Vanessa de Mattos-Desbloqueado
Vanessa de Mattos-Desbloqueado
Vanessa de Mattos-Desbloqueado
PUC-SP
VANESSA DE MATTOS
DOUTORADO EM HISTÓRIA
São Paulo
2016
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
PUC-SP
VANESSA DE MATTOS
Doutorado em História
São Paulo
2016
Banca Examinadora:
....................................................................................
Profa. Dra. Vera Lúcia Vieira (Orientadora)
....................................................................................
....................................................................................
....................................................................................
....................................................................................
Pai, só enquanto eu respirar, vou me lembrar de você.
AGRADECIMENTOS
RESUMO
ABSTRACT
This thesis aims to analyze the work of death squads, death squads, political
repression at the national level during the period from 1973 to 1979. We seek
evidence that the violence of the Bonapartist state has also used these groups to
perpetuation of political repression in contrast to the prevailing view that these
organizations were limited to the application of "social cleansing". Active during the
period of bourgeois Bonapartist autocracy, the death squads were part of the
repressive system and had "modus operandi" itself, applied to any social segment
taxed by the state as subversive, meeting the wishes of the hegemonic segments
in the bourgeoisie represented by the class-State. Because of this integration,
agents of squads enjoyed political protection from those autocrats by applying the
abuse of legality which secured them legal freedom. Impunity was also afforded
them through the logic of manipulative legality, embedded in that state. The end of
the economic miracle and political opening process marked the decline of the
death squads in view of the withdrawal of support of autocrats, the hegemonic
sectors of the bourgeoisie and the favorable public opinion to those practices. To
develop this research, we used DOPS documents, present in the São Paulo State
Archives; the personal collection of Dr. Hélio Bicudo, available at PUC-SP Library
and the National Archives of Rio de Janeiro. These documents were submitted to
the immanent analysis, aimed at the analysis of the object in the search for ways
of being and their role in the historical process.
Introdução .................................................................................................. 14
1
WEEKS, Gregory B. “Repensando factores históricos: las Transiciones Políticas y
Militares en América del Sur” In: Politics & Policy, Volume 32, n. 1, Univeristy of North
Carolina, Charlotte March, 2004.
2
“Comissão Nacional da Verdade”. Disponível em
http://www.arquivonacional.gov.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=1017&sid=40.
Acesso em 19 abr. 2015.
3
Lei n. 12.528, de 18 DE novembro de 2011, criação da Comissão Nacional da Verdade
no âmbito da Casa Civil da Presidência da República. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12528.htm. Acesso em: 19
abr. 2015.
14
localização dos corpos daquelas vítimas, o direito às famílias de sepultar seus
mortos e a punição aos que perpetraram tais brutalidades. Apesar de encerrados
os trabalhos, ainda há muitos corpos a serem entregues às famílias e muito ainda
a se dizer – fato é que a Comissão manteve o diapasão de “promover a
reconciliação nacional”4, sem que houvesse punição aos torturadores.
Diante desse cenário nacional atual, o objetivo desta pesquisa é evidenciar
que a violência do Estado bonapartista se utilizou também de grupos de
extermínio, como os esquadrões da morte para a repressão política, embora,
ainda hoje, no senso comum, no acadêmico e para a própria Comissão Nacional
da Verdade, perdura a ideia de que essas organizações estavam ligadas à
eliminação física de indivíduos tidos como contraventores penais5, “numa tentativa
de limpar a sociedade”.6
O período escolhido para análise neste trabalho, 1973 a 1979, remete ao
ápice e declínio dos grupos de extermínio no aparato repressivo do Estado,
resultando no retorno deles à responsabilidade da esfera estadual. Essas duas
premissas estavam diretamente ligadas à conjuntura nacional, pautada na
repressão e no cerceamento, na ascensão e no esgotamento do milagre
econômico, no fim do apoio antes dado pelos segmentos hegemônicos da
burguesia e o início da abertura política.
Ainda há muito que analisar sobre os esquadrões da morte e não temos a
pretensão de esgotar as possibilidades de seu entendimento, mas contribuir com
novas proposições acerca desse tema, principalmente, porque, os resquícios dele
4
Lei n. 12.528 de 18 de novembro de 2011, criação da Comissão Nacional da Verdade
no âmbito da Casa Civil da Presidência da República. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12528.htm. Acesso em: 19
abr. 2015.
5
Apontam os teóricos do direito que crime e contravenção são espécies distintas da
infração penal, mas que não existe uma diferença substancial entre os dois termos. Elas
se diferenciam apenas por suas penas, de acordo com os termos do artigo 1° da Lei de
Introdução ao Código Penal e da Lei de Contravenções Penais. Enquanto na
contravenção “ a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou
ambas, alternativa ou cumulativamente”, no crime, a lei prescreve “penas de reclusão ou
detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa”.
Os teóricos chamam atenção, ainda, para a conotação que a escolha de cada termo
remete, podendo o mau emprego delas colaborar para a criminalização dos segmentos
sociais. SILVA, Lívio. “Crime e contravenção penal: diferenças e semelhanças”. In:
DireitoNet. Disponível em: http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/7657/Crime-e-
contravencao-penal-diferencas-e-semelhancas. Acesso em 18 jan.2016.
6
Brasil. Comissão Nacional da Verdade. Relatório. Brasília: CNV, 2104, Volume I, p. 166.
15
ainda estão presentes na atualidade, haja vista que grupos de extermínio atuam
em nosso cotidiano, apoiados pelo Estado e pela opinião pública, que ainda
associam tais execuções a eliminação de contraventores penais.
A título de exemplo, apontamos o programa televisivo transmitido pela
Rede Bandeirantes (Band)7 que, ao noticiar as chacinas ocorridas em Osasco e
Barueri, em agosto de 2015 e perpetradas por grupos de extermínio locais, o
radialista José Luiz Datena anunciava que das 19 pessoas assassinadas, 12
eram inocentes, pois 7 delas, no passado, foram fichados por algum tipo de
contravenção8 – esse fato denota que aquele radialista, formador de opinião
pública, ainda se ampara na lógica da máxima “bandido bom é bandido morto”,
bem como também justifica o uso da pena de morte quando aplicada a um
indivíduo que foi contraventor penal.
Aquele radialista, infelizmente, não está sozinho em suas proposições,
pois, assim como nos grupos de extermínio atuantes no passado, os do presente
também têm suas práticas heroicizadas pela imprensa e toleradas pelos
segmentos da classe média, alta e hegemônica da burguesia brasileira, como
demonstra pesquisa realizada em 2015 que apontou que “metade da população
das grandes cidades acredita que “bandido bom é bandido morto”” 9.
Assim, quando a atualidade aceita e estimula práticas violentas, analisar o
passado é tarefa fundamental para atuar sobre o presente e é essa função social
a ser desenvolvida por nós, historiadores.
Os esquadrões da Morte10, nosso objeto de análise, foram grupos de
extermínio compostos por policiais civis e militares que atuaram no Brasil no
período da última autocracia burguesa bonapartista.
7
Programa chamado “Brasil Urgente”, apresentado por José Luiz Datena, de segunda a
sábado a partir das 16h15.
8
Outros periódicos também fizeram a mesma associação como, por exemplo, o site
globo.com na matéria intitulada “Secretário confirma 18 mortes em ataques em Osasco e
Barueri”. 15/08/2015. Disponível em:
http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2015/08/secretario-confirma-19-mortes-em-ataques-
osasco-barueri-e-itapevi.html. Acesso em 18 jan. 2016.
9
“Metade do país acha que “bandido bom é bandido morto”, aponta pesquisa”. Folha de
São Paulo, versão eletrônica, 05/10/2015. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/10/1690176-metade-do-pais-acha-que-
bandido-bom-e-bandido-morto-aponta-pesquisa.shtml. Acesso em 18 jan. 2016.
10
Ao longo deste trabalho, usaremos “Esquadrões da Morte” no plural e no singular,
“Esquadrão da Morte”, de modo a diferenciar a prática de cunho nacional, na primeira
16
A partir do “modelo” carioca, implantado naquele estado, no final da década
de 1950, os esquadrões da morte difundiram-se para várias regiões do país,
como São Paulo, Espírito Santo, Minas Gerais, Pernambuco, Alagoas entre
outras, agindo, em princípio, contra suspeitos de contravenções sociais, incursas
nos preceitos do Código de Processo Penal de 1941 e estendidas para os
indivíduos ligados a organizações políticas.
Esses grupos foram organizados por iniciativa do próprio Estado, e as falas
oficiais corroboram a assertiva de que sua ação estava limitada ao combate ao
suspeito de contravenções, conforme se observa no trecho da entrevista de um
delegado à pesquisadora Martha Huggins:
13
Denomina-se execução sob custódia quando pessoas que morrem por meio de mãos
de policiais encontram-se sob a guarda do poder público, ou seja, nas cadeias ou
dependências de algum órgão público. Conforme a legislação, as autoridades
responsáveis por sua guarda têm a incumbência, entre outras, de salvaguardar suas
vidas, zelarem por sua segurança, cuidar para que não cometam suicídios ou que
morram por doenças não tratadas. Assassinatos durante rebeliões ou por “vingança”,
toleradas ou incentivadas por agentes prisionais e de segurança, são de total
responsabilidade do Estado, particularmente do órgão ou unidade onde essa morte
ocorreu. Para maiores informações, ver o site http://www.ovp-
sp.org/indice_mortes.htm#mortes. Acesso em: 30 jul.2010.
14
BICUDO, Hélio. Do esquadrão da morte aos justiceiros. São Paulo: Ed. Paulinas,
1988, p. 87.
18
torturadores civis e militares e “o nome do delegado Fleury foi citado 86 vezes
como responsável direto de sevícias”15.
Assim, ao mesmo tempo em que esses policiais executavam indivíduos
que não eram vinculados a organizações políticas, eles também se tornavam
figuras de destaque na imprensa, por executarem lideranças de grupos políticos.
A título de exemplo, Fleury e sua equipe se vangloriavam por terem executado
Carlos Lamarca16, Carlos Marighella17, Bacuri18; assim como também assassinou
15
Idem, p. 87.
16
Carlos Lamarca foi um dos principais lutadores da oposição armada à ditadura no
Brasil. Ele entrou na carreira militar bastante cedo e chegou a ser capitão do Exército
brasileiro. Em 1969, desertou e foi expulso da corporação e militante da organização que
daria origem à Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Em 1970, ele já era
considerado inimigo número um da ditadura, tendo sido duramente perseguido e fuzilado
pelos militares. Para maiores informações, ver:
http://memoriasdaditadura.org.br/biografias-da-resistencia/carlos-lamarca/. Acesso em 10
jun. 2015.
17
Carlos Marighella fundou e dirigiu a Ação Libertadora Nacional (ALN), logo após seu
rompimento com o Partido Comunista Brasileiro (PCB) em 1968. Possuidor de um longo
histórico de lutas sociais e prisões políticas, ele ofereceu resistência armada à ditadura,
representando uma das mais importantes lideranças que rapidamente se espraiou por
todo o país. Ameaçados pelo potencial de explosão dos problemas sociais brasileiros, os
generais revelaram novamente suas garras reagindo com o terror e a tortura. Na noite de
4 de novembro de 1969, Carlos Marighella foi surpreendido por uma emboscada em São
Paulo montada pelo Delegado Fleury e seus policiais. Contrariando os pedidos da família,
ele foi enterrado como indigente no cemitério da Vila Formosa, em São Paulo, seus
restos mortais foram trasladados para a Bahia em 1980. http://www.torturanuncamais-
rj.org.br/MDdetalhes.asp?CodMortosDesaparecidos=29&Pesq=Marighela. Acesso em: 03
abr.2015.
18
Eduardo Collen Leite, codinome Bacuri, começou sua militância na Política Operária
(POLOP), vinculando-se, em 1968, à Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), da qual
se retirou para fundar a Rede Democrática (REDE), em abril de 1969 e, posteriormente,
passando a Ação Libertadora Nacional (ALN). Ele fora preso, no Rio de Janeiro, pelo
delegado Fleury e sua equipe e, após 109 dias consecutivos de tortura e mutilação,
transitando entre CENIMAR/RJ, o DOI-CODI/RJ, o DOI-CODI/SP, a DEOPS-SP foi, por
fim, levado para o Sítio particular de Fleury. Após esse longo período de tortura, os
jornais do país, em nota oficial, informavam a morte de Eduardo em um tiroteio nas
imediações da cidade de São Sebastião, no litoral paulista. A notícia oficial da morte de
Eduardo teve um objetivo claro: tirar as condições da inclusão de seu nome na lista das
pessoas a serem trocadas pela vida do Embaixador da Suíça no Brasil, que havia sido
sequestrado no dia 7 de dezembro. Seu nome seria incluído nessa lista e seria
impossível soltar o preso Eduardo que, oficialmente estava foragido e, além do mais,
completamente desfigurado e mutilado pela tortura. A única alternativa para o delegado
Fleury foi criar mais uma morte em tiroteio. O corpo de Eduardo foi entregue à família,
que constatou o nível animalesco a que chegaram as torturas a ele infligidas. Seu corpo,
além de hematomas, escoriações, cortes profundos e queimaduras por toda a parte,
apresentava dentes arrancados, orelhas decepadas, e os olhos vazados, segundo o
testemunho de Denise Crispim, esposa de Eduardo, desmascarando por completo a
farsa montada pelo delegado Fleury e sua equipe. Os Relatórios do Ministério da
19
lideranças de bairros que pediam por melhores condições sociais – caso de Pato
n’Água19 e tantos outros20.
A análise das práticas cotidianas dos componentes desses grupos de
extermínio indicou a íntima relação que o Estado manteve entre a perseguição
política e a contenção ao suspeito de contravenção penal. Inseridos em ambas as
esferas, a atuação dos esquadrões da morte demonstra a indistinção no trato
dado ao contraventor comum e ao político, ambos classificados como
subversivos. Mesmo a Revista Veja apontava isto naquele momento, conforme
atesta sua reportagem de 1969:
22
NETO, Lira. Castelo: a marcha para a ditadura. São Paulo: Editora Contexto, 2004.
23
A historiografia enfatizava que não havia articulação federal na ação repressiva no
período de JK, o que levou Nilo a demonstrar que essa articulação existia e era
estabelecida para a repressão ao inimigo interno. Na contramão dessa perspectiva,
Oliveira faz um levantamento das pesquisas que inovaram ao adentrarem nas
contradições internas da repressão no período de JK, questionando “a efetivação da
democracia no país”. Cf. OLIVEIRA, Nilo Dias. A configuração do sistema nacional de
repressão no governo JK (1956 a 1961). São Paulo: PUC-SP, 2013, Tese de
doutorado. P. 35-38 e também nota de rodapé n° 72
24
OLIVEIRA, 2013, op. cit.
21
bem como ter havido grande pressão feita pelos EUA para obter informações do
“movimento comunista” nas Américas. Todo esse aparato repressivo integrava
horizontal e verticalmente o Estado brasileiro, inclusive estabelecendo conexões
com as polícias políticas de vários países da Europa, EUA e América Latina,
como pontuou Nilo Dias25.
No caso da Divisão de polícia política e do Conselho de Segurança
Nacional, estes órgãos estabeleceram relação com as Delegacias de Ordem
Política e Social (DOPS) de alguns estados, montando uma rede que articulava a
Federação e os estados e os estados entre si mesmos, formando um verdadeiro
sistema de controle e repressão na década de 1950. Nesse sentido, Nilo Dias
demostrou que o sistema atuava como uma “malha fina” em todo o país ao
Essa rede repressiva criada ao longo dos anos será acrescida no pós-
segunda guerra, na América Latina pelos ensinamentos pautados na Doutrina de
Guerra Revolucionária, cunhada e transmitida pela própria Escola Francesa.
Desde 1957, quase uma década antes do início da Ditadura Militar na Argentina
(1966-1973), uma comitiva francesa foi encaminhada para este país para dar
assessoria teórica e prática27.
A base formativa eram as recentes experiências do exército francês na
Indochina (1946-1954) e na Guerra da Argélia (1954-1962), incluindo as
estratégias para enfrentamento da guerra contrarrevolucionária e luta contra a
subversão. Essa missão contou com o apoio de militares argentinos de alta
25
Idem.
26
OLIVEIRA, 2013, op. cit., p. 6.
27
MAZZEI, Daniel. “La misión militar francesa en la Escuela Superior de Guerra y los
orígenes de la Guerra Sucia, 1957-1962.” Revista de Ciencias Sociales, n. 13, 2002,
p.105-137 apud VELÁSQUEZ, Carlos Guerrero. El impacto ideológico de la Escuela
Francesa sobre el Ejército argentino In: Persona y Sociedad. Buenos Aires (ARG):
Universidad Alberto Hurtado. Vol. XXV / n. 2, 2011, p. 55-72.
22
patente que haviam recebido capacitação na Escola Superior de Guerra de
Paris28.
28
Idem.
29
Ibidem, p. 59
30
ROBIN, Marie-Monique, 2005. Escuadrones de la muerte, la Escuela Francesa.
Buenos Aires: Sudamericana. Tradução de Sérgio Di Nucci y Pablo Rodríguez. É
importante frisar que o site do centro apontando pela historiadora, na parte que versa
sobre sua história, confirma a sua criação no ano de 1964, mas não faz alusão à Guerra
Revolucionária. Para maiores informações, ver:
http://www.cigs.ensino.eb.br/index.php/historico. Acesso em 17 mai. 2015.
23
O Estado-Maior da Armada publicou o fascículo Alguns estudos sobre a
guerra revolucionária, coletânea de quatro artigos traduzidos da Revue
Militaire d’Information e um da Revue de Defense Nationale e a Escola
de Comando e Estado Maior do Exército o Relatório do Seminário de
Guerra Moderna. Em maio de 1959, o coronel Augusto Fragoso
pronunciou na Escola Superior de Guerra extensa palestra sobre o
tema, citando ampla bibliografia da GR. Em setembro do mesmo ano,
ato do Chefe do Estado-Maior do Exército nomeava uma comissão para
estudar a programação e a coordenação da instrução sobre guerra
moderna com ênfase na guerra insurrecional31.
31
MARTINS Filho, João Roberto. A conexão francesa da Argélia ao Araguaia (1959-
1975). In: Varia Historia, Belo Horizonte, vol.28, n. 48, p.528. Ver também: FRAGOSO,
Augusto. Introdução ao Estudo da Guerra Revolucionária. Rio de Janeiro: Presidência
da República, Estado-Maior das Forças Armadas, Escola Superior de Guerra, 1959. A
partir de então, publicações como o Mensário de Cultura Militar, o Boletim de Cultura
Militar, Cultura Militar e o Boletim de Informações, de responsabilidade do Estado-Maior
do Exército, passaram a veicular regularmente sobre o tema.
32
Paul Aussaresses foi general e agente secreto francês, tendo atuado na Resistência
Francesa na Segunda Guerra Mundial e nas guerras da Indochina (1946-1954) e da
Argélia (1954-1962). Ela ministrou cursos na escola dos agentes especiais norte-
americana, em Fort Bragg, na Carolina do Norte entre 1961 e 1963, bem como no Brasil
entre 1973 e 1975. Sua especialidade era a doutrina da guerra revolucionária “um
método militar não convencional de luta contra insurgentes que pressupõe prisões
arbitrárias, tortura, execuções sumárias e terror psicológico sobre a população”. Cf.
SANTOS, Luciano Felipe dos. Paul Aussaresses: um general francês na ditadura
brasileira (um estudo de caso). 2014. Dissertação (Mestrado em História Social) -
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2014. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-
16012015-185607/>. Acesso em: 19 jan.2016.
33
Membro de uma embaixada encarregado de certas funções, no caso, os ensinamentos
militares.
34
MARTINS Filho, op. cit., p.533-5.
24
a difusão do pensamento francês é garantida pelos adidos militares e
pelas missões francesas; no seio do Exército a ação dos agentes
franceses é reforçada por oficiais brasileiros que mantêm relações
pessoais com os serviços consulares deste país. Podemos destacar
Odílio Denis, Aurélio de Lira Tavares e Alfredo Souto Malan, os dois
últimos são antigos alunos da Escola Superior de Guerra de Paris,
organizam conferências, debates e abrem novas perspectivas para a
difusão do pensamento francês. Provindos de diversos horizontes
políticos, tais oficiais entram em contato com os adidos franceses,
particularmente com os coronéis Henri Lemond (1959 – 1962) e Pierre
Lallart (1962 – 1965)35.
35
ARAUJO, Rodrigo Nabuco de; MARIN, Richard. Guerra revolucionária: afinidades
eletivas entre oficiais brasileiros e a ideologia francesa (1957 – 1972). Institut
Pluridisciplinaire pour les Etudes sur l’Amérique Latine à Toulouse, Université de
Toulouse 2-Le Mirail, 5 allées Antonio Machado, 31058 Toulouse, França, p. 5.
Disponível em:
http://www.arqanalagoa.ufscar.br/abed/Integra/Rodrigo%20NABUCO%20DE%20ARAUJ
O%2031-08-07.pdf. Acesso em: 09 mai.2015.
36
Agrupamento de militantes que se situaram na divisa entre o Maranhão e Tocantins
entre os anos de 1972 e 1975 e que foram barbaramente executados pelos militares.
Para maiores esclarecimentos, ver: MACIEL, Lício Augusto Ribeiro. Guerrilha do
Araguaia. Editora Schoba, 2011; CAMPOS FILHO, Romualdo Pessoa. Guerrilha do
Araguaia: a esquerda em armas. Editora UFG, 1997.
37
MARTINS Filho, op.cit., p.533-5.
38
ROBIN, 2005, op. cit.
25
da população e a criação do inimigo interno, práticas que estavam no cerne da
ditadura aqui vivida.
Além dessas semelhanças, outro ponto que chama a atenção na descrição
feita pela autora é a determinação existente na Doutrina Francesa quanto à
necessidade de criação de esquadrões da morte oficialmente. De acordo com a
Doutrina de Guerra Revolucionária, tais grupos eram parte do aparato repressivo,
possuindo as mesmas características dos grupos brasileiros, bem como as
mesmas funções, o que demonstra que os que foram aqui desenvolvidos
operavam de acordo com o modelo cunhado pela Escola Francesa.
39
ROBIN, 2005, op. cit., p. 103-5.
40
PALMAR, Aluizio. “Doutrina de Segurança Nacional” In: Documentos Revelados.
Disponível em http://www.documentosrevelados.com.br/midias/doutrina-de-seguranca-
nacional/. Acesso em 19 jan. 2016.
26
Na população, aquela Doutrina associava a tal ameaça comunista a
implantação da barbárie, pois
41
Idem.
42
PALMAR, op.cit.
43
HUGGINS, Martha 1998 apud ALVES, op.cit., p. 148.
44
HUGGINS, Martha K. Polícia e política: relações Estados Unidos/América Latina, São
Paulo: Cortez; 1998, p.148.
27
Estaduais, os Serviços de Informações e com a polícia política de diversos países
– estruturavam-se, portanto, como uma rede nacional e internacional de
vigilância45.
Em contraposição, internacionalmente, a lógica repressiva e autocrática do
Estado brasileiro ganhava visibilidade a partir das ações das guerrilhas urbanas e
rurais, das lutas pelos direitos civis e humanos, particularmente quando
conseguiram denunciar a inexistência das garantias individuais básicas a partir
dos pedidos de libertação de presos políticos em troca de embaixadores
sequestrados.
Uma das organizações que se destacou foi a Vanguarda Popular
Revolucionária (VPR), recém-reagrupada com o nome de Var-Palmares (VPR-
Palmares)46. Atuando nas grandes cidades do país, manteve um braço de
militantes no Vale do Ribeira – localizado entre o sul do Estado de São Paulo e o
leste de São Paulo –, onde desenvolviam atividades variadas contra a ditadura,
como por exemplo, o sequestro do embaixador japonês, medida usada para
libertar presos políticos, muitos dos quais integravam a Aliança Libertadora
Nacional (ALN), atuantes em São Paulo.
A repercussão internacional foi imensa, pois o governo negava a existência
de presos políticos no país. Pressionados, os militares viram-se obrigados a
libertar os presos em troca da vida do embaixador 47, o que despertou ainda mais
sua animosidade contra os opositores e ampliou o espectro de pessoas incursas
na lógica do “inimigo interno”.
É importante ressaltar que tal terminologia, bem como “subversivo”,
“inimigo vermelho”, “comunista” e outras remetem a caracterizações feitas pelos
representantes do Estado que, por sua vez, o faziam de acordo com critérios
diversos. A análise dos mapeamentos feitos pelo DOPS nas cidades do Estado
de São Paulo levou a historiadora Luciana Feltrim a constatar que este trabalho
45
OLIVEIRA, Nilo Dias de. A vigilância da DOPS-SP as forças Armadas (Brasil-
década de 1950): sistema repressivo num estado de natureza autocrática. São Paulo.
PUC-SP, 2008 – Mestrado, p. 43-55.
46
CHAGAS, Fábio Gonçalves. A Vanguarda Popular Revolucionária: dilemas e
perspectivas da luta armada no Brasil. Dissertação de Mestrado. Universidade Estadual
Paulista, Franca, 2000.
47
“O governo decide preservar a vida do cônsul”. Folha de São Paulo, 13 de março de
1970. Arquivo Folha on-line.
28
era feito pelo aparato repressivo para conhecer a prática cotidiana da população e
identificar possíveis focos subversivos.
Nesse sentido, ela demonstrou que as autoridades reconheciam a íntima
relação existente entre as mazelas vividas – pobreza, miserabilidade, não
cumprimento da legislação trabalhista e assistencial, baixos salários, inflação,
falta de condições para arrendamento – e o surgimento de lutas por demandas
sociais. Todavia, atribuíam às pessoas que denunciavam essas condições ou
mesmo reclamavam delas localmente a pecha de atividades comunistas48.
Dessa forma, a preocupação do Estado não era com as mazelas sociais
vivenciadas pela sua população, mas com a contestação gerada. Isso servia para
justificar as práticas repressivas aplicadas a estes segmentos sociais, pois haviam
sido tachados de praticar atos comunistas.
Tendo como base este cenário e, após a análise de grande parte dos
fichamentos de trabalhadores da indústria das cidades do Estado de São Paulo,
no final da década de 1950, Feltrim define “inimigo interno”:
48
FELTRIM, Luciana da Conceição. As formas Institucionais da violência: controle,
vigilância, cerceamentos e repressão política no Estado de São Paulo de 1954 a 1960.
São Paulo: PUC-SP, 2012. (Mestrado em história social), p. 83-84.
49
PESTANA, 1959, p. 224-5, apud FELTRIM, 2012, p. 88.
29
que fossem quanto à sua viabilidade ou no sentido de alterar
significativamente a dinâmica sócio/econômica/política50.
50
FELTRIM, 2012, op. cit., p. 86.
51
AHUMADA, P., Magda Alicia. El enemigo interno em Colombia. Quito/Ecuador:
Ediciones Abya-Yala, 2007, p. 19
52
Idem.
53
CHASIN, José. Miséria brasileira: estudos e edições AD Hominem, 2000, p. 37-58.
30
e atrófico – e da burguesia – subordinada, dependente e conciliadora, como
pontuou Chasin.
Essa particularidade do caso brasileiro impediu que houvesse uma ruptura
com os países imperialistas e, sem essa ruptura, a modernização do capitalismo
no Brasil estava diretamente ligada e imposta pela dinâmica internacional, bem
como a nossa burguesia estava subordinada àquela ordem, elementos que
marcam a sua fragilidade, como pontua Rago Filho54.
Assim, ao mesmo tempo em que se consolida o novo bloco de poder que
promovera o golpe de 64, produz-se dois movimentos: primeiro, a continuidade da
subordinação do desenvolvimento nacional ao capital estrangeiro – o que
resultaria, sistematicamente, na continuidade do atrofiamento do capital nacional;
segundo, a incompletude da burguesia no que tange à sua capacidade de
promover a revolução que a fizesse romper com as forças conservadoras
oligárquicas dominantes desde fins do período colonial.
Nesse sentido, destacara Octavio Ianni que o que se punha era uma
ditadura da grande burguesia – a partir dos seus anseios, atrelados à preservação
da propriedade privada e acumulação privada do capital a burguesia determinou
as características do Estado ditatorial.55
A expansão de tais órgãos repressivos deveu-se, não apenas à sua
sofisticação, mas também expressou a forma particular que assumiu o Estado,
sob o domínio dos segmentos hegemônicos da burguesia, cujas características a
levaram permanentemente a se respaldarem nos militares para promoverem as
renovações necessárias ao desenvolvimento do próprio capitalismo, perpetuando
o exercício autocrático do poder.
Essa lógica não se punha apenas para o Brasil, mas para a maior parte
dos países latino-americanos e consistia na premência de se promover a
renovação do parque tecnológico e a oligopolização do capital financeiro56.
54
RAGO Filho, Antônio. “O ardil do politicismo: do bonapartismo à institucionalização da
autocracia burguesa”. In: Revista Projeto História (29), tomo 1. São Paulo: Educ,
dezembro de 2004, p.152.
55
IANNI, Octavio. A ditadura do grande capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1981, p. 1-59.
56
Consistia na criação de uma estrutura financeira pautada no controle da maior parcela
do mercado por poucas empresas, cuja efetivação ocorreu pela fusão entre as empresas,
incorporação ou mesmo eliminação por compra das empresas pequenas, gerando
31
A oligopolização atendia ao processo de concentração e centralização do
capital ante a exploração e pauperização do trabalhador – características
alicerçadoras do milagre econômico e da repressão política ditatorial.
Tal programa foi implantado pelo Ministro da Fazenda Delfim Neto, em sua
gestão ocorrida entre 1967 e 1973 e, pautava-se na redução dos custos
operacionais – e consequente processo de perda das conquistas trabalhistas –,
diminuição das elevadas taxas de juros e obtenção de vantagens produtivas e
financeiras.
Nesse sentido, o Ministro da Fazenda implantou a política de grandes
empresas e conglomerados, base da rede bancária e financeira a partir de três
fundamentos básicos: primeiro, o estímulo à concentração bancária, a partir das
fusões e incorporações de bancos comerciais privados nacionais ao longo do
milagre econômico; segundo, promoção da centralização financeira que dava
respaldo e condições para a efetivação da conglomeração do sistema; por fim, a
integração entre o capital financeiro bancário e o capital industrial, transformando
a produção industrial em ações e papéis a serem negociados nos mercados de
capitais57. Tal processo se comprovaria pela redução do número de casas
bancárias, ante as incorporações, de 188 bancos privados comerciais privados
nacionais em 1968 para 72, em 197458.
Essas características do processo de desenvolvimento brasileiro – a
subordinação nacional ao capital internacional atrelado à superexploração da
classe trabalhadora e sua consequente marginalização –, usaram grupos de
extermínio presentes na repressão, como os esquadrões da morte, para
perpetuá-lo59, bem como manter a população “calma” diante da condição de
miserabilidade constante.
62
SANTIAGO, Zeno. “A arrancada econômica do Brasil: custos sociais e
Instrumentalidade” In: Revista Dados. Publicação do Instituto Universitário de Pesquisas
do Rio de Janeiro, 1972, p. 12.
63
BICUDO, op. cit., p. 84.
34
da morte foi contínuo ao longo do final da década de 1960 e toda a década de
1970.
Os grupos de extermínio faziam o trabalho sujo e vital para manutenção da
autocracia e, por isso, foram de suma importância para a manutenção desse
processo de exclusão, pois foram “instituído como uma espécie de resposta da
Polícia à violência popular, numa demonstração pública de eficiência”64.
Para esses segmentos sociais, o cotidiano era marcado pela suspeição
constante, por prisões que, sem a comprovação de delito efetivo, caracterizavam-
se pela total irregularidade e pela submissão desses indivíduos aos
encarceramentos em condições subumanas.
64
BICUDO, op.cit., p. 32.
65 GORENDER, Jacob. Direitos humanos: o que são (ou devem ser). São Paulo:
Editora Senac, 2004, p. 64.
66
HUGGINS, 1998, op. cit., p. 185.
35
Essa elitização das questões nacionais afastava as massas populares da
condução do Estado e destruíam qualquer possibilidade de participação. A forma
de atuação do Estado não apenas feria os direitos humanos como também
demonstrava a equiparação da ditadura às vigentes em outros países latinos,
principalmente na segunda metade do século XX 67. Assim como no Brasil, no
Chile, na Argentina e no Uruguai, justificados por ideologias de Segurança
Nacional, agiram de forma a combater a presença comunista sob os auspícios da
Guerra Fria que envolveu também a preocupação com o crescimento de
movimentos sociais, resultando na criminalização das lutas sociais e a sequente
perseguição política, que se dava tanto aos tidos criminosos políticos quanto aos
contraventores penais.
Afinal, para reprimir a insatisfação popular ante as mazelas sofridas,
segundo os ditames autocratas, nada era mais assertivo do que a eliminação
sumária daquelas pessoas e a inclusão dos esquadrões da morte no aparato
repressivo do Estado. Era uma maneira de obrigar o povo a aceitar a aplicação
das medidas adotadas para o desenvolvimento do capitalismo, solucionando
possíveis movimentos de reação massiva68.
Enquanto os integrantes desses grupos de extermínio atuaram também no
aparato repressivo, o Estado buscou formas de dar legalidade 69 à liberdade
daqueles agentes, que se punham à margem da lei.
Nesta busca por legalidade, os autocratas alteraram a legislação de
diversas formas: criaram a Lei Fleury, em 1973, garantindo a liberdade dos
agentes da repressão atuantes nos esquadrões; mudaram alguns ditames quanto
à produção e uso de provas nos processos regidos pelo Código de Processo Civil;
67
Esse período tem sido objeto de debates entre os analistas, pois alguns consideram
que, dada a institucionalidade dos três poderes e de dois partidos – um deles de
oposição (MDB)-, assim como de eleições indiretas, a hegemonia dos militares configura
o autoritarismo, mas não uma ditadura propriamente dita, à semelhança de outros países
latinos americanos. Uma representante desta linha historiográfica é a historiadora Maria
Aparecida de Aquino. Para maiores esclarecimentos, ver FICO, 2004, op. cit.
68
RUDÉ, George. A Multidão na Historia. Rio de janeiro: Ed. Campus, 1991.
69
“O Princípio da Legalidade é uma das maiores garantias para os gestores frente o
poder público. Ele representa total subordinação do poder público à previsão legal, visto
que os agentes da Administração Pública devem atuar sempre conforme a lei”. Cf.
PIRES, Vitor César Freire de Carvalho. “Administração pública: Princípio da
Legalidade” In: DireitoNet. Disponível em:
http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/7643/Administracao-Publica-principio-da-
legalidade. Acesso em 20 jan. 2016.
36
promulgaram atos institucionais e os incorporaram ao texto da Constituição de
1967 e, posteriormente, na de 196970. Tratava-se do uso abusivo da legalidade.
O uso de meandros que garantissem a legalidade daquele Estado foi
demonstrado por Felipe Magane71, por meio da análise de três dispositivos e em
momentos específicos: a Lei de Abuso de Autoridade de 1965; a Lei de Anistia de
1979 e a Lei de Tortura de 1997. A primeira lei foi criada para tutelar o abuso de
autoridade e dar legitimidade para a ditadura, preocupada em dar ares
democráticos e constitucionais ao uso brutal da força. A lei de anistia, o segundo
preceito, ratificou a impunidade diante da prática da tortura, ao excluir os agentes
70
Há uma discussão entre os magistrados acerca dos ditames constitucionais de 1969,
se se tratava de nova Constituição ou uma Emenda Constitucional. Uma emenda
constitucional, de acordo com José Afonso da Silva, consiste na “modificação de certos
pontos, cuja estabilidade o legislador constituinte não considerou tão grande como outros
mais valiosos, se bem que submetida a obstáculos e formalidades mais difíceis que os
exigidos para alteração das leis ordinárias”. Ao longo dos anos de 1964 e 1969, os
militares criaram os atos institucionais. No que tangia aos quatro primeiros, eles
garantiam a ordem constitucional vigente na época e, posteriormente, foram incluídos na
Constituição de 1967. O debate sobre o caráter daquelas mudanças legais se iniciou a
partir da promulgação do Ato Institucional n° 5, pois, de acordo com os especialistas do
direito, ele representou uma sobreposição à constituição federal, às estaduais, bem como
suspendia várias garantias constitucionais. O outro momento de debate se pôs com a
promulgação da emenda n° 1, em 17 de outubro de 1969 pela Junta Militar que estava no
poder, em substituição do general Médici. Aquele ditame garantia a intensificação da
concentração do poder do Executivo e a permissão para que houvesse a substituição do
Presidente pela Junta Militar, impedindo que o vice, Pedro Aleixo, substituísse Médici.
Estabeleceu eleições indiretas para o cargo de Governador do Estado, ampliou o
mandato presidencial para cinco anos, extinguiu a imunidade dos parlamentares. Os
magistrados entendem essas mudanças por duas perspectivas: a Doutrina Minoritária,
que entende que se tratava de uma pequena alteração e não uma nova Constituição e a
Doutrina Majoritária, que se tratava de uma nova Constituição, outorgada pelos
governantes que usaram do verdadeiro Poder Constituinte Originário para fazê-lo. De
acordo com Silva, “teórica e tecnicamente, não se tratou de emenda, mas de nova
Constituição. A emenda só serviu como mecanismo de outorga, uma vez que
verdadeiramente se promulgou texto integralmente reformado, a começar pela
denominação que se lhe deu: Constituição da República Federativa do Brasil, enquanto
que a de 1967 se chamava apena de Constituição do Brasil. (...) Se convocava a
Constituinte para elaborar Constituição nova que substituiria a que estava em vigor, por
certo tem natureza de emenda constitucional, pois tem precisamente sentido de manter a
constituição emendada. Se visava destruir esta não pode ser tida como emenda, mas
como ato político”. Cf. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo.
25. ed. São Paulo. Malheiros. 2005, p.132, apud RIBEIRO, Lane. “Emenda Constitucional
ou Constituição de 1969?”. In: JusBrasil. Disponível em:
http://lany.jusbrasil.com.br/artigos/143739919/emenda-constitucional-ou-constituicao-de-
1969 Acesso em: 19 jan. 2016.
71
MAGANE, Felipe Toledo. A construção jurídica da impunidade do crime de tortura:
o legado Bonapartista da violência e o Estado democrático de direito no Brasil. São
Paulo: PUC-SP. 2012. Tese de doutorado. p. 102-110.
37
do Estado da possibilidade de punição, além de ter impedido que houvesse, no
Brasil, uma ruptura efetiva entre o período ditatorial e o democrático. E, por fim, a
lei de tortura, elaborada já no período de constitucionalidade democrática, mas
que, para o autor, é inconstitucional, ao alocar o crime de tortura na esfera do
crime comum, além do que as penas são irrisórias se comparada com as vigentes
para a prática do furto, por exemplo 72.
No caso analisado neste trabalho, o da lei Fleury, sabe-se que essa lei foi
construída e promulgada com a finalidade de colocar em liberdade os agentes do
aparato repressivo atuantes nos esquadrões da morte, bem como legalizar aquela
situação – há, portanto, indícios da juridicidade manipulatória, presente na lógica
de funcionamento do Estado. Essa juridicidade é entendida como corporativismo
militar, quando nos atemos à prática dos policiais de forjar provas, “frutos da
árvore envenenada”.
Se nos limitarmos a essa associação – forjamento de provas e
corporativismo militar – assumimos que os policiais agiam com desvio de conduta
ao forjarem tais provas e assim como parte da historiografia, os
responsabilizamos por tais práticas. Todavia, ao ampliarmos a discussão,
estabelecendo o diálogo com o direito, é possível notar que a juridicidade militar
estava entranhada na lógica do Estado e que aqueles policiais não se tratavam de
transgressores da norma, mas sim, cumpridores da norma.
Apesar dos inúmeros trabalhos sobre a problemática da repressão, tortura
e ditadura militar73, as questões especificamente envolvendo a atuação dos
esquadrões da morte não são um assunto muito trabalhado na historiografia
brasileira, menos ainda vínculos que o analisam no interior da lógica da
perseguição política.
72
Idem, p. 102-145.
73
Sobre tortura ver ALVARES, Delaine de Sousa Silva. Lê Monde e a tortura no
período Médici. São Carlos: UFSCar, 1999. Mestrado em Sociologia; FREIRE, Camila
Pimentel. As marcas da tortura engendrada pela ditadura militar brasileira. Rio de
Janeiro: UFRJ, 2007. Mestrado; PRADO, Larissa Brisola Brito. Estado democrático e
políticas de reparação no Brasil: tortura, desaparecimentos e mortes no regime militar.
UNICAMP, 2004: Mestrado. Sobre a repressão, ver ANSARA, Soraia. Memória Política
da ditadura militar e repressão no Brasil: uma abordagem psicopolítica. PUC-SP,
2005. Mestrado; MACHADO, Cátia da Conceição Faria. Revolucionários, bandidos e
marginais: presos políticos e comuns sob a ditadura. Niterói: UFF, 2005. Mestrado.
38
Nos últimos anos, viemos acompanhando os trabalhos produzidos acerca
dos esquadrões da morte e, paulatinamente, esse tema vem ganhando o
interesse dos pesquisadores das diversas áreas. Acreditamos que isso tenha se
dado pela constante aparição de casos “semelhantes” na nossa atualidade, o que
torna nosso objeto de estudos cada vez mais atual, sem anacronismos.
Os enfoques, perspectivas e análises feitas são diversos. Das leituras
realizadas, os trabalhos produzidos pelo Dr. Hélio Bicudo merecem destaque,
dada a ligação visualizada dos esquadrões da morte com a lógica da repressão
política. Como membro do Ministério Público Paulista, Bicudo trabalhou durante
anos, na formulação de processos e denúncia dos esquadrões da morte que
atuavam em São Paulo ao Ministério Público. Após sua destituição desta função,
em clara medida política tomada pelo Estado, ele continuou a denunciar tais
mazelas tanto através de processos jurídicos, quanto no decorrer de seus estudos
sobre o tema, revelando o grau de omissão do Ministério Público e das
instituições governamentais, estaduais e federais, em agir contra os grupos de
extermínio espalhados por todo o Brasil, perpetuando a letalidade do nosso
bonapartismo.
O nascimento dos esquadrões da morte, conforme Martha Huggins,
coincidiu com a expansão do programa de treinamento policial americano.
Embora trabalhe em uma linha distinta da de Bicudo, essa autora aponta ainda
que a promulgação do AI-5 dificultou que as denúncias chegassem até os órgãos
internacionais e principalmente à mídia americana, mantendo-se a “sete chaves”
a ajuda que esta dava para o (e no) treinamento de policiais. Ela também aponta
que a promulgação do ato referido coincide com o segundo momento de maior
ajuda financeira para o Brasil, 1969-1970, tendo sido o primeiro entre 1963-1964,
logo depois da instituição do governo militar. Tal conjuntura e sigilo sobre as
práticas de tortura impediram que houvesse qualquer cerceamento às relações
internacionais do Brasil durante o bonapartismo.
Alguns autores situam a prática dos esquadrões da morte no campo da
discussão acerca da “limpeza social”, entendendo que tais grupos, ao longo de
sua existência, estiveram diretamente ligados ao combate ao contraventor penal
39
como pontua Diego Oliveira Souza74 e Marcia Regina Costa75, em seus
respectivos trabalhos. A pesquisadora ainda destaca a atuação dos policiais dos
esquadrões na repressão política, mas não a desenvolve por entender que eram
casos isolados.
As implicações da militarização da polícia militar na produção de um
contexto no qual mecanismos oficiais e oficiosos podem conferir “legitimidade” e
“legalidade” a práticas abusivas e ilegítimas praticadas por seus agentes foi objeto
da tese de Vanda de Aguiar Valadão76. Essa autora também chega muito próximo
à temática dos esquadrões da morte, mas não o aborda. Ela demonstrou que as
práticas violentas e corruptas de agentes policiais militares refletem o
autoritarismo socialmente implantado na sociedade, mas sua persistência se
ampara nas características organizacionais e de funcionamento interno dessas
agências policiais e na legislação que regulamenta o exercício da função policial
militar.
Próximo a essa perspectiva, o Núcleo de Estudos da Violência (NEVE) da
Universidade de São Paulo tem desenvolvido grande trabalho quanto à análise da
violência no Brasil, bem como direcionado a construção das políticas públicas
sobre esse problema. No que tange à ação dos Esquadrões da Morte, a análise
deles muito se aproxima da nossa, dado o reconhecimento da integração dos
grupos de extermínio ao aparato repressivo, que garantia a eles imunidade
advinda do Estado, impunidade e a continuidade das matanças. Todavia, o
“NEVE” atribui essa escalada da violência a uma “cultura” desenvolvida nas
corporações policiais ao longo da sua existência, potencializada na ditadura e
continuada na democracia, dissociando, assim, o Estado da responsabilidade
efetiva pela violência perpetuada cotidianamente contra sua população mais
pobre. Quanto à continuidade dessa violência em momentos democráticos ou
ditatoriais, eles a associam à permanência do modelo imbricados no âmbito
policial, enquanto nós a entendemos como uma dada forma de ser do Estado,
pautado seu viés autocrático burguês bonapartista.
74
SOUZA,2014, op. cit.
75
COSTA, Márcia Regina. “1968: O esquadrão da morte em São Paulo” In: SILVA, Ana
Amélia da e CHAIA, Miguel (orgs.). Sociedade, Cultura e política: Ensaios críticos. São
Paulo: EDUC, 2004;
76
VALADÃO, Vanda de Aguiar. Implicações para as práticas policiais. Rio de Janeiro:
UFRJ, 2004 – Doutorado.
40
A defesa que policiais faziam do Esquadrão da Morte, no início dos
anos 70, revelava como se cultivou profundamente no interior da
instituição policial a simpatia pelas ações ilegais, pelas execuções
sumárias, que acabaram se tornando um problema crônico na vida das
corporações policiais mesmo depois da volta do país à normalidade
democrática. Assim, o combate à criminalidade não era encarado como
resultado de um trabalho eficaz da Polícia no âmbito da prevenção, da
repressão dentro do marco legal, de investigação através de trabalho de
perícia. Para muitos policiais a ação do Esquadrão da Morte era a
“única forma de impedir o aumento do índice de criminalidade”, “a
sociedade nada perde com as execuções, muito pelo contrário”77.
77
Cf. ALVAREZ, Marcos; SALLA, Fernando e SOUZA, Luiz Antônio. Construção das
políticas de segurança pública e o sentido da punição. São Paulo (1822-2000). São
Paulo: Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, 2004, p. 54-63.
78
SOUZA, Percival. Autopsia do Medo: vida e morte do delegado Sérgio Paranhos
Fleury, São Paulo: Globo, 2000.
79
ONODERA, Iwi Mina. Estado e violência: um estudo sobre o massacre do Carandiru.
São Paulo: PUC-SP, 2007 – Mestrado.
41
“cultura policial”80 – pautada na premissa de que a percepção subjetiva do policial
sobre o mundo é o fato gerador da violência, da desconfiança à sociedade, da
solidariedade entre os policiais, da corrupção policial, da guarda da informação 81.
84
PINHEIRO, Paulo Sérgio. “Violência do Estado e Classes Populares” In: Revista
Dados. Publicação do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, n. 22, 1979,
p. 05.
85
O autor analisa o princípio da não-contradição da lei no Estado Democrático de Direito
a partir das proposições de Hannah Arendt. Para maiores informações, ver PAMPLONA,
Gustavo. “Crime Político no Estado Democrático de Direito: o nocrim a partir de Hannah
Arendt” In: Revista MPMG Jurídico, n.18, out./nov./dez.2009.
86
Para maiores informações, ver BATISTA, Nilo. Introdução à crítica ao Direito Penal
Brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2001, pp. 32-3.
43
sociedade87. Nesta perspectiva, o indivíduo que se recusa a aceitar o status de
cidadão não deve ser tratado como pessoa, mas sim como um inimigo, não
devendo, consequentemente, gozar de direitos processuais, uma vez que não é
mais considerado um sujeito processual88, dotado de direitos fundamentais. Esses
princípios, se analisados na conjuntura brasileira, evidenciam a caracterização
dos indivíduos, socialmente excluídos, com a “tarja” de inimigos, legitimando,
dessa forma, a violência do Estado e diminuindo sua pecha negativa ante a
atuação brutal dos esquadrões da morte – afinal, a esses indivíduos toda coação
física era necessária e justificada.
Se a bibliografia pouco se debruçou sobre a análise dos grupos de
extermínio e a sua vinculação ao Sistema de Segurança Nacional, Sistema
Repressivo e a Doutrina da Guerra Revolucionária produzida pela Escola
Francesa, o volume documental que aponta para tal tese é significativo. Apenas
no Arquivo do Estado de São Paulo, situado na zona norte de São Paulo, do
Arquivo pessoal do Dr. Hélio Bicudo, doado para a biblioteca da PUC-SP e os
processos, cedidos também pelo jurista, o número de documentos é enorme.
No arquivo do Estado, seção DOPS, cerca de 50% de todo o material
encontrado está microfilmado. Esses documentos apontam citações sobre os
esquadrões da morte em jornais, transcrições de entrevistas ou noticiários feitos
por meio do rádio, policiais acusados de participação nos esquadrões da morte,
torturas realizadas, ofícios expedidos pela SNI, panfletos feitos, denúncias contra
Sérgio Fleury. Também apontam os trâmites e a morosidade em julgamentos de
envolvidos com tais esquadrões, como é o caso do de Sérgio Fleury. A partir das
notícias, tanto pelo relato de fatos, quanto pelos editoriais e comentaristas, pode-
se refletir sobre a luta contra os esquadrões, o apoio de entidades à violência
policial, o financiamento de comerciantes, a ligação destes com o tráfico de
drogas, o uso destes grupos pelo Estado para manter o controle da efervescência
social. A análise do conteúdo desta documentação exige um tratamento próprio,
pois é material produzido pelos próprios agentes policiais (civis e militares). Estes
87
GUNTHER, Jakobs. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2007, p. 42.
88
Idem, p. 28-9.
44
documentos foram adquiridos a partir da indicação em 103 fichas, contendo 142
documentos, alocados em torno de 130 pastas diferentes.
Os jornais ainda não microfilmados estão acondicionados em pastas
individuais, separados por mês, em péssimo estado de conservação,
praticamente se desfazendo ao serem manuseados. Encontram-se, nestas pastas
também, jornais diversos, de todo o país, que apontam a atuação de esquadrões
da morte em diversos Estados brasileiros, como Rio de Janeiro, São Paulo,
Paraná, Espírito Santo, Paraíba, Pernambuco e Alagoas.
Também tivemos acesso aos documentos disponibilizados pelo Dr. Hélio
Bicudo, tanto em suas obras quanto nos que estavam guardados em sua
residência. São documentos do Poder Judiciário e do Ministério Público do Estado
de São Paulo, que compõem os processos formulados por ele na época. A
riqueza desse material é incomensurável, dada a possibilidade de reconstruir
aquele momento histórico, tendo em vista que apresentam o cotidiano do
Judiciário no trato aos esquadrões da morte. No entanto, como já o tínhamos
analisado, bem como o utilizamos apuradamente ao longo do mestrado, optamos
por deixá-los em segundo plano nesse momento, mas sem deixar de retornar a
eles quando as lacunas emergidas poderiam ser preenchidas por esse material.
