A Brincadeira Milan Kundera

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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando


por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo
nível."
A Brincadeira
Tradução de
TERESA BULHÕES CARVALHO DA FONSECA
ANNA LÚCIA MOOJEN DE ANDRADA
EDITORA NOVA FRONTEIRA
© Milan Kundera, 1967
Versão francesa traduzida do tcheco por MARCEL AYMONIN, totalmente
revista
por CLAUDE COURTOT e pelo autor.
Versão definitiva.
Direitos de edição da obra em língua portuguesa no Brasil adquiridos pela
EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A.
Rua Bambina, 25 — Botafogo — CEP: 22.251 — Tel.: 286-7822
Endereço telegráfico: NEOFRONT — Telex: 34695 ENFS BR
Rio de Janeiro, RJ
Revisão da tradução PAULA MARIA ROSAS
Revisão tipográfica
NAIR DAMETTO
ÁLVARO TAVARES
URANGA
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte. Sindicato Nacional dos Editores de Livros,
RJ.
Kundera, Milan
K98b
A brincadeira / Milan Kundera; tradução de Teresa Bulhões Carvalho da
Fonseca, Anna Lúcia Moojen de Andrada. — Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1986.
Tradução de: Zert.
(Romances de hoje)
1. Literatura tchecoeslovaca-Romance. I. Fonseca, Teresa Bulhões Carvalho
da. II. Andrada, Anna Lúcia Moojen de. III. Título. IV. Série.
CDD — 891.863
PRIMEIRA PARTE

LUDVIK

Assim, depois de muitos anos, via-me em casa outra vez. De pé na grande


praça (que, criança, depois garoto e depois rapaz, atravessara mil vezes),
não sentia nenhuma emoção; ao contrário, achava que aquele espaço, cuja
torre (semelhante a um cavaleiro medieval sob o seu elmo) se projeta sobre
os telhados, lembrava o amplo pátio de exercícios de uma caserna, e que o
passado militar desta cidade da Morávia, outrora anteparo contra os ataques
dos magiares e dos turcos, havia imprimido sobre sua face a marca de uma
irrevogável feiura.
Por muitos anos nada me atraíra para minha cidade natal; dizia comigo
mesmo que ela se tornara indiferente para mim, e isso me parecia natural: já
há quinze anos morava longe; não tinha aqui senão alguns conhecidos, na
verdade colegas (que, aliás, preferia evitar), minha mãe estava enterrada
numa sepultura estranha, da qual não me ocupava. Mas eu me enganava:
aquilo que chamava indiferença era na verdade rancor; as razões me
escapavam, pois tinham me acontecido coisas boas e ruins nesta cidade
como em todas as outras; tomei consciência disso por ocasião de minha
viagem: a tarefa que me trazia aqui, pensando bem, poderia ter sido
cumprida da mesma forma em Praga, mas de repente tinha sido
irresistivelmente atraído pela oportunidade oferecida de executá-la na
minha cidade natal, justamente porque se tratava de uma tarefa cínica e
terra-a-terra que, por ironia, me libertava da desconfiança de voltar aqui sob
o efeito de um enternecimento afetado em relação ao tempo passado.
Uma vez mais percorri com um olhar malicioso a praça pouco atraente antes
de lhe dar as costas para entrar na rua do hotel em que tinha reservado um
quarto para passar a noite. O porteiro me entregou uma chave com uma
pera de madeira, dizendo: "Segundo andar." O quarto não era muito
convidativo: uma cama encostada na parede; no meio, uma pequena mesa
com uma única cadeira; ao lado da cama, uma pretensiosa mesa de toalete
de mogno com um espelho; perto da porta, um lavabo descascado,
absolutamente minúsculo. Coloquei minha pasta em cima da mesa e abri a
janela: dava para um pátio e umas casas que mostravam ao hotel suas costas
nuas e sujas. Fechei a janela, baixei as cortinas e aproximei-me do lavabo,
que tinha duas torneiras marcadas, uma de azul, outra de vermelho;
experimentei-as — a água escorria igualmente fria de ambas. Examinei a
mesa, que a rigor poderia acomodar muito bem uma garrafa e dois copos;
infelizmente, apenas uma pessoa poderia usá-la, já que não havia uma
segunda cadeira no quarto. Tendo puxado a mesa em direção à cama, tentei
sentar-me nesta, só que ela era muito baixa e a mesa muito alta; além disso,
afundou-se tanto embaixo de mim que ficou logo claro que não só ela
serviria apenas precariamente de assento como também preencheria de
maneira duvidosa sua função de cama. Apoiei-me nos punhos; em seguida
estendi-me, levantando com precaução meus pés calçados, a fim de evitar
sujar a coberta e o lençol. O colchão cedeu sob o meu peso, e fiquei
estendido como numa rede ou num túmulo estreito: não era possível
imaginar alguém dividindo essa cama comigo.
Sentei-me na cadeira, o olhar perdido em direção às cortinas cuja
transparência deixava passar a claridade e fiquei pensando. Nesse
momento, ouvi passos e vozes no corredor; duas pessoas conversavam, um
homem e uma mulher, e cada uma de suas palavras era inteligível: falavam
de um tal Petr que tinha fugido de casa, e de uma tia Klara que era idiota e
estragava o menino; depois foi ouvida uma chave virando na fechadura,
uma porta que se abria e as vozes que continuavam no quarto ao lado; ouvi
os suspiros da mulher (é, até os suspiros me chegavam!) e a decisão do
homem de dizer, de uma vez por todas, umas verdades a Klara.
Levantei-me, minha decisão estava tomada; lavei mais uma vez as mãos no
lavabo, enxuguei-as com a toalha e deixei o hotel sem saber bem para onde
iria. Sabia apenas que, se não quisesse comprometer o sucesso de toda a
minha viagem (viagem consideravelmente longa e cansativa) apenas por
causa dos defeitos do meu quarto de hotel, devia, ainda que não tivesse a
menor vontade, fazer um apelo discreto a algum amigo daqui. Passei
rapidamente em revista todos os rostos do meu tempo de mocidade, para
logo em seguida afastá-los, porque o caráter confidencial do favor a ser
pedido iria impor-me a obrigação de estabelecer uma ponte difícil sobre os
muitos anos em que não os tinha visto — e isso me desagradava. Depois
lembrei-me de que aqui vivia sem dúvida um homem para quem, aqui
mesmo, em outros tempos, eu arranjara um emprego e que, se eu o conhecia
bem, ficaria muito feliz em ter a oportunidade de me fazer, por sua vez, um
favor. Era um ser estranho, ao mesmo tempo de um moralismo severo e
curiosamente inquieto e instável, do qual, segundo eu soubera, a mulher se
divorciara havia muitos anos, pela simples razão de que ele vivia em
qualquer lugar, desde que não fosse com ela e com o filho deles. Tremia agora
com a ideia de que ele pudesse ter-se casado de novo, circunstância que iria
complicar o atendimento de meu pedido, e apressei o passo em direção ao
hospital.
Esse hospital é um conjunto de prédios e pavilhões espalhados numa vasta
área de jardins; entrei na pequena guarita vizinha ao portão e pedi ao
porteiro, sentado atrás de uma mesa, para me pôr em contato com a
virologia; ele empurrou o aparelho para a beirada da mesa do meu lado e
disse: "Zero dois!" Disquei então zero dois para saber que o Dr. Kostka tinha
deixado a sala havia alguns segundos e devia estar chegando à saída. Sentei-
me num banco perto da grande porta para ter certeza de que não ia deixá-lo
escapar. Olhei distraidamente para os homens que vagavam por ali com suas
roupas de hospital de listras azuis e brancas e então o vi: ele vinha,
sonhador, grande, magro, simpático na sua falta de elegância; sim, era ele
mesmo. Levantei do banco e fui direto ao seu encontro, como se quisesse
esbarrar nele; lançou-me um olhar aborrecido, mas logo depois me
reconheceu e abriu os braços. Tive a impressão de que sua surpresa era
quase feliz e a espontaneidade de sua acolhida me deixou satisfeito.
Expliquei-lhe que tinha chegado havia menos de uma hora para um
trabalho sem importância que me prenderia aqui mais ou menos dois dias, e
ele manifestou de imediato alegre espanto por ter sido para ele minha
primeira visita. De repente, pareceu-me desagradável não tê-lo encontrado
com o espírito desinteressado, sem nada esperar, e a pergunta que fiz
(perguntei-lhe jovialmente se ele já se casara de novo) pareceu refletir uma
atenção sincera, apesar de proceder, no fundo, de um interesse sujo. Ele me
disse (para minha satisfação) que continuava sozinho. Comentei que
tínhamos muitas coisas para conversar. Ele concordou e lamentou não
dispor, infelizmente, senão de pouco mais de uma hora, visto que deveria
voltar para o hospital e, à noite, tomar um ônibus para sair da cidade.
— Você não mora aqui? — perguntei, assustado.
Ele garantiu-me que morava, sim, num conjugado de um prédio novo, mas
que "é difícil viver sozinho". Fiquei sabendo que Kostka tinha, numa outra
cidade, a vinte quilômetros, uma noiva, professora primária, que dispunha
de um sala-e-quarto.
— Você pretende se instalar em casa dela depois? — perguntei.
Ele respondeu que não seria fácil achar noutro lugar trabalho tão
interessante quanto o que eu lhe arranjara e que, por outro lado, sua noiva
teria dificuldade em conseguir uma colocação aqui. Comecei a insultar (com
prazer) as morosidades da burocracia, incapaz de facilitar as coisas para que
um homem e uma mulher possam viver juntos.
— Acalme-se, Ludvik — disse-me ele com doce indulgência —, afinal de
contas não é assim tão insuportável! É claro que a viagem me custa dinheiro
e tempo, mas minha solidão continua intacta e sou livre.
— Por que é que você tem tamanha necessidade de liberdade? —
perguntei.
— E você? — perguntou ele.
— Eu corro atrás das mulheres — respondi.
— Não é para as mulheres, é para mim que preciso de liberdade — disse ele,
e acrescentou: — Escute, venha um instante até minha casa, antes de eu ir
embora.
Era tudo o que eu queria.
Saindo da área do hospital, chegamos logo a um grupo de prédios novos que
se elevavam sem harmonia um ao lado do outro, de um terreno poeirento,
não-aplainado (sem gramado, sem calçamento, sem passeio), e que
formavam um triste cenário para o horizonte de campos, vastos e planos,
que se estendia a distância. Atravessamos uma porta, subimos uma escada
muito estreita (o elevador não funcionava) e paramos no terceiro andar,
onde reconheci o nome de Kostka no cartão de visita. Quando, depois de
atravessar a entrada, entramos no cômodo, fiquei mais do que satisfeito: um
largo e confortável divã ocupava um canto; além do divã havia uma
pequena mesa, uma poltrona, uma grande estante, um toca-discos e um
rádio.
Elogiei o quarto de Kostka e perguntei-lhe como era seu banheiro.
— Nada de luxuoso — disse ele, contente com o interesse que eu revelava, e
levou-me até a entrada de onde se abria a porta do banheiro, pequeno mas
muito agradável, com banheira, ducha e lavabo.
— Vendo este magnífico apartamento ocorre-me uma ideia — disse eu. — O
que é que você vai fazer amanhã à tarde e amanhã à noite? — Puxa —
desculpou-se ele, encabulado —, amanhã tenho um longo dia de trabalho,
só voltarei por volta de sete horas. À noite você não vai estar livre? — Pode
ser que tenha a noite livre — respondi —, mas, antes, você não poderia me
emprestar seu apartamento durante a tarde? Minha pergunta espantou-o,
mas na mesma hora (como se temesse que eu o julgasse pouco solícito) ele
me disse: — Claro, ele é seu. — E continuou, empenhando-se em mostrar
que não estava procurando saber o motivo do meu pedido: -— Se você está
com dificuldade de encontrar um lugar onde ficar, pode ficar aqui desde
hoje, pois só vou voltar amanhã de manhã, e nem isso, porque vou
diretamente para o hospital.
— Não, não é preciso. Estou no hotel. O que há é que meu quarto é muito
pouco acolhedor, e amanhã à tarde precisarei de um ambiente agradável.
Claro que não é para ficar sozinho.
— Sim — disse Kostka, baixando um pouco a cabeça —, imaginei isso. —
Depois de um instante disse: — Estou contente de poder fazer algo de bom
por você.
— E acrescentou ainda: — Supondo, evidentemente, que seja realmente
uma coisa boa.
Depois disso sentamos em volta da pequena mesa (Kostka tinha feito café) e
conversamos um pouco (sentado no divã, constatei com prazer sua firmeza,
ele não afundava nem rangia). Em seguida Kostka anunciou que tinha de
voltar para o hospital; por isso, apressou-se em me iniciar em alguns segredos
domésticos: é preciso apertar muito a torneira da banheira para fechá-la; a
água quente sai, ao contrário do que em geral acontece, da torneira marcada
com a letra F, a tomada para o fio do toca-discos está escondida embaixo do
divã e no armário pequeno há uma garrafa de vodca quase cheia. Em
seguida, deu-me um molho de duas chaves e mostrou-me a da porta do
prédio e a do apartamento. Como já dormi em muitas camas no decorrer da
minha vida, desenvolvi um culto especial pelas chaves, e, portanto, guardei
essas no bolso com uma alegria silenciosa.
Kostka expressou, ao sair, votos de que seu apartamento me proporcionasse
"realmente alguma coisa de bom".
— É — disse eu —, ele vai me permitir efetuar uma bela destruição.
— Você acha que as destruições podem ser belas? — perguntou Kostka, e eu
sorri intimamente, porque, nessa pergunta (proferida com delicadeza mas
concebida com combatividade), eu o reconheci exatamente como ele era
(simpático e cômico ao mesmo tempo) na época do nosso primeiro encontro,
quinze anos antes. Retruquei: — Sei que você é um pacífico operário na
eterna obra divina e que ouvir falar em destruições lhe desagrada, mas o que
posso fazer: quanto a mim, não sou um aprendiz de r pedreiro de Deus.
Além do mais, se os aprendizes de pedreiro de Deus construíssem aqui
embaixo edifícios com paredes de verdade, haveria poucas chances de que
nossas destruições pudessem abalá-las. Ora, parece-me que, em vez de
paredes, o que vejo em todo lugar são apenas cenários. E a destruição de
cenários é uma coisa inteiramente justa.
Nós nos encontrávamos no mesmo ponto em que nos tínhamos separado da
última vez (talvez nove anos antes); nossa discussão revestia-se agora de
um caráter metafórico, porque nós a conhecíamos bem a fundo e não
sentíamos necessidade de voltar atrás; tínhamos apenas necessidade de nos
repetir que não havíamos mudado, que continuávamos os dois igualmente
diferentes um do outro (a esse respeito, devo dizer que gostava dessa
diferença em Kostka e que, por isso, sentia prazer em discutir com ele,
porque assim sempre podia, de passagem, verificar quem de fato eu sou e o
que penso. Portanto, a fim de eliminar qualquer dúvida que eu tivesse a seu
respeito, ele me respondeu:
— O que você acaba de dizer soa bem. Mas, diga-me: cético como é, de onde
tira a segurança que faz com que você diferencie o cenário da parede?
Nunca lhe aconteceu duvidar de que as ilusões das quais zomba sejam de
fato apenas ilusões? E se você estivesse enganado? E se fossem valores, e
você um destruidor de valores? — E disse em seguida: — Um valor
degradado e uma ilusão desmascarada têm ambos o mesmo corpo
deplorável, se parecem, e nada mais fácil do que confundi-los.
Enquanto acompanhava Kostka de volta ao hospital, do outro lado da
cidade, brincava com as chaves no fundo do meu bolso e sentia-me bem ao
lado do velho amigo que era capaz de tentar convencer-me de sua verdade
não importava quando nem onde, mesmo agora, enquanto atravessávamos
o terreno esburacado dos quarteirões novos. Kostka sabia, é evidente, que
teríamos para nós toda a noite do dia seguinte, por isso deixou logo de lado a
filosofia e passou aos assuntos banais, certificando-se mais uma vez de que
eu o esperaria amanhã na sua casa, quando voltasse às sete horas (ele não
tinha outro molho de chaves), e perguntando-me se na verdade não
precisava de mais nada. Apalpei o rosto e disse-lhe que precisava passar
num barbeiro, visto que estava com uma barba indesejável.
— Em boa hora — disse Kostka —, vou lhe arranjar um barbeiro especial!
Não recusei a gentileza de Kotska e deixei-me levar para um pequeno salão
em que, diante de três espelhos, estavam plantadas três grandes poltronas
giratórias, das quais duas estavam ocupadas por homens que tinham a
cabeça inclinada e o rosto coberto de espuma. Duas mulheres de uniforme
branco se debruçavam sobre eles. Kostka aproximou-se de uma delas e
segredou-lhe alguma coisa; a moça enxugou sua navalha com uma toalha e
gritou para o fundo da loja: uma moça de uniforme branco saiu para se
ocupar do senhor abandonado em sua poltrona, enquanto a mulher com
quem Kostka falara dirigia-me uma leve inclinação de cabeça e me
convidava com a mão a sentar na poltrona vazia. Kostka e eu nos
despedimos com um aperto de mão e eu me instalei, a cabeça descansando
na pequena almofada que servia de apoio; e, como há muitos anos não
gostava de olhar meu rosto, evitei o espelho colocado diante de mim,
levantei os olhos e deixei-os vagar entre as manchas do teto caiado.
Mantive os olhos no teto mesmo depois de ter sentido no pescoço os dedos
da cabeleireira que enfiavam sob o colarinho da minha camisa a ponta de
um pano branco. Depois ela deu um passo para trás, e não ouvi nada além
do vaivém da lâmina no couro de afiar; fiquei paralisado, numa espécie de
imobilidade tranquila, repleta de feliz indiferença. Pouco depois, senti nas
faces os dedos úmidos me aplicando untuosamente um creme na pele e me
dei conta desse fato singular e incongruente: uma desconhecida, que não é
nada para mim e para a qual também nada sou, me acaricia com suavidade.
Depois disso, com um pincel, a cabeleireira começou a espalhar o sabão e
pareceu-me que talvez eu não estivesse nem mesmo sentado, mas que
simplesmente flutuasse no espaço branco, semeado de manchas. Então
imaginei (porque mesmo nos momentos de repouso as ideias não param seus
jogos) que eu era uma vítima sem defesa, totalmente entregue à mulher que
tinha afiado a navalha. E como meu corpo se dissolvia no espaço e eu sentia
apenas meu rosto tocado pelos dedos, imaginei sem dificuldade que aquelas
mãos suaves seguravam (faziam girar, acariciavam) minha cabeça como se
não a associassem de modo nenhum a um corpo, mas a considerassem
somente em si, de tal maneira que à lâmina afiada que esperava na
prateleira vizinha nada restava senão completar essa bela autonomia de
minha cabeça.
Depois as carícias cessaram e eu ouvi a cabeleireira afastar-se a fim, dessa
vez, de apanhar de fato a navalha, e pensei nesse momento (pois os
pensamentos continuavam seus jogos) que era preciso ver que rosto tinha
na verdade a dona (a manipuladora) de minha cabeça, minha terna
assassina. Descolei meus olhos do teto e olhei para o espelho. Fiquei
estupefato: o jogo com o qual eu me divertia adquiriu de súbito contornos
estranhamente reais; parecia-me que eu conhecia aquela mulher que se
debruçava sobre mim no espelho.
Com uma das mãos ela segurava o lóbulo de minha orelha, com a outra
raspava de meu rosto meticulosamente a espuma do sabão; eu a observava,
e sua identidade, percebida com espanto um minuto antes, desfazia-se
lentamente e desaparecia. Depois ela se curvou sobre a pia, com dois dedos
fez cair da navalha um amontoado de espuma, endireitou-se e fez girar um
pouco a poltrona; nossos olhares então se cruzaram um segundo, e mais uma
vez pareceu-me que era ela! Decerto o rosto era um pouco diferente, como
se fosse o de sua irmã mais velha, cinzento, cansado, um pouco magro; mas
fazia quinze anos que a vira pela última vez! Durante esse período, o tempo
havia impresso uma máscara enganadora sobre seus traços autênticos;
felizmente, porém, essa máscara tinha dois orifícios pelos quais mais uma
vez seus olhos podiam me olhar, reais e verdadeiros, tais como eu os
conhecera.
Mas depois sobreveio um novo obstáculo no caminho: um outro cliente
entrou no salão, sentou-se numa cadeira atrás de mim para esperar sua vez
e logo começou a falar com a minha cabeleireira; discorria sobre o esplêndido
verão e sobre a piscina em construção nos arredores da cidade; a cabeleireira
respondia (eu registrava sua voz mais do que suas palavras, por sinal
insignificantes), e constatei que não reconhecia aquela voz; o tom era
desenvolto, desprovido de ansiedade, quase vulgar, era uma voz
completamente estranha.
Agora ela me lavava o rosto apertando-o com as palmas das mãos, e eu
(apesar da voz) tornava a acreditar que era ela mesma, que eu sentia outra
vez, depois de quinze anos, o contato de suas mãos em meu rosto, que ela
me acariciava de novo, me acariciava longamente, com ternura (eu
esquecia por completo que não eram carícias, mas sim abluções); sua voz
estranha, no entanto, não parava de responder banalidades à tagarelice
crescente do sujeito, mas eu me recusava a acreditar na voz, preferia
acreditar em suas mãos; por suas mãos obstinava-me em reconhecê-la; pela
doçura de seu toque esforçava-me por descobrir se era ela e se ela me tinha
reconhecido.
Depois, ela pegou uma toalha e secou-me o rosto. O tagarela começou a rir
ruidosamente de uma piada que acabara de contar, e notei que minha
cabeleireira não riu, que sem dúvida, portanto, não prestava grande atenção
ao que o sujeito dizia. Isso me perturbou porque via no fato a prova de que
ela me reconhecera e que sentia uma agitação contida. Resolvi falar-lhe
assim que deixasse minha cadeira. Ela me livrou da toalha que envolvia meu
pescoço. Levantei-me. Tirei uma nota de cinco coroas do bolso interno do
meu paletó. Esperava um novo encontro de nossos olhares para poder
dirigir-lhe a palavra chamando-a por seu nome (o sujeito continuava
tagarelando), mas ela virou a cabeça com indiferença; pegou o dinheiro com
um gesto tão curto e impessoal que fiquei, de repente, me sentindo como
um louco convicto de suas próprias miragens, e não tive coragem de lhe
dizer uma só palavra.
Curiosamente insatisfeito, saí do salão; tudo o que sabia é que não sabia
nada, e que era uma enorme grosseria hesitar sobre a identidade de um rosto
que outrora fora tão amado.
Naturalmente, não seria difícil saber a verdade. Dirigi-me às pressas ao hotel
(no caminho percebi na calçada em frente o rosto de um amigo de infância,
Jaroslav, chefe de uma orquestra com címbalo, mas, como se fugisse da
música lancinante e alta demais, desviei o olhar rapidamente) e de lá
telefonei para Kostka, que ainda estava no hospital.
— Diga-me, aquela cabeleireira a quem você me confiou, ela se chama Lucie
Sebetkova?
— Hoje ela tem outro nome, mas é ela mesma. Como é que você a conhece?
— perguntou Kostka.
— Foi há muito tempo — respondi, e, sem nem mesmo pensar em jantar,
deixei o hotel (já era noite) para voltar a perambular pelas ruas.
SEGUNDA PARTE

HELENA

Esta noite vou me deitar cedo, não sei se vou conseguir dormir, mas vou me
deitar cedo, Pavel partiu à tarde para Bratislava, e amanhã cedo vou de
avião até Brno, e depois de ônibus, minha pequena Zdena vai ficar dois dias
sozinha em casa, isso não vai perturbá-la, ela não faz questão de nossa
companhia, pelo menos não da minha, ela adora Pavel, Pavel é seu primeiro
ídolo masculino, é preciso reconhecer que ele sabe lidar com ela, como
sempre soube lidar com todas as mulheres, inclusive comigo, e isso continua
sendo verdade, essa semana ele recomeçou a se comportar comigo do
mesmo modo que antigamente, me deu tapinhas no rosto e prometeu que
iria me buscar na Morávia, quando voltasse de Bratislava, segundo ele
precisamos recomeçar a conversar, talvez ele tenha reconhecido que as
coisas não podem continuar assim, talvez queira que tudo entre nós volte a
ser como antes, mas por que pensa isso tão tarde, agora que encontrei
Ludvik? Estou toda angustiada, no entanto não devo ficar triste, não devo,
que a tristeza não seja jamais ligada a meu nome, essa frase de Fucik é o meu
lema, mesmo torturado, mesmo sob a forca, Fucik nunca ficava triste, e
pouco importa que hoje a alegria tenha saído de moda, sou idiota, é possível,
mas os outros não são menos idiotas com seu ceticismo mundano, não vejo
por que deveria renunciar à minha tolice para adotar a deles, não quero
cortar minha vida em duas, quero que minha vida seja uma do começo ao
fim, foi por isso que Ludvik me agradou tanto, quando estou com ele não
tenho necessidade de mudar de ideias nem de gostos, é um homem comum,
simples, claro, e é disso que gosto, que sempre gostei.
Não tenho vergonha de ser como sou, não posso ser diferente daquela que
sempre fui, até os dezoito anos conheci apenas o apartamento bem-
arrumado da burguesia provinciana bem-arrumada, e o estudo, o estudo, a
vida real se desenrolava além das sete muralhas, até que, depois, cheguei a
Praga em 49, aí foi o milagre, uma felicidade tão violenta que jamais a
esquecerei, e é por isso mesmo que continuo incapaz de apagar Pavel de
minha alma, mesmo não o amando mais, mesmo tendo ele me prejudicado,
não posso, Pavel é minha juventude, Praga, a faculdade, a Cidade
Universitária e, principalmente, o célebre Conjunto Fucik de cantos e
danças, conjunto estudantil, agora ninguém mais sabe o que aquilo
representava para nós, foi lá que conheci Pavel, ele era tenor e eu contrai to,
tomamos parte em centenas de concertos e sessões recreativas, cantando
canções soviéticas, canções políticas de nossa terra e, claro, as canções
populares, estas eram nossas preferidas, eu estava então a tal ponto
apaixonada pelas canções da Morávia que, sendo natural da Boêmia, me
sentia morávia, fiz dessas canções o leit-motiv de minha vida, para mim elas
se confundem com essa época, com meus anos de juventude, com Pavel, eu
as ouço cada vez que o sol vai se levantar para mim, hoje eu ainda as ouço.
Como foi que no começo me apeguei a Pavel, hoje eu não saberia dizer a
ninguém, é uma espécie de má literatura, num dia de aniversário da
Liberação havia um grande comício na praça da Cidade Velha, nosso
Conjunto também fazia parte da festa, íamos a toda parte em grupo,
pequeno bando entre dezenas de milhares de pessoas, na tribuna nossos
homens de Estado e também alguns estrangeiros, muitos discursos e muitas
ovações, de pois Togliatti, por sua vez, aproximou-se do microfone para um
breve discurso em italiano e, como sempre, a praça respondeu gritando,
batendo palmas, bradando ritmadamente slogans. Por acaso, Pavel estava
perto de mim naquela imensa barafunda e escutei-o gritar alguma coisa
sozinho na tempestade, alguma coisa especial. Olhei para sua boca e
compreendi que ele cantava, gritava mais do que cantava, queria que nós o
ouvíssemos e que o acompanhássemos, entoava um canto revolucionário
italiano que constava de nosso repertório e que era muito popular na época:
Avanti popolo, alia riscossa, bandiera rossa, bandiera rossa...
Era ele tal e qual, não se contentava nunca em se dirigir à razão, queria
atingir os sentimentos, achei que era maravilhoso saudar numa praça de
Praga um líder trabalhista italiano cantando para ele uma canção
revolucionária de seu país, desejei que Togliatti ficasse comovido como eu
ficara por antecipação, e assim, com todo o meu fôlego, juntei-me a Pavel, e
outros, muitos outros, se associaram a nós, por fim nosso Conjunto inteiro
gritou a canção, mas o clamor da praça era incrivelmente poderoso e nós
éramos apenas um punhado de gente, éramos 50 e eles, no mínimo, 50 mil,
esmagadora superioridade, luta desesperada, durante toda a primeira
estrofe pensamos que iríamos sucumbir, que ninguém iria sequer perceber o
que estávamos cantando, quando aconteceu o milagre, pouco a pouco as
vozes se juntaram a nós, mais numerosas, as pessoas começavam a
entender, e lentamente a canção se desprendia da enorme algazarra da
praça como uma borboleta de uma gigantesca e retumbante crisálida. Por
fim, a borboleta, o canto, pelo menos seus últimos compassos, voaram até o
palanque, e nós fixamos os olhos ávidos nos traços daquele italiano grisalho,
muito satisfeitos quando nos pareceu que com um movimento da mão ele
reagia à música, e eu fiquei quase certa de ter visto lágrimas em seus olhos.
E nesse entusiasmo e nessa emoção, não sei como, segurei Pavel pela mão e
Pavel retribuiu meu aperto, e quando a calma voltou à praça e um novo
orador se pôs em frente ao microfone tive medo que ele largasse minha mão,
mas ele segurou-a, e continuamos de mãos dadas até o fim do comício, e não
nos separamos mais um do outro, mesmo depois da dispersão, e durante
muitas horas passeamos por Praga, toda florida.
Sete anos depois, a pequena Zdena já tinha cinco anos, nunca vou esquecer
isso, ele me disse que nós não nos casamos por amor, mas por disciplina de
partido, sei muito bem que estávamos discutindo, que era mentira, que
Pavel tinha se casado comigo por amor e que só mudou depois, mas de
qualquer maneira é horrível que ele tenha me dito isso, logo ele, que nunca
parou de dizer que o amor de hoje é diferente, que não é uma fuga para
longe dos outros, mas um reconforto dentro do combate, aliás era assim que
nós o vivíamos, ao meio-dia não tínhamos nem tempo de almoçar,
engolíamos dois pãezinhos secos na secretaria da União da Juventude,
depois ficávamos às vezes sem nos ver até o fim do dia, em geral eu
esperava Pavel até mais ou menos meia-noite, quando ele voltava de suas
intermináveis reuniões que duravam umas seis ou oito horas, nos meus
momentos de folga recopiava para ele relatórios que ele apresentava em
todos os tipos de conferências e de estágios de formação, textos que tinham
a seus olhos uma importância extrema, sou a única a saber o valor que ele
atribuía ao sucesso de suas intervenções políticas, cem vezes ele repetia em
seus discursos que o novo homem difere do antigo pelo fato de ter cortado
de sua vida a separação entre o privado e o público, e agora ele me condena,
depois de tantos anos, por os camaradas não terem, naquela época,
respeitado sua vida particular.
Saíamos juntos havia quase dois anos, e eu começava a sentir um pouco de
impaciência, não é de espantar, nenhuma mulher espera se satisfazer com
um simples namoro de estudante, quanto a Pavel, ele se contentava,
acostumado àqueles confortos sem obrigação, todo homem é um pouco
egoísta e compete à mulher se defender e preservar sua missão de mulher,
isso, infelizmente, Pavel compreendia menos bem do que nossos camaradas
do Conjunto, que o convocaram diante do Comitê, ignoro o que lhe
disseram ali, nunca falamos disso, é provável que o tenham apertado, pois
eram nessa época muito rigorosos, está certo, exigia-se muito, mas moral
demais é melhor do que de menos, como agora. Durante bastante tempo
Pavel me evitou, pensei que tinha estragado tudo, fiquei desesperada, quis
pôr fim aos meus dias, mas depois ele veio me procurar, meus joelhos
tremiam, ele me pediu desculpas e me ofereceu de presente um berloque
com a imagem do Kremlin, sua lembrança mais preciosa, nunca me
separarei dela, não é apenas uma lembrança de Pavel, mas muito mais, é
uma lembrança de felicidade, eu me desmanchei em lágrimas e quinze dias
depois houve nosso casamento, ao qual o Conjunto inteiro compareceu, e
que durou 24 horas, cantamos, dançamos, e eu repetia para Pavel que, se
traíssemos um ao outro, trairíamos todos aqueles que comemoravam conosco
aquele casamento, trairíamos também a manifestação na praça da Cidade
Velha e Togliatti, tenho vontade de rir hoje em dia quando penso em todas
as coisas que traímos depois...
Pensei no que vou vestir amanhã, por exemplo meu pulôver rosa e minha
capa de chuva, é o que ainda fica bem no meu corpo, não estou mais muito
magra, mas e daí! Se tenho rugas, para compensar tenho outros encantos
que uma moça nova não tem, o encanto da mulher que viveu, para Jindra
sem dúvida tenho esse encanto, pobre garoto, vejo ainda seu
desapontamento quando soube que eu pegaria o avião de manhã bem cedo
e que ele faria a viagem sozinho, fica contente quando pode estar comigo,
diante de mim gosta de se fazer valorizar do alto da sua virilidade de
dezenove anos, comigo certamente faria 130 quilômetros por hora para que
eu o admirasse, esse pequeno feioso, assim, como técnico e como motorista
inteiramente impecável, os jornalistas o carregam de boa vontade para todas
as pequenas reportagens no exterior, e, afinal, que mal existe se acho
agradável saber de alguém que sente prazer em me ver, nesses últimos anos
não tenho sido bem-vista no rádio, parece que sou uma peste, fanática,
dogmática, cão de guarda do Partido e tudo o mais, só que o que acontece é
que eu não vou me envergonhar nunca de amar o Partido, de sacrificar-lhe
todos os meus prazeres. Em primeiro lugar, o que me resta na vida? Pavel
tem outras mulheres, não procuro mais saber quais são, a menina adora o
pai, meu trabalho, sempre a mesma coisa já há dez anos, reportagens,
entrevistas, programas de rádio sobre a realização do plano, sobre os
estábulos-modelo, sobre as máquinas de ordenhar, e o meu lar igualmente
sem esperança, só o Partido nunca me decepcionou, e eu sempre paguei na
mesma moeda, mesmo nas horas em que todos tinham vontade de
abandoná-lo, em 56, com a revelação dos crimes de Stalin, as pessoas ficaram
loucas na ocasião, cuspiam em tudo, achavam que nossa imprensa mentia,
as casas de comércio nacionalizadas não funcionavam, a cultura sufocava,
as cooperativas rurais não deveriam ter existido, a União Soviética era um
país sem liberdade e o pior era que mesmo os comunistas se exprimiam assim
em suas reuniões, Pavel também falava dessa maneira, e todo o mundo o
aplaudia, Pavel sempre foi aplaudido, desde a sua infância, filho único, sua
mãe dorme com seu retrato, menino-prodígio, mas homem apenas mediano,
não fuma, não bebe, mas é incapaz de viver sem vivas, é o seu álcool, sua
nicotina, tanto que ele ficava radiante de poder empolgar o coração dos
auditórios, para o qual discursava sobre o horror dos processos stalinistas com
um entusiasmo tal que com mais um pouco as pessoas explodiriam em
soluços, eu sentia como ele ficava feliz na sua indignação e o detestava.
O Partido, feiamente, soube reprimir os histéricos, eles se calaram. Pavel,
como outros, se moderou, seu emprego de professor de marxismo na
Universidade era vantajoso demais para que ele o arriscasse, apesar disso
havia qualquer coisa no ar, os germes da apatia, da desconfiança, da
descrença, germes fermentando em silêncio, em segredo, eu me perguntava
o que poderia fazer contra aquilo, a não ser ligar-me ao Partido mais
estreitamente ainda do que antes, como se o Partido fosse uma criatura
viva, a quem posso agora me entregar, agora que não tenho mais nada a
dizer a ninguém, nem a Pavel, nem aos outros, eles também não gostam de
mim, isso ficou claro quando foi preciso resolver aquela questão penosa: um
de nossos redatores, um homem casado, tinha uma ligação com uma
técnica, uma jovem solteira, irresponsável e cínica, a esposa, em seu
desespero, veio pedir ajuda ao nosso comitê, e nós estudamos o caso durante
horas, chamamos um a um, a mulher, a técnica e as testemunhas que
pertenciam ao serviço, esforçamo-nos para entender todos os aspectos da
questão e para nos mostrar justos, o redator sofreu uma repreensão do
Partido, a técnica foi advertida e os dois tiveram que prometer, diante do
comitê, que iriam romper. Ora, palavras são apenas palavras, eles as disseram
para nos acalmar, continuaram a se encontrar, mas, como mentira tem
perna curta, não demoramos a descobrir a verdade, e fui então a favor da
solução mais severa, propondo que o colega fosse expulso do Partido, por ter
conscientemente enganado o Partido, pois, afinal, que espécie de comunista
é esse que mente para seu Partido, detesto mentira, apesar disso minha
proposta não foi aceita, o redator livrou-se com mais uma repreensão, e a
técnica teve que sair da emissora de rádio.
Vingaram-se bem, fazendo-me passar por um monstro, por uma megera,
uma campanha completa, passaram a espionar minha vida particular, era
meu calcanhar de aquiles, uma mulher não pode abrir mão do sentimento
ou deixa de ser mulher, para que negá-lo, procurava o amor em outro lugar,
já que não o tinha em casa, aliás procurava em vão, um belo dia atacaram-
me com isso numa reunião pública, eu era uma hipócrita, pregava as pessoas
no pelourinho sob o pretexto de que eram destruidoras de lares, tivera a
pretensão de expulsá-las, persegui-las, arrasá-las, enquanto eu mesma era
infiel ao meu marido tanto quanto podia, falavam assim na reunião, mas nas
minhas costas simplesmente me arrastavam na lama, para o público eu era
uma boa pessoa e, em particular, uma puta, como se eles não tivessem
podido compreender que eu, justamente porque sabia o que era um
casamento infeliz, era, por essa mesma razão, exigente em relação aos outros,
não porque os detestasse, mas por amor, por amor ao amor, por amor aos
seus lares e aos seus filhos, por que queria correr em seu socorro, eu também
tenho filho e lar e temo por eles! Mas, puxa, talvez eles tenham razão, talvez
eu seja de fato uma megera, talvez se deva deixar as pessoas em liberdade,
ninguém tem direito de se meter em seus assuntos pessoais, talvez
tenhamos realmente concebido mal esse mundo todo em que estamos, e
talvez eu seja na verdade um tira odioso que mete o nariz em coisas que não
lhe dizem respeito absolutamente, só que eu sou assim, sou assim e ajo
sempre como sinto que devo agir, e agora é tarde demais para mudar,
sempre pensei que a criatura humana fosse indivisível, só o burguês na sua
impostura se divide em um ser público e um homem particular, esse é meu
credo, sempre me comportei segundo esse pensamento, dessa vez como das
outras.
Que eu tenha sido má, concordo, sem que seja preciso me fazer essa
pergunta, tenho horror dessas garotas, vagabundinhas cruéis na sua
juventude, desprovidas do menor traço de solidariedade para com a mulher
um pouco mais velha, como se um dia elas não fossem ter também 30, 35 e
40 anos, e não me venham dizer que ela o amava, o que é que aquela mulher
pode saber do amor, ela dorme com o primeiro que aparece, sem complexo,
sem pudor, fico ofendida se alguém ousa me comparar a vagabundas assim,
pelo único motivo de que, sendo casada, eu tenha tido várias ligações. A
diferença é que eu sempre procurei o amor, e se me enganava, se não o
achava onde o procurava, eu dava as costas, horrorizada, e partia para
outra, sabia no entanto como seria simples esquecer de uma vez por todas o
sonho de amor da minha juventude, atravessar a fronteira para me
encontrar nas terras dessa estranha liberdade, onde não existe nem
vergonha, nem decência, nem moral, no domínio dessa estranha e ignóbil
liberdade onde tudo é permitido, onde basta ouvir dentro de si a pulsação
do sexo, esse animal.
Sei também que, se atravessasse essa fronteira, deixaria de ser eu, me
tornaria outra pessoa, não sei quem, e isso, essa terrível mutação me assusta,
é por isso que procuro o amor, com a fúria do desespero procuro um amor no
qual possa viver tal como sempre fui, tal como sou ainda, com meus velhos
sonhos e meus ideais, pois não quero que minha vida se quebre ao meio,
quero que ela continue sendo uma só de ponta a ponta, e foi por isso que
fiquei sufocada a esse ponto quando te conheci, Ludvik, Ludvik...
No fundo foi realmente cômica a primeira vez que entrei em seu escritório,
ele não me agradou em especial, sem o menor constrangimento eu disse
quais eram as informações que esperava dele, que ideia tinha daquela
reportagem radiofônica, mas, quando ele me dirigiu a palavra em seguida,
percebi de repente que eu me atrapalhava, que dizia coisas incoerentes, que
me explicava bobamente, e ele, diante do meu embaraço, desviou na mesma
hora a conversa para mim, se era casada, se tinha filhos, onde em geral ia
passar as férias, disse também que parecia moça e que era bonita, queria me
aliviar do meu pânico, foi amável da parte dele, conheci tantos desses
presunçosos que só servem para enganar os outros, mesmo sem saber a
décima parte do que ele sabia, Pavel não teria parado de falar de si mesmo,
mas o mais cômico foi que depois de uma hora de entrevista eu não sabia
nada mais sobre seu instituto do que antes, em casa dediquei-me à minha
folha de papel, não estava dando certo, mas por outro lado me convinha,
tinha pelo menos um pretexto para lhe telefonar, será que ele aceitaria ler o
que eu tinha escrito? Nós tornamos a nos encontrar num café, minha infeliz
reportagem ocupava quatro páginas, ele a leu, amável, e sorriu, considerou-
a excelente, desde o primeiro instante tinha dado a entender que eu o
interessava como mulher e não como jornalista, eu não sabia se isso deveria
me agradar ou me ofender, mostrava-se em todo caso encantador, nós nos
entendemos, ele não é desses intelectuais herméticos que me aborrecem,
tem atrás de si uma vida rica, trabalhou até em minas, disse a ele que
gostava de pessoas desse tipo, mas que estava sobretudo espantada de saber
que ele era da Morávia e que tinha tocado numa orquestra com címbalo, não
podia acreditar nos meus ouvidos, ouvia o refrão da minha vida, via ao
longe minha juventude voltar e sentia que ia sucumbir a ele.
Ele me perguntou o que eu fazia todo santo dia, eu lhe contei e ele me disse,
escuto ainda sua voz, meio zombeteira, meio penalizada, você vive mal,
Helena, depois declarou que era preciso mudar isso, que eu devia me
decidir a levar uma vida diferente, me dedicar um pouco mais às alegrias da
existência. Eu lhe respondi que não tinha nada contra, que sempre fora uma
entusiasta da alegria, que nada me irritava mais que todas essas melancolias
e outras fossas da moda, e ele retrucou que minha profissão de fé não queria
dizer nada, que os partidários da alegria eram, em sua maioria, as pessoas
mais tristes, ah, como você tem razão! tive vontade de gritar, depois ele
anunciou cruamente que viria me apanhar no dia seguinte às quatro horas
em frente à emissora e que faríamos juntos um passeio em algum lugar no
campo, nos arredores de Praga. Tentei protestar, convenhamos, sou casada,
não posso ir passear assim na floresta em companhia de um homem, de um
estranho, Ludvik respondeu brincando que ele não era um homem mas
apenas um cientista, e ao mesmo tempo ficou triste, muito triste! Notei isso e
senti uma onda de calor, prazer de constatar que ele me desejava, e que me
desejava ainda mais porque eu lembrara a ele que era casada, assim tornava-
me mais inacessível, desejamos sempre, acima de tudo, o inacessível, com
avidez, eu bebia aquela tristeza de seus traços, e naquele momento
compreendi que ele estava apaixonado por mim.
No dia seguinte, de um lado o Vltava, do outro o declive abrupto da
floresta, foi romântico, gosto do que é romântico, meu comportamento devia
estar um pouco louco, impróprio talvez para a mãe de uma garota de doze
anos, eu ria, saltava, segurei-lhe a mão e obriguei-o a correr comigo, paramos,
meu coração batia com força, estávamos frente a frente, quase nos tocando,
Ludvik inclinou-se ligeiramente e me deu um beijo rápido, escapei logo dele
para segurar-lhe de novo a mão e recomeçamos a correr um pouco, ao
menor esforço sinto palpitações, basta eu subir um andar, portanto diminuí
logo o passo, minha respiração acalmou-se pouco a pouco e de repente me
dei conta de que cantarolava docemente os primeiros compassos de uma
canção da Morávia, minha canção favorita, e quando me pareceu que ele
me compreendia continuei em voz alta, não tinha vergonha, sentia
desprenderem-se de mim os anos, as preocupações, as tristezas, milhares de
escamas cinzentas, e depois, instalados num pequeno café, comemos pão
com salsicha, tudo era perfeitamente comum e simples, o garçom rabugento,
a toalha manchada, mas a aventura era maravilhosa assim mesmo, eu disse
a Ludvik, você nem sabe que daqui a três dias vou à Morávia fazer uma
reportagem sobre a Cavalgada dos Reis. Ele perguntou-me onde exatamente
e, depois de minha resposta, disse que era lá que tinha nascido, nova
coincidência que me perturbou, e Ludvik disse: vou ficar livre para ir lá com
você.
Senti medo, lembrei-me de Pavel, aquela pequena luz de esperança que ele
tinha reacendido em mim, não sou cínica em relação a meu casamento,
estou pronta a fazer tudo para salvá-lo, quando mais não seja, pela pequena
Zdena, mas por que mentir, principalmente por minha causa, por causa de
tudo o que aconteceu, por causa da lembrança da minha juventude, mas
não encontrei forças de dizer não a Ludvik, não tive essa coragem, e pronto,
os dados agora estão lançados, a pequena Zdena dorme, eu sinto medo, e
Ludvik a esta hora já está na Morávia e vai estar me esperando amanhã
quando eu chegar de ônibus.
TERCEIRA PARTE

