Análise terminável e interminável (1937) (2)

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Análise terminável e interminável (1937)

Trata-se, junto do artigo seguinte, “Construções em


análise”, dos dois últimos artigos estritamente técnicos
escritos por Freud.
Como se verá, neste artigo Freud aborda o problema da
duração de uma análise, que se liga a outro, de abrangência
muito maior, a saber, o quanto o tratamento psicanalítico
consegue ou não curar definitivamente um paciente de sua
neurose, a saber, de um conflito entre seu ego e um instinto.

Parte I

Freud inicia o item dizendo taxativamente que livrar


alguém de seus sintomas, inibições e anormalidades
psíquicas é tarefa que demanda muito tempo.
Critica, nesse aspecto, as tentativas dos médicos de
encurtarem o tratamento de seus pacientes, postura por trás
da qual se revela um traço de desprezo dos médicos para
com as enfermidades psíquicas de seus doentes, que
encarava as neuroses como “consequências importunas de
danos invisíveis”.
Freud cita um caso desse, de tentativa de simplificar as
causas das neuroses, para ofertar uma cura rápida ao
doente, a teorização de Otto Rank acerca de que a fonte de
toda psiconeurose seria o trauma do nascimento, o primeiro
grande trauma pelo qual passam as crianças.
Sua esperança, nesse aspecto, era que, podendo lidar
com este trauma primevo nos pacientes, que os teria levado,
em crianças, a se tornarem excessivamente apegadas e
fixadas em suas mães, suas neuroses estariam curadas.
A colocação de tal teoria em prática não curou os
doentes, sendo tão somente, segundo Freud, reflexo do
excessivo otimismo e ideal de prosperidade americano, que
começou a grassar no mundo arrasado pelo pós-guerra.
Freud cita que ele próprio tentou acelerar o tratamento
de um paciente (Homem dos Lobos - Serguei
Constantinovitch Pankejeff), fixando-lhe arbitrariamente uma
data de término, já que o paciente dava mostras de estar
bastante confortável na situação de um tratamento
indefinido que Freud percebia estar completamente
paralisado, o que significava neste caso, o paciente não
trazer mais nenhuma reminiscência infantil que pudessem
explicar seus sintomas, nem alterar o estado deles em sua
vida atual. Anteriormente a isso, uns poucos anos de análise
haviam devolvido a ele sua capacidade de se interessar pela
vida e tornar mais saudáveis as relações com as pessoas que
lhe eram mais importantes, até que o progresso se
interrompeu.
A propósito, esta foi a análise mais longa de Freud,
durando de janeiro de 1914 a junho de 1914, acrescido de um
período suplementar, entre novembro de 1919 a fevereiro de
1920.
O resultado dessa pressão, assim que o paciente se
convenceu de que Freud falava sério, foi o tratamento voltar
a progredir e o paciente se lembrar de todas as
reminiscências infantis que faltavam para compreender sua
neurose primitiva e dominar a atual, o que levou Freud,
erroneamente, como se verá mais à frente, que o paciente
estava curado.
Passados quinze anos, seu bom estado de saúde
continuou a ser interrompido por crises de doença,
ramificações de sua neurose perene, o que o levou a
continuar a ser analisado por uma das pupilas de Freud
chamada Ruth Mack Brunswick. Tais crises, parte eram fruto
de resquícios de transferência que ainda havia restado e,
parte, fragmentos da história infantil do paciente que não
tinham vindo à luz enquanto Freud o estava analisando e
que, agora, “desprendiam-se como suturas após uma
operação ou pequenos fragmentos de ossos necrosados”.
Freud usou este recurso de fixar um limite de tempo
para o fim da análise também com outros pacientes.
Sua conclusão sobre tal inovação técnica foi de que
pode dar certo, desde que se acerte o tempo correto. Mesmo
assim, não dá para assegurar que ao final deste tempo a
tarefa não poderá ser dada por completo, haja vista que
partes da neurose que ficaram sepultadas poderiam
demandar mais tempo do que o analista previu para virem à
luz, apesar do analista não poder voltar atrás em sua
palavra, o que forçaria o paciente a continuar sua análise
com outro. Mudança que envolve perda de tempo e o
abandono dos frutos do trabalho já realizado.

