do rio comendo e bebendo
saque, que se deve gozar o frescor da noite de vero.
As mulheres atam seus obi de modo majestoso, os ho-
mens vestem seus haori (Pea ampla e bem curta que se
usa por cima do quimono. (N. do T.)), monges e ancies
misturam-se multido e mesmo os jovens aprendizes
tanoeiros e ferreiros cantam a plenos pulmes. Uma ver-
dadeira cena da capital!
Brisa do rio Nos ombros leve quimono Frescor de ver-
o Nas margens do rio h toda espcie de curiosidades,
pequenos teatros iluminados por lanternas de papel, lm-
padas a leo e fogueirinhas que brilham como de dia.
No fm da Era Meii
33
o leito do rio foi alargado, e no
princpio da Era Taisho
34
, os primeiros trens em direo
de Osaka comearam a correr na margem oriental do rio
Kamo.
Hoje, somente os terraos de Kami-Kiyamachi, de
Pontocho ou de Shimo-Kiyamachi perpetuavam, aos ol-
hos de Otoko, a lembrana das cenas que ali haviam se
desenrolado antigamente e que os livros evocavam: As
toucas roxas dos atores do Kabuki futuam na brisa do rio
- intimidados pelo brilho do luar, esses lindos jovens se
abanam com tal graa que
A imagem desses jovens atores ao luar, suas silhuetas
deslumbrantes mesclando-se multido, retornava com
freqncia ao esprito de Otoko.
Quando viu Keiko pela primeira vez, Otoko achou
que havia uma certa semelhana entre a jovem e esses be-
los atores de Kabuki.
Ainda agora, sentada no terrao da casa de ch de
Ofusa, Otoko lembrou-se desses tempos antigos.
Provavelmente tais atores de Kabuki deviam ser mais
femininos e graciosos do que aquela Keiko, com ar de
menino, com que se deparara no seu primeiro encontro.
Uma vez mais, Otoko se deu conta de que fora graas a
ela que Keiko se tornara fnalmente a moa deslumbrante
que era hoje.
- Keiko, lembra-se do dia em que voc veio pela
primeira vez minha casa? - perguntou ela.
- No vamos mais falar disso, Otoko.
- Pensei estar vendo um fantasma!
Keiko pegou a mo de Otoko, levou o dedo mindinho
boca, mordeu-o e ftou furtivamente a amiga. Da mur-
murou: - Era uma noite de primavera e uma leve bruma
azulada pairava sobre o jardim Voc parecia futuar na
bruma
Eram as prprias palavras de Otoko. Ela lhe revelara
que, por causa da bruma que envolvia o jardim, pensara
ter visto um fantasma. Keiko no esquecera essas palav-
ras e agora, por sua vez, as repetia.
Inmeras vezes as duas j haviam se lembrado dessas
frases. Keiko sabia perfeitamente que elas atormentavam
Otoko, faziam-na recriminar o apego que existia entre
ambas, e, no entanto, isto s reforava o fascnio que esse
apego produzia sobre ela.
Na casa de ch vizinha, nos quatro cantos do terrao,
haviam sido montadas lanternas de papel. Uma gueixa e
duas maiko faziam companhia a um cliente corpulento e
j calvo, apesar de no ser to idoso. O homem olhava
o rio e concordava, distante, com a conversa das duas
jovens maiko. Estaria espera de um amigo ou do cair da
noite? As lanternas haviam sido acesas ainda cedo, o cu
estava claro e elas pareciam inteis.
O terrao vizinho era to prximo daquele onde es-
tavam Otoko e Keiko que lhes bastaria esticar o brao
para poderem toc-lo. Os terraos que dominavam o rio
tinham sido construdos como grandes sacadas salientes,
sem teto e sem cortinas a separ-los uns dos outros. As
duas amigas podiam ver no s o que se passava ao
lado delas, mas tambm abaixo. Essa sucesso de terraos
acentuava a sensao de frescor beira do rio.
Sem a mnima preocupao de estar sendo vista pelos
clientes, Keiko mordeu ferozmente o dedo mnimo de
Otoko. A dor percorreu-lhe o corpo, mas ela no retirou o
dedo, nem disse nada. A lngua de Keiko brincou com a
ponta do dedinho. Da Keiko o tirou de sua boca e disse:
- No est nem um pouco salgado. porque voc tomou
banho
O vasto panorama que abarcava o rio Kamo e as Coli-
nas do Leste do outro lado da cidade apaziguou a clera
de Otoko. medida que se acalmava, comeou a pensar
que talvez fosse culpa sua Keiko ter passado a noite nesse
hotel de Enoshima com Oki.
Keiko tinha acabado de concluir seus estudos secun-
drios quando se apresentara em casa de Otoko. Afrm-
ara, ento, ter visto seus quadros numa exposio em
Tquio e sua fotografa numa revista e se sentira imedi-
atamente enamorada.
Nesse ano, uma das obras de Otoko obtivera um
prmio numa exposio em Kyoto e fzera, em parte
devido ao tema, um grande sucesso junto ao pblico.
Otoko se inspirara numa fotografa de 1877 da famosa
cortes de Gion, Okayo, para pintar duas jovens maiko
jogando ken
35
. Era uma foto trucada, mostrando uma
imagem dupla de Okayo. As duas moas estavam vesti-
das de modo idntico. Uma delas, os dedos das mos
bem separados, estava quase de frente, enquanto a outra,
os punhos cerrados, era vista de perfl. Otoko achara in-
teressante a posio das mos, a postura contrastante dos
corpos e a expresso dos rostos. A jovem maiko da direita
tinha o polegar exageradamente separado do indicador e
os outros dedos dobrados para trs. Otoko gostara tam-
bm da roupa de Okayo, estampada moda antiga (em-
bora fosse impossvel distinguir suas cores, pois a foto
era em branco-e-preto). As duas jovens estavam sentadas
uma de cada lado de um braseiro de madeira quadrado,
em cima do qual se pendurava uma chaleira de ferro.
Havia tambm uma garrafa de saque, mas Otoko, jul-
gando esses objetos vulgares e suprfuos, os omitira de
sua composio.
O quadro de Otoko representava a mesma cortes,
desdobrada e jogando ken. Ela procurara criar a im-
presso singular de que as duas maiko eram na realidade
uma s e mesma pessoa ou, ainda, que no eram nem
uma nem duas. Era esse tambm o efeito almejado na
velha fotografa trucada. Para evitar que sua pintura res-
ultasse insignifcante, Otoko havia trabalhado profunda-
mente a expresso dos rostos. As roupas que, na foto,
pareciammuito volumosas, constituram na verdade uma
ajuda preciosa, fazendo sobressair vivamente as quatro
mos. Otoko no tinha reproduzido a foto de maneira
realista; no entanto, muitas pessoas em Kyoto devem ter
reconhecido, logo primeira vista, que se tratava de uma
obra inspirada na fotografa de uma famosa cortes dos
princpios da Era Meii.
Um marchand de Tquio, que se interessava por pin-
tura de cortess, veio visitar Otoko e props exibir al-
gumas de suas obras de menor tamanho em Tquio. Foi
nessa poca que Keiko viu as telas de Otoko, de quem ela
nunca ouvira falar at ento.
Foi sem dvida por causa da repercusso da pintura
das duas jovens maiko que uma revista havia se in-
teressado por Otoko. Ou talvez isso se devesse tambm
beleza da jovem artista. Um fotgrafo e um jornalista
dessa revista levaram-na por toda parte em Kyoto e
fotografaram-na sem parar. Na verdade, fora Otoko que
os conduzira aos lugares aonde gostava de ir. Assim, um
artigo que cobria trs grandes pginas lhe foi consagrado.
Havia uma reproduo da pintura das cortess e uma
foto de Otoko em primeiro plano, mas quase todas as
ilustraes eram cenas de Kyoto, s quais a presena de
Otoko dava um sentido especial. Talvez os jornalistas
tivessem escolhido ser guiados por uma artista que vivia
em Kyoto para assim fotografar lugares originais e fora
dos itinerrios conhecidos. Otoko sentiu-se levemente
magoada ao descobrir que fora assim manipulada e que
as trs pginas que lhe haviam sido consagradas eram, na
realidade, fotos de paisagens de Kyoto desconhecidas do
grande pblico.
Keiko, que jamais estivera em Kyoto e ignorava que
tinha sob os olhos os encantos secretos da velha capital,
viu somente a beleza de Otoko, e essa beleza a fascinara.
E foi desse modo que Keiko, envolta em bruma azu-
lada, apareceu a Otoko suplicando-lhe que a recebesse
em sua casa e lhe ensinasse pintura. O fervor de seu
pedido surpreendeu Otoko. Ento, palpitante de desejo,
Keiko lanou bruscamente os braos ao seu redor e Otoko
sentiu-se enlaada por uma jovem feiticeira.
- Seu pais esto de acordo, pelo menos? Se eles no es-
tiverem, no posso lhe dar uma resposta - disse Otoko.
- Meus pais esto mortos. Eu decido sozinha a minha
vida - respondeu Keiko.
De novo, Otoko voltou-lhe um olhar cheio de sus-
peitas.
- Voc no tem um tio ou uma tia, irmos ou irms?
- Sou um peso para o meu irmo mais velho e sua
mulher. E agora, depois que tiveram um beb, eu os inco-
modo mais ainda.
- Por causa do beb?
- claro que gosto dele, mas eles no apreciam meu
jeito de nin-lo.
Alguns dias depois de Keiko estar instalada em sua
casa, Otoko recebeu uma carta de seu irmo. Ele lhe pedia
que recebesse a moa em sua casa, apesar de ela ter uma
conduta muitas vezes irresponsvel, fazer apenas o que
sua cabea mandasse e no ser capaz nem mesmo de se
tornar uma boa empregada domstica. Enviava tambm
suas roupas e objetos pessoais. Ao v-los, Otoko teve a
impresso de que Keiko vinha de uma famlia abastada.
Pouco tempo depois, Otoko compreendeu que devia
haver realmente algo de incomum no modo como Keiko
tratava o beb e que tanto desagradava a seu irmo e a
sua jovem cunhada. Fazia mais ou menos uma semana
que Keiko vivia na casa de Otoko. Ela insistira para que
Otoko a penteasse da maneira que mais lhe agradasse.
Enquanto alisava seus cabelos, Otoko, sem querer, puxou
uma mecha com fora.
- Puxe mais forte, srta. Ueno - pediu-lhe Keiko. -
Puxe bastante at que eu parea estar suspensa pelos ca-
belos
Otoko tirou a mo. Keiko voltou-se para ela e pres-
sionou seus lbios e dentes nas costas de sua mo. Depois
disse.
- Que idade tinha quando deu seu primeiro beio, srta.
Ueno?
- Que pergunta mais absurda!
- Pois eu, eu tinha quatro anos. Lembro-me muito
bem. Era um tio afastado, do lado de minha me. Devia
ter, na poca, uns trinta anos e eu gostava muito dele.
Certa vez, ele estava sentado sozinho na sala de visitas, eu
me aproximei devagarinho e dei-lhe um beio. Ele fcou
to espantado que limpou os lbios com a mo.
Nesse terrao suspenso sobre o rio Kamo, Otoko se
lembrara da histria desse beio infantil. Essa boca que,
aos quatro anos, tinha beiado um homem, era agora sua,
e um instante atrs cerrara entre os lbios seu dedo mn-
imo.
- Otoko, lembra-se daquela chuva de primavera, na
primeira vez que voc me levou ao monte Arashi?
- Claro que sim, Keiko.
- E da velhinha que vendia macarro?
Dois ou trs dias aps a chegada de Keiko, Otoko a
levara a visitar o Pavilho de Ouro, o Ryoan-ji, e por fm
o monte Arashi. Haviam entrado num pequeno restaur-
ante, beira do rio, no longe da ponte de Togetsu, onde
serviam macarro. A dona do restaurante queixara-se da
chuva.
- Eu adoro a chuva. uma linda chuva de primavera -
respondeu Otoko.
- Oh, muito obrigada, senhora - replicou a mulher pol-
idamente, fazendo uma discreta reverncia.
Keiko voltou-se para Otoko e perguntou baixinho: -
pelo tempo que ela est lhe agradecendo?
- Como? - A resposta da velha mulher parecera natur-
al a Otoko e ela nem sequer lhe prestara muita ateno. -
Sim, acho que sim. Pelo tempo
- Que interessante! Gosto da idia de se agradecer a
algum por causa do tempo - continuou Keiko. - assim
que se faz em Kyoto?
- Quem sabe, pode ser
De fato, podia se interpretar desta forma a resposta
da velha mulher. Sem dvida era um indcio de polidez
para com as duas mulheres que tinham ido passear no
monte Arashi sob a chuva. Contudo, no fora a polidez
que levara Otoko a responder que a chuva no a incomo-
dava em nada. Ela via realmente um certo encanto nessa
chuva de primavera caindo sobre o monte Arashi, e a
velha mulher lhe agradecera por isso. Parecia ter falado
em nome do tempo ou em nome do monte Arashi sob
a chuva. Era um comportamento natural de algum que
possua um restaurante nesse local, mas Keiko o achara
curioso.
- Uma delcia, no? Estou gostando muito deste lugar
- disse Keiko. Fora o chofer do txi que lhes indicara.
Por causa da chuva, Otoko havia alugado um txi para
acompanh-las durante a tarde.
Embora fosse a poca das cerejeiras emfor, havia bem
poucos visitantes no monte Arashi, sem dvida devido
chuva. E essa era tambm uma das razes por que
Otoko dissera "adorar a chuva", que velava o contorno
das montanhas alm do rio e tornava-os mais suaves e
mais belos. Quando Otoko e Keiko saram do restaurante
e se dirigiram para o txi que as esperava, no precisaram
sequer abrir seus guarda-chuvas, pois chovia to leve-
mente que elas mal perceberam que suas roupas estavam
se molhando. Assim que caam na superfcie do rio, as
gotas de chuva desapareciam sem deixar o menor sinal.
Na montanha, as fores das cerejeiras mesclavam-se ao
verde tenro dos novos brotos e, nas rvores, as cores vivas
dos botes eram atenuadas pela chuva.
Alm do monte Arashi, o Templo dos Musgos e o
Ryoanji tambm se revestiam de um certo encanto sob a
chuva da primavera. No jardim do Templo dos Musgos
uma camlia vermelha cara sobre a relva mida e bril-
hante, repleta de forzinhas brancas. A camlia tinha sua
corola voltada para o alto como se tivesse forescido sobre
o musgo. E, no jardim do Ryoan-ji, as pedras respingadas
de chuva faiscavam cada uma a seu modo.
- Quando se usa um vaso de cermica de Iga na
cerimnia do ch, ele umedecido antes. E o efeito que se
tem o mesmo destas pedras - disse Otoko. Keiko, porm,
nunca vira vasos de cermica de Iga e no sentiu nen-
huma emoo particular diante do faiscar das pedras.
Mas, quando Otoko lhe apontou e ela, por sua vez,
prestou ateno, Keiko fcou maravilhada com as gotas
de chuva penduradas nos pinheiros ao longo do caminho
que conduzia ao interior do monastrio. Em todos os gal-
hos das rvores, na extremidade de cada uma de suas
agulhas, uma gotinha de chuva brilhava. As agulhas dos
pinheiros pareciam caules sobre os quais desabrochavam
fores de orvalho. Quase imperceptveis, essas fores eram
a delicada forao da chuva de primavera. Os sicmoros,
cujos botes ainda no tinham se aberto de todo, estavam
igualmente constelados de gotas de chuva.
As gotinhas de chuva suspensas nas agulhas dos pin-
heiros no eram um fenmeno raro e podiam ser vistas
por toda parte, mas, para Keiko, esse era um espetculo
novo que lhe pareceu pertencer s a Kyoto. Essas gotas
de chuva dependuradas nas agulhas dos pinheiros e a
cortesia da dona do restaurante de macarro foram suas
primeiras impresses de Kyoto. Ela no somente
descobria a cidade, mas a descobria em companhia de
Otoko.
- Eu me pergunto como estar a mulher do restaurante
- disse Keiko. - Ns nunca mais voltamos ao monte
Arashi.
- verdade. Para mim, no inverno que o monte
Arashi fca mais bonito Quando as piscinas de gua do
rio tomam essa cor to fria, to profunda A voltaremos
l.
- Ento teremos que esperar o inverno?
- Ele chegar daqui a pouco.
- De jeito nenhum! No estamos sequer em pleno ver-
o, e sem falar no outono que ainda vir.
Otoko riu.
- Podemos ir quando quisermos! Amanh mesmo
- Isso, vamos l amanh! Vou dizer para a dona do
restaurante que gosto do monte Arashi no vero e ela,
provavelmente, vai me agradecer. Em nome do vero!
- E em nome do monte Arashi!
Keiko mirou o rio.
- Otoko, no inverno no haver mais esses casais que
passeiam assim nas margens do rio.
De fato, havia um grande nmero de jovens
passeando, no na beira do rio, mas sobre os dois molhes
construdos entre os rios Misosogi e Kamo, e entre este l-
timo e o canal do leste. A maioria deles era de namorados,
e raros eram os casais que estavam acompanhados por
crianas. Jovens namorados caminhavam enlaados uns
aos outros ou sentavam-se lado a lado beira da gua.
Tornavam-se mais numerosos medida que caa a noite.
- Faz muito frio aqui no inverno - disse Otoko.
- Eu me pergunto se durar mesmo at o inverno.
- O qu?
- O amor deles claro que, daqui at l, muitos
destes namorados no tero mais vontade de se ver.
- Ento, nisso que voc est pensando? - perguntou
Otoko.
Keiko assentiu.
- Por que voc precisa fcar pensando nessas coisas? -
continuou Otoko. -Voc ainda tem muito tempo
- Porque no sou to boba quanto voc, que depois de
vinte anos continua a amar o homem que estragou sua
vida!
Otoko permaneceu calada.
- Otoko, voc ainda no compreendeu que o sr. Oki a
abandonou?
- Pare de me falar nesse tom! - Como ela se virou,
Keiko esticou a mo para arrumar uma mecha solta sobre
a nuca de sua amiga.
- Otoko, por que voc no me abandona?
- Como?
- Sou a nica criatura no mundo que voc pode aban-
donar. Faa isso, me abandone
- Eu me pergunto: do que que voc est querendo
falar? - Otoko parecia se esquivar questo, mas seus ol-
hos estavam cravados nos da jovem. Em seguida, alisou
com a mo os fos de cabelo que Keiko acabara de arru-
mar.
- Quero falar da maneira como o sr. Oki a abandonou
- comeou Keiko com obstinao, olhando Otoko direta-
mente nos olhos. - Mas parece que voc nunca quis ad-
mitir isso
- Abandonar, ser abandonada no gosto dessas pa-
lavras!
- melhor ser precisa. - Havia um brilho estranho nos
olhos de Keiko. - Como voc defniria os fatos?
- Ns nos separamos.
- Mas mentira! Ainda agora, ele est em voc como
voc est nele
- Aonde voc quer chegar, Keiko? No compreendo.
- Otoko, hoje pensei que voc ia me abandonar.
- Mas h pouco, l em casa, no reconheci que estava
errada? No me desculpei?
- Fui eu que me desculpei.
Fora pensando numa reconciliao que Otoko a troux-
era para jantar em Kiyamachi, mas poderiam ambas
ainda se reconciliar? Keiko no tinha o temperamento
para se contentar com um amor tranqilo; ela desafava
Otoko, discutia com ela ou ento fcava amuada. Otoko
tinha se sentido ferida quando ela lhe confessara ter pas-
sado a noite em Enoshima com Oki. Keiko, que lhe era
to afeioada, agora se insurgia contra ela. Keiko dissera
que queria se vingar de Oki por sua causa, mas a Otoko
parecia que era dela que ela queria se vingar. Alm do
mais, sentia-se ao mesmo tempo desesperada e horroriz-
ada ao pensar que Oki no hesitara em seduzir sua aluna,
quando lhe teria sido to fcil faz-lo com outras mul-
heres.
- Otoko, voc no vai me abandonar? - perguntou
Keiko de novo.
- Se voc faz tanta questo, eu o farei! E isso ainda ser-
ia o melhor que poderia lhe acontecer.
- Chega! Detesto que voc fale assim comigo! - Keiko
sacudiu a cabea. - Eu no estava pensando em mim
quando dizia isso. Enquanto eu estiver ao seu lado
- Seria melhor para voc que ns nos separssemos. -
Otoko se esforava para falar calmamente.
- J est to distante de mim, em seu corao?
- Claro que no!
- Que bom! Eu estava to infeliz pensando que voc
pudesse me abandonar.
- Mas essa idia foi sua.
- Minha? Voc pensou que eu a deixaria?
Otoko no disse nada.
- No a deixarei nunca! - disse Keiko com mpeto.
Agarrou a mo de Otoko e, novamente, mordeu-lhe o
dedo mnimo.
- Voc me machuca! - Otoko recuou e puxou o dedo. -
Voc me machuca, ora!
- Se a mordo, porque quero machuc-la!
Chegou o jantar. Enquanto a garonete acomodava os
pratos, Keiko, de maneira pouco educada, virou-se de
lado e fcou contemplando um punhado de luzes sobre
o monte Hiei. Otoko trocou algumas palavras com a
garonete, mantendo uma das mos sobre a outra. Ela
temia que as marcas dos dentes de Keiko fossem visveis.
Quando a garonete se afastou, Keiko, com a ajuda de
seus hashi, desprendeu um pedao de enguia de sua sopa
e o levou boca. Depois, de cabea baixa, disse: - Con-
tudo, Otoko, voc deveria me abandonar.
- Voc teimosa, hein?
- Sou o tipo de moa que abandonada por seu
amante. Voc me acha teimosa, Otoko?
Otoko no respondeu. Um sentimento de culpa, j
muitas vezes experimentado e que parecia trespass-la
como uma agulha, apoderou-se dela, enquanto se per-
guntava se as mulheres se mostravam mais teimosas
entre si do que com os homens. Seu dedo mnimo, que
Keiko mordera, no doa mais, porm ela tinha a im-
presso de que uma agulha lhe fora fncada. Teria sido ela
que ensinara jovem a faz-la sofrer assim?
Um dia, pouco tempo depois de se instalar em casa de
Otoko, Keiko, que estava fritando algo na cozinha, correu
para perto da amiga.
- Otoko, o leo espirrou
- Voc se queimou?
- Est ardendo! - disse Keiko, mostrando-lhe a mo.
A ponta de um de seus dedos estava vermelha. Otoko
tomou-lhe a mo.
- No parece grave! - disse ela, levando rapidamente o
dedo da jovem boca. Surpresa pelo contato de sua ln-
gua com o dedo, Otoko o retirou imediatamente. Keiko,
por sua vez, o levou boca.
- Otoko, devo lamb-lo?
- Keiko, e a fritura?
- verdade! Nem me lembrava! - disse a jovem, cor-
rendo para a cozinha.
Uma noite - quando teria sido isso? - Otoko passeara
seus lbios levemente sobre as plpebras fechadas da
jovem, mordiscando e fazendo ccegas em suas orelhas
at que ela acabou por gemer e se contrair sob as carcias.
A reao de Keiko incitara Otoko a continuar.
Enquanto isso, Otoko lembrou-se de que h muito,
muito tempo atrs, Oki brincara com ela dessa mesma
maneira. Sem dvida por causa de sua pouca idade, ele
no tinha a menor pressa em bei-la na boca e, enquanto
beijava sua testa, suas plpebras e suas faces, Otoko no
oferecia resistncia e se tranqilizava. Keiko era dois ou
trs anos mais velha do que Otoko o era naquela poca e
ambas eram do mesmo sexo, mas a jovem reagia s car-
cias ainda commais fora e rapidez do que Otoko o fzera.
Otoko, no entanto, sentia-se culpada em repetir com
Keiko as carcias de Oki, mas, ao mesmo tempo, este
pensamento a fazia estremecer com um novo vigor.
- No faa isso! Por favor! - tinha pedido Keiko,
encolhendo-se contra ela, os seios nus roando os de sua
amiga. - No temos o mesmo corpo?
Otoko recuara bruscamente.
Keiko agarrou-se a ela com mais frmeza.
- verdade, no ? Ns temos o mesmo corpo, Otoko!
Otoko havia se perguntado se a jovem era virgem. As
exploses verbais de Keiko, s quais ela ainda no estava
habituada, apanhavam-na sempre desprevenida.
- Ns somos diferentes - murmurou Otoko, enquanto
a mo de Keiko buscava seus seios. No havia nenhuma
timidez nesse gesto, apenas uma certa falta de habilidade
nos dedos e na palma da mo.
- No faa isso! - disse Otoko, segurando a mo de
Keiko.
- Otoko, voc est sendo desleal! - Os dedos de Keiko
se endureceram.
Vinte anos antes, enquanto Oki acariciava seus seios,
Otoko tinha lhe dito: - No faa isso, por favor! - Em
Uma garota de dezesseis anos, Oki havia empregado es-
sas mesmas palavras. Otoko, certamente, no as esque-
cera, mas, ao l-las assim no romance, pareceu-lhe que
elas tinham adquirido vida prpria.
Eis que agora, Keiko, por sua vez, dizia a mesma coisa.
Seria por ter lido Uma garota de dezesseis anos? Ou seri-
am essas as palavras que qualquer mocinha pronunciaria
na mesma situao?
Havia tambm no romance uma descrio dos
pequenos seios de Otoko. Oki escrevera que, ao acarici-
los, experimentava uma felicidade rara, tal qual uma
bno celestial.
Como Otoko no tinha jamais amamentado uma cri-
ana, seus mamilos mantinham ainda sua colorao in-
tensa. Vinte anos depois, esta cor no havia mudado.
Mas, perto dos 33 ou 34 anos, seus seios comearam a en-
colher.
No banho, Keiko certamente no deixara de notar os
seios midos de sua amiga e se certifcara disso mais
tarde, tocando-os. Otoko se indagava se algum dia ela
faria algum comentrio a respeito, mas Keiko nada dis-
sera. Tampouco disse alguma coisa quando os seios de
Otoko, em resposta s suas carcias, tornaram-se mais
tmidos.
