Andréa CESCO

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A HIPOCRISIA SOCIAL NA OBRA SATÍRICA SUEÑOS, DO ESPANHOL

FRANCISCO DE QUEVEDO Y VILLEGAS

Andréa CESCO1

Resumo: A intensa preocupação do século XVII pelas inclinações


pecaminosas da cega humanidade leva facilmente em direção à sátira, gênero
em que a Espanha é rica. Assim, este artigo tem como objetivo mostrar como a
hipocrisia social na Espanha do século XVII é abordada pelo escritor espanhol
Francisco de Quevedo y Villegas, através de vários personagens da obra
satírica Sueños y Discursos (1993). Ressalta-se que a obra foi escrita entre
1605 e 1621 e é composta de cinco narrativas – “Sueño del Juicio”, “Alguacil
endemoniado”, “Infierno”, “El mundo por de dentro” e “El sueño de la Muerte” –
que estão dispostas em forma de diálogo e satirizam os costumes e os
personagens de seu tempo, de todas as classes sociais. O tema da hipocrisia
é tratado através dos seus diversos disfarces, como a cobiça dos clérigos e
sacristãos, os falsos duelos do viúvo e da viúva, a hipocrisia social dos maridos
sofridos, as mentiras dos meirinhos e escrivães, entre outros. Veremos,
através de algumas passagens dos Sueños, como os hipócritas adaptam a sua
consciência, atribuindo a sua conduta intenções nobres, desinteressadas e
altruístas.

Palavras-Chave: Espanha. Quevedo. Sátira. Hipocrisia.

A hipocrisia

De acordo com o Diccionario de Autoridades,2 de 1734, hipocrisia “é a


dissimulação ou aparência contrária àquela que é ou que se sente. Fingimento
de virtude, bondade, devoção ou amizade.”
A hipocrisia é um sinônimo da falta de sinceridade, de autenticidade,
auto-engano. Significa um corte entre convicções e práticas reais, com uma
adesão meramente externa às normas e valores convencionais. Mesmo
quando é consciente dos seus falsos motivos, o hipócrita adapta a sua
consciência, atribuindo a sua conduta intenções nobres, desinteressadas e
altruístas. Vigil Rubio comenta que hipocrisia é adotar uma falsa aparência de
virtude ou de bondade, com dissimulo do verdadeiro caráter ou inclinação,
1
Departamento de Língua e Literaturas Estrangeiras, UFSC, Florianópolis (SC).
andrea.cesco@gmail.com.
2
Nuevo Tesoro Lexicográfico de la Lengua Española.
http://buscon.rae.es/ntlle/SrvltGUILoginNtlle.
especialmente com respeito à vida ou à crença religiosa. No que se refere a
este último ressalta as duas variedades principais de hipócrita: o hipócrita
religioso e o hipócrita moral. Sem dúvida, o mais antigo é o hipócrita religioso.
Quanto ao outro, este pratica também uma moral baseada na simulação, em
“‘fazer ver como se...’: é a moral do como se que tende ao pior (frente àquela
que se serve de ideais ficcionais de caráter regulador)”3 (1999, p. 251).
Uma variante especialmente traiçoeira de hipocrisia, de acordo ainda
com Vigil Rubio, é a da falsa humildade, que para Kant é um dos vícios
contrários ao dever do homem contra si mesmo considerado como ser moral.
Kant “denuncia a atividade daqueles que se vangloriam de renunciar a toda
pretensão de valor moral convencendo-se de adquirir com isso “certo valor
oculto. E a denominada falsa humildade ou baixeza moral”4 (1999, p. 252). O
hipócrita moral é o caridoso dadivoso, tanto em praça pública, para que não
haja equívocos, como no privado, para calar uma consciência turva ou
compensar outros “pecadinhos”.

A hipocrisia nos Sueños de Quevedo

É importante falar rapidamente do contexto que envolvia a literatura na


Espanha do século XVII. A sociedade espanhola está em crise; a agricultura, a
indústria e o comércio ficam empobrecidos; cresce a miséria e aumenta a
delinqüência, e como conseqüência, a nobreza e o clero aumentam os seus
poderes. Tudo isso acaba criando um mal-estar, insatisfação, angústia e
decepção. Nessa época se tem uma concepção negativa do mundo e da vida
que contrasta com o idealismo renascentista de uma época de grandeza vivida
pela Espanha. E isso tudo acaba se refletindo na literatura. Otto Maria
Carpeaux afirma que Quevedo “é o espírito mais inquieto do século”; para o
crítico, “o contraste entre a grandeza de há poucos anos e a desgraça dos
“tempos de agora” inspira-lhe os sentimentos mais amargos contra o

