GABRIEL PIRES MONOGRAFIA (9)

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Educação e Humanidades

Faculdade de Formação de Professores

Departamento de Ciências Humanas

Gabriel Pires Machado Corrêa

AS REPRESENTAÇÕES DA ANTIGUIDADE ORIENTAL NO ENSINO DE HISTÓRIA BRASILEIRO.

São Gonçalo

2024

1
Gabriel Pires Machado Corrêa

AS REPRESENTAÇÕES DA ANTIGUIDADE ORIENTAL NO ENSINO DE HISTÓRIA BRASILEIRO.

São Gonçalo

2024

AS REPRESENTAÇÕES DA ANTIGUIDADE ORIENTAL NO ENSINO DE HISTÓRIA BRASILEIRO.

2
Monografia apresentada ao Departamento de Ciências

Humanas da Faculdade de Formação de Professores da UERJ

como requisito para a obtenção do título de Licenciado em

História.

Orientador (a): Prof. Dra. Lolita Guimarães Guerra

São Gonçalo

2024

CATALOGAÇÃO NA FONTE
FEITA NA BIBLIOTECA

3
UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CEH/D

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta monografia, desde que citada a fonte.

__________________________________ ____________________________

Assinatura Data

Gabriel Pires Machado Corrêa

AS REPRESENTAÇÕES DA ANTIGUIDADE ORIENTAL NO ENSINO DE HISTÓRIA BRASILEIRO

Monografia apresentada ao Departamento de Ciências

Humanas da Faculdade de Formação de Professores da UERJ

como requisito para a obtenção do título de Licenciado em

História.

Aprovada em XX de mês de 2024.

Banca Examinadora:

_____________________________________________

Prof. Dra. Lolita Guimarães Guerra.

Faculdade de Formação de Professores – UERJ

_____________________________________________

Prof. Dr.

4
Universidade

São Gonçalo
2024

RESUMO

CORRÊA, Gabriel Pires Machado. AS REPRESENTAÇÕES DA ANTIGUIDADE


ORIENTAL NO ENSINO DE HISTÓRIA BRASILEIRO. 2024. Trabalho de Curso
(Licenciatura em História) — Universidade do Estado do Rio de Janeiro, São Gonçalo,
2024.

O presente trabalho tem como objetivo analisar as representações do ensino de História


Antiga no Brasil, considerando sua trajetória tanto no âmbito acadêmico quanto no
escolar. A pesquisa busca compreender como a disciplina tem sido concebida, ensinada
e aprendida ao longo do tempo, quais os desafios enfrentados e como se materializa no
ensino básico. Para tanto, será realizada uma revisão bibliográfica abrangente,
englobando estudos sobre a história da historiografia, a produção historiográfica sobre a
Antiguidade, as políticas educacionais e os currículos escolares, sobretudo a Base
Nacional Comum Curricular. Além disso, serão analisados materiais didáticos, como
livros didáticos, a fim de identificar as representações da História Antiga presentes
nesses documentos.

Palavras-chave: BNCC; história antiga; livro didático; historiografia; ensino de história

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ABSTRACT

The present work aims to analyze the representations of the teaching of Ancient History
in Brazil, considering its trajectory in both academic and school contexts. The research
seeks to understand how the discipline has been conceived, taught and learned over
time, which challenges it faces and how it materializes in basic education. To this end, a
comprehensive bibliographical review will be carried out, encompassing studies on the
history of historiography, historiographical production on Antiquity, educational
policies and school curriculum, especially the National Common Curricular Base. In
addition, teaching materials, such as textbooks, will be analyzed in order to identify the
representations of Ancient History present in these documents.

Keywords: BNCC; ancient history; textbook; historiography; history teaching

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO..........................................................................................................X

CAPÍTULO 2. A BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR E A HISTÓRIA


ANTIGA: UMA RELAÇÃO CONTURBADA...........................................................X

2.1 APONTAMENTOS SOBRE CURRÍCULO.........................................................X

2.2 A HISTÓRIA NA ESCOLA: CURRÍCULO E DISCIPLINA............................X

3. A BNCC E O LIVRO DIDÁTICO...........................................................................X

3.1 A QUESTÃO DO LIVRO DIDÁTICO.................................................................X

3.2 O PLANO NACIONAL DO LIVRO DIDÁTICO (PNLD) E OS INTERESSES


EM JOGO.......................................................................................................................X

3.3 OCIDENTE, ORIENTE E CIVILIZAÇÃO NA BNCC......................................X

3.4 A ANTIGUIDADE ORIENTAL NA ACADEMIA..............................................X


3.4.1 A IMPORTÂNCIA DO ESTADO PARA O CONCEITO DE
CIVILIZAÇÃO..............................................................................................................X

4. O PAPEL DA HISTÓRIA ANTIGA E SUA IMPORTÂNCIA NO ENSINO DE


HISTÓRIA NO BRASIL..............................................................................................X

4.1 A ANTIGUIDADE PRÓXIMO-ORIENTAL NOS LIVROS DIDÁTICOS


BRASILEIROS..............................................................................................................X

CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................X

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1. INTRODUÇÃO

Ensinar História Antiga no Brasil, sobretudo no ensino básico, é um trabalho


desafiador. Dentre os obstáculos que o professor deve enfrentar, destacam-se o
distanciamento temporal, dado que trabalhamos com períodos históricos muito extensos
que contemplam dezenas de milênios; o distanciamento geográfico, que implica uma
dificuldade no desenvolvimento da alteridade, tema em voga nos discursos educacionais
contemporâneos; a carência de fontes escritas que, quando existentes, dificilmente são
traduzidas para o idioma português; a necessidade do aprendizado constante dos
professores dado o ritmo particular que a historiografia da Antiguidade assume,
renovando-se continuamente à luz dos achados arqueológicos; e, por fim, e não menos
importante, o imperativo metodológico de contextualizar eventos históricos dispersos
em áreas geograficamente vastas, povoadas comunidades culturalmente distintas.

A construção do conhecimento histórico sobre a Antiguidade, nesse sentido,


demanda uma constante reflexão sobre as fontes utilizadas, uma análise das narrativas
históricas dominantes e a forma como essas informações são transmitidas aos
estudantes, seja pelo professor, seja pelos materiais didáticos escolares. Além disso, a
necessidade de contextualizar os acontecimentos históricos e de estabelecer conexões
com o presente exige dos docentes uma sólida formação em História e um profundo
domínio das teorias historiográficas e didáticas. Essas demandas esbarram em
problemas estruturais tanto no que diz respeito à formação de professores no âmbito
acadêmico quanto na organização das redes e sistemas de ensino básico.

Como consequência, vícios e preconceitos historiográficos correm o risco de ser


reproduzidos ao infinito, empobrecendo cada vez mais o ensino e enfraquecendo os
debates que possibilitariam importantes avanços da Antiguidade nas escolas. Portanto, é
necessário estabelecer uma análise rica sobre o tema, levando que conta tanto os
avanços viáveis como as concessões necessárias à prática do ensino de história. Dessa
forma, o presente trabalho pretende contribuir para uma melhor compreensão do
panorama do ensino da Antiguidade no Brasil a partir da análise tanto de sua trajetória
enquanto disciplina acadêmica e escolar quanto sua materialização nos livros didáticos
brasileiros.

Para tanto, será realizada uma análise dos conteúdos de História Antiga do
Oriente presentes em dois livros didáticos selecionados pelo Plano Nacional do Livro
Didático (PNLD) de 2020: o livro Vontade de Saber: História (2018) da editora

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Quinteto Editorial e Inspire História da editora FTD. Além disso, a fim de qualificar o
debate, confrontarei os tópicos neles presentes com textos e teorias elaboradas pelos
principais pesquisadores das áreas de ensino de história, teoria do currículo e
historiografia antiga.

No primeiro capítulo,

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CAPÍTULO 2. A BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR E A HISTÓRIA
ANTIGA: UMA RELAÇÃO CONTURBADA
2.1 APONTAMENTOS SOBRE CURRÍCULO
Etimologicamente, a palavra currículo possui sua origem na palavra latina
Scurrere que, por sua vez, significava “correr”, referindo-se a um curso. Dessa forma, o
currículo é, pelo menos em sua etimologia, compreendido enquanto um determinado
percurso a ser seguido, algo que se propõe a organizar o conhecimento por etapas
racionalmente selecionadas (Goodson, 2012, p. 31). No entanto, se originalmente a
compreensão sobre “currículo” se dava de forma limitada em suas instituições
precursoras (College of Montaign e Universidade de Glasgow) conforme identificado
por Ivor Goodson (2012, p. 32-33), atualmente as interpretações acerca deste objeto
recaem sobre seu caráter político, sociológico e epistemológico (Moreira e Silva, 2002,
p. 7).

Importante ressaltar, todavia, que até os dias atuais não há um consenso final
sobre a definição de “currículo”, principalmente devido aos meandros de sua construção
socio-histórico-cultural (como a região ou período histórico em que fora concebido) e
aos seus complexos problemas epistemológicos (como questões particulares de “o que”
e “como” ensinar), tornando seu sentido volátil e subordinado ao referencial teórico
adotado pelo pesquisador (Oliveira, 2008, p. 538). Contudo, conforme Moreira (1997,
p. 11-2 apud Oliveira 2008, p. 538), a conceituação mais recorrente nos estudos
curriculares é a de um currículo como “conhecimento escolar e experiência de
aprendizagem”.

Mas, se não é possível darmos ao currículo uma única definição, algumas das
afirmações que podemos fazer é que este documento é permeado por conflitos e
interesses políticos, que ele faz parte de uma tradição seletiva e que esta seleção é feita
por um grupo que decide o que é relevante e legítimo (Apple, 2013, p. 71). O currículo,
desta forma, não se limitaria apenas a um documento que busca normatizar os saberes a
serem ensinados em uma dada instituição ou sistema educacional, mas também se
constitui enquanto um dispositivo sociocultural (e histórico) que reflete tanto a
organização social quanto educacional de uma determinada sociedade. Relaciona-se,
ainda, direta ou indiretamente às relações de poder, de controle e de eficiência social e
documento representa nas políticas educacionais de Estado, o campo do currículo está
para além de uma área meramente técnica preocupada com métodos e fórmulas de

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ensino, consistindo, conjuntamente, em um espaço de disputa política, ideológica e
econômica (Oliveira, 2008, p. 537).

Foi a partir da década de 1990, com o advento das ideias pós-modernas, que o
currículo passou a ser enxergado como um dispositivo importante na construção das
identidades e das subjetividades dos indivíduos inseridos nos contextos educacionais.
Além disso, apoiado nos referenciais teóricos pós-modernos, o currículo passou a ser
enxergado enquanto um instrumento eficiente de conservação, transmissão e
transformação dos saberes para a socialização dos jovens de acordo com os valores
desejáveis por uma determinada sociedade (Oliveira, 2008, p. 539). Essa sociedade se
organiza, através de seus sistemas de ensino, para reproduzir suas experiências, dentro
de um certo contexto que engloba diversos fenômenos (como sociais, políticos,
econômicos, culturais e etc.) com o objetivo de enfrentar as demandas de um conjunto
de valores e crenças impostas por uma dada estratificação que, por se constituir como
hegemônica, é dotada de poder (Bachini, 2021, p. 96).

Seguindo essa lógica, duas das principais forças que atuam sobre o currículo são
a força econômica e a política. Diversos grupos econômicos, podendo estes estarem
associados ou não a outros grupos políticos, exercem pressões tendo em vista realizar
reformas educacionais ou influenciar diretamente os rumos da educação do país (Kelly,
1981 apud Oliveira, 2008, p. 543).

Os caminhos para uma base nacional comum curricular estão presentes já no


século passado pelo artigo 210° Constituição Federal de 1988, onde se define que
“serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar
formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e
regionais” (Brasil, 1988) e pelo artigo 26° da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
(LDB) de 1996:

Os currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio


devem ter base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de
ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma parte diversificada,
exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da
economia e dos educandos (Brasil, 1996).

Entretanto, seria somente no século XXI que a Base Nacional Comum


Curricular teve seu processo de confecção iniciado a partir do Plano Nacional de
Educação (PNE) de 2014, vindo a público pela primeira vez em 2015. A publicização
desse documento levantou, quase que de imediato, uma série de debates como, por

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exemplo, a necessidade ou não de um currículo nacional para o Brasil (Amorim, Mello,
Ralejo, 2021, p. 2). Todavia, para além das discussões sobre a validade de um currículo
que se propõe a ser nacional, são importantes as discussões sobre a organização dos
conteúdos escolares, ou seja, “o que” deve ser ensinado em sala de aula.

Os currículos, livros didáticos e o próprio ensino de História em si se


configuraram, especialmente a partir da expansão das escolas secundárias no século XX
e XXI, enquanto produtos (Mello, Ralejo, 2021, p. 3). Dessa forma, como resultado de
pressões exercidas por grupos hegemônicos da sociedade civil, o poder público, através
de suas reformas educacionais e curriculares, produz documentos oficiais (como a
BNCC), que interveem na organização escolar, implicando tanto na reprodução da
ideologia dominante em dada sociedade, como também em novas formas e visões de
mundo (Abud, 2017, p. 13-14).

Ainda que não expresso explicitamente pelos agentes idealizadores dos


currículos (como intelectuais, ministros da educação, técnicos e etc.), a disciplina
História é considerada constantemente como uma das mais afetadas pelas reformas
curriculares, dada sua potencialidade instrumental para a transmissão de ideias
hegemônicas. Através do conhecimento histórico, a consciência histórica é construída e
há a organização do agir, da intenção e do sentido humano. Todas essas questões têm
consequências vitais para a formação individual proposta pelos sistemas escolares de
ensino, essencialmente no que se refere à construção da noção de pertencimento ao
tempo, ao local, às atitudes e aos comprometimentos (ou ausência destes) que teremos
para com o mundo em que vivemos (Abud, 2017, p. 15). A História que ensinamos
apresenta-se, dessa forma, como o produto de escolhas conscientes e intencionais
realizadas a partir das leituras feitas por sujeitos historicamente situados, como
historiadores, pedagogos, políticos e demais componentes da sociedade civil (Abud,
2017, p. 17). Harmônico a essa ideia, o pesquisador australiano Bill Green (apud
Amorim, Mello e Ralejo, 2021, p. 3), ao analisar o currículo nacional de seu país,
considerando seu caráter validador dos conteúdos selecionados, afirma que os temas dos
saberes no currículo sempre estão relacionados aos temas do poder, tornando o
documento, fatalmente, político. E, no caso brasileiro, como prática de representação de
poder, a BNCC representa a legitimação de determinados conhecimentos.

Pelas suas qualidades de construtor e reprodutor de hegemonias, até mesmo a


confecção, a distribuição e o próprio consumo do conhecimento histórico tornam-se
campos de disputa entre diversos grupos interessados em seus conteúdos e suas

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aplicabilidades. Tomemos como exemplo nosso objeto principal, a História Antiga.
Embora não exista uma continuidade social, política ou espacial entre o mundo da
Antiguidade e a Europa contemporânea (Guarinello, 2014, p. 67), o primeiro foi alçado
à condição de “ponto de partida” para a construção das narrativas acerca do desenrolar
histórico europeu e de outras regiões, como as sociedades americanas pós-colombianas.
A arbitrariedade dessa escolha fica evidente quando analisamos, por exemplo, os
territórios romanos imperiais. Não é costume advogarmos pela “europeidade” do norte
da África e de partes do Oriente Médio, regiões que, assim como as atuais Alemanha,
Espanha e Inglaterra, foram dominadas durante a Antiguidade pelos romanos. Em Comentado [LGG1]: “Em contrapartida”, sem “mas”.

contrapartida, os territórios que hoje compreendem a Rússia, a Escandinávia e grande


parte da Europa Oriental, são atualmente considerados “europeus” sem maiores
problemas, mesmo que não tenham feito parte de Roma. A questão apontada por
Guarinello (2014, p. 28-27 e 66-67), não é questionar se essas regiões fazem parte ou
não da Europa enquanto entidade político-cultural, mas sim demonstrar como certos
conceitos como “ocidental”, “europeu” e “civilizado” partem de construtos ideológicos
muito bem definidos (portanto, jamais isentos) cujos referenciais histórico-geográficos
são bastante variáveis a depender do propósito a que servem. No caso brasileiro, por
exemplo, a História tradicional buscou aproximar a elite brasileira à Europa,
contribuindo para o apagamento progressivo e sistemático das origens africanas e
indígenas do país (Guarinello, 2014, p. 64). Dessa forma, o conteúdo histórico escolar,
possuidor justamente do que se espera ser lecionado aos estudantes, aparece como um
relevante espaço de conflitos, dado seu caráter legitimador de “verdades”.

Nesse contexto de disputas político-ideológicas, consonante com Katia Maria


Abud (2017, p. 17), Maria Teresa Gabriel (apud Amorim, Mello e Ralejo, 2021, p. 4)
expõe que os itens contidos nos componentes curriculares se elevam muitas vezes ao
nível de “naturalização”, sem que haja qualquer debate acerca das relações assimétricas
de poder que levaram a tal seleção. Como consequência, uma educação elaborada
nessas circunstâncias legitima a ordem dominante (status quo), reforça o silenciamento
ou exclusão de narrativas de minorias culturais, étnicas e de gênero, categorias
historicamente segregadas há tanto tempo do currículo de História do ensino básico.
Todavia, cabe ressaltar que os professores também exercem influência fundamental na
construção dos saberes escolares, pois é através de seu trabalho no processo de ensino-
aprendizagem que o currículo se transforma em aula. Em outras palavras, o currículo
formal, aquele produzido por órgãos oficiais de governo e entidades educacionais,
difere-se do currículo real, aquele que de facto se materializa em sala de aula a partir

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das interações entre professores e alunos. Seria equivocado, portanto, considerar que o
resultado final das práticas curriculares fosse uma mera reprodução do que fora
selecionado pelo corpo técnico estatal durante sua elaboração (Amorim, Mello e Ralejo,
2021, p. 10).

A BNCC, em suas diferentes versões, trouxe consigo representações do que o


corpo técnico, os grupos hegemônicos e, por consequência, o Estado, pensam sobre
educação para o Brasil. Abud (2017, p. 14), enquanto discorre sobre as implicações
sociopolíticas das reformas curriculares e educacionais perpetradas pelo Estado, nos
antecipa em um tom de denúncia que “reconhece-se a importância da educação, mas ela
é vista somente como um instrumento político”. No nosso caso, a primeira versão da
Base apresentou tentativas de renovações frente à História tradicional sob a forma de
uma “inversão centro-geográfica”, com menos destaque à Europa e mais à América
Latina e ao continente africano”, pondo sobre a mesa uma crítica ao eurocentrismo,
(Amorim, Mello, Ralejo, 2021, 4-7). Entretanto, essa perspectiva não avançou no
sentido de garantir a todas experiências históricas em tempos e espaços tão
diferenciados a mesma atenção dedicada ao Brasil e a outras regiões, como a africana,
por exemplo. No final, houve a substituição de um referencial por outro, ou seja, no
lugar do protagonismo europeu, agora teríamos o protagonismo brasileiro. Daí surgem
as críticas acerca do “brasilcentrismo” e a exclusão de períodos inteiros, como o caso da
Antiguidade, presentes nos conteúdos programáticos da primeira versão da BNCC que
abordarem mais em breve.

As reações da comunidade acadêmica sobre a primeira versão da Base foram das


mais diversas. Por exemplo, o abandono da divisão quadripartite da história suscitou a
questão da temporalidade, uns justificando a sobrevalorização dos conteúdos referentes
à história brasileira em detrimento de outras experiências e outros criticando tais
escolhas. Luis Fernando Cerri e Maria Paula Costa (2024, p. 5), defendendo a
sobrevalorização, consideraram essa decisão como uma forma solucionar “os efeitos
deletérios do tratamento da disciplina História em sala de aula como uma espécie de
ônibus lotado em que, a cada tempo, novos passageiros insistem em subir” (Cerri,
Costa, 2021, p. 5). Já na direção das críticas, Demétrio Magnoli e Elaine Barbosa (2015
apud Cerri, Costa, 2021, p. 7), por exemplo, definem que a primeira versão da BNCC
realizou o rompimento com a gramática da temporalidade, renegando os alunos de
estudarem a trajetória ocidental ao excluírem conteúdos como a Antiguidade Clássica e
Medievo. Ronaldo Vainfas (2015 apud Cerri, Costa, 2021, p. 8), no mesmo sentido,

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considerou a proposta curricular uma expressão do “autoritarismo” ao excluir certas
experiências. Como consequência, o Ministério da Educação (MEC) dissolveu a equipe
responsável composta por doze profissionais para a disciplina de História e convocou
uma nova. A segunda versão, apresentada ao público em 2016, estabeleceu mudanças Comentado [2]: Vou deixar esta parte da anotação
anterior, para o caso de vc ir atrás desse ponto em algum
significativas no texto do documento. Houve uma ampla seleção de conteúdos que outro momento:
Muitos de nós reivindicávamos uma História Antiga
tornou o currículo mais conteudista e colocou o desenrolar da história brasileira sob descentrada da Europa, a partir de outros referenciais
(História Global, Mediterrâneo, etc. -- admito que as
uma ótica eurocêntrica. A terceira e última versão da BNCC teve poucas modificações possibilidades ainda são limitadas, mas estão se ampliando),
outros colegas assumiam o velho discurso de que o estudo
em relação à segunda, sendo um dos seus principais pontos as competências (Amorim, “da Europa” (achando que os conteúdos de Antiga e
Medieval se enquadravam nisso) eram fundamentais para o
Mello, Alejo, 2021, p. 3): conhecimento da supostamente “nossa” civilização
“ocidental”. Então havia uma reação progressista e uma
reação conservadora. O que venceu foi a versão dos
[...] a mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), conservadores. Do lado de cá, a gente achava que dava pra
habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais) atitudes e valores para conversar com os “brasilcêntricos”, afrocêntricos e
decoloniais, pois achamos que muitas de suas reivindicações
resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício do têm mérito (só não concordamos que o encaminhamento
deva ser o que eles propuseram) e que deveríamos pensar
mundo do trabalho (Brasil, 2018, p. 8).
uma nova forma da História. Do lado de lá, os conservadores
não queriam nem saber de sair da eterna História como
As competências têm por objetivo, para além do mencionado anteriormente corrida de bastão da civilização rumo ao Ocidente.

