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JUDICIALIZAÇÃO, ATIVISMO JUDICIAL E LEGITIMIDADE

DEMOCRÁTICA

Luís Roberto Barroso1

Sumário: I. Introdução. II. A judicialização da vida. III. O ativismo judicial. IV.


Objeções à crescente intervenção judicial na vida brasileira. 1. Riscos para a
legitimidade democrática. 2. Risco de politização da justiça. 3. A capacidade
institucional do Judiciário e seus limites. V. Conclusão

I. INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, o Supremo Tribunal Federal tem desempenhado


um papel ativo na vida institucional brasileira. O ano de 2008 não foi diferente. A
centralidade da Corte – e, de certa forma, do Judiciário como um todo – na tomada de
decisões sobre algumas das grandes questões nacionais tem gerado aplauso e crítica, e
exige uma reflexão cuidadosa. O fenômeno, registre-se desde logo, não é peculiaridade
nossa. Em diferentes partes do mundo, em épocas diversas, cortes constitucionais ou
supremas cortes destacaram-se em determinadas quadras históricas como protagonistas
de decisões envolvendo questões de largo alcance político, implementação de políticas
públicas ou escolhas morais em temas controvertidos na sociedade.

De fato, desde o final da Segunda Guerra Mundial verificou-se, na


maior parte dos países ocidentais, um avanço da justiça constitucional sobre o espaço
da política majoritária, que é aquela feita no âmbito do Legislativo e do Executivo,
tendo por combustível o voto popular. Os exemplos são numerosos e inequívocos. No
Canadá, a Suprema Corte foi chamada a se manifestar sobre a constitucionalidade de

1
Professor Titular de Direito Constitucional, Doutor e Livre-Docente – Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (UERJ). Mestre pela Yale Law School. Autor dos livros Curso de Direito Constitucional
Contemporâneo e Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro, dentre outros. Advogado.
os Estados Unidos fazerem testes com mísseis em solo canadense. Nos Estados
Unidos, o último capítulo da eleição presidencial de 2000 foi escrito pela Suprema
Corte, no julgamento de Bush v. Gore. Em Israel, a Suprema Corte decidiu sobre a
compatibilidade, com a Constituição e com atos internacionais, da construção de um
muro na fronteira com o território palestino. A Corte Constitucional da Turquia tem
desempenhado um papel vital na preservação de um Estado laico, protegendo-o do
avanço do fundamentalismo islâmico. Na Hungria e na Argentina, planos econômicos
de largo alcance tiveram sua validade decidida pelas mais altas Cortes. Na Coréia, a
Corte Constitucional restituiu o mandato de um presidente que havia sido destituído
por impeachment2.

Todos estes casos ilustram a fluidez da fronteira entre política e


justiça no mundo contemporâneo. Ainda assim, o caso brasileiro é especial, pela
extensão e pelo volume. Circunstâncias diversas, associadas à Constituição, à
realidade política e às competências dos Poderes alçaram o Supremo Tribunal Federal,
nos últimos tempos, às manchetes dos jornais. Não exatamente em uma seção sobre
juízes e tribunais – que a maioria dos jornais não tem, embora seja uma boa idéia –,
mas nas seções de política, economia, ciências, polícia. Bastante na de polícia.
Acrescente-se a tudo isso a transmissão direta dos julgamentos do Plenário da Corte
pela TV Justiça. Em vez de audiências reservadas e deliberações a portas fechadas,
como nos tribunais de quase todo o mundo, aqui se julga sob o olhar implacável das
câmeras de televisão. Há quem não goste e, de fato, é possível apontar
inconveniências. Mas o ganho é maior do que a perda. Em um país com o histórico do
nosso, a possibilidade de assistir onze pessoas bem preparadas e bem intencionadas
decidindo questões nacionais é uma boa imagem. A visibilidade pública contribui para
a transparência, para o controle social e, em última análise, para a democracia.

II. A JUDICIALIZAÇÃO DA VIDA

2
Ran Hirschl, The judicialization of politics. In: Whittington, Kelemen e Caldeira (eds.), The Oxford
Handbook of Law and Politics, 2008, p. 124-5.

2
Judicialização significa que algumas questões de larga
repercussão política ou social estão sendo decididas por órgãos do Poder Judiciário, e
não pelas instâncias políticas tradicionais: o Congresso Nacional e o Poder Executivo
– em cujo âmbito se encontram o Presidente da República, seus ministérios e a
administração pública em geral. Como intuitivo, a judicialização envolve uma
transferência de poder para juízes e tribunais, com alterações significativas na
linguagem, na argumentação e no modo de participação da sociedade. O fenômeno
tem causas múltiplas. Algumas delas expressam uma tendência mundial; outras estão
diretamente relacionadas ao modelo institucional brasileiro. A seguir, uma tentativa de
sistematização da matéria.

