Literatura Infantil - Cartas Ao Filho - Alejandro Zambra

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Sumário

Capa
Folha de rosto
Sumário
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Literatura infantil
Jennifer Zambra
Teonanácatl
Bom dia, noite
Francês para principiantes
Multidão
Tempo de tela
A infância da infância

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O menino sem pai
Arranha-céus
Introdução à tristeza futebolística
Assaltantes de olhos azuis
Lições tardias de pesca com mosca
Recado para meu lho
Agradecimentos
Sobre o autor
Créditos
Para a mãe do Silvestre e para o lho da Jazmina
Desde a infância gosto de olhar para meu quarto da
perspectiva de um pássaro.
Bruno Schulz

Não se nasce escritor, se nasce bebê.


Hebe Uhart
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Literatura infantil

Com você no colo, vejo pela primeira vez, na parede, a sombra que
formamos juntos. Você tem vinte minutos de vida.
Sua mãe fecha as pálpebras, mas não quer dormir. Descansa os olhos por
apenas alguns segundos.
— Às vezes os recém-nascidos se esquecem de respirar — nos diz uma
enfermeira gentil e estraga-prazeres.
Fico me perguntando se ela fala isso, desse jeito, todos os dias. Com as
mesmas palavras. Com o mesmo tom prudente de advertência triste.
Seu pequeno corpo respira, sim: mesmo na penumbra do hospital, sua
respiração é visível. Mas eu quero ouvi-la, quero ouvir você, e meu próprio
respirar me incomoda. Meu coração ruidoso me impede de escutar o seu.
Ao longo da noite, a cada dois ou três minutos seguro o ar para veri car
se você está respirando. É uma superstição tão sensata, a mais sensata de
todas: parar de respirar para que um lho respire.


Caminho pelo hospital como quem busca as rachaduras decorrentes do
último terremoto. Penso em coisas horríveis, mas também consigo
imaginar as cicatrizes que um dia você exibirá, orgulhoso, num m de
verão.



Em sua breve vida de catorze dias, a palavra infância parece exagerada.


Mas gosto disso. Em inglês você seria catorze dias velho.



Você chora e quem aparece sou eu. Que fraude. Talvez nossos pais
tenham levado a sério demais essas primeiras rejeições.
Não sou seu preferido, mas você se acostuma com a minha companhia.
E eu me acostumo a dormir quando você dorme. O ritmo do sono
intermitente me faz lembrar dos meus cochilos nas incontáveis longas
viagens de ônibus para o colégio ou para a faculdade, para assistir a aulas
em que continuava cochilando. Ou essas deliciosas sestas furtivas que me
ajudaram a sobreviver à vida laboral.
De repente tenho quinze anos e é meia-noite e estou estudando algo que
não sei se é química ou álgebra ou fonética e acabaram os cigarros e isso é
um problema porque nos sonhos eu fumo muito. Sou acordado por uns
cachorros tímidos que começam seu concerto de latidos e pelas marteladas
de um vizinho que talvez esteja pendurando na parede um retrato de seu
próprio lho e por isso não vê problema em acordar o meu.
Mas você continua adormecido em meu peito, parece inclusive estar em
um sono mais profundo, dormindo para valer. Não faço ideia de que horas
sejam. E não importa. Onze da manhã, três da tarde. Assim passam os dias,
cansativos porém felizes, entremeados por dias felizes porém cansativos e
por dias felizes porém felizes.



O nascimento de um lho anuncia um futuro vasto do qual não faremos


parte totalmente. Julio Ramón Ribeyro resumiu muito bem: “O dente que
nasce nele é o dente que perdemos; o centímetro que ele cresce, é o que
diminuímos; o brilho que ele adquire, é o que em nós se extingue; o que
ele aprende, é o que esquecemos; e o ano que ele soma, é o que nos é
subtraído”.
É um pensamento bonito, mas cujo viés turbulento já inquietou milhões
de homens. Penso em pais de outras gerações, porém é absurdo supor que
algo tenha mudado. Conheci homens que exercem a paternidade com
lucidez, humor e humildade, mas também já vi amigos queridos, que
pareciam ter a cabeça no lugar, afastarem-se de seus lhos para se entregar
a uma busca desesperada e caricatural por uma juventude perdida.
Também há muitos que enfrentam a pulsão de morte sobrecarregando os
lhos com um sem-número de tarefas e regras, com a intenção explícita ou
velada de prolongar, à custa deles, seus sonhos interrompidos.
O que me impressiona, em qualquer caso, é a ausência quase absoluta
de uma tradição. Como todos os seres humanos — me parece —
nascemos, seria natural que fôssemos especialistas em assuntos de criação,
mas sabemos muito pouco, em particular os homens, que às vezes
parecemos aqueles estudantes risonhos que chegam para a aula sem saber
que era dia de prova. Enquanto as mulheres transmitiam a suas lhas o
imperativo as xiante da maternidade, nós crescemos mimados e incautos e
até cantarolando “Billie Jean”. Nossos pais tentaram, à sua maneira, nos
ensinar a ser homens, mas não nos ensinaram a ser pais. Os pais deles
tampouco lhes ensinaram isso. E assim por diante.



Durante as suas primeiras semanas de vida, escrevi em torno de cem


poemas no celular. Não são poemas, na verdade, mas no celular é mais
fácil dar enter do que lidar com os sinais de pontuação.
Escrevo em estado de apego, sob a sua in uência, os dois seduzidos pelo
encanto da cadeira de balanço, que funciona como uma tímida montanha-
russa, ou como um cavalo incansável e generoso, ou como a balsa que por
m nos levará a Chiloé.



Esta manhã quis transformar os poemas falsos em poemas verdadeiros,


mas receio ter ido longe demais e acabado encaminhando-os para o
civilizado e legível país da prosa. Estraguei os poemas, mas de toda maneira
copiei todos, por via das dúvidas, em um arquivo que intitulei “Literatura
infantil”. Nenhum desses esboços poderia ser considerado literatura
infantil. Apesar de todos remeterem à infância. A sua, incipiente, e a
minha, distante. Minha infância ou minha ideia de infância a partir da sua
chegada.


A palavra infantil costuma ser usada como insulto, embora a quantidade
de palavras que não são insultos mas podem cumprir essa função seja quase
ilimitada. Basta trabalhar um pouco o tom.
Me lembro de uma menina muito doce, lha de um de meus melhores
amigos, que uma tarde se irritou com seu boneco favorito e cou gritando
cruelmente com ele por umas duas horas, repetindo vez após vez: “Um
bichinho de pelúcia! É isso que você é, um bichinho de pelúcia! Você
acha que é de verdade, mas é só um bichinho de pelúcia!”.
Aos quinze anos, eu me irritava quando se referiam a mim usando a
palavra jovem. Não me lembro se alguma vez fui chamado de adolescente,
mas teria odiado também. No plano da linguagem, estritamente,
adolescente é uma palavra perfeita, mas quando entendida como insulto
pode ser devastadora.



A literatura cedeu à autoajuda quase todo o espaço de re exão que a


paternidade requer. Mas nos livros de autoajuda costumamos encontrar
apenas conselhos triviais e às vezes até humilhantes. Alguns meses atrás li
um volumoso manual cuja recomendação principal para os homens era:
“Be sensitive!”.



Esta semana você ganhou os mesmos cem gramas que eu devo ter
perdido dançando contigo nos braços. O lho engorda o que o pai
emagrece. É a dieta perfeita.


A expressão literatura infantil é condescendente e ofensiva e me parece


também redundante, porque toda literatura é, no fundo, infantil. Por mais
que nos esforcemos em disfarçar, todos nós que escrevemos fazemos isso
porque desejamos recuperar percepções apagadas pela suposta
aprendizagem que tão frequentemente nos tornou infelizes. Enrique Lihn
dizia que nos rendemos a nossa idade real como a uma falsa evidência.
Literatura infantil: gosto do que é despertado pela palavra infância
entremeada aí. Penso em Jorge Teillier, em Hebe Uhart, em Bruno
Schulz, em Gabriela Mistral, em Jacques Prévert. Bem, a lista de “autores
infantis” é interminável. Baudelaire de nia a literatura como uma
“recuperação voluntária da infância” — acabo de veri car e descobrir que
o que ele de nia dessa maneira é “o gênio artístico”, não a literatura.
De todo modo, pre ro car com minha lembrança errônea e menos
empolada dessa teoria de Baudelaire. Gosto dessa ênfase; gosto, sobretudo,
de sua comparação entre artista, criança e convalescente. Mais que
lembrar ou relatar, quem escreve tenta ver as coisas como se fosse pela
primeira vez, ou seja, como uma criança, ou como uma pessoa
convalescente que está retornando da doença e de certo modo da morte, e
aprende de novo, por exemplo, a caminhar.
A paternidade também é uma espécie de convalescença que nos permite
aprender tudo de novo. E nem sabíamos que havíamos estado gravemente
doentes. Acabamos de descobrir.



Os padrastos começam perdendo a estrondosa batalha da legitimidade.


Mas de repente alguém vai e diz: “Meu padrasto foi meu verdadeiro pai”.
Eu quero escutar essas histórias.
Talvez todos nós, pais, sejamos no fundo padrastos de nossos lhos. A
biologia nos assegura um lugar em sua vida, mesmo assim ansiamos que
eles nos escolham como pais. Que algum dia digam esta frase, tão
maravilhosamente incomum: meu pai foi meu verdadeiro pai.



Voltando da padaria a que vamos juntos todas as manhãs:


— E esse menino não tem mãe? — um homem me pergunta.
— Imbecil, imbecil — eu respondo.
Eu costumava ser bom em devolver insultos, mas só me sai essa palavra.
O mesmo insulto, duas vezes.
É um homem mais ou menos da minha idade, de olhos verdes e secos,
vestindo um terno elegante. Não parece estar bêbado.
Por um segundo penso em pedir que ele espere enquanto vou te deixar
no berço para em seguida voltar e quebrar a cara dele. Pensar em algo
assim me deixa muito incomodado. Me deixa triste, na verdade.
Desmoralizado.
Que tipo de pessoa diz isso. Por quê, para quê.
Eu te deixo no colo da sua mãe.
Vou à cozinha e como uma baguete inteira pensando em insultos
rudimentares, impiedosos, de nitivos.



Meu pai se tornou pai aos vinte e quatro anos e eu aos quarenta e dois.
Não paro de pensar nisso. É o que temos.
Quando você tem um lho, volta a ser lho. Mas a experiência em si,
domesticada pelo tempo e marcada ou condicionada pela idealização, pela
discórdia ou pela ausência, não é su ciente.
Você queria se lembrar dos dias e noites em que cuidavam de você tal
como agora você cuida de seu lho. Embora talvez não cuidassem tanto
assim de você. Talvez te colocassem no cercadinho e te deixassem chorar e
te en assem uma mamadeira. E ligassem a tevê, e pronto.
Nós nos comparamos a nossos pais, embora — sabemos — já não
possamos ser iguais a eles nem essencialmente diferentes deles. E, como os
matamos aos vinte anos, não podemos matá-los de novo; por isso mesmo às
vezes acabamos por ressuscitá-los.



Você chora quando percebe que seus pés não servem para segurar
objetos. Mas logo decifra, maravilhado, os desenhos do lençol. E as
imperfeições da coberta. E as gotas de chuva na janela. Sua mãe imita os
trovões e eu, os relâmpagos. Está tudo bem.



Há homens que são fortemente afetados pela paternidade. É como se, da


noite para o dia, somente pelo fato de terem se tornado pais, perdessem a
capacidade de pronunciar qualquer frase sem mencionar alguma história
protagonizada por seus lhos, que, mais que seus lhos, parecem seus
guias espirituais, pois para esses pais babões até as histórias mais sem graça
possuem certa profundidade losó ca. Esse é, exatamente, o meu caso.
Posso imaginar o desastre que teria sido, para mim, ter um lho aos vinte
anos. Pertenço a uma geração que postergou a paternidade, ou que a
descartou de todo, ou que a exerceu de outras maneiras tanto ou mais
difíceis, como a padrastidade — uma palavra que, segundo o dicionário,
não existe — e a adoção.
Agora, aos quarenta e dois anos, a paternidade tem sido para mim uma
verdadeira festa. Sabemos que mesmo nas melhores festas há momentos
em que a euforia se mistura ao desconcerto ou à ingrata notícia de que
amanhã, queiramos ou não, será preciso acordar cedo e lavar a louça. Mas,
se eu tivesse de resumir esses cento e cinquenta e tantos dias em uma frase
breve, meu telegrama diria assim: estou adorando.



— E por que você quis ter um lho?


Nesses poucos meses, umas quinze pessoas se permitiram perguntar isso
a mim.
— Eu quero mesmo é ser avô, esse é só o primeiro passo — respondo,
por exemplo.
Ou então:
— Porque estava cansado dos gatos.
— Porque já estava na hora.
— Por motivos pessoais.
— Porque estou apaixonado.
— Por curiosidade.
Gosto particularmente dessa última resposta, tão delicada e tão banal.
Talvez fosse melhor falar de curiosidade intelectual ou de ânsia
experimental. Ou apelar para o desejo de aventura, para a prestigiosa sede
de experiências, para a necessidade de compreender a natureza humana.
Porém gosto mais da resposta simples, à la Pandora.
Depois das piadas, contudo, eu respondo, ou tento responder. Sou
incapaz de articular um discurso puramente racional; só o fato de começar
a dizer algo, com certo cinismo econômico, seria colaborar com esse vazio
de conhecimento que todos sentimos e de que padecemos todos e que
desanima e desnorteia.



Por séculos a literatura tem evitado o sentimentalismo como se fosse


uma peste. Tenho a impressão de que até hoje muitos escritores
prefeririam ser ignorados a correr o risco de serem considerados piegas ou
sentimentais. E é verdade que, na hora de escrever sobre nossos lhos, a
felicidade e a ternura desa am nossa ideia antiga e masculina do que é
comunicável. O que fazer, então, com a satisfação jubilosa e
necessariamente bobalhona de ver um lho conseguir car de pé ou
começar a falar? E que tipo de espelho é um lho?
Na tradição literária, abundam as cartas ao pai, mas as cartas ao lho são
muito mais escassas. Os motivos são previsíveis — machismo, egoísmo,
pudor, adultocentrismo, negligência, autocensura —, mas penso que
também há razões puramente literárias. De cara, é mais fácil omitir os
lhos ou colocá-los em segundo plano, ou então entendê-los como
obstáculos à escrita, usá-los como desculpa; agora, por causa deles, não
estamos mais conseguindo nos concentrar em nosso trabalhoso e
importante romance.
A infância sobrevive em nós como um enigma intermitente, em geral
atestado apenas por álbuns de fotos, bichos de pelúcia transicionais ou
punhados de pedrinhas coletadas em alguma tarde na praia. Ninguém
escreveu nossa infância, e talvez lamentemos essa ausência de sinais, mas
também, de algum modo, agradeçamos, porque isso nos permite respirar,
mudar, nos rebelar. Imaginar o que um lho lerá na própria obra é
igualmente emocionante e avassalador. Narrar o mundo de que uma
criança se esquecerá — tornarmo-nos correspondentes de nossos lhos —
é um desa o enorme.
Eu mesmo, enquanto escrevo, sinto a tentação do silêncio. E, no
entanto, sei que mesmo se me trancasse para esboçar um romance sobre
campos magnéticos ou se improvisasse um ensaio sobre a palavra palavra,
acabaria falando sobre o meu lho.



“Não relate seus sonhos, por favor, e nem pense em falar de crianças ou
de animais de estimação”, um premiado escritor disse a uma amiga minha
que queria escrever um romance sobre seus sonhos e sobre sua lha e
sobre seu gato. Eu, por outro lado, acredito que seja importante aceitar
todos esses desa os.



Me orgulha o fato de que a primeira palavra pronunciada por meu lho,


cinco dias atrás, e contra toda estatística, tenha sido a palavra papá. Agora
ele a diz a todo momento. Ainda tem di culdade, porém, de articular a
oclusiva bilabial surda p, de modo que por enquanto a substitui pela nasal
bilabial vozeada m.


Toda pessoa que tenha criado um lho sabe que em muitas ocasiões a
palavra felicidade rima inexplicavelmente com a palavra lombalgia.



“Zambra, quando vocês vierem ao Chile, quero ser o primeiro a


conhecer seu lho, mesmo que você nunca tenha demonstrado o mínimo
interesse em conhecer os meus.”
Ouço isso de um querido amigo chileno. É uma brincadeira. É verdade
que não conheço nenhum de seus três lhos, mas o caçula acaba de fazer
quarenta anos. Além do mais, sempre falamos sobre eles. Estou a par da
vida deles. Sei, por exemplo, que a lha mais velha não quis ser mãe, e que
os dois menores acham que a paternidade é loucura.
De repente penso como foram importantes para mim essas longas
conversas com meu amigo. E agradeço a ele por isso. “Não exagere”, ele
responde. “Não quero morrer sem ser avô”, diz em seguida. “Não exagere”,
eu respondo.



Como não sou imune ao otimismo, tendo a pensar que hoje em dia
aceitamos que até nossos próprios lhos são lhos alheios e estão
destinados a entender o mundo segundo categorias que sequer somos
capazes de imaginar. “Sempre esperando por eles sem nunca lhes pedir
que voltem”, diz luminosamente Massimo Recalcati em seu estupendo
ensaio Il segreto del glio [O segredo do lho].


Ouço ao longe “Praying for Time”, a linda música de George Michael.


Me lembro do tempo em que a ouvia e tentava entender sua letra
devastadora com o auxílio de um dicionário minúsculo. Agradeço ao
vizinho essa viagem involuntária à difícil juventude. Você agora dorme
tranquilo ao ritmo de “Freedom!”.
Nunca reclamo do volume da música. Pre ro começar a dançar. Ou a
lembrar. Ou a rezar. Eu reclamaria, isso sim, da estridência das motos, mas
elas passam rápido.
Não consigo entender que alguém reclame do choro de uma criança. As
pessoas que reclamam do choro das crianças deveriam car sem
sobremesa, sem televisão e sem recreio.
Ia me conformar com o aforismo, mas quero deixar registrado que esta
manhã certa dama veio à nossa porta porque você estava chorando havia
dois minutos. Três batidas secas com a palma da mão aberta. Uma pessoa
níssima.



Nossa ideia de ascensão social é uma casa com dois banheiros.



“Você se enganou de gênero”, disse-me certa vez uma editora italiana.


Por um segundo me senti recebendo um elogio inovador, embora
entendesse que na verdade ela estava falando de gêneros literários, pois
tinha me convidado para jantar com a intenção de me convencer a
escrever livros para crianças.
Eu havia passado o dia inteiro caminhando por Roma, imerso em uma
felicidade parecida justamente com a de uma criança que contempla pela
primeira vez carrosséis, rodas da fortuna e inverossímeis tobogãs
desprendidos das nuvens. Àquela altura, porém, oito ou nove da noite, eu
estava com sono após tomar um soberbo nebbiolo, e talvez por isso a
editora tenha sentido que deveria exagerar seu argumento, em nada
elogioso: A literatura infantil se encaixa melhor no seu estilo. Seus romances
são infantis demais para o meu gosto. Seus livros são livros ilustrados mas
sem ilustrações, temos que corrigir isso. Não gosto dos seus romances. Seus
livros infantis seriam muito melhores. Por que você escreve para adultos
quando deveria escrever para crianças?
Na manhã seguinte ela me ligou no hotel dizendo que tinha acordado
com a sensação de que falara demais. Respondi que não. “Mas tenho
certeza de que falei algumas besteiras”, ela insistiu, com a voz mais lenta
por conta da ressaca. “Todo mundo fala besteira o tempo todo”, respondi.
“Seus romances são extraordinários”, ela disse, e mesmo sabendo que ela
mentia garanti que suas palavras me davam forças para seguir adiante. Por
m me perguntou se a nal eu estava ou não interessado em escrever para
crianças. Respondi que ainda não me sentia preparado para estrear na
literatura infantil.
Foi uma situação estranha e divertida. Agora que penso na palavra
infantil, lembro-me dela e re ito que talvez ela tivesse razão, ou tenha
razão. Em meus tempos de universitário, enquanto escrevia meus trabalhos
de m de semestre movido pelo único desejo de impressionar meus
professores, comecei a perceber o risco de perder para sempre a
possibilidade de me conectar com as pessoas que amava de verdade. A
partir disso surgiram os rudimentos de um estilo. Mais que mirar em
destinatários concretos, ao escrever eu visualizava uma espécie de irmão
mais novo inexistente, com quem ansiava me comunicar. Não diria que
tenho um estilo, porque minha ideia de estilo mudou e continuará
mudando, mas, se precisasse entrar nesse jogo, a verdade é que assinaria
com gosto uma declaração dizendo que pratico algo como um estilo
infantil.



Seu corpo leve compete com o vento e prevalece na rede parada.



O céu está repleto de mariquitas e papa-moscas-vermelhos.


Encontramos um mamoeiro gigante e um amingo que maldiz os barcos
que tentam se aproximar.
Celebramos suas primeiras palavras como jornalistas esportivos tomados
pela euforia nacional. Comemos patacones, pozole verde e sorvete de coco.
Na viagem de volta você vomita inteira a camisa bordada oaxaquenha
que me deram em seu nome no Dia dos Pais.



À noite, as lagartixas-amarelas fornicam no teto, iluminadas pelos fogos


da baía.
Hoje você aprendeu a imitar o pregão do vendedor de pão.


Um curador de arte a quem devo ter visto cinco vezes na vida mas que
me considera seu amigo íntimo me ligou às duas da manhã para contar
que estava pensando em ter um lho. “Quero uma mudança na minha
vida”, o mezcal disse através dele.
Talvez ele seja, sim, meu amigo, pensei. E é verdade que vou com a cara
dele. Gosto dele. A primeira prova de meu carinho é que em vez de
mandá-lo à merda reagi com cautela. A segunda é que preferi atribuir a ele
uma pro ssão diferente, caso venha a ler isto (não é curador de arte, mas
talvez devesse ser: faria bem isso).
Da mesma forma que é profundamente ingênuo ter um lho supondo
que a vida seguirá do jeito que era, tornar-se pai com o único propósito de
gerar uma mudança é de uma estupidez sem tamanho. Não falei isso dessa
forma ao curador, justamente porque gosto dele. Mas falei. E ele
entendeu. Depois me ofereci para um estudo de campo: propus que ele
viesse almoçar conosco e que passássemos a tarde toda com meu lho.
Nós, homens, construímos certa ideia de companheirismo a partir de
bebedeiras memoráveis que nos levaram a um emocionante beco sem saída
de con ssões e cumplicidades. Mas nos conhecemos mais intensamente
quando passamos uma tarde inteira com um amigo que agora é pai e que
nos recebe com alegria e fala sobre qualquer coisa, não necessariamente
sobre paternidade, mas não nos olha mais nos olhos, pois tem o olhar xo
naquela criança que a qualquer momento pode resolver sair em disparada e
se estropiar toda.



Como imaginei, o curador não veio. Telefonou várias horas depois para
pedir desculpas. Disse que estava com muito trabalho e que eu não
precisava me preocupar, porque a crise já tinha passado: estava solteiro
agora. Não soube o que responder. Parabéns, eu disse, ao nal.



Altero a letra e a melodia das melhores canções de ninar enquanto lavo


os pratos com uma técnica nova.



— Não é permitido entrar com líquidos — disse-me um homem na


livraria Educal, a unidade do Museu Nacional de Culturas Populares, em
Coyoacán.
— E o que você acha que tem na mamadeira-chuquinha-tetê? —
respondi, com você no canguru. — Mezcal? Absinto? Licor de anis? Pisco,
rum, gim, saquê, tequila, bacanora, cachaça, vodca? Álcool de acender
fogo?
Não é verdade, só falei mezcal. Aperfeiçoo minha resposta agora que
escrevo. Isso de nomear a mamadeira com sinônimos eu faço às vezes, de
nervoso. Frente à possibilidade de errar a palavra, lanço-as todas de uma
vez.
— O conteúdo não importa.
— Mas é água!
— Então, água é um líquido.
— E se fosse leite materno?
— Entendo que o leite materno também é um líquido.
Era difícil não ironizar. “Entendo que o leite materno também é um
líquido.” Queria fazer um lme só para colocar, em uma cena muito
secundária, um personagem vestindo uma camiseta com essa frase, de
preferência em inglês.
Eu estava bravo, mas a situação me divertia. E você dormia, tranquilo e
abrigado. Pedi para falar com o gerente, como nos lmes. E, como nos
lmes, o gerente apareceu imediatamente. Con rmou as políticas da
livraria. Disse que não podíamos entrar com recipientes com líquidos, “não
importando a natureza dos mesmos”. Perguntei se estava se referindo à
natureza dos recipientes ou dos líquidos. Ele não respondeu.
Perguntei se isso signi cava que naquela livraria, pertencente ao Estado
mexicano, era proibida a entrada de crianças de dez meses. Ele disse que as
crianças de dez meses e de todas as idades eram bem-vindas naquela e em
todas as livrarias dos Estados Unidos Mexicanos e que justamente por isso
havia uma seção de livros para infantes (usou essa palavra, infantes).
Perguntei se naquela livraria havia bebedouros ou coisas do tipo. Ele
disse que não. Falei que em meu país era comum tomar água da torneira,
mas que no México todo mundo desaconselhava fazer isso. Ele não fez
comentários.
Perguntei se ele tomava água da torneira. Perguntei se tinha lhos. Ele
respondeu que essas perguntas eram muito pessoais.
O subordinado olhava para seu gerente como se estivesse tirando
conclusões felizes.
De repente, em um lampejo de inspiração, ocorreu-me tratar o chefão
da mesma maneira como tratam nos lmes os galãs que fazem papel de
espertos: em um gesto rápido e glorioso, destapei a sua mamadeira e
despejei o líquido direto na careca reluzente do sujeito — não, lho, claro
que não z isso, não me faltou vontade, mas minha urgente sede de
vingança importava muito menos do que a sua sede de água.


“O passado é um prólogo.” Não sei se concordo com esse personagem de


A tempestade. Bem, quer dizer, sim. Reescrevo esse prólogo, então, no
ritmo contagioso da cadeira de balanço.



Você acorda em meu peito e tenta me pentear com as duas mãos.



Um lho e seu pai compartilham a espreguiçadeira e inventam nuvens


menos sérias.



Você passou a existir


faz um ano exatamente
chegou muito de repente
acabara de sair
não sabia sequer rir
e em sua bela seriedade
abstraiu-se de verdade
em sua mãe com seu olhar
a tarde quase a ndar
aqui bem nesta cidade.

Não foi fácil sua chegada


um doutor pouco erudito
— nunca foi meu favorito —
fez inúmeras cagadas
e pouco ou nada o ajudava
a enfermeira patricinha
mas Teresa, sua avozinha,
com obstinada alegria
nos cedeu sua companhia
pra ajudar na sua vinda.

Sempre vamos nos lembrar


da beleza de seu rosto
você bebia o colostro
e era um barco em alto mar
que reconhece o lugar
ao qual se acerca e regressa
agora ao arrumar a mesa
juntos aqui na sua tia
evocamos esse dia
com comida e cerveja.

No princípio veio o pranto


que durou quatro segundos
você se afeiçoava ao mundo
nós te embalamos enquanto
você balbuciava um canto
e achava bom o planeta
porque sua mirada inquieta
às seis horas da matina
ia bem além das cortinas
e você adora maletas.

As músicas da Marisa
e as fotos do tio Toumani
— que é o primo da sua mami —
paroquianos desta missa
testemunham sua alegria
Óscar, Paula e Margarita
Héctor, Adolphe e Lupita
E também John e Joanna
— e meus pais e minha mana
cuja ausência era prevista.

Sei que a gente não recorda


os nossos primeiros anos
são como um passado estranho
uma melodia fora
uma noite sem aurora
de cavalos e piñatas
de tamarindo e horchata
mas por ti nós melhoramos
e é isso que hoje celebramos
sem cessar e sem gravata.

Sua existência modi ca


o lugar do que é sagrado
sua chegada tem mudado
a esperança, que fabrica
e a coragem, que triplica:
menino, recém-nascido
sempre que ouvir seu pedido
te levo no canguru
pelo resto do futuro
meu macaquinho querido.
Jennifer Zambra

Se eu tivesse nascido mulher, meu nome teria sido Jennifer Zambra. Já


estava decidido. Foi quase a primeira coisa que contei à sua mãe, ertando
com ela em um diner de Prospect Heights. Na verdade, começamos
falando de árvores e enxaquecas. E lamentamos a morte de Oliver Sacks
como se ele fosse um familiar ou um amigo que tínhamos em comum.
Como capitães no meio do campo antes do jogo, ou como embaixadores
tímidos de países exóticos, trocamos livros de Emmanuel Bove e Tamara
Kamenszain. Nos primeiros minutos não era fácil combater o nervosismo,
de modo que lemos apaixonadamente os cardápios como se procurássemos
erros ortográ cos. E depois camos fofocando sobre casos de amor alheios
e confusos que talvez fossem nossos.
Até que por m olhamos nos olhos um do outro sem grandes reservas.
Foi um minuto inteiro de um antigo silêncio heterossexual. Intensi caram-
se as con ssões súbitas e a enumeração de afeições e fobias. E essas frases
ambíguas que soam como promessas.
Não sei de onde tirei a ideia de perguntar à sua mãe qual era o nome
masculino alternativo dela. Foi uma péssima jogada, pensando agora,
talvez a pior de todas. Por sorte, a pergunta não pareceu tão estranha à sua
mãe. Lembro que ela arrumou desnecessariamente o cabelo, como se
quisesse desenhar um sorriso ao fazê-lo.
— Você primeiro — ela disse, sabiamente.

De modo que de repente me vi falando de Jennifer Zambra. Em algum


momento da infância alimentei um ressentimento pensando nesse nome
estrangeiro, inspirado por sabe-se lá que atriz. Meus pais o haviam
escolhido para mim sem prever que estariam me condenando a todo tipo
de chacota.
Mas fui me apegando à cena de meus pais em um apartamento em Villa
Portales, seduzidos de repente pelo tilintar soberbo desse nome fantástico.
Talvez minha irmã, então com dois anos, tenha chegado a pronunciar o
nome de sua possível sucessora.
Os sobrenomes são prosa, os nomes são poesia. Há quem passe a vida
lendo o irremediável romance do sobrenome. Mas em um nome palpitam
caprichos, intenções, preconceitos, contingências, emoções. E costuma ser
a única obra que a mãe e o pai escrevem juntos.
De sorte que, para seu eventual lho menino, meus pais escreveram um
poema convencional, que não brilharia nem faria feio em nenhuma
antologia, e para sua possível lha mulher escreveram outro mais ousado,
inovador e polêmico. Um nome que testava os limites.

Já na adolescência, eu costumava pensar na difícil ou solitária ou


escandalosa vida de Jennifer Zambra. Até sonhava com ela. Podia vê-la
batendo a bola contra a parede num pátio de um colégio vazio. Ou
entediada feito ostra na Missa do Galo. Ou trançando triunfalmente sua
espetacular cabeleira preta depois de se isolar de todo mundo.
Passava horas decidindo com quais dos meus amigos Jennifer Zambra
transaria e de quais ela seria apenas amiga. E inclusive tentei me apaixonar
duplamente — na cção e na não cção — por um colega de classe. E
talvez tenha conseguido.
Mas também era comum eu me esquecer dela. Ou ngir que a esquecia.
Ou negá-la de fato. Houve ocasiões em que até z piada com Jennifer
Zambra. Na frente de todos e de todas. Ri do seu nome, da sua maneira de
se vestir, de se maquiar. Recitei em voz alta trechos embaraçosos de seu
diário com o único propósito de expô-la ao ridículo. E isso que quem
escrevia seu diário era eu.
Que besteira. É difícil fazer falar as pessoas que temos dentro de nós.
Mas é possível. Punimos a cção, punimos as piadas, punimos os sonhos,
punimos a música, punimos os personagens com quem convivemos desde
sempre. E no m entendemos que não somos lmes de mistério, somos
mistério.

Conversei sobre tudo isso com a sua mãe naquela tarde no diner.
Deveria ter sentido antes o pânico especí co de estar falando demais. Por
sorte o garçom nos interrompeu, aparentemente queria saber se estávamos
bem. Depois sua mãe foi ao banheiro e checou o celular e fomos
interrompidos também pelo mundo com alguma notícia urgente da qual
não me lembro, mas que alterou ligeiramente o roteiro.
— Sua vez — falei, pensando que ela devia ter esquecido de minha
pergunta.
— Eu sei — ela respondeu.
Foi então que sua mãe pronunciou o seu nome, o nome que agora é
apenas seu, mas que teria sido dela caso tivesse sido .
— Meus pais tinham tanta certeza de que eu seria homem que sequer
pensaram em uma listinha básica de nomes de mulher — sua mãe disse,
como se estivesse imitando a pose de uma heroína romântica. — Tiveram
que improvisar comigo, tiveram que inventar às pressas um nome para
mim.

Enquanto a sua mãe comia as torradas com canela que pedira, eu me


concentrei nesse nome que agora é apenas seu: em sua ressonância, em sua
beleza. Gosto tanto de pensar que você já nos rondava naquele encontro
quase às cegas. Tenho certeza de que você já estava por lá, escondido.
Candidatando-se à vida desde o primeiro erte. Contente em preencher o
formulário.
— Você poderia ter um lho com esse nome — eu disse à sua mãe
depois de uma pausa, não sei se longa ou curta. — E eu poderia ter um
lho com esse nome também.
Essa segunda frase foi excessiva, talvez a primeira também tenha sido.
Porque existem códigos. Sua mãe olhou para mim como que implorando
para que eu parasse de falar. E não foi fácil, eu disse mais algumas frases,
mas no m consegui car calado.
— Podemos caminhar até o metrô — ela disse em seguida.
Não era uma pergunta, nem um convite, e sim um pensamento em voz
alta. Esperamos a conta, pagamos, en m, todas essas ações ocorreram, mas
não me lembro de nada além da sensação amarga de ter arruinado uma
tarde incrível.
— Você é bem intenso — ela me disse, já perto do metrô.
Não parecia uma boa avaliação: duas estrelas de cinco, no máximo três.
Fiquei sem saber o que responder. Sempre tive esse problema crônico do
entusiasmo. Deveria ter respondido isso. Mas ela estava sorrindo e me deu
o braço por alguns segundos, apoiando-se em mim.
— Eu adoraria ser amiga da Jennifer Zambra — ela disse, antes de se
despedir. — Sinto que vamos ser muito amigas. Mais que amigas.
Nos abraçamos, ela desceu para o metrô morrendo de rir, eu quei por
um bom tempo contemplando a multidão. Tinha acabado de escurecer, o
calor arrefecia, era uma noite perfeita para caminhar por horas. A história
continua, é claro, e vai cando cada vez melhor. Depois eu te conto
direito.
Teonanácatl

Teonanácatl: assim os astecas denominavam o cogumelo que agora é


conhecido como pajarito. Meu amigo Emilio me recomendou o uso dele
para tratar a cefaleia em salvas, e ele mesmo conseguiu para mim uma
dose generosa em forma de chocolate; guardei com cuidado os tabletes na
geladeira, à espera resignada dos primeiros sintomas, mas às vezes
imaginava inocentemente que a simples presença da droga afugentaria a
moléstia. Lamentavelmente as dores começaram logo, justo no dia em que
tínhamos organizado um curso de primeiros socorros. Melhor eu explicar
direito: depois de assistir a uma entediante e elementar introdução aos
primeiros socorros, Jazmina e eu convocamos outras mães e outros pais de
primeira viagem e até conseguimos a espaçosa casa ao lado para que uma
médica nos desse um curso alternativo de quatro horas. Mas na manhã,
quer dizer, na madrugada do dia combinado, como eu dizia, acordei com
essa dor intensa no nervo trigêmeo, que é sinal inequívoco do início da
enxaqueca. Minha esposa sugeriu que eu deixasse o curso para lá e casse
em casa tomando pajarito.
Às quatro da tarde, Jazmina e o menino foram embora e eu devorei o
primeiro tablete, disposto a uma viagem breve, funcional. O chocolate era
delicioso e agora penso que isso também in uenciou em minha decisão de
comer, depois de uma impaciente espera de vinte minutos, um segundo
tablete. Dessa vez o efeito foi quase instantâneo: senti como se umas mãos
estivessem entrando dentro de minha cabeça e anulando a dor do mesmo
modo que alguém reorganiza alguns cabos ou digita com destreza a senha
de um cofre. Foi uma sensação agradável e gloriosa.
Não quero falar demais dos revezes que a cefaleia em salvas me causou
ao longo de mais de vinte anos. Basta dizer que ela volta aproximadamente
a cada dezoito meses e que sua companhia corrosiva dura entre noventa e
cento e vinte dias, durante os quais a ideia de cortar minha própria cabeça
chega a me parecer razoável e econômica. Houve momentos em que
alguns remédios conseguiram mitigar a dor, mas nenhum surtiu o efeito
milagroso do pajarito. O teonanácatl — devia ter dito antes que a palavra
signi ca “carne de deus” — tinha acabado de me limpar radicalmente. É
claro que o risco de a dor voltar persistia, mas de alguma forma eu sabia
que não, que estaria a salvo por um bom tempo (fez onze semanas hoje).
A felicidade do bem-estar repentino me trouxe à memória uns versos de
Silvio Rodríguez que não escutava fazia anos: “A canção é a amiga/ que me
acolhe e depois me desabriga”. Cantei a plenos pulmões. Só me lembrava
do começo da música, mas inventei o restante com desenvoltura, como se
tivesse que convencer um auditório inteiro de que sabia a letra. Mais ou
menos nesse momento, talvez em paralelo ao idílio musical, me veio a
convicção de que Emilio era meu lho. Custei a aceitar a formulação
desse pensamento, mas a associação era natural: meu amigo não padece de
cefaleia em salvas, mas cresceu vendo seu pai, o escritor Francisco
Hinojosa, lutar por décadas — com resultados pí os — contra a doença.
Do mesmo modo, se eu não conseguisse me curar, pensei, meu lho
acabaria se familiarizando com minhas temporadas de enxaqueca. Senti
uma tristeza leve, como uma bossa nova. Pensei que Emilio era generoso,
como Silvestre seria em alguns anos. Imaginei meu lho aos vinte anos
falando com algum amigo sobre as enxaquecas do pai. Visualizei Emilio,
ou melhor, enfoquei o rosto de Emilio, especi camente sua barba
volumosa: e eu a barbeei, primeiro de maneira lenta, realista, minuciosa,
com uma máquina elétrica, e depois com espuma e uma excelente
navalha. Passei até loção. Quis enviar uma mensagem a ele. Escrevi:

Na verdade, eu não tinha ouvido Silvio Rodríguez, e sim minha própria


voz cantando uma música dele, mas foi assim que pensei ao redigir a
mensagem.
Então a campainha tocou várias vezes. Sei que há pessoas que pensam
que tocar a campainha em sequência é um costume simpático, mas não é
o meu caso. Ao me aproximar da janela, meu incômodo se transformou
em desconcerto, porque quem estava lá embaixo era Yuri. Digo: a cantora
Yuri. Quem acabara de tocar a campainha daquele jeito estúpido era a
cantora Yuri, e ela, ao me ver debruçado na janela do segundo andar,
gritou: “Estou sem grana para o táxi e o cara está esperando!”. Empoleirada
em uns saltos que bem poderiam passar por pernas de pau, Yuri me
pareceu enfática, corajosa e admirável. Voltou a gritar ou a pedir dinheiro,
com autoridade. Eu tinha uma nota de quinhentos, quantia alta demais
para um táxi, mas a lancei pela janela. Ela a agarrou com destreza, recebeu
do motorista o troco, que guardou jovialmente em seu bolso, e foi embora
sem se despedir.
Não me lembro de ter pensado que a presença de Yuri fosse uma
alucinação. Não me lembro de ter duvidado de sua identidade. Por que
tinha tanta certeza — e continuo tendo — de que aquela baixinha pedinte
era a cantora Yuri? O que eu de fato pensei, enquanto caminhava para o
quarto (nosso apartamento é muito pequeno, mas minha sensação de
espaço havia mudado), foi que Yuri tinha um marido chileno e evangélico
e que para os olhos mexicanos talvez ele e eu nos parecêssemos. Sem
dúvida tenho cara de chileno, mas talvez também tenha cara de
evangélico, de chileno evangélico, pensei. Só então me dei conta de que
estava drogado. Após uma relativa sensação de surpresa, comecei a dar
umas risadas meio falsas, diplomáticas: talvez estivesse rindo só para provar
que era capaz de articular uma risada. Como alguém que sai de uma longa
reunião em uma cidade desconhecida e calcula que ainda tem algumas
horas para tomar um café e dar uma volta, quis aproveitar a viagem, ou
melhor, senti-me obrigado a querer aproveitá-la. Mas, como meu propósito
de consumo fora tristemente terapêutico, eu não estava preparado para
desfrutar. Em um acesso de esnobismo, pensei em escrever algo em modo
lisérgico. Também quis ler, tinha uns quantos livros na mesinha de
cabeceira, mas não era fácil com os olhos nublados. Esforcei-me para
procurar meus óculos, às apalpadelas, mas sem sucesso. Mandei uma nova
mensagem a Emilio, em busca de conselho ou simplesmente de atenção:
Queria dizer que o efeito era similar ao da maconha, embora eu não
tenha certeza de que tenha sido assim nem de que eu tenha me sentido
desse jeito. Era mais uma frase para puxar conversa. Emilio me ligou e, ao
ouvir minha voz em versão chapada, riu, mas também cou muito
preocupado. Disse-me que para tratar a dor bastava meio tablete. Falei que
eu o tinha barbeado, mas ele não entendeu, ou talvez tenha pensado que
eu estava usando chilenismos demais. Perguntou onde estavam Jazmina e
o menino. Respondi que estavam em um curso de primeiros socorros e ele
reagiu com incredulidade porque pensou ou entendeu que, ao me ver
nesse estado, minha esposa tinha decidido participar de um curso de
primeiros socorros. Parecia uma reação ilógica ou incrivelmente lenta: algo
como enfrentar um terremoto lendo um artigo sobre terremotos. Expliquei
a situação e ele se acalmou. Eu disse que estava com fome e que pediria
algo pelo Uber Eats. Ele falou que qualquer coisa eu ligasse para ele.
Diante da larica iminente, pedi um exagero de comida. O pedido
incluía tacos de lombo, de costela, de linguiça e de chuleta, volcanes de
lé e de cecina enchilada, uma torta de go e três copos grandes de agua
de horchata. Fiquei entretido observando o mapa do Uber no celular, a
minúscula bicicleta de Rigoberto avançava com uma rapidez incomum.
Imagino que eu esperava que o progresso fosse lento e o deslocamento me
pareceu menos lento e então traduzi isso como rapidez. E de repente essa
rapidez me pareceu preocupante. Pensei: Rigoberto vai se matar, e
imaginei centenas de ciclistas cruzando estoicamente a Cidade do México
com suas mochilas do Uber Eats ou do Rappi ou do Cornershop e senti
uma espécie de calafrio nebuloso.
A campainha tocou, um toquezinho breve e prudente. Eu não me
achava capaz de descer as escadas. Me sentei num degrau e concebi o
brilhante plano de descê-la assim, de bunda. Depois de um lapso de talvez
meia hora cheguei ao último degrau, e me aferrei com cuidado à parede,
como um aprendiz de homem-aranha; quando consegui chegar à porta do
edifício, Rigoberto já tinha ido embora. Depois soube que tinha me ligado,
e eu estava com o telefone no bolso, mas não o ouvi tocar nem senti a
vibração. Subi as escadas da mesma forma deselegante, porém segura. A
névoa aumentava em meus olhos, sentia-me como se estivesse no meio de
um cúmulo. Quis procurar de novo os óculos, mas simplesmente não era
capaz. Então descobri que já estava com eles no rosto. Durante todo esse
tempo eu já estava com os óculos postos. Ao tirá-los comprovei que
enxergava bem ou tão bem quanto o astigmatismo e a miopia me
permitem normalmente. Arrastei-me até a cozinha e comi tudo o que
pude: umas fatias de queijo cheddar já meio duras, um monte de biscoitos
de arroz, vários ansiosos punhados de aveia crua, três bananas nanicas e
duas ouro e dezenas de obstinados mas deliciosos pistaches.
Quando consegui voltar ao quarto, já meio desesperado, pensei em
Octodad, um angustiante e kafkiano jogo de videogame em que um polvo
tenta coordenar seus tentáculos para realizar atividades humanas. Joguei-o
apenas uma vez, mas não me esqueci de como era difícil para o Octodad,
por exemplo, servir café ou cortar a grama ou fazer uma compra de
supermercado. Deitei-me no chão como um novelo de lã pensando em
Silvestre e desejei que alguém me pegasse pelas mãos e me levasse andando
até ele. Pensei em meu lho aprendendo a engatinhar.
“Tem crianças que não engatinham”: essa frase surgiu em minha cabeça,
na voz de algum amigo. “Tem crianças que começam a caminhar direto.”
Os especialistas insistem nas vantagens que engatinhar traz ao
desenvolvimento neurológico, mas também há quem diga que isso é
exagero. Lembrei-me da história de uma professora universitária de
trajetória impecável que recebeu uma estudante engatinhando. Isto é:
abriu a porta engatinhando, acompanhou sua convidada à sala
engatinhando, foi engatinhando pegar o copo d’água que havia lhe
oferecido e só depois de falar um pouco de amenidades — sempre de
quatro — a professora explicou à estudante atônita, com total seriedade,
que decidira engatinhar durante três dias, porque quando pequena não
havia feito isso e queria remediar de uma vez por todas essa desvantagem.
Jazmina e eu tínhamos morrido de rir com essa história, que agora me
parecia tristíssima ou séria ou enigmática.
Decidi, sem mais, tentar engatinhar. Consegui rmar as mãos, mas não
os joelhos, e depois os joelhos, mas não as mãos. Isso aconteceu várias
vezes. Depois dei algumas voltas no chão, como se estivesse evocando
dunas. Coloquei-me de costas e consegui me arrastar com os calcanhares,
em uma espécie de engatinhada ao contrário. Voltei a car de barriga para
baixo, tentei rastejar, mas não conseguia avançar: uma lesma teria me
vencido nos cem milímetros planos. Então concluí que nunca tinha
engatinhado. Fazia pouco tempo que perguntara a respeito à minha mãe,
por telefone. “Claro que sim, todas as crianças engatinham”, ela me disse.
Me incomodou que ela não lembrasse. Lembrava que aprendi a falar cedo
(disse isso como quem se refere a uma espécie de doença) e que comecei a
andar antes de um ano, mas não se recordava de eu engatinhar. “Claro que
sim, todas as crianças engatinham”, me disse, mas não, mãe: nem todas
engatinham. Pensei: engatinhar é algo, em si mesmo, fascinante, mas não
engatinhar também é; car de pé de repente, à la Lázaro, e simplesmente
caminhar, com uma uidez espontânea, sem a mediação de uma
aprendizagem visível. Caminhar sem ter engatinhado é um triunfo
admirável da teoria. Depois segui outra linha de pensamento e me vi
analisando, rigorosamente, a música “La cucaracha”, que parecia revelar
algo sobre mim mesmo ou sobre Silvestre ou sobre a paternidade ou sobre
a vida em geral; algo impossível de relatar, mas verdadeiro, de nido e até
mensurável. Pensei em Silvestre aos oitenta anos. Pensei, com inegável
tristeza: “Não estarei presente no aniversário de oitenta anos de meu
próprio lho, porque nesse momento eu teria…”, mas não fui capaz de
somar oitenta mais quarenta e três. Pensei no nal de O apanhador no
campo de centeio. Pensei em um conto de Juan Emar. Pensei nestes lindos
versos de Gabriela Mistral: “a bailarina agora está dançando/ a dança de
perder tudo o que tinha”.
Passava de uma imagem a outra com a velocidade de quem lê apenas as
primeiras frases dos parágrafos. Queria dormir, invocava o sono, mas com
os dois pés na vigília. Depois veio um momento terrível em que ouvi me
chamarem, diziam que eu precisava sair correndo para a casa ao lado,
precisavam de mim, e me sentia completamente inútil, era completamente
inútil. Vi a mim mesmo como um edifício com os vidros apedrejados. Vi a
mim mesmo como uma bola de pilates esvaziada. Vi a mim mesmo como
um caracol gigante salivando pelo piso onde todo mundo escorregaria.
Voltei a ouvir aquelas vozes e agora pensei distinguir a voz de minha esposa
e o choro de meu lho me chamando, e com um remanescente adicional,
quase heroico, de energia, consegui car de pé e dar dois passos antes de
colapsar.
Fiquei no chão, com dor. Fechei os olhos por alguns minutos. Não
estava com sono, mas sabia que ainda tinha a capacidade de dormir.
Consegui. Minha recordação seguinte é de estar me sentindo melhor.
Quer dizer: achava que estava melhor, mas também descon ava de minhas
sensações, de modo que comecei a tentar ir inventariando ou despertando
meus sentidos. Atrevi-me a dar uma engatinhada tímida e prudente. Meus
joelhos doíam muito, o que, talvez por minha formação católica,
interpretei como um sinal positivo. Cheguei à sala, quei de quatro
olhando as plantas. Umas formigas lindas, as mais pretas e brilhantes e
dançarinas da história da humanidade, iam e vinham por um
caminhozinho que começava em uma fresta da janela e terminava em
cima de um vaso de plantas. Observei-as intensamente: absorvi-as,
desfrutei-as. Disse alguma coisa para elas, mais de uma coisa, não me
lembro. Depois me concentrei nas plantas. Chamei-as pelos nomes:
Suculenta, Bromélia, Oleandro.
Escrevi a Jazmina esta mensagem, estava me sentindo melhor:
Em algum momento descobri que tinha escurecido e que conseguia me
deslocar com certa normalidade. O curso de primeiros socorros devia estar
terminando ou talvez já tivesse terminado. Considerei a possibilidade de
não fazer nada. Quase nunca considero essa possibilidade. Optei por
empreender várias pequenas viagens da cama até a sala (não pensei,
naquele momento, na música de Charly García), ensaiando meu périplo
até a casa ao lado. Foram muitas viagens, a julgar pela hora da mensagem
seguinte, que enviei a Jazmina logo antes de sair de casa:

Quando por m tive certeza de que não desmoronaria, recebi o ar fresco


da noite como uma bênção. Idealizava a cena iminente: antecipava, ou
melhor, visualizava previamente e com ansiedade Jazmina e Silvestre;
imaginava que se fundiam, que voltavam a ser uma única pessoa. Mas a
primeira coisa que vi ao abrir a porta foi desconcertante: um grupo de
adultos engatinhando. Por um átimo de segundo, pensei que ainda estava
no meio da viagem ou que eles também tinham tomado pajarito ou que o
curso não era sobre primeiros socorros e sim sobre engatinhar. Uma das
engatinhadoras, talvez a mais esforçada, era Jazmina. Ao ver-me ela se
levantou, me deu um abraço e me explicou que o curso já terminara, mas
que estavam havia quase uma hora procurando o celular da médica.
Recuperei o fôlego ou o humor, que são mais ou menos a mesma coisa.
Silvestre dormia. Dei um beijo na testa dele e quis pegá-lo no colo, mas me
contive, por via das dúvidas, e me uni, com coragem e ambição, ao grupo
de engatinhadores (“isso sim eu consigo fazer bem”, pensei), movido pelo
desejo, meio competitivo ou meio reivindicativo, de ser aquele que
encontraria o celular da médica. Meu amigo Frank estava debaixo da
mesa, parecendo entediado ou compungido. Ele me disse, em inglês para
que ninguém entendesse — embora eu acredite que todos os presentes
entendiam inglês —, que a médica estava exagerando.
A médica parecia, de fato, abatida demais: engatinhava como um bebê à
procura de seu chocalho favorito. Ficou de pé, se apoiou na janela com
uma pose melancólica. Olhava para o teto e movia a cabeça como quem
tenta, pela enésima vez, lembrar-se de um nome ou de um endereço ou de
uma reza. A cena me pareceu muito longa, insuportável, como se tivessem
se passado vinte minutos com a doutora vivendo o luto por seu celular
perdido.
Alguém tinha me recomendado tomar leite frio para interromper a
viagem, mas naquele momento pensei que a médica precisava mais que eu
daquilo. Ela aceitou o copo com certa perplexidade. Então veio o desfecho
óbvio, contundente, patético: Frank tinha guardado sem querer, no fundo
de um porta-fraldas, o famoso celular. Meu amigo sorriu para a médica
com uma culpa jocosa, mas ela não correspondeu: bebeu solene e
pro ssionalmente seu copo de leite e foi embora. Todos fomos.
Peguei o menino no colo e o embalei cantarolando uma versão muito
rápida de “Maldita primavera”. Jazmina ria e bocejava. Caminhamos a
passos rmes, com a avidez e a alegria de quem volta para casa depois de
um longo período em outro país. O menino dormia placidamente quando
eu pedi a ele, com meu olhar, que não engatinhasse nunca, que não
caminhasse nunca, pois não era necessário: eu poderia levá-lo no colo a
vida inteira.
Bom dia, noite

Está de noite, mas já acordei


— você diz, em tom de notícia,
de modo que ligo o rádio
e por alguns minutos observamos
as calçadas momentaneamente geladas
e o ponto de fuga entre os cabos
dos postes

bom dia, noite — você diz


e eu dou uma gargalhada
que também é um bocejo
aceito o novo dia que chega
e troco sua fralda
com anônima destreza

preparo o café da manhã


e você parece absorto num quebra-cabeças invisível
mas quando volto com a aveia
e metade de uma manga
em forma de casco
descubro você dormindo
com a boca entreaberta
no canto do sofá
impassível como um gato no muro

sento-me a seu lado


e bebo meio litro de café
esperando o dia amanhecer.



E caminhou e caminhou
até que um dia chegou
à cozinha

e caminhou e caminhou
até que um dia chegou
ao banheiro

e caminhou e caminhou
até que um dia chegou
à cama

e acabou dormindo
e ao ver suas pálpebras
vibrando em um sono profundo
parecia que continuava caminhando
e pulava mais e mais
e crescia mais e mais.



No dia de seu segundo aniversário


você não quis bater na pinhata
obrigado, papai, mas pode bater — você disse

e mexeu sua mão direita


ao compasso contagioso do dale dale dale
no pierdas el tino
porque si lo pierdes
pierdes el camino

estou tocando um sino — você disse


não posso bater na pinhata
porque estou com a mão ocupada
tocando um sino

respondi que você podia bater na pinhata


com sua mão direita
e continuar tocando
esse sino imaginário
com a esquerda
e você me olhou como quem diz não
isso não é possível
não faz nenhum sentido.
Francês para principiantes

Você quer o livro da toupeira, o que ultimamente tem lido com sua mãe
o tempo todo, mas é em francês, uma língua de que sei pouco — “você
sabe francês sim, papai”, você diz, para me injetar con ança. Achava que
você iria reclamar, inclusive chorar, mas em sua fala é como se você fosse o
pai e eu um rapaz com medo de subir no palco.
Procuro em suas prateleiras esse livro retangular e esquivo com a
esperança de não o encontrar, mas encontro-o de cara. Penso em ngir que
não estou encontrando, mas não quero mentir para você — não quero
mentir e ao mesmo tempo quero que você acredite, que continue
acreditando, que eu sei francês, ou talvez queira que, milagrosamente, pelo
simples fato de querer ler esse livro para você, surja em minha cabeça um
conhecimento prévio e sólido da língua francesa. Porque quero ler direito
para você, sem omitir partes ou vacilar. Quero que haja música. A primeira
coisa que fazemos todas as manhãs é ouvir música e dançar. E, quando nos
deitamos para ler no sofá, quero que a literatura seja um prolongamento
natural da música, outra forma de música.
É uma história genial, que além do mais está em sintonia com sua
recente paixão escatológica: a toupeira recebeu um cocô na cabeça e, em
vez de se limpar, decide usar aquilo como evidência para achar o culpado,
então vai até a pomba exibindo o tolete como se fosse um topete ou uma
coroa. A pomba alega inocência e produz no ato um excremento
espontâneo que em nada se parece ao cocô que o protagonista traz na
cabeça. A pobre toupeira confronta com coragem e dignidade os demais
suspeitos, mas a lebre, a cabra, a vaca e o porco também produzem suas
próprias mostras fecais que funcionam como álibis irrefutáveis, de modo
que a única coisa que resta a fazer é consultar a opinião especializada de
umas moscas, que então pousam no cocô-coroa e concluem que, sem
sombra de dúvida…
O nal você já sabe. Os nais, para você, não estão vinculados a um
desfecho, nem representam a meta, e sim uma posição intermediária,
como quando um velocista completa o circuito, mas ainda faltam várias
voltas para a corrida terminar. Na verdade, é assim que funciona, também,
a literatura dos adultos, embora costumemos ignorar esse fato; costumamos
nos render à superstição do nal, do desenlace, porque às vezes precisamos
imaginar que as histórias terminam, obedientemente, na última página.
Traduzo o melhor que posso e improviso vozes diferentes e, espero,
divertidas para os animais da história. Em alguns momentos sinto que estou
me safando, mas não, a coisa não vai bem, e você percebe. Parece-me que
você não se atenta somente, como antes, aos desenhos: sua atenção se volta
também a essas palavras desconhecidas que associa às frases já familiares,
para você, dos personagens. Mesmo sabendo que ler comigo não é o
mesmo que ler com sua mãe, você acha estranho que minha versão seja
tão diferente da versão dela. Você me corrige, aperfeiçoa no ato minha
tradução. Na releitura, na primeira releitura, incorporo esses matizes que
desconhecia e que você acaba de me revelar, de maneira que a história ui
melhor e isso permite que minha interpretação cresça, que a voz da
toupeira seja mais engraçada, por exemplo.
Você sabe à perfeição a história da toupeira, quase que poderia lê-la
sozinho, ainda que por ora ler seja algo que você faça por meio de sua mãe
e de mim e de sua avó e de qualquer adulto que esteja por perto. Há dias
em que você me diz “leia para mim”, mas também, com frequência, diz
“quero ler”, o que certamente não signi ca que você queira aprender a ler
sozinho, e sim que quer que eu leia para você, ou talvez, mais
precisamente, que deseja que aquilo que acontece quando lemos aconteça,
porque o que acontece é diferente a cada vez, isso nós já sabemos: entre
uma leitura e uma releitura, em questão de segundos, o livro já mudou e
nós já mudamos; detemo-nos em episódios diferentes, jogamos um jogo
feito de interrupções e continuidades que é sempre novo.
Antes, quando tinha acabado de aprender a caminhar, você me via
lendo sozinho e subia em meu colo para se interpor entre o livro e meus
olhos, igual aos gatos, embora você tivesse a gentileza de não arranhar as
páginas. Logo você deixou de lado essa gentileza, porque a curiosidade deu
lugar à rebelião: ver-me lendo sozinho, em silêncio, começou a se tornar
para você algo intolerável, e você tirava o livro de mim ou rasgava a página.
É que a leitura em silêncio parece individualista, mesquinha, murcha.
Agora, quando você me surpreende durante o ato mesquinho de ler em
silêncio, pede que eu leia em voz alta e eu sempre aceito, de modo que
você já conhece algumas frases de Jenny Of ll e uns versos de Idea
Vilariño e até uns dois ou três parágrafos de A montanha mágica.
Ninguém te ensinou nada sobre música, não foi preciso. A música estava
presente, desde antes do parto; ninguém teve que te explicar o que é, como
funciona. Ninguém te explicou, tampouco, a literatura, e tomara que não
te expliquem nunca. A leitura silenciosa é, de certa maneira, uma
conquista; nós, os que lemos em silêncio e solitários, aprendemos,
justamente, a estarmos sós, ou melhor, reconquistamos uma solidão menos
agressiva, uma solidão despida de angústia; sentimo-nos povoados,
multiplicados, acompanhados enquanto lemos em sonora solidão. Mas isso
você descobrirá sozinho daqui a alguns anos, eu sei. Vai decidir por si
mesmo se ainda tem interesse nessa forma de conhecimento tão estranha,
tão especí ca, tão difícil de descrever, que a literatura possibilita.
Lemos de manhã e às vezes também de tarde, e todas as noites eu ou sua
mãe lemos três histórias para você antes de dormir. Você não aceita nem
uma nem duas histórias, precisam ser três. E nunca pede que repitamos
alguma das três histórias de noite. É agora, de manhã, que você parece
preferir a repetição de uma mesma história. Talvez os livros diurnos
funcionem para você mais como música e os noturnos sejam, esses sim,
histórias propriamente ditas, mas não quero chegar a conclusões
precipitadas, porque além do mais são os mesmos livros, não há um
repertório especí co de histórias diurnas e outro de histórias noturnas (a
única categoria estável e misteriosa é a dos livros que você chama “de
cocô”, dos quais o da toupeira curiosamente não faz parte). Acontece
também de você me pedir de manhã a história que lemos na noite anterior,
como se durante as oito ou nove horas em que você dorme o livro tivesse
cado em suspenso, sobrevoando seu sono.
Toda noite, a leitura constrói uma iminência ou um umbral: é o trecho
do caminho que só podemos fazer navegando. Depois de ler, com a
lanterna em mãos, O jogo das sombras, de Hervé Tullet, a cerimônia se
torna interminável, e algo parecido acontece com O livro sem guras, de B.
J. Novak, que te desperta gargalhadas ferozes, ou com O livro fedido, de
Babette Cole, ou com quase todos os magní cos contos de Gianni Rodari.
Na verdade, são muitos os livros que saem pela culatra, porque, em vez de
construírem o prelúdio para o sono, acabam te deixando mais acordado: de
repente você parece convencido de que dormir é uma perda de tempo.
Mas não importa, a função da literatura nunca foi induzir o sono de
ninguém. Há momentos em que a leitura agita sua imaginação, que por si
só já é agitada, mas mesmo assim contribui para terminar bem o dia. O que
importa é o ritual, claro, a cerimônia. A companhia.
Em seu lindo ensaio Como um romance, Daniel Pennac lamenta que ele
e sua esposa tenham parado de ler histórias para seu lho quando o
menino aprendeu a ler sozinho. Mas pode ser que não tenha sido culpa do
pai nem da mãe. Talvez o próprio menino tenha decidido deixá-los de fora
da cerimônia da leitura. Não queremos que isso aconteça. A leitura não
pertence à série de atividades que fazemos por você enquanto você não
aprende a realizá-las sozinho. Não é como escovar os dentes ou se vestir ou
cortar as unhas.
Tampouco é como caminhar, embora eu goste de pensar que é parecido.
Nós te carregamos no colo até você aprender a andar e continuamos te
carregando quando você se cansa e às vezes te carregamos mesmo que você
não esteja cansado e continuaremos fazendo isso enquanto aguentarmos
seu peso e enquanto você aguentar o peso simbólico de ser carregado por
nós. Agora você lê através de nós, mas quando souber ler sozinho talvez
não ache tão divertido que leiamos para você. Teremos que inventar
alguma coisa, tomara que consigamos pensar num jeito de perpetuar essa
cerimônia, a mais importante do dia; que a forma mude, tudo bem, mas
que continue acontecendo.
Depois das histórias vem a música, as últimas músicas. Sempre, desde
seus primeiros dias de vida, eu costumo cantar “Beautiful Boy” para você,
mas as outras músicas não são de ninar. Talvez “Two of Us” tenha algo de
lullaby, embora não seja uma música sobre pais e lhos e sim sobre amor e
companheirismo, e por isso eu a canto para você. As outras músicas — de
Violeta Parra, Silvio Rodríguez, Andrés Calamaro, Los Jaivas — são
músicas de amor ou de protesto ou de amor e de protesto.
Todas as noites eu e sua mãe nos revezamos no ritual dos três livros e das
três ou quatro (ou cinco) músicas. As manhãs, por sua vez, sempre
começam comigo. Eu, que costumava ser um pássaro noturno, agora
madrugo junto contigo: quase todos os dias de sua vida assistimos juntos ao
amanhecer. Mas você nem sempre gostou do fato de ser eu seu
incondicional companheiro matutino. Em tempos que agora me parecem
remotos, você me olhava com uma mistura de descon ança e uma
expressão séria ou altiva que não consigo de nir. Chorava por vinte
segundos, às vezes por um minuto inteiro, antes de en m aceitar meu
consolo. Imagino que a sala era como um bar ao qual você ia para chorar
suas penas de amor lactante e eu era o barman que sabia fazer à perfeição
o suco de laranja do jeito que você gostava, ou o freguês insípido que está
sempre lá, disposto a te ouvir, a rir de suas piadas e a pagar sua conta.

“Vamos continuar, papai”, você me diz agora. Não estou com vontade
de ler a história da toupeira pela terceira vez, mas sei que neste caso
continuar lendo signi ca continuar lendo o mesmo livro. No meio dessa
terceira leitura, sua mãe aparece na sala e saúda respeitosamente o sol
enquanto lemos a história da toupeira pela quarta, pela quinta vez, e a
julgar por seu sorriso cúmplice entendo que estou passando, a duras penas,
na lição de literatura francesa. “Obrigado”, você me diz, em todo caso,
antes de ir embora com sua avó, que acaba de chegar para te levar ao
Bosque de Chapultepec. Fico feliz e orgulhoso por você achar graça em
agradecer, mas dessa vez também co desconcertado e emocionado
porque é a primeira vez que você me agradece pela leitura ou pela
companhia ou sei lá pelo quê, na verdade não tenho certeza do motivo de
sua gratidão. Obrigado por ter lido esse livro em francês, mesmo não sabendo
francês. Obrigado por tentar superar suas limitações intelectuais para me
entreter. Talvez seja algo assim que você queira dizer.
Eu deveria ir para o quartinho do sótão, onde costumo trabalhar, mas
antes de subir faço mais café e volto para o sofá para ler novamente a
história da toupeira, não sei bem por quê. Bem, não há mistério algum: é
porque sinto sua falta. Acontece muito comigo, e também com sua mãe:
justo quando nalmente temos tempo para trabalhar, sua ausência nos
distrai.
Enquanto passo as páginas, preparo-me para ler essa história de novo
para você em um futuro próximo. Embora não tenha muitas palavras, esse
é, a rigor, o primeiro livro que leio em francês. Dou risada ao constatar
isso, porque o francês é o idioma de Marguerite Duras, de Flaubert, de
Perec e de Bove, entre outros autores aos quais tentei ler em seu idioma
original, às vezes com resultados decentes, mas sempre falsos ou
enganosos, porque já havia lido os livros desses autores em espanhol, e
havia passagens que eu sabia de cor e palavras que deduzia ou que não me
importava em desconhecer.
Sim, a história da toupeira é o primeiro livro que leio verdadeiramente
em francês, e o fato de que tenha sido você quem me ajudou a lê-lo me
parece um detalhe crucial, precioso, pedagógico. Só agora presto atenção
no título da história, porque, nos livros para crianças — isso é óbvio, mas
acabo de me dar conta —, os títulos cumprem uma função distinta, têm
menos importância; a verdade é que ignoro os títulos de boa parte dos
livros que li contigo; tal como você, não os identi co pelo título, e sim pelo
animal da capa ou pela cor da capa ou pelo tamanho do livro, de modo
que não me parece estranho que eu desconheça o grandioso título da
história da toupeira: De la petite taupe qui voulait savoir qui lui avait fait
sur la tête, que seria algo como Sobre a pequena toupeira que queria saber
quem tinha feito isso em sua cabeça (na internet encontro uma edição
intitulada Da pequena toupeira que queria saber quem tinha feito cocô na
cabeça dela).
Na literatura infantil os títulos não importam e talvez os autores
importem menos ainda. Penso nisso ao reparar nos nomes perfeitamente
alemães do autor e do ilustrador do livro da toupeira: Werner Holzwarth e
Wolf Erlbruch. Só então percebo que nosso livro é uma tradução,
con rmado pelas minúsculas letras na página de créditos: Vom kleinen
Maulwurf, der wissen wollte, wer ihm auf den Kopf gemacht hat. Esse é o
título original.
Pergunto à sua mãe por que ela comprou o livro em francês e não em
espanhol. Ela diz que a versão em espanhol estava esgotada, e que de todo
modo teria comprado o livro em alemão ou em japonês ou em qualquer
outra língua porque o considera genial, e o sabe de cor, é uma das histórias
que a mãe dela lia para ela. Quando lê esse livro contigo, apenas olha para
as palavras impressas, opera simplesmente com suas lembranças; tem
certeza de que o lê usando as mesmas palavras que a mãe dela lia do livro
em espanhol, traduzido para o espanhol, que tinham em casa. Pergunto o
que aconteceu com aquele livro da toupeira em espanhol. Ela diz que em
algum momento a mãe doou todos os livros que liam juntas para uma
biblioteca.

Subo ao sótão pensando naquela toupeira esforçada e ofendida que


avança ao longo das gerações com um engraçadíssimo cocô na cabeça. Sua
avó, sua mãe e você são de repente uma mesma pessoa que fala, que ouve e
que sorri. Também há livros seus na casa de sua avó, livros que nem
sempre conheço. “Vou dar um golpe de Estado nesses chocolates”, você
disse uma tarde, e quei horas pensando de onde você tinha tirado a
expressão golpe de Estado e cheguei até a me sentir culpado por tê-la dito
descuidadamente e sem explicar o terrível signi cado que carrega. Mas
depois vi na casa de sua avó o enorme livro da Mafalda e entendi a fonte.
Li com sotaque argentino algumas piadas para você, assim como faço com
os livros de Liniers ou de Isol, mas você me olhou desconcertado e depois
furioso, porque sua avó as “traduz” para o mexicano. “A Mafalda não é
argentina, papai!”, você gritou, quase chorando.
De repente sou ofuscado pela prova, con rmada por meus pais, de que
ninguém lia histórias para mim antes de dormir. É um pensamento
autocompassivo, frágil, fácil. Penso em minha avó, que em vez de ler
histórias para a gente compartilhava conosco todo tipo de casos sobre a
comunidade que ela perdera quando jovem, com o terremoto de Chillán,
em 1939. Quase todos seus amigos de juventude tinham morrido, mas suas
histórias permaneciam, e minha avó as saboreava ao recriá-las para minha
irmã e para mim. De repente ela se lembrava que os protagonistas de suas
cções estavam mortos e sentia saudades deles e se punha a chorar e
tínhamos que nos deitar em sua cama para consolá-la. Essas histórias
foram, como diz Natalia Ginzburg, nosso latim. Talvez depois, quando
comecei a escrever, eu quisesse honrar e imitar esses vaivéns entre o riso e
o choro que aconteciam quando ouvíamos minha avó.

Tento voltar ao romance no qual estou trabalhando, mas agora sou


distraído pelo pensamento, também sombrio, de que os livros não são
como uma roupa que começa a car pequena e que precisamos doar, e em
seguida decido, com uma solenidade ridícula, que nunca vamos nos
desfazer dos livros que lemos juntos, porque seria como se desfazer de
álbuns de fotogra as; penso nesses livros, nos seus livros, como
documentos, quero guardá-los como se fossem mechas do seu cabelo ou
seu primeiro ultrassom. É um pensamento bobo, em especial vindo de
mim, porque antes de me mudar para o México eu mesmo me des z de
uma biblioteca inteira. Parecia insensato mudar de país carregando
dezenas de caixas de livros que talvez nunca voltasse a ler.
Em seu quarto já havia uma pequena biblioteca na sua chegada. Assim
que soubemos que você estava a caminho, sua mãe e eu começamos a
passar horas nas seções infantis das livrarias procurando seus livros do
futuro; em um momento em que ainda não sabíamos nada sobre você, já
conhecíamos alguns dos livros que leríamos juntos. Desde então tentamos
sempre ter algum livro novo, para que você não se entedie, mas na verdade
quem corre o risco de car entediado somos nós.
Sua biblioteca é essa outra biblioteca minha perdida e miniaturizada e
obviamente aperfeiçoada, porque segue livre do tsundoku que se espalha
como um vírus pelas demais estantes da casa, tão repletas de livros não
lidos que às vezes encará-las é como rever a pilha de contas a pagar. Não
há, em suas prateleiras lotadas, livros intactos, ignorados. Nós lemos todos
os seus livros, a esta altura, pelo menos dez vezes.

Avanço um pouco em meu romance, embora enquanto escreva


continue pensando em seus livros, nos livros para crianças, e em minha
incrível ignorância. Depois de cinco minutos navegando na internet
descubro que a história da toupeira é um clássico absoluto da literatura
infantil e que não o conhecer equivale a não ter ideia de quem foram
Sandro Botticelli ou Martina Navratilova. Livro-imagem, livro ilustrado,
história em quadrinhos, romance grá co… Repasso os conceitos como
quando tentava decorar a classi cação climática de Köppen, como se fosse
ministrar uma aula. Mas não tenho aula nenhuma para dar. Tenho que me
sentar a seu lado, somente, e ler para você essas partes dos livros onde há
palavras, enquanto você lê todo o resto. E talvez seja mais exato dizer que
as palavras são todo o resto.
Começa a me parecer tão absurda a existência de uma literatura não
infantil, de uma literatura para adultos, para não crianças, uma literatura-
literatura, uma literatura de verdade; a ideia de que faço e leio uma
literatura de verdade e de que os livros que lemos juntos são uma espécie
de substituto ou sucedâneo ou imitação ou preparação para a literatura
verdadeira me parece tão injusta como falsa. É que honestamente não
acho que haja menos literatura em uma história de Maurice Sendak ou de
María Elena Walsh do que em meus favoritos da “literatura adulta”.
Parece-me impossível, certamente, imaginar você lendo meus livros: os
que já escrevi ou o romance que estou tentando escrever agora mesmo.
São histórias quase sempre tristes e talvez desnecessárias; antes que você as
lesse eu teria que lhe explicar tantas coisas, e provavelmente você as
entenderia, mas eu não tenho certeza se teria capacidade de explicá-las.

Volto ao apartamento com a desculpa de comer uma barrinha de cereal.


Entro em seu quarto. Vejo suas roupas, suas estantes de livros. Já doamos
muitas roupas suas, e adoro ver, por exemplo, a lhinha de uma amiga
vestindo sua antiga camiseta do sistema solar. Mas me custa imaginar que
algum dia doaremos seus livros ou seu violãozinho vermelho ou seu traje
de astronauta.
Claro, você é que vai decidir se doará ou não esses livros, que talvez te
importunem quando você quiser dar por encerrada, de uma vez por todas e
para sempre, a infância. Fico olhando a estante caótica e de repente
compreendo que esses livros de cujos títulos não me lembro, escritos por
pessoas cujos nomes desconheço, são exatamente como os livros que, de
agora em diante, quero escrever.
Multidão

Em meu sonho aparece um homem que, anos atrás, em Nova York,


cava em uma esquina do Bryant Park ou na entrada da Grand Central
classi cando as pessoas — tourist, not a tourist, tourist, not a tourist, ele
sentenciava, em um tom mecânico e ao mesmo tempo estranhamente
gentil. Tinha quase dois metros de altura, cabelo ruivo comprido e
desgrenhado, e seus olhos verdes pareciam incrustados no rosto, que exibia
uma concentração extrema e contínua. O homem estava mesmo
empenhado no ambicioso projeto de classi car todos os rostos da multidão,
e eu tinha a impressão de que conseguia, embora às vezes de repente
vacilasse ou se enganasse, como por exemplo comigo: meu rosto de
imigrante o levava a me considerar quase sempre not a tourist, mas outras
vezes mudava o veredito.
No sonho, tudo acontece da mesma maneira que em minhas
lembranças, mas não estamos no Bryant Park nem na Grand Central, e sim
em alguma esquina igualmente superpovoada da Cidade do México ou de
Santiago do Chile. Não sei se o louco está me olhando ou me
classi cando, mas sua presença me alegra, me parece um bom augúrio. Na
esquina seguinte encontro uma amiga — é alguém que não conheço, que
nunca vi, mas no sonho sei que somos amigos — que está fazendo a
mesma coisa que o louco, embora não pareça louca e sim sobrecarregada
ou irritada ou as duas coisas. Quero parar e falar com ela, mas entendo que
não posso interromper seu trabalho. Agora tenho certeza de que estou em
Santiago e de que caminho na direção da cordilheira (que não vejo nem
procuro, mas sei que está lá). Apresso o passo, quero saber se na esquina
seguinte também haverá alguém desempenhando esse trabalho horrível e
absurdo. Eles deviam ter um formulário, vão esquecer tudo, penso, e então
observo a multidão e me vem outro pensamento vago, disruptivo, algo
como esta é a multidão ou estou na multidão, e então a força dessas
palavras se mistura com a voz de meu lho e acordo.

São cinco e quinze e meu lho acendeu sua luminária do Miffy. Pego-o
no colo e digo, como sempre, que a noite é para dormir e o dia, para
brincar. Ele me olha com compaixão, como quem olha para alguém que
insiste em uma causa inútil. Até poucas semanas atrás, quando Silvestre
acordava antes do amanhecer, aproximávamo-nos da janela e brincávamos
de contar os carros vermelhos ou brancos ou azuis — ele escolhia a cor a
cada vez —, que já àquela hora começavam a se multiplicar, ou
decidíamos os nomes dos transeuntes que corriam para o metrô com seus
urgentes cabelos molhados. Agora não há ninguém nas calçadas e muito de
vez em quando passa algum carro, e pressinto que meu lho vai me
perguntar de novo, como tem feito diariamente nos últimos tempos, onde
está todo mundo, e até me preparo para fornecer alguma resposta, mas ele
não pergunta nada, na verdade cochila e suspira em meu peito.
Ajudado pelo ritmo indeciso da cadeira de balanço, penso em meu
sonho, nessa multidão que já se tornou abstrata, inde nida, extemporânea.
Não é raro que eu sonhe com multidões; pelo contrário, meus sonhos
costumam estar cheios de gurantes que se tornam personagens
secundários e de personagens secundários que de repente ganham
protagonismo, mas me pergunto se esse sonho é novo, se essa multidão é
nova. Talvez todas as pessoas que apareciam em meu sonho também
tenham sonhado na noite anterior, por sua vez, com ruas lotadas. Fico
entusiasmado com essa ideia, com esse desejo lírico. Penso nas pessoas que
passaram a quarentena, a pandemia, sonhando com multidões impossíveis.
Penso em meus amigos no Chile, que dois meses atrás ocupavam as ruas e
agora repassam, momentaneamente sozinhos, nossos sonhos coletivos.
Penso na discutível beleza da palavra multidão. No que essa palavra revela
e no que oculta.
Lembro-me de uma noite em que eu estava, aos doze anos, no metrô.
Éramos muitos os que, àquela hora, perto das oito, voltávamos de nossos
colégios no centro de Santiago para nossas casas geminadas em Maipú. Os
ônibus prometiam diversão ou ao menos companhia, mas nessa noite eu
quis ir de metrô para me adiantar, porque não queria encontrar ninguém.
Estava triste, não me recordo por quê. Lembro-me, isso sim, do momento
em que, segundos antes de descer na estação Las Rejas, olhei a multidão da
qual eu fazia parte e pensei algo como todos têm uma vida, todos vão para
suas casas, todos têm algo que lhes falta ou lhes sobra, todos estão tristes ou
felizes ou cansados. Anos mais tarde, quando me falaram do conceito de
epifania, soube imediatamente a que experiência associá-lo.