LUDVIK

Sim; fui perambular. Parei na ponte sobre o rio Morava e olhei a correnteza.
Como é feio esse Morava (rio tão escuro que seu leito parece ser de barro
líquido, e não de água) e como é lúgubre a sua margem: uma rua com cinco
casas burguesas de um andar, separadas umas das outras, órfãs ridículas;
talvez elas constituíssem o embrião de um cais cuja ambição pretensiosa
nunca se realizou; duas delas possuem, em cerâmica e em estuque, anjinhos
e desenhos que já estão rachados: um dos anjos não tem mais asas, e os
desenhos, descascados em alguns lugares até o tijolo, tornaram-se
ininteligíveis. Lá onde termina a rua das casas órfãs existem apenas os postes
de ferro com os fios de eletricidade, capim com alguns gansos perdidos e,
depois disso, campos, campos sem horizonte que não vão a parte alguma,
campos entre os quais desaparece o barro líquido do Morava.
As cidades sabem se servir umas das outras como de um espelho, e eu, nesse
panorama (eu o conhecera bem em criança, mas agora não me dizia nada),
vi de repente Ostrava, essa cidade de mineiros semelhante a um gigantesco
dormitório provisório, cheia de prédios abandonados e ruas sujas
desembocando no vazio. Eu caíra numa armadilha; encontrava-me nessa
ponte como um homem exposto ao tiro de uma metralhadora. Não queria
olhar por mais tempo a rua abandonada e suas cinco casas perdidas, porque
não me permitia pensar em Ostrava. Por isso, dei meia-volta para seguir o rio
na contracorrente.
Por ali havia um pequeno caminho margeado de um lado por uma espessa
fileira de álamos: uma alameda estreita de onde se tinha uma boa vista
panorâmica. Do lado direito, a escarpa coberta de capim e de plantas
selvagens descia até o nível da água; mais longe, além do rio, o olhar
descobria armazéns, oficinas e pátios de fábricas medíocres; à esquerda do
caminho, vinha primeiro um interminável depósito de lixo, seguido de
vastos campos espetados pelos conjuntos metálicos dos postes com cabos de
alta-tensão. Dominando tudo isso, eu seguia pela alameda estreita como se
percorresse a passos largos uma longa passarela sobre as águas — e se
comparo toda a paisagem a uma vasta extensão de água é porque sentia seu
frio me penetrar, e porque caminhava por aquela alameda como se corresse
o risco de despencar dela a qualquer momento. Ao mesmo tempo, eu me
dava conta de que a estranha atmosfera da paisagem não era senão um
decalque do que eu me proibira de relembrar depois do encontro com Lucie;
como se minhas lembranças reprimidas impregnassem tudo o que nesse
momento via ao meu redor, o deserto dos campos, dos pátios e dos hangares,
a opacidade do rio e a friagem onipresente que conferia unidade ao
conjunto do cenário. Percebi que não escaparia a minhas lembranças; elas
me cercavam.
Por qual itinerário cheguei ao primeiro naufrágio da minha vida (e, por sua
mediação pouco amável, a Lucie), não seria difícil contar num tom leve e
mesmo divertido: foi tudo culpa de minha funesta propensão às
brincadeiras ineptas, como também da funesta inaptidão de Marketa para
entender brincadeiras. Marketa era uma dessas mulheres que levam tudo a
sério (identificando-se, assim, maravilhosamente bem com o próprio espírito
da época) e para as quais as fadas determinaram, desde o berço, que a
capacidade de acreditar seria sua maior qualidade. Não quero insinuar com
eufemismo que ela talvez fosse simplória; não: ela era razoavelmente bem-
dotada, sagaz e, além disso, tão moça (com seus dezenove anos) e tão bonita
que sua ingênua credulidade se inseria mais na conta de seus encantos do
que na de suas deficiências. Nós todos na faculdade gostávamos muito dela
e tínhamos mais ou menos tentado conquistá-la, o que não nos impedia
(pelo menos alguns) de caçoar dela, de modo afetuoso e com toda
delicadeza.
Decididamente, o humor não combinava com Marketa, e combinava menos
ainda com o espírito da época. Era o primeiro ano depois de Fevereiro de 48;
uma vida nova havia começado, vida verdadeiramente diferente, cuja
fisionomia, tal como se fixou na minha lembrança, era de uma seriedade
rígida, com isto de espantoso: essa seriedade não tinha nada de sombria,
mas, ao contrário, tinha a aparência do sorriso; sim, esses anos se revelaram
os mais alegres de todos, e quem não se alegrasse tornava-se logo suspeito de
não estar satisfeito com a vitória da classe trabalhadora, ou então (falta não
menos grave) de estar mergulhando de modo individualista nas
profundezas de suas inquietações íntimas.
Eu não tinha, nessa época, muitas inquietações íntimas; ao contrário, tinha
um considerável espírito de brincadeira e, no entanto, não se pode dizer que
tenha conseguido realmente acompanhar o aspecto alegre da época: faltava
às minhas brincadeiras um pouco de seriedade, e a alegria contemporânea
não suportava as pilhérias nem a ironia, sendo, repito, uma alegria grave que
se intitulava com orgulho "o otimismo histórico da classe vitoriosa", uma
alegria ascética e solene; em poucas palavras, a Alegria.
Lembro-me de que, na faculdade, estávamos então organizados em "círculos
de estudos" que se reuniam com frequência para proceder à crítica e à
autocrítica públicas de todos os seus membros; a partir disso, estabelecia-se
uma nota de avaliação para cada um. Como todos os comunistas, eu exercia
muitas funções (ocupava um lugar importante na União dos Estudantes) e,
como além disso meus estudos não iam mal, essa nota de avaliação não
podia me causar grandes contrariedades. No entanto, as fórmulas elogiosas
que aprovavam minha atividade, minha diligência, minha atitude positiva
em relação ao Estado, ao trabalho, e meu conhecimento do marxismo eram
em geral acompanhadas de uma frase ressaltando que minha personalidade
revelava "resíduos de individualismo". Tal ressalva não era necessariamente
inquietante, pois era de praxe inserir uma observação crítica nas notas
pessoais mais brilhantes: a um se censurava um "fraco interesse pela teoria
revolucionária", a outro "frieza em relação ao próximo", a um outro sua falta
de "vigilância e circunspecção", a um outro, enfim, "mau comportamento
em relação às mulheres"; é claro que, a partir do momento em que uma
restrição desse gênero não fosse mais isolada, em que uma outra viesse
reforçá-la, ou então se acontecesse que a pessoa se visse envolvida em
algum conflito ou fosse alvo de suspeita ou de difamação, os "resíduos de
individualismo" ou o "mau comportamento em relação às mulheres"
poderiam tornar-se o germe da catástrofe. E, como uma estranha fatalidade,
tal germe pairava sobre a ficha de informações de cada um, sim, de cada um
de nós.
Às vezes (por esporte, mais do que por verdadeira apreensão) eu me
rebelava contra as acusações de individualismo e exigia provas de meus
companheiros de estudo. De particularmente concreto, não tinham nada;
diziam: — Porque você se comporta assim.
— Me comporto como? — Você tem o tempo todo um sorriso estranho.
— E daí? Estou expressando minha alegria.
— Não, você sorri como se pensasse em alguma coisa que não quer contar.
Quando meus companheiros julgaram que meu comportamento e meus
sorrisos cheiravam a intelectualidade (outro termo pejorativo célebre da
época), consegui afinal acreditar neles, incapaz que era de imaginar (estava
acima da minha audácia) que todos os outros estivessem errados, que a
própria Revolução, o espírito da época, pudesse se enganar, e eu, indivíduo,
pudesse ter razão. Pus-me a vigiar um pouco meus sorrisos, e não demorei a
perceber dentro de mim uma fissura mínima, que se abria entre aquele que
eu era e aquele que (segundo o espírito da época) eu deveria e queria ser.
Mas, afinal, quem era eu realmente? A essa pergunta quero responder com
toda honestidade: eu era aquele que tinha muitas caras.
E o número delas ia aumentando. Mais ou menos um mês antes das férias,
comecei a me aproximar de Marketa (ela estava no primeiro ano e eu no
segundo) e fazia o possível para impressioná-la, da mesma maneira tola que
os rapazes de vinte anos de todos os tempos: disfarçava-me com uma
máscara; fingia ser mais velho (mentalmente e por minhas experiências);
fingia manter distância em relação a todas as coisas, observar o mundo do
alto e vestir por cima da minha pele uma segunda epiderme, invisível e à
prova de balas. Desconfiava (aliás com razão) que a brincadeira exprime
claramente a distância, e, se sempre gostei de brincar, com Marketa eu o
fazia de maneira especialmente cuidadosa, artificial e afetada.
Mas quem era eu de fato? Sou obrigado a repetir: eu era aquele que tinha
muitas caras.
Durante as reuniões, era sério, entusiasta e convicto; desenvolto e
brincalhão em companhia dos colegas; elaboradamente cínico e sofisticado
com Marketa; e, quando estava só (quando pensava em Marketa), era
humilde e encabulado como um colegial.
Essa última cara seria a verdadeira? Não. Todas eram verdadeiras: eu não
tinha, a exemplo dos hipócritas, uma cara autêntica e outras falsas. Tinha
muitas caras porque era moço e porque não sabia eu mesmo quem era e
quem queria ser. (No entanto, a desproporção existente entre todas essas
caras me dava medo; a nenhuma delas eu aderia por completo, e por trás
delas evoluía, desajeitado, às cegas.) O mecanismo psíquico e fisiológico do
amor é tão complicado que num certo período da vida o rapaz é obrigado a
se concentrar quase que exclusivamente em dominá-lo, a tal ponto que lhe
escapa o próprio objeto do amor: a mulher amada (da mesma maneira que
um jovem violinista não pode concentrar-se na melodia de um trecho
musical enquanto não tiver conseguido dominar a técnica manual a ponto
de não precisar mais pensar nela enquanto toca). Falei da minha emoção de
colegial quando pensava em Marketa, e devo acrescentar que ela não
decorria tanto de minha condição de apaixonado quanto da inabilidade e da
falta de segurança, das quais eu experimentava o peso, que, infinitamente
mais do que Marketa, comandava minhas sensações e meus pensamentos.
Para fazer frente a esse embaraço e a essa falta de jeito, eu assumia com
Marketa ares de superioridade: esforçava-me em contradizê-la ou em
debochar de forma descarada de todas as suas opiniões, o que não era muito
difícil, pois, apesar de seu talento (e de sua beleza, que — como toda beleza
— sugeria àqueles que a cercavam uma inacessibilidade aparente), era uma
moça inocentemente pura; sempre incapaz de enxergar além das coisas, via
apenas o imediato; entendia muito de botânica, mas muitas vezes não
compreendia uma história engraçada de seus companheiros de estudo;
aderia a todos os ardores entusiásticos da época, mas, se testemunhava
alguma prática política decorrente da máxima "o fim justifica os meios", seu
intelecto, como que diante de uma história engraçada, na mesma hora
empacava; por isso, aliás, seus companheiros acharam que ela precisava
consolidar seu ardor com o conhecimento da estratégia e da tática do
movimento revolucionário, e decidiram que deveria, no decorrer das férias,
participar de um estágio de formação do Partido durante quinze dias.
Essa decisão de modo nenhum me convinha, já que havia projetado passar
justamente essas duas semanas em Praga a sós com Marketa, para levar
nosso relacionamento (que até então consistira em passeios, conversas e
alguns beijos) um pouco mais longe; excetuando esses quinze dias, eu não
tinha outra escolha (devendo dedicar um mês a uma brigada agrícola e as
duas últimas semanas de férias a minha mãe, na Morávia); além disso, eu
estava morto de ciúmes porque Marketa não participava da minha aflição,
não se irritava absolutamente com o estágio e, pior ainda, teve a coragem de
me dizer que se alegrava por antecipação! Do estágio (organizado num
castelo qualquer no interior da Boêmia), ela enviou-me uma carta que era a
sua cara: transbordando de uma aprovação sincera a tudo o que estava
vivendo, tudo a encantava, inclusive os quinze minutos de ginástica
matinal, os relatórios, as reuniões de discussão, as cantigas; ela me escreveu
que lá reinava um "espírito sadio"; e, por zelo, acrescentou ainda que a
revolução no Ocidente não tardaria.
Considerando tudo com cuidado, eu, no fundo, concordava com cada uma
das afirmações de Marketa; como ela, acreditava até na revolução na
Europa Ocidental; só não aprovava uma coisa: que ela se sentisse feliz e
satisfeita, enquanto eu sentia sua falta. Então comprei um cartão-postal e
(para feri-la, chocá-la, desnorteá-la) escrevi: O otimismo é o ópio do gênero
humano! O espírito sadio fede a imbecilidade. Viva Trotski! Ludvik.
Ao meu cartão provocador, Marketa respondeu com um cartão tão breve
quanto insosso e não reagiu às cartas que lhe enviei durante as férias. Em
algum lugar nas montanhas eu colhia feno com uma brigada de estudantes,
e o mutismo de Marketa me acabrunhava com uma tristeza opressiva. De lá
escrevia-lhe cartas quase que diárias, cheias de uma paixão suplicante e
melancólica; suplicava-lhe que desse um jeito de nos vermos ao menos nos
últimos quinze dias das férias, estava pronto a não ir à minha casa na
Morávia, a renunciar a ir ver minha mãe abandonada, pronto a ir a qualquer
lugar para poder estar com Marketa; isso tudo não só porque a amava, mas
essencialmente porque ela era a única mulher em meu horizonte, e minha
condição de rapaz sem namorada era intolerável para mim. Mas Marketa
não respondeu a minhas cartas.
Eu não compreendia o que estava acontecendo. Fui para Praga em agosto e
consegui encontrá-la em casa. Fizemos juntos nosso passeio habitual à
margem do Vltava e a uma ilha que se chama "A Pradaria Imperial" (esse
triste prado com fileiras de álamos e quadras de esporte desertas) e Marketa
afirmou que nada mudara entre nós; na realidade, ela se comportava como
antes, só que, justamente, aquela presença petrificada (beijo petrificado,
conversa petrificada, sorriso petrificado) era deprimente. Quando pedi a
Marketa para nos encontrarmos no dia seguinte, ela me disse que lhe
telefonasse, que combinaríamos depois.
Telefonei; -no telefone, uma voz feminina, não a dela, disse-me que Marketa
deixara Praga.
Fiquei infeliz, como só pode ficar infeliz um rapaz de vinte anos quando não
tem uma mulher; rapaz ainda bastante tímido, que só tinha conhecido o
amor físico poucas vezes, às pressas e de modo imperfeito, e que no entanto
não parava de atormentar-se com isso. Os dias arrastavam de maneira
insuportável suas horas e sua inutilidade; eu não conseguia ler, não
conseguia trabalhar, ia ao cinema três vezes ao dia, uma sessão depois da
outra, à tarde, à noite, só para matar o tempo, para ensurdecer o contínuo
ulular de coruja que emitia o meu ser profundo. Eu, de quem Marketa
tivera (graças à minha arrogância cuidadosamente cultivada) a impressão
de estar quase farto de mulheres, eu não ousava dizer uma só palavra às
jovens na rua, às jovens cujas pernas esplêndidas me perturbavam a alma.
Foi então com alegria que saudei o mês de setembro, quando ele finalmente
chegou, e, com ele, o começo das aulas, precedido de dois ou três dias pela
retomada de meu trabalho na União dos Estudantes, onde eu tinha um
escritório só para mim e uma série de obrigações diferentes. Já no dia
seguinte um telefonema me chamou à secretaria do Partido. A partir desse
instante, tudo, nos mínimos detalhes, ficou gravado em minha memória: o
dia estava banhado de sol, saí do prédio da União dos Estudantes e senti que
a tristeza que me envolvera durante as férias afastava-se de mim
lentamente. Sentia uma agradável curiosidade dirigindo-me à secretaria.
Toquei a campainha, e a porta foi aberta pelo presidente do comitê, um
rapaz alto, de rosto magro, cabelos claros e olhos de um azul polar. Eu disse:
— Honra ao trabalho. — Era como os comunistas se cumprimentavam na
época.
Ele não respondeu à minha saudação e disse: — Vá para o fundo, estão
esperando você.
Ao fundo, na última sala da secretaria, esperavam-me três membros do
comitê dos estudantes do Partido. Disseram-me que sentasse. Sentei-me e
compreendi que as coisas iam mal. Os três camaradas, que eu conhecia bem
e com os quais costumava conversar alegremente, mostravam caras
inabordáveis; é verdade que me tratavam por você (conforme a regra entre
camaradas), só que de súbito não era mais um você amigável, mas oficial e
ameaçador. (Confesso ter sentido, depois, uma aversão por esse tratamento;
originalmente, deveria traduzir uma intimidade confiante, mas, se as
pessoas que se tratam por você não são íntimas, ele assume repentinamente
um significado oposto, é a expressão da grosseria, de maneira que o mundo
onde o tratamento íntimo é de uso comum não é um mundo de amizade
geral, mas um mundo de desrespeito onipresente.) Eu estava, então,
sentado diante de três estudantes que usavam um tratamento íntimo e que
me fizeram uma primeira pergunta: se eu conhecia Marketa. Disse que a
conhecia. Perguntaram-me se eu havia me correspondido com ela.
Respondi que sim. Perguntaram-me se não me lembrava do que lhe havia
escrito. Disse que não me lembrava mais, só que o cartão-postal com o texto
provocador surgiu no mesmo instante diante de meus olhos, e comecei a
farejar algo no ar. Você não consegue se lembrar? — eles me perguntavam.
Não, eu respondia. E Marketa, o que ela escrevia para você? Encolhi os
ombros, para dar a impressão de que as cartas tratavam de coisas íntimas
que me seria impossível repetir ali. Sobre o estágio, ela não lhe contou nada?
— perguntaram-me. Sim, respondi, claro. E o quê, então? Que ela estava
gostando de lá — respondi. E o que mais? Que as palestras eram
interessantes e que o grupo era bom, disse eu. Ela lhe escreveu dizendo que
um espírito sadio animava o estágio? Sim, disse eu, deve ter-me escrito
qualquer coisa assim. Ela escreveu a você que estava aprendendo a
conhecer a força do otimismo? — perguntaram em seguida. Escreveu,
respondi. E você, sobre o otimismo, o que pensa sobre ele? — perguntaram
eles. O otimismo? O que devo pensar sobre ele? — perguntei. Pessoalmente,
você se considera um otimista? — perguntaram-me. Sem dúvida, respondi
com timidez. Gosto de brincar, sou uma pessoa bem alegre, disse eu,
tentando dar um tom mais leve ao interrogatório. Mesmo um niilista pode
ser alegre, observou um deles, pode zombar das pessoas que sofrem. E em
seguida: um cínico também pode ser alegre! Você acredita que o socialismo
pode ser construído sem otimismo? — perguntou um outro. Não, respondi.
Então, consequentemente, você não é partidário da construção do
socialismo em nosso país, declarou um terceiro. Como assim? — protestei.
Porque, para você, o otimismo é o ópio do gênero humano! — gritaram eles.
Como, o ópio do gênero humano? — protestei mais uma vez. Não há
escapatória., você escreveu isso! Marx qualificou a religião de ópio da
humanidade, mas aos seus olhos o ópio é o nosso otimismo! Você escreveu
isso para Marketa. Eu teria curiosidade em saber o que diriam nossos
operários e nossos trabalhadores de primeira linha, que ultrapassam as
metas, se soubessem que o otimismo deles é ópio, emendou outro
imediatamente. E o terceiro acrescentou: para um trotskista, o otimismo
edificante nada mais é do que ópio. E você, você é um trotskista! Céus, de
onde você tirou isso? — protestei. Você escreveu isso, escreveu ou não? É
possível que eu tenha escrito coisa parecida, de brincadeira, de qualquer
maneira já faz mais de dois meses, não me lembro mais. Podemos refrescar
sua memória — disseram, e leram para mim o meu cartão-postal: O otimismo
é o ópio do gênero humano! O espírito sadio fede a imbecilidade! Viva
Trotski! Ludvik. No minúsculo local da secretaria política, essas frases
adquiriram uma ressonância tão forte que no momento me amedrontaram,
senti que continham um poder devastador ao qual eu não resistiria.
Camaradas, foi apenas para fazer uma brincadeira, disse eu, e senti que
ninguém poderia acreditar em mim. Vocês acham isso engraçado? —
perguntou um dos camaradas, dirigindo-se aos outros dois. Estes sacudiram
a cabeça. Seria preciso que vocês conhecessem Marketa! — disse eu. Mas
nós a conhecemos, replicaram-me. Pois então, disse eu. Marketa leva tudo a
sério, nós sempre brincamos de contar histórias que a desconcertassem.
Interessante, disse um dos camaradas, de acordo com suas cartas seguintes,
não nos parece que você não tenha levado Marketa a sério. O quê? Vocês
leram todas as minhas cartas para Marketa? Então, sob o pretexto de que
Marketa leva tudo a sério, interrompeu um outro, você a faz de boba. Mas
explique um pouco melhor, o que é que ela leva a sério? O Partido, por
exemplo, o otimismo, a disciplina, não é? E disso tudo que ela leva a sério
você só faz rir. Compreendam, camaradas — disse eu —, nem me lembro
como foi que escrevi aquilo, foi muito rápido, duas linhas, assim, para
brincar, nem pensei no que rabiscava, se tivesse tido alguma má intenção,
não iria afinal mandar aquilo para um estágio do Partido! Como foi que você
escreveu aquilo, não importa. Que tenha escrito rápido ou devagar, sobre o
joelho ou então em cima de uma mesa, você só pode ter escrito o que estava
dentro de você. Nada mais. Pode ser que, se tivesse pensado mais, você não
tivesse escrito aquilo. Portanto, você escreveu sem máscara. Assim, ao
menos, sabemos quem você é. Sabemos que você tem muitas caras, uma
para o Partido e uma segunda para os outros. Tive a sensação de que minhas
negações eram a partir desse momento desprovidas de toda eficácia. Tornei
a expor as mesmas razões ainda muitas vezes: que se tratava de uma
brincadeira, que eram apenas palavras sem significado, atrás das quais
estava apenas meu estado de alma e assim por diante. Eles não quiseram
saber de nada. Disseram que eu tinha escrito num cartão aberto, que
qualquer um tinha podido ler, que essas palavras tinham um alcance
objetivo e que não estavam acompanhadas de nenhuma explicação relativa
ao meu estado de alma. Depois disso, perguntaram tudo o que eu tinha lido
de Trotski. Nada, respondi. Perguntaram quem tinha me emprestado
aqueles livros. Ninguém, respondi. Perguntaram quais os trotskistas que eu
conhecia. Nenhum, disse. Anunciaram-me que naquele momento me
afastavam das minhas funções na União dos Estudantes e me pediram para
devolver a chave do escritório. Ela estava no meu bolso e entreguei-a a eles.
Em seguida eles disseram que, a nível do Partido, minha organização de base
na faculdade de Ciências resolveria meu caso. Levantaram-se sem olhar
para mim. Eu disse "Honra ao trabalho" e saí.
Lembrei-me pouco depois de que havia muitas coisas minhas na sala da
União dos Estudantes. Nunca fui uma pessoa muito organizada, por isso
tinha meias numa gaveta da minha mesa, além de diversos papéis pessoais,
e, num armário cheio de pastas, um pedaço de brioche que mamãe me
mandara de casa. Um minuto antes, é verdade, tinha devolvido minha
chave ao secretariado do Partido, mas havia uma outra chave com o
porteiro, no andar térreo, pendurada, no meio de muitas outras, num
quadro de madeira; apanhei-a; lembro-me de todos os detalhes: a chave
estava presa por uma resistente cordinha de cânhamo a uma minúscula
placa de madeira, onde havia, pintado com tinta branca, o número da
minha porta. Entrei, portanto, usando essa chave e sentei-me à minha mesa
de trabalho; abri a gaveta e comecei a tirar dela tudo o que me pertencia;
sem pressa e distraidamente, pois nesse curto momento de calma relativa
tentava refletir sobre o que acabara de me acontecer e sobre o que eu
deveria fazer.
Não demorou nada e a porta se abriu. Ali estavam de novo os três
camaradas do secretariado. Dessa vez, seus rostos não estavam frios nem
enigmáticos. Agora eles falavam com uma voz irritada e alta.
Principalmente o menor, responsável pelos funcionários do comitê.
Perguntou-me com rudeza como eu tinha feito para entrar. Com que
direito. Se eu não queria que ele chamasse um agente de segurança para me
levar dali. O que é que eu tinha que fuçar naquele escritório. Respondi que
tinha vindo apenas buscar meu brioche e minhas meias. Ele me disse que eu
não tinha o menor direito de entrar ali, nem que tivesse um armário cheio
de meias. Depois foi até a gaveta e examinou um a um papéis e cadernos. Só
havia realmente coisas pessoais minhas, tanto que ele acabou me
autorizando a colocá-las, diante de seus olhos, numa maleta. Enfiei nela as
meias, amassadas e sujas, e o brioche, que estava no armário, num papel
engordurado e cheio de migalhas. Eles vigiavam cada um dos meus
movimentos. Deixei a sala com a maleta na mão e o encarregado dos
funcionários me disse, como despedida, que nunca mais aparecesse ali.
Assim que saí do alcance dos camaradas do distrito e da lógica invencível de
seu interrogatório, pareceu-me que estava inocente, que não havia afinal de
contas nada de terrível nas minhas fórmulas e que eu devia procurar
alguém que conhecesse Marketa e que compreendesse o grotesco de toda
essa história. Fui procurar um estudante da nossa faculdade, um comunista;
depois que lhe contei tudo, ele declarou que na secretaria eram todos uns
hipócritas, não entendiam nada de brincadeiras, mas que ele, que conhecia
Marketa, imaginava perfeitamente do que se tratava. Enquanto isso, eu
deveria, segundo ele, procurar Zemanek, que naquele ano seria presidente
do Partido em nossa faculdade e que, afinal de contas, conhecia muito bem
tanto a Marketa quanto a mim.
Pareceu-me uma excelente notícia que Zemanek fosse o próximo presidente
da organização, pois eu de fato o conhecia e estava mesmo certo de gozar de
toda a sua simpatia, nem que fosse só por eu ser da Morávia. Zemanek, na
verdade, adorava cantar canções da Morávia; nessa época era grande moda
cantar canções populares e cantá-las com um toque rústico, o braço para
cima, com ares de verdadeiro homem do povo que a mãe pôs no mundo ao
som de um címbalo, durante uma festa de danças.
Realmente, eu era o único autêntico morávio da faculdade de Ciências, o
que me dava vários privilégios; em todas as ocasiões solenes, em certas
reuniões, nas festas ou no Primeiro de Maio, os camaradas me convidavam a
pegar uma clarineta para imitar, com a ajuda de dois ou três amadores
recrutados entre os colegas de estudo, uma autêntica música da Morávia.
Assim (com uma clarineta, um violino e um contrabaixo), por dois anos
seguidos participamos do desfile do Primeiro de Maio, e Zemanek, por ser
um rapaz bonito que gostava de aparecer, havia-se juntado a nós; vestido
com um traje regional emprestado, ele dançava enquanto andava,
levantava os braços e cantava. Nascido em Praga, sem nunca ter estado na
Morávia, representava com entusiasmo o papel de galã de nossa região, e eu
o olhava com amizade, feliz por a música de minha pequena pátria, desde
tempos imemoriais paraíso da arte popular, ser tão amada.
Além disso, Zemanek conhecia Marketa, o que era uma segunda vantagem.
Circunstâncias diversas de nossa vida de estudante muitas vezes nos
haviam reunido os três; um dia (éramos todo um grupo), inventei que nas
montanhas tchecas viviam tribos de anões, citando como apoio trechos de
um trabalho científico dedicado a essa notável questão. Marketa espantou-
se de nunca ter ouvido falar disso. Disse-lhe que não havia nisso nada de
extraordinário: a ciência burguesa calava-se, é claro, propositadamente sobre
a existência desses anões, porque os capitalistas faziam com eles um tráfico
semelhante ao tráfico de escravos.
Mas era preciso escrever sobre isso! — gritara Marketa. Por que não fazem
isso? Seria certamente um argumento contra os capitalistas! Talvez não o
façam, disse eu com ar pensativo, por causa do caráter um pouco delicado e
escabroso de todo esse problema: os anões eram capazes de desempenhos
amorosos excepcionais, por isso eram muito procurados, e nossa República os
exportava em segredo em troca de gordas divisas, sobretudo para a França,
onde senhoras capitalistas um pouco maduras os contratavam como
empregados domésticos, na realidade para abusar deles de uma maneira
inteiramente diferente.
Os colegas escondiam a vontade de rir provocada não tanto pela astúcia
especial de minha elucubração, mas sobretudo pelo ar atento de Marketa,
sempre pronta a inflamar-se por (ou contra) alguma coisa; eles mordiam os
lábios, de medo de estragar o prazer que Marketa sentia em se informar, e
alguns deles (sobretudo, precisamente, Zemanek) formaram um coro para
reforçar cada vez mais minhas informações sobre os anões.
Como Marketa quisesse saber com que na verdade eles se pareciam, lembro-
me que Zemanek lhe disse, com toda a seriedade, que o professor Cechura,
que, com todos os seus colegas de estudo, ela tinha a honra de ver
regularmente em sua cátedra universitária, era de ascendência anã, se não
por parte de pai e mãe, pelo menos por parte de um dos dois. Parecia que
Huler, o organizador de cursos, havia contado a Zemanek que não sei em
que férias ele se hospedara no mesmo hotel que o casal Cechura, o qual,
sobreposto, não chegava a medir três metros de altura. Na certeza de que o
casal ainda dormia, ele entrou uma manhã no quarto deles e ficou
estupefato: eles estavam deitados na mesma cama, não lado a lado, mas pés
com cabeça, Cechura encolhido ao pé da cama, e sua mulher na cabeceira.
Sim, confirmei: nesse caso, naturalmente, não apenas Cechura mas também
sua companheira são, sem nenhuma dúvida quanto à sua origem, anões das
montanhas tchecas, visto que dormir no prolongamento um do outro é um
costume atávico de todos os anões dessa região, os quais, aliás, no passado,
jamais construíam suas cabanas seguindo um plano circular ou quadrado,
mas sempre em retângulo estendido ao comprido, porque não eram somente
os casais, mas linhagens inteiras que tinham o hábito de dormir um atrás do
outro, pés com cabeça.
Lembrando nesse triste dia nossas invenções de então, tive a impressão que
nelas brilhava uma fraca centelha de esperança. Zemanek, a quem iria caber
a tarefa de deslindar meu caso, conhecia meu jeito brincalhão; conhecendo
também Marketa, compreenderia que o cartão que eu lhe escrevera não
passava de uma simples molecagem com o intuito de implicar com uma
moça que todos nós admirávamos e (sem dúvida por isso mesmo) de quem
gostávamos de caçoar. Assim, na primeira oportunidade, coloquei-o a par da
minha desgraça; Zemanek escutou com atenção, franziu a testa e disse que
ia pensar.
Enquanto isso, eu vivia o dia a dia; continuava as aulas como antes e
aguardava. Era chamado com frequência diante de diversas comissões do
Partido, que se es forçavam mais especialmente em esclarecer se eu não
estava filiado a algum grupo trotskista; por minha vez, eu explicava da
melhor maneira possível que no fundo não sabia exatamente o que era o
trotskismo; agarrava-me a cada olhar dos camaradas inquisidores, ávido por
descobrir neles um pouco de confiança; tendo tido algumas vezes essa
oportunidade, era capaz de carregar depois comigo esse olhar, guardá-lo por
muito tempo em mim e dele fazer brotar com paciência uma parcela de
esperança.
Marketa continuava a me evitar. Compreendendo que sua atitude tinha
relação com o problema provocado por meu cartão-postal, recusei-me, por
amor-próprio e por despeito, a fazer-lhe qualquer pergunta. Um dia, no
entanto, ela mesma me parou num corredor da faculdade: — Queria falar
uma coisa com você.
Foi assim que depois de muitos meses saímos de novo juntos; o outono
chegara, e nós estávamos ambos enfiados em capas muito compridas, como
se usava nessa época (época radicalmente deselegante); chuviscava um
pouco, as árvores do cais estavam pretas e desnudas. Marketa contou-me
como tudo acontecera: quando estava no estágio de férias, os camaradas da
direção subitamente a convocaram para perguntar se ela recebia
correspondência; ela disse que sim. Perguntaram de onde vinha essa
correspondência. Ela disse que sua mãe lhe escrevia. E ninguém mais? De
vez em quando um colega de estudos, respondeu ela. Você pode dizer qual?
— perguntaram. Ela disse meu nome. E o que foi que o camarada Jahn lhe
escreveu? Ela fez um movimento de ombros, pois, na verdade, não queria
mencionar os termos de meu cartão. E você também escreveu para ele? —
perguntaram eles. Certamente, disse ela. Sobre que assunto? — insistiram.
Muita coisa, respondeu ela, sobre o estágio e assim por diante. E você está
gostando do estágio? — perguntaram. Estou, sim, muito, respondeu ela. E
você escreveu isso para ele? Escrevi, claro, respondeu ela. E ele, o que disse?
Ele — retrucou Marketa, evasiva. — Sabem o que é, ele é estranho, se vocês
o conhecessem... É que nós o conhecemos, disseram eles, e gostaríamos de
saber o que foi que ele lhe escreveu. Você pode nos mostrar o seu cartão-
postal?
— Não fique com raiva de mim — acrescentou Marketa —, fui obrigada a
entregar o cartão a eles.
— Não se desculpe — disse eu a Marketa —, de qualquer maneira eles já o
conheciam antes de falar com você, senão não a teriam chamado.
— Não penso absolutamente em me desculpar. Não tenho vergonha de ter
dado o cartão para que lessem, é preciso que você não entenda errado. Você
é membro do Partido, e o Partido tem o direito de saber quem é você e como
você pensa — disse Marketa, revoltando-se; depois disso, ela me disse que
tinha ficado horrorizada com o que eu lhe havia escrito, pois, afinal de
contas, todos sabemos que Trotski é o pior inimigo de tudo aquilo por que
combatemos e vivemos.
Que podia eu explicar a Marketa? Pedi-lhe que continuasse a contar o que
se seguira.
Marketa disse que eles leram o texto do cartão e demonstraram seu espanto.
Perguntaram o que ela achava. Ela disse que era abominável. Perguntaram
por que ela não fora espontaneamente mostrá-lo. Ela encolheu os ombros.
Perguntaram se ela ignorava as regras da vigilância. Ela abaixou a cabeça.
Perguntaram se ela não sabia que o Partido tinha muitos inimigos. Ela disse
que sabia, mas que não pensava que o camarada Jahn pudesse...
Perguntaram se ela me conhecia bem. Perguntaram que espécie de homem
eu era. Ela disse que eu era estranho. Que, sem dúvida, ela me considerava
um comunista convicto, mas que às vezes me acontecia sustentar opiniões
de todo inadmissíveis por parte de um comunista. Perguntaram que
opiniões, por exemplo. Ela disse que não se lembrava exatamente quais, só
que eu não respeitava nada. Eles disseram que aquele cartão-postal
confirmava isso com clareza. Ela lhes disse que muitas vezes brigava comigo
por causa de muitas coisas. Disse-lhes ainda que eu me expressava de
maneira diferente nas reuniões e com ela. Em reunião, eu era todo
entusiasmo, enquanto em sua companhia só fazia brincar e ridicularizar
tudo. Eles perguntaram-lhe se ela achava que um tal personagem poderia
ser membro do Partido. Ela respondeu com um encolher de ombros.
Perguntaram se o Partido conseguiria construir o socialismo se seus membros
acreditassem que o otimismo era o ópio do gênero humano. Ela disse que tal
Partido não saberia construir o socialismo. Eles disseram que bastava. E que
ela não deveria me dizer nada por enquanto, já que queriam vigiar a
continuação de minha correspondência. Ela disse-lhes que nunca mais
queria me ver. Eles não concordaram. Aconselharam-lhe que continuasse a
me escrever, pelo menos provisoriamente, a fim de fazer aparecer o que
ainda havia dentro de mim.
— Depois disso você comunicou a eles a chegada de minhas cartas? —
perguntei a Marketa, enrubescendo até o fundo da alma com a lembrança
de minhas efusões sentimentais.
— O que era que eu poderia fazer? — disse Marketa. — Mas, quanto a mim,
depois de tudo isso não tinha mais condições de escrever a você. Afinal de
contas, não vou me corresponder com uma pessoa só pelo prazer de servir
de isca! Então mandei mais um cartão-postal, e pronto. Não queria
encontrá-lo porque tinham-me proibido de contar qualquer coisa a você, por
outro lado temia que você me fizesse perguntas, o que me forçaria a mentir,
e eu minto sempre a contragosto.
Perguntei a Marketa o que, nessas condições, fizera com que ela me
procurasse hoje.
Ela me disse que era coisa do camarada Zemanek. Ele a encontrara no dia
seguinte ao início das aulas num corredor da faculdade e a levara para o
pequeno escritório onde a organização do Partido na faculdade de Ciências
tinha a sua secretaria. Disse a ela que recebera um relatório informando-lhe
que eu lhe mandara um cartão-postal no estágio redigido em termos hostis
ao Partido. Perguntou-lhe quais eram as frases em questão. Ela as repetiu
para ele. Ele perguntou sua opinião sobre elas. Ela disse que as condenava.
Ele aprovou sua opinião e interessou-se em saber se ela continuava me
vendo. Atrapalhada, ela deu uma resposta evasiva. Ele disse que, do estágio,
tinha chegado à faculdade um relatório muito favorável sobre ela e que a
organização da faculdade contava pedir-lhe ajuda. Ela respondeu que
ficava feliz com isso. Ele disse que não tinha a intenção de se envolver nos
seus assuntos particulares, mas que achava que cada ovelha busca sua
parelha e que fixar sua escolha justamente sobre mim não depunha nada a
seu favor.
Segundo Marketa, isso não lhe saía da cabeça há muitas semanas. Fazia
alguns meses que não nos víamos, de maneira que a exortação de Zemanek
mostrava-se, na realidade, supérflua; e, no entanto, essa mesma exortação a
levara a refletir, a perguntar a si mesma se não era cruel e moralmente
inaceitável pedir a alguém que rompesse com seu namorado pelo único
motivo de ter este cometido um erro, e se, assim sendo, não fora igualmente
injusto ela ter-me deixado por vontade própria, antes disso. Ela fora ver o
camarada que dirigia o estágio durante as férias, perguntando se a proibição
de me dizer o que quer que fosse sobre o assunto do cartão-postal
continuava em vigor; sabendo então que não havia mais nada a esconder,
ela me fizera parar para pedir um encontro.
E agora ei-la em minha presença me confiando aquilo que a atormenta: é,
ela agiu mal quando tomou a resolução de não me ver mais; afinal de contas,
nenhum homem está perdido, mesmo que tenha se tornado culpado dos
erros mais graves. Ela se lembrou do filme soviético Tribunal de honra (obra
então muito cotada nos meios do Partido), no qual um médico-pesquisador
soviético entregava a revelação de sua descoberta ao público estrangeiro
antes de com ela beneficiar seus compatriotas, o que cheirava a
cosmopolitismo (mais um célebre termo pejorativo dessa época) e até a
traição; Marketa, emocionada, referia-se sobretudo ao final do filme: o
pesquisador via-se no fim condenado por um júri de honra formado por
seus colegas, mas sua mulher, apaixonada, longe de se afastar do marido
humilhado, empenhava-se em infundir-lhe força para reparar seu grave
erro.
— Então você decidiu não me abandonar — disse eu.
— Decidi — disse Marketa, segurando-me a mão.
— Mas, diga-me, Marketa, você acha que o que eu fiz foi um crime? —
Acho — respondeu Marketa.
— O que você acha, tenho ou não tenho direito de permanecer no Partido?
— Não, Ludvik, acho que não.
Eu sabia que se tivesse entrado no jogo em que Marketa se lançara e do qual,
pelo que parecia, ela vivia com toda a sua alma o lado patético, eu teria
obtido tudo o que, em vão, me obstinara em conquistar nos meses anteriores:
movida pela paixão salvadora como um navio pelo vapor, sem dúvida
nenhuma ela agora se entregaria a mim. Com uma condição, é claro: que sua
paixão salva dora fosse de todo recompensada; e para que isso acontecesse,
era preciso que o objeto da salvação (infelizmente, eu em pessoa)
consentisse em reconhecer sua profundíssima culpa. Ora, isso me era
impossível. Eu estava a ponto de possuir o corpo de Marketa, no entanto
não podia possuí-lo a esse preço, já que era incapaz de reconhecer meu erro
e confirmar um veredicto intolerável; ouvir uma pessoa, que deveria estar
do meu lado, aceitar esse erro e esse veredicto, isso eu não podia.
Não estava de acordo com Marketa, recusei sua ajuda, e a perdi; mas será
que eu era na realidade inocente? Claro, eu não parava de me persuadir do
aspecto cômico de todo o caso, mas ao mesmo tempo começava a ver as três
frases do cartão-postal com os olhos de meus inquisidores; essas frases
tornaram-se causa de medo: sob sua máscara enganadora, elas talvez
revelassem alguma coisa de fato muito grave, ou seja, que eu nunca me
integrara realmente na textura do Partido, que nunca fora um autêntico
revolucionário proletário, mas que, a partir de uma simples decisão, havia-
me "juntado aos revolucionários" (é que pertencer à revolução era sentido
por nós, eu diria, não como um problema de escolha, mas de substancia; ou
bem se é um revolucionário que forma um todo com o movimento, ou bem
não se é, simplesmente se deseja ser; mas, nessa alternativa, nós nos
consideramos permanentemente culpados por nossa alteridade).
Quando hoje em dia penso na minha situação naquela época, por analogia
surge no meu pensamento o imenso poder do cristianismo, que lembra ao
crente seu estado fundamental e permanente de pecador. Foi assim que me
comportei (todos, nós todos nos comportamos assim), a cabeça sempre baixa,
diante da Revolução e de seu Partido, de maneira que pouco a pouco fui-
me acostumando com a ideia de que o texto do meu cartão, apesar de
concebido como uma brincadeira, não deixava de ser um delito, e o exame
autocrítico começava na minha cabeça: dizia-me que aquelas três frases não
haviam surgido no meu espírito por acaso; já antes disso (e sem dúvida com
razão) os camaradas me censuravam pelos meus "resíduos de
individualismo"; dizia comigo mesmo que me tornara muito vaidoso,
satisfeito com meu saber, com minha condição de estudante, com meu
futuro de intelectual, e que meu pai, operário, morto num campo de
concentração durante a guerra, provavelmente não compreenderia meu
cinismo; irritava-me que sua mentalidade operária por infelicidade se
tivesse esgotado antes de chegar a mim; acusando-me de muitas vilanias,
acabei admitindo a necessidade de um castigo; meus esforços agora só me
conduziam a isto: não ser expulso do Partido e, com isso, ser marcado como
seu inimigo; viver como inimigo reconhecido daquilo que eu escolhera desde
minha adolescência, daquilo que realmente contava para mim, me parecia
desesperador.
Essa autocrítica, que era ao mesmo tempo um discurso suplicante, eu
desenvolvi cem vezes em pensamento, dez vezes pelo menos diante de
diversos comitês ou comissões e, por fim, em reunião plenária de nossa
faculdade, na qual Zemanek apresentou sobre minha pessoa e sobre meu
erro um relatório introdutório (eficaz, brilhante, inesquecível) antes de
propor, em nome da organização, minha expulsão do Partido. A discussão
aberta que se seguiu à minha intervenção autocrítica desenvolveu-se de
modo desvantajoso para mim; ninguém veio em meu socorro, tanto que, no
fim, todos (uns cem, entre os quais meus professores e meus condiscípulos
mais próximos), é, todos, sem exceção, levantaram a mão para aprovar não
apenas minha expulsão do Partido, mas além disso (o que eu não esperava
em absoluto) a proibição de eu continuar meus estudos.
Na noite seguinte à reunião, peguei o trem para voltar para casa, só que essa
casa não podia me trazer nenhum reconforto, visto que durante muitos dias
não tive a coragem de contar minha desgraça a mamãe, ela que via nos
meus estudos motivo de verdadeira alegria. Por outro lado, logo no dia
seguinte recebi a visita de Jaroslav, um colega de turma e da orquestra com
címbalo na qual eu tocava quando era colegial. Ele ficou exultante de me
encontrar em casa: como ia se casar dois dias mais tarde, queria que eu fosse
seu padrinho. Como decepcionar um velho amigo? Não me restava nada
senão celebrar minha queda com uma festa de casamento.
O cúmulo foi que Jaroslav, patriota morávio e folclorista convicto,
aproveitou seu próprio casamento para satisfazer suas paixões etnográficas,
organizando a festa sob a inspiração de antigos costumes populares: trajes
regionais, orquestra com címbalo, "patriarca" declamando trechos de textos
floreados, noiva carregada nos braços ao se atravessar a soleira da porta,
canções, enfim, todo o cerimonial de um dia inteiro que Jaroslav
reconstituíra mais a partir de manuais de folclore do que da memória viva.
Reparei, no entanto, numa coisa estranha: meu amigo Jaroslav, pouco tempo
antes animador de um grupo de canto e dança muito próspero, embora
respeitasse todos os velhos ritos possíveis, evitou entrar na igreja com o
cortejo (aparentemente preocupado com sua carreira e dócil diante das
palavras de ordem de ateísmo), ainda que possa parecer impensável um
casamento popular tradicional sem padre nem bênção divina; do mesmo
modo, deixou o "patriarca" recitar todos os textos prescritos pela
circunstância, porém tinha-os cuidadosamente expurgado de todos os
temas bíblicos, embora estes fossem a própria base das imagens dos discursos
nupciais de antigamente. A tristeza que me impedia de me identificar com a
embriaguez dessa quermesse matrimonial me fez sentir um gosto de
clorofórmio na água pura desses ritos ancestrais. Tanto que, quando Jaroslav
me pediu (enternecendo-se com a lembrança da minha participação ativa
em nossas reuniões de outrora) para empunhar uma clarineta e sentar-me
com os outros músicos, recusei. Na realidade, eu me revia tocando dessa
mesma maneira no Primeiro de Maio dos dois últimos anos, Zemanek, o
cidadão de Praga, saltando ao meu lado com traje típico, cantando, o braço
levantado. Eu não conseguia pegar na clarineta e sentia o quanto toda essa
algazarra folclórica me enojava, me enojava, me enojava...
Privado do direito de continuar meus estudos, perdi o benefício de dispensa
do serviço militar, e não tinha nada a fazer senão esperar a convocação; dois
longos períodos em brigadas iriam me ocupar até então: trabalhei primeiro
na reparação de uma estrada, em algum lugar perto de Gottwaldov, no fim
do verão fui contratado para trabalhos temporários numa fábrica de
conservas e, finalmente, numa manhã de outono, depois de uma noite em
claro no trem, desembarquei na caserna de um subúrbio desconhecido e feio
de Ostrava.
Vi-me assim no pátio de um quartel em companhia de outros conscritos
pertencentes ao mesmo batalhão; não nos conhecíamos; na penumbra desse
primeiro anonimato mútuo, tudo o que é grosseiro e estranho destaca-se
com dureza nas pessoas; o único elo humano que nos unia era a incerteza de
um futuro nebuloso sobre o qual trocávamos suposições lacônicas. Alguns
achavam que fazíamos parte dos "negros", outros achavam que não, alguns
ignoravam até o sentido dessa palavra. Eu, que a conhecia, escutava essas
hipóteses com terror.
Um sargento veio nos buscar e nos levou para uma barraca; nós nos
amontoamos num corredor, e depois dali fomos para uma espécie de grande
sala onde se via em toda a volta imensos murais enfeitados com slogans,
fotografias e desenhos desajeitados; presa numa divisória do fundo havia
uma grande inscrição recortada em papel vermelho: NÓS EDIFICAMOS O
SOCIALISMO, e embaixo dessa inscrição havia uma cadeira, perto da qual
estava de pé um velhinho caquético.. . Com um gesto, o sargento designou
um de nós, e este teve de se sentar.
O velhinho amarrou-lhe um pano branco em volta do pescoço, remexeu
numa sacola encostada num pé da cadeira e dela tirou uma tesoura, que
meteu na cabeleira do rapaz.
Pela cadeira do barbeiro começava a corrente que deveria nos transformar
em soldados: dessa cadeira na qual perdemos nossos cabelos fomos
encaminhados à sala contígua, onde fomos obrigados a nos despir
completamente e a colocar nossas roupas dentro de um saco de papel que
devia ser amarrado com um barbante e entregue num guichê; tosados e nus,
atravessamos o corredor para apanhar roupas de dormir numa outra sala;
vestidos com roupas de dormir, atravessamos uma nova porta e recebemos
botinas regulamentares; com roupas de dormir e botinas, desfilamos pelo
pátio até chegarmos a uma outra barraca, onde nos deram camisas, cuecas,
meias de lã, cinto e uniforme (as insígnias das túnicas eram pretas!); e
chegamos a uma terceira barraca, onde um suboficial leu em voz alta nossos
nomes, nos dividiu em grupos, designando-nos dormitórios e camas.
Ainda nesse mesmo dia fomos convocados para nos reunir, para a sopa da
noite, para dormir; no dia seguinte de manhã, fomos acordados e levados
para a mina; chegando ao pátio da mina fomos, por grupos, divididos em
equipes de trabalho e equipados com ferramentas (picareta, pá, lampião de
mineiro) das quais nenhum, ou quase nenhum de nós conhecia o manuseio;
depois, a gaiola de descida nos levou para baixo da terra. Quando voltamos a
subir, com o corpo dolorido, os suboficiais que nos esperavam fizeram com
que nos puséssemos em fila e nos levaram para a caserna; almoçamos e à
tarde houve exercício de ordem-unida, trabalhos de limpeza, educação
política, canto obrigatório; à guisa de intimidade, o dormitório e suas vinte
camas de campanha. E os dias se sucederam todos iguais.
A despersonalização que nos infligiam parecia perfeitamente opaca nos
primeiros dias; impessoais, impostas, as funções que exercíamos substituíam
todas as nossas manifestações humanas; essa opacidade era, naturalmente,
bem relativa, causada que era não apenas pelas circunstâncias reais mas
também por um defeito de acomodação da vista (como quando se passa de
um lugar iluminado para uma sala escura); com o tempo, ela deveria
dissipar-se lentamente; na verdade mesmo nessa penumbra de
despersonalização, a humanidade nos homens se torna pouco a pouco
perceptível. Devo confessar que fui um dos últimos a saber acostumar meu
olhar a essa mudança de iluminação.
Isso porque meu ser inteiro recusava-se a aceitar seu destino. Os soldados
com insígnias pretas, entre os quais eu me encontrava, praticavam na
realidade, sem armas, os únicos exercícios de ordem-unida e trabalhavam no
fundo das galerias das minas. Seu trabalho era remunerado (o que, nesse
ponto, era uma vantagem sobre os outros soldados), mas isso era para mim
uma pobre consolação, se eu levasse em conta que nós éramos pessoas a
quem a jovem República Socialista se recusava a confiar um fuzil, porque as
considerava inimigas. Como consequência, evidentemente, essas pessoas
eram tratadas com requintes de crueldade, pesando sobre elas a ameaça de
uma prorrogação de seu tempo de serviço além dos dois anos legais;
contudo, o que mais me assombrava era o simples fato de estar entre aqueles
que eu considerava meus inimigos declarados, e de ter sido enviado para ali
em virtude de uma decisão de meus próprios camaradas. Por isso, passei os
primeiros tempos de minha existência no meio dos "negros" em teimosa
solidão; não queria estar com meus inimigos. Nessa época era muito difícil
obter folgas (os soldados não tinham nenhum direito a folga, elas eram
concedidas a eles como recompensa), mas, enquanto os soldados em bandos
faziam a ronda dos botecos e das mulheres, eu preferia ficar só em meu
canto; estirado sobre minha cama de campanha, tentava ler ou mesmo
estudar (aliás, quando se é matemático, basta para isso um lápis e um
pedaço de papel) e me atormentava na minha inadaptabilidade;
acreditava-me então investido de uma única missão: prosseguir a luta pelo
meu direito de "não ser um inimigo", pelo meu direito de sair dali.
Várias vezes fui procurar o comissário político da unidade e esforcei-me
para convencê-lo de que minha presença entre os "negros" era resultado de
um erro; que eu havia sido expulso do Partido por intelectualismo e por
cinismo, mas não por ser inimigo do socialismo; expliquei sem descanso
(quantas vezes!) a ridícula história do cartão-postal, que na realidade não
era nada ridícula, mas, unida às minhas insígnias negras, tornava-se cada
vez mais ambígua e parecia encobrir alguma coisa sobre a qual eu preferia
calar-me. Devo dizer, a bem da verdade, que o comissário me escutou
pacientemente e mostrou-se de uma compreensão quase inesperada para
com minha sede de justificação; na realidade, acabou por se informar em
algum lugar com os poderosos (que misteriosa topografia!); até que, por fim,
chamou-me para dizer com sincera amargura: — Por que tentou me
enganar? Agora sei que você é um trotskista.
Comecei a compreender que não havia nenhum meio de retificar a imagem
de minha pessoa, desqualificada por um tribunal supremo dos destinos
humanos; compreendi que essa imagem (mesmo sendo pouco semelhante)
era infinitamente mais real do que eu mesmo; que ela não era de maneira
alguma minha sombra, mas que eu era a sombra de minha imagem; que não
era possível acusa Ia de não se parecer comigo, mas que era eu o culpado
dessa falta de semelhança; e que essa falta de semelhança, enfim, era minha
cruz, cruz que eu não poderia confiar a ninguém e que estava condenado a
carregar.
Não obstante, não queria capitular. Queria realmente carregar minha falta
de semelhança: continuar a ser aquele que haviam decidido que eu não era.
Foram necessários uns quinze dias para que eu me habituasse mal ou bem ao
exaustivo trabalho na mina, as mãos crispadas sobre uma pesada picareta,
cuja vibração eu sentia sacudir minha carcaça, até o momento de recomeçar
na manhã seguinte. Não importava, eu trabalhava com honestidade e com
uma espécie de frenesi, resolvera obter rendimentos de trabalhador de
primeira linha e em pouco tempo quase consegui.
Só que ninguém via nisso uma demonstração de minha convicção: na
realidade, todos nós éramos pagos pela tarefa cumprida (o valor de nossa
alimentação e de nossa moradia nos era realmente descontado, mas mesmo
assim recebíamos bastante dinheiro); dessa forma, qualquer que fosse a
opinião que tivessem, muitos trabalhavam duro a fim de arrancar desses
anos perdidos ao menos alguma coisa de útil.
Embora fôssemos unanimemente tidos como furiosos inimigos do regime,
todas as formas de vida pública em uso nas coletividades socialistas eram
mantidas na caserna; nós, inimigos do regime, organizávamos reuniões
improvisadas de dez minutos sob o controle do comissário político,
participávamos de palestras cotidianas sobre assuntos políticos, tínhamos de
nos ocupar dos jornais murais, neles colando fotografias de homens de
Estado socialistas e acrescentando com um pincel, em letras destacadas,
palavras de ordem relativas à felicidade futura. No começo era quase com
ostentação que me oferecia como voluntário para todos esses trabalhos. Mas
isso também não provava nada aos olhos de quem quer que fosse: outros
também não se ofereciam para fazer as mesmas coisas quando queriam ser
notados pelo chefe, para que esse lhes concedesse uma saída? Nenhum
soldado considerava essa atitude política como tal, mas simplesmente como
uma macaquice vazia de sentido que era preciso executar diante daqueles
que nos mantinham debaixo dos seus calcanhares.
Acabei por compreender que minha revolta era ilusória, que minha
dessemelhança não era percebida senão por mim, invisível que era para os
demais.
Entre os suboficiais à mercê dos quais estávamos entregues havia um
pequeno eslovaco de cabelos pretos, um cabo que se distinguia por sua
moderação e por sua absoluta falta de sadismo. Ele era bem-visto entre nós,
embora alguns que gostavam de fazer brincadeiras de mau gosto dissessem
que sua bonomia era apenas fruto de sua burrice. Ao contrário de nós,
naturalmente, os suboficiais andavam armados e de vez em quando
praticavam tiro ao alvo. Um dia o pequeno cabo voltou desse exercício com
todas as honras, tendo, segundo nos contaram, totalizado o máximo de
pontos. Muitos rapazes o cumprimentaram (metade por simpatia, metade
por gozação); o pequeno cabo enrubescia de orgulho.
Nesse mesmo dia, por acaso, encontrei-o a sós. Apenas para conversar um
pouco, perguntei-lhe: — Como você consegue atirar tão bem? O pequeno
cabo examinou-me com atenção antes de responder: — Tenho um truque
especial. Digo para mim mesmo: não é um alvo em ferro estanhado, é um
imperialista. Então, furioso, acerto em cheio! Eu estava ansioso para saber
que criatura humana ele podia imaginar, orientado pelo conceito bastante
abstrato de imperialista, quando, diante de minha pergunta, ele me disse
com voz grave e pensativa: — Não sei por que vocês me aplaudiram tanto.
Afinal, veja, se houvesse uma guerra, de qualquer maneira seria em vocês
que eu atiraria! Quando ouvi isso da boca dessa criatura ingênua, que nunca
soube levantar a voz para nos repreender — motivo pelo qual mais tarde
seria transferido —, percebi que o fio que me ligara ao Partido e aos meus
camaradas acabara de me escapar pelos dedos irrevogavelmente. Eu fora
posto para fora do caminho da minha vida.
Sim. Todos os fios estavam partidos.
Cortados os estudos, a participação no movimento, o trabalho, as amizades,
cortados o amor e a busca do amor, cortado, em resumo, tudo o que na vida
fazia sentido. Não me restava senão o tempo. Este, em contrapartida,
aprendi a conhecer com intimidade, como jamais conhecera. Não era mais
aquele tempo que antes me era familiar, metamorfoseado em trabalho, em
amor, em todas as formas de esforços possíveis, um tempo que eu aceitava
distraidamente, pois ele era discreto, desaparecendo com delicadeza por
trás de todas as minhas atividades. Agora apresentava-se nu diante de mim,
tal como era, com seu aspecto original e verdadeiro, e me forçava a designá-
lo por seu nome real (pois no momento eu vivia o tempo puro, um tempo
puramente vazio), para que eu não o esquecesse um só instante, para que
pensasse nele eternamente, para que sentisse seu peso sem cessar.
Quando escutamos uma música, registramos a melodia, esquecendo que ela
não é senão uma das modalidades do tempo; a orquestra para e escutamos o
tempo; o tempo em si mesmo. Eu vivia uma pausa. Certamente não uma
pausa de orquestra (cuja duração é definida com precisão por um sinal
convencional), mas uma pausa ilimitada. Não podíamos (como se fazia em
todas as outras unidades) cortar passo a passo as divisões de uma fita
métrica, a fim de constatar dia a dia a diminuição de nossos dois anos de
serviço militar; os "negros", na realidade, podiam ficar na corporação pelo
tempo que fosse julgado conveniente. Ambroz, homem de quarenta anos,
pertencente à segunda companhia, já estava ali havia quatro anos.
Cumprir serviço militar quando se tinha em casa uma esposa ou uma noiva
era bem amargo; isso queria dizer manter o pensamento em vigília
incessante sobre essa vida impossível de controlar. Significava também
alegrar-se constantemente com a ideia de suas visitas (tão raras!) e tremer
sem parar, com medo de que o comandante recusasse a folga que se gozava
por antecipação e de que a mulher se apresentasse em vão à porta do
quartel. Os "negros", entre si (com seu humor negro), contavam que os
oficiais esperavam essas mulheres de soldados insatisfeitas, cercando-as,
para em seguida recolher os frutos do desejo que deveriam ter pertencido
aos homens detidos na caserna.
E, no entanto, para aqueles que tinham uma mulher em casa, um fio
atravessava a pausa, um fio talvez tênue, talvez de uma fragilidade
angustiante, que corria o risco de partir-se com facilidade, mas um fio, de
qualquer forma. Eu não possuía um fio assim; rompera todas as minhas
relações com Marketa, e, se alguma carta chegava para mim, era de mamãe..
. O quê? E isso não era um fio? Não; uma casa que é apenas a casa dos pais
não é um fio; é apenas o passado: as cartas que chegam dos pais são
mensagens de um continente do qual você se afasta; pior, essa espécie de
carta não para de lhe repetir que você se perdeu, fazendo com que se
lembre do porto onde você aparelhava em condições honesta e
laboriosamente reunidas; é, diz uma carta assim, o porto está sempre ali,
imutável, firme e forte em seu antigo cenário, mas o rumo, o rumo se
perdeu! Assim, pouco a pouco habituei-me ao fato de que minha vida
perdera sua continuidade, que ela me escapara das mãos e que não me
restava mais nada senão começar a existir, mesmo que fosse no meu íntimo,
ali onde eu na verdade me encontrava de maneira irrevogável. Aos poucos
minha vista se acostumou àquela penumbra de despersonalização e comecei
a distinguir pessoas ao meu redor; com um certo atraso em relação aos
outros, embora essa defasagem felizmente não fosse assim tão grande a
ponto de eu ter-me tornado um completo estranho para eles.
O primeiro a surgir dessa penumbra (da mesma maneira que emerge hoje
em primeiro lugar da penumbra da minha memória) foi Honza, um sujeito
de Brno (que falava a gíria suburbana dessa cidade de maneira quase
ininteligível); foi jogado entre os "negros" por ter surrado um policial. Ele o
espancara porque os dois, sendo antigos companheiros de turma no curso
superior, tinham brigado; só que o tribunal não aceitara essa explicação;
Honza pegara seis meses de prisão antes de vir direto para cá. Torneiro
qualificado, estava claro que lhe era perfeitamente indiferente retornar um
dia à sua profissão ou fazer qualquer outra coisa; não estava preso a nada e,
em relação a seu futuro, demonstrava uma indiferença cheia de liberdade.
Por seu raro sentimento de liberdade, Bedrich, o tipo mais estranho de nosso
dormitório de vinte homens, era o único que podia comparar-se a Honza;
ele se reunira a nós apenas dois meses depois da convocação normal de
setembro, tendo sido indicado em primeiro lugar para uma unidade de
infantaria na qual recusara obstinadamente pegar em armas, porque isso era
contrário a seus rigorosos princípios religiosos; não se sabia o que fazer dele,
sobretudo depois que foram interceptadas cartas que ele escrevera a
Truman e a Stalin, nas quais, num tom patético, implorava aos dois homens
de Estado que dissolvessem todos os exércitos em nome da fraternização
socialista; embaraçados, os superiores a princípio chegaram a auto rizá-lo a
participar dos exercícios de ordem-unida; de maneira que, sendo o único
sem arma no meio dos outros soldados, ele executava os comandos de "arma
no ombro" e "descansar armas" com impecável perfeição, mas de mãos
vazias. Tinha tomado parte igualmente nas primeiras reuniões de instrução
política, apressando-se em pedir a palavra por ocasião da discussão, na qual
brilhava contra os promotores de guerras imperialistas. No entanto, quando
tomou a iniciativa de confeccionar e pendurar na caserna um cartaz em
que fazia um apelo para a deposição de todas as armas, o procurador militar
processou-o por rebelião. Os juízes, entretanto, ficaram a tal ponto
impressionados com seus discursos em favor da paz que ordenaram que ele
fosse submetido a um exame psiquiátrico, hesitaram muito antes de absolvê-
lo e mandaram-no para nossa companhia. Bedrich ficou contente: único
voluntário para as insígnias pretas, ficou encantado em conquistá-las. Era
por isso que aqui se sentia livre — embora, nele, esse sentimento não se
manifestasse sob a forma de insolência, como no caso de Honza, mas,
exatamente ao contrário, sob a aparência de uma disciplina calma e de um
sereno entusiasmo pelo trabalho.
Todos os outros eram muito mais angustiados: Varga, trinta anos, húngaro da
Eslováquia, ignorando os preconceitos de nacionalidade, fizera a guerra no
seio de vários exércitos sucessivos e conhecera diversos campos de
prisioneiros nos dois lados do front; Petran, um ruivo cujo irmão fugira para
o estrangeiro matando, na fuga, um guarda de fronteira; Josef, pobre de
espírito, filho de um rico camponês do vale do Elba (habituado sempre ao
vasto espaço da cotovia, agora sufocava de medo diante da perspectiva do
inferno dos poços e das galerias); Stana, vinte anos, almofadinha de um
subúrbio operário de Praga, a quem o comitê nacional de seu bairro
presenteara com um relatório arrasador, por ter-se embriagado no desfile do
Primeiro de Maio e ter urinado de propósito na beira da calçada sob os olhos
dos cidadãos em júbilo; Petr Pekny, estudante de direito, que durante as
jornadas de Fevereiro fora com um punhado de condiscípulos tomar parte
numa manifestação contra os comunistas (não demoraria a compreender
que eu pertencia ao mesmo campo daqueles que o haviam expulso de sua
faculdade logo depois de Fevereiro, e era o único a manifestar sua venenosa
satisfação de me ver agora sofrendo o mesmo que ele). Eu poderia evocar a
lembrança de outros soldados que na época dividiram a sorte comigo, mas
quero limitar-me ao essencial: era de Honza que eu gostava mais. Lembro-
me de uma de nossas primeiras conversas; por ocasião de uma pequena
pausa numa galeria da mina, quando estávamos lado a lado (forrando o
estômago), Honza deu-me um tapa no joelho: — E você, surdo-mudo, quem
é você exatamente? Nesse tempo eu era de fato surdo-mudo (voltado para
meus eternos discursos interiores) e, laboriosamente, tentei explicar-lhe (em
termos nos quais logo senti o tom artificial e a pretensão) como chegara ali e
por que, no fundo, não tinha nada para fazer nesse lugar. Ele me disse: — Ô,
imbecil! E nós, o que é que nós temos para fazer aqui? Tentei mais uma vez
explicar-lhe meu ponto de vista (procurando palavras mais naturais), e
Honza, engolindo seu último bocado, articulou pausadamente: — Se o seu
tamanho fosse tão grande quanto a sua burrice, o sol torraria seus miolos.
Com essa frase, o espírito plebeu dos subúrbios caçoava de mim, e tive de
repente vergonha de invocar sem parar, como uma criança mimada, meus
privilégios perdidos, quando edificara minhas convicções precisamente sob
a recusa de privilégios.
Com o tempo, fiquei muito próximo de Honza (ele gostava de mim porque
eu resolvia rápido, de cabeça, os problemas de cálculo relacionados com o
pagamento de salário, tendo assim impedido várias vezes que fôssemos
enganados); um dia ele debochou do meu hábito de ficar mofando no
quartel feito um idiota em vez de aproveitar as folgas e carregou-me com
sua turma. Lembro-me muito bem dessa saída; éramos um bom grupo,
talvez oito; havia Stana, Varga, e Cenek também, um rapaz da área de Artes
Decorativas afastado dos estudos (tinha ido parar entre os "negros" por ter
insistido em pintar quadros cubistas quando estava na Escola; agora, ao
contrário, a fim de conseguir uma vantagem aqui e outra acolá, enfeitava
todos os locais da caserna com amplos desenhos a carvão representando
guerreiros hussitas empunhando maças e clavas). Não tínhamos muita
possibilidade de escolher aonde ir: o centro da cidade de Ostrava nos era
proibido; apenas alguns bairros nos eram permitidos e, nesses bairros,
somente alguns cafés. Chegando ao bairro vizinho, a sorte nos favoreceu:
havia uma reunião dançante na sala desativada de um ginásio que não
estava sob nenhuma interdição. Mediante uma entrada insignificante
enfiamo-nos no estabelecimento. A grande sala abrigava uma quantidade de
mesas e cadeiras, mas pouca gente: no todo, uma dezena de moças; mais ou
menos trinta homens, a metade deles militares vindos da caserna de
artilharia da esquina; assim que nos viram, ficaram atentos e nós tivemos a
sensação epidérmica de que eles nos examinavam e contavam quantos
éramos. Instalamo-nos numa mesa comprida que estava livre e pedimos
uma garrafa de vodca, mas a garçonete anunciou secamente que era
proibido vender álcool, e então Honza pediu oito limonadas; em seguida,
cada um de nós lhe deu um tanto, e em dez minutos ela voltou com três
garrafas de rum que iriam melhorar, por baixo da mesa, nossas limonadas.
Fazíamos isso com o máximo de discrição, pois os artilheiros nos vigiavam de
perto, e sabíamos que eles não iriam hesitar em denunciar nosso consumo
clandestino de álcool. Os grupos armados, é preciso mencionar, nos eram
profundamente hostis: por um lado, seus membros nos consideravam
elementos suspeitos, assassinos, criminosos e inimigos prontos a qualquer
momento (segundo a literatura de espionagem corrente na época) a
massacrar traiçoeiramente suas pacíficas famílias; por outro lado (e era sem
dúvida isso o mais importante), eles nos invejavam por termos dinheiro e
por termos a possibilidade, em qualquer lugar, de gastar cinco vezes mais
que eles.
Eis a singularidade de nossa situação: não conhecíamos senão cansaço e
trabalho, de quinze em quinze dias nos raspavam o crânio, por medo de que,
com os cabelos, tornasse a aparecer em nós uma segurança inoportuna;
éramos os deserdados que não esperavam mais nada de bom da vida, mas
dinheiro nós tínhamos. Não muito, mas, para um soldado com suas duas
folgas mensais, era uma fortuna que fazia com que, por ocasião dessas
poucas horas de liberdade (nesses raros lugares autorizados),, pudéssemos
nos comportar como ricaços, compensando dessa maneira a impotência
crônica dos outros dias intermináveis.
Enquanto num tablado uma medíocre orquestra de metais executava valsas
e polcas para dois ou três casais que giravam na pista, nós, tranquilamente,
olhávamos com cobiça as moças e bebericávamos a limonada que, com seu
gostinho de rum, nos tornava naquele momento superiores a todos os outros;
estávamos de excelente humor; sentia subir-me à cabeça uma alegre
sociabilidade, um sentimento de agradável fraternidade entre colegas que
não tinha sentido mais desde as últimas reuniões com Jaroslav e sua
orquestra com címbalo. No intervalo, Honza imaginara um plano para
roubar dos soldados o maior número possível de garotas. O plano era tão
simples e bom que imediatamente passamos a executá-lo. Cenek mostrou-se
o mais decidido a agir e, audacioso e brincalhão como era, para nos divertir,
cumpriu sua missão com ostentação: convidou para dançar uma morena
muito maquilada e em seguida levou-a para nossa mesa; tanto para ela como
para ele, serviu limonada com rum, dizendo-lhe com ar decidido: — Então,
está tudo certo! A morena concordou e os dois fizeram um brinde. Um
fedelho que passava, com seu duplo galão de cabo nos ombros do uniforme
de artilharia, parou em frente à morena e, com a voz mais grosseira que
conseguiu usar, disse a Cenek: — Dá licença? — Vai em frente, meu chapa!
— concordou Cenek. Enquanto a morena rebolava com o cabo apaixonado
ao ritmo imbecil de uma polca, Honza foi rapidamente telefonar para
chamar um táxi; em dez minutos o táxi chegou, e Cenek foi para a saída; a
morena terminou a dança, desculpou-se dizendo ao cabo que ia ao toalete, e
no minuto seguinte ouviu-se o carro partir.
Depois do sucesso de Cenek, foi a vez do velho Ambroz, que encontrou uma
mulher um pouco madura e de aparência lastimável (o que não havia
impedido que quatro soldados andassem à sua volta); no fim de dez minutos
chegou um táxi e Ambroz sumiu com a moça, junto com Varga (que afirmou
que nenhuma delas quis acompanhá-lo), para ir encontrar Cenek no café
previamente combinado, do outro lado de Ostrava. Dois dos nossos
conseguiram ainda levar consigo uma moça, e ficamos apenas três no
ginásio: Stana, Honza e eu. Os olhares dos soldados tornavam-se cada vez
mais feios, pois começavam a desconfiar que havia uma relação entre a
diminuição de nosso efetivo e o desaparecimento das três mulheres de seu
território de caça. Por mais que fizéssemos caras inocentes, sentíamos que
havia confusão no ar.
— E agora um último táxi para uma retirada honrosa — disse eu observando
nostalgicamente uma loura com quem conseguira dançar uma vez no
começo da noite, sem ter ousado propor-lhe que partisse comigo; contava
fazer isso na próxima dança, só que parecia que os soldados a cercavam tão
bem que me foi impossível abordá-la.
— É inútil insistir — disse Honza, e levantou-se para ir telefonar. Mas,
quando atravessou a sala, os soldados deixaram suas mesas e correram para
cercá-lo.
É, ia começar o tumulto, e Stana e eu não podíamos fazer nada, a não ser
levantar da mesa para socorrer nosso amigo ameaçado. Um grupo de
soldados cercava Honza, sem dizer uma palavra, quando de repente
apareceu no meio deles um sargento meio bêbado (sem dúvida ele também
tinha uma garrafa escondida embaixo da mesa), que rompeu o silêncio
ameaçador: começou uma homilia, que seu pai ficara desempregado antes
da guerra e que ele não podia ver esses burgueses sujos que se exibiam com
seus galões pretos, que estava farto, enfim, e que os amigos tomassem conta
dele porque ia quebrar a cara daquele sujeito ali. Honza aproveitou uma
pequena pausa no discurso do sargento para perguntar polidamente o que
os camaradas de artilharia desejavam dele. Que vocês saiam rápido daqui,
disseram eles, ao que Honza respondeu que era justamente o que íamos
fazer, mas que então nos deixassem chamar um táxi. Nesse instante,
pareceu que o sargento ia ter uma síncope: Que merda, gritou ele com voz
estridente, que merda mesmo, nós aqui nos arrebentamos de tanto trabalhar,
nos esfalfamos, e não temos grana, enquanto eles, os capitalistas, agentes da
subversão, esses merdas, andam de táxi, ah, isso não, prefiro mil vezes
estrangulá-los com essas mãos aqui, mas eles não vão sair daqui de táxi!
Todos entraram na briga; aos sujeitos uniformizados juntaram-se os civis e o
pessoal do estabelecimento, que temia um incidente. Foi então que vi minha
loura; sozinha na sua mesa (indiferente à desordem), levantou-se para ir ao
toalete; afastei-me discretamente do ajuntamento e, na entrada, onde
ficavam os vestiários e os toaletes (não havia ninguém lá, a não ser a referida
moça), dirigi-lhe a palavra; estava me sentindo como quem se joga na água
sem saber nadar, e, atrapalhado ou não, fui forçado a agir; remexendo num
de meus bolsos, tirei umas notas amassadas de cem coroas e disse: — Você
não gostaria de vir conosco? Poderíamos nos divertir mais do que aqui! Ela
lançou um olhar para as notas e encolheu os ombros. Acrescentei que a
esperaria do lado de fora, ela concordou, sumiu no toalete, de onde saiu
pouco depois, vestida com um casaco; sorriu para mim e disse que se via
logo que eu não era como os outros. Esse comentário me agradou, enfiei o
braço sob o dela e levei-a para o outro lado da rua, para além de um ângulo
de onde nos pusemos a observar atentamente a saída de Honza e de Stana
do ginásio iluminado por uma única lanterna. A loura me perguntou se eu
era estudante e, como eu dissesse que sim, contou-me que na véspera
tinham roubado dinheiro dela no vestiário da boate, um dinheiro que não
era dela mas sim da usina, e que ela estava desesperada porque poderiam
levá-la à justiça por causa disso: perguntou se eu não podia emprestar-lhe,
digamos, uma nota de cem; remexi no meu bolso e dei a ela duas notas de
cem completamente amassadas.
Pouco depois, os dois amigos apareceram de boné e japona. Assoviei na
direção deles, mas na mesma hora surgiram três outros soldados (sem boné
nem japona), que começaram a persegui-los. Percebi a entonação
ameaçadora das perguntas cujas palavras não podia distinguir, mas cujo
sentido podia adivinhar; estavam procurando minha loura. Então um deles
saltou sobre Honza, e a briga começou. Corri para ajudá-los. Se Stana via-se
às voltas com um soldado, Honza lutava contra dois; estes já o estavam
quase derrubando no chão quando, por sorte, cheguei a tempo de dar um
soco num dos agressores. Eles contavam com sua superioridade numérica;
seu entusiasmo inicial diminuiu assim que as forças ficaram iguais; um deles
caiu com um soco acertado por Stana, e aproveitamos o espanto que isso
lhes causou para fugir.
Dócil, a loura nos esperava na esquina. Quando os rapazes a viram,
deliraram, declarando que eu era um craque, e quiseram abraçar-me de
qualquer maneira. Honza tirou de dentro de sua japona uma garrafa cheia
de rum (não compreendo como ele tinha conseguido salvá-la durante o
tumulto) e exibiu-a bem alto. Nós estávamos na melhor das disposições, só
que não sabíamos aonde ir: acabavam de nos expulsar de um café, o acesso
aos outros nos era proibido, rivais loucos furiosos nos haviam impedido de
tomar um táxi e, mesmo na rua, estávamos à mercê de uma possível
expedição punitiva. Afastamo-nos rapidamente por uma ruazinha; primeiro
havia casas dos dois lados, depois apenas um muro de um lado e tapumes
do outro; perto de um tapume via-se uma charrete e, um pouco adiante,
uma espécie de máquina agrícola com um assento de metal.
— Um trono — disse eu, e Honza fez a loura sentar-se nele, exatamente a
um metro acima do chão.
A garrafa passava de mão em mão, bebíamos os quatro, a loura tornou-se
loquaz e fez um desafio a Honza: — Aposto que você não me empresta cem
coroas! Magnanimamente, Honza deu-lhe uma nota de cem, e em dois
tempos, a moça tirou o casaco e levantou a saia; um minuto depois ela
mesma tirou a calcinha. Segurou-me pela mão e tentou me abraçar, mas eu,
que estava com medo, me esquivei e no meu lugar empurrei Stana, o qual,
sem a menor hesitação, colocou-se entre suas pernas. Mal ficaram vinte
segundos juntos; eu quis logo ceder minha vez para Honza (queria
comportar-me como anfitrião e, por outro lado, o medo não me deixava), só
que então a loura agiu com autoridade, apertou-me contra ela e quando,
depois de contatos encorajadores, minha virilidade despertou, ela
murmurou-me ternamente ao ouvido: — É por sua causa que estou aqui,
seu boboca. — E em seguida começou a suspirar, e de repente tive de fato a
impressão que ela era uma mocinha apaixonada, que me amava e que eu
amava, e ela suspirava, suspirava, e eu ia indo muito bem até o momento
em que a voz de Honza proferiu uma obscenidade; tomei então consciência
de que ela não era a moça que eu amava e me afastei dela tão bruscamente,
sem terminar, que a loura, quase com medo, perguntou: — O que foi que
houve? Mas Honza já estava junto dela, e os suspiros recomeçaram.
Nessa noite, só voltamos ao quartel por volta das duas horas. Às quatro e
meia tivemos de nos levantar para o trabalho voluntário de domingo, que
dava um prêmio a nosso chefe e nos valia uma folga um sábado a cada
quinze dias. Sentíamos falta de sono, nosso corpo estava embebido em álcool
e, apesar da moleza fantasmagórica de nossos movimentos nos claro-escuros
da galeria da mina, lembrava-me com prazer da noite que passáramos.
Foi menos brilhante quinze dias mais tarde; por causa de um problema,
Honza estava proibido de sair; saí então em companhia de dois sujeitos de
uma outra seção que conhecia apenas vagamente. Fomos ver (com tudo já
combinado ou quase) uma mulher cuja monstruosa altura lhe tinha valido o
apelido de Poste. Ela era um horror, mas não havia nada a fazer: o círculo
feminino do qual podíamos dispor era muito reduzido, sobretudo por causa
das poucas folgas que tínhamos. A necessidade de aproveitar a qualquer
preço seus momentos de liberdade (tão curtos e concedidos tão raramente)
levava os soldados a preferir o acessível ao suportável. Com o tempo, e
graças a sondagens cujos resultados transmitíamos uns aos outros, uma rede
(por mais medíocre que fosse) dessas mulheres mais ou menos acessíveis (e,
é claro, apenas suportáveis) foi sendo constituída, visando a uma utilização
em comum.
O Poste fazia parte dessa rede comum; isso não me incomodava nada;
quando os dois colegas começaram a fazer brincadeiras a respeito de sua
altura anormal, repetindo umas cinquenta vezes que devíamos arranjar um
tijolo para meter embaixo dos pés quando chegasse a hora da coisa, achei
essas brincadeiras estranhamente agradáveis: estimulavam meu violento
desejo por mulher; por qualquer tipo de mulher; quanto menos
individualizada fosse, menos alma, melhor seria; tanto melhor se fosse uma
mulher qualquer.
Embora eu tivesse bebido muito, meu apetite frenético se extinguiu quando
vi a moça que chamavam de Poste. Tudo me pareceu repugnante e vazio, e,
como nem Honza nem Stana estavam lá, ninguém de quem eu gostasse,
afundei no dia seguinte numa abominável ressaca que envenenou
retrospectivamente a aventura de quinze dias antes, e fiz-me o juramento
de que nunca mais ia querer saber de uma moça sentada no assento de uma
máquina agrícola, nem tampouco de um Poste embriagado...
Algum princípio moral se teria reacendido em mim? Não; era apenas
repugnância. Mas por que repugnância, se algumas horas antes sentira um
desejo violento, cuja fúria estava ligada, precisamente, ao fato de que me
era indiferente saber quem seria essa mulher? Será que eu era mais delicado
que os outros? Será que tinha horror a prostitutas? Não: fui tomado pela
tristeza.
Tristeza por ter descoberto que as aventuras que acabara de viver nada
tinham de excepcionais, que eu não as escolhera por luxo, por capricho, por
aspiração inquieta de conhecer tudo, de viver tudo (o nobre e o abjeto), mas
que elas se tinham tornado a condição fundamental e usual de minha vida
presente. Que elas circunscreviam de maneira exata a área de minhas
possibilidades, que desenhavam com um traço preciso o horizonte da vida
amorosa que me era afinal destinada. Que expressavam, não minha
liberdade (tal como poderia tê-las imaginado se me tivessem acontecido,
digamos, um ano antes), mas meu determinismo, meus limites, minha
condenação. E fui dominado pelo medo. Medo desse lamentável horizonte,
medo desse destino. Sentia minha alma se encolher sobre si mesma, sentia
que ela recuava, e me atemorizava com a ideia de que, diante desse cerco,
ela não tivesse para onde escapar.
Todos ou quase todos nós conhecíamos a tristeza que emanava do miserável
horizonte de nossa vida amorosa. Bedrich (autor dos manifestos pela paz)
tentava escapar nas profundezas meditativas de seu íntimo, onde
aparentemente morava seu Deus místico; a essa interiorização devota
correspondia, no domínio do erotismo, o vício solitário, que ele praticava
com a regularidade de um rito. Os outros haviam organizado uma defesa
mais insidiosa: realizavam suas cínicas caças às prostitutas recorrendo ao
mais sentimental dos romantismos; alguns tinham em casa um amor que, à
força de reminiscências concentradas, poliam aqui até que alcançasse o
brilho mais resplandecente; outros acreditavam na Fidelidade duradoura e
na Espera fiel; alguns se diziam em segredo que a moça bêbada que tinham
apanhado num café qualquer ardia por eles com um fogo sagrado. Por duas
vezes Stana recebera a visita de uma moça de Praga que conhecera antes de
seu serviço militar (e que ele na época decerto não levara muito a sério); de
repente, enternecido, decidiu casar-se imediatamente com ela. Por mais que
ele dissesse que fazia isso apenas por causa dos dois dias de licença
concedidos nessa circunstância, eu sabia que eram afirmações que se
pretendiam cínicas. Isso se passou nos primeiros dias de março, o
comandante lhe concedeu realmente quarenta e oito horas, e Stana foi
passar o sábado e o domingo em Praga para se casar. Lembro-me muito bem
disso, porque o dia do casamento de Stana foi, também para mim, uma data
muito importante.
Tive permissão de sair e, como estava triste desde a última licença
desperdiçada com o Poste, evitando os com panheiros, saí sozinho. Tomei
um velho bonde de bitola estreita que percorria um caminho cheio de
curvas, caminho esse que ligava entre si os distantes bairros de Ostrava, e
deixei-me levar ao sabor do vento. Em seguida desci ao acaso para, também
ao acaso, apanhar outra linha; toda essa periferia interminável de Ostrava,
em que se misturam estranhamente as fábricas e a natureza, os campos e os
depósitos de lixo, os bosques de árvores e os entulhos, grandes prédios e
casinhas campestres, me atraía e me perturbava de maneira extraordinária;
tendo deixado definitivamente o bonde, comecei um longo passeio a pé:
contemplava, quase com paixão, a estranha paisagem e esforçava-me por
decifrar-lhe o sentido; procurava o nome daquilo que confere unidade e
ordem a esse quadro tão disparatado; passando perto de uma casa idílica
coberta de hera, percebi que ela estava em seu verdadeiro lugar aqui
precisamente porque não combinava de maneira alguma com as altas
fachadas repugnantes que se erguiam nas proximidades, nem tampouco
com as silhuetas das escoras, das chaminés e dos altos fornos que lhe serviam
de pano de fundo. Percorri o caminho junto aos barracos de uma favela, um
pouco adiante vi uma villa, suja e cinzenta, é verdade, mas cercada por um
jardim e por uma grade; no canto do jardim, um chorão parecia ter-se
desgarrado dessa paisagem — e, no entanto, eu dizia comigo mesmo, é
justamente por isso que ele tem aqui o seu verdadeiro lugar. Essas
incompatibilidades me perturbavam, não apenas porque elas me apareciam
como o denominador comum da paisagem, mas, sobretudo, porque eu
enxergava nelas a imagem de meu próprio destino, de meu exílio aqui; e,
naturalmente, tal projeção da minha história pessoal na objetividade de
uma cidade inteira me proporcionava uma espécie de consolação; eu
compreendia que não pertencia a esse lugar, como a ele não pertenciam o
chorão e a casinha coberta de hera, como a ele não pertenciam as ruas
curtas levando a lugar nenhum, ruas compostas de construções
disparatadas; eu também não pertencia a esse lugar, outrora alegremente
rural, agora com essas horrendas quadras de barracos baixos, e me dava
conta de que era porque eu não pertencia a esse lugar que meu verdadeiro
lugar era aqui, nessa consternadora metrópole de incompatibilidades, nessa
cidade cujo abraço implacável envolvia tudo o que era estranho entre si.
Fui dar numa longa artéria de Petrkovice, outrora uma cidade, hoje um dos
subúrbios de Ostrava. Parei nas proximidades de um pesado edifício de um
andar, no canto do qual se destacava, vertical, a inscrição: CINEMA. Uma
pergunta me veio, fútil como só pode ocorrer a alguém que esteja
perambulando: como é que pode esse cinema não ter nome? Olhei
atentamente, mas nada mais estava escrito no prédio (que, aliás, não parecia
um cinema). Entre este e a casa ao lado, um espaço de mais ou menos dois
metros formava uma ruela; entrei nela e cheguei a um pátio; só ali é que se
via que o prédio tinha, nos fundos, uma ala lateral térrea; na parede havia
vitrines com pequenos anúncios publicitários e fotos de filmes; aproximei-
me, mas também ali não havia o nome do cinema; virei-me e, através de
uma grade de separação, enxerguei uma menina no pátio vizinho.
Perguntei-lhe como se chamava o cinema; a menina, com olhar espantado,
respondeu que não sabia. Resignei-me portanto a admitir que ele era
anônimo; que, nesse exílio de Ostrava, os cinemas não podiam nem mesmo
se permitir ter um nome.
Voltei (à toa) às vitrines e só então percebi que o filme anunciado por um
pequeno cartaz e duas fotografias era Tribunal de honra, filme russo. Aquele
mesmo cuja heroína Marketa invocou quando foi tomada pelo desejo de
representar em minha vida seu grande papel de misericordiosa, aquele
mesmo a cujas severidades os camaradas tinham-se referido por ocasião do
processo do Partido contra mim; tudo isso me fazia detestar esse filme, a
ponto de não querer mais ouvir falar dele; mas nem mesmo aqui em Ostrava
escapava de seu dedo acusador... Ora, se um dedo levantado nos desagrada,
basta que lhe viremos as costas. Foi o que fiz: quis voltar para a rua.
Então vi Lucie pela primeira vez.
Ela caminhava na minha direção; ia entrar no pátio do cinema; por que, ao
cruzar com ela, não continuei meu caminho? Teria sido por conta da
estranha ociosidade de minha perambulação? Teria sido a luz singular do
pátio nessa extraordinária tarde que me fez retardar os passos e me impediu
de voltar à rua? Ou teria sido o aspecto de Lucie? Aspecto, no entanto,
inteiramente comum, e, embora depois essa mesma comuneza me tivesse
tocado e atraído, como explicar o fato de ela me ter feito parar num primeiro
momento? Eu já não encontrara tantas vezes garotas comuns como ela nas
calçadas de Ostrava? Em que essa comuneza era tão extraordinária? Não
sei. De qualquer modo, fiquei parado no mesmo lugar, olhando a garota: com
passos lentos, sem pressa, ela dirigiu-se à vitrine com as fotos de Tribunal de
honra; depois, sempre sem pressa, afastou-se da vitrine e atravessou a porta
aberta por onde se chegava ao guichê. Sim, tinha sido sem dúvida essa
extraordinária lentidão de Lucie que me havia encantado tanto, lentidão
irradiando o sentimento resignado de que não havia nenhum motivo válido
para que nos precipitássemos e de que era inútil estender mãos impacientes
para qualquer coisa. Sim, talvez, na verdade, tivesse sido essa lentidão cheia
de melancolia que me tinha impelido a seguir com os olhos a garota,
enquanto ela se dirigia ao guichê, tirava o dinheiro, apanhava uma nota,
lançava um rápido olhar pela sala e depois voltava para o pátio.
Não tirei os olhos dela. Ela ficou de pé, com as costas viradas para mim,
contemplando ao longe, além do pequeno pátio, os jardins e as casas
campestres cercadas de pequenos tapumes, até o contorno de uma pedreira
escura que, lá no alto, quebrava a perspectiva. (Nunca vou esquecer esse
pátio, nenhum de seus detalhes; lembro-me da grade que o separava do
pátio vizinho, onde uma menina sonhava, sentada nos degraus da escada;
lembro-me desses degraus, que eram orlados por um pequeno muro
encimado por dois vasos de flor vazios e por um tacho cinzento; lembro-me
do sol enfumaçado que se inclinava ao nível da pedreira.) Eram dez para as
seis, isso queria dizer que faltavam dez minutos para o começo do
espetáculo. Lucie tinha se virado e, sem se apressar, deixava o pátio em
direção à rua; caminhei atrás dela; atrás de mim desaparecia o quadro dos
campos destroçados de Ostrava e aparecia de novo uma rua de cidade; a
cinquenta passos estendia-se uma pequena praça, muito bem cuidada, com
vários bancos, um minúsculo jardim gradeado e, reluzindo debilmente de
cima até embaixo, os tijolos de um edifício falsamente gótico. Eu observava
Lucie: ela sentara-se num banco; sua lentidão não a deixara um só
momento, por pouco eu teria dito que ela estava sentada lentamente; não
olhava em volta, não se mexia, sentada como se esperasse uma operação
cirúrgica ou alguma coisa que nos prende tanto a atenção que, ignorando o
que nos cerca, concentramos nossa atenção dentro de nós; é possível que
tenha sido essa circunstância que me tenha permitido rondá-la e examiná-la
sem que ela percebesse.
Fala-se muito de amor à primeira vista; sei muito bem que o amor tem
tendência a engendrar sua própria lenda, a mitificar seus começos; por isso,
não ouso afirmar que se tratava aqui de um amor tão rápido; mas dessa vez
houve de fato uma espécie de visão: a essência de Lucie ou — se devo ser
inteiramente preciso — a essência daquilo que Lucie se tornou depois para
mim, eu a compreendera, sentira, vira imediatamente e de uma só vez: foi
essa essência mesmo que Lucie me trouxe, como se trazem verdades
reveladas.
Eu a olhava, observava sua permanente de cidade do interior, que
transformava seu cabelo numa massa informe de cachinhos, observava seu
pequeno casaco marrom, miserável, surrado, e até um pouco curto demais;
observava seu rosto discretamente belo, belamente discreto; sentia nessa
moça tranquilidade, simplicidade e modéstia, e senti que eram valores dos
quais eu precisava; pareceu-me, aliás, que estávamos muito próximos;
pareceu-me que bastaria abordá-la, falar com ela, e que no momento em que
(finalmente) me olhasse nos olhos, ela iria sorrir, como se visse de repente o
irmão que não via há muitos anos.
Lucie levantou então a cabeça; olhou a hora na torre (esse movimento está
para sempre registrado na minha memória; movimento da moça que não
usa relógio de pulso e que, por automatismo, senta-se sempre em frente a
um relógio). Deixou seu banco e foi em direção ao cinema; quis aproximar-
me dela; não me faltava audácia, mas as palavras de repente me faltaram;
claro que estava com o peito cheio de sentimentos, mas sem uma sílaba na
cabeça; segui a moça até a entrada, de onde se via a sala deserta. Algumas
pessoas entraram e se dirigiram ao guichê; passando-lhes à frente, comprei
um bilhete para o filme detestado.
Depois disso, a moça entrou na sala; fiz o mesmo; nesse local meio vazio, os
números marcados nos bilhetes perdiam o sentido, cada um sentava onde
queria; enfiei-me na mesma fileira de Lucie e sentei-me ao seu lado. Em
seguida, um disco velho com música estridente começou a tocar, ficou
escuro e apareceram os anúncios na tela.
Lucie devia ter percebido que não era por acaso que um soldado de insígnias
negras tinha vindo sentar-se exatamente a seu lado, é claro que ela havia
percebido e sentido minha presença próxima, ainda mais que eu estava
inteiramente concentrado nela; não registrava nada do que se passava na
tela (que vingança irrisória: eu estava encantado porque o filme sob cuja
autoridade meus pregadores de moral me haviam levado a julgamento
tantas vezes se desenrolava à minha frente sem que eu prestasse atenção
nele).
Terminada a sessão, as luzes se reacenderam, os raros espectadores deixaram
suas cadeiras. Lucie levantou-se, apanhando sobre os joelhos seu casaco
marrom, e enfiou no braço uma manga. Coloquei depressa o boné para que
ela não visse meu crânio raspado e, sem dizer uma palavra, ajudei-a a enfiar
a segunda manga. Ela me olhou um breve momento e não disse nada, no
máximo tenha talvez inclinado a cabeça ligeiramente, mas não sei se foi uma
maneira de agradecer ou um movimento involuntário. Depois, a passos
curtos, saiu da fileira de cadeiras. Vestindo de novo, rapidamente, minha
japona verde (que, muito longa, devia me cair muito mal), segui-a de perto.
Ainda não havíamos chegado ao lado de fora quando lhe dirigi a palavra.
Como se duas horas ao lado dela, pensando nela, me tivessem sintonizado
com ela, de repente sabia falar-lhe, como se a conhecesse bem; não comecei
a conversa com uma brincadeira ou um paradoxo, como tinha o hábito de
fazer; agi com toda naturalidade — o que me surpreendeu, pois, na
presença de moças, até então tinha sempre tropeçado sob o peso das
máscaras que usava.
Perguntei-lhe onde morava, o que fazia e se ia muito ao cinema. Contei-lhe
que trabalhava nas minas, que esse trabalho era extenuante, que saía de
quando em quando.
Ela disse que tinha um emprego numa fábrica, que morava num alojamento
de jovens operárias, aonde tinha de estar de volta às onze horas, que ia
sempre ao cinema porque os bailes não a divertiam. Disse-lhe que iria com
ela com prazer ao cinema quando tivesse uma noite livre. Ela disse que
tinha o hábito de ir sozinha. Perguntei se era porque se sentia triste na vida.
Ela disse que sim. Disse-lhe que eu também não era alegre.
Nada aproxima mais as pessoas (mesmo que seja muitas vezes uma
aproximação falsa) do que um entendimento triste, melancólico; essa
atmosfera de entendimento pacífico, que adormece todos os temores e freios
e que envolve tanto as almas sutis quanto as vulgares, representa a maneira
de aproximação mais fácil e, no entanto, é tão rara: na realidade é preciso
afastar esse "equilíbrio mental" que inventamos para nós, os gestos e as
mímicas artificiais, e nos comportarmos com simplicidade; ignoro como
consegui isso (subitamente, sem me preparar), como pude chegar a isso, eu
que tateava sempre como um cego por detrás de minhas caras falsas; não sei
como aconteceu, mas sentia isso como um dom inesperado, uma libertação
miraculosa.
Dizíamos então sobre nós mesmos as coisas mais simples; fomos andando até
o seu alojamento e, lá, demoramos um pouco; uma lâmpada inundava Lucie
de claridade e eu olhava seu pequeno casaco marrom e acariciava, não o seu
rosto ou os seus cabelos, mas o tecido gasto daquela roupa comovente.
Lembro-me ainda de que a lâmpada balançava de lá para cá, que à nossa
volta passaram moças que, dando risadas sonoras e desagradáveis, abriram a
porta de entrada, vejo novamente a perspectiva vertical do imóvel, suas
paredes cinzentas e nuas com janelas sem peitoril; recordo-me também do
rosto de Lucie, que (comparado ao de ou trás moças que eu conhecera em
circunstâncias semelhantes) estava absolutamente tranquilo, sem
perturbação, lembrando a expressão de uma aluna no quadro-negro, que se
limita à modesta exposição (sem teimosia aborrecida e sem astúcia) do que
sabe, indiferente tanto à nota quanto ao elogio.
Combinamos que eu lhe enviaria um cartão avisando quando teria uma
nova permissão e quando poderíamos rever-nos. Despedimo-nos (sem nos
beijar, sem nos tocar) e eu parti. Depois de alguns passos, voltei-me e a vi na
soleira da porta, segurando sua chave, imóvel, olhando para mim; só agora,
que eu me encontrava a alguma distância, ela tinha abandonado sua
reserva, e seus olhos (tímidos até então) fixavam-me longamente. Depois,
ergueu a mão como alguém que nunca fez esse gesto, que não sabe como
fazê-lo, que sabe apenas que para dizer adeus se agita a mão e que, por essa
razão, resolve desajeitadamente tentar fazer o movimento. Eu me detive e
devolvi-lhe o aceno; nós nos olhamos de longe, fui embora novamente, parei
mais uma vez (Lucie prolongando sempre o movimento de sua mão), e
assim, devagar, distanciei-me até a esquina da rua, que nos fez desaparecer
um para o outro.
Dessa noite em diante, tudo em mim se transformou; tornei-me de novo
habitado; de repente uma arrumação foi feita em mim, como num quarto, e
alguém vivia ali. O relógio da parede, com os ponteiros parados há muitos
meses, repentinamente fazia ouvir de novo o seu tique-taque. Isso era
importante: o tempo, que até então passara como uma corrente indiferente,
de nada em direção a um outro nada (já que eu estava numa pausa!), sem
ponto de referência, sem medida, pouco a pouco readquiria sua aparência
humanizada: recomeçava a se articular e a bater em desacordo com a hora.
Subitamente passei a dar valor às licenças para deixar o quartel, e os dias se
tornaram degraus de uma escada que eu subia para encontrar Lucie.
Nunca mais dediquei a outra mulher tantos pensamentos, tanta atenção
silenciosa (isso, aliás, porque nunca mais tive tanto tempo disponível).
Nunca senti tanta gratidão por outra mulher.
Gratidão? Por quê? Lucie, para começar, tirou-me do círculo daquele
lamentável horizonte amoroso que nos prendia a todos. É claro: recém-
casado, Stana também, à sua maneira, tinha rompido esse círculo; tinha
agora em sua casa, em Praga, a mulher que amava, em quem podia pensar.
No entanto, não havia por que invejá-lo. Com seu casamento, tinha posto
em movimento seu destino, mas, no momento em que subia no trem para
voltar a Ostrava, perdia toda ascendência sobre ele.
Descobrindo Lucie, eu também pusera meu destino em movimento, mas
não o perdera de vista; apesar de espaçados, meus encontros com Lucie se
beneficiavam de uma frequência quase regular, e eu sabia que ela era capaz
de me esperar quinze dias ou mais, acolhendo-me depois como se nossa
última separação tivesse sido na véspera.
Mas Lucie não me libertara apenas da náusea geral provocada pelo
desespero das aventuras amorosas de Ostrava. Eu já sabia, é verdade, que
havia perdido meu combate e que não conseguiria mudar nada em relação
às minhas insígnias negras, sabia que era absurdo tentar fechar-me em mim
mesmo diante de homens com os quais deveria passar dois anos ou mais, que
era absurdo reclamar sem parar o direito de seguir meu próprio caminho
(cujo caráter privilegiado eu começava a compreender), mas essa mudança
de atitude era decorrente apenas da razão e da vontade, portanto incapaz
de estancar o pranto interior que eu derramava sobre meu destino perdido.
Esse pranto interior, Lucie acalmou como que por um feitiço. Bastava senti-
la a meu lado, com toda a sua vida na qual não desempenhavam nenhum
papel o cosmopolitismo, nem o internacionalismo, nem a vigilância, nem a
luta de classes, nem as controvérsias sobre a definição da ditadura do
proletariado, nem a política com sua estratégia e sua tática.
Foi por causa dessas preocupações (tão características da época que logo
depois seu vocabulário tornou-se ininteligível) que naufraguei; eram elas
justamente que me atormentavam. Chamado a comparecer diante de
diversas comissões, consegui enumerar dezenas de motivos que me haviam
levado ao comunismo, mas aquilo que, no movimento, me havia acima de
tudo fascinado, enfeitiçado mesmo, tinha sido o volante da História, perto
do qual eu me encontrava (ou pensava que me encontrava). Na verdade,
naquele tempo nós decidíamos realmente o destino das pessoas e das coisas;
e isso exatamente nas universidades: como nesse tempo os membros do
Partido no seio das assembleias dos professores eram contados nos dedos de
uma só mão, os estudantes comunistas, no decorrer dos primeiros anos,
assumiam quase sozinhos a direção das faculdades, decidindo sobre as
nomeações de professores, a reforma do ensino e dos programas. A
embriaguez que sentíamos é chamada comumente de embriaguez do poder,
no entanto (com um pouco de boa vontade) eu poderia empregar palavras
menos severas: estávamos seduzidos pela História; estávamos inebriados por
termos montado o cavalo da História, inebriados por termos sentido seu
corpo sob nossas nádegas; na maior parte dos casos, isso acabava tornando-se
uma abominável sede de poder, mas (como todos os problemas humanos são
ambíguos) existia ao mesmo tempo nisso a bela ilusão de que estávamos