A primeira grande causa da judicialização foi a redemocratização


do país, que teve como ponto culminante a promulgação da Constituição de 1988. Nas
últimas décadas, com a recuperação das garantias da magistratura, o Judiciário deixou
de ser um departamento técnico-especializado e se transformou em um verdadeiro
poder político, capaz de fazer valer a Constituição e as leis, inclusive em confronto
com os outros Poderes. No Supremo Tribunal Federal, uma geração de novos
Ministros já não deve seu título de investidura ao regime militar. Por outro lado, o
ambiente democrático reavivou a cidadania, dando maior nível de informação e de
consciência de direitos a amplos segmentos da população, que passaram a buscar a
proteção de seus interesses perante juízes e tribunais. Nesse mesmo contexto, deu-se a
expansão institucional do Ministério Público, com aumento da relevância de sua
atuação fora da área estritamente penal, bem como a presença crescente da Defensoria
Pública em diferentes partes do Brasil. Em suma: a redemocratização fortaleceu e
expandiu o Poder Judiciário, bem como aumentou a demanda por justiça na sociedade
brasileira.

A segunda causa foi a constitucionalização abrangente, que


trouxe para a Constituição inúmeras matérias que antes eram deixadas para o processo
político majoritário e para a legislação ordinária. Essa foi, igualmente, uma tendência
mundial, iniciada com as Constituições de Portugal (1976) e Espanha (1978), que foi

3
potencializada entre nós com a Constituição de 1988. A Carta brasileira é analítica,
ambiciosa3, desconfiada do legislador. Como intuitivo, constitucionalizar uma matéria
significa transformar Política em Direito. Na medida em que uma questão – seja um
direito individual, uma prestação estatal ou um fim público – é disciplinada em uma
norma constitucional, ela se transforma, potencialmente, em uma pretensão jurídica,
que pode ser formulada sob a forma de ação judicial. Por exemplo: se a Constituição
assegura o direito de acesso ao ensino fundamental ou ao meio-ambiente equilibrado, é
possível judicializar a exigência desses dois direitos, levando ao Judiciário o debate
sobre ações concretas ou políticas públicas praticadas nessas duas áreas.

A terceira e última causa da judicialização, a ser examinada aqui,


é o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade, um dos mais abrangentes do
mundo4. Referido como híbrido ou eclético, ele combina aspectos de dois sistemas
diversos: o americano e o europeu. Assim, desde o início da República, adota-se entre
nós a fórmula americana de controle incidental e difuso, pelo qual qualquer juiz ou
tribunal pode deixar de aplicar uma lei, em um caso concreto que lhe tenha sido
submetido, caso a considere inconstitucional. Por outro lado, trouxemos do modelo
europeu o controle por ação direta, que permite que determinadas matérias sejam
levadas em tese e imediatamente ao Supremo Tribunal Federal. A tudo isso se soma o
direito de propositura amplo, previsto no art. 103, pelo qual inúmeros órgãos, bem
como entidades públicas e privadas – as sociedades de classe de âmbito nacional e as
confederações sindicais – podem ajuizar ações diretas. Nesse cenário, quase qualquer
questão política ou moralmente relevante pode ser alçada ao STF.

De fato, somente no ano de 2008, foram decididas pelo Supremo


Tribunal Federal, no âmbito de ações diretas – que compreendem a ação direta de
inconstitucionalidade (ADIn), a ação declaratória de constitucionalidade (ADC) e a
argüição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) – questões como: a) o

3
Oscar Vilhena Vieira, Supremocracia, Revista de Direito do Estado 12, 2008, no prelo.
4
Gilmar Ferreira Mendes, Jurisdição constitucional, 2005, p. 146.

4
pedido de declaração de inconstitucionalidade, pelo Procurador-Geral da República,
do art. 5º da Lei de Biossegurança, que permitiu e disciplinou as pesquisas com
células-tronco embrionárias (ADIn 3.150); (ii) o pedido de declaração da
constitucionalidade da Resolução nº 7, de 2006, do Conselho Nacional de Justiça, que
vedou o nepotismo no âmbito do Poder Judiciário (ADC 12); (iii) o pedido de
suspensão dos dispositivos da Lei de Imprensa incompatíveis com a Constituição de
1988 (ADPF 130). No âmbito das ações individuais, a Corte se manifestou sobre
temas como quebra de sigilo judicial por CPI, demarcação de terras indígenas na
região conhecida como Raposa/Serra do Sol e uso de algemas, dentre milhares de
outros.

Ao se lançar o olhar para trás, pode-se constatar que a tendência


não é nova e é crescente. Nos últimos anos, o STF pronunciou-se ou iniciou a
discussão em temas como: (i) Políticas governamentais, envolvendo a
constitucionalidade de aspectos centrais da Reforma da Previdência (contribuição de
inativos) e da Reforma do Judiciário (criação do Conselho Nacional de Justiça); (ii)
Relações entre Poderes, com a determinação dos limites legítimos de atuação das
Comissões Parlamentares de Inquérito (como quebras de sigilos e decretação de
prisão) e do papel do Ministério Público na investigação criminal; (iii) Direitos
fundamentais, incluindo limites à liberdade de expressão no caso de racismo (Caso
Elwanger) e a possibilidade de progressão de regime para os condenados pela prática
de crimes hediondos. Deve-se mencionar, ainda, a importante virada da jurisprudência
no tocante ao mandado de injunção, em caso no qual se determinou a aplicação do
regime jurídico das greves no setor privado àquelas que ocorram no serviço público.

