Cada Um Por Si e Deus Contra Todos - Memória - Werner Herzog
Cada Um Por Si e Deus Contra Todos - Memória - Werner Herzog
Cada Um Por Si e Deus Contra Todos - Memória - Werner Herzog
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Werner Herzog
tradução
Sonali Bertuol
Enkidu suspirou amargamente e disse:
“Gilgamesh, o vigia da floresta nunca dorme”.
Gilgamesh replicou: “Onde está o homem que é capaz de ascender até o
céu?”.
Capa
Folha de Rosto
Prefácio
1. Estrelas, o mar
2. El Alamein
3. Heróis míticos
4. Voar
5. Fábio Máximo e Siegel Hans
6. Na fronteira
7. Ella e Rudolf
8. Elisabeth e Dietrich
9. Munique
10. Encontro com Deus
11. Cavernas
12. O vale dos 10 mil moinhos de vento
13. Congo
14. Dr. Fu Manchu
15. John Okello
16. Peru
17. Privilegium maius, Pittsburgh
18. Nasa, México
19. Pura vida
20. Dançando na corda bamba
21. Menires e o paradoxo do quadrado perdido
22. Balada do pequeno soldado
23. A mochila de Chatwin
24. Arlscharte
25. Mulheres, filhos
26. À espera dos bárbaros
27. Por realizar
28. A verdade do oceano
29. Hipnose
30. Vilões
31. A transformação do mundo em música
32. A leitura de pensamentos
33. Leitura lenta, sono longo
34. Amigos
35. Minha velha mãe
36. O fim das imagens
Filmografia
Óperas encenadas
Agradecimentos
Autor
Créditos
Prefácio
O Sturm Sepp é uma das figuras míticas da nossa infância. Ele era
um empregado da propriedade vizinha, Sturmhof. Na velhice, o
seu tronco ficara dobrado quase horizontalmente para a frente a
partir do quadril. O Sturm Sepp devia ter, pelo menos para nós, o
tamanho de um gigante, como um ser vindo de um passado
nebuloso e indefinível. Ele tinha uma longa e farta barba grisalha e
quase sempre um cachimbo também longo pendurado na boca. O
quão alto ele seria caso se endireitasse era algo que podíamos saber
pela sua bicicleta. O selim estava regulado tão alto acima do quadro
que apenas um gigante conseguiria alcançar os pedais de lá de
cima. O Sturm Sepp não falava. Jamais alguém o ouvira dizer uma
palavra. No domingo, na taverna, a sua cerveja era posta na sua
frente sem que precisasse pedir. Nós, crianças, zombávamos dele
e, no caminho para a escola, quando ceifava a relva do outro lado
da cerca, encurvado como uma criatura primitiva, nós gritávamos
“Olá, Sepp”, e repetíamos isso várias vezes, tentando arrancar uma
palavra dele. Uma vez, embora parecesse estar tranquilo cortando a
relva, ele de repente desferiu um golpe furioso com a foice contra
Brigitte, a menina do Bergerhof, que estava mais perto da cerca, e
a atingiu no meio do corpo. “Ah, você”, ele exclamou, a sua única
articulação linguística em décadas. Por sorte, a ponta da foice
perfurou apenas os utensílios de metal que ela levava na merenda
da escola. A partir de então mantivemos distância. Adotamos a
explicação de que Sturm Sepp era tão forte e tão terrivelmente
dobrado ao meio porque no inverno arrastava toras de madeira da
montanha. Certa vez, quando o cavalo não aguentou, ele próprio
teria carregado um gigantesco tronco nos ombros e, a partir de
então, ficara encurvado para a frente.
Como ele, havia muitos outros mistérios. Não sei se é uma
lembrança, mas vejo um homem em pé na beira do riacho atrás da
casa ao anoitecer. Contra o frio, ele acendeu uma grande fogueira.
Seu rosto está tingido de vermelho. Ele olha fixamente para as
chamas. Alguém diz que ele é um desertor, que fugirá para as
montanhas pela manhã. É possível que me lembre disso? Nessa
época eu não era novo demais para ter hoje uma lembrança? Havia
também uma bruxa que me pegou e saiu correndo comigo, mas
minha mãe a alcançou e me arrancou de suas garras, e a partir daí
com certeza eu não faria mais xixi nas calças, em tempo alcançaria
o penico. Na minha mão direita havia uma sarda, mas eu sabia que
aquele era o ponto em que a bruxa tinha me mordido. Depois
houve outra noite, que com certeza aconteceu de verdade, em que
nossa mãe arrancou a mim e a meu irmão Till da cama e depressa
nos embrulhou em cobertores, porque lá fora o inverno ainda era
muito frio. Ela subiu conosco um trecho da encosta, de onde
tínhamos uma boa visão. “Vocês precisam ver isso, meninos”, disse
ela, “a cidade de Rosenheim está em chamas.” Rosenheim, perto
do fim da guerra, foi incendiada, dizia-se, por bombas dos Aliados,
que sobrevoavam os Alpes ao voltar para as suas bases e, por causa
do mau tempo, não conseguiam distinguir os alvos. Dizia-se
também que eles teriam lançado suas bombas sobre a cidade alemã
inimiga para se livrar de carga. O que vimos quando crianças tenho
ainda hoje diante dos meus olhos. No final do vale, na direção
norte, todo o céu ardia, vermelho e laranja e amarelo, mas não era
uma cintilação como de labaredas, e sim um lento pulsar de todo o
firmamento noturno, pois a cidade de Rosenheim ardia em chamas
a quarenta quilômetros de distância. Era um grande incêndio que
desenhava no céu noturno a terrível pulsação do fim do mundo. Na
época, Rosenheim não significava nada para mim, mas a partir
daquele momento eu soube que lá fora, além do nosso mundo,
além do nosso estreito vale, havia outro mundo, perigoso,
fantasmagórico. Não que eu sentisse medo desse mundo, ele me
deixava curioso.
Um mistério que até hoje me faz pensar foi um avião que ficou
um bom tempo sobrevoando a montanha atrás de casa, como se
procurasse alguma coisa. Então, vimos nitidamente, ele lançou
algo que parecia mecânico, brilhante, como se fosse feito de
alumínio. Não tenho mais certeza se estava pendurado num
paraquedas ou em algum tipo de balão. Havia uma bandeira como
marcação, mas ela parecia se deslocar de uma copa de árvore para
outra. As pessoas no vale também viram e, como já estava
anoitecendo, só na manhã seguinte uma equipe de homens partiu
para uma busca. Eles ficaram fora o dia todo e só voltaram tarde da
montanha, quando já estava escuro. Estávamos curiosos, mas
ninguém quis dizer nada. Eles haviam encontrado algo misterioso,
sobre o qual não nos era permitido saber. Era militar? Era algo
realmente deste mundo, ou de outro, distante, estranho?
Mas também a paisagem idílica de Sachrang escondia seus
perigos. Anos após o fim da guerra, ainda encontrávamos armas
que soldados em fuga tinham jogado fora ou escondido. Com a
Alemanha cercada por todos os lados, retraindo-se cada vez mais
com o avanço das tropas aliadas, restavam no final apenas alguns
pequenos enclaves não ocupados, acho que um na Turíngia, um no
norte, em Flensburg e, por último, Sachrang junto com Kufstein
além da fronteira, na Áustria, e com os montes do Kaiser ali perto.
Os últimos soldados dispersos, mas também grupos de Werwolf,*
que pretendiam realizar operações de guerrilha após o fim da
guerra, passavam por ali, jogavam fora os seus uniformes e os
trocavam por roupas civis. As armas eles escondiam no feno ou sob
as pilhas de lenha. Sei por minha mãe que uma vez houve um
grande tumulto no Bergerhof quando os soldados americanos da
ocupação encontraram armas no celeiro da propriedade. O
proprietário foi ameaçado de execução, e minha mãe, que falava
inglês, interveio em seu socorro. Ele realmente nada sabia sobre o
esconderijo. Eu mesmo uma vez encontrei uma submetralhadora
debaixo de uma pilha de lenha e não tenho certeza se cheguei a
disparar a arma, mas pensei em ir caçar com ela, pois já havia
observado antes um trabalhador da estrada atirar com uma
submetralhadora num bando de corvos, matando um deles. Ele o
depenou e fez com a ave uma espécie de sopa numa grande panela.
Como estava com fome, eu me juntei aos trabalhadores e pela
primeira vez na vida vi algumas gotas de gordura flutuando na sopa
— uma sensação. Mesmo assim, não me deram nada da comida.
Mais tarde, nós, crianças, também aprendemos a mexer com
carbureto e fabricávamos nossos próprios explosivos. O melhor de
tudo era provocar a detonação num tubo de concreto que passava
por baixo da estrada. Ficávamos na estrada sobre o tubo e era uma
sensação especial quando a explosão nos erguia um pouquinho.
Também me lembro vagamente que nossa mãe nos chamou, junto
com os nossos amigos, e diante de nós atirou com sua pistola
numa grande acha de faia. Do outro lado, a madeira lançou
estilhaços, retalhada pelo projétil. Foi tão impressionante que nem
precisou de proibição. Tínhamos entendido. A partir daquele
momento, ficou claro que nunca em nossas vidas apontaríamos
uma arma, carregada ou descarregada, para uma pessoa. Nem
mesmo uma arma de brinquedo não apontaríamos para ninguém.
Pertenço a uma geração que, de certa maneira, é singular na
história. Pessoas antes de mim viveram grandes transformações,
como a do mundo europeu no mundo da descoberta da América,
ou a do mundo do trabalho artesanal na era industrial, mas cada
uma dessas foi a experiência de uma grande e única transformação.
Só que eu vi e vivi, embora não pertencesse propriamente a uma
cultura agrária, os campos serem ceifados à mão com foices, o
capim ser virado, as carroças puxadas por cavalos serem carregadas
de feno com grandes forquilhas e conduzidas para o celeiro. Havia
camponeses que trabalhavam como os servos nos remotos tempos
feudais da Idade Média. Depois eu vi pela primeira vez uma
máquina de virar feno, que, ainda puxada por um cavalo, jogava o
feno para cima com garfos montados paralelamente, vi um
primeiro trator, vi com espanto a primeira ordenhadeira. Era a
transição para a agricultura industrializada. Mas muito mais tarde
também vi a agricultura em gigantescos campos no Meio-Oeste
americano, onde enormes colheitadeiras dispostas em formação
faziam a colheita de campos com quilômetros de extensão.
Nenhum ser humano perturbava os monstros, embora cada uma
das colheitadeiras ainda fosse tripulada por um homem. Mas elas
estavam conectadas digitalmente em rede, em cada cabine havia
vários monitores, e o controle se dava automaticamente via GPS, o
que possibilitava linhas matematicamente perfeitas. Se fossem
pessoas a dirigir as máquinas, seria inevitável se formarem
pequenas linhas onduladas, forçando todo o comboio a fazer
curvas cada vez mais acentuadas. As sementes eram manipuladas
geneticamente. E então, há alguns anos, eu vi a primeira
agricultura robótica, onde não há mais trabalho humano. Os robôs
fazem a semeadura nas estufas, regam, regulam a iluminação e a
temperatura, colhem e embalam o produto acabado, pronto para
ser vendido no supermercado.
De forma semelhante, também vivi grandes transformações na
comunicação, desde tempos arcaicos. Lembro-me do funcionário
da prefeitura em Wüstenrot, na Suábia, a algumas horas de
distância de Munique e Sachrang, onde mais tarde meu irmão e eu
moramos por um ano com nosso pai. Ali havia o chamado Ausrufer
ou Herold, o arauto ou pregoeiro. Acho que em alemão não existe
mais uma palavra que ainda seja de uso corrente, como town crier
em inglês. Eu presenciei como ele chegava à aldeia pela estrada de
Raitelberg e, tocando um sino, pedia atenção. A cada quatro casas,
ele parava e gritava “Comunicado! Comunicado!”, anunciando
decretos e audiências da administração pública. Desde a mais tenra
infância, eu sabia o que era um jornal e um rádio, embora nem
sempre tivéssemos eletricidade, mas nunca assistia a filmes, não
tinha a menor noção do que era o cinema. Eu não sabia que ele
existia até que um dia apareceu um homem com um projetor
portátil na única sala de aula da escola de Sachrang, e ali então
foram exibidos dois filmes, mas não fiquei nem um pouco
impressionado. Também não havia telefone na nossa aldeia, dei o
meu primeiro telefonema com dezessete anos de idade. Aparelhos
de televisão surgiram somente na década de 1960, assistimos pela
primeira vez a um noticiário ou à transmissão de um jogo de
futebol em Munique, no andar de cima do nosso, no apartamento
do zelador e sua família. Vivi o início da era digital, a internet,
conteúdos me foram apresentados não por pessoas, mas por
algoritmos. Recebi e-mails escritos por robôs. As redes sociais
mudaram profundamente toda a comunicação, ainda que eu
próprio não faça uso delas. Video games, vigilância, inteligência
artificial, nunca na história houve tamanha densidade de
transformações radicais, e também não consigo imaginar que
gerações futuras venham a experimentar tantas reviravoltas
fundamentais numa única vida.
Nossa infância foi arcaica. Não tínhamos água corrente,
precisávamos buscá-la com um balde no poço lá fora e, no inverno,
quando fazia frio, muitas vezes a água estava congelada. Havia
apenas uma latrina numa casinha anexa à casa, uma tábua com uma
abertura. Como esse anexo não era bem calafetado, no inverno a
neve acabava se acumulando dentro da casinha, e por isso nossa
mãe pôs um balde no corredor. Usávamos o balde como banheiro,
mas nos dias de maior frio, tudo que havia dentro do balde
congelava e se solidificava. Apenas a cozinha, que contava com um
pequeno fogão a lenha, podia ser aquecida. O minúsculo quartinho
contíguo, com cerca de dois metros de largura, onde meu irmão e
eu dormíamos em um beliche, e o quarto de nossa mãe não tinham
nenhum tipo de aquecimento. Também não tínhamos colchões de
verdade. Minha mãe não podia comprá-los e confeccionou ela
mesma alguns substitutos, enchendo sacos rústicos de pano com
feno obtido de samambaias que ela havia secado. As samambaias,
contudo, talhadas com uma foice, tinham pontas afiadas onde os
talos haviam sido cortados obliquamente. Depois de secas, essas
extremidades ficavam duras como lápis apontados, e sempre
acordávamos quando trocávamos de posição durante o sono. A
samambaia seca se aglomera rapidamente formando bolas, e
mesmo fortes sacudidas no colchão não são mais capazes de
impedir que surjam cavidades rijas, duras como concreto. Por
causa dessas cavidades, durante toda a minha infância nunca dormi
numa superfície reta. No inverno, às vezes fazia tanto frio à noite
que os cobertores, estendidos até sobre nossas cabeças,
congelavam no ponto onde deixávamos um buraco para respirar. O
quarto era tão estreito que entre o beliche e a parede cabia apenas
uma cadeira. No alto, logo abaixo do teto, havia uma prateleira
onde eram armazenadas maçãs. Lá dentro cheirava
permanentemente a essas maçãs. Elas murchavam e congelavam
no inverno, mas ainda eram comestíveis quando descongeladas.
Quase não havia assistência médica, e minha mãe, embora
sempre tentasse explicar, era tomada por uma médica, porque
tinha um título de doutora. Mas ela o adquirira como bióloga. Seu
orientador foi o posterior ganhador do Prêmio Nobel Karl von
Frisch, e sua tese havia sido sobre a audição dos peixes. Para o
estudo, realizado no aquário do laboratório, ela tocava, na flauta
doce, melodias às quais os peixes aprendiam a reagir, fosse para
fugirem, fosse para emergirem curiosos à superfície, pois com
determinada melodia havia comida como recompensa. Apesar
disso, na aldeia ela sempre era chamada em casos de emergência.
Um vizinho, menino de menos de quatro anos, se esticara para
pegar uma panela que estava em cima do fogão, mas a panela
tombou e a água fervente derramou-se em cima dele, desde a
ponta do queixo, descendo pelo pescoço e pelo peito até as coxas.
As queimaduras eram terríveis, e minha mãe foi chamada quando o
coração do menino já não batia direito. Ela não se deixou
impressionar e aplicou nele uma injeção de adrenalina através das
costelas direto no miocárdio. O menino sobreviveu. Uma vez, anos
depois na escola, no meio da aula, ele tirou a camisa e me mostrou
o corpo cheio de cicatrizes. A mortalidade infantil era alta. No
Bergerhof, Beni, o jovem lavrador, e sua esposa, Rosel, perdiam
um filho atrás do outro logo após o nascimento. Eles sofriam de
uma incompatibilidade sanguínea, o que hoje se pode facilmente
resolver com uma grande transfusão imediata. Por fim, os dois
adotaram uma menina, uma criança da ocupação,* que se chamava
Brigitte. Ela pertencia ao estreito círculo de crianças que vivia nas
cercanias do Bergerhof. Lembro-me de que Rosel ficou grávida
novamente e deu à luz outra criança em Aschau, e então foi trazida
de volta num automóvel, e de como fiquei atônito tentando ver
onde estava a criança. De repente, a menina Brigitte saiu correndo
da fazenda aos prantos, precipitou-se no tanque do poço e lavou o
rosto com água fria. Então eu soube que também aquela criança
havia morrido, era a oitava seguida. Depois houve um filho que
sobreviveu, Benno, com quem ainda hoje mantenho contato.