Parte II

Freud pontua neste item que a discussão de como


acelerar o lento progresso de uma análise conduz à outra,
muito mais importante, a saber, existe a possibilidade de se
levar uma análise ao término.
Do ponto de vista clínico, considera-se uma análise
acabada quando, primeiro, o paciente não está mais
sofrendo de seus sintomas, tendo conseguido superar suas
ansiedades e inibições, e segundo, o analista julga ter
tornado consciente tanto material reprimido, ter explicado
tanta coisa ininteligível e ter vencido tantas resistências
internas que não vê o risco de uma recaída no processo
patológico.
Já o outro sentido de término de uma análise é bem
mais ambicioso e considera que o analista já exerceu uma
influência de tão grande consequência sobre o paciente, que
não espera mais nenhuma mudança sobre este, caso a sua
análise seja continuada.
Tal gratificante desfecho ocorre em alguns casos, mas
não em todos, e talvez não na maioria.
Para isso, depender-se-á que o ego do paciente não
tenha sofrido distorções e alterações tão drásticas e
irreparáveis em suas lutas defensivas contra os instintos e o
mundo externo e que a etiologia de seu distúrbio tenha sido
essencialmente traumática.
Vejamos isso em dois exemplos que nos permitem
comparar a etiologia (causa) da doença psíquica em cada
uma destas pessoas.
Um paciente criado numa família bastante estruturada
e que cultiva tradições árabes desenvolveu aos cinco anos
uma intensa fobia de alimentos pastosos que ele associa à
fezes, levando-o a uma severa restrição alimentar. Sofreu na
ocasião de pesadelos frequentes onde ambos os pais
morriam e ele ficava sozinho. Tornou-se cada vez mais
irritadiço, nervoso e agressivo na escola e com os amigos,
sintomas que se acompanhavam de disfunções intestinais
que só se agravaram com o tempo: defecava nas calças,
tinha diarréias e constipação. Descobriu-se na análise que
nesse período ele cultivava rituais obsessivos secretos
ligados à tudo que se relacionava à fezes e “sujeira”, como,
por exemplo, cheirar os dedos após cada vez que defecava, e
esfregar os dedos dos pés para depois cheirar. Com o tempo
surgiram ideias delirantes persistentes que apareceram em
sonhos nos quais ele se via impedido de se alimentar em
restaurantes temendo “haver pedaços de fezes” nas comidas
servidas. Foi uma criança extremamente apegado à mãe e,
até a adolescência, indiferente ao pai, após a qual passou a
nutrir um ódio mortal dele.
Outra paciente desenvolveu na infância o hábito de
criar histórias maravilhosas e extraordinárias em sua mente,
o que fazia avistando as luzes dos apartamentos do prédio
em frente ao lugar onde passou a infância bastante solitária,
imaginando cada vida que morava ali. Filha única de uma
mulher correta que saía cedo e voltava à noite trabalhando
como costureira para poder criá-la. O pai, nordestino, é um
homem bastante inventivo e sonhador, com o qual ela teve
pouco contato, já que abandonou sua mãe assim que
engravidou. O sintoma de escapar à realidade foi se
tranformando na adolescência e vida adulta, culminando em
uma jovem extremamente romântica e sonhadora, que
