Literatura Infantil - Cartas Ao Filho - Alejandro Zambra
Literatura Infantil - Cartas Ao Filho - Alejandro Zambra
Literatura Infantil - Cartas Ao Filho - Alejandro Zambra
Sobre a obra:
Sobre nós:
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Sumário
Capa
Folha de rosto
Sumário
Literatura infantil
Jennifer Zambra
Teonanácatl
Bom dia, noite
Francês para principiantes
Multidão
Tempo de tela
A infância da infância
O menino sem pai
Arranha-céus
Introdução à tristeza futebolística
Assaltantes de olhos azuis
Lições tardias de pesca com mosca
Recado para meu lho
Agradecimentos
Sobre o autor
Créditos
Para a mãe do Silvestre e para o lho da Jazmina
Desde a infância gosto de olhar para meu quarto da
perspectiva de um pássaro.
Bruno Schulz
Com você no colo, vejo pela primeira vez, na parede, a sombra que
formamos juntos. Você tem vinte minutos de vida.
Sua mãe fecha as pálpebras, mas não quer dormir. Descansa os olhos por
apenas alguns segundos.
— Às vezes os recém-nascidos se esquecem de respirar — nos diz uma
enfermeira gentil e estraga-prazeres.
Fico me perguntando se ela fala isso, desse jeito, todos os dias. Com as
mesmas palavras. Com o mesmo tom prudente de advertência triste.
Seu pequeno corpo respira, sim: mesmo na penumbra do hospital, sua
respiração é visível. Mas eu quero ouvi-la, quero ouvir você, e meu próprio
respirar me incomoda. Meu coração ruidoso me impede de escutar o seu.
Ao longo da noite, a cada dois ou três minutos seguro o ar para veri car
se você está respirando. É uma superstição tão sensata, a mais sensata de
todas: parar de respirar para que um lho respire.
Caminho pelo hospital como quem busca as rachaduras decorrentes do
último terremoto. Penso em coisas horríveis, mas também consigo
imaginar as cicatrizes que um dia você exibirá, orgulhoso, num m de
verão.
Você chora e quem aparece sou eu. Que fraude. Talvez nossos pais
tenham levado a sério demais essas primeiras rejeições.
Não sou seu preferido, mas você se acostuma com a minha companhia.
E eu me acostumo a dormir quando você dorme. O ritmo do sono
intermitente me faz lembrar dos meus cochilos nas incontáveis longas
viagens de ônibus para o colégio ou para a faculdade, para assistir a aulas
em que continuava cochilando. Ou essas deliciosas sestas furtivas que me
ajudaram a sobreviver à vida laboral.
De repente tenho quinze anos e é meia-noite e estou estudando algo que
não sei se é química ou álgebra ou fonética e acabaram os cigarros e isso é
um problema porque nos sonhos eu fumo muito. Sou acordado por uns
cachorros tímidos que começam seu concerto de latidos e pelas marteladas
de um vizinho que talvez esteja pendurando na parede um retrato de seu
próprio lho e por isso não vê problema em acordar o meu.
Mas você continua adormecido em meu peito, parece inclusive estar em
um sono mais profundo, dormindo para valer. Não faço ideia de que horas
sejam. E não importa. Onze da manhã, três da tarde. Assim passam os dias,
cansativos porém felizes, entremeados por dias felizes porém cansativos e
por dias felizes porém felizes.
A palavra infantil costuma ser usada como insulto, embora a quantidade
de palavras que não são insultos mas podem cumprir essa função seja quase
ilimitada. Basta trabalhar um pouco o tom.
Me lembro de uma menina muito doce, lha de um de meus melhores
amigos, que uma tarde se irritou com seu boneco favorito e cou gritando
cruelmente com ele por umas duas horas, repetindo vez após vez: “Um
bichinho de pelúcia! É isso que você é, um bichinho de pelúcia! Você
acha que é de verdade, mas é só um bichinho de pelúcia!”.
Aos quinze anos, eu me irritava quando se referiam a mim usando a
palavra jovem. Não me lembro se alguma vez fui chamado de adolescente,
mas teria odiado também. No plano da linguagem, estritamente,
adolescente é uma palavra perfeita, mas quando entendida como insulto
pode ser devastadora.
Esta semana você ganhou os mesmos cem gramas que eu devo ter
perdido dançando contigo nos braços. O lho engorda o que o pai
emagrece. É a dieta perfeita.
Meu pai se tornou pai aos vinte e quatro anos e eu aos quarenta e dois.
Não paro de pensar nisso. É o que temos.
Quando você tem um lho, volta a ser lho. Mas a experiência em si,
domesticada pelo tempo e marcada ou condicionada pela idealização, pela
discórdia ou pela ausência, não é su ciente.
Você queria se lembrar dos dias e noites em que cuidavam de você tal
como agora você cuida de seu lho. Embora talvez não cuidassem tanto
assim de você. Talvez te colocassem no cercadinho e te deixassem chorar e
te en assem uma mamadeira. E ligassem a tevê, e pronto.
Nós nos comparamos a nossos pais, embora — sabemos — já não
possamos ser iguais a eles nem essencialmente diferentes deles. E, como os
matamos aos vinte anos, não podemos matá-los de novo; por isso mesmo às
vezes acabamos por ressuscitá-los.
Você chora quando percebe que seus pés não servem para segurar
objetos. Mas logo decifra, maravilhado, os desenhos do lençol. E as
imperfeições da coberta. E as gotas de chuva na janela. Sua mãe imita os
trovões e eu, os relâmpagos. Está tudo bem.
“Não relate seus sonhos, por favor, e nem pense em falar de crianças ou
de animais de estimação”, um premiado escritor disse a uma amiga minha
que queria escrever um romance sobre seus sonhos e sobre sua lha e
sobre seu gato. Eu, por outro lado, acredito que seja importante aceitar
todos esses desa os.
Toda pessoa que tenha criado um lho sabe que em muitas ocasiões a
palavra felicidade rima inexplicavelmente com a palavra lombalgia.
Como não sou imune ao otimismo, tendo a pensar que hoje em dia
aceitamos que até nossos próprios lhos são lhos alheios e estão
destinados a entender o mundo segundo categorias que sequer somos
capazes de imaginar. “Sempre esperando por eles sem nunca lhes pedir
que voltem”, diz luminosamente Massimo Recalcati em seu estupendo
ensaio Il segreto del glio [O segredo do lho].
Um curador de arte a quem devo ter visto cinco vezes na vida mas que
me considera seu amigo íntimo me ligou às duas da manhã para contar
que estava pensando em ter um lho. “Quero uma mudança na minha
vida”, o mezcal disse através dele.
Talvez ele seja, sim, meu amigo, pensei. E é verdade que vou com a cara
dele. Gosto dele. A primeira prova de meu carinho é que em vez de
mandá-lo à merda reagi com cautela. A segunda é que preferi atribuir a ele
uma pro ssão diferente, caso venha a ler isto (não é curador de arte, mas
talvez devesse ser: faria bem isso).
Da mesma forma que é profundamente ingênuo ter um lho supondo
que a vida seguirá do jeito que era, tornar-se pai com o único propósito de
gerar uma mudança é de uma estupidez sem tamanho. Não falei isso dessa
forma ao curador, justamente porque gosto dele. Mas falei. E ele
entendeu. Depois me ofereci para um estudo de campo: propus que ele
viesse almoçar conosco e que passássemos a tarde toda com meu lho.
Nós, homens, construímos certa ideia de companheirismo a partir de
bebedeiras memoráveis que nos levaram a um emocionante beco sem saída
de con ssões e cumplicidades. Mas nos conhecemos mais intensamente
quando passamos uma tarde inteira com um amigo que agora é pai e que
nos recebe com alegria e fala sobre qualquer coisa, não necessariamente
sobre paternidade, mas não nos olha mais nos olhos, pois tem o olhar xo
naquela criança que a qualquer momento pode resolver sair em disparada e
se estropiar toda.
Como imaginei, o curador não veio. Telefonou várias horas depois para
pedir desculpas. Disse que estava com muito trabalho e que eu não
precisava me preocupar, porque a crise já tinha passado: estava solteiro
agora. Não soube o que responder. Parabéns, eu disse, ao nal.
As músicas da Marisa
e as fotos do tio Toumani
— que é o primo da sua mami —
paroquianos desta missa
testemunham sua alegria
Óscar, Paula e Margarita
Héctor, Adolphe e Lupita
E também John e Joanna
— e meus pais e minha mana
cuja ausência era prevista.
Conversei sobre tudo isso com a sua mãe naquela tarde no diner.
Deveria ter sentido antes o pânico especí co de estar falando demais. Por
sorte o garçom nos interrompeu, aparentemente queria saber se estávamos
bem. Depois sua mãe foi ao banheiro e checou o celular e fomos
interrompidos também pelo mundo com alguma notícia urgente da qual
não me lembro, mas que alterou ligeiramente o roteiro.
— Sua vez — falei, pensando que ela devia ter esquecido de minha
pergunta.
— Eu sei — ela respondeu.
Foi então que sua mãe pronunciou o seu nome, o nome que agora é
apenas seu, mas que teria sido dela caso tivesse sido .
— Meus pais tinham tanta certeza de que eu seria homem que sequer
pensaram em uma listinha básica de nomes de mulher — sua mãe disse,
como se estivesse imitando a pose de uma heroína romântica. — Tiveram
que improvisar comigo, tiveram que inventar às pressas um nome para
mim.
E caminhou e caminhou
até que um dia chegou
à cozinha
e caminhou e caminhou
até que um dia chegou
ao banheiro
e caminhou e caminhou
até que um dia chegou
à cama
e acabou dormindo
e ao ver suas pálpebras
vibrando em um sono profundo
parecia que continuava caminhando
e pulava mais e mais
e crescia mais e mais.
Você quer o livro da toupeira, o que ultimamente tem lido com sua mãe
o tempo todo, mas é em francês, uma língua de que sei pouco — “você
sabe francês sim, papai”, você diz, para me injetar con ança. Achava que
você iria reclamar, inclusive chorar, mas em sua fala é como se você fosse o
pai e eu um rapaz com medo de subir no palco.
Procuro em suas prateleiras esse livro retangular e esquivo com a
esperança de não o encontrar, mas encontro-o de cara. Penso em ngir que
não estou encontrando, mas não quero mentir para você — não quero
mentir e ao mesmo tempo quero que você acredite, que continue
acreditando, que eu sei francês, ou talvez queira que, milagrosamente, pelo
simples fato de querer ler esse livro para você, surja em minha cabeça um
conhecimento prévio e sólido da língua francesa. Porque quero ler direito
para você, sem omitir partes ou vacilar. Quero que haja música. A primeira
coisa que fazemos todas as manhãs é ouvir música e dançar. E, quando nos
deitamos para ler no sofá, quero que a literatura seja um prolongamento
natural da música, outra forma de música.
É uma história genial, que além do mais está em sintonia com sua
recente paixão escatológica: a toupeira recebeu um cocô na cabeça e, em
vez de se limpar, decide usar aquilo como evidência para achar o culpado,
então vai até a pomba exibindo o tolete como se fosse um topete ou uma
coroa. A pomba alega inocência e produz no ato um excremento
espontâneo que em nada se parece ao cocô que o protagonista traz na
cabeça. A pobre toupeira confronta com coragem e dignidade os demais
suspeitos, mas a lebre, a cabra, a vaca e o porco também produzem suas
próprias mostras fecais que funcionam como álibis irrefutáveis, de modo
que a única coisa que resta a fazer é consultar a opinião especializada de
umas moscas, que então pousam no cocô-coroa e concluem que, sem
sombra de dúvida…
O nal você já sabe. Os nais, para você, não estão vinculados a um
desfecho, nem representam a meta, e sim uma posição intermediária,
como quando um velocista completa o circuito, mas ainda faltam várias
voltas para a corrida terminar. Na verdade, é assim que funciona, também,
a literatura dos adultos, embora costumemos ignorar esse fato; costumamos
nos render à superstição do nal, do desenlace, porque às vezes precisamos
imaginar que as histórias terminam, obedientemente, na última página.
Traduzo o melhor que posso e improviso vozes diferentes e, espero,
divertidas para os animais da história. Em alguns momentos sinto que estou
me safando, mas não, a coisa não vai bem, e você percebe. Parece-me que
você não se atenta somente, como antes, aos desenhos: sua atenção se volta
também a essas palavras desconhecidas que associa às frases já familiares,
para você, dos personagens. Mesmo sabendo que ler comigo não é o
mesmo que ler com sua mãe, você acha estranho que minha versão seja
tão diferente da versão dela. Você me corrige, aperfeiçoa no ato minha
tradução. Na releitura, na primeira releitura, incorporo esses matizes que
desconhecia e que você acaba de me revelar, de maneira que a história ui
melhor e isso permite que minha interpretação cresça, que a voz da
toupeira seja mais engraçada, por exemplo.
Você sabe à perfeição a história da toupeira, quase que poderia lê-la
sozinho, ainda que por ora ler seja algo que você faça por meio de sua mãe
e de mim e de sua avó e de qualquer adulto que esteja por perto. Há dias
em que você me diz “leia para mim”, mas também, com frequência, diz
“quero ler”, o que certamente não signi ca que você queira aprender a ler
sozinho, e sim que quer que eu leia para você, ou talvez, mais
precisamente, que deseja que aquilo que acontece quando lemos aconteça,
porque o que acontece é diferente a cada vez, isso nós já sabemos: entre
uma leitura e uma releitura, em questão de segundos, o livro já mudou e
nós já mudamos; detemo-nos em episódios diferentes, jogamos um jogo
feito de interrupções e continuidades que é sempre novo.
Antes, quando tinha acabado de aprender a caminhar, você me via
lendo sozinho e subia em meu colo para se interpor entre o livro e meus
olhos, igual aos gatos, embora você tivesse a gentileza de não arranhar as
páginas. Logo você deixou de lado essa gentileza, porque a curiosidade deu
lugar à rebelião: ver-me lendo sozinho, em silêncio, começou a se tornar
para você algo intolerável, e você tirava o livro de mim ou rasgava a página.
É que a leitura em silêncio parece individualista, mesquinha, murcha.
Agora, quando você me surpreende durante o ato mesquinho de ler em
silêncio, pede que eu leia em voz alta e eu sempre aceito, de modo que
você já conhece algumas frases de Jenny Of ll e uns versos de Idea
Vilariño e até uns dois ou três parágrafos de A montanha mágica.