Brigitte tornou-se garçonete num café em Aschau, mas morreu
ainda muito jovem de câncer de mama.
Meu irmão Till e eu crescemos em grande pobreza, mas não
notávamos em absoluto que éramos pobres, exceto talvez nos
primeiros dois ou três anos após a guerra. Estávamos sempre com
fome e minha mãe não conseguia trazer comida suficiente para
casa. Comíamos saladas de folhas de dente-de-leão, minha mãe
fazia xarope de tanchagem e de brotos frescos dos galhos de abeto.
O primeiro era usado mais como remédio para tosse e resfriados, o
segundo substituía o açúcar. Somente uma vez por semana
recebíamos um filão da padaria da aldeia em troca de nossos
cupons de alimentação. Nossa mãe riscava com uma faca uma
marca para cada dia, de segunda a domingo, o que mal dava uma
fatia de pão por dia para cada um de nós. Quando a fome apertava
muito, recebíamos um pedacinho do pão do dia seguinte, pois
minha mãe tinha esperanças de arranjar mais alguma coisa para
comermos, mas na maioria das vezes o pão já fora todo consumido
na sexta-feira, e então os sábados e domingos eram particular-
mente ruins. Minha lembrança mais intensa da minha mãe, que
ficou para sempre gravada na minha memória, é um momento em
que meu irmão e eu estamos agarrados à sua saia nos queixando da
fome. Com um empurrão terrível, ela se soltou e girou o corpo
abruptamente, e seu rosto estava tomado de raiva e desespero de
um jeito que nunca vi antes nem depois. Ela disse com muita
calma, perfeitamente controlada: “Meninos, se eu pudesse cortar
um pedaço das minhas costelas para vocês, eu cortaria um pedaço
das minhas costelas, mas eu não posso”. Aprendemos naquele
momento a nunca mais nos queixarmos. A cultura da lamentação
me repugna.
A pobreza estava em toda parte e não a percebíamos como uma
condição incomum, no máximo em raros momentos. Na escola da
aldeia, naquela sala única para as quatro primeiras séries na qual
todos tinham aula ao mesmo tempo, havia crianças que viviam em
propriedades isoladas mais acima no vale e que passavam grande
necessidade. Uma delas, o Hautzen Louis, chegava atrasado todos
os dias, acho que ele tinha de trabalhar no estábulo de casa antes
ainda de o dia amanhecer, o que o atrasava. No inverno, ele descia
a montanha num trenó, por um íngreme desfiladeiro, e todos os
dias chegava com neve da cabeça aos pés. A aula já tinha
começado. Sem cumprimentar, arrastando atrás de si o trenó
coberto de gelo pela sala de aula, ele passava diante da srta.
Hupfauer, a nossa professora, e todos os dias tinha a mesma
explicação: “Professora, eu caí”. Não me lembro mais do seu rosto,
mas um dia, no início do verão, quando o Louis, já dentro da sala,
não tirou o casaco, que cheirava a estábulo, e a professora lhe disse
que com aquele calor ele deveria tirá-lo, Louis fingiu não ouvir o
pedido. Ele não reagiu às ordens cada vez mais zangadas da
professora e acabou sendo castigado na palma da mão com o
bastão. Sobre isso devo dizer que a srta. Hupfauer era uma pessoa
maravilhosa que, apesar das quatro aulas simultâneas, conseguiu
nos transmitir conhecimento e entusiasmo, curiosidade e
autoconfiança. Naquela época, um bastão para castigar fazia parte
do arsenal comum da educação e ninguém se incomodava. Não
achávamos nada extraordinário termos de nos ajoelhar no degrau
diante do púlpito como punição quando nos comportávamos mal,
e numa acha de lenha quando nos comportávamos muito mal. O
Louis continuou sem querer tirar o casaco, e todos nós na sala,
devíamos ser umas 26 crianças, meninos e meninas com idades
entre seis e dez anos, ficamos atentos. Isso fez aumentar ainda
mais a sua agonia, e ele começou a chorar em silêncio. O silêncio
do seu choro até hoje me corta o coração. Por fim, o Louis tirou o
casaco e por baixo estava vestindo a única camisa que possuía. Ela
estava tão desbotada e puída que a manga, a partir do ombro, era só
farrapos. A professora também começou a chorar e vestiu o casaco
nele outra vez.
Reencontrei a srta. Hupfauer apenas recentemente, setenta
anos depois, num encontro de antigos alunos em Sachrang. Ela
tinha então outro sobrenome, porque havia se casado. Na ocasião,
já viúva e com mais de noventa anos de idade, ela continuava
absolutamente cordial e inspiradora. Naquela época, na minha
infância, ela acreditava que um dia eu teria uma vida especial,
minha mãe me confirmou isso várias vezes quando eu já era adulto.
Na época, quando criança, porém, nada apontava para algo
incomum, no máximo em sentido negativo. Eu era uma criança
quieta, mais para retraída, propensa à irascibilidade, de certa forma
perigosa para o meu meio. Podia passar muito tempo ruminando
em pensamentos, para descobrir, por exemplo, por que 6
multiplicado por 5 dava o mesmo resultado que 5 vezes 6. Isso se
aplicava até mesmo no geral, 11 vezes 14 dava o mesmo resultado
que 14 vezes 11. Por quê? Nos números, encerrava-se uma lei que
eu não compreendia até que a visualizasse interiormente, como se,
estendendo um retângulo com 6 linhas, cada qual formada por 5
pedrinhas enfileiradas e a seguir girando a figura um quarto de
volta, de repente o princípio se tornasse evidente. Até hoje, fico
entusiasmado com questões da teoria pura dos números, como a
hipótese de Riemann sobre a distribuição dos números primos.
Não entendo nada, absolutamente nada disso, pois não tenho o
instrumental matemático, mas acredito que seja a mais importante
de todas as questões sem resposta na matemática. Há alguns anos,
tive um encontro com aquele que talvez seja o maior matemático
vivo, Roger Penrose, e perguntei-lhe como ele aborda problemas
matemáticos, se por meio de álgebra abstrata ou na forma de
visualização. Para ele, é exclusivamente visualização.
Mas voltando à minha infância. Havia em mim algo sombrio.
Embora eu não me lembre, devo ter brigado realmente, mais de
uma vez, com uma pedra na mão, e minha mãe ficou preocupada.
Eu vivia retraído, quieto, porém havia algo furioso dentro de mim,
algo que justificava preocupação. Vim a controlar minha fúria
apenas após uma catástrofe em nossa família. Eu já devia ter treze
ou catorze anos de idade e morávamos em Munique quando tive
uma briga com o meu irmão mais velho, Till. Sempre fomos, e
ainda somos até hoje, irmãos incondicionais, mas também havia
brigas ferozes entre nós, pancadarias furiosas. Isso era natural e
aceitável. Mas numa briga acalorada, que, como vagamente me
lembro, girava em torno dos cuidados com o nosso hamster, fiquei
fora de mim de tanta raiva e feri o meu irmão com uma faca. Um
golpe o atingiu no pulso, ele tinha feito um movimento de defesa,
e um segundo golpe o acertou na coxa. O quarto banhado em
sangue. O horror diante de mim me abalou a fundo. De repente,
ficou claro para mim que eu tinha que mudar, sem demora e sem
adiamentos, e isso significava disciplina rigorosa. O episódio havia
sido simplesmente monstruoso demais. Eu causara o maior abalo
que se podia imaginar, que podia ter destruído a família. Reunimos
um abreviado conselho familiar e, como, examinando mais de
perto, os ferimentos não eram de fato perigosos, decidimos não
levar meu irmão ao hospital para atendimento médico, o que sem
dúvida teria acarretado uma investigação policial. Fizemos
curativos nos cortes e limpamos o sangue do chão, estávamos
consternados. Assim eu me sinto até hoje, até a medula. Como os
cortes nunca foram suturados, até hoje as cicatrizes de Till são
claramente visíveis. A partir desse dia, eu me controlei, com
absoluta autodisciplina. Uma boa parte do meu ser até hoje não
passa de pura disciplina. Mas, ao mesmo tempo, entre Till e mim
existe de forma inquebrantável uma rudeza crua, muitas vezes
brincalhona, que em algumas situações torna o nosso
relacionamento íntimo incompreensível para quem está de fora.
Há alguns anos, houve uma reunião de família na costa espanhola,
onde meu irmão morava na época. A seu convite, tivemos uma
noite magnífica num restaurante de peixes, no qual Till, sentado ao
meu lado, pôs o braço em volta de mim enquanto eu estudava o
cardápio. Algo começou a fumegar, algo causava um leve prurido
nas minhas costas, até que de repente percebi que ele havia ateado
fogo à minha camisa com um isqueiro. Eu a arranquei do corpo e
todos os que estavam presentes ficaram horrorizados, mas nós dois
rimos às gargalhadas da brincadeira, que ninguém conseguiu
entender. Alguém me emprestou uma camiseta para o resto da
noite, e a vermelhidão da pele nas minhas costas foi esfriada com
prosecco.
4.
Voar
Meus heróis são todos do mesmo tipo. Fábio Máximo, que até hoje
é escarnecido como “o protelador”, mas que salvou Roma do
exército cartaginês de Aníbal; Hercules Seghers, que,
praticamente ignorado no início da era de Rembrandt, foi o pai do
modernismo e criou imagens como somente se veriam algumas
centenas de anos depois. Ou Carlo Gesualdo, o príncipe de
Venosa, que compôs música quatrocentos anos à frente de seu
tempo — aqui me refiro especialmente ao seu sexto livro de
madrigais —, e só a partir de Stravinsky, que fez peregrinações ao
castelo de Gesualdo, voltamos a ouvir tais tons. Também incluo
entre eles o faraó Aquenáton, que instituiu uma forma primitiva de
monoteísmo meio milênio antes de Moisés. Após a sua morte,
foram feitas tentativas de remover o seu nome de todos os
templos, edifícios e estelas. Ele foi riscado de todas as listas e suas
estátuas foram destruídas. Sobre Hercules Seghers, montei uma
instalação para a Bienal do Whitney Museum, que mais tarde foi
exibida no Getty Museum; sobre Gesualdo fiz um documentário,
Morte para cinco vozes, e sobre Aquenáton também houve planos
efêmeros de um filme.
No Festival de Cinema de Cannes, deve ter sido em meados da
década de 1970, o produtor Jean-Pierre Rassam, um libanês que,
num empreendimento arriscado, acabara de terminar A comilança,
sugeriu que fizéssemos um filme juntos. “Sobre o quê?”, ele me
perguntou. Eu respondi: “Aquenáton”. Ele então esvaziou a garrafa
recém-aberta de champanhe nos ladrilhos do terraço do Carlton
Hotel, declarou-a choca e mandou trazer uma nova. Naquele bar,
uma garrafa de champanhe daquelas era proibitivamente cara.
Brindamos ao projeto, que, eu sabia, nunca seria viável
financeiramente. “De quanto você precisa”, ele me perguntou,
“para começar com os preparativos?” Eu disse: “Um milhão de
dólares”, ao que ele sacou seu talão e assinou um cheque de um
milhão. Naquela época, ele já havia falido várias vezes e usava
drogas; alguns anos depois, morreu de uma overdose. Mas era um
homem radical e criativo na indústria cinematográfica, e eu, de
alguma maneira, o amava. Nunca apresentei o cheque ao meu
banco. Durante anos, admirei-o no meu mural, pregado com um
alfinete; o cheque sem fundos sobreviveu por mais tempo do que
Rassam.
Mas o mais importante de todos os meus heróis foi o da minha
infância, o Siegel Hans. No dialeto bávaro, o artigo definido é
sempre colocado antes do nome das pessoas, e o sobrenome vem
antes do nome. Em húngaro também é assim. O Siegel Hans era
chamado pelo nome da propriedade onde vivia; não conheço até
hoje seu verdadeiro sobrenome. Ele era um jovem lenhador,
incrivelmente forte, que entusiasmava a todos nós com a sua
ousadia. Numa briga memorável na taverna da aldeia, ele derrotou
o Beni, um jovem empregado do Bergerhof. O Beni tinha um tórax
que mais parecia um tronco de carvalho, e durante anos ninguém
ousou desafiá-lo. Na taverna, porém, um dia o Siegel Hans o
provocou, e o taverneiro empurrou os dois brigões para o banheiro
masculino, pois temia por sua mobília. Alguns queriam separar os
dois galos de briga, mas a maioria queria deixar as coisas seguirem
o seu curso natural. “Deixem os dois”, eles argumentaram, “para
vermos quem é o mais forte.” Ali, no banheiro, até onde todos os
fregueses do sexo masculino os haviam seguido, foi travada então a
luta, da qual ao final o Hans foi o vencedor. Ele segurou o Beni
numa chave de braço e bateu a cabeça dele contra um mictório
novo de porcelana que acabara de ser instalado. Pode ter sido
também um vaso sanitário, essa parte da história é apócrifa, pois
também me lembro de que para urinar havia apenas uma chapa
metálica na parede com uma calha instalada embaixo para o
escoamento. Seja como for, o Hans bateu tão violentamente com o
Beni na peça sanitária, que a sua sobrancelha sofreu um grande
corte e caiu inteira sobre o olho. “Agora você vai parar? Agora você
vai parar?”, o Hans repetia para o Beni batendo com ele de novo na
peça até que o Beni, sangrando profusamente, entregou os pontos.
Nós, meninos, recebemos com assombro a notícia do grande
acontecimento. De qualquer forma, para nós, o Hans já havia
vivido a sua apoteose, quando um dia o caminhão de leite fizera a
ponte atrás do Bergerhof quebrar. Era uma pequena ponte de
madeira, e apenas a frente do caminhão havia alcançado a outra
margem com as rodas dianteiras, como se o veículo tentasse se
agarrar a ela com as mãos. Todo o resto caíra obliquamente no
riacho junto com os destroços da ponte. Foram trazidos cavalos
para puxar o caminhão com seu pesado tanque de leite, mas,
diante da constatação de que o veículo pesava cerca de dez
toneladas, nem mesmo se tentou fazer isso. Alguém sugeriu ir
buscar o Siegel Hans, porque ele tinha uma Kettenkrad. A
Kettenkrad era uma espécie de motocicleta com a função de um
pequeno trator, mas que não se deslocava sobre rodas, e sim tinha
lagartas como os tanques de guerra. Ela era usada para arrastar
troncos pesados. Mas quando o Hans chegou ao local do acidente,
ele apenas deu uma olhada rápida no estrago e fez um breve
comentário: a Kettenkrad era muito fraca para algo assim. Nós,
meninos, imaginávamos e torcíamos pelo que viria a seguir. O
Hans desceu até o riacho e, antes de mais nada, tirou a camisa,
agora presumo para que todos pudessem admirar sua portentosa
musculatura. Ele parecia um desses fisiculturistas que hoje em dia
concorrem ao título de Mister Universo. Hans se agachou e
segurou a extremidade traseira do caminhão, e com todas as forças
que possuía tentou fazer o impossível. Nós, os meninos, nos
entusiasmamos com a tentativa. Seus músculos incharam, a sua
artéria carótida saltou, o seu rosto ficou roxo. Então ele
interrompeu a bela proeza. No dia seguinte, trouxeram um
guindaste para içar o caminhão de leite do riacho.
O Siegel Hans estava envolvido em todas as ações de
contrabando de Sachrang. Todo mundo contrabandeava. A
fronteira com o Tirol ficava a apenas um quilômetro da aldeia.
Minha mãe levava a meu irmão e a mim para o outro lado da
fronteira, comprava uns poucos tecidos baratos e os enrolava em
nossos corpos por baixo da roupa. No caminho de volta, eu era
bem gordo para um menino de uns quatro anos de idade, no
máximo, porém os guardas da fronteira faziam de conta que não
viam, porque tinham compaixão pela nossa pobreza. Eu sabia de
várias outras façanhas do Siegel Hans pelas histórias que minha
mãe contava. Uma vez ele contrabandeou da Áustria um barril de
manteiga clarificada, que carregou amarrado com tiras às costas, e
à noite nas montanhas quase deu com uma patrulha de guardas de
fronteira. Para desviar deles, desceu por um penhasco, mas ficou
entalado nas rochas. Somente no final da manhã ele conseguiu se
safar, porém, como o sol já estava alto, o conteúdo sólido de seu
barril derreteu e foi pingando ao longo da descida. Dias depois
ainda se podia ver um largo rastro de gordura nas rochas por onde
ele passara. Mas nós próprios testemunhamos a sua maior proeza.
