Cada Um Por Si e Deus Contra Todos - Memória - Werner Herzog

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Werner Herzog

Cada um por si e Deus contra todos


Memórias

tradução
Sonali Bertuol
Enkidu suspirou amargamente e disse:
“Gilgamesh, o vigia da floresta nunca dorme”.
Gilgamesh replicou: “Onde está o homem que é capaz de ascender até o
céu?”.
Capa
Folha de Rosto

Prefácio

1. Estrelas, o mar
2. El Alamein
3. Heróis míticos
4. Voar
5. Fábio Máximo e Siegel Hans
6. Na fronteira
7. Ella e Rudolf
8. Elisabeth e Dietrich
9. Munique
10. Encontro com Deus
11. Cavernas
12. O vale dos 10 mil moinhos de vento
13. Congo
14. Dr. Fu Manchu
15. John Okello
16. Peru
17. Privilegium maius, Pittsburgh
18. Nasa, México
19. Pura vida
20. Dançando na corda bamba
21. Menires e o paradoxo do quadrado perdido
22. Balada do pequeno soldado
23. A mochila de Chatwin
24. Arlscharte
25. Mulheres, filhos
26. À espera dos bárbaros
27. Por realizar
28. A verdade do oceano
29. Hipnose
30. Vilões
31. A transformação do mundo em música
32. A leitura de pensamentos
33. Leitura lenta, sono longo
34. Amigos
35. Minha velha mãe
36. O fim das imagens

Filmografia
Óperas encenadas
Agradecimentos

Autor

Créditos
Prefácio

Originalmente, o meu filme Aguirre, a cólera dos deuses* deveria


terminar da seguinte maneira: a jangada dos conquistadores
espanhóis leva somente mortos a bordo, e quando chega à foz do
Amazonas, apenas um papagaio falante ainda está vivo. Tão logo a
cheia do Atlântico lança a jangada de volta ao imponente rio, o
papagaio grita sem parar: “Eldorado, Eldorado”. Foi só durante as
filmagens que encontrei uma solução muito melhor: a jangada é
invadida por centenas de macaquinhos, e Aguirre lhes conta sobre
a fantasia de seu novo império mundial. Não faz muito tempo, dei
com uma versão historicamente não avalizada sobre o fim dessa
figura histórica. Abandonado por todos depois de assassinar a
própria filha para que ela não precisasse assistir à sua desgraça,
Aguirre ordena ao seu último fiel seguidor que o mate com um
tiro. Este aponta o seu mosquete e o atinge com um tiro no meio
do peito. “Isso não foi nada”, diz Aguirre. Ele ordena que o outro
atire novamente. O homem o acerta no coração. “Isso deve bastar”,
diz Aguirre e cai morto.
Tenho certeza de que, com os macacos, o filme termina com a
melhor de todas as alternativas, mas me pergunto quantas não
foram as possibilidades, as alternativas não vividas que eu mesmo
sempre tive, não só ao inventar histórias, mas também na minha
própria vida, e que não se tornaram realidade ou demoraram
muitos anos para isso.
Já usei uma vez o título deste livro para o meu filme sobre
Kaspar Hauser, mas quase ninguém foi capaz de reproduzi-lo
corretamente. Faço aqui uma segunda tentativa. Pode ser que ele
sugira demasiadamente uma visão de mim mesmo como um
guerreiro solitário. Fato é que quase sempre estive cercado de
colaboradores, família, mulheres. Sobre todas essas pessoas, exceto
algumas poucas, nada se saberá por este livro. Todas elas, sem
exceção, foram independentes, fortes, belas e inteligentes. Sem
elas, eu seria apenas uma sombra de mim mesmo.
Para onde o destino me levou! Como ele sempre trouxe à vida
novas reviravoltas! Mas muita coisa também permaneceu
constante — uma visão que nunca me abandonou e, como num
bom soldado, qualidades como o senso de dever, lealdade,
coragem. Sempre quis defender postos avançados que foram
abandonados às pressas por todos os outros. Quanto disso era
previsível? Pelo soldado japonês Hiroo Onoda, que só se rendeu
29 anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, eu soube que à luz
do crepúsculo é possível enxergar uma bala de fuzil disparada
contra alguém como se fosse um projétil traçante. Pode-se então,
por um momento, vislumbrar o futuro.
Eu me encontrava imerso na escrita do final deste livro. Ergui
os olhos porque vi algo cintilar, algo que vinha chispando em
minha direção com um brilho acobreado e verde-claro. Mas não
era uma bala perdida, e sim um colibri. Nesse instante decidi não
continuar a escrever. A última frase simplesmente termina onde eu
havia acabado de chegar.
1.
Estrelas, o mar

Por volta do meio-dia, cessou o pranto das mulheres. Algumas


haviam gritado e puxado os cabelos. Quando elas foram embora,
eu fui até lá. Era uma pequena construção de pedra no cemitério,
na pequena aldeia de Chora Sfakion, na costa sul de Creta, apenas
umas poucas casas espalhadas pelo íngreme rochedo. Eu tinha
dezesseis anos. Não havia porta no diminuto salão fúnebre. Na
penumbra do interior, vi dois mortos lado a lado, tão próximos que
se tocavam. Eram dois homens. Depois eu soube que eles tinham
matado um ao outro durante a madrugada; ainda havia vingança de
sangue naquela região distante, arcaica. Lembro-me apenas do
rosto do morto que jazia à direita. Ele estava azulado como violetas
e em parte também amarelo. Nas narinas, tinha dois grandes tufos
de algodão, embebidos de sangue velho. Uma carga de chumbo o
atingira no peito.
Ao cair da noite, embarquei para o mar. Eu estava trabalhando,
por algumas noites, num barco de pesca; deve ter sido uma das
poucas noites em torno da lua nova, quando não havia luar. Um
barco rebocava seis botes, lâmpades, para o alto-mar, cada qual
tripulado por uma única pessoa. Lá chegando, éramos
desacoplados separadamente ao longo de um quilômetro e
deixados a sós. O mar estava liso como um espelho, sem ondas, a
água como óleo. Afora isso, um silêncio imenso. Cada bote tinha
uma grande lanterna de carbureto, que iluminava o mar em
profundidade. A luz atraía peixes e sobretudo lulas. Estas eram
pescadas com uma técnica singular. Na extremidade da linha de
pesca, colava-se um pedaço de papel de cera de cor clara, com a
forma e o tamanho aproximados de um cigarro. Isso atraía as lulas,
que abraçavam a suposta presa com os seus tentáculos. Para que
elas pudessem se sustentar melhor, no final da isca luminosa
fixava-se uma coroa com cerdas de arame. Era preciso saber com
exatidão o quão profundamente a isca estava mergulhada na água,
pois no momento em que os calamares eram erguidos do mar, eles
soltavam as presas e se deixavam cair de volta na água. A última
braçada de linha tinha que ser acelerada de tal forma que, com o
impulso, as lulas caíssem no bote.
As primeiras horas da noite se passavam numa espera imóvel,
até que em algum momento a lua artificial da lanterna surtiu seu
efeito. Acima de mim estava a cúpula do universo, estrelas como se
ao alcance da mão, tudo me embalava suavemente num berço de
infinitude. E abaixo de mim, claramente iluminadas pela lanterna
de carbureto, estavam as profun­dezas do oceano, como se a
abóbada do firmamento compusesse com elas uma esfera. Em vez
de estrelas, havia ali espalhados inúmeros peixinhos prateados
cintilantes. Envolvido por um cosmo magnífico, acima, abaixo, por
toda a parte, no qual não havia palavras e todos os ruídos estavam
suspensos, de repente num espanto inconcebível reencontrei a
mim mesmo. Eu tive certeza de saber tudo aqui e agora. Meu
destino me foi revelado. E eu sabia também que depois de uma
noite como aquela dificilmente seria possível envelhecer. Eu tinha
plena certeza de que não chegaria ao meu 18º ano de vida, pois,
iluminado por tal graça, nunca mais poderia haver para mim um
tempo ordinário.
2.
El Alamein

Faz um tempo encontrei junto com alguns documentos um cartão-


postal de minha mãe, datado de 6 de setembro de 1942, escrito a
lápis. O selo com o retrato de Adolf Hitler já vinha impresso no
papel. O carimbo é claramente identificável: Munique, capital do
movimento.* O cartão está endereçado ao prof. dr. R. Herzog e
família em Großhesselohe, subdistrito de Munique. Portanto, a meu
avô Rudolf Herzog, o patriarca da família. Meu pai, ao que tudo
indica, não foi notificado pela minha mãe.
“Querido pai”, ela escreve ao meu avô. “Comunico-lhe que
ontem à noite dei à luz um filho. Ele se chamará Werner.
Saudações carinhosas, Liesel.” Meu nome, Werner, foi um ato de
rebeldia contra o meu pai, que havia escolhido para mim o nome
de Eberhard. Quando nasci, meu pai estava na França como
soldado, não na linha de frente ou algo assim, pois ele soube se
safar, mas na retaguarda, onde eram distribuídas provisões,
sobretudo mantimentos. Ele havia gerado a mim durante a sua
última licença da guerra, logo após o ano-novo. Mais tarde, minha
mãe descobriu que ele havia passado a primeira metade da sua
licença de dez dias com uma amante e só depois apareceu em casa.
Eu nasci logo antes da virada decisiva da Segunda Guerra
Mundial. No leste, a Wehrmacht* tentava tomar Stalingrado, o
que em poucos meses levaria à desastrosa derrota alemã no leste, e
no Norte da África o general alemão Rommel tentava avançar até
El Alamein, o que resultaria num desastre semelhante para o
chamado Reino de Mil Anos.* Mais tarde na minha vida, quando
eu tinha 23 anos e saí dos Estados Unidos às pressas porque tinha
burlado o meu status de visto e seria deportado para a Alemanha,
fugi para o México, onde tive que ganhar dinheiro de alguma
forma para sobreviver. Encontrei trabalho nas charriadas, a versão
mexicana do rodeio, como uma espécie de palhaço que atuava na
arena montando em touros jovens, embora eu jamais tivesse
sequer subido num cavalo. Eu me apresentava sob o nome artístico
de El Alamein, porque ninguém conseguia pronunciar
corretamente o meu nome e, para simplificar, me chamavam El
Alemán, o alemão. Eu, porém, insistia em El Alamein, pois, para
deleite do público, eu era severamente castigado a cada
apresentação, numa tácita alusão à derrota alemã nos desertos do
Norte da África. Todos os sábados, as pessoas podiam assistir mais
uma vez a essa derrota, ou, melhor dizendo, aos ferimentos a que
inevitavelmente me sujeitava.
Apenas duas semanas após o meu nascimento, a capital do
movimento, Munique, foi atingida por um dos primeiros ataques
aéreos. Minha mãe morava na cidade, numa pequena mansarda na
Elisabethstraße, 3. Treze anos depois, nos mudaríamos para uma
pensão no mesmo edifício, apenas um andar abaixo, onde então
conheci o colérico Klaus Kinski e seus acessos de fúria. Mas em
1942, de quando não tenho lembranças, muitos edifícios ao redor
foram completamente destruídos, e aquele onde eu estava
começando a minha vida também sofreu severos danos. Minha
mãe me encontrou no berço coberto por uma camada espessa de
cacos de vidro, telhas e entulho. Eu saíra totalmente ileso, mas
minha mãe, em seu medo, pegou a mim e a meu irmão mais velho,
Tilbert, e deixou a cidade fugindo para as montanhas até Sachrang,
a mais remota de todas as aldeias na Baviera, localizada num vale
estreito bem perto da fronteira com a Áustria. Foi onde eu cresci.
Minha mãe conhecia algumas pessoas ali e através delas encontrou
um lugar para ficar fora da aldeia, no Bergerhof, uma propriedade
montanhesa — não na própria sede, mas na chamada
Austragshäuschen, a casinha da aposentadoria, uma diminuta
construção ao lado da principal, onde, de acordo com o costume
bávaro, o velho casal de agricultores recebia o necessário para
viver, depois de transferir a propriedade para o filho mais velho.
Morávamos no térreo, em cima de nós estava alojada uma família
refugiada de Hamelin, no norte da Alemanha.
Sobre meu pai e sua família falarei mais adiante. Antes, porém,
vou me remeter à família de minha mãe, os Stipetić, que eram
provenientes da Croácia, da cidade de Split, que originalmente
pertencia à Dalmácia, e depois se mudaram para Zagreb, numa
época em que a atual capital ainda se chamava Agram. Ali, no
século XIX, meus antepassados foram altos funcionários da
administração pública e das Forças Armadas, e meu avô, um major
do estado-maior dos Habsburgo, que no entanto nunca conheci,
pois ele morreu quando minha mãe tinha apenas dezoito anos.
Segundo os relatos dela, esse meu avô tinha uma queda pelo
humor surreal, pelo absurdo. Ele passou dois anos estacionado em
Uscupe, atual Escópia, e durante todo esse tempo usava sempre
uma luva só. Mais tarde, num café em Viena, ele tirou suas luvas
de oficial diante do garçom e, para espanto geral, tinha uma das
mãos profundamente bronzeada, enquanto a outra era branca
como a neve. Como se em rebelde sublevação, ele jogava bolas de
gude com meninos de rua em uniforme de gala e se destacava com
feitos bizarros e nem um pouco militares. Essa parte croata da
minha família era nacionalista e queria a independência da Croácia
perante a monarquia dual austro-húngara. Tais pretensões mais
tarde desembocaram no fascismo. Com o apoio de Hitler, um
poglavnik, um führer,* assumiu o poder na Croácia por três anos, e
o pesadelo só acabou com o fim da guerra.
Minha avó era uma burguesa de Viena, com quem minha mãe
nunca teve um relacionamento próximo, porque durante toda a sua
vida nunca conseguiu se interessar pela burguesia. Eu só conheci
essa minha avó de poucas visitas, e a única memória vívida que
tenho dela é de quando a visitei com minha mãe num lar de idosos,
já perto da sua morte. Minha avó estava confusa e me pediu um
copo d’água, que enchi para ela na pia. “Uma delícia”, ela repetia a
toda hora, tomava pequenos goles, e não parava de agradecer por
tão extraordinária iguaria.
Lotte, a irmã mais nova da minha mãe, puxou a essa avó
austríaca e, desse modo, as duas irmãs não tinham muita
intimidade. Lotte era uma mulher absolutamente afetuosa, com
dois filhos, um menino e uma menina. O menino, meu primo,
alguns anos mais velho do que eu, com quem eu me dava bem,
teve um papel importante num momento dramático da minha
vida, quando, aos 23 anos, voltei dos Estados Unidos para a
Alemanha pela primeira vez. O meu primeiro grande amor ficara
em Munique, mas já então nosso relacionamento era
problemático, porque naqueles anos eu estava tendo um
desenvolvimento muito rápido, estranho para ela. Eu a conhecera
quando trabalhava como soldador no turno da noite na fábrica de
seus pais, uma pequena metalúrgica. Eu já começara com esse
trabalho durante o Gymnasium,* porque precisava de dinheiro para
a produção dos meus primeiros filmes. Talvez por insegurança,
porque eu não lhe propusera um noivado quando parti, ela se
casou com o meu primo durante a minha estadia nos Estados
Unidos, sem me contar a respeito. Quando voltei, ela tinha
acabado de retornar da lua de mel e mesmo assim fugiu comigo
por alguns dias, porém nem ela nem eu estávamos determinados a
reverter os acontecimentos. Como ela não queria voltar direto para
o marido, meu primo, levei-a para a casa dos pais dela, que estavam
à minha espera com os seus quatro filhos. Talvez fossem apenas
três, minha memória os eleva a uma superioridade absoluta. Eu
não queria simplesmente despejar minha amada na porta da casa
de seus pais e estava disposto a me apresentar. Seus irmãos,
brutamontes bávaros musculosos, todos jogadores de hóquei,
haviam proferido a ameaça de me matar na primeira vez que eu
aparecesse. Os pais, com razão, fizeram ameaças semelhantes. Mas
não tive medo e entrei na casa. Com o meu primo, eu tivera um
estranho encontro no dia anterior, a minha amada entre nós dois
sendo puxada para lá e para cá. Ainda hoje tenho certeza de que
não partimos para as vias de fato, não encostamos um dedo um no
outro, mas apesar disso fiquei depois com a maçã do rosto inchada,
como se tivesse levado uma forte pancada. Só quatro décadas mais
tarde tive um breve encontro com ele num aniversário de família,
porém nunca voltamos a nos aproximar, embora ambos
quiséssemos isso.
Minha namorada até essa minha primeira viagem aos Estados
Unidos depois esteve como que sob uma maldição, sempre
atraindo a má sorte. Ela teve dois filhos com o meu primo, mas o
casamento se desmantelou. Relacionamentos posteriores com
outros homens também terminaram de forma infeliz. Por fim, ela
se jogou da ponte de Großhesselohe para a morte. Em fotos
antigas de nós dois, parecemos comple­tamente despreocupados,
imbuídos de uma leveza atrás da qual não se podia supor a
fatalidade que sobreviria. Ainda hoje me aflige que, na minha
temporada nos Estados Unidos, eu a tenha abandonado de alguma
forma, sem ter tido a coragem de ser franco com ela. Na minha
vida, muitas vezes as mulheres estiveram associadas a dramas, o
que provavelmente vem do fato de que sentimentos profundos
sempre estiveram em jogo. Mas nunca entendi por completo o
grandioso mistério e a agonia do amor. Eu simplesmente quase não
tive relacionamentos superficiais. O demônio do amor sempre me
impeliu, e sem mulheres minha vida teria sido um nada. Às vezes
imagino um mundo onde não haja mulheres, apenas homens. Tal
mundo seria insuportável, miserável, cambaleante entre um vazio
e outro. Mas também tive muita sorte, talvez mais do que mereci.
Minha família pelo lado paterno era formada por acadêmicos.
Suas raízes estão na Suábia, mas um ramo da família era de
huguenotes com o nome de Neufville, provavelmente protestantes
franceses que se refugiaram da perseguição em Frankfurt no fim do
século XVII. Minha extensa árvore genealógica nunca me
interessou em particular, mas me lembro de meu pai ter feito
pesquisas, segundo as quais seríamos parentes do matemático
Gauß, bem como de várias outras celebridades históricas e, por
fim, até mesmo de Carlos Magno, mas de um ponto de vista
estatístico é provável que isso seja válido para a maioria dos
alemães e dos franceses. Na verdade, para o meu pai tratava-se
mais de nos conferir uma importância que todavia não tínhamos.
Um dos meus meios-irmãos, Ortwin, que quase não conheço e
que viajou pelo mundo e trabalhou para uma lista telefônica
classificada meio fraudulenta, foi inserido por meu pai na árvore
genealógica como um viajante pesquisador, como se fosse o caso de
um novo Alexander von Humboldt. O mais velho desses dois
meios-irmãos, Markwart, que conheço um pouco melhor —
embora ambos tenham ficado distantes e marcados para toda a
vida, pois, ao contrário de mim, tiveram a infelicidade de crescer
junto ao meu pai —, é o único de todos os irmãos que concluiu um
curso universitário. Ele estudou teologia católica e escreveu a sua
tese de doutorado sobre interpretações religiosas e filosóficas a
respeito da suposta descida de Cristo ao inferno.
Ella, minha avó pelo lado paterno, uma mulher alta e imponente
que, tão só por sua força de caráter, assumiu cada vez mais o papel
de chefe de todo o clã familiar, me proporcionou uma visão
profunda da história de minha família, ou melhor, uma espécie de
visão em túnel, um buraco perfurado em profundidade na vida de
duas pessoas apenas, minha própria avó e a avó dela, minha
tataravó. Somente essa verdadeira sondagem das profundezas da
minha árvore genealógica é que sempre me interessou. Ela própria,
minha tataravó, escreveu suas memórias: “Meus filhos e netos”, e
mais abaixo: “Pois é, parece que vocês estão curiosos e querem saber
como o vovô conquistou a vovó”. Embaixo: “Natal de 1891”.
As memórias da minha tataravó remontam ao ano de 1829. Ela
cresceu na Prússia Oriental. “Minha querida filhinha”, escreve a avó
da minha avó, “quando no verão lhe contei numa carta sobre minhas
experiências e lembranças de minha antiga pátria, você me disse que
ficaria feliz se eu escrevesse algumas histórias da minha infância que
relatei a vocês. A primeira memória de que tenho consciência remonta
ao meu terceiro ano de vida. Penso que deve ter sido em 1829. Em meu
pensamento, vejo-me em nossa sala de estar no castelo de Gilgenburg.
Minha mãe, cujas feições no entanto não me ficaram na memória, está
sentada numa cadeira sobre o tablado de uma janela, pois as janelas
eram bastante altas em relação ao chão, diante de sua mesa de costura,
ocupada com um trabalho manual; eu subo com esforço no tablado e na
cadeira; em pé, atrás de minha mãe, procuro com o meu jeito de criança
arrumar e acariciar seus cabelos. Então vem um outro dia, que vejo
diante de meus olhos como se fosse hoje e que nunca vou esquecer — é
quando estou no quarto de minha mãe, é de manhã, ela se levantara da
cama e está deitada no sofá, estou brincando ao lado dela; deve haver
mais alguém no quarto porque ouço dizerem: ‘Ela desmaiou’, e ouço
chamarem pessoas, que chegam e a erguem do sofá e a deitam na cama.
Então ouço alguém gritar: ‘Um braseiro para aquecer os pés’. Os pés
foram esfregados e aquecidos, mas foi em vão, eles não ficaram mais
quentes. — Era, como ouvi mais tarde, o primeiro dia em que ela se
levantara da cama após o nascimento de um filhinho. Meu irmãozinho
estava morto e me lembro de ter sido chamada para vê-lo.”
“Nas propriedades de meu pai”, escreve — na ocasião ela devia
ter uns seis, sete anos — “com suas grandes florestas, havia também
muitos animais selvagens naquela época. Javalis em grandes bosques de
carvalhos e também lobos em profusão. Às vezes, ao passarmos pela
floresta à noite, os cavalos se assustavam e, quando olhávamos em
volta, um par de olhos esverdeados faiscava na mata. Todos os anos,
era realizada uma grande caça ao lobo. O governo tinha oferecido uma
recompensa para cada lobo que fosse abatido. Enquanto ainda houvesse
lobos, naturalmente haveria também filhotes. Às vezes, em suas
incursões pela floresta, os guardas florestais encontravam uma toca de
lobo com filhotes. Quando os adultos saíam à noite em busca de comida,
os guardas florestais iam buscar os filhotes, enfiavam-nos num saco,
vinham até nós e os despejavam na nossa sala, onde nós, crianças,
dávamos pulos de alegria e brincávamos com os lobos e os
provocávamos tanto que eles começavam a uivar muito alto. Tudo
terminava com a morte deles. Orelhas e garras eram afixadas num
pedaço de papelão e, quando este era enviado ao governo com um
certificado, a recompensa era paga. Os lobos eram tão ousados que às
vezes penetravam até nas hortas e pomares e pegavam um ganso ou
mesmo subtraíam ao pastor uma ovelha do rebanho. Minha cabra (com
a qual eu tinha uma amizade íntima) teve o mesmo destino. Os pastores
ainda conseguiram com gritos e com o cão afugentar o lobo, mas a
garganta do pobre animal já havia sido dilacerada. Como no verão os
cavalos e o gado passavam a noite no gramado do pomar, também era
necessário tomar precauções contra lobos. Quando os animais voltavam
do campo no fim do dia, eles eram untados com um óleo malcheiroso,
acho que se chamava ‘óleo francês’, do qual se dizia ter a propriedade de
repelir fortemente os lobos. No gado bovino, na cabeça e entre os chifres,
pois quando atacadas as reses se juntavam com as partes traseiras e se
defendiam com os chifres. Nos cavalos, eram besuntados o rabo e os
quartos traseiros, porque eles se juntavam com a cabeça e se defendiam
do ataque dos lobos com coices. Apesar disso, lembro que uma manhã
trouxeram um cavalo com o traseiro todo rasgado e esfarrapado, de
modo que ele teve de ser degolado…”
Para mim, o Bergerhof, em Sachrang, era o mesmo idílio
crivado de perigos, só que forjado pelas catástrofes, convulsões e
fluxos de refugiados da Segunda Guerra Mundial. Lembro que,
ainda antes de eu ir para a escola, meu irmão mais velho, Till, e eu
pastoreávamos as vacas na propriedade dos Lang. Nós, crianças
pequenas, éramos amigas do filho do proprietário, Eckart, que
entre nós chamávamos apenas de Manteiga, porque o pai dele, que
costumava espancá-lo brutalmente, fazia-o bater a nata até virar
manteiga. O pastoreio de vacas nos rendeu o primeiro dinheiro
ganho por conta própria; não era quase nada, mas fortaleceu em
nós o senso de independência. É possível que tenhamos ganhado
dinheiro ainda mais cedo quando com a mesma idade levávamos
cerveja e refrigerante num cavalo Haflinger até o alto do monte
Geigelstein. À esquerda um engradado de cerveja, à direita um
engradado de refrigerante, ambos bem amarrados no lombo do
cavalo, e subíamos o longo caminho quase a galope até o
Oberkaser, um pasto que ficava um pouco acima da cabana
Priener, na qual funcionava uma hospedaria. A diferença de
altitude a partir de Sachrang deve ser de cerca de oitocentos
metros, e andávamos descalços porque no verão não tínhamos
sapatos. Sapatos só havia no outono e no inverno até o fim de abril,
e nos meses sem “r” — maio, junho, julho, agosto — também não
tínhamos nenhuma roupa sob as nossas calças de couro. Hoje há
uma estrada que sobe a montanha, mas naquela época subíamos
por uma trilha pedregosa e mesmo assim conseguíamos fazer o
percurso em uma hora e quinze minutos. Atualmente, os turistas
levam quase quatro horas. No Oberkaser, vivia uma família de
pastores, entre eles uma jovem mulher, a Mare. Ela era a única que
passava o ano todo ali, e dizia-se que, desde que se apaixonara lá
embaixo e fora abandonada, não queria ter mais nada com o vale e
as pessoas que lá viviam. Quando tinha um ano, seu pai a enfiou
numa mochila e subiu com ela a montanha. Desde então a Mare
vivia lá em cima e, após a sua juventude, esteve no vale apenas uma
vez em sessenta anos, porque tinha que assinar papéis para o
recebimento de uma pensão, acho. Há alguns anos, pouco antes de
ela morrer, eu a encontrei lá em cima com o meu filho mais novo,
Simon. Ela já tinha mais de noventa anos e estava desgrenhada e
desleixada, embora houvesse gente que cuidava dela. Jovens do
serviço de resgate na montanha, que tinham uma cabana nas
imediações, davam uma olhada nela quase todos os dias. Um deles
a penteava de vez em quando, e lhe fazia bem que um homem
jovem e forte arrumasse os seus cabelos. Ela sobreviveu a verões e
invernos, chuvas e tempestades. Não muito tempo antes da minha
visita, a sua cabana havia sido toda soterrada por uma enorme
avalanche, e os homens do resgate cavaram um poço vertical de
vários metros de profundidade para tirar a Mare com vida da
cabana ainda praticamente intacta. Quando a encontrei, um
homem que cuidava dela de forma comovente acabara de instalar
na nova cabana um aquecedor que ligava e desligava
automaticamente de acordo com a temperatura, pois uma vez a
Mare fora encontrada quase congelada na sua cama, e outra vez ela
pusera fogo em si mesma com gravetos em chamas. As autoridades
responsáveis por ela em Aschau debateram longamente sobre levá-
la para um lar de idosos, mas ela se recusou terminantemente e
ficou decidido então que ela poderia morrer no lugar que sempre
foi o seu lar. A Mare lembrava-se apenas de modo vago dos dois
meninos que, setenta anos antes, costumavam ir até sua casa com
o Haflinger. Às vezes, quando o tempo estava ruim, meu irmão e
eu dormíamos no feno lá em cima e partíamos de manhã, bem
cedinho, porque, antes de corrermos para a escola, devolvíamos o
cavalo e recebíamos nossos cinquenta centavos.
Como no caminho para o pasto alto havia pedras pontiagudas
que muitas vezes não dava para ver sob os tufos de grama, nossos
pés estavam sempre esfolados e sangrando. No verão, com sede,
invadimos o estábulo do pasto Schreck-Alm e meu irmão se
aproximou de uma vaca que pretendia ordenhar rapidamente. Mas
era uma vaca jovem, que o escoiceou com tanta força que ele saiu
voando para fora do estábulo. Tal como aprendi naquela época em
Sachrang, hoje ainda sei ordenhar uma vaca e reconheço outras
pessoas que sabem, assim como às vezes se pode reconhecer um
advogado ou um açougueiro. Meus conhecimentos de ordenha
vieram em meu auxílio muito mais tarde, junto aos astronautas que
formaram a tripulação de um ônibus espacial. A história prévia a
isso remonta ao meu fascínio por uma missão exploratória de
Júpiter que foi extremamente difícil e marcada por reveses. Após
muitos adiamentos e mudanças de planos, a sonda espacial Galileo
foi lançada de um ônibus espacial em 1989. Para atingir a
velocidade necessária, a sonda teve que dar uma volta em torno de
Vênus e duas em torno da Terra. A gravidade dos dois planetas
produziu um efeito estilingue. A missão durou catorze anos e, ao
final, em 2003, quando a sonda Galileo quase não dispunha mais
de combus­tível próprio, a Nasa decidiu conduzi-la com a sua
última energia restante para fora da órbita de uma das luas de
Júpiter e abandoná-la à mercê da gravidade do planeta gigante. Não
se queria contaminar a lua de Júpiter, Europa, que é coberta por
uma espessa camada de gelo sob a qual se presume haver um
oceano líquido e que possivelmente contém formas de vida
microbianas, e por isso foi provocada a queda da sonda Galileo nos
gases de Júpiter, onde ela se extinguiu como plasma ultraquente.
Quase todos os cientistas e técnicos que trabalharam na missão
reuniram-se para acompanhar essa morte da sonda no Centro de
Controle de Missão em Pasadena, na Califórnia, e eu tinha ouvido
falar disso. Eu queria de todo jeito estar lá, porque sabia que
muitos dos envolvidos comemorariam com champanhe e muitos,
eu previa, estariam de luto. Não obtive permissão para participar
do evento, mesmo assim escalei a cerca de arame do terreno,
porém não consegui passar pelos seguranças na entrada do Centro
de Controle. Um físico, a quem sou grato até hoje, de alguma
forma me reconheceu quando fui detido pelos seguranças e
telefonou para a sede da Nasa em Washington. Ali, por mero
acaso, os responsáveis estavam em reunião e o próprio chefe da
agência foi chamado ao telefone, porque prometi não incomodá-lo
por mais de sessenta segundos. Eu tive sorte. Ele tinha visto
alguns dos meus filmes e simplesmente deu a ordem: “Deixem o
maluco entrar com a sua câmera”. O que me impressionou naquele
dia foi como quase todos os envolvidos choraram e, de repente,
quando os sinais da sonda ainda estavam sendo recebidos com
nitidez, alguém anunciou que aquela era a morte da missão.
Embora os sinais continuassem a chegar, havia sido feito um
cálculo dessa antecipação, pois a sonda ainda transmitiria dados
por mais 52 minutos. Durante esse tempo, os sinais da sonda já
morta, extinta em fogo, continuariam viajando até a Terra.
Isso me levou a novas pesquisas. Num arquivo, encontrei
filmagens maravilhosas em celuloide de 16 mm, que os astronautas
haviam feito durante seus trabalhos na missão do ônibus espacial.
Presumo que fossem as únicas filmagens nesse formato, os rolos de
filme ainda estavam lacrados no plástico do laboratório, ninguém
fizera nada com elas. Evidentemente, já houvera filmagens em
vídeo na época do lançamento da sonda, em 1989, e antes disso é
possível que tenha havido filmes em 8 mm do espaço sideral, mas
naquela tripulação havia um astronauta que se interessava por
cinema e tinha talento. É dele que provém a maior parte do
material, apesar de outros membros da tripulação também terem
filmado. Menciono esse piloto porque ele registrou cenas de beleza
excepcional, que me impressionaram profundamente. Ele era
piloto de teste em todos os tipos de aeronaves da Força Aérea dos
Estados Unidos e servira como capitão de um submarino nuclear.
O material dessas filmagens, isso logo ficou claro para mim,
junto com tomadas sob o gelo da Antártida, formaria a espinha
dorsal do meu filme de ficção científica Além do azul selvagem. Ou
melhor, as filmagens deveriam compor uma história, a partir da sua
própria dinâmica, quase por si mesmas. Os astronautas da
tripulação do ônibus espacial daquela época também deveriam
aparecer — agora eles estavam dezesseis anos mais velhos, mas
segundo a minha história teriam viajado a uma velocidade tão alta
que, nesse meio-tempo, haveria se passado 820 anos na Terra.
Uma distorção no tempo. Eles retornam a uma Terra despovoada.
Demorou vários meses até que eu conseguisse encontrá-los
todos em Houston, no Johnson Space Center. Numa grande sala,
as cadeiras estavam dispostas em semicírculo; nelas já estavam
sentados os astronautas, agora mais velhos, quando fui conduzido
para o local. Eu sabia que eram todos cientistas com altas
qualificações, uma das duas astronautas era bioquímica, a outra,
médica, um dos homens era um dos mais importantes físicos de
plasma dos Estados Unidos — todos profissionais sérios e
altamente competentes. Ao cum­pri­mentá-los, senti o meu coração
pesar. Como eu poderia convencer aquelas pessoas a atuarem num
filme de ficção científica tão fantasioso? Eu lhes contei um pouco
sobre minhas origens nas montanhas da Baviera enquanto
observava os seus rostos. Um deles, o piloto, Michael McCulley,
tinha traços definidos e fortes, como conhecemos dos filmes de
caubói. Eu disse que na verdade não era uma criatura da indústria
cinematográfica, mas alguém que no pós-guerra tinha aprendido a
ordenhar vacas. Ainda hoje sinto um frio na espinha quando penso
em como poderia ter posto tudo a perder com a minha fala, mas
mesmo assim mencionei que, por causa do meu trabalho com
atores e com rostos, muitas vezes era capaz de perceber nas
pessoas coisas que elas guardam dentro de si. Por exemplo, que de
um modo geral eu era capaz de reconhecer pessoas que sabiam
ordenhar vacas. Virei-me para McCulley e disse: “Sir, estou
bastante convencido de que sabe ordenhar vacas”. Ele gritou, bateu
nas coxas, fez os movimentos de ordenha com os punhos. Sim,
tendo crescido numa fazenda no Tennessee, McCulley havia
aprendido a ordenhar. Não quero nem imaginar em que abismo de
constrangimento eu teria me lançado caso estivesse errado. Mas o
gelo tinha sido quebrado, e todos os astronautas que apareciam no
filme de 16 mm participaram como atores do meu filme, 820 anos
mais velhos.
Nós, crianças em Sachrang, aprendemos a pescar trutas usando
apenas as mãos. Quando as pessoas aparecem, as trutas se
escondem debaixo das pedras ou dos juncos que pendem da
margem e ali permanecem imóveis. Tateando com cuidado dentro
da água com as duas mãos ao mesmo tempo e então agarrando com
determinação, é realmente possível pescá-las. Com frequência,
pois tínhamos fome, de manhã no caminho para a escola ao longo
do riacho Prienbach, pegávamos uma ou duas trutas e as
deixávamos presas numa poça rasa que escavávamos ao lado do rio,
e depois na volta as levávamos para casa. Minha mãe então as
fritava. Lembro-me de como, recém-mortas e sem cabeça, elas se
contorciam no óleo. Algumas, ainda vejo diante de meus olhos, até
mesmo pulavam na frigideira. Nossa vida se passava quase
exclusivamente ao ar livre, e nossa mãe não hesitava em nos pôr
para fora de casa todas as tardes, durante quatro horas, mesmo no
mais frio dos invernos. Quando escurecia, ficávamos em frente à
porta da casa, tiritando de frio, as roupas cobertas de neve. Às
cinco horas em ponto, a porta se abria, e nossa mãe, sem nenhuma
cerimônia, varria a neve das nossas roupas com uma vassoura de
gravetos antes de nos deixar entrar. Ela considerava saudável a vida
ao ar livre, e nós tivemos uma infância magnífica, sobretudo
porque, como em quase nenhuma casa havia um pai, o que era
também o nosso caso, tudo se encontrava em estado de anarquia,
no melhor sentido. Eu, mais do que todos, ficava muito feliz por
não termos um sargento em casa para nos dizer como devíamos
nos comportar.
Aprendíamos tudo sem instruções.
Lembro-me de um bezerro morto, que era do Sturmhof, a
propriedade vizinha, e jazia na neve à beira da floresta. Pelo menos
seis raposas dilaceravam o cadáver e, quando cheguei perto, elas
fugiram. Enquanto meu irmão andava ao redor do bezerro morto,
de repente uma raposa escapuliu de dentro da cavidade abdominal,
agachou-se e fugiu mantendo a posição agachada. As raposas têm
esse agachamento em seu andar ao serem surpreendidas. Quando
muito tempo depois, em 1982, numa viagem a pé seguindo de
perto a fronteira da Alemanha, eu ia por uma trilha na floresta, de
súbito senti à minha frente, trazido pelo vento que soprava na
minha direção, o cheiro de uma raposa e, quando o caminho fez
uma curva fechada, eu a vi diante de mim, distraída, andando
devagar em linha reta, no passo típico da sua espécie. Avançando
de mansinho, eu quase a alcancei, mas ela se virou e por um
momento se agachou muito baixo nas patas traseiras, como se
quisesse escutar se o seu coração, que havia parado, tinha voltado a
bater, e só então saiu dali correndo, ainda agachada.
No outono, porém, na temporada de cio dos cervos, era preciso
ter um pouco de cuidado. Houve um ciclista que foi atacado por
um cervo furioso e fugiu para baixo de uma pontezinha, até a qual
o macho ensandecido o seguiu. Somente os estrépitos de latas de
conservas vazias espalhadas por ali o espantaram. Também
aconteciam encontros misteriosos. Certa vez, em plena luz do dia,
meu irmão é testemunha, de repente a encosta atrás da nossa casa
ficou inteira cheia de doninhas, todas elas correndo em direção ao
riacho. Não acho que tenha sido um sonho, embora isso sempre
possa ser uma explicação. De resto, tínhamos visto na vida no
máximo uma doninha, ou talvez duas, mas daquela vez devem ter
sido muitas dezenas. Essas fugas em massa são conhecidas em
lemingues, mas nunca ouvi falar de tal comportamento em
doninhas. Algumas delas fugiram por entre os troncos de uma
pilha de madeira, e eu quis procurar ali, mas não encontrei mais
nenhuma. O mundo ao redor era cheio de mistérios. No caminho
para a aldeia, do outro lado do riacho, havia uma floresta alta de
abetos, a Feenwald, floresta das Fadas, na qual quase nunca
ousávamos entrar. Na parte estreita do desfiladeiro atrás da casa,
havia uma cachoeira que batia num degrau de pedra antes de
desaguar num poço, que estava sempre cheio de água gelada,
cristalina. Às vezes, árvores gigantes caíam nesse poço e conferiam
ao lugar algo de primordial. Ali eu vi o Sturm Sepp pelado
tomando banho e esfregando o corpo com uma escova de piaçava.
Ele não parecia uma criatura humana, mas antes uma velha árvore
gigante, com líquens que tremulavam ao vento.
3.
Heróis míticos

O Sturm Sepp é uma das figuras míticas da nossa infância. Ele era
um empregado da propriedade vizinha, Sturmhof. Na velhice, o
seu tronco ficara dobrado quase horizontalmente para a frente a
partir do quadril. O Sturm Sepp devia ter, pelo menos para nós, o
tamanho de um gigante, como um ser vindo de um passado
nebuloso e indefinível. Ele tinha uma longa e farta barba grisalha e
quase sempre um cachimbo também longo pendurado na boca. O
quão alto ele seria caso se endireitasse era algo que podíamos saber
pela sua bicicleta. O selim estava regulado tão alto acima do quadro
que apenas um gigante conseguiria alcançar os pedais de lá de
cima. O Sturm Sepp não falava. Jamais alguém o ouvira dizer uma
palavra. No domingo, na taverna, a sua cerveja era posta na sua
frente sem que precisasse pedir. Nós, crianças, zombávamos dele
e, no caminho para a escola, quando ceifava a relva do outro lado
da cerca, encurvado como uma criatura primitiva, nós gritávamos
“Olá, Sepp”, e repetíamos isso várias vezes, tentando arrancar uma
palavra dele. Uma vez, embora parecesse estar tranquilo cortando a
relva, ele de repente desferiu um golpe furioso com a foice contra
Brigitte, a menina do Bergerhof, que estava mais perto da cerca, e
a atingiu no meio do corpo. “Ah, você”, ele exclamou, a sua única
articulação linguística em décadas. Por sorte, a ponta da foice
perfurou apenas os utensílios de metal que ela levava na merenda
da escola. A partir de então mantivemos distância. Adotamos a
explicação de que Sturm Sepp era tão forte e tão terrivelmente
dobrado ao meio porque no inverno arrastava toras de madeira da
montanha. Certa vez, quando o cavalo não aguentou, ele próprio
teria carregado um gigantesco tronco nos ombros e, a partir de
então, ficara encurvado para a frente.
Como ele, havia muitos outros mistérios. Não sei se é uma
lembrança, mas vejo um homem em pé na beira do riacho atrás da
casa ao anoitecer. Contra o frio, ele acendeu uma grande fogueira.
Seu rosto está tingido de vermelho. Ele olha fixamente para as
chamas. Alguém diz que ele é um desertor, que fugirá para as
montanhas pela manhã. É possível que me lembre disso? Nessa
época eu não era novo demais para ter hoje uma lembrança? Havia
também uma bruxa que me pegou e saiu correndo comigo, mas
minha mãe a alcançou e me arrancou de suas garras, e a partir daí
com certeza eu não faria mais xixi nas calças, em tempo alcançaria
o penico. Na minha mão direita havia uma sarda, mas eu sabia que
aquele era o ponto em que a bruxa tinha me mordido. Depois
houve outra noite, que com certeza aconteceu de verdade, em que
nossa mãe arrancou a mim e a meu irmão Till da cama e depressa
nos embrulhou em cobertores, porque lá fora o inverno ainda era
muito frio. Ela subiu conosco um trecho da encosta, de onde
tínhamos uma boa visão. “Vocês precisam ver isso, meninos”, disse
ela, “a cidade de Rosenheim está em chamas.” Rosenheim, perto
do fim da guerra, foi incendiada, dizia-se, por bombas dos Aliados,
que sobrevoavam os Alpes ao voltar para as suas bases e, por causa
do mau tempo, não conseguiam distinguir os alvos. Dizia-se
também que eles teriam lançado suas bombas sobre a cidade alemã
inimiga para se livrar de carga. O que vimos quando crianças tenho
ainda hoje diante dos meus olhos. No final do vale, na direção
norte, todo o céu ardia, vermelho e laranja e amarelo, mas não era
uma cintilação como de labaredas, e sim um lento pulsar de todo o
firmamento noturno, pois a cidade de Rosenheim ardia em chamas
a quarenta quilômetros de distância. Era um grande incêndio que
desenhava no céu noturno a terrível pulsação do fim do mundo. Na
época, Rosenheim não significava nada para mim, mas a partir
daquele momento eu soube que lá fora, além do nosso mundo,
além do nosso estreito vale, havia outro mundo, perigoso,
fantasmagórico. Não que eu sentisse medo desse mundo, ele me
deixava curioso.
Um mistério que até hoje me faz pensar foi um avião que ficou
um bom tempo sobrevoando a montanha atrás de casa, como se
procurasse alguma coisa. Então, vimos nitidamente, ele lançou
algo que parecia mecânico, brilhante, como se fosse feito de
alumínio. Não tenho mais certeza se estava pendurado num
paraquedas ou em algum tipo de balão. Havia uma bandeira como
marcação, mas ela parecia se deslocar de uma copa de árvore para
outra. As pessoas no vale também viram e, como já estava
anoitecendo, só na manhã seguinte uma equipe de homens partiu
para uma busca. Eles ficaram fora o dia todo e só voltaram tarde da
montanha, quando já estava escuro. Estávamos curiosos, mas
ninguém quis dizer nada. Eles haviam encontrado algo misterioso,
sobre o qual não nos era permitido saber. Era militar? Era algo
realmente deste mundo, ou de outro, distante, estranho?
Mas também a paisagem idílica de Sachrang escondia seus
perigos. Anos após o fim da guerra, ainda encontrávamos armas
que soldados em fuga tinham jogado fora ou escondido. Com a
Alemanha cercada por todos os lados, retraindo-se cada vez mais
com o avanço das tropas aliadas, restavam no final apenas alguns
pequenos enclaves não ocupados, acho que um na Turíngia, um no
norte, em Flensburg e, por último, Sachrang junto com Kufstein
além da fronteira, na Áustria, e com os montes do Kaiser ali perto.
Os últimos soldados dispersos, mas também grupos de Werwolf,*
que pretendiam realizar operações de guerrilha após o fim da
guerra, passavam por ali, jogavam fora os seus uniformes e os
trocavam por roupas civis. As armas eles escondiam no feno ou sob
as pilhas de lenha. Sei por minha mãe que uma vez houve um
grande tumulto no Bergerhof quando os soldados americanos da
ocupação encontraram armas no celeiro da propriedade. O
proprietário foi ameaçado de execução, e minha mãe, que falava
inglês, interveio em seu socorro. Ele realmente nada sabia sobre o
esconderijo. Eu mesmo uma vez encontrei uma submetralhadora
debaixo de uma pilha de lenha e não tenho certeza se cheguei a
disparar a arma, mas pensei em ir caçar com ela, pois já havia
observado antes um trabalhador da estrada atirar com uma
submetralhadora num bando de corvos, matando um deles. Ele o
depenou e fez com a ave uma espécie de sopa numa grande panela.
Como estava com fome, eu me juntei aos trabalhadores e pela
primeira vez na vida vi algumas gotas de gordura flutuando na sopa
— uma sensação. Mesmo assim, não me deram nada da comida.
Mais tarde, nós, crianças, também aprendemos a mexer com
carbureto e fabricávamos nossos próprios explosivos. O melhor de
tudo era provocar a detonação num tubo de concreto que passava
por baixo da estrada. Ficávamos na estrada sobre o tubo e era uma
sensação especial quando a explosão nos erguia um pouquinho.
Também me lembro vagamente que nossa mãe nos chamou, junto
com os nossos amigos, e diante de nós atirou com sua pistola
numa grande acha de faia. Do outro lado, a madeira lançou
estilhaços, retalhada pelo projétil. Foi tão impressionante que nem
precisou de proibição. Tínhamos entendido. A partir daquele
momento, ficou claro que nunca em nossas vidas apontaríamos
uma arma, carregada ou descarregada, para uma pessoa. Nem
mesmo uma arma de brinquedo não apontaríamos para ninguém.
Pertenço a uma geração que, de certa maneira, é singular na
história. Pessoas antes de mim viveram grandes transformações,
como a do mundo europeu no mundo da descoberta da América,
ou a do mundo do trabalho artesanal na era industrial, mas cada
uma dessas foi a experiência de uma grande e única transformação.
Só que eu vi e vivi, embora não pertencesse propriamente a uma
cultura agrária, os campos serem ceifados à mão com foices, o
capim ser virado, as carroças puxadas por cavalos serem carregadas
de feno com grandes forquilhas e conduzidas para o celeiro. Havia
camponeses que trabalhavam como os servos nos remotos tempos
feudais da Idade Média. Depois eu vi pela primeira vez uma
máquina de virar feno, que, ainda puxada por um cavalo, jogava o
feno para cima com garfos montados paralelamente, vi um
primeiro trator, vi com espanto a primeira ordenhadeira. Era a
transição para a agricultura industrializada. Mas muito mais tarde
também vi a agricultura em gigantescos campos no Meio-Oeste
americano, onde enormes colheitadeiras dispostas em formação
faziam a colheita de campos com quilômetros de extensão.
Nenhum ser humano perturbava os monstros, embora cada uma
das colheitadeiras ainda fosse tripulada por um homem. Mas elas
estavam conectadas digitalmente em rede, em cada cabine havia
vários monitores, e o controle se dava automaticamente via GPS, o
que possibilitava linhas matematicamente perfeitas. Se fossem
pessoas a dirigir as máquinas, seria inevitável se formarem
pequenas linhas onduladas, forçando todo o comboio a fazer
curvas cada vez mais acentuadas. As sementes eram manipuladas
geneticamente. E então, há alguns anos, eu vi a primeira
agricultura robótica, onde não há mais trabalho humano. Os robôs
fazem a semeadura nas estufas, regam, regulam a iluminação e a
temperatura, colhem e embalam o produto acabado, pronto para
ser vendido no supermercado.
De forma semelhante, também vivi grandes transformações na
comunicação, desde tempos arcaicos. Lembro-me do funcionário
da prefeitura em Wüstenrot, na Suábia, a algumas horas de
distância de Munique e Sachrang, onde mais tarde meu irmão e eu
moramos por um ano com nosso pai. Ali havia o chamado Ausrufer
ou Herold, o arauto ou pregoeiro. Acho que em alemão não existe
mais uma palavra que ainda seja de uso corrente, como town crier
em inglês. Eu presenciei como ele chegava à aldeia pela estrada de
Raitelberg e, tocando um sino, pedia atenção. A cada quatro casas,
ele parava e gritava “Comunicado! Comunicado!”, anunciando
decretos e audiências da administração pública. Desde a mais tenra
infância, eu sabia o que era um jornal e um rádio, embora nem
sempre tivéssemos eletricidade, mas nunca assistia a filmes, não
tinha a menor noção do que era o cinema. Eu não sabia que ele
existia até que um dia apareceu um homem com um projetor
portátil na única sala de aula da escola de Sachrang, e ali então
foram exibidos dois filmes, mas não fiquei nem um pouco
impressionado. Também não havia telefone na nossa aldeia, dei o
meu primeiro telefonema com dezessete anos de idade. Aparelhos
de televisão surgiram somente na década de 1960, assistimos pela
primeira vez a um noticiário ou à transmissão de um jogo de
futebol em Munique, no andar de cima do nosso, no apartamento
do zelador e sua família. Vivi o início da era digital, a internet,
conteúdos me foram apresentados não por pessoas, mas por
algoritmos. Recebi e-mails escritos por robôs. As redes sociais
mudaram profundamente toda a comunicação, ainda que eu
próprio não faça uso delas. Video games, vigilância, inteligência
artificial, nunca na história houve tamanha densidade de
transformações radicais, e também não consigo imaginar que
gerações futuras venham a experimentar tantas reviravoltas
fundamentais numa única vida.
Nossa infância foi arcaica. Não tínhamos água corrente,
precisávamos buscá-la com um balde no poço lá fora e, no inverno,
quando fazia frio, muitas vezes a água estava congelada. Havia
apenas uma latrina numa casinha anexa à casa, uma tábua com uma
abertura. Como esse anexo não era bem calafe­tado, no inverno a
neve acabava se acumulando dentro da casinha, e por isso nossa
mãe pôs um balde no corredor. Usávamos o balde como banheiro,
mas nos dias de maior frio, tudo que havia dentro do balde
congelava e se solidificava. Apenas a cozinha, que contava com um
pequeno fogão a lenha, podia ser aquecida. O minúsculo quartinho
contíguo, com cerca de dois metros de largura, onde meu irmão e
eu dormíamos em um beliche, e o quarto de nossa mãe não tinham
nenhum tipo de aquecimento. Também não tínhamos colchões de
verdade. Minha mãe não podia comprá-los e confeccionou ela
mesma alguns substitutos, enchendo sacos rústicos de pano com
feno obtido de samambaias que ela havia secado. As samambaias,
contudo, talhadas com uma foice, tinham pontas afiadas onde os
talos haviam sido cortados obliquamente. Depois de secas, essas
extremidades ficavam duras como lápis apontados, e sempre
acordávamos quando trocávamos de posição durante o sono. A
samambaia seca se aglomera rapidamente formando bolas, e
mesmo fortes sacudidas no colchão não são mais capazes de
impedir que surjam cavidades rijas, duras como concreto. Por
causa dessas cavidades, durante toda a minha infância nunca dormi
numa superfície reta. No inverno, às vezes fazia tanto frio à noite
que os cobertores, estendidos até sobre nossas cabeças,
congelavam no ponto onde deixávamos um buraco para respirar. O
quarto era tão estreito que entre o beliche e a parede cabia apenas
uma cadeira. No alto, logo abaixo do teto, havia uma prateleira
onde eram armazenadas maçãs. Lá dentro cheirava
permanentemente a essas maçãs. Elas murchavam e congelavam
no inverno, mas ainda eram comestíveis quando descongeladas.
Quase não havia assistência médica, e minha mãe, embora
sempre tentasse explicar, era tomada por uma médica, porque
tinha um título de doutora. Mas ela o adquirira como bióloga. Seu
orientador foi o posterior ganhador do Prêmio Nobel Karl von
Frisch, e sua tese havia sido sobre a audição dos peixes. Para o
estudo, realizado no aquário do laboratório, ela tocava, na flauta
doce, melodias às quais os peixes aprendiam a reagir, fosse para
fugirem, fosse para emergirem curiosos à superfície, pois com
determinada melodia havia comida como recompensa. Apesar
disso, na aldeia ela sempre era chamada em casos de emergência.
Um vizinho, menino de menos de quatro anos, se esticara para
pegar uma panela que estava em cima do fogão, mas a panela
tombou e a água fervente derramou-se em cima dele, desde a
ponta do queixo, descendo pelo pescoço e pelo peito até as coxas.
As queimaduras eram terríveis, e minha mãe foi chamada quando o
coração do menino já não batia direito. Ela não se deixou
impressionar e aplicou nele uma injeção de adrenalina através das
costelas direto no miocárdio. O menino sobreviveu. Uma vez, anos
depois na escola, no meio da aula, ele tirou a camisa e me mostrou
o corpo cheio de cicatrizes. A mortalidade infantil era alta. No
Bergerhof, Beni, o jovem lavrador, e sua esposa, Rosel, perdiam
um filho atrás do outro logo após o nascimento. Eles sofriam de
uma incompatibilidade sanguínea, o que hoje se pode facilmente
resolver com uma grande transfusão imediata. Por fim, os dois
adotaram uma menina, uma criança da ocupação,* que se chamava
Brigitte. Ela pertencia ao estreito círculo de crianças que vivia nas
cercanias do Bergerhof. Lembro-me de que Rosel ficou grávida
novamente e deu à luz outra criança em Aschau, e então foi trazida
de volta num automóvel, e de como fiquei atônito tentando ver
onde estava a criança. De repente, a menina Brigitte saiu correndo
da fazenda aos prantos, precipitou-se no tanque do poço e lavou o
rosto com água fria. Então eu soube que também aquela criança
havia morrido, era a oitava seguida. Depois houve um filho que
sobreviveu, Benno, com quem ainda hoje mantenho contato.
Brigitte tornou-se garçonete num café em Aschau, mas morreu
ainda muito jovem de câncer de mama.
Meu irmão Till e eu crescemos em grande pobreza, mas não
notávamos em absoluto que éramos pobres, exceto talvez nos
primeiros dois ou três anos após a guerra. Estávamos sempre com
fome e minha mãe não conseguia trazer comida suficiente para
casa. Comíamos saladas de folhas de dente-de-leão, minha mãe
fazia xarope de tanchagem e de brotos frescos dos galhos de abeto.
O primeiro era usado mais como remédio para tosse e resfriados, o
segundo substituía o açúcar. Somente uma vez por semana
recebíamos um filão da padaria da aldeia em troca de nossos
cupons de alimentação. Nossa mãe riscava com uma faca uma
marca para cada dia, de segunda a domingo, o que mal dava uma
fatia de pão por dia para cada um de nós. Quando a fome apertava
muito, recebíamos um pedacinho do pão do dia seguinte, pois
minha mãe tinha esperanças de arranjar mais alguma coisa para
comermos, mas na maioria das vezes o pão já fora todo consumido
na sexta-feira, e então os sábados e domingos eram particular­-
mente ruins. Minha lembrança mais intensa da minha mãe, que
ficou para sempre gravada na minha memória, é um momento em
que meu irmão e eu estamos agarrados à sua saia nos queixando da
fome. Com um empurrão terrível, ela se soltou e girou o corpo
abruptamente, e seu rosto estava tomado de raiva e desespero de
um jeito que nunca vi antes nem depois. Ela disse com muita
calma, perfeitamente controlada: “Meninos, se eu pudesse cortar
um pedaço das minhas costelas para vocês, eu cortaria um pedaço
das minhas costelas, mas eu não posso”. Aprendemos naquele
momento a nunca mais nos queixarmos. A cultura da lamentação
me repugna.
A pobreza estava em toda parte e não a percebíamos como uma
condição incomum, no máximo em raros momentos. Na escola da
aldeia, naquela sala única para as quatro primeiras séries na qual
todos tinham aula ao mesmo tempo, havia crianças que viviam em
propriedades isoladas mais acima no vale e que passavam grande
necessidade. Uma delas, o Hautzen Louis, chegava atrasado todos
os dias, acho que ele tinha de trabalhar no estábulo de casa antes
ainda de o dia amanhecer, o que o atrasava. No inverno, ele descia
a montanha num trenó, por um íngreme desfiladeiro, e todos os
dias chegava com neve da cabeça aos pés. A aula já tinha
começado. Sem cumprimentar, arrastando atrás de si o trenó
coberto de gelo pela sala de aula, ele passava diante da srta.
Hupfauer, a nossa professora, e todos os dias tinha a mesma
explicação: “Professora, eu caí”. Não me lembro mais do seu rosto,
mas um dia, no início do verão, quando o Louis, já dentro da sala,
não tirou o casaco, que cheirava a estábulo, e a professora lhe disse
que com aquele calor ele deveria tirá-lo, Louis fingiu não ouvir o
pedido. Ele não reagiu às ordens cada vez mais zangadas da
professora e acabou sendo castigado na palma da mão com o
bastão. Sobre isso devo dizer que a srta. Hupfauer era uma pessoa
maravilhosa que, apesar das quatro aulas simultâneas, conseguiu
nos transmitir conhecimento e entusiasmo, curiosidade e
autoconfiança. Naquela época, um bastão para castigar fazia parte
do arsenal comum da educação e ninguém se incomodava. Não
achávamos nada extraordinário termos de nos ajoelhar no degrau
diante do púlpito como punição quando nos comportávamos mal,
e numa acha de lenha quando nos comportávamos muito mal. O
Louis continuou sem querer tirar o casaco, e todos nós na sala,
devíamos ser umas 26 crianças, meninos e meninas com idades
entre seis e dez anos, ficamos atentos. Isso fez aumentar ainda
mais a sua agonia, e ele começou a chorar em silêncio. O silêncio
do seu choro até hoje me corta o coração. Por fim, o Louis tirou o
casaco e por baixo estava vestindo a única camisa que possuía. Ela
estava tão desbotada e puída que a manga, a partir do ombro, era só
farrapos. A professora também começou a chorar e vestiu o casaco
nele outra vez.
Reencontrei a srta. Hupfauer apenas recentemente, setenta
anos depois, num encontro de antigos alunos em Sachrang. Ela
tinha então outro sobrenome, porque havia se casado. Na ocasião,
já viúva e com mais de noventa anos de idade, ela continuava
absolutamente cordial e inspiradora. Naquela época, na minha
infância, ela acreditava que um dia eu teria uma vida especial,
minha mãe me confirmou isso várias vezes quando eu já era adulto.
Na época, quando criança, porém, nada apontava para algo
incomum, no máximo em sentido negativo. Eu era uma criança
quieta, mais para retraída, propensa à irascibilidade, de certa forma
perigosa para o meu meio. Podia passar muito tempo ruminando
em pensamentos, para descobrir, por exemplo, por que 6
multiplicado por 5 dava o mesmo resultado que 5 vezes 6. Isso se
aplicava até mesmo no geral, 11 vezes 14 dava o mesmo resultado
que 14 vezes 11. Por quê? Nos números, encerrava-se uma lei que
eu não compreendia até que a visualizasse interiormente, como se,
estendendo um retângulo com 6 linhas, cada qual formada por 5
pedrinhas enfileiradas e a seguir girando a figura um quarto de
volta, de repente o princípio se tornasse evidente. Até hoje, fico
entusiasmado com questões da teoria pura dos números, como a
hipótese de Riemann sobre a distribuição dos números primos.
Não entendo nada, absolutamente nada disso, pois não tenho o
instrumental matemático, mas acredito que seja a mais importante
de todas as questões sem resposta na matemática. Há alguns anos,
tive um encontro com aquele que talvez seja o maior matemático
vivo, Roger Penrose, e perguntei-lhe como ele aborda problemas
matemáticos, se por meio de álgebra abstrata ou na forma de
visualização. Para ele, é exclusivamente visualização.
Mas voltando à minha infância. Havia em mim algo sombrio.
Embora eu não me lembre, devo ter brigado realmente, mais de
uma vez, com uma pedra na mão, e minha mãe ficou preocupada.
Eu vivia retraído, quieto, porém havia algo furioso dentro de mim,
algo que justificava preocupação. Vim a controlar minha fúria
apenas após uma catástrofe em nossa família. Eu já devia ter treze
ou catorze anos de idade e morávamos em Munique quando tive
uma briga com o meu irmão mais velho, Till. Sempre fomos, e
ainda somos até hoje, irmãos incondicionais, mas também havia
brigas ferozes entre nós, pancadarias furiosas. Isso era natural e
aceitável. Mas numa briga acalorada, que, como vagamente me
lembro, girava em torno dos cuidados com o nosso hamster, fiquei
fora de mim de tanta raiva e feri o meu irmão com uma faca. Um
golpe o atingiu no pulso, ele tinha feito um movimento de defe­sa,
e um segundo golpe o acertou na coxa. O quarto banhado em
sangue. O horror diante de mim me abalou a fundo. De repente,
ficou claro para mim que eu tinha que mudar, sem demora e sem
adiamentos, e isso significava disciplina rigorosa. O episódio havia
sido simplesmente monstruoso demais. Eu causara o maior abalo
que se podia imaginar, que podia ter destruído a família. Reunimos
um abreviado conselho familiar e, como, examinando mais de
perto, os ferimentos não eram de fato perigosos, decidimos não
levar meu irmão ao hospital para atendimento médico, o que sem
dúvida teria acarretado uma investigação policial. Fizemos
curativos nos cortes e limpamos o sangue do chão, estávamos
consternados. Assim eu me sinto até hoje, até a medula. Como os
cortes nunca foram suturados, até hoje as cicatrizes de Till são
claramente visíveis. A partir desse dia, eu me controlei, com
absoluta autodisciplina. Uma boa parte do meu ser até hoje não
passa de pura disciplina. Mas, ao mesmo tempo, entre Till e mim
existe de forma inquebrantável uma rudeza crua, muitas vezes
brincalhona, que em algumas situações torna o nosso
relacionamento íntimo incompreensível para quem está de fora.
Há alguns anos, houve uma reunião de família na costa espanhola,
onde meu irmão morava na época. A seu convite, tivemos uma
noite magnífica num restaurante de peixes, no qual Till, sentado ao
meu lado, pôs o braço em volta de mim enquanto eu estudava o
cardápio. Algo começou a fumegar, algo causava um leve prurido
nas minhas costas, até que de repente percebi que ele havia ateado
fogo à minha camisa com um isqueiro. Eu a arranquei do corpo e
todos os que estavam presentes ficaram horrorizados, mas nós dois
rimos às gargalhadas da brincadeira, que ninguém conseguiu
entender. Alguém me emprestou uma camiseta para o resto da
noite, e a vermelhidão da pele nas minhas costas foi esfriada com
prosecco.
4.
Voar

Eu queria voar, desde muito cedo. Não voar de avião, mas


simplesmente voar, com o corpo, sem aparelhos. Todos
começamos a esquiar já pequenos, mas no vale de Sachrang não há
descidas dignas de nota. Por isso, passamos a saltar de esqui
construindo nossas próprias rampas, e tivemos aterrissagens
acidentadas e memoráveis. Numa delas, meu irmão aterrissou na
neve com as pontas dos esquis, que ficaram cravadas tão fundo no
chão, que ele foi arrancado das duas botas. Ele desceu rolando o
resto da encosta, sem os esquis e sem as botas. Um menino que era
nosso vizinho, Rainer, aventurou-se comigo na pista de saltos um
pouco afastada da aldeia. Naquela época, a pista parecia grande,
mas quando a vejo hoje, ela me parece acanhada, minúscula.
Sonhávamos em um dia nos tornar campeões mundiais e
pegávamos emprestado esquis próprios para salto. Estes porém
tinham 2,20 metros de comprimento e eram muito maiores do que
nós; eles eram largos, com cinco ranhuras na parte inferior para
manter o esqui alinhado na pista de impulso. A pista tinha uma
rampa natural, uma encosta íngreme natural, e não contava com
uma torre construída artificialmente. No alto, havia um grande
abeto, no qual nos apoiávamos em posição transversal à pista, e dali
então, com os esquis de salto grandes demais para nós, tínhamos
que pular na rampa coberta de gelo. Um dia isso deu terrivelmente
errado para o meu amigo. Eu estava na parte baixa da rampa, na
encosta, e o vi saltar na pista. Mas ele não conseguiu entrar direito
com os esquis, e na descida íngreme da rampa não havia como
parar. Ainda o vejo como se fosse hoje, lutando para se manter na
pista durante toda a descida. Mas ele disparou lateralmente em
direção à floresta, de cabeça. Ali também havia algumas rochas. O
barulho de seu choque ainda hoje me abala até o âmago. Eu o
encontrei com ferimentos graves na cabeça, tão terríveis que não
consigo descrevê-los. Eu tinha certeza de que ele estava morto ou
logo iria morrer. Ele quis dizer alguma coisa, mas todos os seus
molares tinham rebentado dentro da boca. Demorou alguns
minutos, horrivelmente longos em minha memória, até que, por
uma Providência misericordiosa, ele perdesse a consciência. Eu
me vi no dilema de correr para a aldeia em busca de ajuda e deixá-
lo sozinho ou ficar com ele sem poder lhe prestar auxílio. Por fim
decidi carregá-lo, mesmo ele sendo mais pesado do que eu. A
descida até o patamar de aterrisagem era muito íngreme. Eu tive
sorte, ou melhor, ele teve, porque passou um fazendeiro com um
cavalo e um trenó atrelado. Meu amigo foi para o hospital, ficou
três semanas em coma, pode ser que tenha sido menos, mas
finalmente acordou e se recuperou. Ele também quase não teve
sequelas, exceto a de que a maioria de seus dentes posteriores
foram substituídos por dentes de prata. Além disso, sofreu dores
de cabeça por toda a vida, mas que só apareciam quando havia
mudanças bruscas de temperatura. Décadas depois, durante as
quais nos perdemos completamente de vista, houve um bizarro
sinal de vida da parte dele. Num programa esportivo na televisão,
da emissora ZDF,* que transmitia os destaques do futebol alemão,
sempre acontecia um sorteio para o “gol do mês”. Deve ter sido no
início da década de 1980; de qualquer forma, o gol que havia
recebido o maior número de votos dos telespectadores na forma de
cartões-postais enviados à emissora era definido e retransmitido no
programa. Um convidado escolhia às cegas um único dos cerca de
200 mil cartões-postais espalhados no estúdio, e o remetente
recebia como prêmio uma viagem e dois ingressos para o próximo
jogo da seleção. Os cartões estavam então em grandes sacolas
postais dispostas em semicírculo no chão do estúdio e o convidado
remexeu fundo dentro de uma delas e tirou um cartão. O nome do
felizardo foi lido: Rainer Steckowski, Sachrang. A anomalia
estatística é tão incrível que ninguém vai acreditar em mim, porém
eu vivi o que eu vivi. De todo modo, o meu sonho com pistas de
salto e voos de esqui acabara repentinamente com o acidente de
Rainer. Demorou muitos anos até que eu conseguisse chegar perto
de uma pista de salto de novo.
Mais tarde, porém, em 1974, eu fiz um filme sobre o voo de
esqui, O grande êxtase do entalhador Steiner. Sempre assisti a saltos
e voos de esqui na televisão. Em Kulm, na Áustria, uma das mais
imponentes instalações para voos de esqui do mundo, eu até
mesmo fiz fotos em preto e branco de grande formato com uma
câmera de aparência primitiva feita de mogno, com tripé, fole e
placa úmida. Para ajustar o foco, eu tinha que ficar debaixo de um
pano preto, como os fotógrafos do século XIX. Causei espanto entre
as centenas de fotógrafos profissionais com suas câmeras
modernas e teleobjetivas gigantes, mas eu não queria, como os
outros, captar os atletas em voo e sim imediatamente antes do
momento em que se lançam na pista, quando não há mais volta.
Em todos eles existe um medo secreto, mas ninguém toca no
assunto, fala-se no máximo em “respeito pela instalação”. Nunca
são os caras musculosos e atléticos os que voam mais longe, na
maioria das vezes são garotos de dezessete anos com rosto pálido e
cheio de espinhas e um olhar irrequieto. Um deles me chamou a
atenção já por volta de 1970, Walter Steiner, da Suíça, um
entalhador por profissão, um artista que trabalhava e vivia em
Wildhaus, no cantão Appenzell. Às vezes ele subia sozinho nas
montanhas e esculpia rostos estranhos em árvores gigantes caídas,
quase sempre com expressões de pavor, mas mantinha os locais
em segredo, apenas de vez em quando os montanhistas
encontravam suas esculturas. Na época de suas primeiras
competições internacionais, ele sempre pousava muito atrás dos
concorrentes, porém eu enxerguei algo nele que me impressionou
a fundo. Aquele jovem tranquilo tinha algo de extático em seus
voos, apenas tecnicamente ele ainda não estava pronto. Eu dizia
aos meus amigos: vocês estão vendo o futuro campeão mundial.
Sua estatura era incomum, muito alto, esguio, com pernas longas
demais, no chão ele parecia desajeitado, como um grou com seu
andar estranho sobre pernas finas com joelhos nodosos, mas no ar
ele também planava como um grou. O ar, e não a terra, parecia ser
o seu elemento.
Nessa época, assisti na televisão a alguns episódios de uma série
de documentários sobre situações humanas extremas intitulada
Grenzstationen [Estações de fronteira]. Os filmes se destacavam da
mixórdia costumeira da televisão, e reparei que todos vinham da
mesma emissora, a Süddeutscher Rundfunk, de Stuttgart, e que
um único editor era responsável por esses filmes. Ele se chamava
Gerhard Konzelmann e atuara por muitos anos como
correspondente no Oriente Médio para o Erste Programm.* Ali eu
o via com frequência, um homem gorducho com leve sotaque
suábio, que apresentava reportagens extraordinariamente boas de
todo o Oriente Médio. Ele sempre parecia desconfortável no calor
das regiões desérticas, suando, mas ao mesmo tempo lúcido como
ninguém. Lembro-me de como, em 1981, a emissora inseriu
inesperadamente na programação uma transmissão especial do
Cairo, Konzelmann diante da câmera, atrás dele uma tribuna em
meio a um caos de cadeiras derrubadas, soldados, tumulto. Apenas
alguns minutos antes, soldados haviam saltado de um comboio de
caminhões durante um desfile militar, corrido para a tribuna de
honra e atirado no presidente Sadat. Sete outros convidados na
tribuna haviam sido mortos com ele e também havia muitos
feridos. Konzelmann relatou o ocorrido de improviso, não estava
claro se haveria mais tiros e se Sadat ainda estava vivo, ele fora
tirado de lá pelos seguranças. Konzelmann, calmo, concentrado e
suando, fez a melhor análise que já ouvi sobre as contradições
internas do Egito, sobre o surgimento e o papel da Irmandade
Muçulmana, considerada a provável autora do atentado. Para esse
homem, portanto, eu havia telefonado anos antes por causa dos
documentários pelos quais ele era responsável e depois me
encontrara com ele na cantina da emissora em Stuttgart. Na época,
eu estava certo que tinha na cabeça um filme que se encaixaria à
perfeição em sua série, e Konzelmann embarcou sem delongas no
projeto, ainda durante a refeição morna na cantina. A parte ruim
para mim era que a sua série de documentários não era comentada
anonimamente, em off, os respectivos cineastas, como cronistas,
por assim dizer, tinham que estar visíveis diante da câmera. Eu
teria que aparecer. Relutei muito contra essa diretriz, mas ela me
levou a não confiar mais meus comentários a locutores, e sim eu
mesmo gravá-los. Esse foi um passo cujo alcance não pude
reconhecer totalmente na época, mas que teve grandes
consequências. Eu havia encontrado a minha voz, a minha voz de
palco, por assim dizer.
Hoje não existem mais figuras como Konzelmann na paisagem
midiática. As decisões são tomadas em comitês e os índices de
audiência são o santo graal. Em 1977, quando eu estava editando
um longa-metragem com minha montadora Beate Mainka-
Jellinghaus, pela manhã ela sempre preparava a mesa de edição e
punha em ordem nas prateleiras os diversos pequenos rolos de
filme para o trabalho do dia; nessas ocasiões, eu costumava ler para
ela as notícias curtas da seção de miscelâneas do jornal, entre as
quais estavam, havia vários dias seguidos, notas sobre a ilha
caribenha de Guadalupe, onde um vulcão, La Soufrière, vinha
dando sinais cada vez mais ameaçadores de erupção, mais
precisamente de uma explosão. De acordo com a estrutura
geológica de lá, o topo do vulcão teria que explodir antes que a lava
pudesse jorrar. Todo o sul da ilha foi evacuado às pressas, 70 mil
habitantes, mas ao que parecia um homem, um pobre agricultor
negro que vivia na encosta do vulcão, recusava-se a ser removido.
Ele devia ter uma relação diferente com a morte, que me era
desconhecida e que me interessava. Eu disse en passant que
alguém deveria fazer um filme com aquele homem lá no vulcão.
Por volta do meio-dia, Beate desligou a mesa de edição, virou-se
para mim e disse, completamente sem contexto: “E por que não?”.
“Por que não o quê?”, perguntei.
“Por que você não vai até lá e faz o filme?”
Liguei para a Süddeutscher Rundfunk e pedi para falar com
Konzelmann, mas ele estava numa reunião de todas as emissoras
da ARD.* Pedi permissão para lhe fazer uma única pergunta. Um
bilhete foi entregue a Konzelmann e ele atendeu o telefone. “Seja
breve”, ele disse. Contei a ele em trinta segundos o que estava
acontecendo em Guadalupe e perguntei se ele queria apoiar o
filme. Ele apenas disse concisamente: “Sim, vá, mas volte vivo. A
burocracia é lenta demais, faremos o contrato depois”. Duas horas
mais tarde, eu estava a caminho. Konzelmann deixou a emissora
antes de se aposentar, acho que porque estava compondo uma
ópera. Antes ele também já escrevera a música para os seus
próprios filmes.
Com Walter Steiner, senti de imediato uma intensa
proximidade. No tradicional Torneio das Quatro Pistas, no final do
ano de 1973 e no início do novo ano, ele ficou muito atrás da
concorrência, porque ainda estava se recuperando de uma lesão,
uma costela quebrada. Quando surgiram dúvidas se eu não teria
apostado num cavalo manco, fiquei incondicionalmente do seu
lado. Eu lhe disse que no voo de esqui em Planica, na Eslovênia,
ele voaria mais do que todos. Isso pode ter lhe infundido um pouco
mais de confiança, mas por vezes em meu trabalho com atores ou
com as figuras centrais de documentários acontecia mais do que
isso, havia momentos de contato físico. Com Bruno S., o
protagonista de dois de meus filmes, Kaspar Hauser e Stroszek,
havia momentos táteis; quando, por exemplo, ele ficava fora de si
com o horror do mundo que vivera em sua infância e juventude, eu
simplesmente segurava com firmeza o seu pulso, isso o acalmava.
Steiner, na véspera de seu voo, estava abatido e preocupado com
sua forma. Eu tinha quatro cinegrafistas no local, e do lado de fora,
a caminho do alojamento, a um sinal nós o pegamos e o erguemos
sobre nossos ombros e o carregamos pela rua deserta coberta de
neve. Alguém tirou uma foto não muito nítida dessa situação, que
redescobri apenas há pouco tempo. Mas me lembro com absoluta
nitidez desse momento, porque foi um gesto corporal simples a
partir do qual passamos a confiar um no outro. No dia seguinte, já
durante os primeiros treinos de voo, Steiner foi extraordinário. Até
então jamais alguém voara como ele. Eu havia descoberto em seu
álbum de fotos uma bastante discreta de um corvo, sobre a qual ele
não quis falar nada, pondo-a de lado com um comentário
superficial. Mas depois que esteve em meu ombro, ele se abriu.
Quando tinha uns dez anos de idade, ele encontrou um filhote de
corvo que havia caído do ninho e o criou com muito cuidado. O
corvo sobreviveu e tornou-se o seu melhor amigo, porque Steiner
sempre havia sido um menino solitário. O corvo adorava pousar
em seu ombro. Na saída da escola, ele já o esperava do lado de fora
no galho de uma árvore, e Steiner assobiava e o corvo voava até ele
e pousava em seu ombro, e permanecia ali enquanto Steiner
pedalava de volta para casa. Mas o corvo perdeu as penas e foi
bicado e atormentado por outros da sua espécie, e foi horrível
assistir a isso. Finalmente, Steiner não conseguiu mais aguentar e
atirou no corvo com a espingarda do pai. Mas agora que o corvo
não voava mais, ele, Steiner, voava em seu lugar.
Em Planica, Steiner foi tão extraordinário, que por diversas
vezes quase voou para a própria morte, pois o perfil das rampas na
época não era construído para alguém que voava como ele. Para
entender: quando após um voo alguém pousa num declive, a
energia cinética vai se dissipando de forma gradual até que se
atinja o trecho plano ao final. Mesmo as quedas aparentemente
feias costumam terminar sem grandes danos. Mas se, depois de
um voo demasiado longo que ninguém havia calculado, o
esquiador aterrissasse no plano, a diminuição de velocidade até
zero aconteceria de forma abrupta e seria fatal, como num salto do
vigésimo andar de um arranha-céu para o asfalto da rua. A
gigantesca instalação em Planica e quase todas as pistas de salto de
esqui do mundo tinham como transição do declive para o plano
um raio que passava rapidamente para a horizontal. Onde o raio
começa encontra-se o ponto crítico da instalação, que é sempre
marcado com uma linha vermelha na neve. Quando um saltador
ultrapassava esse ponto, a direção técnica tinha que interromper na
mesma hora a competição e continuar com um trecho de impulso
mais curto, para que os saltadores não pudessem mais alcançar a
zona vermelha de perigo. Steiner porém foi tão além do ponto
crítico, que ultrapassou o recorde mundial em dez metros,
pousando num ponto em que nem mesmo havia mais marcas de
distâncias. Quando aterrissou, a compressão já era tão forte, que a
força do impacto o derrubou.
Ele sofreu uma concussão cerebral, teve sangramentos no rosto
e durante uma hora não sabia mais onde estava e o que havia
acontecido. Mas nos dois dias seguintes da competição, os juízes
iugoslavos ainda permitiram que Steiner partisse de um ponto
demasiado alto e voasse para a zona mortal mais quatro vezes. Eles
queriam, custasse o que custasse, ver um novo recorde mundial. O
voo de esqui atraiu 50 mil espectadores. “Eles querem me ver
sangrar, querem que eu quebre”, disse Steiner. Ele venceu o voo
de esqui por uma vantagem sem precedentes na história desse
esporte. Steiner então exigiu, e agora ele tinha autoridade para
fazê-lo, que as rampas fossem reformadas, sobretudo insistiu numa
curva matemática calculada de outra maneira para a transição da
encosta íngreme para o plano. Pelo que eu sei, mais nenhuma das
grandes pistas de salto tem um raio pequeno, mas sim uma curva
que é calculada de acordo com a sequência de Fibonacci, isto é, um
trecho de uma curva de espirais, como as que conhecemos das
amonites fossilizadas. A curvatura desse raio é muito mais
alongada, impedindo que se voe até o plano.
Hoje as competições de salto de esqui são eventos sintéticos e
normatizados, em comparação com os dias do êxtase de Steiner.
Os perfis das encostas são adaptados às curvas balísticas dos
saltadores, que nunca voam na altura das copas das árvores, mas
sempre rente à encosta. Na época de Steiner, ninguém usava
capacete de proteção e não havia macacões apropriados como hoje.
Tudo é milimetricamente regulado: a distância que o macacão
pode ter dos ombros até a virilha em relação à altura do atleta, pois
uma entreperna muito baixa seria uma pequena vela adicional. A
permeabilidade do ar entre a frente e as costas é medida com
aparelhos pelos comitês, porque na época das Olimpíadas de
Inverno em Innsbruck a equipe austríaca introduziu trajes cuja
parte de trás quase não era permeável ao ar, o que tinha como
consequência a formação de uma corcova artificial, que tinha o
mesmo efeito das asas num avião. Naquela época, eu acho que,
assim, todas as medalhas de ouro foram para a Áustria. A
modificação mais visível é a postura de voo dos saltadores. Hoje
todos saltam com os esquis em V, o que resulta num sistema
aerodinâmico melhor e mais estável. Steiner ainda voava com o
esqui embaixo dele, penosamente preocupado com a postura
paralela, que os juízes recompensavam com notas altas. Mas já se
sabia, a partir de testes no túnel de vento, que a postura em V era
melhor e, de repente, um atleta solitário da Suécia começou a
saltar nessa postura. Seu nome é Jan Boklöv, um visionário
obstinado. Ele foi punido por isso em todas as competições, mas
continuou a fazê-lo impassível e, por essa razão, figura no topo da
lista dos meus heróis secretos. No inverno seguinte, outros
saltadores o imitaram e, de repente, todos o fizeram, e o sistema
de pontuação teve que ser necessariamente alterado. Os esquis que
tomávamos emprestado quando meninos não eram nem de longe
tão largos como os de hoje, nem tão flexíveis no ar quanto penas
de águia, tampouco havia presilhas que permitissem levantar o
calcanhar do esqui. Com isso, os atletas se lançam no ar em voos
horizontais, cavalgando sobre um colchão de ar, e os mais ousados
ficam literalmente com as orelhas entre as pontas dos esquis.
5.
Fábio Máximo e Siegel Hans

