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Revista Sul-Americana de Ciência Política, v. 7, n. 2, 197-215.

“Dissidentes”:
a esquerda evangélica na Assembleia Constituinte (1987-1988)

Sydnei Melo
Universidade Estadual de Campinas

1 Introdução

Em 1986, os brasileiros foram às urnas para eleger os parlamentares que seriam responsáveis pela
redação de uma nova Constituição Federal, a ser promulgada em outubro de 1988. As eleições para
a Assembleia Nacional Constituinte (ANC) demarcavam importante etapa de transição entre o fim
da ditadura militar deflagrada em 1964 e o início de um novo período democrático, a “Nova
República”. Mas, entre muitos episódios do período, cabe destacar aquele em que o então
presidente José Sarney definiu ser a “grande novidade” da época: a eleição de 32 deputados
evangélicos 1 para a legislatura constituinte2 (Pierucci, 1996). Apesar de não ser um fenômeno
isolado no contexto latino-americano da época3, o episódio tinha ares de ineditismo: com registros
de uma participação bastante pequena dos evangélicos nos espaços legislativos, os brasileiros agora
observavam a mobilização eleitoral bem-sucedida de um segmento religioso que demonstrava
grande disposição para atuar pela defesa e impressão de seus valores no texto constitucional.
A eleição daquela bancada evangélica, frequentemente mencionada a partir dos estudos de
Antonio Flávio Pierucci (1996) e Paul Freston (1993), foi importante para o desenvolvimento de um
conjunto consistente de estudos que, desde o final da década de 1980, se debruça sobre o contínuo
crescimento da participação política dos evangélicos no Brasil. No caso de seu envolvimento com a
política parlamentar, sua participação é habitualmente retratada como expressão de
conservadorismo político. Certamente não faltam razões para isto: no contexto da ANC, a tentativa
de articulação do “Bloco Parlamentar Evangélico” foi marcada pelo interesse de suas lideranças em
defender que o grupo investisse suas fichas na disputa das questões éticas, morais e
comportamentais – se atendo, portanto, à defesa dos “princípios básicos” e secundarizando debates
sobre questões sociais 4. A bancada não deixou de se posicionar sobre questões econômicas e
ideológicas – neste caso, com discursos anticomunistas e em defesa do liberalismo econômico (cf.

1
Este número representava praticamente o dobro do número de deputados evangélicos – considerando protestantes
históricos e pentecostais – então eleitos para a legislatura nacional até 1983. O crescimento do número de deputados
pentecostais era particularmente espantoso: dos 32 constituintes evangélicos, 18 tinham origem pentecostal, sendo 14
ligados à Assembleia de Deus (Pierucci, 1996; Freston, 1993).
2
Segundo o presidente Sarney, “toda Assembleia Constituinte tem uma grande novidade e a novidade dessa
Constituinte é a presença maciça de uma representação evangélica” (Braga, 1988, p. 6).
3
Além do Brasil, países sul-americanos e da América Central também testemunharam, nos anos de 1980 e 1990, um
maior nível de participação do segmento evangélico – sobretudo sua vertente pentecostal – nas arenas públicas e na
disputa político-partidária, em meio ao contexto de redemocratização (Freston, 2001).
4
“Nós, evangélicos, somos conservadores, graças a Deus”, afirmaria o deputado batista Fausto Rocha (PFL-SP).
Preocupado com os “aspectos fundamentais religiosos”, Rocha defenderia que os evangélicos centrassem fogo em
questões morais – como o aborto e a censura aos programas televisivos (CEDI, 1987, p. 4).
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Melo, 2020a) – mas dedicou grande parte de seus esforços a combater aquilo que enxergava como
ameaças à moral e à instituição familiar: o aborto, a homossexualidade, as produções artísticas que
julgavam libertinas e imorais, o divórcio ilimitado etc. Investindo em uma agenda moral e
comportamental e alinhada com os interesses econômicos e políticos do Poder Executivo, a bancada
evangélica se tornaria conhecida como marcante expressão política de conservadorismo religioso.
Contudo, houve uma esquerda evangélica na ANC (Pierucci, 1996), que inicialmente tentou
imprimir à bancada maior preocupação com questões sociais e econômicas e menos com questões
morais e comportamentais. Lysâneas Maciel (PDT-RJ), por exemplo, afirmaria a necessidade de o
bloco ter uma “atuação política, voltada para o social”, e que era a distorção das diretrizes bíblicas
que conduzia os evangélicos a se ausentarem dos debates sobre os “problemas do mundo”; já
Benedita da Silva (PT-RJ) defenderia que o grupo se integrasse à “luta pelos direitos sociais” –
ressaltando, em particular, a luta pelos direitos da criança e pela reforma agrária (Henriques, 1987,
p. 5). Mas com o avanço dos trabalhos na ANC se tornaria evidente a impossibilidade de construção
de um consenso em torno dos objetivos prioritários da bancada, com a ala conservadora,
majoritária, dando tom à atuação do grupo. Por outro lado, preocupados em sustentar no parlamento
a defesa de políticas sociais que não poucas vezes iriam no rumo contrário das medidas defendidas
pela bancada, abandonariam o bloco os evangélicos Lysâneas Maciel (PDT-RJ), Benedita da Silva
(PT-RJ), Celso Dourado (PMDB-BA), Edesio Frias (PDT-RJ), José Fernandes (PDT-AM), Lezio
Sathler (PMDB-ES) e Nelson Aguiar (PMDB-ES). Atuando com independência e, em certas
ocasiões, travando acalorados debates com seus irmãos da bancada, estes parlamentares seriam
classificados pelo Jornal do Brasil como os “dissidentes” (Braga, 1988).
Poucos são os estudos que se debruçaram sobre os “dissidentes” e sua atuação no período. Em
meio à ausência de pesquisas sobre a esquerda evangélica na ANC se apresentam, todavia,
coletâneas de discursos, biografias e trabalhos com notas pontuais sobre estes atores 5. Certamente
mais frequentes são as publicações que se dedicam ao estudo de um protestantismo progressista
anterior à ANC – especialmente em sua representação ecumênica (Dias, 2007; Dias, Z. 2014;
Mendonça, 2012; Rosa, 2019); o mesmo tema no período posterior à Carta de 1988 também é
objeto de estudos dedicados tanto ao ecumenismo protestante quanto à sua vertente evangelical
(Burity, 1994; Dias, A., 2014; Machado, 2011). Livros, dissertações e teses que citam estes
parlamentares no contexto da ANC em geral o fazem a partir de outras preocupações analíticas que
não aquelas vinculadas à sua identidade religiosa. O hiato de investigações sobre esta relação seria
em parte rompido pela pesquisa de Zózimo Trabuco, dedicada ao estudo da relação de setores do
protestantismo brasileiro com agendas, partidos e movimentos de esquerdas e minorias no período
de 1974 a 1994. Sobre os “dissidentes”, o historiador destacaria que esses deputados atuavam mais
identificados com as orientações de seus partidos do que com interesses corporativos de instituições
religiosas e que, por vezes, assumiam a palavra para denunciar práticas fisiologistas entre os
integrantes da bancada evangélica (Trabuco, 2015).
Este artigo é parte dos resultados de pesquisa dedicada à compreensão do pensamento político
dos parlamentares da bancada evangélica na ANC 6. O foco desta investigação tem sido o escrutínio

5
Sobre Lysâneas Maciel, cf. Rezende (2000) e Guimarães (2008a). Sobre Benedita da Silva, cf. Silva, Mendonça e
Benjamin (1997). Sobre Celso Dourado, cf. Silva (2009). Sobre os três parlamentares citados, cf. Freston (1993).
6
Pesquisa realizada com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES).

