No Útero Não Existe Gravidade
No Útero Não Existe Gravidade
No Útero Não Existe Gravidade
N754ú
NOBRE, Dia.
No útero não existe gravidade / Dia Nobre – Guaratinguetá, SP: Penalux, 2021.
1. Ficção I. Título.
CDD B869.3
É escrevendo que Dia Nobre arranca os calos das pregas vocais, nos
É escrevendo que Dia Nobre arranca os calos das pregas vocais, nos
apresentando em literatura o sistema nervoso aparente, sintomas de doenças
da mente e suas explicações, remédios tarjados, nomes científicos, doenças
crônicas: todos compatíveis à narradora, que se paralisa por excesso de
movimento cerebral. Com o corpo em decúbito dorsal, carrega o
conhecimento de quem sabe sentir dor. O conhecimento de quem “vive como
se tivesse sido picada por uma tarântula”.
Dividido em duas partes complementares e um epílogo, o livro é também
sobre medo, sobre prazer, sobre culpa e sobre a junção dos três, trauma
materializado em águas escorridas pelas pernas. Leio este livro como uma
criança que brinca de “o chão é lava”. Como quem analisa na boca a
antropofagia de uma fruta, já sabendo que ela deixará fiapos de ferro entre os
dentes. O segundo livro de Dia Nobre nos impõe atravessarmo-nos sem
digestão prevista. Leio me perguntando se haveria outro modo de existir,
afinal, que não esse: versando em poesia o terror psicológico dos dias.
Gabriela Soutello
Escritora
São Paulo, 13 de março de 2021
às mulheres que temiam
olhar no espelho
e agora fazem dele uma arma.
mamãe é tão divertida,
espero que ela morra.
na fotografia, mamãe era jovem e segurava um coelho branco. o
sorriso largo deixava à mostra o buraco de um dente que faltava no canto
esquerdo da boca. o cabelo crespo cortado à moda dos anos oitenta. uma
blusa estampada e uma saia marrom que se confundiam com o tom sépia do
papel.
a noite ia caindo naquele lugar mágico que era a casa da minha avó, com seu
cheiro de terra molhada, mato verde, goiaba e manga madura que eu comia
me lambuzando toda e minha mãe brigando.
aquela gente chegando. era tanta gente, e eu, pequena, olhava pra cima. pros
olhos vermelhos e rostos cansados, manchados de água e sal, uns mais, outros
menos. minha tia se unia ao coro de carpideiras, essas mulheres-que-choram-
os-mortos-que-não-conheceram. ou amaram. das lágrimas delas brotava o rio
pelo qual caronte carrega os defuntos.
era tanta gritaria. choro. uma movimentação de gente. mas minha avó não se
mexia. como ela podia aguentar tanto tempo naquela posição? fui ficando
cada vez mais assustada com o desespero que se espalhara pela casa. foi me
dando uma gastura. comecei a sufocar como se estivesse eu mesma deitada no
caixão. duas grandes gotas anunciaram uma cachoeira enchendo meus olhos
de peixe. só senti o beliscão no meu braço esquerdo. mocinhas não choram!
foi aí que entendi que ela havia partido mesmo e, por muito tempo, lamentei
que minhas lágrimas não puderam transportar minha avó ao céu.
minha avó costumava dizer que o único filho que poderia ter tido
algum futuro na vida, morreu três meses após nascido. tinha pele-clara-e-
olhos-azuis como os dela. pequeno como uma banana colhida fora de época e
gordas bochechas de maçã. deu seu último suspiro com a tranquilidade de
quem se livrou de um grande karma.
os pés dela balouçavam na pedaleira da máquina de costura singer.
a agulha entrava e saia do pano. veloz pros meus olhos encantados com o
movimento. quando eu crescer quero ser costureira como a senhora.
a vó costurava uma roupinha pra boneca sueli. roupa pronta. a vesti com
cuidado e saí pra brincar com as outras meninas. e esses olhos caídos? o que
aconteceu com o nariz dela? e essa perna torta? foi atropelada? voltei pra casa
com o rosto ardendo de raiva e o nariz escorrendo do choro contido. enterrei
sueli no quintal debaixo de sete palmos.
no outro dia, arrependida, contei tudo pra vó e pedi ajuda pra encontrar sueli
que na véspera, não teve direito nem a uma cruz pra marcar o lugar do
descanso eterno.
o quintal ficou parecendo uma vila de tatus de tanto buraco que foi cavado na
busca em vão por sueli, que envergonhada da sua feiura afundou mais sete
palmos dentro da terra.
o primo devia ter uns trinta anos. eu tinha oito. um dia ele
chegou na casa de vovó que tinha saído pra uma novena.