Ninguém te ensinou nada sobre música, não foi preciso. A música estava
presente, desde antes do parto; ninguém teve que te explicar o que é, como
funciona. Ninguém te explicou, tampouco, a literatura, e tomara que não
te expliquem nunca. A leitura silenciosa é, de certa maneira, uma
conquista; nós, os que lemos em silêncio e solitários, aprendemos,
justamente, a estarmos sós, ou melhor, reconquistamos uma solidão menos
agressiva, uma solidão despida de angústia; sentimo-nos povoados,
multiplicados, acompanhados enquanto lemos em sonora solidão. Mas isso
você descobrirá sozinho daqui a alguns anos, eu sei. Vai decidir por si
mesmo se ainda tem interesse nessa forma de conhecimento tão estranha,
tão especí ca, tão difícil de descrever, que a literatura possibilita.
Lemos de manhã e às vezes também de tarde, e todas as noites eu ou sua
mãe lemos três histórias para você antes de dormir. Você não aceita nem
uma nem duas histórias, precisam ser três. E nunca pede que repitamos
alguma das três histórias de noite. É agora, de manhã, que você parece
preferir a repetição de uma mesma história. Talvez os livros diurnos
funcionem para você mais como música e os noturnos sejam, esses sim,
histórias propriamente ditas, mas não quero chegar a conclusões
precipitadas, porque além do mais são os mesmos livros, não há um
repertório especí co de histórias diurnas e outro de histórias noturnas (a
única categoria estável e misteriosa é a dos livros que você chama “de
cocô”, dos quais o da toupeira curiosamente não faz parte). Acontece
também de você me pedir de manhã a história que lemos na noite anterior,
como se durante as oito ou nove horas em que você dorme o livro tivesse
cado em suspenso, sobrevoando seu sono.
Toda noite, a leitura constrói uma iminência ou um umbral: é o trecho
do caminho que só podemos fazer navegando. Depois de ler, com a
lanterna em mãos, O jogo das sombras, de Hervé Tullet, a cerimônia se
torna interminável, e algo parecido acontece com O livro sem guras, de B.
J. Novak, que te desperta gargalhadas ferozes, ou com O livro fedido, de
Babette Cole, ou com quase todos os magní cos contos de Gianni Rodari.
Na verdade, são muitos os livros que saem pela culatra, porque, em vez de
construírem o prelúdio para o sono, acabam te deixando mais acordado: de
repente você parece convencido de que dormir é uma perda de tempo.
Mas não importa, a função da literatura nunca foi induzir o sono de
ninguém. Há momentos em que a leitura agita sua imaginação, que por si
só já é agitada, mas mesmo assim contribui para terminar bem o dia. O que
importa é o ritual, claro, a cerimônia. A companhia.
Em seu lindo ensaio Como um romance, Daniel Pennac lamenta que ele
e sua esposa tenham parado de ler histórias para seu lho quando o
menino aprendeu a ler sozinho. Mas pode ser que não tenha sido culpa do
pai nem da mãe. Talvez o próprio menino tenha decidido deixá-los de fora
da cerimônia da leitura. Não queremos que isso aconteça. A leitura não
pertence à série de atividades que fazemos por você enquanto você não
aprende a realizá-las sozinho. Não é como escovar os dentes ou se vestir ou
cortar as unhas.
Tampouco é como caminhar, embora eu goste de pensar que é parecido.
Nós te carregamos no colo até você aprender a andar e continuamos te
carregando quando você se cansa e às vezes te carregamos mesmo que você
não esteja cansado e continuaremos fazendo isso enquanto aguentarmos
seu peso e enquanto você aguentar o peso simbólico de ser carregado por
nós. Agora você lê através de nós, mas quando souber ler sozinho talvez
não ache tão divertido que leiamos para você. Teremos que inventar
alguma coisa, tomara que consigamos pensar num jeito de perpetuar essa
cerimônia, a mais importante do dia; que a forma mude, tudo bem, mas
que continue acontecendo.
Depois das histórias vem a música, as últimas músicas. Sempre, desde
seus primeiros dias de vida, eu costumo cantar “Beautiful Boy” para você,
mas as outras músicas não são de ninar. Talvez “Two of Us” tenha algo de
lullaby, embora não seja uma música sobre pais e lhos e sim sobre amor e
companheirismo, e por isso eu a canto para você. As outras músicas — de
Violeta Parra, Silvio Rodríguez, Andrés Calamaro, Los Jaivas — são
músicas de amor ou de protesto ou de amor e de protesto.
Todas as noites eu e sua mãe nos revezamos no ritual dos três livros e das
três ou quatro (ou cinco) músicas. As manhãs, por sua vez, sempre
começam comigo. Eu, que costumava ser um pássaro noturno, agora
madrugo junto contigo: quase todos os dias de sua vida assistimos juntos ao
amanhecer. Mas você nem sempre gostou do fato de ser eu seu
incondicional companheiro matutino. Em tempos que agora me parecem
remotos, você me olhava com uma mistura de descon ança e uma
expressão séria ou altiva que não consigo de nir. Chorava por vinte
segundos, às vezes por um minuto inteiro, antes de en m aceitar meu
consolo. Imagino que a sala era como um bar ao qual você ia para chorar
suas penas de amor lactante e eu era o barman que sabia fazer à perfeição
o suco de laranja do jeito que você gostava, ou o freguês insípido que está
sempre lá, disposto a te ouvir, a rir de suas piadas e a pagar sua conta.
“Vamos continuar, papai”, você me diz agora. Não estou com vontade
de ler a história da toupeira pela terceira vez, mas sei que neste caso
continuar lendo signi ca continuar lendo o mesmo livro. No meio dessa
terceira leitura, sua mãe aparece na sala e saúda respeitosamente o sol
enquanto lemos a história da toupeira pela quarta, pela quinta vez, e a
julgar por seu sorriso cúmplice entendo que estou passando, a duras penas,
na lição de literatura francesa. “Obrigado”, você me diz, em todo caso,
antes de ir embora com sua avó, que acaba de chegar para te levar ao
Bosque de Chapultepec. Fico feliz e orgulhoso por você achar graça em
agradecer, mas dessa vez também co desconcertado e emocionado
porque é a primeira vez que você me agradece pela leitura ou pela
companhia ou sei lá pelo quê, na verdade não tenho certeza do motivo de
sua gratidão. Obrigado por ter lido esse livro em francês, mesmo não sabendo
francês. Obrigado por tentar superar suas limitações intelectuais para me
entreter. Talvez seja algo assim que você queira dizer.
Eu deveria ir para o quartinho do sótão, onde costumo trabalhar, mas
antes de subir faço mais café e volto para o sofá para ler novamente a
história da toupeira, não sei bem por quê. Bem, não há mistério algum: é
porque sinto sua falta. Acontece muito comigo, e também com sua mãe:
justo quando nalmente temos tempo para trabalhar, sua ausência nos
distrai.
Enquanto passo as páginas, preparo-me para ler essa história de novo
para você em um futuro próximo. Embora não tenha muitas palavras, esse
é, a rigor, o primeiro livro que leio em francês. Dou risada ao constatar
isso, porque o francês é o idioma de Marguerite Duras, de Flaubert, de
Perec e de Bove, entre outros autores aos quais tentei ler em seu idioma
original, às vezes com resultados decentes, mas sempre falsos ou
enganosos, porque já havia lido os livros desses autores em espanhol, e
havia passagens que eu sabia de cor e palavras que deduzia ou que não me
importava em desconhecer.
Sim, a história da toupeira é o primeiro livro que leio verdadeiramente
em francês, e o fato de que tenha sido você quem me ajudou a lê-lo me
parece um detalhe crucial, precioso, pedagógico. Só agora presto atenção
no título da história, porque, nos livros para crianças — isso é óbvio, mas
acabo de me dar conta —, os títulos cumprem uma função distinta, têm
menos importância; a verdade é que ignoro os títulos de boa parte dos
livros que li contigo; tal como você, não os identi co pelo título, e sim pelo
animal da capa ou pela cor da capa ou pelo tamanho do livro, de modo
que não me parece estranho que eu desconheça o grandioso título da
história da toupeira: De la petite taupe qui voulait savoir qui lui avait fait
sur la tête, que seria algo como Sobre a pequena toupeira que queria saber
quem tinha feito isso em sua cabeça (na internet encontro uma edição
intitulada Da pequena toupeira que queria saber quem tinha feito cocô na
cabeça dela).
Na literatura infantil os títulos não importam e talvez os autores
importem menos ainda. Penso nisso ao reparar nos nomes perfeitamente
alemães do autor e do ilustrador do livro da toupeira: Werner Holzwarth e
Wolf Erlbruch. Só então percebo que nosso livro é uma tradução,
con rmado pelas minúsculas letras na página de créditos: Vom kleinen
Maulwurf, der wissen wollte, wer ihm auf den Kopf gemacht hat. Esse é o
título original.
Pergunto à sua mãe por que ela comprou o livro em francês e não em
espanhol. Ela diz que a versão em espanhol estava esgotada, e que de todo
modo teria comprado o livro em alemão ou em japonês ou em qualquer
outra língua porque o considera genial, e o sabe de cor, é uma das histórias
que a mãe dela lia para ela. Quando lê esse livro contigo, apenas olha para
as palavras impressas, opera simplesmente com suas lembranças; tem
certeza de que o lê usando as mesmas palavras que a mãe dela lia do livro
em espanhol, traduzido para o espanhol, que tinham em casa. Pergunto o
que aconteceu com aquele livro da toupeira em espanhol. Ela diz que em
algum momento a mãe doou todos os livros que liam juntas para uma
biblioteca.
São cinco e quinze e meu lho acendeu sua luminária do Miffy. Pego-o
no colo e digo, como sempre, que a noite é para dormir e o dia, para
brincar. Ele me olha com compaixão, como quem olha para alguém que
insiste em uma causa inútil. Até poucas semanas atrás, quando Silvestre
acordava antes do amanhecer, aproximávamo-nos da janela e brincávamos
de contar os carros vermelhos ou brancos ou azuis — ele escolhia a cor a
cada vez —, que já àquela hora começavam a se multiplicar, ou
decidíamos os nomes dos transeuntes que corriam para o metrô com seus
urgentes cabelos molhados. Agora não há ninguém nas calçadas e muito de
vez em quando passa algum carro, e pressinto que meu lho vai me
perguntar de novo, como tem feito diariamente nos últimos tempos, onde
está todo mundo, e até me preparo para fornecer alguma resposta, mas ele
não pergunta nada, na verdade cochila e suspira em meu peito.
Ajudado pelo ritmo indeciso da cadeira de balanço, penso em meu
sonho, nessa multidão que já se tornou abstrata, inde nida, extemporânea.
Não é raro que eu sonhe com multidões; pelo contrário, meus sonhos
costumam estar cheios de gurantes que se tornam personagens
secundários e de personagens secundários que de repente ganham
protagonismo, mas me pergunto se esse sonho é novo, se essa multidão é
nova. Talvez todas as pessoas que apareciam em meu sonho também
tenham sonhado na noite anterior, por sua vez, com ruas lotadas. Fico
entusiasmado com essa ideia, com esse desejo lírico. Penso nas pessoas que
passaram a quarentena, a pandemia, sonhando com multidões impossíveis.
Penso em meus amigos no Chile, que dois meses atrás ocupavam as ruas e
agora repassam, momentaneamente sozinhos, nossos sonhos coletivos.
Penso na discutível beleza da palavra multidão. No que essa palavra revela
e no que oculta.
Lembro-me de uma noite em que eu estava, aos doze anos, no metrô.
Éramos muitos os que, àquela hora, perto das oito, voltávamos de nossos
colégios no centro de Santiago para nossas casas geminadas em Maipú. Os
ônibus prometiam diversão ou ao menos companhia, mas nessa noite eu
quis ir de metrô para me adiantar, porque não queria encontrar ninguém.
Estava triste, não me recordo por quê. Lembro-me, isso sim, do momento
em que, segundos antes de descer na estação Las Rejas, olhei a multidão da
qual eu fazia parte e pensei algo como todos têm uma vida, todos vão para
suas casas, todos têm algo que lhes falta ou lhes sobra, todos estão tristes ou
felizes ou cansados. Anos mais tarde, quando me falaram do conceito de
epifania, soube imediatamente a que experiência associá-lo.
Graças às suas conversas com a sua mãe e à leitura dos cadernos que ela
escrevia, o poeta Robert Lowell, nascido em 1917, conseguiu imaginar
com precisão o tempo em que, como ele disse, “os Estados Unidos
entraram na guerra e minha mãe entrou na vida matrimonial”. Em seguida
acrescenta esta ironia terna e precisa: “Costumava me orgulhar de não
poder ser culpado por nada do que aconteceu durante os meses em que
começava a viver”. Em meu caso, aos vinte anos, por outro lado, quando
resolvia olhar os álbuns de fotos, eu não sentia orgulho, e sim uma espécie
de vergonha, às vezes própria e outras vezes alheia, mas sempre, sobretudo,
urgente — não tanto pelo que as fotografas revelavam, e sim pelo que eu
supunha que elas se negavam a mostrar.
Não me lembro de naquele momento ter pensado que o registro fosse
escasso, acho até que me parecia farto. Imaginava meus pais classi cando
essas fotos nas páginas adesivas desses álbuns durante os anos mais ferozes
da ditadura. Sentia que tudo era frágil demais, e que eu era estúpido
demais. Parecia-me horrível não me lembrar de nada ou reconhecer cenas
implantadas por relatos familiares que de todo modo soavam sempre vagos
para mim, sempre particulares demais.
∞
É 1978 ou 1979, tenho três ou quatro anos e estou sentado no sofá, junto
a meu pai, assistindo na tevê a um jogo de futebol, e minha mãe entra para
encher nossos copos de coca-cola. Por décadas considerei ser essa minha
primeira lembrança, o que, em princípio, não parece discutível: cresci em
uma família onde não apenas minha mãe como todas as mulheres serviam
os homens, um mundo onde a televisão cava na sala e estava
permanentemente ligada e era quase sempre, assim como a coca-cola,
permitida às crianças. Minha lembrança não está vinculada a nenhuma
fotogra a nem a qualquer relato familiar e talvez por isso eu a considerasse
uma lembrança pura, não implantada, inquestionável. Não é difícil,
contudo, desfazer a certeza: durante os vinte anos em que morei com meu
pai, vimos cem ou quinhentos ou mil jogos de futebol juntos, mas me
lembro dessa cena como se ela tivesse acontecido uma única vez. Tenho a
impressão, e meu pai, a certeza — acabo de con rmar isso, por telefone
—, de que meu amor pelo futebol não foi tão precoce; aconteceu mais
tarde, aos seis ou sete anos, quando já morávamos em outra casa e em
outra cidade.
