No Útero Não Existe Gravidade

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REVISÃO: Aline Miranda


PREPARAÇÃO: Gabriela Soutello e Mariana Galhardo
CAPA E ILUSTRAÇÕES: Monique Malcher
FOTO DA AUTORA: Stella Paiva
DIAGRAMAÇÃO: Talita Almeida

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

N754ú
NOBRE, Dia.
No útero não existe gravidade / Dia Nobre – Guaratinguetá, SP: Penalux, 2021.

ISBN: 978-65-5862-147-8 (recurso eletrônico)

1. Ficção I. Título.

CDD B869.3

Todos os direitos reservados.


A reprodução de qualquer parte desta obra só é permitida mediante autorização expressa do autor e da
Editora Penalux.
Toda palavra é crueldade.
Orides Fontela
O terror psicológico dos dias

Estar envolta por mortes contínuas desde a infância é também sentir-se em


fase de passagem. Entre a bacia com gelo e fatias de laranja que preservam o
corpo da avó, os olhos do coelho esmagado pelas mãos da mãe e a saliva do
primo adulto, existir é, por si, uma experiência de quase-morte. É o que leio
da personagem-condutora de ‘no útero não existe gravidade’: em nascimento
avesso, absorvendo na morte a conexão única ao ambiente familiar – pessoas
que são antes sombras, silenciosas, ensinadas a calar diante das covas. O
corpo do livro está à mostra, dissecado: morte/família/infância, os anos 1980
como cenário, quente, Bahia e Itália e Juazeiro do Norte, e trilha sonora
variando entre risadas e gritos de crianças gêmeas, meninas brincando de
balanço.
A estagnação apática e o movimento abrupto se intercalam entre textos de
ordem lógica: estão exatos onde estão porque seguem um fio condutor. A
fuga e a auto enganação, assim como a brutalidade – e o estilhaço
consequente – , são buscas por sobrevivência: ora por desespero, ora por
inércia, ora por vingança. O fio condutor são essas destruições, passadas de
geração em geração. A mãe, e também a avó, e também a criança: fadas verdes
enterradas pela família. Todas aprendidas a, de tempos em tempos,
enterrarem-se também. Pedem socorro pelo olho, umas às outras, num misto
de ternura e repulsa, sentindo todos os dias “uma dor invisível como a de um
braço fantasma que insiste em existir, mesmo depois de amputado”. Todas
mulheres, dentro de mulheres, advindas do útero de mulheres, bonecas russas
brasileiras, matrioskas do sertão.

É escrevendo que Dia Nobre arranca os calos das pregas vocais, nos
É escrevendo que Dia Nobre arranca os calos das pregas vocais, nos
apresentando em literatura o sistema nervoso aparente, sintomas de doenças
da mente e suas explicações, remédios tarjados, nomes científicos, doenças
crônicas: todos compatíveis à narradora, que se paralisa por excesso de
movimento cerebral. Com o corpo em decúbito dorsal, carrega o
conhecimento de quem sabe sentir dor. O conhecimento de quem “vive como
se tivesse sido picada por uma tarântula”.
Dividido em duas partes complementares e um epílogo, o livro é também
sobre medo, sobre prazer, sobre culpa e sobre a junção dos três, trauma
materializado em águas escorridas pelas pernas. Leio este livro como uma
criança que brinca de “o chão é lava”. Como quem analisa na boca a
antropofagia de uma fruta, já sabendo que ela deixará fiapos de ferro entre os
dentes. O segundo livro de Dia Nobre nos impõe atravessarmo-nos sem
digestão prevista. Leio me perguntando se haveria outro modo de existir,
afinal, que não esse: versando em poesia o terror psicológico dos dias.

Gabriela Soutello
Escritora
São Paulo, 13 de março de 2021
às mulheres que temiam
olhar no espelho
e agora fazem dele uma arma.
mamãe é tão divertida,
espero que ela morra.
na fotografia, mamãe era jovem e segurava um coelho branco. o
sorriso largo deixava à mostra o buraco de um dente que faltava no canto
esquerdo da boca. o cabelo crespo cortado à moda dos anos oitenta. uma
blusa estampada e uma saia marrom que se confundiam com o tom sépia do
papel.

mas eram os olhos que a denunciavam.

mais assustados que os olhos do coelho

que ela esmagava entre as mãos.


a fada verde se espatifou no chão, perdendo a cabeça, um
braço e parte das pernas. as asas ficaram grudadas no torso, mas tinham
danos irreparáveis nas pontas. era sempre assim quando ela ficava com raiva.
atirava coisas no chão. aos gritos. já tinha quebrado um cinzeiro de vidro,
vários copos e até as xícaras tramontina que no comercial da tevê eram
inquebráveis se tornavam pó nas mãos furiosas de mamãe.
eu tinha cinco anos quando vovó morreu.
eu ainda não entendia o que era a morte. tudo era um mistério pra mim.
lembro que me espantei com aquela gente triste, chorando ao redor da caixa
aonde minha avó estava deitada e não se mexia.

me inquietava, especialmente, a bacia de gelo com fatias de laranja embaixo


do caixão, no meio da sala. na época, um mistério assombroso.

pra onde a vovó foi?

ela foi pro céu.

e quando ela volta?

ela não volta. vai ficar lá com os anjinhos.

e pra que as laranjas? eles vão tomar suco com ela?

deixa de pergunta besta, menina.

a noite ia caindo naquele lugar mágico que era a casa da minha avó, com seu
cheiro de terra molhada, mato verde, goiaba e manga madura que eu comia
me lambuzando toda e minha mãe brigando.

você sujou o vestido! mas eu não ligava nadinha.

aquela gente chegando. era tanta gente, e eu, pequena, olhava pra cima. pros
olhos vermelhos e rostos cansados, manchados de água e sal, uns mais, outros
menos. minha tia se unia ao coro de carpideiras, essas mulheres-que-choram-
os-mortos-que-não-conheceram. ou amaram. das lágrimas delas brotava o rio
pelo qual caronte carrega os defuntos.

era tanta gritaria. choro. uma movimentação de gente. mas minha avó não se
mexia. como ela podia aguentar tanto tempo naquela posição? fui ficando
cada vez mais assustada com o desespero que se espalhara pela casa. foi me
dando uma gastura. comecei a sufocar como se estivesse eu mesma deitada no
caixão. duas grandes gotas anunciaram uma cachoeira enchendo meus olhos
de peixe. só senti o beliscão no meu braço esquerdo. mocinhas não choram!

foi aí que entendi que ela havia partido mesmo e, por muito tempo, lamentei
que minhas lágrimas não puderam transportar minha avó ao céu.
minha avó costumava dizer que o único filho que poderia ter tido
algum futuro na vida, morreu três meses após nascido. tinha pele-clara-e-
olhos-azuis como os dela. pequeno como uma banana colhida fora de época e
gordas bochechas de maçã. deu seu último suspiro com a tranquilidade de
quem se livrou de um grande karma.
os pés dela balouçavam na pedaleira da máquina de costura singer.
a agulha entrava e saia do pano. veloz pros meus olhos encantados com o
movimento. quando eu crescer quero ser costureira como a senhora.

a vó costurava uma roupinha pra boneca sueli. roupa pronta. a vesti com
cuidado e saí pra brincar com as outras meninas. e esses olhos caídos? o que
aconteceu com o nariz dela? e essa perna torta? foi atropelada? voltei pra casa
com o rosto ardendo de raiva e o nariz escorrendo do choro contido. enterrei
sueli no quintal debaixo de sete palmos.

no outro dia, arrependida, contei tudo pra vó e pedi ajuda pra encontrar sueli
que na véspera, não teve direito nem a uma cruz pra marcar o lugar do
descanso eterno.

o quintal ficou parecendo uma vila de tatus de tanto buraco que foi cavado na
busca em vão por sueli, que envergonhada da sua feiura afundou mais sete
palmos dentro da terra.
o primo devia ter uns trinta anos. eu tinha oito. um dia ele
chegou na casa de vovó que tinha saído pra uma novena.

eu não gostava dele.

sentou ao meu lado na mesa de madeira e perguntou o que eu estava fazendo.


sem olhar, respondi, é o dever de casa. senti a mão dele roçando a minha coxa
e fiquei paralisada de terror. não precisa ter medo. você é linda e eu gosto de
você. depois, não me lembro como aconteceu. senti a língua dele passeando
dentro da minha boca e tanta saliva que pensei que me afogava. até que a
porta da frente rangeu, vovó chegou e ele parou.

saiu dizendo, toma aqui dois reais pra você merendar.