3
“‘hacer ver como si...’: es la moral del Als ob que tiende a lo peor (frente a aquella que se
sirve de ideales ficcionales de carácter regulador)”.
4
“denuncia la actividad de quienes hacen gala de renunciar a toda pretensión de valor moral
convenciéndose de adquirir con ello ‘cierto valor oculto’. Y la denomina falsa humildad o bajeza
moral”.
materialismo reinante do ‘poderoso cavalheiro dom Dinheiro’” (1960, p. 1120-
1).
De acordo com Gerald Brenan (1984, p. 277), a Espanha, de modo
geral, segue embriagada com a idéia de sua grandeza nacional, e são poucos
os capazes de ver que esta se desvanece rapidamente. Quevedo é uma
exceção, pois, de acordo com o crítico, é o único dos escritores do seu tempo
que opta pelo penoso caminho de viver no presente e avisar os seus
compatriotas, com uma longa série de sátiras e denúncias, da ruína que lhes
aguarda.
Francisco de Quevedo y Villegas, famoso pelas obras burlescas e
satíricas mais brilhantes e populares da literatura espanhola, escreveu Sueños,
onde faz referências concretas ao histórico e ao político, demonstrando todo o
seu pessimismo ante o desmoronamento da grandeza espanhola. A obra é
composta de cinco narrativas, escritas entre 1605 e 1621 (“Sueño del Juicio”,
“Alguacil endemoniado”, “Infierno”, “El mundo por de dentro” e “El sueño de la
Muerte”), que estão dispostas em forma de diálogo, e satirizam os costumes e
personagens de seu tempo, de todas as classes sociais; elas são produto dos
desenganos que o autor padece nesses anos; elas dizem que não há nobreza
nem verdade no mundo e que tudo é horrível e feio.
O hispanista francês Bartolomé Bennassar não tem dúvida em afirmar
que na história do mundo poucas sociedades acumularam tantas
desigualdades em espaços tão restritos como a Espanha do Século de Ouro.
“Sua paisagem social apresenta uma diversidade prodigiosa. Para dizer a
verdade, a desigualdade está em todas as partes” (1983, p. 172).5
A intenção do escritor, segundo suas próprias palavras no prólogo dos
Sueños, era “denunciar os abusos, vícios e falsidades de todas as profissões e
pátrias do mundo”. Destacamos que a leitura dessa obra é extremamente
enriquecedora e prazerosa, por duas razões: sua própria qualidade literária e o
retrato que proporciona da realidade social da Espanha no século XVII.
Em “O mundo por dentro”,6 escrita em 1612, Quevedo aborda
profundamente o tema da hipocrisia no diálogo entre o jovem narrador ingênuo

5
“Su paisaje social presenta una diversidad prodigiosa. A decir verdad, la desigualdad está en
todas las partes”.
6
“El mundo por de dentro”.
e o velho Desengano, que o instrui sobre o mundo num enterro. Cada um
representa um ponto de vista diferente, e a conversa entre eles dramatiza esse
conflito de maneira extremamente intensa. Desengano denuncia a hipocrisia
dos clérigos e dos parentes no velório (do luto aparente de um viúvo e de uma
viúva); ante uma perseguição da justiça, o que existe é a corrupção; uma
mulher formosa é pura mentira, pois existe à base de cosméticos; os cortesãos
são falsos etc. Aqui, ele encontra seus tipos preferidos pela rua da Hipocrisia. E
Quevedo zomba daqueles que querem tentar ser o que não são: o alfaiate, o
sapateiro, o fidalgo, que se fazem chamar de outra maneira e aparentam ser o
que não são. Este “não-sonho”, como Ilse Nolting-Hauff (1974, p. 29) o chama,
é uma alegoria da vida, em que os personagens são símbolos do vício e do
pecado.
James O. Crosby, no prólogo desse texto, ressalta que para os
contemporâneos de Quevedo a verdade estava relacionada com o desengano
porque este facilitava a clarividência, ou seja, a percepção do mundo “como ele
é” e não como “parece” à primeira vista. E essa idéia preocupava
profundamente os espanhóis do século XVII. A dinâmica desse discurso é que
apresenta como problema “a ingenuidade, a confusão e a distração do jovem, e
seu ponto de vista sensual, e como solução o desengano e a clarividência do
velho, baseados estes no ascetismo cristão e na experiência humana”7 (in
QUEVEDO Y VILLEGAS, 1993, p. 63-4). E esta clarividência é que facilita
penetrar os diversos disfarces hipócritas que aparecem no decorrer.

