Ser (Tão), Processo de Montagem
Ser (Tão), Processo de Montagem
Ser (Tão), Processo de Montagem
Abstract: The present experience reports the devices used for the elaboration of the Ser (Tão)
performance, and the process of researching a work with hybrid language and motif in dance. It
describes the devising process of a performance that finds in the fusion of dance, theater and
music not only a spectacle, but a portion of restored behavior that shows a social place of the
Northeastern. With this project I circulated through 14 cities of Espírito Santo and I was able to
accompany the reception of this work by different regions audiences, so to reflect if the devices
of the assembly process were identified in the work by the spectator, and also accompanying the
development of the performance.
Keywords: Performance, Restored behavior, Popular culture.
1Graduado em Marketing pela Universidade Vila Velha (2012), graduado em Gestão Empresarial pela Uni-
versidade Vila Velha (2013) e Graduado em Gestão de Vendas pela Universidade Vila Velha (2010). Atual-
mente é Produtor e Bailarino do Coletivo Emaranhado, Instrutor de Dança da Escola Técnica de Teatro,
Dança e Música FAFI e do Museu Capixaba do Negro Verônica Paes. Bailarino e Produtor da Reverence Cia
de Dança e Produtor Cultural Independente. Tem experiência na Área de Dança e Marketing Cultural, atu-
ando principalmente nos seguintes temas: Dança Popular Capixaba, Dança Afro-brasileira, Arte e Cultura,
Música e Arte Negra.
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Desenvolver um trabalho cênico dentro desta proposta foi fruto das leituras realizadas no
curso de Filosofia, na disciplina de Filosofia da Libertação que estava cursando no ano de 2015,
o mesmo período em que cursei a disciplina de Arte da Performance com o professor Cesar
Huapaya.
Sou instrutor de dança e pesquisador em danças populares de motrizes culturais aplicadas às
práticas performativas afro-brasileiras desde 2010. Inspirado no meu percurso dentro da dan-
ça, tentei trazer em Ser (Tão) o que observo sobre o deslocamento migratório dos nordesti-
nos e, dentro da linguagem da dança popular brasileira, estruturei seus fragmentos textuais
como uma tentativa de rememorar a trajetória de milhares de nordestinos que são estereoti-
pados/estilizados em trabalho cênicos.
O projeto emergiu uma das várias histórias dos primeiros migrantes nordestinos que vieram
para a região sudeste do Brasil. Não se trata dos brasileiros contemporâneos e sim daqueles
pioneiros que largaram sua vida na região rural e foram para São Paulo buscar um emprego
que lhes proporcionasse ascensão financeira.
Estruturei esse trabalho com base na teoria do comportamento restaurada de Schechenner
(2012), na Filosofia da Libertação de Dussel (1977) e nos estudos das performances brasileiras
de Ligiéro (2011) e Huapaya (2017).
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Schechner (2012, p. 91) aponta a performance como a possibilidade, fruto da interação entre o
ritual e jogo; como comportamento ritualizado permeado pelo jogo, tendo como referência
os aspectos fluidos das performances capazes de serem caracterizados como ritual ou jogo.
Jogar - fazendo algo que não é “não pra valer” – está, como ritual,
no coração da performance. De fato, uma definição de performan-
ce pode ser: comportamento ritualizado condicionado/permeado
por jogo. O ritual tem seriedade, ele é martelo da autoridade. O jo-
go é mais livre, mais permissivo – afrouxando precisamente aque-
las áreas onde o ritual está pressionado, flexível onde o ritual é rí-
gido. Para dizer em outras palavras: o comportamento restaurado
tem a qualidade de não ser inteiramente “real” ou “sério”. O com-
portamento restaurado é condicional; ele pode ser revisto (SCHE-
CHNER, 2012, p. 91).
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Com a equipe formada e já na sala de ensaio propus, primeiramente, uma pesquisa bibliográfi-
ca das escolas estéticas de pensadores que ajudariam a moldar o início do trabalho. Lemos
artigos de Zeca Ligiério (2011), que discute como pensar o corpo negro dentro das práticas
performativas; Richard Schecher (2012), com sua fundamentação sobre o conceito de perfor-
mance; Cesar Huapaya (2017) e sua literatura sobre o encontro da encenação com a perfor-
mance e textos que trouxessem uma contextualização sócio-histórica sobre as migrações
nordestinas no Brasil. O objetivo do estudo foi um meio de preparação do corpo cênico para o
projeto, para que juntos pudéssemos desenvolver o dispositivo impulsional e energético do
trabalho.
Após o processo de aproximação teórica, apresentei a concepção da performance, a divisão
das cenas e os seus quadros com disparadores na dança. Expus a relação entre performers e
cenas, objetos e imagens, para assim iniciar o processo de montagem. Esclarecida a proposta,
estruturamos cenário, luz, figurino, trilha e a pesquisa corporal do performer. Foram oito me-
ses de trabalho para chegarmos a uma célula inicial.
