1 9 Barroso
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DEMOCRÁTICA
I. INTRODUÇÃO
1
Professor Titular de Direito Constitucional, Doutor e Livre-Docente – Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (UERJ). Mestre pela Yale Law School. Autor dos livros Curso de Direito Constitucional
Contemporâneo e Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro, dentre outros. Advogado.
os Estados Unidos fazerem testes com mísseis em solo canadense. Nos Estados
Unidos, o último capítulo da eleição presidencial de 2000 foi escrito pela Suprema
Corte, no julgamento de Bush v. Gore. Em Israel, a Suprema Corte decidiu sobre a
compatibilidade, com a Constituição e com atos internacionais, da construção de um
muro na fronteira com o território palestino. A Corte Constitucional da Turquia tem
desempenhado um papel vital na preservação de um Estado laico, protegendo-o do
avanço do fundamentalismo islâmico. Na Hungria e na Argentina, planos econômicos
de largo alcance tiveram sua validade decidida pelas mais altas Cortes. Na Coréia, a
Corte Constitucional restituiu o mandato de um presidente que havia sido destituído
por impeachment2.
2
Ran Hirschl, The judicialization of politics. In: Whittington, Kelemen e Caldeira (eds.), The Oxford
Handbook of Law and Politics, 2008, p. 124-5.
2
Judicialização significa que algumas questões de larga
repercussão política ou social estão sendo decididas por órgãos do Poder Judiciário, e
não pelas instâncias políticas tradicionais: o Congresso Nacional e o Poder Executivo
– em cujo âmbito se encontram o Presidente da República, seus ministérios e a
administração pública em geral. Como intuitivo, a judicialização envolve uma
transferência de poder para juízes e tribunais, com alterações significativas na
linguagem, na argumentação e no modo de participação da sociedade. O fenômeno
tem causas múltiplas. Algumas delas expressam uma tendência mundial; outras estão
diretamente relacionadas ao modelo institucional brasileiro. A seguir, uma tentativa de
sistematização da matéria.
3
potencializada entre nós com a Constituição de 1988. A Carta brasileira é analítica,
ambiciosa3, desconfiada do legislador. Como intuitivo, constitucionalizar uma matéria
significa transformar Política em Direito. Na medida em que uma questão – seja um
direito individual, uma prestação estatal ou um fim público – é disciplinada em uma
norma constitucional, ela se transforma, potencialmente, em uma pretensão jurídica,
que pode ser formulada sob a forma de ação judicial. Por exemplo: se a Constituição
assegura o direito de acesso ao ensino fundamental ou ao meio-ambiente equilibrado, é
possível judicializar a exigência desses dois direitos, levando ao Judiciário o debate
sobre ações concretas ou políticas públicas praticadas nessas duas áreas.
3
Oscar Vilhena Vieira, Supremocracia, Revista de Direito do Estado 12, 2008, no prelo.
4
Gilmar Ferreira Mendes, Jurisdição constitucional, 2005, p. 146.
4
pedido de declaração de inconstitucionalidade, pelo Procurador-Geral da República,
do art. 5º da Lei de Biossegurança, que permitiu e disciplinou as pesquisas com
células-tronco embrionárias (ADIn 3.150); (ii) o pedido de declaração da
constitucionalidade da Resolução nº 7, de 2006, do Conselho Nacional de Justiça, que
vedou o nepotismo no âmbito do Poder Judiciário (ADC 12); (iii) o pedido de
suspensão dos dispositivos da Lei de Imprensa incompatíveis com a Constituição de
1988 (ADPF 130). No âmbito das ações individuais, a Corte se manifestou sobre
temas como quebra de sigilo judicial por CPI, demarcação de terras indígenas na
região conhecida como Raposa/Serra do Sol e uso de algemas, dentre milhares de
outros.
5
judicial. A judicialização, que de fato existe, não decorreu de uma opção ideológica,
filosófica ou metodológica da Corte. Limitou-se ela a cumprir, de modo estrito, o seu
papel constitucional, em conformidade com o desenho institucional vigente.
Pessoalmente, acho que o modelo tem nos servido bem.