(uma vez que a BNCC é um documento oficial que se propõe a ser nacional), alinhar o
currículo nacional e as políticas educacionais nas esferas federais, estaduais e
municipais. As motivações pela adoção do modelo em competências são diversas,
podendo-se verificar a presença deste formato já nos movimentos reformistas da década
de 1990 e nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). Entretanto, é possível
identificar que a pressão social dos cidadãos brasileiros, a internacional e a
mercadológica estão entre os principais motivadores dessa reforma. Na visão de
educadores defensores deste modelo e de seus proponentes, um ensino baseado em uma
divisão por disciplinas, isto é, mais tradicional, seria fragmentado, academicista,
individualista, pouquíssimo atrativo aos alunos e bastante ultrapassado (Amorim, Mello,
Alejo, 2021, p. 3; Barbosa, Lastória, Carniel, 2019, p. 517). O ensino por intermédio de
competência se põe, dessa forma, enquanto um modo educacional que objetiva fornecer
conhecimentos mais práticos e interligados. Entretanto, esse tipo de método de ensino é
controverso. Primeiramente, essa metodologia é ligada à pedagogia do “aprender a
aprender”, uma vertente pedagógica liberal voltada à autoaprendizagem, duramente
criticada por seu descompromisso com o combate às desigualdades educacionais e vista
como reprodutora da ideologia dominante (Barbosa, Lastória, Carniel, 2019, p. 517).

Ademais, as competências são vítimas de críticas que ultrapassam as questões


pedagógicas. A organização curricular por meio de competências visa responder às
práticas globais de ensino, internacionalizando nossas políticas educacionais as dos

15
demais países. Por exemplo, a “Agenda de 2030”, plano com 17 objetivos de
Desenvolvimento Sustentável e 169 metas a serem atingidas até o ano de 2030, em seu
conteúdo educacional, visa promover o desenvolvimento do cidadão através do mercado
de trabalho ao “explorar oportunidades e participar plenamente da sociedade” (ONU,
2015, p. 7 apud Coelho, Lima, Soledade, 2019, p. 519). Sem mencionar a causa máxima
das desigualdades sociais ou se preocupar com a educação pública e gratuita, a Agenda
aponta direções abstratas que se referem às “novas governanças” e práticas para o
acesso igualitário à educação formal.

Atendendo às pressões mercadológicas, a organização por competências assume


uma narrativa de “salvação” dos sistemas educacionais considerados ineficientes,
inadequados ao desenvolvimento econômico contemporâneo e cada vez mais custosos
aos cofres públicos (Sacristán, 2011, p. 14). Importante frisar que, dado a
intencionalidade das competências em servirem como guias para o desenvolvimento de
currículos, políticas educacionais (bem como a BNCC pretende ser) e instrumentos para
a avaliação educacional (Sacristán, 2011, p. 14-15), faz-se necessário uma análise mais
profunda dessa prática e sua cosmovisão.

Partindo do princípio de que nenhuma linguagem 1 é neutra e muito menos não


arbitrária2, adotar as competências no discurso educacional significa tomar partido,
assumir uma perspectiva que oculta ou exclui outros discursos e problemas (Sacristán,
2011, p. 15-16). Isso se evidencia, sobretudo, nos relatórios divulgados sobre a situação
da educação dos países. Tomando as competências como critério de análise, os
diagnósticos apresentados terminam por ser imprecisos e generalistas, falhando em
compreender as especificidades de cada país ou região. Soma-se a isso a questão de “a
quem?” essas pesquisas servem. Como grande parte do financiamento para a
formulação dos relatórios advém de representantes do governo, as questões levantadas
atendem temas do interesse dos patrocinadores3 (Sacristán, 2011, p. 17). Com os
resultados desse trabalho, os relatórios assumem uma outra função além da diagnóstica:
eles passam a exercer um papel educativo, moldando a opinião pública perante a

1 Sacristán (2011, p. 14-16) considera o uso das competências nos discursos educacionais como uma
linguagem

2 Por estar inserida no meio social, a linguagem, para Sacristán (2011, p. 15), é um reflexo dos valores e
visões adotadas por uma determinada sociedade. Além disso, essas concepções perpassam as instituições
que, no caso do texto, é a escola.
3 No caso brasileiro, houve participação ativa de entidades não governamentais, como o Movimento Pela

Base, patrocinado por instituições privadas como Itaú BBA, Fundação Lemann, Instituto Unibanco,
Instituto Ayrton Senna e Todos pela Educação

16
situação dos sistemas educacionais dos países. Por exemplo, o relatório A Nation at
Risk: The Imperative for Education Reform de 1983, realizado pela National Comission
on Excellence in Education, denunciava os fracos resultados das políticas educacionais
estadunidenses, pondo como possível consequência a perda da vanguarda econômica,
científica e tecnológica norte-americana. Rapidamente, em um contexto de avanço das
ideologias neoliberais nos governos conservadores de Ronald Reagan e Margaret
Tatcher, o relatório transpassou as fronteiras americanas, tornando-se referencial no
pensamento conversador universal: a culpa estava em escolas caras, ineficientes e na
ausência de um controle rígido sobre a função da escola e de seu financiamento. A partir
disso, a educação passou a contar com novas demandas impostas pelos governos:

Controle, competitividade, liberdade de escolha dos consumidores, fixação


do currículo em conteúdos básicos, assim como submissão da educação às
demandas do mercado de trabalho ou sucesso nos mercados abertos, foram as
marcas das políticas educacionais das décadas de 1980 e 1990 (Sacristán,
2011, p. 19-20).

Podemos dizer, assim, que o movimento em direção ao ensino por competências


que a educação vivencia é um efeito das tendências macrossociais surgidas a partir do
avanço do neoliberalismo e das consequentes transformações ocorridas no mundo do
trabalho. No contexto laboral, as competências visam “designar os conteúdos
particulares de cada função em uma organização de trabalho” (Ramos, 2008, p. 299-
300), dando destaque às características individuais do trabalhador. O objetivo formal
dessa prática (a que chamamos de “pedagogia das competências”), seria educar os
trabalhadores no novo contexto neoliberal e pós-moderno das relações produtivas
(Ramos, 2008, p. 302). Isso se daria pela estruturação do mundo do trabalho a partir de
objetivos previamente delimitados, que seriam validados pelas competências produzidas
no indivíduo (Ramos, 2008, p. 299).

Todavia, em sua face perversa, essa prática pedagógica reproduz, no ensino, dos
mesmos fenômenos presenciados no universo trabalhista: é esperado que os agentes
educacionais (professores, gestores, estudantes e etc.) mantenham uma relação distinta
com o saber daqueles que lidam com conhecimentos academicamente produzidos,
forçando que o ensino se torne cada vez mais pragmático de modo a gerir as incertezas e
a alienação produzida pelos novos tempos (Ramos, 2008, p. 302). Em seus estágios
mais avançados, o modelo neoliberal (marcado, sobretudo, pela eliminação de postos de
trabalho, avanço técnico-científico na produção e pelo reordenamento social das
profissões), promove nas escolas um tipo de educação descentralizada, onde a presença

17
do professor (tanto física quanto emocional) se torna dispensável, sendo esta substituída
por dispositivos eletrônicos (projetores, computadores, tablets e etc.) postos à
disposição dos estudantes sob uma suposta promessa de maior flexibilidade e ritmo
próprio (Bailey, Ravitch, 2020, p. 135; Ramos, 2008, p. 302).

De acordo Barbosa, Lastória e Carniel (2019, p. 520-521), embora a BNCC


justifique a adoção do modelo por competências devido à necessidade de uma formação
completa que contemple todas as áreas da vida dos alunos, permitindo-os responder às
demandas de sua vida, ou seja, uma verdadeira formação integral, na realidade ela está
adequando as políticas públicas brasileiras às normativas internacionais. Isso é
problemático, sob a perspectiva dos autores, por conta das metas e dos grupos que essa
metodologia atende, sobretudo os ligados ao mercado da educação. Além disso, essa
organização esconde práticas perversas, como a individualização do fracasso escolar e o
descompromisso do Estado e instituições educacionais para com o indivíduo-aluno.

Todavia, não devemos tratar a BNCC como um vilão ou que é de todo ruim em
suas propostas educacionais. Nas palavras de Amorim, Mello e Alejo:

A BNCC é um produto desses discursos que, ora de maneira mais explícita


ora de forma mais tímida, é um resultado que traz consigo vitórias de lutas
por representatividade e diversidade, expressos pelas leis n° 10.639/2003
(Brasil, 2003) e n° 11.645/2008 (Brasil, 2008) e pelas DCN, mas também
onde há marcas de tradicionalidade escolar com uma grande lista de
habilidades a serem desenvolvidas (Amorim, Mello e Alejo, 2021, p. 11).

Sendo assim, a BNCC, quando analisada sob a perspectiva das relações de


poder, revela-se como um campo dinâmico onde se manifestam e se perpetuam diversas
formas de dominação e resistência. Não é um conjunto neutro de conhecimentos, mas
sim uma construção social que reflete e reforça as hierarquias existentes na sociedade.
As escolhas sobre o que ensinar e como ensinar são influenciadas por grupos com poder
econômico, político e cultural, que moldam o currículo de acordo com seus interesses e
valores. Assim, o currículo se torna um espelho das disputas de poder, evidenciando
quem tem voz e quem é silenciado. E é justamente nesse campo que os conteúdos
relativos à História Antiga estão inseridos.

2.2 A HISTÓRIA NA ESCOLA: CURRÍCULO E DISCIPLINA

18
Assim como é impossível termos uma teoria do currículo sem que tenhamos
uma teoria do conhecimento (Young, 2014, p. 193), propor uma definição para o
currículo de história exige lidar com a interconexão de dois campos de estudo
diferentes, mas dialógicos: o do currículo propriamente dito e o do ensino de história. O
currículo, dessa forma, quando relacionado ao ensino, precisa ser entendido de acordo
com as demandas específicas apresentadas pelo segundo campo (Gabriel, 2019, p. 72 e
74).

Jean-Claude Forquin (1992, p. 29) interpreta como função fundamental da Comentado [3]: Ele está falando especificamente de
funções da educação, ou do ensino de História? Dialogar
educação (em geral) a conservação e a transmissão da herança cultural de uma dada com as funções da História para Rüsen (é uma referência
fundamental para essa questão).
sociedade através de seleções que implicam um processo constante de lembrança e
esquecimento. A construção dessa tradição possui um caráter arbitrário, onde a memória
social é produzida através do questionamento contínuo do passado. Nesse contexto, a
memória criada é considerada nada mais que uma reinvenção, e o mesmo valeria para a
memória coletiva cujas instituições de educação formal são responsáveis por
administrar (Forquin, 1992, p. 30). O interesse da sociedade sobre a escolha dos
componentes curriculares, das disciplinas e das práticas pedagógicas, ou seja, “o que
será ensinado”, são partes elementares desse processo de seleção de memória.

A seleção da cultura escolar aparece, dessa forma, como um vestígio não apenas
da “herança do passado”, mas também como representação do presente, sendo:

Aquilo que constitui num momento dado a cultura [...] de uma sociedade, isto
é, dos saberes, das representações, das maneiras de viver que têm curso no
interior desta sociedade e são suscetíveis, por isso, de dar lugar a processos
(intencionais ou não) de transmissão de aprendizado”. (Forquin, 1992, p. 31). Comentado [4]: Citação destacada, longa, não leva aspas.
Corrija a formatação de acordo com o Guia da UERJ. Pontue
ao final.
Por limitações metodológicas do ensino (Forquin nos lembra que, pela escassez
de tempo, seleções são necessárias), apenas aquilo que é considerado de suma
importância é preservado, jamais sendo uma cultura de toda importante. Além disso, a
cultura previamente escolhida e salvaguardada no “currículo formal” ou “oficial”
(aquele prescrito pelas autoridades) se difere bastante da cultura presente no “currículo
real” (aquele que realmente ocorre nas salas de aula). A prática docente permite, a partir
da seleção, da valorização de certos temas em detrimentos de outros e dos consequentes
modos pelos quais estes temas são expostos, gerar novas memórias culturais escolares
que a cada sala de aula, em seu próprio microcosmo, diferem-se umas das outras Comentado [5]: Está faltando diálogo com Demerval
Saviani (se não me engano é no Escola e Democracia que
(Forquin, 1992, p. 32). ele fala da função da escola em ensinar o conhecimento
científico acumulado e sistematizado. Dá uma olhada
também no artigo de 1984, “Sobre a Natureza e
especificidade da Educação”).

19
Já para Dermeval Saviani (2011), a educação é uma atividade de fundamental
importância para a sobrevivência e reprodução de nossa espécie. Diferentemente dos
demais animais que têm sua existência garantida naturalmente pelo meio ambiente, nós,
do gênero homo, necessitamos de uma produção constante que vise atender às nossas
necessidades. Ou seja, é através do trabalho (fator de diferenciação do homo sapiens
para os outros animais) que o homem transforma e adapta a natureza (ao invés de
adaptar-se), aos seus objetivos. Esse processo, por sua vez, implica uma ação consciente
e intencional sobre a natureza que, consequentemente, se torna cada vez mais complexa
e especializada. Dessa forma, a educação aparece como característica própria do ser
humano junto ao trabalho, dado a necessidade de organizar o processo produtivo — a
antecipação das ideias e objetivos dessa ação dependem do conhecimento do mundo
como ciência, a arte e etc. (Saviani, 2011, p. 11-12).

Todavia, a própria educação é um ato de trabalho, pois produz em cada


indivíduo, conscientemente, determinadas características e intencionalidades. Em uma
linha semelhante à de Forquin, o objeto da educação para Saviani (2011, p. 13) é tanto a
identificação da cultura considerada necessária para os indivíduos quanto o
descobrimento das formas mais adequadas para que os seres humanos assimilem os
elementos culturais previamente escolhidos. Esse último fenômeno é de suma
importância pois significa a institucionalização do ensino através da escola — espaço
privilegiado para a transmissão e legitimação desses saberes. Isso nos leva a um ponto
de extrema relevância: o papel da escola.

A educação escolar (importante diferenciação já que há educação fora da


escola), como trabalho imaterial e pré-condição para a condução de demais atividades
produtivas à sociedade, tem como função nuclear a “socialização do saber
sistematizado”. Saviani (2011, p. 14) aponta a importância da diferenciação entre
conhecimento espontâneo e o “saber sistematizado”: enquanto o primeiro está ligado à
cultura popular criado pela experiência das massas, o último se relaciona com a cultura
erudita gerada através da metodologia científica. A escola, nesse sentido, existe para
proporcionar os meios necessários para a obtenção do saber elaborado, sequenciando o
conteúdo científico de forma que os estudantes passem de um estado inicial de não
domínio para um de domínio (Saviani, 2011, p. 13 e 17).

A educação escolar, além de se preocupar com a seleção da cultura a ser


transmitida, também se preocupa com de que forma essa transmissão será feita. Não é
suficiente apenas organizar os dispositivos culturais disponíveis na sociedade, dado que

20
“a ciência do erudito não é diretamente comunicável ao aluno, tanto quanto a obra do
escritor ou o pensamento do teórico” (Forquin, 1992, p. 32). Faz-se necessário, também,
um trabalho de reorganização desses saberes culturais que leve em conta não somente o
estado do conhecimento (o conteúdo exposto), mas também do conhecente (o aluno).
Sem reconhecer as especificidades das relações ensino-aluno-aprendizado e as
possibilidades de resistência por parte dos professores e alunos aos conteúdos
selecionados pelo currículo formal, corremos o risco de considerarmos a cultura escolar
como uma “cultura segunda”, diametralmente oposta e totalmente subordinada à cultura
universitária (que seria uma cultura de invenção e criatividade), reduzindo a cultura
escolar à “mediação didática” algemada aos guias e manuais educacionais (Forquin,
1993, p. 33-34).

A divisão dos saberes em disciplinas pode ter tanto uma função pedagógica
quanto social. Acerca da função pedagógica, esta trata apenas de uma divisão
organizacional, com apenas um docente lecionando todas as disciplinas (no caso das
escolas primárias) ou em detrimento dos técnicos e profissionais, estes considerados
saberes destinados às classes mais baixas (Forquin, 1992, p. 41). Uma outra espécie de
hierarquização ainda ocorre dentro dos próprios currículos, quando certas disciplinas, a
depender dos interesses específicos de cada instituição, são privilegiadas, seja pelas
cargas horárias, seja nos coeficientes em exames. Essa questão da hierarquização
interna corresponde, segundo Forquin (1992, p. 41) um problema de legitimidade, “um
árbitro o tipo de cultura por ela considerada importante e necessária para a formação de
seus cidadãos.

A disciplina escolar de história, diferentemente da simples “vulgarização” dos Comentado [6]: Acho que os parágrafos a partir daqui, até
o final da seção (na p. 11), estão parecendo um compilado de
saberes científicos produzidos academicamente como definida pelos defensores da fichamentos dos autores. O certo é que você faça uma síntese
das posições adotadas por eles, suas proximidades e
“transposição didática”, na verdade, constitui-se enquanto uma “disciplina autônoma”, divergências. Assim, você organiza melhor quais são os
pontos que considera importantes para os objetivos deste
com suas características e epistemologias próprias (Bittencourt, 2008, p. 35). Essa trabalho.

polêmica entre “didática histórica” e “historiografia” (ou “teoria da história) é bem


explorada por Jörn Rüsen (2007). Para o autor, assim como exposto por Bittencourt
(2008) a didática histórica não exerce uma suposta função mediadora entre a academia e
a escola, adotando de forma inalterada, em sala de aula, os saberes previamente
construídos. Soma-se a isso as especificidades da prática educacional, que exige dos
professores certas atitudes e competências que, na maioria das vezes, a ciência histórica
(aquela praticada pelos historiadores profissionais) não os fornece (Rüsen, 2007, p. 90).

21
Dessa forma, o conhecimento histórico, no contexto escolar, não está
subordinado à erudição ou ao cientificismo, e o papel dos professores tampouco é
transmitir, através de métodos e técnicas pedagógicas preestabelecidas, os
conhecimentos produzidos pela academia (Bittencourt, 2008, p. 35-37) — Rüsen (2007,
p. 89) ilustra bem essa situação ao comparar que para muitos acadêmicos, a relação
entre didática e historiografia seria semelhante à do marketing à produção de
mercadorias. Todavia, sem negar a influência externa à escola (essa exercida,
principalmente, por políticos e intelectuais), é preciso inserir a produção do
conhecimento escolar dentro de uma “cultura escolar” própria dotada de uma certa
complexidade, além de considerar as relações de poder entre seus diversos agentes
internos (professores, alunos, inspetores escolares e etc.) na construção desse
conhecimento. É justamente dentro dessa respectiva cultura que as disciplinas escolares
desenvolvem uma consciência particular, ganham seus contornos metodológicos,
objetivos e diferenciam-se de suas “ciências de referência” (Bittencourt, 2008, p. 38-
39).

As disciplinas escolares, ainda, dependem de uma finalidade específica que não


corresponde apenas à finalidade estimada por suas ciências de referência, estando seus
fins também subordinados a “[...] um complexo sistema de valores e de interesses
próprios da escola e do papel por ela desempenhado na sociedade letrada e moderna
[...]” (Bittencourt, 2008, p. 39). Essas finalidades são de extrema importância para a
permanência de uma dada disciplina no currículo (afinal, no mundo real o
financiamento estatal e sua relevância precisam ser justificados) e articulam-se entre os
objetivos instrucionais específicos e os objetivos educacionais gerais (Bittencourt, 2008,
p. 41).

Os estabelecimentos de ensino, em sua qualidade de instituições sociais,


exercem um papel muito bem definido nas engrenagens que movem uma sociedade. É
na escola que objetivos específicos de cada disciplina são selecionados e, conforme os
objetivos mais gerais de cada instituição (como a socialização, a obediência às normas,
respeito aos horários, aos padrões de conduta e etc.), estes aparecem ora de maneira
mais branda, ora de maneira mais acentuada. Esses objetivos, por sua vez, são traçados
em resposta às demandas da sociedade e a escola articula-se junto a eles, cumprindo um
determinado papel histórico, seja em processos político-econômicos (como
desenvolvimento industrial, tecnológico), seja ideologicamente, na formação de uma
classe média, expansão da alfabetização ou fomento de sentimentos nacionalistas e

22
patrióticos (Bittencourt, 2008, p. 41-42). No nosso caso particular, o ensino de história
tem por função o desenvolvimento da consciência histórica. Mas, o que de fato é a
“consciência histórica”? Rüsen (2010, p. 112) define a consciência histórica como:

[...] a atividade mental da memória histórica, que tem representação em uma


interpretação da experiência do passado encaminhada de maneira a
compreender as atuais condições de vida e a desenvolver perspectivas de
futuro na vida prática conforme a experiência.