[...] logo as ordens, e depois delas os clérigos, que galopando os


responsos cantavam à marcha rápida, abreviando para que as velas
não derretessem, e terem tempo para enterrar outro. Logo depois
seguiam doze mendigos, hipócritas da pobreza, com doze velas
8
grandes, acompanhando o corpo e abrigando os da Capacha, que
ombreando testemunhavam o peso da defunta (QUEVEDO Y
VILLEGAS, 1993, p. 283-4).9

7
“la ingenuidad, la confusión y la distracción del joven, y su punto de vista sensual, y como
solución el desengaño y la clarividencia del viejo, basados éstos en el ascetismo cristiano y la
experiencia humana”.
8
Ordem de São João de Deus (1495-1550), cujos religiosos no princípio recolhiam em
‘capachas’ a esmola.
9
“[...] luego las órdenes, y tras ellas los clérigos, que galopeando los responsos cantaban de
portante, abreviando por que no se derritiesen las velas, y tener tiempo para sumir otro.
Seguíanse luego doce galloferos, hipócritas de la pobreza, con doce hachas, acompañando el
cuerpo y abrigando a los de la Capacha, que hombreando testificaban el peso del difunto”.
Essa passagem retrata a cobiça dos clérigos de forma animalesca,
comparando-os com cavalos, que correm desenfreadamente, cantando os
responsos para que as velas não derretam e com elas possam enterrar mais
gente, e aproveitar outro enterro para pedir mais esmolas. Depois deles vinham
os que Quevedo chama de “hipócritas da pobreza”, e de “vagabundos”, que
andam pedindo esmola, ou seja, os classifica como oportunistas e pobres
fingidos.
Também no texto “Meirinho endemoninhado”10 vamos ter a presença do
hipócrita religioso, com sua pobreza fingida; pois as ordens monásticas, que
constituem grande parte da Igreja, fazem votos de pobreza, e no entanto
possuem grandes riquezas, tanto corporativamente como seus membros em
separado (HODGART, 1969, p. 41). Vejamos a descrição irônica que Quevedo
faz do Bacharel Calabrês:

[...] clérigo de barrete com três pontas altas, vestido com cinta,
punhos de Corinto, camisa aparecendo, rosário na mão, látego,
sapato grande e ordinário, fala entre penitente e disciplinador, os
olhos baixos e os pensamentos elevados a Deus, de cor às vezes
inflamada e às vezes quebrantada, demorado na mesa e abreviador
na missa, grande caçador de diabos, tanto que sustentava o corpo à
força de espíritos. Sabia curar, fazendo umas cruzes ao benzer
maiores que as dos malcasados. Trazia na capa remendos sobre o
ileso, fazia-se de santidade desalinhada, contava revelações e, se se
descuidassem, fazia milagres. Por que me canso em acumular
detalhes? Este, senhor, era um dos que Cristo chamou de sepulcros
magníficos: por fora esbranquiçados e cheios de molduras, e por
dentro podridão e verminação. Era, em língua romana, hipócrita,
engodo vivo, mentira com alma e fábula com voz (QUEVEDO Y
11
VILLEGAS, 1993, p. 158-160).

Calabrés, que é descrito de forma bastante detalhada, está justamente


entregue a sua ocupação favorita, exorcizando um demônio de uma pessoa.
Crosby (in QUEVEDO Y VILLEGAS, 1993, p. 145) ressalta que no
princípio do século XVII a censura eclesiástica provoca na sátira tradicional

10
“Alguacil endemoniado”.
11
“[…] clérigo de bonete de tres altos, orillo por ceñidor, puños de Corinto, asomo de camisa
por cuello, rosario en mano, disciplina, zapato grande y de ramplón, habla entre penitente y
disciplinante, los ojos bajos y los pensamientos tiples, color a partes encendida y a partes
quebrada, tardón en la mesa y abreviador en la misa, gran lanzador de diablos, tanto que
sustentaba el cuerpo a puros espíritus. Entendíasele de ensalmar, haciendo al bendecir unas
cruces mayores que las de los malcasados. Traía en la capa remiendos sobre sano, hacía del
desaliño santidad, contaba revelaciones, y si se descuidaban a creerle, hacía milagros. ¿Qué
me canso? Éste, señor, era uno de los que Cristo llamó sepulcros hermosos: por defuera,
blanqueados y llenos de molduras, y por dentro pudrición y gusanos. Era, en romance,
hipócrita, embeleco vivo, mentira con alma y fábula con voz”.
anticlerical a substituição do clero pelo sacristão (mas são conservados os
mesmos motivos: a vida licenciosa, a ignorância, a hipocrisia, a simonia e a
falta de devoção). Neste quadro de repressão, Quevedo se destaca por seu
atrevimento. No “Sonho do Juízo”12 ―texto em que se descreve o despertar
dos mortos ao retumbar a trombeta do juízo final―, Quevedo debocha dos que
abreviam as cerimônias religiosas, incluindo os sacristãos, que são vistos nas
sátiras como bobos e também como aqueles que roubam para depois vender,
como nesta passagem, o azeite das lâmpadas, os artigos sagrados e as
galhetas da igreja.