Deve ter sido quando ele contrabandeou 98 quintais de café, quase
cinco toneladas, como viemos a saber muito mais tarde; de
qualquer forma, a ação foi descoberta e os gendarmes vieram à
noite para prender o Siegel Hans. No entanto, ele conseguiu
escapar por uma janela. Consigo levou apenas a sua trombeta e,
pela manhã, quando clareou o dia, soprou nela do alto do
Spitzstein. Os gendarmes foram atrás dele, mas quando chegaram
ao topo, ele trombeteou dos penhascos do Mühlhörndl, ou do
cume do Geigelstein, no lado oposto do vale. A polícia, humilhada,
punha cada vez mais homens em ação para capturá-lo, mas o Hans
trombeteava de cume em cume. Nós o ouvíamos. Víamos tropas de
gendarmes correndo no vale e subindo as montanhas, mas nem
eles nem os homens estacionados na garganta do vale chegaram a
vê-lo alguma vez. Ele era como um fantasma. Nós, crianças que
éramos, também sabíamos explicar por que ele não podia ser pego.
Para nós, ele corria a partir do Spitzstein na direção do pôr do sol
ao longo de toda a fronteira do país, até alcançar, depois de dar a
volta por toda a Alemanha, pelo outro lado do círculo completo, o
Geigelstein em seu lado voltado para o nascer do sol. Dessa forma,
ele nunca tinha que descer ao vale de Sachrang, entre as
montanhas. Ele só se entregou à polícia doze dias depois, mas a
essa altura já se convertera num mito para nós. Há alguns anos, a
estação de rádio Bayerischer Rundfunk fez um filme sobre o Siegel
Hans, e só então eu soube que ele quase tinha morrido na prisão,
na fortaleza de Kufstein, encarcerado sob as mais miseráveis
condições.
Muitos anos depois, quando a reunificação alemã foi
abandonada por grande parte da política, tive a ideia de caminhar
dando a volta completa ao redor do meu próprio país, sempre
seguindo de perto a linha da fronteira. Lembro-me de como Willy
Brandt, num comunicado do governo, declarou encerrado o “Livro
da Reunificação Alemã”. Naquela época, ele seguia a “política dos
pequenos passos”, buscando aproximar a socialista RDA* da
Alemanha Ocidental com pequenas medidas pragmáticas,
sobretudo econômicas. Do ponto de vista daquela época, também
havia uma certa lógica em melhorar a vida dos cidadãos da RDA, e
dessa forma foi comprada a liberdade, entre outros, de um dos
meus excepcionais cinegrafistas, Jörg Schmidt-Reitwein. Ele havia
sido pego apenas alguns dias após o início da construção do Muro
de Berlim, em 1961, ao entrar na RDA com um segundo passaporte
válido para sua noiva, a fim de tirá-la de lá. Num pseudoprocesso,
ele foi acusado de ter colaborado com a CIA, porque ficara provado
que ele trabalhara uma vez, por duas semanas, como assistente de
câmera para a emissora Freies Berlin, que era em parte financiada
pelo serviço secreto americano. A acusação foi tentativa de
contrabando de pessoas para o inimigo de classe. Jörg recusou-se a
revelar o nome da sua noiva. Ele passou meio ano numa “câmara
de calor” em Bautzen, uma masmorra atravessada pelos canos da
calefação, para ser amansado. Ele tinha sido condenado a cinco
anos de prisão, mas depois de três anos e meio, foi trocado por um
vagão de manteiga numa negociação diplomática. Naqueles anos
era para mim angustiante ver muitos intelectuais, entre eles o
escritor Günter Grass, rechaçarem veementemente a ideia da
reunificação alemã. Eu o desprezava de todo o coração por isso.
Não me surpreendeu que Grass tenha admitido tarde em sua vida
que serviu na SS,* mas ao mesmo tempo respeito a sua coragem de
lidar com o passado. Eu pensava que somente os poetas poderiam
manter a Alemanha unida. Eu pensava que tinha que circundar
meu país, mantê-lo unido como se por um cinto. Parti da capela de
Ölberg, além de Sachrang, junto à fronteira com a Áustria, e
escalei o Spitzstein, como o Siegel Hans fizera aquela vez, e de lá
eu queria, como ele, seguir para oeste acompanhando a fronteira
até chegar, no final dessa volta ao redor de toda a Alemanha, ao
Geigelstein pelo seu lado leste.
6.
Na fronteira
Não tenho lembrança de ter passado por Wrede, embora saiba que
passei por lá. Encontrei uma lata de Coca-Cola achatada que devia
ter hibernado ali esmagada por pelo menos dois anos, pois estava
amarela meio esbranquiçada em vez de vermelha. Por toda parte,
pesadas cortinas fechadas, ninguém tinha esperanças de mudança ou
libertação. A última ação foi esta: um círculo de senhoras decidira
aprender o ofício de açougueiro já em idade avançada e, para
mostrar que estavam levando o propósito a sério, elas atearam fogo a
um ciclomotor em frente à hospedaria. Da linha de fronteira em que
me encontrava, eu via à direita por sobre as colinas a Alemanha, que
parecia suportar o silêncio em convulsões e tremores dolorosos, mas
quase imperceptíveis. À noite a lua deveria aparecer, mas ela não
voltou. A terra noturna cresceu, gigantesca, comparada a si mesma.
Fiz luz com o isqueiro e na minha angústia escrevi meu nome na
parte de dentro da pulseira do meu relógio. Dormi numa encosta ao
relento. Horas depois, no meio da noite, eu me levantei angustiado
entre as luzes do vale e as estrelas acima de mim, e vomitei. Perto do
amanhecer, consegui dormir um pouco, mas então já estava
clareando e logo o sol nasceria. Acima de mim, num galho, ouvi um
pássaro se sacudir e pôr a sua plumagem em ordem. Só então ele
começou a cantar. Eu me sentei. A Alemanha está deitada antes do
nascer do sol, irredimida, e olha com campos arregalados para o céu
indiferente.
Minha avó descreve seu encontro com ele em suas memórias para
os netos curiosos. Delas deduzo que ela teve uma infância
tranquila em Frankfurt, idílica, burguesa. Já na primeira frase de
suas anotações, ela fala de sua “infância linda, despreocupada, feliz”.
A casa onde morava tinha uma “enorme sacada voltada para o jardim
com vista para o verde e para a Promenade, o antigo fosso da cidade”.
Uma olhada no mapa de Frankfurt mostra que essa localização
junto ao parque do antigo fosso hoje deve ser completamente
inacessível. No jardim, em plena cidade, havia árvores e arbustos
frutíferos.
“Um orgulho especial”, lembra-se minha avó dessa época por
volta de 1890, “era uma grande e bela pereira ao lado do caramanchão.
Ao longo do muro, cresciam as videiras, cujos cachos eram sempre
empacotados individualmente em saquinhos de linho arejados para
protegê-los dos vorazes melros. Em frente ao terraço, no qual se entrava
pelo salão do jardim, havia uma fonte redonda, no meio da qual um
querubim segurava no alto a cabeça de um ganso, de cujo bico jorrava
um jato de água. Muitos peixes-dourados eram introduzidos ali a cada
primavera. O vovô se admirava de como eles escasseavam ao longo do
verão e suspeitava de gatos, até que uma manhã, bem cedinho, ele era
um madrugador, avistou uma cegonha tomando seu café da manhã.”
Tamanha prosperidade é incompreensível para mim, e é quase
inimaginável que no jardim da minha avó, em plena metrópole que
hoje é Frankfurt, uma cegonha tenha pegado peixes na fonte. Mas
minha avó Ella deixou tudo isso para trás quando se casou com
meu avô, para viver e trabalhar com ele na empobrecida ilha —
então turca, agora grega — de Cós. Seu encontro com meu avô
havia sido combinado de longa data. O pai dela cuidara
devotadamente de seu sogro nos últimos dois anos de vida deste,
que havia sofrido vários derrames. Em agradecimento, ele ganhou
uma viagem de navio para descansar, e foi aí que o destino
interveio por minha avó. Seu pai a levou consigo na viagem, que
começou com a descida do Reno até Antuérpia, onde embarcaram
rumo à França e à Espanha e depois a Gênova e a Nápoles. Ella
tinha então dezessete anos, era bonita, alta e elegante. Perto do
final da viagem, num passeio até Capri, um companheiro de
viagem, um químico da Universidade de Tübingen, o professor
Bülow, falou com ela.
Nos últimos oito anos de sua vida, porém, ele caiu numa loucura
cada vez mais profunda. Não era demência, mas uma forma de
calcificação dos vasos sanguíneos do cérebro. Apenas raramente
ele reconhecia as pessoas ao seu redor. Minha irmã mais nova,
Sigrid, filha do segundo casamento de meu pai, quando criança
pequena costumava ir a Großhesselohe, onde Rudolf havia
construído uma casa, e quando sua mãe, Doris, ia buscá-la de volta,
meu avô sempre ficava fora de si. Ele parava os transeuntes no
portão do jardim e pedia ajuda, dizendo que haviam raptado,
roubado sua filha, e descrevia a criança de três anos como um anjo
de doçura e beleza, o que de fato descrevia minha irmã com
propriedade, pois todos nós sentíamos o mesmo. Várias vezes a
polícia veio e a minha avó teve que esclarecer a situação, várias
vezes o meu avô escapou do jardim trancado e vagou pela floresta
adjacente, bem onde, a algumas centenas de metros, em Pullach,
ficava a sede do Serviço Federal de Inteligência da Alemanha
Ocidental. Alarmados, os guardas que vigiavam a área do Serviço
Secreto juntavam-se à busca, e em geral eram eles que o
encontravam. Meu irmão e eu, sobretudo eu, amávamos o nosso
avô, mas como crianças éramos também cruéis. Em frente à
varanda que dava para o jardim havia uma sebe, e nos escondíamos
atrás dela e, quando supúnhamos que ele estava dentro da casa ao
alcance de nossa voz, gritávamos: “Herr Professor,
Menschenfressor!” [Sr. professor, canibal!]. Só Deus Todo-Poderoso
sabe o que nos levava a fazer isso, espero que tenha sido a rima
primitiva, com a qual nos entusiasmávamos. Meu avô vinha para o
jardim com sua bengala e nós fugíamos para uma bétula alta no
canto, pois sabíamos que ele não seria capaz de subir atrás de nós.
Um dia, minha avó foi testemunha ocular e auditiva da nossa
infâmia. Ela me pôs sobre os joelhos e me bateu na bunda com
uma colher de pau até quebrá-la. Imediatamente pegou uma
segunda, tamanha a sua indignação, e também esta se partiu. Eu
sabia que tinha merecido.
Mas o meu avô estava sempre lúcido quando falava das suas
escavações e descrevia as antigas inscrições em mármore que havia
encontrado sobretudo na fortaleza veneziana na entrada do porto
da ilha de Cós ou que estavam inseridas na própria alvenaria como
pedras de enchimento. Mais tarde, em 1967, quando eu tinha 25
anos e rodava meu primeiro longa-metragem, Sinais de vida, na ilha
de Cós, nessa mesma fortaleza, eu trouxe algumas das inscrições
para a cena, e um dos protagonistas traduzia o texto de um
paralelepípedo de mármore, que fica no chão do pátio interno da
construção. Meu avô Rudolf trouxe da filologia clássica para a
arqueologia a apreciação analítica precisa de um texto antigo. Na
cena, eram os mimiambos de Herondas, um dramaturgo menos
importante do século III a.C. O texto, do qual apenas se conheciam
algumas linhas esparsas, foi encontrado quase na íntegra apenas
em 1890, em papiro bem preservado, numa tumba egípcia no oásis
de Fayoum. Os mimiambos são uma série de farsas curtas,
extraídas diretamente da vida popular, em sua maioria textos um
tanto grosseiros para várias personagens em cena, mas
interpretados, como se supõe, por um único ator mascarado nas
ruas e mercados, que então recitava todas as personagens com
vozes distintas. Os textos tratam de coisas profanas, um deles, por
exemplo, de uma criada que não consegue acordar de manhã,
embora já passe da hora de alimentar os porcos; um outro, do dono
de um bordel que de repente, no alto páthos da tragédia ática,
começa a falar numa linguagem arcaica que se ouvia nos palcos
séculos antes; e um terceiro, de duas jovens que querem arrancar
de um sapateiro o nome de quem comprou os dildos que ele
confeccionou. É impressionante como os pudicos acadêmicos no
final do século XIX se expressavam de maneira afetada e apenas se
enredavam em insinuações sobre o tema que abordavam. Apenas o
quinto mimiambo sai um pouco desse quadro, e de certa forma
decidiu a vida do meu avô. Nele, duas mulheres se dirigem ao
santuário de Esculápio, o deus da medicina. Em seu medo de que
este pudesse tornar as pessoas imortais, Zeus, o pai dos deuses,
matou-o com um raio. No texto, as mulheres descrevem com
riqueza de detalhes as obras de arte e o templo, bem como os
templos de cura na ilha de Cós. Herondas, que presumivelmente
viveu e escreveu na cidade egípcia de Alexandria, era com alguma
certeza proveniente da ilha. Da mesma forma que, gerações antes
dele, Heinrich Schliemann, entusiasmado com a Ilíada, escavou
Á
Troia na Ásia Menor, o meu avô, inspirado pelos mimiambos, pôs a
pá nas costas, por assim dizer, e foi para a ilha de Cós. Ele tinha
um senso para paisagens aliado à força da sua imaginação para ver
diante de si a ilha dois milênios antes, quando ainda era coberta de
florestas. Por exemplo, numa vasta planície de campos e olivais
dispersos, ele escavou um lugar que não se destacava em nada e
encontrou ali uma casa de banhos da Antiguidade romana tardia.
Ele fez testes de escavação na montanha da ilha e encontrou os
primeiros vestígios de um grande complexo de templos. Quase
cinquenta anos depois da sua descoberta, um guia turístico grego
que havia trabalhado como faz-tudo para o meu avô quando jovem
afirmou que tinha informações confidenciais do local da
descoberta e que pusera meu avô na pista certa. Esse mito, embora
refutado por minuciosos relatórios de pesquisa de colegas de
Rudolf, continua revivendo, porque é da natureza dos mitos ter
uma vida longa além do factual. O meu avô tinha uma qualidade
que eu aprecio muito, ele sabia ler paisagens.
Em sua aflição, transtornado pela loucura, décadas depois
desses eventos, ele estava obcecado em um cenário terrível: seria
expulso de casa, da casa que havia construído para Ella e para si
nos arredores de Munique, viriam buscá-lo ao amanhecer,
chegariam com um caminhão e levariam tudo, seus livros, suas
roupas, seus móveis. Noite após noite, ele se levantava
profundamente consternado e triste, e punha seus ternos em
malas, preparava os móveis para o transporte. Dia após dia, minha
avó desfazia as malas, pendurava as roupas de volta nos armários e
recolocava os móveis no lugar. Alguém fez insinuações cautelosas
se não seria melhor colocar Rudolf num asilo, mas minha avó
descartou rispidamente essa ideia. “Com este homem eu vivi feliz
toda a minha vida. Quem quiser levá-lo primeiro terá que passar
por cima do meu cadáver.” Só mais tarde, ela me descreveu o
momento que considero o mais comovente. Durante os últimos
anos, seu marido, Rudolf, não a reconhecia mais e a chamava de
“cara senhora”. Num jantar, ele apareceu vestido de modo
estranhamente formal, com terno e gravata. Após a entrada,
dobrou com cuidado o guardanapo de volta nos vincos do tecido,
alinhou com apuro os talheres ao lado do prato e se levantou.
“Minha cara senhora”, ele lhe disse com uma mesura, “se eu já não
fosse casado, agora eu ia querer pedir a sua mão.”
A casa em Großhesselohe decaiu totalmente depois da morte da
minha avó. A geração seguinte à dela foi um fracasso total. A
começar pelo meu pai, Dietrich, foi uma geração perdida. Além
dele, Rudolf e Ella tiveram uma filha, minha tia. Tenho o máximo
respeito por ela, que era gentil e camarada e muitas vezes deu em
segredo algum dinheiro à minha mãe, que com frequência se via
em extrema necessidade financeira. Meu próprio pai nunca
cumpriu as suas obrigações e se casou outras duas vezes. Para ele,
era das mulheres a tarefa de criar os filhos — dizíamos, no nosso
jargão familiar, a segunda e a terceira ninhadas — e garantir o
sustento das famílias. Sua irmã havia se casado alguns anos antes
do meu nascimento com um homem que destoava do padrão,
comentava-se à boca pequena que ele era um proletário que nunca
tinha lido um livro, o que eu achava refrescante, mas esse homem
tombou cedo na frente oriental, ou pode ser também que tenha
morrido de alguma doença na linha de combate. Minha tia, que
tinha uma filha com ele, tomou corajosamente o seu destino nas
mãos e se tornou professora. Eu era bastante próximo dessa prima.