inaugurando a época em que o homem (cada um dos homens) não ficaria
mais fora da História, nem sob as botas da História, mas a conduziria e a
moldaria.
Eu estava convencido de que, afastado desse volante da História, a vida
não era vida, mas sim semimorte, tédio, exílio, Sibéria. E agora (depois de seis
meses de Sibéria) eu vislumbrava de repente uma possibilidade de existir,
nova e imprevista: diante de mim estendia-se, dissimulada sob a asa da
História em pleno voo, a campina esquecida do cotidiano, onde uma mulher
pobre e modesta, contudo digna de amor, me esperava: Lucie.
Que poderia Lucie saber sobre essa grande asa da História? O ruído
ensurdecido da História mal lhe roçara os ouvidos; ela ignorava tudo sobre a
História; vivia abaixo dela; não tinha sede dela; nada sabia sobre as
inquietações grandes e temporais, vivia para suas inquietações pequenas e
eternas. E eu, de repente, estava livre; parecia que ela tinha vindo
procurar-me para me levar para seu paraíso cinzento; e o passo que um
momento antes me parecera perigoso, o passo que me levara "para fora da
História", subitamente foi para mim o passo do alívio e da felicidade. Tímida,
Lucie segurava-me pelo cotovelo e eu me deixava conduzir...
Lucie era minha operária cinzenta. Mas quem era Lucie, em termos mais
concretos? Tinha dezenove anos, mas na realidade muito mais, como
acontece com muitas mulheres que tiveram uma vida difícil e que foram
impelidas bruscamente da infância para a idade adulta. Disse que nascera
em Cheb, que frequentara a escola até os quatorze anos, antes de ir para a
aprendizagem. Não gostava de falar sobre a família, e, se o fazia, era só
porque eu a forçava. Não tinha sido feliz em casa: — Minha família não
gostava de mim — dizia ela.
Dava exemplos que confirmavam isso: sua mãe casara novamente; seu
padrasto bebia e era mau para ela; uma vez suspeitaram que ela tivesse
roubado dinheiro deles; e ainda por cima a espancavam. Quando o
desentendimento chegou a um certo ponto, Lucie, aproveitando uma
oportunidade, fugiu para Ostrava. Já vivia aqui há mais de um ano; tinha
amigas; mas preferia sair sozinha; as amigas iam dançar e levavam os
amiguinhos para o alojamento; e isso ela não queria; ela era séria: preferia ir
ao cinema.
Sim, ela se julgava "séria", identificando essa qualidade com o seu prazer em
ir ao cinema; gostava sobretudo dos filmes de guerra, muito frequentes na
ocasião; sem dúvida gostava deles porque os achava interessantes; mas era
possível que fosse mais pelo fato de eles mostrarem sofrimentos terríveis,
cujas imagens carregadas de dor e aflição Lucie sorvia, achando que esses
sentimentos eram os mais apropriados para educá-la e apoiá-la nesse "sério"
que ela tanto apreciava em si mesma.
É claro que seria um erro pensar que o que me atraía em Lucie era apenas o
exotismo de sua simplicidade; sua ingenuidade e as lacunas de sua instrução
não impediam nem um pouco que ela me compreendesse. Essa
compreensão não repousava sobre uma soma de experiências ou de
conhecimentos, sobre uma aptidão para debater um problema e para dar
um conselho, mas sim sobre a receptividade intuitiva com que ela me
escutava.
Lembro-me de um dia de verão: dessa vez pude deixar o quartel antes que
Lucie saísse de seu trabalho; por isso, pegara um livro; sentado num
pequeno muro, eu lia; quanto à leitura, esta não ia bem, eu tinha pouco
tempo e pouco contato com meus amigos de Praga; mas na minha bagagem
de prisioneiro trouxera três livros de poemas em que mergulhava
constantemente, buscando neles consolo: os poemas de Frantisek Halas.
Esses livros representaram na minha vida um papel especial, tanto por eu
não ser leitor de poesia, quanto por terem sido eles os únicos livros de versos
de que gostei. Descobri-os depois de minha expulsão do Partido; justamente
nessa época, o nome de Halas se tornara célebre de novo, pois o ideólogo-
chefe daqueles anos acabara de acusar o poeta, morto recentemente, de
morbidez, falta de fé, existencialismo e tudo o que na época soava como
reprovação política. (A obra em que ele reunira suas opiniões sobre a poesia
tcheca e sobre Halas fora publicada então com uma enorme tiragem, e
milhares de círculos de jovens a estudavam como texto obrigatório.) Mesmo
que isso possa parecer um pouco ridículo, confesso: a necessidade dos versos
de Halas tinha vindo do meu desejo de conhecer um outro excomungado;
queria saber se meu universo mental era de fato semelhante ao seu; queria
tentar ver se a tristeza, da qual o influente ideólogo proclamava o aspecto
patológico e pernicioso, não poderia, ao se identificar com a minha,
proporcionar-me uma forma de alegria (porque, na minha situação, a alegria
não podia ser procurada na alegria). Antes de tomar o caminho de Ostrava
pedira emprestado os três livrinhos a um velho condiscípulo entusiasta de
literatura e obtivera, depois de muitas súplicas, a promessa de que ele não
me exigiria a sua devolução.
Quando Lucie naquele dia me encontrou no lugar combinado, com um livro
na mão, perguntou-me o que eu estava lendo. Estendi-lhe o livro aberto.
— Poesias? — disse ela, espantada.
— Você acha estranho que eu leia poesias? Esboçando um levantar de
ombros, ela respondeu: — Para quê? Mas acho que sua surpresa era
verdadeira, porque muito provavelmente, para ela, a poesia se confundia
com a ideia de leituras infantis. Estávamos ali perambulando naquele
estranho verão de Ostrava, cheio de fuligem, um verão negro, em que
corriam no alto, como nuvens de leite, cestas de carvão que deslizavam em
longos cabos. Percebi que o livro que eu tinha nas mãos a atraía. Por isso,
quando nos sentamos num bosquezinho raquítico, tornei a abri-lo,
perguntando-lhe: — Então isso lhe interessa? Ela fez que sim com a cabeça.
Nem antes nem depois desse episódio li versos para quem quer que fosse;
possuo um pequeno sistema que funciona bem, um fusível de pudor, que
impede que eu me desnude demais diante das pessoas, revelando meus
sentimentos; ora, ler versos, para mim, não é apenas como se eu falasse de
meus sentimentos, mas como se, ao fazê-lo, ficasse equilibrado num pé só;
como se alguma coisa de compassado, no próprio princípio do ritmo e da
rima, me embaraçasse tanto que para fazê-lo precisasse estar só. Mas Lucie
possuía o poder mágico (que depois dela nunca mais ninguém teve) de
fazer funcionar o fusível e desfazer meus escrúpulos. Diante dela, eu podia
me permitir tudo: mesmo a sinceridade, o sentimento, o patético. E assim li:
Magra espiga o teu corpo de onde grão que cai não germina Qual espiga
magra é teu corpo Novelo de seda o teu corpo gravado de desejo até o
último sulco Qual novelo de seda é teu corpo Céu de cinzas o teu corpo Nas
tuas fibras a Morte espreita e sonha Qual céu de cinzas é teu corpo Silêncio
sem par o teu corpo Dos seus prantos tremem as minhas pálpebras Como
teu corpo é silencioso* Eu tinha passado um braço sobre seu ombro (coberto
com o tecido leve de um vestidinho de flores), que eu sentia sob meus
dedos; sucumbi à sugestão oferecida de que os versos que eu lia (essa lenta
litania) falavam da tristeza do corpo de Lucie, corpo mudo, resignado,
condenado a morrer. Depois li outros poemas, e mais este que ainda hoje me
traz sua imagem de volta e que termina com este terceto: * Estes é os demais
poemas contidos no presente volume foram traduzidos por Adalgisa
Campos da Silva. (N. da T.) Ó demência das palavras falsas. Eu creio no
silêncio mais forte que a beleza mais forte que tudo Ó júbilo dos que se
compreendem em silêncio Bruscamente, meus dedos sentiram que o ombro
de Lucie sacudia-se; Lucie soluçava.
O que provocara esse choro? O sentido dos versos? Ou quem sabe a indizível
melancolia que emanava das palavras, do timbre da minha voz? Ou talvez o
hermetismo grave dos poemas a teria elevado, e essa elevação a comovera
até as lágrimas? Ou, simplesmente, os versos fizeram com que se rompesse
nela uma tranca secreta, liberando um peso acumulado há muito tempo?
Não sei. Como uma criança, Lucie se agarrara ao meu pescoço, com a cabeça
apertada contra o tecido verde que cobria meu peito, e ela chorava,
chorava, chorava.
Quantas vezes, nesses últimos anos, mulheres de toda espécie criticaram
(apenas porque não sabia retribuir seus sentimentos) minha presunção. É
um absurdo, não sou presunçoso, mas, para dizer a verdade, eu mesmo fico
desolado de ser incapaz, na minha idade, de estabelecer uma relação
verdadeira com uma mulher, de não ter nunca, como se diz, amado
ninguém. Não sei se conheço as razões desse fracasso, não sei se esses
defeitos do coração são inatos ou se suas raízes se encontram na minha
biografia; não quero cair no patético, mas é assim: nas minhas lembranças,
muitas vezes surge uma sala onde cem pessoas, levantando o braço,
decretam a destruição de minha vida; essa centena de pessoas não sabia que
um dia as coisas começariam lentamente a mudar; elas supuseram que
minha proscrição seria para sempre. Não pelo prazer de ruminar amarguras,
mas por uma teimosia que é própria da reflexão, muitas vezes inventei
variantes de minha história, imaginando então o que poderia ter acontecido
se tivessem proposto, em vez de minha expulsão, meu enforcamento.
Nunca cheguei a concluir outra coisa senão que, mesmo nessa
eventualidade, todos teriam levantado a mão, principalmente se o relatório
preliminar tivesse justificado em termos líricos a oportunidade benéfica de
meu castigo. Depois disso, ao fazer novos conhecimentos, homens e
mulheres, amigos novos ou possíveis amantes, eu os transfiro em
pensamento para essa época e para essa sala e me pergunto se eles
levantariam a mão; ninguém resiste a esse exame: todos levantam a mão
como fizeram naquela época (alguns apressadamente, alguns a contragosto,
por convicção ou por temor) meus amigos e conhecidos. Vamos admitir
então: é difícil viver com pessoas prontas a nos mandar para o exílio ou para
a morte, é difícil fazê-las íntimas, é difícil amá-las.
Talvez fosse injusto de minha parte submeter as pessoas que eu conhecia a
um exame imaginário tão cruel, já que o mais provável era que elas tivessem
passado comigo uma vida mais ou menos calma, para além do bem e do mal,
sem nunca atravessar a sala onde se erguem as mãos. Talvez alguém
pudesse até mesmo dizer que meu comportamento tinha um único objetivo:
alçar-me, numa presunção moral, acima dos outros. Mas a acusação de
presunção não seria justa; é verdade que eu nunca votara pela ruína de
quem quer que fosse, mas sabia perfeitamente que esse mérito era
hipotético, tendo sido muito cedo privado do direito de levantar a mão. Por
muito tempo, é verdade, tentei persuadir-me pelo menos de que numa
circunstância semelhante eu não me teria comportado como os outros; não
obstante, tinha probidade suficiente para zombar de mim: seria o único a
não levantar a mão? Seria o único justo? Ah, não, não encontrava em mim a
menor garantia de ser melhor que os outros; mas em que é que isso muda
minha relação com o próximo? A consciência de minha própria miséria não
me reconcilia em absoluto com a miséria de meus semelhantes. Nada me
repugna mais do que ver as pessoas confraternizando porque cada um vê
no outro sua própria baixeza. Não me identifico com essa fraternidade
asquerosa.
Como pude então amar Lucie? As reflexões que deixei escapar há pouco
são, felizmente, mais recentes, assim pude (nessa idade mais inclinada ao
tormento que à reflexão), com um coração ávido e sem dúvidas, aceitar
Lucie como um dom; um dom dos céus (céus cinzentos e benevolentes). Foi
uma época feliz para mim, a mais feliz, talvez; eu estava exausto,
alquebrado, farto de tanta chateação, mas, no fundo de mim, cada novo dia
espalhava uma paz cada vez mais azul. É engraçado: se as mulheres que
hoje me acusam de presunção e que desconfiam que considero todo mundo
imbecil tivessem conhecido Lucie, teriam-na considerado uma idiota e não
poderiam compreender como pude amá-la. E eu a amava tanto que não
podia imaginar que jamais pudéssemos nos separar; é verdade que nunca
disse isso a Lucie, mas estava convicto de que um dia nos casaríamos. E, se
essa união me parecia desigual, essa desigualdade me atraía mais do que me
repugnava.
Eu deveria ser reconhecido ao nosso comandante da época por esses curtos
meses de felicidade; os suboficiais nos perseguiam o máximo que podiam,
examinando as pregas de nossos uniformes para encontrar nem que fosse
um mínimo de sujeira, desarrumando nossas camas se as dobras dos cantos
não estivessem impecáveis, mas o comandante, esse era correto. Não muito
jovem, viera de um regimento de infantaria; fora rebaixado de posto,
segundo diziam. Portanto, ele também tinha sido punido, e isso, talvez, nos
tinha aproximado secretamente; é óbvio que exigia de nós ordem e
disciplina, além de um dia de trabalho voluntário um domingo ou outro (a
fim de poder comprovar sua atividade política junto a seus superiores), mas
ele não nos perseguia sem razão e nos concedia sem dificuldades licença um
sábado sim, outro não; naquele verão, acho mesmo que pude ver Lucie até
três vezes por mês.
Os dias em que ficava sem ela, escrevia-lhe inúmeras cartas e cartões-
postais. Hoje em dia, não sei mais muito bem o que nem como lhe escrevia,
mas o que foram essas cartas não importa tanto; queria mesmo era acentuar
que eu escrevia muitas, e Lucie nenhuma.
Conseguir que ela me respondesse estava além de minhas possibilidades;
talvez minhas cartas a tivessem assustado; talvez tivesse a impressão de que
não sabia o que me escrever, que cometia erros de ortografia; talvez tivesse
vergonha de sua letra desajeitada, da qual eu não conhecia senão a
assinatura na carteira de identidade. Não consegui persuadi-la de que
gostava de sua falta de jeito e de suas ignorâncias, porque revelavam uma
Lucie intacta, oferecendo-me assim a esperança de poder imprimir nela
uma marca ainda mais profunda, ainda mais indelével.
Lucie primeiro apenas agradeceu timidamente as minhas cartas; depois
teve vontade de me oferecer alguma coisa em troca e, como não queria
escrever, decidiu-se por flores. Eis como isso aconteceu: passeávamos num
bosque de árvores esparsas; Lucie de repente inclinou-se para colher unia
flor e ofereceu-a a mim. Achei isso comovente e nada surpreendente. Mas,
quando no encontro seguinte ela me esperou com um buquê inteiro, fiquei
um pouco desconcertado.
Tinha vinte anos, fugia de tudo que pudesse projetar em mim a menor
sombra efeminada ou impúbere; na rua, tinha vergonha de carregar flores,
desagradava-me comprá-las e mais ainda recebê-las. Constrangido,
expliquei a Lucie que eram os homens que as ofereciam às mulheres, e não o
contrário, mas, vendo-a à beira das lágrimas, apressei-me em elogiá-las e
aceitá-las.
Não houve nada a fazer. Desse dia em diante, em cada um de nossos
encontros um buquê me esperava, e acabei acostumando-me, porque a
espontaneidade do presente me desarmava e porque compreendi que Lucie
gostava dessa forma de presentear; sofria talvez com a pobreza de sua
eloquência e via nas flores uma maneira de falar; não segundo o pesado
simbolismo da antiga linguagem das flores, mas sim num sentido ainda mais
arcaico, mais nebuloso, mais instintivo, pré-linguístico; talvez, tendo sempre
preferido calar-se em vez de falar, Lucie sonhasse com o tempo em que, não
existindo as palavras, as pessoas conversavam por meio de pequenos gestos:
com o dedo mostravam uma árvore, riam, tocavam um ao outro.. .
Tendo eu ou não elucidado o verdadeiro sentido dos presentes de Lucie,
eles afinal tinham-me comovido e tinham despertado em mim o desejo de
lhe dar também um presente. Lucie possuía só três vestidos, que mudava
sempre na mesma ordem, de modo que nossos encontros se sucediam com a
cadência de um compasso de três tempos. Eu gostava bastante desses
vestidos, justamente porque eram usados, surrados, de um certo mau gosto;
agradavam-me tanto quanto seu casaco marrom (puído na dobra das
mangas), que eu aliás acariciara antes de acariciar o rosto de Lucie. E no
entanto tinha decidido que ia comprar-lhe um vestido, um belo vestido,
muitos vestidos. Um dia, levei Lucie a uma grande loja.
Primeiro ela pensou que estávamos ali por curiosidade, para observar a
multidão subir e descer as escadas. No segundo andar, parei diante de
longos suportes onde estavam penduradas roupas de mulher numa densa
procissão, e Lucie, notando que eu os examinava com interesse, aproximou-
se e comentou algumas dessas roupas.
— Esse aqui é bonito — disse ela, mostrando um vestido de flores vermelhas,
reproduzidas minuciosamente.
Havia ali de fato poucas coisas bonitas, mas por fim encontramos algo.
Apanhei um vestido e chamei o vendedor: — A senhorita pode
experimentar isso? Lucie talvez quisesse protestar, só que, diante de um
estranho, o encarregado da seção, ela não ousava, de maneira que se viu na
cabina sem saber como.
Pouco depois, afastei um pouco a cortina para olhá-la; embora o vestido não
tivesse nada de sensacional, eu não conseguia acreditar: seu modelo quase
moderno tinha, como que por encanto, transformado Lucie numa outra
criatura.
— Dá licença? — disse o vendedor por trás de mim, e elogiou prolixamente
Lucie e o vestido. Depois agradeceu-me com um olhar, a mim e às minhas
insígnias, perguntando (se bem que a resposta fosse antecipadamente
evidente) se eu fazia parte dos "políticos". Fiz que sim com a cabeça. Ele
piscou um olho, sorriu e disse: — Tenho um artigo melhor; quer ver? — E no
mesmo instante mostrou uma coleção de vestidos de verão e mais um
vestido de toalete preto. Lucie experimentou-os um depois do outro, todos
lhe ficavam maravilhosamente bem, cada um deles a transformava, e, com
o belo vestido preto, eu não a reconheci mais.
Os momentos decisivos na evolução do amor nem sempre procedem de
acontecimentos dramáticos, muitas vezes são decorrentes de circunstâncias
que são à primeira vista perfeitamente insignificantes. Assim foi nossa visita
à loja de vestidos. Até então Lucie representava para mim todas as
possibilidades: a criança, a fonte de ternura e consolo, o bálsamo e a evasão
de mim mesmo, quase ao pé da letra ela era tudo para mim — exceto a
mulher. Nosso amor, na concepção sensual da palavra, não tinha
ultrapassado o limite dos beijos. Além disso, até a maneira que Lucie tinha
de beijar era infantil (eu era fascinado pelos longos beijos castos de lábios
fechados, secos, que no roçar da carícia faziam sentir de modo
inefavelmente comovente suas finas estrias verticais).
Em resumo, até então eu sentia por ela ternura, mas não sensualidade;
acostumara-me tanto com essa ausência que não prestava atenção nela;
minha ligação com Lucie me parecia tão bela que nem me ocorria a ideia de
que nela faltasse alguma coisa. Que associação harmoniosa: Lucie; suas
roupas cinza, monásticas; e, monasticamente casta, a minha relação com ela.
No momento em que Lucie vestira uma roupa nova, a equação inteira foi
abalada: Lucie de repente abandonou minhas imagens de Lucie. Vi as
pernas que se desenhavam sob a saia bem cortada, as proporções do corpo
equilibradas com graça, uma mulher bonita cuja discrição apagada se
dissolvera numa roupa de cor definida e de forma elegante. Essa súbita
descoberta de seu corpo me deixava ofegante.
No alojamento, Lucie ocupava um quarto com outras três moças; as visitas
só eram permitidas dois dias por semana, apenas durante três horas, de
cinco às oito, e o visitante ainda tinha que inscrever seu nome na portaria,
no andar térreo, onde deveria deixar sua carteira de identidade e
apresentar-se novamente ao sair. Além disso, cada uma das três
companheiras de Lucie tinha um ou mais amantes que era preciso receber
na intimidade do quarto comum, de modo que elas brigavam, se detestavam
e reclamavam de cada minuto que lhes era tomado. No entanto, eu sabia
que essas três locatárias deviam partir dentro de um mês, para se juntar a
uma brigada agrícola de três semanas. Disse a Lucie que queria aproveitar
esse período para ir vê-la em sua casa. Ela ficou triste e disse que minha
companhia lhe agradava mais fora de casa. Eu lhe disse que queria
encontrar-me com ela num lugar em que ninguém e nada nos incomodasse,
para que pudéssemos ficar inteiramente um com o outro; e que além disso
queria ver como era o lugar onde ela morava. Lucie não sabia resistir a mim e
ainda hoje lembro-me de minha emoção quando ela acabou concordando
com minha proposta.
Eu já havia passado quase um ano em Ostrava, e o trabalho, insuportável a
princípio, tornara-se uma coisa banal e rotineira; no meio de todos os
aborrecimentos, eu conseguia sobreviver, tinha feito dois ou três amigos,
estava feliz; era para mim um belo verão (as árvores estavam cheias de
fuligem; no entanto, meus olhos, acostumados com a escuridão das galerias,
as enxergavam extremamente verdes), só que, como se sabe, a semente da
infelicidade se esconde no coração da felicidade: os tristes problemas do
outono foram concebidos durante esses meses de verão verde-negro.
Começou com Stana. Ele se casara em março e, alguns meses mais tarde, lhe
chegaram as primeiras notícias: sua mulher vivia nas boates; nervoso, ele lhe
escreveu uma série de cartas, as respostas chegavam tranquilizadoras; então
(com o tempo bom) sua mãe veio a Ostrava; eles ficaram juntos um sábado
inteiro, e ele voltou ao quartel pálido e taciturno; a princípio, envergonhado,
não quis contar nada; no dia seguinte, no entanto, abriu-se com Honza,
depois com alguns outros; e, quando viu que todo mundo estava a par, falou
mais ainda sobre isso, todos os dias, sem parar: que sua mulher tinha virado
puta, que ele ia ter uma conversa com ela, que lhe torceria o pescoço. E logo
em seguida foi procurar o comandante para pedir dois dias de licença, só
que o comandante hesitou em concedê-los, porque justamente naqueles
dias recebera muitas queixas (tanto da caserna quanto das minas) contra
Stana, constantemente distraído e irritado. Este suplicou que lhe
concedessem ao menos vinte e quatro horas. Compadecido, o comandante
concordou. Stana partiu e não o vimos nunca mais. O que aconteceu sei
apenas por ouvir dizer: Ele chegou em Praga, avançou na mulher (digo
mulher, mas era uma garota de dezenove anos!) e ela, com despudor (e
talvez com prazer), confessou-lhe tudo; ele começou batendo nela, ela se
defendeu, ele tentou estrangulá-la e, para terminar, deu-lhe com uma
garrafa na cabeça; a garota caiu no chão e não se mexeu. Stana, tomado de
pânico, fugiu; sabe Deus como foi que ele descobriu um pequeno chalé no
fundo das montanhas e lá ficou à espera de ser preso e mandado para a
forca. Vieram realmente prendê-lo depois de dois longos meses, só que ele
foi julgado não por assassinato, mas por deserção. Na realidade, pouco
depois da partida de Stana, sua mulher recuperou os sentidos e, afora um
galo na cabeça, ficou incólume. Enquanto ele estava na prisão militar, ela se
divorciou e hoje é mulher de um conhecido ator de Praga que vou ver de
vez em quando, para lembrar de meu velho companheiro que acabaria de
maneira triste: terminado o serviço militar, ele continuou nas minas; um
acidente de trabalho privou-o de uma perna, e uma amputação mal
cicatrizada, da vida.
Essa mulher, que segundo dizem continua brilhando nos meios artísticos,
não trouxe azar apenas para Stana, mas para todos nós. Essa era pelo menos
a nossa impressão, apesar de não nos ter sido possível discernir com precisão
se havia de fato (como todo mundo pensava) relação de causa e efeito entre
o escândalo que envolveu o desaparecimento de Stana e a chegada pouco
depois em nosso quartel de uma comissão de controle ministerial. Em todo
caso, nosso comandante foi removido e substituído por um jovem oficial
(tinha apenas vinte e cinco anos), cuja chegada mudou tudo.
Eu disse que ele tinha vinte e cinco anos, mas tinha um ar muito mais
jovem, tinha um ar de garoto; e por isso se esforçava ao máximo para
impressionar. Não gostava de gritar, falava secamente, fazendo-nos
compreender bem, com uma calma imperturbável, que nos tomava a todos
por criminosos.
— Sei que o que vocês mais gostariam seria de me ver enforcado — declarou
esse garoto logo no seu discurso de chegada. — O problema é que, se alguém
tiver de ser enforcado, serão vocês, e não eu.
Os primeiros conflitos não demoraram. A história de Cenek, em particular,
ficou na minha memória, provavelmente porque a achamos muito
divertida: desde que se incorporara, havia um ano, Cenek tinha feito muitos
dos grandes murais que, sob o comando anterior, haviam tido sempre a
felicidade de agradar. Seus assuntos preferidos, como mencionei
anteriormente, eram Jan Zizka, o grande capitão das guerras hussitas, e seus
guerreiros medievais; interessado em divertir a rapaziada, ele acrescentava
a esses grupos a imagem de uma mulher nua, que apresentava ao
comandante como um símbolo da liberdade ou da pátria. O novo
comandante da unidade, tendo resolvido por sua vez recorrer aos serviços
de Cenek, mandou chamá-lo a fim de pedir-lhe que pintasse alguma coisa
para enfeitar a sala destinada aos cursos de educação política. Disse-lhe
então que dessa vez deixasse de lado a velha mania por Zizka para "inspirar-
se mais na atualidade"; o quadro deveria representar o Exército Vermelho e
sua união com nossa classe operária, e também sua importância na vitória do
socialismo em Fevereiro. Cenek dissera: "Muito bem, meu comandante!" e
começara a trabalhar; ficou várias tardes trabalhando em cima de imensos
papéis brancos, colocados no chão, que depois prendeu com pequenos
pregos em toda a extensão da parede de fundo. Quando vimos o desenho
terminado (um metro e meio de altura por oito de comprimento), o silêncio
foi total: no meio, plantado numa pose de herói, um soldado russo bem
agasalhado, de metralhadora a tiracolo, gorro de pele até as orelhas, rodeado
por todos os lados por oito mulheres nuas. Duas, a seu lado, olhavam-no com
ar insinuante, enquanto ele as segurava pelo ombro, a cara agitada por um
riso obsceno; as outras mulheres o cercavam, estendiam-lhe os braços, ou
simplesmente estavam ali plantadas (havia também uma deitada), expondo
suas belas formas.
Cenek pôs-se diante do quadro (estávamos sós na sala, esperando o
comissário) e fez a seguinte conferência: — Bem, essa à direita do sargento é
Alena, senhores, foi a primeira mulher da minha vida, eu tinha dezesseis
anos quando ela teve um caso comigo, era amante de um oficial, por isso
está muito bem colocada aqui. Desenhei-a com o porte que tinha naquela
época, evidentemente hoje em dia não está a mesma, mas naquele tempo
não era malfeita, como vocês podem verificar, sobretudo nos quadris (ele os
mostrava com o dedo indicador). Como era muito mais bonita de costas,
desenhei-a de novo ali (andou até um dos lados da composição, apontou o
dedo na direção de uma mulher que, mostrando o traseiro nu para o
público, parecia estar dirigindo-se a algum lugar). Reparem suas ancas de
rainha, é possível que as medidas excedam um pouco o normal, mas era por
isso mesmo que gostávamos dela. Olhem essa aqui (indicava a mulher à
esquerda do sargento), é Lojzka; quando a possuí, eu já era maior de idade;
ela tinha seios pequenos (ele mostrou-os), pernas compridas (mostrou-as),
um rosto incrivelmente bonito (mostrou-o também), e era da minha turma
na Escola. .Quanto àquela ali, era nosso modelo nas Artes Decorativas,
conheço-a de cor, e os vinte caras que estudavam de modelo; nunca
ninguém encostou o dedo nela, sua mãe a esperava sempre na saída para
levá-la imediatamente de volta para casa, que Deus perdoe essa moça, nós,
os rapazes, só a desenhávamos com a melhor das intenções. Em
compensação, essa aqui, senhores, era uma puta (designou uma pessoa
deitada sobre um estranho sofá estilizado), aproximem-se, venham ver (o
que fizemos), na barriga, bem aqui, estão vendo? Queimada por um cigarro,
supostamente por uma amante ciumenta, porque essa senhora, senhores, se
dava com os dois lados, ela tinha um sexo que era um verdadeiro acordeom,
senhores, tinha lugar para todo mundo, poderíamos entrar todos ali,
levando ainda nossas mulheres, nossas amantes, nossos filhos e nossos
bisavós.. . Cenek ia certamente abordar a melhor parte de sua exposição,
quando o comissário entrou na sala do curso e tivemos que voltar para
nossos bancos. Acostumado com os trabalhos de Cenek desde a época do
antigo comandante, o comissário, perfeitamente indiferente ao novo
quadro, começou a ler em voz alta um folheto que explicava as diferenças
entre um exército socialista e um exército capitalista. O discurso de Cenek
ressoava ainda dentro de nós; estávamos embalados num doce sonho,
quando o comandantezinho apareceu na sala. Viera sem dúvida assistir à
sessão de estudo, mas, antes de poder receber o relatório regulamentar do
comissário, teve um choque ao olhar o grande mural; sem nem deixar o
comissário retomar sua leitura, num tom glacial, perguntou a Cenek o que
representava aquele quadro. Cenek deu um salto, plantou-se diante de sua
obra e declamou: — Eis aqui uma alegoria simbolizando a importância do
Exército Vermelho na luta de nosso povo. Aqui (mostrou o sargento), o
Exército Vermelho; de cada lado figuram os símbolos da classe operária
(mostrou a amante do oficial) e as gloriosas jornadas de Fevereiro (mostrou
sua companheira de estudos). Eis aqui (mostrou outras mulheres) a alegoria
da Liberdade, da Vitória e da Igualdade; e aqui (mostrou a amante do oficial
com o traseiro de fora) identificamos a burguesia ao deixar o palco da
História.
Cenek calou-se e o comandante declarou que aquele quadro era um insulto
ao Exército Vermelho, que era preciso retirá-lo imediatamente; quanto a
Cenek, ele ia ver o que ia acontecer com sua ficha. Perguntei (entre os
dentes) por quê. O comandante, que ouviu, perguntou-me se eu tinha
objeções a fazer. Levantando-me, disse que o quadro me agradava. O
comandante disse que não duvidava disso, visto que ele era bom
exatamente para os masturbadores. Respondi que o sério Myslbek também
tinha esculpido a Liberdade representando-a como uma mulher nua, e que
o rio Jizera no célebre quadro de Ales está representado por três nus; que os
pintores sempre fizeram isso em todas as épocas.
O comandantezinho me lançou um olhar perplexo e repetiu sua ordem de
retirar o desenho. No entanto, talvez tenhamos conseguido enrolá-lo, pois
ele não puniu Cenek; mas começou a implicar com ele e comigo. Pouco
tempo depois, Cenek foi punido com uma pena disciplinar, e logo depois eu
também.
Aconteceu assim: um dia, a companhia trabalhava num lugar afastado do
quartel, com enxadas e pás; um cabo preguiçoso nos vigiava com olhar
displicente, tanto que a cada momento nós nos apoiávamos sobre nossas
ferramentas para conversar, sem reparar no comandantezinho que se
postara perto dali e nos observava. Só percebemos sua presença no fim de
algum tempo, quando sua voz arrogante gritou: — Soldado Jahn, venha cá.
Peguei minha pá com ar resoluto e plantei-me em posição de sentido diante
dele.
— É assim que você trabalha? — perguntou-me. Não sei realmente o que
respondi, decerto não foi uma resposta arrogante, pois não tinha a menor
vontade de complicar minha vida no quartel irritando por coisas sem
importância um tipo que tinha todo poder sobre mim. O que não impediu
que, depois de minha resposta embaraçada e insignificante, seu olhar se
endurecesse e, aproximando-se de mim, de repente ele me pegasse o braço
e, com um magistral golpe de judô, me derrubasse a seus pés. Depois
agachou-se e, grudando-se em mim, segurou-me junto ao chão (não esbocei
um gesto de defesa, apenas fiquei espantado).
— Chega? — perguntou ele bem alto (a fim de que todos a alguma distância
pudessem ouvi-lo).
Respondi que chegava. Ele ordenou-me que ficasse de novo em posição de
sentido e, diante da companhia organizada em colunas, anunciou: —
Determino dois dias de prisão para o soldado Jahn. Não por ter sido
insolente comigo. Esse problema, vocês viram, resolvi num abrir e fechar de
olhos. Os dois dias de prisão são porque ele estava vadiando. E tenho outro
tanto para vocês. — Deu meia volta e foi embora, muito satisfeito consigo
mesmo.
Na hora senti apenas raiva dele, e a raiva projeta uma luz muito forte, na
qual o contorno dos objetos desaparece. Meu comandante me parecia
simplesmente um rato vingativo e dissimulado. Eu o vejo hoje sobretudo
como um homem que era jovem e que representava um papel. Afinal, se os
jovens representam, não é culpa deles; inacabados, a vida os coloca num
mundo acabado, no qual se exige que eles se comportem como homens
feitos. Eles se apressam, consequentemente, em se apropriar de formas e de
modelos, aqueles que estão em voga, que combinam com eles, que lhes
agradam — e representam um papel.
Nosso comandante também era inacabado e uma bela manhã se viu frente a
nossa tropa, perfeitamente incapaz de compreendê-la; mas tinha
conseguido sair-se bem, pois aquilo que lera e ouvira oferecia-lhe uma
máscara perfeita para situações análogas: o herói implacável das histórias em
quadrinhos, o jovem macho com nervos de aço dominando um bando de
bandidos, nada de grandes conversas, apenas a cabeça fria, um humor
despojado que acerta bem no alvo, a confiança em si e no vigor de seus
músculos. Quanto mais consciência tinha de seu aspecto de garoto, mais
fanatismo ele punha no seu papel de super-homem.
Mas era a primeira vez que eu encontrava um jovem ator como aquele? Na
época do meu interrogatório na secretaria do Partido sobre o cartão-postal,
eu tinha pouco mais de vinte anos e meus interrogadores tinham apenas
um ou dois anos mais. Eles também eram, antes de mais nada, garotos
escondendo seus rostos inacabados atrás da máscara que consideravam a
melhor de todas: a do revolucionário ascético e inflexível. E Marketa? Não
teria ela escolhido representar a salvadora, papel aliás repetido num insípido
filme da temporada? E Zemanek, subitamente tomado pela exaltação
patética da moral? Não seria isso representar um papel? E eu? Será que eu
não estava representando muitos papéis? Em confusão, corria de um papel
a outro até o momento em que, embaraçado, fui apanhado.
A mocidade é horrível: é um palco em que, representando tragédias com as
roupas mais variadas, crianças se agitam e proferem fórmulas decoradas que
compreenderam pela metade e às quais se agarram fanaticamente. A
História também é horrível: serve muitas vezes de palco de exibição para os
imaturos; palco de exibição para um jovem Nero, para um jovem Bonaparte,
para as multidões de crianças eletrizadas, cujas paixões imitadas e cujos
papéis simplistas se transfiguram numa realidade catastroficamente real.
Quando penso nisso, é toda uma escala de valores que balança na minha
cabeça e sinto uma profunda raiva da juventude — e, inversamente, uma
espécie de indulgência paradoxal pelos piratas da História, em cuja ação de
repente não vejo mais do que uma assustadora agitação de imaturos.
Por falar em imaturos, lembro-me de Alexej; ele também representava um
grande papel que ultrapassava sua razão e sua experiência. Tinha alguma
coisa em comum com nosso comandante: parecia mais moço; no entanto,
sua juventude (no que diferia do comandante) era desprovida de graça: um
pequeno corpo magro, olhos de míope atrás de grossas lentes, uma pele
semeada de pontos negros (restos de uma puberdade que se eternizava). A
princípio aluno de uma escola de oficiais da infantaria, já que fora retirado
da tropa, vira-se da noite para o dia sem essa prerrogativa, tendo sido
transferido para nossa companhia. Estávamos, na realidade, às vésperas dos
famosos processos políticos, e em muitas salas (do Partido, da Justiça e da
polícia) muitas mãos se levantavam sem cessar para tirar dos acusados a
confiança, a honra, a liberdade; Alexej era filho de um comunista
importante preso há pouco tempo.
Apareceu um dia em nosso grupo e foi-lhe destinada a cama abandonada
de Stana. Ele nos contemplava com o mesmo olhar com que eu no princípio
contemplara meus novos companheiros; ele também era reservado, e os
outros, quando souberam que era membro do Partido (sua expulsão ainda
não fora efetivada), começaram a prestar atenção ao que diziam em sua
presença.
Quando soube que eu pertencera ao Partido, Alexej tornou-se um pouco
mais comunicativo comigo; disse-me que deveria, custasse o que custasse,
enfrentar a grande prova que a vida lhe impusera e não trair o Partido. Em
seguida leu-me um poema que havia composto (embora antes nunca tivesse
escrito versos) depois de saber que seria enviado para cá. Este quarteto fazia
parte do poema: Vocês podem, meus camaradas, fazer de mim um cão e
cuspir em mim.
Sob a face do cão, sob os escarros, camaradas, fielmente, com vocês,
permanecerei no posto.
Eu o compreendia, porque havia passado pela mesma experiência um ano
antes. No entanto, agora estava bem menos magoado; minha operária do
cotidiano, Lucie, me havia desviado dessa zona onde os Alexej se
atormentavam e se desesperavam.
Enquanto o comandantezinho instaurava seu regime em nossa unidade, eu
só estava interessado em saber se conseguiria permissão para sair; as colegas
de Lucie já estavam há muito na brigada agrícola, enquanto eu há um mês
não saía do quartel; o comandante guardara bem a minha cara e meu nome,
a pior coisa que pode acontecer no regimento. Agora ele não perdia uma
ocasião para me fazer compreender que cada hora de minha existência
dependia de seu capricho. Com relação às permissões, a coisa ia mal; logo de
saída ele avisara que só aqueles que participassem sempre das equipes
voluntárias dos domingos teriam folgas; imediatamente todos fomos
voluntários; só que era uma vida horrível, pois não passávamos um dia sem
descer na mina, e, se algum de nós afinal se beneficiava num sábado de uma
folga completa até duas da manhã, domingo morria de sono no trabalho.
Como os outros, inscrevi-me para esse trabalho no domingo, o que não me
garantia absolutamente que eu teria uma permissão, pois bastava uma cama
malfeita ou qual* quer outra pequena falta para anular o mérito do esforço
dominical. No entanto, a vaidade do poder não se manifesta apenas pela
crueldade, mas também (se bem que mais raramente) pela indulgência.
Assim, decorridas algumas semanas, o comandantezinho teve o prazer de
ser generoso e na última hora obtive uma noite de folga, dois dias antes da
volta das colegas de Lucie.
Fiquei perturbado quando a velha da portaria colocou meu nome no
registro, autorizando-me em seguida a subir ao quarto andar, onde bati
numa porta no fim de um longo corredor. A porta abriu-se, mas Lucie ficou
escondida atrás dela, e eu só tinha diante de mim o quarto, que à primeira
vista nada tinha a ver com um quarto comum; eu poderia achar que estava
num ambiente preparado para não sei quais ritos religiosos: a mesa
resplandecia com um buquê de dálias, dois grandes fícus erguiam-se perto
da janela, em todos os cantos (na mesa, na cama, no assoalho, atrás dos
quadros) havia apanhados de talos verdes (que logo reconheci como
aspargos-de-jardim), como se esperássemos a vinda de Jesus Cristo montado
em seu burrinho.
Abracei Lucie (que continuava a esconder-se atrás da porta aberta) e dei-
lhe um beijo. Ela estava com um vestido de noite preto e sapatos de salto
alto, presente que eu lhe dera no dia em que havíamos comprado os
vestidos. Estava de pé, parecendo uma sacerdotisa no meio daquele verde
solene.
Fechamos a porta e só então tive consciência de que estava num quarto
banal e de que a decoração vegetal recobria apenas quatro camas de ferro,
quatro prateleiras arranhadas, uma mesa e três cadeiras. Mas isso não podia
de maneira nenhuma diminuir a exaltação que me invadiu desde o
momento em que Lucie me abriu a porta: depois de um mês, enfim tinham-
me concedido algumas horas de folga, mais ainda: pela primeira vez, depois
de um longo ano, encontrava-me num quarto pequeno; o sopro de uma
intimidade me cercava com seus eflúvios inebriantes e sua intensidade
quase me fez desfalecer.
Até então, em todos os passeios com Lucie, o espaço aberto me prendia à
caserna e à minha condição nela; com um fio invisível, o ar flutuando à
minha volta ligava-me ao muro da prisão com sua inscrição: "Estamos a
serviço do povo." Parecia-me não existir um lugar onde, pelo menos por um
momento, eu pudesse parar de "servir ao povo"; há um ano não me via
entre as quatro paredes de um pequeno quarto particular.
Subitamente encontrava-me numa situação inédita; durante três horas tive
a impressão de total liberdade; podia, por exemplo, tirar sem apreensão
(contra todos os regulamentos militares) não só boné e cinturão mas também
túnica, calças, botinas, tudo, e poderia, eventualmente, pisá-los; podia fazer
qualquer coisa, sem que me observassem de nenhum lugar; além disso, o
quarto estava agradavelmente aquecido, e esse calor e essa liberdade me
subiam à cabeça. Abracei Lucie e levei-a para a cama coberta de folhagens.
Esses pequenos ramos sobre a cama (coberta por uma horrenda colcha
cinzenta) me perturbaram. Não sabia interpretá-los senão como símbolos
nupciais; veio-me a ideia (que me emocionou) de que na candura de Lucie
ressoavam inconscientemente os costumes mais ancestrais, de modo que ela
resolvera despedir-se de sua virgindade com uma liturgia solene.
Demorei um pouco a perceber que Lucie, embora me beijasse e me
abraçasse, fazia-o com evidente reserva. Seus lábios, embora ávidos,
permaneciam fechados; apertava-se contra mim com todo seu corpo, mas
quando coloquei a mão por baixo de sua saia para poder sentir sob os dedos a
pele de suas pernas, ela afastou-se. Compreendi que a espontaneidade à
qual sonhava abandonar-me com ela em cega vertigem permanecia solitária;
lembro-me de ter sentido então (não havia nem cinco minutos que estava
no quarto de Lucie), em meus olhos, lágrimas de decepção.
Sentamo-nos assim na cama um ao lado do outro (esmagando os pobres
raminhos sob nossas nádegas) e começamos a conversar. Depois de algum
tempo (a conversa esmorecia), tentei de novo beijá-la, mas ela resistiu;
comecei então a lutar com ela, no entanto logo percebi que aquela não era
uma gostosa contenda de amor, mas, muito ao contrário, uma disputa que
serviria apenas para degradar nossa união com alguma coisa de feio, já que
Lucie se defendia de verdade, de maneira selvagem, quase com desespero.
Só me restava parar.
Tentei persuadi-la com palavras; comecei a falar; disse, sem dúvida, que a
amava e que amar significa dar-se um ao outro, totalmente; apesar de pobre,
a argumentação era irrefutável, tanto que Lucie não parecia absolutamente
querer refutá-la. Em vez disso, ficava calada ou implorava: — Não, por
favor, não! — Ou então: — Hoje não, hoje não!... — esforçando-se então
(com tocante falta de jeito) em desviar a conversa para outro assunto.
Recomecei; será que você é como essas moças que excitam seu parceiro para
depois zombar dele? Será que você é tão insensível, tão má?... E abracei-a
mais uma vez, e mais uma vez travou-se uma luta curta e penosa, que,
áspera e sem um grama de amor, me deixou mais uma vez com um gosto de
feiura.
Parei; de repente achei que compreendia por que Lucie me repelia; como,
meu Deus, eu não havia percebido isso antes? Lucie é uma criança, o amor
deve assustá-la, ela é virgem, tem medo do desconhecido; na mesma hora
decidi abolir do meu comportamento esses modos insistentes que serviam
apenas para desencorajá-la, decidi mostrar-me doce, delicado, para que o
ato de amor não diferisse em nada de nossas ternuras, para que fosse apenas
uma dessas ternuras. Portanto, não insisti mais e comecei a acariciá-la.
Beijei-a (durante tanto tempo que não senti mais nenhum prazer), acariciei-
a (sem sinceridade), procurando deitá-la ao comprido, sem deixar que ela
percebesse minha intenção. Consegui acariciar-lhe os seios (quanto a isso
Lucie nunca se opusera); sussurrei-lhe ao ouvido que queria ser terno com
todo o seu corpo, porque esse corpo era ela, e eu queria ser terno com ela
toda; consegui mesmo levantar um pouco sua saia, assim como beijá-la dez
ou vinte centímetros acima do joelho, mas não consegui chegar mais longe;
quando ia deslizar minha cabeça até seu sexo, Lucie, aterrorizada,
desvencilhou-se de mim e pulou da cama. Olhei-a, e vi em seu rosto não sei
que esforço convulso, expressão que nunca vira nela antes.
— Lucie, Lucie, é por causa da claridade que você tem vergonha? Quer que
eu escureça o quarto? — perguntei-lhe, e ela, agarrando-se à minha
pergunta como a uma tábua de salvação, concordou: a claridade a
constrangia. Fui até a janela para abaixar a veneziana, mas Lucie disse: —
Não, isso não! Deixa!
— Por quê? — perguntei.
— Tenho medo.
— O que é que lhe faz medo, o escuro ou o claro?
Muda, ela se desmanchou em lágrimas.
Longe de ter pena, sua recusa parecia-me sem sentido, preconceituosa, uma
iniquidade; torturava-me, eu não podia compreender essa situação.
Perguntei-lhe se me resistia por ser virgem, se tinha medo da dor física que
ia sentir. A cada pergunta desse gênero, ela concordava documente, porque
via ali um argumento a mais para sua recusa. Disse-lhe que era bonito que
ela fosse virgem, e que só comigo iria descobrir tudo, comigo que a amava.
— Você não fica contente de ser minha mulher totalmente? Ela disse que
sim, que se sentia contente com essa ideia. Mais uma vez abracei-a, e mais
uma vez ela enrijeceu. Mal pude conter a minha raiva.
— Afinal, o que é que você tem contra mim?
Ela respondeu: — Eu lhe suplico, deixe para a próxima vez, sim? Eu quero,
mas não esta noite.
— Mas por que não?
— Eu lhe suplico, agora não!
— Quando então? Como se você não soubesse que esta é a última ocasião
que temos para ficarmos sozinhos, suas colegas voltam depois de amanhã!
Onde, depois disso, poderemos nos encontrar a sós?
— Você vai encontrar um lugar — disse ela.
— Está certo — respondi —, vou encontrar uma solução, mas prometa que
irá, pois sei que tenho poucas chances de encontrar um lugarzinho tão
simpático como seu quarto.
— Não tem nenhuma importância — disse ela —, nenhuma! Vai ser onde
você quiser.
— Muito bem, só que você vai me prometer que chegando lá você vai ser
minha mulher, vai parar de negar.
— Está bem — disse ela.
— Você jura?
— Juro.
Compreendi que dessa vez só poderia levar uma promessa. Era pouco, mas
já era alguma coisa. Superei minha decepção e passamos o resto do tempo
conversando. Ao sair, sacudi minha roupa semeada de talos de aspargos,
acariciei o rosto de Lucie, dizendo que não pensaria senão em nosso próximo
encontro (e não estava mentindo).
Alguns dias depois desse último encontro com Lucie (era um dia chuvoso
de outono), nós marchávamos em fila da mina para a caserna, num
caminho cheio de elevações que separavam charcos profundos;
enlameados, exaustos, ensopados até os ossos, tínhamos fome de descanso.
Já havia um mês que a maioria de nós não tinha tido um só domingo livre.
No entanto, mal tínhamos engolido o almoço, e o comandantezinho apitou
para reunir a tropa e anunciar que constatara diversas desordens durante a
inspeção aos quartos. Feito isso, passou o comando para os suboficiais,
determinando que prolongassem os exercícios por duas horas, a título de
punição.
Como não tínhamos armas, nossos exercícios militares eram singularmente
absurdos; eles tinham como único objetivo desvalorizar o tempo de nossa
vida. Lembro-me de uma vez, sob o jugo do comandantezinho, em que
tivemos de transportar durante uma tarde inteira pesadas tábuas de um
lado da caserna para outro, trazê-las de volta no dia seguinte, e continuar
nisso durante dez dias seguidos. Tudo o que fazíamos no pátio da caserna
depois de voltar da mina se parecia, aliás, com esse deslocamento de tábuas.
No entanto, naquele dia, não eram tábuas mas nossos corpos que
deslocávamos daquele modo; nós fazíamos com que eles marchassem,
virassem à esquerda ou à direita, deitassem de barriga, corressem e subissem
arrastando-se pelo chão pedregoso. Tinham-se passado três horas nesses
exercícios, quando surgiu o comandante; ele deu instruções aos suboficiais
para que fôssemos levados para a educação física.
Bem no fundo, atrás das barracas, ficava uma espécie de estádio um tanto
pequeno onde podíamos jogar futebol e também executar manobras ou
correr. Os suboficiais haviam pensado em organizar uma corrida de
revezamento; a companhia tinha nove grupos de dez homens: nove
equipes concorrentes já formadas. Naturalmente, os suboficiais pretendiam
nos arrasar, mas como, em sua maioria, tinham entre dezoito e vinte anos e
as ambições desta idade, também quiseram participar da corrida, a fim de
nos provar que não éramos melhores do que eles; portanto, formaram contra
nós sua própria equipe, reunindo dez cabos ou soldados do primeiro time.
Foi preciso um certo tempo para que nos explicassem e nos fizessem
compreender seu plano: os dez primeiros deveriam correr de uma ponta à
outra do terreno; na linha de chegada, o grupo seguinte devia se manter
pronto para partir no sentido inverso; este mesmo grupo seria esperado por
um terceiro grupo de corredores já preparados para a partida, e assim por
diante. Os suboficiais nos contaram e repartiram nas duas extremidades da
pista.
Depois da mina e da sessão de exercício, estávamos mortos de cansaço, e a
perspectiva dessa corrida nos deixava loucos de raiva; então sugeri a dois ou
três companheiros um pequeno truque: vamos todos correr devagar, bem
devagar! A ideia, aceita instantaneamente, correu à boca pequena, e logo
uma onda de risos satisfeitos agitava, às escondidas, a massa de soldados
exaustos.
Estávamos finalmente, cada um na sua marca, prontos para uma
competição cujo objetivo geral era puro absurdo: apesar dos uniformes e das
pesadas botinas, devíamos dar a largada em posição ajoelhada; tínhamos que
passar o bastão de uma maneira inusitada (já que seu destinatário viria a
nosso encontro); era um autêntico bastão-revezamento que segurávamos, e
o sinal de partida foi dado por uma pistola de largada autêntica. Enquanto
um cabo (primeiro corredor da equipe dos oficiais) já tinha tomado impulso
para uma desenfreada corrida de velocidade, nós, por nossa vez, nos
preparávamos (eu estava na primeira fila) para começar nosso lento galope;
não tínhamos percorrido nem vinte metros e já reprimíamos a grande custo
nossa vontade de rir, pois o cabo já se aproximava da outra extremidade do
terreno, enquanto nosso grupo, comicamente enfileirado, ainda próximo da
linha de partida, parecia esfalfar-se num esforço excepcional; os rapazes que
se tinham reunido nas duas extremidades do percurso nos incentivavam: —
Vai, vai, vai!...
No meio do caminho, cruzamos o número dois dos suboficiais, que já
alcançava a linha que acabávamos de deixar. Atingimos por fim o objetivo e,
ao mesmo tempo que entregávamos o bastão, longe atrás de nós um terceiro
oficial, bastão em punho, já havia deixado a linha inicial.
Lembro-me dessa corrida de revezamento como do último grande desfile de
meus colegas "negros". Sua criatividade era sem limites: Honza corria
mancando, todo mundo o encorajava freneticamente, e ele, de fato, chegou
ao revezamento (sob uma explosão de vivas) como um herói, dois passos
antes dos outros! Matlos, o Cigano, levantou-se do chão oito vezes durante a
corrida. Cenek levantava os joelhos à altura do queixo (o que decerto devia
cansá-lo muito mais do que se levasse ao máximo seu ritmo). Ninguém
estragou o jogo: nem o disciplinado e resignado redator de manifestos em
favor da paz, Bedrich, que agora, grave e digno, seguia o ritmo lento de
todos; nem Josef, o filho de fazendeiros; nem o Petr Pekny que não gostava
de mim; nem o velho Ambroz, que trotava empertigado, os braços cruzados
atrás das costas; nem o ruivo Petran, que com sua voz de falsete guinchava
alto; nem Varga, o Magiar, que arrotava seu "Hurra!" correndo na pista;
nenhum deles estragou aquela admirável e simples encenação cujo
espetáculo nos fazia rolar de rir.
E então percebemos, vindo do lado das barracas, o comandantezinho. Um
cabo que o vira avançou a fim de lhe contar tudo. O comandante ouviu-o,
depois veio nos observar da beira do terreno. Nervosos, os oficiais (a equipe
deles há muito tempo já chegara ao final) gritavam em nossa direção: —
Vamos, rápido! Mexam-se! Coragem!
Mas esses encorajamentos perdiam-se no meio de nós. Desnorteados, nossos
suboficiais não sabiam o que fazer, perguntavam-se uns aos outros se
deviam parar a corrida, iam de um lado para o outro, combinando o que
fazer, olhando para o comandante que, sem um olhar na direção deles,
limitava-se a observar a corrida com olhar glacial.
O último grupo deu a largada; Alexej estava nele; eu aguardava seu
comportamento com curiosidade, e não me enganei: ele queria estragar o
jogo. De saída, avançou com toda sua força e, depois de uns vinte metros,
estava na frente de pelo menos uns cinco. Mas aconteceu uma coisa
estranha: seu ritmo diminuiu e ele não prosseguiu seu avanço; compreendi
subitamente que Alexej, mesmo se quisesse, não poderia estragar o jogo: era
um rapaz fraco, a quem dois dias depois de sua chegada passamos a destinar
por bem ou por mal os trabalhos mais leves, porque ele não tinha nem fôlego
nem força! Pareceu-me então que sua corrida seria o ponto alto de nosso
espetáculo; Alexej se esforçava ao máximo, mas parecia confundir-se com a
rapaziada que se arrastava cinco passos atrás dele, no mesmo aglomerado; o
comandante e os suboficiais deviam estar pensando que a fulgurante
partida de Alexej era parte da comédia, tanto quanto o claudicar simulado
de Honza, as quedas de Matlos ou o vozerio dos que nos incentivavam.
Alexej corria com as mãos fechadas, como todos atrás dele, que fingiam
sofrer, resfolegando com ostentação. Mas Alexej tinha realmente uma dor
forte no lado, e era porque tentava dominá-la com o maior esforço que um
suor de verdade escorria de seu rosto; no meio da pista, teve que reduzir seu
passo ainda mais, e todos os outros o alcançaram sem se apressar; trinta
metros antes da chegada, eles o ultrapassaram; quando ele estava apenas a
vinte metros, parou de correr, cambaleando no final, uma mão
comprimindo seu lado esquerdo.
O comandante ordenou que nos reuníssemos. Queria saber a razão de nossa
lentidão.
— Estávamos exaustos, camarada capitão.
Disse que todos os que estivessem cansados levantassem a mão. Levantamos
as mãos. Olhei bem para Alexej (estava numa fila à minha frente); só ele não
levantou a mão. Mas o comandante não percebeu e disse: — Perfeito; por
conseguinte, todos.
— Não — disse alguém.
— Quem não estava cansado? Alexej respondeu: — Eu!
— Ora, você não? — espantou-se o comandante olhando para ele. — Por
que você não estava cansado?
— Porque sou comunista — respondeu Alexej.
Com essas palavras, a companhia murmurou uma surda zombaria.
— Foi você quem chegou por último? — perguntou o comandante.
— Fui — respondeu Alexej.
— E você não estava cansado? — perguntou o comandante.
— Não — respondeu Alexej.
— Se você não estava cansado, então tentou sabotar a corrida de propósito.
Por isso está condenado a quinze dias de prisão, por tentativa de motim.
Vocês, os outros, estão cansados, o que é uma desculpa. Visto que o trabalho
de vocês na mina não rende nada, vejo que esse cansaço deve-se às folgas.
No interesse da saúde de todos, a companhia não terá folgas durante dois
meses.
Antes de ser preso, Alexej quis falar comigo. Repreendeu-me por não me
comportar como um comunista; com seu olhar severo, perguntou-me se eu
era ou não a favor do socialismo. Respondi-lhe que era a favor do socialismo,
mas que ali no quartel dos "negros" era absolutamente indiferente, pois
existia uma linha demarcatória diferente daquela do exterior; de um lado
existem aqueles que perderam seu próprio destino e do outro os ladrões
desse destino, dispondo dele a seu bel-prazer. Alexej não me deu razão:
segundo ele, o traço de divisão entre o socialismo e a reação passava em
todos os lugares; nossa caserna não era, no final das contas, senão um meio
de defesa contra os inimigos do socialismo. Perguntei-lhe como achava que o
comandantezinho podia defender o socialismo contra os inimigos,
mandando ele, Alexej, para a prisão por quinze dias e tratando as pessoas de
maneira a transformá-las nos piores inimigos possíveis do socialismo. Alexej
concordou dizendo que o comandante não lhe agradava. Mas, quando eu
lhe disse que, se a caserna era um meio de defesa contra os inimigos, ele,
Alexej, não deveria ter sido mandado para lá, ele respondeu-me com
veemência que se encontrava ali por justa razão: — Meu pai foi preso por
espionagem. Você tem ideia do que isso significa? Como é que o Partido
pode ter confiança em mim? O Partido tem o dever de não ter confiança
em mim!
Depois conversei com Honza; queixei-me (pensando em Lucie) dos dois
meses sem saída que nos esperavam.
— Seu idiota — disse ele. — Vamos sair mais do que antes! A alegre
sabotagem da corrida de revezamento reforçara entre os meus camaradas o
sentido de solidariedade e despertara seu espírito de iniciativa. Honza criou
uma espécie de comitê restrito que rapidamente se ocupou de estudar as
possibilidades de fuga. Em quarenta e oito horas, tudo estava preparado; um
fundo secreto foi constituído tendo em vista um eventual suborno; dois
oficiais responsáveis por nossos dormitórios se deixaram comprar;
encontramos o lugar mais propício para cortar discretamente a grade; era no
fim da caserna, onde só havia a enfermaria; cinco míseros metros separavam
a grade da primeira casinha da aglomeração, onde morava um mineiro que
conhecíamos; os companheiros logo entraram em entendimento com ele: ele
não fecharia à chave a porta de seu terreno; o soldado em fuga deveria
alcançar a grade disfarçadamente; depois, num piscar de olhos, saltá-la e
correr os cinco metros; uma vez cruzada a porta do pátio, estaria salvo:
atravessaria a casinha e sairia numa rua do bairro.
O caminho era, portanto, relativamente seguro, contanto que não
abusássemos; se um número muito grande de pessoas deixasse a caserna no
mesmo dia, sua ausência seria facilmente percebida; por isso, o comitê de
Honza era obrigado a controlar as saídas.
Mas, antes que chegasse a minha vez, todo o empreendimento de Honza
desmoronou. Uma noite, o comandante em pessoa fez uma visita às barracas
e notou que faltavam três homens. Imprensou o cabo (chefe do dormitório)
que não avisara sobre as ausências, perguntando-lhe, como se tivesse
conhecimento de tudo, quanto ele tinha recebido. O cabo, pensando que
fora traído, nem tentou negar. O comandante chamou Honza para a
confrontação, e o cabo confessou que tinha sido dele que recebera o
dinheiro.
O comandante nos pegara, xeque-mate. Enviou o cabo, Honza e os três
soldados que tinham fugido clandestinamente aquela noite para o
procurador militar. (Nem pude dizer adeus ao meu melhor amigo, tudo
aconteceu muito rápido pela manhã, enquanto estávamos nas minas; só
fiquei sabendo bem mais tarde que todos tinham sido condenados, Honza a
um ano inteiro de prisão.) Anunciou à companhia reunida que ela ficaria
proibida de sair por um período suplementar de dois meses, e além disso
seria submetida daí em diante ao regime das unidades disciplinares.
Solicitou a construção de dois mirantes estratégicos, a colocação de
projetores, sem contar a vinda de dois homens com cães policiais para vigiar
a caserna.
A intervenção do comandante fora tão fulminante e precisa que o mesmo
sentimento assaltou-nos a todos: alguém traíra a iniciativa de Honza. Não
que se pudesse dizer que a delação florescesse especialmente entre os
"negros"; todos nós a desprezávamos, mas sabíamos que, como possibilidade,
ela estava sempre presente, já que se apresentava a nós como o meio mais
eficaz de melhorar nossa condição, de atingir mais cedo o fim do serviço
militar, com um bom atestado garantindo um futuro aceitável. Tínhamos
conseguido (a maioria de nós) não cair na pior das baixezas, mas não
tínhamos conseguido deixar de desconfiar dos outros com facilidade.
Ainda dessa vez, esse tipo de suspeita firmou-se de imediato, logo se
transformando em convicção coletiva (embora, evidentemente, o golpe do
comandante pudesse ser explicado de outra maneira, e não só como
resultado de uma denúncia), visando com uma certeza incondicional
Alexej. Este cumpria então seus últimos dias de prisão; no entanto, descia
conosco para as minas, é claro, todos os dias; assim, todo mundo achava que
ele podia muito bem ter ouvido (com seus ouvidos de tira) algo sobre o
empreendimento de Honza.
O infeliz estudante de óculos era massacrado de todos os lados: o chefe de
equipe (um dos nossos) designava-lhe os piores serviços; suas ferramentas
desapareciam com regularidade, e ele era obrigado a reembolsar o preço das
mesmas com seu salário; alusões e insultos não lhe eram poupados, além das
mil pequenas maldades que era obrigado a aturar; sobre a divisória de
madeira ao pé da qual ficava a sua cama alguém escreveu com graxa, em
grandes letras negras: CUIDADO, CRÁPULA.
Poucos dias depois da partida, sob escolta, de Honza e dos outros quatro
condenados, fui, no final da tarde, dar uma olhada no dormitório do nosso
grupo; não havia ninguém, a não ser Alexej, curvado, arrumando sua cama.
Perguntei por que estava refazendo a cama. Ele me disse que os rapazes a
desarrumavam várias vezes por dia. Contei-lhe que todos estavam
convencidos de que tinha sido ele que havia denunciado Honza. Ele
protestou, quase chorando; não sabia de nada, e jamais serviria de espião.
— Por que você diz isso? — perguntei-lhe. — Você se considera um aliado
do comandante. Então é lógico que você pode ser um espião.
— Não sou aliado do comandante! O comandante é um sabotador! — disse
ele com voz entrecortada.
Expôs-me as conclusões a que chegara, a partir das reflexões que fizera na
prisão: o Partido criara os contingentes de soldados "negros" para aqueles a
quem não podia confiar uma arma, mas que pretendia reeducar. Só que o
inimigo de classe não dorme, tenta impedir essa reeducação de qualquer
maneira; o que ele pretende é manter os soldados "negros" num ódio
permanente ao comunismo, para que possam servir como contingente de
reserva para a contra-revolução. E se o comandantezinho agia com cada um
deles de maneira a lhes provocar a cólera, era evidente que isso fazia parte
do plano do inimigo! Eu, pelo visto, não tinha nenhuma ideia de todos os
cantos onde os inimigos do Partido se enfiam. O comandante era
certamente um agente inimigo. Alexej sabia qual era o seu dever e escrevera
um relatório detalhado sobre as manobras do comandante.
Caí das nuvens: — O quê? O que foi que você escreveu? Para onde você
mandou isso?
Ele me respondeu que enviara ao Partido uma queixa contra o comandante.
Nesse meio tempo tínhamos saído da barraca. Ele me perguntou se eu não
tinha medo de mostrar aos outros que estava em sua companhia. Disse-lhe
que era preciso ser idiota para fazer uma pergunta dessa, e mais idiota ainda
para achar que a carta chegaria a seu destino. Ao que ele respondeu que,
como comunista, ele deveria em qualquer circunstância agir de forma que
não tivesse do que se envergonhar. Lembrou-me mais uma vez que eu
também era comunista (mesmo expulso do Partido) e que deveria me
comportar de maneira diferente de como me comportava: — Nós,
comunistas, somos responsáveis por tudo o que se passa aqui.
Torci-me de rir com isso; disse-lhe que a responsabilidade era impensável
sem liberdade. Ele respondeu que se sentia suficientemente livre para agir
como um comunista; tinha que provar e provaria que era comunista.
Dizendo isso, tinha o queixo trêmulo; quando hoje em dia, depois de tantos
anos, me lembro desse instante, fico mais do que nunca convencido de que
Alexej tinha pouco mais de vinte anos, que era um rapaz, um garoto, e que
seu destino flutuava sobre ele como uma roupa de gigante num corpo
pequenino.
Lembro-me de que, pouco depois de minha conversa com Alexej, Cenek me
perguntou por que eu estava conversando com aquele crápula, Alexej é um
idiota, respondi-lhe, mas não um crápula; e contei-lhe o que Alexej me
dissera sobre a queixa contra o comandante. Isso não impressionou Cenek:
— Idiota, não sei, mas sem dúvida é um crápula. Porque para renegar
publicamente o próprio pai tem que ser um crápula.
Não compreendi; ele se espantou que eu não soubesse; o comissário mesmo
havia mostrado jornais antigos, de vários meses, onde havia uma declaração
de Alexej: renegava o pai, que, segundo ele, traíra e caluniara aquilo que seu
filho considerava mais sagrado.
No fim desse dia, do alto de um mirante (construído nos dias anteriores), os
projetores iluminaram a caserna pela primeira vez; um guarda e seu cão
percorriam o caminho ao longo das grades. Uma tristeza enorme abateu-se
sobre mim: eu estava sem Lucie, sabia que não a veria antes de dois
intermináveis meses. Nessa mesma noite escrevi-lhe uma longa carta; disse-
lhe que não poderia vê-la durante muito tempo, que não podíamos sair da
caserna, e o quanto sentia por ela ter-me recusado o que eu desejava, pois
tal recordação me teria ajudado a suportar essas semanas sombrias.
No dia seguinte àquele em que coloquei a carta no correio, fazíamos os
eternos sentido; ordinário, marche; deitados. Eu executava os movimentos
prescritos automaticamente e não via nem o cabo se esgoelando, nem meus
companheiros marchando ou se atirando no chão; não via mais o que estava
em volta: nos três lados do pátio, as barracas; no quarto lado, uma cerca de
arame marginando a estrada. Ao longe, de tempos em tempos, transeuntes
paravam (mais frequentemente crianças, sozinhas ou com os pais, que lhes
explicavam que atrás da cerca os soldadinhos faziam exercícios). Tudo aquilo
se transformava para mim num cenário sem vida, numa tela pintada (tudo
o que estava além da cerca de arame era apenas uma tela pintada); assim,
eu não teria olhado naquela direção se alguém não tivesse dito: — Está
sonhando, boneca? Só então a vi. Era Lucie. Estava de pé, encostada na
cerca, com seu velho casaco marrom surrado (por que eu me esquecera, no
dia das compras, que, terminado o verão, chegaria o frio?) e com seus
elegantes sapatos pretos de salto alto (presente meu). Ela nos observava,
imóvel. Com crescente interesse, os soldados comentavam seu ar
estranhamente calmo e punham em seus comentários todo o desespero
sexual de homens mantidos num celibato forçado. Até o suboficial acabou
percebendo a agitação distraída dos soldados e, rapidamente, a razão dela;
indignou-se diante de sua própria impotência: não podia proibir a moça de
ficar ali; para além da cerca de arame estendia-se uma área de liberdade
relativa que escapava às suas injunções. Tendo portanto recomendado aos
rapazes que guardassem para si seus comentários, aumentou o tom de suas
ordens e o ritmo das instruções.
Num determinado momento Lucie se deslocava alguns passos, noutro saía
inteiramente do meu campo de visão, mas voltava por fim ao lugar de onde
podíamos nos ver. Logo depois a sessão de exercícios de ordem-unida
terminou, mas não tive tempo de me aproximar de Lucie, pois tive que me
dirigir voando à aula de educação política; escutamos frases sobre o tema da
paz e sobre os imperialistas, e só no fim de uma hora pude escapar (já ao
anoitecer, e ver se Lucie ainda estava perto da cerca; ela estava lá; corri
para ela.
Ela me disse para não lhe guardar rancor, ela me amava, lamentava saber
que eu estava triste por sua causa. Eu lhe disse que não sabia quando teria a
possibilidade de ir vê-la. Ela disse que isso não tinha importância, que
voltaria ali muitas vezes. (Alguns rapazes passavam atrás de mim e
gritavam obscenidades.) Perguntei-lhe se as grosserias dos soldados não lhe
eram desagradáveis. Ela me garantiu que não tinha importância, pois me
amava. Entregou-me uma rosa por entre os fios de arame (a cometa soou;
era o toque de reunir); nós nos beijamos por entre uma malha da cerca.
Quase todos os dias Lucie vinha até a cerca da caserna — nessa época eu
ficava na mina na parte da manhã, e à tarde ficava no quartel -; todos os
dias recebia um pequeno buquê (o sargento jogou-os todos no chão durante
uma revista que fez nas mochilas) e trocava com Lucie umas poucas frases
(frases estereotipadas, porque na realidade não tínhamos nada a nos dizer;
não trocávamos ideias ou novidades, confirmávamos apenas uma só
verdade muitas vezes repetida); ao mesmo tempo escrevia-lhe quase todos
os dias; esta foi a fase mais intensa de nosso amor. Os projetores do mirante, o
curto latido dos cães ao anoitecer, o fedelho que reinava sobre tudo isso
ocupavam um espaço mínimo do meu pensamento, todo dirigido para a
vinda de Lucie.
Na realidade eu me sentia muito feliz nessa caserna vigiada por cães ou no
fundo das minas, onde me apoiava sobre a britadeira que estremecia. Sentia-
me feliz e orgulhoso porque, com Lucie, era dono de uma riqueza que
nenhum de meus companheiros, nem mesmo os oficiais, possuía: eu era
amado, eu era amado diante de todos, ostensivamente. Ainda que Lucie
não encarnasse o ideal feminino de meus companheiros, ainda que sua
ternura se manifestasse — segundo eles — de uma maneira um tanto
estranha, era, apesar de tudo, o amor de uma mulher, e isso despertava
espanto, nostalgia e inveja.
Quanto mais se prolongava nossa clausura longe do mundo e das mulheres,
mais as mulheres apareciam em nossas conversas com riqueza de detalhes.
Recordávamos as pintas do rosto, desenhávamos (a lápis sobre papel, com a
enxada na argila, com o dedo na areia) os contornos de seus seios e de suas
nádegas; discutíamos para saber qual das ancas ausentes tinha o melhor
contorno; repetíamos com exatidão as palavras e os gemidos que
acompanhavam as cópulas; tudo isso era discutido muitas e muitas vezes,
sempre com novos detalhes. Eu também era interrogado, e meus
companheiros ficavam ainda mais curiosos porque a jovem de quem eu
falava aparecia todos os dias e, assim, eles podiam ligar sua aparência
concreta com a minha história. Eu não podia decepcionar meus
companheiros, tinha que contar histórias; por conseguinte, falei sobre a
nudez de Lucie, que eu nunca vira, de nossas noites de amor, que eu jamais
vivera, e de repente foi-se compondo diante de mim um quadro minucioso
e preciso de sua tranquila paixão.
Como tinha sido a primeira vez em que nos amáramos? Tinha sido em casa
dela, em seu quarto; ela se despira diante de mim, dócil, devotada, contra a
vontade, porque era uma moça do interior, e eu o primeiro homem a vê-la
nua. Isso me deixava louco de excitação, esse devotamento misturado com
pudor; quando eu me aproximei, ela encolheu-se, as mãos cobrindo o púbis...
Por que era que ela estava sempre com aqueles sapatos pretos de salto alto?
Eu os comprara de propósito, para que ela andasse na minha frente,
completamente nua, só com aqueles sapatos; ela tinha vergonha, mas fazia
tudo o que eu queria; eu ficava vestido o máximo de tempo possível, e ela
passeando nua com aqueles sapatinhos (isso me dava um prazer incrível,
que ela estivesse nua, e eu vestido!); nua, ela ia apanhar vinho no armário e,
nua, vinha encher meu copo...
Assim, quando Lucie chegava junto à cerca, não era só eu que a olhava,
mas, junto comigo, uma dúzia de com panheiros que sabiam exatamente
como Lucie amava, o que dizia amando, ou como suspirava, e cada vez
constatavam com ares entendidos que ela estava novamente calçada com
os sapatos pretos, e imaginavam-na nua, passeando de um lado para o outro
do pequeno quarto com aquelas pernas compridas e magras.
Cada um de meus companheiros podia lembrar-se de uma mulher e assim
reparti-la com os demais, mas só eu havia podido oferecer a visão dessa
mulher; só a minha era verdadeira, viva e presente. A solidariedade que me
havia levado a pintar a nudez e o comportamento erótico de Lucie teve
como efeito a concretização de meu desejo até o paroxismo da dor. Os
comentários maliciosos de meus companheiros sobre as vindas de Lucie não
me indignavam: a maneira que eles tinham de possuir Lucie não podia tirá-
la de mim (a cerca e os cachorros a protegiam de todos, inclusive de mim);
todos, ao contrário, a ofereciam a mim: todos preparavam para mim uma
imagem perturbadora dela, todos a modelavam junto comigo e a dotavam
de uma sedução ilimitada; eu me entregara a meus companheiros e, juntos,
nós nos entregamos ao desejo de Lucie. Quando depois disso ia encontrá-la
perto da cerca, sentia arrepios; não podia falar, tamanho era o desejo que
sentia por ela; não compreendia como tinha conseguido vê-la durante seis
meses, tímido estudante, sem discernir nela a mulher; teria sacrificado tudo
para um só coito com ela.
Não quero dizer com isso que meu afeto se tivesse embrutecido, ou que
tivesse diminuído em ternura. Diria que sentia então — a única vez em
minha vida — o desejo total de uma mulher, no qual todo meu ser estava
engajado: corpo e alma, concupiscência e ternura, tristeza e um furioso
gosto de viver, uma fome violenta de vulgaridade e de reconforto, sede de
um segundo de prazer e também de uma posse eterna. Estava inteiramente
envolvido, tenso, concentrado, e lembro-me desses momentos como de um
paraíso perdido (estranho paraíso guardado por cães e sentinelas).
Estava disposto a qualquer coisa, desde que pudesse encontrar Lucie fora da
caserna; ela me dera sua palavra que da próxima vez "não se defenderia
mais" e que iria até onde eu quisesse. Muitas vezes me repetira essa
promessa por entre os fios de arame. Portanto, bastava ousar uma ação
perigosa.
O caso foi amadurecendo na minha cabeça. O essencial do plano de Honza
continuava desconhecido do comandante. A cerca de arame do quartel
continuava secretamente solta e o acordo feito com o mineiro que morava
ao lado do quartel continuava de pé. A guarda era, sem dúvida, tão
completa agora que era impossível fugir em pleno dia. De noite, os guardas e
seus cães rondavam os arredores, os projetores eram acesos, mas, no fundo,
tudo isso funcionava mais para o prazer do comandante do que em razão de
nossas fugas, que se haviam tornado improváveis; ser apanhado significaria
o tribunal militar e seria um risco grande demais. Por isso justamente, eu
dizia comigo mesmo que tinha uma pequena chance.
Tive portanto que descobrir para nós um esconderijo não muito distante da
caserna. A maioria dos mineiros que morava na vizinhança descia na mesma
gaiola que nós, de maneira que logo entrei num entendimento com um deles
(um viúvo de cinquenta anos), que concordou (mediante trezentas coroas
da época) em me emprestar sua casa. Era um pavilhão cinza de um andar,
que se enxergava da caserna; mostrei-o a Lucie pela cerca, explicando-lhe
meu projeto; ela não se alegrou com isso, tentou dissuadir-me de correr um
risco por causa dela e só acabou aceitando porque não sabia dizer não.
O dia combinado chegou. Começou de maneira muito estranha. Mal
tínhamos chegado da mina, o comandantezinho nos reuniu para escutar
um de seus discursos. Em geral, ele agitava os espantalhos da guerra
iminente e da crueldade com que os reacionários seriam atingidos (no seu
pensamento, tratava-se de nós em primeiro lugar). Dessa vez, ele
acrescentara ideias novas: o inimigo da classe se infiltrara no Partido
Comunista; mas os espiões e os traidores que se cuidassem: os inimigos
camuflados seriam tratados com muito mais severidade do que aqueles que
não escondiam suas opiniões: pois o inimigo disfarçado é um cão sarnento.
— E nós temos um aqui mesmo — disse o comandantezinho, e fez sair da
fila o pirralho do Alexej. Depois tirou do bolso uma papelada que lhe
esfregou no nariz: — Essa carta aqui, sabe o que é? — Sei — respondeu
Alexej.
— Você é um cachorro sarnento; além do mais, um espião e um tira. Só que
os latidos de um cachorro não chegam ao céu! — E sob seu olhar rasgou a
carta.
— Tenho outra carta para você — disse ele em seguida, estendendo um
envelope aberto para Alexej. — Leia em voz alta! Alexej tirou um papel do
envelope, percorreu-o com o olhar e não disse nada.
— Leia, vamos! — repetiu o comandante. Alexej continuou calado.
— Não quer? — perguntou o comandante e, diante do mutismo de Alexej,
ordenou: — Deitado! Alexej estendeu-se na lama. O comandantezinho
demorou-se olhando-o de cima, e todos nós sabíamos que só o que poderia
acontecer agora seria: de pé! deitado! de pé! deitado! e que Alexej teria que
levantar, deitar, levantar, deitar. No entanto, o comandante não prosseguiu
com essas ordens, afastou-se de Alexej e percorreu lentamente a primeira
fileira de homens; com os olhos, verificou o equipamento, chegou ao fim da
fileira (isso levou vários minutos), girou nos calcanhares e, sem pressa,
voltou para perto do soldado estendido de barriga na lama: — Agora, leia —
disse-lhe.
Alexej levantou o queixo sujo de lama, estendeu a mão direita, com a qual
segurara a carta esse tempo todo, e, ainda deitado, leu: — Nós lhe
informamos que na data de 15 de setembro de 1951 você foi expulso do
Partido Comunista da Tchecoslováquia. Para o Comitê Regional.. .
O comandante deu a Alexej a ordem de retomar seu lugar na fileira, passou
o comando a um oficial e nos fez continuar o exercício.
Depois da ordem-unida, houve instrução política e por volta das seis e meia
(já era noite) Lucie esperava perto da cerca; fui na sua direção, ela inclinou
a cabeça, sinal de que estava tudo bem, e partiu. Veio depois a sopa da noite,
o apagar das luzes e fomos nos deitar; na cama, esperei que o cabo que
chefiava o dormitório adormecesse. Então enfiei minhas botinas e, tal como
estava, com uma comprida cueca branca e camisa de dormir, saí do
dormitório. Transposto o corredor, estava no pátio; fazia frio. A abertura na
cerca tinha sido feita no fundo do quartel, atrás da enfermaria, o que era
ótimo, pois caso encontrasse alguém poderia fingir que estava me sentindo
mal e procurava um médico. No entanto, não encontrei ninguém; contornei
a parede dos banheiros deslizando na sua sombra; um projetor iluminava
preguiçosamente o mesmo lugar (o guarda do mirante visivelmente não
levava seu trabalho a sério) e a parte do pátio que eu tinha que atravessar
estava mergulhada na escuridão; eu só tinha uma preocupação: não topar
com o guarda que durante a noite toda fazia a ronda com seu cachorro ao
longo da cerca; tudo estava quieto (perigoso silêncio que complicava minha
espreita); fiquei lá por uns bons dez minutos quando ouvi um latido; vinha
do outro lado do quartel. Saindo do abrigo da parede, corri para o lugar
onde, depois da intervenção de Honza, a cerca tinha sido solta junto ao
chão. De barriga, escorreguei por baixo dela; agora não podia mais hesitar;
mais alguns passos e alcancei a cerca de madeira da casa do mineiro; estava
tudo em ordem: a porta não estava fechada à chave, entrei no pequeno
quintal da casa, cuja janela (com a cortina de enrolar abaixada) filtrava a luz
do interior. Bati no vidro e segundos depois um gigante apareceu na
entrada, convidando-me ruidosamente a segui-lo. (Essas demonstrações
barulhentas fizeram-me quase suar, pois não podia esquecer que estava
perto da caserna.) A porta abriu-se direto dentro de uma sala; fiquei em pé
na soleira, um pouco idiotizado: no interior, muito à vontade ao redor de
uma mesa (sobre a qual havia uma garrafa sem rolha) estavam sentados
cinco sujeitos; eles me viram e começaram a rir de meu traje ridículo;
disseram que eu devia estar morrendo de frio com aquela camisa de dormir
e encheram-me um copo; provei: era álcool de 90° diluído em um pouco
d'água; eles me encorajaram e bebi de um só trago; tossi, o que mais uma vez
os fez rir fraternalmente, e ofereceram-me uma cadeira; interessaram-se em
saber como eu conseguira "atravessar a fronteira" e novamente olharam
para a minha vestimenta de palhaço e caíram na gargalhada, chamando-me
de "cuecas em fuga". Todos esses mineiros, entre trinta e quarenta anos,
deviam ter aquele lugar como ponto de encontro; bebiam mas não estavam
bêbados; depois de minha surpresa inicial, o ambiente descontraído livrou-
me de minha angústia. Não recusei outro copo daquele líquido forte e
sufocante. Nesse meio-tempo, o mineiro foi até o quarto ao lado e voltou
com um terno escuro na mão.
— Será que vai lhe servir? — perguntou.
Vi que o mineiro era uns dez centímetros mais alto que eu e muito mais
gordo, mas respondi: — Vai ter que servir.
Vesti a calça sobre as cuecas do uniforme, mas tive que segurá-la com a mão,
senão cairia.
— Ninguém tem um cinto? — perguntou o sujeito que me dera o terno.
Ninguém tinha.
— Ao menos um barbante — disse eu.
Acharam um e graças a ele a calça ficou mais ou menos no lugar. Enfiei o
paletó e os sujeitos decidiram (não sei bem por quê) que eu parecia o Charlie
Chaplin, só me faltando o chapéu-coco e a bengala. Para agradá-los, juntei
os calcanhares e virei para fora a ponta dos pés. Sobre a enorme gáspea das
botinas, a calça caía como um acordeom, os sujeitos riam, jurando que
naquela noite qualquer mulher se poria de quatro por mim. Fizeram-me
beber um terceiro copo e me acompanharam até a calçada. O homem
garantiu-me que podia bater na sua janela a hora que quisesse voltar para
trocar de roupa.
Saí na rua mal iluminada. Levei quase um quarto de hora para fazer um
vasto círculo em torno da instalação militar antes de chegar à rua onde
deveria encontrar-me com Lucie. No caminho, fui obrigado de qualquer
modo a passar pela frente do portão iluminado de nossa caserna; uma
pequena pontada de angústia revelou-se de todo supérflua: meu disfarce
civil me protegeu perfeitamente, e a sentinela me viu sem me reconhecer;
cheguei são e salvo. Abri a porta da casa (iluminada por uma lâmpada
solitária) e segui em frente de memória (guiando-me apenas pela descrição
do mineiro): a escada à esquerda, primeiro andar, a porta em frente. Bati. A
chave girou na fechadura e Lucie abriu a porta.
Beijei-a (ela me esperava ali havia seis horas, tendo vindo logo depois da
saída do mineiro, que era da equipe da noite); perguntou-me se tinha
bebido; respondi que sim e contei-lhe como tinha vindo. Ela disse que
tremera aquele tempo todo, com medo de que me acontecesse alguma coisa.
(Então eu me dei conta de que ela realmente tremia.) Contei-lhe com que
imensa alegria tinha vindo encontrá-la; em meus braços sentia seus
repetidos estremecimentos.
— O que é que você tem? — perguntei, preocupado.
— Nada — disse ela.
— Mas por que você está tremendo? — Tive medo por você — respondeu
ela, e afastou-se com suavidade.
Dei uma olhada ao redor. O quarto era minúsculo, austeramente mobiliado:
mesa, cadeira, cama (estava feita, os lençóis não muito limpos); uma imagem
de santo acima; na parede oposta, um armário cheio de potes de geleia
(única coisa um pouco doce nesse quarto), e por cima de tudo isso, solitária
no teto, uma lâmpada sem abajur, ardendo desagradavelmente em nossos
olhos e clareando com brutalidade toda a minha pessoa, cujo ar
sinistramente cômico fez com que eu me sentisse mal na mesma hora: o
paletó gigantesco, a calça amarrada por um barbante, o bico escuro dos
sapatos; e, para completar, minha cabeça raspada de pouco, que, sob a luz
da lâmpada, devia brilhar como uma lua pálida.
— Pelo amor de Deus, Lucie, perdoe-me por estar assim! — implorei,
explicando-lhe mais uma vez a necessidade de meu disfarce.
Lucie me garantiu que não tinha importância, mas eu, movido pela
espontaneidade provocada pelo álcool, declarei que era impossível
continuar assim diante dela e tirei depressa o paletó e a calça; mas, por
baixo, havia a camisa de dormir e a atroz cueca da intendência (até o
tornozelo), duas peças dez mil vezes mais cômicas que a roupa que as
escondia um minuto antes. Girei o interruptor para apagar a luz, mas
nenhuma escuridão veio me salvar, porque da rua até ali brilhava a luz de
um poste. Como a vergonha do ridículo suplantara a da nudez,
desvencilhei-me da camisa e da cueca e fiquei nu, de pé, diante de Lucie.
Abracei-a. (Mais uma vez senti que ela tremia.) Disse-lhe que tirasse a
roupa, que se desfizesse de tudo o que nos separava. Acariciei todo seu
corpo e repeti-lhe várias vezes meu pedido, mas Lucie me disse que
esperasse um pouco, que ela não podia, que não podia imediatamente, que
não podia tão depressa.
Tomei-lhe a mão e nos sentamos na cama. Aninhei minha cabeça na sua
barriga e fiquei imóvel por um momento; de repente enxerguei todo o
absurdo de minha nudez (fracamente iluminada pela luz suja do poste);
veio-me a impressão de que tudo acontecia de modo inverso ao que tinha
sonhado: não havia uma moça nua junto a um homem vestido, mas um
homem nu se encontrava aninhado na barriga de uma mulher vestida; eu
tinha a impressão de ser Jesus tirado da Cruz, nas mãos de Maria
compadecida, e essa ideia logo me assustou, pois não tinha vindo aqui
procurar a compaixão, mas uma coisa bem diferente — e mais uma vez
comecei a beijar Lucie no rosto, no vestido, que tentei desabotoar
discretamente.
Mas fracassei; Lucie se soltou: perdi meu ímpeto inicial, minha impaciência
confiante, tinha esgotado minha reserva de palavras e carícias. Estendido,
inerte, nu, eu continuava na cama. Lucie estava sentada atrás de mim e
acariciava meu rosto com suas mãos rugosas. E durante esse tempo, pouco a
pouco, amargura e cólera se destilaram em mim: em pensamento, lembrava
a Lucie todos os riscos que tivera que correr a fim de encontrá-la hoje;
lembrava-lhe (em pensamento) todas as punições que podia me valer a
excursão dessa noite. Mas eram apenas reclamações superficiais (por isso —
pelo menos em pensamento — podia confessá-las a Lucie). A verdadeira
causa de minha indignação era infinitamente mais profunda (teria corado
em confessá-la): minha miséria me lancinava, desoladora miséria de minha
juventude frustrada, miséria das longas semanas insatisfeitas, humilhação
infinita do desejo não saciado; lembrava a vã conquista de Marketa, a
vulgaridade da loura da máquina agrícola e mais uma vez a conquista inútil
de Lucie. Tinha vontade de gritar minha queixa: por que em tudo era
preciso que fosse adulto; como adulto, fui julgado, expulso, declarado
trotskista; como adulto, fui mandado para as minas, enquanto no amor não
tenho o direito de ser adulto e sou obrigado a beber toda a vergonha da
imaturidade? Detestava Lucie, mais ainda porque sabia de seu amor por
mim, o que tornava sua resistência aberrante e incompreensível, e me
enfurecia ainda mais. Assim, depois de uma meia hora de mutismo
obstinado, retomei o ataque.
Atirei-me sobre ela; usando toda a minha força, consegui levantar sua saia,
rasgar seu sutiã, segurar seu seio nu, mas Lucie me opunha uma resistência
cada vez mais veemente e (sob o domínio de uma violência tão cega quanto
a minha) livrou-se, pulou da cama, plantando-se contra o armário.
— Por que você está se defendendo? — gritei.
Incapaz de uma resposta, ela gaguejou que eu não devia me aborrecer, nem
ter raiva dela, mas não disse nada de esclarecedor, nada de lógico.
— Por que você está se defendendo? Você não sabe como gosto de você?
Você é louca! — insultei.
— Está bem, então me mande embora — disse ela, colada no armário.
— É, vou mandar você embora, porque você não me ama, porque você está
zombando de mim.
Gritei-lhe meu ultimato: ou ela seria minha, ou então não queria mais vê-la,
nunca mais.
E fui outra vez em direção a ela e beijei-a. Dessa vez ela não se defendeu,
mas ficou nos meus braços sem nenhuma força, como se estivesse morta.
— O que é que você pretende com essa virgindade? Por que quer protegê-
la? Ela se manteve calada.
— Por que você não fala? — Você não me ama — disse ela.
— Eu não amo você? — Não! Pensei que você me amasse. .. — Ela caiu em
prantos.
Ajoelhei-me diante dela; beijei suas pernas, implorei. Ela repetia, soluçando,
que eu não a amava.
De repente, a fúria tomou conta de mim. Uma espécie de força sobrenatural
parecia atravessar-se no meu caminho, tirando-me continuamente das
mãos as coisas pelas quais queria viver, aquilo que eu desejava, que me
pertencia; essa força me parecia a mesma que me tinha roubado o Partido,
os camaradas, a faculdade; a mesma que me tirava sempre tudo, pelo sim,
pelo não, e sem nenhuma razão. Compreendi que essa força sobrenatural
colocava Lucie contra mim e detestei Lucie por ter-se tornado seu
instrumento; bati no rosto dela — pensando em atingir, não Lucie, mas
aquela força hostil; berrei que a detestava, que não queria mais vê-la, nunca
mais na minha vida.
Atirei-lhe seu casaco marrom (abandonado na cadeira) e gritei-lhe que
partisse.
Ela vestiu o casaco e saiu.
Em seguida atirei-me na cama e senti um vazio na alma, e fiquei a ponto de
chamá-la de volta porque já sentia sua falta no instante em que a expulsava,
porque, eu sabia, era mil vezes melhor uma Lucie vestida e rebelde do que
ficar sem Lucie.
Sabia disso e no entanto não fiz um movimento para fazê-la voltar.
Fiquei muito tempo nu na cama daquele quarto emprestado, pois não podia
pensar, no estado em que me encontrava, em encontrar pessoas, reaparecer
na casa em frente ao quartel, brincar com os mineiros e responder a seu
interrogatório maldoso.
Apesar disso (muito tarde da noite), acabei vestindo-me e saindo. Na
calçada em frente, o poste de luz continuava iluminando a casa de onde eu
saíra. Dei a volta no quartel, bati na janela (agora apagada), esperei três
minutos, tirei minha roupa na presença do mineiro, que bocejava, respondi
vagamente, quando ele me perguntou sobre minha sorte, e (mais uma vez
com a camisa de noite e cueca) dirigi-me para a caserna. Tonto de
desespero, tudo me era indiferente. Não prestava atenção a de que lado
ficava a guarda com os cães de caça, nem tampouco à luz do projetor.
Enfiei-me sob a cerca, avancei tranquilamente para minha barraca.
Percorria justamente o caminho junto à parede da enfermaria quando ouvi:
— Pare! Parei. Uma lanterna me clareou. — O que você está fazendo aí? —
Estou vomitando, camarada sargento — expliquei, apoiando uma das mãos
no muro.
— Continue! Continue! *— replicou o sargento e retornou à ronda com o
seu animal.
Sem mais problemas (o cabo dormia profundamente), cheguei à minha
cama, no entanto não pude fechar os olhos, e fiquei aliviado quando a voz
áspera do oficial da semana (arrotando: "vocês aí dentro, de pé!") pôs fim a
essa noite horrível. Enfiei meus sapatos e corri para o banheiro a fim de lavar
o rosto com água fria. Na volta, percebi em torno da cama de Alexej um
aglomerado de companheiros vestidos pela metade que riam sem fazer
ruído. Compreendi: Alexej (deitado de barriga sobre a colcha, a cabeça
enfiada no travesseiro) dormia, imóvel. Isso logo me lembrou Franta
Petrasek, que, uma manhã, furioso com seu chefe de seção, fingiu um sono
tão profundo que três superiores tentaram sacudi-lo, um de cada vez, sem
resultado: foi preciso, em desespero de causa, levá-lo com cama e tudo para
o pátio, onde ele só despertou, esfregando os olhos preguiçosamente,
quando apontaram para ele uma mangueira de incêndio. Não se podia,
porém, suspeitar Alexej de rebelião, e seu sono profundo não tinha outra
origem senão sua constituição frágil. Um cabo (chefe de nosso dormitório)
veio do corredor carregando uma enorme panela cheia de água; atrás dele
vinham vários dos nossos que, aparentemente, lhe tinham soprado esse
antigo truque estúpido da água, que tanto convém aos cérebros dos
suboficiais de todas as épocas.
Essa tocante conivência dos homens com o oficial (habitualmente
menosprezado) irritou-me; fiquei indignado de ver todas as antigas
diferenças entre eles apagadas de repente pelo ódio comum a Alexej. Todos,
é evidente, haviam interpretado de acordo com o que já suspeitavam as
palavras do comandante falando ontem sobre um Alexej traidor, e sentiram
bruscamente uma onda ardente de aprovação à crueldade do oficial. Um
ódio cego subiu-me à cabeça, ódio de todos à minha volta, por aquela
rapidez em acreditar na primeira acusação, por sua crueldade sempre
disponível — passei à frente do cabo e de sua turma. Na beirada da cama,
disse em voz alta: — Levante-se, Alexej, não se faça de idiota! Nesse
momento, pelas costas, alguém me torceu o punho, obrigando-me a ajoelhar.
Virei a cabeça e vi Petr Pekny.
— Então, seu bolchevique, quer atrapalhar a festa? — sibilou ele.
Livrei-me com um sacolejão e dei-lhe uma bofetada, íamos começar uma
briga mas os outros se apressaram em nos acalmar, com medo de que Alexej
acordasse antes do tempo. Além disso, o cabo esperava com a panela de
água. Postando-se ao lado de Alexej, gritou: — De pé! — E derrubou sobre
ele uns bons dez litros de água.
Uma coisa estranha aconteceu: Alexej continuou deitado como antes. Alexej
não mexeu um dedo. Estupefato por uns segundos, o cabo gritou: —
Soldado! De pé! Mas o soldado não se mexeu. O cabo debruçou-se e sacudiu-
o (a colcha estava encharcada, a cama e o lençol também, gotas caíam no
chão). Conseguiu virar o corpo de Alexej, e vimos seu rosto: vencido, pálido,
imóvel.
O cabo gritou: — O médico! Ninguém se mexeu, todos olhavam Alexej com
sua camisa de dormir encharcada, e o cabo gritou outra vez: — O médico! —
E designou um soldado que partiu imediatamente.
(Alexej estava deitado sem se mover, menor, mais raquítico do que nunca,
mais jovem do que antes, como uma criança, só que tinha os lábios fechados
numa linha estreita, o que as crianças não fazem; gotas caíam debaixo dele.
Alguém disse: — Está chovendo. ..) O médico veio, tomou o pulso de Alexej
e disse: — Bom...
Em seguida levantou a coberta molhada: nós o vimos em todo o seu
(pequeno) comprimento, com sua comprida cueca branca e úmida, a planta
dos pobres pés descalços virada para cima. O médico olhou à sua volta e
apanhou dois tubos em cima da mesinha de cabeceira; examinou-os
(estavam vazios) e disse: — O suficiente para liquidar duas pessoas.
Depois pegou o lençol da cama ao lado e estendeu-o sobre Alexej.
Tudo isso nos atrasou; tivemos que tomar nosso café correndo e quarenta e
cinco minutos mais tarde estávamos nas galerias. Depois veio o fim do
trabalho, houve nova sessão de exercícios, educação política, canto
obrigatório, trabalhos de limpeza; na hora de dormir comecei a pensar que
Stana não estava mais lá, que Honza, meu melhor amigo, não estava mais lá
(nunca mais o revi, tudo o que me contaram foi que, tendo terminado seu
tempo de serviço, ele entrou na Áustria clandestinamente) e que Alexej não
estava mais lá; assumira seu louco papel cega e corajosamente, não foi sua
culpa se de repente* não pôde mais desempenhá-lo, se não soube mais
permanecer na fileira, com sua máscara de canalha, se lhe faltaram forças;
não era meu amigo, por causa da intensidade de sua fé era um estranho
para mim, mas por seu destino era de todos o mais chegado a mim; parecia-
me que ocultara na sua morte uma censura a mim, como se quisesse me
fazer compreender que, a partir do momento em que o Partido expulsa um
homem de seu seio, esse homem não tem mais razões para viver. De súbito
senti-me culpado de não ter gostado dele, pois agora estava
irrevogavelmente morto e eu nunca fizera nada por ele, mesmo sendo o
único que podia ter feito.
Mas eu não perdera apenas Alexej e a única ocasião de salvar um homem;
considerando as coisas com a distância de hoje, foi também neste momento
que perdi o caloroso sentimento da minha solidariedade por meus
companheiros "negros" e, portanto, a última oportunidade de ressuscitar
minha confiança nas pessoas. Passei a duvidar do valor de nossa
solidariedade, fruto apenas da força das circunstâncias e do instinto de
conservação que nos reunia num grupo compacto. Comecei a achar que
nossa coletividade de "negros" era capaz de perseguir um homem (mandá-
lo do exílio para a morte) exatamente como a coletividade daquela sala do
passado, e talvez como todas as coletividades.
Nesses tempos eu me sentia como que atravessado por um deserto: eu era
um deserto dentro de um deserto e tinha vontade de chamar Lucie. De
repente não podia compreender por que tinha desejado seu corpo com
tanta loucura; parecia-me agora que talvez ela não fosse uma mulher de
carne mas sim uma coluna transparente de calor que atravessava o império
do frio infinito, coluna transparente que se distanciava de mim, enxotada
por mim mesmo.
Então veio um outro dia e, durante os exercícios no pátio, meus olhos não
largaram a cerca; esperava sua vinda. Mas durante todo esse tempo só
apareceu uma velha, que parou e nos mostrou a seu pirralho sujo. À noite
escrevi-lhe uma carta, longa e lânguida; implorava a Lucie que voltasse,
tinha de vê-la, não lhe pedia mais nada, a não ser que existisse, e que eu
pudesse vê-la e saber que estava comigo, que estava...
Como que por zombaria, o tempo esquentou, o céu estava azul, era um mês
de outubro maravilhoso. As árvores estavam coloridas e a natureza (essa
pobre natureza de Ostrava) festejava sua despedida de outono num êxtase
desenfreado. Vi nisso um deboche porque minhas cartas desoladas ficaram
sem resposta e junto à cerca só paravam (sob um sol provocante) pessoas
terrivelmente estranhas. Uns quinze dias mais tarde o correio devolveu uma
de minhas cartas; sobre o envelope, o endereço estava riscado, e a lápis
escreveram: Mudou-se sem deixar endereço.
Fui invadido pelo medo. Mil vezes depois de meu último encontro com
Lucie lembrei-me de tudo que havíamos dito um ao outro naquele dia,
amaldiçoei-me cem vezes, e cem vezes justifiquei-me diante de mim
mesmo, cem vezes acreditei tê-la repudiado para sempre, e cem vezes
assegurei-me que, apesar de tudo, Lucie saberia me compreender e me
perdoaria. Mas aquele rabisco a lápis do carteiro foi como uma sentença.
Dominado por uma agitação que eu não conseguia controlar, no dia seguinte
fiz outra loucura. Digo loucura, mas na realidade não foi mais perigosa que
minha última fuga da caserna, só me dei conta da insensatez dessa proeza
em retrospectiva, e mais por seu insucesso do que por seus riscos. Sabia que,
antes de mim, Honza já fizera isso mais de uma vez durante o verão,
quando estava saindo com uma búlgara cujo marido trabalhava pelas
manhãs. Imitei seu método: apresentei-me junto com os outros para a
equipe da manhã, retirei minha senha, minha lanterna, sujei o rosto com pó
e desapareci discretamente; corri para a casa de Lucie e interroguei a
zeladora. Soube que a moça partira já há uns quinze dias com uma pequena
valise onde tinha colocado tudo o que possuía; ninguém sabia para onde
tinha ido, ela não tinha dito nada a ninguém. Tive medo: e se alguma coisa
lhe tivesse acontecido? A zeladora olhou-me e fez um gesto de descaso: —
Qual! Essas garotas chegam aos bandos e fazem sempre isso. Chegam, vão
embora, sem nunca dizer nada a ninguém.
Fui ao departamento de informações da fábrica onde ela trabalhava, ao
departamento de pessoal, mas não consegui saber mais nada. Em seguida
perambulei por Ostrava e voltei à mina um pouco antes do fim do trabalho,
com a intenção de juntar-me aos meus companheiros na hora em que
subissem das galerias; só que devo ter esquecido alguma coisa do plano
engendrado por Honza para esse gênero de passeios; fui apanhado. Duas
semanas mais tarde compareci ao tribunal militar e fui condenado a dez
meses de prisão por deserção.
Sim, foi ali, foi no momento em que perdi Lucie que começou toda essa
longa etapa de desespero e de vazio que me voltou à memória quando
contemplei a lamacenta paisagem de interior da minha cidade natal, onde
eu chegava para uma breve estada. Sim, foi só nesse momento que
começou: durante os dez meses que passei atrás das grades, mamãe morreu
e eu nem pude ir ao seu enterro. Depois voltei a Ostrava para junto dos
"negros", e cumpri mais um ano de serviço. Nessa época assinei o
compromisso de trabalhar três anos nas minas, quando acabasse meu serviço
militar, porque espalhara-se o boato de que quem não fizesse isso ficaria na
caserna por mais alguns anos ainda. Portanto, fiquei nas galerias ainda três
anos como civil.
Não gosto de pensar nisso, não gosto de falar nisso e, diga-se de passagem,
não gosto quando hoje em dia pessoas que, como eu, foram rejeitadas pelo
movimento em que acreditavam gabam-se de seu destino. Sim, é verdade,
eu também glorifiquei meu destino de banido, mas foi falso orgulho. Com o
tempo, tive que lembrar a mim mesmo, sem indulgência, que eu não fui
para o meio dos "negros" por ter sido corajoso, por ter lutado, por ter feito
com que minhas ideias entrassem em luta com outras ideias; não, minha
queda não foi precedida por nenhum drama real, fui mais objeto do que
sujeito de minha história, não tenho (não dando nenhum valor ao
sofrimento, à angústia, à derrota) a menor razão de me sentir orgulhoso.
Lucie? Ah, sim: passei quinze anos sem vê-la e durante muito tempo nada
soube dela. Foi somente depois de meu serviço militar que ouvi dizer que ela
talvez estivesse em algum lugar no oeste da Boêmia. Mas não a procurei
mais.
Q UARTA PARTE