[mas pra mim, aquele beijo nunca acabou. dói até hoje

entre os dentes]
o barulho do balanço se harmonizava com a risada dela. cada vez
que eu a empurrava, os pés encostavam de leve na areia que espirrava em
susto. o embalo contava o tempo em curvas delicadas e cheias de cuidado. a
força usada na medida certa pro cabelo dourado cair em cachos ao mesmo
tempo em que a gargalhada caía no ar. o parque estava vazio naquele fim de
tarde e o céu ruborizava em tons de laranja e lilás, mas era como se o tempo
passasse em câmera lenta em um estado pleno de felicidade.

aquele dia ficou congelado na minha memória.

lembrei dele ao ver o corpo molenga. saco de veias e ossos. ao vê-la por trás
do vidro no caixão fechado baixando dentro da terra. quando mamãe
recolheu e mandou pra doação aquelas roupas estampadas com corações e
unicórnios e tirou a cama-gêmea do nosso quarto.

a saudade seria uma sensação proparoxítona. sempre acentuada. doendo mês


a mês no ventre que palpitava solitário.

a risada dela foi a trilha sonora de todos os pores-do-sol que ainda veria em
minha longa vida.
esperança era minha vizinha da frente.
tinha por volta de trinta anos, mas se comportava como uma criança. minha
avó dizia que ela era um relógio que andava atrasado. a pobrezinha. ficava o
dia todo na calçada. descalça. brincando com terra. atirando pedras nos gatos
e cachorros que passavam e dando língua às pessoas mais velhas. uma noite
resolveu se deitar na linha do trem que passava dois quarteirões acima da
nossa rua. saiu escondida de casa só de camisola, com seu travesseiro e
boneca preferida. se acomodou entre os trilhos. chupando o dedo, fechou os
olhos

e esperou.
aqui você pode ser presa se usar sapato vermelho numa segunda-
feira, eu disse, em tom de confidência pra moça que escolhia um molho de
tomate no supermercado.

logo depois, senti um puxão no braço. era a mãe brigando porque sumi de
vista. já não te disse pra não sair de perto de mim? mordi o lábio. alisei a saia
azul. por que você não aguenta me ver livre? livre? não se pode ser livre
quando se é sustentada! seria o que a mãe teria respondido se tivesse me
ouvido.

o que você estava falando pra moça?

nada. o sapato dela estava desamarrado. era vermelho como o meu.

você não pode sair falando com estranhos.

não pode.

não pode.

não podia nada, nunca.

então, eu aproveitava cada oportunidade. uma moeda esquecida em cima da


mesa. o troco da padaria. vez em quando, mergulhava as mãos na bolsa da
mãe. uns furtos desimportantes. o plano era juntar dinheiro pra ir embora.
nós só viramos gente de verdade quando podemos viver sozinhas, li isso em
uma revista e anotei pra não esquecer.

já disseram pra você que o amor pode ser

uma armadilha?
ela me chama, indo na direção do caixa, sigo atrás, cabisbaixa, notando que
meu sapato vermelho estilo boneca está furado em dois pontos.
tenho nove anos.
na escola onde minha mãe

é professora

as crianças me olham

como se eu fosse uma intrusa.

semana passada, uma funcionária se suicidou. a corda no pescoço e na viga do


pé direito da sala. eu gostava dela. vovó disse que ela vai pro inferno.

eu morro de medo de ir pra lá

também.

tenho catorze anos.

na escola onde estudo

as meninas implicam com meu cabelo de leoa

e meus óculos fundo de garrafa.

me sinto uma intrusa.

ontem a freira-diretora mandou me chamar. quando cheguei, papai estava lá.


você precisa ser forte, seu melhor amigo se matou. a corda no pescoço e no
torno da rede. a mãe encontrou o corpo. ele foi pro inferno?

pergunto feito quem cospe.


todos na minha família têm medo do inferno, por isso, cada um encontrou
um modo disfarçado de se matar. esperavam assim, escaparem.

meu pai, com sua passividade de cavalo manso.

minha mãe, drogando-se com pílulas até não ser mais.

meu irmão, escondendo sua arma embaixo do travesseiro pra qualquer


eventualidade.

minha avó, agarrando-se às missas e orações televisionadas por padres que


escondiam crianças debaixo da batina.

eu

fui deixando de comer.

a inanição me pareceu a forma mais higiênica de desaparecer.

tenho dezoito anos.

um metro e cinquenta. trinta e cinco quilos. minha pele desenha o formato


das minhas costelas. se cola aos órgãos internos. de vez em quando eu
desmaio. juro que dia desses pude ver um anjo de asas negras pendurado por
uma corda.

se todos eles vão pro céu, tem certeza que você

quer ir também?
sonhei que me apaixonava por umamoça.
depois de algum tempo percebi que era uma professora da escola, muito
bonita-cabelos-negros-pele-clara-voz-de-sereia e um sinal a la marilyn
monroe. eu era tímida e nunca havia falado com ela, mas sentia que era
minha namorada da vida inteira.

a vi pela última vez na saída da escola. entrando no carro de alguém que


poderia ser seu namorado ou marido. vestido verde musgo à moda dos anos
oitenta com ombreiras e uma faixa preta enredando sua cintura. ela sorria e
ajeitava os cabelos atrás da orelha.

meu coração ferveu feito uma chaleira que está há muito tempo no fogo.

no outro dia, soubemos do acidente.


eu tinha um cabelolongo.
cachos loiros que cobriam, volumosos, a minha cabeça de criança. desciam
pelas costas buscando o caminho

das nádegas.

meus cabelos eram o orgulho da minha mãe. ela os penteava cuidadosamente,


ao menos, duas vezes por dia. enrolava cada mecha com a paciência de uma
tecelã urdindo fios

em um tear.

elaborava penteados ou copiava os que via nas revistas.

minha mãe, amava mais o meu cabelo do que a mim mesma. não demorou
pra que eu percebesse isso. sabia que os cuidados com minha limpeza-
alimentação-vestimenta eram consequência desse amor pelas minhas
madeixas. feito um jardineiro que aduba a terra e remove as pragas pra que as
rosas possam florescer saudáveis.

o ritual de lavar-hidratar-pentear podia durar até duas horas por dia. quatorze
horas por semana. cinquenta e seis horas por mês. seiscentos e setenta e duas
horas por ano. toda uma vida devotada a essa coisa que nascia e crescia em
mim

sem permissão.

não lembro quando comecei a arrancá-los. sei que iniciei da parte de baixo,
mais difícil de ser notada. com o sucesso da empreitada, aumentei não só a
regularidade, mas a quantidade. cinco a dez fios, quatro a cinco vezes por dia.
enrolava os fios escolhidos com o dedo indicador até que formassem um
barbante. fechava bem os olhos antecipando a dor fina e puxava com bastante
força até que a raiz cedesse. seguia a este ato, um prazer imenso que me
molhava

a calcinha.

pra que mamãe não desconfiasse, guardava os longos fios embaixo do


colchão. levou um tempo até os buracos ficarem visíveis. o aumento da
alopecia era igualmente proporcional ao desespero de mamãe que não
imaginava porque

sua preciosa crina agonizava.

fomos a vários médicos. tive que tomar vitaminas. A-D-B3-B12. as horas de


cuidado aumentaram. eu sofria com a aplicação mais recorrente de máscaras-
óleos-queratina e idas a cabelereiras especializadas.

o ritmo da minha devastação também cresceu. o couro cabeludo só tinha


trégua quando mamãe estava por perto. meus dedos coçavam de ânsia pelo
ato de vingança

cotidiana.

uma noite, minha cabeça doía pelos medicamentos que mamãe aplicava e
pela touca que me apertava o crânio.

cansei do jogo.

esperei a casa silenciar para ir à cozinha. mamãe guardava as tesouras na


segunda gaveta da pia. peguei a maior, de cabo vermelho e bem afiada. de
frente pro espelho do banheiro cortei mecha por mecha do que restara do
cabelo.

contemplei a derme branca machucada. percebi o formato da minha cabeça e,


contemplei a derme branca machucada. percebi o formato da minha cabeça e,
pela primeira vez, senti amor pelo reflexo no espelho.

juntei tudo e amarrei a melena loura com uma fita azul. pendurei na
maçaneta do quarto onde mamãe dormia.

o grito me acordou às sete horas da manhã.


a mãe mostrou ao pai o lençol manchado.
tinha sangue-nojo-vergonha.

peguei o lençol e o levei pra lavanderia. quanto mais esfregava, a água cor de
ferrugem escorrendo na pia de pedra, mais a mancha crescia. a mãe ria ao
longe.

papai, constrangido, me trouxe da rua um pacote de absorventes e me ajudou


a estender o lençol no varal.
no útero nãoexiste
gravidade

o bebê flutua

não tem peso.

quando nasce

é na relação com a primeira cuidadora que cria o que a psicologia chama de


contorno. o abraço materno aterra as emoções que não podem ser explicadas
pro ser que acabou de vir ao mundo. esse enlace faz com que o bebê teça
referências sobre quem ele é, sobre a cuidadora e o mundo externo. quando
isso falta,

o bebê se sente desamparado.

a sensação é de estar sempre caindo. as coisas passam por ele disformes-


desproporcionadas-uma-eterna-paralaxe.

eu não consegui construir bordas.

mas até certa idade, tinha devoção por minha mãe. adorava dormir em seu
colo e sentir suas mãos de lagosta em meus cabelos. com ela, tudo parecia
mais bonito feito o salto de uma baleia em mar aberto.