Os documentos reunidos por Hélio Bicudo ao longo da sua história como
no aparelho judiciário brasileiro e que foram cedidos para o acervo Hélio Bicudo,
da PUC-SP, tiveram sua organização mantida como havia feito seu proprietário,
distribuídas em pastas, em ordem cronológica e composta por diversas
publicações feitas ao longo dos anos de 1968 a 1980. São oriundas de meios
diversos, desde a construção de um filme sobre os esquadrões até recortes de
jornais cotidianos – e este último compõe a maioria do material.
A partir de toda a documentação analisada e algumas obras produzidas,
pudemos visualizar a existência de esquadrões da morte em quase todos os
Estados da Federação. Notamos também que em alguns Estados, tais como São
Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo, os grupos de extermínio tiveram maior
destaque, dada a quantidade de pessoas que eles assassinaram, o que gerou
também uma maior quantidade de documentos e, por isso, estes três estados
apareceram bastante em nosso trabalho. No entanto, as práticas realizadas por
esses grupos serão também analisadas – menos apuradamente, tendo em vista a
45
pequena quantidade de documentos a que tivemos acesso – nos estados da
Paraíba, Alagoas, Minas Gerais, Paraná, Sergipe e Pernambuco.
Ao longo deste trabalho, buscamos respeitar as informações em sua
integralidade, partindo do procedimento analítico da imanência. Dessa forma,
buscamos não atribuir significados a priori às nossas fontes documentais,
possibilitando que os nexos constitutivos que revelam a dinâmica social na sua
concretude viessem à tona despidos de pressupostos e prerrogativas. Como
pontua José Chasin,
89
CHASIN, José. Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica. São Paulo:
Boitempo, 2009, p. 84-5.
46
configuração autocrata”, buscamos entender as bases da excludência na
configuração autocrata que deram margem à emergência de grupos de extermínio
ao longo da história. Assim, analisamos o papel das teorias raciológicas e como
elas deram embasamento para a escolha das vítimas dos grupos de extermínio;
analisamos as formas de repressão na cidade e como elas se consolidaram
através da segregação do espaço urbano, principalmente nos anos em que
ocorria a industrialização. A repressão aos movimentos sociais no campo também
foi aqui analisada através do resgate dos movimentos sociais do nordeste
brasileiro, como Canudos, do Sítio Caldeirão, o Cangaço, as Ligas Camponesas e
do sul do país com a Guerra do Contestado, demonstrando que a repressão
autocrática se punha desde o início da República e tinha ligação direta com a
forma de desenvolvimento do capitalismo no Brasil, a “via colonial”. Por fim,
apuramos como as doutrinas oriundas dos EUA e da Escola Francesa
consolidaram a violência do Estado.
No capítulo 2 “Modus operandi dos esquadrões da morte: uma instituição
nacional a serviço da autocracia burguesa bonapartista”, apresentamos os
esquadrões da morte e buscamos demonstrar a sua articulação nacional através
da semelhança entre as práticas perpetuadas em todos os estados em que eles
atuaram. Assim, analisamos seu modus operandi, tais como as execuções
sumárias, as mortes sob custódia do Estado, a formação dos cemitérios
clandestinos e os Relações-Públicas.
Ao longo do terceiro capítulo, “”Os intocáveis”: esquadrões da morte na
repressão política””, analisamos a vinculação dos esquadrões com o aparato
repressivo. Para isso, retomamos o desenvolvimento da rede de vigilância em
meados de 1920 até sua transformação em um Sistema de Segurança Nacional
em 1950, bem como seu auge ao longo da autocracia bonapartista e o papel
desempenhado pelos grupos de extermínio naquela articulação. Buscamos
entender a quais demandas os esquadrões atendiam ante o cunho classista do
Estado e compreender como as práticas de tortura e os espaços em que elas
ocorriam abarcavam tanto contraventores penais quanto indivíduos de
organizações políticas, não havendo assim, distinção no trato a eles.
No capítulo 4 “O uso abusivo da legalidade”, buscamos compreender como
a autocracia bonapartista tornou legal suas práticas ilegais a partir dos três
47
julgamentos ocorridos ao longo da década de 1970 contra os agentes da
repressão atuantes nos esquadrões da morte. Aqui analisamos a Lei Fleury e
como ela garantia a legalidade da liberdade daqueles policiais; a coação aos
membros do Judiciário, tanto verbal quanto através dos Atos Institucionais e, por
fim, o afastamento dos juízes de modo a garantir a liberdade daqueles policiais.
Também apuramos o retorno da responsabilidade sobre os esquadrões para a
esfera dos estados.
No capítulo 5 “A juridicidade manipulatória e os frutos da árvore
envenenada: formas de perpetuação da impunidade”, analisamos as práticas
policiais no que tange ao forjamento de provas, que garantiam a impunidade dos
agentes atuantes nos esquadrões da morte e como elas aparentavam tratar-se de
puro corporativismo militar, mas que, na verdade, estavam dentro da dinâmica da
juridicidade e, assim, entranhada na lógica do Estado. Também apuramos como a
teoria dos “Frutos da Árvore Envenenada” foi aplicada e deturpada a serviço
daquela autocracia.
Por fim, o capítulo 6, “Construções e desconstruções: o papel da opinião
pública”. Aqui analisamos como a opinião pública atuou ao longo da década de
1970 ante as execuções realizadas pelos esquadrões. Na primeira parte,
apuramos a ligação do viés favorável da opinião pública ao desenvolvimento do
milagre econômico; e na segunda parte, o viés desaprovador delas e seu vínculo
com a crise do milagre e o processo de abertura política. Nesse momento,
também apuramos por que a morte do delegado Fleury foi estratégica.
48
Capítulo 1
Esquadrões da morte e as bases da excludência na configuração
autocrata
90
De maneira geral, grupos paramilitares são “grupos armados que están directa o
indirectamente com el Estado y sus agentes locales, conformados por el Estado o
tolerados por éste, pero que se encuentran por fuera de su estructura formal”. KALYVAS,
Stathis; ARJONA, Ana. “Paramilitarismo: una perspectiva teórica”. In: TOBON, William
Ramírez (org.). El poder paramilitar. Editora Planeta, (s/d), p. 29.
91
Cf. MATTOS, Vanessa de. O Estado contra o povo: a atuação dos esquadrões da
morte em São Paulo (1968 a 1972). PUC-SP, 2011. Dissertação de mestrado.
92
COSTA, Márcia Regina. “1968: O esquadrão da morte em São Paulo”. In: SILVA, Ana
Amélia da e CHAIA, Miguel (orgs.). Sociedade, Cultura e política: ensaios críticos. São
Paulo: EDUC, 2004, p. 371.
49
Foi o General Amaury Kruel, então chefe da polícia do Rio de Janeiro,
quem recebeu a ordem de criar o Grupo de Diligências Especiais, como apontou
o Jornal Notícias Populares. Na prática, era uma “tropa de choque subordinada
diretamente ao seu gabinete”93. Atendendo ao pedido do general que, por sua
vez, respondia aos anseios da classe hegemônica da burguesia carioca, foi criado
o primeiro esquadrão da morte no Rio de Janeiro com a supervisão do detetive
Eurípedes Malta94.
93
"Violência no Rio é pior que Chicago nos anos 30". Notícias populares. DOPS.
06/03/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - 1978 - esquadrão
da morte.
94
COSTA, 2004, op. cit., p. 371.
95
BARBOSA, Adriano. Esquadrão da morte, um mal necessário? São Paulo:
Mandarino, 1971, p. 31.
96
Os segmentos hegemônicos da burguesia são os que estão apoiadas no capital
internacional, bem como subordinados a ele, são estes “industriais, banqueiros,
comerciantes, proprietários de meios de comunicação” entre outros. Apenas essa parcela
da burguesia tem suas demandas representadas no Estado. Os demais segmentos
dessa classe social não têm acesso ao Estado. Tal distinção representa um dos fatores
para a fragilidade da burguesia. Assim, usaremos esta terminologia para representar a
parcela daquele segmento social. No trabalho desenvolvido pelo historiador Marcelo
Squinca, essas contradições e interesses particulares das classes burguesas foram
explicitadas na construção de um modelo para o setor elétrico brasileiro entre os anos
1950 e 1960, além de deixar clara a dimensão dos embates e fragilidades dentro delas.
SILVA, Marcelo Squinca. Energia elétrica: estatização e desenvolvimento (1956-1967).
São Paulo: Alameda, 2011.
50
autocracia burguesa institucionalizada97 – veja-se que a atuação desses grupos
pode ser observada até os anos de 199698, o que denota que a configuração do
Estado brasileiro, pautado no uso da violência para controle da população, não é
uma característica de um ou outro tipo de governo, mas faz parte da própria forma
do ser, autocrática bonapartista burguesa e, nesse sentido, a função social dos
esquadrões é permanente, respondendo aos anseios dos segmentos
hegemônicos da burguesia em prol da preservação da propriedade privada.
Ao longo do período da autocracia bonapartista, forma de expressão da
dominação burguesa em tempos de guerra99, o uso da violência do Estado contra
os segmentos sociais que lutavam pelo acesso aos bens produzidos
coletivamente se radicalizou. Assim, desde o final de 1960 e ao longo da década
de 1970, a prática dos esquadrões da morte tornou-se rotineira e, nesse período,
praticamente, recebeu a adesão da imprensa que ajudava na consolidação do
senso comum de que se tratava da efetivação de uma “limpeza social” 100, ante o
aumento da criminalidade já em curso naqueles anos, tópico que analisaremos ao
longo deste capítulo. Tal postura vai se alterar quando as ações dos esquadrões
atingirem pessoas integrantes de setores das classes médias, em fins da década
de 1970, conforme veremos no capítulo 6 deste trabalho.
A classificação dos indivíduos com o estigma de “marginais” era prática
efetuada pela mídia e pelo Estado, expressando os anseios de determinados
segmentos sociais formadores de opinião pública, justificando-se, assim, tais
execuções, o que já vem sendo discutido pelas ciências humanas101. Entre as
97
CHASIN, José. Hasta Cuando? A propósito das eleições de novembro. Nova Escrita
Ensaio. São Paulo, Escrita, 1982, p. 11 apud ASSUNÇÃO, Vânia Noeli Ferreira.
Pandemônio de Infâmias: classes sociais, Estado e política nos estudos de Marx sobre
o Bonapartismo. São Paulo: PUC-SP, 2005 (Tese de doutorado em história), p. 326.
98
MAJELLA, Geraldo de. Execuções sumárias e grupos de extermínio em Alagoas.
Maceió: EDUFAL, 2006.
99
CHASIN, 1982, p. 11, apud ASSUNÇÃO, 2005, op. cit., p. 326.
100
A limpeza social consistia em eliminar fisicamente os indivíduos que não tinham
acesso ao desenvolvimento do capitalismo brasileiro oriundo do milagre econômico
existente ao longo da década de 1970 e que contestavam a inacessibilidade desse
desenvolvimento. Desta forma, a limpeza social era o mote de perpetuação dos anseios
dos segmentos burgueses dominantes em busca da proteção do seu status quo e da
propriedade privada. Cf. MATTOS, 2011, op. cit.
101
Inúmeros pesquisadores já se debruçaram sobre esse tema, entre eles podemos
destacar os trabalhos de: Bensaid, Daniel Os irredutíveis. Teoremas da resistência para
o tempo presente. São Paulo, Boitempo, 2008; MENDES ALMEIDA, Angela de,
"Violência e cordialidade no Brasil", Estudos - Sociedade e Agricultura, (EDUR), Rio de
51
inúmeras controvérsias sobre o termo, infelizmente “acostumou-se” a caracterizar
tal segmento da população a partir da premissa de que “(é) constituído pelos que
se encontram em situação de desemprego, subemprego ou pobreza”102 e, assim,
mais propícios à marginalidade, como apontou o sociólogo Edmundo Campos
Coelho.
No entanto, após uma apurada análise sobre os indicadores e as
perspectivas que levavam a essa associação, o sociólogo pontua que tal ideário
resultava em uma “subcultura” que teorizava sobre a violência partindo do
pressuposto de que o local de residência, no caso as periferias, geravam,
necessariamente, o criminoso. Todavia, não é a pobreza que gera criminalidade,
mas sim os mecanismos classificatórios utilizados pelos poderes públicos e seus
agentes – no caso, as policiais - que permitem elaborar tal subcultura,
penalizando assim, pela segunda vez, pessoas com pouco ou nenhum poder
aquisitivo, pois consideradas marginais.
Essa subcultura permeava a aplicação desses estereótipos pela polícia,
que associava a criminalidade à marginalidade, acreditando que “os indivíduos de
status socioeconômico baixo são aqueles que mais se ajustam a estes
estereótipos, são eles que constituem os alvos por excelência da ação policial,
seja esta o mero uso da violência ou a detenção”103.
Para ratificar essa construção, ainda segundo o autor, estatísticas oficiais
foram elaboradas por meio de dados parciais, como por exemplo, os boletins de
104
Cf. COELHO, 1978, op. cit., p. 155.
105
Idem, p.159.
53
Assim, a imunização institucional de determinados segmentos de classe se
puseram como uma resposta política do Estado a outros segmentos que eram
duplamente marginalizados, pois eram criminalizados, como constata Coelho.
Tal postura se observa também no julgamento institucional e na opinião
pública relativa às práticas dos esquadrões da morte, pois conforme veremos,
quando suas ações chegaram aos bairros de classe média alta, extrapolando os
limites dos bairros pobres e praticamente sem infraestrutura urbana, as barbáries
praticadas pelos esquadrões passaram a ser contestadas pela mídia e
condenadas pela opinião pública – evidências a serem trabalhadas no capítulo 6.
A tipificação do crime e do criminoso, portanto, seguia a distinção de
classes vigente na sociedade e o privilégio conferido a determinados segmentos
sociais, a partir dos anseios representados no Estado, conforme enfatiza Maria
Orlanda Pinassi. No presente tema, trata-se das evidências de tais diferenças no
trato do sistema penal simplificada nas frases: “bandidos-que-vão para a cadeia e
os “bandidos-que-não-vão-para a cadeia”, onde para os primeiros, “o trabalho
desenvolvido no interior da atividade criminosa constitui um meio de reproduzir as
condições de sua vida” e para os últimos,
106
PINASSI, Maria Orlanda. No mundo do capital, a ocasião faz o ladrão. Margem
Esquerda – Ensaios Marxistas, nº 8, São Paulo, Boitempo, 2006, p. 47.
54
sido habilmente regulada – controlada por um plano, regras e procedimentos e
supervisionada por um policial superior “racional” e “treinado”107.
Isso se põe ao notarmos que os indivíduos executados, nos primeiros anos
de atuação desses grupos de extermínio, eram pessoas que integravam os
segmentos mais pobres, negros e brancos, moradores de bairros periféricos e de
favelas dos grandes centros urbanos108. Na medida em que a autocracia
bonapartista aprofundava sua repressão social, o preceito “marginal” se estendia
àqueles que eram tachados de subversivos, abarcando qualquer indivíduo que
contestasse as práticas repressivas ou as vozes críticas à ditadura.
Assim, se os esquadrões emergiram na década de 1950 com a finalidade
da “limpeza social” vinculada aos suspeitos de praticarem ações contra o código
penal, ao longo do período bonapartista, sua atuação foi ampliada, ocorrendo
também na perseguição política na lógica ditatorial.
107
HUGGINS, Martha K. Operários da violência: policiais torturados e assassinos
reconstroem as atrocidades brasileiras. Brasília: Editora Universidade Brasília, 2006, p.
357.
108
A partir da década de 1990, a condição de vida nos bairros periféricos da cidade de
São Paulo tornou-se mais cara tendo em vista a legalização dos lotes após a pressão dos
movimentos sociais e a expansão do lucrativo sistema de transporte. Esses fatores
levaram ao encarecimento do acesso a essas localidades, obrigando muitas famílias a
migrarem para locais ainda mais distantes, ocupando terrenos que ainda não passavam
por esse processo. Assim, é possível estabelecer a distinção entre bairro periférico e
favela – o primeiro se trata de áreas que passaram por processo de regularização das
prefeituras; o segundo, são locais extremamente afastados dos grandes centros, sem
regularização e, em consequência, sem acesso a qualquer tipo de benfeitoria pública. Cf.
CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em
São Paulo. São Paulo: ed. 34/Edusp, 2000.
55
1.1.1. As teorias raciológicas
109
Constituição Política do Império do Brasil, 25 de março de 1824, outorgada por D.
Pedro I. Ver informações disponíveis em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao24.html;
http://www.sinprofaz.org.br/artigos/a-escravidao-no-imperio-do-brasil-perspectivas-
juridicas/pagina-2. Acesso em 21 set. 2015.
56
No período republicano, a Constituição de 1891110 ampliou o direito ao
título de cidadão para todos os indivíduos que se enquadrassem no artigo 69, que
rezava:
110
Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 24 de
fevereiro de 1891. Informações disponíveis em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao91.htm. Acesso em: 21 set.
2015.
111
Idem.
112
Ibidem.
57
eliminar o eleitor"113, motivo pelo qual "os representantes do povo não
representavam ninguém, os representados não existiam, o ato de votar era uma
operação de capangagem"114.
Tal exclusão foi justificada pela retórica da ameaça de instabilidade política
trazida pelos primeiros anos republicanos, em especial nos centros urbanos
maiores, onde as manifestações, em praça pública, reuniam mais pessoas. Essa
premissa foi o motivo para que os velhos aristocratas e os novos burgueses,
donos do dinheiro e com acesso ao poder, impusessem a redução do nível de
participação popular. Continuamente, o que se via era a exclusão dos segmentos
sociais mais pobres bem como sua criminalização.
Essa exclusão da população das decisões do Estado mantinha-os à
margem do acesso aos direitos básicos, que os possibilitaria ter uma vida melhor.
Em consonância, desde o início do século XX, para garantir que movimentos
contestatórios ocorressem, paulatinamente houve a ampliação da repressão em
todas as esferas da vida, inclusive com a eliminação física, perpetradas nas
zonas rurais por jagunços e capangas, cuja função social era reproduzida pelos
esquadrões a partir da década de 1950, como vimos anteriormente.
Um exemplo disso são os grupos armados formados por jagunços em
Alagoas em cuja base estava o coronelismo e a apropriação das instituições
públicas locais para benefício privado, típico dos proprietários de terras, fato
ratificado por Majella, ao destacar que “assim, as instituições públicas atendiam
aos interesses privados dos latifundiários e, dentre elas, a policial era considerada
essencial para o controle econômico e político”115, desde o início do século XX.
Tais proposições também serão justificadas cientificamente, através das
teses geneticistas. Elas foram produzidas na Europa ao longo da segunda metade
do século XIX, tendo chegado ao Brasil no início do XX quando foram
113
Para maiores esclarecimentos, ver PATTO, Maria Helena Souza. “Estado, ciência e
política na Primeira República: a desqualificação dos pobres” In: Estudos Avançados.
vol.13, n.35. São Paulo, jan./apr. 1999. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-
40141999000100017&script=sci_arttext&tlng=en. Acesso em: 02 ago. 2010.
114
Idem.
115
MAJELLA, Geraldo de. Execuções sumárias e grupos de extermínio em Alagoas.
Maceió: EDUFAL, 2006, p. 22.
58
amplamente aplicadas e discutidas, dando embasamento para as campanhas
higienistas.
Essas teses eram oriundas das teorias raciológicas em suas diversas
perspectivas e pautavam-se nos estudos anatômicos e craniológicos que
buscaram responder às indagações sobre a diferença entre os homens. Esse é o
caso dos estudos desenvolvidos por pensadores, como Retzius,116 Pierre Borca117
e Quatrefages118 que se pautavam em métodos ditos científicos em um momento
em que o positivismo 119 tornava-se hegemônico, potencializando, dessa maneira,
suas teses por meio da confirmação empírica dos argumentos teóricos120.
Sobre a mestiçagem, os pesquisadores Gobineau121 e Agassiz122 tiveram
grande destaque já que foram influências diretas para os teóricos brasileiros, tais
como Nina Rodrigues123, Sílvio Romero124 e Euclides da Cunha125 – precursores
das ciências sociais no Brasil. Eles mostraram a questão racial formulada com um
contorno altamente racista, inclusive incorporando outras teorias, como o
116
Antropólogo e anatomista sueco que desenvolveu uma técnica de medição de crânios
em 1842.
117
Fundador da primeira sociedade de Antropologia, em 1959, em Paris, e também se
especializou em cranologia.
118
Professor de anatomia e etnologia no Museu de História Nacional de Paris, em 1855.
119
O positivismo, grosso modo, foi uma corrente filosófica e sociológica do século XIX
que defendia a ideia de que o conhecimento científico é a única forma de conhecimento
verdadeiro. Fundada por Augusto Comte, os positivistas propunham que, uma teoria só
poderia ser correta se ela fosse comprovada cientificamente. Cf: BOURDÉ, Guy e
MARTIN, Hervé. As escolas históricas. São Paulo: Europa/América, 1983.
120
Na obra em questão, o sociólogo Renato Ortiz busca retomar as diferentes maneiras
como a identidade nacional e a cultura brasileira foram entendidas ao longo da história,
bem como entendê-las no seio da sociedade atual, que se organiza distintamente a do
passado. Nesse sentido, o autor é enfático em afirmar que tais problemáticas estão
inseridas no campo da política, pois a identidade nacional está ligada a uma
reinterpretação do popular pelos grupos sociais e a construção do Estado brasileiro. A
identidade é uma construção simbólica, onde não existe autenticidade, mas sim, uma
pluralidade de identidades construída por diferentes grupos sociais em diferentes
momentos históricos. Cf. ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São
Paulo: Brasiliense, 1994, pp. 7-35.
121
Joseph Arthur de Gobineau (1816-1882), diplomata, escritor e filosofo francês.
122
Jean Louis Rodolphe Agassiz (1807-1873), zoólogo e geólogo suíço.
123
Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), médico legista, psiquiatra e antropólogo
brasileiro.
124
Sílvio Vasconcelos da Silveira Ramos Romero (1851-1914), advogado, jornalista,
crítico literário, ensaísta, poeta, historiador, filósofo, cientista político, sociólogo, escritor,
professor e político brasileiro.
125
Euclides Rodrigues da Cunha (1866-1909), engenheiro, militar, físico, naturalista,
jornalista, geólogo, geógrafo, botânico, zoólogo, hidrógrafo, historiador, sociólogo,
professor, filósofo, poeta, romancista, ensaísta e escritor brasileiro.
59
positivismo de Comte, o darwinismo social e o evolucionismo de Spencer 126, tidos
como bases para entendimento da evolução histórica dos povos.
Na perspectiva do evolucionismo, o desenvolvimento da nossa identidade
nacional foi colocado em posição de inferioridade ao ser comparada com a cultura
europeia, cabendo aos nossos intelectuais explicarem esse “atraso” – e o fizeram
a partir dos estudos sobre o “caráter nacional” no interior da formação do Estado
nacional. Todavia, à medida que nossa realidade se distanciava da europeia,
outras teorias passaram a ser vistas como necessárias para entender o atraso de
nosso país e, para entendê-la, os intelectuais buscaram argumentos nas noções
de “meio e raça”, parâmetros dos intelectuais brasileiros no fim do XIX e começo
do XX, marca da produção de Euclides da Cunha em “Os Sertões”127, de Silvio
Romero128 e de Nina Rodrigues.129 Nesse sentido, as características geográficas
determinavam e esclareciam a realidade política e econômica do país.
126
Buscava um nexo entre as diferentes sociedades humanas ao longo da história,
entendendo que elas partiam do simples (povos primitivos), evoluindo naturalmente para
o complexo (sociedades ocidentais) e procurando estabelecer as leis que permeavam
esse processo. Pelo viés político, o evolucionismo possibilitaria à elite europeia uma
tomada de consciência de seu poder consolidado com a expansão mundial do
capitalismo. Ideologicamente, legitimava-se a posição hegemônica do mundo ocidental,
sendo sua superioridade justificada pelas leis naturais que orientavam a história dos
povos. Cf. ORTIZ, 1994, op. cit., p. 14-5.
127
Na obra citada, ver capítulo sobre a Terra e o Homem. CUNHA, Euclides da. Os
Sertões. Rio de Janeiro: Ed. Ouro.
128
O autor, ao estudar o folclore, dividiu o povo brasileiro em habitantes das matas, das
praias e margens de rio, sertões e das cidades. ROMERO, Silvio. Cantos populares no
Brasil. Rio de Janeiro: José Olpympio, 1954.
129
O autor, em sua análise sobre o direito penal brasileiro, vinculou as características
psíquicas do homem e sua dependência em relação ao meio ambiente. RODRIGUES,
Nina. As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil. Rio de Janeiro: Ed.
Guanabara, s.d.p.
130
Cf. ORTIZ, 1994, op.cit. p. 16.
131
O historiador inglês Buckle, ao tentar analisar o desenvolvimento das nações –
comparando o caso brasileiro ao europeu -, vincula o desenvolvimento aos fatores
60
o autor inglês, mas por razões pontuais: por seus exageros e por desconhecer o
Brasil. De modo geral, a essência do pensamento exterior permaneceu nos
estudos brasileiros, mesmo que os contextos sejam amplamente diversos.
Nesses estudos, a problemática da raça era tida como mais abrangente,
tanto que Sílvio Romero considerava que ela era a “base fundamental de toda a
história, de toda política, de toda estrutura social, de toda a vida estética e moral
das nações”132 – a política de imigração do final do XIX veio reforçar essa
questão. Nesse sentido, os escritores se debruçaram sobre o indígena a partir de
reflexões superficiais e pouco esclarecedoras. No caso do romantismo de
Gonçalves Dias e José de Alencar, ambos estavam preocupados em criar uma
visão do índio civilizado, despido de características reais, mas sem apreendê-lo
em sua concretude. As populações africanas, por sua vez, passaram a ser
tratadas a partir do fim da escravidão, pois até aquele momento sua existência
era tida como um “longo silêncio sobre as etnias negras que povoaram o
Brasil”133, passando a ser “vistas” quando entraram na nova dinâmica econômica,
momento em que as populações africanas ganharam maior importância nos
escritos de Nina Rodrigues e Sílvio Romero em comparação ao índio.
A questão da raça também estava atrelada à ideia de superioridade do
branco sobre os demais, pressuposto apontando por Sílvio Romero ao analisar a
figura do português; em Euclides da Cunha, ao apontar a origem bandeirante do
nordestino; e, em Nina Rodrigues, ao acreditar na supremacia racial do mundo
branco. Nessas perspectivas, o negro e o índio representavam impedimento ao
desenvolvimento do processo civilizatório, apontando como possibilidade para
superação deste entrave a mestiçagem moral e étnica em um processo de
branqueamento da sociedade brasileira.
oriundos do meio como calor, umidade, fertilidade da terra, sistema fluvial. Nesse sentido,
se todas as nações se desenvolveram a partir da existência desses pressupostos e, se o
Brasil também os possuía, a explicação para a inexistência de civilização nesta parte do
mundo eram os ventos alísios. Nesse sentido, a natureza aqui suplanta o homem e, por
isso, a cultura europeia tem dificuldade de implantar suas raízes. Cf. ORTIZ, 1994, op. cit.
132
ROMERO, Silvio. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio,
1943.
133
ORTIZ, Renato, 1994, op. cit. p. 19.
61
étnica que transcorre no Brasil, simbolicamente conota as aspirações
nacionalistas que se ligam à construção de uma nação brasileira 134.
134
ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense,
1994, p. 21.
135
Cf. idem, p. 30.
136
Sobre as teses geneticistas, Ronaldo Vainfas produziu um artigo onde analisa autores,
como Capistrano de Abreu, Karl von Martius, Francisco Adolpho de Varnhagem, Paulo
Prado, Manuel Bomfim, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Junior,
Charles Boxer, Katia Mattoso, João José Reis, Robert Slenes, Richard Morse. Para
maiores informações sobre a perspectiva teórica dos autores que se debruçaram sobre
esta problemática, ver: VAINFAS, Ronaldo. Colonização, miscigenação e questão racial:
notas sobre equívocos e tabus da historiografia brasileira. In: Revista Tempo 8, ago-
1999.
62
vinham de vários estados brasileiros e até mesmo de outros países da América
Latina. As discussões eram as mesmas de outros momentos, ou seja, buscar
formas de sanar o “problema” brasileiro da mestiçagem, pois entendiam que “a
caracterização do Brasil como “país mestiço”, vindo do cruzamento entre negro,
índios e brancos, era considerada como um entrave, a razão do “atraso” ou “não
progresso” do país por muitos dos “homens de sciência” de então”137.
Nesse sentido, medidas eugênicas buscavam a criação de uma raça
superior a partir da superação da nossa miscigenação. Para tal fim, atos de
extrema violência e desumanidade foram praticados, como a mutilação genital de
indivíduos transgressores138. Tal prática garantia a funcionalidade da campanha
higienista existente no Brasil139, bem como atendia aos projetos da classe
dominante para superar o nosso atraso econômico com relação aos “países
civilizados” e garantiam a salvação da nacionalidade pela “regeneração do seu
povo” que, em linhas gerais, significava embranquecê-la140. De acordo com Patto,
a campanha,
137
A autora discute sobre a função dos “homens da sciência” que, ao longo do século
XIX, utilizavam da ciência positiva e determinista para predeterminar os rumos a serem
tomados pela nação para sanar os problemas internos. Nesse sentido, seriam estes um
“Misto de cientistas e políticos, pesquisadores e literatos, acadêmicos e missionários,
esses intelectuais irão se mover nos incômodos limites que os modelos lhes deixavam:
entre a aceitação das teorias estrangeiras – que condenavam o cruzamento racial – a
sua adaptação a um povo a essa altura já muito miscigenado”. Cf. SCWARCZ, Lília
Moritz. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e questão racial no Brasil,
1870-1930. São Paulo, Companhia das Letras, 1993, p.25.
138
Cf. MACIEL, Maria Eunice de S.“A Eugenia no Brasil”. In: Revista Anos 90, n. 11.
Porto Alegre, julho de 1999. p. 123-40.
139
Cf. MATTOS, 2011, op. cit.
140
PATTO, Maria Helena Souza. “Estado, ciência e política na Primeira República: a
desqualificação dos pobres” In: Estudos Avançados. vol.13, n.35. São Paulo, jan./apr.
1999. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-
40141999000100017&script=sci_arttext&tlng=en. Acesso em: 02 ago. 2010.
141
PATTO, Maria Helena Souza. “Estado, ciência e política na Primeira República: a
desqualificação dos pobres” In: Estudos Avançados. vol.13, n.35. São Paulo, jan./apr.
1999. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-
40141999000100017&script=sci_arttext&tlng=en. Acesso em: 02 ago. 2010.
63
As teses higienistas atendiam aos anseios dos segmentos hegemônicos da
burguesia que viam, na origem da população, o cerne do atraso do país,
abstendo-se de analisar as características do desenvolvimento do capitalismo,
justificando, assim, políticas radicais que mantiveram em suspeição todas as
demandas por acesso aos elementos básicos garantidores da dignidade humana,
tais como educação, habitação, saúde, saneamento básico e transporte público.
Esses estudos até aqui apresentados se tornaram ainda mais perigosos
quando passaram a ser utilizados como política de saneamento por meio da
eliminação física dos indivíduos tidos como indesejáveis. Assim, se no começo da
Primeira República, buscavam-se bases científicas que comprovassem que o
desenvolvimento da nação se daria pelo seu embranquecimento, ao final desse
período, e durante todos os posteriores a ele, essa política foi ganhando novos
ares. Não se tratava mais de embranquecer a nação, mas sim de eliminar todo
indivíduo que se contrapunha à ordem autocrática burguesa bonapartista e, nesse
sentido, os esquadrões da morte e suas variações foram exemplares.
Assim, as teses geneticistas foram de suma importância para o
desenvolvimento da política de saneamento social aplicada pelo Estado brasileiro
contra toda a população, tendo sido estendidas para a perseguição aos que
lutavam para ter acesso à cidadania.
142
COELHO, Edmundo Campos. A criminalização da marginalidade e a marginalização
da criminalidade. In: Revista de Administração Pública, p.155. Rio de Janeiro,
12(2)139-161, abr./jun. 1978. Disponível em:
http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rap/article/view/7458. Acesso em 10 set. 2015.
64
ideológicos a serviço de políticas públicas excludentes. Tal terminologia, usada
ampla e pejorativamente, banalizava a criminalização do marginalizado 143. Tais
classificações também eram perpetradas pela opinião pública a serviço do poder
estatal, fato que justificativa a violência dos agentes do Estado para com aqueles
segmentos populacionais.
143
Pensemos na contravenção penal da “vadiagem” que, prevista na lei de
contravenções penais de 1942, pelo artigo 59 – mas que já aparecia muito tempo antes,
ainda no período de vigência das ordenações Filipinas, sob o título “LXVIII, Dos Vadios” –
, determinava que “Entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o
trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à
própria subsistência mediante ocupação ilícita: Pena – prisão simples, de quinze dias a
três meses”. Essa determinação criminalizava, nitidamente, os indivíduos das camadas
mais baixas da população, desempregados à procura de emprego, bem como uma
grande parcela dessa juventude à procura do primeiro trabalho. De acordo com Edmundo
Coelho, “Na faixa de idade de 18 a 21 anos, a percentagem média da população
indiciada por vadiagem foi de aproximadamente 23% no período 1942-1967; esta média
sobe para 50% se ampliarmos a faixa até os 25 anos de idade. Este é o exemplo mais
patente do processo de criminalização da marginalidade”. Esse ilícito penal foi revogado
apenas em 2009 pela Lei nº 11.983. Para maiores informações, ver: http://www.ambito-
juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=5349 (sobre a
origem do ilícito da vadiagem); http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-
lei/Del3688.htm (sobre a vadiagem na lei de 1942); e também COELHO, 1978, op. cit.
(sobre os índices de exclusão). Acessos em 10 set. 2015.
144
CF. PATTO, 1999, op. cit.
65
desconsiderar que a arbitrariedade era a regra quando se tratava de
trancafiar os pobres. Assim, boa parte das detenções podia não ser
passível de processo pelo simples fato de que não havia delito, mas só
ação da mais pura prepotência145.
145
PATTO, 1999, op. cit. Acesso em 02 ago. 2010.
146
Expressão cunhada pelo Presidente da República Velha (1926-1930), Washington
Luís (1869-1957), ao se referir às lutas dos trabalhadores nesse período.
147
PINASSI, 2006, op.cit., p. 44.
148
IAMAMOTO, Marilda. Serviço social em tempo de capital fetiche: capital financeiro,
trabalho e questão social. São Paulo: Cortez, 2008, apud BARISON, Mônica Santos.
“Caso de polícia: reflexões sobre a questão social e a Primeira República”. In: Cadernos
UNIFOA. Rio de Janeiro. Edição n° 22 – Ago./2013, p. 44. Disponível em:
http://web.unifoa.edu.br/cadernos/edicao/22/43-51.pdf. Acesso em: 27 mai. 2015.
66
De todo modo, nota-se que a instauração da República no Brasil não se
deu em consonância com a implantação dos valores republicanos. A supremacia
do bem comum, inerente a esse tipo de Estado, não esteve à frente dos
interesses privados, tampouco o povo foi efetivamente detentor do poder, já que
se tratava de uma “Res publica”, assim como esses representantes não atendiam
às demandas daqueles aos quais deveriam representar.
Na concretude social, “nós somos uma República oligárquica, dirigida por
partidos oligárquicos, sem respeito mínimo ao conceito de igualdade, que é a
essência da ideia de República”149, pontuou Roberto Romano e “no sentido pleno
do vocábulo, não temos e, infelizmente, sequer sabemos seu gosto, pois também
nunca tivemos uma autêntica República”,150 apontou Bráulio Junqueira. Essas
relações, na verdade, estavam diretamente ligadas às características da ordem
capitalista, como pontuou Fábio Konder Comparato:
149
ROMANO, Roberto. Entrevista. In: OAB – Jornal do Advogado – ano XXXI, n° 299.
Outubro de 2005, p. 13
150
JUNQUEIRA, Bráulio. Ignomínia aos princípios democrático e republicano. In: Revista
Brasileira de Direito Constitucional – RBDC, n. 10 – jul./dez. 2007, p. 486. Disponível
em: http://www.esdc.com.br/RBDC/RBDC-10/RBDC-10-481-Braulio_Junqueira.pdf.
Acesso em 25 mai. 2015.
151
COMPARATO, Fábio Konder. Reflexões desabusadas sobre o abuso do poder
político. In: http://www.oabsp.org.br/comissoes/republica/artigos/pop01.htm, p. 7. Acesso
em: 25 mai. 2015.
67
ilusória de “acesso”, na prática, o que houve foi o uso das forças armadas pela
frágil burguesia nascente aliada à tradicional aristocracia latifundiária brasileira,
que se respaldava nos militares para continuarem a fazer valer seus interesses de
classe na república que se iniciava152.
152
O extenso balanço historiográfico produzido por Ângela de Castro Gomes e Marieta de
Moraes Ferreira demonstra a prevalência de estudos que apontam a manutenção do
poder das oligarquias na configuração do recém fundado Estado Republicano. Cf.
GOMES, Ângela de Castro; FERREIRA, Marieta Moraes. “Primeira República: um
balanço historiográfico” In: Estudos históricos. Rio de Janeiro, vol. 2, n.4, 1989, p.244-
280. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2287/1426.
Acesso em: 10 jun. 2015.
68
quanto nessas casas, as condições precárias e insalubres davam lugar ao
aparecimento de diversas doenças, como varíola, febre amarela e a mortal
tuberculose, sintoma claro da fome e da subnutrição que os abatia.
São Paulo, por exemplo, de acordo com a antropóloga Teresa Pires do Rio
Caldeira, viveu três momentos de expansão: no primeiro, do final do XIX ao início
de 1940, a cidade se concentrava na área urbana central; no segundo, de 1940 a
1980, houve a expansão desta para as zonas periféricas em uma relação centro-
periferia; e no terceiro, de 1980 em diante, ocorreu o cercamento das cidades
com os muros dos condomínios fechados e o boom das vigilâncias privadas153.
No primeiro período, de 1890 a 1940, o espaço urbano paulista e sua vida
social estiveram pautados no crescimento da cidade em torno da industrialização
e da constante chegada de imigrantes europeus para o trabalho nas novas
fábricas que surgiam em substituição progressiva à economia do café. Aqui, além
da rápida construção de fábricas, havia a edificação das moradias para abrigar os
trabalhadores, interligada ao comércio e serviços.
A segregação social já começava a ser delineada aqui, tendo em vista que
as moradias dos trabalhadores eram coletivas, normalmente casas de muitos
cômodos ou cortiços, sempre superpovoados, sem infraestrutura adequada,
edificadas nas partes mais baixas do centro, próximo ao Rio Tamanduateí e Tietê.
Em contraposição, as da elite eram mansões, casas próprias ou alugadas e
estabelecidas nas partes mais altas, em direção à região hoje da Avenida
Paulista. No caso das casas construídas com melhores estruturas para os
operários, elas eram também usadas para discipliná-los, dada à ameaça
constante de despejo154.
A falta de estrutura e as péssimas condições de vida refletiam-se na
proliferação de doenças que eram associadas pelas autoridades à promiscuidade
e à criminalidade, elementos que desde o século XIX, justificavam o uso da
violência contra a população mais pobre, como podem ser notados com a criação
do Serviço Sanitário e, em seguida, do Código Sanitário de 1894 – órgãos que
153
CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania
em São Paulo. São Paulo: ed. 34/Edusp, 2000, p. 211.
154
Idem, p. 213.
69
perpetuavam o controle social das camadas mais pobres155 e serviram para
afastar esses segmentos sociais da elite industrial, que começou,
progressivamente, a migrar para áreas próximas ao centro, mas afastadas das
vilas operárias – políticas higienistas que foram postas em prática, já no século
XX156.
Outra medida que perpetuava o distanciamento entre as classes sociais
ocorreu em meados de 1930, quando o Governo Federal adotou a política de
incentivo à aquisição da casa própria, voltada para as classes urbanas,
exclusivamente nos locais em que se desenvolvia a industrialização, como por
exemplo São Paulo. Na prática, tal política, somada à alta no valor dos aluguéis,
em 1942, e a Lei do Inquilinato de 1947 que congelava os preços das locações de
imóveis para residência, a qual se estendeu até 1964, provocou, em longo prazo,
a diminuição do mercado de aluguéis bem como acelerou a migração dos
155
Nessa mesma linha que no começo do século XX, em 1904, no Rio de Janeiro,
ocorrerá a Revolta da Vacina, quando “o prefeito Pereira Passos lançou um programa
radical de reforma urbana do tipo haussmanniano, abrindo grandes avenidas no centro
da cidade e destruindo muitas habitações de moradores pobres”. Cf. CALDEIRA, 2000,
op.cit., p. 214.
156
Nessa perspectiva de tipificação e visando se separar das classes pobres que eram
tidas como responsáveis pelas epidemias, as elites começaram a se afastar delas,
migrando para áreas afastadas e exclusivas, a exemplo da formação do bairro de
Higienópolis, Campos Elísios e Avenida Paulista. Políticas higienistas, de âmbito
nacional, foram postas em prática entre os anos de 1920 e 1930 por pelo menos quatro
esferas da vida pública: pelo governo municipal, pela associação dos industriais, pelos
movimentos sindicais e populares e governo federal. O resultado direto das legislações
urbanas criadas era estabelecer uma disjunção entre o território central, com domínio da
elite, regido por leis especiais que eram cumpridas, e as regiões suburbanas e rurais,
habitadas pelos mais pobres e onde as leis eram cumpridas com menor rigor. Como a
legalidade ou ilegalidade são mal definidas, as classes abastadas tinham maior poder de
decisão nas disputas de terras, por exemplo. É desse momento também a divisão da
cidade em zonas centrais, urbanas, suburbanas e rural. As leis criadas na época
destinavam-se apenas às duas primeiras, espaços das elites, ficando os dois últimos,
local de habitação dos pobres, sem regulamentação. No que tange à associação dos
industriais, após um breve estudo sobre os padrões de consumo e moradia da classe
trabalhadora, eles chegaram à conclusão de que os empregadores não podiam arcar
com o custo da moradia a seus funcionários e incentivaram a aquisição da moradia
própria para os trabalhadores, fato que reduziria os custos dos patrões e aumentaria o
consumo, bem como também abria espaço para a organização da cidade e impulsionaria
a expansão industrial. Os movimentos sindicais populares, por sua vez, razoavelmente
fortalecidos com o movimento anarquista de 1910, se uniram a outros movimentos na
década seguinte, promovendo a formação das “ligas dos inquilinos” para boicotar o
pagamento dos aluguéis, medida que, na prática, não sanou os problemas tendo em vista
que a questão da moradia acabou sendo tratada pelos trabalhadores de maneira
individual e não coletivamente. Cf. CALDEIRA, 2000, op. cit., p. 213-18.
70
trabalhadores para a periferia, onde podiam comprar terrenos irregulares e
baratos para construir suas casas próprias. Nasciam as periferias e se
consolidava o distanciamento entre pobres e ricos. A periferia trouxe a
designação dos
no final dos anos 30, cidades como São Paulo e Rio de Janeiro haviam
ultrapassado o número de 1,3 milhão e 1,6 milhão de habitantes,
respectivamente, para atingirem no início da década de 50 o total de 2,6
milhões e 2,4 milhões de habitantes. Em 1940, a urbanização cresceu
31,2% sendo que o Sudeste colaborava com 39,4% desse percentual.
No ano de 1950 chegava a 36,2%, com o Sudeste contribuindo com
47,5% desse total159.
157
CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. A política dos outros: o cotidiano dos moradores
da periferia e o que pensam do poder e dos poderosos. São Paulo: Brasiliense, 1984, p.
7.
158
Diante da crise do capitalismo mundial, no período da Segunda Guerra Mundial, a
indústria brasileira passou a fabricar produtos similares aos que eram importados, fato
que levou a uma grande aceleração da industrialização nacional entre os anos de 1930 e
1950. Cf. SILVA, Marcelo Squinca. Energia elétrica: estatização e desenvolvimento
(1956-1967). São Paulo: Alameda, 2011, p. 71.
159
SILVA, 2011, op. cit., p.72.
160
CALDEIRA, 2000, op. cit., p. 218.
71
crescimento urbano empurraram a população mais pobre para os bairros mais
afastados, periferias das grandes cidades que não contavam com infraestrutura.
Esse processo se deu em quatro pontos:
161
O desenvolvimento desse meio de transporte, no entanto, não se deu por medidas do
governo, mas pela empreita dos empresários particulares – não à toa, pois entre 1948 e
1966 as empresas particulares passaram a dominar 75,7% das linhas de ônibus. Eles
também interessavam à especulação imobiliária que encontrou, nessa expansão
populacional para as periferias, uma forma rentável para os interesses imobiliários. Dessa
forma, é possível dizer que a urbanização das periferias foi feita pela iniciativa privada e
atendendo a seus interesses e não houve interesse ou políticas do governo para
incentivar as construções. Idem., p. 218-20.
72
cumprimento, realizaram todo tipo de ilegalidade – isso dificultava ainda mais o
desenvolvimento dessas localidades 162.
enquanto no centro 1,3% dos domicílios não tinha água encanada, 4,5%
não estavam ligados à rede de esgoto, 1,7% não tinha asfalto e 0,8%
não tinha coleta de lixo, num distrito novo na periferia leste, como
Itaquera, em 89,3% dos domicílios não havia água encanada, 96,9%
não dispunham de esgoto, 87,5% não tinham asfalto e 71,9% não
dispunham de coleta de lixo164.
162
CALDEIRA, 2000, op. cit., p. 228.
163
Idem, p. 220.
164
Ibidem.
165
CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. A política dos outros: o cotidiano dos moradores
da periferia e o que pensam do poder e dos poderosos. São Paulo: Brasiliense, 1984.
73
As cidades tornaram-se palco da luta de classes: de um lado, havia toda a
assistência e ação do Estado para proteger os segmentos hegemônicos da
burguesia contra os tidos como “criminosos”, inimigos internos que emperravam o
desenvolvimento da Nação; do outro lado, as populações periféricas, para a qual
a repressão brutal era perpetuada pelas policias e seus grupos de extermínio ante
a luta dessa população por direitos básicos.
Esse processo se assemelha, ao menos ideologicamente, com a
haussmannização de Paris perpetuada pelo Barão Haussmann, prefeito de Paris
ao longo do período de Napoleão III, que consistiu na abertura de bulevares
estratégicos, demolindo os bairros em que, habitualmente, havia motins. Era uma
resposta aos levantes populares através da montagem de barricadas, bem como
se justificava nos discursos higienistas, um embelezamento estratégico, que viria
a ser efetivamente contestado com a Comuna de Paris em 1871 166.
No Brasil, nossa “haussmannização” contou com a criação do Código
Sanitário, a destruição dos casebres operários, a segregação social oriunda do
afastamento das classes sociais mais pobres das áreas mais ricas, bem como do
uso da violência estatal, por meio de suas polícias e esquadrões da morte de
modo a garantir a ordem – social, política e econômica – que os segmentos
hegemônicos da burguesia desejavam manter e que se imputava através do
aparato repressivo.
Nessa lógica, as lutas dos segmentos excluídos do acesso aos direitos de
cidadania foram classificadas como baderna, desordem e ações de “criminosos” e
taxados como “caso de polícia”.
166
LÖWY, Michael. A cidade, lugar estratégico do enfrentamento das classes:
insurreições, barricadas e haussmannização de Paris nas Passagens de Walter
Benjamin. In: Margem Esquerda – ensaios marxistas. São Paulo, Boitempo, 2006, nº
8, pp. 64-65.
74
dominante. É nesse sentido que analisa a sentença de que a questão
social era caso de polícia167.
167
CERQUEIRA FILHO, Gisálio. A “Questão Social” no Brasil: crítica ao discurso político.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982, apud BARISON, Mônica Santos. “Caso de
polícia: reflexões sobre a questão social e a Primeira República”. In: Cadernos UNIFOA.
Rio de Janeiro. Edição n° 22 – Agosto/2013, p. 48. Disponível em:
http://web.unifoa.edu.br/cadernos/edicao/22/43-51.pdf. Acesso em 27 mai. 2015.
168
PATTO, Maria Helena Souza. “Estado, ciência e política na Primeira República: a
desqualificação dos pobres” In: Estudos Avançados. vol.13, nº.35. São Paulo, Jan./Apr.
1999, p. 11. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-
40141999000100017&script=sci_arttext&tlng=en, Acesso em 27 mai. 2015.
169
Ao longo do desenvolvimento de sua dissertação, Benedito Tadeu dos Santos aponta
que, apesar da existência de particularidades em cada movimento, fato que os distingue,
o ocorrido em Canudos foi um dos argumentos utilizados para justificar a negativa à
existência do Sitio Caldeirão, por entender, assim como seu precursor, como uma
ameaça à ordem. Para maiores esclarecimentos, ver: SANTOS, Benedito Tadeu dos.
75
execuções perpetradas pelos agentes do Estado contra a população local. Assim
como na zona urbana, o uso da violência era justificado pela contenção a esse
movimento social que, de acordo com os autocratas, representava a usurpação
da ordem existente por buscarem outra forma para garantir sua sobrevivência.
Belo Monte, como também era conhecido, tornou-se o reduto da população
sertaneja, que “tratado com indiferença pelo governo, não sendo assistido em
suas necessidades básicas de subsistência, desejava apenas viver em paz, sem
que o governo os incomodasse por meio da cobrança de impostos”170. Após várias
investidas militares, o poder público local reuniu uma tropa composta por cento e
quatro homens bem armados que incendiaram e destruíram cinco mil e duzentas
casas do povoado de Canudos.
172
SANTOS, 2014, op. cit., p.19.
173
SANTOS, 2014, op. cit., p.221-24.
77
destemidos e acima do poder dos coronéis, adentrando fazendas e vilas,
saqueando-as.
Os primeiros grupos de cangaceiros remontam ao século XVIII com o
sertanejo José Gomes, comumente conhecido por Cabeleira, atuante na região
do Recife. Todavia, foi no final do século XIX e início do XX que o Cangaço
ganhou notoriedade pela luta que engendrava contra os coronéis. Nessa
perspectiva, o primeiro grupo foi liderado por Jesuíno Alves de Melo Calado,
conhecido por Jesuíno Brilhante e, posteriormente, em 1922, assumido pelo mais
conhecido dos cangaceiros, Virgulino Ferreira, o Lampião, juntamente com seu
bando174.
O grupo de Lampião começou a ser desarticulado em 1938, por ordem de
Getúlio Vargas, que associava a luta daqueles homens à desordem. Após várias
tentativas do governo, uma emboscada foi bem sucedida, resultando na morte do
seu líder e a de vários outros cangaceiros. Suas cabeças foram degoladas e
expostas em praça pública como sinônimo da força estatal175.