É importante assinalar que em todas as decisões referidas acima, o


Supremo Tribunal Federal foi provocado a se manifestar e o fez nos limites dos
pedidos formulados. O Tribunal não tinha a alternativa de conhecer ou não das ações,
de se pronunciar ou não sobre o seu mérito, uma vez preenchidos os requisitos de
cabimento. Não se pode imputar aos Ministros do STF a ambição ou a pretensão, em
face dos precedentes referidos, de criar um modelo juriscêntrico, de hegemonia

5
judicial. A judicialização, que de fato existe, não decorreu de uma opção ideológica,
filosófica ou metodológica da Corte. Limitou-se ela a cumprir, de modo estrito, o seu
papel constitucional, em conformidade com o desenho institucional vigente.
Pessoalmente, acho que o modelo tem nos servido bem.

III. O ATIVISMO JUDICIAL

A judicialização e o ativismo judicial são primos. Vêm, portanto,


da mesma família, freqüentam os mesmos lugares, mas não têm as mesmas origens.
Não são gerados, a rigor, pelas mesmas causas imediatas. A judicialização, no
contexto brasileiro, é um fato, uma circunstância que decorre do modelo constitucional
que se adotou, e não um exercício deliberado de vontade política. Em todos os casos
referidos acima, o Judiciário decidiu porque era o que lhe cabia fazer, sem alternativa.
Se uma norma constitucional permite que dela se deduza uma pretensão, subjetiva ou
objetiva, ao juiz cabe dela conhecer, decidindo a matéria. Já o ativismo judicial é uma
atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição,
expandindo o seu sentido e alcance. Normalmente ele se instala em situações de
retração do Poder Legislativo, de um certo descolamento entre a classe política e a
sociedade civil, impedindo que as demandas sociais sejam atendidas de maneira
efetiva.

A idéia de ativismo judicial está associada a uma participação


mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais,
com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes. A postura
ativista se manifesta por meio de diferentes condutas, que incluem: (i) a aplicação
direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e
independentemente de manifestação do legislador ordinário; (ii) a declaração de
inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em
critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição; (iii) a
imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de
políticas públicas.

6
As origens do ativismo judicial remontam à jurisprudência norte-
americana. Registre-se que o ativismo foi, em um primeiro momento, de natureza
conservadora. Foi na atuação proativa da Suprema Corte que os setores mais
reacionários encontraram amparo para a segregação racial (Dred Scott v. Sanford,
1857) e para a invalidação das leis sociais em geral (Era Lochner, 1905-1937),
culminando no confronto entre o Presidente Roosevelt e a Corte, com a mudança da
orientação jurisprudencial contrária ao intervencionismo estatal (West Coast v.
Parrish, 1937). A situação se inverteu completamente a partir da década de 50, quando
a Suprema Corte, sob a presidência de Warren (1953-1969) e nos primeiros anos da
Corte Burger (até 1973), produziu jurisprudência progressista em matéria de direitos
fundamentais, sobretudo envolvendo negros (Brown v. Board of Education, 1954),
acusados em processo criminal (Miranda v. Arizona, 1966) e mulheres (Richardson v.
Frontiero, 1973), assim como no tocante ao direito de privacidade (Griswold v.
Connecticut, 1965) e de interrupção da gestação (Roe v. Wade, 1973).

O oposto do ativismo é a auto-contenção judicial, conduta pela


qual o Judiciário procura reduzir sua interferência nas ações dos outros Poderes. Por
essa linha, juízes e tribunais (i) evitam aplicar diretamente a Constituição a situações
que não estejam no seu âmbito de incidência expressa, aguardando o pronunciamento
do legislador ordinário; (ii) utilizam critérios rígidos e conservadores para a declaração
de inconstitucionalidade de leis e atos normativos; e (iii) abstêm-se de interferir na
definição das políticas públicas. Até o advento da Constituição de 1988, essa era a
inequívoca linha de atuação do Judiciário no Brasil. A principal diferença
metodológica entre as duas posições está em que, em princípio, o ativismo judicial
procura extrair o máximo das potencialidades do texto constitucional, sem contudo
invadir o campo da criação livre do Direito. A auto-contenção, por sua vez, restringe o
espaço de incidência da Constituição em favor das instâncias tipicamente políticas.