é perigoso se aproximar.

mas eu não sei se era assim mesmo ou se inventei tudo. a memória é um


campo de incertezas e transforma as lembranças em calopsia, essa ilusão de
que algumas coisas são mais bonitas do que de fato são.
mesmo passados todos esses anos, eu sempre sonho que estou escorregando
de algum lugar. me choco contra o chão e o impacto comprime meus
pulmões. um buraco negro se forma no meu peito.

depois da queda me faltou tudo.

nunca mais o conforto

de um útero.
tramei
muitas vezes

uma fuga.

nunca tive coragem de ir. a casa foi rachando aos poucos. tentativas inúmeras
de suicídio. remédios-corte-nos-pulsos-enforcamento. até que ela partiu meu
coração quando eu tinha catorze anos.

em nossa última briga atirei palavras duras. melhor se jogar na frente do trem.
me arrependi depois. o tempo passou e ela nunca se matou.

de fato.

por muitos anos, vivi um luto sem corpo. uma dor invisível como a de um
braço fantasma que insiste em existir, mesmo depois de amputado.
eu tenho fascínio pormatrioskas, acho mágico como elas se
desmembram saindo-de-si-pra-dar-lugar-à-outra. um círculo gemelar
infinito.

por essa afinidade sinto que dentro de mim vivem mais mulheres do que eu
posso dar conta.

talvez por isso, me sinto correndo contra o tempo.

todas essas vozes na minha cabeça.

sometimes breathing, sometimes drowning.

imagino que os sonhos são pedaços de outras vidas. alguns dias transcorrem
sem trégua. em outros, consigo certa coerência, certa paz de espírito. no fim,
percebo que a linha em que caminho é uma arritmia.

boneca russa,

me desdobro em várias.

mas só queria ser simples,

uma boneca de pano.


essa é a cruz que você precisa carregar, disse minha tia.
no quarto, mamãe vomitava o álcool com veneno de rato que havia ingerido
algumas horas antes.

olhei aquela mulher coberta de vômito e urina, e já muito cansada, percebi


que não nasci pra cristo.

fui pilatos.
minha avó tinha mania de chamar todo mundo de maluca. pra ser
maluca não precisava muita coisa, bastava ter uma ideia ou um pensamento
diferente do dela. se eu usasse um short curto. maluca. se eu não almoçasse
meio-dia-em-ponto. maluca.

maluca era a adjetivação para todos os preconceitos-medos-dificuldades de


lidar com

o diferente.

maluca era a vizinha que apanhava do marido, mas batia também.

maluca era a gata no cio quebrando os telhados.

maluca a senhora da feirinha que cobrava cinco cruzeiros por meia dúzia de
banana.

maluca a minha prima que saía com vários homens e abortou três vezes
usando chá de canela e arruda.

maluca a iaiá da rua de baixo que fazia reza e tocava tambor num salve a
ogum-xangô-oxalá-iemanjá-eparrey-oyà.

maluca

maluca

maluca

tudo maluca, dizia vovó, que não entendia a maluquice das mulheres que
sabem dizer

não.
dizem que quando alguém decide morrer, bastam sete dias
sem orações ou lamentos. minha vó sabia disso. percebi quando a vi pela
última vez. agarrou meu braço bem forte, levou-o junto ao peito e me olhou
com cumplicidade. ela não queria mais estar nesse mundo.

não a culpo.

foram vários dias de cama.

não se levantava.

não queria comer.

não se queixava.

fechava aqueles olhinhos azuis pequenos e suspirava. ela me parecia tão


grande quando eu era pequena.

perto da morte, passarinho agonizando, cabia nas palmas de minhas mãos.


li em algum lugar, que o sol era uma estrela moribunda no centro do
nosso universo e quando ele morresse toda a via láctea seria sugada pra
dentro desse luto eterno. lembro de pensar que eu não queria ser engolida
pelo sol.

vovó, senhora muito séria e religiosa, me disse que o mundo acabaria na


virada do milênio e eu lamentei por dias o fato de que não passaria dos quinze
anos.

eu tinha muito medo de morrer naquela época. vivia como se tivesse sido
picada por uma tarântula. inquieta, dançava de um lado pro outro sem
conseguir imaginar o futuro. a mera menção da morte me arrepiava e
lágrimas densas de cúmulo-nimbos começavam a escorrer pelo meu rosto.

minha avó de olhos azuis

conversava com os espíritos.

ia à missa de madrugada na igreja dos franciscanos.

não perdia a hora da graça nas quartas-feiras.

rezava todos os dias às dezoito horas aquela ladainha ouve-mãe-de-deus-a-


minha-oração.

foi a grande responsável pela maioria dos temores que eu senti na vida.

dezenove anos depois, sigo sobrevivendo à virada do milênio, minha avó já


não existe. o sol ainda brilha e a presença da morte é tão comum nestes dias
que se tornou um lenitivo.
no rádio tocava essa música antiga e me comovi pensando na
infância enquanto colocava as roupas na máquina de lavar. a canção lembrava
o pai.

lembrava também

os domingos na casa da vó.

o cabelo crespo e laranja de uma tia.

a bisavó escafandrista em um canto da sala, surda-cega-muda-presa esquecida


da própria vida.

recordava o piso da casa. cimento carmesim brilhante, cheirando a cera. uma


despensa com vidros de azeitonas-geleias-biscoitos que a gente roubava
morrendo de medo de ser descoberta.

a cadeira com fios de macarrão aonde balançávamos até quase cair pra trás. os
sequilhos com chá de capim-santo ou erva-cidreira que eram servidos quando
chegava visita. uma tia mais velha ou as cunhadas da vó que cobriam nossas
bochechas com uma baba mais peguenta que calda de pudim.

mas nada se comparava à intangível perfeição da cristaleira que enfeitava a


sala de jantar.

distraída no ambiente luxuoso em que sempre vivia. madeira-maciça-


rebuscada. estilo luís xv. três prateleiras internas e laterais de vidro. na
primeira prateleira ficavam os jogos de chá. conjuntos de xicarazinhas
pequeninas e delicadas. um branco. outro com rosas vermelhas e azuis. outro
de tom castanho. na segunda, ficavam os copos coloridos de licor e conhaque,
tulipas e taças de vinho jamais usadas. na terceira, as louças de jantar,
travessas e bandejas.
éramos sete. eu, minha irmã e cinco primas.

a cristaleira era território proibido e aprendemos desde muito cedo que


chegar perto dela podia render muitos castigos. leves, como ficar de joelho em
cima do milho rezando dez ave-marias ou até surras de espada-de-são-jorge.

ainda assim, havia um prazer estranho em arriscar um pique-esconde, um


pega-pega ou até mesmo um jogo de bola rasteira pela sala gigante. e se
alguma infeliz conseguia chutar a bola ali perto ou trombava com o ombro no
móvel, por um momento, as batidas aceleradas no peito sincronizavam-se em
um terror absoluto, até que alguém tivesse a coragem de sair correndo pro
quintal ou pra um dos quartos da casa a esconder-se.

era nítida a recordação daquele dia. vovó conversava com as comadres na


calçada e nós brincávamos de o chão é lava. a regra era andar por cima dos
móveis. quem pisava no chão, perdia e tinha de pagar uma prenda.

eu estava em cima da mesa de jantar que ficava bem em frente à cristaleira. na


hora de mudar de lugar, sem muita opção, resolvi pular na cadeira da
cabeceira quando o apito tocasse. calculei mal e deslizei na mesa de madeira
lisa como sebo, dando com os dois pés no assento. a cadeira se inclinou com o
peso e o encosto entrou impiedoso na vitrine do meio.

fiquei ali enganchada na cadeira inclinada. o chão repleto de caco de vidro. o


mesmo bolero tocando no rádio do avô e o medo se materializando numa
urina que escorria quente

pelas minhas pernas.


o caráter masoquista se estrutura na primeira infância, mas muito
raramente antes do quarto ano de vida. no ambiente familiar se desenha a
ambivalência aprovação-reprovação por parte dos cuidadores.

a mãe chegou e me flagrou usando um batom vermelho nos lábios pequenos.


saí correndo e chorando muito. passei a mão na boca, manchando todo o
rosto. eu devia ter uns cinco anos e parecia uma alegoria de palhaço triste.

trata-se de uma indivídua que tem uma noção permanente de ser inadequada-
desajustada-descabida. na infância, foi forçada a fazer coisas para as quais não
se sentia preparada. possivelmente, sofreu com as invasões do seu corpo.

ele parou o carro no semáforo. pegou a minha mão e colocou entre suas
pernas. é duro né? você gosta? vamos brincar de violência?

ele era um adulto.

seus cuidadores foram pessoas com desrespeito face às funções orgânicas


naturais. defecar-urinar-vomitar geram na criança um sentimento de
vergonha-nojo-repúdio.

a calcinha manchada de vermelho entre os joelhos. uma dor fina no pé da


barriga. coloquei o bolo de papel higiênico bem no meio das pernas e vesti a
calcinha suja. uma gota de sangue bem redonda caiu no vaso sanitário.

uma denúncia.

o masoquismo também pode surgir nos casos em que a mãe força a criança a
comer ou empurra a comida garganta adentro forçando a criança a desengolir.

o molho pardo esfriava sobre o prato. você só levanta quando comer tudo.
uma nuvem escura chovia sobre minha cabeça. o estômago revirava o café da
manhã que foi se misturar ao molho pardo gelado. o castigo,

uma surra de espada-de-são-jorge.

os cuidadores atuam na forma de influenciar a criança através da chantagem


emocional. uma vez instalado o jogo, a indivídua orientará suas ações para a
submissão gerada pelo sentimento de culpa.

você me ama? você não vai me abandonar? sem você eu vou morrer. você é
uma decepção. você nunca vai conseguir nada. um dia você vai voltar
rastejando e implorar

o meu perdão.

a masoquista cresceu em um ambiente avesso à expressão de afeto. o


masoquismo resulta de uma disfunção na capacidade de sentir prazer.

a mãe me obrigava a contar as cintadas que recebia quando fazia algo errado.
uma. desculpa mamãe. duas. desculpa mamãe. três. desculpa mamãe.

a masoquista tem como característica física um corpo atarracado. a cintura


curta esmaga as vísceras até o ponto de colapsar. projeção da pelve à frente. cão
com rabo entre as pernas.