Depois do grupo de Lampião, outras pessoas assumiram a liderança do
grupo e deram continuidade à ação dos cangaceiros. O último deles foi Cristino
Gomes da Silva Cleto, conhecido por Corisco, cuja morte se deu em 1940,
mesmo ano do fim oficial do Cangaço.
É importante frisar que o primeiro grupo de extermínio institucionalizado foi
criado no final do século XIX pelo Poder Público com a justificativa de conter o
cangaço. Na prática efetiva, tratava-se de dar fim à luta daqueles sertanejos por
melhores condições de vida ante a opressão do Estado e do coronelismo
presente no nordeste brasileiro.
Esses grupos denominados “volantes” atuavam como esquadrões da morte
e sua prática era marcada pela violência, pela tortura e pela execução sumária
das comunidades organizadas, fosse colaborando com o cangaço – comumente
174
Sobre o Cangaço, ver:
http://www.eunapolis.ifba.edu.br/informatica/Sites_Historia_EI_31/cangaco/Site/Cangaco.
html. Acesso em 10 jan. 2016.
175
MARQUES, Ana Claudia Duarte Rocha e VILELLA, Jorge Luiz. “O poder e o território
do bandido: reflexões sobre Lampião, o Rei do Cangaço”. In: ILHA Florianópolis, n. 0.
Outubro de 1999, p.119-138. Disponível em:
https://periodicos.ufsc.br/index.php/ilha/article/viewFile/14513/13292. Acesso em 10 jan.
2016.
78
chamados de coiteiros –, fossem os próprios cangaceiros. Assim, se os
cangaceiros, ao empregarem a violência, foram considerados fora da lei, os
volantes o faziam com o apoio total da lei176.
Entre o final da década de 1950 e início de 1960, porém, a luta dos
trabalhadores do campo no Nordeste retornou à cena com as ligas camponesas
que lutavam contra os grandes fazendeiros ante à desapropriação e expulsão da
terra em prol do assalariamento. Também exigiam a melhoria na condição de vida
e que a reforma agrária fosse feita. Tendo à frente o advogado e deputado federal
Francisco Julião, “nasceram das lutas de resistência de pequenos agricultores e
não-proprietários contra a tentativa de expulsão das terras onde trabalhavam”177.
Eles contestavam:
176
Cf. NASCIMENTO, José Anderson. Cangaceiros, coiteiros e volantes. Icone
Editora, 1998.
177
TOLEDO, Caio Navarro. 1964: o golpe contra as reformas e a democracia. In: REIS,
Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo e MOTTA, Rodrigo Patto Sá (orgs.). O golpe e a
ditadura militar: quarenta anos depois (1964-2004). Bauru, SP: Edusc, 2014, p. 72.
Sobre este tema, ver também BORGES, Maria Eliza Linhares. Reforma agrária e
identidade camponesa, pp. 81-100, presente na mesma obra.
178
TOLEDO, 2014, op. cit., p. 72.
79
É importante frisar que tais desapropriações geraram um contingente de
camponeses e operários – estes vindos de inúmeras partes do país para trabalhar
nesse grande empreendimento – desempregados, em situação de miséria. Assim
como Canudos, Colher de Pau e Crato tais condições levaram à formação de uma
comunidade de ajuda mútua, visando viver dignamente e fora do autoritarismo do
Estado.
A partir da presença do Beato José Maria, foi fundada a comunidade de
Quadrado Santo, que vivia da agricultura de subsistência, do gado e pautados na
religiosidade e espiritualidade, agremiando o cunho social desse movimento ao
fenômeno religioso. Após a morte da sua liderança, ainda no primeiro combate
em outubro de 1912, o movimento se reorganizou e continuou, sendo, muitas
vezes, associado ao messianismo. O pesquisador Paulo Pinheiro Machado
destacou que, acima de tudo, os sertanejos tinham consciência da sua condição
social e política de marginalização, de que se tratava de uma guerra entre ricos e
pobres e principalmente de pobres contra o Estado, que atuava em prol dos
interesses dos abastados, dos coronéis e dos estrangeiros. Todavia, a vertente
crítico-social não anulava a religiosa e vice-versa179. O autor também destaca que,
se, em princípio, o confronto entre sertanejos e as forças estatais se limitava por
segmentos sociais da própria região, a expectativa da “volta” de José Maria e a
busca por melhores condições de vida atraíram inúmeros outros segmentos
sociais como,
179
MACHADO, Paulo Pinheiro. Um estudo sobre as origens sociais e a formação
política das lideranças sertanejas do Contestado, 1912-1916. São Paulo: Unicamp,
2001, tese de doutorado em História.
180
MACHADO, 2001, op. cit., p. 5.
80
anos de conflito direto, no final de 1916, a guerra se encerraria após a utilização
de aviões e artilharia pesada pelas forças repressivas do Estado, contra os
contestados, deixando milhares de pessoas mortas.
Como podemos notar, o uso da força do Estado para reprimir e executar
indivíduos ligados à luta por demandas sociais é recorrente na história da nossa
República, dado o seu caráter autocrata bonapartista.
Setores das ciências humanas trataram de buscar definição para o que
seria uma “autocracia”. Dentre os inúmeros significados, o Dicionário de Política
apontou que se trata de
181
BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco (orgs.). Dicionário
de Política. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998, p. 368-379. Disponível em
http://www.capitalsocialsul.com.br/capitalsocialsul/analisedeconjuntura/DICION%C3%81R
IO_DE_POL%C3%8DTICA[1].pdf. Acesso em 20 abr. 2015.
182
Idem, p. 368-379.
183
BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, Op. cit, p. 368-379.
81
Alguns estudos estabelecem ligações mais pontuais, ao entender que a
autocracia não se limitava à relação impositiva entre o chefe do poder sobre sua
população, pois, também se configurava como autocracia formas de governos
compostos por um grupo ou por algum extrato social que impunha suas vontades
e decisões, dentro do aparelho do Estado, pelo alto e de cima para baixo. Nesse
sentido, Hermann Heller, citado por Florestan Fernandes,184 apontou que
Atrás dessas noções, temos uma opção pela mudança social que
pretende submeter às forças que alteram a estrutura e a organização da
sociedade brasileira aos interesses e aos valores sociais de camadas
tradicionalmente acostumadas à estabilidade social e ao que ela
sempre ocultou no Brasil: extrema iniquidade na distribuição da terra, da
renda e das garantias sociais; operação automática de controles sociais
que regulavam ou dissimulavam as tensões sociais, por meio da
dominação autocrática dos poderosos e da acomodação passiva dos
subordinados; identificação das fontes de lealdade através de relações
184
Cf. CHAGAS, Rodrigo Pereira. Florestan Fernandes: a autocracia burguesa como
estrutura histórica e a institucionalização da contrarrevolução no Brasil. São Paulo: PUC-
SP, 2011. (Mestrado em história social), p. 70-1 e nota de rodapé n° 201.
185
HELLER, Hermann. Teoria do Estado. São Paulo: Mestre Jou, 1968, p. 292-94 apud
CHAGAS, 2011, op. cit., p. 70.
186
CHAGAS, 2011, op.cit., p. 73.
187
FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação
sociológica. São Paulo: Globo, 2005, p. 345.
82
pessoais e diretas, objetiváveis no âmbito da família, da parentela ou de
grupos locais e regionais188.
188
FERNANDES, Florestan. Reflexões sobre a mudança social no Brasil (1962). In: A
sociologia numa era de revolução social. Rio de Janeiro: Zahar, 1976, p. 215, apud
CHAGAS, op.cit., p. 73.
189
ENGELS, Friedrich. “Carta a Marx de 13 de abril de 1866”. In: ASSUNÇÃO, Vânia
Noeli Ferreira. Pandemônio de Infâmias: classes sociais, Estado e política nos estudos
de Marx sobre o Bonapartismo. São Paulo: PUC-SP, 2005 (Tese de doutorado em
história).
83
(...) se põe de forma retardada e retardatária, tendo por eixo conciliador
entre o novo emergente e o modo de existência social em fase de
perecimento. Inexistindo, portanto, a ruptura superadora que de forma
difundida abrange, interessa e modifica todas as demais categorias
sociais subalternas. Implica um desenvolvimento mais lento das forças
produtivas, expressamente tolhe e refreia a industrialização, que só
paulatinamente vai extraindo do seio da conciliação as condições de
sua existência e progressão. Nesta transformação “pelo alto” o universo
político e social contrasta com os casos clássicos, negando-se de igual
modo ao progresso, gestando, assim, formas híbridas de dominação,
onde se “reúnem os pecados de todas as formas de estado”190.
190
CHASIN, 2000, op. cit., p. 42.
191
Idem, p. 43.
192
Ibidem, p. 43-4.
193
CHASIN, José. Miséria Brasileira: estudos e edições AD Hominem, 2000, p.45.
84
feudalismo, no Brasil, ocorreu entre a burguesia e os latifundiários. Enquanto o
feudalismo alemão já se pautava em um mercado nacional, os latifundiários
estavam ligados ao mercado internacional, fato que impedirá que a burguesia
desenvolva uma ruptura com os países imperialistas, levando a formação de um
capitalismo autônomo. Nesse sentido, Chasin distingue o processo brasileiro do
alemão, classificando o primeiro como “via colonial”194.
Em síntese, a modernização do capitalismo imposta pela dinâmica
internacional, cujos “donos do poder”195 gestaram o capital atrófico, se deu pela
forma excludente, interpondo dificuldades à participação política das massas 196,
seja pelos meandros constitucionais ou pela violência perpetrada pelo Estado.
Aqui,
194
Idem, p. 37-58.
195
FAORO, Raimundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro.
5ed. Porto Alegre, Ed. Globo, 1979.
196
CHASIN, 1989, p. 17 apud ASSUNÇÃO, 2005, op. cit., p. 326.
197
CHASIN, 2000, op. cit., p. 54.
85
(...) para abrigar o pobre “desocupado, ocioso”, na verdade, o
trabalhador – desempregado, faminto, insurreto, previamente
condenado, sem apelação, e jogado na vala comum da gentalha, alheia
aos ensinamentos dos céus e rebelde à lei, enfim, a população que
habita o mundo das classes perigosas. A partir daquela inversão da
culpa pelo pecado original, a classe operária, tratada como “caso de
polícia”, vem há séculos expiando o delito ao qual foi desde o princípio a
parte vitimada198.
198
PINASSI, 2006, op. cit., p. 44.
86
sirvieron de base a la Doctrina de la Seguridad Nacional (DSN),
auspiciada por Estados Unidos, en América Latina199.
199
ROBIN, Marie-Monique. Escuadrones de la muerte, la escuela francesa. Buenos
Aires: Sudamericana, 2005. Trads. Sérgio Di Nucci y Pablo Rodríguez.
200
Idem.
201
Conflito travado entre 1946 e 1954, após a oposição francesa em aceitar a
independência da sua antiga colônia (parte sul e leste da Indochina, atualmente
equivalente ao território do Vietnã, Camboja e Laos) declarada pelo líder nacionalista Hô
Chi Minh em 2 de setembro de 1945 e proclamada a República Democrática do Vietnã.
Para maiores informações ver: http://www.defesanet.com.br/ecos/noticia/2013/21-de-
julho-de-1954--Cessar-fogo-na-Indochina-/. Acesso em 10 jan.2016.
87
o grau de organização que ela tinha. Grosso modo, os oficiais notaram que os
soldados possuíam um sistema de inteligência que dava base para a ação dos
mesmos. De acordo com o coronel francês Charles Lacheroy,
202
VELÁSQUEZ, Carlos Guerrero. El impacto ideológico de la Escuela Francesa sobre el
Ejército argentino IN: Persona y Sociedad. Buenos Aires (ARG): Universidad Alberto
Hurtado. Vol. XXV / Nº 2 / 2011 / 55-72, p. 58.
203
Idem.
204
ROBIN, Marie-Monique, 2005. Escuadrones de la muerte, la Escuela Francesa.
Buenos Aires: Sudamericana apud VELÁSQUEZ, 2011, op. cit., p. 59.
88
Apesar dos esforços, em 1962, com a ajuda do Acordo de Évian 205, a
Argélia obteve sua independência, mas, no cenário mundial, estava criada uma
doutrina que seria utilizada nas ditaduras ocorridas ao longo da década de 1960 e
1970 nos países da América Latina. De acordo com Velásquez,
A ideia de que existia uma guerra global era o ponto inicial desse processo
e deveria criar no militar, de acordo com a Doutrina da Guerra Revolucionária, o
sentimento de que aquela ameaça de cunho mundial já havia chegado ao seu
país e que a infiltração comunista buscava desestabilizar o capitalismo,
“doctrinando a las masas trabajadoras y estudiantiles para que se interfiera en el
orden establecido por la sociedad burguesa”207. Nesse sentido, aponta Velásquez,
criou-se a necessidade do desenvolvimento da defesa, tendo em vista que
estariam em uma guerra antissubversiva.
205
O Acordo de Évian foi assinado em 18 de março de 1962, entre o Governo francês e o
Governo Provisório no Cairo da República Argelina (GPRA), formado pela Frente de
Libertação Nacional (FLN), garantindo o cessar-fogo e reconhecimento francês da
soberania da Argélia.
206
VELÁSQUEZ, 2011, op.cit., p. 59 .
207
Idem, p. 64.
208
Ibidem, p. 65.
89
Ramón Díaz Bessone, quien pregunta: “¿cómo puede usted sacar información si
no lo aprieta, si no tortura?”209
A Escola Francesa exportou para as ditaduras latino-americanas o
entendimento do que era uma guerra subversiva, ou seja, que consistia em uma
guerra dentro do território com o objetivo de derrubar a autoridade presente, à
revelia da população e apoiada por ordens exteriores. Nas palavras de Mazzei,
209
ROBIN, Marie-Monique,. Escuadrones de la muerte, la Escuela Francesa. Sérgio Di
Nucci y Pablo Rodríguez, trads. Buenos Aires: Sudamericana 2005, apud VELÁSQUEZ,
op. cit., 2011, p. 69.
210
MAZZEI, Daniel. “La misión militar francesa en la Escuela Superior de Guerra y los
orígenes de la Guerra Sucia, 1957-1962.” Revista de Ciencias Sociales, nº 13, 2002,
p.118 apud VELÁSQUEZ, 2011, op.cit., p. 65-6.
90
sólo el inicio de un estado de paranoia que pudo ser en lo sucessivo un
factor determinante para la incidencia de los ‘excesos’ en el ejercicio de
la represión 211.
211
VELÁSQUEZ, 2011, op. cit., p. 66.
212
Idem, p. 68.
213
Ibidem, p. 69.
91
propio conciudadano: con el que estábamos a punto de almorzar, el
profesor de nuestros hijos o nuestro vecino”214.
214
ROBIN, Marie-Monique. Escuadrones de la muerte, la Escuela Francesa. Buenos
Aires: Sudamericana, 2005, p. 267. Tradução de Sérgio Di Nucci y Pablo Rodríguez.
92
Capítulo 2
Modus operandi dos esquadrões da morte: uma instituição
nacional a serviço da autocracia burguesa bonapartista
215
BATISTA, Vera Malaguti. A questão criminal no Brasil Contemporâneo. In: Margem
Esquerda – ensaios marxistas, nº 8, pp. 37-41, São Paulo, Boitempo, 2006.
93
sociais, maior era a brutalidade do Estado para com elas, e a criação de grupos
de extermínio na quase totalidade das cidades brasileiras ratificam esse processo.
Dentre os diversos grupos de extermínio que surgiram, os formados em
São Paulo e Rio de Janeiro tiveram maior destaque no cenário brasileiro em
decorrência, tanto da grande quantidade de pessoas executadas – cerca de 2.000
pessoas entre 1958 e 1980 –, quanto pelo alarde causado pelas constantes
publicações na imprensa da época. De acordo com o Jornal do Comércio, apenas
em fevereiro de 1970, foram quase 500 pessoas mortas, “(...) de acordo com o
levantamento feito pelos próprios esquadrões, o do Rio de Janeiro tinha a seu
crédito, 262 vítimas. O paulista, que anunciara apenas 23 de sua lista inicial,
ultrapassou os números [do carioca]”216.
Nos estados do Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Paraná, de acordo com
o Jornal do Comércio, a atuação desses grupos contou com menor prestígio em
relação aos dois grandes grupos – São Paulo e Rio de Janeiro -, mas com o
mesmo apoio dos representantes do governo, em todos os níveis217.
Em Alagoas, de acordo com Majella218, os grupos de extermínio,
conhecidos por “sindicato do crime”, “esquadrão da morte” e “sindicato da morte”,
atuaram entre 1975 e 1998 e eram também formados por policiais. Esses grupos
tinham, em seu cerne, as marcas do coronelismo, no qual os proprietários de
terras se apoderavam das instituições locais para benefício próprio – fato que
define a atuação do Estado como representação dos interesses privados dos
latifundiários, de cuja força repressiva se serviam para garantir a manutenção e o
controle econômico e político dessas relações219. De acordo com Meneghetti, “o
uso da violência como recurso das elites econômicas e políticas faz parte da
história do estado de Alagoas, sendo a violência policial a de uso mais explícito”
(...)220.
216
“Esquadrão da morte promete matar novos bandidos". Jornal do Comércio.
22/02/1970. CHB - A5 - P30.
217
Idem.
218
MAJELLA, Geraldo de. Execuções sumárias e grupos de extermínio em Alagoas.
Maceió: EDUFAL, 2006.
219
Idem, p. 22.
220
MENEGHETTI, Francis Kanashiro. “Origem e fundamentos dos Esquadrões da morte
no Brasil”. In: XXXV Encontro da ANPAD. Rio de Janeiro, 2001, p. 5. Disponível em:
http://www.anpad.org.br/admin/pdf/EOR1233.pdf. Acesso em 28 mai.2015.
94
À semelhança dos jagunços, assunto tratado no capítulo anterior, tais
grupos de extermínio, oriundos das cidades do nordeste brasileiro deram
continuidade a uma prática já existente que marcava a pré-formação de
esquadrões, na figura dos “volantes”, que eram um braço armado do Estado,
praticando a execução de indivíduos indesejáveis ao sistema. É nesse sentido,
pontua Majella, que os grupos de extermínio desse Estado têm na sua base a
violência como uma “prática institucionalizada nas suas elites agrárias e
diretamente relacionada com a proteção da propriedade privada rural”221.
Em alguns casos, nas regiões de maior quantidade populacional e,
principalmente, maior incidência de grupos de trabalhadores organizados, havia
vários esquadrões atuantes. No Rio de Janeiro, o grupo precursor foi o do
detetive Eurípedes Malta, criador do primeiro grupo carioca no final da década de
1950. Logo em seguida, foi criado o mais famoso grupo do Rio de Janeiro, a
“Scuderia Le Cocq”, que recebeu esse nome em homenagem ao detetive Milton
Le Cocq de Oliveira, morto pelo indivíduo apelidado pela imprensa da época de
“Cara de Cavalo”, em uma execução cheia de controvérsias, já que uma das
balas retiradas do corpo do detetive foi deflagrada pela arma de um dos policias
da própria equipe de Le Cocq. Foi na cerimônia de sepultamento dele que os
policiais oficializaram a existência do grupo de extermínio que ganhou seu nome,
tendo em vista que o esquadrão da morte, chefiado pelo próprio Milton Le Cocq já
atuava no Rio de Janeiro. Dessa forma, a data da sua morte foi apenas o marco
de “inauguração oficial”.
Todavia, após morte de Milton Le Cocq, algumas práticas anteriormente
realizadas pelo grupo foram modificadas, pois, enquanto seu fundador estava na
liderança, havia um esforço em “passar para a opinião pública a imagem de que
matavam perigosos marginais em luta e troca de tiros”, aponta a pesquisadora
Marcia Regina da Costa222. Fato é que essa preocupação não era foco dos
membros da Scuderia Le Cocq que, atendendo às necessidades estatais,
passaram a fazer as execuções com grandes espetáculos de torturas e
mutilações, como podiam ser vistos nos corpos das vítimas, gerando grande
221
MAJELLA, 2006, op.cit., p. 22.
222
COSTA, Márcia Regina. “1968: O esquadrão da morte em São Paulo” In: SILVA, Ana
Amélia da e CHAIA, Miguel (orgs.). Sociedade, Cultura e política: Ensaios críticos. São
Paulo: EDUC, 2004, p. 379.
95
medo na população. Do seu começo, no final da década de 1950 até 1968, a
Scuderia executou mais de 250 pessoas223.
Ainda no Rio de Janeiro, havia o grupo do policial Perpétuo de Freitas,
conhecido como “caçador de bandidos” que agia na região da Baixada
Fluminense e em conjunto com delegados, comissários e investigadores. Suas
técnicas, de acordo com a Revista Veja, deram início à prática dos chamados
“relações públicas”, informantes da imprensa quanto à localização dos corpos e
próximas vítimas a serem feitas.
223
COSTA, 2004, op. cit., p. 371.
224
"Polícia contra ao fantasma". Veja. 25/03/1970. CHB - A5 - P30.
225
"Mataram criminoso e depois crivaram o cadáver de balas". Notícias populares.
17/02/1970. CHB - A5- P30.
226
"Polícia Mineira mata mais cinco". Diário Paulista (Rio de Janeiro). DOPS.
08/08/1977. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0992 - 1977-1977.
96
Andrade e Paulo “Cigano”, ambos também envolvidos em outros esquadrões
atuantes nessa região227.
Em São Paulo, a dinâmica também foi a mesma, existindo inúmeros grupos
de extermínio, como o da capital, o de Santos e o de Diadema. No caso do grupo
da capital, os assassinatos realizados pelos esquadrões da morte começaram em
meados de novembro de 1968 após a morte do investigador de polícia Davi
Romero Paré em uma perseguição policial ao indivíduo alcunhado de Saponga.
Em seu sepultamento, os policiais prometeram vingança e a realizaram,
executando cerca de 30 pessoas em menos de quatro meses 228.
A semelhança entre os grupos – paulista e carioca – não foi à toa, pois os
indícios documentais apontam para a realização de um encontro entre
autoridades paulistas e cariocas em prol da formação de um grupo de extermínio
em São Paulo nos moldes do já existente no estado vizinho. Tal encontro foi
anterior à morte de Paré. O objetivo era eliminar indivíduos que contestavam a
ordem vigente, bem como eram entendidos como obstáculos ao desenvolvimento
do capitalismo brasileiro que se punha aos moldes da “via colonial”. Bastava
então conhecer melhor o modelo e aplicá-lo ao Estado paulista. De acordo com
Percival de Souza,
227
"A polícia mineira mata". O Estado de São Paulo (Sucursal do Rio de Janeiro).
DOPS. 17/11/1977. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0992 (n° 67) 1977 - 77.
228
MATTOS, 2011, op. cit., p. 27-8.
229
SOUZA, Percival. Autopsia do medo: vida e morte do delegado Sérgio Paranhos
Fleury, São Paulo: Globo, 2000, p. 70.
97
Qual dos chefes [dos esquadrões da morte]? Disseram que há vários
esquadrões por aí... Em tudo o que eu fiz, recebi ordens. Vinham lá de
cima. Você acha que o governo não poderia, se quisesse, acabar com o
esquadrão da morte? Há vários policiais que nunca aparecem em
nenhum processo e participavam disso.(...) O que havia era um grupo
de policiais fazendo (a) justiça com as próprias mãos.(...) um grupo
quente, protegido por forças superiores. O esquadrão faz parte de uma
guerra política. Não importa quem está sendo julgado. É a minha vez de
ficar sentado no banco dos réus. Mas esta é uma história que já está
terminando... Acho que é meu dever encarar isso230.
230
Diálogo publicado em SOUZA, 2000, op. cit., p. 540 e também em “Entrevista com
Percival de Souza”. Jornal da Tarde de 27/11/2000, disponível em
http://intocaveis.com.br/480-1SinonimoDeTortura.html. Acesso em 22 jul.2010.
231
GUIMARÃES, Ewerton Montenegro. A chancela do crime: a verdadeira história do
esquadrão da morte. Ed. Âmbito Cultural. 1978.
232
Idem, p. 13.
98
(...) além de denunciar a conivência [do governador Cristiano Dias
Lopes] com os crimes do esquadrão da morte do Espírito Santo, acusa
seu irmão, o ex-secretário da Segurança José Dias Lopes, vulgo “Zé
Pavão”, de chefiar a organização responsável pelo assassínio
comprovado de 17 pessoas e de outras 100 cujos corpos não foram
encontrados233.
233
"Cristiano tenta vetar livro do esquadrão". O Estado de São Paulo (Sucursal de
Vitória). DOPS. 22/09/1977. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0992 - 1977-
1977 - esquadrão da morte.
234
“Vítima do esquadrão depõe na PM mineira". Folha da Tarde. DOPS. 06/10/1978.
Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte.
235
"Surge o esquadrão da morte mineiro". Folha da Tarde. DOPS. 26/09/1978. Arquivo
do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte e "Policiais
mineiros negam envolvimento com esquadrão". Jornal da Tarde. DOPS. 28/09/1978.
Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte.
236
"Dois crimes misteriosos em Belo Horizonte". Folha da Tarde. DOPS. 27/10/1978.
Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte.
99
No que tange à forma de ação, o modus operandi de todos os estados foi
igual, pois todos os assassinatos eram realizados no formato de execução
sumária, sem chance de defesa das vítimas – em alguns casos, as vítimas já
estavam inclusive encarceradas. A tortura física era regra, e os corpos desovados
nos cemitérios clandestinos ou municipais dos bairros periféricos das grandes
cidades, impedindo que houvesse testemunhas, dado o temor da população em
denunciar esses grupos e, posteriormente, ser perseguida por eles.
237
CARDOSO, Ítalo; BERNARDES, Laura (orgs.). Vala clandestina de Perus:
desaparecidos políticos, um capítulo não encerrado da história brasileira. São Paulo:
Instituto Macuco, 2012, p. 24.
100
por eles como marginais – perpetuava-se, dessa maneira, a dinâmica do Estado
autocrático burguês bonapartista vigente.
Se a marca mais visível da violência perpetrada pelos esquadrões era a
manifestação da eliminação física, outras formas também foram empregadas,
como a violência psicológica, social, política, uma vez que a tensão e o medo que
vigoravam entre as pessoas dos bairros periféricos, garantiam que se calassem,
não questionassem e, com isto, a “perpetuação da exclusão socioeconômica e
cultural que tem caracterizado o capitalismo”238. Passemos a analisar as
categorias que configuram o modus operandi desses grupos paramilitares.
238
FRANCISCATTI, K. V. S. Violência, preconceito e propriedade. Um estudo sobre a
violência a partir da teoria crítica da sociedade. São Paulo, sn, 1998, apud VIEIRA, Vera
Lucia. Criminalização das lutas sociais em estados autocráticos burgueses In: Revista
Projeto História, São Paulo (31), dez.2005, p. 190.
239
Organizado em parceria com o Centro de Estudos de História da América Latina
(CEHAL-PUC-SP) e vinculado ao Programa de Estudos de Pós-graduação em História
da PUC-SP, o Observatório de Violências Policiais (OVP) reúne um grande acervo sobre
a violência institucional do Estado brasileiro. A definição exposta foi extraída e tantos
outros casos de violência policial, ver: http://www.ovp-sp.org/indice_exec.htm#execucoes.
101
o jornal Notícias populares, ao narrar a execução do indivíduo Jorge da Silva,
vulgo “Neguinho”, morto pelo esquadrão da morte carioca.
As execuções também eram feitas com uma grande quantidade de tiros 241
e, em muitos casos, a vítima era carbonizada em seguida, dificultando o trabalho
de reconhecimento e as apurações feitas pelos órgãos estatais. As armas dos
membros do esquadrão também eram feitas “sob medida” por seus próprios
armeiros, que transformava os canos das armas a serem utilizadas nas
chacinas242. Outra prática utilizada pelos grupos era deixar sobre o corpo da
vítima um cartão com desenho de caveira e tíbias cruzadas e a inscrição “EM”,
comumente associado aos esquadrões da morte243.
Ao longo da década de 1970, as matanças realizadas pelos esquadrões
eram rotineiramente noticiadas nos veículos de imprensa. A quantidade de
pessoas mortas, tanto na somatória semanal quanto em execuções singulares,
impressionava, pois poucos foram os casos em que apenas uma pessoa foi
morta. Normalmente, os esquadrões executavam grupos inteiros como apontou o
Jornal Folha da Tarde, em agosto de 1978, sobre o assassinato de quatro
pessoas no Rio de Janeiro, atingidas com 83 disparos de armas de calibres
diversos, inclusive metralhadoras, ou seja, mais de vinte tiros em cada pessoa.
Os métodos usados eram de guerra, pois as vítimas foram “enfileiradas num
barranco e assassinadas”244. Não bastava, portanto, matar a pessoa, era
240
"Esquadrão fuzilou comparsa de Renatinho". Notícias populares. 07/02/1970. CHB -
A5 - P30.
241
"Esquadrão". Diário da Noite. DOPS. 09/08/1978. Arquivo do Estado de São Paulo.
Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte e também "Continua matança na Baixada
Fluminense". Folha da Tarde. DOPS. 29/08/1978. Arquivo do Estado de São Paulo.
Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte.
242
"Preso o homem que armava esquadrão". Folha de São Paulo (Sucursal do Rio de
Janeiro). 18/08/1977. DOPS. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0992 - 1977-
1977.
243
"Esquadrão da morte executa 2 presuntos". Notícias populares. 16/01/1970. Coleção
Hélio Bicudo (CHB) - A5 - P30.
244
"EM no Rio mata 4 com metralhadoras". Folha da Tarde. DOPS. 05/08/1978. Arquivo
do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte.
102
necessário criar um show de horrores, uma grande carnificina, potencializando a
eficácia desses grupos frente aos segmentos sociais mais pobres – e contra
quem inicialmente esses grupos atuavam. Ao temê-los, acabavam silenciando-se
diante das arbitrariedades impostas pelo aparelho repressivo a sua existência.
O uso de táticas de guerra pelo Estado brasileiro estava pautado na
dinâmica da Doutrina de Guerra Revolucionária, introduzida no Brasil pela Escola
Francesa, como vimos anteriormente. Inúmeras estratégias compunham sua
base, dentre elas, a eliminação física dos indivíduos indesejáveis à ordem
estabelecida e perpetrada por esquadrões da morte. De acordo com Lemoine,
245
LEMOINE, 2004 apud BAUER, Caroline Silveira. “Aproximações entre o combate à
guerrilha do Araguaia e o operativo indenpendencia na Argentina: preceitos da Guerre
Révolutionnaire no Cone Sul”. Escritas Vol. 3 (2011), p.84-112. Disponível em:
http://www.uft.edu.br/revistaescritas/sistema/uploads/aproximac3a7c3b5es-entre-o-
combate-c3a0-guerrilha-do-araguaia-e-o-operativo-independencia-na-argentina-
preceitos-da-guerre-rc3a9volutionnaire-no-cone-sul.pdf. Acesso em 09/05/2015.
246
ARANTES, Maria Auxiliadora de Almeida Cunha. Tortura: testemunhos de um crime
demasiadamente humano. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2013, p. 338-42.
103
tese, potencializou a atuação do delegado bem como o levou para os altos postos
do aparato repressivo.
247
CARDOSO e BERNARDES, 2012, op. cit., p. 26.
248
"No Rio, esquadrão da morte executa mais cinco pessoas". Folha de São Paulo
(Sucursal do Rio de Janeiro). DOPS. 25/11/1977. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta
OS 0992 (n° 67) 1977 - 77.
249
"Esquadrão da morte executa mais 5 na Baixada Fluminense". Notícias populares.
DOPS. 05/07/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão
da morte.
250
"Atropelamentos e um crime são atribuídos ao EM". Notícias populares. DOPS.
05/07/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da
morte.
251
"Mais uma vítima do esquadrão do Rio". Folha da Tarde. DOPS. 06/07/1978. Arquivo
do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte.
252
"Esquadrão da morte promete matar novos bandidos". Jornal do Comércio.
22/02/1970. CHB - A5 - P30.
104
diversos – 22, 32, 38 -, desovando os corpos em estradas desertas, para dificultar
a possibilidade de haver testemunhas253.
Em Santos, o esquadrão da morte também fazia muitas vítimas, caso do
assassinato de Juca do Marapé, “cujo corpo foi encontrado” em uma estrada da
região e sua morte informada para as autoridades e para a imprensa via Relações
Públicas254.
Fora do eixo sudeste, no nordeste brasileiro, o modus operandi dos
esquadrões locais também se mantinha. Eles executavam suas vítimas e
deixavam os corpos em locais desertos de municípios do interior, como no caso
do grupo existente na Paraíba. De acordo com o jornal Diário Paulista,
258
"Esquadrão anuncia mais um presunto" Notícias Populares. 19/01/1970. CHB - A5 -
P30.
259
"Delegado é o assassino do fuzilado n° 4 da caveira fluminense". O Jornal.
29/01/1970. CHB - A5 - P30.
260
"São Paulo lidera torneio da morte". O Jornal. 22/01/1970. CHB - A5 - P30.
106
a castração até a mutilação de outros órgãos – há indícios de que foram
previamente algemados”261.
Em outro caso, as vítimas foram obrigadas a comer cacos de vidro de um
copo e de uma garrafa que, de acordo com o médico legista, os mortos estavam
com a garganta “totalmente dilacerada”262. Em outras execuções, as vítimas
foram estraçalhadas ao serem postas nos trilhos de um trem263. Em muitos casos,
não era possível sequer identificá-las, dada a situação em que deixaram o corpo,
com rosto, braços e mãos dilaceradas, inclusive por cães264. No caso do taxista
polonês identificado como Kalma Nisker (ou Kalma Kiskier), em Nova Iguaçu,
havia indícios de que ele tivera sido enterrado vivo após ter sofrido torturas, pois
havia
261
"Igreja denuncia 96 crimes do esquadrão". Jornal da Tarde (Sucursal do Rio de
Janeiro). DOPS. 31/03/’. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993 (n° 68) -
esquadrão da morte e também "Diocese denuncia esquadrão". O Estado de São Paulo
(Sucursal do Rio de Janeiro). DOPS. 31/03/1978. Arquivo do Estado de São Paulo.
Pasta OS 0993 (n° 68) - esquadrão da morte.
262
"Mais 10 mortos na Baixada no fim de semana". Folha de São Paulo (Sucursal do Rio
de Janeiro). DOPS. 03/04/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993 (n° 68)
- esquadrão da morte.
263
"Esquadrão do rio continua matança". Folha da Tarde. DOPS. 04/05/1978. Arquivo do
Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte.
264
"Mais 5 mortos na Baixada Fluminense". Folha de São Paulo. DOPS. 02/06/1978.
Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte.
265
"Rio: um motorista enterrado vivo". Jornal da Tarde. DOPS. 08/05/1978. Arquivo do
Estado de São Paulo Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte.
107
após sessões de tortura. São inúmeros os documentos que trazem isso à tona 266.
O jornal O Globo RJ, ao realizar um levantamento sobre as mortes atribuídas ao
esquadrão paulista, após a morte do investigador Davi Paré, descreveu a
brutalidade do grupo paulista,
(...) dois dias depois [da morte do investigador Paré] aparecia (...) o
cadáver do marginal Neizão. A seguir, foram executados Domiciano
Antunes Filho, [apelidado de] Luciano, o traficante de drogas Paraíba e
um outro ainda não identificado, todos no dia 2 de dezembro de 1968.
Um dia depois, apareceram os corpos de Baltazar e Nego Sete. Dia 9
de Dezembro foram encontrados dois corpos crivados de balas, em
Guararema. No mesmo dia, em mata do Morumbi, aparecia o cadáver
de Cláudio José Faria com 12 tiros. Dia 18 de dezembro (...). Na
estrada Nazaré-Paulista-Mairiporã, estavam em um terreno, todos
furados de balas, Antônio Dalava, o Nico; Antonio Mendonça, o Gaúcho;
e Marcos Pietrafieza, o Italianinho. Dia 27 de dezembro, no Sitio
Pinheirinho, em Arujá, foi executado Airton Néri Nazareth. No dia 3 de
janeiro de 1969, o bandido Lambreta foi fuzilado no quilômetro 53 da via
Castelo Branco. Saponga morreu com 21 tiros, no sítio Coqueiros,
Jardim Tremembé, a 8 de janeiro de 1969. Três dias depois, outro corpo
aparecia nos fundos do cemitério Santo Antônio, em Osasco,
metralhado. No dia 2 de março de 1969, em Guararema, com 50 tiros,
foi fuzilado o “rei” da maconha, Horácio Fidalgo. Depois, foram mortos,
Lindalva Trajano, enterrada em um terreno de Diadema, Darcy da Lili,
Darci da Bôca, Baianinho das Tretas, Gauchinho da Bôca, Peralta,
Caveirinha, Gasolina, Mão Branca, Vadinho, Pancada, Nicão e Mato
Grosso. Outros corpos não identificados foram sepultados como
indigentes em diversos cemitérios267.
266
. Boletim Informativo nº 291 de 15/12/1969. SNI - Agência São Paulo. d. Atividades
Subversivas. Dossiê 20-C-43, documento 512; Boletim Informativo nº 300. SNI -
Agência São Paulo. d. Atividades Subversivas. Dossiê 20-C-43, documento 556; Boletim
Informativo nº 276 de 27/11/1969. SNI - Agência São Paulo. d. Atividades Subversivas.
Dossiê DOPS 20-C-43, documento 390, pasta 5; Boletim Informativo nº 280. SNI -
Agência São Paulo. d. Atividades Subversivas. Data 02/12/1969. Dossiê 20-C-43, pasta
5, documento 407; Boletim Informativo nº 280. SNI - Agência São Paulo. D. Opinião
Pública - Manchetes Principais. Data 02/12/1969. Dossiê 20-C-43, pasta 5, documento
407; Boletim Informativo nº 291 de 15/12/1969. SNI - Agência São Paulo. d. Atividades
Subversivas. Dossiê 20-C-43, documento 512. Arquivo do Estado de São Paulo.
267
.“Sem título”. O Globo RJ, São Paulo, 28/07/1970, dossiê DOPS 50-Z-09, pasta 77,
documento 13.881. Arquivo do Estado de São Paulo.
268
"Esquadrão abandona mais três cadáveres no Rio". Folha da Tarde. DOPS.
12/06/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da
morte; "Reiniciada a matança na Baixada Fluminense". Folha da Tarde. DOPS.
23/06/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da
morte.
108
explicações aos familiares para executá-los após longas sessões de tortura. Esse
era o procedimento – tão habitual no trato ao criminoso político quanto ao
criminoso comum – como contou a vítima Araguari de Oliveira Santos, quando
encontrado por transeuntes antes de entrar em coma269.
269
"No Rio, o esquadrão deixa vítima com vida". Folha de São Paulo. DOPS.
12/05/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da
morte.
270
"Mortes e quatro sequestrados no Rio". Folha da Tarde. DOPS. 11/05/1978. Arquivo
do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte.
271
"EM deixa vítima na lixeira". Folha de São Paulo. DOPS. 11/05/1978. Arquivo do
Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte.
272
"EM sequestra e baleia estudante de 16 anos no Rio". Folha de São Paulo. DOPS.
11/05/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da
morte.
109
mortes por doenças não tratadas ou assassinatos durante rebeliões são de total
responsabilidade do Estado273. Em contraposição à obrigação e cumprimento da
segurança aos presos, no Estado de São Paulo, os esquadrões tinham o hábito
de retirar indivíduos encarcerados para serem executados e depois desovados
em locais afastados. Em um dos casos, dois indivíduos foram retirados do
Presídio Tiradentes274, passaram por sessões de tortura, foram executados com
balas de grosso calibre e deixados em um matagal na Estrada do Alvarenga, no
Munícipio de Diadema275.
O Departamento Estadual de Investigações Criminais (DEIC) também foi
palco de retiradas de encarcerados para execução. Em uma das situações, três
pessoas foram retiradas, executadas e tiveram seus corpos desovados em
estradas de pouca movimentação no estado de São Paulo 276. Para isentar-se de
culpa e também dificultar as investigações, os agentes do Estado criaram
documentos falsos que associavam a permanência das vítimas a locais de
encarceramento distintos dos verdadeiros, assim como também criavam
documentos atestando que as vítimas já gozavam de liberdade antes do crime 277.
273
Para maiores informações, ver http://www.ovp-sp.org/indice_exec.htm#execucoes.
Acesso em 28 mai. 2015.
274
O embrião do Presídio Tiradentes começou a ser construído, em 1825, no Paço
Municipal, ficando pronto vinte anos depois e com a finalidade de encarcerar escravos
fugitivos e os chamados arruaceiros. Durante o Estado Novo, o presídio passou a receber
presos políticos e, na Ditadura Militar, ele se tornou a casa de detenção de opositores do
regime militar e também presos correcionais. Em 1973, ele foi desativado por risco de
queda e demolido no mesmo ano. Cf. FREIRE, Alípio; ALMADA, Izaias; PONCE, J. A. de
Granville (orgs.). Tiradentes: um presídio da ditadura: memórias de presos políticos. São
Paulo: Ed. Scipione, 1997.
275
"O julgamento dos policiais em Diadema". Folha da Tarde. DOPS. 06/06/1978.
Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte;
"Esquadrão responde por duplo homicídio". Folha de São Paulo. DOPS. 06/06/1978.
Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte e também
"Diadema julga 3 integrantes do esquadrão". O Estado de São Paulo. DOPS.
06/06/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da
morte.
276
"Esquadrão: o investigador acusado é absolvido". O Estado de São Paulo. DOPS.
26/07/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da
morte.
277
Idem.
110
“A defesa também assegurou que os três presos mortos não estavam no DEIC,
mas sim na Casa de Detenção, o que invalidaria as acusações da promotoria”278.
Forjar provas, no entanto, não era uma prática nova, mas sim comumente
utilizada pelas polícias brasileiras, fato que não nos causa estranhamento quando
também foi feito pelos esquadrões. Essa prática será detidamente apurada ao
longo do capítulo 5.
Em um dos casos, junto à vítima identificada pelo nome de “Naval”,
alvejada com diversos tiros, muitos em curta distância, foi deixada uma arma em
suas mãos para forjar o “auto de resistência seguida de morte” 279, justificando a
ação do bando em prol da legítima defesa 280. No entanto, o suposto tiroteio não
possuía testemunhas, tampouco havia vestígios que comprovassem que de fato
existiu, havendo como prova apenas a arma encontrada na mão da vítima, como
aponta o jornal Folha de São Paulo: “nas mãos de Naval, (...) o delegado
arrecadou um velho revólver com três cápsulas deflagradas. O suposto tiroteio
havido entre a vítima e os policiais não teve testemunhas”281.
O uso da classificação “auto de resistência”, ou ainda, “resistência seguida
de morte” eram simbologias policiais que tinham a função de justificar a execução,
atribuindo a ela a justificativa de que os policiais apenas se defenderam de um
ataque – a morte causada aos “agressores” era apenas uma consequência.
Todavia, na realidade, tal determinação consistia em “construir” uma cena do
crime para legitimar a ação policial, normalmente sendo deixadas armas e
278
"Esquadrão: o investigador acusado é absolvido". O Estado de São Paulo. DOPS.
26/07/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da
morte.
279
O “auto de resistência seguida de morte” ou apenas “resistência seguida de morte”
compõe o artigo 292 do Código de Processo Penal, promulgado, em 1941, no Brasil: “Se
houver, ainda que por parte de terceiros, resistência à prisão em flagrante ou à
determinada por autoridade competente, o executor e as pessoas que o auxiliarem
poderão usar dos meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência, do
que tudo se lavrará auto subscrito também por duas testemunhas”. Desde sua
promulgação até os dias atuais, esse pressuposto tem sido usado para justificar a
execução de indivíduos normalmente pobres, negros e de bairros periféricos. Na
atualidade, há grande mobilização da sociedade civil para aprovar o projeto de Lei
4471/2012 que substitui essa terminologia por “morte decorrente de intervenção policial”.
280
"Esquadrão da morte faz mais 4 vítimas". Folha de São Paulo. DOPS. 04/05/1978.
Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte e também
"Esquadrão do rio continua matança". Folha da Tarde. DOPS. 04/05/1978. Arquivo do
Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte.
281
"Esquadrão da morte faz mais 4 vítimas". Folha de São Paulo. DOPS. 04/05/1978.
Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte.
111
cápsulas deflagradas próximas aos corpos para simular o auto de resistência.
Como aponta o Jornal da Tarde, no caso da vítima alcunhada de “Naval”, a cena
do crime legitimava a afirmativa de que havia ocorrido um grande tiroteio, pois
“colocando revólveres com cápsulas deflagradas ao lado do corpo de dois
rapazes (...)”282, dava a noção de que, na luta entre os dois lados, os “agressores”
levaram a pior, encerrando assim, qualquer tipo de apuração sequente.
Em contraposição, os laudos feitos por legistas quando chegavam alguns
desses corpos, ou quando não se tratavam – ou não se sabia – de lideranças de
grupos políticos e militantes procurados283, os médicos acabavam descontruindo
a afirmativa da polícia ao mostrar que os tiros recebidos pela vítima foram feitos à
queima-roupa, sem chance de defesa tampouco possibilidade de revidar. Havia,
inclusive, indícios, em alguns casos, de que as vítimas estavam algemadas no
momento da execução, informações que constavam nos laudos periciais284.
A dissonância entre os relatórios policiais e os produzidos pelo Instituto
Médico Legal (IML), no caso das mortes de indivíduos classificados como
criminosos, era grotesca, como detalhou o jornalista Caco Barcellos. Ele aponta
que a discrepância se dava de várias formas, dentre elas, a criação de cenas que
justificassem a matança policial. Se os relatórios policiais apontavam para a
ocorrência de um grande tiroteio, o laudo cadavérico produzido pelo IML mostrava
a execução da vítima com tiro recebido na nuca e à queima-roupa285. Tal
dissonância mostra a prática efetiva do Estado no trato a seus cidadãos menos
favorecidos, pautado na violência extrema, característica básica da autocracia
burguesa bonapartista.
O caso dos encarcerados, retirados do Departamento Estadual de
Investigações Criminais (DEIC), é um exemplo do forjamento de documentos,
pois, mesmo havendo o testemunho dos demais detentos, confirmando que os
indivíduos estavam ali encarcerados e que foram retirados de lá para a morte, no
282
"Ação da justiça do Rio contra esquadrão". Folha da tarde. DOPS. 12/09/1978.
Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte.
283
Inúmeros médicos legistas colaboraram diretamente com a ditadura militar ao forjarem
laudos médicos de necropsias onde não apontavam as marcas de tortura e agressões
sofridas pelas vítimas, bem como ratificavam a causa da morte apontada pelos policiais
nas suas fichas internas. Cf. CARDOSO e BERNARDES, 2012, op.cit.
284
Cf. BARCELLOS, Caco. Rota 66: a história da polícia que mata. Rio de Janeiro:
Record, 2008.
285
Idem.
112
momento do julgamento dos policiais, prevaleceu a prova documental em
contraposição ao testemunho dos colegas de encarceramento. Como constatou o
jornal O Estado de São Paulo, o testemunho de um encarcerado não foi
considerado pelo judiciário como qualificado para acusar um agente do Estado 286.
A prática de retirar pessoas de presídios para serem executadas, no
entanto, não é exclusiva dos grupos paulistas. No Espírito Santo, diversos
aprisionados foram retirados do Presídio, levados ao Cemitério clandestino do
Jucu e também executadas após longas sessões de torturas, como aponta o
pesquisador Ewerton Guimarães287. Em meados de 1975, no estado de Alagoas,
inúmeras pessoas passaram a “desaparecer”, todavia, na “sua grande maioria do
Presídio São Lourenço e das delegacias de policiais”288, aponta Majella e, se
considerarmos a prática de executar os indivíduos que já estavam em poder da
polícia, totalmente imobilizados, muitos até já com algemas, mas que ainda não
foram levados para nenhuma carceragem, aí sim podemos afirmar que a
execução de pessoas sob custódia do Estado foi utilizada por todos os grupos de
extermínio brasileiro, inclusive justificado pelas autoridades como meio de
resolver a inoperância do judiciário.
286
"Esquadrão: o investigador acusado é absolvido". O Estado de São Paulo. DOPS.
26/07/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da
morte.
287
GUIMARÃES, 1978, op. cit.
288
MAJELLA, 2006, op.cit.,p. 27.
289
"Mais três cadáveres encontrados no Rio". Folha da Tarde. DOPS. 13/04/1978.
Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte.
113
Esses locais eram instalados dentro de cemitérios municipais e por serem
um espaço de sepultamentos “oficiais”, as vítimas enterradas eram classificadas
como indigentes ou com nomes falsos, graças à colaboração de legistas do
Instituto Médico Legal, que faziam a liberação dos corpos e emissão de atestado
de óbito, omitindo as marcas de tortura290 e as reais causas das mortes, fossem
eles militantes ou não – trâmite que servia para dificultar a busca dos familiares.
Tanto o governo federal quanto os estaduais sabiam desse trâmite291. Em São
Paulo,
(...) o cemitério da Vila Formosa que recebeu estes corpos até 1970,
sofreu modificações nos anos de 1975 e 1976, exatamente nas quadras
onde estavam enterrados os presos políticos, como forma de impedir o
acesso aos corpos. As ordens expressas para o tratamento diferenciado
de corpos de presos políticos partiram dos órgãos de segurança
nacional (centros da repressão política) para o IML que, por sua vez,
encaminhava os cadáveres para os cemitérios, com nomes falsos, ou
como desconhecidos292.
O uso desses espaços para sepultamento das vítimas dos esquadrões foi
comum em todo o território brasileiro. Destaca-se essa prática no Cemitério da
Vila Formosa, na Zona Leste de São Paulo, no de Perus, na região metropolitana
de São Paulo, próximo ao Vale do Juqueri e Serra da Cantareira, no Cemitério de
Santo Amaro, em Recife (PE) e no Cemitério de Ricardo Albuquerque, localizado
na região do Grande Rio (RJ). Além destes, há outros seis no Rio de Janeiro, três
em Pernambuco, um no Paraná, quatro em Goiás e um em Minas Gerais “cujas
investigações feitas ao longo dos anos indicam a ocorrência da mesma prática e a
existência de valas clandestinas”293 – sem considerar os corpos que foram
jogados no mar e nos rios, ou mesmo queimados como na região do Araguaia.
Em Alagoas, o local para desova de corpos era conhecido como “Cemitério da
Coca-Cola”, e os operários da fábrica de refrigerantes de mesmo nome, em
meados de 1970, “encontraram 16 corpos enterrados em vala coletiva”294.
290
As formas e uso da tortura pelos esquadrões da morte serão devidamente analisadas
no próximo capítulo.
291
ARANTES, 2013, op.cit., p. 240-50.
292
CARDOSO e BERNARDES, 2012, op. cit., p. 66.
293
ARANTES, 2013, op. cit., p. 251.
294
MAJELLA, 2006, op. cit., p. 26.