Apesar de Otoko considerar seu silncio como uma
vitria, a atitude da jovem no deixava de ser estranha.
s vezes, Otoko via na dilatao de seus seios alguma
coisa de mrbido e perverso, s vezes se envergonhava
deles, mas acima de tudo ela se espantava com o modo
como seu corpo, quase aos quarenta anos, estava se trans-
formando. Naturalmente, essas transformaes eram
diferentes daquelas que experimentara quando, aos
dezesseis anos, se encontrou grvida.
Desde que se separara de Oki, vinte anos antes,
homem algum havia acariciado seus seios. Nesse meio-
tempo, sua juventude e as chances de um casamento se
perderam.
E foi a mo de uma mulher - Keiko - que os acariciou
novamente.
Depois de ter se instalado em Kyoto com sua me,
Otoko tivera muitas oportunidades de amar e se casar,
mas no as levara em considerao. Assim que percebia
que um homem estava apaixonado por ela, a memria
de Oki se impunha com mais fora ainda ao seu esprito.
Mais do que uma recordao, era uma realidade. Ao se
separar de Oki, Otoko pensara em jamais se casar. Na
sua dor e desorientao, ela no conseguia sequer pensar
no dia seguinte, quanto mais num casamento longnquo.
Mas a idia de no se casar se enraizara em sua mente e
com o tempo tornara-se uma deciso irrevogvel.
Naturalmente, sua me teria desejado que ela se cas-
asse. Ela viera para Kyoto com o intuito de afastar a flha
de Oki e de ajud-la a reencontrar sua calma, e no com a
inteno de l se estabelecer defnitivamente.
Cuidando em poupar Otoko, sua me a observava.
Quando Otoko fez vinte anos, ela lhe falou pela primeira
vez em casamento. Foi no mosteiro Nembutsu de
Adashino, no fundo da plancie de Saga, na noite da Cer-
imnia das Mil Luzes.
Inumerveis, gastos e de pequeno porte, os monu-
mentos funerrios dos "Mortos por quem ningum chora"
enfleiravam-se, e diante deles brilhavam as "Mil Luzes"
postas l a ttulo de oferenda. A me de Otoko tinha os
olhos cheios de lgrimas. As tnues luzes brilhando na es-
curido aumentavam ainda mais o sentimento de tristeza
que emanava das estelas funerrias. Otoko permanecia
calada, apesar de ter notado as lgrimas nos olhos de sua
me.
Era j noite quando voltaram por um caminho atravs
dos campos.
- Deus, como triste! - comentou sua me. - Voc
no se sente triste, Otoko? - Por duas vezes ela utilizara
a palavra triste, mas cada vez parecia ter um sentido
diferente. Ela se ps ento a falar de uma proposta de
casamento que um amigo de Tquio trouxera a seu con-
hecimento.
- Sinto muito, mame, mas no posso me casar - disse
Otoko.
- No conheo mulher que no se case!
- Mas existe.
- Se voc no se casar, ns duas faremos parte dos
"Mortos por quem ningum chora".
- No sei o que voc quer dizer.
- So os defuntos que no tm famlia que possa rezar
para o descanso de suas almas.
- Isso eu sei. Mas o que voc quer dizer com isso? - Ela
se calou por um instante. - Voc quer falar sobre depois
da morte?
- No apenas. Mesmo estando viva, uma mulher sem
marido e sem flhos semelhante a esses defuntos. Ima-
gine se eu no tivesse voc! Voc ainda jovem, mas -
Ela hesitou umpouco. - Voc pinta comfreqncia o rosto
de seu flho, no ? Voc pretende continuar assim por
muito tempo ?
Otoko no respondeu.
Sua me lhe disse tudo o que sabia a respeito da pro-
posta de casamento. Tratava-se do empregado de um
banco.
- Se quiser encontr-lo, poderemos ir a Tquio.
- O que voc pensa que vejo minha frente enquanto
a escuto? - perguntou Otoko.
- Voc est vendo alguma coisa? O que ?
- Barras de ferro. Vejo barras de ferro nas janelas
daquele hospital psiquitrico!
Sua me, sem ar, calou-se.
Mais tarde, e quando sua me ainda era viva, Otoko
recebeu outras duas ou trs propostas de casamento.
- Para que continuar a pensar no sr. Oki? - dizia sua
me, tentando persuadi-la a se casar. Era mais um apelo
do que um alerta. - Ele jamais vai saber disso e no h
nada que voc possa fazer por ele. Esperar assim em vo
por esse homem esperar pelo passado. Nem o tempo
nem as guas jamais correm para trs.
- No estou esperando nada, nem ningum - respon-
dera Otoko.
- Voc no faz outra coisa seno lembrar Voc no
pode esquec-lo?
- No, no isso.
- Tem certeza? Voc era to jovem e to ingnua ainda
quando o sr. Oki a seduziu, e por isso, sem dvida, que
a ferida foi to profunda e a cicatriz custa tanto a desa-
parecer. Eu o odiei por ter-se mostrado to cruel com uma
criana como voc!
Otoko no esquecera as palavras de sua me. Ela se
perguntava se fora por causa de sua pouca idade e de sua
inocncia que pudera viver tal amor. Talvez isso expli-
casse sua paixo cega, insacivel. Quando, tomada de es-
pasmos, mordia o ombro de Oki, ela nem percebia que o
sangue brotava.
Depois da separao e da mudana para Kyoto, Otoko
fcara fora de si ao ler em Uma garota de dezesseis anos
que, cada vez que ia encontr-la, Oki pensava longamente
na maneira como faria amor com ela, e que geralmente
agia do modo como havia planejado. Ela fcara estupefata
ao saber que, ante essa perspectiva, o corao de Oki es-
tremecia de contentamento. Era impossvel para a jovem
submissa e inexperiente que era Otoko imaginar que um
homem pudesse, de antemo, prever a ordem que iria
seguir e os procedimentos que teria com sua amante. Ela
aceitava o que quer que fosse, fazia o que quer que ele
pedisse. Sua prpria juventude a impedia de se espantar
com qualquer coisa. Oki a descrevera como uma garota
extraordinria, uma mulher entre todas as mulheres.
Graas a ela, no s escrevera, mas experimentara todas
as formas de amor.
Ao ler essa passagem, Otoko ardeu de humilhao. No
entanto, ela ainda mantinha viva a lembrana de seus ab-
raos, que no conseguia banir da memria. Seu corpo se
enriecera e comeara a tremer. Em seguida, medida que
a calma voltava, uma sensao de alegria e de plenitude
se apossou de todo o seu ser. Seu amor passado tornava a
viver.
No caminho sombrio, quando voltava da Cerimnia
das Mil Luzes de Adashino, no foram somente as barras
de ferro de seu quarto de doente que apareceram sua
frente.
Ela tambm se viu entre os braos de Oki. Se ele no
tivesse aludido a isso em seu romance, provvel que,
depois de todos esses longos anos, Otoko mesma aca-
basse esquecendo essa viso de Oki abraando seu corpo.
Otoko fcara lvida de raiva, de cime e de desespero
quando Keiko lhe precisara que, em Enoshima, Oki se
mostrara "incapaz de prosseguir", depois de ela ter grit-
ado "Otoko! Otoko!". Mas pareceu-lhe que Oki, ele tam-
bm, devia ter-se lembrado dela nesse instante precioso.
Mesmo se no pensara nela conscientemente, no teria a
imagem de Otoko cruzado rapidamente seu esprito?
medida que os meses, e depois os anos, transcorri-
am, a viso de seus abraos havia se purifcado progres-
sivamente na memria de Otoko, transcendendo do fsico
ao espiritual. Hoje em dia, Otoko no era mais inocente
e Oki muito menos. Porm, a seus olhos, seus abraos de
antigamente eram completamente castos. Essa memria -
sonho ou realidade - era uma viso sagrada e sublimada
de seu amor.
Quando se lembrou dos gestos que Oki lhe ensinara
e do procedimento instintivamente igual que tivera com
Keiko, Otoko receou que essa viso sagrada fosse con-
spurcada ou destruda, porm ela permaneceu imaculada
em seu esprito.
Keiko tinha o costume de, mesmo na presena de
Otoko, untar suas pernas, braos e axilas com um creme
para depilao. Naturalmente, nos primeiros tempos de
sua mudana para a casa de Otoko, ela o fazia s escon-
didas. Se Otoko a interrogava a respeito de um odor es-
tranho no banheiro (O que voc est fazendo? Este cheiro
estranho, o que ?), Keiko no respondia. Otoko no es-
tava familiarizada com os cremes de depilar, no tendo
tido nunca necessidade de us-los. Sua pele no era re-
coberta nem pela mais fna penugem.
A primeira vez que surpreendeu Keiko untando de
creme sua perna esticada, Otoko franziu a testa com es-
panto.
- Que cheiro horrvel! O que isso?
Depois, ao ver os plos junto com o creme, Otoko
cobriu seus olhos com as mos.
- Mas repugnante! Pare! Isso me deixa arrepiada! -
Otoko realmente tremia. - Que asco! Por que tem de fazer
uma coisa dessas?
- Mas, Otoko, todas as mulheres fazem!
Otoko calou-se.
- Voc no sentiria ainda mais asco se tocasse uma
pele toda cheia de plos?
Otoko continuou calada.
- Sou uma mulher, afnal de contas
Era para que Otoko achasse sua pele macia ao toque
que Keiko se depilava. Apesar de sua amiga ser uma mul-
her, era por causa dela que a jovem queria ter uma pele
sedosa. Otoko sentiu-se duplamente angustiada, pelo
asco que experimentara vendo a jovem se depilar e pela
paixo que esta revelava com sua limpeza. Muito tempo
depois de Keiko ter ido se banhar para retirar o resto do
creme, Otoko ainda acreditava sentir o cheiro horrvel em
suas narinas.
Quando Keiko voltou para perto de Otoko, ela ergueu
o quimono, esticou a perna e disse: - Toque e sinta, Otoko.
Minha pele est macia agora. Otoko lanou um breve ol-
har para a perna inteiramente branca, mas no a tocou.
Keiko, com a mo direita, acariciou a perna.
- Otoko, por que esse ar preocupado? - disse ela, ft-
ando Otoko como se algo no estivesse bem. Otoko evitou
seu olhar.
- Keiko, de hoje emdiante no se depile mais na minha
frente.
- No quero esconder nada de voc. No tenho segre-
dos para com voc.
- Mas qual a vantagem em me mostrar uma coisa que
me d asco?
- Voc vai se acostumar. a mesma coisa que cortar as
unhas do p.
- Tambm falta de educao cortar as unhas ou lix-
las em frente de outras pessoas. Quando voc corta as un-
has, elas pulam D um jeito de fazer um anteparo com
as mos.
- Est bem - concordou Keiko.
Entretanto, se depois disso Keiko no se depilou mais
ostensivamente em presena de Otoko, tambm no fez
nada para se subtrair a seus olhos. Otoko, ao contrrio do
que Keiko pensava, jamais se habituou a esse espetculo.
O creme no cheirava mais to mal quanto antes, talvez
por ter sido melhorado, talvez por Keiko ter trocado de
marca, mas o espetculo da jovem se depilando a deixava
sempre arrepiada. Ela no conseguia suportar a viso dos
plos das pernas e das axilas soltando-se medida que
Keiko retirava o creme. Ela preferia sair do quarto. No en-
tanto, do fundo de sua repugnncia, uma chama surgia
e desvanecia-se, da surgia novamente. To pequena e
to longnqua era essa chama que Otoko mal podia v-
la com os olhos do esprito, mas era to pura e to tran-
qila que difcilmente se acreditaria haver ali a sombra
de algum desejo. Essa chama, em sua tranqilidade e
pureza, fazia com que Otoko se recordasse de Oki e da
jovem que ela havia sido vinte anos antes. A idia de
um contato entre mulheres e a sensao da pele de Keiko
sobre sua prpria pele estavam na origem do asco que
Otoko experimentava vendo a jovem se depilar; ela fora
tomada por nuseas antes mesmo de poder pensar numa
explicao. Mas a imagem de Oki sobrepujou singular-
mente essa sensao de asco.
Quando fazia amor com Oki, Otoko jamais pensara
na fna penugem que tinha em suas axilas, como tambm
no se preocupava em saber se Oki, como homem, era
pouco ou muito peludo. Tinha ela perdido o senso da
realidade? Hoje em dia ela estava muito vontade com
Keiko, atingira uma maturidade da qual no estava aus-
ente um certo vcio. Surpreendera-se ao descobrir, graas
a Keiko, que aps todos esses anos de solido longe de
Oki, ela havia assim mesmo amadurecido enquanto mul-
her. Otoko temia que, se amasse no Keiko, mas um outro
homem, a viso sagrada e zelosamente guardada no
fundo do seu corao - a viso de seu amor por Oki - fosse
bruscamente destruda.
Otoko falhara em sua tentativa de suicdio, depois da
separao de Oki, mas sempre desejara morrer jovem.
Gostaria de ter morrido nas dores do parto, antes de seu
malogrado suicdio e antes que seu prprio beb morres-
se; assimela teria escapado das barras de ferro do hospital
psiquitrico. Esse desejo secreto, com o passar dos meses
e dos anos, acabara purgando o ferimento que Oki lhe in-
figira.
- Voc maravilhosa demais para mim. Nosso amor
um prodgio; nunca imaginei que um ser humano
pudesse viver um amor desses. Vale a pena morrer por
tanta felicidade!
Ainda hoje, Otoko no esquecera as doces palavras
de Oki. Frases desse gnero eram bastante numerosas em
seu livro e os dilogos pareciam no ter mais vnculos
nem com Oki nem com Otoko; haviam adquirido vida
prpria. Talvez os amantes de outros tempos no existis-
sem mais; porm, em sua tristeza, Otoko tinha ao menos
o nostlgico consolo de ver seu amor imortalizado numa
obra de arte. Otoko possua uma navalha que pertencera
sua me. Embora no tivesse realmente necessidade,
Otoko, instigada pelas lembranas, a utilizava s vezes
para raspar a fna penugem de sua nuca, ou a linha dos
cabelos em sua testa.
Um dia, ao ver Keiko comeando a passar o creme
de depilao, Otoko agarrou a navalha na gaveta da pen-
teadeira e disse bruscamente: - Keiko, deixe que eu raspe
voc.
vista da navalha, Keiko perdeu a calma e fugiu grit-
ando: - No, Otoko! Isso no! Eu tenho medo! - Otoko
lanou-se em sua perseguio.
- No se assuste! No h perigo! Vamos!
Uma vez agarrada, Keiko deixou-se levar, com re-
lutncia, de volta penteadeira. Mas quando Otoko havia
recoberto seu brao de espuma e comeado a aplicar-lhe
a navalha, percebeu com espanto que os dedos de Keiko
tremiam ligeiramente.
- No tenha medo, no h nenhum perigo se fcar com
o brao quieto. Pare de tremer
Os temores e a prpria ansiedade de Keiko excitaram
Otoko. Era uma tentao. Seu corpo se retesou como se
uma fora nova se derramasse sobre seus ombros.
- J que voc tem medo, no passarei a navalha de-
baixo dos braos. Mas a rosto - disse Otoko.
- Espere um pouco. D-me tempo de respirar - re-
spondeu Keiko, retendo o flego.
Otoko raspou a jovem acima das sobrancelhas e sob o
lbio inferior. Quando ela comeou a raspar a fna pen-
ugem de sua testa, Keiko fcou com os olhos fechados.
O rosto levemente voltado para o alto, ela descansou a
cabea na mo de Otoko, que lhe sustinha a nuca.
O pescoo longo e delgado da jovem atraiu o olhar de
Otoko. Era frgil, gracioso e delicado, com algo de ino-
cente que no se assemelhava a Keiko e que transbordava
de juventude.
Otoko interrompeu seu gesto. A jovem abriu os olhos.
- O que foi, Otoko?
Otoko pensara repentinamente que Keiko morreria se
ela afundasse a navalha nesse pescoo encantador. Umin-
stante seria sufciente para atingi-la naquilo que tinha de
mais belo.
Mesmo no sendo to bonito como o de Keiko, Otoko
tambm tinha um lindo pescoo de jovem. Um dia em
que Oki enlaara seu pescoo com os braos, ela lhe dis-
sera: - Voc est me machucando Assim vai me matar!
- Oki ento apertara ainda mais o seu abrao e Otoko
sentira-se sufocar.
Enquanto olhava o pescoo de Keiko, essa sensao de
asfxia voltou-lhe memria e Otoko sentiu a cabea gir-
ar.
Foi a nica vez em que raspou a jovem. Da em diante,
Keiko se recusou e Otoko no insistiu mais. Quando abria
a gaveta da penteadeira para pegar um pente ou alguma
outra coisa, seu olhar caa sobre a navalha. Ela se recor-
dava ento de seus fugidios pensamentos assassinos. Se
tivesse matado Keiko, no poderia continuar a viver.
Suas veleidades de homicdio tornaram-se uma es-
pcie de fantasma familiar. Teria ela perdido uma vez
mais a ocasio de morrer?
Otoko compreendeu que no seu desejo fugaz de matar
se escondia seu velho amor por Oki. Naquela poca,
Keiko ainda no tinha encontrado Oki. Ela ainda no
tinha se imiscudo entre eles.
Desde que soubera que a jovem passara a noite em
Enoshima, com Oki, um fogo estranho consumia Otoko.
Entretanto, no meio dessas chamas que a atormentavam,
ela via forir um ltus branco. Seu amor por Oki era uma
for imaginria que nem Keiko nem nada no mundo po-
deria jamais profanar.
Com a imagem do ltus branco em sua mente, Otoko
voltou o olhar para as luzes das casas de ch de Kiyama-
chi que se refetiam no rio Misosogi. Ela as contemplou
durante um breve momento. Depois seus olhos se diri-
giram para a cadeia sombria das Colinas do Leste, alm
de Gion.
As colinas davam uma impresso de tranqilidade,
mas a Otoko pareceu que as trevas que as envolviam
deslizavam insidiosamente para dentro de si. Os faris
dos carros indo e vindo na margem oposta, os casais que
passeavam beira d'gua, as casas de ch margeando o
rio com suas luzes e seus clientes, tudo isso Otoko via sem
verdadeiramente ver, medida que a obscuridade das
Colinas do Leste penetrava ainda mais em seu esprito.
- Vou pintar logo A ascenso de uma criana. Tenho
que faz-lo j, seno nunca mais o farei. A idia que fao
hoje dessa pintura j est se tornando algo diferente da
minha primeira inteno, est perdendo todo o amor e
a tristeza - murmurou Otoko para si mesma. Essa
emoo sbita devia-se viso do ltus entre as chamas.
Otoko chegou a pensar, no transbordamento de seu
corao puro, que Keiko e o ltus fossem uma coisa s.
Por que o ltus branco forescia entre as chamas? Por que
ele no fenecia?
- Keiko - disse. - Est novamente de bom humor?
- Se voc estiver, no tenho mais motivo para fcar
zangada! - respondeu Keiko com encanto.
- Diga-me, at hoje, qual a coisa que mais a fez so-
frer?
- Eu tambmme pergunto - disse Keiko simplesmente.
- J sofri tantas vezes que no saberia dizer. Vou tentar me
lembrar e a lhe direi. Mas minhas mgoas so breves.
- Breves?
- Sim.
Otoko ftou-a duramente e disse com a voz to calma
quanto possvel: - H uma coisa que eu queria lhe pedir
hoje noite. Gostaria que voc no fosse nunca mais a Ka-
makura.
- Voc est dizendo isso por causa do sr. Oki ou de seu
flho?
A resposta inesperada da jovem confundiu Otoko.
- Por ambos.
- Se fui v-los, foi s para ving-la!
- Ainda com essa mesma histria! Voc realmente
impossvel!
O rosto de Otoko se alterou. Ela fechou rapidamente
os olhos, como para esconder lgrimas invisveis.
- Otoko, como voc medrosa!
Com essas palavras, a jovem se levantou, aproximou-
se de Otoko, ps as duas mos em seus ombros e lhe aca-
riciou as orelhas. E, enquanto Otoko permanecia emsiln-
cio, o murmrio do rio alcanou os ouvidos de Keiko.
* * *
MECHAS DE CABELO
- Querido! - Fumiko chamou Oki da cozinha. - Sabe que uma
grande ratazana nos honra com sua presena? Est escondida
debaixo do fogo!
- Est falando srio?
- E acho que seus flhotes a acompanham.
- mesmo?
- Venha ver Olhe s este pequeno ratinho mostrando a
ponta do seu lindo nariz
- Hum!
- E ele me fta com seus belos olhos negros e brilhantes.
Oki no disse nada. O forte aroma da sopa de miss
36
pair-
ava na sala onde ele lia o jornal da manh.
- E h uma goteira na cozinha! Est ouvindo?
J estava chovendo quando Oki se levantara, mas agora
tornara-se um aguaceiro. O vento, que sacudia os pinheirais e
os bosques de bambu no alto das colinas, soprava em direo
ao leste e a chuva aoitava obliquamente os arbustos e as
plantas.
- No ouo nada, com todo esse vento e essa chuva l fora
- Ento venha dar uma olhada!
- Hum!
- Essas gotas de chuva que se espatifam contra o telhado, se
retorcem entre as frestas e caem sobre as tbuas do forro com
certeza devem sofrer. No parecem lgrimas escorrendo?
- Assim vai acabar me fazendo chorar tambm!
- Vamos armar a ratoeira esta noite. Ela deve estar
numa das prateleiras do armrio. Eu no alcano, voc
poderia peg-la para mim?
- Voc tem certeza de que quer apanhar Mame
Ratazana e seus flhotes numa ratoeira? - respondeu do-
cemente Oki, sem levantar os olhos de seu jornal.
- E o que faremos com a goteira? - perguntou Fumiko.
- grave? No s porque chove torrencialmente?
Amanh subirei no teto para ver o que .
- perigoso para algum de sua idade Posso pedir
a Taichiro para subir.
- O que est querendo dizer com "algum da sua id-
ade"?
- Nas fbricas, nos bancos, nos jornais, as pessoas no
se aposentam aos 55 anos?
- Gosto de ouvir voc falar assim. E se eu tambm
deixasse de trabalhar?
- Quando quiser
- Com quantos anos um escritor pode se aposentar?
- No antes de morrer.
- O que voc quer dizer?
- Desculpe-me. - Fumiko pediu desculpas e acres-
centou com sua voz habitual: - S queria dizer que voc
tem muitos anos pela frente para escrever.
- Eis a uma dolorosa perspectiva, ainda mais com
uma mulher de sua espcie como se um demnio se
agarrasse s minhas costas brandindo uma barra de ferro
em brasa!
- Que belo mentiroso voc ! Quando que eu o abor-
reci?
- Voc pode ser venenosa, voc sabe!
- Venenosa?
- Exatamente. Quando sente cime, por exemplo.
- O cime o fardo de todas as mulheres. J no
aprendi minha prpria custa e h tanto tempo que um
remdio amargo e perigoso, um veneno, em suma?
Oki no disse nada.
- Uma faca de dois gumes
- Para ferir seu parceiro e ferir-se a si mesma Ou
matar-se juntamente com seu amante?
- Seja o que for que voc ainda possa me fazer, no
tenho mais fora, hoje, para me divorciar ou me suicidar.
- Depois de certa idade, os divrcios so desagrad-
veis, mas no sei de nada mais triste do que dois velhos
amantes que se matam. As pessoas idosas que lem not-
cias desse tipo nos jornais devem sentir uma angstia
ainda maior do que a dos jovens.
- Voc diz isso porque lhe aconteceu uma vez de med-
itar longamente sobre isso. Faz bastante tempo, voc
ainda era jovem
Oki fcou em silncio.
- No entanto, voc no transmitiu sua jovem amiga
seu doloroso desejo de morrer com ela. No teria sido
prefervel avis-la? Ela se suicidou, mas como poderia
desconfar que voc tambm gostaria de morrer? No
triste?
- Ela no se suicidou.
- Ela tentou. a mesma coisa.
Fumiko recomeara a falar de Otoko. Oki ouviu o leo
espirrando na frigideira onde Fumiko iria preparar carne
de porco com couve.
- A sopa de miss vai passar do ponto - advertiu Oki.
- J sei, j sei. H vinte anos voc me repreende por
causa dessa sopa! At mandou trazer diferentes var-
iedades de miss de vrias regies Gostaria de ter feito
de sua mulher uma especialista na arte de preparar o mis-
s!
- Voc sabe como se escreve o nome dessa sopa em ca-
racteres chineses?
- Para mim, basta saber em hiragana
37
.
- Repete-se trs vezes o caractere "honorvel".
- mesmo?
- Antigamente, j devia ser um prato de primeira im-
portncia para que se escrevesse seu nome por meio do
mesmo caractere repetido trs vezes. E alm disso um
prato muito difcil de ser preparado corretamente.
- Seu "honorvel" miss talvez no esteja com um
gosto muito bom esta manh. Eu no o preparei com
tanto respeito.
Fumiko, s vezes, chegava a irritar Oki dirigindo-se
a ele de maneira excessivamente obsequiosa, como j
acontecera nesse mesmo dia quando mencionara o epi-
sdio da ratazana e o da goteira no teto. Oki, no sendo
originrio da capital, no empregava corretamente as ex-
presses de polidez freqentes na fala de Tquio. En-
tretanto, no era sempre que ele prestava ateno s ob-
servaes de sua mulher, que fora educada em Tquio,
e suas discusses resultavam em interminveis querelas
verbais, nas quais Oki afrmava que a fala de Tquio no
passava de um vulgar dialeto provinciano e no prov-
inha de uma longa tradio. Nas regies de Kyoto e de
Osaka, dizia Oki, as pessoas, qualquer que seja o assunto
de que estejam tratando, tm o costume de empregar ter-
mos honorfcos, ao passo que os habitantes de Tquio se
expressam com menos cortesia. No dialeto de Kyoto e de
Osaka, as pessoas recorrem s expresses de polidez para
falar de peixes ou legumes, de montanhas ou rios, de ca-
sas ou ruas e at mesmo para designar o Sol e a Lua, os
demais corpos celestes, o tempo.