JAROSLAV

Vejo um caminho no campo. Vejo a terra desse caminho, riscada pelas rodas
das carroças dos camponeses. E, ao longo do caminho, a relva tão verde que
não posso deixar de acariciá-la.
Em volta, pequenas plantações, e não as vastas áreas reunidas das
cooperativas. Como? Não é uma paisagem de nosso tempo que percorro?
Que paisagem é essa então? Vou mais longe, e eis diante de mim, na beira de
um campo, uma roseira. Cheia de pequenas rosas selvagens. Paro e sinto-me
feliz. Sento-me na relva perto do arbusto e em seguida deito-me. Sinto
minhas costas encostarem na terra felpuda. Apalpo a terra com minhas
costas. Seguro-a com as costas, implorando-lhe que não tenha medo de
pesar para mim, de descansar sobre mim com todo seu peso.
E então ouço um martelar de cascos. Ao longe levanta-se uma fina nuvem
de poeira. À medida que se aproxima, torna-se translúcida. Dela emergem
cavaleiros. Jovens montados, com uniformes brancos. Mas quanto mais se
aproximam, melhor se vê a negligência de suas roupas. Alguns dólmãs estão
ajustados com botões dourados, outros estão em desalinho, e há homens em
mangas de camisa. Uns usam boné, e outros estão com a cabeça descoberta.
Ah, não, não é um destacamento normal, são desertores, fugitivos, bandidos!
É a nossa cavalaria! Levanto-me, vejo-os chegar. O primeiro cavaleiro
desembainha e ergue seu sabre. A tropa para.
O homem com o sabre inclina-se sobre o pescoço de seu animal para poder
me enxergar.
— Sim, sou eu — digo-lhe.
— O rei! — exclama o outro, surpreso. — Eu o reconheço.
Abaixo a cabeça, feliz. Há tantos séculos que eles cavalgam aqui, e me
reconheceram.
— Como tem vivido, meu rei? — pergunta o homem.
— Tenho medo, amigo — respondo.
— Eles o perseguem? — Não, é pior ainda. Há uma trama contra mim. Não
reconheço as pessoas que me cercam. Volto para casa e o quarto é outro,
minha mulher é outra, tudo está diferente. Digo a mim mesmo que devo
ter-me enganado e saio novamente, mas, vista de fora, é a minha casa
mesmo! Minha no exterior, estranha no interior. E é assim em todos os
lugares. Passam-se coisas que me dão medo, amigo.
O homem me pergunta: — Você ainda sabe montar? Percebo então que a
seu lado está um cavalo todo arreado, uma montaria sem cavaleiro. O
homem me aponta o cavalo. Enfio um pé no estribo e subo na sela. O animal
tropeça, mas minhas pernas já seguram seus flancos com prazer. O homem
tira do bolso um véu vermelho e estende-o para mim: — Amarre-o sobre o
seu rosto para que não o reconheçam! Com o rosto coberto, fico cego. Ouço a
voz do homem: — O cavalo o conduzirá.
Todo o pelotão passa a galope. Dos dois lados sinto meus vizinhos galoparem.
As barrigas de nossas pernas se tocam, e às vezes eu percebo o respirar
entrecortado de seus cavalos. Cavalgamos talvez durante uma hora assim,
corpo contra corpo. E então paramos. A mesma voz de homem me diz: —
Aqui estamos, meu rei!
— E onde estamos? — pergunto.
— Não está ouvindo murmurar o grande rio? Estamos à margem do
Danúbio. Aqui, meu rei, você estará seguro.
— É verdade — digo —, sinto-me protegido. Gostaria de tirar meu véu.
— Não deve, meu rei, ainda não. Para que precisa de seus olhos? Eles só
poderão enganá-lo.
— Mas eu quero ver meu Danúbio, meu rio, quero vê-lo!
— Você não precisa de seus olhos, meu rei! Vou contar-lhe tudo. É melhor
assim. À nossa volta há a planície a perder de vista. Pastagens. Um mato
aqui e ali; aqui e ali, em pé, uma longa haste de madeira, trave de um poço.
Mas nós estamos numa ribanceira, sobre a relva. A dois passos daqui, a relva
se transforma em areia, porque nestas paragens o leito do Danúbio é arenoso.
E agora, meu rei, desça do cavalo! Pomos os pés em terra e sentamos no
chão.
— Os rapazes acendem uma fogueira — retoma a voz do homem —, o sol se
dissolve lá embaixo no horizonte e o ar fresco não deve tardar.
— Gostaria de ver Vlasta — digo subitamente.
— Você a verá.
— Onde está ela?
— Não está longe. Você irá juntar-se a ela. Seu cavalo o conduzirá.
Levanto-me de um pulo e digo que quero ir imediatamente. Mas um pulso
forte me segura o ombro.
— Fique sentado, meu rei. Você deve descansar e comer. Enquanto isso
falarei sobre ela.
— Conte, onde está ela? — A uma hora daqui fica uma pequena casa de
madeira com teto de palha. Em torno dela, uma pequena cerca.
— Sim, sim — digo, o coração sufocado de felicidade —, tudo é de madeira.
É assim mesmo. Não quero nem um só prego de metal nessa casinha.
— Sim! — prossegue a voz. — A cerca é de estacas de madeira mal talhadas,
tanto que se pode reconhecer a forma primitiva dos galhos.
— Todos os objetos feitos de madeira lembram um gato ou um cachorro —
digo. — São mais seres do que coisas. Gosto do mundo de madeira. Só nele é
que me sinto à vontade.
— Atrás da cerca crescem girassóis, lunárias e dálias, e há também uma
velha macieira. Olha lá, lá está Vlasta em pé na porta!
— Como é que ela está vestida?
— Está com uma saia de Unho, um pouco suja, pois está voltando do
estábulo. Está carregando uma vasilha de madeira. Está descalça. Mas é
bonita porque é moça.
— Ela é pobre. É uma pobre criada.
— É, mas isso não impede que ela seja uma rainha! E porque é rainha é
preciso que fique escondida. Nem mesmo você pode aproximar-se dela,
para que não seja descoberta. Você só pode ir se estiver com os olhos
vendados. O cavalo conhece o caminho.
A história do homem era tão bela que um suave torpor me invadiu. Deitado
na relva, escutava a voz, depois a voz se calou, e ouvia-se apenas o barulho
da água e o crepitar do fogo. Era tão bonito que eu não ousava abrir os olhos.
Mas não havia nada a fazer. Sabia que estava na hora e que era preciso abri-
los.
Embaixo de mim, o colchão repousava sobre um estrado de madeira
laqueada. Não gosto de madeira laqueada. Também não gosto dos pés
metálicos curvos que sustentam o divã. Sobre mim, pendurado no teto, está
um globo de vidro rosa com três listras brancas. Também não gosto desse
globo. Nem do aparador em frente, cujo vidro mostra uma porção de outros
objetos de vidro que não servem para nada. De madeira existe apenas um
pequeno órgão num canto. Só gosto disso neste quarto. Ficou como
lembrança de papai. Papai morreu há um ano.
Levantei-me do divã. Continuava cansado. Era uma sexta-feira à tarde,
dois dias antes do domingo da Cavalgada dos Reis. Tudo dependia de mim.
Tudo o que em nosso distrito diz respeito ao folclore depende sempre de
mim. Há quinze dias que não dormia o suficiente por causa das
preocupações, das providências, das discussões.
Em seguida Vlasta entrou no quarto. Eu sempre me surpreendo pensando
que ela deveria engordar. As mulheres gordas passam por bem-humoradas.
Vlasta é magra, com finas rugas no rosto. Perguntou-me se ao voltar da
escola eu me lembrara de passar na lavanderia, para apanhar a roupa. Eu
tinha esquecido.
— É o que eu desconfiava — disse ela, e quis saber se pelo menos uma vez
eu pretendia ficar em casa.
Fui forçado a responder-lhe que não. Dentro de poucos instantes teria uma
reunião na cidade. No distrito.
— Você tinha prometido ajudar Vladimir a fazer seus deveres.
Encolhi os ombros.
— Quem vai estar nessa reunião?
Enquanto eu dizia os nomes, Vlasta me interrompeu: — A tal de Hanzlig
também vai?
— Vai — respondi.
Vlasta zangou-se. Atrapalhou tudo. A Sra. Hanzlig tinha má reputação.
Sabia-se que ela tinha dormido com um e com outro. Vlasta não desconfiava
de mim, tinha apenas desprezo pelas reuniões de trabalho das quais a
Hanzlig participava. Não adiantava conversar com ela. Era melhor eu ir
logo embora.
A reunião era dedicada aos últimos preparativos da Cavalgada dos Reis.
Tudo estava indo mal. O Comitê Nacional começava a economizar conosco.
Há poucos anos ele destinava somas consideráveis às festas folclóricas.
Agora, nós é que temos que sustentar as finanças do Comitê Nacional. A
União da Juventude não exerce mais nenhum atrativo sobre os jovens,
vamos então confiar a ela agora a organização da Cavalgada, a fim de
prestigiá-la! Antigamente empregava-se a verba da Cavalgada dos Reis para
subvencionar outras iniciativas folclóricas menos lucrativas; pois bem, dessa
vez, que ela seja entregue à União da Juventude para que disponha da
verba como quiser. Pedimos aos serviços da Segurança para suspender o
tráfego da estrada durante a realização da Cavalgada. Ora, acabávamos de
receber uma resposta negativa bem no dia de nossa reunião. Não era
possível, disseram, perturbar o tráfego por causa de uma Cavalgada dos
Reis. Mas ela vai ficar parecendo o quê, essa cavalgada, com os cavalos
desembestados entre os carros? Problemas, só problemas.
A reunião tinha demorado e eram quase oito horas quando voltei. Na praça
vi Ludvik. Andava no sentido inverso, na outra calçada. Quase estremeci. O
que o trazia aqui? Surpreendi o olhar que por um segundo ele havia dirigido
a mim, antes de desviá-lo rapidamente. Fingiu que não me tinha visto. Dois
velhos amigos. Oito anos passados no mesmo banco de escola! E ele finge não
me ver! Ludvik tinha sido a primeira fenda na minha vida. Hoje estou
acostumado. Minha vida é uma casa pouco sólida. A última vez que estive
em Praga, fui a um desses pequenos teatros que se abriram em profusão nos
anos 60 e que se tornaram logo muito populares, graças a jovens animadores
com espírito estudantil. Representavam lá uma farsa não muito
interessante, mas nela havia canções alegres e um bom jazz. De repente os
músicos puseram pequenos chapéus de feltro redondos com plumas que são
usados em nosso país com os trajes populares e começaram a imitar uma
orquestra com címbalo. De maneira espalhafatosa, com todo entusiasmo, eles
parodiavam os movimentos de nossas danças, e este gesto típico — o braço
esticado, erguido para o céu. O público torcia-se de rir. Eu não acreditava no
que via. Há cinco anos ninguém teria a audácia de caçoar assim de nós.
Aliás, isso não teria feito ninguém rir. E agora eis-nos aqui como palhaços. Por
que de repente nós nos transformamos em palhaços? E Vladimir. Quantas
ele me aprontou nessas últimas semanas! O Comitê Nacional do Distrito
aconselhou a União da Juventude a escolhê-lo para rei este ano. Tal escolha
significa sempre uma homenagem ao pai. Foi em mim que pensaram.
Queriam, na pessoa de meu filho, recompensar-me por tudo o que fiz pela
arte popular. Vladimir, no entanto, se fez de rogado. Inventou desculpas de
todas as maneiras. Disse que queria ir a Brno nesse domingo para assistir a
uma corrida de motos. Inventou até que tinha medo de cavalos. No fim
declarou que se recusava a representar o rei porque era uma escolha do alto.
Que ele não admitia proteção.
Como me aborreci com isso! Como se ele quisesse apagar de sua vida tudo o
que pudesse lembrar-lhe a minha. Jamais quis frequentar o grupo infantil de
cantos e danças que criei à margem de nosso conjunto. Nessa época já se
esquivava. Dizia que não tinha jeito para música. No entanto tocava violão
bastante bem, e sempre se encontrava com amigos para cantar sei lá que
banalidades americanas.
É bem verdade que Vladimir tem apenas quinze anos. E gosta muito de
mim. Um dia desses tivemos uma conversa, talvez ele me tenha
compreendido.
Lembro-me muito bem. Estava sentado no banco giratório e Vladimir no
divã, à minha frente. Eu estava com o cotovelo apoiado sobre o tampo
fechado do órgão, esse instrumento de que tanto gosto. Escutava-o desde a
minha infância. Meu pai tocava-o todos os dias. Sobretudo canções
populares com harmonias simples. Era como se eu ouvisse doces murmúrios
de fontes longínquas. Ah, se Vladimir quisesse ouvi-las também! Se
resolvesse compreender essas coisas! Nos séculos XVII e XVIII, o povo
tcheco, por assim dizer, deixou de existir. No século XIX assistiu, na
realidade, a seu segundo nascimento. No círculo das antigas nações
europeias, era uma criança. Tinha também, certamente, seu grande
passado, mas estava separado dele por um fosso de duzentos anos. Durante
esse período, a língua tcheca fugiu das cidades para o campo, refugiando-se
entre os iletrados. No entanto, mesmo entre eles, ela continuava a criar sua
cultura. Cultura modesta e escondida dos olhos da Europa. Cultura de
canções, contos, ritos cotidianos, provérbios e ditados. A única passarela
sobre dois séculos.
Única passarela, única ponte. Única ramificação de uma tradição jamais
rompida. E foi sobre ela precisamente que no começo do século XIX os
iniciadores da nova literatura tcheca enxertaram suas criações. Suas
primeiras poesias assemelhavam-se a cantigas populares.
Vladimir, meu querido, será que você não pode compreender isso? Seu pai é
apenas um maníaco por folclore. Isso é verdade, só que, além dessa mania,
ele pretende ir mais fundo. Por meio da arte popular, ele escuta subir a seiva
sem a qual a cultura tcheca não seria mais do que uma árvore seca.
Compreendi tudo isso durante a guerra. Tinham tentado nos fazer acreditar
que não tínhamos direito à existência, que éramos simplesmente alemães
que falavam tcheco. Tivemos que nos assegurar de que tínhamos existido e
de que existíamos. Na época todos nós fizemos nossa peregrinação às raízes.
Nesse tempo, eu tocava contrabaixo num pequeno conjunto de jazz
formado por estudantes. E eis que um belo dia as pessoas do Círculo
Morávio vieram me procurar para que ressuscitássemos uma orquestra com
címbalo.
Naquele momento, quem poderia recusar? Lá fui eu tocar violino.
Arrancamos velhas canções de seu sono de morte. Quando no século XIX os
patriotas reuniram a arte popular em coleções, chegaram ao último
momento. A civilização moderna já estava suplantando o folclore. Assim, no
começo de nosso século, os círculos folclóricos nasceram para que a arte
popular preservada nos livros entrasse de novo na vida. Primeiro, na vida
da cidade. Depois, na vida do campo. Isso aconteceu sobretudo na Morávia.
Organizaram-se festas populares, Cavalgadas dos Reis, encorajaram-se as
orquestras populares. Esforço considerável, mas que corria o risco de tornar-
se estéril: os folcloristas não sabiam ressuscitar tão depressa quanto a
civilização sabia enterrar.
A guerra veio nos insuflar uma força nova. No último ano da ocupação
nazista, montamos uma Cavalgada dos Reis. Na cidade havia uma caserna,
e, no meio da multidão nas calçadas, os oficiais alemães se acotovelavam
com as pessoas. Nossa Cavalgada se tornara manifestação. O esquadrão de
rapazes com roupas coloridas, sabre em punho. Aparição dos primórdios da
história. Todos os tchecos nessa época pensavam isso e seus olhos brilhavam.
Eu tinha quinze anos e fora eleito rei. Apertava com as pernas meu cavalo,
cercado por dois pajens, com o rosto coberto. Estava orgulhoso. Meu pai
também. Sabia que me tinham escolhido rei para honrá-lo. Professor da
escola da cidade, patriota, todo mundo gostava dele.
Vladimir, meu filho, acredito que as coisas têm um sentido. Acredito que os
destinos humanos estão ligados entre si com um cimento de sabedoria.
Parece-me um sinal que você tenha sido escolhido rei este ano. Estou
orgulhoso como há vinte anos. Mais ainda. Porque, através de você, é a mim
que querem honrar. E — por que negar? — essa honra conta aos meus olhos.
Quero passar a você minha realeza. Quero que você a receba de minhas
mãos.
Talvez ele me tenha compreendido. Prometeu-me aceitar ser escolhido rei.
Se ele quisesse compreender como é interessante! Não posso imaginar nada
de mais interessante. Nada de mais cativante.
Isto, por exemplo: durante muito tempo os musicólogos de Praga
sustentaram que os cantos populares da Europa eram derivados do barroco.
Nas orquestras dos castelos, músicos camponeses cantavam e tocavam,
transmitindo depois para a gente simples a cultura musical dos nobres.
Assim, a música popular não representaria absolutamente uma forma
artística sui generis. Ela derivaria da música erudita.
Mas, ainda que fosse assim no caso da Boêmia, as árias que cantamos na
Morávia não se enquadram nessa explicação. Até do ponto de vista tonai. A
música erudita do período barroco era escrita em tom maior e tom menor.
Nossas canções são cantadas em tons inconcebíveis para as orquestras de
castelo! Por exemplo, em tom lídio. É aquele que comporta uma quarta
aumentada. Ele me lembra sempre a nostalgia dos idílios pastorais dos
tempos de outrora. Vejo o deus Pã dos pagãos e ouço sua flauta: A música
barroca e a do período clássico devotavam um culto fanático à bela ordem
da sétima maior. Não conheciam outro caminho para a tônica senão a
disciplina da nota sensível. A sétima menor, subindo até a tônica pela
segunda maior, assustava. O que me agrada em nossas árias populares é
justamente essa sétima menor, pertença ela ao tom eólico, dórico ou
mixolídio. Pela sua melancolia. Pela sua recusa em correr tolamente para o
tom fundamental no qual tudo termina, o canto e a vida: Mas existem
canções de tonalidades tão estranhas que é impossível denominá-las a partir
dos tons ditos de Igreja. Diante delas fico estupefato: Os cantos morávios
apresentam uma inimaginável complexidade de tons. Seu pensamento
harmônico é enigmático. Começando em tom menor, eles terminam em
maior, parecendo hesitar entre diferentes tons. Muitas vezes, quando
preciso harmonizá-los, não sei absolutamente como compreender o tom.
E muitas vezes eles possuem a mesma ambiguidade na ordem rítmica.
Sobretudo as árias lentas que Bartók caracterizou com o termo parlando.
Não existe nenhum meio de transcrever o ritmo destas para nosso sistema
de notação, todos os intérpretes populares cantam essas canções com um
ritmo impreciso.
Como explicar isso? Leos Janacek afirmava que essa complexidade
incompreensível do ritmo é resultante das variações momentâneas do
humor do cantor. Pela maneira como canta, ele reage ao colorido das flores,
ao tempo que está fazendo, à paisagem.
Mas não seria essa uma interpretação por demais poética? Desde nosso
primeiro ano na Universidade, um professor nos transmitiu uma de suas
experiências. Pediu a vários cantores populares que cantassem
separadamente uma mesma ária, de ritmo refratário à notação. O registro
obtido com a ajuda de aparelhos eletrônicos rigorosos permitiu-lhe verificar
que todos cantavam de maneira idêntica.
A complicação rítmica desses cantos não tem, portanto, como causa um
defeito de precisão, ou o humor do cantor. Ela obedece a leis secretas. É
assim que, num certo tipo de música mora via para dançar, por exemplo, o
segundo meio-compasso é sempre uma fração de segundo mais longo do que
o primeiro. Mas como identificar essa complexidade na partitura? A métrica
da música erudita repousa na simetria. A semibreve vale duas mínimas, uma
mínima vale duas semínimas, o compasso se divide em dois, três ou quatro
tempos de igual valor. Mas como tratar um compasso de dois tempos
desigualmente longos? Para nós, hoje, o pior quebra-cabeça é a maneira de
anotar o ritmo original das canções morávias.
Uma coisa no entanto é certa. As nossas canções não podem ter nascido da
música barroca. As da Boêmia, talvez. Na Boêmia o nível de civilização era
superior, mais próximo também o contato das cidades com o campo, dos
camponeses com o castelo. Na Mora via havia igualmente castelos. Mas o
mundo camponês, mais primitivo, ficava muito mais isolado. Aqui não havia
o hábito de músicos campestres fazerem parte de uma orquestra de castelo.
Nessas condições, as cantigas populares, mesmo nos tempos mais remotos,
puderam ser conservadas em nossa terra. É essa a explicação para a sua
diversidade. Elas datam de fases diferentes de sua longa, lenta história.
Quando você se encontra frente a frente com toda a nossa música popular,
é como se diante de seus olhos dançasse a mulher das Mil e uma noites, que
tirasse sucessivamente véu após véu.
Olhe! O primeiro véu. O tecido é estampado com motivos triviais. Trata-se
das canções mais recentes dos últimos cinquenta, setenta anos. Elas vieram
do Oeste, da Boêmia. Os professores as ensinavam às crianças nas escolas. A
maior parte delas é em tom maior, só que ligeiramente adaptadas a nossos
hábitos rítmicos.
Mas eis o segundo véu. Ele já tem um colorido nitidamente mais vivo. Esses
cantos são originários da Hungria. Eles acompanham a expansão da língua
magiar. As orquestras ciganas os espalharam no século XIX. São as czardas e
os refrões militares.
Quando a dançarina se despoja desse véu, o véu seguinte aparece. As
canções dos eslavos autóctones, séculos XVII e XVIII.
Mas o quarto véu é ainda mais belo. São os cantos que remontam ao século
XIV. Naquele tempo peregrinavam em nosso país, pelas escarpas dos
Cárpatos, valáquios vindos do Sudoeste. Pastores. Suas pastorelas e os cantos
dos salteadores ignoravam totalmente os acordes e as harmonias. Eram
concebidos de uma maneira puramente melódica. Tonalidades arcaicas
determinadas pelos instrumentos, flauta de Pã e flautas rústicas.
Tendo por fim caído esse véu, não há mais nada. A mulher dança toda nua.
As árias mais antigas. Nascidas no tempo do paganismo. Elas repousam no
mais antigo sistema do pensamento musical. Sobre o sistema de quatro notas,
o tetracórdio. Cantos da colheita do feno. Cantos da colheita de cereais.
Cantos ligados aos ritos dos povoados patriarcais.
A canção ou os ritos populares são um túnel sob a História no qual se salvou
uma boa parte de tudo aquilo que em cima, ao longo do tempo, foi destruído
pelas guerras e revoluções, pela civilização. Um túnel através do qual posso
ver bem longe no passado. Vejo Rostilav e Svatopluk, os primeiros príncipes
da Morávia. Vejo o antigo mundo eslavo.
Mas por que falar apenas do mundo eslavo? Nós nos perdemos em
conjeturas diante do enigma do texto de uma canção. Nela canta-se o
lúpulo fazendo não sei que obscura associação a uma carruagem e uma
cabra. Alguém dá voltas sobre uma cabra, alguém rola numa carruagem.
Louva-se o lúpulo que transformaria as virgens em noivas. Os próprios
cantores populares que cantavam essa ária não compreendiam o significado
das palavras. Sozinha, a força da inércia de uma tradição imemorial
manteve na canção uma associação de palavras que depois de inúmeras
luas se tornou ininteligível. No final apareceu a única explicação possível: as
Dionisíacas da Grécia antiga. Um sátiro sobre o dorso de um bode e o deus
brandindo um tirso coberto de lúpulo.
A Antiguidade! Isso me parecera inacreditável! No entanto, em seguida
estudei na Universidade a história do pensamento musical. A estrutura de
nossas mais antigas canções populares está, realmente, de acordo com a
estrutura da música antiga. O tetracórdio lídio, frígio ou dórico. Concepção
descendente da escala que tem como fundamental o tom alto, e não o
inferior, o que sucederá apenas quando a música começar a desenvolver-se
em termos harmônicos. Assim, nossas canções populares mais antigas
pertencem à mesma época do pensamento musical daquelas que eram
cantadas na Grécia antiga. Elas nos conservam os tempos da Antiguidade.
Essa noite, durante o jantar, eu não parava de pensar no olhar de Ludvik
desviando-se do meu. Sentia também como eu estava mais ligado a
Vladimir. Subitamente tive medo de tê-lo negligenciado. De nunca
conseguir trazê-lo para dentro de meu próprio universo. Terminada a
refeição, Vlasta ficou na cozinha, Vladimir e eu passamos para a sala de
estar. Tentei falar-lhe outra vez sobre as canções. Mas a conversa não
progredia. Eu parecia um professor. Tinha medo de aborrecê-lo. Ele,
naturalmente, continuava sentado, mudo, como se estivesse me escutando.
Sempre foi gentil comigo. Mas como poderia eu saber o que de fato se
passava dentro de sua cabeça? Já fazia bastante tempo que eu o aborrecia
com minha falação, quando Vlasta apareceu e disse que era hora de ir
dormir. O que fazer? Ela era a alma da casa, seu calendário, seu pêndulo.
Não íamos discutir. Vá, filhote, boa noite.
Deixei-o no quarto onde fica o órgão. É lá que ele dorme, sobre o divã com
tubos aromados. Eu durmo no quarto ao lado, na cama que divido com
Vlasta. Não vou dormir logo. Vou ficar virando de um lado para outro e
tenho medo de acordá-la. Vou ficar um pouco lá fora. A noite está quente.
Atrás da velha casa de um andar onde moramos, o jardim está repleto de
antigos perfumes do campo. Debaixo da pereira há um banco de madeira.
Diabo de Ludvik! Por que veio justamente hoje? Tenho receio de que seja
um mau presságio. Meu amigo mais antigo! Quantas vezes ficamos embaixo
dessa pereira quando éramos meninos! Gostava muito dele. Desde o sexto
ano do liceu, quando o conheci. Acumulava mais conhecimentos na ponta
de um dedo do que nós em toda a carcaça, embora nunca o demonstrasse. A
escola, os professores, pouco lhe importavam. O que o divertia era fazer
tudo ao contrário do regulamento da escola.
Por que nos unimos, os dois? Um golpe do destino, provavelmente. Eu e ele
éramos órfãos de um de nossos pais. Mamãe morreu de parto. Quando
Ludvik tinha treze anos, os alemães levaram seu pai, um maçom, para um
campo de concentração e ele nunca mais voltou.
Ludvik era o filho mais velho. E nessa época filho único, depois da morte de
seu irmãozinho. Com o pai preso, mãe e filho não tinham mais ninguém. A
miséria dos dois era grande. O colégio custava caro. Parecia que Ludvik teria
que deixá-lo.
No entanto, a salvação chegou na última hora.
O pai de Ludvik tinha uma irmã que se casara com um rico empresário
muito antes da guerra. Desde então, quase não via o irmão maçom. Quando
ele foi preso, porém, seu coração de patriota bruscamente inflamou-se. Ela
ofereceu à cunhada tomar conta de Ludvik. Ela própria só tinha uma filha,
um pouco atrasada, por isso a inteligência do sobrinho lhe despertava
inveja. Eles não se limitaram a ajudá-lo materialmente, convidaram-no
todos dias. Apresentaram-no à alta sociedade que sempre frequentava a
casa deles. Ludvik era obrigado a manifestar sua gratidão, já que seus
estudos dependiam dos dois. Ele gostava deles quase tanto como o diabo da
cruz. Koutecky era o nome deles, e desde então passamos a designar por
esse nome todos os pretensiosos.
A Sra. Koutecky não olhava a cunhada com bons olhos. Do irmão tinha raiva
por não ter escolhido a mulher certa. E mesmo quando ele foi preso ela não
mudou de atitude em relação à sua mulher. Os canhões de sua caridade
estavam apontados somente para Ludvik. Via nele o herdeiro de seu sangue
e desejava perfilhá-lo. A existência da cunhada, para ela, não passava de
um erro deplorável. Nunca a convidou para ir à casa deles. Ludvik, que
percebia tudo isso, rangia os dentes de raiva. Muitas vezes quis revoltar-se.
Mas a mãe, com pedidos e lágrimas, conseguia sempre que ele fosse
razoável.
Por isso, ele se sentia mais feliz em nossa casa. Éramos como gêmeos. Por
pouco meu pai não gostava mais dele do que de mim. Encantado por
Ludvik devorar sua biblioteca, da qual conhecia todos os livros. Quando
comecei com nosso jazz de colegiais, Ludvik quis entrar comigo para o
conjunto. Comprou, numa loja de objetos de segunda mão, uma clarineta
barata e logo aprendeu a tocar razoavelmente bem. Depois disso, juntos,
dedicamo-nos ao jazz e, juntos, fizemos parte da orquestra com címbalo.
A jovem Koutecky casou-se mais ou menos no fim da guerra. A mãe
planejou um casamento maravilhoso, com cinco casais de damas e garçons
de honra atrás dos noivos. Obrigou Ludvik a fazer um desses papéis,
arranjando-lhe como par para a ocasião a filha (de onze anos) do
farmacêutico da cidade. Ludvik ficou aterrado. Ficava vermelho com a
ideia de fazer tal papel naquela palhaçada nupcial de esnobes de subúrbio.
Gostava de passar por adulto e teve vergonha de oferecer o braço a uma
fedelha de onze anos. Ficava furioso de ter que beijar um crucifixo cheio de
baba durante a cerimônia. Quando a noite chegou, ele fugiu do banquete
para se encontrar conosco na sala dos fundos do albergue. Estávamos em
torno do címbalo, bebíamos e zombávamos dele. Ele teve um acesso de raiva
e declarou seu ódio pelos burgueses. Depois amaldiçoou as pompas do
casamento religioso, dizendo que cuspia sobre a Igreja e que faria com que
riscassem seu nome do registro dos fiéis.
Não levamos suas palavras a sério, mas alguns dias depois do fim da guerra
Ludvik fez o que anunciara. Com isso escandalizou ao máximo os Koutecky.
Isso não o aborreceu. Foi com prazer que brigou com eles. Passou a
frequentar as reuniões dos comunistas. Comprava os folhetos publicados por
eles. Nossa região era muito católica, e nosso liceu, mais católico ainda.
Apesar disso, estávamos dispostos a perdoar Ludvik por sua excentricidade
comunista. Concedíamos-lhe privilégios.
Em 47 fizemos os exames de suficiência. A partir do outono Ludvik foi
estudar em Praga, eu em Brno. Não o vi mais o ano todo.
Estávamos em 48. Toda a nossa vida acabara de ser sacudida. Quando
Ludvik veio nos visitar durante as férias, nossa acolhida foi um tanto sem
graça. O golpe de Estado dos comunistas em fevereiro pareceu-nos o
advento do terror. Ludvik trouxera sua clarineta, mas não teve a
oportunidade de usá-la. Passamos a noite em discussões.
Terá sido nessa data que começou a discórdia entre nós? Acho que não.
Ainda naquela noite, Ludvik me impressionou. Evitando da melhor maneira
possível as discussões políticas, falou de nossa orquestra. Será que não
deveríamos compreender o sentido de nosso trabalho numa perspectiva
mais ampla do que tínhamos compreendido até então? De que valeria se
contentar em reanimar um passado perdido? Quem olha para trás acaba
como a mulher de Lot.
Perguntamos então: Mas o que devemos fazer? É claro, respondeu ele, que
devemos gerir o patrimônio da arte popular, mas isso não basta. Vivemos
uma nova época. Grandes horizontes se abrem à nossa ação. Compete a nós
depurar a cultura musical popular, a cultura de todos os dias. Depurá-la das
banalidades, dos versos sem valor com que os burgueses empanturravam as
pessoas, substituindo-os pela arte original do povo.
Curioso. O que Ludvik estava dizendo era a velha utopia dos patriotas
morávios mais conservadores. Eles sempre haviam protestado contra a
corrupção de uma cultura urbana e sem Deus. As melodias de charleston ou
eram, para seus ouvidos, a flauta de Satã. Afinal, isso pouco importava. As
opiniões de Ludvik cada vez nos pareciam mais claras.
No entanto, seu pensamento seguinte foi mais original. Ele falou sobre o
jazz. O jazz originou-se da música popular negra e subjugou todo o
Ocidente. Para nós, ele pode servir como prova encorajadora de que a
música popular possui um maravilhoso poder. De que ela pode ser a origem
do estilo musical geral de uma época.
Escutando Ludvik, sentíamos uma mistura de admiração e antipatia. Sua
segurança nos irritava. Ele tinha o ar que ostentavam então todos os
comunistas. Como se tivesse com o próprio futuro algum pacto secreto que
lhe autorizasse a agir em seu nome. Se nos irritava, era sem dúvida também
porque transformara-se de repente num rapaz diferente daquele que
conhecêramos. Para nós, ele sempre fora um bom sujeito, um gozador. Ei-lo
agora mergulhado sem nenhum pudor na ênfase e nas grandes palavras.
Depois, é claro, contrariava-nos aquela sua maneira de associar com
desembaraço e rapidez a sorte de nossa orquestra aos destinos do Partido
Comunista, quando nenhum de nós era comunista. Mas, por outro lado, seu
discurso nos atraía. Suas ideias correspondiam a nossos sonhos mais secretos.
Elas nos alçavam de repente ao nível da grandeza histórica.
Em pensamento, eu o chamo de Flautista de Hamelin. Isso mesmo. Bastava
um acorde de sua flauta, e nós corríamos atrás dele. Quando suas ideias
ficavam inacabadas, voávamos em seu socorro. Lembro-me de meu próprio
raciocínio. Eu falava da evolução da música europeia desde a época barroca.
Depois do período do impressionismo, ela se viu cansada de si mesma. Já
esgotara quase que inteiramente sua seiva, tanto para suas sonatas e
sinfonias quanto para suas banalidades musicais. Foi por isso que o jazz
operou sobre ela uma espécie de milagre. Ele não conquistou apenas as
boates e os dancings da Europa. Fascinou igualmente Stravinski, Honegger,
Milhaud, que abriram suas composições a seus ritmos. Mas, atenção. Ao
mesmo tempo, ou, digamos, uns dez anos antes, a música europeia havia
feito uma provisão do sangue novo do folclore antigo do Velho Continente,
que em nenhuma outra parte permaneceu tão vivo como aqui na Europa
Central. Janacek, Bartók. Assim, a própria história da música fazia um
paralelo entre as velhas origens da música popular europeia e o jazz. Ambos
contribuíram igualmente para a gênese da música séria moderna do século
XX. Só que, para a música das grandes massas, as coisas se passaram de outra
maneira. As árias antigas dos povos da Europa não deixaram nela nenhuma
marca. Nela o jazz se instalou como mestre. E aqui começa a nossa tarefa.
Sim, era essa a nossa convicção: nas raízes de nossa música popular
encontramos a mesma força que nas raízes do jazz. Este tem um sistema
melódico próprio, em que constantemente aparece o hexacórdio original das
velhas canções negras. Mas nossa música popular também possui seu
sistema melódico, muito mais diversificado do ponto de vista tonai. O jazz
dispõe de uma originalidade rítmica cuja prodigiosa complexidade formou-
se ao longo dos vários séculos de cultura dos batedores de tambor e dos
batuques africanos. Mas, da mesma maneira, os ritmos de nossa música só
pertencem a ela. Por fim, o jazz baseia-se na improvisação. Mas o espantoso
desempenho dos rabequistas que nunca leram notas musicais repousa
também na improvisação.
Só uma coisa nos separa do jazz, acrescentou Ludvik. Ele evolui e muda
rapidamente. Seu estilo está em movimento. O caminho muda
abruptamente da polifonia de Nova Orleans, passando pela orquestra de
swing, em direção ao bop, e além dele. Nem em sonho Nova Orleans
poderia conceber as harmonias que o jazz de nossos dias conhece. Nossa
música popular é uma Bela Adormecida dos séculos passados. Temos que
acordá-la. Ela deve entrar na vida de hoje e se desenvolver com ela. A
exemplo do jazz. Sem deixar de ser ela mesma, sem nada perder de sua
linha melódica nem de seus ritmos, ela precisa descobrir as fases sempre
novas de seu estilo. É difícil. É uma tarefa grandiosa. Que só pode ser
realizada no socialismo.
O que tem o socialismo a ver com isso? — protestamos nós.
Ele nos explicou. O campo de antigamente vivia em comunidade. Os ritos
balizavam o ano dos vilarejos de janeiro a dezembro. A arte popular vivia
apenas no interior desses ritos. Na época do romantismo, imaginava-se que
uma camponesa tinha uma súbita inspiração e imediatamente uma canção
brotava de seus lábios como a água das fontes. Mas a canção popular nasce
de uma maneira diferente da de um poema erudito. O poeta cria a fim de se
expressar, de dizer aquilo que nele existe de único. Pela canção popular,
ninguém procurava sobressair, mas sim unir-se aos outros. Ela foi-se
formando como as estalactites. Envolvendo-se gota a gota de novos motivos,
de novas variações. Era transmitida de geração em geração, cada cantor
acrescentando algum elemento novo. Cada uma dessas canções teve
portanto muitos criadores que, todos, modestamente se esconderam atrás de
suas próprias contribuições. Nenhuma canção popular existiu por si mesma.
A canção tinha sua função precisa. Existiam canções para os casamentos,
outras para a festa das colheitas, para o Carnaval, o Natal, para a colheita do
feno, havia canções para dançar e para enterrar. Mesmo as canções de amor
não existiam fora de certos costumes. Passeios vespertinos, serenatas,
pedidos de casamento, tudo isso eram ritos coletivos, e neles as canções
tinham seu lugar estabelecido.
O capitalismo destruiu essa vida coletiva. A arte popular perdeu assim seu
lugar, sua razão de ser, sua função. Seria inútil tentar ressuscitá-la numa
sociedade em que o homem vive separado do próximo, vive para si próprio.
Mas eis que o socialismo vai libertar as pessoas do jugo da solidão. Elas
viverão numa nova coletividade. Unidas por um interesse comum. Sua vida
particular vai incorporar-se à vida pública. Elas serão ligadas por uma série
de rituais. Alguns serão emprestados do passado: festas de colheita, festas de
dança, costumes ligados ao trabalho. Outros serão inovações: comemoração
do Primeiro de Maio, comícios, aniversário da Liberação, reuniões. Em toda
parte a arte do povo vai encontrar seu lugar. Em toda parte irá desenvolver-
se, transformar-se, renovar-se. Será que afinal nós o compreendíamos?
Realmente, logo iria parecer que o inacreditável se tornava realidade.
Ninguém fez tanto por nossa arte popular quanto o governo comunista.
Destinou quantias colossais à criação de novos conjuntos. A música popular,
violino e címbalo, estava presente todos os dias nos programas de rádio. Os
cantos morávios invadiram as universidades, as festas do Primeiro de Maio,
as festas dos jovens, os bailes oficiais. O jazz não apenas desapareceu
completamente de nosso país, como também passou a simbolizar o
capitalismo ocidental e seus gostos decadentes. A juventude abandonou o
tango e também o boogie-woogie, e preferia dançar em círculo, cantando em
coro, as mãos colocadas no ombro dos vizinhos. O Partido Comunista se
empenhava em criar um novo estilo de vida. Apoiava-se na famosa
definição que Stalin dera da arte nova: um conteúdo socialista numa forma
nacional. Nada senão a arte popular poderia conferir essa forma nacional a
nossa música, nossa dança, nossa poesia.
Nossa orquestra começou a navegar nas grandes ondas dessa política. Logo
se tornou conhecida no país inteiro.
Seu efetivo aumentou em cantores e dançarinos, tornou-se um grande
conjunto que se apresentava em centenas de palcos e todo ano partia em
excursão ao exterior. E nós cantávamos não só, como antigamente, a canção
do bandido que matara sua amada, mas também músicas que eram
composições nossas. Por exemplo, uma canção sobre Stalin ou sobre as
colheitas em cooperativa. Nossa música não era mais uma simples evocação
dos tempos antigos. Ela fazia parte da história mais contemporânea.
Acompanhava-a.
O Partido Comunista nos apoiava. Desse modo, nossas reticências políticas
dissiparam-se rapidamente. Entrei para o Partido logo no começo de 49. Os
colegas do conjunto me acompanharam, um após outro.
Mas continuávamos sempre amigos. Quando ocorreu então a primeira
sombra entre nós? É claro que sei quando foi. Sei perfeitamente. Foi no dia
do meu casamento.
Em Brno eu era aluno da Escola de Altos Estudos Musicais, fazendo ao
mesmo tempo o curso de Musicologia na Universidade. No terceiro ano,
comecei a me sentir angustiado. Em casa, meu pai ia de mal a pior. Tinha
tido uma congestão cerebral. Salvou-se, mas devia tomar muito cuidado. A
ideia de sua solidão me obcecava. Se lhe acontecesse alguma coisa, ele nem
poderia mandar-me um telegrama. Era tremendo que voltava para perto
dele todos os sábados, e a cada segunda-feira o deixava cheio de uma nova
angústia. Um dia essa angústia foi mais forte do que eu. Ela me tinha
torturado na segunda-feira, na terça mais ainda; na quarta, amontoei todas
as minhas coisas numa mala e acertei minha conta com a locatária, dizendo-
lhe que partia definitivamente.
Vejo-me de novo no caminho entre a estação e nossa casa. Para chegar ao
meu vilarejo, próximo à cidade, era preciso passar pelo campo. Era outono,
antes do crepúsculo. O vento soprava; pelos caminhos, garotos soltavam
papagaios de papel que ziguezagueavam na ponta de fios intermináveis.
Em outros tempos, papai também me fizera um. Ele me acompanhava aos
campos, soltava-o e corria para que o ar impulsionasse o pássaro de papel,
levando-o para bem alto. Isso não me divertia muito. Papai divertia-se mais.
Essa lembrança enterneceu-me e eu apressei o passo. Veio-me a ideia de que
papai mandava esses papagaios para mamãe.
Sempre imagino mamãe no céu. Não, não creio mais em Deus, na vida
eterna, nem em coisas semelhantes. Não se trata de fé. Trata-se do
imaginário. Não sei por que deveria abandoná-lo. Sem isso, eu me sentiria
órfão. Vlasta me censura por ser sonhador. Parece que não vejo as coisas
como elas são. Absolutamente; eu as vejo como elas são, mas, além das coisas
visíveis, vejo outras coisas. Não é à toa que existe o imaginário. É dele que é
tecido nosso mundo interior.
Jamais conheci mamãe. Portanto nunca chorei por ela. Alegrava-me até que
ela estivesse no céu, jovem e bela. Os outros meninos não tinham mães tão
jovens quanto a minha.
Gosto de imaginar São Pedro, sentado num tamborete, em sua pequena
janela de onde se vê a terra. Muitas vezes mamãe vai encontrar-se com ele
nessa janela. Por ela, Pedro faz qualquer coisa, porque ela é bonita. Deixa que
ela olhe. E mamãe nos vê. A mim e a papai.
O rosto de mamãe nunca foi triste. Ao contrário. Quando nos olha pela
pequena janela da salinha de São Pedro, muitas vezes ela ri. Quem vive na
eternidade não conhece a tristeza. Sabe que a vida dos homens dura apenas
um segundo e que os reencontros estão próximos. Mas, quando eu estava
em Brno, tendo deixado papai sozinho, os traços de mamãe me pareciam
tristes e pesados de censura. E eu pretendia viver em paz com mamãe.
Portanto apressava-me em direção à casa e olhava os papagaios suspensos
no céu. Estava feliz. Não lamentava nada do que deixara. Evidentemente,
estava ligado ao meu violino e à Musicologia. Mas não me entusiasmava
fazer uma carreira. Nem mesmo o maior sucesso poderia igualar a alegria de
voltar para casa.
Quando avisei a papai que não voltaria mais a Brno, ele ficou vermelho de
raiva. Não admitia que eu pudesse estragar minha vida por sua causa.
Então, contei-lhe que fora obrigado a deixar a escola por causa de minhas
notas medíocres. Ele acabou acreditando em mim, e ficou com mais raiva
ainda. Mas isso não me preocupava tanto, já que eu não voltara para ficar
sem fazer nada. Retomei meu lugar de primeiro violinista na orquestra de
nosso conjunto. Além disso, conseguira um lugar de professor de violino na
Escola Municipal de Música. Assim podia me dedicar àquilo de que gostava.
O que quer dizer também a Vlasta. Ela morava num lugarejo vizinho que,
como o meu, hoje é um dos subúrbios da cidade. Dançava no nosso
conjunto. Tendo-a conhecido por ocasião de meus estudos em Brno, gostei
de revê-la quase que diariamente depois de minha volta. O verdadeiro amor
deveria, no entanto, explodir um pouco mais tarde — inesperadamente,
durante um ensaio em que ela caiu de maneira tão infeliz que quebrou a
perna. Carreguei-a em meus braços até a ambulância que tínhamos
chamado com urgência. Senti em meus braços seu corpo pequeno, frágil,
fluido. Subitamente, com espanto, dei-me conta de que media um metro e
noventa, de que pesava cem quilos, de que poderia derrubar carvalhos, e de
que ela era frágil, bem frágil.
Foi um minuto de luz. Em Vlasta, pequena criatura ferida, vi de repente um
outro personagem muito mais conhecido. Como não percebera isso antes?
Vlasta era a pobre serva, personagem de inúmeras canções populares! A
pobre serva que nada possui além de sua honestidade, a pobre serva que é
humilhada, a pobre serva com vestidos surrados, a pobre serva órfã! É claro
que não era exatamente assim. Ela possuía seus pais, que não eram nada
pobres. Mas pelo fato mesmo de que eram grandes cultivadores, a nova
época apertava em torno deles suas garras. Não era raro Vlasta chegar em
nossos ensaios aos prantos. Eram obrigados a ceder partes consideráveis das
colheitas. Seu pai fora declarado um rico proprietário. Requisitaram seu
trator e suas máquinas. Ameaçavam-no de prisão. Eu tinha pena dela.
Acalentava a ideia de tomar conta dela. Da pobre serva.
Depois que a vi iluminada assim por uma palavra das canções populares, era
como se eu imitasse um amor vivido mil vezes. Era como se o tocasse com
uma partitura imemorial. Como se essas cantigas me cantassem.
Abandonado a esse rio sonoro, sonhava em casar.
Dois dias antes do acontecimento, Ludvik apareceu sem avisar. Acolhi-o
com alegria. Logo lhe contei a grande novidade, dizendo ainda que, como
era meu melhor amigo, queria que ele fosse padrinho. Ele prometeu ir. E foi.
Meus amigos do conjunto queriam organizar-me um autêntico casamento
morávio. Desde cedo chegaram à minha casa, preparados, com música e
trajes típicos. Um homem de cinquenta anos, músico, virtuose no címbalo,
era o pajem mais velho. A ele competiam os deveres do "patriarca". Para
começar, papai ofereceu a cada um aguardente de ameixa, pão e toucinho.
Depois disso, tendo conseguido o silêncio com um gesto, o patriarca recitou
com voz sonora: Muito honrados donzéis e donzelas também, Senhores e
Senhoras! Aqui vos convoquei pois o donzel desta casa nos suplicou que o
acompanhássemos à morada do pai daquela que escolheu como noiva, nobre
donzela...
O patriarca é o chefe, a alma, a mola mestra de todo o cerimonial. Sempre foi
assim. Durante dez séculos. O futuro marido nunca foi o sujeito de seu
próprio casamento. Ele não se casava. Casavam-no. O casamento tomava
conta dele e o condiria como uma grande onda. Não competia a ele agir,
falar. Em seu lugar agia e falava o patriarca. E nem mesmo o patriarca.
Falava a tradição ancestral, que passava pelos homens, um a um,
carregando-os em sua macia correnteza.
Sob as ordens do patriarca, partimos para o lugarejo onde morava minha
noiva. íamos pelos campos e meus amigos tocavam enquanto
caminhávamos. Em frente à casa de Vlasta, seus amigos, com suas roupas
típicas, já nos esperavam. O patriarca declarou: Somos viajantes cansados.
Generosos que sois, abri-nos a entrada de vossa honesta casa.
Um homem velho do grupo que estava na frente da casa avançou: — Se são
homens de bem, sejam bem-vindos! — E convidou-nos a entrar.
Sem dizer nada, entramos. Como o patriarca nos tinha apresentado como
simples viajantes cansados, nós não devíamos revelar logo nosso verdadeiro
propósito. O velho, porta-voz da futura esposa, nos encorajou: — Se alguma
coisa vos perturba o coração, falai! Então o patriarca começou/a falar, a
princípio de maneira obscura, por enigmas, e seu interlocutor respondia do
mesmo modo. Depois de muitos desvios, acabou revelando a razão de nossa
visita.
O velho fez-lhe então esta pergunta: Dizei-me, caro compadre, por que este
honesto pretendente quer esta honesta moça desposar.
Será pela flor ou pelo fruto? O patriarca respondeu: Todos sabem, abre-se a
flor, beleza e esplendor, e nos encanta. Mas a flor não dura, o fruto madura.
Nossa noiva então não é pela flor, mas pelo fruto, pois o fruto alimenta.
Um momento ainda respostas foram trocadas, até a conclusão do velho: —
Nessas condições, façamos aparecer a futura esposa, para que diga se
consente ou não. — Ele foi até a sala ao lado, de onde voltou um instante
depois trazendo pela mão uma mulher vestida com roupa típica. Magra,
alta, toda ossos, o rosto envolto por um lenço: — Eis a sua prometida! Só que
o patriarca sacudia a cabeça e nós mesmos, com grande estardalhaço,
manifestávamos nosso desagrado. O velho, depois de tentar protelar um
pouco, finalmente decidiu-se a levar de volta a mulher de rosto coberto. Só
depois disso mandou que Vlasta viesse. Ela estava com botas pretas, avental
vermelho e bolero de cores vivas. Na cabeça, tinha uma coroa trançada.
Achei-a bonita. O velho segurou-lhe a mão e colocou-a na minha.
Depois, virado em direção à mãe da noiva, o velho lamentou com a voz
chorosa: — Oh, mãezinha! Diante dessas palavras, minha futura esposa
retirou sua mão da minha, prosternou-se diante da mãe e abaixou a cabeça.
O velho continuou: Mãezinha querida, perdoa o mal que eu te fiz!
Mãezinha amada, pelo amor de Deus, perdoa o mal que eu te fiz! Mãezinha
tão adorada, pelas cinco chagas de Cristo, perdoa o mal que eu te fiz!
Estávamos ali como mímicos mudos de um texto imemorial. E o texto era
belo, envolvente, e tudo aquilo era verdade. Em seguida, a música
recomeçou a tocar e nós tomamos o caminho da cidade. A cerimônia ocorreu
na prefeitura, sempre com música. Depois almoçamos. À tarde, todos
dançaram.
À noite, as damas de honra de Vlasta tiraram a sua coroa de romarinho e
entregaram-na a mim solenemente. De seus cabelos soltos fizeram uma
trança enrolada em torno da cabeça, colocando por cima uma touca
ajustada. Esse rito representava a passagem do estado de virgem ao de
mulher. É claro que Vlasta há muito tempo não era mais virgem. Não tinha,
portanto, direito ao símbolo da coroa. Mas isso não me parecia importante.
Num nível superior, muito mais importante, era só agora que ela perdia sua
virgindade, no momento em que suas damas de honra me ofereciam a sua
coroa.
Meu Deus, como pode a lembrança dessa pequena coroa me emocionar mais
que nosso primeiro abraço, que o verdadeiro sangue de Vlasta? Não sei por
que, mas é assim. As mulheres cantavam e, em suas canções, a pequena
coroa flutuava na água e a correnteza desmanchava suas fitas vermelhas.
Eu tinha vontade de chorar. Estava bêbado. Via a coroa que flutuava, e o fio
de água a entregava ao riacho, o riacho ao rio, o rio ao Danúbio, o Danúbio ao
mar. Eu via a coroa da virgindade ir embora sem volta. Sim, sem volta. Todas
as situações capitais da vida acontecem uma vez, são sem retorno. Para que
um homem seja homem, é preciso que esteja plenamente consciente desse
não-retorno. Que não trapaceie. Que não faça de conta que não sabe de
nada. O homem moderno trapaceia. Esforça-se por contornar todos os
grandes momentos que são sem retorno e por passar assim sem sofrer do
nascimento até a morte. O homem do povo é mais honesto, desce cantando
ao fundo de cada situação capital. Quando Vlasta ensanguentou a toalha
que eu estendera embaixo dela, eu estava longe de desconfiar que estava
diante de uma grande situação sem volta. No entanto, nesse momento da
cerimônia e dos cantos, o não-retorno estava ali. As mulheres cantavam
despedidas. Espere, espere, meu doce amor, que eu me despeça de minha
mãezinha. Espere, espere, detenha o cavalo, minha irmãzinha chora, deixá-
la é difícil. Adeus, adeus, minhas amadas companheiras, parto para sempre,
parto para sempre.
Depois, a noite caiu, e o cortejo seguiu-nos até nossa casa.
Abri a porta da entrada. Vlasta, na soleira, virou-se uma última vez em
direção a seus amigos reunidos em frente à casa. Um deles então cantou
uma última música: Ela estava na soleira, como parecia bela, rosa, minha
rosinha. A soleira ela passou, o encanto se apagou, murcha, minha rosinha.
Depois a porta fechou-se atrás de nós. Ficamos sós. Vlasta tinha vinte anos,
eu não muito mais. Mas eu me dizia que ela acabara de atravessar a soleira e
que, a partir daquele minuto mágico, seu encanto ia cair como as folhas
caem da árvore. Via nela a iminente queda das folhas. A queda que já
começara. Pensava que ela não era apenas uma flor, que naquele momento
o momento futuro do fruto já estava presente nela. Sentia em tudo isso a
ordem inexorável com a qual me confundia, na qual consentia. Sonhava
com Vladimir, que naquela época eu não conhecia e do qual nem mesmo
adivinhava o aspecto. No entanto sonhava com ele e, através dele, olhava o
infinito de sua posteridade. Depois Vlasta c eu deitamos na cama e tive a
impressão que era a sábia eternidade da espécie humana que nos tomava
em seus braços macios.
O que me fez Ludvik no dia do meu casamento? Nada, na realidade. Tinha
um aspecto indiferente, estava estranho. À tarde, enquanto dançávamos, os
rapazes vieram propor-lhe que tocasse clarineta. Queriam que tocasse com
eles. Ele recusou. Pouco depois, sumiu. Eu, que estava um tanto
embriagado, não prestei atenção. No entanto, no dia seguinte, notei que seu
desaparecimento tinha deixado como que uma pequena mancha no dia
anterior. O álcool que se diluía no meu sangue aumentava essa mancha. E
Vlasta ainda mais que o álcool. Ela jamais gostara de Ludvik.
Quando lhe disse que ele seria meu padrinho, ela não se mostrou
entusiasmada. Tanto que achou bom já no dia seguinte ao casamento poder
lembrar-me seu comportamento. Com a cara contrariada o tempo todo,
como se todos o aborrecessem! Que sujeito orgulhoso! Na mesma noite,
Ludvik veio nos visitar. Levou pequenos presentes para Vlasta e pediu
desculpas. Pediu que o perdoássemos, porque ontem não estava bem.
Contou-nos o que lhe acontecera. Expulso do Partido e da faculdade.
Ignorando o que iria lhe acontecer.
Eu não podia acreditar no que ouvia e não sabia o que dizer. Não admitindo
que tivéssemos pena dele, Ludvik apressou-se em desviar o assunto. Nosso
conjunto deveria partir dentro de quinze dias para uma grande excursão
pelo exterior. Nós, provincianos, não podíamos estar mais contentes. Ludvik
começou a fazer perguntas sobre essa viagem. Lembrei-me de repente que
desde criança ele sonhara em viajar para o exterior, e agora não poderia mais
fazê-lo. As pessoas marcadas politicamente não podiam cruzar a fronteira.
Eu via com clareza que a minha situação e a dele, daquele momento em
diante, seriam de todo diferentes. Por isso, agora não podia falar à vontade
sobre nossa excursão, tinha medo de iluminar o precipício que subitamente
se abrira entre nossos destinos. Desejando ocultar esse abismo, tinha medo
de que cada palavra corresse o risco de iluminá-lo. Mas não encontrei
nenhuma que não o clareasse. A menor frase, mesmo que fosse referente a
uma pequena parcela de nossa vida, mostrava que estávamos longe um do
outro. Que nossas perspectivas, nosso futuro, se bifurcavam. Que estávamos
sendo levados em direções opostas. Tentei então falar sobre banalidades.
Mas foi ainda pior. A insignificância forçada da conversa de súbito
transpareceu, e mantê-la tornou-se insuportável.
Ludvik despediu-se e partiu. Apresentou-se como voluntário para um
trabalho em algum lugar fora de nossa cidade, enquanto eu levava nosso
conjunto para o estrangeiro. Depois não o revi durante muitos anos. Enviei-
lhe uma ou duas cartas, para o exército, para Ostrava. Cada vez sentia a
mesma insatisfação que ficara depois de nossa última conversa. Eu não
podia encarar a queda de Ludvik. Tinha vergonha de meu sucesso. Era-me
intolerável dirigir a meu amigo, do alto desse sucesso, palavras de estímulo
ou compaixão. Tratava de fingir que entre nós nada mudara. Minhas cartas
contavam o que fazíamos, o que havia de novo no conjunto, como estava se
comportando nosso novo tocador de címbalo. Eu lhe descrevia esse mundo
meu, como se ele tivesse permanecido comum a nós dois.
Um dia papai recebeu uma participação. A mãe de Ludvik morrera.
Ninguém lá em casa desconfiara de que ela estivesse doente. Quando
Ludvik sumiu de minha vista, parei de me preocupar com ela. Segurando o
papel tarjado de preto, descobri a minha indiferença pelas pessoas que, por
pouco que fosse, se tinham afastado do caminho de minha vida. Da minha
vida de sucesso. Senti-me culpado. Em seguida percebi uma coisa que me
perturbou. Embaixo da participação, assinando como sendo toda a família,
figurava o nome do casal Koutecky. Sobre Ludvik, nenhuma palavra.
Veio o dia do enterro. Aquela manhã, fiquei apavorado, pensando no
reencontro com Ludvik. Mas ele não estava lá. Somente algumas pessoas
acompanhando o caixão. Perguntei aos Koutecky onde estava Ludvik.
Encolhendo os ombros, eles disseram que não sabiam. O pequeno grupo e o
caixão pararam perto de uma sepultura suntuosa, com uma pesada laje de
mármore e uma estátua branca de anjo.
Como haviam confiscado todos os bens do rico empresário e de toda a sua
família, eles viviam agora de uma magra pensão. Só lhes restava esse
imponente jazigo de família com um anjo em cima. Isso eu sabia, mas não
conseguia entender por que levavam o caixão justamente para lá.
Só mais tarde soube que nessa época Ludvik estava preso. Em nossa cidade,
apenas sua mãe sabia. Quando ela morreu, os Koutecky se apoderaram do
cadáver da cunhada malquista. Enfim puderam vingar-se do sobrinho
ingrato. Roubaram-lhe a mãe. Eles a esconderam debaixo da laje de mármore
encimada por um anjo. Esse anjo de cabelos encaracolados com um ramo na
mão nunca mais deixou meu pensamento. Voava sobre a vida saqueada de
meu amigo, a quem roubaram até os corpos de seus pais mortos. O anjo do
saque.
Vlasta não gosta de extravagâncias. Espichar-se num banco de jardim, à
noite, é uma extravagância. Ouvi batidas enérgicas no vidro. A sombra
severa de uma silhueta feminina vestida com uma camisola de dormir
aparecia atrás de uma janela. Obedeci. Sou incapaz de resistir aos mais
fracos. E, como tenho um metro e noventa de altura e levanto com uma só
mão um saco de cem quilos, nunca me aconteceu encontrar alguém a quem
pudesse resistir.
Portanto entrei e deitei-me ao lado de Vlasta. Só por falar, deixei escapar
que tinha cruzado com Ludvik.
— E daí? — disse ela com desinteresse proposital.
Decididamente ela não o suporta. Até hoje, não pode ouvir falar dele. Aliás,
não tem do que se queixar. Só o viu uma vez depois de nosso casamento. Em
56. Nessa ocasião, não pude disfarçar o abismo que nos separava.
Ludvik já tinha atrás de si o serviço militar, sua prisão e muitos anos de
trabalho na mina. Tinha conseguido retomar seus estudos em Praga e, se
reaparecia em nossa cidade, era simplesmente para regularizar algumas
formalidades na polícia. A ideia de encontrá-lo me deu medo. Mas o homem
que reencontrei não tinha nada de uma pessoa lamurienta e alquebrada. Ao
contrário. Esse Ludvik era diferente daquele que eu conhecera antes.
Aparentava uma aspereza, uma solidez e talvez uma calma maior. Nada
que inspirasse piedade. Parecia-me que iríamos atravessar sem dificuldade o
abismo que me assustava. Impaciente em reatar a amizade, convidei-o para
um ensaio de nossa orquestra. Achava que continuava sendo á orquestra
dele também. Que importância tinha que um outro estivesse no címbalo, um
outro no segundo violino, que mesmo o clarinetista tivesse mudado, só
restando eu da velha guarda? Ludvik sentou numa cadeira bem perto do
címbalo. Primeiro tocamos nossas canções favoritas, aquelas que
cultivávamos ainda no liceu. Depois as novas, que tínhamos descoberto nos
vilarejos perdidos ao pé das montanhas. Finalmente vieram aquelas de que
mais nos orgulhamos. Dessa vez, não as autênticas canções tradicionais, mas
canções inventadas por nós, à maneira da arte popular. Assim, cantávamos
a respeito da imensidão dos campos cooperativos, ou sobre os pobres, hoje
senhores de seu país, ou sobre o tratorista, a quem a cooperativa não deixa
faltar nada. A música dessas canções era semelhante às verdadeiras
melodias populares, mas suas letras eram mais atuais do que os textos dos
jornais. Nesse repertório, gostávamos sobretudo da canção dedicada a Fucik,
herói torturado pelos nazistas durante a Ocupação.
Sentado em sua pequena cadeira, Ludvik acompanhava com os olhos os
pequenos martelos do tocador de címbalo. Serviu-se de vinho várias vezes.
Eu o observava por cima de meu violino. Ele estava pensativo e não
levantou a cabeça na minha direção uma só vez.
Depois, as mulheres foram entrando na sala, uma depois da outra. Sinal de
que o ensaio chegava ao fim. Convidei Ludvik para ir a minha casa. Vlasta
nos preparou alguma coisa para o jantar e, deixando-nos a sós, foi dormir.
Ludvik falou de uma coisa e outra. Senti porém que, se ele falava tanto, era
para poder calar-se sobre o que eu queria conversar. Mas como não
conversar com meu melhor amigo sobre aquilo que constituía a mais preciosa
riqueza para nós dois? Assim sendo, interrompi Ludvik na sua tagarelice. O
que acha de nossas canções? Ludvik respondeu que tinha gostado delas.
Não deixei que ele parasse nessa gentileza. Perguntei mais. O que achava
daquelas músicas novas que nós mesmos havíamos composto? Ludvik
evitava a discussão. No entanto, pouco a pouco, eu a impus, e ele acabou
falando. Essas velhas canções populares são da maior beleza. Quanto ao
resto, nosso repertório o deixa frio. Seguimos demais o gosto da época. Nada
de espantoso. Como nos apresentamos diante do grande público,
procuramos agradar. Por isso, destituímos nossas canções de todos os seus
traços peculiares. Tiramos delas o ritmo inimitável adaptando-as a uma
métrica convencional. Usamos a camada cronológica menos profunda,
porque é mais fácil.
Protestei. Estamos no começo. Cabe a nós promover ao máximo a difusão da
canção popular. É por isso que devemos nos acomodar um pouco aos hábitos
da maioria. O importante é que na verdade já criamos um folclore
contemporâneo, canções populares novas que contam nossa vida de hoje.
Ele não estava de acordo. Justamente essas novas canções feriam seus
ouvidos. Que lamentáveis ersatzl Que coisa falsa! Ainda me sinto mal ao
pensar nisso. Quem nos tinha dito que acabaríamos como a mulher de Lot se
insistíssemos em olhar para trás? Quem nos dissera que da música do povo
iria sair o novo estilo da época? E quem nos havia exortado a dar uma
sacudida nessa música popular para forçá-la a caminhar ao lado da história
de seu tempo? Tudo isso era utopia, disse Ludvik.
Como utopia? Essas canções estão aí! Elas existem! Ele riu na minha cara.
São cantadas apenas pelo seu conjunto. Mas, fora o conjunto, quem as
canta? Procure um só membro da cooperativa que cantarole por prazer
esses versos que exaltam as cooperativas! São tão artificiais que eles
torceriam o nariz! Esse texto de propaganda nessa música pseudopopular
torna-se incômodo como colarinho mal-ajustado. Uma canção
pseudomorávia sobre Fucik! Que desafio ao bom senso! Um jornalista de
Praga! O que tem ele em comum com a Morávia? Fucik, objetei eu, pertence
a todos, e nós também temos direito de cantá-lo à nossa maneira.
Você disse à nossa maneira? Você canta à maneira da agitação e da
propaganda política, e não à nossa maneira! Lembre-se das palavras! E por
que agora uma canção sobre Fucik? Só havia ele na Resistência? Outros não
foram torturados? Mas ele é o mais conhecido! Naturalmente! A
engrenagem encarregada da propaganda preserva a ordem conveniente na
galeria dos grandes mortos. Entre todos os heróis, faz-se necessário um
chefe.
Por que esses sarcasmos? Cada época não tem os seus símbolos? Que seja,
mas é interessante saber quem foi escolhido como símbolo! Centenas
também foram corajosos e são esquecidos. Muitas vezes pessoas
extraordinárias. Políticos, escritores, sábios, artistas. Deles não fizemos
símbolos. Suas fotos não enfeitam as paredes das secretarias nem das escolas.
No entanto, frequentemente eles deixaram alguma obra. Mas é
precisamente esta que incomoda. Temos dificuldade em ajeitá-la, em podá-
la, em penetrar em seu interior. É a obra que incomoda na galeria de
propaganda dos heróis.
Nenhum deles é o autor de Reportagem escrita sob a forca! É esta a questão!
O que fazer com um herói que se cala? Que se abstém de utilizar seus
últimos momentos para um espetáculo? Para uma lição pedagógica? Fucik,
ainda que não tivesse nenhuma obra atrás de si, tinha achado essencial
comunicar ao universo aquilo que na prisão pensava, sentia, vivia, aquilo
que ele sugeria e recomendava à humanidade. Essas coisas, ele anotava em
bilhetes minúsculos, fazendo com que corresse risco de vida quem,
escondido, os levasse para lugar seguro. Que grande valor devia atribuir a
seus próprios pensamentos e impressões! Que grande valor ele se atribuía!
Isso era demais para mim. Fucik teria sido apenas um vaidoso? Ludvik
parecia um cavalo desembestado. Não, não era tanto a vaidade que o
estimulava a escrever. Era a fraqueza. Pois ser corajoso no isolamento, sem
testemunhas, sem aprovação dos outros, frente a frente consigo mesmo, isso
requer um grande orgulho e muita força. Fucik tinha necessidade da ajuda
do público. Na solidão de sua cela, imaginava pelo menos um público
fictício. Precisava ser visto! Fortificar-se com aplausos! Mesmo imaginários!
Metamorfosear sua cela num palco e tornar o seu destino suportável
expondo-o, exibindo-o.
Eu estava preparado para o abatimento de Ludvik. Para sua amargura. Mas
essa fúria, essa ironia envenenada, me apanhavam de surpresa. Que mal lhe
tinha feito o pobre Fucik? Vejo quanto vale um homem por sua fidelidade.
Sei que Ludvik sofreu um castigo muito injusto. O que torna as coisas ainda
mais graves! Porque nesse caso os motivos de sua mudança de opinião são
demasiado transparentes. Será que se pode mudar toda uma atitude diante
da vida pela única razão de se ter sido injustiçado? Eu não disse tudo isso a
Ludvik. Em seguida aconteceu uma coisa inesperada. Ludvik não me
respondeu. Como se esse surto de cólera tivesse desaparecido subitamente.
Ele me sondava com olhar intrigado, depois disse em voz baixa e calma que
eu não ficasse zangado. Ele podia estar enganado. Disse isso de maneira tão
estranha, com tal frieza que sua insinceridade me pareceu óbvia. Eu não
queria que nossa conversa terminasse com aquela insinceridade. Qualquer
que fosse a minha amargura, continuava dominado pela minha primeira
intenção. Queria explicar-me com Ludvik e restaurar nossa amizade. Por
mais duro que tivesse sido nosso choque, eu esperava encontrar, em algum
lugar, depois de uma longa discussão, um pedaço da terra comum, tão belo
outrora, onde pudéssemos morar juntos novamente. No entanto, o esforço
que fiz para continuar a conversa foi vão. Ludvik desfazia-se em desculpas:
mais uma vez tinha cedido à sua mania de exagerar. Pediu-me que
esquecesse as afirmações que fizera.
Esquecer? E por que diabo era preciso esquecer uma conversa tão séria? Não
seria melhor continuá-la? Só no dia seguinte percebi o sentido oculto do
pedido de Ludvik. Ele passou a noite lá em casa, e pela manhã tomou café
conosco. Depois disso, tivemos ainda meia hora para conversar. Ele contou-
me as dificuldades que estava tendo para obter a permissão de terminar nos
próximos dois anos seus estudos na faculdade. Que marca na sua vida
representava a expulsão do Partido! A desconfiança que lhe
testemunhavam em todos os lugares. Só graças à ajuda de um pequeno
número de amigos que o haviam conhecido antes de sua expulsão do
Partido é que talvez conseguisse recuperar um lugar nas salas de aula. Em
seguida, falou de alguns conhecidos cuja situação era semelhante à sua.
Assegurou-me que eles eram seguidos e que suas conversas eram
cuidadosamente gravadas. Que aqueles que os cercavam eram interrogados,
podendo esse ou aquele testemunho cuidadoso ou mal-intencionado
significar alguns anos suplementares de aborrecimentos. Depois desviou a
conversa para futilidades e, na hora da despedida, declarou que ficara
contente em me ver. Reiterou seu pedido para que eu não pensasse mais no
que ele dissera na véspera.
A vinculação desse pedido com a alusão à experiência vivida por seus
amigos era muito clara. Eu estava estupefato. Ludvik parará de conversar
comigo porque tivera medo! Medo de que nossa conversa pudesse ser
divulgada! Medo de ser denunciado! Medo de mim! Era horrível! E — mais
uma vez — inteiramente inesperado. O abismo entre nós era mais profundo
do que eu pensava, tão profundo que nem mesmo nos permitia concluir
uma conversa.
Vlasta já está dormindo. Pobrezinha. De vez em quando ronca ligeiramente.
Todos dormem em nossa casa. Eu estou deitado, largo, longo, grande, e
penso em como me falta força. Também tive essa sensação cruel naquele
momento. Antes, acreditava que tudo estava nas minhas mãos. Ludvik e eu
nunca brigáramos. Com um pouco de boa vontade, o que me impediria de
voltar a ser amigo dele? Ficou provado que isso não estava nas minhas mãos.
Nem nossa ruptura, nem nossa reaproximação estavam nas minhas mãos.
Assim sendo, coloquei-as nas mãos do tempo. O tempo passou. Passaram-se
nove anos depois de nosso último encontro. Ludvik terminou seus estudos e
arranjou um excelente emprego como cientista num setor que o interessa.
De longe, acompanho seu destino. Acompanho com afeto. Jamais pude
considerar Ludvik como meu inimigo ou como um estranho. É meu amigo,
porém enfeitiçado. Como numa nova versão do conto em que a noiva do
príncipe foi transformada em serpente ou em sapo. Nos contos, a fiel
paciência do príncipe sempre salvou a situação.
Mas, no meu caso, o tempo não libertou meu amigo de seu feitiço. Nesses
anos, muitas vezes soube que ele havia passado por nossa cidade. Nem uma
só vez ele parou em minha casa. Encontrei-o hoje, e ele me evitou. Maldito
Ludvik.
Tudo começou depois que conversamos pela última vez. Com o passar dos
anos, senti o deserto aumentar à minha volta e uma ansiedade germinar no
meu coração. Havia cada vez mais cansaço e cada vez menos alegrias e
sucessos.
Antigamente o conjunto partia todo ano em excursão pelo exterior, depois
os convites foram diminuindo em número e agora raramente somos
convidados. Trabalhamos o tempo todo, redobramos nossos esforços, mas o
silêncio nos cerca. Fiquei numa sala vazia. E parece-me que foi Ludvik que
ordenou que eu ficasse sozinho. Pois não são os inimigos, mas sim os amigos
que condenam o homem à solidão.
Desde então, cada vez com mais frequência, comecei a fugir por esse
caminho de terra margeado de pequenos campos. Por esse caminho no
campo onde uma roseira selvagem cresce sozinha num declive. Lá encontro
os últimos fiéis. Há o desertor com seus companheiros. Há um músico
errante. E, além do horizonte, há uma casa de madeira e dentro dela Vlasta
— a pobre serva.
O desertor me chama de rei e jura que posso em qualquer época refugiar-me
sob sua guarda. Basta eu ir para junto da roseira selvagem. Ele estará lá para
me encontrar.
Como seria simples encontrar a paz num mundo imaginário! Mas sempre
tentei viver nos dois mundos ao mesmo tempo, sem abandonar um pelo
outro. Não tenho o direito de renunciar ao mundo real, embora nele perca
tudo. Talvez no fim dos fins baste que eu consiga uma única coisa. A última!
Entregar minha vida, como uma mensagem clara e inteligível, ao único
indivíduo que a compreenderá e que poderá levá-la adiante. Até lá, não
tenho o direito de partir com o desertor em direção ao Danúbio.
Esse único homem em quem penso, minha última esperança depois de
tantas derrotas, está separado de mim por uma parede, e dorme. Depois de
amanhã montará um cavalo. Terá o rosto coberto. Será tratado por rei.
Venha, meu pequenino. Sinto-me apaziguado. Eles lhe darão meu título.
Vou dormir. Em meu sonho quero vê-lo cavalgando.
Q UINTA PARTE