achatava aquela protuberância adiposa embaixo do umbigo com uma calça


bem apertada. sentia que tudo desandava da cintura pra baixo. os pêlos
escuros e grossos desciam pela pelve e púbis até formar a copa de uma densa
floresta que escondia lábios murchos e tímidos. as coxas eram finas e as
pernas, dois cambitos sustentados por joelhos tortos e pés pequenos demais
pra amparar a gravidade.

a masoquista concentra a angústia na garganta. como um nó-oito-dobrado que


ancora as palavras bem no centro da goela e não as deixa escapar. sofre o
grande conflito entre a necessidade da liberdade e a de agradar.
duvido você colocar a mão no formigueiro. duvido você caber nessa roupa.
duvido você passar no vestibular. duvido que aquela moça goste de você.
duvido que você arranje a bolsa-estágio-emprego. duvido que você termine o
curso. duvido que você encontre alguém que te ame como eu. duvido que
você consiga existir sem mim.

apesar de parecer superficial, a masoquista é muito inteligente e sensível. a sua


compreensão dos outros é precisa e penetrante; no entanto, por um paradoxo
irônico acaba por colocar sua inteligência a serviço da desordem, fazendo com
que ela encarne um papel catastrófico em sua vida.

ca-le-a-su-a-bo-ca.

a voz sai soluçada.

depois, três gritos bem altos cortam minha garganta. os gatos se assustam e
vão se esconder debaixo da cama. agarro um vaso de cristal e jogo no espelho
da sala de jantar. outro estrilo. taças-copos-pratos começam a explodir pela
cozinha. quadros são arrancados das paredes. porta-retratos com sorrisos
plásticos se despedaçam. a pulsão destrutiva é a única coisa que faz sentido
agora.

libertar-se é pulverizar o que há pela frente

até não sobrar mais reflexo da criança que fui.


aos 16
li crônica de uma casa assassinada, do lúcio cardoso.

amei tanto que o destruí.


nada era muito claro naquele momento. se alguém
perguntasse, eu não saberia dizer porque fazia aquilo. nem alegre nem triste.
agia como se estivesse no automático. cortar a carne macia. usar um facão
bem afiado que desliza como patins no asfalto. romper os músculos com o
cutelo mais resistente. serrar as articulações separando a cartilagem entre os
ossos. ílio-sacro-rádio-ulna. você sabia que um bebê tem mais ossos que um
adulto? colocar o membro lacerado no moedor. metacarpos e falanges fazem
barulho de criança mastigando cereal. observar a carne moída saindo com um
guincho quase humano.

repetir o processo até não haver mais corpo.


família pode ser âncora ouvento.
pode te arrastar por um mar de vergonha e obrigações ou te levar longe.
família pode ser de sangue ou de alma. pode ser feita de dois, três ou mais.
pode ser nó de marinheiro que não desata em turbulência ou nó corrediço
que ao menor deslize te esgana. família é aquilo que te assombra a genética ou
te acolhe no meio da noite. família deveria ser pra sempre.

mas quase sempre

não é.
vi uma gata em um beco,
pensei que era um espelho.
hai l'occasione di scegliere
me diz o biscoito da sorte, em algum restaurante perto do mar adriático.

quando escolher não era realmente uma possibilidade.


abro osolhos.
estou na cama.

preciso levantar.

piso no chão molhado. há água por toda parte e um cheiro de gás vem da
cozinha. todas as janelas estão abertas. as redes de proteção arrebentadas. me
apavoro ao pensar nos gatos soltos pela casa. meu quarto se transformou em
uma armadilha e não há nada que eu possa fazer, a não ser sonhar que estou a
salvo.

abro os olhos.

estou na cama.

preciso levantar.

saio do meu quarto como uma carcereira. escondi o lexotan dentro do sutiã. a
ponta afiada do blíster perfura meu mamilo. procuro as chaves nos bolsos do
roupão. é madrugada e não há ninguém na rua. tenho sede. esvazio a
garrafinha de 500ml três vezes.

abro os olhos.

estou na cama.

preciso levantar.

a comigo-ninguém-pode da sala está meio morta. cato a água do chão em


concha e derramo sobre as folhas secas. a terra se umidifica. o caule se enche.
as veias voltando a pulsar. as folhas reavivam verde-escuro. a chave brota da
planta como uma flor.

abro os olhos.

estou na cama.

preciso levantar.

coloco a chave na porta. ela se abre defronte a um longo corredor-branco-


alabastrino. dois homens conversam. dessa noite, ela não passa. é, acho difícil.
me encosto à parede até me tornar parte dela. me arrasto e passo por eles. não
conseguem me ver. estou quase livre. chego à porta no final do corredor. um
gato preto me espera.

me enganar sempre foi uma maneira de sobreviver.

abro os olhos.

estou na cama.

preciso levantar.

giro a maçaneta que não abre. o gato pisca os olhos amarelos. eu entendo.
com o blister corto meu pulso bem em cima da artéria braquial. o gato lambe
com prazer o filete de sangue que escorre. satisfeito, regurgita uma chave.
agradeço em silêncio

e abro a porta.

em um instante

eu sou uma criança.

uma adolescente.
uma mulher.

uma anciã em cima da cama. cânulas de intubação cobrem meu rosto. sinto a
água sob os meus pés. penso nos gatos soltos pela casa. um líquido pegajoso e
escuro escorre da cama para o chão. fecho os olhos com força.

quando os abro.

estou na cama.

preciso levantar.
cutuco com o indicador direito a espinha nascendo na bochecha.
a dor não me distrai.

no vidrinho de 60ml está escrito em letras grandes e desproporcionais:


ansiedade. o floral promete acalmar o sistema nervoso de modo natural.

eu

não

sei

que dia é hoje?

meu coração está acelerado demais. dói o peito. tento fazer a respiração
completa que aprendi na yoga.

pra-na-ya-ma

inspira em cinco.

expira em dez.

ou será que é ao contrário?

acendo um incenso de arruda e a fumaça se espalha pelo quarto pequeno. lá


fora venta. dá pra ouvir o uivo de oyà. já são quase seis horas e o céu se
alaranja. eu só queria que meu coração desacelerasse.

a palavra ecoa pela minha garganta e língua. essa concordância tá correta?


não sei. vou fazer um chá de camomila com maracujá. detesto maracujá. as
costelas apertam.
diafragma é uma palavra

de

nove

letras.

é um músculo estriado que

se contrai

se expande

na respiração.

me estico na cama. coloco a bolsinha de sementes de linhaça sobre os olhos.


pesa um pouco. barriga-tórax-alto-do-peito.

enche

esvazia

até

ânsia

passar.
hoje a gatacaçou
e matou uma barata. como prêmio pelo esforço heroico, só comeu e dormiu o
dia inteiro.

hoje a gata decidiu

que minha mesa de trabalho é o único lugar da casa aonde ela gosta de
dormir. vez em quando ela mia baixinho, é sinal de que quer um carinho. se
eu não faço, ela mia mais alto, se estica e derruba alguma coisa no chão.

hoje a gata mordeu minha mão.

percebi que estava em um pesadelo.

hoje a gata miou alto

quando uma rasga-mortalha pousou no parapeito da varanda.

hoje a gata abocanhou

um passarinho. tentei salvá-lo, mas não pude.

as patas ficaram pra sobremesa.

hoje a gata passeou nos meus sonhos.

brincamos de pega-varetas. perdi já na segunda tentativa.

hoje a gata se arriscou demais

perdeu sua sétima vida. em seu velório, alguém disse: acontece a todas.
um asteroide passou a sete mil km daterra
e flertou com a gravidade.

você já tocou em um meteoro? eu já. ano passado, no atacama, peguei uma


pedra de meteoro nas mãos. era uma pedrinha de nada, mas pesava muito. é
assim que os cientistas sabem, disse a moça do museu. meteoros pesam
muito. são feitos de liga de ferro e níquel.

enquanto segurava aquela rocha, eu imaginava o caminho que ela percorreu


pra chegar até ali. foi estrela cadente pra alguém. alimentou desejos. talvez
tenha vindo de outra galáxia, cruzado buracos de minhoca, se distorcido na
energia densa de um buraco negro e flutuado no espaço surdo até ser atraído
pela gravidade da terra. dá pra sentir o peso de um meteoro na palma da mão,
como o fardo de um coração velho, e com ele, milhares e bilhares de anos de
uma existência inexplicável.

ontem eu li que um asteroide caiu na terra, no interior da bahia, perto do


riacho bendegó. um asteroide é um meteoro gigante que pode chegar a até
mil km de tamanho. então, imagine você, o peso de existir desse asteroide que
ao despencar, recebeu esse nome sertanejo. pedra cuitá. tinha ouro, bronze,
metal e ciência nessa pedra de memória estelar. a memória pesa em muitas
cabeças, mais que um meteoro se partindo ao cruzar a mesosfera.

no dia em que segurei um meteoro nas mãos, senti todos os elementos que
arderam no fogo atmosférico da memória de meus antepassados. nostalgia
incendiária. chorei pra dentro. o peso do meteoro me esmagava.
minha janela está aberta. música ruim tocando lá fora. cachorros
latindo e motocicletas em alta velocidade. são 23:42 e eu quero ao menos
terminar o capítulo que já comecei. quero ver o quanto aguento até desistir,
me convencer de que não sei mais fazer isso. não. de que não quero mais fazer
isso.

essa semana sonhei coisas bizarras. um aborto. um gato cego. uma


perseguição. uma casa com retratos de gente morta na parede. alguma coisa
muito profunda e estranha aconteceu depois disso.

minha menstruação ainda não veio. tenho sono o tempo inteiro. durmo
muito. mergulho a cabeça na pia cheia de água pra tentar me manter
acordada, e, mesmo assim, não consigo me concentrar. tenho maus
pressentimentos e arrepios constantes.