114
Em 1990, após inúmeras pressões de órgãos ligados aos direitos humanos
e familiares das vítimas da ditadura, descobriu-se cerca de 1.049 ossadas,
colocadas em sacos plásticos e sem identificação. A descoberta dessa vala
comum só foi possível graças à “denúncia” feita pelo administrador do cemitério
de Perus, o funcionário Antônio Pires Eustáquio que, na década de 1970, viu a
abertura da vala e guardou esse segredo até então. De acordo com Eustaquio,
“para lá eram levados os corpos de indigentes, vítimas anônimas do Esquadrão
da Morte, da miséria social e da repressão política, para serem enterrados em
covas individuais ou jogados numa vala comum”295.
Essas valas, denunciadas no início da década de 1990, passaram por
vários processos ao longo do período ditatorial, desde suas aberturas até a busca
pelo seu esquecimento, como se as famílias não mais fossem procurar por seus
entes queridos. Nesse último processo, datada de 1974, o General Ernesto Geisel
(1974-1979) passou a ordenar que as valas comuns fossem destruídas, acabando
com os vestígios do passado recente. De acordo com Cardoso e Bernardes, esse
período da ditadura
295
CARDOSO e BERNARDES, 2012, op. cit., p. 21.
296
Idem, p. 49-50.
115
corpos em cemitérios clandestinos, comumente sabidos por todos, inclusive
quanto a sua localização. Nesses espaços eram sepultados todos os tipos de
opositores do Estado, fossem os contestadores atrelados à militância ou as
pessoas que buscavam melhores condições de vida dada a permanente situação
de exclusão ao acesso dos bens produzidos coletivamente.
Esses cemitérios clandestinos existiram em todo o território brasileiro. No
Rio de Janeiro, somente na Baixada Fluminense existiam dois; um no Rio Guandu
e sabido pelos funcionários da Cosigua, empresa situada às margens desse rio e
outro no quilometro 10 da Avenida Joaquim da Costa Lima, “onde desde 1968 já
foram encontrados inúmeros cadáveres com a marca do EM” 297.
Nesse bairro também havia metas a serem cumpridas: ao menos duas pessoas
deveriam ser mortas por dia na Baixada Fluminense298.
Ainda na Baixada Fluminense, na estrada de Adrianópolis, em Nova
Iguaçu, frequentemente corpos eram deixados ali pelos esquadrões: “ali são
abandonados muitos corpos de pessoas assassinadas na Baixada Fluminense,
em geral com diversas balas e mais sinais de violência pelo corpo”299, local onde
“mais de vinte cadáveres crivados de tiros foram encontrados nos últimos
meses”300. A própria polícia de Nova Iguaçu reconhecia o local como cemitério do
esquadrão naquela localidade301.
No Espírito Santo, o esquadrão da morte local também possuía um
cemitério próprio para as suas vítimas. Essa informação foi trazida à tona por um
dos integrantes do grupo, o ex-policial civil Ernani Barcelos. O agente público
apontou que o cemitério na Barra de Jucu, no município de Vila Velha, era o local
em que as vítimas eram enterradas, a comando de José Dias Lopes, ex-
297
"Achados mais 2 corpos na Baixada Fluminense". Folha da Tarde. DOPS.
25/09/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da
morte.
298
“Mais dois homicídios na Baixada Fluminense". Notícias Populares. DOPS.
13/04/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da
morte.
299
"Rio: um motorista enterrado vivo". N. DOPS. 08/05/1978. Arquivo do Estado de São
Paulo Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte e também "Mortes do E. M. carioca
podem envolver drogas". Folha de São Paulo. DOPS. 10/05/1978. Arquivo do Estado de
São Paulo Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte.
300
"Parentes reconhecem vítimas s do EM". Folha de São Paulo. DOPS. 03/08/1978.
Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte.
301
"Esquadrão fluminense continua a assassinar". Folha da Tarde. DOPS. 18/07/1978.
Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte.
116
secretário de Segurança desse Estado e articulador do grupo 302. Lá foram
encontrados onze cadáveres sepultados pelos esquadrões da morte capixaba 303.
Nas imediações desse local, quase uma centena de outras vítimas também foram
encontradas304.
Em Pernambuco, o comerciante Osvaldo Gomes de Morais, morto com
quatro tiros pelo esquadrão da morte local, comumente conhecido como
“Sindicato do Crime” – igual a um dos nomes atribuído ao grupo alagoano –,
também teve seu corpo deixado em uma avenida deserta do munícipio de
Garanhuns, conhecida por abrigar os corpos das vítimas desse grupo 305.
Vários outros homicídios, ocorridos nas mesmas circunstâncias, são
atribuídos a essa organização, cujo chefe era o sobrinho do então prefeito do
munícipio de Brejão, vizinho de Garanhuns306.
Em Alagoas, no munícipio de Maceió foram encontrados cerca de quarenta
corpos de vítimas do esquadrão da morte local, enterrados em três cemitérios
clandestinos. De acordo com o deputado José Costa, em discurso na tribuna da
Câmara local, “ocorreram cerca de 240 mortes misteriosas nos últimos 30 meses,
a maioria delas atribuídas ao esquadrão da morte alagoano” 307. Todos os corpos
encontrados possuíam perfurações de balas e um dos corpos havia sido
cremado 308 e “com evidências de participação policial”309.
302
"Condenado membro do EM a 197 anos". O Estado de São Paulo (Sucursal de
Vitória). DOPS. 25/08/1977. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0992 - 1977-
1977 - esquadrão da morte.
303
"Justiça condena membro do esquadrão capixaba". Folha da Tarde (Sucursal do Rio
de Janeiro e de Brasília). DOPS. 12/10/1977. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS
0992 - 1977-1977 - esquadrão da morte.
304
GUIMARÃES, 1978, op. cit.
305
"Morte é atribuída ao sindicato do crime". Folha da Tarde (Sucursal de Pernambuco).
DOPS. 29/09/1977. Pasta OS 0992 - 1977-1977 - esquadrão da morte.
306
"Outra morte é atribuída ao sindicato do crime". Notícias Populares (Sucursal de
Pernambuco). DOPS. 29/09/1977. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0992 -
1977-1977 - esquadrão da morte.
307
"Denunciada ação de esquadrão em Alagoas". Folha da Tarde. DOPS. 08/11/1977.
Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0992 - 1977-1977 - esquadrão da morte.
308
"Alagoas também tem "esquadrão", diz o deputado". Folha de São Paulo (sucursal de
Brasília). DOPS. 08/11/1977. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0992 - 1977-
1977 - esquadrão da morte.
309
"Delegacia invadida, tiroteio. Seria o esquadrão da morte de Alagoas?". Jornal da
Tarde. DOPS. 09/11/1977. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0992 - 1977-1977
- esquadrão da morte.
117
Ainda em Maceió, após o pronunciamento feito pelo deputado José Costa,
quatro homens encapuzados entraram em uma delegacia na cidade alagoana de
Batalha, a 210 quilômetros da capital Maceió e realizaram grande tiroteio contra
três presos. Ninguém ficou ferido, tampouco os encapuzados foram presos ou
identificados. No final da tarde desse mesmo dia, no entanto, um homem foi
encontrado morto próximo à delegacia alvejada. Pelas características narradas
por testemunhas, os executores da vítima foram os mesmos que atentaram contra
a delegacia310. A situação ficou sem apuração e, consequentemente, sem
indicação de culpados.
Outra prática dos esquadrões da morte era a execução das vítimas e
posterior desova dos corpos em locais onde havia disputa do ponto de venda de
drogas, de modo a associar às mortes a ação dos traficantes. Como mostra o
jornal O Estado de São Paulo, após a execução errônea de dois indivíduos, sendo
um destes, cabo da Aeronáutica, os policiais o levaram junto com um amigo e
outros dois indivíduos para uma região de disputa entre o tráfico e tentaram
atribuir às mortes aos traficantes locais.
310
"Delegacia invadida, tiroteio. Seria o esquadrão da morte de Alagoas?". Jornal da
Tarde. DOPS. 09/11/1977. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0992 - 1977-1977
- esquadrão da morte.
311
"Pequeno balanço dos crimes do esquadrão no Rio: 95 mortos". O Estado de São
Paulo (Sucursal do Rio de Janeiro). DOPS. 17/11/1977. Arquivo do Estado de São Paulo.
Pasta OS 0992 (n° 67) 1977 - 77.
118
A escolha destes locais, no entanto, não se dava aleatoriamente, mas
seguiam o modus operandi do grupo que era gerar dificuldade em apurar os
casos, dada a total ausência de testemunhas que se dispusessem a falar sobre o
que viram, o que resultava no esquecimento do crime e na consequente
banalização da ação dos esquadrões.
Ao fim de 1978, os próprios meios midiáticos já associavam a forma da
violência perpetuada contra as vítimas como modus operandi dos esquadrões da
morte, como aponta o jornal Diário da Noite,
312
"Em dois dias esquadrão executou 16: banho de sangue na Baixada Fluminense".
Diário da Noite. DOPS. 28/09/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n°
68 - esquadrão da morte.
313
"Alagoas também tem "esquadrão", diz o deputado". Folha de São Paulo (sucursal de
Brasília). DOPS. 08/11/1977. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0992 - 1977-
1977 - esquadrão da morte.
314
CARDOSO e BERNARDES, 2012, op. cit., p. 105.
119
brasileiras, bem como da história nacional, mesmo após o fim do período
ditatorial.
Os crimes cometidos pelos esquadrões da morte, quando vistos à luz do
direito internacional, enquadram-se na questão de lesa-humanidade. Os delitos
nela enquadrados foram determinados por meio do Estatuto de Roma, que
detinha o desígnio de “julgar os crimes mais graves, que afetam a comunidade
internacional em seu conjunto” 315. De acordo com esse estatuto, configuram-se
como tal os crimes de:
315
MOREIRA, Thiago Oliveira; CARVALHO, Juliana Santos de. Os crimes de lesa-
humanidade imprescritíveis da ditadura militar. In: Revista Transgressões: ciências
criminais em debate. (s/d). Disponível em file:///C:/Users/Vanessa/Downloads/6581-
16445-1-PB.pdf. Acesso em 10 jan.2016.
316
ESTATUTO de Roma, 17 de julho de 1998, art. 5.1. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4388.htm. Acesso em 10 jan.2016.
120
direitos mínimos do indivíduo – as sequelas destes atos, a qualquer
tempo e em qualquer lugar, perpetuar-se-ão na sociedade devido à sua
discrepante magnitude317.
317
MOREIRA e CARVALHO, op. cit.,p. 146-7. (grifos nossos).
318
Idem.(grifos nossos).
319
A Lei nº 9.140, promulgada em 04 de dezembro de 1995, dentre os seus ditames,
“Reconhece como mortas pessoas desaparecidas em razão de participação, ou
acusação de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961
a 15 de agosto de 1979”. Para maiores informações, ver:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9140compilada.htm.
320
Entre os anos de 1995 e 2007, a partir da promulgação da Lei 9.140/95, foi instituída a
Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) para buscar
solução para os desaparecidos e mortos ao longo dos anos 1961 a 1988. Seus
resultados foram sistematizados e publicados no livro-relatório, intitulado “Direito à
memória e à verdade: comissão especial sobre mortos e desaparecidos políticos”. Seu
trabalho foi importante no levantamento de dados e no reconhecimento das
arbitrariedades cometidas pelo Estado como o uso sistemático da tortura, mas não
resultaram no aparecimento dos corpos dos desaparecidos. Em 2006, a CEMDP por
121
buscaram efetivamente acabar com o sofrimento dessas famílias, sobretudo com
a localização e identificação de seus restos mortais ou o esclarecimento de seus
paradeiros, bem como a revelação das circunstâncias dos fatos321.
Tal indenização está instituída para as famílias dos desaparecidos
políticos, mas não para todas as vítimas do Estado autocrático bonapartista
vigente na época em questão, pois as pessoas que foram mortas pelos
esquadrões da morte, vítimas de violência extrema que também são crimes de
lesa-humanidade, por não serem encaixados nessa determinação, permaneceram
na história como contraventores, para os quais a execução do Estado se
justificava.
323
Idem.
324
Idem.
325
"Sem assunto". Serviço Secreto. DOPS. 27/01/1970. Arquivo do Estado de São
Paulo. 20-C-43. Documento n. 811
326
“Esquadrão da morte promete matar novos bandidos". Jornal do Comércio.
22/02/1970. CHB - A5 - P30.
327
"Esquadrão entregou um novo presunto". Notícias Populares. 26/04/1970. CHB - A5 -
P30.
123
bandidos que matam chefes de família que assassinam para roubar.
Bandido morto – completou – população tranquila. Bandido vivo –
cidade apavorada328.
328
Idem.
329
"Corisco denuncia esquadrão da morte". Notícias Populares. DOPS. 02/10/1978.
Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte.
330
"Uma voz contra o esquadrão". Veja. 20/10/1976. CHB - A5-P33
331
“A luta contra o crime ainda não foi perdida”. Jornal da Tarde. São Paulo, 24/10/1973,
Dossiê DOPS 50-Z-30, pasta 46, documento 4.542. Arquivo do Estado de São Paulo.
332
MATTOS, 2011, op. cit., p. 49.
333
"Esquadrão da morte promete matar novos bandidos". Jornal do Comércio.
22/02/1970. CHB - A5 - P30.
334
"Esquadrão entregou um novo presunto". Notícias populares. 26/04/1970. CHB - A5 -
P30.
124
É muito normal os relações-públicas das organizações dessa natureza,
discar para a redação dos jornais e dizer: “olha, eu quero avisar que
vocês encontrarão mais um cadáver na Estrada Rio-São Paulo335.
335
"Esquadrão da morte promete matar novos bandidos". Jornal do Comércio.
22/02/1970. CHB - A5 - P30.
336
RAGO FILHO, Antônio. “Sob este signo vencerás! A estrutura ideológica da autocracia
burguesa bonapartista”. In: Caderno AEL, v.8, n.14/15, 2001, p. 195.
125
características da forma de ser do Estado brasileiro, em momentos ditatoriais ou
democráticos337.
337
A prática dos esquadrões da morte pode ser vista na atualidade a partir das inúmeras
chacinas cotidianamente feitas nos bairros periféricos das grandes cidades. A título de
exemplo, apontamos a execução sumária ocorrida em agosto de 2015 nos municípios de
Osasco e Barueri na qual 19 pessoas foram executadas por indivíduos encapuzados. Até
o momento de fechamento deste trabalho, janeiro de 2016, apenas um tenente foi
reconhecido pela vítima e encontra-se preso provisoriamente. As apurações sobre o
caso, de acordo com a Secretária Estadual do Estado de São Paulo, encontram-se em
fase de apuração. Todavia é sabido por todos que logo que essa caso seja esquecido,
junto com ele também serão as apurações.
126
Capítulo 3
“Os intocáveis”: esquadrões da morte na repressão política
338
FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação
sociológica. São Paulo: Globo, 2005, p. 242.
127
extralegais, caso dos esquadrões da morte. Essas relações são o foco de análise
deste capítulo.
339
OLIVEIRA, Nilo Dias. A configuração do sistema nacional de repressão no
governo JK (1956 a 1961). São Paulo: PUC-SP, 2013. Tese de doutorado, p. 14.
340
Idem, p. 15-6.
341
Ibidem, p. 16-7.
128
que tange à repressão aos movimentos dos trabalhadores, como aponta Nilo Dias
de Oliveira.
A busca por “assegurar e disciplinar a ordem no país” 342, preceitos e
funções dessa Delegacia, demonstrava, já no início do século, os anseios dos
segmentos hegemônicos da burguesia, representados pelo Estado. De acordo
com Florestan,
Esse órgão teve maior destaque nas grandes capitais – partindo de São
Paulo, foi, posteriormente, instalado nos outros Estados do país –, dada a
concentração de trabalhadores, como demonstrou a pesquisadora Arleandra
Ricardo, ao analisar a atuação do DOPS em tempos “democráticos”344.
Funcionando no interior do Gabinete de Investigações e Capturas do Estado, o
DOPS foi regulamentado pelos decretos n° 4.405-A, de 17 de abril de 1928 e o de
n° 4.715 de 23 de abril de 1930.
Ainda em 1930, a Delegacia foi desmembrada em duas, a de ordem
política e a de ordem social, de acordo com regulamentação do Decreto n.4.780-
A, de 28 de novembro deste ano. Na mesma década, em 1933, esse processo se
acentuou com a criação da Delegacia Especial de Segurança Política e Social
(DESPS), consolidando a autonomia da polícia política no âmbito federal.
Dois anos depois, em 1935, a instituição da Lei de Segurança que
regulamentou a ação e a gestão das DESPS e do aparato repressivo, dava
342
CORREA, Larissa Rosa. “O departamento estadual de ordem política e social de São
Paulo: as atividades da polícia política e a intrincada organização de seu acervo” In:
Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, n.33, 2008.
Disponível em:
http://www.historica.arquivoestado.sp.gov.br/materias/anteriores/edicao33/materia04/.
Acesso em 11 dez. 2015.
343
FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação
sociológica. São Paulo: Globo, 2005, p. 343.
344
RICARDO, Arleandra de Lima. A DOPS em Pernambuco no período de 1945 a
1956: autocracia em tempos de "democracia"? São Paulo: PUC-SP, 2009. (Mestrado em
história social).
129
interligação às instâncias repressivas – não à toa, a criação desta lei coaduna
com o momento de fundação da Aliança Nacional Libertadora (ANL). A aplicação
de seus ditames também foi reforçada pela criação de um Tribunal de Segurança
Nacional, criado no ano seguinte, responsável por julgar os crimes enquadrados
na Lei de Segurança Nacional (LSN)345. Tal tribunal estava subordinado à Justiça
Militar e era composto por juízes civis e militares, escolhidos pelo Presidente da
República e seria acionado quando o país estivesse sob “estado de guerra”.
Em 1937, ela passou a estar diretamente subordinada à Presidência e
também se tornou um órgão permanente, que julgava não só comunistas e
militantes de esquerda, mas também integralistas e políticos liberais que
manifestavam suas críticas ao governo. Na prática, em razão da sua ampla
atuação, esse Tribunal processava e julgava, em primeira instância, as pessoas
acusadas de realizar atividade contra a segurança interna e externa do país.
Em linhas gerais, essas medidas geravam a interligação dos policiais civis
ao exército, graças ao poder dado aos militares para que pudessem atuar como
chefes de polícia ou magistrados do Tribunal de Segurança Nacional. Aqui
também se consolidava a repressão e a confecção dos fichamentos de indivíduos
tidos como subversivos. Nesse contexto,
345
Cf: https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/anos30-
37/RadicalizacaoPolitica/LeiSegurancaNacional. Acesso em 24 set. 2015.
346
OLIVEIRA, Nilo Dias. A configuração do sistema nacional de repressão no
governo JK (1956 a 1961). São Paulo: PUC-SP, 2013, Tese de doutorado, p. 18-9.
130
uma composta pelas seções de policiamento e investigações: o
Cartório, a seção de Expediente – em que estavam vinculados os
serviços de Protocolo e Arquivo Geral –, e, ainda, a seção de
Contabilidade, o Corpo de Segurança, o Serviço Reservado (mais tarde
chamado de Serviço Secreto), Prisões e Portaria. Além das duas
primeiras delegacias, o órgão também contava com mais duas
especializadas: a Delegacia de Fiscalização de Explosivos, Armas e
Munições e a Delegacia de Fiscalização de Entrada, Permanência e
Saída de Estrangeiros347.
347
CORREA, Larissa Rosa. “O departamento estadual de ordem política e social de São
Paulo: as atividades da polícia política e a intrincada organização de seu acervo” In:
Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, n.33, 2008.
Disponível em:
http://www.historica.arquivoestado.sp.gov.br/materias/anteriores/edicao33/materia04/.
Acesso em 11 dez. 2015.
348
Idem.
131
delegacias para arquivo349. Assim, tal classificação era estabelecida pelos
próprios agentes do Estado, seguindo as determinações de cada época.
É importante mencionar esses trâmites, pois a atuação do Serviço Secreto,
em 1940, estava condicionada “às instruções internas, determinadas pelo
superintendente do DOPS”350. Em suma, em meados de 1940, estavam
configurados os órgãos de vigilância à sociedade.
Ainda em 1938, dando continuidade à perseguição do Estado, Getúlio
Vargas criou o Conselho de Segurança Nacional (CSN), a partir da instauração do
artigo 162 na nova Constituição, com a função de estudar todas as questões
relativas à Segurança Nacional. Junto com ele, também foram criados órgãos
auxiliares, em cada Ministério Civil, chamados de Seções de Segurança Nacional.
De acordo com Nilo Dias de Oliveira, naquele momento, já começava a se
configurar uma rede de informações que se consolidaria nas décadas de 1940 e
1950, contrariamente ao que a historiografia tradicional aponta, pois
349
CORREA, 2008, op.cit.
350
Idem.
351
OLIVEIRA, 2013, op.cit., p. 20-1.
132
Segurança estaduais, com as Seções de Segurança Nacional
existentes em todos os Ministérios Civis da República, com os Serviços
de Informações e com a polícia política de vários países europeus,
norte-americanos e latinos americanos. Desta maneira estruturou, para
viabilizar as suas funções, uma rede nacional e internacional352.
352
OLIVEIRA, p. 24 apud REZNIK, Luís. Democracia e segurança Nacional: a polícia
política no Pós-Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Instituto Universitário de
Pesquisas – Iuperj, 2000, p.11.
353
Dentre as inúmeras greves ocorridas na época, uma delas ocorreu em outubro de
1957, no estado de São Paulo, tendo reunido cerca de 400 mil pessoas. Para maiores
informações, ver
https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/JK/artigos/Politica/MovimentoSindicalUrbano.
Acesso em 10 jan.2016.
133
Delegacia de Ordem Social era responsável por investigar todos os
tipos de movimentos sociais, como greves, campanhas contra a
carestia, associações de amigos de bairros, bem como fiscalizar a ação
dos sindicatos e dos trabalhadores organizados, produzindo inquéritos,
relatórios e prontuários de presos e investigar os movimentos nas
cidades do interior do estado de São Paulo354.
354
CORREA, 2008, op.cit.
355
O slogan “Brasil, ame-o ou deixe-o” foi criado pelo Presidente Emílio Garrastazu
Médici (1969-1974) e atendia a proposta da Ditadura que investia milhões de cruzeiros de
modo a criar uma opinião pública favorável a si.
356
FON, Antônio Carlos. Tortura: a história da repressão política no Brasil. Editora
Global, 1979.
134
(OBAN), instituída em 1 de julho de 1969 pelo general José Canavarro Pereira,
comandante do II Exército, em cerimônia que contou com a presença do
governador do Estado de São Paulo, Roberto Costa de Abreu Sodré e seu
secretário da Segurança Pública, Hely Lopes Meirelles, ambos “padrinhos” do
esquadrão da morte paulista, e também dos comandantes do VI Distrito Naval e
da 4ª Zona Aérea. Sua função era “coordenar as atividades dos diversos órgãos
encarregados da repressão à subversão e ao terrorismo” 357.
Todavia, naquele momento, o órgão em questão ainda era extralegal,
passando a oficializar-se apenas no governo Médici (1969 a 1974), por meio da
circular secreta chamada “Instruções sobre a Segurança Interna”, encerrando um
processo de cinco anos de discussão da função das forças armadas na
manutenção da segurança interna. Essa discussão havia começado junto ao
grupo de coronéis da dita “linha dura” e, quando levada aos debates na Escola
Superior de Guerra (ESG), foi ratificado pelo general Jayme Portella, na época
Ministro chefe da Casa Militar do presidente Costa e Silva e, posteriormente,
secretário-geral do Conselho de Segurança Nacional. Foi a partir desse órgão que
o projeto ganhou base jurídico-filosófica através da assessoria do Ministro da
Justiça – professor Luiz Antônio da Gama e Silva – e teve seus aspectos
operacionais definidos pelo chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI),
general Médici358.
A ordem para a organização de um grupo que agregasse as forças
armadas, a polícia civil e militar e a polícia federal, surgiu, ainda, em 1968, numa
reunião realizada em Brasília, contando com a presença de todos os secretários
de Segurança Pública do país, sob a orientação do Ministro da Justiça.
Oficialmente, o encontro foi intitulado de “Seminário de Segurança Interna” e tinha
o intuito de agir no combate à subversão.
Além da criação desse órgão centralizador – Operação Bandeirantes
(OBAN)359, naquele momento, e CODI-DOI, posteriormente –, também foi
decidida a estratégia governamental para aplicação da Doutrina de Segurança
357
FON, 1979, op. cit., p. 15.
358
Idem.
359
Sobre a OBAN, ver também: CARDOSO, Ítalo; BERNARDES, Laura. (Orgs.). Vala
clandestina de Perus: desaparecidos políticos, um capítulo não encerrado da história
brasileira. São Paulo: Instituto Macuco, 2012.
135
Interna (DSI) que se pautava em dois planos: um de responsabilidade do
Ministério da Justiça – Plano Político de Segurança Interna (PP/SI) – e outro de
responsabilidade do Estado-Maior das Forças Armadas – Plano Militar de
Segurança Interna (PM/SI). Estavam decididas, então, as bases para articulação
nacional da repressão.
A junção dessas duas propostas deveria resultar, em cada Estado, em um
Plano Estadual de Segurança Interna (PE/SI) a ser montado por um
representante da Polícia Civil, o comandante da Polícia Militar e um representante
do Estado-Maior do comando militar da área. O documento deveria conter
medidas visando “assegurar a ordem política e social, garantir a proteção moral e
material das populações, salvaguardar as instalações e recursos de interesse
nacional e coordenar as ações civis e militares”360. Essa última finalidade deveria
ser assumida pela Operação Bandeirantes (OBAN)361, criada a priori em São
Paulo, cidade tida como polo irradiador dos movimentos de esquerda.
Há indícios que apontam ter sido, nessa reunião, decidida a criação dos
esquadrões da morte, organizações estaduais com vinculação e modus operandi
nacional, como vimos no capítulo anterior. A Operação Bandeirantes (OBAN)
contou com uma parte do seu contingente composto por policiais da Divisão de
360
FON, 1979, op. cit., p.19.
361
A OBAN não fora estruturada apenas pela e para as forças armadas, mas contou, em
seu plano de desenvolvimento, com a junção dos militares ao empresariado. Deste
segmento social, o integrante mais conhecido foi Henning Boilensen, industrial
dinamarquês naturalizado brasileiro, diretor do grupo Ultra e organizador das doações
empresariais e reuniões. Foi ele quem expôs ao Grupo Permanente de Mobilização
Industrial (GPMI) a necessidade da participação do empresariado na luta antissubversiva.
Henning foi o único, efetivamente, a aparecer nos meios de comunicação da época, mas
inúmeras foram as empresas, nacionais e estrangeiras que participaram com doações a
OBAN; entretanto, tendo a imagem dos contribuintes e das empresas preservada, com
medo de represálias. Boilensen foi justiçado em 1971 por membros da Ação Libertadora
Nacional (ALN) e do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT) em retaliação à ajuda e
tortura praticadas por ele a presos políticos nos porões de algumas das empresas
patrocinadoras e obviamente da OBAN. É importante apontar que nem todos os
empresários da época contribuíram com a OBAN, recebendo em troca ameaças por parte
de outros membros da classe a que pertenciam e perda de credibilidade no mercado.
Para saber quais foram as empresas que mais contribuíram com os grupos de
extermínio, basta visualizar as que tiveram maior ascensão, de “forma fácil” e
aparentemente “inexplicável” no período ditatorial. Antônio Fon cita, por exemplo, o
empresário João Carlos Di Gênio, dono do cursinho pré-vestibular Objetivo que, mais
tarde, passou a oferecer também ensino fundamental e médio e, posteriormente,
universitário. Cf. FON, 1979, op. cit., e também CARDOSO e BERNARDES, op. cit.,
2012.
136
Crimes Contra o Patrimônio, um dos quais era o delegado Sérgio Paranhos
Fleury, chefe do esquadrão da morte Paulista362. Ele também ficaria “conhecido”
na OBAN, tanto pelos requintes de crueldade que praticava quando participava
das sessões de interrogatórios e torturas, quanto pelas desavenças que
desencadeou nas corporações repressivas, por não informar a OBAN/CODI-DOI
sobre os planos para a captura de militantes considerados importantes,
desenvolvendo as ações de combate à subversão “sozinho”, ou seja, sem
comunicar as demais instâncias. Assim, o esquadrão da morte estava em todos
os espaços, afinal, pertencia ao aparelho repressivo do Estado e tinham a função
de mantê-lo, ante as ameaças externas.
Os esquadrões estavam em todos os espaços da repressão graças a sua
organização. Para os municípios considerados como casos potencialmente
perigosos, os agentes do Estado, que acumulavam função junto aos grupos de
extermínio, atuavam nas DOPS, que seguiam tramitações próprias no combate à
subversão. Essas unidades, por sua vez, centralizavam informações recebidas de
delegacias que não contavam com tal aparato, mas que mantinham policiais
previamente designados para tanto. Em cada delegacia, portanto, havia pelo
menos um policial, na falta daqueles diretamente vinculados ao Sistema de
Segurança Nacional, encarregado de fornecer informações sobre pessoas
suspeitas de atividades políticas, quaisquer que fossem – como mapeou a
historiadora Luciana da Conceição Feltrim363.
Assim, pode-se afirmar que, em todas as delegacias do país, se exercia o
controle e a vigilância e que, no período ditatorial, essa vigilância se transforma
em repressão, sempre de forma articulada com as instâncias superiores. O
362
BICUDO, Hélio Pereira. Do esquadrão da morte aos justiceiros, São Paulo: Ed.
Paulinas, 1988; BICUDO, Hélio Pereira. Meu depoimento sobre o esquadrão da morte,
São Paulo: Pontifícia comissão de justiça e paz de São Paulo, 1976; BICUDO, Hélio.
Segurança Nacional ou Submissão. São Paulo: Paz e Terra, 1984; BICUDO, Hélio.
Violência: o Brasil cruel e sem maquiagem. São Paulo: Moderna, 1994. SOUZA,
Percival. Autopsia do medo: vida e morte do delegado Sérgio Paranhos Fleury. São
Paulo: Globo, 2000.
363
Sobre essas relações, a autora Luciana da Conceição Feltrim realizou uma longa
coleta de dados e uma detalhada análise, mostrando como ocorria a vigilância sobre a
população através da articulação entre as delegacias e o DOPS. Para maiores
informações, ver FELTRIM, Luciana da Conceição. As formas institucionais da
violência: controle, vigilância, cerceamentos e repressão política no Estado de São
Paulo de 1954 a 1960. São Paulo: PUC-SP, 2012. (Mestrado em história social), capítulo
2: Policiamento/Repressão na capital e no interior, p. 72-95.
137
policial lotado na delegacia, comumente um militar, obedecia assim a dois
comandos: o de seu superior imediato e o das instâncias superiores que
compunham o aparato do sistema de segurança nacional. Os esquadrões da
morte que emergiram em todo o país, não por mera coincidência, eram formados
por policiais – civis e militares – lotados nas delegacias de polícia e, em grande
parte dos casos, como o paulista, esses agentes também eram funcionários do
Departamento de Ordem política e Social (DOPS), fato que ratifica tal controle,
bem como a atuação desses grupos de extermínio na repressão política.
Quando os esquadrões surgiram, pareceu ao senso comum ser uma
continuidade de práticas de justiçamento, existente no país desde tempos
imemoriais, pois eram policiais que matavam contraventores penais e,
aparentemente, contribuíam para aumentar a segurança, demandatária da
população ante a crescente violência social nos grandes centros urbanos, como
vimos no capítulo 1. Empresários em busca de “proteção especial” para seus
bens, pessoas demandatárias de “justiça direta” em forma de vendetas, sempre
tiveram acesso a “justiceiros” conhecidos, contando com o beneplácito das
autoridades e com a anuência da opinião pública.
Todavia, as funções desses grupos mesclavam-se, pois eram policiais –
civis ou militares –, integrantes do aparato repressivo e dos esquadrões da morte
que executavam indivíduos tidos como “bandidos” – nesse enquadramento,
estavam suspeitos de contravenção penal comum a militantes de organizações
políticas chamados de “subversivos”. Em suma, havia uma ampliação e
centralização da função de eliminar indesejáveis.
Se a criação dos esquadrões, ainda no período democrático (1958),
atendia às reivindicações da associação comercial, que pediam por maior
segurança e preservação à propriedade privada, esta foi potencializada ao longo
do momento seguinte, onde diversos setores da classe média e alta apoiaram o
golpe de 1964364 em resposta à possibilidade de conquistas sociais pela classe
trabalhadora, entendida por Jacob Gorender como,
364
O historiador Carlos Fico fez um levantamento sobre algumas das posições de
teóricos acerca do golpe de 1964. Dentre eles, Stefan, Moraes, Gorender, René Armand
Dreifuss e Soares. Ver STEFAN, Alfred C. Os militares na política: as mudanças de
padrões na vida brasileira. Rio de Janeiro: Artenova, 1975; MORAES, João Quartim de.
“O colapso da resistência militar ao golpe de 64” In: TOLEDO, Caio Navarro de (org.).
138
o ponto mais alto das lutas dos trabalhadores brasileiros neste século
XX. O auge da luta de classes, em que pôs em xeque a estabilidade
institucional da ordem burguesa sob os aspectos do direito de
propriedade e da força coercitiva do Estado. Nos primeiros meses de
1964, esboçou-se uma situação pré-revolucionária e o golpe direitista se
definiu, por isso mesmo, pelo caráter contrarrevolucionário preventivo. A
classe dominante e o imperialismo tinham sobradas razões para agir
antes que o caldo entornasse365.
366
MELO, Alice e LIMA, Vivi Fernandes de. Lista de torturadores no acervo de
Prestes. Centro de Estudos Hannah Arendt. Disponível em:
https://hannaharendt.wordpress.com/lista-de-torturadores-no-acervo-de-prestes/. Acesso
em 10 jun. 2015. (Grifos nossos).
140
AMADOR NAVARRO PARRA Investigador da Delegacia de Ordem
Social do DEOPS-SP (1969-1972); chefiava uma equipe de Busca;
conhecido como Parrinha do esquadrão da morte; estava no DEIC.
141
JOSECYR CUOCO Delegado da PF; chefiou Equipe de Interrogatório
da Delegacia de Ordem Social do DEOPS-SP desde 1970; era do
esquadrão da morte; em 1987 estava no setor de combate ao
sequestro; hoje está preso.
367
A listagem foi extraída da página do “Projeto desaparecidos” e tem a finalidade de
denunciar os crimes cometidos pelo Estado na América Latina. Para maiores
informações, ver http://www.desaparecidos.org/brazil/tort/pequena.html. Acesso em 10
jun.2015. (grifos nossos).
142
Grande parte desses agentes do sistema repressivo agia nos centros de
tortura de todo o país, controlando a efetividade das ações, ou mesmo as
praticando. Esse fato foi denunciado por um ex-militante do Grupo Tático Armado
(GTA) da Ação Libertadora Nacional (ALN) quando foi preso em uma ação
articulada pelo delegado de São Paulo e pelo Centro de Informações da Marinha
(Cenimar). Ele foi torturado na Casa da Morte, no bairro de São Conrado, Rio de
Janeiro, pelo delegado Fleury, lotado do DOPS-SP.368
Além de atuar em outros estados, há indícios de que Fleury colaborou na
articulação do golpe militar no Chile e na Argentina, estabelecendo conexões com
as polícias políticas de países da Europa, EUA e América Latina369. Essa conexão
pode ser percebida porque alguns exilados brasileiros denunciaram sua presença
em Santiago, no Chile, no período do golpe militar contra o presidente Salvador
Allende, em setembro de 1973 e no golpe militar que levou o General Rafael
Videla ao poder na Argentina, em meados de 1976370.
A criação desse aparato de inteligência articulado e vinculado ao
desenvolvimento de sistemas de informação era premissa básica da Doutrina de
Segurança Nacional norte americana em que
368
“Ex-guerrilheiro abre baú de memórias”. Observatório da Imprensa. Edição n° 270.
30/03/2004. Disponível em: http://observatoriodaimprensa.com.br/armazem-
literario/exguerrilheiro-abre-bau-de-memorias/. Acesso em 19 out.2015.
369
Cf. OLIVEIRA, Nilo Dias. A configuração do sistema nacional de repressão no
governo JK (1956 a 1961). São Paulo: PUC-SP, 2013, Tese de doutorado.
370
CARDOSO e BERNARDES, 2012, op. cit.,p. 27.
371
“Doutrina de Segurança Nacional”:
http://www.documentosrevelados.com.br/midias/doutrina-de-seguranca-nacional/. Acesso
em: 17 dez. 2015.
143
(...) abrangia uma estratégia e métodos que incluía um eficaz sistema
de informações organizado mediante a quadriculação do território, a
utilização de centros clandestinos de detenção e interrogatório, o
emprego das torturas físicas e psicológicas como forma de obter dados,
a “reconversão” dos presos políticos e a eliminação dos militantes
através de esquadrões da morte ou do desaparecimento. 372
372
BAUER, Caroline Silveira. “Aproximações entre o combate à Guerrilha do Araguaia e o
Operativo Independente na Argentina: preceitos da Guerre Révolutionannaire no Cone
Sul”. In: Revista Escritas, vol 3, 2011, p. 84-102. Disponível em:
http://www.uft.edu.br/revistaescritas/sistema/uploads/aproximac3a7c3b5es-entre-o-
combate-c3a0-guerrilha-do-araguaia-e-o-operativo-independencia-na-argentina-
preceitos-da-guerre-rc3a9volutionnaire-no-cone-sul.pdf. Acesso em 29 mai.2015.
373
CARDOSO e BERNARDES, 2012, op. cit.
144
(...) um produto da sociedade, quando esta chega a um determinado
grau de desenvolvimento; é a confissão de que essa sociedade se
enredou numa irremediável contradição com ela própria e está dividida
por antagonismos irreconciliáveis que não consegue conjurar. Mas para
que esses antagonismos, essas classes com interesses econômicos
colidentes não se devorem e não consumam a sociedade numa luta
estéril, faz-se necessário um poder colocado aparentemente por cima
da sociedade, chamado a amortecer o choque e a mantê-lo dentro dos
limites da “ordem”. Este poder, nascido da sociedade, mas posto acima
dela se distanciando cada vez mais, é o Estado374.
374
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado.
Tradução de Ruth M. Klaus. São Paulo: Editora Centauro, 2002, p. 203.
375
ENGELS, 2002, op. cit., p. 205.
376
Idem, p. 210.
145
organismos de repressão política, ao longo da primeira metade do século XX, e
sua perpetuação já no período ditatorial ratificam essa dinâmica do Estado
brasileiro e sua lógica de funcionamento.
A radicalização das ações do Estado contra as lutas por demandas sociais,
como pudemos notar, se deu progressivamente, ao longo do século XX, com a
criação de inúmeros órgãos ligados ao Sistema de Segurança Nacional. Os
esquadrões, no período ditatorial, era uma das expressões desse movimento.
Integrado ao aparelho repressivo, era um potente instrumento do Estado ante as
lutas da classe trabalhadora. Passemos agora a entender o funcionamento do
nosso Estado que os levou a se apoiar em grupos de extermínio para perpetuar a
sua existência.
377
FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação
sociológica. São Paulo: Globo, 2005, p. 346.
146
A contenção a tais antagonismos de classe se punha na forma autocrática
burguesa bonapartista. Nela, o Estado era indiretamente apropriado pela
burguesia hegemônica, tornando-se representante das demandas dessa classe
ao mesmo tempo em que se dissimulava na falsa ilusão de unificador das
necessidades coletivas. De acordo com Emir Sader, na pratica efetiva, era o
Estado “quem melhor concilia o favorecimento econômico direto das classes
possuidoras, com a manutenção da ordem, requisito indispensável do
funcionamento das relações burguesas”378.
Assim, o Estado dissimulava representar a multiplicidade de uma
sociedade dividida em classes, mas que, na prática efetiva, apontou Florestan
Fernandes, ele refletia, “historicamente, tanto no plano econômico quanto no
plano militar e político, os interesses sociais e as orientações econômicas ou
políticas das classes que o constituem e o controlam. O Estado nacional brasileiro
sucumbiu aos interesses de classe que ele representa”379.
Assim, em contraposição à aludida dissimulação e, embora o Estado não
seja apropriado diretamente pelos segmentos de classe burguesa, ele a
representa, em detrimento das necessidades dos grupos não hegemônicos.
381
Idem.
382
FERNANDES, 2005, op. cit., p. 402.
383
Para Florestan Fernandes, a autocracia no Brasil estava diretamente ligada à
burguesia brasileira e ao processo contrarrevolucionário desenvolvido por ela de modo a
consolidar o capitalismo e sua forma dependente. Nesse sentido, pontua o sociólogo que
não existia uma democracia burguesa fraca, mas uma autocracia burguesa dissimulada.
A preservação da sua própria existência e a do capitalismo estavam associadas à
militarização e à tecnocratização do movimento contrarrevolucionário burguês e estes,
eram movimentos intrínsecos a autocracia burguesa. Assim, o que seria o viés
bonapartista desse movimento é associado pelo autor a uma reação autodefensiva da
burguesia ante a tentativa de afirmação das massas, tomando como exemplo as
explicitações feitas pelos analistas do “populismo”. Nas palavras de Florestan, “a
militarização e a tecnocratização tanto do movimento contrarrevolucionário da burguesia
(em suas diversas faces: conspirativa, de assalto e consolidação do poder etc.) quanto ao
Estado nacional “regenerado”, autocrático-burguês, são intrínsecos à reação
autodefensiva da burguesia e instrumentais para os fins históricos imanentes, de
autoafirmação e autoprivilegiamento das classes burguesas”. FERNANDES, 2005, op.
cit., p. 394-6..
148
geral, bem como recorrendo ao uso da força repressiva do Estado para conter
contestações.
384
FERNANDES, 2005, op. cit., p. 401.
385
CHASIN apud RAGO FILHO, Antônio. A ideologia 1964: os gestores do capital
Atrófico. São Paulo: PUC-SP, 1998 (Tese de Doutorado em História), p. 17.
149
e excludente entre a evolução nacional e o progresso social386. Nessa dinâmica,
ao mesmo tempo em que o Estado se consolida pelo novo bloco de poder
apoiado no golpe de 64 e na ideia de que este consolidaria a democracia, ele
produz a continuidade do condicionamento do desenvolvimento nacional ao
capital internacional, que resulta no atrofiamento do capital nacional e, ainda, leva
a incompletude das ações da burguesia no que tange à promoção da revolução
que a fizesse romper com as forças conservadoras oligárquicas dominantes.
Assim, quanto menor são as condições de acumulação primitiva do capital,
maior é a violência do Estado autocrático burguês bonapartista sobre os
segmentos de classe mais pobres, como pontuou Sader:
389
FERNANDES, 2005, op. cit., p. 254.
390
Idem.
391
Ibidem.
392
Ibidem, p. 255.
393
Ibidem.
151
Nessa dinâmica, os segmentos sociais destituídos do acesso aos bens
produzidos coletivamente e à luta por suas demandas foram tomados pela
burguesia como o inimigo principal a ser combatido; assim, a perpetuação dos
anseios burgueses se objetivou pela repressão e nesta,
394
FERNANDES, 2005, op. cit., p. 255-6.
395
Idem, p. 255.
152
qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais
são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de
terceira pessoa, informações ou confissões; de castiga-la por ato que
ela ou uma terceira pessoa tenha cometido, ou seja, suspeita de ter
cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por
qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza;
quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário
público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, por sua
instigação, ou com seu consentimento ou aquiescência396.
396
Cf. DALLARI, Dalmo de Abreu. In: VERRI, Pietro. Observações sobre a tortura. São
Paulo: Martins Fontes, 1992, pp. 21-2.
397
Cf. COIMBRA, Cecília Maria Bouças. Tortura no Brasil como herança cultural dos
períodos autoritários. R. CEJ, Brasilia, n.14, p. 5-13, mai./ago. 2001. Disponível em:
file:///C:/Users/Vanessa/Downloads/406-746-1-PB.pdf. Acesso em 01 out.2015.
398
Cf. ALVAREZ, Marcos; SALLA, Fernando; SOUZA, Luiz Antônio. Construção das
Políticas de Segurança Pública e o sentido da punição, São Paulo (1822-2000). São
Paulo: Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, 2004, p. 39-54.
153
atrelado ao período de vigência da nossa última ditadura, foram introduzidos em
momentos anteriores, assim como tantas outras rotinas violentas e repressivas 399.
402
BAUER, Caroline Silveira. “Aproximações entre o combate à Guerrilha do Araguaia e o
Operativo Independente na Argentina: preceitos da Guerre Révolutionannaire no Cone
Sul”. In: Revista Escritas, vol 3, 2011, p. 84-102. Disponível em:
http://www.uft.edu.br/revistaescritas/sistema/uploads/aproximac3a7c3b5es-entre-o-
combate-c3a0-guerrilha-do-araguaia-e-o-operativo-independencia-na-argentina-
preceitos-da-guerre-rc3a9volutionnaire-no-cone-sul.pdf. Acesso em 29 mai. 2015.
403
ARANTES, Maria Auxiliadora de Almeida Cunha. Tortura: testemunhos de um crime
demasiadamente humano. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2013, p. 340.
404
O Centro de Instrução de Guerra na Selva, CIGS foi criado em 02 de março de 1964,
pelo decreto 53649 com a finalidade de ministrar cursos de operações na selva. Nessa
época, ele estava subordinado ao Grupamento de Elementos de Fronteira, tendo
passado, em 1970, a ser subordinado à Diretoria de Especialização e Extensão (DEE) e
a ministrar cursos de ações de comandos. Entre 1966 e 1969, eles forneciam treinamento
em três modalidades: para oficiais superiores, capitães e tenentes e subtenentes e
sargentos. Disponível em: http://www.cigs.ensino.eb.br/index.php/principal/historico.
Acesso em 11 jan.2016.
155
oficiais, (...) oficiais jovens. Formei brasileiros e também chilenos,
venezuelanos e argentinos405.
405
AUSSARESSES, Paul. Je n’ai pas tout dit: ultimes révélations au servisse de la
France. Entretiens avec Jean-Charles Deniau en colaboration avec Madeleine Sultan.
Paris: Rocher, 2008, p. 160 In: ARANTES, 2013, op. cit., p. 339-40.
406
Sobre tais divergências, ver FICO, 2004, op. cit.
407
De acordo com Dreifuss, para conseguir uma troca de regime, construiu-se uma rede
de apoio dentro das forças armadas e, nesse sentido, os mais destacados associados ao
IPES/IBAD foram oficiais influentes da época, que coordenaram e integraram vários
grupos militares, conspirando contra o governo, proporcionando raciocínio estratégico
para que o golpe fosse posto em prática.Houve um processo político progressivo de
preparação para o golpe que minou, durante anos, o poder Executivo, a esquerda e o
trabalhismo, bem como afirmou os interesses do capital financeiro-industrial multinacional
e associado, pontuando assim, a efetiva e importante participação do empresariado
nesse processo em contraposição às análises que privilegiam a autonomia das Forças
Armadas e tecnoburocracia. Desse modo, o golpe não foi dado pelas forças militares,
mas por uma organização civil-militar. DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do
Estado: ação política, poder e golpe de classe. Rio de Janeiro: Vozes, 1981, p. 259-486.
156
O complexo comumente conhecido como IPES-IBAD era composto pela
“elite orgânica” brasileira e atuou de maneira variada e em várias frentes,
mobilizando-os e espraiando-se virtualmente pelo país, com recursos e
financiamentos abundantes através de uma ampla campanha de desestabilização
do governo que envolvia doutrinação anticomunista, antissocialista, contra o
atraso da oligarquia rural, contra a corrupção do populismo. Essa campanha foi
feita durante anos por meio de palestras, debates, simpósios, entrevistas à
imprensa, filmes, peças, desenhos animados, livros e rádio.
Nesse sentido, não foi o aparelho militar-burocrático que tomou o poder em
prol das classes dominantes e de modo a fazer prevalecer seus interesses, mas,
na verdade, teria o Estado sido diretamente reorganizado por eles, em processo
capitaneado pelo IPES. Não à toa, ao longo do período de gestão do Presidente
Castelo Branco, vários cargos foram dados para empresários dos grandes
empreendimentos industriais e financeiros e de interesses multinacionais,
realizando os interesses do bloco multinacional e associado408.
Ainda sobre o golpe de 1964, o historiador Daniel Aarão Filho entende que
o objetivo era “reforçar a hegemonia do capital internacional no bloco do
poder”409, o que só foi possível graças ao caráter amplo e heterogêneo, ligada a
banqueiros, empresários, industriais, latifundiários, comerciantes, políticos,
magistrados e à classe média, formando uma frente social e política a fim de
depor Goulart, condicionando uma unidade no interior das Forças Armadas, cujo
ponto em comum entre esses segmentos era a “aversão ao protagonismo
crescente das classes trabalhadoras na história republicana depois de 1945”410.
Mesmo que com proposições diferentes sobre a tomada do golpe, tanto
Dreifuss quanto Daniel Aarão Reis Filho nos chama a atenção para o medo dos
segmentos sociais de classe média e alta para os movimentos sociais que vinham
crescendo. Nesse sentido, os esquadrões, integrantes do aparato repressivo,
408
DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado: ação política, poder e golpe
de classe. Rio de Janeiro: Vozes, 1981, p. 259.
409
REIS FILHO, Daniel Aarão. A revolução faltou ao encontro: os comunistas no Brasil.
São Paulo; Brasília: Brasiliense. CNPQ, 1990, p. 22.
410
REIS FILHO, Daniel Aarão. “O colapso do colapso do populismo ou a propósito de
uma herança maldita”. IN: FERREIRA, Jorge (org.). O populismo e sua história: debate
e crítica. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2001, p. 344.
157
radicalizaram a atuação do Estado através do uso da violência sobre tais classes
sociais.
Na medida em que a vigilância e a repressão do Estado se expandiram ao
longo do século XX, também cresceu a mobilização dos trabalhadores na busca
por melhores condições de vida. O momento auge desse processo, aponta Caio
Navarro de Toledo, ocorreu no triênio 1961/1963, que contou com mais 430
paralisações dos trabalhadores. Nesse período, houve o aumento das
organizações sindicais e, principalmente, a atuação do Comando Geral dos
Trabalhadores (CGT), que, ainda, de acordo com o autor,
411
TOLEDO, Caio Navarro. 1964: o golpe contra as reformas e a democracia. In: REIS,
Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (orgs.). O golpe e a
ditadura militar: quarenta anos depois (1964-2004). Bauru, SP: Edusc, 2004, p. 71.
412
TOLEDO, 2004, op. cit., p. 70-76.
158
com o lema “Família que reza unida, permanece unida”. Estariam em
perigo os valores mais tradicionais do país: a família (as crianças
poderiam ser mandadas para a Rússia e Cuba), a religião (que seria
perseguida e proibidas as escolas religiosas) e a propriedade (que seria
abolida e expropriada pelo Estado)413.
413
Para maiores informações, ver
http://www.documentosrevelados.com.br/midias/doutrina-de-seguranca-nacional/. Acesso
em 17 dez. 2015.
414
OLIVEIRA, Nilo Dias. A configuração do sistema nacional de repressão no
governo JK (1956 a 1961). São Paulo: PUC-SP, 2013, Tese de doutorado, p. 24.