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de um pensamento de viés conservador 7, com indicações contrárias a ideias de esquerda e ao


reconhecimento de minorias, voltado ao impedimento de liberdades e novos direitos considerados
afrontas à moral e à instituição familiar (Melo, 2018, 2020a, 2020b). Havia, no entanto, a expressão
de um pensamento progressista8, de vínculos com ideias à esquerda, por um grupo minoritário de
parlamentares evangélicos: quantitativamente menor, mas de atuação relevante, alguns exercendo
notável liderança partidária ou relevante papel dirigente nos debates parlamentares. Este artigo
apresenta um estudo do pensamento político de alguns destes parlamentares evangélicos e
progressistas, entendendo se tratar de uma contribuição que ilumina tensões e disputas existentes no
interior deste segmento religioso e de sua representação política, prevenindo a caracterização
política dos evangélicos como um bloco homogêneo. Enfatiza-se, particularmente, as ideias dos
deputados Lysâneas Maciel e Benedita da Silva – parlamentares que, de acordo com dados
encontrados por esta pesquisa, tiveram intensa participação nos trabalhos da ANC, destacada por
demais parlamentares e pela imprensa da época, e que foram aqueles que estabeleceram
divergências de pensamento mais acaloradas e diretas com integrantes da bancada evangélica.
Os argumentos deste artigo se baseiam em análise dos pronunciamentos destes parlamentares,
registrados no Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Senado, 1987-1988) – daqui em diante,
referido como DANC. Por meio do uso de um software de análise qualitativa de dados (o Atlas.ti)
foram demarcados mais de 7.000 pronunciamentos dos 32 parlamentares evangélicos participantes
da legislatura constituinte, em 270 edições do DANC e 613 atas das Comissões e Subcomissões
Temáticas, Comissão de Sistematização e de Redação, reunidas ao longo da ANC. A reconstrução
dos argumentos destes parlamentares se deu a partir do cruzamento destes pronunciamentos com
temas e palavras-chaves mobilizadas durante a pesquisa (ex: “esquerda”; “direita”; “mulher”;
aborto” etc) – caminho que permitiu a caracterização das ideias dos constituintes evangélicos e,
particularmente ao interesse deste trabalho, dos “dissidentes”. Esta análise também é acompanhada
de referências a propostas de emendas apresentadas às Comissões e Subcomissões Temáticas; a
contextualização política e histórica se baseia na literatura acadêmica dedicada ao tema da ANC e
das relações entre religião e política e no recurso aos registros jornalísticos do período.

7
Segundo Samuel Huntington, o conservadorismo é um movimento de defesa das instituições existentes e que tem
como componentes fundamentais, entre outros: o entendimento da religião como fundamento da sociedade civil; a
valorização da prudência, do preconceito, da experiência e dos hábitos como guias para o encontro da verdade; o
reconhecimento da superioridade da comunidade em relação ao indivíduo (Huntington, 1957). Em Huntington, o
conservadorismo se demonstra a partir de uma postura reativa – argumento também sustentado por Karl Mannheim, que
apresenta o conservadorismo moderno como “contramovimento”, conscientemente movido a reagir à consolidação das
tendências de pensamento progressistas, de modo a “reverter o processo da história” (Mannheim, 1986, p. 84 e 88-89).
8
Entende-se por progressismo uma tendência de pensamento que, dentro de seu contexto histórico e social, orienta suas
posições à defesa de uma cada vez maior igualdade social e democratização do poder político – uma tendência que
encontraria exemplos de sua expressão histórica em diferentes grupos e orientações filosóficas e ideológicas manifestas
ao longo do tempo, como aquelas que, segundo Tiziano Bonazzi, defenderam no século XIX “a extensão do poder de
decisão política a todos os indivíduos” ou que fizeram “da luta de classes o pré-requisito do necessário progresso
humano” (Bonazzi, 1998, p. 244). Em termos da ciência política, o progressismo estaria associado à ideia de
“modernização” e contraposta às de “retrocesso ou decadência” (Binetti, 1998, p. 1014). No contexto da ANC, uma
articulação de parlamentares eleitos por partidos de esquerda reivindicou a formação de um “Grupo Parlamentar
Progressista” – em contraposição a um bloco “conservador”, que teria a participação de constituintes ligados a partidos
de direita e à ala majoritária do PMDB, apoiando-se em quadros remanescentes da ditadura militar (1964-1985) e que
sustentaria o governo de José Sarney (Lima, 1986; Pilatti, 2008).

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2 Os problemas vitais do Evangelho

“Ah! Se conhecesses também tu, ainda hoje, o que serve para a paz. Mas isto agora está oculto aos
teus olhos”. A passagem bíblica em questão (Lc. 19:42) era lembrada por Lysâneas Maciel em um
pronunciamento de 8 de agosto de 1987 (cf. DANC, 03/09/1987, p. 5135-5137). O deputado
dedicava sua fala a um documento do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC)
intitulado “Apelo por um compromisso coletivo pela democracia” 9. O texto da entidade – que
representava igrejas de tradição protestante e reformada (metodistas, presbiterianas, luteranas,
episcopais, entre outras) e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) – vislumbrava uma
complicada conjuntura política para o país, marcada pelo desequilíbrio econômico, pela ausência de
credibilidade governamental e pelo medo da repressão violenta contra movimentos de
reivindicações sociais. Por tais razões, o CONIC defendia a imperativa continuidade do processo de
democratização e a afirmação de “um compromisso que possa romper preconceitos e vencer o
individualismo e a insensibilidade”, dizendo contar “com a solidariedade humana e cristã de todos
os comprometidos com o que serve para a Paz” (DANC, 03/09/1987, p. 5138).
Mas que paz é esta? Lysâneas Maciel faz duas considerações: primeiro, a paz que se encontra
escondida aos olhos é uma paz diferente, “um dia oferecida pelo Príncipe da Paz”: Cristo é esta
fonte. E que Cristo é este? Segundo o constituinte, este Cristo seria aquele que preferiu se aliar aos
simples e oprimidos, rejeitando poderosos, que levando uma vida modesta provocou “a maior
revolução que esse mundo já conheceu”, com atitudes que permanentemente contestavam o status
quo e orientavam seus discípulos a seguirem pela história tensionando autoridades insensíveis aos
problemas sociais. Para Lysâneas, o exemplo de Cristo para o contexto político de sua época tem
forte caráter prático, representando um apelo às ações concretas: isto seria muito mais importante
do que “uma brilhante análise econômica, uma brilhante análise social: é o engajamento que existe
com a sensibilidade que deva existir ao fazermos uma nova Lei Maior para o País”. Por outro lado,
Cristo é fonte de uma paz que, segundo o deputado, não deve ser confundida com a “paz dos
mosteiros, a paz do conformismo moral, religioso e burguês, paz dos sepulcros caiados”. Se
contrapõe a esta “paz” imobilizadora a “paz que significa luta”. Dirá o deputado que a paz que se
tem com Deus – em nítido sentido religioso – é alcançar uma vitória inevitável; a “paz que significa
luta” é a paz que a antecipa – a luta e a vitória (DANC, 03/09/1987, p. 5135-5136).
No pensamento de Lysâneas Maciel o referencial religioso se alinha com a defesa aberta de
grupos sociais subordinados e uma perspectiva de enfrentamento àquilo que venha a representar o
exercício da autoridade e do poder que age contra os mais vulneráveis. Neste sentido, a
responsabilidade de quem detém o poder para garantir soluções pacíficas e democráticas para os
problemas sociais é decisiva: em certo momento de seu pronunciamento, o deputado classifica
ações do governo de José Sarney como incrementos à “sementeira da violência” (DANC,
03/09/1987, p. 5135); se a luta armada não é algo que considere defensável, a ausência de ações
consequentes por parte dos representantes eleitos para com o povo não faria restar alternativa senão
a violência. Além disso, as reflexões do parlamentar também expõem preocupação com o tipo de
cristianismo que estava a se tornar conhecido naqueles dias. Lysâneas afirmaria que “muita
confusão tem havido a respeito da posição dos cristãos na vida política do país” (DANC,