Meus heróis são todos do mesmo tipo. Fábio Máximo, que até hoje
é escarnecido como “o protelador”, mas que salvou Roma do
exército cartaginês de Aníbal; Hercules Seghers, que,
praticamente ignorado no início da era de Rembrandt, foi o pai do
modernismo e criou imagens como somente se veriam algumas
centenas de anos depois. Ou Carlo Gesualdo, o príncipe de
Venosa, que compôs música quatrocentos anos à frente de seu
tempo — aqui me refiro especialmente ao seu sexto livro de
madrigais —, e só a partir de Stravinsky, que fez peregrinações ao
castelo de Gesualdo, voltamos a ouvir tais tons. Também incluo
entre eles o faraó Aquenáton, que instituiu uma forma primitiva de
monoteísmo meio milênio antes de Moisés. Após a sua morte,
foram feitas tentativas de remover o seu nome de todos os
templos, edifícios e estelas. Ele foi riscado de todas as listas e suas
estátuas foram destruídas. Sobre Hercules Seghers, montei uma
instalação para a Bienal do Whitney Museum, que mais tarde foi
exibida no Getty Museum; sobre Gesualdo fiz um documentário,
Morte para cinco vozes, e sobre Aquenáton também houve planos
efêmeros de um filme.
No Festival de Cinema de Cannes, deve ter sido em meados da
década de 1970, o produtor Jean-Pierre Rassam, um libanês que,
num empreendimento arriscado, acabara de terminar A comilança,
sugeriu que fizéssemos um filme juntos. “Sobre o quê?”, ele me
perguntou. Eu respondi: “Aquenáton”. Ele então esvaziou a garrafa
recém-aberta de champanhe nos ladrilhos do terraço do Carlton
Hotel, declarou-a choca e mandou trazer uma nova. Naquele bar,
uma garrafa de champanhe daquelas era proibitivamente cara.
Brindamos ao projeto, que, eu sabia, nunca seria viável
financeiramente. “De quanto você precisa”, ele me perguntou,
“para começar com os preparativos?” Eu disse: “Um milhão de
dólares”, ao que ele sacou seu talão e assinou um cheque de um
milhão. Naquela época, ele já havia falido várias vezes e usava
drogas; alguns anos depois, morreu de uma overdose. Mas era um
homem radical e criativo na indústria cinematográfica, e eu, de
alguma maneira, o amava. Nunca apresentei o cheque ao meu
banco. Durante anos, admirei-o no meu mural, pregado com um
alfinete; o cheque sem fundos sobreviveu por mais tempo do que
Rassam.
Mas o mais importante de todos os meus heróis foi o da minha
infância, o Siegel Hans. No dialeto bávaro, o artigo definido é
sempre colocado antes do nome das pessoas, e o sobrenome vem
antes do nome. Em húngaro também é assim. O Siegel Hans era
chamado pelo nome da propriedade onde vivia; não conheço até
hoje seu verdadeiro sobrenome. Ele era um jovem lenhador,
incrivelmente forte, que entusiasmava a todos nós com a sua
ousadia. Numa briga memorável na taverna da aldeia, ele derrotou
o Beni, um jovem empregado do Bergerhof. O Beni tinha um tórax
que mais parecia um tronco de carvalho, e durante anos ninguém
ousou desafiá-lo. Na taverna, porém, um dia o Siegel Hans o
provocou, e o taverneiro empurrou os dois brigões para o banheiro
masculino, pois temia por sua mobília. Alguns queriam separar os
dois galos de briga, mas a maioria queria deixar as coisas seguirem
o seu curso natural. “Deixem os dois”, eles argumentaram, “para
vermos quem é o mais forte.” Ali, no banheiro, até onde todos os
fregueses do sexo masculino os haviam seguido, foi travada então a
luta, da qual ao final o Hans foi o vencedor. Ele segurou o Beni
numa chave de braço e bateu a cabeça dele contra um mictório
novo de porcelana que acabara de ser instalado. Pode ter sido
também um vaso sanitário, essa parte da história é apócrifa, pois
também me lembro de que para urinar havia apenas uma chapa
metálica na parede com uma calha instalada embaixo para o
escoamento. Seja como for, o Hans bateu tão violentamente com o
Beni na peça sanitária, que a sua sobrancelha sofreu um grande
corte e caiu inteira sobre o olho. “Agora você vai parar? Agora você
vai parar?”, o Hans repetia para o Beni batendo com ele de novo na
peça até que o Beni, sangrando profusamente, entregou os pontos.
Nós, meninos, recebemos com assombro a notícia do grande
acontecimento. De qualquer forma, para nós, o Hans já havia
vivido a sua apoteose, quando um dia o caminhão de leite fizera a
ponte atrás do Bergerhof quebrar. Era uma pequena ponte de
madeira, e apenas a frente do caminhão havia alcançado a outra
margem com as rodas dianteiras, como se o veículo tentasse se
agarrar a ela com as mãos. Todo o resto caíra obliquamente no
riacho junto com os destroços da ponte. Foram trazidos cavalos
para puxar o caminhão com seu pesado tanque de leite, mas,
diante da constatação de que o veículo pesava cerca de dez
toneladas, nem mesmo se tentou fazer isso. Alguém sugeriu ir
buscar o Siegel Hans, porque ele tinha uma Kettenkrad. A
Kettenkrad era uma espécie de motocicleta com a função de um
pequeno trator, mas que não se deslocava sobre rodas, e sim tinha
lagartas como os tanques de guerra. Ela era usada para arrastar
troncos pesados. Mas quando o Hans chegou ao local do acidente,
ele apenas deu uma olhada rápida no estrago e fez um breve
comentário: a Kettenkrad era muito fraca para algo assim. Nós,
meninos, imaginávamos e torcíamos pelo que viria a seguir. O
Hans desceu até o riacho e, antes de mais nada, tirou a camisa,
agora presumo para que todos pudessem admirar sua portentosa
musculatura. Ele parecia um desses fisiculturistas que hoje em dia
concorrem ao título de Mister Universo. Hans se agachou e
segurou a extremidade traseira do caminhão, e com todas as forças
que possuía tentou fazer o impossível. Nós, os meninos, nos
entusiasmamos com a tentativa. Seus músculos incharam, a sua
artéria carótida saltou, o seu rosto ficou roxo. Então ele
interrompeu a bela proeza. No dia seguinte, trouxeram um
guindaste para içar o caminhão de leite do riacho.
O Siegel Hans estava envolvido em todas as ações de
contrabando de Sachrang. Todo mundo contrabandeava. A
fronteira com o Tirol ficava a apenas um quilômetro da aldeia.
Minha mãe levava a meu irmão e a mim para o outro lado da
fronteira, comprava uns poucos tecidos baratos e os enrolava em
nossos corpos por baixo da roupa. No caminho de volta, eu era
bem gordo para um menino de uns quatro anos de idade, no
máximo, porém os guardas da fronteira faziam de conta que não
viam, porque tinham compaixão pela nossa pobreza. Eu sabia de
várias outras façanhas do Siegel Hans pelas histórias que minha
mãe contava. Uma vez ele contrabandeou da Áustria um barril de
manteiga clarificada, que carregou amarrado com tiras às costas, e
à noite nas montanhas quase deu com uma patrulha de guardas de
fronteira. Para desviar deles, desceu por um penhasco, mas ficou
entalado nas rochas. Somente no final da manhã ele conseguiu se
safar, porém, como o sol já estava alto, o conteúdo sólido de seu
barril derreteu e foi pingando ao longo da descida. Dias depois
ainda se podia ver um largo rastro de gordura nas rochas por onde
ele passara. Mas nós próprios testemunhamos a sua maior proeza.
Deve ter sido quando ele contrabandeou 98 quintais de café, quase
cinco toneladas, como viemos a saber muito mais tarde; de
qualquer forma, a ação foi descoberta e os gendarmes vieram à
noite para prender o Siegel Hans. No entanto, ele conseguiu
escapar por uma janela. Consigo levou apenas a sua trombeta e,
pela manhã, quando clareou o dia, soprou nela do alto do
Spitzstein. Os gendarmes foram atrás dele, mas quando chegaram
ao topo, ele trombeteou dos penhascos do Mühlhörndl, ou do
cume do Geigelstein, no lado oposto do vale. A polícia, humilhada,
punha cada vez mais homens em ação para capturá-lo, mas o Hans
trombeteava de cume em cume. Nós o ouvíamos. Víamos tropas de
gendarmes correndo no vale e subindo as montanhas, mas nem
eles nem os homens estacionados na garganta do vale chegaram a
vê-lo alguma vez. Ele era como um fantasma. Nós, crianças que
éramos, também sabíamos explicar por que ele não podia ser pego.
Para nós, ele corria a partir do Spitzstein na direção do pôr do sol
ao longo de toda a fronteira do país, até alcançar, depois de dar a
volta por toda a Alemanha, pelo outro lado do círculo completo, o
Geigelstein em seu lado voltado para o nascer do sol. Dessa forma,
ele nunca tinha que descer ao vale de Sachrang, entre as
montanhas. Ele só se entregou à polícia doze dias depois, mas a
essa altura já se convertera num mito para nós. Há alguns anos, a
estação de rádio Bayerischer Rundfunk fez um filme sobre o Siegel
Hans, e só então eu soube que ele quase tinha morrido na prisão,
na fortaleza de Kufstein, encarcerado sob as mais miseráveis
condições.
Muitos anos depois, quando a reunificação alemã foi
abandonada por grande parte da política, tive a ideia de caminhar
dando a volta completa ao redor do meu próprio país, sempre
seguindo de perto a linha da fronteira. Lembro-me de como Willy
Brandt, num comunicado do governo, declarou encerrado o “Livro
da Reunificação Alemã”. Naquela época, ele seguia a “política dos
pequenos passos”, buscando aproximar a socialista RDA* da
Alemanha Ocidental com pequenas medidas pragmáticas,
sobretudo econômicas. Do ponto de vista daquela época, também
havia uma certa lógica em melhorar a vida dos cidadãos da RDA, e
dessa forma foi comprada a liberdade, entre outros, de um dos
meus excepcionais cinegrafistas, Jörg Schmidt-Reitwein. Ele havia
sido pego apenas alguns dias após o início da construção do Muro
de Berlim, em 1961, ao entrar na RDA com um segundo passaporte
válido para sua noiva, a fim de tirá-la de lá. Num pseudoprocesso,
ele foi acusado de ter colaborado com a CIA, porque ficara provado
que ele trabalhara uma vez, por duas semanas, como assistente de
câmera para a emissora Freies Berlin, que era em parte financiada
pelo serviço secreto americano. A acusação foi tentativa de
contrabando de pessoas para o inimigo de classe. Jörg recusou-se a
revelar o nome da sua noiva. Ele passou meio ano numa “câmara
de calor” em Bautzen, uma masmorra atravessada pelos canos da
calefação, para ser amansado. Ele tinha sido condenado a cinco
anos de prisão, mas depois de três anos e meio, foi trocado por um
vagão de manteiga numa negociação diplomática. Naqueles anos
era para mim angustiante ver muitos intelectuais, entre eles o
escritor Günter Grass, rechaçarem veementemente a ideia da
reunificação alemã. Eu o desprezava de todo o coração por isso.
Não me surpreendeu que Grass tenha admitido tarde em sua vida
que serviu na SS,* mas ao mesmo tempo respeito a sua coragem de
lidar com o passado. Eu pensava que somente os poetas poderiam
manter a Alemanha unida. Eu pensava que tinha que circundar
meu país, mantê-lo unido como se por um cinto. Parti da capela de
Ölberg, além de Sachrang, junto à fronteira com a Áustria, e
escalei o Spitzstein, como o Siegel Hans fizera aquela vez, e de lá
eu queria, como ele, seguir para oeste acompanhando a fronteira
até chegar, no final dessa volta ao redor de toda a Alemanha, ao
Geigelstein pelo seu lado leste.
6.
Na fronteira

Das anotações originais, tenho apenas fragmentos que certa vez


transcrevi. O original, em sua totalidade, de alguma forma se
perdeu. Comecei a longa jornada em 15 de junho de 1982, a partir
daí a cópia, incompleta, não registra mais datas.

Da capela de Ölberg, bem ao lado do posto alfandegário, parte um


caminho por uma floresta alta, bela e úmida em direção a Sach­rang,
que rapidamente perdi de vista ao subir via Mitterleiten. Uma
máquina de construção moía cascalho pesado. Ao lado, havia uma
construção bruta de tijolos que nunca ficará pronta. Na altura de
Mitterleiten, um lavrador passou por mim de motocicleta, eu sabia
quem era, mas ele não me reconheceu quando o cumprimentei. Subi
rapidamente, mas por dentro superei os primeiros passos apenas com
o coração hesitante. No ponto em que o entulho da construção foi
jogado na floresta, onde os caminhões passam por entre as árvores
sobre telhas trituradas, onde o vento úmido quer arrastar morro
acima grandes lonas plásticas, que todavia, tal cadáveres pilhados,
ficam presas ao chão por pedras postas em cima delas, onde patos
assustadiços, que de alguma maneira devem ter tido más
experiências, fugiram de mim para o pequeno e feio charco de
cascalho da escavação que nunca foi acabada, ali, depois de vagar
um bom tempo pelo meu passado, deixei minha amada Sachrang,
onde passei a minha infância, e comecei a subir mais depressa na
chuva fria, por entre gotejantes talos de grama e milefólios. Os
campos cheiravam a ceifa, e eu lancei um olhar pelo vale até o
Geigel­stein, pelo qual eu voltaria depois de uma longa caminhada.
Então fui tomado por uma coragem e uma certeza que se estendia de
fronteira a fronteira e de horizonte a horizonte. O Siegel Hans
tocava alto sua trombeta e me tornava leve. Sua trombeta era
finíssima, valiosa como nenhuma outra — havia sido recortada,
num trabalho de décadas, por um grande mestre da fabricação de
instrumentos, de um penhasco que não era de rocha, mas sim de uma
imensa esmeralda.
Enquanto eu subia para a cabana do Spitzstein, uma solidão se
estendia mais e mais na paisagem abaixo, aos poucos, tão
suavemente quanto um animal grande e muito forte também é capaz
de se deitar. O guardião da cabana me observou fixamente com seu
grande binóculo por quase uma hora inteira enquanto eu subia as
encostas em sua direção — como um ser estranho, um habitante de
outro mundo, de outra galáxia.

Deixei Mittenwald quase correndo. Ainda não vi em parte alguma


uma tal mercantilização da paisagem. Caminhos de areia espalhados
como em estâncias termais, trilhas temáticas, placas de sinalização
de perigos com o adendo de que o município não pode assumir
qualquer responsabilidade. O Watzmann erguia-se à luz pálida do
crepúsculo e sua rocha parecia esfriar cada vez mais. O Watzmann é
uma montanha obstinada. As florestas ficaram silenciosas sem dar
um pio. Num lago pantanoso, dois patos selvagens nadavam como se
fossem sonhos primitivos. Contornando uma cerca alta, dei numa
área de alimentação para animais silvestres num estilo quase
industrial, com grandes forquilhas para o feno, cochos de sal, postos
de observação e ainda para completar uma cabana sem imaginação.
Num campo que ia dar numa floresta, pastavam dois jovens veados
e uma fêmea, que, quando apareci, primeiro me examinaram e me
farejaram por um tempo, intrigados com quem poderia haver
chegado, mas, por mais estranho que eu fosse para mim mesmo, eles
não me perceberam assim. Herzog, eu disse em um tom calmo e
confidente, e então eles partiram num trote majestosamente elástico e
desapareceram na floresta.

Vi campos de gelo ártico enquanto avançava a passos constantes.


Eles se estendiam diante de mim até as geleiras e picos congelados do
Spitzberg. Estes se aproximaram e se tornaram realidade real. Eu
escorreguei, deslizei por baixo do peitoril da sacada coberta de gelo
de um castelo barroco e caí nas profundezas escancaradas das
línguas da geleira, que terminavam abruptamente no Elba à minha
frente. Era o Elba, ou era o Jenissei na Sibéria, isso não quis se
revelar a mim. Cheio de súbito terror, percebi essa queda como o meu
fim, mas, ainda cambaleando no ar, tive a presença de espírito de,
com os braços abertos como um paraquedista que veleja na diagonal
em direção a seus camaradas em formação abaixo dele, conduzir
minha rota de queda, de forma que caí, uns cem metros abaixo,
justamente por sobre a borda afiada das rupturas no gelo, nas águas
geladas do Elba, que porém naqueles dias em vez de água…

Sinos badalam ao longe no vale. As encostas das montanhas estão


cheias de muda solenidade. Sentado num banco do caminho, um
aposentado dormia ao sol da tarde. “Bom… bom”, ele disse em seu
sono e, um pouco depois: “Sim, sim, bom”. A Alemanha é maior que
a República Federal,* estava escrito com caneta hidrográfica, quase
apagada pelo tempo, numa placa, ao lado do banco do dorminhoco,
que sinalizava a fronteira do país.
Na cabana Krinner-Kofler, conversei longamente com um
professor aposentado de Münster e, respondendo às minhas
perguntas, ele contou como havia sido o fim da guerra para ele. Eu
lhe pedira uma descrição do último momento. Na Holanda, ele
contou, quando os canadenses avançavam com tanques e estavam
somente a um pouco mais de cem metros de distância, ele havia,
seguindo instruções, reunido prisioneiros numa propriedade rural do
outro lado da coluna de tanques inimiga que avançava — portanto,
eles já o haviam ultrapassado —, e, apontando sua arma para o
próprio superior, impedira que este mandasse fuzilar os prisioneiros
na sede da propriedade holandesa. Então ele avançou com seus
prisioneiros holandeses, bem como com o próprio superior, também
feito prisioneiro, pelo terreno mais baixo do que a estrada, apenas
com a cobertura de alguns arbustos, em direção aos tanques
canadenses, por assim dizer, seguindo o fluxo do inimigo e tentando
ultrapassá-lo em direção a suas próprias posições. Desse modo, ele
havia sido capturado junto com seus prisioneiros.
O filho deficiente intelectual do guarda-florestal veio da sede
florestal vizinha e, com sons peculiares que saíam do seu interior
estranho, começou a dar puxões primeiro em mim e depois num cão
de caça que parecia inteligente. Ambos o deixamos fazer isso
pacientemente. Mais tarde, o menino me seguiu até o abrigo de
alpinistas, onde eu estava reunindo meus poucos pertences, e pegou
meu último pedaço de chocolate. Eu não o impedi, pois ele estava
fazendo menção de pegar também meu caderno e o binóculo, mas,
como eu renunciara sem resistência a um pequeno bastião entre meus
pertences, ele também pareceu se dar por satisfeito com seu butim, e
acrescentou apenas as coisas que realmente gostaria de ter.

Descida íngreme até Bayeralpe, um punhado de casas feias em estilo


alpino numa baixada irrelevante. Aqui começa a estrada florestal
para Wildbad Kreuth. De repente, depois de já ter chovido por um
tempo durante a descida, ficou escuro em questão de minutos, como
se algo bíblico estivesse para acontecer. Por segurança, refugiei-me
num banco sob o telhado avançado de uma cabana desabitada e
esperei apenas um momento, até que irrompeu uma tempestade
furiosa que correu ao longo do estreito vale e varreu farrapos de
névoa brancos e cinzentos para as árvores plangentes. Quando foi
ficando cada vez pior e eu supus que a tempestade atingira o ponto
mais forte, aconteceu uma coisa que fez tudo o que se passara antes
parecer apenas um pequeno prelúdio. No penhasco em frente, por
toda parte escorriam cachoeiras brancas espumantes, e então tudo foi
envolvido por nuvens brancas furiosas que se rasgavam liberando
por segundos a visão das copas das árvores, para depois seguirem
varrendo as encostas em fuga apavorada. Como uma cortina que se
abre vertiginosamente, abriu-se a visão para quedas e cursos d’água,
que instantes antes não existiam e agora espumavam num branco
frenesi. A tempestade se abatia, como um castigo de Deus se abate
sobre os sacrílegos. Esperei bastante, até que o pior tivesse passado,
olhei para aquela fúria incompreensível, sabendo que, além de mim,
mais ninguém estava vendo aquilo. No estado estranhamente aflito
em que me encontrava, era para mim insuportável a ideia de descer
para o vale, me afastando da fronteira e indo para um lugar
habitado, então escolhi o caminho para o oeste, que subia escarpado
até o topo do maciço, embora a chuva ainda não tivesse cessado.
Iniciei a árdua subida ladeando uma furiosa cachoeira. O caminho
na pedra havia se transformado numa enxurrada que mais no alto
se tornava ainda mais torrencial. Logo nuvens me cercaram de todos
os lados. Chegando no alto, na selada do Wildermann, de repente à
minha frente todo o horizonte se abriu refulgindo à luz amarelo-
alaranjada de sol e chuva. Cumes e vales e florestas surgiram em
grande e extravagante fugacidade até no mais profundo das
montanhas, como uma grande promessa para todo um povo sedento,
enquanto atrás de mim uma cortina branca e ondulante de névoa
disparava do fundo abismo para o alto. Num gesto teatral, o palco se
fechou atrás de mim novamente.
Passei a noite no abrigo conversando com o campeão múltiplo de
canoagem em águas bravas da Alemanha nos anos 1950, que contou
sobre sua vida como atleta no pós-guerra. Nos treinos, quando
estava sozinho, muitas vezes ele chorava de fome.
Balderschwang. Deixei para trás os veranistas em seus balanços
hollywoodianos e subi cada vez mais alto montanhas adentro, já era
tarde, caía uma chuva leve. Onde passar a noite? Eu estava
viajando quase sem bagagem, sem barraca ou saco de dormir. Duas
vacas me seguiram por um longo tempo subindo pelos prados, como
se esperassem de mim a última mensagem. “Vocês não são vacas”, eu
disse a elas, “vocês são princesas”, mas isso também não as deteve e
pareceu encorajá-las a permanecer no meu encalço. Somente quando
atravessei um campo de neve cheio de manchas provocadas pela
chuva, elas ficaram para trás. No alto, na estação do teleférico, a
vista da Alemanha era vasta e profunda. Abaixo, até o nebuloso
horizonte alaranjado, estendiam-se vales e elevações cada vez mais
suaves, com propriedades rurais e lugarejos, até ainda mais longe na
terra plana. A oeste, em prata suave, que lentamente se
transformava em ouro vermelho, estendia-se o lago de Constança.
Acima de tudo, nuvens pálidas de trovoadas, e longe a oeste, como
em pinturas antigas, os raios oblíquos laranja-avermelhados do sol
poente atravessavam as faixas de chuva. Então uma luz fraca
estendeu-se indiferente e sem sombras sobre florestas de prata escura
e campos de prata clara. Nesse brilho sem sombras, a Alemanha
parecia submersa em água. Era um país dócil. Eu me sentei.
Andorinhas dispararam num voo caótico e rasante sobre o cume em
direção à luz do entardecer. A Alemanha estava ali indecisa, como
que paralisada, como quando, depois de um concerto de uma música
ainda desconhecida, o público não se atreve a aplaudir no final,
porque ninguém sabe se aquele é realmente o final. Eu senti esse
momento, mas como se ele tivesse se estendido por décadas nas quais
a Alemanha estava inescapavelmente enredada. Lá estava ela, esta
desterra, assim como há desventura e desfloração. Será que meu país
ficou sem pátria em seu próprio território, que porém ainda se apega
ao seu nome de Alemanha?
Lago de Constança. Saciadas, as pessoas foram para a cama. No
lago de Constança, um cisne nadava para cá e para acolá. Em duas
guerras mundiais, a Alemanha revelou todos os seus segredos. Eu
gostaria de me juntar a um grupo de monges em suas orações
vesperais, como um convidado ateu.
Stein am Rhein. Atrás da cidade, contemplei a forte correnteza do
Reno, os cisnes, as barcas de madeira, contemplei um outro século.
Mergulhei os braços fundo na água, debrucei-me e bebi. O Reno
pode ser bebido. Comi pão para acompanhar.
Estrasburgo. Em Estrasburgo, eu estava sentado num banco e
após um tempo um argelino sentou-se ao meu lado educadamente.
Logo depois, chegou um outro argelino carregando uma sacola
plástica branca, aproximou-se de nós e apertou a mão do amigo ao
meu lado e, como não houvesse nada mais óbvio, apertou também a
minha mão. Isso me comoveu fortemente. Eu havia atravessado a
fronteira com a França. Além do Reno, estava a Alemanha, como
um fruto da imaginação. Na catedral de Estrasburgo, motociclistas
caminhavam calados pelo silêncio da igreja, apenas o couro apertado
rangia. Eles carregavam os capacetes debaixo do braço, como
cavaleiros medievais. À noite, no campo aberto onde dormi, as vacas
gemiam em sonhos.
De manhã, bem cedo, acordei sobressaltado como nunca antes: eu
estava totalmente sem sentimentos, a Alemanha havia desaparecido,
tudo havia desaparecido, era como se de repente eu tivesse perdido
algo que me fora confiado à noite com recomendações especiais — ou
talvez como alguém que à noite deve assumir a guarda de um
exército inteiro e de repente, da maneira mais misteriosa, percebe que
está cego, e os exércitos estão indefesos. Tudo desaparecera e eu me
encontrava completamente vazio, sem dor nem alegria, sem
saudades. Nada, não havia mais nada. Eu era como uma armadura
sem cavaleiro. O choque foi redentor. Criações purpúreas
estenderam-se sobre mim.

Não tenho lembrança de ter passado por Wrede, embora saiba que
passei por lá. Encontrei uma lata de Coca-Cola achatada que devia
ter hibernado ali esmagada por pelo menos dois anos, pois estava
amarela meio esbranquiçada em vez de vermelha. Por toda parte,
pesadas cortinas fechadas, ninguém tinha esperanças de mudança ou
libertação. A última ação foi esta: um círculo de senhoras decidira
aprender o ofício de açougueiro já em idade avançada e, para
mostrar que estavam levando o propósito a sério, elas atearam fogo a
um ciclomotor em frente à hospedaria. Da linha de fronteira em que
me encontrava, eu via à direita por sobre as colinas a Alemanha, que
parecia suportar o silêncio em convulsões e tremores dolorosos, mas
quase imperceptíveis. À noite a lua deveria aparecer, mas ela não
voltou. A terra noturna cresceu, gigantesca, comparada a si mesma.
Fiz luz com o isqueiro e na minha angústia escrevi meu nome na
parte de dentro da pulseira do meu relógio. Dormi numa encosta ao
relento. Horas depois, no meio da noite, eu me levantei angustiado
entre as luzes do vale e as estrelas acima de mim, e vomitei. Perto do
amanhecer, consegui dormir um pouco, mas então já estava
clareando e logo o sol nasceria. Acima de mim, num galho, ouvi um
pássaro se sacudir e pôr a sua plumagem em ordem. Só então ele
começou a cantar. Eu me sentei. A Alemanha está deitada antes do
nascer do sol, irredimida, e olha com campos arregalados para o céu
indiferente.

Nunca concluí minha jornada ao redor do meu próprio país.


Depois de mais de mil quilômetros, fiquei doente e tive de ser
hospitalizado por alguns dias. Hoje, em retrospecto, sei que não
me permitiriam caminhar pela RDA, porque viajar a pé ao longo do
mar Báltico era proibido pela polícia. Demasiados “fugitivos da
República”* haviam tentado, a partir do mar Báltico em barcos a
remo ou em câmaras de pneus infladas, se refugiar na Suécia ou na
Dinamarca. A queda do Muro de Berlim, que para mim foi o sinal
para a reunificação, me marcou de forma indelével. Eu estava na
Patagônia filmando meu longa-metragem No coração da montanha.
Longe de toda e qualquer civilização, vários dias depois, um
alpinista ouvira sobre o acontecimento num rádio de ondas curtas
e me deu a notícia enquanto eu estava no meio do trabalho. Sinto
até hoje o profundo sentimento de alegria daquele dia. Encerrei
mais cedo as filmagens e bebi vinho chileno com a equipe. A
Alemanha e a Baviera são apenas uma aparente contradição em
mim. Por um lado, a Alemanha nunca foi realmente formada nas
profundezas da história, por outro, a Baviera também não faz parte
de uma profunda conexão geracional com meus antepassados.
Embora minha família tenha raízes bem distintas na Europa, eu
sou culturalmente bávaro. O bávaro é minha primeira língua, a
paisagem é a minha paisagem, e eu é que sei onde fica a minha
pátria.
A pé, e com frequência descalço, quando criança eu caminhava
muito em Sachrang e pelas montanhas ao redor. Mais tarde, isso
adquiriu uma qualidade nova e diferente, e teve a ver com a minha
conversão ao catolicismo e com um grupo de colegas religiosos,
em companhia dos quais viajei, em parte a pé, ao longo do que era
então a fronteira iugoslava-albanesa. Voltarei a isso. Mas essa
dimensão tornou-se mais importante, mais consciente, na relação
com meu avô Rudolf, portanto, o pai do meu pai, e com as
caminhadas pelas paisagens da sua região. Eu tinha uma ligação
mais profunda com ele do que com o meu próprio pai. Acho que
tudo isso tem a ver com o fato de que a geração da virada do século
XIX para o século XX era mais forte e mais ancorada na história do
que a geração dos meus pais. Com a ideologia dos nacional-
socialistas, a geração dos meus pais abandonou a continuidade da
cultura europeia e desceu à representação histórica de um vago
passado mítico germânico, com a qual naufragou. Mas talvez isso
esteja projetado de forma demasiadamente subjetiva na minha
própria família. Famílias são criaturas estranhas e a minha não é
exceção. Acrescenta-se a isso que só me relacionei
conscientemente a meu avô quando ele já estava louco.
7.
Ella e Rudolf

Minha avó descreve seu encontro com ele em suas memórias para
os netos curiosos. Delas deduzo que ela teve uma infância
tranquila em Frankfurt, idílica, burguesa. Já na primeira frase de
suas anotações, ela fala de sua “infância linda, despreocupada, feliz”.
A casa onde morava tinha uma “enorme sacada voltada para o jardim
com vista para o verde e para a Promenade, o antigo fosso da cidade”.
Uma olhada no mapa de Frankfurt mostra que essa localização
junto ao parque do antigo fosso hoje deve ser completamente
inacessível. No jardim, em plena cidade, havia árvores e arbustos
frutíferos.
“Um orgulho especial”, lembra-se minha avó dessa época por
volta de 1890, “era uma grande e bela pereira ao lado do caramanchão.
Ao longo do muro, cresciam as videiras, cujos cachos eram sempre
empacotados individualmente em saquinhos de linho arejados para
protegê-los dos vorazes melros. Em frente ao terraço, no qual se entrava
pelo salão do jardim, havia uma fonte redonda, no meio da qual um
querubim segurava no alto a cabeça de um ganso, de cujo bico jorrava
um jato de água. Muitos peixes-dourados eram introduzidos ali a cada
primavera. O vovô se admirava de como eles escasseavam ao longo do
verão e suspeitava de gatos, até que uma manhã, bem cedinho, ele era
um madrugador, avistou uma cegonha tomando seu café da manhã.”
Tamanha prosperidade é incompreensível para mim, e é quase
inimaginável que no jardim da minha avó, em plena metrópole que
hoje é Frankfurt, uma cegonha tenha pegado peixes na fonte. Mas
minha avó Ella deixou tudo isso para trás quando se casou com
meu avô, para viver e trabalhar com ele na empobrecida ilha —
então turca, agora grega — de Cós. Seu encontro com meu avô
havia sido combinado de longa data. O pai dela cuidara
devotadamente de seu sogro nos últimos dois anos de vida deste,
que havia sofrido vários derrames. Em agradecimento, ele ganhou
uma viagem de navio para descansar, e foi aí que o destino
interveio por minha avó. Seu pai a levou consigo na viagem, que
começou com a descida do Reno até Antuérpia, onde embarcaram
rumo à França e à Espanha e depois a Gênova e a Nápoles. Ella
tinha então dezessete anos, era bonita, alta e elegante. Perto do
final da viagem, num passeio até Capri, um companheiro de
viagem, um químico da Universidade de Tübingen, o professor
Bülow, falou com ela.

“Em Capri, os Bülow confessaram ao papai que eles (Bülow e sua


esposa) haviam se perguntado como aquele velho tipo podia estar junto
com uma jovem tão simpática, antes de perceberem que aquele casal
desigual eram pai e filha. Então, já em Capri, o sr. Bülow disse ao
papai: ‘Doutor, mande sua filha para nos visitar em Tübingen, conheço
um bom marido para ela’, ao que papai respondeu: ‘Ainda não estou
preocupado com isso!’. Quando voltou para casa, Bülow disse a Rudolf:
‘Herzog, encontrei uma esposa para você’. No verão seguinte, 1902,
realmente fiquei hospedada por quatro semanas na casa da família
Bülow. No primeiro dia, houve uma cerimônia no auditório da
universidade, e o primeiro cavalheiro a quem fui apresentada foi o dr.
Herzog, com quem ainda me encontrei muitas outras vezes em situações
sociais.”

Em diversas ocasiões, quando convidados para jantar, ela e Rudolf


eram deliberadamente acomodados um ao lado do outro, o que
Ella só soube mais tarde pela correspondência entre os Bülow e
seus pais. Mais tarde, ela recebeu essas cartas como presente e as
cita extensivamente em suas memórias. A seriedade e cautela dos
passos, sempre respeitando a constituição emocional e a visão de
mundo de Ella, são impressionantes do ponto de vista de hoje. O
professor de química de Tübingen, Von Bülow, estava
profundamente convencido de que seu amigo Rudolf Herzog, que
muito jovem se tornara docente de letras clássicas e era um
homem de intelecto e sentimento igualmente profundos, merecia
uma esposa tão esplêndida e forte e bonita como Ella. Contudo,
meu avô era um homem tímido e retraído, embora cheio de força
imaginativa e extraordinárias qualidades de liderança. Isso se
evidenciou logo após seu casamento com Ella, que o acompanhou
nas suas escavações arqueológicas na ilha de Cós, onde ele soube
chefiar centenas de trabalhadores turcos e gregos. Ele era como
um general da Antiguidade que, nos momentos de perigo, dormia
com seus soldados, enrolado numa manta, ao ar livre junto à
fogueira da sentinela noturna.
Ella achava Rudolf muito velho, havia doze ou treze anos de
diferença entre eles, mas os dois rapidamente se aproximaram por
meio da literatura. Rudolf ficou impressionado com os
conhecimentos literários de Ella, e um dia houve uma aposta, na
qual ambos tinham absoluta certeza de terem razão, sobre se um
poema que ambos amavam era de Eichendorff ou de Hoffmann
von Fallersleben. Ella procurou na prateleira o seu volume com os
poemas de Hoffmann von Fallersleben e ganhou a aposta, e mais
tarde, quando Rudolf já ardia de amor por ela, ele trouxe para ela
de Tübingen um volume com poemas de Eichendorff, que
continha uma dedicatória em verso na qual mal se podia perceber
sua velada proposta de casamento. Nas semanas anteriores, ela
escrevera sobre si mesma que estava “de cabeça virada”.

“De repente fui tomada por uma inquietação, levantei-me de meu


trabalho, dei uma volta pelo jardim, me pus a costurar novamente,
levantei de novo, subi para ver se tinha alguma coisa na caixa de
correio — nada —, de novo máquina de costura, de novo jardim, de
novo caixa de correio. Quando voltei a pegar meu trabalho nas mãos,
estava tão agitada que rasguei um pedaço de tecido bem comprido da
gola para baixo… Corri para o jardim e não prestava mais para nada.”

Nesse dia, Rudolf escrevera um cartão, que ainda estava no


correio, anunciando sua visita. Num passeio pelo campo, onde o
irmão mais novo de Ella quase não se deixava despistar pelo casal,
Ella e Rudolf declararam o seu amor um pelo outro num breve e
íntimo momento, e na mesma tarde o noivado foi festejado. O
casamento estava previsto para dali a pouco mais de um ano, mas
apenas quinze dias depois Rudolf escreveu dizendo que tinha de
realizar uma expedição arqueológica a Cós, e perguntando se eles
não podiam se casar antes disso, ele queria levar Ella consigo.
Assim, o casamento ocorreu após um período muito curto de
noivado, e Ella então escreveu cartas maravilhosas sobre a sua lua
de mel. E, mais de meio século depois, em julho de 1966, a seus
netos, inclusive a mim:

“Rudolf e eu vivemos felizes juntos por quase cinquenta anos, sem


nunca ter tido realmente uma briga, e apesar disso nosso casamento
nunca foi entediante! Sigam o nosso exemplo!!! Aos 82 anos de vida,
Rudolf me deixou para sempre. Suas últimas palavras no leito de morte,
depois de me agradecer, foram: ‘A vida com você foi uma época linda’.
Então ele colocou a mão em minha cabeça, me abençoou e adormeceu
tranquilamente.”

Nos últimos oito anos de sua vida, porém, ele caiu numa loucura
cada vez mais profunda. Não era demência, mas uma forma de
calcificação dos vasos sanguíneos do cérebro. Apenas raramente
ele reconhecia as pessoas ao seu redor. Minha irmã mais nova,
Sigrid, filha do segundo casamento de meu pai, quando criança
pequena costumava ir a Großhesselohe, onde Rudolf havia
construído uma casa, e quando sua mãe, Doris, ia buscá-la de volta,
meu avô sempre ficava fora de si. Ele parava os transeuntes no
portão do jardim e pedia ajuda, dizendo que haviam raptado,
roubado sua filha, e descrevia a criança de três anos como um anjo
de doçura e beleza, o que de fato descrevia minha irmã com
propriedade, pois todos nós sentíamos o mesmo. Várias vezes a
polícia veio e a minha avó teve que esclarecer a situação, várias
vezes o meu avô escapou do jardim trancado e vagou pela floresta
adjacente, bem onde, a algumas centenas de metros, em Pullach,
ficava a sede do Serviço Federal de Inteligência da Alemanha
Ocidental. Alarmados, os guardas que vigiavam a área do Serviço
Secreto juntavam-se à busca, e em geral eram eles que o
encontravam. Meu irmão e eu, sobretudo eu, amávamos o nosso
avô, mas como crianças éramos também cruéis. Em frente à
varanda que dava para o jardim havia uma sebe, e nos escondíamos
atrás dela e, quando supúnhamos que ele estava dentro da casa ao
alcance de nossa voz, gritávamos: “Herr Professor,
Menschenfressor!” [Sr. professor, canibal!]. Só Deus Todo-Poderoso
sabe o que nos levava a fazer isso, espero que tenha sido a rima
primitiva, com a qual nos entusiasmávamos. Meu avô vinha para o
jardim com sua bengala e nós fugíamos para uma bétula alta no
canto, pois sabíamos que ele não seria capaz de subir atrás de nós.
Um dia, minha avó foi testemunha ocular e auditiva da nossa
infâmia. Ela me pôs sobre os joelhos e me bateu na bunda com
uma colher de pau até quebrá-la. Imediatamente pegou uma
segunda, tamanha a sua indignação, e também esta se partiu. Eu
sabia que tinha merecido.
Mas o meu avô estava sempre lúcido quando falava das suas
escavações e descrevia as antigas inscrições em mármore que havia
encontrado sobretudo na fortaleza veneziana na entrada do porto
da ilha de Cós ou que estavam inseridas na própria alvenaria como
pedras de enchimento. Mais tarde, em 1967, quando eu tinha 25
anos e rodava meu primeiro longa-metragem, Sinais de vida, na ilha
de Cós, nessa mesma fortaleza, eu trouxe algumas das inscrições
para a cena, e um dos protagonistas traduzia o texto de um
paralelepípedo de mármore, que fica no chão do pátio interno da
construção. Meu avô Rudolf trouxe da filologia clássica para a
arqueologia a apreciação analítica precisa de um texto antigo. Na
cena, eram os mimiambos de Herondas, um dramaturgo menos
importante do século III a.C. O texto, do qual apenas se conheciam
algumas linhas esparsas, foi encontrado quase na íntegra apenas
em 1890, em papiro bem preservado, numa tumba egípcia no oásis
de Fayoum. Os mimiambos são uma série de farsas curtas,
extraídas diretamente da vida popular, em sua maioria textos um
tanto grosseiros para várias personagens em cena, mas
interpretados, como se supõe, por um único ator mascarado nas
ruas e mercados, que então recitava todas as personagens com
vozes distintas. Os textos tratam de coisas profanas, um deles, por
exemplo, de uma criada que não consegue acordar de manhã,
embora já passe da hora de alimentar os porcos; um outro, do dono
de um bordel que de repente, no alto páthos da tragédia ática,
começa a falar numa linguagem arcaica que se ouvia nos palcos
séculos antes; e um terceiro, de duas jovens que querem arrancar
de um sapateiro o nome de quem comprou os dildos que ele
confeccionou. É impressionante como os pudicos acadêmicos no
final do século XIX se expressavam de maneira afetada e apenas se
enredavam em insinuações sobre o tema que abordavam. Apenas o
quinto mimiambo sai um pouco desse quadro, e de certa forma
decidiu a vida do meu avô. Nele, duas mulheres se dirigem ao
santuário de Esculápio, o deus da medicina. Em seu medo de que
este pudesse tornar as pessoas imortais, Zeus, o pai dos deuses,
matou-o com um raio. No texto, as mulheres descrevem com
riqueza de detalhes as obras de arte e o templo, bem como os
templos de cura na ilha de Cós. Herondas, que presumivelmente
viveu e escreveu na cidade egípcia de Alexandria, era com alguma
certeza proveniente da ilha. Da mesma forma que, gerações antes
dele, Heinrich Schliemann, entusiasmado com a Ilíada, escavou
Á
Troia na Ásia Menor, o meu avô, inspirado pelos mimiambos, pôs a
pá nas costas, por assim dizer, e foi para a ilha de Cós. Ele tinha
um senso para paisagens aliado à força da sua imaginação para ver
diante de si a ilha dois milênios antes, quando ainda era coberta de
florestas. Por exemplo, numa vasta planície de campos e olivais
dispersos, ele escavou um lugar que não se destacava em nada e
encontrou ali uma casa de banhos da Antiguidade romana tardia.
Ele fez testes de escavação na montanha da ilha e encontrou os
primeiros vestígios de um grande complexo de templos. Quase
cinquenta anos depois da sua descoberta, um guia turístico grego
que havia trabalhado como faz-tudo para o meu avô quando jovem
afirmou que tinha informações confidenciais do local da
descoberta e que pusera meu avô na pista certa. Esse mito, embora
refutado por minuciosos relatórios de pesquisa de colegas de
Rudolf, continua revivendo, porque é da natureza dos mitos ter
uma vida longa além do factual. O meu avô tinha uma qualidade
que eu aprecio muito, ele sabia ler paisagens.
Em sua aflição, transtornado pela loucura, décadas depois
desses eventos, ele estava obcecado em um cenário terrível: seria
expulso de casa, da casa que havia construído para Ella e para si
nos arredores de Munique, viriam buscá-lo ao amanhecer,
chegariam com um caminhão e levariam tudo, seus livros, suas
roupas, seus móveis. Noite após noite, ele se levantava
profundamente consternado e triste, e punha seus ternos em
malas, preparava os móveis para o transporte. Dia após dia, minha
avó desfazia as malas, pendurava as roupas de volta nos armários e
recolocava os móveis no lugar. Alguém fez insinuações cautelosas
se não seria melhor colocar Rudolf num asilo, mas minha avó
descartou rispidamente essa ideia. “Com este homem eu vivi feliz
toda a minha vida. Quem quiser levá-lo primeiro terá que passar
por cima do meu cadáver.” Só mais tarde, ela me descreveu o
momento que considero o mais comovente. Durante os últimos
anos, seu marido, Rudolf, não a reconhecia mais e a chamava de
“cara senhora”. Num jantar, ele apareceu vestido de modo
estranhamente formal, com terno e gravata. Após a entrada,
dobrou com cuidado o guardanapo de volta nos vincos do tecido,
alinhou com apuro os talheres ao lado do prato e se levantou.
“Minha cara senhora”, ele lhe disse com uma mesura, “se eu já não
fosse casado, agora eu ia querer pedir a sua mão.”
A casa em Großhesselohe decaiu totalmente depois da morte da
minha avó. A geração seguinte à dela foi um fracasso total. A
começar pelo meu pai, Dietrich, foi uma geração perdida. Além
dele, Rudolf e Ella tiveram uma filha, minha tia. Tenho o máximo
respeito por ela, que era gentil e camarada e muitas vezes deu em
segredo algum dinheiro à minha mãe, que com frequência se via
em extrema necessidade financeira. Meu próprio pai nunca
cumpriu as suas obrigações e se casou outras duas vezes. Para ele,
era das mulheres a tarefa de criar os filhos — dizíamos, no nosso
jargão familiar, a segunda e a terceira ninhadas — e garantir o
sustento das famílias. Sua irmã havia se casado alguns anos antes
do meu nascimento com um homem que destoava do padrão,
comentava-se à boca pequena que ele era um proletário que nunca
tinha lido um livro, o que eu achava refrescante, mas esse homem
tombou cedo na frente oriental, ou pode ser também que tenha
morrido de alguma doença na linha de combate. Minha tia, que
tinha uma filha com ele, tomou corajosamente o seu destino nas
mãos e se tornou professora. Eu era bastante próximo dessa prima.
Crescemos sempre nos encontrando em festas de aniversário da
família. Na casa dos meus avós, para a qual minha tia se mudou e
da qual depois assumiu o controle, havia um morador no primeiro
andar, um paquistanês, ele alugava um quarto. Presumo que tenha
ido para a Alemanha durante os tumultos da separação da Índia e
do Paquistão. Ele era uma espécie de engenheiro elétrico, com ou
sem diploma eu nunca soube ao certo, mas o seu quartinho vivia
cheio de rádios estripados que ele consertava para uma clientela da
vizinhança. Muitas vezes eu ficava surpreso com a habilidade com
que ele sabia soldar resistores e conexões de cabos finíssimos. O
seu nome era Raza, nós o chamávamos de tio Raza, ou tio Cuco,
porque quando nos via brincando no jardim, muitas vezes chamava
a nossa atenção imitando o canto de um cuco. Quando minha
prima tinha cerca de catorze anos, sua mãe a pegou em flagrante
com tio Raza. O relacionamento sexual secreto provavelmente já
durava bastante tempo, e Raza foi condenado a vários anos de
prisão por um tribunal. Eu só soube de tudo isso muito mais tarde.
Já antes desses acontecimentos, minha tia perdera o controle da
própria vida. Ela dirigia um automóvel, mas não reparava em
cruzamentos ou sinais vermelhos, como ela podia sobreviver assim
por uma semana que fosse já era para mim um mistério. No
trabalho, ela tinha cada vez mais problemas, não dava mais conta
de corrigir as lições de casa, entrava em conflitos bizarros com
colegas. Depois que minha avó morreu, a casa foi ficando cada vez
mais degradada. Minha tia acumulava todo tipo de coisas. Jornais
eram empilhados junto às paredes até o teto, em várias fileiras,
uma pilha que caiu uma vez quase a matou. Ela era obcecada por
armazenar papéis, barbantes, vidros de conserva e potes plásticos
de iogurte, a casa virou um depósito de lixo. Os cordões dos
saquinhos de chá eram separados e guardados para algo como
poder trançar uma corda em alguma emergência imaginária. Os
minúsculos grampos de metal dos saquinhos também eram
colecionados à parte, e as folhas já utilizadas eram retiradas para
fazer compostagem. Mas minha tia nunca era capaz de encontrar
as coisas que havia juntado. Em algum momento, ela não
conseguia mais chegar até a máquina de lavar roupa no porão,
porque também o último estreito acesso até lá estava obstruído
pelo lixo acumulado. Meu irmão mais novo da terceira ninhada,
que havia se mudado para a casa quando era estudante de teologia,
observava como ela à noite no jardim, nua, estendia para secar a
roupa de baixo que lavara à mão. Aquele jogo de roupa de baixo era
o único, todo o resto não estava mais ao alcance, soterrado por
montanhas de lixo, então ela fazia esse trabalho à noite, quando
ninguém podia ver que estava nua, até que, ao amanhecer, vestia
novamente a roupa íntima ainda úmida. Tenho fotos do interior da
casa. Apenas a cama, meio coberta de papéis e lixo, ainda era
acessível por um caminho sinuoso entre pilhas de caixas. Mais
tarde, quando a casa foi desobstruída, foi encontrado numa
prateleira no porão um vidro de conserva de mirtilos com a data de
1942, que guardei por muito tempo. Nos últimos anos da minha
tia, o caos na casa dos meus avós se espalhou para fora, até a
varanda foi tomada pelo lixo.
Depois da minha juventude, perdi minha prima completamente
de vista. Ela se casou com um matemático americano, mas ele teve
vários colapsos nervosos e acabou voltando para os Estados
Unidos. Minha tia se juntou ao casal. Eles administravam juntos
uma fazenda ecológica, com cabras cujo queijo e leite vendiam em
feiras de produtores. Minha prima teve dois filhos, um menino e
uma menina, mas as circunstâncias devem ter sido terríveis, com
todos contra todos em pé de guerra, até que os filhos finalmente
deram a entender que matariam toda a família, e isso em algum
momento antes de completarem onze anos de idade e, portanto,
quando ainda eram considerados inimputáveis pela lei. Mas pelo
menos essa parte da tragédia eu conheço apenas de segunda mão.
8.
Elisabeth e Dietrich

Sei muito menos sobre como os meus próprios pais se conheceram


do que sobre o encontro dos meus avós paternos. Em princípio,
não é difícil imaginar que eles tenham se conhecido na faculdade
em Munique, afinal ambos estudavam biologia, e a minha mãe
ainda fazia um estudo complementar em esporte. Já relativamente
cedo, ambos eram nacional-socialistas convictos. No caso de
minha mãe, havia a tradição de um nacionalismo croata não
redimido e vagos indícios de que parentes da família Stipetić
estiveram envolvidos no assassinato do rei sérvio Alexandre I. Uma
vez, num momento confidencial, minha mãe me mostrou fotos de
guerrilheiros mortos pendurados em estacas, com militares do
Império Austro-Húngaro posando ao lado, mas não estava claro a
que nacionalidade pertenciam os assassinados. Minha mãe
também tinha uma pistola bem carregada e era boa atiradora, mas
acho que ela só tinha a pistola por causa da época do divórcio,
quando o meu pai tentou obter pela força a guarda do meu irmão e
a minha. Quando estudante em Viena, nos primórdios dos
nazistas, minha mãe havia atuado politicamente a favor deles, e por
segurança se mudou para Munique antes da anexação da Áustria
pela Alemanha. Eu soube que ela havia sido presa antes, mas ela
nunca quis falar sobre o assunto. Tudo isso sempre foi um
constrangimento e um equívoco grotesco, e minha mãe logo deu
as costas à vida política e ao nacional-socialismo na Alemanha, pois
reconheceu que ele levaria inevitavelmente a uma catástrofe. Isso
ficou de todo claro para ela na época em que nasci, pouco antes de
começar a grande virada que levaria à derrota na Rússia e no Norte
da África. Ela não era racista, e eu me lembro de como me
incentivou quando fiz amizade com um soldado da ocupação
americana, um homem negro, o primeiro que vi na vida. Antes
disso, eles só existiam nos contos de fadas, os mouros do Oriente.
Mas aquele era um homem maravilhoso, muito alto, com a estatura
do colosso Shaquille O’Neal, o astro do basquete. Lembro-me da
sua voz terna, ele era todo ternura, nada além de ternura num
corpo imponente. Em mim ainda há um eco desse soldado quando
encontro africanos ou afro-americanos. Nós dois conversávamos
intensamente, sempre na pequena encosta atrás de casa, e minha
mãe me perguntou em que língua eu falava com ele, e eu não tinha
dúvidas: em americano. Ele me deu um chiclete que masquei por
semanas e sempre tinha que esconder do meu irmão. Eu
costumava deixá-lo grudado numa fenda na madeira do nosso
beliche, e um dia meu irmão apareceu mascando um chiclete.
Quando verifiquei no esconderijo, o meu havia sumido. Mas logo
ganhamos novos chicletes em escambos: procurávamos minhocas
para os soldados da ocupa­ção, que precisavam delas para pescar
trutas. Recebíamos chewinggums (gomas de mascar) em troca de
wurmbs,* que tomávamos por uma palavra americana.
No caso do meu pai, as raízes do nazismo estão na sua
participação entusiástica em confrarias estudantis, que desde o
início do século XIX impulsionaram a criação de um império
nacional alemão. Como havia estudado em diversas universidades,
ele pertencia a um total de quatro confrarias, todas elas associações
do tipo em que eram obrigatórios duelos ritualizados, nos quais os
estudantes feriam uns aos outros no rosto com espadas e sabres
afiados, deixando cicatrizes, pelas quais podiam ser reconhecidos
de longe. Meu pai tinha orgulho das grandes cicatrizes em seu
rosto e era seu desejo fervoroso que um dia eu também estudasse e
ingressasse numa dessas associações — para o seu primogênito,
Tilbert, meu irmão, com sua baixa performance escolar, desde
cedo uma carreira acadêmica pareceu fora de questão. As cicatrizes
davam um certo ar temerário a meu pai, além disso ele estava
sempre bronzeado, parecendo assim mais um pirata do que um
acadêmico. Ele também possuía uma formação abrangente,
dispunha de uma memória fenomenal e era abençoado no dom de
convencer as pessoas. Tudo isso fazia dele um galanteador
irresistível, um donjuán. Sua adesão ao nacional-socialismo deve
ter sido tanto autêntica quanto oportunista, pois através dela a sua
carreira acadêmica avançou mais depressa. O fato de ter
rapidamente se tornado assistente científico na universidade
deveu-se, suponho, à sua filiação ao partido. Ele sempre buscava o
caminho mais fácil. Depois da guerra, meus pais foram ambos
“desnazificados”,* mas por muitos anos ainda meu pai ficou
amargurado com a derrota da Alemanha e com a difusão de um
estilo de vida americano na Alemanha Ocidental. A “descultura”
dos americanos, como ele a chamava, era uma pedra no seu sapato.
Sobre o início do relacionamento entre os meus pais sei apenas
de uma viagem pelo Danúbio com um barco desmontável e uma
barraca. Quando depois meu pai foi convocado para o serviço
militar, os dois se casaram rapidamente e sem grandes
preparativos. Nunca vimos uma foto do casamento. Após o fim da
guerra, meu pai ficou cerca de um ano como prisioneiro na França.
Um belo dia havia um estranho em nossa cozinha, a minha
memória o mostra em pé, num terno branco, o que posso ter
apenas imaginado, e minha mãe nos perguntando diversas vezes:
“Quem é esse homem, quem é esse homem?”. Eu, talvez com
quatro anos, finalmente exclamei: “Nosso papai!”, e ele me ergueu
no colo e ficou muito emocionado. Mas em alguma medida o meu
pai permanecia um estranho para mim. Embora eu não fosse um
filho manhoso, um queridinho da mamãe, em meio às confusões e
ao divórcio dos meus pais, sempre me senti muito mais próximo
da minha mãe. Na época do divórcio, também veio ao mundo o
meu irmão mais novo. Ele tem como sobrenome Stipetić, o nome
de solteira de minha mãe, e mais tarde eu oscilei por um tempo
entre os dois nomes, adotando ora um ora outro. Aos vinte e
poucos anos, enviei para um concurso o meu primeiro roteiro para
Sinais de vida ainda sob o nome de Stipetić, mas como diretor de
cinema achei que deveria escolher Herzog. Até hoje tenho uma
sensação de alívio ao ver minhas origens envoltas em suave névoa.
Qual sobrenome é pseudônimo e qual não é, só a pergunta me faz
sentir que nem todo mundo precisa saber tudo. O que fiz em
filmes, o que publiquei em livros são portas suficientes, brechas na
minha fortaleza, que já com isso se abre escancarada e indefesa.
Meu irmão mais novo recebeu um nome horrivelmente
teutômano, que minha mãe logo não quis mais pronunciar, se é
que alguma vez o fizera. Em vez disso, ela o chamava de Xaverl,
mas nós dois, os irmãos mais velhos, também não achávamos
condizente e o chamávamos de Lucki. O nome pegou, e até hoje
meu irmão usa Lucki da maneira mais corriqueira, como se lhe
coubesse um direito natural a esse nome. Seu pai era um artista
que vivia a meio caminho entre Sachrang e Aschau, chamado
Thomas. Este era o seu sobrenome, só agora eu soube qual era o
seu primeiro nome, para nós ele era simplesmente Thomas. Ele
não era muito diferente do meu pai, presunçoso e avesso ao
trabalho, um enganador, mas que dispunha de menos substância
intelectual do que o meu próprio pai. A ideia do primeiro nome de
Lucki, que aqui não será mencionado, foi dele. Como minha mãe o
conheceu é um mistério para mim. Há pelo menos algumas
aquarelas pintadas por ele que não são ruins. Durante a campanha
da Rússia, Thomas perdera dois dedos no frio congelante e vivia de
uma pequena pensão de guerra, mas também nunca viu razão para
trabalhar ou continuar a pintar quadros. A dona da diminuta
propriedade agrícola onde ele se instalara cuidava dele, que vivia
como um parasita, deixando-se sustentar. Nós, os irmãos,
estávamos contentes com a chegada de Lucki, mas minha mãe,
sem nenhuma renda, quase não tinha condições de nos alimentar,
pois meu pai nunca cumpria as suas obrigações. Uma vez, quando
estava com Lucki no hospital em Wels, na Áustria, minha mãe fez
amizade com uma família que percebeu sua necessidade e se
ofereceu para levar o menino para casa. Naquela época, Lucki era
um pequeno querubim que conquistava à primeira vista todos os
corações. Assim, ele passou alguns anos com a família do “tio”
Heribert em Wels. Lucki só voltou para nós em Sachrang quando
já devia ter uns quatro anos de idade, e Till e eu estávamos
entusiasmados por tê-lo conosco enfim. Mais tarde, Lucki teve
uma participação decisiva na minha vida profissional. Ele tem
estado ao meu lado desde Aguirre, a cólera dos deuses, no ano de
1972. Meu irmão tem brilhantes habilidades organizativas, e devo-
lhe a margem de ação que tenho para tantas coisas. Ele próprio é
musicalmente muito talentoso, mas percebeu desde cedo que
talvez não subisse à primeira divisão como pianista concertista. Ao
longo dos anos, aconselhou-me a criar uma fundação sem fins
lucrativos, para a qual finalmente todos os meus filmes já foram
transferidos. Lucki tem três meios-irmãos de um casamento de
Thomas, que se chamam Gundula, Giselher e Gernot, tal figuras
sombrias da névoa distante da germânica Canção dos Nibelungos,
e quando Thomas morreu, esses irmãos não deram
deliberadamente a notícia do falecimento a Lucki.
Dietrich, meu pai, vivia na fantasia de escrever um grande
estudo que transcendesse muitos campos científicos, mas nunca
escreveu uma linha. No entanto, o estudo era o seu pretexto para
não ganhar dinheiro simplesmente trabalhando. De certa maneira,
ele era um objetor total.* Também as suas esposas seguintes
sempre tiveram que ganhar o próprio sustento e criar os filhos. Ele
sempre rejeitou a vida urbana, morava em pequenas aldeias na
Suábia e, quando fazia calor o suficiente, recusava-se a usar
qualquer roupa. Na verdade, só o conheço nu e bronzeado, deitado
na varanda, com um livro na mão e um lápis bem apontado entre
os dentes. Ele marcava continuamente passagens importantes. Seu
pai Rudolf, meu avô arqueólogo, também sempre fazia isso. Na
biblioteca de Rudolf, quase todos os livros estavam cheios de
trechos sublinhados e de anotações nas margens, porém, na
loucura dos seus últimos anos, ele sublinhou todas as letras de seus
livros, do começo ao fim, cada palavra, cada linha. Meu pai nunca
exerceu a profissão de biólogo, mas percorreu de forma autodidata
uma série de campos do conhecimento, história, línguas,
psicologia. Ele falava japonês razoavelmente, porque se interessava
por judô. Sua formação em perícia caligráfica levou-o a atuar
apenas algumas poucas vezes como perito em processos judiciais.
Ele era um dos poucos que naquela época eram versados em
sistemas de escrita não europeus e uma vez, por exemplo,
identificou corretamente um sequestrador que havia enviado uma
carta de chantagem escrita em árabe. Mas eram sempre fugazes os
momentos em que trabalhava. Na presença de estranhos, era capaz
de falar com entusiasmo sobre o seu grande estudo ainda
incógnito, como se já o tivesse concluído e apenas precisasse fazer
pequenas correções antes de enviá-lo para a impressão. Mas na
verdade não existia nem uma frase dele, nem uma só palavra. O
seu grande estudo era uma fantasia, da qual ele tanto fez por
persuadir a si mesmo, que acabou acreditando. Nesse sentido, meu
pai foi um sonhador inveterado, que viveu em ilusão. Houve um
momento em que alguém que nos visitava o ouvia fascinado contar
sobre a suposta audácia do seu projeto e eu sussurrei para ele na
cozinha: “Mas você não escreveu nada!”. Ele levou um susto, como
um sonâmbulo arrancado do sonho, mas um minuto depois
continuou a conversar com a visita sobre o seu estudo. Às vezes,
levo um susto semelhante quando alguém menciona o título de um
dos meus filmes. Eu fiz mesmo isso? Não estaria eu apenas
tentando me convencer disso há tanto tempo que comecei a
acreditar em mim mesmo, ou será que o filme realmente existe,
mas outra pessoa, que não conheço, foi quem o fez?
Na época do nascimento de Lucki, Till e eu moramos com meu
pai em Wüstenrot por um tempo, porque minha mãe não podia
mais nos alimentar. Ela preparava nossa mudança para Munique,
mas ainda não tinha casa, nem trabalho. Wüstenrot se
autodenomina estância climática, e não fica muito longe de
Heilbronn e Schwäbisch Hall. Mais tarde, quando Till e eu íamos
para o Gymnasium, voltamos a morar com meu pai. Fizemos lá os
últimos meses da Volksschule* e foi um choque sermos
provocados por causa do nosso dialeto bávaro. Foi somente ali que
aprendi o alemão padrão, como minha segunda língua, por assim
dizer. Meu bávaro era tão forte, que às vezes meu pai precisava de
um intérprete. Uma vez, ele estava tirando fotos e trocando o
filme, fiquei fascinado com o carretel vazio e perguntei a ele:
“Kriag i d’Roin, d’laare?”. Minha mãe teve que traduzir: “Kriege ich
die leere Rolle?” [Posso ficar com o carretel vazio?]. Para prestar o
exame de admissão no Gymnasium, tínhamos que tomar o ônibus
de Wüstenrot para Heilbronn, e tanto meu irmão, que queria
mudar depois da quinta série da Volkschule, quanto eu, que
mudaria depois da quarta, quase não notamos que houve um
exame, de tão fácil que ele foi para nós. Mas passar no exame era
muito importante para a vida futura das crianças daquela idade, e
eu me lembro das lágrimas de outros pais e crianças que não
haviam passado. Fomos admitidos no humanista Theodor-Heuss-
Gymnasium em Heilbronn, e hoje sou grato a meu pai por ele ter,
fiel à tradição familiar, insistido para que aprendêssemos latim e
grego. De volta a Wüstenrot, ele nos convidou orgulhoso para a
taverna da aldeia, onde cada um de nós ganhou dois ovos fritos,
que foram, acho, os primeiros ovos fritos que comi. Em Sachrang,
havia até algumas galinhas no Bergerhof, mas o velho dono
ranzinza nunca nos deu nada. Até mesmo à minha mãe, que o
salvou do pelotão de fuzilamento quando os soldados americanos
encontraram armas em seu celeiro, ele expulsava de lá com os
insultos mais indecentes, chamava-a de porca ordinária e a xingava
com outros nomes impublicáveis.
Em Wüstenrot, começamos a jogar futebol com os meninos da
vizinhança e nossas roupas estavam sempre sujas. Meu pai achava
o esporte muito grosseiro e sugeriu que fizéssemos algo mais
sofisticado, esgrima ou hóquei sobre grama. Entramos num clube
de hóquei em Heilbronn para experimentar e, já num dos
primeiros treinos, uma bolada me acertou em cheio na canela. Na
verdade, as bolas não são bolas, mas pedras do tamanho de um
punho. Senti uma dor atroz e um gânglio se desenvolveu no osso.
Para mim, foi o limite. Para que ninguém percebesse que
continuávamos a jogar nosso futebol, vestíamos escondido nossos
calções sob as roupas normais, que tirávamos assim que
terminavam as aulas para jogar em campos ociosos, cobertos de
ervas daninhas.
Logo Till e eu nos afeiçoamos à nossa irmãzinha Sigrid; e sua
mãe, Doris, a segunda esposa do meu pai, já desiludida a respeito
dele, conspirava em segredo conosco, enteados do primeiro
casamento dele. Ela foi incrivelmente camarada e eu lhe sou
eternamente grato. Ela se tornou lá em Wüstenrot, e na verdade
para sempre, minha segunda mãe. Ainda assim, ela não pôde me
ajudar, em meus dez anos, a superar a amargura com que eu
desejava ir embora. Aqui também, todos nós, as crianças,
dormíamos num único quarto. Till tinha uma espécie de cama, eu
dormia numa cama de campanha dobrável, com um estrado de
lona e um colchão de ar horrível, de uma borracha vermelha
desbotada, como as câmaras de ar dos pneus de bicicletas. Todas as
noites, o colchão perdia tanto ar que pela manhã estava
completamente achatado e no inverno eu acordava com frio,
porque o quarto não era aquecido. Não consigo me lembrar de
uma única noite em Wüstenrot em que não tenha chorado em
silêncio até pegar no sono. Eu não queria que o meu irmão
percebesse. Mas depois as manhãs eram sempre divertidas, porque
nossa irmãzinha estava justamente começando a falar, estava
sempre em pé em seu berço e fazia longos discursos para nós, que
ainda dormíamos. Mais tarde, ela formou três gerações de atores
na escola de teatro Otto Falckenberg, em Munique, e devo a ela a
descoberta de Sepp Bierbichler, que fez o papel principal em
Coração de cristal. Este foi o meu filme, rodado em 1976, no qual
todos os atores atuam sob hipnose. Sigrid sempre teve afinidade
com o teatro e encenou peças na Alemanha e nos Estados Unidos.
Hoje em dia ela tem encenado cada vez mais óperas.
Quando precisávamos nos deslocar todos os dias para o
Gymnasium em Heilbronn, logo a viagem de ônibus de uma hora
de ida e uma hora de volta ficou demais para nós. Por ser mais
barato, íamos sempre num reboque primitivo que era acoplado à
parte de trás do ônibus e no qual eram transportados os operários
pobres para as fábricas do vale. Dentro havia um pequeno fogão
cilíndrico a carvão, e os trabalhadores jogavam cartas ou dormiam.
Sempre pairava fumaça de cigarro no interior do reboque, que
tinha uma única janelinha. Meu pai logo nos alojou na casa de uma
família em Heilbronn, mas de lá só tenho lembranças claras dos
irmãos com os quais morávamos. O mais velho dos meninos se
chamava Klett, mas não sei ao certo se esse era seu nome ou
sobrenome. Ele dispunha de uma forte energia criminal e nós
começamos a roubar junto com ele em lojas de departamentos.
Não eram furtos, como costuma ocorrer com crianças, mas algo
realmente metódico. Klett, que era um ano mais velho do que nós,
também planejava arrombar carros, mas até que isso acontecesse já
não estávamos mais em Heilbronn. Lembro-me de como, seguindo
suas instruções, arrancamos a tampa redonda de um bueiro e
cobrimos cuidadosamente o buraco com papel grosseiro de sacos
de cimento. Em cima do papel, espalhamos areia e algumas folhas
secas, para que a armadilha só pudesse ser percebida caso se
olhasse com atenção. Acho que me lembro vagamente de que com
isso queríamos fazer algum transeunte desavisado cair no buraco,
para que pudéssemos roubá-lo com mais facilidade quando o
ajudássemos a sair. Em vez disso, um de nós, da gangue de
garotos, esqueceu o que tínhamos preparado, caiu na armadilha e
esfolou de tal forma as canelas e os joelhos nas bordas afiadas do
anel de ferro do bueiro, que ficou vários dias sem conseguir andar
direito.
Eu ansiava por voltar para Sachrang, ou pelo menos para
Wüstenrot, onde tínhamos nossos amigos do futebol, que todavia
me ficaram apenas vagamente na memória. Em Sachrang, onde
passei muito mais tempo, eram nossos parceiros o Richter Adi, o
Kainzen Ruepp e o Hautzen Louis. O Kainzen Ruepp depois se
tornou ordenhador na propriedade agrícola da Fraueninsel [ilha
das Mulheres] no lago Chiem e morreu de queimaduras. Ele devia
estar bêbado, e sua cama deve ter pegado fogo por causa de um
cigarro aceso. O Louis caiu fora da estrada com sua bicicleta num
trecho especialmente íngreme antes de Aschau e chocou-se contra
uma árvore. Ele morreu sem completar vinte anos. Em Wüstenrot,
Zef e Schinkel eram os amigos com os quais todos os dias,
chovesse ou fizesse sol, corríamos atrás da bola. Schinkel mais
tarde tornou-se laqueador numa fábrica de automóveis, e Zef,
pintor. O bizarro era que Zef era daltônico, mas o seu mestre
misturava as tintas para ele e Zef apenas precisava cobrir as
paredes com elas. Quando por fim nos despedimos antes de mudar
para Munique, esse foi o pretexto para nos embebedarmos feito
loucos. Para isso, compramos algumas garrafas do vinho mais
barato que havia, um vinho tinto com vermute. Cambaleando,
ainda consegui chegar até o apartamento do meu pai, que na
mesma hora me pôs na cama e me deu um balde para vomitar.
Vomitei a noite toda e meu pai ficou imensamente orgulhoso por
seu filho ter agido como um verdadeiro membro de confraria. O
fato de eu não ter ainda nem doze anos era para ele uma espécie de
distinção especial. Uma consequência dessa bebedeira foi que,
ainda décadas depois, todo o meu corpo tremia apenas à visão de
vinho tinto, e essa aversão só diminuiu muito lentamente.
Durante esse tempo, minha mãe tentava se estabelecer em
Munique. Não tínhamos futuro em Sachrang, a perspectiva para
nós, filhos, era nos tornarmos pastores de vacas ou lenhadores.
Também nunca fomos de todo aceitos na comunidade da aldeia e,
embora não fôssemos considerados totalmente estranhos, éramos
tratados como “recém-chegados”. O que acontecia mais era as
outras crianças refugiadas e as crianças das propriedades vizinhas
serem atraídas para o nosso círculo. Já logo depois da guerra,
chegaram os primeiros pacotes do Plano Marshall com donativos
que nos ajudaram a sair da penúria maior. Sou eternamente grato à
América por isso. Os pacotes continham, entre outras coisas,
farinha de milho, que para nós, mais do que desconhecida, era
bastante suspeita. Minha mãe a tornava palatável para nós,
mentindo que a farinha era amarelada daquele jeito porque
continha gema de ovo, e portanto era excelente para a nutrição. A
partir de então passamos a comê-la com entusiasmo. E um dos
primeiros pacotes que chegaram também continha um livro,
impresso como um grande caderno escolar: Winnie the Pooh, O
ursinho Pooh. Tiro o chapéu para a inteligência e a sensibilidade de
incluir algo assim no pacote. Hoje ninguém mais deve saber quem
fez isso, quem teve essa ideia, mas vão aqui meus cumprimentos
ao homem ou à mulher que foi responsável por isso. Na pequena
cozinha da nossa casa, juntava-se toda a criançada das propriedades
vizinhas; éramos sempre catorze meninos, um grupo unido, para
ser mais preciso: treze meninos e uma menina do Bergerhof, a
“Weibi”, “Mulherzinha”, que era mais ousada e imaginativa do que
a maioria dos meninos. Nós nos apinhávamos no sofá, em algumas
cadeiras, no chão, no parapeito da janela e ouvíamos em grande
suspense minha mãe ler para nós alternando as vozes de Cristóvão,
Ursinho Pooh, Leitão e Bisonho. Sentíamos um entusiasmo de
suspender a respiração. Depois, houve livros como O colar de
âmbar,* a história de uma menina órfã que cresce pobre e
desprezada, mas usa um pingente de âmbar em volta do pescoço,
pelo qual, após muitas reviravoltas e peripécias, seus pais, creio
que pertencentes a uma linhagem de condes, a reconhecem. Só
conseguimos assimilar essa história pouco a pouco, dosada em
pequenas passagens, porque chorávamos muito. Lembro-me de
quando o irmão da Weibi, que se chamava Ernst e era o único que
não participava das leituras, abriu bruscamente a porta da cozinha
e gritou: “Weibi, vai dar comida aos porcos!”. Meia hora depois,
ela voltou ainda chorando e minha mãe então mudou a leitura para
algo mais divertido.
Adorávamos a nossa casinha. Hoje ela foi reformada num estilo
moderno sem imaginação, e toda a metade de trás, que antes era
um celeiro bem arejado, foi simplesmente transformada num
conjunto de unidades habitacionais. Havia mistérios ali naquela
época, havia estranhos chiados e rangidos, havia fantasmas. Ali
também uma vez eu encontrei Deus. Eu devia ter uns quatro anos,
e meu irmão Till e eu alardeávamos que no Dia de São Nicolau*
esticaríamos um arame fino de metal para fazer o Krampus
tropeçar no corredor escuro. O Krampus era uma espécie de
demônio vestido com peles e chifres, que arrastava uma corrente
pesada para assustar as crianças malcomportadas. Estávamos
entusiasmados com a ideia, não sentíamos medo, travávamos
disputas verbais sobre qual dos dois era o mais valente. Também
aventamos a ideia de talvez fazer o próprio São Nicolau tropeçar e
vir cambaleando até nós na cozinha, ele tombaria de bruços
deixando cair todos os presentes do saco e não teríamos que ouvir
os seus sermões. Porém quanto mais se aproximava o Dia de São
Nicolau, mais a nossa coragem arrefecia. Nunca fizemos a
armadilha com o arame. Eu ouvi o Krampus batendo com os cascos
no chão e arrastando a corrente pelo corredor, e fugi para baixo do
sofá. Em seguida, senti a garra do Krampus me agarrar pelo
fundilho das calças e me puxar para fora. Fiquei ali imóvel, e acho
que me lembro de ter feito xixi nas calças. Mas então eu vi Deus,
que sorria para mim. Ele estava encostado no batente da porta e
vestia um macacão marrom desbotado, com manchas escuras de
óleo. Eu soube que estava a salvo. Deus estava ali em pessoa. Muito
mais tarde, me contaram que o homem, vindo da pequena
casinhola da eletricidade que havia no desfiladeiro junto à
cachoeira, passara por acaso na frente da nossa casa e, cedendo à
sua curiosidade, entrara atrás do Nicolau. De fato, havia um
pequeno gerador de eletricidade na floresta, que era movido à água
desviada do riacho e no qual aquele homem de vez em quando
vinha passar graxa. Dessa instalação existem ainda hoje as
fundações de concreto. Mas nos primeiros anos após a guerra, a
energia elétrica nunca estava garantida, e era frequente haver
apenas uma vela na cozinha à noite.
Mudarmos para a cidade grande tornou-se inevitável. Quase
nada sabíamos sobre o mundo fora do vale. Aschau, a doze
quilômetros de distância, era o limite extremo do mundo da nossa
experiência. Rosenheim existia apenas como uma luminosidade no
céu, muito longe. Eram raros os automóveis vindos de lá em nossa
direção e, quando víamos um deles, corríamos para admirá-lo.
Certa vez, numa curva fechada, um motorista perdeu o controle e
derrapou caindo dentro do riacho, logo abaixo do Sturm Ötz. A
partir desse dia, sentávamos ali com frequência, na esperança de
que viesse outro automóvel e também errasse a curva. Uma vez
vimos o Siegel Hans na sua motocicleta fazer a curva em grande
velocidade numa perigosa posição inclinada e a seguir pisar fundo
no acelerador outa vez. Desde então carros em movimento sempre
me fascinaram — pelo menos visualmente. Em Vício frenético, de
2009, mudei deliberadamente uma locação, a sala de interrogatório
da Divisão de Homicídios, de modo que diante da janela passasse o
tráfego pesado de uma rodovia sobre uma ponte. Para bloquear o
ruído dos caminhões, tivemos que instalar especialmente uma
grossa folha dupla de acrílico. Aschau, a pequena cidade no início
do vale, onde havia só uns poucos carros, eu conhecia apenas do
hospital. Quando eu tinha cerca de seis anos, tive ataques de
asfixia no meio da noite e saí correndo do quarto para o corredor
gelado. Eu lutava desesperadamente para respirar. Minha mãe deve
ter passado um sufoco. Frau Schrader, a mulher refugiada do andar
de cima, e ela me envolveram numa pele de carneiro e me
amarraram em cima de um trenó. Eram duas horas da manhã, não
havia telefone nem ligação rodoviária, pois nevara pesado e a
estrada para Aschau estava intransitável devido à neve acumulada.
As duas mulheres me arrastaram através da nevasca por mais de
quatro horas, até que chegaram ao pequeno hospital em Aschau.
Pelo que me lembro, foi um ataque severo de pseudocrupe. Do
hospital ainda me lembro de duas coisas: pela primeira vez na vida
ganhei uma laranja, eu nunca tinha visto nada igual, uma
enfermeira teve que me mostrar como descascá-la. Então ela se foi.
Eu não sabia como continuar e desmembrei cuidadosamente a
laranja em seus gomos individuais, sobre os quais quebrei a cabeça
por um bom tempo. Por fim, tirei com cuidado a pele de cada fatia.
E então esmaguei as pequenas vasilhas alongadas, agora livres,
dentro da minha boca. O sabor era magnífico. Em segundo lugar,
lembro-me de passar dias brincando com um fio solto que puxei da
barra do cobertor. Descobri as incríveis possibilidades daquele fio.
Foi uma grande revelação. Mais tarde minha mãe me contou que
por toda uma semana eu não tive nada além desse fio, mas o tempo
que passei com ele foi muito emocionante.
9.
Munique