Depois de tomar café da manhã, ouvimos música e em seguida nos


sentamos no chão para desenhar com giz de cera. Tenho a impressão de
que meu lho está bem entretido sozinho, de modo que me sirvo mais café
e co plantado diante da janela. O sol se rma no horizonte, mas o dia não
parece ter começado. Conto dez parcos carros, algumas motos e três
homens mascarados, que certamente não são turistas e sim trabalhadores
indefesos, aborrecidos, melancólicos. É cada vez maior a quantidade de
pessoas que conseguem car em casa, e a evocação dessa multidão ausente
me tranquiliza de certo modo, mas também sinto falta da rua povoada e
barulhenta de poucas semanas atrás.
De repente me dou conta de que estou há bastante tempo absorto nisso
e me sobrevêm a culpa por ter descuidado de meu lho e logo a alegria
instantânea de perceber que ele continua ali, autônomo, concentrado em
seu trabalho duro. Vejo seu lindo desenho caótico. Alguns dias atrás ele
decidiu que os gizes eram frutas e começou a traçar com eles uns rabiscos
apaixonados que ele chama de sucos. Sento-me a seu lado, ajudo-o a
segurar o papel.
— É um suco? — pergunto.
— Não — ele responde, categórico.
— O que é?
— É você, papai, olhando pela janela.
Tempo de tela

Muitas vezes, ao longo de seus dois anos de vida, o menino escutou


risadas ou gritos advindos do quarto ao lado — sabe-se lá como reagiria se
soubesse o que seus pais fazem enquanto ele dorme: ver televisão.
Ele nunca viu tevê, e também nunca viu alguém vendo tevê, razão pela
qual a televisão dos pais lhe parece vagamente misteriosa: a tela é uma
espécie de espelho que devolve um re exo opaco, insu ciente, e que nem
mesmo serve para desenhar com os dedos no vapor, embora
ocasionalmente as partículas de pó permitam brincadeiras similares.
Ainda assim, o menino não se surpreenderia ao descobrir que aquela tela
é capaz de reproduzir imagens em movimento, porque várias vezes lhe
permitiram interagir com imagens de pessoas, em geral localizadas em seu
segundo país, porque o menino tem dois países — o país de sua mãe, que é
seu país principal, e o de seu pai, que é seu país secundário, onde vivem
não seu pai, mas seus avós paternos, que são os seres humanos que ele mais
frequentemente viu materializados na tela.
Já viu seus avós em pessoa também, porque viajou duas vezes a seu país
secundário. Não lembra de nada da primeira viagem, mas na segunda já
tinha aprendido a andar e falava pelos cotovelos. Aquelas semanas foram
repletas de experiências novas, embora o fato mais memorável tenha
acontecido no voo de ida, algumas horas antes de aterrissarem em seu país
secundário, quando de uma tela que parecia tanto ou mais inútil que a da
televisão dos pais surgiu um monstro ruivo amistoso que falava de si
mesmo na terceira pessoa. A amizade entre o monstro e o menino foi
instantânea, talvez porque naquele tempo o menino também falasse de si
mesmo na terceira pessoa.



A bem da verdade, foi um evento fortuito, porque os pais do menino não


planejavam ligar a tela durante a viagem. O voo havia começado com
alguns cochilos, e depois abriram a pequena maleta na qual traziam sete
livros e cinco fantoches zoomór cos, e boa parte do longo trajeto foi
passada com a leitura e a imediata releitura desses livros, matizada também
pelo protagonismo dos fantoches e pelos comentários ocasionais sobre a
forma das nuvens e a péssima qualidade dos petiscos. Tudo ia às mil
maravilhas até que o menino pediu um boneco que — explicaram — tinha
preferido viajar no porão de carga do avião, e depois se lembrou de vários
outros que — sabe-se lá por quê — haviam preferido car no país
principal, e então, pela primeira vez depois de seis horas, o menino desatou
a chorar, e seu pranto durou uns quarenta segundos, o que é pouco tempo,
mas um senhor que viajava no assento de trás achou muito.
— Façam esse menino malcriado car quieto logo! — vociferou.
A mãe do menino se virou para trás e olhou para o sujeito com sereno
desprezo; depois de uma pausa muito bem executada, baixou a vista para
focalizar o volume na calça do homem e disse, em tom de entendida, sem
o menor traço de agressividade:
— Deve ser bem pequenininho, né?
O homem não respondeu, talvez não tivesse como se defender de uma
acusação como essa. O menino foi para os braços da mãe e então foi seu
pai quem se ajoelhou no assento para olhar o dito-cujo. Não o insultou,
apenas perguntou seu nome.
— Enrique Lizalde — respondeu o sujeito, com o pouco de dignidade
que ainda lhe restava.
— Obrigado.
— Por que você quer saber meu nome?
— Tenho meus motivos.
— Quem é você?
— Não quero te dizer, mas você saberá. Em breve você vai saber quem
eu sou. Muito em breve.
Continuou olhando por vários segundos para o agora contrito Lizalde, e
queria continuar a hostilizá-lo, porém uma turbulência o obrigou a pôr de
volta o cinto de segurança.
— I hope this motherfucker thinks I’m really powerful — o pai
murmurou, em inglês, que era a língua que usavam instintivamente para
insultar ou dizer grosserias na presença do menino.
— We should at least name a character after him — a mãe disse.
— Good idea! I’ll name all the bad guys in my books Enrique Lizalde.
— Me too! I guess we’ll have to start writing books with bad guys — ela
disse.
Foi então que decidiram ligar a tela à sua frente e sintonizaram no
programa do alegre e peludo monstro vermelho. Assistiram ao programa
por vinte minutos, e quando desligaram a tela o menino reclamou, mas seu
pai explicou que a presença do monstro não era repetível, não era como os
livros, que podem ser lidos e relidos várias vezes. Durante as três semanas
que passaram em seu país secundário, o menino perguntou todos os dias
pelo monstro e seus pais explicaram que ele vivia apenas nos aviões. No
voo de volta ocorreu en m o reencontro, que durou também escassos vinte
minutos. Alguns meses depois, como o menino continuava falando sobre o
monstro com certa melancolia, conseguiram uma réplica de pelúcia dele,
que ele entendeu, na verdade, como sendo o original. Desde então se
tornaram inseparáveis, de fato o menino acaba de dormir abraçado ao
boneco ruivo — seus pais já foram para o quarto grande: se as coisas
acontecerem da mesma forma como têm acontecido nos últimos tempos, é
provável que esta história termine com a cena dos dois na cama assistindo
televisão.



O pai do menino cresceu com a televisão perpetuamente ligada, e talvez


na idade atual de seu lho nem sequer soubesse que a televisão pudesse ser
desligada. A mãe do menino, por outro lado, manteve-se distante da
televisão por uma quantidade insólita de tempo: dez anos. Segundo a
versão o cial, o sinal de televisão não chegava ao canto da cidade em que
ela e sua mãe moravam, de modo que para ela a televisão parecia, como
agora para seu lho, um objeto completamente inútil. Uma tarde,
convidou para brincar em sua casa uma colega de sala que, sem perguntar
a ninguém, simplesmente pôs o o da tevê na tomada e a ligou. Não houve
decepção nem crise: a menina pensou que o sinal da televisão acabara de
chegar, por m, a seu bairro, e correu para comunicar a boa nova à sua
mãe, que embora fosse ateia se ajoelhou e, alçando os braços para os céus,
gritou afetada e persuasivamente:
— Minha Nossa Senhora de Guadalupe! É um milagre!
Apesar desses antecedentes tão díspares, a mulher que cresceu com a
televisão permanentemente desligada e o homem que cresceu com a
televisão permanentemente ligada concordam que o melhor é adiar pelo
maior tempo possível a exposição de seu lho à tevê. Não são fanáticos, em
todo caso, não são contra a televisão, muito pelo contrário. Seria irônico,
porque mais de uma vez, quando tinham acabado de se conhecer,
recorreram à tão batida estratégia de se encontrar para ver lmes como
pretexto para transar. Depois, no período que poderia ser considerado a
pré-história do menino, sucumbiram ao feitiço de numerosas produções de
todo tipo. E nunca viram tanta televisão como durante os meses
imediatamente anteriores ao nascimento do menino, cuja vida intrauterina
não foi musicalizada por peças de Mozart nem por canções de ninar, e sim
pelas músicas de abertura de séries sobre sangrentas disputas de poder
ambientadas num impreciso tempo arcaico de zumbis e dragões ou no
espaçoso palácio de governo de um país autodenominado the leader of the
free world.
Quando o menino nasceu, a experiência televisiva do casal mudou
radicalmente. No m do dia, o esgotamento físico e mental só lhes
permitia trinta ou no máximo quarenta minutos de minguante
concentração, de modo que, quase sem perceber, reduziram bastante seus
padrões e se tornaram espectadores habituais de séries absolutamente
medíocres. Continuavam querendo se embrenhar por terrenos insondáveis
e viver de modo vicário experiências desa antes e complexas que os
obrigassem a repensar seu lugar no mundo, mas para isso serviam os livros
que liam durante o dia; à noite só queriam risadas fáceis, diálogos insossos e
roteiros que lhes proporcionassem a triste satisfação de entender tudo sem
o menor esforço.
Gostariam, talvez daqui a um ou dois anos, de abreviar as tardes de
sábado ou domingo vendo tevê com o menino e de vez em quando
inclusive atualizam a lista de lmes que querem ver em família. Por
enquanto a televisão cou relegada a essa última hora do dia, depois que o
menino dorme e seus pais voltam a ser, momentânea e simplesmente, ela
e ele.



Ela está na cama olhando o celular e ele, no chão, de costas, como se


descansasse depois de uma série de abdominais — de repente se ergue e se
deita na cama também e estica o braço procurando o controle remoto, mas
esbarra no cortador de unhas e assim resolve começar a cortar as unhas das
mãos. Ela pensa que ultimamente ele está o tempo todo cortando as unhas
das mãos.
— Talvez sejam meses de isolamento. O menino vai se entediar — ela
diz.
— É permitido passear com o cachorro, mas não é permitido passear
com o lho — ele diz, com amargura.
— Com certeza ele está achando ruim. Ele não demonstra, parece feliz,
mas deve estar achando horrível. O que será que ele entende?
— O mesmo que a gente.
— E o que a gente entende? — Parece uma estudante repassando a
matéria antes de uma prova.
— Que não podemos sair porque tem um vírus de merda por aí. E é
isso.
— Que o que antes era permitido agora é proibido — ela diz. — E que o
que antes era proibido continua proibido.
— Ele sente falta do parque, da livraria, dos museus. Igual à gente.
— E do zoológico. Ele sente saudades, sobretudo, das zebras, das girafas,
daquele coelho de que ele gosta tanto. Ele não fala, mas está reclamando
mais, cando mais irritado. Ele se irrita pouco, porém mais que antes.
— Mas não sente falta da escola, não mesmo — diz ele.
— Tomara que sejam dois ou três meses. Mas e se for mais? Um ano
inteiro?
— Acho que não — diz ele, que gostaria de soar mais convicto.
— E se o mundo for assim de agora em diante? E se depois desse vírus
vier outro e mais outro? — pergunta ela, mas também poderia ter sido ele
a perguntar, com as mesmas palavras e a mesma entonação perplexa.
Durante o dia fazem turnos, um cuida do menino enquanto o outro se
tranca para trabalhar, precisam de tempo para trabalhar porque estão
atrasados com tudo, e, embora todo mundo esteja atrasado com tudo,
pensam que estão um pouco mais atrasados que os outros. E no entanto
ambos se oferecem para cuidar do menino pelo período completo, porque
essa metade de dia com ele é um tempo de felicidade verdadeira, de
risadas genuínas, de fuga puri cadora — prefeririam passar o dia inteiro
jogando bola no corredor, ou desenhando criaturas involuntariamente
monstruosas no pedaço de parede que usam como lousa, ou tocando violão
enquanto o menino mexe nas tarraxas para desa ná-lo, ou lendo histórias
infantis que lhes parecem perfeitas, muito melhores que os livros
irremediavelmente adultos que eles escrevem ou tentam escrever.
Inclusive, se tivessem apenas uma dessas histórias infantis, prefeririam lê-la
uma vez atrás da outra, incessantemente, antes de se sentarem diante de
seus computadores, com as notícias horríveis da rádio como ruído de
fundo, para responder tardiamente a e-mails repletos de desculpas
enquanto veem com o canto do olho o estúpido mapa que registra em
tempo real a proliferação de contágios e de mortes — ele vê, sobretudo, o
país secundário de seu lho, que obviamente continua sendo seu país
principal, e pensa em seus pais e imagina que nas horas e nos dias que se
passaram desde a última vez que se falaram eles se contaminaram e
portanto nunca mais os verá, e então liga para eles, e essas ligações sempre
o deixam em frangalhos, mas ele não diz nada, ou pelo menos não diz
nada a ela, que está há semanas submersa numa angústia lenta e imperfeita
que a faz pensar que deveria aprender a bordar ou parar de ler os romances
belos e desalentadores que lê e também pensa que, em vez de escrever,
talvez tivesse sido bom fazer outra coisa da vida — concordam nisso, os
dois, pensam assim, já conversaram muitas vezes sobre isso porque já
sentiram muitas vezes a irrefutável futilidade de cada frase, de cada palavra
escrita.
— Vamos deixar ele assistir a uns lmes — diz ela. — Qual o problema.
Só aos domingos.
— Assim pelo menos a gente saberia se é segunda-feira ou quinta ou
domingo — ele diz.
— Que dia é hoje?
— Terça. Não, quarta.
— Amanhã a gente decide — ela diz.
Ele termina de cortar as unhas e olha para as mãos com uma satisfação
incerta, como se tivesse acabado de cortar as unhas de outra pessoa, ou
como se olhasse as unhas de outra pessoa, de alguém que havia acabado de
cortar as próprias unhas e pede a ele, por algum motivo — talvez ele tenha
se tornado um especialista, uma autoridade no assunto —, sua aprovação
ou sua opinião.
— Estão crescendo mais rápido — diz.
— Você não tinha cortado ontem à noite?
— Por isso que eu digo, estão crescendo mais rápido. — Ele fala a sério,
num tom meio grave, meio cientí co. — Toda noite olho para elas e
percebo que cresceram durante o dia. Numa velocidade anormal.
— Parece que é uma coisa boa as unhas crescerem rápido. Dizem que
na praia elas crescem mais rápido. — Ela fala num tom de quem tenta se
lembrar de algo, talvez da sensação de acordar na praia com o sol no rosto.
— É que no meu caso é um recorde.
— As minhas também estão crescendo mais rápido — ela diz. —
Inclusive mais rápido que as suas. No meio do dia já estão quase umas
garras. Eu corto e elas crescem de novo.
— Eu acho que as minhas crescem mais rápido que as suas.
— Isso eu quero ver.
Então levantam as mãos e as unem como se realmente pudessem
observar o crescimento de suas unhas, como se pudessem comparar
velocidades, e o que deveria ser uma cena rápida se prolonga, porque eles
se deixam distrair pela absurda ilusão dessa competição silenciosa e inútil,
que dura tanto que até o espectador mais paciente desligaria a tevê,
indignado. Mas ninguém os observa, embora de repente a tela da televisão
pareça uma câmera que registra seus corpos suspensos nesse gesto estranho
e absurdo. Uma babá eletrônica ampli ca a respiração do menino, o único
ruído que acompanha a competição de suas mãos, de suas unhas, uma
competição que dura vários minutos, mas não o su ciente, é claro, para
que alguém ganhe, e que termina, en m, com a explosão de gargalhadas
calorosas e francas que estavam fazendo muita falta a eles.
A infância da infância

“Vamos brincar de se esconder do vírus, papai”, meu lho me disse, e


quei surpreso e triste por vê-lo falando do vírus com tanta familiaridade,
mas fazia sentido: a pandemia já tinha começado a transformar a vida dele
— para mal e para bem, porque ele sentia falta dos passeios pelo Bosque de
Chapultepec na mesma intensidade com que celebrava a suspensão das
aulas (sua incipiente vida escolar não o agradava nem um pouco).
Escondermo-nos do vírus, em todo caso, era mais sensato do que nos
escondermos do teto ou da geladeira, como ele costumava me propor na
época, ou da Bíblia ou das Obras completas de Shakespeare, como eu
propunha, de modo que nos en amos debaixo da mesa e soltamos falsos
gritos de medo — falsos porque não eram gritos e sim imitações
sussurradas de gritos, e o medo também era, em teoria, falso, embora
naquele momento eu estivesse, sim, com medo, ou talvez fosse fatalismo,
um fatalismo que agora, no entanto, à luz dos fatos, parece-me uma versão
levemente diminuída do otimismo.

O que meu lho se lembrará deste ano horrível? Pergunto-me isso


diariamente, e embora às vezes eu responda com tranquilidade, quase com
alegria, que ele não se lembrará de nada, é mais comum que eu que
paralisado no estranhamento, porque é esquisito e triste imaginar ou de
algum modo saber que o mesmo ser humano de três anos — e treze quilos
e cento e dois centímetros — que vimos crescer e cuja vida muitas vezes
nos parece mais real e sempre mais valiosa que nossa própria vida, em um
futuro não muito distante se esquecerá de tudo ou quase tudo que viveu
neste passado que com teimosa insistência chamamos de presente.
Da perspectiva talvez excessiva de uma vida adulta, é fácil supor que a
memória episódica começa ao redor dos três ou quatro anos, isto é, que
antes dessa idade simplesmente não éramos capazes de lembrar, mas
qualquer um que tenha criado lhos sabe que aos três e inclusive aos dois
anos eles se lembram, sim, do que zeram na semana passada ou no verão
anterior, e que suas lembranças são puras, não implantadas, às vezes
surpreendentemente precisas e outras vezes tão vagas e caprichosas como
costumam ser as nossas.
As imensas perguntas sobre o funcionamento da memória humana têm
seu humilde correlato na emoção ou na inquietude que todos sentimos ao
pensar nesses anos apagados, omitidos, perdidos. Como era, realmente, um
dia inteiro, aos dez meses, aos dois anos de vida? Talvez depois, na
adolescência, diversas frases autoritárias (eu te ensinei tudo, eu te dei de
comer, tudo o que você tem é graças a mim) nos permitiram intuir ou
imaginar esses anos de dependência radical, mas, quando viramos pais ou
ocupamos o lugar de pais e as costas doem e não dormimos bem há
semanas ou meses, conseguimos inferir esses cuidados que nunca
agradecemos porque simplesmente não nos lembramos deles.
Se fôssemos como Funes, o célebre personagem de Borges, incapaz do
esquecimento, viveríamos paralisados por rancores permanentes ou
gratidões automáticas, obrigatórias. A misteriosa amnésia infantil permite
que esqueçamos, de repente, todos os fatos que poderiam neutralizar a
severidade com que julgamos nossos pais. E seria ainda pior, é claro, se nos
inteirássemos de desatenções e negligências já esquecidas. A memória se
destrói ou se puri ca para que possamos nos reinventar, recomeçar,
reivindicar, perdoar, crescer.
Como espectadores que se perderam nos primeiros minutos do lme
mas cam para a sessão seguinte para entender a trama, nos esquecemos
justamente da parte da infância que depois assistimos com nossos lhos;
são eles que nos lembram que esquecemos, e então uma nova forma de
incerteza desponta, que nos pode parecer sombria e vertiginosa, mas
também estimulante e fecunda. Penso nesta frase de Paul Valéry: “As
lagoas são meu ponto de partida”.

“Por um bom tempo, insisti em que tinha lembrança de cenas do meu


próprio nascimento”, lemos no começo de Con ssões de uma máscara, de
Yukio Mishima, e o romance inteiro provém, de algum modo, dessa frase
magní ca. O personagem escolhe inventar ou acreditar em uma
autonomia original e absoluta, que exagera belamente a ideia, tão cara à
psicanálise, de que inventamos nossas lembranças.
Foi a partir dessa frase que me ocorreu o Projeto Nascimento, que no
início consistia simplesmente em pedir a meus alunos que escrevessem
sobre o dia de seu nascimento, e depois derivou em uma tarefa em nada
original, mas tampouco tão comum assim: cada participante deveria ir à
biblioteca e ler de cabo a rabo os jornais do dia em que nasceu, inclusive
os horóscopos, a programação de cinema e de teatro, os obituários, os
resultados da corrida de cavalos e os anúncios publicitários (sempre havia
algum aluno dando risada da velocidade máxima dos computadores em,
por exemplo, 1996).
A ideia do Projeto Nascimento é que cada um imagine a própria mãe
folheando esse mesmo jornal na manhã em que a bolsa estourou e teve
que ir para o hospital. Na verdade, não importa muito sobre o que decidem
escrever, o exercício funciona sobretudo porque ativa processos de escrita,
o que permite que o professor não seja o ditador de um método ou a
autoridade indiscutível, e sim algo como um colega mais velho que
conhece a origem do texto e pode acompanhar o processo.
Imaginar o próprio nascimento traz à tona, com enganosa simplicidade,
a questão da fronteira entre público e privado. Por isso acredito que esse
exercício é perfeito para captar, de quebra, o enigma ou o jogo proposto ou
permitido pela palavra cção, tantas vezes mal compreendida, unicamente,
como um sinônimo meio acadêmico da palavra mentira. “Eu nasci num
dia/ em que Deus estava enfermo,/ enfermo grave”, diz César Vallejo em
um poema que seria absurdo submeter a um detector de mentiras.
Nunca quis aplicar o Projeto Nascimento a mim mesmo; nunca quis
materializar ou talvez veri car minhas suposições sobre aquele dia de 1975
que sempre imagino em preto e branco, embora a primeira foto que
tenham tirado de mim, com duas semanas de vida, tenha sido em cores.
Há poucas fotos minhas, talvez eu conste em vinte das cinquenta ou
sessenta dos álbuns familiares. No primeiro álbum — que tem um mar
calmo, quase inofensivo, na capa —, que começa em 1972, com o
nascimento de minha irmã, há quase somente fotos em preto e branco,
enquanto no segundo — a capa exibe um casal de namorados loiros
contemplando o pôr do sol — predominam as fotos coloridas, que na
época eram novidade.

Graças às suas conversas com a sua mãe e à leitura dos cadernos que ela
escrevia, o poeta Robert Lowell, nascido em 1917, conseguiu imaginar
com precisão o tempo em que, como ele disse, “os Estados Unidos
entraram na guerra e minha mãe entrou na vida matrimonial”. Em seguida
acrescenta esta ironia terna e precisa: “Costumava me orgulhar de não
poder ser culpado por nada do que aconteceu durante os meses em que
começava a viver”. Em meu caso, aos vinte anos, por outro lado, quando
resolvia olhar os álbuns de fotos, eu não sentia orgulho, e sim uma espécie
de vergonha, às vezes própria e outras vezes alheia, mas sempre, sobretudo,
urgente — não tanto pelo que as fotografas revelavam, e sim pelo que eu
supunha que elas se negavam a mostrar.
Não me lembro de naquele momento ter pensado que o registro fosse
escasso, acho até que me parecia farto. Imaginava meus pais classi cando
essas fotos nas páginas adesivas desses álbuns durante os anos mais ferozes
da ditadura. Sentia que tudo era frágil demais, e que eu era estúpido
demais. Parecia-me horrível não me lembrar de nada ou reconhecer cenas
implantadas por relatos familiares que de todo modo soavam sempre vagos
para mim, sempre particulares demais.

— Você se lembra do seu nascimento? — pergunto ao meu lho.


— Sim. Você me pegou no colo e estava chorando, mas de emoção.
Ele sabe que não se lembra e também sabe que eu sei que ele não se
lembra, mas de vez em quando brincamos de repetir uma conversa sobre
choro que tivemos pela primeira vez quando ele tinha um ano e meio —
eu tentava explicar que o choro não é pura tristeza, porque às vezes
choramos de emoção, e então pensei em falar sobre o dia do nascimento
dele, quando o vi pela primeira vez, recém-saído do ventre da mãe; eu
explicava que ao vê-lo pela primeira vez eu tinha desatado a chorar, mas de
emoção.

Tenho mil quatrocentas e vinte e duas fotos no celular e em quase todas


aparece meu lho, que nasceu há mil duzentos e sessenta e seis dias, de
modo que devo ter tirado, digamos, uma foto dele a cada dia de sua vida —
e a essa coleção desmesurada ainda poderíamos somar as fotos tiradas por
sua mãe e por sua avó e por seu tio fotógrafo… De repente, a possibilidade
de que ele um dia tenha acesso a essas fotos e aos livros que sua mãe
escreve e aos que eu escrevo — livros nos quais é cada vez mais frequente
que ele apareça e nos quais se ele não aparece está lá mesmo assim,
ocultado — me parece injusta e por isso às vezes penso que precisaríamos
destruir esses arquivos para dar lugar ao incrível esquecimento. E no
entanto outra ideia também se impõe, contraditória, porque ultimamente
sinto que escrevo para ele, que sou o correspondente de meu lho, que
escrevo despachos para meu lho, ao vivo e direto do tempo do qual ele se
esquecerá, dos anos apagados. E de fato minha escrita nunca teve tanta
razão de ser, porque em alguma medida escrevo as lembranças que ele vai
perder, como se fosse eu o secretário ou o professor de um jardim de
infância com crianças chamadas Joe Brainard, Georges Perec e Margo
Glantz e quisesse facilitar para eles a redação futura de seus eu me lembro.


É 1978 ou 1979, tenho três ou quatro anos e estou sentado no sofá, junto
a meu pai, assistindo na tevê a um jogo de futebol, e minha mãe entra para
encher nossos copos de coca-cola. Por décadas considerei ser essa minha
primeira lembrança, o que, em princípio, não parece discutível: cresci em
uma família onde não apenas minha mãe como todas as mulheres serviam
os homens, um mundo onde a televisão cava na sala e estava
permanentemente ligada e era quase sempre, assim como a coca-cola,
permitida às crianças. Minha lembrança não está vinculada a nenhuma
fotogra a nem a qualquer relato familiar e talvez por isso eu a considerasse
uma lembrança pura, não implantada, inquestionável. Não é difícil,
contudo, desfazer a certeza: durante os vinte anos em que morei com meu
pai, vimos cem ou quinhentos ou mil jogos de futebol juntos, mas me
lembro dessa cena como se ela tivesse acontecido uma única vez. Tenho a
impressão, e meu pai, a certeza — acabo de con rmar isso, por telefone
—, de que meu amor pelo futebol não foi tão precoce; aconteceu mais
tarde, aos seis ou sete anos, quando já morávamos em outra casa e em
outra cidade.
Em todo caso, minha lembrança não a rma que víamos um jogo inteiro
nem que eu estivesse interessado em futebol. De fato, o que tenho é um
ash, que dura dois ou três segundos de completo silêncio. Esse silêncio é,
quiçá, a coisa mais suspeita acerca dessa lembrança, em particular no que
diz respeito a meu pai, que assistia ao noticiário impassível, mas era
incapaz de car calado quando via jogos de futebol. Ainda hoje essa é uma
diferença entre nós: eu assisto aos jogos em estado de tensão absoluta, e
mal solto um ou outro comentário, enquanto meu pai berra instruções e
xinga o árbitro como se pudesse in uenciar os rumos do jogo.


Penso no extraordinário começo de Fala, memória, de Nabokov: o
menino “cronofóbico” que assiste a um vídeo anterior a seu nascimento e
vê sua mãe grávida e o berço que preparam para ele lhe parece um túmulo.
Penso no devastador primal scream de Delmore Schwartz, “Nos sonhos
começam as responsabilidades”, um dos contos mais belos que já li, ou nos
delírios geniais de Vicente Huidobro em Mio Cid Campeador, ou de
Laurence Stern no Tristram Shandy. Penso na estremecedora “lembrança
inventada” que dá a forma de A língua absolvida, de Elias Canetti, e em
fragmentos de Virginia Woolf e de Rodrigo Fresán e de Elena Garro. A
lista começa a se tornar interminável, procuro uma e outra vez nas estantes
livros que quero reler, mas de repente reparo que meu lho está há tempo
demais em silêncio. Comprovo que está no chão, com seus gizes de cera.
Depois de vários meses dedicado a desenhar sucos, agora está se
especializando em pizzas e em planetas e em pizzas-planetas.
Minha primeira lembrança não é, aparentemente, traumática, mas basta
uma análise super cial para descobrir que nesse lme estou exposto à
televisão e ao futebol e ao machismo e ao açúcar e ao ácido fosfórico, de
modo que a lembrança atua como fundamento e, inclusive,
eventualmente, como justi cativa e álibi. Uma leitura mais coletiva me
leva a contrapor essa lembrança às imagens da época: ruas arrasadas pela
violência militar em que alguns homens e mulheres resistem com valentia
suicida e idealista — mas não meu pai, que está comigo vendo um jogo de
futebol, nem minha mãe, que nos serve coca-cola.
Na vida de meu lho, uma “primeira lembrança” semelhante seria
impossível, porque ele está crescendo em um mundo, ou ao menos em um
interior, em que nenhuma mulher está a serviço de homem algum, um
mundo onde é seu pai que todo dia lhe prepara o café da manhã em uma
cozinha em cuja geladeira não há garrafas de coca-cola, de fato ele nunca
provou uma coca-cola (nem normal nem light nem zero). E nunca viu um
jogo de futebol, porque nunca viu televisão e porque atualmente o futebol
é jogado em estádios vazios.
Parei de fumar e bebo álcool muito eventualmente — embora mesmo
assim mantenha um pequeno barzinho com vinhos, piscos e mezcais em
garrafas tamanho bonsai — e posso passar longas temporadas sem comer
carne vermelha ou frango com hormônios, mas não consegui curar
totalmente meu vício em coca-cola; de tempos em tempos compro uma e
meu lho me observa tomando-a com curiosidade, embora tenha certeza
de que, como sempre deixo claro — com uma ênfase que em breve
começará a lhe parecer suspeita —, trata-se de um remédio que tem um
gosto horrendo, a ponto de, depois de tomá-lo, eu improvisar uma
convincente ânsia de vômito.

Em uma mesinha baixa próxima ao escritório, empilhamos rascunhos


dos poemas, romances ou ensaios que eu e minha esposa escrevemos. É de
lá que meu lho recicla as folhas para suas pizzas e planetas. Nesta manhã,
ele me deu de presente um planeta verde e rosa, recortado com irregular
destreza, e me surpreendeu encontrar, no verso, estas palavras: Parei de
fumar, bebo álcool muito eventualmente…
Não vou muito com a cara da pessoa que escreveu esse parágrafo. Mas
essa pessoa sou eu. E continuo sendo eu. Descon o profundamente da
satisfação que me causa pensar que minha esposa e eu estamos fazendo
tudo direitinho. Com certeza meus pais também pensavam que faziam
tudo direitinho, e eu mesmo penso a respeito de uns amigos, cuja
encantadora lhinha vê televisão e come batata frita todos os dias, que eles
fazem tudo muito direito, talvez melhor que nós mesmos. Em matéria de
criação de lhos, em todo caso, o pânico de errar é muito mais presente
que a vontade de acertar. Na mesma linha, descubro que, assim como
tantos outros pais de primeira viagem, especialmente os pais tardios, o que
realmente quero não é viver melhor e sim viver mais. Ou seja, não morrer
tão cedo.

— Papai, quando eu era bebê, a televisão funcionava? — o menino me


pergunta de repente.
— Não me lembro — eu respondo. — Acho que sim.
Até aqui ele continua acreditado que a tevê de nosso quarto está
quebrada. Sempre mostramos, de qualquer modo, no celular, alguns vídeos
(como o de “Yellow Submarine”, responsável por sua incurável — tomara
— beatlemania) e dezenas de fotos, em especial de seus primeiros meses
de vida; é daí que vem sua ideia de ter sido bebê, que consolidou em sua
mente a diferença entre um tempo distante e nebuloso e um passado do
qual ele se lembra de fato. Cada vez que conhece algum recém-nascido ele
me pede para ver essas fotos, que para ele são tão antigas que contam a
história da infância de sua infância. Absorto no jogo de se reconhecer, ele
as contempla em silêncio, sério. Destaco esse silêncio porque ele não é um
menino silencioso, de forma alguma, e sim conversador, fabulador, uma
gura.
Quanto à sua relação com o futebol, houve um tempo em que parecia
não se interessar de forma alguma, considerava a bola de pano como mais
um bicho de pelúcia. A primeira vez em que me viu chutá-la olhou para
mim com estranheza, mas dois segundos depois pegou uma pobre
zebrinha de pelúcia e a chutou também, e em seguida se tornou
especialista na arte de chutar bichinhos de pelúcia pela casa toda. Durante
alguns meses continuou atribuindo à bola a condição de brinquedo
estático, embora a chutasse ocasionalmente, como para me deixar
satisfeito, mas era mais frequente vê-lo conversando com ela e me pedindo
que inventasse uma voz para o objeto.
Hoje em dia, porém, jogamos todo dia no pátio pequeno, ou
imprudentemente na sala; ele adora. Como todos os pais, dedico-me a
perder, a ser goleado. Ser pai consiste em se deixar vencer até o dia em que
a derrota seja verdadeira. E, quando meu lho faz um gol que eu
realmente não poderia ter evitado, minha satisfação é dupla e inegável. E
se sou eu quem, por um erro de cálculo, marco um gol involuntário, ele
imediatamente muda as regras e anula minha conquista. Às vezes ca
entediado, não de jogar, mas com o fato de o jogo ser exatamente como é,
e acrescenta umas sacudidas que me parecem danças folclóricas de países
desconhecidos.

Houve um tempo em que o ato de vandalismo mais habitual de meu


lho consistia em se apoderar do papel higiênico para levar a cabo uma
longa série de brincadeiras insondáveis, muito abstratas. Entendo que
muitas crianças do mundo compartilham desse hobby. Se editassem sua
própria revista com resenhas lapidares sobre fraldas incômodas e diatribes
ferozes contra o desmame, certamente também dedicariam várias páginas
às brincadeiras com papel higiênico, que seriam como a seção de esportes.
— Não é papel higiênico, papai — ele me disse uma manhã, se
adiantando à minha reação. — É confort.1
Pouco tempo antes tinha me perguntado por que os chilenos chamam
papel higiênico de confort, e o afã de falar com ele usando sempre a maior
quantidade de palavras possível (esse é quase o único aspecto na criação
dele em que fui verdadeiramente consistente) me levara a uma
longuíssima digressão sobre marcas genéricas — tentei usar exemplos
como kleenex ou crayola — e à curiosa frase acabou o confort!, que por si
só parece uma reinvindicação social ou losó ca, mas pronunciada por um
chileno possui um signi cado bastante preciso e urgente. Não sei o quanto
da minha explicação o menino entendeu, provavelmente muito pouco,
mas desse diálogo surgiu a piada cotidiana de nos chamarmos de vez em
quando com a frase acabou o confort!, e em seguida explicar melhor,
dizendo: acabou o confort Confort!.
Meu lho continuou chamando o papel higiênico de papel de baño,
porque ele fala mexicano — é mexicaníssimo, na verdade —, mas penso
que naquela manhã preferiu usar a palavra chilena (sua língua paterna)
pois talvez tivesse a intenção estratégica de me cativar ou distrair ou
desestabilizar.
— Já sei o que vou pedir ao Viejito Pascuero — ele disse em seguida,
usando novamente uma referência chilena, o inexplicável nome chileno
do Papai Noel.
— O quê?
— Um confort — ele respondeu.
— Chileno?
— Chileno ou mexicano, tanto faz. Mas tem que ser só meu.
Era agosto ou setembro, faltava muito para o Natal, mas com o passar
dos dias percebi que não era uma piada, era seu pedido o cial, feito através
de diferentes vias; era a única coisa que ele queria, um rolo de papel
higiênico para que o deixássemos brincar sem ser incomodado, em perfeita
e autônoma solidão. Mais para o m de dezembro, contudo, ao abrir os
presentes, sua paixão pelo papel higiênico já era coisa do passado.

“As crianças servem para que seus pais não quem entediados”, diz um
personagem de Ivan Turguêniev, e se a piada funciona é porque a vida com
lhos nos pode parecer, pelo contrário, um incessante sacrifício cotidiano.
Muitas vezes, no entanto, aplaquei momentaneamente a angústia ou a
raiva ou a melancolia brincando com meu lho, como se sua existência
funcionasse não apenas como um passatempo, mas também como um
antidepressivo ou um ansiolítico.
Semana passada, um querido amigo me ligou para falar de sua volta ao
alcoolismo e de suas incontroláveis maratonas de Net ix (sua interação
mais frequente com o mundo consistia em responder à pergunta Are you
still watching?) e dos contínuos surtos de tristeza que precipitaram uma
calvície inesperada.
— Não sei como vocês fazem — ele me disse de repente, mudando de
tom ou de ritmo.
— Como assim?
— Com um lho.
“Como é que você faz sem um lho”, estive prestes a responder, mas não
quis frustrar sua expectativa: alegrava-me saber que, apesar de tudo, meu
amigo sentia ou imaginava que ele estava melhor que nós. Há algo tão
de nitivo na paternidade que até então eu não tinha parado para pensar
em como teriam sido os últimos meses caso os tivesse passado sozinho. De
repente me vi em um mundo paralelo onde eu era, como meu amigo, um
avinagrado personagem alopécico, e me custou muito imaginar de onde
diabos eu tiraria alguma energia para procurar apalpando, entre os lençóis,
o controle remoto (ia escrever “para continuar vivendo”, mas me pareceu
uma frase dramática demais, embora certamente nesse terrível mundo
paralelo essa frase não teria me parecido, de forma alguma, dramática).

“A onomatopeia constrói o mundo, o som confere cor à ideia”, escreve


David Wagner em Cosas de niños, um livro genial que eu gostaria de citar
inteiro. Me lembro com certa nostalgia prematura do tempo em que meu
lho e eu passávamos horas imitando sons de animais — quando nosso
repertório acabava inventávamos também a risada dos cachorros, ou o
choro dos cavalos, e a brincadeira continuava até que nos perdíamos
alegremente no absurdo: como bocejam as aves, como gaguejam os
crocodilos, como espirram os gambás.
De todas as especialidades de cuidados paternos — guia de escadas,
auxiliar de vestuário, conciliador de meias, coletor de brinquedos largados
no chão, cheerleader de almoços, salva-vidas de piscina individual etc. —, a
que desempenhei com maior alegria e, acredito, com maior destreza foi a
de inventor e intérprete de vozes de todo tipo de objetos, alguns bastante
comuns — uma linda girafa “transicional” ou uns fantoches de dedo que
falavam espanhol com diferentes sotaques — e outros muito mais difíceis
de humanizar, como a cafeteira, as janelas, o case do violão, o onipresente
termômetro e até alguns artefatos que considero, de cara, antipáticos, como
a balança — como a odeio — ou a panela de pressão.
A paternidade volta a legitimar brincadeiras que abandonamos quando o
senso de ridículo conseguiu nos governar por inteiro, inclusive,
tristemente, a intimidade. Penso no animismo, um sistema de crenças que
nunca desconsiderei totalmente, mas que hoje, na companhia de meu
lho, voltou a me parecer não apenas divertido como também necessário.
Gosto muito de uma cena de Amores expressos, o lme de Wong Kar-wai,
em que um personagem fala com um enorme Gar eld de pelúcia: gosto
porque é engraçado e sério ao mesmo tempo; porque é kitsch, como a vida,
e porque é trágico, como a vida.