9
O documento foi transcrito na edição do DANC de 03/09/1987, p. 5137-5138.

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03/09/1987, p. 5137), em provável alusão ao que vinha se definindo como o modus operandi da
atuação evangélica na política: conservador, moralista e corporativista, porém justificado a partir de
pretensa inspiração bíblica e defendido por uma bancada de deputados que reivindicava tal
identidade religiosa. Na raiz da “confusão” estava uma disputa sobre os sentidos políticos da fé
cristã.
A trajetória política e religiosa de Lysâneas Maciel permite compreender seu incômodo.
Advogado, dedicado à família e à igreja – segundo o próprio parlamentar, sua antiga vida
“burguesa”10 – Lysâneas viveria transformações ideológicas importantes a partir de seu contato com
as ideias de Richard Shaull (1919-2002), teólogo norte-americano com passagem pelo Brasil nos
anos de 1950 que inspiraria o futuro deputado e uma geração de jovens protestantes brasileiros ao
fomento de uma “teologia da ação” – aberta, ecumênica e que afirmava a ação humana como uma
forma de colaboração à ação de Deus na história (Mendonça, 2012). O pensamento de Shaull seria
rapidamente reconhecido como uma crítica e um desafio às igrejas para que abandonassem posturas
inertes e conformistas diante de um mundo em mudança, tomando parte e responsabilidade perante
ele.
Lysâneas Maciel mergulharia na nova mentalidade, participando da fundação de uma igreja de
viés progressista – a Igreja Presbiteriana de Ipanema – e ampliando seu círculo de referências para
além do protestantismo, o que envolveria nomes como Frei Betto, os irmãos Leonardo e Clodovis
Boff, e os bispos D. Pedro Casaldáliga e D. Paulo Evaristo Arns. Por meio de sua atividade
diaconal, passou a promover trabalhos de assistência social e se aproximou de comitês
internacionais de defesa dos direitos humanos; como advogado, defendeu lideranças sindicais nos
anos de 1950 e, na década seguinte, presos e perseguidos pela ditadura militar (Guimarães, 2008b).
A partir de 1971, depois de se eleger à Câmara dos Deputados pelo MDB, passaria a exercer
representação parlamentar marcada por vigorosa crítica ao regime militar, sendo ainda um dos
articuladores do grupo dos “Autênticos do MDB” – que promoveu disputa interna à sigla para
forçá-la a agir como um partido de firme oposição à ditadura. Com atuação contundente e discursos
radicais contra os militares, Lysâneas Maciel teria seu mandato cassado em abril de 1976 e iria ao
exílio em agosto do mesmo ano (cf. Guimarães, 2008b; FGV, 2009b; Trabuco, 2015). Retornaria ao
Brasil em 1978, após passagem pela Comissão de Justiça e Serviço do Conselho Mundial de Igrejas
(CMI) e pela Comissão de Direitos Humanos e de Refugiados da Organização das Nações Unidas
(ONU). Em 1979, assinaria a “Carta de Lisboa”, documento considerado fundador do Partido
Democrático Trabalhista (PDT) (Marques e Gonçalves, 2016). Em 1982, concorreria ao governo
estadual do Rio de Janeiro pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Derrotado, retornou ao PDT e se
elegeu deputado constituinte em 1986, se colocando na ANC como um representante do segmento
ecumênico do protestantismo brasileiro (cf. Guimarães, 2008b; Trabuco, 2015).
A crítica ao regime militar seguirá presente em seus discursos como constituinte e
acompanhada da denúncia das pressões militares sobre a Nova República e a ANC. Para Maciel, o
caráter livre e soberano da ANC era continuamente impedido pelo envolvimento de “um grupo de
militares” nos assuntos políticos do país, a partir de declarações que transcendiam a esfera
meramente militar e procuravam estabelecer posições sobre questões que seriam de exclusiva

10
Palavras de Lysâneas Maciel, em 1998: “minha conscientização me levou a ser, de um burguês conservador e
religioso, uma pessoa com uma atuação absolutamente desafiadora do esquema e com um compromisso com a
mudança” (Maciel, 2003, p. 14).

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competência da ANC (DANC, 03/09/1987, p. 5139). Esta tutela cada vez mais ostensiva impediria a
organização de uma sociedade democrática, limitando e domesticando os poderes da ANC:
“estamos chegando a um ponto insuportável de condicionamentos, de subserviência (por medo ou
simples fisiologismo) que sem dúvida estão impedindo um planejamento sério e livre da nova
estrutura constitucional” (DANC, 03/09/1987, p. 5139).
O tema é uma das principais preocupações do parlamentar, que apresentou emenda à
Comissão da Organização Eleitoral, Partidária e Garantia das Instituições (IV) com o objetivo de
assegurar os limites da ação e constituição das Forças Armadas (Brasil, 1987a). Para o deputado, a
manutenção de um discurso voltado à construção de um “Brasil-Potência-Militar” – que seguiria a
ser alimentado pela Escola Superior de Guerra (ESG) – se dava com a contradição de não admitir
mudanças estruturais necessárias à vida nacional, especialmente no que dizia respeito à forma das
relações capital-trabalho imperantes no país, que na visão de Maciel servia aos interesses do
empresariado nacional e seus propósitos de lucro. A aliança entre o empresariado nacional e a
“casta” militar e a percepção que estes alimentavam a respeito da realidade social explicaria o fato
de os militares enxergarem “desordem”, “desestabilidade” e “ameaças à democracia” no conjunto
das reivindicações populares. A continuidade da influência militar, portanto, não poderia ser
ignorada pelas forças progressistas, sob risco de ameaça à democracia e aos avanços possíveis da
ANC: “é preciso cortar pela raiz este intervencionismo na vida política do País” (DANC,
03/09/1987, p. 5140).
O peso da influência das Forças Armadas sobre a política da Nova República também é
relevante para compreender as críticas de Lysâneas Maciel ao PMDB e aos antigos oposicionistas
da ditadura militar. Não seria possível esperar qualquer deferência do deputado ao presidente José
Sarney, a quem classificava como um político que “apoiou destacadamente as medidas do período
autoritário” (DANC, 20/06/1987, p. 2833). Mais notáveis são os apontamentos sobre o alinhamento
que observava entre militares e o novo governo e sobre o amoldamento de antigos defensores da
democracia “a tudo aquilo que condenaram anteriormente”. Para Maciel, partidos considerados
progressistas atravessavam uma crise de identidade, sendo o exemplo mais dramático o do PMDB,
que estaria a abrigar “desde posições inequívocas de esquerda até fascistas da nova configuração
política”. Com esta configuração, o partido se deteriorava; e o alinhamento de Sarney com os
“bolsões conservadores e militares” orientava a administração do país à defesa dos interesses das
classes dominantes e ao sacrifício das camadas médias e populares do país:

o PMDB conseguiu ser o carro-chefe na batalha que resultou num avanço que
todos desejavam, mas logo em seguida, viu-se Governo, e um governo que avança
a passos largos em direção ao conservadorismo e às atitudes antipopulares e ao
próprio fisiologismo (DANC, 01/10/1987, p. 5341).