Para o elenco, com Direção Artística de Léia Rodrigues, reunimos quatro performers: (eu)
Maicom Souza e Ricardo Reis, como bailarinos que representavam os retirantes jovens; o
músico Dori Sant’ana, representando um retirante mais velho; e a cantora Elaine Vieira, repre-
sentando também uma retirante mas que, transformava-se, em algumas cenas do espetáculo,
em Nossa Senhora. A intenção foi reunir artistas de segmentos diferentes e assim formar uma
obra híbrida com dispositivo na dança. Ricardo Reis possui uma linha de pesquisa em dança
contemporânea, Dori Sant’ana é músico e ator e Elaine Vieira é cantora e atriz.
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Figura 6. Processo de montagem na rua, Parque Pedra da Cebola, Vitória/ES. Brunela Negreiros, 2016
Com esta equipe fomos para a sala de ensaio/rua e elaboramos Ser (Tão). Os performers con-
tam a história de uma vida nordestina – anônima – que sai do interior do estado da Bahia e vai
para cidade de São Paulo, impulsionados pelos problemas causados pela seca e pelas condi-
ções adversas do meio. Fugindo do sertão árido e da falta de trabalho, motivados pela vonta-
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de de alcançar uma vida menos sofrida, foram buscar nos centros urbanos do Brasil melhores
condições, iludidos por imagens de uma vida urbana confortável e progressista.
Coreograficamente, os movimentos buscavam restaurar as experiências corporais já vividas,
pensar em trazer para o momento presente as intenções de um corpo que passou por diver-
sas situações em uma dada época. Os jogos cênicos para a montagem tiveram a tentativa de
reviver comportamentos e conflitos de um povo oprimido, dessa forma, diferentes modos de
vivência aconteceram no encadeamento das cenas.
Em cada cena houve um tentativa de estabelecer um ponto de empatia e levar o espectador
ao maior número de sensações concebíveis, provocando assim as possíveis reflexões. O dis-
curso da performance era provocar a alteridade, a empatia e o criticismo sobre um fato coti-
diano brasileiro, o racismo, valendo-se de um dispositivo histórico e antropológico de um
grupo social, utilizando uma linguagem cênica corporal, verbal e musical com um gestus social.
Para essa proposta híbrida que perpassa a dança e o teatro e que trabalha propondo a des-
construção da encenação, contamos com textos e com a técnica brechtiana e uma linguagem
no simbolismo.
O distanciamento pode existir em uma montagem em vários níveis:
na fábula, que vai contar duas histórias diferentes, uma inspirada
no real e a outra metafórica; no cenário ou espaço cênico como
metalinguagem, que vai mostrando todos os truques do teatro, a
gestualidade ou o gestus da personagem, ator, diretor e especta-
dor; na música e na fala, como comentário e estranhamento nas
cenas; no trabalho de criação do ator que não representa a perso-
nagem, mas presenta e mostra ao espectador, criticando as atitu-
des e a sua forma de agir. [...] montagem constitui o elemento
fundamental na poética do teatro dialético de Brecht, na qual o
distanciamento funciona como a arte de dispor as diferenças. [...] a
montagem é um confronto de campos, uma reflexão histórica,
com representações em gestus sociais pelo ator, uma maquete
dramatúrgica (sequências gestuais). Tudo é exposto e colado em
uma mesma imagem (HUAPAYA, 2016, p. 117).
Os nordestinos possuem uma produção artística muito rica, o que acabou ocasionando no
grupo um certo cuidado na concepção do figurino, dos adereços, da trilha sonora e na criação
dos personagens, para que não se estereotipasse o nordestino, mas que, ao invés disso, forta-
lecesse a sua imagem na cultura brasileira. Os quatro performers jogavam entre si – jogo do
performer com outro performer – não era um jogo individual nem com o público, apesar da
aproximação. O trabalho facial, o gestus das emoções e da face, foi pensado por Léia Rodri-
gues para que pudessem despertar a empatia e a musicalidade, meio de fortalecer a multipli-
cidade cultural nordestina. As técnicas corporais foram uma fusão entre a dança contemporâ-
nea e as danças populares nordestinas de raízes negras.
O principal objetivo foi de, por meio da performance, transportar o espectador no tempo,
assimilando realidades diferentes de uma mesma vida, proporcionando uma reflexão sobre o
povo nordestino que já foi discriminado pelos paulistas como homens incultos, que vivem à
margem da sociedade. Vejo o Ser (Tão) como uma contribuição na construção da cultura local,
trazendo uma ideia sobre a homogenia entre os códigos culturais populares do Brasil e códi-
gos tradicionais locais das cidades que apresentamos.
Preocupei-me em estudar os meios de apresentar e expor a imagem de uma persona ou de
personagens em montagens na sociedade contemporânea que não fossem reféns do discurso
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Ser (Tão) estreou em 2015 e desde então realizamos 28 apresentações em 14 cidades do Espí-
rito Santo: Afonso Cláudio, Alegre, Cariacica, Conceição da Barra, Guaçuí, Itaguaçu, Linhares,
Montanha, Mucurici, Muqui, Pedro Canário, Venda Nova do Imigrante, Vitória e Vila Velha.