passava horas olhando pela janela e se entretendo com o
doce pensamento de onde estaria o seu marido e pai de seus
filhos naquele exato momento. Na vida adulta, permanece
entretendo-se de seu mundo interno desolado e solitário,
envolvendo-se em muitas tarefas ao mesmo tempo e
estudando de forma obsessiva.
Conforme se vê nos exemplos clínicos citados, quanto
mais forte for o fator constitucional, mais prontamente
fixações deixarão atrás de si distúrbios desenvolvimentais.
Assim, uma força descomunal do instinto e uma
alteração desfavorável do ego são fatores prejudiciais à
eficácia da análise e podem tornar interminável sua duração.
Freud cita sobre isso dois exemplos.
O primeiro, de seu paciente e também analista Ferenczi,
que procurou Freud para analisar o que considerava um
traço neurótico já que se via impedido, por alguma tendência
obscura, de se realizar no amor, ficando com mulheres a
quem amava, além de ser impelido à competir e tornar
inimigos os homens que admirava. A análise foi bastante
bem sucedida a tal ponto que ele se casou com a mulher que
amava e conseguiu se tornar amigo e mestre de seus antes
rivais.
Isso até o ponto em que, caindo novamente num estado
de loucura, passou a acusar Freud de não ter enxergado
aspectos da sua transferência negativa para com ele, o que
significou que ele tinha recaído de novo em sua tendência de
tornar inimigo e competidor homens que admirava, como era
o caso de Freud.
Outro exemplo é o de uma moça histérica que não
conseguia andar por dores incapacitantes nas pernas. Após
um tempo de tratamento, o problema foi removido, fazendo
com que ela pudesse voltar a participar da vida. Neste
período, ela suportou heroicamente todos os dissabores que
a vida lhe reservou: perdas financeiras na família e a
renúncia, cada vez mais real, à quaisquer chances de ser feliz
no amor e no casamento. Doze anos após sua “cura”,
descobriu-se nela um mioma, que lhe obrigou a uma
histerectomia completa. Tal golpe a fez voltar a cair doente, e
desta vez para sempre. Enamorou-se do cirurgião e
afundou-se em fantasias masoquistas sobre as temíveis
alterações dentro de si, sob as quais ocultava seu romance,
mostrando-se inacessível a qualquer nova tentativa de
análise.
Freud aponta que, neste caso, é bastante provável que
se o destino desta mulher tivesse sido um pouco mais
bondoso com ela, não lhe impingindo um novo trauma,
provavelmente sua neurose não teria surgido novamente.
Conclui-se disso que não é possível predizer se o
tratamento foi bem sucedido ou não, sem antes o paciente
estar há alguns bons anos sem ele, suportando a vida
sozinho. Outra conclusão é que, deve-se contar com o fator
sorte: um destino com muitas tragédias pode levar a pessoa
a se refugiar em sua neurose infantil, haja vista que as forças
pulsionais parecem mesmo ser indestrutíveis.
Pode-se, com alguma sorte e muito trabalho,
amansá-las, mas não torná-las permanentemente
inoperantes, aspecto que tornaria o trabalho de análise,
nesse aspecto, interminável.
Exceto se pudéssemos expor artificialmente o paciente a
todo tipo de infortúnio do destino, preparando-o
previamente para ele, o que, além de ser cruel, não é possível.