O Judiciário, no Brasil recente, tem exibido, em determinadas


situações, uma posição claramente ativista. Não é difícil ilustrar a tese. Veja-se, em

7
primeiro lugar, um caso de aplicação direta da Constituição a situações não
expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do
legislador ordinário: o da fidelidade partidária. O STF, em nome do princípio
democrático, declarou que a vaga no Congresso pertence ao partido político. Criou,
assim, uma nova hipótese de perda de mandato parlamentar, além das que se
encontram expressamente previstas no texto constitucional. Por igual, a extensão da
vedação do nepotismo aos Poderes Legislativo e Executivo, com a expedição de
súmula vinculante, após o julgamento de um único caso, também assumiu uma
conotação quase-normativa. O que a Corte fez foi, em nome dos princípios da
moralidade e da impessoalidade, extrair uma vedação que não estava explicitada em
qualquer regra constitucional ou infraconstitucional expressa.

Outro exemplo, agora de declaração de inconstitucionalidade de


atos normativos emanados do Congresso, com base em critérios menos rígidos que os
de patente e ostensiva violação da Constituição: o caso da verticalização5. O STF
declarou a inconstitucionalidade da aplicação das novas regras sobre coligações
eleitorais à eleição que se realizaria em menos de uma ano da sua aprovação. Para
tanto, precisou exercer a competência – incomum na maior parte das democracias – de
declarar a inconstitucionalidade de uma emenda constitucional, dando à regra da
anterioridade anual da lei eleitoral (CF, art. 16) o status de cláusula pétrea. É possível
incluir nessa mesma categoria a declaração de inconstitucionalidade das normas legais
que estabeleciam cláusula de barreira, isto é, limitações ao funcionamento parlamentar
de partidos políticos que não preenchessem requisitos mínimos de desempenho
eleitoral.

Por fim, na categoria de ativismo mediante imposição de condutas


ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas, o

5
Cláudio Pereira de Souza Neto, Verticalização, cláusula de barreira e pluralismo político: uma
crítica consequencialista à decisão do STF na ADIN 3685, Interesse público 37, 2006.

8
exemplo mais notório provavelmente é o da distribuição de medicamentos e
determinação de terapias mediante decisão judicial. A matéria ainda não foi apreciada
a fundo pelo Supremo Tribunal Federal, exceto em pedidos de suspensão de
segurança. Todavia, nas Justiças estadual e federal em todo o país, multiplicam-se
decisões que condenam a União, o Estado ou o Município – por vezes, os três
solidariamente – a custear medicamentos e terapias que não constam das listas e
protocolos do Ministério da Saúde ou das Secretarias Estaduais e municipais. Em
alguns casos, os tratamentos exigidos são experimentais ou devem ser realizados no
exterior. Adiante se voltará a esse tema.

O binômio ativismo-autocontenção judicial está presente na maior


parte dos países que adotam o modelo de supremas cortes ou tribunais constitucionais
com competência para exercer o controle de constitucionalidade de leis e atos do
Poder Público. O movimento entre as duas posições costuma ser pendular e varia em
função do grau de prestígio dos outros dois Poderes. No Brasil dos últimos anos,
apesar de muitos vendavais, o Poder Executivo, titularizado pelo Presidente da
República, desfruta de inegável popularidade. Salvo por questões ligadas ao uso
excessivo de medidas provisórias e algumas poucas outras, é limitada a superposição
entre Executivo e Judiciário. Não assim, porém, no que toca ao Congresso Nacional.
Nos últimos anos, uma persistente crise de representatividade, legitimidade e
funcionalidade no âmbito do Legislativo tem alimentado a expansão do Judiciário
nessa direção, em nome da Constituição, com a prolação de decisões que suprem
omissões e, por vezes, inovam na ordem jurídica, com caráter normativo geral.

O fenômeno tem uma face positiva: o Judiciário está atendendo a


demandas da sociedade que não puderam ser satisfeitas pelo parlamento, em temas
como greve no serviço público, eliminação do nepotismo ou regras eleitorais. O
aspecto negativo é que ele exibe as dificuldades enfrentadas pelo Poder Legislativo – e
isso não se passa apenas no Brasil – na atual quadra histórica. A adiada reforma
política é uma necessidade dramática do país, para fomentar autenticidade partidária,
estimular vocações e reaproximar a classe política da sociedade civil. Decisões

9
ativistas devem ser eventuais, em momentos históricos determinados. Mas não há
democracia sólida sem atividade política intensa e saudável, nem tampouco sem
Congresso atuante e investido de credibilidade. Um exemplo de como a agenda do país
delocou-se do Legislativo para o Judiciário: as audiências públicas e o julgamento
acerca das pesquisas com células-tronco embrionárias, pelo Supremo Tribunal Federal,
tiveram muito mais visibilidade e debate público do que o processo legislativo que
resultou na elaboração da lei.

IV. OBJEÇÕES À CRESCENTE INTERVENÇÃO JUDICIAL NA VIDA BRASILEIRA

Três objeções podem ser opostas à judicialização e, sobretudo, ao


ativismo judicial no Brasil. Nenhuma delas infirma a importância de tal atuação, mas
todas merecem consideração séria. As críticas se concentram nos riscos para a
legitimidade democrática, na politização indevida da justiça e nos limites da
capacidade institucional do Judiciário.