415
OLIVEIRA, p. 25 apud FERNANDES, Ananda Simões. “A reformulação da Doutrina de
Segurança Nacional pela Escola Superior de Guerra no Brasil: a geopolítica de Golbery
do Couto e Silva”. In: Revista Antíteses. V.2. n. 4. Londrina/PR: Universidade Estadual
de Londrina – UEL, jul-dez. 2009, p. 841.
159
Nessa linha, houve a criação de centros de tortura e morte, como a
416
OBAN , que não era oficial, inicialmente, mas houve uma posterior modificação
e ramificação para todo o Brasil, tornando-se órgão oficial do aparato repressivo
no formato de Destacamentos de Operações de Informações (DOI) que cumpriam
o que fosse determinado pelos Centros de Operações de Defesa Interna (CODI),
como já tratamos anteriormente. Os DOI-CODI’s, como eram conhecidos
costumeiramente, possuíam um colegiado formado por representantes das três
forças – Exército, Marinha e Aeronáutica – que, por sua vez, estavam interligados
aos quartéis, às auditorias militares, às delegacias de polícia e ao Departamento
de Ordem Política e Social (DOPS). Juntos, eles possibilitaram a criação e
manutenção de “uma rede de casas de tortura, de locais preparados para torturar
que funcionavam em sítios, casarões desocupados, casas de pequeno porte em
bairros afastados, conjuntos comerciais, apartamentos em prédios residenciais e
até mesmo dentro de uma boate”417, fato que dinamizou o uso dessa prática no
Brasil.
Esses espaços de tortura dinamizavam a ação dos grupos de extermínio a
serviço da repressão, pois recebiam a informação em primeira mão e a
sonegação a outros órgãos, o que dava, no caso do esquadrão da morte chefiado
pelo Fleury, maior tempo para atuar, desmontando grupos vigiados, sem
intervenção dos demais segmentos que compunham o aparato repressivo,
inclusive o próprio CODI-DOI – sem contar que essa prática também inflava o ego
do delegado, que recebia o mérito sozinho pela captura dos militantes.
Esses centros de tortura, oficiais e oficiosos, estavam espalhados por todo
o Brasil e também contavam com locais secundários como a
416
A OBAN funcionou em princípio no Quartel do Batalhão de Reconhecimento
Mecanizado (REC-MEC) na esquina das ruas Tutoia e Abílio Soares, na região do
Ibirapuera em São Paulo, tornando-se, posteriormente, o DOI-CODI e seguiu para outros
estados, a partir de 1970, no Rio de Janeiro, Recife e Brasília; em 1971, em Curitiba,
Belo Horizonte, Salvador, Belém e Fortaleza; e, em 1974, em Porto Alegre. Cf:
ARANTES, 2013, op. cit., p. 245.
417
ARANTES, 2013, op. cit., p. 242-3.
160
do Rio de Janeiro, a Delegacia Policial de Invernada de Olaria, no Rio
de Janeiro e a Casa de Detenção de Recife418.
418
ARANTES, 2013, op. cit., p. 245.
419
A “Fazenda 31 de Março de 1964” fica localizada entre Itanhaém e Embu-Guaçu, no
extremo sul da região da Grande São Paulo. Durante o período da ditadura militar, suas
instalações foram usadas como centro clandestino de tortura de militantes políticos de
organizações contrárias ao regime militar. O proprietário da fazenda era dono da
empresa Transportes Rimet Ltda. que se localizava no bairro da Mooca (São Paulo-SP) e
que tinha como única cliente a empresa estatal de Telecomunicações de São Paulo
(Telesp). Pode-se inferir, dessa forma, que o Estado mantinha a empresa que, por sua
vez, disponibilizava sua propriedade no interior de São Paulo para o uso do exército.
Coronel Fagundes, como era conhecido o dono da casa, era um colaborador do regime
militar. Fotografias guardadas pelo ex-caseiro da fazenda, Alcides de Souza, mostram o
contato de Fagundes com Sérgio Paranhos Fleury, delegado do Deops/SP de São Paulo;
dos coronéis Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante do DOI-CODI de São Paulo
(1970-1974), e de Antônio Erasmo Dias, secretário de Segurança Pública do Estado de
São Paulo (1974-1978). A Fazenda foi utilizada por grupos de militares interessados em
promover investigações extraoficiais; os agentes envolvidos eram recompensados pelas
prisões de líderes de organizações clandestinas de esquerda e pelas novas informações
obtidas nas sessões de tortura; sem qualquer direito de defesa, presos políticos foram
transformados em sinistros troféus, pois essa caçada era incentivada por uma disputa por
prêmios e por prestígio entre os próprios militares. Cf. “Fazenda 31 de Março de 1964” In:
Programa Lugares da Memória. Memorial da Resistência de São Paulo. Disponível em:
http://www.memorialdaresistenciasp.org.br/memorial/Upload/file/lugares-da-
memoria/fazenda%2031%20de%20maro%20de%201964.pdf. Acesso em 10 jun. 2015.
420
ARANTES, 2013, op. cit., p. 246.
421
CARDOSO e BERNARDES, 2012, op. cit., p. 27.
161
O uso de métodos de tortura era comumente noticiado nos jornais da
época. Era uma prática recorrente no aparato repressivo, bem como
habitualmente usada pelos esquadrões da morte, pois configurava uma de suas
características, seu modus operandi, como destaca no início de março de 1978,
um perito do Instituto de Criminalística, após a execução de um casal carioca e
desova na sua área de jurisdição, “acredita(ndo) as autoridades policiais que o
casal tenha sido vítima do esquadrão da morte devido os visíveis sinais de
torturas que os cadáveres apresentavam" 422.
A grande quantidade de pessoas mortas ao longo da atuação dos
esquadrões também chama a atenção e configura seu modus operandi. Em 1978,
em menos de um mês, o número de execuções realizadas apenas na Baixada
Fluminense subiu de 74 para 112 pessoas, aumentando para 118, oito dias
depois423, e para 131, nos dois dias seguintes424.
A novidade nesses casos era a execução de mulheres como em um
desses casos, ocorrido em São Paulo, segundo o qual uma mulher foi torturada e
morta por presenciar uma execução do grupo paulista e ter ameaçado delatá-los.
Além dos cinco disparos que Lindalva Trajano recebeu, também teve “o seio
direito cortado, as mãos queimadas, o corpo retalhado por gilete e marcas de
algema nos pulsos”425. Ainda nesse caso, a Revista Veja denunciou a incoerência
entre as notícias publicadas e os inquéritos formulados, pois as sevícias sofridas
pelas vítimas e narradas, não constavam no laudo da polícia técnica, embora
fossem notadas pelo advogado da vítima que viu o cadáver426.
Em Santos, Baixada Santista de São Paulo, o uso de métodos de tortura,
tais como amarrar as mãos das vítimas com fios de nylon e de executá-las com
422
"No rio, dois corpos". Folha da tarde. DOPS. 11/04/1978. Arquivo do Estado de São
Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte e também "Esquadrão faz mais 2
vítimas". Diário da Noite. DOPS. 11/04/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS
0993, n° 68 - esquadrão da morte.
423
"No rio, dois corpos". Folha da tarde. DOPS. 11/04/1978. Arquivo do Estado de São
Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte e também "Esquadrão faz mais 2
vítimas". Diário da Noite. DOPS. 11/04/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS
0993, n° 68 - esquadrão da morte.
424
"Mais 7 corpos na Baixada Fluminense". Folha da Tarde. DOPS. 12/04/1978. Arquivo
do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte.
425
"A última denúncia". Veja. 15/04/1970. CHB - A5 - P30.
426
Idem.
162
grande quantidade de tiros também era habitual 427. O atuante esquadrão da morte
dessa localidade também executava suas vítimas com requintes de crueldade,
dando inúmeros tiros centralizados na região da cabeça. No caso do assassinato
de Lázaro Braga Arruda, “Lazinho”, havia indícios de que a execução foi feita com
disparos à queima roupa, “com o cano da arma quase encostado [entre os olhos],
pois a região estava queimada de pólvora”428. Em outra execução realizada pelo
mesmo grupo, a vítima identificada como José Aníbal de Oliveira, alcunha “Juca
do Marapé”, foi encontrado às margens da estrada velha de Santos, altura do
quilometro 49 com mais de 35 perfurações à bala, espalhadas pelo corpo e de
diferentes calibres429.
Como se pode notar, as execuções eram feitas com suas vítimas já
imobilizadas pelas forças policiais, bem como após longas sessões de tortura. Os
tiros na região da cabeça também não eram aleatórios, pois prejudicavam a
identificação das vítimas tanto pela perícia técnica quanto pelos familiares. Em
muitos dos casos, essas pessoas foram enterradas como indigentes, por não
haver quem contestasse o corpo dada a impossibilidade de reconhecimento.
É importante frisar que o uso da tortura, como prática habitual da ditadura
militar, foi atribuído à má conduta dos policiais, que entendiam os conceitos
doutrinários de guerra incorretamente430, atribuição que tirava do Estado a
responsabilidade pelas ações de seus agentes – estes sim, transgressores da
norma –, bem como camuflava a real característica do Estado que era o seu
caráter autocrático burguês bonapartista. As ações dos esquadrões da morte, no
trato ao criminoso comum ou ao político, eram precisamente engendradas,
sabidas e aceitas pelo Estado. De acordo com Fico, sobre a ação desses agentes
da repressão,
427
"Esquadrão anuncia mais um presunto". Notícias Populares. 19/01/1970. CHB - A5 -
P30.
428
Idem..
429
"Esquadrão mata Juca do Marapé". Notícias Populares. 21/01/1970. CHB - A5 - P30
430
FON, 1979, op. cit.
163
independência operacional com que trabalhava a polícia política com
uma suposta autonomia em relação aos oficiais-generais431.
431
FICO, 2004, op. cit., p. 83.
432
A desativação do aparelho de segurança do Estado teve início nos primeiros dias do
governo Geisel (1974-1979). A ordem presidencial era a desativação dos órgãos de
repressão política para todo o país, embora as dificuldades fossem tamanhas, devido à
perda do controle desses órgãos e à subversão da hierarquia militar ocorrida no governo
Médici. Durante os anos de 1974 a 1975, os homens integrados aos organismos de
segurança e contrários ao seu fim, resistiam às medidas do governo, que apostavam na
proposta de transferência dos agentes acusados de maus-tratos contra prisioneiros
políticos para outros departamentos. Esse processo de dispersão se encerraria em 1977
quando o delegado Sérgio Paranhos foi promovido e transferido para a Diretoria do
Departamento Estadual de Investigações Criminais. Apesar dessa desmobilização oficial,
após a desarticulação do CODI-DOI, alguns grupos se mantiveram, formando novas
frentes de ação repressiva, como foi o caso do grupo “Voluntários da Pátria” no nordeste
e do “Braço Clandestino da Repressão”, em São Paulo, coincidindo com o aumento do
número de desaparecidos políticos. Apesar dessa desarticulação, os órgãos de
segurança ainda existem e são perigosos. Cf. FON, 1979, op. cit.
164
Essa articulação começou a se estruturar com a ida dos mais eficientes
policiais desses grupos de extermínio – e notamos por eficiente aqueles que mais
faziam vítimas por onde passavam – para o aparato repressivo. Um caso
exemplar dessa relação era o delegado Sérgio Paranhos Fleury, já mencionado
em outros momentos.
Integrante da OBAN e chefe do esquadrão da morte paulista, ele se tornou
também delegado operacional no Departamento Estadual de Ordem Política e
Social (DEOPS)433, porta de entrada para esses grupos de extermínio atuarem no
seio do aparato repressivo. Ele tinha livre acesso a todas as instâncias desses
órgãos, prestando assessoria nos estados para criar articulações de cunho
nacional, inclusive participando de reuniões internacionais, com a mesma função
de amplitude internacional, como por exemplo, a Operação Condor e a Guerrilha
do Araguaia.
As primeiras evidências da relação entre os esquadrões da morte e a
repressão política surgiram com a designação de Fleury para a chefia do
Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (DEOPS-SP),
em meados de 1970, para a função de delegado operacional, cargo de médio
prestígio, concomitantemente à continuidade de sua atuação no comando do
esquadrão que atuava em São Paulo. Essa dupla função não se alterou quando,
em 1978, ele foi designado delegado de classe especial e diretor do
Departamento Estadual de Investigações Criminais (DEIC),434 tornando-se a
“terceira mais importante autoridade policial do Estado”435.
Ao longo da sua existência, os esquadrões acumularam funções. Desde
1970, quando eles foram acionados para o trabalho da repressão política, a sua
433
A transformação da Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS) em Departamento
Estadual de Ordem Política e Social (DEOPS) possui algumas explicações. A primeira
aponta que tal mudança deveu-se a uma reorganização em 1975, transformando a
delegacia em departamento. A outra possibilidade aponta que tal reestruturação data de
1945. A historiadora Luciana da Conceição Feltrim faz uma belíssima análise sobre essa
transformação, bem como sobre as discussões acerca dela. Cf: FELTRIM, Luciana da
Conceição. As formas Institucionais da violência: controle, vigilância, cerceamentos e
repressão política no Estado de São Paulo de 1954 a 1960. São Paulo: PUC-SP, 2012.
(Mestrado em história social).
434
"Mandado de prisão n° 47.215: (O nome poderá ser:) Fleury". Jornal da Tarde.
DOPS. 22/02/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio
Fleury.
435
"Fleury já está preso". Notícias Populares. DOPS. 23/02/1978. Arquivo do Estado de
São Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio Fleury.
165
atuação como grupos de extermínio continuou ao longo de toda esta década. O
próprio delegado Fleury, em entrevista dada, em meados de 1977, ao Jornal do
Brasil, logo após sua absolvição em um dos processos, assumiu lidar com as
duas esferas da violência institucional: (...) “Eu combato os dois tipos de crimes: o
político e os comuns, e já condenei vários elementos” 436. Em outras palavras, ele,
como delegado, assumia publicamente que tinha o poder de “condenar”, à revelia,
portanto, do sistema judiciário.
Apoiados pelo Estado, os esquadrões passaram a aplicar a sua própria lei
sobre qualquer segmento populacional, sem recorrer às instituições às quais
cabia processar julgamentos, mediante processos formais. É nesse momento que
também ocorre o aumento do número de execuções atribuídas e assumidas pelos
esquadrões. Em suma, os membros desses grupos executavam qualquer pessoa,
desde que não estivessem de acordo com suas necessidades437, ou com as do
Estado.
436
"Tribunal absolve Fleury por unanimidade". Jornal do Brasil. 02/10/1977. CHB - A5 -
P33
437
Como mostram as evidências documentais, uma parcela de alguns dos Esquadrões
atuantes nos estados brasileiros “complementava” sua renda a partir de práticas
delituosas, como o tráfico de drogas, o jogo do bicho e a cobrança de “pedágio” das
casas de prostituição. No entanto, grande parte dos estudos realizados sobre os
Esquadrões aponta que essa característica – a corrupção – era o seu ponto forte,
enquanto que, como vimos demonstrando, não era essa função social a que eles foram
designados. Cf: COSTA, Márcia Regina. “1968: O esquadrão da morte em São Paulo” IN:
SILVA, Ana Amélia da e CHAIA, Miguel (orgs) Sociedade, Cultura e política: Ensaios
críticos. São Paulo: EDUC, 2004.
438
. "Um Homem contra o esquadrão da morte: medo e preocupação na polícia". Jornal
da tarde. DOPS. 18/10/1976. Arquivo do Estado de São Paulo. 50-z-707. Pasta 08.
Documento 852.
166
interior das delegacias. De acordo com a Revista Francesa Le Neuval
Observation, em 1973,
439
Tradução da Revista Francesa "Le Neuval Observation". DOPS. 21/05/1973. Arquivo
do Estado de São Paulo. 50-Z-30. Pasta 62. Documento n. 5527 e Pasta OS-0986. n.61 -
Fleury
440
FON,1979, op.cit.
167
Latina441, o que novamente ratifica a presença dos esquadrões da morte em todo
o país.
Além disso, a execução pura e simples era a ferramenta mais viável, uma
vez que “a polícia demonstrava claramente que não desejava capturar seu inimigo
vivo”442, perpetuando as execuções dos indivíduos classificados como
desnecessários para o Estado.
Os processos instaurados ao longo da década de 1970 contra os membros
desse esquadrão e dos demais grupos existentes em outras cidades brasileiras
demonstravam que tais policiais, que atuavam nessas corporações, gozavam da
mesma imunidade conferida pela ditadura aos demais agentes que integravam o
aparato repressivo, pois punições efetivas não ocorreram. Todavia, é importante
ressaltar que o Estado jamais assumiu que os grupos de extermínio integravam o
corpo repressivo, tampouco que no Brasil existiam prisioneiros políticos. Para
todos os fins, os esquadrões agiam contra transgressões comuns, incursos no
Código Penal e à revelia das ordens superiores, agremiando-os no rol de agentes
que cometeram “apenas” excessos443.
Os agentes da repressão e os membros dos esquadrões da morte eram as
mesmas pessoas, o que torna impossível dissociar a prática de um da do outro.
Outra evidência que se põe acerca disso está ligada aos resultados de
investigações recentes relativos à organização do Sistema de Segurança
Nacional. Sabemos que tal sistema foi montado em fins da década de 1950 e que,
como tal, articulou todas as delegacias de polícia de todo o país no trabalho de
vigilância e controle social que, no período ditatorial, se completa com as ações
de repressão.
441
CARDOSO e BERNARDES, 2012, op. cit. p. 27.
442
"Polícia contra o fantasma". Veja. 25/03/1970. CHB - A5 - P30.
443
FICO, 2004, op. cit., p. 76.
444
OLIVEIRA, 2013, op. cit., p. 125.
168
Uma das formas de atuação desse controle, encetado desde aqueles anos,
foi a de traçar um perfil de todos os municípios do país, classificando-os pelo grau
de periculosidade – fossem zonas urbanas ou rurais. Definiu-se, a seguir, a
estratégia da atuação de controle social: as delegacias de cidades ou regiões
consideradas mais perigosas passaram a contar com um posto do DOPS com
agentes especiais designados para o exercício do controle e da vigilância,
organizando prontuários que eram remetidos às instâncias superiores, como
vimos anteriormente.
A classificação de quem era inimigo do Brasil era feita pelo próprio Estado
e, nesse sentido, dava margem a um grande rol de motivos para o recebimento
de tal estigma. Lutar por demandas sociais que garantissem a sobrevivência e a
dignidade humana, nos próprios bairros, sem prévia organização ou junto a
associações políticas organizadas, em ambos os casos, eram tidos pelo Estado
bonapartista como indivíduos perigosos em potencial e classificados como
“inimigo interno”, “subversivo”, “comunista” e “inimigo do Brasil”. Esse estado de
coisas estava diretamente vinculado à ideia da ameaça comunista, propagada
pelos EUA a partir da influência advinda da Doutrina de Segurança Nacional e
também vista na Escola Francesa e sua Doutrina de Guerra Revolucionária. Era
uma ameaça que assolava todos os países que passavam por processo de
desenvolvimento econômico apartado da integração social. Nesse sentido, os
gestores autocráticos justificavam suas ações apontando que tudo era feito,
446
"Assunto: Conferência proferida pelo procurador da Justiça Hélio Pereira Bicudo".
Informação n. 1681-B/76. Serviço de Informações. DOPS. 17/12/1976. Arquivo do
Estado de São Paulo. Secretaria da Segurança Pública. 50-Z-707. Pasta 9. Documento
1063.
447
Tradução da Revista Francesa "Le Neuval Observation". DOPS. 21/05/1973. Arquivo
do Estado de São Paulo. 50-Z-30. Pasta 62. Documento n. 5527 e Pasta OS-0986. n.61 -
Fleury
448
“O testemunho de mulheres que foram vítimas da ditadura militar”. Jornal on line;
GGN. Coluna de Luiz Nassif. 30/03/2014. Disponível em http://jornalggn.com.br/blog/iv-
170
O caso de Izabel Fávero, torturada no Paraná por agentes da repressão e
do esquadrão da morte do Rio de Janeiro, denota que havia articulação e
integração nacional entre os esquadrões, o que mais uma vez demonstra que não
se tratava de casos isolados e sim, de uma forma de ser do Estado brasileiro.
No caso de Rose Nogueira, presa em 4 de novembro de 1969 em São
Paulo, na época jornalista e militante da Ação Libertadora Nacional (ALN), o local
de tortura era também sede dos esquadrões da morte paulista.
avatar/o-testemunho-de-mulheres-que-foram-vitimas-da-ditadura-militar-0. Acesso em 10
jun.2015.
449
“O testemunho de mulheres que foram vítimas da ditadura militar”. Jornal on line;
GGN. Coluna de Luiz Nassif. 30/03/2014. Disponível em http://jornalggn.com.br/blog/iv-
avatar/o-testemunho-de-mulheres-que-foram-vitimas-da-ditadura-militar-0. Acesso em 10
jun.2015.
171
Assim como, no caso da ex-militante do Partido Operário Comunista
(POC), Eleonora Menicucci de Oliveira, na época estudante de Sociologia e
professora do ensino fundamental e presa em 11 de julho de 1971, em São Paulo
(SP), o centro de tortura carioca também era sede do esquadrão da morte.
450
“O testemunho de mulheres que foram vítimas da ditadura militar”. Jornal on line;
GGN. Coluna de Luiz Nassif. 30/03/2014. Disponível em http://jornalggn.com.br/blog/iv-
avatar/o-testemunho-de-mulheres-que-foram-vitimas-da-ditadura-militar-0. Acesso em 10
jun.2015.
451 “Ex-diretor do DOPS contou que espiãs iam para a cama em busca de segredos”.
MAGALHÃES, Mario. Disponível em:
http://blogdomariomagalhaes.blogosfera.uol.com.br/2014/03/13/ex-diretor-do-dops-
contou-que-espias-iam-para-a-cama-em-busca-de-segredos/. Acesso em 10 jun. 2015.
172
suspeitos comuns, armaram duas grandes emboscadas e executam Carlos
Marighela e Carlos Lamarca, lideranças políticas que lutavam contra a ditadura
militar, pondo, assim, em prática a lei de guerra do bonapartismo contra a
subversão.
A mesma postura usada no combate ao crime comum foi introduzida no
combate ao crime político. Notícias sobre as ações dos esquadrões da morte
ganharam páginas dos jornais em todo o país onde atuavam. Ironicamente, a
polícia matava, e isso era noticiado sem sofrer censura por parte dos
bonapartistas.
Não se podia falar de repressão política, mas se podia noticiar, sem
problemas, as execuções dos esquadrões – mesmo o caso emblemático de
Fleury ficou restrito à sua atuação e à de seus comparsas. Nem mesmo após as
denúncias das práticas de tortura contra prisioneiros políticos promovidas por
Fleury,452 embora sobejamente conhecidas como estratégias corriqueiras nas
delegacias do país, houve tal reconhecimento. De acordo com Mário Magalhães,
Fleury:
452
"Menos um no listão dos torturadores". Em tempo. 02/05/1979. CHB - A5 - P33 e
também "Fleury, últimos momentos". Jornal da Tarde. 02/05/1979. CHB - A5 - P33.
453
MAGALHÃES, Mário. Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo. São Paulo:
Companhia das letras, 2012, p. 533.
173
alta e hegemônicos da burguesa e da imprensa, prestígio que foi inflado pelos
representantes do Estado, de modo a conseguir impunidade e aceitação a tais
práticas, bem como dar proteção política a eles, como veremos apuradamente no
capítulo 4.
3.5. O trato era o mesmo! A atuação dos esquadrões contra presos políticos
e presos comuns
Tal separação, entre crime comum e político, era feita, assim como o é até
hoje, inclusive pela sociedade em geral. Todavia, na prática existente, ao longo do
período ditatorial, isso não se confirmava, tanto pelos meandros militares, na
“busca sistemática e progressiva da institucionalização do aparato repressivo
fundada na premissa da eliminação dos “empecilhos” para realização dos
“objetivos nacionais permanentes”454, como aponta Carlos Fico, quanto pelas
reinvindicações dos presos políticos, que pediam por diferenciação quando
colocados nas cadeias comuns, caso dos encetados pelos integrantes da Ação
Libertadora Nacional (ALN),455 ao serem postos no presídio do Carandiru ou no
Tiradentes456 junto aos presos “comuns”.
454
FICO, 2004, op. cit., p. 75.
455
A Ação Libertadora Nacional (ALN) era uma organização política fundada em 1967 por
Carlos Marighella após este romper com o Partido Comunista Brasileiro (PCB).
456
Ambos os presídios foram criados com a finalidade de aprisionar criminosos comuns,
mas foram também usados, ao longo do tempo, para encarceragem de presos políticos.
Conhecido inicialmente como “Cadeia da Luz”, o Presídio Tiradentes começou a ser
construída em 1825 e inaugurada em 1852 e desempenhava, em princípio, a função de
depósito de escravos e casa de detenção para onde iam tanto os que praticaram delitos
comuns quanto os indivíduos mais pobres. Esse local foi usado para aprisionar
criminosos políticos ao longo da ditadura Vargas e também na ditadura militar brasileira.
As péssimas condições de carceragem foram a marca levada por ele até 1973, quando
foi desativado para passagem do metrô na região. Tais condições, no entanto, levaram o
senado brasileiro a criar uma Comissão, encarregada de verificar as condições e
necessidades desse presídio. O parecer do senador da República Paulo Egídio (1890 a
1896) foi a necessidade de criar uma nova Penitenciária no Estado. As obras foram
iniciadas em 1911 e o Instituto de Regeneração Carandiru foi inaugurado em 1920. Assim
como no Tiradentes, esse presídio também foi utilizado para prender presos políticos ao
longo da ditadura. Após o episódio do Massacre do Carandiru, em 1992, momento em
que 111 presos, alguns portando armas brancas, foram executados pelos agentes do
Estado, munidos de metralhadoras, esse presídio foi progressivamente desativado até
174
Desde o início da estada desses presos naquelas prisões, suas ações
voltou-se para obrigar a ditadura a reconhecê-los como prisioneiros políticos, bem
como fazer a denúncia, em âmbito internacional, da existência de presos políticos,
fato veemente negado pelos ditadores, que apontavam que, na verdade,
tratavam-se de criminosos comuns que usavam da desculpa de motivação política
para assaltar bancos, sequestrar diplomatas, assassinar pessoas e, contra eles
não existia tortura, apenas alguns esporádicos excessos, como apontou Carlos
Fico457.
Contra eles e contra toda a população, pois o que se nota é que o trato
dispendido à população era o mesmo, fossem pessoas comuns ou ligadas a
organizações políticas, pois ambos eram considerados suspeitos e, para eles,
toda a violência do Estado era cabível e justificável, inclusive a de grupos de
extermínio. Essa era a prática muito diferente da retórica dos autocratas, que se
punham à margem de tais violações, apontando-as como desvios de conduta.
Assim agiam os esquadrões da morte sobre toda a sociedade, pois, ligados à
repressão, mantinham a população em suspeição. No trato aos encarcerados,
não poderia ser diferente: presos políticos ou comuns passavam por sessões de
tortura, fato que ratifica que todos eram tidos como inimigos do regime:
458
Cf. Programa Lugares da Memória. Repressão política e os presídios da ditadura:
Presídio Tiradentes e Presídio Carandiru. Memorial da Resistência de São Paulo, São
Paulo, 2014. Disponível em:
http://memorialdaresistenciasp.org.br/memorial/Upload/file/lugares-da-
memoria/presdios%20represso.pdf. Acesso em 26 out.2015.
459
FERNANDES, 2005, op. cit., p. 311-2.
176
seus interesses de classe. Grande parte dos assassinatos cometidos pelos
grupos de extermínio ocorreu nos bairros periféricos, locais de concentração da
classe trabalhadora, eliminando-os e, buscando silenciá-los através do medo – na
medida em que a perseguição, a tortura, o sequestro e a eliminação física
estavam postos para toda a população que contestasse as diretrizes militares,
fosse através de segmentos ligados a organizações políticas ou não.
Se o trato dos agentes do Estado para com a população era igual, no que
tange aos presos políticos, estes exigiram que fossem tratados como tal, uma
maneira encontrada para denunciar naquele momento os horrores perpetrados
pelos bonapartistas. Concomitantemente, passaram a desenvolver estratégias
para conseguir que denúncias sobre a existência de presos políticos chegassem
aos organismos de defesa dos direitos humanos internacionais, para o que
contaram e muito com a colaboração ousada de D. Paulo Evaristo Arms. Em
suma, “(...) eles buscavam meios de denunciar as atrocidades a que eram
submetidos, além de usarem a única arma que dispunham para chamar a atenção
da imprensa para situação: A greve de fome”460.
Na maioria dos presídios usados para a detenção de presos comuns e
políticos, houve greves de fome461, inclusive, no caso ocorrido no Tiradentes, onde
a greve tomou proporção nacional e internacional, contando com o apoio da
Anistia Internacional e de Dom Paulo Evaristo Arms. Os jornais também
divulgaram a greve, apontando que “a debilidade física dos presos políticos, dada
às torturas e a ausência de alimentação, jornais anunciavam a greve e a
possibilidade dos presos não resistirem e virem a óbito”462.
Tais greves de fome, como já foi citado, eram a arma usada pelos presos
políticos para denunciarem as mazelas vividas no sistema prisional, no entanto,
não apenas com este segmento, mas também com os presos comuns, que eram
460
Cf. Programa Lugares da Memória. Repressão política e os presídios da ditadura:
Presídio Tiradentes e Presídio Carandiru. Memorial da Resistência de São Paulo, São
Paulo, 2014. Disponível em:
http://memorialdaresistenciasp.org.br/memorial/Upload/file/lugares-da-
memoria/presdios%20represso.pdf. Acesso em 26 out. 2015.
461
Idem.
462
Programa Lugares da Memória. Presídio Tiradentes. Memorial da Resistência de
São Paulo, São Paulo, 2014. Disponível em:
http://www.memorialdaresistenciasp.org.br/memorial/upload/memorial/bancodedados/130
740251278039152_192_PRESIDIO_TIRADENTES.pdf. Acesso em 27 out. 2015.
177
sistematicamente torturados pelos esquadrões da morte ou mesmo retirados do
presídio para serem executados. De acordo com Aytans Miranda Sipahi, em
algumas das sessões de tortura perpetradas pelos esquadrões contra os presos
correcionais, os presos políticos conseguiram,
Todavia, essa intervenção, quando levada para fora dos muros dos
presídios, incomodou os bonapartistas, que tomaram medidas para calá-los. Na
década de 1970, o procurador da justiça, Dr. Hélio Bicudo, começou a apurar os
casos envolvendo o esquadrão. Após algumas visitas às carceragens e reunião
de documentos que provassem as práticas dos esquadrões paulista, em 1971
foram ordenadas o fechamento do poço usado para as práticas de tortura. O juiz
Mario Fernandes decretou a prisão preventiva por 30 dias de vários policiais que
participaram da execução de presos comuns que foram tirados do presídio e
executados, inclusive do diretor do Presídio Tiradentes, delegado Olinto Denardi.
Com o seu afastamento, assumiu o cargo seu assistente, José Marconi
Júnior, que começou uma “retaliação aos presos políticos, principais
denunciadores do Esquadrão da morte”. Será a partir desse momento que
inúmeros presos políticos começaram a ser transferidos para outras unidades
prisionais, como o Carandiru, o DOPS, entre outros. Aqui os presos políticos da
ala masculina e feminina iniciaram uma longa greve de fome no Presídio
Tiradentes, bem como foi elaborado um abaixo-assinado, exigindo o retorno dos
demais. Em nova represália, outros presos foram também transferidos, mas agora
para mais longe, para o Presídio Presidente Venceslau, no interior de São Paulo.
Nessa leva estavam, “os dominicanos Frei Fernando de Brito, Frei Yves do
Amaral Lesbaupin, Frei Carlos Alberto Libânio Christo (cujos nomes eram os
primeiros da lista do abaixo-assinado enviado a direção), e Wanderley Caixe
(advogado), Manuel Porfírio de Souza (camponês) e Maurice Politi
463
SIPAHI, Aytan. A cidade vista da janela. In: Tiradentes, um presídio da ditadura.
Memórias de presos políticos. São Paulo, SP: Scipione Cultural, 1997, p. 233.
178
(estudante)”464. No todo, foram 32 dias de greve no Tiradentes e 33, no
Presidente Venceslau. A greve teve grande repercussão nacional e internacional,
bem como contou com o apoio da Anistia Internacional 465.
A partir dessas greves, os presídios passaram a isolar os presos políticos
em alas específicas, de modo a evitar que a “contaminação de ideias subversivas
a outros detentos”466, bem como impossibilitar que novos movimentos de
denúncias fossem feitas, buscando desmobilizar qualquer tipo de organização. No
caso do Carandiru, por exemplo, foi reservado o pavilhão 8 exclusivamente para
os presos políticos, após a greve de fome 467. Também houve a manutenção do
presídio do Barro Branco, usado na época exclusivamente para presos
políticos468, – hoje é utilizado para cumprimento de penas privativas de liberdade
e medidas de segurança para os oficiais e praças da Polícia Militar do Estado de
São Paulo, conforme legislação vigente469.
O não reconhecimento inicial da existência de presos políticos ocorreu em
todo o território nacional, mas ainda não há estudos sobre o real sentido que isso
conferiu à repressão ditatorial, a não ser aqueles que discutem se o surgimento
de organizações dos presos comuns no interior dos presídios decorreu, ou não,
da convivência com os prisioneiros políticos, que atuavam articuladamente para
preservar sua sobrevivência e ser eficaz em suas demandas 470. Todavia, tanto
464
Programa Lugares da Memória. Presídio Tiradentes. Memorial da Resistência de
São Paulo, São Paulo, 2014. Disponível em:
http://www.memorialdaresistenciasp.org.br/memorial/upload/memorial/bancodedados/130
740251278039152_192_PRESIDIO_TIRADENTES.pdf. Acesso em 27 out. 2015.
465
Idem.
466
Cf. Programa Lugares da Memória. Repressão política e os presídios da ditadura:
Presídio Tiradentes e Presídio Carandiru. Memorial da Resistência de São Paulo, São
Paulo, 2014. Disponível em:
http://memorialdaresistenciasp.org.br/memorial/Upload/file/lugares-da-
memoria/presdios%20represso.pdf. Acesso em 26 out.2015.
467
Idem.
468
Para maiores informações, ver BERARDO, João Batista. Guerrilhas e Guerrilheiros
no drama da América Latina. São Paulo: Edições Populares, 1981 e também
ROLLEMBERG, Denise. Exílio: entre raízes e radares. Rio de Janeiro: Record, 1999.
469
Para maiores informações ver Resolução 009/2012 do Tribunal de Justiça Militar do
Estado de São Paulo. Disponível em:
http://www.tjmsp.jus.br/AtosComunicados/Home/Visualizar/4. Acesso em 10 jun.2015.
470
A discussão sobre o surgimento de organizações dos presos comuns a partir do
contato com presos políticos é abordada no filme “400 contra 1”. Nele é abordada a
formação do Comando Vermelho, milícia que domina grande parte das comunidades
pobres do Rio de Janeiro. De acordo com a sinopse, o filme conta a história de William da
Silva Lima, único sobrevivente do grupo que fundou o Comando Vermelho no final dos
179
nos estudos desenvolvidos pelo Memorial da Resistência de São Paulo ora
citados, quanto na filmografia apontada, nota-se que havia certa “integração”
entre esses segmentos – fato que também se ratifica quando analisamos os
métodos bonapartistas usados com ambos, dentro e fora do sistema prisional,
marcado por sequestros, tortura, sadismo, execuções sumárias e mortes sob
custódia do Estado.
Todavia, se esses fatos se apresentaram na análise feita, a historiografia
ainda diferencia tais rotinas, supervalorizando o uso delas sobre os presos
políticos, mesmo que sejam aplicadas com a mesma intensidade para os demais
segmentos. Nesse sentido, o crime de lesa humanidade é associado ao militante
político, mas desconsiderado – e inclusive justificado – quando se tratava de
outros segmentos sociais que, fora de organizações políticas, também lutavam
para a mudança desse estado de coisas.
Nesse sentido, a utilização de métodos, como o extermínio, as mortes sob
custódia, as emboscadas plantadas, a violação de provas, as técnicas para o
desaparecimento de corpos e outras evidências do crime, são sobejamente
conhecidas, mas ainda não devidamente elucidadas no concernente às
perseguições políticas, particularmente as realizadas por policiais militares na
qualidade de integrantes de esquadrões da morte, mesmo não havendo diferença
nas estratégias utilizadas pelos agentes desses grupos no tratamento do acusado
ou perseguido sob acusação de crime comum e as aplicadas para a perseguição
política.
Passemos agora a analisar como a inserção daqueles agentes do Estado
na repressão conferiu a eles proteção política oriunda dos autocratas.
nos 1970. Sua convivência com os presos políticos incursos sob a mesma Lei de
Segurança Nacional; sua liderança no presídio de Ilha Grande durante o surgimento do
grupo que criou um tipo de conduta inédito nos presídios brasileiros, a atuação deste
grupo nas ruas do Rio de Janeiro no início dos anos oitenta, quando infernizaram a vida
da polícia carioca fazendo ousados assaltos; e a surpreendente história de amor entre
William e Tereza. A narrativa entrelaça seus conflitos íntimos às fugas e assaltos
espetaculares.
180
CAPÍTULO 4
O uso abusivo da legalidade
471
Para maiores informações, ver MATTOS, 2011, op.cit.
472
O Princípio da Legalidade pressupõe a subordinação do Poder Público à lei, visto que,
os agentes da Administração Pública devem atuar sempre de acordo com ela. SANTOS,
Michelly. “Princípio da legalidade” In: JusBrasil. Disponível em:
http://michellysantos.jusbrasil.com.br/artigos/170455437/principio-da-legalidade. Acesso
em 16 jan.2016.
181
Em 1976, a proteção perpetrada pelos autocratas aos membros dos
esquadrões já era associada à atuação desses grupos na repressão política –
essa relação era estabelecida por causa da dificuldade do Judiciário em realizar
as apurações dos crimes cometidos por eles –, proposição corroborada por
lideranças da imprensa, como Ruy Mesquita, jornalista e diretor do Jornal da
Tarde e de O Estado de São Paulo. De acordo com o jornalista,
Ao longo dos próximos dois anos, quando a proteção dada pelo Estado aos
seus agentes da repressão – membros dos esquadrões da morte – tornou-se
mais recorrente, membros do Judiciário tornaram pública sua consternação
quanto à tal proteção e a sua relação direta com a atuação dos membros dos
esquadrões na repressão política, conforme novamente denunciava, em 1977, o
473
“Livro denuncia a proteção política ao esquadrão”. O Estado de São Paulo. DOPS.
17/10/1976. Arquivo do Estado de São Paulo. 50-z-707. Pasta 08. Documento 851, 854.
474
“Ameaça não impede o júri de Fleury”. O Estado de São Paulo. DOPS. 30/09/1977.
Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0986 - n° 61 - Sérgio Fleury.
475
Conferência proferida pelo procurador da Justiça Hélio Pereira Bicudo. Informação n.
1681-B/76. Serviço de Informações. DOPS. 17/12/1976. Arquivo do Estado de São
Paulo. Secretaria da Segurança Pública. 50-Z-707. Pasta 9. Documento 1063.
182
desembargador Alves Braga, relator do processo na 1° Comarca Criminal de
Justiça. De acordo com o magistrado,
476
“Ameaça não impede o júri de Fleury”. O Estado de São Paulo. DOPS. 30/09/1977.
Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0986 - n° 61 - Sérgio Fleury.
477
“Procurador Bicudo diz que direitos são desrespeitados”. Folha de São Paulo
(Sucursal do Rio de Janeiro). DOPS. 06/10/1977. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta
OP 0867 - Hélio Bicudo.
478
“Bicudo denuncia violência contra marginalizados”. O Estado de São Paulo. DOPS.
26/10/1977. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OP 0867 - Hélio Bicudo
183
publicamente, os relevantes serviços prestados ao Sistema, além de ter em suas
folhas de serviço promoções por merecimento”479.
Essas condecorações também demonstravam que as práticas dos
esquadrões não eram arbitrárias, mas sim, dignas de elogios e felicitações, pois
esses agentes do Estado faziam o que foram incumbidos a fazer. Não se tratava
de desvio de conduta, tampouco de policiais transgressores da norma, como
apontavam os estudiosos da cultura policial480 – eles eram agraciados com
condecorações e aumentos salariais por cumprirem fielmente as funções a que
foram designados.
Já em 1977, segmentos do Judiciário reconheciam que tal desempenho
conferiam a esses agentes do Estado tais regalias. Sobre os membros dos
esquadrões, o procurador da justiça Hélio Bicudo, apontou que,
479
“O esquadrão da morte carioca”. O Estado de São Paulo (Sucursal do Rio de
Janeiro). DOPS. 10/08/1977. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0992 - 1977-
1977 e CHB - A5 - P33.
480
A perspectiva da cultura policial é desenvolvida pelos pesquisadores Marcos Luis
Bretas, André Rosemberg, Dominique Monjardet, Robert Reiner, H. Jerome Skolnick, J.
A.P.Waddington; Paula Poncioni.
481
Fleury se apresenta e é recolhido à prisão. O Globo. 23/02/1978. CHB - A5 - P33
482
Durou pouco a confiança restaurada. Jornal da tarde. DOPS. 01/03/1978. Arquivo do
Estado de São Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio Fleury.
184
4.1 O primeiro julgamento e a criação da Lei Fleury
dado que leis dessa natureza – que deveriam ser promulgadas para
fazer face a circunstância excepcionais de necessidade e de
emergência – contradizem a hierarquia entre lei e regulamento, que é a
base das constituições democráticas, e delegam ao governo um poder
legislativo que deveria ser competência exclusiva do parlamento 486.
Essas relações podem ser notadas com a alteração da dinâmica dos três
poderes pelo bonapartismo no Brasil que subordinou o Legislativo e o Judiciário
ao Executivo, aumentando, dessa forma, seus próprios poderes. A Constituição
de 1946 vigorou integralmente até a aprovação na Câmara da nova Carta
Constitucional, em 1967, e ambas foram alteradas a partir dos atos e emendas
institucionais487, que garantiam a ordem autocrata bem como a legitimidade de
suas práticas. Nesse sentido, a violência se punha já no início desse sistema por
causa da mudança jurídica imposta à sociedade.
483
WADY, Ariane Fucci. Qual a diferença entre o abuso de poder e o abuso de
autoridade? In: JusBrasil. Disponível em: http://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/20923/qual-a-
diferenca-entre-o-abuso-de-poder-e-o-abuso-de-autoridade-ariane-fucci-wady. Acesso
em: 12 jan. 2016.
484
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. 2ed. São Paulo: Boitempo, 2004, p.18-9.
Tradução Iraci Poleti.
485
É importante ressaltar que o autor trabalha com a noção de estado de exceção, em
várias temporalidades, e como ela se apresenta em países da Europa e nos Estados
Unidos. Embora ele não trabalhe especificamente com a configuração política brasileira,
tampouco com a noção de Estado autocrático bonapartista burguês, ele é importante
para o entendimento do legislativo em momentos não democráticos. Para maiores
explicações, ver AGAMBEN, op.cit.
486
AGAMBEN, op.cit., p. 19.
487
COSTA, Emília Viotti. O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania.
São Paulo: IEJE - Instituto de Estudos Jurídicos e Econômicos, 2001, p. 159.
185
O primeiro golpe da autocracia burguesa bonapartista que se
institucionalizou foi a submissão do Poder Legislativo ao Executivo, a partir da
promulgação do Ato Institucional n°-1 (AI-1) de 9 de abril de 1964. Conforme o
texto aprovado pela junta militar composta pelo general Arthur da Costa e Silva, o
tenente-brigadeiro Francisco de Assis Correia de Mello e pelo vice-almirante
Augusto Hamann Rademaker Grunewald, a legitimidade do Legislativo se daria a
partir do crivo do Executivo – tratava-se, portanto, da instituição do exercício do
Poder Constituinte488 pela autocracia bonapartista.
O ato instituía que “a revolução não procura legitimar-se através do
Congresso. Este é que recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do
Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua legitimação”489. Tal
mudança na ordem jurídica apoiava-se e justificava-se no estigma da
“reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil” 490. Diante dessa
dinâmica, apontou Hélio Bicudo:
488
O Poder Constituinte é o poder de elaborar e modificar normas constitucionais, criando
uma nova Constituição ou realizando alterações na já existente. Esse tipo de poder
expressa a suprema vontade do povo. Ele é dividido em duas espécies: o originário, que
se pauta no poder de criar uma Constituição quando o Estado é novo ou de substituí-lo
quando o Estado já existe. Assim, é um poder ilimitado, autônomo e incondicionado. O
outro tipo é o derivado, que deriva do poder originário, mas é subordinado, condicionado
e respeita as limitações impostas pelo seu precursor. Para maiores informações ver,
Poder Constituinte. Disponível em:
http://www.direitonet.com.br/dicionario/exibir/1112/Poder-constituinte. Acesso em: 12
jan.2016.
489
Ato Institucional n° 1 (AI-1), promulgado em 09 de abril de 1964 pelo Comando
Supremo da Revolução, representado pelos Comandantes-em-Chefe do Exército, da
Marinha e da Aeronáutica.
490
Idem.
491
“Hélio Bicudo, discretamente justo”. Folha de São Paulo. DOPS. 23/01/1979. Arquivo
do Estado de São Paulo. Pasta OP 0867 - Hélio Bicudo.
186
que foram ampliados. Tal mudança, aponta Viotti, foi justificada pela premissa da
restauração da ordem econômica e financeira no Brasil, como já apontado acima,
e também para “tomar as urgentes medidas destinadas a drenar o bolsão
comunista, cuja purulência já se havia infiltrado não só na cúpula do governo
como nas suas dependências administrativas”492.
A obsessiva perseguição aos comunistas – presente no texto do primeiro
ato instituído pelos autocratas bonapartistas – já dava indícios do que viria
adiante, ou seja, o uso constante de mecanismos jurídicos para dar legalidade
àquela ordem vigente, como por exemplo, a promulgação da Lei Fleury, que se
figurou em uma alteração no Código de Processo Penal para garantir a liberdade
dos agentes da repressão política do Estado, como veremos adiante.
O ato institucional n° 1 também regulamentava a suspensão dos direitos
políticos de determinados cidadãos493 por dez anos e a cassação dos mandatos
legislativos federais, estaduais e municipais. Tratava-se de eliminar os opositores
daquela ordem. Tais meandros davam indícios do que estaria por vir, ou seja, o
transbordamento de mecanismos de violência, repressão e supressão de
quaisquer direitos, justificados pela necessidade de manutenção do controle e da
ordem. Não era à toa que os grupos de extermínio fossem desdobramentos dessa
violência entranhada, institucionalizada, do próprio Estado.
492
COSTA, 2001, op. cit., p. 160.
493
Nos dias que se seguiram a promulgação do AI-1, foram elaborados documentos,
intitulados de “Ato do Comando Supremo da Revolução”, em que continham os nomes
dos cidadãos, magistrados e membros das forças armadas que perderam seus direitos e
mandatos. Estes documentos foram compilados pelo historiador Carlos Fico em sua obra
citada. Cf: FICO, Carlos. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Revista
Brasileira de História, volume 24, n.47, Editora RHB: São Paulo, 2004, p. 330-8.
494
FICO, op. cit., p. 20.
495
Idem.
187
É importante frisar que este trabalho não busca aprofundar-se sobre todos
os artigos e determinações que os atos institucionais regulamentaram, mas sim,
sobre os que podem nos ajudar a entender nosso objeto de análise496.
Com o Legislativo subjugado ao Poder Executivo, o próximo passo foi
intervir no Judiciário que, naqueles idos, já era entendido como uma pedra no
sapato dos autocratas. Em 20 de outubro de 1965, o presidente do Supremo
Tribunal Federal, ministro Ribeiro Costa condenou publicamente a “interferência
do Executivo e do Legislativo no Judiciário” no que tangia ao aumento do número
de membros daquele Poder e ainda declarou que “a atividade civil pertence aos
civis”, bem como lembrou os militares de que
496
Inúmeros autores debruçaram-se sobre a análise dos atos institucionais na sua
totalidade e amplitude, tais como FICO, 2004, op. cit., ALVES, Maria Helena Moreira.
Estado e Oposição no Brasil 1964-1984, Bauru, SP: Edusc, 2005; e, COSTA, 2001, op.
cit.
497
COSTA, 2001, op. cit., p. 166.
498
Idem.
499
Esse ato institucional extinguia os partidos políticos existentes e permitia a criação de
novos; dava ao Presidente o direito de remeter ao Congresso os projetos de emenda
constitucional que deveriam ser analisados e aprovados desde que obtivessem a maioria
dos votos das duas casas do Congresso ou por decurso de prazo, assim como também
poderia o presidente decretar estado de sitio, submetendo-o posteriormente à aprovação
no Congresso Nacional; ficavam também suspensas por seis meses as garantias
constitucionais de vitaliciedade e estabilidade, podendo os titulares dessas garantias
após investigação sumária, serem demitidos, aposentados, transferidos ou reformados,
desde que atentassem contra a segurança do país. Cf. COSTA, 2001, op. cit., p. 167.
188
passava a ser composto pelo “I – Supremo Tribunal; II – Tribunal Federal de
Recursos e Juízes Federais; III – Tribunais e Juízes Militares; IV – Tribunais e
Juízes Eleitorais e V – Tribunais e Juízes do Trabalho”500. A alta cúpula desses
órgãos passou a ser escolhida direta e livremente pelo Presidente da República e,
no caso do Supremo Tribunal Federal, pedra no sapato dos autocratas, sua
composição foi diretamente afetada, pois “o número de ministros foi aumentado
de onze para dezesseis, tendo sido nomeados cinco ministros com militância
partidária na UDN, mais adequados, portanto, à política do momento”501.
O subjulgamento do Poder Judiciário ao Executivo institucionalizava-se sob
a fachada de legalidade. No mês seguinte, mais um golpe foi dado contra o
Supremo Tribunal. Através da Emenda Constitucional n°16 de 1965, que
introduziu cláusula no artigo 101, parágrafo 1° da Constituição de 1946,
posteriormente incorporada à de 1967, ficava permitido ao Supremo “julgar, em
tese, as leis e os atos normativos federais mediante representação do procurador-
geral da República”502.
A Constituição de 1967 fez ampliar ainda mais o embate entre os militares
e o Judiciário – uma vez que as emendas e atos institucionais cerceavam sua
atuação – bem como reforçou e ampliou o poder do presidente e limitou as
atribuições do Legislativo e do Judiciário. As medidas do Executivo eram
justificadas como de interesse público e de segurança nacional, o que denota que
a ameaça comunista permanecia na base das justificativas autocratas, na mesma
proporção em que as garantias constitucionais se tornavam secundárias. Como
pontuou Lúcia Klein e Marcus Figueiredo,
500
Ato Institucional n° 2, promulgado em 27 de outubro de 1965 pelo Presidente
Humberto de Alencar Castelo Branco.
