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RESUMO:
Partindo da noção lata de competência tradutória que discrimina os diferentes
saberes e capacidades do tradutor literário e assumindo que, quanto mais alargado
for o leque de leituras feitas por um tradutor na cultura de chegada, maior será o seu
repertório linguístico, literário e cultural, lança-se a hipótese de que memórias de
textos lidos pelos tradutores na língua de chegada possam ressurgir ou transparecer
na escrita tradutória sob a forma de citações e ecos intertextuais. O tópico a
investigar equaciona competência tradutória, literacia, tradução e intertextualidade
com o objetivo de encontrar ocorrências de intertextualidades não sugeridas pelos
textos de partida e, sim, criadas pelos tradutores nos textos de chegada, que remetam
para textos escritos em português. O corpus reunido para análise compreende obras
literárias em prosa e poesia, traduzidas diretamente do polaco para o português,
entre 1990 e 2010, em Portugal.
PALAVRAS-CHAVE:
literacia tradutória; intertextualidade; estratégias de tradução; domesticação;
estrangeirização
KEYWORDS:
translation literacy; intertextuality; translation strategies; domestication; foreign-
ization
Introdução
1. Pergunta de investigação
2. Enquadramento teórico-metodológico
Operational norms [...] may be conceived of as directing the decisions made during the
act [of translation] itself. These norms affect the text’s matrix — i.e., the way linguistic
material is distributed in it — as well as its textual make-up and verbal formulation.
Directly or indirectly they thus also govern the relationships that would obtain
between target and source texts or segments thereof; i.e., they determine what would
more likely remain intact despite the transformations involved in the translation, and
what would tend to get changed. (Toury, 2012 [1995]: 82)
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Literacia tradutória e intertextualidade — estudo de caso
O estudo das normas operacionais efetua-se com base no cotejo dos TP com os
TC, uma realidade múltipla, descoberta no decurso da leitura comparada das obras
em análise. O cotejo dos textos culmina no apuramento de fenómenos tradutórios
regulares, transversais, relevantes e singulares. A definição de Toury correlaciona
normas operacionais com processo de tradução, tomadas de decisão e mudanças
tradutórias. As normas operacionais representam decisões tomadas pelo tradutor
durante o ato tradutório em resposta à constante pergunta de como traduzir
determinada palavra, expressão ou estrutura. De acordo com a proposta de Jean-
-Paul Vinay e Jean Darbelnet (2004 [1958]: 84–93), no processo de tradução, o
tradutor tem fundamentalmente duas opções tradutórias, a saber: (i) tradução
direta, a estratégia de tradução que opera com a correspondência a nível lexical e
estrutural, com recurso à tradução literal, e (ii) tradução oblíqua, um procedimento
de tradução que atua com mudanças tradutórias quer a nível lexical quer sintático.
No presente estudo, buscam-se, portanto, ocorrências tradutórias no âmbito da
tradução oblíqua que, não se prendendo à letra do texto, atendem antes ao seu
espírito.
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já ouvidos. Por experiência, sabemos que, quanto mais alargado for o leque de
leituras de um tradutor, maior será o seu repertório linguístico, literário e cultural.
Desta forma, à competência tradutória, composta por diferentes saberes e
capacidades, tais como a competência linguística na LP e na LC, a capacidade para
utilizar as estratégias e técnicas de tradução adequadas, a competência cultural e a
competência factual e de pesquisa (Nord, 1991: 161), podemos ainda acrescentar a
literacia tradutória. Ana Benavente et al. definem literacia do seguinte modo:
[Na literacia] não se trata de saber o que é que as pessoas aprenderam ou não, mas sim
de saber o que é que, em situações da vida, as pessoas são capazes de usar. A literacia
aparece, assim, definida como a capacidade de processamento da informação escrita na
vida quotidiana. (1995: 23)
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Literacia tradutória e intertextualidade — estudo de caso
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Literacia tradutória e intertextualidade — estudo de caso
intertextual com uma das obras canónicas da língua portuguesa, aliás, em harmonia
com a forma e o conteúdo do poema, a descrição ecfrástica de uma iluminura
medieval. A expressão “menina e moça” coaduna-se com o espírito do poema e da
época nele representada, enquanto técnica de estilização arcaizante.