Parte III

Freud inicia explicando que foi uma modificação


ocorrida em sua clínica ao longo dos anos que o levou a
começar a tentar responder a questão da duração das
análises, haja vista que, no momento atual, além das análises
didáticas, passou a ter alguns casos graves sob sua
responsabilidade, cujo tratamento era contínuo.
Isso porque o objetivo nesses casos era ocasionar uma
alteração profunda nas personalidades dos pacientes, e
exaurir qualquer possibilidade de retorno da doença.
Ressalta nesse aspecto que, dos três fatores decisivos
para o sucesso do tratamento - a influência de traumas, a
força constitucional do instinto e as alterações precoces do
ego, provocadas na criancinha em sua luta contra os
instintos - a força do instinto é a que mais interessa.
Seguem-se quatro exemplos clínicos nos quais a criança
pequena perdeu a luta contra um instinto poderoso,
tornando-se anormal na idade adulta.
Um paciente que, em criança, costumava se masturbar
na privada, desenvolveu uma fobia de privadas que, mais
tarde, ampliou-se em claustrofobia e pavor de lugares
fechados em geral.
Uma paciente que, já adulta, leu um romance que a fez
recordar de suas masturbações infantis, desenvolveu a partir
daí uma fobia de romances, que mais tarde se estendeu a
todos os livros e papéis impressos no geral.
Um paciente que, em criança, repudiou com veemência
seu desejo erótico pela mãe, tornou-se um adulto,
excessviamente respeitador das mulheres e incapaz de
penetrá-las (impotente).
Uma menininha que se horrorizou com seu prazer oral e
o reprimiu com tal força a ponto de parar de comer,
tornou-se uma adulta incapaz de experimentar qualquer tipo
de prazer alimentar.
Voltando ao texto, Freud faz uma correção sobre isso
dizendo que é mais correto falar em força do instinto na
ocasião do que em força constitucional do instinto, pois há
instintos que podem ser intensificados tarde na vida, a
exemplo do que ocorre na puberdade e na menopausa.
Importante também compreender exatamente do que se
trata, em termos de objetivo da terapia, quando se diz que
esta visa livrar o ego de uma exigência instintual patogênica.
Não se trata, neste caso, de fazer desaparecer o
instinto, já que isso não é possível. Mas de amansá-lo, o que
dependerá, da força do instinto em questão e a força do ego
em fazer frente a ele.
Ocorre também que, como nos pacientes citados acima,
o ego até era forte o bastante para frear o impulso, mas este
pode ser tão poderoso que ressurge, numa compulsão ou
proibição neurótica, por exemplo.
Assim também, a exaustão física ou uma doença, podem
pontualmente enfraquecer o ego da pessoa, possibilitando o
impulso levar a melhor.
Cita-se sobre isso uma paciente, com uma natureza
instintiva muito viciosa, que se lembra, desde muito cedo, de
ter descoberto os prazeres da masturbação, da comida, da
bebida, do cigarro, da fofoca, de dormir, etc. Adulta e, em
análise, ela luta constantemente com sua natureza viciosa,
mas basta uma exaustão física por trabalho excessivo ou
uma gripe, para que os instintos se fortaleçam, e ela volte a
se refestelar neles. Recaída que é amargada depois com
grandes doses de culpa.
Outro exemplo emblemático do recrudescimento dos
instintos mediante o enfraquecimento momentâneo das
censuras do ego são os sonhos noturnos.
Um dos trabalhos do analista junto a estes pacientes é
levá-los a rever o modo excessivo e brutal com que
reprimiram seus instintos na infância, por exemplo,
indagando à mulher porque tinha tanto horror ao fato de se
masturbar em criança ou à outra, porque lhe horrorizava o
fato dos seres humanos sentirem prazer sexual comendo ou
bebendo.
A outra parte do trabalho é tornar seus egos mais
resistentes para inibir ou conter seus instintos, mas agora
pelos motivos corretos, e não pelos errados.
Por exemplo, pode-se explicar à paciente que se
hororizava com o prazer oral da comida que ela é essencial à
nossa sobrevivência, e que a imoralidade dos vícios não
reside no fato de que eles não dão prazer, mas que podem
nos escravizar e levar-nos ao completo descontrole de nós
mesmos.
Tudo isso deve ser buscado pelo analista, mas sem
grandes expectativas e pretensões, uma vez que ele sabe que
todas as virtudes humanas derivam de supercompensações
nascidas de seus próprios vícios.
O mecenas generoso terá lutado arduamente contra
sua própria mesquinhez. O adulto limpinho, contra seu
prazer em se sujar com fezes. O honesto, contra seu impulso
de ludibriar. O homem santo, contra sua excessiva maldade e
por aí vaí.
Lembrando, nesse aspecto, que nenhuma
supercompensação é absolutamente eficaz. Só para citar um
exemplo, temos aquele tapão que o Papa Francisco deu em
uma fiel atrevida que lhe puxou as mãos.
Ou seja, no desenvolvimento normal a transformação
nunca é completa, permanecendo resíduos de fixações
libidinais anteriores que se mantêm na configuração final.
Assim, o que torna a cura permanente difícil é que as
fundações sobre as quais o controle de um instinto se
baseiam poderão ter sido pouco profundas. O controle sobre
o instinto poderá ter sido melhorado com a análise, mas se a
transformação do mecanismo defensivo tiver sido
incompleta, novos recrudescimentos do instinto poderão
surgir.
Um exemplo disso é a paciente de natureza viciosa,.
Nela, um mecanismo defensivo muito presente era a
racionalização, que ela usava para justificar seus vícios.
Assim, por exemplo, se tinha tido uma semana difícil,
justificava-se a si mesma que, afinal, tinha direito a um
momento de orgasmo junto ao ex-namorado ou ao fumo,
sendo muito difícil convencê-la de que isso se tratava tão
somente de uma justificativa que ela dava a si mesma.
A impossibilidade de fazê-la abrir mão de tais
racionalizações, tornavam-na vulnerável à irrupção cega de
seus instintos, o que só foi sendo aos poucos modificado
quando ela começou a aceitar um pouco mais sua natureza
viciosa, abdicando do seu desejo de querer ser algo que
nunca poderia ser, e passando a querer combatê-los pelo
motivo certo, a saber, não por se tratar de coisas imorais,
mas por serem prazeres dos quais passava a ser escrava.