LUDVIK

Dormi muito tempo e muito bem. Acordei depois das oito horas, não me
lembrava de nenhum sonho, nem bom nem ruim, não sentia dor de cabeça,
simplesmente não tinha vontade de levantar; portanto, fiquei deitado; o
sono tinha criado uma espécie de cortina de fumaça entre mim e meu
encontro da véspera; não que Lucie, essa manhã, tivesse desaparecido da
minha consciência, mas ela voltara a ser uma abstração.
Abstração? É: depois de seu desaparecimento tão enigmático e doloroso em
Ostrava, a princípio não tive nenhum meio prático de descobrir seu
paradeiro. E como (depois do meu serviço militar) os anos foram passando,
pouco a pouco perdi o desejo dessa busca. Achava que Lucie, por mais que
eu a amasse, por mais perfeitamente única que ela fosse, era inseparável da
situação em que1 nos conhecemos e nos apaixonamos. Parecia-me que era
cometer um erro de raciocínio abstrair a mulher amada do conjunto das
circunstâncias nas quais a tinha encontrado e revisto, tentar, à custa de
uma obstinada concentração mental, despojá-la de tudo o que não fosse ela
mesma e, portanto, da história que vivia com ela e que dava forma ao amor.
Realmente, amo na mulher não aquilo que ela é por si mesma, mas a maneira
como se aproxima de mim, aquilo que ela representa para mim. Eu a amo
como uma personagem de nossa história a dois. Quem seria Hamlet, privado
do castelo de Elsinore, de Ofélia, de todas as situações concretas que
atravessa, do texto de seu papel? O que sobraria, além de uma essência
vazia e ilusória? Da mesma forma, Lucie, sem os subúrbios de Ostrava, sem h
as rosas entregues através da cerca, sem suas roupas surradas, sem minhas
longas semanas de expectativa sem esperança, sem dúvida não seria mais a
Lucie que eu amava.
Assim eu concebia, assim eu me explicava as coisas, e, à medida que os anos
passavam, já sentia quase medo de revê-la, pois sabia que nos
encontraríamos num lugar em que Lucie não seria mais Lucie, e que eu não
teria mais como reatar o fio. Não quero dizer com isso que havia deixado de
amá-la, que a esquecera, que sua imagem desbotara; ao contrário; ela morava
em mim dia e noite, como uma silenciosa nostalgia; eu a desejava como se
desejam as coisas perdidas para sempre.
E como Lucie se tornara para mim um passado definitivo (que, como
passado, vive sempre e, como presente, está morto), lentamente ela perdia
para mim sua aparência carnal, material, concreta, para cada vez mais se
desfazer em lenda, em mito escrito sobre pergaminho e escondido numa
caixa de metal depositada no fundo de minha vida.
Talvez por isso mesmo o impensável se tornara possível: minha incerteza
diante de seu rosto, na cadeira do salão de barbeiro. Por isso ainda, nessa
manhã tive a impressão de que esse encontro não fora real; que ele deveria
ter-se passado também ao nível de lenda, de oráculo ou de adivinhação. Se
ontem à noite a presença real de Lucie me perturbou, transportando-me
subitamente para o tempo distante em que ela reinava, nessa manhã de
sábado eu apenas me perguntei, com o coração tranquilo (repousado pelo
sono): por que a reencontrei? O que significa esse acaso? O que tem ele a me
dizer? As histórias pessoais, além de acontecerem, também significam
alguma coisa? Apesar de todo o meu ceticismo, sobrou-me um pouco de
superstição irracional, como a curiosa convicção de que todo acontecimento
que me sucede comporta também um sentido, que ele significa alguma
coisa; que a vida, por sua própria aventura, nos fala, nos revela
gradualmente um segredo, que se oferece como um enigma a ser decifrado,
que as histórias que vivemos formam ao mesmo tempo a mitologia de nossa
vida e que essa mitologia detém a chave da verdade e do mistério. É uma
ilusão? É possível, é mesmo verossímil, mas não posso reprimir essa
necessidade de decifrar continuamente minha própria vida.
Ainda deitado na minha rangente cama de hotel, pensava em Lucie de
novo transformada em simples ideia, em simples ponto de interrogação. A
cama rangia, e essa particularidade aflorando mais uma vez à minha
consciência provocou um desvio (brusco, discordante) de pensamento em
direção a Helena. Como se essa cama rangente fosse uma voz me chamando
para o dever, soltei um suspiro, pus os pés para fora da cama, sentei na
beirada, espreguicei-me, passei os dedos no cabelo, olhei o céu pela janela e
então me levantei. O encontro de ontem com Lucie tinha, afinal de contas,
apagado c sufocado meu interesse por Helena, que fora tão intenso uns dias
antes. Esse interesse, agora, era apenas a lembrança de um interesse; apenas
um sentimento de dever com relação ao interesse perdido.
Aproximei-me da pia, tirei o paletó do pijama e abri a torneira até o fim;
coloquei as mãos em concha sob o jato e com gestos precipitados molhei
bastante o pescoço, os ombros, o corpo, antes de me enxugar com a toalha.
Queria estimular meu sangue. De repente tive medo de meu desinteresse
pela chegada de Helena; tive receio de que essa indiferença estragasse uma
ocasião excepcional que tinha poucas chances de se repetir. Prometi a mim
mesmo um sólido café da manhã, pontuado por uma vodca.
Desci para a sala de café, mas só encontrei um desolador cortejo de cadeiras
arrumadas com os pés para cima sobre mesinhas sem toalha, entre as quais
se arrastava uma velhinha com um avental imundo.
Na recepção, perguntei ao porteiro, que estava atrás do balcão, afundado
numa poltrona tão profunda quanto a sua indolência, se haveria uma forma
de tomar o café da manhã no hotel. Sem fazer um movimento, ele disse que
hoje era o dia de folga do pessoal da sala de café. Saí para a rua. O dia
anunciava-se lindo, pequenas nuvens passeavam no céu e um ligeiro vento
levantava a poeira da calçada. Apressei-me em direção à praça. Diante de
um açougue havia uma fila; com cesta ou sacola no braço, as mulheres
esperavam pacientemente sua vez. Entre os transeuntes, reparei logo em
alguns que seguravam, como uma tocha em miniatura, uma casquinha de
sorvete encimada por um capuz rosa que eles lambiam. No mesmo instante
cheguei à praça principal. Havia uma casa de um andar só — um self
service.
Entrei. A sala era espaçosa, o chão ladrilhado; de pé, diante de mesas muito
altas, pessoas mordiam pequenos sanduíches e tomavam café ou cerveja.
Não tive vontade de comer ali. Desde que acordara, estava obcecado com a
ideia de uma refeição substancial com ovos e bacon, e um copo de bebida
alcoólica, para me revigorar. Lembrei-me de um restaurante que ficava um
pouco mais adiante, numa outra praça com jardim gradeado e um
monumento barroco. Sem dúvida alguma não tinha nada de realmente
atraente, mas serviria, desde que nele encontrasse uma mesa, uma cadeira e
um garçom disposto a me servir.
Passei ao lado do monumento: o pedestal sustentava um santo, o santo
sustentava uma nuvem, a nuvem um anjo, o anjo outra nuvem, sobre a
qual estava sentado um anjo, o último; percorri com o olhar o monumento,
uma pungente pirâmide de santos, de nuvens e de anjos na qual um pesado
pedaço de pedra imitava os céus e suas profundezas, enquanto o céu real,
azul pálido, permanecia desesperadamente longe desse empoeirado pedaço
de terra.
Atravessei a praça, com seus gramados e bancos (contudo, nua o bastante
para não alterar uma atmosfera de vazio poeirento), e empurrei a porta do
restaurante. Estava fechado. Comecei a compreender que o pequeno festim
tão desejado continuaria sendo um sonho, e assustei-me, pois tinha-o, com
uma teimosia infantil, como condição decisiva para o sucesso daquele dia.
Compreendi que as cidades pequenas não se importavam com os
excêntricos que faziam questão de tomar o café da manhã sentados, já que
abriam seus restaurantes muito mais tarde. Desisti portanto de procurar um,
dei meia-volta e tornei a atravessar a praça em sentido inverso.
Mais uma vez encontrei pessoas com pequenos cones encimados por
capuzes rosa e mais uma vez repeti para mim mesmo que aqueles cones
pareciam tochas e que essa aparência talvez tivesse uma certa significação,
visto que as tochas mencionadas não existiam, mas eram apenas paródias de
tochas, e o que elas carregavam solenemente, esse traço fugitivo de prazer
rosa, não era uma volúpia, mas uma paródia de volúpia, o que, pelo que
tudo indicava, expressava o inevitável caráter de paródia de todas as tochas
e volúpias dessa cidade de poeira. Então imaginei que, se subisse a corrente
dos portadores de tocha, teria uma chance de chegar a uma confeitaria
onde encontraria um canto de mesa e uma cadeira, certamente também um
café e até um pedaço de bolo.
De fato, cheguei a uma leiteria; havia uma fila para conseguir chocolate ou
leite com croissants e novamente mesas de perna comprida, com os
fregueses bebendo e comendo de pé; no fundo da sala havia algumas
mesinhas com cadeiras, mas estavam todas ocupadas. Entrei na fila que
andava devagarzinho; depois de dez minutos de espera, consegui um
chocolate e dois croissants; carreguei-os para uma mesa alta onde havia uma
meia dúzia de canecas de cerveja vazias, e ali, num pequeno canto seco,
coloquei meu copo.
Comi numa rapidez deprimente: nem três minutos depois estava de volta à
rua; batiam nove horas; tinha ainda duas horas pela frente: Helena tomara
em Praga o primeiro avião da manhã para Bino, a fim de poder pegar o
ônibus que chega aqui um pouco antes de onze horas. Eu sabia que seriam
duas horas inteiramente vazias.
Podia, é claro, rever os lugares da minha infância, parar perto da casa onde
nasci, onde mamãe viveu até seus últimos dias. Penso muito nela, mas, aqui,
na cidade em que seu pequeno esqueleto repousa sob um mármore
estranho, minhas lembranças estão envenenadas: a amarga sensação da
minha impotência naquela época as envenena — e é disso que me defendo.
Não tinha mais nada a fazer senão sentar num banco da praça para me
levantar logo depois, ir ver as vitrines, olhar as capas dos livros nos balcões
das livrarias, e acabar comprando o Rude pravo numa tabacaria, sentar de
novo no banco, dar uma olhada nas manchetes insípidas, ler duas
informações de algum interesse na seção de notícias internacionais,
levantar-me outra vez do banco, dobrar o jornal e jogá-lo, intato, numa lata
de lixo; depois aproximar-me lentamente da igreja, parar diante dela, olhar
os dois sinos, subir os grandes degraus, passar pelo pórtico e entrar na nave
timidamente, para que as pessoas não se ofendessem com o fato de que o
recém-chegado não tivesse feito o sinal da cruz e tivesse vindo aqui como
iria a um parque, apenas para passear.
Quando chegou mais gente, fiquei parecendo um intruso que não sabia que
atitude tomar naquele lugar, por isso fui embora. Olhei o relógio e constatei
que meu tempo livre tinha vida longa. A fim de aproveitar esse tempo livre,
esforcei-me por me lembrar de Helena, por pensar nela; mas esse
pensamento recusava-se a evoluir, permanecia estático, e eu mal conseguia
evocar a imagem visual dela. Aliás, já se sabe disto: quando um homem
espera uma mulher, é com grande esforço que consegue refletir sobre ela;
tudo o que consegue fazer é andar de um lado para o outro sob sua imagem
imutável.
Fiquei andando de um lado para o outro. Em frente à igreja, enxerguei uma
dezena de carrinhos de neném parados, vazios, diante do prédio da
prefeitura (agora, Comitê Nacional da Cidade). Não consegui entender do
que se tratava. Em seguida, um rapaz ofegante veio colocar um carrinho ao
lado dos outros, sua companheira (um pouco agitada) tirou dele um
embrulho de tecidos e rendas brancas (contendo sem nenhuma dúvida um
bebê), e o casal desapareceu rapidamente no interior da prefeitura.
Lembrando que tinha uma hora e meia pela frente, eu os segui.
Já na escadaria havia uma razoável concentração de curiosos, que se
tornava mais compacta à medida que eu subia. O corredor do primeiro
andar parecia repleto, ao passo que a escada que levava ao andar de cima
estava vazia. O acontecimento que atraíra toda essa gente deveria portanto,
ao que tudo indicava, desenrolar-se no primeiro andar, provavelmente no
salão cuja porta, escancarada para o corredor, estava obstruída por uma
multidão considerável. Fui para lá; as dimensões da sala eram modestas,
havia mais ou menos sete fileiras de cadeiras já ocupadas por pessoas que
aparentavam estar esperando um espetáculo. Na frente havia um estrado,
em cima dele uma longa mesa coberta com um pano vermelho, e sobre ela
um vaso com um grande buquê de flores; atrás, na parede, caíam, com arte,
as pregas de uma bandeira com as cores do Estado; embaixo do estrado e em
frente a ele (a três metros da primeira fila da plateia), oito cadeiras estavam
dispostas em semicírculo; na outra extremidade da sala, no fundo, havia um
pequeno órgão; um velho senhor de óculos, sentado, inclinava sua calvície
sobre o teclado descoberto.
Muitas cadeiras ainda estavam livres; ocupei uma delas. Por muito tempo
nada aconteceu, mas o público não mostrava nenhum aborrecimento, as
pessoas conversavam umas com as outras à meia voz. Nesse meio-tempo os
pequenos grupos que ainda estavam no corredor haviam terminado de
encher a sala, sentando nos últimos lugares vagos ou ficando em pé.
Finalmente aconteceu alguma coisa: abriu-se uma porta atrás do estrado;
apareceu uma senhora de vestido marrom, com um par de óculos sobre um
nariz magro e comprido; passeou o olhar pela assistência e levantou a mão
direita. O silêncio me cercou. Em seguida, a mulher virou-se para o lado da
sala de onde surgira, como que para dirigir um sinal ou uma palavra a
alguém, mas logo depois voltou e encostou as costas na parede, e na mesma
hora apareceu em seu rosto um sorriso solene e fixo. Tudo estava bem
sincronizado, pois, atrás de mim, o som do órgão começou ao mesmo tempo
que o sorriso.
Alguns minutos depois, apareceu na porta atrás do estrado uma moça
corada, com cabelos amarelos, magnificamente penteada e maquilada, com
ar espantado, carregando nos braços uma sacola branca com um bebê. A
mulher de marrom, para lhe facilitar a passagem, encostou-se ainda mais
contra a parede, enquanto seu sorriso procurava encorajar a portadora do
bebê, e esta avançava, com passo hesitante, segurando a criança; uma
segunda surgiu com a mesma sacola branca e atrás dela (em fila indiana) um
pequeno cortejo. Eu continuava observando a primeira: seus olhos, tendo
primeiro vagueado pelo teto, haviam baixado e certamente encontraram o
olhar de alguém na sala, já que, perdendo a segurança, ela de súbito tentara
olhar em outra direção e começara a sorrir, só que esse sorriso (esse esforço
para sorrir) rapidamente se desfez numa contração de seus lábios
paralisados. Tudo isso passou-se em seu rosto num intervalo de alguns
segundos (o tempo de atravessar seis metros de distância da porta); como
ela foi andando direto para a frente sem virar a tempo diante da meia-lua
de cadeiras, a mulher de marrom afastou-se da parede com um pulo (a cara
meio contrariada) e aproximou-se dela a fim de indicar-lhe com um sinal da
mão a direção certa. Corrigindo na mesma hora seu desvio, a mulher fez um
movimento de curva, seguida das outras mulheres que também carregavam
crianças. Havia um total de oito. Tendo terminado o percurso indicado, elas
pararam, de costas para o público, cada uma em pé diante de uma cadeira.
A senhora de marrom fez um sinal do alto para baixo; lentamente, uma
depois da outra, as mulheres (sempre com as costas viradas para o público)
compreenderam e (com os bebês embrulhados) sentaram-se.
A mulher de marrom sorriu de novo e foi para a porta que ficara
entreaberta. Parou um instante na soleira, depois deu três ou quatro passos
rápidos e voltou recuando para a sala, onde tornou a encostar-se contra a
parede. Apareceu então um homem de uns vinte anos, vestido de preto,
camisa branca cujo colarinho, agarrado ao pescoço, estava enfeitado com
uma gravata estampada. Tinha a cabeça baixa e o andar pesado. Atrás dele
vinham outros sete homens de idades diferentes, mas todos usando roupas
escuras e camisa domingueira. Contornaram as mulheres com os bebês e
pararam. Nesse momento, dois ou três pareciam um pouco inquietos,
olhando à volta, como se procurassem alguma coisa. A senhora de marrom
(cujo rosto imediatamente anuviou-se) acudiu e aprovou com um
movimento de cabeça o que um dos homens perplexos lhe segredara ao
ouvido; em seguida os homens trocaram de lugar rapidamente.
Mais uma vez sorridente, a senhora de marrom dirigiu-se à porta atrás do
estrado. Dessa vez não foi preciso nem esboçar qualquer sinal. Um novo
destacamento entrava, e devo dizer que era disciplinado, e tinha um certo
ar de superioridade, andando sem constrangimento, com o desembaraço de
profissionais; era composto de crianças de uns dez anos; avançavam em fila
indiana, meninas e meninos alternados; os meninos vestiam calça azul-
marinho e camisa branca com um lenço triangular vermelho, uma ponta
deste caindo sobre os ombros, as duas outras em nó debaixo do queixo; as
meninas usavam uma pequena saia azul-marinho, uma blusa branca e, em
volta do pescoço, um lenço igual ao dos meninos; todos seguravam um
pequeno buquê de rosas na mão. Andavam, como eu disse antes, não só com
segurança mas com elegância também, de modo diferente dos dois
destacamentos anteriores: não seguiram o semicírculo de cadeiras,
percorreram a frente do estrado; pararam aí, deram meia-volta, de maneira
que a fila formada por eles ocupava todo o comprimento do estrado em
frente às mulheres sentadas na sala.
Alguns segundos se passaram até que um novo personagem aparecesse na
porta; não era seguido por ninguém e dirigiu-se diretamente ao estrado e à
longa mesa coberta com tecido vermelho. Era um homem calvo, de meia-
idade. Seu andar era digno, seu porte rígido, estava de terno preto e levava
na mão uma grande pasta púrpura; parou a meia distância da mesa, de
frente para o público que saudou com uma inclinação. Via-se seu rosto
balofo e, pendurada no pescoço como um colar, uma fita comprida,
vermelha, azul e branca, onde estava presa uma medalha dourada que
pendia na altura do estômago e que balançara muitas vezes acima da
tribuna quando ele se inclinara.
De repente um dos garotos enfileirados diante do estrado pôs-se a discursar
em voz alta. Dizia que a primavera chegara, que os papais e mamães
estavam exultantes e que toda a terra se alegrava. Continuou um pouco
nesse espírito, e depois uma das meninas o interrompeu para dizer coisas
semelhantes, cujo sentido não era muito claro, mas em que voltavam as
mesmas palavras: mamãe, papai e também a primavera, e algumas vezes a
palavra rosa. Depois disso, um outro garoto, por sua vez, cortou-lhe a
palavra, sendo interrompido em seguida por uma outra menina; não se
podia dizer, no entanto, que eles brigavam, visto que todos afirmavam mais
ou menos a mesma coisa. Um dos meninos declarou, por exemplo, que a
criança era a paz. A menina que veio depois retrucou que a criança era uma
flor. Fez-se, aliás, unanimidade em torno dessa última ideia, que o coro das
crianças retomou em uníssono, avançando com o braço estendido e
carregando um buquê. Como eles eram oito, justamente o número de
mulheres sentadas em semicírculo, cada uma delas recebeu um buquê. As
crianças voltaram para perto do estrado e se calaram.
Em resposta, o homem de pé no estrado abriu sua grande pasta púrpura e
começou a ler em voz alta. Também falou da primavera, das flores, das
mamães e dos papais, falou também do amor, que, segundo ele, dava frutos,
mas seu vocabulário revelou em seguida uma metamorfose, não dizia mais o
papai e a mamãe, mas o pai e a mãe, enumerava tudo aquilo que o Estado
lhes (aos pais e às mães) proporcionava, assinalando que deviam, em
retribuição, para o bem do Estado, educar seus filhos como cidadãos-modelo.
Depois disso, declarou que todos os pais aqui presentes iriam selar seu
compromisso solene com sua assinatura, e apontou para a ponta da mesa,
onde havia um grande livro encadernado em couro.
Nesse momento, a senhora de marrom veio colocar-se atrás da mãe sentada
na ponta do semicírculo, tocou-lhe o ombro, a mãe se virou e a senhora
tomou-lhe das mãos seu bebê. Em seguida a mãe se levantou e andou em
direção à mesa. O homem com a fita abriu o livro e estendeu uma caneta
para a mãe. Ela assinou, voltou para a cadeira, e a senhora de marrom
entregou-lhe o bebê. O pai também foi assinar por sua vez; depois a senhora
de marrom apanhou o bebê da mãe seguinte e encaminhou-a para o
estrado; depois dela, seu marido assinou; depois dele, uma outra mãe, um
outro marido, e assim por diante, até o fim. Depois o órgão emitiu uma nova
série de sons enquanto meus vizinhos se apressavam em ir apertar a mão
das mães e dos pais. Eu seguia o movimento (como se também quisesse dar
um aperto de mão), quando de repente escutei meu nome ser chamado: era
o homem da fita que me perguntava se eu não o estava reconhecendo.
Claro que eu não o reconhecera, apesar de tê-lo observado durante todo o
seu discurso. Para não dar uma resposta negativa a uma pergunta um tanto
embaraçosa, perguntei-lhe como estava passando. Ele disse que ia bem, e eu
o reconheci; Kovalik, um colega de colégio. Como que esmaecidos pela
adiposidade de sua fisionomia, seus traços só agora me voltavam à
lembrança; aliás, entre meus colegas, Kovalik sempre fora uma figura
apagada, nem bom nem canalha, nem sociável nem solitário, era medíocre
nos estudos; naquela época tinha um topete no alto da testa, hoje
desaparecido — eu tinha portanto algumas desculpas para não tê-lo
reconhecido de imediato.
Ele perguntou o que eu estava fazendo ali, se tinha alguma parenta entre as
mães. Respondi que não, que não tinha, que tinha vindo apenas por
curiosidade. Sorrindo de contentamento, ele começou a me explicar que o
Comitê Nacional da cidade fizera os maiores esforços para que aquele fosse
um acontecimento realmente digno das cerimônias cívicas, e, com um
tímido orgulho, acrescentou que ele, encarregado dos assuntos civis, tivera
certa participação nos preparos para a cerimônia e que por causa disso
recebera até alguns elogios de seus superiores. Perguntei-lhe se o que
acabara de acontecer fora um batismo. Ele respondeu que não era um
batismo, mas as boas-vindas à vida aos novos cidadãos. Estava visivelmente
encantado de poder conversar. Segundo ele, duas grandes instituições se
opunham: a Igreja Católica, com seus ritos de tradição milenar, e do outro
lado as instituições civis, cujo cerimonial novo deve substituir esses ritos
imemoriais. Disse que as pessoas não desistiriam de celebrar na igreja
batismos e casamentos enquanto as cerimônias cívicas não tivessem a
mesma grandeza e beleza que as cerimônias religiosas.
Eu lhe disse que, segundo as aparências, não era assim tão fácil. Ele
concordou e disse que estava feliz com o fato de eles mesmos, encarregados
dos assuntos civis, estarem encontrando finalmente um pouco de apoio
junto aos nossos artistas, que tinham (esperemos!) compreendido que era
uma grande honra dar ao nosso povo enterros, casamentos e batismos (lapso
que emendou depressa dizendo: boas-vindas aos novos cidadãos) realmente
socialistas. Quanto aos versos que os pequenos pioneiros recitaram aquele
dia, acrescentou, eles eram muito bonitos. Concordei e perguntei-lhe se não
seria mais eficaz, para desacostumar as pessoas das cerimônias eclesiásticas,
dar-lhes, ao contrário, a possibilidade plena de evitar toda e qualquer
cerimônia.
Ele disse que as pessoas nunca abririam mão de seus casamentos e de seus
enterros. Sem contar que, do nosso ponto de vista (acentuou a palavra
nosso, como que para me fazer compreender que ele também tinha entrado
para o Partido Comunista), seria pena não utilizar tais cerimônias para
aproximar as pessoas de nossa ideologia e de nosso Estado.
Perguntei a meu velho colega de classe como é que ele fazia com os
recalcitrantes, pressupondo que houvesse algum. Ele disse que de fato havia
esse tipo de gente, porque nem todo mundo assimilou a nova mentalidade,
mas, se reclamam, enviamos-lhes convite e mais convite, de modo que a
maioria acaba vindo, oito ou quinze dias depois. Perguntei se o
comparecimento a esse tipo de cerimônia era obrigatório. Não, respondeu
ele com um sorriso, mas é através dele que o Comitê Nacional julga o nível
de consciência dos cidadãos, assim como sua atitude em relação ao Estado,
e, ao se darem conta disso, todos acabam vindo.
Eu disse a Kovalik que o Comitê Nacional trata seus fiéis com mais rigor do
que a Igreja Católica. Kovalik riu e disse que não havia nada a fazer. Depois
me convidou para ir um instante a seu escritório. Eu lhe disse que
infelizmente não tinha tempo, pois tinha que esperar alguém na estação
rodoviária. Ele me perguntou ainda se tinha encontrado um dos "meninos"
(queria dizer: colegas de colégio). Respondi-lhe que não, mas que estava
contente por tê-lo encontrado, porque, quando tivesse um filho para
batizar, não deixaria de fazer a viagem até aqui e de procurar por ele. Rindo
às gargalhadas, ele me deu um tapa amigável no ombro. Depois de um
aperto de mão, voltei para a praça, pensando que faltavam quinze minutos
para a chegada do ônibus.
Quinze minutos não era muito. Atravessada a praça, tornei a passar perto
da barbearia, dei mais uma olhada através do vidro (apesar de saber que
Lucie não estava, só estaria à tarde); depois fui andando para a estação
rodoviária imaginando Helena: seu rosto bronzeado, seu cabelo ruivo,
evidentemente descolorado, sua silhueta, longe de ser esbelta mas
guardando, apesar disso, a relação elementar de proporções que permite
distinguir uma '' mulher como mulher, imaginava tudo aquilo que a
colocava na excitante fronteira entre o feio e o atraente, sua voz, mais forte
do que agradável, e sua mímica excessiva que deixava perceber, contra sua
vontade, uma impaciente ambição de agradar ainda.
Tinha visto Helena três vezes na vida, isto é, muito pouco para que minha
memória guardasse dela uma imagem exata. Cada vez que tentava recordá-
la, um traço qualquer dessa imagem sobressaía de tal maneira acentuado que
Helena se metamorfoseava constantemente para mim em sua própria
caricatura. No entanto, por mais inexata que fosse minha imaginação, creio
que foi precisamente por essas deformações que captei em Helena alguma
coisa de essencial que se escondia sob sua aparência.
Dessa vez, o que me era difícil descartar era sobretudo a imagem de
inconsistência corporal de Helena, seu amolecimento, sinais não apenas da
idade, da maternidade, mas antes de tudo de seu psiquismo (erotismo)
desarmado, de sua incapacidade de resistir (em vão dissimulada pela
arrogância de sua atitude), de sua vocação para presa sexual. Refletiria essa
imagem na verdade a essência de Helena ou apenas minha relação com ela?
Quem pode dizer? O ônibus iria chegar a qualquer momento e eu queria que
Helena aparecesse como minha fantasia a tinha moldado. Escondi-me na
entrada de um dos prédios da praça que cercam a estação para olhá-la um
instante, vê-la arregalar os olhos, olhar em volta, impotente, assaltada pela
ideia de que viajara em vão e de que não me encontraria ali.
Um ônibus parou sobre o terrapleno, e Helena foi uma das primeiras a
descer dele. Usava uma capa azul que (com a gola levantada, cintura
apertada com um cinto) lhe dava um ar jovem e esportivo. Olhou de um
lado e de outro e, longe de ficar perplexa, deu meia-volta e dirigiu-se sem
hesitar ao meu hotel, onde um quarto lhe fora reservado.
Mais uma vez verifiquei que minha imaginação me tinha fornecido uma
imagem deformada de Helena. Felizmente, a Helena da realidade se
revelava sempre mais bonita do que a de minhas ficções, como uma vez
mais constatei ao vê-la de costas, de salto alto, tomar o caminho do hotel.
Segui-a.
Ela já estava na recepção, inclinada sobre o balcão, onde um porteiro
indiferente escrevia seu nome no registro. Ela lhe soletrava o nome:
"Zemanek, Ze-ma-nek..." Em pé atrás dela, eu escutava. Quando o porteiro
pousou a caneta sobre o balcão, Helena perguntou: — O camarada Jahn está
hospedado aqui, não está? Aproximei-me por trás e coloquei minha mão em
seu ombro.
Tudo o que acontecera entre mim e Helena fora consequência de um
cálculo minuciosamente estabelecido. Sem dúvida, a partir de nosso
primeiro encontro Helena também alimentou algum propósito, mas é pouco
provável que suas intenções fossem além de um vago desejo de mulher que
quer preservar sua espontaneidade, sua poesia sentimental, e que, por isso,
está pouco preocupada em dirigir e governar de antemão o curso dos
acontecimentos. Eu, em compensação, agira desde o começo ao mesmo
tempo como autor e como diretor da aventura que iria viver, e não
abandonara ao capricho da inspiração nem a escolha de meus propósitos,
nem a escolha do quarto onde queria ficar a sós com ela. Receava qualquer
risco de perder aquela oportunidade que se apresentava e que eu tanto
desejava, não que Helena fosse especialmente jovem, agradável ou bonita,
mas apenas porque ela possuía aquele nome; porque era casada com o
homem que eu odiava.
Quando em nosso instituto me anunciaram um dia a visita de uma
camarada Zemanek, do rádio, a quem eu deveria informar sobre o tema de
nossas pesquisas, lembrei-me, é verdade, imediatamente de meu antigo
companheiro de estudos, mas a semelhança do nome parecera-me simples
acaso, e, se a perspectiva de receber aquela pessoa me contrariava, era por
outras razões.
Não gosto de jornalistas. Eles são na maioria das vezes superficiais, faladores
e de uma arrogância sem igual. Que Helena representasse uma rádio, e não
um jornal, me desagradava ainda mais. É que os jornais podem, a meu ver,
se valer de uma circunstância atenuante e importante: não são barulhentos.
Sua leviandade é silenciosa; eles não se impõem; é possível jogá-los na lixeira.
Igualmente leviano, o rádio não goza dessa circunstância atenuante; ele nos
persegue no bar, no restaurante, até mesmo durante nossas visitas à casa de
pessoas que se tornaram incapazes de viver sem o alimento ininterrupto dos
ouvidos. Em Helena, até a maneira de falar me desagradava. Compreendi
de imediato que suas opiniões sobre nosso instituto e nossas pesquisas já
estavam formadas, de maneira que agora tratava-se apenas de tentar obter
de mim alguns exemplos concretos que pudessem dar consistência aos
clichês habituais. Fiz o possível para dificultar sua tarefa, empregando uma
linguagem difícil, impossível de ser compreendida, e esforçando-me por
contrariar todas as suas opiniões preconcebidas. Quando percebi que havia o
risco de ela começar a entender, apesar de tudo, minhas explicações, resolvi
escapar-lhe passando às confidencias: disse-lhe que ela ficava muito bem
com aqueles cabelos ruivos (achava exatamente o contrário), perguntei
sobre seu trabalho na rádio, sobre suas leituras preferidas. E, numa reflexão
silenciosa paralela à nossa conversa, veio-me a ideia de que o homônimo
talvez não fosse um acaso. Aquela jornalista faladora, inquieta, ambiciosa,
parecia-me ter um ar de semelhança com aquele personagem que eu
conhecera igualmente falador, inquieto e ambicioso. Adotando o tom frívolo
do flerte, indaguei sobre seu marido. A pista foi boa, duas ou três perguntas e
identifiquei com certeza Pavel Zemanek. Devo dizer que nesse momento
não sonhava aproximar-me dela da maneira como aconteceu mais tarde. Ao
contrário: a antipatia que senti por ela desde sua entrada intensificou-se
depois da minha descoberta. Imediatamente procurei um pretexto para
acabar a entrevista com a jornalista importuna, passando-a para um colega;
pensei até na alegria que teria em botar porta afora aquela mulher que sorria
sem parar, e lamentei que isso fosse impossível.
Mas no momento exato em que eu estava mais cansado, Helena, em
resposta ao tom íntimo de minhas perguntas e observações (cuja função
puramente indagadora não podia perceber), manifestou-se por alguns
gestos tão naturalmente feminina que meu rancor de súbito revestiu-se de
um novo aspecto: debaixo do véu das afetações profissionais de Helena,
percebi uma mulher, apta a funcionar como mulher. Rindo por dentro,
persuadi-me em primeiro lugar de que Zemanek bem merecia tal
companheira, que decerto já lhe era um castigo suficiente, mas tive de
voltar atrás quase que imediatamente: essa apreciação altiva era subjetiva
demais, forçada demais; aquela mulher, sem dúvida alguma, tinha sido
muito bonita, e nada autorizava a pensar que Pavel Zemanek, hoje, não
gostasse mais de usá-la como mulher. Complacentemente, prolonguei a
brincadeira sem trair aquilo que pensava. Um não-sei-quê me compelia a
levar o mais longe possível minha descoberta dos traços femininos da
jornalista sentada à minha frente e essa busca determinava o rumo de nossa
conversa.
A presença de uma mulher pode comunicar à raiva certos aspectos
característicos da simpatia, por exemplo a curiosidade, o interesse carnal, o
desejo de transpor o limite da intimidade. Atingi uma espécie de êxtase:
imaginava Zemanek, Helena, todo o mundo dos dois (mundo que me era
tão estranho), e, com uma volúpia singular, acariciava meu rancor (rancor
atencioso, quase terno) pela aparência de Helena, rancor por seu cabelo
ruivo, pelos olhos azuis, pelos cílios curtos, rancor por seu rosto redondo, por
suas narinas sensuais, rancor pelo leve afastamento dos incisivos, rancor
pelas formas redondas do corpo maduro. Observei-a como se observa a
mulher amada, reparei cada detalhe como que para encaixá-la em minha
lembrança, e, a fim de dissimular meu interesse rancoroso, escolhi palavras
cada vez mais amáveis, tanto assim que Helena se tornava cada vez mais
feminina. Eu não podia deixar de pensar que sua boca, seus seios, seus olhos,
seu cabelo pertenciam a Zemanek, e, no meu pensamento, eu agarrava tudo
isso, apalpava, avaliava, tentava determinar se seria possível amassá-lo nas
palmas de minhas mãos ou esmagá-lo contra uma parede, depois observei
tudo mais uma vez atentamente e tentei vê-la com os olhos de Zemanek, e
de novo com os meus.
Veio-me a ideia, impraticável e de todo platônica, de que poderia acuar
aquela mulher do território exíguo de nossa conversa sedutora até a cama.
Mas foi uma dessas ideias que nos passam pela cabeça e depois
desaparecem. Helena declarou que me agradecia pelas preciosas
informações e que não queria me prender mais tempo. Despedimo-nos um
do outro e fiquei contente com sua partida. A curiosa exaltação tinha
desaparecido; não sentia mais pela mulher nada além da antipatia de antes
e achava desagradável ter-lhe demonstrado de maneira tão direta atenção e
amabilidade (mesmo fingidas).
As coisas teriam sem dúvida ficado assim se Helena, alguns dias mais tarde,
não me tivesse telefonado para marcar um encontro. É possível que ela
precisasse na realidade me submeter o texto de seu programa, no entanto
tive a impressão imediata de que isso era apenas um pretexto, e o jeito com
que me falava tendia mais para o tom frívolo e familiar de nossa recente
entrevista do que para o lado sério e profissional. Prontamente e sem refletir,
adotei esse tom e não o mudei mais. Voltamos a nos encontrar no bar; fiquei
ostensivamente indiferente a tudo o que dizia respeito a seu papel;
desprezei sem pudor tudo aquilo por que ela se interessava como jornalista.
Minha atitude a desconcertava, mas ao mesmo tempo constatei que eu
começava a dominá-la. Propus-lhe um passeio fora de Praga. Ela protestou
lembrando-me que era casada. Nada podia me agradar mais do que essa
maneira de resistir. Demorei-me na sua objeção, que me era tão agradável;
eu me divertia; voltava ao assunto; brincava com ele. Ela ficou contente no
fim em poder fugir desse assunto aceitando meu convite. Depois disso, tudo
caminhou passo a passo segundo meu plano. Eu o imaginara com a força de
quinze anos de rancor, e tinha uma certeza incompreensível de que daria
certo e de que iria se realizar.
É, o plano estava dando certo. Peguei a pequena valise de Helena perto do
balcão da recepção e, seguindo-a, subi até seu quarto, que, diga-se de
passagem, era tão feio quanto o meu. Apesar de sua tendência engraçada de
qualificar todas as coisas como melhores do que são na realidade, a própria
Helena teve de concordar comigo. Eu lhe disse que não se aborrecesse com
aquilo, que nós saberíamos nos arranjar. Ela dirigiu-me um olhar cheio de
significação. Em seguida disse que queria fazer uma pequena toalete.
Respondi que era uma boa ideia e que eu a esperaria no saguão do hotel.
Quando ela desceu (embaixo da capa desabotoada, usava uma saia preta e
um pulôver cor-de-rosa), pude mais uma vez convencer-me de sua
elegância. Disse-lhe que iríamos almoçar num restaurante medíocre, mas
que apesar disso era o melhor do lugar. Ela me disse que, como eu nascera
aqui, ela se entregaria a mim e me obedeceria em tudo. (Ela dava a
impressão de escolher um vocabulário com duplo sentido; essa prática era
tão ridícula quanto animadora.) Refizemos meu caminho matinal quando da
minha vã procura de um bom café da manhã e muitas vezes Helena voltou
a afirmar sua alegria em conhecer minha cidade natal, mas apesar de
encontrar-se ali realmente pela primeira vez, ela não olhava em torno de si,
não se interessava pelo que este ou aquele edifício abrigava, como deveria
acontecer com o visitante de uma cidade desconhecida. Eu me perguntava
se essa indiferença vinha de um certo endurecimento duma alma que não
sabia mais sentir a curiosidade habitual ou se Helena, concentrada
inteiramente em mim, não tinha cabeça para mais nada; eu preferia
acreditar na segunda hipótese.
Passamos perto do monumento barroco; o santo sustentava a nuvem, a
nuvem o anjo, o anjo uma outra nuvem, esta um outro anjo; o azul do céu
estava mais vivo que de manhã; Helena tirou a capa, colocou-a no braço,
dizendo que fazia calor; esse calor reforçava mais a obsessiva impressão de
vazio poeirento; o monumento erguia-se no meio da praça, tal qual um
fragmento do céu que não pudesse voltar a seu lugar; disse comigo mesmo
que nós dois também tínhamos sido jogados nessa praça estranhamente
deserta, com seu jardim cercado e seu restaurante, jogados de forma
irremediável; que por mais que nossos pensamentos e nossas palavras
escalassem as alturas, nossos atos eram tão baixos quanto a própria terra.
É, de repente fui duramente assaltado pela consciência de minha baixeza;
fiquei surpreso com isso; mas fiquei ainda mais surpreso de não estar
horrorizado e de aceitar essa baixeza com prazer, e até com alegria e alívio;
prazer aumentado pela certeza de que a mulher que caminhava a meu lado
se deixava levar em direção às horas duvidosas da tarde por motivos apenas
um pouco mais elevados do que os meus.
O restaurante já abrira suas portas, mas a sala de refeições estava vazia:
eram apenas quinze para o meio-dia. As mesas estavam postas; diante de
cada cadeira, um prato de sopa coberto com um guardanapo de papel em
cima do qual se cruzavam colher, garfo e faca. Não havia ninguém.
Sentamos a uma mesa, apanhamos os talheres e o guardanapo, arrumando-
os de um lado e do outro do prato, e ficamos esperando. Alguns minutos
depois apareceu um garçom na porta da cozinha. Seu olho cansado vagou
um momento pela sala, e ele já se preparava para ir embora. Chamei-o: —
Garçom!
Girando nos calcanhares, ele deu alguns passos em direção à nossa mesa.
— Desejam alguma coisa? — perguntou ele a uns cinco ou seis metros de
nós.
— Gostaríamos de comer — disse eu. Ele respondeu: — Só a partir do meio-
dia! — E dando meia-volta outra vez, voltou para seu refugio.
— Garçom! — chamei de novo. Ele virou-se.
— Por favor — tive que gritar por causa da distância —, tem vodca?
— Não, não há vodca.
— Então o que pode nos servir?
— Genebra — respondeu ele de longe.
— Essa não! — gritei. — Está bem, pode trazer duas genebras!
— Nem perguntei a você se quer tomar genebra — disse eu dirigindo-me a
Helena.
Ela começou a rir: — Não, não estou acostumada!
— Não tem importância — disse eu. — Você vai gostar. Aqui, você está na
Morávia, e a genebra é a bebida favorita do povo morávio.
— Está ótimo! — exclamou Helena, toda contente. — Para mim, não há
nada melhor do que um pequeno restaurante simples como este, ponto de
encontro de motoristas e de mecânicos, em que se comem e bebem coisas
inteiramente banais.
— Será que você tem o hábito de despejar um copo de rum na sua cerveja?
— Isso também não! — disse Helena.
— Mas você gosta de ambiente popular.
— É verdade — disse ela. — Detesto as boates chiques, com aquele bando de
garçons e aquele mundo de pratos.
— Concordo inteiramente, nada melhor que um café em que o garçom nos
ignora, um lugar enfumaçado que cheira mal! E sobretudo não existe nada
melhor que a genebra. Quando eu era estudante, não bebia outra coisa.
— Eu também gosto das comidas mais simples, por exemplo, bolinhos de
batata ou salsicha com cebola. Não conheço nada melhor...
Minha incredulidade é tanta nesse ponto que, se alguém me conta aquilo de
que gosta ou aquilo de que não gosta, eu não levo nada a sério, ou, para ser
mais exato, não vejo nisso senão um simples testemunho da imagem que
essa pessoa quer transmitir de si mesma. Nem por um segundo acreditei que
Helena respirasse mais satisfeita nos botecos sórdidos de atmosfera
confinada do que nas salas de restaurante limpas e arejadas, ou que
preferisse uma bebida vulgar a um bom vinho. O que não impedia que sua
profissão de fé tivesse seu valor a meus olhos, revelando na realidade seu
gosto por uma certa afetação, há muito tempo fora de moda, que florescera
nos anos de entusiasmo revolucionário em que se desmaiava de admiração
diante*de tudo que fosse "comum", "popular", "simples", "rústico", e em que
todos se mostravam prontos a subestimar toda espécie de "requinte" e de
"elegância". Nessa afetação, eu reconhecia a época de minha juventude e,
em Helena, antes de tudo a mulher de Zemanek. Minha ociosidade
distraída da manhã desaparecia rapidamente e eu começava a me
concentrar.
O garçom reapareceu segurando uma pequena bandeja com dois copos de
genebra, os quais colocou na mesa junto com uma folha de papel batido à
máquina em que se decifrava (com dificuldade, era a enésima cópia) o
cardápio.
Levantei meu copo dizendo: — Vamos fazer um brinde à genebra, uma
bebida plebeia! Ela riu, bateu o copo no meu declarando: — Sempre tive o
desejo de encontrar um ser simples e correto. Nada sofisticado. Límpido.
Demos um gole e eu disse: — Essas pessoas são raras.
— Mas ainda são encontradas — disse Helena. — Você é uma delas.
— Imagine! — disse eu.
— É sim.
Fiquei estupefato com a incrível capacidade humana de remodelar o real à
imagem do seu ideal, mas não hesitei em aceitar a interpretação que Helena
fez de minha própria pessoa.
— Quem sabe. Talvez — disse eu. — Correto e límpido. Mas o que quer dizer
isso? O importante é ser como se é, não se envergonhar de querer aquilo que
se quer, de desejar aquilo que se deseja. Os homens são escravos das normas.
Alguém lhes disse que era preciso ser desse jeito ou daquele, então eles se
esforçam para ser assim e não saberão nunca como eram nem como são.
Consequentemente não são ninguém. Mais do que tudo é preciso ousar ser
você mesmo. Eu lhe digo, Helena, desde o começo você me agradou, e
desejo você, mesmo casada. Não posso dizer isso de outra maneira e não
posso deixar de dizê-lo.
O que eu dizia era constrangedor mas necessário. O manejo do pensamento
feminino tem suas regras inflexíveis; aquele que resolve persuadir uma
mulher, fazê-la mudar de ponto de vista utilizando a razão, tem pouca
chance de ser bem-sucedido. É muito mais sábio retomar a imagem que ela
quer projetar de si mesma (seus princípios, seus ideais, suas convicções),
depois tentar estabelecer (com sofismas) uma relação harmoniosa entre a
referida imagem e o comportamento que queremos que ela tenha. Por
exemplo, Helena se consumia em sonhos de "simplicidade", de "natural", de
"limpidez". Esses ideais provinham do antigo puritanismo revolucionário e
aliavam-se à ideia do homem "puro", "sem mácula", moralmente firme e
severo. Só que, como o mundo dos princípios de Helena não repousava
sobre uma reflexão, mas (como é o caso da maioria das pessoas) sobre alguns
imperativos sem ligação lógica, não havia nada mais fácil do que associar a
imagem de um "personagem límpido" com um comportamento
inteiramente imoral, e assim impedir que a conduta desejada no caso de
Helena (o adultério) entrasse num conflito traumatizante com seus ideais. O
homem tem o direito de desejar qualquer coisa de uma mulher, mas, se não
quiser comportar-se como um bruto, deve fazer com que ela possa agir em
harmonia com suas ilusões mais profundas.
Enquanto isso, um depois do outro, os fregueses chegaram, ocupando logo
quase todas as mesas. O garçom, que havia reaparecido, circulava entre elas
perguntando o que deveria servir. Passei o cardápio para Helena. Ela
devolveu-o dizendo que eu conhecia melhor do que ela a cozinha morávia.
É verdade que ali era inútil conhecer a cozinha morávia, já que o cardápio
era exatamente igual ao dos outros restaurantes daquela categoria e consistia
numa lista sumária de pratos comuns, sendo difícil decidir qual escolher.
Examinei (com melancolia) a lista, mas o garçom, já impaciente, esperava o
pedido.
— Um instante — disse-lhe eu.
— Há quinze minutos atrás o senhor queria almoçar, e até agora ainda não
decidiu o que vai comer! — disse-me ele em tom de acusação, e girou nos
calcanhares.
Felizmente, ele voltou logo, e fomos autorizados a pedir dois enroladinhos de
carne e mais uma rodada de genebra com soda.
Helena (mastigando seu enroladinho) declarou que era maravilhoso (ela
adorava esse adjetivo) estarmos de repente os dois sentados numa cidade
que ela não conhecia e com a qual sempre sonhara quando fazia parte do
Conjunto Fucik, no qual se cantavam árias dessa região. Disse também que
sem dúvida aquilo não era correto, mas que ela não podia fazer nada, sentia-
se bem comigo, era mais forte do que ela. Respondi que ter vergonha de seus
sentimentos era uma hipocrisia ignóbil. E chamei o garçom para pagar a
conta.
Do lado de fora, o monumento barroco erguia-se à nossa frente. Pareceu-me
ridículo. Apontei-o com o dedo: — Olhe, Helena, esses santos acrobatas!
Olhe como sobem! Como têm vontade de subir ao céu! E o céu não liga a
mínima para eles! O céu nem sabe que eles existem, esses pobres camponeses
alados!
— É verdade — concordou Helena, em quem o ar livre intensificava o
efeito do álcool. — O que fazem elas aí, essas estátuas de santos? Por que não
construir em seu lugar uma coisa em honra da vida, e não da religião?
Devia ter ainda um mínimo de controle, pois acrescentou: — Estou falando
coisas sem sentido? Diga que não estou!
— Não, você não está dizendo coisas sem sentido, Helena. Você tem toda
razão, a vida é bela e nunca a festejaremos o bastante.
— É — disse ela —, as pessoas podem dizer o que quiserem, a vida é
maravilhosa, e eu tenho horror dos profetas da infelicidade; se eu quisesse
me queixar, teria mais motivos do que qualquer pessoa, só que me controlo;
por que queixar-se, quando pode acontecer um dia como o de hoje; é tão
maravilhoso: uma cidade onde nunca estive antes, e estar com você...
Helena continuou e logo depois chegamos diante de uma fachada nova.
— Onde estamos? — perguntou Helena.
— Escute — disse-lhe eu —, esses botecos são muito chatos. Proponho a
você uma pequena taberna particular que tenho nesse edifício. Venha! —
Para onde você está me levando? — protestou Helena seguindo-me pela
entrada do edifício.
— À verdadeira taberna particular, estilo morávio. Você não conhece?
— Não — disse Helena.
No terceiro andar abri a porta com a chave e entramos.
Helena não se importou absolutamente com o fato de ser levada a um
apartamento emprestado e não pediu nenhuma explicação. Ao contrário,
uma vez atravessada a soleira da porta, parecia resolvida a passar de
imediato do jogo dúbio da sedução para um comportamento que tem
apenas um significado e que não pretende ser um jogo mas sim a própria
vida. Parou no centro da peça, meio voltada para mim, e seu olhar mostrava
que ela esperava só minha aproximação, meu beijo, meu abraço. Nesse
instante preciso, ela era exatamente a Helena dos meus sonhos: desarmada
e à minha mercê! Dirigi-me a ela; ela levantou o rosto para mim; em vez do
beijo (tão esperado), sorri e segurei com os dedos os ombros de sua capa azul.
Ela compreendeu e desabotoou-a. Levei-a para a entrada e pendurei-a no
cabide. Não, agora que tudo estava no ponto (meu "apetite e seu
abandono), não iria precipitar-me e arriscar-me a perder, por pressa, um
elemento do todo do qual queria me apropriar. Comecei a conversar sobre
um assunto qualquer; fazendo com que ela se sentasse, mostrei-lhe vários
detalhes domésticos: abri o armário da vodca, para o qual na véspera Kostka
me chamara a atenção; destampei a garrafa, coloquei-a na mesa com dois
copos e enchi-os: — Vou ficar bêbada — disse ela.
— Não, vamos ficar bêbados os dois — retruquei (embora soubesse que não
ficaria bêbado, pois decidira guardar intacta minha memória).
Ela não se alegrou; séria, bebeu e disse: — Sabe, Ludvik, ficaria muito triste
se você me tomasse por uma dessas mulherzinhas que, porque se aborrecem,
saem por aí arranjando aventuras. Não sou ingênua e sei que você
conheceu muitas mulheres, e que elas lhe ensinaram a tratá-las com
cavalheirismo. Só que eu ficaria triste...
— Eu também ficaria triste — disse eu — se você fosse apenas uma
mulherzinha como as outras, aceitando levianamente qualquer aventura
que a afaste de seu marido. Se você fosse uma dessas, nosso encontro
perderia todo o sentido.
— Verdade?
— É verdade, Helena. Você tem razão, conheci muitas mulheres, e elas me
ensinaram a não hesitar em trocar uma pela outra sem nenhum escrúpulo,
mas o nosso encontro é diferente.
— Você não está dizendo isso só por dizer?
— Não. A primeira vez que a vi, percebi logo que há muitos anos a esperava,
esperava você, especialmente.
— Ora, você não é um fazedor de frases! Não estaria dizendo tudo isso se
não fosse o que está sentindo.
— Isto é certo, não sei fingir o que não estou sentindo, é a única coisa que as
mulheres jamais conseguiram ensinar-me. Assim, Helena, não estou
mentindo para você, por mais incrível que pareça: ao encontrar você,
compreendi que era por você que eu esperava há muito tempo. Que eu a
esperava sem conhecê-la. E agora quero você para mim. Isso é tão inelutável
quanto o destino.
— Meu Deus — disse Helena, abaixando as pálpebras; ela tinha placas
vermelhas no rosto e era cada vez mais a Helena dos meus sonhos:
desarmada e entregue. — Ludvik, se você soubesse! Aconteceu o mesmo
comigo! Assim que o vi pela primeira vez compreendi que não era um flerte
e foi exatamente isso que me assustou, pois sou uma mulher casada, e sabia
que tudo que acontecia entre nós era a verdade, que você era a minha
verdade e que eu nada podia fazer.
— Você também, Helena, você é a minha verdade — disse-lhe eu.
Sentada no divã, ela abria para mim seus grandes olhos, enquanto da
cadeira, de frente para ela, eu a observava com avidez. Coloquei minhas
mãos sobre seus joelhos, depois, lentamente, levantei sua saia até descobrir a
beirada das meias e as ligas de elástico que nas coxas já um pouco gordas de
Helena lembravam algo de triste e de pobre. Imóvel com meu contato,
Helena continuava parada, sem um gesto, sem um olhar.
— Ah, se você soubesse de tudo...
— Se soubesse o quê?
— Como eu vivo.
— Como é que você vive?
Ela deu um sorriso amargo.
De repente tive medo de que ela me viesse com o expediente comum das
mulheres infiéis, caluniando seu casamento, diminuindo o prêmio no
momento em que este se tornava minha presa: — Por favor, não me venha
explicar que você é infeliz no casamento, que seu marido não a
compreende!
— Não quis dizer isso — defendeu-se Helena, um pouco desconcertada
pelo meu ataque —, apesar de...
— Apesar de pensar nisso neste instante. Isso vem à cabeça de toda mulher
que se vê com um outro homem, mas é aí justamente que começa a mentira;
ora, você, Helena, pretende continuar verdadeira, não é? Decerto amou seu
marido e não se teria dado a ele sem amor.
— É — reconheceu ela docemente.
— No fundo, que tipo de homem é seu marido?
Ela encolheu os ombros e sorriu: — Um homem.
— Há muito tempo que vocês se conhecem?
— Treze anos de casamento e já nos conhecíamos antes.
— Você ainda estava na faculdade?
— Estava. No primeiro ano.
Ela quis abaixar a saia. Peguei sua mão e não deixei. Continuei a interrogá-la.
— E ele? Onde você o conheceu?
— Nos ensaios do Conjunto.
— Do Conjunto? Ele cantava num coral, seu marido?
— Cantava. Como todos nós.
— Então foi num conjunto de canto que vocês se conheceram... Um belo
cenário para um amor que começa.
— Ah, é!
— Aliás, toda essa época foi bonita.
— Você também gosta de se lembrar dessa época?
— O melhor período da minha vida. Mas, me diga, seu marido foi seu
primeiro amor? Ela hesitou: — Não tenho vontade nenhuma de pensar
nele!
— Helena, quero conhecer você. De agora em diante, quero saber tudo sobre
você. Quanto mais eu a conhecer, mais você me pertencerá. Então, antes
dele você teve alguém?
Ela balançou a cabeça: — Tive.
Que Helena quando jovem tivesse pertencido a um homem e que por causa
disso a importância de sua união com Pavel Zemanek fosse diminuída, isso
me desapontaria.
— Um amor verdadeiro?
Ela sacudiu a cabeça: — Uma curiosidade boba.
— Então, seu primeiro amor foi mesmo seu marido.
— Foi — concordou ela —, mas isso já tem muito tempo.
— Como era ele? — insisti à meia voz.
— Mas por que você quer saber?
— Porque quero você inteira, com tudo que está dentro dessa cabeça! —
disse, acariciando-lhe os cabelos.
Se há uma coisa que impeça uma mulher de falar de seu marido a seu
amante, raramente é um sentimento de nobreza, delicadeza ou pudor
autêntico, mas apenas o medo de aborrecer o amante. Quando este desfaz a
apreensão, a amante lhe fica grata, se sente mais à vontade, mas sobretudo:
isso lhe permitirá falar de alguma coisa, pois a soma dos temas possíveis para
uma conversa não é ilimitada, e, para a mulher casada, o marido é o assunto
ideal, o único em que ela se sente segura de si, o único em que é perita, e
cada ser humano, afinal de contas, fica feliz de poder falar como perito e de
se vangloriar disso. Assim, quando lhe assegurei que esse assunto não me
aborrecia, Helena começou a falar de Zemanek com a maior descontração,
deixou-se levar a tal ponto pelas recordações que não colocou nenhuma
mancha negra em seu retrato; contou-me como se apaixonou por ele (por
aquele rapaz louro, empertigado), o respeito que ele lhe inspirou quando foi
nomeado o responsável político do Conjunto, como ela e suas amigas o
admiravam (ele falava tão bem!), como a história de amor dos dois se
harmonizava com toda aquela época, época que ela defendeu com duas ou
três frases (como poderíamos desconfiar que Stalin havia mandado fuzilar
comunistas fiéis?), certamente não com a intenção de fazer uma digressão
sobre tema político, mas porque se sentia pessoalmente inserida nesse tema.
A maneira como ela defendia a época de sua juventude e como se
identificava com,ela (falava como que de um lar perdido) tinha quase o ar
de uma pequena manifestação, como se Helena quisesse me avisar: possua-
me sem restrições, exceto uma: você permitirá que eu seja tal como sou,
você me possuirá com minhas convicções. Tamanha manifestação de
convicções numa circunstância em que não se tratava de convicções, mas
sim de corpos, tem qualquer coisa de anormal, revelando que as convicções
de certa maneira traumatizam a mulher que nelas se envolve: ou ela teme
que achemos que ela não tem nenhuma e trata de exibi-las rapidamente, ou
então (o que, no caso de Helena, era o mais provável) duvida em segredo do
valor dessas convicções e, a fim de revalorizá-las, põe em perigo o que a seus
olhos tem um valor fora de qualquer dúvida: o próprio ato de amor (talvez
sagaz, ela se sinta segura de que, para o amante, o ato de amor é mais
importante do que discutir sobre uma convicção). Da parte de Helena, essa
manifestação não foi para me contrariar, pois ela me reaproximava do nó da
minha paixão.
— Olhe, você está vendo isso?
Mostrou-me uma minúscula plaquinha de prata, presa a seu relógio de
pulso por uma correntinha. Inclinei-me para olhar enquanto Helena
explicava: o desenho gravado ali representava o Kremlin.
— Foi um presente de Pavel.
Contou-me então a história daquele berloque, que no passado uma jovem
russa dera de presente a um compatriota seu, Sacha, por quem se
apaixonara. Sacha estava de partida para a longa guerra cuja última etapa o
levou até Praga, que ele salvou do desastre, mas onde foi morto. No andar
da villa onde Pavel Zemanek morava com seus pais, o exército russo
instalara uma enfermaria; lá, gravemente ferido, o tenente Sacha viveu seus
últimos dias em companhia de Pavel, com quem fizera amizade.
Agonizante, Sacha dera a Pavel, como lembrança, aquele Kremlin em
miniatura que durante toda a guerra levara ao redor do pescoço, preso por
um cordão. Pavel guardara esse presente como sua mais preciosa relíquia.
Um dia — estavam noivos ainda — Helena e Pavel brigaram, tendo
pensado até em romper um com o outro; foi então que Pavel levou-lhe,
como sinal de reconciliação, essa joia barata (e lembrança tão valiosa); depois
disso, Helena não se separou mais desse pequeno objeto, para ela é uma
espécie de mensagem (que mensagem? — perguntei; ela respondeu: "uma
mensagem de alegria") que ela vai usar até o fim de seus dias.
O rosto vermelho, ela continuava sentada diante de mim (sua saia
levantada deixava aparecer as ligas presas a uma calcinha de lastex preta,
na moda nessa época), mas, nesse momento, ela desapareceu atrás da
imagem de uma outra pessoa: brutalmente a história do berloque que fora
dado de presente três vezes fez surgir diante de mim a pessoa de Pavel
Zemanek.
Nem por um momento acreditei em Sacha, o soldado vermelho. Mesmo que
tivesse existido, sua vida real desapareceu por trás do gesto enfático com
que Pavel Zemanek o transformou em personagem lendário de sua própria
vida, em estátua sagrada, em instrumento de enternecimento, em
argumento sentimental e objeto de adoração que sua mulher (por certo mais
constante que ele) veneraria (por zelo ou como desafio) até a própria morte.
Parecia-me que o coração de Pavel Zemanek (coração descaradamente
exibicionista) estava ali, presente; e eu me revi de súbito no centro daquele
cenário que já tinha quinze anos: o grande anfiteatro da faculdade de
Ciências; sobre o estrado, no centro da grande mesa, Zemanek; a seu lado,
uma moça gorda e bochechuda, com os cabelos em trança, usando um
pulôver feio, c do outro lado, um rapaz, delegado do distrito. Atrás do
estrado, o grande retângulo do quadro-negro, e à esquerda, preso na parede,
um retrato de Fucik. Como todo o mundo, sentei-me nos bancos em frente
ao estrado, eu, que agora, recuando quinze anos, olho com meus olhos de
então Zemanek anunciando que se vai proceder ao exame do "caso do
camarada Jahn", vejo-o enquanto ele declara: — Quero ler-lhes as cartas de
dois comunistas. Uma breve pausa pontuou suas palavras, ele segurou uma
espécie de livreto fino, passou a mão nos seus longos cabelos ondulados e,
com uma voz insinuante, quase doce, começou a leitura: — "A senhora
demorou a chegar, dona Morte! No entanto, eu não esperava conhecê-la
senão daqui a muitos anos, esperava viver ainda a existência de um homem
livre, ainda trabalhar muito, amar muito, cantar muito ainda, e andar pelo
mundo..." Reconheci a Reportagem escrita sob a forca, de Fucik: — "Eu
amava a vida e foi por sua beleza que parti para a guerra. Homens, eu vos
amava e ficava feliz quando esse amor era retribuído, e sofria quando não
era compreendido..." Escrito em segredo numa cela de prisão, esse texto,
com uma tiragem de milhões de exemplares, difundido pelo rádio, estudado
obrigatoriamente nas escolas, era o livro sagrado da época; Zemanek nos lia
os trechos mais célebres, que qualquer um conhecia de cor. — "Que a tristeza
nunca seja ligada a meu nome. É a última vontade que exprimo, a você,
papai; a você, mamãe; a vocês, minhas duas irmãs; a você, minha Gustina; a
vocês, meus camaradas; a todos vocês que eu amava..." Na parede estava
pendurado o retrato de Fucik, reprodução do famoso desenho de Max
Svabinsky, velho pintor da Belle Époque, virtuose de alegorias, de mulheres
roliças, de borboletas, de belezas; dizem que, logo depois da guerra, os
camaradas tinham ido à sua casa para encomendar um retrato de Fucik que
pediram fosse copiado de uma fotografia, e Svabinsky o representara
delineando-o (de perfil) com a inefável finura ditada por seu gosto: por
pouco não se veria nele uma expressão de moça, o rosto iluminado de fervor
e de aspirações, como que transparente, e tão bonito que as pessoas que
conheceram o modelo preferiam esse desenho à lembrança que tinham da
fisionomia viva. Zemanek continuava a ler, enquanto na sala muda todos
escutavam, tensos, e na tribuna a moça gorda não despregava do orador os
olhos cheios de admiração; e esse mudou subitamente o registro da voz, a
entonação se tornou quase ameaçadora; falava sobre Mirek, aquele traidor:
— "E dizer que tinha sido um homem corajoso, que não fugia diante das
balas quando combatia no front da Espanha, que não se dobrara diante da
penosa prova do campo de concentração na França! E agora a chibata de
um agente da Gestapo o fazia empalidecer e trair para salvar a própria pele.
Como era superficial essa coragem que alguns golpes conseguiram apagar!
Tão pouco profunda quanto suas convicções... Ele perdeu tudo a partir do
momento em que começou a pensar em si. Para salvar sua carcaça,
sacrificou seus companheiros. Abandonou-se à covardia e por covardia
traiu..." Na parede o belo rosto de Fucik sonhava, como sonhava na parede
de milhares de outras salas públicas de nosso país, tão belo, com a expressão
radiosa de uma moça apaixonada, que, ao contemplá-lo, eu sentia vergonha
não apenas por meu erro mas também por meu rosto. E Zemanek
terminava: — "Eles bem podem nos tirar a vida, não é verdade, Gustina?
Mas nossa honra e nosso amor, não nos podem arrebatar. Ah, caros amigos,
vocês podem imaginar o .que seria nossa existência se nos encontrássemos
depois de todo esse calvário? Para retomar uma vida livre que um trabalho
criador iria embelezar? Quando será realizado aquilo a que aspiramos, aquilo
para que dirigimos nossas forças e por que vamos agora morrer?" Depois de
pronunciadas de maneira patética as últimas frases, Zemanek calou-se.
Em seguida disse: — Essa é uma carta de um comunista, escrita à sombra da
forca. Agora vou ler uma outra carta.
Então pronunciou as três frases lapidares, ridículas, abomináveis, de meu
cartão-postal. Depois ficou em silêncio, o anfiteatro também, e eu senti que
estava perdido.
O silêncio foi longo e Zemanek, um prodigioso encenador, teve o cuidado de
não encurtá-lo. Finalmente, convidou-me a falar. Eu sabia que não podia
salvar mais nada; se por dez vezes minha defesa impressionara tão pouco,
que efeito poderia ter hoje que Zemanek tinha passado minhas três
pequenas frases pelo crivo absoluto do sofrimento de Fucik? Eu não tinha
mais nada a fazer senão me levantar e falar. Expliquei mais uma vez que
escrevera aquele cartão por simples brincadeira, denunciei no entanto as
palavras impróprias, a incongruência e a grosseria da brincadeira, e falei de
meu individualismo, de minhas pretensões de "intelectual", de meu
distanciamento do povo, e descobri em mim até vaidade, tendências
céticas, cinismo, mas jurei que, mesmo com tudo isso, eu era devotado ao
Partido e de maneira nenhuma seu inimigo. A discussão começou, dando
aos camaradas a oportunidade de recusar meu ponto de vista como
contraditório; perguntaram-me de que maneira um homem que se declara
cínico pode ser devotado ao Partido; uma companheira de estudos lembrou-
me certas palavras obscenas e quis saber se, na minha opinião, tais palavras
eram toleráveis na boca de um comunista; outros se estendiam em
considerações abstratas sobre o espírito pequeno-burguês para que eu
pudesse figurar como um exemplo concreto deste; de um modo geral,
julgou-se que minha autocrítica não fora profunda e que ela pecava por
falta de sinceridade.
Depois disso, a moça gorda que estava sentada ao lado de Zemanek
perguntou-me: — Na sua opinião, o que diriam de suas palavras os
camaradas que a Gestapo torturou e que não sobreviveram?
(Lembrei-me de papai e disse a mim mesmo que ali todos fingiam ignorar
como ele havia morrido.) Eu não disse nada.
Ela repetiu a pergunta.
Eu disse: — Não sei.
— Vamos, pense um pouco — insistiu ela —, você acabará descobrindo!
Ela queria que eu pronunciasse pela boca imaginária dos camaradas mortos
um julgamento severo sobre mim mesmo; mas uma onda de fúria me
inundou nesse momento, imprevista, inesperada, de tal modo que,
atormentado por todas aquelas semanas passadas a me autocriticar, eu disse:
— Esses olharam a morte de frente. Esses certamente não eram mesquinhos.
Se tivessem lido meu cartão, talvez tivessem achado graça!
No fundo, a moça gorda acabara de me oferecer uma chance de salvar ao
menos alguma coisa. Era a última oportunidade para compreender a dura
crítica dos camaradas, para aderir a ela, para identificar-me com ela e, com
essa identificação, conquistar uma certa compreensão da parte deles. Mas,
com minha resposta brusca, de um golpe fui cortado da esfera de
pensamento deles, recusei-me a fazer o papel que se representava
comumente por ocasião de centenas de reuniões, de centenas de
procedimentos disciplinares, e mesmo de centenas de audiências judiciárias:
papel do acusado que, ao se acusar com ardor (identificando-se assim com
seus acusadores), tenta implorar perdão.
Fez-se um novo silêncio. Zemanek acabou com ele. Declarou-se incapaz de
imaginar o que havia de engraçado em minhas formulações antipartidárias.
Invocou mais uma vez as palavras de Fucik e afirmou que, nas situações
críticas, a ambiguidade e o ceticismo se transformam infalivelmente em
traições e que o Partido é uma fortaleza que não tolera traidores dentro de
suas muralhas. Minha intervenção, acrescentou ele, provava que eu não
tinha compreendido nada e que não apenas meu lugar não era no Partido,
como também eu nem mesmo merecia que a classe trabalhadora me
fornecesse os meios de garantir meus estudos. Propôs minha expulsão do
Partido e da faculdade. As pessoas na sala levantaram as mãos e Zemanek
me disse que eu tinha de devolver meu cartão do Partido e ir embora.
Levantei-me para ir colocar meu cartão na mesa, em frente a Zemanek. Ele
não me dirigiu um só olhar; já tinha deixado de me enxergar. Só que eu,
agora, estou vendo sua mulher sentada à minha frente, bêbada, com o rosto
em fogo, a saia enrolada até a cintura. Suas pernas fortes estão limitadas em
cima pelo preto da calcinha de lastex; abrindo e fechando, o ritmo destas
pernas marcou as pulsões de uma dezena de anos da vida de Zemanek.
Minhas mãos as tocam e acho que elas abrigam a própria vida de Zemanek.
Olhei o rosto de Helena, seus olhos, semicerrados sob o meu toque.
— Tire a roupa, Helena — disse eu em voz baixa. Ela levantou-se do divã, a
bainha da saia dobrou na altura de seus joelhos. Olhava-me nos olhos e
então, sem dizer uma palavra (sem parar de me olhar), baixou lentamente o
fecho de sua saia. Aberta, esta caiu pelas pernas; ela tirou o pé esquerdo;
ajudando com o pé direito, pegou-a com a mão e colocou-a sobre uma
cadeira. Agora estava de pulôver e combinação. Tirou em seguida o pulôver
pela cabeça e jogou-o para junto da saia.
— Não olhe — disse.
— Quero ver você — disse eu.
— Não, enquanto tiro a roupa, não.
Fui para perto dela. Segurando-a de cada lado, debaixo dos braços,
escorreguei minha mão até seus quadris; embaixo da seda da combinação,
um pouco úmida de suor, sentia a curva macia de seu corpo. Ela estendia o
rosto, os lábios se entreabriam com o velho hábito (com o tique) do beijo. Mas
eu não queria beijá-la, o que queria mesmo era olhá-la por muito tempo, o
maior tempo possível.
— Tire a roupa, Helena — repeti, afastando-me alguns passos para tirar
meu paletó.
— Está muito claro aqui — disse ela.
— Está bom assim — disse eu, colocando o paletó nas costas de uma cadeira.
Ela tirou a combinação e jogou-a perto do pulôver e da saia; soltou e tirou as
meias uma a uma; não as atirou, mas foi até a cadeira arrumá-las com
cuidado; depois alteou o peito e levou as mãos às costas; muitos segundos se
passaram até que os ombros esticados se inclinassem para a frente no mesmo
movimento do sutiã, que escorregou dos seios; estes, comprimidos entre os
ombros e os braços, se juntaram, volumosos, cheios, pálidos e,
evidentemente, um pouco pesados.
— Tire a roupa, Helena — disse eu uma última vez. Ela me olhou nos olhos
e depois tirou a calcinha de lastex preto que lhe modelava o corpo, jogando-
a ao lado do par de meias e do pulôver. Estava nua.
Registrei os menores detalhes dessa cena com atenção: não gostava de
atingir um prazer apressado com uma mulher {qualquer que fosse), queria
tomar posse de um universo íntimo estranho totalmente preciso e tinha que
me apossar dele numa só tarde, através de um único ato de amor no qual
deveria ser não apenas aquele que se entrega ao prazer, mas aquele que
busca uma presa fugitiva e que deve portanto guardar uma total vigilância.
Até então eu me apossara de Helena apenas com o olhar. Ainda agora
conservava-me a uma certa distância, ao passo que ela, ao contrário, já
desejava o calor dos contatos que cobririam seu corpo exposto à frieza do
olhar. Mesmo distante de alguns passos, já sentia a umidade de sua boca e a
impaciência sensual de sua língua. Um segundo ou dois a mais e estava
junto dela. Entre as duas cadeiras cheias com nossas roupas, nós nos
abraçamos, de pé, no meio do quarto.
Ela murmurava: — Ludvik, Ludvik, Ludvik...
Levei-a até o divã. Deitei-a.
— Vem, vem! — dizia ela. — Perto de mim, bem perto...
É extremamente raro que o amor físico se confunda com o amor da alma. O
que faz exatamente a alma, enquanto o corpo se une (com esse movimento
tão imemorial, universal e invariável) a outro corpo? Quanta coisa ela
consegue inventar durante esse tempo, reafirmando assim sua
superioridade sobre a monotonia da vida corporal! De quanto desprezo ela é
capaz em relação a seu corpo que lhe serve apenas (assim como o corpo do
outro) de pretexto para a imaginação mil vezes mais carnal do que os dois
corpos unidos! Ou inversamente: como ela é hábil em rebaixá-lo
abandonando-o a seu vaivém pendular, enquanto ela se afasta com seus
pensamentos (já cansados dos caprichos do corpo) para bem longe dali: para
uma partida de xadrez, para a lembrança de um almoço ou para uma
leitura.
Que dois corpos estranhos se confundam, isso não é raro. Mesmo a união das
almas pode acontecer algumas vezes. Mas é mil vezes mais raro que um
corpo se una à sua alma e se entenda com ela para compartilhar uma
paixão...
O que fazia então minha alma enquanto meu corpo fazia amor com Helena?
Minha alma viu o corpo de uma mulher. Ficou indiferente a esse corpo.
Sabia que esse corpo só tinha significado para ela porque normalmente era
visto e amado da mesma maneira por alguém que não estava ali; por isso
procurava olhar esse corpo com os olhos do terceiro que estava ausente; por
isso esforçava-se para tornar-se intermediária desse terceiro; ela via a nudez
de um corpo feminino, sua perna dobrada, a prega do ventre e o seio, mas
tudo isso não ganhava sentido a não ser nos instantes em que meus olhos se
tornavam aqueles do terceiro ausente; então minha alma entrava
subitamente no olhar desse outro e se confundia com ele; apossava-se da
perna dobrada, da prega do ventre, do seio, tais como eram vistos pelo
terceiro, ausente.
Não apenas minha alma se tornava intermediária desse terceiro mas
mandava meu corpo substituir o dele, depois disso afastava-se para observar
a união do casal; de repente mandava meu corpo retomar sua identidade,
entrar nessa cópula conjugai e desmanchá-la brutalmente.
Uma veia tornou-se azul no pescoço de Helena, sacudida pelo espasmo; sua
cabeça virou, os dentes morderam uma almofada.
Ela disse meu nome num sopro e seus olhos suplicaram por um momento de
descanso.
Mas minha alma ordenou que eu prosseguisse; que eu a perseguisse de
volúpia em volúpia; que forçasse seu corpo a ficar em todas as posições, a
fim de arrancar da sombra e do segredo todos os ângulos sob os quais aquele
terceiro ausente a observava; sobretudo, nenhuma trégua; repetir de novo e
de novo essa convulsão em que ela é verdadeira e autêntica, em que não
finge nada, convulsão na qual ela está gravada na memória desse terceiro
que não está presente, gravada como uma tatuagem, como um selo, um
código, um emblema. Vamos então roubar esse código! O selo real! Arrombar
o gabinete secreto de Pavel Zemanek, vasculhar todos os cantos e revirar
tudo! Olhei o rosto vermelho de Helena, desfigurado pela contração;
coloquei minha mão sobre ele como quem a coloca sobre um objeto que se
pode virar e revirar, amassar e apertar, e sentia que o rosto aceitava bem a
mão: estava ávido por ser amassado e apertado; virei sua cabeça para a
direita; depois para a esquerda; muitas vezes seguidas; depois o movimento
transformou-se numa bofetada; e noutra; e numa terceira. Helena começou
a soluçar, a gritar, mas não de dor, gritava de prazer, o queixo virado para
mim, e eu batia, batia, batia; depois vi que não era só o rosto, mas também o
peito que se levantava para mim, e sem hesitar (deitado em cima dela)
espanquei-lhe os braços, os quadris, os seios., .
Tudo tem um fim; esse esplêndido saque também teve seu fim. Ela estava
deitada de barriga para baixo, atravessada no divã, cansada, exausta. Nas
suas costas via-se um sinal e mais embaixo, como as listras de uma zebra, as
marcas vermelhas das pancadas nas nádegas.
Levantei-me e atravessei o quarto cambaleando; abri a porta do banheiro,
abri a torneira, com muita água fria lavei o rosto, as mãos, o corpo inteiro.
Levantei a cabeça e olhei-me no espelho; meu rosto sorria; quando o
surpreendi assim (sorrindo), o sorriso me pareceu engraçado e dei uma
gargalhada. Depois enxuguei-me e sentei na beira da banheira. Tive
vontade de ficar sozinho ao menos alguns segundos para me alegrar com
meu súbito isolamento, para me alegrar com minha alegria.
Sim, eu estava contente; talvez até feliz. Sentia-me vencedor, e os minutos
e horas seguintes me pareciam inúteis e sem interesse.
Então voltei.
Helena não estava mais de barriga para baixo, mas virada de lado; olhou-me.
— Querido, venha para junto de mim — disse ela. Muitas pessoas, depois de
terem unido seus corpos, acham que também uniram suas almas e sentem-
se automaticamente autorizadas, por essa crença errônea, a se tornarem
mais íntimas. Como jamais acreditei na harmonia sincronizada do corpo e da
alma, o tom de intimidade de Helena deixou-me perplexo e irritado. Indócil
a seu convite, dirigi-me à cadeira onde estavam minhas coisas, para vestir a
camisa.
— Não se vista — pediu Helena e, com a mão estendida na minha direção,
repetiu: — Vamos, venha!
Eu só tinha um desejo: que os instantes seguintes não acontecessem, e, se
meu desejo era impossível de ser realizado, que esses momentos se
perdessem na insignificância, que fossem sem peso, mais leves que a poeira;
eu não queria mais nenhum contato com Helena, a ideia de sua ternura me
apavorava, mas também me apavorava a possibilidade de uma tensão ou de
um drama qualquer; assim, contra a vontade, deixei de lado a camisa para
finalmente me sentar no divã, perto de Helena. Foi horrível: ela se arrastou
até mim, o rosto encostado na minha perna, que ela beijava; num instante
minha perna ficou molhada; mas não eram os beijos: quando ela levantou o
rosto, vi que este estava banhado em lágrimas. Ela enxugou-as dizendo: —
Não fique zangado, meu amor, não fique zangado porque estou chorando.
Grudando-se com mais força a meu corpo, envolveu-me pela cintura sem
poder mais conter os soluços.
— O que aconteceu? — perguntei-lhe. Sacudindo a cabeça, ela disse: —
Nada, nada, seu bobinho. — E começou a cobrir meu rosto e todo o meu
corpo de beijos febris. — Estou louca de amor — acrescentou em seguida e,
como eu não respondesse nada, continuou: — Você vai rir de mim, mas não
me importo, estou louca de amor, louca de amor! — E, como eu continuasse
sem dizer nada, disse: — E sinto-me feliz. .. — Depois mostrou-me a
mesinha e a garrafa de vodca inacabada: — Vamos, sirva-me!
Eu não tinha a menor vontade de servir um drinque nem para Helena nem
para mim; tinha medo de que novos copos de vodca resultassem num
perigoso prolongamento daquela sessão (que era maravilhosa, mas com a
condição de já ter acabado, de já estar no meu passado).
— Querido, por favor! — Ela continuava mostrando a mesinha, e
acrescentou como desculpa: — Não fique zangado, eu estou feliz. Eu quero
ser feliz...
— Você não precisa de vodca para isso — eu lhe disse.
— Mas estou com vontade, você deixa?
Não havia nada a fazer; enchi o copo.
— Você não quer mais? — perguntou.
Respondi que não com a cabeça. Ela bebeu de um só trago, depois disse: —
Deixe aqui!
Coloquei a garrafa e o copo no chão, ao alcance do divã.
Ela se recuperou de seu cansaço anterior com surpreendente rapidez; de
repente virou uma garota, queria regozijar-se, ficar alegre e manifestar sua
felicidade. Pelo visto, sentia-se muito livre e natural em sua nudez (não
tinha nada mais sobre si, além do relógio de pulso onde tilintava a miniatura
do Kremlin pendurada na correntinha); experimentou uma variedade de
posições para se sentir o mais confortável possível; pernas cruzadas debaixo
dela, à turca; depois desprendeu os tornozelos e apoiou-se nos cotovelos; em
seguida deitou-se de barriga novamente, o rosto enfiado nas minhas coxas.
Disse-me repetidas vezes como estava feliz; ao mesmo tempo tentava beijar-
me, o que eu suportei com muita abnegação, sobretudo porque sua boca era
muito molhada e, meus ombros e meu rosto não lhe bastando, ainda por
cima procurava meus lábios (e eu não gosto de beijo molhado, a não ser na
cegueira do desejo).
Ela me disse ainda que até então não vivera nada de comparável; eu lhe
respondi (sem dar maior importância) que ela estava exagerando. Ela
começou a jurar que em amor nunca mentia, e acrescentou que eu não
tinha nenhuma razão para não acreditar nela. Desenvolvendo seu
pensamento, afirmou que pressentira tudo, que pressentira tudo desde o dia
de nosso primeiro encontro; que o corpo tem seu instinto, que não se
engana; que evidentemente ela havia sido subjugada pela minha
inteligência e meu entusiasmo (é, entusiasmo! de onde teria tirado isso?),
mas que sabia também, ainda que não tivesse ousado falar nisso antes, que
entre nós existira de imediato um acordo secreto, do tipo que os corpos só
assinam uma vez na vida.
— É por isso que estou tão feliz, sabia? — Inclinou-se para apanhar a garrafa
e serviu-se de mais uma dose. Depois de esvaziar o copo, riu: — Tenho que
beber sozinha, já que você não quer mais!
Embora a aventura tivesse terminado para mim, devo confessar que as
palavras de Helena não me tinham desagradado: elas confirmavam o
sucesso da minha iniciativa e a legitimidade da minha satisfação. Pela
simples razão de que não sabia o que dizer e de que não queria ficar com ar
taciturno, objetei-lhe que certamente ela exagerava ao falar de uma
experiência que só acontecia uma vez na vida; não teria ela vivido com seu
marido um grande amor? Essas palavras mergulharam Helena numa séria
meditação (ela estava sentada no divã, os pés no chão, um pouco separados,
os cotovelos apoiados nos joelhos, o copo vazio na mão direita) e concluiu
dizendo em voz baixa: — É.
Ela julgava sem dúvida que o patético da experiência que acabara de viver
a obrigava a uma sinceridade não menos patética. Repetiu "é" e disse que
seria provavelmente mau denegrir o que acontecera em outros tempos em
nome do milagre de agora. Bebeu mais um copo; depois, loquaz,
desenvolveu a ideia de que as experiências mais fortes são incomparáveis
entre si; para a mulher, amar aos vinte anos e amar aos trinta anos são duas
coisas inteiramente diferentes. E que eu compreendesse bem: do ponto de
vista não só psíquico, mas também físico.
Depois (de maneira não muito lógica e sem coerência) garantiu que eu tinha
um certo ar de semelhança com seu marido! Não sabia bem como; claro que
eu não tinha absolutamente o mesmo porte, mas ela não se enganava, tinha
um instinto infalível que fazia com que visse além da aparência exterior.
— Gostaria muito de saber em que me pareço com seu marido — disse eu.
Ela pediu desculpas, dizendo no entanto que eu é que perguntara a ela
sobre seu marido, que quisera que ela falasse sobre ele, e que só por isso
ousava falar dele. Mas, se eu queria tanto ouvir a verdade verdadeira, tinha
que me dizer: apenas duas vezes em sua vida se sentira atraída com uma
violência tão incondicional: por seu marido e por mim. Segundo ela, o que
nos aproximava era uma espécie de impulso vital; a alegria que irradiava de
nós; uma eterna juventude; a força.
Querendo esclarecer minha semelhança com Pavel Zemanek, Helena usava
palavras bastante confusas, mas sem sombra de dúvida enxergava essa
semelhança, sentia-a e fazia questão dela. Não posso dizer que essas
afirmações me ofendiam ou me feriam, estava apenas atordoado com seu
insondável ridículo; aproximei-me da cadeira e comecei a me vestir
lentamente.
— Estou te aborrecendo, meu amor? — Helena percebeu meu desagrado,
levantou-se e veio até onde eu estava; acariciou meu rosto e pediu-me que
não ficasse com raiva dela. Impediu que eu me vestisse. (Não sei por que
razões misteriosas considerava minha calça e minha camisa como seus
inimigos.) Disse que me amava de verdade, que não costumava
desmoralizar esse verbo; que daria um jeito de me provar isso; que desde as
primeiras perguntas que eu fizera sobre seu marido ela percebera que era
tolice falar sobre ele; não queria a intromissão de um outro homem, de um
estranho, em nossa relação; é, de um estranho, pois há muito tempo seu
marido não era mais nada para ela.
— Pois, afinal de contas, meu querido, tudo já terminou com ele há mais de
três anos. Não nos divorciamos por causa da menina. Vivemos cada um
para um lado. Realmente como dois estranhos. Para mim, ele agora só
representa um passado, um passado bem distante...
— É verdade? — perguntei.
— É verdade, sim — respondeu ela.
— Não minta dessa maneira, é ridículo! — disse eu.
— Mas, não estou mentindo! Vivemos sob o mesmo teto, mas não como
marido e mulher; garanto, há muitos anos que não se fala mais nisso!
O rosto suplicante de uma pobre mulher apaixonada me olhava. Repetiu
muitas vezes que dizia a verdade, que não mentia; eu não tinha nenhuma
razão para ter ciúmes de seu marido; seu marido fazia parte do passado;
portanto, ela hoje não tinha sido infiel, não havendo a quem sê-lo; e eu não
precisava me atormentar: nossa tarde de amor tinha sido não apenas bela,
mas também pura.
Tomado de um lúcido temor, compreendi de repente que no fundo não
podia deixar de acreditar nela. Quando percebeu isso, aliviada, ela me pediu
e tornou a pedir que eu dissesse em voz alta que ela me tinha convencido;
depois serviu-se de vodca e quis brindar comigo (recusei); beijou-me; apesar
de meu horror, não pude desviar o olhar; seus olhos estupidamente azuis e
sua nudez (inquieta e agitada) me fascinavam.
Essa nudez, que eu não via como antes, era de súbito uma nudez
desnudada; desnudada do poder excitante que envolvia todos os defeitos
da sua idade, nos quais a história do casal Zemanek parecia estar
concentrada e que por isso mesmo me haviam seduzido. Agora que ela
estava diante de mim, despojada, sem marido nem laços conjugais, apenas
ela mesma, seus defeitos físicos tinham perdido bruscamente o encanto
perverso e também não eram nada mais senão eles mesmos: simples defeitos
físicos.
Helena ficava cada vez mais bêbada e cada vez mais contente; estava
contente porque eu acreditara em seu amor, não sabendo como manifestar
sua sensação de felicidade: de repente, teve a ideia de ligar o rádio (dando-
me as costas, abaixou-se em frente ao aparelho e girou o botão); ouviu-se
jazz; Helena se pôs novamente de pé, os olhos brilhantes; esboçou,
desajeitada, os movimentos ondulantes de um twist (horrorizado, eu olhava
seus seios balançarem para a direita e para a esquerda). Teve um ataque de
riso: — Que tal? Sabe, nunca dancei isso. — Riu alto e veio me abraçar;
queria que eu dançasse com ela; aborreceu-se com minha recusa; disse que
não conhecia aquelas danças e que eu devia ensiná-las a ela; contava
comigo para lhe ensinar muita coisa; queria tornar a ser jovem comigo.
Pediu-me que dissesse que ela ainda era moça (o que fiz). Percebeu que eu
estava vestido e que ela não; riu; isso lhe parecia curiosamente insólito;
perguntou se o dono do apartamento não tinha um espelho grande em que
ela pudesse nos ver. Como espelho, não havia nada, a não ser o vidro da
estante de livros; ela tentou nos distinguir nele, mas a imagem não tinha
nitidez; ela aproximou-se da estante e teve novo ataque de riso diante dos
títulos nas costas dos livros: A Bíblia, A instituição, de Calvino, As
provinciais, de Pascal, as obras de Hus; ela apanhou a Bíblia, colocou-se
numa pose solene, abriu o livro ao acaso e começou a ler num tom de
pregação. Queria saber se daria um bom padre. Respondi que aquela leitura
sacra lhe ia muito bem, mas que seria melhor ela se vestir, porque Kostka
devia estar chegando.
— Que horas são? — perguntou ela.
— Seis e meia — respondi.
Ela apanhou meu pulso esquerdo, onde uso o relógio, e gritou: — Mentiroso!
Quinze para as seis! Você quer se livrar de mim!
Desejei que ela estivesse longe; que seu corpo (tão desesperadamente
material) se desmaterializasse, se desmanchasse, se dissolvesse, ou então
desaparecesse como vapor pela janela — mas esse corpo estava ali, corpo
que eu não tinha roubado de ninguém, no qual não tinha derrotado nem
destruído ninguém, corpo deixado de lado, abandonado pelo marido, corpo
do qual eu pretendera abusar, mas que tinha abusado de mim, e que agora
gozava impertinentemente esse triunfo, exultava, pulava de alegria.
Não pude encurtar meu estranho suplício. Por volta das seis e meia ela
começou por fim a se vestir. Viu então em seu braço a marca vermelha dos
meus golpes; acariciou-a; disse que aquilo seria uma lembrança minha até
nosso próximo encontro; mas corrigiu-se bem depressa: certamente iríamos
nos ver bem antes que aquela lembrança desaparecesse de sua carne! De pé,
junto a mim (uma meia calçada, a outra na mão), quis que eu prometesse
que nos veríamos bem antes; concordei com um sinal da cabeça; isso não lhe
bastou, ela exigiu minha palavra de que nos encontraríamos ainda muitas
vezes antes disso.
Demorou muito a se vestir. Foi embora alguns minutos antes das sete horas.
Abri a janela, ansioso pela corrente de ar que varreria rapidamente toda e
qualquer lembrança daquela tarde inútil, todo resíduo de cheiro ou de
sensação. Guardei a garrafa, arrumei as almofadas no divã e, quando me
pareceu que todos os traços tinham desaparecido, deixei-me cair na
poltrona perto da janela, à espera (quase aflita) de Kostka: de sua voz de
homem (eu tinha grande necessidade de uma voz de homem, grave), de
seu tamanho, de seu peito plano, de sua conversa pacífica, à espera também
daquilo que ele me contaria sobre Lucie, que, ao contrário de Helena, tinha
sido tão docemente imaterial, abstrata, tão distante dos conflitos, das tensões
e dos dramas; e que, no entanto, influenciara minha vida: veio-me a ideia
de que essa influência se dava da mesma maneira que, segundo os
astrólogos, os movimentos dos astros influenciam a vida humana; no fundo
da poltrona (em frente à janela escancarada que expulsava o cheiro de
Helena), pensava que tinha chegado ao fim do meu enigma supersticioso,
adivinhando por que Lucie atravessara o céu desses dois dias: apenas para
reduzir a nada a minha vingança, para transformar em bruma tudo o que
me levara até aqui; pois Lucie, essa mulher que eu tanto amara e que,
inexplicavelmente, me escapara no último momento, era a deusa da fuga, a
deusa da vã procura, a deusa das brumas; aquela que detém nas suas mãos
minha cabeça.
SEXTA PARTE