conto meus sonhos pra analista e ela diz que eu deveria relaxar com o ócio.
ignorar a bagunça. olho ao redor. o travesseiro da nasa. uma camisola velha.
roupa de cama por lavar. tudo cheira a ranço. a desordem me incomoda. ela
não sabe das coisas que por não serem verdades, são mentiras.

escuto um áudio de chuva artificial. das coisas que mais sinto saudades, é da
chuva. do cheiro da chuva. do barulho. da água. fria. dou um trago no cigarro.
mudei a mesa de lugar. preciso voltar a ler. deixar elena me devorar mais um
pouco.

gostaria de poder falar, mas temo ser necessária uma traqueotomia. preciso
fechar a janela. tem um monte de coisa perigosa lá fora, mas o que vai me
matar é o calo na prega vocal feito dos silêncios que guardei na garganta.
leio vinte segundos de poesia.
escrevo no meu caderno de folhas duras cheirando a novo. dentro do meu
peito uma agonia com o tempo perdido. tédio que não consigo converter em
algo produtivo. aqui da janela desse prédio pequeno-burguês nessa cidade
pequeno-burguesa aonde na mesma praça é possível ver

uma ferrari vermelha

um menino sem roupa morrendo de fome

uma travesti se prostituindo.

leio vinte segundos de poesia.

o tempo que leva pra saber que é tarde demais pra tomar a sertralina que não
vai fazer efeito imediato. tomo então, um chá de capim-limão-melissa-
camomila que comprei ontem quando tive que sair de casa pra checar os
olhos com o médico que comunicou despreocupado que sua retina é fina e
tem uma doença que está te comendo por dentro e um dia, talvez, você
termine cega como sua avó paterna ou sua tia ou alguém dessa maldita árvore
genealógica que está no seu sangue-cabelos-fígado-ovários-baço.

leio vinte segundos de poesia

e choro um pouco todo dia, mas hoje não consigo chorar e coloco colírio e
mexo no celular e jogo um jogo que não leva a lugar nenhum e bebo 330ml de
água gelada. espero as horas passarem e que o dia amanheça e algo de
maravilhoso aconteça na madrugada calada e pouco iluminada dessa cidade-
pequeno-burguesa.
cara senhorita emparis,
te conto que ontem à noite sonhei que fazia as malas. sabia que não se tratava
de uma viagem e sim de uma fuga. o pesadelo consistia no fato de que minhas
coisas não cabiam dentro da mala e eu tinha pressa. desde pequena sou assim.
vivo em sofreguidão e não caibo em mim.

tantas malas-bagagens-mudanças. vomitando coelhinhos em apartamentos


amigáveis. outros nem tanto. diversas as camas em que deitei pensando em
morrer suave. desejando que-bom-se-essa-fosse-a-última-vez. chorava alto.
atacada por ridículas crises de autocomiseração.

não queria mais ter que pôr nada em ordem. cansei de arrumar malas,
dobrar-empacotar-fechar caixas e carregá-las pra lá e pra cá. eu não tinha
mais força-energia-ânimo o que fosse. me larguei no chão e decidi. daqui não
me movo mais. no outro dia, morria de tédio e tive que me mexer. alinhei as
coisas na mesa de centro. lavei-passei-guardei todas as roupas. os vestidos,
esses deixei pendurados na arara lá do quarto que é mais arejado. você sabe
como aquela umidade que se acumula pelos cantos me faz espirrar.

minha condenação é não conseguir ficar parada. não conseguir não pensar
em nada. não conseguir dormir. são agora cinco noites de uma insônia
profunda. qualquer dia, crio coragem e me levo até a varanda. são sete
andares. sabe aquela música que você gostava de cantar enquanto eu fazia as
malas? qualquer dia, crio coragem. faço do parapeito meu palco e da queda, o
próximo passo.
a gata me acordou com pequenas mordidas no dedão do pé. não
queria levantar e ela teve que insistir bastante. dormi dezoito horas seguidas
depois de tomar duas garrafas de vinho e vinte e cinco mg de clonazepam.

sonhei que estava no passado. na casa da minha avó e de lá eu podia ver a


torre da igreja dos franciscanos. sonhei que participava de uma aula de dança.
que dava uma palestra pra um cardeal e dois bispos e catava pequi no quintal
de alguém que eu não conhecia. chovia muito e eu estava atrasada pra pegar o
avião que me traria de volta à realidade. eu corria mais rápida que o coelho
branco e tentava chamar um uber, mas a tela do celular estava borrada, as
letras embaralhadas, então, eu lembrava que estava em um sonho.

sonhar é um abismo no qual mergulho em apneia todos os dias.

há um prazer quase perverso em me sentir caindo

como quem abraça a gravidade.

de repente o telefone tocava. era meu pai. sabia que ele ia me pedir pra ficar,
mas antes que eu pudesse atender

a gata me acordou

com pequenas mordidas no dedão do pé.


olho pro tatuador muitoséria.
o desenho é esse aqui. ele segurou a imagem por alguns minutos.

tem certeza?

sim.

e onde vai ser?

no braço mesmo. no esquerdo.

me acomodo na cadeira enquanto o tatuador prepara o stencil e as tintas. tem


certeza, né? respirei fundo e assenti com a cabeça. o barulho da máquina me
assustou um pouco. a agulha dançava um tango em minha pele. ardia e era
glorioso.
ela estava ali.
sentada na cadeira que fica ao lado do guarda-roupas. o cabelo longo lhe caía
em cachos pelas costas. usava uma camisola branca e seus olhos castanhos me
escrutinavam. você não é real, murmurei, piscando os olhos até ela
desaparecer.

já fazia um tempo que ela aparecia nos lugares mais inusitados. no balcão da
padaria. na fila do supermercado. quando eu apresentava um trabalho ou
estava na cama com alguém. nos últimos dias, a rotina era explicar às pessoas
que eu tinha o pavoroso hábito de falar sozinha.

na primeira vez que a vi, duvidei dos meus olhos e sentidos. também a ouvia e
sentia seu cheiro. um aroma de lavanda recém-colhida ficava no ar quando
ela aparecia.

nunca tive medo. outro dia, conversamos bastante, mas ela me fez recordar de
coisas que eu não queria. coisas que estavam bem guardadas no fundo de um
baú azul estampado com rosas vermelhas, trancado com cadeado, junto com
as cartas e diários que escrevo desde os doze anos. fiquei chateada e não estou
mais falando com ela.

faz dias que estou aqui. neste quarto. usando o mesmo pijama. comendo o
resto de comida da geladeira. sem vontade de fazer nada.

me levanto com dificuldade pra ir ao banheiro. tropeço em um copo que


deixei no chão e ele se espatifa, piso em um caco e meu pé sangra. me abaixo.
toco o sangue. pego uma lasca do vidro e escuto o sussurro rouco no meu
ouvido.

por que você não se mata?


entrei no quarto e pollyestava
ao lado da cama olhando pro travesseiro preciosamente arrumado sobre o
lençol esticado.

polly, você devia estar deitada! a menina não se moveu. polly? me aproximei,
toquei de leve o ombro enrijecido sob a camisola de seda branca. um
estremecimento.

polly virou o rosto lentamente. da sua boca saíam pequenos animaizinhos.


seriam joaninhas ou besouros? os observo, incerta. a íris estava branca como a
seda que ela vestia. pisquei os olhos, balançando a cabeça em negação e lá
estava o rosto pálido de polly.

o que você está fazendo de pé, polly? você precisa descansar, vá pra sua cama,
vou lhe trazer uma sopa. não. não quero sopa. abraço-a com cuidado, como se
carregasse uma bandeja de taças de cristal. eu sei, eu sei. você sente falta dela.
eu também sinto. olho pra cama impecável e vazia.

conduzo polly à cama do outro lado do quarto e a deito. tiro um cacho loiro
que insistia em cair sobre os olhos. eu sinto a presença dela. como assim? não
sei, deve ser coisa de gêmeas. acordei com ela me chamando. mas você sabe
que foi um sonho, não sabe? infelizmente, ela não está mais aqui. e se eu
estiver sonhando agora? se tudo isso é um pesadelo horrível onde minha irmã
está morta? oh, meu bem, eu queria que estivéssemos em um sonho. que nada
daquelas coisas terríveis tivessem acontecido e que ela estivesse aqui conosco.
iríamos tomar café com bolo de milho na cozinha e rir da vizinha correndo
atrás dos cães que atacam as galinhas. mas não é um sonho. polly sentou-se
na cama, inquieta.

como você tem tanta certeza?


o quarto começou a girar. polly se desfazia na minha frente, primeiro o cabelo
loiro saía da sua cabeça revelando um couro cabeludo quase transparente.
depois, os olhos saltavam e flutuavam ao seu redor. o nariz caía e os dentes
saíam um por um da boca escancarada de polly que agora era uma caveira
risonha. pensei que afinal, aquilo poderia ser um sonho e fechei os olhos bem
forte. girava dentro daquele tornado. me agarrei na borda da cama pra não
cair. embaixo, um oceano de vazio e tristeza prestes a me devorar. o giro
parou de repente.

abri os olhos e estava na cama. polly olhava pra mim. a boneca na mão. vou
deixar sueli aqui pra você ficar logo boa, tá bem? olhei pro meu corpo
retesado. o lençol coberto de joaninhas. tentei gritar, mas a voz não saiu. tudo
recomeçou a girar.