Parte IV

Toda a preocupação de Freud acerca de se deve


despertar novas fontes de sofrimento no paciente ou
exacerbar antigas, antes de lhe dar alta, deve-se à sua
preocupação terapêutica de, afinal, como deixar o paciente
mais forte, para enfrentar sozinho as tragédias futuras que a
vida lhe reserva.
Relembremos o Homem dos Lobos. Depois de quatro
anos de tratamento com Freud, a esposa se matou, a filhinha
desta morreu de tuberculose, ele perdeu todo seu dinheiro
com a tomada de Lênin na Rússia e nunca mais pôde voltar à
sua terra natal.
Já a decisão de Freud de encerrar o tratamento com ele
tinha o sentido de dizer-lhe que “agora ele já sabia tudo o
que precisava saber de si mesmo, e que estava em suas mãos
decidir melhorar ou não”, o que aponta para um recusa de
Freud em estimular neste paciente uma posição de
submissão cega em relação a ele, chamando-o à
responsabilidade por sua própria vida.
Daí que o que pode, segundo Freud, tornar um
tratamento infinito é o desejo do paciente de querer
continuar dependente do analista para sempre, tal como o
próprio Freud escreve à Fliess, sobre um outro paciente, Herr
E., que já estava com ele há sete anos:

Estou começando a entender que a natureza


aparentemente interminável do tratamento é
algo determinado pela transferência. No caso do
senhor E, agora compete só a mim decidir ou
não prolongar o seu tratamento, mas me dei
conta de que lhe dar isso seria estimular nele
uma postura conciliatória e bastante cômoda
para ele, no qual ele poderia permanecer ao
mesmo tempo doente e curado.

Nas longas entrevistas que o Homem dos Lobos deu à


jornalista Karen Obholzer, “Conversas com o Homem dos Lobos”
ele próprio tinha muita consciência de que a transferência incita,
no paciente, desejo de submissão e obediência cega em relação
ao analista, tornando-se uma arma muito poderosa:

A transferência é uma arma de dois gumes. Em


certo sentido ajuda, noutro, apesar disso, há
alguma coisa que não funciona. Na verdade, se
eu considerar Freud como um pai e acreditar em
tudo o que ele me diz, posso cometer erros. Ele
me disse, por exemplo, que não voltasse à Rússia
para acertar meus negócios quando podia,
embora aquele fosse o momento certo. Mas por
causa dessa transferência, o obedeci e fiquei em
Viena. A transferência já constitui um
falseamento da realidade, uma vez que Freud
não era meu pai. Mas eu me portei como se
fosse. Então, a realidade se vingou porque, de
repente, já era tarde demais. Meu pai teria
aconselhado melhor, politicamente, do que
Freud.

Freud, nesse aspecto, não parecia estar plenamente


consciente do incomensurável desejo dos seres humanos de
entregarem a vida nas mãos de alguém que julgam saber mais
que si. Apesar de também não ser verdade que Freud estimulava
dependência em seus pacientes, haja vista mandá-los embora,
quando sentia que o trabalho estava estagnado.
Vejamos o que Freud respondeu ao Homem dos Lobos
quando, na última sessão, este lhe indagou, se afinal ele estava
curado:

Quem tem uma psicanálise nas costas, pode


dizer a si mesmo que é possível ficar curado.
Mas para isso, é preciso que esta pessoa
também queira curar-se. É como um bilhete
ferroviário. O bilhete me dá a possibilidade de
fazer uma viagem, mas não me obriga a fazê-la.
A decisão dependerá de você, de usar tudo o
que aprendeu para lutar, dia a dia, por sua
própria sanidade.