1. Riscos para a legitimidade democrática

Os membros do Poder Judiciário – juízes, desembargadores e


ministros – não são agentes públicos eleitos. Embora não tenham o batismo da vontade
popular, magistrados e tribunais desempenham, inegavelmente, um poder político,
inclusive o de invalidar atos dos outros dois Poderes. A possibilidade de um órgão não
eletivo como o Supremo Tribunal Federal sobrepor-se a uma decisão do Presidente da
República – sufragado por mais de 40 milhões de votos – ou do Congresso – cujos 513
membros foram escolhidos pela vontade popular – é identificada na teoria
constitucional como dificuldade contramajoritária6. Onde estaria, então, sua
legitimidade para invalidar decisões daqueles que exercem mandato popular, que
foram escolhidos pelo povo Há duas justificativas: uma de natureza normativa e outra
filosófica.

6
Alexander Bickel, The least dangerous branch, 1986, p. 16 e s.

10
O fundamento normativo decorre, singelamente, do fato de que a
Constituição brasileira atribui expressamente esse poder ao Judiciário e,
especialmente, ao Supremo Tribunal Federal. A maior parte dos Estados democráticos
reserva uma parcela de poder político para ser exercida por agentes públicos que não
são recrutados pela via eleitoral, e cuja atuação é de natureza predominantemente
técnica e imparcial. De acordo com o conhecimento tradicional, magistrados não têm
vontade política própria. Ao aplicarem a Constituição e as leis, estão concretizando
decisões que foram tomadas pelo constituinte ou pelo legislador, isto é, pelos
representantes do povo. Essa afirmação, que reverencia a lógica da separação de
Poderes, deve ser aceita com temperamentos, tendo em vista que juízes e tribunais não
desempenham uma atividade puramente mecânica7. Na medida em que lhes cabe
atribuir sentido a expressões vagas, fluidas e indeterminadas, como dignidade da
pessoa humana, direito de privacidade ou boa-fé objetiva, tornam-se, em muitas
situações, co-participantes do processo de criação do Direito.

A justificação filosófica para a jurisdição constitucional e para a


atuação do Judiciário na vida institucional é um pouco mais sofisticada, mas ainda
assim fácil de compreender. O Estado constitucional democrático, como o nome
sugere, é produto de duas idéias que se acoplaram, mas não se confundem.
Constitucionalismo significa poder limitado e respeito aos direitos fundamentais. O
Estado de direito como expressão da razão. Já democracia signfica soberania popular,
governo do povo. O poder fundado na vontade da maioria. Entre democracia e
constitucionalismo, entre vontade e razão, entre direitos fundamentais e governo da
maioria, podem surgir situações de tensão e de conflitos aparentes.

Por essa razão, a Constituição deve desempenhar dois grandes


papéis. Um deles é o de estabelecer as regras do jogo democrático, assegurando a
participação política ampla, o governo da maioria e a alternância no poder. Mas a

7
Eros Roberto Grau, Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, 2002, p. 64;
Friedrich Müller, Métodos de trabalho do direito constitucional, 2005, p. 6-7.

11
democracia não se resume ao princípio majoritário. Se houver oito católicos e dois
muçulmanos em uma sala, não poderá o primeiro grupo deliberar jogar o segundo pela
janela, pelo simples fato de estar em maior número. Aí está o segundo grande papel de
uma Constituição: proteger valores e direitos fundamentais, mesmo que contra a
vontade circunstancial de quem tem mais votos. E o intérprete final da Constituição é
o Supremo Tribunal Federal. Seu papel é velar pelas regras do jogo democrático e
pelos direitos fundamentais, funcionando como um forum de princípios8 – não de
política – e de razão pública9 – não de doutrinas abrangentes, sejam ideologias
políticas ou concepções religiosas.

Portanto, a jurisdição constitucional bem exercida é antes uma


garantia para a democracia do que um risco. Impõe-se, todavia, uma observação final.
A importância da Constituição – e do Judiciário como seu intérprete maior – não pode
suprimir, por evidente, a política, o governo da maioria, nem o papel do Legislativo. A
Constituição não pode ser ubíqua10. Observados os valores e fins constitucionais, cabe
à lei, votada pelo parlamento e sancionada pelo Presidente, fazer as escolhas entre as
diferentes visões alternativas que caracterizam as sociedades pluralistas. Por essa
razão, o STF deve ser deferente para com as deliberações do Congresso. Com exceção
do que seja essencial para preservar a democracia e os direitos fundamentais, em
relação a tudo mais os protagonistas da vida política devem ser os que têm votos.
Juízes e tribunais não podem presumir demais de si próprios – como ninguém deve,
aliás, nessa vida – impondo suas escolhas, suas preferências, sua vontade. Só atuam,
legitimamente, quando sejam capazes de fundamentar racionalmente suas decisões,
com base na Constituição.