Essa perspectiva reconhece funções práticas da história para a vida dos


indivíduos — é a partir do desenvolvimento da consciência histórica, nós nos
orientamos diante da realidade concreta. A educação escolar aparece, nesse momento,
com um papel de destaque: é através da aprendizagem histórica que se dá a construção
da consciência histórica. Nesse sentido, as narrativas históricas, ao serem apresentadas
aos estudantes por intermédio da comunicação, são articuladas por eles em suas próprias
identidades, relacionando-as em relação com outras experiências previamente
acumuladas. Nesse processo de interação aluno-professor, nasce o saber histórico
escolar. Chamamos esse processo, ainda, de “aprendizagem histórica” — momento no
qual a memória histórica é de facto construída, tornando os alunos capazes de realizar,
internamente, uma organização cronológica dos eventos de forma que os permita
articular o presente e o futuro com suas próprias experiências (Rüsen, 2010, p. 113).
Esse processo se revela de extrema importância, dado sua tarefa construtora de
identidades.

Importante ressaltar que a escola é percebida em uma dualidade: ora como


espaço privilegiado para a construção das disciplinas escolares, ora como lugar
privilegiado para a reprodução da ideologia dominante. Devido à carência de autonomia
de seus agentes internos e de sua dependência relativa de interferências externas
(sobretudo na recepção da produção acadêmica), o resultado final que a escola ocupará
ou não como sua função social dependerá de sua capacidade de resistência e de criação
de conhecimentos próprios (Bittencourt, 2008, p. 50). É possível perceber, portanto, que
há uma clara diferença entre o “saber acadêmico” e o “saber escolar”.

De maneira geral, o “conhecimento histórico acadêmico” é categorizado como


aquele conhecimento resultante de processos previamente delimitados pelos padrões
científicos modernos, sendo a universidade a instituição de referência e o espaço social
responsável por sua legitimação e enunciação do conhecimento produzido (Knauss,
2019, p. 47). Por seu caráter técnico-científico quase recluso à documentação, muitas

23
vezes a pesquisa historiográfica se afasta dos contextos de inserção social do
conhecimento, gerando um distanciamento entre a produção e a aplicação do
conhecimento (Knauss, 2019, p. 48). Além disso, o campo acadêmico é marcado por
relações específicas de divisão social do trabalho. Nesse “universo científico”, o
reconhecimento de graus e títulos que estabelecem o princípio da autoridade acadêmica,
hierarquizando os profissionais atuantes tanto na pesquisa quanto no ensino (Knauss,
2019, p. 48). A escrita da história (entendida aqui como historiografia) se constitui
como expressão do conhecimento histórico acadêmico – o conhecimento docente em
aula dependente dessa produção historiográfica universitária, sendo o seu ensino apenas
uma “transposição didática” subordinada ao seu conhecimento de referência (Knauss,
2019, p. 49).

O conhecimento histórico escolar, diferentemente de um produto da didatização


das produções historiográficas, na verdade, surge como fruto de práticas docentes
particulares com seu próprio universo de interações sociais. Os saberes escolares
decorrem da constante construção e reconstrução dos conhecimentos produzidos pelas
relações e interações de diversas culturas, como a escolar, a política e a histórica com os
livros didáticos, outros saberes (não necessariamente históricos) presente em diferentes
mídias, como novelas filmes, jogos e a histórica pública (aquela de circulação de
massas). A cada aula, seguindo a especificidade de cada momento de ensino, o
conhecimento histórico escolar ganha contornos e objetivos próprios que, muitas vezes,
se distanciam definitivamente da história acadêmica (Silva, 2019, p. 52). Entretanto,
Silva (2019, p. 52) nos adverte que seria um erro considerar o conhecimento histórico
escolar como uma matéria isolada, desprendida das demais questões que envolvem a
produção acadêmica, pois, “apesar de sua natureza complexa e específica, o
conhecimento histórico escolar não abdica de aproximações diálogos e tensões com a
historiografia, com a teoria da história e etc.”

Sob o prisma dessas relações, Monteiro e Penna (2011) interpretam a disciplina


de história como um “lugar de fronteira”. Fronteira, pois o seu ensino se localiza “[...]
onde são demarcadas diferenças, mas onde também é possível produzir aproximações,
diálogos, ou distanciamento entre culturas que entram em contato [...]” (Monteiro e
Penna, 2011, p. 194). Para os autores, é entre o tensionamento do saber academicamente
produzido (e validado através dos materiais didáticos e currículos escolares) e o saber
socialmente construído por professores e alunos que as negociações surgem. Assim, o
professor, a partir de sua compreensão sobre o objeto estudado, mobiliza diversos

24
saberes que constituem o “saber docente” (Bittencourt, 2008, p. 51), como os da própria
disciplina, dos currículos, os de sua formação profissional e os de suas experiências. As
adaptações feitas pelo educador também contam com recursos como os argumentos de
autoridade, analogias, metáforas ilustrações, exemplos e etc., tudo a depender da idade
dos estudantes e dos objetivos a serem alcançado. Nessa dinâmica, a que chamamos de
“currículo real”, o professor, na condição de artífice responsável por transformar o
“saber a ser ensinado” em “saber apreendido” supera o estado de mero “reprodutor” do
conhecimento produzido externamente (Bittencourt, 2008, p. 50-51; Monteiro e Penna,
2011, p. 200-202).

3. A BNCC E O LIVRO DIDÁTICO

3.1 A QUESTÃO DO LIVRO DIDÁTICO


Comentado [7]: Esta seção está dependente demais de
Freitas, e com cara de fichamento. Outras referências devem
Podemos definir o “livro didático” (LD), genericamente, como uma “categoria entrar, em diálogo (não como seções à parte, como aconteceu
com a seção sobre o conhecimento histórico escolar), como:
ideal-típica designadora de um artefato que ‘apresenta o conhecimento’” (Freitas, 2019, - RÜSEN. O livro didático ideal (In SCHMIDT. Jörn Rüsen
e o Ensino de História)
p. 143). Entretanto, estabelecermos um único sentido para este objeto é uma tarefa árdua - MUNAKATA. O livro didático: alguns temas de pesquisa.
Revista Brasileira de História da Educação, 2012.
que leva em consideração múltiplos recortes teórico-metodológicos que, por sua vez, - CHOPPIN, Alain. História dos livros e das edições
didáticas: sobre o estado da arte. Educação e pesquisa. São
também variam conforme o tempo e o espaço onde estejam inseridos. Paulo, p. 549-566, set./dez. 2004.
- BITTENCOURT. Livro didático e saber escolar (2008).

25
Os debates acerca da “didática” dos livros didáticos de história (LDH) na Europa
do século XIX e início do XX recaíam, sobretudo, nos seus usos na educação regular. Comentado [8]: Quando?

Discutia-se de que modo apresentar seus conteúdos históricos tanto para a “educação
generalista” de jovens de seis aos 15 anos quanto para a instrução de futuros
profissionais civis e militares nas faculdades de filosofia, teologia, direito e medicina.
Dessa forma, livros hoje classificados como “historiográficos”, sem nenhuma forma de
recontextualização4, a não a exercida pelos instrutores ou docentes responsáveis pelas Comentado [9]: explique

aulas5, eram utilizados no ensino escolar (Freitas, 2019, p. 144).

No caso brasileiro, os debates acerca da criação de escolas e disciplinas


relacionadas à História6 nos oitocentos se confundiam com a necessidade de construir
um ideal nacional fundamentado na história do Império quanto manter certa coerência
cronológica com a ideologia educacional católica. Por exemplo, em 1826, o deputado e
historiador Januário da Cunha Barbosa, propôs a criação de uma cadeira de “Geografia
e História civil”, tendo o professor a responsabilidade de ensinar a moral dos povos
antigos e como estes registravam cronologicamente a história. Posteriormente, em 1827,
exigiu-se em uma outra proposta curricular o ensino dos princípios da moral cristã, da
doutrina católica e a Constituição do Império e a História do Brasil. Ainda em 1827,
sugeriu-se a divisão da história em “história geral profana, história sagrada e história do
Império do Brasil” (Bittencourt, 2008, p. 99-100). Haveria, assim, nos primeiros anos
do Brasil imperial, duas histórias distintas, uma voltada aos desígnios do Estado recém-
independente (profana) e outra voltada à moral católica (sagrada), mas ambas com um
objetivo em comum: criar o novo homem brasileiro 7.

Nesse momento da história brasileira, os livros didáticos, assim como exposto


anteriormente por Freitas (2019, p. 144), possuíam formatação e conteúdos muito
diferentes das formas contemporâneas. No que tange ao ensino da história sagrada, os
livros utilizados no processo de alfabetização dos jovens possuíam textos retirados

4 Cito “recontextualização” no mesmo sentido que Basil Bernstein: as maneiras pelas quais conteúdos
disciplinares são incorporados ao currículo de forma que estudantes de diversas idades possam se
apropriar do conhecimento (Young, 2014, p. 10).
5 Como História Universal (1761) de J. Gatterer, Teoria da história (1857-58) de J.G. Droysen, na

Alemanha; História Antiga (1732) de C. Rollim e Introdução aos métodos históricos (1898) de C.-V.
Langlois e C. Seignobos, na França; as Considerações sobre as causas da grandeza e da decadência dos
romanos (1734), do Barão de Montesquieu e o Compêndio de história universal (1881), de Z.C. Pedrozo,
em Portugal.
6 Uso o termo “relacionadas” pelo fato de a História, nesse período, ainda estar se firmando tanto como

ciência quanto como disciplina.


7 Este homem é o homem da elite, instruído pelos sistemas educacionais para exercer as funções

necessárias ao Estado imperial brasileiro.

26
diretamente da Bíblia e outros eram traduções de textos de sacerdotes europeus,
marcados por uma cronologia religiosa cujos referenciais eram o Antigo e Novo
Testamento (Bittencourt, 2008, p. 114). Por exemplo, o Segundo Livro de Leitura de
Barão de Macaúbas, em um de seus capítulos narrava, em linguagem simplificada, os
eventos bíblicos até a morte de Abel. Em seu livro homônimo ao do Barão, Landelino
Rocha reservou 12 capítulos para a vida de Jesus e vários outros para resumos de
parábolas do Novo Testamento (Bittencourt, 2008, p. 112-113). No que se refere à
história profana, é possível identificar uma clara inclinação à História produzida pelos
intelectuais franceses e a passagem de uma história católica para uma positivista. Até a
reforma de Rocha Vaz em 1924, eram utilizados comumente nos ginásios oficiais, com
destaque para o Colégio Pedro II, os dois volumes de Histoíre de la Civilisation, de
Charles Seignobos e o Cours d’Histoire, de Albert Malet (Bittencourt, 2008, p. 120).

Foi somente no século XX que a “didática” transformou-se de um simples


“modo de apresentação” dos conteúdos para um campo acadêmico responsável pela
“elementarização” dos saberes históricos para os menos instruídos. Nesse contexto, os
livros didáticos foram comumente reduzidos a “apresentadores do conhecimento
histórico” previamente produzido pela universidade (Freitas, 2019, p. 143-144). Rüsen
(2007, p. 89) intitula essa separação entre didática histórica e historiografia de “didática
da cópia”, dado que trata o trabalho o professor de história como simples mediação dos
conteúdos historiográficos e escolares em sala de aula. Em contrapartida, essa separação
cria a ideia de que o livro didático é um objeto puramente escolar, normalmente
relacionado com a criação da disciplina escolar de história. Por consequência dessa
diferenciação, nascem dois tipos de pesquisadores que buscam definir o livro didático:
aqueles que enxergam o livro didático como um objeto pertencente essencialmente à
escola (portanto, seriam “livros didáticos”, por exemplo, aqueles contemplados pelo Comentado [10]: pertencente ao que?

PNLD, o Plano Nacional do Livro Didático) e aqueles que veem como “livros didáticos
de história” todos aqueles em que o conhecimento histórico esteja sendo veiculado, Comentado [11]: Corrigir concordância.

independentemente, portanto, do estabelecimento de finalidades, horas curriculares e


etc. (Freitas, 2019, p. 145).

Apesar dos claros avanços, a composição dos LDH apresenta problemas


metodológicos relevantes. Os principais deles recaem sobre a debilidade dos livros
didáticos “na seleção, na distribuição e na interpretação do conteúdo substantivo”
(Freitas, 2019, p. 147).

27
De acordo com o Freitas (2019, p. 147), os autores dos LDH criticam a
“impossibilidades material, epistemológica e ideológica” de se “ensinar todo o
conhecimento produzido pelos historiadores” e a organização de uma narrativa “linear,
diacrônica, moldada em causa e consequência” e “dão como antiquadas as propostas
universalistas e teleológicas”. É verdadeiro que ensinar todo o conteúdo existente é
impossível devido às limitações temporais (sobretudo se levarmos em conta as
tendências atuais de diminuição da carga horária da disciplina de história). Todavia, um
esforço há de ser feito para escaparmos das armadilhas existentes. Jörn Rüsen (2010, p.
115) define que um bom livro didático possui quatro qualidade: um formato claro e
estruturado; uma estrutura didática clara; uma relação produtiva com o aluno; uma
relação com a prática da aula. No que se refere ao formato, é necessário que que o LD
possua uma disposição clara de todos materiais e uma formatação que permita ao aluno
acessar de forma descomplicada os índices, títulos e definições. Já a estrutura didática é
necessária para que os alunos sejam capazes de identificar as intencionalidades didáticas
ao que o livro se propõe. Distanciando-se definitivamente dos anais positivistas muito
utilizados nos oitocentos, Rüsen estipula que os LDs precisam escapar das exageradas
“pretensões científicas” na didática da história. Deveriam, portanto, adaptarem-se à
capacidade de compreensão e às demandas particulares dos alunos sem que, todavia,
percamos de vista as necessidades objetivas para a aquisição de uma consciência
histórica satisfatória. Por fim, o livro didático só será útil caso seja possível trabalha-lo
em sala de aula. De forma semelhante, Munakata (2012, p. 185) encara o livro didático
como uma mercadoria destinada ao seu mercado específico: a escola. Em vista disso, o
LD deve se ajustar ao seu mercado, tornando seu uso frutífero às atividades escolares.
Embora pareça óbvio esse apontamento, um LDH que se atenha apenas à exposição da
história estará abrindo mão do desenvolvimento dos pilares fundamentais para o
desenvolvimento da consciência histórica: a capacidade de julgar e argumentar (Rüsen,
2010, p. 115-118).

Entre os propósitos constantemente presentes nos livros didáticos de história,


estão as tentativas de abordar “origem das primeiras sociedades até as desigualdades da
globalização contemporânea”, a tradicional divisão quadripartite entre História Antiga,
História Medieval, História Moderna e História Contemporânea e a representação
eurocêntrica de comunidades antigas, como os antigos gregos e romanos, inseridos em
um contexto de “pais fundadores” de uma cultura cuja civilização ocidental
contemporânea supostamente seria herdeira. Além disso, recorrentemente encontramos

28
narrativas “essencializadas” e “homogeneizantes”, sobretudo no caso da África.
Constantemente, o continente africano é colocado, como “berço da humanidade”, a
Grécia é tida como “nascedouro da democracia” e o povo hebreu como criadores do
monoteísmo. Essa prática deriva de um “eurocentrismo morfológico” aliado a um Comentado [12]: Dialogar com Morales & Silva (História
Antiga e História Global: afluentes e confluências. RBH v.
“internalismo metodológico” que formou uma concepção cronológica da história 40, n. 83, p. 128).

humana fundamentada nas contribuições à “Civilização” (Morales, Silva, 2020, p. 127-


128). A situação piora quando analisamos os povos não-europeus. Os povos islâmicos
são confinados na Idade Média e as populações ameríndias são inseridas somente
durante a Idade Moderna em um cenário de grandes conquistas onde a Europa é elevada
ao status de “centro do mundo”, não mais sendo a “periferia” (conforme retratado
durante a Idade Média). O mesmo ocorre com o Egito pós-faraônico, a Mesopotâmia
pós-babilônica, a Grécia helenística, a Itália da Idade do Ferro, a história iraniana e o
império persa. Esse último, talvez seja o caso mais evidente — o império Aquemênida,
um dos mais grandiosos da antiguidade, é reduzido aos episódios das guerras médicas
no século V A.E.C., ao retorno dos judeus exilados na Babilônica do século VI A.E.C.,
às campanhas de Alexandre no século IV A.E.C., em contraposição ao protagonismo de
Israel, Grécia e Macedônia, regiões marginais quando comparadas ao império persa. Ou
seja, aparentemente, tudo que for próprio das culturas não-europeias precisa ser
reduzido para alçar a cultura ocidental aos holofotes da narrativa histórica (Freitas,
2019, p. 147; Morales, Silva, 2020, p. 128). O Brasil, nesse contexto, é arrastado junto à
narrativa de expansão do capitalismo durante as Histórias Moderna e Contemporânea.
Mesmo que atualmente os LDH percam para a internet o posto de “principal meio de
acesso às representações sobre o passado local, nacional e global”, essas questões
permanecem graves, pois, os livros didáticos ainda são as ferramentas de formação
inicial e continuada para os docentes (Freitas, 2019, p. 147).

Os autores dos LD não são os únicos culpados por esses problemas, visto que
diversas forças atuam sobre sua confecção. Itamar Freitas (2019, p. 148) expõe que,
aliado à má formação e aos meios de sobrevivência dos professores por exigências da
profissão, a estigmatização dos livros didáticos como “literatura menor” por professores
universitários gera, por consequência, o afastamento de bons pesquisadores de se
tornarem bons autores. Como não bastasse, o mercado editorial “cartelizado” entre
poucas editoras dificulta o acesso ao setor e as regulações sobre as compras
governamentais não correspondem à demanda exigida pelos professores. Entretanto,
tomar o mercado como único agente seria equivocado. A produção e a distribuição dos

29
livros didáticos são mediadas pelo Estado. No Brasil, o Plano Nacional do Livro
Didático (PNLD) é o responsável por essa mediação (Munakata, 2012, p. 188).

Sendo a questão do mercado editorial particularmente relevante para


entendermos a situação dos livros didáticos de história, passemos então para uma
análise sobre a política pública brasileira envolvendo os LDs.

3.2 O PLANO NACIONAL DO LIVRO DIDÁTICO (PNLD) E OS INTERESSES


EM JOGO

O estabelecimento do Plano Nacional do Livro Didático (PNLD) pelo Decreto


n° 91.542, de 19 de agosto de 1985, foi um marco importante nas políticas públicas de
educação no Brasil. As orientações do programa abarcavam uma certa visão sobre os
estudantes de escolas públicas brasileiras e traziam consigo um projeto de nação a ser
realizado no esforço de redemocratização do país (Cassiano, 2013, p. 53).

Em uma conjuntura de programas e manifestos educacionais (como o Programa


Educação para Todos e o documento Compromisso com a Nação), que identificavam,
por exemplo, a pobreza e o baixo investimento na educação básica como os principais
problemas da educação brasileira, o “livro didático e a merenda escolar” são colocados
nos programas assistencialistas. Isso decorre das carências sociais que impossibilitavam
“a compra de material mínimo necessário às atividades pedagógicas” das camadas mais
pauperizadas da sociedade brasileira (Cassiano, 2013, p. 57-58). Assim, o PNLD surge Comentado [13]: Desmembrar.

a partir da necessidade do novo governo civil de sanar (mesmo que parcialmente) a


dívida social existente no Brasil. Comentado [14]: O nome dela é Célia Cristina.

Célia Cristina de Figueiredo Cassiano (2013) divide o PNLD em duas fases


principais: uma iniciada em 1985 com a implementação do Plano, e outra desenvolvida Comentado [15]: vírgula

a partir de 1995. Em sua primeira fase, o PNLD portava um caráter assistencialista,


tendo como segundo plano a “busca pela qualidade na educação” (Cassiano, 2013, p.
58). A região mais contemplada pelo programa foi o Nordeste que, a partir do Projeto
Nordeste de Educação, recebeu 43% dos livros distribuídos. A política inicial do PLND
alinhava-se às recomendações técnicas do Banco Mundial, haja vista o financiamento
do órgão ao projeto (o atendimento ao Nordeste contou com um financiamento de U$
418,6 milhões do banco). Dentre os preceitos presentes no documento O financiamento
da educação nos países em desenvolvimento: opção de política, estava o

30
reconhecimento da importância no uso dos materiais didáticos, com destaque para o
livro didático. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que era elevado à condição primeira
para o atendimento das demandas educacionais brasileiras, o livro didático tinha suas
orientações técnicas ajustadas às normas internacionais de ensino (Cassiano, 2013, p. Comentado [16]: corrigir a continuidade da frase após o
aposto (está “o livro didático... suas orientações”)
58-59).