Obviamente, o que Freud aponta aqui é o aspecto da


responsabilidade de cada um. O quanto uma pessoa quererá
manter-se vítima de seus próprios sofrimentos intermináveis ou,
decidirá, transformá-los em sofrimentos miseráveis comuns, dos
quais ninguém escapa. Tal decisão passa pelo reconhecimento
profundo, em cada pessoa, de que a vida não é um lugar fácil de
se estar, nem garantidor de felicidade para ninguém. Muito pelo
contrário.
Assim, o objetivo de uma análise não é livrar o paciente do
sofrimento inevitável, mas torná-lo mais corajoso para se
responsabilizar por si mesmo e assumir as próprias escolhas.
O Homem dos Lobos tinha muita consciência disso. À
pergunta da jornalista, se Freud o havia ajudado, ele responde:

Ele me tornou capaz de casar com Teresa. Uma


decisão dessas não era muito fácil de tomar,
mas consegui, apesar dos pesares. Terminei
meus estudos e depois fiquei trinta anos numa
companhia de seguros. Portei-me de maneira
mais ou menos normal, e minhas depressões
foram mais suportáveis. Acha isso pouco??

Outros pontos que estão presentes no capítulo são: até que


ponto o analista deve levar a análise num estado de frustração e
até que ponto gratificar um pouco o paciente com seu amor e
orientação. Vimos que Freud, apesar de julgar fundamental a
neutralidade (regra da abstinência), por vezes aconselhava,
imprudentemente. Por exemplo, dizendo ao Homem dos Lobos
para não voltar à Rússia buscar seu dinheiro.
Outro ponto fundamental é o aspecto inercial que existe nos
seres humanos, o que deixa os pacientes sempre muito
rapidamente satisfeitos com os resultados parciais atingidos em
uma análise, lhes deixando muito confortáveis para não quererem
ir mais fundo (“o melhor é sempre inimigo do bom”).
Prova-se o fato de Freud não calcular bem o poder que um
analista tem nas mãos quando, no capítulo, diz que o paciente
não o obedece, quando este lhe orienta a fazer isso ou aquilo. O
que pode ser verdade com os pacientes muito opositores e
desconfiados, mas não com os que desejam muito ser amados e
dirigidos.
Nesse aspecto, a jornalista perguntou ao Homem dos Lobos
o que ele achou quando Freud lhe mandou embora, ao que ele
respondeu: “Não achei nada. Nem ruim, nem bom. Na verdade,
tudo o que ele me mandasse fazer, eu fazia.”
Concluindo o capítulo, Freud propõe que a única forma, no
fim, bastante inútil, de deixar o paciente preparado para conflitos
futuros, é alertá-lo e chamar a atenção para eles. O que não terá
muito efeito porque os seres humanos só atentam para o que
está doendo neles no momento.
Tomando o exemplo do Homem dos Lobos, seria Freud
dizer-lhe no final do tratamento algo mais ou menos assim: “Fique
atento a algo. Quando, no futuro, o senhor se sentir
desamparado, furioso ou angustiado, tenderá a voltar a querer
ser tratado como uma criancinha de colo à quem possam lhe
amparar, proteger e guiar. Não ceda a isso. Ou, pelo menos, tente
não ceder, pois isso só o colocará numa situação perigosa de
submissão cega em relação aos outros. Assim como se sente em
relação a mim.”
Ao que, provavelmente ele agradeceria, mas iria embora sem
dar muito ouvido ou prestar atenção, feliz da vida por estar
sentindo que seu mestre lhe deu um belo diploma de formado,
importando mais, neste caso, o diploma recebido, do que as
duras responsabilidades de aplicar, sozinho, tudo o que aprendeu
ao longo do curso. Algo que, conforme lemos em suas entrevistas,
ele finalmente fez.

Parte V

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