Tínhamos estado em Munique apenas uma vez antes de nos


mudarmos para lá. Naquela época, todo o entorno da estação
central ainda era de montes de escombros e entulho, e meu irmão
e eu cumprimentamos todos os transeuntes na rua, centenas deles,
tal qual fazíamos na rua principal em Sachrang. Também
desabotoamos a braguilha das nossas calças de couro e na beira da
calçada fizemos xixi na rua. Minha mãe nos renegou
provavelmente pela única vez na vida e agiu como se não nos
conhecesse. Quando alguns anos depois estávamos com nosso pai
em Wüstenrot, minha mãe procurava um lugar para morarmos em
Munique, mantendo a cabeça fora da água com trabalhos
ocasionais. Ela trabalhava como faxineira e, junto com uma amiga,
como uma espécie de vendedora ambulante. As duas vendiam
meias de náilon para as figurantes nos estúdios de cinema que
haviam voltado a funcionar fora da cidade, em Geiselgasteig.
Minha mãe fazia tudo isso sem reclamar, movida por uma força de
vontade pragmática. Ela trabalhou por um longo período como
empregada doméstica na casa de um oficial americano da
ocupação, mais tarde ela quase nunca falava dessa época. Ela
limpava a casa, lavava a roupa, cozinhava, e a esposa do oficial
implicava com ela o tempo todo. Minha mãe também passeava
com o cachorro e às vezes, quando havia uma refeição maior, a
dona da casa juntava as sobras numa tigela e dava para ela.
“Elizabeth, this is for the dog and for you” [Elizabeth, isto é para o
cachorro e para você]. Minha mãe era uma mulher corajosa como
nunca vi igual, e isso junto com um caráter forte, tão
extraordinário quanto a sua bravura. Quando, por exemplo, alguns
anos depois, Till e eu, já com dezenove e vinte anos, compramos
uma motocicleta, praticamente toda semana sofríamos algum
pequeno acidente. Till derrapou nos trilhos do bonde e foi parar
debaixo de um ônibus, mas apenas sofreu escoriações no cotovelo,
e eu, numa curva de uma estrada rural em que havia cascalho na
pista, caí por um barranco e aterrissei numa plantação. Naquela
época, ainda não era obrigatório usar capacete. Sempre havia
alguma coisa, e por isso nossa mãe tinha sérias objeções contra a
motocicleta. Ela não queria ter a experiência de um dia sepultar
um de seus filhos. Mas nós estávamos muito felizes com a moto.
Para nós ela era “D’Maschin”, D maiúsculo, apóstrofo, Maschin
(como variação de “die Maschine”, a máquina). Não montávamos,
trepávamos na D’Maschin. Cerveja também não bebíamos, mas
sim, depois de contrabandeá-la da cozinha, nós a desposávamos.
Não comíamos um bife, que era um pedaço de carne que
estraçalhávamos. E não dormíamos, puxávamos um ronco. Uma
noite, depois do jantar, nossa mãe acendeu um cigarro. Ela foi uma
fumante inveterada durante toda a vida adulta. Mas nessa vez deu
apenas algumas tragadas no cigarro e apagou-o no cinzeiro. Depois
então nos disse para vendermos a motocicleta, queria que
desistíssemos dela e que nunca mais comprássemos outra. Aliás,
aquele tinha sido o seu último cigarro. Ela nunca mais fumou e no
prazo de uma semana nos desfizemos da D’Maschin.
Em sua busca por um lugar para morarmos, nossa mãe deu com
uma pequena pensão, que ficava apenas um andar abaixo do sótão
onde passei os primeiros dias após o meu nascimento. O telhado
havia sido consertado nesse meio-tempo, mas quase todos os
edifícios vizinhos ao longo da Elisabethstraße ainda estavam em
ruínas ou em construção. Caminhão após caminhão ainda
removiam os escombros e os transportavam para montes de
entulho cada vez mais altos. O maior desses montes mais tarde
passou a fazer parte do Parque Olímpico de Munique; coberto de
grama e de árvores e com um pequeno lago artificial, era quase da
altura da cobertura transparente do grande estádio. Todos os meus
amigos que cresceram em Munique se lembram com entusiasmo
dos primeiros anos após a guerra. Eles não podiam ter tido
melhores parques infantis para as suas aventuras. Bandos de
crianças eram reis, os senhores de todos aqueles quarteirões
bombardeados. Eles catavam metais e vendiam para o sucateiro.
Entre outras coisas, encontravam armas, pistolas e granadas. Uma
vez, encontraram um homem enforcado nas vigas de uma ruína.
Eles também eram responsáveis por si mesmos desde muito cedo,
e todos estavam felizes com isso. Sempre volto a ouvir vozes que
demonstram sentir pena dessas crianças, mas isso não condiz com
a realidade das suas experiências. Como eu nas montanhas, as
crianças da cidade no período imediatamente após a guerra
tiveram a mais magnífica infância que se pode imaginar. Até
mesmo Dieter Dengler, sobre quem fiz um filme mais tarde — na
verdade, dois filmes, um documentário e um longa-metragem, O
pequeno Dieter precisa voar, de 1997, e O sobrevivente, de 2006 — e
que cresceu isolado em Wildberg, na Floresta Negra, disse
exatamente isso, embora a sua penúria tenha sido muito maior que
a nossa. Ele se lembrava de como sua mãe levava a ele e a seu irmão
mais novo para casas bombardeadas, onde eles arrancavam o papel
das paredes em ruínas. A mãe deles então fervia o papel, porque a
cola nele grudada continha nutrientes. Estou longe de idealizar
essa época, que foi gerada por uma guerra terrível e crimes
terríveis por parte dos alemães. Nós nos lembramos apenas de
nossa experiência sensível, mas a guerra em si é um horror e se
torna cada vez mais assustadora à medida que o instrumental da
guerra se desenvolve. Duas coisas ainda ressoam em mim, como
um eco dessa época. Quando havia alguma coisa para comer, era
preciso ser rápido, porque do contrário os irmãos comiam tudo.
Até hoje, ainda como rápido demais, mesmo quando me disponho
a mastigar bem e a comer conscientemente. E, segunda coisa, para
mim é difícil jogar fora comida, especialmente pão. Minha
geladeira é sempre supervisionada, bem administrada. Para mim é
algo inconcebível que, no mundo industrializado, de acordo com
estatísticas, 40% de toda a comida seja jogada fora, nos Estados
Unidos até mesmo 45%. Eu observo em silêncio, pois quase
ninguém compartilha as minhas experiências de infância, nos
restaurantes serem servidas porções enormes, das quais a metade
acaba no lixo. O consumismo que se espalhou por todo o mundo
industrializado está causando danos imensos à saúde do nosso
planeta. A obesidade que afeta tantas pessoas é apenas o lado mais
aparente do consumo. Não que eu nunca encontre uma alface
murcha na minha geladeira, mas raramente jogo alguma coisa fora.
A pensão na Elisabethstraße em Munique era um apartamento
espaçoso num edifício antigo, no qual cinco ou seis dos quartos
eram alugados. A proprietária, Clara Rieth, fizera parte da famosa
boêmia criativa dos anos 1920 em Schwabing, o bairro de artistas
da cidade. Mas àquela altura já não havia mais artistas por lá, assim
como a colônia de artistas de Montmartre em Paris em algum
momento se cristalizou num mito que imortaliza o final do século
XIX para os turistas. No entanto, nas décadas de 1960 e 1970,
quando surgiu o Novo Cinema Alemão, quase todos os cineastas
moravam em Schwabing. Naquela época, Munique era a capital
cultural da Alemanha, e somente quando Berlim substituiu a
provinciana Bonn como capital é que quase todos emigraram para
lá. Clara era muito interessada em arte e teatro, vestia-se de
maneira inusitada, com o cabelo tingido de laranja berrante, como
os punks fariam décadas depois. No amplo corredor do seu
apartamento, havia um compartimento separado por uma cortina
pesada, atrás da qual morava a amiga da minha mãe que vendia
meias de seda com ela. Num quarto, morava um engenheiro turco,
e ao lado, nós quatro: minha mãe, Till, Lucki e eu, num único
cômodo, que era contíguo ao banheiro comum a todos os
inquilinos. Era preciso combinar entre os moradores quando se
podia usá-lo. Clara cozinhava para todos os seus hóspedes, isso
estava incluído no preço. “Eu cozinho com amor e com manteiga”,
ela costumava dizer de si mesma, mas a parte da manteiga acabou
se revelando um exagero, era só margarina. Ali, naquele
apartamento, aprendi para sempre a me arranjar com o mínimo de
espaço e também aprendi a me concentrar completamente em
mim, mesmo quando no quarto ao meu redor muitas vezes estava
tudo de pernas para o ar. Ainda sou capaz de ler ou escrever no
meio de uma multidão barulhenta sem me dar conta de que não
estou sozinho. Sob a alta pressão e as muitas demandas de
inúmeras pessoas num set de filmagem, consigo reescrever em
minutos um trecho inteiro de um roteiro quando a força das
circunstâncias externas obriga a uma mudança de rumo.
Um dia, quando eu voltava da escola, ouvi um tumulto já da
escada. Abri a porta do apartamento e a primeira coisa que notei
foi a ajudante de cozinha, Hermine, de cerca de dezoito anos, do
interior da Baixa Baviera. Ela estava perseguindo um homem
jovem que eu nunca tinha visto antes, e batendo nele com uma
bandeja de madeira. O homem em fuga dava gritos estridentes. Ele
a agarrara por baixo da saia. Era Klaus Kinski. Muito do que
descrevi quase meio século depois no filme Meu melhor inimigo, de
1999, pode já ser conhecido, mas recapitulo minhas lembranças
aqui mais uma vez. Kinski, que na época se estilizava como um
artista faminto, fora recolhido da rua por Clara Rieth, bondosa
como ela era. Já então Kinski havia adquirido, através de pequenos
papéis em diversos teatros, a reputação de ator incomum. Ele não
ganhava muito, mas adorava fazer tipo de gênio desprezado e
faminto. Não muito longe na vizinhança, ele havia ocupado um
sótão vazio de uma velha casa e o declarara, se podemos dizer
assim, sua residência e intimidava o proprietário, que tentava
expulsá-lo, com acessos de raiva. Nesse sótão, em vez de móveis,
ele espalhara folhas secas, que no final já batiam na altura dos seus
À
joelhos. Ele dormia sobre as folhas. À semelhança de meu pai, ele
também nunca usava roupas lá em cima nessa sua moradia, ele as
rechaçava como coerção civilizatória criada para nos afastar da
experiência da natureza pura. Quando o carteiro chegava e batia na
porta, Kinski ia atender nu em pelo através das folhas crepitantes.
No palco, por sua vez, ele provocava escândalos constantemente,
era algo que todo mundo já conhecia. Se percebesse a menor
desatenção, ou mesmo uma tossezinha nervosa, ele gritava com o
público e o insultava com as palavras mais obscenas. Ele chegou a
jogar um candelabro com velas acesas no público e era comum
ficar enraivecido porque não memorizara o texto e travava. Uma
vez, numa peça em que tinha um monólogo do qual só dominava
as primeiras linhas, ele simplesmente se enrolou num tapete no
chão e assim ficou, como rolo de tapete, até que o público
começou a protestar e o teatro teve que fechar a cortina. Mais
tarde, nos meus filmes com ele, por repetidas vezes presenciei
ataques exatamente desse tipo, mas nessa época em Munique eu
ainda não havia pensado em filmes nem por um segundo. Eu
recém fizera treze anos, ele devia ter uns 26. Como contestador de
toda a civilização, ele também se recusava a usar talheres para
comer. À mesa com os hóspedes da pensão, comia com as mãos
debruçado sobre o prato, enfiando a comida para dentro. “Comer é
um ato bestial”, ele gritava para a assustada Clara, e um dia,
quando percebeu que ela realmente cozinhava com margarina em
vez de manteiga, quebrou peças de louça na cozinha e jogou uma
panela de ferro pela janela fechada. Ainda me lembro
perfeitamente de quando Clara convidou um crítico de teatro para
jantar, com a intenção de impulsionar a carreira de Kinski. O
crítico se chamava François e era tão gordo que não conseguia
abotoar completamente o cós da calça. Ele apoiava Kinski com
veemência e o elogiou por sua atuação da noite anterior: “Você foi
magnífico, foi esplêndido!”. Então aconteceu algo com uma
velocidade, uma vibração de movimentos, como só se conhece nos
desenhos animados do Pica-Pau — Kinski jogou nele por cima da
mesa numa sequência furiosa várias batatas quentes ainda
fumegantes de seu prato e, no mesmo movimento, deu um salto, o
rosto branco. Seguiram-se facas e garfos, que ele juntou dos
vizinhos de mesa, disparados como se de uma metralhadora e, em
toda essa simultaneidade, Kinski rugiu: “Eu não fui magnífico, eu
não fui esplêndido. EU FUI MONUMENTAL, EU FUI EPOCAL”.
Assim continuou por alguns meses, com ele na casa. Clara havia
destinado para ele um quartinho minúsculo, com uma janela
estreita que dava para o pátio dos fundos, o único cômodo que
estava vago na pensão. Ele se hospedava lá de graça, e ela lhe dava
as refeições, sem querer receber nenhum pagamento, e também
lavava e passava a roupa dele. Ainda me lembro de como ele fazia
exercícios de voz atrás de sua porta fechada, durante horas,
interminavelmente. Mas soavam antes como exercícios para
cantores, modulações para a clareza de articulação, tom e volume.
Isso contradiz a sua afirmação posterior de que tudo lhe vinha
naturalmente, como para um gênio original, como se ele fosse uma
verdadeira criatura do período Tempestade e Ímpeto [Sturm und
Drang] da literatura alemã. Kinski era capaz de gritar mais alto do
que qualquer outra pessoa que eu conhecia. Ele até mesmo
conseguia “quebrar cristais”; quando gritava num tom agudo as
taças de vinho trincavam. Uma vez, durante o jantar, o lugar de
Kinski estava vazio. Mas de repente ele surgiu, como se algo
pesado e violento, algo lançado de um esquadrão de bombardeiros
não anunciado caísse sobre nós. Ele deve ter usado todo o longo
corredor para tomar impulso, pois, com um estrondo terrível, a
porta arrancada inteira de suas dobradiças caiu deitada no chão da
sala de jantar. Kinski, que podia ser percebido como que em
espasmos estroboscópicos, abanava com os braços, não, ele jogava
roupas para o alto e soltava gritos inarti­culados, daquele tipo com
que destruía os copos de Clara. Depois que as roupas, esvoaçando
como folhas, caíram em cima da mesa de jantar e no chão, os gritos
de Kinski pouco a pouco se tornaram compreensíveis. Ele gritava:
“CLARA, SUA CADELA!!!!”. E só quando a cena acabou é que se soube
que ele estava revoltado porque Clara não passara suficientemente
bem os colarinhos das suas camisas.
Não me lembro mais de como os meus irmãos reagiam na
época. Mas sei que eu era aquele que, além de minha mãe, não
sentia medo dele. Era mais como assistir espantado à passagem de
um tornado que deixa um rastro de destruição. Cerca de três
meses depois, Kinski trancou-se no banheiro, que era casa de
banho e WC de uso comum aos hóspedes. Ouvimos um rugido vir
de lá de dentro. Então houve um estrondo, seguido de um
estranho silêncio. Clara bateu suavemente na porta do lado de fora,
e tentou acalmá-lo. Qual havia sido o motivo para o seu novo
ataque de fúria, que irromperia logo a seguir, não está claro para
mim até hoje, mas as intervenções de Clara apenas aumentaram o
ímpeto da sua cólera destrutiva. Do lado de fora, sabíamos que ele
continuava a destruir tudo no banheiro. Felizmente, havia outro
banheiro no corredor, um pequeno lavabo que podíamos usar. A
fúria de Kinski contra as peças de porcelana durou muitas horas.
Depois, quando tudo já estava quebrado em pedacinhos, pia, vaso
sanitário, espelho, partes da banheira, Kinski apareceu com um
semblante extasiado e, como Clara estava chocada, minha mãe
encarregou-se de expulsá-lo. Ela o fez sem mais delongas. O
pesadelo havia terminado. Eu sabia no que estava me metendo
quando, quinze anos depois, comecei a trabalhar com ele.
Em Munique, Till e eu fomos para o humanista
Maximiliansgymnasium. A escola era altamente renomada. Além
de oito anos de latim e seis de grego antigo, ela também tinha um
alto padrão em matemática e física, literatura e arte. Dela saíram
dois dos grandes físicos teóricos do século XX, Max Planck e
Werner Heisenberg. Hoje é difícil explicar por que as línguas
antigas têm importância — no máximo, o latim, e
presumivelmente apenas para juristas, teólogos e historiadores. Do
ponto de vista prático, essas línguas são de todo inúteis. Mas a
formação nelas nos deu uma compreensão mais ampla da origem
da nossa cultura ocidental, da literatura, da filosofia, das correntes
mais profundas da nossa compreensão do mundo. Eu, no entanto,
sempre fui de alguma maneira um estranho, mas apenas em
relação aos outros colegas, que vinham todos de famílias abastadas
da burguesia esclarecida de Munique. Muito raramente, porém,
tive a sensação de pobreza, essa contradição de uma sociedade de
classes não se apresentava para mim de uma forma com a qual eu
não pudesse lidar. Já durante os anos de escola, todos ao meu redor
pareciam estar trabalhando nas suas carreiras, isso era bastante
evidente. Eu tinha poucos amigos e odiava a escola, num
determinado momento de tal forma, que fantasiava pôr fogo nela à
noite, quando o prédio estivesse vazio. Existe algo que pode se
chamar de inteligência escolar, que eu claramente não tinha. A
inteligência é sempre um feixe de toda uma série de qualidades:
pensamento abstrato e lógico, habilidades linguísticas, análise
combinatória, memória, musicalidade, empatia, capacidade de
associação, talento para o planejamento e assim por diante, mas o
meu feixe era atado de alguma outra maneira. Mas isso foi ainda
muito pior para o meu irmão mais velho, que se encaixava ainda
menos no esquema. Logo ficou claro que ele era um caso perdido,
embora fosse um garoto de inteligência excepcional, mas de “um
outro tipo” de inteligência, que se manifestava em suas qualidades
de liderança. Na escola, tudo o que fazíamos contra as regras era
ele quem encabeçava. Nunca houve disputas hierárquicas, nunca
ninguém questionou quem era o líder. Ainda hoje, quando Till
vem se aproximando de longe, todos sentem no ar: lá vem o chefe.
Não que Till tenha que demonstrar isso com qualquer tipo de
pose, tal como precisam se exibir os indivíduos alfa entre os
primatas, ele possui essa qualidade da maneira mais natural
possível. Do meu ponto de vista, é a única pessoa de fato bem-
sucedida na minha família. Digo isso apenas em parte de
brincadeira. Mas já na segunda série do Maximiliansgymnasium
ficou claro que ele não tinha a menor vontade nem o menor
talento para o latim. No fim do ano letivo, foi reprovado e teve que
repetir o ano. Eu passei a ter um irmão mais velho do que eu
classificado numa série inferior à minha. Ele foi aprovado no final,
o que eufemisticamente chamamos de “volta de honra”, mas na
série seguinte ele seria reprovado de novo, e ficaria dois anos atrás
de mim. Numa decisão espontânea, aos catorze anos, Till deixou a
escola que detestava e que era inadequada para ele e começou uma
formação prática numa empresa de comercialização de madeiras.
Lá ele teve uma ascensão meteórica. Aos 21 anos, era gerente de
compras, dirigia um Mercedes de serviço e, poucos anos depois,
foi cofundador de uma empresa comercial leste-oeste, em parceria
com uma corporação iugoslava semiestatal, que tinha ligações
sobretudo com a China. A empresa cresceu rápido e montou
fábricas de móveis na Manchúria e em Sichuan, com a exportação
de todas as máquinas diretamente para lá através da empresa de
Till. Naquela época, Till passou várias semanas na China com uma
delegação iugoslava. Mais tarde, uma empresa iugoslava do ramo
de couro e calçados com estrutura semelhante adquiriu uma
participação na empresa de Till, o que resultou no fornecimento de
mais de 5 milhões de pares de sapatos de alta qualidade, fabricados
na Iugoslávia, vendidos para a Rússia, desenvolvidos por um
designer de calçados da Itália. O couro também vinha da Itália, e
todo o projeto foi pré-financiado pela empresa de meu irmão e
compensado com as entregas de calçados. Nisso os partidos
comunistas da Áustria e da Grécia também foram favorecidos
financeiramente, o que a União Soviética defendia por razões de
prestígio. Para tanto, os custos adicionais foram acrescentados ao
preço de entrega, com o conhecimento dos soviéticos. Outro
grupo empresarial do setor automobilístico iugoslavo, apenas para
exemplificar a amplitude dos empreendimentos de Till, comprou 2
mil automóveis no Japão e pagou o preço imediatamente, mas com
um prazo de entrega de seis meses. A venda foi feita com base no
marco alemão, e a compra em ienes. Naquela época, não havia
possibilidades de cobertura cambial na Iugoslávia, e dessa forma a
empresa de Till atuou como compradora, recebendo dessa maneira
20 milhões de marcos alemães em sua conta de uma só vez. Till
não ganhou nada com os automóveis, mas os juros na época eram
de 8% e, em seis meses, 800 mil marcos alemães foram para a sua
conta.
Nos seus melhores anos, a empresa teve faturamentos de mais
de 100 milhões de marcos alemães, sempre com negócios
altamente lucrativos, mantendo o foco na Iugoslávia. Aos 51 anos,
após 36 anos de uma intensa vida profissional, Till estava esgotado.
Mais tarde, ele me disse sem rodeios que, se as coisas tivessem
continuado daquela maneira, provavelmente dentro de um ano
estaria morto, teria sucumbido a alguma doença relacionada ao
estresse. Ele vendeu a sua participação na empresa, e o seu alto
salário como diretor e as distribuições anuais de lucro lhe
permitiram nunca mais ter que trabalhar. Ele passou muito tempo
no Mediterrâneo e no Caribe em seu grande iate à vela. Depois
construiu para si um magnífico solar na Costa Blanca, na Espanha.
Hoje ele vive entre Munique e a Espanha. Está há 47 anos num
casamento feliz e tem dois filhos maravilhosos.
Enquanto Till iniciava a sua vida profissional, minha mãe havia
arranjado um trabalho fixo num antigo sebo de arte e raridades
literárias, mas os ricos proprietários lhe pagavam apenas um salário
escandalosamente baixo. No entanto, eles estavam sempre
empenhados em apresentá-la aos clientes como uma acadêmica
com doutorado. O que ela recebia não teria dado para quatro
pessoas. Meu irmão logo se tornou o principal provedor da família,
e sem ele eu dificilmente poderia ter continuado no Gymnasium,
embora eu próprio ganhasse algum dinheiro. Nas horas vagas, eu
trabalhava como ajudante, empilhando tábuas de madeira. Era de
fato um trabalho árduo. As tábuas, em sua maioria de madeira
tropical, eram longas e cruelmente pesadas, e tinham que ser
empilhadas com precisão, em pares ou em grupos de quatro, sobre
vigas colocadas entre elas, para que não caíssem e formassem
pilhas bem ventiladas.
A propósito, hoje em dia só raramente chamo meu irmão mais
velho de Tilbert e quase nunca de Till, mas sim de Filberer.
Quando ele me visitou no Peru na fase de pré-produção de Aguirre,
em 1971, uma companhia aérea doméstica emitiu por engano a sua
passagem em nome de Filberer Herzog, em vez de Tilbert Herzog,
e nós o chamamos assim de brincadeira, e o nome pegou de uma
maneira curiosa. Mais tarde, numa situação extrema, ele salvou o
filme com um empréstimo, mesmo presumindo que nunca mais
veria o dinheiro. Mas na verdade eu paguei o dinheiro de volta,
como todas as dívidas que já tive. Naquela época, fiz com Till uma
viagem de Lima direto para os Andes. Originalmente, Aguirre
começaria em grande altitude, numa geleira, um cordão de
homens e animais passando ao longe, conquistadores espanhóis e
escravizados indígenas acorrentados, alpacas e uma vara de porcos
pretos, mosquetes, canhões e liteiras. Os porcos, atacados pelo mal
da montanha, deveriam cambalear ao longo da trilha em zigue-
zague, para isso eu pretendia fazer testes com um veterinário, que
acabaram não acontecendo. Eu estava procurando uma geleira que
fosse bastante perto de uma estrada transitável para facilitar o
trabalho, e Till e eu subimos de carro em três horas, sem paradas,
do nível do mar em Lima até o Passo del Ticlio, a quase 5 mil
metros de altitude. Lá em cima, havia começado a nevar, e
estávamos terrivelmente indispostos com o mal da montanha.
Decidimos continuar a busca pela geleira, descendo de volta por
um atalho ruim, porém quanto mais avançávamos, mais
chegávamos a trechos que eram quase intransponíveis, com
deslizamentos de lama que haviam inundado ou desbarrancado
parte da estrada. A neve caía cada vez mais cerrada, mas por fim
avistamos um vilarejo encolhido entre as montanhas e ali
pretendíamos nos refugiar. Mas assim que chegamos à praça do
lugar, fomos cercados por uma multidão furiosa. Homens batiam
no carro com os punhos. Atrás de nós, notei que o acesso ao local
ia sendo bloqueado com pedras pesadas; à nossa frente, na saída,
também grandes pedras eram roladas sobre o caminho. Descemos
porque, pensamos, era mais perigoso ficar no automóvel. Fomos
puxados para lá e para cá, mas permanecemos totalmente calmos.
Alguns dos homens, falantes de quíchua, entendiam espanhol e,
tanto quanto era possível no meio naquele tumulto furioso, tentei
compreender o que estava acontecendo. Até hoje não está de fato
claro para mim o que levou àquela situação, mas, pelo que pude
filtrar dos fragmentos dos gritos, parecia ter a ver com um acidente
numa mina localizada ali perto, no qual haviam morrido
trabalhadores indígenas. Ao que tudo indicava, estávamos sendo
tomados pelos engenheiros responsáveis pela operação da mina.
De alguma forma, porém, os enfurecidos habitantes da aldeia
enfim perceberam que nada tínhamos a ver com o assunto e nos
escoltaram até a venda, onde queriam beber pisco conosco pela
reconciliação. Mas não tínhamos vontade de beber, estávamos nos
sentindo miseravelmente mal, com náuseas, e, ainda por cima, eu
estava com uma dor de cabeça terrível. Como compensação, nos
puseram num catre de palha e trouxeram duas jovens mulheres.
“Nesses cavalinhos vocês podem montar a noite toda”,
comunicaram-nos. Era uma imagem estranha, que ficou gravada
para sempre na minha memória. À nossa frente, estavam em pé as
duas mulheres, vestidas com saias grossas de várias camadas,
descalças. O frio não parecia incomodá-las. Elas tinham nas
bochechas o rubor intenso das pessoas que vivem em altitudes
muito elevadas. Ambas usavam o chapéu-coco característico das
mulheres quíchuas. Elas tinham tirado esses chapéus e os
seguravam no alto, com os braços estendidos. Assim ficaram por
um bom tempo, estatuescas, como se esculpidas numa outra
realidade. Eu não entendia nem um pouco essa manifestação de
algo que era diferente, estava excluído da realidade ao meu redor,
mas assim mesmo me vi profundamente imerso em seu enigma.
Nas últimas séries do Gymnasium, fui arrastado para lá e para
cá entre duas classes paralelas, uma católica e a outra protestante.
Isso tinha a ver com a minha conversão ao catolicismo, mas
também com o fato de eu não seguir à risca o calendário letivo.
Num ano no qual meu irmão estava já começando sua vida
profissional, viajei de carona com ele para o norte da Alemanha. Lá
nos separamos e eu voltei às aulas em Munique só algum tempo
depois, mais de uma semana após o início das aulas. Nesse meio-
tempo, morei em galpões de jardim que eu invadia e, uma vez, em
Essen, numa mansão vazia que abri com meus “instrumentos
cirúrgicos”. Uma outra vez, estiquei as minhas férias de verão em
mais de um mês, na época eu tinha dezessete anos. Tinha ido me
encontrar com a minha então namorada na Inglaterra, onde, em
Manchester, junto com quatro nigerianos, três adultos e uma
criança, e três indianos de Bengala, adquiri por relativamente
pouco dinheiro uma cota de um sobrado de tijolos no bairro
operário em torno da Elizabeth Street. Por um curto período de
tempo, fui proprietário de um quarto. A casa inglesa estava
bastante aban­donada, tinha lixo volumoso no quintal, e eu cacei
muitos ratos na chaminé. Em ambos os casos, minha mãe me
apoiou e escreveu justificativas à direção da escola, dizendo que eu
estava com pneumonia. Mas, como na segunda vez minha classe
havia aceitado outro aluno em meu lugar e com isso ficado lotada,
fui piedosamente incluído na classe paralela dos protestantes. Hoje
sou grato por isso, pois nessa classe eu ganhei dois amigos que
foram importantes para mim. Um deles era Rolf Pohle, que era
muito musical e tocava violino. Ele sofreu por anos, não na pele,
mas nas profundezas de sua alma, de uma acne severa. No futebol,
ele era um defensor obstinado e perigoso, um terrier que o
adversário driblava e então, nem dois passos adiante, já tinha de
novo à sua frente. Mais tarde, Rolf estudou direito e foi se
deslocando cada vez mais para a esquerda. Em 1967, tornou-se
presidente da AstA* na Universidade Ludwig Maximilian em
Munique e, em 1968, organizou manifestações na cidade durante
os chamados tumultos da Páscoa,* contrariando a proibição
policial. Isso lhe rendeu um processo judicial e a expulsão da
faculdade de direito pouco antes do exame final. O que o
radicalizou definitivamente. Ele aderiu ao grupo Baader-Meinhof, à
RAF,* e foi para a clandestinidade. Era Rolf, pois tinha uma licença
válida de armas de fogo, quem arranjava as pistolas para ações
violentas. Para mim, ele desapareceu completamente por um
tempo, até que causou, num inverno, um acidente na estrada perto
de Augsburg. Ele fugiu por um campo de neve e voltou a
desaparecer, mas acabou sendo preso no final de 1971. Estive em
seu julgamento em Munique, que durou meses e foi realizado sob
estritas medidas de segurança. Os meus dados pessoais sem dúvida
foram parar nas listas de simpatizantes suspeitos da RAF, com a
qual eu não tinha absolutamente nada a ver. Depois o visitei
também na penitenciária de Straubing, onde ele cumpria a pena de
seis anos a que fora condenado. Eu conhecia a prisão de muito
tempo antes, porque quando tinha quinze ou dezesseis anos
pretendia fazer lá meu primeiro filme, o que felizmente acabou não
acontecendo. O roteiro, do qual me deparei há pouco tempo com
alguns fragmentos, é de uma estupidez difícil de compreender. Eu
era mesmo aquilo? Para visitas a Straubing, havia altas barreiras
estabelecidas pelo aparato de segurança, Rolf Pohle ficou
completamente isolado num desumano confinamento solitário por
mais de um ano.
Foi no final desse isolamento que me foi permitido vê-lo. Levei
para ele uma pequena bola de borracha dura, dessas que quicam
absurdamente. Costumávamos jogar uma bola assim contra uma
parede no pátio de nosso Gymnasium e, antes de podermos pegá-
la, ela tinha que quicar no pavimento de pedras irregulares à nossa
frente. As bolas quicavam feito loucas, imprevisivelmente em
qualquer direção e, para pegá-las, era necessário desenvolver,
como um goleiro de hóquei, uma capacidade de reação fenomenal.
Prevendo contrariedades, solicitei na comporta de segurança da
penitenciária que a bola fosse radiografada para que vissem que ela
não continha nada em seu interior além da sua própria e curiosa
massa. Dois agentes da polícia criminal, que nos acompanharam de
perto durante todo o encontro e fizeram anotações sobre nossa
conversa, sabiam exatamente o que eu tinha levado, que era apenas
uma bola. Eles também sabiam que a bola de fato poderia ser útil
para Rolf em seus passeios solitários no “pátio”, um estreito
quadrado de concreto coberto por uma tela de arame. Apesar
disso, ela foi confiscada sem maiores explicações. Também não
pude realmente falar com Rolf. Quando se sentou à mesinha na
minha frente, ele estava com algemas e correntes nos tornozelos e
teve dificuldades vocais, pois não conversava com ninguém havia
um ano. Ele falava muito alto para a curta distância, eu logo disse
isso a ele, mas só no último minuto do nosso encontro ele chegou
ao volume certo. Além disso, em vez de conversar, ele quase
exclusivamente me lançou slogans políticos. Não sabia mais o que
era manter contato visual.
Depois seus anos de detenção ainda viriam a aumentar. Ele
estava na lista dos seis prisioneiros que foram libertados em troca
do político berlinense Peter Lorenz, em 1975. Lorenz havia sido
sequestrado pelo Movimento Dois de Junho, apoiado pela RAF, e a
troca aconteceu de fato, e Rolf foi levado com os outros
prisioneiros libertados para Aden, no socialista Iêmen do Sul.
Contudo, no avião, antes da partida, quando os libertos receberam
dinheiro, ele teria exigido um valor maior do que o combinado,
pelo menos foi o que se disse mais tarde. Isso logo lhe rendeu mais
alguns anos de prisão, pois foi interpretado como chantagem
quando o recapturaram na Grécia e a Alemanha forçou sua
extradição. Nunca voltei a vê-lo. Quando ele saiu da prisão em
1982, eu estava viajando em algum lugar do mundo. Ele foi embora
da Alemanha e obteve autorização de residência na Grécia
casando-se com sua advogada grega. Ouvi dizer que ele estava
muito doente. Ele morreu em 2004, em Atenas, oficialmente de
câncer, extraoficialmente de aids.
Meu outro amigo na classe dos protestantes teve importância
fundamental para o meu desenvolvimento interior. Seu nome é
Wolfgang von Ungern-Sternberg von Pürkel. Eu nunca o havia
notado realmente durante os primeiros anos, porque ele estava na
classe paralela e faltara durante muitos meses por motivo de
doença. Ele era alto, muito magro, com uma marcante cabeça
asceta, que sempre se projetava para a frente como numa ave de
rapina. Era uma dessas pessoas antenadas que são capazes de
compreender espontaneamente processos complexos e engendrar
pensamentos ousados a partir daí. Wolfgang pode ser visto como
ator em vários de meus primeiros filmes. Ele e seu irmão Jochen,
que também era da nossa classe, provinham de uma casa pastoral
protestante nas imediações do Gymnasium. Todos os quatro filhos
dessa família eram muito talentosos. Jochen, um pouco mais novo,
destacava-se em todas as disciplinas, mas ao contrário do irmão,
era tranquilo e reservado, um garoto discreto e profundo. Ele se
tornou um jurista, fez uma carreira brilhante e tornou-se na época
o mais jovem juiz do Tribunal Federal de Justiça. Wolfgang, por
sua vez, era genial e não se importava em não ser igualmente
excelente em todas as disciplinas. Nunca encontrei em ninguém
algo comparável à sua profunda compreensão da literatura. Aos
dezesseis anos, era ele quem conduzia as aulas de alemão, por
assim dizer. No começo da aula, Wolfgang costumava pedir a
palavra com uma reverência educada: “Desculpe-me, não vejo
dessa forma, sou de outra opinião”. Exortado a dar a sua opinião,
ele desculpava-se com novas reverências e fazia digressões
brilhantes de improviso, tirando inteiramente suas conclusões das
próprias observações, que nada tinham a ver com as interpretações
padronizadas dos livros didáticos, aos quais em geral não dava
muito valor. Sua fala consistia num encadeamento de frases
complexas, que estariam absolutamente prontas para a impressão.
Quase sempre ele ignorava o sinal do intervalo e continuava a falar
enquanto a classe se esvaziava, o que, mesmo quando não havia
mais ninguém, ele apenas não notava.
Para mim, ele foi uma sorte. Finalmente alguém em quem ardia
a chama da qual eu sentia tanta falta. A Universidade de Munique
reconheceu o seu talento excepcional e permitiu que ele cursasse a
faculdade paralelamente ao Gymnasium. Na época de prestar o
Abitur, o exame conclusivo do Gymnasium, necessário para
ingressar na universidade, ele já havia feito seis semestres do curso
de letras. Mas ele e eu éramos muito diferentes em nossa forma de
atuação, ele argumentava com minúcias e expunha a complexidade
de um pensamento com todas as suas nuances cambiantes e
iridescentes, razão pela qual mais tarde trabalhou em sua tese de
doutorado e depois em sua habilitação como docente durante um
tempo infinitamente longo, enquanto eu tendia a me concentrar
nas linhas gerais e a atacar de frente os problemas. Mas ele era um
entusiasta cuja chama me despertou. Foi em sua casa que também
descobri a primeiríssima referência a Lope de Aguirre para o meu
filme Aguirre, a cólera dos deuses. Foi uma vez que o visitei, mas ele
mal me cumprimentou e correu de volta para o telefone, pois
estava sofrendo de amor. Percebi que dificilmente teria tempo para
mim e comecei a caminhar ao longo de suas intermináveis fileiras
de livros. Escolhi um deles quase ao acaso, pois se destacava como
um corpo estranho. Era um livro para crianças de doze anos talvez,
sobre descobertas. Aparecia Vasco da Gama, Cristóvão Colombo,
mas um parágrafo, um único e curto parágrafo, com menos de uma
dúzia de linhas, atiçou minha curiosidade. A passagem falava de
um conquistador espanhol chamado Aguirre, que havia descido
todo o rio Amazonas em busca do mítico Eldorado. Chegando à
foz do rio, ele rumou para o Caribe e quis usurpar toda a América
do Sul da coroa espanhola. Ele se autodenominava “o grande
traidor”, “o peregrino” e também: “a ira de Deus”.*
Na verdade, nessa época, eu não gostava especialmente de
literatura ou história, mas isso vinha da minha aversão geral pela
escola. Na verdade, sempre fui autodidata, mas assim que terminei
o Gymnasium, matriculei-me em história e literatura na
universidade. Mas os meus estudos eram apenas de fachada, isso
estava claro para mim desde o início, porque já então eu estava
fazendo os meus primeiros filmes e precisava ganhar dinheiro para
poder produzi-los. Do ponto de vista puramente físico, eu quase
não entrava no prédio da universidade, havia semestres em que eu
não dava as caras por lá mais do que duas vezes.
10.
Encontro com Deus

Apesar de eu ter feito amigos na nova classe, a classe católica


também deixou marcas duradouras em minha vida, para muito
além da escola. Meus irmãos e eu crescemos sem religião, como
pagãos, por assim dizer. Nunca me dei conta disso até que, em
Sachrang, o padre local nos xingou de hereges na rua e deu uma
bofetada no meu irmão mais velho. Tínhamos então uns seis ou
sete anos. Ambos os meus pais eram ateus, o meu pai um do tipo
militante. Em Munique, com treze anos de idade, senti uma
espécie de vazio dentro de mim. Era como um anseio por algo
transcendente, elevado, um anseio que me deixava inquieto.
Pessoas próximas, como o meu irmão Till, nunca entenderam
direito o que se passava dentro de mim. Ele achou que eu caíra
ingenuamente na conversa de meu professor de religião na época,
que era um padre católico. Todos o chamavam de “Läben”
[pronúncia divergente de “Leben”, vida], porque ele vivia falando
da “äwigen Läben”, a vida eterna, mas isso seria uma interpretação
muito simplista. Alguns amigos meus também acreditavam que o
meu passo para o catolicismo era um ato de resistência contra o
meu pai, mas essa é uma interpretação muito superficial e um
tanto estúpida, já que minha mãe também era ateia. Meu pai foi
uma figura muito marginal em minha vida, eu me importava muito
pouco com ele para precisar de um gesto de rebeldia que marcasse
a minha autodeterminação. Também nunca foi uma questão de
querer substituir um pai ausente por algo mais elevado, como se
eu tivesse sentido falta do seu amor. É conhecido o fenômeno de
que os meninos — e, claro, meninas também — têm problemas
quando sentem falta de proximidade e amor. Contudo, no meu
caso, e de forma mais ampla no caso da nossa família, tínhamos, ao
contrário, um pai que não era amado. Nenhum dos meus irmãos da
primeira, segunda ou terceira ninhada jamais sentiu afeto por ele, e
também as suas três esposas lhe viraram as costas. No caso de sua
terceira esposa, não posso deixar de supor isso também, porque
ela, junto com minha mãe e Doris, se comportou de maneira um
tanto conspiratória em relação a ele. Também sua irmã o odiava de
todo o coração, e até sua própria mãe, minha avó, nunca falava do
filho Dieter, mas sim do imbecil. Com a idade de catorze anos,
recebi o batismo e, no mesmo dia, fui crismado. Eu era, portanto,
um católico autorresponsável.
Essa etapa custou a superação de grandes obstáculos. Eles
estavam em três âmbitos: na história da Igreja, na estrutura
hierárquica da Igreja e no dogmatismo. A questão da história da
Igreja é bastante fácil de descrever. Eu tinha problemas, por
exemplo, com a Inquisição ou com o fato de a Igreja, na conquista
de outros países e povos, como os do novo continente, sempre ter
ficado do lado dos opressores. Quanto à hierarquia, bem de acordo
com o meu caráter, eu também tinha objeções. Nesse aspecto, eu
teria preferido uma religião como o islã, na qual uma casta de
sacerdotes quase não desempenha um papel, porque nela o
homem — sem nenhum vínculo intermediário — está sozinho
diante de Deus.
Com algumas questões dogmáticas, tive problemas ainda mais
profundos. A questão da trindade me causava dificuldades, porque
nela um deus criador é ladeado por um filho e pelo Espírito Santo.
A Virgem Maria também está inserida, uma quase deusa-mãe, e há
todo um panteão de deuses menores na figura de santos. No final
das contas, se eu tivesse vivido no século IV, teria ficado do lado
dos arianos. De forma resumida, a questão da natureza, da
substância de Deus, foi formulada por Ário, um sacerdote de
Alexandria, da seguinte maneira: Deus é único em sua natureza,
existindo por si mesmo, portanto não depende de mais nada. Ele
está fora do tempo. Seu filho foi criado por ele, e com isso está
inserido no tempo. O Filho, portanto, pertence a uma outra ordem
de existência e desse modo não possui a mesma substância
imutável. No Concílio de Niceia, no ano de 325, o arianismo foi
declarado heresia, mas eu teria me sentido melhor do lado dos
hereges. E também teria me sentido melhor ao lado de outro
pensador que foi declarado herege pelo Concílio de Éfeso, no ano
de 431: Pelágio. Ele é o precursor do livre arbítrio na teologia cristã
do final do século IV e início do século V e argumentou que o
homem é dotado de capacidade moral para não pecar e, portanto,
possui livre arbítrio. Santo Agostinho prevaleceu com a visão de
que o pecado original é uma característica existencial do homem e
que sem a graça de Cristo não poderia haver uma vida sem pecado.
Non possum non peccare — não posso não pecar — ele formulou em
sua famosa máxima. Por isso, eu classificaria o pai da igreja Santo
Agostinho, mais do que Pelágio, como herege. A esse respeito,
também tenho uma observação sobre o papa bávaro Bento XVI, que
foi o chefe da Igreja Católica Romana de 2005 a 2013. Eu gostava
dele por sua profundidade intelectual. Como papa, ele não foi um
bom administrador da Igreja e, em relações públicas, foi um
desastre. Suspeito que tenha renunciado também porque começou
a duvidar de Deus. Em seu discurso em Auschwitz, que é bastante
curto, ele perguntou não apenas uma, mas três vezes: “Onde
estava Deus? Onde estava Deus quando isso aconteceu?”. Ou ele
seria antes alguém dividido, em conflito interior, entre Santo
Agostinho, que declarou que tudo o que Deus havia criado era
bom, e aquele Pelágio? Como Deus pode criar o homem como um
ser caído? Acho que uma parte da minha decisão de me converter
ao catolicismo quando tinha catorze anos teve a ver com o fato de
ser essa a religião da minha terra natal, a Baviera. Ao mesmo
tempo, estava claro para mim que, como membro da Igreja e como
leigo dessa Igreja eu tinha o dever de atuar em prol de correções,
de defender mudanças. Minha fase intensa de religiosidade não
durou muito, dissipou-se, dissolveu-se quase sem que eu
percebesse. Depois de alguns anos, deixei a Igreja de forma
totalmente oficial, embora o dogma católico considere o batismo
uma marca indelével na alma humana. Em teoria, pode-se sair da
comunidade ou até mesmo ser excomungado, mas se permanece
católico para sempre. Também perante esse dogma eu sentia uma
desconfiança profunda.

No começo, porém, houve uma breve fase de verdadeira devoção.


Até hoje tenho dificuldade de entender isso, ainda me espanto. Por
um curto período, também fui coroinha, mas meu irmão Till só
fazia zombar disso, e por fim me dei conta de que daquela maneira
eu acabaria degenerando num mero beato de igreja. Na verdade, o
que eu queria era uma forma mais radical de cristianismo, e assim
acabei me juntando a um pequeno grupo da minha faixa etária, que
minha família chamava de “o Círculo dos Santos”. Sonhávamos
com um cristianismo primitivo idealizado, que naquela forma sem
dúvida era apenas uma ficção. Como modelo contemporâneo,
estávamos muito impressionados com um jesuíta, o padre
Leppich, que entusiasmou um grande número de seguidores em
eventos de rua por toda a Alemanha. Com seu radicalismo,
Leppich foi sobretudo um ponto de partida ideal para pré-
adolescentes. Num exame mais acurado, a sua demagogia me
incomodou. Logo ela me pareceu francamente suspeita, e com isso
a fase da minha própria radicalidade também terminou. O Círculo
dos Santos foi inspirado no movimento alemão Wandervogel* do
início do século XX e fizemos várias jornadas em seu espírito, a
primeira das quais para Ocrida, na fronteira entre Iugoslávia,
Grécia e Albânia. Também começamos nessa viagem a caminhar ao
longo da fronteira albanesa. A Albânia me fascinava. Após a guerra,
ela foi convertida por Enver Hodscha num bastião do comunismo
radical de cunho chinês e, portanto, estava em conflito com a
União Soviética. Naquela época, no final dos anos 1950, o país era
hermeticamente fechado e não concedia visto a ninguém. Era uma
misteriosa terra incognita. Mais tarde estive lá sozinho na fronteira,
mas até hoje nunca pus os pés na Albânia. O país está na minha
lista de desejos, e é provável que continue assim.
Um eco distante de Deus, de algo transcendente, está presente
em muitos dos meus filmes. Até mesmo alguns de seus títulos,
noto, dão insinuações fugazes disso: Cada um por si e Deus contra
todos; Aguirre, a cólera dos deuses; Demônios e cristãos no Novo
Mundo; O sermão de Huie; Fé e moeda e Sinos do abismo, um filme
sobre crenças e superstições na Rússia. Apenas há poucos anos,
em 2017, tive uma conversa pública com o curador Paul
Holdengräber, cuja profunda compreensão dos contextos culturais
aprecio muito, e que foi significativamente intitulada Êxtase e
terror na mente de Deus. Entre outros temas, conversamos muito
sobre a selva amazônica, essa paisagem ainda inacabada, criada em
ira por Deus. Ele ou eu, não me lembro mais para ser exato, um de
nós acabou citando o trecho final do meu livro Conquista do inútil,
sobre o meu retorno aos cenários em que filmei Fitzcarraldo, onde
a ira de Deus era tão imediatamente tangível, que poderia ser a
minha descrição de Deus: “Olhei em volta e, no mesmo ódio fervente,
ali estava a selva furiosa e fumegante, enquanto o rio, em majestosa
indiferença e sarcástica condescendência, a tudo desdenhava: a labuta
dos homens, o fardo dos sonhos e os tormentos do tempo”.
11.
Cavernas

Mas houve um precursor para tais experiências de transcendência.


Foi o momento do despertar da minha alma, digo isso sem receio
de desgastar o termo. Pelo menos, foi o primeiro momento em que
comecei a pensar e sentir de forma independente, para além da
educação e da escola. Na época, eu tinha doze ou treze anos, e já
havíamos mudado para Munique. Passei na frente de uma livraria
sem olhar atentamente para os livros expostos, mas vi algo que,
depois de já ter passado, me fez parar. Voltei. Eu vira de relance
um livro na vitrine, cuja capa exibia a imagem de um cavalo, que
era diferente de qualquer outra imagem que eu já tinha visto. Era
um livro sobre pintura rupestre e a imagem mostrava uma das
famosas pinturas murais de um cavalo da caverna de Lascaux. Eu
me inclinei para ver mais perto e ali, no subtítulo do livro, estava
escrito que ele continha pinturas do Paleolítico, feitas cerca de 17
mil anos antes. Foi uma grande comoção para todo o meu ser. Eu
tinha que ter o livro, mas seu preço não era acessível para mim.
Imediatamente comecei a ganhar dinheiro como gandula numa
quadra de tênis. Toda semana eu passava sem me fazer notar na
frente da livraria, para ver em segredo se o livro ainda estava
disponível. Tive o terrível pensamento de que outra pessoa poderia
tê-lo visto e comprado antes de mim. Fui tomado por uma
profunda inquietação. Devo ter pensado que o livro era único.
Depois de dois meses, eu havia juntado o dinheiro e o livro ainda
estava lá. A emoção que senti ao abrir o livro e folhear as páginas
com imagens nunca me deixou. Muitas décadas depois, tive a sorte
de poder fazer o filme sobre a caverna de Chauvet. Essa caverna só
foi descoberta em 1994 e foi preservada numa perfeita cápsula do
tempo, como se as pinturas não tivessem sido feitas há 32 mil
anos, mas apenas na véspera. Houve grande concorrência pelo
projeto do filme, sobretudo da parte de diretores franceses, todos
bons candidatos, a serem levados a sério, e achei que não tinha
muita chance, pois os franceses, quando se trata de seu patrimoine,
pensam muito territorialmente. Todos os cientistas que
exploravam a caverna eram franceses, sem exceção, e o primeiro
obstáculo foi obter a sua aprovação, e depois então a do governo
local da região de Ardèche. O terceiro obstáculo foi o ministro da
Educação francês, que me recebeu com muita gentileza e no
começo da conversa me explicou de forma totalmente inesperada o
quanto meus filmes o haviam inspirado e impressionado quando
ele era jovem. Antes de sua carreira política, ele havia sido ator,
escritor e diretor, e assistira a meus filmes como crítico. Estava
começando com o seu bem preparado “mas, é uma pena que aqui
tenhamos uma situação…”, quando quebrei o protocolo e o
interrompi. Simplesmente lhe disse que sabia que eu era
competente e que vários outros diretores também o eram, mas que
tinha algo ardendo dentro de mim desde os meus doze anos, algo
que não podia ser apagado. Contei a ele sobre o meu despertar.
Depois disso, o ministro se inclinou para a frente sobre a mesa e
apertou minha mão. “Nem mais uma palavra. É o senhor quem vai
fazer, o senhor vai fazer o filme.” Seu nome é Frédéric Mitterrand,
sobrinho do ex-presidente. Por uma questão formal, e presumo
que também para proteger os interesses da República Francesa,
tive de estabelecer uma relação de emprego com o Estado. Quais
eram minhas pretensões quanto à remuneração, perguntou
Mitterrand. Eu respondi: “Um euro e, quando receber, doarei esse
euro à República”. O filme é o único que fiz em 3D, A caverna dos
sonhos esquecidos, de 2010. Para mim, um ciclo se completara.
As restrições à filmagem eram quase sufocantes. Como em
Lascaux os visitantes, em número de até 100 mil por ano, haviam
contaminado a caverna com sua respiração e suas exalações, agora
em Chauvet todos queriam fazer a coisa certa. Em Lascaux, um
fungo havia se alastrado sobre os pigmentos e estava corroendo
sistematicamente os murais. Por essa razão, Lascaux foi
categoricamente fechada, assim como uma série de outras
cavernas, como a de Altamira, na Espanha. A caverna de Chauvet
fora soterrada e, por assim dizer, “lacrada” com a queda de uma
rocha há cerca de 28 mil anos e, desde então, a atmosfera do
interior permanecera inalterada. A porta de aço pesada e altamente
segura na entrada devia ser aberta e fechada o mínimo possível.
Para as filmagens, apenas podíamos abri-la e fechá-la com
brevidade, uma vez para entrar e outra para sair de vez. Só
podíamos levar conosco o que fôssemos capazes de carregar junto
ao corpo. Incluindo a mim, podíamos ser no máximo quatro
pessoas e trabalhar dentro da caverna por quatro horas apenas uma
vez por dia, e isso durante menos de uma semana. Só podíamos
nos mover sobre uma passarela de metal com cerca de sessenta
centímetros de largura, e nosso equipamento de iluminação não
podia irradiar calor — todas essas, medidas completamente
lógicas. Não podíamos contar com apoio que viesse do lado de
fora, porque para isso a porta de aço teria de voltar a ser aberta.
Nós mesmos montamos uma câmera 3D bem pequena, na verdade
eram duas câmeras, do tamanho de caixas de fósforos, conectadas
em paralelo. Naquela época, ainda não existiam equipamentos em
miniatura, e o armazenamento digital de dados era muito
complexo. Digo isso porque as circunstâncias exigiam uma equipe
de qualidades excepcionais, em que, por via das dúvidas, cada um
tinha que estar em condições de assumir o trabalho do outro. Essa
equipe era formada pelo cinegrafista Peter Zeitlinger e seu
assistente Erik Söllner, ambos austríacos, profissionais
determinados, fortes e competentes, e o guru digital Kaspar Kallas,
da Estônia. Kaspar já dirigira os seus próprios filmes, desenvolvera
partes cruciais do software para Avatar, de James Cameron, e
também era um excelente cinegrafista. Eu mesmo fazia a luz, quase
sempre com um painel plano portátil, e também o som, quando
gravávamos conversas com os pesquisadores. Toda vez, minutos
antes de entrar na caverna, conferíamos metodicamente nosso
material, como os pilotos num avião de passageiros verificam suas
checklists, mas num dos dias de filmagem, na íngreme descida
para o nível mais profundo da caverna, uma bateria para os dados
pifou. Ela estava com uma tensão fora do normal, à qual não era
possível conectar nada. O que fazer? Subir de volta à superfície
significaria abrir a porta. Isso seria o fim do precioso dia de
filmagem após somente alguns minutos. Os três membros da
equipe desenvolveram um plano: ajoelhados na estreita passarela,
eles desmontaram um cinto de bateria. As únicas ferramentas que
tínhamos eram uma fina chave de fenda e um canivete suíço, e eu,
como figurante, segurei uma lanterna para os três durante a
operação. Em menos de uma hora, eles haviam montado sua
própria bateria e pudemos dar início às filmagens. Menciono isso
porque sempre tive equipes técnicas de excepcional qualidade,
dispostas a enfrentar sem hesitações qualquer obstáculo que
aparecesse em seu caminho. Dentro da caverna as condições eram
realmente delicadas. Na verdade, se fosse possível, não se deveria
nem respirar, o sopro de um espirro teria removido finos depósitos
de pó de carvão das imagens, que eram em parte pretas. Em certo
ponto, havia uma pegada de criança no solo arenoso; na verdade,
eram duas pegadas, pois em paralelo corria o rastro de um lobo. De
fato, em tempos pré-históricos, transitavam pela grande entrada da
caverna tanto humanos quanto animais de grande porte, sobretudo
uma espécie de urso das cavernas, hoje extinta, que ali hibernava.
Não podíamos nos aproximar dos rastros, mas a ideia me faz
pensar ainda hoje: um lobo seguiu uma criança, ou eles andaram
lado a lado, como amigos, ou, ainda, teria o lobo deixado seu rastro
somente centenas ou mesmo milhares de anos depois? O incrível,
no caso de algumas das pinturas rupestres, é que foi encontrada,
por exemplo, uma imagem de um mamute ou um rinoceronte
lanudo, que só foi terminada num momento muito posterior. Com
base na sedimentação do radiocarbono dos isótopos de imagens
feitas a carvão, foi possível determinar com bastante precisão que
um quadro foi iniciado por um pintor e então, mais de 5 mil anos
depois, terminado por um outro, tal como se o quadro tivesse sido
iniciado numa época ainda anterior aos primeiros faraós e
concluído por uma pessoa do nosso tempo.
Sempre me fascinou a forma como às vezes das profundezas do
tempo vem à tona uma memória coletiva. Por que desejamos
“saúde” ou “que Deus o proteja” quando alguém espirra, mas
nunca dizemos isso quando alguém tosse? É provável que esse seja
um eco das epidemias de peste, nas quais as pessoas que se haviam
infectado apresentavam espirros inespecíficos como primeiro
sintoma. Por que, em muitas culturas, os cemitérios são cercados?
Presumivelmente, isso vem de tempos arcaicos, quando se queria
manter apartados os espíritos malignos dos mortos. De onde vem
o costume que existe entre os recém-casados em muitas culturas
de o noivo passar pela soleira da porta da casa carregando a noiva?
Suponho que seja um resquício dos tempos primitivos em que era
costume os homens raptarem mulheres, como ainda nos
primórdios da Roma antiga com o rapto das mulheres sabinas. O
grande épico Kalevala, da Finlândia, que remonta a antigas
tradições orais, também descreve um desses raptos. Na caverna de
Chauvet, vi documentadas duas dessas estranhas reminiscências,
que considero muito impressionantes. Há ali a imagem de um
bisão galopando na qual o pintor paleolítico quis representar o
dinamismo do movimento. O bisão tem oito patas. Trinta mil anos
depois, na poesia medieval do Edda islandês, encontramos uma
descrição do cavalo do deus mais importante, Odin. Esse cavalo,
chamado Sleipnir, é o mais rápido de todos porque galopa sobre
oito patas.
E mais: nas profundezas da caverna de Chauvet, há uma rocha
suspensa, mais ou menos na forma de uma pinha gigante. Ali se
encontra a única representação humana na caverna: a parte inferior
de uma mulher nua sendo abraçada pelos cascos de um bisão
macho. Trinta mil anos depois, Picasso fez uma série de litografias,
Minotaure et femme, como se tivesse se inspirado na caverna de
Chauvet. Mas Picasso — de quem pessoalmente não sei muito —
já estava morto bem antes de a caverna ser descoberta. De
qualquer maneira, eu me pergunto se não há nas famílias uma
memória que permanece oculta. Ou, dito de outra forma: há
imagens que estão adormecidas em nós e só se libertam de seu
sono por algum tipo de estímulo? Acho que sim e, de alguma
maneira, em todo o meu trabalho, estive em busca dessas imagens,
sejam os 10 mil moinhos de vento na ilha de Creta, que constituem
a imagem central do meu primeiro longa-metragem, Sinais de vida,
ou o navio a vapor sendo arrastado morro acima, a metáfora central
do meu filme Fitzcarraldo. Sei que é uma grande metáfora, mas do
quê não sei dizer.
12.
O vale dos 10 mil moinhos de vento

Eu literalmente esbarrei nos moinhos de vento de Creta. Isso


aconteceu em uma das minhas primeiras viagens, mas não tenho
mais certeza da sequência temporal. Com certeza, eu estive na ilha
uma vez já no final do período escolar, com os meus amigos do
Círculo dos Santos, mas nessa ocasião ficamos mais na parte
central e ocidental de Creta, em Retimno, Chania, e no lado sul,
em Chora Sfakion. E eu estive lá novamente em minha busca por
pistas do meu avô Rudolf, acho que logo depois do meu exame de
conclusão do Gymnasium. Eu tinha amigos gregos de Creta em
Munique, com quem começara a falar em grego moderno. No
verão, depois do final das aulas, juntei-me a um comboio de
caminhões usados que tinham sido comprados em Munique, cada
um dos quais carregava um ou dois automóveis na carroceria. O
objetivo era levá-los via Atenas numa balsa para Creta e lá vendê-
los. Eu contribuíra com algum dinheiro e sabia que com o negócio
ganharia o suficiente para chegar até a África. Ainda me lembro de
sair de Munique e tomar a estrada em direção a Salzburgo
dirigindo o último veículo do comboio, à minha frente ia um
agricultor cretense mais velho, que nunca havia dirigido num
trecho tão reto. Ele serpenteava pela estrada, como se viajasse
pelas estreitas vias sinuosas da sua ilha natal.
Quando finalmente chegamos a Creta, ele me convidou para me
hospedar em sua aldeia, Ano Archanes. Fui acomodado no quase
sempre desabitado “salão nobre”, usado apenas para ocasiões
oficiais, casamentos e velórios. Eu dormi lá no chão. Quando as
persianas das janelas foram abertas, notei algo borbulhando no
chão de madeira, como num espumante… À contraluz ficou claro
que se tratava de pulgas, em enorme quantidade, que suportei sem
reclamar para não constranger meus anfitriões. Ano Archanes fica
numa das primeiras subidas em direção à montanha mais alta da
ilha, o Psiloritis, antigo monte Ida, a sede de Zeus, o pai dos
deuses, e em cujas encostas andei com alguns jovens da ilha
caçando perdizes e cabras selvagens. Não faz muito tempo, dei
com uma foto antiga na qual estou segurando uma espingarda.
Uma perdiz está presa ao meu cinto e tenho um lenço enrolado na
cabeça para me proteger do sol. Estou de perfil, provavelmente
para mostrar a perdiz virada para a câmera. Naquela época eu me
tornara um jovem atlético, mas pouco depois, na África, fiquei
doente e emagreci de maneira assustadora. Há uma outra foto
minha em Creta na qual estou montado num jumento que eu havia
alugado por algumas semanas. Chamei-o de Gaston — não consigo
me lembrar por que esse nome, nem mesmo com muito esforço,
embora me recorde de que na época lhe atribuí grande
importância. Atravessei quase toda a ilha alongada a pé, mas não
pela costa, e sim pelas montanhas de seu interior. Eu ia
acompanhando o trote do jumento, que carregava água e alguns
mantimentos. Eu estava totalmente sozinho e percebi que havia
me tornado um adulto independente. Quando Gaston descansava,
eu também descansava; quando, depois de algum incentivo, ele
decidia andar, eu também andava. Chegando a um ponto avançado
no leste da ilha, atingi uma borda no terreno montanhoso a partir
da qual a rocha descia em despenhadeiro. Inesperadamente, do
nada, vi de um instante para o outro um amplo vale abaixo de mim,
que estava preenchido por muitos milhares de moinhos de vento,
todos eles em movimento, com suas velas brancas de lona
estendidas, como se diante de mim se estendesse um grande
relvado todo coberto de flores a girar enlouquecidas, um campo de
margaridas alvoroçadas. Nenhuma aldeia, nenhuma casa, apenas os
moinhos de vento. Como se atingido por um raio, eu me sentei.
Eu sabia que não podia ser, aquilo não podia existir. Fiquei
chocado por ter enlouquecido, pois a aparição simplesmente não
se deixava espantar como a uma miragem. Lembro-me de ter
pensado que era muito cedo. Quando eu for velho como o meu
avô, é provável que vá chegar a hora em que vou ficar louco. Mas
isso aqui está cedo demais. De alguma forma eu me recompus,
quando de repente ouvi chiados e rangidos suaves vindos da
planície. Seria possível que fosse realidade? Seria possível que eu
ainda fosse senhor dos meus sentidos? Por fim desci e, vistos de
perto, eram de fato moinhos de vento, todos eles bombeando água
subterrânea para irrigar a planície. A planície era chamada de “vale
dos 10 mil moinhos de vento”. Havia apenas um ano, o prefeito da
aldeia vizinha de Lassithi me escreveu perguntando se eu apoiaria
os esforços para restaurar os moinhos de vento em sua forma
original. Todos haviam sido desmontados e substituídos por
motores elétricos, que agora bombeavam a água.
Apenas três anos depois, escrevi o roteiro de Sinais de vida. O
protagonista, um soldado alemão ferido na cabeça na Segunda
Guerra Mundial, é destacado com dois camaradas para guardar um
forte, no qual, para espantar o tédio, eles produzem fogos de
artifício com a pólvora de granadas. Numa saída de
reconhecimento nas montanhas da ilha, a patrulha chega bem ao
local de onde avistei os moinhos de vento pela primeira vez. O
soldado enlouquece ao ver os moinhos de vento e abre fogo. Do
forte, ele ataca horizontalmente o porto e a cidade com fogos de
artifício, declara guerra a Deus e o mundo e, por fim, ao próprio
sol nascente. No final, ele precisa ser contido por seus próprios
companheiros. O núcleo dessa história foi inspirado numa novela
de Achim von Arnim, O inválido louco, mas o meu roteiro foi em
outra direção. Lembro-me de que a novela começa com um velho
major que perdeu uma perna e conta a história junto à lareira. Ele
fala com tamanha excitação, que não percebe que sua perna de pau
está pegando fogo.
Há uma série de motivos recorrentes em meus filmes que quase
sempre remontam a experiências diretas da vida real. Em regra,
filmes não são adequados para fantasias abstratas. Houve muita
especulação sobre o carro vazio e sem motorista no meu filme
Também os anões começaram pequenos (1970), que rodava em círculos
sem razão. Existem vários desses motivos circulares em outros de
meus filmes, e a origem disso remonta à época em que eu tinha
dezessete ou dezoito anos. Eu trabalhava no turno da noite como
soldador, o que não era mal pago, pois havia adicionais para os
turnos noturnos, e durante o dia eu tinha que estar na escola, que
em minha sonolência cansada eu apenas percebia de forma vaga.
Também havia adicionais de periculosidade, porque o soldador
estava o tempo todo exposto a partículas de metal incandescente
que flutuavam pelo ar ao redor. Eu trabalhava com um avental de
couro, mas na madrugada a minha atenção diminuía e pedaços de
metal em brasa rolavam do avental, e não era raro que pequenas
partículas, numa temperatura acima de mil graus, entrassem nos
meus sapatos pelas laterais. A dor era de subir nas paredes, mas
todas as vezes, até conseguir tirar o sapato do pé, eu já tinha
sofrido queimaduras. Durante esse período, sempre havia bolhas
nos meus pés.
Interrompi esse trabalho como soldador na época da
Oktoberfest de Munique para trabalhar como guarda do
estacionamento. Ali era possível ganhar muito bem. Durante os
dezesseis dias da festa, o local é tomado por muitas centenas de
milhares de visitantes, mas naquela época, deve ter sido 1959 ou
1960, uma parte menor da área destinada à festa não estava coberta
por montanhas-russas, carrosséis, estandes de tiro e barracas de
cerveja, mas nela havia um gramado que ficava aberto para o
estacionamento dos automóveis. O trabalho ali era lucrativo,
porque alguns amigos meus haviam desenvolvido um método para
vender duas vezes os bilhetes de estacionamento. Tínhamos que
destacar cada um dos bilhetes dos blocos que vinham com uma
centena deles, mas inventamos um truque para juntá-los de volta.
Uma parte do bilhete era destacada e posta sob o limpador do para-
brisas, a outra parte ficava com os donos dos carros. Nós
simplesmente dizíamos aos motoristas que eles tinham que nos
devolver a sua parte do bilhete, à noite passávamos a ferro as duas
partes, que quase sempre estavam amassadas, e as juntávamos
numa única peça. Assim vendíamos os bilhetes uma segunda vez,
nós os chamávamos de dúplices, às vezes vendíamos até mesmo
tríplices. Por volta das 22 horas, as barracas paravam de servir
cerveja e por volta de meia-noite, a área da festa costumava estar
completamente vazia. Durante essas duas horas, todas as noites, o
trabalho como guarda de estacionamento ficava mesmo difícil. Na
época, dirigir embriagado era considerado apenas um pecadilho,
ainda não havia cinto de segurança e os semáforos não eram lá
muito disseminados. Mas a partir das 22 horas, o trabalho consistia
apenas em lidar com bêbados, às centenas, por vezes em carros
apinhados deles, todos completamente grogues. Esses grupos, que
lotavam os carros e rachavam a gasolina, eram quase sempre
agressivos, falavam aos berros e podiam ser perigosos. Às vezes, eu
era simplesmente empurrado pelos carros quando tentava pará-los
e convencer seus ocupantes a tomarem um táxi. Na verdade, era
uma responsabilidade grande demais para mim, um ginasial. A
polícia nunca aparecia, pois já estava muito ocupada com as brigas
e com os bêbados inconscientes. Em alguns casos, em que os
motoristas estavam tão bêbados que cada metro a mais significava
risco de vida para eles e para outras pessoas, eu pedia a chave da
ignição, mas era quase sempre uma causa perdida. Por isso, eu
tinha que alcançar as chaves pela janela aberta com algum pretexto
e pegá-las rapidamente. Alguns tentavam me bater quando eu me
enfiava pela janela. Uma vez um deles mordeu o meu braço. Um
outro arrancou um tufo do meu cabelo. Tirávamos os motoristas
imprudentes dos veículos e os deitávamos um ao lado do outro na
grama. Então em geral eles adormeciam. Só muito depois da meia-
noite apareciam os policiais, aos quais eu entregava as chaves dos
carros. Os bêbados eram então levados para celas de curar
bebedeira. Antes de isso acontecer, quando estava entediado, eu
costumava experimentar alguns dos carros. Acho que ainda não
tinha carteira de motorista, por isso apenas andava em círculos no
terreno vazio da feira, sem ousar dar um passeio pelas ruas. Uma
noite, descobri um cabo de borracha com ganchos num dos carros.
Girei o volante o máximo possível e o prendi com o cabo nessa
posição e então me deixei conduzir em círculos, sem ter que
dirigir. Depois tive a ideia de fazer peso sobre o acelerador com
uma pedra e apenas saí do carro. A partir de então, muitas vezes à
noite eu tinha um carro vazio rodando em círculos sem parar, às
vezes dois. A imagem me marcou profundamente.
De tais profundezas insondáveis, sempre emergiram elementos
da minha história. Certa vez, numa entrevista, minha mãe me
descreveu da seguinte maneira: “Quando estava na escola, Werner
nunca aprendia nada. Nunca lia os livros que tinha que ler; nunca
estudava. Parecia que nunca sabia o que precisava saber. Mas, na
realidade, Werner sempre sabia de tudo. Seus sentidos eram notáveis.
Ele era capaz de ouvir o som mais discreto e, dez anos depois,
lembrava-se dele com exatidão. Então ele falava a respeito e usava isso
de alguma forma. Mas Werner é totalmente incapaz de explicar
qualquer coisa. Ele sabe, ele vê, ele entende, mas não sabe explicar
nada. Não é a sua natureza. Tudo entra nele. Quando algo volta à
tona, aparece de uma forma diferente”. Não é fácil citar a própria mãe,
e receio ter que concordar com ela em tudo. Agora acho que já sei
explicar algumas coisas. Mas tenho uma profunda aversão à
introspecção em excesso, à contemplação do próprio umbigo.
Eu também preferiria estar morto a ir a um psicanalista, porque
sou da opinião de que ali ocorre algo fundamentalmente errado. Se
uma casa tem uma iluminação muito clara até o último canto, ela
É
se torna inabitável. É o mesmo com a alma, iluminá-la até sua
sombra mais escura torna as pessoas “inabitáveis”. Estou
convencido de que a psicanálise — junto com muitos outros erros
terríveis da época — tornou o século XX terrível. Considero o
século XX um erro em sua totalidade.
13.
Congo

O período logo após a escola também foi importante num outro


aspecto. De Creta, peguei um navio para Alexandria. Escolhi a
classe mais barata no convés aberto para que o meu dinheiro
pudesse me levar o mais longe possível. Ao entrar no continente
africano, em Alexandria, fui enganado logo de cara. Um oficial de
uniforme me cobrou cerca de dez dólares por taxas de ingresso no
país e me deu um recibo. Somente depois de pagar é que percebi
que ninguém mais precisou acertar essa taxa. Os egípcios nem
teriam por quê, mas alguns gregos também só riram do vigarista. A
partir daí fui mais cuidadoso. O Egito está envolto como se por um
véu em minha memória. Cairo, em seguida de trem ao longo do
Nilo até Luxor e o vale dos Reis. Depois, adiante via Assuã em
direção ao Sudão. Ao sul de Assuã, o Nilo não era navegável por
causa das corredeiras, entre Schellal e Uádi Halfa tive que
contorná-las num caminhão empoeirado. Depois Cartum e
Omdurmã. O que me movia era a curiosidade sobre o Congo.
Apenas um ano antes, em 1960, o país havia declarado sua
independência e estava mergulhado em caos e guerras tribais.
Nenhuma das suas instituições estavam funcionando, não existia
mais um ordenamento jurídico. A isso somavam-se combates entre
as forças de orientação direitista, sob Tshombe e Mobutu, e
socialistas, como Lumumba, que foi assassinado. Na origem do
meu interesse, embora não de forma diretamente transferível,
estava a questão de como a Alemanha após a Primeira Guerra
Mundial pôde ter decaído tão depressa de país cultivado para a
barbárie nazista. As razões no Congo estavam em outro lugar, elas
tinham a ver com as devastações do colonialismo, mas a
decadência concreta dos pilares institucionalizados do
ordenamento era algo que eu queria entender. Como era possível
que o canibalismo se restabelecesse? Também no leste do Congo
haviam surgido figuras políticas como, por exemplo, Gizenga,
Mulele e Gbenye, que não tinham sido educadas pelas elites
ocidentais, mas sim representavam tradições africanas próprias e
originais e forças que se afastavam do espírito europeu, que afinal
havia sido imposto à África.
Mais adiante Nilo acima, não há mais propriamente uma ligação
terrestre atravessando o Sudão do Sul; as inundações e os pântanos
do Nilo tornam a passagem impossível. Voei para Juba num
pequeno avião do correio. De lá, a fronteira congolesa não fica
longe. Ainda me lembro da terra vermelha por toda parte, das
casas, algumas bastante grandes, cobertas de juncos escuros. Em
Juba adoeci imediatamente, era um tipo de disenteria amebiana, e
dei meia-volta depois de um dia apenas e cheguei a Assuã, no
Egito, onde me escondi num galpão de ferramentas de jardim. Eu
não tinha seguro de saúde. Meu estado piorou muito depressa.
Lembro-me de que apesar do calor escaldante, eu usava um
pulôver e tremia de febre. Minha bagagem era mínima, apenas um
saco de viagem não muito cheio. Tive alucinações, eu nadava no
mar aberto, algo me mordeu na dobra do braço. Peixes, talvez um
tubarão? Acordei assustado, e havia um rato correndo do meu
cotovelo direto para o meu rosto. Havia outros ratos ali. Ao esticar
o braço, descobri um grande buraco roído no pulôver, na dobra do
meu cotovelo. Suponho que o rato queria arranjar lã para um
ninho. Descobri também uma pequena ferida de mordida na
bochecha. Ela inchou e o local da mordida ainda supurava semanas
depois e nunca sarava por completo. Minhas fezes eram uma
espuma sangrenta, mas de alguma forma tentei colocar alguma
ordem, alguma estrutura no meu abrigo, deitando-me em folhas de
jornal cuidadosamente abertas. Muitas vezes estive no fundo do
poço na minha vida, às vezes até muito fundo, mas tão fundo assim
nunca voltei a estar. Eu percebi que tinha que sair do galpão.
Apenas me lembro do sol ofuscante do lado de fora e algum
tempo depois alguns homens ao meu redor. Achei que só os via em
minha febre, mas eles falavam alemão. Eram técnicos da Siemens
que na época estavam instalando as turbinas da represa de Assuã. A
barragem em si fora construída por engenheiros da União
Soviética, mas os sistemas elétricos estavam sendo montados por
alemães. Um médico me deu remédios terrivelmente fortes e
cheguei ao Cairo de avião. De lá, comecei o meu caminho de volta
para casa. A minha maior sorte, porém, não foi ter superado a
doença aos dezoito anos, mas sim nunca ter atravessado a fronteira
para o Congo. Em 1992, quando por um curto período dirigi o
festival Viennale, em Viena, levei o escritor e filósofo polonês
Ryszard Kapuściński como convidado. Para mim, ele era quem
havia entendido mais profundamente a África, e era ele também
que, quando jovem, menos de um ano antes de mim, vindo
também por Juba, chegara ao leste do Congo. Lá, no período de
um ano e meio, Kapuściński foi preso quarenta vezes e condenado
à morte quatro vezes. Perguntei-lhe sobre o pior de todos aqueles
dias. O pior dia fora uma semana inteira em que ele passou numa
masmorra, condenado à morte, e soldados bêbados jogavam cobras
venenosas em cima dele. “Em uma semana”, disse Kapuściński,
passando a mão na cabeça, “meus cabelos ficaram brancos.” Seus
cabelos não eram só brancos, eram brancos como a neve. “Ajoelhe-
se agora mesmo diante de mim,” ele me ordenou, “e agradeça a
Deus por nunca ter estado lá.” Além dele, de todos os repórteres,
apenas um voltou vivo.
Na verdade, eu queria fazer um filme de ficção científica com
ele, mas de um tipo diferente. A ficção científica projeta os avanços
técnicos num mundo futuro, ou então são os alienígenas que vêm
até nós para nos destruir com tecnologia superior e armas
futuristas, mas eu — e ele também — estava fascinado com a ideia
de que o futuro possivelmente seria um futuro em que todas as
conquistas técnicas teriam se perdido, assim como depois da
queda do Império Romano se perderam quase todas as inovações
da técnica, da medicina, das ciências, da matemática, da literatura.
Passou-se quase um milênio durante o qual se conservaram apenas
resquícios do conhecimento antigo, escondidos em mosteiros ou
preservados em traduções árabes. A pior de todas as perdas foi o
incêndio da Biblioteca de Alexandria, na qual estava armazenado
todo o tesouro do conhecimento, da literatura e da filosofia da
Antiguidade. Kapuściński e eu imaginávamos um mundo futuro,
que ele concebera integralmente e eu em parte, no qual os
elevadores dos hotéis nunca mais funcionariam e o esgoto se
acumularia em seus poços, no qual os hoteleiros acompanhariam
os hóspedes escadas acima carregando no bolso do casaco uma
lâmpada, que instalariam lá em cima no quarto e teria que ser
devolvida na saída; um mundo no qual haveria engarrafamentos
que durariam dias e somente se chegaria ao aeroporto a pé, onde
delicadas trepadeiras brotariam dos computadores que
supostamente armazenariam os horários dos voos, onde não
haveria gasolina nos postos, onde todo dinheiro em espécie estaria
tão corroído pela inflação que para comprar uma galinha seria
preciso chegar com um carrinho de mão cheio de maços de
dinheiro compactados; um mundo onde, num golpe militar, os
soldados bêbados não conseguiriam fuzilar oficiais do governo
amarrados em estacas, porque errariam a pontaria; mas no final
eles acertariam, primeiro alguns seriam atingidos nos joelhos ou
em outro ponto qualquer, então, depois de mais de uma hora,
todos os ministros estariam por fim mortos; um mundo onde,
quando de repente houvesse água nas torneiras, seria preciso
encher rapidamente todos os potes, vasilhas e até a banheira,
porque os militares bloqueariam o abastecimento de água e depois
venderiam caro a água potável em caminhões-pipa para a
população. Um mundo no qual ninguém mais gostaria de ler e
ninguém desejaria ser informado, a não ser quando se tratasse de
teorias da conspiração das mais grosseiras. Um mundo, portanto,
que não era preciso inventar, que já podia ser observado, que já
existia havia muito tempo. Kapuściński pensava no leste do
Congo, ou no Sudão na fronteira com a Etiópia e o Quênia, ou
numa republiqueta das bananas na América Latina, mas
descartamos tudo isso porque essas regiões, pelo menos na África,
estavam devastadas por guerras civis. Não fazia muito tempo,
enquanto ia num caminhão por uma área coberta de capim-
elefante, Kapuściński caíra numa emboscada e fora baleado. Além
disso, onde quer que filmássemos, sempre estaríamos sob suspeita
de pretender denunciar um determinado país, um determinado
grupo de pessoas. O filme nunca foi feito.
14.
Dr. Fu Manchu