Entretanto, a primeira fase do PNLD não resolveu os problemas da educação


brasileira. Aliado à corrupção dos centros responsáveis pelas decisões políticas e à não
prescrição de uma fonte financiadora para o custeio do Plano, o programa falhou em
distribuir universalmente os livros didáticos aos alunos da educação básica (Cassiano,
2013, p. 63). Além disso, as compras governamentais restringiram-se a poucas editoras,
configurando um processo de “cartelização” (Freitas, 2019, p. 148) e formação de
oligopólios.

Por exemplo, entre 1985 e 1991, das 64 editoras participantes do PNLD, o


fornecimento de 84% dos livros didáticos ficou restrito somente a sete editoras: Ática,
Brasil, FTD, IBEP, Nacional, Saraiva e Scipione, restando às outras 57 editoras a
pequena fatia de 16% do mercado. Entre 1997 e 1998, houve uma diminuição
significativa na quantidade de editoras participantes, sendo apenas 25 o número delas:
Access, Ática, Atual, Ao Livro Técnico, Base, Block, Braga, Brasil, Ciência e Paz,
Contexto, Dimensão, Formato, FTD, Harbra, Lê, Memórias Flutuantes, Moderna, Nova
Geração, Quinteto, Renascer, Saraiva, Solução e Scipione. No século XXI, a queda é
vertiginosa, sendo dezenove participantes em 2002, quatorze em 2003 e 2004 e treze
2005 e 2006 (Cassiano, 2013, p. 72). Podemos perceber, portanto, que o PNLD se
tornou um campo de disputa entre editoras onde apenas as maiores sobrevivem em
busca do fornecimento de livros didáticos para o Estado brasileiro.

A partir de 1995, inicia-se a “segunda fase” do PNLD. Nesse período, há a


consolidação do programa e a delimitação de novas etapas extremamente necessárias
para o aperfeiçoamento dos livros didáticos e sua distribuição. Foi a partir da elaboração
da Declaração Mundial sobre a Educação para Todos em Jomtien, na Tailândia, que o Comentado [17]: quando?

Brasil e demais países membros pactuaram a criação de planos nacionais de educação


que objetivassem atender às demandas particulares da educação básica de cada país
(Cassiano, 2013, p. 75). Além da presença dos países, a conferência contou com 150
entidades não-governamentais como a Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Apesar de seu caráter aparentemente

31
independente e humanitário, a atuação desses órgãos, assim como a do Banco Mundial,
é vista como interventora a favor da política econômicas dos países capitalistas centrais Comentado [18]: ?

(Cassiano, 2013, p. 75-76). Dessa forma, as atividades dessas autarquias internacionais


são interpretadas enquanto “condicionantes que privilegiam leis de mercado que, a
pretexto de gerar o desenvolvimento dessas regiões, aprofundam suas mazelas,
mantendo e/ou aumentando os desníveis existentes (Cassiano, 2013, p. 77). Comentado [19]: Citação longa fora do padrão.

Segundo Galzerano (2021, p. 3), na expansão do capitalismo neoliberal pode-se


observar três tendências principais do avanço do capital sobre os bens públicos: a
centralidade do capital fictício, os movimentos de concentração e centralização de
capitais e as disputas pelos fundos públicos. Entretanto, creditar somente aos ententes
privados a autoria desse avanço seria equivocado, dado que o Estado, através de seus
agentes, exerce uma tarefa importante nessa lógica privatista. Por exemplo, durante a Comentado [20]: É estranha essa distinção. Afinal, o
Estado capitalista está a serviço do Capital.
década de 1990, em um contexto de reforma do Estado brasileiro, os sujeitos locais (ou
seja, os agentes estatais), tiveram uma atuação destacada. Houve uma aproximação
ideológica, principalmente durante o governo Collor (1990-1992), entre a equipe do
Brasil e do Banco Mundial para o ajuste das contas públicas e para as reformas
estruturais necessárias para estabilizar a economia brasileira. No contexto educacional,
os empréstimos feitos pelo BM saltaram de 2% para 29% entre 1987 e 1994. A grande
questão desses empréstimos é que estes estavam ligados à “capacidade de os governos
locais de induzir a redução dos gastos públicos, o barateamento dos custos sociais, o
autofinanciamento dos ensinos médio e superior e a retração do Estado no setor social”,
configurando um alinhamento ao capital internacional (Cassiano, 2013, p. 98 e
Galzerano, 2021, p. 4). Comentado [21]: Seria importante que você tomasse esta
reflexão como referencial para a discussão sobre BNCC,
disciplinas, etc. que está mais acima.
A nomeação de Paulo Roberto Souza, ex-funcionário do Banco Mundial, para o
Ministério da Educação (MEC) em 1995, por exemplo, materializa a confluência de
ideias entre o governo brasileiro e as orientações político-econômicas dos órgãos
internacionais. Portanto, afere-se que a subordinação do Estado às diretrizes
internacionais não se dá pela simples imposição das agências financeiras ao Brasil, mas
sim pela atuação se sujeitos que jamais esconderam e se mantiveram fiéis aos seus
ideais (Cassiano, 2013, p. 99).

No caso brasileiro, materializou-se como resultado da conferência de Jomtien,


com apoio do Banco Mundial e da Unesco junto ao MEC, o Plano decenal de educação
para todos (1993-2003). O documento visava organizar os esforços e as estratégias

32
necessárias para a universalização da educação no Brasil sob padrões de qualidade
básicos. Curiosamente, foi sob o patrocínio da Associação Brasileira dos Editores de
Livros Didáticos (Abrelivros), que o Plano decenal foi editado, publicado e distribuído
para todas as escolas e órgãos públicos brasileiros. Esse apoio não veio de anseios
filantrópicos: as diretrizes contidas no documento privilegiavam o livro didático como
principal recurso pedagógico das escolas. Essas diretrizes, mais uma vez, estavam
alinhadas com as políticas internacionais, haja vista o Relatório Jacques Delors da
Unesco que considerava o livro didático como “suporte mais fácil de manejar e mais
econômico” Cassiano, 2013, p. 78-79).

Um dos principais aprimoramentos d livro didático feitos pelo plano decenal diz
respeito ao estabelecimento de uma comissão responsável tanto por analisar a qualidade
dos conteúdos pedagógico-metodológicos presentes no material didático, como por
estabelecer novos critérios para as futuras compras governamentais. Foi somente em Comentado [22]: “Foi somente”

1996 que o MEC constituiu oficialmente a qualificação pedagógica dos materiais


didáticos comprados pelo PNLD. A comissão formada pelo MEC foi dividida por áreas
de conhecimento: Alfabetização e Língua Portuguesa;Ciências; e Estudos Sociais Comentado [23]: ;

(posteriormente, Geografia e História). Os critérios formulados pela comissão foram


catalogados no documento Guias de Livros Didáticos, que deveria ser distribuído às
escolas, visando orientar os professores na escolha do livro didático (Cassiano, 2013, p.
80-81). A questão da fragilidade do financiamento do PNLD, conforme exposto durante
a sua primeira fase, só seria resolvida durante o governo Itamar Franco (1992-1994)
com o estabelecimento de um fluxo regular de recursos financeiros destinados ao Plano
(Cassiano, 2013, p. 82).

Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) mais mudanças


foram implementadas. Dentre elas, as mais relevantes foram a criação dos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs), com o objetivo de auxiliar os professores nas tarefas Comentado [24]: “foram”

pedagógicas esperadas de cada disciplina, e a mudança da fonte dos recursos, que não Comentado [25]: vírgula

mais seriam feitos pela Fundação de Assistência ao Estudante (FAE), mas sim pelo Comentado [26]: vírgula

FNDE, o Fundo Nacional de Desenvolvimento Para a Educação (Cassiano, 2013, p. 84


e 86).

O estabelecimento dos PCNs junto aos critérios de qualidade do livro didático


estabelecidos pela comissão exerceu funções relevantes no produto final dos conteúdos
selecionados nos LD. De acordo com Cassiano (2013, p. 108-109), a partir da

33
universalização da assistência aos estudantes da educação básica, o livro didático
tornou-se um “aglutinador do currículo nacional”, tendo os “Parâmetros Curriculares
Nacionais” como seus norteadores.

Nos governos Lula (2003-2010) e Dilma (2011-2016), a tendência se manteve.


Não houve resistência do Estado contra o capital estrangeiro, e onde este capital pôde
atuar, houveram impactos significativos e, assim, o processo de neoliberalização do
Brasil também se configurou enquanto um processo de desnacionalização e
desindustrialização. Nessa conjuntura, formou-se no país uma grande rede de
conglomerados de educação relacionados ao mercado financeiro ao ponto que, das nove
maiores empresas de educação do mundo, o Brasil contava com três delas:
Kroton/Cogna, Estácio e Somos Educação. A Kroton/Cogna, por exemplo, possui
participação majoritária no PNLD. A participação de órgãos internacionais como
Unesco e Banco Mundial e grandes conglomerados de educação são problemáticas,
pois, admitindo a parcialidade do currículo e seu papel legitimador de saberes, estes
agentes se tornam capazes de ditar os rumos ideológicos de uma geração inteira
(Galzerano, 2021, p. 3, 5 e 14). Comentado [27]: Mais um ponto importante para rever o
tom da discussão anterio sobre bncc e currículo baseado em
disciplinas.
Isto posto, que função a Base Nacional Comum Curricular exerce nos livros
didáticos? De forma semelhante aos PCNs durante os anos iniciais do PNLD, a BNCC
aparece como agregadora do currículo nacional (como seu nome propriamente sugere),
estabelecendo um núcleo comum de conteúdos a serem apreendidos pelos estudantes
brasileiros.

Isso fica evidente, de acordo com Luiz Carlos de Freitas (2017), na demanda
feita pelo edital do PNLD de que os editores se comprometam a adaptar os livros
didáticos às exigências da BNCC, pois, o material didático seria o responsável por
moderar a atuação docente em sala de aula. Antes disso, os professores e editores
possuíam certa autonomia sobre o conteúdo e agora com a padronização exigida pelo
PNLD junto à BNCC, os conteúdos e seus conceitos serão sequenciados pelas normas
(além de organizados por habilidades e competências). Comentado [28]: habilidades e

Até mesmo própria formulação da BNCC é passível de questionamentos. Uma


das principais forças pela criação da BNCC foi o Movimento Pela Base, criado em 2013
a partir de um seminário internacional realizado nos Estados Unidos. Além de criado e Comentado [29]: Nova frase.

patrocinado pela fundação Lemann, participaram do evento instituições privadas

34
gigantescas, como Itaú BBA, Instituto Unibanco, Instituo Ayrton Senna, Todos pela
Educação e etc. (Galzerano, 2021, p. 15). Comentado [30]: Então! Reveja o que vc disse sobre a
BNCC e a base de crítica aos conteúdos e disciplinas e vc vai
entender de onde vêm aqueles discursos.
Portanto, a atuação de órgãos financeiros educacionais e dos grandes
conglomerados de educação é preocupante, pois tende a priorizar interesses econômicos
em detrimento da qualidade e da diversidade educativa. A influência desses agentes
pode resultar em uma padronização excessiva do currículo, desconsiderando as
particularidades regionais e culturais dos estudantes. Além disso, a centralização da
produção de materiais didáticos por esses conglomerados pode limitar a concorrência e
a inovação, levando à criação de conteúdos que favorecem mais os objetivos comerciais
do que a formação crítica e integral dos alunos. Esse cenário contribui para a redução
das potencialidades e o papel transformador que a educação pode exercer na sociedade e
nos indivíduos.

3.3 OCIDENTE, ORIENTE E CIVILIZAÇÃO NA BNCC

Dentre os procedimentos básicos propostos pela Base Nacional Comum


Curricular (BNCC) para o ensino de História no Ensino Fundamental – Anos Finais,
destaca-se um que, entre os demais, revela-se de extrema pertinência para esta análise:
de acordo com o documento, uma das funções objetivas do ensino nesse estágio
formativo deveria se dar “Pela investigação dos eventos considerados importantes na
história do Ocidente (África, Europa, América, especialmente o Brasil), ordenando-os
de forma cronológica e localizando-os no espaço geográfico” (Brasil, 2018, p. 416, grifo
nosso).

Esse trecho nos provoca, pelo menos, três questões iniciais para o ensino de
História Antiga do Oriente (HAOr) no Brasil: que Ocidente é este; qual sua relação com
a história deste ocidente; e por extensão, com a história brasileira e qual sua importância
para o estudante brasileiro.

Primeiramente, o “Ocidente” não é uma região restrita apenas ao espaço


geográfico referente à somatória de países situados “à oeste” de um determinado ponto
referencial no mapa, mas sim uma categoria bastante abstrata e arbitrária que reuniria
aspectos culturais, linguísticos, religiosos, sociais e econômicos. A “civilização
ocidental”, nesse sentido, seria definida através de um conjunto de características
comuns identificáveis aos diversos países componentes destas sociedades que, segundo

35
Samuel Huntington (1997, p. 83-86), englobariam o legado clássico (ponto de extrema
importância para a discussão deste capítulo), marcado pela filosofia e o racionalismo
dos gregos e o Cristianismo, o latim e o Direto dos romanos; o Catolicismo e o
Protestantismo, religiões predominantes em todos países “ocidentais”; idiomas
europeus, estes espalhados por todo o globo durante a expansão colonial europeia;
separação entre autoridade temporal e espiritual, não havendo, portanto, a simbiose
entre a Igreja e o Estado; o império da lei, ou seja, a noção de que as leis são
fundamentais para o ordenamento da sociedade por intermédio da garantia dos direitos
humanos e, sobretudo, da propriedade; pluralismo social, composto por diversas
camadas de grupos associativos (e futuramente classes) sem ligação sanguínea entre si
(aristocracia, monastérios, ligas, etc.); corpos representativos, que representavam os
interesses desses diversos grupos; e, por fim, o individualismo, fruto do
desenvolvimento histórico dos diversos pontos expostos anteriormente, criando uma
tradição de valorização dos direitos e liberdades individuais.

Huntington (1997, p. 86), todavia, nos adverte que a presença ou a ausência dos
tópicos listados não se manifestariam de forma homogênea na formação histórica e
muito menos fariam parte da composição atual de todas as sociedades ocidentais e não-
ocidentais. O que caracterizaria uma sociedade como membro deste Ocidente
imaginário seria, de fato, a combinação de diversos destes fatores. De forma simétrica,
as sociedades que divergirem, ou que não apresentarem predominantemente o
entrelaçamento dessas características seriam, por consequência, desconsideradas da
seara ocidental.

Tão necessário quanto criar o Ocidente, foi também criar seu contraponto
imediato de forma que legitimasse o status quo europeu. O Oriente é, de certa forma,
uma invenção europeia. Um espaço onde estão localizadas suas antigas colônias, a fonte
das suas civilizações e línguas, seu maior concorrente cultural e uma das mais
frequentes representações do Outro que, desde pelo menos a Antiguidade, o misticismo
e o exotismo das narrativas europeias recaem sobre. Além disso, é importante pontuar
que o Oriente não se constitui apenas como um depositório inerte de imagens
orientalistas com linguagens, discursos e instituições coloniais próprias, mas também se
insere de modo fundamental na construção da cultura e da história europeia, ajudando a
definir sua identidade pelo contraste do não-europeu (Said, 1996, p. 13-14). Assim, a
noção que possuímos de “ser oriental” (e, por consequência, “ocidental”) está
umbilicalmente conectada com as concepções europeias de sua própria cultura que, nas

36
palavras de Edward Said sobre a definição histórico-geográfico-cultural de Oriente:
“[...] é uma ideia que tem uma história e uma tradição de pensamento, imagística e
vocabulário que lhe deram realidade e presença no e para o Ocidente. As duas entidades
geográficas, desse modo, apoiam e, em certa medida, refletem uma à outra” (Said,
1996, p. 17, grifo nosso).

Fica evidente, portanto, a irrelevância da localização geográfica para o ingresso


no “mundo ocidental”. Muito por essa razão nos acostumamos a ver times de futebol
israelenses participarem (em que pese os conflitos geopolíticos do Oriente Médio) de
competições de futebol europeia sem estranhamento algum, países como Nova Zelândia
e Austrália serem retratados corriqueiramente como “ocidentais” mesmo que
localizados na longínqua Oceania e a mudança de postura da grande mídia acerca dos
países já não mais socialistas do antigo bloco soviético no pós-guerra fria, sobretudo a
Polônia e a Ucrânia. Fazer parte do Ocidente nunca foi uma questão espacial, mas sim
cultural e, por extrapolação, política.

Curiosamente, o continente africano, — detentor de uma vasta variedade étnico-


cultural cujos países pouco (ou nada) possuem em comum uns com os outros
internamente e muito menos com os demais não-africanos mencionados até aqui —, é
convocado pela BNCC a fazer parte do Ocidente. De fato, a África foi forçada a
ocidentalizar-se durante os séculos de dominação colonial europeia, mas preservou, até
certo ponto, características culturais muito particulares para a construção da identidade
própria de seus países pós-independência. O que é importante para nós, de fato, é como
a antiguidade destes dois vastíssimos continentes (África e Ásia) se relacionam com a
história ocidental, tema abordado pelo documento.

Em diversos países, incluindo o Brasil, a disciplina de História Antiga (HA) é


comumente dividida em três repartições principais e sucessivas entre si: Antiguidade
Oriental (composta, principalmente, pelo Egito e Mesopotâmia), Grécia e Roma
(Guarinello, 2014, p. 67). O problema nesse tipo de formatação é a noção que o autor
chama de “corrida de revezamento”, a ideia de que a “tocha” da civilização percorreria
o sentido “Leste-Oeste”, apagando-se conforme se afastasse das civilizações orientais e
reacendendo-se conforme se aproximasse das sociedades ocidentais. A BNCC segue
essa tendência. Dentre as exigências feitas para o ensino de História Antiga do Oriente
estão delimitados, explicitamente, os povos relevantes para os ocidentais: os egípcios e
mesopotâmicos (Brasil, 2018, p. 420). Nenhuma outra sociedade africana ou asiática é
mencionada. Qual a relação da antiguidade egípcia e mesopotâmica com o Ocidente

37
para alçar ambas sociedades a este patamar de relevância? A resposta é curta e ao
mesmo tempo, complexa: ambas são, tradicionalmente, creditadas como progenitoras da
“civilização”, conceito de extrema importância para a construção da ideia de Ocidente.
Todavia, essa escolha, mais uma vez, é puramente arbitrária e esconde raízes
controversas dignas de investigação maior.

Essa formatação não é uma novidade trazida pela BNCC para a educação
nacional. O Colégio Pedro II (CPII), a primeira instituição de ensino secundarista oficial
do país, adota, já no século XIX, através do Decreto n. 4.568 de 01 de janeiro de 1870,
o ensino de tipo humanista, contendo disciplinas como a de História Antiga, Geografia,
Latim e Grego (Silva, 2010, p. 115). Essa educação, por sua vez, objetivava a formação
do “homem civilizado”, aquele capaz de atender as expectativas da sociedade imperial.
O quadro não sofreria mudanças substanciais com a queda do Império, perdurando a
educação humanista durante grande parcela da Primeira República. A antiguidade
oriental, nesse momento, foi marginalizada, servindo apenas como “ponto de partida”
para o processo civilizatório europeu cujo ápice seriam as conquistas coloniais a partir
do século XV. O Brasil, na condição de membro do mundo ocidental, seria um dos
herdeiros da cultura greco-romana (Tavares, 2012, p. 90). Gilberto da Silva Francisco e
Luís Ernesto Barnabé nos trazem reflexões importantes acerca disso. De acordo com
Francisco (2017, p. 36), a antiguidade da história foi construída conforme as ânsias da
história universal: uma história que tinha o começo muito bem definido e um fim
disputado, e que se projetava para toda a humanidade [...]. E, segundo Barnabé (2014,
p. 117), foram as ações educacionais dos Estados americanos e, por consequência, os
materiais didáticos produzidos (ou apoiados) por estes Estados, que possuíram o
objetivo de inserir as nações na única linha de progresso humano possível: o da
civilização cristã ocidental — ideia propagada desde pelo menos o século XIX pelas
elites intelectuais e econômicas brasileiras. Todas as sociedades, portanto, deveriam
partir de um marco de referência inicial comum que, nesse caso, privilegiaria a história
europeia. As discussões aqui não envolvem assuntos puramente de natureza pedagógica,
mas, principalmente, histórico-ideológicas. As polêmicas sobre a formulação da BNCC,
quando envolvidas as disciplinas de História Antiga e Medieval, possuíam como seus
principais pontos de debate e discordância entre o corpo docente os obstáculos acerca
das “narrativas-mestras” da modernidade, os processos civilizatórios, seus elementos
claramente europeus e as ideias que alicerçam a concepção de mundo ocidental
(Moerbeck, 2021, p. 53). O ensino de História, nesse sentido, enquanto ferramenta de
acesso ao passado e construtor de projetos de nação para o futuro, se desdobra como

38
fator fundamental para a manutenção (ou alteração) destes discursos (Moerbeck, 2021,
p. 52).
Para além disso, os saberes escolares revelam, em última instância, escolhas
feitas por uma sociedade (Barnabé, 2014, p. 119) que, no caso aqui evidenciado, são as
escolhas feitas pelo Ocidente. Considerando as questões levantadas anteriormente, qual
a relevância, afinal, da História Antiga do Oriente para os estudantes brasileiros, além
da construção desse Ocidente imaginário cujo Brasil é considerado membro enquanto
colônia “descendente” e continuação histórica da Europa? De fato, ao primeiro contato,
a desimportância dada recorrentemente ao ensino da História Antiga do Oriente parece
compreensível, haja vista o distanciamento espacial e temporal do aluno brasileiro para
com o objeto de estudo.
Apenas duas habilidades altamente limitantes são consideradas: a (EF06HI07) e
a (EF06HI08). A primeira pretende “Identificar aspectos e formas de registro das
sociedades antigas na África, no Oriente Médio e nas Américas, distinguindo alguns
significados presentes na cultura material e na tradição oral dessas sociedades”, e a
segunda “Identificar os espaços territoriais ocupados e os aportes culturais, científicos,
sociais e econômicos dos astecas, maias e incas e dos povos indígenas de diversas
regiões brasileira” (Brasil, 2018, p. 421). Interessante notar que a unidade temática a
que essas competências pertencem é intitulada “A invenção do mundo clássico e o
contraponto com outras sociedades”. Isto demonstra uma clara subordinação da história
desses povos em relação à construção da base civilizacional ocidental (lembremos da
importância do “legado clássico” apontado por Huntington) e sua abordagem
meramente comparativa, quase como se as sociedades próximo-orientais não fossem
participantes ativas na construção das instituições e cultura grega.