Todos esperavam ver um Nero ou um Diocleciano pela poeira


levantada, mas veio a ser um sacristão. Apresentava provas com os
retábulos, e com isto já estava quase a salvo, porém um diabo disse
que bebia o azeite das lâmpadas e jogava a culpa em umas corujas,
que tinham morrido sem culpa e difamadas; que beliscava os
ornamentos para se vestir; que herdava em vida as galhetas, e que
abreviava as cerimônias oficiais. Não sei que desculpa deu, pois lhe
ensinaram o caminho da mão esquerda (QUEVEDO Y VILLEGAS,
13
1993, p. 144-5).

Voltando ao texto “O mundo por dentro”, nesses próximos dois trechos


ocorrem os falsos duelos do viúvo e da viúva. A sátira do casado que enviúva,
segundo Crosby (in QUEVEDO Y VILLEGAS, 1993, p. 286), remonta à
segunda metade do século XVI. No caso do primeiro, as descrições
exageradas da roupa formulam um luto aparatoso, excessivo e hipócrita.
Atrás seguia uma longa procissão de amigos que acompanhavam o
viúvo na tristeza e no luto, que submerso numa túnica de pano negro
e envolto num manto, o rosto perdido na aba de um chapéu de modo
que não se podiam achar os olhos, curvos, os passos impedidos com
o peso de dez arrobas da cauda que arrastava, ia lento e preguiçoso
14
(QUEVEDO Y VILLEGAS, 1993, p. 284).
O chapéu e a posição curva da cabeça ocultam os olhos e com isso
escondem as lágrimas e os pensamentos; a roupa preta disfarça um luto
fingido; ademais ele vai lento e preguiçoso, simulando dor, tristeza,
12
“Sueño del Juicio”.
13
“Todos esperaban un Nerón o un Diocleciano por lo del sacudir el polvo y vino a ser un
sacristán. Acotaba con los retablos y ya con esto se había puesto casi en salvo, sino que dijo
un diablo que se bebía el aceite de las lámparas y echaba la culpa a unas lechuzas, por lo cual
habían muerto sin culpa; que pellizcaba los ornamentos para vestirse; y que heredaba en vida
las vinajeras, y que se tomaba alforzas a los oficios. No sé qué disculpa dio, que le enseñaron
el camino de la mano izquierda”.
14
“Detrás seguía larga procesión de amigos que acompañaban en la tristeza y luto al viudo,
que anegado en un capuz de bayeta y devanando en una chía, perdido el rostro en la falda de
un sombrero de suerte que no se le podían hallar los ojos, corvo, impedidos los pasos con el
peso de diez arrobas de cola que arrastraba, iba tardo y perezoso”.
consternação e principalmente desânimo pela perda. Porém, tudo isso revela
apenas uma aparência forçada que esconde a realidade do ato. A tristeza do
viúvo é atribuída aos gastos excessivos que teve com a mulher doente e com o
funeral, pois quisera ele tê-la enterrado num lixão. E já tramava qual seria a
próxima pretendente a se casar, pois aquela era a segunda que ele enterrava.
No duelo da viúva também aparece, como no exemplo anterior, a
dualidade exterior/interior, aparência/realidade.

[...] entramos para ver o que era, e no momento em que sentiram que
havia gente, começou um lamento a seis vozes de mulheres que
acompanhavam uma viúva. O pranto era muito autorizado, mas
pouco produtivo ao defunto: a coitada se arranhava, cada pouco
soavam palmadas que pareciam palmeados de disciplina. Ouviam-se
longos soluços, embutidos de suspiros, forçados por falta de vontade.
A casa estava vazia, e as paredes desnudas; a coitada estava num
aposento escuro sem luz nenhuma e cheio de panos negros, onde
elas choravam com dificuldade (QUEVEDO Y VILLEGAS, 1993, p.
15
287).