Em todo caso, minha lembrança não a rma que víamos um jogo inteiro
nem que eu estivesse interessado em futebol. De fato, o que tenho é um
ash, que dura dois ou três segundos de completo silêncio. Esse silêncio é,
quiçá, a coisa mais suspeita acerca dessa lembrança, em particular no que
diz respeito a meu pai, que assistia ao noticiário impassível, mas era
incapaz de car calado quando via jogos de futebol. Ainda hoje essa é uma
diferença entre nós: eu assisto aos jogos em estado de tensão absoluta, e
mal solto um ou outro comentário, enquanto meu pai berra instruções e
xinga o árbitro como se pudesse in uenciar os rumos do jogo.
∞
Penso no extraordinário começo de Fala, memória, de Nabokov: o
menino “cronofóbico” que assiste a um vídeo anterior a seu nascimento e
vê sua mãe grávida e o berço que preparam para ele lhe parece um túmulo.
Penso no devastador primal scream de Delmore Schwartz, “Nos sonhos
começam as responsabilidades”, um dos contos mais belos que já li, ou nos
delírios geniais de Vicente Huidobro em Mio Cid Campeador, ou de
Laurence Stern no Tristram Shandy. Penso na estremecedora “lembrança
inventada” que dá a forma de A língua absolvida, de Elias Canetti, e em
fragmentos de Virginia Woolf e de Rodrigo Fresán e de Elena Garro. A
lista começa a se tornar interminável, procuro uma e outra vez nas estantes
livros que quero reler, mas de repente reparo que meu lho está há tempo
demais em silêncio. Comprovo que está no chão, com seus gizes de cera.
Depois de vários meses dedicado a desenhar sucos, agora está se
especializando em pizzas e em planetas e em pizzas-planetas.
Minha primeira lembrança não é, aparentemente, traumática, mas basta
uma análise super cial para descobrir que nesse lme estou exposto à
televisão e ao futebol e ao machismo e ao açúcar e ao ácido fosfórico, de
modo que a lembrança atua como fundamento e, inclusive,
eventualmente, como justi cativa e álibi. Uma leitura mais coletiva me
leva a contrapor essa lembrança às imagens da época: ruas arrasadas pela
violência militar em que alguns homens e mulheres resistem com valentia
suicida e idealista — mas não meu pai, que está comigo vendo um jogo de
futebol, nem minha mãe, que nos serve coca-cola.
Na vida de meu lho, uma “primeira lembrança” semelhante seria
impossível, porque ele está crescendo em um mundo, ou ao menos em um
interior, em que nenhuma mulher está a serviço de homem algum, um
mundo onde é seu pai que todo dia lhe prepara o café da manhã em uma
cozinha em cuja geladeira não há garrafas de coca-cola, de fato ele nunca
provou uma coca-cola (nem normal nem light nem zero). E nunca viu um
jogo de futebol, porque nunca viu televisão e porque atualmente o futebol
é jogado em estádios vazios.
Parei de fumar e bebo álcool muito eventualmente — embora mesmo
assim mantenha um pequeno barzinho com vinhos, piscos e mezcais em
garrafas tamanho bonsai — e posso passar longas temporadas sem comer
carne vermelha ou frango com hormônios, mas não consegui curar
totalmente meu vício em coca-cola; de tempos em tempos compro uma e
meu lho me observa tomando-a com curiosidade, embora tenha certeza
de que, como sempre deixo claro — com uma ênfase que em breve
começará a lhe parecer suspeita —, trata-se de um remédio que tem um
gosto horrendo, a ponto de, depois de tomá-lo, eu improvisar uma
convincente ânsia de vômito.
“As crianças servem para que seus pais não quem entediados”, diz um
personagem de Ivan Turguêniev, e se a piada funciona é porque a vida com
lhos nos pode parecer, pelo contrário, um incessante sacrifício cotidiano.
Muitas vezes, no entanto, aplaquei momentaneamente a angústia ou a
raiva ou a melancolia brincando com meu lho, como se sua existência
funcionasse não apenas como um passatempo, mas também como um
antidepressivo ou um ansiolítico.
Semana passada, um querido amigo me ligou para falar de sua volta ao
alcoolismo e de suas incontroláveis maratonas de Net ix (sua interação
mais frequente com o mundo consistia em responder à pergunta Are you
still watching?) e dos contínuos surtos de tristeza que precipitaram uma
calvície inesperada.
— Não sei como vocês fazem — ele me disse de repente, mudando de
tom ou de ritmo.
— Como assim?
— Com um lho.
“Como é que você faz sem um lho”, estive prestes a responder, mas não
quis frustrar sua expectativa: alegrava-me saber que, apesar de tudo, meu
amigo sentia ou imaginava que ele estava melhor que nós. Há algo tão
de nitivo na paternidade que até então eu não tinha parado para pensar
em como teriam sido os últimos meses caso os tivesse passado sozinho. De
repente me vi em um mundo paralelo onde eu era, como meu amigo, um
avinagrado personagem alopécico, e me custou muito imaginar de onde
diabos eu tiraria alguma energia para procurar apalpando, entre os lençóis,
o controle remoto (ia escrever “para continuar vivendo”, mas me pareceu
uma frase dramática demais, embora certamente nesse terrível mundo
paralelo essa frase não teria me parecido, de forma alguma, dramática).
Todos os dias sinto que meu lho está mudando e que seus vaivéns e
acelerações têm construído a música que nos permitiu passar esses meses
com alegria. Umas semanas atrás ele entrou em uma bolha, com outras
cinco crianças e uma professora paciente, e todas as manhãs diz que não
quer ir, mas vai e se diverte; precisa dessas crianças que não brincam nem
dançam do seu jeito mas que lhe ensinam algo. Eles se ajudam
mutuamente, e se distanciam dos pais com velozes passos de tartaruga.
Acho que Turguêniev tinha razão, e não há contradição alguma: os pais
existem para entreter seus lhos e os lhos servem para que seus pais não
morram de tédio (nem de angústia). São ideias complementares que talvez
possam nos servir para ensaiar novas de nições da felicidade ou do amor
ou do cansaço físico, ou de tudo isso junto, simultaneamente. Agora
mesmo, enquanto escuto no rádio as dolorosas notícias matinais, sinto falta
da companhia de meu lho — ele costuma se levantar às seis ou até antes,
mas já são quase sete e ele continua na cama e minha vontade é de acordá-
lo, porque estou entediado, porque estou angustiado.
O menino sem pai
Os amigos se perdem um pouco de vista no Natal e no Ano Novo, e em
janeiro Darío vai para Loncura nas férias e Sebastián ca sozinho,
provavelmente resignado a olhar o céu sob o sol agressivo do verão
santiaguino a toda. Darío gosta de praia, quem não gosta, mas não o agrada
o fato de ter os pais em cima dele o dia todo, desesperados para se
divertirem. Sente saudades de Sebastián, muitas. Como costuma acontecer
na costa, são dias sufocantes, quase frios, com nuvens pesadas e lentas que
mal deixam o sol passar. É um pouco engraçado ou lastimoso ver os turistas
teimosos cravando seus inúteis guarda-sóis na areia.
Há um telefone amarelo perto da pequena cabana de madeira que
alugaram. Darío se perde no pensamento inútil de ligar para Sebastián,
que não tem telefone, Darío também não; vivem em um mundo sem
telefones. De tarde ele se aproxima da cabine e permanece a certa
distância ouvindo as conversas alheias. A comunicação é quase sempre
ruim e as pessoas gritam frases muito particulares, às vezes absurdas, que
Darío tenta gravar na mente para depois anotá-las em seu caderno: eu
coloquei metade mas não é para isso, claro que sei que você é da família, vai
voltar caminhando como sempre.
Uma noite ele acorda em pleno transe epistolar. Consegue escrever uma
carta brilhante, grosseiríssima, está quase certo de que é a melhor de toda a
sua abundante produção, e embora seu plano seja dá-la ao amigo quando
voltar para casa, aproveita um passeio em Quintero para ir aos Correios e
mandá-la registrada. Por sorte se lembra do número escrito na fachada da
casa de Sebastián. Naquela mesma tarde consegue nalmente que
comprem para ele uns óculos escuros bem parecidos aos de seu amigo.
Darío passa as últimas semanas na praia deitado na areia por horas com
seus novíssimos óculos. E chega até a inventar novas formas de classi car
as nuvens enquanto pensa intensamente na cena genial do carteiro
entregando a carta a Sebastián.
A primeira coisa que faz ao voltar para Santiago é ir ver o amigo. É cedo,
calcula que Sebastián deve estar em casa vendo tevê. Mas não há ninguém,
ou ao menos ninguém abre a porta para ele, e Darío pensa que seu amigo
desapareceu de novo. Fica parado em um lugar, como um guarda,
esperando; Lali o encontra ali, ao voltar do trabalho, e reage com
incômodo. A suspeita ou o pressentimento de Darío desta vez é certeiro:
Lali diz que Sebastián está ocupado, que tem estado ocupado o dia todo e
que ela mesma mandou que ele não abrisse a porta, porque eles não
podem mais ser amigos. A mulher não quer dar explicações. Darío insiste,
mas ela o deixa falando sozinho.
Volta para casa desolado, chutando uma mesma pedra. Na manhã
seguinte encontra uma breve carta de Sebastián, sem palavrões: é uma
mensagem de ruptura, uma renúncia à amizade. Sebastián não explica
direito, mas Darío entende que Lali leu as cartas e entendeu tudo errado.
Darío passa horas especulando, não sabe se Lali leu todas ou apenas uma,
o que, é claro, dá no mesmo.
Darío é insistente por natureza, mas Sebastián continua sem abrir a
porta. Darío intercepta Lali novamente, que volta a proibi-lo de aparecer
de novo. Como último recurso, escreve uma carta para a mãe de seu
amigo. É a carta mais oreada e eloquente e com a melhor caligra a que
já escreveu na vida; a única que nasceu do desejo urgente de conseguir
algo concreto; a única dedicada inteiramente a pedir desculpas. Ele tem
esperanças, con a que tudo se resolverá, mas as semanas passam sem
resposta. “Era uma brincadeira, Lali, era uma brincadeira, uma simples
brincadeira.” Muitas noites ele acorda sussurrando essa frase, com raiva.
Nas poucas vezes em que se encontram na rua, Sebastián baixa a vista e
apressa o passo. Talvez também tenha sofrido ou esteja sofrendo, mas
Darío acha que não dá para perceber e tenta não gostar mais dele. Pensa
naquela conversa sobre a morte, mas não quer ser compassivo, quer
desprezá-lo. Decide que Lali é uma velha puritana e a obediência de
Sebastián lhe parece incompreensível, ela nunca caria sabendo se eles
continuassem sendo amigos. Mas Sebastián a obedece, tem medo dela.
Darío acha que é possível que ele chegue a odiar Sebastián, mas sente falta
dele. E também sente falta de Lali.
Darío se esforça para sair o mínimo possível. Por ora, está em uma
sinuca de bico, e não parece haver solução: quando toma o caminho
longo, ca angustiado ao passar pela casa de seu ex-amigo, e quando
escolhe o caminho curto os resultados são desastrosos, porque o ódio de
Simaldone se multiplicou por mil. “Os cachorros farejam o medo”, diz a si
mesmo, às vezes em voz alta; ouviu essa frase a vida toda. Repete-a como
um mantra, para criar coragem, mas não serve de nada.
Consegue faltar ao colégio por uma semana inteira inventando
sucessivas doenças. Quando nalmente o levam ao médico, ocorre que
está de fato doente. É diagnosticado com uma doença nova, acaba de ser
descoberta, diz o doutor: intestino irritável. Mas deve voltar ao colégio. E
Darío se recusa. Até seus pais, normalmente dados a ignorar os problemas,
percebem que algo está acontecendo com ele. Interrogam-no
intensamente até que ele não tem mais o que fazer senão confessar seu
medo de Simaldone. Sua mãe sugere que ele vá pelo caminho longo, mas
seu pai, depois de morrer de rir, a rma que isso seria uma estupidez, uma
viadagem: homens de verdade enfrentam seus medos. Darío insiste que só
tem medo desse cachorro, embora em algum momento se veja obrigado a
admitir que tem medo de todos os cachorros do mundo.
Uma noite o pai de Darío decide falar com os donos de Simaldone. É
uma situação estranha. Os pais de Darío não costumam falar com os
vizinhos; os adultos, em geral, não se falam; são as crianças que passam o
dia todo na rua, são como emissários de diversas ilhas, os comerciantes de
um arquipélago. O pai de Darío diz aos donos de Simaldone que não
podem deixar um cachorro solto o tempo todo. Os donos de Simaldone
argumentam que o cachorro é um pouco irritadiço mas cuida da casa e por
extensão do bairro todo, é um cachorro corajoso. Além disso, só late para as
rodas dos carros e para pessoas desconhecidas ou suspeitas. Talvez Darío,
insinuam eles, seja para o cachorro, por algum motivo, uma pessoa
permanentemente desconhecida e suspeita. Na verdade, Simaldone late
para quase todo mundo, mas o argumento funciona e ca instalado como
verdade. Mais para o nal da reunião improvisada, o próprio Simaldone se
aproxima, ofegante e amistoso, do pai de Darío, que acaricia seu pelo e
segura sua patinha direita como se selasse um negócio.
“Você precisa enfrentar seus medos”, o homem diz depois a seu lho. É
uma frase que, se pronunciada com cuidado, poderia até ser carinhosa,
protetora, mas ele a diz com aspereza, como se fosse um decreto, como se
estivesse proibindo para sempre o medo. Darío não quer que seu pai o
defenda de nada, não quer que seu pai nunca mais vá falar com nenhum
vizinho, de modo que tenta, todos os dias, acostumar-se com aquele
cachorro cínico e valentão: tortura-se a si mesmo caminhando inclusive
mais lentamente, como se quisesse, como se desejasse que o vira-lata o
atacasse. De vez em quando para e olha dentro dos olhos do cachorro, que
late ainda mais forte, talvez meio desconcertado, mas de todo jeito
intimidante. E talvez Darío deseje exatamente isto: que Simaldone crave
suas presas nele e que todos entendam que ele tinha razão, mesmo que
depois tenha que andar de muleta pelo resto da vida.