6
As origens do ativismo judicial remontam à jurisprudência norte-
americana. Registre-se que o ativismo foi, em um primeiro momento, de natureza
conservadora. Foi na atuação proativa da Suprema Corte que os setores mais
reacionários encontraram amparo para a segregação racial (Dred Scott v. Sanford,
1857) e para a invalidação das leis sociais em geral (Era Lochner, 1905-1937),
culminando no confronto entre o Presidente Roosevelt e a Corte, com a mudança da
orientação jurisprudencial contrária ao intervencionismo estatal (West Coast v.
Parrish, 1937). A situação se inverteu completamente a partir da década de 50, quando
a Suprema Corte, sob a presidência de Warren (1953-1969) e nos primeiros anos da
Corte Burger (até 1973), produziu jurisprudência progressista em matéria de direitos
fundamentais, sobretudo envolvendo negros (Brown v. Board of Education, 1954),
acusados em processo criminal (Miranda v. Arizona, 1966) e mulheres (Richardson v.
Frontiero, 1973), assim como no tocante ao direito de privacidade (Griswold v.
Connecticut, 1965) e de interrupção da gestação (Roe v. Wade, 1973).
7
primeiro lugar, um caso de aplicação direta da Constituição a situações não
expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do
legislador ordinário: o da fidelidade partidária. O STF, em nome do princípio
democrático, declarou que a vaga no Congresso pertence ao partido político. Criou,
assim, uma nova hipótese de perda de mandato parlamentar, além das que se
encontram expressamente previstas no texto constitucional. Por igual, a extensão da
vedação do nepotismo aos Poderes Legislativo e Executivo, com a expedição de
súmula vinculante, após o julgamento de um único caso, também assumiu uma
conotação quase-normativa. O que a Corte fez foi, em nome dos princípios da
moralidade e da impessoalidade, extrair uma vedação que não estava explicitada em
qualquer regra constitucional ou infraconstitucional expressa.
5
Cláudio Pereira de Souza Neto, Verticalização, cláusula de barreira e pluralismo político: uma
crítica consequencialista à decisão do STF na ADIN 3685, Interesse público 37, 2006.
8
exemplo mais notório provavelmente é o da distribuição de medicamentos e
determinação de terapias mediante decisão judicial. A matéria ainda não foi apreciada
a fundo pelo Supremo Tribunal Federal, exceto em pedidos de suspensão de
segurança. Todavia, nas Justiças estadual e federal em todo o país, multiplicam-se
decisões que condenam a União, o Estado ou o Município – por vezes, os três
solidariamente – a custear medicamentos e terapias que não constam das listas e
protocolos do Ministério da Saúde ou das Secretarias Estaduais e municipais. Em
alguns casos, os tratamentos exigidos são experimentais ou devem ser realizados no
exterior. Adiante se voltará a esse tema.
9
ativistas devem ser eventuais, em momentos históricos determinados. Mas não há
democracia sólida sem atividade política intensa e saudável, nem tampouco sem
Congresso atuante e investido de credibilidade. Um exemplo de como a agenda do país
delocou-se do Legislativo para o Judiciário: as audiências públicas e o julgamento
acerca das pesquisas com células-tronco embrionárias, pelo Supremo Tribunal Federal,
tiveram muito mais visibilidade e debate público do que o processo legislativo que
resultou na elaboração da lei.
6
Alexander Bickel, The least dangerous branch, 1986, p. 16 e s.
10
O fundamento normativo decorre, singelamente, do fato de que a
Constituição brasileira atribui expressamente esse poder ao Judiciário e,
especialmente, ao Supremo Tribunal Federal. A maior parte dos Estados democráticos
reserva uma parcela de poder político para ser exercida por agentes públicos que não
são recrutados pela via eleitoral, e cuja atuação é de natureza predominantemente
técnica e imparcial. De acordo com o conhecimento tradicional, magistrados não têm
vontade política própria. Ao aplicarem a Constituição e as leis, estão concretizando
decisões que foram tomadas pelo constituinte ou pelo legislador, isto é, pelos
representantes do povo. Essa afirmação, que reverencia a lógica da separação de
Poderes, deve ser aceita com temperamentos, tendo em vista que juízes e tribunais não
desempenham uma atividade puramente mecânica7. Na medida em que lhes cabe
atribuir sentido a expressões vagas, fluidas e indeterminadas, como dignidade da
pessoa humana, direito de privacidade ou boa-fé objetiva, tornam-se, em muitas
situações, co-participantes do processo de criação do Direito.