[mas pra mim, aquele beijo nunca acabou. dói até hoje
entre os dentes]
o barulho do balanço se harmonizava com a risada dela. cada vez
que eu a empurrava, os pés encostavam de leve na areia que espirrava em
susto. o embalo contava o tempo em curvas delicadas e cheias de cuidado. a
força usada na medida certa pro cabelo dourado cair em cachos ao mesmo
tempo em que a gargalhada caía no ar. o parque estava vazio naquele fim de
tarde e o céu ruborizava em tons de laranja e lilás, mas era como se o tempo
passasse em câmera lenta em um estado pleno de felicidade.
lembrei dele ao ver o corpo molenga. saco de veias e ossos. ao vê-la por trás
do vidro no caixão fechado baixando dentro da terra. quando mamãe
recolheu e mandou pra doação aquelas roupas estampadas com corações e
unicórnios e tirou a cama-gêmea do nosso quarto.
a risada dela foi a trilha sonora de todos os pores-do-sol que ainda veria em
minha longa vida.
esperança era minha vizinha da frente.
tinha por volta de trinta anos, mas se comportava como uma criança. minha
avó dizia que ela era um relógio que andava atrasado. a pobrezinha. ficava o
dia todo na calçada. descalça. brincando com terra. atirando pedras nos gatos
e cachorros que passavam e dando língua às pessoas mais velhas. uma noite
resolveu se deitar na linha do trem que passava dois quarteirões acima da
nossa rua. saiu escondida de casa só de camisola, com seu travesseiro e
boneca preferida. se acomodou entre os trilhos. chupando o dedo, fechou os
olhos
e esperou.
aqui você pode ser presa se usar sapato vermelho numa segunda-
feira, eu disse, em tom de confidência pra moça que escolhia um molho de
tomate no supermercado.
logo depois, senti um puxão no braço. era a mãe brigando porque sumi de
vista. já não te disse pra não sair de perto de mim? mordi o lábio. alisei a saia
azul. por que você não aguenta me ver livre? livre? não se pode ser livre
quando se é sustentada! seria o que a mãe teria respondido se tivesse me
ouvido.
não pode.
não pode.
uma armadilha?
ela me chama, indo na direção do caixa, sigo atrás, cabisbaixa, notando que
meu sapato vermelho estilo boneca está furado em dois pontos.
tenho nove anos.
na escola onde minha mãe
é professora
as crianças me olham
também.
eu
quer ir também?
sonhei que me apaixonava por umamoça.
depois de algum tempo percebi que era uma professora da escola, muito
bonita-cabelos-negros-pele-clara-voz-de-sereia e um sinal a la marilyn
monroe. eu era tímida e nunca havia falado com ela, mas sentia que era
minha namorada da vida inteira.
meu coração ferveu feito uma chaleira que está há muito tempo no fogo.
das nádegas.
em um tear.
minha mãe, amava mais o meu cabelo do que a mim mesma. não demorou
pra que eu percebesse isso. sabia que os cuidados com minha limpeza-
alimentação-vestimenta eram consequência desse amor pelas minhas
madeixas. feito um jardineiro que aduba a terra e remove as pragas pra que as
rosas possam florescer saudáveis.
o ritual de lavar-hidratar-pentear podia durar até duas horas por dia. quatorze
horas por semana. cinquenta e seis horas por mês. seiscentos e setenta e duas
horas por ano. toda uma vida devotada a essa coisa que nascia e crescia em
mim
sem permissão.
não lembro quando comecei a arrancá-los. sei que iniciei da parte de baixo,
mais difícil de ser notada. com o sucesso da empreitada, aumentei não só a
regularidade, mas a quantidade. cinco a dez fios, quatro a cinco vezes por dia.
enrolava os fios escolhidos com o dedo indicador até que formassem um
barbante. fechava bem os olhos antecipando a dor fina e puxava com bastante
força até que a raiz cedesse. seguia a este ato, um prazer imenso que me
molhava
a calcinha.
cotidiana.
uma noite, minha cabeça doía pelos medicamentos que mamãe aplicava e
pela touca que me apertava o crânio.
cansei do jogo.
juntei tudo e amarrei a melena loura com uma fita azul. pendurei na
maçaneta do quarto onde mamãe dormia.
peguei o lençol e o levei pra lavanderia. quanto mais esfregava, a água cor de
ferrugem escorrendo na pia de pedra, mais a mancha crescia. a mãe ria ao
longe.
o bebê flutua
quando nasce
mas até certa idade, tinha devoção por minha mãe. adorava dormir em seu
colo e sentir suas mãos de lagosta em meus cabelos. com ela, tudo parecia
mais bonito feito o salto de uma baleia em mar aberto.