Para Lysâneas Maciel, não há espanto com as atitudes de José Sarney – “o barco navega na
direção em que sempre esteve, é o Sarney que conhecíamos” – mas com a insistência dos antigos
progressistas do PMDB em permanecer em suas fileiras sob a expectativa de obtenção de cargos e
oportunidades para promover as mudanças consideradas necessárias, sendo coniventes com as
atitudes de um governo aberto à tutela militar e indiferente às demandas populares. A pobreza e a
exploração da população e a atuação das classes dominantes pela manutenção de seus lucros e
influências sobre o Estado continuavam a marcar o terreno político brasileiro, delineando a

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permanência de uma luta de classes frente a qual os políticos deveriam se posicionar com clareza:
“a limpidez da participação dos elementos conservadores deveria servir de alerta àqueles que, por
pura conjuntura, se viram no governo, quando na verdade sua atuação deveria ser uma atuação de
oposicionistas”. Sem se libertarem do “fantasma fardado” e do avanço reacionário, os parlamentares
não seriam capazes de cumprir sua tarefa enquanto representantes dos setores populares: “ou nós
ficamos fiéis ao nosso real compromisso com aqueles que nos elegeram ou […] nós estamos
caminhando para fazer o estatuto das classes dominantes” (DANC, 01/10/1987, p. 5342-5343).
Este diagnóstico proposto pelo deputado referenda a ideia bastante presente em seus
pronunciamentos de que o povo estava ausente do processo constituinte. Na reunião de instalação
da Comissão de Sistematização, ocorrida em 9 de abril de 1987, Maciel argumentaria ser esta
ausência “o fato mais importante e mais significativo” da ANC. A declaração era contraposta a uma
afirmação feita por José Sarney, no início dos trabalhos parlamentares:

Outro dia, em uma reunião de 34 Deputados com o Sr. Presidente da República, S.


Ex.ª assinalava que o fato mais importante, nesta Constituinte, era a presença de
alguns parlamentares evangélicos. Eu lhe disse: Presidente, o fato mais importante
e mais significativo, a meu ver, é a ausência do povo e da participação popular
neste processo (DANC, 08/05/1987, Supl. 56, p. 175).

A reunião recordada pelo deputado envolveu os recém-eleitos parlamentares evangélicos (cf.


Evangélicos..., 1987). Naquela época, apesar do interesse pela discussão sobre o que seriam suas
pautas comuns, o bloco ainda aparecia para a imprensa como ideologicamente heterogêneo. O
avanço dos trabalhos da ANC esclareceria as diferenças substanciais existentes entre Lysâneas e a
maioria dos parlamentares do grupo; também se tornariam mais nítidas as críticas do deputado às
prioridades sustentadas por seus irmãos na fé.
Lysâneas era um crítico da ênfase moral dos parlamentares evangélicos na ANC. Na reunião
da Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher (I) ocorrida em 27 de
maio de 1987, por exemplo, Maciel tomou a palavra para se posicionar sobre a manifestação do
deputado João de Deus Antunes – parlamentar pentecostal que, minutos antes, havia defendido a
censura, atacado demandas do movimento homossexual11 e defendido a importância da preservação
da moral como norte da Carta Magna (DANC, 17/06/1987, Supl. 78). Ao contrário do parlamentar
ligado à Assembleia de Deus, Maciel afirmaria que a censura não era suficiente para resolver
problemas morais e que as prioridades dos debates no parlamento deveriam ser outras – afinal,
“como pode a pessoa ser moral e ética se está faminta, desassistida?”.
Afirmando-se um homem de “profundas convicções evangélicas, cristãs”, o deputado faria
referência à cena do “Grande Julgamento” (Mt. 25: 31-46), em que Cristo afirma que, com a vinda
futura do “Filho do homem” as nações seriam reunidas em sua presença e, em seguida, separadas
entre “justos” e “malditos”. O critério de tal divisão seria explicitado por Cristo ao dizer aos
primeiros: “tive fome, e me destes de comer; tive sede, e me destes de beber; era forasteiro e me
hospedastes; estava nu, e me vestistes; enfermo, e me visitastes, preso, e fostes ver-me”. Como isto

11
O termo “movimento homossexual brasileiro” era usado para se referir à militância em torno da questão da
homossexualidade. É a partir de 1993 que termos mais específicos, como “gays”, “lésbicas”, “bissexuais”, “travestis” e
“transsexuais” passam, gradualmente, a ser representadas nas siglas que definem o movimento (Simões e Facchini,
2009).

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teria ocorrido? “Em verdade vos afirmo que, sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos
irmãos, a mim o fizestes”. Os justos e destinados à vida eterna seriam, portanto, aqueles que haviam
atendido a estas demandas (DANC, 17/06/1987, Supl. 78; Bíblia, 2006).
Para Lysâneas, a passagem sinalizava quais deveriam ser as preocupações reais dos
parlamentares:

Estou lendo, Sr. Presidente, literalmente o versículo para mostrar que muitas vezes
ficamos demasiadamente preocupados em condenar, em julgar. O Senhor da
História tinha um outro tipo de preocupação. Ele tinha o intuito de amparar. Ele
tinha o intuito de salvar, de vestir, de dar de comer, de visitar os prisioneiros. Ele
andava na companhia dos pobretões. Ele andava na companhia das prostitutas, não
tinha nenhuma falsa moralidade. […] Essa defesa da moral, como nós a
entendemos, poderá fazer com que percamos de vista as prioridades, poderá fazer
com que nos fechemos num círculo muito estreito. E, então, faremos um código de
ética, esquecendo-nos da miséria e das dificuldades de um povo sofrido e
maltratado (DANC, 17/06/1987, Supl. 78, p. 18-19).

O relato daquela reunião demonstra que o argumento foi particularmente mal recebido por
João de Deus Antunes, que por vezes tentou interromper a fala do colega, acusando-o de fazer
“confusão bíblica”. Para Antunes, não poderia ser esquecido que o “poder do inferno” estava
destinado “aos covardes, aos incrédulos, aos abomináveis, aos sodomitas, aos homossexuais, aos
feiticeiros e a todos os mentirosos” 12. Lysâneas replicaria: “eu não tenho medo do inferno. [...]
Estou apenas dizendo que uma coisa é a visão correta dos problemas. Esta o Senhor da história
tinha” (DANC, 17/06/1987, Supl. 78, p. 19, grifos nossos).
A divergência dos parlamentares se acirraria na reunião de 9 de junho de 1987, quando
Lysâneas Maciel diria ser necessário evitar a elaboração de uma “Constituição de condenação de
pecados”: “essa catalogação é impossível, atrasada, retrógrada! E não é bíblica!” (DANC,
26/06/1987, Supl. 84, p. 28, grifos nossos). A afirmação despertou reação furiosa de João de Deus,
que acusou Lysâneas de não conhecer a Bíblia e de ser apoiado pela esquerda, alegando ter que
dizer “alguma coisa a esse cidadão que se diz evangélico, mas não o é” (DANC, 26/06/1987, Supl.
84, p. 29). Exigindo respeito à sua condição de evangélico, Lysâneas Maciel retomaria a cena do
“Grande Julgamento” para reafirmar as prioridades dos parlamentares: o amparo aos famintos, às
“pessoas que vão dormir com fome”, às “milhares de crianças abandonadas”, aos “forasteiros, aos
sem-terra, aos bóias-frias”. Para o deputado, o Evangelho deveria inspirar outras preocupações entre
os constituintes, especialmente entre os evangélicos:

este é o Evangelho da reconciliação, não o da catalogação de pecados, não o


Evangelho das condenações, não o Evangelho da imposição de determinada fé. Fé
que precisa de defesa é ideologia. Assim, quando a fé precisou defender-se, em
certa época, transformou-se na Inquisição. A fé, para ser defendida em determinado
ponto da história, transformou-se em Inquisição. […] Acho que se nos inclinarmos