— Como vai a escola? — perguntamos a nosso lho, culpados e


ansiosos, alguns dias depois de suas primeiras aulas e meses antes do início
da pandemia.
— A professora Mónica morreu — ele respondeu.
— E a professora Patricia?
— Também morreu.
— E as crianças?
— As crianças acabaram — seu tom queria ser objetivo ou jornalístico
de fato, mas soou involuntariamente doce.
Sua recém-adquirida ideia da morte vinha da experiência de ter visto, no
pátio, uma or murcha. Pergunto-me como sua ideia de morte mudou ao
longo desses meses; pergunto-me de novo e de novo, incapaz de evitar a
gravidade da coisa, o que meu lho lembrará de tudo isso. Imagino-o daqui
a quinze ou trinta anos repassando um  de sabe-se lá quantos terabytes
até encontrar as fotos que documentam esse período de amnésia. E talvez
eu pre ra imaginar que ele nunca verá essas fotos, que nunca lerá nossos
livros, que nunca lerá este ensaio. Imagino que ele é livre para nos julgar
com severidade, que em sua mente somos selvagens que saquearam o
planeta, talvez uns covardes da pior espécie, ou seja, desses que pensam
que são corajosos. Talvez eu pre ra imaginar que esse adulto do futuro nos
ama como eu amo meus pais: com um amor incondicional e com um
desejo fervoroso e provavelmente fracassado de não me parecer com eles.

“A recordação é organizada a partir do porvir, e não do passado ou do


presente”, especula o psicanalista Néstor Braunstein em Memoria y
espanto, seu fascinante ensaio sobre as primeiras lembranças na literatura,
e acrescenta: “o que alguém vem a ser não é o resultado e sim, pelo
contrário, a causa da recordação”.
Uma pequena ponte de madeira que atravessei mil e uma vezes; um
tomate recém-maduro que minha mãe arrancou alegremente de uma
mata, com um jeito de menina travessa, e que mal limpou com a blusa
antes de lhe dar uma mordida; um piano de parede que pertencia aos
donos da casa alugada em que morávamos e que por isso permanecia
fechado, embora eu en asse a mão até conseguir fazer soarem as teclas;
uma manhã em que eu pulava com aparente indolência no colchão
recém-mijado (por mim); um triciclo que eu e minha irmã dirigíamos e a
diversão absurda e desa adora de atropelar as uvas que havia no chão,
debaixo da parreira; as conversas divertidas, através da cerca, com um
menino um pouco mais velho que eu chamado Danilo e que de nia a si
mesmo como “um menino de rua”. Todas essas cenas estão ligadas à casa
de Villa Alemana onde moramos em 1978 e 1979 e funcionariam
perfeitamente como primeiras memórias. Na verdade, não tenho hoje e
nem acho que já tive ferramentas para organizar esses fatos em uma linha
do tempo.

Todos os dias sinto que meu lho está mudando e que seus vaivéns e
acelerações têm construído a música que nos permitiu passar esses meses
com alegria. Umas semanas atrás ele entrou em uma bolha, com outras
cinco crianças e uma professora paciente, e todas as manhãs diz que não
quer ir, mas vai e se diverte; precisa dessas crianças que não brincam nem
dançam do seu jeito mas que lhe ensinam algo. Eles se ajudam
mutuamente, e se distanciam dos pais com velozes passos de tartaruga.
Acho que Turguêniev tinha razão, e não há contradição alguma: os pais
existem para entreter seus lhos e os lhos servem para que seus pais não
morram de tédio (nem de angústia). São ideias complementares que talvez
possam nos servir para ensaiar novas de nições da felicidade ou do amor
ou do cansaço físico, ou de tudo isso junto, simultaneamente. Agora
mesmo, enquanto escuto no rádio as dolorosas notícias matinais, sinto falta
da companhia de meu lho — ele costuma se levantar às seis ou até antes,
mas já são quase sete e ele continua na cama e minha vontade é de acordá-
lo, porque estou entediado, porque estou angustiado.
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O menino sem pai

“Caro arrombado lho da puta”, Darío escreve em seu caderno, “faz


dias que não tenho notícias suas, seu merda, com certeza alguém deve ter
te jogado um saco de cocô e de vômito na rua, e o fedor de bosta de cavalo
e peido alemão ainda não saiu de você, e além do mais você deve estar
soltando uns puns com cheiro de pica, seu cachorro sarnento.”
A carta é mais longa, uma folha inteira frente e verso. Darío a lê em voz
alta, satisfeito com o resultado: ele não fala desse jeito, não mesmo,
inclusive no colégio há quem comente, caçoando, que ele fala bem demais,
como que o acusando de algo, como se um menino de onze anos fosse
obrigado a falar usando apenas palavrões. E, no entanto, conseguiu
escrever uma carta total e descaradamente indecorosa — é uma vitória
absoluta.
Fecha o envelope com bastante saliva, corre ansiosamente até a casa de
Sebastián e arremessa a carta nos ladrilhos da entrada, imitando a técnica
dos carteiros. Volta contente, embora logo pense que talvez chova e que a
carta, que lhe deu tanto trabalho, irá se desintegrar no chão. Mas não é
provável que chova, não mesmo, ele na verdade está inquieto e até meio
arrependido — só agora, com a carta entregue, é que lhe ocorre a
possibilidade aterradora de que Sebastián não entenda a brincadeira e a
carta soe ofensiva ou até incompreensível para ele.
Sua amizade com Sebastián é uma feliz consequência do medo de
cachorros — de todos os cachorros, em geral, mas em particular de
Simaldone, um minúsculo, estridente e antipático vira-lata loiro e peludo,
que já quase mordeu seus tornozelos cinco vezes. Era ilógico e humilhante
voltar para casa pelo caminho mais longo, mas graças a essa volta Darío
começou a se encontrar com Sebastián, que a cada tarde passava algumas
horas na grama do jardim da frente, deitado sob o sol com seus colossais
óculos escuros, embora ainda faltasse tempo para o verão e em algumas
tardes estivesse de fato nublado e frio.

— É verdade que você não tem pai?


Darío não é insensível nem imbecil, mas soltou essa pergunta brutal
logo na primeira vez em que falou com Sebastián. Isso costumava
acontecer quando ensaiava muito antes. Fazia dias que queria falar com
ele, inclusive havia decidido que quebraria o gelo, como os adultos, com
alguma frase sobre o clima ou sobre música ou sobre futebol, mas na hora
H cou nervoso e lançou essa pergunta infeliz, que de todo modo era
honesta, porque no bairro quase ninguém sabia o nome de Sebastián, todo
mundo o chamava de o menino sem pai. Mais que um apelido, claro, era
uma condição enunciada em voz baixa, no mesmo tom em que se denota
uma doença vergonhosa ou mortal, quiçá contagiosa: um estigma baseado
na única evidência de que Sebastián e sua mãe eram os únicos moradores
daquela casa. Ninguém no bairro sabia dos pormenores da história.
— É mais ou menos verdade, eu não conheço o meu pai — respondeu
Sebastián, em tom casual, justamente como se estivesse falando sobre o
clima ou sobre música ou sobre futebol. — Deve estar vivo, mas não o
conheço nem quero conhecê-lo. Tem pessoas que é melhor nunca
conhecer. Provavelmente só teria surpresas desagradáveis.
Darío cou paralisado. Queria saber tudo, sempre queria saber tudo,
mas só conseguia pensar em mais perguntas estúpidas.
— Você já viu fotos do seu pai? — perguntou en m.
— Sim. Cinco ou seis.
— E você se parece com ele?
— Assim, ele tem esse nariz pontudo. E acho que olhos verdes também,
mas não tenho certeza, porque são fotos em preto e branco.
Sebastián estava concentrado, pensativo.
— Você adora tomar sol, né — Darío observou alguns segundos depois,
para mudar de assunto.
— Não gosto de tomar sol.
— Mas todas as tardes você se deita na grama para tomar sol.
— Não é verdade. Não estou tomando sol, estou olhando o céu. As
nuvens, principalmente. E alguns pássaros.
“Não estou tomando sol, estou olhando o céu”, Darío repetiu
mentalmente. Pensou que se lembraria dessa frase.
— Mas quase não há nuvens.
— Mesmo assim gosto das poucas que tem.
Era uma tarde fria, de nuvens de fato escassas, mas brincalhonas, como
se tivessem sido desenhadas com pressa, para tirar aquilo da frente ou para
combater o tédio. Sebastián falava com o tom de voz de um adulto sábio,
embora de repente soltasse umas risadas inseguras e bem-humoradas.
— E as nuvens estão escuras para você?
— Sim. Gosto mais das nuvens escuras.
Sebastián tirou os óculos escuros e os passou para Darío com uma
cautela supersticiosa, como se estivesse lidando com um binóculo delicado
ou com uma pesada bandeja de objetos de vidro. Darío olhou para o céu e
tentou ver o que Sebastián via. E pensou ter conseguido. Foi a primeira vez
que tentou enxergar o mundo através dos olhos de outra pessoa. Dos olhos
e dos óculos. Ficaram em silêncio, um curioso silêncio sincronizado, como
se estivessem se revezando em turnos de respiração. Sebastián inspirava
quando Darío expirava.
— Você já andou de avião? — Sebastián perguntou.
— Não.
— É emocionante atravessar as nuvens. Parece que vai bater, mas não
acontece nada. Às vezes o avião balança um pouco, mas não acontece
nada.
— Para onde você foi?
— Para lugar nenhum, mas já me contaram isso. Várias pessoas. Sempre
que conheço alguém que já viajou de avião, pergunto se ele bateu nas
nuvens.
— Deve ser emocionante mesmo. As duas coisas.
— Que duas coisas?
— Andar de avião e atravessar as nuvens.
— É. Que nem quando você está no carro e a neblina não deixa ver a
estrada na frente.
— Vamos entrar na sua casa — Darío disse.
— Para quê?
— Quero ir ao banheiro.
— Mija aí nas plantinhas.
— Quero fazer cocô.
— Vai na sua casa!
Darío insistiu, disse que não ia dar tempo de chegar em casa. Não era
verdade, ele nem sequer estava com vontade de ir ao banheiro, queria
conhecer a casa de Sebastián, gostava de conhecer as casas alheias, embora
todas fossem praticamente iguais, talvez justo por isso gostasse; cada
detalhe, cada ligeira diferença, gerava nele uma in nidade de conclusões:
presença ou ausência de discos, de cruci xos, de diplomas, de violões, de
garra nhas de enfeite, de enciclopédias, de artesanato.

Trancado no banheiro de Sebastián, a primeira coisa que fez foi


inspecionar o armarinho do espelho com a esperança de encontrar
medicamentos estranhos com nomes engraçados, mas não havia nada além
de gel de cabelo, algodão e um frasco enorme de iodo. Depois examinou as
bordas da banheira e o que viu tampouco lhe pareceu incomum ou
relevante: o mesmo xampu e o mesmo condicionador usado por todos no
bairro. Quando saiu do banheiro, contudo, descobriu algo inédito:
Sebastián ocupava o quarto grande e sua mãe, o pequeno. O fato de um
menino dormir no melhor quarto da casa e sua mãe se conformar com o
pior desa ava quase tudo o que Darío sabia ou acreditava saber sobre o
mundo.
— Eu não acho tão estranho — disse Sebastián, quando Darío
mencionou isso. — Eu tenho muitas coisas e minha mãe não tem quase
nada.
Talvez fosse verdade, porque o quarto de Sebastián era repleto de
enfeites e brinquedos, incluindo cinco imponentes transformers, entre eles
o próprio Optimus Prime (Darío também tinha um transformer, mas
infelizmente era um personagem muito secundário, que aparecia em
apenas um capítulo de toda a série). Darío pensou que a mãe de Sebastián
o mimava, o que de certo modo provava que o infortúnio de não ter pai
também era vantajoso. Depois, enquanto dividiam um iogurte na cozinha,
Darío pensou que não ter pai era inclusive irrelevante se comparado à
indiscutível tragédia de não ter mãe.
— A que horas sua mãe chega — ele perguntou, nalmente.
— Sempre chega tarde — disse Sebastián. — Ela trabalha muito, é
secretária.
Quase em seguida, como se quisesse desmenti-lo, Lali apareceu. Darío a
vira muitas vezes na paróquia, sentada ao lado de Sebastián nas últimas
leiras, e recentemente também vinha cruzando com ela na rua, vestida
com esse mesmo uniforme, voltando do trabalho, baixinha e meio
encurvada; caminhava rápido, concentrada no caminho, talvez por não
querer cumprimentar ninguém, ou por saber que ninguém iria
cumprimentá-la, Darío pensava. Dessa vez Lali cumprimentou Darío com
familiaridade, como se estivesse acostumada a encontrá-lo ali ou a
encontrar seu lho com alguém. Antes de entrar no quarto pequeno, seu
quarto, Lali serviu para eles porções generosas, exageradas, de sorvete
napolitano, os três sabores para Darío e apenas dois para Sebastián.
— É que sou contra sorvete de chocolate — explicou Sebastián.
— Você não gosta de chocolate?
— Gosto, sim, quem é que não gosta de chocolate. Mas não gosto como
sorvete. Chocolate é uma coisa quente, é absurdo transformá-lo em uma
coisa gelada. É meio que uma contradição.
Os meninos discutiram apaixonadamente sobre o sorvete de chocolate e
também falaram do sorvete de creme e do de morango por uma
quantidade de tempo inverossímil, como se fossem líderes sociais
decidindo o futuro do país, embora às vezes também parecessem locutores
obrigados a encher linguiça. Quando Darío estava indo embora, viu Lali,
agora de camisola, com o fone de um enorme walkman nos ouvidos. Darío
associava os walkmans a pessoas jovens, nunca tinha visto uma pessoa
adulta, muito menos uma mãe, usando fone de ouvido.



Darío e Sebastián se tornaram imediatamente inseparáveis.


Encontravam-se todos os dias, de segunda a domingo, e não precisavam
combinar nada: Darío aparecia às cinco da tarde, às vezes mais cedo, e
quase sempre se deitavam para observar as nuvens seguindo um
complicado sistema de classi cação inventado por Sebastián. Mas também
falavam sobre qualquer coisa ou jogavam pênaltis ou tomavam banho de
mangueira. Às vezes, mais para o m da tarde, Darío voltava para se
encontrar com seus outros amigos, que agora o tratavam com descon ança.
Uma menina indiscreta lhe contou que o estavam chamando pelas costas
de o amigo do menino sem pai. Ele não se importou, ou se importou
pouco.
Um dia, Darío e Sebastián se encontraram por acaso no ponto de
ônibus, ambos voltavam de seus respectivos colégios. Celebraram a
coincidência, que era normal, previsível, mas que entenderam como um
aceno favorável do destino.
— Vamos para a sua casa? Não conheço lá — disse Sebastián.
O turista pro ssional de lares alheios não gostava de mostrar a própria
casa, mas se alegrou com a ideia repentina e romântica de que sua amizade
com Sebastián alcançaria, dessa forma, uma espécie de plenitude.
— Mas vamos passar na sua casa primeiro — disse Darío.
— Para quê?
Não soube o que responder. O que Darío queria era evitar o caminho
curto, que era a rota natural do ponto de ônibus até sua casa. A angústia
que sentia pela possibilidade de voltar a enfrentar Simaldone era enorme,
as pernas fraquejavam um pouco mais a cada passo, e sentiu até que ia cair,
desmaiar, então decidiu caminhar mais rápido para acabar de uma vez
com aquela cena torturante. Sebastián também acelerou o passo, pensando
que era uma brincadeira. Contra todo prognóstico, o vira-lata briguento
recebeu os dois com serenidade, como se estivesse esperando por eles, ou
melhor, como se estivesse esperando por Sebastián, porque nem sequer
pareceu notar a presença de Darío. Sebastián parou para acariciar o
cachorro, que agradeceu os mimos com umas lambidas. Darío não
conseguia acreditar.
— Você já teve cachorro?
— Não, mas gosto deles.
Darío esteve prestes a revelar a seu amigo que tinha medo de cachorro.
Preferiu car calado, é claro.
Nessa tarde, almoçaram charquicán,2 jogaram Atari e tocaram violão
(Sebastián não sabia, mas conseguiu realizar um lá bastante bem
executado para um iniciante).
— Foi maneiríssimo — o convidado disse ao se despedir. — Gostei da
sua casa, mas pre ro a minha.
Era uma espécie de piada, que Darío não entendeu, e da qual depois
cou se lembrando obsessivamente, porque justo no dia seguinte
Sebastián, sem qualquer aviso prévio, desapareceu. Nos primeiros dias
Darío tocava a campainha a cada instante e de repente teve certeza de que
tanto Sebastián como sua mãe estavam em casa mas não queriam abrir
para ele. Não havia qualquer motivo para acreditar nisso, mas Darío se
aferrou a essa ideia incômoda. Foi então que, entediado mas também meio
angustiado, escreveu a tal carta coalhada de palavrões.


A carta, já meio amarelada, está há duas semanas no jardim frontal. A


hipótese principal de Darío é que Sebastián conheceu seu pai e foram
morar os três juntos em outro lugar, talvez inclusive em outro país, mas ele
também tem outras teorias menos precisas e mais inquietantes, algumas
inclusive sobrenaturais. Finalmente, numa manhã, ele encontra, no meio
das buganvílias de seu jardim, a gloriosa carta de resposta de Sebastián, que
é tão ou mais engraçada e grosseira que a carta original. Fica emocionado
ao comprovar que seu amigo querido entendeu perfeitamente a
brincadeira. E gosta de sua letra, parece original, uma mistura estranha de
maiúsculas, minúsculas, cursivas e de forma.
— Por que você desapareceu por tantos dias? — Darío pergunta nessa
mesma tarde, muito sério, embora tentando soar despreocupado.
— Estava me escondendo de um arrombado lhadaputa otário com
cara de piroca ranhenta e bunda peluda — responde Sebastián.
A gargalhada é interminável, como um tremor com várias réplicas, mas
o silêncio vai surgindo aos poucos, e Darío insiste, quer saber a verdade.
Sebastián explica que tiveram de ir a Quillota cuidar de sua avó doente.
— E ela está melhor?
— Morreu.
Sebastián não parece triste e talvez por isso Darío pense que é mentira,
que é uma piada, está de fato prestes a rir. Mas então, segundos mais tarde,
é capaz de encontrar ou focalizar a tristeza no rosto de seu amigo.
Ninguém morreu na família de Darío, sua ideia rudimentar de morte se
reduz ao desaparecimento de seu gato Veloz, mas já faz muitos anos, ele
nem se lembra direito.
— Acho que falta Vitacura e Recoleta e uns cartões de destino — diz
Sebastián, na sala de sua casa, enquanto montam o tabuleiro de La Gran
Capital.3
— Não estou com vontade de jogar — diz Darío. — Me fale sobre sua
avó.
— Não quero — responde Sebastián. — Por isso quero jogar, para não
pensar nela. Ela odiava este jogo.
— Por quê?
— Porque é um jogo de merda, para empresários sanguessugas.
— Melhor não jogarmos.
— Vamos, sim, para fazer alguma coisa. Vou começar a chorar se falar
dela.
No m das contas não jogam, deitam-se na cama e assistem a alguns
episódios de Jeannie é um gênio e de A feiticeira enquanto Darío pensa na
tristeza de Sebastián e tenta imaginar a vida sem sua avó, isto é, sem sua
avó materna, e também sem pai, e portanto sem avó paterna. Pede a
Sebastián um caderno e começa a escrever outra carta. Sebastián logo se
junta a ele e, quando terminam, as leem em voz alta e morrem de rir.
Aquilo vira um costume, duas ou três vezes por semana escrevem juntos
cartas, lado a lado, na mesa da sala de jantar; é uma espécie de o cina
literária permanente.
Na vida real, a relação deles é harmônica e idílica, enquanto dessas
cartas emana um mundo paralelo em que os meninos são dois bocas-sujas
que nunca se veem e que se reprovam em todo tipo de assunto.
— Vamos sair e caminhar sem rumo — propõe às vezes Darío, que
adora essa frase meio exagerada, usa-a o tempo todo.
Sente-se seguro caminhando com Sebastián, e não é que ele apenas
suscite o respeito unânime dos cachorros; o que Sebastián inspira nos
cachorros, Darío pensa, é uma verdadeira devoção, até os que mais latem
olham para ele absortos. Ao longo dessas caminhadas, no entanto,
Sebastián costuma sentir culpa, pois sua mãe o proíbe de ir além dos seis
ou sete quarteirões do bairro. Não que Darío tenha a permissão; essa é, na
verdade, uma das muitas áreas cinzentas do contrato da infância.
— Não gosto de mentir para a minha mãe — confessa Sebastián, num
m de tarde quase de verão.
De repente estão de fato meio perdidos em uma paisagem estranha de
indústrias e o cinas automotivas. O motorista de um triciclo explica como
voltar ao bairro deles.
— Sua mãe nunca vai saber. E por que ela ca tão em cima?
— Porque sou a única coisa que ela tem.
— Entendi.
Ficam em silêncio durante um sinal vermelho que parece
especialmente longo. Já estão caminhando há muito tempo e não têm
certeza se estão indo na direção certa. Alegram-se quando reconhecem
uma longa leira de ameixeiras e depois os comércios onde às vezes jogam
totó. Estão com pressa, mesmo assim jogam uma partida rápida.
— Por isso tem gente que tem dois lhos, ou muitos lhos — diz
Sebastián. — Se um morre, você ainda tem outro, e assim por diante. E
você não pode se matar, por mais triste que esteja.
— E o que acontece se eu morrer? — pergunta Darío, justo quando faz
um gol roletando.
— É que vocês são em três. Se você morrer, seus pais não vão se matar,
vão car o resto da vida meio tristes, pensando em seu lho morto, vendo
fotos, mas não vão se matar. Mas se eu morresse minha mãe caria
sozinha. E eu acho que ela não aguentaria, daria um tiro na cabeça.
Voltam para casa alguns minutos antes de Lali. Ela prepara um leite
com essência de baunilha para eles e depois liga seu walkman. Com os
ecos da conversa com Sebastián ainda formigando em sua mente, Darío
pensa que Lali continua triste pela morte de sua mãe, embora na verdade
pense que Lali sempre esteve triste, que é uma pessoa triste. E que a
música que ouve, portanto, deve ser triste. Pergunta a Sebastián que tipo de
música sua mãe ouve. Ele diz que não sabe bem. Darío tenta se aproximar
de Lali o su ciente para desvendar o enigma, mas pelo visto ela ouve
música em um volume moderado, e, como também não marca o ritmo
com a cabeça ou com outra parte do corpo, Darío chega a pensar que na
verdade ela está com o walkman desligado e usa o fone apenas para criar
uma barreira ao seu redor.
— Que tipo de música você ouve? — ele lhe pergunta diretamente,
tomando coragem.
— Onde está o Seba?
— No banheiro — diz Darío.
Lali se senta no sofá, como se precisasse de um tempo para responder à
pergunta.
— Você quer saber o que estou ouvindo, ou de que tipo de música eu
gosto, assim, no geral?
— As duas coisas.
— Uns tangos, agora. Mas não gosto tanto. Ouço porque minha mãe
gostava. Esta ta eu que dei para ela em um aniversário. Quando eu era
jovem gostava dos Bee Gees. Bem, ainda sou jovem. E ainda gosto dos Bee
Gees. Dos mais recentes gosto de  Speedwagon e de Debbie Gibson.
“Ainda sou jovem.” Darío ca pensando na possível juventude de Lali.
Nenhum pai e nenhuma mãe poderiam parecer jovens para ele.


Os amigos se perdem um pouco de vista no Natal e no Ano Novo, e em
janeiro Darío vai para Loncura nas férias e Sebastián ca sozinho,
provavelmente resignado a olhar o céu sob o sol agressivo do verão
santiaguino a toda. Darío gosta de praia, quem não gosta, mas não o agrada
o fato de ter os pais em cima dele o dia todo, desesperados para se
divertirem. Sente saudades de Sebastián, muitas. Como costuma acontecer
na costa, são dias sufocantes, quase frios, com nuvens pesadas e lentas que
mal deixam o sol passar. É um pouco engraçado ou lastimoso ver os turistas
teimosos cravando seus inúteis guarda-sóis na areia.
Há um telefone amarelo perto da pequena cabana de madeira que
alugaram. Darío se perde no pensamento inútil de ligar para Sebastián,
que não tem telefone, Darío também não; vivem em um mundo sem
telefones. De tarde ele se aproxima da cabine e permanece a certa
distância ouvindo as conversas alheias. A comunicação é quase sempre
ruim e as pessoas gritam frases muito particulares, às vezes absurdas, que
Darío tenta gravar na mente para depois anotá-las em seu caderno: eu
coloquei metade mas não é para isso, claro que sei que você é da família, vai
voltar caminhando como sempre.
Uma noite ele acorda em pleno transe epistolar. Consegue escrever uma
carta brilhante, grosseiríssima, está quase certo de que é a melhor de toda a
sua abundante produção, e embora seu plano seja dá-la ao amigo quando
voltar para casa, aproveita um passeio em Quintero para ir aos Correios e
mandá-la registrada. Por sorte se lembra do número escrito na fachada da
casa de Sebastián. Naquela mesma tarde consegue nalmente que
comprem para ele uns óculos escuros bem parecidos aos de seu amigo.
Darío passa as últimas semanas na praia deitado na areia por horas com
seus novíssimos óculos. E chega até a inventar novas formas de classi car
as nuvens enquanto pensa intensamente na cena genial do carteiro
entregando a carta a Sebastián.
A primeira coisa que faz ao voltar para Santiago é ir ver o amigo. É cedo,
calcula que Sebastián deve estar em casa vendo tevê. Mas não há ninguém,
ou ao menos ninguém abre a porta para ele, e Darío pensa que seu amigo
desapareceu de novo. Fica parado em um lugar, como um guarda,
esperando; Lali o encontra ali, ao voltar do trabalho, e reage com
incômodo. A suspeita ou o pressentimento de Darío desta vez é certeiro:
Lali diz que Sebastián está ocupado, que tem estado ocupado o dia todo e
que ela mesma mandou que ele não abrisse a porta, porque eles não
podem mais ser amigos. A mulher não quer dar explicações. Darío insiste,
mas ela o deixa falando sozinho.
Volta para casa desolado, chutando uma mesma pedra. Na manhã
seguinte encontra uma breve carta de Sebastián, sem palavrões: é uma
mensagem de ruptura, uma renúncia à amizade. Sebastián não explica
direito, mas Darío entende que Lali leu as cartas e entendeu tudo errado.
Darío passa horas especulando, não sabe se Lali leu todas ou apenas uma,
o que, é claro, dá no mesmo.
Darío é insistente por natureza, mas Sebastián continua sem abrir a
porta. Darío intercepta Lali novamente, que volta a proibi-lo de aparecer
de novo. Como último recurso, escreve uma carta para a mãe de seu
amigo. É a carta mais oreada e eloquente e com a melhor caligra a que
já escreveu na vida; a única que nasceu do desejo urgente de conseguir
algo concreto; a única dedicada inteiramente a pedir desculpas. Ele tem
esperanças, con a que tudo se resolverá, mas as semanas passam sem
resposta. “Era uma brincadeira, Lali, era uma brincadeira, uma simples
brincadeira.” Muitas noites ele acorda sussurrando essa frase, com raiva.
Nas poucas vezes em que se encontram na rua, Sebastián baixa a vista e
apressa o passo. Talvez também tenha sofrido ou esteja sofrendo, mas
Darío acha que não dá para perceber e tenta não gostar mais dele. Pensa
naquela conversa sobre a morte, mas não quer ser compassivo, quer
desprezá-lo. Decide que Lali é uma velha puritana e a obediência de
Sebastián lhe parece incompreensível, ela nunca caria sabendo se eles
continuassem sendo amigos. Mas Sebastián a obedece, tem medo dela.
Darío acha que é possível que ele chegue a odiar Sebastián, mas sente falta
dele. E também sente falta de Lali.

Darío se esforça para sair o mínimo possível. Por ora, está em uma
sinuca de bico, e não parece haver solução: quando toma o caminho
longo, ca angustiado ao passar pela casa de seu ex-amigo, e quando
escolhe o caminho curto os resultados são desastrosos, porque o ódio de
Simaldone se multiplicou por mil. “Os cachorros farejam o medo”, diz a si
mesmo, às vezes em voz alta; ouviu essa frase a vida toda. Repete-a como
um mantra, para criar coragem, mas não serve de nada.
Consegue faltar ao colégio por uma semana inteira inventando
sucessivas doenças. Quando nalmente o levam ao médico, ocorre que
está de fato doente. É diagnosticado com uma doença nova, acaba de ser
descoberta, diz o doutor: intestino irritável. Mas deve voltar ao colégio. E
Darío se recusa. Até seus pais, normalmente dados a ignorar os problemas,
percebem que algo está acontecendo com ele. Interrogam-no
intensamente até que ele não tem mais o que fazer senão confessar seu
medo de Simaldone. Sua mãe sugere que ele vá pelo caminho longo, mas
seu pai, depois de morrer de rir, a rma que isso seria uma estupidez, uma
viadagem: homens de verdade enfrentam seus medos. Darío insiste que só
tem medo desse cachorro, embora em algum momento se veja obrigado a
admitir que tem medo de todos os cachorros do mundo.
Uma noite o pai de Darío decide falar com os donos de Simaldone. É
uma situação estranha. Os pais de Darío não costumam falar com os
vizinhos; os adultos, em geral, não se falam; são as crianças que passam o
dia todo na rua, são como emissários de diversas ilhas, os comerciantes de
um arquipélago. O pai de Darío diz aos donos de Simaldone que não
podem deixar um cachorro solto o tempo todo. Os donos de Simaldone
argumentam que o cachorro é um pouco irritadiço mas cuida da casa e por
extensão do bairro todo, é um cachorro corajoso. Além disso, só late para as
rodas dos carros e para pessoas desconhecidas ou suspeitas. Talvez Darío,
insinuam eles, seja para o cachorro, por algum motivo, uma pessoa
permanentemente desconhecida e suspeita. Na verdade, Simaldone late
para quase todo mundo, mas o argumento funciona e ca instalado como
verdade. Mais para o nal da reunião improvisada, o próprio Simaldone se
aproxima, ofegante e amistoso, do pai de Darío, que acaricia seu pelo e
segura sua patinha direita como se selasse um negócio.
“Você precisa enfrentar seus medos”, o homem diz depois a seu lho. É
uma frase que, se pronunciada com cuidado, poderia até ser carinhosa,
protetora, mas ele a diz com aspereza, como se fosse um decreto, como se
estivesse proibindo para sempre o medo. Darío não quer que seu pai o
defenda de nada, não quer que seu pai nunca mais vá falar com nenhum
vizinho, de modo que tenta, todos os dias, acostumar-se com aquele
cachorro cínico e valentão: tortura-se a si mesmo caminhando inclusive
mais lentamente, como se quisesse, como se desejasse que o vira-lata o
atacasse. De vez em quando para e olha dentro dos olhos do cachorro, que
late ainda mais forte, talvez meio desconcertado, mas de todo jeito
intimidante. E talvez Darío deseje exatamente isto: que Simaldone crave
suas presas nele e que todos entendam que ele tinha razão, mesmo que
depois tenha que andar de muleta pelo resto da vida.

Dois anos se passam cheios de acontecimentos pequenos, a sensação de


mudança é arrebatadora, vertiginosa: Darío acaba de fazer treze anos, é
o cialmente alto e magro, e umas constelações de hediondas espinhas
marcam caricaturalmente sua condição de adolescente. Agora estuda longe
do bairro, no turno da tarde, algo de que em princípio não gostava, era
como ver o mundo ao contrário, mas já pegou o jeito da coisa: acorda
depois das nove e toma café da manhã tranquilo trancado em seu quarto,
ouvindo música a todo volume.
Acaba de sair para a escola, caminha rápido, com passos rmes, porque
o que parecia impossível virou realidade: Simaldone não late mais para ele,
limita-se a grunhir vez ou outra quando o vê passar. Apesar dos pelos
brancos em volta do focinho, continua sendo um cachorro jovem dedicado
a latir apaixonadamente para as rodas dos carros e também para algumas
pessoas, sobretudo crianças, mas nalmente deixou Darío em paz, talvez
para sempre.
Darío chega ao ponto e descobre, contrariado, que não há mais
ninguém esperando o ônibus. Quando os motoristas veem um estudante
solitário plantado no ponto, costumam passar direto, decidida e
pomposamente, por isso Darío se sente ridículo ali, em atitude
mendicante; torce os músculos do rosto e segura a respiração, certo de estar
criando uma espécie de sensação adulta. É uma estratégia absurda que
nesta tarde, no entanto, parece dar resultado — o ônibus vai reduzindo a
velocidade e Darío se prepara para uma entrada triunfal e consegue até
preparar um belo sorriso para o motorista, mas justo então sente uma
pedrada nas costas. Ao se virar vê um menino de uns sete anos que olha
para ele, desa ador, com catarro escorrendo.
— Qual é o seu problema, moleque — ele diz, com um desprezo que
mesmo assim soa compassivo.
— Qual é o seu problema, lhadaputa — o menino responde; sua voz é
muito aguda, mesmo para um menino tão pequeno. — Entra no ônibus
logo, seu covarde babaca.
— Como você se atreve a me encher o saco, seu pedaço de carne crua.
— Darío se resigna a perder o ônibus e talvez por essa vacilação tenha
saído esse xingamento estranho, na verdade cômico: sua avó o chama assim
às vezes, pedaço de carne crua, mas de forma carinhosa.
— Qual é o seu problema com o meu irmão, seu arrombadinho? Quer
que a gente te faça parir, ô Chokito? — intervém o irmão do agressor, que
vinha observando a cena escondido atrás de uma árvore. Deve ter seus
quinze anos, talvez, em todo caso é maior que Darío, pode ser que tenha
uns centímetros a menos, porém é muito mais robusto, um valentão
corpulento.
— Seu irmão jogou uma pedra em mim. — A frase soa inocente, Darío
ainda não entendeu a emboscada.
Então acontece algo de certo modo belo. O valentão saca do bolso um
lenço para assoar o nariz do irmão mais novo. Por alguns segundos,
enquanto contempla essa cena fraternal, Darío joga com a esperança de
que tudo que nisso, em uma bravata. Nunca brigou com ninguém e
nunca ninguém bateu nele, salvo os tapas esporádicos de sua mãe.
— Se joga no chão, viadinho — o valentão ordena. — Vai, Paco,
arrebenta ele na porrada, mas você sozinho, que nem eu te ensinei; se ele
tentar se defender, juro que dou uma surra nele.
Darío obedece, o menino parece mais entusiasmado que com raiva, dá
para perceber que esse era o plano. Dá uns chutes nas pernas de Darío,
morrendo de rir; o agredido cobre os testículos para pelo menos amortecer
os golpes. O irmão de Paco celebra cada chute como se presenciasse um
espetáculo de fogos de artifício, mais precisamente como se ele mesmo
tivesse organizado o espetáculo e estivesse contemplando, com orgulho,
sua obra-prima.
O espancamento é longo e cheio de vaivéns e até, de certo modo,
tedioso. Em algum momento, como se estivessem na praia brincando na
areia, Paco arremessa um punhado de terra nos olhos de Darío, que forma
um lodo ao se juntar às lágrimas ainda escassas. Ele mantém os olhos
fechados por vários minutos enquanto Paco continua lhe dando chutes nas
pernas e no traseiro. Algumas pessoas passam e simplesmente se esquivam
da briga como quem evita supersticiosamente passar por baixo de uma
escada. Darío ouve os passos, as vozes, a humilhação. Paco e seu irmão o
obrigam a car de pé e caminhar até uma pequena praça ou algo que no
futuro deverá se tornar uma praça, mas que por ora é somente um
quadrado de grama incipiente.
— Vai para o chão de novo, seu saco de bosta. Continua batendo nele,
Paco, você está indo superbem, campeão.
Paco dá três chutes em seu rosto, Darío sente o sangue que emana da
bochecha esquerda e que adere ao barro de lágrimas. Consegue segurar os
calcanhares do menino, que cai no chão, mas o valentão o socorre
imediatamente e castiga Darío com um forte chute nas costelas e depois
faz algo inesperado: tira os sapatos de Darío e começa a bater com eles em
sua cabeça, como se matasse mosquitos. Depois Paco e o valentão reviram
a mochila de Darío e encontram o sanduíche de queijo do lanche, e o
comem com vontade. Darío se consola com o pensamento de que os
agressores são pobres e estão com fome, mas não tem certeza. Antes de
irem embora, os irmãos tiram também o casaco dele.
Darío não perde a consciência, mas tem di culdade para se mover. Volta
a ouvir vozes e passos, o barulho dos carros, dos ônibus. É absurdo que
ninguém se aproxime para ajudá-lo. Pensa sentir algo parecido com
hematomas brotando por todo o corpo. São hematomas futuros, é claro,
mas acredita senti-los já inscritos, inevitáveis, em seu corpo. Tira a camisa
para estancar o sangue que jorra do rosto.



— Você consegue andar? — alguém pergunta: Sebastián.


A voz de Sebastián mudou, mas Darío a reconhece de imediato. Ao
juntar essas palavras com o rosto de seu ex-amigo, sente uma mistura de
gratidão e pânico. Enquanto explica confusamente que precisa ir para o
colégio, mas que nesse estado é impossível, repara no projeto de bigode na
cara de Sebastián, ainda não endurecido pela primeira barbeada.
Darío tem esperanças de encontrar sua mochila, mas os valentões
levaram tudo. Tira as meias e caminha apoiando-se em Sebastián. É uma
dupla curiosa: Sebastián volta do colégio de padres onde continua
estudando, com o nó da gravata ligeiramente desfeito e o uniforme
impecável, inclusive os sapatos parecem ter sido lustrados recentemente,
enquanto Darío caminha com a camisa ensanguentada na mão, descalço e
ferido.
— Não posso ir para minha casa.
— Por quê?
— Não quero que minha mãe me veja assim.
— Então vamos para a minha — diz Sebastián.
É uma tarde de nuvens rápidas, há duas ou três investidas em uma
espécie de corrida cujo propósito talvez seja se juntarem a uma nuvem
maior. Mas nenhum dos dois olha para o céu, como antes, na verdade se
concentram no chão para avançar com cuidado. Cruzam com vizinhos
que os observam de canto de olho, apenas uma mulher insiste em ajudá-
los, mas Sebastián responde pelos dois, sorrindo, que ela não precisa se
preocupar, que está tudo sob controle. Darío faz um esforço enorme para
caminhar um pouco mais rápido. Seu corpo todo dói, mas não pensa na
dor nem no que acaba de lhe acontecer, e sim em Sebastián, na estranha
circunstância de caminhar lado a lado a seu ex-amigo ou amigo de novo.
Já em casa, o próprio Sebastián desinfeta as feridas com iodo (“deve ser
aquele mesmo frasco de antes”, Darío especula) e liga o chuveiro.
Enquanto a água morna cai sobre seu corpo, Darío acha que Sebastián
sabe o que fazer, é como se ele se dedicasse a isso. Então simplesmente
pensa que Sebastián está mais acostumado a car sozinho em casa e talvez
seja mais preparado, por isso mesmo, para a vida.
Sua calça está suja, mas não estragada. A camisa, por outro lado, está
manchada e rasgada, precisa ir direto para o lixo. Sebastián lhe entrega
uma camiseta cor de damasco e um tênis velho. A camiseta ca boa, agora
ele é mais alto que Sebastián, mas continuam usando o mesmo tamanho.
Sebastián lhe dá uma dipirona e depois o leva a seu quarto, que não é mais
o grande, e sim o pequeno.
— A gente trocou de quarto — explica Sebastián, antes que Darío
pergunte.
— Você não tem mais tanta coisa — diz Darío, só por dizer algo. — Ou
sua mãe tem mais.
Sebastián dá de ombros e vai até a cozinha, Darío ca sozinho naquele
quarto que lhe parece uma imitação do dormitório anterior, embora talvez
uma imitação mais razoável ou mais genuína. Quer colocar sua calça suja,
mas seu corpo todo dói. Deita-se na cama de cueca. Dorme por dez
minutos. Quando acorda, acha que se passaram horas. Não está frio,
mesmo assim Sebastián tinha colocado uma coberta em cima dele. Na
mesinha de cabeceira há um copo de leite gelado, que ele toma quase de
uma vez, em duas goladas.
— Quer ver um lme?
— Qual?
— Tenho vários — diz Sebastián.
— Mas você já viu.
— Mas talvez você não. E eu posso vê-los de novo.
— Não sei. Como você tem passado?
A pergunta de Darío é natural, mas soa forçada ou triste. Talvez por isso
Sebastián se limite a sorrir. Segue-se um longo silêncio, que Darío
lamenta. Não é um silêncio tenso, em todo caso. É diferente do silêncio
que reina em sua casa ou do silêncio da missa ou do silêncio durante as
provas, no colégio. Tampouco é como o silêncio de antes, quando olhavam
as nuvens ou escreviam suas cartas grosseiras, mas sim, talvez se pareça um
pouco com o silêncio dessa época.
Sebastián sai do quarto e volta com um miniaparelho de som e coloca
bem baixinho The Head on the Door, a ta cassete do The Cure; Darío
conhece apenas a primeira música, cantarola mentalmente. A canção o
embala: acorda quando o lado A acaba de terminar. Sebastián está em uma
cadeira, observando-o. Darío pensa ou talvez saiba que seu inesperado
an trião está há algum tempo ali. Sebastián se levanta para virar a ta.