Crescemos sempre nos encontrando em festas de aniversário da
família. Na casa dos meus avós, para a qual minha tia se mudou e
da qual depois assumiu o controle, havia um morador no primeiro
andar, um paquistanês, ele alugava um quarto. Presumo que tenha
ido para a Alemanha durante os tumultos da separação da Índia e
do Paquistão. Ele era uma espécie de engenheiro elétrico, com ou
sem diploma eu nunca soube ao certo, mas o seu quartinho vivia
cheio de rádios estripados que ele consertava para uma clientela da
vizinhança. Muitas vezes eu ficava surpreso com a habilidade com
que ele sabia soldar resistores e conexões de cabos finíssimos. O
seu nome era Raza, nós o chamávamos de tio Raza, ou tio Cuco,
porque quando nos via brincando no jardim, muitas vezes chamava
a nossa atenção imitando o canto de um cuco. Quando minha
prima tinha cerca de catorze anos, sua mãe a pegou em flagrante
com tio Raza. O relacionamento sexual secreto provavelmente já
durava bastante tempo, e Raza foi condenado a vários anos de
prisão por um tribunal. Eu só soube de tudo isso muito mais tarde.
Já antes desses acontecimentos, minha tia perdera o controle da
própria vida. Ela dirigia um automóvel, mas não reparava em
cruzamentos ou sinais vermelhos, como ela podia sobreviver assim
por uma semana que fosse já era para mim um mistério. No
trabalho, ela tinha cada vez mais problemas, não dava mais conta
de corrigir as lições de casa, entrava em conflitos bizarros com
colegas. Depois que minha avó morreu, a casa foi ficando cada vez
mais degradada. Minha tia acumulava todo tipo de coisas. Jornais
eram empilhados junto às paredes até o teto, em várias fileiras,
uma pilha que caiu uma vez quase a matou. Ela era obcecada por
armazenar papéis, barbantes, vidros de conserva e potes plásticos
de iogurte, a casa virou um depósito de lixo. Os cordões dos
saquinhos de chá eram separados e guardados para algo como
poder trançar uma corda em alguma emergência imaginária. Os
minúsculos grampos de metal dos saquinhos também eram
colecionados à parte, e as folhas já utilizadas eram retiradas para
fazer compostagem. Mas minha tia nunca era capaz de encontrar
as coisas que havia juntado. Em algum momento, ela não
conseguia mais chegar até a máquina de lavar roupa no porão,
porque também o último estreito acesso até lá estava obstruído
pelo lixo acumulado. Meu irmão mais novo da terceira ninhada,
que havia se mudado para a casa quando era estudante de teologia,
observava como ela à noite no jardim, nua, estendia para secar a
roupa de baixo que lavara à mão. Aquele jogo de roupa de baixo era
o único, todo o resto não estava mais ao alcance, soterrado por
montanhas de lixo, então ela fazia esse trabalho à noite, quando
ninguém podia ver que estava nua, até que, ao amanhecer, vestia
novamente a roupa íntima ainda úmida. Tenho fotos do interior da
casa. Apenas a cama, meio coberta de papéis e lixo, ainda era
acessível por um caminho sinuoso entre pilhas de caixas. Mais
tarde, quando a casa foi desobstruída, foi encontrado numa
prateleira no porão um vidro de conserva de mirtilos com a data de
1942, que guardei por muito tempo. Nos últimos anos da minha
tia, o caos na casa dos meus avós se espalhou para fora, até a
varanda foi tomada pelo lixo.
Depois da minha juventude, perdi minha prima completamente
de vista. Ela se casou com um matemático americano, mas ele teve
vários colapsos nervosos e acabou voltando para os Estados
Unidos. Minha tia se juntou ao casal. Eles administravam juntos
uma fazenda ecológica, com cabras cujo queijo e leite vendiam em
feiras de produtores. Minha prima teve dois filhos, um menino e
uma menina, mas as circunstâncias devem ter sido terríveis, com
todos contra todos em pé de guerra, até que os filhos finalmente
deram a entender que matariam toda a família, e isso em algum
momento antes de completarem onze anos de idade e, portanto,
quando ainda eram considerados inimputáveis pela lei. Mas pelo
menos essa parte da tragédia eu conheço apenas de segunda mão.
8.
Elisabeth e Dietrich
AGUIRRE
Eu sou o Grande Traidor, não pode
haver maior. Aquele que se atrever
apenas a pensar em fugir será cortado
em pedaços, e depois será pisoteado
até que com ele se possa pintar
as paredes. Quem comer um só grão de milho
a mais e beber uma única gota de água a mais,
será encarcerado por 155 anos.
Se eu, Aguirre, quiser que os pássaros caiam mortos
das árvores… então os pássaros cairão
das árvores mortos. Eu sou a ira de Deus.
A terra em que piso me vê e estremece.
À
Às quatro da manhã, no escuro, amarramos as canoas umas às
outras e nos deixamos levar rio abaixo e choramos.
Com meus irmãos, e sobretudo com Lucki, aprendi não apenas
a inspirar confiança, mas também a responder incondicionalmente
por ela. Um exemplo disso: no meu filme Visita ao inferno, que
rodei com o vulcanólogo Clive Oppenheimer em todos os
continentes possíveis, estivemos também na Coreia do Norte, em
2015. Após um ano de negociações, Clive conseguiu permissão
para filmar, o que na verdade era algo considerado impossível.
Havia restrições quanto ao que podíamos gravar e éramos o tempo
todo vigiados por agentes do Serviço Secreto. Mas fomos
autorizados a filmar na borda da cratera do vulcão Paektusan.
Como a montanha fica bem na fronteira com a China, as
precauções eram particularmente rígidas. Ali muitos norte-
coreanos tentavam fugir atravessando a fronteira, havia diversos
bloqueios nas estradas, onde éramos inspecionados por sentinelas
militares. Chamou minha atenção que todos os fuzis automáticos
tinham também baionetas acopladas, mas não decorativas, como as
que se veem nos guardas de honra do Cemitério Nacional de
Arlington, nos Estados Unidos, e sim finamente afiadas, como
navalhas. A Coreia do Norte é vista como uma grande ameaça
militar por causa de algumas poucas armas nucleares que possui,
mas o país também dispõe de um milhão de soldados. Se essas
hostes de combatentes fanáticos fossem enviadas através da
fronteira, distribuídas num amplo leque e profundamente
escalonadas, ou seja, com poucas chances de serem detidas por
força aérea ou metralhadoras, a capital sul-coreana seria tomada em
poucos dias. A infantaria é uma ameaça que ninguém parece notar,
porque é considerada obsoleta.
Filmamos junto à cratera, que é considerada o local mítico de
origem do povo coreano, e todas as turmas escolares e soldados
devem visitá-la pelo menos uma vez na vida. Enquanto gravávamos
com um cientista, de repente ouvi bem perto de nós algumas
risadinhas seguidas de um gritinho abafado de uma jovem. Na
mesma hora desloquei a câmera naquela direção, e filmamos um
grupo de soldados tirando fotos de si mesmos com o lago da
cratera ao fundo. Um jovem soldado tinha agarrado uma bela
jovem pelos quadris e lhe fazia cócegas na axila. Foi bom ver a
alegria de viver que emanava daquele grupo, era algo
completamente inusitado, que mostrava um lado diferente, muito
humano das Forças Armadas norte-coreanas. Então um dos nossos
guarda-costas interveio. Tivemos que desligar a câmera de pronto.
Ouvi um sermão sobre como eu acabara de quebrar as regras que
haviam sido estabelecidas para mim. O soldado norte-coreano
estava sempre pronto e determinado a derramar seu sangue pela
pátria e pelo amado irmão e líder do povo, qualquer outra coisa era
inconcebível. Além disso, era particularmente grave o fato de eu
ter filmado soldados em uniforme completo, dessa forma os seus
rostos poderiam ser identificados pelo inimigo imperialista, em
resumo, eu estava sendo instruído a destruir os meus registros no
ato. O problema era que, com o nosso armazenamento digital de
dados, tecnicamente não podíamos excluir o material de imediato.
Nem mesmo com equipamentos norte-coreanos e seus técnicos
era possível fazer isso. Fui então informado de que todo o nosso
disco rígido teria de ser confiscado para a destruição do material.
Argumentei que nele estavam armazenados quatro dias inteiros de
filmagem, o que seria um duro golpe para o filme. Propus então
manter as imagens armazenadas, mas dar uma garantia de que
nunca publicaria o material com os soldados. “Garantia?”, ouvi
como resposta. “O senhor se refere a um acordo por escrito de
cinquenta páginas que o senhor rasgaria já no avião quando
estivesse fora do território norte-coreano?” Respondi que eu não
agiria assim, mas de maneira diferente. Em muitos dos meus
filmes maiores, como Aguirre — que aqueles guarda-costas
designados especialmente para nós conheciam —, e, em geral,
com todos os meus colaboradores mais importantes, não houvera
contratos escritos, apenas orais, selados com um aperto de mão.
Nunca um tal acordo havia sido quebrado. Eu disse também que
naquele caso poderia dar não apenas uma, mas três garantias.
“Quais?”, me perguntaram. Eu respondi: “Minha honra, minha
face e meu aperto de mão”. O inesperado aconteceu. Eles me
permitiram ficar com o disco rígido. E eu, por minha vez, nunca
usei esse material e jamais o usarei no futuro.
Em Aguirre, além do meu irmão Lucki, outra pessoa teve o seu
primeiro grande momento, Walter Saxer. Ele havia chamado
minha atenção anos antes, quando eu estava planejando meu filme
Também os anões começaram pequenos na ilha de Lanzarote, nas
Canárias, um jovem suíço que vinha de St. Gallen e se pusera a
correr o mundo. Naquela época, ele administrava um pequeno
hotel na ilha e nos ajudara, por exemplo, a encontrar o carro que
deveria rodar em círculos indefinidamente. Logo após o início das
filmagens, quando o veículo, uma lata-velha dos anos 1950, já
estava consolidado nas imagens do filme, ele pifou, de uma vez por
todas, acho que o bloco do motor havia estourado. No prazo de um
dia, Saxer identificou um modelo semelhante em algum lugar na
estradinha rural, parou-o e conseguiu convencer o proprietário a
lhe ceder o motor. Este recebeu um substituto, e Saxer instalou o
motor em nosso veículo durante a noite e também o modificou,
pois ele não correspondia exatamente às dimensões. Eu nunca
tinha visto algo assim antes. Walter Saxer estava sempre
determinado a fazer o que fosse necessário, não havia risco que
não se dispusesse a correr. Ele desprezava todos que não
trabalhavam tão duro quanto ele próprio, sobretudo os atores com
suas afetações bobas eram para ele muitas vezes uma pedra no
sapato. Em Aguirre, no sopé de Machu Picchu, ele dormia no chão
de terra com uma pequena indígena corcunda e seus filhos,
rodeados por dezenas de irrequietos porquinhos-da-índia, que
eram mantidos ali como galinhas de estimação e às vezes iam para
a panela. Mais tarde, esse também foi meu alojamento. Com Saxer,
eu nadei no rio Urubamba para recuperar uma plataforma móvel,
cujo cabo havia se enroscado na outra margem. Ainda me lembro
de como de repente um enorme redemoinho que sorvia tudo em
seu caminho veio em nossa direção. Foi ele quem, do local de
filmagem nos desfiladeiros do rio Hualhaga, onde há três
corredeiras seguidas, numa situação desesperadora de toda a
produção, andou a noite toda no escuro, escalando as enormes
pedras escorregadias até a aldeia de Chasuta. Ele carregava consigo
uma pasta de documentos. Certa vez, eu o vi trabalhar sessenta
horas seguidas, no final das quais o encontrei dormindo sobre um
monte de pedras.
Muitos dos acessos de cólera de Kinski se dirigiam a ele, mas se
dirigiam ainda mais a mim e, na verdade, a tudo e todos. Kinski
havia exigido ficar o tempo todo em contato com a natureza. Mas
eu o avisara várias vezes por escrito que não filmaríamos a cena de
abertura numa geleira como estava descrito no roteiro, e sim
começaríamos com a descida da expedição ao vale do Urubamba.
Apesar disso, Kinski levou casacos de plumas, picaretas de gelo,
cordas, barraca e sacos de dormir de plumas, com os quais não
sabíamos o que fazer. Depois, cumprindo exigências suas, tivemos
que armar a sua barraca numa clareira na selva, mas logo na
primeira noite choveu forte e a umidade penetrou lá dentro. Ele
teve um acesso de fúria que durou horas, avançando pela manhã
adentro. Ele queria celebrar a natureza, com poses, é claro, mas
sem chuva. Depois disso, erguemos um telhado trançado com
folhas de palmeira sobre sua barraca, mas mesmo assim ainda havia
umidade no seu abrigo, porque a sua respiração embaçava as lonas
da tenda por dentro. Mais berros, mais gritos inarticulados. Nesse
caso, a sua raiva se dirigia sobretudo aos indígenas das terras altas,
que abrigamos temporariamente para os poucos dias de filmagem
num grande celeiro, no qual em tempos anteriores as folhas de
tabaco eram postas para secar. Saxer havia construído beliches de
lona muito simples, mas funcionais. Enfrentei Kinski e deixei com
toda a calma a sua fúria cair sobre mim. Na terceira noite, só havia
a opção de alojar Kinski no único hotel lá em cima, nas ruínas incas
de Machu Picchu. Mas os oito quartos que havia na época estavam
todos ocupados. Naqueles tempos, não havia uma única
acomodação embaixo, no terminal do pequeno trem de Cusco, e o
belíssimo hotel do meu amigo Joe Koechlin só seria construído
mais tarde. O que fazer? Saxer tanto falou no ouvido do dono do
hotel, que ele abdicou do seu próprio quarto e se mudou para uma
espécie de armário de vassouras. Mas, mesmo lá no hotel, os
ataques de fúria de Kinski continuaram durante a noite inteira. Ele
manteve todo o hotel acordado. O louco colérico bateu em sua
esposa vietnamita, que tentou fugir dele, e a impeliu escada abaixo
à sua frente.
Walter Saxer foi o diretor de produção dos meus filmes Kaspar
Hauser; Nosferatu; Woyzeck; Cobra Verde e muitos outros, ele
participou de quase tudo o que eu fiz na época. Sua maior
realização foi sem dúvida o filme Fitzcarraldo. Os trabalhos
preparatórios duraram três anos e meio. Foi ele quem iniciou a
construção de dois navios idênticos, para a qual primeiramente
teve que ser criada a infraestrutura, nesse caso todo um estaleiro
no meio da selva. Foi ele quem construiu os acampamentos para as
centenas de figurantes indígenas e para a equipe técnica, contratou
os figurantes indígenas e, do ponto de vista técnico, conseguiu
fazer o vapor subir o barranco. Um de seus problemas, e ele é
ressentido com isso, é que falei em entrevistas que eu havia
arrastado um navio por cima de um morro, quando foi ele e a sua
equipe que o fizeram. Nas entrevistas, falei em sentido metafórico
que todo adulto deveria caçar uma baleia-branca ou então rebocar
um navio a vapor por cima de um morro. Agora quero pôr os
pingos nos “is”: tecnicamente, foi Walter Saxer quem transportou
o navio. Mas também gostaria de salientar que houve um momento
crítico durante as filmagens, no qual o nosso técnico brasileiro
expressou temores quanto a rebocar o navio barranco acima,
porque o pilar de apoio, belamente chamado de “muerto” em
espanhol, cravado no solo para esse fim, não lhe parecia estável o
suficiente. O brasileiro desistiu e recuou, acho que ele teve medo
da própria coragem. Naquela época, assumi sozinho toda a
responsabilidade e mandei ancorar um novo “muerto”
extremamente fundo e de forma segura. Do ponto de vista técnico,
também aqui Saxer foi o executor. Esse novo pilar teria suportado
o peso de cinco de nossos navios. Infelizmente, nesse estranho
trabalho que os filmes exigem, as amizades também se
desmancham, e foi assim comigo e com Walter Saxer.
17.
Privilegium maius, Pittsburgh
Posso suportar que não sou mais capaz de pular com o meu pé
direito. Foi um acidente estúpido e sem sentido que causei a mim
mesmo quando pulei da janela, mas no México um dos homens na
arena, que era um grande mestre do laço, disse-me que isso fazia
parte da vida, que era pura vida. Seu nome era Euclides. Ele apenas
me deu um aperto de mão depois que fui arremessado pela
primeira vez, quando eu sangrava pela boca por ter quase cortado
fora a minha própria língua com os dentes no impacto. A sua mão
era como um torno de ferro. Ele não se referia à “pureza” da vida
tal qual nos santos de antigamente, mas à presença nua e crua,
tempestuosa e arrebatadora da vida. Mais tarde, em meu filme
Cobra Verde, de 1987, dei em sua homenagem o seu nome a um
jovem aleijado de doze anos que dirige uma pousada e é o único
que não tem medo do bandido Cobra Verde, interpretado por
Klaus Kinski. O garoto tem um distúrbio de fala e, gaguejando,
mas muito orgulhoso, recita o próprio nome: Euclides Alves da
Silva Pernambucano Wanderley.