3.4 A ANTIGUIDADE ORIENTAL NA ACADEMIA

É impossível falarmos sobre o estudo da Antiguidade Oriental sem nos atermos à


Antiguidade Clássica grega, a Pólis e a importância de suas imagens para a construção
do Ocidente. Isto se deve, principalmente, às características próprias do
desenvolvimento do campo da História Antiga.

Segundo Bruce Trigger (2008, p. 40-41), dos aborígenes australianos


contemporâneos aos gregos antigos, quase toda sociedade humana, de certa forma,

39
possui algum interesse em seu próprio passado. Para nós, “ocidentais”, as fontes mais
antigas para a gênese de nossa civilização encontram-se na Antiguidade, período
histórico anterior à História Medieval e Moderna, que não só atribui sentido lógico aos
processos históricos europeus (expansão colonial e desenvolvimento capitalista), mas
também tece identidades individuais e coletivas nas grandes narrativas nacionais
(Guarinello, 2004, p. 164). De forma complementar, Martin Bernal (2005, p. 13-14) nos
lembra que, diferentemente de um suposto distanciamento da política moderna — seja
por questões temporais ou ideológicas — creditado à pesquisa e ao ensino, a origem da
Antiguidade está, na verdade, intimamente inserida na lógica de dominação e
legitimação cultural europeia. Portanto, a produção historiográfica acerca da
Antiguidade e, por consequência seu ensino, não estariam alheios aos anseios do
período histórico e meio em que se inseririam, mas sim representariam uma
manifestação do contexto sociocultural em que foram concebidas (Bernal, 2005, p. 13-
14).

Guarinello (2004, p. 173) caracteriza o surgimento da História Antiga como “um


movimento cultural e literário de produção de memória a partir de textos e objetos”.
Para o historiador, os vestígios materiais da Antiguidade, inicialmente, não constituíam
espaços de memória na paisagem para os indivíduos imediatamente posteriores ao
período. O fórum romano, na própria cidade de Roma, por exemplo, era utilizado,
Guarinello, 2004, p. 173). O autor, entretanto, não se refere aqui a um desinteresse
intrínseco para com as ruínas de Roma, mas sim que o conhecimento relativo a um
mundo pré-cristão foi se dissipando com o passar dos séculos. Com o surgimento de
uma metodologia científica nos séculos XVIII e XIX, estas mesmas ruínas foram
ressignificadas de acordo com as manifestações culturais de seu tempo.

O interesse pelo passado sempre existiu. Podemos identificar ainda na Idade


Antiga, mais precisamente nas sociedades egípcias e mesopotâmicas, que os artefatos e
construções antigas não só eram valorizados enquanto relíquias de antigos governantes
que representavam um período de grandeza política e material, mas também como
fontes sobre o passado (Trigger, 2008, p. 43). Diversos são os exemplos. Durante a XII
Dinastia do Reino Médio egípcio (1991-1786 a.E.C.), artesãos reais copiavam estilos
artísticos e arquitetônicos do Reino Antigo e incorporavam-nos às tumbas reais de seu
tempo. A mesma preocupação com o passado se perpetuou durante a XVIII Dinastia do
Reino Novo (1552-1305 a.E.C.), com os grafites deixados por escribas registrando suas
visitas a monumentos abandonados antigos, em uma tentativa de estudar e autenticar

40
festejos reais. Na XIX Dinastia (1292-1189 a.E.C.), Khaemwese, filho de Ramsés II,
estudou os textos ligados às construções religiosas abandonadas perto da cidade de
Memphis, objetivando repará-las e reviver seus cultos.

Nabônido (556-539 a.E.C.) e outros governantes babilônicos posteriores


escavaram e estudaram antigos templos feitos de tijolos de barro, buscando reconstruí- Comentado [LGG31]: De que época eles são?

los em seu original e restaurar seus cultos. Ademais, também eram feitas coleções de Comentado [GM32]: Trigger não especifica e ainda não
encontrei uma referência que tenha as informações
estatuetas e textos antigos visando purificar os ritos. O acervo reunido por Bel-Shati- Comentado [LGG33]: Essas coleções e estatuetas já dizem
respeito a Bel-Shati Nannar, ou a épocas anteriores?
Nannar, filha de Nabônido, por exemplo, é considerado como o mais antigo museu de Lembre-se que a própria coleção da chamada Biblioteca de
antiguidades conhecido (Trigger, 2008, p. 43-44). Fica evidente, portanto, a importância Assurbanipal, em Nínive, reuniu no séc. VII cópias de textos
editados pelos escribas locais e de outras cidades. Muitos
deles referiam-se a mitos (como Gilgámesh e o Enuma Elish)
dada pelos povos mesopotâmicos e egípcios antigos ao passado. Isso se dava, segundo cujas versões mais antigas remontam à Idade do Bronze. Não
sei se é o caso de mencionar aqui, pois não tenho certeza se a
Trigger (2008, p. 44), pela crença na proximidade temporal desses saberes e artefatos coleção de Assurbanipal (na verdade dele e de Senaqueribe)
em relação ao ato da criação divina de suas civilizações que, por sua vez, carregariam de fato continha peças tão antigas, ou se apenas placas
“modernas” com conteúdo antigo.
consigo os modelos ritualísticos e societários mais puros a serem seguidos. O
entusiasmo sobre o passado, todavia, não foi suficiente para que essa “forma antiga de
antiquarismo” se desenvolvesse mais a fundo, limitando-se apenas ao aperfeiçoamento
de ritos baseando-se na ideia de que os conhecimentos passados seriam superiores aos
presentes (Trigger, 2008, p. 44-45). Comentado [LGG34]: Não encontrei outras referências
sobre antiquarismo antigo. Mas tem um livro que trata de
como os antigos tratavam vestígios fósseis. Acho que é
Os gregos antigos possuíam dois termos diferentes para designar as formas nas importante vc guardar essa referência, para publicações
futuras (não se preocupe em colocar aqui, agora): MAYOR,
quais eles se relacionavam com o passado histórico: a historia e a archaiologia. O Adrienne. The First Fossil Hunters (2000). Se algum dia vc
quiser ler mais sobre esse tema, me peça referências sobre
primeiro termo (nossa definição de História contemporânea deriva etimologicamente) como os antigos gregos e romanos pensaram sobre a Pré-
História.
passou a ser utilizado, durante o V século a.E.C., por pensadores gregos como Heródoto
(costumeiramente creditado como “pai da História”) e Tucídides, no contexto de
investigação dos fatos ocorridos durante as Guerras Médicas. Essa forma de
investigação consistia na formulação de uma pergunta inicial para que, através da
análise e a síntese dos dados, fosse possível chegar às conclusões esperadas sobre os
eventos do passado recente. Diferentemente da historia, o segundo termo (cuja
etimologia moderna também decorre), era utilizado durante o IV século a.E.C. para
descrever, literalmente, o estudo do passado remoto

As imagens sobre a antiguidade grega sempre fascinaram os entusiastas e os


intelectuais. Podemos citar, como exemplo, a revitalização dos escritos greco-romanos a
partir do século XIII na Itália renascentista. Esses textos, ao serem inseridos na cultura
erudita europeia, foram interpretados como representantes de uma cultura diferente da
medieval, muito útil ao mundo moderno que nascia, por ser “laica, livre e despida das

41
influências da Igreja Católica”. Nesse sentido, eles serviram de fonte para a formulação
de “novos” padrões estéticos, novas formas de se pensar as relações entre sociedade e
Estado, de valorizar a riqueza, o comércio e etc. (Guarinello, 2013, p. 18-19). Esse
movimento partiu de um profundo processo de reconstrução de memória com o objetivo
bem claro de rejeitar o passado medieval e construir uma nova identidade adequada aos
anseios presentes e futuros. O antigo, nesse contexto, aparece como produto dessa
“nova identidade europeia”, exercendo o papel fundamental nas revoluções culturais,
políticas, econômicas e sociais da era moderna como referencial teórico e identitário
(Guarinello, 2013, p. 19-20).

Mesmo com a reabilitação dos textos antigos durante o Renascimento, os


trabalhos sobre a Antiguidade não se constituíram como uma ciência nos moldes que
conhecemos hoje em dia. Somente nos séculos XVIII e XIX que os estudos sobre a
Antiguidade ganhariam contornos científicos. Algumas das características notáveis
desse período são a exclusão do estudo do Antigo Oriente como disciplina científica e a
supervalorização da experiência grega. Enquanto a Antiguidade Oriental estava restrita
às especialidades (estudos da Bíblia, Egito, Mesopotâmia e cristianismo) desconectadas
entre si, a Antiguidade Ocidental (Grécia e Roma), era vastamente utilizada como ponto
de partida para o surgimento dos Estados Nacionais europeus (Guarinello, 2013, p. 20).
Essas narrativas sobre a existência de um Estado ou nação grega trouxeram consigo um
problema ainda maior: a noção de uma evolução civilizatória que supostamente se
iniciaria nas civilizações antigas e atingiriam seu auge nas civilizações capitalistas
europeias contemporânea (Guarinello, 2013, p. 22).

Nesse sentido, a História Antiga atuou como recurso narrativo para os debates
acerca da superioridade das liberdades ocidentais sobre o despotismo oriental, as
vantagens e desvantagens da democracia ateniense, demagogia e irracionalidade das
massas e etc. (Guarinello, 2013, p. 27). Assim, os Estados europeus, ao fundamentarem
o nascimento e o desenvolvimento de suas nações nas civilizações greco-romanas,
produziram, conjuntamente à “memória do Ocidente”, uma “identidade ocidental” que
teria como seu contraponto o Oriente.

Nesse contexto, a cidade antiga, sobretudo a Pólis, foi o principal objeto de


investigação de historiadores. Essa compreensão da História Antiga como uma “história
das cidades”, ou seja, uma interpretação da antiguidade grega a partir dos diferentes
estágios da pólis, deu espaço especial para que Atenas ascendesse ao posto de pólis

42
grega par excellence (Francisco, Morales, 2016, p. 69). Esse fenômeno, conhecido Comentado [35]: Ver também Vlassopoulos (a pólis como
princípio organizador da História da Grécia).
como “atenocentrismo”, não se deu pela abundância de vestígios materiais e textuais do
sítio arqueológico ateniense. De acordo com Francisco e Morales (2016, p. 72-73), as
experiências de outras comunidades gregas no Mediterrâneo eram conhecidas e
pesquisadas, mas, dado o contexto de desenvolvimento da disciplina no século XIX
anteriormente mencionado, os debates estavam direcionados aos interesses dos Estados
Nacionais. Como consequência, a pólis grega se tornou o centro organizar de toda a
história grega. Por muitas vezes, tomada como uma entidade unitária (isto é, que se
replica de forma semelhante em todo mundo grego), essa perspectiva esconde a
variedade e as especificidades das diversas comunidades urbanas que floresceram tanto
na Grécia continental quanto em suas ilhas no Egeu e nas colônias espalhadas pelo
Mediterrâneo (Vlassopoulos, 2007, p. 55).

Atualmente, a visão de uma situação política homogênea e de uma dicotomia


entre “valores cidadãos ocidentais” e o “despotismo próximo-oriental” na Antiguidade é
fortemente debatida. Mas, por meio desse contrate, o conceito de pólis funcionou, por
muito tempo, como o limite que demarcava a fronteira entre a história das comunidades
gregas das comunidades próximo-orientais (Vlassopoulos, 2007, p. 101). Entretanto,
segundo Kostas Vlassopoulos (2007, p. 101-102) afirma, a antiguidade grega pode (e
deve) ser vista dentro do contexto de mudanças do “Mediterrâneo Oriental” e não
apenas como o passado “autorreferente” do Ocidente, pois, se o despotismo oriental
nada mais é que um construto eurocêntrico, então a história grega e suas poleis deverão
ser analisadas de maneira diferente. Por exemplo, na cidade-estado de Lócris, na Grécia
continental, durante o V século A.E.C., Perkothariai e Mysacheis que possuíam leis e
privilégios particulares (Vlassopoulos, 2007, p. 103). Como falar, então, de uma Grécia
uniforme e exemplo de cidadania antiga?

Comentado [36]: Se não me engano, em alguns casos


O Oriente Próximo, por sua vez, também está muito distante de ser a terra do excepcionais isso podia acontecer sim, por exemplo, se a
pessoa deixasse de cumprir com as obrigações de tributo
despotismo. A distinção entre livres e escravizados é bastante clara nas fontes próximo- (em espécie e em trabalho), isso podia acontecer. Tenho a
impressão de que fugas e crimes podiam levar à escravidão
orientais. Na Mesopotâmia, por exemplo, identificamos quatro categorias distintas: os também. O importante, a meu ver, é que há uma preocupação
nos contratos de compra e venda de escravos, de que o
cidadãos livres; as pessoas livres, mas não-cidadãos, semi-dependentes, porém não comprador não está comprando alguém que não pode ser
vendido. Ou seja, há uma preocupação, nos costumes, de
escravas; e os escravos. Havia uma preocupação com a diferenciação entre livres e resguardar os livres da indignidade da escravidão. Mas isso
terá limites. É importante ver como a coisa se encontra nos
escravos, de forma que os indivíduos considerados livres estivessem resguardados, nos códigos (veja Hamurábi e Eshnunna).
Dá uma olhada no Trabalho e Escravidão do Ciro.
contratos, de serem transformados em escravos. Todavia, pelo Código de Hammurabi, o No caso das mulheres, isso acontecia em diversas
circunstâncias. Dá uma olhada no capítulo 17, “Women
marido poderia oferecer sua mulher e filhos como garantia de dívidas sob o risco de robbed of their freedom”, no Women in the Ancient Near
East, de Marten Stol (tem pra baixar).
tornarem-se escravos caso o débito não fosse quitado (Stol, 2016, p. 311-312). Ademais,

43
o Estado mesopotâmico, durante o período neobabilônico, dava garantias legais de que
os escravos vendidos não eram nem escravos do palácio, nem uma pessoa livre, além de
defender direitos, privilégios e obrigações, como a não participação de escravos nas
assembleias dos cidadãos e a compra de direitos de prebenda (Vlassopoulos, 2007, p.
106).

Importante ressaltar também a participação em magistrados e assembleias.


Alguns magistrados eram indicados diretamente por forças externas, normalmente reis
estrangeiros que controlavam a cidade no momento (como os superintendentes do
templo persas) e geralmente não eram cidadãos originários da cidade dominada. Mas
isso não representa um argumento a favor dos defensores da tese do despotismo
oriental, dado que essa prática era comum entre comunidades gregas pelos phrourarchoi
e superintendentes atenienses, espartanos e ptolomaicos. Outros magistrados de maior
interesse do rei estrangeiro eram apontados pelos cidadãos locais e ratificados pelo
monarca. Os oficiais menores eram indicados diretamente pelos cidadãos
(Vlassopoulos, 2007, p. 109).

As assembleias tinham papel importante na vida das cidades-estados próximo-


orientais. Na Assíria do II milênio A.E.C., havia as assembleias da cidade ou do templo.
Antes da ascensão do amoritas ao trono de Assur no século XVIII a.E.C., a atuação dos
reis era limitada, sendo a maior parte da política citadina responsável por um corpo
cidadão e suas assembleias. Existiam também os arcontes intitulados limmum, que
normalmente eram membros da alta sociedade assíria escolhidos por sorteio
(Vlassopoulos, 2007, p. 109-110). Em alguns casos, as assembleias eram
completamente independentes dos reis. Por exemplo, no século XVIII a.E.C., em Mari,
Síria, o rei Zimri-Lim ordenou que dois indivíduos da cidade-estado de Urgis
liberassem a propriedade que eles haviam apreendido ilegalmente. Ao invés de Comentado [37]: Nova frase.

buscarem irei do rei de Urguis, Terru, para resolver a disputa, eles exigem uma reuinão
(puhrum). Os habitantes de Urguis respondem a favor dos indivíduos, exigindo a
libertação de todos do acampamento em uma demonstração clara de habitantes de uma
cidade-estado oriental (Urguis), suplantando, através de uma assembleia, a autoridade
real. Em Nippur, também no II milênio a.E.C., houve a participação de um caçador de Comentado [38]: explicar o que aconteceu e iniciar nova
frase.
pássaros, um oleiro, dois jardineiros e um soldado no julgamento de um homicídio em
uma reunião intitulada “assembleia de Nippur” (Vlassopoulos, 2007, p. 110-111). Comentado [39]: Explicar o contexto dessa assembleia. Se
for manter a informação, explicar por que ela é útil para
argumentar contra a tese do despotismo oriental.

44
Fica evidente, portanto, que a participação de cidadãos nas deliberações e na
vida política das cidades-estados próximo-orientais, ao contrário do mito do despotismo
oriental, foi mais diversa e complexa do que se imagina, com diferentes graus de
participação e formas de organização política, demonstrando a existência de
mecanismos de participação popular e de controle sobre o poder, contradizendo a ideia
de um despotismo oriental absoluto e abrindo novas perspectivas para a compreensão da
história política e social do Próximo Oriente Antigo

3.4.1 A IMPORTÂNCIA DO ESTADO PARA O CONCEITO DE CIVILIZAÇÃO

Segundo o Dicionário de Conceitos Históricos (2009) de Kalina Vanderlei Silva


e Maciel Henrique Silva, o termo “civilização” surgiria na França iluminista do século
XVIII, carregando consigo um sentido moral: para o francês, ser civilizado era ser
urbano, culto e educado. Possuiria, ainda, como seu antônimo a barbárie, caracterizada
pela violência e selvageria. Os homens civilizados seriam, portanto, aqueles que
correspondessem a essa definição ocidental europeizante, tornando-se desejável a todos
os povos alcançar esse ideal (Silva e Silva, 2009, p. 59).

Norbert Elias (1994) corrobora essa definição. Na tentativa de conceber a


sociogênese da civilisation francesa e da Kultur alemã, o autor estipula que tanto a
palavra francófona quanto sua concorrente germânica derivariam dos costumes das
sociedades de corte em suas respectivas nações e, embora o sociólogo admita que talvez
seja impossível traçar o momento exato quando, na França, o homme civilisé (homem
civilizado) foi extrapolado para toda a sociedade dando início à civilisation, temos
vestígios suficientes para comprovar essa tese. Partindo de autores contemporâneos ao
século XVIII como Mirabeou, considerado pelo autor como a primeira evidência da
passagem do verbo civiliser para o conceito de civilisation, encontramos a seguinte
ideia: a percepção geral da população francesa era de que ser civilizado coincidiria com
ser polido e urbano. Além disso, Mirabeou concordava com o filósofo prussiano
Immanuel Kant sobre suas vinculações entre civilização e as características específicas
da aristocracia de corte, o homme civilisé nada mais seria que a ampliação do arquétipo
humano considerado ideal à sociedade cortesã: o honnête homme (Elias, 1994, p. 54-
55).

No século XIX, a palavra “civilização” passa a ser cada vez mais empregada no
plural (civilizações), associando-a cultura, povo e Nação (Silva e Silva, 2009, p. 60). É

45
nesse momento em que há uma simbiose entre essas diferentes categorias, formando o
que atualmente denominamos Cultura.

O responsável pela síntese entre a Kultur alemã e a Civilisation francesa foi o


antropólogo inglês Edward Tylor (1832-1917), criando (ou apenas formalizando) a
definição anglófona Culture (Laraia, 2003, p. 25). Antes de adentrarmos na questão da
cultura, creio que seja importante analisarmos alguns aspectos dessas outras duas
abstrações. Enquanto o primeiro termo abarcaria os fatos intelectuais, artísticos e
religiosos, objetivando as diferenças nacionais e a identidade particular de um povo; o
segundo tanto englobaria as realizações materiais e o comportamento das pessoas
quanto geraria um claro sentido de progresso, uma sensação de constante movimento
para frente (Elias, 1994, p. 23-24). Um ponto fundamental entre esses dois conceitos é
que, diferentemente do alemão, o francês minimizaria as diferenças entre os demais
povos, buscando identificar o que é comum a todos os seres humanos e,
consequentemente, na opinião colonizadora, como estes deveriam ser (Elias, 1994, p.
25).