Em meu íntimo, eu estava firmemente convencido de que não


chegaria aos dezoito anos. Depois, quando cheguei a essa idade e
ainda vivia, me pareceu impossível que eu pudesse passar dos 25.
Em consequência disso, comecei a fazer filmes, partindo da
suposição de que além deles nada mais haveria de mim. Portanto,
por que não ter a coragem de encontrar formas que nunca
existiram antes? Últimas palavras, de 1967, com suas infindáveis
repetições compulsivas na narrativa, um curta-metragem em grego
moderno; Fata Morgana, de 1969, para o qual eu filmara miragens
no Saara; temas como em Também os anões começaram pequenos,
igualmente de 1969, talvez meu filme mais radical, em que todos
os atores tinham nanismo. Eu também tinha consciência de que —
por conta do meu quase total desconhecimento do cinema — eu
teria que inventá-lo à minha maneira. Afinal, o mundo nas
montanhas ao redor de Sachrang havia sido em parte um mundo
criado por nós. Inventávamos nossas próprias brincadeiras, e
nossos brinquedos também. Por exemplo, criamos um projétil que
chamamos de “flechador”. Para isso, cortamos de uma grande acha
de faia um pedaço plano, com o qual esculpimos uma flecha de
cerca de um palmo. Embaixo a flecha era plana, mas na parte de
cima era ligeiramente curva, o que lhe dava sustentação no ar
quando arremessada, como acontece com uma asa de avião. Mas
nada sabíamos sobre aerodinâmica. A flecha tinha um gancho em
seu centro de gravidade, e para dispará-la não usávamos um arco,
para isso ela seria curta demais, mas a lançávamos com um chicote;
para isso, havia um ilhós na extremidade da tira do chicote, que era
engatado no gancho da flecha. Era impossível fazer pontaria, a
flecha simplesmente voava para algum lugar, mas planava por
bastante tempo, quase como um frisbee. Nosso flechador ia mais
longe do que qualquer flecha disparada de um arco.
Os dois primeiros filmes na escola em Sachrang, projetados
num lençol, não me impressionaram. O primeiro era sobre
esquimós construindo um iglu, mas logo percebi que eles não
tinham muita ideia de como lidar com o gelo e a neve endurecida.
Acho que era um filme com figurantes que apenas representavam
ser esquimós. O segundo era muito mais interessante, ele
mostrava pigmeus, acho que em Camarões, construindo uma
ponte pênsil com cipós sobre um rio na floresta. A estrutura ia
sendo tramada de forma muito inteligível, uma obra-prima na
categoria. Mesmo mais tarde, quando comecei a ir ao cinema em
Munique, os filmes não me impressionavam em particular, ao
contrário do que acontecia com os meus irmãos e amigos. Quando
me foi revelado o meu destino, no breve período, em torno dos
meus catorze anos, em que me converti ao catolicismo e também
comecei a viajar a pé, eu simplesmente soube que teria que fazer
filmes. Mas demorou um tempo até que eu assumisse de fato a
tarefa, pois já imaginava que seria uma vida difícil. O meu
conhecimento sobre filmagens também era muito limitado. Às
vezes íamos a sessões de filmes como Zorro ou Dr. Fu Manchu, dos
quais havia várias continuações. Também pode ser que com doze
anos eu já tivesse assistido a um faroeste com meus amigos Zef e
Schinkel em Heilbronn. Zef, o daltônico, então reencenou o
confronto final do filme, porque eu tinha duvidado que o mocinho,
um caubói honesto que só queria proteger as vacas dos ladrões de
gado, pudesse ter dado conta de uma só vez de oito vilões que o
cercavam com suas armas. Em tal situação, tinha que haver pelo
menos um capaz de acertar um tiro e acabar com ele. Zef nos pôs
em círculo ao seu redor e se jogou na horizontal para não se
oferecer como alvo, ao mesmo tempo em que, rodopiando no ar os
seus dois colts imaginários, ele disparava contra nós, os bandidos.
A reconstituição de Zef foi impressionante em sua impetuosidade,
mas a coisa nunca me pareceu de todo plausível. Apesar disso,
acreditávamos que o que víamos na tela era realidade. Também
falávamos com a tela. Quando, no cinema em Munique, penas se
espalhavam no alto de uma colina, advertíamos os colonos em suas
carroças gritando: “Os apaches estão chegando!”. Mas um dia,
num filme do Dr. Fu Manchu, notei algo que os outros não tinham
visto. Num tiroteio entre mocinhos e bandidos, um vilão
particularmente desagradável que estava ao lado do Dr. Fu Manchu
foi baleado e caiu de um rochedo. Debatendo-se no ar, ele tombou
nas profundezas. E então, cerca de vinte minutos adiante no filme,
algo estranho aconteceu: em outra batalha, vimos todos os tipos de
personagens — mocinhos e bandidos — sendo baleados. Alguns
haviam se entrincheirado entre os rochedos de um desfiladeiro, e
ali eu vi o mesmo vilão despencar do alto de novo. Agora a ação
fora abreviada, ele aparecia apenas por dois segundos talvez, mas o
homem se debatia com o pé no ar exatamente da mesma maneira.
Ninguém mais vira, mas eu tinha certeza de que era a mesma cena.
Esse foi para mim o momento em que percebi que existiam
tomadas e cortes. Passei a olhar para as coisas de forma diferente a
partir de então. Como uma história era contada, como era criado o
suspense, como tudo aquilo era construído? A propósito, até hoje
só consigo aprender com outros filmes quando eles são ruins. Os
bons eu ainda assisto da maneira como eu via lá no começo. Os
grandes filmes, mesmo se os vejo várias vezes, são sempre um
mistério para mim.
Minha mãe tinha amplas dúvidas se eu deveria fazer filmes. Na
sua opinião, eu era muito retraído e muito tímido. Mas havia em
mim algo que no catolicismo se chama certeza da salvação. Ela me
escreveu quando eu estava viajando, e me aconselhou a pôr os
meus planos loucos em uma base sólida e começar um aprendizado
com um fotógrafo, só assim eu poderia conseguir um emprego
num laboratório, e a partir daí teria uma chance de me tornar
assistente de direção. Ainda não havia escolas de cinema, senão,
presumo, ela teria me aconselhado a cursar uma. De seus tempos
em Geiselgasteig, nos Bavaria-Filmstudios, ela conhecia um
aderecista, que me convidou para passar um dia no estúdio a seu
pedido, a fim de que eu pudesse ter uma ideia de como era a
profissão. No dia da minha visita, estava sendo produzido um
programa de televisão para o ano-novo, que ainda seria dali a
meses, com um animador de fraque branco e cartola branca. Além
de apresentar o programa, ele também cantava e dançava. Assisti a
como esse animador, acompanhado por elfos do balé, estes
também todos vestidos de branco e salpicados com purpurina,
gravava o final do programa. Na música de encerramento, todos os
artistas se afastavam da câmera e se punham a saltitar no fundo do
palco, onde o número do novo ano começava a piscar. O animador,
porém, tinha que se virar para o público no meio do caminho e,
sem parar de dançar, mandar um beijo para a câmera. Ao fazer isso,
ele errou o passo. Por isso, a cena foi repetida umas dez vezes e, a
seguir, houve pelo menos mais dez tomadas, o motivo não estava
claro. A afetação de todos os envolvidos — na frente e atrás da
câmera — era insuportável. Percebi: não era nisso que eu tinha
pensado.
Alguns anos depois, quando eu pretendia fazer curtas-
metragens, veio à baila a questão se eu deveria abrir minha própria
produtora. Para mim, não havia dúvidas. Eu não encontraria
produtores, pelo menos não para o meu tipo de projetos, portanto
tinha que arranjar tudo por mim mesmo. Era por isso que ganhava
dinheiro paralelamente à escola. Houve um momento que ainda
tenho com riqueza de detalhes na memória: uma produtora de
cinema fora receptiva à minha sinopse de um filme, mas eu não
podia de jeito nenhum aparecer por lá em pessoa. Eu tinha pouco
mais de quinze anos, mas fisicamente ainda era uma criança, a
minha puberdade e o meu crescimento só começaram um pouco
mais tarde. As negociações consistiram numa troca de cartas,
depois houve um telefonema. Acho que foi o primeiro telefonema
da minha vida, eu não queria ser visto. Hoje isso é inimaginável.
Mas por fim chegou o momento em que não era mais possível um
adiamento. Aceitei o convite da produtora e fui ao seu escritório de
Munique. Na antessala havia uma pesada câmera pseudoantiga da
década de 1930 num imponente tripé. A secretária olhou para mim
com espanto. Fui convidado para ir até um grande e suntuoso
escritório. Poltronas de couro, uma larga e pesada escrivaninha de
nogueira e, atrás delas, dois homens, os produtores. Ambos
olharam além de mim até o fundo da antessala e esticaram o
pescoço como se houvesse ali alguém que tivesse trazido o seu
filho e ainda não tivesse entrado, mas não havia ninguém atrás de
mim. Demorou alguns segundos até eles se darem conta disso. Eu
quis me apresentar, mas não cheguei a fazer isso, porque um dos
produtores riu alto enquanto batia nas coxas. O outro se levantou e
veio rindo na minha direção: “Ah, o jardim de infância agora
também quer fazer cinema!”. Sem dizer uma palavra, dei meia-
volta e saí. Não desperdicei um só segundo me sentindo magoado.
Apenas pensei: são cretinos que não têm noção de nada. Minha
determinação só se fortaleceu ainda mais dentro de mim. Olhando
para trás, sou profundamente grato ao destino por essa conversa
preliminar não ter dado em nada. Não posso imaginar onde eu
teria ido parar a partir dali; além disso, o meu projeto estava de
todo cru. Eu era como um equilibrista na corda bamba, abismos à
direita e à esquerda, mas segui em frente como se estivesse numa
larga estrada e não num fino cabo.
Fundar a minha própria empresa me parecia cada vez mais
inevitável. Minha mãe via isso com preocupação. Por fim ela
sugeriu que eu procurasse o marido de uma de suas amigas em
Aschau para obter conselho. O homem era um dos grandes
empresários do início da República Federal. O seu nome era
Wagner, professor Wagner; ele ocupara cargos governamentais e
era então, pelo que me lembro, presidente da Mountanunion,
organização que depois evoluiu para a União Europeia. Era um
homem de grande autoridade e uma figura de destaque na vida
econômica, sem dúvida. Wagner me ouviu brevemente e então,
com voz retumbante, me deu uma palestra particular sobre a
complexidade da indústria cinematográfica. Eu não devia estar em
sã consciência, ele disse, por favor, que primeiro eu estudasse
ciências econômicas e, se possível, também direito, para depois
aprender numa grande empresa como funcionava o mundo das
finanças. Ainda me lembro das peles de urso nas paredes da sua
sala de recepção, troféus que ele havia conquistado em caçadas nos
Cárpatos com o presidente da Romênia. Quando saí, meus ouvidos
ficaram zumbindo por um longo tempo. Fundei a minha empresa
apesar disso. Meu pai também tinha ouvido falar dos meus planos.
Ele me escreveu uma carta bem fundamentada na qual manifestava
a sua opinião sobre a situação do cinema internacional, quase só
havia porcarias para ver, e questionava se valia a pena se envolver
com isso. Ele também me disse abertamente que eu sem dúvida
não tinha a assertividade que era necessária nessa profissão.
No ambiente do Instituto de Cinema e Televisão, encontrei
pessoas da minha idade e forma de pensar. Estávamos
determinados a ajudar uns aos outros nos projetos de cada um. O
instituto foi um precursor da Academia de Cinema de Munique e
fui atraído por ele porque lá havia câmeras, equipamentos de som e
mesas de edição. Obtinha-se o equipamento sem custo mediante
solicitação, mas todos os meus pedidos eram recusados, enquanto
eu via como pessoas claramente sem talento sempre conseguiam
câmeras. Nenhum dos companheiros da época se tornou cineasta
de verdade, exceto Uwe Brandner, que em sua origem era músico,
depois fez alguns filmes e por fim se dedicou inteiramente à
escrita. Aprendi o básico sobre o cinema em pouco mais de uma
semana nas cerca de trinta ou quarenta páginas de um dicionário
de rádio, televisão e cinema. Ainda hoje sou da opinião de que não
é necessário mais conhecimento do que isso. É algo como
aprender a datilografar, mas não se aprende a ser poeta com um
curso de literatura. Eu me familiarizei com o funcionamento do
princípio de uma câmera, com o transporte da fita gravada, o que
era uma trilha sonora ótica. Também deduzi, por mim mesmo,
como se produzia a câmera lenta ou a câmera rápida. Mas eu
precisava de uma câmera. Aqueles ainda eram os tempos das fitas
de celuloide e das câmeras mecânicas. Roubei a minha primeira
câmera. Muito se falou e especulou a respeito, e há uma série de
versões diferentes da história. Aqui eu não fui inocente. Mas a bela
ação foi relativamente simples. Eu estava no depósito de
equipamentos técnicos do Instituto de Cinema e Televisão, onde
sempre havia uma pessoa que fazia a manutenção. Um dia, porém,
me deixaram lá sozinho. No começo de fato não percebi. Então,
depois de um tempo, notei o silêncio e olhei em volta. Não havia
ninguém lá além de mim. Numa prateleira havia cerca de quatro ou
cinco câmeras e peguei na mão uma da qual eu gostei. Em seguida,
outra, examinei as objetivas. Como ainda não havia ninguém, fui
para fora com a câmera e foquei alguns objetos distantes. E como
eu estava do lado de fora, de repente tive a ideia de apenas ir
embora. Era uma sexta-feira. Eu pretendia filmar por dois dias no
fim de semana e levar a câmera de volta na segunda-feira. Mas
ainda estava filmando na segunda, e na terça, e simplesmente
fiquei com a câmera. Acho que o instituto nunca deu pela falta
dela. Eu tinha mais o sentimento de expropriação do que de roubo,
ou, dito de outra forma, eu entendia como um direito natural
conferir a uma câmera a sua destinação adequada. Fiz os meus
primeiros curtas com ela, Hércules; Jogo na areia; A defesa sem
precedente da fortaleza Deutschkreutz e Precauções contra fanáticos.
Apenas o meu filme Jogo na areia é uma exceção a essa série. É
sobre alguns meninos de aldeia que arrastam atrás de si um galo
dentro de uma caixa de papelão puxada por um barbante. O filme
não foi suficientemente revisado por mim e é o único que nunca
lancei. Aprendi muito com isso. Fiquei de posse da câmera ainda
por um bom tempo, mas uma vez, numa entrevista, falei demais e
disse que havia feito também vários de meus longas-metragens
com ela. Isso ganhou uma estranha vida própria, como é fácil de
acontecer na mídia. Então eu passei a fazer a minha parte,
confirmando ou negando as histórias cada vez mais mirabolantes.
Naquela época, o meu irmão Lucki estava terminando a escola e
começando a trabalhar numa madeireira com o meu irmão mais
velho. Ele também subiu muito rápido na hierarquia da empresa,
mas se mudou para Essen, e depois para o norte da Alemanha.
Como era sete anos mais novo do que Till e cinco anos mais novo
do que eu, nunca participava dos nossos jogos de futebol e apenas
muito pouco de nossas outras saídas. Durante o seu tempo em
Munique, ele cantou num conhecido coro de meninos e cogitou
brevemente seguir uma carreira musical. Aos dezenove anos, não
estava muito satisfeito com a vida, porque conseguia ver todas as
etapas de sua carreira comercial à sua frente com muita clareza, até
a aposentadoria. Decidiu largar tudo e sair pelo mundo. Ele tinha
um fusca e planejava ir para a Turquia. Eu o aconselhei a estender
os seus destinos de viagem, a lançar a sua rede o mais longe
possível, e então ele realmente seguiu de Anatólia para o
Afeganistão e, via Passo Khaibar, para o Paquistão e a Índia, de lá
para o Nepal, e finalmente até a Indonésia, onde se virou por um
tempo como professor de inglês numa escola particular. Essa foi a
sua época inesquecível de independência e aventura. Mas ao final,
depois de tanto tempo longe, ele deveria se juntar a mim no Peru,
onde eu estava envolvido na pré-produção de Aguirre, a cólera dos
deuses. Partindo da Indonésia, via México, ele foi até Lima para me
encontrar. Lucki acabou se tornando uma figura central no meu
trabalho e nos meus projetos e assumindo com total
independência tarefas de organização, participando de reflexões e
tomando iniciativas. Sem a sua intervenção, provavelmente eu
nunca teria encenado uma ópera, e sem a sua visão de futuro
tampouco existiria a fundação sem fins lucrativos que hoje
administra todos os meus filmes e obras literárias. Ele e eu nos
complementamos muito bem. Penso que durante décadas ele foi
um contrapeso maravilhoso para mim, agindo estrategicamente
enquanto eu buscava a ação imediata. Eu me desgastava na linha de
frente ao atacar as fortalezas, ele era o polo estável que habilmente
mexia seus pauzinhos nos bastidores. Ele sempre foi o último
recurso dos desiludidos, desesperançosos e desesperados.
15.
John Okello

Folheando cartas antigas de Lucki, encontrei emocionantes


descrições de suas estadias no sul da Índia, em Goa, em
Catmandu, em Jacarta. E por acaso, ao lado dessas cartas,
encontrei várias outras do marechal John Okello, que influenciou o
meu personagem Aguirre em Aguirre, a cólera dos deuses. Okello,
que ficou órfão já na infância, era do norte de Uganda. Criado em
extrema pobreza, ele sobrevivia com trabalhos não qualificados e
só mais tarde frequentou a escola por alguns anos. Iniciou uma
vida errante, na qual foi de Uganda até o Quênia, onde foi aprendiz
de um carpinteiro. Em Uganda, cumpriu uma sentença de dois
anos de prisão por um crime sexual que negava e sobre o qual
nunca quis entrar em detalhes. Depois também trabalhou como
pedreiro, caixeiro-viajante e, finalmente, pregador itinerante. Ele
chegou à ilha de Zanzibar, onde, ainda muito jovem, iniciou a sua
atuação política. Okello tinha dons notáveis como orador e
organizador dos trabalhadores no campo. Do ponto de vista
histórico, Zanzibar foi durante séculos o maior centro árabe de
comércio de escravizados da África Oriental. No século XX, os
árabes ainda eram o poder dominante, embora representassem
apenas uma minoria em face da população africana. Okello
organizou uma insurreição contra os árabes, que foi deflagrada sem
armas ou uniformes, sem treinamento nem recursos financeiros.
Em 12 de janeiro de 1964, atacou com um bando de quatrocentos
homens juntados ao léu. Primeiro, eles precisaram de armas:
roubaram então o fuzil do sentinela de um posto policial e
assaltaram o depósito de armas. No último momento antes desse
ataque, quase todos os seus soldados que haviam chegado até ali
fugiram porque ficaram com medo de como as coisas poderiam
acabar. Mas ele ainda ficou com cerca de trinta homens, que o
seguiram. Okello proclamou-se marechal de campo com apenas 27
anos de idade e nomeou de improviso seus generais, brigadeiros e
coronéis e, num prazo de horas apenas, os africanos de Zanzibar
aderiram à sua revolta, pois a dinâmica estava do lado da revolução.
O sultão árabe fugiu para o continente em seu iate, mas houve
massacres sangrentos dos árabes pelas tropas de Okello e pela
própria população. Por alguns dias, Okello ficou famoso, pelo
menos a ponto de ser mencionado pela imprensa ocidental na
página três ou na seção de miscelâneas. Ele chamou a minha
atenção em Munique por causa dos discursos disparatados que
transmitia por uma pequena estação de rádio local. Pelo rádio, ele
exigia que o comissário-chefe de polícia se rendesse: “Caso
contrário, vejo-me obrigado a ir pessoalmente. Nesse caso, as
coisas serão mais terríveis do que qualquer criatura viva jamais
poderá suportar”. Acho que me lembro de ter havido reportagens
segundo as quais ele sobrevoava a ilha num pequeno avião, o rádio
de bordo transmitindo para um programa de rádio: “Quem roubar
uma única barra de sabão e comer uma só semente a mais, será
encarcerado por 150 anos!”. Ele deu um ultimato ao sultão: “Você
tem vinte minutos para se render, caso contrário, não teremos
escolha a não ser riscá-lo da face da Terra. Eu lhe dou vinte
minutos, para que possa matar seus filhos e suas esposas e depois a
si mesmo. Caso contrário, vou cair em cima de você e vou matá-lo,
e também a suas galinhas e suas cabras, e vou queimar o seu
cadáver com um fogo furioso e faminto”. O meu Aguirre fala justo
no tom original de Okello:

AGUIRRE
Eu sou o Grande Traidor, não pode
haver maior. Aquele que se atrever
apenas a pensar em fugir será cortado
em pedaços, e depois será pisoteado
até que com ele se possa pintar
as paredes. Quem comer um só grão de milho
a mais e beber uma única gota de água a mais,
será encarcerado por 155 anos.
Se eu, Aguirre, quiser que os pássaros caiam mortos
das árvores… então os pássaros cairão
das árvores mortos. Eu sou a ira de Deus.
A terra em que piso me vê e estremece.

Numa coletiva de imprensa dois dias após a insurreição, Okello


afirmou que já dez anos antes ocupara, como combatente no
movimento Mau-Mau, que lutava pela independência do Quênia, a
posição de general de brigada e de intérprete de sonhos; que toda a
liderança dos insurgentes, incluindo o líder Jomo Kenyatta, havia
tido seus sonhos traduzidos e interpretados por ele. Acho isso
altamente improvável, pois Okello devia ter apenas dezessete anos
na época, e os insurgentes do Mau-Mau, dominados pelo povo
quicuio, dificilmente teriam aceitado um estrangeiro de Uganda,
do povo acholi, que estava apenas começando a aprender a língua
franca do Quênia, o suaíli. Após a vitória da sua revolução em
Zanzibar, Okello trouxe de volta o ex-primeiro-ministro Karume,
que havia sido expulso da ilha, e o restituiu no cargo, mas
Tanganica no continente e a ilha de Zanzibar já planejavam a
unificação dos dois países num único Estado, a Tanzânia. Okello
foi impedido de retornar a Zanzibar depois de algumas semanas no
continente. Queriam se livrar dele. E com isso, o seu rastro
desaparece. Ao que tudo indica, ele voltou sozinho para Uganda.
Ele vagava sem um tostão como indigente e, segundo declarações
próprias, às vezes sobrevivia apenas mendigando. Foi visto pela
última vez em público em 1971, na companhia de Idi Amin, o novo
ditador militar de Uganda. Depois disso, desapareceu sem deixar
vestígios, para sempre.
Dois anos antes, eu tinha feito um filme no Quênia, na Tanzânia
e em Uganda para uma organização de médicos que foi, de certa
forma, uma precursora dos Médicos Sem Fronteiras, o filme se
chamava Os médicos voadores da África Oriental. Naquela época,
como já no meu filme na ilha de Cós, Sinais de vida, o cinegrafista
era Thomas Mauch, com quem fiz toda uma série de filmes, entre
eles Aguirre e Fitzcarraldo. Mauch foi uma figura marcante para
mim, sempre pronto para tudo, seguro de seu estilo, com um
senso estético extraordinário, mas ao mesmo tempo arrojado e
confiante quanto à substância e à dinâmica de uma cena. Os
cinegrafistas são como os meus olhos. Trabalhei com os melhores
dos melhores, Thomas Mauch, Jörg Schmidt-Reitwein, e mais
tarde com Peter Zeitlinger, com quem fiz meus últimos 28 filmes.
São sempre os cinegrafistas que dão coesão a uma equipe de
filmagem. Depois que terminamos de rodar nosso filme sobre os
médicos voadores, em 1969, Thomas Mauch me acompanhou até
Uganda — em busca de John Okello. Atravessamos o Quênia de
carro até Uganda, porque eu supunha, seguindo rumores, que
Okello estaria no norte do país, de onde ele provinha. Chegamos à
pequena cidade de Lira. Perguntamos por lá e finalmente
encontramos alguns parentes seus, que, no entanto, pareciam
receosos de nos dar informações. A polícia ficou atenta à nossa
presença, e eu já havia tido experiências ruins com isso no meu
filme Fata Morgana, quando fui preso várias vezes com a minha
pequena equipe em Camarões. Havia sido muito ruim, e as coisas
não foram tão melhores na República Centro-Africana, onde o
meu cinegrafista Jörg Schmidt-Reitwein e eu contraímos malária e
esquistossomose ao mesmo tempo. Também não nos demoramos
muito em Lira por causa do interesse da polícia por nós. Mauch
ainda se lembra de como dormimos no carro em algum lugar e de
manhã quando acordamos estávamos cercados de rostos de
crianças achatados contra as janelas, que nos admiravam
espantados e silenciosos. Deixei com os parentes de Okello uma
mensagem com o meu endereço na Alemanha — e de fato meses
depois o marechal de campo entrou em contato comigo. Em várias
cartas, ele me instava a traduzir seu livro Revolution in Zanzibar e a
publicá-lo por editoras europeias. Ele escrevera o livro enquanto
cumpria uma pena de quinze meses de prisão no Quênia, que
depois disso o deportou para a sua terra natal, Uganda. Ele também
se oferecia para fazer o papel principal num filme sobre si mesmo e
pedia informações sobre o seu cachê. Mas tudo isso nunca deu em
nada. Ele provavelmente foi assassinado por Idi Amin já em 1971, e
eu, de qualquer forma, pretendia fazer um filme sobre um
conquistador espanhol. Mas um eco de Okello, como se ele
ressuscitasse, ressoa no filme nos monólogos ensandecidos de
Aguirre. Há também um escravizado negro que os conquistadores
levam consigo. Eu lhe dei o nome de Okello.
16.
Peru

Lucki chegou a Lima, ele vinha de um mundo completamente


diferente. A filha podre de rica de um dos mais altos generais da
Indonésia queria se casar com ele, mas ele escapou aliviado desse
destino. Como não havia conexão telefônica, ele chegou, e nós não
sabíamos de nada. Ninguém foi buscá-lo no aeroporto, não havia
ninguém no pequeno escritório que havíamos montado. Eu tinha
acabado de partir para a floresta além dos Andes. Mas lá as chuvas
estavam tão fortes, que o nosso voo foi cancelado. Voltei para a
cidade no meio da noite e encontrei meu irmão, longe de mim
havia tanto tempo. Hoje ainda sinto aquela alegria. Lucki
imediatamente tomou a iniciativa, pôs em ordem todos os
processos e montou uma contabilidade funcional, o que não foi
fácil, pois havia vários acordos feitos com analfabetos e
documentos empapados pela chuva tropical. Ele tentou manter as
finanças sob controle, mas isso era quase impossível, pois na
prática não havia financiamento. O orçamento total do filme foi
equivalente a 380 mil dólares, uma piada para um grande filme
ambientado no meio da selva do século XVI, com figurinos, armas,
lhamas e jangadas e, além de tudo isso, no começo, mais de
quatrocentos figurantes indígenas das terras altas, que falavam
quíchua. Se hoje analisarmos o filme em termos de seu “valor de
produção”, acredito que ninguém em toda a indústria
cinematográfica se aventuraria no projeto com um orçamento
inferior a 50 milhões de dólares. O filme foi rodado em três
afluentes formadores do Amazonas de difícil acesso, além de
contar com um ator principal instável e raivoso na figura de Klaus
Kinski. Estávamos permanentemente com falta de dinheiro, o
fluxo de caixa da Alemanha não funcionava, as transferências
bancárias muitas vezes demoravam semanas. No momento de pior
dificuldade, Lucki foi de casa em casa à noite em Miraflores, o rico
subúrbio de Lima, oferecendo um negócio: como praticamente
todo mundo ali tinha uma conta em dólares nos Estados Unidos, a
fim de manter o dinheiro escondido das autoridades fiscais
peruanas, as pessoas tinham interesse em ter dinheiro transferido
de fora direto para aquele país. Lucki disse que precisava de 50 mil
dólares em soles peruanos, imediatamente. Em troca, a mesma
quantia seria transferida da Alemanha para os Estados Unidos por
telégrafo com uma sobretaxa de 10% pela confiança cega, e a
quantia chegaria em 48 horas. Meu projeto era conhecido em Lima
pelas reportagens dos jornais, mas quem ia querer participar dele a
partir de uma pergunta daquelas feita à noite na porta de sua casa?
Lucki, no entanto, tinha a habilidade natural de estabelecer
confiança incondicional, que ele também jamais quebrou. Um
jovem empresário, Joe Koechlin von Stein, aceitou a oferta de
Lucki. Ele precisava de dólares americanos porque estava
planejando um show com o roqueiro Carlos Santana. Com
nenhuma outra garantia além de um aperto de mão, ele entregou a
Lucki na manhã seguinte os soles que salvaram a continuidade do
projeto. Meu irmão Till, por sua vez, transferiu imediatamente 50
mil dólares de seus fundos privados para a conta de Joe em Miami.
Desse modo, ele também salvou Aguirre, a cólera dos deuses,
embora secretamente tivesse certeza de que nunca mais veria seu
dinheiro. Mas, ainda que com bastante atraso, ele recebeu tudo de
volta. Até hoje uma amizade inquebrantável me liga a Joe Koechlin.
Ele construiu os primeiros hotéis de orientação ecológica na selva
peruana, teve essa visão antes que qualquer pessoa no mundo
tivesse ouvido falar da palavra “ecologia”. Mais tarde, também me
apoiou no meu filme Fitzcarraldo, foi um dos produtores do
documentário de Les Blank sobre as filmagens, O peso dos sonhos,
e, mais recen­temente, em 2018, foi meu anfitrião quando fiz um
workshop com um grande grupo de jovens cineastas em seu lodge
de selva em Puerto Maldonado.
Aguirre, a cólera dos deuses é sobre uma expedição militar de
conquistadores espanhóis nas terras baixas da Amazônia em busca
do Eldorado, a lendária terra do ouro. Lope de Aguirre se faz chefe
da expedição num motim e, em sua obsessão por poder e riqueza,
a expedição se transforma num grande fracasso de ilusões e
autodestruição. No final, Aguirre é o último sobrevivente
flutuando rumo ao desconhecido em sua jangada tomada por
centenas de macaquinhos. As próprias filmagens também
estiveram inescapavelmente sob riscos e incertezas do início ao
fim. Todos nós vivíamos à deriva em jangadas, os atores, uma
pequena equipe técnica de apenas oito pessoas e, sempre uma ou
duas curvas à frente no rio, a verdadeira jangada para as filmagens.
Na maioria das vezes, não sabíamos o que nos esperava na próxima
curva do rio.
Em algum momento durante as filmagens, todos os nossos
negativos apenas desapareceram. Tínhamos um acordo com uma
transportadora em Lima, que enviaria os negativos para a Cidade
do México, onde deveriam ser revelados, mas os mexicanos
juravam por todos os santos que nada havia chegado até eles. Os
negativos eram simplesmente tudo. Sem eles, estava tudo perdido.
Tínhamos duas suspeitas: podia ser que o laboratório mexicano
tivesse cometido um erro catastrófico e tratado nossos negativos
com os produtos químicos errados e os arruinado, e então
alegassem que nunca haviam recebido nada. Mas Lucki objetou
que os mexicanos queriam ganhar dinheiro com o trabalho e
provavelmente diziam a verdade. A segunda opção era o envio a
partir de Lima, mas a transportadora apresentara documentos de
expedição, carimbados pela alfândega, que comprovavam que o
material havia saído do país. Tampouco os aviões tinham feito
escalas nas quais algo pudesse ter desaparecido. Lucki não obteve
permissão para entrar no depósito da alfândega em Lima, mas no
final decidiu pular uma cerca de arame de três metros de altura e
encontrou todas as nossas latas de filmes numa pilha de lixo atrás
de um galpão, descartadas, mas ainda lacradas. O material sensível
havia sido exposto ao calor do sol por várias semanas. Descobrimos
então que a transportadora havia subornado a alfândega, que
carimbou os papéis, permitindo que a firma embolsasse as taxas do
frete. Lucki pegou os rolos de negativos e levou-os ele mesmo para
o México na bagagem de mão. A situação no set na floresta durante
esse tempo foi terrível para mim. Eu estava convencido de que
tudo o que havíamos filmado de forma irrepetível ao longo de
semanas estava perdido. Só havia uma coisa a fazer: continuar
filmando como se estivesse tudo em ordem. Se a equipe soubesse
que provavelmente tudo o que havia sido filmado com tanto
esforço estava perdido, talvez em meio ao pânico tudo fosse por
água abaixo. Então eu apenas continuei trabalhando, embora me
encontrasse profundamente submerso no absurdo da minha
situação. Apenas Lucki, eu e o gerente de produção local, Walter
Saxer, estávamos a par. Mantivemo-nos firmes, em silêncio. Do
ponto de vista das produções cinematográficas comuns, alguém
perguntaria: por que não havia seguro? Minha resposta: tínhamos
tão pouco dinheiro que jamais poderíamos pagar um seguro. Às
vezes, quase não havia dinheiro suficiente para comida. E o que
havíamos filmado era único, decerto irrepetível.
Lembro-me de que às vezes não havia absolutamente mais nada
para comer e eu e dois homens de confiança saíamos em pirogas à
noite em busca de algo em alguma aldeia indígena. Troquei meus
sapatos resistentes por uma bacia de peixes e, em outra ocasião,
dei meu relógio como pagamento. Lembro-me de uma noite em
que nos espalhamos e voltamos a nos encontrar numa determinada
curva do rio. Nenhuma das três canoas enviadas havia achado nada.

À
Às quatro da manhã, no escuro, amarramos as canoas umas às
outras e nos deixamos levar rio abaixo e choramos.
Com meus irmãos, e sobretudo com Lucki, aprendi não apenas
a inspirar confiança, mas também a responder incondicionalmente
por ela. Um exemplo disso: no meu filme Visita ao inferno, que
rodei com o vulcanólogo Clive Oppen­heimer em todos os
continentes possíveis, estivemos também na Coreia do Norte, em
2015. Após um ano de negociações, Clive conseguiu permissão
para filmar, o que na verdade era algo considerado impossível.
Havia restrições quanto ao que podíamos gravar e éramos o tempo
todo vigiados por agentes do Serviço Secreto. Mas fomos
autorizados a filmar na borda da cratera do vulcão Paektusan.
Como a montanha fica bem na fronteira com a China, as
precauções eram particularmente rígidas. Ali muitos norte-
coreanos tentavam fugir atravessando a fronteira, havia diversos
bloqueios nas estradas, onde éramos inspecionados por sentinelas
militares. Chamou minha atenção que todos os fuzis automáticos
tinham também baionetas acopla­das, mas não decorativas, como as
que se veem nos guardas de honra do Cemitério Nacional de
Arlington, nos Estados Unidos, e sim finamente afiadas, como
navalhas. A Coreia do Norte é vista como uma grande ameaça
militar por causa de algumas poucas armas nucleares que possui,
mas o país também dispõe de um milhão de soldados. Se essas
hostes de combatentes fanáticos fossem enviadas através da
fronteira, distribuídas num amplo leque e profundamente
escalonadas, ou seja, com poucas chances de serem detidas por
força aérea ou metralhadoras, a capital sul-coreana seria tomada em
poucos dias. A infantaria é uma ameaça que ninguém parece notar,
porque é considerada obsoleta.
Filmamos junto à cratera, que é considerada o local mítico de
origem do povo coreano, e todas as turmas escolares e soldados
devem visitá-la pelo menos uma vez na vida. Enquanto gravávamos
com um cientista, de repente ouvi bem perto de nós algumas
risadinhas seguidas de um gritinho abafado de uma jovem. Na
mesma hora desloquei a câmera naquela dire­ção, e filmamos um
grupo de soldados tirando fotos de si mesmos com o lago da
cratera ao fundo. Um jovem soldado tinha agarrado uma bela
jovem pelos quadris e lhe fazia cócegas na axila. Foi bom ver a
alegria de viver que emanava daquele grupo, era algo
completamente inusitado, que mostrava um lado diferente, muito
humano das Forças Armadas norte-coreanas. Então um dos nossos
guarda-costas interveio. Tivemos que desligar a câmera de pronto.
Ouvi um sermão sobre como eu acabara de quebrar as regras que
haviam sido estabelecidas para mim. O soldado norte-coreano
estava sempre pronto e determinado a derramar seu sangue pela
pátria e pelo amado irmão e líder do povo, qualquer outra coisa era
inconcebível. Além disso, era particularmente grave o fato de eu
ter filmado soldados em uniforme completo, dessa forma os seus
rostos poderiam ser identificados pelo inimigo imperialista, em
resumo, eu estava sendo instruído a destruir os meus registros no
ato. O problema era que, com o nosso armazenamento digital de
dados, tecnicamente não podíamos excluir o material de imediato.
Nem mesmo com equipamentos norte-coreanos e seus técnicos
era possível fazer isso. Fui então informado de que todo o nosso
disco rígido teria de ser confiscado para a destruição do material.
Argumentei que nele estavam armazenados quatro dias inteiros de
filmagem, o que seria um duro golpe para o filme. Propus então
manter as imagens armazenadas, mas dar uma garantia de que
nunca publicaria o material com os soldados. “Garantia?”, ouvi
como resposta. “O senhor se refere a um acordo por escrito de
cinquenta páginas que o senhor rasgaria já no avião quando
estivesse fora do território norte-coreano?” Respondi que eu não
agiria assim, mas de maneira diferente. Em muitos dos meus
filmes maiores, como Aguirre — que aqueles guarda-costas
designados especialmente para nós conheciam —, e, em geral,
com todos os meus colaboradores mais importantes, não houvera
contratos escritos, apenas orais, selados com um aperto de mão.
Nunca um tal acordo havia sido quebrado. Eu disse também que
naquele caso poderia dar não apenas uma, mas três garantias.
“Quais?”, me perguntaram. Eu respondi: “Minha honra, minha
face e meu aperto de mão”. O inesperado aconteceu. Eles me
permitiram ficar com o disco rígido. E eu, por minha vez, nunca
usei esse material e jamais o usarei no futuro.
Em Aguirre, além do meu irmão Lucki, outra pessoa teve o seu
primeiro grande momento, Walter Saxer. Ele havia chamado
minha atenção anos antes, quando eu estava planejando meu filme
Também os anões começaram pequenos na ilha de Lanzarote, nas
Canárias, um jovem suíço que vinha de St. Gallen e se pusera a
correr o mundo. Naquela época, ele administrava um pequeno
hotel na ilha e nos ajudara, por exemplo, a encontrar o carro que
deveria rodar em círculos indefinidamente. Logo após o início das
filmagens, quando o veículo, uma lata-velha dos anos 1950, já
estava consolidado nas imagens do filme, ele pifou, de uma vez por
todas, acho que o bloco do motor havia estourado. No prazo de um
dia, Saxer identificou um modelo semelhante em algum lugar na
estradinha rural, parou-o e conseguiu convencer o proprietário a
lhe ceder o motor. Este recebeu um substituto, e Saxer instalou o
motor em nosso veículo durante a noite e também o modificou,
pois ele não correspondia exatamente às dimensões. Eu nunca
tinha visto algo assim antes. Walter Saxer estava sempre
determinado a fazer o que fosse necessário, não havia risco que
não se dispusesse a correr. Ele desprezava todos que não
trabalhavam tão duro quanto ele próprio, sobretudo os atores com
suas afetações bobas eram para ele muitas vezes uma pedra no
sapato. Em Aguirre, no sopé de Machu Picchu, ele dormia no chão
de terra com uma pequena indígena corcunda e seus filhos,
rodeados por dezenas de irrequietos porquinhos-da-índia, que
eram mantidos ali como galinhas de estimação e às vezes iam para
a panela. Mais tarde, esse também foi meu alojamento. Com Saxer,
eu nadei no rio Urubamba para recuperar uma plataforma móvel,
cujo cabo havia se enroscado na outra margem. Ainda me lembro
de como de repente um enorme redemoinho que sorvia tudo em
seu caminho veio em nossa direção. Foi ele quem, do local de
filmagem nos desfiladeiros do rio Hualhaga, onde há três
corredeiras seguidas, numa situação desesperadora de toda a
produção, andou a noite toda no escuro, escalando as enormes
pedras escorregadias até a aldeia de Chasuta. Ele carregava consigo
uma pasta de documentos. Certa vez, eu o vi trabalhar sessenta
horas seguidas, no final das quais o encontrei dormindo sobre um
monte de pedras.
Muitos dos acessos de cólera de Kinski se dirigiam a ele, mas se
dirigiam ainda mais a mim e, na verdade, a tudo e todos. Kinski
havia exigido ficar o tempo todo em contato com a natureza. Mas
eu o avisara várias vezes por escrito que não filmaríamos a cena de
abertura numa geleira como estava descrito no roteiro, e sim
começaríamos com a descida da expedição ao vale do Urubamba.
Apesar disso, Kinski levou casacos de plumas, picaretas de gelo,
cordas, barraca e sacos de dormir de plumas, com os quais não
sabíamos o que fazer. Depois, cumprindo exigências suas, tivemos
que armar a sua barraca numa clareira na selva, mas logo na
primeira noite choveu forte e a umidade penetrou lá dentro. Ele
teve um acesso de fúria que durou horas, avançando pela manhã
adentro. Ele queria celebrar a natureza, com poses, é claro, mas
sem chuva. Depois disso, erguemos um telhado trançado com
folhas de palmeira sobre sua barraca, mas mesmo assim ainda havia
umidade no seu abrigo, porque a sua respiração embaçava as lonas
da tenda por dentro. Mais berros, mais gritos inarticulados. Nesse
caso, a sua raiva se dirigia sobretudo aos indígenas das terras altas,
que abrigamos temporariamente para os poucos dias de filmagem
num grande celeiro, no qual em tempos anteriores as folhas de
tabaco eram postas para secar. Saxer havia construído beliches de
lona muito simples, mas funcionais. Enfrentei Kinski e deixei com
toda a calma a sua fúria cair sobre mim. Na terceira noite, só havia
a opção de alojar Kinski no único hotel lá em cima, nas ruínas incas
de Machu Picchu. Mas os oito quartos que havia na época estavam
todos ocupados. Naqueles tempos, não havia uma única
acomodação embaixo, no terminal do pequeno trem de Cusco, e o
belíssimo hotel do meu amigo Joe Koechlin só seria construído
mais tarde. O que fazer? Saxer tanto falou no ouvido do dono do
hotel, que ele abdicou do seu próprio quarto e se mudou para uma
espécie de armário de vassouras. Mas, mesmo lá no hotel, os
ataques de fúria de Kinski continuaram durante a noite inteira. Ele
manteve todo o hotel acordado. O louco colérico bateu em sua
esposa vietnamita, que tentou fugir dele, e a impeliu escada abaixo
à sua frente.
Walter Saxer foi o diretor de produção dos meus filmes Kaspar
Hauser; Nosferatu; Woyzeck; Cobra Verde e muitos outros, ele
participou de quase tudo o que eu fiz na época. Sua maior
realização foi sem dúvida o filme Fitzcarraldo. Os trabalhos
preparatórios duraram três anos e meio. Foi ele quem iniciou a
construção de dois navios idênticos, para a qual primeiramente
teve que ser criada a infraestrutura, nesse caso todo um estaleiro
no meio da selva. Foi ele quem construiu os acampamentos para as
centenas de figurantes indígenas e para a equipe técnica, contratou
os figurantes indígenas e, do ponto de vista técnico, conseguiu
fazer o vapor subir o barranco. Um de seus problemas, e ele é
ressentido com isso, é que falei em entrevistas que eu havia
arrastado um navio por cima de um morro, quando foi ele e a sua
equipe que o fizeram. Nas entrevistas, falei em sentido metafórico
que todo adulto deveria caçar uma baleia-branca ou então rebocar
um navio a vapor por cima de um morro. Agora quero pôr os
pingos nos “is”: tecnicamente, foi Walter Saxer quem transportou
o navio. Mas também gostaria de salientar que houve um momento
crítico durante as filmagens, no qual o nosso técnico brasileiro
expressou temores quanto a rebocar o navio barranco acima,
porque o pilar de apoio, belamente chamado de “muerto” em
espanhol, cravado no solo para esse fim, não lhe parecia estável o
suficiente. O brasileiro desistiu e recuou, acho que ele teve medo
da própria coragem. Naquela época, assumi sozinho toda a
responsabilidade e mandei ancorar um novo “muerto”
extremamente fundo e de forma segura. Do ponto de vista técnico,
também aqui Saxer foi o executor. Esse novo pilar teria suportado
o peso de cinco de nossos navios. Infelizmente, nesse estranho
trabalho que os filmes exigem, as amizades também se
desmancham, e foi assim comigo e com Walter Saxer.
17.
Privilegium maius, Pittsburgh

Com 21 anos de idade, eu já havia concluído dois curtas-metragens


e iniciava, com firme determinação, o projeto de um longa-
metragem. Mas naquela época era impensável confiar um grande
longa-metragem a alguém tão jovem. Não havia ninguém nesse
métier com menos de 35 anos. Várias coisas aconteciam
praticamente ao mesmo tempo: eu continuava ganhando dinheiro
para as minhas produções e, de vez em quando, também ia à
universidade. Em parte, isso era charlatanismo, mas dessa forma
eu obtinha algum dinheiro extra com uma bolsa de estudos;
porém, de fato, eu quase não adquiria conhecimentos
fundamentais. Para isso, eu não tinha tempo. Lembro-me da época
em que pedi a um bom colega para escrever o trabalho de um
seminário para mim, o que ele fez com um pé nas costas, como
exercício. Ele me perguntou brincando o que ganharia com isso, e
eu respondi também brincando que em troca eu tornaria o seu
nome imortal. O seu nome é Hauke Stroszek. Num evento público
em 2017, onde, 54 anos depois de minha época em Munique,
recebi um prêmio da Academia de Cinema Europeu, para minha
surpresa, a filha dele se apresentou a mim. Hauke Stroszek era
então professor emérito de uma universidade no estado da Renânia
do Norte-Vestfália. Mas dei o nome de Stroszek ao protagonista no
meu roteiro Sinais de fogo, que depois, em 1967, filmei como Sinais
de vida. Além disso, intitulei meu segundo filme — que fiz em
1976 com Bruno S., sobre quem ainda falarei — Stroszek. Uma vez,
quando eu já era conhecido, participei de um concurso literário
organizado pela Rádio Juvenil da Baviera e, como tinha feito uma
aposta, enviei de uma vez cinco textos curtos diferentes. Havia
prêmios para os dez melhores trabalhos, era preciso ter menos de
25 anos, e os textos deveriam começar com o trecho de frase: “Um
jovem estava em meio…”. Enviei, como uma suposta colônia de
jovens autores, os cinco textos diferentes, entre eles um poema de
um autor por mim batizado de Wenzel Stroszek.
Recebi quatro telegramas num endereço fictício, na verdade o
de minha avó em Großhesselohe, que me parabenizavam, mas o
quinto trabalho não foi premiado. Eu perdi a aposta.
Mas nos meus estudos também havia coisas que me fascinavam,
que eu buscava. Na disciplina de história medieval, escrevi um
trabalho sobre o Privilegium maius. Trata-se de uma falsificação do
período de 1358-9; na verdade são cinco documentos
grosseiramente falsificados que se confirmam uns aos outros
quanto à sua veracidade, e um deles remonta supostamente a Júlio
César e a Nero. Essa suposta declaração de direitos dizia respeito à
expansão do poder dos ambiciosos Habsburgo, no caso Rodolfo IV,
e à definição da área que hoje coincide quase em sua totalidade
com o Estado da Áustria. Com a falsificação de documentos, foram
criados fatos jurídicos de longo prazo, que ao final levaram à
fundação do Estado austríaco. A falsificação já tinha sido
reconhecida pelo poeta renascentista italiano Petrarca, mas foi
bem-sucedida do ponto de vista histórico. Tratava-se apenas de
fake news, e em meu trabalho desenvolvi um método que, sem que
eu soubesse, nunca havia sido empregado antes. Como a questão
dos fatos, realidade e verdade me ocupa até hoje nos meus filmes,
incluindo o que chamei de verdade extática, vou explicá-lo aqui
apenas de forma abreviada: eu afirmava, ainda que isto contrariasse
a lógica, que o Privilegium era verdadeiro e lançava pilares de apoio
para analisar os documentos de todos os ângulos possíveis, mas
sempre partindo da argumentação daquela época — política de
força, mudança social, entendimento jurídico, correlações de
poder militar — e ao final era possível retirar os pilares mantendo
uma trama de argumentos que se sustentava. Em outras palavras:
em sua estrutura, a falsificação — as fake news — se configurava
como verdade, isto é, uma verdade emergente, pois a história
ancorou nela as suas mudanças.
O que nesse trabalho me pareceu um procedimento óbvio de
alguma forma chamou a atenção. Como eu sabia que não haveria
perspectiva de rodar um longa de imediato, aceitei uma oferta de
bolsa de estudos nos Estados Unidos, quase nem precisei me
candidatar. Surpreendeu que eu não fosse um historiador, mas
alguém que queria ir para uma universidade onde houvesse
câmeras e um estúdio de cinema, para poder imediatamente fazer
trabalhos práticos e continuar aprendendo. Até então, os meus
primeiros filmes, mais curtos, haviam sido a minha única escola de
cinema, por assim dizer. Eu teria a possibilidade de ir para uma
faculdade de prestígio, mas escolhi Pittsburgh porque estava
imbuído da ideia romântica de que lá eu não teria que lidar com
acadêmicos verborrágicos, e sim iria para uma cidade na qual
haveria pessoas reais e palpáveis trabalhando. Pittsburgh era a
cidade dos trabalhadores siderúrgicos e eu simpatizava com eles
porque conhecia o trabalho de uma siderúrgica. Ao mesmo tempo,
aos 21 anos, escrevi em poucas semanas o meu roteiro Sinais de
fogo e o inscrevi para o prêmio Carl Mayer, assim chamado em
homenagem ao autor de famosos filmes mudos como O gabinete do
dr. Caligari e A última gargalhada. Alguns meses depois, eu acabara
de completar 22 anos, ganhei de fato o prêmio, que era dotado
com 5 mil marcos alemães, mas, como ele não havia sido
concedido no ano anterior, recebi 10 mil marcos alemães em 1964,
o valor dos dois prêmios juntos. Com isso, eu poderia fazer outro
curta-metragem imediatamente. Todos os cineastas consagrados e
jovens aspirantes haviam se candidatado na época, lembro que
também Volker Schlöndorff com o seu O jovem Törless era um dos
concorrentes. Mais tarde, esse foi um argumento importante
perante os responsáveis pelo fomento ao cinema, que haviam me
recusado, mas financiado outros projetos. Pude remeter ao fato de
que o meu roteiro havia sobrepujado todos os outros concorrentes,
e além disso eu já havia feito alguns filmes, o que não era o caso
dos outros. Pittsburgh não foi uma boa escolha: por um lado, quase
não existia mais a indústria siderúrgica, que estava em declínio
galopante, com as usinas fechadas enferrujando; por outro lado, a
Universidade Duquesne, que tinha um estúdio, era do ponto de
vista intelectual uma instituição absolutamente miserável. Eu não
fazia a menor ideia de que poderia haver tais diferenças na
qualidade das universidades. Mas, por outras razões, mesmo assim
a cidade tornou-se querida e importante para mim.
No início dos anos 1960, quase não havia voos e eu havia
recebido uma bolsa adicional para uma passagem de navio.
Embarquei no Bremen, o mesmo navio em que, um ano antes,
Siegfried e Roy haviam trabalhado como camareiros e divertido os
passageiros com truques de mágica antes de irem para Las Vegas.
Nesse navio, conheci minha primeira mulher, Martje. A partir do
mar da Irlanda, houve uma semana de tempestade e o refeitório
para oitocentos passageiros esvaziou-se em dois dias. Todo mundo
ficou enjoado. Apenas em volta de uma grande mesa redonda,
reuniam-se os durões, que deixavam as mesas solitárias a eles
destinadas para se juntar ao pequeno grupo dos ainda eretos.
Martje estava viajando para iniciar um curso de literatura na
universidade em Wisconsin. O mar agitado não a incomodava. A
passagem do navio pela Estátua da Liberdade não nos interessou,
estávamos totalmente imersos num jogo de shuffleboard no convés.
Mais tarde, Martje concluiu seus estudos em Freiburg e nós nos
casamos. Ela é a mãe do meu primeiro filho, Rudolph. Ele tem os
nomes de três pessoas importantes na minha vida: Rudolph,
Amos, Achmed. Rudolph, como o meu avô, e é curioso que eu
sempre tenha pensado que seu nome terminasse com “ph”, mas foi
só conferindo dados para estas notas que me dei conta de que seu
nome certo era Rudolf. Amos, como o autor, diretor de festivais e
distribuidor de filmes americano Amos Vogel, que, como Lotte
Eisner, foi um mentor para mim. Lembro que, uns três anos
depois de ter me casado, ele me chamou de lado e perguntou se
havia algo errado com o meu casamento. Não, estava tudo bem.
Por que então não tínhamos filhos?, ele perguntou sem rodeios.
Pensei comigo mesmo, sim, por que não, e assim Amos, que fugiu
dos nacional-socialistas de Viena para os Estados Unidos nas
condições mais difíceis, foi uma espécie de padrinho oculto do
meu filho. Achmed, como o último empregado sobrevivente de
meu avô, que trabalhou para ele e para minha avó Ella quando
menino. A primeira vez que estive em Cós, com quinze anos de
idade, eu o localizei e me apresentei a ele como neto de “Rodolfo”.
Achmed começou a chorar, então abriu todos os armários, todas as
gavetas, todas as janelas e portas e me disse agora isto tudo é seu.
Ele também tinha uma neta de catorze anos e sugeriu que eu me
casasse com ela. Foi difícil dissuadi-lo da ideia e só gradualmente
ele aceitou minhas prudentes objeções — eu era muito jovem e
não podia sustentar uma família — até que lhe prometi que daria
ao meu primeiro filho o nome de Rudolf e o dele. Achmed
pertencia à minoria turca. Após o colapso do Império Otomano,
apesar da “limpeza” étnica, ele permaneceu na ilha, que então se
tornara grega. Achmed trabalhou como vigia nos sítios de
escavação do Asclepieion, mas ali suportou diariamente um
martírio silencioso. Quando estendia o seu tapete de oração, as
crianças jogavam pedras nele e gritavam: “Achmed, Achmed!”.
Mas Achmed fazia as suas orações, a tudo suportando. Ele pode ser
visto numa sequência do meu filme Sinais de vida. Achmed havia
sobrevivido à sua esposa, à sua filha e também à sua neta e, na
época em que voltei a visitá-lo alguns anos mais tarde, quando da
pré-produção do filme, restava-lhe apenas o seu cachorro,
Bondchuk. Mas nesse dia Achmed abriu de novo todos os
armários, gavetas e janelas e, em vez de me cumprimentar, apenas
disse, em grego: “Bondchuk apethane, Bondchuk está morto”. O
cachorro havia morrido no dia anterior. Ficamos sentados juntos
por um bom tempo chorando sem dizer nada.
Em Pittsburgh, já depois de alguns dias, ficou claro que eu
estava no lugar errado e, depois de pouco mais de uma semana, eu
soube que não poderia ficar. O estúdio de cinema estava lá, mas ele
fora montado como se para um telejornal, com a escrivaninha do
locutor e três câmeras eletrônicas móveis extremamente pesadas
em volta. No teto, holofotes antiquados estavam instalados de
forma fixa, ninguém podia desmontá-los ou movê-los. Contudo,
abandonar a universidade imediatamente teria significado desistir
do status do meu visto e ter que deixar os Estados Unidos. Assim,
renunciei à moradia estudantil, mas permaneci tacitamente
matriculado. Havia em torno da universidade um pequeno grupo
de jovens autores que editavam uma revista; ali eu publiquei o meu
primeiro conto. Tudo me aparece borrado na memória, como
eventos sobrepostos. Às vezes, eu dormia por um tempo no chão
da biblioteca, mas isso dava muito na vista, porque às seis horas da
manhã as faxineiras me encontravam. Eu alternava entre sofás de
conhecidos fugazes e o meu anfitrião original, um professor já de
mais de quarenta anos que ainda tinha um medo terrível da mãe,
que o proibia de se relacionar com alunas, e provavelmente
também com mulheres em geral. Por sua janela, eu via árvores
escuras e uns minúsculos esquilinhos listrados, chamados tâmias,
que têm algo consolador. Também havia algo consolador no canto
de pássaros que eu não conhecia, assim como no jogo dos finos
raios da luz do sol através da densa galharia das árvores. Imagens se
formaram dentro de mim. Fui testemunha de cenas bizarras e
atestei perante a mãe do meu anfitrião que uma mulher havia de
fato visitado o seu filho na noite anterior, mas junto com o noivo,
um estudante. O acompanhante masculino era uma invenção do
filho que confirmei sem pestanejar. Aquele homem era alimentado
como uma criancinha, mais precisamente, sua mãe o obrigava a
comer gelatina, dessas de cores sintéticas, em geral verde-claro ou
laranja, e ela também me tomou por alguém a quem a gelatina só
poderia fazer bem. Sem reclamar, eu também comia gelatina. Esse
motivo reaparece décadas depois no meu longa-metragem Meu
filho, olha o que fizeste!, de 2009, no qual o protagonista Michael
Shannon é coberto de gelatina pela mãe, numa espécie de guerra
secreta. Ele, que interpreta Orestes numa produção teatral, não
consegue mais distinguir representação e realidade e acaba
matando a mãe verdadeira com uma espada de palco.
Uma coincidência cega deu um novo rumo a tudo. Meu refúgio
temporário ficava nas colinas já fora de Pittsburgh, no município
de Fox Chapel. Para percorrer os vinte quilômetros até lá, eu
sempre tomava o ônibus que ia até o vale de Dorseyville. De lá, eu
subia a pé até a colina por uma estrada local que atravessava uma
floresta. Nesse trecho, muitas vezes passava por mim um
automóvel com uma mulher ao volante. Quase sempre, os bancos
estavam cheios de jovens. Num dia em que havia começado a
chover, e eu estava sem guarda-chuva, o carro parou ao meu lado e
a mulher abaixou o vidro, ela podia me dar uma carona, o tempo
não estava para andar a pé. Eram apenas dois minutos de carro até
onde eu queria descer, 120 segundos. De onde eu era? Da
Alemanha, um Kraut.* Eu ter usado essa expressão fez todos no
carro rirem. Onde eu morava? Expliquei em poucas frases a minha
situação. Ah, disse a mulher, então era lá que eu estava hospedado,
o sujeito era conhecido, um “weirdo”, um esquisito. Pior, um
“whacko”, um doido, um “whacko-weirdo”. Sem a menor
hesitação, ela disse então que na casa dela eu certamente estaria
em melhores mãos, que ela poderia me acomodar no sótão, ainda
havia espaço lá. Ela morava a apenas trezentos metros de onde eu
estava hospedado. De um minuto para o outro, fui acolhido como
membro da família, como se sempre tivesse pertencido a ela. A
mãe se chamava Evelyn Franklin e tinha seis filhos, entre dezessete
e 27 anos, ela disse que um sétimo filho faria bem à família naquele
momento, uma vez que a filha mais velha tinha se casado e saído
de casa. A gangue estava incompleta. O pai morrera devido ao
alcoolismo, devem ter sido anos de martírio para Evelyn. Apenas
muito raramente ela fazia comentários lacônicos sobre ele, a quem
então se referia apenas como sr. Franklin. As mais novas eram duas
meninas gêmeas, Jeannie e Joanie, depois vinha um irmão, Billy,
que era um músico de rock fracassado, então mais dois irmãos, dos
quais um era meio chato e burguês, e ainda mais um outro irmão,
de 25 anos, um cara lento com coração mole, “retarded”. Quando
criança, ele caíra de um carro em movimento e desde então tinha
uma leve deficiência mental. Depois havia ainda uma avó de
noventa anos e um cocker spaniel chamado Benjamin, ou
“Benjamin Franklin”. Fui acomodado no sótão, onde havia uma
cama velha e de resto realmente nada além de tralhas. O teto se
afunilava e só no meio, onde passava a cumeeira, dava para eu ficar
de pé.
Imediatamente passei a fazer parte da loucura diária. Evelyn ia
todos os dias para a cidade em seu carro, ela trabalhava como
secretária numa companhia de seguros. As gêmeas chegavam da
escola em Fox Chapel à tarde, geralmente com algumas colegas a
reboque. Mas antes disso, a avó, a partir das oito horas, tentava
acordar Billy, que quase sempre ficava até as três da manhã num
bar de rock, onde tocava. A cada meia hora, ela martelava a porta
trancada dele e tentava convertê-lo de sua vida pecaminosa citando
a Bíblia, que tinha aberta nas mãos. O cão, que era ligado a Billy
numa espécie de simbiose de corações, ficava deitado paciente
diante da porta. À tarde então Billy aparecia, espreguiçando-se
prazerosamente, nu em pelo. A avó fugia e Billy batia no peito e
aos berros lamentava sua vida pecaminosa em tom de sermão
bíblico. Acompanhando as lamentações, Benjamin Franklin, que
ainda estava deitado mas sabia o que exigia o ritual, uivava
enquanto mantinha estendidas as patas traseiras. Billy então
mudava para uma linguagem de cachorro inventada e arrastava
Benjamin Franklin pelas pernas atrás dele escada abaixo, como
Cristóvão descendo a escada com o ursinho Pooh. Em cada um dos
patamares, cobertos com carpete felpudo barato, ele parava para
continuar deplorando as suas aventuras pecaminosas na linguagem
canina. No andar de baixo, na sala, as gêmeas e suas amigas fugiam
com gritinhos do jovem nu, que aí se punha a perseguir a avó ainda
em fuga. Billy então proclamava as suas lamúrias arrependidas,
agora numa mistura de profeta do Antigo Testamento e cocker
spaniel.
Nesse clima de criatividade caótica que reinava na casa,
também não era nada incomum que as gêmeas me perseguissem
com água de colônia Woolworth e me envolvessem numa nuvem
de borrifos. Elas eram muito imaginativas. Um dia, eu vi que as
duas me preparavam uma emboscada perto da porta da garagem,
que ficava num nível mais baixo, e me esgueirei até o banheiro do
andar de cima, com o plano de contorná-las e, pulando pela janela
sobre a garagem, aparecer de repente e surpreendê-las pelas
costas. Minha intenção era atacá-las com creme de barbear. Lá fora
tinha nevado, mas havia apenas cerca de um palmo de neve fofa,
que imaginei ser um colchão suficiente para o meu salto. Aterrissei
na escada sinuosa de concreto que descia para a garagem. O som
que o meu tornozelo emitiu foi penetrante e ficou gravado para
sempre na minha memória, como um galho molhado que estala
quando se pisa em cima dele. As fraturas foram tão complicadas
que eu fui operado no hospital e engessado até o quadril. Somente
cinco semanas depois recebi um gesso que chegava apenas até o
joelho.
Eu amava os Franklin. Com eles pude conhecer o que de
melhor está ancorado na alma dos Estados Unidos. Mais tarde,
convidei-os para ir a Munique e fui com eles a uma quermesse em
Sachrang. Abraços, cerveja, júbilo. Eu os levei até o alto do
Geigelstein. Em anos posteriores, porém, o contato tornou-se mais
difícil porque toda a família, incluindo Billy, se converteu ao
fundamentalismo religioso. Além disso, todos ganharam peso de
tal maneira, que eu quase não conseguia mais distingui-los. Em
2014, quando interpretei o vilão num filme de ação de Hollywood
— o diretor Stephen McQuarrie e o ator principal, Tom Cruise,
me queriam sem falta como ator em seu filme Jack Reacher —, as
filmagens foram em Pittsburgh. Mas não encontrei mais os
Franklin, eles haviam se dispersado pelos quatro pontos cardeais.
Eu fui até Fox Chapel. Quase tudo na região estava diferente, havia
novos prédios por toda parte, foi muito deprimente. A casa na Oak
Spring Drive, porém, encontrei quase inalterada, o gramado, as
velhas árvores, apenas o caminho sinuoso de concreto até a
garagem estava coberto por um monte de terra com arbustos
ornamentais. Não havia ninguém lá e eu bati na porta de várias
casas vizinhas. Encontrei um casal mais velho e soube que a casa já
tivera vários outros donos. Eu sabia que Evelyn Franklin havia
morrido. Apenas um ano depois, soube da morte de Billy, que era
para mim como um irmão que até então eu não sabia que existia.
Reconhecê-lo como tal levou apenas instantes.
As gêmeas e suas amigas naquela época estavam totalmente fora
da casinha porque uma nova banda da Inglaterra estava fazendo um
show na Civic Arena. Eram os Rolling Stones. Até então, eu havia
passado ao largo de todas essas bandas e de toda a cultura pop,
com exceção de Elvis. Eu estava em Munique no seu primeiro
filme e, ao meu redor, os garotos começaram a arrancar com toda a
calma, metodicamente, os assentos, que eram fixados no chão. Eu
lembro que a polícia teve que intervir. Já em Pittsburgh, as duas
gêmeas levaram cartazes de papelão com o nome do seu favorito,
Brian, para o show. Ele era o vocalista na época, porém pouco
tempo depois se afogou em sua piscina. Ainda me lembro com
espanto do tremendo alvoroço e da gritaria das meninas. Quando o
show acabou, vi que muitos dos assentos de plástico estavam
fumegantes de urina. Muitas das meninas tinham feito xixi nas
calças. Quando vi isso, soube que aquela banda daria em algo
realmente grande. Muito mais tarde, em Fitzcarraldo, Mick Jagger
fez o segundo papel principal ao lado de Jason Robards, mas o
filme teve que ser interrompido quase na metade das filmagens
devido ao adoecimento de Robards. Tudo teve que ser filmado
novamente desde o início, dessa vez com Klaus Kinski. Mick
Jagger estava tão peculiar, tão único, que eu não quis reformular
seu papel e reescrevi o roteiro. De qualquer forma, eu só o teria
por mais três semanas, pois ele tinha datas marcadas para a
próxima turnê mundial dos Rolling Stones. No meu filme, ele fazia
o papel de Wilbur, um ator inglês que perde a razão e vai dar na
floresta amazônica. Pelo menos em parte, o padrinho desse
personagem foi o desnudo Billy Franklin, de Pittsburgh. O
cachorro Benjamin Franklin foi substituído por um macaco
medroso chamado McNamara.
18.
Nasa, México

Consegui trabalho com um produtor contratado pela emissora


WQED em Pittsburgh. Seu nome era Matt, de Matthias, von
Brauchitsch, um parente do ex-marechal de campo e comandante
em chefe do exército alemão, que caíra em desgraça com Hitler em
1941. Eu omiti que não tinha permissão de trabalho. Von
Brauchitsch trabalhava simultaneamente em vários documentários
sobre formas futuristas de propulsão de foguetes, um projeto da
Nasa. Desde o início, ele pareceu convencido das minhas
habilidades, sem exigir nenhuma referência ou formação de minha
parte. Aprecio até hoje esse otimismo pragmático nos EUA. O meu
filme deveria se concentrar nas primeiras pesquisas puras sobre
foguetes de plasma, que estavam em andamento sobretudo em
Cleveland, Ohio. Dito de forma simplificada, ali se pretendia usar
um plasma ultraquente para a propulsão, o que teria derretido na
mesma hora todos os recipientes feitos de materiais sólidos, por
isso estavam sendo feitos experimentos com recipientes não
materiais, formados por campos magnéticos extremamente fortes.
Em Cleveland, estava localizado o ímã mais forte do mundo na
época. Logo ao lado, havia um reator nuclear de pesquisa. Lembro-
me apenas vagamente de corredores com portas abertas, através
das quais se podiam ver matemáticos trabalhando. Uma vez eu
observei um grupo de jovens que estavam apenas pensando. Por
fim um deles se levantou e fez um ponto de giz numa lousa verde
escura, e depois uma seta apontando para o ponto. A seguir,
silêncio mais uma vez. Fiquei amigo do diretor científico de todo o
instituto, para o qual trabalhavam várias centenas de pessoas. Ele
tinha apenas 26 anos de idade. Eu tinha comprado um Volkswagen
bastante enferrujado, que a avó chamava de “bushwagon”,
“carroça”. O meu próprio nome ela também nunca acertava, me
chamando alternadamente de “Wiener”, “Urban” e “Orphan”. As
gêmeas me chamavam carinhosamente de “Orphan”, órfão. Viajei
várias vezes de Pittsburgh a Cleveland em meu decrépito
bushwagon. Ainda tenho um bizarro incidente claro na memória:
numa sala, havia uma grande câmara de vácuo, feita de aço
extremamente reforçado, tão grande que vários técnicos poderiam
entrar dentro para preparar um teste. Em funcionamento, o vácuo
era tão poderoso que um ser humano se dissolveria em vapor. A
câmara foi fechada, com a enorme porta de aço de acionamento
elétrico correndo muito devagar sobre trilhos. Dentro dela,
encontravam-se objetos configurados para um teste. A porta se
fechou em silêncio e alarmes sonoros assustadores foram
acionados para dar início ao teste. Então, de repente, vieram gritos
da câmara, e batidas desesperadas contra as paredes de aço. Um
técnico havia sido esquecido lá e não se deu conta de que a câmara
estava sendo fechada. Ele também não sabia que do lado de fora as
suas batidas podiam ser ouvidas muito alto. Passaram-se alguns
minutos antes que a porta se abrisse de novo bem devagar. O
homem lá dentro estava lívido, em estado de choque. Ninguém
sabia o que fazer. Um homem muito jovem, muito alto e muito
forte e muito calmo, o único negro entre os cerca de vinte
pesquisadores presentes, deu um passo à frente e segurou o
resgatado pela nuca, apenas isso. Ele o segurou por um tempo, e
então o homem em estado de choque riu, e todos os presentes
começaram a rir também. O evento, porém, teve como
consequência que a sala fosse fechada imediatamente e se iniciasse
uma investigação sobre o incidente, o que por sua vez teve como
consequência que uma verificação de segurança mais abrangente
fosse realizada alguns dias depois. Isso levou à minha saída do
projeto e ao fim da minha estadia nos Estados Unidos.
Mais tarde, a notícia da minha participação nesse projeto se
espalhou em versões cada vez mais exageradas. Eu teria feito
filmes para a Nasa, depois: eu teria trabalhado como pesquisador
para a Nasa, depois: eu teria desistido da minha carreira de
pesquisador e possível astronauta em favor de uma carreira no
cinema. Todas essas invenções me parecem muito interessantes e
não me incomodam. Não me importo com isso, porque sei quem
eu sou. Ou melhor, também aqui há coisas em que a memória se
molda, torna-se independente, adquire novas formas e se estende
suavemente como um véu sobre o sonâmbulo. No meu filme de
2017 sobre a internet, Eis os delírios do mundo conectado, coloco
para vários pesquisadores uma questão central, que chamo de
minha “questão de Von Clausewitz”. Em 1804, o teórico de guerra
Von Clausewitz fez, em seu livro Sobre a guerra, a célebre
observação de que a guerra às vezes sonha consigo mesma.
Baseado nela, coloco a questão se a internet sonha consigo mesma.
Depois disso, alguns conhecedores dos escritos de Clausewitz se
manifestaram: ele nunca teria feito essa observação, e também em
suas cartas não há nenhuma comprovação a respeito. Agora me
pergunto: entendi errado alguma coisa na minha leitura, ou eu
próprio inventei essa citação há muito tempo e a repeti para mim
mesmo incessantemente até que a confundi com a realidade?
Cerca de dez dias após o incidente na câmara de vácuo, recebi
uma intimação do Serviço de Imigração. Eu deveria me apresentar
de imediato com meu passaporte. Eu sabia o que isso significava.
Como tinha violado o status do meu visto, seria expulso dos
Estados Unidos, mas não para qualquer lugar do outro lado da
fronteira mais próxima, e sim de volta para a Alemanha. Comprei
depressa um dicionário de espanhol em Pittsburgh e simplesmente
peguei o carro e parti. Foi doloroso me despedir dos Franklin, mas
sabíamos que nos reencontraríamos em algum momento. Dirigi
quase sem pausas até o Texas e cruzei a fronteira em Laredo. Na
terra de ninguém na ponte sobre o rio Grande, ouvi barulho de
metal raspando na caixa de câmbio do meu Volkswagen, como se
os Estados Unidos não quisessem me deixar ir embora, e o México
ainda não estivesse pronto para me receber. Para consertar o carro,
empurrei-o para o sul, para o México. De lá, depois de dois dias,
segui viagem e me entreguei ao sabor dos acontecimentos.
Primeiro, fiz uma parada em Guanajuato, porque lá eu poderia
trabalhar nas charriadas, mas essa experiência se encerrou já
depois de alguns fins de semana, quando algo insólito aconteceu.
Diferente dos rodeios nos Estados Unidos, onde o touro e o
cavaleiro são soltos de um cercado estreito, no México o touro é
laçado e derrubado no chão por três charros. Ali uma corda é
enrolada em volta de seu peito e, tão logo o cavaleiro a segura, o
touro é solto. Ele na mesma hora começa a pular e explode, e em
dois segundos, que são percebidos como se dentro de um carro
capotando em alta velocidade, alguém como eu era derrubado. Era
sempre dolorido, mas o público adorava o pateta da Alemania. Meu
último touro, mais precisamente, meu último touro jovem, porque
eu me arriscava apenas com touros jovens, também começou a
saltar, mas então aconteceu algo inesperado: ele parou de repente e
virou a cabeça para mim. Para entusiasmo dos espectadores, dei-
lhe as esporas e gritei: “Atrevete, vaca!”. O touro perdeu toda a
calma, e reagiu com perfídia, correndo em linha reta em direção à
cerca de pedra da arena para me esfregar contra ela e me derrubar.
Na colisão, a minha perna ruim ficou exatamente entre o touro e a
parede de pedra. Embora, por precaução, eu tivesse calçado a
canela e o tornozelo com uma tala improvisada feita de duas réguas
escolares de madeira, isso foi o fim da diversão.
Para me manter, eu precisava de uma outra fonte de renda.
Então eu atravessava a fronteira para alguns ricos rancheros — os
grandes fazendeiros mexicanos — do meio das charriadas, e trazia
dos Estados Unidos aparelhos de som e também às vezes de
televisão, que eram muito mais caros no México por causa das
taxas alfandegárias. Era possível fazer isso, porque havia um furo
de controle na fronteira de Reynosa para McAllen. Por ali,
trabalhadores diaristas passavam em direção a McAllen, no Texas,
pela manhã, e à noite, de volta para casa, no México. Na fronteira,
eles contavam com três faixas exclusivas na estrada, que ali se abria
em leque, e já de longe os veículos eram identificáveis por adesivos
nos para-brisas. Os mexicanos somente recebiam esses adesivos
após complicadas verificações de segurança pelas autoridades dos
Estados Unidos. Adquiri por vias tortuosas uma placa mexicana e
um adesivo para o carro. Meu carro arrebentado era convincente.
De manhã cedo, os guardas de fronteira dos Estados Unidos
simplesmente acenavam para eu passar, bem como para os vários
milhares de outros carros nas faixas especiais. Hoje isso é
inimaginável, mas naquela época, em 1965, quase não havia tráfico
de drogas, nem guerra de cartéis. Quem queria imigrar
ilegalmente para os Estados Unidos, apenas atravessava o rio
Grande a nado e chegava na outra margem como mojado, molhado.
A única coisa importante para mim era chegar à cidade fronteiriça
texana de McAllen, a uma curta distância, sem chamar a atenção
por muitas vezes seguidas para o visto carimbado no meu
passaporte. Na volta, os mexicanos acenavam para eu entrar em
seu país sem verificar. Em alguns poucos casos, eu também levei
colts para o México, eram armas antes cerimoniais que, acima de
tudo, deveriam ter coronhas de madrepérola ricamente
trabalhadas. Os abastados rancheros gostavam de ostentá-las. Os
canos das pistolas também sempre tinham que ser muito
compridos, um macho simplesmente não podia carregar nas ancas
uma coisa curta qualquer. Há pouco tempo, encontrei uma carta
minha para o meu irmão Lucki, na qual descrevo uma pistola que
tinha um cano tão comprido, que empurrei até onde deu a coronha
contra a axila, e o cano, que me chegava até o cinto, enrolei com
fita adesiva em volta do peito, tão apertado, que eu só conseguia
respirar em curtas inspirações. Fiz isso porque me pareceu mais
seguro. Uma arma podia ser encontrada num carro, mas os oficiais
da alfândega mexicana nunca apalpavam um gringo diretamente, a
não ser que ele tivesse sido pego durante uma fuga. Mas esse tipo
de negócio logo acabou. Um ranchero queria um colt de prata
esterlina e uma bala de prata para acompanhá-lo. Era coisa que não
existia em McAllen, a joia tinha que ser especialmente
encomendada. Além disso, eu próprio tinha que arcar com os
custos iniciais. Eu me desfiz de tudo que tinha e arrisquei a
transação. Mas depois o ranchero se recusou a comprar o colt de
prata que lhe forneci, porque não havia uma bala de prata junto. A
arma em si funcionava, mas balas de prata apenas não existiam,
elas teriam se deformado no cano com a aceleração e o teriam feito
estourar. Passaram-se três semanas até que o homem, quase por
piedade, comprou o colt de mim. Em certo sentido, senti na
própria pele o que todos os pobres peones e vaqueros passavam
todos os dias.
Eu me mudei para San Miguel de Allende, uma belíssima
cidade colonial que hoje está irreconhecível. Justamente naquela
época, a primeira vanguarda de uma colônia de artistas se
estabelecera por lá, e durante décadas atraiu hordas de americanos
tão desnorteados quanto abastados, que acreditavam poder
descobrir ali sua criatividade. Hoje é difícil para mim entrar na
cidade. Mas nas explorações que fiz a partir dela, descobri as
múmias de Guanajuato, que naquela época ainda estavam
encostadas na parede em longas filas. Meu filme Nosferatu, filmado
doze anos depois, começa com uma longa sequência dessas
múmias, que tinham todas a boca aberta como se em gritos de
horror. Quando voltei para filmar, todas as múmias já estavam
expostas em vitrines verticais como num museu. Só à noite, em
segredo, podíamos libertá-las das suas masmorras de vidro e
encostá-las de novo na parede. Nunca me esquecerei de que elas
eram leves como papel, porque todos os seus fluidos corporais
haviam sido drenados. Para mim, o início de Nosferatu nada tem de
simbólico, ou no máximo à margem. Eu conhecera as múmias e
elas estavam ancoradas dentro de mim.
Durante todo esse tempo, o meu projeto de filme Sinais de vida
foi levado adiante. De Munique, incansavelmente, minha mãe
apresentava por mim solicitações a organismos de fomento e
enviava cópias dos meus primeiros filmes como amostras. Eu sabia
que logo teria que voltar para casa. Então, ainda mais ao sul no
México, na fronteira com a Guatemala, fiquei doente. Era hepatite,
mas eu ainda não sabia. Eu não obtivera um visto para a
Guatemala, mas estava ocupado com a ideia confusa de que
precisava ajudar a fundar um Estado maia independente no
departamento de El Petén, pois tinha ouvido falar que estava
havendo esforços para isso. Ainda me lembro da estrada de asfalto
na floresta, onde muitas cobras eram atropeladas, e dos riachos
claros e das grandes pedras nas quais as mulheres lavavam roupa. A
fronteira era formada pelo rio Talismã. Pelo menos por pouco
tempo, eu queria estar na Guatemala. Encontrei um ponto
adequado para isso rio acima, a algumas centenas de metros do
posto de fronteira. Enfiei numa rede de compras uma velha bola de
futebol de borracha que encontrara, para ter alguma ajuda na
flutuação, e, carregando minha mochila na cabeça, comecei a nadar
com cuidado. De certa forma, senti que alguma coisa não estava
em ordem. Parei de nadar imediatamente, e então notei que bem
na minha frente, na margem oposta, havia dois soldados muito
jovens hesitantes com seus fuzis. Eles haviam saído da selva e
sorriam constrangidos. Fiz um gesto discreto de saudação e
comecei a nadar de volta bem devagar.
Na verdade, em meu íntimo, eu estava feliz porque a minha
travessia da fronteira não tinha dado certo. Também ficou claro que
havia algo errado com a minha saúde. Eu me sentia muito fraco e
tive febre. Percorri o caminho de volta para o Texas quase sem
parar, desta vez sem placas falsas e sem adesivos no para-brisa.
Naquela época, ainda não havia compilação eletrônica de dados e
presumi que eu poderia entrar no país novamente com o meu visto
de estudante intercambista. O que eu tinha ido fazer no México?
Aleguei uma pequena viagem de estudo e, de fato, me deixaram
passar. A partir daí tudo se passa como em delírios febris. Dirigi e
dirigi, dia e noite; nas breves pausas, eu deitava a cabeça molhada
de suor no assento do passageiro e dormia por algumas horas.
Lembro-me de uma aldeia numa reserva indígena, Cherokee, na
Carolina do Norte. Lá eu abasteci o carro e comi um hambúrguer
servido por uma mulher indígena. Ela usava um vestido que
parecia saído de um desfile carnavalesco. Eu queria ver as galinhas
dançando, ali perto? Tudo dançava, meu prato, meu carro
estacionado, minha gorjeta no balcão. Sim, eu queria ver as
galinhas antes de dançar mais para o norte no meu “bushwagon”.
Anos depois, eu voltei lá e as galinhas dançantes do meu filme
Stroszek, de 1976, são provavelmente a coisa mais maluca que eu já
pus na tela. Hoje, quando observo a sequência final do meu filme,
vejo as galinhas como se nos opressivos sonhos febris da minha
viagem delirante. Cheguei a Pittsburgh. Os Franklin me levaram
imediatamente para o hospital. Depois de duas semanas internado,
o clã Franklin me resgatou já de volta às minhas plenas forças, e
apenas um ou dois dias depois, tomei o avião de volta para a
Alemanha.
19.
Pura vida