De qualquer forma, como a minha perna de impulso é a
esquerda, pude continuar a jogar futebol na Alemanha. Meu irmão
Till me apresentou ao München Schwarz-Gelb [Preto e Amarelo
de Munique] e lá eu jogava de líbero ou de centroavante. Os
associados do clube eram motoristas de táxi, padeiros,
assalariados, e eu adorava todos eles. O Preto e Amarelo não jogava
em nenhum campeonato oficial, mas acho que não faríamos feio na
quinta divisão. Meu irmão era mais habilidoso do que eu como
goleiro. Quando tinha catorze anos, ele chamou a atenção de um
caçador de talentos do 1860-München, que era o clube dominante
em Munique na época, antes do Bayern, mas minha mãe o
dissuadiu de uma carreira de atleta profissional. O Preto e Amarelo
havia sido fundado por um confeiteiro, Sepp Mosmeir. Nunca
conheci um homem tão comovente. Sepp irradiava uma simpatia e
uma amabilidade incondicionais e amava profundamente a ópera,
além de possuir qualidades extraordinárias de liderança. Todos nós
dávamos tudo por ele. Mas também pairava uma sombra sobre
todo o seu ser. Em sua infância no sul do Tirol, ele e seus
amiguinhos escalaram um poste elétrico no aterro da ferrovia, e
um deles conseguiu se agarrar ao fio de alta tensão. O menino foi
sacudido violentamente por alguns minutos, e começou a fumegar.
Sepp descreveu o som de como o corpo, todo carbonizado, por fim
bateu no chão. Soou como um saco cheio de briquetes atingindo
os trilhos da ferrovia. A mulher de Sepp, a “Moosin”, morreu de
câncer após longa agonia, e então o mesmo destino o apanhou. Eu
o encontrei pouco antes de ele morrer. Ele deixou um vazio em
mim para sempre.
Mudei de goleiro para jogador de linha. No Festival de Cinema
de Cannes, acho que foi o de 1973, quando Aguirre estava em
exibição na Quinzaine des Réalisateurs — a mostra dos diretores,
uma vez que o festival oficial havia rejeitado o filme —, foi marcada
uma partida de futebol de atores contra diretores no estádio, e eu
fui o goleiro. A maioria dos diretores era muito pouco atlética,
alguns eram gordos e mal conseguiam andar, enquanto os atores
eram em sua maioria bem treinados. Na verdade, éramos
irremediavelmente inferiores, mas eu defendi todos os chutes
contra o meu gol. Os atores então mudaram de tática. Eles
deixavam calmamente os diretores entrarem em seu campo de
defesa e então chutavam longe a bola em direção ao meu gol
solitário, onde apareciam dois ou três livres na minha frente. Entre
eles estava Maximilian Schell, que havia jogado na seleção nacional
suíça de amadores. Eu o vi correndo atrás de um passe longo,
totalmente sozinho na minha direção. Bem longe da grande área,
alcancei a bola uma fração de segundo antes dele e chutei para fora,
mas Schell colidiu contra mim com força total. Ele poderia ter
desviado, mas era muito ambicioso mesmo num jogo amistoso
como aquele. Eu vi estrelas. Tive uma luxação no cotovelo, ele
virava para a frente em vez de para trás. Levei um ano inteiro para
me recuperar. Schell e eu ficamos amigos por causa dessa
trombada, e eu faço uma ponta em seu filme indicado ao Oscar, O
pedestre.
A partir de então passei a jogar como centroavante, embora
quase todos os jogadores do Preto e Amarelo fossem mais velozes
ou tecnicamente melhores do que eu. Mas eu entendia mais
depressa os deslocamentos no campo e também sempre
pressionava intensamente o gol adversário. Muitas vezes, minha
pressão pelo gol atraía mais de um zagueiro para cima de mim e
isso abria brechas para os outros jogadores do time. Eu era capaz
ler situações, e esse tipo de jogador sempre me impressionou em
particular, como o italiano Franco Baresi na década de 1980, por
exemplo, um zagueiro que lia as intenções coletivas de todo o
ataque adversário; para mim ninguém entendia o jogo tão
profundamente quanto ele. Como atacante, Thomas Müller do
Bayern de Munique também é desse tipo, um jogador que de
repente surge como um fantasma, sozinho diante do gol: ele
percebe os espaços como nenhum outro e ninguém sabe dizer de
onde ele veio. Meu avô era dessa mesma cepa, ele era capaz de ler
paisagens. Sepp Mosmeir jogava na defesa, e o seu sonho de
marcar um gol nunca se tornou realidade. No seu jogo de
despedida, de repente houve um pênalti a nosso favor. Toda a
equipe incentivou o relutante Sepp a fazer a cobrança. Sepp
Mosmeir marcou. Levamos o homem aos prantos para fora do
campo. O árbitro parou o jogo por vários minutos.
No futebol, sofri algumas das lesões típicas desse esporte, como
uma ruptura de ligamentos, e uma vez quando eu ainda era goleiro,
num jogo contra a Associação dos Açougueiros da Baviera, um
time de jovens musculosos que usavam a força bruta contra nós
como se fôssemos gado, um dos atacantes me acertou no queixo
com toda a força. Eu havia segurado a bola e fiquei desmaiado no
chão. Quando acordei, não quis sair de campo e tentei explicar ao
juiz que a expulsão não estava certa, que não tinha sido eu quem
cometera a falta, e sim o meu adversário. Mas o árbitro ficou
gritando algo que, com os zumbidos dentro da minha cabeça, não
consegui ouvir. Por fim, ele puxou a minha camisa e apontou para
o sangue que havia nela em abundância e que devia ser meu, pelo
que entendi. Levei catorze pontos no queixo, mas eu não tinha
seguro de saúde na época e quis manter os custos baixos, e
simplesmente me deixei costurar a frio. Da mesma forma, extraí
um dente sem a injeção anestésica usual. Ver isso como
masoquismo seria uma interpretação errada. Era algo que condizia
com a maneira como eu entendia o mundo e vivia a minha vida.
Quando éramos crianças, em Wüstenrot, nós, os meninos,
travávamos batalhas com castanhas recém-rebentadas das cascas, e
uma vez eu subi no telhado de um celeiro para ter uma posição
segura, de onde também pudesse ver quem estava escondido onde.
Sentei-me em posição de cavaleiro no cume do telhado e uma voz
chamou o meu nome. Virei a cabeça em direção a ela e, nesse
momento, fui atingido em cheio no olho. Um relâmpago dentro de
mim me sacudiu e ainda me lembro de como escorreguei de
bruços pela íngreme vertente do telhado. A mim pareceu que
deslizei durante meses pelo telhado abaixo. Caí de cabeça em cima
de algumas máquinas agrícolas, ainda posso ver as barras de ferro e
os arados abaixo de mim. Torci o antebraço, ambos os ossos —
ulna e rádio — se romperam. O médico em Wüstenrot não
corrigiu corretamente a fratura. Uma semana depois, após dores
excruciantes, o gesso foi removido no hospital e tudo foi
remontado.
Mas o pior de tudo que me aconteceu foi uma queda que sofri
esquiando em 1979, perto de Avoriaz, na região do Mont Blanc. Eu
havia sido convidado com um filme para o festival de cinema e
peguei emprestado um equipamento para esquiar. Eu estava
interessado numa encosta vertiginosamente íngreme, na qual
alguns atletas faziam a tentativa um tanto tola de quebrar o recorde
mundial de velocidade em esquis. Naquela época, ele já era
superior a 220 quilômetros por hora. Nessas velocidades, os
esquiadores usavam capacetes aerodinâmicos alongados que iam
até o cóccix, além disso, eles instalavam uma espécie de aerofólio
nas panturrilhas. Quando o meu grupo avançou, fiquei para trás
por um tempo e estudei a encosta. Comecei a descer de cerca de
dois terços de sua altura. A sensação era inebriante. No final, uma
suave inclinação no sentido oposto, que se subia em disparada,
ajudava a reduzir a velocidade. À noite, contei sobre a minha
experiência, mas riram de mim, porque na minha opinião eu havia
chegado a 140 quilômetros por hora. Dois dias depois, estávamos
novamente perto da mesma descida e eu disse: vou apresentar a
prova aqui e agora. Infelizmente, isso não passou de pura fanfarrice
da minha parte. Dessa vez comecei alguns metros mais alto. Em tal
velocidade, as menores irregularidades do terreno causam
solavancos, como contra a suspensão de um carro de corrida, e às
vezes, apenas um palmo acima da neve, perde-se a aderência ao
solo por vinte ou trinta metros. Ainda me lembro de duas coisas:
passei disparado com os meus esquis na altura dos olhos do meu
irmão Lucki e de um produtor israelense, Arnon Milchan, ambos
homens altos, e naquele momento soube que estava alto demais. E
quando aterrissei, ainda vejo em câmera lenta, um dos esquis
disparou como uma lança. Lucki até hoje não consegue descrever o
que viu. Mas ao que tudo indica minha bota ficou cravada na neve
e eu acabei caindo de cabeça. Devo ter sido arremessado pelo ar
por muitos metros, e só depois de cerca de cem metros finalmente
parei. A princípio, o maior perigo era que no meu estado
inconsciente eu pudesse engasgar com o meu vômito. Quando
voltei a mim, vi sangue e vômito na neve e ouvi alguém gemer
baixinho. Então percebi que era eu quem estava gemendo. Sofri
ferimentos em duas vértebras cervicais e a minha escápula foi
arrancada do esterno. Embora a neve estivesse fresca e macia, ela
ralou um pedaço da pele do meu rosto, e um olho também ficou
ferido. Conto sobre esse acidente, do qual eu me envergonho,
porque de alguma forma também sou produto dos meus erros e
dos meus julgamentos falhos.
Mas também tive sorte na mesma medida. Anos depois, deve
ter sido em 1987, em filmagens na Suíça, interpretei um vilão no
filme Gekauftes Glück [Felicidade comprada] de Urs Odermatt.
Numa cena, o monstro repugnante que eu interpretava foge de
uma propriedade rural isolada para o vale em seu jipe aberto e tem
que atravessar um desfiladeiro com uma torrente por uma ponte
muito estreita. Eu dirigia numa velocidade bastante alta, mas
Odermatt, o diretor, disse que parecia nada, será que eu não
poderia dar uma boa acelerada? Então, na tomada seguinte,
acelerei tanto que o carro derrapou na areia da íngreme estrada
florestal. Fora de controle, o jipe rompeu o parapeito de ferro da
ponte, mas, como por um milagre, uma das barras de ferro cravou
no compartimento do motor segurando o carro e apenas envergou
para o lado com o veículo empalado, como se quisesse me despejar
feito uma carga de lixo. Como consegui me segurar no volante
ainda não está claro para mim. No entanto, na colisão, eu bati com
o meu flanco no volante e tive uma cólica renal. Walter Saxer, que
era o diretor de produção, me levou assustado ao médico na aldeia
mais próxima. As fotos Polaroid que tenho do local do acidente
parecem irreais, indecifráveis, um grande inseto bizarro que
rompeu uma teia de ferro. Abaixo, nas profundezas, cintilam as
enormes rochas polidas pela torrente.
Também tive sorte de sair com vida dos últimos dias da pré-
produção de Aguirre. Sob grande pressão de tempo, havíamos
transferido toda a produção para as terras altas de Cusco, para
começar a filmar no vale do Urubamba e em Machu Picchu logo no
início de 1972. Tivemos muitos atrasos e dificuldades para levar até
o local os figurinos, com elmos e armaduras de ferro, usados no
filme pelos conquistadores. Tive que ir e voltar várias vezes entre
Lima e Cusco. Voei com a companhia aérea local, a Lansa, porque
era de longe a mais barata. Com a penúria financeira da produção,
era a escolha natural. Mas a Lansa também era famosa por seus
acidentes. Um dos seus únicos quatro aviões caiu, o seguinte
apenas servia como sucata e foi desmanchado para a obtenção de
peças de reposição. No final, restava apenas um. É que o penúltimo
avião colidira com o flanco da montanha perto do aeroporto
durante a aproximação de pouso em Cusco, todas as pessoas a
bordo morreram. Logo vieram à luz certas peculiaridades: o avião
tinha capacidade para 96 pessoas, entre passageiros e tripulantes.
No local do acidente em Cusco, porém, foram encontrados 106
corpos. Ao que tudo indicava, funcionários da companhia haviam
vendido por debaixo do pano dez lugares a mais em pé no
corredor. Depois se descobriu que, embora o piloto de alguma
maneira soubesse voar, ele não tinha uma licença válida e acho que
também se verificou que os mecânicos em terra que haviam
assumido a manutenção apenas tinham consertado lambretas antes
disso. Portanto, havia somente um último avião que dava conta
sozinho dos voos domésticos, Lima-Cusco ida e volta, e depois
Lima-Pucallpa-Iquitos ida e volta, que era o circuito da selva. A
companhia aérea teve sua licença categoricamente cassada, porém,
de maneira surpreendente, depois de alguns meses estava de volta
aos negócios — com o seu último avião. Martje, minha mulher,
estava presente em Aguirre, ela ajudou em todo tipo de tarefas e
também acompanhou alguns dos atores de Lima a Cusco. Ela tinha
reserva no voo de dois dias antes do Natal, e estava no último voo
antes da catástrofe que sobreviria. Não é fácil colocar a trama dos
movimentos de então na ordem certa. Muitos viajantes apinhavam-
se no aeroporto, a fim de chegar a tempo às suas famílias para as
festas. Eu mesmo consegui uma passagem para o dia seguinte à
viagem de Martje, cedo na manhã de 23 de dezembro. Fui ao
aeroporto, mas o avião não apareceu no portão de embarque.
Somente depois de horas foi comunicado que ele ainda se
encontrava em manutenção, era preciso ter paciência, logo estaria
pronto. Isso se arrastou o dia todo. Enquanto isso, os passageiros
do segundo voo da companhia na rota da selva também chegaram e
avançaram contra o balcão. No fim da tarde, disseram que o avião
não poderia decolar naquele dia, deveríamos voltar cedo na manhã
da véspera de Natal. Às seis da manhã, eu estava de volta. A
multidão de passageiros havia aumentado ainda mais, porque todos
do dia anterior estavam lá e agora também chegavam os do dia 24
de dezembro. Mas o avião ainda estava em conserto. No meio da
multidão, consegui passar uma nota de vinte dólares para o
atendente da companhia atrás do balcão, e eu e um pequeno grupo
do meu pessoal fomos colocados na lista do voo. Mas ainda nada de
o avião chegar. Lembro-me de ter tido uma sensação funesta por
momentos. Então por fim o avião veio rolando em direção ao
portão, já era meio-dia, mas para a minha decepção houve um aviso
geral de que o horário já estava avançado e só seria possível realizar
um voo, o que ia para a floresta. O voo para as terras altas de Cusco
infelizmente fora cancelado. Hoje ainda posso ouvir os vivas dos
passageiros que poderiam voar para Pucallpa e Iquitos.
Depois de trinta minutos, o avião sumiu do radar. A busca pelo
voo desaparecido durou dias. No final, aquela se tornou uma das
maiores operações de busca de todos os tempos na América
Latina. Até uma astronauta americana que na época se encontrava
no Peru participou. Supunha-se que o avião tivesse caído nas
encostas cobertas pela selva além dos Andes, mas lá havia apenas
nuvens, tempestades e chuvas. Após dez dias, as buscas foram
suspensas porque não havia esperança. No 12º dia depois do
acidente, de repente apareceu uma garota de dezessete anos, a
única sobrevivente, Juliane Köpcke. Ela ia encontrar seu pai na
selva e estava viajando com sua mãe. Seu pai era um biólogo e,
depois da guerra, tinha atravessado os Alpes a pé até à Itália em
busca de um navio que o levasse à América do Sul, onde pretendia
montar uma estação ecológica. Os princípios da ecologia ainda
eram completamente desconhecidos naquela época. Na Itália, ele
não encontrou um navio, e se pôs a pé a caminho da Espanha, de
onde, escondido como passageiro clandestino num carregamento
de sal, partiu para o Brasil. Depois, ele atravessou quase todo o
continente a pé e de canoa e finalmente montou a sua estação de
pesquisa na selva peruana, onde Juliane cresceu. Na véspera do
Natal de 1971, Juliane partiu de minissaia e sapatos leves; na noite
anterior, ela havia festejado a sua formatura do ensino médio na
capital. O avião se desintegrou em pedaços durante uma violenta
tempestade a 5 mil metros de altitude. Mesmo em plena
tempestade, Juliane continuou planando na sua fileira de assentos
para três pessoas, sem avião. Mais tarde, ela disse que não foi ela
quem abandonou o avião, mas o avião a ela. Por algumas semanas,
Juliane foi uma sensação mundial e depois desapareceu
completamente de cena, porque jornalistas disfarçados de padre ou
faxineira infiltravam-se no hospital em Pucallpa; deve ter sido
terrível para ela, que além de tudo havia acabado de perder a mãe.