Darío se sente melhor, ainda letárgico, mas melhor. Encolhe-se na


cama, como quem decide dormir mais dez minutos, ainda que não queira
dormir, na verdade. Imagina seu pai irado, dizendo que ele precisa
aprender a se defender. E ele acha que sabe se defender; acha que sempre,
de alguma maneira, soube se defender. Depois se lembra do valentão
assoando o nariz do irmão pequeno, revisita a cena mais de uma vez.
Imagina-se assoando o nariz de um inexistente irmão mais novo, ou que
ele é o irmão mais novo e um enorme irmão mais velho assoa seu nariz.
Pensa que talvez aquilo fosse uma lição, e mais nada: que talvez batessem
em Paco na escola, e seu irmão mais velho decidira ensiná-lo a se defender
daquele jeito absurdo e sanguinário, equivocado. Afunda nessa cama
alheia, sente que a coberta arranha suas pernas; de repente toda a dor que
sente pelo corpo lhe parece fruto dessa coberta áspera.
Nisso, chega Lali. Ele tem medo de encará-la, de voltar a vê-la. Ouve-a
conversar com Sebastián, não chega a entender sobre o quê, mas não
gritam nem discutem, não há qualquer desavença.
— Você se sente bem para car de pé? — Lali pergunta, em tom casual,
despreocupado, alguns minutos depois.
Darío assente e ela mesma o ajuda a se levantar.
— Não se preocupe — diz Lali —, te garanto que não é a primeira vez
que vejo um menino de cueca.
Os dois se sentam à mesa.
— E o Sebastián? — pergunta Darío.
— Falei para ele ir comprar umas coisas — diz Lali. — Como você está?
— Bem — diz Darío, inquieto e nervoso.
— Meio machucado, pelo visto — diz Lali.
— Onde você está trabalhando agora? — Darío notou que Lali está com
um uniforme diferente e aproveita isso para mudar de assunto.
— Não é da sua conta, garoto intrometido.
Lali fala isso com uma agressividade ngida, com doçura, na verdade.
— Desculpe — diz Darío.
— Trabalho no mesmo lugar.
— Mudaram o uniforme, então.
— Sim — responde Lali. — E você, continua falando só palavrões?
— Não — diz Darío. — Xingo pouco. Só quando estou muito bravo. E
às vezes co bravo e não falo nenhum palavrão. Mas quase nunca co
bravo. Tenho um bom caráter.
Darío emprega o tom clássico de quem alega inocência. Lali olha para
ele com ternura.
— Me ensinaram que as crianças não devem falar palavrões — diz Lali.
— Mas às vezes penso que me ensinaram tudo errado. Ou que eu aprendi
tudo errado.
Embora seja uma desculpa, soa como um pensamento em voz alta.
Darío sente alívio e entusiasmo.
— É que era uma brincadeira — diz, quase como um sussurro.
Arrepende-se de ter soltado essa frase desnecessária. Ela rói uma unha,
duas unhas.
— Eu também roo minhas unhas — diz Darío.
— Você faz mal — diz Lali —, muito mal.
Sebastián volta com uma pequena torta de mil folhas. Está agitado,
como se tivesse ido correndo à confeitaria. Os três põem a mesa e cortam a
torta. De repente são como uma família, pensa Darío. Ou ele se sente
como um primo distante que chegou repentinamente e sem explicações
para o lanche da tarde. Não os conheço, nunca os conheci de verdade,
Darío pensa em seguida. Mas agora vou conhecê-los, quem sabe.
— Nesta casa somos meio pobres, mas comemos tortas de mil folhas
todos os dias — diz Lali.
Depois pede a Darío que conte a ela o que aconteceu.
Darío tenta contar tudo, sem se descuidar dos detalhes, embora às vezes
tenha a sensação de estar inventando alguns deles, e se enrola um pouco;
ultimamente sempre tem essa sensação de estar inventando tudo ou quase
tudo. Mas agora aconteceu algo com ele, algo de verdade, algo sério, algo
que pode contar.
— Eles te assaltaram, meu lho, te roubaram, já aconteceu com todo
mundo — diz Lali.
— Não me assaltaram.
— Levaram sua mochila, seu casaco, seus sapatos — diz Sebastián, que
até então estava em silêncio —, o nome disso é assalto. Te assaltaram!
— Aproveitaram para levar tudo. Mas não eram assaltantes. Queriam me
bater, só isso.
— Queriam te roubar, por isso te bateram — diz Sebastián.
— E eram moleques ruins? — pergunta Lali.
— Não — responde Darío. — Eram garotos normais, como a gente.
— Mas vocês nunca fariam algo assim — diz Lali.
— Não — diz Darío.
— Não — diz Sebastián.
— Então vocês são os bonzinhos.
— Sim — diz Darío, meio em dúvida.
Pode ser que Sebastián e sua mãe tenham razão e que aqueles garotos
queriam simplesmente assaltá-lo. Darío pensa que daqui em adiante vai
contar essa história como um assalto, porque um assalto é mais lógico,
menos humilhante. Estão no segundo pedaço de torta. Sebastián se levanta
e volta com o miniaparelho de som e põe de novo a ta do The Cure. Lali
cantarola a primeira música, Darío pensa que talvez a ta seja dela, que é
ela quem gosta de The Cure. Ou talvez os dois gostem, ela e Sebastián.
Gosta de imaginar algo assim: mãe e lho ouvindo e curtindo a mesma
música. Pensa também que Sebastián fala pouco e não diz mais as coisas
geniais que dizia antes. Mudou. Mas talvez não tenha mudado. Ainda não
dá para saber, é preciso tempo, pensa Darío. Talvez mais tarde, ou
amanhã, ou em qualquer dia do futuro, voltará a se parecer com quem era
dois anos atrás.
— Pica — diz de repente Lali, com o entusiasmo de alguém que en m
consegue resolver um enigma muito complexo.
— O quê? — Darío pergunta, surpreso.
— Se o irmão mais novo se chama Paco, talvez o irmão mais velho se
chame Pica. E ele tinha cheiro de pica? Cara de pica?
Vai se instalando uma gargalhada crescente, libertadora, muito longa,
contagiosa.
— Eu acho que ele se chama Cara de Rola — diz Sebastián.
— Ou Fenda do Pau — diz Lali.
Darío sorri com uma alegria plena, nova, enquanto Sebastián e sua mãe
continuam por um bom tempo inventando nomes para o irmão de Paco:
Saco de Peido, Cara de Cárie, Pilha de Cocô, Joãozinho Filho do Pinto,
Rocky Piroca.
Arranha-céus

Não fui a Nova York porque não quis cortar o cabelo. E meu pai não leu
minha “Carta ao pai”.
— Vou lê-la quando estiver com vontade de chorar — ele me disse. —
Mas nunca tenho vontade de chorar.
Eu não soube o que responder. Nunca sabia o que responder. Por isso
escrevia, por isso escrevo. O que escrevo são as respostas que não consegui
pensar a tempo. Os rascunhos dessas respostas, na verdade.
A primeira vez que tentei escrever esta história, por exemplo, te apaguei.
Achava que era possível disfarçar sua ausência, como se você tivesse faltado
à sessão e nós, os demais atores, tivéramos que improvisar alguns ajustes de
última hora.
Só agora entendo que a história começava contigo, porque mesmo que
eu quisesse, de algum modo, evitar isso, esta é, em todos os sentidos, uma
história de amor.

Fazia apenas uma semana que tudo estava em ordem — seria impróprio
dizer que estava tudo bem, porque as coisas nunca iam verdadeiramente
bem, mas às vezes o meio-termo funcionava e havia até dias felizes. Meu
pai e eu, no carro, com os vidros abertos, ouvindo as notícias: talvez
parecêssemos dois amigos, ou dois irmãos, a caminho do trabalho, felizes
de ter um ao outro para tornar mais leve essa viagem conversando sobre
qualquer coisa.
— Você devia aprender a dirigir — ele me disse nessa manhã, em um
sinal vermelho.
Desde os catorze anos eu ouvia a mesma frase, talvez desde antes, dos
doze. Agora, aos vinte, pensava que sim, que aprender a dirigir fazia
sentido, embora fosse apenas para cultivar a prazerosa e estúpida fantasia
de uma fuga veloz pela estrada, depois de roubar tudo dos meus pais,
começando pelo carro. Mas também gostava de não saber dirigir, de não
aprender nunca.
— Eu poderia aprender, sim.
— Quer que eu te ensine? — ele me perguntou, entusiasmado. —
Amanhã, domingo?
— Amanhã, combinado.
O trabalho de meu pai cava no centro, mas ele desviou alguns
quarteirões para me deixar no Consulado dos Estados Unidos, onde eu
tinha um agendamento para pedir o visto. Eu tinha imaginado uma
burocracia eterna, mas ao m de uma hora já estava livre e até consegui
chegar para a aula do Schuster, só um pouco atrasado, o que de toda forma
não era um problema porque o professor odiava formalidades, entrávamos
e saíamos da sala sem necessidade de pretextos, como se a aula acontecesse
no meio da rua e fôssemos apenas espectadores momentâneos de um
pregador ou de um vendedor ambulante.
Refugiei-me, como sempre, na última leira, saquei meus xerox de
César Vallejo e o gigantesco caderno onde anotava uma e outra frase
isolada, sequer tentava fazer anotações, nem os mais nerds conseguiam
registrar o às vezes brilhante mas sempre desconcertante solilóquio de
Guillermo Schuster — eu me lembro dele em plena prédica, com um
cigarro Gitanes na mão direita e a xícara de café na esquerda, que não era
uma xícara, a rigor, e sim a tampa de sua garrafa térmica de café. Cada
gole marcava o crescendo do professor, cuja atuação começava com
observações gerais, tão vacilantes como sensatas, e a seguir entrava em uma
série de digressões eloquentes que conduziam à dispersão total. Talvez por
isso houvesse rumores de que a térmica continha, na verdade, café com
uísque ou café com pisco, e alguns inclusive garantiam que o que Schuster
bebia enquanto ministrava aulas era uma exclusiva vodca polonesa, que
seria um desperdício, é claro, se misturada a café.
— Professor, poderia apagar o cigarro, por favor? — disse nessa manhã,
intempestivamente, uma aluna desconhecida: você.
Consegui te enxergar, pela diagonal, na segunda leira; sua perna
esquerda balançava com impaciência.
— Por quê? — perguntou Schuster, genuinamente perplexo, como se
tivesse acabado de ouvir um absurdo.
— Estou grávida — você respondeu.
Tornou-se difícil explicar que na época não apenas era permitido fumar
dentro de sala de aula, como essa prática era considerada completamente
normal, quase razoável. Às vezes, no meio do inverno, com as janelas
fechadas, havia cinco ou mais cigarros acesos simultaneamente, e se isso
fosse um lme pareceria um exagero, um recurso barato, uma paródia.
Pensei que Schuster reagiria com desgosto in nito e recorreria, como
sempre, ao sarcasmo, mas te brindou com um sorriso curioso de dois ou
três segundos antes de apagar o cigarro no chão. O assistente, que
acompanhava a aula com atitude de fã, e que costumava sincronizar seus
cigarros aos de Schuster, como se pertencessem ao mesmo seleto time de
fumantes, também teve que apagar o dele. E eu tive que segurar a vontade
que eu estava de acender um.
Ao m da aula, Schuster e seu assistente saíram rápido para o
estacionamento e eu caminhei ao lado deles para contar sobre a viagem.
— Relaxe com relação às faltas, não há problema. — Schuster acariciou
o rosto como se ajeitasse uma profusa barba imaginária. — Mas essa
cidade, Nova York, não me convence. Não gosto.
— Por quê?
— É supervalorizada — disse, em seu tom habitual de intelectual cético.
— Um dos meus lhos morou dez anos por lá, no Brooklyn.
— É uma má cidade, Nova York — disse o assistente. — Péssima.
Um dos meus lhos, pensei, impressionado ao saber que Schuster tinha
mais de um lho. Podia perfeitamente imaginá-lo como pai de alguém,
quase todos os adultos que eu conhecia tinham pelo menos um lho, mas
o fato de Schuster ter gerado — pensei com esse verbo — dois ou mais
seres humanos me pareceu, naquele momento, estranho ou talvez
alarmante.
Estava prestes a acender meu cigarro pendente quando te vi chegando.
— Tem outro cigarro? — você me perguntou.
— E sua gravidez?
— Algumas grávidas fumam — você disse. — Não, a verdade é que
acabo de perder meu lho. Agora mesmo, no banheiro. Foi horrível.
Seguiu-se um breve silêncio. Você fumava mais rápido que eu.
— E por que você pediu para ele apagar?
— Só para sacanear, aquele cara estava falando tanto. Nunca estive
grávida — você acrescentou, como se fosse necessário esclarecer.
— Gostou da aula?
— Sim. Gostei dos poemas que analisamos. O Vallejo é incrível. Não
entendi nada que o professor disse, mas gostei da aula, eu acho. Todas as
aulas são assim?
— Sim. O Schuster é bem maluco.
Eu tinha que entrar na aula de metodologia de pesquisa em literatura,
mas preferi caminhar contigo sem rumo. Você me contou que estava
pensando em estudar letras e que tinha ido à aula de Schuster por
curiosidade.
— Nunca quis estudar nada — você disse. — E ainda não sei se quero
de fato.
Você tinha, como eu, vinte anos, mas soava muito mais adulta, ou
melhor, senti que você era, de algum modo, uma presença antiga, nobre.
Só então pude te ver melhor e perceber seus olhos grandes, quase
desproporcionais. Notei seu nariz meio pontudo, suas mãos nas e longas,
suas unhas minúsculas pintadas de verde. Você tinha o cabelo comprido,
mas um pouco mais curto que o meu. No meu caso, chegava até os
ombros. Você também me chegava até os ombros, mas naquele momento
pensei que você era uma dessas pessoas que parecem altas embora não
sejam.
Caminhamos juntos em direção à Plaza Ñuñoa. Eu queria combater o
silêncio, porque naquele tempo ainda não tinha descoberto que era
possível, que era necessário compartilhá-lo. Contei sobre minha viagem a
Nova York, e, ainda que tenha tentado falar de modo corriqueiro e natural,
com certeza pareci meio convencido, devia ter ensaiado antes na frente do
espelho. Você, sim, conhecia Nova York e boa parte da Europa e tinha
perdido a conta de quantas vezes tinha estado em Buenos Aires, sua cidade
favorita. Você não me contou tudo isso naquele momento. Só mencionou
que conhecia Nova York.
— E do que você mais gostou em Nova York?
— De umas pinturas do Paul Klee. No Metropolitan. Isso foi a melhor
coisa. Não é que eu tenha gostado, só: elas me causaram felicidade.
Você usava frases curtas e fazia longas pausas entre cada palavra. Falava
como uma protagonista de um lme bonito e lento, enquanto eu falava
como um ator de comédia que consegue pela primeira vez um papel sério
e importante e quer mostrar ao mundo sua versatilidade, mas seu empenho
é triste, porque o esforço ca perceptível.
Entramos na livraria El Juguete Rabioso. Eu passava todos os dias por lá,
costumava car bastante tempo, às vezes a tarde toda, conversando com
algum dos donos, sobretudo quando encontrava Miguel, a quem
considerava quase um melhor amigo, embora também adorasse falar com
o Chino ou com Denise — os três eram ex-alunos da faculdade, não
tinham nem trinta anos, porém já haviam conseguido montar essa
pequena livraria que era excelente mas que, no entanto, ou talvez por isso
mesmo, caminhava direto para o precipício. Não vendiam livros ruins, ou
ao menos tentavam. Organizavam a vitrine e os balcões conforme uma
ideia coletiva de literatura que os orgulhava. Se alguém pedisse livros de
autores que eles consideravam medíocres ou comerciais — que em sua
opinião era exatamente a mesma coisa —, Chino e Denise desciam ao
estoque para buscar os exemplares e os vendiam a contragosto. Mas
Miguel, não; nesses casos Miguel respondia, abrindo exageradamente seus
olhos verdes, quase incapaz de esconder a satisfação que lhe causava dizer
aquilo: “Aqui nós não vendemos esse tipo de livro”.
Ficamos vendo os balcões e as estantes da El Juguete Rabioso, e por
trinta ou quarenta minutos a vida consistiu em nada além de nos
recomendarmos livros energicamente um ao outro e nos alegrarmos
quando nossos gostos coincidiam e construir a cção tácita de que dali em
diante leríamos juntos todos esses livros.
— Eu moro bem perto daqui — você disse, de repente. — Queria te
convidar para ir lá em casa ver um lme, mas agora preciso ir, tenho que
levar minha cachorra para passear.
Você pagou pelo livro de Olga Orozco que tinha folheado e saiu a passos
rápidos e por alguns segundos me deixei levar pelo pensamento fatalista de
que nunca mais te veria.
— Ela vem sempre aqui — Miguel me disse, em seguida. — Tipo meio-
dia, ou mesmo antes, umas onze. Fica folheando os livros por bastante
tempo, às vezes compra dois ou três, outras vezes anota uma ou outra frase
em um caderninho vermelho e vai embora sem comprar nada.
— E o que ela compra? Só poesia?
— Poesia e ensaio. E loso a. Mas também romances, às vezes. Você
gostou dela? Gosta dela?
Fiquei nervoso, senti que a pergunta, além de direta e sarcástica, possuía
certa crueldade.
— Ela é diferente.
— Diferente de quem?
— Sei lá. De todo mundo, eu acho.
Meu amigo soltou uma gargalhada e eu me senti delatado, revelado.
Quis sair da livraria, mas Miguel, talvez consciente do meu incômodo,
saiu para pegar uns cafés no Las Lanzas. Eu adorava esses breves
momentos em que cava responsável pela livraria, como em teoria
aconteceria no futuro, se as vendas se recuperassem — eles queriam que
eu trabalhasse lá, mas diziam que no momento era impossível. Tomamos
nossos cafés, depois tentei ajudar um pouco Miguel, que sucumbia diante
de uma tabela de Excel, e em seguida me sentei em um canto para car
vendo umas antologias de poesia. Em nenhuma havia poemas de Olga
Orozco.
Mais para o m da tarde entrou na livraria Álvaro Rudolphy, o ator de
novelas, que, com a con ança a ele conferida por sua enorme
popularidade, ofereceu a Miguel um sorriso televisivo, ou televisionado,
antes de pedir:
— Escute, meu querido, me recomende um livro.
— Não posso, não te conheço — respondeu Miguel, seco, de imediato.
— Como vou recomendar um livro para você se não te conheço?
Rudolphy saiu da livraria desconcertado e inclusive humilhado e nós
fechamos a loja entre ataques de riso.
— Vamos comer alguma coisa no Dante — disse-me Miguel.
— Como vou comer contigo se não te conheço? — respondi.
Comemos uns chacareros4 e tomamos cerveja prolongando a alegria
dessa frase nova, que servia para tudo, resolvia tudo. Como vou dividir uma
batata frita contigo se não te conheço. Como vou te passar a mostarda se
não te conheço. Como vou pagar a conta se não te conheço. Não tínhamos
nada contra Rudolphy, não mesmo, até o achávamos um bom ator, mas
recordar sua expressão perplexa funcionava para nós como uma espécie de
estranho triunfo.
Miguel foi embora e quei por quase uma hora em um banco da Plaza
Ñuñoa para o caso de você aparecer de repente com a sua cachorra.
Demorei a aceitar que devia voltar para casa. Peguei o ônibus quase à
meia-noite, fui cochilando e dando cabeçadas na janela.


Na manhã seguinte, acordei com o barulho infernal do espremedor de
laranja. Era um truque recorrente do meu pai, infelizmente, pois detestava
que continuássemos dormindo depois que ele já tinha lido a seção de
esportes do jornal, que era a única que o interessava. Mas teve a delicadeza
de espremer quatro laranjas a mais e deixou um copo para mim na
mesinha de cabeceira, em meio aos livros amontoados.
— Não tem como você estar lendo vinte ou trinta livros ao mesmo
tempo, lho.
Ia responder que eu, de fato, conseguia ler vinte ou trinta livros ao
mesmo tempo e que alguns desses livros, como os de poesia, não se
esgotavam nunca, mas preferi ngir que ainda estava dormindo.
— Você precisa cortar o cabelo — ele me disse a seguir. — Para ir a
Nova York. Você vai ser discriminado se car andando por lá de cabelo
comprido.
Saiu do quarto e por alguns segundos nutri a esperança de que ele não
voltasse. Me levantei para tomar de uma vez o suco de laranja. Olhei para
o teto, com o copo vazio na boca. Meu pai tinha voltado ao meu quarto,
senti seu olhar expectante, mas não o olhei de volta.
— Vai cortar o cabelo ou não?
— Não.
— Se você não cortar o cabelo, também não vai para Nova York.
— Então não vou para Nova York. Não estou nem aí para Nova York e
não quero cortar o cabelo.
É mais ou menos verdade que não estava nem aí para Nova York. O que
eu sabia, então, sobre Nova York? O que aprendera assistindo Taxi Driver
ou Seinfeld? O que entendia daquela música chata do Frank Sinatra?
Qualquer destino teria me parecido igualmente incrível, porque com
ônibus e trens e uma mochila nas costas eu tinha conseguido conhecer boa
parte do Chile, mas nunca tinha entrado em um avião.
A viagem era um presente, completamente inesperado, aliás, porque já
havia alguns anos que discutíamos por quase tudo — nada fora do comum,
nossa relação se enquadrava na versão clássica dos con itos pai-e- lho, e eu
sabia disso, mas saber disso não me consolava, não me deixava conformado,
porque ele sempre gritava mais alto e nunca pedia perdão. Depois de uma
briga especialmente violenta, meu pai tinha encontrado essa forma de se
desculpar: resgatar em meu nome uma passagem com milhas acumuladas,
con ando, com razão, no efeito surpresa, porque ele mesmo decidira a
data e esse destino que me parecia tão abstrato e tão espetacular.
— Então você não vai mais para Nova York, fez merda — meu pai
arrematou, incrédulo. — Você vai me implorar de joelhos. Vai se
arrepender.
— Não vou me arrepender.
Ao colocar em palavras minha novíssima e soberana decisão, senti a
vertigem e o prestígio das frases de nitivas, cruciais. E então decidi mais
uma coisa: ir embora, nalmente, daquela casa.
— Pronto, passagem cancelada — disse-me meu pai, algumas horas
depois: tinha acabado de ligar para a companhia aérea e desmarcar a
viagem.
— Perfeito — respondi.
— Escute, a que horas vou te ensinar a dirigir?
— Hora nenhuma, nunca.
— Mas a gente tinha combinado isso.
— Mas estamos brigados.
— Você sabe que uma coisa não tem nada a ver com a outra.
— Têm a ver, sim.

Passei o m de semana trancado no meu quarto folheando os vinte ou


trinta livros da minha mesinha de cabeceira. Na segunda e na terça me
dediquei a procurar um lugar para morar. Tinha algumas economias de
um trabalho como assistente de professor e de outro que peguei nas férias,
mas tudo o que encontrava estava fora de meu orçamento. Fiquei
desesperado, porque meu único plano B era car em casa passando raiva.
No m, quase milagrosamente, encontrei um quarto barato em um
apartamento em frente ao Estádio Nacional, muito perto da universidade.
A mudança seria na quinta-feira, eu ainda tinha um dia inteiro, um
último dia, e aproveitei para inspecionar cada canto da casa, como quem
acumula material para futuras lembranças. Depois caminhei pelo bairro
tentando me converter na caricatura do arrivista: tratava de olhar
altivamente para os lugares em que havia crescido, como que inventando
um desapego e um desprezo e um rancor que na verdade não sentia. Eu
me encorajava imaginando eternas conversas interessantes com amigos
novos — na época ainda não rejeitava a palavra interessante —, debruçado
sobre alguma mesa do Las Lanzas ou do Los Cisnes. E até os inóspitos
prados da faculdade me pareciam, de repente, uma versão aceitável de
locus amoenus.
Falei com minha mãe e com minha irmã, pedi que guardassem segredo.
Elas reagiram com um misto de temor e solidariedade que me pareceu,
não sei por quê, desconcertante. Fiquei sozinho na sala de jantar e liguei a
tevê. Não era necessário concordar, todos sabiam que meu pai chegaria em
casa logo antes do início do jogo do Colo-Colo. E assim foi. Estávamos
havia alguns dias sem dirigir a palavra um ao outro, mas vimos o jogo
juntos e até trocamos algumas poucas frases como merecia vermelho ou não
estava impedido, coisas assim. Não me lembro do resultado. Tendo a
pensar que não houve gols ou talvez tenha havido e fomos nós, pai e lho,
os que empatamos.
Meu pai me disse boa noite erguendo as sobrancelhas. Não fui me
deitar. Escrevi, nessa noite, minha carta ao pai. Nessa época ainda não
tinha lido Carta ao pai, de Kafka, acho que nem sabia de sua existência.
Escrevi-a no computador da casa, não queria que a letra manuscrita
arruinasse a mensagem — escolhi a fonte Century Gothic e um tamanho
de letra muito grande, talvez 18 ou 20, para o caso de meu pai ler a carta
sem as lentes de contato. Tirava-as apenas para dormir, mas por algum
motivo eu o imaginava aproximando o papel de seus olhos nus,
verdadeiros, por assim dizer.
Na manhã seguinte, quando todos já tinham ido embora, imprimi o
arquivo: doze páginas. A carta não era agressiva. Era dramática e carinhosa,
ainda que eu tivesse me proposto evitar a ternura. Falava, talvez, como se
eu fosse o adulto e como se ir embora de casa tivesse sido a única solução
para não odiar meu pai e para não odiar a mim mesmo. Coloquei-a em um
envelope, apaguei o arquivo do  e comecei a empacotar meus livros em
uns sacos de lixo. Surpreendi-me ao contá-los: noventa e dois. Meu amigo
Leo Pinos chegou, ele tinha conseguido uma caminhonete, embora teria
bastado um carro pequeno para carregar esses noventa e dois livros e um
pouco de roupa.

— Tudo o que tenho para dizer está naquela carta — eu disse a meu pai,
com algo semelhante a um orgulho literário, na sexta-feira seguinte,
quando voltamos a nos ver.
— Não a li.
— Sério?
— Vou lê-la quando estiver com vontade de chorar. Mas nunca tenho
vontade de chorar.
A única coisa que queria saber era o que ele tinha pensado ou sentido ao
ler a carta, não tinha me passado pela cabeça que resistiria a lê-la.
Estávamos em seu trabalho, em uma minúscula sala de reuniões, como se
estivéssemos desenhando o plano estratégico de alguma empresa ou algo
assim. Não havia clareza sobre o que devíamos falar. Ou talvez sim, mas
eram coisas demais. Meu pai entabulou um discurso muito geral, como
que tirado de algum manual sobre pais e lhos. Concentrei-me na
autoridade de sua voz severa, mas conscientemente suavizada. Reparei,
como costumava acontecer comigo, no persistente derrame em seus olhos,
sobretudo no esquerdo; era como um rio com in nitos a uentes que para
mim cifrava, de algum jeito, um sofrimento que não se sabia de onde vinha
nem aonde nos conduziria. Um sofrimento do meu pai e também meu. O
sofrimento de olhar em seus olhos e saber que não o conhecia, que vivera
desde sempre com alguém a quem não conhecia e nunca viria a conhecer.
— Estamos de acordo? — ele me perguntou.
Eu não havia escutado, ou escutara apenas a suposta música de sua voz.
— Não estava ouvindo — falei.
— O quê?
— Estava distraído.
Soltou mais algumas palavras, ngia muito mal ainda ter um resto de
paciência. Eu comecei a gritar, não sei o que falei, mas ele me olhava
xamente, impassível, como um político no meio de um debate, ou talvez
como um morto.
— Não precisamos orear — ele me interrompeu de repente. — Você
oreia demais, sempre oreia tudo. Você saiu de casa, pronto. Em alguns
países os lhos vão embora muito antes. Nos Estados Unidos você já seria
um bobão. E eu estou feliz, porque ganhei mais um quarto, vou colocar
uma tevê grande e me instalar lá para ver lmes até as cinco da manhã.

Cheguei atrasado para a aula de Schuster, de novo. Não queria ir, mas
tinha a esperança de te encontrar. Você não estava lá. Não havia quase
ninguém, porque quem estava dando a aula era o assistente — foi uma
aula diferente, cheia de ideias que me soaram estranhas e novas. Lemos
uns fragmentos de La casa de cartón, de Martín Adán, e um poema de Luis
Omar Cáceres cujos primeiros versos caram cravados em minha
memória, como se os conhecesse desde sempre: “Agora que o caminho
está morto,/ e que o re exo do nosso automóvel lambe seu fantasma,/ com
sua língua atônita”.
Talvez eu tenha caminhado alguns quarteirões ao ritmo desse poema,
rumo à Plaza Ñuñoa. Queria falar com Miguel, mas quando cheguei à El
Juguete Rabioso entendi que na verdade eu queria falar contigo. Perguntei
a Miguel se você tinha estado na livraria, ele respondeu que não.
— Você vai car bem — ele me disse em seguida, após ouvir minhas
novidades.
Perguntou-me detalhes, muito detalhes. Se eu precisava de algo, grana,
qualquer coisa.
— Preciso é de trabalho — falei.
— Mas eu não posso te dar trabalho. Eu mesmo quase não tenho mais
trabalho. Vamos fechar, é inevitável.
— Quando?
— Em alguns meses, quando tudo for à merda. Estamos tentando
segurar mais um pouco, até o Natal, mas mais que isso não dá.
— Que ruim, que merda.
— E não podemos te contratar.
— Claro, óbvio.
A fantasia de chegar a trabalhar na El Juguete Rabioso deixava tudo
ajeitado como por magia, mas nesse momento não pensei na iminente
escassez de dinheiro, na verdade o que me entristeceu foi a visão futura
daquele lugar vazio, onde certamente logo haveria um café ou um salão de
cabeleireiro estúpido. Encontrei nas estantes Defensa del ídolo, o único
livro publicado por Luis Omar Cáceres, e li duas ou três vezes cada poema.
De tempos em tempos, Miguel soltava alguma frase e eu respondia, e era
como o diálogo gentil e casual entre dois desconhecidos sentados perto um
do outro, por acaso, no consultório médico ou em um velório. Mas quando
eu estava indo embora ele me entregou um papel onde anotara o número
de dez pessoas que podiam me dar algum tipo de trabalho.
— Vou deixar meu cabelo crescer em solidariedade a você — ele me
disse ao nos despedirmos com um abraço.

Comprei umas dobladitas5 e quatro fatias de queijo chanco6 e caminhei


até minha nova casa pensando com antecipada nostalgia na El Juguete
Rabioso, mas também surgia em minha mente uma versão de mim mesmo
que perambulava por alguma avenida desconhecida de Nova York com o
cabelo curto e cara de perdido ou de maravilhado. Imaginava-me como
uma árvore jovem; como uma árvore jovem e recém-podada que queria se
alongar para alcançar os raios de sol e voltar a crescer. Pensava nisso
quando me dei conta da sua presença, você caminhava quase pisando nos
meus calcanhares, com sua cachorrinha.
— Estamos te seguindo há várias quadras. Te perseguindo.
Não acreditei, mas tive a sensação de que sim, de que você estava perto
fazia tempo.
— Por quê?
— Queria te apresentar a Flush.
Flush era uma vira-lata preta e pequena, de olhos úmidos, meio
assalsichada, que avançava com pompa e como que apartada do mundo;
pareceu-me que mancava, porém depois pensei que na verdade ela
adornava seu caminhar com uns pequenos saltos faceiros. Você me falou
de Flush, o livro de Virginia Woolf de onde tinha tirado o nome da sua
cachorrinha, e me deu de presente Os subterrâneos, o romance de Jack
Kerouac que eu não conhecia e que li logo em seguida e que a cada dois
ou três anos volto a ler, ansioso por receber, novamente, a calorosa
sacodida daquele nal, um dos melhores que já li na vida.
Chegamos ao meu prédio, nos sentamos no meio da escada. Montei os
pães com queijo, a cachorra também comeu. Em apenas uma semana
tudo tinha mudado radicalmente e tentei explicar isso a você, ainda que
para tanto tivesse de te contar minha vida inteira, que não era tão cheia de
acontecimentos, mas talvez naquele momento eu achasse que sim. E te
contei tudo, ou quase tudo. Falei possivelmente por duas horas. Já
escurecia quando quei sem palavras e esperando as suas, que não vinham.
— Vamos entrar, está um pouco frio — foi a única coisa que você disse.
A dona do apartamento estava lá com uns turistas canadenses, eu acho,
que iam alugar os outros quartos; ela e a lha dormiriam na sala, em sacos
de dormir. Ofereceu-nos vinho, mas preferimos ir para o meu quarto. Você
se deitou no colchão com naturalidade, como se morasse lá, Flush se jogou
aos seus pés e mordeu a própria coleira para que você a tirasse. Tentei dar
uma arrumada, não tivera tempo de conseguir uma prateleira para colocar
os livros, que ainda estavam nos sacos de lixo, assim como as roupas.
A luz de um poste longínquo conseguia entrar pela janela. Te vi falar,
você mal mexia os lábios. Falou de sua mãe morta e dos lmes que ela e
seu pai viam e que agora você via com ele — “Gabriela adorava essa
parte”, seu pai dizia, de repente, com um entusiasmo que para você
parecia ao mesmo tempo emocionante e doloroso. E depois você falou da
insônia e dos remédios que tomava para a insônia e de um romance sobre a
insônia que você queria escrever. E de uma amiga que tinha se afogado
anos antes, em Pelluhue. E de quatro ou cinco pessoas que odiava, umas
colegas de escola, acho, e um ex-namorado. Lembro-me de ter pensado
que essas pessoas não mereciam seu ódio nem o ódio de ninguém, mas não
te falei isso. Também me lembro de ter sentido a felicidade súbita e
insólita de você não me odiar. Em algum momento, inesperadamente,
você desatou a chorar e eu tentei te consolar.
— É que seu pai me dá raiva — você disse.
— É por isso que está chorando, por causa do meu pai? — perguntei,
surpreso.
— Não sei, não estou chorando por algo especí co, não estou triste.
Nunca choro por algo especí co. Estou acostumada a chorar. Sou a favor
do choro.
— Eu também — falei, sorrindo.
— Não sei por que choro. Às vezes penso que estou ngindo, o tempo
todo. Não sou assim.
— Eu gosto de como você é. Mesmo que você não saiba como é. E eu
também njo, o tempo todo. Contigo e com todo mundo.
— Sim.
Seguiu-se um longo silêncio, importante, prazeroso. Como uma criança
que memoriza a lista de compras, repassei os detalhes de nossa conversa,
não queria me esquecer de nada.
— Será que seu pai vai ler a carta? O que acha? — você me perguntou
então.
Eu tinha acabado de te falar sobre essa carta e mesmo assim senti que
essa parte da conversa tinha cado de nitivamente para trás. De repente
me custava voltar a imaginar a situação; parecia-me, também, que aquele
diálogo com meu pai tinha acontecido muito tempo antes. Tentei
responder com honestidade. Tendia a pensar que meu pai tinha lido a
carta, sim, mas preferiu me dizer que não, que não a tinha lido.
— Com certeza ele leu, tenho certeza — você disse.
Flush roncava à beça, você foi ao banheiro e ao voltar se deitou de novo
no colchão, mas dez segundos depois, como se tivesse se lembrado de algo
urgente, você se levantou, ligou a luz e começou a tirar os livros das
sacolas, um a um, e quase sem olhar para eles foi empilhando no formato
de torres.
— Isso é a sua Nova York — você disse. — Olhe, estes são os edifícios de
Manhattan, os arranha-céus.
Montamos com os livros réplicas bambas do Empire State, do edifício
Chrysler, das Torres Gêmeas, que na época ainda estavam de pé. Ainda
não tínhamos nos beijado, não tínhamos dormido juntos, não sabíamos, de
fato, nada sobre o futuro. Talvez eu intuísse ou fantasiasse que passaríamos
muito tempo juntos, vários anos, a vida toda. Mas não suspeitava que esses
anos seriam divertidos, intensos e amargos e que depois viria um tempo
muito mais longo, talvez inde nidamente longo, sem sabermos nada um
do outro, até chegar o momento em que pareceria possível, concebível, por
exemplo, contar uma história, qualquer história, te apagando. Por ora, você
era inapagável, de uma vez e para sempre. E nenhum pensamento sobre o
futuro importava demais naquela noite que passamos imitando, usando os
livros como tijolos, aqueles edifícios imponentes, longínquos, distantes,
frios, absurdos, belos.
Introdução à tristeza futebolística

Era, para nós, a única forma perceptível de tristeza masculina. Vivíamos


em um mundo de merda, mas a única coisa que parecia afetar os homens
era um resultado adverso em um jogo de domingo. Da mesma forma que
as duas ou três horas posteriores a uma vitória eram propícias para lhes
pedir dinheiro ou permissão para algo, quando nossos pais sucumbiam à
tristeza futebolística todos sabíamos que era melhor deixá-los lidar a sós
com a derrota. Abatidos e convalescentes, nessas noites os homens se
tornavam ainda mais distantes, porque faziam coisas incomuns, como car
olhando a rua vazia pela janela, severamente impotentes, ou cantarolar
“Me olvidé de vivir” enquanto lustravam seus sapatos freneticamente, sem
cessar. Mas não tem graça julgá-los hoje. É muito fácil. Além disso, esse
romantismo sobrevive em nós. É fato que continuamos experimentando a
tristeza futebolística; ela mudou de forma, mas continua viva, talvez mais
viva do que nunca.