é perigoso se aproximar.
de um útero.
tramei
muitas vezes
uma fuga.
nunca tive coragem de ir. a casa foi rachando aos poucos. tentativas inúmeras
de suicídio. remédios-corte-nos-pulsos-enforcamento. até que ela partiu meu
coração quando eu tinha catorze anos.
em nossa última briga atirei palavras duras. melhor se jogar na frente do trem.
me arrependi depois. o tempo passou e ela nunca se matou.
de fato.
por muitos anos, vivi um luto sem corpo. uma dor invisível como a de um
braço fantasma que insiste em existir, mesmo depois de amputado.
eu tenho fascínio pormatrioskas, acho mágico como elas se
desmembram saindo-de-si-pra-dar-lugar-à-outra. um círculo gemelar
infinito.
por essa afinidade sinto que dentro de mim vivem mais mulheres do que eu
posso dar conta.
imagino que os sonhos são pedaços de outras vidas. alguns dias transcorrem
sem trégua. em outros, consigo certa coerência, certa paz de espírito. no fim,
percebo que a linha em que caminho é uma arritmia.
boneca russa,
me desdobro em várias.
fui pilatos.
minha avó tinha mania de chamar todo mundo de maluca. pra ser
maluca não precisava muita coisa, bastava ter uma ideia ou um pensamento
diferente do dela. se eu usasse um short curto. maluca. se eu não almoçasse
meio-dia-em-ponto. maluca.
o diferente.
maluca a senhora da feirinha que cobrava cinco cruzeiros por meia dúzia de
banana.
maluca a minha prima que saía com vários homens e abortou três vezes
usando chá de canela e arruda.
maluca a iaiá da rua de baixo que fazia reza e tocava tambor num salve a
ogum-xangô-oxalá-iemanjá-eparrey-oyà.
maluca
maluca
maluca
tudo maluca, dizia vovó, que não entendia a maluquice das mulheres que
sabem dizer
não.
dizem que quando alguém decide morrer, bastam sete dias
sem orações ou lamentos. minha vó sabia disso. percebi quando a vi pela
última vez. agarrou meu braço bem forte, levou-o junto ao peito e me olhou
com cumplicidade. ela não queria mais estar nesse mundo.
não a culpo.
não se levantava.
não se queixava.
eu tinha muito medo de morrer naquela época. vivia como se tivesse sido
picada por uma tarântula. inquieta, dançava de um lado pro outro sem
conseguir imaginar o futuro. a mera menção da morte me arrepiava e
lágrimas densas de cúmulo-nimbos começavam a escorrer pelo meu rosto.
foi a grande responsável pela maioria dos temores que eu senti na vida.
lembrava também
a cadeira com fios de macarrão aonde balançávamos até quase cair pra trás. os
sequilhos com chá de capim-santo ou erva-cidreira que eram servidos quando
chegava visita. uma tia mais velha ou as cunhadas da vó que cobriam nossas
bochechas com uma baba mais peguenta que calda de pudim.
trata-se de uma indivídua que tem uma noção permanente de ser inadequada-
desajustada-descabida. na infância, foi forçada a fazer coisas para as quais não
se sentia preparada. possivelmente, sofreu com as invasões do seu corpo.
ele parou o carro no semáforo. pegou a minha mão e colocou entre suas
pernas. é duro né? você gosta? vamos brincar de violência?
uma denúncia.
o masoquismo também pode surgir nos casos em que a mãe força a criança a
comer ou empurra a comida garganta adentro forçando a criança a desengolir.
o molho pardo esfriava sobre o prato. você só levanta quando comer tudo.
uma nuvem escura chovia sobre minha cabeça. o estômago revirava o café da
manhã que foi se misturar ao molho pardo gelado. o castigo,
você me ama? você não vai me abandonar? sem você eu vou morrer. você é
uma decepção. você nunca vai conseguir nada. um dia você vai voltar
rastejando e implorar
o meu perdão.
a mãe me obrigava a contar as cintadas que recebia quando fazia algo errado.
uma. desculpa mamãe. duas. desculpa mamãe. três. desculpa mamãe.
ca-le-a-su-a-bo-ca.
depois, três gritos bem altos cortam minha garganta. os gatos se assustam e
vão se esconder debaixo da cama. agarro um vaso de cristal e jogo no espelho
da sala de jantar. outro estrilo. taças-copos-pratos começam a explodir pela
cozinha. quadros são arrancados das paredes. porta-retratos com sorrisos
plásticos se despedaçam. a pulsão destrutiva é a única coisa que faz sentido
agora.
não é.
vi uma gata em um beco,
pensei que era um espelho.
hai l'occasione di scegliere
me diz o biscoito da sorte, em algum restaurante perto do mar adriático.
preciso levantar.
piso no chão molhado. há água por toda parte e um cheiro de gás vem da
cozinha. todas as janelas estão abertas. as redes de proteção arrebentadas. me
apavoro ao pensar nos gatos soltos pela casa. meu quarto se transformou em
uma armadilha e não há nada que eu possa fazer, a não ser sonhar que estou a
salvo.