eu estou deitada dentro de um caixão. a tampa fechada. pelo vidro vejo polly
com sua boneca. chorando. depois vejo a mim mesma abraçando a menina.
minha gêmea olha diretamente pra mim e esconde a cabeça de polly em um
abraço. bato no vidro, mas ninguém parece escutar. me contorço dentro do
caixão. as pessoas começam a jogar terra em cima. outro berro mudo.

abro os olhos. estou tremendo. coberta de suor. sentada na poltrona do


quarto das gêmeas. uma delas, dorme profundamente agarrada à uma boneca.
a outra, tem cânulas nos braços ligando-as a um soro. me levanto atordoada e
vou checar a menina. o soro acabou, precisa trocar. afasto delicadamente os
cabelos que lhe cobrem o rosto. da sua boca aberta, escapa uma joaninha e
seus olhos estão brancos como a seda da camisola.
estou parada em uma sala que não reconheço. uma
estante de livros. poltronas. tapetes. tudo me parece familiar. mas não sei
onde estou. olho minhas mãos, o esmalte descascando sempre é um sintoma
de que algo lá no fundo do osso não vai bem. minha cabeça dói. eu só quero ir
pra casa. você está em casa, alguém diz. eu flutuo até o banheiro e, de repente,
estou de roupa embaixo do chuveiro. a água quente cai sobre mim. estou só
pela primeira vez em uma eternidade.

ao mesmo tempo, me vejo em uma rua deserta. é noite, chove, uma chuva
quente. olho meus pés, parecem os pés de outra pessoa. se esticam como os de
uma bailarina. sinto vontade de fumar, abro os olhos e vejo que estou nua em
uma cama. alguém penteia meu cabelo. outra pessoa me veste com uma
camiseta azul com a estampa do lilo & stich e um short roxo. eu penso que
está tudo errado. eu deveria usar uma saia. tem uma xícara de chá nas minhas
mãos. eu bebo devagar. um cheiro de cigarro e incenso.

quero ligar pro meu pai. de súbito, sinto muita saudade dele. quero ir pra
casa, mas meu corpo não me pertence mais. minha cabeça flutua.

fora do corpo

eu olho pra mim.


começa com uma pequena angústia. uma inquietação dentro
do peito. uma gastura. um pequeno inseto pousou ali e belisca devagar a
carne do meu coração. antropofagia de uma fruta carnosa. o sumo escorrendo
pela boca. doce na ponta da língua, umami e fiapo preso entre os dentes.
depois, essa angústia se transforma em exasperação. o inseto agora zumbe no
ouvido. por mais que você sacuda as mãos e tente afastá-lo, você não
consegue porque ele é a aranha da canção que continua subindo pela parede
ainda que venha a chuva forte e

a-derrube-a-derrube-a-derrube.

essa irritação vai aumentando aos poucos. você começa a se coçar. ouvido-
pescoço-couro cabeludo. suas unhas estão grandes, então, você coça bastante
até sentir a pele rasgar. você se olha no espelho e não vê o inseto, mas percebe
a pele vermelha e as marcas de arranhão. a comichão persiste. há um ritmo
em tudo isso.

uma mordida no coração

uma coceira no cérebro

[bis]

você não sabe o que fazer. derruba sem querer o copo de vidro que estava em
cima da pia do banheiro e agora, a raiva é palpável. o peito pesa, você arfa e é
possível ver a tempestade lá dentro da pupila dilatada. você tem vontade de
bater a cabeça na parede e esmurra o espelho com empenho, mas você não
tem muita força e o espelho é resistente. não quebra no primeiro murro. nem
no segundo. você continua batendo-gritando-chorando.

o espelho se rompe. seus dedos explodem em sangue. o catarro escorre pelo


o espelho se rompe. seus dedos explodem em sangue. o catarro escorre pelo
nariz. a boca se arqueia em aflição.

você se olha no espelho e não se vê. do outro lado, a imagem refletida é um


borrão desesperado de mulher.
ontem li uma frase sobre o futuro, mas esqueci de anotar e
hoje a sombra daquela frase me atormenta.

tem um café que eu não bebi sobre a minha mesa. tem livros, canetas e dois
cadernos em que eu escrevo os compromissos que não estou cumprindo. na
janela tem uma tela de proteção e uma cortina blecaute com um nó no meio.
não sei o que fazer com a urgência da vida.

sinto que sou observada. eles me olham como se eu pudesse apagar minhas
memórias. alimentar a ilusão de que é fácil me separar do passado. como
quando eu era criança e queimei as cartas de amor que havia escrito pra
minha mãe.

difícil separar o que aconteceu daquilo que eu lembro que aconteceu. não é à
toa que sou arquivista. coleciono o passado dos outros pra esquecer o meu.

tento me apegar à frase que já não lembro. algo sobre o amanhã ser
imprevisível. me apego à lembrança dessa frase como um náufrago se apega à
uma boia. tenho medo de morrer se esqueço que li essa frase. de alguma
forma, ela indicava um horizonte.

queria a certeza de um mapa que me mostra o caminho.


só tenho vontade de chorar e ficar deitada sem fazer nada. você
está se auto boicotando, ela diz. polly é a filha perfeita que mora e trabalha no
melhor bairro da cidade. longe dali. só aparece quando precisa de um favor.
você pode colocar comida pro gato enquanto estou fora? fala com aquele
olhar de impaciência, andando freneticamente pela casa, colocando as coisas
no lugar. deixa isso aí. odeio que mexam nas minhas coisas.

queria apertar aquele pescoço fino cheirando a perfume importado. sentir os


ossinhos delicados quebrando entre as mãos, os olhos esbugalhando e a
língua saltando pra fora. seria como me matar de frente pro espelho. saio do
devaneio assassino quando ela sacode o travesseiro na minha cara. então,
posso confiar em você? não vai matar meu gato de fome? não. não pode
confiar em mim, penso. não se preocupe, vou lá amanhã quando sair da
terapia. polly revira os olhos sem paciência. tudo bem, volto em quatro dias,
se cuida.

ela vai embora. deixou comida em cima do balcão. o lixo recolhido. a roupa
girando na máquina. deixou sua cópia imperfeita calada, pensando em
maneiras de matar um gato.
escutei o barulho do martelo batendo no prego, mas não
soube precisar de onde vinha o ruído até me dar conta de que vinha da minha
própria cabeça.

abri os olhos com dificuldade. a cabeça latejava. outra crise de enxaqueca em


menos de uma semana. não conseguia mexer o pescoço. pensei que estava em
outro episódio de paralisia. consegui mexer os dedos, os braços e fui
levantando devagar.

o mundo girava.

a ânsia de vômito piorou quando fiquei sentada. o quarto estava um gelo.


procurei o controle do ar condicionado com os olhos e parei na imagem de
alguém imóvel na porta do quarto. eu pude sentir que o vulto me olhava
fixamente, embora eu não pudesse ver seu rosto. tinha um corpo grande e
muito quadrado, usava um chapéu na cabeça. era tão familiar quanto
assustador. finalmente, descongelei e consegui reunir forças pra acender a luz
do abajur. o vulto desapareceu e a cabeça voltou a doer, mais forte dessa vez.

tenho certeza que meu primeiro ato de consciência na vida foi sentir medo.
desde muito pequena eu já sabia que o mundo era assustador.

dia desses, me pediram uma foto de quando eu era criança. uma coisa do
trabalho pro doze de outubro, algo como crianças felizes geram adultos felizes.
me dei conta naquele momento, que não tinha uma foto sequer em que
estivesse sorrindo. nenhuma. nem mesmo as de quando era bebê. em todas,
pareço espantada. busquei na internet a foto de uma criança que parecesse
comigo.

nunca gostei de ser fotografada. o olho por trás da câmera parece sempre
querer me devorar. não sei o que fazer com minha cara, com as mãos. meu
corpo obtuso não tem contorno. não sou nada fotogênica e ainda tenho esse
terror estampado nos olhos como uma marca de nascença.

levantei com dificuldade depois do susto e acendi a luz do quarto. ainda era
madrugada, olhei pra noite escura pela janela. a quem pertencia aquele vulto?
será que eu estava sonhando?

procurei a dipirona na gaveta do banheiro e me vi no espelho. joguei uma


água na cara. acariciei meu rosto como se pegasse um caco de vidro, sabendo
que o perigo está nas bordas. enchi o copo na torneira e bebi com dois
comprimidos que desceram arranhando a garganta como língua de gato.

o destino da sua filha é a demência, um médico disse ao meu pai. naquela


época eu acordava todas as noites com paralisia do sono. tinha pesadelos
horríveis onde era comida viva por pequenos animaizinhos-micróbios-
pulgões-besouros-verdes-joaninhas que entravam sob a minha pele e me
devoravam.