Não fui a Nova York porque não quis cortar o cabelo. E meu pai não leu
minha “Carta ao pai”.
— Vou lê-la quando estiver com vontade de chorar — ele me disse. —
Mas nunca tenho vontade de chorar.
Eu não soube o que responder. Nunca sabia o que responder. Por isso
escrevia, por isso escrevo. O que escrevo são as respostas que não consegui
pensar a tempo. Os rascunhos dessas respostas, na verdade.
A primeira vez que tentei escrever esta história, por exemplo, te apaguei.
Achava que era possível disfarçar sua ausência, como se você tivesse faltado
à sessão e nós, os demais atores, tivéramos que improvisar alguns ajustes de
última hora.
Só agora entendo que a história começava contigo, porque mesmo que
eu quisesse, de algum modo, evitar isso, esta é, em todos os sentidos, uma
história de amor.
Fazia apenas uma semana que tudo estava em ordem — seria impróprio
dizer que estava tudo bem, porque as coisas nunca iam verdadeiramente
bem, mas às vezes o meio-termo funcionava e havia até dias felizes. Meu
pai e eu, no carro, com os vidros abertos, ouvindo as notícias: talvez
parecêssemos dois amigos, ou dois irmãos, a caminho do trabalho, felizes
de ter um ao outro para tornar mais leve essa viagem conversando sobre
qualquer coisa.
— Você devia aprender a dirigir — ele me disse nessa manhã, em um
sinal vermelho.
Desde os catorze anos eu ouvia a mesma frase, talvez desde antes, dos
doze. Agora, aos vinte, pensava que sim, que aprender a dirigir fazia
sentido, embora fosse apenas para cultivar a prazerosa e estúpida fantasia
de uma fuga veloz pela estrada, depois de roubar tudo dos meus pais,
começando pelo carro. Mas também gostava de não saber dirigir, de não
aprender nunca.
— Eu poderia aprender, sim.
— Quer que eu te ensine? — ele me perguntou, entusiasmado. —
Amanhã, domingo?
— Amanhã, combinado.
O trabalho de meu pai cava no centro, mas ele desviou alguns
quarteirões para me deixar no Consulado dos Estados Unidos, onde eu
tinha um agendamento para pedir o visto. Eu tinha imaginado uma
burocracia eterna, mas ao m de uma hora já estava livre e até consegui
chegar para a aula do Schuster, só um pouco atrasado, o que de toda forma
não era um problema porque o professor odiava formalidades, entrávamos
e saíamos da sala sem necessidade de pretextos, como se a aula acontecesse
no meio da rua e fôssemos apenas espectadores momentâneos de um
pregador ou de um vendedor ambulante.
Refugiei-me, como sempre, na última leira, saquei meus xerox de
César Vallejo e o gigantesco caderno onde anotava uma e outra frase
isolada, sequer tentava fazer anotações, nem os mais nerds conseguiam
registrar o às vezes brilhante mas sempre desconcertante solilóquio de
Guillermo Schuster — eu me lembro dele em plena prédica, com um
cigarro Gitanes na mão direita e a xícara de café na esquerda, que não era
uma xícara, a rigor, e sim a tampa de sua garrafa térmica de café. Cada
gole marcava o crescendo do professor, cuja atuação começava com
observações gerais, tão vacilantes como sensatas, e a seguir entrava em uma
série de digressões eloquentes que conduziam à dispersão total. Talvez por
isso houvesse rumores de que a térmica continha, na verdade, café com
uísque ou café com pisco, e alguns inclusive garantiam que o que Schuster
bebia enquanto ministrava aulas era uma exclusiva vodca polonesa, que
seria um desperdício, é claro, se misturada a café.
— Professor, poderia apagar o cigarro, por favor? — disse nessa manhã,
intempestivamente, uma aluna desconhecida: você.
Consegui te enxergar, pela diagonal, na segunda leira; sua perna
esquerda balançava com impaciência.
— Por quê? — perguntou Schuster, genuinamente perplexo, como se
tivesse acabado de ouvir um absurdo.
— Estou grávida — você respondeu.
Tornou-se difícil explicar que na época não apenas era permitido fumar
dentro de sala de aula, como essa prática era considerada completamente
normal, quase razoável. Às vezes, no meio do inverno, com as janelas
fechadas, havia cinco ou mais cigarros acesos simultaneamente, e se isso
fosse um lme pareceria um exagero, um recurso barato, uma paródia.
Pensei que Schuster reagiria com desgosto in nito e recorreria, como
sempre, ao sarcasmo, mas te brindou com um sorriso curioso de dois ou
três segundos antes de apagar o cigarro no chão. O assistente, que
acompanhava a aula com atitude de fã, e que costumava sincronizar seus
cigarros aos de Schuster, como se pertencessem ao mesmo seleto time de
fumantes, também teve que apagar o dele. E eu tive que segurar a vontade
que eu estava de acender um.
Ao m da aula, Schuster e seu assistente saíram rápido para o
estacionamento e eu caminhei ao lado deles para contar sobre a viagem.
— Relaxe com relação às faltas, não há problema. — Schuster acariciou
o rosto como se ajeitasse uma profusa barba imaginária. — Mas essa
cidade, Nova York, não me convence. Não gosto.
— Por quê?
— É supervalorizada — disse, em seu tom habitual de intelectual cético.
— Um dos meus lhos morou dez anos por lá, no Brooklyn.
— É uma má cidade, Nova York — disse o assistente. — Péssima.
Um dos meus lhos, pensei, impressionado ao saber que Schuster tinha
mais de um lho. Podia perfeitamente imaginá-lo como pai de alguém,
quase todos os adultos que eu conhecia tinham pelo menos um lho, mas
o fato de Schuster ter gerado — pensei com esse verbo — dois ou mais
seres humanos me pareceu, naquele momento, estranho ou talvez
alarmante.
Estava prestes a acender meu cigarro pendente quando te vi chegando.
— Tem outro cigarro? — você me perguntou.
— E sua gravidez?
— Algumas grávidas fumam — você disse. — Não, a verdade é que
acabo de perder meu lho. Agora mesmo, no banheiro. Foi horrível.
Seguiu-se um breve silêncio. Você fumava mais rápido que eu.
— E por que você pediu para ele apagar?
— Só para sacanear, aquele cara estava falando tanto. Nunca estive
grávida — você acrescentou, como se fosse necessário esclarecer.
— Gostou da aula?
— Sim. Gostei dos poemas que analisamos. O Vallejo é incrível. Não
entendi nada que o professor disse, mas gostei da aula, eu acho. Todas as
aulas são assim?
— Sim. O Schuster é bem maluco.
Eu tinha que entrar na aula de metodologia de pesquisa em literatura,
mas preferi caminhar contigo sem rumo. Você me contou que estava
pensando em estudar letras e que tinha ido à aula de Schuster por
curiosidade.
— Nunca quis estudar nada — você disse. — E ainda não sei se quero
de fato.
Você tinha, como eu, vinte anos, mas soava muito mais adulta, ou
melhor, senti que você era, de algum modo, uma presença antiga, nobre.
Só então pude te ver melhor e perceber seus olhos grandes, quase
desproporcionais. Notei seu nariz meio pontudo, suas mãos nas e longas,
suas unhas minúsculas pintadas de verde. Você tinha o cabelo comprido,
mas um pouco mais curto que o meu. No meu caso, chegava até os
ombros. Você também me chegava até os ombros, mas naquele momento
pensei que você era uma dessas pessoas que parecem altas embora não
sejam.
Caminhamos juntos em direção à Plaza Ñuñoa. Eu queria combater o
silêncio, porque naquele tempo ainda não tinha descoberto que era
possível, que era necessário compartilhá-lo. Contei sobre minha viagem a
Nova York, e, ainda que tenha tentado falar de modo corriqueiro e natural,
com certeza pareci meio convencido, devia ter ensaiado antes na frente do
espelho. Você, sim, conhecia Nova York e boa parte da Europa e tinha
perdido a conta de quantas vezes tinha estado em Buenos Aires, sua cidade
favorita. Você não me contou tudo isso naquele momento. Só mencionou
que conhecia Nova York.
— E do que você mais gostou em Nova York?
— De umas pinturas do Paul Klee. No Metropolitan. Isso foi a melhor
coisa. Não é que eu tenha gostado, só: elas me causaram felicidade.
Você usava frases curtas e fazia longas pausas entre cada palavra. Falava
como uma protagonista de um lme bonito e lento, enquanto eu falava
como um ator de comédia que consegue pela primeira vez um papel sério
e importante e quer mostrar ao mundo sua versatilidade, mas seu empenho
é triste, porque o esforço ca perceptível.
Entramos na livraria El Juguete Rabioso. Eu passava todos os dias por lá,
costumava car bastante tempo, às vezes a tarde toda, conversando com
algum dos donos, sobretudo quando encontrava Miguel, a quem
considerava quase um melhor amigo, embora também adorasse falar com
o Chino ou com Denise — os três eram ex-alunos da faculdade, não
tinham nem trinta anos, porém já haviam conseguido montar essa
pequena livraria que era excelente mas que, no entanto, ou talvez por isso
mesmo, caminhava direto para o precipício. Não vendiam livros ruins, ou
ao menos tentavam. Organizavam a vitrine e os balcões conforme uma
ideia coletiva de literatura que os orgulhava. Se alguém pedisse livros de
autores que eles consideravam medíocres ou comerciais — que em sua
opinião era exatamente a mesma coisa —, Chino e Denise desciam ao
estoque para buscar os exemplares e os vendiam a contragosto. Mas
Miguel, não; nesses casos Miguel respondia, abrindo exageradamente seus
olhos verdes, quase incapaz de esconder a satisfação que lhe causava dizer
aquilo: “Aqui nós não vendemos esse tipo de livro”.
Ficamos vendo os balcões e as estantes da El Juguete Rabioso, e por
trinta ou quarenta minutos a vida consistiu em nada além de nos
recomendarmos livros energicamente um ao outro e nos alegrarmos
quando nossos gostos coincidiam e construir a cção tácita de que dali em
diante leríamos juntos todos esses livros.
— Eu moro bem perto daqui — você disse, de repente. — Queria te
convidar para ir lá em casa ver um lme, mas agora preciso ir, tenho que
levar minha cachorra para passear.
Você pagou pelo livro de Olga Orozco que tinha folheado e saiu a passos
rápidos e por alguns segundos me deixei levar pelo pensamento fatalista de
que nunca mais te veria.
— Ela vem sempre aqui — Miguel me disse, em seguida. — Tipo meio-
dia, ou mesmo antes, umas onze. Fica folheando os livros por bastante
tempo, às vezes compra dois ou três, outras vezes anota uma ou outra frase
em um caderninho vermelho e vai embora sem comprar nada.
— E o que ela compra? Só poesia?
— Poesia e ensaio. E loso a. Mas também romances, às vezes. Você
gostou dela? Gosta dela?
Fiquei nervoso, senti que a pergunta, além de direta e sarcástica, possuía
certa crueldade.
— Ela é diferente.
— Diferente de quem?
— Sei lá. De todo mundo, eu acho.
Meu amigo soltou uma gargalhada e eu me senti delatado, revelado.
Quis sair da livraria, mas Miguel, talvez consciente do meu incômodo,
saiu para pegar uns cafés no Las Lanzas. Eu adorava esses breves
momentos em que cava responsável pela livraria, como em teoria
aconteceria no futuro, se as vendas se recuperassem — eles queriam que
eu trabalhasse lá, mas diziam que no momento era impossível. Tomamos
nossos cafés, depois tentei ajudar um pouco Miguel, que sucumbia diante
de uma tabela de Excel, e em seguida me sentei em um canto para car
vendo umas antologias de poesia. Em nenhuma havia poemas de Olga
Orozco.
Mais para o m da tarde entrou na livraria Álvaro Rudolphy, o ator de
novelas, que, com a con ança a ele conferida por sua enorme
popularidade, ofereceu a Miguel um sorriso televisivo, ou televisionado,
antes de pedir:
— Escute, meu querido, me recomende um livro.
— Não posso, não te conheço — respondeu Miguel, seco, de imediato.
— Como vou recomendar um livro para você se não te conheço?
Rudolphy saiu da livraria desconcertado e inclusive humilhado e nós
fechamos a loja entre ataques de riso.
— Vamos comer alguma coisa no Dante — disse-me Miguel.
— Como vou comer contigo se não te conheço? — respondi.
Comemos uns chacareros4 e tomamos cerveja prolongando a alegria
dessa frase nova, que servia para tudo, resolvia tudo. Como vou dividir uma
batata frita contigo se não te conheço. Como vou te passar a mostarda se
não te conheço. Como vou pagar a conta se não te conheço. Não tínhamos
nada contra Rudolphy, não mesmo, até o achávamos um bom ator, mas
recordar sua expressão perplexa funcionava para nós como uma espécie de
estranho triunfo.
Miguel foi embora e quei por quase uma hora em um banco da Plaza
Ñuñoa para o caso de você aparecer de repente com a sua cachorra.
Demorei a aceitar que devia voltar para casa. Peguei o ônibus quase à
meia-noite, fui cochilando e dando cabeçadas na janela.
∞
Na manhã seguinte, acordei com o barulho infernal do espremedor de
laranja. Era um truque recorrente do meu pai, infelizmente, pois detestava
que continuássemos dormindo depois que ele já tinha lido a seção de
esportes do jornal, que era a única que o interessava. Mas teve a delicadeza
de espremer quatro laranjas a mais e deixou um copo para mim na
mesinha de cabeceira, em meio aos livros amontoados.
— Não tem como você estar lendo vinte ou trinta livros ao mesmo
tempo, lho.
Ia responder que eu, de fato, conseguia ler vinte ou trinta livros ao
mesmo tempo e que alguns desses livros, como os de poesia, não se
esgotavam nunca, mas preferi ngir que ainda estava dormindo.
— Você precisa cortar o cabelo — ele me disse a seguir. — Para ir a
Nova York. Você vai ser discriminado se car andando por lá de cabelo
comprido.