- Nesse caso seria melhor voc conversar com
Taichiro. ele o especialista no assunto - continuou Fu-
miko, abandonando a disputa.
- O que que ele sabe sobre isso? Talvez seja um es-
pecialista em literatura japonesa, mas no um lingista.
Ele jamais pesquisou o uso dos termos honorfcos.
Veja s a maneira confusa e quase indecente com que
ele ou seus colegas se expressam; chega a ferir os ouvidos!
Seus ensaios e artigos no so nem mesmo escritos num
japons correto!
Na verdade, Oki no s no gostava de consultar seu
flho ou ouvir seus conselhos, como achava repugnante
faz-lo. Ele preferia perguntar sua mulher. Mas, como
Fumiko era de Tquio, ela fcava freqentemente des-
norteada com as questes que seu marido colocava a re-
speito dos termos honorfcos e seu uso.
- Eu deveria observar a Taichiro que, no passado, os
eruditos japoneses tinham slidos conhecimentos de
chins e escreviam num estilo irrepreensvel
- As pessoas no falam mais assim. Todos os dias
nascem neologismos que, como esses ratinhos sobre os
quais falamos agora mesmo, roem com a maior sem-
cerimnia as coisas importantes. O mundo est mudando
num ritmo vertiginoso
- Mas eles tm vida breve, esses neologismos, e,
mesmo quando sobrevivem, so datados, como os ro-
mances que escrevemos. raro que eles durem mais de
cinco anos.
- Afnal, no sufciente que as palavras da moda
sobrevivam apenas at o dia seguinte? - Sempre falando,
Fumiko trouxe sala a bandeja do caf-da-manh. A,
sem que seus traos se alterassem em nada, disse: - Eu
tambm fz bem em sobreviver, apesar de todos esses
anos em que voc pensava em se matar junto com aquela
jovem.
- No h aposentadoria para mulheres casadas? Que
pena!!
- No entanto, h o divrcio Eu teria gostado de, ao
menos uma vez na minha vida, saber qual a sensao de
ser divorciada.
- Ainda h tempo.
- A vontade j passou. Voc conhece o ditado: "
quando j estamos carecas que nos arrependemos de no
termos aproveitado a ocasio".
- Seus cabelos ainda esto bem negros, sem um nico
fo branco.
- Mas os seus j esto ralos. Ser que voc deixou pas-
sar a ocasio?
- No meu caso, isso se deve aos esforos que tive que
fazer para evitarmos um divrcio, ao meu sacrifcio, em
suma. E para que voc no tenha mais cime
- Vai me deixar zangada, voc sabe!
Oki e Fumiko, prosseguindo naquela troca de palav-
ras inteis, puseram-se, como todos os dias, a tomar o
caf-da-manh. Fumiko, por sua vez, parecia mais bem-
humorada do que o normal, embora no fosse fcil ler
seus pensamentos. Naquela manh, ela sem dvida evoc-
ara Otoko, mas no se detivera a ressuscitar o passado.
A chuva ameaadora tinha perdido sua violncia e
parecia querer se acalmar. Os vos nas nuvens, contudo,
ainda no deixavam passar os raios de sol.
- Taichiro ainda dorme? V acord-lo - disse Oki.
- Vou correndo - concordou Fumiko. - Mas acho difcil
que ele se levante. Vai me pedir para deix-lo dormir,
pois est de frias.
- Ele no vai a Kyoto, hoje?
- Ele pode jantar em casa e depois ir ao aeroporto. O
que ele vai fazer em Kyoto com esse calor?
- Faria bem em lhe perguntar. Parece que lhe veio
bruscamente a vontade de rever o tmulo de Sanjonishi
Sanetaka, no fundo das montanhas, prximo ao monas-
trio Nisonin.
Creio que ele pensa em fazer pesquisas sobre a crnica
de Sanetaka com vista a uma tese Voc sabe quem foi
Sanetaka?
- Um nobre da corte, no?
- Isso todo mundo sabe! Durante as revoltas da Era
Onin
38
, sob o xogum Ashikaga
39
Yoshimasa, ele se elevou
posio de ministro do Interior. Foi ntimo do poeta Sogi
e um desses nobres da corte que se esforaram para pro-
teger as artes e as letras naquele tempo conturbado. Ele
deixou um dirio volumoso, a Crnica de Sanetaka. Sem
dvida, foi uma personagem muito interessante. Taichiro
quer fazer pesquisas sobre a Cultura de Higashiyama
40
,
tomando como base o dirio de Sanetaka.
- Veja s! E onde fca o monastrio Nisonin?
- Ao p do monte Ogura
- Mas onde fca o monte Ogura? Voc no me levou
l uma vez?
- Sim, h muito tempo. um lugar cheio de re-
cordaes poticas. Diversos lugares, no distantes dali,
evocam a lenda de Fujiwara Sadaie
41
.
- Ah! na regio de Saga, no ? Agora me lembro.
- Taichiro recolheu toda espcie de anedotas, de
pequenos detalhes insignifcantes que, segundo ele, dari-
ammatria para se escrever umromance. Ele os considera
documentos sem interesse, histrias inteiramente forja-
das. Imagino que ele j se considera um sbio quando me
assegura que, com todas essas anedotas, tenho matria
para escrever um romance!
Fumiko, sem revelar o fundo de seus pensamentos,
limitou-se a aquiescer, enquanto seus lbios esboavam
um leve sorriso.
- Ento v acordar o sbio do seu flho - disse Oki,
erguendo-se da mesa. - J ouviu falar de um flho que fca
na cama enquanto seu pai vai trabalhar?
- Estou indo!
Quando se viu sozinho em seu escritrio, Oki se ps
novamente a pensar, desta vez sem rir, nas palavras tro-
cadas h pouco com Fumiko em tom de piada acerca da
"aposentadoria dos escritores". Ele permaneceu sentado
mesa, o queixo apoiado nas mos. Ouviu algum gar-
garejar no banheiro, em seguida Taichiro entrou, ainda
enxugando o rosto com uma toalha.
- J est um pouco tarde, no? - disse Oki em tom de
reprovao.
- Eu no estava dormindo; fquei na cama meditando
um pouco.
- Meditando?
- Pai, o senhor sabe que exumaram o tmulo da
princesa Kazunomiya? - perguntou Taichiro.
- Violaram sua sepultura?
- Pode-se dizer isso - admitiu calmamente Taichiro.
- Foram feitas escavaes. Freqentemente escavam-
se velhos tmulos para realizar pesquisas cientfcas, no?
- No entanto, se se trata da princesa Kazunomiya, seu
tmulo no to antigo. Na verdade, quando ela mor-
reu?
- Em 1877 - respondeu Taichiro, sem a menor hesit-
ao.
- Em 1877? Ento no faz nem um sculo?
- Isso mesmo. E, no entanto, apenas seus ossos foram
encontrados.
Oki franziu as sobrancelhas.
- Parece que seu travesseiro, suas roupas e todos os
objetos enterrados junto com ela tornaram-se p. S so-
braram os ossos.
- desumano violar assim uma sepultura
- Ela estava deitada numa pose graciosa e inocente,
como uma criana que, cansada de brincar, tivesse ad-
ormecido.
- Est falando do esqueleto?
- Sim. Encontraram tambm uma mecha de cabelo at-
rs do crnio, o que leva a pensar que se tratava de uma
jovem casada, de alta classe e que morreu cedo.
- Era com esses ossos que voc estava sonhando?
- Era, mas no s. Eles mesmos quase no incitam
fantasia, entretanto havia neles alguma coisa de belo, de
misterioso, de frgil.
- O que voc quer dizer? - Oki no se deixava levar
pelo entusiasmo do flho e no compartilhava sua
maneira de ver as coisas. Ele achava indecente terem vi-
olado a sepultura de uma trgica princesa imperial morta
aos trinta anos e exumado o seu esqueleto.
- O que quero dizer Na verdade, trata-se de uma
coisa que voc jamais teria imaginado - disse Taichiro. -
Mas, por que no chamar mame e contar a ela tambm?
Oki ftou o flho, que permanecia sua frente com a
toalha na mo, e aprovou com um leve sinal de cabea.
Taichiro conversava em voz alta com a me quando
retornou ao escritrio de Oki. Estava pondo Fumiko a par
da histria.
Oki tirou da estante de livros do corredor um volume
do Grande dicionrio da histria do Japo e abriu-o na p-
gina que tratava da princesa Kazunomiya. Acendeu um
cigarro.
Taichiro tinha na mo alguma coisa parecida com um
pequeno boletim.
- o relatrio das escavaes? - perguntou Oki.
- No, o boletim do museu. Um certo Kamahara es-
creveu um artigo intitulado "A beleza desaparece?", no
qual se refere ao mistrio que circunda a princesa Kazun-
omiya.
possvel que no relatrio das escavaes no haja
meno a isso. - Taichiro faz uma pausa, depois comeou
a ler o artigo.
- Uma placa de vidro, de tamanho ligeiramente super-
ior a um carto de visitas, foi descoberta entre os braos
do esqueleto da princesa Kazunomiya. Ao que parece,
o nico objeto que pde ser encontrado no interior do
tmulo. Os arquelogos que haviamexumado os tmulos
dos xoguns Tokugawa
42
no monastrio Zozo-ji em Shiba
exploraram igualmente o da princesa Kazunomiya O
perito encarregado de examinar as tinturas e os tecidos
pensou que essa placa de vidro pudesse ser ou um es-
pelho de bolso ou um "clich mido". Ele a envolveu num
papel e levou-a ao museu.
- Esse "clich mido" uma fotografa sobre o vidro? -
perguntou Fumiko.
- Sim. Basta passar uma camada de emulso sobre a
placa de vidro e a foto se revela enquanto a placa ainda
est molhada Exatamente como essas fotos antigas.
- Ah, sim! J vi algumas.
- A placa de vidro parecia transparente, mas quando o
perito retornou ao museu e a examinou contra a luz, sob
diversos ngulos, ele percebeu a silhueta de umhomem
Era ento uma fotografa! A silhueta era a de um
homem jovem vestido com uma roupa de cerimnia de
mangas longas, e penteado eboshi
43
. A fotografa estava
bastante descolorida, naturalmente
- Era a foto do xogum Iemochi
44
? - perguntou Oki, j
cativado pelo relato de Taichiro.
- Sim, muito provavelmente. A princesa Kazunomiya
morrera abraada foto de seu esposo, que a precedera
na morte. Essa tambm foi a opinio do perito que esper-
ava ir no dia seguinte ao Instituto de Pesquisa para a Pro-
teo dos Bens Culturais para ver se no seria possvel,
de uma maneira ou de outra, tornar essa fotografa mais
ntida. Mas, no dia seguinte, quando ele a examinou luz,
viu que a imagem havia desaparecido totalmente. No es-
pao de uma noite, a fotografa j no passava de uma
placa de vidro transparente.
- Como assim? - perguntou Fumiko, voltando-se para
Taichiro com espanto.
- Porque, depois de todos esses anos debaixo da terra,
ela foi repentinamente exposta ao ar e luz - respondeu
Oki.
- Foi exatamente isso que ocorreu. O perito tem uma
testemunha para confrmar que ele no foi vtima de uma
iluso e que se tratava realmente de uma fotografa.
Ele mostrou a placa de vidro a um guarda que se en-
contrava no local e este afrmou ter visto igualmente a sil-
hueta de um jovem nobre impressa na placa.
- Puxa!
- "A histria verdica de uma efmera existncia." Foi
assim que o perito defniu sua descoberta. - Taichiro
calou-se por um momento. - Mas o perito tambm era um
homem de letras e, em vez de interromper seu artigo por
a, deu livre curso sua imaginao. Vocs j ouviram
falar que o prncipe Arisugawanomiya era profunda-
mente apaixonado pela princesa Kazunomiya, no? O
perito se pergunta se a fotografa que a princesa apertava
contra o corpo no seria a de seu amante em vez de ser
a do xogum Iemochi, seu esposo. Ao sentir a morte se
aproximar, no teria ela ordenado em segredo s suas da-
mas de companhia que a enterrassem junto com a foto-
grafa de seu amante? No seria esse umgesto apropriado
a essa trgica princesa? Esta a opinio do perito.
- Hum! Tudo isso pura fantasia! A fotografa de um
amante que, mal tendo visto a luz do dia, desaparece no
espao de uma noite, isso daria um belo romance!
- O perito, no seu artigo, afrma que essa fotografa
deveria ter sido enterrada para sempre. Era sem dvida o
desejo da princesa que a forma humana sobre a placa de
vidro desaparecesse no espao de uma noite.
- bem possvel.
- Um escritor poderia dar vida novamente a essa
beleza que se desvaneceu assim em um instante, sublim-
la e torn-la uma obra de arte. assim, em todo caso, que
termina o artigo. Isso no lhe parece tentador, pai?
- Mas seria eu capaz? - questionou Oki. - Talvez eu
pudesse escrever um conto comeando com a cena das
escavaes Mas o artigo desse especialista no suf-
ciente?
- Voc acha? - Taichiro no parecia convencido. - Eu o
li na cama esta manh e nas minhas divagaes tive vont-
ade de lhe falar a respeito. Voc deveria dar uma olhada
agora mesmo. - Ele colocou o boletim sobre a escrivan-
inha de seu pai.
- Vou examin-lo.
Como Taichiro se levantava para sair, Fumiko pergun-
tou: - O que que fzeram com o esqueleto da princesa?
Eles no o levaram para uma universidade ou um museu
a fm de continuarem suas pesquisas? Isso seria monstru-
oso!
Espero que eles o tenham enterrado como antes!
- Sobre isso o artigo no fala! No sei de mais nada,
mas creio que provavelmente foi isso que eles fzeram -
respondeu Taichiro.
- No entanto, a fotografa que a princesa segurava em
seus braos desapareceu. Ela deve se sentir bem s.
- verdade, eu no tinha pensado nisso - disse
Taichiro. - Pai, voc terminaria seu conto com uma con-
statao desse gnero?
- Isso seria cair no sentimentalismo!
Taichiro deixou o escritrio sem acrescentar mais
nada. Fumiko, por sua vez, fez meno de sair: - Talvez
voc queira trabalhar.
- No. Depois de uma histria dessas, preciso andar
um pouco. - Oki se levantou: - Parece que o tempo mel-
horou.
- Ainda h algumas nuvens, mas depois dessa chuva
diluviana o ar deve estar fresco e agradvel - disse Fu-
miko. - Na sada, d uma olhada na goteira da cozinha.
- Voc se preocupa em saber se a princesa Kazunom-
iya no se sentir muito s no seu tmulo e, um minuto
depois, pede para que eu examine essa goteira!
- Seus tamancos estavam no armrio de sapatos, perto
da porta de servio da cozinha. - Fumiko disse,
colocando-os aos ps do seu marido: - Voc acha normal
que Taichiro tenha nos contado essa histria de tmulo e
esteja preparando uma visita a um outro em Kyoto?
- O que voc quer dizer? - Oki estava surpreso. - O que
v de anormal nisso? Realmente voc pula de um assunto
para outro!
- De modo algum! Estou pensando nisso desde que ele
comeou a nos contar a histria da princesa Kazunomiya.
- Mas o tmulo de Sanetaka muito mais antigo! Data
da Era Muromachi
- Taichiro vai a Kyoto para reencontrar essa moa.
Oki fcou novamente confuso. Fumiko se agachara
para apanhar os tamancos de seu marido, mas no mo-
mento em que ele ia cal-los, ela se ergueu. Seu rosto
fcou bem prximo de Oki, ftando-o por longo tempo.
- Essa moa temuma beleza diablicaVoc no acha
que ela tem alguma coisa demonaca?
Oki, que nada revelara a Fumiko sobre a noite passada
com Keiko em Enoshima, no soube o que responder.
- Tenho um mau pressentimento - disse Fumiko, seus
olhos sempre fxos nos de Oki. - Neste vero ainda no
tivemos nenhuma tempestade com troves.
- A est voc de novo comeando a saltar de uma
coisa para outra.
- Esta noite, se houver uma tempestade como a de
agora, um raio pode muito bem atingir o avio.
- Que besteira! Nunca ouvi falar de um avio ter
sido derrubado por um raio no Japo!
Assim que saiu de casa para escapar de sua mulher,
Oki se ps a olhar o cu. Oviolento aguaceiro de h pouco
no afastara as nuvens carregadas de chuva. O cu estava
baixo.
A umidade, opressiva. Mas, mesmo se o cu encoberto
se abrisse, Oki no se sentiria aliviado. Aidia de seu flho
dirigindo-se a Kyoto para encontrar-se com Keiko o aba-
tia. claro que ele no podia ter certeza de que fosse esse
seu objetivo, mas desde que Fumiko lhe comunicara, in-
opinadamente, suas dvidas, isso lhe parecera bastante
provvel.
Ao deixar seu escritrio para passear, Oki pensara em
ir a um desses velhos monastrios to numerosos em Ka-
makura, mas a singular observao de sua mulher o fez
renunciar a esse projeto. A perspectiva dos tmulos que
ele no deixaria de ver j no lhe agradava. Em vez disso,
escalou uma pequena colina repleta de rvores, prxima
sua casa. O ar estava impregnado do perfume da terra e
das rvores depois da chuva. E, medida que desaparecia
inteiramente detrs das folhagens, a lembrana do corpo
de Keiko se avivou em seu esprito.
O que ele viu em primeiro lugar, e de modo bastante
ntido, foram os seios da jovem. Os mamilos eram rosa-
dos, de um rosa quase transparente. Algumas japonesas,
apesar de pertencerem raa dita amarela, tm uma pele
mais clara, mais brilhante e ainda mais delicada do que
muitas mulheres ocidentais. O rosa dos seus mamilos
possui ento um tom indescritvel que no se encontra em
nenhuma outra parte. Keiko no tinha uma pele assim to
clara, mas os bicos rseos de seus seios pareciam frescos e
levemente umedecidos, fazendo pensar em botes de for
que haviam desabrochado contra o seu peito cor de trigo
maduro. Nenhuma pinta e nenhuma ruga pequenina en-
feiavam sua pele e cada seio era de tamanho perfeito.
Mas no fora somente por causa de sua beleza que
Oki se lembrara dos seios de Keiko. Se, em Enoshima, a
jovem consentiu em deix-lo acariciar seu seio direito, ela
lhe negou que fzesse o mesmo com o esquerdo. Quando
Oki tentou toc-lo, Keiko o escondeu com fora atrs da
palma de sua mo e, quando ele agarrou sua mo para
afast-la, ela se contorceu como que prestes a saltar da
cama.
- No, por favor. No faa isso O seio esquerdo
no
- Por qu? - Surpreso, Oki suspendeu seu gesto. - O
que que ele tem de errado?
- A ponta no sai
- A ponta no sai? - Oki fcou confuso com as palavras
da jovem.
- E horrvel! Eu o odeio! - A respirao de Keiko con-
tinuava desordenada. Por um momento, Oki no con-
seguiu compreender o sentido dessas palavras.
O que que "no saa" no seio esquerdo de Keiko?
O que era "horrvel"? A ponta do mamilo era afundada
ou seria deformada? Ser que Keiko se inquietava consid-
erando isso uma enfermidade? Ou ele deveria perceber
ali o pudor de uma adolescente que no suportava dois
mamilos de tamanhos desiguais? Ele se lembrou de que,
quando a tomara nos braos para estend-la na cama,
Keiko se enrodilhara sobre si mesma, pressionando viol-
entamente o seio esquerdo na cavidade do seu cotovelo.
Mas tanto antes como depois dessa cena, Oki observara
seus dois seios. Naturalmente, ele no os olhara com in-
teno de descobrir qualquer coisa de anormal, mas b-
vio que a menor deformao no seio esquerdo da jovem
ter-lhe-ia chamado a ateno.
Na verdade, nem mesmo quando arrancara fora a
mo de Keiko, ele notara algo de anormal no seu mami-
lo esquerdo. Examinando-o mais de perto, pareceu-lhe
apenas um pouco menor que o mamilo direito. Numa
mulher, essa leve diferena no apresentava nada de ex-
traordinrio. Como explicar ento a ansiedade de Keiko
em escond-lo?
O mistrio que a jovem fazia, assim como sua recusa,
aumentou ainda mais o desejo de Oki de acariciar esse
seio. Ele insistiu.
- H alguma pessoa em especial que voc deixe toc-
lo?
- No. No h ningum - disse Keiko, sacudindo a
cabea. Os olhos grandes bem abertos, ela encarou Oki
fxamente. Se bem que o rosto de Keiko estivesse afastado
demais para que ele pudesse ter certeza, pareceu-lhe que
seus olhos estavam marejados de lgrimas e que uma
certa tristeza ali pairava. Certamente no era o olhar de
uma mulher acariciada por um homem. Embora Keiko
tivesse fechado os olhos e se resignado a deixar Oki aca-
riciar seu seio esquerdo, ela parecia ausente. Se no havia
rugas de dor ou desgosto vincando seu semblante, seu
rosto, todavia, empalidecera. Oki notou isso e afrouxou
seu abrao, mas o corpo de Keiko comeou ento a ondu-
lar e a se torcer como se algum lhe fzesse ccegas. As
mos de Oki tornaram-se mais insistentes.
Seria possvel que o seio esquerdo da jovem estivesse
ainda intacto enquanto o direito j tivesse perdido sua
inocncia? Oki percebeu que as sensaes de Keiko
variavam conforme ele acariciava o seio esquerdo ou o
seio direito. No conseguia compreender por que Keiko
dissera " horrvel!", referindo-se a esse seio esquerdo.
Essa era uma observao bastante ousada para uma
jovemque se entregava a ele pela primeira vez. Mas quem
sabe fosse mais apropriado enxergar a o artifcio de uma
jovem particularmente astuciosa? Em presena de uma
mulher cujas sensaes variam conforme se acaricie um
ou outro de seus seios, qualquer homemse sentiria seduz-
ido e estimulado. Mesmo que ela tivesse nascido assim e
no houvesse nada a fazer a respeito, a prpria anomalia
apenas excitaria ainda mais um homem. Oki jamais en-
contrara uma mulher cujos seios tivessem sensibilidades
to diversas.
claro que cada mulher difere das outras quanto
maneira como prefere ser acariciada. No seria este tam-
bm o caso de Keiko, embora sua reao tivesse sido ex-
cessiva?
De maneira geral, as preferncias de uma mulher so
na verdade as de seu amante e no passam do resultado
dos hbitos e manias dele. Assim, o mamilo esquerdo de
Keiko, privado de toda a sensibilidade, representava um
alvo particularmente sedutor para Oki. Essa diferena de
sensibilidade entre os dois seios de Keiko devia-se, sem
dvida, a um amante inexperiente. Se era esse efetiva-
mente o caso, o seio esquerdo da jovem permanecia ainda
virgem. Esse pensamento no deixava de excitar Oki.
Mas levaria algum tempo para tornar esse seio
sensvel, e Oki no estava seguro de rever Keiko no fu-
turo.
Todavia, ele se mostrara estpido obstinando-se em
ftar o mamilo esquerdo da jovem, quando lhe fazia amor
pela primeira vez. Renunciando a seu projeto, ele buscou
os lugares onde a jovem gostava de ser acariciada. E os
encontrou. E ento, quando comeou a se comportar com
mais ousadia, ele a ouviu gritar o nome "Otoko!". Ele re-
cuou bruscamente e Keiko o empurrou para longe. Em
seguida afastou-se dele, levantou-se retifcando sua pos-
tura e, diante da penteadeira, ps em ordem os cabelos
desfeitos. Oki no tivera fora de olhar em sua direo.
medida que a chuva caa com mais violncia, um
sentimento de solido tomou conta de Oki. A solido
parecia ir e vir a seu bel-prazer. Keiko retornou ao seu
lado.
- Sr. Oki, no quer passar o brao em volta do meu
pescoo e dormir? - disse ela carinhosamente, examin-
ando seu rosto.
Sem dizer uma palavra, Oki passou o brao esquerdo
em volta do pescoo da jovem. Recordaes de Otoko
aforavam sem cessar ao seu esprito. No entanto, fora
Keiko que se aproximara dele. Alguns instantes depois,
Oki rompeu o silncio.
- Estou sentindo seu perfume.
- Meu perfume
- Um perfume de mulher.
- E mesmo? por causa do calor e da umidade
Perdoe-me!
- No, o calor e a umidade no tm nada a ver com
isso. um delicioso perfume de mulher
O perfume que Oki respirava era aquele que se de-
sprendia naturalmente da pele de uma mulher abraada a
seu amante. Todas as mulheres exalam esse perfume, at
mesmo as adolescentes. Ele tinha no s um efeito estim-
ulante sobre um homem como tambm o tranqilizava
e satisfazia. Ele no traa tambm, de alguma forma, o
desejo da mulher?
Sem confessar abertamente o que se passava em seu
pensamento, Oki pousou a cabea sobre o peito de Keiko
para que ela compreendesse que ele gostava do odor que
se desprendia de seu corpo. Fechou docemente os olhos e
l fcou, envolto no perfume da moa, No bosque, quando
a memria de Keiko nua se imps com fora a seu es-
prito, foi ainda a imagem dos seios da jovem a ltima a
desaparecer de sua viso. Na verdade, ela no desapare-
ceu, mas se manteve diante dele com todo o seu frescor e
toda a sua pureza.
- No devo deixar que Taichiro se encontre com ela! -
irrompeu Oki categoricamente. - No devo deix-lo!
Agarrou com todas as foras um arbusto a seu lado.
- Mas o que que posso fazer? - Sacudiu o tronco do
arbusto. As gotas de chuva que ainda estavam suspens-
as nas folhas respingaram em sua cabea. O cho estava
to mido que as extremidades de suas meias fcaram
molhadas. Oki lanou um olhar s folhas verdes que o
rodeavam por todos os lados. Esse verde que o envolvia o
oprimiu subitamente.
Para impedir que seu flho se encontrasse com Keiko
em Kyoto, Oki s via uma soluo: contar-lhe que havia
passado a noite com ela em Enoshima. Seno, talvez
pudesse enviar um telegrama a Otoko ou mesmo a Keiko.
Oki apressou-se em voltar para casa.
- Onde est Taichiro? - perguntou a Fumiko.
- Foi para Tquio.