A história da sua sorte inacreditável e de sua odisseia pela selva
ficou profundamente gravada dentro de mim, pois eu próprio de
alguma maneira fui tocado muito de perto pela sua tragédia.
Somente 26 anos depois, eu a procurei e rodei com ela, direto no
local do acidente, um filme, Asas da esperança (1998). Sua história é
um impressionante testemunho de uma jovem que tinha em si
forças que mesmo em homens nunca vi igual. Na fase inicial de
Aguirre, nos primeiros dias de 1972, estávamos filmando nas três
corredeiras consecutivas do rio Huallaga e, sem que pudéssemos
sabê-lo, estávamos a uma distância de apenas alguns afluentes
paralelos do Amazonas em relação ao caminho que Juliane
desbravava meio-morta pela selva.
No local da queda, não havia na floresta uma clareira aberta pelo
impacto. Em vez disso, o avião se dispersara em fragmentos numa
área de quinze quilômetros quadrados. Por isso, não foi possível
avistar do alto árvores destruídas e destroços. A partir dos relatos
de Juliane após seu resgate por três trabalhadores da floresta, foi
possível reconstruir a sua caminhada de onze dias e encontrar a
região da queda. As primeiras equipes de resgate encontraram
malas arrebentadas, guirlandas de Natal e presentes pendurados
nas árvores; ao lado, como um bônus macabro, surreal, de
decoração, vísceras de seres humanos.
Em 1998, enviei duas expedições à floresta na região do rio
Pachitea, mas elas retornaram sem resultados. Depois encontrei
um dos três trabalhadores florestais que haviam resgatado Juliane.
Ele se lembrava bem da região e, sozinho, se pôs em busca do local
do acidente. Seguindo pelo pequeno rio Shebonya, na água rasa ele
pisou numa raia-lixa que estava escondida na areia e que, com a
ponta da cauda, perfurou a sua bota reforçada com várias camadas
de borracha. Essas raias são tão venenosas que são mais perigosas
do que a maioria das cobras. Ele ficou deitado por dois dias entre a
vida e a morte num banco de areia, até que por acaso passou uma
canoa. Mas os remadores não queriam levá-lo, porque ele não tinha
consigo dinheiro para pagar pela viagem. Por fim, ele deu a sua
espingarda como pagamento e eles o carregaram na canoa. Dessa
forma, ele se salvou. Encontrei os homens da canoa e comprei a
espingarda de volta. Juliane a entrega a ele no filme, como um
presente de reencontro com seu anjo salvador depois de tantos
anos. Foi ele também quem depois liderou a quarta e última
expedição em busca do local do acidente para o filme. Não tinha
sido possível remover os destroços do avião, apenas corpos e
partes de corpos haviam sido recolhidos. Nessa expedição, viajei
com o meu filho mais novo, Simon, que tinha na época oito anos.
Cinco macheteros iam à nossa frente, abrindo picadas na selva.
Estávamos bem equipados, mas o meu filho, com quem desenvolvi
um vínculo profundo na época, adoeceu; mesmo assim,
continuamos a marcha por cinco dias. Em dois deles, Simon foi
carregado nas costas por um dos macheteros. Foi Simon quem
encontrou os primeiros fragmentos, um painel de controle da
cabine, que guardo até hoje.
Mais tarde, meu assistente, Herb Golder, desceu de um
helicóptero numa corda, e com ele também vários trabalhadores,
que derrubaram algumas árvores para que o helicóptero pudesse
pousar ali. Esse ponto tornou-se o nosso acampamento para as
filmagens. Meu amigo Herb Golder foi meu assistente em vários
filmes. Em Invencível, ele também interpreta um rabino e o faz de
forma muito convincente. Eu testei dezenas de atores e o único
que conseguiu representar a cena de forma autêntica e inteligente
foi Herb. Depois também escrevemos juntos o roteiro de uma
história que ele havia pesquisado durante anos, Meu filho, olha o
que fizeste!, de 2009. Orginalmente, Herb é professor de grego
antigo e latim na Universidade de Boston, e não tenho mais
ninguém com quem possa discutir a Antiguidade com tantos
detalhes. Herb não é um erudito ermitão. Ele parece um tronco de
árvore, e é faixa preta em várias modalidades de artes marciais.
Quando escutam a sua voz, figurantes que estão à toa distraídos no
set de repente aguçam os ouvidos. Então em 2008 eu rodei o filme
com Michael Shannon, o ator mais talentoso da sua geração. Hoje
ele é uma estrela. Até Meu filho, olha o que fizeste!, ele tivera apenas
papéis secundários, e eu confiei a ele o personagem principal.
David Lynch estava envolvido na produção, mas na verdade quem
estava lá era o seu produtor Eric Basset. A essa altura, David Lynch
quase não tinha mais interesse pelo cinema e havia se recolhido
inteiramente em sua meditação transcendental.
20.
Dançando na corda bamba
Saramiriza, 09/07/1979
Um papagaio a meus pés devora uma vela que segura com os
dedos de um pé. Depois entrou uma galinha com seus pintinhos na
venda, um barraco de tábuas coberto com um telhado de chapa
ondulada onde estávamos encomendando algo para comer, e atacou
o quase pelado papagaio e arrancou uma das últimas penas de seu
rabo e bicou várias vezes sua careca ferida. Em seguida a galinha
limpou o bico no chão. Depois do susto nas corredeiras, ainda
estamos todos constrangidos e um tanto matemáticos no trato uns
com os outros. No posto militar de Teniente Pinglo, nenhum dos
soldados sabia em que altura estava o nível da água, apenas
informaram que fazia poucos dias um barco com onze homens
desaparecera ninguém sabia como; contudo, eles tinham bebido
muita aguardiente, isto é, cachaça, e só haviam entrado no Pongo
quando já estava escurecendo.
Depois de refletir um pouco mais, concluímos que devia ser
viável, porque o rio Marañón estava muito baixo — somente na
noite anterior, o nível da água havia baixado mais de dois metros, e
pela manhã nossos barcos estavam de tal modo no seco, que quase
não conseguimos arrastá-los de volta para a água. O que não
parecia lá muito bem era o rio Santiago. Deve ter havido chuvas
tremendas em suas cabeceiras ao norte, e no encontro com o
Marañón o rio já estava num nível bastante assustador. Antes das
primeiras corredeiras, que precedem o Pongo de Manseriche como
um prelúdio à parte, fomos atingidos por uma forte corrente de ar
frio vinda do estreitamento entre os morros, e aqui ainda teria sido
possível dar meia-volta. Com o ar frio chegou até nós um estrondear
distante no desfiladeiro, e ninguém sabia ao certo por que estávamos
seguindo adiante, mas seguíamos porque seguíamos. De repente
havia à nossa frente uma parede de água que se ergueu rapidamente
e contra a qual nos chocamos feito um projétil. Sofremos um golpe tão
violento, que o barco rodopiou no ar, no alto a hélice uivou no vazio,
batemos de lado na água e por um momento ficamos assim,
inclinados, e então eu vi, como uma aparição, empinada à nossa
frente, uma segunda parede de água, que nos desferiu um golpe
ainda mais potente, que fez o barco girar no ar novamente, dessa
vez no sentido oposto. Já antes de entrar na corredeira, eu havia
amarrado a corrente da âncora, de forma que ela não pudesse nos
escapar de bordo batendo na hélice, e o tanque de gasolina também
estava firmemente amarrado, mas de repente a bateria, do tamanho
da bateria de um caminhão, voou pelo ar, ou melhor: ficou parada
por um momento bem diante do meu rosto presa em seus cabos
esticados, e eu bati a cabeça nela. No começo, tive a sensação de que
havia quebrado meu nariz na raiz, e eu sangrava pela boca. Lutei
com a bateria e derrubei-a no chão, para que ela não terminasse de
voar dali. Então, por alguns momentos, nada além de ondas ao
redor e acima de nós, mas é mais dos estrondos que me lembro.
Depois me lembro de que estávamos atravessando, avançando de ré
pela correnteza. Nos íngremes barrancos da floresta, de ambos os
lados, macacos guinchavam.
Rio abaixo, em Borja, onde o Pongo termina, as pessoas não
queriam acreditar no que viam, porque com o nível da água a mais
de cinco metros acima do normal até então ninguém sobrevivera à
passagem, e nós tínhamos tido cinco metros e meio. Os pongeros da
aldeia nos cercaram emudecidos. Um deles olhou bem para o meu
rosto inchado e disse “su madre”. E me deu um gole de sua
aguardiente.
Seguir o curso de um rio até chegar à sua nascente era para ele uma
coisa estúpida de se fazer. Só por curiosidade, por quê? O menino,
nove anos de idade, que havia feito isso foi levado a um tribunal
sumário por afastamento da tropa. Ali era preciso correr de triunfo
em triunfo. O asqueroso Raul dirige aqui o treinamento dos
pequenos soldados. Ele afirmou de uma forma que deixava claro que
acreditava na própria história: emboscadas, isso não era com ele, era
coisa de covardes. A jovem que ele segurava pela bunda assentiu com
um ar cúmplice. Isso lhe fez bem.
Ele preferia lutar contra o inimigo homem a homem, olho no
olho, mano a mano. Ele não fazia a menor ideia de quantos tinha
matado, já tinha parado de contar havia muito tempo. A jovem
chegou ainda mais perto dele.
À esquerda e à direita na altura da clavícula, ao alcance da mão,
ele carrega duas granadas, as suas outras bolas. A jovem, simulando
espanto virginal, disse ay Diosito. Ali ele fazia daqueles meninos
homens com cochones [colhões]. Ele completa a sua fantasia de
guerreiro com algo que nunca vi antes: na escápula direita, num
cinto que corre em diagonal nas suas costas, ele leva uma faca de
combate cujo cabo se eleva acima dos ombros. Em lutas mortais
corpo a corpo, essa era a posição na qual ele podia sacá-la mais
depressa com a mão direita. Mais tarde Denis riu a risada específica
de desprezo que ele dá, bem curta e dura.
Os pequenos soldados gritavam com voz forte enquanto corriam.
Eles imitavam o registro vocal de homens adultos. Raul lhes
ordenara que fizessem isso. A floresta ainda cheira a fogo e resina
queimada. Na beira do riacho, pus os pés descalços na água morna e
turva. Peixes muito pequenos, camuflados em preto e amarelo, me
mordiscaram agressivamente nos espaços entre meus dedos menores.
Enquanto eu refletia sobre nossas opções, os peixes me deixaram e
atacaram furiosos uma folha murcha que flutuava na água.
Meus filmes sempre foram filmes a pé. Uso o termo aqui não só
como metáfora. Mas o caminhar, que eu tinha em comum com
Bruce Chatwin, contribuiu para uma visão do mundo que sempre
se faz sentir no meu trabalho, por mais diversos que sejam os
temas que me fascinam. Antes mesmo de ele morrer, em 1986, eu
carreguei sua mochila na travessia dos Alpes, na verdade, para ser
mais preciso, era uma cópia aproximada da sua, que ele havia
mandado fazer na Inglaterra de presente para mim. Também quero
registrar aqui que provavelmente sou tão preguiçoso como
qualquer outra pessoa, apenas viajei a pé em momentos de
importância existencial para mim. Nessa época, eu mantinha
diários, eis alguns trechos:
Sexta-feira, 9 de maio
À noite, estendi minha rede numa cabana. Várias construções ao
redor estavam habitadas, e o meu medo de encontrar pessoas me
obrigava a agir às escondidas. Tive calafrios tão fortes que, quando
me segurei no parapeito para estender a rede, a varanda inteira
estremeceu comigo.
Domingo, 11 de maio
Fez tanto frio à noite que me levantei e caminhei por horas na
varanda; depois dormi um pouco mais. Hoje de manhã, todo o
Steinernes Meer estava diante de mim. Os pássaros me acordaram.
A manhã era como minério refinado. Andei atravessando a floresta
íngreme; neve profunda e silêncio ainda mais profundo. Entre os
bombeiros na taverna, havia um mongoloide em uniforme de
bombeiro.
De Mühlbach, seguindo a bússola, direto para St. Johann.
Caminho muito íngreme na floresta onde nem mais os cervos
passam. Na primeira parada, peguei uma agulha e esvaziei o líquido
das bolhas dos pés. Me dei conta de que precisava de cada vez mais
coragem para me misturar às pessoas nas aldeias.
Sobre caminhar: muitas e mais muitas e muitas vezes, o sentido
do mundo deriva do menor, no qual nunca se reparou antes, essa é a
matéria da qual resulta um mundo completamente novo. Quem
caminhou não consegue contar as riquezas de um único dia. Ao
caminhar, não há nada nas entrelinhas, tudo se passa no presente
mais bruto e imediato: as cercas do pasto, os pássaros que ainda não
sabem voar, o cheiro da madeira recém-derrubada, o espanto da
caça. Hoje é Dia das Mães.
Acima de Dienten, quando saía da floresta encontrei
inesperadamente um velho maltrapilho, que, encolhido e encurvado,
observava com binóculos embaçados um cortejo fúnebre que subia
em direção à igreja. Ele se assustou e pareceu se envergonhar das
janelas quebradas e das telhas de madeira desbotadas e que em parte
desmoronavam de seu telhado. Mãos e cabelos davam a impressão
de não serem lavados há anos. Atrás de sua casinha em ruínas,
estava estacionado um volkswagen sem motor, portas ou rodas. Sim,
ele disse, ele morava ali sozinho, eu tinha vindo pela montanha no
meio de toda aquela neve? Ele não quis me deixar descer pela
encosta extremamente íngreme; tomei, portanto, o caminho, de
curvas sinuosas.
Großarl — Hüttschlag. Hüttschlag parece ser o último lugar
onde posso encontrar alguma coisa numa pequena venda. Vou passar
a noite numa hospedaria. A principal cadeia alpina de Tauern parece
muito alta, muito alta e coberta de neve profunda. Vou levar um
filão de pão, e toucinho.
Segunda-feira, 12 de maio
Hüttschlag. Depois de fazer compras pela manhã, cortei para
mim um robusto cajado, um braço mais alto do que eu, e subi
seguindo o riacho. A paisagem rapidamente se tornou mais
selvagem, mais dramática. Neve profunda, bandos de camurças,
cachoeiras. Caí várias vezes em trechos com neve até a cintura.
Amaldiçoei, depois me reconciliei com o deus dos primeiros
alpinistas. Minhas polainas e meu cajado estão adquirindo um
valor, pensei comigo mesmo, que ninguém jamais poderá calcular.
Isso me deixou um pouco mais satisfeito, como alguém que enumera
suas duas únicas riquezas.
Segui um rastro humano de cerca de duas semanas atrás, mas
que depois também acabou. Por aqui não passou ninguém. Subida
extremamente íngreme ao longo de várias canaletas de neve, então
me deparei com uma cabana de caça com placas de alerta pregadas
por todo o lado de fora, informando que aquela propriedade privada
estava protegida por disparos automáticos. Perdizes brancas
esgueiravam-se à minha frente. Eu quase não as via mais, porque,
embora fizesse mau tempo, com o céu encoberto por nuvens
cinzentas, eu estava começando a ficar cego pela neve. Eu não trouxe
óculos escuros, isso foi estúpido. Os olhos inflamaram-se e as
pálpebras incharam bem grossas, mas eu ainda conseguia enxergar
por onde andava. Meu objetivo na Cadeia, o Arlscharte, localizava-
se nas alturas nevadas um pouco diferente do que eu presumira a
princípio, mas por nada neste mundo eu poderia perdê-lo. Então,
subi num monte de neve, consultei bússola e mapa e refleti por muito,
muito tempo. Na última localidade, tinham me dito para não ir, em
hipótese alguma. No final da guerra, exatamente nos mesmos dias de
maio, me disseram como advertência, muitos soldados, homens
jovens e fortes, haviam tentado chegar à sua terra natal, a Caríntia,
e todos haviam morrido no Arlscharte na passagem pela Cadeia
Alpina Principal, soterrados por avalanches ou desaparecidos para
sempre.
Bem no alto em direção ao cume, em trechos muito íngremes,
afundei muitas vezes na neve até o peito; subida muito cansativa.
Logo antes do Arlscharte, uma encosta de avalanche, curta e
extremamente íngreme, que contornei escalando a rocha ao lado. De
repente, o vale de Malta estava abaixo de mim, ao sul, com sua
poderosa barragem. Pedaços de gelo flutuavam na água da represa.