Posso suportar que não sou mais capaz de pular com o meu pé
direito. Foi um acidente estúpido e sem sentido que causei a mim
mesmo quando pulei da janela, mas no México um dos homens na
arena, que era um grande mestre do laço, disse-me que isso fazia
parte da vida, que era pura vida. Seu nome era Euclides. Ele apenas
me deu um aperto de mão depois que fui arremessado pela
primeira vez, quando eu sangrava pela boca por ter quase cortado
fora a minha própria língua com os dentes no impacto. A sua mão
era como um torno de ferro. Ele não se referia à “pureza” da vida
tal qual nos santos de antigamente, mas à presença nua e crua,
tempestuosa e arrebatadora da vida. Mais tarde, em meu filme
Cobra Verde, de 1987, dei em sua homenagem o seu nome a um
jovem aleijado de doze anos que dirige uma pousada e é o único
que não tem medo do bandido Cobra Verde, interpretado por
Klaus Kinski. O garoto tem um distúrbio de fala e, gaguejando,
mas muito orgulhoso, recita o próprio nome: Euclides Alves da
Silva Pernambucano Wanderley.
De qualquer forma, como a minha perna de impulso é a
esquerda, pude continuar a jogar futebol na Alemanha. Meu irmão
Till me apresentou ao München Schwarz-Gelb [Preto e Amarelo
de Munique] e lá eu jogava de líbero ou de centroavante. Os
associados do clube eram motoristas de táxi, padeiros,
assalariados, e eu adorava todos eles. O Preto e Amarelo não jogava
em nenhum campeonato oficial, mas acho que não faríamos feio na
quinta divisão. Meu irmão era mais habilidoso do que eu como
goleiro. Quando tinha catorze anos, ele chamou a atenção de um
caçador de talentos do 1860-München, que era o clube dominante
em Munique na época, antes do Bayern, mas minha mãe o
dissuadiu de uma carreira de atleta profissional. O Preto e Amarelo
havia sido fundado por um confeiteiro, Sepp Mosmeir. Nunca
conheci um homem tão comovente. Sepp irradiava uma simpatia e
uma amabilidade incondicionais e amava profundamente a ópera,
além de possuir qualidades extraordinárias de liderança. Todos nós
dávamos tudo por ele. Mas também pairava uma sombra sobre
todo o seu ser. Em sua infância no sul do Tirol, ele e seus
amiguinhos escalaram um poste elétrico no aterro da ferrovia, e
um deles conseguiu se agarrar ao fio de alta tensão. O menino foi
sacudido violentamente por alguns minutos, e começou a fumegar.
Sepp descreveu o som de como o corpo, todo carbonizado, por fim
bateu no chão. Soou como um saco cheio de briquetes atingindo
os trilhos da ferrovia. A mulher de Sepp, a “Moosin”, morreu de
câncer após longa agonia, e então o mesmo destino o apanhou. Eu
o encontrei pouco antes de ele morrer. Ele deixou um vazio em
mim para sempre.
Mudei de goleiro para jogador de linha. No Festival de Cinema
de Cannes, acho que foi o de 1973, quando Aguirre estava em
exibição na Quinzaine des Réalisateurs — a mostra dos diretores,
uma vez que o festival oficial havia rejeitado o filme —, foi marcada
uma partida de futebol de atores contra diretores no estádio, e eu
fui o goleiro. A maioria dos diretores era muito pouco atlética,
alguns eram gordos e mal conseguiam andar, enquanto os atores
eram em sua maioria bem treinados. Na verdade, éramos
irremediavelmente infe­riores, mas eu defendi todos os chutes
contra o meu gol. Os atores então mudaram de tática. Eles
deixavam calmamente os diretores entrarem em seu campo de
defesa e então chutavam longe a bola em direção ao meu gol
solitário, onde apareciam dois ou três livres na minha frente. Entre
eles estava Maximilian Schell, que havia jogado na seleção nacional
suíça de amadores. Eu o vi correndo atrás de um passe longo,
totalmente sozinho na minha direção. Bem longe da grande área,
alcancei a bola uma fração de segundo antes dele e chutei para fora,
mas Schell colidiu contra mim com força total. Ele poderia ter
desviado, mas era muito ambicioso mesmo num jogo amistoso
como aquele. Eu vi estrelas. Tive uma luxação no cotovelo, ele
virava para a frente em vez de para trás. Levei um ano inteiro para
me recuperar. Schell e eu ficamos amigos por causa dessa
trombada, e eu faço uma ponta em seu filme indicado ao Oscar, O
pedestre.
A partir de então passei a jogar como centroavante, embora
quase todos os jogadores do Preto e Amarelo fossem mais velozes
ou tecnicamente melhores do que eu. Mas eu entendia mais
depressa os deslocamentos no campo e também sempre
pressionava intensamente o gol adversário. Muitas vezes, minha
pressão pelo gol atraía mais de um zagueiro para cima de mim e
isso abria brechas para os outros jogadores do time. Eu era capaz
ler situações, e esse tipo de jogador sempre me impressionou em
particular, como o italiano Franco Baresi na década de 1980, por
exemplo, um zagueiro que lia as intenções coletivas de todo o
ataque adversário; para mim ninguém entendia o jogo tão
profundamente quanto ele. Como atacante, Thomas Müller do
Bayern de Munique também é desse tipo, um jogador que de
repente surge como um fantasma, sozinho diante do gol: ele
percebe os espaços como nenhum outro e ninguém sabe dizer de
onde ele veio. Meu avô era dessa mesma cepa, ele era capaz de ler
paisagens. Sepp Mosmeir jogava na defesa, e o seu sonho de
marcar um gol nunca se tornou realidade. No seu jogo de
despedida, de repente houve um pênalti a nosso favor. Toda a
equipe incentivou o relutante Sepp a fazer a cobrança. Sepp
Mosmeir marcou. Levamos o homem aos prantos para fora do
campo. O árbitro parou o jogo por vários minutos.
No futebol, sofri algumas das lesões típicas desse esporte, como
uma ruptura de ligamentos, e uma vez quando eu ainda era goleiro,
num jogo contra a Associação dos Açougueiros da Baviera, um
time de jovens musculosos que usavam a força bruta contra nós
como se fôssemos gado, um dos atacantes me acertou no queixo
com toda a força. Eu havia segurado a bola e fiquei desmaiado no
chão. Quando acordei, não quis sair de campo e tentei explicar ao
juiz que a expulsão não estava certa, que não tinha sido eu quem
cometera a falta, e sim o meu adversário. Mas o árbitro ficou
gritando algo que, com os zumbidos dentro da minha cabeça, não
consegui ouvir. Por fim, ele puxou a minha camisa e apontou para
o sangue que havia nela em abundância e que devia ser meu, pelo
que entendi. Levei catorze pontos no queixo, mas eu não tinha
seguro de saúde na época e quis manter os custos baixos, e
simplesmente me deixei costurar a frio. Da mesma forma, extraí
um dente sem a injeção anestésica usual. Ver isso como
masoquismo seria uma interpretação errada. Era algo que condizia
com a maneira como eu entendia o mundo e vivia a minha vida.
Quando éramos crianças, em Wüstenrot, nós, os meninos,
travávamos batalhas com castanhas recém-rebentadas das cascas, e
uma vez eu subi no telhado de um celeiro para ter uma posição
segura, de onde também pudesse ver quem estava escondido onde.
Sentei-me em posição de cavaleiro no cume do telhado e uma voz
chamou o meu nome. Virei a cabeça em direção a ela e, nesse
momento, fui atingido em cheio no olho. Um relâmpago dentro de
mim me sacudiu e ainda me lembro de como escorreguei de
bruços pela íngreme vertente do telhado. A mim pareceu que
deslizei durante meses pelo telhado abaixo. Caí de cabeça em cima
de algumas máquinas agrícolas, ainda posso ver as barras de ferro e
os arados abaixo de mim. Torci o antebraço, ambos os ossos —
ulna e rádio — se romperam. O médico em Wüstenrot não
corrigiu corretamente a fratura. Uma semana depois, após dores
excruciantes, o gesso foi removido no hospital e tudo foi
remontado.
Mas o pior de tudo que me aconteceu foi uma queda que sofri
esquiando em 1979, perto de Avoriaz, na região do Mont Blanc. Eu
havia sido convidado com um filme para o festival de cinema e
peguei emprestado um equipamento para esquiar. Eu estava
interessado numa encosta vertiginosamente íngreme, na qual
alguns atletas faziam a tentativa um tanto tola de quebrar o recorde
mundial de velocidade em esquis. Naquela época, ele já era
superior a 220 quilômetros por hora. Nessas velocidades, os
esquiadores usavam capacetes aerodinâmicos alongados que iam
até o cóccix, além disso, eles instalavam uma espécie de aerofólio
nas panturrilhas. Quando o meu grupo avançou, fiquei para trás
por um tempo e estudei a encosta. Comecei a descer de cerca de
dois terços de sua altura. A sensação era inebriante. No final, uma
suave inclinação no sentido oposto, que se subia em disparada,
ajudava a reduzir a velocidade. À noite, contei sobre a minha
experiência, mas riram de mim, porque na minha opinião eu havia
chegado a 140 quilômetros por hora. Dois dias depois, estávamos
novamente perto da mesma descida e eu disse: vou apresentar a
prova aqui e agora. Infelizmente, isso não passou de pura fanfarrice
da minha parte. Dessa vez comecei alguns metros mais alto. Em tal
velocidade, as menores irregularidades do terreno causam
solavancos, como contra a suspensão de um carro de corrida, e às
vezes, apenas um palmo acima da neve, perde-se a aderência ao
solo por vinte ou trinta metros. Ainda me lembro de duas coisas:
passei disparado com os meus esquis na altura dos olhos do meu
irmão Lucki e de um produtor israelense, Arnon Milchan, ambos
homens altos, e naquele momento soube que estava alto demais. E
quando aterrissei, ainda vejo em câmera lenta, um dos esquis
disparou como uma lança. Lucki até hoje não consegue descrever o
que viu. Mas ao que tudo indica minha bota ficou cravada na neve
e eu acabei caindo de cabeça. Devo ter sido arremessado pelo ar
por muitos metros, e só depois de cerca de cem metros finalmente
parei. A princípio, o maior perigo era que no meu estado
inconsciente eu pudesse engasgar com o meu vômito. Quando
voltei a mim, vi sangue e vômito na neve e ouvi alguém gemer
baixinho. Então percebi que era eu quem estava gemendo. Sofri
ferimentos em duas vértebras cervicais e a minha escápula foi
arrancada do esterno. Embora a neve estivesse fresca e macia, ela
ralou um pedaço da pele do meu rosto, e um olho também ficou
ferido. Conto sobre esse acidente, do qual eu me envergonho,
porque de alguma forma também sou produto dos meus erros e
dos meus julgamentos falhos.
Mas também tive sorte na mesma medida. Anos depois, deve
ter sido em 1987, em filmagens na Suíça, interpretei um vilão no
filme Gekauftes Glück [Felicidade comprada] de Urs Odermatt.
Numa cena, o monstro repugnante que eu interpretava foge de
uma propriedade rural isolada para o vale em seu jipe aberto e tem
que atravessar um desfiladeiro com uma torrente por uma ponte
muito estreita. Eu dirigia numa velocidade bastante alta, mas
Odermatt, o diretor, disse que parecia nada, será que eu não
poderia dar uma boa acelerada? Então, na tomada seguinte,
acelerei tanto que o carro derrapou na areia da íngreme estrada
florestal. Fora de controle, o jipe rompeu o parapeito de ferro da
ponte, mas, como por um milagre, uma das barras de ferro cravou
no compartimento do motor segurando o carro e apenas envergou
para o lado com o veículo empalado, como se quisesse me despejar
feito uma carga de lixo. Como consegui me segurar no volante
ainda não está claro para mim. No entanto, na colisão, eu bati com
o meu flanco no volante e tive uma cólica renal. Walter Saxer, que
era o diretor de produção, me levou assustado ao médico na aldeia
mais próxima. As fotos Polaroid que tenho do local do acidente
parecem irreais, indecifráveis, um grande inseto bizarro que
rompeu uma teia de ferro. Abaixo, nas profundezas, cintilam as
enormes rochas polidas pela torrente.
Também tive sorte de sair com vida dos últimos dias da pré-
produção de Aguirre. Sob grande pressão de tempo, havíamos
transferido toda a produção para as terras altas de Cusco, para
começar a filmar no vale do Urubamba e em Machu Picchu logo no
início de 1972. Tivemos muitos atrasos e dificuldades para levar até
o local os figurinos, com elmos e armaduras de ferro, usados no
filme pelos conquistadores. Tive que ir e voltar várias vezes entre
Lima e Cusco. Voei com a companhia aérea local, a Lansa, porque
era de longe a mais barata. Com a penúria financeira da produção,
era a escolha natural. Mas a Lansa também era famosa por seus
acidentes. Um dos seus únicos quatro aviões caiu, o seguinte
apenas servia como sucata e foi desmanchado para a obtenção de
peças de reposição. No final, restava apenas um. É que o penúltimo
avião colidira com o flanco da montanha perto do aeroporto
durante a aproximação de pouso em Cusco, todas as pessoas a
bordo morreram. Logo vieram à luz certas peculiaridades: o avião
tinha capacidade para 96 pessoas, entre passageiros e tripulantes.
No local do acidente em Cusco, porém, foram encontrados 106
corpos. Ao que tudo indicava, funcionários da companhia haviam
vendido por debaixo do pano dez lugares a mais em pé no
corredor. Depois se descobriu que, embora o piloto de alguma
maneira soubesse voar, ele não tinha uma licença válida e acho que
também se verificou que os mecânicos em terra que haviam
assumido a manutenção apenas tinham consertado lambretas antes
disso. Portanto, havia somente um último avião que dava conta
sozinho dos voos domésticos, Lima-Cusco ida e volta, e depois
Lima-Pucallpa-Iquitos ida e volta, que era o circuito da selva. A
companhia aérea teve sua licença categoricamente cassada, porém,
de maneira surpreendente, depois de alguns meses estava de volta
aos negócios — com o seu último avião. Martje, minha mulher,
estava presente em Aguirre, ela ajudou em todo tipo de tarefas e
também acompanhou alguns dos atores de Lima a Cusco. Ela tinha
reserva no voo de dois dias antes do Natal, e estava no último voo
antes da catástrofe que sobreviria. Não é fácil colocar a trama dos
movimentos de então na ordem certa. Muitos viajantes apinhavam-
se no aeroporto, a fim de chegar a tempo às suas famílias para as
festas. Eu mesmo consegui uma passagem para o dia seguinte à
viagem de Martje, cedo na manhã de 23 de dezembro. Fui ao
aeroporto, mas o avião não apareceu no portão de embarque.
Somente depois de horas foi comunicado que ele ainda se
encontrava em manutenção, era preciso ter paciência, logo estaria
pronto. Isso se arrastou o dia todo. Enquanto isso, os passageiros
do segundo voo da companhia na rota da selva também chegaram e
avançaram contra o balcão. No fim da tarde, disseram que o avião
não poderia decolar naquele dia, deveríamos voltar cedo na manhã
da véspera de Natal. Às seis da manhã, eu estava de volta. A
multidão de passageiros havia aumentado ainda mais, porque todos
do dia anterior estavam lá e agora também chegavam os do dia 24
de dezembro. Mas o avião ainda estava em conserto. No meio da
multidão, consegui passar uma nota de vinte dólares para o
atendente da companhia atrás do balcão, e eu e um pequeno grupo
do meu pessoal fomos colocados na lista do voo. Mas ainda nada de
o avião chegar. Lembro-me de ter tido uma sensação funesta por
momentos. Então por fim o avião veio rolando em direção ao
portão, já era meio-dia, mas para a minha decepção houve um aviso
geral de que o horário já estava avançado e só seria possível realizar
um voo, o que ia para a floresta. O voo para as terras altas de Cusco
infelizmente fora cancelado. Hoje ainda posso ouvir os vivas dos
passageiros que poderiam voar para Pucallpa e Iquitos.
Depois de trinta minutos, o avião sumiu do radar. A busca pelo
voo desaparecido durou dias. No final, aquela se tornou uma das
maiores operações de busca de todos os tempos na América
Latina. Até uma astronauta americana que na época se encontrava
no Peru participou. Supunha-se que o avião tivesse caído nas
encostas cobertas pela selva além dos Andes, mas lá havia apenas
nuvens, tempestades e chuvas. Após dez dias, as buscas foram
suspensas porque não havia esperança. No 12º dia depois do
acidente, de repente apareceu uma garota de dezessete anos, a
única sobrevivente, Juliane Köpcke. Ela ia encontrar seu pai na
selva e estava viajando com sua mãe. Seu pai era um biólogo e,
depois da guerra, tinha atravessado os Alpes a pé até à Itália em
busca de um navio que o levasse à América do Sul, onde pretendia
montar uma estação ecológica. Os princípios da ecologia ainda
eram completamente desconhecidos naquela época. Na Itália, ele
não encontrou um navio, e se pôs a pé a caminho da Espanha, de
onde, escondido como passageiro clandestino num carregamento
de sal, partiu para o Brasil. Depois, ele atravessou quase todo o
continente a pé e de canoa e finalmente montou a sua estação de
pesquisa na selva peruana, onde Juliane cresceu. Na véspera do
Natal de 1971, Juliane partiu de minissaia e sapatos leves; na noite
anterior, ela havia festejado a sua formatura do ensino médio na
capital. O avião se desintegrou em pedaços durante uma violenta
tempestade a 5 mil metros de altitude. Mesmo em plena
tempestade, Juliane continuou planando na sua fileira de assentos
para três pessoas, sem avião. Mais tarde, ela disse que não foi ela
quem abandonou o avião, mas o avião a ela. Por algumas semanas,
Juliane foi uma sensação mundial e depois desapareceu
completamente de cena, porque jornalistas disfarçados de padre ou
faxineira infiltravam-se no hospital em Pucallpa; deve ter sido
terrível para ela, que além de tudo havia acabado de perder a mãe.
A história da sua sorte inacreditável e de sua odisseia pela selva
ficou profundamente gravada dentro de mim, pois eu próprio de
alguma maneira fui tocado muito de perto pela sua tragédia.
Somente 26 anos depois, eu a procurei e rodei com ela, direto no
local do acidente, um filme, Asas da esperança (1998). Sua história é
um impressionante testemunho de uma jovem que tinha em si
forças que mesmo em homens nunca vi igual. Na fase inicial de
Aguirre, nos primeiros dias de 1972, estávamos filmando nas três
corredeiras consecutivas do rio Huallaga e, sem que pudéssemos
sabê-lo, estávamos a uma distância de apenas alguns afluentes
paralelos do Amazonas em relação ao caminho que Juliane
desbravava meio-morta pela selva.
No local da queda, não havia na floresta uma clareira aberta pelo
impacto. Em vez disso, o avião se dispersara em fragmentos numa
área de quinze quilômetros quadrados. Por isso, não foi possível
avistar do alto árvores destruídas e destroços. A partir dos relatos
de Juliane após seu resgate por três trabalhadores da floresta, foi
possível reconstruir a sua caminhada de onze dias e encontrar a
região da queda. As primeiras equipes de resgate encontraram
malas arrebentadas, guirlandas de Natal e presentes pendurados
nas árvores; ao lado, como um bônus macabro, surreal, de
decoração, vísceras de seres humanos.
Em 1998, enviei duas expedições à floresta na região do rio
Pachitea, mas elas retornaram sem resultados. Depois encontrei
um dos três trabalhadores florestais que haviam resgatado Juliane.
Ele se lembrava bem da região e, sozinho, se pôs em busca do local
do acidente. Seguindo pelo pequeno rio Shebonya, na água rasa ele
pisou numa raia-lixa que estava escondida na areia e que, com a
ponta da cauda, perfurou a sua bota reforçada com várias camadas
de borracha. Essas raias são tão venenosas que são mais perigosas
do que a maioria das cobras. Ele ficou deitado por dois dias entre a
vida e a morte num banco de areia, até que por acaso passou uma
canoa. Mas os remadores não queriam levá-lo, porque ele não tinha
consigo dinheiro para pagar pela viagem. Por fim, ele deu a sua
espingarda como pagamento e eles o carregaram na canoa. Dessa
forma, ele se salvou. Encontrei os homens da canoa e comprei a
espingarda de volta. Juliane a entrega a ele no filme, como um
presente de reencontro com seu anjo salvador depois de tantos
anos. Foi ele também quem depois liderou a quarta e última
expedição em busca do local do acidente para o filme. Não tinha
sido possível remover os destroços do avião, apenas corpos e
partes de corpos haviam sido recolhidos. Nessa expedição, viajei
com o meu filho mais novo, Simon, que tinha na época oito anos.
Cinco macheteros iam à nossa frente, abrindo picadas na selva.
Estávamos bem equipados, mas o meu filho, com quem desenvolvi
um vínculo profundo na época, adoeceu; mesmo assim,
continuamos a marcha por cinco dias. Em dois deles, Simon foi
carregado nas costas por um dos macheteros. Foi Simon quem
encontrou os primeiros fragmentos, um painel de controle da
cabine, que guardo até hoje.
Mais tarde, meu assistente, Herb Golder, desceu de um
helicóptero numa corda, e com ele também vários trabalhadores,
que derrubaram algumas árvores para que o helicóptero pudesse
pousar ali. Esse ponto tornou-se o nosso acampamento para as
filmagens. Meu amigo Herb Golder foi meu assistente em vários
filmes. Em Invencível, ele também interpreta um rabino e o faz de
forma muito convincente. Eu testei dezenas de atores e o único
que conseguiu representar a cena de forma autêntica e inteligente
foi Herb. Depois também escrevemos juntos o roteiro de uma
história que ele havia pesquisado durante anos, Meu filho, olha o
que fizeste!, de 2009. Orginalmente, Herb é professor de grego
antigo e latim na Universidade de Boston, e não tenho mais
ninguém com quem possa discutir a Antiguidade com tantos
detalhes. Herb não é um erudito ermitão. Ele parece um tronco de
árvore, e é faixa preta em várias modalidades de artes marciais.
Quando escutam a sua voz, figurantes que estão à toa distraídos no
set de repente aguçam os ouvidos. Então em 2008 eu rodei o filme
com Michael Shannon, o ator mais talentoso da sua geração. Hoje
ele é uma estrela. Até Meu filho, olha o que fizeste!, ele tivera apenas
papéis secundários, e eu confiei a ele o personagem principal.
David Lynch estava envolvido na produção, mas na verdade quem
estava lá era o seu produtor Eric Basset. A essa altura, David Lynch
quase não tinha mais interesse pelo cinema e havia se recolhido
inteiramente em sua meditação transcendental.
20.
Dançando na corda bamba

Muitas coisas na minha vida se afiguram para mim como se eu


andasse numa corda bamba, a maior parte do tempo sem perceber
que à minha esquerda e à minha direita um abismo se escancarava.
Não é por acaso que sou amigo de Philippe Petit, que ficou famoso
quando, em 1973, pouco antes da inauguração das Torres Gêmeas
do World Trade Center em Nova York, esticou uma corda entre os
dois arranha-céus e, numa altura vertiginosa, dançou em cima dela.
Ele já havia me procurado e me encontrado em 1969, quando Sinais
de vida estava sendo exibido no festival de cinema de Nova York.
Naquele momento, Philippe planejava a sua ação nas Torres
Gêmeas já fazia um bom tempo. Pouco antes de nos conhecermos,
ele executara uma proeza secreta no desfiladeiro mais profundo da
Europa, na Savoia. À noite, ele estendeu uma corda sobre o abismo
e, à primeira luz do dia, foi até lá, e só por acaso foi visto por um
camponês que conduzia as suas vacas por uma ponte para pastar ali
por perto. O camponês deixou suas vacas onde estavam, correu de
volta para a aldeia e acordou o policial. Quando os dois chegaram
ao local da bela ação, não viram mais nada. Philippe desaparecera.
Seus ajudantes haviam recolhido rapidamente a corda, apenas
algumas hastes de ferro cravadas fundo na terra lembravam onde
ela havia sido ancorada. Já no caso das Torres Gêmeas de Nova
York, ele se infiltrou com documentos falsos numa associação de
soldadores anos antes e chegou até mesmo a montar uma
construtora de fachada, que ocupou um escritório numa das torres
ainda inacabadas. Nesse escritório, pouco a pouco, ele fez um
depósito para a corda de aço e os outros equipamentos.
Finalmente, de um dos platôs do telhado, atirou no prédio gêmeo
uma flecha à qual estava presa uma fina linha de pesca. Seus
ajudantes pegaram a linha e nela prenderam um arame de aço, que
foi puxado da outra torre, onde foi atado a um fino cabo. Por fim,
nesse vaivém, a corda de aço, que pesava várias toneladas, foi
estendida até a outra torre, onde Philippe já havia soldado
secretamente sob um forro um pesado gancho para a ancoragem.
Então, às seis horas da manhã, ele subiu na corda. Seu equilíbrio
era imperturbável, ninguém olhava para ele, até que de repente, lá
embaixo, um motorista de táxi o notou. Formou-se um
engarrafamento que se espalhou mais e mais, por muitos
quarteirões, em direção ao norte. Os policiais invadiram os dois
telhados, mas não conseguiram tirar Philippe da corda. Ele
finalmente se deitou na corda de aço para descansar, para tirar um
cochilo, por assim dizer, pois um helicóptero da polícia estava
causando uma turbulência perigosa.
Algum tempo depois, em Paris, tarde da noite, Philippe abriu a
tampa de um bueiro para mim e me apresentou seu reino secreto
de túneis e câmaras intermináveis sob a cidade. Numa grande
câmara, há milhares de ossadas empilhadas ordenadamente, em
outra, crânios de uma remota época de peste. Outra noite saímos
levando conosco uma corda de escalada de sessenta metros e um
gancho, Philippe queria explorar comigo o telhado da igreja gótica
de St. Eustache no distrito de Les Halles. Mas fomos
surpreendidos por um cantor e ator famoso, que estava bêbado a
caminho de casa, e desistimos do nosso intento. Na abertura da
Viennale em 1993, em Viena, Philippe dançou, a meu convite,
numa corda entre a Flakturm e a torre do cinema Apollo.
Eu não via os abismos ao lado do meu caminho, mas sem
nenhuma ação de minha parte, como se uma maldição me
perseguisse, atraía o azar no trabalho em meus filmes. Já no meu
primeiro longa-metragem, Sinais de vida, a pré-produção estava
finalizada, os contratos assinados, os figurinos feitos no local,
quando aconteceu o golpe militar na Grécia. As vias ferroviárias
foram bloqueadas, o tráfego aéreo, suspenso, ninguém sabia ao
certo o que havia acontecido. Eu não conseguia mais falar com
ninguém e por isso dirigi de Munique a Atenas quase sem parar. A
fronteira ainda estava aberta. O ministério responsável pelas
autorizações de filmagem estava fechado, soldados dormiam nos
corredores. Eu soube pelo nosso diretor de produção grego que
todas as autorizações haviam sido canceladas e, ao mesmo tempo,
estava claro que a última coisa em que os militares estavam
interessados eram produções cinematográficas estrangeiras.
Arrisquei dar início às filmagens com alguns dias de atraso. Mas fui
terminantemente proibido de evacuar o porto da ilha de Cós e de
disparar fogos de artifício no passeio público. Mesmo assim, eu fiz
isso. Havia soldados por toda parte, mas não fui preso.
Isso foi apenas o começo dos problemas. Meu ator principal,
Peter Brogle, antes de se tornar ator, tinha sido equilibrista num
circo. Ele sugeriu dançar numa corda bamba no forte; embora isso
não estivesse previsto no roteiro, achei a ideia interessante, pois
tornaria visível o equilíbrio precário do protagonista. Um
equilibrista sempre ancora a sua própria corda e, nesse trabalho, a
menos de dois metros de altura, uma pedra se soltou e Brogle caiu
de um ressalto do muro. Na queda, ele quebrou o osso do
calcanhar. Esse é o ponto mais delicado do pé humano, que sofre o
primeiro impacto de todas as forças na locomoção. A duas semanas
do final das filmagens, tivemos que interrompê-las. Meu ator
passou seis meses entre hospital e fisioterapia, antes que
pudéssemos retomar o trabalho. E mesmo assim, Brogle apenas
conseguia se deslocar usando um complicado dispositivo para
andar, que tinha que ser ancorado em seus quadris. Somente era
possível filmá-lo da cintura para cima, mas ainda não havíamos
rodado a cena na ilha de Creta com os moinhos de vento. Thomas
Mauch teve uma ideia tão simples quanto brilhante: com a câmera
na mão, ele filmou as botas e as pernas de um figurante subindo o
terreno pedregoso, e Brogle ficou postado à espera para, na mesma
tomada, dar continuidade aos passos. Chegando ao alto, a câmera
deixa as pernas fora do quadro por uma fração de segundo e, em
seguida, captura o tronco e o rosto do protagonista e o segue até a
beira da plataforma, além da qual os muitos milhares de moinhos
de vento o esperam.
Nos filmes seguintes, o azar não se fez por esperar. Logo no
início da nossa viagem ao Saara, antes ainda de atravessarmos para
a África, o cinegrafista Jörg Schmidt-Reitwein teve um dedo
esmagado sob o capô do automóvel, e o osso se partiu em muitos
fragmentos que precisaram ser alinhados num fio de aço para
voltarem à ordem certa. Depois fomos presos em Camarões, sem
que até hoje esteja totalmente claro por quê. Por fim, partimos de
lá para o interior da África e pretendíamos continuar filmando nas
montanhas Rwenzori, na fronteira do Congo com Uganda, mas a
partir da República Centro Africana, o meu cinegrafista e eu
ficamos tão doentes que não podíamos mais continuar a nos
deslocar. Em Bangui, tivemos temporariamente que parar de filmar
e coletar material para os dois filmes seguintes. Em Também os
anões começaram pequenos, o destino nos foi mais favorável e só
tivemos sorte. O filme é sobre a revolta dos internos de uma
instituição que, numa orgia de destruição, deixam tudo
despedaçado. Todos os objetos são de tamanho normal, porém, em
função da estatura dos atores, uma motocicleta ou uma cama de
casal parecem monstruosos. Um dos liliputianos do filme foi
atropelado pelo automóvel sem motorista, mas se levantou na
mesma hora e continuou entusiasmado a jogar pratos no veículo.
Um outro ator de repente pegou fogo na cena em que os
liliputianos, em seu afã de destruição, regam os vasos de plantas
com gasolina e os incendeiam. Eu me joguei em cima do homem
em chamas abafando o fogo com o meu corpo, e ele só teve uma
pequena bolha na orelha. Muito mais tarde, de repente um detalhe
completamente insignificante dessa filmagem foi amplificado pela
mídia e começou a se espalhar como que por si só; mesmo nas
biografias mais resumidas, ele sempre volta a aparecer: eu teria
pulado em cima de um cacto. É verdade. Pelo susto com o homem
em chamas, fiz uma promessa para os atores: “Se todos saírem sãos
e salvos das filmagens, eu vou pular num campo de cactos diante
das suas câmeras de 8 mm e máquinas fotográficas”. Esse campo
estendia-se logo atrás do edifício principal. Pular de cima de uma
rampa foi mais fácil do que sair de lá, pois os cactos eram altos,
ficavam muito perto uns dos outros, e os seus espinhos eram
desagradavelmente longos. Alguns deles hibernaram nos tendões
dos meus joelhos.
Mais tarde, fiz uma promessa semelhante a meu amigo Errol
Morris: comi os meus sapatos diante do público num cinema em
Berkeley, na Califórnia, quando o primeiro filme de Errol, Gates of
Heaven, estreou em 1978. Além de mim, ninguém levava Errol de
fato a sério, porque ele nunca havia persistido em nada até o fim.
Embora muito talentoso musicalmente, ele havia deixado de lado o
seu violoncelo de um dia para o outro; praticamente terminara sua
dissertação na universidade, mas nunca a entregara; juntara
milhares de páginas de material sobre assassinos em massa, mas
nunca escrevera seu livro sobre eles. Quando ia começar a fazer o
seu primeiro filme, ele se queixou comigo sobre os problemas para
arrecadar dinheiro. Na época, eu lhe disse: este é um projeto que
dá para começar com apenas um rolo de filme, o resto virá pouco a
pouco. Com um projeto daquele peso, encorajei-o, o dinheiro seria
obrigado a segui-lo como um vira-lata na rua com o rabo entre as
pernas. E que, por favor, dessa vez ele concluísse o projeto
iniciado. No dia em que o filme fosse lançado nos cinemas, eu
comeria os meus sapatos, aqueles mesmos que estava usando no
momento. Também essa anedota acabou entrando até nas mais
resumidas das minhas biografias, mas o mais importante foi que o
filme ficou incrivelmente bom. Roger Ebert, o papa da crítica nos
Estados Unidos, incluiu-o na sua lista dos “Dez melhores filmes de
todos os tempos”; aliás, Aguirre ainda está nessa lista.
De resto, tive também muitos altos e baixos com Errol. Em seus
estudos sobre assassinos em massa, ele passou meses fazendo
pesquisas em Plainfield, uma vila onde Judas perdeu as botas, no
estado de Wisconsin. Foi lá que agiu o mais notório de todos os
assassinos americanos, Ed Gein. Psicose, de Hitchcock, é inspirado
nele. Além dos assassinatos, nos quais estripava as vítimas como se
fossem animais de caça e as esfolava para confeccionar abajures e
um trono, ele também desenterrava escondido à noite cadáveres
recentes no cemitério. Errol notou que os túmulos abertos
formavam um círculo em cujo centro estava o túmulo da mãe de
Gein. Ed Gein também teria desenterrado a própria mãe?
Especulamos sobre a pergunta por um longo tempo. A resposta
somente poderia ser encontrada se Errol reabrisse o caixão. Se o
corpo de sua mãe ainda estivesse lá, então ele não o tinha
desenterrado, se o corpo estivesse faltando, então ele tinha. Eu me
propus a ajudar Errol. Alguns meses depois, eu viajaria de Nova
York para o Alasca com uma câmera e uma pequena equipe para
filmar e, a meio caminho da fronteira com o Canadá, num dia
combinado, encontraria Errol. Cheguei a Plainfield e providenciei
pás e picaretas, mas a coragem de Errol o abandonara. Ele tinha
tomado um chá de sumiço. Mas a minha espera em vão em
Plainfield teve pelo menos um efeito que mais tarde veio a ser
importante para mim. O carro estava com problemas na
embreagem, mas na própria Plainfield não havia oficina. A alguns
quilômetros de distância havia um cemitério de automóveis, onde
um mecânico desmanchava sucata. Na mesma hora fiquei
entusiasmado pelo lugar e seu dono, e pouco mais de um ano
depois voltei lá e convenci o mecânico a se tornar um dos
personagens principais do meu filme Stroszek. O cemitério de
automóveis e a paisagem sombria ao redor dão ao filme a aura de
desolação do sonho americano. Errol, que nunca planejara filmar
nada em Wisconsin, no começo ficou de mal comigo, eu teria
roubado a sua paisagem, eu era um ladrão de mãos abanando. Mas
como Errol gostou muito do filme, se reconciliou comigo. É raro
nos vermos, mas temos um pelo outro um apreço muito especial.
Mas os golpes que me atingiram mais violentamente foram os
de Fitzcarraldo. Quando rodamos filmes difíceis, sempre tenho
comigo a tradução da Bíblia de Martinho Lutero, de 1545, numa
edição fac-similar. Encontro consolo no Livro de Jó e também nos
Salmos. Além disso, tenho sempre comigo, de Lívio, A Segunda
Guerra Púnica, sobre a guerra que durou de 218 a 202 a.C. e se
inicia com a partida de Aníbal do Norte da África e a travessia dos
Alpes com elefantes de guerra, um empreendimento de uma
ousadia ímpar. Depois de derrotas esmagadoras no lago Trasimeno
e em Canas, Roma estava à beira do abismo. Na situação
praticamente sem saída, Quinto Fábio Máximo foi encarregado de
liderar a guerra e salvou Roma e com isso também, em última
instância, o Ocidente como o conhecemos, que de outra forma
teria se tornado fenício em vez de romano. Mas o seu grande feito
consistiu em estar sempre em retirada, sempre relutante em
enfrentar a última batalha campal, pois o contrário teria sido o fim
de Roma. Fábio Máximo travou uma guerra de duro e silencioso
desgaste. Isso lhe rendeu o apelido depreciativo de “cunctator”,
“protelador” ou “protelador covarde”, e até hoje a história não o
reconheceu plenamente. Mas Fábio Máximo sabia exatamente o
que estava fazendo, mesmo que por isso fosse desprezado pela
casta guerreira. Somente Aníbal entendeu que Fábio seria a sua
ruína. Quando um grande contingente de suprimentos sob seu
irmão Asdrúbal foi destruído, Aníbal disse: “Vejo o destino de
Cartago”. Ainda antes do Siegel Hans, Fábio Máximo é o maior de
todos os meus heróis, e logo depois do Siegel Hans vem Aníbal.
Em Fitzcarraldo, os preparativos se estenderam por três anos.
Originalmente, a 20th Century Fox queria produzir o filme. Jack
Nicholson ficara muito impressionado com os meus filmes e
queria fazer o papel principal, mas logo ficou claro que ele e a 20th
Century Fox queriam rodar o filme no Jardim Botânico de San
Diego, com um navio miniatura de plástico. Quase não havia
efeitos digitais no início da década de 1980. Além disso, naquela
época Nicholson só aceitava projetos que lhe permitissem estar
presente ao vivo como espectador nos jogos de basquete do Los
Angeles Lakers. Ele me levou em seu avião particular para um jogo
do Lakers em Denver e tentou me convencer de que a solução de
San Diego era a mais simples de todas. Olhando para trás, fico
surpreso com a quantidade de alternativas que foram consideradas,
uma das quais era Warren Oates, que sem dúvida teria sido
interessante — isto é, rebelde —, como Fitzcarraldo. Ele tinha um
rosto “proletário” meio amassado e ficou conhecido como o astro
em Meu ódio será sua herança e Tragam-me a cabeça de Alfredo
Garcia. Tínhamos que construir navios, montar grandes
acampamentos na floresta, mas a 20th Century Fox se dirigiu a
mim muito cordialmente numa grande reunião com todos os
responsáveis e advogados, todos me tratando pelo primeiro nome.
Logo, porém, veio a proposta de que, por questão de segurança, o
filme deveria ser rodado numa “selva boa”, num jardim botânico.
Eu perguntei educadamente o que era uma selva ruim, e daquele
ponto em diante o clima esfriou para baixo de zero. A partir de
então, fui tratado apenas por “Mr. Herzog” e soube que estava
sozinho.
Mais tarde, muitas vezes me perguntaram por que não gravei o
filme na cidade peruana de Iquitos, que fica no meio da floresta,
com hotéis e conexões aéreas, em outras palavras, numa floresta de
fácil acesso. Mas em Iquitos a paisagem é tão plana pelos próximos
3 mil quilômetros, que há apenas pouco mais de cem metros de
diferença de altitude em relação ao Atlântico. Nós, porém,
tínhamos que encontrar um ponto com dois afluentes do
Amazonas que corressem paralelamente e fossem separados
apenas por uma estreita faixa de terra mais elevada. Mas não havia
algo assim em lugar nenhum. Nessa parte da floresta, há rios que
correm paralelos, mas com 25 quilômetros de distância e montes
muito altos entre eles. Por fim, na confluência do rio Marañón e do
rio Cenepa, encontramos uma curva do Cenepa que quase
encostava no Marañón. Entre os dois rios, havia uma elevação de
pouco menos de cem metros. Planejamos arrastar o navio, que
ainda tinha que ser construído, do Cenepa para o Marañón. Um
pouco mais abaixo, o rio Santiago e o Marañón se encontram. Os
dois rios unidos atravessam então uma cadeia de montanhas. O
curso de água estreita-se em direção ao desfiladeiro e as famosas
corredeiras do Pongo de Manseriche, que podem ser muito
perigosas na época da cheia. Eu mantive um diário na época, que
publiquei décadas depois sob o título Eroberung des Nutzlosen [A
conquista do inútil]. Eis um trecho:

Saramiriza, 09/07/1979
Um papagaio a meus pés devora uma vela que segura com os
dedos de um pé. Depois entrou uma galinha com seus pintinhos na
venda, um barraco de tábuas coberto com um telhado de chapa
ondulada onde estávamos encomendando algo para comer, e atacou
o quase pelado papagaio e arrancou uma das últimas penas de seu
rabo e bicou várias vezes sua careca ferida. Em seguida a galinha
limpou o bico no chão. Depois do susto nas corredeiras, ainda
estamos todos constrangidos e um tanto matemáticos no trato uns
com os outros. No posto militar de Teniente Pinglo, nenhum dos
soldados sabia em que altura estava o nível da água, apenas
informaram que fazia poucos dias um barco com onze homens
desaparecera ninguém sabia como; contudo, eles tinham bebido
muita aguardiente, isto é, cachaça, e só haviam entrado no Pongo
quando já estava escurecendo.
Depois de refletir um pouco mais, concluímos que devia ser
viável, porque o rio Marañón estava muito baixo — somente na
noite anterior, o nível da água havia baixado mais de dois metros, e
pela manhã nossos barcos estavam de tal modo no seco, que quase
não conseguimos arrastá-los de volta para a água. O que não
parecia lá muito bem era o rio Santiago. Deve ter havido chuvas
tremendas em suas cabeceiras ao norte, e no encontro com o
Marañón o rio já estava num nível bastante assustador. Antes das
primeiras corredeiras, que precedem o Pongo de Manseriche como
um prelúdio à parte, fomos atingidos por uma forte corrente de ar
frio vinda do estreitamento entre os morros, e aqui ainda teria sido
possível dar meia-volta. Com o ar frio chegou até nós um estrondear
distante no desfiladeiro, e ninguém sabia ao certo por que estávamos
seguindo adiante, mas seguíamos porque seguíamos. De repente
havia à nossa frente uma parede de água que se ergueu rapidamente
e contra a qual nos chocamos feito um projétil. Sofremos um golpe tão
violento, que o barco rodopiou no ar, no alto a hélice uivou no vazio,
batemos de lado na água e por um momento ficamos assim,
inclinados, e então eu vi, como uma aparição, empinada à nossa
frente, uma segunda parede de água, que nos desferiu um golpe
ainda mais potente, que fez o barco girar no ar novamente, dessa
vez no sentido oposto. Já antes de entrar na corredeira, eu havia
amarrado a corrente da âncora, de forma que ela não pudesse nos
escapar de bordo batendo na hélice, e o tanque de gasolina também
estava firmemente amarrado, mas de repente a bateria, do tamanho
da bateria de um caminhão, voou pelo ar, ou melhor: ficou parada
por um momento bem diante do meu rosto presa em seus cabos
esticados, e eu bati a cabeça nela. No começo, tive a sensação de que
havia quebrado meu nariz na raiz, e eu sangrava pela boca. Lutei
com a bateria e derrubei-a no chão, para que ela não terminasse de
voar dali. Então, por alguns momentos, nada além de ondas ao
redor e acima de nós, mas é mais dos estrondos que me lembro.
Depois me lembro de que estávamos atravessando, avançando de ré
pela correnteza. Nos íngremes barrancos da floresta, de ambos os
lados, macacos guinchavam.
Rio abaixo, em Borja, onde o Pongo termina, as pessoas não
queriam acreditar no que viam, porque com o nível da água a mais
de cinco metros acima do normal até então ninguém sobrevivera à
passagem, e nós tínhamos tido cinco metros e meio. Os pongeros da
aldeia nos cercaram emudecidos. Um deles olhou bem para o meu
rosto inchado e disse “su madre”. E me deu um gole de sua
aguardiente.

Fechamos um contrato com uma aldeia próxima, Wawaim. Mas


havia tensões políticas entre duas alas de indígenas Aguaruna na
região, e um dos agrupamentos, trinta quilômetros rio abaixo,
usou nossa presença para aparecer. Havia também um controverso
oleoduto que atravessava os Andes em direção ao Pacífico, e de
repente a presença militar ali aumentou drasticamente. Ninguém
sabia o que isso podia significar, mas tínhamos ido parar no meio
de uma guerra de fronteira entre o Peru e o Equador, que não
ficava muito longe, ao norte do nosso acampamento na cordilheira
do Condor. Diante dessa situação, retirei toda a equipe do
acampamento, e ali deixei apenas o posto médico para atender a
população. Aproveitando a confusão, os Aguaruna assaltaram o
acampamento e o incendiaram. Eles haviam chamado repórteres
para a ação. Eu estava em Iquitos e recebia mensagens de rádio
quase incompreensíveis do acampamento. Gravei toda a
comunicação das horas seguintes para poder decifrar com calma o
que estava acontecendo. Mas eu sabia que isso significava o fim
temporário da produção.
Somou-se a isso o fato de que, na mídia peruana e logo também
na internacional, eu fui acusado de ter devastado os campos da
população local durante as filmagens, de ter mandado pôr na
cadeia alguns dos indígenas de lá, de ter cometido violações de
direitos humanos e outros absurdos. Houve até um tribunal
público contra mim na Alemanha, e tudo isso caiu como uma
sombra funesta sobre o filme. Na época, Volker Schlöndorff foi o
único que ficou totalmente do meu lado. Lembro-me de como,
diante de ávidos jornalistas numa coletiva de imprensa no festival
de cinema de Hamburgo, na qual eu tinha documentos comigo
que confirmavam irrefutavelmente a minha posição, Schlöndorff
de repente deu um passo à frente. Seu rosto estava roxo, pensei
que ele tivesse sofrido um derrame. Mas ele gritou de tal forma
com os jornalistas que ainda hoje me admiro de como pode haver
num homem não muito alto uma voz tão retumbante. De todos os
diretores do Novo Cinema Alemão a quem estou ligado por
sentimentos amigáveis, ele é realmente o único amigo pessoal. A
Anistia Internacional confirmou mais tarde que numa pequena
cidade na floresta, Santa Maria de Nieva, de fato quatro aguarunas
haviam estado sob custódia policial por alguns dias, ainda bem
antes das filmagens, mas eles não tinham absolutamente nada a ver
conosco, e sim eram acusados pelos donos de bares e comerciantes
locais de não pagarem suas dívidas. Mas sobre isso a imprensa não
publicou uma palavra; essa história não era excitante. Os aguarunas
também foram retratados como um povo quase isolado em perfeita
harmonia com a natureza, quando usavam óculos escuros Ray-Ban
e camisetas de John Travolta nos Embalos de sábado à noite. Eles
tinham lanchas voadeiras, usavam rádios e dispunham de seus
assessores de imprensa. Eu simplesmente tive que superar isso e
comecei a construir um novo acampamento, a 2 mil quilômetros
de distância. Entre o rio Urubamba e o rio Camisea, encontrei a
elevação adequada, que separava os rios por pouco menos de um
quilômetro.
Todo o tipo de catástrofe que se possa imaginar, não apenas
catástrofes cinematográficas, mas também as reais, se abateram
sobre mim. É bem verdade que foi apenas uma “catástrofe
cinematográfica” que, quando já estávamos quase na metade das
filmagens de Fitzcarraldo, o meu ator principal, Jason Robards,
tenha ficado tão gravemente doente, que tivemos que levá-lo num
avião para os Estados Unidos. Os seus médicos então o proibiram
de retornar para a selva. Tivemos que rodar de novo o que havia
sido filmado até aquele momento, desta vez com Kinski, e o meu
irmão Lucki manteve à tona a produção que ameaçava naufragar.
Ele reuniu todos os financiadores e as seguradoras em Munique e
apresentou a situação num documento sem maquiagens. Ele havia
elaborado um plano emergencial, através do qual a produção foi
salva. Quando me perguntaram se eu tinha forças para rodar o
filme novamente, respondi que, se esse filme acabasse, todos os
meus sonhos acabariam com ele, e que eu não queria viver como
um homem sem sonhos.
Os nossos desastres, porém, eram sempre muito tangíveis,
muito concretos. Tivemos dois acidentes de avião, com dois
Cessnas monomotores, um com suprimentos, outro com vários
figurantes indígenas a bordo. Na decolagem deste último, um
galho rodopiou no ar e enroscou no estabilizador horizontal na
cauda do avião, forçando-o a dar um loop quase completo. Todos
os ocupantes ficaram feridos, um deles ficou paraplégico. Isso
ainda pesa na minha alma até hoje. Mais tarde, abrimos uma loja
para ele na sua aldeia, de onde tira o seu sustento. Um trabalhador
nosso foi mordido por uma cobra, uma chuchupe, a mais venenosa
de todas. Ele sabia que poderia sofrer uma parada respiratória e
cardíaca em sessenta segundos e, como o acampamento com nosso
médico e o soro apropriado estava a vinte minutos de distância,
pegou a motosserra do chão, voltou a ligá-la e cortou fora o pé. Ele
sobreviveu. Três dos nossos trabalhadores locais, que haviam saído
para pescar no Cenepa rio acima, foram atacados por indígenas
amehuacaa numa noite escura. Como seminômades que são, os
amehuacaa estavam viajando pelas montanhas, distantes dez dias
de viagem rio acima; eles rejeitavam violentamente qualquer
contato com a civilização, mas como estávamos passando pela mais
rigorosa seca de que se tinha memória, seguiram o curso do rio,
que estava na vazante, presumivelmente em busca de ovos de
tartaruga. Dispararam flechas de quase dois metros de
comprimento contra o nosso pessoal, e acertaram um homem no
pescoço, que foi atravessado pela ponta de bambu de trinta
centímetros, afiada como uma navalha. A jovem mulher deitada ao
lado do homem acordou com os seus estertores, pensou que uma
onça tivesse agarrado o marido pelo pescoço e pegou da fogueira
um galho ainda em brasa. Seu movimento brusco em direção às
brasas a salvou de início. Mas então ela foi atingida ao mesmo
tempo por três flechas, que provavelmente miravam seu pescoço.
Uma perfurou seu abdômen e partiu-se no interior da pélvis, outra
a atingiu na borda do osso ilíaco e uma terceira logo ao lado. O
terceiro do grupo tinha uma espingarda e atirou às cegas na
escuridão. Os atacantes fugiram. No dia seguinte, o homem, que
escapara ileso, trouxe os outros dois, com ferimentos graves, para
o nosso acampamento e decidimos operá-los de imediato no local,
porque eles teriam inevitavelmente morrido numa tentativa de
transportá-los dali. Nosso médico e o muito capacitado auxiliar
médico local os operaram na mesa da cozinha e eu assisti
mantendo iluminada a cavidade abdominal aberta da mulher com
uma poderosa lanterna. Junto com outros, também cuidei de um
spray de inseticida, com o qual mantínhamos afastadas nuvens
inteiras de mosquitos atraídos pelo sangue. Ambos sobreviveram.
O homem, que quando chegou ainda tinha a ponta da flecha
atravessada no pescoço e alojada no ombro, passou a só conseguir
falar sussurrando quando se recuperou. Les Blank o filmou após a
operação. Ele pode ser visto brevemente no filme O peso dos
sonhos.
Apenas dois dias depois, filmamos o navio — era o seu gêmeo
idêntico — sendo arremessado sem controle pelas corredeiras do
Pongo de Mainique. Ali o navio chocou-se contra as rochas em
ambos os lados do desfiladeiro, e um desses choques foi tão
violento, que eu vi a objetiva voar da câmera. Tentei segurar o
cinegrafista Thomas Mauch, mas voamos atrás da objetiva e ele,
ainda segurando na mão a câmera bastante pesada, caiu no convés.
No choque contra o chão, o peso do aparelho rachou a sua mão
entre os dois últimos dedos, até o pulso. Também ele foi suturado
pelo nosso muito competente auxiliar médico indígena. Este era
de uma habilidade extraordinária com suturas e membros luxados
e uma vez realinhou o ombro de Mauch, mas como, após as
necessárias operações de horas em nossos feridos por flechas,
todos os anestésicos haviam sido usados e não puderam ser
repostos tão rapidamente, Mauch sentiu muita dor. Segurei-o
firme em meus braços, mas não adiantou muito. Por fim, pedi
ajuda a uma das nossas duas senhoritas, Carmen, que pressionou o
rosto dele entre os seus seios e o acalmou. Ela fez isso de forma
amável, confiante e generosa. Pode parecer estranho para uma
produção cinematográfica, mas até o padre dominicano da Missão
Timpia, cinquenta quilômetros rio abaixo, exigiu que tivéssemos
prostitutas conosco, pois, do contrário, com a grande quantidade
de madeireiros e barqueiros, havia risco de ataques à população
local.
Acontecimentos desse tipo nunca tinham fim. Tivemos que
enfrentar a mais intensa estação chuvosa em 65 anos, o que
prejudicou o nosso trabalho, e sobretudo o abastecimento. Walter
Saxer pessoalmente correu riscos muito altos com o transporte em
pequenas aeronaves, que pousavam na lama de uma pista
minúscula. É preciso ter em mente que eram centenas de
quilômetros de distância até localidades maiores como Pucallpa ou
a cidade de Iquitos. Cada prego, cada barra de sabão, todo o
combustível e quase todos os alimentos vinham de fora. Os rios
subiram a alturas fora do normal, carregando consigo galhos e
arbustos arrancados, bem como ilhas inteiras com árvores
gigantes. Barcos a motor não podiam mais navegar, hidroaviões
não podiam pousar. Depois disso, o nível da água baixou tão
drasticamente, que não conseguíamos mais descer o barco de cima
do morro até o rio Urubamba. Ali o nível da água era de oito
metros em média, mas agora de repente estava em apenas
cinquenta centímetros. Só pudemos retomar as filmagens seis
meses depois. A isso se juntaram confusões na minha vida privada
e uma profunda solidão porque, quando não conseguimos mover o
navio um centímetro morro acima em semanas, quase todos os
envolvidos desistiram internamente do projeto. Estar sozinho
nunca me incomodou, mas ficar sozinho cercado por uma
multidão de pessoas que haviam desistido de mim e questionavam
a minha sanidade foi difícil. Lucki foi um dos poucos que não se
deixou abalar. As anotações do meu diário, que, na minha caligrafia
cada vez menor, se tornavam microscópicas e realmente
indecifráveis, foram interrompidas na selva por quase um ano
inteiro, o ano das contestações. Mas eu estava sempre pronto para
enfrentar o que quer que o trabalho e a vida me apresentassem.
21.
Menires e o paradoxo do quadrado perdido

Meu filme Fitzcarraldo tem uma dupla origem, ainda que um


homem que trabalhou na construção dos acampamentos na selva
hoje se gabe de ter me contado em longas noites de conversa todos
os detalhes da vida do barão da borracha. Mas os detalhes foram
todos inventados por mim para o filme. O mesmo colaborador
também afirma ter pertencido a um grupo de libertação peruano
que teve contato com Che Guevara na Bolívia. Sempre que uma
coisa dá certo, todo mundo quer ser o pai da criança. Para mim,
uma experiência decisiva a esse respeito foi uma coincidência
durante a busca por uma costa açoitada pelo vento como cenário
para uma sequência de sonho em Kaspar Hauser, de 1974, oito anos
antes. Lofoten e a costa norte da Noruega eram candidatas, mas
como ficavam longe iniciei uma viagem de carro pelo litoral da
Bretanha. Depois de alguns dias parei, já noite escura, num
estacionamento em Carnac e vi à luz dos faróis do meu carro uma
coisa assombrosa à minha frente. Como exércitos surgidos do
nada, ali estavam pedras neolíticas alinhadas em longas fileiras,
morro acima e morro abaixo, milhares delas. Tateei no escuro ao
longo dos menires por bastante tempo e depois dormi no meu
carro. Meu espanto foi semelhante ao daquele dia com os moinhos
de vento em Creta. De manhã, vaguei de novo ao longo das fileiras
paralelas de enormes blocos de pedra talhada. Há cerca de 4 mil
menires enfileirados ali em Carnac, os mais pesados chegam a ter
mais de cem toneladas. No quiosque onde é preciso comprar
ingressos, peguei um folheto que continha a afirmação estúpida de
que o transporte desses menires teria sido impossível para os
homens de milhares de anos atrás, que só poderiam ter sido
colocados ali por extraterrestres de uma galáxia distante. Irritado
com o que havia lido, decidi: não sairia daquele lugar antes de,
como se eu próprio fosse um homem pré-histórico, ter encontrado
uma solução para trazer um bloco daqueles de alguma distância até
ali e depois colocá-lo em pé.
Já no mesmo dia, eu tinha uma definição de como procederia,
usando exclusivamente tecnologia pré-histórica: pás, cordas,
machados de pedra, gordura animal para engraxar, fogo. A bem da
simplicidade, eu me propus a tarefa partindo da hipótese de que eu
já teria esculpido um gigantesco fragmento das numerosas rochas
da costa que passa ali perto e teria apenas que transportá-lo, de
novo a bem da simplicidade, por um quilômetro no terreno plano,
para depois erguê-lo verticalmente. Eu poderia fazer isso com mil
homens disciplinados no prazo de um ano. O principal trabalho
seria construir uma sólida rampa de um quilômetro de
comprimento, que não poderia ter quase nenhum aclive. Com uma
inclinação de apenas 0,5%, a rampa teria cinco metros de altura no
final. Nesse final, eu ergueria um monte em que deixaria aberta
uma grande cratera, mais estreita no fundo. Então, para o início do
transporte, a enorme pedra teria que ser socavada com valas
transversais, e troncos de carvalho roliços endurecidos pelo fogo
seriam enfiados nessas valas. Quando depois a terra fosse removida
completamente, restaria a pedra sobre rolos. Seria então muito
fácil movê-la como se estivesse sobre rodas. No final, o menir
cairia na cratera do monte artificial, e então seria necessário apenas
remover o monte, deixando só um pequeno resto para a pedra se
manter em pé.
Um terreno íngreme como ali, em Carnac, era mais difícil. Mas
também nesse caso o princípio da rampa e da cratera seria válido,
apenas seria preciso uma força muito maior para arrastar o menir
morro acima. Para isso, eu usaria torniquetes, que enrolariam uma
corda em torno de um tronco firmemente ancorado; fazer girar o
torniquete de muitos metros, enquanto a corda fosse sendo
enrolada como num carretel, seria um modo de distribuir a força
pelo longo caminho, e um conjunto de muitos desses torniquetes
seria capaz de transportar morro acima um objeto de pelo menos
cem toneladas. Esse é o princípio que se pode ver posto em prática
em Fitzcarraldo. Grupos de machiguenga empurram os largos
braços dos torniquetes, e no chão em volta do pilar de apoio vai
sendo enrolada uma corda.
Muitos anos depois, em 1999, para a minha encenação da ópera
A flauta mágica em Catânia, pedi a Maurizio Balò, um maravilhoso
cenógrafo que me acompanhou em muitas montagens, que
desenvolvesse uma cenografia em que escravizados egípcios
erguessem um obelisco no fundo do palco. O libreto de A flauta
mágica tem como cenário um fictício Egito faraônico, e eu queria
me referir a isso numa estilização visual. Na minha montagem, o
obelisco foi erguido com cilindros e torniquetes. Depois, não faz
muitos anos, me deparei por acaso com várias gravuras em aço
representando a implantação do obelisco na grande praça de São
Pedro, em Roma, no ano de 1556. Foi como se eu tivesse sido
atingido por um raio. Ali, também foram utilizados uma rampa e
muitos, muitos torniquetes, a única diferença é que estes eram
girados por cavalos e, para a grande quantidade de corda, eram
usadas polias e roldanas. Fiquei tão fascinado com essa descoberta,
que acabei obtendo permissão na Biblioteca do Vaticano para ver
todos os arquivos daquela época sobre a implantação do obelisco.
O arcebispo responsável se deixou convencer perante o meu
entusiasmo. Os arquivos contêm relações detalhadas dos
equipamentos utilizados, listagens dos cavalos e dos trabalhadores
diaristas, acidentes e doenças, e o melhor de tudo foram os
documentos apresentados por técnicos e arquitetos da época com
as mais diversas sugestões de como erguer o obelisco. A solução
com os torniquetes foi escolhida e o obelisco está de pé até hoje.
Para brincar com meus ouvintes, às vezes afirmo, como se
estivesse diante de uma seta do tempo invertida, que roubaram a
ideia de mim naquela época. Em Fitzcarraldo, no entanto, a maior
parte da força não veio nem dos indígenas nativos, nem de cavalos,
mas da nossa caterpílar, que já havia aplainado a subida de 60%
para 40%.
A minha hipótese de que já em tempos pré-históricos teria sido
utilizado o método com um monte e uma cratera para erguer os
menires parece ser confirmada pelo enorme menir de
Locmariaquer, também na Bretanha. Esse menir é de longe o
maior exemplar do seu tipo: de pé, ele devia ter mais de vinte
metros de altura, com um peso de 330 toneladas. Presume-se que
tenha sido erguido 6 mil ou 5 mil anos antes da Era Comum. Hoje
ele está deitado no chão, em quatro pedaços, mas acho impossível
que tenha se partido no chão, porque o pedaço que é de longe o
maior e mais volumoso está numa direção e, a alguma distância, as
três partes mais finas se afunilam rigorosamente alinhadas em
outro ângulo. As especulações sobre isso são vagas e
contraditórias. Suponho o seguinte decurso de um acidente pré-
histórico: quando o menir tombou na cratera aberta num monte de
terra, o terço superior se rompeu devido à força da massa,
provavelmente na borda da cratera, que deve ter funcionado como
um ponto de ruptura predeterminado. O simples peso deve ter
causado a ruptura, de início talvez apenas algumas rachaduras
transversais na rocha. Se um gatinho pular do terceiro andar de um
edifício, ele não se machucará, mas um elefante no zoológico pode
ser impedido de fugir com uma vala de concreto de apenas um
metro de profundidade, porque o osso da perna, que devido à
massa do elefante é extraordinariamente grosso, se partiria num tal
salto. Assim, a parte superior do menir talvez tenha se partido em
três partes na encosta do monte, e estas ficaram alinhadas na
mesma direção. Especulo que os homens de então, na pré-história,
escavaram ao redor da parte maior, pois ela era de fato imponente,
ainda maior do que qualquer outro menir conhecido até hoje.
Assim, pode-se supor que a gigantesca parte inferior do menir
tenha permanecido de pé ainda por milhares de anos e só depois
tenha caído devido à erosão, mas em outra direção. Isso explicaria
o ângulo entre as partes no chão e a distância entre elas. Também
foi levantada a hipótese de um terremoto, mas isso é difícil de
imaginar na Bretanha, tampouco está documentado na história.
Uma anotação no diário de bordo de um navio do ano de 1659
também relata que o menir foi tomado como ponto de orientação,
e a gigantesca parte inferior pode perfeitamente ter estado de pé
naquela época. Acompanho as pesquisas a respeito disso com
curiosidade e estou sempre disposto a reconsiderar minha
hipótese.
O argumento de Fitzcarraldo foi apresentado a mim por Joe
Koechlin. Ele me visitou em Munique e me incitou a voltar ao
Peru, tudo falava a favor de que, depois de Aguirre, eu fizesse um
novo filme na selva. Ele tinha uma história muito emocionante
para mim, a do barão da borracha Carlos Fermín Fitzcarrald, que
no final do século XIX se tornara o empresário mais rico de toda a
região. Esse Fitzcarrald havia empregado mais de 3 mil
trabalhadores na floresta, além de um pequeno exército privado
como guardas. Fitzcarrald morreu num acidente de canoa antes de
completar 35 anos. Não achei que fosse um tema realmente bom
para um filme, era apenas a história de um notório explorador, e
Joe e eu ainda ficamos juntos sentados por um tempo. Ao sair, Joe
fechou a porta atrás de si, mas depois assomou com a cabeça de
volta pela abertura e disse que havia esquecido um detalhe. O tal
Fitzcarrald havia transportado um barco a vapor de um rio para
outro por uma ponte terrestre plana. Para isso, em plena selva, os
engenheiros tinham desmontado o navio, que só pesava umas
trinta toneladas, em dezenas de partes, que então foram carregadas
até o rio que corria paralelamente e ali depois remontadas. Eu
trouxe Joe de volta para dentro. De repente, veio tudo de uma vez
na minha cabeça: delírios febris na selva, um vapor de pelo menos
trezentas toneladas por cima de uma montanha, guindado em
torniquetes, como na Idade da Pedra, por indígenas da floresta, voz
de Caruso, grande ópera na selva. Quando, pouco tempo depois,
desembarquei no abafado aeroporto de Iquitos, abutres rondando o
céu, porcos chafurdando na lama ao lado da pista — uma das
porcas apodrecia no concreto, ela havia sido atropelada por um
avião —, recuei assustado. Deus do céu, mais um filme assim, não!
Mas o projeto, como todos os outros, veio até mim como que por
si e com enorme veemência. Eu não tive escolha. Digo isso porque
muitas vezes se supõe que eu seja obsessivo. Mas isso não é
verdade. Também não é verdade que eu havia arranjado dinheiro
suficiente para começar o filme. Na verdade, arrisquei tudo o que
tinha pessoalmente para pôr o projeto em movimento.
Começamos a construir acampamentos na floresta e o barco a
vapor, mas em pouco tempo eu estava tão por baixo, que morava
num galinheiro reformado, cujo teto de papel machê era só um
pouco mais alto que a minha cabeça. À noite ratos corriam por
cima de mim. No final, eu não tinha mais nada para comer. Mas
sempre tinha comigo na floresta um xampu especialmente bom e o
mais fino sabonete, porque na selva faz muito bem para a
autoestima lavar-se num rio e depois estar cheirando bem. Troquei
xampu e sabonete no mercado indígena de Iquitos por três quilos
de arroz, com os quais me alimentei durante as três semanas
seguintes. Como sempre, eu simplesmente reconheci as minhas
necessidades e desenvolvi perante elas o senso do dever de seguir
uma grande visão.
Sempre desconfiei de livros didáticos na escola. Quando se
analisa a história das descobertas da física, é vertiginoso como, no
decorrer de milênios, sempre foram feitas novas tentativas de
explicar o cosmo. Durante dois milênios, a partir de Aristóteles,
pôde-se comprovar através de experimentos que o ar não tinha
peso. Para isso, Aristóteles pesou uma bexiga de porco vazia e
depois a pesou de novo estufada de ar. O resultado foi idêntico.
Somente quando se acrescentou a isso a descoberta do impulso é
que de súbito tudo pareceu diferente. Para mim, isso se aplica a
muitas áreas. Estamos o tempo todo assistindo a novos ditames da
ciência nutricional, num processo em que novas tendências
substituem as antigas em ritmo acelerado. Muitas descobertas
sobre o colesterol são sem dúvida corretas, mas não a sua
demonização — sem o colesterol, estaríamos mortos em poucos
dias. Nos Estados Unidos, em toda garrafa plástica de água está
escrito “total de gordura: zero”, como se isso fosse uma importante
informação científica. Quando, para o meu filme O sobrevivente, de
2006, meu ator principal, Christian Bale, reduziu metodicamente,
sob supervisão médica, o seu peso em trinta quilos num período
de seis meses para poder interpretar com credibilidade Dieter
Dengler, que após a fuga de um cativeiro vietcongue foi
encontrado quase morto de inanição, emagreci metade do que Bale
perdeu como um gesto de solidariedade. Muitas vezes me
perguntavam como eu havia feito isso, que dieta escolhera, e
parecia, aos americanos em particular, que era um método
sensacional, no qual ninguém havia pensado antes: eu comia
apenas a metade das minhas porções diárias. O que depois exigiu
de Christian Bale habilidades especiais foi o fato de termos que
rodar o filme de trás para frente em sua cronologia, pois, comendo
muito depois de iniciadas as filmagens, em cinco semanas fica
relativamente fácil recuperar os quilos perdidos. Representar
inversamente o desespero que é sempre crescente no filme só é
possível para um ator de uma classe muito especial.
Não quero tomar nada como uma verdade dada. Nesse
contexto, também vejo o paradoxo do quadrado perdido. Na sala
de espera do meu dentista, eu estava folheando uma edição da
Scientific American, que é uma revista altamente respeitada no meio
científico. Numa página, estava impresso o gráfico de um paradoxo
que contradiz toda a lógica e toda a experiência. Uma figura
geométrica é formada por dezesseis partes individuais, mas, se
essas partes forem agrupadas de outra maneira, a figura que surge
inexplicavelmente apresenta uma lacuna no centro da sua
superfície, que, no entanto, tem a exata medida da primeira figura.
Como fui chamado, arranquei a página da revista. Eu queria
resolver o paradoxo sem ajuda.

Como pode haver algo inconcebível? Nunca me fechei para essa


questão. Por exemplo, acompanho com grande interesse que, no
mundo da física quântica, uma partícula que tem a alternativa de
passar pela janela A ou pela janela B de uma grade em certos casos
passará pelas duas janelas ao mesmo tempo. Devo acrescentar que
não tenho a menor noção sobre esse tipo de física. Mas na
comunidade de físicos de partículas, que sempre me fazem
convites, os meus filmes têm fortes seguidores, de forma
semelhante ao que acontece entre músicos de rock, skatistas, e as
mais diversas comunidades en­tusiasmadas com o meu trabalho.
Conversei com matemáticos que estavam interessados no
fantástico das paisagens mostradas por mim, enquanto eu, por
minha vez, em sua algebrização de curvas e espaços impensáveis.
No meu filme Fireball: Mitos, cometas e meteoros, de 2018, há uma
sequência sobre cristais quasiperiódicos ou, abreviadamente,
quasicristais, que foram encontrados em minúsculos vestígios num
meteorito que caiu na Sibéria perto do estreito de Bering. Cristais
seguem regras férreas de simetria, já se sabe disso há duzentos
anos, qualquer outra coisa era considerada impensável e até
mesmo proibida. Mas na década de 1970, o matemático inglês
Roger Penrose desenvolveu uma geometria com a qual comprovou
o inimaginável. Mas o mais surpreendente é que, já no ano de
1453, os artesãos persas criaram, na parede externa de um
santuário em Isfahan, um ornamento de azulejos que era ordenado
de forma quasiperiódica, sem que conhecessem a matemática na
qual esse padrão se baseia. Conheci Penrose e desde então tenho
um respeito ainda maior pelo inimaginável. Mas o que me intrigou
foi a revista Scientific American ter apresentado o paradoxo do
quadrado perdido como insolúvel. Também Aristóteles não foi
questionado por dois milênios porque era Aristóteles.

Depois de muito conjeturar sobre o enigma, deixei o modo de


pensar da geometria. Abordei o paradoxo de outra maneira, porque
ele contradizia todas as minhas experiências com o mundo real. Eu
simplesmente questionei se de fato se tratava de um paradoxo. E,
por fim, examinei melhor as duas ilustrações: por que havia dois
quadros, quando um seria suficiente? Sempre que as bordas dos
componentes em forma de degraus tocavam o contorno da figura,
a superfície interna se curvava num ângulo quase imperceptível,
para fora numa das duas figuras e, na outra, para dentro. O
paradoxo não era um paradoxo — mas apenas uma farsa. A soma
das pequenas expansões e a soma das reduções na área em questão
davam o exato tamanho do pequeno quadrado vazio no centro do
segundo gráfico. Precisei de dois meses para perceber isso, o que
provavelmente qualquer outra pessoa poderia ter conseguido em
poucos minutos, justo o tempo que se mata antes de uma consulta
ao dentista.
22.
Balada do pequeno soldado

Fitzcarraldo foi uma vida efervescente, imagens, música e


experiências que me deram o que pensar ainda por muito tempo
depois das filmagens. No início da década de 1980, eu estava
lambendo silenciosamente minhas feridas havia um bom tempo.
Nessa época, conheci o montanhista Reinhold Messner. Muito
rapidamente planejamos fazer um filme sobre o seu propósito não
apenas de escalar, mas de “transpor”, numa única expedição, duas
montanhas com mais de oito mil metros de altura na região de
Karakorum, no Paquistão. Em regra, essas montanhas são escaladas
por uma rota e a descida de volta se dá pela mesma rota, mas
Messner, em sua primeira subida de oito mil metros, em 1970,
simplesmente transpusera a Nanga Parbat. Nessa expedição, seu
irmão mais novo acabou perdendo a vida. A transposição se dera
pela necessidade causada por uma situação quase sem saída no
cume, quando tempestades impossibilitaram a descida pelo
mesmo percurso da subida. Messner desceu em condições
terríveis pelo outro flanco da montanha, onde seu irmão foi
soterrado por uma avalanche de gelo. Ele próprio perdeu vários
dedos do pé no frio congelante e quase morreu. Mas Messner era
um homem extraordinariamente ponderado, que agia de forma
metódica; isso me agradou nele. Muitas vezes ele recuou em suas
expedições, o cume já numa proximidade tangível, após refletir
com frieza e considerar grande demais o perigo de avalanches no
último trecho. Messner sempre fazia exatamente o que era factível.
Arrastar um navio morro acima tampouco foi um jogo de azar, mas
sim, eu percebera que era factível. Em nosso projeto comum,
Messner queria enfrentar junto com o montanhista Hans
Kammerlander os dois cumes de oito mil metros do Karakorum,
situados lado a lado: o Gasherbrum I e o Gasherbrum II. De fato, os
dois subiram o Gasherbrum I por uma rota e desceram por outra
em 1984, o que os levou ao sopé do Gasherbrum II. Eles também
transpuseram o segundo cume, nós os esperamos no
acampamento base. Foi um feito extraordinário e, como quase
tudo que Messner fez, pioneiro. Não tenho dúvidas de que é ele o
maior montanhista não só do seu, mas de todos os tempos. O
profissionalismo de Messner, de um lado, e o calor humano que
Kammerlander irradiava, de outro, resultavam numa boa
combinação de personagens para um filme. Gasherbrum, a
montanha luminosa foi concluído em 1985. Mas, na verdade, eu
tinha um longa-metragem em mente para ser filmado no K2, que
fica no caminho para os picos do Gasherbrum. Nos últimos oitenta
quilômetros, acompanha-se o poderoso glaciar Baltoro, no qual
desemboca um rio glacial que vem do K2. Eu sonhava com o K2,
porque ele é tão belo e solitário, algo como o que o Matterhorn é
para os Alpes suíços, porém este segundo gigante mais alto do
mundo é o mais perigoso de todos. No acampamento base no sopé
do Gasherbrum, testemunhamos uma avalanche que caiu durante
catorze minutos. Eu não podia acreditar que a avalanche
simplesmente não queria acabar e acompanhei no meu relógio. Ao
final, neve e gelo caíram de repente numa massa tão colossal que
um cogumelo atômico pareceu se formar, mas não para o alto, e
sim horizontalmente em nossa direção. Por razões de segurança,
nosso acampamento base na geleira foi montado a dois
quilômetros do flanco da montanha, mas em segundos tudo foi
achatado por uma avalanche de poeira. Levamos dias para
desenterrar e reparar o equipamento de filmagem. Aliás, o meu
relógio explodiu no meu rosto no dia seguinte enquanto eu levava
uma xícara de chá à boca. Com a altitude, a pressão do ar sob o
mostrador ficou alta demais.
Quando os dois montanhistas partiram na escuridão da noite
com suas lanternas de cabeça e ao longo do dia finalmente
desapareceram como pontinhos, cessaram as filmagens. Alguns
dias depois, uma expedição espanhola, que tinha seu
acampamento ao lado do nosso, convidou-me para escalar junto
com eles um trecho do Gasherbrum I, porque eles não haviam
conseguido subir até o cume e agora, por razões de ordem,
queriam desmontar seus acampamentos altos. Eles me prenderam
à sua corda e atravessamos a dramática ruptura glacial, que, tal uma
cascata de dados lançados por gigantes, é um primeiro obstáculo
logo no início da subida. Como esses cubos de gelo do tamanho de
quarteirões estão em constante movimento, os espanhóis
espalharam pelo zigue-zague do labirinto hastes de alumínio com
bandeirinhas para orientação. Subimos rapidamente de 5 mil para
6 500 metros. Lá em cima constatei os primeiros sinais
inconfundíveis do mal da montanha. Um deles foi que me sentei
na neve enquanto os espanhóis desmontavam seu acampamento
alto e, depois, em crescente indiferença, simplesmente me deitei
de costas. Naquele momento percebi que tinha que descer sem
demora a um nível inferior. Os espanhóis concordaram e me
deixaram ir. Isso nunca deveria ter acontecido. Fui sozinho, a
visibilidade estava boa. No entanto, mesmo assim, ainda existe a
regra absoluta de que em tais altitudes, por segurança, pelo menos
um outro homem deve estar junto ligado por uma corda.
Chegando à entrada superior da cascata de gelo, decidi contorná-la
por fora. A descida na neve não era muito abrupta, e eu desci a
passos largos. Eu não sabia que ali havia fendas de até cem metros
de profundidade, que estavam cobertas de neve e que nem mesmo
montanhistas profissionais conseguiam distinguir. Elas não se
diferenciavam em nada da superfície uniforme da neve. De
repente, andando em passo rápido, pisei no vazio sob uma fina
camada de neve, mas tive tanto impulso, que pousei com a parte
superior do corpo na borda oposta e consegui me içar para fora. A
fenda não era mais larga do que uns dois metros. Aconteceu a
mesma coisa com Kammerlander quase no final da grande turnê
dos dois, mas ele estava conectado a Messner por um cordelete.
Para economizar peso, os dois não tinham consigo uma corda de
escalada regular, porém, com o cordelete, Messner conseguiu
impedir a queda de Kammerlander, que ficou pendurado na boca
do precipício. No meu caso, mais tarde, os espanhóis ficaram
constrangidos com a sua negligência. Quando, não muito longe do
acampamento base, eles jogaram as hastes de metal que haviam
coletado da cascata de gelo numa fenda na geleira, eu estava com
eles novamente. Os feixes de finas hastes de alumínio se
espalharam com um agudo guincho metálico depois do primeiro
impacto, e quanto mais fundo raspavam no gelo, mais grave era o
som que emitiam. Foi como um grande coro de gritos. Por fim,
quando elas atingiram uma profundidade de cerca de cem metros,
o som aumentou como os bramidos de inúmeros órgãos
retumbantes. Para a minha ideia de filme para o K2, eu já tinha um
argumento, uma espécie de ideia de ficção científica sobre uma
estação de radar num pico quase inalcançável, mas depois das
minhas experiências no Gasherbrum o projeto estava
definitivamente fora de questão, pois sempre houve uma voz em
mim para essas coisas.
Mais ou menos na mesma época, um desconhecido me
procurou, Denis Reichle. Ele estava imbuído da certeza de que
estaríamos juntos num trabalho futuro, o projeto aconteceria
totalmente por si só. Reichle, que crescera órfão na Alsácia,
durante guerra, aos catorze anos, foi levado como criança-soldado
no Volkssturm* para a batalha final de Berlim. Quase todos os
meninos de sua unidade morreram, ele sobreviveu. A Alsácia
tornou-se francesa, e a França o convocou para o seu exército e o
mandou para a Guerra da Indochina quando ele tinha apenas
dezoito anos. Lá ele sobreviveu a vários anos de guerra suja na
selva. De volta à França, veterano de duas guerras, tornou-se
fotógrafo e trabalhou na indústria da moda; ele também tentou a
sorte em corridas de ciclismo. Mas logo o mundo oco da moda o
repugnou, e ele acabou se tornando fotojornalista. Trabalhou e fez
reportagens pelo mundo afora em quase todos os palcos de guerra
— sempre do lado das minorias oprimidas. Afeganistão, Angola,
Líbano. Denis sobreviveu a cinco meses como prisioneiro do
Khmer Vermelho no Camboja e foi o único jornalista ocidental a
cobrir a sangrenta guerra de libertação em Timor-Leste. Como não
havia conexões aéreas ou marítimas até lá, ele se fez transportar
por um barco de pesca até perto da ilha e nadou o último
quilômetro até a terra firme. Nunca conheci ninguém que
entendesse tanto de guerra, e ninguém que trabalhasse tão
metodicamente durante meses, abrindo caminho de comandante
em comandante, até saber que podia avançar numa zona de guerra
arriscada, que podia confiar numa unidade de combate. Na década
de 1980, após o término de Fitzcarraldo, o exército clandestino do
Sendero Luminoso no Peru foi ficando cada vez mais forte. Ele
iniciara suas ações terroristas a partir do planalto de Ayacucho, e
era então um enigma quanto à sua estrutura de comando e
ideologia e, de fora, praticamente impenetrável. Ele cometia
massacres entre a população rural, e o exército peruano respondia
também com massacres. Denis travou os primeiros contatos e
durante cinco meses abriu seu caminho cuidadosamente até a
organização guerrilheira. Pensávamos em fazer um filme juntos
sobre ela. Então chegou um convite para uma reunião em nível de
alto-comando. Outros repórteres também foram convidados, mas
Denis me telefonou dizendo que havia verificado cuidadosamente
a ocasião por meio de todos os contatos possíveis e que ela era
inescrutável demais para o seu gosto. Perguntei-lhe o que
deveríamos fazer e ele respondeu apenas: “Não faremos isso”. A
reunião de fato aconteceu, sem nós, e os oito repórteres que
viajaram caíram numa armadilha. Nenhum deles sobreviveu e
todos tiveram a cabeça cortada.
Em 1983, viajei pela Austrália para a pré-produção do meu
longa-metragem Onde sonham as formigas verdes. Esse filme narra o
conflito de um grupo de aborígines que defendem o seu lugar
sagrado contra os buldôzers de uma companhia mineradora, trata-
se dos últimos falantes de uma língua e de mitologias complexas.
Para mim estava claro que, a partir da minha cultura, eu nunca
poderia penetrar no pensamento dos aborígines e em seu conceito
de um tempo onírico, e simplesmente inventei a partir de
reflexões a minha própria mitologia das formigas verdes, sobre a
qual contei no filme. Ao mesmo tempo, o conselho de anciãos do
grupo tribal que visitei em Yirkkala, no norte da Austrália, estava
mais confortável do que se eu tivesse bisbilhotado sua mitologia.
Na época, me prestaram grande ajuda os diretores australianos Phil
Noyce e Paul Cox, que me hospedou por um tempo. Em seu filme
O homem das flores, eu faço um pequeno papel. O documentarista e
cinegrafista Michael Edols conhecia muitos aborígines e me
ajudou com grande entusiasmo a fazer os contatos certos. Eu
conhecera Michael e alguns de seus filmes já no Festival de
Cinema de Cannes de 1976 e depois o convidara para fazer uma
breve aparição em Nosferatu. Walter Saxer, as figurinistas Gisela
Storch e Anja Schmidt-Zäringer, uma colaboradora leal e
inteligente, que trabalhou comigo durante muitos anos, podem ser
vistos na mesma cena, na qual elas convidam Isabelle Adjani para
um banquete ao ar livre. A seus pés, correm milhares de ratos
atarantados.
Quando Denis Reichle propôs que eu dirigisse um filme sobre
crianças-soldado na Nicarágua, tive que recusar, porque me
encontrava muito intensamente envolvido com o meu novo
trabalho no outback australiano. Um dos meus problemas durante
esses meses foi que eu pretendia filmar 400 mil formigas todas
parando de andar ao mesmo tempo e continuando apenas a mover
misteriosamente as suas antenas. Elas deveriam estar, como
limalhas de metal sob um forte campo magnético, todas alinhadas
na mesma direção. Naquela época, fiz experimentos em câmaras
frigoríficas com biólogos, que, no entanto, rapidamente revelaram
falta de perspectiva. Apaguei então a cena do meu roteiro e as
formigas são apenas mencionadas no diálogo. O que não era
factível, eu não fazia.
Recomendei Michael Edols a Denis. Ele então começou a
filmar com Denis num campo de treinamento militar em
Honduras, na dupla função de diretor e cinegrafista. Como,
porém, os dois tinham abordagens muito diferentes para aquele
projeto, logo cada um seguiu seu caminho. Denis me ligou
bastante desesperado para perguntar se eu poderia substituir
Michael e salvar o filme, e eu de alguma forma consegui chegar a
Honduras e ao campo de treinamento da guerrilha. A maioria dos
soldados ali eram crianças, todas da etnia misquito. Os mais novos
tinham entre oito e onze anos. Já alguns meses depois de nossas
filmagens, quase metade deles estava morta porque nos combates,
por serem considerados os mais corajosos de todos, sempre eram
enviados para a linha de frente. Denis era extraordinariamente
cauteloso. Uma vez, quando as tropas atravessaram o rio Coco, que
demarca a fronteira da Nicarágua, houve ataques de morteiros
perto de nosso acampamento durante a noite. O comandante
queria partir em fuga desabalada, quando estava claro que nossa
posição não podia ser conhecida. A conselho de Denis,
permanecemos onde estávamos. No dia seguinte, estava planejado
um ataque a um acampamento militar sandinista, na verdade um
ataque encenado para a nossa câmera, mas Denis e eu não
queríamos admitir operações de combate que fossem só
encenadas. Com toda a calma, ele interpelou o comandante, uma
besta vaidosa, e perguntou o que eles sabiam sobre o helicóptero
no acampamento inimigo. Não havia helicóptero, respondeu o
comandante. Como ele sabia disso, Denis questionou. No final,
acabou se revelando que era apenas uma hipótese, ilusão. O perigo
evidente de um ataque era que no caso de um recuo não haveria
proteção no trajeto de dois quilômetros em campo aberto, antes de
se chegar novamente à beira da floresta. Quem, perguntou Denis,
faria a cobertura de metralhadoras na estrada de terra a partir do
acampamento, caso um ataque de soldados partisse dali, e quem
seria escalado para a mesma cobertura na outra direção, porque de
lá também poderiam vir reforços para o inimigo. Uma única
metralhadora, operada por dois homens, seria capaz de parar um
caminhão cheio de soldados e detê-los até que a própria tropa se
pusesse em segurança. O comandante nunca tinha ouvido falar de
tal tática. Mas botou banca de valente: ele despachara muitos
adversários no mano a mano, e era o que faria ali também. Logo
depois, porém, ainda exultante e se gabando da sua bravura, ele
ordenou a retirada.
Os pequenos soldados deixaram em mim uma impressão
profunda. Essas crianças forçadas às guerras dos homens estão para
mim mais presentes do que muitas outras pessoas com quem tive
que lidar na minha vida. Às vezes me pergunto se existe um
cenário de horror em que as crianças são os verdadeiros soldados e
os adultos apenas os imitam. Talvez não seja uma coincidência que
justamente agora, enquanto escrevo isto, eu esteja com um longa-
metragem sobre crianças-soldados em preparação. A história
remonta a um episódio violento e surreal na África Ocidental,
quando forças de paz da ONU se deparam com crianças-soldados
que vigiam um posto de controle numa ponte na floresta.
Ainda tenho algumas anotações da época em que filmei Balada
de um pequeno soldado (1984), na região da fronteira entre
Honduras e Nicarágua.