7
Eros Roberto Grau, Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, 2002, p. 64;
Friedrich Müller, Métodos de trabalho do direito constitucional, 2005, p. 6-7.
11
democracia não se resume ao princípio majoritário. Se houver oito católicos e dois
muçulmanos em uma sala, não poderá o primeiro grupo deliberar jogar o segundo pela
janela, pelo simples fato de estar em maior número. Aí está o segundo grande papel de
uma Constituição: proteger valores e direitos fundamentais, mesmo que contra a
vontade circunstancial de quem tem mais votos. E o intérprete final da Constituição é
o Supremo Tribunal Federal. Seu papel é velar pelas regras do jogo democrático e
pelos direitos fundamentais, funcionando como um forum de princípios8 – não de
política – e de razão pública9 – não de doutrinas abrangentes, sejam ideologias
políticas ou concepções religiosas.
8
Ronald Dworkin, The forum of principle. In: A matter of principle, 1985.
9
John Rawls, O liberalismo político, 2000, p. 261.
10
Daniel Sarmento, Ubiqüidade constituconal: os dois lados da moeda, Revista de Direito do Estado
2:83, 2006. Embora ela se irradie por todo o sistema, e deva sempre estar presente em alguma
medida, ela não deve ser invocada para asfixiar a atuação do legislador.
12
Direito é política, proclamava ceticamente a teoria crítica do
Direito, denunciando a superestrutura jurídica como uma instância de poder e
dominação. Apesar do refluxo das concepções marxistas na quadra atual, é fora de
dúvida que já não subsiste no mundo contemporâneo a crença na idéia liberal-
positivista de objetividade plena do ordenamento e de neutralidade absoluta do
intérprete. Direito não é política. Somente uma visão distorcida do mundo e das
instituições faria uma equiparação dessa natureza, submetendo a noção do que é
correto e justo à vontade de quem detém o poder. Em uma cultura pós-positivista, o
Direito se aproxima da Ética, tornando-se instrumento da legitimidade, da justiça e da
realização da dignidade da pessoa humana. Poucas críticas são mais desqualificantes
para uma decisão judicial do que a acusação de que é política e não jurídica11. Não é
possível ignorar, porém, que a linha divisória entre Direito e Política, que existe
inegavelmente, nem sempre é nítida e certamente não é fixa12.
11
Paul Kahn, Comparative constitutionalism in a new key, Michigan Law Review 101:2677, 2002-3, p.
2688-9.
12
V. Eduardo Mendonça, A inserção da jurisdição constitucional na democracia: algum lugar entre o
direito e a política, mimeografado, 2007.
13
Evidentemente, Direito não é política no sentido de admitir
escolhas livres, tendenciosas ou partidarizadas. O facciocismo é o grande inimigo do
constitucionalismo13. O banqueiro que doou para o partido do governo não pode ter
um regime jurídico diferente do que não doou. A liberdade de expressão de quem
pensa de acordo com a maioria não pode ser protegida de modo mais intenso do que a
de quem esteja com a minoria. O ministro do tribunal superior, nomeado pelo
Presidente Y, não pode ter a atitude a priori de nada decidir contra o interesse de quem
o investiu no cargo. Uma outra observação é pertinente aqui. Em rigor, uma decisão
judicial jamais será política no sentido de livre escolha, de discricionariedade plena.
Mesmo nas situações que, em tese, comportam mais de uma solução plausível, o juiz
deverá buscar a que seja mais correta, mais justa, à luz dos elementos do caso
concreto. O dever de motivação, mediante o emprego de argumentação racional e
persuasiva, é um traço distintivo relevante da função jurisdicional e dá a ela uma
específica legitimação14.
Nessa linha, cabe reavivar que o juiz: (i) só deve agir em nome da
Constituição e das leis, e não por vontade política própria; (ii) deve ser deferente para
13
Paul Kahn, Comparative constitutionalism in a new key, Michigan Law Review 101:2677, 2002-
2003, p. 2705.
14
Scott M. Noveck, Is judicial review compatible with democracy?, Cardozo Public Law, Policy &
Ethics 6:401, 2008, p. 420.
15
Carl Schmitt, La defensa de la Constitución, 1998, p. 57.