Houve um tempo já remoto em que eu não me interessava muito por
futebol, embora mesmo assim gostasse de ir ao estádio. Ostentava com
orgulho minha bandeirinha e meu boné do Colo-Colo, e me divertia
vendo o aquecimento enérgico dos reservas, os tímidos passinhos de dança
dos árbitros, ou a garbosa cabeleira ao vento de Severino Vasconcelos. Ou
as acrobacias heroicas dos vendedores de café, que circulavam com
destreza pela multidão com suas térmicas enormes penduradas no pescoço.
O que acontecia com a bola, contudo, dava mais ou menos no mesmo para
mim. Achava difícil entender a semelhança entre as peladas intensas e
bagunçadas que jogávamos nas passagens entre as ruas e o monótono
esporte que presenciávamos no estádio, sobretudo pela ausência quase total
de gols. Tenho a impressão de ter assistido, nessa época, a muitíssimos
empates em zero a zero.
Para assistir aos jogos com relativa paz, a única opção que nossos pais
tinham era nos entupir de sorvete, coca-cola e amendoim caramelizado.
Levar-nos ao estádio era um erro, uma péssima ideia, mas também uma
aposta, um investimento a curto ou médio prazo, porque nossos pais
sabiam que em algum momento iríamos nos distrair de nossas distrações,
abduzidos en m pela cativante lentidão futebolística.
Em meu caso, isso aconteceu logo: aos sete anos eu já era, plenamente,
um torcedor inveterado. Torcedor do Colo-Colo, como meu pai. Teria sido
genial se eu gostasse do time rival ou de outro qualquer. Não consigo
pensar em uma forma mais econômica de matar o pai, muito mais efetiva
que a surrada rebeldia grunge ou a lacerante gritaria política que vieram
depois. Conhecia algumas histórias de crianças dissidentes: de forma
misteriosa, alegando motivos pouco sérios, banais, como a beleza do
uniforme do time do Universidad Católica, conseguiam torcer o enredo, e
esses pais enganados e perplexos não tinham outra opção a não ser
conviver diariamente com o inimigo.
Não há clareza quanto a termos, de fato, escolhido um time de futebol.
Para muitos de nós, esse aspecto da herança paterna foi o único que nunca
questionamos. E, mesmo que estivéssemos brigados de morte com nossos
pais, a possibilidade de sublimar os problemas e assistir a um jogo juntos
nos proporcionava certa dose razoável de esperança familiar, uma trégua
momentânea que pelo menos nos permitia manter a ilusão de
pertencimento.



Minha relação com o futebol não é literária, mas meu vínculo com a
literatura tem, de certo modo, uma origem futebolística. Minhas maiores
in uências como escritor não foram o gigantesco romance de Marcel
Proust nem os imperecíveis poemas de César Vallejo ou de Emily
Dickinson ou de Enrique Lihn, e sim as transmissões radiofônicas de
Vladimiro Mimica, o locutor da Radio Minería. Nenhuma leitura foi para
mim tão decisiva como a elegante prosa falada do famoso cantagoles,
apelido de Mimica. Eu inclusive gravava os jogos e depois me deitava na
cama para ouvi-los e desfrutar deles em um sentido puramente musical.
Graças a sua gentil mediação, até os jogos mais tediosos ou insípidos
pareciam batalhas épicas memoráveis.
A voz de Vladimiro era sinônimo de alegria futebolística, mas também,
mais de uma vez, escutei de novo seus relatos de dolorosas derrotas, imerso
no pensamento mágico de que a gravação não repetiria a realidade, e sim
criaria uma nova, não muito diferente nem esplendorosa, um mundo
talvez igualmente terrível, mas no qual ao menos meu time agora, sim,
ganharia. Vê-se que já naquele tempo eu padecia de tristeza futebolística
crônica.
Enquanto em casa e obviamente no colégio era proibido xingar, no
estádio eu tinha licença para me expressar com puras grosserias. Houve um
tempo em que passava o jogo inteiro insultando os oponentes e o trio de
arbitragem. Mas os palavrões perdem a graça quando são o cialmente
permitidos. Como costumávamos ir a partidas duplas no estádio Santa
Laura, preferia narrar, gritando, o jogo preliminar — durante a semana,
sentado no último banco, estudava o álbum de gurinhas do futebol
chileno tentando memorizar as escalações de todos os times, e em geral
não cometia erros, de modo que, salvo por uma ou outra reclamação
isolada, ninguém parecia se incomodar com minha performance. Meu
trabalho nessa emissora inventada terminava, no entanto, quando o Colo-
Colo entrava em campo para o jogo principal. Então eu me transformava
em um torcedor a mais, preocupado e irascível, que assistia ao jogo com os
dentes cerrados, em estado de absoluta tensão.



Os especialistas concordam que o grau de tristeza futebolística é


inversamente proporcional às expectativas. Talvez isso soe óbvio. Bem, é
óbvio, e além de tudo não parece ser algo exclusivo do futebol, mas de
todo modo é bom dar uma enfeitada na coisa.
No caso de quem torce para os chamados times grandes, as expectativas
são sempre altas demais: exigimos que nosso time ganhe, brilhe e goleie
toda semana, de maneira que mesmo uma vitória apertada após um jogo
ruim pode nos provocar alguma dose de tristeza futebolística. Esse
triunfalismo é desagradável: somos como aqueles pais que, em vez de
parabenizar e mimar os lhos por terem conseguido uma nota boa, dizem
que eles zeram apenas sua obrigação. A situação de torcedor, de fã, acaba
se tornando as xiante, e por isso desfrutamos tanto dos jogos em que mal
nos identi camos com qualquer um dos times em disputa. Sentimo-nos
quase budistas diante da tevê, capazes, en m, de descansar de nós mesmos
e apreciar de fato o jogo.
Suspeito que todos os torcedores de times grandes em algum momento
da vida fantasiaram com a possibilidade de mudar de time. Era uma
tentação razoável, redentora, nos pouparmos dessa pesada obrigação de
ganhar tudo, para saborear, em vez disso, as vitórias parciais, discutíveis, de
um time pequeno: conseguir se manter na primeira divisão, roubar alguns
pontinhos dos grandes, perder com dignidade depois de dar tudo de si em
campo, ou perder de forma incontestável e humilhante mas depois de
encher de pontapés sanguinários as estrelas muito mais bem pagas do time
adversário. Há quem tenha dado esse passo voluntarioso, que para a
maioria de nós, contudo, cou marcado apenas como um absurdo, uma
vergonha, quase sempre inconfessável. Sobretudo a partir de certa idade,
em meu caso muito precoce, mudar de time é simplesmente impossível.

Não era preciso mudar para um time pequeno, na verdade: a seleção


chilena era nosso time pequeno. Antes que Marcelo Bielsa e a “geração de
ouro” nos deixassem mal-acostumados a sonhar com um futuro
esplendoroso de campeões mundiais, a seleção fora quase sempre um time
destinado ao fracasso, mas que de vez em quando nos permitia ertar, a
uma distância decorosa, com a glória. “A seleção chilena joga bem/ Mas é
perseguida pelo azar”, escreveu a respeito Nicanor Parra, e essa era quase
sempre a nossa sensação. De qualquer forma, quando o Chile jogava, nosso
país quebrado e dividido parecia momentaneamente se reconciliar.
Deixávamos em suspenso, de fato, nossas diferenças; apreciávamos o
futebol de forma coletiva, embora, mais que apreciar, a coisa se tratasse de
sopesar um sofrimento comum que para minha geração incluiu o trauma
de Cóndor Rojas e sua lamentável encenação no Maracanã, rapidamente
descoberta pela Fifa, que impôs um castigo vitalício ao goleiro Roberto
Rojas e o banimento do Chile das eliminatórias da Copa seguinte. O
conceito de tristeza futebolística se faz insu ciente para resumir o que
sentimos nesses anos.
As adversidades do pequeno time nacional foram compensadas pela
vitória do Colo-Colo na Libertadores de 1991. Mas quando pensávamos no
time pequeno a depressão voltava. Já em meados dos anos noventa nosso
ostracismo foi reduzido pelo triunfo de Iván Zamorano na Espanha. E
nisso havia uma corrupção da coisa, porque de repente o futebol deixava de
ser, para nós, um esporte coletivo: o Chile inteiro parava para assistir aos
jogos do Real Madrid, e se Zamorano zesse algum gol cávamos
malucos. E quando ele era substituído — sempre injustamente, a nosso ver
— não estávamos mais nem aí se o resultado era favorável ou não para o
Real, embora continuássemos vidrados na tevê, secando os atacantes que
tentavam tomar seu lugar.



Interrompo este ensaio para relatar às claras um episódio vergonhoso,


que me invalida como torcedor e talvez como pessoa: por quase dois anos
ngi não gostar de futebol.
Minha única desculpa, legítima, porém pobre, é a juventude. Nem o
amor funciona como atenuante — tudo começou em pleno cortejo, tudo
ia bem, Anastasia e eu estávamos havia horas em um passeio sem rumo,
que na verdade era uma mera volta proteladora, ambos já sabíamos que a
jornada terminaria nos ansiados primeiros beijos e carícias, na
semiescuridão de alguma praça tranquila, já sem crianças bisbilhoteiras
nem aqueles aposentados que recorriam ao truque barato de alimentar as
pombas para poder praticar seu descarado voyeurismo.
— Você não gosta de futebol, certo?
Foi isso que Anastasia me perguntou. Havia uma espécie de súplica
implícita em sua voz, ou assim me pareceu.
— Claro que não.
Menti por instinto, mas também por costume. Anastasia, por outro lado,
não mentia nunca. Ela era muito e talvez desnecessariamente honesta, e
percebi isso com clareza depois, mas comecei a ter uma pista naquela
mesma noite, quando ela me falou de seu namorado anterior, que era um
sujeito sensacional, que eles eram almas gêmeas, os dois sabiam de cor
todas as músicas do The Cure, inclusive aquelas de que não gostavam,
porque na verdade gostavam de todas. E sabiam de cor também longos
trechos de Sobre heróis e tumbas, o romance de Ernesto Sábato, inclusive
tinham ido juntos a Buenos Aires para experimentar, recriar, recuperar e
viver esse romance. Mas Anastasia nunca tinha se acostumado com o
interesse, em sua opinião desmedido, desse seu namorado pelo futebol. No
começo, essa paixão exagerada lhe parecera um defeito menor, reversível,
mas pouco tempo depois já cara claro que seu namorado era um caso
perdido: semana sim, semana não ele a deixava plantada para ir ao estádio,
e diariamente insistia em usar metáforas futebolísticas que para ela eram
irritantes (“agora a bola está do seu lado”, dizia, por exemplo, cada vez que
era preciso tomar as decisões mais triviais). A paixão futebolística de seu
namorado não foi o motivo o cial nem principal para o m dessa relação,
mas in uenciou.
— Caramba. Pessoalmente, sempre achei o futebol algo muito estúpido
— falei, com um cinismo persuasivo. — São só nove imbecis correndo
atrás de uma bola!
— Não eram onze? Onze de cada lado, ou seja, vinte e dois?
— Na verdade, não faço ideia — continuei, inspirado —, não sei nada
de futebol, nunca assisti a uma sessão de futebol.
— Uma partida.
— Isso, uma partida.
Ela me olhou como se eu tivesse acabado de falar algo genial. E depois
embarcou em um longuíssimo e espetacular discurso contra o futebol.
Suas palavras me doíam, em parte porque, preso ao personagem que
acabara de criar, eu não podia contradizê-la. Meu pescoço chegava a doer
de tanto assentir. Tentei abstrair observando seu cabelo recém-tingido de
uma cor entre o vermelho e o laranja, ou seus dentes quase arti cialmente
brancos e pequenos, e além disso muito curiosos, porque eram meio que
distribuídos em grupos de dois, com fendas bem visíveis entre cada grupo,
como se ela os tivesse tirado e colocado de volta só para passar o tempo.
Anastasia falava de machismo, de nacionalismo, de barbárie, e seus
argumentos me pareciam assertivos (nessa época eu pensava, como tantas
pessoas com doutorado e senadores da República continuam achando, que
a palavra assertivo tinha o mesmo signi cado que acertado ou certeiro). Sua
posição resumia o que quase todos os meus professores e colegas de
faculdade pensavam sobre futebol, em especial desde que a violência nos
estádios se tornara tema de debate nacional. Eu mesmo, depois de ter sido
cuspido por um torcedor do time rival e assaltado por outro do meu time,
havia parado de ir ao estádio.
Talvez porque naquele momento também ardia em mim um impulso
antifutebolístico, ligado ao meu arrivismo e ao desejo de pertencer àquela
comunidade de intelectuais céticos, críticos e enrolões que desprezavam o
futebol. Acontecia um pouco comigo o que já tinha me acontecido com
relação à música durante a adolescência: como não eram tempos propícios
para o agora tão valorizado ecletismo, eu tinha sido hippie e depois trasher,
new wave, punk e depois de novo hippie, incluindo as respectivas
mudanças de trajes, amigos e até de costumes.



Logo Anastasia e eu conseguimos nos perder no parque comentando A


dupla vida de Véronique e a trilogia das cores de Krzysztof Kieslowski, e
construímos, com a velocidade urgente do amor intenso, uma trilha sonora
que também incluía algumas — não todas — músicas do The Cure e um
horizonte abundante de coincidências literárias que somente excluía, por
razões óbvias, Sobre heróis e tumbas (acho que cheguei a convencê-la de
que Abadon, o Exterminador era melhor que Sobre heróis e tumbas, embora
eu não tivesse certeza disso, na verdade até hoje eu não saberia dizer se
gosto de fato de algum livro de Ernesto Sábato, com exceção de O túnel,
que é o menos bom mas que quando todos tínhamos nossos doze anos nos
deixou malucos e possui, portanto, o status inquestionável de clássico
particular).
Não quero caricaturizar minha relação com Anastasia. Bem, nem tanto,
porque às vezes caricaturizar é inevitável e até aconselhável, porque nos
permite perdoar essas outras pessoas que fomos. Mesmo que, para dizer a
verdade, quem careça de perdão sejamos nós, os adultões insensíveis de
agora, capazes de minimizar o que — isso nós sabemos, mas ngimos não
saber — foi importante e sério e incrível. Falamos do passado e rimos de
nós mesmos como se nunca no futuro fôssemos rir de quem somos agora.
Perdão, não quero ser maçante: ia dizer que Anastasia e eu construímos
muito rapidamente uma relação de companheirismo absoluto e de
con ança vertiginosa, que ainda assim nunca me levou a ser sincero
quanto ao meu romance paralelo com o futebol.



Quando en m a seleção chilena voltou à cena internacional para


disputar o torneio de classi cação para a Copa da França de 1998 (que,
nesse tempo, talvez para induzir em nós mesmos um pessimismo razoável,
chamávamos de eliminatórias), Anastasia e eu estávamos praticamente
morando juntos, de modo que precisei inventar desculpas atrás de
desculpas para assistir aos jogos escondido em algum bar ou afundado na
poltrona gelada da casa de meus pais. Mas às vezes simplesmente não
conseguia escapar e era muito difícil lutar contra a amargura de passear
pelo Parque Intercomunal semivazio ou de ver algum lme inesgotável do
Fellini na hora exata em que todo o Chile estava torcendo pela Roja.
Minha pior lembrança, nesse sentido, tem data e hora precisas: a tarde
do dia 16 de novembro de 1997. Setenta mil almas fervorosas enchiam o
Estádio Nacional esperançosas com a provável classi cação do Chile para
a Copa do Mundo da França, enquanto Anastasia e eu, a poucos
quarteirões dali, protegidos pela semiescuridão das persianas fechadas,
tentávamos transar.
— O que está acontecendo lá fora? — perguntei, in media res, enquanto
o país inteiro explodia de alegria comemorando o um a zero.
— Parece que está tendo um jogo — disse Anastasia. — Do Chile, da
seleção, da Roja.
— Deve ter sido um gol de Julián Zamorano — falei.
— Iván Zamorano — Anastasia me corrigiu.
— Isso, esse aí, Iván Zamorano.
Meu ardil era duplo, pois eu sabia perfeitamente que Zamorano estava
lesionado. Enquanto os jogadores chilenos davam a vida em campo, nós
ouvíamos OK Computer em meu sonzinho auto reverse. Às vezes, quando
ouço de novo esse disco, surpreendo-me tentando inutilmente lembrar, ou
melhor, adivinhar que música do Radiohead tocava no meu quarto quando
Chamuca Barrera disparou naquela carreira milagrosa que culminou em
um chute de gala, ou quando, poucos minutos depois, o Matador Salas,
com sua habitual e ciência, começou a pavimentar o caminho para a
vitória, ou quando, mais para o m da partida, a cabeçada vencedora de
Candonga Carreño selou nossa presença na Copa do Mundo depois de
dezesseis anos.



Um novo conceito futebolístico, recentemente introduzido por meu


lho, é o da autofalta, que ele cunhou espontaneamente em uma tarde em
que, ao tentar chutar a bola, caiu sozinho. Minha relação inteira com
Anastasia foi justamente isto: o resultado lamentável e prolongado de uma
absurda autofalta.
Vou terminar de contar essa história rapidinho. Uma manhã, enquanto
estava no chuveiro, Anastasia revirou minhas roupas e encontrou minha
camiseta do Colo-Colo. Eu devia ter cado chateado e perguntado por que
ela estava mexendo nas minhas coisas, mas me senti delatado. Expliquei
que meu pai tinha me dado a camiseta em um aniversário e que, apesar de
minha relação difícil com ele, aquela camiseta tinha valor sentimental. Ela
se lembrou da camiseta da Católica que tinha ganhado de seu ex-
namorado e a coisa cou na piada. Eu devia ter entendido esse incidente
como uma advertência ou um presságio do que viria pela frente.
— Você sabe bem por quê — disse Anastasia, poucas semanas depois,
quando terminou comigo.
Tenho notado que hoje em dia em vez de dizer terminou comigo os
jovens dizem acabou comigo, e adoro essa nova fórmula, porque foi isso
que senti na época: que ela estava acabando comigo, me eliminando, me
aniquilando. Que estava tirando as minhas pilhas, que estava me puxando
da tomada e cortando o cabo e me guardando em uma caixa no sótão para
sempre. Depois eu soube, graças à indiscrição de alguns amigos em
comum, que minhas contínuas ausências e desculpas levaram-na a
concluir que eu tinha uma ou várias amantes. Nunca a traíra, mas era
difícil argumentar, porque de fato levava uma vida dupla. Fiquei muito
mal, sobretudo quando soube, de novo graças a esses amigos fofoqueiros,
que duas semanas depois ela já estava de namorado novo. Por meses insisti
para nos encontrarmos, eu queria ao menos esclarecer as coisas. Custei a
conseguir que ela aceitasse me ver.
— Meu namorado está lá em cima, no meu quarto — ela me disse na
manhã em que nos vimos, imagino que para me humilhar.
— Só quero que você saiba a verdade — eu disse, e talvez tenha
chegado a imaginar uma rufada de tambores antes de soltar as frases
seguintes, que devem ter soado perfeitamente idiotas. — O que acontece é
que eu gosto de futebol. Gosto muito de futebol. Sempre gostei. Às vezes
inclusive sonho que estou fazendo gols em estádios cheios de gente. Gols
incríveis. Acrobáticos. Memoráveis. Essa é toda a verdade.
Ela me olhou perplexa, com o desprezo xado em seu rosto. Continuei
falando do quanto gostava de futebol e garanti que todas aquelas vezes em
que ela pensara que eu a estava traindo na verdade eu estava assistindo a
algum jogo, com meus amigos ou com meu pai.
— Com seu pai? Não tinha uma história que vocês não se falavam há
anos?
— Falei isso para te distrair. É verdade que não falamos muito.
Assistimos aos jogos, comentamos algo a respeito e pronto.
— É a desculpa mais inconsistente que você poderia ter inventado. Não
era você que queria ser escritor?
— É que…
Nesse momento, o namorado apareceu na sala para marcar o m da
visita. Voltei a vê-lo muitas vezes, quase todas as semanas eu o encontrava
na barraca de tomates podres e alfaces estragados onde nós dois
comprávamos maconha. Eu o cumprimentava, é claro, sempre
cumprimento, e ele também, levantava as sobrancelhas com uma alegre
falta de vontade. Depois soube que era torcedor do Universidad, mas todos
os dias vestia a camiseta de um time de futebol diferente: Real Madrid,
Milan, Manchester United, Inter de Porto Alegre, San Lorenzo de
Almagro. Era um desses torcedores globais que surgiram nessa época e que
hoje é comum encontrar em bares de vinho, encontros de ciclistas, festivais
de música e lojas de vinil. Preciso reconhecer que todas as camisetas
cavam bem nele.
Aprendi a lição, ou talvez minha estupidez tenha mudado de forma com
o passar dos anos. Depois tive a sorte de que o futebol deixasse de ser, para
mim, uma instância associada somente ao masculino. Eu não merecia,
mas o destino me presenteou com duas amigas futeboleiras e torcedoras do
Colo-Colo, graças às quais entendi que a paixão futebolística não era,
absolutamente, exclusividade dos homens. Com elas voltei a ir ao estádio,
primeiro nos extraordinários anos do Colo-Colo tetracampeão com
Claudio Borghi e depois na gloriosa temporada do Chile gigante de Bielsa
e seus rapazes.
Depois comecei a ir embora do Chile, e, ainda que o futebol nunca
tenha ido para segundo plano, tornou-se uma experiência quase puramente
televisiva e solitária. Adotei, inclusive, o costume de assistir aos jogos na
bicicleta ergométrica, como se jogasse uma espécie de Wii analógico. Às
vezes ainda faço isto: se o Pibe Solari tem que acelerar até a linha de
fundo, eu pedalo mais rápido, e se é o momento em que Colo Gil ou
Vicente Pizarro precisam administrar o jogo com tranquilidade,
desacelero.

De todos os programas televisivos disponíveis, o único que não é regido


pelos imperativos da informação ou do entretenimento é o futebol. Os
narradores e comentaristas podem car os noventa minutos falando sobre
como o jogo está ruim e nem passa pela mente deles a possibilidade de
perder audiência, porque de fato essa possibilidade não existe. Nós,
telespectadores de futebol, somos um público el, cativo, e seguiremos lá,
hipnotizados, no pior dos casos embalados pela ausência de ação. E nem
mesmo os próprios roncos nem a suspeita de que durante os minutos em
que cochilamos o jogo continuou igualmente sem graça nos levam a
mudar de canal ou a desligar a tevê.
Há certa beleza nessas cenas de tédio honesto, sóbrio. Mas as
transmissões televisivas são sempre um pouco redundantes. Enquanto os
locutores de rádio são poetas que avançam com admirável velocidade de
metáfora em metáfora, ou mestres da narração clássica, com estilos
reconhecíveis e até estudáveis, capazes de fazer conhecido o desconhecido
com apenas algumas pinceladas, os narradores televisivos de futebol estão
condenados a repetir o que estamos vendo, o que já sabemos. É um ofício
difícil, embora ainda mais difícil talvez seja o ofício dos comentaristas, com
os quais raramente concordamos. Salvo quando se trata de jogadores
aposentados que no passado amamos ou respeitamos, os comentaristas
recebem sempre nosso invariável e talvez desmedido e injusto desprezo.
Isso acontecia comigo, em especial, com o jornalista esportivo Felipe
Bianchi: discordava sempre de seus comentários, e mesmo quando
concordava eu inventava algum aspecto para divergir. Depois, por uma
série de acasos, tive o prazer de conhecê-lo, e muito: pareceu-me um
sujeito agradável, caloroso, compassivo, generoso, às vezes
inesperadamente tímido. Logo nos tornamos amigos, de modo que quando
o encontrava na tevê comentando um jogo ou participando de debates no
jornal, tentava recitar para mim mesmo essa série de virtudes, mas não
tinha jeito: eu voltava a não ir com a cara dele. E isso que eram os anos de
Bielsa e de Sampaoli, quando a seleção ganhava quase sempre.
Conto tudo isso para chegar ao momento em que, por uma nova
sucessão de acasos, estávamos os dois morando longe do Chile e nos
encontrávamos para ver os jogos da seleção na Copa América Centenário.
Não há nada melhor do que assistir a um jogo de futebol com um amigo
querido, os dois muito nervosos. Bebíamos algo, petiscávamos uns queijos,
ligávamos a tevê, tudo certo, mas de vez em quando Felipe soltava algum
comentário sem dúvida pertinente e inteligente e eu não conseguia evitar
contradizê-lo e às vezes simplesmente o fazia car quieto. Correndo o risco
de ser rude, era para mim muito difícil não aproveitar a oportunidade de
silenciar o comentarista da tevê, mesmo que não fosse mais o comentarista
da tevê e sim um amigo bondoso, que chegava com cervejas belgas e
formidáveis charutos raros. Apesar de sua fama de feroz e de sua merecida
reputação de polemista, Felipe, curiosamente, aceitava minha displicência
ou minha má educação, talvez porque reconhecesse em mim o mesmo
propósito que o levara a se tornar comentarista esportivo: calar o
comentarista esportivo.



Minha chegada ao México coincidiu mais ou menos com a de Mati


Fernández ao Necaxa, o que tomei como um eloquente sinal amistoso de
Nosso Senhor Jesus Cristo. Durante o ano e meio em que Mati jogou lá,
acompanhei sua digna campanha com a delidade de sempre, e quando
ele saiu tentei de verdade continuar gostando do Necaxa, mas logo tive que
aceitar que assistia aos jogos sem tanto interesse ou com o interesse
mediano com o qual assisto a qualquer jogo de qualquer campeonato de
qualquer país do mundo.
O campeonato mexicano é superior ao chileno em quase todos os
aspectos, mas a partir de certa idade — em meu caso, exatamente quarenta
e dois anos — é impossível se apaixonar por um futebol diferente do seu. O
futebol é mais idiossincrático do que pensamos. Se transmitem um jogo do
Pumas contra o Chivas de Guadalajara, eu o assisto e aprecio em uma
pací ca chave zen, mas se na mesma hora jogarem, por exemplo, o
Ñublense contra o Antofagasta, não tenho dúvidas em sintonizar no
campeonato chileno. Talvez a simples certeza de que o que vejo na tela do
computador está acontecendo no Chile me traga conforto. Ou no fundo
eu continue querendo aprender de cor as escalações de todos os times de
futebol chilenos. Pode ser que, mais adiante, com o eventual interesse de
meu lho nesse esporte, eu consiga vibrar com o futebol mexicano. Mas
não sei se quero que ele goste de futebol.



Durante os primeiros anos de vida do meu lho, perdi muitos jogos de


meu time, quase todos. A parte de mim que queria ligar a tevê e me jogar
na cadeira de balanço a m de assistir ao futebol com meu bebê sempre
perdia de goleada para a parte de mim que trocava fraldas ou que cantava
músicas de ninar ou que passeava com ele no carrinho pelo Parque
España. Há pouco mais de um ano, contudo, a péssima campanha que
deixou o Colo-Colo ameaçado de rebaixamento me levou a negociar com
grande antecipação os turnos parentais de maneira a poder presenciar em
tempo real meu time mantendo a dignidade ou se ferrando: o Colo-Colo
podia deixar de ser um time grande e nós que torcíamos estávamos
sofrendo como nunca na gloriosa história da instituição.
Depois de um desses jogos horríveis, meu lho olhou para mim como
quem olha para alguém distraído ou ausente.
— Estou triste porque o Colo perdeu e talvez vá para a segunda divisão
— expliquei.
A frase, para ele mais ou menos incompreensível, cou gravada em sua
memória e ele adquiriu o costume de me dizer de vez em quando, no
mesmo tom exageradamente doce que uso para consolá-lo, que não devo
me preocupar, que tudo vai dar certo, que muito em breve o Colo-Colo vai
voltar a ganhar, com gols de John Lennon e de Frida Kahlo e do Batman e
do Robin Hood. (Não quis desfazer essa confusão dele; talvez o mundo
fosse menos injusto se em lugar do inútil do Robin o companheiro do
Batman fosse o Robin Hood.)
Assim como minha vocação literária se relaciona ao futebol, a vacilante
educação futebolística do meu lho teve, de certo modo, uma origem
literária. Uma manhã resolvi colocar para ele ouvir “Poetas Vivos versus
Poetas Muertos”, a partida genial inventada pelo poeta Mauricio Redolés
em seu disco Bailables de Cueto Road, que termina com uma goleada dos
poetas mortos por oito a dois, com uma memorável atuação do estreante
Jorge Teillier. Graças a Redolés pude recuperar minha veia de locutor
narrando para meu lho partidas igualmente irreais: Animais do Mar
versus Animais Terrestres, Dinossauros versus Não Dinossauros, Beatles
versus Los Bunkers, Dedos das Mãos versus Árvores & Flores, Humitas
versus Tamales, Meses do Ano versus Vulcões do Chile etc.
Até então, meu lho considerava a bola como mais um brinquedo, com
uma curiosa forma esférica, mas um brinquedo no m das contas; de fato,
ele insistia em guardá-la no cesto dos bichos de pelúcias, mas essas histórias
pavimentaram o caminho. Assim, começaram a acontecer no pátio umas
peladas muito estranhas, porque para meu lho o verdadeiro jogo consistia
em falar e me fazer falar palavras como travessão, drible, nta, de letra, e
conjugar verbos novos como cabecear, chapelar ou interceptar, e recorrer a
fórmulas como tuya mía para ti para mí (um dos bordões clássicos de meu
querido Vladimiro Mimica) ou pelota en la red pelota en la red mató mató
mató (cortesia da incansável garganta de Ernesto Díaz Correa) ou no diga
gol, diga golazo (um remate pan-hispânico que em nossa versão se torna
eterno porque de golazo derivamos para golazazo e depois golazazazo e
assim por diante).
Na única vez em que vimos um jogo — um especialmente ruim, a nal
da Eurocopa entre Itália e Inglaterra —, meu lho começou muito
animado, pulava na cama e celebrava, com rajadas de sua recém-adquirida
exuberância verbal, todos os movimentos dos jogadores, mas poucos
minutos depois cou quieto e me disse ao ouvido, empregando o tom
carinhoso de um segredo, como faz quando quer enfatizar que está falando
sério:
— Papai, na verdade eu não entendo muito de futebol. O que está
acontecendo?
Era um jogo chato, só isso, expliquei. Mas não quis dizer que a grande
maioria dos jogos são chatos assim.



— Por que você pôs Anastasia? — minha esposa pergunta.


Demoro alguns segundos até entender que ela acha que Anastasia não
existiu, que a estou inventando.
— Porque esse era o nome dela.
— Sério? Que nem a princesa russa?
— Sim — digo.
— Pensei que era uma metáfora.
— De quê?
— De mim.
Ela diz que gosta do meu conto. Respondo que é um ensaio. Ela diz que
gosta do meu ensaio em um tom que revela que ela acha que é um conto e
que não gosta tanto dele. Pergunto do que é que ela não gosta. Ela diz que
gosta de tudo, menos da parte do futebol. Diz que gosta muito de algumas
piadas e que outras não entende, mas entende que são piadas. Recomenda
que eu invente que me tornei fã de futebol feminino. Digo que não
precisaria inventar isso porque de fato acompanhei a campanha inteira da
seleção feminina na Copa da França de 2019.
— Diz o nome de cinco jogadoras.
— Christiane Endler, Carla Guerrero, Javiera Toro, Francisca Lara,
María José Rojas. Pronto, cinco. E seis, Yessenia López. E sete, Rosario
Balmaceda…
Ela acha que estou inventando esses nomes. Falo da eliminação
angustiante, do pênalti no travessão de Francisca Lara, que poderia ter sido
o três a zero que teria signi cado a ida para as oitavas.
Entramos no carro. Minha esposa dirige, pensativa; eu vou atrás, com o
menino. Ultimamente, com muita frequência, meu lho se irrita quando
se sente fora da conversa (“parem de papear!”, ele nos implora), mas agora
nos ouve com atenção, como se tentasse compreender, de um ponto de
vista losó co, nosso debate. Talvez não esteja nos escutando. Talvez esteja
observando as árvores e seja isso o que tenta decifrar ou absorver: o enigma
colorido de uns jacarandás que com a ventania mexem seus galhos como
se cumprimentassem ou implorassem por misericórdia. Ou a atmosfera da
esquina de malabaristas generosos e limpadores de vidro intratáveis onde
esperamos com paciência um sinal vermelho demoradíssimo.
— Fale de futebol, mas fale sobretudo da violência, dos interesses
econômicos dos grandes grupos, da competitividade absurda dos caras, dos
homens. Você poderia inserir tudo isso se desenvolvesse mais as objeções
da Estefanía.
— Anastasia — pontuo.
— Mas Estefanía é um nome mais bonito.
— Mas ela se chamava Anastasia.
— Bem, faça a Anastasia mais consciente. Não acredito muito nessa
personagem. Faça-a mais séria.
— Mas ela era assim. E acho que cou séria.
— Faça-a mais séria.
— É que meu conto não é tão sério.
— Seu ensaio.
Meu ensaio não é sério. Ou é, penso depois: é muito sério. A tristeza é
um assunto muito sério.
Salvo por um tio hipster futeboleiro que costuma circular pela cidade
com sua camiseta do Barcelona, todos na família de minha esposa se
declaram torcedores do Pumas da Unam. Mas acho que meu lho percebe
que são torcedores não praticantes. Para eles, o futebol não é importante,
muito menos interessante. Quanto a minha esposa, uma manhã, no pátio
de sua escola primária, levou três boladas consecutivas na cara. Desde
então, associa o futebol unicamente a essa possibilidade de levar boladas e
por isso mesmo se mantém cautelosamente à margem de nossas peladas.
— E você já terminou seu ensaio? — ela me pergunta nessa mesma
noite, enquanto tenta tocar uma música do Belle & Sebastian no
violãozinho vermelho de nosso lho.
— Falta o nal, mas ainda não vou escrevê-lo.
— Por quê?
— Vou escrevê-lo daqui a umas semanas, quando a gente souber se vai
ou não para o Mundial do Catar.
— Tomara que não, esse lugar é um massacre de merda, é um dos países
mais injustos do mundo. O México vai?
— O México sempre vai — digo. — É fácil para eles, as eliminatórias da
Concacaf são…
— Mas o Chile ganhou da gente de sete a zero!
— Sim, mas isso foi uns cinco anos atrás. Agora tudo mudou — digo,
contrito.



Escrevo estas últimas linhas no celular enquanto meu lho está na aula
de futebol. Foi ideia da mãe dele, ela disse que não quer que o menino saia
pelo mundo com um medo eterno de bolas voadoras. Na aula de hoje há
cinco meninas e três meninos, contando com meu lho. Pela primeira vez
é permitido jogar sem máscaras, de modo que por m vejo seus rostos, seus
sorrisos abertos, embora de repente se vejam comoventemente
concentrados nas instruções de uma professora gentil e enérgica, vestida
com a camisa o cial dos Pumas. Como a aula segue um sistema de
assimilação gradual, no momento se parece a qualquer coisa menos a uma
aula de futebol: brincam de roda e de pega-pega, pulam dentro e fora de
bambolês, correm sem ordem nem direção balançando umas tas. Há dois
gols, mas só são usados para brincar de se proteger de uma chuva
imaginária (quando a chuva é real, claro, a aula é cancelada). A quadra
está cheia de bolas leves e multicoloridas, que as crianças chutam felizes,
em qualquer direção.
Enquanto os vejo correr e pular, alheios a qualquer ideia de competição,
penso no tempo em que eu frequentava a Escola de Futebol de Cobresal,
lial de Maipú, onde me destaquei como um dos substitutos com menores
chances de ser titular. Suponho que os professores tentavam não destroçar
tão cedo nossos sonhos, mas não havia jeito de me darem mais de dois ou
três minutos, e quase sempre ao nal de cada jogo. Por isso até hoje me
identi co com os jogadores que entram nos acréscimos com a única
nalidade de fazer passar o tempo. Eu voltava para casa arrasado, digerindo
em silêncio a derrota não do time, mas minha somente, e sempre
inventava que tinha ido bem, que em breve conseguiria ser titular.
Mas essa era outra forma de tristeza futebolística, é claro, que é tema
para outro ensaio ou outro conto. Quanto à tristeza futebolística de nossos
pais, tão diferente embora às vezes tão semelhante à tristeza futebolística
dos que agora somos pais e assistimos à recriação constante de nossa
infância; quanto a essa tristeza, após reler estas páginas, percebo e admito
que fui tremendamente injusto. O que nossos pais sentiam ao ver seu
adorado time ganhar não era exatamente alegria, e sim uma espécie de
tristeza levemente atenuada. Quero dizer: nossos pais estavam tristes, é
claro, todos os minutos de todas as horas de todos os dias eles estavam
tristes, e a vitória era apenas uma trégua, um paliativo, uma gentileza, um
pequeno truque; um sinal exíguo que lhes permitia acreditar
momentaneamente que nem tudo era tão terrível. Além do mais, a tristeza
futebolística os humanizava, demonstrava que eram falíveis e infantis,
como nós naquela época, como nós hoje. Parece-me que o doutor D. Zíper
aponta para isso com esta bela premissa: “Se o futebol é o problema, a
infância é a solução”.
Ah, sim: ontem à noite a seleção chilena cou novamente de fora de
uma Copa do Mundo. Todo mundo cou sabendo, todo mundo sabe. Não
vou falar disso agora. Não quero falar disso agora. Não quero falar de
futebol nunca mais.
Assaltantes de olhos azuis

Uma vez defendi meu pai. Fisicamente. Foi em uma manhã de verão.
Um ladrão estava prestes a chutá-lo no chão.
— Foi em 1990, certo?
— Você está escrevendo sobre mim? De novo? Até quando isso?! — diz
meu pai.
Faz alguns meses que meu pai liga para meu lho todas as manhãs de
sábado e de domingo. Tornou-se, inesperadamente, um avô presente, à
distância: ele no Chile, nós no México, separados por quilômetros demais
e quase dois anos de pandemia.
Silvestre espera por essas ligações. Sempre acorda entre seis e sete e
meia, vai correndo até meu quarto, que na verdade é seu quarto, porque
em algum momento da noite vem para nossa cama, que para ele é a cama
dele e de sua mãe, e eu vou para a dele, que também é, portanto, um
pouquinho minha.
— O vovô já ligou, papai?
Bocejo com o telefone na mão, checo as mensagens, e quase sempre há
uma de meu pai dizendo “estou pronto”. Pertenço à categoria de pais que
todos os dias queriam ter dormido uma horinha a mais. Meu pai pertence e
sempre pertenceu à categoria de pais madrugadores. E além de tudo ele
está no futuro, por conta do fuso horário: três horas no futuro. Talvez faça
sentido que os pais vivam três horas no futuro.
Abro as cortinas, querendo que a luz do dia entre, mas acaba de
amanhecer. Meu lho faz uma pilha com seus livros e sobe neles para
alcançar o interruptor enquanto tagarela, animado, com seu avô. Ousam
fazer planos imediatos, urgentes; vai ser uma ligação longa e intensa, é
sempre assim, falam ao menos por uma hora.
De segunda a sexta tentamos fazer com que Silvestre se vista sozinho, ou
alimentamos a cção de que ele se veste sozinho, mas aos ns de semana,
como se estivéssemos a segundos de entrar no ar, eu mesmo o visto rápido,
descemos imediatamente para a sala e equilibro o telefone contra a parede,
procurando uma perspectiva ampla, como de câmera de segurança.
Preparo café e tento despachar o café da manhã enquanto eles falam, mas
às vezes o celular cai ou meu lho sai do enquadramento.
— Alejandro, por favor, não estou vendo o menino — meu pai reclama
logo, como um cliente que encontra um pelo na sopa.
Na verdade, há em seu tom de voz a autoridade de sempre, mas com
uma nuance mais gentil: imagino que ele sabe que estou ocupado fatiando
um mamão ou de olho nas quesadillas. Vou até lá para melhorar a
comunicação, procedo com rápida perícia, como um roadie no meio de
um show. Às vezes aproveito a pausa para dizer algo, para contar algo a ele.
— Não estou escrevendo sobre o senhor, pai — minto.
— Por que você não escreve sobre o menino, não é melhor? Ele é muito
mais divertido que eu — diz ele, com toda razão.
— É que eu estava pensando naquela vez em que nos assaltaram. Foi em
1990, certo?
— Sim.
Não chamo meu pai de você, nunca z isso. Minha irmã, sim. Por
muitos anos não tive consciência dessa diferença. Mas há uma explicação.
Na família de meu pai todo mundo se tratava assim, informalmente, e
minha irmã herdou esse costume, mas eu era mais apegado à família de
minha mãe, na qual todos eram mais formais. Às vezes, tratar meu pai ou
minha mãe por senhor ou senhora me parece mais afetuoso. Mas não é
verdade. É menos afetuoso, marca uma distância. Uma distância que
existe. Uma distância que vez ou outra desaparece e reaparece sem aviso.
— Vai escrever sobre esse assalto? Um romance inteiro?
— Não, não dá para um romance inteiro.
— Faça com que seja um romance inteiro, estique um pouco. É a
minha biogra a?
— Não.
— Eu também vou escrever a sua biogra a, espere só. Nela eu vou
contar toda a verdade.
— E qual vai ser o título desse livro?
— Formas de perder um lho.