2. Risco de politização da Justiça

8
Ronald Dworkin, The forum of principle. In: A matter of principle, 1985.
9
John Rawls, O liberalismo político, 2000, p. 261.
10
Daniel Sarmento, Ubiqüidade constituconal: os dois lados da moeda, Revista de Direito do Estado
2:83, 2006. Embora ela se irradie por todo o sistema, e deva sempre estar presente em alguma
medida, ela não deve ser invocada para asfixiar a atuação do legislador.

12
Direito é política, proclamava ceticamente a teoria crítica do
Direito, denunciando a superestrutura jurídica como uma instância de poder e
dominação. Apesar do refluxo das concepções marxistas na quadra atual, é fora de
dúvida que já não subsiste no mundo contemporâneo a crença na idéia liberal-
positivista de objetividade plena do ordenamento e de neutralidade absoluta do
intérprete. Direito não é política. Somente uma visão distorcida do mundo e das
instituições faria uma equiparação dessa natureza, submetendo a noção do que é
correto e justo à vontade de quem detém o poder. Em uma cultura pós-positivista, o
Direito se aproxima da Ética, tornando-se instrumento da legitimidade, da justiça e da
realização da dignidade da pessoa humana. Poucas críticas são mais desqualificantes
para uma decisão judicial do que a acusação de que é política e não jurídica11. Não é
possível ignorar, porém, que a linha divisória entre Direito e Política, que existe
inegavelmente, nem sempre é nítida e certamente não é fixa12.

A ambigüidade refletida no parágrafo anterior impõe a


qualificação do que se entende por política. Direito é política no sentido de que (i) sua
criação é produto da vontade da maioria, que se manifesta na Constituição e nas leis;
(ii) sua aplicação não é dissociada da realidade política, dos efeitos que produz no
meio social e dos sentimentos e expectativas dos cidadãos; (iii) juízes não são seres
sem memória e sem desejos, libertos do próprio inconsciente e de qualquer ideologia
e, conseqüentemente, sua subjetividade há de interferir com os juízos de valor que
formula. A Constituição faz a interface entre o universo político e o jurídico, em um
esforço para submeter o poder às categorias que mobilizam o Direito, como a justiça, a
segurança e o bem-estar social. Sua interpretação, portanto, sempre terá uma dimensão
política, ainda que balizada pelas possibilidades e limites oferecidos pelo ordenamento
vigente.

11
Paul Kahn, Comparative constitutionalism in a new key, Michigan Law Review 101:2677, 2002-3, p.
2688-9.
12
V. Eduardo Mendonça, A inserção da jurisdição constitucional na democracia: algum lugar entre o
direito e a política, mimeografado, 2007.

13
Evidentemente, Direito não é política no sentido de admitir
escolhas livres, tendenciosas ou partidarizadas. O facciocismo é o grande inimigo do
constitucionalismo13. O banqueiro que doou para o partido do governo não pode ter
um regime jurídico diferente do que não doou. A liberdade de expressão de quem
pensa de acordo com a maioria não pode ser protegida de modo mais intenso do que a
de quem esteja com a minoria. O ministro do tribunal superior, nomeado pelo
Presidente Y, não pode ter a atitude a priori de nada decidir contra o interesse de quem
o investiu no cargo. Uma outra observação é pertinente aqui. Em rigor, uma decisão
judicial jamais será política no sentido de livre escolha, de discricionariedade plena.
Mesmo nas situações que, em tese, comportam mais de uma solução plausível, o juiz
deverá buscar a que seja mais correta, mais justa, à luz dos elementos do caso
concreto. O dever de motivação, mediante o emprego de argumentação racional e
persuasiva, é um traço distintivo relevante da função jurisdicional e dá a ela uma
específica legitimação14.

Quando se debateu a criação do primeiro tribunal constitucional


na Europa, Hans Kelsen e Carl Schmitt travaram um célebre e acirrado debate teórico
acerca de quem deveria ser o guardião da Constituição. Contrário à existência da
jurisdição constitucional, Schmitt afirmou que a pretensão de judicialização da política
iria se perverter em politização da justiça15. No geral, sua profecia não se realizou e a
fórmula fundada no controle judicial de constitucionalidade se espalhou pelo mundo
com grande sucesso. Naturalmente, as advertências feitas no capítulo anterior hão de
ser levadas em conta com seriedade, para que não se crie um modelo juriscêntrico e
elitista, conduzido por juízes filósofos.

Nessa linha, cabe reavivar que o juiz: (i) só deve agir em nome da
Constituição e das leis, e não por vontade política própria; (ii) deve ser deferente para

13
Paul Kahn, Comparative constitutionalism in a new key, Michigan Law Review 101:2677, 2002-
2003, p. 2705.
14
Scott M. Noveck, Is judicial review compatible with democracy?, Cardozo Public Law, Policy &
Ethics 6:401, 2008, p. 420.
15
Carl Schmitt, La defensa de la Constitución, 1998, p. 57.