KOTSKA

Há muito tempo não nos víamos, mas, na realidade, nós nos vimos poucas
vezes. É estranho, porque, na minha imaginação, encontro com ele, Ludvik
Jahn, com frequência, com muita frequência, dirigindo-lhe meus solilóquios,
como a meu principal adversário. De tal maneira habituei-me a sua
presença imaterial que ontem, encontrando inesperadamente com ele em
carne e osso, depois de muitos anos, fiquei atônito.
Chamei Ludvik de meu adversário. Será que tenho o direito de chamá-lo
assim? Por coincidência, todas as vezes que nos encontramos, eu estava
precisando de ajuda, e, todas as vezes, ele me socorreu. No entanto, por
baixo dessa nossa ligação, sempre houve um abismo de desacordo. Não sei
se, como eu, Ludvik conhece a dimensão desse desacordo. Em todo caso, ele
dava mais importância à nossa ligação externa que à nossa diferença
interna. Irreconciliável com os inimigos exteriores e tolerante com as
diferenças interiores. Comigo, não. Comigo, é justamente o contrário. O que
não quer dizer que eu não goste de Ludvik. Gosto dele, como gostamos de
nossos adversários.
Conheci-o numa daquelas reuniões movimentadas com que as faculdades
se agitavam em 47. O futuro da Nação estava em jogo. Eu tomava parte em
todas as discussões, controvérsias e votações, do lado da minoria comunista,
contra os que na época constituíam a maioria nas universidades.
Muitos cristãos, católicos e protestantes, não me perdoavam. Consideravam
uma traição eu ter-me solidarizado com um movimento que tinha o ateísmo
como bandeira. Os que encontro hoje por acaso acreditam que depois desses
quinze anos tomei consciência de meu erro. Mas sou forçado a decepcioná-
los. Até agora não mudei de atitude.
É evidente que o movimento comunista não tem Deus. No entanto, só os
cristãos que enxergam apenas os defeitos dos outros, não enxergando os
próprios, podem atacar o comunismo. Digo: os cristãos. Mas onde estão eles
ao certo? À minha volta só vejo pseudocristãos, que vivem exatamente
como os ateus. Ora, ser cristão significa viver de outra maneira. Significa
seguir o caminho de Cristo, imitar Cristo. Significa desligar-se dos interesses
particulares, do bem-estar e do poder pessoais, voltar-se para os pobres, os
humildes, para os que sofrem. É isso o que as Igrejas fazem? Meu pai era um
operário que estava sempre desempregado, humilde em sua fé. Voltava para
Deus seu rosto piedoso, mas a Igreja nunca olhou em sua direção. Ele
permaneceu abandonado entre seus semelhantes, abandonado no seio da
Igreja, sozinho com seu Deus, até a sua doença e a sua morte.
As Igrejas não compreenderam que o movimento operário era a escalada dos
humilhados e dos necessitados, famintos de justiça. Elas não se
preocupavam em instaurar, com eles e para eles, o reino de Deus sobre a
Terra. Aliaram-se aos opressores, e assim tiraram Deus do movimento
operário. E pretendem censurar o movimento por não ter um Deus! Que
farisaísmo! É claro que o movimento socialista é ateu, só que eu vejo nisso
uma reprovação divina, dirigida a nós! Reprovação pela dureza com que
tratamos os miseráveis e os sofredores.
E o que devo fazer a esse respeito? Assustar-me com o número decrescente
de fiéis? Espantar-me com o fato de a escola ensinar às crianças um
pensamento antirreligioso? Não. A verdadeira religião não tem nenhuma
necessidade dos favores do poder temporal. O desinteresse leigo não tem
outro efeito senão fortalecer a fé.
Ou deveria eu combater o socialismo porque ele é, por culpa nossa, ateu?
Posso apenas deplorar o trágico desprezo que afastou o socialismo de Deus.
Posso apenas me esforçar por denunciá-lo e trabalhar para corrigir esse erro.
De mais a mais, por que essa inquietude, meus irmãos cristãos? Tudo
acontece segundo a vontade de Deus, e às vezes eu me pergunto se não é
intencionalmente que Deus revela à humanidade que o homem não poderia
sentar-se impunemente em seu trono e que, por mais justa que seja a ordem
das coisas desse mundo, sem a sua participação, essa ordem só poderia ser
malsucedida e corromper-se.
Lembro-me dos anos em que, em nosso país, as pessoas já se acreditavam a
dois passos do paraíso. E como se sentiam orgulhosas: era o paraíso delas,
chegariam a ele sem que ninguém precisasse ajudá-las do alto dos céus! Só
que, depois, esse paraíso se evaporou sob os seus olhos.
Antes de fevereiro de 1948, meu cristianismo agradava aos comunistas. Eles
gostavam muito de me ouvir explicar o conteúdo social do Evangelho,
esbravejar contra esse velho mundo carcomido que se desmoronava sob seus
bens e suas guerras, e demonstrar a semelhança entre o cristianismo e o
comunismo. Para eles, tratava-se de atrair para sua causa o maior número
possível de pessoas e portanto também aqueles que tinham fé. Mas, depois
de Fevereiro, tudo começou a mudar. Como assistente, eu tinha tomado a
defesa de muitos estudantes ameaçados de expulsão da faculdade por
causa das ideias políticas de seus pais. Meu protesto me valera um conflito
com a direção do estabelecimento. Vozes se elevaram para dizer que um
homem com convicções religiosas tão definidas não podia educar a
juventude socialista. Parecia que eu seria forçado a lutar para subsistir. Foi
então que soube que o estudante Ludvik Jahn acabava de falar em minha
defesa durante uma reunião plenária do Partido. Esquecer aquilo que eu
havia representado para o Partido nas vésperas de Fevereiro seria, segundo
ele, pura ingratidão. E, quando censuraram meu cristianismo, ele protestou
dizendo que na minha vida a religião era apenas uma fase transitória que eu
superaria com a maturidade.
Fui agradecer-lhe por seu apoio. Disse-lhe no entanto que, como não tinha a
intenção de enganá-lo, queria lembrar-lhe que eu era mais velho que ele e
que não havia nenhuma possibilidade de eu "superar" a minha fé.
Começamos uma discussão sobre a existência de Deus, sobre a finitude e a
eternidade, a posição de Descartes em rela;’ao à religião, a questão de saber
se Spinoza era materialista e muitas outras coisas. Não nos conseguimos
entender. Para finalizar, perguntei a Ludvik se ele não estava arrependido
de me ter apoiado, agora que eu lhe parecia irrecuperável. Ele me disse que
minha crença religiosa era problema meu e que afinal ninguém tinha nada a
ver com isso.
Não tive mais ocasião de encontrá-lo na faculdade. Nossos destinos iriam
revelar-se ainda mais próximos. Uns três meses depois de nossa conversa,
Jahn foi expulso do Partido e da faculdade. E seis meses mais tarde, chegou
a minha vez de deixar a Universidade. Fui despedido? Obrigado a me
demitir? Eu não saberia dizer. É verdade que se multiplicaram as vozes
contra a minha pessoa e as minhas convicções. É verdade que alguns
colegas me deram a entender que eu deveria fazer uma espécie de
declaração pública colorida de ateísmo. É verdade enfim que houve
durante minhas aulas algumas intervenções agressivas por parte de
estudantes comunistas que ofenderam a minha fé. Uma proposta em favor
de minha partida estava no ar. Mas também não é menos verdade que eu
continuava a contar com alguns amigos entre os comunistas da faculdade,
amigos que gostavam de mim pela minha atitude antes de Fevereiro. Talvez
tivesse sido necessário pouco: apenas que eu começasse a me defender. Se
fizesse isso, certamente contaria com o apoio deles. Só que não o fiz.
"Sigam-me", disse Jesus a seus discípulos, e, sem reclamar, estes deixaram
suas redes, seus barcos, suas casas, suas famílias, e seguiram-no. "Aquele que
põe a mão no arado e olha para trás não merece o reino de Deus." Se
ouvimos o chamado de Cristo, devemos segui-lo sem condições. Tudo isso é
mais do que conhecido pelo Evangelho, mas, na época moderna, essas
palavras soam como um conto de fadas. Um chamado, com o que isso pode
rimar na prosa de nossas vidas? Para onde deveríamos ir e quem deveríamos
seguir, ao largar nossas redes? E, no entanto, o apelo repercute mesmo no
nosso mundo, por menos aguçado que tenhamos o ouvido. O chamado, é
claro, não nos é mandado pelo correio, como uma carta registrada. Ele chega
disfarçado. Raramente com um disfarce cor-de-rosa e sedutor. "Não é à ação
que escolherás que te deves dedicar, mas sim àquilo que acontecerá contra a
tua escolha, contra o teu pensamento e contra o teu desejo, é aí que está o
teu caminho, para o qual eu te chamo, caminho por onde me deves seguir,
foi por ele que passou teu mestre...", escreveu Lutero.
Eu tinha muitas razões para me apegar a meu cargo de assistente.
Relativamente confortável, ele proporcionava muito tempo livre para eu
continuar meus estudos e garantia para o resto de meus dias uma carreira
de professor de Universidade. Mas justamente o que me assustava era que
eu me apegava ao meu cargo. Isso me amedrontava mais ainda porque eu
via na época um grande número de pessoas de valor, pedagogos ou
estudantes, afastadas à força de seu trabalho. Sentia medo de me agarrar a
uma boa situação cujas perspectivas garantidas me separassem do destino
precário de meus semelhantes. Compreendi que as sugestões que visavam
fazer-me deixar a faculdade eram um chamado. Ouvia alguém me lembrar
isso. Alguém que me prevenia contra o conforto da minha carreira, capaz de
comprometer meu pensamento, minha fé e até minha consciência.
Minha mulher, que me dera um filho, na época com cinco anos, me
pressionava, é claro, de mil maneiras, para que eu me defendesse e fizesse
tudo para continuar na faculdade. Pensava no menino, no futuro de
família. Nada mais contava para ela. Quando eu olhava seus traços já
enrugados, era assaltado pelo medo daquelas preocupações infinitas,
preocupações com o amanhã e com o ano seguinte, preocupações com todos
os dias e anos que viriam. Eu temia esse peso e ouvia em minha alma as
palavras de Jesus: "Não temais o dia seguinte; pois o dia seguinte cuidará de
si mesmo. A cada dia sua dor." Meus inimigos achavam que eu iria consumir-
me em mortificações, e no entanto senti uma indiferença imprevista. Eles
imaginaram que eu sentiria minha liberdade restringida, e foi justamente
nesse momento que descobri para mim a verdadeira liberdade. Compreendi
que o homem não tem nada a perder, que seu lugar é em toda a parte, em
toda a parte onde Cristo foi, o que significa: em toda a parte entre os
homens.
A princípio surpreso e contrito, antecipei-me à maldade de meus
adversários. Aceitei a pena que eles me infligiam como um chamado cifrado.
Os comunistas pensam, de maneira inteiramente religiosa, que o homem
culpado em relação ao Partido pode conseguir absolvição se for trabalhar
durante um certo tempo entre agricultores e operários. Dessa forma, no
decorrer dos anos que se seguiram a Fevereiro, muitos intelectuais tomaram
o caminho das minas, das fábricas, dos estaleiros e das fazendas do Estado,
de onde, depois de uma misteriosa purificação, podiam retornar às
administrações, às escolas ou aos secretariados.
Quando ofereci à direção da faculdade ir-me embora, sem pedir um cargo
de pesquisador científico, desejando, ao contrário, um emprego no meio
operário, de preferência como trabalhador especializado em algum lugar
numa fazenda do Estado, meus colegas comunistas, amigos ou adversários,
interpretaram minha escolha, não no sentido da minha fé, mas de acordo
com a fé deles: como a manifestação de uma excepcional aptidão para a
autocrítica. Tendo gostado de minha atitude, ajudaram-me a encontrar um
lugar especial numa fazenda do Estado na Boêmia Ocidental, com um bom
diretor e uma bela paisagem. Como salvo-conduto, fizeram-me uma ficha
pessoal especialmente elogiosa.
Minha nova situação me encheu de uma alegria verdadeira. Senti que
renascia. A fazenda do Estado tinha sido criada numa comunidade
abandonada, próxima à fronteira e apenas parcialmente repovoada desde a
deportação dos alemães após a guerra. Em volta dela estendiam-se colinas,
em sua maioria desmatadas, cobertas de pastagens. Pequenas casas de aldeia
espalhavam-se no fundo dos vales.
As brumas que vagavam por ali iam pousar como um biombo móvel entre
mim e a terra habitada, de maneira que o mundo parecia no quinto dia da
criação, quando Deus hesitava ainda se iria ou não confiá-lo aos homens.
Até as pessoas eram mais consistentes. Conviviam com a natureza, com as
pastagens sem limites, com os rebanhos de vacas e ovelhas. Eu respirava
bem na companhia delas. Logo tive ideias sobre como tirar o melhor partido
da vegetação daqueles vales: adubagem, estocagem racional do feno,
plantações experimentais de ervas medicinais, estufas. O diretor ficou
satisfeito com minhas iniciativas, e eu grato por ele me ter permitido ganhar
meu pão desempenhando uma. tarefa útil.
I 6 Estávamos em 1951. Setembro tinha sido friorento, mas de repente
esquentou em meados de outubro, e o tempo continuou bom até a metade
do mês de novembro. Os montes de feno que secavam na encosta dos
campos espalhavam ao redor o seu perfume. Na relva brilhavam frágeis
narcisos. Nos vilarejos dos arredores começavam a falar da jovem errante.
Alguns moleques do vilarejo vizinho tinham ido passear nos campos
ceifados. Contavam histórias com estardalhaço uns para os outros, quando
viram uma moça que saía de um monte de feno, toda despenteada, com
restos de folhas secas nos cabelos, uma moça que nenhum deles jamais vira
por ali. Assustada, ela voltou-se para todos os lados antes de fugir em
direção à floresta. Até que tivessem a ideia de ir atrás dela, eles a perderam
de vista.
A essa história acrescentava-se o relato de uma camponesa do mesmo lugar:
uma tarde em que ela trabalhava no quintal, aparecera uma garota de uns
vinte anos, com um casaco muito surrado, pedindo, de cabeça baixa, um
pedaço de pão.
— Onde é que você vai assim? — perguntou a mulher. A moça respondeu
que tinha um longo caminho pela frente.
— E você vai a pé?
— Perdi o dinheiro que me restava — respondeu ela. A camponesa não
insistiu, dando-lhe pão e leite. Depois nosso pastor também contou sua
história: uma vez, na montanha, ele tinha deixado seu pão e sua leiteira
perto de uma árvore. Afastou-se um momento até seu rebanho e, quando
voltou, o pão e o leite haviam desaparecido misteriosamente.
As crianças logo se apossaram dessas notícias, que sua imaginação
aumentava avidamente. Bastava que se anunciasse a perda de algum objeto
para que elas encontrassem nesse fato a confirmação da existência da
desconhecida. A água estava muito fria naquele começo de novembro; no
entanto, eles a tinham visto, ao entardecer, tomando banho num lago
próximo ao vilarejo. Uma outra vez, tinham ouvido à noite, em algum lugar
ao longe, o canto delicado de uma voz feminina. Os adultos garantiam que
era algum rádio num dos chalés das encostas, mas os garotos sabiam bem que
era ela, a selvagem, que andava nas montanhas, desgrenhada, cantando.
Uma outra noite, eles tinham feito no campo uma fogueira de folhas secas e
colocado algumas batatas na brasa. Depois olharam em direção à orla da
floresta e uma menina gritou que a tinha visto escondida na penumbra,
observando-os. Ao ouvir essas palavras, um garoto apanhou um pedaço de
terra compacta e atirou-o na direção que a garota indicara. Curiosamente,
não se ouviu nenhum grito, mas aconteceu outra coisa. Todas as crianças se
aborreceram com o garoto que jogara a terra e por pouco não bateram nele.
É, era assim: nunca a habitual crueldade infantil se deixou despertar pela
história da moça errante, apesar dos furtos sempre associados à sua pessoa.
Desde o primeiro instante ela conquistara simpatias secretas. Será que os
corações ficavam sensibilizados com a inocência daqueles roubos? Com sua
tenra idade? Ou então era a mão de um anjo que a protegia? Por essa ou
aquela razão, o pedaço de terra compacta atirado despertara o amor das
crianças pela moça errante. Ao abandonar a fogueira quase extinta, elas
deixaram junto um bocado de batatas cozidas sob uma camada de pequenas
brasas para conservá-las aquecidas, com um galho de pinheiro espetado em
cima. Tinham até dado um nome à moça. Numa folha de caderno
arrancada tinham rabiscado em letras grandes: "Pequena fugitiva, isso é
para você." Colocaram o papel perto das batatas com um pedaço de terra
sobre ele. Em seguida foram esconder-se no mato para poder acompanhar a
chegada da silhueta assustada. A tarde transformou-se em noite e ninguém
apareceu. As crianças tiveram enfim que sair de seu esconderijo e voltar
para casa. Mas no dia seguinte, muito cedo, todos voltaram correndo ao
campo. As batatas tinham desaparecido, assim como o papel e o galho.
A moça se transformou numa fada que as crianças mimavam. Elas
colocavam para ela um pequeno jarro com leite, pão, batatas, com pequenos
bilhetes. Trocavam todo dia o lugar de seus presentes. Evitavam colocar sua
comida num lugar fixo, como teriam feito com um mendigo. Brincavam com
ela. De caça ao tesouro. Começando pelo lugar onde haviam deixado o
primeiro monte de batatas assadas, afastaram-se pouco a pouco do vilarejo e
penetraram no campo. Deixavam seus tesouros perto dos troncos das
árvores, encostados numa pedra, perto de um calvário, perto de uma roseira
selvagem. Ninguém sabia desses esconderijos. Elas não deixavam ninguém
se aproximar da teia desse jogo, nunca viram a Pequena Fugitiva, nunca lhe
interceptaram o caminho. Aceitaram-na invisível.
Essa história não durou muito. O diretor de nossa fazenda foi um dia, em
companhia do presidente do Comitê Nacional da Comuna, bem longe nas
montanhas, a fim de inspecionar várias casas abandonadas que se pretendia
transformar em dormitórios para os trabalhadores agrícolas que exerciam
suas atividades longe da cidade. No caminho, foram surpreendidos por um
temporal. Não havia nas proximidades nada, a não ser um bosque de
pequenos ciprestes, com um pequeno galpão na orla. Os dois correram para
lá, tiraram a cavilha de madeira que servia de tranca e precipitaram-se para
dentro. A luz entrava tanto pela porta como pelas fissuras do teto. Num
canto, o feno estava afundado como uma cama. Foi lá que eles se deitaram;
escutaram o barulho das gotas no teto, respiraram o perfume embriagador e
conversaram. De repente, mergulhando os dedos na parede de forragem
que se erguia à sua direita, o presidente sentiu sob os talos secos uma
superfície dura. Era uma pequena mala. Velha, de papelão barato. Não sei
quanto tempo os dois homens hesitaram diante daquele mistério. Só sei que
abriram a maleta, onde descobriram quatro vestidos de moça, vestidos
novos, lindos. A boa qualidade das roupas formava, evidentemente, um
contraste inesperado com o aspecto gasto da maleta e sugeria um possível
roubo. Os vestidos cobriam um pouco de roupa de baixo de mulher e um
maço de cartas amarrado com uma fita azul. Era tudo. Até agora eu nada
soube a respeito dessa correspondência, ignoro até se o diretor e o presidente
tomaram conhecimento de seu conteúdo. Sei apenas que ela lhes revelou o
nome da destinatária; Lucie Sebetkova.
Depois que os dois meditaram muito sobre o achado, o presidente encontrou
um segundo objeto dentro do feno. Uma leiteira lascada. A leiteira de
esmalte azul cujo desaparecimento misterioso o pastor contava no albergue
todas as noites, há quinze dias.
Depois, o caso seguiu seu curso. O presidente ficou à espreita na mata,
enquanto o diretor descia de volta ao vilarejo, de onde mandou um policial.
Com o cair da noite, a moça voltou para seu refúgio perfumado. Eles a
deixaram entrar, fechar a porta, esperaram ainda meio minuto e então
entraram.
Os dois homens que apanharam Lucie numa armadilha no galpão de
forragem eram homens de bem. O presidente, que fora operário agrícola, era
um homem bom, pai de seis filhos. Quanto ao policial, um homem com
grandes bigodes, era simples e ingênuo. Nem um nem outro teriam feito mal
a uma mosca.
No entanto, senti um estranho sofrimento no momento que soube como
Lucie fora apanhada. Ainda hoje meu coração sufoca quando imagino o
diretor e o presidente vasculhando sua maleta, segurando em suas mãos
toda a sua intimidade materializada, os doces segredos de sua roupa de
baixo suja, olhando o que não deve ser olhado.
O mesmo sofrimento envolve-me quando penso na outra imagem; a imagem
daquele frágil esconderijo de feno, esconderijo sem possibilidade de fuga,
cuja única saída estava bloqueada por dois homenzarrões.
Mais tarde, conhecendo melhor a história de Lucie, compreendi com
espanto que, por meio dessas duas imagens torturantes, a própria essência
de seu destino desvendava-se para mim. Essas duas imagens
representavam uma situação de estupro.
Naquela noite Lucie não dormiu mais no galpão, mas numa cama de ferro
colocada numa oficina abandonada que servia de posto para o Corpo de
Segurança. No dia seguinte, foi interrogada pelo Comitê Nacional. Soube-se
que até então ela trabalhara em Ostrava, onde morava. Não conseguindo
ficar lá por mais tempo, fugiu. Quando perguntaram detalhes mais precisos,
esbarraram num silêncio obstinado.
Por que essa fuga até aqui, até a Boêmia Ocidental? Ela contou que seus pais
moravam em Cheb. Por que não voltou para a casa deles? Descera do trem
muito antes de chegar a Cheb, tomada por um medo que beirava o pânico.
Seu pai não sabia fazer outra coisa senão surrá-la.
O presidente do Comitê Nacional disse a Lucie que iam mandá-la de volta a
Ostrava, de onde ela saíra sem pedir licença, o que não deveria ter feito.
Lucie disse-lhes que desceria na primeira estação. Eles se zangaram um
pouco, mas não demoraram a compreender que isso não iria resolver nada.
Então perguntaram se deveriam mandá-la para sua casa em Cheb. Ela
sacudiu a cabeça com veemência. Eles foram severos por um momento,
depois o presidente cedeu à sua própria bondade.
— Então o que é que você quer? Ela perguntou se não podia ficar, procurar
um trabalho ali mesmo. Eles encolheram os ombros e responderam que iam
indagar na fazenda do Estado.
A escassa mão de obra causava ao diretor problemas constantes. Assim
sendo, ele aceitou sem hesitar a proposta do Comitê Nacional. Depois disso,
anunciou-me que eu iria enfim receber, para a estufa, a operária que pedia
há tanto tempo. No mesmo dia o presidente do Comitê Nacional veio
apresentar-me Lucie.
Lembro-me bem desse dia. O fim de novembro aproximava-se e, depois de
várias semanas ensolaradas, o outono começava a mostrar sua face de vento
e de chuva. Garoava. Com um casaco marrom, uma maleta embaixo do
braço, a cabeça baixa e os olhos indiferentes, ela estava ao lado do
presidente. Ele segurava na mão a leiteira azul e dizia em tom solene: — Se
você cometeu algum erro, nós a perdoamos e confiamos em você. Podíamos
mandá-la de volta a Ostrava, mas vamos deixar que fique aqui. A classe
operária precisa de gente honesta em todos os lugares. Trate de não
decepcioná-la! Enquanto o presidente foi deixar no escritório a leiteira para
nosso pastor, levei Lucie até a estufa, apresentei-a a seus dois companheiros
de trabalho e expliquei-lhe suas tarefas.
Na minha lembrança, Lucie ofusca tudo o que eu vivia então. Em sua
sombra, mas mesmo assim de maneira bastante nítida, recorta-se a silhueta
do presidente do Comitê Nacional. Quando você estava ontem diante de
mim, Ludvik, sentado nessa poltrona, eu não quis magoá-lo. Agora que você
está de novo comigo da maneira que me é mais familiar, como uma imagem,
como uma sombra, vou lhe dizer: esse ex-operário agrícola que queria
construir um paraíso para seus companheiros de miséria, esse homem
honesto que pronunciava com entusiasmo ingênuo as grandes palavras de
perdão, de confiança, da classe operária, estava muito mais próximo do meu
coração e do meu pensamento que você, embora nunca tivesse
demonstrado nenhuma simpatia por mim.
Antigamente, você achava que o socialismo tinha crescido no tronco do
racionalismo e do ceticismo europeus, fora da religião ou contra a religião, e
que ele não era concebível de outra maneira. Mas você pretende sustentar
sempre, seriamente, que não existe meio de edificar uma sociedade socialista
sem acreditar na primazia da matéria? Você está de fato seguro de que os
homens que acreditam em Deus não podem nacionalizar as usinas? Estou
absolutamente certo de que a linhagem espiritual que se vale da mensagem
de Jesus conduz à igualdade social e ao socialismo de modo muito mais
natural. E quando me lembro dos mais ardentes comunistas do primeiro
período socialista em meu país, como por exemplo o presidente do Comitê,
que entregou Lucie em minhas mãos, essas pessoas me parecem muito mais
próximas de zeladores religiosos do que de discípulos de Voltaire cheios de
dúvidas. O período revolucionário depois de 1948 não tinha muita coisa em
comum com o ceticismo nem com o racionalismo. Era o tempo da grande fé
coletiva. O homem que, aprovando-a, caminhava com a época era habitado
por sensações muito próximas daquelas que a religião proporciona:
renunciava a seu eu, a seu interesse, a sua vida particular, por alguma coisa
de mais elevado, de suprapessoal. É claro que as teses do marxismo têm uma
origem profana, mas o alcance que lhes atribuíam era comparável ao alcance
do Evangelho e dos mandamentos bíblicos. Criava-se um círculo de ideias
intocáveis; portanto, na nossa terminologia, sagradas.
Essa época que está terminando, ou que já terminou, tem em si alguma coisa
do espírito das grandes religiões. É pena que ela não tenha sabido levar até o
fim o conhecimento religioso de si própria! Da religião, ela possuía os gestos e
os sentimentos, mas, por dentro, continuava vazia e sem Deus. No entanto,
eu achava sempre que o Senhor iria compadecer-se, que ele se daria a
conhecer, que no fim ele santificaria essa grande fé profana. Esperava em
vão.
Essa época deixou entrever finalmente sua religiosidade e pagou o preço da
herança racionalista que reclamou para si mesma apenas porque não se
conhecia. Há muitos séculos o racionalismo cético corrói o cristianismo. Ele o
corrói, mas não o destruirá. Mas, quanto à teoria comunista, sua própria
obra, o racionalismo cético fará dela tabula rasa daqui a algumas décadas.
Em você, Ludvik, ele já a destruiu. E você sabe bem disso.
Quando conseguem se refugiar no reino dos contos infantis, as pessoas
podem ficar cheias de nobreza, de compaixão, de poesia. No reino da vida
cotidiana, infelizmente, elas são dominadas por precauções, desconfianças e
suspeitas. Foi assim que se comportaram com Lucie. Logo que ela saiu do
mundo dos contos infantis, transformando-se numa simples moça,
dividindo as ocupações e o sono com as outras operárias, tornou-se
instantaneamente alvo de uma curiosidade em que não faltava a maldade
que os seres humanos dedicam aos anjos rejeitados pelos Céus e às fadas
rechaçadas de um conto.
De nada adiantou a Lucie ter uma natureza silenciosa. No fim de um mês, a
fazenda do Estado recebeu de Ostrava o dossiê de seus empregos. Essas
anotações revelaram-nos que ela começou como aprendiz de cabeleireiro em
Cheb. Como consequência de uma infração aos bons costumes, passou um
ano numa casa de correção e de lá foi para Os trava. Suas qualidades como
operária não podiam ser contestadas. No alojamento onde morava, sua
conduta havia sido exemplar. Antes de desaparecer, cometera no entanto
um delito insólito: fora apanhada roubando flores do cemitério.
As informações eram sumárias e, longe de esclarecer o segredo de Lucie,
tornaram-no ainda mais enigmático.
Prometi ao diretor tomar conta de Lucie. Ela me atraía. Taciturna, dedicava-
se ao trabalho. Havia tranquilidade em sua timidez. Não observei nela
nenhum sinal de excentricidade, o que se poderia esperar de uma pessoa
que vivera várias semanas perambulando. Ela disse que estava muito bem
na fazenda e que não tinha intenção de ir embora. Doce, cedendo sempre
em qualquer discussão, logo conseguiu a simpatia de suas companheiras. No
entanto, o seu jeito arredio indicava a existência de um destino doloroso e
de uma alma magoada. O que eu mais desejava era que ela me contasse
tudo, mas sabia que em sua vida ela já tivera de suportar perguntas demais
e que qualquer pergunta devia lembrar-lhe um interrogatório. Assim, não
lhe perguntei nada e passei a contar-lhe coisas. Falava-lhe todos os dias.
Expliquei-lhe meu projeto de criar na fazenda uma plantação de ervas
medicinais. Contei-lhe que antigamente os camponeses tratavam-se
fervendo ou macerando diferentes plantas. Falei-lhe da pimpinela, que foi
usada contra a cólera e a peste, da saxífraga, que desintegra pedras na
bexiga ou na vesícula. Lucie escutava. Gostava de plantas. Mas que santa
simplicidade! Nada sabia sobre elas, era incapaz de dizer o nome de uma
que fosse.
O inverno começou, e Lucie, à parte seus lindos vestidos de verão, não
tinha o que vestir. Ajudei-a a fazer bom uso de seu dinheiro. Levei-a para
comprar uma capa de chuva e um suéter, depois outras coisas ainda:
sapatos, pijama, meias, um casaco grosso. ..
Perguntei-lhe um dia se acreditava em Deus. Sua resposta pareceu-me
extraordinária. Ela não disse nem sim, nem não. Encolheu um pouco os
ombros e disse: — Não sei.
Perguntei-lhe se sabia quem era Jesus Cristo. Ela respondeu que sim. Na
verdade, ignorava tudo sobre ele. Seu nome para ela era vagamente ligado à
imagem do Natal, a um borrão de duas ou três representações que não
faziam o menor sentido. Lucie até então não conhecera nem a fé, nem a
descrença. Senti uma vertigem talvez idêntica àquela que experimenta um
apaixonado quando descobre que nenhuma carne masculina o precedeu
com a sua amada.
— Quer que eu lhe fale dele? — propus.
Ela fez um sinal de consentimento. As pastagens e as colinas já estavam sob
a neve. Eu falava. Lucie ouvia...
Tinha sido demais para seus ombros frágeis. Ela havia precisado de alguém
que a ajudasse, mas ninguém soubera fazê-lo. A ajuda que a religião oferece
a você, Lucie, é simples: entregue-se. Entregue-se com o fardo que a faz
cambalear. Há um grande alívio na entrega de si. Sei que você não tinha a
quem se entregar, pois desconfiava das pessoas. Mas existe Deus. Entregue-
se a Ele. Você se sentirá leve.
Entregar-se significa largar a vida passada. Extirpá-la da alma. Confessar-se.
Conte-me, Lucie, por que você fugiu de Ostrava? Por causa das flores sobre
o túmulo? Também.
Mas por que você as apanhou? Era porque se sentia triste. Colocava-as num
vaso no seu quarto no alojamento. Também as colhia na natureza, só que
Ostrava é uma cidade escura, e à sua volta não há natureza; apenas lixo das
minas, tapumes, terrenos baldios, aqui e ali pequenos tufos de vegetação
cobertos de fuligem. Flores bonitas, Lucie só encontrara no cemitério. Flores
sublimes, flores solenes. Gladíolos, rosas ou lírios. E também crisântemos, com
suas volumosas bolas de pétalas frágeis...
E como foi que pegaram você? Ela ia sempre ao cemitério, gostava do lugar.
Não só pelos buquês que levava, mas pela tranquilidade. A calma a aliviava.
Cada túmulo era um pequeno jardim, e ela se demorava junto a cada um
deles, com seu monumento, suas inscrições lacrimosas. A fim de que não a
incomodassem, ela imitava os gestos de certos visitantes, pessoas de idade,
principalmente, que se ajoelhavam ao pé dos túmulos. Uma vez, estava
distraída diante de um túmulo recente. O caixão fora enterrado poucos dias
antes. A terra ainda estava mole, cheia de coroas e, na frente do túmulo,
num vaso, havia um buquê de rosas. Lucie estava de joelhos, e o chorão
acima dela era como uma abóbada celeste íntima e murmurante. Ela sentia
uma felicidade indizível. No mesmo instante aproximou-se um senhor idoso
com sua mulher. Talvez aquele fosse o túmulo de seu filho, de seu irmão,
quem sabe? Viram uma moça desconhecida prosternada ao lado do túmulo.
Espantaram-se. Quem poderia ser? Aquela aparição parecia esconder um
segredo, um segredo de família, talvez algum parente que nunca tivessem
visto, ou então uma amante do falecido... Eles pararam, sem ousar
incomodá-la. Olharam-na de longe. Eis que ela se levanta, tira do vaso o
buquê de belas rosas que eles mesmos haviam colocado ali recentemente, dá
meia volta e se afasta. Então eles correm atrás dela. Quem é você? —
perguntaram. Ela não soube o que dizer, gaguejou, embaraçada. Eles
perceberam que ela ignorava tudo sobre o morto. Chamaram uma jardineira
para socorrê-los. Obrigaram a moça a mostrar seus documentos.
Repreenderam-na aos gritos e disseram que não havia nada mais
abominável do que roubar os mortos. A jardineira confirmou que aquele não
era o primeiro roubo de flores em seu cemitério. Chamaram um guarda,
Lucie foi mais uma vez crivada de perguntas e confessou tudo.
"... e deixe que os mortos sepultem seus mortos", disse Jesus. As flores das
sepulturas pertencem aos vivos. Você não conhecia Deus, Lucie, mas
aspirava a Ele. Na beleza das flores naturais, você via a revelação do
sobrenatural. Essas flores, você não queria para ninguém. Eram só para você.
Para o vazio da sua alma. E eles a apanharam e a humilharam. Mas foi só
por isso que você fugiu da cidade escura? Ela ficou calada. Depois, com a
cabeça, fez sinal que não.
— Alguém fez mal a você?
Ela aquiesceu com a cabeça.
— Conte, Lucie!
O quarto era muito pequeno. No teto, sem abajur, nua, obscena, pendia,
oblíqua, uma lâmpada em seu bocal. Contra a parede, uma cama, acima
desta um quadro e, no quadro, a imagem de um belo homem ajoelhado, com
uma longa túnica azul. Era o Jardim de Getsemani, mas isso Lucie não sabia.
Era para lá então que ele a tinha levado, ela havia se defendido e gritado.
Ele queria violá-la, arrancou suas roupas, ela desvencilhou-se dele e fugiu
para longe.
— Quem era ele?
— Um soldado.
— Você o amava?
Não, ela não o amava.
— Mas por que então você foi com ele para esse quarto, onde só havia uma
lâmpada e uma cama?
Foi o vazio na sua alma que a atraiu para ele. E para preencher esse vazio, a
infeliz não encontrou outra coisa senão um fedelho que fazia o serviço
militar.
— De qualquer maneira, Lucie, não estou compreendendo bem. Se você o
seguiu para esse quarto onde só havia uma cama, por que fugiu depois?
— Ele era mau e bruto, como todos os outros.
— De quem você está falando, Lucie? Que outros?
Ela se calou.
— Quem foi que você conheceu antes do soldado? Fale, Lucie! Conte!
Eles eram seis e ela estava sozinha. Seis, de dezesseis a vinte anos. Ela tinha
dezesseis anos. Formavam um bando, do qual falavam com respeito, como se
fosse uma seita paga. Nesse dia, pronunciaram a palavra iniciação. Levaram
muitas garrafas de um vinho ordinário. Ela participou da bebedeira com
cega submissão, extravasando todo o seu amor frustrado pela mãe e pelo pai.
Bebeu quando eles beberam, riu quando eles riram. Depois, eles lhe
ordenaram que tirasse a roupa. Ela nunca fizera isso na presença deles. Mas
como, diante de sua hesitação, o chefe do bando ficou nu primeiro,
compreendeu que a ordem não era dirigida unicamente para ela e
executou-a com docilidade. Confiante neles, confiante até na grosseria
deles. Eles eram seu abrigo, seu amparo, não poderia nem imaginar perdê-
los. Eram sua mãe, eram seu pai. Eles beberam, riram e deram-lhe outras
ordens. Ela abriu as pernas. Tinha medo, sabia o que isso significava, mas
obedeceu. Deu um grito e o sangue escorreu de dentro dela. Os rapazes
gritaram, levantaram seus copos e despejaram o vinho espumante e
ordinário sobre as costas do chefe, sobre o corpo frágil de Lucie, entre suas
coxas, clamavam vagas fórmulas de Batismo e de Iniciação, e então o chefe
deixou-a e pôs-se de pé, enquanto um outro do bando tomava seu lugar, e
assim cada um por sua vez, por ordem de idade, o caçula por último, ele
tinha dezesseis anos como ela, e Lucie não aguentava mais de dor, queria
descansar, queria ficar só, e, como ele era o mais jovem, teve a audácia de
rejeitá-lo. Mas ele, exatamente por ser o mais jovem, não queria ser
humilhado! Era membro do bando! Membro completo! Queria prová-lo e
deu uma bofetada em Lucie, e ninguém levantou um dedo para defendê-
la, porque todos sabiam que o caçula estava no seu direito e que exigia o que
lhe era devido. As lágrimas de Lucie correram, mas ela não ousou resistir, e
então abriu as pernas pela sexta vez...
— Onde foi isso, Lucie?
Na casa de um dos rapazes do bando, os pais trabalhavam na turma da
noite, a casa tinha uma cozinha e um quarto, no quarto havia uma mesa,
um sofá e uma cama, em cima da porta, num porta-gravura, a inscrição:
Que Deus nos dê felicidade! e, enquadrada na cabeceira da cama, uma bela
mulher com um vestido azul apertava uma criança contra seu seio.
— A Virgem Maria?
Ela não sabia.
— E depois, Lucie, o que aconteceu depois?
Depois tudo aconteceu de novo, muitas vezes, na mesma casa, depois em
outras e também fora, nos bosques. Tornou-se um hábito para o bando.
— E isso lhe dava prazer, Lucie?
Não, eles a tratavam cada vez pior, eram cada vez mais grosseiros, mas ela
não tinha maneira de se livrar, nem de avançar, nem de recuar.
— E como isso terminou, Lucie?
Uma noite, numa dessas casas vazias. A polícia chegou e levou todo mundo.
Os rapazes do bando tinham cometido roubos. Lucie não sabia de nada, mas
sabia-se que ela andava com o bando e que oferecia a eles tudo o que uma
garota pode oferecer. Ela foi a vergonha de toda a cidade de Cheb e em casa
foi espancada. Os rapazes foram condenados a penas diversas, e ela foi
enviada a uma casa de correção. Lá ficou durante um ano — até os
dezessete anos. Depois disso, não quis voltar para a família de jeito nenhum.
Foi assim que foi parar na cidade escura.
Fiquei surpreso e perturbado quando anteontem, ao telefone, Ludvik me
revelou que conhecia Lucie. Felizmente, ele a conhecia apenas de vista. Em
Ostrava, ele tivera uma relação com uma moça que morava com ela num
alojamento. Ontem, diante de mais uma pergunta dele, contei-lhe tudo. Há
muito tempo, tinha necessidade de me libertar desse peso, mas não tinha
com quem me abrir sem temor. Ludvik tem simpatia por mim e, ao mesmo
tempo, está suficientemente distante de minha vida, e mais ainda da vida
de Lucie. Portanto, eu não tinha que temer pelo segredo dela.
Não, eu não revelara a ninguém as confidencias de Lucie, exceto a Ludvik,
ontem. No entanto, sobre a casa de correção e as flores no cemitério, todo
mundo na fazenda soube da verdade, pelas fichas de serviço dos
funcionários. Eles eram muito gentis com ela, mas lembravam-lhe sem parar
seu passado. Para o diretor, ela era "a pequena ladra de sepulturas". Ele dizia
isso sem maldade, mas tais afirmações tornavam os velhos pecados de Lucie
eternamente presentes. Ela era sempre e constantemente culpada. Quando
na verdade não tinha necessidade mais urgente do que a de uma absolvição
total. É, Ludvik, de absolvição, eis do que ela precisava, desse depuramento
misterioso que para você é desconhecido e incompreensível.
Na verdade, por si mesmas, as pessoas não sabem perdoar, isso nem mesmo
está ao alcance delas. Elas são impotentes para anular um pecado cometido.
Isso ultrapassa as forças meramente humanas. Fazer com que um pecado
não conte, apagá-lo, diluí-lo no tempo, em outras palavras transformar
alguma coisa em nada, é um ato impenetrável e sobrenatural. Apenas Deus,
porque escapa às leis deste mundo, porque é livre, porque sabe criar
milagres, pode lavar os pecados, pode transformá-los em nada, pode
absolvê-los. O homem não tem poder de absolver o homem, a não ser
apoiando-se na absolvição divina.
Ora, Ludvik, como você não acredita em Deus, você não sabe perdoar. Você
vive obcecado por essa reunião plenária em que mãos se levantaram,
unânimes, contra você, aprovando a ruína de sua vida. Você nunca lhes
perdoou isso. E não apenas a cada um deles. Eles eram uma centena, isto é,
um número capaz de representar uma espécie de micromodelo da
humanidade. Você jamais perdoou o gênero humano. Desde então, você lhe
retirou sua confiança e dedicou-lhe sua raiva. Mesmo que eu possa
compreendê-lo, isso não muda nada no fato de que tal raiva dirigida aos
homens é aterradora e pecaminosa. Ela transformou-se na sua maldição.
Pois viver num mundo em que nada é perdoado, em que a redenção é
recusada, é como viver no inferno. Você vive no inferno, Ludvik, e eu
tenho pena de você.
Tudo o que na terra pertence a Deus pode também pertencer ao Diabo.
Mesmo os movimentos dos amantes no amor. Para Lucie, eles se
transformaram na expressão do odioso. Para ela, confundiam-se com os
rostos selvagens dos adolescentes do bando e, mais tarde, com o rosto do
soldado enraivecido. Ah, eu o vejo com tanta clareza como se o conhecesse!
Ele mistura os clichês amorosos, melados e adocicados, com as brutalidades
grosseiras do macho privado de fêmeas atrás dos fios de arame da caserna! E
Lucie subitamente percebe que as palavras de ternura são apenas um véu
enganador sobre o corpo bestial da grosseria. E diante dela todo o universo
do amor se desmancha na lama da repugnância.
Identifiquei o abscesso, era por ali que eu tinha de começar. O vadio da costa
que agita, frenético, uma lanterna com o braço, pode ser um louco, mas, à
noite, quando as ondas carregam um barco sem rumo, esse homem é um
salvador. O planeta em que vivemos é a zona fronteiriça entre o céu e o
inferno. Nenhuma ação é boa ou má em si mesma. Apenas seu lugar na
ordem das coisas a torna boa ou má. Da mesma maneira, Lucie, as relações
carnais não têm em si mesmas nem virtude, nem vício. Se elas se
harmonizam com a ordem estabelecida por Deus, se você ama com um amor
fiel, até o amor sensual será uma bênção, e você será feliz. Pois Deus
decretou: "O homem deixará seu pai e sua mãe, ligar-se-á à sua mulher e
eles se tornarão uma só carne." Dia após dia conversei com Lucie, cada vez
mais repetia-lhe que ela estava perdoada, que não tinha que se torturar, que
era preciso desamarrar a camisa de força de sua alma, que ela deveria
repousar humildemente na ordem divina das coisas, na qual mesmo o amor
carnal encontraria seu lugar.
E as semanas passavam...
Então, um dia, chegou a primavera. As macieiras floresciam na encosta das
colinas, e suas copas sob a brisa pareciam sinos que balançavam. Fechei os
olhos para ouvir seu som aveludado. Depois abri-os e vi Lucie de blusa azul,
com uma enxada na mão. Ela olhava para baixo, na direção do vale, e sorria.
Observei esse sorriso e concentrei-me avidamente em compreendê-lo. Seria
possível? Até aqui a alma de Lucie tinha sido uma fuga contínua, fuga
diante do passado e diante do futuro. Tinha medo de tudo. Para ela, o
passado e o futuro eram uma correnteza. Agarrava-se com angústia ao barco
furado do presente, precário refúgio.
E eis que hoje ela sorria. Sem motivo. Sem mais nem menos. E esse sorriso
revelava-me que ela encarava o futuro com confiança. E eu me senti como
um navegador desembarcando depois de meses de viagem. Fiquei feliz.
Encostado num tronco bifurcado, tornei a fechar os olhos. Escutava a brisa e
o canto das macieiras brancas, escutava os trinados dos pássaros, e esses
trinados transformavam-se diante de meus olhos fechados em mil luzes
levadas por mãos invisíveis como que para uma festa. Eu não via essas mãos,
mas ouvia o som agudo das vozes e parecia-me que eram crianças, um
alegre cortejo de crianças... De repente, uma mão encostou no meu rosto, e
uma voz: "O senhor é tão bom, Sr. Kostka..." Eu não abri os olhos novamente,
não mexi minha mão. Continuava vendo as vozes dos pássaros,
transformadas numa farândola de luzes, ouvindo o rumor das macieiras.
Mais fraca, a voz concluía: "Eu amo o senhor..." Talvez eu devesse ter
esperado esse momento e depois ter ido logo embora, uma vez que minha
missão estava terminada. Mas, antes de compreender o que quer que fosse,
a fraqueza me paralisou. Estávamos sozinhos nessa paisagem aberta, no meio
das pobres macieiras; beijei Lucie e deitei-me com ela na cama da natureza.
Aconteceu o que não deveria ter acontecido. Quando, pelo seu sorriso, vi a
alma apaziguada de Lucie, percebi que atingira meu objetivo e que só me
restava ir embora. Mas não o fiz. E depois isso foi ruim. Continuávamos a
viver na mesma fazenda. Lucie desabrochava, parecia-se com a primavera
que, à nossa volta, lentamente transformava-se em verão. Mas eu, em vez
de ficar feliz, enlouquecia com essa grande primavera feminina ao meu
lado, que eu mesmo provocara e que agora me abria todas as suas pétalas,
pétalas que eu sabia que não me pertenciam, que não deveriam pertencer-
me. Eu tinha em Praga meu filho, e minha mulher impaciente com minhas
raras visitas a eles.
Tinha medo de interromper esse começo de intimidade, o que iria ferir
Lucie, mas não ousava aumentá-la, já que para mim estava claro que não
tinha o direito de fazê-lo. Desejava Lucie e, ao mesmo tempo, temia seu
amor, porque não sabia o que fazer dele. Só à custa de um esforço
extraordinário mantive a naturalidade de nossas conversas anteriores.
Minhas dúvidas se interpuseram entre nós. Eu tinha a impressão de que
minha ajuda espiritual a Lucie agora estava desmascarada. Que, na
realidade, eu a desejara fisicamente desde o instante em que ela aparecera
diante de mim. Que tinha agido como um sedutor disfarçado de padre
consolador. Que todos aqueles belos sermões sobre Jesus e Deus não tinham
feito outra coisa senão camuflar os apetites carnais mais baixos. Parecia-me
que, ao dar livre curso à minha sexualidade, eu manchara a pureza de meu
objetivo primeiro e desmerecera para com Deus.
Mas assim que me ocorria essa ideia, meu pensamento voltava-se sobre si
mesmo: quanta empáfia, eu me repreendia, quanta pretensão querer
parecer merecedor, querer agradar a Deus! Que significam os méritos
humanos diante Dele? Nada, nada, nada. Lucie me ama e sua saúde está
presa ao meu amor! Devo rejeitá-la, jogando-a no desespero, apenas por me
preocupar com a minha própria pureza? Não iria eu, por isso mesmo,
parecer desprezível a Deus? E se minha paixão é pecaminosa, o que é mais
importante, a vida de Lucie ou minha inocência? De qualquer maneira, será
meu pecado, só eu o carregarei, só eu sairei perdendo com esse pecado! No
meio dessas reflexões e dúvidas, surgiu um golpe imprevisto, vindo de fora.
As instituições centrais forjaram uma acusação política contra meu diretor.
Como ele se defendesse com unhas e dentes, acusaram-no, entre outras
coisas, de cercar-se de elementos suspeitos. Eu estava entre estes: expulso
da Universidade por causa de suas opiniões hostis ao Estado, partidário do
clericalismo. O diretor em vão tentara provar que eu não era partidário do
clericalismo e que não fora expulso da Universidade. Quanto mais falava a
meu favor, mais demonstrava nossa conivência e mais agravava o seu caso.
Para mim, a situação tornara-se insustentável.
Injustiça, Ludvik? Sim, é certamente essa a palavra que você pronuncia
com mais frequência, ao escutar esse caso ou outros semelhantes. Mas eu
não sei o que é injustiça. Se não houvesse nada acima das coisas humanas e
se os atos não tivessem outro alcance a não ser aquele que seus autores lhes
atribuem, a noção de injustiça seria legítima, e eu mesmo seria capaz de usá-
la, ao me ver expulso de uma fazenda do Estado em que trabalhara com
ardor. Talvez até tivesse sido lógico tentar uma providência contra essa
injustiça e lutar com fúria pelos meus pequenos direitos de homem.
Mas acontece frequentemente que os acontecimentos comportam um outro
sentido além daquele que está no espírito de seus cegos autores; muitas
vezes eles não passam de instruções disfarçadas, vindas do alto, e as pessoas
que permitem que eles aconteçam não são nada além de instrumentos de
uma vontade superior de cuja existência elas nem sequer suspeitam.
Eu estava convencido disso. Era o que acabava de acontecer. Por isso, aceitei
os acontecimentos da fazenda como um alívio. Percebi neles uma diretriz
clara: afaste-se de Lucie antes que seja tarde demais. Sua missão está
cumprida. Os frutos dela não pertencem a você. O seu caminho é outro.
Portanto, agi como na faculdade de Ciências dois anos antes. Despedi-me
de uma Lucie aos prantos e desesperada e fui ao encontro da catástrofe
aparente. Eu mesmo propus abandonar a fazenda do Estado. É verdade que
o diretor protestou, mas eu sabia que ele o fazia por polidez e que no íntimo
estava aliviado.
Só que, dessa vez, o caráter voluntário da minha saída não comoveu
ninguém. Não havia aqui amigos comunistas de antes de Fevereiro para
pavimentar meu caminho de saída com boas referências e bons conselhos.
Deixei a fazenda como um homem que reconhecia que não era mais digno
de efetuar para o Estado nenhum trabalho, por menos importante que fosse.
Foi assim que me tornei operário de construção.
Era um dia de outono, em 1956. Pela primeira vez depois de cinco anos
encontrei Ludvik no vagão-restaurante do rápido Praga-Bratislava. Eu
estava indo para o canteiro de construção de uma fábrica na região Leste da
Morávia. Ludvik terminara recentemente seu contrato nas minas de
Ostrava. Acabava de deixar em Praga um pedido de autorização para
terminar seus estudos. Estava voltando para sua casa na Morávia. Por
pouco não nos teríamos encontrado. Quando nos reconhecemos, ficamos
surpresos com a coincidência de nossos destinos.
Lembro muito bem, Ludvik, com que atenção você me escutou, quando lhe
contei minha saída da faculdade, depois as intrigas na fazenda do Estado,
que me transformaram em pedreiro. Agradeço-lhe a atenção. Você ficou
furioso, falou de injustiça, de imbecilidade. Ficou até zangado comigo:
censurou-me por não me ter defendido, por ter capitulado. Não se deve
nunca e em nenhum lugar, disse você, sair voluntariamente. Nosso
adversário deve ser obrigado a recorrer ao pior! De que adianta deixá-lo com
a consciência em paz? Você mineiro, eu pedreiro. Nossos destinos bem
parecidos e nós tão diferentes! Eu perdoando, você irreconciliável, eu
pacífico, você insubmisso. Por fora tão próximos e tão diferentes um do
outro no fundo de nós mesmos! Sobre esse distanciamento interior, você
sabe muito menos do que eu. Ao me explicar com detalhes sua expulsão do
Partido, você estava convencido, como se fosse uma coisa natural, de que
eu estava de acordo com você, igualmente escandalizado com aquela
falsidade dos camaradas que o castigaram porque você tinha brincado com
aquilo que para eles era sagrado. Haveria por que se irritar? — perguntava
você, sinceramente espantado.
Vou lhe dizer uma coisa: em Genebra, na época em que Gilvino mandava,
vivia um rapaz talvez parecido com você, um rapaz inteligente e
brincalhão. Pegaram seus cadernos cheios de brincadeiras sobre Jesus Cristo
e as Escrituras. Haveria por que se irritar? — perguntou-se, sem dúvida, o
rapaz que tanto se parecia com você. Afinal de contas, ele não fizera nada
de mal, estava brincando, só isso. A raiva? Ele não a conhecia. Não conhecia,
sem dúvida, senão a zombaria e a indiferença. Foi executado.
Ah, não vá me julgar partidário de tamanha crueldade! Quero apenas dizer
que nenhum grande movimento que pretende transformar o mundo tolera
o sarcasmo ou a zombaria, porque tanto um quanto o outro são uma
ferrugem que corrói tudo.
Examine apenas sua atitude, Ludvik. Eles expulsaram-no do Partido,
expulsaram-no da faculdade, incluíram-no entre os soldados politicamente
perigosos e o mandaram por dois ou três anos para as minas. E você? Está
amargo, convencido de ter sido alvo de uma enorme injustiça. Esse
sentimento de injustiça determina até hoje todo o seu comportamento. Eu
não o compreendo! Por que é que você fala de injustiça? Eles mandaram
você para junto dos "negros" — os inimigos do comunismo. Certo! Mas isso
foi uma injustiça? Não teria sido, antes, para você uma grande
oportunidade? Você poderia ter agido no meio dos adversários! Existe missão
mais importante e elevada? Então não envia Jesus seus discípulos "como
cordeiros para o meio dos lobos"? "Não são os que estão com saúde que
precisam de médico, são aqueles que es tão doentes", disse Jesus. "Vim
chamar não os justos, mas os pecadores..." Só que você não queria ir para o
meio dos pecadores e dos doentes! Você me dirá que minha comparação é
inadequada. Que Jesus mandava seus discípulos "para o meio dos lobos" com
sua bênção, enquanto você foi primeiro excomungado e declarado herege, e
só depois enviado para o meio dos inimigos, como inimigo; para o meio dos
lobos, como lobo; para o meio dos pecadores, como pecador.
Mas você nega realmente seu pecado? Não sente mesmo nenhuma culpa
em relação à sua comunidade? De onde vem esse orgulho? O homem
devotado à sua fé é humilde e deve aceitar humildemente o castigo, mesmo
injusto. Os humilhados serão engrandecidos. Os arrependidos serão
absolvidos. Aqueles que foram prejudicados têm a oportunidade de provar
sua fidelidade. Se você for amargo com os outros pela única razão de que
eles puseram sobre seus ombros um fardo muito pesado, é porque sua fé é
fraca e porque você não saiu vencedor da prova que lhe foi imposta.
No seu litígio com o Partido, não estou do seu lado, Ludvik, porque sei que
as grandes coisas nessa terra só podem ser criadas com uma comunidade de
indivíduos que têm uma devoção sem limites, que humildemente dedicam
sua vida a um destino superior. Você, Ludvik, não tem uma devoção sem
limites. Sua fé é frágil. E não poderia deixar de ser, já que você só se refere a
si mesmo e à sua miserável razão! Não sou ingrato, Ludvik, sei o que você
fez por mim e também por tantos outros que o regime atual atingiu. Graças a
suas relações que datam de antes de Fevereiro com comunistas influentes, e
muito também pela sua situação atual, você influi nas decisões, você
intervém, você ajuda. Você me vê como amigo. Mas vou lhe dizer isto pela
última vez: olhe no fundo de sua alma! O motivo profundo de sua bondade
não é o amor, é o ódio! O ódio por aqueles que o prejudicaram em outra
época, levantando a mão naquela sala! Ignorando Deus, sua alma ignora o
perdão. Você deseja a vingança. Você identifica aqueles que lhe fizeram mal
no passado com aqueles que hoje fazem mal aos outros, e você se vinga. É,
você se vinga! Você está cheio de ódio, mesmo quando ajuda os outros! Sinto
isso. Sinto isso em cada uma de suas palavras. Mas o que produz o ódio, a
não ser o ódio como revanche e uma série de revanches? Você vive no
inferno, Ludvik, repito, no inferno, e tenho pena de você.
Se Ludvik ouvisse meu solilóquio, poderia achar que sou ingrato. Sei que ele
me ajudou muito. Quando, em 56, nos encontramos no trem, ele ficou
penalizado com meu destino e logo começou a procurar um trabalho que me
servisse, no qual eu pudesse mostrar minha capacidade. Sua presteza e sua
eficácia surpreenderam-me. Na sua cidade natal, falou com um de seus
colegas. Queria que eu ensinasse ciências naturais no liceu. Foi bem
audacioso de sua parte. Numa época em que a propaganda antirreligiosa
estava no auge, contratar um homem religioso para ensinar numa escola
secundária era quase impossível. Foi essa, aliás, a opinião de seu colega, que
encontrou outra solução: o serviço de virologia do hospital onde há oito anos
cultivo germes e bactérias em ratos e coelhos.
É isso. Sem Ludvik, eu não moraria aqui, nem Lucie.
Ela se casou alguns anos depois que deixei a fazenda. Não pôde ficar lá, pois
seu marido preferia trabalhar na cidade. Como os dois não sabiam onde
iriam se fixar, ela acabou conseguindo que eles se mudassem para a cidade
onde eu morava.
Em toda a minha vida não recebi presente melhor, recompensa mais
preciosa. Minha ovelha, meu pássaro, a criança a quem eu devolvera a
saúde, que alimentara com a minha alma, voltava para mim. Ela não me
pede nada. Tem seu marido. Mas quer ficar perto de mim. Precisa de mim.
Precisa ouvir-me de vez em quando. Ver-me na missa de domingo.
Encontrar-me na rua. Fiquei feliz e senti nesse momento que não era mais
jovem, que estava mais velho do que imaginava e que podia ser que Lucie
fosse a única obra de minha vida.
Isso é pouco, Ludvik? Não. É bastante, e eu estou feliz. Estou feliz. Estou
feliz...
Ah, como gosto de me enganar! Insistir como um maníaco na certeza de que
meu caminho é o melhor! Vangloriar-me do poder de minha fé diante de
um incrédulo! Sim, consegui fazer Lucie acreditar em Deus. Consegui
tranquilizá-la, curá-la. Livrei-a do horror que tinha das coisas do corpo.
Finalmente afastei-me de seu caminho. É, mas o que lhe proporcionei eu?
Seu casamento não deu certo. Seu marido é grosseiro, engana-a aos olhos de
todo mundo, e comenta-se que a maltrata. Lucie nunca me confessou isso.
Sabia a tristeza que eu sentiria. Esforçava-se em me mostrar» uma imagem
feliz de sua vida. Mas numa cidade pequena não se pode esconder nada.
Ah, como gosto de me enganar! Interpretei as maquinações políticas contra
o diretor da fazenda do Estado como um chamado cifrado de Deus para que
eu fosse embora. Mas, entre tantas vozes, como reconhecer a de Deus? E se
a voz captada na época fosse apenas a voz da minha covardia? Pois eu
tinha em Praga mulher e filho. Eles contavam pouco para mim, mas eu não
tinha sido capaz de um rompimento. Temia uma situação insolúvel. O amor
de Lucie me assustava. Não sabia o que fazer dele. Temia as complicações
que ele traria.
Eu me imaginava um anjo que lhe trouxera a salvação, e na verdade não
passava de um aproveitador a mais. Depois de tê-la amado uma só e única
vez, afastei-me dela. Procurava trazer-lhe o perdão, quando era ela que me
devia perdoar. Ela chorara de tristeza na hora de minha partida e no
entanto, depois de alguns anos, instalou-se aqui, por mim. Conversava
comigo. Dirigia-se a mim como a um amigo. Ela me perdoou. Aliás, tudo está
claro. Isso não me acontecera muitas vezes na vida, mas essa moça me
amava. Eu tinha a vida dela nas minhas mãos. Sua felicidade dependia de
mim. E eu fugi. Nunca ninguém foi tão culpado em relação a ela.
Subitamente, me veio a ideia de que invoco pretensos chamados divinos
como simples pretextos para escapar de minhas obrigações humanas. As
mulheres me dão medo. Temo o seu calor. Tenho medo de sua presença
contínua. A perspectiva de viver com Lucie assustou-me, da mesma forma
que me assusta a ideia de dividir de maneira duradoura o sala-e-quarto da
professora da cidade vizinha.
E por que, na verdade, há quinze anos larguei voluntariamente a
Universidade? Eu não amava a minha mulher, seis anos mais velha do que
eu. Não podia mais suportar sua voz, nem seus traços, nem o tique-taque
regular do relógio doméstico. Não tinha condições de viver por muito mais
tempo com ela, e não me era menos impossível apunhalá-la com um
divórcio, porque ela era boa pessoa e sempre tivera consideração por mim.
Ouvi então de repente a voz salvadora do chamado sublime. Ouvi Jesus me
exortar a largar minhas redes.
Oh, Senhor, é assim na verdade? Será que sou tão lamentavelmente
ridículo? Diga que não é assim! Dê-me essa certeza! Faça-se ouvir, meu
Deus! Mais alto! Mais alto! Nessa confusão de vozes misturadas, eu não O
ouço absolutamente!
SÉTIMA PARTE