- Para Tquio? J? Mas seu avio s vai partir noite!
Acha que ele voltar para casa antes de partir?
- No. Como seu avio parte de Haneda, isso o
obrigaria a fazer um desvio.
Oki fcou calado.
- Ele me disse que estava saindo cedo para passar na
universidade antes de seu vo. Queria pegar alguns doc-
umentos na sala de pesquisa
- Ser mesmo?
- Mas o que ? Voc no est se sentindo bem?
Oki evitou o olhar de Fumiko e entrou no escritrio.
Ele no falara a Taichiro nem enviara o telegrama a Otoko
ou a Keiko.
Taichiro tomou o avio das sete horas para Kyoto.
Keiko o esperava no aeroporto de Itami.
- Estou confuso - Taichiro saudou a moa com em-
barao. - No imaginava que voc viria me esperar no
aeroporto.
- Voc no me agradece?
- Obrigado. No devia ter-se incomodado.
Keiko notou o olhar vivo do rapaz e baixou delicada-
mente os olhos.
- Voc veio de Kyoto? - perguntou Taichiro ainda pou-
co vontade.
- Sim - respondeu Keiko com voz calma. - l que
eu moro, no? De onde mais poderia ter vindo seno de
Kyoto?
- verdade! - Taichiro riu e seu olhar deparou com o
obi da jovem.
- Voc to deslumbrante! Custo a crer que veio at o
aeroporto para me encontrar.
- Voc est falando do meu quimono?
- Sim, do seu quimono, do seu obi e de - Dos seus
cabelos, de seu rosto, Taichiro gostaria de acrescentar.
- No vero, sinto menos calor se uso um quimono
apropriado e se meu obi est amarrado de modo correto.
No gosto de roupas frouxas quando faz calor.
O quimono e o obi de Keiko pareciam muito novos.
- E tambm prefro as cores discretas, no vero. Como
este obi, est vendo?
Keiko caminhava quase colada a Taichiro enquanto
ele se dirigia lentamente para a ala das bagagens. Ela
disse: - Este obi, fui eu mesma que o pintei.
Taichiro voltou-se para ver: - Na sua opinio, o que
que isso representa? - perguntou Keiko.
- Vejamos gua? A correnteza de um rio?
- umarco-ris. Umarco-ris semcoresSomente lin-
has ondulantes mais ou menos sombrias conforme o nan-
quim. Ningum consegue compreender do que se trata e,
no entanto, meu corpo est envolto num arco-ris de ver-
o. Um arco-ris que se ergue acima das montanhas, no
crepsculo. - Keiko deu uma volta e exibiu a Taichiro as
costas do seu obi de seda. Sobre o grande lao bufante via-
se uma cadeia de montanhas e a nuance alaranjada e del-
icadamente esfumada de um cu crepuscular.
- A frente e as costas no combinam. Foi uma moa
extravagante que pintou este obi, por isso ele bizarro -
prosseguiu Keiko, as costas voltadas para Taichiro, que
no conseguia despregar os olhos da combinao entre
o tom alaranjado e a cor da pele do delgado pescoo de
Keiko, que salientava ainda mais seus negros cabelos er-
guidos.
Um servio de txi comandado pela companhia area
estava disposio dos passageiros com destino a Kyoto.
Quatro passageiros lanaram-se precipitadamente no
primeiro txi e, enquanto Taichiro hesitava quanto con-
duta a seguir, um segundo carro chegou e Keiko e ele
puderam entrar sozinhos. Assim que o txi deixou o aero-
porto, como se o pensamento lhe tivesse ocorrido subita-
mente, Taichiro disse: - Voc certamente no teve tempo
de jantar, vindo me apanhar numa hora dessas!
- Voc continua a me tratar como a uma estranha! Eu
nem sequer tive vontade de almoar. Comerei alguma
coisa com voc quando estivermos em Kyoto. - Em
seguida Keiko acrescentou como num murmrio: - Voc
sabe, eu o observei quando descia do avio. Voc foi o s-
timo a sair.
- O stimo?
- Sim, o stimo - repetiu Keiko de maneira bem clara.
- Voc ftava a ponta dos seus sapatos quando estava
descendo do avio. Nenhuma vez voc olhou na minha
direo.
Se voc imagina que algum o est esperando, no
normal que o procure com os olhos? Mas voc andava
com a cabea baixa, o ar ausente. Senti tanta vergonha de
ter vindo esper-lo que tive vontade de me esconder!
- No imaginava que voc viria ao aeroporto de Itami.
- Nesse caso, por que me mandou uma carta anun-
ciando a hora da chegada de seu avio?
- Suponho que era para lhe dar a prova de que eu viria
mesmo a Kyoto.
- Sua carta era to sumria quanto um telegrama!
Nada almda hora da chegada do avio! Eu me perguntei
se voc no estava querendo me pr prova e saber se
eu viria ou no esper-lo em Itami. De qualquer modo, eu
vim.
- Pr voc prova Se tivesse sido essa a minha in-
teno, eu no a teria buscado com os olhos entre a mul-
tido ao descer do avio?
- Na sua carta, voc no dizia o nome do seu hotel em
Kyoto. Se eu no viesse ao aeroporto, como faramos para
nos encontrar?
- Para falar a verdade - balbuciou Taichiro -, eu s
quis inform-la da minha vinda a Kyoto.
- No gosto disso! No entendo o que voc tem em
mente!
- De qualquer forma, tinha inteno de lhe telefonar.
- E se no telefonasse, retornaria a Kamakura do
mesmo jeito como saiu de l? Voc queria simplesmente
que eu soubesse que voc estava aqui? Enviando essa
carta, voc estava querendo zombar de mim, me humil-
har, estando em Kyoto e no se dignando a me ver?
- No, se eu lhe enviei essa carta era para me dar cor-
agem de reencontrar voc.
- Coragem de me reencontrar? - Em sua surpresa, a
voz de Keiko no passava de um doce murmrio. - Posso
me alegrar ou devo, ao contrrio, me entristecer?
Taichiro se calou.
- Intil me responder. Quanto a mim, estou feliz de
ter vindo. Mas no preciso coragem para se encontrar
com uma moa como eu s vezes, me acontece de ter
uma terrvel vontade de morrer. Voc pode me bater, me
pisotear, no se incomode!
- O que a leva a dizer uma coisa dessas to repentina-
mente?
- No assim to repentinamente! Esse o tipo de
moa que sou! Preciso de algum capaz de destruir meu
orgulho!
- Receio que no seja da minha natureza ferir o or-
gulho de ningum.
- essa realmente a impresso que voc me d, mas
isso no pode continuar assim Vamos, jogue-me a seus
ps com todas as suas foras!
- Por que est dizendo essas coisas?
- No sei - Com a mo, Keiko cobriu levemente seus
cabelos para proteg-los do vento que entrava pela janela
do txi. - Talvez porque eu esteja infeliz Agora mesmo,
quando desceu do avio, voc tinha um ar to melan-
clico, a cabea baixa, enquanto se dirigia sala de espera.
Tinha alguma razo para estar triste? Eu vim busc-lo, eu
o esperei, mas era como se eu no existisse para voc!
De fato, fora pensando em Keiko que Taichiro se diri-
gira sala de espera. Mas ele no podia confessar-lhe isso.
- Mesmo esse pensamento me deixa infeliz. Porque
sou egosta O que devo fazer para que voc tome con-
scincia da minha existncia?
- Penso em voc sem parar. - A voz de Taichiro se en-
durecera. - Neste momento mesmo, por exemplo
- Neste momento mesmo - murmurou Keiko. -
Neste momento mesmo, em mim que voc est
pensando. estranho estar assim a seu lado. to es-
tranho que acho que vou me calar e ouvir voc falar
O txi ultrapassou as novas usinas de Ibaraki e de
Takatsuki. Das colinas de Yamazaki surgiu diante deles,
violentamente iluminada, a destilaria de usque Suntory.
- O avio no balanou muito? - perguntou Keiko.
- Tivemos um aguaceiro violento durante a tarde em
Kyoto. Fiquei preocupada com voc.
- No, mas houve um momento em que pensei que
iramos bater. Olhando pela janela, pensei que o avio
fosse se chocar contra as montanhas escuras que bar-
ravam a passagem.
A mo de Keiko procurou a do rapaz.
- Mas aquilo que eu tomara por montanhas eram, na
realidade, nuvens negras! - disse Taichiro. Sua mo per-
manecia imvel sob a de Keiko. Durante algum tempo a
mo da moa tambm no se mexeu.
O txi entrou em Kyoto. Virou para o leste, em direo
Quinta Avenida. Nenhum sopro de vento agitava os
ramos dos salgueiros, mas o aguaceiro parecia ter trazido
um pouco de frescor. Longe, do outro lado das fleiras de
chores que margeavam as ruas largas mergulhadas na
obscuridade, estavam as Colinas do Leste. A linha das co-
linas no se destacava contra o cu baixo e encoberto. No
entanto, aqui, no lado oeste da cidade, Taichiro j podia
sentir a atmosfera de Kyoto.
O txi dirigiu-se para Horikawa e os deixou na rua
Oike, diante dos escritrios da Japan Air Lines.
Taichiro reservara um quarto no hotel Kyoto.
- Vou deixar minha bagagem no hotel. Vamos a p,
fca a dois passos daqui - disse ele.
- No, no! - Keiko sacudiu a cabea. Subiu novamente
no txi que os esperava e insistiu para que Taichiro fzesse
o mesmo.
- Leve-nos a Kiyamachi. Fica logo acima da Terceira
Avenida - disse ela ao motorista.
- No caminho, pare um momento no hotel Kyoto - pe-
diu Taichiro. Mas Keiko cortou-lhe a palavra: - No ne-
cessrio parar no hotel. Leve-nos diretamente a Kiyama-
chi, por favor.
Taichiro fcou surpreso ao ver que o txi entrou numa
viela estreita e os deixou na entrada de uma pequena casa
de ch de Kiyamachi. Foram conduzidos a um pequeno
aposento que dava para o rio Kamo.
- Que linda vista! - Taichiro no conseguia despregar
os olhos do rio. - Keiko, como voc conhece este lugar?
- Minha professora tem o costume de vir aqui.
- Sua professora? Quer dizer, a srta. Ueno? - Taichiro
voltou-se para ela.
- Sim, a srta. Ueno. - Com essas palavras, Keiko se le-
vantou e deixou a sala. "Ser que ela foi pedir o jantar?",
perguntou-se Taichiro. Cinco minutos depois, a moa es-
tava de volta. Ela se sentou e disse: - Se voc no se inco-
moda, gostaria que voc fcasse aqui. Acabo de telefonar
para o hotel cancelando sua reserva.
- Como? - Taichiro ftou a moa, estupefato. Keiko
baixou os olhos docilmente.
- Perdoe-me. Queria que voc se hospedasse em al-
gum lugar que conheo.
Taichiro no soube o que responder.
- Por favor, fque aqui. Voc s estar em Kyoto por
dois ou trs dias, no ?
- Sim.
Keiko ergueu os olhos. Suas lindas sobrancelhas, suas
linhas regulares que nenhum lpis retocara davam a seus
olhos sombrios e intensos um ar de inocncia. Elas pare-
ciam ligeiramente mais claras do que seus clios. Keiko
passara apenas uma leve camada de batom plido sobre
os lbios maravilhosamente desenhados e cuja forma era
incrivelmente perfeita. Ela no parecia estar usando nem
base nem ruge nas faces.
- Basta! Por que est me olhando assim? - disse Keiko,
piscando os olhos.
- Seus clios so to longos
- No so postios! Puxe-os e ver!
- Para ser bem franco, tenho mesmo vontade de peg-
los com os dedos e pux-los!
- Ento faa isso, eu no me incomodo - Keiko
fechou os olhos e aproximou seu rosto. - Talvez eles
paream to longos porque so curvos.
Keiko esperava, o rosto imvel, mas Taichiro no ou-
sou agarrar os clios com os dedos.
- Abra os olhos. Olhe um pouco mais para o alto e abra
bem os olhos. - Keiko fez o que Taichiro pedia.
- Voc quer que eu olhe diretamente nos seus olhos,
Taichiro?
Uma moa trouxe saque, cerveja e aperitivos.
- Prefere saque ou cerveja? - indagou Keiko,
aprumando-se. - Eu mesma no bebo.
Os shoji que davam para o terrao estavam cerrados
e, embora eles no pudessem ver o que se passava, pare-
cia que alguns clientes estavam bbados. Gueixas e maiko
haviam se juntado a eles e todo esse pequeno grupo fa-
lava em voz alta quando, das margens do rio, se fez ouvir
o som da pequena guitarra de brao longo com a qual os
msicos ambulantes se acompanham. Instantaneamente
todos se calaram.
- Quais so seus planos para amanh? - indagou
Keiko.
- A princpio, gostaria de visitar um tmulo na
montanha, perto do monastrio Nisonin. um belo
tmulo, a sepultura da famlia Sanjonishi.
- Um tmulo? Poderamos visit-lo juntos. Amanh,
eu gostaria que voc me levasse para um passeio de lan-
cha no lago Biwa. Mas tambm podemos ir num outro
dia! - disse Keiko, enquanto olhava em direo ao ventil-
ador.
- De lancha? - Taichiro parecia hesitante. - Nunca subi
numa lancha, no saberia gui-la.
- Eu sei.
- Voc sabe nadar, Keiko?
- No caso de a lancha virar? - disse Keiko, ftando
Taichiro. - Voc me ajudaria. Voc me ajudaria, no? Eu
me agarraria a voc.
- Isso que no! Se voc se agarrasse a mim, eu no
poderia socorr-la.
- Mas, ento, o que que eu deveria fazer?
- Eu teria que mant-la na superfcie, segurando-a em
meus braos, por trs - disse Taichiro, desviando os ol-
hos como se alguma coisa o houvesse perturbado. Ele se
imaginava na gua, segurando essa magnfca jovem em
seus braos. Se ele no a apertasse com muita fora, as
suas duas vidas estariam em perigo.
- Pouco me importa se a lancha virar! - disse Keiko.
- No sei se conseguiria salv-la.
- O que aconteceria, ento, se voc no conseguisse?
- Quer parar com essa conversa? Esse passeio de lan-
cha me preocupa, melhor desistir.
- Claro que no! Ns no vamos naufragar, no h
comque se preocupar. S empensar nesse passeio fco to
contente! - Keiko encheu de cerveja o copo de Taichiro.
- Voc no prefere vestir um quimono leve?
- No, estou bem assim.
Num canto do aposento, um quimono de homem e
um quimono de mulher estavam colocados um sobre o
outro. Taichiro evitou olh-los assim. O que signifcava
a presena dessa roupa feminina neste quarto reservado
por Keiko?
O aposento no dava para um quarto anexo. Taichiro
no se sentia com coragem para se despir diante de Keiko
e vestir o quimono.
A moa trouxe a refeio, sem dizer uma palavra e
sem lanar um olhar na direo de Keiko, que tambm
permaneceu calada.
Comearam a distinguir o som de um shamisen
45
vindo de um terrao beira do rio. Ouviam, sobre os ter-
raos da casa de ch em que se encontravam, as conversas
no dialeto de Osaka, bem como os rudos dos fregueses
embriagados. O acompanhamento da guitarra e as can-
es sentimentais dos msicos ambulantes perdiam-se ao
longe.
Da mesinha baixa, no centro do quarto, no con-
seguiam ver o rio Kamo.
- Ele sabe que voc est em Kyoto? - perguntou Keiko.
- Voc est falando de meu pai? Sim, ele est a par - re-
spondeu Taichiro. - Mas ele jamais poderia imaginar que
voc viria me esperar em Itami e que estou agora em sua
companhia.
- Que prazer isso me d, saber que voc veio me en-
contrar assim, sem dizer nada a seus pais
- Mas no estou tentando esconder nada de meu pai
- balbuciou Taichiro. - Dou essa impresso?
- Sim, sem dvida.
- E voc, Keiko? A sua srta. Ueno?
- Eu no lhe disse uma palavra. Mas me pergunto se
seu pai e a srta. Ueno no tm algum pressentimento e
no desconfam um pouco que ns dois estamos aqui. De
resto, isso no me desagradaria
- Eu no creio. A srta. Ueno no sabe nada a nosso re-
speito. Keiko, voc lhe disse alguma coisa?
- Eu lhe contei que voc me levou para conhecer a cid-
ade quando fui sua casa, em Kamakura. E quando lhe
disse que o amava, ela empalideceu. - Taichiro permane-
ceu calado.
- Voc acha que ela pode fcar indiferente quando se
trata do flho daquele que ela amou e que a tornou to in-
feliz? Ela no me escondeu o quanto o nascimento de sua
irm, pouco tempo depois de seu pai t-la deixado, a tran-
stornou. - Os olhos negros de Keiko cintilaram e um leve
rubor subiu-lhe s faces.
Taichiro no sabia o que dizer.
- No momento, a srta. Ueno trabalha numa obra que
tem como ttulo A ascenso de uma criana. uma pin-
tura no gnero dos retratos de Kobo Daishi menino e que
representa um beb sentado sobre o clice de uma for de
ltus. A srta. Ueno me confou que se tratava de fato de
sua flha que nasceu prematura e morreu antes mesmo de
poder se sentar. - Keiko se interrompeu um instante. - Se
essa criana tivesse vivido, ela seria sua meia-irm e seria
mais velha do que sua irm caula.
- Por que est me contando tudo isso?
- Quero vingar a srta. Ueno, eis o motivo.
- Ving-la de meu pai?
- E me vingar de seu pai e de voc!
Taichiro manejava os talheres com difculdade e mas-
sacrava a truta grelhada ao sal, disposta sua frente.
Keiko puxou para si o prato de Taichiro e, com destreza,
retirou as espinhas do peixe.
- Seu pai lhe disse alguma coisa a meu respeito?
- No, nada de especial Nunca falei sobre voc com
ele.
- E por qu?
A esta pergunta de Keiko, o rosto de Taichiro cobriu-
se de sombras. Pareceu-lhe que uma mo fria e viscosa lhe
tocava o peito.
- Nunca falo de mulheres com meu pai - conseguiu ar-
ticular.
- De mulheres? Voc disse claramente de mul-
heres? - Um sorriso encantador pairava nos lbios de
Keiko.
- Como voc espera se vingar de mim, Keiko? - per-
guntou Taichiro, a voz seca.
- Como eu concebo a minha vingana? Mas, se eu
lhe dissesse, no haveria mais vingana Talvez eu me
vingue apaixonando-me por voc - Seus olhos adquiri-
ram uma expresso distante, como se ela mirasse a es-
trada que beirava a margem oposta do rio. - Isso no lhe
parece engraado?
- De jeito nenhum. Ento, sua vingana consistiria em
se apaixonar por mim?
Keiko aquiesceu docilmente, como se se sentisse alivi-
ada.
- o cime feminino! - ela murmurou.
- Cime? Cime por qu?
- Porque ainda hoje a srta. Ueno continua a amar seu
pai porque ela no sente nenhum rancor por ele, depois
de ele t-la maltratado como fez
- Keiko, ento voc ama a srta. Ueno a este ponto?
- Sim. A ponto de querer morrer por ela
- No est em meu poder reparar o mal que meu pai
fez no passado. Acha que minha presena a seu lado es-
ta noite tem qualquer vnculo com o passado comum de
meu pai e da srta. Ueno? Na verdade, receio que no seja
esse o caso.
- Mas evidente. Se eu no vivesse com a srta. Ueno,
ignoraria at mesmo sua existncia neste mundo. Ns
nunca nos encontraramos
- No gosto do seu jeito de pensar. Voc, uma moa
to jovem, est sendo vtima dos fantasmas do passado ao
pensar assim. Ser essa a razo por que o seu pescoo
to fno e, por isso, to belo?
- Um pescoo muito fno signifca que nunca se amou
um homem Pelo menos, o que diz a srta. Ueno. Assim
mesmo, eu detestaria ter um pescoo largo!
Taichiro resistiu tentao de agarrar o magnfco
pescoo da moa.
- Isso o murmrio de um fantasma. Voc est sendo
vtima de uma bruxaria, Keiko.
- No. Vtima de meu amor!
- A srta. Ueno ignora tudo a meu respeito, no ?
- Quando retornei de Kamakura, disse-lhe que na
minha opinio voc devia ser o retrato de seu pai quando
tinha sua idade.
- Isso ridculo! - Taichiro se enfureceu. - No
pareo nem um pouco com meu pai!
- Isso o deixa zangado? Voc no quer se parecer com
ele, no ?
- Desde que nos encontramos no aeroporto, voc no
parou de mentir, Keiko. Voc est mentindo a fm de me
esconder o fundo do seu pensamento.
- Eu no lhe menti.
- Nesse caso, talvez seja essa a maneira habitual de vo-
c se expressar.
- O que voc est dizendo odioso!
- No foi voc que me autorizou a pisar em voc?
- Acha que essa a nica maneira de me fazer dizer
a verdade? No menti para voc. Voc simplesmente se
recusa a me compreender! No voc que est dissimu-
lando o fundo de seu pensamento? por isso que estou
infeliz!
- Voc est mesmo infeliz?
- Sim. Estou. Ou talvez no, nem sei mais.
- E eu no sei o que estou fazendo aqui com voc!
- Voc no est aqui porque me ama?
- Sim, mas
- Mas?
Taichiro no respondeu.
- Mas o qu? O que est querendo dizer? - Keiko agar-
rou a mo de Taichiro entre as suas duas palmas e a sacu-
diu.
- Voc no tocou em quase nada, Keiko - disse
Taichiro.
De fato, ela havia comido apenas dois ou trs pedaos
de dourado cru.
- A noiva tambm no come na festa de seu
casamento!
- Olha s o tipo de coisa que voc diz!
- No foi voc o primeiro que comeou a falar emcom-
ida?
* * *
ARDORES DO VERO
Otoko era o tipo de pessoa que costumava perder peso durante
o vero.
Em Tquio, quando ainda era menina, ela no se inquietava
com essa perda de peso e quase no a percebia. S se deu conta
disso l pelos 22 ou 23 anos, quando j havia se mudado para
Kyoto. Fora sua me que a alertara sobre o fato.
- Voc tambm emagrece no vero, no ? Herdou isso de
mim - disse-lhe ela. - Ns temos os mesmo pontos fracos. Eu
achava que voc tinha um temperamento muito vigoroso, mas,
fsicamente, voc bem minha flha. No h o que discutir.
- No tenho um temperamento vigoroso!
- Voc tem um temperamento violento.
- De jeito nenhum!
Sem dvida, a me de Otoko, ao falar em "temperamento
vigoroso" ou "violento", pensava no relacionamento de sua
flha com Oki. Mas no seria mais correto discernir a o ardor
de uma jovem a quem o amor fzera perder a cabea?
Elas haviam se mudado para Kyoto a fm de que Otoko es-
quecesse a sua dor, e sua me, por precauo, preferiria que
nem uma nem outra jamais mencionasse o nome de Oki. Mas
naquela cidade estranha onde no conheciam ningum e onde
ningum, alm delas mesmas, podia consolar seus dois cor-
aes magoados, elas no conseguiam deixar de notar que Oki
estava sempre presente em seus pensamentos. Para sua me,
Otoko era como um espelho onde se refetia a imagem de Oki,
e Otoko via sua me como um segundo espelho refetindo
a mesma imagem. E por sua vez os dois espelhos lhes de-
volviam as suas imagens recprocas.
Um dia, escrevendo uma carta, Otoko abriu o di-
cionrio e seu olhar caiu sobre o caractere chins que sig-
nifca "pensar". Enquanto lia os outros sentidos desse ca-
ractere, que tambm pode signifcar "pensar muito em al-
gum", "no conseguir esquecer" ou ainda "estar triste",
ela sentiu seu corao se comprimir. No lhe era nem
mais possvel consultar um dicionrio; at mesmo ali ela
reencontrava Oki. Inmeras palavras levavam-na a
pensar nele. Para Otoko, relacionar tudo o que via e tudo
o que ouvia a Oki era nada menos do que estar viva. Se
ainda possua alguma conscincia de seu corpo, era certa-
mente porque Oki o havia abraado e amado.
Otoko compreendia perfeitamente que sua me dese-
jasse v-la esquecer Oki. Era o nico desejo dessa mulher
solitria, sem outros flhos. Mas Otoko, ela mesma, no
desejava esquecer. No que ela no pudesse, mas porque
no queria. Ela parecia se agarrar memria que guar-
dava de Oki, como se viver sem ela lhe fosse impossvel.
Se, aos dezessete anos, ela pudera deixar a clnica
psiquitrica e seu quarto com grades de ferro na janela,
no fora de forma alguma porque sua paixo por Oki
tivesse esmorecido, mas porque lhe parecia que esse sen-
timento tinha se enraizado nela de uma vez por todas.
Um dia em que Oki fazia amor com ela, Otoko havia
gemido de dor e lhe suplicara que parasse. Oki relaxou
o abrao e ela abriu os olhos. Suas pupilas escuras bril-
havam em meio a uma neblina de lgrimas.
- No estou vendo seu rosto, meu menino. Est to
borrado como se estivesse debaixo d'gua. - Mesmo numa
hora dessas, ela chamava Oki de "meu menino".
- Sabe, se algum dia voc morrer, no vou poder con-
tinuar vivendo. verdade, no poderei mais. - Lgrimas
brilharamnos cantos de seus olhos. No eramlgrimas de
tristeza que os inundavam, e sim de alvio.
- Mas, se voc morrer, no haver mais ningum para
se lembrar de mim - disse Oki.
- Se o homem que amo morrer, no suportarei con-
tinuar viva me lembrando dele. No suportarei. Prefro
morrer. Voc no me impediria, no ? - Otoko afundou o
rosto no pescoo de Oki e sacudiu a cabea.
Oki fcou em silncio por algum tempo, pensando que
aquilo no passava de bobagens de uma menina enamor-
ada, depois disse: - Se algum apontasse o revlver para
mim ou me ameaasse com uma faca, suponho que voc
no hesitaria em se colocar frente para me proteger.
- claro que no. Ficaria contente em dar minha vida
por voc
- No nisso que estava pensando. Se eu me encon-
trasse subitamente em perigo, voc me defenderia imedi-
atamente, sem sequer pensar? Voc viria em meu socorro
sem a menor hesitao?