Na tentativa de sanar os contrastes entre as diferentes formas de analisar os


costumes humanos, Tylor define o novo vocábulo inglês em Primitive Culture (1871):
“em seu amplo sentido etnográfico é este todo complexo que inclui conhecimentos,
crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos
pelo homem como membro de uma sociedade” (Tylor, 1871, p. 1 apud Laraia, 2003, p.
25). O novo conceito seria, portanto, uma tentativa de compreender todo tipo de
experiência humana e instrumentalizá-lo para as futuras pesquisas do campo (Laraia,
2003, p. 30).

Apesar de imbuído de uma inovadora preocupação com a diversidade cultural


(ignorando, no entanto, o relativismo) em nossa espécie e do desprendimento de fatores
biológicos para explicar a origem de condutas sociais, Tylor manteve as bases da
civilisation em suas elaborações teóricas. Preservaram-se na Culture as noções de
progresso e superioridade, posteriormente identificadas por Norbert Elias (1994) ao
ponto que, para o inglês, uma das tarefas da antropologia seria estabelecer uma “escala
de civilização”, onde em um extremo se localizariam as sociedades europeias e em
outro as demais ditas “selvagens” (Laraia, 2003, p. 33).

Os trabalhos de Edward Tylor não foram os únicos a reproduzir esta lógica. A


Europa na década de 1860 acabara de ser abalada pela publicação de A Origem das

46
Espécies (1859) de Charles Darwin (1809-1882) e a embrionária antropologia estava
dominada pela perspectiva evolucionista unilinear (Laraia, 2003, p.33). Ainda que a
palavra “evolução” seja corriqueiramente relacionada às ciências biológicas, esta pode
ser aplicada a qualquer ciência (seja ela natural ou social) que se proponha a reconstruir
o passado. Assim, o “evolucionismo cultural clássico”, nascido nos oitocentos do
historicismo universal iluminista, apresentaria uma distinção fundamental de seu
progenitor setecentista: enquanto o historicismo se preocupava com a História Moderna
ocidental, o evolucionismo se voltava às sociedades não-ocidentais “pré-históricas”
(Erickson e Murphy, 2021, p. 30).

Outros autores contemporâneos a Tylor procuraram igualmente compreender o


desenvolvimento das sociedades humanas, cada um dentro de suas particularidades.
Maine (1822-1888) em Ancient Law (1861) buscava explicar o desenvolvimento das
instituições jurídicas contemporâneas com base no direito das sociedades antigas;
Bachofen (1815-1887) na obra Das Mutterrecht (1861) estipulava a promiscuidade
primitiva e a instituição do matriarcado em consequência desta; McLennan (1827-1881)
no livro Ancient Marriage (1865) investigava a criação do matrimônio a partir dos
casamentos por rapto. O que há de comum a toda essa literatura é a ideia de que a
sociedade se desenvolveria de modo linear e semelhante em todo o planeta desde os
primórdios da história humana e rumaria direção a um destino comum e insuperável: a
sociedade europeia (Laraia, 2003, p. 33-34). É curioso notar também que, com exceção
de Bachofen (suíço) e Morgan — estadunidense autor de Ancient Society (1877) —, a
grande maioria dos antropólogos evolucionistas eram ingleses, demonstrando a
ideologia dominante de superioridade vitoriana sobre os demais povos e reforçando sua
noção de civilização moderna e “progresso” (Erickson e Murphy, 2021, p. 31).

Com o desenvolvimento da História Natural, novas possibilidades de pesquisa


surgiram. Dentre elas, podemos citar o interesse na investigação da pré-história baseada
na arqueologia e na etnologia oitocentista. Este movimento possui antecedentes na
primeira onda escandinava de distinção e datação de achados arqueológicos e,
posteriormente, na segunda onda de estudo sistemático da Pré-História sucedida na
França e Inglaterra nas décadas de 1850 (Tigger, 2006, p. 121). Coincide, também, com
a revolução temporal ocorrida na década de 1860 quando se adotou “perspectiva longa”
da História, evidenciada pelas descobertas geológicas e arqueológicas em detrimento da
“perspectiva curta”, fortemente influenciada pela literatura sagrada judaico-cristãs, o
planeta Terra teria, aproximadamente, 6 mil anos de idade. Logo, a história humana,

47
antes limitada a meia dúzia de milênios, agora passaria a estender-se milhares (ou
milhões) de anos a fundo (Shryrock e Smail, 2011, p. 5).

Quando o passado de nossa espécie foi dividido pelo dinamarquês Christian


Thomsen (1788-1865) no Sistema das Três Idades (Idade da Pedra, Bronze e Ferro) na
Guidebook to Scandinavian Antiquity (1836) e Jens J. A. Worsaae (1821-1885) em The
Primeval Antiquities of Denmark (1843) generalizou essa divisão para toda a Europa, a
cronologia e o campo da arqueologia não correspondiam às subdivisões temporais
atualmente adotadas. Foi somente com os trabalhos do britânico Daniel Wilson (1816-
1892), sobretudo em Archeology and Prehistoric Annals of Scotland (1851), que o
termo “Pré-História” seria cunhado; e a análise de habitações à margem de lagos na
Suíça na década de 1850 demonstrariam que, durante a Pré-História tardia na Europa,
existiria a domesticação de plantas e animais adicionando, assim, o Neolítico à
serialização (Erickson e Murphy, 2021, p. 43).

A arqueologia pré-histórica escandinava foi quase que completamente ignorada


na França e na Inglaterra, provavelmente pela relutância dos antiquários em adotar as
pesquisas realizadas na dita periferia intelectual europeia por países supostamente
atrasados. Somado a isso, o desenvolvimento da arqueologia Paleolítica nesses países
dependeria, também, da existência de uma perspectiva evolucionária na geologia e
conhecimento paleontológico, para substituir a pura confiança nos relatos bíblicos
(Trigger, 2006, p. 138).

Ironicamente, os principais avanços nas pesquisas do campo se deram na França


onde, ao contrário dos outros países, os terraços fluviais do Norte e os abrigos rochosos
do Sul ofereciam melhores evidências. Em 1859, o arqueólogo britânico Charles Lyell
(1797-1875) liderou uma expedição no Vale do Rio Somme ao norte da França, região
na qual, anteriormente, o arqueólogo amador Jacques Boucher de Crèvecoeur de Perthes
(1788-1868) havia descoberto um conjunto de ferramentas da Idade da Pedra. A
validação dos achados marca o primeiro consenso científico sobre a grande
profundidade temporal da Pré-História humana. Porém, foi somente em Geological
Evidences of the Antiquity of Man (1863) e Pre-historic Times (1865) livro onde Lyell e
o banqueiro naturalista inglês John Lubbock (1834-1913), respectivamente,
consolidaram maiores teses sobre as pesquisas pré-históricas. O naturalista,
curiosamente, divide a Pré-História mais antiga em Paleolítico (ou Arqueolítico) e a
mais recente em Neolítico. O critério escolhido por Lubbock foi a presença de
ferramentas de pedra lascada e animais já extintos na idade mais antiga e de pedra

48
polida junto a animais modernos na idade mais recente. No entanto, pelo frágil
conhecimento dos trabalhos de Thomsen e Worsaae, o naturalista inglês peca em não
identificar que os pesquisadores escandinavos já haviam definido um período
intermediário que seria caracterizado pela coexistência entre utensílios de pedra lascada
e espécies modernas de animais: o atual Mesolítico, nomeado em 1872 por Hodder
Werstropp (Erickson e Murphy, 2021, p. 43; Trigger, 2006, p. 147-148). Vale ressaltar,
juntamente, que o principal objetivo dos arqueólogos, nesse momento, seria organizar
cronologicamente os materiais encontrados a fim de identificar padrões de progresso
cultural já que, seguindo a lógica do evolucionismo, o Homo sapiens deveria, através do
percurso da história, se tornar mais complexo morfológica e culturalmente (Trigger,
2006, p. 148).

Mas, se nas pesquisas sobre a antiguidade europeia a arqueologia avançava em


um sentido mais científico adotando, mesmo que limitadamente, a crítica histórica como
método válido e tendo como objeto de estudo a história profunda, as pesquisas
realizadas no Oriente Próximo não seguiram o mesmo caminho. Ao final do século
XVIII, quase nada se sabia sobre as civilizações do Antigo Oriente Próximo, exceto o
que fora preservado pelos escritos gregos, latinos e judaico-cristãos. Por consequência, a
orientação ideológica dos documentos não só causou distorções no entendimento geral
do que seriam as culturas médio-orientais antigas, como também estendeu sobre elas um
véu de misticismo que perduraria por séculos. Tomemos o Antigo Egito da Idade do
Bronze como exemplo. Por se tratar de uma civilização distante no tempo para os já
também antigos gregos e romanos, a situação egípcia nos registros clássicos é talvez um Comentado [40]: Vou deixar aqui algumas referências
sobre pseudo-história para caso queira desenvolver
dos mais famosos casos de repositório de conhecimento primitivo, cultos misteriosos e este ponto em um trabalho futuro:
FRITZE, Invented Knowledge (2009);
costumes bizarros. O mesmo ocorre na Bíblia. O Egito bíblico é costumeiramente FRITZE, Egyptomania (2016);
FEDER, Frauds, Myths and Mysteries (2013).
apresentado tanto como uma terra de esplendor e refúgio quanto, paradoxalmente, um
local de opressão, idolatria e de mulheres perigosas (Liverani, 2016, p. 28; Trigger,
2006, p. 67).

Essas imagens demonstrariam possuir grande vitalidade, manifestando-se


milhares de anos mais tarde. Os registros clássicos sobre o Egito serviram, já no século
XV, de base para os intelectuais renascentistas questionarem a doutrina judaico-cristã,
comparando-a à suposta completa e imaculada ancestralidade da sabedoria egípcia; no
século XVI, Giordano Bruno (1548-1600) é condenado à morte por, dentre outras
afirmações, reivindicar a mesma ancestralidade e autenticidade das crenças religiosas
egípcias em detrimento das cristãs. Essas representações fantasiosas revelar-se-iam,

49
ainda, no arquétipo da mulher oriental sedutora, luxuriosa e de sexualidade inigualável
resumida na figura da cortesã egípcia Kuchuk Hanem de Gustave Flaubert (1821-1880);
nas teorias marxistas sobre o Modo de Produção Asiático, fortemente influenciadas pelo
Oriental Despotism (1957) de Karl Wittfogel (1896-1988); e nos discursos de
expedicionários e parlamentares britânicos, como Arthur James Balfour (1848-1930) e
Sir William Loftus (1828-1850) (Said, 1990, p. 194-195 e 42-45; Sofri, 1977, p. 13-14;
Trigger, 2006, p. 67-68).

A despeito dos testemunhos produzidos por viajantes desde os tempos medievais


que, em sua grande maioria, se limitavam apenas a ecoar os preconceitos anteriormente
mencionados, o estudo sistemático do Antigo Egito teria seu início somente no fim do
século XVIII com as expedições napoleônicas. Foram os estudiosos franceses levados
por Napoleão Bonaparte (1769-1821) durante sua campanha militar no Egito que
realizaram, pela primeira vez, a catalogação e descrição metódica da geografia regional
e suas estruturas antigas. Dentre os frutos, destacam-se a produção da primeira
enciclopédia sobre o tema, a Description de l’Egypte, publicada pela primeira vez em
1809 e a descoberta da Pedra de Roseta, uma inscrição trilíngue que permitiria
posteriormente a Jean-François Champollion (1790-1832) decifrar a escrita egípcia
hieroglífica (Trigger, 2006, p. 68).

A egiptologia teria seus contornos mais bem definidos nos dois terços inicias do
século XIX, com célebres egiptólogos como o alemão Karl Lepsius (1810-1884) e os
franceses Ippolito Rosellini (1800-1843) e o já mencionado Champollion liderando
excursões entre 1849 e 1859. O trabalho dos arqueólogos se concentrava,
majoritariamente, nos templos, tumbas e nas inscrições a eles associadas. Os textos
egípcios recuperados eram o oposto do pregado pelos canais que preservaram sua
imagem mítica. Estes não eram registros de saberes esotéricos há muito tempo perdidos
como se imaginava, mas sim a documentação histórica e administrativa de assuntos que
poderiam ser religiosos ou não. Além disso, é necessário compreender também que, por
confrontar diretamente a doutrina cristã, os achados arqueológicos, em alguns casos,
tinham sua interpretação e datação deliberadamente modificadas. Infelizmente, esse foi
o caso na egiptologia de Champollion. Ao produzir a história do Antigo Egito, o francês
foi constrangido a restringir sua cronologia de modo que não conflitasse com a Bíblia,
evitando ofender, assim, as convicções religiosas dos conservadores que comandavam a
França pós-napoleônica (Erickson e Murphy; 2021, p. 43; Trigger, 2006, p. 68). Fica
evidente, portanto, que a adoção de uma datação puramente científica e livre da

50
influência eclesiástica não foi uniforme na arqueologia, ainda que, no caso egípcio, os
trabalhos de Champollion fossem contemporâneos aos de Charles Lyell.

A assiriologia também foi um ramo da arqueologia de igual importância. Os


primeiros registros da antiguidade mesopotâmica remontam ao período medieval, mais
precisamente no século XII, quando as ruínas de Nínive foram encontradas pelo rabino
viajante espanhol Benjamin de Tudela (1130-1173). A partir desse momento, dezenas
de viajantes europeus ao Oriente Médio passaram a observar os fragmentos de cidades
antigas (principalmente no Iraque e na Pérsia) e trazer consigo artefatos e inscrições em
códigos indecifráveis para a época. Em 1616, o explorador italiano Pietro della Valle
(1586-1652) investiga as ruínas da Babilônia e visita o sítio de Ur; em 1754, Jean-
Jacques Barthélemy (1716-1795) decifra o alfabeto fenício, dando início ao estudo
epigráfico das civilizações antigas e Joseph de Beauchamp (1752-1801) realiza, em
1786, a primeira escavação conhecida na Babilônia. No início do século XIX, George
Grotefend (1775-1833) traduz o antigo cuneiforme persa encontrado em Persépolis e
Claudius Rich (1787-1821) coleta artefatos de Nínive e da Babilônia que posteriormente
seriam comprados pelo Museu Britânico em 1825. Na década de 1840, Paul-Emile
Bottas (1802-1870) empreende maiores escavações em Nínive e Khorsabad e Austen
Layard (1817-1891) em Ninrude e Kuyunjik (um dos montes presentes no sítio de
Nínive). Em 1857, Sir Henry Rawlinson (1810-1895) traduz o antigo cuneiforme
babilônico, possibilitando a construção de uma história da Antiga Assíria e Babilônia
(Trigger, 2006, p. 70). Essa rápida e impressionante sequência de descobertas causou
grande entusiasmo na comunidade acadêmica europeia, principalmente pelas esculturas
antigas e abundância de documentação textual. A partir desse momento, a opulência dos
palácios assírios passaria a deslumbrar e fazer parte do imaginário europeu sobre as
sociedades antigo-orientais.

Esse fascínio apenas aumentaria quando alguns dos textos descobertos, assim
que traduzidos, confirmaram eventos mencionados na Bíblia. Por consequência, as
expedições promovidas nessa região, em sua grande maioria compostas por europeus
motivados pelas suas crenças e visões de mundo, foram incentivadas, sobretudo, pela
necessidade de reaver as evidências do “ambiente histórico” do Antigo Testamento e
comprovar a autenticidade dos relatos bíblicos (Liverani, 2016, p. 28; Trigger, 2006, p.
70).

Em 1849, inspirado pelas descobertas realizadas pelos assiriólogos nos anos


anteriores e munido de convicções próprias, o britânico Sir William Loftus, então

51
membro da comissão de fronteira perso-turca, realizou uma viajem ao Sul da
Mesopotâmia com o objetivo de registrar as estruturas já conhecidas e possivelmente
encontrar novas. Embora não tenha se deparado com a mesma fartura dos palácios de
Layard, Loftus fez uma descoberta muito mais grandiosa e revolucionária que seus
antecessores. Pensando ter descoberto a antiga cidade bíblica de Ereque (Warka, como
chamada pelos árabes), o explorador britânico não percebeu que, na verdade, havia
encontrado a antiquíssima cidade suméria de Uruk, considerada atualmente pela
historiografia como a primeira cidade de fato (Leick, 2003, p. 54-55).

Sendo um homem de seu tempo, William Loftus não escondeu sua perspectiva
orientalista sobre os povos médio-orientais e sua antiguidade, registrando tudo o que
fosse possível em Travels and Researches in Chaldea and the Susiana (1857). Logo no
início da obra, podemos identificar que a ideia do Antigo Oriente Próximo como “berço
da civilização” antecede em muito a descoberta do sítio já que, segundo o autor: The
following pages are due to reseaches in that remote, but partiatlly explored region,
which, from our childhood, we have been led to regard as the cradle of the human race
(LOFTUS, 1857, p. V). Nascido em 1828, sua infância precedia em algumas décadas a
revolução trazida pela arqueologia e a geologia. Portanto, é natural que para Loftus e
seus contemporâneos, a cronologia curta do tempo baseada nos escritos sagrados
judaico-cristãos fosse a correta e, por consequência, as civilizações ali citadas fossem as
primeiras a existirem no planeta.

A tamanha fidelidade prestada aos escritos sagrados fica evidente nas


interpretações iniciais sobre a identidade de Uruk. Embora quase nada se soubesse sobre
o sítio, tanto William Loftus quanto Henry Rawlinson estavam convencidos de que se
tratava de Ereque, cidade supostamente fundada pela figura bíblica de Ninrode, filho de
Cuxe. A argumentação dos britânicos era muito frágil, baseando-se apenas na
presumida proximidade linguística entre a palavra arábica Warka e as hebraicas Erk e
Ark: “[...] seja mudando o aleph para vau, ou simplesmente prefixando o vau por uma Comentado [41]: Inserir referência.

questão de eufonia, como é costume na conversão de nomes hebraicos para árabes”.


(Loftus, 1857, p. 160). A interpretação mais equilibrada na qual a palavra Warka
derivaria de suas raízes arábicas ‘irk (“ramo” ou “veia”) e originaria o nome
contemporâneo da região (Irák-Arábí) foi descartada. Isso se deu, pois, segundo os
autores, a língua árabe moderna não seria confiável o suficiente para identificarmos uma
palavra tão antiga quanto Ereque, mesmo que “país das artérias” fosse um nome muito
apropriado para uma cidade localizada em uma região cortada por diversos canais.

52
Independentemente da impossibilidade de decifrar o nome real da cidade nos escritos
cuneiformes, Rawlinson estava seguro de que estava diante de um espaço extremamente
importante, visto que este era costumeiramente assinalado como “a cidade” par
exellence (Loftus, 1857, p. 160).

A confiança dos arqueólogos era tanta que seus julgamentos sobre Warka
extrapolaram as evidências disponíveis. Em uma tentativa de justificar suas hipóteses,
Loftus e Rawlinson buscaram em autores clássicos explicações para a presumida
antiguidade Warka. Segundo o autor, a antiga vila de Arderikka mencionada pelo
historiador grego Heródoto corresponderia, possivelmente, à caldeia Ar'a de Erek ou a
"Terra de Ereque", quando traduzida. O mesmo ocorreria com a Orchoe dos tempos de
Alexandre Magno, lar de um povo capaz de redirecionar rios através de suas obras
hidráulicas e decifrar as estrelas devido às universidades formadoras de filósofos e
astrônomos, mencionada por Plínio (23 - 79 E.C.) e Estrabão (63 a.E.C. - 23 E.C.). Ao
contrário da mera proximidade lexical, dessa vez, a quantidade de material grego e
cuneiforme antigo encontrados indicavam, para os arqueólogos, uma proximidade
verificável materialmente entre a Orchoe grega, a primitiva Ereque e o sítio moderno de
Warka (Loftus, 1857, p. 161).

Dentro deste aparato político-ideológico notamos que a esmagadora maioria dos


arqueólogos no Oriente Próximo não eram nativos da região, mas sim europeus
ocidentais. Isso se dava pelo fato de não haver qualquer tentativa de formar egípcios e
iraquianos assiriólogos ou egiptólogos profissionais, pois, a arqueologia no Oriente
Médio e Norte da África estava, neste momento, a serviço direto dos interesses
coloniais das potências europeias (Trigger, 2006, p. 73). Isso nos levanta uma questão:
mas, se as pesquisas sobre o Antigo Oriente Próximo estavam a serviço do
colonialismo, como admitir então que a tão valorizada "civilização" teria nascido em
terras tão pobres e de populações tão supostamente inferiores como as médio-orientais?
A resposta encontrada pelos colonizadores parece ter sido fabricar uma História do
Antigo Oriente Próximo que não conflitasse com as ideologias vitorianas.