12
A afirmação recorda a passagem de Apocalipse, 21:8. O trecho transcrito, que consta no DANC, se distingue do texto
bíblico que, em diferentes traduções para o português, não apresenta referência a “sodomitas” e “homossexuais”, como
no exemplo a seguir: “quanto, porém, aos covardes, aos incrédulos, aos abomináveis, aos assassinos, aos impuros, aos
feiticeiros, aos idólatras e a todos os mentirosos, a parte que lhes cabe será no lago que arde com fogo e enxofre, a
saber, a segunda morte” (Bíblia, 2006, p. 1234).

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à catalogação de pecados, vamos fazer uma contramarcha com sérios prejuízos


(DANC, 26/06/1987, Supl. 84, p. 29).

A partir de uma leitura bíblica norteada pela preocupação com as desigualdades econômicas e
sociais e orientada ao enfrentamento do autoritarismo, Lysâneas Maciel tece críticas ao PMDB e à
influência das Forças Militares na política nacional e explicita suas divergências com o caminho
conservador e moralista trilhado pela maioria dos parlamentares evangélicos presentes na ANC.
Para o deputado, estava em jogo a representatividade popular do processo de elaboração da nova
Constituição – ou melhor: a ausência do povo daquele processo. A participação direta e soberana da
população nos rumos políticos do país é elemento que inspira grande parte de suas críticas aos
trabalhos legislativos da época; alinhada com a denúncia da pobreza e a defesa dos direitos
humanos, Lysâneas Maciel procurou contemplar as raízes religiosas de sua atuação política se
valendo de um imperativo que dizia ser “quase que divino”: “os problemas vitais do povo brasileiro
são os problemas vitais do Evangelho, conforme estabelecido nas Sagradas Escrituras” (DANC,
10/09/1987, p. 5137, grifos nossos).

3 Mulher, negra, favelada – e pentecostal

Em 19 de fevereiro de 1987, ao realizar seu primeiro pronunciamento como constituinte, Benedita


da Silva (PT-RJ) destacaria os apoios políticos que amparavam sua chegada à ANC e a
representação social que seu mandato trazia. Sua eleição seria resultado do esforço comum das
comunidades faveladas e de um partido político que garantira o espaço da “maioria silenciada”:
mulheres, negros, trabalhadores e trabalhadoras. Afirmava-se, assim, como uma representante do
setor popular, uma mulher que já enfrentara grandes desafios e tinha aprendido desde cedo sobre as
diferenças impostas entre homens e mulheres, negros, brancos e índios, ricos e pobres: “estou
presente nesta Assembleia, pela primeira vez, na condição de mulher, de negra e de favelada”
(DANC, 20/02/1987, p. 367).
As palavras de Benedita da Silva indicavam os caminhos de sua atuação na ANC, que seria
marcada pela denúncia do racismo e pela defesa dos direitos das mulheres a partir de uma
identidade de classe. “É duro ser negro numa sociedade que tem como modelo pertencer à etnia
branca, ser macho e ser originário das classes dominantes”, afirmou a deputada em um
pronunciamento sobre os resultados dos trabalhos da Subcomissão dos Negros, Populações
Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias (VII.C), da qual participou como titular (Silva e Almeida,
2020, p. 279). Nesta fala, a constituinte fez um apanhado dos diversos problemas abordados na
subcomissão: o processo contínuo de eliminação das raízes, formas de religiosidade e da identidade
da população negra; a exclusão dos indígenas de suas terras originárias e a “guerra de extermínio”
travada contra eles com a “conivência e respaldo dos poderes instituídos”; a omissão da sociedade
civil e do poder público para com a população portadora de “limitações físicas, mentais e
sensoriais”; a importância da criação de dispositivos legais voltados à proteção dos “discriminados
por sua opção sexual”. Para Benedita da Silva, sua escolha em participar da Subcomissão VII.C
obedecia a um “imperativo categórico” de sua consciência, de sua trajetória política e história de
vida: lutar por tais causas naqueles dias significaria “estar contribuindo, na teoria e na prática, para

205
Revista Sul-Americana de Ciência Política, v. 7, n. 2, 197-215.

a consolidação e ampliação dos espaços de cidadania do nosso povo” (DANC, 24/06/1987, p.


2865).
Os caminhos percorridos pela parlamentar até sua chegada na ANC evidenciam sua conexão
com os grupos sociais cujos discursos dizia representar. Benedita nasceu e viveu no morro do
Chapéu Mangueira, cidade do Rio de Janeiro. Além de exercer uma série de ofícios – foi vendedora
ambulante, empregada doméstica, operária fabril, auxiliar de enfermagem e funcionária do
Departamento Estadual de Trânsito do Rio de Janeiro (DETRAN) – também teve ativa vida política
como líder comunitária junto à Associação de Moradores do Chapéu Mangueira, à Federação das
Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro (FAFERJ) e ao Centro de Mulheres de Favelas
e Periferias (CEMUF). A ação nestes espaços foi chave para a formação das bases políticas que
permitiram sua eleição à Câmara Municipal carioca em 1982, com uma campanha com o slogan
“Negra, mulher e favelada”. Em 1986 se elegeu deputada constituinte pelo PT – a única mulher
negra daquela legislatura (FGV, 2009a; Silva e Almeida, 2020).
Em entrevista concedida ao Jornal do Brasil, Benedita da Silva comentaria sua iniciação à
vida política dizendo que “pobre, quando começa, não faz política partidária, mas na rua. Foi na rua
que aprendi que preciso lutar pela igualdade social para os homens e as mulheres” (Noel, 1999, p.
6). Por outro lado, as declarações de Benedita da Silva na ANC traziam para conhecimento público
a identidade da deputada com seu partido e com um horizonte de transformações políticas e sociais
mais amplas e de crítica ao capitalismo. No parlamento, disse não ser pura e simplesmente uma
representante da mulher, do negro e do favelado, mas que tinha “uma proposta que se incorpora à
do Partido dos Trabalhadores” e que desejava sensibilizar a sociedade aos problemas vividos por
estes segmentos (DANC, 20/02/1987, p. 368). Benedita também afirmava entendimento de que as
“lutas setoriais” não poderiam ser travadas em prejuízo do enfrentamento às “questões estruturais”,
sob risco de serem inviabilizadas. Em certo momento a deputada comentou que, se haviam setores
feministas que diziam que “sem feminismo não há socialismo”, também deveria ser dito que “sem
socialismo não há feminismo” e que a plena emancipação dos muitos setores oprimidos do país se
imbricaria diretamente com a transformação do poder político e da estrutura social brasileira
(DANC, 24/06/1987, p. 2865-2866).
Assim se apresentava a deputada: mulher, negra, favelada e crítica do capitalismo. Mas sua
trajetória de vida também era marcada por uma identidade religiosa: Benedita da Silva era
evangélica, pentecostal, membro da Assembleia de Deus do Leblon, à qual era filiada desde o final
da década de 1960 (Silva, Mendonça e Benjamin, 1997). A conciliação de sua vida política com a
igreja, porém, não era tranquila. Até a primeira metade da década de 1980, a Assembleia de Deus
ainda se posicionava com ressalvas às disputas políticas e especial hostilidade ao pensamento
político de esquerda – a teologia da libertação, em particular, já havia sido classificada pelo
Mensageiro da Paz, principal publicação da instituição, como a “Ponta-de-Lança do Anticristo!”
(Cabral, 1980, p. 6).
Mas em 1986, às vésperas das eleições para a ANC, os assembleianos apresentaram nova
postura em relação à política, incentivando o voto dos irmãos em candidatos evangélicos e lançando
“candidaturas oficiais” da igreja à ANC (Fonseca, 2014; Freston, 1993). A edição do Mensageiro da
Paz de setembro daquele ano trouxe uma matéria com declarações de vários candidatos ligados à
denominação – entre eles a “Irmã Benedita”, “líder de seu partido na Câmara do Rio de Janeiro e
membro da AD do Leblon” e responsável “por levar sempre à comunidade evangélica a necessidade