Otoko aquiesceu.
- Sim
- Nenhum homem faria isso por mim. Somente uma
menininha como voc me protegeria, pondo sua vida em
perigo!
- No sou uma menininha! No sou uma menininha! -
repetiu Otoko.
- O que que j no mais to pequenino em voc?
- disse Oki, buscando os seios da moa.
Oki pensava na criana que Otoko estava esperando.
Se ele prprio viesse a morrer subitamente, o que aconte-
ceria com essa criana e sua me? Mas disso Otoko s
soube mais tarde, lendo Uma garota de dezesseis anos.
Quando sua me observara que ela emagrecia durante
o vero, no quisera ela, desse modo, insinuar que no era
mais a lembrana de Oki que fazia sua flha perder peso?
Otoko, apesar de sua constituio delicada, seus om-
bros cados e sua ossatura delgada, nunca estivera grave-
mente doente. claro que, aps o parto prematuro, a sep-
arao de Oki, o malogrado suicdio, a internao numa
clnica psiquitrica, ela emagrecera muito e se tornara
fraca - seus olhos adquiriram um brilho de uma inten-
sidade anormal. Entretanto, seu corpo se recuperara bem
antes de seu corao. Dado o prprio vigor de seu corpo
jovem, Otoko quase chegava a considerar deslocada a
dor indizvel que seu corao continuava a experimentar.
Ningum perceberia sua tristeza se no houvesse, nos
momentos em que ela pensava em Oki, tamanha melan-
colia em seus olhos. Mas essa sombra de melancolia que
se entrevia em seu olhar, e que no era sequer o desejo de
ser amada, fazia com que parecesse ainda mais bela aos
olhos dos outros.
Desde criana Otoko sabia que sua me perdia peso
no vero. Gentilmente ela lhe enxugava as costas e o peito
encharcados de suor, compreendendo que a magreza da
me, embora ela nada falasse, devia-se ao fato de ela no
suportar o calor. Mas Otoko, sem dvida por ser ainda
to jovem, no chegara a notar que apresentava a mesma
disposio de sua me, seno quando ela lhe chamara a
ateno para o fato. Otoko, mesmo antes dos vinte anos,
j devia ter tendncia a perder peso quando o vero era
demasiado quente.
A partir dos 25 anos, ela no usava mais nada alm
do quimono; desse modo sua magreza se tornava menos
visvel do que se vestisse saia ou cala. Mesmo assim
sua magreza era bastante evidente em algumas partes do
corpo. A Otoko, essa perda de peso recordava sua me,
morta j h algum tempo, de quem herdara essa particu-
laridade.
Com o passar dos anos, Otoko parecia emagrecer
ainda mais e suportar menos ainda as altas temperaturas
do vero.
- Que remdio eu poderia tomar para resistir melhor
ao calor? Vejo muitos anncios nos jornais, mas h algum
em especial que voc me recomendaria? - perguntou um
dia sua me.
- Todos esses remdios so mais ou menos efcazes
- ela respondeu de maneira evasiva. Permaneceu calada
por um instante e prosseguiu num tom diferente: - Otoko,
o melhor remdio para uma mulher o casamento.
Otoko no respondeu.
- O homem o remdio que d vida s mulheres. To-
das as mulheres deviam tomar esse remdio!
- Mesmo se for um veneno?
- Mesmo assim. Voc, Otoko, tomou um veneno sem
saber, e ainda hoje no tem conscincia disso. No entanto,
existe um antdoto. s vezes, preciso um segundo ven-
eno para curar o primeiro. Mesmo que o remdio seja am-
argo, feche os olhos e engula-o sem pensar. Pode ser que
lhe d enjo ou ento que no consiga faz-lo descer pela
garganta
A me de Otoko morreu sem que a flha tomasse o
remdio que ela lhe havia prescrito. Foi sem dvida al-
guma sua maior tristeza. Otoko, como havia dito sua me,
nunca considerara Oki um veneno. Mesmo em seu quarto
de doente com grades na janela, ela no experimentara
nem uma vez o sentimento de raiva ou de ressentimento
para com ele. Seu amor apenas a fzera perder a cabea. O
veneno que havia ingerido na esperana de se matar fora,
num timo, cuidadosamente retirado de seu corpo, sem
que dele restasse o menor vestgio. De seu corpo tambm
haviam se retirado Oki e a criana que ela tivera com ele,
mas as cicatrizes deixadas por eles teriam mais cedo ou
mais tarde de desaparecer tambm. Mas o amor de Otoko
por Oki no apenas no se havia dissipado como nada
perdera de sua intensidade.
Passara o tempo. Todavia, no passava ele de modo
diferente para cada um, seguindo atalhos diversos? Como
um rio, o tempo para o homem s vezes se escoa rapida-
mente, s vezes segue ritmos mais lentos. Acontecia tam-
bm de nem sequer se escoar, mas permanecer ali a se es-
tagnar. Se o tempo csmico se escoa mesma velocidade
para todos os homens, o tempo humano, este varia con-
forme cada um. O tempo se escoa de modo semelhante
para todos os seres humanos, mas cada homem se move
dentro dele de acordo com um ritmo que lhe prprio.
Otoko no tinha mais dezessete anos, mas quarenta.
No entanto, como Oki estivesse sempre presente em seu
corao, ela s vezes se perguntava se o tempo, para ela,
no cessara de se escoar e se estagnara. Ou talvez a lem-
brana de Oki tivesse se escoado no mesmo ritmo que
ela, tal uma for que fosse levada pela correnteza de um
rio. Otoko, entretanto, ignorava de que maneira o tempo
havia se escoado para Oki. Embora ele no tivesse se es-
quecido dela, a vida dele certamente no teria transcor-
rido seguindo o mesmo ritmo que a dela. O tempo no
se escoa do mesmo modo jamais, nem mesmo para dois
amantes; essa uma sorte da qual ningum saberia esca-
par.
Hoje, como em todas as manhs, ao despertar, Otoko,
com a ponta dos dedos, massageou levemente a testa e
com as mos acariciou a nuca e as axilas. Sua pele estava
mida. Pareceu-lhe que a umidade que emanava de sua
pele havia se transmitido ao quimono que usava para
dormir e que trocava diariamente.
Keiko gostava no s desse odor de suor que se de-
sprendia de Otoko como tambm da leve umidade que
deixava sua pele ainda mais sedosa. s vezes sentia vont-
ade de arrancar todas as roupas que cobriam sua amiga.
Otoko, por sua vez, no suportava o cheiro de suor.
Na noite passada, entretanto, Keiko havia voltado
para casa depois da meia-noite e meia e se sentara, pouco
vontade, evitando o olhar de Otoko.
Otoko estava estirada na cama, protegendo-se, com
um leque, da luz que caa do teto. Ela observava os quatro
ou cinco esboos pendurados na parede, representando
rostos de criana. Parecia absorvida em sua contemplao
e lanou apenas umrpido olhar para Keiko, dizendo-lhe:
- Voc est a? J bem tarde.
Na clnica, Otoko no fora autorizada a ver o beb pre-
maturo que havia dado luz. Tinham-lhe dito apenas que
seus cabelos eram negros como carvo. Quando quisera
saber mais e interrogara sua me a respeito, ela lhe re-
spondera: - Era um belo beb. Parecia-se com voc.
Otoko compreendera que sua me dizia aquilo para
consol-la. Ela jamais vira recm-nascidos. Nesses lti-
mos anos, tivera sob os olhos algumas fotografas de cri-
anas que tinham acabado de nascer e as achara horrveis.
Havia tambm a fotografa de um beb ainda ligado sua
me pelo cordo umbilical, e isso parecera a Otoko algo
particularmente repugnante.
Assim, Otoko no tinha idia alguma do rosto e da sil-
hueta que tivera seu beb. Ela simplesmente fazia uma
certa imagem dele em seu corao. Ela sabia muito bem
que no seria o rosto de sua flhinha morta que ela pintar-
ia em A ascenso de uma criana e ela no pretendia,
de qualquer modo, fazer uma obra realista. Desejava to-
somente expressar nessa pintura sua dor e sua afio por
ter perdido a criana. Esse desejo a perseguira durante
tantos anos que acabou por se transformar numa espcie
de smbolo do qual sua nostalgia se nutria e para o qual
se voltavam seus pensamentos quando estava triste. Essa
obra tambm deveria simbolizar sua existncia at este
dia, assim como toda a tristeza de seu amor por Oki.
Porm, apesar de todos os seus esforos, Otoko no
conseguira retratar um rosto de criana que corres-
pondesse a todas essas exigncias. O Cristo criana nos
braos da Virgem Maria ou os querubins que havia visto
tinham, no seu entender, rostos com traos demasiada-
mente acentuados, expresses de adultos falsamente im-
pregnadas de santidade. Otoko no desejava pintar um
rosto com traos to ntidos e to marcados, mas um rosto
indizivelmente ferico, cuja alma aureolada no perten-
cesse nem a este nem ao outro mundo e do qual emanasse
uma impresso de paz e doura, mas que evocasse, ao
mesmo tempo, uma tristeza infnita. Otoko, porm, no
desejava fazer uma obra abstrata.
Se o tratamento do rosto tivesse de responder a tais re-
quisitos, de que maneira Otoko retrataria o corpo murcho
de um beb prematuro? Como pintar o fundo e os detal-
hes secundrios? De novo, Otoko folheou lbuns com re-
produes de quadros de Odilon Redon e Chagall. Mas as
suaves quimeras com que sonhava Chagall eram por de-
mais estrangeiras sua alma asitica para que ela pudesse
se inspirar nelas de uma forma ou de outra.
Uma vez mais, foram as antigas pinturas, to tipica-
mente japonesas, representando Kobo Daishi criana que
lhe vieram ao esprito. Esses retratos tinham sua origem
numa lenda sobre a vida do santo homem, segundo a
qual Kobo Daishi criana se vira em sonhos sentado sobre
uma for de ltus de oito ptalas, conversando com o
Buda.
Nessas pinturas de estilo convencional, Kobo Daishi
mantinha-se sentado sobre o clice de uma for de ltus, o
busto bem ereto. Nas pinturas mais antigas, ele tinha uma
expresso distante e severa, mas seus traos se suaviza-
vam e se tornavam mais encantadores nas obras mais re-
centes, a ponto de s vezes se poder confundir a face do
santo homem menino com a de uma graciosa menina.
Otoko se perguntou se no fora porque j pensava, no
fundo de si mesma, em A ascenso de uma criana que
ela imaginara representar Keiko sob os traos clssicos
de uma Virgem quando, na noite anterior festa da Lua
cheia, a jovem lhe pedira para fazer seu retrato. Mas, al-
gum tempo depois, uma dvida brotou em seu ntimo.
No era fatal reconhecer na atrao que ela exper-
imentava pelos retratos de Kobo Daishi criana a ex-
presso de um certo narcisismo? Tambm ela no dese-
java que se fzesse seu retrato? Nos traos do santo
homem menino, como nos de uma Virgem, no era uma
imagem santifcada de si mesma que ela estava procur-
ando? Essa dvida a trespassava como uma espada que,
contra sua vontade, ela tivesse afundado no peito com as
prprias mos. Ela no se esforou em aprofundar a es-
pada ainda mais em sua carne e acabou por retir-la. Mas
a espada deixou uma cicatriz que a fazia sofrer de tempos
em tempos.
claro que Otoko no pensava em copiar servilmente
as pinturas de Kobo Daishi menino para fazer o retrato de
sua flhinha morta ou o de Keiko. Entretanto, ela no con-
seguia afast-las de sua mente. Os prprios nomes que
havia escolhido para dar a essas obras, A ascenso de
uma criana e Retrato de uma Virgem, eram reveladores
nesse sentido; nessas obras, Otoko desejava purifcar, e
at mesmo santifcar, o amor que sentia por seu beb e
por Keiko. Ela estava um tanto embaraada em dar o
nome de Retrato de uma Virgem sua pintura de Keiko e
chegara a provocar a jovem fngindo chamar essa obra de
Abstrao para uma jovem pintora, embora ela no pre-
tendesse, de modo algum, pintar uma obra abstrata. Ela
desejava fazer um retrato de inspirao religiosa e trans-
bordante de amor.
A primeira vez que viera sua casa, Keiko tomara o
retrato que Otoko havia feito de sua me por um sub-
lime auto-retrato. Depois disso, cada vez que seu olhar
pousava sobre o quadro pendurado na parede, Otoko se
recordava do equvoco da jovem e sobretudo de suas pa-
lavras. Fora o afeto que Otoko sentia por sua me que a
levara a represent-la em plena juventude e no auge de
sua beleza, mas essa escolha no traa igualmente uma
certa dose de narcisismo? Talvez Otoko, acreditando
pintar sua me, e apesar da grande semelhana entre as
duas, estivesse na verdade fazendo seu auto-retrato.
Uma natureza-morta ou uma paisagem, desne-
cessrio dizer, so ocasies para um pintor expressar seus
sentimentos e seu mundo interior. A doura e a tristeza
indulgente que se manifestavam no retrato que Otoko
fzera de sua me no teriam deixado de se manifestar
tambm num eventual auto-retrato de Otoko. Mas era
sobretudo das representaes de Kobo Daishi menino que
emanava essa impresso de indulgncia. A pintura ja-
ponesa clssica conta com um nmero impressionante de
estupendas obras de inspirao budista, assim como de
magnfcos retratos de mulheres. Se Otoko no conseguia
afastar de sua mente as pinturas do santo homem criana
era devido sua graa, bem como suavidade qual se
somava um certo sentimento de piedade. Otoko, embora
no fosse uma seguidora de Kobo Daishi, no podia deix-
ar de admir-las. A prpria doura desses retratos no
fazia seno aumentar sua dor.
Otoko continuava a amar Oki, seu beb e sua me,
mas poderia esse amor permanecer imutvel desde o
tempo em que haviam sido uma realidade tangvel para
ela? Seria possvel que o amor que tinha por esses trs
seres houvesse se transformado emamor-prprio? Otoko,
naturalmente, no estava consciente dessa transformao.
A dvida havia se insinuado em seu ntimo sem que,
no entanto, ela julgasse necessrio averiguar. A morte a
havia separado de sua flha e de sua me, a vida a havia
separado defnitivamente de Oki; no entanto, ainda ho-
je, os trs viviam dentro dela. Mas, na verdade, era ela
que vivia e, comisso, dava-lhes vida. Aimagemque guar-
dava de Oki no era algo estagnado, mas fua no mesmo
ritmo de sua vida. Hoje, o amor que Otoko tinha por si
mesma conferia s suas recordaes uma colorao di-
versa e as transformava. Jamais lhe ocorrera at ento que
as recordaes fossem semelhantes a fantasmas e espec-
tros esfomeados. Sem dvida era normal que uma mul-
her, separada de seu amante aos dezessete anos e tendo
vivido at o momento sem amar outro homem e sem se
desposar, encontrasse prazer nas tristes recordaes do
amor perdido e que esse prprio prazer acabasse por se
revestir de um certo narcisismo.
No fora tambm por narcisismo que Otoko havia se
afeioado sua pupila Keiko, apesar de serem ambas do
mesmo sexo? Se no fosse esse o caso, Otoko jamais teria
tido a idia de representar a jovem com os traos de uma
virgem, ou, ento, sentada, como o Kobo Daishi, sobre o
clice de uma for de ltus, enquanto ela mesma lhe im-
plorava que a pintasse nua. No estava Otoko procur-
ando dessa maneira criar uma imagem purifcada de si
mesma? A menina de dezesseis anos que amara Oki con-
tinuava dentro dela e, ao que parecia, no cresceria nunca.
Otoko, entretanto, ignorava tudo isso e parecia se recusar
a tomar conscincia.
Geralmente, aps as noites midas de Kyoto, Otoko,
que era extremamente sensvel higiene e no tolerava
o odor de suor que parecia impregnar suas roupas,
levantava-se da cama imediatamente. Naquela manh,
porm, ela permaneceu um instante com a cabea repou-
sada no travesseiro e os olhos voltados para os esboos de
rostos de criana fxados na parede, e que ela contemplara
longamente na vspera. No obstante seu beb tivesse
vivido sobre a terra um breve instante, ela queria pint-
lo de algum modo com os traos espirituais de uma cri-
ana que no tivesse nascido nem vivido no mundo dos
homens; por isso esses esboos haviam-lhe causado tantas
difculdades.
De costas para Otoko, Keiko ainda dormia profunda-
mente. Uma leve manta de linho, que deslizara deixando
seu peito descoberto, a envolvia. Ela estava deitada de
lado, as pernas cuidadosamente encolhidas uma sobre
a outra e cobertas at os tornozelos pela manta. Como
Keiko se vestia freqentemente com quimono, os dedos
longos e fnos de seus ps no tinham sido comprimidos
em sapatos de salto alto. Eram to fnos, to alongados e
to diferentes dos seus que Otoko preferia desviar os ol-
hos.
Mas quando os tomava na mo, ainda sem olh-los,
tinha a impresso de que eles no pertenciam a uma mul-
her de sua gerao e experimentava, ao toc-los, uma
sensao to agradvel quanto estranha, como se os de-
dos do p de Keiko no pertencessem a um ser humano.
Ondas de perfume desprendiam-se de Keiko. Era um
perfume por demais embriagador para uma moa da sua
idade. Otoko no ignorava que Keiko costumava us-lo
em ocasies raras, e espantou-se de que ela estivesse to
perfumada na vspera.
Quando Keiko chegou em casa depois da meia-noite,
no ocorreu a Otoko perguntar-lhe de onde vinha. Estava
naquele momento inteiramente absorvida na contem-
plao dos seus esboos de rostos de criana fxados na
parede.
Keiko se deitara rapidamente, sem sequer tomar
banho, e adormecera quase de imediato. Mas talvez
Otoko tivesse julgado que Keiko estivesse adormecida
porque ela mesma, Otoko, empouco tempo cara no sono.
Uma vez de p, Otoko contornou a cama de Keiko, ol-
hou de relance o rosto adormecido da jovem e foi abrir as
persianas de madeira. Keiko costumava acordar sempre
de bom humor e, nas manhs em que Otoko se punha de
p antes dela, pulava da cama para ajud-la assim que
a ouvia abrir as janelas. Mas esta manh Keiko sentou-
se na cama e fcou a observar a amiga. Quando Otoko j
havia aberto as janelas, afastado os shoji e voltado para
o quarto, Keiko disse: - Desculpe. No consegui pegar no
sono antes das trs da manh - Levantou-se e comeou
a arrumar as roupas de cama de Otoko.
- O calor no deixou voc dormir?
- Talvez
- No guarde de novo o quimono que usei. Quero
lav-lo.
Com o quimono no brao, Otoko dirigiu-se para o
chuveiro. Keiko, por sua vez, foi at a pia e escovou os
dentes s pressas.
- Keiko, voc tambm no quer tomar banho?
- Sim.
- Ontem noite, parece que voc se deitou sem sequer
remover seu perfume.
- mesmo?
- Tenho certeza! - Otoko notou o ar desligado da
jovem. - Keiko, onde voc esteve ontem noite?
No houve resposta.
- Tome um banho. Voc se sentir melhor.
- Sim, mais tarde.
- Mais tarde? - Otoko a observou.
Quando Otoko saiu do banheiro, Keiko tinha aberto
uma das gavetas da cmoda e estava escolhendo um qui-
mono.
- Vai sair? - indagou Otoko num tom rspido.
- Vou.
- Tem encontro com algum?
- Sim.
- Com quem?
- Com Taichiro.
Na hora, Otoko no compreendeu.
- O Taichiro do sr. Oki - acrescentou Keiko, sem a
menor hesitao, mas evitando deliberadamente
empregar a palavra "flho".
Otoko no soube o que dizer.
- Ele chegou ontem e fui esper-lo no aeroporto de
Itami. Hoje prometi que o levaria para conhecer a cidade,
a menos que seja ele que me leve a conhec-la Eu no
lhe escondo nada, Otoko! A primeira coisa que faremos
ser ir ao monastrio Nisonin. H um tmulo na
montanha que Taichiro deseja visitar.
- Um tmulo? Na montanha? - repetiu Otoko,
sem sequer compreender o que dizia.
- Sim. Segundo ele o tmulo de um nobre da corte
que viveu no sculo XV.
- Ah!
Keiko despiu o quimono e voltou as costas nuas para
Otoko.
- Pensando bem, acho que vou usar mangas compri-
das sob o quimono. Parece que ainda far calor hoje, mas
seria inconveniente deixar de us-lo
Sem dizer uma palavra, Otoko observou a jovem se
vestir.
- Agora, s falta dar o lao no obi -As mos atrs das
costas, Keiko puxou o n com todas as suas foras.
Otoko a observava enquanto ela se maquiava leve-
mente. O espelho devolveu jovem a imagem de sua
amiga.
- Otoko, no me olhe desse jeito!
Otoko voltou a si e tentou atenuar a expresso severa
de seu rosto, mas seus traos continuaram tensos.
Keiko virou-se para um dos espelhos laterais da pen-
teadeira e, com as pontas dos dedos, ajeitou uma mecha
de cabelos logo acima de sua orelha to delicadamente
desenhada.
Foi como se, com esse gesto, ela desse o ltimo toque
sua maquiagem. Em seguida, fez meno de se levantar,
mas mudou de idia e pegou um frasco de perfume.
- Mas o perfume que voc usou ontem noite ainda
nem se dissipou - disse Otoko, franzindo o cenho.
- No tem importncia.
- Keiko, acho que voc est muito irritada. - Otoko fez
uma pausa. - Por que esse encontro?
- Ele me escreveu avisando a hora da chegada de seu
avio em Kyoto.
Otoko no respondeu.
Keiko ergueu-se, dobrou apressadamente vrios qui-
monos que havia tirado e os meteu dentro da cmoda.
- Dobre-os com um pouco mais de cuidado, por favor!
- pediu Otoko.
- Est bem.
- Voc vai precisar dobr-los de novo.
- Est bom assim. - Keiko nem sequer se voltou para
olhar a cmoda.
- Venha c, Keiko! - chamou Otoko com voz severa.
Keiko sentou-se diante da amiga e ftou-a diretamente
nos olhos. Otoko desviou o olhar, da indagou de repente:
- Vai sair sem nem tomar o caf?
- Vou. Jantei tarde ontem noite.
- Ontem noite!
- .
- Keiko - recomeou Otoko -, por que se encontrar com
esse rapaz?
- No sei.
- E voc faz questo?
- Sim.
- Ento foi voc quem quis esse encontro, no foi? Em-
bora os modos de Keiko no deixassem a menor dvida
nesse sentido, Otoko quisera ainda assim se certifcar.
- Por que isso?
Keiko no respondeu.
- Voc tem necessariamente que v-lo? - Otoko abaix-
ou os olhos. - Preferiria que voc desistisse. No v,
Keiko!
- Por que no? Isso no tem nada a ver com voc, tem?
- claro que tem!
- Mas, Otoko, voc nem sequer o conhece!
- Depois do que se passou em Enoshima, voc ainda
consegue se encontrar com esse rapaz?
Otoko reprovava que Keiko, depois de ter passado
uma noite em Enoshima com o pai, agora se encontrasse
com o flho como se nada tivesse acontecido. Mas ela no
ousou pronunciar o nome de Oki nem o de Taichiro.
- O sr. Oki seu antigo amante, mas voc nunca con-
heceu Taichiro e voc no tem nada a ver com ele. Ele
o flho do sr. Oki, s isso - disse Keiko. - No seu flho,
Otoko
Essas palavras feriram Otoko. Trouxeram-lhe
memria o fato de que, pouco tempo depois da morte de
seu beb, a esposa de Oki dera luz uma menina.
- Keiko, voc quer seduzir esse rapaz, no ?
- Foi ele que me escreveu anunciando a hora da
chegada de seu avio.
- Vocs j so to ntimos a ponto de esper-lo no aero-
porto e depois passearem juntos por Kyoto?
- Otoko, no gosto da palavra "ntimos"
- O que gostaria que eu dissesse? Que voc est se
"envolvendo" com ele? - Com as costas da mo, Otoko
enxugou o suor gelado que marejava de sua testa plida.
- Voc monstruosa, Keiko!
Um brilho estranho perpassou os olhos da jovem.
- Otoko, eu odeio os homens!
- Fique aqui, Keiko! Fique! Se for encontr-lo, no
volte nunca mais para esta casa!
- Otoko!
Os olhos de Keiko pareciam molhados.
- O que voc vai fazer com Taichiro? - As mos de
Otoko tremiam em cima de seus joelhos. Pela primeira
vez, ela pronunciara o nome do rapaz.
Keiko se ergueu.
- Estou indo, Otoko.
- Fique, por favor.
- Otoko, bata em mim! Bata como fez no dia em que
fomos ao Templo dos Musgos!
Otoko no se moveu.
Keiko permaneceu imvel por um instante, em
seguida lanou-se correndo para fora.
Otoko percebeu ento que seu corpo estava enchar-
cado de suor. Continuou sem se mover, os olhos fxos nas
folhas dos bambus no jardim, cintilantes ao sol da manh.
Finalmente levantou-se e foi para o banheiro. Devia
ter aberto a torneira com muita fora, pois o rudo da
gua a fez estremecer. Ela a fechou apressadamente, de
modo que desse passagem a apenas um tnue fo de gua,
e comeou a se banhar. Acalmou-se um pouco, embora
continuasse a sentir um peso opaco em sua cabea. Pas-
sou uma toalha mida na testa e na nuca.
De volta ao quarto, Otoko sentou-se diante do retrato
de sua me e dos esboos de criana. Uma sensao de
nusea em relao a si mesma a invadiu. A raiz desse des-
gosto estava em sua vida em comum com Keiko, e ele se
estendia a toda a sua existncia e fazia dela um ser miser-
vel e desprovido de foras. Por que vivera at esse dia,
por que ainda estava viva?
Otoko teve de repente vontade de chamar sua me.