às vezes, acordava sentada na cama como se estivesse conversando com


alguém. na mesma época, comecei a me cortar. o corte me dava uma sensação
perigosa de realidade, mas eu tinha mais medo do devaneio. sempre que tinha
um episódio, me purgava. a gilete esperava ansiosa o próximo risco.

um dia, ao acordar imóvel, vi uma cabeça flutuando em cima da minha cama,


na altura dos meus pés. o escalpo à mostra, os olhos esbugalhados, a boca
entreaberta. desenhei, na parte interna do braço, uma caveira sem dentes.

meus pais só notaram os cortes muito tempo depois, quando um dia fomos
pra casa de um amigo deles.

uma casa com piscina.

fazia um calor danado e eu vestia uma blusa de mangas e uma calça de


moletom. minha mãe insistia que eu fosse nadar com as outras garotas. me
atirou no banheiro com um maiô. vesti a roupa de banho com ódio e saí do
banheiro sangrando um corpo inteiro na minha coxa.

mamãe horrorizada nunca mais insistiu pra que eu usasse nada. desenhei um
sorriso bem abaixo do umbigo.

tudo isso veio à lembrança naqueles minutos em que deixava a água tocar o
meu rosto. senti uma pontada. o desenho do coração crivado pela flecha
latejou na costela esquerda, e, aterrorizada me dei conta de quem era o vulto
parado na porta.
sentada em um banco de rodoviária no meio do sertão baiano
às quatro e meia da manhã, decido escrever porque não posso dormir. depois
de um dia cheio de trabalho, peguei duas mudas de roupas e entrei em um
ônibus. decidi passar meu aniversário sozinha em uma cidade desconhecida.
quando parte o próximo ônibus? em trinta minutos, pra lençóis.

compro o ticket. abro um livro enquanto espero. leio que existe uma palavra
em sueco que representa, ao mesmo tempo, o medo e a excitação que
sentimos antes de iniciar uma viagem. resfeber. essa palavra pode traduzir
também o sentimento de iniciar uma viagem pra dentro de si. de agarrar-se à
pedra da memória e se perder em um labirinto de névoa que queima ao ser
tocada. ou de flutuar no ar como teias de aranhas no telhado de uma casa
velha, esperando pra serem espanadas.

penso na viagem que estou por fazer. a solidão não é ruim. é esse sentimento
que nunca vem desacompanhado. numinoso, como uma encruzilhada que
marca um ponto de virada.

eu nunca fui uma pessoa que gostasse de estar cercada de gente. multidões me
exaurem. me dá ânsia pensar em perder-me entre tantas subjetividades. é
certo que já há algum tempo, alguma represa ruiu e despejou sobre minha
vida um tanto de tristeza e amargor. em meu corpo, uma tatuagem diz frágil,
como um sinal de alerta. pulsa.

fiz a tatuagem em um tempo em que fingia que minha vida não tinha
acontecido. que tinha despertado ali, aos trinta anos, como uma princesa de
conto de fadas que se livra da maldição da bruxa. que não haviam existido
abandonos, relacionamentos abusivos, idealizações românticas do
sofrimento, perdas. por que não conseguia ver o lado bom das coisas? não,
isso não é uma pergunta. é uma afirmação.
o problema nunca foi o medo ou a solidão, mas o que resultava disso. o que
tornava difícil manter a linha entre o presente e o passado. o que me fazia
sonhar com a casa dos meus pais. lembrar de quando era criança, brigando
com meus irmãos. lamentar as plantas que abandonei no último apartamento
em que morei.

o problema é viajar pra dentro de mim mesma.


a água do rio pairava a menos de um palmo da borda. suja. escura.
podia tocá-la se quisesse, mas não queria. tinha medo de ser puxada por
alguma força estranha.

nunca moraria em um lugar daqueles. na beira do rio, a água quase entrando


pela janela. e se um dia houvesse uma tormenta e o rio se derramasse como
um pesadelo se derrama pra realidade?

não poderia conviver com aquela presença gigante e desconhecida ao meu


lado. tenho muito respeito pela natureza, mas tenho mais medo. na verdade,
um terror incompreensível.

quando menina, papai me levava pro interior. lembro da casa do vô, cercada
de árvores que formavam um labirinto. brincava sozinha de joão e maria e
fazia trilhas usando sementes de carambola ou jambo que se espalhavam pela
terra úmida. podia sentir a vida pulsando nos troncos velhos. as fibras
marrons estalando como veias, os galhos se esticando pra me tocar. quando
não suportava mais, corria atordoada pra dentro da casa. o coração disparado.

certa vez, ousei me aproximar do mar. não consigo explicar o horror que senti
ao ser tocada pela água espumosa.

o céu também me esmagava. experimentei uma pressão extrema quando um


dia passei uma noite na praia sob as estrelas. senti que o universo inteiro iria
me engolir a qualquer momento.

nunca moraria em uma casa contígua a um rio. separada somente por uma
parede de pedra que também me causava profunda aversão.

me sinto melhor entre as paredes de concreto e as telas de náilon do meu


apartamento no centro da cidade. nenhuma árvore por perto. nenhum galho
querendo penetrar meu quarto no meio da noite ou forjando figuras
incompreensíveis que bem poderiam ser minha mãe morta a me assombrar.
eu queria usar mais ecobags e doar os livros que nunca voltarei a
ler. eu queria desentulhar minha casa de móveis e contemplar a gravidade
fazendo poeira, caindo no taco limpo. eu queria ter apenas dois pares de
sapatos e poucas mudas de roupa e uma mochila de viagem que caberia tudo
o que tenho.

eu sei que só preciso de uma caneca.

eu não quero objetos de decoração sem sentido e sem afeto rodeando a


cabeceira da minha cama. eu queria precisar de só uma gaveta e não ter um
guarda-roupa de quatro portas cheio de peças que nunca mais vou usar.

percebi que antes de tudo é preciso mudar a conjugação do verbo. sair do


pretérito imperfeito e ir pro presente. amplitude não precisa ser sinônimo de
vazio.

notei que acumulava coisas pra afastar as várias mulheres que moravam
dentro de mim. trincheira de guerra.

ao passo que as coisas acumuladas ao longo dos anos foram indo embora,
entendi que as mulheres não disputavam lugar. ao contrário, se encaixavam
uma dentro da outra e não ocupavam um centímetro a mais do que
necessitavam para existir.

me livrei de tudo.

na sala deixei apenas um grande espelho pra ver o reflexo desse processo
intenso e vivo como um ruído branco que ocupa todos os cantos da casa e do
corpo.
preciso escrever.
abro o computador e as imagens dançam. estou com sono, mas tenho que
terminar o relatório. já passei, e muito, do prazo. tomo três energéticos pra
poder aguentar a madrugada.

meia hora depois, o teclado conversa comigo. tudo tem uma função. alt+enter
alterna entre janelas abertas ou ativa o modo de tela cheia. ctrl+f inicializa
mecanismos de busca. f1 abre a janela de um programa. f3 abre o menu de
busca rápida. qwerty teria inveja dos meus dedos rápidos nas teclas feito
agulha de máquina perfurando o tecido.

pouco depois das duas, começo a sentir uma dor nas costas, como se
estivessem pregando alguma coisa na minha escápula esquerda. resolvo
levantar um pouco e fazer um alongamento. a dor vai piorando. se expande
pro lado direito.

tiro a blusa do pijama. me estico. tomo uma aspirina. sinto alguma coisa
espetando minha coluna por dentro. já li sobre isso. dor neuropática. o
sistema nervoso dá um tilte e dispara pequenos choques na coluna.

não devia ter tomado tanta cafeína.

me encurvo sobre o corpo. alongo na prece maometana. não aguento a dor e


grito. me encolho no tapete da sala. a cabeça entre as pernas. das costas em
chamas brotam duas asas.
quando andei na estrada romana que marca o caminho de
braga a astorga, pensei em todos os caminhos que ainda não percorri. meu
sapato vermelho contrastava com as folhas de outono nas pedras úmidas.
limpei os óculos na barra da blusa azul, mas não adiantou muito. como não
adianta lutar contra os desejos. se esfregar demais, arranha.

na trilha de santiago, rememorei os labirintos palmilhados pra salvar a mim


mesma. sem fio pra me conduzir, sem saber como entrei ou onde estava a
saída.

você já morou em uma casa com uma bomba-relógio? às vezes, o labirinto é


um campo minado e a gente não sabe em qual passo o chão vai explodir. o
silêncio é cortante no labirinto-casa. você já se perguntou se é possível entrar
e sair pela mesma porta?

o labirinto pode ser também a nave de uma igreja. você se perde entre os
bancos-altares-confessionários e imagens de santos crucificados-empalados-
esfaqueados. corpos abertos mostrando os órgãos internos. esse é um lugar
que te apresenta formas lentas de morrer. a culpa é o mármore do labirinto-
igreja.

um labirinto pode ainda ser o corredor imaculado de um hospital. álcool-


agulhas-luvas. tudo desinfetado. no beco sem-saída, a angústia tomando soro.
o medo é o ar que enche os pulmões.

eu poderia enumerar infinitamente as possibilidades de se perder em um


labirinto-cemitério que se abre em monumentos e terra molhada. que
esconde o pranto nas estátuas de anjinhos e donzelas de cabelos longos,
coroas de flores e âncoras. foi em um desses que encontrei a lápide de
antônia, innocente e interessante anginha fallecida aos três annos da febre
tifoide deixando saudades e dores eternas no collo de sua mãe, pae e irmães. a
saudade é adubo.

arquiteta dos meus próprios caminhos, deixei de desenhar labirintos e passei


a construir estradas. como a via romana. com pedras cordiformes e muitas
árvores ladeando as margens. me percebi outra. água decantada de uma
nascente.

não preciso mais procurar uma saída.


dois ou três dias de contínua embriaguez me guiaram por
um mar bravio. deitada no convés do barco, em noite alta e límpida,
conseguia ver o cruzeiro do sul e as três marias e era embalada pelo barulho
das ondas. mas quando fechei os olhos fui sugada pelo mar em um vórtice
furioso. eu me debatia. por um momento, pude ver a mim mesma lutando pra
não me afogar.

acordei inundada de suor.