206
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de um envolvimento maior do crente com a verdadeira justiça social”. Por citação indireta, o jornal
afirmou que Benedita declarou à publicação ter sofrido uma série de discriminações e preconceitos
enquanto “mulher, negra e cristã”. A publicação também registraria uma percepção da candidata
sobre as desigualdades em que afirmava não compreender “como existem cristãos muito ricos e não
dividem a riqueza nem com os empregados, deixando até de pagar férias, 13º salário… E à noite
estão nas igrejas, dirigindo cultos”. As declarações da futura deputada ao periódico carregaram nas
conexões entre fé e política: “Minha prática política é baseada na minha prática espiritual. Por isso,
quero que todos tenham os mesmos direitos. [...] Minha participação será, sobretudo, a de uma
serva do Senhor na Constituinte” (Os Rumos, 1986, p. 14).
A atuação de Benedita da Silva foi notabilizada pela denúncia das desigualdades raciais e de
gênero, da violência contra negros, mulheres e moradores de comunidades e pela defesa de políticas
de Estado orientadas a combater estas violências. Sua identidade feminina era demarcada com
vigor: “assumo a feminilidade com o mesmo dever, com o mesmo respeito, com a mesma coragem
que cada um de nós aqui temos como responsabilidade de representar o povo” (DANC, 25/02/1987,
p. 573). A parlamentar também se posicionaria em favor da proteção da cultura e terras indígenas –
defendendo o reconhecimento dos indígenas enquanto uma nação no interior do território brasileiro
(DANC, 20/05/1987, Supl. 62). Debater os preconceitos existentes na sociedade brasileira era
questão que Benedita da Silva entendia como dever a se realizar em paralelo ao processo
constitucional (DANC, 08/05/1987, Supl. 56). Em alinhamento a esta posição, a deputada fez
dedicada defesa dos trabalhos da Subcomissão VII.C, reforçando o ineditismo de seu conteúdo e a
necessidade de tal espaço ser compreendido como tão importante quanto outros daquela ANC
(DANC, 20/05/1987, supl. 62).
Benedita da Silva agregou significativa importância ao debate das questões raciais e da
condição feminina, compreendendo o racismo e o machismo como problemas que inviabilizavam a
democracia e a liberdade e contra os quais dirigia seu combate também se baseando em sua
experiência de vida: “eu sei o quanto é duro ser discriminada várias vezes, por ser negra, por ser
pobre, por ser mulher” (DANC, 20/05/1987, Supl. 62, p. 146). Por outro lado, a parlamentar
também abordaria questões moralmente delicadas – como as dos direitos dos homossexuais e do
direito ao aborto. Compreender suas ideias sobre estes temas permite entender seu pensamento
político e também visualizar as dificuldades do relacionamento que a mesma estabeleceu com as
posições institucionais da Assembleia de Deus e com os colegas que integravam a bancada
evangélica.
No caso dos homossexuais, pode ser mecionada a reunião da Subcomissão VII.C ocorrida em
25 de maio de 1987, em que o parlamentar assembleiano Salatiel Carvalho (PFL-PE) apresentou
emenda supressiva ao Substitutivo do Anteprojeto daquela Subcomissão solicitando a exclusão da
expressão “orientação sexual” do conjunto de razões pelos quais um cidadão não poderia ser
prejudicado ou privilegiado13. Carvalho justificaria sua proposta argumentando que a Constituição
não poderia dar guarida a uma “terceira opção” sexual (além de homem e mulher), e que a
permanência da expressão poderia abrir a porta para que homossexuais viessem a reivindicar os
mesmos direitos de homens e mulheres – como os de constituírem família e terem suas uniões

13
O texto em questão é o §1º do Art. 2º, que dizia: “ninguém será prejudicado ou privilegiado em razão de nascimento,
etnia, raça, cor, sexo, trabalho, religião, orientação sexual, convicções políticas ou filosóficas, ser portador de
deficiência de qualquer ordem e qualquer particularidade ou condição social” (Brasil, 1987b, p. 12).

207
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legalizadas. Enxergava, ainda, que o registro da expressão traria uma contradição ao texto
constitucional: se caberia ao Poder Público implementar políticas voltadas à prevenção de doenças
ou condições que levassem à deficiência 14, não poderia a lei “legalizar” a homossexualidade, que na
retórica do deputado era uma condição vinculada à disseminação da AIDS. “Se alguém é
homossexual”, dirá Carvalho, “que assuma a sua condição de homossexual, mas não que a
Constituição venha a dar garantia a este tipo de comportamento que para mim é considerado um
comportamento anormal” (DANC, 24/07/1987, Supl. 103, p. 159).
Benedita da Silva rejeitaria a emenda do parlamentar ao alegar que a retirada da expressão
representaria prosseguir com a marginalização dos homossexuais, e que a eles deveria ser garantido
o exercício pleno de sua cidadania. A deputada também afirmaria não caber à Constituição “invadir
a privacidade do cidadão e da cidadã e estabelecer normas de comportamento de relação sexual”.
Por fim, diria não poder aceitar, tanto com base no conhecimento dos preconceitos sofridos por
negros e mulheres, quanto em relação aos seus princípios, agir de modo a marginalizar os
homossexuais: “para mim, a relação do amor, do prazer, do casamento, não passa por nenhuma
Constituição” (DANC, 24/07/1987, Supl. 103, p. 160).
As divergências voltaram à tona na última reunião da Comissão da Ordem Social (VII), em 12
de junho de 1987. No Substitutivo apresentado pelo relator, senador Almir Gabriel (PMDB-PA), a
expressão “orientação sexual” havia sido substituída por “identidade sexual”. Em todo caso, Salatiel
Carvalho apresentaria novo pedido de supressão do termo, afirmando que “o homossexualismo é
um desvio mais complicado do que a prostituição”. Como na situação anterior, a resposta imediata
foi novamente de Benedita da Silva – que não somente contrariou a proposta de Carvalho como
solicitou o retorno ao uso do termo “orientação sexual”. “Temos conhecimento”, diria a
parlamentar, “de que o preconceito leva a que marginalizemos, num determinado momento,
segmentos desta sociedade que não tem vez, nem voz, nem representação”. Para Benedita, a
dificuldade do debate era compreensível porque alguns temas haviam se configurado como
“malditos”, impedindo a promoção da justiça social para certos grupos e segmentos. A garantia de
pessoas não serem discriminadas em razão de sua orientação sexual seria uma maneira de assegurar
o exercício da cidadania (DANC, 05/08/1987, Supl. 115, p. 143).
Sobre o aborto, o pensamento de Benedita da Silva se voltava à busca de mediações entre a
questão moral da prática de interrupção da gravidez e as condições de saúde e de vida das mulheres.
Em sessão ocorrida em 29 de abril de 1987, na Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso
(VIII.C), a deputada diria haver muita sensibilidade envolvendo o tema da família, sendo necessário
reconhecer que, mesmo havendo uma iniciativa para normalizá-la, existiam na realidade brasileira
modelos de família que fugiriam desta “normalidade”; e que, neste conceito de família
compreendido como o normal, a mulher estaria em desvantagem de direitos. Para Benedita, havia
uma ausência de solidariedade que permitisse compreender as necessidades das mulheres, enquanto
o apego a temas demasiadamente polêmicos acabava por travar a discussão sobre o exercício da
plena cidadania delas. Neste sentido, a parlamentar propôs a necessidade de se pensar diferentes
formas de violência, tomando por ponto de partida aquelas que são sofridas pelas crianças: para ela,
não poderia ser objeto de preocupação apenas a “vida uterina”, mas também as violências sexuais
executadas contra as crianças, em sua maioria do sexo feminino. “É opressão, é violência!”,