14
com as decisões razoáveis tomadas pelo legislador, respeitando a presunção de
validade das leis; (iii) não deve perder de vista que, embora não eleito, o poder que
exerce é representativo (i.e, emana do povo e em seu nome deve ser exercido), razão
pela qual sua atuação deve estar em sintonia com o sentimento social, na medida do
possível. Aqui, porém, há uma sutileza: juízes não podem ser populistas e, em certos
casos, terão de atuar de modo contramajoritário. A conservação e a promoção dos
direitos fundamentais, mesmo contra a vontade das maiorias políticas, é uma condição
de funcionamento do constitucionalismo democrático. Logo, a intervenção do
Judiciário, nesses casos, sanando uma omissão legislativa ou invalidando uma lei
inconstitucional, dá-se a favor e não contra a democracia16.
16
Gustavo Binenbojm, A nova jurisdição constitucional brasileira, 2004, p. 246.
17
A expressão é do Ministro Celso de Mello. V. STF, Diário da Justiça da União, 12 maio 2000, MS
23.452/RJ, Rel. Min. Celso de Mello.
15
A doutrina constitucional contemporânea tem explorado duas
idéias que merecem registro: a de capacidades institucionais e a de efeitos sistêmicos18.
Capacidade institucional envolve a determinação de qual Poder está mais habilitado a
produzir a melhor decisão em determinada matéria. Temas envolvendo aspectos
técnicos ou científicos de grande complexidade podem não ter no juiz de direito o
árbitro mais qualificado, por falta de informação ou conhecimento específico.
Formalmente, os membros do Poder Judiciário sempre conservarão a sua competência
para o pronunciamento definitivo. Mas em situações como as descritas, normalmente
deverão eles prestigiar as manifestações do Legislativo ou do Executivo, cedendo o
passo para juízos discricionários dotados de razoabilidade. Em questões como
demarcação de terras indígenas ou transposição de rios, em que tenha havido estudos
técnicos e científicos adequados, a questão da capacidade institucional deve ser
sopesada de maneira criteriosa.
18
V. Cass Sunstein e Adrian Vermeulle, Intepretation and institutions, Public Law and Legal Theory
Working Paper No. 28, 2002.
19
Ana Paula de Barcellos, Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos
fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático, Revista de Direito
do Estado 3:17, 2006, p. 34.
16
comprometendo a alocação dos escassos recursos públicos20. Em suma: o Judiciário
quase sempre pode, mas nem sempre deve interferir. Ter uma avaliação criteriosa da
própria capacidade institucional e optar por não exercer o poder, em auto-limitação
espontânea, antes eleva do que diminui.
V. CONCLUSÃO
20
Luís Roberto Barroso, Da falta de efetividade à constitucionalização excessiva: direito à saúde,
fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. In: Temas de direito
constitucional, tomo IV, 2009, no prelo.
17
dignidade da pessoa humana, eficiência ou impacto ambiental –, o poder criativo do
intérprete judicial se expande a um nível quase normativo. Porém, havendo
manifestação do legislador, existindo lei válida votada pelo Congresso concretizando
uma norma constitucional ou dispondo sobre matéria de sua competência, deve o juiz
acatá-la e aplicá-la. Ou seja: dentre diferentes possibilidades razoáveis de interpretar a
Constituição, as escolhas do legislador devem prevalecer, por ser ele quem detém o
batismo do voto popular.
21
Um avanço civilizatório que ainda precisamos alcançar é o do respeito amplo aos precedentes,
como fator de segurança jurídica, isonomia e eficiência. Sobre o tema, v. Patrícia Perrone Campos
Mello, Precedente: o desenvolvimento judicial do direito no constitucionalismo brasileiro, 2007.
18
Naturalmente, se houver um direito fundamental sendo vulnerado ou clara afronta a
alguma outra norma constitucional, o quadro se modifica. Deferência não significa
abdicação de competência.
Uma nota final: o ativismo judicial, até aqui, tem sido parte da
solução, e não do problema. Mas ele é um antibiótico poderoso, cujo uso deve ser
eventual e controlado. Em dose excessiva, há risco de se morrer da cura. A expansão
do Judiciário não deve desviar a atenção da real disfunção que aflige a democracia
brasileira: a crise de representatividade, legitimidade e funcionalidade do Poder
Legislativo. Precisamos de reforma política. E essa não pode ser feita por juízes.
22
Ronald Dworkin, O império do direito, 1999, p. 271 e s.
19