Cidade Liquida - Joao Tordo
Cidade Liquida - Joao Tordo
Cidade Liquida - Joao Tordo
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Lista de autores, por ordem de saída dos contos:
Pedro Paixão | João Tordo | Rui Zink | Luísa Costa Gomes | Eduardo
Madeira | Inês Pedrosa | Afonso Cruz | Gonçalo M. Tavares | Manuel
Jorge Marmelo | Mário de Carvalho | Dulce Maria Cardoso | Pedro
Mexia | Fernando Alvim | Possidónio Cachapa | David Machado | JP
Simões | Rui Cardoso Martins | Nuno Markl | João Barreiros | Raquel
Ochoa | João Bonifácio | David Soares | Pedro Santo | Onésimo
Teotónio Almeida | Mário Zambujal | Manuel João Vieira | Patrícia
Portela | Nuno Costa Santos | Ricardo Adolfo | Lídia Jorge | Sérgio
Godinho
João Tordo
Nasceu em Lisboa, em 1975. Em 2009, venceu o Prémio Literário José Saramago
com o romance As Três Vidas (2008), depois de, em 2001, ter vencido o Prémio
Jovens Criadores na categoria de Literatura. Foi finalista do prémio Melhor Livro de
Ficção Narrativa da Sociedade Portuguesa de Autores, bem como do Prémio
Fernando Namora em 2011, com o romance O Bom Inverno(2010), e do Prémio
Portugal Telecom 2011 com a edição brasileira de As Três Vidas. Publicou também
O Livro dos Homens sem Luz (reeditado em 2011) e Hotel Memória (2007).
Anatomia dos Mártires (2011) é o seu mais recente romance.
Está nomeado para o Prémio Literário Europeu 2012, pela edição francesa de O
Bom Inverno. Mais informações em joaotordo.blogs.sapo.pt
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Cidade Líquida
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João Tordo
Nos meus últimos dias em casa com a mulher que deixou de ser
minha lembrei-me, em diversas ocasiões, de Roque dos Santos.
Tínhamo-nos conhecido em Veneza, no princípio do Verão, num
restaurante à beira da água. Eu apresentara-me descaradamente;
ele, debruçado sobre esparguete com anchovas, respondera com
educação. Depois passámos uma tarde inteira a beber e, no final,
reflectindo nas coisas que com ele descobri, decidi separar-me. Essa
história existe e está contada algures, num molho de papéis
perdidos.
Uma noite, deitado no sofá do escritório que eu improvisara no
quarto desocupado que havíamos reservado para a chegada de um
improvável filho, vi um longo documentário sobre os Beatles. O
documentário durava quase oito horas; passei a noite acordado.
Cheguei à conclusão de que Roque fazia-me lembrar George
Harrison (ou talvez fosse George Harrison quem fizesse lembrar
Roque, embora o músico tivesse uma bondade no olhar
completamente ausente dos olhos do realizador). Concluí, mais
tarde, que era a maneira de falar que me recordava de Roque: a voz
ligeiramente arrastada e depois rematando as palavras mais
importantes; também o formato das sobrancelhas e a expressão de
alguma ausência. Na verdade, não havia nada de especial em
Roque. Mas o que haveria de especial em Harrison? Roque era
baixo, despenteado, carrancudo, tinha a barba sempre por fazer; era
igual a milhares de homens que todos os dias passavam na rua. E,
contudo, eu via-o em toda a parte, destacado, como uma coisa
iluminada no meio de um corredor escuro. Via-o na esquina e no
café; via-o no metropolitano e na barbearia. Um dia acordei de
manhã e vi-o no espelho da minha casa de banho. O meu coração
saltou e disse um palavrão. Depois tapei a boca para não acordar a
minha mulher. No espelho estava apenas eu, ou a minha imagem,
porém, durante a fracção de um momento, esta parecera estar
sobreposta por outra, um rosto sobre um rosto, ou o meu rosto
sobre uma sombra que habitava o espelho do outro lado. Roque
tinha estado ali durante um fugaz momento e, depois, desaparecera
deixando um rasto sinistro de si mesmo. Numa outra noite fui a uma
loja e comprei o filme Cidade Líquida. Revi-o sozinho, depois de
jantar em pé, ao balcão da cozinha. A minha mulher não estava em
casa, mas preferi vê-lo no escritório, de porta fechada. Pensei,
enquanto via as imagens a preto e branco saturadas que apareciam
no pequeno ecrã de uma televisão antiga, que a memória sofre
distorções incompreensíveis mesmo para aqueles que se consideram
sãos (como eu me julgava então) e que essas distorções reforçam
apenas o sentimento de que a vida é uma ficção escrita diariamente
na qual tudo se torce e retorce de acordo com a vontade de alguém.