14
com as decisões razoáveis tomadas pelo legislador, respeitando a presunção de
validade das leis; (iii) não deve perder de vista que, embora não eleito, o poder que
exerce é representativo (i.e, emana do povo e em seu nome deve ser exercido), razão
pela qual sua atuação deve estar em sintonia com o sentimento social, na medida do
possível. Aqui, porém, há uma sutileza: juízes não podem ser populistas e, em certos
casos, terão de atuar de modo contramajoritário. A conservação e a promoção dos
direitos fundamentais, mesmo contra a vontade das maiorias políticas, é uma condição
de funcionamento do constitucionalismo democrático. Logo, a intervenção do
Judiciário, nesses casos, sanando uma omissão legislativa ou invalidando uma lei
inconstitucional, dá-se a favor e não contra a democracia16.

3. A capacidade institucional do Judiciário e seus limites

A maior parte dos Estados democráticos do mundo se organizam


em um modelo de separação de Poderes. As funções estatais de legislar (criar o direito
positivo), administrar (concretizar o Direito e prestar serviços públicos) e julgar
(aplicar o Direito nas hipóteses de conflito) são atribuídas a órgãos distintos,
especializados e independentes. Nada obstante, Legislativo, Executivo e Judiciário
exercem um controle recíproco sobre as atividades de cada um, de modo a impedir o
surgimento de instâncias hegemônicas17, capazes de oferecer riscos para a democracia
e para os direitos fundamentais. Note-se que os três Poderes interpretam a
Constituição, e sua atuação deve respeitar os valores e promover os fins nela previstos.
No arranjo institucional em vigor, em caso de divergência na interpretação das normas
constitucionais ou legais, a palavra final é do Judiciário. Essa primazia não significa,
porém, que toda e qualquer matéria deva ser decidida em um tribunal. Nem muito
menos legitima a arrogância judicial.

16
Gustavo Binenbojm, A nova jurisdição constitucional brasileira, 2004, p. 246.
17
A expressão é do Ministro Celso de Mello. V. STF, Diário da Justiça da União, 12 maio 2000, MS
23.452/RJ, Rel. Min. Celso de Mello.

15
A doutrina constitucional contemporânea tem explorado duas
idéias que merecem registro: a de capacidades institucionais e a de efeitos sistêmicos18.
Capacidade institucional envolve a determinação de qual Poder está mais habilitado a
produzir a melhor decisão em determinada matéria. Temas envolvendo aspectos
técnicos ou científicos de grande complexidade podem não ter no juiz de direito o
árbitro mais qualificado, por falta de informação ou conhecimento específico.
Formalmente, os membros do Poder Judiciário sempre conservarão a sua competência
para o pronunciamento definitivo. Mas em situações como as descritas, normalmente
deverão eles prestigiar as manifestações do Legislativo ou do Executivo, cedendo o
passo para juízos discricionários dotados de razoabilidade. Em questões como
demarcação de terras indígenas ou transposição de rios, em que tenha havido estudos
técnicos e científicos adequados, a questão da capacidade institucional deve ser
sopesada de maneira criteriosa.

Também o risco de efeitos sistêmicos imprevisíveis e indesejados


pode recomendar, em certos casos, uma posição de cautela e deferência por parte do
Judiciário. O juiz, por vocação e treinamento, normalmente estará preparado para
realizar a justiça do caso concreto, a microjustiça19. Ele nem sempre dispõe das
informações, do tempo e mesmo do conhecimento para avaliar o impacto de
determinadas decisões, proferidas em processos individuais, sobre a realidade de um
segmento econômico ou sobre a prestação de um serviço público. Tampouco é
passível de responsabilização política por escolhas desastradas. Exemplo emblemático
nessa matéria tem sido o setor de saúde. Ao lado de intervenções necessárias e
meritórias, tem havido uma profusão de decisões extravagantes ou emocionais em
matéria de medicamentos e terapias, que põem em risco a própria continuidade das
políticas públicas de saúde, desorganizando a atividade administrativa e

18
V. Cass Sunstein e Adrian Vermeulle, Intepretation and institutions, Public Law and Legal Theory
Working Paper No. 28, 2002.
19
Ana Paula de Barcellos, Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos
fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático, Revista de Direito
do Estado 3:17, 2006, p. 34.

16
comprometendo a alocação dos escassos recursos públicos20. Em suma: o Judiciário
quase sempre pode, mas nem sempre deve interferir. Ter uma avaliação criteriosa da
própria capacidade institucional e optar por não exercer o poder, em auto-limitação
espontânea, antes eleva do que diminui.

V. CONCLUSÃO

A judicialização e o ativismo são traços marcantes na paisagem


jurídica brasileira dos últimos anos. Embora próximos, são fenômenos distintos. A
judicialização decorre do modelo de Constituição analítica e do sistema de controle de
constitucionalidade abrangente adotados no Brasil, que permitem que discussões de
largo alcance político e moral sejam trazidas sob a forma de ações judiciais. Vale
dizer: a judicialização não decorre da vontade do Judiciário, mas sim do constituinte.