abro os olhos.
estou na cama.
preciso levantar.
saio do meu quarto como uma carcereira. escondi o lexotan dentro do sutiã. a
ponta afiada do blíster perfura meu mamilo. procuro as chaves nos bolsos do
roupão. é madrugada e não há ninguém na rua. tenho sede. esvazio a
garrafinha de 500ml três vezes.
abro os olhos.
estou na cama.
preciso levantar.
abro os olhos.
estou na cama.
preciso levantar.
abro os olhos.
estou na cama.
preciso levantar.
giro a maçaneta que não abre. o gato pisca os olhos amarelos. eu entendo.
com o blister corto meu pulso bem em cima da artéria braquial. o gato lambe
com prazer o filete de sangue que escorre. satisfeito, regurgita uma chave.
agradeço em silêncio
e abro a porta.
em um instante
uma adolescente.
uma mulher.
uma anciã em cima da cama. cânulas de intubação cobrem meu rosto. sinto a
água sob os meus pés. penso nos gatos soltos pela casa. um líquido pegajoso e
escuro escorre da cama para o chão. fecho os olhos com força.
quando os abro.
estou na cama.
preciso levantar.
cutuco com o indicador direito a espinha nascendo na bochecha.
a dor não me distrai.
eu
não
sei
meu coração está acelerado demais. dói o peito. tento fazer a respiração
completa que aprendi na yoga.
pra-na-ya-ma
inspira em cinco.
expira em dez.
de
nove
letras.
se contrai
se expande
na respiração.
enche
esvazia
até
ânsia
passar.
hoje a gatacaçou
e matou uma barata. como prêmio pelo esforço heroico, só comeu e dormiu o
dia inteiro.
que minha mesa de trabalho é o único lugar da casa aonde ela gosta de
dormir. vez em quando ela mia baixinho, é sinal de que quer um carinho. se
eu não faço, ela mia mais alto, se estica e derruba alguma coisa no chão.
perdeu sua sétima vida. em seu velório, alguém disse: acontece a todas.
um asteroide passou a sete mil km daterra
e flertou com a gravidade.
no dia em que segurei um meteoro nas mãos, senti todos os elementos que
arderam no fogo atmosférico da memória de meus antepassados. nostalgia
incendiária. chorei pra dentro. o peso do meteoro me esmagava.
minha janela está aberta. música ruim tocando lá fora. cachorros
latindo e motocicletas em alta velocidade. são 23:42 e eu quero ao menos
terminar o capítulo que já comecei. quero ver o quanto aguento até desistir,
me convencer de que não sei mais fazer isso. não. de que não quero mais fazer
isso.
minha menstruação ainda não veio. tenho sono o tempo inteiro. durmo
muito. mergulho a cabeça na pia cheia de água pra tentar me manter
acordada, e, mesmo assim, não consigo me concentrar. tenho maus
pressentimentos e arrepios constantes.
conto meus sonhos pra analista e ela diz que eu deveria relaxar com o ócio.
ignorar a bagunça. olho ao redor. o travesseiro da nasa. uma camisola velha.
roupa de cama por lavar. tudo cheira a ranço. a desordem me incomoda. ela
não sabe das coisas que por não serem verdades, são mentiras.
escuto um áudio de chuva artificial. das coisas que mais sinto saudades, é da
chuva. do cheiro da chuva. do barulho. da água. fria. dou um trago no cigarro.
mudei a mesa de lugar. preciso voltar a ler. deixar elena me devorar mais um
pouco.
gostaria de poder falar, mas temo ser necessária uma traqueotomia. preciso
fechar a janela. tem um monte de coisa perigosa lá fora, mas o que vai me
matar é o calo na prega vocal feito dos silêncios que guardei na garganta.
leio vinte segundos de poesia.
escrevo no meu caderno de folhas duras cheirando a novo. dentro do meu
peito uma agonia com o tempo perdido. tédio que não consigo converter em
algo produtivo. aqui da janela desse prédio pequeno-burguês nessa cidade
pequeno-burguesa aonde na mesma praça é possível ver
o tempo que leva pra saber que é tarde demais pra tomar a sertralina que não
vai fazer efeito imediato. tomo então, um chá de capim-limão-melissa-
camomila que comprei ontem quando tive que sair de casa pra checar os
olhos com o médico que comunicou despreocupado que sua retina é fina e
tem uma doença que está te comendo por dentro e um dia, talvez, você
termine cega como sua avó paterna ou sua tia ou alguém dessa maldita árvore
genealógica que está no seu sangue-cabelos-fígado-ovários-baço.