Saiu do quarto e por alguns segundos nutri a esperança de que ele não
voltasse. Me levantei para tomar de uma vez o suco de laranja. Olhei para
o teto, com o copo vazio na boca. Meu pai tinha voltado ao meu quarto,
senti seu olhar expectante, mas não o olhei de volta.
— Vai cortar o cabelo ou não?
— Não.
— Se você não cortar o cabelo, também não vai para Nova York.
— Então não vou para Nova York. Não estou nem aí para Nova York e
não quero cortar o cabelo.
É mais ou menos verdade que não estava nem aí para Nova York. O que
eu sabia, então, sobre Nova York? O que aprendera assistindo Taxi Driver
ou Seinfeld? O que entendia daquela música chata do Frank Sinatra?
Qualquer destino teria me parecido igualmente incrível, porque com
ônibus e trens e uma mochila nas costas eu tinha conseguido conhecer boa
parte do Chile, mas nunca tinha entrado em um avião.
A viagem era um presente, completamente inesperado, aliás, porque já
havia alguns anos que discutíamos por quase tudo — nada fora do comum,
nossa relação se enquadrava na versão clássica dos con itos pai-e- lho, e eu
sabia disso, mas saber disso não me consolava, não me deixava conformado,
porque ele sempre gritava mais alto e nunca pedia perdão. Depois de uma
briga especialmente violenta, meu pai tinha encontrado essa forma de se
desculpar: resgatar em meu nome uma passagem com milhas acumuladas,
con ando, com razão, no efeito surpresa, porque ele mesmo decidira a
data e esse destino que me parecia tão abstrato e tão espetacular.
— Então você não vai mais para Nova York, fez merda — meu pai
arrematou, incrédulo. — Você vai me implorar de joelhos. Vai se
arrepender.
— Não vou me arrepender.
Ao colocar em palavras minha novíssima e soberana decisão, senti a
vertigem e o prestígio das frases de nitivas, cruciais. E então decidi mais
uma coisa: ir embora, nalmente, daquela casa.
— Pronto, passagem cancelada — disse-me meu pai, algumas horas
depois: tinha acabado de ligar para a companhia aérea e desmarcar a
viagem.
— Perfeito — respondi.
— Escute, a que horas vou te ensinar a dirigir?
— Hora nenhuma, nunca.
— Mas a gente tinha combinado isso.
— Mas estamos brigados.
— Você sabe que uma coisa não tem nada a ver com a outra.
— Têm a ver, sim.
∞
— Tudo o que tenho para dizer está naquela carta — eu disse a meu pai,
com algo semelhante a um orgulho literário, na sexta-feira seguinte,
quando voltamos a nos ver.
— Não a li.
— Sério?
— Vou lê-la quando estiver com vontade de chorar. Mas nunca tenho
vontade de chorar.
A única coisa que queria saber era o que ele tinha pensado ou sentido ao
ler a carta, não tinha me passado pela cabeça que resistiria a lê-la.
Estávamos em seu trabalho, em uma minúscula sala de reuniões, como se
estivéssemos desenhando o plano estratégico de alguma empresa ou algo
assim. Não havia clareza sobre o que devíamos falar. Ou talvez sim, mas
eram coisas demais. Meu pai entabulou um discurso muito geral, como
que tirado de algum manual sobre pais e lhos. Concentrei-me na
autoridade de sua voz severa, mas conscientemente suavizada. Reparei,
como costumava acontecer comigo, no persistente derrame em seus olhos,
sobretudo no esquerdo; era como um rio com in nitos a uentes que para
mim cifrava, de algum jeito, um sofrimento que não se sabia de onde vinha
nem aonde nos conduziria. Um sofrimento do meu pai e também meu. O
sofrimento de olhar em seus olhos e saber que não o conhecia, que vivera
desde sempre com alguém a quem não conhecia e nunca viria a conhecer.
— Estamos de acordo? — ele me perguntou.
Eu não havia escutado, ou escutara apenas a suposta música de sua voz.
— Não estava ouvindo — falei.
— O quê?
— Estava distraído.
Soltou mais algumas palavras, ngia muito mal ainda ter um resto de
paciência. Eu comecei a gritar, não sei o que falei, mas ele me olhava
xamente, impassível, como um político no meio de um debate, ou talvez
como um morto.
— Não precisamos orear — ele me interrompeu de repente. — Você
oreia demais, sempre oreia tudo. Você saiu de casa, pronto. Em alguns
países os lhos vão embora muito antes. Nos Estados Unidos você já seria
um bobão. E eu estou feliz, porque ganhei mais um quarto, vou colocar
uma tevê grande e me instalar lá para ver lmes até as cinco da manhã.
Cheguei atrasado para a aula de Schuster, de novo. Não queria ir, mas
tinha a esperança de te encontrar. Você não estava lá. Não havia quase
ninguém, porque quem estava dando a aula era o assistente — foi uma
aula diferente, cheia de ideias que me soaram estranhas e novas. Lemos
uns fragmentos de La casa de cartón, de Martín Adán, e um poema de Luis
Omar Cáceres cujos primeiros versos caram cravados em minha
memória, como se os conhecesse desde sempre: “Agora que o caminho
está morto,/ e que o re exo do nosso automóvel lambe seu fantasma,/ com
sua língua atônita”.
Talvez eu tenha caminhado alguns quarteirões ao ritmo desse poema,
rumo à Plaza Ñuñoa. Queria falar com Miguel, mas quando cheguei à El
Juguete Rabioso entendi que na verdade eu queria falar contigo. Perguntei
a Miguel se você tinha estado na livraria, ele respondeu que não.
— Você vai car bem — ele me disse em seguida, após ouvir minhas
novidades.
Perguntou-me detalhes, muito detalhes. Se eu precisava de algo, grana,
qualquer coisa.
— Preciso é de trabalho — falei.
— Mas eu não posso te dar trabalho. Eu mesmo quase não tenho mais
trabalho. Vamos fechar, é inevitável.
— Quando?
— Em alguns meses, quando tudo for à merda. Estamos tentando
segurar mais um pouco, até o Natal, mas mais que isso não dá.
— Que ruim, que merda.
— E não podemos te contratar.
— Claro, óbvio.
A fantasia de chegar a trabalhar na El Juguete Rabioso deixava tudo
ajeitado como por magia, mas nesse momento não pensei na iminente
escassez de dinheiro, na verdade o que me entristeceu foi a visão futura
daquele lugar vazio, onde certamente logo haveria um café ou um salão de
cabeleireiro estúpido. Encontrei nas estantes Defensa del ídolo, o único
livro publicado por Luis Omar Cáceres, e li duas ou três vezes cada poema.
De tempos em tempos, Miguel soltava alguma frase e eu respondia, e era
como o diálogo gentil e casual entre dois desconhecidos sentados perto um
do outro, por acaso, no consultório médico ou em um velório. Mas quando
eu estava indo embora ele me entregou um papel onde anotara o número
de dez pessoas que podiam me dar algum tipo de trabalho.
— Vou deixar meu cabelo crescer em solidariedade a você — ele me
disse ao nos despedirmos com um abraço.
Houve um tempo já remoto em que eu não me interessava muito por
futebol, embora mesmo assim gostasse de ir ao estádio. Ostentava com
orgulho minha bandeirinha e meu boné do Colo-Colo, e me divertia
vendo o aquecimento enérgico dos reservas, os tímidos passinhos de dança
dos árbitros, ou a garbosa cabeleira ao vento de Severino Vasconcelos. Ou
as acrobacias heroicas dos vendedores de café, que circulavam com
destreza pela multidão com suas térmicas enormes penduradas no pescoço.
O que acontecia com a bola, contudo, dava mais ou menos no mesmo para
mim. Achava difícil entender a semelhança entre as peladas intensas e
bagunçadas que jogávamos nas passagens entre as ruas e o monótono
esporte que presenciávamos no estádio, sobretudo pela ausência quase total
de gols. Tenho a impressão de ter assistido, nessa época, a muitíssimos
empates em zero a zero.
Para assistir aos jogos com relativa paz, a única opção que nossos pais
tinham era nos entupir de sorvete, coca-cola e amendoim caramelizado.
Levar-nos ao estádio era um erro, uma péssima ideia, mas também uma
aposta, um investimento a curto ou médio prazo, porque nossos pais
sabiam que em algum momento iríamos nos distrair de nossas distrações,
abduzidos en m pela cativante lentidão futebolística.
Em meu caso, isso aconteceu logo: aos sete anos eu já era, plenamente,
um torcedor inveterado. Torcedor do Colo-Colo, como meu pai. Teria sido
genial se eu gostasse do time rival ou de outro qualquer. Não consigo
pensar em uma forma mais econômica de matar o pai, muito mais efetiva
que a surrada rebeldia grunge ou a lacerante gritaria política que vieram
depois. Conhecia algumas histórias de crianças dissidentes: de forma
misteriosa, alegando motivos pouco sérios, banais, como a beleza do
uniforme do time do Universidad Católica, conseguiam torcer o enredo, e
esses pais enganados e perplexos não tinham outra opção a não ser
conviver diariamente com o inimigo.
Não há clareza quanto a termos, de fato, escolhido um time de futebol.
Para muitos de nós, esse aspecto da herança paterna foi o único que nunca
questionamos. E, mesmo que estivéssemos brigados de morte com nossos
pais, a possibilidade de sublimar os problemas e assistir a um jogo juntos
nos proporcionava certa dose razoável de esperança familiar, uma trégua
momentânea que pelo menos nos permitia manter a ilusão de
pertencimento.
Minha relação com o futebol não é literária, mas meu vínculo com a
literatura tem, de certo modo, uma origem futebolística. Minhas maiores
in uências como escritor não foram o gigantesco romance de Marcel
Proust nem os imperecíveis poemas de César Vallejo ou de Emily
Dickinson ou de Enrique Lihn, e sim as transmissões radiofônicas de
Vladimiro Mimica, o locutor da Radio Minería. Nenhuma leitura foi para
mim tão decisiva como a elegante prosa falada do famoso cantagoles,
apelido de Mimica. Eu inclusive gravava os jogos e depois me deitava na
cama para ouvi-los e desfrutar deles em um sentido puramente musical.
Graças a sua gentil mediação, até os jogos mais tediosos ou insípidos
pareciam batalhas épicas memoráveis.
A voz de Vladimiro era sinônimo de alegria futebolística, mas também,
mais de uma vez, escutei de novo seus relatos de dolorosas derrotas, imerso
no pensamento mágico de que a gravação não repetiria a realidade, e sim
criaria uma nova, não muito diferente nem esplendorosa, um mundo
talvez igualmente terrível, mas no qual ao menos meu time agora, sim,
ganharia. Vê-se que já naquele tempo eu padecia de tristeza futebolística
crônica.
Enquanto em casa e obviamente no colégio era proibido xingar, no
estádio eu tinha licença para me expressar com puras grosserias. Houve um
tempo em que passava o jogo inteiro insultando os oponentes e o trio de
arbitragem. Mas os palavrões perdem a graça quando são o cialmente
permitidos. Como costumávamos ir a partidas duplas no estádio Santa
Laura, preferia narrar, gritando, o jogo preliminar — durante a semana,
sentado no último banco, estudava o álbum de gurinhas do futebol
chileno tentando memorizar as escalações de todos os times, e em geral
não cometia erros, de modo que, salvo por uma ou outra reclamação
isolada, ninguém parecia se incomodar com minha performance. Meu
trabalho nessa emissora inventada terminava, no entanto, quando o Colo-
Colo entrava em campo para o jogo principal. Então eu me transformava
em um torcedor a mais, preocupado e irascível, que assistia ao jogo com os
dentes cerrados, em estado de absoluta tensão.
Escrevo estas últimas linhas no celular enquanto meu lho está na aula
de futebol. Foi ideia da mãe dele, ela disse que não quer que o menino saia
pelo mundo com um medo eterno de bolas voadoras. Na aula de hoje há
cinco meninas e três meninos, contando com meu lho. Pela primeira vez
é permitido jogar sem máscaras, de modo que por m vejo seus rostos, seus
sorrisos abertos, embora de repente se vejam comoventemente
concentrados nas instruções de uma professora gentil e enérgica, vestida
com a camisa o cial dos Pumas. Como a aula segue um sistema de
assimilação gradual, no momento se parece a qualquer coisa menos a uma
aula de futebol: brincam de roda e de pega-pega, pulam dentro e fora de
bambolês, correm sem ordem nem direção balançando umas tas. Há dois
gols, mas só são usados para brincar de se proteger de uma chuva
imaginária (quando a chuva é real, claro, a aula é cancelada). A quadra
está cheia de bolas leves e multicoloridas, que as crianças chutam felizes,
em qualquer direção.
Enquanto os vejo correr e pular, alheios a qualquer ideia de competição,
penso no tempo em que eu frequentava a Escola de Futebol de Cobresal,
lial de Maipú, onde me destaquei como um dos substitutos com menores
chances de ser titular. Suponho que os professores tentavam não destroçar
tão cedo nossos sonhos, mas não havia jeito de me darem mais de dois ou
três minutos, e quase sempre ao nal de cada jogo. Por isso até hoje me
identi co com os jogadores que entram nos acréscimos com a única
nalidade de fazer passar o tempo. Eu voltava para casa arrasado, digerindo
em silêncio a derrota não do time, mas minha somente, e sempre
inventava que tinha ido bem, que em breve conseguiria ser titular.
Mas essa era outra forma de tristeza futebolística, é claro, que é tema
para outro ensaio ou outro conto. Quanto à tristeza futebolística de nossos
pais, tão diferente embora às vezes tão semelhante à tristeza futebolística
dos que agora somos pais e assistimos à recriação constante de nossa
infância; quanto a essa tristeza, após reler estas páginas, percebo e admito
que fui tremendamente injusto. O que nossos pais sentiam ao ver seu
adorado time ganhar não era exatamente alegria, e sim uma espécie de
tristeza levemente atenuada. Quero dizer: nossos pais estavam tristes, é
claro, todos os minutos de todas as horas de todos os dias eles estavam
tristes, e a vitória era apenas uma trégua, um paliativo, uma gentileza, um
pequeno truque; um sinal exíguo que lhes permitia acreditar
momentaneamente que nem tudo era tão terrível. Além do mais, a tristeza
futebolística os humanizava, demonstrava que eram falíveis e infantis,
como nós naquela época, como nós hoje. Parece-me que o doutor D. Zíper
aponta para isso com esta bela premissa: “Se o futebol é o problema, a
infância é a solução”.