O ativismo judicial, por sua vez, expressa uma postura do


intérprete, um modo proativo e expansivo de interpretar a Constituição,
potencializando o sentido e alcance de suas normas, para ir além do legislador
ordinário. Trata-se de um mecanismo para contornar, bypassar o processo político
majoritário quando ele tenha se mostrado inerte, emperrado ou incapaz de produzir
consenso. Os riscos da judicialização e, sobretudo, do ativismo envolvem a
legitimidade democrática, a politização da justiça e a falta de capacidade institucional
do Judiciário para decidir determinadas matérias.

Os riscos para a legitimidade democrática, em razão de os


membros do Poder Judiciário não serem eleitos, se atenuam na medida em que juízes e
tribunais se atenham à aplicação da Constituição e das leis. Não atuam eles por
vontade política própria, mas como representantes indiretos da vontade popular. É
certo que diante de cláusulas constitucionais abertas, vagas ou fluidas – como

20
Luís Roberto Barroso, Da falta de efetividade à constitucionalização excessiva: direito à saúde,
fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. In: Temas de direito
constitucional, tomo IV, 2009, no prelo.

17
dignidade da pessoa humana, eficiência ou impacto ambiental –, o poder criativo do
intérprete judicial se expande a um nível quase normativo. Porém, havendo
manifestação do legislador, existindo lei válida votada pelo Congresso concretizando
uma norma constitucional ou dispondo sobre matéria de sua competência, deve o juiz
acatá-la e aplicá-la. Ou seja: dentre diferentes possibilidades razoáveis de interpretar a
Constituição, as escolhas do legislador devem prevalecer, por ser ele quem detém o
batismo do voto popular.

Os riscos da politização da justiça, sobretudo da justiça


constitucional, não podem ser totalmente eliminados. A Constituição é, precisamente,
o documento que transforma o poder constituinte em poder constituído, isto é, Política
em Direito. Essa interface entre dois mundos dá à interpretação constitucional uma
inexorável dimensão política. Nada obstante isso, ela constitui uma tarefa jurídica.
Sujeita-se, assim, aos cânones de racionalidade, objetividade e motivação das decisões
judiciais, devendo reverência à dogmática jurídica, aos princípios de interpretação e
aos precedentes21. Uma corte constitucional não deve ser cega ou indiferente às
conseqüências políticas de suas decisões, inclusive para impedir resultados injustos ou
danosos ao bem comum ou aos direitos fundamentais. Mas somente pode agir dentro
das possibilidades e dos limites abertos pelo ordenamento jurídico.

No tocante à capacidade institucional e aos efeitos sistêmicos, o


Judiciário deverá verificar se, em relação à matéria tratada, um outro Poder, órgão ou
entidade não teria melhor qualificação para decidir. Por exemplo: o traçado de uma
estrada, a ocorrência ou não de concentração econômica ou as medidas de segurança
para transporte de gás são questões que envolvem conhecimento específico e
discricionariedade técnica. Em matérias como essas, em regra, a posição do Judiciário
deverá ser a de deferência para com as valorações feitas pela instância especializada,
desde que possuam razoabilidade e tenham observado o procedimento adequado.

21
Um avanço civilizatório que ainda precisamos alcançar é o do respeito amplo aos precedentes,
como fator de segurança jurídica, isonomia e eficiência. Sobre o tema, v. Patrícia Perrone Campos
Mello, Precedente: o desenvolvimento judicial do direito no constitucionalismo brasileiro, 2007.

18
Naturalmente, se houver um direito fundamental sendo vulnerado ou clara afronta a
alguma outra norma constitucional, o quadro se modifica. Deferência não significa
abdicação de competência.

Em suma: o Judiciário é o guardião da Constituição e deve fazê-la


valer, em nome dos direitos fundamentais e dos valores e procedimentos democráticos,
inclusive em face dos outros Poderes. Eventual atuação contramajoritária, nessas
hipóteses, se dará a favor, e não contra a democracia. Nas demais situações, o
Judiciário e, notadamente, o Supremo Tribunal Federal deverão acatar escolhas
legítimas feitas pelo legislador, ser deferentes para com o exercício razoável de
discricionariedade técnica pelo administrador, bem como disseminar uma cultura de
respeito aos precedentes, o que contribui para a integridade22, segurança jurídica,
isonomia e eficiência do sistema. Por fim, suas decisões deverão respeitar sempre as
fronteiras procedimentais e substantivas do Direito: racionaliade, motivação, correção
e justiça.

Uma nota final: o ativismo judicial, até aqui, tem sido parte da
solução, e não do problema. Mas ele é um antibiótico poderoso, cujo uso deve ser
eventual e controlado. Em dose excessiva, há risco de se morrer da cura. A expansão
do Judiciário não deve desviar a atenção da real disfunção que aflige a democracia
brasileira: a crise de representatividade, legitimidade e funcionalidade do Poder
Legislativo. Precisamos de reforma política. E essa não pode ser feita por juízes.

22
Ronald Dworkin, O império do direito, 1999, p. 271 e s.

19

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