A teatralização das mulheres deu início, quando perceberam que


estavam sendo observadas, com um lamento16 coletivo, considerado
autorizado, pois era realizado por pessoas de suposta autoridade, crédito e
seriedade. A “coitada” viúva se martirizava por meio de arranhões e açoites
(imitando a hipocrisia dos religiosos com a autoflagelação), querendo com isso
forjar a autopunição. Os soluços são longos, e embutidos de suspiros, com o
intuito de extremar uma dor que não é sentida e infligindo pena a quem ouve.
Aqui o exagero também está presente, porém ele é mais sonoro, para mostrar
um sentimento que beira o desespero. Um pouco mais adiante a cena se
intensifica em pranto e humor com hipérboles grotescas que legitimam a cena
da viúva que não só chorava torrencialmente como também inundava o
aposento de tanto assoar o nariz.
Entretanto, o manto da hipocrisia, dissimulação e falsidade caem quando
o interior da viúva e a realidade das cenas vêm à tona, na voz do Desengano:

15
“[...] entramos dentro a ver lo que fuese, y al tiempo que sintieron gente, comenzó un plañido
a seis voces de mujeres que acompañaban una viuda. Era el llanto muy autorizado, pero poco
provechoso al difunto: arañábase la cuitada, sonaban palmadas de rato en rato, que parecía
palmeado de disciplina. Oíanse unos sollozos estirados, embutidos de suspiros, pujados por
falta de gana. La casa estaba despejada y las paredes desnudas, la cuitada estaba en un
aposento oscuro sin luz ninguna y lleno de bayetas, donde lloraban a tiento.”
16
Nas óperas dos séculos XVII e XVIII, chama-se ‘lamento’ o episódio lírico-dramático, para
canto ou recitativo, que antecedia o desfecho.
“Escute, verá esta viúva que por fora tem um corpo de responsos, assim como
por dentro tem uma alma de aleluias, as toucas negras e os pensamentos
verdes”.17 Por fora ela reza e murmura e por dentro vibra de alegria pela
liberdade alcançada. Crosby comenta em nota de rodapé que

Na Espanha dos Felipes o matrimônio constituia o primeiro passo da


mulher para a libertade, já que lhe abria a porta às relações sexuais
com os galãs. O segundo era enviuvar, porque assim muitas vezes a
viúva ficava liberada da pessoa com quem lhe haviam casado. Por
outro lado, numa sociedade que dava grande importância às
aparências de moralidade cristã, não surpreende comprovar que os
satíricos frequentemente zombavam, com ou sem razão, do que eles
tinham por promiscuidade das viúvas: “com sua touca reverenda / faz
de seu rosto tenda, / e gosta de ser tocada” (in QUEVEDO Y
18
VILLEGAS, 1993, p. 290).

Como sátira tradicional dos roubos certamente os meirinhos estão


envolvidos. Eles tinham fama de levantar falso testemunho. E juntamente com
os escrivães, os advogados e os juízes são acusados de hipócritas. O que vale
para estes oficiais comprados e corruptos é o dinheiro. Essa passagem
narrando o início dos acontecimentos começa com um meirinho correndo atrás
de um ladrão:

“[...] arrebatado por gritos (afogados em vinho), e do grande ruído


vindo das pessoas, saímos para ver o que estava acontecendo; era
um meirinho, com um só pedaço de vara na mão e o nariz
machucado, colarinho rasgado, sem chapéu e sem capa, ia pedindo
“favor ao Rei! favor à justiça!” atrás de um ladrão, que seguindo para
uma igreja (e não por ser um bom cristão) ia tão rápido quanto à
necessidade pedia e o medo demandava. Atrás, cercado de gente,
ficava o escrivão cheio de lodo, com as caixas no braço esquerdo,
escrevendo sobre os joelhos. E notei que não há coisa que cresça
tanto em tão pouco tempo como a culpa em poder do escrivão, pois
num instante já tinha uma resma” (QUEVEDO Y VILLEGAS, 1993, p.
292).19