LUDVIK – HELENA – JAROSLAV

Voltando da casa de Kostka para meu hotel tarde da noite, eu estava


decidido a partir para Praga no dia seguinte de manhã bem cedo, já que não
tinha nada mais a fazer aqui: minha missão enganosa na minha cidade natal
estava terminada. Por azar, a confusão que turbilhonava na minha cabeça
era tal que fiquei me revirando na cama (rangente) uma grande parte da
noite, sem conseguir pregar o olho; quando achava que finalmente tinha
dormido, estremecia de novo, só tendo o verdadeiro sono chegado de
madrugada. Por isso acordei muito tarde, por volta das nove horas, os ônibus
e os trens da manhã já tinham partido e era preciso esperar até as duas
horas da tarde pela próxima condução para Praga. Essa constatação não
deixava de me desesperar: eu me via como um náufrago, e senti uma súbita
e viva saudade de Praga, de meu serviço, de minha mesa de trabalho em
casa, de meus livros. Mas não havia nada a fazer; tinha que fazer das tripas
coração e descer para o restaurante.
Entrei de mansinho, muito circunspecto, temendo a possível presença de
Helena no lugar. Mas ela não estava lá (sem dúvida, com gravador a
tiracolo, já estava na cidade vizinha aborrecendo os transeuntes com seu
microfone e suas perguntas); em compensação, a sala fervia com uma
clientela barulhenta, sentada, fumando diante de seus canecos de cerveja,
seus cafés e seus conhaques. Pobre de mim, nem nessa manhã minha cidade
natal me concedeu a graça de um desjejum decente! Cheguei à calçada;
céu azul, pequenas nuvens rasgadas, primeiro peso do ar, uma leve poeira
suspensa, a rua que desemboca na grande praça com sua torre (é, aquela
que parece um cavaleiro medieval sob seu elmo), todo esse cenário me
envolveu com sua atmosfera de tristeza árida. Ao longe, ouvia-se uma voz
embriagada cantando uma envolvente canção da Morávia (canção que
parecia conter o feitiço da nostalgia, da planície e das longas cavalgadas dos
cavaleiros mercenários) e no meu pensamento surgiu Lucie, essa história
encerrada há muito tempo, que agora, com essa canção envolvente, parecia
golpear meu coração, atravessado (como se fosse a planície) por muitas
mulheres que não deixavam nada atrás de si, da mesma maneira que a
poeira suspensa não deixa nenhum traço nessa esplanada, deposita-se entre
os paralelepípedos e depois voa para mais longe, com o sopro do vento.
Caminhei sobre os paralelepípedos poeirentos e senti a pesada leveza do
vazio que pesava sobre minha vida: Lucie, a deusa das brumas que outrora
se recusara a ser minha, ontem tinha transformado em nada minha
vingança cuidadosamente premeditada e logo depois mudou até a
lembrança de si mesma numa espécie de zombaria aflitiva ou de impostura
grotesca, já que as revelações de Kostka comprovavam que durante todos
esses anos eu me recordara de uma outra mulher, que na realidade eu
nunca soubera quem era Lucie.
Eu sempre gostara de pensar que Lucie era para mim uma espécie de
abstração, uma lenda e um mito, mas agora percebia, atrás da poesia dessas
palavras, uma verdade sem poesia: eu não conhecia Lucie; não sabia quem
ela era de fato, quem era em si mesma e para si mesma. Não enxergara (em
meu egocentrismo juvenil) senão os aspectos de seu ser voltados
diretamente para mim (para minha solidão, minha servidão, para meu
desejo de ternura e de afeto), ela só existira para mim como parte da
situação que eu tinha vivido; tudo que nela ia além dessa situação concreta
da minha vida, tudo o que ela era em si mesma, me escapava. Mas, supondo
que ela na verdade só existira para mim em função de uma determinada
situação, era lógico que, visto que essa situação se transformara (que uma
outra situação lhe sucedera, que eu envelhecera e mudara), minha Lucie
também tivesse desaparecido, já que ela era apenas aquilo que dela me
escapava, aquilo que não me dizia respeito, aquilo que nela estava fora do
meu alcance. Da mesma forma, era inteiramente lógico que depois de
quinze anos eu não a tivesse em absoluto reconhecido. Há muito tempo ela
era para mim (e eu jamais a tinha considerado de outra maneira que não
"para mim") uma outra pessoa, uma desconhecida.
O atestado da minha derrota me perseguira durante quinze anos e afinal me
alcançara. Kostka (a quem eu jamais dera muita importância) significava
mais para ela, fizera mais por ela, conhecia-a mais do que eu e soubera amá-
la melhor (mais, certamente não, pois a força do meu amor atingira o
paroxismo): a ele, ela contara tudo — a mim, nada; ele a fizera feliz — eu,
infeliz; ele conhecera seu corpo — eu, nunca. E no entanto, para conseguir
na época esse corpo desesperadamente desejado, teria bastado uma coisa
muito simples: compreendê-la, orientar-se por ela, amá-la, não apenas pelo
aspecto da sua personalidade que se dirigia a mim, mas também por tudo
aquilo que não me dizia respeito de modo direto, pelo que ela era em si e
para si. Eu não sabia disso, e por isso fiz mal a nós dois. Uma onda de raiva
contra mim mesmo me inundou, raiva contra minha idade de então, contra
a estúpida idade lírica, em que somos a nossos olhos um enigma grande
demais para que possamos nos interessar pelos enigmas que estão fora de
nós, em que os outros (mesmo os mais amados) são apenas espelhos móveis
nos quais encontramos, espantados, a imagem de nosso próprio sentimento,
de nossa própria emoção, de nosso próprio valor. É, durante esses quinze
anos, pensei em Lucie apenas como no espelho que guarda minha imagem
do passado! De repente revi o quarto nu, com apenas uma cama, iluminado
pela luz da rua que atravessava o vidro sujo, revi a recusa selvagem de
Lucie. Tudo isso lembrava uma piada de mau gosto: pensei que ela fosse
virgem e ela se defendia justamente porque não era virgem e sem dúvida
tinha medo que eu descobrisse a verdade. A menos que sua recusa tivesse
outra razão (correspondendo à imagem que Kostka tinha de Lucie): suas
primeiras experiências sexuais marcaram-na profundamente e a seus olhos
tinham despojado o ato de amor do significado que lhe atribui a maioria das
pessoas; tinham esvaziado o ato de amor de toda ternura, de todo
sentimento de amor; para Lucie, o corpo era horrível, e o amor era
incorpóreo; entre a alma e o corpo instalara-se uma guerra silenciosa e
inflexível.
Essa interpretação (tão melodramática, mas tão plausível) fazia-me recordar
a deplorável discórdia (dela eu vivera muitas variantes) da alma e do corpo,
e me lembrava (pois o triste aqui misturava-se continuamente com o
ridículo) uma aventura da qual eu rira bastante em outros tempos: uma boa
amiga, mulher de costumes consideravelmente flexíveis (dos quais eu fizera
uso várias vezes) ficou noiva de um certo médico, resolvida, dessa vez, a
viver enfim o amor; mas, para senti-lo como um verdadeiro amor (diferente
das dúzias de ligações que tivera), proibira ao noivo qualquer intimidade até
a noite de núpcias — passeava com ele à noitinha, segurava-lhe a mão,
trocava beijos à luz dos lampiões, permitindo à sua alma (livre do peso do
corpo) pairar alto nas nuvens e sucumbir às vertigens. Um mês depois do
casamento, divorciou-se e queixou-se amargamente de que seu marido
havia decepcionado seu grande amor, revelando-se um amante medíocre e
quase impotente.
Distante, interminável, o longo som da voz embriagada cantando a canção
morávia confundia-se com o sabor grotesco dessa história, com o vazio
poeirento da cidade e com a minha tristeza, que me aguçava ainda mais a
fome. Afinal vi-me a dois passos da leiteria; empurrei a porta, mas estava
fechada. Um cidadão que passava gritou:
— Hoje a loja inteira está na festa!
— A Cavalgada dos Reis?
— É! Eles têm um ponto de venda lá.
Soltei uma praga, mas tive que me resignar; segui na direção da canção.
Levado pelo meu estômago, fui em direção a essa quermesse do folclore, da
qual fugira como quem foge da peste.
Cansaço. Cansaço desde a madrugada. Como se eu tivesse farreado toda a
noite. No entanto dormi a noite inteira. Só que meu sono já não é um sono
que satisfaz. Tentava não bocejar enquanto engolia o café da manhã. Nisso,
as pessoas começaram a chegar. Amigos de Vladimir e depois toda espécie
de curiosos. Um sujeito da cooperativa trouxe até nosso pátio um cavalo
para Vladimir. No meio de toda essa gente apareceu Kalasek, o encarregado
da cultura do Comitê Nacional do Distrito. Há dois anos que estou brigando
com ele. Ele estava vestido de preto, tinha um ar solene e estava com uma
mulher elegante. Uma moça de Praga, jornalista de rádio. Parece que tenho
que acompanhá-los. A moça quer gravar umas entrevistas para uma
reportagem sobre a Cavalgada.
Pro inferno! Não estou com a menor vontade de bancar o palhaço. A
jornalista ficou entusiasmada por me conhecer e, claro, Kalasek colocou
lenha na fogueira. Parece que é meu dever político acompanhá-los. Palhaço.
Eu bem que teria resistido. Disse-lhes que era meu filho que fazia o rei e que
eu queria ficar ali enquanto ele se arrumava. Mas Vlasta me tinha traído.
Arrumar o filho era com ela. Só me restava sair e falar no rádio.
Cansado de lutar, obedeci. A jornalista se instalara num dos locais
pertencentes ao Comitê Nacional. Era lá que estava seu gravador, com um
rapaz que dele se encarregava. Como ela trabalhava com a língua, falava
sem parar! Falando, não parava de rir. Então, com o microfone embaixo do
nariz, fez a primeira pergunta a Kalasek.
Ele tossiu um pouco e começou. A prática das artes populares era parte
integrante da educação comunista. O Comitê Nacional do Distrito tinha
plena consciência disso. Era por essa razão que apoiava plenamente.
Desejava-lhes pleno êxito e participava plenamente. Agradecia a todos
aqueles que tinham participado. Esses organizadores entusiastas e essa
entusiástica juventude escolar que... plenamente.
Cansaço, cansaço. As mesmas frases de sempre. Ouvir há quinze anos as
mesmas frases de sempre. E ouvi-las da boca de um Kalasek, que não liga a
mínima para a arte popular. A arte popular, para ele, é um meio. De gabar-se
de mais uma coisa. De atingir um objetivo. De acentuar seus méritos. Ele não
mexeu um dedo pela Cavalgada dos Reis, deixando tudo que pôde nas
nossas costas. Apesar disso, a Cavalgada vai entrar no seu ativo. É ele que
reina sobre a cultura a nível do distrito. Um antigo caixeiro de loja que não
sabe distinguir um violino de uma guitarra.
A jornalista levara o microfone de volta aos seus lábios. Se eu estava este ano
satisfeito com a Cavalgada? Quase ri na sua cara: a Cavalgada nem tinha
começado! Mas foi ela que riu: um folclorista tão experiente como eu
deveria saber como seria. É verdade que eles são assim, sabem tudo de
antemão. O desenrolar das coisas futuras já é conhecido por eles. O futuro já
aconteceu e, para eles, apenas irá se repetir.
Tive vontade de despejar tudo que tinha no coração. Que a Cavalgada não
seria igual à dos anos anteriores. Que a arte popular perdia cada vez mais
adeptos. Que as autoridades não ligavam para isso. Que essa arte estava
praticamente morta. Que não devíamos nos iludir porque ouvíamos com
frequência no rádio uma espécie de música popular. Todos esses conjuntos
de instrumentos populares, esses grupos de cantos e danças populares, eram
mais ópera, ou opereta, música para passar o tempo, nunca música popular.
Uma orquestra de instrumentos populares com maestro, partitura e estante!
Quase uma orquestra sinfônica! Que deturpação! O que estão lhe
mostrando, senhora jornalista, os grupos e os conjuntos, é simplesmente o
velho pensamento musical romântico com empréstimos de melodia popular!
A verdadeira arte do povo, cara senhora, está morta.
Quis despejar tudo isso no microfone, mas disse outra coisa. A Cavalgada dos
Reis estava linda. O vigor da arte popular. O festival de cores. Eu
participava plenamente. Agradecia a todos os participantes. O entusiasmo
dos animadores e das crianças das escolas, que... plenamente.
Sentia vergonha de falar como eles queriam que eu falasse. Seria assim tão
covarde? Ou tão disciplinado? Ou então estaria assim tão cansado? Estava
bem contente de ter terminado meu discurso e de poder ir embora. Tinha
pressa de chegar em casa. No pátio, um bando de curiosos e auxiliares de
toda espécie se agitava em torno do cavalo, com laços e um monte de fitas
na mão. Eu pretendia ver Vladimir se vestir. Entrei na casa, mas a porta da
sala de estar, onde o estavam vestindo, estava fechada à chave. Bati e
chamei. De dentro, Vlasta me respondeu. Você não tem o que fazer aqui, o
rei está se vestindo. Por Deus, disse eu, por que não posso entrar? É contra a
tradição, retrucou a voz de Vlasta. Eu não via por que a presença paterna
na hora de o rei se vestir contrariava a tradição, mas não tentei dissuadi-la.
Agradava-me saber que eles estavam cativados pelo meu universo. Meu
universo pobre e órfão.
Então voltei para o pátio, para conversar com aqueles que estavam
enfeitando o cavalo. Era um pesado animal de tração, emprestado pela
cooperativa. Paciente e inteiramente confiável.
Ouvi um alarido na rua através do portão de entrada. Pouco depois,
chamaram e bateram. Tinha chegado minha hora. Fiquei emocionado. Abri a
porta e saí. A Cavalgada dos Reis estava lá, formada em frente à nossa casa.
Cavalos enfeitados, cobertos de fitas. Montados por jovens com vistosos
trajes tradicionais. Como há vinte anos. Como há vinte anos, quando vieram
me buscar. Quando vieram pedir a meu pai para lhes dar seu filho como rei.
Na frente do cortejo, bem perto da nossa porta, os dois escudeiros
permaneciam montados, vestidos de mulher, espada em punho. Esperavam
Vladimir para acompanhá-lo e protegê-lo até de noite. Um cavaleiro deixou
a fila, parou seu cavalo e declamou: Salve, salve! Ouvi todos vós! Amável
pai, deixai que em grande brilho, Como rei, venha a nós o vosso filho!
Prometeu que cuidariam muito bem de seu rei. Que fariam com que ele
atravessasse sem dano as forças hostis. Que não o deixariam cair na mão dos
inimigos. Que estavam dispostos a lutar por isso. Salve, salve.
Virei a cabeça: na penumbra do portão de entrada, já se destacava em seu
cavalo coberto de fitas uma silhueta com os tradicionais enfeites femininos,
mangas bufantes, fitas coloridas caindo-lhe sobre o rosto. O rei. Vladimir.
Subitamente, esqueci meu cansaço e minha contrariedade e me senti bem.
O velho rei envia ao mundo o jovem rei. Cheguei até ele. Bem perto do
cavalo, levantei-me na ponta dos pés, os lábios estendidos em direção a seu
rosto mascarado.
Ele não respondeu. Não se mexeu. E Vlasta me disse sorrindo: — Ele não
tem o direito de responder. Durante o dia inteiro não deve dizer uma só
palavra.
Cheguei à aldeia em menos de quinze minutos (na época de minha
adolescência, ela era separada da cidade pelos campos; hoje forma com ela
um só conjunto); a canção que um momento antes eu ouvira na cidade
ecoava com força nos alto-falantes presos nas fachadas ou nos postes de fios
de luz (eterno idiota que sou: um momento antes deixei-me entristecer pela
nostalgia e suposta embriaguez dessa voz longínqua, que não era senão uma
voz reproduzida, resultado de uma instalação técnica e de um par de discos
arranhados!); na entrada da aldeia, haviam erguido um arco de triunfo, e
nele haviam colocado uma faixa larga que trazia, em letras ornamentais, a
inscrição: BOAS-VINDAS A TODOS; aqui o tumulto era maior, a maioria das
pessoas usava roupas comuns, mas uns três ou quatro velhos haviam tirado
dos baús suas roupas regionais: botas de cossaco, calça de linho branco e
camisa bordada. Depois a rua se alargava, transformando-se numa grande
praça: entre a calçada e o alinhamento das casas baixas se estendia um
espaço verde, com algumas árvores pequenas e algumas barracas (para a
festa de hoje) em que se vendiam cerveja, limonada, amendoim, chocolate,
pão de mel, salsicha com mostarda e biscoitos; a lei teria municipal também
tinha aqui sua barraca: leite, queijos, manteiga, iogurte e creme azedo;
embora nenhum barraca oferecesse bebida alcoólica, quase todo o mundo
me pareceu embriagado; as pessoas esbarravam umas nas outras,
acotovelavam-se diante dos vendedores, embasbacavam-se; de vez em
quando um braço se levantava num gesto exagerado, alguém começava a
cantar, mas era sempre um rebate falso, dois ou três com passos de música
que eram logo engolidos pela barulheira ambiente, dominada pelo disco do
alto-falante. Por toda a parte já se via no chão da praça (embora a festa
tivesse apenas começado) copos de papel para cerveja e papéis sujos de
mostarda.
Com sua proposta de antialcoolismo, a barraca de laticínios desencorajava o
público; tendo conseguido, quase sem demora, um copo de leite e um
croissant, afastei-me das cotoveladas para degustar meu leite em pequenos
goles. Nesse momento elevou-se um clamor do outro lado da praça: surgia a
Cavalgada dos Reis.
Pequenos chapéus pretos de copa redonda e pena de galo, grandes mangas
pregueadas das camisas brancas, boleros azuis e curtos com pompons de lã
vermelha, serpentinas de papel penduradas nos arreios dos cavalos
enchiam a pra£a; na barulheira das vozes humanas e da música do alto-
falante, novos sons se intercalaram: o relinchar dos cavalos e os apelos dos
cavaleiros: Salve, salve! Ouvi todos vós, gente do vale e da costa, o que
houve este domingo de Pentecostes.
Temos um rei necessitado, porém mais que tudo honrado, mil cães lhe foram
roubados do seu castelo sem nada...
Para os ouvidos e os olhos nascia uma imagem confusa, na qual os elementos
brigavam uns com os outros: folclore dos alto-falantes contra folclore a
cavalo; cores das roupas e dos cavalos contra o marrom e o cinza das roupas
mal cortadas dos espectadores; espontaneidade elaborada dos cavaleiros
contra empenho laborioso dos homens de braçadeira vermelha que,
correndo entre os cavalos e o público, se esforçavam para manter a multidão
dentro dos limites razoáveis, tarefa nada fácil, não apenas por causa da
indisciplina dos curiosos (felizmente, pouco numerosos), mas sobretudo
porque não se tinha proibido o tráfego na rua; postados na frente e no fim
do cortejo, os homens da braçadeira vermelha faziam sinal para que os
carros diminuíssem a marcha; assim, entre os cavalos se infiltravam ônibus
de turismo, caminhões e motocicletas barulhentas que enervavam os
cavalos e atrapalhavam os cavaleiros. Para dizer a verdade, na minha
insistência em implicar com essa festa folclórica (com essa ou qualquer
outra), eu tinha temido uma coisa diferente do que via: contava com o mau
gosto, com a mistura de arte popular autêntica e de banalidades, com
discursos inaugurais de oradores estúpidos, é, eu esperava pelo pior, pela
pompa e pelo espalhafato, mas não esperava por aquilo que desde o começo
marcava essa festa: essa triste e comovente pobreza; ela estava como que
colada a tudo: a esse pobre amontoado de barracas de feira, a esse público
espalhado, inteiramente desordenado e distraído, a esse conflito entre o
tráfego de automóveis e a festa antiquada, a esses cavalos que empinavam
por qualquer coisa, a esse alto-falante barulhento cuja inércia mecânica não
parava de berrar suas duas canções, encobrindo (com o barulho das
motocicletas) o esforço dos jovens cavaleiros que, as veias do pescoço
inchadas, gritavam seus versos.
Terminado meu leite, joguei fora o copo, e a cavalgada, que já desfilara o
suficiente pela praça, começou sua peregrinação de muitas horas pela
aldeia. Eu conhecia tudo isso de longa data: no último ano da guerra, eu
mesmo havia desfilado como escudeiro (com uma bela roupa de mulher e
espada na mão), ladeando Jaroslav, que era o rei. Não tinha vontade de me
deixar comover por minhas lembranças, no entanto (como se a pobreza do
espetáculo me tivesse desarmado) não queria também me obrigar a dar as
costas a esse quadro; segui lentamente o grupo a cavalo, que agora tomava
toda a rua; no centro ia uma trindade: o rei, cercado por seus dois escudeiros
com roupa de mulher e uma espada. Um pouco afastados, os outros
cavaleiros da escolta real corriam em volta: os chamados ministros. O resto
estava dividido em duas filas que cavalgavam ao longo dos dois lados da
rua; aqui também os papéis eram divididos de modo preciso: havia os porta-
bandeiras (a haste do estandarte era presa no cano das botas, de maneira
que a franja do tecido vermelho caía na altura do flanco do cavalo), havia os
arautos (recitando em cadência, diante de cada casa, um texto sobre o rei
necessitado mas honrado, a quem tinham roubado mil cães de seu castelo
onde não havia nada) e, por último, os pedintes (cujo único papel consistia
em pedir, estendendo uma cesta de vime: "Para o rei, mãezinha, para o rei!"
Eu lhe agradeço, Ludvik, só o conheço há oito dias, e o amo como nunca
amei ninguém, amo você e acredito em você, não penso em nada,
simplesmente acredito em você, porque, mesmo que minha razão, meu
sentimento e minha alma me enganassem, o corpo não tem maldade, o
corpo é mais honesto do que a alma, e meu corpo sabe que antes nunca
viveu o que viveu ontem, luxúria, fervor, crueldade, prazer, violências,
meu corpo nunca sonhou nada de parecido; nossos corpos ontem uniram-se
num juramento, e nossas cabeças agora devem apenas obedecer, só o
conheço há oito dias, e lhe agradeço, Ludvik.
Agradeço também porque você chegou no momento exato, porque você me
salvou. O dia estava bonito hoje de manhã, o céu azul, eu repleta de azul,
tudo correu bem desde cedo, fomos à casa dos pais para gravar a Cavalgada
que iria buscar seu Rei e foi lá que ele me apanhou de surpresa, levei um
susto, não esperava que ele chegasse tão cedo de Bratislava, e não esperava
também que fosse tão cruel, imagine, Ludvik, que ele veio com ela, sujeito à-
toa.
E eu, que como uma idiota imaginava que meu casamento não estava
completamente acabado, que ainda poderia haver uma forma de salvá-lo,
eu, idiota, que quase abri mão de você por causa desse casamento
fracassado, quase recusei esse encontro aqui, eu, idiota, que estava quase me
deixando enganar mais uma vez por aquela voz melosa que me disse que
pararia para me apanhar quando voltasse de Bratislava, que tinha muita
coisa para me dizer com toda a sinceridade, e, em vez disso, ei-lo que chega
agarrado nessa guria, essa camundonga de vinte e dois anos, treze anos mais
moça do que eu, que desaforo sair perdendo só porque nasci mais cedo, tive
vontade de urrar de impotência, só que isso não me era permitido naquelas
circunstâncias, tive que sorrir e educadamente apertar-lhe a mão, ah,
Ludvik, obrigada por me dar forças.
Quando ela se afastou um pouco, ele disse que poderíamos discutir
sinceramente, os três juntos, seria mais honesto, honestidade, honestidade,
eu conheço a honestidade dele, há dois anos vem me enrolando com esse
divórcio, ele sabe que não vai sair nada de nossas conversas a dois, por isso
achava que eu perderia a cabeça diante dessa garota, que recuaria diante do
papel vergonhoso de mulher enganada, que iria sucumbir, soluçar, capitular.
Eu o detesto por esse golpe baixo no momento em que eu trabalhava na
reportagem, quando tinha necessidade de ficar tranquila, ele deveria ao
menos respeitar meu trabalho, respeitá-lo um pouco, mas há anos e anos que
isso é assim, grosserias, derrotas, humilhações contínuas, mas dessa vez dei a
volta por cima, sentia você por trás de mim, você e seu amor, sentia você
ainda sobre mim e dentro de mim, e aqueles belos cavaleiros gritando, cheios
de alegria, como se gritassem que existe você, que existe a vida, que existe o
futuro, e senti em mim o orgulho que quase perdera, esse orgulho me
inundou, consegui dar um belo sorriso e lhe disse: não há nenhuma
necessidade de eu lhe impor minha presença até Praga, tenho o carro da
rádio, e, quanto ao entendimento com que você" se preocupa, isso pode ser
resolvido bem depressa, posso muito bem apresentar a você o homem com o
qual quero viver, não teremos nenhuma dificuldade em chegar a um
acordo.
Talvez eu tenha cometido uma loucura, se foi esse o caso, pouco me
importa, certamente valia a pena esse momento de orgulho delicioso, logo
sua amabilidade multiplicou-se por cinco, ele ficou visivelmente satisfeito,
mas teve medo que eu estivesse falando no ar, me fez repetir e no fim eu
lhe disse seu nome e seu sobrenome. Ludvik Jahn, Ludvik Jahn, e no fim eu
disse expressamente: não tenha medo, você tem a minha palavra quanto ao
nosso divórcio, desisti de criar dificuldades, não se aflija, não quero mais
saber de você, mesmo que você me queira. Ele respondeu que decerto
continuaríamos bons amigos, eu sorri e respondi-lhe que quanto a isso eu não
tinha dúvidas.
Quando eu ainda tocava clarineta, antigamente, quando fazia parte da
orquestra, quebrávamos a cabeça para tentar compreender o significado da
Cavalaria dos Reis. Quando o rei Matias, derrotado, fugiu da Boêmia para
voltar à sua Hungria, ele e sua cavalaria foram obrigados a se esconder de
seus perseguidores tchecos nesse canto da Morávia, onde só sobreviveram
mendigando comida. A tradição dizia que a Cavalgada conservava a
lembrança desse fato histórico do século XV, mas uma rápida consulta a
documentos antigos bastou para revelar que esse costume era muito anterior
à desastrosa aventura do soberano magiar. Qual é então sua origem, e qual o
seu significado? Viria do paganismo, reminiscência das cerimônias nas quais
os adolescentes passavam à condição de adultos? E por que o rei e os seus
escudeiros se vestem com roupas de mulher? Seria a lembrança do
subterfúgio com o qual uma parte dos soldados (os de Matias ou outros de
época anterior) conseguiu fazer com que seu chefe, disfarçado dessa
maneira, passasse pelo território inimigo? Ou seria a sobrevivência da antiga
crença paga no poder de proteção que teria o disfarce feminino contra os
espíritos do mal? E por que o rei, do começo ao fim, não pode falar? E por
que se diz Cavalgada dos Reis, quando o rei é um só? Qual o significado disso
tudo? Não se sabe. Não faltam hipóteses, mas nenhuma pode ser
comprovada. A Cavalgada dos Reis é um rito misterioso; ninguém sabe o seu
sentido ou sua mensagem, mas, do mesmo modo que os hieróglifos do Egito
antigo são mais belos para quem não sabe decifrá-los (vendo-os apenas como
desenhos fantásticos), é possível que a Cavalgada dos Reis seja assim tão
bonita porque o conteúdo do que comunica se perdeu há muito, o que faz
com que os gestos, as cores, as palavras, fiquem mais em evidência,
chamando mais atenção para seu aspecto e sua forma.
Assim, a minha desconfiança diante do começo confuso desse cortejo
acabou desaparecendo, para minha surpresa, e de repente fiquei encantado
com a imagem daquela tropa a cavalo que avançava lentamente de casa em
casa; os alto-falantes, que ainda há pouco difundiam a voz estridente de
uma cantora, calaram-se, e não se ouvia nada (fora o barulho dos carros, que
há muito tempo eu me habituara a subtrair de minhas impressões acústicas)
senão a estranha música dos apelos dos arautos.
Eu tinha vontade de ficar ali, de fechar os olhos e de escutar apenas: no
coração dessa cidade da Mora via, eu tinha consciência de que ouvia versos,
no sentido mais primitivo dessa palavra, versos como nem o rádio, nem a
televisão nem um palco de teatro me mostrariam, versos como um solene
chamado rítmico aos confins da palavra e do canto, versos que cativavam o
ouvinte apenas com a força de sua métrica, como sem dúvida teriam
cativado seus ouvintes os versos pronunciados nos anfiteatros antigos. Era
uma música sublime e polifônica: cada arauto recitava num tom
monocórdio, mas numa tonalidade diferente, de maneira que,
involuntariamente, as vozes se associavam em harmonia; além disso, os
apelos dos arautos não eram simultâneos, cada um lançava seus versos num
momento distinto, perto de uma casa diferente, de tal modo que as vozes,
associando-se de um lado e de outro, compunham um coro de muitas vozes;
uma terminava, uma segunda estava no meio, e sobre essa já se inseria uma
terceira em outro tom.
A Cavalgada dos Reis seguiu muito tempo pela rua principal (sempre
intimidada pelos carros que passavam), depois, num cruzamento, ela se
separou; a ala direita continuou seu percurso em linha reta, a ala esquerda
virou numa ruazinha, logo atraída em direção a uma casinha amarela com
janelas baixas e um jardim coberto de flores coloridas. O arauto estava
inspirado e fazia improvisações engraçadas: a casinha podia se orgulhar de
sua bela fonte e a dona da casa tinha um filho que era um bicho-papão; de
fato, havia uma bomba d'água diante da entrada, e a gorda quarentona, sem
dúvida encantada com o título conferido ao filho, ria da brincadeira
entregando uma nota ao cavaleiro (pedinte) que mendigava: "Para o rei,
mãezinha, para o rei!" A nota mal tinha desaparecido na cesta pendurada
no cavalo e um novo arauto chegava gritando para a quarentona que ela era
moça e bonita, mas que ele gostava mais ainda da sua boa aguardente de
mirabela; virando a cabeça para trás, ele fingiu beber, com uma das mãos em
concha junto aos lábios. Todos em volta riam, e a quarentona, encabulada
mas encantada, afastou-se; sem dúvida previra tudo, pois voltou a aparecer
com uma garrafa e ofereceu bebida aos cavaleiros.
Enquanto eles bebiam e gracejavam, um pouco adiante, cercado por seus
escudeiros, o rei permanecia espigado na sela, imóvel, grave, como talvez
convenha que os reis permaneçam, graves, ausentes e solitários, em meio ao
tumulto de seus exércitos. Os cavalos dos dois escudeiros estavam
encostados em cada lado da montaria do rei, o que fazia com que os três
cavaleiros quase se tocassem, bota contra bota (seus cavalos tinham, no
peitoral, um grande coração feito de pão de mel, coberto de pequenos
espelhos e de açúcar colorido, na cabeça rosas de papel, as crinas trançadas
com fitas coloridas). Os três cavaleiros mudos estavam vestidos com suas
roupas de mulher: saia larga, mangas bufantes engomadas, na cabeça uma
touca ricamente enfeitada; só o rei usava, em vez dessa touca, um diadema
de prata brilhante, de onde caíam três fitas compridas e largas, uma
vermelha no meio e as outras duas azuis, que lhe cobriam todo o rosto,
dando-lhe um ar estranho e patético.
Fiquei extasiado diante dessa trindade estática; vinte anos antes, estivera,
como eles, sentado em cima de um cavalo ornamentado, mas na época
tinha visto de dentro a Cavalgada dos Reis, portanto não tinha visto nada.
Só agora a vejo realmente, e não consigo desviar os olhos: o rei está montado
(a alguns metros de mim) e parece uma estátua enrolada numa bandeira,
bem defendida; e, quem sabe, digo comigo de repente, talvez não seja um
rei, mas uma rainha; talvez seja a rainha Lucie se manifestando com sua
verdadeira aparência, porque sua verdadeira aparência é justamente a
aparência velada.
Nesse momento eu me dei conta de que Kostka, que reunia em si a teimosia
da reflexão e o delírio, era um original, de maneira que tudo o que ele
contara era possível mas incerto; é verdade que ele conhecia Lucie e que
talvez soubesse muito sobre ela, no entanto o essencial lhe tinha escapado:
aquele soldado que queria possuí-la num quarto emprestado, na casa de um
mineiro, era na verdade amado por Lucie; como poderia eu levar a sério a
história de uma Lucie juntando flores em nome de uma vaga tendência à
religiosidade, quando lembrava-me muito bem de que ela as colhia para
mim? £ se ela não tinha dito uma palavra sobre isso a Kostka, nem tampouco
sobre nossos ternos seis meses de amor, é que, mesmo diante dele, ela
guardara um segredo inacessível, e que portanto ele também não a
conhecia; e ele também não estava certo de que era por causa dele que ela
havia escolhido morar nessa cidade; podia ser que ela tivesse vindo parar
aqui por acaso, mas também era possível que fosse por minha causa, já que
sabia que essa era minha cidade natal. Eu sentia que a violação inicial de
Lucie era verdade, mas tinha dúvidas quanto às circunstâncias precisas: a
história se coloria, em alguns trechos, com o vermelho do olhar de alguém
que se excitava com o pecado, em outros momentos com um azul tão azul
que só poderia vir de um homem acostumado a contemplar o céu; estava
claro: no relato de Kostka a verdade se juntava à poesia e não era senão uma
lenda a mais (talvez mais próxima da verdade, talvez mais bela ou mais
profunda) que encobria a lenda antiga.
Eu olhava o rei velado e vi Lucie atravessar (irreconhecida e irreconhecível)
majestosa (e ironicamente) minha vida. Depois (por uma estranha pressão
externa) meu olhar desviou-se para o lado, encontrando num só relance o
olhar de um homem que devia estar me olhando há algum tempo e que
sorria.
— Olá! — disse ele, e infelizmente dirigiu-se até mim.
— Olá — respondi.
Ele me estendeu a mão; apertei-a. Nisso ele virou a cabeça e chamou uma
moça que eu não notara: — O que você está fazendo? Vem cá, quero te
apresentar! A moça (magra, graciosa, cabelos e olhos castanhos)
cumprimentou-me dizendo: — Brozova.
Estendeu-me a mão, e eu respondi: — Muito prazer. Eu sou Jahn. Ele, jovial,
exclamou: — Meu caro, há quantos anos não o vejo! Era Zemanek.
Cansaço, cansaço. Eu não conseguia ver-me livre do cansaço. Agora que já
possuía seu rei, a Cavalgada tinha partido em direção à praça, e eu
contentei-me em ir atrás. Respirava fundo para vencer o cansaço. Parava
diante das casas dos vizinhos, que haviam posto o nariz para fora da porta e
pasmavam. De repente tive a sensação de que estava na hora de botar
minha vida em ordem. Que tinham acabado as ideias de viagens e
aventuras. Que eu estava irremediavelmente confinado nas duas ou três
ruas onde passava minha vida.
Quando cheguei à praça, a Cavalgada já se afastava lentamente pela rua
principal. Estava disposto a segui-la, mas de súbito vi Ludvik. Estava em pé
sobre a grama perto da rua, olhando os rapazes a cavalo com ar sonhador.
Maldito Ludvik! Que fosse para o diabo! Até agora era ele que me evitava,
pois bem, hoje sou eu que vou evitá-lo! Girei nos calcanhares e fui sentar-me
num banco debaixo de uma das macieiras da praça. Assim, sentado de modo
confortável, ouviria o eco abafado dos apelos dos arautos.
Fiquei no banco escutando e olhando. A Cavalgada dos Reis afastava-se
pouco a pouco, miseravelmente espremida contra a beira da calçada pelos
carros e pelas motos que passavam sem cessar. Era seguida por alguns
desocupados. Um pequeno grupo patético. Cada dia há menos gente que
quer assistir à Cavalgada dos Reis. Em compensação, temos Ludvik. O que
foi que ele veio fazer aqui? Que o diabo te carregue, Ludvik. Agora é tarde
demais. Tarde demais para tudo. Você veio como um mau presságio. Sinal de
azar. E justamente quando o meu Vladimir é rei! Desviei os olhos. Sobre a
praça da aldeia não havia mais do que uma dúzia de retardatários em volta
das barracas, em frente à entrada do café. Quase todos bêbados. Os
beberrões são os mais fiéis defensores dos programas folclóricos. Seus últimos
defensores. De tempos em tempos têm uma boa razão para beber um trago.
Um velhinho, o vovô Pechacek, se sentara a meu lado. Não é como nos
velhos tempos. Concordei. Não é mais como era. Como deveriam ser lindas
essas Cavalgadas há algumas décadas ou séculos atrás! Sem dúvida não
eram tão coloridas como as de hoje em dia. Agora são um pouco exageradas,
carnavalescas. Esses corações de pão de mel no peito dos cavalos! Essas
toneladas de guirlandas de papel compradas nas lojas! Antigamente os trajes
também eram coloridos, mas eram mais simples. Como enfeite, os cavalos
tinham apenas um grande lenço vermelho amarrado no pescoço. O rei não
usava essa máscara de fitas coloridas, só um simples véu. Além disso,
segurava uma rosa entre os dentes. Para não falar.
É isso, vovô, antigamente era bem melhor. Não era preciso ninguém suplicar
aos jovens para que concordassem em participar da Cavalgada de boa
vontade. Não havia necessidade de todas essas reuniões preliminares, com
bate-bocas infindáveis, para saber quem se encarregará da organização, para
quem reverterá o lucro! A Cavalgada brotava da vida do campo como de
uma nascente. Galopava de aldeia em aldeia procurando seu rei mascarado.
Às vezes encontrava um outro, de outra aldeia, e travava-se uma batalha.
Os dois lados defendiam seu rei furiosamente. Às vezes, no choque entre
facas e sabres, corria sangue. Quando a Cavalgada conseguia prender um rei
estrangeiro, bebia no albergue até cair, às custas do pai desse rei.
O senhor tem razão, vovô. Quando eu fui rei, durante a Ocupação, não era
como hoje. Mesmo depois da guerra, ainda valia a pena. Todos nós
achávamos que iríamos fabricar um mundo novo. E que as pessoas voltariam
a viver as antigas tradições. Que até a Cavalgada brotaria outra vez das
profundezas da vida delas. Nós queríamos encorajar isso. Nós nos
matávamos organizando festas populares. Só que não se pode organizar uma
nascente. X)u ela brota por si, ou não existe. Veja bem, vovô, onde estamos:
nossas pequenas canções, nossas cavalgadas e tudo o mais viraram bagaço.
As últimas gotas, bem pequenas, as últimas.
Enfim. Foi-se a Cavalgada. Devia ter entrado numa rua transversal. Mas
ouviam-se ainda os apelos dos arautos. Eram esplêndidos. Fechei os olhos e
por um momento imaginei que vivia num outro tempo. Num outro século.
Muito antigo. Depois abri os olhos e disse comigo que era bom que Vladimir
fosse o rei. Era o rei de um reino quase morto, mas esplêndido. Um reino ao
qual eu seria fiel até o seu fim.
Levantei-me do banco. Alguém me cumprimentou. Era o velho Koutecky.
Há muito não o via. Andava com dificuldade, apoiado numa bengala.
Jamais gostara dele, mas tive pena de sua velhice.
— Onde vai assim? — perguntei-lhe.
Disse-me que o pequeno passeio de domingo era bom para a saúde.
— Gostou dessa Cavalgada? Fez um gesto de pouco caso: — Nem olhei.
— Ora, por quê? — perguntei.
Novo movimento da mão, mais irritado; no mesmo instante percebi por que:
Ludvik estava entre os espectadores. Koutecky, como eu, não queria
encontrá-lo.
— Compreendo — disse-lhe. — Meu filho faz parte da Cavalgada, mas
também não tive vontade de segui-los.
— Seu filho, lá? Vladimir?
— Claro, ele é o rei!
Koutecky disse: — Essa não, é curioso.
— O que é que há de curioso? — perguntei.
— É muito curioso mesmo! — disse Koutecky, olhinhos brilhando.
— Afinal, o que há? — insisti.
— O que há é que Vladimir está com nosso Milos — disse Koutecky.
Eu não sabia quem era Milos. Ele explicou que era seu neto, filho de sua
filha.
— Mas não é possível — protestei —, vi quando ele saiu de nossa casa em
seu cavalo!
— Eu também o vi. Os dois saíram de nossa casa na moto de Milos —
afirmou o velho.
— Isso não tem pé nem cabeça! — disse eu, apressando-me porém em
perguntar: — E para onde foram?
— Bom, se você não sabe, não sou eu que vou lhe contar! — disse Koutecky
despedindo-se.
Eu não contara com a possibilidade de encontrar Zemanek (Helena me
assegurara que ele só viria apanhá-la à tarde) e para mim, sem dúvida, era
extremamente desagradável encontrá-lo. Mas não podia fazer nada. Ele
estava lá e parecia absolutamente ele mesmo: seus cabelos amarelos eram
amarelos ainda, embora ele não os penteasse mais para trás em longas
mechas onduladas. Agora eram curtos e caíam sobre a testa, de acordo com
a moda; ele ainda andava de peito erguido e com a nuca para trás;
continuava jovial e satisfeito, invulnerável, acompanhado das bênçãos dos
anjos e de uma moça cuja beleza imediatamente me fez lembrar a penosa
imperfeição do corpo com o qual passara minha tarde de ontem.
Esperando que nossa conversa fosse das mais breves, passei a responder da
maneira mais banal possível às banalidades que me eram dirigidas: ele
repetiu-me que não nos víamos há séculos, dizendo-se surpreso de me
encontrar justamente aqui, "nesse fim de mundo"; eu lhe disse que nascera
ali; ele desculpou-se dizendo que nesse caso, evidentemente, não era um
fim de mundo; a Srta. Brozova começou a rir. Não achei graça na
brincadeira, disse apenas que não me espantava vê-lo ali porque, se bem me
lembrava, ele sempre fora amante de folclore; a Srta. Brozova riu de novo e
declarou que não tinham vindo para a Cavalgada dos Reis; perguntei-lhe se
não gostava da Cavalgada; ela disse que não achava muita graça naquilo;
perguntei-lhe por quê; ela encolheu os ombros e Zemanek me disse: — Meu
caro Ludvik, os tempos mudaram.
Enquanto isso, a Cavalgada passara por mais uma casa, e dois cavaleiros
lutavam para controlar seus cavalos, que começavam a ficar agitados. Um
gritava com o outro, acusando-o de não saber controlar sua montaria, e as
palavras "besta!" e "idiota!" misturavam-se comicamente ao ritual da
festividade. A Srta. Brozova suspirou: — Seria engraçado se eles
disparassem! Zemanek teve um acesso de riso, mas os cavaleiros logo
conseguiram acalmar os cavalos, e o salve, salve dos arautos ressoou outra
vez solenemente pela aldeia.
Seguindo passo a passo esse sonoro grupo ao longo dos pequenos jardins
floridos, eu procurava em vão algum pretexto bem natural para me afastar
de Zemanek; tinha que andar documente ao lado de sua bonita
companheira e continuar a trocar frases: fiquei sabendo assim que em
Bratislava, onde ainda estavam de manhã cedo, o tempo estava bonito
como aqui; que tinham vindo no carro de Zemanek e que, mal tinham saído
de Bratislava, tinham sido obrigados a trocar as velas do carro; e também que
ela era uma das suas alunas. Eu soubera por Helena que ele dava cursos de
marxismo e leninismo na Universidade, apesar disso perguntei-lhe o que
ensinava. Ele respondeu filosofia (essa denominação de sua matéria
pareceu-me significativa; quatro ou cinco anos antes, ele ainda teria dito
marxismo, mas, depois, essa disciplina passou a gozar de um descrédito tal,
sobretudo entre os jovens, que Zemanek, para quem ser admirado era
sempre a preocupação principal, escondeu pudicamente o marxismo num
termo mais geral). Fingi surpresa dizendo que me lembrava muito bem que
Zemanek fizera curso de biologia; minha observação escondia uma alusão
irônica ao amadorismo frequente dos professores de marxismo, que eram
promovidos a especialistas, não graças a seus conhecimentos científicos mas
sim graças a suas qualidades de propagandistas. A Srta. Brozova interveio
então para declarar que os professores de marxismo tinham na cabeça uma
brochura política à guisa de cérebro, mas que ele, Pavel, era inteiramente
diferente. Para Zemanek, essas palavras vinham a calhar; ele protestou um
pouco, mostrando com isso sua modéstia, e provocando assim novos elogios
por parte da moça. Desse modo, fiquei sabendo que seu amigo era um dos
professores mais populares entre os estudantes, pelas mesmas razões que
desagradava à direção: dizia sempre o que pensava, tinha peito e tomava
sempre o partido dos jovens. Zemanek continuou a protestar um pouco, e
sua amiga me detalhou os diversos conflitos em que ele se envolvera nos
últimos anos: quiseram mesmo afastá-lo de seu cargo, porque, sem dar
importância aos programas antiquados, ele pretendia colocar os jovens a par
de tudo que estava mudando na filosofia moderna (era acusado de importar
de contrabando a "ideologia do inimigo"); tinha salvo um rapaz que queriam
expulsar da faculdade depois de uma molecagem (briga com um policial)
que o reitor (hostil a Zemanek) apresentava como um delito político', depois
dessa história, os estudantes organizaram uma votação secreta para saber
qual o professor mais popular, e ele ganhara. Zemanek não protestava mais
contra esse dilúvio de elogios, e eu disse à Srta. Brozova (com ironia
subentendida, mas infelizmente quase ininteligível) que eu a compreendia,
já que me lembrava que também no tempo de meus estudos seu atual
professor era dos mais bem-conceituados. Ela apressou-se em concordar: não
havia com o que se espantar; quanto ao dom da palavra, Pavel era
inigualável, e, numa discussão, não havia ninguém como ele para levar o
oponente à derrota! — É, isso é verdade — admitiu Zemanek rindo —, mas
se eu os derroto numa discussão, eles podem me derrotar por meios ainda
mais eficazes! Na vaidade desses conceitos, reencontrei Zemanek tal como o
conhecera; mas o conteúdo dessas palavras me dera medo: Zemanek
parecia ter abandonado radicalmente sua atitude anterior, e se eu agora
vivesse em seu meio, seria, por bem ou por mal, seu aliado. Era horrível, eu
não estava preparado para isso, ainda que essa mudança de atitude não
fosse de estranhar, ao contrário, acontecia com muitas pessoas, toda a
sociedade a vivia pouco a pouco. Mas de Zemanek eu não esperava isso; em
minha memória ele permanecera petrificado na atitude em que o vira pela
última vez, e agora eu lhe negava por completo o direito de ser uma pessoa
diferente daquela que eu conhecera.
Há pessoas que proclamam seu amor pela humanidade, e outras que
objetam, com razão, dizendo que não se pode amar senão no singular, amar
cada indivíduo; estou de acordo e acrescento que aquilo que vale para o
amor vale também para o ódio. O homem, essa criatura que aspira ao
equilíbrio, compensa o peso do mal que lhe atiraram sobre as costas com o
peso de seu ódio. Mas tente concentrar o ódio sobre a pura abstração dos
princípios, a injustiça, o fanatismo, a barbárie, ou então, se você pensa até
que a própria essência do homem é detestável, experimente odiar a
humanidade! Ódios como esses são sobre-humanos e é assim que o homem,
querendo descarregar seu ódio (do qual conhece o limite das forças), acaba
por concentrá-lo sobre um indivíduo.
Daí meu pavor. A qualquer momento, Zemanek poderia invocar sua
transformação (que ele acabara, aliás, de me mostrar com uma pressa
suspeita) e pedir meu perdão. E era isso que me parecia horrível. O que iria
eu dizer-lhe? O que iria responder-lhe? Como explicar-lhe que não podia
reconciliar-me com ele? Como explicar-lhe que ao fazer isso eu romperia
meu equilíbrio interior? Como explicar-lhe que um dos lados da minha
balança interior seria bruscamente projetado no ar? Como explicar lhe que o
ódio que tenho dele contrabalança o peso do mal que caiu sobre a minha
juventude? Como explicar-lhe que ele encarna esse mal? Como explicar-lhe
que tenho necessidade de odiá-lo?