Lembrou-se ento do Retrato da velha me do artista de
Nakamura Tsune
46
. Fora a ltima obra desse pintor antes
que ele precedesse sua me na morte. O fato de esse re-
trato de sua velha me ser a ltima obra do pintor era
uma das razes por que Otoko se sentia to comovida
diante dela. Ela no tivera sob os olhos seno uma re-
produo e, embora fosse difcil julgar sem ter visto o
original, esta simples reproduo a comovera profunda-
mente.
O jovem Nakamura Tsune fzera retratos poderosos e
sensuais da mulher que amava. Empregava bastante ver-
melho e dizia-se que fora infuenciado por Renoir. Sua
obra mais clebre e mais conhecida, o Retrato de Eroshen-
ko, expressava de maneira quase religiosa, utilizando
tons quentes e harmoniosos, toda a nobreza e melancolia
do poeta cego. Sua ltima obra, o Retrato da velha me do
artista, fora, todavia, executada com grande sobriedade,
empregando tonalidades frias e escuras. Via-se uma velha
mulher descarnada e macilenta, sentada de perfl numa
cadeira e, atrs dela, guisa de fundo, uma parede semi-
revestida de lambris. Nessa parede, altura de seu rosto,
fora escavado um nicho onde havia sido colocada uma
jarra de gua e, do outro lado da velha mulher, um term-
metro. Otoko ignorava se ele no fora acrescentado pelo
artista para efeito de composio, mas esse termmetro,
assim como o rosrio que pendia de suas mos delicada-
mente pousadas sobre os joelhos, a tinha impressionado
vivamente. Eles simbolizavam de alguma forma os sen-
timentos do artista, que iria preceder sua velha me na
morte. Talvez fosse esse o sentido desse retrato.
Otoko tirou do armrio um lbum com reprodues
das obras de Nakamura Tsune e comparou o Retrato da
velha me do artista com o retrato que fzera de sua me.
Ela, por sua vez, optara por representar sua me jovem,
apesar de ela j ter morrido. Alm disso, este no fora de
modo algum seu ltimo quadro. A sombra da morte no
pairava sobre esse retrato. No havia nenhum ponto em
comum entre essa obra tipicamente japonesa e o retrato
da Nakamura Tsune, que fora infuenciado pela pintura
ocidental. No entanto, diante dessa reproduo, Otoko se
deu conta do sentimentalismo que se desprendia do re-
trato de sua me. Fechou os olhos. Com todas as suas
foras, manteve as plpebras cerradas. Sentiu como se to-
do o seu sangue fugisse de seu corpo.
Fora movida por um sentimento de amor para com
sua me que Otoko pintara seu retrato. Ela no podia
represent-la seno em plena juventude e em todo o seu
esplendor.
Que falta de profundidade e que afetao havia nesse
retrato em comparao com o fervor que emanava da
obra de Nakamura Tsune pintada beira da morte! Mas
a toda a vida de Otoko no faltara, precisamente, pro-
fundidade?
Otoko no fzera esse retrato enquanto sua me estava
viva. Depois de sua morte, ela se inspirara em uma de
suas fotografas. Mas pintara sua me ainda mais bela e
mais jovem do que na prpria foto. Sabendo o quanto se
parecia com a me, aconteceu-lhe de, ao pintar, observar
seu prprio rosto no espelho. Portanto, no era nada sur-
preendente que uma certa suavidade emanasse desse re-
trato; mas, ao mesmo tempo, no era possvel detectar
nele uma ausncia de alma e de profundidade?
Otoko lembrou-se de que sua me nunca mais con-
sentira em ser fotografada depois que haviam se mudado
para Kyoto. Quando do artigo consagrado a Otoko, um
fotgrafo de Tquio quisera tirar uma foto das duas jun-
tas, mas sua me se recusara. Pela primeira vez Otoko
compreendeu que fora a dor que levara sua me a agir
dessa maneira.
Ela vivia com sua flha em Kyoto como uma mulher
margem da sociedade e havia mesmo cortado os laos
com seus amigos mais ntimos de Tquio. Otoko se sentia
igualmente rejeitada, mas na poca tinha apenas dezes-
sete anos e sua solido e isolamento eram de uma
natureza diversa dos que experimentava sua me. Ela
tambm era diferente de sua me no que dizia respeito
a continuar a amar Oki, embora seu amor por ele no
fzesse mais do que tortur-la.
Comparando assim o retrato que Nakamura Tsune
fzera de sua me e o que ela prpria pintara, Otoko se
perguntou se no deveria fazer um segundo retrato da
me.
Keiko fora se encontrar com Taichiro. Para Otoko, era
como um abandono. Tinha a impresso de que nunca
mais poderia se ver livre da angstia que nesse momento
a invadia.
Esta manh, Keiko no pronunciara a palavra
"vingana", como fazia normalmente. Dissera que odiava
os homens, mas isso no era algo que devesse ser levado
em considerao.
Ela se trara ao utilizar como pretexto para no tomar
caf um jantar tarde da noite. O que Keiko pretendia fazer
ao flho de Oki? O que iria acontecer com elas e o que iria
acontecer com Otoko, que depois de 24 anos ainda vivia
prisioneira de seu amor por Oki? Otoko sentiu que no
poderia permanecer sentada sem fazer nada.
J que no conseguira impedir Keiko de sair, no lhe
restava mais nada seno correr atrs dela e encontrar
Taichiro para alert-lo. Mas Keiko no dissera onde
Taichiro havia se hospedado e nem onde se encontrariam.
* * *
O LAGO
Quando Keiko chegou diante da pequena casa de ch de
Kiyamachi, Taichiro j a esperava no terrao, vestido e pronto
para sair.
- Bom dia. Passou bem a noite? - Keiko se aproximou do
rapaz e reclinou-se contra a balaustrada do terrao. -Voc es-
tava minha espera?
- Eu me levantei cedo. O barulho do rio me tirou da cama -
disse Taichiro. - Vi o sol nascer por trs das Colinas do Leste.
- Voc se levantou to cedo assim?
- Sim. Mas as colinas esto perto demais para que se possa
ter a impresso de um verdadeiro nascer do sol. medida que
o sol se eleva no cu, o verde das colinas se torna mais claro e o
rio Kamo cintila aos primeiros raios
- Voc passou todo esse tempo observando?
- Era curioso ver as ruas do outro lado do rio acordando e
ganhando vida outra vez.
- Ento, voc no conseguiu dormir? No gostou deste
lugar?
E Keiko acrescentou como num murmrio: - Ficaria feliz se
no tivesse conseguido pegar no sono por minha causa
Taichiro permaneceu calado.
- Voc no vai me dizer?
- Sim, Keiko. Foi por sua causa.
- porque insisti para que me respondesse que voc diz
isso.
- Mas voc, Keiko, voc no teve problemas para
pegar no sono, no mesmo?
Keiko sacudiu a cabea: - No verdade.
- Seus olhos dizem o contrrio. Esto brilhando com
uma luz muito viva.
- meu corao que est brilhando assim. E por sua
causa, Taichiro! Perder uma ou duas noites de sono no
me afeta em nada.
Os olhos brilhantes e ligeiramente umedecidos da
jovem miravam Taichiro fxamente. Ele tomou-lhe a mo.
- Que mo fria - sussurrou Keiko.
- A sua est quente.
Um a um ele segurou os dedos da moa e a magreza
deles o confundiu. Pareciam incrivelmente delgados e
frgeis, como se no pertencessem a um ser humano. Ah,
devia ser fcil dilacer-los com os dentes! Taichiro teve
vontade de lev-los boca. Esses dedos traam, de al-
guma forma, toda a fragilidade daquela jovem. Bem sua
frente, Taichiro via o perfl de Keiko - as orelhas to ad-
miravelmente desenhadas e o esguio e gracioso pescoo.
- Ento, com esses dedos fnos que voc pinta?
Taichiro aproximou a mo da jovem de seus lbios. Keiko
observou a prpria mo, havia lgrimas em seus olhos.
- Voc est triste, Keiko?
- Ao contrrio, estou feliz Esta manh, bastaria que
voc me tocasse para que eu comeasse a chorar - Ela se
interrompeu por um instante. - Tenho a sensao de que
alguma coisa est acabando para mim.
- Mas o qu?
- Voc no devia me perguntar isso.
- No est acabando, mas comeando. O fm de al-
guma coisa no o comeo de outra?
- Sim, mas o que passou, passou, e o que comea
uma coisa nova. assim com uma mulher. Ela nasce
outra vez!
Taichiro ia puxar a jovempara si quando sua mo, que
segurava os dedos de Keiko, perdeu a frmeza. Ela se en-
costou docemente em seu corpo. Ele se agarrou balaus-
trada.
Das margens do rio l embaixo subiu o ganido estri-
dente de um co. Um pequeno Terrier que pertencia a
uma mulher de meia-idade, com certeza moradora nas
vizinhanas, se encontrara cara a cara com um enorme
co Akita e se pusera a latir. O enorme Akita nem sequer
se dignou a lanar-lhe um olhar. O homem que o tinha
na coleira parecia ser cozinheiro de um dos pequenos res-
taurantes japoneses da regio. A mulher se agachou e
pegou o Terrier em seus braos. Ele se debateu e latiu com
mais empenho ainda. Quando sua dona deu as costas ao
enorme co Akita, pareceu que os latidos do Terrier se
voltaram contra Taichiro e Keiko. A mulher, segurando a
cabea de seu co e erguendo os olhos para o terrao, sor-
riu polidamente para os dois jovens.
- Droga! Detesto ces! Se um deles late para voc de
manh, sinal de que o seu dia ser pssimo! - disse
Keiko, encolhendo-se atrs de Taichiro. Mesmo depois de
o Terrier ter silenciado, ela permaneceu assim, com a mo
pousada de leve sobre o ombro do rapaz.
- Taichiro, voc est feliz de estar comigo?
- Claro!
- Eu me pergunto se voc est to feliz quanto eu. Re-
ceio que no.
Enquanto pensava na maneira to feminina como
Keiko se expressara, Taichiro sentiu subitamente o aroma
de sua respirao contra a nuca. O peito de Keiko roava
de leve nas costas dele. A esse contato, ele sentiu o doce
calor que emanava da jovem transmitir-se a seu prprio
corpo. O sentimento de que a partir de agora Keiko lhe
pertenceria apoderou-se de todo o seu ser. No havia
mais nada de surpreendente ou de incompreensvel no
comportamento da moa; apenas sua incrvel beleza o
surpreendia.
- Voc parece no compreender at que ponto eu dese-
java encontr-lo. Eu achava que no teramos mais nen-
huma oportunidade, a menos que eu fosse a Kamakura -
disse Keiko. - estranho estarmos ns dois aqui.
- Sim, estranho.
- Digo isso porque no houve um dia, desde que nos
encontramos, em que eu no tenha pensado em voc.
Sempre tive a sensao de que iramos nos rever;
curioso, no? Mas voc, Taichiro, voc j tinha se esque-
cido de mim, no ? S se lembrou de que eu existia
quando veio para Kyoto.
- Fico surpreso de ouvi-la dizer isso!
- mesmo? Ento, algumas vezes voc pensou em
mim?
- Sim. E pensar em voc me fazia sofrer.
- Mas por qu?
- Porque pensando em voc eu me lembrava de sua
professora e dos sofrimentos que pesaram sobre minha
me quando ela era jovem. Eu era muito pequeno na po-
ca para compreender, mas voc mesma sabe que tudo
aquilo narrado detalhe por detalhe no romance de meu
pai: quando, por exemplo, minha me vagava pelas ruas
no meio da noite me carregando nos braos, ou o modo
como deixava cair um bolo de arroz e rompia em soluos.
Sem dvida, ela estava me machucando quando me aper-
tava daquele jeito em seus braos, pois eu no parava
de chorar enquanto ela saa de casa e se afastava, mas
ela nem sequer escutava meus gritos. Tinha ento 23 ou
24 anos, e j parecia estar fcando surda! No entanto -
Taichiro hesitou - esse romance continua a ser vendido,
apesar de tudo. No deixa de ser uma ironia, mas foi
graas a seus direitos autorais que meu pai conseguiu
garantir nossa sobrevivncia, pagar as despesas de minha
educao e os gastos com o casamento de minha irm.
- E o que h de errado nisso?
- No estou me queixando, mas, pensando bem, no
deixa de ser algo inslito. No consigo deixar de odiar
esse romance que mostra minha me sob os traos de uma
mulher repugnante, louca de cime! E, no entanto, todas
as vezes que esse livro reeditado, ela que imprime o
selo do autor sobre cinco, dez mil exemplares. E essa mul-
her, que no mais jovem, fca l a estampar, pgina aps
pgina, o selo de seu marido, cada vez que querem reedit-
ar esse romance que a retrata como ummonstro de cime.
claro que a tormenta j passou para minha me e
nossa casa reencontrou a calma Todavia, seria de es-
perar que as pessoas sentissem desprezo por essa mulher,
mas, ao contrrio, elas a respeitam e estimam ainda mais!
Curioso, no?
- Afnal de contas, ela a esposa do sr. Oki.
- No entanto, esse romance fala sobretudo de sua pro-
fessora, que nunca se casou, creio
- verdade.
- Eu me pergunto o que meus pais sentem a seu re-
speito. Parecem ter esquecido totalmente que Ueno Otoko
existiu. Para mim intolervel imaginar que foram os
direitos autorais de um tal romance que me sustentaram.
Vivo graas ao sacrifcio da vida de uma moa de dezes-
seis anos E voc me diz que quer ving-la
- No - Keiko aproximou sua face do pescoo de
Taichiro. - Isso j passou. Eu sou apenas eu.
Taichiro virou-se e ps as mos em volta dos ombros
da jovem.
Mal se ouvia a voz de Keiko: - A srta. Ueno disse que
era intil eu voltar para casa.
- Por qu?
- Porque eu vinha me encontrar com voc.
- Voc lhe contou?
- Claro.
Taichiro fcou em silncio.
- Ela pediu que eu desistisse de v-lo, ou, ento, que
no pusesse mais os ps em casa
Taichiro retirou as mos dos ombros da jovem. Notou
de repente que o trfego na margem oposta do rio se tor-
nara mais intenso. A colorao das Colinas do Leste havia
se alterado e oferecia agora uma gama de verdes em tons
escuros e claros.
- Ser que fz mal em ter contado a ela? - perguntou
Keiko, ftando o rosto crispado de Taichiro.
- No isso - disse Taichiro, numa voz abafada. Agora
parece que sou eu que estou vingando minha me contra
a srta. Ueno.
Com essas palavras, ele entrou no quarto.
- Vingar sua me? Eu jamais teria pensado algo as-
sim! Que coisa estranha de se dizer!
Keiko agarrou-se a Taichiro para ret-lo.
- Vamos? Ou talvez seja melhor que voc volte para
casa.
- Voc horrvel!
- Agora serei eu, e no mais meu pai, que vai estragar
a vida da srta. Ueno.
- Eu estava errada ao falar em vingana na noite pas-
sada. Perdoe-me.
Taichiro parou um txi diante da casa de ch e Keiko
subiu a seu lado. Ele permaneceu em silncio enquanto
o automvel atravessava a cidade em direo ao monas-
trio Nisonin, em Saga.
- Posso abrir toda a janela? - perguntou Keiko, que, at
o momento, se mantivera calada. Em seguida colocou a
mo sobre a de Taichiro e acariciou-a de leve com o dedo
indicador. Sua mo estava ligeiramente mida e escor-
regadia.
O porto principal do monastrio Nisonin, dizia-se,
fora transportado at ali desde o castelo de Fushimi-Mo-
moyama, em 1613, por um dos membros de uma famlia
rica e poderosa na poca. Ele tinha realmente o aspecto
imponente de um pesado porto de castelo.
- Pelo sol, acho que o dia de hoje tambm ser quente
- disse Keiko. - a primeira vez que venho aqui
- Fiz algumas pesquisas em torno de Fujiwara Teika
- disse Taichiro.
Enquanto subia os degraus de pedra que conduziam
ao porto de entrada, ele se virou para Keiko. A bainha
do quimono da moa oscilava levemente ao ritmo de seus
passos.
- sabido que Fujiwara Teika viveu ao p do monte
Ogura, em uma vila por ele denominada "Pavilho da
Chuva de Outono", mas sugerem-se trs lugares difer-
entes para essa vila e, ao que parece, ningum conhece ao
certo sua verdadeira localizao. Segundo alguns, ela ser-
ia sobre a colina detrs do monastrio Nisonin; segundo
outros, perto do monastrio Jojatsuko-ji, no muito longe
daqui, ou ainda na Ermida Distante do Mundo Impuro
- A srta. Ueno j me levou a essa ermida.
- mesmo? Ento, voc viu o poo do qual se diz
que Fujiwara Teika retirou gua para seu tinteiro quando
compilava sua antologia potica de cem autores?
- No me lembro.
- A gua desse poo fcou clebre. Chamam-na "a gua
do salgueiro".
- Teika utilizou realmente essa gua?
- Em matria de poesia, ele foi venerado como um
deus e todas as espcies de lendas foresceram ao seu
redor. Mas foi na Era Muromachi, principalmente, que
ele foi considerado o maior poeta e homem de letras do
Japo.
- Seu tmulo tambm est aqui?
- No, est no monastrio Shokokuji. Mas h um
pequeno pagode de pedra prximo Ermida que, se-
gundo dizem, foi construdo sobre a pira funerria onde
Teika teria sido cremado
Keiko no disse mais nada. Taichiro percebeu que ela
ignorava quase tudo acerca de Fujiwara Teika.
Pouco antes, quando o txi em que estavam passara
perto do pequeno lago de Hirosawa e ele vira refetidas
na gua, na margem oposta do rio, as esplndidas
montanhas cobertas de pinheiros, a paisagem evocara a
Taichiro o milnio de histria e de literatura que tivera
por cenrio a plancie de Saga. Das margens do lago, ele
distinguia o monte Ogura, cujos contornos lisos e de pou-
ca altitude se recortavam contra o monte Arashi.
As evocaes do passado clssico de seu pas, que o
espetculo dessas colinas e dessa plancie haviam des-
pertado, afuam ainda com mais frescor ao esprito de
Taichiro agora que Keiko estava a seu lado. Tinha uma
conscincia mais aguda de que estava, de fato, na antiga
capital.
Mas no seria a impetuosidade de Keiko, sua apaixon-
ada intensidade, suavizada a seus olhos por esse cenrio?
Taichiro se deu conta disso e voltou a olhar para a moa.
- Por que me olha com esse ar estranho? - Keiko
pareceu um pouco constrangida e estendeu a mo para
se esconder. Taichiro estendeu a sua prpria mo de leve
contra a dela.
- estranho estar aqui ao seu lado Fico me pergunt-
ando onde estou.
- Tambmme pergunto. E pergunto ainda quem essa
pessoa ao meu lado - disse Keiko, tomando a mo de
Taichiro e cravando nela as unhas. - Eu a desconheo.
As sombras densas dos pinheiros caam sobre a ampla
alameda que conduzia ao porto de entrada do monas-
trio.
O caminho era margeado por magnfcos pinheiros
vermelhos entremeados com bordos. At mesmo as pon-
tas dos ramos dos pinheiros estavam imveis. Suas som-
bras avanavam passagem de Keiko, brincando sobre
seu rosto e sobre seu quimono branco medida que ela
caminhava. Um ramo de bordo mais baixo do que os out-
ros quase lhe roou a face.
Quando chegaram aos degraus de pedra no fm da
alameda, notaram um muro de adobe encimado por um
teto. Um murmrio de gua caindo chegou a seus
ouvidos. Subiram os degraus de pedra e viraram es-
querda, acompanhando o muro. Um fo de gua brotava
de uma abertura em sua base, perto de uma porta.
- No h ningum - observou Keiko, do lado da porta.
- estranho que um monastrio to clebre atraia to
poucos visitantes - notou Taichiro, parando por sua vez.
Omonte Ogura erguia-se diante deles. Uma atmosfera
de tranqila dignidade emanava do teto de cobre do
monastrio.
- Olhe s essa esplndida rvore sua esquerda. Se-
gundo o que contam, a rvore mais clebre das Colinas
do Oeste - disse Taichiro.
A velha rvore exibia galhos nodosos e retorcidos,
mas cobertos de alto a baixo por folhas verdes recm-nas-
cidas. Os galhos mais novos apresentavam um exuber-
ante vigor.
- Sempre gostei desta velha rvore e nunca a esqueci.
Mas fazia anos que no a via.
Taichiro no falou de outra coisa a no ser da rvore e
no explicou jovem que o monastrio Nisonin devia seu
nome s duas inscries oferecidas pelo imperador e pen-
duradas no pavilho principal.
Quando passaram novamente direita do pavilho
consagrado deusa Benten
47
, Taichiro viu um lance de
degraus de pedra bem ngreme.
- Keiko, voc consegue subir esses degraus com o qui-
mono?
Keiko esboou um sorriso que ps mostra seus
lindos dentes e meneou a cabea: - Acho que no Mas
segure minha mo e, depois, se for preciso, voc me car-
rega.
- Iremos bem devagar.
- l no alto?
- . O tmulo de Sanetaka fca no topo dessa es-
cadaria.
- Voc veio a Kyoto s para ver esse tmulo. No para
me ver.
- verdade - disse Taichiro, tomando a mo de Keiko
e soltando-a logo em seguida. - Subirei sozinho. Espere-
me aqui.
- Eu tambmposso subir. Voc deveria saber que esses
degraus no me assustam nem um pouco Eu fcaria fe-
liz em segui-lo at o alto do monte Ogura, mesmo que
nunca mais retornssemos.
Com essas palavras, Keiko segurou a mo de Taichiro
e comeou a subir.
Certamente eram raros os visitantes que subiam essas
pedras hoje em dia; samambaias e ervas daninhas cres-
ciam na base de cada degrau. Aqui e ali brotavam fores
amarelas.
- J chegamos? - indagou Keiko quando vislum-
braram, a um lado, enfleirados, trs pequenos pagodes
de pedra.
- No, um pouco mais acima! - respondeu Taichiro,
avanando, porm, em direo aos tmulos. - Estes trs
pagodes so magnfcos, no? Chamam-se os Tmulos
dos Trs Imperadores. So maravilhosos exemplos de ar-
quitetura em pedra e famosos por causa disso. Os mais
belos so, sem dvida, este que est nossa frente e o que
tem cinco patamares no meio.
Keiko observou os dois pagodes e concordou.
- O tempo deu uma linda tonalidade pedra - ele
prosseguiu.
- Eles datam do Perodo Kamakura? - perguntou
Keiko.
- Sim. Mas acho que o pagode com dez patamares logo
ali da poca das Cortes do Norte e do Sul
48
. Ao que
parece, ele tinha inicialmente treze patamares e sua parte
de cima ruiu.
A delicadeza, a graa e o refnamento dos pagodes
tocaram a sensibilidade artstica de Keiko. Por um mo-
mento, ela pareceu esquecer que ali estavam os dois, as
mos entrelaadas.
- Os tmulos de nobres da corte, como Nio, Takat-
sukasa, Sanjo, so numerosos na regio. Pode-se visitar
tambm o de Suminokura Ryoi e o de Ito Jinsai, mas nen-
hum deles to belo quanto os Tmulos dos Trs Im-
peradores - disse Taichiro.
Subiram ainda alguns degraus e chegaram a uma
pequena construo de nome Kaizanbyo, na qual se er-
guia, de modo bastante curioso, uma esteia funerria de
pedra na qual haviam sido inscritas as realizaes do
monge Tanku, que restaurara o monastrio em tempos
idos.
Taichiro, sem sequer lanar um olhar ao monumento,
dirigiu-se para uma fleira de pedras tumbais, situadas
direita.
- aqui. So as sepulturas da famlia Sanjonishi. A
da extrema-direita a de Sanetaka. Ela tem a seguinte
inscrio: SANJONISHI SANETAKA, OUTRORA
MINISTRO DO INTERIOR.
Keiko observou a inscrio e percebeu, prximo ao
pequeno tmulo que lhe chegava mais ou menos altura
dos joelhos, uma outra sepultura encimada por uma
pequena tabuleta funerria com essa inscrio: KINEDA,
OUTRORA MINISTRO DA JUSTIA. esquerda, lia-
se sobre uma outra tabuleta: SANEEDA, OUTRORA
MINISTRO DO INTERIOR.
- Ministros to importantes emtmulos to modestos?
- perguntou Keiko.
- Isso mesmo. Gosto da simplicidade dessas pedras.
No obstante o nome e o posto ofcial do falecido es-
tarem ali gravados, essas pedras tumbais no diferiam
em nada das que se podiam encontrar no monastrio
Nembutsu-ji de Adashino, entre as tumbas dos Mortos
por quem Ningum Chora. Elas se encontravam igual-
mente desgastadas, cobertas de musgos, afundadas at a
metade na terra e deformadas pelo tempo. Elas estavam
mudas. Taichiro agachou-se ao lado do tmulo de Sane-
taka como que para ouvir uma voz longnqua e difcil-
mente perceptvel. Puxada por sua mo, Keiko tambmse
agachou.
- Comovente, no? - disse Taichiro para despertar o
interesse de Keiko. - Estou fazendo pesquisas a respeito
de Sanetaka. Ele viveu at os 83 anos e manteve, durante
mais de sessenta anos, umdirio que uma fonte preciosa
de ensinamentos sobre a cultura de Higashiyama. Seu
nome fgura com freqncia nos dirios de outros nobres
da corte e de poetas seus amigos. Foi uma poca fascin-
ante, um perodo de vitalidade cultural em meio a guer-
ras e revoltas polticas.
- por isso que voc to apegado a este tmulo?
- Talvez sim.
- H quanto tempo voc est pesquisando?
- Trs anos. No, j devem ser quatro ou cinco agora.
- E desse tmulo que vem sua inspirao?
- Minha inspirao? Eu nem
Nesse momento, Keiko deixou-se cair sobre os joelhos
do rapaz. Taichiro perdeu o equilbrio e a jovem caiu sen-
tada em seu colo, enlaando seu pescoo com as mos.
- Bem diante desse tmulo que voc tanto gosta Por
que no me deixa tambm boas recordaes dele? Seu
corao est todo nessa pedra. Isso tudo o que ele signi-
fca.
- Tudo o que ele signifca? - Taichiro ecoou as suas pa-
lavras com um ar ausente. - Mesmo as sepulturas somem
com o passar do tempo
- O que voc disse?