O poema do qual se extraiu a ocorrência (1) é a retradução de um texto original
anteriormente traduzido para português europeu, i.e., a segunda tradução, do ponto
de vista cronológico, do poema “Miniatura średniowieczna” [Iluminura medieval] de
Wisława Szymborska, primeiramente traduzido por Júlio Gomes em Paisagem com
grão de areia (1998: 168–169). Comparar as versões paralelas permite espreitar para
a oficina do tradutor e para os bastidores do processo de tradução. Quando existem
versões anteriores, é natural que o tradutor seguinte as consulte, quer por
curiosidade quer para delinear a sua estratégia de tradução. O cotejo destas duas
traduções paralelas pode indiciar como os tradutores Elżbieta Milewska e Sérgio
Neves eventualmente se inspiraram na tradução de Júlio Gomes, que reza: “[S]egue
a seu lado a grã-duquesa,/nova, mui moça, por maravilha” (JG: 169). Gomes traduziu
a expressão polaca “jovem, jovenzinha” como “nova, mui moça”, aplicando uma
tradução oblíqua e arcaizante através do advérbio “mui”. Sabendo que Milewska e
Neves tinham conhecimento da tradução de Gomes, é possível inferir que se
inspiraram na expressão “mui moça” para traduzir “jovem, jovenzinha” como
“menina e moça” e tal poderá exemplificar ainda o diálogo intertextual entre
tradutores.
TP: bo tu wszystko wylewa się na środek jezdni — jezdnia jest niczyja. K3: 36
porque aqui tudo deita-se em meio (de) rua — rua é (de) ninguém
TC: porque, aqui, deita-se tudo no meio da rua, a rua é de todos e de S&L3: 30
ninguém
Exemplo (2)
O exemplo (2) é extraído da descrição de uma cidade indiana, onde as ruas estão
sempre cheias de lama por servirem para escoar todo o tipo de despejos domésticos.
O diálogo intertextual estabelece-se através de um par de pronomes indefinidos que,
em português, surge em duas áreas linguísticas: na literatura e na fraseologia. O uso
dos opostos “todos/ninguém” é um eco vicentino, que remete para a farsa Auto da
Lusitânia, onde as duas personagens principais são Todo o Mundo e Ninguém. A
tradução para português de “jezdnia jest niczyja” [a rua não é de ninguém] pela frase
“a rua é de todos e de ninguém” faz eco de um modo de expressão característico do
português.
A junção dos opostos “todos/ninguém” também pode ter sido inspirada em
expressões fraseológicas que fazem parte do acervo linguístico do português, como
“agradar a todos e a ninguém” ou “todos ralham, ninguém tem razão”. Além disso,
pode ainda constituir o eco de uma canção de 1943 cantada por Milú, ainda hoje
popular, Cantiga da rua, cujo refrão reza: “É de toda a gente. Não é de ninguém.”
TP: armia Mao przebywała bagniste równiny, gdzie przedtem prawie K3: 60-61
nigdy nie stawała stopa ludzka
exército (de) Mao percorria pantanosas planícies onde antes quase nunca
não pousou pé humano
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TC: o exército de Mao [...] percorria planícies pantanosas nunca dantes S&L3: 49
tocadas pelo pé humano
Exemplo (3)
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Literacia tradutória e intertextualidade — estudo de caso
Da mesma forma que cada um de nós é fruto das experiências de vida que tem e isso
se reflecte na nossa forma de agir, também o que o autor de um texto conhece de outros
textos e de outras formas de escrever influencia a forma como escreve. Muitas vezes
traz esse conhecimento directa ou indirectamente para o texto, ligando-o assim a
outros. Por exemplo, se alguém começar um texto com expressões como “Naquele
tempo...”, estamos perante uma referência clara a textos bíblicos. (Prada, 2010)
TP: Mówi: nie tylko musisz spotkać się z Innym, przyjąć go, dokonać aktu K4: 28
rozmowy.
diz: não só tens de encontrar se com Outro, receber o, realizar ato (de)
conversa
TC: Diz: não é só preciso encontrar o Outro, como hás-de recebê-lo em S&L4: 35
franco convívio.
Exemplo (7)
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conta que o livro Paisagem com grão de areia de Szymborska foi traduzido depois da
atribuição do prémio Nobel, em 1996, e publicado em Portugal em 1998, é plausível
que o título sonante da obra cinematográfica pudesse ser uma referência para o
tradutor. Por sua vez, o título do filme tem como antecedente o folheto monárquico
intitulado Aqui d’El Rei! (1919), da autoria de João do Amaral. Além disso, o uso da
locução “aqui-d’el-rei” na tradução remete ainda para um registo arcaico e regional,
podendo denotar a formação e proveniência do tradutor Júlio Sousa Gomes (professor
de Português da zona centro de Portugal).