e choro um pouco todo dia, mas hoje não consigo chorar e coloco colírio e
mexo no celular e jogo um jogo que não leva a lugar nenhum e bebo 330ml de
água gelada. espero as horas passarem e que o dia amanheça e algo de
maravilhoso aconteça na madrugada calada e pouco iluminada dessa cidade-
pequeno-burguesa.
cara senhorita emparis,
te conto que ontem à noite sonhei que fazia as malas. sabia que não se tratava
de uma viagem e sim de uma fuga. o pesadelo consistia no fato de que minhas
coisas não cabiam dentro da mala e eu tinha pressa. desde pequena sou assim.
vivo em sofreguidão e não caibo em mim.
não queria mais ter que pôr nada em ordem. cansei de arrumar malas,
dobrar-empacotar-fechar caixas e carregá-las pra lá e pra cá. eu não tinha
mais força-energia-ânimo o que fosse. me larguei no chão e decidi. daqui não
me movo mais. no outro dia, morria de tédio e tive que me mexer. alinhei as
coisas na mesa de centro. lavei-passei-guardei todas as roupas. os vestidos,
esses deixei pendurados na arara lá do quarto que é mais arejado. você sabe
como aquela umidade que se acumula pelos cantos me faz espirrar.
minha condenação é não conseguir ficar parada. não conseguir não pensar
em nada. não conseguir dormir. são agora cinco noites de uma insônia
profunda. qualquer dia, crio coragem e me levo até a varanda. são sete
andares. sabe aquela música que você gostava de cantar enquanto eu fazia as
malas? qualquer dia, crio coragem. faço do parapeito meu palco e da queda, o
próximo passo.
a gata me acordou com pequenas mordidas no dedão do pé. não
queria levantar e ela teve que insistir bastante. dormi dezoito horas seguidas
depois de tomar duas garrafas de vinho e vinte e cinco mg de clonazepam.
de repente o telefone tocava. era meu pai. sabia que ele ia me pedir pra ficar,
mas antes que eu pudesse atender
a gata me acordou
tem certeza?
sim.
já fazia um tempo que ela aparecia nos lugares mais inusitados. no balcão da
padaria. na fila do supermercado. quando eu apresentava um trabalho ou
estava na cama com alguém. nos últimos dias, a rotina era explicar às pessoas
que eu tinha o pavoroso hábito de falar sozinha.
na primeira vez que a vi, duvidei dos meus olhos e sentidos. também a ouvia e
sentia seu cheiro. um aroma de lavanda recém-colhida ficava no ar quando
ela aparecia.
nunca tive medo. outro dia, conversamos bastante, mas ela me fez recordar de
coisas que eu não queria. coisas que estavam bem guardadas no fundo de um
baú azul estampado com rosas vermelhas, trancado com cadeado, junto com
as cartas e diários que escrevo desde os doze anos. fiquei chateada e não estou
mais falando com ela.
faz dias que estou aqui. neste quarto. usando o mesmo pijama. comendo o
resto de comida da geladeira. sem vontade de fazer nada.
polly, você devia estar deitada! a menina não se moveu. polly? me aproximei,
toquei de leve o ombro enrijecido sob a camisola de seda branca. um
estremecimento.
o que você está fazendo de pé, polly? você precisa descansar, vá pra sua cama,
vou lhe trazer uma sopa. não. não quero sopa. abraço-a com cuidado, como se
carregasse uma bandeja de taças de cristal. eu sei, eu sei. você sente falta dela.
eu também sinto. olho pra cama impecável e vazia.
conduzo polly à cama do outro lado do quarto e a deito. tiro um cacho loiro
que insistia em cair sobre os olhos. eu sinto a presença dela. como assim? não
sei, deve ser coisa de gêmeas. acordei com ela me chamando. mas você sabe
que foi um sonho, não sabe? infelizmente, ela não está mais aqui. e se eu
estiver sonhando agora? se tudo isso é um pesadelo horrível onde minha irmã
está morta? oh, meu bem, eu queria que estivéssemos em um sonho. que nada
daquelas coisas terríveis tivessem acontecido e que ela estivesse aqui conosco.
iríamos tomar café com bolo de milho na cozinha e rir da vizinha correndo
atrás dos cães que atacam as galinhas. mas não é um sonho. polly sentou-se
na cama, inquieta.
abri os olhos e estava na cama. polly olhava pra mim. a boneca na mão. vou
deixar sueli aqui pra você ficar logo boa, tá bem? olhei pro meu corpo
retesado. o lençol coberto de joaninhas. tentei gritar, mas a voz não saiu. tudo
recomeçou a girar.
eu estou deitada dentro de um caixão. a tampa fechada. pelo vidro vejo polly
com sua boneca. chorando. depois vejo a mim mesma abraçando a menina.
minha gêmea olha diretamente pra mim e esconde a cabeça de polly em um
abraço. bato no vidro, mas ninguém parece escutar. me contorço dentro do
caixão. as pessoas começam a jogar terra em cima. outro berro mudo.