- Mesmo uma sepultura feita na pedra efmera.
- No estou ouvindo.
- Sua orelha est muito perto - Os lbios de Taichiro
quase roavam as orelhas da moa.
- Assim no! Est me fazendo ccegas! - Keiko pres-
sionou a cabea contra seu peito e mirou com o canto do
olho.
- No devia respirar assimno meu ouvido. Detesto ho-
mens que provocam mulheres.
- No estou provocando!
Ao perceber, pela primeira vez, que tinha a moa em
seu colo e que a estava abraando, Taichiro sentiu uma
vontade imensa de rir. Estava consciente do peso sobre
seus joelhos, mas ao mesmo tempo da delicada leveza de
seu corpo.
Taichiro fora pego de surpresa pela queda brusca de
Keiko. Para no cair de costas, se enriecera, sem que ele
mesmo tivesse conscincia dessa tenso em seu corpo.
Os braos de Keiko ainda enlaavam seu pescoo e
as longas mangas do quimono haviam deslizado at o
cotovelo. Taichiro voltou a si quando sentiu em seu
pescoo o contato frio com a pele lisa e mida da moa.
- Ento estou fazendo ccegas em sua linda orelha,
no ? Taichiro notou que sua respirao estava desorde-
nada e tentou acalm-la.
- Minhas orelhas so particularmente sensveis - mur-
murou Keiko.
Suas orelhas eram tentadoras. Taichiro apalpou-as
delicadamente com os dedos. Keiko permaneceu com os
olhos bem abertos e no se moveu.
- So como estranhas fores.
- Voc acha?
- Est ouvindo alguma coisa?
- Ouo algo como
- Como?
- O que poderia ser? Como o barulho de uma abelha
pousando sobre uma for No, uma abelha no, uma
borboleta.
- porque a estou tocando bem de leve.
- Gosta de tocar em orelhas de mulheres?
- O qu? - Os dedos de Taischiro se contraram.
- Voc gosta? - repetiu Keiko, com a mesma voz suave.
- Nunca vi orelhas to lindas - disse ele afnal.
- Gosto de limpar as orelhas dos outros - disse Keiko.
- Engraado, no? J me tornei uma especialista. Voc
gostaria de experimentar?
Taichiro no respondeu.
- No h nem um sopro no ar - ela continuou.
- No, apenas um mundo banhado de sol.
- mesmo. Nunca esquecerei que, numa manh como
esta, diante desta velha sepultura, voc me teve em seus
braos. estranho que um tmulo possa deixar tal re-
cordao.
- Mas eles so feitos precisamente para criar re-
cordaes, no verdade?
- Tenho certeza de que sua recordao desta manh
se dissipar em breve. Voc logo a esquecer, no ? -
Apoiando-se sobre uma das mos, Keiko tentou se le-
vantar do colo de Taichiro. - muito triste!
- Por que acha que no me lembrarei?
- triste que seja assim! - Como Keiko tentava se liber-
tar de seu abrao, Taichiro puxou-a novamente para si.
Seus lbios roaram levemente os da jovem.
- No! Sua boca no!
Taichiro fcou perplexo com a recusa de Keiko e a
dureza de sua voz. Ela afundou seu rosto no peito de
Taichiro, como se para esconder os lbios. Ele passou os
dedos em seus cabelos, em sua testa, tentando tir-la dali.
Ela resistia.
- Est machucando meu olho! - disse Keiko, cedendo
enfm ante a presso de Taichiro. Mantinha os olhos
fechados.
- Qual eu machuquei?
- O direito.
- Ainda est doendo?
- Acho que sim. No est vendo lgrimas?
Taichiro examinou o olho direito de Keiko, mas no
havia sobre a plpebra nenhum sinal de irritao. In-
stintivamente, Taichiro inclinou-se e beiou o olho
supostamente machucado.
Keiko soltou um suspiro dbil, mas no fez esforo
para impedi-lo.
Ele sentia entre seus lbios os longos clios da jovem.
Mas, como se alguma coisa de repente o assustasse, ele se
afastou de Keiko.
- Voc deixa que eu beie seu olho e ao mesmo tempo
me recusa sua boca
- Eu sei l! Voc horrvel! S me diz coisas de-
sagradveis!
Quase lhe fazendo perder o equilbrio, Keiko apoiou-
se violentamente contra o peito de Taichiro e ps-se de
p. Sua bolsa branca estava no cho. Taichiro a apanhou
e, erguendo-se, a entregou.
- Que bolsa enorme!
- Eu trouxe o meu mai
- Mai?
- Voc no tinha prometido que iramos ao lago Biwa?
- Keiko fez uma pausa, em seguida retomou. - Meu olho
direito est enevoado. No vejo quase nada. - Tirou um
espelhinho da bolsa e examinou o olho. - Mas no est
vermelho.
Com o dedo, ela esfregou levemente a plpebra
direita. Ento notou o olhar de Taichiro fxo sobre ela. Seu
rosto enrubesceu e ela baixou os olhos nos quais se lia um
delicado pudor. Por um instante, ela passeou seus dedos
com suavidade sobre a camisa de Taichiro, no lugar onde
o batom de seus lbios deixara uma marca discreta.
- Que faremos? - perguntou Taichiro, pegando a mo
de Keiko.
- Temo que isso no v desaparecer!
- No estou preocupado com minha camisa. Quero
dizer o que faremos agora?
- Agora - Keiko inclinou o lindo pescoo. - No sei.
No tenho a menor idia.
- Podemos ir ao lago Biwa esta tarde, no?
- Que horas so?
- Quinze para as dez.
- S? Pela posio do sol batendo nas rvores, eu di-
ria que j meio-dia - Keiko abarcou com os olhos as
rvores ao seu redor. - o monte Arashi, l embaixo.
No vero h tantos visitantes por l. Por que ningum
vem at aqui?
- Mesmo que as pessoas viessem visitar o monastrio,
no creio que seriam muitos os que se arriscariam a subir
at aqui!
Taichiro sentiu-se aliviado ao ver que a conversa to-
mara um rumo banal. Enxugou o rosto suado com um
leno.
- Gostaria de ver o que resta do Pavilho da Chuva de
Outono? Desconheo o lugar em que Fujiwara Teika real-
mente viveu e, de resto, no me importa muito sab-lo ex-
atamente. Est vendo essa indicao? J estive aqui duas
ou trs vezes antes, mas nunca subi at o alto.
Uma placa de madeira indicando a direo erguia-se
ao p da montanha, atrs deles.
- Precisamos subir ainda mais? - Keiko mediu a
montanha com os olhos. - Pouco importa! Subirei at o
topo. E se as minhas sandlias atrapalharem, bem, irei de-
scala!
A trilha esgueirava-se sob as rvores e os galhos
roavam o quimono de Keiko ruidosamente. Taichiro
voltou-se e tomou-lhe a mo.
Logo chegaram a uma bifurcao.
- Para que lado iremos? Acho que esquerda - disse
Taichiro. Mas a trilha da esquerda beirava um precipcio,
enquanto a da direita subia pelo fanco da montanha.
Taichiro hesitou.
- Parece perigoso.
- D medo - disse Keiko, agarrando-se ao seu brao.
- Corro o risco de escorregar com essas sandlias. E se
fssemos pela direita?
- direita? Afnal de contas, nem sei qual o cam-
inho que leva ao Pavilho da Chuva de Outono O da
direita tambm deve conduzir ao topo da montanha
Essa parte da trilha estava quase que totalmente
escondida pelas rvores. Taichiro segurou a mo de Keiko
e deixou que ela o guiasse docemente, at que ela parou
de repente.
- Tenho mesmo que andar no meio dessas rvores
vestida assim de quimono?
Alm de uns arbustos pouco elevados, que os escon-
diam de outros olhares, erguiam-se trs grandes pinheir-
os. Atravs deles, eles vislumbraram as Colinas do Norte
e, abaixo, os subrbios da cidade.
- Onde estamos? - exclamou Taichiro, apontando com
o dedo as redondezas, quando Keiko apoiou todo o seu
corpo contra o dele.
- No fao idia.
Taichiro cambaleou, mas Keiko deixou-se cair doce-
mente em seus braos. Sob o peso da jovem, ele deixou-se
escorregar para o cho. Ainda em seus braos, Keiko ali-
sou com a mo as dobras amassadas do seu quimono.
Quando Taichiro aproximou os lbios de seus olhos,
Keiko apenas cerrou as plpebras. Mesmo quando ele a
beijou na boca ela no fez esforo para impedi-lo. Mas
manteve os lbios estreitamente apertados um contra o
outro.
Taichiro acariciou o seu aflado pescoo juvenil e
deslizou a mo por entre uma brecha do quimono.
- No! No! - Keiko agarrou a mo do rapaz entre as
suas. Taichiro deslizou a palma de sua mo, ainda pri-
sioneira, sobre o quimono, altura dos seios da moa.
Keiko guiou a mo de seu seio direito para o seio es-
querdo. Entreabriu repentinamente os olhos e ftou
Taichiro.
- O seio direito no. Eu no gosto dele!
- Como?
Sem compreender as palavras de Keiko, Taichiro re-
tirou bruscamente a mo de seu seio esquerdo. Os olhos
de Keiko estavam apenas levemente abertos.
- O seio direito me deixa triste.
- Triste?
- Sim.
- Mas por qu?
- No sei. Talvez porque meu corao no esteja desse
lado. - Com essas palavras, Keiko fechou pudicamente os
olhos e encaixou seu seio esquerdo no peito de Taichiro.
- As moas s vezes tm essas anomalias. Acho at que
seriam infelizes se no as tivessem!
Taichiro ignorava que, em Enoshima, Keiko no per-
mitira que seu pai acariciasse seu seio esquerdo. Agora
era o seio direito que ela furtava ao rapaz. Mas as prprias
palavras de Keiko provaram-lhe que essa no era a
primeira vez que ela deixava que um homem tocasse seus
seios. Esta certeza s fez aguar ainda mais seu desejo.
Taichiro agarrou-a frmemente pelos cabelos e beiou-
a. A pele da testa e do pescoo de Keiko estava mida de
suor.
Os dois jovens descerama montanha, passaramdiante
dos tmulos da famlia Suminokura e alcanaram o mon-
astrio Gio-ji. L fzeram meia-volta e caminharam lenta-
mente at o monte Arashi.
Almoaram no restaurante Kitcho. Ao fnal da re-
feio, a moa que lhes servira veio anunciar que um
carro os esperava.
Taichiro ftou Keiko. Ele compreendeu num instante
que, enquanto ele a imaginava no toalete, ela estava acer-
tando a conta e chamando um txi.
Como o carro j se aproximava do castelo de Nio,
Keiko observou: - No pensei que pudssemos chegar l
em to pouco tempo!
- Chegar aonde?
- No seja to distrado! No tnhamos combinado de
ir ao lago Biwa?
Taichiro no respondeu.
Deixando a estao de trem de Kyoto sua direita, o
txi avanou em direo ao alto pagode do monastrio
To-ji e o ultrapassou. Durante um breve instante, con-
tornaram o rio Kamo, que, ao contrrio de seu estado
habitual, mostrava-se agitado. O motorista apontou para
uma montanha que se erguia sobre a estrada e explicou: -
Chama-se monte Ushio e seu nome se escreve com os ca-
racteres chineses que signifcam "rabo de vaca".
Dobrando esquerda do monte Ushio, o carro at-
ravessou a parte meridional das Colinas do Leste.
A viso do lago descobriu-se l embaixo.
- Este o lago Biwa. - Apesar da banalidade dessa ob-
servao, a voz de Keiko soava bastante animada. - Final-
mente, eu o trouxe at aqui. Finalmente
Taichiro ouvia distraidamente as palavras da moa.
Ele estava surpreso com a quantidade de iates, lanchas e
barcos a vela que cruzavam o lago.
O carro desceu at a velha vila de Otsu. Prximo ao
belvedere que domina o lago, ele virou esquerda, ultra-
passou um lugar onde havia uma corrida de lanchas, at-
ravessou a vila de Hama-Otsu e embicou numa alameda
repleta de rvores que conduzia ao hotel do lago Biwa.
Carros particulares estavam estacionados de ambos os la-
dos da alameda.
Taichiro fcou perplexo ao se dar conta de que, j no
restaurante Kitcho, Keiko indicara ao motorista que os
conduzisse ao hotel do lago Biwa.
Um porteiro do hotel se adiantou para abrir a porta do
carro. Taichiro no viu outra alternativa seno entrar no
hotel.
Sem lhe lanar sequer um olhar, Keiko encaminhou-
se para a recepo e disse sem a menor hesitao: - Ns
telefonamos do restaurante Kitcho, no monte Arasni, para
uma reserva Em nome de Oki
- Sim, est correto - respondeu o recepcionista. - Por
uma noite, no mesmo?
Keiko no assentiu. Sem dizer uma palavra, ela se
afastou para deixar que Taichiro preenchesse o registro
de hspedes. Depois disso, ele, que pensara em declinar
uma identidade falsa, viu-se obrigado a escrever seu ver-
dadeiro nome e endereo. Em seguida, ele acrescentou o
nome de Keiko abaixo do seu e, ao faz-lo, pareceu respir-
ar mais aliviado.
O camareiro com a chave conduziu-os ao elevador,
mas no os acompanhou at o quarto, que se encontrava
no primeiro andar.
- Que bonito! - exclamou Keiko.
- A sute compunha-se de dois quartos; no fundo, um
quarto de dormir e, frente, um outro maior, que se abria
de um lado sobre o lago e do outro para as montanhas
que rodeiam Kyoto. Talvez para combinar com o estilo
Momoyama da arquitetura do hotel, a janela possua do
lado de fora uma balaustrada vermelha. Os panos que
revestiam as paredes, os batentes das janelas, assim como
as portas de vidro grossamente emolduradas davam ao
aposento uma aparncia tranqila e um pouco ultrapas-
sada. Cada uma das amplas janelas tinha a dimenso de
uma parede.
Alguns instantes depois uma camareira lhes trouxe
ch verde.
Keiko estava de p, imvel diante da janela que dava
para o lago, segurando a beirada da cortina de renda
branca com ambas as mos.
Taichiro sentou-se no meio do sof, observando-a. Ela
no estava usando o mesmo quimono da vspera. Mas o
obi, onde se desenhava um arco-ris, era o mesmo que ela
vestia quando viera esper-lo no aeroporto de Itami.
esquerda de Keiko estendia-se o lago. Grupos de
barcos navegavam juntos na mesma direo. A maioria
das velas eram brancas, mas havia algumas vermelhas,
outras violeta e azul-marinho. Aqui e ali lanchas arran-
cavam, levantando jatos de gua e deixando atrs de si es-
teiras de espumas.
Pela janela subia o rudo dos motores das lanchas, das
vozes dos hspedes na piscina do hotel e de uma corta-
dora de grama em algum lugar. Dentro do quarto ouvia-
se o zumbido do ar-condicionado.
Por um momento, Taichiro esperou que Keiko se deci-
disse a falar, em seguida pegou uma xcara de ch sobre
a mesa e disse: - Quer ch, Keiko? - A jovem meneou a
cabea. - Por que no diz nada? Por que esse silncio?
cruel de sua parte!
Ela sacudiu as cortinas com petulncia e pareceu va-
cilar.
- No acha uma vista magnfca?
- verdade. muito bonita. Mas era na sua beleza,
Keiko, que eu estava pensando. A sua nuca, esse obi
- No estava mais pensando no monastrio Nisonin,
quando voc me teve em seus braos?
- Mas
- No entanto, tenho certeza de que voc me desejava
Meu comportamento o surpreendeu, o escandalizou,
no? Posso bem ver.
- Talvez voc tenha realmente me surpreendido.
- Eu tambm fco espantada com minha conduta. as-
sustador quando uma mulher se entrega completamente.
- Keiko baixou o tom de voz. - por isso que voc no
vem aqui ao meu lado?
Taichiro se levantou e foi at ela. Ps as mos sobre
seus ombros. Com uma leve presso das mos, ele a con-
duziu at o sof. Ela se sentou bem prximo dele, mas
baixou os olhos e evitou encar-lo.
- D-me um pouco de ch - ela murmurou.
Taichiro ergueu a xcara de ch e aproximou-a de seu
rosto.
- Da sua boca - ela completou.
Taichiro hesitou um segundo, da encheu a boca de
ch, deixando-o escorrer pouco a pouco entre os lbios de
Keiko. Os olhos cerrados, a cabea jogada para trs, Keiko
bebeu o ch. Com exceo dos lbios e da garganta que
engolia o lquido, todo o seu corpo estava completamente
inerte.
- Mais - ela pediu, sem se mexer. Taichiro encheu
novamente a boca de ch e deixou-o escorrer para dentro
da boca da moa.
- Ah! Que delcia - Keiko abriu os olhos. - Eu po-
deria morrer. Se apenas esse ch tivesse sido veneno
Tudo estaria acabado. Eu j estaria morta. E voc tambm,
Taichiro, estaria morto! - Da continuou: - Vire-se para o
outro lado.
Keiko fez com que Taichiro desse meia-volta e afun-
dou seu rosto entre os ombros do rapaz. Depois, sem
mudar de posio, ela enlaou Taichiro docemente em
seus braos e buscou suas mos. Taichiro tomou uma das
mos da joveme a observou, enquanto acariciava seus de-
dos um a um.
- Desculpe-me. Eu estava to distrada, nem percebi
- disse Keiko. - Quem sabe voc est querendo tomar
banho? Que tal se eu preparar a banheira?
- Est bem.
- Ou talvez queira apenas tomar uma ducha?
- Estou precisando de uma?
- Gosto do seu cheiro! a primeira vez que um cheiro
me agrada a tal ponto! - Ela se interrompeu. - Mas, sem
dvida, voc gostaria de se refrescar um pouco!
Keiko desapareceu dentro do quarto de dormir.
Taichiro ouviu o rudo da gua correndo no banheiro do
outro lado do quarto.
Enquanto observava um barco de turistas se aproxim-
ar do ancoradouro do hotel, Keiko veio lhe dizer que a
gua de seu banho estava na temperatura adequada.
Taichiro ensaboou abundantemente seu corpo, em-
papado de suor desde o passeio a Saga.
De repente, Keiko bateu na porta do banheiro.
Taichiro, temendo que a moa entrasse, encolheu-se na
banheira.
- Taichiro, esto chamando-o ao telefone Voc vem?
- Telefone! Para mim? No possvel. Quemquer falar
comigo? Deve ser engano, sem dvida.
- Esto chamando-o ao telefone - limitou-se a repetir
Keiko.
- estranho. Ningum sabe que estou aqui
- Mas para voc
Semmesmo se secar, Taichiro vestiu umleve quimono
de algodo e saiu do banheiro.
- mesmo a mim que esto chamando? - A expresso
de seu rosto mostrava desconfana.
Havia um telefone na mesa-de-cabeceira entre as duas
camas. Como Taichiro se aproximasse dele, Keiko o
chamou: - no outro quarto.
Em cima de uma mesinha ao lado da televiso, estava
um telefone com o receptor fora do gancho. No instante
em que Taichiro o agarrou e ps no ouvido, Keiko lhe
disse: - Esto chamando-o de Kamakura, de sua casa.
- O qu? - Taichiro empalideceu. - Como?
- Sua me est na linha. Fui eu que lhe telefonei - con-
tinuou Keiko, numa voz tensa. - Eu lhe disse que estava
aqui com voc no hotel do lago Biwa e que voc promet-
era se casar comigo. Eu lhe disse que esperava que ela nos
desse seu consentimento.
Taichiro, a respirao cortada, ftava Keiko.
Naturalmente sua me havia escutado as palavras que
Keiko acabara de pronunciar. Quando fora tomar banho,
Taichiro fechara tanto a porta do quarto de dormir como
a do banheiro, e com o barulho da gua no pudera ouvir
Keiko telefonando. Convenc-lo a tomar banho fazia
parte do seu plano?
- Taichiro? Taichiro, est a?
A voz de sua me vibrou no aparelho que Taichiro
mantinha na mo. Keiko sustentava sem piscar o olhar do
rapaz fxo sobre ela. O brilho agudo de seus olhos acen-
tuava ainda mais sua beleza.
- Taichiro, no est a?
- Sim, me, estou aqui. - disse Taichiro, aproximando
o aparelho do ouvido.
- Taichiro, voc mesmo? - repetiu sua me, como
para dizer alguma coisa. De repente, sua voz traiu sua an-
siedade, at esse momento contida. - No faa, Taichiro
No faa, Taichiro No faa isso!
Taichiro no respondeu.
- Essa moa, voc sabe que espcie de moa ela , no?
Voc precisa saber.
Taichiro continuava calado.
Keiko, vindo por trs, enlaou-o em seus braos. Com
o rosto ela afastou o aparelho que Taichiro mantinha con-
tra seu ouvido e encostou os lbios na orelha do rapaz.
- Me - ela chamou suavemente - me, eu me per-
gunto se voc sabe por que lhe telefonei
- Taichiro, voc est me ouvindo? Quem est falando?
- perguntou a me de Taichiro.
- Sou eu - disse ele, evitando os lbios de Keiko e
colando o aparelho ao seu ouvido.
- O que isso? Que afronta! Falar no telefone em seu
lugar Foi ela que lhe disse para ligar? - Sua me no
lhe dava tempo para responder. - Taichiro, volte imedi-
atamente!
Saia desse hotel agora mesmo e volte para casa Essa
moa est nos escutando, no ? Pois que escute! bom
que ela escute! Taichiro, no tenha nada com essa moa!
Ela uma pessoa m! Acredite em mim, sei do que es-
tou falando! No me faa enlouquecer novamente! Dessa
vez eu morreria! No estou dizendo isso s porque ela
aluna da srta. Ueno.
Enquanto Taichiro a ouvia, Keiko colara os lbios
nuca do rapaz. Ela lhe sussurrava ao ouvido: - Se eu no
fosse aluna da srta. Ueno, nunca o teria encontrado.
- Ela perversa! Acho mesmo que ela tentou seduzir
seu pai - continuou a me de Taichiro.
- O qu?
A voz de Taichiro era quase inaudvel. Ele se voltou
para encarar Keiko, mas ela, com os lbios sempre cola-
dos em sua nuca, virou a cabea ao mesmo tempo que ele.
Taichiro teve a sensao de estar ofendendo grave-
mente sua me escutando-a ao telefone enquanto Keiko o
beijava. Mas ele no podia simplesmente desligar.
- Falaremos disso quando eu voltar.
- Isso! Volte imediatamente! Voc no fez nada de er-
rado com essa moa, fez? No est pensando em passar a
noite a, no mesmo?
Taichiro no respondeu.
- Taichiro! - continuou sua me - Taichiro, olhe bem
nos seus olhos! Pense no que ela est lhe dizendo! Por que
acha que ela quer se casar com voc, ela que aluna da
srta. Ueno? No compreende que se trata de uma es-
tratgia diablica? Talvez essa moa no seja sempre as-
sim, mas em tudo que diz respeito nossa famlia, ela
um monstro! Tenho certeza disso, no estou s imagin-
ando! Quando voc partiu, desta vez, tive um mau pres-
sentimento. Seu pai tambm achou estranho e est pre-
ocupado.
Taichiro, se voc no voltar, seu pai e eu pegaremos o
primeiro avio para Kyoto!
- Entendi.
- Oque que voc entendeu? - Fumiko retomou, como
para se certifcar. - Voc vai voltar, no ? Vai voltar
mesmo?
- Sim.
Keiko desapareceu no quarto de dormir e fechou a
porta atrs de si.
Taichiro permaneceu imvel ao lado da janela, ftando
o lago. Um aviozinho cruzou o ar obliquamente a baixa
altitude, antes de se afastar. Algumas lanchas corriam
juntas em alta velocidade, uma delas rebocando uma
moa que esquiava.
Da piscina subiam vozes. Trs moas em trajes de
banho estavam deitadas no gramado logo abaixo da
janela. Era possvel se perguntar se esse quarto no fora
concebido com o nico objetivo de proporcionar a con-
templao dessas silhuetas provocantes.
- Taichiro! Taichiro! - Keiko o chamava do quarto de
dormir. Quando ele abriu a porta, encontrou-a vestida
num mai branco. Teve de prender a respirao e desviar
os olhos. A pele trigueira da jovem resplandecia tanto que
ele quase no percebeu o maio de malha branca.
- Como est bonito! - ela disse, dirigindo-se para a
janela. O mai deixava suas costas inteiramente descober-
tas. - Como o cu est bonito acima das montanhas!
Raios de sol como sulcos afados caam sobre as
montanhas que se recortavam contra o cu.
- Aquele no o monte Hiei? - indagou Taichiro.
- . Esses raios de sol me fazem pensar em espadas
trespassando nosso destino. O que pensa dessa conversa
ao telefone com sua me? - Keiko voltou-se para
Taichiro.
- Quero que sua me venha at aqui. E seu pai tam-
bm
- No seja louca.
- Mas verdade. Estou falando srio.
De repente, Keiko agarrou-se a ele.
- Venha comigo. Vou nadar. Tenho vontade de mer-
gulhar numa gua bem fria. Voc me prometeu, no foi?
Voc tambm me prometeu que daramos um passeio de
lancha. Voc me fez essa promessa desde que chegou,
quando fui esper-lo em Itami. - Ela apoiou-se contra
ele, deixando que Taichiro suportasse todo o peso de seu
corpo. - Vai voltar? Vai voltar a Kamakura por causa
dessa conversa com sua me? Descobrir que eles vieram
at aqui. Eles certamente viro at aqui Seu pai sem
dvida no gostar muito, mas sua me o obrigar.
- Keiko, voc seduziu meu pai?
- Se seduzi? - O rosto afundado no peito de Taichiro,
Keiko sacudiu a cabea. - E voc, eu o seduzi?
Os braos de Taichiro enlaavam as costas nuas de
Keiko.
- No estou falando de mim, mas de meu pai. No des-
vie a conversa
- Mas foi voc que a desviou! Estou lhe perguntando
se eu o seduzi. isso que voc pensa?
Taichiro no respondeu.