17
“Oye, verás esta viuda que por defuera tiene un cuerpo de responsos, cómo por de dentro
tiene un alma de aleluyas, las tocas negras y los pensamientos verdes”.
18
En la España de los Felipes el matrimonio constituía el primer paso de la mujer hacia la
libertad, ya que le abría la puerta a las relaciones sexuales con los galanes. El segundo era
inviudar, porque así muchas veces la viuda se liberaba de la persona con quien le habían
casado. Por otra parte, en una sociedad que daba gran importancia a las apariencias de
moralidad cristiana, no sorprende comprobar que los satíricos se burlaban frecuentemente, con
o sin razón, de lo que ellos tenían por promiscuidad de las viudas: “con su toca reverenda /
hace de su rostro tienda, / y gusta de ser tocada” (in Quevedo y Villegas, 1993: 290).
19
[...] arrebatado de unos gritos (ahogados en vino) de gran ruido de gente, salimos a ver
qué fuese; y era un alguacil, el cual con sólo un tarazón de una vara en la mano y las narices
ajadas, deshecho el cuello, sin sombrero y en cuerpo, iba pidiendo "¡Favor al Rey! ¡Favor a la
justicia!" tras un ladrón, que en seguimiento de una iglesia (y no de puro buen cristiano) iba tan
ligero como pedía la necesidad y demandaba el miedo. Atrás cercado de gente quedaba el
Para começar, na descrição do meirinho já vem embutida a idéia
burlesca de que ele era um bêbado, porque seus gritos estavam “afogados em
vinho”. Porém, pela descrição, ele vinha com um só pedaço de vara na mão, ou
seja, quase desarmado, com o nariz machucado, colarinho rasgado, sem
chapéu e sem capa, mostrando assim sinais de luta para quem estivesse ali
presenciando a cena; e pedindo ‘Favor ao Rei! Favor à justiça!’, como se
estivesse perseguindo licitamente um ladrão, e defendendo assim a sociedade,
ele dizia a frase usada pela justiça, que era um pedido de ajuda e socorro para
a prisão de algum delinqüente. O ladrão por sua vez corria para a igreja, que
era o lugar em que se beneficiava do direito de asilo. E atrás dos dois estava o
escrivão, que sempre acompanhava o meirinho, e já tinha hiperbolicamente
“uma resma” de documentação.
Voltamos a falar da mulher, que sempre foi um dos assuntos preferidos
pela sátira de todos em tempos e que transita fortemente pela rua da
hipocresia apontada por Quevedo. O tema é enfocado muitas vezes a partir de
uma perspectiva misógina; outras vezes, ridiculariza determinados aspectos,
vícios ou costumes não exclusivamente femininos, mas que se referem à
mulher. Quanto à misógina, ela envolve as suas astúcias e enganos,
caracterizando-a como hipócrita, e é um dos temas preferidos de Quevedo.
Cacho Casal (2003, p. 65) diz que Quevedo passa revista a todos os
defeitos femininos consignados pelos modelos literários a seu alcance, desde
a Bíblia até Góngora, passando por Marcial e Juvenal. A partir desse material
prévio constrói seu “detestatio” contra as mulheres onde a caricatura e a injúria
se combinam com agudezas e jogos conceptistas.
Quanto à ridicularização de determinados aspectos ou defeitos
relacionados à mulher, este é o mais extenso e está, na maioria das vezes,
ligado ao tema do dinheiro. Para Nolting-Hauff (1974, p. 147) a inovação do
escritor está no realce que dá aos temas: a suposta cobiça das mulheres gera
mais estímulo satírico que sua leviandade; o asco físico ante as mulheres feias
e, sobretudo, ante as velhas, provoca até mais que a cobiça. Muito da sátira de
Quevedo, contra as mulheres e o matrimônio, é pura caricatura, enquanto que

escribano lleno de lodo, con las cajas en el brazo izquierdo, escribiendo sobre la rodilla. Y noté
que no hay cosa que crezca tanto en tan poco tiempo como culpa en poder de escribano, pues
en un instante tenía una resma al cabo (p. 292).
o tradicional quadro de costumes perde importância ou aparece somente
dentro do retrato concreto. “O exagero da decrepitude física leva a representá-
la como a relação de seu inevitável estado posterior” (SCHWARTZ, 1983, p.
68).20
Nas sátiras que se referem às velhas é comum o desejo de uma
aparência mais nova, conseguida normalmente à base de maquiagens. Porém,
o que o trecho abaixo destaca, é que mesmo estando no inferno uma velha
hipócrita de setenta anos tenta ocultar a sua idade com reações e
comportamentos de uma garotinha afetada e cheia de melindres.

21
Outro dia levei uma de setenta anos que comia barro e estava com
opilações; queixava-se de dor de dentes porque pensava que os
tinha, e estava com as têmporas envolvidas no lençol branco dos
seus cabelos e o rosto arado, fugia dos ratos e vestia gala
22
(QUEVEDO Y VILLEGAS, 1993, p. 181).

Para Hodgart (1969, p. 81), o alvoroço levantado pelos moralistas a


respeito da moda, dos cosméticos e dos penteados da mulher está baseado,
só parcialmente, no terreno bem justificado dos gastos excessivos, mas
também expressa a suspeita de que tais adornos têm por finalidade atrair
outros homens que não seja o próprio marido. A sátira baseada nas mulheres
é um registro cômico de tudo o que se afasta e constitui um desvio do ideal
exigido pelo encômio, e está baseada com certa freqüência sobre os três
pontos tradicionais da docilidade, da castidade e da modéstia. Neste longo
trecho de “O mundo por dentro”, em que a expressão figurada explora diversos
tipos de relações, o personagem Desengano instrui lentamente o narrador
sobre os enganos das mulheres:

Pois saiba que o primeiro que as mulheres vestem quando


despertam é uma cara, um colo e umas mãos, e logo as anáguas.
Tudo o que vê nela é comprado e não natural. Vê o cabelo? Pois é
comprado e não criado. As sobrancelhas têm mais de esfumaçadas
que de negras, e se ela fizesse o nariz da maneira que faz as
sobrancelhas, não o teria. A boca e os dentes que você vê eram

20
“La exageración de la decrepitud física lleva así a representarla como la relación de su
inevitable estado posterior”.
21
Era costume das damas do Século de Ouro comer pedaços de barro, porque provocava
amenorréia, inibindo a fertilidade, e também uma palidez considerada bela. Ambos motivos
caracterizam as jovens, e nas velhas isso não passa de dupla simulação.
22
El otro día llevé yo una de setenta años que comía búcaro y andaba por las opilaciones, y se
quejaba del dolor de muelas porque pensasen que las tenía, y con tener amortajadas las
sienes con la sábana blanca de sus canas y arada la frente, huía de los ratones y traía galas.
negros, como tinteiro, e a puros pós se tornou areeiro. A cera dos
ouvidos passou nos lábios e cada um é uma candelinha. As mãos?
Pois o que parece branco é untado. Que coisa é ver uma mulher que
sairá no outro dia para que a vejam, lançar-se em cosméticos na
noite anterior e vê-las encostar as caras feito uma cesta de passas, e
pela manhã pintarem o que desejam sobre o rosto vivo como se
fosse uma tela! O que é ver uma feia ou uma velha querer, como o
marquês de Villena, sair de novo de uma redoma! Está olhando para
ela? Pois não vê coisa sua, que se lavassem as caras não as
reconheceria (QUEVEDO Y VILLEGAS, 1993, p. 299).23

Este fragmento alude ao fato de que tudo nas mulheres é artificial e que
o fazem para se mostrarem aos homens; tudo nelas é comprado, fingido e
postiço. Na terceira linha a expressão “é comprado” revela uma segunda
intenção no que é dito, pois caracteriza de forma negativa o comportamento
moral da mulher, indicando que ela “está aberta” a envolvimentos amorosos. A
cena é totalmente grotesca, destacando o excesso de maquiagem usado pelas
velhas para se fazerem passar por novas: os cabelos são postiços (ou porque
não os têm, ou porque os tingem), os dentes podres são clareados à base de
pó, os lábios são comparados a uma vela de tanta cera que têm, para dar
brilho (porém essa cera, segundo a descrição, é retirada dos ouvidos), as
mãos brancas estão completamente untadas. Segundo Lía Schwartz, “a
imagem obtida suscita reação de desagrado no receptor, que é o meio
empregado pela sátira para transmitir a crítica da mulher e dos cosméticos”
(1983, p. 65).24
Essa outra passagem, agora do “Infierno”, também remete aos
cosméticos, porém Quevedo, fazendo uso da metáfora e da hipérbole,
comenta que qualquer uma, até as feias, podem ser estrelas ou até mesmo o
sol. E a diferença na sua aparência é tão grande que até mesmo o marido
acha que se trata de outra pessoa.

23
Pues sábete que las mujeres lo primero que se visten en despertando es una cara, una
garganta y unas manos, y luego las sayas. Todo cuanto en ella ves es tienda y no natural.
¿Ves el cabello? Pues comprado es y no criado. Las cejas tienen más de ahumadas que de
negras, y si como se hace las cejas se hiciese las narices, no las tuviera. Los dientes que ves y
la boca era, de puro negra, un tintero, y a puros polvos se ha vuelto salvadera. La cera de los
oídos se ha pasado a los labios y cada uno es una candelilla. ¿Las manos? Pues lo que
parece blanco es untado. ¡Qué cosa es ver a una mujer que ha de salir a otro día a que la
vean, echarse la noche antes en adobo y verlas acostar las caras hechas cofines de pasas, y a
la mañana irse pintando sobre lo vivo como quieren! ¡Qué es ver una fea o una vieja querer,
como el marqués de Villena, salir de nuevo de una redoma! ¿Estás las mirando? Pues no ves
cosa suya, que si se lavasen las caras no las conocerías.
24
“la imagen obtenida suscita reacción de desagrado en el receptor, que es el medio empleado
por la sátira para transmitir la crítica de la mujer y los afeites”.
- E não queira mais das invenções das mulheres – disse o diabo –:
até resplendor têm, sem serem astros nem estrelas. Umas dormem
com uns cabelos e amanhecem com outros. Muitas vezes você
pensa que desfruta a mulher de outro, e o adultério não passa da
25
casca (QUEVEDO Y VILLEGAS, 1993, p. 232).