O hotel junto à represa ainda está fechado, mas com meus olhos
doloridos e lacrimejantes eu avistei três homens. Então eu também vi
que era preciso atravessar uma encosta de avalanche extremamente
íngreme ao sul e que não havia desvio, porque a rocha acima dela
não era acessível sem equipamento, grampos, mosquetões e corda. O
que fazer? Retornar, tudo de volta, mais de cem quilômetros de
desvio? Refleti por um tempo, não me apressei. Aproximei-me da
encosta de avalanche e a estudei. Ela não parecia bem. A encosta
estalou e fez um barulho estranho, um silvo, como o silvo de uma
cobra. Algo queria estourar, mas resistiu. Sem que tivesse tomado
uma decisão, eu me vi descendo a encosta em saltos rápidos. Quando
cheguei ao meio, houve um estrondo, como se um balão muito grande
não muito cheio tivesse estourado. Havia algo agudo e abafado no
estrondo. Depois de atravessar a encosta, vi com o coração aos pulos
que havia uma fenda profunda na neve logo abaixo do meu rastro,
com cerca de um metro de largura, que se estendia de uma
extremidade à outra da encosta. Mas a avalanche não se
desprendeu.
Na barragem de Köllnbrein, a equipe técnica estava em serviço.
Eles ficaram aqui durante todo o inverno, ainda estavam impedidos
pela neve, isolados do mundo exterior. Apenas um helicóptero
fornecia comida para eles de vez em quando, além disso tinham um
telefone. Eles não acreditaram que eu tinha descido do Arlscharte e
estudaram minhas pegadas na neve com seus binóculos por um bom
tempo e conversaram baixinho entre si. Pareciam presumir que eu
fosse algum prisioneiro fugitivo. Por que eu tinha feito isso, por que
eu tinha descido até lá, eles queriam saber. Eu disse a eles que na
verdade eu não queria contar a ninguém neste mundo, mas estava
viajando porque queria pedir a mão de uma mulher em casamento e
era melhor fazer isso a pé. Os homens então me mostraram seu
trabalho no interior da barragem. Em poços sem fundo dentro da
parede de concreto, havia pêndulos suspensos a partir dos quais eles
liam as deformações da parede. Várias estações de medição. As
paredes da barragem têm uma vida interior muito complicada.
Um dos engenheiros ditou para a filha pelo telefone uma redação
escolar sobre o florescimento da natureza em maio, embora ainda
reinasse o inverno onde ele estava. Um deles treinava por horas em
aparelhos de musculação, outro cuidava de todas as plantas
hidropônicas do hotel, com as quais ele havia abarrotado desde o
saguão até o escritório. Dormi no quarto andar do hotel vazio. Pude
escolher em qual andar eu queria dormir. No final do dia, perscrutei
atentamente o vale, porque pensei ter ouvido um cuco à distância.
Terça-feira, 13 de maio
Dia claro, azul. Hoje mais tarde, quer o acaso, a equipe será
rendida; um helicóptero virá. Eles estão fazendo as malas. Um deles
está lavando a louça na cozinha, que se acumulou por vários dias.
Eu o ajudo, seu nome é Gigler Norbert, a varrer o chão.
Eles queriam me dar uma lanterna para os túneis mais abaixo no
vale, mas eu irrefletidamente recusei. Sobre a estrada, resquícios de
avalanches e pedras de desabamentos. Apavorante ter que avançar
sem lanterna, tateando num túnel escuro como breu. A parte final do
túnel superior, um pouco mais baixa, ainda está quase toda
soterrada por uma avalanche, os blocos de neve e gelo foram
pressionados fundo dentro dos canos. Bem no alto, sob a abóboda da
galeria, há uma abertura estreita, através da qual, escavando-a,
consigo sair para o ar livre. Mais adiante no vale, equipes de
limpeza vêm trabalhando na minha direção. O primeiro trabalhador
que encontrei quando rastejava para fora do túnel estava comendo
pão em cima de um limpa-neves. Cumprimentei o homem perplexo,
que parou de mastigar.
25.
Mulheres, filhos
Você tem um livro aberto à sua frente. Pergunta: o livro está virado
de costas para você e você só vê a parte de trás? Ou o livro está
aberto para você? Se você vê o livro aberto para si, vou remover o
desenho por um momento, depois mostrá-lo outra vez e sugerir
que olhe para a imagem de novo, de forma que o livro esteja virado
de costas para você. Se você consegue facilmente mudar de ideia e
ver de maneira diferente, você é um bom candidato à hipnose. Isso
também se aplica, é claro, ao livro que se vê virado. Você pode vê-
lo ao contrário, aberto para você?
Mais tarde também fiz experimentos com filmes, que mostrei a
um público que se deixou hipnotizar por mim. Um espectador, por
exemplo, sentia-se capaz de circundar o personagem principal de
Aguirre como se estivesse num helicóptero; para ele, as paisagens
se transformavam em paisagens puramente imaginadas. Fiquei
interessado em saber como surgiam essas visões, sabemos muito
pouco sobre os processos de sonhos e visões. Mas os riscos de
trabalhar com grupos maiores de pessoas hipnotizadas são muito
altos, e a responsabilidade também é muito grande, porque,
embora sejam raros os casos, também podem ocorrer reações
psicóticas.
Pelo menos um pequeno eco em minha voz na locução dos
meus documentários vem do meu papel como hipnotizador.
Sempre, contudo, o importante não é simplesmente a voz, mas o
que a voz tem a dizer. O conteúdo faz o público aguçar os ouvidos.
O que escrevo e depois digo em voz alta nunca seria possível num
filme da National Geographic. No final do meu filme sobre
vulcões, Visita ao inferno, veem-se fluxos de lava irrompendo do
interior da Terra, e adicionalmente minha voz lembra que em toda
parte no mundo, bem fundo abaixo de nossos pés, borbulha o
magma incandescente, que quer subir e entrar em erupção,
indiscriminadamente devastador para todos os tipos de vida em
nosso planeta, “em profunda indiferença ao destino de baratas
atarantadas, crocodilos estúpidos ou humanos insensatos”. Frases
como essa exigem a respectiva entonação. Reconheço que minha
voz em alemão tem uma ressonância do sul da Alemanha, da
minha primeira língua, o bávaro. E também admito que falo inglês
com um forte sotaque, não tão ruim quanto o de Henry Kissinger,
mas ainda assim ruim o suficiente para que haja vários imitadores
na internet que leem contos de fadas ou dão conselhos sobre a vida
com a minha voz. Existem dezenas de duplos meus por aí, mas
nenhum deles até agora realmente acertou o meu tom de voz.
Minha voz encontrou uma grande comunidade de fãs e,
combinada com minha visão de mundo, convida à imitação. Sou
uma grata vítima de tais sátiras.
30.
Vilões
Fui arrastado para o mundo da ópera assim como para meus papéis
no cinema. Isso não teve a ver diretamente com meu filme
Fitzcarraldo, que é sobre uma grande ópera na floresta, mas antes
com a forma como lidei com a música em meus filmes. A música
em meus filmes nunca é um evento de fundo, mas ela transforma
as imagens em visões mais elementares. Em 1985, a diretora
artística do Teatro Comunale de Bolonha insistiu muito para que
eu fizesse uma montagem de Doutor Fausto, de Ferruccio Busoni.
A ópera na verdade é um fragmento, porque o compositor morreu
durante a criação e o libreto é bastante caótico, e a peça foi
considerada inexequível. Mas meu irmão Lucki me encorajou com
todas as forças e tinha ao seu lado um agente perspicaz, Walter
Beloch. Finalmente eles me convenceram a conhecer a ópera em
Bolonha. Fiquei impressionado com as possibilidades técnicas nos
bastidores. No início, apenas alguns técnicos me acompanhavam
na visita, mas notei que eles foram ficando cada vez mais
numerosos: técnicos de iluminação, ajudantes de palco,
recepcionistas. Quando terminei a visita, me vi espremido entre
pelo menos trinta pessoas que formavam um estreito círculo ao
meu redor. Um deles deu um passo à frente e me informou que
havia sido nomeado de improviso o porta-voz do grupo. Eles
queriam me ter ali, queriam trabalhar comigo. Então, numa única
frase, ele resumiu a atmosfera: eles não me deixariam ir para casa
enquanto eu não assinasse um contrato. Fiquei emocionado, levei
o porta-voz como testemunha e assinei meu contrato de trabalho
no escritório da diretora artística.
Embora eu quase não seja capaz de ler notas musicais, desde o
primeiro momento me senti completamente seguro nesse métier,
no qual não tinha nenhum tipo de experiência. Assisti a uma
montagem no Scala de Milão, a primeira da minha vida, eu não
fazia ideia de como deveria ser uma ópera, quais eram as
tendências da época. Por causa dessa falta de pertencimento ao
mundo da ópera, a minha montagem era diferente de qualquer
outra coisa que se podia ver nos palcos. Ela começava com o Dr.
Fausto enfronhado em seus estudos de tal forma que não
conseguia largá-los, e para representar isso pedi ao meu cenógrafo
Henning von Gierke para construir um penhasco que se ergue no
céu acima de nuvens baixas. Henning era na verdade um pintor,
mas trabalhou em muitos dos meus filmes e criou cenários
maravilhosos, por exemplo, para Nosferatu e Fitzcarraldo. Na
minha montagem, Dr. Fausto está perdido no alto do penhasco,
não consegue seguir adiante nem voltar. Eu queria deixar a cortina
aberta já para a ouverture e, entrando no meio da música, um
ajudante de palco deveria, do nada, despencar do alto do teto do
palco nas profundezas. Ele desapareceria nas nuvens que pairam
sobre o chão do palco. Eu queria que a orquestra hesitasse por um
momento. Vimos corretamente? Acaba de acontecer um acidente?
Aonde foi parar o homem que caiu? No chão do palco coberto pela
névoa, deveria ser aberto um buraco por onde o acidentado
desapareceria nas profundezas. Mas a direção artística achou o
projeto muito arriscado e um dublê muito caro; então me ofereci
para fazer o dublê eu mesmo, pelo menos para a estreia. Fiz testes
para isso, saltando pouco a pouco de cada vez mais alto.
Arranjamos um grande colchão de ar como os que são usados em
sets de filmagem. Há várias fotos minhas em queda livre, mas
acabei desistindo quando aterrissei de doze metros de altura no
colchão de ar e torci o pescoço. Isso tudo era pura estupidez, e eu
não precisei ser persuadido a desistir dessa bobagem. No final da
ópera, tudo se transforma: em vez do Redentor, a bela Helena é
pendurada na cruz do monte Gólgota, e Mefistófeles de repente
entra em cena como o bom pastor trazendo sobre os ombros um
cordeiro muito novo, de apenas poucos dias. Era a época na
primavera em que as ovelhas pariam. Mefistófeles deixa o cordeiro
sozinho e, como a música não foi composta até o final, os sons vão
desaparecendo até que nos últimos nove minutos toca-se apenas
um único instrumento de corda. O cordeiro vagueia pelo palco
procurando sua mãe e fica um bom tempo por ali. Ele bale para o
público.
A montagem, como todas as outras posteriores na minha vida,
foi conduzida pela música. Estava claro para mim que a ópera se
produz quando se consegue transformar um mundo inteiro em
música. E também estava claro para mim que o mundo das
emoções no palco da ópera é um mundo muito próprio, que não
existe de forma tão exacerbada na vida humana ou mesmo na
natureza. Os sentimentos na ópera são absolutamente
condensados, comprimidos, mas para o público eles são
verdadeiros porque o poder da música os torna verdadeiros. Os
sentimentos da grande ópera são sempre como axiomas de
sentimentos, como uma verdade aceita na matemática, que não se
deixa mais reduzir, concentrar, explicar.
Wolfgang Wagner, o neto de Richard Wagner, que havia
assistido à minha montagem em Bolonha, convidou-me de forma
muito enfática para encenar Lohengrin na abertura do Festival
Wagner em Bayreuth em 1987, mas recusei de imediato. O meu
métier era o cinema. Depois de muitas tentativas de
convencimento, Wagner por fim me enviou sua gravação favorita
da ópera, na época ainda em fita cassete. Eu absolutamente não
estava familiarizado com a peça. O prelúdio, a ouverture, me
atingiu como um raio. Eu estava em uma viagem na Áustria e parei
na mesma hora o carro no acostamento para apenas escutar. Nunca
tinha ouvido nada tão bonito. Liguei para Wolfgang Wagner e
disse, eu vou fazer, é algo tão grandioso, que quero tentar. O
cantor no papel-título foi Paul Frey, um canadense que
praticamente estreava no palco operístico. Ele vem de uma família
de menonitas de Ontário, e transportava leitões da fazenda de seus
pais pelo vasto país. Então ele ouvia gravações de Elvis e cantava
junto e, mais tarde, quando alguém lhe deu um disco do cantor de
ópera Mario Lanza, ele passou a também cantar as árias. A voz de
Paul Frey se destacava por sua clareza e beleza, e ele tinha
participado de alguns musicais. Eu assisti a uma apresentação de
Lohengrin no Teatro Estatal em Karlsruhe, onde ele cantou esse
papel. Wolfgang Wagner havia me enviado para lá como olheiro.
Na primeira entrada de Lohengrin, aconteceu um acidente de
palco. Logo atrás de Frey, o cenário de oito metros de altura
desabou, mas ele continuou a cantar imperturbável enquanto o
público gritava. Depois eu soube que Paul Frey também não sabia
ler partituras, ele estudava seus papéis com discos. Era o meu
homem. Mais tarde, ele fez uma grande carreira em Bayreuth e no
Met, o Metropolitan Museum of Art, em Nova York.
Também em Bayreuth minha montagem foi diferente. O
segundo ato, por exemplo, começa com o mar se lançando em
ondas em direção ao público. Havia pelo menos sessenta toneladas
de água no palco, que era levantada e abaixada por um sistema
hidráulico na parte de trás. O efeito, por mais estranho que pareça,
nunca havia sido tentado. Contudo, a água tinha que desaparecer
em questão de minutos, mas, tal como o escoamento numa
banheira, isso causava ruídos de sucção muito altos. Os técnicos de
palco encontraram uma solução muito simples, e para o público
era inexplicável como de repente o mar não estava mais lá. Como
diretor, eu estava sempre junto no palco durante os ensaios, quase
nunca numa tribuna na plateia, e assim tive um privilégio único.
Nos grandes corais, por exemplo, eu andava pelo palco no meio
dos cantores para definir corretamente o timing. No coro de
Bayreuth, metade das cantoras e dos cantores poderia cantar os
grandes papéis, tão alto o seu grau de excelência; estar no meio de
todas aquelas vozes e ser arrebatado por elas é uma sensação que
não posso descrever. Eu tive uma sorte incrível. Trabalhei com os
melhores do mundo.
Encenei óperas de Verdi, Bellini, Wagner, Mozart, Beethoven.
Trabalhar com música por um período limitado de tempo, respirar
música, transformar um mundo em música sempre me trouxe
inteiramente para o meu próprio centro. Mas a ópera requer uma
abordagem própria. O mundo dos teatros de ópera é um mundo
artificial, os dramas são artificiais, as intrigas são artificiais, os
escândalos também. Tudo é de fato seguro: a música já está escrita
e a casa tem um telhado firme, não pode vir uma tempestade
súbita, como quando se filma na selva. A orquestra sabe a partitura
de cor, e os cantores também. Mas se não houver um clima
misterioso de intrigas e perigo iminente, toda a casa de súbito fica
sem vida. Toda a montagem parece morta. Presumo que a
permanente disposição para o alvoroço do escândalo nasça do
medo profundo dos cantores, que são abruptamente lançados no
palco e, em centésimos de segundo, têm que acertar o tom
preciso. Não há repetição, e o público, apenas vagamente
perceptível na semiescuridão além do palco, é um último
remanescente das antigas arenas de gladiadores. Eles querem ver
sangue. Testemunhei no Scala de Milão como o melhor barítono
do mundo foi impiedosamente vaiado no meio de sua ária porque
tinha um pequeno problema na voz: “Stronzo, cretino! Por que não
vai trabalhar como garçom?”. Então, depois do intervalo, quando
ele se recompôs, foi aplaudido sem parar. Luciano Pavarotti foi
humilhado e nunca mais cantou lá, e também Maria Callas, após
um incidente semelhante, nunca mais se apresentou lá.
Eu costumava levar um pouco de vida à casa durante os ensaios,
quando percebia que tudo está indo bem, mas sem brilho, sem as
chamas dos sussurros e do escândalo. Em Washington, encenei O
Guarani em 1996, com Plácido Domingo no papel principal. Ele
me chamara para dirigir uma ópera quase desconhecida de um
compositor brasileiro do final do século XIX. Os ensaios correram
bem, todos cantavam no tom certo, mas não era música de
verdade. Decidi espalhar um boato falso, num dia em que Plácido
Domingo estava de folga. Deixei escapar, na presença de um
funcionário da administração, um comentário em que eu
perguntava se os cantores já haviam sido avisados de que Domingo
não cantaria no dia da estreia, porque tinha um compromisso para
aquela noite no Met, em Nova York. Levou apenas alguns minutos
para que todo o teatro entrasse em polvorosa; os cantores
cochichavam e, de repente, havia música novamente. Sem esses
dramas artificiais, a estreia e as apresentações que se seguem não
correm bem. Com tais eventos, o medo profundo tem que se
dissipar.