14
A determinação consta no Art. 17 do Substitutivo apresentado à Subcomissão VII.C (Brasil, 1987b, p. 17).

208
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sentenciou a deputada. “Como iremos tratar dessas questões? Como iremos tratar de questões como
a que chamamos de gravidez de risco, se não refletirmos em torno do que significa ser vida?”
(DANC, 21/05/1987, Supl. 63, p. 211).
Tentava-se estabelecer a necessidade de mediação entre o significado da ideia de vida e a
necessidade de encontrar soluções para as violências que atingiam as mulheres. Benedita da Silva
reconhecia que, no interior da visão moral cristã, havia um impedimento para a prática do aborto;
contudo, se fazia necessário assegurar direitos às mulheres, diariamente violentadas de acordo com
os exemplos trazidos pela deputada: “não devemos cristalizar as posições nem fechar os caminhos
que possam levar a uma alternativa”, disse Benedita. A reflexão dos parlamentares deveria
considerar as complexidades envolvidas no debate sobre os direitos da mulher: “Não podemos
deixar de reconhecer que quando estamos falando da vida, uma vida que está no útero de uma
pessoa, temos de entender também todo o complexo que envolve essa pessoa” (DANC, 21/05/1987,
Supl. 63, p. 211-212).
A manifestação de Benedita da Silva sobre o tema sempre previa a necessidade de se
reconhecer sua complexidade e a previsão de se garantir direitos que permitissem a decisão final da
prática do aborto para a mulher: “o problema não é ser a favor ou contra, mas ter percepção e
sensibilidade para sua gravidade, além de respeito pelo direito da mulher decidir” (Benedita, 1987,
p. 5). Estas posições não passariam desapercebidas pelo Mensageiro da Paz. Para o jornal, Benedita
da Silva defendia “de forma enfática” a regulamentação do aborto – “apesar de declarar-se
evangélica”. A publicação também não se furtou em comentar a própria história pessoal da
parlamentar, que declarou ter praticado um aborto em razão de problemas como a pobreza, a fome e
condições emocionais que a teriam impedido, ainda jovem, de seguir adiante com a gravidez 15. “A
prevalecer esta tese”, afirmou o jornal, “todas as crianças, filhas de pais pobres, terão de ser
abortadas, sendo-lhes negado o direito à vida”. O Mensageiro ainda questionaria a suposta
motivação da atuação da constituinte de “lutar contra toda a sorte de discriminações – menos,
evidentemente, a discriminação contra os bebês cujos pais não teriam a menor condição financeira e
emocional”. Ao final, a publicação diria que “se a mãe da Deputada carioca pensasse da mesma
forma”, é certo que Benedita da Silva “não estaria na Assembleia Nacional constituinte defendendo
a legalização do aborto” (Benedita, 1988, p. 7).
Os comentários do jornal escancaravam a distância das posições defendidas pela Assembleia
de Deus em relação àquelas levadas por Benedita da Silva ao parlamento. Mas a rusga não era nova.
Em setembro de 1987 a publicação comentaria, em tom de lamento, a existência de um “espírito” de
desentendimento entre os parlamentares evangélicos quanto às “questões ideológicas”. O exemplo
disto seria o debate sobre ninguém ser prejudicado em razão de “orientação sexual”: “às vezes, as
determinações partidárias falam mais alto do que as convicções religiosas”, comentaria o jornal em
referência às posições apresentadas por Benedita da Silva sobre o tema. A crítica se estenderia ao
deputado Lysâneas Maciel, que defendeu a permanência de expressão semelhante no texto aprovado
pela Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher (I), “contrariando a
intenção da maioria dos constituintes evangélicos” ali presentes. Para a publicação, os episódios
permitiam duas constatações: a primeira era descobrir quem de fato estava disposto a “alinhar-se

15
A declaração, de acordo com o jornal, teria sido dada ao jornal Tribuna Sindical em agosto de 1987 (cf. Benedita,
1988).

209
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com ideais genuinamente cristãos”; a segunda era o reconhecimento de que a “maioria dos
constituintes evangélicos” estaria atenta à defesa destes ideais: “percebemos que aqueles que foram
eleitos para ser nossos representantes estão cumprindo a missão para a qual foram designados”
(Pacheco, 1987, p. 7, grifos nossos).
Denota-se que Benedita da Silva não era vista como integrante deste bloco fiel à missão.
Meses depois, a deputada daria explícitas razões para esta conclusão. Na sessão legislativa de 29 de
junho de 1988, o deputado Doreto Campanari (PMDB-SP) comentaria uma nota do Correio
Braziliense a respeito da negociação feita entre o deputado assembleiano Matheus Iensen (PMDB-
PR) e o Centrão para defesa de uma proposta que impedisse a cobrança de direitos autorais de
músicas religiosas – beneficiando diretamente o parlamentar, dono de uma gravadora (Fariseu,
1988). Em tom sarcástico, Campanari diria que o “grupo evangélico” estaria mobilizado
solidariamente com o intuito de “obter instrumentos para difusão da palavra divina” – se referindo
ao crescimento do segmento religioso no controle da audiência radiofônica do país (DANC,
30/06/1988, p. 11694). Motivada pelo comentário de Campanari, Benedita da Silva tomou a palavra
para “dizer o que penso a respeito do que muito se fala da bancada evangélica desta Casa”:

Existem nesta Casa evangélicos em diferentes siglas partidárias, em várias


bancadas, que [...] se preocupam com outras coisas, não apenas concessões,
dádivas ou negociatas. [...] Estamos preocupados com o social, com a justiça e
com a fraternidade. Nesta Assembleia Nacional Constituinte, temos votado a favor
dos direitos dos trabalhadores, da reforma agrária e de tudo o que achamos
importante. [...] Tenho votado com os trabalhadores e com todos aqueles que me
trouxeram a esta Casa, e tenho correspondido à expectativa da bancada do Partido
dos Trabalhadores, da qual faço parte (DANC, 30/06/1988, p. 11697, grifos
nossos).