501
COSTA, 2001, op. cit., p. 167.
502
Idem.
189
das Forças Armadas e, paralelamente, legitimar as alterações que se
processam na ordem legal503.
503
KLEIN, Lúcia; FIGUEIREDO, Marcus. Legitimidade e coação no Brasil pós-64. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 1978, p. 24.
504
COSTA, 2001, op. cit., p. 173.
190
bonapartistas criaram meios jurídicos para dar legitimidade e legalidade à soltura
dos seus homens.
Em 1973, o Código do Processo Penal em vigor instituía que indivíduos
pronunciados em processos penais deveriam aguardar o julgamento presos, em
caráter preventivo. Com o início dos julgamentos, os agentes da repressão,
incluindo o delegado Fleury, chefe do grupo de extermínio paulista, deveriam
aguardar o julgamento encarcerados. Assim, foi expedido o mandado de prisão
para todos os pronunciados, que foram recolhidos em uma das dependências do
DOPS, órgão chefiado na época pelo próprio Fleury.
Aqui já se nota uma arbitrariedade, tendo em vista que a prisão preventiva
tinha a finalidade de afastar esses policiais de suas funções, fato que não seria
respeitado, uma vez que o chefe do DOPS e seus funcionários aguardariam o
julgamento encarcerados em seu local de trabalho.
A medida preventiva, aplicada “tortamente”, no entanto, durou poucos dias,
pois os representantes do Estado mobilizaram-se e formularam uma lei que
alterava os dispositivos legais anteriores em prol dos seus agentes da repressão,
a Lei 5.941 – não por acaso alcunhada de Lei Fleury, serviu apenas para colocar
os membros dos esquadrões em liberdade enquanto aguardavam julgamento 505.
A proteção política do Estado, em consonância, tornara-se explícita, com os
bonapartistas integrantes das câmaras federais se articulando para conseguir a
liberdade desses agentes de maneira legal.
505
Conferência proferida pelo procurador da Justiça Hélio Pereira Bicudo. Informação n.
1681-B/76. Serviço de Informações. DOPS. 17/12/1976. Arquivo do Estado de São
Paulo. Secretaria da Segurança Pública. 50-Z-707. Pasta 9. Documento 1063.
506
“Durou pouco a confiança restaurada”. Jornal da tarde. DOPS. 01/03/1978. Arquivo
do Estado de São Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio Fleury.
191
do seu local de trabalho -, e “(...) um mês depois, nascia a chamada lei Fleury
pela qual a sentença de pronúncia deixava de significar prisão imediata”507, para
ele e extensiva – teoricamente - a todos que preenchessem as mesmas
condições.
507
“Mandado de prisão n° 47.215: (O nome poderá ser:) Fleury”. Jornal da Tarde.
DOPS. 22/02/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio
Fleury.
508
Conferência proferida pelo procurador da Justiça Hélio Pereira Bicudo. Informação n.
1681-B/76. Serviço de Informações. DOPS. 17/12/1976. Arquivo do Estado de São
Paulo. Secretaria da Segurança Pública. 50-Z-707. Pasta 9. Documento 1063.
509
Juiz de direito quer Fleury na cadeia. Diário da Noite. DOPS. 22/02/1978. Arquivo do
Estado de São Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio Fleury.
192
Poder Executivo, diminuía o poder de atuação dos outros dois e determinava a
possibilidade de aposentadoria compulsória aos funcionários públicos que
contestassem a autocracia burguesa bonapartista vigente. De acordo com Klein e
Figueiredo,
510
KLEIN e FIGUEIREDO, 1978, op. cit., p. 27.
511
Idem.
512
CHASIN, José. Hasta Cuando? A propósito das eleições de novembro. Nova Escrita
Ensaio. São Paulo, Escrita, 1982, p. 11, apud ASSUNÇÃO, 2005, op. cit.
513
Os autores analisaram a questão da busca da legitimidade ditatorial e concluíram que
aqui “os generais que dirigiram o país desde 1964 tiveram o bom-senso de governar
recorrendo amplamente à distorção e não à destruição das instituições básicas da
democracia política”, ainda que os partidos políticos tenham sido banidos em prol do
bipartidarismo de fachada ou mesmo com o fechamento do parlamento e demais
medidas postas em prática pelos bonapartistas, acabando com a democracia brasileira.
Para maiores informações, ver O‟DONNELL, Guillermo e SCHMITTER, Philippe.
193
Nesse sentido, a promulgação da Lei 5.941 foi mais um dos meandros da
autocracia burguesa bonapartista para se legitimar no poder, por meio da
legalização da liberdade e institucionalização da impunidade, pois era apenas
aplicada aos agentes dos esquadrões envolvidos na repressão.
Essa lei de 1973 alterava os artigos 408, 474, 594 e 596, do Decreto-Lei nº
3.689, de 3 de outubro de 1941, no que se referia “à isenção da prisão preventiva,
ao relaxamento da prisão e ao pagamento de fiança, dando ao magistrado mais
ferramentas para análise, classificação e julgamento dos casos”514. Por meio
dessa lei, portanto, todos os agentes que pertenciam ao aparato repressivo,
presos pela pronúncia nos processos dos esquadrões, foram imediatamente
postos em liberdade e, legalmente, tinham o direito de aguardar o julgamento no
exercício de suas funções.
A Lei Fleury aparentemente trazia um viés humanizador para o Código do
Processo Penal brasileiro, pois possibilitava que o indivíduo pronunciado – mas
que fosse réu primário e com bons antecedentes – pudesse aguardar o
julgamento em liberdade, fato reconhecido por outros magistrados, já na
reabertura política, em 1985, como foi o caso do promotor de Justiça Sérgio de
Oliveira Médici:
516
A Lei 5.941, intitulada de Lei Fleury, alterava os artigos 408, 474, 594 e 596, do
Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 e foi detidamente apurada na dissertação
de mestrado de MATTOS, 2011, op. cit., capítulo 2: Fleury e a Lei de Segurança
Nacional: disputas entre a justiça militar e o Ministério Público.
517
MÉDICI, 1985, op. cit.
518
“As opiniões de Hélio Bicudo sobre a violência policial”. Jornal da tarde. DOPS.
16/08/1977. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OP 0867 - Hélio Bicudo.
195
A denúncia da extensividade das ações dos esquadrões em todo o país fez
emergir as vozes reacionárias vinculadas à ditadura, tal como se observa nos
exemplos a seguir. O Sr. Ivahir Garcia, representante da ARENA-SP, escreveu
para o Diário do Congresso Nacional, defendendo a promulgação da Lei Fleury
por entendê-la como um grande avanço na legislação brasileira. Segundo ele,
esta lei “concedia aos réus primários e de bom comportamento o direito de
permanecerem em liberdade até o julgamento pelo Tribunal do Júri, após a
sentença de pronúncia519”520.
Enquanto o parlamentar via, na Lei Fleury, a representação de um avanço
para o direito penal brasileiro, a imprensa denunciava seu uso restritivo, ou seja, o
fato de ter sido criada e utilizada apenas para alguns dos membros do esquadrão
da morte, mesmo inserida no Código do Processo Penal. Assim, apesar de
representar um grande avanço para o sistema penal brasileiro 521, na prática, ela
foi aplicada discriminatoriamente, beneficiando, exclusivamente, os policiais
membros da repressão e dos esquadrões, pronunciada em processos de dolo
contra a vida humana522.
Tal uso da lei tornou explícita a proteção que alguns agentes dos
esquadrões recebiam do Estado. Isso ficou ainda mais evidente quando um juiz,
em meados de 1978, cinco anos após a promulgação da lei, deu parecer negativo
em um caso quase idêntico ao de Fleury, principalmente arrogando a premissa de
bons antecedentes.
519
A sentença de pronúncia ocorre apenas em casos de crimes dolosos contra a vida, que
são de competência do Tribunal do Júri e trata-se da decisão que leva o acusado a
julgamento popular. Ela ocorre quando o magistrado, “ao verificar a materialidade do
crime e dos indícios suficientes de autoria, submete o réu a julgamento pelo Júri popular
por meio de sentença fundamentada, indicando os dispositivos de lei pelos quais ele
responderá”. Para maiores informações, ver: Glossário Jurídico. Disponível em
http://www.stf.jus.br/portal/glossario/verVerbete.asp?letra=S&id=521 e “Sentença de
pronúncia não deve influenciar jurados”: Disponível em:
https://www.ibccrim.org.br/noticia/13773-Sentena-de-Pronncia-no-deve-influenciar-
jurados. Acesso em 31 dez. 2015.
520
“O Sr. Ivahir Garcia (Arena - SP pronuncia o seguinte discurso)”. Diário do
Congresso Nacional. DOPS. 19/08/1977. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OP
0867 - Hélio Bicudo.
521
“Defesa quer Fleury solto porque é herói nacional”. Notícias populares. DOPS.
10/03/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OP 0986 - Sérgio Fleury
522
“Quando a polícia não respeita as regras morais”. O Estado de São Paulo.
25/09/1977. CHB - A5 - P33.
196
Recentemente, um processo instaurado em cidade do Estado do Rio
suscitou grande debate, focalizando exatamente o problema de ser o
réu posto em liberdade. A questão foi, primeiramente, colocada perante
o juiz, em primeira instância. Depois, foi levado ao Tribunal. E,
finalmente, subiu ao Supremo Tribunal. Tratava-se de réu acusado de
crime de latrocínio. O juiz entendeu que ele deveria aguardar preso o
pronunciamento final. Acentuou o magistrado que, embora fosse o réu
primário, nem por isso podia ser considerado como portador de bons
antecedentes. Segundo salientou o juiz, havia ele cometido crime
bárbaro, revelando ainda, intensa periculosidade. Como, em tais
circunstancias permitir que ficasse em liberdade?523
523
“O crime, a lei e os tribunais: maus antecedentes”. Folha da tarde. DOPS.
14/03/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0896 (n° 61) - Sérgio Fleury.
197
preso. Suas denúncias poderiam acarretar na condenação de Fleury. De acordo
com o jornal O Estado de São Paulo,
Hoje tenho que contentar-me com as migalhas que oferecem, pois sou
e sempre fui pobre e nem dinheiro para pagar advogado tive, e os que
me defendem são advogados indicados e orientados pelo Sr. Todo
poderoso Fleury, que só fazem o que ele acredita que não vá prejudicá-
lo no futuro525.
524
“Situação que afronta a opinião pública”. O Estado de São Paulo. 27/09/1977. CHB -
A5 - P33.
525
“Policial preso renega esquadrão e confessa crime”. O Pasquim. 06/1978. CHB - A5 -
P33.
526
Idem.
527
Idem.
198
expressivos, pois até uma modificação a seu favor se introduziu no
Código de Processo Penal, não há esperanças de que se faça justiça 528.
528
“Volta ao Júri o esquadrão”. O Estado de São Paulo. 15/12/1977. CHB - A5 - P33
529
“Quando a polícia não respeita as regras morais”. O Estado de São Paulo.
25/09/1977. CHB - A5 - P33.
530
“Situação que afronta a opinião pública”. O Estado de São Paulo. 27/09/1977. CHB -
A5 - P33.
531
KLEIN e FIGUEIREDO, 1978, op. cit., p. 28.
532
A análise mais apurada da lei e seus impactos foram detidamente realizados em
MATTOS, 2011, op. cit.
199
4.2. O segundo julgamento: a coação aos membros do judiciário
533
KLEIN e FIGUEIREDO, 1978, op. cit., p. 149-50.
534
CHASIN, José. Miséria brasileira: estudos e edições AD Hominem, 2000, p. 60.
200
No Brasil, períodos de ditaduras e milagres econômicos fizeram parte da
dinâmica social e configuraram um traço profundo e dominante da nossa
formação. De acordo com Chasin, tal processo econômico-social correspondeu,
sucessivamente, ao “milagre da cana-de-açúcar, (...) da mineração, (...) do café, e
finalmente, dentro do milagre da industrialização subordinada ao imperialismo, o
menor e mais curto de todos, [a]o milagre de 1968 a 1973”535.
Intercalados a esses períodos de milagre econômico, havia momentos de
distensão política com ditaduras – mas, em qualquer dos momentos, contaram
com forte aparato repressivo e vigência de uma estrutura de poder autocrata. De
acordo com Chasin, essa oscilação pode ser vista no período monárquico,
pautado na mão-de-obra escrava; no período republicano, com a política dos
governadores, pautada em uma estrutura de poder autocrática, mas de fachada
liberal-democrática, intitulada por ele de “real ditadura das oligarquias rurais”; a
segunda metade da década de 1930, com a ditadura do Estado Novo; os anos
1940, com o governo constitucional de Dutra, mas ligado à repressão geral
oriunda da guerra fria e do embate entre capitalistas e comunistas e sua
propagação pelo mundo; o período “democrático” de Juscelino Kubitscheck e por
fim, o golpe de Estado e implantação da ditadura militar 536. Assim, nossa história
é rica em milagres e ditaduras, ao mesmo tempo em que é
535
CHASIN, 2000, op. cit., p. 60.
536
Idem.
537
Ibidem.
201
burguesia, no outro extremo, viam a acumulação da sua riqueza diminuir diante
do fim do milagre econômico e, consequentemente, sentiam a preservação do
seu status quo ameaçada, bem com a manutenção da ordem capitalista na
particularidade vigente no país. Em consonância ao início da crise do milagre, os
expurgos, demissões, aposentadorias compulsórias e outras medidas já não
cabiam para aquele novo cenário político.
Assim, no segundo momento de julgamento dos membros dos esquadrões,
ocorrido em 1977, é possível notar que os magistrados tiveram maior espaço para
buscar a desarticulação dos grupos de extermínio 538, porém, um espaço breve,
pois os autocratas utilizaram de outras medidas para garantir a legalidade de seus
agentes da repressão.
Nesse momento, a forma encontrada pelos autocratas para tal fim foi a
coação. Essa prática já havia sido utilizada em julgamentos anteriores, mas
restritamente às testemunhas, se estendendo agora aos magistrados que
passaram a receber ameaças de morte, extensivas a seus familiares.
As ameaças feitas contra os magistrados foram constantes. No julgamento,
realizado na Comarca de Barueri, em meados de 1977, de acordo com os
periódicos da época que denunciaram as ameaças sofridas pelos magistrados,
não existiam condições ideais para que tais julgamentos ocorressem com
tranquilidade, pelo contrário, eles aconteciam “em clima de tensão e suspense
provocados pela denúncia da promotora pública Marcia Claudia Foz, de que todos
que ali se encontravam tinham sido ameaçados de morte por forças ocultas”539.
A coerção sofrida pelos magistrados foi denunciada pela imprensa da
época, ao informar que a promotora, Dra. Claudia Maria, diante das ameaças
sofridas e da omissão da procuradoria geral, “se limitou à leitura de peças dos
autos e não fez uma análise profunda das acusações”540.
As ameaças feitas contra os magistrados criavam, com relação aos
membros do sistema repressivo, uma eficiente blindagem que garantiu a
538
“Juiz de direito quer Fleury na cadeia”. Diário da Noite. DOPS. 22/02/1978. Arquivo
do Estado de São Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio Fleury.
539
“A absolvição de Fleury”. Jornal Sem identificação. DOPS. 03/10/1977. Arquivo do
Estado de São Paulo. Pasta OS 0986 - n° 61 - Sérgio Fleury.
540
“Tribunal absolve Fleury por unanimidade”. Jornal do Brasil. 02/10/1977. CHB - A5 -
P33.
202
absolvição do delegado Fleury e dos demais acusados por unanimidade,
alegando falta de provas contra os acusados541.
Na sequência, observa-se que estes mesmos magistrados passaram a
aceitar a ausência de provas, a partir da alegação da defesa de que as
testemunhas eram indivíduos socialmente excluídos, comumente chamados de
“marginais”542 e, por tal condição, não poderiam ter seu depoimento considerado
como uma prova – em outras palavras, mesmo que esses agentes do Estado
fossem “claramente acusados da prática de torturas nas funções que
desempenham, incentivando, sem medida a própria violência” 543, eles seriam
inocentados, e as testemunhas, desqualificadas.
De acordo com um promotor de justiça de Barueri que acompanhava o
julgamento, ao ser questionado sobre a possível punição a Fleury, respondeu:
“Quem tem coragem de condenar Fleury”544? Era senso comum que, ao tentar
condenar Fleury, a força do Estado recairia de maneira brusca sobre quem o
tentasse e, caso houvesse a condenação, novos mecanismos seriam
engendrados para sua soltura.
Os julgamentos dos crimes dos membros dos esquadrões, em nível
nacional, eram pautados na certeza da sua absolvição. Em um caso registrado
por Geraldo Majella, pesquisador do esquadrão da morte de Alagoas, tais
julgamentos também “criavam um clima de pânico e terror na população, [a]
certeza da impunidade e ampliando o efeito devastador dos grupos criminosos na
Segurança Pública”545. Nesse sentido, notamos que as ações protetivas do
Estado para com esses grupos não remetem a uma particularidade local.
No Rio de Janeiro, a realidade era a mesma, ou seja, julgamentos que
graças à proteção do Estado, resultaram em absolvição dos réus. Em um caso,
ocorrido na Baixada Fluminense, eram acusados os sargentos Elói Felipe da Silva
541
“Tribunal absolve Fleury por unanimidade”. Jornal do Brasil. 02/10/1977. CHB - A5 -
P33.
542
“A absolvição de Fleury”. Jornal sem identificação. DOPS. 03/10/1977. Arquivo do
Estado de São Paulo. Pasta OS 0986 - n° 61 - Sérgio Fleury.
543
“A que leva a anulação do julgamento do esquadrão”. O Estado de São Paulo.
23/07/78. CHB - A5 - P33.
544
“Assim os sete jurados decidiram que Fleury é inocente”. O Estado de São Paulo.
DOPS. 03/10/1977. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0986 - n° 61 - Sérgio
Fleury.
545
MAJELLA, Geraldo de. Execuções sumárias e grupos de extermínio em Alagoas.
Maceió: EDUFAL, 2006, p. 27.
203
e Miguel Domingos de Souza, além de dois comerciantes locais. Mesmo sendo o
sargento Elói já reincidente nos crimes dos esquadrões, sua absolvição e a dos
outros membros do grupo, era dada como certa:
546
“Esquadrão em julgamento". Folha de São Paulo. DOPS. 11/04/1978. Arquivo do
Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte; “Expectativa no
julgamento do esquadrão”. Jornal Folha da tarde. DOPS. 26/04/1978. Arquivo do Estado
de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte.
547
“Ameaça não impede o júri de Fleury”. O Estado de São Paulo. DOPS. 30/09/1977.
Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0986 - n° 61 - Sérgio Fleury.
548
“Anulada a absolvição de Fleury”. O Estado de São Paulo. 18/07/78. CHB - A5 - P33.
204
O caso repercutiu na imprensa da época, como pode ser visto na matéria
publicada pelo jornal Folha de São Paulo: “Na época do júri, o episódio despertou
celeuma e o noticiário foi agitado com as denúncias da promotora, segundo a
qual, ela e o magistrado Osvaldo da Silva Rico, vinham recebendo ameaças
telefônicas”549. Todavia, mesmo com tais ameaças e a imagem negativa que se
formava com relação a tal proteção, este foi mais um dos julgamentos em que os
agentes da repressão foram absolvidos.
A proteção do Estado autocrático aos membros da repressão atuantes nos
esquadrões começou a se esfacelar. Se antes essa proteção tinha cunho
nacional, aos poucos, eles passaram a ser “esquecidos” por seus protetores,
como veremos a seguir.
551
“A que leva a anulação do julgamento do esquadrão”. O Estado de São Paulo.
23/07/78. CHB - A5 - P33.
552
“Situação que afronta a opinião pública”. O Estado de São Paulo. 27/09/1977. CHB -
A5 - P33
553
“Na Câmara, Bicudo denuncia ação dos órgãos de segurança”. Folha de São Paulo.
DOPS. 10/08/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OP 0867 - Hélio Bicudo;
“Bicudo recebe título e defende a anistia”. O Estado de São Paulo. DOPS. 10/08/1978.
Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OP 0867 - Hélio Bicudo.
206
de um processo que já se sabia o fim, ou seja, os policiais seriam absolvidos,
como o foram.
A imprensa da época denunciou que a impunidade ante tais
arbitrariedades, quando se tratavam dos policiais da repressão acusados de
delitos à frente dos esquadrões, não era exceção. De acordo com o jornal O
Estado de São Paulo, era impossível que juízes, promotores e jurados, que
também se viam pressionados com as represálias, atuassem com imparcialidade.
Essa era mais uma evidência de que a atuação dos agentes da repressão
política também nos esquadrões conferiu a eles a proteção dos autocratas
bonapartistas, como mostrou o periódico em 1977:
554
"Quando a polícia não respeita as regras morais". O Estado de São Paulo.
25/09/1977. CHB - A5 - P33.
555
"Ameaça não impede o júri de Fleury". O Estado de São Paulo. DOPS. 30/09/1977.
Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0986 - n° 61 - Sérgio Fleury.
556
“Quando a polícia não respeita as regras morais". O Estado de São Paulo.
25/09/1977. CHB - A5 - P33.
207
Na verdade, os periódicos questionavam a divisão dos poderes e qual era
o efetivo papel que o Judiciário estava desempenhando, uma vez que este era
enxovalhado quando se tratava de tentar punir os esquadrões que, ao invés de
serem afastados, recebiam todo tipo de condecoração.
557
"A polícia e a mulher de César". O Estado de São Paulo. 08/03/1977. CHB - A5 -
P33.
558
"A absolvição do delegado Fleury, agora anulada". O Estado de São Paulo. 18/07/78.
CHB - A5 - P33.
559
"A que leva a anulação do julgamento do esquadrão". O Estado de São Paulo.
23/07/78. CHB - A5 - P33.
560
"Ameaça não impede o júri de Fleury". O Estado de São Paulo. DOPS. 30/09/1977.
Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0986 - n° 61 - Sérgio Fleury
208
A inclusão arbitrária de documentos pela defesa foi notada e contestada no
momento do julgamento, mas seu pedido só foi atendido quase um ano depois –
tempo necessário para que o Tribunal da Comarca de Barueri entendesse que,
Em suma, era sabido pela opinião pública e pela imprensa que um novo
julgamento, assim como o primeiro, não aconteceria em condições necessárias
para que houvesse imparcialidade das partes julgadoras para exercerem suas
funções.
Os questionamentos que, em 1973, eram tímidos, agora em 1977, estavam
em diversos segmentos da sociedade civil e ecoavam por todos os cantos. A
autocracia bonapartista e seus tentáculos começavam a ser questionados.
561
“Fleury volta ao banco dos réus". Diário da Noite. DOPS. 18/07/78. Arquivo do Estado
de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte.
562
"A que leva a anulação do julgamento do esquadrão". O Estado de São Paulo.
23/07/78. CHB - A5 - P33.
563
Idem.
209
4.3. O terceiro julgamento: policiais absolvidos e juízes afastados por
“merecida promoção”
564
A revogação do Ato Institucional n° 5 “manteve a legislação eleitoral, os senadores
biônicos e reservou-se o direito de decretar o estado de emergência”. Cf. COSTA, 2001,
op. cit., p. 181.
565
"A ameaça ao homem que mandou prender Fleury". O Estado de São Paulo. DOPS.
21/02/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio Fleury.
566
ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil 1964-1984. Bauru, SP:
Edusc, 2005, p. 223-224.
567
ALVES, 2005, op. cit., p. 225.
210
No que tange ao funcionamento do Judiciário, em meados de 1978, tinha
início o terceiro julgamento contra os esquadrões, agora na Comarca de
Guarulhos. No processo de n° 173/71, os réus respondiam pela execução de
Antônio Rodriguês (Nico), Antônio Mendonça (Gaúcho) e Marcos Tetracesar
(Italianinho), que se encontravam sob custódia do Estado, no presídio Tiradentes
de onde foram tirados e executados em Guarulhos.
Os advogados de defesa, como já feito em outras pronúncias, entraram
com o pedido de concessão da Lei Fleury, alegando que seus clientes eram réus
primários e de bons antecedentes. Para espanto geral, o magistrado daquela
Comarca, juiz Antônio Filardi Luiz questionou tais “qualidades” dos réus.
Como era possível classificá-los como cidadãos com bons antecedentes,
se, contra eles, pesavam inúmeras acusações, muitas ainda a serem julgadas? A
imprensa da época, ainda em 1977, no julgamento ocorrido na Comarca de
Barueri, já trazia ao público tal incoerência, quando apontou que os membros dos
grupos de extermínio não poderiam ser beneficiados com a lei Fleury, pois
aqueles policiais “não satisfazia(m) pelo menos uma das exigências”568, ou seja,
não possuíam bons antecedentes, uma vez que já haviam sido julgados e ainda
tinham tantos outros processos a responder, inclusive alguns já com data
marcada para ocorrer, caso de que era um exemplo, aqueles contra os agentes
que haviam executado uma pessoa alcunhada de “Nego Sete” 569. Logo,
(...) tecnicamente, todos os réus são primários. Mas não podem ser
considerados como portadores de bons antecedentes pessoais para os
efeitos do disposto no parágrafo 2° do artigo 408 do Código do
Processo Penal com redação emprestada pela Lei 5941/73: Fleury
responde ou respondeu por vários outros processos semelhantes570.
568
"Ameaça não impede o júri de Fleury". O Estado de São Paulo. DOPS. 30/09/1977.
Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0986 - n° 61 - Sérgio Fleury.
569
“Nego Sete” foi o primeiro indivíduo a ser morto pelo esquadrão da morte paulista. Ele
foi fuzilado pelo grupo no final de 1968 quando chegava a sua casa. Em seguida, foi
enrolado em um tapete e desovado na Comarca de Guarulhos. Para maiores
informações. ver MATTOS, 2011, op. cit. e também "Será em Guarulhos o outro júri de
Fleury". Notícias populares. DOPS. 03/10/1977. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta
OS 0986 - n° 61 - Sérgio Fleury; e também "Outro julgamento de Fleury em Guarulhos".
Folha de São Paulo. DOPS. 03/10/1977. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS
0986 - n° 61 - Sérgio Fleury.
570
"A ameaça ao homem que mandou prender Fleury". O Estado de São Paulo. DOPS.
21/02/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio Fleury; e
211
Em 1978, o juiz Filardi questionou a concessão da Lei Fleury aos
integrantes do aparato repressivo e, por entender que não tivessem bons
antecedentes, em virtude da quantidade de processos movidos contra eles,
decretou a prisão preventiva de Fleury a ser cumprida imediatamente. O
magistrado ainda ressaltou a necessidade da boa conduta desses policiais que
deveriam servir de exemplo para a sociedade, tendo em vista o posto que
ocupavam, em especial o referido delegado. De acordo com Filardi,
Tal decisão do juiz não ficou sem retaliação dos autocratas bonapartistas.
Logo após a determinação do juiz, ele e sua família passaram a sofrer ameaças
de morte, obrigando-lhe alterar sua rotina familiar, havendo a necessidade da
presença constante de proteção familiar em sua casa – suas filhas passaram a
ser acompanhadas em sua vida quotidiana.
Pela primeira vez, os seis [o juiz, sua esposa e as quatro filhas] [viram]-
se num estado de angústia familiar. Claro, o pai não demonstra suas
preocupações. (...) O único detalhe destoante agora é a presença
constante de uma viatura de Rádio Patrulha, chapa GC6719, cujos dois
ocupantes anotam as chapas dos veículos que passam por ali. Na
verdade, o recurso antecedeu muitos dias à divulgação da prisão de
Fleury e ao telefonema anônimo e agressivo de ontem. “Eu já previa
consequências, justifica. E por mais alguns meses, as filhas serão
acompanhadas ao Colégio Estadual, a viatura permanecerá, a família
residirá no sobrado. Uma diferença – portas e janelas –
cuidadosamente fechadas, ninguém pode se aproximar sem ser
inquerido pelo policial atento. Provavelmente, outros hábitos da família
também sofrerão algumas mudanças: as garotas não mais ficarão
sozinhas assistindo televisão(sic), enquanto os pais vão às reuniões do
também "Juiz de direito quer Fleury na cadeia". Diário da Noite. DOPS. 22/02/1978.
Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio Fleury.
571
"Fleury se apresenta e é recolhido à prisão". O Globo. 23/02/1978. CHB - A5 - P33; e
também "Fleury já está preso". Notícias Populares. DOPS. 23/02/1978. Arquivo do
Estado de São Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio Fleury.
212
Rotary Club; o tênis que o juiz aprendeu a prática em Piedade será
interrompido (...)572.
572
"A ameaça ao homem que mandou prender Fleury". O Estado de São Paulo. DOPS.
21/02/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio Fleury.
573
"A ameaça ao homem que mandou prender Fleury". O Estado de São Paulo. DOPS.
21/02/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio Fleury.
574
"Fleury está preso". Diário da noite. DOPS. 23/02/1978. Arquivo do Estado de São
Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio Fleury.
213
A decretação da prisão preventiva contra Fleury e a de seus subordinados
acirraram as vozes conservadoras na defesa da liberdade do delegado. Afinal,
tratava-se de apenas cinco processos. Seria isso suficiente para que ele não
pudesse gozar do benefício da lei575? Em um Estado que mantinha quase a
totalidade de sua população sob suspeição constante, podendo qualquer
indivíduo ser preso sem motivo efetivo e obrigado a passar por longas sessões de
torturas até confirmar tudo o que o aparato repressivo julgasse ser verdadeiro,
ficava cada vez mais claro que os membros dos esquadrões recebiam proteção
legal para a prática de suas ilegalidades.
A decisão do magistrado também representava a abertura de um
precedente identificado pela mídia impressa, ou seja, a possibilidade de que
outros julgamentos contra representantes do Estado fossem realmente imparciais
e que, efetivamente, punissem os membros dos famigerados grupos. De acordo
com o jornal O Estado de São Paulo de 1978, isso já se punha como senso
comum entre os próprios policiais do Departamento Estadual de Investigações
Criminais (DEIC):
575
"Um possível pedido de habeas corpus". Folha da tarde. DOPS. 24/02/1978. Arquivo
do Estado de São Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio Fleury.
576
"Juiz decide hoje sobre a liberdade de Fleury". O Estado de São Paulo. DOPS.
24/02/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio Fleury.
577
"Uma sentença que restaura a confiança no Judiciário". Jornal da tarde. DOPS.
23/02/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio Fleury.
214
Havia, então, a lei para o povo e a lei para os agentes do Estado e, para
este último segmento, a interpretação da lei e a sua respectiva aplicação
deveriam mesmo ser bem diferentes. Em longo prazo, essa dissonância trazia à
tona os limites impostos ao Estado por sua própria prática que, pautada na busca
da legitimidade através de mudanças constitucionais, na verdade, fazia “aumentar
sua capacidade imediata de controle e de repressão, mas esses esforços não têm
probabilidade de ser considerados arranjos permanentes (...)”578 – esta era a real
função social desempenhada por tais alterações constitucionais.
Tomemos como base o trato com o indivíduo ligado à militância, à luta pela
liberdade de expressão e pelo retorno das garantias individuais, ou mesmo o
cidadão comum que lutava por demandas sociais. A estes, mesmo tendo bons
antecedentes confirmados por documento oficial emitido pelas delegacias, cabiam
as prisões arbitrárias, as longas sessões de tortura e ainda deviam comprovar sua
inocência, mesmo não havendo culpa formada ou processo formulado. Essa
dubiedade foi denunciada em 1978 pelo periódico O movimento, que questionava:
“Como pretender-se que os comandados do delegado Fleury ajam segundo os
ditames da lei, se esta, quando se trata da figura do policial intocável, é ignorada
e até mesmo abastardada”579?
A concessão da remoção ao magistrado foi assunto na mídia impressa
tanto por novamente explicitar a proteção política do Estado para com seus
agentes da repressão, quanto por parte do Executivo e segmentos do Judiciário,
vinculados à ditadura que se apressaram em anunciar que tais trâmites de
remoção já estavam previstos e que sua publicação apenas “coincidiu em ser
publicada pelo Diário Oficial, três dias depois de ser decretada a prisão preventiva
do delegado Sérgio Fleury” 580.
Os autocratas bonapartistas apenas não disseram que, com a remoção do
magistrado – que poderia ser entendida como uma promoção, dada à grande
concorrência para conseguir uma vaga no Tribunal da capital – abria-se um
espaço para que a decisão de Filardi fosse anulada. Não à toa, no mesmo dia da
saída do juiz, foi protocolado o pedido de reconsideração do advogado de defesa
578
O‟DONNELL e SCHMITTER, 1988, op. cit., p. 36.
579
"O esquadrão da morte na polícia". O Movimento. 05/1978. CHB - A5 - P33.
580
"A ameaça ao homem que mandou prender Fleury". O Estado de São Paulo. DOPS.
21/02/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio Fleury.
215
de Fleury e de seus subordinados acusados dos crimes do esquadrão 581.
Cessando o período de atuação do magistrado naquela Comarca, ele não poderia
receber o pedido, tampouco cabia a ele julgá-lo. Os meandros do Estado para
legalização da liberdade de seus agentes da repressão estavam em trânsito.
Por pressões exteriores, ou não, o próprio juiz Filardi também foi a público
anunciar que sua remoção não tinha relação com a sua decisão sobre o processo
de Fleury. Para o magistrado, sua saída era “um ato de rotina que nada tem a ver
com o caso do esquadrão”582. No entanto, seus pedidos de remoção, feitos em
momentos anteriores ao seu envolvimento no caso dos esquadrões paulistas, não
haviam sido acatados, contrariamente ao que ocorria agora, quando foi atendido
prontamente, configurando-se, assim, a possibilidade de outro magistrado
assumir em seu lugar e rever sua decisão – já que Filardi deixou claro que não
mudaria sua decisão. Fato é que, independente de qual a real intenção, ele fora
removido, e o próximo magistrado, escolhido pelos autocratas, certamente
concederiam a liberdade aos agentes da repressão.
Era necessária a concessão da liberdade aos membros dos esquadrões
Sérgio Paranhos Fleury, Ademar Augusto de Oliveira (Fininho), José Campos
Correia Filho (Campão), João Bruno e João Carlos Tralli, pois a expedição do
mandado de prisão contra eles ocorreu no período entre a remoção do juiz Filardi
e o ingresso do novo magistrado.
Com exceção de Fleury, que se apresentou para cumprimento da medida
cautelar e de Ademar Augusto de Oliveira, que já estava preso em razão da sua
culpa em outro processo, os demais policiais estavam em situação de foragidos.
Eles acreditavam que Fleury não ficaria preso e, esperando por isso, não se
apresentaram, esperando a soltura do chefe do grupo para também utilizarem do
mesmo pressuposto jurídico que a ele seria concedida.
581
"Fleury: a primeira petição de liberdade". Jornal da tarde. DOPS. 24/02/1978. Arquivo
do Estado de São Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio Fleury.
582
"Fleury já em prisão especial". Folha da Tarde. DOPS. 23/02/1978. Arquivo do Estado
de São Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio Fleury.
216
(...) os policiais falavam somente na decisão da Justiça. Muitos
duvidavam quanto à aplicação da lei, assegurando que Fleury sempre
foi beneficiado e não seria desta vez que a coisa irá ser do contrário 583.
583
"Juiz decreta a prisão de Fleury". O Estado de São Paulo. 22/02/1978. CHB - A5 -
P33 e também DOPS. Pasta OS 0986 (n° 61). Sérgio Fleury. Arquivo do Estado de São
Paulo.
584
"Decretada a prisão do delegado Fleury". Diário Popular. DOPS. 22/02/1978. Arquivo
do Estado de São Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio Fleury.
585
"Juiz decreta a prisão de Fleury”. Folha de São Paulo. 22/02/1978. CHB - A5 - P33
586
"A ameaça ao homem que mandou prender Fleury". Estado de São Paulo. DOPS.
21/02/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio Fleury.
217
mas antes “(...) ficou nervoso ao ser informado que o juiz de Guarulhos iria
expedir os mandados de prisão e não concederia os benefícios da Lei Fleury” 587.
Quando os advogados de defesa de Fleury entraram com recurso, pedindo
a revisão da sentença do juiz Filardi, alegando a condição de réu primário e de
bons antecedentes, usaram como comprovação um atestado emitido pela
Delegacia Geral de Polícia, onde de fato, não constava condenação alguma. Os
advogados de defesa chegaram a questionar por que a lei passou a ser aplicada
de outra forma, apontando que “em todos os processos, Fleury foi considerado de
bons antecedentes. Por que não agora”588? Em suma, os advogados estavam
questionando a mudança na aplicação da lei, pois
587
"Juiz decreta a prisão de Fleury". O Estado de São Paulo. 22/02/1978. CHB - A5 -
P33 e também DOPS. Pasta OS 0986 (n° 61). Sérgio Fleury. Arquivo do Estado de São
Paulo.
588
"A ameaça ao homem que mandou prender Fleury". O Estado de São Paulo. DOPS.
21/02/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio Fleury.
589
"Advogado de Fleury pede reconsideração". Folha de São Paulo. DOPS. 24/02/1978.
Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio Fleury.
590
"Fleury se apresenta e é recolhido à prisão". O Globo. 23/02/1978. CHB - A5 - P33.
218
De acordo com o Jornal da Tarde, a prisão do delegado não alterou os seus
hábitos, muito pelo contrário,
591
"Fleury: a primeira petição de liberdade". Jornal da tarde. DOPS. 24/02/1978. Arquivo
do Estado de São Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio Fleury.
592
"Mandado de prisão n° 47.215: (O nome poderá ser:) Fleury". Jornal da Tarde.
DOPS. 22/02/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio
Fleury.
593
"Juiz decide hoje sobre a liberdade de Fleury". O Estado de São Paulo. DOPS.
24/02/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio Fleury.
219
um juiz se for julgado afasta-se da função, um homem público que se
oferece em novo julgamento aos eleitores abre mão do cargo. A este
processo dá-se o nome de incompatibilização594.
eu poderia ter ido para o DOPS. Mas não vejo sentido nisso, pois eu e o
diretor do DOPS estamos no mesmo nível, que é de diretor de
departamento. O mais certo é que eu fique ligado ao meu superior
hierárquico imediato, no caso, o delegado-geral de Polícia. 598
Era amplamente sabido que Fleury, assim como nas outras situações em
que fora beneficiado com a lei que levava seu nome, tinha total acesso aos
trâmites e informações do processo e que influenciaria na decisão final. Além
disso, sua prisão não mudava em nada sua atuação no aparato repressivo, como
594
"Incompatibilidade". Folha de São Paulo. DOPS. 01/03/1978. Arquivo do Estado de
São Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio Fleury.
595
"Airton Soares critica libertação do delegado". O Estado de São Paulo. DOPS.
01/03/1978. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio Fleury. Arquivo do Estado de São Paulo.
596
"Eu estou inocente". O Estado de São Paulo. DOPS. 23/02/1978. Arquivo do Estado
de São Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio Fleury.
597
"Fleury se apresenta e é recolhido à prisão". O Globo. 23/02/1978. CHB - A5 - P33
598
"Eu estou inocente". O Estado de São Paulo. DOPS. 23/02/1978. Arquivo do Estado
de São Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio Fleury.
220
o próprio Fleury, em entrevista em fevereiro de 1978, a O Estado de São Paulo,
“admitiu que pretende ser informado de tudo que estiver ocorrendo”599.
Seu advogado de defesa, o Dr. Alceu de Almeida Gonzaga, ao dar uma
entrevista sobre os passos seguintes para libertar seu cliente, associou sua
manutenção no local de trabalho a um estado de liberdade. No entendimento do
advogado, “Fleury tem o direito de aguardar seu julgamento em liberdade, ao
afirmar que o juiz concedeu a prisão especial em sala da Secretaria da Segurança
Pública”600. Na prática, mesmo cumprindo medida cautelar, ele continuou
exercendo suas funções e tinham possibilidade de influenciar o julgamento. Cabia
então, apenas esperar pela legalização da sua liberdade, que aconteceria na
sequência.
O chefe do esquadrão paulista e articulador do aparato repressivo foi
liberado poucos dias depois. O novo juiz Péricles de Toledo Pizza Junior,
designado para a Comarca de Guarulhos, revogou a determinação de seu
antecessor, garantindo aos membros da repressão política a liberdade. Para o
novo magistrado, Fleury possuía “provas robustas dos bons antecedentes”601 e
acrescentou:
599
"Fleury apresenta-se e fica em cela especial". O Estado de São Paulo. 23/02/1978.
CHB - A5 - P33.
600
"Fleury já em prisão especial aguardará decisão do juiz". Diário Popular. DOPS.
23/02/1978.Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio Fleury.
601
"Fleury livre reassume no DEIC". Folha da tarde. DOPS. 28/02/1978. Arquivo do
Estado de São Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio Fleury.
602
"Fleury livre reassume no DEIC". Folha da tarde. DOPS. 28/02/1978. Arquivo do
Estado de São Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio Fleury.
603
"Fleury livre reassume no DEIC". Folha da tarde. DOPS. 28/02/1978. Arquivo do
Estado de São Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio Fleury.
604
O princípio do in dubio pro reo consiste em, na dúvida, realizar a interpretação em
favor do acusado, pois a garantia da liberdade deve prevalecer sobre a pretensão
punitiva do Estado. Informações disponíveis em:
221
nenhum outro acusado, particularmente naqueles anos de intensa repressão
política. Uma hora depois de ter sido posto em liberdade605, Fleury reassumiu seu
cargo no DEIC, como apontou O Estado de São Paulo, “o delegado Sérgio
Paranhos Fleury é, agora, um homem livre”606. Essa decisão, em linhas gerais,
coadunava-se com as necessidades do Estado em manter legalmente em
liberdade seus colaboradores.
O próprio réu confirmou, em entrevista coletiva à imprensa, que já
esperava sua soltura607, conforme, inclusive, esperava a corporação militar –tanto
que o delegado Ari Bauer, da Divisão de Capturas, designado para substituí-lo,
em nada mexeu, ou mudou, durante sua breve passagem no cargo do colega.
Ari Bauer, que voltou para a Divisão de Capturas, não havia feito
nenhuma alteração na Diretoria do DEIC, desde terça-feira da semana
passada, e por isso, Sérgio Fleury encontrou-a como havia deixado,
com os mesmos delegados assistentes, os mesmos assessores, os
mesmos investigadores e escrivães. Nem no setor de secretária e em
outros burocráticos, Ari Bauer havia mexido608.
http://professorlfg.jusbrasil.com.br/artigos/121916192/principio-do-in-dubio-pro-reo.
Acesso em 10 jun.2015.
605
"Juiz reconsidera parte da sentença e libera Fleury". Folha de São Paulo. DOPS.
28/02/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio Fleury;
"Fleury reassume o DEIC". Diário Popular. DOPS. 28/02/1978. Arquivo do Estado de
São Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio Fleury; e, "Fleury espera a sua liberdade a
qualquer momento". Folha de São Paulo. DOPS. 28/02/1978. Arquivo do Estado de São
Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio Fleury.
606
"Em liberdade. O juiz decide: Fleury é primário, de bons antecedentes". O Estado de
São Paulo. DOPS. 28/02/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61)
- Sérgio Fleury.
607
"Juiz reconsidera parte da sentença e libera Fleury". Folha de São Paulo. DOPS.
28/02/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio Fleury.
608
Idem.
609
Ibidem.
610
"Pedida a liberdade para dois policiais de Fleury". Diário da noite. DOPS. 10/03/1978.
Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio Fleury.
222
Toledo, entendendo que, assim como Fleury, eles gozavam de bons
611
antecedentes .
É importante frisar que o uso de práticas jurídicas para garantir a legalidade
da repressão era prática comum do Estado para com os membros do aparato
repressivo desde o início das atividades desses grupos de extermínio – a primeira
vez que o Judiciário teve de rever sua sentença em prol desses agentes da
repressão ocorreu ainda 1973, quando um magistrado, cujo nome não fora
identificado pelo jornal, revogou o mandado de prisão contra os homens do
esquadrão. De acordo com o Jornal da Tarde, o juiz em questão na época,
não importa acuse (o réu) bons antecedentes (bom marido, bom pai,
etc.), mesmo de ordem administrativa (diretor geral de Polícia, chefe do
DEIC, etc.), pois à evidência faltam-lhe bons antecedentes criminais613.
611
"Juiz mantém a decisão e deixa Fleury em liberdade". O Estado de São Paulo.
DOPS. 15/03/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0896 (n° 61) - Sérgio
Fleury.
612
"Mandado de prisão n° 47.215: (O nome poderá ser:) Fleury". Jornal da Tarde.
DOPS. 22/02/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio
Fleury.
613
"Em liberdade. O juiz decide: Fleury é primário, de bons antecedentes". O Estado de
São Paulo. DOPS. 28/02/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61)
- Sérgio Fleury.
223
em permanecer com a prática delituosa614. Tantas argumentações em defesa da
correta aplicação da lei em nada resultaram, além do repúdio de Péricles de
Toledo aos magistrados e a reafirmação de sua decisão615.
No dia seguinte após a libertação de Fleury, o juiz Antônio Filardi Luiz,
magistrado que determinara a prisão dos membros dos esquadrões, em
entrevista à Folha de São de Paulo, mostrou-se extremamente consternado ante
a decisão da 1° Vara do Fórum de Guarulhos. Filardi apontou diversos pontos que
comprovavam o beneficiamento de Fleury e de como a legislação brasileira
operava de forma dúbia: uma para os representantes do Estado e outra para a
população no geral. Para Filardi, a primeira irregularidade fora o fato de não ter
sido levado para o presídio, “por desobedecer a ordens do juiz, uma vez que o
despacho foi bem claro ao fixar como local da detenção uma sala especial e não
o prédio do DEIC”616.
O magistrado também questionou a tese de bons antecedentes adotada
por seu sucessor no caso, reafirmando que ele, Filardi, embasara-se no estudo
dos autos para decidir pela expedição de mandado de prisão617. Por fim, ele
apontou que a aplicação da lei estava em acordo com ditames da repressão e
não dos preceitos constitucionais, pois diversas outras pessoas, na mesma
condição de Fleury, foram consideradas não possuidoras de bons antecedentes e
tiveram que aguardar o julgamento preso.
614
Idem; "Fleury vai continuar preso? Hoje, a resposta". Jornal da tarde. DOPS.
28/02/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio Fleury.
615
"Durou pouco a confiança restaurada". Jornal da tarde. DOPS. 01/03/1978. Arquivo
do Estado de São Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio Fleury.
616
"Juiz Filardi Luiz: eu teria enviado Fleury ao presídio". O Estado de São Paulo.
01/03/1978. DOPS. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio Fleury. Arquivo do Estado de São
Paulo.
617
Idem.
618
Ibidem.
224
Diante das novas solturas que vieram na sequência, e ainda consternado
pela anulação de sua decisão, o juiz Filardi entendeu que a liberdade dos
membros dos esquadrões estava diretamente relacionada à atuação deles na
repressão política619 – fato amplamente denunciado também pela imprensa,
conforme se observa no exemplo abaixo, entre outros:
num recurso desse tipo, o juiz reforma ou não sua decisão, havendo
parecer do Ministério Público. Em caso positivo, a sentença pode ser
reformada; em caso negativo, o conhecimento da causa é levada ao
Tribunal de Justiça621.
619
Ibidem.
620
"Incompatibilidade". Folha de São Paulo. DOPS. 01/03/1978. Arquivo do Estado de
São Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio Fleury.
621
"A libertação de Fleury, contestada". Jornal da tarde. DOPS. 02/03/1978. Arquivo do
Estado de São Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio Fleury.
622
"Defesa quer Fleury solto porque é herói nacional". Notícias populares. DOPS.
10/03/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OP 0986 - Sérgio Fleury
623
Idem.
225
“aniquilamento dos movimentos subversivos e terroristas”624. Tal situação de
enobrecimento do delegado foi a justificativa para a aceitação das ações dos
esquadrões da morte pelo juiz Péricles de Toledo Pizza, que manteve sua
decisão de permitir que Fleury aguardasse o julgamento em liberdade. A próxima
instância a dar seu aval foi o Tribunal de Justiça 625.
O juiz Péricles de Toledo Pizza também recebeu sua “promoção” por
legalizar a situação dos membros dos esquadrões, aceitando o pedido de gozo da
Lei Fleury. O magistrado permaneceu à frente do Tribunal da Comarca de
Guarulhos por menos de um mês após a decretação da liberdade dos agentes da
repressão e depois foi também “removido para a capital como auxiliar das 1° e 2°
Varas Criminais”626. Em suma, sua passagem por essa Comarca durou o tempo
necessário para interpretar e aplicar a lei, de acordo com os interesses da
autocracia burguesa bonapartista.
Após todos esses trâmites feitos a partir da alta cúpula do Executivo, a
possibilidade de que os julgamentos posteriores fossem feitos com imparcialidade
caiu por terra – o que se viu foram sessões manipuladas que resultavam sempre
na legalização da liberdade dos agentes da repressão, a exemplo do julgamento
ocorrido na Comarca de Diadema, em junho de 1978. Nesse processo, os
policiais Valter Brasileiro Polim, João Carlos Tralli e João Surreição Frade foram
acusados de terem retirado do Presídio Tiradentes as vítimas Manoel Benedito
Lisboa (Estrelinha) e Nico e de os terem executado. Todos os policiais citados
eram membros da equipe de Fleury e desempenhavam suas funções no DEIC. A
certeza da absolvição era nítida, tanto que, mais uma vez, os advogados dos
policias “(...) estavam certos da absolvição de seus constituintes que foram
denunciados por homicídio qualificado pelo emprego de meio cruel e recurso que
impossibilitou a defesa das vítimas"627.
624
Ibidem.
625
Doc. "Juiz mantém a decisão e deixa Fleury em liberdade". O Estado de São Paulo.
DOPS. 15/03/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0896 (n° 61) - Sérgio
Fleury.
626
"Juiz mantém a decisão e deixa Fleury em liberdade". O Estado de São Paulo.
DOPS. 15/03/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0896 (n° 61) - Sérgio
Fleury
627
“O julgamento dos policiais em Diadema". Folha da tarde. DOPS. 06/06/1978. Arquivo
do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte; "Justiça absolve
226
Nesse caso, os advogados de defesa argumentaram que a imprensa criara
um estereótipo contra os esquadrões628 e que as testemunhas não tinham
qualificação para prestar depoimento, pois tratava-se de encarcerados629. Essa
desqualificação fora justificada pelos advogados de defesa através da alegação
de que havia “animosidade natural existente entre policiais e marginais, o que faz
com que os segundos acusem os primeiros como vingança”630.
Tal argumentação foi aceita com unanimidade pelo Tribunal de Justiça,
mesmo após a corajosa afirmativa de uma das testemunhas, de que as vítimas
estavam marcadas para morrer, assim como após ter havido o reconhecimento
dos policiais pela mesma testemunha. O depoimento do encarcerado Samuel
Machado não foi levado em consideração631 e, ainda, os advogados de defesa
trouxeram provas forjadas que buscavam comprovar que as vítimas não estavam
presas naquele presidio. Cabia ao promotor de justiça provar o contrário, mas
como fazê-lo se o testemunho dos colegas de cela não servia?
três policiais". Folha da tarde. DOPS. 07/06/1978. Arquivo do Estado de São Paulo.
Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte.
628
"Diadema julga 3 integrantes do esquadrão". O Estado de São Paulo. DOPS.
06/06/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da
morte.
629
"Esquadrão responde por duplo homicídio". Folha de São Paulo. DOPS. 06/06/1978.
Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte
630
"Outro crime atribuído ao esquadrão". Folha da tarde. DOPS. 26/05/1978. Arquivo do
Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte
631
"Esquadrão da morte absolvido em Diadema". Notícias populares. DOPS.
07/06/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da
morte
632
"Esquadrão absolvido: quem matou Zorro e Estrelinha?". Diário da Noite. DOPS.
07/06/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da
morte
227
Tiradentes, apontou que jamais um preso poderia sair do presídio sem estar “sob
a responsabilidade de um delegado de polícia ou de um juiz de direito” 633, como
se isso não ocorresse na prática. Por fim, a simples negativa do crime por parte
dos policiais foi o motivo apontado pelo Tribunal de Justiça como prova suficiente
para inocentá-los. De acordo com o Diário Popular, “os jurados acolheram a tese
da negativa da autoria, sustentada pela defesa”634.
Ao final do julgamento, a absolvição esperada concretizou-se. Os policiais,
já julgados em outros processos dos esquadrões e arrolados em tantos outros
autos, foram inocentados por seis votos a favor e um contrário. Para o promotor, o
que gerou essa absolvição foi
Havia um fato, porém, não mencionado pelo promotor: o júri também temia
por sua vida, afinal estavam julgando os membros dos esquadrões da morte –
indivíduos que foram abertamente protegidos pelo Estado na busca da
manutenção da liberdade desses agentes da repressão. Assim, os jornais da
época noticiavam o amedrontamento pelo qual passavam os jurados, que não
gozavam de proteção ou garantias para decisões tomadas com imparcialidade:
633
Idem.
634
"Policiais absolvidos". Diário Popular. DOPS. 07/06/1978. Arquivo do Estado de São
Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte; "Justiça absolve três policiais". Folha
da tarde. DOPS. 07/06/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 -
esquadrão da morte.
635
"Outro crime atribuído ao esquadrão". Folha da tarde. DOPS. 26/05/1978. Arquivo do
Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte.
636
“Fleury se entrega à Justiça em Guarulhos”. Folha de São Paulo. 23/02/1978. CHB -
A5 - P33.
228
Em outro julgamento, ainda em 1978, a dinâmica foi praticamente a
mesma. Foram pronunciados os policiais Vitor José de Almeida, Fleury, Astorige
Correa e João Surreição pela morte das vítimas Pedro Faustino dos Santos
(Pedrão), Luís Antônio Augusto (Irada) e José de Souza (Carequinha). Eles foram
retirados das celas do DEIC e executados. A absolvição dos réus se deu com
base na negativa dos policiais e na premissa de que os depoimentos dos presos –
únicas testemunhas possíveis para o caso, segundo as circunstâncias – eram
falsos637. A defesa também usou de documentos forjados, atestando a soltura das
vítimas, meses antes do crime 638, mesmo que os detentos, companheiros de cela
da vítima, testemunhassem que ele havia sido retirado da cela do DEIC para a
morte 639.
O que se nota é que, ao longo da década de 1970, o Estado autocrático
burguês bonapartista tratou de dar respaldo legal às práticas dos seus agentes da
repressão, como o uso da lei conforme as circunstâncias. Todavia, a
arbitrariedade de tal legalidade passou a ser paulatinamente questionada,
principalmente com o descontentamento geral oriundo da crise do milagre
econômico. Se tais arranjos garantiram a permanência da característica
esquizofrênica640 do regime ditatorial, também impulsionaram seu
questionamento.
637
“Esquadrão: o investigador acusado é absolvido”. O Estado de São Paulo. DOPS.
26/07/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da
morte.
638
“Promotoria vai recorrer no caso do esquadrão”. Notícias Populares. DOPS.
27/07/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da
morte.
639
Idem.
640
Os autores usam o termo “esquizofrenia ideológica” para caracterizar as antagônicas
relações existentes ao longo da nossa ditadura militar que pressupunha a recorrência a
“práticas ditatoriais e repressivas no presente, ao mesmo tempo em que prometem
liberdade e democracia no futuro”. Cf. O‟DONNELL e SCHMITTER, 1988, op. cit., p. 35.
641
Idem, p. 36.
229
Aquele Estado, para ambos, mesmo que por motivos diferentes, não
poderia mais existir. A abertura política, posta em prática de cima para baixo, bem
como tutelada pela autocracia burguesa bonapartista iniciava-se, e seus
“entulhos” deveriam ser eliminados. Não à toa que, em 1° de maio de 1979, o
maior protegido daquele aparato repressivo seria morto. Mas, isso é tema do
capítulo 6.
A lógica do Estado de proteger seus agentes da repressão que atuavam
nos esquadrões permanecia – tanto que formas foram encontradas para
conseguir a legalidade da liberdade desses policiais. Todavia, dada à conjuntura
histórica que se punha, principalmente no momento desse último julgamento, em
1978, a atuação dos esquadrões da morte já não era tão necessária a ponto de a
autocracia burguesa bonapartista tornar sua já péssima imagem, nacional e
internacional, ainda pior.
Assim, o que notamos é que desde 1978, os autocratas empurraram para
os estados a responsabilidade por tais grupos, abandonando seus agentes da
repressão, não mais necessário para aqueles anos em que acontecia a busca por
legitimidade junto à sociedade civil. Todavia, a juridicidade militar é um caso a ser
analisado e o será no próximo capítulo.
230
Capítulo 5
A juridicidade manipulatória e os frutos da árvore envenenada:
formas de perpetuação da impunidade
642
Os ditadores dividiam-se em dois grupos: os “castelistas” que diziam que o poder
deveria ser devolvido para os civis rapidamente, e a “linha dura” que não dava prazo para
a saída dos militares do poder do Estado. O primeiro presidente, Humberto de Alencar
231
Recorreram ao Princípio da legalidade, criando dispositivos que davam àquelas
práticas a conotação legal, como pudemos notar ao longo do capítulo anterior, ou
através da juridicidade, que pressupõe a ampliação da Administração Pública à
esfera do ordenamento jurídico643, não se limitando ao posto pela lei. Nesse
último sentido, punha-se a transformação do ilegal em legal.
Tais proposições se explicitam quando os militares buscaram meios de
tratar seus agentes e as questões pertinentes a eles em foros especiais. No
Brasil, essa prática remonta a períodos distantes de nossa história. O Superior
Tribunal Militar e, por extensão, a Justiça Militar, por exemplo, foram criados por
D. João VI, após a chegada da Família Real Portuguesa, em 1808. Na época
chamavam-se Conselho Supremo Militar e de Justiça e tinha a função de
processar e julgar os Generais, decretar a perda de posto e patente dos indignos
644
ASSIS, Jorge César. “Justiça Militar”. Disponível em:
http://www.jusmilitaris.com.br/novo/index.php?s=justicamilitar. Acesso em 15 jan. 2016.
645
Brigadeiro José da Silva Paes foi fundador da cidade do Rio Grande, no atual estado
do Rio Grande do Sul, em 19 de fevereiro de 1737. Cf.
http://www.jornalagora.com.br/site/content/noticias/print.php?id=39962. Acesso em 16
jan. 2016.
646
ASSIS, Jorge César. “Justiça Militar” Disponível em:
http://www.jusmilitaris.com.br/novo/index.php?s=justicamilitar. Acesso em 15 jan. 2016.
647
O Princípio da Juridicidade tem uma conotação ampla, pois não se limita à esfera do
determinado pela lei, mas é determinada pelo ordenamento jurídico. Assim, ele incorpora
toda a regra, inclusive os costumes, a ética e a eficiência. Na Administração Pública, sua
amplitude possibilita “subverter” a legalidade e a dicotomia entre validade e invalidade,
pois “mesmo não sendo tais atos formais sob a perspectiva estrita da legalidade (razão
pela qual seriam ilícitos e inválidos pelo paradigma da legalidade), são merecedores de
consideração pela simples existência, a qual é capaz de lhes conferir validade jurídica, a
despeito da legalidade formal”. FERNANDES, Francisco Luiz e FERNANDES, Thallita
Maria Moreeuw. “Princípio da juridicidade” In: Revista Âmbito Jurídico. Disponível em:
http://www.ambito-
juridico.com.br/site/index.php/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=13405&revista_ca
derno=9. Acesso em 16 jan.2016.
233
econômicos, e cuja solução ou atenuação determina a necessidade de
normas cuja eficácia seja assegurada pela força física
institucionalizada648.
648
ARNAUD, André-Jean. Dicionário enciclopédico de teoria e de sociologia do
direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 435-437.
649
Constituição da República Federativa do Brasil de 1967.
650
Decreto-Lei n° 1002/69 de 21 de outubro de 1969
651
Código de Processo Penal Militar. Decreto-lei 1002/69 de 21 de outubro. Disponível
em: http://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/91679/codigo-de-processo-penal-
militar-decreto-lei-1002-69#art-16. Acesso em 12 jan. 2016.
652
Decreto-Lei n° 1001, de 21 de outubro de 1969.
653
As discussões desenvolvidas na época que possibilitaram que os crimes cometidos
pelos membros dos esquadrões da morte fossem julgados nas instâncias comuns e não
em Tribunais Militares foram analisadas em MATTOS, 2011, op. cit., p. 69-79.
234
permitia a liberdade daqueles agentes policiais, como vimos ao longo do capítulo
4.
Dessa forma, a lógica autocrática bonapartista pautava-se na juridicidade
militar, fosse através de foros especiais ou leis “exclusivas”, garantindo a
impunidade dos agentes daquela ordem. Passemos a ver outra evidência dessas
relações.
654
“Esquadrão, suas execuções e seus homens”. Correio da Manhã, 2/04/1970, p.7.
Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=089842_08&pagfis=4314
&pesq=&url=http://memoria.bn.br/docreader#. Acesso em 10 jun. 2015.
235
A segunda situação remonta a 1971, quando o policial Sílvio Carneiro foi
acusado de integrar o grupo de extermínio da Guanabara 655. Naquela época,
ainda não estava em vigor a Lei Fleury. Tendo sido pronunciado em um dos
processos, teve de aguardar o julgamento encarcerado e, posteriormente,
recolhido para as instalações do DOPS. Todavia, sem maiores explicações, ele
conseguiu serrar as grades da cela e fugir. A conivência com seus iguais fica
evidente uma vez que, para realizar tal ação, ele precisaria de ferramenta e
acobertamento, o que, pelo visto, foi dado.
Os dois últimos casos se deram já em 1978. Em um caso, não houve a
possibilidade de realizar as devidas apurações, pois, “inquérito sobre o caso
simplesmente desapareceu (...)”656. Tratava-se dos policiais do esquadrão da
morte carioca, dentre eles o ex-soldado Sena Machado que se tornara
“importante ao fazer parte da segurança pessoal do Ministro da Justiça Armando
Falcão”657. Eles adentraram uma casa e executaram dois indivíduos, identificados
como Jorge Sanches Porto e Marcos, que receberam, respectivamente, 14 e 16
tiros apesar de não oferecerem resistência alguma à ação dos policiais. As
testemunhas que estavam na casa no momento do ocorrido indicaram quatro
policiais como responsáveis, mas, sem inquérito, não havia possibilidade haver
punição.
No outro caso, o aparente corporativismo militar se punha, inclusive, na
possível formação de uma greve dos policiais em favor dos membros dos
esquadrões. Nos corredores do DEIC, em São Paulo, logo após a prisão
preventiva do delegado Fleury, havia policias fazendo indicativo de greve geral na
polícia civil em sinal de apoio e protesto em favor dele. “Bastava parar um dia.
655
"Preso em Muriaé o policial Silvinho". O Estado de São Paulo. (Sucursal do Rio de
Janeiro). DOPS. 13/08/1971. Arquivo do Estado de São Paulo. 50-Z-30. Documento n.
2117
656
"O esquadrão volta a matar no mesmo local". Folha de São Paulo. DOPS.
18/10/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da
morte.
657
"O esquadrão volta a matar no mesmo local". Folha de São Paulo. DOPS.
18/10/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da
morte.
236
Ninguém aparecia para trabalhar. Todos os distritos parados. Queria ver se eles
não voltavam atrás”658.
As três situações aqui apontadas não se tratam de casos isolados, por isso
pontuamos que não são situações particulares. Ao longo do período de atuação
dos esquadrões, em todo o território nacional, inúmeras situações iguais a essas
poderiam também estar presentes nesse trabalho. Elas não são situações
particulares, insistamos, pois, remetem à lógica de funcionamento da autocracia
bonapartista burguesa, que buscava meios para tornar legal o ilegal, mesmo que
pela lei, fossem e continuassem ilegais.
Essa dinâmica, pautada na juridicidade militar também se apresentou de
outras formas como na questão do forjamento de provas, ou mesmo na
dificuldade de se ter acesso a elas. Em cada momento histórico, uma ou outra
característica foi predominante.
No início da década de 1970, a ampla visibilidade obtida pelos esquadrões
por meio dos noticiários fez com que aquela situação fosse contestada, e
segmentos da sociedade civil cobraram da autocracia bonapartista medidas
investigativas. Atendendo a essas demandas, os governos começaram a montar
comissões para apurar aqueles crimes, todavia, sem objetivar qualquer tipo de
punição,659 como ironicamente, indicava o coronel do Exército Danilo Darcy de Sá
da Cunha e Mello, então Secretário de Segurança Publica em reunião com Hélio
Bicudo: “(....) ainda que a nomeação de uma comissão, naquele instante,
constituía um erro político primário, pois é sabido que neste país, quando nada se
quer apurar, sempre se instaura uma comissão de inquérito” 660.
O primeiro a montar a Comissão Estadual de Investigação (CEI) foi o
governo do Estado de São Paulo para apurar tais execuções que ocorriam
naquela localidade. Essa comissão, instituída em 1970, deixava claro que
objetivava apenas à diminuição dos índices de violência “(...) em São Paulo, (pois)
658
"Eu estou inocente". O Estado de São Paulo. DOPS. 23/02/1978. Arquivo do Estado
de São Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio Fleury.
659
"Uma voz contra o esquadrão". Veja. 20/10/1976. CHB - A5-P33
660
Idem.
237
surgiu por uma necessidade de melhorar as estatísticas da Secretária de
Segurança”661 e, não necessariamente, atribuir punições.
De acordo com o Secretário de Segurança Pública, general Sículo
Perlingeiro662, todo o apoio seria dado pelas repartições para que a Comissão
pudesse apurar os casos que envolvessem os esquadrões em âmbito nacional:
661
"Hélio Bicudo fala sobre o esquadrão da morte". A Tribuna de Batatais. 14/05/1978.
CHB - A5 - P33.
662
Em 1956, o tenente-coronel Sículo Rodrigues Perlingeiro integrou o quadro de alunos
do ISEB, defendendo uma tese intitulada “Desenvolvimento econômico, produtividade e
pauperismo”. Em 1961, já como Coronel, assumiu a chefia da cooperação militar
brasileira no Paraguai.
663
"Três suspeitos, Jonas vai reconhecê-los". Correio da Manhã (Sucursal do Rio de
Janeiro). 17/04/1970. CHB - A5 - P30.
664
A análise apurada sobre a formação, desenvolvimento e desativação das Comissões
Estaduais de Investigações em São Paulo podem ser vistas em MATTOS, 2011, op. cit.
665
O decreto-lei n° 6.259 de 10 de fevereiro de 1944, artigo 58, criminaliza a prática de
jogo do bicho, estabelecendo a pena de 30 dias a um ano de prisão, além do pagamento
de multa. O jogo do bicho, no entanto, é uma prática que, ao longo da história, esteve
diretamente ligada à corrupção policial e à prática do domínio do território pelos
chamados banqueiros do bicho. Esse último, por sua vez, enriqueceu e manteve
empreendimentos econômicos legais em consonância com a atividade ilegal, realizando
a lavagem do dinheiro. A prática do jogo do bicho passou a ter maior visibilidade na
década de 1980, quando seus banqueiros passaram a usar o dinheiro para financiar os
desfiles de escolas de samba do grupo especial do Rio de Janeiro. Cf. MISSE, Michel.
Mercados ilegais, redes de proteção e organização local do crime no Rio de Janeiro.
Estudos avançados 21 (61), 2007, p. 142-144. Disponível em
http://www.scielo.br/pdf/ea/v21n61/a10v2161.pdf. Acesso em 10 mar. 2015.
666
Para maiores informações, sobre tais conclusões ver MATTOS, 2011, op. cit., p. 39-
43.
238
Todavia, mesmo diante das dificuldades encontradas, Bicudo já havia
percebido que esses grupos de extermínio tinham ligações muito mais profundas
com o Estado. Como a baixa cúpula já estava citada nos processos, a partir de
então, passaria a apurar as responsabilidades da alta cúpula que chefiava a ação
desses grupos.
O procurador da justiça, em sua luta por apontar a intelectualidade667 dos
grupos de extermínio, extrapolava a função dada àquela comissão, pois não fora
formada para apontar efetivamente responsabilidades – e, ainda: dar
aprofundamento as apurações revelaria a ligação dos esquadrões com aquele
Estado autocrático bonapartista.
Bicudo distinguia os integrantes dos esquadrões em dois grupos, os
“membros executivos do bando”668 – os responsáveis pelas execuções – e os
“membros intelectuais”669, os mentores que emitiam a ordem para matar. Assim,
667
Essas relações foram apuradamente analisadas em MATTOS, 2011, op. cit.
668
"Uma voz contra o esquadrão". Veja. 20/10/1976. CHB - A5-P33
669
Idem.
670
Ibidem.
239
a exoneração de Bicudo, foram designados dois outros promotores públicos para
assumir as suas tarefas em São Paulo. Eram eles o Dr. Alberto Marino Júnior e o
Dr. Djalma Lúcio Gabriel Barreto, que posteriormente, também foram exonerados
de tais funções.
Assim como Bicudo, eles se empenharam em apurar os crimes dos
esquadrões, fato que não agradava aos anseios e necessidades daquela
autocracia. Ao menos, não em 1970. Em consonância a essa medida dos
bonapartistas, “os processos estão sendo conduzidos pelos promotores das
respectivas Varas e Comarcas pelas quais tramitam, como quaisquer outros
processos”671, desmobilizando qualquer possibilidade de entendimento dos
grupos de extermínio na sua complexidade e ligação com o Estado brasileiro.
A formação de tal Comissão em São Paulo, como já dito anteriormente,
não almejava a resolução ou atribuição de culpa aos agentes policiais; pelo
contrário, naqueles anos, 1970, a repressão política contra os chamados
subversivos se punha com força total, e a quantidade de pessoas que foram
mortas pelos esquadrões ratifica essa constatação. Almejava-se a diminuição nos
índices de violência na cidade e não o fim daqueles grupos. Eles eram
importantes para a manutenção daquela ordem vigente.
Nesse sentido, o afastamento daquele procurador era estratégico. Ainda
com relação ao acesso às provas que pudessem incriminar os membros dos
esquadrões da morte, Bicudo denunciava o que ele acreditava ser corporativismo
militar, dada a dificuldade de ter acesso a elas. Na verdade, não se tratava de
corporativismo militar, mas de mais uma evidência de uma particular juridicidade
inerente ao Estado brasileiro, exacerbado no período do bonapartismo que se
manifestava, mais uma vez, nessa dificultação do acesso às provas.
Aliás, pode-se considerar que, naquele momento, ter conseguido que
membros do Esquadrão fossem julgados em tribunais comuns não garantiria
julgamento imparcial, dado o respaldo da lei Fleury que era de cunho federal, e
ainda mais, contribuiu para que o desvelamento, ou, pelo menos as denúncias da
repressão política imiscuída nas ações destes agentes, deixassem de ser
mencionadas, como se vinha observando no início.
671
"Hélio Bicudo fala sobre o esquadrão da morte". A Tribuna de Batatais. 14/05/1978.
CHB - A5 - P33.
240
Em uma das investidas para acessar tais informações, o coronel do
Exército Danilo Darcy de Sá da Cunha e Mello, na época Secretário da
Segurança Pública, deixou explícito que “(...) o seu departamento não lhe daria o
menor apoio”672. E aqui está o cerne da questão do corporativismo militar: o
acesso às provas e a essência moral de sua construção que as tornava ilegítimas.
No Rio de Janeiro, a dinâmica foi a mesma. O superintendente da polícia
judiciária, Sr. Abdul Sá Peixoto, negou-se a ceder informações, e os promotores
que buscavam apurar os crimes dos esquadrões, em 1970, se viram obrigados a
buscar amparo legal para continuar o trabalho de investigação:
672
"Uma voz contra o esquadrão". Veja. 20/10/1976. CHB - A5-P33
673
"O Comissariado servia a orgias". O Estado de São Paulo (Sucursal do Rio de
Janeiro). 24/03/1970. CHB - A5 - P30.
674
"Esquadrão". Jornal da Tarde (Sucursal do Rio de Janeiro). 25/04/1977. CHB - A5 -
P30.
675
"EM do Rio marca com faca sua mais recente vítima". Folha de São Paulo (Sucursal
Rio de Janeiro). 04/03/1978. CHB - A5 - P33.
241
Novamente, ludibriavam os setores da sociedade civil com uma falsa
apuração, tendo em vista que, tanto o delegado quanto o coronel do exército,
funcionários ativos, não produziriam provas contra seus iguais – como, realmente,
não o fizeram. Sem muitos recursos financeiros advindos do Estado e com as
poucas apurações feitas – obviamente –, essa comissão durou pouco tempo. A
dificuldade no levantamento de provas era o ponto central de todas as tentativas
de apuração e, sem elas, não haveria processo a ser formulado. Por isso, agentes
da corporação do Estado eram postos à frente dessas comissões.
Mas, também havia outras razões para a dificuldade em obter provas: o
medo da população. Grande parte das execuções foi feita em locais periféricos da
cidade. Em alguns casos, não havia testemunhas; em outros, em que as vítimas
foram assassinadas em locais de grande movimentação, o que se falava era que
“Eles agora não se importam mais com a presença de testemunhas. Sequestram
e matam na frente de qualquer um” 676. Tal espetáculo de horrores e a sensação
de impunidade eram ligados à aberta proteção institucional que tais grupos
recebiam do Estado.
A ausência de testemunhas, ou mesmo o medo das que presenciavam
tais execuções, abria espaço para outra prática recorrente no Brasil: o ato de
forjar provas. De acordo com o Código do Processo Civil, apontaram Larissa
Coutinho e Tauã Rangel que,
676
“EM do Rio marca com faca sua mais recente vítima". Folha de São Paulo (Sucursal
Rio de Janeiro). 04/03/1978. CHB - A5 - P33.
677
COUTINHO, Larissa Gonçalves de Oliveira; RANGEL, Tauã Lima Verdan. “A
aplicação da teoria dos frutos da árvore envenenada no processo civil”. In:
JusNavigandi. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29149/a-aplicacao-da-teoria-dos-
frutos-da-arvore-envenenada-no-processo-civil. Acesso em 12 jan. 2016.
242
A segunda Comissão Estadual de Investigação foi formada no Rio de
Janeiro, pouco mais de quatro meses depois do fim da anterior. Para essa nova
Comissão, foram nomeados dois promotores civis, Gastão Menescal e Edmo
Rodrigues678. Por não contar com membros militares, esse novo grupo não
vivenciou a questão da produção de provas contra seus iguais, assim como
também não as teve em mãos. A morosidade para ter acesso aos documentos
básicos para as apurações dos crimes dos esquadrões também foi decisiva para
a sua desintegração.
681
COUTINHO e RANGEL, op. cit.
682
Veja, Edição 117, 02 dez. 1970. São Paulo: Editora Abril, p. 28.
244
Em todos os processos contra aqueles policiais, réus nos processos dos
esquadrões da morte, o depoimento pessoal pautava-se ainda na negativa da
autoria dos crimes. Tal conduta é razoavelmente esperada de um réu. No entanto,
a aceitação desse depoimento como prova moralmente legítima pela
magistratura, mesmo havendo inúmeras outras que comprovavam o contrário,
nos mostra a juridicidade daquela autocracia, entranhada na lógica daquele
Estado, que tornava legal o ilegal. Foi nessa dinâmica que todos os policiais
foram absolvidos ao longo dos julgamentos.
Outro meio de produção de prova moralmente legítimo era a confissão que
consistia na declaração de veracidade de um fato, ou a afirmação contrária ao
interesse de quem confessava. Ela não é meio de prova, mas sim, a própria prova
e, normalmente é caracterizada por sua irretratabilidade. De acordo com o artigo
352 do Código do Processo Civil, ela pode ser revogada quando emanar de erro,
dolo ou coação e pode ser revogada,
683
COUTINHO e RANGEL, op. cit.
684
Idem.
245
Essa situação não ocorreu no caso dos esquadrões da morte, mas poderia
ter sido aplicado. Em um dos processos formulados pela Comissão Estadual de
Investigação de São Paulo, foi apurado que dois indivíduos, Domiciano Antunes
Filho (conhecido por Luciano) e Geraldo Alves da Silva (Paraíba) faziam a venda
de entorpecentes com o aval dos membros dos grupos de extermínio paulista,
mediante pagamento de propina. Eles mantinham todos os pagamentos anotados
em uma caderneta. Em um dado momento, eles se recusaram a continuar a fazer
os pagamentos e foram mortos em dezembro de 1968, como analisou Mattos 685.
Sabendo que isso poderia acontecer e buscando se certificar de que
aqueles policiais não os matariam, Luciano e Paraíba entregaram uma cópia
daquela caderneta para um suposto advogado, que deveria levá-la à justiça caso
eles fossem mortos. A comissão, na época, apurou aquela informação, bem como
teve acesso ao tal advogado e à caderneta, denunciando sua existência. Todavia,
não foi determinado pelo juiz, anos depois no pronunciamento dos réus, que
aquele advogado apresentasse tal caderneta, tendo em vista que ela era prova
cabal para a culpabilização daqueles policiais.
Outro princípio, o da prova documental, comumente utilizado nos casos
dos esquadrões, consistia em “toda prova que pode se materializar nos autos de
um processo, não se reduzindo a mero documento escrito, mas também à
reprodução de sons, imagens, estados de fato, ações e comportamentos (...)”686.
Poucos foram os processos em que havia provas documentais contra os
integrantes dos esquadrões da morte, pois os registros documentais que
poderiam confirmar, por exemplo, que a vítima daquele grupo havia sido retirada
da encarceragem para a execução, apareciam alterados ou mesmo
desapareciam.
Tal prática recai em outra forma de perpetuação do que poderia ser
interpretado apenas um nítido corporativismo militar, mas que, na essência,
traduz a configuração da juridicidade militarizada do Estado brasileiro exacerbada
naquele período da autocracia bonapartista: a produção das provas. Quem as
criava e as guardava eram agentes policiais, lotados em suas instituições, tais
como presídios, DEIC, DOPS etc.
685
Cf. MATTOS, 2011, op. cit., p. 40-4.
686
COUTINHO e RANGEL, op. cit.
246
Assim, tais agentes construíam provas contra os integrantes da
corporação, ou melhor dizendo, destruíam provas contra si. Caso essas
destruições fossem feitas de maneira exemplar, ou seja, sem deixar vestígios,
praticamente isso encerrava a acusação, pois, como apontou Marinoni e Arenhart,
as provas por,
[...] seu autor imediato seja agente investido de alguma função pública,
e quando a formação do documento se de no exercício dessa função;
trata-se normalmente de alguma função documentadora ou
certificadora, regulada pelo próprio Estado. Nota-se que nesse caso a
ideia continua sendo particular; mas por ter sido presenciada a
declaração por algum servidor público, no exercício de função estatal
típica o documento terá diversa eficácia probatória687.
687
MARINONI, Luiz Guilherme e ARENHART, Sérgio Cruz. Processo de
Conhecimento. v. 02. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, apud COUTINHO e RANGEL, op.
cit., acesso em 12 jan.2016.
688
"Fleury apresenta-se e fica em cela especial". O Estado de São Paulo. 23/02/1978.
CHB - A5 - P33 e também "Fleury já esta preso". Notícias Populares. DOPS.
23/02/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio Fleury.
247
ouvido. De acordo com o artigo 405 do Código de Processo Civil, estavam
impedidos de prestar testemunho três segmentos específicos: os incapazes por:
E os suspeitos:
689
"Promotor do Rio fala sobre crimes do EM". Folha da tarde (Sucursal do Rio de
Janeiro). DOPS. 13/03/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993 (n° 68) -
esquadrão da morte. TB:
690
COUTINHO e RANGEL, op. cit.
691
Foi criada, em 1920, pela Corte norte-americana e influenciou o Código do Processo
Civil Brasileiro, no artigo 157, §1º da Lei Nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973.
692
COUTINHO e RANGEL, op. cit.
249
Grief”693, segundo o qual tais provas poderiam ficar desde que não causasse
prejuízo. Em outras palavras: “não há nulidade sem prejuízo, ou seja, nenhum ato
processual será nulo se este não tiver causado algum tipo de prejuízo ao
processo, nem houver influenciado na Decisão ou na busca da verdade real”694.
Assim, no caso dos processos que se referiam aos esquadrões, tais “frutos
da árvore envenenada” não foram desconsiderados, com exceção daqueles ao
qual tal anulação causasse o prejuízo aos agentes do Estado. Dessa forma, o que
se punha era a juridicidade militar que justificava a absolvição daqueles agentes.
Diante deste cenário, como provar a culpa dos agentes atuantes nos esquadrões
da morte se a produção da prova era feita pela polícia, ou mesmo modificada por
ela?
Outros pesquisadores também se debruçaram sobre as funções
desenvolvidas pelos policiais e chegaram à conclusão de que aqueles policiais
que colaboravam com o sistema, desempenhavam a função de “facilitadores da
violência”, pois, de alguma forma, eles contribuíam para a perpetuação da
violência e da impunidade, como apontaram os pesquisadores Huggins, Haritos-
Fatouros e Zimbardo:
693
Princípio que determina que não há nulidade sem prejuízo. Cf. JusBrasil. Disponível
em: http://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/1674615/o-principio-pas-de-nullite-sans-grief-nao-
ha-nulidade-sem-prejuizo-e-aplicavel-pelos-tribunais-superiores-a-nulidade-absoluta-
marcio-pereira. Acesso em 16 jan. 2016.
694
COUTINHO e RANGEL, op. cit.
695
HUGGINS, Martha Knisely; HARITOS-FATOUROS, Mika e ZIMBARDO, Philip
George. Operários da violência: policiais torturadores e assassinos reconstroem as
atrocidades brasileiras. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2006, p. 70.
250
procurador-geral da Justiça, Leopoldo Braga, como a causa pela qual
até agora a Procuradoria Geral da Justiça não realizou sindicâncias em
torno do esquadrão696.
696
"O Comissariado servia a orgias". O Estado de São Paulo (Sucursal do Rio de
Janeiro). 24/03/1970. CHB - A5 - P30.
697
FICO, 2004, op. cit., p. 76.
251
autocratas foram a público apontar que, com a prisão dele, o grupo de extermínio
carioca estaria desarticulado. O “Secretário da Segurança Pública do Estado do
Rio, general Sículo Perlingeiro, acha que a prisão de Coelho permitirá encontrar o
fio da meada que encobre as matanças indiscriminadas na Baixada
Fluminense”698.
Não foram necessárias provas para incriminá-lo, tampouco houve a
concessão da Lei Fleury para ele. Com a prisão dele, atendia-se a vontade
expressa pela opinião pública. Essas relações entre a opinião pública e os
esquadrões serão detidamente aprofundadas no próximo capítulo.
Distinguindo e isolando a dinâmica federal da juridicidade militar inerente a
todos esses processos e a seus procedimentos, passam a enfatizar, nas notícias
divulgadas na grande imprensa, que se trata de ações da alçada de cada Estado,
ou seja, isentam o Estado-Nação sob a égide da autocracia bonapartista, em cuja
legalidade tudo se respalda. Ainda nas palavras do Secretário da Segurança
Pública do Estado do Rio de Janeiro, (...) Coelho é apontado como integrante do
esquadrão da morte e, por causa de sua prisão, o secretário da Segurança
Pública acha que agora as mortes atribuídas ao esquadrão da morte serão
esclarecidas699.
A realidade existente naquelas delegacias, porém, eram as pilhas de
inquérito que se avolumavam. Mortes sem autoria, mas que sabiam tratar-se de
crimes dos esquadrões; inquéritos parciais, mal feitos, sem provas ou com provas
forjadas, frutos da árvore envenenada, que por tal situação não podiam se tornar
processos. Como apontou o próprio delegado da Delegacia de Homicídios do Rio
de Janeiro, Sr. Arnaldo Campana, aquelas apurações eram feitas
700
provisoriamente .
698
"O fim do esquadrão na prisão deste velho?". Jornal da Tarde (Sucursal do Rio de
Janeiro). 10/04/1977. CHB - A5 - P30.
699
"O esquadrão encontra um inimigo: o Governo". O Estado de São Paulo (Sucursal do
Rio de Janeiro). 13/04/1970. CHB - A5 - P30
700
"Quinze soldados do EM presos no Rio". O Estado de São Paulo. DOPS. 26/10/1978.
Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte.
252
identificados. Não há, no entanto, nenhuma esperança de que tais
crimes sejam elucidados, porque as implicações e relações entre eles
terminariam por revelar uma estranha ligação entre policiais e bandidos,
políticos e bicheiros, poder e armas701.
701
"1.200 homicídios ainda sem explicações em Nova Iguaçu". Folha de São Paulo.
DOPS. 16/10/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993 - n° 68 - esquadrão
da morte
702
“O fim do esquadrão na prisão deste velho?". Jornal da Tarde (Sucursal do Rio de
Janeiro). 10/04/1977. CHB - A5 - P30.
703
. Idem.
704
"Ele está dizendo que não é do esquadrão". Jornal da Tarde (Sucursal do Rio de
Janeiro). 08/05/1977. CHB - A5 - P30.
705
"Fleury apresenta-se e fica em cela especial". O Estado de São Paulo. 23/02/1978.
CHB - A5 - P33 e também “O melhor policial". Jornal da tarde. DOPS. 23/02/1978.
Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio Fleury.
253
à lógica de funcionamento do Estado. A conclusão a que se impõe é que “esta
Justiça especialíssima está perfeitamente integrada ao Poder Judiciário Nacional
e balizada pelos ditames maiores da Constituição Federal em vigor” 706.
Como os esquadrões da morte eram organizações inseridas naquela
dinâmica estatal, o uso do “fruto da árvore envenenada” era prática também
nacional. No Espírito Santo, sete dos dezesseis policiais apontados como
membros dos esquadrões da morte foram impronunciados por falta de provas,
apesar dos fortes indícios de que os componentes do grupo de extermínio local
teriam “assassinado dezenas de pessoas a sangue frio”707. A impossibilidade de
juntar provas contra os responsáveis pelas execuções corroborava para que não
houvesse sua punição. “Sete dos 16 indiciados no processo do chamado
esquadrão da morte que agia em Vitória e em Vila Velha, comarca do Espírito
Santo, foram impronunciados ontem, por falta de provas pelo promotor Renato
Pacheco, da 3° Vara Criminal” 708.
Em Minas Gerais, as dificuldades também eram as mesmas. A Comissão
Mineira, criada para apurar os casos dos esquadrões ocorridos na grande Belo
Horizonte, foi presidida pelo Coronel Jair Alves Pinheiro, que conhecia a
existência dos esquadrões, sabia quem eram os integrantes, mas não conseguiu,
bem como não fazia muita questão, de levantar provas contra os seus pares709.
Todos esses meandros utilizados pelos autocratas, que configuram a
particularidade da prerrogativa militar inerente à juridicidade do Estado brasileiro,
expressam os mesmos preceitos contidos na Doutrina de Guerra Revolucionária.
Tratava-se de duas premissas básicas e essenciais: primeiro, era
necessário incutir no agente do Estado a ideia de que o país passava por uma
onde comunista que buscava acabar com todos os países da ordem capitalista,
inclusive o seu e, nesse sentido, era obrigação de ele lutar contra tal mal e
defender sua pátria.
706
ASSIS, Jorge César. “Justiça Militar”. In:
http://www.jusmilitaris.com.br/novo/index.php?s=justicamilitar. Acesso em: 15 jan.2016.
707
"Sete excluídos do esquadrão capixaba". O Estado de São Paulo. 08/05/1970. CHB -
A5 - P30.
708
Idem.
709
"Policiais mineiros negam envolvimento com esquadrão". Jornal da Tarde. DOPS.
28/09/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da
morte.
254
Nesse sentido, ficam nítidas as razões desses agentes do Estado para o
forjamento das provas, tornando-as “frutos da árvore envenenada”, pois, atuar de
maneira colaboracionista para com os pares, ao arrepio da lei, era uma questão
de segurança nacional, integrando uma particular ética de ação, em que
acreditam que haviam feito o que era necessário para combater a subversão.
Assim, tais agentes do Estado entendiam que prestavam um grande serviço à
nação, como mostrou Huggins, Haritos-Fatouros e Zimbardo, ao questionar um
policial:
710
Os autores usaram nomes fictícios para que os reais policiais não pudessem ser
reconhecidos. Para maiores esclarecimentos, ver HUGGINS, HARITOS-FATOUROS e
ZIMBARDO, 2006, op. cit.
711
Idem, p. 54.
712
VELÁSQUEZ, Carlos Guerrero. El impacto ideológico de la Escuela Francesa sobre el
Ejército argentino In: Persona y Sociedad. Buenos Aires (ARG): Universidad Alberto
Hurtado. Vol. XXV / Nº 2 / 2011 / 55-72, p. 63.
255
Nesse sentido, o exército formava soldados assim como os seminários
formavam sacerdotes, moldando seus corpos e mentes para o combate na guerra
antisubversiva e, nesta, todos os meios eram válidos para conseguir a liberdade
do Brasil. Essa realidade fora moldada por aquela autocracia bonapartista, como
pontuou Velásquez,
713
VELÁSQUEZ, 2011, op. Cit., p. 63.
256
Capítulo 6
Construções e desconstruções: o papel da opinião pública
714
Pode-se encontrar sua gênese no Brasil, considerando suas ações, nas pessoas
contratadas para eliminar pessoas em desavença com proprietários. Eram os chamados
volantes, como explicitados ao longo do capítulo 1.
257
Analisar a colaboração da opinião pública – cujas definições são inúmeras,
e as limitações para o uso do termo são discutidas por especialistas715 – para com
aquela ordem autocrata bonapartista pressupõe o entendimento de como ela se
configurava naquele momento.
Assim, não objetivamos aqui retornar a essa discussão, pois entendemos
que isso remeteria ao desenvolvimento de outro trabalho – procederemos apenas
a uma apropriação do que for necessário para entendimento do presente objeto
de estudo. Em primeiro lugar, é necessário recuperar, a partir de Manin que a
opinião pública se “expressa através dos grupos organizados, das manifestações
mais ou menos espontâneas, das pesquisas, das eleições, dos comícios, das
discussões em reuniões sociais, dos meios de comunicação etc.”716.
Na mesma perspectiva, outro teórico que se debruçou sobre a análise do
que vem a se constituir a opinião pública, Walter Lippman, retomado por Rubens
Figueiredo717, enfatizou seu caráter social, ou seja, como resultante de
informações veiculadas por meio de vários meios de comunicação e várias formas
de interação:
Ele alertava para o fato de que o mundo onde vivemos é muito vasto e
complexo para que cada um de nós possa apreendê-lo sozinho, de
forma independente. Hoje, ao formarmos uma opinião sobre qualquer
assunto, teremos necessariamente que contar com informações
produzidas e veiculadas por instituições e não obtidas exclusivamente
de nossa experiência individual, se é que existe experiência
exclusivamente pessoal718.
715
Para maior aprofundamento, sugerimos a leitura de FARAH, S. O fator opinião
pública: como lidar com ele. São Paulo: IBRACO, 1992; FIGUEIREDO, R.; CERVELLINI,
S. O que é opinião pública. Ed. Brasiliense; GOMES C. T. Opinião pública: os
bastidores da ação política. São Paulo: Global Editora, 1993; HABERMAS, J. Técnica e
ciência enquanto ideologia. In: GRUNNEWALD et al. – tradutores. Os Pensadores. São
Paulo: Abril Cultural, p. 341, 1983; LANE, R. E.; SEARS, D. O. A opinião pública. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1966; MATTEUCCI, N. Opinião pública. In: BOBBIO, N.;
MATTEUCI, N.; PASQUINO, G. Dicionário de Política. Brasília: Ed. UnB, 1986.
716
MANIN, B. Le concept d'opinion publique, s/d., apud FIGUEIREDO, Rubens e
CERVELLINI, Sílvia. “Contribuições para o conceito de opinião pública”. Opinião
Pública, Campinas, vol III, n.3, dezembro, 1995, p. 177. Disponível em:
http://disciplinas.stoa.usp.br/pluginfile.php/50629/mod_resource/content/1/figueredo_ceve
llini.pdf. Acesso em: 14 jan. 2016.
717
LIPPMAN, W. The phantom public. London: Transaction Publishers, 1993 apud
FIGUEIREDO e CERVELLINI, op. cit., acesso em: 14 jan. 2016.
718
LIPPMAN, W. The phantom public. London: Transaction Publishers, 1993, apud
FIGUEIREDO e CERVELLINI, op. cit.
258
A opinião pública, portanto, explicita-se como tendências no interior de
debates públicos, de discussões coletivas, implícitas ou explicitamente, de
informações obtidas e/ou construídas através de infindáveis inter-relações, muitas
vezes assumida na sociedade de forma genérica, mas também como
representação de determinados segmentos sociais. De acordo com Figueiredo e
Cervellini, quanto ao sujeito da opinião pública,
719
FIGUEIREDO, Rubens e CERVELLINI, Sílvia. “Contribuições para o conceito de
opinião pública” In: Opinião Pública, Campinas, vol III, n°3, dezembro, 1995, p. 178.
Disponível em:
http://disciplinas.stoa.usp.br/pluginfile.php/50629/mod_resource/content/1/figueredo_ceve
llini.pdf. Acesso em 14 jan. 2016.
720
Idem.
259
opinião e a ideologia que se quer hegemônica. Portanto, tende-se a considerar,
como expressão da opinião pública, as representações que os segmentos
dominantes no mundo capitalista fazem da história, da conjuntura, dos fatos, dos
acontecimentos. O instrumento que lhes serve de facilitador para tanto são os
denominados meios de comunicação “de massa”, ou seja, a grande imprensa,
televisiva, impressa, midiática721.
Ao longo do período em estudo, observa-se a aplicação de muita das
estratégias descritas pelo autor. Segundo ele, as dez principais estratégias de
manipulação midiática são:
721
Noam Chomsky y las 10 Estrategias de Manipulación Mediática. Disponível em:
http://www.revistacomunicar.com/pdf/noam-chomsky-la-manipulacion.pdf. Acesso em: 16
jan.2016.
722
Noam Chomsky y las 10 Estrategias de Manipulación Mediática. Disponível em:
http://www.revistacomunicar.com/pdf/noam-chomsky-la-manipulacion.pdf. Acesso em: 16
jan. 2016.
260
6.1. A opinião pública favorável aos esquadrões da morte.
Como sabemos existe uma Polícia Militar e uma Polícia Civil, aquela
que por motivos que não vem ao caso explicitar, hipertrofiam-se em
prejuízo desta, despreparada para o combate ao crime cada vez mais
organizado, viu subir os índices de criminalidade para minorar os
números alarmantes que as estatísticas passaram a mostrar. A polícia
civil resolveu intervir naturalmente com a cobertura e quem sabe por
determinações superiores para tentar demonstrar eficiências e assim
surgiu o primeiro capítulo na história dos esquadrões da morte723.
724
COSTA, Márcia Regina. “1968: O esquadrão da morte em São Paulo” In: SILVA, Ana
Amélia da e CHAIA, Miguel (orgs.). Sociedade, Cultura e política: ensaios críticos. São
Paulo: EDUC, 2004, p. 371; 373-4.
261
Em suma, era a “porta de entrada para políticas genocidas de controle
725
social” , e a ação dos esquadrões representou a prática efetiva dessas políticas.
Tratava-se do atendimento ao anseio de proteção à propriedade privada,
presente no interior do desenvolvimento excludente do capitalismo brasileiro que,
“só tem poder para realizar uma modernização excludente, em que o progresso
social está radicalmente dissociado da evolução nacional”726.
Outra expressão dessa estratégia era a de culpabilizar os segmentos
socialmente marginalizados para justificar o uso da força do Estado contra seus
integrantes, haja vista que a imprensa, naqueles anos, associava os esquadrões
ao extermínio apenas de suspeitos de alguma contravenção penal, considerados
marginais, assumindo, muitas vezes, as teorias raciológicas do início do século
XX. Assim, a imprensa banalizava a violência praticada por esses policiais e a
legitimava, estereotipando por merecedor da violência, uma vez que “marginal” se
tratava de pessoas com o histórico de prática de delitos penais, tais como o uso
e/ou tráfico de drogas, o roubo de automóveis e outros, justificando, assim, aquele
justiçamento 727. Vejamos um caso dessa prática:
725
RODRIGUES, Rafael Coelho. O Estado penal e a sociedade de controle: o
Programa Delegacia Legal como dispositivo de análise. Rio de Janeiro; Revan, 2009, p.
18.
726
ASSUNÇÃO, Vânia Noeli Ferreira. Pandemônio de Infâmias: classes sociais, Estado
e política nos estudos de Marx sobre o Bonapartismo. São Paulo: PUC-SP, 2005 (Tese
de doutorado em história). p. 326
727
"Esquadrão da morte executa 2 presuntos". Notícias populares. 16/01/1970. Coleção
Hélio Bicudo (CHB) - A5 - P30
728
"Esquadrão fuzilou comparsa de Renatinho". Notícias populares. 07/02/1970. CHB -
A5 - P30 e também Doc. "No Rio, outra vítima do EM". O Estado de São Paulo (Rio de
Janeiro). DOPS. 19/08/1977. DOPS. Pasta OS 0992 - 1977-1977.
262
Em algumas publicações, nota-se que o jornal não conhecia o delito
cometido pela vítima, tampouco se ela o havia efetivamente realizado, mas,
seguindo a versão “oficial”, o classificava como “contraventor” 729.
Alguns jornalistas, ao longo do período ditatorial, ficaram marcados por
usarem dessa prática sistematicamente, como por exemplo, o repórter que atuou
em praticamente todas as empresas televisivas do período, Afanasio Jazadi730.
Foi ele quem cunhou, na década de 1970, o termo “trombadinha”, termo que
entrou para a gíria policial e para a linguagem popular, qualificando-se, assim,
todo menor como ladrão. Tendo feito a cobertura de centenas de homicídios
praticados pelos esquadrões na capital, Grande São Paulo, Vale do Paraíba e
Baixada Santista,731 pode ser tido como um dos ratificadores de tal estigma,
justificadora dos assassinatos cometidos pelos policiais dos esquadrões.
Gestava-se, assim, a ideia de que os esquadrões estavam salvando a sociedade
da criminalidade, consolidado a opinião pública favorável a tais práticas.
Naquela época, o Brasil vivia um momento de grande expansão
econômica, ligada, por um lado, aos investimentos do capital internacional e, por
outro, ao arrocho salarial, à concentração de renda e ao crescimento da
desigualdade social trazida por esta expansão 732. De acordo com Chasin,
729
"Ex-Cartola no esquadrão: matou bicheiro". Diário da Noite. 22/04/1970. CHB - A5 -
P30.
730
Ele começou a atuar na grande imprensa no jornal Folha da Tarde, em fins de 1967,
passando depois a integrar a Agência Folha de Notícias que se implantava no lugar do
DICS (Departamento de Informações, Correspondentes e Sucursais) do Grupo Folha. Foi
também contratado pela sucursal paulista do Jornal do Brasil e TV Paulista (hoje TV
Globo). Em 1972, ingressou na Rádio Jovem Pan, também na Rádio Excelsior (hoje
CBN), Correio da Manhã (jornal carioca já extinto), e depois na Rádio Globo e TV Globo
(participou da estreia do programa “TV Mulher”, que marcaria época na história da
televisão). Ainda apresentou programas nas rádios Capital, Tupi, São Paulo, Rede Líder
(FM) e Trianon. Para maiores informações, ver: http://www.afanasio.com.br/curriculo.html.
Acesso em 10 jun. 2015.
731
Para maiores informações, ver: http://www.afanasio.com.br/curriculo.html. Acesso em:
10 jun. 2015.
732
SINGER, Paul. A crise do milagre: interpretação crítica da economia brasileira. Rio
de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1989.
263
pilar fundamental o rebaixamento salarial: a superexploração do
trabalho733.
Outro erro era entender que a larga acumulação, ocorrida entre 1968 e
1973, continuaria em longo prazo. Em suma ele fracassava como “projeto e
prática do desenvolvimento nacional (...) e também, esgotando rapidamente suas
possibilidades”735.
Assim, os custos sociais daquela forma de crescimento econômico na
época foram arcadas pelas classes trabalhadoras, tanto por meio da depressão
salarial, quanto pela acumulação de capitais das indústrias através de incentivos
fiscais, dados pelo governo às exportações. De acordo com Santiago,
733
CHASIN, 2000, op. cit., p. V.
734
CHASIN, 2000, op. cit., p. 62.
735
Idem, p. 63.
736
SANTIAGO, Zeno. “A arrancada econômica do Brasil: custos sociais e
instrumentalidade” In Revista Dados. Publicação do Instituto Universitário de Pesquisas
do Rio de Janeiro, 1972, p. 12.
264
vista que o apoio da opinião pública aos esquadrões da morte abria caminho para
a generalização daquela violência. Era o preço a ser pago por aquela “ingratidão”,
disse Engels.
737
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. São
Paulo: Editora Centauro, 2002, p. 212. Tradução de Ruth M. Klaus.
738
CHASIN, 2000, op. cit., p. V.
265
6.2. Os esquadrões batem em qualquer porta: a opinião pública
desfavorável.
266
quando as execuções feitas pelos esquadrões da morte contra os indivíduos das
classes média e alta da burguesia brasileira passaram a ser mais frequentes ou
mais conhecidas pela população, aquela organização estatal passou a ser
questionada pela opinião pública. Assim, definiu Rodriguês que, “crimes que
afetam diretamente a população da classe média tem grande repercussão (...)” 739.
Em suma, as práticas violentas, já usuais contra os segmentos de classe mais
pobres, agora passaram a ser rejeitadas.
Mais conhecida, pois, naqueles anos em que vigorava o Ato Institucional n°
5, de 1968 até 1978, a censura à imprensa dificultava que denúncias incisivas
fossem feitas contra aquela autocracia bonapartista. Inúmeros foram os
pesquisadores que trataram da censura aos meios de comunicação 740, por isso,
não nos ateremos a essa discussão, apenas citaremos abaixo um caso que pode
ser tomado como exemplar no que tange a uma tentativa de denúncia contra os
esquadrões, por meio da imprensa.