BALADA DO PEQUENO SOLDADO I


Lagartos esgueiram-se pelo chão carbonizado da floresta. As raízes
resinosas das árvores ainda ardem profundamente na terra, mesmo
já passados dias depois do grande incêndio florestal.
Campo de treinamento dos pequenos soldados. Os mais novos
têm oito anos. Cumprindo uma ordem, uma das crianças fez o
reconhecimento de uma ponte controlada pelo inimigo e montou uma
maquete muito precisa. A ponte foi então atacada sem sucesso. Dois
deles morreram no ataque, pois, mais indiferentes à morte do que os
adultos, eles sempre são enviados para a linha de frente das
operações. Raul garantiu que, se fosse possível dispor de medalhas,
os dois as teriam merecido. Mas também, mesmo que tivessem sido
enviados pelo quartel-general, ninguém dava medalhas para
galinhas.
A maquete da ponte até tinha num dos pilares uma avaria que foi
infligida à ponte real. Ela havia sido montada em cima de uma mesa
que, para corresponder às condições reais, foi coberta com areia.
Como proteção, por cima dela foi estendido um filme plástico, que
ficara embaçado por causa de um ataque de fungos. Descobri
pequenos funis na areia ao redor da maquete da ponte e a princípio
pensei que até mesmo tivesse sido incluído o impacto das granadas
do ataque fracassado, mas depois notei que havia vida em alguns
dos funis. Eram pequenos besouros, atarefados em jogar areia para
fora dos funis com as patas traseiras e se enterrar mais fundo.

BALADA DO PEQUENO SOLDADO II

Seguir o curso de um rio até chegar à sua nascente era para ele uma
coisa estúpida de se fazer. Só por curiosidade, por quê? O menino,
nove anos de idade, que havia feito isso foi levado a um tribunal
sumário por afastamento da tropa. Ali era preciso correr de triunfo
em triunfo. O asqueroso Raul dirige aqui o treinamento dos
pequenos soldados. Ele afirmou de uma forma que deixava claro que
acreditava na própria história: emboscadas, isso não era com ele, era
coisa de covardes. A jovem que ele segurava pela bunda assentiu com
um ar cúmplice. Isso lhe fez bem.
Ele preferia lutar contra o inimigo homem a homem, olho no
olho, mano a mano. Ele não fazia a menor ideia de quantos tinha
matado, já tinha parado de contar havia muito tempo. A jovem
chegou ainda mais perto dele.
À esquerda e à direita na altura da clavícula, ao alcance da mão,
ele carrega duas granadas, as suas outras bolas. A jovem, simulando
espanto virginal, disse ay Diosito. Ali ele fazia daqueles meninos
homens com cochones [colhões]. Ele completa a sua fantasia de
guerreiro com algo que nunca vi antes: na escápula direita, num
cinto que corre em diagonal nas suas costas, ele leva uma faca de
combate cujo cabo se eleva acima dos ombros. Em lutas mortais
corpo a corpo, essa era a posição na qual ele podia sacá-la mais
depressa com a mão direita. Mais tarde Denis riu a risada específica
de desprezo que ele dá, bem curta e dura.
Os pequenos soldados gritavam com voz forte enquanto corriam.
Eles imitavam o registro vocal de homens adultos. Raul lhes
ordenara que fizessem isso. A floresta ainda cheira a fogo e resina
queimada. Na beira do riacho, pus os pés descalços na água morna e
turva. Peixes muito pequenos, camuflados em preto e amarelo, me
mordiscaram agressivamente nos espaços entre meus dedos menores.
Enquanto eu refletia sobre nossas opções, os peixes me deixaram e
atacaram furiosos uma folha murcha que flutuava na água.

BALADA DO PEQUENO SOLDADO III

Os soldados passam com vozes baixas.


Um pequeno soldado equilibra seu copo plástico na cabeça ao
passar por mim. Ele enchera o copo com um bolo de areia.
Encontrei um anzol com um pedaço de linha preso na casca de
um pinheiro na beira do rio. Não pesquei nada com ele.
Denis esmagou com perícia um escorpião enorme que passara a
noite debaixo de mim na rede. Eu o senti, mas achei que estivesse
deitado sobre o meu isqueiro, que teria escorregado do meu bolso.
Alguém experimentava uma nova motosserra na floresta.
Outro alguém estava desde cedo procurando uma estação no
rádio.
Um fumava, outro dormia, outro afiava o facão numa pedra
chata.
Então tudo parou. Apenas as formigas ainda marcham, não se
sabe de onde, e menos ainda para onde.
Para fins militares, uma corda foi esticada obliquamente entre
duas árvores, muito esticada. Para quê, ninguém sabe.
Há um pássaro aqui que tem um corpo laranja brilhante e asas
pretas.
Há outro pássaro que guincha como se gritasse dentro de uma
panela.
Duzentos de seus soldados mataram 3 mil inimigos, segundo
contagem própria. Isso é o que se pode chamar de vitória, disse Raul.
Ninguém passou pela minha cabana hoje. Os piolhos, entretanto,
se multiplicam.
Tenho que redimensionar algumas coisas: o calor do verão em
florestas abertas de pinheiros, o cheiro de resina após um incêndio na
floresta, a cruzada de crianças.
Um pequeno soldado desenhou um relógio em seu pulso com uma
caneta esferográfica. Ele ria o tempo todo enquanto pintava.
Raul fez misteriosas insinuações de que os intrusos podiam ser
identificados por seu jeito de bufar. Da mesma forma que se
reconheciam os pagãos por sua fúria. Os pagãos se enfurecem.
O pequeno soldado com o nome de Fuenterrabia falou comigo.
Não, esse não era o seu nome de guerra, ele se chamava assim
mesmo. Sua mãe foi cortada em pedaços com facões na sua frente.
Fuenterrabia, que não sabe a própria idade, mas com certeza tem
menos de dez anos, mostrou-me seus pés feridos por longas marchas.
Ele também falou de peixes feridos que nadam de barriga para cima
e ainda falou do grande fogo. Agora havia apenas uma floresta
ferida.
A Paixão de Cristo a cavalo.

BALADA DO PEQUENO SOLDADO IV

Rio Coco. Acampamento noturno na floresta não muito longe do rio.


A vegetação baixa é extremamente densa. À noite começou a chover.
Silêncio profundo dos soldados. Apenas um tossiu sufocado num
lenço; soou como se ele tivesse tuberculose. Um soldadinho a algumas
redes de distância da minha disse “bueno” em seu sono.
Jorge Vignati, meu amigo, o mais fiel entre os fiéis em
Fitzcarraldo e em outros filmes, dormiu na chuva no chão duro da
floresta, sem esteira, e não acordou nem quando suas calças estavam
encharcadas. A equipe que nos foi designada, uma parte do pelotão
de comando, é malconduzida e queixosa. Já estávamos atrás das
linhas inimigas. Quando caíram alguns obuses na selva, bastante
perto, mas longe o suficiente para não causar nenhum dano, porque
os emaranhados de cipó amortecem fortemente a dispersão dos
projéteis, os homens queriam sair correndo, de volta para o rio, mas
no rio é que estariam em perigo real, porque ali estariam visíveis e
expostos. Na densa floresta da margem, não era possível avistar o
inimigo, portanto, não era possível responder ao seu fogo de maneira
dirigida.
Pela manhã, tínhamos percorrido a custo duzentos metros em
duas horas. Nesse ritmo, atingiremos o alvo do ataque, o
acampamento inimigo, em oito semanas. No emaranhado mais denso
da floresta, vejo apenas alguns homens à minha frente, abrindo
caminho no matagal, como se cavassem um túnel. Os pequenos
soldados estão atrás de mim. Eles só serão levados para a frente
durante as operações de combate. Uma pequena vespa preta veio
como uma bala apontada diretamente para o meu olho e picou a
minha pálpebra inferior. Meu rosto ficou todo inchado.
Logo após a partida, eu já estava tão encharcado de suor que meu
cinto e minhas bolsas de couro também estavam molhados. Na maior
parte do tempo, ficamos parados porque a vanguarda mal consegue
avançar com seus facões. Parado, disseco cuidadosamente flores que
são tão estranhas como se não pertencessem ao nosso mundo.
Ouvimos um tiro isolado ao norte. A partir do meio-dia, voltaram a
explodir granadas na direção leste, bem longe. Bebemos água de um
buraco de lama ruim, na qual jogamos pastilhas para purificá-la.
Isso não deixou a água cristalina, mas se podia bebê-la.
Fomos descobertos, disse Raul. Ele ordenou que os soldadinhos se
enfileirassem em posição de sentido. Então ele os mandou bater
continência na pequena clareira. Para quem? Por quê? Ele ordenou a
retirada, e ficou claro que a sua conversa sobre um ataque a um
acampamento militar inimigo era só uma bravata. Denis deixou isso
impiedosamente claro. Mais adiante, quando já estávamos voltando,
Raul ordenou que os pequenos soldados ficassem parados em posição
de sentido e batessem continência. Podiam se ver abutres acima da
clareira, na direção leste. Eles pareciam imóveis no ar abafado, mas
se aproximavam e se afastavam, como nuvens de um destino
sombrio. Seus voos circulares pareciam congelar silenciosamente no
ar, como o hálito negro de peste e destruição.
De volta ao nosso acampamento. Caiu um toró inimaginável.
Galinhas com pernas amarradas por fitas de ráfia. Elas foram
esquecidas na chuva forte e parecem saber que ninguém vai se
lembrar delas. Suas penas estão pesadas e encharcadas, elas ficam
paradas sob o triste aguaceiro, aqui e ali iluminadas por raios, e
tremelicam suavemente. Arbustos e troncos inteiros de árvores, as
raízes apontando para cima, flutuam no rio sob a chuva fustigante.
Em seguida, flutua toda uma ilha de árvores desenraizadas,
sobre a qual um cachorro magro está encolhido como se fosse uma
pessoa não autorizada, um passageiro clandestino. Meus
pensamentos o seguem enquanto ele se afasta na chuvarada.

BALADA DO PEQUENO SOLDADO V

Suavemente, imperturbável, ele empurrava o cigarro para lá e para


cá com a ponta da bota. Só cairia no mar pelas frestas entre as
tábuas embaixo da varanda do bar se estivesse perfeitamente
alinhado entre elas. Notei que o soldado acabara de acendê-lo e dera
apenas duas tragadas. Então o apagou com cuidado em cima da
mesa. “Cuentame algo”, disse a ele. Contar, não, não há nada para
contar, ele respondeu. Tinha apoiado o M16 ao seu lado na mesa.
Era jovem demais para um soldado. Tinha traços muito indígenas.
Seu nome era Paladino Mendoza, ele disse, um nome fica para
sempre, mesmo depois que se morre. Nossos olhos vagavam pelo píer,
que se estendia mar adentro, até além da laguna. Ali uma pequena
balsa havia encalhado. A hélice girava, levantando areia. A única
carga no convés plano era um carro cujo motorista pisava fundo no
acelerador e depois freava bruscamente. Não havia mais de dois
metros de espaço livre. Isso se repetiu várias vezes e a balsa
estremeceu um pouco, mas continuou irremediavelmente presa.
Sobre o local, voavam em círculos os abutres, pretos, maus. Até
as estrelas, à noite, são demasiadas. Essa é uma guerra de crianças.
Uma sonolência baixou por todas as coisas. Ainda haveria a palavra
“Seligkeit” [bem-aventurança], a palavra “Dotter” [gema],
“aufamseln” [morrer], “einundneunzig” [noventa e um]. Tiros me
sobressaltaram. O soldado Paladino Mendoza não estava mais ali.
Eu não percebera como ele havia saído.
Só o vi de novo, no píer, quando novamente foram disparados
tiros numa rápida sequência. Pensei que estivessem sendo disparados
na barcaça que estava no final do cais, porque alguns homens se
apinhavam ali, em movimentos bruscos, procurando por cobertura.
Seguindo seus olhares, vi um menino que empurrava, rapidamente,
como em fuga, sua moto para o lado. Então avistei, agora deixado
sozinho no píer, o soldado Paladino, que, apoiando seu fuzil na
cintura, esvaziava o pente atirando para o céu. Todos os olhares se
voltaram para ele. Ele queria a atenção de todos.
Então pegou calmamente o fuzil com as duas mãos e deu um tiro
na boca. Como havia enfiado o cano da arma na boca, o tiro soou
diferente de todos que eu já tinha ouvido. Como se quisesse se sentar,
ele caiu sobre si e ao mesmo tempo para trás. Pessoas correram até
ele. No píer, outro pequeno soldado corria chorando em minha
direção. Apanhei um dos cartuchos ainda quentes das tábuas,
sabendo que não traria nenhuma explicação. O chefe de polícia veio
correndo, com a pistola em punho, e agitou-a no ar por um tempo.
Agora ele também está parado perplexo no sangue que lentamente
para de fluir, a mão dentro da calça, agarrando os genitais. Os
dentes incisivos engastados com prata.
Vi que Paladino Mendoza tinha um anel de lacre de lata de
Coca-Cola num dedo. O cérebro escorrido era uma pasta amarela e
espumosa manchada de sangue claro. As palmas das mãos estavam
voltadas para cima. Seu olhar também estava voltado para cima,
para o vazio. Ele jazia bastante ordeiro, com o rosto íntegro, as
tempestades internas dissipadas. Começou a chover levemente e em
suas mãos, que não sentiam mais, caíam as gotas.
Bem aos pés de Paladino havia alguns sacos de cimento com o
grosseiro papel de embrulho rasgado. Eles haviam sido deixados lá
porque haviam absorvido umidade e já tinham endurecido em blocos
de concreto rachados e cinzentos. Um porco fez como se cheirasse o
concreto, mas fez isso com os olhos fixos no cadáver. Tentou lamber a
pasta do cérebro e alguém o espantou para o lado com um chute.
23.
A mochila de Chatwin

Na pré-produção de Onde sonham as formigas verdes, na Austrália, li


no jornal que Bruce Chatwin apresentara seu novo livro Colina
negra, em Sydney. Eu conhecia seu extraordinário Na Patagônia e o
romance O vice-rei de Uidá, sobre um bandido brasileiro que se
torna o maior traficante de escravizados da África Ocidental em
seu tempo e vice-rei do Daomé. Em quase todos os meus filmes,
eu próprio criei o argumento e escrevi o roteiro, mas me veio à
cabeça muitas vezes que O vice-rei de Uidá poderia ser a base para
um longa-metragem. De repente, tudo ficou mais claro para mim a
esse respeito. Entrei em contato com a editora em Sydney. Não,
Chatwin já havia desaparecido nas profundezas do outback, e estava
lá fazendo pesquisas para um novo livro. Deixei o meu número de
telefone de Melbourne, onde eu organizava minhas filmagens, e
pedi que me avisassem assim que Chatwin reaparecesse no radar.
Uma semana depois, recebi um telefonema: se eu ligasse nos
próximos sessenta minutos para determinado número no
aeroporto de Adelaide, talvez conseguisse falar com ele. Chatwin,
para minha surpresa, já sabia quem eu era, conhecia uma série de
filmes meus e — surpresa ainda maior —, estava com o livro que
escrevi sobre a minha caminhada até Lotte Eisner, Caminhando no
gelo, na mochila. Ele estava voltando para Sydney e de lá pretendia
regressar à Inglaterra. Perguntei-lhe se poderia fazer um desvio até
Melbourne e adiar o voo de volta. Ele topou, sem hesitar, poderia
pousar à tarde em Melbourne. Eu não sabia como era Chatwin,
como poderia reconhecê-lo, e ele apenas disse: “Sou alto, loiro e
pareço um estudante. Estou carregando uma mochila de couro”.
Quando fui buscá-lo com meu anfitrião, Paul Cox, localizei-o a
cem metros de distância no meio da multidão.
Enquanto saíamos do aeroporto, ele desatou a contar uma
história após a outra, e seguiu-se então uma maratona de 48 horas
na qual nos contamos histórias e mais histórias, isto é, eu quase
não conseguia interrompê-lo, pois seu fluxo verbal era vigoroso e
inesgotável como uma cachoeira. Mas acho que nesse aspecto fui
um interlocutor bastante especial para ele, nós nos estimulávamos
a contar mais e mais histórias, dois terços do tempo era ele quem
falava como que em êxtase, um terço era eu. Naturalmente, em
meio a tudo isso, também comemos e dormimos. Ele ficou com a
minha cama na casa de Paul Cox, eu dormi no sofá. Mais tarde eu
soube que, em outras ocasiões, ao se hospedar na casa de pessoas
que não conhecia, ele começava a contar uma história assim que
saía do carro e continuava contando ao entrar na casa,
cumprimentando seus anfitriões apenas com um aceno de cabeça.
Depois, era cercado pelos presentes, que se dedicavam
simplesmente a ouvi-lo. Jamais esquecerei nosso primeiro contato.
Como eu estava enfronhado em meu novo filme, concordamos
que eu começaria a trabalhar em sua história do traficante de
escravizados Francisco Manuel da Silva assim que surgisse a
oportunidade para isso e o financiamento estivesse acertado. Por
cautela, também pedi para ele me avisar se mais alguém quisesse
comprar os direitos do livro. Esse tipo de acesso direto que
tivemos um ao outro certamente se devia ao fato de que nós dois
tínhamos experiências com caminhadas. Para ser mais preciso: não
éramos mochileiros que, com barraca, saco de dormir e utensílios
para cozinhar, carregavam uma casa nas costas, mas duas pessoas
que percorriam longas distâncias quase sem bagagem. O mundo se
revela a quem viaja a pé. No caso de Bruce, deve-se acrescentar a
sua profunda compreensão das culturas nômades, combinada com
o seu entendimento de que todos os problemas da humanidade
tinham a ver com o abandono da vida nômade. Somente com o
início da vida sedentária se desenvolveram povoados, cidades,
monoculturas e ciências, com um intenso aumento da população
— coisas que não são boas para a sobrevivência da humanidade.
Por outro lado, está claro que não podemos girar ao contrário a
roda do tempo. Bruce gostou dos meus dez mandamentos, a minha
lista de pecados da civilização moderna: entre eles, a criação do
primeiro porco doméstico, o que não se equipara à criação de um
cachorro, que se tornou um companheiro de caça, e também a
primeira escalada de uma montanha apenas por escalar. Petrarca
foi o primeiro de que temos notícia a escalar uma montanha, e pela
carta em latim que escreveu sobre isso se pode depreender que ele
tinha uma atração pelo insólito, pelo quase proibido. Todos os
povos da montanha, os suíços, os sherpas, os baltis, nunca
pensaram em escalar uma montanha.
Talvez eu fosse o único com quem Bruce podia se entender
facilmente sobre a sacralidade do caminhar. Minha própria
caminhada para ver Lotte Eisner, gravemente doente, de Munique
a Paris, no inverno de 1974, teve algo de um ritual para não
permitir que a sua morte iminente ocorresse. Na época, Lotte
Eisner nem sabia que eu estava viajando a pé na neve por 21 dias
para me encontrar com ela. Quando cheguei, por um milagre, ela
estava quase saudável e recebeu alta do hospital. Havia algo
esconjurador na minha caminhada, foi como uma peregrinação.
Mas oito anos depois, beirando os 88 anos, ela me chamou a Paris.
Lotte estava quase cega, mal conseguia andar, e disse: “Estou farta
da vida”. Será que eu poderia libertá-la da maldição que a impedia
de morrer? Ela disse isso um pouco de brincadeira, mas senti que
na realidade não era, e respondi também com um gesto suave,
indicando com ele que a maldição estava suspensa. Ela morreu não
muito mais de uma semana depois.
A maneira de caminhar que Bruce e eu compartilhávamos nos
forçava a buscar refúgio, a nos conectar com as pessoas, porque
nossa vulnerabilidade exigia isso. Não consigo me lembrar de
termos sido rejeitados, porque existe um reflexo profundo, quase
sagrado, de hospitalidade que está apenas aparentemente
enterrado na nossa civilização. Mas muitas vezes em minha vida
também ocorreram situações em que não havia aldeia, propriedade
rural, nenhum teto por perto. Eu dormia em campos abertos, em
celeiros e debaixo de pontes. Quando chovia ou fazia um frio polar,
e havia apenas uma cabana de caça vazia ou uma casa de férias
isolada, nunca vi problema em invadi-las. Muitas vezes, entrei em
casas trancadas sem causar danos nem quebrar nada porque
sempre tenho comigo um pequeno “instrumental cirúrgico” com
duas molas de aço, que me permite abrir fechaduras de segurança.
Ao ir embora, quase sempre deixo um breve bilhete de
agradecimento, ou termino as palavras cruzadas na mesa da
cozinha. Sentindo-me desconfortável com o que se pratica nas
escolas de cinema em todo o mundo, fundei a Escola de Cinema
Rogue, uma alternativa, uma escola de guerrilha em que as únicas
duas coisas que realmente ensino são a falsificação de documentos
e o arrombamento de fechaduras de segurança. Tudo o mais são
instruções para subverter o sistema existente, para fazer filmes a
partir de si mesmo.
Um dia, recebi uma carta de Bruce dizendo que David Bowie
queria comprar os direitos de O vice-rei de Uidá. Aparentemente,
Bowie também queria fazer o papel principal. Liguei para Bruce e
disse: “Deus do céu, Bowie é o cara errado, ele é andrógino demais
para esse personagem”. Bruce era da mesma opinião, e eu então
raspei o tacho e comprei os direitos do romance. Kinski faria o
vilão. Bruce havia ficado profundamente impressionado com
Kinski, que ele já tinha visto no cinema. Cobra Verde, como chamei
o filme de 1987, veio a ser a quinta e última colaboração entre
Kinski e mim. Naquela época, ele era como um demônio, movido
pela loucura. Interiormente, já estava em outro filme, o seu próprio
longa sobre Paganini. Como era de esperar, não chamou o filme de
Paganini apenas, mas Kinski Paganini. Durante anos, ele insistiu
para que eu assumisse a direção do filme, mas o roteiro, de
seiscentas páginas, era o que se chama no ramo de “beyond repair”
— irremediável. Logo no início das filmagens de Cobra Verde, em
Gana, ele aterrorizou de tal modo o meu cinegrafista, que a
situação se tornou insustentável. Kinski exigiu expressamente a
demissão de Thomas Mauch, apesar de saber desde Aguirre que
estava lidando com um profissional de primeira categoria. A
suspensão das filmagens seria inevitável, mas Mauch se deu conta
de que eu não podia apoiá-lo e desistiu do filme. Às vezes,
intimamente, lá no fundo, tenho a sensação de que o traí. Eu
queria de ter conseguido ser leal o bastante para apoiá-lo naquele
momento, mas se o fizesse o filme deixaria de existir e, sobretudo,
os danos a todos os demais membros da equipe teriam sido
irreparáveis. Muitas vezes, trabalhar em filmes envolve destruição.
Quando se desbasta o matagal da história do cinema, o chão fica
repleto de coisas destruídas. Felizmente Thomas Mauch foi capaz
de lidar com aquilo. Fez os seus próprios filmes e também foi
diretor de fotografia de muitos projetos de outros diretores. Nunca
mais trabalhei com Kinski depois desse episódio, mas houve outras
razões para isso. Em cinco longas-metragens, eu dera vida, por
meio dele, a personagens muito diferentes, e agora não havia mais
nada a descobrir. Em favor de Kinski, no entanto, devo dizer que
muitas vezes ele conseguia ser extraordinariamente generoso e
prestativo, e que tivemos momentos de profunda camaradagem. O
filme Meu melhor inimigo é uma prova disso. Mostra que Kinski
podia ser muito respeitoso e gentil com suas parceiras diante da
câmera, o que ficou visível em particular com relação às atrizes
Claudia Cardinale e Eva Mattes, das quais ele reconhecia o talento
e o carisma único. Mas a colaboração entre Kinski e eu muitas
vezes chegou a extremos, a zonas onde nos tornávamos perigosos
um para o outro. Planejamos matar um ao outro, o que não passou
de gestos em uma cena grotesca, uma pantomima. Uma noite, subi
a encosta íngreme que levava até seu chalé, no meio das sequoias
ao norte de San Francisco — o caminho normal, transitável, ficava
do outro lado — para atacá-lo, mas não tinha muita certeza do que
eu queria fazer e, quando seu cão pastor começou a latir, entendi
como uma deixa oportuna para bater em retirada. Apenas uma vez
eu realmente o ameacei de morte: foi em Aguirre, quando Kinski
arrumou suas coisas e colocou-as em um barco, decidido a partir
duas semanas antes do final das filmagens, o que era inadmissível
porque estávamos trabalhando em algo que estava além, acima de
nossas pessoas. Eu estava desarmado, sem nada nas mãos, e falei
num tom contido, mas Kinski percebeu que não era uma ameaça
vazia. Eu já havia tirado dele a winchester, com a qual às vezes
atirava furioso ao seu redor. Na selva isso era absolutamente
tolerável, e ele pensava estar se defendendo com valentia dos
ataques de onças e cobras venenosas. Uma noite, porém, depois do
fim das filmagens, quando cerca de trinta figurantes ainda jogavam
cartas e bebiam aguardiente em sua cabana, Kinski teve um acesso
de cólera, depois de ouvir de sua cabana isolada no topo da colina
uma risada distante que o perturbou. Ele disparou a esmo três tiros
em direção à cabana dos figurantes, com paredes construídas de
bambu, que as balas atravessaram como se fossem de papel. Foi
mero acaso não ter acertado em cheio nenhuma das pessoas
apinhadas lá dentro, apenas arrancando a falange superior do dedo
médio de um dos jovens. Em Fitzcarraldo, os ashaninkas ficavam
visivelmente com medo quando Kinski se enfurecia, então se
sentavam em círculo no chão e cochichavam entre si. No convívio
social desse povo nunca há discussões barulhentas. Um dos chefes
mais tarde me disse que eu não deveria pensar que eles estavam
com medo daquele louco urrando, mas sim de mim, pois eu estava
muito quieto. Ele também se ofereceu para matar Kinski para mim.
Recusei educadamente, mas sei que, caso tivesse aceitado, no
mesmo instante eles teriam passado à ação.
Convidei Bruce para as filmagens de Cobra Verde em Gana, mas
ele escreveu que estava tão doente, que não podia mais viajar. Ele
contraíra um fungo muito raro, que estava se alastrando pela sua
medula. Esse fungo fora encontrado apenas numa baleia encalhada
na costa da Arábia e em morcegos numa caverna em Yunnan, no
Sul da China, que de fato ele visitara. Mais tarde, porém, verificou-
se que a infecção fúngica era apenas consequência da aids.
Continuei insistindo para que ele viesse e, quando ele de repente
melhorou um pouco, me perguntou se era possível chegar até mim
numa cadeira de rodas. Respondi que o terreno do local onde
estávamos filmando não era adequado. Escrevi para ele: “Vou
arranjar para você uma rede com seis carregadores, além de um
homem com um enorme guarda-sol, daqueles que os pequenos
reis locais sempre têm por perto como guarda de honra”. Ele não
pôde resistir. Mas depois conseguiu andar sozinho, ainda que
apenas por curtas distâncias. Ele escreveu sobre essa visita em seu
livro O que faço eu aqui?. Ficou particularmente impressionado
com o rei que faz um papel no filme, Agyefi Kwame II, omanhene de
Nsein. Ele aparece em traje cerimonial completo, com 350 pessoas
em sua comitiva, tocadores de tambor, dançarinos, suas mulheres,
seu poeta da corte. Para o filme, também escalamos um exército de
amazonas, com oitocentas jovens que foram treinadas durante
semanas num campo esportivo em Accra por Giorgio Stefaneli, o
melhor coordenador de dublês da Itália. Stefanelli, que havia
coreografado inúmeras pancadarias em filmes de faroeste
espaguete, viu-se diante de um exército de jovens loquazes,
confiantes e que quase não se deixavam controlar. Bruce
testemunhou uma pequena insurreição delas em nosso local de
filmagens em Elmina e descreve a cena em seu livro com um
espanto assustado. Além de Kinski, eu também tinha diante de
mim uma legião de guerreiras maravilhosas e difíceis, e me lembro
de um incidente, ocorrido no dia em que o cachê da semana seria
pago em dinheiro. No pátio do forte, as mulheres trocavam de
roupa após as filmagens, e eu já sabia por experiência própria que
elas não faziam fila para serem registradas e pagas. Elas
simplesmente haviam avançado sobre a mesa do dinheiro, e tudo
acabara num grande caos. Desta vez, a equipe local decidiu que
usaríamos a passagem em forma de túnel entre o pátio interno e o
portão externo do forte como um gargalo natural para canalizar a
esperada confusão. Foi um grande erro. Quando se anunciou que o
salário da semana estava pronto lá fora, todas correram de uma vez
para o pesado portão externo, do qual, deliberadamente — para
evitar que muitas passassem ao mesmo tempo —, apenas uma
porta menor fora deixada aberta. Em poucos instantes, os corpos
de várias das mulheres estavam entalados uns nos outros na
estreita passagem, e a pressão que vinha de trás crescia de tal
forma, que pude ver como algumas delas, ainda em pé, perdiam a
consciência. Mas elas não deslizavam para o chão no meio da
multidão compactada, e sim permaneciam eretas em seus
desmaios. As que estavam mais atrás empurrando não tinham ideia
do que estava acontecendo à frente e urravam, e eu gritei em vão
para elas pararem de empurrar. Estava claro que meros dez
quilogramas-força de pressão vindos de oitocentos corpos logo
significavam 8 mil quilogramas-força para as que estavam na
frente, uma situação com risco fatal que se agravava a cada
segundo. Dessa forma, costumam acontecer acidentes terríveis em
estádios de futebol. Do lado de fora, junto à mesa com as notas de
dinheiro empilhadas — em Gana imperava uma inflação galopante
e as notas tinham que ser transportadas em carrinhos de mão —,
um soldado montava guarda. Gritei para ele dar um tiro para o alto,
mas ele estava como que paralisado. Eu tive que arrancar a arma
dele, e atirei para o céu. Assustada, a multidão recuou no túnel, e
só então quatro ou cinco das mulheres inconscientes caíram no
chão.
O estado de Bruce piorou nos dois anos seguintes sem que eu
soubesse como era ruim seu estado de saúde. Em 1987, ele ainda
foi a Bayreuth para o Festival Wagner, onde encenei Lohengrin. Ele
foi com sua mulher, Elizabeth, e a maior parte do caminho sentado
ao volante no seu “pato de lata”, um Citroën 2CV. Depois, fiz um
documentário no sul do Saara sobre o povo nômade wodaabe, mais
precisamente sobre um encontro anual de grupos étnicos em
algum lugar do semideserto do Níger, onde havia uma espécie de
mercado de casamento. Lá eram os homens, considerados os mais
belos do mundo, que se embelezavam e se maquiavam em rituais
que levavam dias, e as mulheres então decidiam quais eram os mais
bonitos e com mais carisma. Elas escolhiam um homem do grupo
de dançarinos para passar a noite e, caso ele não as agradasse,
devol­viam sem cerimônia o candidato. Eu havia contado a Bruce
sobre a edição do filme e ele estava ansioso por vê-lo. Quando
Wodaabe, pastores do sol finalmente ficou pronto, recebi um
telefonema de Elizabeth, da comuna francesa de Seillans, na
Provença, onde Bruce havia se refugiado num castelo antigo. Ele
estava muito mal, mas queria sem falta ver o meu filme. Peguei o
carro e fui de Munique até lá. Levei uma cópia do filme numa fita
de videocassete.
Quando cheguei, Elizabeth me parou na porta e aos sussurros
me perguntou se eu queria mesmo entrar. Bruce estava morrendo.
Embora eu tenha tido um momento para me preparar, fiquei
profundamente chocado a seguir. De Bruce, restava apenas um
esqueleto, apenas os grandes olhos ainda ardiam em seu crânio.
Ele quase não conseguia mais falar. Bruce pediu para ficar sozinho
comigo. A sua boca e a sua garganta estavam infestadas por uma
camada clara de fungos que havia se alastrado até os pulmões. A
primeira coisa que ele me disse foi: “Estou morrendo”. Eu
respondi: “Estou vendo, Bruce”. Ele queria que eu o ajudasse em
sua agonia, queria saber se eu podia matá-lo. Eu disse: “Você acha
que devo bater em você com um taco de beisebol ou sufocá-lo com
um travesseiro?”. Mas ele estava pensando numa droga de ação
rápida. Por que ele não falara com Elizabeth sobre isso? Não, ela
era católica demais, era impossível pedir tal coisa a ela. Mas ele
acabou retirando o pedido que me fizera e quis ver o filme, do qual
lhe mostrei os primeiros quinze minutos. Depois, por um tempo,
ele entrou num estado inconsciente. Quando voltou a si, quis
assistir ao restante do filme, o que fez, parte por parte. Foram as
últimas imagens que viu. Suas pernas, que chamava de boys e
pareciam fusos feitos de ossos, estavam doendo, e ele me pediu
para mudar a posição de seus boys, o que eu fiz. Então, de repente,
acordou de um semicoma e gritou: “I have to be on the road again, I
have to be on the road again!” [Tenho que pôr o pé na estrada de
novo]. Eu disse: “Sim, Bruce, é a estrada o seu lugar”, e ele olhou
para as próprias pernas e viu que não havia mais nada, não havia
mais corpo, apenas uma alma ardente, e me disse: “Minha mochila
é muito pesada pra mim”. Eu respondi: “Bruce, eu sou forte, posso
carregar a mochila pra você”. O filme foi visto até o fim. Depois de
quase dois dias, Bruce me falou que estava com vergonha de
morrer na minha frente, e eu disse que entendia, embora não
tivesse medo de ficar com ele. Quando eu por fim estava indo
embora a seu pedido, ele disse num momento perfeitamente
lúcido: “Werner, você tem que ficar com minha mochila, você vai
carregá-la em meu lugar”. Eu fui embora, e alguns dias depois
Elizabeth levou-o para o hospital em Nice, onde ele morreu em
algumas horas. Foi ela quem me enviou a mochila de Bruce, que
estava guardada em sua casa, perto de Oxford. A mochila não é um
suvenir, eu a uso. De todas as coisas materiais que possuo, é ela,
feita de couro resistente por um seleiro de Cirencester, a mais
preciosa para mim.
Menos de dois anos após a morte de Bruce, a sua mochila teria
um papel importante. Eu tinha começado a filmar o longa No
coração da montanha, que foi lançado em 1991. A ideia desse filme
partiu de Reinhold Messner e era sobre a disputa entre dois
montanhistas na escalada da mais difícil de todas as montanhas, o
Cerro Torre, na Patagônia. Essa montanha parece uma agulha de
granito de dois quilômetros de altura, coroada por um cogumelo
de gelo e neve compactada. Muito poucos alpinistas subiram até o
topo, somente a crème de la crème. O número dos que alcançam o
topo do monte Everest num único fim de semana é o dobro
daqueles que já chegaram alguma vez ao topo do Cerro Torre.
Além das paredes íngremes e hostis, há o fato de que o sul da
Patagônia costuma ser assolado por tempestades inimagináveis.
Walter Saxer produziu o filme e também coescreveu o roteiro, e
essa circunstância acabou se revelando o problema do projeto, pois
sempre adapto a história, de forma a torná-la compatível com a
minha perspectiva. Ao fazer isso, porém, choquei-me com uma
resistência obstinada e, no final, ficou implícito que eu deveria
proceder de acordo com as indicações precisas dos storyboards, o
que, no alto de um rochedo durante uma tempestade de neve, é
impossível de se fazer. Os storyboards e a edição se tornaram o
ponto crucial do filme, mas posso viver com isso. Quase tudo que
é produzido no cinema funciona dessa forma. Eu gostaria que o
filme fosse todo de Walter Saxer ou todo meu, mas ele acabou não
sendo nem de um nem de outro.
O ator principal, Vittorio Mezzogiorno, usa a mochila de couro
no filme, em homenagem a Bruce Chatwin. Eu, por minha vez, a
usava quando ela não era necessária em cena. Numa sequência,
depois de os dois alpinistas rivais terem alcançado o cogumelo de
gelo saliente perto do cume, o mais jovem deles cai de sua corda e
morre. Esse papel foi representado por um alpinista de verdade,
Stefan Glowacz, que vencera o Rock Master, na Itália, e com isso
se tornara uma espécie de campeão mundial não oficial. Devido às
tempestades no alto na montanha, transferimos as filmagens de
algumas tomadas para o vale. Durante mais de uma semana, não se
podia ver a montanha nem chegar perto dela. Então, de repente,
houve uma trégua. As nuvens se dissiparam, seguiu-se uma noite
sem uma brisa sequer, estrelada e maravilhosamente silenciosa. De
manhã cedo, o céu estava azul, sol, nada se movia. Estávamos
confiantes de que agora poderíamos filmar a difícil cena perto do
cume, então escolhemos um cogumelo de neve parecido, a alguma
distância do cume verdadeiro, acessível por uma estreita crista
nevada. Mas tínhamos que agir depressa. Decidimos que Stefan
Glowacz, um cinegrafista-alpinista, e eu iríamos de helicóptero até
o cume. Lá, Glowacz, assistido pelo cinegrafista e por mim,
começaria a instalar a sua corda em segurança. Assim pouparíamos
tempo e, em vinte minutos, um grupo de alpinistas chegaria para
nos apoiar e montar rapidamente um acampamento improvisado,
por segurança, com barracas, sacos de dormir, cordas e provisões.
Isso era contra os rígidos procedimentos protocolares, mas
naquela manhã, depois de uma breve deliberação com os
alpinistas, entre eles alguns dos melhores do mundo, e dadas as
circunstâncias, concordamos em fazer as coisas de maneira
diferente.
O helicóptero nos levou, a vanguarda da filmagem, até o cume,
a uma distância de dez minutos. Depois, deu meia-volta para
buscar a equipe de segurança. Caminhamos apenas alguns passos
na crista, de um lado a Argentina e a geleira que se estendia de
Cerro Torre até perder de vista, e do outro, o Chile. De ambos os
lados, mais de mil metros de falésias que descem quase
verticalmente até as profundezas. Então, vi algo estranho com o
canto do olho. Do lado chileno, bem abaixo de nós, havia nuvens
firmes, como flocos de algodão, imóveis. Tudo estava tão claro que
dava para ver, a cem quilômetros de distância, a linha do Pacífico
no horizonte. Mas, então, de repente, todas aquelas nuvens
brancas entraram numa rebelião silenciosa. Os flocos de algodão
dispararam em nossa direção, pareciam cogumelos atômicos.
Gritei para Glowacz, perguntando o que aquilo poderia significar,
mas ele apenas ficou parado, cheio de espanto. Apanhei o meu
walkie-talkie e imediatamente chamei o helicóptero de volta. Ele
era apenas um ponto distante no ar, mas vi quando mudou de
rumo e veio na nossa direção. Quando já estava perto, ao nosso
alcance, fomos atingidos pela primeira rajada da tempestade, que
varreu dali o helicóptero.
Em questão de segundos, estávamos num white-out, no qual
não podíamos ver muito além da própria mão estendida, em meio a
uma tempestade de cerca de duzentos quilômetros por hora, a uma
temperatura de −20°C. Nós nos agarramos uns aos outros e
alcançamos uma sólida parede de neve, dentro da qual nos
enterramos. Tínhamos apenas uma picareta de gelo, e também a
corda que Glowacz usaria na cena, mas estávamos sem barraca,
sem sacos de dormir, sem comida. Eu tinha duas barras de
chocolate num dos meus bolsos e a mochila vazia de Bruce
Chatwin. Conseguimos criar uma minúscula caverna bivaque, não
muito maior do que um barril. Agachados lado a lado, poderíamos
ficar razoavelmente seguros, pois lá dentro, depois de fechar a
entrada com pedaços de gelo, a temperatura era de 1°C ou 2°C,
devido à respiração e ao calor dos corpos. Eu me sentei sobre a
mochila vazia para não perder muito calor do corpo, se em contato
com o gelo. Mais tarde, ouvi algumas pessoas dizerem que a
mochila salvou a minha vida, mas isso não faz sentido, porque os
outros dois homens que estavam comigo também sobreviveram,
sem a mesma proteção. Exatamente a cada duas horas, eu
contatava nosso pessoal no vale por um momento. Dessa forma,
pretendia economizar bateria. Reparti entre nós o pouco chocolate
que eu tinha. Cada um deveria fazer suas pequenas rações.
Passamos o dia inteiro e a noite apinhados ali, e logo o cinegrafista,
que era um alpinista habilidoso e traquejado, começou a passar
mal. Glowacz e eu o colocamos no meio de nós dois e o forçamos a
manter os dedos das mãos e dos pés em constante movimento,
porque as extremidades ficam sempre mais rapidamente expostas
ao congelamento. No entanto, ele piorou depressa e, no final da
noite, estava em péssimas condições. Quando liguei o walkie-talkie
que mantinha aquecido sob a axila, ele arrancou o dispositivo da
minha mão e comunicou que não sobreviveria a outra noite como
aquela.
Isso alarmou os montanhistas no vale. Eles formaram dois
grupos, cada um com quatro homens, que deveriam tentar nos
alcançar por duas rotas diferentes. Um dos grupos logo desistiu
por causa da tempestade, da falta de visibilidade e do frio
congelante. O segundo chegou perto, a algumas centenas de
metros abaixo de nós, mas então o mais forte de todos, o melhor
alpinista argentino dos Andes, tirou as luvas. Ele as arrancou com
os dentes e as jogou na tempestade. Então estalou os dedos, como
se chamasse um garçom para pagar pelo seu cappuccino. Seus
camaradas tiveram que colocá-lo a salvo e o levaram quase até uma
geleira, mas foram arrastados um pouco mais para baixo por uma
pequena avalanche. Depois, também tiveram que fazer uma
caverna bivaque, mas estavam seguros, pois tinham alimentos,
sacos de dormir e um fogareiro para derreter a neve. Enquanto
isso, no alto, na crista da montanha, nos forçávamos a comer neve
e mantínhamos nossas mãos e pés em movimento. Assim
passamos o dia seguinte e a segunda noite. No terceiro dia, de
repente as nuvens se abriram um pouco e a tempestade quase se
dissipou, e o helicóptero arriscou subir até nós, mas não ousou
pousar direto no cume. Içamos nosso homem doente para o
helicóptero e, então, em questão de segundos, Glowacz também
entrou e eu subi na cesta de metal instalada do lado de fora para o
resgate. Por um momento, levantei-me e quis rastejar para dentro
do helicóptero, mas o piloto, em pânico, simplesmente disparou
dali e eu cambaleei para trás. Consegui me agarrar a uma das barras
de ferro da cesta e me segurei firme ali, agachado. Foram poucos
minutos de descida até o vale, mas meus dedos nus agarrados à
barra congelaram de tal forma que eu não conseguia soltá-la. Por
fim, um dos argentinos da equipe pediu às damas que se
afastassem e urinou nos meus dedos. Com o calor da urina, eles
reviveram. Tínhamos ficado 55 horas no cume, e o tempo voltou a
ficar terrivelmente ruim pelos onze dias seguintes.
24.
Arlscharte

Meus filmes sempre foram filmes a pé. Uso o termo aqui não só
como metáfora. Mas o caminhar, que eu tinha em comum com
Bruce Chatwin, contribuiu para uma visão do mundo que sempre
se faz sentir no meu trabalho, por mais diversos que sejam os
temas que me fascinam. Antes mesmo de ele morrer, em 1986, eu
carreguei sua mochila na travessia dos Alpes, na verdade, para ser
mais preciso, era uma cópia aproximada da sua, que ele havia
mandado fazer na Inglaterra de presente para mim. Também quero
registrar aqui que provavelmente sou tão preguiçoso como
qualquer outra pessoa, apenas viajei a pé em momentos de
importância existencial para mim. Nessa época, eu mantinha
diários, eis alguns trechos:

Quinta-feira, 8 de maio de 1986


Tegernsee — Rottach-Egern — Sutten — Valepp. Ao longo do
Rottach; chuva o dia todo. Um toco de madeira sempre entrava de
novo no turbilhão de uma eclusa, era lançado para fora de novo e
inevitavelmente voltava outra vez para o remoinho, que o puxava
para baixo da superfície espumosa da água. Fiquei um bom tempo
olhando para isso, enquanto uma memória de infância muito antiga
voltava com clareza cada vez maior. Eu estava no riacho atrás da
casa e observava um pedaço de madeira com profunda apreensão.
Um galho também havia sido jogado da cachoeira, recém-arrancado.
Quase não havia mais folhas nele e quase toda a casca havia sido
raspada entre as pedras. O galho caiu no mesmo remoinho. Mas
então, depois de um circuito muito longo, o pedaço de madeira foi
expelido para fora da horrível voragem. O galho ficou e eu fiquei
observando o galho. Já havia escurecido bastante e as pessoas
começaram a me procurar. Lenz, o empregado que trabalhava na
grande propriedade, me encontrou. Ele me deu sua mão dura,
enorme, e eu não senti mais frio.
Em Enterrottach, havia um clube de curling. O jogo era no
asfalto. Com um barril de cerveja e seu dialeto, os jogadores estavam
totalmente entre si. A chuva para. Primavera, árvores floridas, a
felicidade dos pássaros canoros. Um pouco mais alto, a cerca de mil
metros, nevou de leve.
O taverneiro em Valepp me mostrou seu bilhete de loteria de três
meses atrás. Para cada um dos números sorteados, ele havia
apostado exatamente um número acima. No passado, Hansi, o cervo
da casa, zanzava aqui pelo salão. Quando ficou mais velho, tornou-
se bravio, atacava os hóspedes com seus chifres e tiveram que atirar
nele.
Na hospedaria depois da fronteira, havia um bode branco, que
bebia aguardente e fumava charutos. Quando ele morreu,
prepararam sua cabeça e a penduraram na sala e enfiaram um
cigarro no canto da boca. Perguntei como o bode havia morrido. De
cirrose hepática, disse o taverneiro, servindo-se de um copo de
genciana. “Cuidado, fígado, abaixe-se”, ele encorajou a si mesmo,
baixou a cabeça rapidamente e sorveu a aguardente. Eu também
pedi uma genciana. Sim, disse o taverneiro, ele também tinha ouvido
falar do cervo em Valepp. Em 1936, quando Hitler e outros ainda
estavam por aí, ele espetara um hóspede. Esse fora o seu fim, do
cervo. Naquela época não se perdia muito tempo com um cervo. Era
também assim com Hitler e ete cetera, ele nunca perdeu muito tempo.

Sexta-feira, 9 de maio
À noite, estendi minha rede numa cabana. Várias construções ao
redor estavam habitadas, e o meu medo de encontrar pessoas me
obrigava a agir às escondidas. Tive calafrios tão fortes que, quando
me segurei no parapeito para estender a rede, a varanda inteira
estremeceu comigo.

Domingo, 11 de maio
Fez tanto frio à noite que me levantei e caminhei por horas na
varanda; depois dormi um pouco mais. Hoje de manhã, todo o
Steinernes Meer estava diante de mim. Os pássaros me acordaram.
A manhã era como minério refinado. Andei atravessando a floresta
íngreme; neve profunda e silêncio ainda mais profundo. Entre os
bombeiros na taverna, havia um mongoloide em uniforme de
bombeiro.
De Mühlbach, seguindo a bússola, direto para St. Johann.
Caminho muito íngreme na floresta onde nem mais os cervos
passam. Na primeira parada, peguei uma agulha e esvaziei o líquido
das bolhas dos pés. Me dei conta de que precisava de cada vez mais
coragem para me misturar às pessoas nas aldeias.
Sobre caminhar: muitas e mais muitas e muitas vezes, o sentido
do mundo deriva do menor, no qual nunca se reparou antes, essa é a
matéria da qual resulta um mundo completamente novo. Quem
caminhou não consegue contar as riquezas de um único dia. Ao
caminhar, não há nada nas entrelinhas, tudo se passa no presente
mais bruto e imediato: as cercas do pasto, os pássaros que ainda não
sabem voar, o cheiro da madeira recém-derrubada, o espanto da
caça. Hoje é Dia das Mães.
Acima de Dienten, quando saía da floresta encontrei
inesperadamente um velho maltrapilho, que, encolhido e encurvado,
observava com binóculos embaçados um cortejo fúnebre que subia
em direção à igreja. Ele se assustou e pareceu se envergonhar das
janelas quebradas e das telhas de madeira desbotadas e que em parte
desmoronavam de seu telhado. Mãos e cabelos davam a impressão
de não serem lavados há anos. Atrás de sua casinha em ruínas,
estava estacionado um volkswagen sem motor, portas ou rodas. Sim,
ele disse, ele morava ali sozinho, eu tinha vindo pela montanha no
meio de toda aquela neve? Ele não quis me deixar descer pela
encosta extremamente íngreme; tomei, portanto, o caminho, de
curvas sinuosas.
Großarl — Hüttschlag. Hüttschlag parece ser o último lugar
onde posso encontrar alguma coisa numa pequena venda. Vou passar
a noite numa hospedaria. A principal cadeia alpina de Tauern parece
muito alta, muito alta e coberta de neve profunda. Vou levar um
filão de pão, e toucinho.

Segunda-feira, 12 de maio
Hüttschlag. Depois de fazer compras pela manhã, cortei para
mim um robusto cajado, um braço mais alto do que eu, e subi
seguindo o riacho. A paisagem rapidamente se tornou mais
selvagem, mais dramática. Neve profunda, bandos de camurças,
cachoeiras. Caí várias vezes em trechos com neve até a cintura.
Amaldiçoei, depois me reconciliei com o deus dos primeiros
alpinistas. Minhas polainas e meu cajado estão adquirindo um
valor, pensei comigo mesmo, que ninguém jamais poderá calcular.
Isso me deixou um pouco mais satisfeito, como alguém que enumera
suas duas únicas riquezas.
Segui um rastro humano de cerca de duas semanas atrás, mas
que depois também acabou. Por aqui não passou ninguém. Subida
extremamente íngreme ao longo de várias canaletas de neve, então
me deparei com uma cabana de caça com placas de alerta pregadas
por todo o lado de fora, informando que aquela propriedade privada
estava protegida por disparos automáticos. Perdizes brancas
esgueiravam-se à minha frente. Eu quase não as via mais, porque,
embora fizesse mau tempo, com o céu encoberto por nuvens
cinzentas, eu estava começando a ficar cego pela neve. Eu não trouxe
óculos escuros, isso foi estúpido. Os olhos inflamaram-se e as
pálpebras incharam bem grossas, mas eu ainda conseguia enxergar
por onde andava. Meu objetivo na Cadeia, o Arlscharte, localizava-
se nas alturas nevadas um pouco diferente do que eu presumira a
princípio, mas por nada neste mundo eu poderia perdê-lo. Então,
subi num monte de neve, consultei bússola e mapa e refleti por muito,
muito tempo. Na última localidade, tinham me dito para não ir, em
hipótese alguma. No final da guerra, exatamente nos mesmos dias de
maio, me disseram como advertência, muitos soldados, homens
jovens e fortes, haviam tentado chegar à sua terra natal, a Caríntia,
e todos haviam morrido no Arlscharte na passagem pela Cadeia
Alpina Principal, soterrados por avalanches ou desaparecidos para
sempre.
Bem no alto em direção ao cume, em trechos muito íngremes,
afundei muitas vezes na neve até o peito; subida muito cansativa.
Logo antes do Arlscharte, uma encosta de avalanche, curta e
extremamente íngreme, que contornei escalando a rocha ao lado. De
repente, o vale de Malta estava abaixo de mim, ao sul, com sua
poderosa barragem. Pedaços de gelo flutuavam na água da represa.
O hotel junto à represa ainda está fechado, mas com meus olhos
doloridos e lacrimejantes eu avistei três homens. Então eu também vi
que era preciso atravessar uma encosta de avalanche extremamente
íngreme ao sul e que não havia desvio, porque a rocha acima dela
não era acessível sem equipamento, grampos, mosquetões e corda. O
que fazer? Retornar, tudo de volta, mais de cem quilômetros de
desvio? Refleti por um tempo, não me apressei. Aproximei-me da
encosta de avalanche e a estudei. Ela não parecia bem. A encosta
estalou e fez um barulho estranho, um silvo, como o silvo de uma
cobra. Algo queria estourar, mas resistiu. Sem que tivesse tomado
uma decisão, eu me vi descendo a encosta em saltos rápidos. Quando
cheguei ao meio, houve um estrondo, como se um balão muito grande
não muito cheio tivesse estourado. Havia algo agudo e abafado no
estrondo. Depois de atravessar a encosta, vi com o coração aos pulos
que havia uma fenda profunda na neve logo abaixo do meu rastro,
com cerca de um metro de largura, que se estendia de uma
extremidade à outra da encosta. Mas a avalanche não se
desprendeu.
Na barragem de Köllnbrein, a equipe técnica estava em serviço.
Eles ficaram aqui durante todo o inverno, ainda estavam impedidos
pela neve, isolados do mundo exterior. Apenas um helicóptero
fornecia comida para eles de vez em quando, além disso tinham um
telefone. Eles não acreditaram que eu tinha descido do Arlscharte e
estudaram minhas pegadas na neve com seus binóculos por um bom
tempo e conversaram baixinho entre si. Pareciam presumir que eu
fosse algum prisioneiro fugitivo. Por que eu tinha feito isso, por que
eu tinha descido até lá, eles queriam saber. Eu disse a eles que na
verdade eu não queria contar a ninguém neste mundo, mas estava
viajando porque queria pedir a mão de uma mulher em casamento e
era melhor fazer isso a pé. Os homens então me mostraram seu
trabalho no interior da barragem. Em poços sem fundo dentro da
parede de concreto, havia pêndulos suspensos a partir dos quais eles
liam as deformações da parede. Várias estações de medição. As
paredes da barragem têm uma vida interior muito complicada.
Um dos engenheiros ditou para a filha pelo telefone uma redação
escolar sobre o florescimento da natureza em maio, embora ainda
reinasse o inverno onde ele estava. Um deles treinava por horas em
aparelhos de musculação, outro cuidava de todas as plantas
hidropônicas do hotel, com as quais ele havia abarrotado desde o
saguão até o escritório. Dormi no quarto andar do hotel vazio. Pude
escolher em qual andar eu queria dormir. No final do dia, perscrutei
atentamente o vale, porque pensei ter ouvido um cuco à distância.

Terça-feira, 13 de maio
Dia claro, azul. Hoje mais tarde, quer o acaso, a equipe será
rendida; um helicóptero virá. Eles estão fazendo as malas. Um deles
está lavando a louça na cozinha, que se acumulou por vários dias.
Eu o ajudo, seu nome é Gigler Norbert, a varrer o chão.
Eles queriam me dar uma lanterna para os túneis mais abaixo no
vale, mas eu irrefletidamente recusei. Sobre a estrada, resquícios de
avalanches e pedras de desabamentos. Apavorante ter que avançar
sem lanterna, tateando num túnel escuro como breu. A parte final do
túnel superior, um pouco mais baixa, ainda está quase toda
soterrada por uma avalanche, os blocos de neve e gelo foram
pressionados fundo dentro dos canos. Bem no alto, sob a abóboda da
galeria, há uma abertura estreita, através da qual, escavando-a,
consigo sair para o ar livre. Mais adiante no vale, equipes de
limpeza vêm trabalhando na minha direção. O primeiro trabalhador
que encontrei quando rastejava para fora do túnel estava comendo
pão em cima de um limpa-neves. Cumprimentei o homem perplexo,
que parou de mastigar.
25.
Mulheres, filhos

Eu havia percorrido esse caminho, porque queria pedir a mão de


minha mulher Christine. O casamento aconteceu em 1986, mas,
por mais revelador que tenha sido o gesto da caminhada, não
perdurou. É conflitante com meu senso de discrição falar sobre as
minhas mulheres, mas posso dizer que todas as mulheres em
minha vida, sem exceção, foram extraordinárias: talentosas,
autodeterminadas, muito inteligentes, afetuosas. Christine é uma
mulher de extremo talento musical, de uma família de professores
de música da Caríntia. Ela se apresentou como pianista em
Budapeste já aos quinze anos, num programa para jovens músicos
de Leonard Bernstein, mas aos dezoito desistiu do piano por causa
de graves inflamações nos pulsos. Suas posições políticas eram
radicalmente de esquerda e ela escrevia para revistas. Ela deu ao
nosso filho o nome de Simon em homenagem a Simon
Wiesenthal,* para quem trabalhou por um tempo. Algo que de
início não queríamos perceber tornou-se um problema: por minha
causa, ela nunca podia realizar plenamente os próprios desejos, os
próprios projetos. Ela recusou uma oferta para ir para a África do
Sul como correspondente da estação de radiodifusão austríaca ORF,
porque eu não podia e não queria me mudar com ela. Ela
participou de muitos de meus filmes, não como esposa
acompanhante, mas em papéis práticos de colaboração. Em
Gasherbrum, ela fez o som; em Pastores do sol, as fotos para a
produção; em Onde sonham as formigas verdes e Cobra Verde,
trabalhou na produção; e em Lohengrin, em Bayreuth, ela foi minha
assistente, porque sou um diretor de óperas que até hoje não sabe
ler notas musicais. Como mãe, ela era uma leoa. Quando Simon
sofreu bullying de colegas na escola francesa, o Lycée, e finalmente
confessou-lhe os horrores, ela o tirou da escola imediatamente,
sem matriculá-lo antes numa nova. Isso era contra os
procedimentos legais, mas ela foi firme. Simon fez aulas
particulares de inglês por algumas semanas, ele queria ir para a
International School em Viena. Aprendeu tão rápido que foi aceito
e, no prazo de um semestre, pulou todos os níveis e entrou na
classe dos “falantes nativos”. Meus filhos não devem a mim o fato
de terem se saído tão bem, mas às suas mães.
Martje, minha primeira mulher, e eu nos conhecemos no navio
para os Estados Unidos. Ela também era musical, tocava cravo e
ainda hoje canta em vários corais, principalmente música sacra de
Bach, mas o seu verdadeiro talento está na literatura. Martje vem
de uma família de professores e cresceu em Dithmarschen, no
extremo norte da Alemanha, com quatro irmãs, uma casa toda para
as meninas. Quando concluiu seus estudos em Freiburg, nos
casamos. Ela participou de quase todos os meus primeiros filmes,
Sinais de vida, Até os anões come­çaram pequenos, e em Aguirre coube
a ela a mais ingrata de todas as tarefas: administrar o dinheiro
quase inexistente durante as filmagens na selva. Nunca, nem uma
só vez, eu a ouvi reclamar. Ela sempre foi mais protetora comigo
do que eu com ela, o que estaria mais de acordo com o modelo
masculino da época. Em Nosferatu, ela faz um papel coadjuvante, a
irmã de Jonathan Harker, interpretado por Bruno Ganz. Ao nosso
filho, fui eu quem deu o nome: Rudolph Amos Achmed, já contei
como foi; Rudolph em homenagem ao meu avô, Amos em
homenagem a Amos Vogel, Achmed em homenagem ao último
sobrevivente das escavações em Cós. Ele faz filmes,
documentários e recentemente fez uma longa-metragem, e é
também um escritor de sucesso. Sua filha Alexandra é a minha
única neta até agora. Martje ficou amiga de Lotte Eisner, com
quem sempre mantive o tratamento formal. As duas, no entanto,
se tratavam familiarmente. Quando Lotte escreveu suas memórias,
Eu tinha uma bela pátria, o livro se baseou em gravações suas de
áudio, que foram então editadas por Martje. Mas Martje nunca
quis uma menção a isso na capa do livro, apenas dentro dele ela é
identificada como autora. Martje é profundamente compreensiva e
se deixa entusiasmar pelo que é excelente. Assistimos juntos à
Corrida do ouro, de Chaplin, e, na cena em que a cabana de
madeira começa a deslizar por uma encosta e fica calçada de forma
periclitante à beira do precipício, ela riu tanto que se curvou para a
frente. O cinema ainda tinha poltronas muito antigas com espaldar
de madeira. Ali ela bateu o rosto e perdeu os dois dentes incisivos
superiores. Eu cometi muitos erros. Quando, em 1977, decidi de
um minuto para o outro voar para o Caribe para La Soufrière, o
filme sobre o vulcão prestes a explodir, passei em casa apenas por
minutos para pegar o meu passaporte. Lá estava o nosso filho
pequeno, e não estava claro se eu voltaria vivo. Menciono isso
porque tais coisas não favorecem um casamento. Mas de qualquer
maneira, quase imperceptivelmente a princípio, nós nos
desenvolvemos em direções diferentes.
Com Eva Mattes, tenho uma filha, Hanna-Marie. Eva queria o
nome “Marie” em referência ao seu papel em meu filme Woyzeck,
pelo qual ela recebeu o prêmio de melhor atriz em Cannes em
1979. Foi uma injustiça Klaus Kinski não ter recebido o mesmo
prêmio como ator, e Eva foi muito nobre com ele na época, assim
como ele também foi muito nobre com ela. Na verdade, nunca
busquei ter um relacionamento próximo com minhas atrizes, mas
me apaixonei perdidamente quando trabalhamos juntos em
Stroszek em 1975. Algumas coisas são óbvias, mas são ainda mais
fáceis de entender quando você as diz. Sem sombra de dúvida, Eva
é a atriz mais destacada de sua geração no cinema e no teatro
alemão. Houve atrizes boas e muito boas, mas nenhuma com a
presença elementar como ela tem. Em retrospecto, todas as outras
parecem corresponder a certas tendências, ao gosto da época. Eva
Mattes não se enquadra nisso. Ela estava tão envolvida no
turbilhão dos seus compromissos profissionais, e eu também com
os meus, que ficou claro que não iríamos, não poderíamos viver
juntos. Nossa filha Hanna é uma artista visual que constrói e
mergulha em cenários imaginários. Em geral, o processo termina
com uma foto, mas eu não a chamaria de fotógrafa. Há pouco ela se
voltou para os textos. Estou muito curioso para ver para onde ela
está se movendo. A sua profunda afetuosidade é a mesma de sua
mãe, e sua voz e a sua risada são tão surpreendentemente iguais
que eu já a chamei de Eva por engano várias vezes ao telefone.
Minha mulher, Lena, com quem estou há mais de 25 anos,
conheci num restaurante da Bay Area, o Chez Panisse, por
intermédio de Tom Luddy. Devo muito a Tom Luddy. Na verdade,
ele deveria ser incluído na lista do patrimônio cultural dos Estados
Unidos. Quando estudou física teórica, foi aluno do famoso físico
Edward Teller em Berkeley, e lá se tornou um dos líderes do
movimento pela liberdade de expressão na militância estudantil.
Na mesma época, foi também campeão júnior de golfe amador, e
poderia ter feito uma brilhante carreira nesse esporte. No entanto,
seus companheiros de armas revolucionários em Berkeley o
criticavam, porque o golfe seria um esporte burguês, e Tom
desistiu dele. Ele dirigiu o Pacific Film Archive [Arquivo de Filmes
do Pacífico], em Berkeley, e fez dele o local mais importante na
época para a cultura cinematográfica da costa oeste. O diretor
Errol Morris passou por lá, o diretor Les Blank também. O diretor
brasileiro Glauber Rocha morou muito tempo na casa de Tom. Por
algumas semanas, morei lá com Tom e Glauber sob o mesmo teto.
Foi uma época muito densa de filmes, ideias e novas amizades.
Lembro-me de como Glauber teve que voltar repentinamente para
o Brasil e enfiou seus pertences às pressas em algumas malas
porque estava quase perdendo o voo. Ele havia reunido todas as
suas anotações e papéis numa pilha e, com ela debaixo do braço,
correu à minha frente para a sala de embarque, envolto em papéis
que voavam e que eu pegava atrás dele entre as pernas dos
passageiros. Quando Glauber Rocha morreu muito jovem logo
depois, todas as escolas de samba do Brasil pararam por um dia.
Tom Luddy me convidou para o seu Pacific Film Archive no final
dos anos 1960 com meu primeiro longa, Sinais de vida, e mais
tarde, quando ele passou a dirigir o famoso festival de cinema em
Telluride, Colorado, eu tive, ao longo dos anos, cerca de trinta
estreias mundiais de meus novos filmes lá.
O restaurante Chez Panisse tem uma história interessante. Tom
vivia na época com Alice Waters, que era cética em relação aos
“revolucionários” de Berkeley. A revolução mundial que se
supunha iminente seria apenas um produto de teóricos e
acadêmicos e não daria em nada. O que era muito mais importante
e adequado devia sempre ser medido em termos de benefícios para
a classe trabalhadora. A alimentação, por exemplo, consistia em
grande parte em fast food, e era necessário, enquanto movimento,
criar uma nova cultura alimentar, saudável e acessível. Ela fundou
o Chez Panisse em 1971, que ao longo das décadas se tornou o
lugar mais influente em nutrição nos Estados Unidos. Sempre que
eu aparecia em San Francisco ou Berkeley, Tom me levava para
jantar lá, dizendo que só levaria um ou dois amigos, mas sempre
acabava com pelo menos doze pessoas amontoadas em volta de
uma das mesas.
Lá então, subi as escadas para o andar superior. Duas jovens
estavam sentadas no bar, pois nossa mesa ainda não estava pronta.
Uma se virou para mim, era Lena. Dizem, eu não me lembro, que
parei como que petrificado no degrau mais alto da escada, mas
realmente algo como um raio deve ter me atingido. Eu nunca tinha
visto olhos de tanta beleza e inteligência em minha vida. Naquela
noite, peguei uma cadeira vazia e me enfiei entre ela e sua vizinha
à mesa, e conversamos, Lena e eu, durante todo o jantar como se
não houvesse outras pessoas presentes. Descobri que, quando ela
ainda frequentava a escola na Sibéria, com apenas quinze anos,
copiava à mão livros proibidos na União Soviética e os fazia circular
em segredo entre suas amigas. Ela copiou todo o romance O
Mestre e Margarida, de Bulgákov, e o primeiro livro de Um dia na
vida de Ivan Denisovich, de Soljenítsin. Foi uma noite ímpar. Eu
soube de imediato, instantaneamente: esta é a mulher com quem
quero viver.
Mas desta vez eu queria fazer tudo certo. Voltei para Viena,
onde eu ainda estava casado no papel, mas já vivia separado. Pus a
minha casa em ordem e desisti de tudo o que eu possuía
fisicamente. Quando voltei aos Estados Unidos, não levei bagagem
comigo, nada. Eu queria um começo de todo novo. Depois de ter
passado pelo controle de passaporte e pela alfândega, um oficial de
repente me chamou de volta e perguntou onde estava minha
bagagem, se eu a deixara na esteira. Isso me tornou suspeito de
carregar uma bomba, que eu teria simplesmente largado na esteira
rolante atrás de mim. Expliquei que eu não tinha bagagem. O
oficial respondeu que em 22 anos de serviço nunca tinha visto um
viajante chegar de outro continente sem bagagem, no máximo
tinha visto alguém chegar apenas com uma bolsa ou uma pasta. Por
pura estupidez, talvez para impressioná-lo, enfiei a mão no bolso
do casaco e mostrei-lhe a minha escova de dentes. Por causa disso,
acabei passando as seis horas e meia seguintes em interrogatórios e
investigações de um possível antecedente criminal. Tentei explicar
que havia encontrado minha mulher e que queria ser apenas eu,
sem status, sem posses, sem nada, até mesmo sem a certeza de
que seria aceito por ela. Permitiram então que eu entrasse no país.
Bem no começo, tínhamos apenas dois pratos, dois jogos de
talheres e dois copos, mas convidávamos amigos, que vinham cada
qual com um prato debaixo do braço, talheres e uma taça de vinho.
Lena nunca tinha visto um filme meu e no começo eu não quis me
gabar com o meu trabalho e lhe disse no nosso primeiro encontro
que eu trabalhava com cinema, que tinha sido dublê e agora havia
passado para a coordenação de dublês. E que também estava
envolvido com todas as outras funções possíveis no métier. Por um
bom tempo, e mesmo depois de eu ter lhe contado coisas mais
precisas sobre meu trabalho, Lena receava que eu nunca tivesse
feito um filme bom, pois quase todos os filmes que vira nos
Estados Unidos eram fracos e um tanto constrangedores. E se eu
só tivesse feito tais obras constrangedoras? Após um ano de
hesitação, ela por fim viu em segredo Aguirre, que estava passando
no cinema. Sentou-se na ponta da fileira, ao lado da saída, para
poder escapar de fininho caso fosse necessário.
Eu simplesmente tive sorte de encontrar a mulher com quem
tenho plenas afinidades espirituais e compartilho minha visão de
mundo. Tom Luddy não tinha planos ocultos de nos unir. Do
ponto de vista estatístico, nosso encontro foi uma completa
anomalia. Lena só aparecera para jantar porque tinha apenas uma
lata de atum em sua residência na universidade e estava faminta. O
próprio fato de ela estar nos Estados Unidos resultava de toda uma
série de coincidências. Lena cresceu em Ecaterimburgo, na parte
mais ocidental da Sibéria, numa família de cientistas cujos
antepassados foram para o leste fugindo da repressão de Stálin. Seu
pai é um destacado geofísico russo, e ela cresceu numa casa onde
sempre havia vários alunos famintos sentados juntos à mesa
discutindo, e onde reinava uma atmosfera de ideias, de interesse
pela literatura, de comunhão com os grandes escritores. Lena
também foi ginasta desde pequena, mas isso deve ter sido uma
tamanha tortura todos os dias durante horas, que ela evitava
mostrar suas habilidades em competições, porque se cogitava
incluí-la num quadro olímpico. Seu desempenho escolar sempre
foi brilhante e ela foi admitida na universidade da antiga
Leningrado, hoje São Petersburgo, aos dezesseis anos, mas como
vinha de uma família de acadêmicos, teve que exercer um trabalho
prático durante um ano, para ser considerada uma proletária.
Depois, Lena estudou linguística e filosofia. Mais uma vez, por
uma série de coincidências, ela foi convidada por uma família
americana para ir a San Francisco, e de repente se viu expulsa da
universidade na Rússia por não ter comunicado corretamente a
breve estadia. Foi aceita na Universidade de Stanford e, como
Stanford não podia lhe dar uma bolsa de estudos, foi-lhe oferecida
a oportunidade de trabalhar de forma remunerada num projeto de
pesquisa sobre história das ideias a respeito do Armagedom. Ela se
deslocava cotidianamente entre Stanford, Berkeley e o Mills
College na Bay Area. No final de seus estudos de filosofia, o pai a
presenteou com a câmera fotográfica dele, uma réplica russa de
uma Leica. Na época, eu estava encenando Tannhäuser na Ópera de
Sevilha, e Lena fazia suas primeiras fotos a apenas dois quarteirões
dali, na praça de touros. De volta a San Francisco, quando ela
estava num estúdio como cliente revelando os dois primeiros rolos
de filme que havia tirado na vida, o dono de uma galeria descobriu
as fotos que estavam penduradas para secar. Essas fotos se
tornaram sua primeira exposição e depois uma monografia,
Tauromaquia. Lena já publicou seis livros de fotografia e também se
voltou para outros projetos, como Last Whispers. Trata-se de um
oratório composto em línguas já extintas, que existem apenas
gravadas em fitas, e em línguas altamente ameaçadas, das quais
existem apenas dois ou três falantes vivos. Às gravações de Lena
soma-se um componente visual, um vídeo contemplativo. O
oratório foi apresentado pela primeira vez no Museu Britânico e a
seguir em muitas outras grandes casas, como o Kennedy Center,
no Museu Smithsonian, e o Théâtre du Châtelet, em Paris. Às
vezes, brincamos que ela é a primeira pessoa russa em cem anos,
desde os Ballets Russes, de Diaguilev, a encher a casa com o
próprio programa. Mas o fato é que ela é cidadã americana. Estava
nos Estados Unidos com um passaporte válido da União Soviética,
mas de repente o país não existia mais, havia se dissolvido. Com
isso, ela se tornou meio apátrida. Se tivéssemos nos casado
imediatamente, ela teria se tornado alemã, mas ela não queria isso,
nem eu. Quarenta e oito horas depois de ela se tornar cidadã
americana, nós nos casamos.
Já passamos juntos por tudo e tentamos nunca ficar separados
por mais de duas semanas. Apenas quando eu estava filmando na
Antártica, viajei sozinho por seis semanas. Acabou se revelando
bom para nós de preferência não trabalharmos juntos; apenas em
casos excepcionais Lena fez fotos para filmes meus, como Vício
frenético ou O diamante branco, na selva da Guiana. Estávamos
viajando juntos pelo distante rio Pacaás Novos, no Brasil, na
fronteira com a Bolívia, onde desde meados da década de 1980 o
maior grupo isolado de indígenas da floresta amazônica, cerca de
650 pessoas, estava sob pressão crescente de garimpeiros e
madeireiros. Os indígenas rejeitavam qualquer contato com a
civilização moderna e haviam atacado e matado com flechas os
posseiros. O órgão estatal brasileiro para assuntos indígenas, a
Funai, decidiu na época buscar contato com os nativos nômades,
porque parecia melhor não deixar o inevitável de uma
confrontação apenas para saqueadores. O primeiro encontro,
cuidadosamente preparado, com os uru-eu foi filmado na época em
16 mm. No ano 2000, fui convidado para um projeto conjunto com
outros diretores internacionais, entre eles Wim Wenders. Cada
um deveria contribuir com um filme de dez minutos sobre o
tempo. O projeto se intitulava Dez minutos mais velho, mas eu
queria fazer um filme chamado Dez mil anos mais velho, no qual um
grupo de seres humanos isolados, no espaço de tempo dos
minutos de um contato, tem sua existência deslocada da idade da
pedra para a época atual. A tragédia adicional desses encontros era
que, no primeiro ano após o contato inicial, 75% dos membros do
povo morriam de varicela e infecções gripais, para as quais não
haviam desenvolvido imunidade.
A subida do Pacaás Novos foi difícil, porque o rio é de difícil
navegação mesmo para pequenos barcos, muitas árvores gigantes
caídas bloqueiam o caminho. Após longos preparativos,
encontramos fora de sua reserva os dois caciques guerreiros Tari e
Wapo, que haviam sobrevivido ao primeiro contato. Além de arcos
e flechas, que chegavam a dois metros de comprimento, como as
dos amehuacas durante as filmagens de Fitzcarraldo, eles também
usavam espingardas e exigiram que levássemos para eles uma
espingarda e munição. Fizemos isso, ou melhor, pedimos algumas
de suas flechas em troca. Tari e Wapo representaram para nós, com
passos pesados, como haviam flechado e matado um posseiro num
telhado, e imitaram, num canto ritual em português inventado,
como o filho da vítima pedia ajuda. Antes de irem embora, após as
filmagens, eles remexeram nas nossas coisas e queriam alguns
presentes extras. Isso não foi um problema, mas quando quiseram
nossas redes eu tive que recusar, porque havia grandes correições
de formigas no chão e, além disso, os próprios indígenas faziam
redes excelentes. Houve alguns momentos de tensão em torno
disso. No início da noite, Lena estava preocupada que pudéssemos
ser atacados, mas por que eles fariam isso se já durante nosso
encontro tinham arco e flecha e uma espingarda? Não tinha lógica.
No meio da noite, da sua rede ao meu lado, Lena me acordou,
ergueu-se apavorada e disse apenas: “Eles estão vindo”. De fato,
podia-se ouvir movimentos na selva, galhos estalavam, mas devia
ser uma anta ou algum outro animal grande. “Se fossem eles”, eu
disse, “nós não os ouviríamos”, e voltei imediatamente a dormir.
Em meus filmes, em algumas raras vezes consegui atingir
momentos — como, não sei dizer em retrospecto — nos quais
algo extraordinário me foi dado de presente, como se pela graça de
Deus, nos quais uma misteriosa e insondável beleza e verdade são
iluminadas como se de dentro. Um desses momentos é o final de
O país do silêncio e da escuridão, de 1972, com certeza o meu filme
mais profundo, em que uma agricultora que ficou surda e cega, e
não é mais respeitada pela família, vive durante anos com as vacas
no estábulo, para poder ter uma cota de calor animal, e de repente
sai de um banco no parque e vai dar em meio aos galhos de uma
macieira no outono. Como a surda-cega sente os galhos e depois
sente o tronco da árvore é um desses momentos difíceis de
descrever. Esse é também o caso de Dez mil anos mais velho,
quando Tari perscruta intrigado um grande despertador que
leváramos conosco. O seu rosto e o relógio, eu poderia ter filmado
apenas esse único momento, e tudo em minha vida estaria bem.
As melhores situações sempre foram aquelas em que eu rodava
um filme e Lena trabalhava paralelamente num projeto fotográfico.
Em Roda do tempo, meu filme de 2003 com o Dalai Lama, ela
trabalhou ao meu lado no projeto de um livro, Pilgrims
[Peregrinos]. Muitas vezes sou eu que, como mula de carga, levo as
câmeras dela, que são bastante pesadas, algumas para imagens de
grande formato em celuloide. Quando caminhamos em volta do
sagrado monte Kailash no Tibete com cerca de 100 mil peregrinos,
a quase 5 mil metros, ela foi afetada pelo mal da montanha. Nosso
iaque, conduzido por dois guias como animal de carga, de repente
se livrou de sua carga e partiu desenfreadamente para a liberdade.
Com isso, nossos guias ficaram carregados em seu limite máximo
com os mantimentos e uma barraca, e, quando Lena na minha
frente não conseguia mais coordenar seus passos, passei a carregar
também a mochila dela além da minha. Com projetos de trabalho
separados, estivemos no monte Roraima na fronteira entre a
Venezuela e o Brasil, estivemos no México, estivemos no Japão
para a ópera Chusingura, lá Lena conheceu comigo Hiroo Onoda, o
soldado japonês que se rendeu apenas 29 anos após o fim da
Segunda Guerra Mundial. De muitas pistas isoladas, ele chegou à
conclusão de que a guerra ainda estava acontecendo, só depois
soube que aquelas já eram as guerras subsequentes dos Estados
Unidos na Coreia e no Vietnã. Acabei de escrever um livro sobre
ele, O crepúsculo do mundo. Lena e eu estivemos juntos na caverna
de Chauvet, na região de Ardèche, na França, para A caverna dos
sonhos esquecidos, de 2010, e, para os longas-metragens Invencível,
Rainha do deserto e Deserto em fogo, estivemos no Báltico, no
Marrocos e no Salar de Uyuni, na Bolívia. Para o meu mais recente
filme no Japão, Uma história de família, Lena fez novamente as fotos
para a produção, e Encontrando Gorbachev foi uma experiência
especial porque estávamos juntos na Rússia. Aliás, não falamos
alemão nem russo um com o outro, porque acabou se revelando
bom nos encontrarmos num plano que não é inteiramente dela
nem meu. Assim, somos cuidadosos com a nossa língua, que não é
para nenhum dois a língua de origem.
26.
À espera dos bárbaros