ao mesmo tempo, me vejo em uma rua deserta. é noite, chove, uma chuva
quente. olho meus pés, parecem os pés de outra pessoa. se esticam como os de
uma bailarina. sinto vontade de fumar, abro os olhos e vejo que estou nua em
uma cama. alguém penteia meu cabelo. outra pessoa me veste com uma
camiseta azul com a estampa do lilo & stich e um short roxo. eu penso que
está tudo errado. eu deveria usar uma saia. tem uma xícara de chá nas minhas
mãos. eu bebo devagar. um cheiro de cigarro e incenso.
quero ligar pro meu pai. de súbito, sinto muita saudade dele. quero ir pra
casa, mas meu corpo não me pertence mais. minha cabeça flutua.
fora do corpo
a-derrube-a-derrube-a-derrube.
essa irritação vai aumentando aos poucos. você começa a se coçar. ouvido-
pescoço-couro cabeludo. suas unhas estão grandes, então, você coça bastante
até sentir a pele rasgar. você se olha no espelho e não vê o inseto, mas percebe
a pele vermelha e as marcas de arranhão. a comichão persiste. há um ritmo
em tudo isso.
[bis]
você não sabe o que fazer. derruba sem querer o copo de vidro que estava em
cima da pia do banheiro e agora, a raiva é palpável. o peito pesa, você arfa e é
possível ver a tempestade lá dentro da pupila dilatada. você tem vontade de
bater a cabeça na parede e esmurra o espelho com empenho, mas você não
tem muita força e o espelho é resistente. não quebra no primeiro murro. nem
no segundo. você continua batendo-gritando-chorando.
tem um café que eu não bebi sobre a minha mesa. tem livros, canetas e dois
cadernos em que eu escrevo os compromissos que não estou cumprindo. na
janela tem uma tela de proteção e uma cortina blecaute com um nó no meio.
não sei o que fazer com a urgência da vida.
sinto que sou observada. eles me olham como se eu pudesse apagar minhas
memórias. alimentar a ilusão de que é fácil me separar do passado. como
quando eu era criança e queimei as cartas de amor que havia escrito pra
minha mãe.
difícil separar o que aconteceu daquilo que eu lembro que aconteceu. não é à
toa que sou arquivista. coleciono o passado dos outros pra esquecer o meu.
tento me apegar à frase que já não lembro. algo sobre o amanhã ser
imprevisível. me apego à lembrança dessa frase como um náufrago se apega à
uma boia. tenho medo de morrer se esqueço que li essa frase. de alguma
forma, ela indicava um horizonte.
ela vai embora. deixou comida em cima do balcão. o lixo recolhido. a roupa
girando na máquina. deixou sua cópia imperfeita calada, pensando em
maneiras de matar um gato.
escutei o barulho do martelo batendo no prego, mas não
soube precisar de onde vinha o ruído até me dar conta de que vinha da minha
própria cabeça.
o mundo girava.
tenho certeza que meu primeiro ato de consciência na vida foi sentir medo.
desde muito pequena eu já sabia que o mundo era assustador.
dia desses, me pediram uma foto de quando eu era criança. uma coisa do
trabalho pro doze de outubro, algo como crianças felizes geram adultos felizes.
me dei conta naquele momento, que não tinha uma foto sequer em que
estivesse sorrindo. nenhuma. nem mesmo as de quando era bebê. em todas,
pareço espantada. busquei na internet a foto de uma criança que parecesse
comigo.
nunca gostei de ser fotografada. o olho por trás da câmera parece sempre
querer me devorar. não sei o que fazer com minha cara, com as mãos. meu
corpo obtuso não tem contorno. não sou nada fotogênica e ainda tenho esse
terror estampado nos olhos como uma marca de nascença.
levantei com dificuldade depois do susto e acendi a luz do quarto. ainda era
madrugada, olhei pra noite escura pela janela. a quem pertencia aquele vulto?
será que eu estava sonhando?
meus pais só notaram os cortes muito tempo depois, quando um dia fomos
pra casa de um amigo deles.
mamãe horrorizada nunca mais insistiu pra que eu usasse nada. desenhei um
sorriso bem abaixo do umbigo.
tudo isso veio à lembrança naqueles minutos em que deixava a água tocar o
meu rosto. senti uma pontada. o desenho do coração crivado pela flecha
latejou na costela esquerda, e, aterrorizada me dei conta de quem era o vulto
parado na porta.
sentada em um banco de rodoviária no meio do sertão baiano
às quatro e meia da manhã, decido escrever porque não posso dormir. depois
de um dia cheio de trabalho, peguei duas mudas de roupas e entrei em um
ônibus. decidi passar meu aniversário sozinha em uma cidade desconhecida.