- Ser possvel que um homem seja to cruel a ponto
de perguntar mulher que tem em seus braos se ela se-
duziu seu pai? No est vendo nos meus olhos a dor que
voc me causa? - Keiko comeou a chorar. - Que quer que
eu lhe diga, Taichiro? Gostaria de me afogar nesse lago
Ao agarrar os ombros trmulos da jovem, Taichiro
sentiu sob a mo uma das alas do maio. Ele a baixou,
descobrindo at a metade a redondeza de um seio, em
seguida abaixou a outra ala. Keiko, o peito desnudo,
deixou-se cair de encontro a Taichiro.
- No! O seio direito, no! Por favor, o direito, no -
repetiu Keiko, enquanto lgrimas corriamde suas plpeb-
ras cerradas.
O busto envolto numa grande toalha, Keiko deixou o
banheiro. Taichiro estava em mangas de camisa. Juntos,
os dois jovens atravessaram o saguo do hotel e desceram
ao jardim que dava para o lago. No alto de uma grande
rvore logo adiante se entreabriam fores brancas que
pareciam hibiscos.
Havia duas piscinas, uma de cada lado do jardim. As
crianas banhavam-se na piscina da direita, instalada no
meio do gramado. A outra era cercada e fcava numa
pequena elevao do terreno.
Taichiro fcou parado entrada da grade que cercava
a piscina da esquerda.
- Voc no vem? - perguntou Keiko.
- No, eu a espero.
Por timidez, Taichiro hesitava em se mostrar ao lado
de Keiko, cuja beleza atraa tantos olhares.
- mesmo? Vou dar um mergulho rpido. a
primeira vez que entro na gua este ano e quero ver como
me saio - disse Keiko.
Cerejeiras e chores erguiam-se, a espaos regulares,
no gramado que beirava o lago.
Taichiro sentou-se num banco, sombra de uma velha
rvore, e olhou a piscina. A princpio, no conseguiu en-
contrar Keiko, at que a vislumbrou sobre o trampolim.
Embora o trampolim no fosse muito alto, a silhueta
tensa da jovem se preparando para o salto recortava-se
contra a superfcie do lago Biwa, atrs dela, e sobre as
altas montanhas mais alm.
distncia, as montanhas estavam envoltas na
bruma. Um rosa plido evanescente futuava sobre as
guas sombrias do lago. As velas dos barcos refetiam
agora as cores calmas do crepsculo. Keiko mergulhou,
lanando ao ar um jato de gua.
Quando saiu da piscina, Keiko alugou uma lancha e
convidou Taichiro a acompanh-la.
- Vai escurecer logo - ele disse. - Por que no deixamos
para amanh?
- Amanh? Voc disse mesmo amanh!? - exclamou
Keiko com os olhos brilhantes. - Ento, voc vai fcar?
Est pensando mesmo em fcar at amanh? Mas como
ter certeza? Cumpra ao menos uma de suas promessas
No iremos muito longe e voltaremos logo. Por um in-
stante, quero estar longe da margem com voc. Adoraria
que fssemos ao encontro de nosso destino e futusse-
mos com as ondas. O amanh nos escapa sempre
Vamos hoje! - insistiu Keiko, puxando Taichiro pela mo.
-Veja quantos barcos ainda esto no lago!
Trs horas mais tarde, ao ouvir o rdio, Ueno Otoko
soube do acidente de barco que ocorrera no lago Biwa.
Precipitou-se de carro at o hotel, onde encontrou Keiko
acamada.
Soubera pelo rdio que uma jovem cujo primeiro
nome era Keiko fora salva por um veleiro. Ao entrar no
quarto, Otoko indagou camareira que parecia estar en-
carregada de cuidar da moa: - Ela ainda est inconsci-
ente? Ou est dormindo? O que aconteceu?
- Deram-lhe um sedativo para que dormisse - disse a
camareira.
- Um sedativo? Ento ela est fora de perigo?
- Est. O mdico disse que no havia nenhuma razo
para se inquietar. Ela parecia morta quando a trouxeram
para terra, mas voltou a si quando lhe fzeram respirao
artifcial e vomitou toda a gua. Ento ela comeou a se
debater como louca, gritando o nome do homem que a
acompanhava
- E ele, como est?
- Ainda no o encontraram, apesar de todos os es-
foros.
- No o encontraram? - repetiu Otoko, com a voz
trmula. Voltou para o outro quarto, aproximou-se da
janela que dava para o lago e olhou para fora. As lanchas,
com as luzes acesas, esquadrinhavam sem cessar a super-
fcie negra das guas esquerda do hotel.
- Todas as lanchas da regio esto l fora, e no s
as do hotel. H tambm as da polcia. At acenderam
fogueiras nas margens - disse a camareira. - Mas temo que
seja tarde demais para salv-lo
Otoko agarrou-se cortina da janela.
Alheio ao vaivm das lanchas e de suas luzes irre-
quietas, um barco de turistas, enfeitado com lanternas
vermelhas, aproximava-se lentamente do ancoradouro do
hotel.
Na margem oposta, fogos de artifcio clareavam o cu.
Quando percebeu que seus joelhos estavam tremendo,
Otoko foi logo tomada por calafrios e as luzes do barco de
turistas pareceram oscilar sua frente. Com esforo, ela
se afastou da janela. A porta do quarto de dormir estava
aberta.
A cama de Keiko atraiu seu olhar e ela voltou rapida-
mente para a cabeceira da moa como se tivesse esque-
cido de que j havia estado naquele quarto.
Keiko dormia tranqilamente. Sua respirao era nor-
mal. A angstia de Otoko aumentou: - Podemos deix-la
assim?
- Sim - aquiesceu a camareira.
- Quando ela vai acordar?
- No sei.
Otoko ps a mo na testa de Keiko. A pele fria e li-
geiramente mida da jovem pareceu aderir palma de
sua mo. As cores haviam abandonado o rosto plido de
Keiko.
Apenas um dbil vermelho persistia em suas
bochechas.
Seus cabelos jaziamesparramados emdesordemsobre
o travesseiro. Eram to negros que pareciam ainda mol-
hados. Entre os lbios levemente separados entreviam-se
seus lindos dentes. Os dois braos estendiam-se ao longo
do corpo, sob o cobertor. Enquanto repousava, a cabea
voltada para cima, a pureza e a inocncia de sua face
adormecida confundiram Otoko. Seu rosto parecia estar
dizendo adeus a Otoko e vida.
No momento em que esticava o brao a fm de sacudir
Keiko e despert-la, Otoko ouviu baterem porta do
quarto ao lado.
A camareira foi abrir a porta.
Oki Toshio e sua esposa entraram no quarto. Mal seu
olhar deparou-se com o de Otoko, Oki imobilizou-se.
- Voc a srta. Ueno, no? - disse Fumiko. - Ento
voc.
Era a primeira vez que as duas mulheres se encon-
travam.
- Ento por sua causa que Taichiro est morto! - A
voz de Fumiko soava fria e isenta de qualquer emoo.
Otoko abriu a boca, mas nenhum som saiu. Apoiou-se
na cama de Keiko com uma das mos. Fumiko veio em
sua direo. Otoko encolheu-se como que para escapar.
Fumiko agarrou Keiko com as duas mos e a sacudiu,
gritando: - Acorde! Acorde, j!
medida que seus movimentos se tornavam mais vi-
olentos, a cabea da jovem rolava sobre o travesseiro.
- Acorde! Por que no acorda?
- No adianta. Ela no acordar. Deram-lhe um sedat-
ivo para dormir - disse Otoko.
- Tenho que lhe perguntar uma coisa. a vida de meu
flho que est em jogo! - disse Fumiko, sacudindo Keiko
sem parar.
- Voc lhe perguntar mais tarde. Todas as pessoas no
lago esto buscando Taichiro - disse Oki. Ento ps os
braos emvolta dos ombros da esposa, e os dois deixaram
o quarto.
Comumfundo suspiro, Otoko deixou-se cair na cama,
observando a face adormecida de Keiko. Fios de lgrimas
aforavam bem nos cantos de seus olhos.
- Keiko!
Keiko abriu os olhos. As lgrimas brilhavam quando
ela os ergueu em direo a Otoko.
* * *
POSFCIO
CALIGRAFIAS DA AUSNCIA
Ao FINAL DA LEITURA de Beleza e tristeza, o leitor pode
experimentar um certo desconforto, como j apontado no pre-
fcio. A obra deixa um retrogosto indeterminado, entre a leve
amargura do ch verde e a doce acidez do arroz do sushi. O
prprio desenlace do romance revelador - afnal, nem desen-
lace se revela: trata-se de mais um lao, ou melhor, de uma
faixa enlaada frmado por um n, como o obi que fecha o ki-
mono.
O obi aperta, o kimono restringe, o ch verde e o sushi -
como a fruta caqui - adstringem. Eis alguns exemplos da chave
esttica de Kawabata, que perpassa o romance e atualizado
da tradio artstica nipnica: o que denominado shibumi.
Como muitos termos japoneses, shibumi intraduzvel.
Mesmo em japons, sua signifcao indeterminada, vaga e
imprecisa; pode ser explicado por analogia ou por negao, ja-
mais em sua positividade. O signifcado de shibumi escapa,
evasivo, no limite, ausente. E precisamente essa ausncia,
esse vazio de signifcao, que constitui a qualidade esttica
shibui, atribuda s grandes obras e aos grandes artistas, inde-
pendentemente do mbito artstico. Uma poesia e uma pintura
podem ser considerados - e aclamados -shibui, mas tambm
um jardim, uma roupa, uma cermica, um prato, uma bebida
Mas esses objetos so apenas smbolos de uma complexa - e si-
lenciosa - relao envolvendo artistas, atores, persona-
gens e espectadores; o shibumi tem de ser cultivado e
desempenhado por todos, e s assim possvel a sua
apreciao e reconhecimento.
Em resumo, shibumi no se restringe ao mbito
artstico, faz parte de uma cultura mais ampla, que en-
volve gestos, atitudes, condutas, implica valores ticos e
mesmo religiosos. Por aproximao simplista, shibumi
associado, por um lado, a valores como refnamento e
sofsticao; por outro lado, a despojamento e simplicid-
ade.
Valores que devem - para o japons cultivado - se
traduzir em sua conduta cotidiana, no relacionamento
domstico ou social, mas tambm em sua apreciao es-
ttica desde os objetos mais simples do cotidiano at da
paisagem "natural" ou da obra de arte. O verbo dever, em
sua ambigidade, aqui no fortuito. Primeiro, shibumi
mais que um ideal esttico, pode ser uma regra moral,
quase um imperativo silencioso, traduzido em rgido
padro de etiqueta social; numa palavra, uma restrio.
Nada demais nos gestos, palavras, tons de voz; nada
de exorbitar as emoes. Segundo, o dever como o estar
em falta, por no ter correspondido ao esperada, no
ter cumprido a reciprocidade exigida, estar em dbito;
numa palavra, o constrangimento. Se ao primeiro se es-
pera, ao segundo se desespera. O ideal esttico sntese
e smbolo do rgido padro tico, que em japons se de-
nomina giri.
Restrio e constrangimento constituem o travo, o am-
argor do shibumi. Ainda que vaga e indeterminada, eis
aqui uma especifcidade do que positivado como "iden-
tidade japonesa". Todavia, o prprio shibumi no se pos-
itiva
Como em uma bola de seda japonesa, Kawabata en-
laa o romance em torno dessa idia evasiva, que permeia
personagens, situaes, cenrios e objetos.
As personagens principais gravitam em torno do
mundo da Arte, mas de uma arte japonesa evanescente,
vinculada a uma tradio sobressaltada pelo processo de
modernizao, imposta no ps-guerra. Oki Toshio, es-
critor reconhecido, busca a reconciliao com sua antiga
amante, Ueno Otoko, renomada pintora. Numa primeira
leitura, pode se dizer que suas capacidades artsticas
aforam devido s amargas circunstncias de sua sep-
arao. Oki faz sucesso com o romance que descreve a in-
tensa relao clandestina mantida com Otoko, ento ad-
olescente, assim como a trgica sina da jovem aps o
rompimento. Dilacerada pelo relacionamento rompido e
pelos constrangimentos sociais, Otoko se transfere a
Kyoto e, aps difcil recuperao, constitui bem sucedida
carreira como pintora de temas tradicionais. No romance
de Oki, como na pintura de Otoko, h a referncia nostl-
gica - mesmo que indireta e simblica - separao, no
apenas de um amor irresolvido, mas de todo um mundo
dolorosamente desfeito.
A seu modo, ambos esto irremediavelmente vincu-
lados por um sofrimento que os transcende. Porquanto
artistas tradicionalistas, ambos so artesos calgrafos em
suas artes; Oki manuscreve os textos, Otoko maneja os
pincis. Mesmo com o recurso da mquina de escrever,
Oki insiste em se afastar da tipografa mecnica. Mesmo
com a existncia da mquina fotogrfca, Otoko persiste
em pintar retratos, paisagens e fores. Escrita e pintura,
so caligrafas de uma vida e de um mundo em desapare-
cimento.
A reconciliao de Oki e Otoko impossvel, a des-
peito de seus desejos; o mundo que os unia, inexiste. To-
davia, foi o distanciamento e o desaparecimento deste
mundo que propiciou sua arte.
As personagens secundrias intensifcam o senti-
mento do aparte. Fumiko, esposa de Oki, representa o giri
social, se ressente da traio do marido e impede a paixo
dos amantes. Padece com as revelaes biogrfcas de
Oki, desnudados pela publicao do romance. Mas tam-
bm a mediao do marido como mundo editorial mod-
erno, enquanto sua datilografa e representante. Taichiro,
flho de Oki e Fumiko, tambm se ressente do passado
do pai, mas mantm vinculao indireta com a histria -
e com seu pai - enquanto pesquisador da tradio liter-
ria japonesa. A personagem mais destacada Sakami
Keiko, jovem pintora, fgura de rara beleza e aprendiz
de Otoko, com quem mantm ambguo relacionamento
amoroso. Keiko a responsvel pelas principais situaes
de confito da trama, em suas relaes - diretas ou media-
das - com Otoko, Oki, Sakami e Taichiro. Em caracteriza-
o tpica, Keiko se avoca o direito de vingar sua mestra
e amante, na tentativa de solucionar o dilema sentimental
de Otoko. Curiosamente, so as personagens secundri-
as, em maior ou menor grau, que constituem o ncleo at-
ivo do drama, enquanto os personagens principais, Oki
e Otoko, demonstram um carter muito mais reativo ou
passivo, isto , caracterizam-se mais pela omisso, pela
indeciso, pela inrcia: pela ausncia de ao. Paradoxal-
mente, a tenso dramtica se intensifca pela inao dos
protagonistas, enquanto os coadjuvantes, na tentativa de
resoluo, desesperadamente agem, mas em vo. O ro-
mance no se desenrola em torno do drama, isto , da
ao dramtica, mas se amarra principalmente no que no
dito, no que no feito, no que no pode ser dito, no que
no pode ser feito. No h soluo ou desenlace possveis;
apenas mais um enlace, mais um n. Desse modo, preva-
lecem o indizvel, o impossvel, o silncio, a ausncia.
Cenrios e objetos apresentados no apenas situam
a ao, mas caracterizam especialmente a inao, mais
precisamente, a contemplao da situao. Kawabata d
preferncia a ambientes esvaziados, silenciosos, em mo-
mentos inertes. Quando fgura situaes movimentadas,
sugere que so desagradveis, ruidosas, perturbadoras.
Assim, desde a primeira cena no trem vazio, o solitrio
Oki contempla a paisagem do Monte Fuji, interrompido
pela presena ruidosa de turistas americanos. Templos e
santurios budistas de Kyoto, contemplados por Otoko,
so delicadamente descritos, e o silncio de sua ar-
quitetura e jardins ressoa nas pedras e plantas. Paisagens
e vistas panormicas so como que pintadas no texto,
sempre em momentos vazios, ao entardecer ou aps a
chuva, quando as pessoas partiram, ou evitam sair. Das
caminhadas de Oki por Kamakura, do pequeno jardim
domstico de Otoko, at a paisagem monumental do
monte Ogura e a vista do lago Biwa, o mesmo sentimento
de esvaziamento, o mesmo impulso evasivo. Se o cenrio
interessa, pelo simbolismo da ausncia, seja do passado
histrico que assombra os monumentos, seja da melan-
colia da contemplao solitria, seja da catstrofe anun-
ciada ao futuro.
Se personagens, situaes, objetos e cenrios gravitam
o shibumi, o seu carter perturbador no consiste no fato
de que simbolizem a amargura, o ressentimento, a mel-
ancolia, numa palavra, a tristeza associada ao vazio. O
desconfortvel - e o constrangedor - que esses sentimen-
tos possam ser transfgurados em beleza, ou ainda, que
possam ser apreciados como beleza. Como possvel este
aparente contra-senso?
Alguns exemplos de Kawabata, cuja escrita , com o
perdo do pleonasmo, sensorial e sensual. O pescoo de
Keiko belo porquanto emoldurado pelo kimono, sutil
e provocantemente revelado. O kimomo belo enquanto
delicadamente tingido e bordado, mas frmemente atado
pelo obi. Obi e kimono oprimem, apertam os seios, re-
stringem o movimento, quase tudo ocultam: mas so
lindamente atados; onde se ausentam, resplandece a sen-
sualidade. Um haicai de Basho belo porque sutil,
simples e espontaneamente evocativo: evoca porque
lacnico; o poema no diz, imaginamos; todavia, sua
mtrica e caligrafa exigem um rigoroso treinamento
artstico e espiritual. O jardim de Saiho-ji belo, uma ser-
ena paisagem ptrea representando cascatas e rios, emol-
durada por musgos, como se fora bela natureza; mas foi
resultado de disciplina monstica e rduo trabalho manu-
al, mesmo na suave disposio das pedras. A crena, a re-
ligio podem se esvaziar, nada mais pode restar; resta o
peso das pedras frente maciez do musgo.
O pescoo, o kimono, o haicai, o jardim, por asso-
ciao, o romance de Oki, a pintura de Otoko - o prprio
livro de Kawabata - para que existissem como objetos be-
los foi exigido mais que labor, sofrimento. Todas essas
obras exigema contraparte daquele que delas se apropria,
que delas escreve, que a elas contemple. Que sua beleza
e delicadeza aparentes sejam reconhecidas a restrio e a
dureza que as tornou possveis. Mais, ainda. Que, depois
de tanto esforo, de tanta dor, se saiba que tanta beleza se
desvanea, ou j se desvaneceu. Em vo.
Caligrafas da ausncia: escrever, pintar o vazio.
belo. triste.
Shibumi.
ROBERTO KAZUO YOKOTA
1)Aucuba, gnero
de plantas rutceas. (N do
T.) ?
2)Nos contos e len-
das japoneses, o texugo, as-
sim como a raposa, fre-
qentemente considerado
como um esprito malfeitor
que tem o poder de en-
ganar os homens. (N. do
T.) ?
3)Deus da com-
paixo, patrono das crianas,
dos viajantes e das mul-
heres grvidas. geralmente
representado sob os traos
de um monge com a
cabea raspada, tendo em
uma das mos uma pedra
preciosa e na outra um
basto com anis de metal.
(N. do T.) ?
4)Jovem danarina
profssional. (N. do T.) ?
5)Porta corredia
formada por um chassi em
trelia, recoberto por papelar-
roz. (N. do T.) ?
6)Espcie de sopa
preparada com diversos
legumes fervidos em suco
de peixe e com pedaos de
mochi (bolinhos de arroz co-
zidos no vapor). Esse prato
servido sobretudo nos
primeiros dias do novo ano.
(N. do T.) ?
7)grande compilao
de waka (poema de 31 sla-
bas) composta no sculo
XIII, contendo 1980 poemas
e dividida em vinte livros.
(N. do T.) ?
8)poesia de dezes-
sete slabas divididas em
trs versos: o primeiro de
cinco, o segundo de sete e
o terceiro de cinco slabas.
(N. do T.) ?
9)Romance escrito
por Murasaki Shikibu, no
sculo XI, relatando os
amores do prncipe Genji.
(N. do T.) ?
10)(794-1192. (N. do
T.)) ?
11)Signos tirados
da ideografa chinesa para
ouso fontico e que repres-
entam os 47 sons do sil-
abrio japons. (N. do T.) ?
12)Ihara Saikaku:
escritor nascido provavel-
mente em 1642 e falecido
em 1693. (N. do T.) ?
13)(1688-1703. (N.
do T.)) ?
14)No Japo, a
rea dos aposentos calcu-
lada pelo nmero de tatamis
que recobrem o assoalho.
(N. do T.) ?
15)(1192-1333. (N.
do T.)) ?
16)(1392-1573. (N.
do T.)) ?
17)Monastrio no
qual as mulheres que queri-
am se divorciar faziam trs
anos de exerccios religiosos
para poderem, em seguida,
retornar s suas famlias.
(N. do T.) ?
18)(774-835): monge
conhecido tambm pelo
nome de Kukai. Ele in-
troduziu o budismo esotrico
no Japo e inventou os
hiragana, os 47 signos que
transcreveram o silabrio ja-
pons. reverenciado como
santo. (N. do T.) ?
19)Espcie de cala
larga e com grandes dobras,
apertada na cintura por
dois cordes que se amar-
ram na frente. (N. do T.) ?
20)(1891-1929): pin-
tor educado nas tcnicas
ocidentais, clebre pelos nu-
merosos retratos que fez de
Reiko, sua flha preferida.
(N. do T.) ?
21)(1883-1957): pin-
tor conhecido por suas obras
executadas dentro da mais
pura tradio japonesa. (N.
do T.) ?
22)Divisria mvel
recoberta de papel grosso,
decorado de maneira muito
refnada e bastante simples,
que serve para separar os
ambientes de uma casa. (N.
do T.) ?
23)Fudo (do sn-
scrito. Acara): divindade
bdica que reina pelo terror
das torturas e tem o poder
de desfazer as insdias dos
demnios; representado
em meio ao fogo, tendo na
mo direita um sabre com
ponta triangular para
golpear os demnios e, na
mo esquerda, uma corda
para amarr-los. (N. do T.) ?
24)O "Teatro de
bonecos" , depois do N,
o segundo gnero clssico
do teatro japons. Foi el-
evado categoria de
autntica arte dramtica com
Shikamatsu Monzaemon (nas-
cido provavelmente em 1653
e falecido em 1724). (N. do
T.) ?
25)ou Kokedera:
Templo dos Musgos. Sua
celebridade se deve
imensa variedade de musgos
que recobre inteiramente o
solo de seu bosque. (N. do
T.) ?
26)monastrio clebre
por seu jardim de pedras
atribudo a Soami (sculo
XV) e considerado uma das
mais puras realizaes da
esttica japonesa de inspir-
ao zen. (N. do T.) ?
27)(1276-1351) monge
da seita Rinzai. (N. do T.)
?
28)(1521-1591) renomado
mestre da cerimnia do ch
que aperfeioou suas regras
e lhe trouxe um grande re-
fnamento. (N. do. E.) ?
29)Foi construda
entre 1620 e 1624 e ampli-
ada posteriormente. No se
conhece ao certo o autor
de seus pavilhes e jardins,
mas sabe-se que foram con-
cebidos no estilo de Kobori
Enshu (1579-1647), famoso
mestre da cerimnia do ch.
(N. do T.) ?
30)Espcie de meia
de algodo que mal ultra-
passa o tornozelo, amarrada
pelo lado de dentro, e na
qual o dedo fca separado
dos outros dedos (N do T.)
?
31)Gelatina de agar-
agar. (N. do T.) ?
32)Matsuo Basho
(1643-1694) poeta clebre do
gnero haikai. (N. do T.) ?
33)(1868-1912. (N.
do T.)) ?
34)(1912-1926. (N.
do T.)) ?
35)Jogo no qual os
parceiros fazem gestos es-
pecfcos que representam ele-
mentos como pedra, tesoura,
papel. (N. do T.) ?
36)Pasta de gros
de soja fervidos, modos e
misturados com sal e
levedo; serve de tempero e
de base para caldos.(N. do
T.) ?
37)Alfabeto silbico
japons de forma cursiva
(N. Do T.) ?
38)perodo de re-
voltas e de guerras intesti-
nas que duraram de 1467 a
1477. (N. do T.) ?
39)(1436-1490): os
Ashikaga governaram o
Japo de 1333 a 1573. (N.
do T.) ?
40)(Higashiyama launka):
cultura refnada, elaborada
no tempo do xogum Yoshi-
masa, que fundou, entre out-
ros, o Pavilho de Prata em
Kyoto. (N. do T.) ?
41)ou Teika
(1162-1241): poeta e grande
fllogo da Idade Mdia.
(N. do T.) ?
42)Os xoguns Tok-
ugawa reinaram no Japo de
1600 a 1868. (N. do E.) ?
43)Penteado usado
antigamente pelos nobres.
uma espcie de um barrete
frgio, de gaze ou de papel
laqueado de negro, usado
no alto da cabea e preso
sob o queixo por um
cordo de seda (N do T.)
?
44)Tokugawa Iemo-
chi (1846-1866). (N. do. E.)
?
45)Espcie de gui-
tarra japonesa tradicional
com trs cordas. (N. do T.)
?
46)(1888-1924) pin-
tor infuenciado por Czanne
e Renoir e que se distin-
guiu na arte do retrato. (N.
do T.) ?
47)(snscrito: Saras-
vati) deusa da beleza e da
arte cultuada entre as sete
divindades da felicidade. (N.
do T.) ?
48)Cortes do Norte
e do Sul: perodo em que
as duas cortes, a do Sul,
em Yoshmo, e a do Norte,
em Kyoto, disputaram o
poder, entre 1336 e 1392.
(N. do T.) ?
Multibrasil Download - www.multibrasil.net

Você também pode gostar

pFad - Phonifier reborn

Pfad - The Proxy pFad of © 2024 Garber Painting. All rights reserved.

Note: This service is not intended for secure transactions such as banking, social media, email, or purchasing. Use at your own risk. We assume no liability whatsoever for broken pages.


Alternative Proxies:

Alternative Proxy

pFad Proxy

pFad v3 Proxy

pFad v4 Proxy