Para um projeto de longa-metragem que me foi proposto, baseado


no romance À espera dos bárbaros, de J. M. Coetzee, procuramos
juntos locações na Ásia Central em Kashgar, na Região Autônoma
Uigur da República Popular da China, e, a partir de lá, nas
montanhas, em direção às fronteiras próximas do Paquistão,
Afeganistão, Quirguistão e Uzbequistão. Eu também queria
pesquisar no Indocuche e no Pamir ao norte. Lá, no Tadjiquistão,
eu já havia feito no filme de ficção científica Es ist nicht leicht, ein
Gott zu sein [Não é fácil ser um deus] (1990), de Peter
Fleischmann, o papel de um profeta fanático, que, no entanto,
depois dos primeiros vinte minutos, morre atacado pelas costas
com uma lança. Com Coetzee, logo estabeleci uma ótima ligação,
mas o financiamento do filme nunca aconteceu. Tudo ao redor de
Kashgar e da situação dos uigures se deteriorou drasticamente
desde então, mas naquela época ainda havia um mercado semanal,
que era visitado por 200 mil uigures de toda a região. Era como há
mil anos na Rota da Seda, homens barbudos falando uma língua
aparentada com o turco, muçulmanos em longas túnicas e barretes
de pele. Lembro-me de um setor desse evento concorrido em que
cerca de 3 mil homens vendiam somente galos; cada um tinha um
galo debaixo do braço. Lembro-me de um nó inextricável de
oitocentas carroças puxadas por burros, todas enroscadas umas nas
outras, e os burros zurrando. Lembro-me de quando, como se a
uma palavra não dita, a multidão se dispersou, esvaziando uma
longa rua, na qual um magnífico cavalo montado por um menino
de seis anos descalço e sem sela galopou em minha direção. Na
minha frente, o cavalo empinou, lançou no ar as patas dianteiras
como uma aparição mítica, deu meia-volta sobre as patas traseiras
e partiu a galope. A rua se fechou de novo, como um mar dividido
se fecha. O cavalo imediatamente encontrou um comprador. Para o
meu filme Meu filho, olha o que fizeste!, voltei a Kashgar com Lena
para uma sequência de sonho do meu ator principal, Michael
Shannon. No sonho, o personagem de Michael se vê num passado
misterioso, num cenário que lhe é totalmente estranho. Ele
atravessa uma multidão numa feira de gado e todos os homens ali,
todos sem exceção, viram-se para olhar para ele como se ele fosse
uma figura de alguma terra lendária. Para isso, colocamos uma
espécie de grande armadura de madeira no peito de Michael, na
qual estavam fixadas três pernas de tripé mais ou menos do
tamanho de um braço que se projetavam para fora de seu corpo.
Em cima do tripé, foi instalada uma câmera, que filmava o seu
rosto. Ao caminhar pelo meio da multidão, eu sabia que isto
aconteceria, todos os que iam passando se viravam para ele.
Michael concordou em improvisar essa cena num lugar
completamente estranho, no estrangeiro, com a condição de que
eu ficasse com ele o tempo todo. Como não tínhamos permissão
de trabalho nem de filmagem, o que seria impossível dada a
situação política do país, Michael disse que não queria ser preso
sozinho, só junto comigo. Era um desejo legítimo.
Em frente à ampla praça do mercado, havia um largo portão de
entrada com forte presença da polícia han. Decidimos caminhar do
jeito que estávamos — Michael com a bizarra estrutura no peito
—, diretamente até esses policiais, e passar por sua fileira. Aprendi
isso com Philippe Petit, que trabalhou nas ruas de Nova York como
equilibrista, malabarista e mágico. Quando o World Trade Center
estava quase pronto, ele guardou o equipamento para estender a
sua corda de arame sob uma lona na cobertura do edifício e estava
descendo a escada com um cúmplice; os elevadores ainda não
estavam em funcionamento. Eram três da manhã e, de repente, ele
ouviu um grupo de seguranças vindo em sua direção de algum
andar mais abaixo. Fugir de volta para o topo teria sido um erro,
ele inevitavelmente seria descoberto e não teria explicação para
sua presença. Então ele logo tomou a decisão certa. Philippe
apressou o passo e começou a ralhar com seu funcionário, que era
péssimo o trabalho que ele havia apresentado, irresponsável, fora
dos padrões, que Philippe o levaria ao tribunal, exigiria uma
indenização. Os quatro homens do grupo de segurança se
espremeram contra a parede da escadaria e deixaram passar o
furioso homem vociferante. Não gritei com Michael em Kashgar,
mas fomos até os policiais onde eles estavam mais concentrados,
falei nervosamente em bávaro, mirando uma pessoa imaginária
além do cordão dos homens uniformizados, porque nunca se deve
fazer contato visual, e perguntei para a distância imaginária se
alguém tinha visto o meu amigo, o Harti? Também aqui os
funcionários deram um passo para o lado e pudemos fazer o nosso
trabalho. Tentar contorná-los com certeza teria levantado
suspeitas, mas pelo meio, é quase como uma lei de
comportamento de grupos, cada indivíduo sempre pensa que se
algo estiver errado um outro vai intervir, e dessa maneira ninguém
intervém.
Devo a Lena ter encontrado coragem para enfrentar meus
diários da época do trabalho em Fitzcarraldo. São diversos cadernos
em que minha letra, que na verdade é de tamanho normal, foi
ficando cada vez menor, ao final quase microscópica. Eles só
podem ser decifrados com uma lupa, como a que usam os
joalheiros. Soma-se a isso, o fato de que eu realmente queria
manter à distância esse momento tão difícil da minha vida. Uma
vez, quatro ou cinco anos depois dos acontecimentos entre 1979 e
1981, abri os cadernos e transcrevi cerca de trinta páginas em letra
legível, mas foi horrível encarar tudo de novo e tive certeza de que
nunca mais mexeria naquilo. Mais de duas décadas depois, porém,
Lena me disse que seria melhor eu voltar a me ocupar com as
anotações, afinal elas existiam e em algum momento, quando eu
não existisse mais, algum cretino qualquer se lançaria sobre elas.
Assim, depois de alguma hesitação, fiz pelo menos uma tentativa
de encarar o que havia escrito na época, e de repente foi muito
fácil. Tudo o que era aflitivo, todo o peso, como que desaparecera.
Daí resultou o meu livro Conquista do inútil. De forma semelhante,
muitos anos depois, por insistência de Lena, revi minhas
anotações sobre o encontro com Hiroo Onoda. Foi assim que
surgiu O crepúsculo do mundo, e o que estou escrevendo aqui agora
também partiu do incentivo de Lena.
O trabalho mais inusitado, Hearsay of the Soul, fiz em 2014 para
o Whitney Museum, em Nova York. Foi uma instalação com
múltiplas projeções de imagens de gravuras de Hercules Seghers,
junto com música de Ernst Reijseger, que colaborou em muitos
dos meus filmes mais recentes. Uma curadora do museu havia me
telefonado e queria me persuadir a apresentar uma contribuição
para a próxima Bienal, mas eu logo neguei, pois tenho problemas
com a arte contemporânea. Por quê?, ela perguntou. Fiz uma
referência um tanto sumária ao mercado de arte e suas
manipulações e o foco quase exclusivo em conceitos em vez de
peças tangíveis, mas a curadora não se deixou demover tão
facilmente. Como artista, eu não tinha interesse? Respondi que
não me via como artista, que esse termo hoje se aplicava mais a
cantores de sucesso e a artistas de circo. Se eu não era um artista,
então o que eu era? Eu disse que era soldado e desliguei. Lena, que
estava na sala, quis saber exatamente do que se tratava e me
lembrou de que eu tinha, sim, vários projetos que não eram
cinema nem literatura, que constituíam uma zona intermediária de
outras ideias. Ela estava certa, e eu liguei de volta para o Whitney
Museum no dia seguinte.
27.
Por realizar

A zona intermediária permanece. Em 1976, fiz um filme sobre o


Campeonato Mundial de Leilões de Gado, How Much Wood Would
a Woodchuck Chuck, ele tinha a ver com o meu fascínio pelas
últimas fronteiras da linguagem. Hölderlin e Quirinus Kuhlmann,
o poeta barroco, são tão importantes para mim, porque de
maneiras diferentes eles se aproximaram da última fronteira da
minha língua, a alemã. Em Stroszek, quando o sonho americano de
Stroszek se dissipa, a sua casa móvel é leiloada. O ator nessa cena
era um ex-campeão mundial de leiloeiros de gado, que rastreei em
Wyoming e reativei para o filme. Ninguém que tenha visto o filme
esqueceu seu leilão, no qual a linguagem se condensa numa
cascata frenética, numa ladainha que não se pode condensar ainda
mais. Sempre tive a suspeita de que esse frenesi poderia ser a
última poesia ou pelo menos a última linguagem do capitalismo.
Sempre quis encenar Hamlet, mas escalando para todos os papéis
ex-campeões mundiais de leilões de gado, eu queria reduzir Hamlet
a menos de catorze minutos de duração. O texto de Shake­speare já
é de qualquer forma amplamente conhecido e, para a apresentação,
o público só precisaria antes voltar a se familiarizar com a peça.
Quando eu morava em Viena, acho que foi em 1992, a Ópera
Estatal de Viena me sondou para saber se eu gostaria de encenar
uma ópera em sua casa. Respondi que na verdade eu preferiria
muito mais escrever eu mesmo uma ópera, já tinha a maior parte
da música e escreveria o libreto. Isso despertou grande interesse.
Tive uma longa conversa com o dramaturgista da Ópera Estatal,
por discrição vou chamá-lo apenas de B. aqui. A minha ideia era
escrever uma ópera sobre Gesualdo, na qual seu sexto livro de
madrigais constituiria o núcleo musical. Carlo Gesualdo (1566-
1613) foi príncipe de Venosa e, como homem muito rico, pôde
compor música sem depender da Igreja ou de mecenas. Sua
música insere-se amplamente no contexto musical de seu tempo, o
final da Renascença, mas em seu sexto livro de madrigais ele
escreveu música como se todos os seus fusíveis tivessem
queimado. Tons como esses só voltaram a ser ouvidos
quatrocentos anos depois, no final do século XIX, e não é por acaso
que Igor Stravinsky, fortemente influenciado por ele, fez duas
peregrinações ao castelo de Gesualdo, perto de Nápoles. Ele
compôs Monumentum pro Gesualdo, homenagem musical ao
compositor, que teve sua primeira execução em 1960.
A vida de Gesualdo dificilmente pode ser sobrepujada em sua
teatralidade. Ele era o príncipe das trevas em quintessência. Ele se
casou com Maria d’Avalos, de dezessete anos, que já havia
enviuvado duas vezes. Fontes contemporâneas especulam que ela
tenha esgotado até a morte os dois primeiros maridos por
exigências excessivas no leito conjugal. Casada com Gesualdo,
Maria logo arranjou um amante, Fabrizio Carafa, o duque de
Andria, um nobre napolitano. Gesualdo soube do relacionamento,
simulou sair para uma caçada e pegou os dois em flagrante. Os dois
foram assassinados por seus assistentes, e Gesualdo voltou ao
quarto para se certificar de que ambos estavam realmente mortos.
Então ele fugiu de Nápoles para o seu castelo e, temendo um
ataque, derrubou em pessoa todos os bosques circundantes. Até
hoje, não há árvores nos arredores do seu castelo, que tem uma
aura enfeitiçada. Gesualdo passou os últimos anos de sua vida
penitente em delírio religioso, cercado por jovens que à noite
tinham que açoitá-lo com varas. Presume-se que ele tenha morrido
de uma infecção que contraiu através dos vergões nas suas costas.
Mas aqui acrescentei algo por conta própria, sem mencionar ao
dramaturgista que era totalmente inventado por mim. No meu
projeto, Gesualdo matava o filho de dois anos e meio, do qual ele
não tinha certeza de ser o pai, suspeitando de que a criança tivesse
sido gerada pelo amante de Maria. Ele ordenava que a criança fosse
posta num balanço e embalada pelos criados. A criança adorava,
mas os criados tinham que balançá-la mais e mais, até que, depois
de dois dias e duas noites, ela estava morta. Além disso, Gesualdo
mandava alinhar coros à esquerda e à direita para cantar seus
madrigais sobre a beleza da morte. Planejei prender um balanço de
cordas muito longas no topo da rampa do palco para que pudesse
oscilar no alto por cima do público.
Não tive mais notícias da Ópera Estatal de Viena, mas de
repente, seis meses depois, divulgou-se que a Ópera havia
encomendado uma nova peça, Gesualdo, com libreto de B. e
música do compositor teuto-russo Alfred Schnittke. A ópera teve
sua estreia mundial em 1995. Eu não fui, mas ouvi dizer que o
público ficou particularmente impressionado com uma cena no
final em que Gesualdo manda embalar seu filho num balanço até a
morte — o balanço avança na plateia por cima do público. Sempre
tive a sensação de que ter sido roubado é melhor do que não ter
sido.
Eu também tinha planos de encenar O crepúsculo dos deuses, de
Wagner, mas num lugar especial, em Sciacca, na costa sul da
Sicília. Ninguém conhece esse lugar e ninguém fala sobre ele.
Sciacca originou-se como um povoado cartaginês, possivelmente
também grego; a cidadezinha, hoje com 40 mil habitantes, não se
distingue por nada. Mas há uma ópera lá. Sem ter provas disso,
presumo que a construção dessa casa não serviu a outra finalidade
senão a lavagem de dinheiro da máfia, pois a ópera nunca foi
inaugurada, nunca teve um diretor artístico, nem administração,
nem horário ou pessoal, como ajudantes de palco e eletricistas,
nem coro, nem orquestra ou cantores, nada. Eu queria que a casa
de ópera cumprisse seu propósito apenas uma vez. Para isso, eu
organizaria orquestra, coro e cantores, luminotécnicos,
cenógrafos, tudo o que fosse necessário. Antes do terceiro ato, eu
evacuaria completamente o teatro e colocaria o público e os
músicos a uma distância segura, e então explodiria a casa. Sobre os
escombros fumegantes, a peça seria então representada até o fim.
A prefeitura não se opôs à minha ideia, porque o teatro era uma
espécie de aberração de concreto, e eu já havia contatado a melhor
equipe de demolição dos Estados Unidos, com sede em Nova
Jersey. Eu conhecia apenas fotos do edifício e as plantas
arquitetônicas, mas quando fui trabalhar no local em Sciacca, logo
ficou claro que o projeto era inexequível. O concreto do edifício
modernista era particularmente endurecido e teria exigido uma
grande quantidade de dinamite, porém, nas imediações da ópera,
de onde cresciam arbustos, encontra-se um grande hospital que,
no caso de uma explosão, teria ido junto pelos ares ou pelo menos
ficado bastante danificado.
Como nos últimos tempos às vezes tenho sido abordado por
pessoas politicamente corretas em grau paranoico que me
perguntam por que encenei Wagner, agora tenho uma resposta
escalonada para isso. A primeira parte é uma pergunta: por que
Daniel Barenboim regeu Wagner e até o levou a Israel? Não há
dúvida de que como pessoa Wagner era uma besta e, o que é mais
grave, um antissemita. Mas não se pode considerá-lo culpado por
Hitler e pelo Holocausto, assim como Karl Marx não pode ser
responsabilizado por Stálin. A música que Wagner escreveu é tão
grande que não devemos nos privar dela. Questões semelhantes de
culpa e condenação geral surgiram em relação a Kinski depois que
sua filha Pola relatou num livro o incesto continuado por parte do
pai. Pola — como aliás uma série de mulheres recentemente —
procurou o meu conselho e apoio antes de publicar o seu livro.
Não tenho de todo dúvidas sobre a sua exposição dos fatos. Mas,
de acordo com isso, devo reconsiderar minha posição estética em
relação a Kinski e tirar de circulação os filmes que fiz com ele?
Minha resposta a isso são duas perguntas, mas o número delas
poderia aumentar indefinidamente: Devemos tirar as pinturas de
Caravaggio de igrejas e museus porque ele era um assassino?
Temos que rejeitar o Antigo Testamento ou pelo menos os livros
de Moisés porque ele cometeu um homicídio quando jovem? Em
geral olham espantados para mim, porque todos falam sobre a
Bíblia, mas quase ninguém a leu.
Eu queria escrever e representar um oratório e um balé para
elfos na cidadezinha de North Pole, no Alasca. North Pole é a
residência do Papai Noel e suas renas. Lá chegam todos os anos
centenas de milhares de cartas dos Estados Unidos e de todo o
mundo para o Papai Noel. A maioria traz pedidos absolutamente
normais, mas muitas vezes também chegam pedidos que são
devastadores. Eu li muitos deles. Uma menina deseja que seu pai
pare de bater em sua mãe, para que ela possa voltar a se levantar
logo da sua cadeira de rodas. Em tais casos, há um pequeno bando
de elfos que responde a essas cartas pelo Papai Noel. Para essa
tarefa, entre outras pessoas, são arregimentados os melhores
alunos da escola secundária local, e o bizarro é que esse grupo de
elfos planejou de forma bem concreta um massacre numa escola.
Pelo menos seis alunos, todos menores de catorze anos, já haviam
se armado com rifles e revólveres do arsenal de seus pais, a data já
estava marcada, a lista de professores e colegas a serem
assassinados fora distribuída. Depois de executada a ação, os elfos
pretendiam bloquear com galhos leves a ferrovia que passa por
North Pole e depois pular no trem de carga que tinha seu terminal
principal não muito longe dali, em Fairbanks. Nenhum deles notou
que os trilhos estavam fora de uso havia um ano. Era desse modo
que eles pretendiam partir para a liberdade e ganhar o mundo,
naturalmente com novos nomes, como Luke Skywalker e Darth
Vader. Na véspera da grande ação de libertação contra o Papai Noel
e todo o sentimentalismo que está associado a ele, uma das mães
descobriu o plano detalhado no computador do filho, e a coisa toda
foi desmantelada. Todos os envolvidos foram expulsos da escola,
mas nunca houve consequências judiciais. Em North Pole, eu me
deparei com uma parede de silêncio e obstrução. Sob ameaça de
processo legal, me foi negado acesso a todos os envolvidos na
trama, a polícia começou a questionar minha autorização de
residência, a escola me recebeu com francas ameaças. Tive que
reconhecer que ali nada podia ser feito.
Foi Erik Nelson quem me pôs no rastro. Ele é o produtor com
quem eu fiz O homem urso, em 2005, e depois o filme na Antártida
e ainda o filme sobre a caverna de Chauvet. Foi ele quem me
incentivou a começar a filmar Ao abismo: Um conto de morte, um
conto de vida, apesar de não haver sinopse ou financiamento; a
iminente execução do assassino Michael Perry não permitia
adiamentos. Por meio deste e de outros oito filmes sobre
presidiários no corredor da morte, olhei dentro de um profundo
abismo.
Erik cruzou o meu caminho num pequeno festival de filmes
sobre a natureza em Wyoming. Ele veio falar comigo e, na minha
busca por financiamento, imediatamente me ajudou a entrar em
contato com um editor da emissora japonesa NHK, que estava por
lá. Isso foi durante a fase de pré-produção do filme O diamante
branco, sobre um dirigível na selva da Guiana. De volta a Los
Angeles, visitei Erik em sua produtora em Burbank para agradecer
a ele por sua ajuda desinteressada. Quando me levantei, percebi
que havia perdido as chaves do carro e o meu olhar varreu a mesa
baixa de vidro à minha frente, onde estavam espalhados
desordenadamente papéis, DVDs e uma salada murcha comida pela
metade numa tigela de plástico.
Erik, acreditando que o meu olhar se ocupava intensamente de
um papel sobre a mesa, empurrou um artigo para mim. “Dê uma
lida nisto. Estamos planejando um projeto interessante no Alasca.”
Em casa, li um dos primeiros artigos sobre Timothy Treadwell, que
viveu entre os ursos-pardos selvagens do Alasca por muitos anos
na firme convicção de que precisava protegê-los dos caçadores. Ao
fazer isso, porém, com uma compreensão da natureza selvagem
digna de Walt Disney, ele ultrapassou um limite: chegava à
distância de um braço dos ursos, acariciava o rosto deles, dizia-lhes
o quanto os amava, cantava para eles. Treadwell havia feito
filmagens de qualidade e beleza únicas, mas após onze anos de
estadias durante os meses de verão, ele e sua namorada foram
dilacerados e devorados por um urso-pardo. Vindo do nada, ali
estava um filme que eu tinha que fazer. O interesse veemente que
senti me levou na mesma hora de volta a Erik Nelson. Perguntei a
ele sobre o andamento do projeto e soube que as filmagens
deveriam começar no máximo em dez dias, porque no final do
verão no Alasca já começa a migração do salmão, durante a qual os
ursos-pardos vão pescar em grande número ao longo dos rios.
Sondei o terreno antes da questão crucial: quem vai dirigir? Erik
olhou para mim e com uma hesitação quase imperceptível, disse:
“I am kind of directing this film”. Ouvi aquele “kind of”, aquele “eu
meio que vou dirigir este filme”. Senti que ele não estava muito
seguro. Olhei para ele e disse com a maior naturalidade, com a
mesma convicção dos meus remotos tempos religiosos: “Não. Eu
vou rodar o filme”. Estendi a mão e, por puro choque, talvez por
alívio, ele a apertou. Alguns dias depois eu já estava no Alasca.
Como eu disse, além de O homem urso, com Erik Nelson, que
era tão inteligente quanto complicado, houve vários outros filmes.
Depois de nossos nove filmes no corredor da morte no Texas e na
Flórida, deveria haver ainda mais quatro filmes da série, mas o
último deles, sobre um jovem que, num delírio causado por
drogas, durante o malsucedido exorcismo de uma garotinha que
mal havia começado a andar e a falar, cometeu um assassinato
indescritivelmente horrível, me assombrava com seu terror. Por
acidente, embora eu tivesse pedido aos detetives responsáveis da
seção de homicídios que me mostrassem apenas as fotos da cena
do crime e não as fotos da vítima, foi projetado na tela o cadáver da
menina. Vi coisas indescritivelmente terríveis. Nunca antes tive
medo de olhar para um abismo, mas o que vi não quero que nem
os meus piores inimigos vejam. Enquanto me preparava no íntimo
para fazer mais filmes da série Corredor da morte, de repente
acordei no meio da noite com um grito. Lena ao meu lado estava
alarmada, ela também ouvira o grito. Havia sido eu quem gritara.
Naquele momento eu soube que tinha que parar na mesma hora
com os filmes. Existe algo como uma administração dos próprios
sentimentos.
De resto, ainda tive outras ideias para filmes com Erik, mas
nenhuma deu em nada. Nunca consegui ter rapidez suficiente para
ir atrás de todos os filmes que exigiam urgência enquanto ainda
não tivesse concluído o último. É como se eu quisesse manter o
passo com a corrente de um rio rápido, mas nunca consegui
acompanhá-lo, ainda que hoje possa trabalhar mais rápido do que
antes. É verdade que o financiamento de filmes ficou mais difícil,
porque a base numérica da audiência mudou. As distribuidoras dos
meus filmes desapareceram todas, e os cinemas de arte, que de
qualquer forma sempre me pareceram suspeitos, não existem
mais, com algumas exceções. Mas em compensação, meu trabalho
está cada vez mais presente na internet. Sempre pensei em fazer
filmes main­stream, só que em certo sentido eu sou o mainstream
alternativo. Mas também pode ser que eu tenha dito isso a mim
mesmo para me encorajar. Com câmeras digitais e edição digital,
também posso trabalhar muito mais rápido do que antes. Com
algum exagero, posso dizer que consigo editar um filme quase tão
rápido quanto penso. No decorrer dos muitos filmes, também me
tornei mais fluente em fazê-los, assim como alguém pode se tornar
fluente numa língua estrangeira.
Ao mesmo tempo, os trabalhos me perseguem, como fúrias
podem perseguir alguém, mas eles também fogem de mim.
Gostaria de fazer um longa-metragem sobre Onoda na ilha de
Lubang, depois o longa-metragem sobre crianças-soldados na
Á
África, onde soldados de nove anos saqueiam uma loja de vestidos
de noiva. O noivo está descalço, veste uma calça esportiva
esfarrapada e, na parte de cima, sobre a pele nua, um fraque cuja
cauda lhe chega até os calcanhares. A noiva, também um menino,
usa um vestido de noiva grande demais, arrastando a cauda atrás de
si na rua molhada de chuva, os pés em sapatos brancos de salto alto
grandes demais. Com seus kalashnikovs, os dois atiram em tudo
que se move: cães, automóveis, pessoas, porcos. Um morto na rua
que ninguém recolhe. No começo está preto das moscas que o
cobrem, depois vêm os abutres, depois vêm os cães e espalham os
ossos. Depois de duas semanas, tudo o que resta é uma mancha
escura onde jazia o homem fuzilado. Assim me descrevera o
correspondente britânico na África, Michael Goldsmith, que quase
foi morto por Jean-Bédel Bokassa com o seu cetro de ouro. Pouco
tempo antes, Bokassa se fizera coroar imperador da República
Centro-Africana. Goldsmith passou meses na mais famigerada de
todas as masmorras, a prisão de N’garagba. Mas isso foi muito
antes do nosso filme de 1990 sobre Bokassa, Ecos de um império
sombrio. Após as nossas filmagens, Goldsmith estava viajando em
Serra Leoa durante a guerra civil local, foi capturado por um grupo
rebelde e testemunhou da sua janela com grades como em duas
semanas nada restou de um homem morto a tiros, exceto uma feia
mancha na rua. Após a sua libertação, ele assistiu à estreia em
Veneza do meu filme No coração da montanha, em 1991, e apenas
três semanas depois ele morreu. Ele chegou a ver nosso filme
sobre Bokassa em vídeo. Eu estava filmando Ecos de um império
sombrio na câmara frigorífica dentro da qual era possível andar e na
qual unidades de paraquedistas franceses, quando expulsaram
Bokassa, encontraram metade do ministro do Interior, também
podia ser outro político do alto escalão, congelado. Ele ainda estava
lá pendurado pelo calcanhar, como se pendura uma metade de
porco. Bokassa mandara fuzilá-lo por alta traição e a seguir
ofereceu um banquete no qual seus convidados comeram o
ministro do Interior. Mas como havia apenas cerca de uma dúzia
de convidados, o cozinheiro decidiu preparar apenas meio
ministro, a outra metade ele congelou e guardou. O segundo
processo contra Bokassa, no qual ele foi novamente condenado à
morte, foi filmado em vídeo, foram mais de trezentas horas ao
todo. O cozinheiro deu detalhes precisos no banco das
testemunhas, mas foi ridicularizado pelo advogado-celebridade
francês que defendia Bokassa, porque disse que a mão do ministro
do Interior ainda tinha reflexos quando ele a cortou. O advogado
entusiasmou os presentes no julgamento com gestos teatrais
dignos de serem vistos, ele exclamou que a mão devia ter caído no
chão e fugido como uma aranha. Isso era invenção dele e pode-se
ver Bokassa ouvindo francamente entusiasmado. Onze anos após
seu golpe militar, em 1977, Bokassa havia se coroado imperador
numa gigantesca encenação que consumiu um terço do orçamento
do seu país. A cerimônia, com trajes e carruagens douradas, teve
como modelo a coroação de Napoleão Bonaparte. Uma orquestra
do exército norte-coreano tocou valsas vienenses numa arena
semelhante a Versalhes construída especialmente para esse
propósito. Bokassa tinha dezessete esposas e 54 filhos
reconhecidos. Seu favorito, um menino de quatro anos, ele
nomeara seu marechal de campo, e o garotinho adormeceu em seu
uniforme de gala num estrado de veludo ao lado do trono. Mais
tarde, Bokassa se autodeclarou o 13º apóstolo, mas não foi
reconhecido pelo Vaticano. Quando eu quis filmar o esqueleto de
aço que restava do seu trono na abandonada e dilapidada arena de
coroação em Bangui, capital da República Centro-Africana,
milicianos intervieram e fomos presos por soldados. Pouco tempo
depois, isso se repetiu e fomos levados perante o então ministro do
Interior pela segunda vez. Isso não cheirava nada bem e decidi
encerrar rapidamente as filmagens.
Pretendo escrever um réquiem sobre um tsunami no norte da
Itália, o mais terrível que conhecemos, que se arremessou em fúria
de 250 metros de altura sobre um desfiladeiro. A barragem de
Vajont sempre me atraiu ao longo dos anos. Ali, em 9 de outubro
de 1963, ocorreu uma catástrofe que custou a vida de 2 400
pessoas. Com pouco mais de 260 metros de altura, a barragem é
uma das mais altas do mundo. Ela fecha um estreito desfiladeiro
rochoso. No espírito de otimismo da industrialização do norte da
Itália na década de 1950, quando a barragem estava sendo
construída, ninguém quis saber dos perigos, que eram óbvios
desde o início. No lado sul do reservatório, as encostas do monte
Toc eram extremamente íngremes e instáveis. Um geólogo
advertiu, mas ele foi retirado de circulação, e até mesmo diversos
jornalistas críticos foram julgados pelo Estado italiano por
“solapamento da ordem social”. Desabamento de rochas e
deslizamentos de terra foram enchendo a represa e, em 8 de
outubro de 1963, as árvores na encosta íngreme mudaram sua
orientação vertical e ficaram em posição horizontal. Um grupo de
engenheiros foi enviado até lá para verificar. Eles não voltaram e
jamais se encontrou qualquer vestígio deles. Às 22h39, ocorreu o
maior deslizamento de terra de todos os Alpes desde o Neolítico.
Com uma extensão de dois quilômetros, todo o flanco do monte
Toc, cerca de 260 milhões de metros cúbicos, a uma velocidade de
110 quilômetros por hora, despejou-se no reservatório, que já antes
disso quase havia atingido a altura planejada. O tsunami varreu do
mapa a aldeia que ficava na encosta oposta, 250 metros acima do
nível da água do reservatório. Cinquenta milhões de metros
cúbicos de água jorraram por cima da barragem, que resistiu ao
deslizamento de terra, e vieram abaixo pelo desfiladeiro numa
enxurrada inimaginável. Após alguns quilômetros, esse tsunami
atravessou o vale do Piave e elevou-se sobre a margem oposta,
destruindo Longarone, construída sobre uma colina. Longarone foi
quase completamente extinta. Ali foram quase 2 mil mortos.
Muitas das vítimas morreram de ataque cardíaco, porque a água
que caiu sobre elas estava gelada. Um jornal católico italiano
escreveu seriamente que era uma provação enviada pelo amor de
Deus.
Pretendo filmar um longa-metragem sobre o poeta Quirinus
Kuhlmann, que mencionei anteriormente. Ele foi um poeta e
entusiasta religioso que, na segunda metade do século XVII,
percorreu a Europa a pé, pregando e travando disputas com outros
místicos. Quirinus Kuhlmann era oriundo da Silésia e queria
fundar um novo reino espiritual, um reino de Jesuel, para o qual
escreveu um conjunto de poemas, os Kühlpsalter.* Ele se ocupou
com a alquimia e, como entendia tudo literalmente, equipou-se
com uma pá e saiu em busca da pedra filosofal. Imbuído de sua
missão divina, empreendeu, junto com duas mulheres, uma mãe e
sua filha adolescente, a última cruzada de que temos
conhecimento. Fez uma viagem a Constantinopla para converter o
sultão, mas já em Gênova as duas mulheres estavam fartas dele, ali
se juntaram a alguns marinheiros e fugiram com eles. Kuhlmann
quase se afogou nadando atrás do navio. Ele chegou a
Constantinopla e, ao tentar se aproximar do sultão Mehmet IV, foi
detido e encarcerado. Ele pretendia confrontar o sultão com estas
frases: “Afinal deverás cair por ti próprio, ó monstro, cego pela
sabedoria de Deus, não por escudo ou espada: em nome do senhor
Tsebaoth: pula como quiseres: enfurece-te, persegue, enraivece; tua
queda bate à porta; teu tempo acabou”. Como ele sobreviveu a isso e
como foi libertado não está documentado. Contudo, do período na
prisão, temos seu 14º Kühlpsalter, que começa assim:

Desesperado, a Ti suplico, Deus Triúno,


Aflito pois se acerca o final infortuno,
Envolto em tempestade está meu coração!
Escuta, Jeová! Jesus clama piedade,
Demonstra uma vez mais Tua graça e bondade
Pois muito em breve corpo e alma romperão.
Ele encontrou o seu fim em 1689 em Moscou, aonde chegou numa
viagem a pé. Provocou uma insurreição religiosa que
provavelmente foi mal interpretada como política. Kuhl­mann
morreu na fogueira; junto com ele, foram queimados seus escritos.
Eu gostaria de fazer um filme sobre os primeiros reis francos
com Mike Tyson. Ele e eu fomos apresentados um ao outro
quando um produtor de Hollywood queria fazer um documentário
sobre o boxeador. Estavam presentes produtores, além de cinco
advogados. Tyson não se sentiu bem naquela situação, e eu o
convidei para o terraço do lado de fora. Queríamos conversar
sozinhos de homem para homem e imediatamente estabelecemos
um vínculo entre nós. Em vez de falarmos sobre o seu filme,
conversamos sobre a sua infância. Durante toda a infância, Tyson
viveu com a mãe num único cômodo. Quando conhecidos do sexo
masculino estavam lá, ele costumava estar presente e roubava
dinheiro das calças despidas. Antes de completar doze anos de
idade, já havia sido preso cerca de quarenta vezes. Quando se
tornou imputável, aprendeu boxe no reformatório e tornou-se o
mais jovem campeão mundial de peso-pesado. Mais tarde, depois
de ter cumprido três anos de prisão por estupro, que ele nega
veementemente, Tyson se dedicou a leituras intensivas, movido
por curiosidade intelectual. Ele conhece bem a República Romana
e o início da dinastia franca dos merovíngios, com Clovis,
Quilderico, Quildeberto, Fredegunda e o posterior rei carolíngio
Pepino, o Breve. Depois de se aposentar do boxe, Tyson logo
dissipou 300 milhões de dólares e tinha uma montanha de dívidas,
e por isso, presumo, os honorários apresentados à produção foram
tão altos, que inicialmente o filme não pôde acontecer. Como
boxeador, Tyson era medonho e, depois de arrancar a orelha de seu
oponente Evander Holyfield com uma mordida numa luta pelo
título, foi apelidado de o cara mais malvado do planeta. Mas Mike
Tyson é antes um homem tímido que parece um menino. Ele fala
baixinho, com uma voz sussurrada. Sugeri a Paul Holdengräber
que convidasse Tyson para uma de suas palestras abertas na
Biblioteca Pública de Nova York. Foi uma noite inesquecível, da
qual participaram 650 intelectuais, acadêmicos, escritores e
filósofos. Paul, a quem eu havia contado sobre o caso, primeiro
perguntou ao público se alguém ali já tinha ouvido falar de Pepino,
o Breve, mas esse nome não dizia nada a ninguém. Pepino foi o
primeiro rei carolíngio, filho de Carlos Martel e pai de Carlos
Magno. Mike Tyson então falou sobre ele e o começo da Europa
moderna.
Quero fazer um longa-metragem sobre as irmãs gêmeas Freda e
Greta Chaplin. Elas apareceram por um breve período nos
tabloides ingleses em 1981 e alcançaram certa notoriedade por
algumas semanas como as “gêmeas loucas de amor”, que
perseguiram tanto um vizinho, um motorista de caminhão, que ele
foi ao tribunal com os nervos em frangalhos para obter uma
medida protetiva contra elas. Sua história não tem igual. Elas são as
únicas gêmeas idênticas a falar em uníssono de que se tem notícia
até hoje. Sabe-se que os gêmeos às vezes desenvolvem a sua
própria linguagem secreta, na qual, sob exclusão conspirativa do
resto do mundo, se sentem à vontade, mas Freda e Greta falavam
as mesmas palavras ao mesmo tempo, isto é, de forma totalmente
sincronizada, em coro. Eu estive com elas e pude presenciar como
abriram a porta, me cumprimentaram e me convidaram para
entrar, sincronizadas nos gestos e na linguagem. Naturalmente, há
numa tal conversa coisas que podem ser ritualizadas e treinadas.
Mas depois, elas responderam a perguntas que não podiam prever,
também em uníssono. Às vezes, elas falavam separadamente: uma
das duas, Freda, dizia a primeira metade de uma frase, que Greta
completava a partir de uma deixa, isto é, Greta proferia ao mesmo
tempo a palavra-chave e depois assumia a segunda parte da frase, à
qual então Freda dava a entoação correta com uma palavra decisiva
pronunciada em sincronia. Elas usavam as mesmas roupas,
penteados, sapatos. Suas bolsas e guarda-chuvas eram idênticos,
elas eram coordenadas entre si como um teste de Rorschach. Ao
caminhar, não avançavam no mesmo passo como soldados,
esquerda-direita, esquerda-direita, mas pisavam simultaneamente
com o pé de dentro, e então, no mesmo ritmo, com o pé de fora.
Assim também carregavam suas bolsas, isto é, não as duas com a
mão esquerda, mas ambas com a mão externa, e ambos os guarda-
chuvas na mão interna. Se uma foto delas fosse dobrada ao meio,
suas imagens teriam se espelhado perfeitamente. Seus gestos
aconteciam em sincronia, a coordenação corporal entre as duas era
inabalável. Qual delas estava sentada ou andava à esquerda ou à
direita, era nisso que em nossos primeiros encontros estava a única
possibilidade de distinguir quem era Greta e quem era Freda.
Para tarefas cotidianas, elas precisavam da ajuda de assistentes
sociais. Por exemplo, elas não conseguiam abrir uma lata de
sardinha, porque não sabiam fazê-lo com as quatro mãos. Elas
começavam então a gritar compulsivamente. Do mesmo modo,
passar o aspirador de pó na sala era problemático para elas. Elas se
moviam lado a lado, com as quatro mãos agarradas ao cabo e ao
tubo de sucção, mas se as duas velhas poltronas estivessem muito
próximas uma da outra, de modo que as duas não pudessem passar
juntas pelo vão, empacavam e tinham um colapso nervoso. Mas
outras coisas, como preparar o chá e servi-lo para seu convidado,
em seus rituais fixos e claros, eram para elas fáceis de manejar.
Elas cresceram em Yorkshire e, a partir de suas declarações,
parece provável que seu tirânico pai tenha tido um relacionamento
incestuoso com elas. Possivelmente também foi um dos motivos
pelos quais elas se isolaram e iniciaram um relacionamento íntimo
com um vizinho, um motorista de caminhão. Elas se encontravam
com ele no galpão de jardim que havia na divisa dos dois terrenos.
Segundo as duas, a coisa foi bem por alguns anos, até que um dia o
homem lhes disse que ia se casar e que dali em diante os encontros
íntimos teriam fim. As gêmeas não conseguiram suportar isso. Elas
espreitavam seu ex-amante e — sincronizadamente — o cobriam
de insultos e obscenidades. Jogando-se em seu caminho, elas o
obrigavam a parar o caminhão. Então o arrancavam da cabine,
batiam nele — sincronizadamente — com suas bolsas. No
tribunal, o juiz permitiu que as duas prestassem depoimento ao
mesmo tempo em coro, a uma voz. A tentativa de chamá-las em
separado para isso deixou-as fora de si. Elas falavam em coro,
gesticulavam sincronizadamente, e em sua exaltação, enquanto
seus dedos indicadores atacavam no ar o autor da ação em
movimentos paralelos, ambas gritavam: “He is lying, don’t you hear
that he is lying, the bucking fastard is lying!” [Ele tá mentindo, o
senhor não vê que ele tá mentindo, o “bucking fastard” tá
mentindo!]. Elas cometeram o mesmo erro ao mesmo tempo,
“bucking fastard” em vez de “fucking bastard” [maldito desgraçado].
Isso não pode ser traduzido diretamente, mas em alemão se
poderia reproduzir o sentido de forma livre como o “Burenhock”,
em vez de o “Hurenbock” [ou, em português, o “pilho da futa”].
Der Burenhock ou Bucking Fastard será o título do filme. O autor da
ação ganhou o processo, e as gêmeas foram condenadas a um mês
de liberdade condicional com a condição de manterem distância
do motorista de caminhão. Indefesas perante a caça sensacionalista
dos tabloides britânicos, elas foram finalmente acolhidas por um
engenheiro aposentado no pequeno sótão de sua casa. Mas a
tragédia das gêmeas não terminou ali. No térreo, havia uma
pequena empresa, cujo dono de repente começou a persegui-las. À
noite, ele subia no telhado ao lado do apartamento para vê-las se
despirem. Ele caiu de lá de cima e, quando estive com as gêmeas
pela primeira vez, estava com as duas pernas engessadas. Um
aprendiz da mesma empresa, um punk, derrubou uma das irmãs,
Freda, no chão da passagem para o pátio e cortou suas tranças,
provavelmente para torná-las distinguíveis. Greta então também
cortou os seus cabelos.
Como elas haviam se retirado das vistas do público, apenas
consegui encontrá-las por meio de uma foto da casa em que
moravam, que tinha sido publicada no jornal. Ao fundo, podia-se
ler uma placa, um cruzamento de duas ruas e uma placa com o
nome de uma empresa, um nome comum, para o qual havia duas
páginas de registros na lista telefônica de Londres, porém,
combinado com os nomes das ruas, esse nome me permitiu
localizar o endereço. A internet ainda não existia de fato naquela
época. As gêmeas responderam a uma carta minha e sentimos
mutuamente uma profunda empatia desde o primeiro momento.
Convidei-as para ir a um restaurante, porque elas quase nunca
saíam, mas as duas não se sentiram muito à vontade com isso. Fish
and chips talvez, bem ali perto? Eu tinha visto um quiosque. Isso
lhes pareceu aceitável, mas antes elas cochicharam por um tempo,
em coro. Tudo bem, podemos ir, anunciou-me Greta, que tinha a
função de ministra das Relações Exteriores, enquanto Freda era
mais a ministra do Interior. Suas cartas geralmente eram
começadas por Greta, tenho cartas suas onde ela escrevia as duas
primeiras linhas, mas logo abaixo Freda escrevia o mesmo texto de
novo. Mais adiante na carta, as frases estão bem separadas; Greta
começava a linha com a mão direita na margem esquerda da
página, e Freda escrevia simultaneamente com a mão esquerda
começando da direita, não com as letras de trás para frente, mas
palavra por palavra em direção ao interior da página. No meio, as
duas partes da linha se encontravam formando uma frase coerente.
Antes de sairmos, eu tinha que esperar um minuto, elas só
precisavam se arrumar rápido no banheiro. Mas elas não voltavam.
Nem mesmo depois de vinte minutos. Depois de meia hora, fui
verificar. A porta do banheiro estava aberta e lá estavam elas e
tenho que descrever como as percebi. Greta amarrou o lenço na
sua cabeça diante do espelho, e deve ter se passado pelo menos
dez segundos antes que seu reflexo de repente fizesse algo
inesperado, não sincronizado: uma mão saiu do espelho e enfiou
uma mecha de cabelo debaixo do lenço. Só que não havia espelho,
as gêmeas usavam uma à outra como reflexo, colocando-se frente a
frente e fazendo ambas a mesma coisa. No entanto, depois de uma
série de encontros, tive que interromper o contato com elas, pois
havia sinais inequívocos de que de repente eu estava no seu radar
sentimental. Elas insistiram para que eu passasse a noite lá,
queriam me mostrar o que mais pretendiam fazer de gostoso
comigo. Ambas já faleceram. Freda morreu de câncer, e Greta
sobreviveu a ela por catorze anos, nos quais não se passou um dia
sem que visitasse o túmulo da irmã.
Eu nunca dou conta. Há ainda um filme não feito sobre alguém
que se torna invisível. Tive longas conversas sobre isso com Kevin
Mitnick, indiscutivelmente o maior de todos os hackers
conhecidos, que conseguiu escapar das garras do FBI por muito
tempo, mas no final acabou passando cinco anos numa prisão
federal. Há um filme sobre o antigo rei irlandês Sweeney que no
meio de uma grande batalha vai ficando cada vez mais leve, até que
sai voando para longe e pousa numa árvore. Ele se põe a cantar
com os pássaros. Ninguém consegue atraí-lo de volta para baixo.
Somente quando desce para ajudar um santo monge a arrancar um
grande nabo da terra, ele morre com o esforço. O título do filme é
Sweeney entre rouxinóis. Deverá ser algo para um público infantil.
Mas esse não dar conta do que não foi feito não me deixa ansioso,
eu me conformo.
28.
A verdade do oceano

No labirinto das memórias, muitas vezes me pergunto o quão


fluidas elas são, o que foi importante, quando e como tanta coisa se
dissipou ou adquiriu outras cores. Quão verdadeiras são as nossas
lembranças? A questão da verdade tem me ocupado em todos os
meus filmes. Hoje ela se coloca com maior urgência para todos
nós, porque na internet deixamos vestígios de nós mesmos que
adquirem vida própria. A questão das fake news ganhou destaque
porque teve uma influência enorme na vida política. Mas as
falsificações existem desde que se conta com registros escritos.
Em antigos relevos egípcios, um faraó se vangloria de sua grande
vitória sobre os hititas, porém possuímos o texto do seu tratado de
paz com o inimigo, no qual se verifica que a batalha terminou
empatada. Temos falsos Neros que, após a morte do imperador
romano, cavalgaram com grande séquito até o norte da Grécia e a
Anatólia. Temos as chamadas “aldeias Potemkin”, conjuntos de
fachadas instalados para impressionar a czarina Catarina, a Grande,
em sua passagem pela região. A lista não tem fim.
Desde o começo, fui confrontado com fatos em meu trabalho. É
preciso levá-los a sério porque eles têm força normativa, mas fazer
filmes puramente orientado por fatos nunca me interessou. A
verdade não precisa coincidir com os fatos. Do contrário, a lista
telefônica de Manhattan seria o livro dos livros. Quatro milhões de
registros, todos factualmente corretos, todos verificáveis. Mas isso
não nos diz nada sobre um único entre as dezenas de James Miller
registrados ali. O telefone e o endereço estão corretos. Mas por
que ele chora em seu travesseiro todas as noites? Só a poesia, só a
invenção da arte, pode revelar uma camada mais profunda, um tipo
de verdade. Para isso, cunhei o termo verdade extática. Explicá-lo
exigiria um livro inteiro, faço aqui portanto apenas algumas
indicações de forma sintética. Sobre essa questão, porém, até hoje
tenho buscado o debate público com representantes do chamado
cinéma vérité, que reivindicam para si a verdade de todo o gênero
do filme-documentário. Como autor de um filme, o cineasta deve
desaparecer completamente, deve ser como uma mosca na parede.
De acordo com essa crença, as câmeras das agências bancárias
representam o caso ideal da atividade cinematográfica. Não quero
ser uma mosca, quero ser uma vespa, que pica. O cinéma vérité foi
uma ideia dos anos 1960, portanto do século passado, e me refiro
aos seus representantes atuais simplesmente como “contabilistas
da verdade”. Isso me rendeu ataques furiosos. Minha resposta aos
indignados foi: feliz ano-novo, seus fracassados.
O escritor francês André Gide escreveu certa vez: “Eu altero os
fatos de tal modo que eles se parecem mais com a verdade do que
com a realidade”. Shakespeare disse algo muito semelhante “The
most truthful poetry is the most feign­ing” [“A poesia mais verdadeira é
a que mais finge”]. Isso me ocupou por muito tempo. O exemplo
mais simples é a estátua da Pietà de Michelangelo na basílica de
São Pedro em Roma. O rosto de Jesus descido da cruz é o rosto de
um homem de 33 anos, mas o rosto de sua mãe é o rosto de uma
jovem de dezessete. Michelangelo queria mentir para nós? Ele
tinha intenções fraudulentas? Queria espalhar fake news pelo
mundo? Ele agiu como artista de forma muito natural para nos
mostrar a verdade mais profunda das duas pessoas. O que é a
verdade de qualquer forma, nenhum de nós sabe, nem os filósofos,
nem o papa em Roma e nem mesmo os matemáticos. Nunca vejo a
verdade como uma estrela fixa no horizonte, mas sempre como
uma atividade, uma busca, uma tentativa de aproximação.
Em meu filme Lições da escuridão, que trata dos poços de
petróleo em chamas no Kuwait no final da Segunda Guerra do
Golfo, inseri, antes de se iniciarem as imagens, uma citação de
Blaise Pascal: “O colapso dos mundos siderais acontecerá — assim
como a criação — em grandiosa beleza”. Não se trata de um filme
político sobre os crimes das tropas iraquianas de Saddam Hussein
em retirada, isso pôde ser visto e ouvido em forma primitiva na
televisão todas as noites durante um ano inteiro. Eu vi outra coisa.
Quando cheguei ao Kuwait, pareceu-me que ali havia muito mais:
um acontecimento de dimensões cósmicas, um crime contra a
própria criação. Ao longo de todo o filme, que parece um réquiem,
não há uma só cena que permita identificar o nosso planeta. O
filme se apresenta como uma espécie de ficção científica sombria.
Daí a citação antes das primeiras imagens — desde o início eu
queria remeter os espectadores a um plano mais elevado, do qual
não os deixaria descer até o final. Contudo, a citação não é de
Pascal, o filósofo francês de quem temos maravilhosos aforismos
sobre o universo, mas de mim mesmo. Também acho que Blaise
Pascal não poderia tê-lo dito melhor. E mais uma coisa: em casos
assim, eu sempre dei pistas de que havia inventado alguma coisa.
Sempre me fascina a forma como outras pessoas percebem a
verdade. Durante as filmagens de Fitzcarraldo, a comunidade local
dos machiguengas nas profundezas da floresta pedira, além do
pagamento em dinheiro, também outras contrapartidas para a sua
participação, como um posto médico permanente e um barco de
transporte, mas também nosso apoio em seus esforços para
conseguir uma escritura das suas terras, um título sobre o seu
território. Primeiro contratamos um agrimensor para traçar um
mapa com as linhas de fronteira, depois, com dois representantes
eleitos da comunidade shivankoreni, nos encontramos com o
presidente do Peru, o que alguns anos mais tarde de fato levou ao
reconhecimento de seu direito às suas terras. Nessa época, em
Lima, houve um momento que se tornou para mim a “verdade do
oceano”. Na aldeia dos machiguengas, havia opiniões controversas
sobre se realmente existia um oceano e se todo o oceano, caso ele
existisse, continha água salgada. Na viagem com os dois
representantes machiguengas, ambos entraram no mar todo
vestidos e avançaram cortando as ondas até a água bater nas suas
axilas e sempre provando a água ao seu redor. Depois eles
encheram uma garrafa com água do mar e a levaram, bem fechada
com uma rolha, consigo de volta para casa na floresta. A prova
deles consistia no seguinte: se havia sal num ponto do mar, então,
como numa grande panela, toda a água do mar era igualmente
salgada.
Um exemplo de tempos recentes me dá o que pensar. Depois
que filmei Uma história de família no Japão, a televisão japonesa
também se interessou pelo fenômeno de ser possível alugar numa
agência, que hoje já representa mais de 2 mil atores, um familiar
ausente ou um amigo por uma tarde, por exemplo. O fundador da
agência, Yuichi Ishii, fez o papel principal no meu filme. Ele é
contratado por uma mãe divorciada para fingir que é o pai de sua
filha de onze anos, que sente falta de ter contato com ele. Como os
pais se separaram quando a menina tinha dois anos de idade, ela
não sabe como ele é. Aliás, a garota do meu filme também não é a
filha real, mas uma bem preparada atriz. Yuichi Ishii foi
entrevistado sobre sua empresa pela emissora NHK e lhe pediram
para indicar um cliente que já tivesse utilizado a agência. A NHK
então entrevistou um homem mais velho, que havia alugado um
“amigo” para um de seus dias solitários. Contudo, logo após o
programa, apareceram inúmeras denúncias na internet de que o
“cliente” não era um cliente, que Ishii havia posto a emissora em
contato com um farsante, um impostor da sua própria agência, que
apenas fingira ser um homem solitário. A emissora desculpou-se
publicamente com seus telespectadores por não ter checado
devidamente as informações. No Japão, tal perda de credibilidade é
a pior de todas as vergonhas. Até aqui tudo bem. Só depois a coisa
começou a ficar mesmo interessante. Eu sei o seguinte apenas de
segunda mão: Yuichi Ishii defendeu-se com o argumento de que
enviara um ator da sua agência de propósito, pois um cliente real,
um velho homem no fundo da sua solidão real só teria contado
meias-verdades. Um cliente real, para manter as aparências e não
expor demais o seu íntimo, provavelmente teria suavizado tudo,
teria mentido pelo menos em parte. Mas o “impostor”, o
“farsante”, indicado por Yuichi Ishii, que já havia feito centenas de
vezes o papel do “amigo” de um homem solitário, sabia
exatamente do que estava falando, o que se passava com tal
homem. Apenas através do mentiroso, seria possível conhecer a
verdade real. Esta, de qualquer maneira, não existe, e eu chamo
isso de verdade extática.
29.
Hipnose

Depois que me foi imposto de fora o papel de narrar o meu próprio


texto no filme sobre o esquiador Steiner e de atuar na tela como
cronista dos acontecimentos, acabei encontrando lados bons nessa
tarefa, à qual inicialmente resisti. Falar os próprios textos tem algo
de autêntico, que é reconhecível de imediato por qualquer público
e que atores treinados e locutores profissionais não conseguem
transmitir. Eu me vi nesse papel sem pensar muito antes, mas não
queria fazê-lo como um amador, e impus a mim mesmo precisão e
apelo. A isso somou-se que, em meu longa-metragem Coração de
cristal, eu não muita tinha certeza de como poderia mostrar os
membros de toda uma aldeia marchando como sonâmbulos rumo a
um desastre vaticinado. O filme fala de um pastor de vacas com
dons proféticos, que realmente existiu no final do século XVIII na
floresta da Baviera e que, como Nostradamus, teve visões sobre a
conflagração universal e o fim da humanidade. A aldeia vive da
produção de vidro, mas os sopradores per­deram o segredo da
fabricação do vidro de rubi. A busca por ele os leva à loucura. No
delírio coletivo, ocorre o assassinato de uma virgem e um incêndio
é provocado. A vidraria é destruída pelo fogo. Como eu poderia
criar uma estilização para esses eventos na qual todos os atores
agissem como se estivessem em transe? Como sonâmbulos se
movem, como falam? Tive a ideia de submetê-los, todos se
possível, a hipnose, mas para isso primeiro eu tinha de descobrir
se as pessoas sob hipnose podiam abrir os olhos sem que isso as
despertasse. E também: duas ou mais pessoas em estado de
hipnose eram capazes de travar diálogos umas com as outras?
Contratei um hipnotizador profissional para fazer alguns testes e
fiquei muito animado com os primeiros resultados. Sim, as pessoas
em hipnose profunda podem abrir os olhos sem acordar e, sim,
elas também podem interagir umas com as outras. Mas logo o
hipnotizador me irritou profundamente. Dando-se ares de
importância, ele afirmava existir uma aura cósmica que ele, com
base em suas habilidades especiais, era capaz de dirigir para si,
trazer para baixo e irradiar para outras pessoas. O estado de
hipnose seria provocado por ele através do feixe de forças de suas
vibrações internas. Ele era tecnicamente bom na sua área, mas
quando alguém surge com esse tipo de bobagem new age, perco a
paciência. Acabei assumindo eu mesmo o papel de hipnotizador,
eu tinha estudado bastante e me familiarizado com a literatura
disponível. Depois, o charlatão new age dirigiu um instituto no
qual ele transportava de preferência jovens mulheres hipnotizadas
para o antigo Egito como dançarinas de templo. Elas então
supostamente falavam na língua dos faraós, porém egiptólogos
examinaram seus balbucios e verificaram que eram apenas sons
sem sentido, que não pertenciam a nenhum idioma. Na verdade,
qualquer um pode hipnotizar. As mistificações vêm do fato de que
cientificamente ainda sabemos muito pouco sobre os processos de
desligamento do cérebro através da hipnose e do sono. Na
verdade, sabe-se apenas como proceder em termos de método.
Existem técnicas simples, como fixar os olhos da pessoa a ser
hipnotizada, por exemplo, segurando a ponta de um lápis. Além
disso, há uma certa maneira penetrante de falar que deve ser
hipnoticamente sugestiva. Mais tarde, essa maneira de falar
tornou-se importante para a minha voz em meus comentários nos
filmes.
Mas para haver hipnose devem estar dadas algumas condições
básicas. A pessoa a ser hipnotizada precisa estar de acordo com o
processo e disposta a seguir as sugestões. Se alguém não é
particularmente imaginativo, nem possui uma mente flexível o
suficiente para seguir a sugestão de um cenário, a hipnose fica
muito difícil ou impossível. Pessoas muito velhas, que são rígidas
em seus pensamentos, são difíceis de hipnotizar. Crianças
pequenas, de quatro anos, cheias de impetuosidade para se
movimentar e com períodos de atenção muito curtos, também não
podem — e não devem — ser hipnotizadas. Quem hipnotiza não
tem poder sobre os hipnotizados. Assassinato sob hipnose só
acontece em filmes e romances ruins, porque o núcleo duro de
nosso caráter, mesmo nesse estado, não pode ser alterado. Se
alguém puser uma faca na mão de uma pessoa sob hipnose e
mandá-la matar a própria mãe, ela simplesmente se recusará.
Pessoas hipnotizadas também mentem. Por isso, testemunhos
obtidos sob hipnose não são admissíveis como prova em tribunal.
Também é importante que o retorno ao estado de consciência
normal ocorra devagar, para que o hipnotizado possa “entrar” de
volta no mundo sem medo e, se possível, com uma boa
expectativa. Mas para mim também houve grandes surpresas
quando me ocupava com o assunto. Um músico ficou um pouco
inseguro quando veio para os testes respondendo a um anúncio no
jornal. Todos os convidados sabiam que se tratava de um
experimento para formar um elenco de atores, e o jovem pediu
permissão para trazer a sua namorada. Eu a coloquei no fundo da
sala como observadora e disse-lhe para não seguir a minha voz.
Mas já depois de poucos minutos ela foi a primeira a mergulhar
com tudo na hipnose. Durante as filmagens também houve um
incidente: um dos atores se sentiu tão bem em estado de hipnose
que se recusava fortemente a seguir minhas instruções e a
despertar pouco a pouco. Levei muito tempo para voltar a acordá-
lo. Décadas depois, no meu longa-metragem Invencível, a pianista
Anna Gourari, que interpreta o principal papel feminino ao lado do
homem mais forte do mundo, mostrou-se muito cética quanto à
possiblidade de ser hipnotizada diante da câmera ligada.
Convidamos um pequeno grupo de pessoas para testemunhar, e
ela entrou tão fundo em transe tão rápido, que também nesse caso
precisei de muito tempo para acordá-la.
Sempre posso constatar facilmente através de uma gravura
primitiva se alguém é “dotado” para a hipnose. Assim como
existem pessoas talentosas que aprendem a andar de bicicleta
muito rápido, também existe um certo talento básico para a
hipnose.

Você tem um livro aberto à sua frente. Pergunta: o livro está virado
de costas para você e você só vê a parte de trás? Ou o livro está
aberto para você? Se você vê o livro aberto para si, vou remover o
desenho por um momento, depois mostrá-lo outra vez e sugerir
que olhe para a imagem de novo, de forma que o livro esteja virado
de costas para você. Se você consegue facilmente mudar de ideia e
ver de maneira diferente, você é um bom candidato à hipnose. Isso
também se aplica, é claro, ao livro que se vê virado. Você pode vê-
lo ao contrário, aberto para você?
Mais tarde também fiz experimentos com filmes, que mostrei a
um público que se deixou hipnotizar por mim. Um espectador, por
exemplo, sentia-se capaz de circundar o personagem principal de
Aguirre como se estivesse num helicóptero; para ele, as paisagens
se transformavam em paisagens puramente imaginadas. Fiquei
interessado em saber como surgiam essas visões, sabemos muito
pouco sobre os processos de sonhos e visões. Mas os riscos de
trabalhar com grupos maiores de pessoas hipnotizadas são muito
altos, e a responsabilidade também é muito grande, porque,
embora sejam raros os casos, também podem ocorrer reações
psicóticas.
Pelo menos um pequeno eco em minha voz na locução dos
meus documentários vem do meu papel como hipnotizador.
Sempre, contudo, o importante não é simplesmente a voz, mas o
que a voz tem a dizer. O conteúdo faz o público aguçar os ouvidos.
O que escrevo e depois digo em voz alta nunca seria possível num
filme da National Geographic. No final do meu filme sobre
vulcões, Visita ao inferno, veem-se fluxos de lava irrompendo do
interior da Terra, e adicionalmente minha voz lembra que em toda
parte no mundo, bem fundo abaixo de nossos pés, borbulha o
magma incandescente, que quer subir e entrar em erupção,
indiscriminadamente devastador para todos os tipos de vida em
nosso planeta, “em profunda indiferença ao destino de baratas
atarantadas, crocodilos estúpidos ou humanos insensatos”. Frases
como essa exigem a respectiva entonação. Reconheço que minha
voz em alemão tem uma ressonância do sul da Alemanha, da
minha primeira língua, o bávaro. E também admito que falo inglês
com um forte sotaque, não tão ruim quanto o de Henry Kissinger,
mas ainda assim ruim o suficiente para que haja vários imitadores
na internet que leem contos de fadas ou dão conselhos sobre a vida
com a minha voz. Existem dezenas de duplos meus por aí, mas
nenhum deles até agora realmente acertou o meu tom de voz.
Minha voz encontrou uma grande comunidade de fãs e,
combinada com minha visão de mundo, convida à imitação. Sou
uma grata vítima de tais sátiras.
30.
Vilões

Já muito cedo, depois de poucos filmes iniciais, fui convidado para


atuar como ator diante da câmera. A primeira oferta veio de Edgar
Reitz, um dos diretores da primeira hora do Novo Cinema
Alemão, que já havia me apoiado de forma camarada. Logo muito
cedo, ele e Alexander Kluge, que dirigiam uma espécie de escola
de cinema em Ulm, me convidaram, porque estavam ambos
convencidos de que eu tinha tutano. Mas eu recusei. Sempre fui
profundamente autodidata, nunca acreditei em universidades.
Ainda assim, recebi dicas valiosas de ambos os diretores para a
minha própria produção, e o que de fato teve uma importância
foram as colaboradoras e os colaboradores que vieram deles até
mim. Foi assim que entrei em contato com Beate Mainka-
Jellinghaus, que por muito tempo foi a minha montadora. Beate
tinha uma sensibilidade extraordinária para o material filmado, ela
sabia instantaneamente o que deveríamos selecionar para a edição.
Ela me tratava de forma rude, quase impiedosa. Para o meu
primeiro longa, Sinais de vida, íamos assistir a um rolo de trezentos
metros de material, mas descobrimos que o filme estava
rebobinado ao contrário. Mesmo assim, ela prendeu a fita nas
engrenagens da mesa de edição e viu as tomadas do fim para o
começo, em velocidade cinco vezes mais rápida e tudo de cabeça
para baixo. Quando a fita terminou de passar, ela tirou todos os
doze minutos de filme do aparelho e os jogou no lixo. “Tudo ruim”,
ela disse lacônica. Somente depois de eu insistir para que ela
olhasse o rolo de novo na ordem certa e montasse uma sequência
curta é que ela fez isso. Mas ela disse que apesar disso a filmagem
acabaria no lixo, e depois de três semanas trabalhando no filme
percebi que ela estava absolutamente certa. Dessa vez, eu mesmo
joguei fora o rolo. Beate achou todos os meus filmes tão ruins, que
se recusou a estar presente em qualquer uma das estreias. Ela
renegou todos os meus filmes, incluindo Aguirre, com uma única
exceção: Também os anões começaram pequenos. Ela achou o filme
ótimo, e foi apresentada ao público na estreia. Mais tarde,
Harmony Korine e David Lynch também colocariam o filme no
topo da sua lista de favoritos.
Naquela época havia apenas celuloide. O som analógico era
gravado em largas e desajeitadas fitas magnéticas, que, como as
fitas de imagens, tinham perfurações que forçavam mecanicamente
o sincronismo entre imagem e som. Edgar Reitz tinha uma dessas
máquinas do tamanho de um armário em sua produtora, e ele me
deixava usá-la gratuitamente. Naquela época, no final dos anos
1960, ele estava fazendo uma série de curtas-metragens,
Geschichten vom Kübelkind [Histórias da criança da tina], e me
contratou para fazer o papel de um assassino louco. Eu fiz o papel
de forma bastante convincente, e a partir de então surgiram papéis
de loucos ou vilões que pareciam ter sido escritos para mim. Mas
também houve exceções. Edgar Reitz é coautor de várias séries
longas; Pátria, sobre a vida de aldeia na sua própria terra natal, a
serra do Hunsrück, no estado da Renânia-Palatinado, abrangendo
todo o século, foi um marco na história da televisão na Alemanha.
Como conclusão, ele realizou mais um filme, A outra pátria, sobre
os que emigraram da miséria sufocante das aldeias no século XIX.
Além disso, ele me convidou para interpretar o pesquisador e
viajante Alexander von Humboldt, e eu aceitei o papel com a
condição de que ele atuasse comigo numa cena. Reitz aceitou e
interpretou um fazendeiro com uma foice à beira de um campo, a
quem Humboldt pede informações. Nessa cena, Reitz fala no
dialeto regional do Hunsrück, que mal consigo entender. Mas eu
quis fazer isso, porque a cena fechava um ciclo de mais de quatro
décadas para nós dois.
Depois, em 1988, sob a direção de Peter Fleischmann,
participei de Es ist nicht leicht, ein Gott zu sein [Não é fácil ser um
deus], um filme de ficção científica baseado num famoso romance
dos irmãos Strugatzki. Fiz o papel de um pregador fanático e
profético, que no entanto logo é tirado do caminho pelos
ambiciosos detentores do poder. Eu morro atingido nas costas por
uma lança. Para isso, um dublê cravava a lança num painel de
madeira escondido nas minhas costas, mas ele foi muito tímido.
Fleischmann e eu achamos que ficou muito inofensivo, e eu pedi
ao assassino para me atacar corretamente. Mas eu não sabia de
uma coisa: ele havia sido campeão de boxe peso-médio da União
Soviética. Desta vez, ele se empenhou com tamanho ímpeto, que
duas coroas dos meus molares rebentaram. O filme foi rodado em
Kiev, na Ucrânia, num estúdio gigantesco dos anos dourados do
cinema soviético, e a seguir no Tadjiquistão, no sopé das
montanhas Pamir. Esse trabalho foi uma das minhas poucas
contribuições diretas ao Novo Cinema Alemão. Não me sinto
confortável inserido nessa categoria. Meus filmes sempre foram
algo diferente.
Do ponto de vista meramente técnico, apareço como ator em
meu primeiro longa, Sinais de vida, logo no começo, quando o
protagonista ferido, Stroszek, é despejado de um caminhão do
exército e internado num vilarejo. O figurante que eu havia
contratado não apareceu no local e, por falta de opção, vesti o
uniforme, que não cabia em mais ninguém. Hoje vejo com
assombro que realmente pareço um aluno do ginásio, tão jovem eu
era na época. Muito mais tarde, interpretei a mim mesmo, como
Werner Herzog, num filme de Zak Penn, Incidente no lago Ness, de
2004. Interpreto a mim mesmo, o diretor que é obrigado por um
produtor inescrupuloso a fazer concessões sob a mira de uma
pistola. A pistola é apenas uma pistola de sinalização, nem um
pouco adequada para uma ameaça. Mas a coisa toda parece tão real
e autêntica que grande parte do público a tomou por verdadeira e
ficou do meu lado, embora esteja claro desde os primeiros minutos
que se trata de uma falsificação, mais precisamente: uma
falsificação dentro de uma falsificação. O que eu faço no filme é
pura autoironia. Tais momentos sempre me fizeram bem.
Contudo, como se perdeu o sentido do contexto, da sátira, do que
é inventado e do que não é, boa parte do público não percebeu que
tudo fazia parte do roteiro e era encenado. O filme é como uma
alusão profética a todas as notícias falsas que hoje dominam parte
da mídia.
Em 2007, participei novamente de um filme de Zak Penn, para
o qual dessa vez, além de dirigir, ele também escrevera o roteiro:
The Grand. Nesse filme, que se passa num cassino em Las Vegas
durante um torneio de pôquer, eu faço o papel do “alemão” que
trapaceia e acaba sendo expulso do torneio. O “alemão” é um
personagem um tanto autocomplacente que sempre carrega
consigo o seu coelho de estimação, mas o tempo todo está
querendo estrangular algum animalzinho que leva na gaiola, para
se lembrar do quanto ele próprio está vivo. A título de
esclarecimento, neste ponto, eu gostaria de deixar claro que não há
nada em mim que poderia inspirar um roteirista a criar um tal
papel. Da parte de Zak, tratava-se de mera invenção, e da minha,
de nada além de uma performance.
Já antes de trabalhar com Zak Penn, que se interessou por mim
porque meus filmes o impressionaram a fundo, eu havia sido
abordado por Harmony Korine. Nós dois tínhamos nos conhecido
no festival de Telluride, onde ele exibia o seu filme Vida sem
destino, que me impressionou porque reconheci uma voz
totalmente nova no cinema americano, e ele, por sua vez, sentiu-se
como que sacudido pelos meus filmes, sobretudo o meu filme com
pessoas com nanismo. O seu pai, ele próprio um cineasta, levou-o
ao cinema quando ele ainda era adolescente e Harmony ficou
profundamente impressionado com a experiência do meu filme.
Mais tarde, ele a descreveu numa entrevista: “De repente, eu
soube que havia poesia no cinema, algo tão imponente como eu
nunca tinha visto antes”. Para Harmony Korine, fui uma espécie de
modelo de seu próprio cinema, e eu aceitei participar como ator no
seu filme Julien Donkey-Boy, de 1999, sobretudo porque ele
próprio interpretaria o meu filho enlouquecido, e eu o seu pai, que
é o epicentro de uma família bastante problemática. O filho mais
velho, Harmony, comete um assassinato num surto delirante, mas
isso depois de engravidar a própria irmã, interpretada por Chloë
Sevigny. O filho mais novo é um fracassado, e a avó que mora na
casa, totalmente gagá. Quando cheguei ao local de filmagem no
Queens, porém, descobri que Harmony havia dado seu papel a um
ator e ele próprio era apenas o diretor. Talvez desde o começo ele
tenha planejado dessa maneira, ou então sua coragem apenas o
abandonou. Com ele, não havia diálogos escritos, mas apenas
situações definidas de forma bastante esquemática. Eu precisava
improvisar meus diálogos na hora, percebi isso logo no primeiro
dia de filmagem. Na mesa de jantar, meu filho mais velho recita um
poema de sua autoria, e eu tenho que humilhá-lo impiedosamente
na frente de seus irmãos. A cena foi rodada com várias câmeras de
vídeo ao mesmo tempo. Quando acabei de me sentar à mesa,
percebi que as luzes de “gravação” das câmeras se acenderam e me
virei para Harmony, que havia recuado para o fundo: “O que eu
digo, qual é o meu diálogo?”. Mas Harmony apenas respondeu:
“Fale!”. Nada me restava senão começar a falar. Então fui entrando
numa vileza cada vez mais profunda, o que tirou Harmony do seu
esconderijo. Ele se colocou atrás da câmera que ficava quase na
minha linha de visão e de alguma maneira eu percebi que ele
estava entusiasmado e pensei comigo mesmo, vou um pouco mais
além, e seguindo meu impulso espontâneo berrei para o meu filho
à mesa que a verdadeira poesia não podia ser só estúpida e
pretensiosa como eu acabara de ouvir dele, mas tinha que ser
grandiosa como tínhamos visto com Clint Eastwood em
Perseguidor implacável. Nesse filme, no confronto final, Harry troca
tiros com o pior de todos os vilões. O vilão tropeça para trás e cai
deitado no chão, mas com a arma apontada direto para Harry, que
está em pé sobre ele. As balas tinham acabado ou ainda restava
uma? Harry diz algo maravilhoso para ele: “Agora você precisa se
fazer uma pergunta: você consegue se sentir feliz?”. Então o vilão
aperta o gatilho, mas a pistola apenas clica no vazio. E nesse
momento Harry o mata. Harmony deve ter ficado empolgado com
o meu entusiasmo, pois deu um grito, e a partir desse momento o
áudio ficou inutilizável e a cena acaba de repente. Em seminários
de teóricos do cinema, que não consigo suportar, essa passagem foi
enfaticamente comentada, como se nós dois, Harmony e eu,
quiséssemos com ela fazer uma profunda e reflexiva declaração
sobre a história do cinema, quando, sem nenhuma preocupação
anterior, ela nasceu apenas da necessidade.
Com a produção de Harmony Korine, que antes eu imaginava
toda no estilo guerrilha, também ficaram visíveis para mim
aspectos dominantes da indústria cinematográfica. A equipe, toda
ela de pessoas jovens e entusiasmadas, que desejam
necessariamente participar de algo novo, fugiu aterrorizada
quando uma dúzia de baratas saiu de trás de um quadro que
tiraram da parede. A equipe só ficou pronta para prosseguir depois
que a produção trouxe macacões de plástico como os usados para
limpar locais contaminados com radioatividade. Harmony e seu
cinegrafista então ficaram quase de todo nus sem fazer
comentários e continuaram a trabalhar só de sunga. Uma segunda
coisa me impressionou: dentro da casa relativamente pequena,
havia uma quantidade enorme de telefones celulares e walkie-
talkies, colaboradores que estavam quase um ao lado do outro
falavam entre si através deles. Quando, depois de uma ausência de
dois minutos, eu voltava da geladeira do primeiro andar para a sala
e estava visível para todos na escada, ouvi como foi anunciado pelo
rádio, audível como eco em todos os aparelhos, que eu estava na
escada, e depois, três passos adiante, que eu estava de volta ao
local da filmagem. Nas cenas de beijo de grandes produções de
Hollywood, hoje em dia tem que haver no local um “consultor de
intimidade”, e setenta pessoas, a maioria das quais apenas fica
circulando no local de filmagem, conversam entre si por walkie-
talkies.
Depois, em 2007, filmei Mr. Lonely com Harmony Korine numa
ilha tropical na costa leste do Panamá. No filme, eu interpreto um
missionário fanático que, como piloto de avião, com a ajuda de
freiras católicas, joga mantimentos do alto para a população
indígena carente, que vive em áreas remotas. Uma das irmãs cai
por acidente do avião, mas sobrevive facilmente porque, carregada
pela sua fé, flutua de leve em direção ao solo. Outras irmãs fazem o
mesmo para testar a própria fé, e uma delas até mesmo pula da
escotilha do avião em sua bicicleta e sai pedalando após tocar o
solo suavemente. Quando num fim de tarde a equipe estava
filmando uma outra cena, sem mim, no aeroporto, e eu estava lá no
meu figurino de ator, um homem me chamou a atenção. Atrás da
alta tela de arame do pequeno edifício improvisado do aeroporto,
entre o punhado de pessoas que esperava a chegada de um voo
local, havia um homem relativamente jovem que eu vira ali
algumas horas antes. Era um homem negro segurando um buquê
de flores muito pequeno e já muito murcho. Ele parecia
profundamente triste. Tentei falar com ele e ele me perguntou se
eu poderia ouvir sua confissão mesmo sem ser um padre ordenado,
já que afinal eu estava de batina. Eu respondi com uma pergunta:
aquilo me parecia muito importante, ele não gostaria talvez de
fazer sua confissão diante da nossa câmera? Ele gostou da ideia.
Chamei Harmony e a equipe de filmagem. Eu apenas disse a
Harmony: “Você está pronto?”. Ele não tinha ideia, nem eu, do
que exatamente iria acontecer. A câmera foi ligada. Eu tomei a
confissão do homem. Ele confessou que sua esposa e seus três
filhos pequenos haviam fugido dele, e que fazia dois anos que ele ia
todos os dias ao aeroporto, porque tinha esperanças de que eles
voltassem no próximo avião. Ele hesitou em contar por que sua
esposa havia fugido, e eu lhe disse que ali naquele momento ele
estava tendo uma oportunidade para aliviar a sua consciência
diante do mundo. Mas ele ainda parecia não querer soltar o verbo.
“Você fornicou com outra mulher?”, eu lhe perguntei diretamente,
mas ele negou. Tentei entender o que se passava com ele e por fim
tive uma ideia: “Meu filho, você fornicou com pelo menos cinco
outras mulheres”. Então de súbito ele ficou completamente
aliviado e confessou: “Sim, foi isso mesmo”. Eu lhe dei a absolvição
e o abençoei. Depois da gravação, ele me disse que havia sido só
um filme, mas que era muito melhor do que estar no
confessionário com um padre de verdade.
Minha contribuição também foi bastante pequena algumas
vezes. Fiz aparições breves já bem antes dos filmes com Zak Penn
e Harmony Korine, por exemplo, em dois filmes de Paul Cox na
Austrália em meados da década de 1980. Um deles foi O homem das
flores, no qual também interpreto um pai desagradável, do pior
tipo. Em 1996, tive um pequeno papel num filme do diretor
austríaco Peter Patzak, o título era Brennendes Herz [Coração
ardente], e do filme em si não tenho nenhuma lembrança porque
nunca cheguei a vê-lo. Também é frequente me perguntarem sobre
dois documen­tários de Wim Wenders nos quais apareço, Quarto
666 e Tokyo Ga, mas ainda não vi esses dois, tampouco. De
Brennendes Herz tenho apenas uma lembrança clara. A cena se
passa no final da Segunda Guerra Mundial: estou num abrigo com
um general. Durante o nosso diálogo, cai uma bomba nas
proximidades, que faz tremer toda a sala. Ao lado do general, um
grande espelho pendurado na parede racha. O pessoal dos efeitos
especiais havia instalado uma pequena carga explosiva atrás do
espelho, e eu estava curioso para ver como ele se estilhaçaria no
meio da frase do meu parceiro de cena. Então me ofereci para
sentar ao lado da câmera como um interlocutor com quem ele
poderia ter contato visual. Eu não estava visível para a câmera, mas
a distância em relação a ele era apenas a largura da mesa. Eu estava
observando o espelho um metro mais atrás, mas algo me disse para
desviar o rosto. Houve um estrondo violento, e mais de cem cacos
de vidro muito finos, tão finos quanto grãos de arroz pontiagudos,
me atingiram na lateral da cabeça. A carga explosiva havia sido
forte demais. Demorou mais de uma hora para que os cacos fossem
removidos da minha pele com uma pinça. Só não perdi os meus
olhos porque tinha virado a cabeça.
Meu tipo de humor, uma modalidade um tanto sombria, foi
reconhecido nos Estados Unidos antes de qualquer outro lugar.
Por isso, não foi surpresa para mim que o criador de Os Simpsons,
Matt Groening, tenha me sondado em 2002 para participar como
convidado em sua série. No começo eu não tive certeza. Achei que
já tinha visto tiras de Os Simpsons impressas em jornais, mas
depois verifiquei que eles nunca existiram em formato impresso.
Mas como desenho animado na TV eu também nunca os tinha
visto. Matt Groening riu estrondosamente disso e me disse que Os
Simpsons eram famosos já havia mais de vinte anos. Ele pensou que
eu estava brincando quando lhe pedi para me enviar um ou outro
dos episódios recentes em DVD para que eu pudesse ver e treinar
como falavam os personagens nos desenhos. Mas ele só queria
minha voz em inglês, do jeito natural dela, só isso já seria bastante
divertido. Ele não disse isso diretamente, mas entendi o que quis
dizer.
Na época, eu me questionei a fundo sobre o que eu estava
fazendo na cultura pop, mas ao mesmo tempo tinha a impressão de
já ser mainstream de qualquer maneira. Nunca consegui perceber
realmente uma diferença entre as abordagens. Músicos de rock
sempre tentavam entrar em contato comigo, bem como skatistas e
profissionais do futebol. Apesar disso, no começo, eu ainda me
perguntava por que, por exemplo, o cosmólogo Stephen Hawking,
preso à sua cadeira de rodas, havia participado de um episódio de
Os Simpsons. Mas, depois de dar uma olhada, Os Simpsons eram tão
caóticos e anárquicos que senti uma certa afinidade. Especulou-se
que eu teria participado pelo dinheiro, mas não há muito dinheiro
a ganhar em Os Simpsons, o cachê está na faixa do piso salarial
estipulado pelo sindicato dos atores, e é portanto exatamente igual
à diária de um ator de pequena grandeza num filme qualquer para a
televisão. Por fim, falou mais alto o enorme entusiasmo de toda a
equipe de Os Simpsons pelos meus filmes e eu aceitei. Dublei a
participação especial do personagem Walter Hottenhoffer em
“The Scorpion’s Tale” e, mais tarde, um louco dr. Lund e,
recentemente, um outro papel. O que me interessou também foi o
metódico trabalho preliminar para uma tal série. A equipe de
roteiristas me convidou para uma de suas reu­niões, nas quais eles
apenas ficavam jogando bolas, de forma caótica, louca e criativa. Eu
nunca tinha visto nada assim. Além disso, houve um procedimento
de teste para os roteiros, que também me impressionou. Todos os
atores se reúnem na chamada mesa de leitura, para verificar a
eficácia da história e das piadas. Numa grande sala, sentam-se em
volta da mesa dos narradores cerca de cem pessoas
cuidadosamente selecionadas, o público de teste. Elas representam
diferentes faixas etárias, gêneros, condições sociais, níveis de
escolaridade, etnias — eles pensam em tudo. Mas para mim algo
ainda mais espantoso aconteceu por lá. Antes de nós, os atores,
lermos os diálogos do roteiro em voz alta, entrou um comediante
profissional, que contou piadas por uma hora. Somente quando o
público estava realmente aquecido é que começou a leitura,
durante a qual se verificou, com precisão milimétrica, quanto
tempo, isto é, quantos décimos de segundo levava até o riso
irromper, com que intensidade se ria, quanto tempo durava o riso,
e quão depressa devia vir a próxima frase do diálogo. Perguntei
sobre o papel do comediante. Ele é contratado, porque o público
que sintoniza o programa em casa já está interiormente disposto a
rir, enquanto o público de teste num ambiente desconhecido,
cercado por estranhos, ainda está muito contido para se entregar
ao humor.
Não é para mim senão uma alegria quando percebo que de fato
fui bem. No estúdio de gravação da produtora de Os Simpsons, tudo
é técnico, somente depois da gravação dos textos é que os
personagens são desenhados com suas ações e movimentos labiais.
Mas também há coisas que são reformuladas no decorrer do
processo, aí então pode-se ver o personagem em novas gravações,
como numa pós-dublagem, em clipes curtos que passam em loop.
Os técnicos de som e o diretor costumam ficar separados um do
outro na sala de controle, mas no meu caso o diretor realmente
queria estar perto de mim. Mesmo antes de eu terminar minha
linha de texto, ele deu uma risada, no meio da gravação. Ela teve
então que ser repetida, e eu me senti encorajado a adicionar alguns
cacos maliciosos — ele riu, embora admoestado ao silêncio, ainda
mais alto no meio da minha fala. Ele foi expulso dali para a sala de
controle, mas eu sabia que tinha feito um bom trabalho.
Nunca me candidatei a um único papel por conta própria.
Nunca estive numa situação de casting. Assim também foi quando
o diretor Christopher McQuarrie e seu astro Tom Cruise me
procuraram. Eles queriam mesmo que eu fosse o vilão do primeiro
filme de Jack Reacher. Isso foi em 2011, e o filme estreou em 2012.
Antes de concordar, dei uma boa olhada no roteiro e achei que era
mais inteligente do que o de muitos outros filmes de ação. O papel
de Zec no filme também foi um desafio. Havia vários vilões, todos
eles dando socos, gritando e abrindo fogo indiscriminadamente
uns contra os outros, com seus enormes e desajeitados fuzis de
assalto. Mas eu estou desarmado no filme. Perdi quase todos os
meus dedos num gulag russo e sou cego de um olho. Tenho apenas
minha voz suave para inspirar terror. Há uma cena em que oriento
em tom muito gentil um vilão subordinado a mim, a título de
reparação de um grave erro cometido por ele, que coma na mesma
hora os próprios dedos, como eu fizera para escapar do trabalho
numa mortífera mina de chumbo na Sibéria. Naturalmente, ele não
consegue, e é fuzilado sem mais delongas. Durante a filmagem,
percebi como os membros da equipe se contorceram de horror e,
mais tarde, na edição, a cena foi atenuada duas vezes, pois não era
apropriada para um público mais jovem. Em geral, a indústria
cinematográfica faz isso quando se trata de violência bruta, cenas
de sexo ou linguagem chula. Mas nessa cena, mesmo na versão
final do filme e sem tais ingredientes, eu ainda estava tão
aterrorizante que após a estreia minha mulher recebeu um
telefonema de uma de suas amigas em Paris: “Lena, você tá mesmo
casada com esse homem? Você sabe que estamos a apenas um voo
de distância. Temos um quarto de hóspedes, podemos te oferecer
proteção”.
Tom Cruise me tratou de forma extremamente respeitosa. Eu,
de minha parte, fiquei impressionado com seu rigoroso
profissionalismo. Ele estava sempre preparado para a perfeição,
apto do ponto de vista físico, desperto. Em sua vasta comitiva,
havia um profissional que cuidava em específico de sua
alimentação, que a cada duas horas, com pontualidade, lhe servia
uma diminuta refeição com nutrientes rigorosamente balanceados.
Brinquei com ele perguntando se também tinha ali um psiquiatra
para os seus cachorros. Mais ninguém se atrevia a fazer perguntas
como essa, e ele pareceu achar agradável que houvesse alguém no
set que não estivesse o tempo todo pasmo de admiração diante
dele. Tive um relacionamento também descontraído com Jack
Nicholson anos antes, quando ele estava interessado em
Fitzcarraldo. Às vezes, Nicholson me convidava para visitá-lo em
Mulholland Drive e lá assistíamos juntos às transmissões dos jogos
do Lakers fora de casa. Numa dessas vezes, ele se estendeu na
cama com sua então esposa, a atriz Anjelica Huston, e eu, no pé da
cama, acabei adormecendo, exausto depois de um longo voo, e no
final ele teve que me lembrar com leves cutucões que o jogo de
basquete havia terminado. Agora sua cama seria usada para outra
coisa. Eu estava esticado transversalmente a seus pés e ele sorriu o
sorriso que é a sua marca registrada. Na época, Marlon Brando
tinha uma propriedade ao lado; ele queria me conhecer. O alto
portão de ferro se ergueu silenciosamente, mas lá dentro por toda
a parte havia placas com avisos para fechar as janelas do carro e não
abrir as portas até que alguém prendesse os cachorros. Vi quatro
pastores-alemães ferozes que pareciam determinados a tomar
medidas extremas. Eles teriam atacado na mesma hora qualquer
convidado descuidado. Com Brando, que estava preparado para
que eu lhe propusesse algum filme, conversei somente sobre
literatura e sobre a sua ilha nos mares do Sul. Ele se despediu de
mim com gratidão, como um raro convidado que, diferente de
todos os outros, não queria algo dele.
O diretor Jon Favreau me convidou para uma participação na
série The Mandalorian, da franquia de Star Wars. Ele é um grande
fã dos meus filmes e se ofereceu para me familiarizar um pouco
com o mundo de Star Wars quando admiti que não tinha visto
nenhum dos filmes. Ele me mostrou figurinos, esboços de
storyboards e maquetes de planetas distantes, que eram muito
impressionantes. No novo filme, eles empregariam uma nova
tecnologia de ciclorama que, ao contrário de todos os filmes de
fantasia e ficção científica feitos até então, eliminaria a necessidade
de telas verdes. Os atores veem ao seu redor o planeta em que
estão se movendo ou a nave em que viajam, e a câmera também vê
todo o ambiente. Fingir, na frente de uma tela verde, ver um
dragão atacando não era mais necessário. Com isso o cinema
voltou para o lugar onde sempre esteve e ao qual pertence.
As proporções do sigilo de Star Wars eram impressionantes.
Para soltar uma pista falsa, espalhou-se que eu havia assinado um
contrato para um filme baseado em Huckleberry Finn. Durante as
filmagens, não era permitido sair da área do estúdio, nem mesmo
para almoçar ao ar livre, sem cobrir todo o figurino com uma
túnica de linho. Um segurança na entrada vigiava atentamente. Do
lado de fora, espreitavam os fãs que haviam conseguido de alguma
forma se infiltrar na área para vazar fotos com suas câmeras de
celular. A atenção e as expectativas da comunidade mundial desses
filmes são assombrosas. Quando na estreia do filme foi permitido
erguer o véu, eu apenas disse en passant algo sobre a mecânica
maravilhosa da personagem de Baby Yoda, e no prazo de uma hora,
podiam-se encontrar 10 milhões de comentários na internet sobre
isso. Para mim, a desvantagem de tais colaborações é sem dúvida o
fato de que a atenção é desviada do meu trabalho em si, meus
filmes e livros. Houve relatos na mídia de que com meu cachê, que
não foi particularmente alto nem mesmo em Star Wars, eu teria
financiado meu longa-metragem Uma história de família, mas o
filme já estava finalizado e editado quando comecei esse entreato.
Para os vilões em meus próprios filmes, desde cedo contei com
Klaus Kinski. Ele tinha uma presença na tela como poucos na
história do cinema. Mas Michael Shannon também é assim, e
Nicolas Cage é igualmente um desses fenômenos excepcionais.
Ele próprio considera Vício frenético o seu mais extraordinário
desempenho, antes ainda de Despedida em Las Vegas, pelo qual
ganhou um Oscar. Concordo cem por cento com ele. Mas de todos
os grandes atores e atrizes com quem já trabalhei, para mim um
deles se destaca de forma marcante: Bruno S. Sua aparência era
sempre desleixada, como a de alguém que dorme debaixo de
pontes, embora ele tivesse uma moradia, mas o seu rosto e a sua
linguagem penetrante lhe conferiam uma dignidade indefectível.
Ele era como um proscrito, que cambaleia perdido em direção a
alguém, saindo de uma noite longa e ruim para um dia ofuscante
ainda pior. Ele tinha uma profundidade, uma tragicidade e uma
veracidade como nunca mais vi na tela. O próprio Bruno não
queria ser apresentado com seu nome completo, nem em nosso
filme sobre Kaspar Hauser nem em Stroszek, ele não queria ser uma
estrela, mas antes o soldado desconhecido do cinema. Como
Bruno S., ele constava nos relatórios policiais quando havia se
tornado imputável na adolescência. Sua infância e juventude foram
desastrosas, repletas de tragédias. Sua mãe, uma prostituta em
Berlim que não queria o filho, espancava-o desde a mais tenra
idade e, quando ele tinha três ou quatro anos, bateu tão
terrivelmente nele que ele perdeu a fala. Ela então o entregou a
uma instituição que acolhia crianças com deficiências mentais, o
que não era o seu caso. A partir dos nove anos de idade, ele
começou a fugir. Seguiram-se anos em internatos e reformatórios
cada vez mais rígidos, e então uma série de delitos. Num inverno
rigoroso, ele arrombou um carro para dormir dentro dele, foi preso
pela polícia, passou quatro meses na prisão. Ninguém sabia o que
fazer com ele. Bruno acabou sendo transferido para um
manicômio, mas dali simplesmente o puseram, então com 26 anos,
na rua como “curado”. Quando o conheci, ele trabalhava como
motorista de empilhadeira numa siderúrgica de Berlim e ganhava
algum dinheiro extra cantando baladas em pátios escuros.
O trabalho como ator lhe rendeu fama e atenção de seus
colegas, bem como de completos estranhos, o que lhe fez bem.
Bruno publicou um livro com seus aforismos, expôs seus quadros
naïf numa galeria, lançou um álbum com suas canções. Então
começou a se apresentar com o nome completo, e eu o faço aqui
também: o seu nome é Bruno Schleinstein. Ele morreu há alguns
anos. Nunca haverá outro igual no cinema.
31.
A transformação do mundo em música