Benedita da Silva empenhou na ANC a bandeira da defesa dos negros e das mulheres, o
combate ao racismo e ao machismo, em associação a uma identidade de classe. A deputada não via
problemas em se afirmar como religiosa, mas reconhecia que ali não estava para atuar em nome de
uma bancada de parlamentares religiosos ou de sua igreja. Benedita estava ali para atuar em nome
de um partido – e demonstrando, por meio disto, a orientação que compreendia receber dos
ensinamentos de seu Messias:

não pertenço à bancada dos evangélicos. Sou da bancada do Partido dos


Trabalhadores, mas sou evangélica, com muita honra, pois aqui tenho demonstrado
a opção que Jesus Cristo fez pelos pobres, lutando pelos trabalhadores (DANC,
30/06/1988, p. 11697, grifos nossos).

4 Conclusão

Este artigo teve como objeto de análise o pensamento político de alguns dos “dissidentes” –
parlamentares evangélicos que se distanciaram da bancada evangélica durante a ANC e que se
colocaram como representantes de um pensamento político progressista e de esquerda. Em suas
manifestações notam-se preocupações que se diferenciavam daquelas sustentadas pelos deputados
vinculados à bancada evangélica: estes, mais conservadores, afirmavam serem os problemas do país

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provenientes de uma “crise moral”, rechaçando ideias consideradas de “esquerda” e o


reconhecimento de novos direitos e liberdades, uma vez identificados como ameaças à instituição
familiar e à moral cristã; os “dissidentes”, por sua vez, apresentaram ideias orientadas à defesa de
grupos sociais vulneráveis e à denúncia de posturas políticas autoritárias ainda vigentes no período,
ideias estas fundamentadas em uma leitura progressista de sua fé. Esta diferença de leitura não
apenas distanciou os dois grupos no que tange o tipo de relação que estabeleceram com o presidente
José Sarney – que viu a bancada evangélica se alinhar à maioria de suas pautas ao mesmo tempo em
que era alvo constante das críticas dos “dissidentes” – como também levou à promoção de embates
diretos entre seus integrantes. A distância também foi demarcada pelas lideranças religiosas – como
exemplifica a postura pública da Assembleia de Deus em sua crítica às posições dos “dissidentes” e
sua defesa dos deputados da bancada evangélica.
Com os resultados apresentados neste trabalho deseja-se contribuir com o desenvolvimento
das pesquisas a respeito das relações entre religião e política no Brasil e, particularmente, do
segmento evangélico com a política nacional. Se o interesse dos pesquisadores neste fenômeno se
mostra crescente, por outro lado são poucas as pesquisas que retornaram à última ANC para se
debruçar sobre o que ali fizeram os parlamentares evangélicos. Três décadas após a promulgação da
atual Constituição, ainda há o que se conhecer sobre o que fizeram aqueles atores, com o proveito
de trazer luz também à compreensão de como se dá a relação entre os evangélicos e a política no
Brasil de nossos dias. Propôs-se realizar este exercício a partir de um estudo sobre o pensamento
político daqueles parlamentares, a partir do uso de ferramentas digitais de análise qualitativa de
dados e da mobilização de documentos e registros jornalísticos do período. Em acréscimo, também
se compreende que este artigo permite observar de maneira mais aguda os conflitos e tensões
internas ao grupo: há uma hegemonia conservadora entre parlamentares e demais lideranças
evangélicas, mas se faz necessário reconhecer a existência de quadros evangélicos com disposição
para encampar bandeiras progressistas e em defesa da democracia e da garantia de direitos. Há uma
marca progressista na história dos evangélicos no Brasil (cf. Dias, A., 2007; Dias, Z., 2014;
Trabuco, 2015), e os registros feitos neste estudo buscam ampliar os subsídios a este entendimento.
Optou-se por enfatizar neste artigo as ideias de Lysâneas Maciel e Benedita da Silva, que
foram aqueles que estabeleceram de forma mais acalorada e direta as divergências de pensamento
com seus “irmãos na fé” ligados à bancada evangélica. Trata-se de reconhecer que, da parte destes
deputados, era necessário estabelecer uma outra narrativa sobre os fundamentos da fé cristã e sua
relação com a política, redirecionando as prioridades do discurso religioso à defesa da soberania
popular, à denúncia e enfrentamento à miséria, à garantia dos direitos humanos e de condições
adequadas de vida e de trabalho aos brasileiros, ao combate ao racismo e ao machismo, à proteção
de grupos minoritários – enfim, à opção pelos pobres e trabalhadores. Certamente eram prioridades
diferentes daquelas estabelecidas pela bancada evangélica, como um dia anunciou João de Deus
Antunes: “a moral, os bons costumes, a censura” (DANC, 17/06/1987, Supl. 78, p. 17).

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Referências

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na vida pública).
BENEDITA, a dúvida sobre o aborto. Correio Braziliense, Brasília, n. 8706, p. 5, 08 fev. 1987.
BÍBLIA. Bíblia Sagrada. Traduzida em português por João Ferreira de Almeida. Revista e
Atualizada no Brasil. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2006.
BINETTI, Saffo T. Progresso. In: BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO,
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BONAZZI, Tiziano. Conservadorismo. In: BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola;
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Artigo recebido em: Março/2021


Aprovado em: Julho/2021

Sydnei Melo (sydneimelo@gmail.com) é Doutor em Ciência Política pela Universidade Estadual


de Campinas, Professor de Educação Básica do estado de São Paulo.

“Dissidentes”:
a esquerda evangélica na Assembleia Constituinte (1987-1988)

Resumo. A bancada evangélica na Assembleia Nacional Constituinte (ANC) de 1987-1988 se


tornou conhecida como importante expressão do conservadorismo religioso na política. No entanto,
houve naquela legislatura a presença de parlamentares evangélicos alinhados com ideias
progressistas e de esquerda. Este artigo discute o pensamento político destes parlamentares, com
destaque particular às ideias de Lysâneas Maciel (PDT-RJ) e Benedita da Silva (PT-RJ) – que não
apenas se distanciaram da “bancada evangélica” como estabeleceram conflito direto com seus
integrantes em razão de suas críticas às preocupações morais e comportamentais que baseavam a
atuação da “bancada” na ANC. Redigido a partir da análise dos discursos proferidos pelos
parlamentares evangélicos na ANC com o auxílio de um software de análise qualitativa de dados, o
artigo também mobiliza propostas de emendas parlamentares e registros jornalísticos do período,
além da literatura dedicada ao tema da ANC e das relações entre religião e política.
Palavras-chave: Assembleia Constituinte (1987-1988); Religião e Política; Protestantismo;
Aspectos Políticos; Brasil.

“Dissidents”:
the evangelical left in the Constituent Assembly (1987-1988)

Abstract. The evangelical bench at the 1987-1988 National Constituent Assembly (NCA) became
known as an important expression of religious conservatism in politics. However, in that legislature
there was evangelical parliamentarians aligned with progressive and left-wing ideas. This article
discusses the political thought of these parliamentarians, with particular emphasis on the ideas of
Lysânea Maciel (PDT-RJ) and Benedita da Silva (PT-RJ) – who not only distanced themselves from
the “evangelical bench” but also established direct conflict with their members in reason for his
criticisms of the moral and behavioral concerns that supported the performance of the “bench” at
the ANC. Written from the analysis of speeches given by evangelical parliamentarians at the ANC
with the aid of qualitative data analysis software, the article also mobilizes proposals for
parliamentary amendments, journalistic records from the period and the literature dedicated to the
ANC and relations between religion and politics.
Keywords: Constituent Assembly (1987-1988); Religion and Politics; Protestantism; Political
Aspects; Brazil.

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