quando parte o próximo ônibus? em trinta minutos, pra lençóis.
compro o ticket. abro um livro enquanto espero. leio que existe uma palavra
em sueco que representa, ao mesmo tempo, o medo e a excitação que
sentimos antes de iniciar uma viagem. resfeber. essa palavra pode traduzir
também o sentimento de iniciar uma viagem pra dentro de si. de agarrar-se à
pedra da memória e se perder em um labirinto de névoa que queima ao ser
tocada. ou de flutuar no ar como teias de aranhas no telhado de uma casa
velha, esperando pra serem espanadas.
penso na viagem que estou por fazer. a solidão não é ruim. é esse sentimento
que nunca vem desacompanhado. numinoso, como uma encruzilhada que
marca um ponto de virada.
eu nunca fui uma pessoa que gostasse de estar cercada de gente. multidões me
exaurem. me dá ânsia pensar em perder-me entre tantas subjetividades. é
certo que já há algum tempo, alguma represa ruiu e despejou sobre minha
vida um tanto de tristeza e amargor. em meu corpo, uma tatuagem diz frágil,
como um sinal de alerta. pulsa.
fiz a tatuagem em um tempo em que fingia que minha vida não tinha
acontecido. que tinha despertado ali, aos trinta anos, como uma princesa de
conto de fadas que se livra da maldição da bruxa. que não haviam existido
abandonos, relacionamentos abusivos, idealizações românticas do
sofrimento, perdas. por que não conseguia ver o lado bom das coisas? não,
isso não é uma pergunta. é uma afirmação.
o problema nunca foi o medo ou a solidão, mas o que resultava disso. o que
tornava difícil manter a linha entre o presente e o passado. o que me fazia
sonhar com a casa dos meus pais. lembrar de quando era criança, brigando
com meus irmãos. lamentar as plantas que abandonei no último apartamento
em que morei.
quando menina, papai me levava pro interior. lembro da casa do vô, cercada
de árvores que formavam um labirinto. brincava sozinha de joão e maria e
fazia trilhas usando sementes de carambola ou jambo que se espalhavam pela
terra úmida. podia sentir a vida pulsando nos troncos velhos. as fibras
marrons estalando como veias, os galhos se esticando pra me tocar. quando
não suportava mais, corria atordoada pra dentro da casa. o coração disparado.
certa vez, ousei me aproximar do mar. não consigo explicar o horror que senti
ao ser tocada pela água espumosa.
nunca moraria em uma casa contígua a um rio. separada somente por uma
parede de pedra que também me causava profunda aversão.
notei que acumulava coisas pra afastar as várias mulheres que moravam
dentro de mim. trincheira de guerra.
ao passo que as coisas acumuladas ao longo dos anos foram indo embora,
entendi que as mulheres não disputavam lugar. ao contrário, se encaixavam
uma dentro da outra e não ocupavam um centímetro a mais do que
necessitavam para existir.
me livrei de tudo.
na sala deixei apenas um grande espelho pra ver o reflexo desse processo
intenso e vivo como um ruído branco que ocupa todos os cantos da casa e do
corpo.
preciso escrever.
abro o computador e as imagens dançam. estou com sono, mas tenho que
terminar o relatório. já passei, e muito, do prazo. tomo três energéticos pra
poder aguentar a madrugada.
meia hora depois, o teclado conversa comigo. tudo tem uma função. alt+enter
alterna entre janelas abertas ou ativa o modo de tela cheia. ctrl+f inicializa
mecanismos de busca. f1 abre a janela de um programa. f3 abre o menu de
busca rápida. qwerty teria inveja dos meus dedos rápidos nas teclas feito
agulha de máquina perfurando o tecido.
pouco depois das duas, começo a sentir uma dor nas costas, como se
estivessem pregando alguma coisa na minha escápula esquerda. resolvo
levantar um pouco e fazer um alongamento. a dor vai piorando. se expande
pro lado direito.
tiro a blusa do pijama. me estico. tomo uma aspirina. sinto alguma coisa
espetando minha coluna por dentro. já li sobre isso. dor neuropática. o
sistema nervoso dá um tilte e dispara pequenos choques na coluna.
o labirinto pode ser também a nave de uma igreja. você se perde entre os
bancos-altares-confessionários e imagens de santos crucificados-empalados-
esfaqueados. corpos abertos mostrando os órgãos internos. esse é um lugar
que te apresenta formas lentas de morrer. a culpa é o mármore do labirinto-
igreja.
os braços-barriga-coxas.
evito olhar para o chão, esperando livrar-me dos coágulos com a ânsia de
quem foge para sobreviver.
não sei quanto tempo passa até que me sinta limpa de verdade. pego a toalha
no armário embaixo da pia. me enxugo com força, sem dar trégua à pele.