O exemplo (9) mostra que o enunciado foi construído por meio do decalque
sintático do provérbio português “Muita parra, pouca uva”. O TC representa um eco
intertextual sintático com uso da técnica de tradução por transposição — a alteração
da classe das palavras: os adjetivos “duży” [grande] e “mały” [pequeno] foram
convertidos nos advérbios de quantidade “muito” e “pouco”. Tal implicou ainda uma
alteração sintática, a eliminação da preposição “z” [de] e a sua compensação com a
introdução da vírgula. Esta ocorrência intertextual baseia-se num decalque
sintático, que se traduz na fórmula: MUITO X, POUCO Y. Apesar de esta ocorrência
se inspirar no acervo fraseológico ativo do português, existem registos escritos do seu
uso, por exemplo, no título da obra Muita parra e pouca uva da autoria de Francisco
Gomes de Amorim (1878).
A glosa do exemplo (10) mostra que o verso foi redigido na LP com base no
decalque sintático da proposição cartesiana: “Cogito ergo sum” que, em polaco, se
traduz como “Myślę, więc jestem” e, em português, como “Penso, logo existo”. Os
paralelismos sintáticos são evidentes nas três línguas. Se o tradutor tivesse optado
pela tradução literal, o verso teria preservado o eco cartesiano: Vive, logo erra.
No entanto, o tradutor optou por uma tradução oblíqua, livre: Só se engana
quem está vivo. Com esta opção tradutória perde-se o decalque sintático cartesiano,
culturalmente consagrado, mas — curiosamente — ganha-se um pseudoprovérbio, já
que a tradução é efetuada com base numa construção típica dos ditados portugueses,
por exemplo: Só trabalha quem não sabe fazer mais nada. Na estrutura sintática SÓ
X, QUEM Y, empregue em (10), descortinam-se os dilemas que os tradutores
enfrentam e têm de resolver, mediante a ponderação de perdas (neste caso, o
apagamento de uma referência intertextual existente no TP) e ganhos em tradução
(neste caso, a formação de um pseudoprovérbio).
Muito embora a intertextualidade patente em (9) e (10) possa não ter sido
inspirada com referência a textos escritos (o fundamento da literacia tradutória),
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Literacia tradutória e intertextualidade — estudo de caso
estes exemplos permitem encetar uma nova investigação, a saber: até que ponto a
fraseologia da LC influencia o processo tradutório e em que circunstâncias os
tradutores vertem enunciados formulados com linguagem do “discurso livre” no TP
através de linguagem própria do “discurso repetido” (Coseriu, 1977: 113) no TC. Por
outras palavras, estes exemplos abrem ainda espaço a um estudo sobre a
possibilidade de citar a partir de repertórios linguísticos, fraseológicos, culturais,
disponíveis na LC.
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Literacia tradutória e intertextualidade — estudo de caso
ou o povo com os seus sábios provérbios — falasse através dos tradutores, e este
aspeto talvez possa ser entendido como a vida posterior (afterlife) das obras originais,
no sentido atribuído por Benjamin (2004 [1923]: 16) em “The Task of the Translator”.
Desta feita, não só os TP teriam uma vida posterior quando são traduzidos, mas
também os textos nativos, escritos na LC, a alcançam, quando um tradutor neles se
inspira e faz uso da intertextualidade, transferindo fragmentos textuais de outrem
para a tradução no âmbito da mesma língua. Assim, por meio de referências
intertextuais, aos tradutores se deve tanto a vida posterior do TP na tradução como
a vida posterior de textos originalmente escritos na LC.
A intertextualidade tradutória aqui apurada pode ainda ser explicada à luz da
noção de “repertorema” que Toury (2012 [1995]: 304) define como itens, expressões e
enunciações pertencentes ao repertório institucionalizado de uma língua com valor
semiótico para a comunidade de falantes. Quando os “repertoremas” são empregues
em contextos textuais particulares tornam-se “textemas”. Assim sendo, poder-se-á
entender que o uso da intertextualidade na tradução, não sendo motivada pelo TP,
faz parte do âmbito dos repertoremas transformados em textemas. Por outras
palavras, João Barrento reitera a ideia de que “o texto traduzido [...] é um reflexo do
próprio sistema literário nacional, o que implica a constante e necessária
relacionação com ele” (2002: 78).
Por sua vez, de acordo com a teoria Skopos (Vermeer, 2004 [1989]: 228), o
tradutor deve ter consciência do propósito da tradução e de que esse propósito é
apenas um entre outros possíveis e que os TP não têm uma só tradução correta ou
uma tradução melhor do que outra, uma vez que a tradução obedece a estratégias
previamente delineadas que têm em vista o seu propósito.