A civilização nasceria sim no Oriente, mas também desapareceria junto aos


povos antigos, e seus contemporâneos islâmicos de cultura claramente retrógrada e Comentado [42]: Morreria? Ela não teria sido herdada
pelos gregos?
inferior (na visão eurocêntrica) nada teriam a ver com os gloriosos egípcios,
mesopotâmicos ou persas do passado. Isso fica evidente na obra de William Loftus
quando, ao analisar a arte persa em visita à região do atual Irã, recorda do trecho de
Hand-Book of Architecture de James Fergusson:

53
Eles estão agora profundamente deprimidos para tentar qualquer coisa; mas
parece ser necessário apenas um brilho do sol que retorna para capacitá-los
novamente a rivalizar na arte com as antigas glórias de Nínive e Persépolis Comentado [43]: Fazer o recuo e a formatação de citação
(Loftus, 1857, p. 51). longa, segundo o Guia da UERJ.

54
4. O PAPEL DA HISTÓRIA ANTIGA E SUA IMPORTÂNCIA NO ENSINO DE
HISTÓRIA NO BRASIL

Dentre as novidades desagradáveis apresentadas pela primeira versão da BNCC,


a exclusão quase que total da História Antiga nos componentes curriculares previstos
para a disciplina de História no Ensino Básico foi, para nós, a pior, transformando o
campo em uma das maiores áreas de embate entre professores, pesquisadores e demais
interessados no currículo. Todavia, por mais absurda que seja a exclusão de um período
histórico e a despeito do retorno da disciplina na versão final do documento, o legado
dessa decisão inicial foi bastante frutífero. A partir dos artigos produzidos por críticos e
defensores da Base, surgiram argumentos e temas interessantíssimos que abrangem
desde qual seria o papel da Antiguidade, sua importância e até mesmo sua validade para
a educação brasileira.

O descaso com a disciplina iniciou-se já no corpo responsável pela concepção da


primeira versão da BNCC. Das 116 pessoas que compunham a comissão de
especialistas, nenhum representava a especialidade na área de História Antiga e
Medieval da CAPES (Santos, 2019, p. 129). O resultado dessa ausência foi sentido
imediatamente no primeiro texto apresentado em 2015. A presença da Antiguidade é
percebida apenas a partir de uma relação com o ensino de temporalidade, sendo ela
mencionada somente no 6° e 3° ANO/EF (Ensino Fundamental) e 3° ANO/EM (Ensino
Médio). Há três citações no 6° ano: uma no item CHHI6F0A066, cuja alusão aos povos
egípcios é feita em um contexto de contabilização e registro do tempo; no
CHHI6F0A071, em que a BNCC busca debater o modelo quadripartite da História,
apresentando a Idade Antiga como um dos períodos temporais adotados; e, por fim, no
item CHHI6F0A072, discutindo uma gama de temas relacionados a diversos períodos
históricos, sendo a Antiguidade um deles (Brasil, 2015, p. 250-251 apud Santos, 2019,
p. 130). No 3° ANO/EF, a mesma tendência é seguida no conteúdo CHHI3F0A028,
ligando o ensino de História Antiga às medidas de tempo, como o uso dos “algarismos
romanos” (Brasil, 2015, p. 247 apud Santos, 2019, p. 130). Somente no item
CHHI3M0A055, do 3°ANO/EM, esse movimento é quebrado. A Antiguidade, nesse
caso, é associada à valorização dos patrimônios materiais e imateriais dos povos
europeus e asiáticos, como apud Santos, 2019, p. 130). Nenhuma outra menção é feita à
História Antiga dentro do currículo de História da BNCC em sua primeira versão, sendo
necessário buscá-la em disciplinas como Filosofia e Física, levando em conta os

55
contextos particulares que cada disciplina exige, como o “nascimento” da filosofia na
Grécia, o uso de letras gregas como representantes de constantes físicas e etc. (Santos,
2019, p. 131).

Em contraste à sub-representação da Antiguidade, a História do Brasil aparece


com significativo destaque nos componentes curriculares de História para o Ensino
Básico, ao ponto da primeira versão da BNCC ganhar o apelido de “Brasilcêntrica” e
“presentista”. Relevante notar que, entre os recortes temáticos apresentados pelo texto,
estão privilegiados justamente aqueles pertencentes às áreas de pesquisa dos
especialistas selecionados para a elaboração da primeira versão da Base (Santos, 2019,
p. 132). Um exemplo é a proposição do estudo de regiões muito específicas como as do
Grão-Pará e Maranhão pelo item CHHI6FOA074 que poderiam facilmente ser
abordados por adaptações curriculares regionais. As explicações dadas pelo documento
para este fenômeno são variadas, sendo algumas delas a necessidade de dar aos
indivíduos “um saber significativo” e “fomentar a curiosidade científica e a
familiarização com outras formas de raciocínio” através do ensino de História do Brasil
(Santos, 2019, p. 132-133). Importante notar que esses objetivos seriam plenamente
atingíveis a partir do estudo de outros espaços e períodos históricos, mas houve uma
seleção deliberada dando destaque ao ensino da História do Brasil como a solução. Algo
positivo, sem dúvidas, se não trouxesse em sua esteira a marginalização de outras
experiências e sociedades.

As reações da comunidade científica sobre os conteúdos apresentados pelo


currículo de História, principalmente através de artigos, dossiês e cartas abertas ao
público, foram imediatas. A Associação Nacional de História - Seção Rio Grande do
Sul (ANPUH-RS), por exemplo, sugeriu, através de um documento publicado em seu
site, a “supressão de exemplos de fenômenos históricos excessivamente localizados e
específicos” (ANPUH, 2016 apud Santos, 2019, p. 133) e diversos historiadores
produziram artigos em defesa da História Antiga e criticando sua ausência nos
componentes curriculares da BNCC, apontando caminhos para seu ensino.

Primeiramente, é importante ressalvar que a História Antiga está muito longe de


ser um campo alheio às questões políticas e ideológicas. Uiran Gebara da Silva, em seu
artigo Uma Antiguidade Fora de Lugar? (2017), tece um debate sobre o estado da
pesquisa e ensino da História Antiga no Brasil e seu papel na construção das narrativas
históricas responsáveis pela legitimação da Europa e, por consequência, do Ocidente.
Para o autor, a História Antiga, dentre os demais campos da História, se configura como

56
a especialidade “cuja menção desperta simultaneamente as sensações de familiaridade e
de exotismo” (Silva, 2017, p. 1). Esse processo é paradoxal, pois, de acordo com Silva
(2017, p. 1), ambas as categorias “familiar” e “exótico” são transmutáveis a partir das
relações estabelecidas entre a cultura brasileira e o passado. Ou seja, é familiar por um
lado, pois foi naturalizada a ideia de que a Antiguidade faz parte de nossa cultura e
passado. Seria por intermédio desse recorte distante tanto temporal quanto
geograficamente de nós que teríamos herdado parte de nossa tradição judaico-cristã, de
nossas instituições democráticas e nossos costumes jurídicos. É exótico, de outro,
porque mesmo que tomemos tanto o legado Ocidental como o Oriental enquanto
constituintes de nossa identidade, a depender dos limites que traçamos entre o que
aceitamos ou não como formadores dessa identidade e de qual forma definimos a
cultura antiga, deixamos deliberadamente de fora o que negamos reconhecer como
influência de nossa formação identitária. Nesse procedimento, criamos como
subproduto o “outro”, uma figura na qual depositamos todas as características por nós
rejeitadas, tornando-o, por consequência, “estranho” e “divergente”. É nesse contexto de
criação do “outro” que a formação histórica do Estado Nação brasileiro se inseriria no
que Silva (2017, p. 1-2) considerou como um dos produtos da “violência cultural da
colonização” responsável por elevar a Europa ao status de centro da história e declarar
seu modelo de sociedade (sociedade burguesa) como fim último de uma suposta
evolução histórica, independentemente das particularidades e heterogeneidade da
população brasileira.

Abordando o tema do ensino de História Antiga sob uma perspectiva humanista


de educação, que visa ser completa, Priscilla Gontijo Leite (2017) defende a relevância
do ensino da Antiguidade para os estudantes brasileiros, com enfoque especial no
fortalecimento da alteridade a partir da pluralidade cultural presente nesse recorte
histórico e geográfico. Em consonância com Silva (2017), Leite (2017, p. 18) aponta
que a História Antiga exerce uma tarefa fundamental na construção da identidade
brasileira como pertencente ao Ocidente. Por mais que “antiga”, a Antiguidade
ultrapassa limites geográficos e temporais, se fazendo presente em nosso dia a dia. Seu
legado materializa-se, por exemplo, em nossa língua latina (português), no cristianismo
(religião predominante no Brasil) e em nosso sistema democrático. Reconhecemo-nos,
dessa forma, como ocidentais, por uma “tradição compartilhada” com os demais países
do bloco, e a educação aparece como campo privilegiado para transmissão dessa Comentado [Ad44]: Vc não falou de valores, mas de uma
tradição compartilhada. Reformule.
tradição previamente selecionados e julgados como relevantes. É necessário, portanto,
Comentado [Ad45]: Isso dialoga com o que vc apontou na
que o ensino de História Antiga se preocupe tanto com a não repetição das fórmulas p. 1, a partir de Apple. Faça esta conexão.

57
eurocêntricas que atendem aos anseios de uma determinada classe dirigente há muito
cristalizadas nos currículos escolares conforme apontado por Apple (2013, p. 71), como
também com a superação de práticas que acabam por reforçar estereótipos como a
suposta superioridade cultural da Antiguidade Clássica sobre as demais culturas antigas
(Leite, 2017, p. 20).

Dentre as práticas arcaicas ainda muito vivas na educação, está na separação da Comentado [Ad46]: Iniciar novo parágrafo.

História Antiga entre Oriente e Ocidente que, em sua grande maioria, acaba por levar à
sobrevalorização da segunda em detrimento da primeira. Quando isso acontece,
sociedades orientais são colocadas no campo do “exótico”, corroborando uma
perspectiva eurocêntrica do ensino. Assim sendo, os feitos, as histórias e as culturas de
comunidades inteiras como a mesopotâmica e a egípcia são reduzidas apenas a
“preparativos” para a história de povos ditos “mais complexos”. Ou seja, a história é
estruturada em uma evolução progressiva e linear, dos povos mais simples (orientais)
aos mais “evoluídos” (ocidentais) (Leite, 2017, p. 21-22).

Gilberto da Silva Francisco, em seu artigo O Lugar da História Antiga no Brasil


(2017), busca analisar a instrumentalização da Antiguidade enquanto ferramenta para a
construção de uma identidade ocidental e a validade da adoção de uma “História Antiga
do Brasil” (Francisco, 2017, p. 39-49) pré-europeia como caminho para uma
periodização mais conectada a nossa realidade e menos eurocêntrica. Para fins desse
texto, me restringirei apenas aos argumentos referentes à História Antiga e seu ensino.
Bem como Silva (2017) e Leite (2017), Francisco (2017, p. 31) considera a Antiguidade
como um dos principais pilares para a construção da narrativa civilizatória europeia. Da
História Antiga relacionada à “história universal” à História Antiga laica surgida a partir
do desenvolvimento da “História Natural”, a disciplina nunca deixou de exercer papel
importante nas “grandes narrativas”. Enquanto a primeira se baseava em relatos bíblicos
e se preocupava com o “início de tudo”, a segunda ganhava contornos mais “científicos”
e próximos aos Estados Nacionais europeus. A História Antiga laicizada, assim, passou
a procurar na Antiguidade, principalmente nas sociedades gregas e romanas, a origem
dos Estados Nacionais europeus (Francisco, 2017, p. 34-35). O uso do passado antigo
não mais era explicar “início da humanidade” a partir do ato da criação divina, mas
traçar a origem do processo civilizatório e encontrar em Esparta, Atenas e Roma a
legitimação de seus modelos de sociedade (Francisco, 2017, p. 36).

Por décadas, como herança ingrata, a História Antiga esteve impregnada pelos
debates sobre o processo civilizatório e atividades relacionadas à política e

58
administração dos Estados Nacionais (Francisco, 2017, p. 36). Como consequência,
povos e comunidades inteiras foram classificados e interpretados como centrais nesse
processo seguindo certos critérios eurocentrados. O Antigo Oriente Próximo, por
exemplo, foi situado na história da civilização ocidental como uma experiência histórica
responsável por criar certas estruturas fundamentais para o desenvolvimento do
Ocidente (Francisco, 2017, p. 37). É nesse contexto que a Mesopotâmia, espaço
geográfico onde se situava Uruk, a primeira cidade e por extensão o primeiro Estado,
ganha seu título de “berço da civilização”. As comunidades situadas em regiões mais
distantes, como a América e a Austrália foram classificadas como culturas, etnias e,
quando analisadas soba ótica da comparação etnográfica, como “selvagens” e
“bárbaras”, mas jamais como “civilizações”. Sua integração junto à história nas
narrativas “globalizantes” se dá apenas a partir dos contatos e da dominação europeia
durante a Idade Moderna, como nas grandes navegações e no mercantilismo atlântico.
Portanto, todas as demais comunidades não-europeias foram postas na periferia do
processo histórico, processo este que teria a Europa como centro e motor de
desenvolvimento e “evolução” (Francisco, 2017, p. 38-39).

A ideia de uma herança cultural ocidental ainda é bastante atual, estando


enraizada em nossa sociedade ao ponto de, recorrentemente, figurar nos livros didáticos,
paradidáticos, romances, na arquitetura e no próprio léxico da língua portuguesa. Por
isso, mesmo que existam tantos problemas referentes à História Antiga, Francisco
(2017, p. 39-40) não advoga por um abandono puro e simples dessas narrativas ou do
ensino da disciplina, mas sim que, a partir da compreensão dessas questões, possamos
tecer críticas e superá-las. Conforme o autor afirma:

Ao contrário, a ideia de herança cultural, de civilização e de ocidente, para


serem discutidas criticamente na redefinição de fronteiras e posições no
debate histórico, dependem do conhecimento da História Antiga. Não basta
dizer que Grécia e Roma não nos interessam. Elas continuam presentes em
narrativas variadas, mesmo no Brasil, onde sua posição como centro pode ou
não ser ratificada (Francisco, 2017, p. 40) Comentado [Ad47]: Está fora da norma (o espaçamento
tem que ser simples).
Importante ainda ressaltar que diversos esforços no sentido de superar uma
narrativa eurocêntrica vêm sendo feitos nas últimas décadas por pesquisadores
brasileiros, como por exemplo uma “abordagem mediterrânica” que se inicie a partir
dos contatos no Mar Mediterrâneo entre diversos povos, privilegiando a integração entre
as comunidades da região e não mais a origem da civilização ocidental (Francisco, Comentado [Ad48]: Dá uma olhada também nas
pesquisas do Fábio Morales e do José Ernesto Knust sobre
2017, p. 47). História Global.

59
Por exemplo, Fábio Morales e Uiran Gebara da Silva apontam para duas
propostas relevantes surgidas ao fim do século XX e início do XXI para a análise da
Antiguidade. A primeira, mesmo com limitações à superação do eurocentrismo
(Morales, Silva, 2020, p. 131), diz respeito à comparação, em caráter global, das
experiências sociais da Antiguidade. Nessa perspectiva, destaca-se o trabalho realizado
pela Copenhagen Polis Centre, no qual estrutura das cidades-estados gregas arcaicas e
clássicas é confrontada com as das redes citadinas mesoamericanas, andinas pré-
colombianas, africanas modernas, suíças contemporâneas e etc. A partir do
reconhecimento das diferenças e proximidades, identifica-se o que há de comum: “a
coerência cultural interna e a oposição a poderes imperiais” (Morales, Silva, 2020, p.
130). Já a segunda, de caráter globalizante e baseada no paradigma da conexão, busca
retirar o desenvolvimento das culturas clássicas da esteira da História Universal,
analisando a formação das culturas urbanas a partir dos contatos entre diversos povos e
culturas através do Mar Mediterrâneo 8. Notabilizam-se nessa proposta, o livro The
Corrupting Sea, a Study of Mediterranean History, de Peregrine Horden e Nicholas
Purcell. Os autores, a partir da abordagem da “história ecológica”, localizam as
sociedades mediterrânicas como componentes de uma história regional. Essa história
seria caracterizada pela integração e dinamismo das interações propiciadas pelo
Mediterrâneo, seu principal canal de contato. Além disso, essa profunda mobilidade e
interatividade entre as comunidades teria sido impulsionada, a princípio, pelas
necessidades impostas pelo meio ambiente precário e incapaz de sustentar por si só as
urbes nascentes (Morales, Silva, 2020, p. 131)

4.1 A ANTIGUIDADE PRÓXIMO-ORIENTAL NOS LIVROS DIDÁTICOS


BRASILEIROS

Investigaremos, neste capítulo, a maneira pela qual os conteúdos relativos a


Antiguidade Próximo-Oriental estão dispostos nos livros didáticos brasileiros. Para tal,
selecionados para análise duas obras aprovadas pelo Programa Nacional do Livro

8Por ter sido aplicada no Mediterrâneo, essa perspectiva também é conhecida como “perspectiva
mediterranista”.

60
Didático (PNLD) do ano de 2020: o livro Vontade de Saber: História (2018) da editora
Quinteto Editorial e Inspire História da editora FTD.

A coleção Vontade de Saber: História (2018) nos convida a conhecer, no


capítulo Povos do Oriente Médio (Dias, Grinberg, Pellegrini, 2018, p. 56-57), as
sociedades que habitaram a região médio-oriental, com destaque para os povos Comentado [49]: “para os”

mesopotâmicos, fenícios, hebreus e persas. Os processos históricos da região são


resumidos inicialmente a “uma sucessão de povos” que guerreavam entre si pelos
recursos da região, ocasionando “o sucessivo domínio de um povo sobre o outro” (Dias,
Grinberg, Pellegrini, p. 59). Dessa forma, a Mesopotâmia passaria de um domínio
inicial sumério (3500 – 2340 A.E.C) ao domínio acádio (2340 – 2000 A.E.C), do Comentado [50]: “acádio”

babilônico (2000 - 1550 A.E.C) ao cassita (1550 – 1300 A.E.C) e, por fim, do domínio
assírio (1300 - 612 A.E.C) ao caldeu (612 a 539 A.E.C).

Caberia ao professor, a partir da exposição em aula, pedir aos alunos que


“comentem sobre as continuidades e transformações culturais e políticas ocorridas a
cada nova sucessão” (Dias, Grinberg, Pellegrini, 2018, p. 59). O problema reside na
disposição essencializada dos conteúdos sobre estes povos antigos. Os sumérios, por Comentado [51]: Acho que o que você dirá mostra como a
própria designação “povo” tem problemas. Ela prevê
exemplo, são reduzidos a fundadores da escrita cuneiforme e das primeiras cidades, os unidade, uniformidade entre população, território, cultura
imaterial e material, além de traços genéticos. Claro que
acádios a conquistadores dos sumérios e fundadores do Primeiro Império estou falando da acepção alemã do termo, mas o uso dele nos
livros didáticos acaba reproduzindo essa mesma percepção.
Mesopotâmico, os babilônicos a pioneiros na formação de um Estado unificado e de um
dos primeiros códigos legais, os cassitas como introdutores dos cavalos na região e os
assírios como guerreiros valentes e impiedosos. Os caldeus são apresentados apenas
como conquistadores (Dias, Grinberg, Pellegrini, 2018, p. 59). O que então deveria ser
“comentado” além do sugerido pelo livro e o que esperar desses comentários? Essa
disposição dos conteúdos cria a impressão, mesmo que inconsciente, de um processo
linear do desenvolvimento histórico de uma determinada região. No caso
mesopotâmico, essa forma de representação se torna ainda mais perigosa, pois resume
milênios de interações culturais às “sucessões de povos” motivados por ambições
territoriais. Comentado [52]: A história se resume a uma corrida de
bastão impulsionada por ambições territoriais.
Dado a realidade educacional brasileira (baixo salário dos professores, grande
quantidade de alunos por sala de aula, falta de tempo de planejamento e etc.), os livros
didáticos se transformam na principal (se não única) ferramenta metodológica utilizada
pelos professores em sala de aula para a construção do saber histórico (Carvalho, 2021,
p. 6). Ademais, muito devido aos motivos anteriormente citados, uma parcela
significativa dos professores se encontra distante dos espaços acadêmicos, dificultando

61
ainda mais a capacidade destes em identificar as defasagens dos conteúdos e os
problemas conceituais presentes nos materiais didáticos (Carvalho, 2021, p. 7).

O material didático da editora Quinteto tenta, de certa forma, contornar esses


problemas ao fornecer aos professores textos curtos adjacentes à redação principal
destinada aos alunos, com o objetivo de guiar a prática pedagógica. Todavia, estes
textos são comparáveis às notas de rodapé, e tampouco garantem que os problemas
estruturais concernentes à disposição dos processos históricos sejam resolvidos. Cria-se,
de certa maneira, um conflito entre o texto destinado aos alunos e a verdadeira intenção
do livro didático já que, por muitas vezes, o aprofundamento mais alinhado às pesquisas
contemporâneas acerca da antiguidade implicariam na contestação do próprio livro
didático. Dessa forma, adotar representações tão reducionistas, delegando ao professor a
responsabilidade pela adição de conteúdos mais refinados e aprofundados sobre os
conteúdos, pode gerar consequências deletérias para o processo de aprendizagem
histórica dos estudantes, ainda que façamos as devidas concessões à necessidade
de simplificações do conteúdo.