Fui arrastado para o mundo da ópera assim como para meus papéis
no cinema. Isso não teve a ver diretamente com meu filme
Fitzcarraldo, que é sobre uma grande ópera na floresta, mas antes
com a forma como lidei com a música em meus filmes. A música
em meus filmes nunca é um evento de fundo, mas ela transforma
as imagens em visões mais elementares. Em 1985, a diretora
artística do Teatro Comunale de Bolonha insistiu muito para que
eu fizesse uma montagem de Doutor Fausto, de Ferruccio Busoni.
A ópera na verdade é um fragmento, porque o compositor morreu
durante a criação e o libreto é bastante caótico, e a peça foi
considerada inexequível. Mas meu irmão Lucki me encorajou com
todas as forças e tinha ao seu lado um agente perspicaz, Walter
Beloch. Finalmente eles me convenceram a conhecer a ópera em
Bolonha. Fiquei impressionado com as possibilidades técnicas nos
bastidores. No início, apenas alguns técnicos me acompanhavam
na visita, mas notei que eles foram ficando cada vez mais
numerosos: técnicos de iluminação, ajudantes de palco,
recepcionistas. Quando terminei a visita, me vi espremido entre
pelo menos trinta pessoas que formavam um estreito círculo ao
meu redor. Um deles deu um passo à frente e me informou que
havia sido nomeado de improviso o porta-voz do grupo. Eles
queriam me ter ali, queriam trabalhar comigo. Então, numa única
frase, ele resumiu a atmosfera: eles não me deixariam ir para casa
enquanto eu não assinasse um contrato. Fiquei emocionado, levei
o porta-voz como testemunha e assinei meu contrato de trabalho
no escritório da diretora artística.
Embora eu quase não seja capaz de ler notas musicais, desde o
primeiro momento me senti completamente seguro nesse métier,
no qual não tinha nenhum tipo de experiência. Assisti a uma
montagem no Scala de Milão, a primeira da minha vida, eu não
fazia ideia de como deveria ser uma ópera, quais eram as
tendências da época. Por causa dessa falta de pertencimento ao
mundo da ópera, a minha montagem era diferente de qualquer
outra coisa que se podia ver nos palcos. Ela começava com o Dr.
Fausto enfronhado em seus estudos de tal forma que não
conseguia largá-los, e para representar isso pedi ao meu cenógrafo
Henning von Gierke para construir um penhasco que se ergue no
céu acima de nuvens baixas. Henning era na verdade um pintor,
mas trabalhou em muitos dos meus filmes e criou cenários
maravilhosos, por exemplo, para Nosferatu e Fitzcarraldo. Na
minha montagem, Dr. Fausto está perdido no alto do penhasco,
não consegue seguir adiante nem voltar. Eu queria deixar a cortina
aberta já para a ouverture e, entrando no meio da música, um
ajudante de palco deveria, do nada, despencar do alto do teto do
palco nas profundezas. Ele desapareceria nas nuvens que pairam
sobre o chão do palco. Eu queria que a orquestra hesitasse por um
momento. Vimos corretamente? Acaba de acontecer um acidente?
Aonde foi parar o homem que caiu? No chão do palco coberto pela
névoa, deveria ser aberto um buraco por onde o acidentado
desapareceria nas profundezas. Mas a direção artística achou o
projeto muito arriscado e um dublê muito caro; então me ofereci
para fazer o dublê eu mesmo, pelo menos para a estreia. Fiz testes
para isso, saltando pouco a pouco de cada vez mais alto.
Arranjamos um grande colchão de ar como os que são usados em
sets de filmagem. Há várias fotos minhas em queda livre, mas
acabei desistindo quando aterrissei de doze metros de altura no
colchão de ar e torci o pescoço. Isso tudo era pura estupidez, e eu
não precisei ser persuadido a desistir dessa bobagem. No final da
ópera, tudo se transforma: em vez do Redentor, a bela Helena é
pendurada na cruz do monte Gólgota, e Mefistófeles de repente
entra em cena como o bom pastor trazendo sobre os ombros um
cordeiro muito novo, de apenas poucos dias. Era a época na
primavera em que as ovelhas pariam. Mefistófeles deixa o cordeiro
sozinho e, como a música não foi composta até o final, os sons vão
desaparecendo até que nos últimos nove minutos toca-se apenas
um único instrumento de corda. O cordeiro vagueia pelo palco
procurando sua mãe e fica um bom tempo por ali. Ele bale para o
público.
A montagem, como todas as outras posteriores na minha vida,
foi conduzida pela música. Estava claro para mim que a ópera se
produz quando se consegue transformar um mundo inteiro em
música. E também estava claro para mim que o mundo das
emoções no palco da ópera é um mundo muito próprio, que não
existe de forma tão exacerbada na vida humana ou mesmo na
natureza. Os sentimentos na ópera são absolutamente
condensados, comprimidos, mas para o público eles são
verdadeiros porque o poder da música os torna verdadeiros. Os
sentimentos da grande ópera são sempre como axiomas de
sentimentos, como uma verdade aceita na matemática, que não se
deixa mais reduzir, concentrar, explicar.
Wolfgang Wagner, o neto de Richard Wagner, que havia
assistido à minha montagem em Bolonha, convidou-me de forma
muito enfática para encenar Lohengrin na abertura do Festival
Wagner em Bayreuth em 1987, mas recusei de imediato. O meu
métier era o cinema. Depois de muitas tentativas de
convencimento, Wagner por fim me enviou sua gravação favorita
da ópera, na época ainda em fita cassete. Eu absolutamente não
estava familiarizado com a peça. O prelúdio, a ouverture, me
atingiu como um raio. Eu estava em uma viagem na Áustria e parei
na mesma hora o carro no acostamento para apenas escutar. Nunca
tinha ouvido nada tão bonito. Liguei para Wolfgang Wagner e
disse, eu vou fazer, é algo tão grandioso, que quero tentar. O
cantor no papel-título foi Paul Frey, um canadense que
praticamente estreava no palco operístico. Ele vem de uma família
de menonitas de Ontário, e transportava leitões da fazenda de seus
pais pelo vasto país. Então ele ouvia gravações de Elvis e cantava
junto e, mais tarde, quando alguém lhe deu um disco do cantor de
ópera Mario Lanza, ele passou a também cantar as árias. A voz de
Paul Frey se destacava por sua clareza e beleza, e ele tinha
participado de alguns musicais. Eu assisti a uma apresentação de
Lohengrin no Teatro Estatal em Karlsruhe, onde ele cantou esse
papel. Wolfgang Wagner havia me enviado para lá como olheiro.
Na primeira entrada de Lohengrin, aconteceu um acidente de
palco. Logo atrás de Frey, o cenário de oito metros de altura
desabou, mas ele continuou a cantar imperturbável enquanto o
público gritava. Depois eu soube que Paul Frey também não sabia
ler partituras, ele estudava seus papéis com discos. Era o meu
homem. Mais tarde, ele fez uma grande carreira em Bayreuth e no
Met, o Metropolitan Museum of Art, em Nova York.
Também em Bayreuth minha montagem foi diferente. O
segundo ato, por exemplo, começa com o mar se lançando em
ondas em direção ao público. Havia pelo menos sessenta toneladas
de água no palco, que era levantada e abaixada por um sistema
hidráulico na parte de trás. O efeito, por mais estranho que pareça,
nunca havia sido tentado. Contudo, a água tinha que desaparecer
em questão de minutos, mas, tal como o escoamento numa
banheira, isso causava ruídos de sucção muito altos. Os técnicos de
palco encontraram uma solução muito simples, e para o público
era inexplicável como de repente o mar não estava mais lá. Como
diretor, eu estava sempre junto no palco durante os ensaios, quase
nunca numa tribuna na plateia, e assim tive um privilégio único.
Nos grandes corais, por exemplo, eu andava pelo palco no meio
dos cantores para definir corretamente o timing. No coro de
Bayreuth, metade das cantoras e dos cantores poderia cantar os
grandes papéis, tão alto o seu grau de excelência; estar no meio de
todas aquelas vozes e ser arrebatado por elas é uma sensação que
não posso descrever. Eu tive uma sorte incrível. Trabalhei com os
melhores do mundo.
Encenei óperas de Verdi, Bellini, Wagner, Mozart, Beet­hoven.
Trabalhar com música por um período limitado de tempo, respirar
música, transformar um mundo em música sempre me trouxe
inteiramente para o meu próprio centro. Mas a ópera requer uma
abordagem própria. O mundo dos teatros de ópera é um mundo
artificial, os dramas são artificiais, as intrigas são artificiais, os
escândalos também. Tudo é de fato seguro: a música já está escrita
e a casa tem um telhado firme, não pode vir uma tempestade
súbita, como quando se filma na selva. A orquestra sabe a partitura
de cor, e os cantores também. Mas se não houver um clima
misterioso de intrigas e perigo iminente, toda a casa de súbito fica
sem vida. Toda a montagem parece morta. Presumo que a
permanente disposição para o alvoroço do escândalo nasça do
medo profundo dos cantores, que são abruptamente lançados no
palco e, em centésimos de segundo, têm que acertar o tom
preciso. Não há repetição, e o público, apenas vagamente
perceptível na semiescuridão além do palco, é um último
remanescente das antigas arenas de gladiadores. Eles querem ver
sangue. Testemunhei no Scala de Milão como o melhor barítono
do mundo foi impiedosamente vaiado no meio de sua ária porque
tinha um pequeno problema na voz: “Stronzo, cretino! Por que não
vai trabalhar como garçom?”. Então, depois do intervalo, quando
ele se recompôs, foi aplaudido sem parar. Luciano Pavarotti foi
humilhado e nunca mais cantou lá, e também Maria Callas, após
um incidente semelhante, nunca mais se apresentou lá.
Eu costumava levar um pouco de vida à casa durante os ensaios,
quando percebia que tudo está indo bem, mas sem brilho, sem as
chamas dos sussurros e do escândalo. Em Washington, encenei O
Guarani em 1996, com Plácido Domingo no papel principal. Ele
me chamara para dirigir uma ópera quase desconhecida de um
compositor brasileiro do final do século XIX. Os ensaios correram
bem, todos cantavam no tom certo, mas não era música de
verdade. Decidi espalhar um boato falso, num dia em que Plácido
Domingo estava de folga. Deixei escapar, na presença de um
funcionário da administração, um comentário em que eu
perguntava se os cantores já haviam sido avisados de que Domingo
não cantaria no dia da estreia, porque tinha um compromisso para
aquela noite no Met, em Nova York. Levou apenas alguns minutos
para que todo o teatro entrasse em polvorosa; os cantores
cochichavam e, de repente, havia música novamente. Sem esses
dramas artificiais, a estreia e as apresentações que se seguem não
correm bem. Com tais eventos, o medo profundo tem que se
dissipar.
No ensaio geral de Tannhäuser, de Wagner, em Palermo, houve
um alarme de bomba e todo o teatro foi evacuado imediatamente.
Desta vez, o alarme não havia sido acionado por mim. A montagem
era em grande parte “imaterial”, pois quase não há ação em
Tannhäuser, apenas almas excitadas. Quase não havia cenografia.
Tudo era feito de luz, e de ar, que era movido em doses precisas
por ventiladores. Para isso, eu encomendara a meu grande
figurinista e amigo Franz Blumauer figurinos do mais leve de todos
os tecidos, uma seda especial usada em paraquedas, que à mais
suave das brisas ondulava em volta dos cantores, como se suas
almas, tremulando todas em branco, fossem visíveis para nós. Em
momentos dramáticos, de tempestades internas, os ventiladores
escondidos em trinta pontos no palco e ao lado do palco eram
ligados em alta velocidade, e os grandes véus esvoaçavam em
profundo alvoroço. Ainda me lembro de como, após a evacuação
do teatro, todos os cantores e a Vênus, com um grande véu
vermelho tremulando ao seu redor, andavam pelas ruas
completamente desertas de Palermo. Um robô acionado pela
polícia subia sobre correntes os degraus do tapete vermelho do
teatro, foi tudo um grande ato surreal. Notei que pequenas
multidões de almas desorientadas se aglomeravam diante de bares
e só então me dei conta de que a Itália estava disputando um
grande jogo de futebol na Copa do Mundo. Todo mundo queria
assistir, presumo que um dos cantores do coral tenha acionado o
alarme. A estreia dois dias depois foi um grande sucesso.
32.
A leitura de pensamentos

A questão da transmissão do pensamento já me ocupa há muito


tempo, não só através das gêmeas que falavam em coro, e não é por
acaso que no momento estou trabalhando num documentário
sobre a “leitura” da atividade cerebral. Hoje em dia já é possível,
por meio das ondas eletromagnéticas emitidas pelo cérebro,
transferir a vontade humana para um robô separado. Eu vi uma
mulher paralítica, apenas através de sua vontade, conduzir um
braço mecânico que pega um copo d’água e o leva à sua boca com
um canudo. Pode-se entender com tanta clareza a atividade
cerebral através de ressonância magnética nuclear, que é possível
verificar com certeza se alguém está lendo em silêncio um texto
em inglês ou em espanhol; a cena puramente imaginária de dois
elefantes caminhando da esquerda para a direita na savana pode ser
visualizada, numa imagem ainda um tanto borrada, através de um
computador que registra ondas cerebrais. Com alto grau de
certeza, através de representações gráficas de atividades complexas
do cérebro, também é possível perceber se alguém está mentindo,
para além das medições dos detectores de mentira, que registram
apenas pulso, pressão arterial e frequência respiratória. Com razão,
esses detectores bastante errôneos não são admitidos como provas
em processos judiciais, mas dado o acelerado desenvolvimento das
possibilidades, a pesquisa tem que ser acompanhada de atividades
que definam e protejam juridicamente a autonomia e a
inviolabilidade de nossos pensamentos no futuro. Já existem textos
para uma Carta dos Direitos do Indivíduo à Inviolabilidade do
Pensamento, assim como existe uma Carta sobre a Proibição de
Armas Biológicas e Químicas. O Chile é o primeiro país do mundo
a acolher justamente essa Carta num adendo à sua Constituição.
Com certeza isso também tem a ver com a violação dos direitos
humanos durante a ditadura militar de Pinochet. Obtive permissão
para gravar as deliberações de senadores e deputados sobre esse
tema através de teleconferências.
Visitei um depósito temporário de lixo nuclear no Novo
México, onde tonéis radioativos são armazenados em gigantescas
minas de sal. O projeto é contestado com veemência pela
população local, embora as galerias sejam muito profundas e
estejam estáveis geologicamente há 250 milhões de anos. A
questão que se coloca aqui é: como podemos alertar gerações
distantes contra a entrada nos túneis? Daqui a alguns milhares de
anos, ninguém falará ou entenderá mais as nossas línguas do modo
como acontece hoje. Também é possível que quase todas as nossas
línguas tenham desaparecido. Das aproximadamente 6 500 línguas
ainda existentes, uma se perde para sempre — e em quase todos os
casos de forma não documentada — a cada dez a catorze dias, uma
dinâmica de extinção profundamente alarmante, que se dá em
ritmo muito mais acelerado do que o desaparecimento de
mamíferos, baleias, leopardos-das-neves, ou vertebrados em geral,
como sapos. Como podemos, portanto, desenvolver sinais de
alerta contra o veneno radioativo que sejam universalmente
compreensíveis, também para as culturas humanas do futuro?
Houve até mesmo um concurso de ideias sobre a questão, no qual
todas as representações pictóricas, semelhantes a cartuns,
provinham da hipótese incerta de que outros povos futuros com
diferentes origens culturais futuras também poderiam “ler” essas
imagens. Mas já em meu filme Os médicos voadores da África
Oriental (1969), numa sequência sobre medidas médicas
preventivas em Uganda, verifiquei que os habitantes de uma aldeia
isolada simplesmente ficaram perplexos perante os cartazes
usados. Eles não conheciam jornais, livros ou televisão. Fiquei
curioso e perguntei o que havia no cartaz didático de um olho
gigante, e as respostas variaram desde o sol nascente até um
grande peixe, embora antes a imagem tivesse sido usada para
demonstrar como proteger os olhos de agentes poluidores. Por
fim, pendurei lado a lado quatro das imagens usadas na
apresentação, uma das quais intencionalmente virada de cabeça
para baixo. Pedi separadamente às pessoas que identificassem a
imagem invertida, mas apenas menos de um terço dos
entrevistados conseguiu fazê-lo. Para eles, os cartazes deviam ser
um conjunto confuso de cores, algo como para nós as pinturas
abstratas. Para mim estava claro que a ignorância não era dos
habitantes das aldeias, mas dos agentes de fora, que não eram
capazes de conceber que as imagens de nossa civilização fossem
indecifráveis para as pessoas do lugar. Além disso, por que os
jovens guerreiros masais, homens atléticos, não eram de fato
capazes de subir uma pequena escada de quatro degraus na entrada
de um ambulatório móvel, que continha um pequeno laboratório e
um aparelho de raios X? Eles tateavam os degraus com os pés e
subiam como se estivessem literalmente pisando em ovos. É
provável que isso tivesse a ver com tabus e barreiras que nunca
foram compreendidos pela comunidade médica, nem por mim,
tampouco.
Como serão configuradas as imagens do futuro distante é algo
que sempre me deu o que pensar. Ainda que possa haver
eventualmente um futuro sem escrita, sem qualquer
conhecimento de conexões históricas. Estou considerando aqui
um período de 40 mil anos, ou seja, a distância da caverna de
Chauvet até os dias de hoje. Os livros terão desaparecido, a
internet, as constelações terão mudado, a Ursa Maior parecerá
muito mais alongada. Para o depósito nuclear no Novo México,
alguém teve a ideia de alterar cactos geneticamente de forma a
torná-los azul-cobalto, como uma espécie de alerta contra algo
venenoso, mas talvez em milhares de décadas esses cactos se
espalhassem por toda a América do Norte e Central.
Ler sinais, ler de forma correta a jogada do time adversário no
futebol, ler o mundo, todas essas coisas sempre me inquietaram.
Isso aparece como tema em Kaspar Hauser, onde o protagonista é
despejado no mundo já adolescente, como se tivesse caído de um
outro planeta, sem o mínimo conhecimento de árvores, casas e
nuvens no céu, sem conhecimento de linguagem, sem o
conhecimento de outras pessoas além dele. Também em O país do
silêncio e da escuridão, eu estava interessado na forma como as
pessoas surdocegas experimen­tam o mundo, e por isso fui
contatado pelo neurologista e escritor Oliver Sacks. Ele ficou tão
fascinado com o filme, que comprou uma cópia em 16 mm e
passou a mostrá-la aos alunos. Li cedo o seu livro Tempo de
despertar, no qual ele descreve pacientes que passaram quarenta
anos inconscientes em decorrência da gripe espanhola e de
repente foram despertados por um novo medicamento, num
mundo em que já havia ocorrido mais uma guerra mundial, onde
os aviões transportavam enormes quantidades de passageiros,
onde havia televisão e bomba atômica. Eu tinha perguntas para
fazer a ele sobre a natureza do sono e sobre hipnose. Ele também
conhecia meu filme Coração de cristal e a hipnose empregada nele.
Eu não tinha ninguém além dele com quem pudesse discutir com
profundidade a decifração, a compreensão dos signos da Linear B.
A Linear B é uma escrita da Idade do Bronze usada em tabuletas
de cerâmica na ilha de Creta e no continente, em Pilos e Micenas.
Eis um exemplo tirado do livro Documents in Mycenaean Greek, de
Michael Ventris e John Chadwick, de 1956:
Considero a decifração da Linear B uma das maiores conquistas
culturais e intelectuais da humanidade. A princípio, não se sabia
em que língua os caracteres estavam escritos, mas existem radicais
de palavras ou signos com diferentes terminações, isto é,
declinações, que apontam para uma língua indo-europeia.
Podemos ler o etrusco, cujo alfabeto é muito próximo ao latino, e
até fazê-lo em voz alta, mas ainda não conhecemos o idioma.
Provavelmente é uma língua não indo-europeia que nunca
entenderemos, a menos que uma Pedra de Roseta caia em nosso
colo. Na Linear B, há mais de setenta diferentes caracteres, era
portanto evidente que se tratava de uma escrita silábica. Além
disso, há também alguns ideogramas, a imagem de um jarro para
“jarro” ou a imagem de uma carroça com rodas para “carroça”.
Sinais numéricos de um sistema decimal puderam ser rapidamente
identificados e compreendidos. Duas perguntas precisavam ser
respondidas: que sons correspondiam às sílabas e em que língua as
tabuletas haviam sido escritas? Michael Ventris, um arquiteto que
na Segunda Guerra Mundial trabalhou na decifração de mensagens
secretas da Força Aérea alemã, usou grades lógicas que se tornaram
cada vez mais completas, e John Chadwick, que estudou os
primeiros textos e dialetos gregos antigos, chegou à conclusão
lógica e irrefutável de que se tratava de uma forma arcaica do grego
antigo, de cerca de sete ou oito séculos ainda antes de Homero.
Infelizmente, verificou-se que os textos não eram do calibre de
um Homero ou Sófocles, não se tratava de poesia, mas de
contabilidade — quem devia quanto a quem em grãos e azeite em
que ocasião, quem tinha que contribuir com o quê para um festival
religioso, quem tinha que dar quanto para qual trabalhador
agrícola. Nem tudo está totalmente traduzido e compreendido, e a
predecessora Linear A até agora tem resistido a todas as tentativas
de decifração, presumivelmente porque sua língua é outra, não
classificável e de todo desconhecida. Meu avô Rudolf, Michael
Ventris, John Chadwick, Oliver Sacks e, bastante à margem,
também eu, como um espectador admirado, teríamos formado
uma bela equipe num mundo impossível de puros desejos mágicos.
O Disco de Festo, um disco de argila, também de Creta, com sua
própria escrita em forma de espiral, que com exceção de alguns
minúsculos fragmentos não existe em nenhum outro lugar, é o
maior de todos esses mistérios. Para mim, ele é um emblema da
nossa limitação em ler o mundo, todo o misterioso mundo. Houve
charlatães que afirmaram ter decifrado o texto, mas nem mesmo os
maiores supercomputadores do futuro serão capazes de lê-lo um
dia. Se vem alguém e diz que decifrou o texto, sabemos com
absoluta certeza que é um vigarista ou um lunático.
33.
Leitura lenta, sono longo

Minhas fascinações não são esotéricas. Todas elas têm a ver com as
questões fundamentais da nossa identidade, como no caso das
gêmeas, quando supomos sermos únicos enquanto indivíduos. A
leitura dos signos como na Linear B, a leitura do mundo, é apenas
aparentemente exclusiva, pois é inerente ao ser humano em geral.
Mas qual é o meu dia a dia? Quem são meus amigos? O que é a
minha vida? Toda autodescrição é difícil para mim, porque tenho
problemas com espelhos. Eu me vejo no espelho quando faço a
barba porque tomo cuidado para não me cortar, mas só vejo a
minha bochecha, não a pessoa. Até hoje não sei dizer com certeza
qual é a cor dos meus olhos. Autorreflexão, qualquer círculo ao
redor do próprio umbigo é profundamente desconfortável para
mim. Mas sou bastante consciente de algumas coisas cotidianas e
também posso nomeá-las. Tenho em comum com Freda e Greta
uma relação incondicional com a subordinação espacial a outras
pessoas. Percebo isso especialmente quando estou exposto aos
olhos de muitos espectadores. Em painéis de discussão, só consigo
pensar e argumentar com clareza quando o parceiro do diálogo
está sentado à minha direita. Se ele ou ela se sentasse à minha
esquerda, eu sentiria como se tivesse que fazer uma contorção.
Algo parecido acontece no cinema. A pessoa que assiste a um filme
comigo tem que sentar à minha direita, caso contrário, olhar para a
tela junto com ela seria uma tortura. Posso ver melhor quando olho
para uma tela ligeiramente deslocada para a esquerda do eixo
central, ou seja, num pequeno ângulo para a direita. No entanto,
raramente vou ao cinema. Não vejo mais do que três ou quatro
filmes por ano.
Vivo em Los Angeles. Minha mulher Lena e eu tínhamos que
decidir onde iríamos morar nos Estados Unidos, e a resposta para
isso ficou clara imediatamente — na cidade com a maior
substância. Los Angeles só está associada ao esplendor e ao
glamour superficial de Hollywood, mas a internet nasceu em Los
Angeles e todos os pintores importantes já não trabalham em Nova
York, mas aqui, assim como os escritores, os músicos, os
matemáticos. O grande número de mexicanos trouxe incríveis
energias para a música e a literatura. Os carros elétricos são
planejados aqui, os foguetes reutilizáveis são construídos na parte
sul da cidade. O Centro de Controle de Missão para várias
empresas espaciais está localizado logo ao norte de Los Angeles,
em Pasadena. Também muitas coisas banais têm aqui a sua origem,
estúdios de aeróbica, patins em linha, seitas malucas. A série pode
ser estendida indefinidamente.
Mas Los Angeles também tem seu lado sombrio. Uma vez, levei
um tiro diante da câmera durante uma entrevista para a BBC e sofri
ferimentos leves. Encarei a coisa mais como parte do folclore local.
Alguns dias depois, tirei Joaquin Phoenix, que havia sofrido um
acidente na estrada, por acaso bem na minha frente, de seu carro
capotado. Acho que Joaquin estava abstinente na época, é provável
que não devesse estar dirigindo. Pendurado de cabeça para baixo
entre os air bags murchos, ele não queria me entregar o seu
isqueiro, com o qual tentava acender um cigarro. Ele não
percebera que pingava gasolina por toda parte ao seu redor. Nunca
mencionei o incidente e apenas quando Joaquin o divulgou na
mídia, eu confirmei.
Leio devagar porque muitas vezes me desvio do texto, vejo
imagens e situações relacionadas ao que li e só então me concentro
nas linhas novamente. Há livros, como Andar, de Thomas
Bernhard, em que demorei duas semanas para terminar o primeiro
parágrafo. As primeiras linhas desse livro são tão incríveis que
nunca parei de me espantar. Só consigo ler realmente quando
estou deitado. Isso deve ter a ver com o fato de que na minha
infância, com meus irmãos e minha mãe num mesmo quarto, eu
nunca tive espaço na mesa para ler; mas no chão, com a cabeça
numa almofada, havia uma quantidade infinita de espaço livre.
Trabalho com rapidez e eficiência, sem repetições intermináveis de
cenas no set de um filme. Por isso, meus dias de filmagem quase
sempre terminam cedo, por volta de quinze ou dezesseis horas,
embora eu pudesse trabalhar até as dezoito. Não consigo me
lembrar de ter feito uma única hora extra na minha vida. Sou tudo
menos um workaholic. Filmagens à noite são para mim um horror,
porque não sou uma pessoa noturna. Escrevo o roteiro quando
tenho o filme na cabeça e raramente sento por mais de uma
semana para escrevê-lo. Não preciso de silêncio para isso, posso
escrever num ônibus cheio de gente, ou com crianças barulhentas
ao meu redor num parquinho. Mas também sempre foi importante
para mim desenvolver roteiros como forma literária própria. Meu
roteiro para Cobra Verde começa no calor e na seca do sertão
brasileiro: “A luz ofuscante, de matar; o céu sem pássaros; os cães estão
deitados, exauridos pelo calor. Loucos de raiva, insetos metálicos picam
pedras em brasa”. Algo assim não é comum na indústria
cinematográfica.
Durmo até tarde sempre que tenho essa possibilidade. Eu não
sonho. Sei que isso vai contra a doutrina de que todo mundo sonha
tantas horas ou minutos por noite, mas eu sou a prova viva de que
isso não é verdade. Não importa quando me acordem, eu não
estava sonhando. Em média, não me acontece de sonhar mais do
que uma vez por ano, e então são sempre apenas banalidades, que
eu estava comendo um sanduíche no almoço, por exemplo. No
entanto, tenho sonhos diurnos, especialmente quando caminho.
Então eu vivo romances inteiros, mas no final do dia ainda
continuo na direção certa. Quando acordo de manhã, sempre sinto
como um déficit o fato de não ter sonhado, e é possível que isso
tenha me levado a fazer filmes como uma saída. Ao longo do meu
crescimento, tive alguns episódios drásticos de sonambulismo. Eu
me encontrava numa grande tenda do exército, abarrotada de
camas de campanha, porque o albergue da juventude estava
superlotado, e sacudi meu irmão Till, que estava dormindo perto
de mim, para que ele despertasse e continuasse a impelir o barco
no lago Neusiedl com uma vara. Em resposta, ele me sacudiu com
tanta força, que eu acordei. Mas estava escuro como o breu e eu
ainda estava enfiado até o peito no saco de dormir, e saí pulando
atarantado porque não sabia mais onde era o meu lugar de dormir.
Eu batia na beira das camas, acordando outras pessoas. Também
houve episódios como esse quando eu já era bem mais velho.
Nunca usei drogas. A cultura em torno delas sempre me repugnou.
Também acho que as drogas não me fazem bem porque, de
qualquer maneira, já existem muitas tempestades se agitando
dentro de mim.
Evito contato com fãs. De vez em quando, assisto lixo na TV,
porque acho que o poeta não pode desviar o seu olhar. Quero saber
em que mundo de anseios eu vivo. Eu cozinho bem, mas o meu
repertório é bastante limitado. Meus bifes são realmente bons, mas
sei que nunca chegarão perto do que se pode encontrar por toda
parte na Argentina. Desconfio profundamente de pessoas que
abraçam árvores. Desconfio das aulas de ioga para crianças de
cinco anos, como estão se espalhando pela Califórnia. Não uso
redes sociais. Se aparecer um perfil meu ali, com certeza é
totalmente falso. Não uso smartphone. Nunca confio totalmente
na mídia, por isso obtenho um quadro mais preciso da situação
política usando diferentes fontes, mídia ocidental, Al Jazeera,
televisão russa e, às vezes, baixando o discurso inteiro de um
político da internet. Confio no Oxford English Dictionary, que é um
dos maiores feitos culturais da humanidade. Estou falando dos
robustos vinte volumes que abrangem cerca de 600 mil termos,
com mais de 3 milhões de citações de toda a história de mais de mil
anos da língua inglesa. Estimo que dezenas de milhares de
pesquisadores e também amadores tenham esquadrinhado tudo o
que já foi registrado por mais de 150 anos. Para mim, é ele o livro
dos livros, aquele que eu levaria comigo para uma ilha deserta. É
um milagre inesgotável. Quando visitei Oliver Sacks pela primeira
vez em Wards Island, a nordeste de Manhattan, eu tinha perdido o
endereço exato, mas sabia o nome da pequena rua. Era inverno e a
rua ligeiramente íngreme estava coberta de gelo. Estacionei o
carro, deslizei pela calçada gelada, olhando para dentro de todas as
casas com luzes acesas no entardecer. Nenhuma das janelas tinha
cortinas. Através de uma janela, vi um homem estendido num sofá,
com um dos enormes volumes do Oxford Dictionary apoiado no
peito. Eu tive a certeza de que era ele, e era realmente. Nosso
primeiro assunto foi o dicionário, que para ele também era o livro
dos livros.
Talvez somente um outro possa competir com ele quando se
trata de escolher a única leitura para uma ilha deserta: o Códice
Florentino, na tradução para o inglês de Arthur Anderson e Charles
Dibble. Na época da devastação do Império Asteca pelos
espanhóis, houve alguém, uma única pessoa, que desde o começo
se pôs a salvar o máximo possível da cultura em desaparecimento.
Seu nome era Bernardino de Sahagún, um padre franciscano. Ele
cuidou para que se coletasse entre os astecas todo o tipo de
manifestação em matéria de história, religião, agricultura,
medicina, educação. Os textos eram originalmente em língua
náuatle, mas já na época foram registrados em duas colunas, com
tradução para o espanhol. Eu segurei o códice em minhas mãos na
Biblioteca Ambrosiana em Florença e obtive permissão para filmar
algumas páginas para o meu filme Demônios e cristãos no novo
mundo. Dois grandes pesquisadores da Universidade de Utah
trabalharam com Anderson e Dibble na tradução do códice. A
pesquisa sobre a cultura pré-hispânica nessa universidade tem um
padrão excepcional, pois os mórmons acreditam que os astecas
sejam um dos povos perdidos de Israel. Anderson e Dibble
precisaram de mais de 25 anos, e o seu texto tem a força e a
profundidade da versão da Bíblia de King James. Na época, eu
tinha um projeto sem financiamento sobre a conquista do México
vista e vivida da perspectiva dos astecas e, para isso, me iniciei no
básico do náuatle clássico com uma gramática e um dicionário. Fiz
uma peregrinação até Salt Lake City para ver Charles Dibble, que
tinha então cerca de 84 anos e estava aposentado. O prof.
Anderson já havia falecido. Dibble, um homem maravilhoso,
quieto e profundo, ficou surpreso que um cineasta alemão o
procurasse e fosse alguém encantado com o seu trabalho. O
Florentine Codex, General History of the Things of New Spain foi
publicado em doze volumes em náuatle e inglês pela University of
Utah Press até 1982. Ficamos amigos em apenas um longo dia, mas
nunca mais nos vimos. Charles Dibble morreu logo depois que nos
conhecemos.
34.
Amigos

Tenho poucos amigos. Lá no fundo, provavelmente pertenço mais


à categoria dos solitários. Além disso, é difícil manter contato
constante com a maioria dos meus amigos, que moram muito
longe de mim. Wolfgang von Ungern-Sternberg em Regensburg;
Joe Koechlin em Lima; Uli Bergfelder na Itália e Berlim. Uli fez a
cenografia para mim ao longo de muitos anos e muitos filmes, ele
colaborou na superestrutura do navio em Fitzcarraldo e muitas
vezes foi a vanguarda no local, como, na Austrália, para Onde
sonham as formigas verdes. Nos locais de filmagem, ele sempre
conseguiu resolver tudo através da sua intervenção direta. Muitas
vezes, ele viajou para mim, por exemplo, no Cazaquistão, ao longo
do lago Aral seco, onde navios enferrujam na areia do deserto que
no passado era o fundo do lago. Tínhamos aventado o lugar como
uma possível locação para Deserto em fogo (2016), mas depois de
seu relatório descartei a ideia e acabei filmando no Salar de Uyuni,
na Bolívia. Originalmente, Uli é um especialista em poesia
provençal antiga, mas seu pertencimento real está numa velha
propriedade rural perto de Volterra, onde ele possui novecentas
oliveiras. Ele próprio restaurou a casa em ruínas ao longo de
muitos anos de trabalho. Com ele, sempre tudo foi bem, sempre
sem estresse. Ele pode ser visto numa breve aparição em Nosferatu:
quando o navio fantasma vindo do mar Negro atraca em Wismar,
infestado de ratos, ele é o marinheiro que liberta das cordas o
capitão morto que estava amarrado ao leme.
Entre meus amigos, conto com Herb Golder e Tom Luddy; o
editor Joe Bini; o cinegrafista Peter Zeitlinger e sua mulher Silvia;
meus colegas diretores Terrence Malick, Joshua Oppenheimer e
Ramin Bahrani, todos vivendo longe; e Angelo Garro, um pouco
mais perto de mim, em San Francisco. Angelo é um ferreiro
artístico da Sicília que montou sua forja em San Francisco, mas é
sobretudo uma figura de outra época — ele é como um caçador-
coletor; faz o próprio vinho, o próprio azeite, a massa, o toucinho e
os embutidos. Uma ou duas vezes por ano, Angelo mata um javali e
o assa sobre as brasas da sua fornalha. Ele faz o próprio sal
temperado e molhos sicilianos segundo as receitas da avó. Fiz um
curta-metragem com ele para uma campanha de financiamento
coletivo, que foi um enorme sucesso. Todos os grandes chefs dos
Estados Unidos estiveram em sua ferraria, e não conheço ninguém
que não o admire. Tudo com ele é bom, correto e essencial.
Werner Janoud é um dos meus amigos mais próximos e, como
tem em comum comigo o nome, ele se acostumou, e eu me
acostumei, a chamá-lo apenas de “Janoud”. Ele cresceu na
Alemanha Oriental, em Vogtland, em condições de vida muito
simples, sem pai, que havia desaparecido em Stalingrado, e aos
catorze anos começou a trabalhar na clandestinidade como
mineiro. O trabalho na mina de tungstênio era árduo, nas mais
difíceis condições, e então, quando tinha dezenove anos, Janoud
tentou fugir para o Ocidente. Mas, no trem suburbano em direção
a Berlim Ocidental, despertou suspeitas por carregar todos os seus
documentos consigo e foi pego. O seu passaporte foi recolhido.
Alguns dias depois, porém, ele conseguiu fugir com o passaporte
de seu irmão gêmeo. Em Colônia, Janoud trabalhou numa
laminadora de aço e também paralelamente numa fábrica de
enlatados. Seu objetivo era o vasto mundo. Logo ele juntou
dinheiro suficiente para comprar uma bicicleta e uma passagem de
barco para Montreal, no Canadá. Um amigo estava com ele, mas
voltou já depois de poucos dias. Janoud pedalou para o oeste
através do continente americano até o Pacífico. No caminho,
trabalhou ajudando nas colheitas e aprendeu inglês apenas
conversando. Ele não era analfabeto, sabia ler bem, mas na escrita
tem dificuldades até hoje. Ele continuou para o sul, totalmente
sozinho, pelos Estados Unidos, México, América Central, onde
aprendeu espanhol e começou a fotografar. As imagens desse
período têm uma profundidade peculiar e uma expressão distante
de todas as modas, pois ele não estava familiarizado com nenhuma
das tendências. Depois de três anos e meio na estrada, Janoud foi
parar em Lima, onde trabalhou como fotógrafo para jornais locais.
Lá eu o conheci através do técnico de futebol Rudi Gutendorf, que
havia treinado cinco times nos primórdios da Bundesliga e desde
então, tal um globe-trotter, treinara inúmeras seleções pelo
mundo. Sempre que eu estava em Lima para a pré-produção de
Aguirre, eu participava do treinamento, isto é, apenas da
preparação física, de seu time, o Cristal, mas num dia em que o
time A jogou contra o time B do clube profissional, faltava um
homem, então Gutendorf me escalou para a equipe B. Em que
posição eu queria jogar? Eu disse que não me importava com a
posição, mas queria jogar contra o Gallardo. Ele era ponta da
seleção peruana e foi escolhido por jornalistas internacionais após
a Copa do Mundo no México ao lado de Pelé e todos os grandes
jogadores da época entre os melhores onze jogadores do mundo.
Gallardo era um velocista, um louco que sempre fazia o inesperado
em campo. Eu queria pelo menos lhe dar trabalho, ser um estorvo,
e então tentei marcar o furacão. Depois de dez minutos, recebi um
passe, e a essa altura do jogo eu não sabia mais que camisa
estávamos vestindo nem em que direção estávamos jogando, e
depois de quinze minutos rastejei para fora do campo com cólicas
estomacais e vomitei por horas nos arbustos de sabugueiro que
cercavam o campo. Janoud me puxou para fora de um dos arbustos
e a amizade entre nós entrou em vigor na mesma hora. Em
Aguirre, ele pode ser visto na balsa que está à deriva nos
redemoinhos das corredeiras, até que Aguirre a destrói com um
tiro de canhão. Janoud é totalmente incivilizado, totalmente
moldado por si mesmo, a única pessoa que conheço que absoluta e
definitivamente não foi deformada pela sociedade.
Janoud também estava em Fitzcarraldo. Ele morou durante
semanas com sua namorada em nosso acampamento na selva
enquanto a equipe filmava em outro lugar, para evitar que fosse
pilhado pela população local para ser usado como material de
construção. Na primeira tentativa de filmagem, ele impressionou
Mick Jagger porque a experiência de vida de Janoud era muito
singular, e, portanto, também seu estilo de vida. As suas
experiências não haviam chegado ao ponto de ele saber quem eram
os Rolling Stones. Ele vivia perguntando a Mick qual era o nome
dele, e Mick pacientemente tentava corrigi-lo. “Não ‘Nick’, mas
com um ‘M’, como em ‘Mutter’ [mãe]: Mick.” Mas Janoud nunca
pegava o jeito, ele dizia: “Ah, sim, Nick, como ‘pain in the nick’ [dor
no pescoço]”. E a seguir Janoud dava gargalhadas estrondosas, que
mais pareciam os zurros de um asno, e Mick Jagger então zurrava
junto com ele, também não muito diferente de um asno. Janoud
queria saber se Nick conseguia realmente ganhar dinheiro
cantando, e se poderia tocar algo para ele em sua guitarra. Mick fez
isso sem hesitar, apenas para Janoud. Mais tarde, Janoud mudou-se
do Peru para Munique e depois morou comigo numa casa alugada
em Munich-Pasing por alguns anos, em meu tempo antes da
América. Ele se tornou um companheiro maravilhoso para o meu
filho pequeno, Rudolph. Anos depois, para celebrar o fim da
infância de Rudolph, nós três viajamos para o Alasca num pequeno
hidroavião, que nos deixou num lago a oeste da cordilheira do
Alasca. Não tínhamos barraca e construímos o nosso próprio
abrigo. Tínhamos conosco um machado, uma serra, redes de
dormir, um bote inflável e anzóis. Também havíamos levado todos
os alimentos básicos, arroz, macarrão, cebolas, sal, chá, porque a
construção habitada mais próxima ficava a quatrocentos
quilômetros de distância. Não teríamos morrido de fome, mas
tínhamos que nos abastecer por conta própria de frutas silvestres,
cogumelos e peixe. Depois de seis semanas, o avião nos pegou
novamente. Foi uma experiência tão extraordinária, que a
repetimos um ano depois, desta vez num outro lago. Em 1994,
quando eu estava encenando Norma de Bellini na Arena de Verona,
Janoud foi me visitar. Nessa época, sua namorada peruana
trabalhava em Bolonha, e de lá ele viajou até mim. Por alguns dias,
ele parecia deprimido, retraído, e eu finalmente disse que queria
saber o que havia com ele. O caso era que sua namorada estava
grávida, era esse o seu grande infortúnio. Era de manhã e
estávamos sentados num café junto à arena de gladiadores. Acenei
para o garçom e pedi champanhe. Que incrível que ele ia ser pai,
não poderia haver nada melhor para ele — eu lhe dei os parabéns e
brindamos com nossas taças e Janoud de repente achou a
perspectiva muito emocionante. Ele se casou com Rosa, a
namorada, e Gretel, a filha, hoje já é adulta e independente.
35.
Minha velha mãe

Nos últimos seis anos de sua vida, minha mãe aprendeu turco
porque fez uma amiga em Munique que era do leste da Turquia.
Minha mãe foi visitá-la e viajou sozinha pelo leste da Anatólia, sem
pacote turístico, em ônibus pequenos e precários, onde também
eram transportadas ovelhas. Sua saúde foi se deteriorando ao longo
de muitos anos. Bem no final, eu tinha que ir para os Estados
Unidos porque o produtor Dino de Laurentiis tinha em mente um
grande projeto de filme comigo. Eu disse à minha mãe: “Vou ficar
aqui. Não vou viajar”. Mas ela retrucou: “Você deve ir, você tem
que ir. A vida tem que ser vivida”. Voei para Nova York e assim que
cheguei soube que ela havia falecido naquela mesma noite.
Busquei refúgio com meu amigo Amos Vogel, que imediatamente
cancelou tudo o que tinha naquele dia. Ele se sentou ao meu lado o
tempo todo, ficou em silêncio comigo e também fez algumas
orações. Na mesma noite, eu tomei o avião de volta.
36.
O fim das imagens

Tento imaginar como seria um mundo onde não existissem mais


livros como este. Há décadas alastra-se o fenômeno de que mesmo
universitários quase não leem mais. Isso se intensificou com o
surgimento de textos curtos no Twitter, serviços de mensagens e
vídeos breves. Como será um mundo em que quase não existirão
mais línguas faladas, cuja diversidade já vem diminuindo rápida e
irrevogavelmente? Como será um mundo sem uma linguagem
visual profunda, ou seja, sem a minha profissão? O fim, o
irrevogável, pode chegar. Imagino um afastamento radical de
pensamentos, argumentos e imagens, portanto não apenas o
advento de uma escuridão na qual os objetos ainda podem ser
sentidos, mas o estado em que não há mais objetos, uma escuridão
preenchida apenas por medo, por monstros imaginários. Uma
passagem do Códice Florentino me vem à mente, como se seus
falantes quisessem fazer um esforço para em meio à destruição de
tudo de sua cultura e de seu horizonte de vida, encontrar
novamente a sua língua: “A caverna é assustadora, um lugar de medo,
um lugar de morte. É chamada de lugar da morte porque ali se morre.
Ela é um lugar de trevas; nela escurece; está sempre escuro. Ela fica ali
com a boca aberta”. Como se poderia criar a ausência de imagens?
Portanto, não apenas a abolição radical, o abandono definitivo das
imagens, mas a sua própria ausência. Imagino dois espelhos, que
são colocados em exata posição paralela um em relação ao outro,
paralelos com tal exatidão que não refletem nada a não ser a si
mesmos infinitamente. Mas não há mais nada que eles possam
refletir. Se os espelhos fossem transparentes apenas de um lado, o
de fora, como os que são usados nos interrogatórios das
investigações criminais, não se veria nada refletido no espelho
oposto. Nenhum criminoso que faça uma confissão, nenhuma
mesa, cadeira ou lâmpada, apenas uma sala onde tudo estaria
ausente e espelhado e reespelhado indefinidamente. Nada,
nenhuma vida, mais nenhuma respiração. Mais nenhum francês
que come sua bicicleta. Mais nenhum francês que engata a marcha
a ré em seu calhambeque e atravessa todo o Saara de costas. Não há
mais verdade, não há mais mentiras. Nenhum rio chamado rio da
Mentira, Yuyapichis, o rio que engana e finge ser o muito maior rio
Pichis. Sem mais agências de casamento japonesas que derramam
um balde de areia de um satélite, o que cria uma chuva de
meteoritos no céu para a noiva se maravilhar. Sem mais gêmeas
que vivem em corpos separados, mas pensam e falam em
sincronia. Sem os papagaios da viagem de Alexander von
Humboldt, que em 1802 encontrou uma aldeia no Orinoco onde
todos os habitantes haviam morrido de uma epidemia. Sua língua
desapareceu com eles, mas na aldeia vizinha ainda cuidavam do
papagaio sobrevivente trazido de lá quarenta anos antes. Ele ainda
falava de forma claramente compreensível sessenta palavras dos
habitantes da aldeia morta, de sua língua morta. Humboldt as
registra em seus diários. E se ensinássemos essas palavras a dois
papagaios hoje e eles conversassem com elas? E se, no futuro
distante, imaginarmos coisas — criadas por nós — que duram, não
para sempre, mas, digamos, por 200 mil anos? Um tempo em que
a humanidade muito provavelmente terá se extinguido em sua
totalidade, mas alguns monumentos nossos ainda estariam lá,
quase indestrutíveis. A barragem no desfiladeiro do Vajont, que
resistiu ao tremendo deslizamento de 250 milhões de metros
cúbicos de rocha, entulho e terra. Ela tem 28 metros de espessura
em sua base e é moldada em concreto armado especialmente
endurecido. É quase certo que esta parte inferior ainda
permaneceria majestosa, sem poder proclamar nada, sem
mensagem para ninguém. Ali, ao pé da parede lisa de concreto,
haveria infiltrações de água cristalina pelas laterais das rochas,
visitadas por bandos de cervos como se
Filmografia

1961 Herakles — Hércules


Curta-metragem. Um fisiculturista confrontado com os feitos
do mítico Hércules.

1964 Spiel im Sand — Jogo na areia


Curta-metragem. Não lançado.

1966 Die beispiellose Verteidigung der Festung Deutschkreutz — A


defesa sem precedentes do forte Deutschkreutz
Curta-metragem. A absurda defesa de um forte contra um
inimigo que não existe.

1967 Letzte Worte — Últimas palavras


Curta-metragem. O último habitante de uma ilha de leprosos
é trazido à força de volta à civilização. Ele se recusa a falar.

1968 Lebenszeichen — Sinais de vida


Longa-metragem. Ferido, um soldado alemão da Segunda
Guerra Mundial enlouquece e bombardeia amigos e inimigos
com fogos de artifício.

1969 Massnahmen gegen Fanatiker — Precauções contra fanáticos


Curta-metragem. Um aposentado pensa que precisa proteger
cavalos de corrida contra fanáticos na pista de trote.
Die fliegenden Ärzte von Ostafrika — Os médicos voadores da
África Oriental
Documentário. Médicos levam ajuda para postos avançados
nunca atendidos da África Oriental.

1970 Auch Zwerge haben klein Angefangen — Também os anões


começaram pequenos
Longa-metragem. Uma revolta de pessoas com nanismo
causa estragos numa colônia penal.
Fata Morgana — Miragem
Não categorizável. Réquiem poético num planeta que se
dissolve em miragens.

1971 Behinderte Zukunft [Futuro deficiente]


Documentário. Os sonhos de crianças com deficiências
graves.
Land des Schweigens und der Dunkelheit — O país do silêncio e
da escuridão
Documentário. O mundo de Fini Straubinger, deficiente
visual e auditiva, que se preocupa com o destino de outros
como ela.

1972 Aguirre, der Zorn Gottes [Aguirre, a ira de Deus] — Aguirre, a


cólera dos deuses
Longa-metragem. Lope de Aguirre se apossa do comando de
conquistadores espanhóis, que, em sua busca pelo lendário
Eldorado, desaparecem na selva sem deixar rastros. Uma
história de poder e loucura.

1973 Die grosse Ekstase des Bildschnitzers Steiner — O grande êxtase


do entalhador Steiner
Documentário. O jovem entalhador Walter Steiner é tão
extraordinário no voo de esqui, que durante o campeonato
mundial em Planica atinge várias vezes a zona da morte. Um
filme sobre êxtase e morte.
1974 Jeder für sich und Gott gegen alle [Cada um por si e Deus
contra todos] — O enigma de Kaspar Hauser
Longa-metragem. O enjeitado Kaspar Hauser é abandonado
em Nuremberg. Ele não tem conhecimento do mundo, da
linguagem, de outros seres humanos. O trágico assassinato
de uma figura histórica única.

1976 Herz aus Glas [Coração de vidro] — Coração de cristal


Longa-metragem. Mühlhiasl, um pastor do século XVIII, tem
visões do fim do mundo. Como sonâmbulos, os membros da
comunidade de uma aldeia marcham rumo ao seu profetizado
fim. Todos os atores atuaram sob hipnose.
Mit mir will keiner spielen — Ninguém quer brincar comigo
Curta-metragem. Um menino solitário com seu corvo
falante.
How Much Wood Would a Woodchuck Chuck [Quanta madeira
um castor roeria]
Documentário. O campeonato mundial de leiloeiros de gado
na Pensilvânia. Sobre a última fronteira da linguagem, a
última poesia do capitalismo.
Stroszek
Longa-metragem. Libertado da prisão, Stroszek sonha com
uma nova vida nos Estados Unidos. Ele parte para Wisconsin
com a prostituta Eva e um velho. Uma balada.

1977 La Soufrière
Documentário. À espera de uma catástrofe inevitável. Apenas
um agricultor pobre se recusa a ser evacuado antes de uma
erupção vulcânica.

1979 Nosferatu: Phantom der Nacht [Nosferatu: fantasma da noite]


— Nosferatu: o vampiro da noite
Longa-metragem. O conde Drácula parte com 10 mil ratos
para Wismar. Mas o amor de uma mulher o leva à ruína.
Woyzeck
Longa-metragem. Baseado no drama de Büchner. A exaurida
e torturada criatura Woyzeck em seu delírio comete o
assassinato de sua amada.

1980 Glaube und Währung — Fé e moeda


Documentário. O pregador da televisão dr. Gene Scott
ameaça seus seguidores de tirar a estação do ar se eles não
transferirem dinheiro em minutos.
Huies Predigt — O sermão de Huie
Documentário. O bispo Huie Rogers prega e se exalta em
êxtase religioso diante de sua comunidade.

1982 Fitzcarraldo
Longa-metragem. Brian Sweeney Fitzgerald sonha com a
Grande Ópera na floresta. Para chegar a uma área de
seringueiras inacessível, ele faz centenas de indígenas da
floresta rebocarem um grande barco a vapor por cima de um
morro.

1984 Wo die grünen ameisen träumen — Onde sonham as formigas


verdes
Longa-metragem. Aborígines australianos tentam proteger o
local sagrado das formigas verdes dos buldôzers de uma
mineradora.
Ballade vom kleinen Soldaten — Balada do pequeno soldado
Documentário. Em campanha com crianças-soldado na
região de fronteira entre Honduras e Nicarágua.

1985 Gasherbrum: Der leuchtende Berg [A montanha luminosa]


Documentário. Os montanhistas Reinhold Messner e Hans
Kammerlander na montanha Karakorum.

1987 Cobra Verde


Longa-metragem. O bandido brasileiro Manoel da Silva
ascende a vice-rei do Daomé na África Ocidental. Baseado no
romance de Bruce Chatwin.

1988 Les Français vues par… — Como eu vejo os franceses


Curta-metragem. A França do ponto de vista de diferentes
diretores.

1989 Wodaabe, Hirten der Sonne — Wodaabe, os pastores do sol


Documentário. Encontro de povos entre os nômades
wodaabe no sul do Saara. Escolha do jovem mais bonito pelas
mulheres.

1990 Echos aus einem düsteren Reich — Ecos de um império sombrio


Documentário. O general do exército Jean Bedel Bokassa se
faz coroar imperador da República Centro-Africana numa
cerimônia com pompas napoleônicas.

1991 Cerro Torre: Schrei aus Stein [Cerro Torre: Grito de pedra] —
No coração da montanha
Longa-metragem. Dois alpinistas em competição na
montanha mais difícil do mundo, o Cerro Torre, na
Patagônia. Eles conduzem um ao outro à morte.
Das exzentrische Privattheater des Maharadjah von Udaipur [O
excêntrico teatro privado do marajá de Udaipur]
Documentário. O artista austríaco André Heller reúne os
melhores mágicos, dançarinos e encantadores de serpentes
da Índia num grande teatro em Udaipur.
Film Stunde (1–4) [Hora do cinema]
Quatro documentários. Filmados numa tenda de variedades
com convidados durante a Viennale, em Viena.

1992 Lektionen in Finsternis — Lições das trevas


Documentário. Uma visão apocalíptica do nosso planeta
depois que as forças iraquianas incendiaram todos os poços
de petróleo do Kuwait.

1993 Glocken aus der Tiefe [Sinos das profundezas] — Sinos do


abismo
Documentário. Crenças e superstições na Rússia. A cidade
submersa de Kitesch, onde os fiéis que desapareceram tocam
os sinos.

1994 Die Verwandlung der Welt in Musik — A transformação do


mundo em música
Documentário. Filmado nos bastidores do Festival Wagner,
em Bayreuth.

1995 Gesualdo: Tod für fünf Stimmen — Gesualdo: Morte para cinco
vozes
Documentário. Carlo Gesualdo de Venosa, o Príncipe das
Trevas, compôs música que influenciou profundamente
Stravinsky quatrocentos anos antes de seu tempo.

1997 Little Dieter Needs to Fly (Flucht aus Laos) [O pequeno Dieter
precisa voar (Fuga do Laos)]
Documentário. Dieter Dengler só quer voar, mas acaba na
Guerra do Vietnã. Ele é o único americano que consegue
escapar do cativeiro vietcongue no Laos.

1999 Mein liebster Feind [Meu caríssimo inimigo] — Meu melhor


inimigo
Documentário. Anos após a morte de Klaus Kinski, Werner
Herzog fez um filme sobre a explosiva parceria entre os dois
em cinco longas-metragens.
Gott und die Beladenen [Deus e os sobrecarregados] —
Demônios e cristãos no Novo Mundo
Documentário. Na Guatemala, os maias adoram uma
divindade que é vestida como um fazendeiro rico.

2000 Julianes Sturz in den Dschungel (Wings of Hope) — [A queda


de Juliane na selva (Asas da esperança)] — Asas da esperança
Documentário. Juliane Koepcke é a única sobrevivente da
queda de um avião na selva peruana, da qual o próprio autor
só escapou graças a uma série de coincidências.

2001 Pilgrimage [Peregrinação]


Documentário. Devotos em dor e êxtase diante da Virgem de
Guadalupe, no México.
Invincible — Invencível
Longa-metragem. A contragosto dos nazistas em ascensão,
um ferreiro judeu polonês é celebrado nos teatros de
variedades de Berlim como o homem mais forte do mundo.
Mas sua família não quer saber de seus avisos sobre o perigo
iminente.

2002 Ten Thousand Years Older — Dez mil anos mais velho
Documentário. Em poucos minutos, no primeiro contato
com a civilização, o povo uru-eu é catapultada 10 mil anos no
futuro.

2003 Rad der Zeit — A roda do tempo


Documentário. O Dalai Lama convoca o mundo budista para
uma cerimônia na Índia. Quinhentos mil peregrinos atendem
ao seu chamado.
2004 The White Diamond — O diamante branco
Documentário. Após uma tragédia no voo inaugural de seu
primeiro dirigível, Graham Dorrington testa um novo
protótipo sobre a selva na Guiana.

2005 Grizzly Man — O homem urso


Documentário. Timothy Treadwell quer proteger os ursos do
Alasca dos caçadores. Seu trágico mal-entendido sobre a
natureza selvagem custa-lhe a vida, assim como a de sua
namorada. Ambos são dilacerados por ursos-pardos.
The Wild Blue Yonder — Além do azul selvagem
Longa-metragem. Um alienígena encalhado acaba sem
sucesso em nosso planeta. Ele anseia por voltar ao seu
planeta.

2006 Rescue Dawn — O sobrevivente


Longa-metragem. Dieter Dengler, que cresceu na Alemanha
do pós-guerra, teve um destino inacreditável como
prisioneiro do Vietcongue. Apenas por muito pouco ele
sobrevive à sua fuga pela selva.

2007 Encounters at the End of the World — Encontros no fim do


mundo
Documentário. Sonhadores e cientistas se encontram no fim
do mundo no gelo da Antártica. Uma ode a um continente e
seus habitantes temporários.

2009 Bad Lieutenant: Port of Call — New Orleans — Vício frenético


Longa-metragem. Devastada por corrupção, drogas e um
furacão, New Orleans é o lugar perfeito para um detetive de
homicídios. Uma história sobre a felicidade de ser mau.
La Bohème

Á
Curta-metragem. Filmado na África para abrir a temporada
de ópera de Londres com La Bohème.
My Son, My Son, What Have Ye Done — Meu filho, olha o que
fizeste!
Longa-metragem. Um jovem ator talentoso enlouquece
durante os ensaios da Oréstia. Ele não consegue mais separar
a peça teatral e a realidade e mata a própria mãe com sua
espada de palco.

2010 Höhle der vergessenen Träume — A caverna dos sonhos


esquecidos
Documentário. Filmado na recém-descoberta caverna de
Chauvet. As pinturas aí existentes, realizadas há cerca de 30
mil anos, estão conservadas como novas e são de uma
incrível modernidade artística.
Happy People: A Year in the Taiga [Pessoas felizes: um ano na
Taiga]
Documentário. Um filme redimensionado a partir das quatro
horas de um filme de Dmitri Vasykov sobre caçadores de
peles nas profundezas solitárias da Sibéria.

2011 Ode to the Dawn of Man [Ode à alvorada do homem]


Curta-metragem. Ao tocar, o violoncelista holandês Ernst
Reijseger move-se em outro mundo.
Into the Abyss: A Tale of Death, a Tale of Life — Ao abismo, um
conto de morte, um conto de vida
Documentário. Michael Perry no corredor da morte no Texas
uma semana antes de sua execução. Sobre um crime de
incrível niilismo.

2012-3 On Death Row [No corredor da morte]


Oito documentários sobre abismos humanos. Filmado em
corredores da morte na Flórida e no Texas.
2013 From one Second to the Next [De um segundo para o outro]
Documentário. Tragédias provocadas por motoristas que
escreviam SMSs ao dirigir.

2015 Queen of the Desert — Rainha do deserto


Longa-metragem. A escritora e arqueóloga Gertrude Bell
desempenhou um papel importante na formação política do
Oriente Médio após o colapso do Império Otomano.

2016 Lo and Behold. Reveries of the Connected World — Eis os delírios


do mundo conectado
Documentário. A internet desde seu nascimento até seus
excessos atuais.
Salt and Fire [Sal e fogo] — Deserto em fogo
Longa-metragem. Uma bióloga é sequestrada e abandonada
num deserto de sal com dois meninos cegos.
Into the Inferno — Visita ao inferno
Documentário. Viajando pelo mundo com o vulcanólogo
Clive Oppenheimer. Imagens espetaculares de erupções
vulcânicas e seu impacto na cultura humana.

2018 Meeting Gorbachev — Encontrando Gorbachev


Documentário. Com André Singer. A vida e a política do
último presidente da União Soviética em conversa com o
autor.

2019 Family Romance, llc — [Family Romance ltda] — Uma história


de família
Longa-metragem. Em língua japonesa. Um ator contratado
por uma agência finge ser o pai de uma menina de onze anos
que sente a falta dele.
Nomad: In the Footsteps of Bruce Chatwin — Nômade: seguindo
os passos de Bruce Chatwin
Documentário. Encontros com o grande escritor britânico do
ponto de vista do autor.

2020 Fireball: Visitors from Darker Worlds [Bola de fogo: visitantes


de mundos sombrios] — Fireball: Mitos, cometas e meteoros
Documentário. Volta ao mundo com Clive Oppenheimer
observando os mais violentos impactos de meteoritos. Sua
influência sobre vidas e culturas.

2021 Theater of Thought [Teatro do pensamento]


Documentário. Cientistas desvendam os segredos mais
profundos de nosso cérebro, nossos pensamentos e
alucinações.

2022 The Fire Within [Fogo interior]


Não categorizável. Réquiem aos vulcanólogos franceses Katia
e Maurice Krafft. Suas visões apocalípticas e sua morte
prematura durante as filmagens de uma erupção vulcânica no
Japão.
Óperas encenadas

1985 Doutor Fausto — Doktor Faust (Busoni)


Teatro Comunale, Bolonha

1987 Lohengrin (Wagner)


Richard-Wagner-Festspielhaus, Bayreuth

1989 Joana d’Arc — Giovanna d’Arco (Verdi)


Teatro Comunale, Bolonha

1991 A flauta mágica — Die Zauberflöte (Mozart)


Teatro Bellini, Catânia

1992 A dama do lago — La Donna del lago (Rossini)


Teatro La Scala, Milão

1993 O navio fantasma — Der fliegende Holländer (Wagner)


Opera Bastille, Paris

1994 O Guarani — Il Guarany (Gomes)


Oper Bonn
Norma (Bellini)
Arena de Verona

1996 O Guarani — Il Guarany (Gomes)


The Washington Opera
1997 Chusingura (Saegusa)
Oper Tokyo
Tannhäuser (Wagner)
Teatro de la Maestranza, Sevilha
Opera Royal de Wallonie, Liège

1998 Tannhäuser (Wagner)


Teatro di San Carlo, Nápoles
Teatro Massimo, Palermo

1999 Tannhäuser (Wagner)


Teatro Real, Madri
A flauta mágica — Die Zauberflöte (Mozart)
Teatro Bellini, Catânia
Fidélio — Fidelio (Beethoven)
Teatro La Scala, Milão

2000 Tannhäuser (Wagner)


Baltimore Opera Company

2001 Joana d’Arc — Giovanna d’Arco (Verdi)


Teatro Carlo Felice, Gênova
Tannhäuser (Wagner)
Teatro Municipal, Rio de Janeiro
Grand Opera, Houston
A flauta mágica — Die Zauberflöte (Mozart)
Baltimore Opera Company

2002 O navio fantasma — Der fliegende Holländer (Wagner)


Domstufen Festspiele, Erfurt

2003 Fidélio — Fidelio (Beethoven)


Teatro La Scala, Milão
2008 Parsifal (Wagner)
Palau de les Arts, Valência

2013 Os dois foscaris — I due foscari (Verdi)


Teatro dell’Opera, Roma
Agradecimentos

Os irmãos são em muitas famílias os críticos mais severos.


Agradeço a meus irmãos Till e Lucki pela leitura de meu
manuscrito, pelas sugestões e correções. Eu as segui quando foi
necessário.
Por parte de todo o pessoal da Carl Hanser Verlag encontrei
atenção e entusiasmo, como nunca havia experimentado antes
numa editora. Gostaria de mencionar aqui, como representante de
todos, Jo Lendle, entre outras razões porque ele designou um
editor extraordinário para o projeto, Florian Kessler. Este texto
deve muito, no conteúdo e na linguagem, a suas sugestões. Não há
uma pedra que ele não teria virado, e não há uma formulação que
não tenha encontrado seu equilíbrio ao ser lida em voz alta junto
comigo. Neste contexto, gostaria de me referir à romanista
Elisabeth Edl, que nada tem a ver com este livro. Contudo, suas
maravilhosas traduções de Flaubert para o alemão me colocaram de
volta em sintonia com minha língua materna, que durante muitos
anos eu só havia falado pouco.
Tenho que agradecer a Michael Krüger. Foi ele quem me
obrigou impiedosamente a escrever desde cedo. Do contrário,
meus primeiros livros, publicados pela Hanser, provavelmente
nunca teriam sido escritos. Também agradeço a Drenka Willen
pelos seus sábios conselhos e sugestões de traduções para outros
idiomas.
O mesmo agradecimento vai para minha mulher, Lena. Foi dela
que partiu o estímulo para escrever este livro, pelo qual sou o
único responsável, por mais unilateral que ele possa ser.
Los Angeles, julho de 2021
© Lena Herzog

Nascido em 1942, em Munique, Werner Herzog é um dos


cineastas mais aclamados da atualidade. Dirigiu, entre outros, os
filmes Aguirre, a cólera dos deuses (1972), Fitzcarraldo (1982) e O
homem urso (2005). Trabalhou no cinema também como ator.
Dirigiu as óperas Doutor Fausto, Lohengrin, Tannhäuser, A flauta
mágica, entre outras produções. Dele, a Todavia publicou O
crepúsculo do mundo (2022).
A tradução desta obra foi apoiada por um subsídio do Instituto
Goethe.
Jeder für sich und Gott gegen alle, Werner Herzog
© Carl Hanser Verlag GmbH & Co. kg, München, 2022.
Mediante negociação com Ute Körner Literary Agent.

Todos os direitos desta edição reservados à Todavia.

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua


Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

capa
Violaine Cadinot
foto de capa
Jean-Louis Atlan/ Sygma/ Getty Images
composição
Jussara Fino
preparação
Nina Schipper
revisão
Érika Nogueira Vieira
Gabriela Rocha
versão digital
Antonio Hermida
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Herzog, Werner (1942-)


Cada um por si e Deus contra todos [recurso eletrônico] : memórias / Werner Herzog
; tradução Sonali Bertuol. — 1. ed. — São Paulo : Todavia, 2024.
Dados eletrônicos (1 ePub).

Título original: Jeder für sich und Gott gegen alle


ISBN 978-65-5692-605-6
Acesso eletrônico: 1 arquivo de ePub

1. Memórias. 2. Cinema – Alemanhã. 3. Biografia. i. Bertuol, Sonali. ii. Título.

CDD 920

Índices para catálogo sistemático:


1. Biografia : Perfil biográfico 920

Bruna Heller — Bibliotecária — CRB-10/2348


todavia
Rua Luís Anhaia, 44
05433.020 São Paulo SP
T. 55 11. 3094 0500
www.todavialivros.com.br
* Os títulos dos filmes aparecem como em sua exibição no Brasil.
Na “Filmografia”, ao final deste volume, estão indicados também
os títulos originais. [Esta e as demais notas são da tradutora.]

* Em alemão, München, Hauptstadt der Bewegung: título honorífico


dado à cidade durante o governo de Adolf Hitler (1933-45), numa
referência às origens do movimento nazista.

* As Forças Armadas alemãs durante o nazismo.

* O Estado nazista alemão, também chamado de Terceiro Reich.

* “Líder”, título usado com variações em todas as estruturas


hierárquicas nazistas.

* Modalidade de ensino secundário na Alemanha, voltada para o


ingresso numa universidade.

* Operação nazista organizada no final da Segunda Guerra com o


objetivo de exercer resistência atrás das linhas dos Aliados. O
nome significa “lobisomem”.

* Besatzungskinder: filhos de mães alemãs gerados por soldados das


Forças Aliadas após a Segunda Guerra.

* Zweiten Deutschen Fernsehen [Segunda televisão alemã].

* Primeiro Canal, emissora de televisão na Alemanha.

* Agrupamento das emissoras regionais da televisão pública alemã.


* República Democrática da Alemanha, a Alemanha Oriental.

* Schutzstafel: tropa de elite paramilitar, ligada ao Partido Nazista,


responsável por atos violentos, massacres e perseguições.

* Bundesrepublik, a Alemanha Ocidental.

* Republikflüchtig: na linguagem coloquial da Alemanha Oriental,


os que fugiam para países do bloco ocidental.

* A palavra alemã para “minhocas” seria Wurm, e o plural, Würmer.

* A “desnazificação” consistia na emissão, após verificações, de um


documento atestando que a pessoa em questão não havia cometido
crimes sob a égide do nazismo.

* Alguém que se recusa a prestar não apenas o serviço militar, mas


também qualquer outro serviço civil em substituição.

* O ensino básico.

* Die Bernsteinperle, de Toni Rothmund (1877-1956), escritora


alemã.

* O sexto dia do Advento, quando são distribuídos presentes às


crianças.

* Allgemeiner Studentenausschuss [Comitê Central dos Estudantes]:


associação estudantil universitária com forte atuação política nos
anos 1960.

* Protestos e manifestações com repressão e confrontos policiais


na esteira do atentado contra o líder estudantil Rudi Dutschke.
* Rote Armee Fraktion [Fração do Exército Vermelho]: organização
terrorista de extrema esquerda na Alemanha Ocidental.

* Esta última autodenominação de Aguirre dá o título ao filme de


Herzog: Aguirre, der Zorn Gottes. A tradução “Aguirre, a ira de
Deus”, como em textos bíblicos, manteria a referência ao contexto
da colonização espanhola sob a influência da Igreja católica, que se
perdeu com o plural (Aguirre, a cólera dos deuses) adotado no título
com o qual o filme se consagrou no Brasil.

* Wandervogel [Pássaro migratório] foi um movimento de jovens


estudantes no final do século XIX que buscava romper com a
rigidez do ambiente escolar e desenvolver um modo próprio de
vida ao ar livre e na natureza, vinculando-se também, nas
primeiras décadas do século XX, aos ideais de movimentos como a
reforma da educação, o naturismo e a reforma da vida.

* Forma abreviada de Sauerkraut, “chucrute”. O uso, pejorativo,


para designar alemães tem origem na Segunda Guerra Mundial.

* Formação convocada pelo Partido Nazista no final da Segunda


Guerra Mundial, como tentativa de reforçar as desmanteladas
Forças Armadas alemãs com toda a população masculina de
dezesseis a sessenta anos que já não estivesse em serviço. Na
prática, incluiu também crianças, meninos e meninas, idosos,
inválidos e outros considerados ineptos para o serviço militar.

* Sobrevivente do Holocausto, foi um escritor e caçador de


nazistas (1908-2005).

* Jogo de palavras entre parte do sobrenome do autor e Psalter,


“saltério” em alemão.

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