Meu objetivo, enquanto produtor e bailarino, foi o de aproximar o público da arte performáti-
ca, principalmente o público do interior do estado.
Tivemos um retorto satisfatório do público por onde passamos. O carinho e identificação dos
nordestinos para com a proposta de Ser (Tão) me deixou, por muitas vezes, emocionado. Eles
refletiam, cantavam, dançavam e sorriam, se envolvendo com as cenas. Uma performance
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que diz muito e fala de forma respeitosa sobre o povo brasileiro, o sertanejo forte que luta
todos os dias e sabe que o nosso país foi construído e se mantém, em grande parte, graças à
força e à dignidade do povo nordestino.
Estamos repletos de instituições, costumes e tradições com as quais vivemos de modo natura-
lizado. Entretanto, não percebemos que algumas atitudes e pontos de vista estão enraizados
em relatos históricos que ainda precisam ser discutidos. Quando o indivíduo sai de seu perí-
metro vital e entra em contato com outras tradições e costumes, começa a compará-las com
as suas histórias e vivências, nesse momento surgem as reflexões pelas verdades de umas e as
outras. A reflexão histórica se une à reflexão filosófica, e a intenção de Ser (Tão) era fazer
uma ponte entre os costumes de povos brasileiros de territórios distintos, com realidades
diferentes, para que assim o público pudesse comparar, relacionar e refletir.
O objetivo era encantar o público, abrir o diálogo através da temática escolhida - e o encanta-
mento aconteceu em várias apresentações. Foi incrível ouvir da plateia que representamos o
sertão com muito respeito e amor. Em cada cidade recebemos palavras de carinho e muita
emoção. Levar essa performance para as cidades do Espírito Santo foi uma experiência enri-
quecedora. Montar esse espetáculo era uma vontade que me acompanhava há um tempo,
mas eu precisava esperar a oportunidade de estudar meios cênicos que pudessem tornar a
obra Ser (Tão) mais alinhada. Tinha consciência de que somente com o passar do tempo e
com a realização de várias apresentações, o espetáculo poderia amadurecer. E foi isso o que
aconteceu, entre 2015 e 2018 a obra amadureceu, o espetáculo ganhou um novo formato,
toda a equipe envolvida cresceu e com essas apresentações ganhamos mais maturidade e
força.
Figura 9. Adaptação para palco italiano, Apresentação Itaguaçu/ES. Marcelo Braga, 2017
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Figura 10. Adaptação para palco italiano, Apresentação Afonso Cláudio/ES. Marcelo Braga, 2017
Figura 11. Adaptação para formato em arena, público no palco com os performers. Apresentação Guaçuí/ES.
Marcelo Braga, 2017.
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Levamos para o público as sensações que a arte contemporânea pode proporcionar, momen-
tos de reflexão e crítica, que possibilitaram a interpretação pessoal a partir dos signos que
lhes são apresentados. Sempre após as apresentações, no dia seguinte ou mesmos no trans-
porte, nós do elenco realizamos reuniões para falar sobre a apresentação e como nos organi-
zaríamos para as próximas. Cada apresentação era uma junção de novas experiências e ainda
tínhamos esta roda de conversa para melhorarmos o nosso trabalho. Notei nessas vivências
que o processo de montagem é contínuo e que, enquanto estivermos apresentando a obra
nunca estará finalizada e sim sempre evoluindo e sendo somada às questões sociais que acon-
tecem no Brasil nos momentos atuais.
Descobri que nossa equipe cresceu muito, fiquei feliz em concluir que nossas discussões acon-
teciam sempre pelos mesmos objetivos: qualificar nossa obra, crescer enquanto artistas e
valorizar nosso trabalho cênico.
Referências
DUSSEL, Enrique. Filosofia da Libertação na América Latina. Trad. João Luiz Gaio. São Paulo:
Co-Edição Edição Loyola, 1977.
HUAPAYA, Cesar Augusto Amaro. Estética e performance: Dispositivos das Artes e das Práti-
cas performativas. 02. ed. Vitória/ES: Editora Cousa, 2017.
HUAPAYA, Cesar. Montagem e Imagem com o Paradigma. Rev. Bras. Estud. Presença, Porto
Alegre, v. 6, n.1, p. 110-123, jan./abr. 2016. Disponível em: <http: //www.seer.ufrgs.br/presenca>
LIGIÈRO, Zeca. Corpo a Corpo: estudo das performances brasileiras. Rio de Janeiro/RJ: Gara-
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SARTRE, J.-P. O ser e o nada. Ensaio de uma ontologia fenomenológica. Trad. Paulo Perdigão.
24 ed. Petrópolis, RJ: Vozes 2017.
SCHECHNER, Richard. Performance e antropologia de Richard Schechner. Seleção de ensaios
organizados por Zeca Ligièro. Rio de Janeiro/RJ: Muad X, 2012.
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