Alguém que não somos nós; que não podemos ser nós. Se o homem
busca a verdade e no interior do homem habita a verdade, então no
interior do homem existe também uma cortina que a oculta. O filme
era completamente diferente do que eu recordava. Agora tinha a
certeza (mas teria?) de que era o primeiro filme que vira com a
minha mulher, pois só a promessa de um amor pode alterar de
forma tão significativa uma evocação. José Duchamp e Teresa
Worthless — que, no filme, chamavam-se José e Teresa — eram, de
facto amantes, embora a inundação progressiva da cidade não fosse
provocada pelo amor, mas sim pelo desamor. Há poucos diálogos,
quase nenhuns: é uma história de fugas e perseguições. José segue
Teresa pela cidade, uma Veneza desabitada tão diferente daquela
que eu conhecera, e via-a encontrar-se com outro homem. Num
beco escuro, enquanto José observa, Teresa põe-se de joelhos e faz
sexo oral a esse homem, um estrangeiro de pele escura e barba
cerrada. O chão está coberto de água e ouvimos o chapinhar dos
joelhos dela e a respiração pesada do homem. Noutro momento,
entra numa igreja branca e cospe sobre as imagens dos santos; com
as unhas arranha a talha dourada. José, aparentemente religioso,
senta-se ao fundo da nau e persigna-se. Noutras vezes, Teresa
persegue José, sem sabermos o porquê da mudança de perspectiva.
José entra em vários bares e bebe desesperadamente, como se
tentasse anular a realidade; não é claro que o actor não esteja, de
facto, a beber. Depois deambula ao acaso, caindo às esquinas e para
cima dos transeuntes. Teresa observa-o à distância e não intervém,
mesmo quando um homem sentado num degrau, no qual José
tropeça pela segunda vez, se levanta e o agride com um soco
violento. Essa cena termina com o actor num beco escuro e
inundado, em tijolo de pedra, onde cai redondo e adormece, a água
tapando-o até ao pescoço. No plano seguinte, José está a correr por
uma rua estreitíssima e ouvem-se as vozes iradas de um grupo que
o persegue: roubou uma carteira a um de três homens de aparência
árabe. Teresa corre atrás do grupo, desesperada, como se fugisse de
uma espécie de morte, mas as vozes evadem-se e desaparecem na
noite aquática e perde-os de vista. Ficamos com ela, sozinha, no
meio de uma praça deserta. José e Teresa: o único objectivo dos
amantes parece ser magoarem-se e magoarem-se novamente, até o
destino estar cumprido. E, novamente, a cortina que oculta a
verdade. O final, ou destino, ou o único momento que parecem
verdadeiramente partilhar, abraçados em torno do campanário de
uma igreja enquanto a água toma a cidade, era também ele distinto
da minha recordação. José e Teresa não se beijam. Ficam a olhar-se
com alguma coisa parecida com desprezo, mas também com a dor
demencial da perda: a perda do outro, a perda do tempo, a perda
do tempo de vida.
Deixei o genérico passar até ao final mas devo ter adormecido
antes de terminar porque, de madrugada, despertei com a chuva e o
restolho de um ecrã ligado sem qualquer sinal à Terra.