Posteriormente, o livro se atém a uma série temas consideros relevantes aos


estudantes brasileiros. No subcapítulo Desenvolvendo uma civilização (Dias, Grinberg,
Pellegrini, 2018, p. 61), a Mesopotâmia, como de costume, é colocada como ponto de
partida para o desenvolvimento da civilização a partir da formação das primeiras
cidades. O livro didático, evitando repetir clichês eurocêntricos, orienta que “uma
civilização corresponde a uma população que se estabelece em um território e ali
desenvolve um sistema de valores e características culturais semelhantes” (Dias,
Grinberg, Pellegrini, 2018, p. 61), abrindo espaço para que o aluno considere as
experiências de outros povos como civilizações. Entretanto, de forma paradoxal,
delimita esse conceito quando, ao tratar do caso mesopotâmico, afirma:

Os povos mesopotâmicos, por volta de 3.500 a.C., já haviam desenvolvido


vários elementos que caracterizam uma civilização, como a formação de
núcleos urbanos, uma religião e um governo centralizados, um sistema
de escrita, uma divisão do trabalho, entre outros (Dias, Grinberg,
Pellegrini, 2018, p. 61, grifo nosso). Comentado [53]: Corrigir formatação.

Essa definição é amplamente difundida entre diversos autores. Philip Bagby, por
exemplo, em sua obra Culture and History (1958), advoga por uma concepção de
civilização que remeta às origens etimológicas da palavra, que deriva do latim civitas, Comentado [54]: “remeta”

"cidade" (mesmo que o termo "civilização" tivesse sido criado na França setecentista); Comentado [55]: pôr entre parêntesis

62
Gordon Childe, em A evolução cultural do homem (1971), liga a ideia de "civilização" à
cultura urbana. Arnold Toynbee, diferentemente de Bagby e Childe, considerava um
erro essa associação, já que seria plenamente possível existirem civilizações sem
cidades. Fato curioso que Toynbee, todavia, concordava que uma "civilização" deveria
ser composta por camadas sociais distintas, estando algumas ocupada com a produção
de alimentos e outras desligadas dessa produção. Ou seja, para o autor, uma civilização Comentado [56]: pelo que entendi do que você escreveu,
nem todas estão desligadas da produção. Reformule.
estaria relacionada diretamente à existência da divisão e especialização do trabalho
(burocratas, militares, artesãos e etc.) e a produção de um excedente alimentício o que,
por consequência, coincidiria com o surgimento do Estado (Silva e Silva, 2009, p. 60).

Essa opção em relacionar narrativamente o desenvolvimento da civilização ao


surgimento da cidade (e, por extensão, do Estado), no livro, fica ainda mais evidente ao Comentado [57]: pôr entre parêntesis

analisarmos o trecho dedicado à Pré-História. No subcapítulo A formação de aldeias Comentado [58]: “Pré-História”

(Dias, Grinberg, Pellegrini, 2018, p. 45-47), que trata da sedentarizarão e formação das Comentado [59]: vírgula

primeiras comunidades agrícolas, não há menção alguma à formação de, proto-estados e


muito menos é possível identificar o uso da palavra “civilização” para definir alguma
das comunidades formadas durante o período. Os autores dão preferência ao termo Comentado [60]: Iniciar nova frase: “Os autores dão
preferência ao...”
“aldeia”, dado que as formas de organização social das comunidades neolíticas não
correspondiam às definições de “cidade” e “civilização” anteriormente mencionadas.

Contrastando com a representação generalista das sociedades e das culturas


mesopotâmicas antigas (todas as culturas babilônica, assíria, acádia e a suméria são
colocadas sob o mesmo rótulo de “mesopotâmicas”), o livro destaca dois subcapítulos Comentado [61]: “mesopotâmicas”

para tratar especificamente de duas culturas e povos distintos: a sociedade fenícia em A


Fenícia (2018, p. 72-75) e a hebraica em Os hebreus (2018, p. 76-79). Comentado [62]: “e a”

No caso fenício, o principal assunto abordado é a invenção do alfabeto e sua


importância para a popularização da escrita, tratado como “uma das maiores invenções
da humanidade” (Dias, Grinberg, Pellegrini, 2018, p. 73). De fato, as contribuições
fenícias para o desenvolvimento do alfabeto fonético e suas marcas no alfabeto latino
que utilizamos hoje em dia são significativas, justificando seu ensino. A situação do
povo hebreu é semelhante. Conforme exposto anteriormente por Huntington (1997), o
legado judaico-cristão é de extrema importância para a constituição da identidade Comentado [63]: A habilidade de código mencionado não
Ocidental. Acredito que, ao se adequarem às demandas da BNCC (sobretudo no que justificam em nada esses capítulos de história sagrada. Dá
uma olhada nos trabalhos do Barnabé, pois ele mostrou
tange às contribuições ao Ocidente), a inclusão dos povos monoteístas responsáveis pela como a História Sagrada é uma pedra no sapato há muito
tempo no Ensino de História. Ela permanece como
elaboração da mitologia de Javé e a codificação da Torá (que inclusive faz parte do concessão às pressões dos setores mais conservadores da
sociedade. Veja o que a Diane Ravich (The Language Police,
2004) fala sobre isso, tomando o caso americano como
Antigo Testamento da Bíblia cristã) fez-se necessária aos editores. Talvez seja por isso exemplo.

63
que o livro didático da Quinteto Editorial se debruça sobre questões como o cotidiano
hebreu, seus costumes e sua religiosidade (Dias, Grinberg, Pellegrini, 2018, p. 76-79).

Levanta-se, a partir disso, uma questão de suma importância: qual a motivação


para tanto destaque aos hebreus, dado que a região de Israel era marginal em relação aos
demais povos próximo-orientais? Para além das questões do legado monoteísta
apresentados por Fábio Augusto Morales e Uiran Gebara da Silva (2020) e da matriz
judaico-cristã apresentada por Samuel Huntington (1997) já mencionadas
anteriormente, Diane Ravitch (2004), a partir do caso americano, demonstra como o
fundamentalismo religioso militante, levado à cabo pelos setores conservadores da
sociedade estadunidense, pautaram o debate acerca dos conteúdos presentes nos livros
didáticos americanos.

De acordo com a autora, a “nova direita” (The New Right), durante parte do século
XX, avançou sobre os livros didáticos do estado do Texas por ensinarem um
“humanismo secular”, considerado pelos fundamentalistas como “uma nova religião”
que ignorava os preceitos bíblicos. Os livros didáticos, sob a ótica conservadora, eram
incapazes de distinguir entre o “certo e o errado” e mesmo assim ensinavam sobre a
ética humanista secular. Advogavam, ainda, pela exclusão de qualquer elemento
contrário à sua ideologia (aborto, homossexualidade e etc.). Por outro lado, pregavam
que os livros didáticos deveriam possuir um viés mais positivo sobre a história e a
nação. Pressionados, os editores foram forçados a fazer concessões: os livros didáticos
agora deveriam tentar abarcar todos pontos de vista da sociedade, sem que alguém seja
ofendido. Seja fundamentalista ou não (Ravitch, 2004, p. 71). Dessa forma, os
elementos religiosos judaico-cristãos subsistiram no ensino de história como substrato
de uma disputa ideológica entre setores progressistas da sociedade e conservadores

Os últimos povos próximo-orientais representados pelo LD são os persas. Os


temas abordados pelo material são extremamente reduzidos, preocupando-se somente
com as questões da administração imperial persa (divisão em satrapias, a construção das
estradas, mormente a Estrada Real e o sistema burocrático-tributário). Há, inclusive, um
boxe dedicado exclusivamente ao sistema de correio persa, demonstrando a sofisticação
na comunicação já na antiguidade, mas sem traçar paralelos com os sistemas de correio Comentado [64]: É muito bizarra essa representação “dos
contemporâneos (Dias, Grinberg, Pellegrini, 2018, p. 81). Toda e qualquer outra persas”. O império era meio medo, meio persa, meio elamita,
meio babilônico e ainda tinha um monte de gregos. O que os
menção à cultura persa deve ser feita pelo professor através das orientações contidas nas livros fazem é criar uma unidade cultural que nunca existiu
(até mais do que fizeram os autores gregos... lembrando que
páginas, como os conflitos greco-pérsicos e a influência do zoroastrismo em outras os autores dos LDs não sabem nada de História Antiga além
daquilo que está há muito tempo nos manuais... e que vem de
estereótipos e simplificações tomadas e pioradas, originadas
religiões, como a judaica (Dias, Grinberg, Pellegrini, 2018, p. 80). na leitura que os gregos faziam “dos persas”).

64
Após essas contribuições, os povos orientais reaparecem apenas muito
posteriormente no contexto da formação das cidades-estados gregas em notas laterais
destinadas ao professor (Dias, Grinberg, Pellegrini, 2018, p. 144).

Já no livro didático Inspire História (2018), a questão do surgimento das cidades


é tratada de maneira distinta. No subcapítulo Surgem as cidades (Azevedo, Seriacopi,
2018, p. 39), diferentemente de em Desenvolvendo uma civilização (Dias, Grinberg,
Pellegrini, 2018, p. 61), a formação das primeiras comunidades urbanas é abordada em
separado do surgimento da civilização. Dessa forma, ainda no capítulo sobre a pré-
história, o sítio neolítico de Çatal Höyük, na atual Turquia, é posto em discussão como
“uma das primeiras cidades” (Azevedo, Seriacopi, 2018, p. 39). Não há, aqui, uma
definição clara dos parâmetros adotados pelos autores para definir o sítio como uma
cidade ou não, mas, de forma semelhante ao livro da editora Quinteto, o surgimento
dessa forma de organização social é tido como resultado de processos que envolvem o
desenvolvimento de novas técnicas, do comércio e da estratificação social (Azevedo,
Seriacopi, 2018, p. 39).

Mas, se o livro didático em questão eleva as comunidades agrícolas ao posto de


“cidade”, tão pouco faz para considerar as experiências neolíticas como “civilizações” e
muito menos para separar o conceito de “civilização” de “cidade”:

Por volta de 5000 a.C., já era possível encontrar vida urbana e atividades
artesanais em diversos lugares do mundo. Com o surgimento das cidades,
abria-se o caminho para o aparecimento das primeiras civilizações, como
veremos nos capítulos a seguir (Azevedo, Seriacopi, 2018, p. 39, grifo
nosso). Comentado [65]: Padronizar

Assim, fica aparente que para o LD existem “cidades sem civilização”, mas não
“civilizações sem cidades”.

No capítulo 2, intitulado Civilizações: Um mundo, muitas civilizações (Azevedo,


Seriacopi, 2018, p. 48-49) recorrem a Fernand Braudel para definir o conceito como:

[...] o conjunto de valores e características culturais e materiais


compartilhados por uma sociedade em determinado espaço ao longo de um
tempo. Os costumes, as regras, as leis, as instituições, o desenvolvimento
econômico, as crenças religiosas os valores sociais, tudo isso diz respeito ao
conceito de civilização (Azevedo, Seriacopi, 2018, p. 49). Comentado [66]: Padronizar

Há, ainda, um alerta para usos perniciosos do conceito de civilização no passado,


como a hierarquização de civilizações entre “superiores” e “inferiores” e a condenação

65
de suas culturas (Azevedo, Seriacopi, 2018, p. 49). Mais uma vez essas informações são
inseridas em notas adjacentes ao texto principal. Todavia, diferentemente do livro
didático da Quinteto Editorial, o texto auxiliar destinado ao professor traz informações
relevantes para o trabalho em sala de aula. Esse fator, além de contribuir para a
formação dos estudantes, também contribuiu para a formação continuada dos
professores, tema muito caro à educação básica dado os problemas mencionados por
Carvalho (2021). Comentado [67]: Que conclusão você tira disso, frente à
incongruência que você indicou logo acima?
O livro da FTD Editorial, quando trata das civilizações mesopotâmicas, se difere
tanto qualitativa quanto quantitativamente de seu par. Quantitativamente, pois, das
civilizações que o livro promete abordar, apenas a civilização suméria figura nos
conteúdos programáticos. Qualitativamente, porque um número considerável de páginas
é dedicado somente à representação do povo sumério. Dessa forma, o livro didático
avança sobre vários aspectos da cultura suméria, como suas origens nômades-pastoris,
suas inovações técnicas (obras hidráulicas, invenção do arado de bronze), a astronomia,
religiosidade e, claro, a formação das primeiras cidades-estados (Azevedo, Seriacopi,
2018, p. 50-54). Sobre o último tema, o LD sugere ao professor uma pormenorização
das civilizações hidráulicas, relacionando as demandas político-sociais das obras com o
surgimento de uma monarquia-teocrática (Azevedo, Seriacopi, 2018, p. 53).

Curiosamente, a narrativa do surgimento da escrita como fenômeno pioneiro na


Mesopotâmia é desafiada por possibilidades e hipóteses distintas. Após a escrita
cuneiforme ser apresentada em seus pormenores (como utilidade, materiais utilizados,
tipo de escrita, meio de circulação e etc.) junto à explicação das escolas de escribas, as
edubbas (Azevedo, Seriacopi, 2018, p. 58-59), o livro didático nos apresenta outra
interpretação para o surgimento da escrita. A ideia de uma gênese mesopotâmica da Comentado [68]: Ele associa a escrita ao surgimento do
Estado tributário, faz dela um instrumento burocrático de
escrita é confrontada pela exibição de inscritos em um casco de tartaruga em Anyang, administração da produção e da possibilidade de sustentação
de uma classe improdutiva? Ou vai na linha da “escrita como
na China, datado de 8,5 mil anos, instigando uma maior reflexão sobre a constante bem cultural”?

fluidez das pesquisas científicas e a investigação de hipóteses (Azevedo, Seriacopi,


2018, p. 60).

Depois de abordar os temas considerados importantes cessam do papel de


protagonistas. Enquanto em Vontade de Saber: História o judaísmo conta com um
capítulo próprio, em Inspire História este aparecem somente futuramente em um
contexto de apresentação de eventos sincrônicos (intitulados “Enquanto isso...”) com
demais acontecimentos globais (Azevedo, Seriacopi, 2018, p. 99). Até mesmo o vasto
Império Persa que fascina o imaginário ocidental desde pelo menos a Antiguidade

66
Clássica, por exemplo, aparece apenas como um evento sincrônico (“Enquanto isso...”)
à expansão macedônica explicando, muito superficialmente, seu funcionamento:
sátrapas, organização burocrático-tributária e etc. (Azevedo, Seriacopi, 2018, p. 145). Comentado [69]: “o”

Uma surpresa agradável do livro da FTD Editorial é o capítulo Povos do


Mediterrâneo (Azevedo, Seriacopi, 2018). Nessa parte do livro, há uma tentativa de
conceber a formação dos povos banhados pelo Mar Mediterrâneo a partir das trocas
comerciais e culturais existentes durante os longos séculos de contato. Trata-se, por
exemplo da difusão do alfabeto fenício através dos contatos comerciais, da fundação de
Cádiz (na atual Espanha pelos fenícios, e do estabelecimento de colônias gregas na Comentado [70]: pôr entre parêntesis

península itálica, como em Nápoles e Siracusa (Azevedo, Seriacopi, 2018, p. 108). Mas,
apesar de representar um avanço (ou uma possibilidade de avanço), o livro não ousa ir
além das interações citadas.

A sociedade cretense, por exemplo, dada sua localização em meio à rota


comercial entre a Península Balcânica, norte da África e o Oriente Próximo,
configurava-se na antiguidade como um “caldeirão cultural”, sofrendo influência de
todas sociedades ao seu redor. Entretanto, no capítulo A civilização cretense (Azevedo,
Seriacopi, 2018, p. 108), o máximo que o livro tenta abordar acerca das particularidades
dos minoicos no mediterrâneo se restringe à realização de “trocas comerciais com
lugares distantes, como Grécia e Egito, além de outras regiões do Mediterrâneo, como
Mesopotâmia e ilha de Chipre” e a suposta maior liberdade das mulheres na sociedade Comentado [71]: “suposta”

(Azevedo, Seriacopi, 2018, p. 110).

Fica evidente, portanto, que mesmo quando submetidos a uma mesma diretriz (a
BNCC), os livros didáticos apresentam diferenças pontuais nas formas de abordar os
Comentado [72]: “Ocidente”
conteúdos dispostos. O que há de comum entre as duas coleções é que, a despeito das
Comentado [73]: Está faltando uma análise do que você
tentativas de avanço, a partir do binômio Estado-escrita, uma narrativa linear é identificou nos LDs e a bibliografia sobre ensino de História
Antiga. Ficam aqui referências com as quais dialogar:
construída. Os povos antigos apresentados pelos LDs se restringem àqueles cujo legado Trabalhos sobre livros didáticos e história antiga, que vc
deve usar:
é valioso e palpável ao Ocidente. Ademais, essa seleção reflete, ainda, uma visão - ASSUMPÇÃO & CAMPOS. O livro didático e o ensino de
História Antiga - desafios no presente e problemas do
eurocêntrica e limitada da História, que privilegia as experiências ocidentais passado. In: Perspectivas e diálogos 2020.
- SILVA. História Antiga e livro didático. Dimensões 2000.
(lembremos das competências e habilidades propostas pela BNCC). O reflexo dessa - SILVA & GONÇALVES. Algumas reflexões sobre os
conteúdos de História Antiga nos livros didáticos brasileiros.
prática se dá na dificuldade dos alunos em compreenderem a complexidade e a História & Ensino 2001.
- FUNARI. A História Antiga e os Livros Didáticos. In
diversidade cultural que moldaram a civilização humana. É fundamental revisar e ANDRADE FILHO. Relações de Poder, Educação e
Cultura na Antigüidade e Idade Média 2005.
ampliar os conteúdos pedagógicos para incluir de maneira equilibrada e justa todas as - BARNABÉ. História Antiga e Livros Didáticos no século
XXI. OPSIS 2014.
civilizações, valorizando suas contribuições e evitando preconceitos historicamente - CARVALHO. A escrita da História Antiga nos livros
Didáticos de História. SNH 2021 (Anais)
enraizados. Comentado [74]: Conclusão?

67
Seria então a abordagem multiculturalista a resposta para que as múltiplas
experiências antigas sejam contempladas pelo ensino, tendo em vista que a diversidade
cultural é um dos pontos principais dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs)?
Pedro Paulo Funari (2005) parece acreditar que esse é o caminho. Em uma visão
otimista, o autor afirma que:

A diversidade cultural permite que se busque compreender gregos e romanos,


mas também povos da Antiguidade, aristocratas e guerreiros, mas também
camponeses e escravos, homens, mas também mulheres (Funari, 2005, p. 6).

Considera, ainda, que a Antiguidade pode surgir como um período histórico de


ligação constante entre a realidade contemporânea e suas origens ideológicas — a
língua de base latina, o direito de inspiração romana, a democracia grega e etc. De
forma análoga, Carvalho (2021, p. 8) afirma que as narrativas presentes nos livros
didáticos remetem “às origens político-culturais do mundo contemporâneo, de tal forma
que o passado se torna útil para justificar ou fundamentar o presente”. Porém, ao mesmo
tempo que essa narrativa valoriza os feitos greco-romanos clássicos, esconde as
particularidades dos povos orientais, pouco considerados importantes para a formação
da identidade brasileira (Carvalho, 2021, p. 8-9).

É preciso, todavia, tomar certos cuidados com uma visão exageradamente


positiva das possibilidades de uma abordagem multiculturalista. Nas escolas públicas
estadunidenses da década de 1980, o debate multiculturalista estava tão em alta que
adotou formas extremadas, como o afrocentrismo. Multiculturalistas radicais
advogavam pela substituição do pensamento analítico pelo ensino do orgulho étnico,
pondo em segundo plano as heranças europeias a favor de uma reforma curricular que
privilegiasse a melhora da autoestima de crianças não europeias em solo americano
(Ravitch, 2004, p. 135-136). De fato, não há problema algum em querer uma abordagem
mais ampla e inclusiva, ainda mais quando essa abordagem significa a melhora
psicoemocional de jovens estudantes. Porém, os conteúdos escolares, quando postos
sobre um viés exclusivamente positivo, incorre no risco de se tornar acrítico. Ravitch
(2004, p. 141-142) adverte, como possível consequência para este fenômeno, parte
significativa dos estudantes se tornarem incapazes de compreender os motivos pelos
quais civilizações florescem e morrem e de entender a importância dos direitos
humanos, liberdade de expressão e da democracia em sociedades multirreligiosas e
multiétnicas. É preciso, portanto, encontrar um ponto de equilíbrio entre um ensino de

68
história que contemple as diversas sociedades antigas, sem que percamos o foco dos
reais objetivos do ensino de história.

O ensino de História Antiga no Brasil apresenta um cenário complexo, marcado por


avanços e desafios. Por um lado, os avanços no ensino de História Antiga no Brasil são
notáveis, com a produção de pesquisas de alta qualidade, a utilização de novas
perspectivas historiográficas e a busca por metodologias que aproximem os estudantes
da Antiguidade. No entanto, é preciso superar desafios como a fragmentação curricular,
a falta de diálogo com outras áreas do conhecimento e a desvalorização da disciplina no
currículo escolar. A superação desses obstáculos passa pela valorização da formação
inicial e continuada dos professores, pela atualização e fortalecimento dos materiais
didáticos e pela construção de uma narrativa histórica que dialogue com as experiências
dos estudantes.

69
CONSIDERAÇÕES FINAIS

70
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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