Ah, sim: ontem à noite a seleção chilena cou novamente de fora de
uma Copa do Mundo. Todo mundo cou sabendo, todo mundo sabe. Não
vou falar disso agora. Não quero falar disso agora. Não quero falar de
futebol nunca mais.
Assaltantes de olhos azuis
Uma vez defendi meu pai. Fisicamente. Foi em uma manhã de verão.
Um ladrão estava prestes a chutá-lo no chão.
— Foi em 1990, certo?
— Você está escrevendo sobre mim? De novo? Até quando isso?! — diz
meu pai.
Faz alguns meses que meu pai liga para meu lho todas as manhãs de
sábado e de domingo. Tornou-se, inesperadamente, um avô presente, à
distância: ele no Chile, nós no México, separados por quilômetros demais
e quase dois anos de pandemia.
Silvestre espera por essas ligações. Sempre acorda entre seis e sete e
meia, vai correndo até meu quarto, que na verdade é seu quarto, porque
em algum momento da noite vem para nossa cama, que para ele é a cama
dele e de sua mãe, e eu vou para a dele, que também é, portanto, um
pouquinho minha.
— O vovô já ligou, papai?
Bocejo com o telefone na mão, checo as mensagens, e quase sempre há
uma de meu pai dizendo “estou pronto”. Pertenço à categoria de pais que
todos os dias queriam ter dormido uma horinha a mais. Meu pai pertence e
sempre pertenceu à categoria de pais madrugadores. E além de tudo ele
está no futuro, por conta do fuso horário: três horas no futuro. Talvez faça
sentido que os pais vivam três horas no futuro.
Abro as cortinas, querendo que a luz do dia entre, mas acaba de
amanhecer. Meu lho faz uma pilha com seus livros e sobe neles para
alcançar o interruptor enquanto tagarela, animado, com seu avô. Ousam
fazer planos imediatos, urgentes; vai ser uma ligação longa e intensa, é
sempre assim, falam ao menos por uma hora.
De segunda a sexta tentamos fazer com que Silvestre se vista sozinho, ou
alimentamos a cção de que ele se veste sozinho, mas aos ns de semana,
como se estivéssemos a segundos de entrar no ar, eu mesmo o visto rápido,
descemos imediatamente para a sala e equilibro o telefone contra a parede,
procurando uma perspectiva ampla, como de câmera de segurança.
Preparo café e tento despachar o café da manhã enquanto eles falam, mas
às vezes o celular cai ou meu lho sai do enquadramento.
— Alejandro, por favor, não estou vendo o menino — meu pai reclama
logo, como um cliente que encontra um pelo na sopa.
Na verdade, há em seu tom de voz a autoridade de sempre, mas com
uma nuance mais gentil: imagino que ele sabe que estou ocupado fatiando
um mamão ou de olho nas quesadillas. Vou até lá para melhorar a
comunicação, procedo com rápida perícia, como um roadie no meio de
um show. Às vezes aproveito a pausa para dizer algo, para contar algo a ele.
— Não estou escrevendo sobre o senhor, pai — minto.
— Por que você não escreve sobre o menino, não é melhor? Ele é muito
mais divertido que eu — diz ele, com toda razão.
— É que eu estava pensando naquela vez em que nos assaltaram. Foi em
1990, certo?
— Sim.
Não chamo meu pai de você, nunca z isso. Minha irmã, sim. Por
muitos anos não tive consciência dessa diferença. Mas há uma explicação.
Na família de meu pai todo mundo se tratava assim, informalmente, e
minha irmã herdou esse costume, mas eu era mais apegado à família de
minha mãe, na qual todos eram mais formais. Às vezes, tratar meu pai ou
minha mãe por senhor ou senhora me parece mais afetuoso. Mas não é
verdade. É menos afetuoso, marca uma distância. Uma distância que
existe. Uma distância que vez ou outra desaparece e reaparece sem aviso.
— Vai escrever sobre esse assalto? Um romance inteiro?
— Não, não dá para um romance inteiro.
— Faça com que seja um romance inteiro, estique um pouco. É a
minha biogra a?
— Não.
— Eu também vou escrever a sua biogra a, espere só. Nela eu vou
contar toda a verdade.
— E qual vai ser o título desse livro?
— Formas de perder um lho.
Essa história de 1990 é simples, talvez sua única particularidade seja que
nunca consegui contá-la. Quer dizer, já a contei mil vezes, mas só para os
amigos, nesses encontros demorados dos quais agora sinto tanta falta,
quando todo mundo ia soltando anedotas antigas, caoticamente. É uma
história para depois de uma refeição, que talvez requeira o característico
tom risonho, bem-humorado, com o qual se contam as anedotas sem
importância.
Eu tinha quinze anos e meu pai…
Pego a calculadora. Vamos ver: meu pai nasceu em 1948, de modo que
naquela manhã de 1990 teria 1990 − 1948 = quarenta e dois anos; não,
quarenta e um, porque foi em fevereiro e ele nasceu em agosto.
Meu pai, aos quarenta e um, teria considerado humilhante recorrer à
calculadora para realizar uma operação matemática tão simples. Ainda
hoje, aos setenta e três, acertaria a conta sem vacilar, em menos de um
segundo. Não daria a impressão de ter sequer realizado um cálculo.
Eu, naquele momento, tinha quinze anos — não, catorze, porque foi em
fevereiro e eu nasci em setembro. Então, aos catorze anos, naquele verão
de 1990, eu também teria feito o cálculo mentalmente.
O sujeito ia chutar meu pai no chão, mas me coloquei no meio dos dois
e o defendi. Dei um pontapé no saco do assaltante de olhos azuis.
A história é essa, em essência. Quero contá-la aos poucos, como quem
revê quadro a quadro um lance polêmico. Como quem decide se a bola
bateu ou não na mão do zagueiro. Como quem busca um erro de
continuidade.
As vezes em que tentei este conto eu o z em terceira pessoa. Quase
sempre testo em primeira e terceira. E também em segunda, como em
meu romance favorito, Um homem que dorme, de Georges Perec. Ao nal,
escolho a voz que soe mais natural, que quase nunca é a segunda pessoa.
Há algo nesta história, em todo caso, que me fez tentá-la somente em
terceira. Talvez porque ultimamente venho me reconciliando com a
terceira pessoa. E o fato é que tudo o que acontece, acontece para todos.
De forma desigual, mas acontece. E apesar das assimetrias, das diferenças,
às vezes sinto ou pressinto que tudo o que acontece comigo também
acontece em terceira pessoa.
Aos meus catorze anos, meu pai continuava sendo mais alto que eu.
Entendo que só se atinge a estatura de nitiva por volta dos vinte anos. Em
todo caso, eu era um magrelo encurvado e quebradiço, que certamente
não parecia capaz de defender um pai corpulento, robusto, esportista.
As mãos de meu pai eram e são as de alguém que trabalhou com as
mãos. Aos sete, aos nove, aos doze anos, meu pai vendia verduras e frutas
na feira de Renca. Suas mãos também serviram para cortar cruzamentos e
defender pênaltis. O corpo inteiro de meu pai foi, em geral, útil. E teria
sido muito mais, não fosse pela prematura debilidade em seus olhos.
Quis prestar o serviço militar, quis virar policial, esteve a ponto de ser o
terceiro goleiro das divisões de base do Colo-Colo, mas nada disso deu
certo, em parte por causa de seus olhos enfermos. Em todas as fotos de sua
juventude ele aparece com uns óculos fundo de garrafa que dão a seu rosto
a aparência de uma máscara. Herdei uma miopia tratável, razoável,
inclusive operável, mas nunca considerei seriamente a cirurgia (a simples
ideia de alguém intervindo em meus olhos me causa pavor). Aos catorze
anos já tinham me receitado óculos, mas eu nunca os usava, ainda faltava
um tempo para chegar à idade em que sair para a rua sem óculos se
tornaria um absurdo. Uma idade que alcancei faz um bom tempo. Mesmo
assim, com a miopia e o astigmatismo e a ingrata novidade da presbiopia,
minha vista é melhor que a do meu pai aos quarenta e um anos e aos
setenta e três.
Quando se diz que alguém trabalha com as mãos, ninguém pensa nos
escritores. E com razão. Nós, escritores, temos mãos de pianistas
medíocres. Meu pai não é escritor, nunca foi, nunca quis ser. Nunca se
interessou por poesia. Mas me lembro de uma tarde em que escreveu um
poema.
— Não deve ser tão difícil, o Chile é um país de poetas — disse.
Não me lembro das frases que encadeou e que conduziram a essa
declaração brilhante. Em seguida, pegou um guardanapo e a caneta que
usava somente para assinar os cheques e escreveu, sem vacilações, um
poema que nos leu de imediato. Aplaudimos. Éramos seu público cativo.
Um público generoso, indulgente.
De modo que nessa manhã de 1990 fomos sozinhos, meu pai e eu, ao
centro. De carro, um Peugeot 504. À tarde partiríamos de férias para La
Serena. Meu pai precisava de dinheiro em espécie, mais do que um caixa
eletrônico poderia fornecer.
— Por que precisava de tanto dinheiro em espécie?
— Porque os pedreiros iam pintar a casa enquanto nós estávamos de
férias.
— E por que fomos ao Banco Santander do centro?
— Santiago. Nessa época o Banco Santander ainda se chamava Banco
Santiago.
— Por que fomos ao Banco Santander do centro e não à agência de
Maipú?
— Eu queria ir ao centro, queria comprar alguma coisa naquelas lojas da
Bulnes. Uma vara de pescar, algo assim.
— Por quê, já que o senhor trabalhava no centro, não comprou a vara ou
tirou o dinheiro antes das férias?
— Não me lembro! De repente eu queria que fôssemos juntos ao centro.
Era o primeiro dia de férias, mesmo assim eu queria ir ao centro contigo,
eu gostava de sair contigo.
Nossa ida, então, era desnecessária. Meu pai estacionou onde sempre
parava, na esquina da Agustinas com a San Martín, perto de seu trabalho.
Fomos direto ao banco, à agência de Bombero Ossa. Enquanto ele estava
na la, eu quei num canto, lendo. Senti-me observado ou inspecionado
ou ameaçado, levantei a vista e cheguei a detectar os olhos azuis de um
homem jovem. Um segundo depois, o homem tinha desaparecido. Meu
pai caminhou até mim contando de forma inocente e tranquila as notas
que acabara de receber. Não sei que quantia era.
Na primeira vez que tentei escrever este conto, decidi terminá-lo com
uma cena de 1994 ou 1995, quando já estava na faculdade e, no meio de
uma manifestação, eu e uns amigos fugíamos dos policiais.
— Seus porcos lhos da puta, cuzões, polícia assassina!
Eu me lembrava, ao gritar, dos policiais levando meu pai. Meu
sentimento era ambíguo, paródico, combativo, emocionante, tudo isso ao
mesmo tempo. Eu gritando contra os policiais e me lembrando de meu
pai, que aparecia como a vítima mas também como o agressor, porque ele
poderia ter sido policial, claro que sim, em algum momento deve ter tido
vontade de ser.
— Mas estou te dizendo que nunca quis ser policial.
— Mas eu pensava isso. Quando gritava contra os policiais, pensava que
eles eram como você.
— Também são como você.
— Pode ser. Poderíamos ter sido policiais, poderíamos ter sido ladrões.
— Não, eu nunca roubei nada de ninguém. E nunca quis ser policial,
corrija isso. Você disse que ia corrigir.
Não sei se meu pai teria gostado de me ver ali, gritando contra os
policiais.
— Não, eu não teria gostado, mas imaginava que você andava nessas.
“Vamos pescar, só nos dois, qualquer dia”, diz meu pai a meu lho. É
uma viagem improvável, mas gosto de imaginar uma buzina tocando e
meu lho e eu correndo com nossas mochilas pesadas para entrar na
caminhonete de meu pai — não fui convidado, mas adoraria me juntar a
eles nessa viagem, mesmo que fosse só para carregar o cesto com os
sanduíches ou vestir o casaco em meu lho no m da tarde.
Nenhum contratempo, nenhum desa o, nenhuma rebeldia teriam
realmente incomodado meu pai se ele tivesse tido o lho que queria: um
que, por exemplo, o acompanhasse na pesca, inclusive no meio das
turbulências da adolescência. Esse lho, que obviamente não fui,
certamente teria depois sabido transmitir a seu próprio lho a mesma
paixão. Em nosso romance familiar masculino, meu pai e eu não
moraríamos a sete mil quilômetros de distância, e sim a apenas poucas
cidadezinhas. Talvez as viagens para pescar não seriam tão frequentes, mas
ao menos uma vez ao ano passaríamos horas confabulando a melhor forma
de enganar os peixes.
Meu pai tentou, claro que tentou. Não me lembro de nossa primeira
viagem sozinhos, aos meus três ou quatro anos, mas ele já contou isso
tantas vezes que seu relato funciona quase como uma memória
implantada. Na manhã da viagem resolveu me colocar sentado em seus
joelhos para tirar o carro da garagem — visualizo minhas mãos pequenas
em cima de suas mãos enormes segurando o volante do Taunus, e imagino
a emoção transbordante que me levou a perguntar a ele, já na estrada, se à
noite, quando voltássemos para casa, ele me deixaria entrar com o carro na
garagem também. Ele me prometeu que sim, contente que eu tivesse
gostado tanto dessa nova brincadeira, mas ao longo de todo o caminho me
dediquei a con rmar a promessa, e minha insistência foi tal que depois, já
instalados diante das águas tranquilas do lago Peñuelas, ele me avisou que
se eu continuasse falando daquilo nunca mais me deixaria guardar ou tirar
o carro. A ameaça surtiu efeito por um tempo, mas depois me aproximei
para brincar com os peixes, que agonizavam amontoados na margem, e
comecei a inventar dezenas de histórias sobre generosos peixes-reis pais
que deixavam seus peixes-reis lhos estacionar os carros vez após vez. Assim
passamos a tarde inteira.