Essa história de 1990 é simples, talvez sua única particularidade seja que
nunca consegui contá-la. Quer dizer, já a contei mil vezes, mas só para os
amigos, nesses encontros demorados dos quais agora sinto tanta falta,
quando todo mundo ia soltando anedotas antigas, caoticamente. É uma
história para depois de uma refeição, que talvez requeira o característico
tom risonho, bem-humorado, com o qual se contam as anedotas sem
importância.
Eu tinha quinze anos e meu pai…
Pego a calculadora. Vamos ver: meu pai nasceu em 1948, de modo que
naquela manhã de 1990 teria 1990 − 1948 = quarenta e dois anos; não,
quarenta e um, porque foi em fevereiro e ele nasceu em agosto.
Meu pai, aos quarenta e um, teria considerado humilhante recorrer à
calculadora para realizar uma operação matemática tão simples. Ainda
hoje, aos setenta e três, acertaria a conta sem vacilar, em menos de um
segundo. Não daria a impressão de ter sequer realizado um cálculo.
Eu, naquele momento, tinha quinze anos — não, catorze, porque foi em
fevereiro e eu nasci em setembro. Então, aos catorze anos, naquele verão
de 1990, eu também teria feito o cálculo mentalmente.

O sujeito ia chutar meu pai no chão, mas me coloquei no meio dos dois
e o defendi. Dei um pontapé no saco do assaltante de olhos azuis.
A história é essa, em essência. Quero contá-la aos poucos, como quem
revê quadro a quadro um lance polêmico. Como quem decide se a bola
bateu ou não na mão do zagueiro. Como quem busca um erro de
continuidade.
As vezes em que tentei este conto eu o z em terceira pessoa. Quase
sempre testo em primeira e terceira. E também em segunda, como em
meu romance favorito, Um homem que dorme, de Georges Perec. Ao nal,
escolho a voz que soe mais natural, que quase nunca é a segunda pessoa.
Há algo nesta história, em todo caso, que me fez tentá-la somente em
terceira. Talvez porque ultimamente venho me reconciliando com a
terceira pessoa. E o fato é que tudo o que acontece, acontece para todos.
De forma desigual, mas acontece. E apesar das assimetrias, das diferenças,
às vezes sinto ou pressinto que tudo o que acontece comigo também
acontece em terceira pessoa.

Durante essas ligações, meu pai e eu conversamos pouco, às vezes nada,


os interlocutores são eles dois, meu pai e meu lho. Se eu me intrometo, o
menino me inclui com alegria, mas se percebe que minha intenção é, por
assim dizer, informativa — se quero aproveitar para falar com meu pai
sobre algum assunto sério —, costuma car chateado.
Meu pai e meu lho planejam viagens a Marte ou ao Chile, que por
agora são igualmente improváveis. Misturam o espanhol com uma língua
inventada que soa como uma espécie de russo com sotaque alemão. Outras
vezes a brincadeira consiste em improvisar algo que chamam de uma
reunião. São diálogos rápidos, confusos, engraçados, delirantes. Em alguns
momentos o chileno profundo e atropelado de meu pai perde terreno
diante do mexicano imaculado de meu lho. Mas eles se entendem,
sempre. Silvestre junta alguns bichos de pelúcia e meu pai também,
porque ao longo desses anos tentou encurtar a distância comprando bichos
de pelúcia para dar a seu neto quando nalmente puderem se ver. Meu pai
se transforma no coordenador de uma pequena tropa de ursos que parecem
cachorros e de cachorros que parecem ursos. Meu lho se comporta como
o líder carismático de um esquadrão de vagabundos espaciais.
— Quer dar um oi para sua avó?
— Sim.
Isso acontece apenas às vezes. Apenas às vezes minha mãe participa
dessas ligações. E por alguns minutos, somente. Minha mãe diz para meu
lho frases carinhosas fora de hora. Ele a escuta com uma curiosidade
vacilante. Ouvir a voz de minha mãe, ver seu rosto, de canto de olho, me
emociona, ainda que seu protagonismo seja breve, pouco mais que uma
aparição especial, porque ela quer conversar, não brincar, e a chamada
consiste em brincar. De repente ca brava, imagino que ngidamente,
quando ouve meu lho e meu pai inventarem os pratos do Restaurante
Sujo: purê de vômito, sopa de cocô, limonada de xixi, torta de catarro,
entre muitas outras opções que Silvestre festeja apaixonadamente.
— Horacio, por favor, pare — minha mãe diz.
Às vezes, meu lho para de prestar atenção à ligação. Resolve desenhar,
por exemplo, enquanto o avô está falando com ele. Não abandona a
brincadeira, desenhar é parte da brincadeira, e talvez ignorar o avô
também. Inclusive, quando meu pai se cansa de insistir, meu lho sabe
que a ligação não terminou ainda. Gosto dessa forma absurda e bela de
companhia, esse silêncio povoado de ações. Durante as últimas semanas,
desde que decidi escrever este texto, são esses os momentos que aproveitei
para perguntar a meu pai alguns detalhes dessa história e até li alguns
fragmentos para ele. Meu pai me ouve com uma mistura de impaciência e
interesse genuíno.

Aos meus catorze anos, meu pai continuava sendo mais alto que eu.
Entendo que só se atinge a estatura de nitiva por volta dos vinte anos. Em
todo caso, eu era um magrelo encurvado e quebradiço, que certamente
não parecia capaz de defender um pai corpulento, robusto, esportista.
As mãos de meu pai eram e são as de alguém que trabalhou com as
mãos. Aos sete, aos nove, aos doze anos, meu pai vendia verduras e frutas
na feira de Renca. Suas mãos também serviram para cortar cruzamentos e
defender pênaltis. O corpo inteiro de meu pai foi, em geral, útil. E teria
sido muito mais, não fosse pela prematura debilidade em seus olhos.
Quis prestar o serviço militar, quis virar policial, esteve a ponto de ser o
terceiro goleiro das divisões de base do Colo-Colo, mas nada disso deu
certo, em parte por causa de seus olhos enfermos. Em todas as fotos de sua
juventude ele aparece com uns óculos fundo de garrafa que dão a seu rosto
a aparência de uma máscara. Herdei uma miopia tratável, razoável,
inclusive operável, mas nunca considerei seriamente a cirurgia (a simples
ideia de alguém intervindo em meus olhos me causa pavor). Aos catorze
anos já tinham me receitado óculos, mas eu nunca os usava, ainda faltava
um tempo para chegar à idade em que sair para a rua sem óculos se
tornaria um absurdo. Uma idade que alcancei faz um bom tempo. Mesmo
assim, com a miopia e o astigmatismo e a ingrata novidade da presbiopia,
minha vista é melhor que a do meu pai aos quarenta e um anos e aos
setenta e três.
Quando se diz que alguém trabalha com as mãos, ninguém pensa nos
escritores. E com razão. Nós, escritores, temos mãos de pianistas
medíocres. Meu pai não é escritor, nunca foi, nunca quis ser. Nunca se
interessou por poesia. Mas me lembro de uma tarde em que escreveu um
poema.
— Não deve ser tão difícil, o Chile é um país de poetas — disse.
Não me lembro das frases que encadeou e que conduziram a essa
declaração brilhante. Em seguida, pegou um guardanapo e a caneta que
usava somente para assinar os cheques e escreveu, sem vacilações, um
poema que nos leu de imediato. Aplaudimos. Éramos seu público cativo.
Um público generoso, indulgente.

De modo que nessa manhã de 1990 fomos sozinhos, meu pai e eu, ao
centro. De carro, um Peugeot 504. À tarde partiríamos de férias para La
Serena. Meu pai precisava de dinheiro em espécie, mais do que um caixa
eletrônico poderia fornecer.
— Por que precisava de tanto dinheiro em espécie?
— Porque os pedreiros iam pintar a casa enquanto nós estávamos de
férias.
— E por que fomos ao Banco Santander do centro?
— Santiago. Nessa época o Banco Santander ainda se chamava Banco
Santiago.
— Por que fomos ao Banco Santander do centro e não à agência de
Maipú?
— Eu queria ir ao centro, queria comprar alguma coisa naquelas lojas da
Bulnes. Uma vara de pescar, algo assim.
— Por quê, já que o senhor trabalhava no centro, não comprou a vara ou
tirou o dinheiro antes das férias?
— Não me lembro! De repente eu queria que fôssemos juntos ao centro.
Era o primeiro dia de férias, mesmo assim eu queria ir ao centro contigo,
eu gostava de sair contigo.
Nossa ida, então, era desnecessária. Meu pai estacionou onde sempre
parava, na esquina da Agustinas com a San Martín, perto de seu trabalho.
Fomos direto ao banco, à agência de Bombero Ossa. Enquanto ele estava
na la, eu quei num canto, lendo. Senti-me observado ou inspecionado
ou ameaçado, levantei a vista e cheguei a detectar os olhos azuis de um
homem jovem. Um segundo depois, o homem tinha desaparecido. Meu
pai caminhou até mim contando de forma inocente e tranquila as notas
que acabara de receber. Não sei que quantia era.

— Quatrocentos mil pesos — ele me diz, com segurança.


— E quanto era isso, em dinheiro de agora?
— Não faço ideia, faça o cálculo na internet!
Faço o cálculo na internet, demoro muito: mil e trezentos dólares, mais
ou menos. Em notas de cinco mil pesos, disso eu me lembro.
— Por que as notas de cinco se em 1990 já circulavam as de dez?
— Ah, é? Bem, não sei, talvez não fossem tão comuns ainda. Talvez
fossem notas altas demais, difíceis de trocar. Os pintores precisavam
comprar materiais.
Não me pareceu que o homem de olhos azuis fosse perigoso. Eu não
acreditava na existência de assaltantes de olhos azuis. Mesmo assim, alertei
meu pai de uma movimentação estranha. E me incomodou que fosse tão
inconsequente, que contasse o dinheiro assim, sem mais. Passou-me
metade da grana, por via das dúvidas. Sorriu para mim primeiro, como se
aprovasse minha cautela, meu bom juízo. Às vezes, quando os pais
parabenizam seus lhos, estão parabenizando a si mesmos.
Lembro-me do peso das notas no bolso direito da minha calça. Quando
saíamos do banco perguntei a meu pai se ele achava que existiam
assaltantes de olhos azuis. Era uma piada, que ele não entendeu.
Respondeu algo, mas não lembro bem. Ele tampouco se lembra.

Estávamos no subsolo do banco, subimos pela escada rolante. As escadas


rolantes me deixavam nervoso. Não fora sempre assim, quando criança
gostava delas, procurava-as, preferia-as, mas depois me veio esse medo.
Ficava prestando atenção demais ao momento em que deveria levantar um
pé e reativar passos lentos antes de acelerar. Como era de esperar, tropecei
ao sair da escada, e esse movimento atrapalhado me obrigou a olhar para
trás, e vi que o homem de olhos azuis nos seguia de perto, junto a outro
homem, que não tinha olhos azuis, e sim escuros, como os de meu pai,
embora fossem parecidos, pensei depois; o assaltante de olhos azuis e o
assaltante de olhos escuros eram muito parecidos, como se fossem irmãos.
Viramos à direita com a intenção de ir ao Haití, o “café com pernas”,
espécie de café com garçonetes seminuas. Em um lampejo de otimismo,
pensei que o perigo acabaria ali e que, como tantas outras vezes, meu pai
pediria um espresso e eu um frapê de amêndoas e que corresponderíamos
aos sorrisos obrigatórios daquelas jovens decotadas, de pernas eternas, que
tanto me deixavam envergonhado como me davam vontade de olhar. Mas
os assaltantes nos encurralaram a cinco ou dez passos da entrada do Haití.
Meu pai decidiu fazer algo muito inteligente que ao mesmo tempo parecia
chocante e ridículo: um escândalo.
— Ladrões! — gritou, apontando os assaltantes.
— Vocês é que são os ladrões, seus miseráveis de merda! — gritou o de
olhos escuros, apontando para nós.
Era crível, eu pensei instantaneamente. Por um milésimo de segundo
pensei que o acusador soava convincente, porque os ladrões eram mais
brancos que nós. Ou talvez o que senti foi o severo escrutínio das cem ou
duzentas ou quinhentas pessoas que circulavam pelo Paseo Ahumada e
paravam para nos observar, alertadas pelos gritos.
O aspecto mais brutal do preconceito é que se eu estivesse entre a
multidão talvez também tivesse pensado que nós éramos os ladrões. Pela
cor de nossa pele, e porque eu estava malvestido. Os ladrões ostentavam
calças jeans de cores estranhas, que na época eram novidade, e camisas
sociais. Eu sempre andava malvestido. Uma vez ao ano me davam dinheiro
para comprar roupas e eu gastava quase tudo em livros, guardava só alguns
pesos para me encher de peças usadas, que costumavam car pequenas ou
grandes, mas não me importava. Meu pai, pelo contrário, investia em suas
vestimentas, mas era e é um homem bastante prático, de modo que
aproveitava as férias para mandar seus ternos para a tinturaria e suas roupas
de m de semana já estavam na mala para a viagem a La Serena. Na
verdade, não lembro como meu pai estava vestido, tendo a crer que com
um conjunto esportivo e tênis, ou talvez eu esteja pensando assim,
inventando assim.
— Não lembro como estava vestido. Como eu iria me lembrar disso? —
ele me diz agora.
Ele se lembra, isso sim, desta frase:
— Você roubou meu Ray-Ban, seu negro lho da puta!
O assaltante de olhos azuis disse isso a meu pai antes de arrancar dele
com um golpe os óculos de sol verdes, modelo Top Gun. Ele cou com
uma marca entre as sobrancelhas. Um arranhão.
— Eu não sou o ladrão, isso é um erro! — o grito de meu pai me
pareceu desolador e inocente.
Teria sido mais fácil e mais sensato irmos embora, como se efetivamente
fôssemos nós os assaltantes, mas acabamos nos envolvendo em uma briga.
Não estava claro quem eram os perseguidores e os perseguidos. Na esquina
da Ahumada com a Moneda, fomos derrubados com socos, eu me levantei
rápido, vi que meu pai continuava no chão e gritava pedindo para por favor
deixarem-no procurar sua lente de contato, porque o soco tinha feito voar a
lente de seu olho direito…
— Do esquerdo.
— Ah, sim.
… porque o soco tinha feito voar a lente de seu olho esquerdo, e foi
então que o assaltante de olhos azuis ia chutar meu pai no chão, mas
consegui dar de volta nele um soco estranho, como no pescoço, e em
seguida um pontapé no saco, e o assaltante azul se retorceu de dor e não
sei onde estava seu suposto irmão — me concentrei em meu pai, que
continuava de quatro tentando encontrar a lente perdida, mas não
conseguiu porque justo nesse momento um policial o algemou.
Era um policial à paisana, de cabelo comprido, vestido com uma
elaborada jaqueta de couro. De repente, tudo mudara. Os ladrões tinham
desaparecido e além do tira à paisana havia dois policiais militares
uniformizados que prenderam meu pai.
— Seus porcos lhos da puta, cuzões, estão levando meu pai, polícia
assassina!
Gritei algo assim para eles.
— Eu sabia que tudo ia se esclarecer, não estava com medo, mas ouvia
você xingando os policiais e pensava que iam te levar preso e isso me
angustiava — meu pai me disse depois.
Levaram meu pai algemado, eu ia atrás gritando para os policiais, e de
repente apareceram quatro ou cinco testemunhas voluntárias e
espontâneas.
— O garoto está certo, esse senhor não era o ladrão, eu vi tudo — disse
uma mulher de uns cinquenta anos, vendedora ambulante, com um pano
cheio de mercadorias.
Ela, que era quem devia estar evitando os policiais, naquele momento
não teve dúvidas em se expor e me acompanhou até a galeria onde os tiras
interrogaram meu pai. E repetiu sua frase várias vezes, com raiva, como se
sua vida dependesse disso. E também me abraçou, me acalmou, me disse
que tudo se resolveria.
Em um gesto patético e desesperado, meu pai sacou a carteira e mostrou
aos policiais seus cartões de crédito.
— Como vocês acham que eu estaria roubando por aí — disse.
Os policiais não responderam nada, deram de ombros e deram tudo por
resolvido como um mal-entendido. Disseram, isso sim, que ele podia
registrar uma queixa. Meu pai não quis.
Vi a vendedora ambulante se perder entre os transeuntes. Muitas vezes
depois caminhei pelo centro procurando por ela, tinha certeza de que
conseguiria reconhecê-la e então agradecer, quem sabe, comprando
qualquer coisa que vendesse, mas jamais a encontrei.

— Nunca quis ser policial — meu pai me esclarece. — Nem a pau. O


que eu queria era entrar para a Aeronáutica. Mas era impossível, por causa
da minha vista.
— Vou corrigir isso, então.
— E eu não me lembrava desse poema que escrevi. Mas você esqueceu
de falar de quando eu recitava.
É verdade. Às vezes, em festas familiares, meu pai recitava, ou melhor,
declamava, um poema, sempre o mesmo, horrível.
— Não é horrível. Você não gosta, mas não é um poema horrível. É
questão de gosto.
É um poema horrível, que se chama “El conscripto”. Na verdade, é um
tango ou uma milonga, que meu pai recitava como poema. E esse poema
nos deixava emocionados. Talvez tenha demorado alguns anos até eu vir a
considerá-lo horrível.
— Por que o senhor não quis prestar queixa? — Ao mudar de assunto,
sinto que minha pergunta sai do tom, soa jornalística, policialesca.
— Porque dava no mesmo, nunca iam pegá-los.
O breve interrogatório acontecera a dez passos da ótica onde meu pai
encomendava suas lentes de contato e eu havia escolhido esses óculos que
nunca usava. Apesar de tudo, essa coincidência era um bom sinal, segundo
ele. Entramos na loja, fomos atendidos por um senhor idoso que
cumprimentou meu pai com o abraço reservado a clientes frequentes.
— Não era um idoso, era um homem mais velho. Seu Mauricio —
pontua meu pai. — Mas já deve estar morto.
Eu queria contar ao seu Mauricio e a todo mundo o que acabara de
acontecer, mas meu pai apertou minha mão quando eu ia começar meu
relato e disse simplesmente que tinha perdido sua lente do olho esquerdo e
precisava repô-la urgentemente. Seu Mauricio prometeu tê-la pronta em
vinte e quatro horas.
Voltamos ao Paseo Ahumada, que por alguns segundos me pareceu um
lugar novo. Meu pai caminhava rápido, com o olho indefeso fechado, mas
se apoiava em mim. Não fazia sentido ir ao estacionamento, ele não
conseguiria dirigir.
— Vamos voltar de ônibus — ele me disse.
— Vamos pegar um táxi, é melhor.
— Está doido, um táxi até Maipú, de onde você tirou isso?!
— É por minha conta — falei.
Ele me olhou sem entender, por uns dez segundos. Só então se lembrou
de que eu estava com metade do dinheiro no bolso. Ele também estava
com sua metade, não tinham nos roubado a grana. Apenas aqueles óculos
de sol.
Eu mesmo parei o táxi, nos sentamos atrás, abraçados. Então me
lembrei de outra viagem muito longa de táxi, uns anos antes, também
abraçados. Meu pai tinha batido de frente com um caminhão. A culpa era
do motorista do caminhão, que estava bêbado e na contramão. Uma pessoa
se feriu gravemente, um dos melhores amigos do meu pai, que estava no
banco do carona, sem cinto de segurança. Um amigo que desde então
deixou de ser seu amigo.
— Não é verdade, depois continuamos nos vendo — meu pai reclama,
irritado.
— Mas não eram mais tão amigos.
— Essas coisas acontecem.
Embora não fosse sua culpa, como havia um ferido grave meu pai teve
que passar a noite na cadeia. Minha mãe, minha irmã e eu fomos buscá-lo
e voltamos os quatro no banco traseiro de um táxi, amontoados em um
abraço permanente. Ele começou a falar conosco; não me lembro de suas
frases, mas queria nos tranquilizar, nos consolar, e no entanto de repente
desatou a chorar, todos desatamos a chorar. Choramos pelo resto do
caminho.
O Peugeot 404 deu perda total e a marca diagonal do cinto de segurança
permaneceu no peito de meu pai por muito tempo. Depois comprou o
Peugeot 504 que nessa outra manhã deixamos no estacionamento da
Agustinas. Durante esse segundo longo percurso de táxi não choramos.
Acho que pelo contrário: celebramos os acontecimentos recentes como se,
de alguma forma, tivéssemos ganho algo. Ele me agradeceu e durante os
meses seguintes contou a história a meio mundo, exagerando-a um pouco,
como se eu tivesse me portado como uma espécie de Jackie Chan ou
Bruce Lee.

Na primeira vez que tentei escrever este conto, decidi terminá-lo com
uma cena de 1994 ou 1995, quando já estava na faculdade e, no meio de
uma manifestação, eu e uns amigos fugíamos dos policiais.
— Seus porcos lhos da puta, cuzões, polícia assassina!
Eu me lembrava, ao gritar, dos policiais levando meu pai. Meu
sentimento era ambíguo, paródico, combativo, emocionante, tudo isso ao
mesmo tempo. Eu gritando contra os policiais e me lembrando de meu
pai, que aparecia como a vítima mas também como o agressor, porque ele
poderia ter sido policial, claro que sim, em algum momento deve ter tido
vontade de ser.
— Mas estou te dizendo que nunca quis ser policial.
— Mas eu pensava isso. Quando gritava contra os policiais, pensava que
eles eram como você.
— Também são como você.
— Pode ser. Poderíamos ter sido policiais, poderíamos ter sido ladrões.
— Não, eu nunca roubei nada de ninguém. E nunca quis ser policial,
corrija isso. Você disse que ia corrigir.
Não sei se meu pai teria gostado de me ver ali, gritando contra os
policiais.
— Não, eu não teria gostado, mas imaginava que você andava nessas.

Esse sentimento ambíguo nunca desapareceu. Em cada manifestação,


quando chegava o momento de gritar contra os policiais, eu me lembrava
de meu pai e sentia uma emoção turbulenta, que voltei a experimentar na
última vez em que estive no Chile, em 2019, poucos dias depois do
estopim da onda de protestos de outubro. Viajei de última hora, sem
planejar, sozinho, para ver meus pais e minha família estendida de amigos
queridos. E com alguns deles fui às manifestações. E no momento de
pular, no momento de gritar quem não pula é polícia, voltei a sentir tudo
isso. Mas dessa vez, além de pensar em meu pai, pensava em meu lho, ou
sentia que eu era meu pai e imaginava um mundo futuro em que meu
lho me protegeria e me defenderia e me julgaria.
Vejo fotos mais ou menos desses dias. Há uma em que Silvestre sorri
com meus óculos no rosto. Estava obcecado com meus óculos. Brincava de
tirá-los de mim e corria com eles em sua até então lentíssima velocidade
máxima. Lembro-me de ter pensado que o reconheceria na multidão.
Quero dizer: via o rosto embaçado, desfocado de meu lho, e me
perguntava se o reconheceria na multidão. E respondia a mim mesmo,
talvez para me acalmar, que sim.

— Já terminou de preparar o café da manhã? — meu pai me


interrompe.
— Está pronto — digo.
Nos sentamos à mesa. Meu pai também; tomou seu café da manhã
horas atrás, e agora aproveita para beliscar uma metade de pão francês e
beber mais café.
— Você vai ter que me pagar direitos autorais por tudo o que escreveu
sobre mim — ele me diz. — Silvestre, seu papai está escrevendo um livro
sobre mim.
— Eu também escrevi um livro sobre meu papai — diz meu lho.
— E qual é o nome do livro? — pergunta meu pai.
— Os problemas de Alejandro.
Meu lho adia sua quesadilla com gafanhotos para contar a meu pai
sobre esse livro. É o assunto do momento, repetiu muitas vezes isso nos
últimos dias, cada vez mais consciente das gargalhadas que consegue gerar.
Algumas semanas atrás passei vários dias com febre devido a uma
infecção estranha e persistente, que não era covid, embora a cada meia
hora eu pensasse que sim. Uma manhã, quando começava a me sentir um
pouco melhor, Silvestre insistiu em car a meu lado, brincando
justamente de exame de covid, que até hoje é uma de suas brincadeiras
recorrentes. Ele en a o indicador direito no nariz e depois o observa à
contraluz, teatralmente, e sentencia: “positivo” ou “muito positivo” ou
“negativo” ou “muito negativo”. Naquela manhã, sem motivo aparente,
desatou a chorar. Talvez tenha achado que eu o ignorava. Perguntei o que
tinha acontecido, ele se deitou em meu peito, mas não disse nada. Senti
que era sua maneira de me pedir que melhorasse logo.
Depois Jazmina conseguiu levá-lo para a sala, e foi então que ele falou
pela primeira vez de seu projeto de livro Os problemas de Alejandro.
— E sobre o que é esse seu livro? — perguntou ela, morrendo de rir.
— Sobre isso, sobre os problemas do Alejandro. Alejandro está com
febre. Alejandro derramou um copo de água no computador. Alejandro
tem medo de esquilos. Alejandro perdeu os óculos. Alejandro não gosta de
arroz com leite. Alejandro não encontra os óculos porque está sem os
óculos. Alejandro tem muita dor de cabeça.
Agora conta a mesma história a meu pai e acrescenta alguns capítulos.
Meu pai não aguenta mais, quase morre de tanto rir. Depois ele me
pergunta se é verdade a coisa do computador. Digo que sim e que tive que
comprar outro. Pergunta como andamos de dinheiro. Antes, quando ele
me perguntava isso, eu respondia em um tom meio estoico que estava
muito mal, pensando que ele me enviaria imediatamente um pouco de
grana, descontando da herança. Mas isso nunca aconteceu. De modo que
agora respondo, seja ou não verdade, que está tudo sob controle.
— Mas como você foi fazer isso?! — diz meu pai, como se falasse
sozinho.
Derramar um copo d’água em cima do computador, penso, deve ser
para ele a coisa mais estúpida que pode acontecer a alguém. Mas ele não
diz nada.
Jazmina se soma às risadas e ao café da manhã. Depois ela e o menino
vão à horta. Uns meses atrás, quando se convenceu de que a pandemia
seria eterna, Jazmina começou uma pequena horta onde agora dispõe de
acelga, ervilha, cebola e manjericão. Fico cinco minutos conversando com
meu pai sobre futebol. Ele diz que precisa desligar.
— Estou quase terminando — digo.
— O quê?
— Aquilo que eu estava escrevendo sobre o assalto. Esses trechinhos que
li para o senhor.
Quero que ele leia a versão nal. Peço isso, timidamente. Penso que
estará cansado de minhas perguntas, mas também sinto que não, que quer
participar, que gosta que eu me lembre dessa história.
— Quer que eu leia agora mesmo? Acha que eu não tenho nada para
fazer, que não tenho trabalho? Estou atolado.
— Sim, eu gostaria que o senhor lesse agora mesmo.
— Certo — ele diz, inesperadamente.
Mando o arquivo, ele abre, penso que vai lê-lo imediatamente, na minha
frente; que vou ver seu rosto lendo durante vinte ou trinta minutos. E até
me parece que isso seria o normal. Mas ele desliga, porque isso é o normal.
Espero sua leitura, sua ligação, estou irracionalmente nervoso. Parei de
fumar, mas sinto vontade de fumar um ou dois ou todos os cigarros que
meu pai demorar para ler meu conto. Mas esse seria um novo capítulo do
livro de meu lho: Alejandro voltou a fumar.
— Já li — meu pai me diz, en m, meia hora depois.
— Gostou?
— Sim — ele responde, sem hesitar. — Gostei muito, lho. É divertido.
Lições tardias de pesca com mosca

“Vamos pescar, só nos dois, qualquer dia”, diz meu pai a meu lho. É
uma viagem improvável, mas gosto de imaginar uma buzina tocando e
meu lho e eu correndo com nossas mochilas pesadas para entrar na
caminhonete de meu pai — não fui convidado, mas adoraria me juntar a
eles nessa viagem, mesmo que fosse só para carregar o cesto com os
sanduíches ou vestir o casaco em meu lho no m da tarde.
Nenhum contratempo, nenhum desa o, nenhuma rebeldia teriam
realmente incomodado meu pai se ele tivesse tido o lho que queria: um
que, por exemplo, o acompanhasse na pesca, inclusive no meio das
turbulências da adolescência. Esse lho, que obviamente não fui,
certamente teria depois sabido transmitir a seu próprio lho a mesma
paixão. Em nosso romance familiar masculino, meu pai e eu não
moraríamos a sete mil quilômetros de distância, e sim a apenas poucas
cidadezinhas. Talvez as viagens para pescar não seriam tão frequentes, mas
ao menos uma vez ao ano passaríamos horas confabulando a melhor forma
de enganar os peixes.
Meu pai tentou, claro que tentou. Não me lembro de nossa primeira
viagem sozinhos, aos meus três ou quatro anos, mas ele já contou isso
tantas vezes que seu relato funciona quase como uma memória
implantada. Na manhã da viagem resolveu me colocar sentado em seus
joelhos para tirar o carro da garagem — visualizo minhas mãos pequenas
em cima de suas mãos enormes segurando o volante do Taunus, e imagino
a emoção transbordante que me levou a perguntar a ele, já na estrada, se à
noite, quando voltássemos para casa, ele me deixaria entrar com o carro na
garagem também. Ele me prometeu que sim, contente que eu tivesse
gostado tanto dessa nova brincadeira, mas ao longo de todo o caminho me
dediquei a con rmar a promessa, e minha insistência foi tal que depois, já
instalados diante das águas tranquilas do lago Peñuelas, ele me avisou que
se eu continuasse falando daquilo nunca mais me deixaria guardar ou tirar
o carro. A ameaça surtiu efeito por um tempo, mas depois me aproximei
para brincar com os peixes, que agonizavam amontoados na margem, e
comecei a inventar dezenas de histórias sobre generosos peixes-reis pais
que deixavam seus peixes-reis lhos estacionar os carros vez após vez. Assim
passamos a tarde inteira.
“Para você não existia a palavra não”, meu pai sentencia sempre que
conta essa anedota, que segundo ele exempli ca que desde pequeno o
traço essencial de minha personalidade é a persistência ou a teimosia,
embora em anos recentes ele tenha redirecionado sua interpretação da
história, que agora apresenta como uma prova prematura de minha
vocação literária. Seja como for, meu pai diz que para mim não existia a
palavra não e eu cresci achando que para meu pai só existia a palavra não.



Em um Natal distante, o Papai Noel ignorou nossas cartas e decidiu nos


mandar umas varas de pescar, com carretel, linha, anzol e tudo. Acredito
que o entusiasmo de minha irmã fosse genuíno, mas talvez estivesse se
deixando levar pela gentileza obrigatória que nos inculcaram na mente
desde pequenos. Éramos crianças que ajudavam a pôr a mesa e que
cumprimentavam todos os adultos e que agradeciam os presentes, inclusive
se o eventual destinatário de nossa gratidão fosse um ser abstrato como o
Papai Noel.
Mas naquela noite eu estava decepcionado e expressei isso. Em minha
carta, redigida com exagerada antecedência e despachada em pessoa nos
Correios, acreditava ter sido bastante claro: queria uma bicicleta cross,
nada mais, porém nada menos. “Quem sabe no ano que vem”, minha mãe
me acalmou, com uma doçura nervosa. Foi nesse momento, é claro, aos
oito anos, que comecei a compreender a so sticada fraude natalina.
Passamos essa véspera de Natal com os vizinhos, tendo de aguentar a
birra de uma menina que chorava rios porque ganhara uma boneca que
não chorava. Quer dizer: tinha ganhado uma boneca que em tese deveria
chorar, mas não chorava, e em vez disso quem chorava era sua dona. Era
um defeito técnico, havia conserto, seus pais diziam, desesperados. Tentei
consolá-la dizendo que eu detestava ir pescar e mesmo assim ganhara uma
vara de pesca. A menina continuou chorando com uma tristeza ainda mais
comovente, para se solidarizar comigo.
Não é verdade que eu odiava pescar. Preferia ir à praia, mas ainda assim
me divertia na barragem de Lo Ovalle, em frente à Casablanca, que era
nosso destino mais habitual; gostava em especial do ritual emocionante de
cravar na terra as estacas de nossa barraca laranja. Eram sempre dois ou
três dias em que minha mãe cava só ouvindo tas de Adamo e do Puma
Rodríguez enquanto folheava pela enésima vez umas revistas Vea, a uma
distância prudente do sol implacável, mas de vez em quando punha um
chapéu de palha e uns óculos escuros enormes e levava a térmica com café
para se sentar junto a meu pai, que passava o dia absorto em seu hobby
favorito.
Minha irmã e eu nos aproximávamos de tempos em tempos, talvez para
con rmar que ainda éramos visíveis. Meu pai respondia a minhas
perguntas com um leve sorriso gentil e em tom distraído, sussurrando,
como se tivesse esquecido em Santiago seu característico vozeirão. Muito
mais que o volume de sua voz, eu estranhava sua serenidade e sua
paciência. Mal mudava de posição: quando se cansava da cadeirinha
portátil azul, procurava alguma pedra para se sentar. Mas era mais
frequente que ele casse de pé e depois um bom tempo agachado, e depois
de novo de pé por mais um bom tempo.
Suponho que minha obsessão de então era não me entediar observando
meu pai. Quem sabe como eram de fato esses dias. Lembro que me deitava
ao sol na beira da barragem, com a mão esquerda bem rme no peito, até
conseguir a almejada tatuagem reversa. E que minha irmã e eu
brincávamos com Andrea, uma menina encantadora e linda, menor que
eu, de lábio leporino, que morava lá o ano todo, porque era lha de Juanito
Plaza, o administrador do camping. Com ela, nadávamos ou remávamos
ou desa ávamos as ratazanas pulando apavorados e felizes entre as pedras.
Também brincávamos de ngir que algum de nós era um estrangeiro que
chegava em um jipe imaginário e falava uma língua incompreensível e os
outros eram habitantes locais que o ensinavam o idioma e os costumes do
povoado. Minha irmã gostava de me fazer dizer palavrões que naquele
lugar equivaliam a palavras comuns e correntes. Cuzão, por exemplo,
signi cava, naquele país, tenha um ótimo dia.


Minha irmã preferia pescar com linha, já eu me instalava com a vara
para imitar os movimentos de meu pai, cuja sobriedade de pescador, no
entanto, mal dava para tolerar nossa série de erros e ações desastradas.
Ensinava-nos seus truques, procurava nos ajudar a depurar a técnica e
evitava a todo custo nos repreender, mas depois de cinco tentativas falidas,
que talvez tivessem sido vinte (ou trinta), seu aborrecimento era notório.
Então minha irmã voltava com Andrea, e eu me afastava sub-repticiamente
em busca de lugares solitários onde pudesse pescar à minha maneira.
À noite, eu mostrava a meu pai os poucos peixes que, apesar de minhas
de ciências técnicas, conseguira pescar. Ele me parabenizava de maneira
exagerada e carinhosa.
— E por que você não cou comigo?
— Porque os peixes que eu procurava estavam em outro lugar.
Respondi isso em uma noite quente que passamos jogando dominó, com
as peças acomodadas na terra como soldadinhos de chumbo.
— Fique pescando comigo — costumava me pedir. — Se você car
entediado, aí vai brincar, mas depois volta.
Uma manhã, acordamos com a notícia de um cardume. Parti ávido para
a barragem com minha vara, era jogar a isca e partir para o abraço, às vezes
vinham dois peixes-reis reluzentes ao mesmo tempo nos anzóis. Fiquei
duas ou três horas ocupado, imerso em uma cobiça infantil, naquele poço
milionário. Prender as minhocas de sangue branco nos anzóis e atravessar
com um prego as guelras e as bocas feridas de peixes-reis moribundos para
somá-los à corda que depois arrastava eufórico quando voltava para a
barraca em passos triunfais: com o passar dos anos me tornei escrupuloso e
agora tenho di culdade de aceitar a numerosa repetição dessas ações.
Ao car sabendo do cardume, meu pai preferiu dedicar a tarde a
caminhar com minha mãe e a conversar e tomar umas cervejas com o pai
de Andrea. Perguntei por que justamente naquela tarde, em que tudo era
tão fácil, ele decidira não ir pescar.
— Por isso mesmo — respondeu. — Porque era fácil demais, não tinha
graça.