é um sonho recorrente. apesar de saber disso, nunca consigo me manter


calma quando as águas rompem a madeira e me puxam pra baixo.
fecho os olhos e deixo a água cair sobre minha cabeça. a
ducha quente penetra meu cabelo volumoso.

uma vez, raspei a cabeça e lembro nitidamente da deliciosa sensação da água


no meu crânio desprotegido. qualquer dia desses, repito a experiência.

a água continua descendo pelo pescoço-colo-peitos. me ardem as costas


quando percorre as cicatrizes que desenham uma espécie de carte du tendre.

esfrego com força

os braços-barriga-coxas.

a água desce cor-de-rosa pelo meu corpo, lavando o sangue encrustado.

evito olhar para o chão, esperando livrar-me dos coágulos com a ânsia de
quem foge para sobreviver.

não sei quanto tempo passa até que me sinta limpa de verdade. pego a toalha
no armário embaixo da pia. me enxugo com força, sem dar trégua à pele.

preciso continuar sentindo algo.

busco roupas secas. me visto com desvelo. blusa-saia-meias-sapato-casaco


como se fosse ao meu próprio funeral.

seco os cabelos e os arrumo em um coque. na bolsa à tiracolo, apenas minha


carteira, algum dinheiro que peguei no cofre, um isqueiro e um batom
vermelho.

atravesso o quarto, atenta, para não pisar no sangue que se espalha. desejo
olhar o corpo mais uma vez.
ela está em decúbito dorsal, as pernas moles formando um triângulo. a cabeça
pende para o lado e mostra uma parte do rosto que teima em se esconder sob
o cabelo desgrenhado. o olhar é de espanto. tenho vontade de rir quando
constato isso, mas o pêndulo da sala toca e me alerta.

que bom. ainda sou humana.

saio do quarto. atravesso a sala. apago as luzes. fecho a porta e deixo a chave
embaixo do capacho.

nasço outra vez ao passo em que ergo a cabeça em direção à rua barulhenta.
acordei de uma noite agitada com a gata lambendo meu rosto.
tinha certeza de tê-la deixado fora do quarto e trancado a porta com chave
porque ela sabe puxar a maçaneta.

mais tarde, ao sair do box do banheiro, lá estava ela deitada no tapete,


olhando pra mim. não havia trancado a porta? ou estou ficando louca ou essa
gata aprendeu a atravessar paredes.

no outro dia, fui trabalhar e em algum momento, pensei tê-la visto na janela
do escritório. tomei um susto tão grande que quase caí da cadeira. meus
colegas me olharam com preocupação. desci pelas escadas desde o décimo
segundo andar, ansiosa pra chegar em casa.

quando entrei, lá estava ela me encarando com aqueles olhinhos amarelos


perscrutadores. a encarei de volta e ela armou o bote. orelhas apontadas para
trás, balançou o quadril e saltou sobre mim com a boca aberta.

acordei no dia seguinte, deitada no parapeito da varanda. me espreguicei. a


coluna parecendo elástico. com minhas unhas grandes e afiadas, alisei os
longos bigodes que agora enfeitavam meu rosto. olhei no espelho e lá
estavam: meus penetrantes olhos de gata.
aqui uma encruzilhada.
a memória reescreve o passado
como um sonho que se derrama
para a realidade.
era quase nove horas da noite, uma luz quente de lustre refletia
na louça posta cuidadosamente na mesa de jacarandá. em uma ante sala,
algumas poltronas e um minibar complementam o cenário que parece saído
de um romance vitoriano. do lado de fora, chove e faz frio, mas a sala é
aquecida e as quatro mulheres parecem confortáveis.

uma delas, fuma encostada à janela. adeline tem um metro e setenta de altura,
mas parece mais alta. figura magra e longilínea de cabelos negros presos em
coque. o nariz desproporcional ao rosto ovalado, lhe dá certo ar de
superioridade. é a mais velha do grupo e algo na sua postura lembra uma
estátua grega. não é possível ver a cor de seus olhos. densos como uma
floresta.

chaya, por sua vez, está sentada em um poltrona. balança as pernas cruzadas e
tem um olhar impaciente de quem está sempre procurando algo que, no
íntimo, sabe que não vai encontrar. há uma urgência natural em seus gestos.
os cabelos cortados à moda chanel emolduram um rosto bonito e cansado.
também fuma um cigarro, mas seu ato não é despretensioso como o de
adeline. é um ato urgente. ela é piromaníaca.

a terceira convidada é um mistério. prepara um uísque enquanto espera, e,


nesta noite especial, está vestida em trajes masculinos e pede pra ser chamada
de júlio. os olhos amendoados e a boca desenhada dão a ela uma beleza
plástica. é a única que não fuma na sala, mas se diverte tomando seu drink e
dando formas imaginárias à fumaça que se espalha pelo ambiente.

a mulher ruiva, não por acaso, se chama ariel. como a personagem do conto
de fadas, abriu mão de sua voz pra seguir os passos de um homem pelo tempo
suficiente a provocar um trágico incidente em sua vida. está sentada muito
ereta em uma poltrona e encosta suavemente o cigarro no cinzeiro de vidro
em cima da mesinha lateral.
o relógio de pêndulo bate as nove horas e adeline se assusta um pouco. há
uma tensão no ambiente ilustrada pela fumaça dos cigarros e pelas chamas
das velas sobre a mesa. se passaram muitos anos desde o primeiro encontro, e,
agora, elas não sabem bem o que dizer. é adeline, quem toma a iniciativa.

que estranho, ela nunca se atrasa.

ariel: alguém sabe que horas ela chega?

chaya: já devia ter chegado.

júlio: queria mesmo é saber o que ela quer conosco.

chaya: mas teve uma vez, comigo, que ela se atrasou... lembro que não estava
muito bem. vinha da cartomante, meio tonta com a consulta, a acalmei
lembrando que não devemos confiar em quem acha que pode prever o futuro.

ariel: em nossos encontros, geralmente, era eu quem chegava atrasada, diz


sorrindo.

júlio: será que aconteceu alguma coisa?

adeline: espero que não. justo hoje...

júlio: o que você quer dizer com justo hoje? você sabe de alguma coisa?

adeline: não.. quis dizer, justo hoje que estamos as quatro reunidas.

as duas mulheres mais velhas, adeline e chaya, se olham em cumplicidade.


ambas imaginavam o motivo que as levou até ali. as outras, mais jovens,
pareciam mais preocupadas.

era a segunda vez que ela convidava as quatro, ao mesmo tempo, pra um
encontro. devia ser uma ocasião especial, pensava ariel. júlio, por sua vez,
estava agitada. surpresas a incomodavam. era sempre prática-severa-
profissional.

júlio: na realidade, o que está me incomodando é mais a formalidade do


encontro... essa sala, esse cenário, essas roupas... não que eu não goste de
vestir uma personagem vez em quando, mas sempre nos encontramos no
apartamento dos meus pais, eu sentada na janela em dias de sol. e isso, agora,
pra mim, é no mínimo, estranho.

chaya: isso foi ideia sua?

adeline: não, de forma alguma.

ariel: espero que ela chegue logo, acho que deixei o gás ligado de novo. como
da última vez em que a encontrei. estávamos na cozinha, fiz um café, as
crianças dormiam no andar de cima e

de repente.

adeline: se eu fosse a anfitriã, teria ido, eu mesma, escolher as flores. a sala


também teria mais luz. detesto ambientes fechados. em nosso último
encontro, no jardim da minha casa, ela estava bem. tomamos chá e
conversamos sobre os últimos acontecimentos do mundo. nada demais.

adeline acende outra cigarrilha e oferece uma a chaya. ariel mastiga, nervosa,
um pouco do cabelo. júlio brinca com os cubos de gelo dentro do seu copo
vazio. um barulho de carro estacionando se sobrepõe ao da chuva. as quatro
mulheres se viram para a entrada ansiosas. a maçaneta gira e a porta logo se
abre. ela entra na sala e as olha.

boa noite, senhoras. desculpem o atraso.

seus olhos faiscavam como fogos de artificio em uma noite escura. o corpo
vibrava de agitação.
obrigada por terem vindo. hoje é uma noite especial. podem se sentar, por
favor.

ela segurava um envelope nas mãos. suspira alto. também está nervosa.

chaya: pode parar de rodeios e dizer logo porquê nos chamou aqui.

ela: tudo bem, melhor ser direta mesmo.

adeline: então...

ela: eu encontrei, diz, colocando o envelope volumoso na mesa de centro.

ariel dá um gritinho de surpresa. júlio leva as mãos à boca. chaya dá um meio-


sorriso. adeline solta a fumaça do cigarro lentamente meneando a cabeça.

ariel: isso significa que não precisa mais de nós?

ela: eu sei que é difícil. ainda mais pra mim, acreditem. tanto tempo já. mas a
decisão está tomada.

eu não vou me matar.

ariel não diz nada, emocionada. júlio sacode a cabeça sem saber o que pensar,
mas acaba abandonando a birra e a abraça. prometa que vai escrever, diz
júlio. certas melancolias só a correspondência recupera. ela assente. fico feliz
que você não tenha cedido às águas profundas, diz adeline com um sorriso.
chaya que não gosta de demonstrações de afeto, levanta da poltrona.

bem, sendo assim, vamos comer?


agradecimentos
fernanda por dividir a vida comigo;
jarid pelo empurrão que me trouxe até aqui;
gabriela, monique, miranda pelas angústias repartidas;
taís bravo e larissa campos pelas leituras cuidadosas;
a mariana, tonho e wilson por acreditarem.

eparrey oyà
laroyè pombogira cigana.
www.dianobre.com
@dia.nobre

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