Os corpos dos cavalos enchiam toda a rua. Vi o rei a alguns metros de mim.
Estava no seu cavalo, afastado dos outros. Junto a ele, outros dois cavalos,
outros dois rapazes: seus escudeiros. Eu estava desconcertado. Ele arqueava
um pouco as costas, como Vladimir. Permanecia imóvel, quase apático. Seria
ele? Talvez. Mas poderia também ser um outro.
Aproximei-me mais. Impossível que não o reconhecesse. Afinal, sua postura,
o menor de seus gestos habituais, conheço tudo isso de cor! Eu o amo, e o
amor tem seu instinto! Fui chegando pouco a pouco até ele. Poderia chamá-
lo. Nada mais simples. Mas seria inútil. O rei não deve falar.
A Cavalgada avançava uma casa. Ah, agora vou reconhecê-lo! O passo do
cavalo vai obrigá-lo a fazer um movimento que o trairá. O animal levantou
um joelho, o rei inclinou seu corpo, mas esse gesto não o traiu. As fitas na
frente de seu rosto continuavam desesperadamente opacas.
A Cavalgada tinha avançado mais algumas casas, um punhado de curiosos
(inclusive nós) tinha feito o mesmo, e nossa conversa abordou novos
assuntos: a Srta. Brozova tinha passado de Zemanek para sua própria
pessoa, explicando o prazer que sentia em pedir carona. Falava disso com tal
insistência (um pouco afetada) que compreendi que aquilo que eu estava
ouvindo era o manifesto de sua geração. A submissão a uma mentalidade de
geração (a esse orgulho do rebanho) sempre me repugnou. Quando a Srta.
Brozova desenvolveu o raciocínio (ouvi isso umas cinquenta vezes) de que a
humanidade se divide entre aqueles que dão carona (pessoas humanas, que
gostam de aventura) e aqueles que não dão carona (pessoas desumanas, que
têm medo da vida) chamei-a, brincando, de "teórica da carona". Ela
respondeu-me secamente dizendo que não era nem teórica, nem
revisionista, nem sectária, nem dissidente, que tudo isso eram palavras
nossas, que nós tínhamos inventado, que nos pertenciam e que para eles
eram estranhas.
— É — disse Zemanek —, eles são diferentes. Ainda bem que são diferentes!
E seu vocabulário também, felizmente. Nossos sucessos não lhes interessam,
nossos erros também não. Você não vai acreditar, mas, nos exames de
admissão para a faculdade, esses jovens não sabem mais nem o que foram os
processos de Moscou, Stalin para eles é apenas um nome. Imagine que a
maioria deles não sabe nem mesmo que há dez anos ocorreram os processos
políticos de Praga.
— É isso justamente que me parece abominável — disse eu.
— O fato é que isso não depõe nada a favor da instrução deles. Existe nisso,
porém, uma liberação para eles. Eles se fecharam para o nosso mundo.
Recusaram-no em bloco.
— Uma cegueira substitui outra.
— Eu não diria isso. Admiro-os justamente porque são diferentes de nós.
Eles gostam do próprio corpo. Nós negligenciamos os nossos. Eles gostam de
viajar. Nós ficamos parados. Eles gostam de aventuras. Nós perdemos nosso
tempo em reuniões. Gostam de jazz. Nós copiamos sem sucesso o folclore.
Eles se ocupam de si mesmos. Nós queríamos salvar o mundo. Com nosso
messianismo, quase o destruímos. Com seu egoísmo, talvez eles o salvem.
Como pode ser isso? O rei! Figura montada a cavalo, empertigada, com o
rosto velado por fitas coloridas. Quantas vezes vi isso, imaginei isso! Minha
mais íntima fantasia! E agora que ela está aí, transformada em realidade,
toda sua intimidade desapareceu. De repente não é senão uma larva
pintada de cores berrantes que não sei o que esconde. Mas, afinal, o que
pode existir de íntimo nesse mundo real, a não ser meu rei? Meu filho. O ser
que me é mais próximo. Em pé, diante dele, ignoro se é ele ou não. O que sei
então, se não sei nem isso? Do que posso ter certeza aqui na terra, se nem
mesmo essa certeza posso ter? Enquanto Zemanek se entregava ao elogio da
nova geração, eu olhava a Srta. Brozova e constatava com tristeza que ela
era bonita e simpática; sentia despeito por ela não ser minha. Ela andava ao
lado de Zemanek, a cada três segundos segurava o braço dele, virava-se
para ele, e eu me dava conta (como me tem acontecido com mais
frequência a cada ano que passa) que desde os tempos de Lucie não tinha
havido nenhuma moça que eu tivesse amado e respeitado. A vida caçoava
de mim enviando-me um lembrete do meu fracasso precisamente sob os
traços da amante desse homem que eu pensava ter derrotado na véspera,
numa grotesca luta sexual.
Quanto mais a Srta. Brozova me agradava, mais eu entendia que ela
pertencia totalmente a seus contemporâneos, para quem eu e as pessoas de
minha geração éramos confundidos numa mesma multidão uniforme,
marcados pelo mesmo jargão ininteligível, pelo mesmo pensamento
superpolitizado, pelas mesmas angústias, pelas mesmas experiências
estranhas de uma época negra e conturbada.
Nesse momento comecei a compreender: a semelhança entre mim e
Zemanek não se limitava ao fato de que, tendo mudado de opiniões, ele se
aproximara de mim; essa semelhança era mais profunda e abrangia nossos
destinos inteiros: o olhar da Srta. Brozova e de seus contemporâneos nos fez
parecidos mesmo onde nos confrontávamos com veemência. Senti de
repente que, se fosse forçado a contar-lhe minha expulsão do Partido, o
acontecimento iria parecer-lhe distante e muito literário (é, tema descrito
muitas vezes em maus romances) e nós dois seríamos para ela, nessa história,
igualmente antipáticos, minhas ideias e as dele, minha atitude e a dele
(ambas igualmente estranhas e monstruosas). Acima de nossa disputa, que
me parecia sempre tão viva e presente, eu via fecharem-se as águas
consoladoras do tempo, que, como todos sabem, apaga as diferenças entre
épocas inteiras, e portanto, com muito mais facilidade, entre dois pobres
indivíduos. Mas defendi-me com furor contra todo oferecimento de
reconciliação que o tempo me oferecia; afinal de contas, não vivo na
eternidade, estou ancorado nos meus trinta e sete anos e não quero romper
a cadeia (como Zemanek, que se adaptou tão depressa aos mais jovens); não,
quero continuar no meu destino, e na minha idade, mesmo que os meus
trinta e sete anos representem apenas um fragmento do tempo, ínfimo e
fugaz, que já está sendo esquecido, que já foi esquecido.
E se Zemanek se voltar familiarmente para mim, começar a falar do passado,
e pedir paz, recusarei; é, recusarei essa paz, mesmo que por ela intervenham
a Srta. Brozova, todos os seus contemporâneos e o próprio tempo.
Cansaço. De repente tive a tentação de jogar tudo para o alto. De ir embora
e de abandonar minhas preocupações. Não quero mais ficar nesse mundo
de coisas materiais que não compreendo e que me enganam. Existe ainda
um outro mundo. O mundo em que me sinto à vontade, em que me
reencontro. E lá existe um caminho, um desertor, um rabequista errante e
mamãe.
Acabei reagindo. É preciso. É preciso que eu leve até o fim minha luta com o
mundo das coisas materiais. É preciso que eu vá até o fundo de todos os
erros e de todas as armadilhas.
Deveria eu perguntar a alguém? Aos rapazes da Cavalgada? E se todos
rirem de mim? Voltei a pensar nessa manhã. Na hora de o rei se vestir. E de
repente, soube aonde ir.
Temos um rei necessitado, porém mais que tudo honrado, proclamavam os
cavaleiros, três ou quatro casas adiante, e nós seguíamos atrás das garupas
ricamente enfeitadas com fitas azuis, rosas, verdes ou roxas, quando de
repente Zemanek, apontando o dedo na direção deles, me disse: — Olha lá,
olha lá Helena.
Olhei na direção em que ele apontava, mas vi apenas os corpos coloridos dos
cavalos. Zemanek mostrou de novo: — Lá!
Enxerguei-a de fato, meio escondida atrás de um cavalo, e senti que
enrubescia; a maneira como Zemanek a mostrara para mim (ele não dissera
"minha mulher", mas "Helena") provava que ele sabia que eu a conhecia.
De pé na beira da calçada, Helena segurava um microfone, ligado por um
fio a um gravador que um jovem de blusão de couro e blue jeans, com fones
nos ouvidos, levava a tiracolo. Paramos não muito longe deles. Zemanek
disse (bruscamente, como quem não quer nada) que Helena era uma
mulher admirável, não apenas conservada, mas também muito capaz, e não
o espantava nada que eu me entendesse bem com ela.
Senti meu rosto enrubescer: não havia agressividade nesse comentário; ao
contrário, Zemanek o fizera num tom muito amável, e a Srta. Brozova me
olhava com um sorriso eloquente, como se se empenhasse em me fazer
compreender que sabia de tudo e que eu tinha sua simpatia, ou melhor, sua
cumplicidade.
Zemanek, descontraído, continuava a falar de sua mulher, esforçando-se
por me mostrar (com indiretas e alusões) que sabia de tudo, mas que não
tinha nada contra, tendo em vista seu liberalismo em relação à vida
particular de Helena; para emprestar às suas palavras uma leveza
despreocupada, ele apontou para o jovem que carregava o gravador e disse
que aquele rapaz (seus fones, observou ele, o tornavam semelhante a um
grande inseto) estava ameaçadoramente apaixonado por Helena já há dois
anos e que eu devia ficar atento. A Srta. Brozova começou a rir e perguntou
que idade ele tinha dois anos antes. Dezessete anos, precisou Zemanek, o
suficiente para apaixonar-se. Depois acrescentou, brincando, que Helena
não se interessava por garotos, que era uma mulher virtuosa, mas que um
garoto assim, quanto menos sucesso tem, mais interessado fica e mais
energicamente ataca. A Srta. Brozova (num tom de tagarelice sem
importância) acrescentou que, diante do garoto, eu talvez fosse um forte
adversário.
— Não estou tão certo disso — brincou Zemanek.
— Não esqueça que eu trabalhei nas minas. Isso me deu músculo —
respondi no mesmo tom de brincadeira, sem prestar atenção ao que essa
referência poderia provocar nessa conversa fútil.
— Você trabalhou nas minas? — perguntou a Srta. Brozova.
— É preciso tomar cuidado com esses garotos de vinte anos quando estão
em grupo — continuou Zemanek, aferrado no seu assunto. — Podem
liquidar com um sujeito que não lhes agrade.
— Muito tempo? — insistiu a Srta. Brozova.
— Cinco anos — respondi.
— E quando foi isso?
— Há nove anos eu ainda estava lá.
— Então é uma história antiga, desde então seus músculos já se atrofiaram...
— disse ela, a fim de acrescentar sua brincadeira ao bom humor geral.
Mas eu, naquele momento, estava pensando realmente nos meus músculos:
dizia comigo que eles não tinham se atrofiado nada, que eu continuava em
excelente forma e que poderia ganhar, de todas as maneiras possíveis, do
louro com quem conversava — mas que (e isso era o mais importante e o
mais triste de tudo) tinha apenas esses músculos para acertar com ele minha
velha dívida.
Imaginei mais uma vez que Zemanek se virava sorridente para mim e me
pedia para esquecer tudo o que acontecera entre nós, e me senti numa
cilada: seu pedido de perdão era sustentado não apenas por sua mudança
de opiniões, não apenas pelo tempo, não apenas pela Srta. Brozova e seus
contemporâneos, mas também por Helena (é, todos estão ao lado dele e
contra mim!), porque, perdoando o adultério de Helena, Zemanek comprara
meu perdão.
Quando vi (em minha imaginação) seu rosto de vigarista seguro de seus
poderosos aliados, fui possuído por um desejo tal de esmurrá-lo que me vi
realmente fazendo isso. Os cavaleiros vociferavam por todo lado, a Srta.
Brozova contava não sei o quê, o sol estava maravilhosamente dourado e eu
tinha diante de meus olhos espantados o sangue que escorria do rosto dele.
É, isso se passava na minha imaginação; mas o que faria eu na verdade
quando ele pedisse meu perdão? Com horror, compreendi que não faria
nada.
Chegamos aonde estavam Helena e seu técnico, que acabava de tirar os
fones de ouvido.
— Vocês já se conheceram? — perguntou Helena, surpresa de me ver com
Zemanek.
— Nós nos conhecemos há muito tempo — respondeu ele.
— Como? — Ela estava espantada.
— Desde os tempos de estudante: fizemos juntos a faculdade! — explicou
Zemanek, e tive então a impressão de que eu acabara de atravessar uma das
últimas passarelas por onde ele me levava ao local da infâmia (semelhante a
uma forca), no qual iria me pedir perdão.
— Meu Deus! Existem uns acasos... — disse Helena.
— Coisas que acontecem — disse o técnico, com medo que esquecessem que
ele também existia.
— É verdade, vocês dois, eu não apresentei vocês — lembrou-se ela antes
de me dizer: — Este é Jindra.
Estendi a mão a Jindra, e Zemanek dirigiu-se a Helena.
— Pois é, eu e a Srta. Brozova tínhamos pensado em levar você de volta,
mas agora compreendo que isso não lhe iria interessar, você prefere voltar
com Ludvik...
— Você vem conosco? — perguntou-me o rapaz de blue jeans, num tom
que realmente não era amistoso.
— Você veio de carro? — perguntou-me Zemanek.
— Não tenho carro — respondi.
— Então você vai com eles — disse ele.
— Mas eu ando a cento e trinta! Se isso o assusta... — advertiu o rapaz de
blue jeans.
— Jindra! — censurou-o Helena.
— Você pode voltar conosco — disse Zemanek —, só que acho que vai
preferir sua nova amiga ao amigo antigo.
Como que de passagem, ele me chamara amigo, e eu estava certo de que a
reconciliação humilhante estava apenas a dois passos; Zemanek, aliás,
calara-se um instante, como se hesitasse, como se quisesse incessantemente
me chamar de lado para falar comigo a sós (eu tinha abaixado a cabeça,
como se oferecesse minha nuca à guilhotina), mas enganei-me: ele deu uma
olhada no relógio e disse: — Na verdade, não temos mais muito tempo para
chegar a Praga antes de cinco horas. Vamos, temos que nos despedir! Tchau,
Helena! — Apertou a mão de Helena, depois despediu-se de mim e do
técnico com um outro tchau e deu-nos um aperto de mão. A Srta, Brozova
apertou também a mão de todo mundo e, de braços dados, os dois foram
embora.
Foram embora. Eu não conseguia tirar os olhos deles: Zemanek andava
empertigado, a cabeça loura levantada orgulhosamente (vitoriosamente), a
moça morena a seu lado; mesmo de costas ela era bonita, tinha o andar leve,
me agradava; agradava-me de forma quase dolorosa, pois sua beleza que se
afastava me manifestava sua indiferença glacial, a mesma que me
manifestava todo o meu passado, do qual eu queria vingar-me, mas que
acabava de cruzar comigo sem me olhar, como se não me conhecesse.
Eu sufocava de humilhação e vergonha. Queria apenas desaparecer, ficar
sozinho, apagar toda essa aventura, essa brincadeira de mau gosto, apagar
Helena e Zemanek, apagar o anteontem, o ontem e o hoje, apagar tudo isso,
apagar até o último traço.
— Você se importa se eu disser duas palavras em particular à camarada
jornalista? — perguntei ao técnico.
Levei Helena um pouco para o lado; ela quis me explicar, gaguejando
alguma coisa sobre Zemanek e sua amiga, desculpava-se de maneira confusa
por ter sido obrigada a contar-lhe tudo; nada mais me interessava agora; eu
tinha um único desejo: ver-me longe dali, longe dali e daquela história;
passar um traço sobre tudo aquilo. Não me achava no direito de enganar
Helena por mais tempo; ela estava inocente em relação a mim e eu tinha
agido de modo baixo para com ela, transformando-a numa simples coisa,
numa pedra, que eu quisera (mas não soubera) jogar numa outra pessoa. Eu
sufocava com o fracasso ridículo de minha vingança e estava decidido a
acabar com isso agora, claro que um pouco tarde, mas antes que fosse tarde
demais. Não podia explicar-lhe nada, porém: não apenas porque a verdade
iria feri-la, mas também porque ela não iria compreender. Só me restava
portanto repetir-lhe muitas vezes: estivemos juntos pela última vez, não
tornaria a encontrá-la, não a amava e ela teria que entender isso. Foi bem
pior do que eu imaginava: Helena ficou lívida, começou a tremer; recusava-
se a acreditar em mim, a me largar; experimentei um momento de suplício
antes de poder desvencilhar-me e desaparecer.
Por todo lado cavalos e fitas, e eu fiquei lá, parada no meio deles por muito
tempo, depois Jindra aproximou-se de mim, pegou minha mão, apertou-a e
perguntou-me o que eu tinha; deixei sua mão sobre a minha e respondi
nada, Jindra, não tenho nada, o que é que você acha que eu tenho? E disse
isso com uma voz que não era a minha, uma voz aguda, e emendei com
estranha pressa: o que nos falta gravar, os apelos dos arautos, já temos, temos
duas entrevistas, tenho ainda um comentário para gravar, e continuei assim
a desfiar coisas nas quais me encontrava absolutamente incapaz de pensar,
e ele continuava de pé, mudo, ao meu lado, apertando meus dedos.
Até então ele nunca havia me tocado, era muito tímido, todo o mundo no
entanto sabia que ele era louco por mim, e agora estava apertando minha
mão, enquanto eu balbuciava a respeito do programa que estávamos
fazendo, mas só pensando em Ludvik, e depois também, engraçado, eu
pensei cm que cara devo estar diante de Jindra? Abalada assim, devo estar
feia, mas não, espero que não, não abri o berreiro, fiquei apenas nervosa,
nada mais.. .
Escuta, Jindra, agora me deixe um pouco, vou escrever meu texto, logo
depois poderemos gravá-lo, ele segurou minha mão ainda alguns minutos,
perguntou ternamente o que é que você tem, Helena, o que está
acontecendo, mas eu escapei dele, corri para o Comitê Nacional, onde
tínhamos uma sala à nossa disposição; chegando lá, fiquei enfim sozinha no
vazio da sala, afundada numa cadeira, a cabeça sobre a mesa, fiquei assim
por um momento. Estava com uma horrível dor de cabeça. Abri minha bolsa
para apanhar um comprimido, mas por que abri não sei, sabia que não tinha
levado comprimidos, depois lembrei-me que Jindra tem sempre com ele
uma verdadeira farmácia, sua capa estava pendurada num cabide, explorei
os bolsos e, realmente, desencavei um tubo, vejamos, para dor de cabeça,
dor de dente, dor ciática, nevralgia facial, para as dores da alma não existe
remédio, mas pelo menos isso me aliviará a cabeça.
Fui até a torneira, num canto da sala ao lado, deixei correr a água num vidro
de mostarda e engoli dois comprimidos. Dois são suficientes, talvez façam
efeito, mas para a dor da alma não existe remédio, a menos que engula todos
os comprimidos desse tubo de analgésicos porque em dose maciça é tóxico, e
o tubo de Jindra está quase cheio, pode ser suficiente.
A ideia mal aflorou, simples ideia de um segundo, mas essa ideia voltava sem
parar e me obrigava a me perguntar por que era que eu vivia, de que servia
perseverar, mas na realidade não é verdade, não pensava em nada disso,
não pensava absolutamente, nesse momento imaginava apenas que não
vivia, e senti-me de súbito muito bem, tão estranhamente bem que tive
vontade de rir, e talvez tenha mesmo começado a rir.
Coloquei outros dois comprimidos na minha língua, não estava de modo
nenhum decidida a me envenenar, contentava-me em apertar o tubo na
palma da mão pensando minha morte está na minha mão e me sentia nas
nuvens, de tanta facilidade, como se com um pequeno passo depois do
outro eu me aproximasse de um abismo sem fundo, não para me lançar nele,
mas apenas para olhá-lo. Fui novamente encher o vidro de água, engoli os
comprimidos e voltei para nossa sala, a janela estava aberta, ao longe ouvia-
se sem cessar o salve, salve, com o barulho dos carros, dos malditos
caminhões, das malditas motocicletas, motocicletas que estragam tudo o que
é belo, tudo em que acreditei e por que vivi, esse barulho era insuportável, e
insuportável era também a fraqueza impotente das vozes que chamavam,
por isso fechei a janela e senti de novo aquela dor longa e insistente na
minha alma.
Em toda a minha vida nunca Pavel me fez tanto mal quanto você, Ludvik,
num só minuto, perdoo Pavel, compreendo-o assim como ele é, sua chama
queima rapidamente, ele tem de procurar um novo alimento, espectadores
e um público novo, muitas vezes me feriu, mas agora, através da minha dor,
é sem raiva, maternalmente, que o vejo, esse convencido, cabotino, eu acho
graça de seu esforço durante todos esses anos para fugir de meus braços, ah,
vai embora, Pavel, vai embora, eu entendo você, mas você, Ludvik, eu não
entendo, você veio disfarçado, veio me ressuscitar para depois, ressuscitada,
me destruir, você, só você, eu o amaldiçoo e ao mesmo tempo suplico que
volte, que volte e que tenha pena.
Meu Deus, talvez seja só um terrível mal-entendido, pode ser que Pavel lhe
tenha dito alguma coisa quando vocês estavam sozinhos, como é que eu
posso saber, eu perguntei isso a você, pedi que me explicasse por que não me
ama mais, não queria largá-lo, segurei-o quatro vezes, mas você não queria
ouvir nada, repetia apenas terminou, terminou, terminou definitivamente,
terminou sem apelo, está bem, terminou, concordei por fim, e eu falava com
uma voz de soprano, como se fosse outra pessoa, uma garota antes da
puberdade, e disse a você com essa voz aguda então eu lhe desejo uma boa
viagem, engraçado, não sei absolutamente por que lhe desejei boa viagem,
mas isso me voltava aos lábios sem parar, eu lhe desejo uma boa viagem,
então eu lhe desejo uma boa viagem...
Sem dúvida você não sabe como o amo, certamente você não sabe como o
amo, deve imaginar que sou apenas uma mulherzinha que procura uma
aventura, e não imagina que você seja meu destino, minha vida, tudo. ..
Talvez você me encontre aqui, deitada sob um lençol branco, então você
compreenderá que matou o que tinha de mais precioso na sua vida... ou
então chegará, meu Deus, quando eu ainda estiver viva e ainda poderá
salvar-me, e ajoelhará perto de mim, cairá em prantos, e eu acariciarei suas
mãos, seus cabelos, e o perdoarei, perdoarei tudo. ..
Não havia na verdade outra saída, era-me necessário varrer essa história
lastimável, essa brincadeira de mau gosto que não se contentava consigo
mesma, mas multiplicava-se monstruosamente em outras e outras
brincadeiras de mau gosto, eu queria anular todo esse dia surgido por
inadvertência, apenas porque tinha acordado tarde e perdido meu trem,
mas queria também anular tudo aquilo que havia conduzido a esse dia, toda
minha estúpida conquista erótica, que também repousava sobre um erro.
Apressei-me, como se ouvisse atrás de mim os passos de Helena me
perseguindo, e pensei: mesmo que me fosse possível apagar da minha vida
esses poucos dias inúteis, de que isso me adiantaria, já que toda a história da
minha vida foi concebida no erro, com a brincadeira do cartão-postal?
Percebi com espanto que as coisas concebidas por engano são tão reais
quanto as coisas concebidas pela razão e pela necessidade.
Como gostaria de revogar toda a história da minha vida! Com que direito,
porém, poderia revogá-la, se os erros dos quais ela nasceu não foram erros
meus} Na verdade, quem tinha se enganado quando a brincadeira do meu
cartão tinha sido levada a sério? Quem tinha se enganado quando o pai de
Alexej (hoje reabilitado mas nem por isso menos morto) foi preso? Tais erros
eram tão corriqueiros, tão comuns, que não representavam exceções nem
"enga-nos" na ordem das coisas, mas, ao contrário, constituíam essa ordem.
Então quem teria se enganado? A própria História? A divina, a racional?
Mas por que seria preciso imputar-lhe os erros? As coisas se apresentavam
assim apenas para a minha razão de homem, mas se a História possui
realmente sua própria razão, por que essa razão deveria importar-se com a
compreensão dos homens e ser séria como uma professora primária? E se a
História brincasse? Nesse instante compreendi que me era impossível anular
minha própria brincadeira, quando eu mesmo e toda a minha vida estamos
incluídos numa brincadeira muito maior (que me suplanta) e totalmente
irrevogável. Apoiado num muro da praça (que voltara a ser silenciosa, já que
a Cavalgada dos Reis contornava o outro lado da aldeia), um grande painel
anunciava com letras vermelhas que hoje, às quatro horas da tarde, a
orquestra com címbalo iria dar um concerto no jardim do café-restaurante.
Ao lado do painel, estava a porta desse restaurante; como faltavam quase
duas horas para a partida do ônibus e estava na hora do almoço, entrei.
Era incrível essa vontade de me aproximar do abismo um pouquinho mais,
eu queria me aproximar da grade de proteção para olhar, como se a vista
fosse me consolar e me dar paz, como se lá embaixo, no fundo do abismo,
porque em outro lugar não seria possível, pudéssemos nos encontrar, estar
juntos, sem mal-entendido, protegidos das maldades humanas, do
envelhecimento, dos sofrimentos, e para sempre... Voltei para a sala ao lado,
tinha tomado apenas quatro comprimidos, a bem dizer, nada, estava ainda
muito longe do abismo, não tinha nem chegado perto da grade. Virei o resto
dos comprimidos na palma da minha mão. Nesse momento ouvi a porta do
corredor abrir, levei um susto, joguei todos os comprimidos dentro da boca e
apressei-me em engoli-los de uma vez só, eram muitos e, mesmo engolindo
com muita água, arranhavam minha garganta.
Era Jindra, perguntou-me como ia o trabalho, e de repente virei outra
pessoa, não estava mais confusa, não tinha mais aquela estranha voz de
soprano, estava consciente e resoluta. Jindra, foi ótimo você ter vindo, quero
lhe fazer uma pergunta. Ele ficou rubro e disse que, para mim, em qualquer
circunstância, faria qualquer coisa, e que estava contente de me ver melhor.
Sim, estou me sentindo bem agora, espere só um minuto, quero escrever
uma coisa, sentei-me e apanhei uma folha de papel e minha caneta. Meu
adorado Ludvik, amei-o com toda a minha alma e com todo o meu corpo, e
meu corpo e minha alma não têm mais razão para viver. Digo-lhe adeus,
amo você, Helena. Nem reli o que escrevi, Jindra estava sentado à minha
frente, olhava para mim, mas não sabia o que eu estava escrevendo, dobrei o
papel, quis colocá-lo num envelope, mas não encontrei nenhum, Jindra,
você não teria um envelope? Tranquilamente, Jindra aproximou-se do
armário junto à mesa, abriu-o e começou a vasculhá-lo, em condições
normais eu lhe teria dito que não se mexe no que é dos outros, naquele
instante eu tinha pressa, muita pressa daquele envelope, ele me trouxe um,
com timbre do Comitê Nacional da localidade, enfiei minha carta dentro
dele, colei-o e escrevi Ludvik Jahn, você se lembra, Jindra, aquele homem
que estava conosco há pouco, com meu marido e aquela moça, é o moreno
alto, no momento não posso sair daqui, mas preciso que você o encontre e
entregue isso a ele.
Ele segurou minha mão de novo, pobre menino, o que estaria imaginando,
como estaria interpretando minha agitação, longe de suspeitar o que estava
acontecendo, só percebia que eu estava com problemas, segurava-me a mão,
de repente senti-me terrivelmente digna de pena, ele curvou-se em minha
direção e abraçou-me, dando-me um beijo na boca, eu quis resistir, mas ele
me apertava com força, e passou-me pela cabeça a ideia de que esse era o
último homem que eu abraçava na minha vida, que esse era meu último
beijo, e, num momento de loucura, beijei-o também, apertei-o contra mim,
entreabri os lábios e senti sua língua sobre a minha língua, e seus dedos sobre
meu corpo, e senti, numa espécie de vertigem, que agora eu era
completamente livre e que nada mais importava, pois todos haviam me
abandonado e meu universo tinha desmoronado, de modo que eu era
mesmo totalmente livre e podia fazer o que quisesse, livre como aquela
técnica que tínhamos posto no olho da rua, nada mais me separava dela,
jamais conseguiria colar de novo meu velho mundo esmigalhado, ser fiel,
por que, e a quem, eu era completamente livre, como aquela técnica que
trabalhava conosco, aquela putinha que trocava de cama todas as noites, se
eu continuasse viva, também trocaria de cama toda noite, sentia a língua de
Jindra na minha boca, era livre, sabia que podia fazer amor com ele, tinha
vontade disso, não importava onde, sobre a mesa, no chão, agora, sem
esperar, depressa, fazer amor uma última vez, antes do fim, mas Jindra já se
empertigara e, sorrindo orgulhoso, disse que ia sair e que voltaria rápido.
No meio das cinco ou seis mesas da pequena sala mergulhada na fumaça e
cheia de gente, um garçom corria, levando num braço estendido uma
bandeja enorme com uma pirâmide de pratos onde reconheci de relance
escalopes vienenses com salada de batatas (aparentemente, o único prato
dominical), depois, abrindo caminho sem delicadeza, ele se enfiou num
corredor. Segui-o e descobri que esse corredor terminava numa porta aberta
para o jardim, onde também se comia. No fundo, debaixo de uma tília, havia
uma mesa desocupada; instalei-me ali.
Por cima dos tetos da aldeia, os apelos comoventes, os salve, salve,
chegavam de tão longe que aqui, nesse jardim cercado pelos muros das casas
vizinhas, pareciam quase irreais. E essa irrealidade aparente me fez pensar
que tudo o que me cercava não era o presente, mas o passado, um passado
velho de quinze ou vinte anos, que os salve, salve eram o passado, Lucie era
o passado, Zemanek era o passado e Helena era a pedra que eu tinha
querido atirar sobre esse passado; esses três dias não foram senão um teatro
de sombras.
O quê? Só esses três dias? Minha vida inteira foi sempre superpovoada de
sombras, e nela o presente provavelmente ocupava um lugar muito pouco
digno. Imagino um tapete rolante (o tempo) com um homem (eu) que corre
em cima dele no sentido inverso; mas o tapete se move mais depressa do
que eu, o que faz com que ele me carregue lentamente para o oposto do
lugar para onde me dirijo; esse lugar (estranho lugar situado atrás!) é o
passado dos processos políticos, o passado das salas onde as mãos se
levantam, o passado dos soldados de insígnias pretas e de Lucie, passado
pelo qual continuo enfeitiçado, passado que me esforço por decifrar,
desemaranhar, deslindar, e que me impede de viver como um homem deve
viver, olhando para a frente.
E o elo com o qual quero ligar-me ao passado que me hipnotiza é a vingança,
mas a vingança, como constatei nesses últimos dias, é tão vã quanto a minha
corrida sobre o tapete rolante. É, era naquela ocasião, na grande sala da
faculdade, quando Zemanek declamava a Reportagem escrita sob a forca,
sim, era naquela ocasião e somente nela que eu deveria ter avançado para
ele e tê-lo esmurrado. Adiada, a vingança se transforma em engano, em
religião pessoal, em mito cada dia mais afastado de seus próprios atores, que,
no mito da vingança, continuam inalterados, embora na realidade (a
calçada não para de rolar) eles não sejam mais o que eram: um outro Jahn
tem diante de si um outro Zemanek, e a bofetada que eu lhe devo não pode
ser ressuscitada, nem reconstituída, está perdida para sempre.
Eu partia em meu prato o grande escalope à milanesa e escutava o som do
salve, salve flutuando por cima dos telhados da aldeia, melancólico e quase
imperceptível; em meu espírito reapareceu o rei mascarado com sua
Cavalgada e fiquei emocionado com a ininteligibilidade dos gestos humanos!
Há muitos séculos que, como hoje, nas aldeias da Morávia, rapazes montam
a cavalo para partir com uma estranha mensagem cujas palavras, escritas
numa língua desconhecida, não entendem, mas pronunciam com uma
fidelidade comovente. Homens muito antigos provavelmente quiseram
dizer alguma coisa de muito importante, e renascem hoje em seus
descendentes, semelhantes aos oradores surdos-mudos que desfiam suas
arengas para o público com gestos esplêndidos e incompreensíveis. Nunca
se irá decifrar sua mensagem, não apenas por falta de uma pista, mas
também porque as pessoas não têm paciência de escutar, numa época em
que se escuta uma quantidade tal de mensagens antigas e novas que seus
conteúdos, que se encobrem uns aos outros, não podem ser entendidos. A
História hoje não é senão a malha fina do lembrado por cima do oceano do
esquecido, mas o tempo avança e chegará a época dos milênios passados que
a memória limitada dos indivíduos não mais poderá abraçar; assim, séculos e
milênios cairão em painéis inteiros, séculos de quadros e de música, séculos
de descobertas, de batalhas, de livros, e isso será ruim, porque o homem
perderá a noção de si mesmo, e sua história, inatingível, inabarcável, se
reduzirá a alguns sinais esquemáticos desprovidos de sentido. Milhares de
Cavalgadas dos Reis, surdas-mudas, partirão ao encontro de pessoas
distantes, com suas mensagens queixosas e incompreensíveis, e ninguém
encontrará tempo para escutá-las.
Eu estava sentado num canto do jardim do restaurante, diante de meu
prato vazio, sem perceber tinha comido meu pedaço de vitela, e sentia que
fazia parte (já, desde esse momento!) desse inevitável e enorme
esquecimento. O garçom apareceu, tirou meu prato, com as costas do
guardanapo espanou as migalhas da toalha e dirigiu-se prontamente a uma
outra mesa. Um desgosto me invadiu por esse dia, não apenas por causa de
sua inutilidade, mas pela ideia de que mesmo essa inutilidade seria
esquecida, apesar da mosca que zumbia na minha testa, da poeira dourada
que a tília em flor espalhava na toalha, e até daquele serviço lento e
medíocre, tão revelador de um estado de coisas da sociedade em que vivo,
que será também esquecida, apesar de todos os seus erros e todas as suas
injustiças, que me obcecavam, me consumiam, e que eu me esforçava em
corrigir, sancionar, retificar, em vão, já que aquilo que foi feito está feito,
irreparavelmente.
É, agora eu via isso com clareza: a maioria das pessoas se entrega à miragem
de uma dupla crença: acredita na perenidade da memória (dos homens, das
coisas, dos atos, das nações) e na possibilidade de reparar (os atos, os erros, os
pecados, as injustiças). Uma é tão falsa quanto a outra. A verdade se situa
justamente no oposto: tudo será esquecido e nada será reparado. O papel da
reparação (tanto pela vingança quanto pelo perdão) será representado pelo
esquecimento. Ninguém irá reparar as injustiças cometidas, mas todas as
injustiças serão esquecidas.
Mais uma vez pousei o olhar atento sobre esse mundo antecipadamente
esquecido, sobre a tília, sobre as pessoas sentadas à mesa, sobre o garçom
(exausto, depois de servir o almoço), sobre esse restaurante que
(desagradável, visto da rua), visto aqui do jardim, graças a um fundo
formado por uma parreira, era bastante acolhedor. Eu olhava a porta do
corredor aberta por onde o garçom (com o coração cansado desse lugar já
deserto e devolvido ao silêncio) acabava de desaparecer e por onde
apareceu um garoto de blusão de couro e blue jeans; ele entrou no jardim e
olhou em volta; quando me viu, veio em minha direção; precisei de alguns
momentos para reconhecê-lo: era o técnico de Helena.
Sinto sempre angústia quando uma mulher apaixonada e não-
correspondida ameaça uma volta; quando o rapaz me entregou seu
envelope ("É da parte da Sra. Zemanek"), meu primeiro movimento foi
portanto adiar de uma maneira ou de outra a leitura da carta. Convidei-o a
sentar; ele aceitou (com o cotovelo na mesa, a testa franzida, o ar contente,
ele contemplava a folhagem da tília iluminada pelo sol), coloquei o envelope
na minha frente e perguntei: — Vamos tomar alguma coisa?
Ele encolheu os ombros; propus vodca; ele recusou explicando que iria
dirigir e que a lei proíbe o consumo de álcool pelos motoristas; acrescentou
que, no entanto, me veria beber com prazer. Eu não sentia a menor vontade
de beber, mas como tinha diante de mim aquele envelope que não me
interessava abrir, qualquer coisa me convinha. Pedi ao garçom, que passava
por perto, que me trouxesse uma vodca.
— O que é que Helena quer de mim, você sabe? — perguntei.
— Como é que eu posso saber? Leia a carta! — foi a resposta.
— É urgente? — perguntei.
— O que é que você acha? Que fui obrigado a decorá-la, para o caso de ser
assaltado no caminho? — disse ele.
Com a ponta dos dedos peguei o envelope (oficial, com timbre impresso:
Comitê Nacional Local), depois coloquei o envelope na toalha, diante de
mim, e, sem saber o que dizer, disse: — É pena você não beber!
— Afinal de contas, é também pela sua segurança... — disse ele.
Entendi a indireta, que aliás não era gratuita: o garoto aproveitava-se do
fato de estar sentado comigo para esclarecer as condições da viagem de
volta e suas chances de ir sozinho com Helena. Era muito amável; em seu
rosto (pequeno, pálido, pintado de sardas, com o nariz curto e arrebitado)
lia-se tudo o que ele pensava; era um rosto transparente porque
incorrigivelmente infantil (digo incorrigivelmente por causa desses traços de
uma delicadeza anormal que, com a idade, não se tornam mais viris e até
fazem de um rosto de velho um rosto envelhecido de criança). Tal aspecto
infantil não pode agradar a um garoto de vinte anos, de modo que só lhe
resta disfarçá-lo por todos os meios possíveis (como fazia no passado — ah, o
eterno teatro de sombras! — o comandantezinho): pela maneira de vestir
(blusão de couro com ombreiras, elegante, bem-feito) e pelo comportamento
(aparentando bastante segurança), uma certa vulgaridade e, em alguns
momentos, uma indiferença desenvolta. Esse disfarce estudado fracassava a
todo instante: o rapaz enrubescia, colocava mal a voz, que falhava com a
menor perturbação (percebi isso desde o primeiro contato), e não dominava
nem seus olhos, nem sua gesticulação (sem dúvida tinha tentado mostrar-
me sua indiferença em saber se eu faria ou não a viagem de volta a Praga
com eles, mas, como eu acabara de lhe dizer que ficaria aqui, seu olhar
alegrou-se de uma maneira visível demais).
Quando o garçom, distraído, trouxe para a nossa mesa dois copos de vodca,
em vez de um, o técnico fez um gesto, dizendo que não tinha importância,
que me faria companhia:
— Afinal, não vou deixar você beber sozinho! — E levantou o copo: —
Então, à sua saúde!
— À sua! — respondi, e brindamos. Continuamos a conversa, e eu soube que
ele estava prevendo a partida para dentro de duas horas, já que Helena
tinha a intenção de organizar aqui todo o material já gravado nas fitas, e,
caso houvesse algum problema, gravar seu depoimento pessoal, a fim de que
tudo pudesse ser transmitido pelo rádio no dia seguinte. Perguntei-lhe se o
seu trabalho com Helena estava indo bem. Enrubescendo mais uma vez,
respondeu que Helena se desincumbia bem, só que era um pouco dura
demais com as pessoas de sua equipe, porque estava sempre disposta a
passar do horário de trabalho, sem se preocupar em saber se os outros
tinham pressa de voltar para casa. Perguntei-lhe se também tinha pressa de
voltar para casa. Ele disse que não, que o trabalho o divertia. Depois,
aproveitando minhas perguntas sobre Helena, perguntou-me como quem
não quer nada:
— Aliás, como foi que você conheceu Helena?
Contei-lhe, e ele tentou saber mais: — Helena é legal, não é?
Sobretudo quando se tratava de Helena, ele exibia uma expressão de
satisfação, o que atribuí ainda à sua preocupação de dissimulação, já que
todo mundo devia saber de sua desesperada adoração por Helena, e ele
tinha que fazer o possível para não ser tachado de mal-amado, essa pecha
considerada infamante. Mesmo não levando muito a sério a aparente
serenidade do rapaz, ela aliviava um pouco o peso da carta que estava
diante de mim, assim acabei apanhando-a e abrindo o envelope: "Meu
corpo e minha alma... não têm mais razão para viver... Digo-lhe adeus..."
Vendo o garçom do outro lado do jardim, gritei: — A conta!
Ele fez que sim com a cabeça, mas, fiel à sua órbita, logo desapareceu no
corredor.
— Vamos, não temos tempo a perder! — disse eu ao rapaz.
Levantei-me e atravessei o jardim; ele me seguiu. Passamos pelo corredor e
chegamos à porta do restaurante, de maneira que o garçom teve que correr
atrás de nós, querendo ou não.
— Um escalope, uma sopa, duas vodcas — ditei-lhe.
— O que aconteceu? — perguntou o rapaz. Depois de pagar a conta, pedi
que ele me levasse até Helena. Apressamos o passo.
— Mas o que aconteceu? — perguntou-me.
— É longe? — perguntei por minha vez.
Ele apontou para a frente, e eu comecei a correr. O Comitê Nacional era
uma casa de um andar, caiada, com uma porta e duas janelas. Entramos;
vimo-nos numa desagradável sala administrativa: embaixo da janela, duas
mesas juntas; sobre uma delas o gravador, um bloco de anotações e uma
bolsa (sim, era de Helena); diante das duas mesas havia duas cadeiras e,
num canto, um cabide de metal. Penduradas nele estavam duas capas de
chuva: uma de mulher e a outra de homem.
— É aqui — disse o rapaz.
— Foi aqui que ela lhe entregou a carta?
— Foi.
Só que agora a sala estava desesperadamente vazia; gritei: — Helena! — E
assustei-me com o som incerto e angustiado de minha voz. Nenhuma
resposta. Chamei de novo: — Helena! — E o rapaz me me perguntou: — Ela
se...?
— É o que parece — respondi.
— Dizia isso na carta?
— Justamente — disse eu. — Não emprestaram a vocês outras salas, além
dessa?
— Não — disse ele.
— E no hotel?
— Liberamos os quartos hoje de manhã.
— Nesse caso, ela sem dúvida está aqui — disse eu, e ouvi a voz
estrangulada do rapaz: — Helena!
Empurrei uma porta que dava para a sala ao lado; era outro escritório: mesa,
cesta para papéis, três cadeiras, um armário e um cabide (igual ao da
primeira sala: uma haste de metal sobre três pés, dividindo-se em cima em
três braços; não havia nenhuma roupa dependurada; parecia órfão, com sua
silhueta vagamente humana; sua nudez metálica e seus braços levantados
de modo ridículo me enchiam de angústia); afora a janela acima da mesa, só
havia paredes; nenhuma porta; os dois escritórios eram, pelo jeito, as duas
únicas peças dessa pequena casa.
Voltamos para a primeira sala; peguei o bloco e comecei a folheá-lo; eram
anotações difíceis de ler, uma descrição da Cavalgada dos Reis (a julgar
pelas poucas palavras que pude decifrar); nenhuma mensagem, nenhuma
outra palavra de adeus. Abri a bolsa: encontrei um lenço, um porta-níqueis,
um batom, um estojo de pó de arroz, dois cigarros soltos, um isqueiro;
nenhum sinal de tubo de comprimidos, nem de frasco vazio de veneno.
Refleti febrilmente sobre o que Helena teria escolhido e, entre todas as
suposições, o veneno revelou-se o mais provável; mas deveria haver um
tubo ou um pequeno frasco. Fui até o cabide remexer nos bolsos da capa de
Helena: estavam vazios.
— Será que ela não está no sótão? — perguntou o rapaz com impaciência,
achando com certeza que minhas buscas na sala, embora não tivessem
durado mais que alguns segundos, não podiam ajudar em nada. Corremos
para o corredor, onde havia duas portas: por uma delas, envidraçada na
parte de cima, sem enxergar bem, percebia-se que havia um pátio; abrimos a
segunda, mais próxima, vimos uma escada, sombria, com degraus de pedra
cobertos por uma camada de pó e fuligem. Subimos; a única abertura no teto
(coberta por um vidro sujo) deixava passar uma luz fosca, lívida. O lugar
estava cheio de quinquilharias (caixas, material para jardinagem, pás,
enxadas, ancinhos, pilhas de documentos e uma velha cadeira
desmantelada); cambaleamos.
Quis gritar: "Helena!" mas tive medo; apavorava-me o silêncio que se
seguiria. O rapaz também não chamou.
Reviramos toda aquela quinquilharia e apalpamos silenciosamente os cantos
escuros; eu sentia o quanto ambos estávamos aflitos, e o mais apavorante era
o nosso mutismo, que equivalia a reconhecer que não esperávamos mais
uma resposta da boca de Helena, que apenas procurávamos seu corpo
pendurado ou deitado.
Não tendo encontrado nada, voltamos ao escritório. Mais uma vez, percorri
com o olhar a mobília, as mesas, as cadeiras, o cabide que segurava duas
capas, e depois, na sala ao lado: mesa, cadeiras e o outro cabide com seus
braços nus desesperadamente levantados. O rapaz chamava (inutilmente)
Helena! e eu (inutilmente) abri o armário, que mostrou suas prateleiras
cheias de papelada, material de escritório, fita colante e réguas.
— Meu Deus, deve haver ainda um lugar! Banheiro! Um porão! — disse eu,
e voltamos ao corredor mais uma vez; o garoto abriu a porta do pátio. Este
era minúsculo, havia uma gaiola para coelhos num canto; adiante estendia-
se um jardim invadido por plantas selvagens, com árvores frutíferas (num
canto distante do meu pensamento, tive o tempo de fixar a beleza desse
lugar: os pedaços de céu azul presos entre as folhagens, os troncos rugosos e
bifurcados e, entre eles, a luz de alguns girassóis); na extremidade do jardim,
percebi na sombra idílica de uma macieira um pequeno banheiro. Corri para
lá.
O trinco que girava num grande prego enfiado no estreito batente da porta
(para se poder fechar pelo lado de fora, colocando-o em posição horizontal)
estava virado para cima. Enfiando os dedos na fresta da porta, bastou um
ligeiro empurrão para eu constatar que o banheiro estava fechado por
dentro; o que só podia significar uma coisa: Helena estava lá. Eu disse em
voz baixa: — Helena! Helena!
Ninguém respondeu; só se ouvia o roçar dos galhos da macieira, que um
sopro de vento fazia balançar contra as paredes dos banheiros.
Eu sabia que esse silêncio do lado de dentro anunciava o pior, mas também
que só restava arrancar a porta e que era eu que teria de fazê-lo. Enfiei de
novo meus dedos na fresta da porta e empurrei com toda a minha força. A
porta (presa, não por um gancho, mas, como acontece muitas vezes no
campo, por um simples pedaço de barbante) cedeu com facilidade e
escancarou-se. Diante de mim, Helena estava sentada no assento de
madeira, no meio da fedentina. Estava lívida, mas viva. Olhou-me,
assustada, tentando puxar a saia que, apesar de seus esforços, mal chegava
ao meio de suas coxas; segurava a beirada da saia com as duas mãos e
apertava as pernas uma contra a outra.
— Meu Deus! Vá embora! — exclamou ela, angustiada.
— O que aconteceu? — gritei. — O que você tomou?
— Vá embora! Me deixe!
Nas minhas costas apareceu o rapaz, e Helena gritou: — Vá embora, Jindra,
vá embora, anda! — Levantou-se um pouco, a mão estendida para a porta,
mas postei-me entre ela e o batente, de maneira que, cambaleante, ela teve
de sentar-se novamente na privada.
No mesmo segundo, tornou a levantar-se e atirou-se sobre mim com uma
força desesperada (realmente desesperada, pois era o pouco de força que
lhe restava, depois de tudo o que lhe acontecera). Agarrada nas lapelas do
meu paletó, ela me empurrava para fora; estávamos os dois na porta do
banheiro.
— Seu animal, seu animal, seu animal! — berrava ela (se é que se pode
chamar de berro esse esforço furioso para soltar uma voz enfraquecida) e me
sacudia; largou me bruscamente e começou a fugir pela relva em direção ao
pequeno pátio. Queria escapar, mas foi traída: saíra do banheiro numa
confusão tal que não pudera recompor sua roupa, de maneira que a
calcinha (aquela mesma que eu vira na véspera, de lastex, que servia ao
mesmo tempo de liga) tinha ficado enrolada no joelho, atrapalhando o seu
andar (é verdade que a saia tinha voltado para o lugar, mas as meias
estavam franzidas na barriga das pernas, e via-se sua beirada superior, mais
escura, com as ligas); ela deu alguns passos miúdos, ou melhor, alguns
pulinhos (estava com sapatos de salto alto), mal andou alguns metros, e caiu
(caiu na relva ensolarada, sob os galhos de uma árvore, ao pé de um grande
e brilhante girassol); tomei-lhe a mão, a fim de ajudá-la a ficar de pé; ela se
soltou com uma sacudidela e, como eu mais uma vez me inclinasse sobre ela,
começou a esmurrar furiosamente o ar em torno de si, atingindo-me muitas
vezes; fui obrigado a segurá-la com todas as minhas forças, levantá-la e
apertá-la nos meus braços como numa camisa de força.
— Animal, animal, animal! — gritava ela sem parar, enquanto me martelava
as costas com sua mão livre; quando eu lhe disse (com a doçura que me foi
possível): "Helena, calma", ela me cuspiu no rosto.
Sem soltá-la, eu dizia: — Não vou largá-la enquanto você não me disser o
que tomou.
— Vá embora! Vá embora! — repetia ela com raiva, mas de repente calou-se,
cessou toda resistência e me disse: "Me deixe" com uma voz tão
profundamente mudada (fraca e cansada) que afrouxei o abraço e olhei-a;
aterrorizado, vi seu rosto crispado num esforço abominável, maxilares
contraídos, olhos perdidos e seu corpo que se encolhia e dobrava para a
frente.
— O que foi? — perguntei e ela, sem dizer uma palavra, virou-se e dirigiu-se
ao banheiro; nunca esquecerei seu andar: a lentidão de seus pequenos
passos irregulares, de suas pernas travadas; ela tinha talvez quatro metros a
percorrer, no entanto teve que parar muitas vezes, e cada parada revelava
(pelas contorções de todo o seu corpo) o combate cruel que sustentava
contra suas entranhas enlouquecidas; finalmente chegou ao banheiro,
segurou a porta (que tinha ficado escancarada) e fechou-a atrás de si.
Eu continuava no lugar onde a tinha feito levantar; e então, quando ouvi
do banheiro uma respiração forte, um estertor de sofrimento, afastei-me. Só
nesse momento me dei conta da presença do rapaz plantado a meu lado.
— Fique aí — ordenei-lhe. — Tenho que encontrar um médico.
Entrei no escritório; já na porta vi o telefone numa das mesas, mas o catálogo
não estava em lugar algum; puxei a gaveta do meio, estava fechada à
chave, da mesma forma que as gavetas laterais; e a mesa em frente também
estava fechada. Passei para a outra sala; nela, a mesa só tinha uma gaveta,
aberta, é verdade, mas contendo apenas algumas fotos e uma espátula de
cortar papel. Eu não sabia o que fazer; sentia (sabendo que Helena estava
viva e sem dúvida fora de perigo) um súbito cansaço; fiquei um instante
sem me mexer e, embrutecido, fitava o cabide (cabide metálico, magro, que
levantava os braços como um soldado que se rende); depois (não sabendo o
que fazer) abri o armário; em cima de uma pilha de pastas, reconheci a capa
azul-esverdeada do catálogo; levei-o para perto do telefone e achei o
hospital. Depois de discar o número, ouvia o sinal de chamada, quando o
rapaz entrou correndo.
— Não chame ninguém! Não precisa! — gritou ele.
Não compreendi nada.
Ele me arrancou o telefone da mão e recolocou-o no gancho.
— Estou dizendo que não vale a pena...
Eu quis que ele me explicasse o que estava acontecendo.
— Não é um envenenamento! — disse ele aproximando-se do cabide;
revistou um dos bolsos de sua capa e encontrou um tubo; destampou-o e
virou-o; estava vazio.
— Foi isso que ela tomou? — perguntei. Ele concordou silenciosamente.
— Como é que você sabe?
— Ela me disse.
— Esse tubo é seu?
Ele confirmou que sim. Tomei-o de suas mãos; tinha um nome impresso.
— Você acha então que um analgésico em tal quantidade é inofensivo? —
vociferei.
— Não era analgésico — disse ele.
— Então o que é que tinha aí dentro? — gritei.
— Comprimidos laxativos — revelou ele. Continuei: que ele não me podia
fazer de bobo, eu precisava saber o que era, e não achava graça em suas
brincadeiras descabidas. Ordenei-lhe que me respondesse imediatamente.
Ouvindo-me gritar, ele gritou também: — Eu estou dizendo a você que é
um laxativo! Será que todo mundo precisa saber que tenho prisão de
ventre?
Assim, o que eu tomara por uma brincadeira idiota era verdade.
Olhei-o com seu pequeno rosto enrubescido, seu nariz chato (pequeno, mas
suficientemente grande para acomodar uma boa quantidade de sardas) e
tudo ficou claro: a marca no tubo era para esconder o ridículo de seus
problemas intestinais, assim como o jeans e o blusão de couro disfarçavam o
ridículo de sua figura infantil; ele tinha vergonha de si mesmo e carregava
como um defeito sua adolescência tenaz; nesse momento amei-o; seu pudor
(essa nobreza da adolescência) salvara a vida de Helena e minhas noites de
sono no decorrer dos próximos anos. Com confusa gratidão, eu olhava suas
orelhas de abano. Sim, ele salvara a vida de Helena; mas ao preço de uma
imensa humilhação; eu sabia disso, e sabia também que fora uma
humilhação inútil, sem nenhum sentido e completamente injusta: um novo
elo irreparável na cadeia dos irreparáveis; sentia-me culpado, e uma
imperiosa (ainda que imprecisa) exigência interior me impeliu a correr ao
seu encontro, tirá-la de seu sentimento de ultraje, rebaixar-me diante dela,
atribuir-me toda a culpa e toda a responsabilidade dessa história
absurdamente feroz.
— Não chega de me olhar? — perguntou o rapaz à queima-roupa.
Não respondi e passei por ele dirigindo-me ao corredor; fui em direção à
porta do pátio.
— O que é que você vai fazer lá?
Por trás, ele agarrou o ombro de meu casaco e tentou segurar-me contra seu
corpo; nossos olhares se enfrentaram um segundo; segurando-lhe o pulso,
afastei sua mão de meu ombro. Passando à minha frente, ele fechou meu
caminho. Cheguei para perto dele e fiz menção de afastá-lo. Com um
movimento do braço, ele esmurrou meu peito.
O golpe foi fraco, mas ele pulou para trás e colocou-se de novo à minha
frente, numa cândida imitação de um lutador de boxe; em seu rosto
misturavam-se o medo e a audácia irrefletida.
— Você não tem o que fazer junto dela! — gritou-me.
Não me mexi. O rapaz provavelmente falava a verdade: eu não podia
reparar o irreparável. Vendo que eu estava sem resposta, vociferou: — Ela
acha você nojento! Você enche o saco dela! Ela me disse isso! É, você enche!
Com os nervos tensos, choramos com mais facilidade, mas também rimos
com facilidade; suas últimas palavras fizeram o canto da minha boca tremer.
Isso deixou-o furioso; dessa vez ele atingiu-me nos lábios e quase não
consegui livrar-me de outro soco. Depois recuou novamente, como num
ringue, os punhos diante do rosto, no qual se destacavam apenas suas
grandes orelhas rosadas demais.
— Está bem, chega! Eu vou embora — disse eu. Ele gritou ainda nas minhas
costas: — Cagão! Cagão! Sabia que você estava metido nisso! Eu te pego,
você não perde por esperar! Seu puto! Babaca!
Saí para a rua. Estava vazia, como ficam as ruas depois de uma festa; só o
vento levantava suavemente a poeira, soprando-a adiante sobre o chão liso,
tão deserto quanto a minha cabeça, minha cabeça oca e embotada, onde por
muito tempo nenhuma ideia surgiu.
Só mais tarde vi que tinha na mão o tubo vazio de analgésicos; examinei-o:
estava gasto pelo uso e pela sujeira: há muito devia estar sendo usado como
disfarce para os laxativos do rapaz.
Depois de mais um longo momento, o tubo me lembrou outros tubos, os dois
tubos de barbitúrico de Alexej; e compreendi então que o rapaz não salvara
absolutamente a vida de Helena: afinal de contas, mesmo que o tubo
contivesse de fato analgésicos, isso não lhe teria causado nada, além de uma
dor de estômago; além disso, o rapaz e eu estávamos por perto; o desencanto
de Helena ajustou suas contas com a vida mantendo uma boa distância da
fronteira da morte.
Ela estava na cozinha, diante do forno. De costas. Como se nada houvesse.
— Vladimir? — retorquiu, sem se virar. — Você não o viu com os próprios
olhos? Por que é que está me perguntando?
— Você está mentindo — disse-lhe eu. — Vladimir partiu essa manhã na
garupa da moto do neto de Koutecky. Vim dizer a você que já sei. Já sei por
que foi conveniente para vocês aquela moça do rádio. Já sei por que eu não
devia ficar na sala enquanto o rei se vestia. Sei por que ele obedeceu à regra
do silêncio antes mesmo de tomar seu lugar na Cavalgada. Vocês
combinaram tudo muito bem.
Minha certeza desconcertou-a. Mas ela refez-se rápido e quis defender-se
atacando. Foi um ataque curioso. Curioso até porque os adversários não
estavam frente a frente. Ela estava de costas, debruçada sobre a sopa de
macarrão, que fervia. Sua voz estava calma. Quase indolente. Como se
apenas minha incompreensão a obrigasse agora a formular em voz alta uma
evidência antiga e banal. Se eu queria ouvi-la, muito bem. Desde o começo
Vladimir demonstrara má vontade em ser o rei. E Vlasta não se espantava
com isso. Antigamente, os rapazes não precisavam de ninguém para fazer a
Cavalgada. Agora, trinta e seis organizações se ocupam disso, até o Comitê
do Distrito do Partido. Hoje, as pessoas não podem fazer nada por conta
própria, quando sentem vontade. Tudo precisa ser dirigido de cima. Antes,
eram os rapazes que escolhiam o rei. Dessa vez, de cima, recomendaram
Vladimir, para agradar seu pai, e todos tiveram de obedecer. Vladimir sentia
vergonha de ser filho de empistolado, ninguém gosta de filho de
empistolado.
— Você quer dizer que Vladimir tem vergonha de mim?
— Ele não quer ser filho de empistolado — repetiu Vlasta.
— É por isso que ele é unha e carne com os Koutecky? Com aqueles idiotas,
aqueles burgueses atrasados? — perguntei.
— É, é por isso! — respondeu Vlasta. — Por causa de seu avô, Milos não tem
o direito de estudar. Só porque o velho era dono de uma empresa. Enquanto
o nosso Vladimir tem todas as portas abertas. Pela única razão de você ser o
pai dele. É constrangedor para o garoto. Será que você compreende ao
menos isso?
Pela primeira vez em minha vida, senti raiva dela. Eles tinham me
enganado. Friamente, dia após dia, todos os dois tinham me observado
esperando a Cavalgada. Tinham observado minha impaciência, minha
exaltação. Tranquilamente tinham me observado, tranquilamente tinham
me enganado.
— Vocês tinham necessidade de me enganar assim? Vlasta punha sal no
macarrão e dizia que eu não era fácil. Que eu vivia dentro do meu universo.
Era um sonhador. Eles não tinham nada contra meus ideais, mas Vladimir
era diferente. Minhas canções, para ele, são hebreu. Não gosta delas. Acha
que são chatas. É preciso que eu entenda. Vladimir é um homem moderno.
Puxou isso de meu pai. Ele, sim, tinha senso de progresso*. Em sua
comunidade, tinha sido o primeiro a comprar um trator, já antes da guerra.
Depois confiscaram tudo dele. De qualquer maneira, desde que suas terras
passaram a pertencer à Cooperativa, não rendem tanto.
— Estou pouco ligando para suas terras! Quero saber onde é que Vladimir
foi. Foi às corridas de motocicleta em Brno. Confessa! Ela continuava de
costas, punha sal no macarrão e continuava sua ladainha. Vladimir é como o
avô. Tem o seu queixo e os seus olhos. E a Cavalgada dos Reis para ele é
hebreu. É, já que eu queria saber, ele tinha ido para as corridas. Por que não?
As motos o interessavam mais do que as éguas enfeitadas com fitas. Por que
não? Vladimir é um homem moderno.
Motos, violões, motos, violões. Um mundo estúpido e estranho. Perguntei-
lhe: — O que é um homem moderno, diga-me, por favor? Ela continuava de
costas, colocando sal no macarrão, e respondeu que por pouco ela não teria
podido arrumar nossa casa de uma maneira moderna. Quantas preleções eu
fizera por causa do abajur moderno! E aquele lustre moderno, eu também
não aceitava! Como se todo mundo não achasse bonito aquele lustre
moderno! Em todo canto todos estão comprando esse lustre!
— Para! — disse-lhe eu.
Mas era impossível fazê-la parar. Ela havia desembestado. Suas costas
estavam viradas para mim. Costas miúdas, franzinas, magras. Talvez fosse
isso que me irritasse mais. Essas costas. Essas costas que não têm olhos. Essas
costas estupidamente seguras de si. Essas costas com as quais não é possível
eu me entender. Resolvi fazê-la calar. Virá-la para mim. Só que ela me
repugnava demais. Não queria tocá-la. Conseguiria de outra maneira. Abri o
armário e apanhei um prato. Deixei que caísse. Ela se calou na mesma hora.
Mas não se virou. Um outro prato, e outros ainda. Ela continuava de costas.
Encolhida em si mesma. Em suas costas, eu lia seu medo. É, ela tinha medo,
mas era dura e não se entregava. Parou de mexer a sopa e apertou, sem se
mexer, o cabo da colher de pau. Como se ele pudesse salvá-la. Eu a odiava e
ela me odiava. Ela não se mexia e eu não despregava os olhos dela enquanto
continuava a deixar cair, da prateleira para o chão, mais e mais peças de
louça. Eu a detestava e, com ela, toda a sua cozinha. Sua cozinha padrão
moderno, com seus móveis modernos, seus pratos modernos, seus copos
modernos.
Não me sentia nervoso. Olhava calmamente, com tristeza e cansaço, o
ladrilho cheio de cacos, de panelas e de caçarolas espalhadas. Jogava no
chão minha casa. Minha casa amada, meu refúgio. A casa colocada sob o
terno bastão de minha pobre serva. A casa que era povoada de histórias, de
canções de corajosos duendes. Olhe, eis as três cadeiras que usamos nos
nossos almoços. Ah, esses pacíficos almoços de família que tinham adulado,
enganado um pai de família, crédulo provedor. Peguei uma a uma as
cadeiras e quebrei-lhes os pés, depois coloquei-as ao lado das panelas e dos
vidros quebrados. Virei a mesa por cima. Vlasta continuava imóvel, em
frente ao seu fogão, sempre de costas.
Saí da cozinha para ir ao meu quarto. Lá estavam o globo rosa pendurado no
ar, o abajur e o horrível divã moderno. Em cima do órgão, meu violino em
seu estojo preto. Apanhei-o. Às quatro horas teríamos nossa apresentação no
jardim do restaurante. Mas era apenas uma hora. Onde iria? Ouvi um
soluço vindo da cozinha. Vlasta estava chorando. Seus soluços eram
pungentes, e dentro de mim senti bastante pena. Não poderia ela ter
chorado dez minutos antes? Eu poderia ter cedido à minha velha ilusão e
tornado a encontrar minha pobre serva. Mas já era tarde demais.
Saí de casa. O chamado da Cavalaria tremelicava sobre os telhados. Temos
um rei necessitado porém mais que tudo honrado. Para onde ir? As ruas
eram da Cavalgada, a casa de Vlasta, os bares dos bêbados. E o meu lugar
onde é que é? Sou o velho rei, abandonado e banido. Rei honrado e
mendigo. Rei sem sucessor. O último rei.
Ainda uma chance, depois do vilarejo estão os campos. O caminho. E dez
minutos adiante, a água do rio Morava. Deitei na ribanceira. A caixa do
violino embaixo da nuca. Fiquei muito tempo assim. Uma hora, talvez duas.
Com a ideia de ter chegado ao fim. Tão subitamente, tão inopinadamente.
Era isso. Não via continuação. Sempre vivi em dois mundos ao mesmo
tempo. Acreditava na harmonia entre eles. Era uma ilusão. De um desses
mundos estou agora banido. Do mundo real. Só me resta o outro, o
imaginário. Mas este não me basta para viver, o mundo imaginário. Mesmo
que eu seja esperado nele. Mesmo que o desertor me chame, mesmo que
guarde sempre para mim um cavalo e um véu vermelho. Ah, como posso
compreendê-lo agora! Agora sabia por que ele me tinha proibido de tirar o
véu, preferindo contar-me tudo ele mesmo! Só agora entendia por que o rei
deveria ficar mascarado! Não para que não fosse visto, mas para que não
visse nada! Era-me impensável levantar e andar. Impensável dar um passo.
Às quatro horas eles vão se afligir. Mas eu não terei forças de me levantar, de
ir até lá. Só me sinto bem aqui. Aqui, perto do rio. Aqui a água corre
lentamente, há milênios. Corre lentamente e eu, lenta e longamente,
continuarei deitado aqui.
Depois, alguém falou comigo. Era Ludvik. Eu esperava um novo golpe. Mas
não tinha mais medo. Nada mais poderia surpreender-me.
Ele sentou-se na relva ao meu lado e perguntou se eu não iria dali a pouco
ao concerto daquela tarde.
— Por acaso você vai querer ir? — perguntei.
— Quero — disse ele.
— Foi por isso que você veio de Praga?
— Não — respondeu —, não foi. Mas as coisas acabam sendo diferentes do
previsto.
— É — disse eu —, inteiramente diferentes! — Há uma hora que ando pelos
campos. Não imaginava encontrar você aqui.
— Eu também não.
— Quero lhe fazer um pedido — disse ele em seguida, sem me olhar nos
olhos. Exatamente como Vlasta. Ele não me olhava nos olhos. Mas nele isso
não me perturbava. Era-me até agradável. Percebia nisso pudor. E esse
pudor me aliviava e curava. — Tenho um pedido a lhe fazer — disse ele. —
Você não quer me deixar tocar com vocês daqui a pouco? Ainda faltavam
algumas horas para a partida do ônibus; portanto, movido pela minha
inquietação, saí do vilarejo em direção aos campos, tentando varrer da
minha cabeça todas as lembranças desse dia. Não era fácil: meu lábio ferido
pelo soco do rapaz ardia e, ressurgida, a figura de Lucie me lembrava que,
sempre que eu tentara acertar contas com a injustiça, era a mim mesmo que
tinha atingido, como fomentador de erros. Afastei todas essas ideias, já que
tudo que elas repetiam sem parar eu agora sabia muito bem; esforcei-me em
manter a cabeça fria e deixar que nela penetrassem somente os apelos
distantes (pouco audíveis) dos cavaleiros, música que me transportava para
fora de mim e dessa maneira me consolava.
Num grande círculo, pelos atalhos, contornei o vilarejo e, chegando à
margem do Morava, andei ao longo do rio; na outra margem havia alguns
gansos, um bosque no horizonte e, fora isso, nada mais, a não ser os campos.
£ então, ainda um pouco distante de mim, notei um homem deitado na
relva da ribanceira. Quando cheguei mais perto, eu o reconheci: deitado de
barriga para cima, o rosto voltado para o céu, tinha embaixo da cabeça seu
estojo de violino (em volta, eram campos planos e infinitos, os mesmos de
muitos séculos, só que aqui eram espetados com pilastras de aço que
sustentavam pesados cabos de uma linha de alta tensão). Teria sido fácil
evitá-lo: ele fitava o céu e não me via. Mas dessa vez não era dele que eu
queria fugir. Aproximei-me e dirigi-lhe a palavra. Ele levantou os olhos para
mim (olhos que me pareceram tímidos e assustados), e notei (eu o via de
perto pela primeira vez, depois de muitos anos) que, da espessa cabeleira
que em outros tempos acrescentava alguns centímetros à sua grande
estatura, não ficara mais do que um tufo bem ralo, com três ou quatro tristes
mechas longas que, inutilmente, tentavam cobrir o crânio; esses cabelos
perdidos me lembraram os anos de nossa separação e, de repente, lamentei
esse tempo, esse longo tempo em que não o vira, em que o evitara (pouco
audíveis, os apelos dos cavaleiros chegavam de longe), e senti por ele um
súbito impulso de amor culpado. Estendido a meus pés, ele se levantara
apoiando-se num dos cotovelos; era grande e desajeitado, enquanto a caixa
de seu instrumento era preta e pequena como um caixão de recém-nascido.
Lembrei-me que sua orquestra (que também fora minha no passado) deveria
dar um concerto antes do fim da tarde e perguntei-lhe se podia tocar com
eles.
Formulei esse pedido antes mesmo de tê-lo avaliado realmente (como se as
palavras tivessem vindo mais depressa do que a ideia), formulei-o ainda
atordoado, no entanto em uníssono com meu coração; na verdade, eu
estava cheio de amor por esse mundo que eu havia desertado no passado,
esse mundo distante e antigo em que os cavaleiros e seu rei mascarado
contornam o vilarejo, em que se usam camisas brancas plissadas e em que se
cantam canções, esse mundo que para mim se confunde com a imagem de
minha cidade natal, de minha mãe (minha mãe confiscada) e de minha
juventude; durante todo o dia, silenciosamente, esse amor crescera em mim
para explodir agora, quase em prantos; eu amava esse velho mundo, e
pedia-lhe que me desse refúgio.
Mas como assim, e com que direito? Não era verdade que ainda anteontem
eu evitara Jaroslav, apenas porque seu personagem encarnava para mim a
irritante música do folclore? Nessa manhã mesmo não me aproximara da
festa folclórica com mal-estar? De onde vinha essa 393 súbita queda das
barreiras que durante quinze anos me proibiram a feliz evocação de minha
juventude passada na orquestra com címbalo e os retornos regulares e
comovidos à minha cidade natal? Teria sido por ter ouvido, algumas horas
antes, Zemanek debochar da Cavalgada dos Reis? Seria possível que ele me
tivesse inspirado a repulsa pela canção popular e que agora também ele me
tivesse devolvido o gosto por ela? Seria eu apenas o centro de uma agulha
de bússola e ele a ponta? Estaria eu ligado a ele de maneira tão vil? Não, não
era apenas graças ao deboche de Zemanek que eu podia de repente amar de
novo esse mundo; podia amá-lo porque essa manhã eu o reencontrara
(inopinadamente) na sua pobreza; na sua pobreza e sobretudo na sua
solidão; ele estava abandonado pela pompa e pela publicidade, abandonado
pela propaganda política, pelas utopias sociais, pelos grupos de funcionários
da cultura, estava abandonado pela adesão afetada das pessoas da minha
geração, abandonado (também) por Zemanek; essa solidão o purificava;
cheia de censuras a meu respeito, ela o purificava como alguém que não vai
mais durar muito; ela o iluminava com uma irresistível beleza final; essa
solidão devolvia esse mundo para mim.
O concerto deveria ser realizado no jardim do restaurante onde um pouco
antes eu tinha almoçado e lido a carta de Helena; quando Jaroslav e eu
chegamos lá, encontramos já instaladas algumas pessoas idosas (esperando
pacientemente a tarde musical) e mais ou menos o mesmo número de
bêbados cambaleando de uma mesa para a outra; no fundo, haviam
colocado algumas cadeiras em torno de uma tília, e, apoiado no tronco, um
contrabaixo ainda na sua capa cinza; a dois passos, o címbalo estava aberto,
um homem de camisa branca plissada, sentado, passeava em surdina seus
martelos leves sobre as cordas; os outros membros da orquestra estavam de
pé, um pouco afastados, e Jaroslav fez as apresentações: o segundo violino é
um médico do hospital local; o contrabaixo é inspetor de assuntos culturais
do Comitê Nacional do Distrito; o clarinetista (que terá a bondade de me
emprestar seu instrumento, nós nos revezaremos), professor primário; o
tocador de címbalo, projetista na fábrica; à parte este último, de quem eu me
lembrava, um grupo renovado por completo. Depois que Jaroslav me
apresentou solenemente como um veterano da orquestra, um de seus
fundadores, portanto clarinetista de honra, sentamos nas cadeiras em volta
da árvore e começamos a tocar.
Há muito tempo eu não segurava uma clarineta nas mãos, mas como
conhecia bem a música com a qual começamos, venci depressa meu medo,
tanto que, uma vez colocados os instrumentos em posição de descanso, os
músicos se desfizeram em cumprimentos, recusando-se a acreditar que eu
não tocava há muito tempo; o garçom (aquele mesmo com quem acertara
afobadamente a conta do meu almoço) veio então colocar para nós, embaixo
dos galhos, uma mesa, sobre a qual dispôs seis copos de vinho e um garrafão
de vime; lentamente, começamos a beber. Depois de quatro, cinco músicas,
fiz sinal para o professor; tomando de volta sua clarineta, ele repetiu que eu
estava me saindo brilhantemente; contente com esse elogio, fui encostar-me
no tronco da tília; o sentimento de uma calorosa camaradagem me inundou
e eu agradeci sua ajuda no final desse dia difícil. E eis que de repente Lucie
ressurgiu diante de meus olhos e eu achei que enfim compreendia por que
ela me aparecera no salão de barbeiro e depois no dia seguinte, na casa de
Kostka, no relato que era ao mesmo tempo lenda e verdade: talvez ela
tivesse querido me dizer que seu destino (destino de moça marcada) era
parecido com o meu; que nós dois ficamos sem dúvida frustrados porque
não nos tínhamos compreendido, mas que as histórias de nossas vidas eram
irmãs e unidas, sendo ambas histórias de devastação; assim como tinham
devastado em Lucie o amor carnal e privado sua vida de um valor
elementar, minha vida também fora espoliada dos valores sobre os quais ela
quisera apoiar-se e que eram, por sua origem, inocentes; é, inocentes: o amor
físico, apesar de devastado na vida de Lucie, é inocente, da mesma maneira
que os cantos de meu país, a orquestra com címbalo e minha cidade natal,
que eu detestava, são inocentes, e Fucik, cujo retrato me embrulhara o
estômago, também é inocente em relação a mim, e a palavra "camarada",
que me soara como uma ameaça, assim como a palavra "você", e a palavra
"futuro", e muitas outras palavras. O erro estava em outra coisa, e ele era tão
grande que sua sombra abrangia num círculo imenso o universo inteiro das
coisas (e das palavras) inocentes e as devastava. Nós vivíamos, Lucie e eu,
num mundo devastado; e porque não soubemos nos apiedar dele, dele nos
desviamos, agravando assim a sua infelicidade e a nossa. Lucie, tão amada,
tão mal-amada, foi isso que você veio me dizer no fim desses anos? Implorar
compaixão por um mundo devastado? Terminada a música, o professor me
devolveu a clarineta, declarando que naquele dia não pegaria mais nela, que
eu tocava melhor que ele e que merecia ficar com ela, já que não se sabia
quando eu iria voltar aqui. Percebendo num relance o olhar de Jaroslav,
respondi que não queria outra coisa senão voltar o mais cedo possível.
Jaroslav me perguntou se eu dizia isso seriamente. Respondi que sim e nós
começamos a música seguinte. Já havia algum tempo que Jaroslav tinha
deixado sua cadeira; a cabeça inclinada para trás, apoiava seu violino,
contra todos os princípios, muito baixo em seu peito, e, enquanto tocava, ia e
vinha continuamente; o segundo violino e eu também nos levantávamos a
todo instante, sobretudo quando queríamos dar o maior impulso possível à
improvisação. Nesses momentos que exigem fantasia, precisão e uma
profunda cumplicidade, Jaroslav transformava-se na alma de todos nós, e
eu admirava o músico maravilhoso escondido nessa espécie de gigante que,
igualmente (e acima de todos os outros), era um dos valores devastados de
minha vida; ele me tinha sido roubado (para grande pesar meu e para
minha vergonha), e eu deixara que ele me fosse arrebatado, apesar de ele ter
sido talvez meu mais fiel, meu mais ingênuo, meu mais inocente
companheiro.
Nesse meio-tempo, o público pouco a pouco se transformara: aos que
estavam sentados em volta das mesas e que desde o começo nos
acompanhavam com atenção inteiramente calorosa tinha-se juntado um
grupo de rapazes e moças que, instalados nas mesas livres, começaram a
pedir (aos gritos) canecos de cerveja, vinho, e (à medida que subia o nível
do álcool) se empenhavam em manifestar a necessidade selvagem que
tinham de ser vistos, ouvidos e reconhecidos. O ambiente então não
demorou a mudar, tornou-se mais barulhento e mais agitado (rapazes
vacilavam entre as mesas, chamavam-se uns aos outros ou
cumprimentavam suas, amigas), a tal ponto que me surpreendi, distraído de
nossa música, a olhar muitas vezes na direção do jardim e a observar com
franca hostilidade as caras daqueles fedelhos. Diante daquelas cabeças de
cabelos longos que cuspiam ostensivamente à direita e à esquerda jatos de
saliva e palavras, senti voltar minha antiga raiva pela idade da imaturidade
e tive a impressão de ver apenas atores em quem se tinham colado máscaras
que pretendiam representar uma virilidade estúpida, uma grosseria
arrogante; e não levava em conta, como circunstância atenuante, a possível
presença, sob a máscara, de um outro rosto (mais humano), e o mais horrível
é que os rostos mascarados fossem furiosamente fiéis à barbárie e à
vulgaridade das máscaras.
Jaroslav, é óbvio, compartilhava de meus sentimentos, pois de súbito abaixou
seu violino, declarando-nos que não tinha nenhum prazer em tocar diante
de tal plateia. Sugeriu que partíssemos, que fôssemos para os campos, pelo
pequeno atalho, como antigamente; o tempo está bom, o crepúsculo não
demora, a noite será quente, o céu estará estrelado, basta pararmos perto de
uma roseira selvagem e tocaremos apenas para nós, para nosso prazer, como
fazíamos em outros tempos; agora pegamos o hábito (um hábito bobo) de só
tocarmos para sessões organizadas, e ele já começava a ficar farto disso.
A princípio todos concordaram, quase com entusiasmo, já que cada um
sentia que sua paixão pela música exigia um ambiente mais íntimo, mas o
contrabaixo (inspetor de assuntos culturais) objetou em seguida, dizendo
que, de acordo com o que tinha ficado acertado, tínhamos de tocar até as
nove horas, os camaradas do distrito e também o gerente do café contavam
com isso, tinha sido planejado assim, devíamos consequentemente cumprir
nossa obrigação como tínhamos combinado, senão o desenrolar das
festividades seria perturbado; poderíamos tocar nos campos uma outra vez.
Nesse momento acenderam-se as lâmpadas suspensas em longos fios
estendidos entre as árvores; como ainda não estava escuro, a tarde mal
começava a cair, em vez de espalhar uma luz viva, elas ficavam no espaço
acinzentado como grandes lágrimas imóveis, lágrimas brancas que não
podiam ser enxugadas e que não podiam cair; uma espécie de melancolia
súbita, inexplicável, caiu sobre nós, e ninguém estava em condições de
resistir a ela. Jaroslav disse novamente (dessa vez quase implorando) que
não aguentava mais, que queria ir embora para os campos, para perto da
roseira selvagem, tocar para o seu próprio prazer, depois fez um gesto
resignado, apoiou o violino contra o peito e continuou.
Sem nos ocuparmos mais do público, tocávamos agora com maior
concentração do que no começo; quanto mais desenvolto e grosseiro era o
ambiente do jardim, quanto mais ele nos cercava com sua indiferença
barulhenta, fazendo de nós uma ilhota abandonada, mais a melancolia nos
dominava e mais mergulhávamos dentro de nós mesmos, tocando portanto
mais para nós do que para os outros, esquecendo os outros, como se a música
fosse um círculo protetor no qual, entre os bêbados ruidosos, estávamos
como que numa cabine de vidro suspensa nas profundezas das águas
geladas.
"Se as montanhas fossem de papel — se a água se transformasse em tinta —
e as estrelas em escribas — se todo o vasto mundo quisesse escrever —
ninguém chegaria ao fim — do testamento do meu amor", cantava Jaroslav,
sem desgrudar o violino do peito, e eu estava feliz com essas canções (na
cabine de vidro das canções) nas quais a tristeza não é superficial, o riso não
é um ríctus, o amor não é risível, o ódio não é tímido, nas quais as pessoas
amam de corpo e alma (sim, Lucie, de corpo e alma), nas quais a felicidade
as faz dançar e o desespero faz com que se atirem no Danúbio, nas quais
portanto o amor continua sendo amor, a dor, dor, e nas quais os valores
ainda não estão devastados; e parecia-me que no interior dessas canções se
encontrava minha saída, minha marca original, o lar que eu traíra, mas que
era mais ainda meu lar (já que o lamento mais pungente vem do lar traído);
mas eu compreendia ao mesmo tempo que esse lar não era deste mundo
(mas que lar é esse, se não é deste mundo?), que tudo o que cantávamos era
apenas uma lembrança, um monumento, a conversa imaginária daquilo que
não existe mais, e sentia que o chão desse lar fugia dos meus pés e que eu
escorregava, com a clarineta nos lábios, na profundeza dos anos, dos séculos,
numa profundeza sem fundo (onde amor é amor e dor é dor), e pensava
com espanto que meu único lar era justamente essa descida, essa queda,
indagadora e ávida, e abandonava-me a ela e à volúpia de minha vertigem.
Depois olhei para Jaroslav, para verificar em seu rosto se eu estava sozinho
em minha exaltação; e notei (uma lâmpada presa num galho da tília
clareava seu rosto) que ele estava estranhamente pálido; não cantarolava
mais enquanto tocava, tinha a boca apertada; os olhos amedrontados se
haviam tornado ainda mais apavorados; tocava notas desafinadas; a mão
que segurava o cabo do violino estava escorregando. Depois ele parou de
tocar e caiu na cadeira; fui para o seu lado e ajoelhei-me.
— O que é que você está sentindo? — perguntei. Sua testa estava molhada
de suor e ele agarrava o braço esquerdo.
— Está doendo muito — disse ele.
Os outros não haviam percebido o mal-estar de Jaroslav e entregavam-se a
seu transe musical, sem primeiro violino e sem clarineta; o cimbalista,
aproveitando o silêncio destes dois, fazia misérias com seu instrumento,
acompanhado apenas pelo segundo violino e pelo contrabaixo. Aproximei-
me do segundo violino (que Jaroslav me apresentara como médico) e levei-o
até meu amigo. Só se ouviam o címbalo e o baixo, enquanto o segundo
violino tomava o pulso esquerdo de Jaroslav; e por muito, muito tempo, ele o
segurou em sua mão; depois levantou-lhe as pálpebras e examinou-lhe os
olhos; em seguida tocou-lhe a testa úmida.
— O coração? — perguntou ele.
— O braço e o coração — respondeu Jaroslav, verde.
Chamado também, o contrabaixo encostou seu instrumento contra a tília e
juntou-se a nós, de modo que se ouvia apenas o címbalo, sozinho, porque o
cimbalista não desconfiava de nada e tocava, feliz, um solo.
— Vou telefonar para o hospital — disse o segundo violino.
Segurei-o: — O que é, afinal?
— Ele está com o pulso muito fraco. Está suando frio. Certamente um
infarto.
— Puxa! — exclamei.
— Não se impressione, ele vai sair dessa — consolou-me ele, antes de correr
para o restaurante. As pessoas que teve que afastar para poder passar já
estavam muito bêbadas até para perceberem que nossa orquestra havia
parado de tocar; estavam ocupadas apenas consigo mesmas, com sua
cerveja, com bobagens e com as discussões, que, do lado oposto do jardim,
acabavam de provocar uma briga.
Por fim o címbalo também se calou, e nós cercamos Jaroslav, que me olhou e
disse que tudo isso era porque tínhamos ficado ali, que ele não queria ter
ficado, que queria ter ido para os campos, sobretudo porque eu tinha vindo,
sobretudo porque eu tinha voltado, poderíamos muito bem ter tocado para
as estrelas.
— Não fale tanto — disse-lhe eu —, você precisa calma. — E achei que sem
dúvida ele sairia desse infarto, como o segundo violino havia previsto, mas
que depois seria uma vida inteiramente diferente, uma vida sem devoções
apaixonadas, sem desempenhos entusiasmados na orquestra, o segundo
meio-tempo, meio-tempo depois da derrota, e fui invadido pela ideia de que
um destino muitas vezes termina bem antes da morte, que o momento do
fim não coincide com o da morte, que o destino de Jaroslav chegara ao fim.
Arrasado, com uma tristeza profunda, acariciei sua cabeça calva e os longos
cabelos finos que tentavam tristemente cobrir sua calvície, e constatei com
pavor que essa viagem à minha cidade natal, na qual quisera atingir o
detestado Zemanek, me levava, para terminar, a carregar em meus braços
meu companheiro prostrado (é, via-me nesse momento segurando-o em
meus braços, segurando-o e carregando-o, imenso e pesado, como se
carregasse meu próprio erro obscuro, via-me carregando-o através de uma
multidão, via-me em prantos).
Continuamos em torno dele mais ou menos dez minutos, depois o segundo
violinista reapareceu, fazendo-nos um sinal; ajudamos Jaroslav a se levantar
e, segurando-o por debaixo dos braços, mergulhamos com ele no barulho dos
fedelhos bêbados que estavam na calçada, junto à qual esperava, com todas
as luzes acesas, uma ambulância.

Concluído em 5 de dezembro de 1965.

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