“Seu pai foi meu pai naquele verão”, diz Cristián, um querido amigo de
minha adolescência com quem perdi o contato há décadas — acabamos de
nos reencontrar, na verdade não nos vimos: estamos já há alguns dias
trocando longas mensagens de áudio com a promessa de nos vermos assim
que possível.
Nesse tempo a que Cristián se refere, ele e eu nos dedicávamos a
procurar remédios para a acne, que ameaçava com igual crueldade sua
pele avermelhada e minha pele morena. Cristián descobriu que era
possível combater as espinhas com máscaras de Aloe vera, de modo que
mal caía a tarde partíamos juntos em busca de alguma planta e depois nos
trancávamos em meu quarto para lambuzar nossos rostos com a polpa.
Tudo isso ocorria às escondidas e no escuro, como se estivéssemos
comprando drogas.
Foi meu pai que o convidou de improviso para passar o verão conosco.
— Onde está sua mochila, Cristián? — perguntou a ele.
— Que mochila?
Meu pai desatou a rir e em seguida ligou para Gina, a mãe de Cristián,
para pedir sua permissão, e meu amigo foi correndo e voltou em quinze
minutos com uma mochila apressada de acampamento que en amos à
força no bagageiro lotado do carro.
— Lembro que ouvimos Simon & Garfunkel por todo o caminho —
Cristián me diz. — E que sua mãe aumentava o volume e de vez em
quando seu pai baixava. E que ela dirigia mais rápido que seu pai.
— E você se lembra dos sanduíches de geleia?
— Não — diz Cristián.
Levávamos uns pães com geleia de amora para o caminho, e minha mãe
resolveu chamá-los de sanduíches para que parecessem mais apetitosos. Era
uma dessas brincadeiras casuais que cam gravadas na memória como se
possuíssem alguma importância.
Cinco horas depois estávamos esparramados na sala de uma casa gelada
em La Serena. Sinto que devia me lembrar melhor dessa viagem, mas vou
simpli car — imagino que passamos essas semanas de fevereiro jogando
frescobol na praia ou esticando a duração das cervejas ilegais que
tomávamos em uma discoteca de Coquimbo enquanto especulávamos
amores extraordinários e iminentes. As lembranças de Cristián são
distintas. Ele se lembra, por exemplo, que uma manhã vimos, entre as
pedras de uma praia vazia, com meus binóculos, duas mulheres nuas
tomando banho de mar.
— Não sei como você pôde se esquecer de algo assim — diz Cristián,
com razão. — Nós as chamamos de “as deusas do norte”.
Essa frase, “as deusas do norte”, aciona talvez algum gatilho em minha
memória, ou a vontade de lembrar. Por outro lado, nós dois nos lembramos
com precisão de meu pai fazendo palhaçadas pelas ruas de La Serena. A
brincadeira era cumprimentar qualquer desconhecido como se o
conhecesse; ele se aproximava efusivamente, com exagerados abraços. E
quando o desconhecido o alertava do equívoco, meu pai se desfazia em
desculpas e soltava sua frase triunfal:
— É que a semelhança física é, francamente, assombrosa.
Eu e Cristián éramos cúmplices de elenco, mal conseguíamos segurar a
risada. Quando a brincadeira já corria o risco de nos entediar, meu pai se
aproximou de um menino de uns dez anos e o cumprimentou com
especial emoção, ngindo que estava se reencontrando com o lho de seu
melhor amigo.
— Como você está grande, Pepito Roblero, não acredito! E que vontade
de rever seu pai!
O menino explicou, ainda confuso, que ele não era Pepito Roblero.
Meu pai se desculpou, disse sua frase gloriosa, e seguimos passando a tarde
com nossos sorvetes, até que talvez meia hora depois, perto de La Recova,
cruzamos de novo com o mesmo menino, e meu pai novamente correu até
ele para dizer, eufórico:
— Pepito Roblero, agora há pouco vimos um menino igual a você!
Não era comum meu pai se comportar assim, disso tenho certeza. Mas
Cristián me diz que meu pai sempre se comportava assim.
— Ele era muito simpático. E muito acolhedor comigo. Muito
engraçado, muito parecido contigo.
— Não acredito.
— Bem, é normal que você não queira acreditar que se parece com seu
pai. Naquele tempo eu achava vocês iguais. Mas nós nunca aprendemos a
olhar bem nossos pais. Quem escreveu isso?
Demoro a reconhecer essa frase escrita por mim. Fico contente em
saber que Cristián leu um livro meu. Conversamos sobre isso. Ele se
lembra de cor de alguns poemas que eu escrevia na adolescência. São
poemas horríveis, que eu gostaria que tivesse se esquecido de imediato. Ele
diverge carinhosamente.
— Fomos várias vezes até a praça, os três juntos, e seu pai sempre fazia a
mesma coisa.
— Não foi uma vez só?
— Não! Foram várias vezes. Pelo visto eu que devia ser o escritor.
— Com certeza! E o que minha mãe e minha irmã cavam fazendo?
Lembro que eu e você estávamos sempre juntos e que minha irmã e minha
mãe estavam sempre juntas e que meu pai estava sempre sozinho.
— Sua mãe e sua irmã cavam na praia a tarde toda. Mas eu lembro
que você e eu estávamos sempre perto do seu pai.
— Sério? Eu acho que meu pai sempre estava pescando e eu e você
cávamos caminhando sem rumo.
— Sim, mas também fomos com ele a Punta de Choros e a outras praias
— diz Cristián.
O ímpeto memorialístico de meu amigo desperta em mim a imagem
adormecida da praia enorme e semivazia de Punta de Choros. Vejo a mim
mesmo com Cristián pisando em mariscos à beira-mar, morrendo de rir
com nossos rudimentares passos de twist, enquanto meu pai, com seu traje
uorescente de pescador pro ssional, entrava lentamente no mar.
— Foi em Punta que vimos as deusas do norte? — pergunto.
— Não sei — ele diz. — Mas depois disso eu continuei vendo-as em
todos os lugares, eram como fantasmas.
— Sério?
— Não.

Alguns anos depois dessa viagem de que Cristián se lembra, um amigo


do trabalho convidou meu pai para ir a Río Pescado, perto de Puerto Varas,
onde ele descobriu a pesca com mosca, que se converteu em sua paixão
principal e talvez de nitiva. Ainda morávamos juntos quando começaram
a se multiplicar suas viagens para o sul a m de pescar nos rios Puelo ou
Baker, e depois minha mãe e ele passaram vários verões em Villa La
Angostura, perto de Bariloche: era uma viagem longa de caminhonete,
com paradas em Temuco e Osorno antes de atravessar para a Argentina.
Entendo que em algum momento minha mãe tentou se juntar à febre da
pesca com mosca, ainda que nessas viagens ela se dedicasse mais, de fato, a
ler romances, um hobby novo para ela e que desde então nunca
abandonou.
Muitos anos depois disso, durante minhas temporadas como crítico
literário, a cada vez que eu resenhava negativamente um romance, minha
mãe resolvia lê-lo, e gostava dele. Obviamente eu também publicava
resenhas favoráveis, era na realidade o mais comum, mas os livros que eu
celebrava não pareciam interessá-la. De qualquer maneira, eu gostava de
escrever no jornal que minha mãe lia. E adorava falar com ela sobre esses
livros, mesmo que nossas conversas tivessem um quê de amável repreensão.
(“Eu não escrevo para os críticos, escrevo para as mães dos críticos”, disse
uma vez o escritor Hernán Rivera Letelier, como que adivinhando esse
descompasso de que estou falando. É uma frase magní ca, de verdade.)



Nunca falava sobre livros com meu pai, por isso me surpreendi tanto
quando, uns dez anos atrás, ele me passou seu exemplar de Nada é para
sempre, de Norman Maclean, me pedindo que o lesse.
— Você vai adorar — ele me disse —, é meu livro favorito.
O simples fato de meu pai ter um livro favorito era, para mim, uma
novidade que eu não quis levar a sério no momento. Além do mais, esse
título me soava como autoajuda, assim como a capa, uma imagem do
lme de Robert Redford, mas eu só me dei conta disso alguns meses
depois, em uma tarde em que arrumava as pequenas torres espontâneas de
leituras pendentes. Só então soube que o título original da história de
Maclean, e do lme em inglês, era A River Runs Through It. Con rmei na
internet que Nada es para siempre era o título comercial em espanhol e
que a crítica considerava o relato de Maclean um clássico da literatura
estadunidense.
Nem mesmo a certeza de que A River Runs Through It era, em tese, boa
literatura, me fez querer lê-lo. Lembro, isso sim, de ter pensado depois,
com curiosidade, naquele gesto de meu pai. Por que, em vez de me dar de
presente em um aniversário ou no Natal, resolveu me emprestar seu
exemplar? Talvez ele não fosse imune ao fetichismo literário; talvez
quisesse que eu passasse por cada uma das páginas e frases e palavras que
ele havia lido e sublinhado, porque o livro tinha algumas frases
sublinhadas, o que também, de certo modo, me surpreendeu. Mais ou
menos nessa época li Como cheguei a conhecer os peixes, de Ota Pavel, que
meu pai teria adorado, e Pescar truta na América, de Richard Brautigan,
que ele teria achado estranhíssimo, mas nem sequer me ocorreu
mencionar essas leituras a ele.
Durante um bom tempo, talvez por dois anos, meu pai continuou me
perguntando se eu tinha lido seu livro favorito e eu respondia que estava
em minha mesa de cabeceira e que a qualquer momento o leria, e ele me
pedia de novo que por favor cuidasse bem dele, que não o perdesse, o que
de certo modo era um exagero, porque ele sabia que eu cuidava bem dos
livros. Eu era a pessoa dos livros, no m das contas; eu cuidava dos livros
com o mesmo esmero com que ele conservava seus tacos de sinuca e seus
so sticados equipamentos de pesca, inclusive as moscas que ele mesmo
costumava confeccionar com zelo até meia-noite, iluminado por uma
lâmpada pequena e potente que instalara em um canto de seu escritório
especi camente para essas noites de trabalho artesanal obsessivo.



— Posso passar aí? — meu pai me disse uma manhã, ao telefone. —


Estou a cinco minutos de sua casa.
Era uma sexta-feira e eu não esperava sua visita. Tomamos café,
conversamos um pouco não me lembro do quê. Não era comum tê-lo em
minha casa, gostei de recebê-lo.
— Na verdade vim buscar meu livro — ele me disse, quando em teoria
já estava indo embora.
Começou ele mesmo a vasculhar minhas prateleiras, como na
adolescência, quando ele perdia algo e ia direto para meu quarto procurar
em meu armário, e eu temia que ele encontrasse a maconha ou meus
diários. Juntei-me à busca, meio nervoso, mas depois de um tempo prometi
que depois procuraria direito e devolveria seu livro o quanto antes. Respirei
aliviado quando meu pai foi embora.
Naquela mesma tarde retomei a busca. Tinha certeza de ter colocado
Maclean nas leiras mais próximas ao chão, perigosamente perto do
montinho de livros dos quais eu costumava me desapegar a cada tanto —
quando me convidavam, por exemplo, para falar em uma escola, eu pegava
livros desse montinho e os doava com alguma culpa, consciente de que
não há graça em doar algo que você despreza. Com muita vergonha,
concluí que tinha doado sem querer esse livro do qual meu pai me pediu
tanto que cuidasse. Tentei comprá-lo, mas era um exemplar antigo, e de
qualquer modo havia o problema das frases sublinhadas. Mas também não
o procurei tanto, para dizer a verdade.
— Não o encontrei, pai — tive que confessar, algumas semanas depois,
acho que em um aniversário de minha mãe. — Mas tenho certeza de que
está comigo. Além do mais, ainda quero lê-lo.
— Eu sei que você não quer lê-lo — meu pai me disse, com inesperada
tranquilidade, como se o assunto não tivesse importância. — Você não
quer ler o livro porque fui eu que te recomendei.
— Você podia ter pelo menos dito a ele que leu, mentir — minha mãe
interveio. — É um livro sobre pesca, e seu pai se interessa muito por pesca.
Essa incitação à mentira já era su cientemente estranha, mas a segunda
frase era ainda mais, porque não era nem um pouco necessário que ela me
informasse sobre o interesse de meu pai pela pesca.
— Eu não li, mas o lme é muito bom — disse minha irmã —, é um
dos primeiros do Brad Pitt.
— O livro é melhor — declarou meu pai.
— Quero ler quando meu irmão te devolver. Você devia assistir ao lme,
Ale, ganhou até um Oscar. Mas você nunca vê os lmes que ganham
Oscar.
— Às vezes vejo — falei. — Vocês viram Brokeback Mountain? Acho
que esse ganhou um ou vários Oscar. E também é sobre pesca. Acho que
em espanhol se chamava…
— Secreto en la montaña… Claro que sim, Alejandro, todo mundo viu
esse lme — disse meu pai.
— Muito bom — opinou minha mãe.
— E leram o conto de Annie Proulx?
— É baseado em um conto? Não sabia — disse meu pai.
Estávamos na churrasqueira, devorando os restos de um churrasco. A
conversa se perdeu por alguns segundos, como se transitássemos por um
túnel pequeno mas su cientemente comprido para tornar o silêncio
evidente. Mas logo voltamos a falar sobre Brokeback Mountain. Meu pai
disse que eram comuns piadas sobre esse lme entre seus amigos
pescadores. Perguntei se algum desses amigos era homossexual.
— Quem sabe — respondeu. — Não que eu saiba.
Como a pergunta não pareceu incomodá-lo nem um pouco, falei com
altivez de como eu caria incomodado de saber que ele ainda fazia piada
com homossexuais. Ele me respondeu, irritado, que nunca tinha feito
piada com homossexuais. Exigiu que eu citasse alguma lembrança que eu
tinha de sua homofobia. E na verdade nunca escutei um comentário
homofóbico dele. Tive de admitir que ele tinha razão.
— E então do que você e seus amigos pescadores riem?
— São piadas, lho, por favor. Não perca o senso de humor. É a melhor
coisa em você.
Minha mãe e minha irmã assentiram. Eu peguei o violão e comecei a
cantar. Essa sempre foi minha estratégia para mudar de assunto com eles.



— E você não leu mesmo o livro de Maclean? — me pergunta Silvia,


minha editora, quando conto a ela esta história.
— Não — con rmo.
Ela me olha incrédula, talvez até decepcionada. Vamos de trem de
Madri a Barcelona, estamos já há algumas horas conversando, entre outras
coisas, sobre este ensaio. Ela ca calada por talvez alguns velozes
quilômetros.
— Eu se fosse você leria, Alejandro. É a única forma de você terminar
esse ensaio.
— Mas talvez seja melhor deixá-lo em aberto, inacabado — digo.
— Você não se importa mesmo com o que seu pai queria te dizer? Ele
ainda te pergunta se você leu o livro?
— Não. Acho que ele presumiu que nunca vou ler.
— E cou decepcionado — diz Silvia.
— Ou se esqueceu do assunto — respondo. — É o mundo de cabeça
para baixo — digo depois, redundante. — Era eu quem lia livros e os
recomendava a ele. E era ele quem resistia a lê-los.
Silvia baixa a voz, ou na verdade ajusta o tom ou o ritmo para me falar
de recordações suas, aos quatro anos, quando era a única da família que ia
com seu pai pescar nos rios dos Pireneus. “Eu me tornei pescador por
necessidade”, ele costumava dizer; desprezava as jaquetinhas verdes dos
pescadores esportivos novatos, porque quando criança pescava para se
alimentar. Silvia se lembra de que, nessas excursões, seu pai a deixava
sozinha, sentada na margem do rio, concentrada momentaneamente nos
pássaros ou nos movimentos da água. Depois a sensação de espera crescia e
a ansiedade despontava, mas ainda assim ela se sentia a salvo: sabia que seu
pai voltaria a qualquer momento.
— Ele não se lembra mais de nada disso — diz Silvia.
— Esqueceu?
— Esqueceu tudo — diz —, por conta do Alzheimer. Tenho que
apresentar meu namorado para ele toda vez que nos vemos.
— E ele o considera bom para você? — pergunto.
— Sim — ela diz, com um sorriso aberto que reconheço, mas que
também me parece, de repente, novo. — Todas as vezes que o apresento,
ele gosta dele.


No último dia em Barcelona, procuro sem sucesso, em várias livrarias, o
livro de Maclean, que na Espanha se chama El río de la vida, um título
belo e sóbrio, publicado doze anos atrás por uma editora cujo catálogo eu
adoro, Libros del Asteroide. Se meu pai tivesse me emprestado essa edição,
esta história seria totalmente diferente. Pensar nisso me paralisa. Sinto-me
arrogante, incômodo, tolo.
O relato de Silvia me faz lembrar da última viagem que z sozinho com
meu pai, aos dezessete anos, quando ele já contraíra o vício incurável da
pesca com mosca e eu, o da literatura. Naquela altura, não nos dávamos
bem e era difícil, tanto para ele quanto para mim, esconder isso; era uma
viagem longa e talvez extemporânea, que possivelmente respondia ao
desejo de nos reencontrarmos, de nos aproximarmos.
Avançamos de Linares em direção à cordilheira até que demos com um
lugar propício para montar nossa barraca de sempre, nas margens do rio
Achibueno. Meu pai estudou detidamente a paisagem e esperou um bom
tempo até que o sol estivesse menos forte (“as trutas estão acabando de
acordar da soneca da tarde”, ele disse em algum momento) antes de se
perder rio acima.
Mergulhei em não sei qual romance enorme, embora às vezes
interrompesse a leitura, distraído pela opacidade prateada das cascas-de-
anta e pelo espetáculo do céu limpo e da água lenta e cristalina,
lembrando-me dos versos de Neruda que descobrira havia pouco: “Devo
falar do limo que escurece as pedras,/ do rio que durando se destrói”.
De repente, talvez meia hora depois, senti falta de meu pai. Foi
estranho. Não era que eu pensasse que ele corria perigo, mas me vi ali
sozinho, como um turista perdido, sem nem mesmo uns tênis poderosos
para ajudá-lo ou procurá-lo. Durou alguns poucos minutos, logo ele voltou.
— Como vai indo a coisa?
— Bem — ele me disse.
Mostrou-me a foto que acabara de tirar com sua novíssima e na época
revolucionária câmera digital. Meu pai segurava uma truta um pouco
maior que sua mão, mas o que mais chamava a atenção era sua pose séria,
solene. Imediatamente depois de tirar essa foto — uma sel e artesanal, por
assim dizer —, meu pai devolvera a truta ao rio; nesse momento já
começara a devolver os peixes para a água, não cava nem com o mínimo
permitido.
— Em que página você está? — ele me perguntou.
Não lembro o que respondi. Na 150, por exemplo.
— Volto daqui a umas quarenta páginas — ele me disse então, fazendo
graça.
No entardecer, preparamos um macarrão e eu continuei envolvido com
o livro, meio morto de frio, mas iluminado e também talvez temperado
pela luz abundante de um lampião. Fui dormir muito tarde, acordei já de
dia, apavorado com um porco enorme que, depois de comer todos os
nossos sanduíches, tentava entrar na barraca, imagino que para me comer.
Meu pai, que tinha saído ao alvorecer, voltou logo em busca de um café da
manhã inexistente. Decidimos car ali, comendo em doses homeopáticas
umas laranjas e uns pães de fôrma que por sorte tínhamos esquecido na
caminhonete.
Em algum momento da tarde fui junto e tirei algumas fotos dele. Eu o
tinha visto ensaiar aqueles arremessos tão coreográ cos e para mim
cômicos da pesca com mosca, mas não diante de um rio, e sim no estreito
jardim da frente de nossa casa. Agora, ao vê-lo equilibrado em umas pedras,
entendi melhor a relação entre esse desa o técnico e a obsessão em
decifrar o curso das águas. Em alguns momentos fui capaz de vislumbrar a
cena heroica, romântica. Pensei nessa imersão súbita, intrusiva, na
natureza; na recuperação do desejo, tantas vezes postergado ou
adormecido, de pertencer àquela paisagem singular e cativante. E em
seguida tudo voltou a me parecer pueril: um homem sério imitando os
tentadores movimentos de hipotéticos insetos distraídos. A batuta louca de
um maestro de orquestra empenhado em reger uma música inaudível.
Mas o que entendi melhor foi esse desejo de desa ar o relógio. A
experiência da pesca funcionava de forma verdadeiramente similar à da
literatura. Nesses dias, nossas linguagens conviveram; quero dizer: nós
convivemos, funcionou. E quando voltamos para casa e minha mãe nos
perguntou como tinha sido e ambos respondemos que tinha sido muito
bom, nenhum dos dois estava mentindo.

“Seu pai foi meu pai naquele verão”, Cristián me diz de novo, em outra
mensagem de áudio, como que me soprando essa frase importante para
que eu continue escrevendo este ensaio que ele não sabe que estou
escrevendo.
Muitas vezes meu pai foi o pai de outras pessoas, em momentos de
a ição: pediam para falar com ele, que os recebia de imediato, e eu
costumava ouvi-los contando suas encruzilhadas acadêmicas, pro ssionais
e até religiosas. Mas isso acontece com frequência com os pais: tornam-se
guras paternas de muita gente, menos de seus lhos. A própria expressão
gura paterna é mais frequente no plural, mas quando se fala de gura
materna costuma ser para aludir a alguém que substituiu uma mãe perdida.
E pode ser até que soe estranho falar em guras maternas. Talvez seja
verdade esse ditado de que mãe só tem uma, apesar de que meu lho, que
já conhece crianças com duas mães (e crianças com dois pais), discordaria.
— Você mandou minhas lembranças para os seus pais? — pergunta
Cristián.
— Sim — respondo —, e meu pai cou muito feliz de saber que você se
lembra dele.
Não falei nada para eles, mas minto para me obrigar a anular a mentira
imediatamente: assim que paro de falar com ele, ligo para meus pais para
falar de Cristián.
— Era o mais simpático de todos os seus amigos — diz meu pai.
Minha mãe entra na chamada e assente, mas prefere não estabelecer
hierarquias. Os dois se lembram, enquanto terminam de lanchar, de Hugo,
de Mario, de Maricel, de Carla, de Angélica. Lembram-se de todos.
— Villablanca, era esse o sobrenome de Cristián, certo?
— Sim.
— E ele continua feliz daquele jeito?
— Sim — respondo, contente por estar dizendo a verdade.



— Aquela palavra, aquela que você gosta tanto! — disse-me meu lho
uma tarde, furioso.
— Qual? Que palavra?
— Você sabe bem que palavra, porque você gosta muito dela, adora,
você daria beijos nessa palavra!
Claro que eu sabia. Parece que agora eu, aquele menino que ignorava a
existência da palavra não, estava apaixonado por ela, segundo meu lho.
Silvestre não era uma criança tão imprudente, mas estava havia semanas
subindo nos móveis e tentando escalar as estantes e acabara de descobrir
que alcançava a gaveta das facas (que, portanto, deixou imediatamente de
ser a gaveta das facas). Eu não tinha escolha a não ser recorrer a cada
instante à palavra não.
Em meio à sua reclamação, distraí-me imaginando a mim mesmo aos
três ou quatro anos, suponho que usando menos palavras que ele, embora,
segundo a versão o cial, fossem su cientes para inventar passados e futuros
para os coitados dos peixes viciados em larva de tenébrio. Quando Silvestre
se acalmou, ou melhor, quando ele se cansou de reclamar comigo,
pareceu-me tolice reiterar a explicação de sempre, àquela altura já
implícita, então o peguei no colo e z cafuné em seu cabelo
milagrosamente comprido ou quase comprido. (Um de meus maiores
sonhos de criança era me deixarem ter o cabelo comprido, mas ele gosta
de ir ao cabeleireiro, embora talvez o que mais goste seja de sentar-se na
cadeira e pedir ao cabeleireiro, com a autoridade de quem entende do
assunto: “Igual ao Paul McCartney, dos Beatles, por favor”.)
— Nunca mais vou falar a palavra não para você — prometi a meu lho.
— De agora em diante, quando você estiver em uma situação que me
pareça realmente perigosa, vamos substituir a palavra não pela palavra nim.
Ele adorou a ideia, que misteriosamente funcionou durante alguns
meses que, aliás, foram excelentes, porque nosso acordo me concedia uma
espécie de superpoder; quando era necessário, eu simplesmente me
aproximava e lhe dizia em voz exageradamente baixa:
— Filho, nim.
Silvestre não apenas me obedecia como o fazia sorrindo para mim. Os
demais integrantes da família continuavam usando o tirânico e bíblico não,
com os péssimos resultados previsíveis. O caloroso império da palavra nim
começou a ruir, infelizmente, quando a professora de Silvestre nos contou
que uma coleguinha batia nele e que ele, em vez de pedir ou exigir que ela
não zesse aquilo, aproximava-se e dizia a ela, muito amavelmente, nim,
de modo que a menininha continuava batendo nele.
Ainda usamos, com Silvestre, a palavra nim, de forma humorística, é
quase como uma lembrança de uma linguagem antiga. Ou talvez seja a
mesma linguagem, em permanente transformação, mas sempre vinculada
à música e às histórias e cheia de imitações, piadas e trava-línguas. Ainda
consigo disfarçar aquilo que é obrigatório com pequenas brincadeiras que
realçam o caráter aventuresco de escovar os dentes ou de tomar banho ou
de se vestir sozinho. É muito mais difícil, para mim, apressá-lo todo dia de
manhã para ir à escola, talvez porque eu mesmo nunca tenha conseguido
me resignar totalmente ao tempo cronológico, sempre fui do tipo que
preferia continuar conversando. Ele não gosta de ser apressado, mas
também quem gosta de ser apressado? E quem gosta de ser lembrado o
tempo todo de que a vida não é brincadeira? Nós também fomos
pro ssionais da brincadeira; a obsessão de escrever tem sido, para mim,
uma forma de prolongar a brincadeira até as últimas consequências.
Meu lho dorme e eu me deito a seu lado para ler A River Runs Through
It enquanto penso na enorme quantidade de lmes e de livros e de músicas
que no futuro recomendarei a ele e dos quais ele desdenhará, preferindo
qualquer outra coisa. Gosto do conto de Maclean. É um mundo tão
familiar e tão alheio, isto é, tão parecido ao mundo que eu habitava e
rejeitava ao mesmo tempo. Essa violência tão masculina, essa irmandade
tão masculina, essa falta de comunicação tão masculina.
Há muitas passagens técnicas a respeito da pesca com mosca e me
esforço para entendê-las e assimilá-las, como se estivesse lendo um manual
na véspera de uma viagem. E claro que vejo meu pai ensaiando suas
coreogra as ou naquele canto de seu escritório, empenhado na confecção
de suas iscas. Uma vez ele me explicou algo que também é explicado no
conto: que, ao confeccionar a isca, a ideia não é imitar os insetos tal como
nós os vemos, e sim como seriam vistos do nível da água, ou melhor, como
um peixe os veria de dentro da água.
Leio em inglês e em versão e-book, mas às vezes paro para traduzir
mentalmente algumas frases e imagino aquele livro de bolso que meu pai
leu, emocionado, que inclusive grifou e que depois quis compartilhar
comigo. E ao traduzir me deixo levar pelo pensamento fácil e ilusório de
que estou traduzindo pela primeira vez meu pai. “É um arremesso tão leve
e lento que é possível acompanhá-lo como se fossem cinzas pulando da
chaminé”, diz Maclean, preparando o terreno para este trecho: “Uma das
mais sutis emoções da vida é afastar-se de si mesmo e observar como você
lentamente se torna o autor de algo belo, mesmo que sejam apenas cinzas
que voam”. Sim, pai. É isso que é, para mim, precisamente, escrever.
“Os poetas falam de spots of time, mas são os pescadores que realmente
experimentam a eternidade condensada em um instante”, escreve
Maclean, e em seguida acrescenta: “Ninguém consegue saber o que é um
‘espaço de tempo’ até que subitamente o mundo inteiro é um peixe e esse
peixe escapou”. Imagino meu pai lendo essas frases e pensando na
lamentável ironia de ter um lho meio poeta que se manteve imune à
beleza da pesca.
Embora milhões de leitores tenham passado por suas páginas, A River
Runs Through It é, por um momento, um livro que só eu e meu pai
conhecemos. Tenho certeza de que ele também sublinhou esta frase: “As
pessoas com quem vivemos e que amamos e a quem deveríamos conhecer
são justamente as que nos escapam”.


— Li o livro, nalmente.
— Que livro?
— O do lme, Nada é para sempre.
— O que eu te emprestei e você nunca me devolveu?
— Sim.
— Achei que você tinha perdido.
— Não perdi. Trouxe para o México comigo. Vou levar para você
quando eu for ao Chile.
— Você pode ler a dedicatória para mim? É muito bonita.
— É que não estou com ele à mão.
— Pode ir buscar, eu espero.
Procuro no Kobo a dedicatória, traduzo-a para meu pai, mas ele me
esclarece que não se referia à dedicatória do autor, e sim à manuscrita, na
primeira página, de seus amigos. Agora acho que lembro de ter visto, na
primeira página do livro, uma dedicatória manuscrita.
— Não estou encontrando — digo, sem jeito.
— Não está encontrando porque você não está com o livro — ele me
diz, segurando o riso. — Está comigo.
Entendo que ele sabe que estou mentindo, mas demoro a compreender
tudo, até que me confessa que ele mesmo levou da sala de minha casa o
exemplar perdido.
Ou seja, naquela manhã em que foi de improviso a minha casa e
vasculhou as estantes, meu pai encontrou, de fato, o livro. Só pode ter sido
naquela manhã, penso. Pergunto, ele con rma. Leio para ele algumas
passagens do mesmo conto. Ele morre de rir.
— Foi uma pequena vingança — diz ele, no exato tom de voz de quem
confessa uma travessura.
Rio. Lembro-me do diálogo de algumas páginas atrás, de alguns dias
atrás. Suspeito que minha mãe e minha irmã também sabiam dessa
pequena vingança. Pergunto por que ele sustentou a piada por tanto
tempo. Por tantos anos.
— Porque me esqueci — diz.
Não acredito. Imagino que queria, sim, me dar uma lição. Ou que de
fato era muito importante para ele que eu lesse o livro.
— Em todo caso, gostei muito, muito mesmo — digo. — E sinto muito
não ter lido na época.
— Que bom! — ele diz, com sincero entusiasmo. — Sabia que você ia
gostar. E viu o lme?
— Ainda não, mas vou ver também.
— Não veja, o livro é melhor.
— E por que o livro é melhor? — sinto-me ridículo perguntando algo
assim a ele.
— Eu vi o lme primeiro, e as imagens são espetaculares. Mas o livro
parece mais real. Os personagens, principalmente. A gente pode colocar o
rosto que quiser nos personagens. O livro parece mais nosso. A gente se
identi ca.
Conto a ele que estou escrevendo sobre aquelas viagens de pesca da
infância. E sobre o convite que ele zera a Silvestre algumas semanas atrás.
— Eu sempre imagino que você está escrevendo sobre algo — ele diz,
depois de um silêncio quase longo. — O tempo todo, a vida toda você
esteve escrevendo sobre algo, Alejandro. — Sua fala soa carinhosa e
condescendente ao mesmo tempo.
Conversamos sobre pesca com mosca, não quero fazer anotações,
embora de repente me pareça que meu pai, como um professor, enfatiza
algumas frases para que eu as registre ou me lembre delas. Distraio-me um
pouco, mas essas ênfases me trazem de volta à conversa.
— É que a gente nunca para de aprender — diz, por exemplo. —
Nunca, nenhum pescador com mosca, nunca, nem mesmo o mais
experiente, para de aprender.
— Era isso que o senhor queria me dizer? — pergunto.
— O quê?
— Que nunca paramos de aprender.
— Não entendi.
— Quando me pediu para ler esse livro.
— Eu acho que você já sabe disso. Todo mundo sabe disso, não é preciso
ler em um livro.
— Mas eu aprendi isso nos livros.
— Não, você não aprendeu isso nos livros. E eu estava falando sobre
pesca com mosca.
— Mas por que você insistiu tanto para que eu lesse o livro?
— Porque eu gostei!
— Eu também.
— Você tem razão — ele admite, após alguns segundos. — Alguma
coisa eu queria te dizer. Queria que você lesse para depois te dizer algo.
Mas isso foi há tanto tempo. Com certeza nesses anos todos eu já te disse o
que queria de outra forma.
— Eu sei — digo. — Agora podemos conversar.
— Sempre pudemos conversar.
— Agora conversamos melhor.
— Sim. Escute, tenho que desligar. Mas antes me diga, meu lho, você
quer que a gente vá pescar com o menino, nós três?
— Mas estamos muito longe — respondo, com surpresa.
— Mas não tem que ser já. O menino vai adorar. E eu posso ensinar
vocês dois a pescar. Pode ser no próximo ano, ou no seguinte, temos
tempo.
— Com certeza temos tempo, pai — digo. — Vamos, sim.
Recado para meu lho

Você está no sofá, a dois passos de mim, lendo sozinho. É um hábito


novo e por ora esporádico: você pronuncia cada sílaba em um ritmo
vacilante até que consegue formar as palavras, descobri-las por inteiro.
Depois de uma ou duas frases completas, você costuma interromper a
leitura solitária para compartilhar comigo seus achados. Mas também
acontece de você continuar e, em vez de falar comigo, rir, ou repetir certas
palavras desconhecidas, que são como relâmpagos musicais candidatos a
carem gravados em sua memória.
Em voz baixa: é curioso usarmos essa expressão metafórica para aludir à
leitura silenciosa. Na verdade, a leitura silenciosa não existe: a leitura, em
si mesma, é portadora de uma voz já incluída no aparente silêncio; uma
voz que o silêncio não consegue destruir. Por ora, sua leitura em voz baixa
é audível. E esse murmúrio, esse balbuciar, esse alegre soletrar às vezes soa
como um segredo. É claro que sim: ler é receber segredos, mas é também
contar segredos para si mesmo.
Tenho pensado nessa solidão da leitura. Tão barulhenta e tão diferente
do barulho. Tão silenciosa e tão diferente do silêncio. E existe esse outro
silêncio, mais problemático, de quem acompanha um leitor. Nós, leitores,
somos em tese os cúmplices ideais de outros leitores, mas às vezes
queremos ou devemos ou sentimos que devemos interromper a leitura
alheia e nos tornarmos, mesmo que momentaneamente, essas pessoas
horríveis que nos interrompiam para nos avisar que era preciso pagar a
conta de luz ou lavar os pratos. Na adolescência, eu usava os livros como
escudos. Eram armas que me permitiam construir ao redor de mim um
território inacessível. E me lembro de ter lido, ou de ter ngido que lia, só
para impedir que falassem comigo.
Estou na poltrona, a dois passos de você, relendo em voz baixa (em
silêncio) a penúltima versão deste livro enquanto ouço você ler em voz
baixa (murmurando) um romance infantil de Juan Villoro, e por alguns
segundos deixo crescer em mim a sensação de que as palavras que saem da
sua boca são as mesmas que tenho diante de mim. Custo um pouco a
imaginar esse dia de um futuro imperfeito em que você lerá este livro. Não
é a primeira vez que imagino isso, é claro; tenho imaginado
incessantemente esse dia. A ideia de que você lerá, de que agora mesmo
está lendo este livro, às vezes me provoca uma alegria transbordante e
outras vezes, um sentimento muito mais difícil de de nir.
— Quero dormir com você hoje, pai, na cama da mamãe — você me
diz agora, enquanto tento escovar seus dentes.
— A cama da mamãe também é minha cama.
— Não, é a cama da mamãe.
— E qual é a minha cama?
— Você não tem cama — você diz, rindo.
Meu plano noturno era assistir a algum lme e talvez até adormecer
com a tevê ligada, como eu costumava fazer na Era Paleolítica, mas não
consigo negar seu pedido.
— Ó, papai, coloquei o pijama que a mamãe gosta — você diz.
— Está com saudade dela?
— Não estou com saudade nem com bondade, mas gosto de colocar o
pijama que ela gosta que eu coloque.
Você sente falta de sua mãe e resolve isso do seu jeito. A ausência dela
não é frequente nem incomum, mas esta viagem está parecendo longa
para você. Acho que você também sente que esses dias de família
incompleta são como viagens ao contrário. E que quando sua mãe ou eu
voltamos é como se nós três voltássemos. À noite, depois de passar cinco
dias em Buenos Aires, sua mãe aterrissou em Santiago. É a primeira vez
que trocamos de países. O fato de que ela esteja no Chile reforça em mim
a doce ilusão de que moramos lá e de que somos eu e você que estamos
viajando para conhecer, sei lá, as pirâmides de Teotihuacán.
Leio suas histórias, canto suas três ou quatro músicas, até que você
adormece na cama da sua mãe. Vou para a sala terminar de ler a penúltima
versão deste livro. E volto a pensar nessa pessoa do futuro que você é agora
mesmo, e imagino que você lê, que está lendo este livro, e que gosta ou
não gosta dele, que o acha divertido ou chato, que o livro o comove ou o
deixa indiferente.
“Meu pai nunca fala sério. E a única vez em que falou sério todo mundo
riu”, você costuma avisar aos seus amigos. Gosto de pensar que conservarei
para sempre a capacidade de te fazer rir.
Nem mesmo tenho certeza de querer que você leia este livro. Não é
necessário, claro. Ele existe graças a você, e você é o principal destinatário
dele, mas eu o escrevi, sobretudo, para dividir com meus amigos os
mistérios da felicidade. Não tem problema se você não o ler.
“Quando você for velho, vou te comprar a melhor cadeira de rodas para
irmos passear”, você me disse logo depois de completar quatro anos. Eu
preferiria te contar cada uma dessas histórias, melhoradas e aumentadas,
em algum dia da sua juventude em que você estivesse entediado a ponto de
me levar para passear nessa cadeira de rodas maravilhosa que prometeu me
dar. Gosto de pensar que este livro é nada além de um roteiro para esses
vagarosos passeios do futuro.

Cidade do México, 31 de janeiro de 2023


Agradecimentos

O olhar cúmplice e solidário do editor Andrés Braithwaite foi crucial


para que este livro fosse encontrando uma forma. Acho que não há
sinônimos, Andrés, para esta palavra: obrigado.
Agradeço do mesmo modo a companhia permanente e bem-humorada
de Silvia Sesé e a generosidade de Megan McDowell, que traduziu as
primeiras versões de vários destes textos, editadas depois por Sheila Glaser,
Daniel Gumbiner e Deborah Treisman. Também foram importantes as
observações de Lorena Bou, Elda Cantú, Lorena Fuentes e Andrea Palet.
E um agradecimento especial a Teresa Velázquez e Horacio Zambra,
cuidadosos jardineiros da árvore genealógica.
Muitos amigos — os de sempre, mais alguns novos e outros
milagrosamente recuperados — zeram comentários valiosos sobre todo o
livro ou sobre alguma de suas partes. Listo-os aqui em curiosa
promiscuidade alfabética: Andrés Anwandter, Sebastián Aracena, Marina
Azahua, Felipe Bianchi, Fabrizio Copano, Alejandra Costamagna,
Mauricio Durán, Elizabeth Duval, Daniela Escobar, Andrés Florit, Emilio
Hinojosa, Luke Ingram, Juanito Mellado, Rodrigo Rojas, Daniel Saldaña,
Juan Santander Leal, César Tejeda, Alejandra Torres, Antonia Torres,
Miguel Vélez, Vicente Undurraga, Cristián Villablanca e Isabel Zapata.
Jazmina e Silvestre são os verdadeiros autores deste livro, e já estou há
várias horas tentando elaborar uma frase racional, dessas com sujeito e
predicado, que esteja à altura de minha gratidão, mas tenho que ir,
justamente porque Silvestre sai da escola à uma e meia — gosto de chegar
quinze ou vinte minutos antes de abrirem o portão e vê-lo correr para me
abraçar como quem volta de uma longuíssima viagem por desertos e
savanas.
Notas

1. Confort é a principal marca de papel higiênico no Chile, que acabou se tornando também uma
forma de chamar o próprio produto, como ocorreu com bombril ou gilete no Brasil. (N. T.)

2. Cozido de carne típico da culinária chilena. (N. T.)

3. Jogo de tabuleiro baseado na cidade de Santiago do Chile e com regras semelhantes às do Banco
Imobiliário/Monopoly. (N. T.)

4. Sanduíche chileno de lé, tomate, vagem e pimentão. (N. T.)

5. Pão caseiro cuja massa é dobrada antes de assar, tradicional no Chile. (N. T.)

6. Queijo chileno de leite de vaca, macio e muito popular no país. (N. T.)
 

  nasceu em Santiago, no Chile, em 1975. É autor dos


romances Bonsai (2006), A vida privada das árvores (2007), Formas de voltar
para casa (2011), Múltipla escolha (2014) e Poeta chileno (2020), dos contos de
Meus documentos (2013), dos volumes de poesia Bahía inútil (1998) e
Mudanza (2003) e dos livros de ensaios No leer (2010) e Tema libre (2019). Suas
obras foram traduzidas para mais de vinte idiomas e seus textos saíram em
publicações como Granta, The New Yorker, The Paris Review, entre outras. Vive
na Cidade do México, com a mulher Jazmina e o lho Silvestre.
Copyright ©  by Alejandro Zambra

Gra a atualizada segundo o Acordo Ortográ co da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor
no Brasil em 2009.

Título original
Literatura infantil

Capa
Elisa von Randow

Ilustração de capa
Jesús Cisneros

Preparação
Renata Leite

Revisão
Marina Nogueira
Marise Leal

Versão digital
Rafael Alt

 978-85-3593-794-7

O autor agradece a Andrés Braithwaite, editor do manuscrito original.

Todos os direitos desta edição reservados à


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