No ensaio geral de Tannhäuser, de Wagner, em Palermo, houve
um alarme de bomba e todo o teatro foi evacuado imediatamente.
Desta vez, o alarme não havia sido acionado por mim. A montagem
era em grande parte “imaterial”, pois quase não há ação em
Tannhäuser, apenas almas excitadas. Quase não havia cenografia.
Tudo era feito de luz, e de ar, que era movido em doses precisas
por ventiladores. Para isso, eu encomendara a meu grande
figurinista e amigo Franz Blumauer figurinos do mais leve de todos
os tecidos, uma seda especial usada em paraquedas, que à mais
suave das brisas ondulava em volta dos cantores, como se suas
almas, tremulando todas em branco, fossem visíveis para nós. Em
momentos dramáticos, de tempestades internas, os ventiladores
escondidos em trinta pontos no palco e ao lado do palco eram
ligados em alta velocidade, e os grandes véus esvoaçavam em
profundo alvoroço. Ainda me lembro de como, após a evacuação
do teatro, todos os cantores e a Vênus, com um grande véu
vermelho tremulando ao seu redor, andavam pelas ruas
completamente desertas de Palermo. Um robô acionado pela
polícia subia sobre correntes os degraus do tapete vermelho do
teatro, foi tudo um grande ato surreal. Notei que pequenas
multidões de almas desorientadas se aglomeravam diante de bares
e só então me dei conta de que a Itália estava disputando um
grande jogo de futebol na Copa do Mundo. Todo mundo queria
assistir, presumo que um dos cantores do coral tenha acionado o
alarme. A estreia dois dias depois foi um grande sucesso.
32.
A leitura de pensamentos
Minhas fascinações não são esotéricas. Todas elas têm a ver com as
questões fundamentais da nossa identidade, como no caso das
gêmeas, quando supomos sermos únicos enquanto indivíduos. A
leitura dos signos como na Linear B, a leitura do mundo, é apenas
aparentemente exclusiva, pois é inerente ao ser humano em geral.
Mas qual é o meu dia a dia? Quem são meus amigos? O que é a
minha vida? Toda autodescrição é difícil para mim, porque tenho
problemas com espelhos. Eu me vejo no espelho quando faço a
barba porque tomo cuidado para não me cortar, mas só vejo a
minha bochecha, não a pessoa. Até hoje não sei dizer com certeza
qual é a cor dos meus olhos. Autorreflexão, qualquer círculo ao
redor do próprio umbigo é profundamente desconfortável para
mim. Mas sou bastante consciente de algumas coisas cotidianas e
também posso nomeá-las. Tenho em comum com Freda e Greta
uma relação incondicional com a subordinação espacial a outras
pessoas. Percebo isso especialmente quando estou exposto aos
olhos de muitos espectadores. Em painéis de discussão, só consigo
pensar e argumentar com clareza quando o parceiro do diálogo
está sentado à minha direita. Se ele ou ela se sentasse à minha
esquerda, eu sentiria como se tivesse que fazer uma contorção.
Algo parecido acontece no cinema. A pessoa que assiste a um filme
comigo tem que sentar à minha direita, caso contrário, olhar para a
tela junto com ela seria uma tortura. Posso ver melhor quando olho
para uma tela ligeiramente deslocada para a esquerda do eixo
central, ou seja, num pequeno ângulo para a direita. No entanto,
raramente vou ao cinema. Não vejo mais do que três ou quatro
filmes por ano.
Vivo em Los Angeles. Minha mulher Lena e eu tínhamos que
decidir onde iríamos morar nos Estados Unidos, e a resposta para
isso ficou clara imediatamente — na cidade com a maior
substância. Los Angeles só está associada ao esplendor e ao
glamour superficial de Hollywood, mas a internet nasceu em Los
Angeles e todos os pintores importantes já não trabalham em Nova
York, mas aqui, assim como os escritores, os músicos, os
matemáticos. O grande número de mexicanos trouxe incríveis
energias para a música e a literatura. Os carros elétricos são
planejados aqui, os foguetes reutilizáveis são construídos na parte
sul da cidade. O Centro de Controle de Missão para várias
empresas espaciais está localizado logo ao norte de Los Angeles,
em Pasadena. Também muitas coisas banais têm aqui a sua origem,
estúdios de aeróbica, patins em linha, seitas malucas. A série pode
ser estendida indefinidamente.
Mas Los Angeles também tem seu lado sombrio. Uma vez, levei
um tiro diante da câmera durante uma entrevista para a BBC e sofri
ferimentos leves. Encarei a coisa mais como parte do folclore local.
Alguns dias depois, tirei Joaquin Phoenix, que havia sofrido um
acidente na estrada, por acaso bem na minha frente, de seu carro
capotado. Acho que Joaquin estava abstinente na época, é provável
que não devesse estar dirigindo. Pendurado de cabeça para baixo
entre os air bags murchos, ele não queria me entregar o seu
isqueiro, com o qual tentava acender um cigarro. Ele não
percebera que pingava gasolina por toda parte ao seu redor. Nunca
mencionei o incidente e apenas quando Joaquin o divulgou na
mídia, eu confirmei.
Leio devagar porque muitas vezes me desvio do texto, vejo
imagens e situações relacionadas ao que li e só então me concentro
nas linhas novamente. Há livros, como Andar, de Thomas
Bernhard, em que demorei duas semanas para terminar o primeiro
parágrafo. As primeiras linhas desse livro são tão incríveis que
nunca parei de me espantar. Só consigo ler realmente quando
estou deitado. Isso deve ter a ver com o fato de que na minha
infância, com meus irmãos e minha mãe num mesmo quarto, eu
nunca tive espaço na mesa para ler; mas no chão, com a cabeça
numa almofada, havia uma quantidade infinita de espaço livre.
Trabalho com rapidez e eficiência, sem repetições intermináveis de
cenas no set de um filme. Por isso, meus dias de filmagem quase
sempre terminam cedo, por volta de quinze ou dezesseis horas,
embora eu pudesse trabalhar até as dezoito. Não consigo me
lembrar de ter feito uma única hora extra na minha vida. Sou tudo
menos um workaholic. Filmagens à noite são para mim um horror,
porque não sou uma pessoa noturna. Escrevo o roteiro quando
tenho o filme na cabeça e raramente sento por mais de uma
semana para escrevê-lo. Não preciso de silêncio para isso, posso
escrever num ônibus cheio de gente, ou com crianças barulhentas
ao meu redor num parquinho. Mas também sempre foi importante
para mim desenvolver roteiros como forma literária própria. Meu
roteiro para Cobra Verde começa no calor e na seca do sertão
brasileiro: “A luz ofuscante, de matar; o céu sem pássaros; os cães estão
deitados, exauridos pelo calor. Loucos de raiva, insetos metálicos picam
pedras em brasa”. Algo assim não é comum na indústria
cinematográfica.
Durmo até tarde sempre que tenho essa possibilidade. Eu não
sonho. Sei que isso vai contra a doutrina de que todo mundo sonha
tantas horas ou minutos por noite, mas eu sou a prova viva de que
isso não é verdade. Não importa quando me acordem, eu não
estava sonhando. Em média, não me acontece de sonhar mais do
que uma vez por ano, e então são sempre apenas banalidades, que
eu estava comendo um sanduíche no almoço, por exemplo. No
entanto, tenho sonhos diurnos, especialmente quando caminho.
Então eu vivo romances inteiros, mas no final do dia ainda
continuo na direção certa. Quando acordo de manhã, sempre sinto
como um déficit o fato de não ter sonhado, e é possível que isso
tenha me levado a fazer filmes como uma saída. Ao longo do meu
crescimento, tive alguns episódios drásticos de sonambulismo. Eu
me encontrava numa grande tenda do exército, abarrotada de
camas de campanha, porque o albergue da juventude estava
superlotado, e sacudi meu irmão Till, que estava dormindo perto
de mim, para que ele despertasse e continuasse a impelir o barco
no lago Neusiedl com uma vara. Em resposta, ele me sacudiu com
tanta força, que eu acordei. Mas estava escuro como o breu e eu
ainda estava enfiado até o peito no saco de dormir, e saí pulando
atarantado porque não sabia mais onde era o meu lugar de dormir.
Eu batia na beira das camas, acordando outras pessoas. Também
houve episódios como esse quando eu já era bem mais velho.
Nunca usei drogas. A cultura em torno delas sempre me repugnou.
Também acho que as drogas não me fazem bem porque, de
qualquer maneira, já existem muitas tempestades se agitando
dentro de mim.
Evito contato com fãs. De vez em quando, assisto lixo na TV,
porque acho que o poeta não pode desviar o seu olhar. Quero saber
em que mundo de anseios eu vivo. Eu cozinho bem, mas o meu
repertório é bastante limitado. Meus bifes são realmente bons, mas
sei que nunca chegarão perto do que se pode encontrar por toda
parte na Argentina. Desconfio profundamente de pessoas que
abraçam árvores. Desconfio das aulas de ioga para crianças de
cinco anos, como estão se espalhando pela Califórnia. Não uso
redes sociais. Se aparecer um perfil meu ali, com certeza é
totalmente falso. Não uso smartphone. Nunca confio totalmente
na mídia, por isso obtenho um quadro mais preciso da situação
política usando diferentes fontes, mídia ocidental, Al Jazeera,
televisão russa e, às vezes, baixando o discurso inteiro de um
político da internet. Confio no Oxford English Dictionary, que é um
dos maiores feitos culturais da humanidade. Estou falando dos
robustos vinte volumes que abrangem cerca de 600 mil termos,
com mais de 3 milhões de citações de toda a história de mais de mil
anos da língua inglesa. Estimo que dezenas de milhares de
pesquisadores e também amadores tenham esquadrinhado tudo o
que já foi registrado por mais de 150 anos. Para mim, é ele o livro
dos livros, aquele que eu levaria comigo para uma ilha deserta. É
um milagre inesgotável. Quando visitei Oliver Sacks pela primeira
vez em Wards Island, a nordeste de Manhattan, eu tinha perdido o
endereço exato, mas sabia o nome da pequena rua. Era inverno e a
rua ligeiramente íngreme estava coberta de gelo. Estacionei o
carro, deslizei pela calçada gelada, olhando para dentro de todas as
casas com luzes acesas no entardecer. Nenhuma das janelas tinha
cortinas. Através de uma janela, vi um homem estendido num sofá,
com um dos enormes volumes do Oxford Dictionary apoiado no
peito. Eu tive a certeza de que era ele, e era realmente. Nosso
primeiro assunto foi o dicionário, que para ele também era o livro
dos livros.
Talvez somente um outro possa competir com ele quando se
trata de escolher a única leitura para uma ilha deserta: o Códice
Florentino, na tradução para o inglês de Arthur Anderson e Charles
Dibble. Na época da devastação do Império Asteca pelos
espanhóis, houve alguém, uma única pessoa, que desde o começo
se pôs a salvar o máximo possível da cultura em desaparecimento.
Seu nome era Bernardino de Sahagún, um padre franciscano. Ele
cuidou para que se coletasse entre os astecas todo o tipo de
manifestação em matéria de história, religião, agricultura,
medicina, educação. Os textos eram originalmente em língua
náuatle, mas já na época foram registrados em duas colunas, com
tradução para o espanhol. Eu segurei o códice em minhas mãos na
Biblioteca Ambrosiana em Florença e obtive permissão para filmar
algumas páginas para o meu filme Demônios e cristãos no novo
mundo. Dois grandes pesquisadores da Universidade de Utah
trabalharam com Anderson e Dibble na tradução do códice. A
pesquisa sobre a cultura pré-hispânica nessa universidade tem um
padrão excepcional, pois os mórmons acreditam que os astecas
sejam um dos povos perdidos de Israel. Anderson e Dibble
precisaram de mais de 25 anos, e o seu texto tem a força e a
profundidade da versão da Bíblia de King James. Na época, eu
tinha um projeto sem financiamento sobre a conquista do México
vista e vivida da perspectiva dos astecas e, para isso, me iniciei no
básico do náuatle clássico com uma gramática e um dicionário. Fiz
uma peregrinação até Salt Lake City para ver Charles Dibble, que
tinha então cerca de 84 anos e estava aposentado. O prof.
Anderson já havia falecido. Dibble, um homem maravilhoso,
quieto e profundo, ficou surpreso que um cineasta alemão o
procurasse e fosse alguém encantado com o seu trabalho. O
Florentine Codex, General History of the Things of New Spain foi
publicado em doze volumes em náuatle e inglês pela University of
Utah Press até 1982. Ficamos amigos em apenas um longo dia, mas
nunca mais nos vimos. Charles Dibble morreu logo depois que nos
conhecemos.
34.
Amigos
Nos últimos seis anos de sua vida, minha mãe aprendeu turco
porque fez uma amiga em Munique que era do leste da Turquia.
Minha mãe foi visitá-la e viajou sozinha pelo leste da Anatólia, sem
pacote turístico, em ônibus pequenos e precários, onde também
eram transportadas ovelhas. Sua saúde foi se deteriorando ao longo
de muitos anos. Bem no final, eu tinha que ir para os Estados
Unidos porque o produtor Dino de Laurentiis tinha em mente um
grande projeto de filme comigo. Eu disse à minha mãe: “Vou ficar
aqui. Não vou viajar”. Mas ela retrucou: “Você deve ir, você tem
que ir. A vida tem que ser vivida”. Voei para Nova York e assim que
cheguei soube que ela havia falecido naquela mesma noite.
Busquei refúgio com meu amigo Amos Vogel, que imediatamente
cancelou tudo o que tinha naquele dia. Ele se sentou ao meu lado o
tempo todo, ficou em silêncio comigo e também fez algumas
orações. Na mesma noite, eu tomei o avião de volta.
36.
O fim das imagens
1977 La Soufrière
Documentário. À espera de uma catástrofe inevitável. Apenas
um agricultor pobre se recusa a ser evacuado antes de uma
erupção vulcânica.
1982 Fitzcarraldo
Longa-metragem. Brian Sweeney Fitzgerald sonha com a
Grande Ópera na floresta. Para chegar a uma área de
seringueiras inacessível, ele faz centenas de indígenas da
floresta rebocarem um grande barco a vapor por cima de um
morro.
1991 Cerro Torre: Schrei aus Stein [Cerro Torre: Grito de pedra] —
No coração da montanha
Longa-metragem. Dois alpinistas em competição na
montanha mais difícil do mundo, o Cerro Torre, na
Patagônia. Eles conduzem um ao outro à morte.
Das exzentrische Privattheater des Maharadjah von Udaipur [O
excêntrico teatro privado do marajá de Udaipur]
Documentário. O artista austríaco André Heller reúne os
melhores mágicos, dançarinos e encantadores de serpentes
da Índia num grande teatro em Udaipur.
Film Stunde (1–4) [Hora do cinema]
Quatro documentários. Filmados numa tenda de variedades
com convidados durante a Viennale, em Viena.
1995 Gesualdo: Tod für fünf Stimmen — Gesualdo: Morte para cinco
vozes
Documentário. Carlo Gesualdo de Venosa, o Príncipe das
Trevas, compôs música que influenciou profundamente
Stravinsky quatrocentos anos antes de seu tempo.
1997 Little Dieter Needs to Fly (Flucht aus Laos) [O pequeno Dieter
precisa voar (Fuga do Laos)]
Documentário. Dieter Dengler só quer voar, mas acaba na
Guerra do Vietnã. Ele é o único americano que consegue
escapar do cativeiro vietcongue no Laos.
2002 Ten Thousand Years Older — Dez mil anos mais velho
Documentário. Em poucos minutos, no primeiro contato
com a civilização, o povo uru-eu é catapultada 10 mil anos no
futuro.
Á
Curta-metragem. Filmado na África para abrir a temporada
de ópera de Londres com La Bohème.
My Son, My Son, What Have Ye Done — Meu filho, olha o que
fizeste!
Longa-metragem. Um jovem ator talentoso enlouquece
durante os ensaios da Oréstia. Ele não consegue mais separar
a peça teatral e a realidade e mata a própria mãe com sua
espada de palco.
capa
Violaine Cadinot
foto de capa
Jean-Louis Atlan/ Sygma/ Getty Images
composição
Jussara Fino
preparação
Nina Schipper
revisão
Érika Nogueira Vieira
Gabriela Rocha
versão digital
Antonio Hermida
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
CDD 920
* O ensino básico.