“Para você não existia a palavra não”, meu pai sentencia sempre que
conta essa anedota, que segundo ele exempli ca que desde pequeno o
traço essencial de minha personalidade é a persistência ou a teimosia,
embora em anos recentes ele tenha redirecionado sua interpretação da
história, que agora apresenta como uma prova prematura de minha
vocação literária. Seja como for, meu pai diz que para mim não existia a
palavra não e eu cresci achando que para meu pai só existia a palavra não.
Minha irmã preferia pescar com linha, já eu me instalava com a vara
para imitar os movimentos de meu pai, cuja sobriedade de pescador, no
entanto, mal dava para tolerar nossa série de erros e ações desastradas.
Ensinava-nos seus truques, procurava nos ajudar a depurar a técnica e
evitava a todo custo nos repreender, mas depois de cinco tentativas falidas,
que talvez tivessem sido vinte (ou trinta), seu aborrecimento era notório.
Então minha irmã voltava com Andrea, e eu me afastava sub-repticiamente
em busca de lugares solitários onde pudesse pescar à minha maneira.
À noite, eu mostrava a meu pai os poucos peixes que, apesar de minhas
de ciências técnicas, conseguira pescar. Ele me parabenizava de maneira
exagerada e carinhosa.
— E por que você não cou comigo?
— Porque os peixes que eu procurava estavam em outro lugar.
Respondi isso em uma noite quente que passamos jogando dominó, com
as peças acomodadas na terra como soldadinhos de chumbo.
— Fique pescando comigo — costumava me pedir. — Se você car
entediado, aí vai brincar, mas depois volta.
Uma manhã, acordamos com a notícia de um cardume. Parti ávido para
a barragem com minha vara, era jogar a isca e partir para o abraço, às vezes
vinham dois peixes-reis reluzentes ao mesmo tempo nos anzóis. Fiquei
duas ou três horas ocupado, imerso em uma cobiça infantil, naquele poço
milionário. Prender as minhocas de sangue branco nos anzóis e atravessar
com um prego as guelras e as bocas feridas de peixes-reis moribundos para
somá-los à corda que depois arrastava eufórico quando voltava para a
barraca em passos triunfais: com o passar dos anos me tornei escrupuloso e
agora tenho di culdade de aceitar a numerosa repetição dessas ações.
Ao car sabendo do cardume, meu pai preferiu dedicar a tarde a
caminhar com minha mãe e a conversar e tomar umas cervejas com o pai
de Andrea. Perguntei por que justamente naquela tarde, em que tudo era
tão fácil, ele decidira não ir pescar.
— Por isso mesmo — respondeu. — Porque era fácil demais, não tinha
graça.
“Seu pai foi meu pai naquele verão”, diz Cristián, um querido amigo de
minha adolescência com quem perdi o contato há décadas — acabamos de
nos reencontrar, na verdade não nos vimos: estamos já há alguns dias
trocando longas mensagens de áudio com a promessa de nos vermos assim
que possível.
Nesse tempo a que Cristián se refere, ele e eu nos dedicávamos a
procurar remédios para a acne, que ameaçava com igual crueldade sua
pele avermelhada e minha pele morena. Cristián descobriu que era
possível combater as espinhas com máscaras de Aloe vera, de modo que
mal caía a tarde partíamos juntos em busca de alguma planta e depois nos
trancávamos em meu quarto para lambuzar nossos rostos com a polpa.
Tudo isso ocorria às escondidas e no escuro, como se estivéssemos
comprando drogas.
Foi meu pai que o convidou de improviso para passar o verão conosco.
— Onde está sua mochila, Cristián? — perguntou a ele.
— Que mochila?
Meu pai desatou a rir e em seguida ligou para Gina, a mãe de Cristián,
para pedir sua permissão, e meu amigo foi correndo e voltou em quinze
minutos com uma mochila apressada de acampamento que en amos à
força no bagageiro lotado do carro.
— Lembro que ouvimos Simon & Garfunkel por todo o caminho —
Cristián me diz. — E que sua mãe aumentava o volume e de vez em
quando seu pai baixava. E que ela dirigia mais rápido que seu pai.
— E você se lembra dos sanduíches de geleia?
— Não — diz Cristián.
Levávamos uns pães com geleia de amora para o caminho, e minha mãe
resolveu chamá-los de sanduíches para que parecessem mais apetitosos. Era
uma dessas brincadeiras casuais que cam gravadas na memória como se
possuíssem alguma importância.
Cinco horas depois estávamos esparramados na sala de uma casa gelada
em La Serena. Sinto que devia me lembrar melhor dessa viagem, mas vou
simpli car — imagino que passamos essas semanas de fevereiro jogando
frescobol na praia ou esticando a duração das cervejas ilegais que
tomávamos em uma discoteca de Coquimbo enquanto especulávamos
amores extraordinários e iminentes. As lembranças de Cristián são
distintas. Ele se lembra, por exemplo, que uma manhã vimos, entre as
pedras de uma praia vazia, com meus binóculos, duas mulheres nuas
tomando banho de mar.
— Não sei como você pôde se esquecer de algo assim — diz Cristián,
com razão. — Nós as chamamos de “as deusas do norte”.
Essa frase, “as deusas do norte”, aciona talvez algum gatilho em minha
memória, ou a vontade de lembrar. Por outro lado, nós dois nos lembramos
com precisão de meu pai fazendo palhaçadas pelas ruas de La Serena. A
brincadeira era cumprimentar qualquer desconhecido como se o
conhecesse; ele se aproximava efusivamente, com exagerados abraços. E
quando o desconhecido o alertava do equívoco, meu pai se desfazia em
desculpas e soltava sua frase triunfal:
— É que a semelhança física é, francamente, assombrosa.
Eu e Cristián éramos cúmplices de elenco, mal conseguíamos segurar a
risada. Quando a brincadeira já corria o risco de nos entediar, meu pai se
aproximou de um menino de uns dez anos e o cumprimentou com
especial emoção, ngindo que estava se reencontrando com o lho de seu
melhor amigo.
— Como você está grande, Pepito Roblero, não acredito! E que vontade
de rever seu pai!
O menino explicou, ainda confuso, que ele não era Pepito Roblero.
Meu pai se desculpou, disse sua frase gloriosa, e seguimos passando a tarde
com nossos sorvetes, até que talvez meia hora depois, perto de La Recova,
cruzamos de novo com o mesmo menino, e meu pai novamente correu até
ele para dizer, eufórico:
— Pepito Roblero, agora há pouco vimos um menino igual a você!
Não era comum meu pai se comportar assim, disso tenho certeza. Mas
Cristián me diz que meu pai sempre se comportava assim.
— Ele era muito simpático. E muito acolhedor comigo. Muito
engraçado, muito parecido contigo.
— Não acredito.
— Bem, é normal que você não queira acreditar que se parece com seu
pai. Naquele tempo eu achava vocês iguais. Mas nós nunca aprendemos a
olhar bem nossos pais. Quem escreveu isso?
Demoro a reconhecer essa frase escrita por mim. Fico contente em
saber que Cristián leu um livro meu. Conversamos sobre isso. Ele se
lembra de cor de alguns poemas que eu escrevia na adolescência. São
poemas horríveis, que eu gostaria que tivesse se esquecido de imediato. Ele
diverge carinhosamente.
— Fomos várias vezes até a praça, os três juntos, e seu pai sempre fazia a
mesma coisa.
— Não foi uma vez só?
— Não! Foram várias vezes. Pelo visto eu que devia ser o escritor.
— Com certeza! E o que minha mãe e minha irmã cavam fazendo?
Lembro que eu e você estávamos sempre juntos e que minha irmã e minha
mãe estavam sempre juntas e que meu pai estava sempre sozinho.
— Sua mãe e sua irmã cavam na praia a tarde toda. Mas eu lembro
que você e eu estávamos sempre perto do seu pai.
— Sério? Eu acho que meu pai sempre estava pescando e eu e você
cávamos caminhando sem rumo.
— Sim, mas também fomos com ele a Punta de Choros e a outras praias
— diz Cristián.
O ímpeto memorialístico de meu amigo desperta em mim a imagem
adormecida da praia enorme e semivazia de Punta de Choros. Vejo a mim
mesmo com Cristián pisando em mariscos à beira-mar, morrendo de rir
com nossos rudimentares passos de twist, enquanto meu pai, com seu traje
uorescente de pescador pro ssional, entrava lentamente no mar.
— Foi em Punta que vimos as deusas do norte? — pergunto.
— Não sei — ele diz. — Mas depois disso eu continuei vendo-as em
todos os lugares, eram como fantasmas.
— Sério?
— Não.
Nunca falava sobre livros com meu pai, por isso me surpreendi tanto
quando, uns dez anos atrás, ele me passou seu exemplar de Nada é para
sempre, de Norman Maclean, me pedindo que o lesse.
— Você vai adorar — ele me disse —, é meu livro favorito.
O simples fato de meu pai ter um livro favorito era, para mim, uma
novidade que eu não quis levar a sério no momento. Além do mais, esse
título me soava como autoajuda, assim como a capa, uma imagem do
lme de Robert Redford, mas eu só me dei conta disso alguns meses
depois, em uma tarde em que arrumava as pequenas torres espontâneas de
leituras pendentes. Só então soube que o título original da história de
Maclean, e do lme em inglês, era A River Runs Through It. Con rmei na
internet que Nada es para siempre era o título comercial em espanhol e
que a crítica considerava o relato de Maclean um clássico da literatura
estadunidense.
Nem mesmo a certeza de que A River Runs Through It era, em tese, boa
literatura, me fez querer lê-lo. Lembro, isso sim, de ter pensado depois,
com curiosidade, naquele gesto de meu pai. Por que, em vez de me dar de
presente em um aniversário ou no Natal, resolveu me emprestar seu
exemplar? Talvez ele não fosse imune ao fetichismo literário; talvez
quisesse que eu passasse por cada uma das páginas e frases e palavras que
ele havia lido e sublinhado, porque o livro tinha algumas frases
sublinhadas, o que também, de certo modo, me surpreendeu. Mais ou
menos nessa época li Como cheguei a conhecer os peixes, de Ota Pavel, que
meu pai teria adorado, e Pescar truta na América, de Richard Brautigan,
que ele teria achado estranhíssimo, mas nem sequer me ocorreu
mencionar essas leituras a ele.
Durante um bom tempo, talvez por dois anos, meu pai continuou me
perguntando se eu tinha lido seu livro favorito e eu respondia que estava
em minha mesa de cabeceira e que a qualquer momento o leria, e ele me
pedia de novo que por favor cuidasse bem dele, que não o perdesse, o que
de certo modo era um exagero, porque ele sabia que eu cuidava bem dos
livros. Eu era a pessoa dos livros, no m das contas; eu cuidava dos livros
com o mesmo esmero com que ele conservava seus tacos de sinuca e seus
so sticados equipamentos de pesca, inclusive as moscas que ele mesmo
costumava confeccionar com zelo até meia-noite, iluminado por uma
lâmpada pequena e potente que instalara em um canto de seu escritório
especi camente para essas noites de trabalho artesanal obsessivo.
No último dia em Barcelona, procuro sem sucesso, em várias livrarias, o
livro de Maclean, que na Espanha se chama El río de la vida, um título
belo e sóbrio, publicado doze anos atrás por uma editora cujo catálogo eu
adoro, Libros del Asteroide. Se meu pai tivesse me emprestado essa edição,
esta história seria totalmente diferente. Pensar nisso me paralisa. Sinto-me
arrogante, incômodo, tolo.
O relato de Silvia me faz lembrar da última viagem que z sozinho com
meu pai, aos dezessete anos, quando ele já contraíra o vício incurável da
pesca com mosca e eu, o da literatura. Naquela altura, não nos dávamos
bem e era difícil, tanto para ele quanto para mim, esconder isso; era uma
viagem longa e talvez extemporânea, que possivelmente respondia ao
desejo de nos reencontrarmos, de nos aproximarmos.
Avançamos de Linares em direção à cordilheira até que demos com um
lugar propício para montar nossa barraca de sempre, nas margens do rio
Achibueno. Meu pai estudou detidamente a paisagem e esperou um bom
tempo até que o sol estivesse menos forte (“as trutas estão acabando de
acordar da soneca da tarde”, ele disse em algum momento) antes de se
perder rio acima.
Mergulhei em não sei qual romance enorme, embora às vezes
interrompesse a leitura, distraído pela opacidade prateada das cascas-de-
anta e pelo espetáculo do céu limpo e da água lenta e cristalina,
lembrando-me dos versos de Neruda que descobrira havia pouco: “Devo
falar do limo que escurece as pedras,/ do rio que durando se destrói”.
De repente, talvez meia hora depois, senti falta de meu pai. Foi
estranho. Não era que eu pensasse que ele corria perigo, mas me vi ali
sozinho, como um turista perdido, sem nem mesmo uns tênis poderosos
para ajudá-lo ou procurá-lo. Durou alguns poucos minutos, logo ele voltou.
— Como vai indo a coisa?
— Bem — ele me disse.
Mostrou-me a foto que acabara de tirar com sua novíssima e na época
revolucionária câmera digital. Meu pai segurava uma truta um pouco
maior que sua mão, mas o que mais chamava a atenção era sua pose séria,
solene. Imediatamente depois de tirar essa foto — uma sel e artesanal, por
assim dizer —, meu pai devolvera a truta ao rio; nesse momento já
começara a devolver os peixes para a água, não cava nem com o mínimo
permitido.
— Em que página você está? — ele me perguntou.
Não lembro o que respondi. Na 150, por exemplo.
— Volto daqui a umas quarenta páginas — ele me disse então, fazendo
graça.
No entardecer, preparamos um macarrão e eu continuei envolvido com
o livro, meio morto de frio, mas iluminado e também talvez temperado
pela luz abundante de um lampião. Fui dormir muito tarde, acordei já de
dia, apavorado com um porco enorme que, depois de comer todos os
nossos sanduíches, tentava entrar na barraca, imagino que para me comer.
Meu pai, que tinha saído ao alvorecer, voltou logo em busca de um café da
manhã inexistente. Decidimos car ali, comendo em doses homeopáticas
umas laranjas e uns pães de fôrma que por sorte tínhamos esquecido na
caminhonete.