A retaliação da autocracia bonapartista burguesa recaiu sobre a tentativa
do jornal Tribuna da Imprensa de veicular uma imagem pejorativa do delegado
Fleury, chefe do DOPS-SP, dos esquadrões da morte paulista e, posteriormente,
do DEIC. Por tal matéria, intitulada de “Fleury está na cadeia. Menos um bandido
na rua”741, um dos funcionários daquele período foi preso, e o jornal foi obrigado a
pagar uma multa de Cr$600,00 de fiança para que ele fosse liberado. O
proprietário do jornal ainda teve que prestar esclarecimento sobre as informações
publicadas.
739
RODRIGUES, Rafael Coelho. O Estado Penal e a Sociedade de Controle: o
Programa Delegacia Legal como dispositivo de análise. Rio de Janeiro; Revan, 2009, p.
18.
740
Sobre este tema, inúmeros pesquisadores podem ser apontados, tais como: DE
AQUINO, Maria Aparecida. Censura, imprensa, estado autoritário, 1968-1978: o
exercício cotidiano da dominação e da resistência. EDUSC, Editora da Universidade do
Sagrado Coração, 1999; GOMES, Joaquim Cardoso. Os militares e a censura: a
censura à imprensa na ditadura militar e Estado Novo (1926-1945). Livros Horizonte,
2006; FICO, Carlos. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Revista
Brasileira de História, v. 24, n. 47, p. 29-60, 2004; KUSHNIR, Beatriz. Cães de guarda.
Boitempo Editorial, 2004; ROLLEMBERG, Denise. As trincheiras da memória. A
Associação Brasileira de Imprensa e a ditadura (1964-1974).In: A construção social dos
regimes autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no Século XX, v. 2, 2010.
741
"Censura e prisões por causa de Fleury". Diário Popular. DOPS. 24/02/1978. Arquivo
do Estado de São Paulo. Pasta OS 0986 - Sérgio Fleury
267
A censura também se punha a outros escritos, como no caso da publicação
de livros que versassem, negativamente, sobre os esquadrões. Nesse sentido,
dois casos também foram exemplares: no primeiro, a retaliação recaiu sobre o
procurador Hélio Bicudo, ao publicar, em 1976, o livro chamado “Meu depoimento
sobre o esquadrão da morte”742, obra na qual o procurador da justiça denunciava
o que tinha visto ao longo das apurações contra os grupos de extermínio quando
esteve à frente da primeira Comissão Estadual de Investigação formada em São
Paulo.
No segundo caso, ocorrido em 1977, o jornalista e advogado capixaba
Ewerton Guimarães tentava publicar o livro “A chancela do crime” que denunciava
as práticas dos grupos de extermínio no Estado do Espírito Santo e sua
vinculação com aquele estado. Nesse livro,
742
"Livro denuncia a proteção política ao esquadrão". O Estado de São Paulo. DOPS.
17/10/1976. Arquivo do Estado de São Paulo. 50-z-707. Pasta 08. Documento 851, 854.
743
"Cristiano tenta vetar livro do esquadrão". O Estado de São Paulo (Sucursal de
Vitoria). DOPS. 22/09/1977. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0992 - 1977-
1977 - esquadrão da morte.
744
Um dos maiores representantes das denúncias feitas fora do país foi perpetrada pela
Anistia Internacional. Para maiores esclarecimentos sobre esta organização e sua
atuação, ver: KONDER, Rodolfo. Anistia internacional. Campinas: Ed. da Unicamp,
1988.
268
Em julho de 1977, trinta e seis pessoas foram executadas na Baixada
Fluminense pelos esquadrões745 e esse número punha-se em uma constante 746,
pois, meses depois, em outubro daquele ano, o número já aumentava para
cinquenta e sete, como mostra a Folha da Tarde:
745
"Violência no Rio: 36 mortos só em julho". Folha da tarde (Sucursal do Rio de
Janeiro). 01/08/1977. DOPS. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0992 - 1977-
1977.
746
"No Rio, outra vítima do EM". O Estado de São Paulo (Rio de Janeiro). DOPS.
19/08/1977. DOPS. Pasta OS 0992 - 1977-1977;
747
"EM do Rio mata 57 marginais em 44 dias". Folha da tarde (Sucursal do Rio de
Janeiro). DOPS. 15/08/1977. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0992 - 1977-
1977.
748
Entrevista de José Cláudio Souza Alves. Baixada Fluminense: violência e poder (Para
entender as causas da chacina). CIMI. Centro de mídias independentes. Revista Nação
Brasil. ed fevereiro de 2004. Por Portal Popular 07/04/2005. Disponível em:
http://www.midiaindependente.org/pt/red/2005/04/312662.shtml. Acesso em: 10 jun.
2015.
269
Em 1978, a imprensa da época não poupava esforços para denunciar as
execuções feitas pelos esquadrões. A chamada das matérias era alarmante:
“Continua a matança na Baixada Fluminense”749 e “Continuam os assassínios na
Baixada Fluminense: mais 2”750, chamando a atenção para a continuidade das
práticas daqueles grupos. Na mesma época, com o fim da censura, a imprensa,
após a revogação do Ato Institucional n° 5, já alarmava para a ação dos
esquadrões sobre os demais segmentos sociais, fugindo à costumeira ligação dos
esquadrões a indivíduos contraventores. Havia, entre os mortos, cobradores de
ônibus, donos de ferro-velho751, operários752, comerciantes753, professores754,
pastores evangélicos755, uma professora primária756 e prostitutas757. Apenas nos
dois primeiros meses de 1978, a imprensa já apurava 64 mortes efetuadas pelos
esquadrões758, tendo esse número subido cotidianamente, chegando a 74
pessoas executadas até o início de março do ano759, dez pessoas em apenas
dois dias760.
749
"Continua matança na Baixada Fluminense". Folha da tarde. DOPS. 29/08/1978.
Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte.
750
"Continuam assassínios na Baixada Fluminense: mais 2". Folha da tarde. DOPS.
04/09/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da
morte.
751
"Identificadas no Rio duas vítimas do EM". Folha da tarde. DOPS. 07/06/1978.
Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte.
752
"O esquadrão reaparece e mata seis na Baixada". O Estado de São Paulo. DOPS.
01/07/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da
morte.
753
“Esquadrão da morte liquida mais três". Diário da Noite. DOPS. 12/09/1978. Arquivo
do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte.
754
"Mais quatro mortes na Baixada Fluminense". Folha de São Paulo (Rio de Janeiro).
DOPS. 16/02/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993 (n° 68) - esquadrão
da morte.
755
"Esquadrão do rio matou até um pastor". Folha da tarde. DOPS. 01/08/1978. Arquivo
do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte.
756
"Polícia identificou vítimas do esquadrão". Folha da tarde. DOPS. 02/08/1978.
Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte.
757
"A última denúncia". Veja. 15/04/1970. CHB - A5 - P30.
758
"64 torturados e mortos em apenas 58 dias no Rio". Folha de São Paulo (Sucursal do
Rio de Janeiro). DOPS. 28/02/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993 (n°
68) - esquadrão da morte.
759
"Esquadrão mata mais seis". Estado de São Paulo (Sucursal Rio de Janeiro). DOPS.
02/03/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993 (n° 68) - esquadrão da
morte.
760
"Esquadrão mata mais seis". Folha de São Paulo (Sucursal Rio de Janeiro). DOPS.
02/03/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993 (n° 68) - esquadrão da
morte.
270
Naquele mesmo ano, a imprensa também mostrava que a quantidade de
pessoas que foram executadas por aqueles grupos era surreal e insustentável – e
pior, só aumentava chegando a 184 vítimas no final de maio761, 205 em meados
de junho762, 209 ao final daquele mês763, 308 no início de julho764 e 319 ao seu
final765. Em menos de cinco dias, esse número subiu para 328 no início de
agosto766 e, após o primeiro final de semana seguinte, esse número foi acrescido
em mais 15 execuções, subindo para 343 pessoas767. Entre este momento e o
início de setembro, esse número subiu para 383, de acordo com a Folha da
Tarde, de 05 de setembro de 1978768. Dez dias depois, este número chegou a
393769. E no final do mês de setembro deste ano, o número de mortos chegava a
409, após a chacina de 16 pessoas com requintes de crueldade770.
761
"Outro crime atribuído ao esquadrão". Folha da tarde. DOPS. 26/05/1978. Arquivo do
Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte.
762
"Esquadrão carioca faz a 205ª vítima". Folha de São Paulo. DOPS. 12/06/1978.
Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte;
"Esquadrão mata mais 3 pessoas". DOPS. 12/06/1978. Arquivo do Estado de São Paulo.
Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte e "Esquadrão abandona mais três cadáveres
no Rio". Folha da tarde. DOPS. 12/06/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS
0993, n° 68 - esquadrão da morte.
763
"Achadas ontem mais quatro vítimas do EM". Folha de São Paulo. DOPS.
26/06/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da
morte; "Mais quatro assassínios atribuídos ao EM do Rio". Folha de São Paulo. DOPS.
26/06/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da
morte; "Marginais e esquadrão assassinam três no Rio". Folha da tarde. DOPS.
26/06/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da
morte.
764
"Somente este ano, 308 crimes de morte na baixada". O Estado de São Paulo.
DOPS. 18/07/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão
da morte.
765
"Aumenta número de assassínios no Rio". Folha da Tarde. DOPS. 22/07/1978.
Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte.
766
"Esquadrão do rio matou até um pastor". Folha da tarde. DOPS. 01/08/1978. Arquivo
do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte.
767
"15 assassínios no Rio neste fim de semana". Folha da Tarde. DOPS. 07/08/1978.
Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte.
768
"Continua matança na Baixada Fluminense". Folha da tarde. DOPS. 09/09/1978.
Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte.
769
"Mais três assassinatos na Baixada". Notícias Populares. DOPS. 13/09/1978. Arquivo
do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte.
770
"Recrudesce violência no Rio: mais 8 mortos". Folha da tarde. DOPS. 27/09/1978.
Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte e também
"Em dois dias esquadrão executou 16: banho de sangue na Baixada Fluminense". Diário
da Noite. DOPS. 28/09/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 -
esquadrão da morte.
271
Além de não mais associar as execuções dos esquadrões à limpeza social,
estigmatizando as vítimas com a taxação “marginais”, a imprensa também passou
a mostrar que tais organizações matavam policiais que não compactuavam com
tais práticas, caso do cabo Renaux, que “morreu porque ameaçara denunciar
elementos do esquadrão que agiram no princípio do ano passado, entre Mesquita
e Nova Iguaçu”771 e também do escrivão-chefe da delegacia de polícia e duas
testemunhas, que foram sequestrados e mortos pelos esquadrões da morte772.
Com a ausência do apoio da opinião pública, os autocratas bonapartistas
buscaram formas para amenizar aquelas publicações da imprensa e vieram a
público apresentar sua versão dos fatos. A primeira forma encontrada pelos
autocratas para restabelecer o apoio da opinião pública foi anunciar
repetidamente, na imprensa, a desarticulação dos grupos de extermínio. Em
1977, um delegado de polícia, Sr. Helber Murtinho, designado pelo Secretário de
Segurança pública para tal finalidade veio a público declarar que os esquadrões
haviam sido desarticulados na Baixada Fluminense, após a prisão dos membros
daquele grupo de extermínio:
771
"64 torturados e mortos em apenas 58 dias no Rio". Folha de São Paulo (Sucursal do
Rio de Janeiro). DOPS. 28/02/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993 (n°
68) - esquadrão da morte.
772
"Esquadrão sequestra e mata escrivão e duas testemunhas". Diário da noite. DOPS.
10/10/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da
morte.
773
"Delegado afirma que esquadrão já está desarticulado". O Estado de São Paulo (Rio
de Janeiro). DOPS. 09/08/1977. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0992 -
1977-1977.
272
estão chorando como crianças” 774. Desmentindo-o, imediatamente em seguida, a
imprensa denunciou mais mortes naquela mesma região, como mostrou a Folha
de São Paulo:
774
"Prisões no Rio não param os crimes do esquadrão". Folha de São Paulo (Sucursal
do Rio de Janeiro). 10/08/1977. DOPS. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0992
- 1977-1977.
775
"Prisões no Rio não param os crimes do esquadrão". Folha de São Paulo (Sucursal
do Rio de Janeiro). 10/08/1977. DOPS. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0992
- 1977-1977.
776
"Libertado um suspeito do esquadrão". Folha de São Paulo. DOPS. 21/09/1977.
Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OP 0992 (n. 67) - esquadrão da morte.
777
"Continuam as mortes misteriosa no Rio". Folha da Tarde. DOPS. 13/09/1978.
Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte.
273
insustentável situação ocasionada com a continuidade daqueles grupos de
extermínio, após uma chacina que vitimou sete pessoas e que fora realizada
pelos esquadrões locais, como ele reconheceu, “é um caso típico do esquadrão
da morte e que a seu ver, a situação está insustentável”778.
O segundo meio utilizado por esses agentes do Estado para restabelecer a
confiança da opinião pública se deu através da associação daqueles grupos de
extermínio à proteção particular, dissociando-os do Estado. Isso foi feito pela
polícia de Nova Iguaçu quando prendeu o agente Silas Pereira, citado
anteriormente. Nesse sentido, disseram que “a polícia de Nova Iguaçu esclareceu
que o grupo do sargento Silas Pereira protegia uma das redes de supermercados
(...)”779.
A terceira forma encontrada foi ir a público elogiar as lideranças dos grupos
de extermínio, como fez o Coronel Erasmo Dias, dirigindo-se ao delegado Fleury,
que naquele momento, 1978, vivenciava o seu terceiro julgamento. Pela negativa
da concessão da Lei Fleury para aquele delegado, como analisamos ao longo do
capítulo 4, o Coronel teve de designar outro delegado, Ari José Bauer, para
ocupar a direção do DEIC. Nesse momento, o militar apontou que “(...) embora
nenhum homem seja insubstituível, há elementos que, de acordo com a época,
são insubstituíveis, o que é o caso do Dr. Fleury”780. E por fim, Erasmo Dias ainda
completou, ressaltando o que para ele, eram grandes qualidades,
778
"Falsos policiais teriam cometido a chacina do Rio". Folha de São Paulo (Sucursal do
Rio de Janeiro). DOPS. 07/11/1977. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0992 -
1977-1977 - esquadrão da morte
779
"Polícia carioca anuncia novas prisões do esquadrão da morte". Folha de São Paulo
(Sucursal do Rio de Janeiro). 02/09/1977. DOPS. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta
OS 0992 - 1977-1977 - esquadrão da morte
780
"Fleury se apresenta e é recolhido à prisão". O Globo. 23/02/1978. CHB - A5 - P33 e
também "Fleury se entrega à Justiça em Guarulhos". Folha de São Paulo. 23/02/1978.
CHB - A5 - P33.
781
"Fleury se apresenta e é recolhido à prisão". O Globo. 23/02/1978. CHB - A5 - P33
274
Em outro momento, o coronel fez mais elogios públicos para aquele agente
da repressão e dos esquadrões, se posicionando contrário à prisão de Fleury e o
chamando de “O melhor policial”782. Nas palavras do Coronel,
782
"O melhor policial". Jornal da tarde. DOPS. 23/02/1978. Arquivo do Estado de São
Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio Fleury e também "Fleury espera a sua liberdade a
qualquer momento". Folha de São Paulo. DOPS. 28/02/1978. Arquivo do Estado de São
Paulo. Pasta OS 0986 (n° 61) - Sérgio Fleury.
783
"Fleury se entrega à Justiça em Guarulhos". Folha de São Paulo. 23/02/1978. CHB -
A5 - P33.
784
A ditadura do grande capital é a imposta pela grande burguesia e a que determina as
principais características do Estado ditatorial. Todavia, nem sempre as classes
dominantes exercem diretamente o governo. Cf. IANNI, Octavio. A ditadura do grande
capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981.
785
IANNI, 1981, op. cit., p. 33-45.
275
Brum Negreiros, “negando a existência do grupo de execuções sumárias”786. Na
mesma linha, o Diretor do Departamento Metropolitano, delegado Edgar Pires de
Sá, corroborou seu colega de trabalho, dizendo que “não existiam, no Rio e
principalmente na Baixada Fluminense, crimes misteriosos ou relacionados com o
esquadrão”787 e que “a onda de criminalidade violenta estava diminuindo e que o
que existe, realmente é apenas crimes que dependem de investigações mais
demoradas”788.
Tais negativas causaram espanto até para os demais policiais, pois havia
mais de 6.500 investigações sobre assassinatos não esclarecidos e, entre estes,
também estavam as execuções realizadas pelos esquadrões.
Essas tentativas de restabelecer o apoio da opinião pública pela autocracia
bonapartista não se efetivavam, pois aqueles segmentos sociais estavam
descontentes com o rumo econômico que levava o Brasil dada à crise do milagre
econômico, iniciada por volta de 1974. Naqueles anos, a economia brasileira tinha
como base o consumo do petróleo, em âmbito civil e industrial. Em 1970, 70% do
transporte de mercadoria e 96% do transporte de passageiros estavam
diretamente vinculados ao uso do petróleo – que, por sua vez, sofreu grande
aumento em decorrência da suspensão dos países árabes às exportações. Era
uma represália ao apoio do Ocidente a Israel, na guerra do Yom Kipur 789, em
1973.
A política da Petrobrás, acreditando que o preço do barril de petróleo não
subiria por muitos anos, pautava-se na importação de petróleo. Assim, em 1974,
apenas para pagar o petróleo importado, o Brasil gastou 2,8 bilhões de dólares,
786
"Esquadrão mata e sequestra no Rio". Folha de São Paulo (Rio de Janeiro). DOPS.
24/02/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993 (n° 68) - esquadrão da
morte.
787
"Polícia identificou vítimas do esquadrão". Folha da tarde. DOPS. 02/08/1978.
Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte.
788
"Polícia identificou vítimas do esquadrão". Folha da tarde. DOPS. 02/08/1978.
Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte.
789
A Guerra do Yom Kippur ocorreu em outubro de 1973 entre árabes e israelenses. Este
conflito durou cerca de vinte dias e, como consequência direta, houve o boicote dos
países árabes produtores de petróleo aos países que apoiaram Israel. Assim, a venda de
petróleo ficou restrita, fato que determinou a alta no preço do barril e a derrubada da
bolsa de valores. A essa crise do capitalismo atribui-se o nome de Crise do Petróleo. Cf.
“Guerra do Yom Kippur e a Crise do Petróleo”. Disponível em :
http://historiadomundo.uol.com.br/idade-contemporanea/guerra-do-yom-kippur-e-a-crise-
do-petroleo.htm. Acesso em 18 jan. 2016.
276
sete vezes mais que em 1972. Também pela falta daquele insumo, os EUA
passaram a inflacionar o dólar, provocando aumentos nos bens de capital,
triplicando as despesas do Brasil com as importações necessárias para a
produção nacional.
A esses problemas, somavam-se os custos com pagamentos de lucros do
capital estrangeiro, juros da dívida externa, fretes e seguros, tendo em vista que o
país era dirigido por uma nova classe de tecnocratas civis e militares, que
comandava além do Estado, também as grandes empresas estatais. O regime era
mantido por um “tripé econômico” formado pelos empresários nacionais, as
empresas estrangeiras e o Estado, como apontou Kucinski790.
O déficit brasileiro subiu de 1,5 bilhão de dólares em 1972 para 6,7 bilhões
em 1974. Para pagar essas dívidas, tomavam-se novos empréstimos,
especialmente pelas empresas estatais, aumentando o montante de juros a
serem pagos e, consequentemente, o próprio déficit.
Os grandes empresários, especialmente as multinacionais, perceberam
que as condições econômicas – altas taxas de lucros e crescimento acelerado –
já não eram mais a realidade do regime e fizeram uma enorme campanha contra
a estatização da economia, promovendo a quebra do pacto entre a burguesia e os
militares. Essa campanha contra a estatização devolvia à burguesia a iniciativa do
debate em relação a outros segmentos da sociedade, restringindo a discussão
aos aspectos do interesse do grande capital e abafando temas de interesse
popular, como o achatamento dos salários e a alta do custo de vida 791.
A campanha entrava em confronto direto com o II Plano Nacional de
Desenvolvimento (PND) (1975-1979) de Geisel, que previa investimentos na
indústria de bens de capitais e bens intermediários, que deveriam ser feitos com
dinheiro do Tesouro e usando, como agentes da expansão, as empresas estatais.
Isso significava tirar recursos cobiçados por grupos privados e consolidar o
domínio das estatais em setores importantes da economia. Também pela falta de
dólares, esperava-se que o governo restringisse a remessa de lucros das
multinacionais, os royalties da tecnologia estrangeira e as importações para quem
sabe, renegociar a dívida.
790
KUCINSKI, BERNARDO. O fim da ditadura militar. São Paulo: Contexto, 2001.
791
Idem.
277
A burguesia, em contraposição, pressionava o governo a fazer as estatais
operarem com margem zero de lucro, absorvendo as perdas para si. Unidas num
único bloco, a burguesia nacional e a estrangeira – valendo-se do discurso liberal
e colocando a necessidade de maior “liberdade política” – não hesitaram em pôr
fim ao pacto político com os militares, como pontuou Kucinski 792.
A falta de apoio daquela ditadura também se refletia em outros campos. Na
política, a perda de legitimidade do governo se deu após a vitória do Movimento
Democrático Brasileiro (MDB) nas eleições de 1974793. Para diminuir o peso de
atuação da oposição, Geisel e Golbery lançaram o “Pacote de Abril” que era
composto por 14 emendas794 a artigos da Constituição de 1969, três novos artigos
e seis decretos-leis.
Dentre as determinações daquele pacote, chamamos a atenção para a
modificação com relação ao legislativo. Nele, houve a redução do quorum
necessário para a aprovação de emendas e criação do “senador biônico” a quem
caberia garantir a vitória do governo. O maior problema foi instituir a restrição do
peso do voto urbano, na tentativa de diminuir as cadeiras parlamentares daquelas
792
KUCINSKI, 2001, op. cit.
793
Apesar da dissolução de 11 partidos políticos, em 1965, e a criação de dois partidos:
ARENA - partido do governo – e Movimento Democrático Brasileiro (MDB), – partido da
oposição, cujo papel era dar legitimidade ao governo. Em 1974, o MDB recebera 14,5
milhões de votos para seus candidatos do Senado contra 10,1 milhões da ARENA, ou
seja, Geisel perdia a maioria de dois terços no Congresso e, consequentemente, o poder
de modificar unilateralmente o regime por meio de emendas à Constituição, que
necessitavam de maioria no Senado. Os votos foram também um reflexo das mudanças
demográficas e suas consequências. A vinda de milhares de ex-agricultores às cidades
como mão de obra barata para a construção civil teve, como consequência, a instalação
dessas pessoas nas zonas periféricas da metrópole, enfrentando graves problemas de
transporte, de moradia, de saneamento básico, de qualidade do ar e da água, surtos
epidêmicos e a perda do poder de compra do salário mínimo. Para conter tal avanço
oposicionista, Geisel engendrou um golpe através da edição de uma reforma
constitucional que previa o fechamento do Congresso e a promulgação de reformas por
decreto com base nos atos excepcionais e, posteriormente, eliminaria os atos
institucionais. Petrônio Portella, presidente do Senado, ficou encarregado de convencer o
MDB a aprovar as mudanças na Reforma do Judiciário. O objetivo na verdade era
apontar a intransigência do MDB e fechar o Congresso por tal motivo, podendo, assim,
fazer as mudanças políticas necessárias à continuidade do regime. Obviamente o MDB
não aprovou o projeto, e em fevereiro de 1977, alegando que as oposições exerciam uma
ditadura da minoria, Geisel fechou o Congresso. Cf. KUCINSKI, 2001, op. cit.
794
Grosso modo, o Pacote de Abril, promulgado em 14 de abril de 1977, previa o controle
do processo legislativo, do Executivo Federal, dos Executivos estaduais, restringia as
campanhas eleitorais com a criação da Lei Falcão e a proibição do uso da televisão nas
campanhas municipais e restringia o peso do voto urbano. KUCINSKI, 2001, op.cit., p.
44-8.
278
regiões mais politizadas, pois, ao condicionar o número de cadeiras ao número de
habitantes por Estado e não de eleitores, eles se esqueceram de que, com o
êxodo rural, os analfabetos dos Estados tidos como atrasados, que não votavam,
viviam nas cidades tidas como politizadas, à procura de trabalho. Assim, ao invés
de diminuir o peso das áreas urbanas, elas foram aumentadas795.
No seio militar, Geisel também perdia apoio ao demitir o ministro do
Exército Sylvio Frota, destroçando o alto comando do Exército. Ele foi marcante,
pois, mesmo levantando a bandeira da linha dura, na tentativa de ser sucessor de
Geisel, era o único que se opunha e obstaculizava a prática da tortura no
momento em que chefiou o I Exército (1971-1974), antes de se tornar ministro.
Quando ministro, fez campanha para suceder Geisel, baseando-se na oposição à
retorica liberal, na manutenção das Forças Armadas como núcleo decisório e
centro do poder. Ao final de 1977, ele já contava com uma ala “frotista” no
Congresso. Entendido como um perigo, Geisel o demitiu em 12 de outubro,
feriado local, sem a possibilidade de uma manifestação de repúdio dos
apoiadores dele796.
795
A ideia de Golbery e Geisel era diminuir o peso das regiões urbanas, que eram mais
politizadas. Em primeiro momento, dividiu-se o Estado do Mato Grosso, criando o Mato
Grosso do Sul e estabeleceu um teto para o número de cadeiras de Estados mais
populosos – medida feita principalmente para conter São Paulo – que não poderia ter
mais que 55 deputados federais. Todavia, o que ocorreu foi o inverso: Geisel fez com que
o peso do voto urbano aumentasse. Os estados do sul ganharam 13 cadeiras, São Paulo,
símbolo da oposição, ganhou 5 cadeiras e o Rio de Janeiro, 7 cadeiras. O estado onde
predominava o voto “atrasado” como o Pará, perdeu 5 cadeiras. Sendo este pacote um
ato institucional, não poderia ser alterado após seu lançamento. KUCINSKI, 2001, op. cit.,
p. 43-8.
796
A crise institucional também tinha outros elementos importantes. No fim de 1976, a
inflação e o desaquecimento econômico atingiriam também os oficiais subalternos. A real
situação e a insatisfação haviam demorado a chegar aos quartéis, em detrimento da
lavagem cerebral feita pela doutrina de segurança nacional, onde todos os males da
nação eram atribuídos aos comunistas. Grupos de oficiais descontentes e contrários a
Figueiredo começaram a se articular, surgindo o grupo “centelha nacionalista”, o
Movimento Militar Democrático Constitucionalista (MRD), o grupo pró-governo criado em
1977, chamado Movimento Popular de Defesa da Revolução e o Movimento
Revolucionário Democrático (MRD), formado por coronéis e defensores das teses
castelistas. Em 1978, escolhido o sucessor de Geisel, o grupo centelha decidiu dar apoio
a Magalhães Pinto, ex-governador de Minas Gerais e não militar. O objetivo era implodir
a Arena de forma a impedir a indicação de Figueiredo na convenção do partido. Porém,
sem maiores apoios, Magalhães desistiu da candidatura, mas não desistiu da resistência
a Figueiredo e lançou, em Recife, a Frente Nacional pela Redemocratização,
desestabilizando o sistema eleitoral e gerando a necessidade de uma solução
extraordinária. As pressões da oposição continuavam, e o MDB foi obrigado a lançar o
279
Assim, o que se notava era que, progressivamente, aquela ditadura perdia
suas bases. No que tangia aos segmentos hegemônicos da burguesia, apontou
Chasin que eles não haviam se cansado daquela autocracia, mas sim dos rumos
econômicos e do fim do milagre. Nesse sentido,
general Euler como candidato à presidência. Euler era antipopulista, apesar de ter se
oposto tanto à subordinação econômica quanto às violações dos direitos humanos.
Apesar de atrair multidões aos comícios, ele não empolgou a oposição que desconfiava
dele e de sua origem. O MDB suspendeu os comícios e, em 15 de outubro, Figueiredo foi
eleito. Cf. KUCINSKI, 2001, op. cit., p. 49-66.
797
CHASIN, 2000, op. cit., p. 67.
798
Chasin pontua que a história brasileira é marcada por ditaduras e milagres
econômicos, mas pobre de soluções econômicas de amplitude nacional, carente de uma
tradição democrática verdadeira. Cf. CHASIN, 2000, op.cit., p. 60.
280
estrutura agrária, o privilegiamento do setor de bens de consumo
duráveis como carro-chefe do desenvolvimento industrial -, o que
implica deixar em pé o caráter autocrático do estado, mantendo
excluídos do debate da questão essencial – a econômica – os
trabalhadores799.
799
Idem, p. VII.
800
"Esquadrão mata e sequestra no Rio". Folha de São Paulo (Rio de Janeiro). DOPS.
24/02/1978. Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993 (n° 68) - esquadrão da
morte e "Polícia identificou vítimas do esquadrão". Folha da tarde. DOPS. 02/08/1978.
Arquivo do Estado de São Paulo. Pasta OS 0993, n° 68 - esquadrão da morte.
801
KUCINSKI, 2001, op. cit.
281
Perdigão, o comandante Vieira e o delegado Calandra. (…) Ustra abriu
a reunião. Ele estava numa cabeceira da mesa, não sei se por
hierarquia militar, e Perdigão, na outra. De um lado, eu estava com o
comandante Vieira e o delegado Aparecido Laerte Calandra, que era
muito ligado ao coronel Ustra. No outro lado da mesa, o doutor Ney e o
coronel-aviador Juarez. Éramos sete. Quem decidia mesmo era o
doutor Flávio (o coronel Perdigão), mas em reunião assim quem
presidia era o Ustra802.
Não sei qual substância usaram para dopá-lo, mas sei que foi colocada
na bebida com a droga. Fleury ainda levou, de um homem de sua
confiança, uma pedrada na parte de trás da cabeça. (...) Os indícios do
envenenamento estão numa perícia feita, mas que não foi divulgada.
Ficou de posse do Expedito (Marques Pereira, delegado de polícia
aposentado),delegado que substituiu Fleury no comando formal do
DEIC804.
802
GUERRA, Cláudio. Memórias de uma guerra suja. Depoimento a Marcelo Netto e
Rogério Medeiros. Rio de Janeiro: Topbooks, 2012, p. 99-100.
803
Idem, p. 104-5.
804
Ibidem, p. 105-6.
282
Foi assim que no feriado de 1° de maio de 1979, Fleury foi morto pelos
agentes do aparato repressivo, tendo, finalmente, se livrado dos processos a que
ainda responderia, bem como também livrou aquele Estado da possibilidade de
ser denunciado, inclusive internacionalmente.
Na versão oficial, reproduzida pelos militares, Fleury sofreu um mal súbito,
caiu no mar e morreu afogado. Tal versão permaneceu incontestável – ao menos
até o Claudio Guerra fazer tais revelações –, pois não foi permitido pelos militares
que o corpo fosse autopsiado, como afirmou o médico legista Harry Shybata,
responsável pelo Instituto Médico Legal (IML) naquela época. De acordo com ele,
805
SOUZA, Diego Oliveira. “Entre violência e (in)justiça: o esquadrão da morte paulista
(1968-1979)” In: Mouseion. Canoas, n. 18, agosto 2014. Disponível em
http://www.revistas.unilasalle.edu.br/index.php/mouseion. Acesso em: 12 jan. 2016, p.
160.
806
"Fleury morre afogado em Ilhabela, aos 46 anos". Folha de São Paulo. 02 mai.1979.
CHB - A5 - P33.
283
A morte do delegado foi de extrema importância. Ele era símbolo da
repressão política, conhecedor dos porões daquela autocracia bonapartista e sua
ligação com o Estado já não era mais aceitável, dadas as novas circunstâncias
que se punham naquela época. O retorno da liberdade de imprensa também
possibilitava que, internamente, aquela ampla violência fosse denunciada, bem
como deu à imprensa internacional acesso ao que acontecia aqui. Nesse sentido,
uma confissão de Fleury sobre tais arbitrariedades, exposta publicamente, em
âmbito nacional e internacional, não seria cabível. Assim, temiam eles que a
807
SOUZA, 2014, op. cit., p. 160.
808
“Fleury Pai Herói”. Manchete. 19/05/1979. CHB – A5 – P33.
809
"Fleury morre afogado em Ilhabela, aos 46 anos". Folha de São Paulo. 02/05/1979.
CHB - A5 - P33.
810
"Fleury morre afogado em Ilhabela, aos 46 anos". Folha de São Paulo. 02/05/1979.
CHB - A5 - P33 e também "Menos um no listão dos torturadores". Em tempo.
02/05/1979. CHB - A5 - P33.
284
A tese de que se tratava de uma queima de arquivos era comum entre os
que falavam sobre a morte desse agente, bem como que ela estava diretamente
ligada ao acesso do delegado às instâncias e informações sigilosas do aparato
repressivo. De acordo com o periódico Em tempo,
Com sua morte, também foi sepultado o desejo de punição, bem como se
fortaleceu a impunidade e a frustação, como escreveu o Comitê Brasil-anistia,
porta voz dos exilados políticos na França:
811
"Menos um no listão dos torturadores". Em tempo. 02/05/1979. CHB - A5 - P33.
812
"Fleury morre afogado em Ilhabela, aos 46 anos". Folha de São Paulo. 02/05/1979.
CHB - A5 - P33 e também "Menos um no listão dos torturadores". Em tempo.
02/05/1979. CHB - A5 - P33.
813
CHASIN, 2000, op. cit., p. VII.
285
militares814; a tramitação no Congresso da organização de novos partidos, que
causou um racha da oposição, mas também a perda do partido do governo, a
Arena; o adiamento das eleições por dois anos com o pretexto de permitir a
organização partidária, mas que, na verdade, não passava de uma tentativa de
melhorar a crise econômica, sob o risco de perder as eleições municipais para a
oposição; além das greves agrárias815 e as operárias,816 ocorridas no ABC – ou
seja, tanto no campo como na cidade, a “abertura” acontecia, mas não sem dar
seus últimos suspiros ditatoriais817.
Aqueles “ares democráticos” não mais comportavam o delegado da
repressão e dos esquadrões. Assim, com a morte de Fleury também se encerrava
a atuação daquele grupo paulista, bem como as apurações sobre os casos de
execuções já ocorridos retornaram à esfera estatual, não sendo mais um
problema federal. Em contrapartida, a violência gestada naqueles anos
permaneceu, seja na tão criticada, mas bem presente militarização das policiais
ou mesmo na atuação de outros grupos de extermínio pelas periferias de todo o
Brasil.
A ditadura morreu assim como o símbolo que expressou a dinâmica da
atuação das forças repressivas, mas mesmo em tempos de constitucionalidade
814
A oposição viu-se sob pressão, na medida em que a anistia foi passada como “a
máxima possível” pelos militares. Muito embora o MDB e suas bases tenham oferecido
resistência ao projeto, o governo conseguiu aprová-lo no Congresso sem nenhuma
alteração. Isso desgastou a imagem do novo governo, que tinha como “meta” a abertura.
815
As crises no campo, durante o final da década de 70, foram marcadas por inúmeras
mortes. Com o surgimento dos boias-frias e a Teologia da Libertação funcionando como
amálgama para a união entre Igreja e os posseiros, deu-se força ao fomento das greves
por todo o país, pois, embora os donos de engenho, por vezes, negociassem com os
trabalhadores, houve um recrudescimento das forças de repressão no campo, através do
uso das mesmas táticas repressivas das elites agrárias e industriais. Cf. KUCINSKI,
2001, op.cit.
816
Aponta o autor que, com a crise econômica, o governo via a necessidade de cortar
serviços sociais. Isso mobilizou os trabalhadores, especificamente a classe metalúrgica
que era bem organizada, iniciando uma greve em 1° de abril de 1978, no ABC,
estendendo-se até Sorocaba. Os juízes se recusaram a ver a greve como ilegal, num
primeiro momento, mas como os trabalhadores do ABC não aceitaram a oferta que a
Justiça lhes propôs, esta abriu chance para a repressão, sendo os 15 líderes da greve
presos, incluindo Lula. Por alguns dias, a repressão ora se recrudesceu, ora se afrouxou,
até que os próprios trabalhadores deram um fim ao movimento, por conta de suas
necessidades. Entretanto, a greve foi vista, como vitória técnica, pois a repressão não
conseguiu conter os ânimos populares em busca de seus interesses. E o partido dos
trabalhadores pode ser considerado como consequência política das greves de 1978 do
ABC. Cf. KUCINSKI, 2001, op. cit.
817
Idem.
286
democrática, seus resquícios ainda estão presentes em várias instituições, das
quais os esquadrões da morte, os assassinatos de suspeitos e os meios que
permitem a impunidade continuaram atuando.
287
Considerações finais
Trabalhar com a temática aqui abordada fez com que nos deparássemos
com algumas dificuldades. A complexidade do tema já estava indicada nas
interpretações até então feitas acerca daqueles grupos de agentes armados do
Estado, encarregados de sanear a sociedade com a eliminação das pessoas que,
por razões distintas, eram consideradas inimigas do Estado, conforme
demonstramos. A alcunha que receberam explicita bem seus modus operandi -
esquadrões da morte – e isso foi se evidenciando a partir da análise documental
que demonstrou ser o problema muito mais entranhado na sociedade do que
inicialmente se revelava.
Visualizar toda aquela violência perpetrada pelo Estado foi aterrorizante,
principalmente quando seus resquícios estavam tão presentes na atualidade.
Como historiadora, é impossível não me sensibilizar com as brechas que a
perda daqueles indivíduos deixou no seio de suas famílias, as quais ainda tiveram
de lidar com a reprovação moral, pois os vitimados ficaram marcados como
transgressores da ordem, à revelia de qualquer julgamento legal – construção
ideológica perpetuada pelo Estado, pelos segmentos da burguesia e pela opinião
pública, bem como “justificadas” pelas teorias raciológicas, tão utilizadas, inclusive
por nossas policias. Essa dor foi vivida por milhares de famílias e em todo o
território nacional, uma vez que os esquadrões atuaram em praticamente todos os
Estados da federação.
Conforme vimos ao longo desta tese, os denominados esquadrões da
morte foram grupos de extermínio que atuaram em âmbito nacional desde o final
da década de 1950 até o final da década de 1970. Nascidos no Rio de Janeiro,
tiveram sua ideia copiada pelos governadores de outros estados, tendo sido
implantados em São Paulo, Espírito Santo, Minas Gerais, Alagoas, Pernambuco e
outros.
Seus integrantes eram policiais, tanto militares quanto civis, lotados em
delegacias de todo o país, de diversas patentes, na ativa, ou aposentados. No
começo da década de 1970, a grande maioria passou a também atuar nos órgãos
288
da repressão, não havendo mais como dissociar as práticas perpetradas em uma
ou outra instituição.
Na verdade, a atuação daqueles agentes, na repressão, ou nos
esquadrões, eram as mesmas: sequestros e tortura para fins de esclarecimento,
execução sumária, assassinatos sob custódia do Estado, uso de cemitérios
clandestinos etc.
No período analisado, 1973 a 1979, observamos, a partir das fontes, que
tais grupos de extermínio viveram seu auge e declínio, dada a configuração
nacional em cada momento histórico. Assim, se 1973 os integrantes dos
esquadrões atuavam ativamente no aparato repressivo e nos grupos de
extermínio bem como eram amplamente protegidos pela autocracia bonapartista,
em 1979, a grande maioria daqueles policiais já estava fora dos órgãos da
repressão, e os autocratas não mais conferiam grandes esforços para garantir a
existência deles – tanto que a responsabilidade por tais grupos retornou para a
esfera dos estados.
Enquanto instituição nacional à serviço do bonapartismo, os esquadrões da
morte operavam articuladamente – evidência que pudemos notar quando
comparamos o modus operandi desses grupos nas localidades em que eles
agiam. Em todos os estados, as práticas eram as mesmas: execuções sumárias
justificadas para diminuir os índices de criminalidade; mortes de pessoas sob
custódia do Estado; uso de locais clandestinos para ocultação dos cadáveres ou
locais legais, que guardava alas específicas para tais vítimas, enterradas como
indigentes; representantes dos grupos, os chamados Relações-Públicas, que iam
a público revelar quais seriam os próximos a morrer; sequestros e tortura para
“fins de esclarecimento”.
A operacionalidade, por nós chamado de modus operandi, e semelhança
entre as práticas em cada estado demonstravam que aqueles grupos de
extermínio agiam articuladamente, bem como eram incentivados e protegidos
pela autocracia bonapartista.
Em síntese, lutar por demandas sociais, pelo acesso aos bens produzidos
coletivamente e aos ditames constitucionais fazia daqueles segmentos da
população inimigos internos a serem combatidos e aniquilados para o bem da
Nação. Assim, eles eram duplamente marginalizados e criminalizados: não tinham
289
acesso aos elementos garantidores da dignidade humana e, portanto, tratados
como marginais.
Essa dinâmica se consolidou no Brasil ao longo do período republicano,
nas cidades por meio da segregação do espaço urbano, da repressão aos
movimentos sociais, principalmente quando ocorria a industrialização. No campo,
a busca por melhores condições de vida através da formação de comunidades de
ajuda mútua incitou a repressão que também foi brutal, haja vista os movimentos
no Nordeste como Canudos, Sitio Caldeirão, Cangaço e as Ligas Camponesas e
no sul do país com a Guerra do Contestado.
Aquela violência estava diretamente atrelada à forma de desenvolvimento
do capitalismo no Brasil ocorrido aos moldes da “via colonial”. Nela, a associação
da burguesia brasileira com os latifundiários impediu que houvesse a ruptura com
o capital internacional, tornando nossa burguesia frágil, débil, impossibilitada de
romper com a ordem vigente e engendrar mudanças significativas e, nosso
capitalismo subordinado, dependentes e atrófico.
Nessa dinâmica, pautada na conciliação com o atraso e pelo alto, os
demais segmentos não tinham espaço para participação nas decisões, tampouco
suas demandas atendidas – eram criminalizadas. Lutar por melhores condições
de vida e trabalho, na cidade ou no campo, era sinônimo de subversão, dentro ou
fora de períodos ditatoriais; era “caso de polícia” e contra eles, toda a violência do
Estado estava justificada.
Esse fato é ratificado quando analisamos o desenvolvimento da rede de
vigilância e repressão à sociedade iniciada na década de 1920 até sua
transformação em um Sistema de Segurança Nacional, em 1950, a partir da
articulação dos órgãos que atuavam como polícias políticas, tais como o
Conselho de Segurança Nacional (CSN), a Divisão de Polícia Política Social
(DPS), as seções de Segurança Nacional, presentes em todos os Ministérios
Civis da República, os Serviços de Informações; as Delegacias de Ordem Política
e Social (DOPS), as Secretárias de Segurança estaduais e o Serviço Secreto
Federal.
No período ditatorial, esse Sistema de Segurança Nacional criou novos
órgãos, reorganizou e ampliou as funções de alguns dos já existentes, com
290
destaque para a atuação do Sistema Nacional de Informações articuladas aos
DOPS espalhados por todo o país.
Nesse sistema repressivo altamente articulado, a inserção dos esquadrões
da morte foi essencial e de suma importância. Os policias que atuavam naqueles
grupos passaram a integrar os quadros dos órgãos da repressão no início da
década de 1970. Suas práticas altamente letais garantiam a preservação da
propriedade privada, do capitalismo e do status quo, anseios dos segmentos da
classe média, alta e hegemônica da burguesia e perpetrada através daquele
Estado classista.
As práticas daqueles homens junto às duas instituições – nos esquadrões
da morte e na repressão política – eram as mesmas, fato que denota a
impossibilidade de dissociar tais ações, pois o trato dado ao contraventor penal e
ao indivíduo ligado a organizações políticas eram as mesmas. O próprio delegado
Sérgio Paranhos Fleury, chefe dos esquadrões paulista e do DOPS do mesmo
Estado, garantia que o sucesso obtido na eliminação das grandes lideranças de
organizações políticas, como Marighela e Lamarca se devia ao uso das técnicas
comuns.
Fleury tinha recebido treinamento de Paul Aussaresses, tutor nos
ensinamentos da Doutrina da Guerra Revolucionária, da Escola Francesa no
Brasil. O aperfeiçoamento dos sistemas de inteligência, integrando o território e
estendendo-se aos países vizinhos, o uso de práticas diversas de tortura, a
criação de esquadrões da morte, a suspeição a população, a criação do inimigo
interno que deveria ser combatido por todos e a qualquer custo, eram os
pressupostos básicos daquela doutrina que foram muito bem aplicados no Brasil,
inclusive pelos membros dos esquadrões.
O fim da Segunda Guerra Mundial e o advento da Guerra Fria fizeram os
países do “primeiro mundo” disseminarem o medo da ameaça comunista. Nos
EUA, a Doutrina da Segurança Nacional; e na França, a Doutrina de Guerra
Revolucionária. Ambas partiam da implantação do medo da ameaça do
comunismo internacional, supostamente engendrado pela URSS, China e Cuba
para justificar a militarização do Estado, pautado no uso das práticas violentas,
como prisões arbitrárias para fins de esclarecimentos, uso dos mais brutais
métodos de tortura, as execuções sumárias e o desaparecimento dos corpos.
291
A Doutrina Francesa, explicitamente, apontava a necessidade de que o
Estado organizasse grupos de extermínio – e nossa autocracia bonapartista
seguiu tal ensinamento a risca. Assim, se os grupos de extermínio atuantes no
Brasil, no início, direcionavam sua força contra os indivíduos taxados de
contraventores penais, com ou sem culpa formada, ao longo da ditadura, esses
grupos se estenderam para os setores ligados à militância política. Em suma,
para os esquadrões, todo indivíduo que contestasse a ordem vigente era uma
vítima em potencial.
A violência perpetrada por grupos de extermínio ligados ao aparelho
repressivo do Estado se punha amplamente e não apenas contra militantes
políticos, haja vista que os métodos e os centros de tortura eram os mesmos para
um ou para outro. Todavia, apenas as famílias das vítimas que estavam ligadas a
organizações políticas tiveram direito a reparações financeiras após o
reconhecimento do Estado de que houve arbitrariedade no trato à população ao
longo do período ditatorial.
Por estarem inseridos no aparelho repressivo, os integrantes dos
esquadrões da morte gozaram de grande proteção política daquela autocracia
bonapartista burguesa. Ao longo da década de 1970, quando ocorreram os
julgamentos dos agentes da repressão atuantes nos esquadrões, o que se pôs
foram medidas que dessem legalidade à liberdade daqueles agentes do Estado.
O uso abusivo da legalidade pode ser notado com a promulgação da Lei
Fleury, determinação legal especial desenvolvida para colocar em liberdade
aqueles policiais – mas essa não foi a única. Também mudaram os ditames
quanto à produção e uso das provas nos julgamentos, alterando o Código de
Processo Civil, promulgaram atos institucionais, criaram a Constituição de 1967 e
valeram do verdadeiro Poder Constituinte Ordinário quando lançaram a Emenda
Constitucional em 1969 que, na realidade, tratava-se de uma outra Constituição.
Nessa dinâmica, o uso abusivo da legalidade ainda se punha em outros
meandros da autocracia bonapartista como ameaças contra a vida dos
magistrados, afastamentos, destituições ou mesmo a concessão de benefícios,
outrora pedido por juízes e atendido prontamente em outros momentos, tudo para
garantir a liberdade dos agentes do Estado que atuavam nos esquadrões.
292
A lógica da juridicidade, entranhada no funcionamento daquela autocracia
bonapartista evidenciava-se. A criação de foros privilegiados foi o auge dessa
degenerescência que tratava de subverter o ilegal, tornando-o legal. Essa
situação também foi notada quando tratamos do uso de provas forjadas nos
julgamentos. Eram os chamados “Frutos da árvore envenenada”, teoria que deu
embasamento para a modificação do Código de Processo Civil em 1973 e que
instituiu que as provas a serem colocadas nos processos deveriam ser
moralmente legítimas.
As provas que constavam nos autos, no entanto, não poderiam ser tidas
enquanto “moralmente legítimas”, pois, na maioria dos casos, elas passaram por
mecanismos de forjamento. No entanto, foram inquestionalmente aceitas por
terem sido produzidas pelos agentes do Estado e, por isso, encaixavam-se no
quesito de “moralmente legítimas”.
O ato de forjar provas, à primeira vista, remetia-nos ao entendimento de
que se tratava de corporativismo militar entre aqueles policiais. Todavia, tal
premissa pressupunha acreditar que tais policiais, ao forjarem as provas, estavam
transgredindo a norma e, assim, tratava-se de desvio de conduta.
Na verdade, tal juridicidade militar mostrava que aquilo que se punha
como corporativismo era inerente à lógica de funcionamento do Estado e aqueles
policiais não agiam à revelia da norma, mas sim, de acordo com a juridicidade
militar entranhada na autocracia.
Em suma, os “operários da violência” atuavam de acordo com as
determinações da autocracia bonapartista burguesa e não à margem dela, outra
constatação importante. No entanto, tal juridicidade só prevaleceu enquanto
aqueles homens eram importantes para o funcionamento do Estado autocrático
bonapartista, pois, ao final da década de 1970, quando não mais atuavam em
órgãos da repressão, os autocratas retiraram sua proteção a eles, que passaram
a ser problema dos estados e não mais da Federação.
Essa evidência também é ratificada quando a opinião pública, expressando
os anseios dos segmentos hegemônicos da burguesia, demostrava não ter mais
interesse por aquele tipo de violência. Enquanto o milagre econômico existiu, o
apoio era contundente; quando o milagre acabou, junto com ele, também se
esvaiu o apoio daqueles segmentos hegemônicos da burguesia.
293
Naqueles anos, a violência dos esquadrões, que se punha contra os
segmentos sociais destituídos do acesso aos bens produzidos coletivamente,
também já assolava os indivíduos da classe média e alta daquela burguesia.
Assim, os membros dos esquadrões passaram de heróis para vilões, dada a
desaprovação a eles, expressa na opinião pública. A abertura política era um
caminho que já não tinha mais volta.
Nesse caminho sem volta, os “entulhos” da ditadura tiveram de ser
eliminados e o primeiro deles foi Fleury. Sua morte foi discutida e organizada
pelos próprios militares e deveria parecer um acidente, como versou oficialmente
até 2012, quando um ex-militar, sem pudor algum, resolveu contar sobre isso.
Matar indivíduos indesejáveis estava no cerne da ética militar.
Com sua morte e a passagem dos esquadrões para a esfera da
responsabilidade dos estados, nosso trabalho também se encerrou. A violência do
Estado continua, pois seus resquícios estão presentes em inúmeras instituições,
agora em tempos de constitucionalidade democrática. Novos esquadrões atuam
nos bairros periféricos das grandes cidades do país, executando quem ouse
manifestar sua insatisfação por não ter acesso à saúde, educação, transporte
público, saneamento básico, alimentação, lazer, em suma, ao tal Estado de
Direito.
Mas, essa história eu deixo para outros historiadores que, assim como eu,
queiram utilizar da academia para denunciar a violência cotidianamente vivida em
nossas cidades.
294
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absoluta-marcio-pereira
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