Todavia, teorias tradutológicas existem que emitem juízos de valor sobre as
traduções, tendo em vista o comprometimento social e cultural das mesmas. Essas
teorias têm origem na crítica do modo como os tradutores obedecem às normas de
escrita da LC e a modelos de escrita da CC ao ponto de o texto traduzido transmitir
a impressão de ter sido escrito originalmente na LC. Este fenómeno é designado por
Lawrence Venuti (1995: 1) como o “efeito ilusório do discurso”, um efeito, aliás,
esperado por editores, leitores e críticos literários, que valorizam a tradução quando
esta se apresenta: “fluent and natural-sounding”, “with fluid grace” (Venuti, 1995:
3). Neste âmbito, a intertextualidade tradutória, aqui analisada, remete para a noção
de “remainder” [o resíduo, a remanescência, a reminiscência, o remanescente],
definida por Venuti como: “The collective force of linguistic forms that outstrips any
individual’s control and complicates intended meanings” (1998: 108). As
reminiscências, ressurgindo como recriação de algo já existente, constituem a
reconstrução linguística de memórias de leituras e representações da CC, plasmadas
em novos contextos tradutórios, os TC. Identificar que os tradutores aplicam
reminiscências das suas leituras na tradução, para Venuti, não se restringe à mera
descrição e constatação do fenómeno. Venuti vê nesta estratégia o apagamento do
carácter do tradutor, bem como o apagamento das características do TP, marcas que
configuram a domesticação da tradução que consiste em adaptar a tradução aos
modelos de escrita da CC, fazendo com que o texto traduzido seja tão fluido como um
texto nativo. O autor norte-americano toma, assim, uma atitude avaliativa e
partidária — por um lado, critica a estratégia da domesticação enquanto “an
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Mas então que caminhos pode afinal tomar o verdadeiro tradutor que quer realmente
reunir estas duas pessoas completamente separadas, o seu escritor e o seu leitor [...]?
A meu ver existem apenas dois. Ou o tradutor deixa o mais possível o escritor em
repouso e move o leitor em direcção a ele; ou deixa o leitor o mais possível em repouso
e move o escritor em direcção a ele. (Schleiermacher, 2003 [1813]: 61)
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Literacia tradutória e intertextualidade — estudo de caso
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Conclusões
Obras Citadas
BENJAMIM, Walter (2004 [1923]). “The Task of the Translator.” The Translation Studies
Reader, edição de Lawrence Venuti, tradução de Harry Zohn. Routledge, pp. 15–25.
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Literacia tradutória e intertextualidade — estudo de caso
CÂNDIDO, Hanna Marta Pięta (2013). Entre periferias — Contributo para a história da
tradução externa da literatura polaca em Portugal (1855–2010). Tese de Doutoramento.
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Repositório da Universidade de
Lisboa, https://repositorio.ul.pt/handle/10451/9763.
MATEUS, Maria Helena Mira et al. (2003 [1983]). Gramática da língua portuguesa
(5.ª edição, revista e aumentada). Editorial Caminho.
NORD, Christiane (1991). Text Analysis in Translation. Theory, Method, and Didactic
Application of a Model for Translation-Oriented Text Analysis. Rodopi.
ORTEGA Y GASSET, José (2004 [1937]). “The Misery and the Splendor of Translation.” The
Translation Studies Reader, edição de Lawrence Venuti, tradução de Elizabeth Gamble
Miller. Routledge, pp. 49–63.
RICOEUR, Paul (2005 [2004]). Sobre tradução. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo.
Cotovia.
ROCHA, Carlos (2014). “O uso de «haver de ser» e será.” Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
(ISCTE–IUL.pt), https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/o-uso-de-
haver-de-ser-e-sera/32809 (acedido a 24/06/2023).
TOURY, Gideon (2012 [1995]). Descriptive Translation Studies and Beyond. Revised Edition.
John Benjamins Publishing Company.
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VERMEER, Hans J. (2004 [1989]). “Skopos and Commission in Translation Action.” The
Translation Studies Reader, edição de Lawrence Venuti, tradução de Andrew
Chesterman. Routledge, pp. 221–232.
VINAY, Jean-Paul, e Jean DARBELNET (2004 [1958]). “A Methodology for Translation.” The
Translation Studies Reader, edição de Lawrence Venuti, tradução de Juan C. Sager e
M.-J. Hamel. Routledge, pp. 84–93.
Licensed under the Creative Commons Attribution 4.0 International (CC BY 4.0).
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