Em algum momento da tarde fui junto e tirei algumas fotos dele. Eu o
tinha visto ensaiar aqueles arremessos tão coreográ cos e para mim
cômicos da pesca com mosca, mas não diante de um rio, e sim no estreito
jardim da frente de nossa casa. Agora, ao vê-lo equilibrado em umas pedras,
entendi melhor a relação entre esse desa o técnico e a obsessão em
decifrar o curso das águas. Em alguns momentos fui capaz de vislumbrar a
cena heroica, romântica. Pensei nessa imersão súbita, intrusiva, na
natureza; na recuperação do desejo, tantas vezes postergado ou
adormecido, de pertencer àquela paisagem singular e cativante. E em
seguida tudo voltou a me parecer pueril: um homem sério imitando os
tentadores movimentos de hipotéticos insetos distraídos. A batuta louca de
um maestro de orquestra empenhado em reger uma música inaudível.
Mas o que entendi melhor foi esse desejo de desa ar o relógio. A
experiência da pesca funcionava de forma verdadeiramente similar à da
literatura. Nesses dias, nossas linguagens conviveram; quero dizer: nós
convivemos, funcionou. E quando voltamos para casa e minha mãe nos
perguntou como tinha sido e ambos respondemos que tinha sido muito
bom, nenhum dos dois estava mentindo.
“Seu pai foi meu pai naquele verão”, Cristián me diz de novo, em outra
mensagem de áudio, como que me soprando essa frase importante para
que eu continue escrevendo este ensaio que ele não sabe que estou
escrevendo.
Muitas vezes meu pai foi o pai de outras pessoas, em momentos de
a ição: pediam para falar com ele, que os recebia de imediato, e eu
costumava ouvi-los contando suas encruzilhadas acadêmicas, pro ssionais
e até religiosas. Mas isso acontece com frequência com os pais: tornam-se
guras paternas de muita gente, menos de seus lhos. A própria expressão
gura paterna é mais frequente no plural, mas quando se fala de gura
materna costuma ser para aludir a alguém que substituiu uma mãe perdida.
E pode ser até que soe estranho falar em guras maternas. Talvez seja
verdade esse ditado de que mãe só tem uma, apesar de que meu lho, que
já conhece crianças com duas mães (e crianças com dois pais), discordaria.
— Você mandou minhas lembranças para os seus pais? — pergunta
Cristián.
— Sim — respondo —, e meu pai cou muito feliz de saber que você se
lembra dele.
Não falei nada para eles, mas minto para me obrigar a anular a mentira
imediatamente: assim que paro de falar com ele, ligo para meus pais para
falar de Cristián.
— Era o mais simpático de todos os seus amigos — diz meu pai.
Minha mãe entra na chamada e assente, mas prefere não estabelecer
hierarquias. Os dois se lembram, enquanto terminam de lanchar, de Hugo,
de Mario, de Maricel, de Carla, de Angélica. Lembram-se de todos.
— Villablanca, era esse o sobrenome de Cristián, certo?
— Sim.
— E ele continua feliz daquele jeito?
— Sim — respondo, contente por estar dizendo a verdade.
— Aquela palavra, aquela que você gosta tanto! — disse-me meu lho
uma tarde, furioso.
— Qual? Que palavra?
— Você sabe bem que palavra, porque você gosta muito dela, adora,
você daria beijos nessa palavra!
Claro que eu sabia. Parece que agora eu, aquele menino que ignorava a
existência da palavra não, estava apaixonado por ela, segundo meu lho.
Silvestre não era uma criança tão imprudente, mas estava havia semanas
subindo nos móveis e tentando escalar as estantes e acabara de descobrir
que alcançava a gaveta das facas (que, portanto, deixou imediatamente de
ser a gaveta das facas). Eu não tinha escolha a não ser recorrer a cada
instante à palavra não.
Em meio à sua reclamação, distraí-me imaginando a mim mesmo aos
três ou quatro anos, suponho que usando menos palavras que ele, embora,
segundo a versão o cial, fossem su cientes para inventar passados e futuros
para os coitados dos peixes viciados em larva de tenébrio. Quando Silvestre
se acalmou, ou melhor, quando ele se cansou de reclamar comigo,
pareceu-me tolice reiterar a explicação de sempre, àquela altura já
implícita, então o peguei no colo e z cafuné em seu cabelo
milagrosamente comprido ou quase comprido. (Um de meus maiores
sonhos de criança era me deixarem ter o cabelo comprido, mas ele gosta
de ir ao cabeleireiro, embora talvez o que mais goste seja de sentar-se na
cadeira e pedir ao cabeleireiro, com a autoridade de quem entende do
assunto: “Igual ao Paul McCartney, dos Beatles, por favor”.)
— Nunca mais vou falar a palavra não para você — prometi a meu lho.
— De agora em diante, quando você estiver em uma situação que me
pareça realmente perigosa, vamos substituir a palavra não pela palavra nim.
Ele adorou a ideia, que misteriosamente funcionou durante alguns
meses que, aliás, foram excelentes, porque nosso acordo me concedia uma
espécie de superpoder; quando era necessário, eu simplesmente me
aproximava e lhe dizia em voz exageradamente baixa:
— Filho, nim.
Silvestre não apenas me obedecia como o fazia sorrindo para mim. Os
demais integrantes da família continuavam usando o tirânico e bíblico não,
com os péssimos resultados previsíveis. O caloroso império da palavra nim
começou a ruir, infelizmente, quando a professora de Silvestre nos contou
que uma coleguinha batia nele e que ele, em vez de pedir ou exigir que ela
não zesse aquilo, aproximava-se e dizia a ela, muito amavelmente, nim,
de modo que a menininha continuava batendo nele.
Ainda usamos, com Silvestre, a palavra nim, de forma humorística, é
quase como uma lembrança de uma linguagem antiga. Ou talvez seja a
mesma linguagem, em permanente transformação, mas sempre vinculada
à música e às histórias e cheia de imitações, piadas e trava-línguas. Ainda
consigo disfarçar aquilo que é obrigatório com pequenas brincadeiras que
realçam o caráter aventuresco de escovar os dentes ou de tomar banho ou
de se vestir sozinho. É muito mais difícil, para mim, apressá-lo todo dia de
manhã para ir à escola, talvez porque eu mesmo nunca tenha conseguido
me resignar totalmente ao tempo cronológico, sempre fui do tipo que
preferia continuar conversando. Ele não gosta de ser apressado, mas
também quem gosta de ser apressado? E quem gosta de ser lembrado o
tempo todo de que a vida não é brincadeira? Nós também fomos
pro ssionais da brincadeira; a obsessão de escrever tem sido, para mim,
uma forma de prolongar a brincadeira até as últimas consequências.
Meu lho dorme e eu me deito a seu lado para ler A River Runs Through
It enquanto penso na enorme quantidade de lmes e de livros e de músicas
que no futuro recomendarei a ele e dos quais ele desdenhará, preferindo
qualquer outra coisa. Gosto do conto de Maclean. É um mundo tão
familiar e tão alheio, isto é, tão parecido ao mundo que eu habitava e
rejeitava ao mesmo tempo. Essa violência tão masculina, essa irmandade
tão masculina, essa falta de comunicação tão masculina.
Há muitas passagens técnicas a respeito da pesca com mosca e me
esforço para entendê-las e assimilá-las, como se estivesse lendo um manual
na véspera de uma viagem. E claro que vejo meu pai ensaiando suas
coreogra as ou naquele canto de seu escritório, empenhado na confecção
de suas iscas. Uma vez ele me explicou algo que também é explicado no
conto: que, ao confeccionar a isca, a ideia não é imitar os insetos tal como
nós os vemos, e sim como seriam vistos do nível da água, ou melhor, como
um peixe os veria de dentro da água.
Leio em inglês e em versão e-book, mas às vezes paro para traduzir
mentalmente algumas frases e imagino aquele livro de bolso que meu pai
leu, emocionado, que inclusive grifou e que depois quis compartilhar
comigo. E ao traduzir me deixo levar pelo pensamento fácil e ilusório de
que estou traduzindo pela primeira vez meu pai. “É um arremesso tão leve
e lento que é possível acompanhá-lo como se fossem cinzas pulando da
chaminé”, diz Maclean, preparando o terreno para este trecho: “Uma das
mais sutis emoções da vida é afastar-se de si mesmo e observar como você
lentamente se torna o autor de algo belo, mesmo que sejam apenas cinzas
que voam”. Sim, pai. É isso que é, para mim, precisamente, escrever.
“Os poetas falam de spots of time, mas são os pescadores que realmente
experimentam a eternidade condensada em um instante”, escreve
Maclean, e em seguida acrescenta: “Ninguém consegue saber o que é um
‘espaço de tempo’ até que subitamente o mundo inteiro é um peixe e esse
peixe escapou”. Imagino meu pai lendo essas frases e pensando na
lamentável ironia de ter um lho meio poeta que se manteve imune à
beleza da pesca.
Embora milhões de leitores tenham passado por suas páginas, A River
Runs Through It é, por um momento, um livro que só eu e meu pai
conhecemos. Tenho certeza de que ele também sublinhou esta frase: “As
pessoas com quem vivemos e que amamos e a quem deveríamos conhecer
são justamente as que nos escapam”.
— Li o livro, nalmente.
— Que livro?
— O do lme, Nada é para sempre.
— O que eu te emprestei e você nunca me devolveu?
— Sim.
— Achei que você tinha perdido.
— Não perdi. Trouxe para o México comigo. Vou levar para você
quando eu for ao Chile.
— Você pode ler a dedicatória para mim? É muito bonita.
— É que não estou com ele à mão.
— Pode ir buscar, eu espero.
Procuro no Kobo a dedicatória, traduzo-a para meu pai, mas ele me
esclarece que não se referia à dedicatória do autor, e sim à manuscrita, na
primeira página, de seus amigos. Agora acho que lembro de ter visto, na
primeira página do livro, uma dedicatória manuscrita.
— Não estou encontrando — digo, sem jeito.
— Não está encontrando porque você não está com o livro — ele me
diz, segurando o riso. — Está comigo.
Entendo que ele sabe que estou mentindo, mas demoro a compreender
tudo, até que me confessa que ele mesmo levou da sala de minha casa o
exemplar perdido.
Ou seja, naquela manhã em que foi de improviso a minha casa e
vasculhou as estantes, meu pai encontrou, de fato, o livro. Só pode ter sido
naquela manhã, penso. Pergunto, ele con rma. Leio para ele algumas
passagens do mesmo conto. Ele morre de rir.
— Foi uma pequena vingança — diz ele, no exato tom de voz de quem
confessa uma travessura.
Rio. Lembro-me do diálogo de algumas páginas atrás, de alguns dias
atrás. Suspeito que minha mãe e minha irmã também sabiam dessa
pequena vingança. Pergunto por que ele sustentou a piada por tanto
tempo. Por tantos anos.
— Porque me esqueci — diz.
Não acredito. Imagino que queria, sim, me dar uma lição. Ou que de
fato era muito importante para ele que eu lesse o livro.
— Em todo caso, gostei muito, muito mesmo — digo. — E sinto muito
não ter lido na época.
— Que bom! — ele diz, com sincero entusiasmo. — Sabia que você ia
gostar. E viu o lme?
— Ainda não, mas vou ver também.
— Não veja, o livro é melhor.
— E por que o livro é melhor? — sinto-me ridículo perguntando algo
assim a ele.
— Eu vi o lme primeiro, e as imagens são espetaculares. Mas o livro
parece mais real. Os personagens, principalmente. A gente pode colocar o
rosto que quiser nos personagens. O livro parece mais nosso. A gente se
identi ca.
Conto a ele que estou escrevendo sobre aquelas viagens de pesca da
infância. E sobre o convite que ele zera a Silvestre algumas semanas atrás.
— Eu sempre imagino que você está escrevendo sobre algo — ele diz,
depois de um silêncio quase longo. — O tempo todo, a vida toda você
esteve escrevendo sobre algo, Alejandro. — Sua fala soa carinhosa e
condescendente ao mesmo tempo.
Conversamos sobre pesca com mosca, não quero fazer anotações,
embora de repente me pareça que meu pai, como um professor, enfatiza
algumas frases para que eu as registre ou me lembre delas. Distraio-me um
pouco, mas essas ênfases me trazem de volta à conversa.
— É que a gente nunca para de aprender — diz, por exemplo. —
Nunca, nenhum pescador com mosca, nunca, nem mesmo o mais
experiente, para de aprender.
— Era isso que o senhor queria me dizer? — pergunto.
— O quê?
— Que nunca paramos de aprender.
— Não entendi.
— Quando me pediu para ler esse livro.
— Eu acho que você já sabe disso. Todo mundo sabe disso, não é preciso
ler em um livro.
— Mas eu aprendi isso nos livros.
— Não, você não aprendeu isso nos livros. E eu estava falando sobre
pesca com mosca.
— Mas por que você insistiu tanto para que eu lesse o livro?
— Porque eu gostei!
— Eu também.
— Você tem razão — ele admite, após alguns segundos. — Alguma
coisa eu queria te dizer. Queria que você lesse para depois te dizer algo.
Mas isso foi há tanto tempo. Com certeza nesses anos todos eu já te disse o
que queria de outra forma.
— Eu sei — digo. — Agora podemos conversar.
— Sempre pudemos conversar.
— Agora conversamos melhor.
— Sim. Escute, tenho que desligar. Mas antes me diga, meu lho, você
quer que a gente vá pescar com o menino, nós três?
— Mas estamos muito longe — respondo, com surpresa.
— Mas não tem que ser já. O menino vai adorar. E eu posso ensinar
vocês dois a pescar. Pode ser no próximo ano, ou no seguinte, temos
tempo.
— Com certeza temos tempo, pai — digo. — Vamos, sim.
Recado para meu lho
1. Confort é a principal marca de papel higiênico no Chile, que acabou se tornando também uma
forma de chamar o próprio produto, como ocorreu com bombril ou gilete no Brasil. (N. T.)
3. Jogo de tabuleiro baseado na cidade de Santiago do Chile e com regras semelhantes às do Banco
Imobiliário/Monopoly. (N. T.)
5. Pão caseiro cuja massa é dobrada antes de assar, tradicional no Chile. (N. T.)
6. Queijo chileno de leite de vaca, macio e muito popular no país. (N. T.)
Gra a atualizada segundo o Acordo Ortográ co da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor
no Brasil em 2009.
Título original
Literatura infantil
Capa
Elisa von Randow
Ilustração de capa
Jesús Cisneros
Preparação
Renata Leite
Revisão
Marina Nogueira
Marise Leal
Versão digital
Rafael Alt
978-85-3593-794-7