Como verificou-se neste artigo, Quevedo exibe um atrevimento sem-par


na denúncia de injustiças, atacando e condenando ferozmente a hipocresia
nas pessoas: com a pobreza fingida dos religiosos, com a dissimulação e
falsidade do viúvo e da viúva – mostrando uma aparência forçada que esconde
a realidade do ato –, com a corrupção da justiça que deixou de ser honesta, ou
de agir segundo princípios morais, e por último com a mulher que aparenta só
mentira, pois nela tudo é fingido, comprado e postiço. O que todos têm em
comum é que todos aparentam ser o que não ser.
Nos Sueños, Quevedo procurou castigar os vícios da sua época,
através de personagens que representaram uma classe social, um ofício, uma
virtude ou um determinado indivíduo. Todos os compartimentos da vida
humana e social foram objetos da sátira festiva ou desapiedada do escritor.
Nada escapou a seu olhar agudo, que percebeu fortemente os pontos fracos
dos seus contemporâneos; Quevedo soube exagerar nos traços mais
retorcidos e de maior destaque daqueles, desfigurando-os em caricaturas
desmedidas, transformando-os em títeres.
Na opinião de Nolting-Hauff, os Sueños são o mais forte ataque contra o
sistema político-social que jamais se escreveu na decadência da monarquia
espanhola. Ficções do mundo infernal e viagens ao além oferecem a
numerosos autores, antes e depois de Quevedo, fecundos pontos de partida
para críticas da época assim como para moralizações satíricas. O cenário
ultravida permite uma seleção apartada da realidade que favorece o efeito
satírico e que, ao mesmo tempo, fornece à crítica uma ressonância que não
tem num ambiente puramente terreno (1974, p. 111-3).

Social hypocrisy in Francisco de Quevedo's Dreams and Discourses.

25
-Y no queráis más de las invenciones de las mujeres -dijo un diablo-: hasta resplandor tienen,
sin ser soles ni estrellas. Las más duermen con unos cabellos y amanecen con otros. Muchas
veces pensáis que gozáis la mujer de otro, y no pasáis el adulterio de la cáscara.
Resumen: La intensa preocupación del siglo XVII por las inclinaciones
pecaminosas de la ciega humanidad lleva fácilmente en dirección a la sátira,
género en que España es rica. Así, este artículo tiene como objetivo mostrar
cómo la hipocresía social en la España del siglo XVII es abordada por el
escritor español Francisco de Quevedo y Villegas, a través de varios
personajes de la obra satírica Sueños y Discursos (1993). Se resalta que la
obra fue escrita entre 1605 y 1621 y es compuesta de cinco narrativas –
“Sueño del Juicio”, “Alguacil endemoniado”, “Infierno”, “El mundo por de
dentro” y “El sueño de la Muerte” – que están dispuestas en forma de diálogo y
satirizan costumbres y personajes de su tiempo, de todas las clases sociales.
El tema de la hipocresía es tratado a través de sus diversos disfraces, como la
codicia de los clérigos y sacristanes, los falsos duelos del viudo y de la viuda,
la hipocresía social de los sufridos maridos, las mentiras de los alguaciles y
escribanos, entre otros. Veremos, a través de algunos pasajes de los Sueños,
cómo los hipócritas adaptan su consciencia, atribuyendo a su conducta
intenciones nobles, desinteresadas y altruistas.

Palabras-Clave: Espanha. Quevedo. Sátira. Hipocresía.

Referências

BENNASSAR, Bartolomé. La España del Siglo de Oro. Trad. de Pablo


Bordonaba. Barcelona: Crítica, 1983.

BRENAN, Gerald. Historia de la literatura española. 2. ed. Barcelona:


Editorial Crítica, 1984.

CACHO CASAL, Rodrigo. La poesía burlesca de Quevedo y sus modelos


italianos. Santiago de Compostela: Universidad de Santiago de Compostela,
2003b.

CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental. V. II. Rio de


Janeiro: O Cruzeiro, 1960.

CORREAS, Gonzalo. Vocabulario de refranes y frases proverbiales. Madrid:


Visor, 1992.

HODGART, Matthew. La sátira. Tradução de Angel Guillén. Madrid:


Guadarrama, 1969.

NOLTING-HAUFF, Ilse. Visión, sátira y agudeza en los “Sueños” de


Quevedo. Trad. de Ana Pérez de Linares. Madrid: Gredos, 1974.

QUEVEDO Y VILLEGAS, Francisco de. (edição anotada de James O. Crosby).


Sueños y Discursos. Madrid: Castalia, 1993.
SCHWARTZ LERNER, Lia. Metáfora y sátira en la obra de Quevedo. Madrid:
Taurus, 1983.

VIGIL RUBIO, Jorge. Diccionario razonado de vicios, pecados y


enfermedades morales. Madrid: Alianza, 1999.

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