atravesso o quarto, atenta, para não pisar no sangue que se espalha. desejo
olhar o corpo mais uma vez.
ela está em decúbito dorsal, as pernas moles formando um triângulo. a cabeça
pende para o lado e mostra uma parte do rosto que teima em se esconder sob
o cabelo desgrenhado. o olhar é de espanto. tenho vontade de rir quando
constato isso, mas o pêndulo da sala toca e me alerta.
saio do quarto. atravesso a sala. apago as luzes. fecho a porta e deixo a chave
embaixo do capacho.
nasço outra vez ao passo em que ergo a cabeça em direção à rua barulhenta.
acordei de uma noite agitada com a gata lambendo meu rosto.
tinha certeza de tê-la deixado fora do quarto e trancado a porta com chave
porque ela sabe puxar a maçaneta.
no outro dia, fui trabalhar e em algum momento, pensei tê-la visto na janela
do escritório. tomei um susto tão grande que quase caí da cadeira. meus
colegas me olharam com preocupação. desci pelas escadas desde o décimo
segundo andar, ansiosa pra chegar em casa.
uma delas, fuma encostada à janela. adeline tem um metro e setenta de altura,
mas parece mais alta. figura magra e longilínea de cabelos negros presos em
coque. o nariz desproporcional ao rosto ovalado, lhe dá certo ar de
superioridade. é a mais velha do grupo e algo na sua postura lembra uma
estátua grega. não é possível ver a cor de seus olhos. densos como uma
floresta.
chaya, por sua vez, está sentada em um poltrona. balança as pernas cruzadas e
tem um olhar impaciente de quem está sempre procurando algo que, no
íntimo, sabe que não vai encontrar. há uma urgência natural em seus gestos.
os cabelos cortados à moda chanel emolduram um rosto bonito e cansado.
também fuma um cigarro, mas seu ato não é despretensioso como o de
adeline. é um ato urgente. ela é piromaníaca.
a mulher ruiva, não por acaso, se chama ariel. como a personagem do conto
de fadas, abriu mão de sua voz pra seguir os passos de um homem pelo tempo
suficiente a provocar um trágico incidente em sua vida. está sentada muito
ereta em uma poltrona e encosta suavemente o cigarro no cinzeiro de vidro
em cima da mesinha lateral.
o relógio de pêndulo bate as nove horas e adeline se assusta um pouco. há
uma tensão no ambiente ilustrada pela fumaça dos cigarros e pelas chamas
das velas sobre a mesa. se passaram muitos anos desde o primeiro encontro, e,
agora, elas não sabem bem o que dizer. é adeline, quem toma a iniciativa.
chaya: mas teve uma vez, comigo, que ela se atrasou... lembro que não estava
muito bem. vinha da cartomante, meio tonta com a consulta, a acalmei
lembrando que não devemos confiar em quem acha que pode prever o futuro.
júlio: o que você quer dizer com justo hoje? você sabe de alguma coisa?
adeline: não.. quis dizer, justo hoje que estamos as quatro reunidas.
era a segunda vez que ela convidava as quatro, ao mesmo tempo, pra um
encontro. devia ser uma ocasião especial, pensava ariel. júlio, por sua vez,
estava agitada. surpresas a incomodavam. era sempre prática-severa-
profissional.
ariel: espero que ela chegue logo, acho que deixei o gás ligado de novo. como
da última vez em que a encontrei. estávamos na cozinha, fiz um café, as
crianças dormiam no andar de cima e
de repente.
adeline acende outra cigarrilha e oferece uma a chaya. ariel mastiga, nervosa,
um pouco do cabelo. júlio brinca com os cubos de gelo dentro do seu copo
vazio. um barulho de carro estacionando se sobrepõe ao da chuva. as quatro
mulheres se viram para a entrada ansiosas. a maçaneta gira e a porta logo se
abre. ela entra na sala e as olha.
seus olhos faiscavam como fogos de artificio em uma noite escura. o corpo
vibrava de agitação.
obrigada por terem vindo. hoje é uma noite especial. podem se sentar, por
favor.
ela segurava um envelope nas mãos. suspira alto. também está nervosa.
chaya: pode parar de rodeios e dizer logo porquê nos chamou aqui.
adeline: então...
ela: eu sei que é difícil. ainda mais pra mim, acreditem. tanto tempo já. mas a
decisão está tomada.
ariel não diz nada, emocionada. júlio sacode a cabeça sem saber o que pensar,
mas acaba abandonando a birra e a abraça. prometa que vai escrever, diz
júlio. certas melancolias só a correspondência recupera. ela assente. fico feliz
que você não tenha cedido às águas profundas, diz adeline com um sorriso.
chaya que não gosta de demonstrações de afeto, levanta da poltrona.
eparrey oyà
laroyè pombogira cigana.
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