Ser (Tão), Processo de Montagem

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 11

Ser (Tão), Processo de Montagem

Ser (Tão), Creative Process

Maicom Souza e Silva1

Resumo: O presente relato de experiência registra os dispositivos usados para a elaboração


da performance Ser (Tão), o processo de pesquisa de um trabalho com linguagem híbrida e
mote na dança. Descreve a montagem de uma performance que encontra na fusão entre
dança, teatro e música não apenas um espetáculo, mas uma porção de comportamento res-
taurado que evidencia um lugar social dos nordestinos. Com este projeto circulei por 14 cida-
des do Espírito Santo e pude acompanhar a recepção deste trabalho por públicos de diferen-
tes regiões, e, assim, refletir se os disparadores do processo de montagem foram identifica-
dos na obra pelo espectador, além de acompanhar o amadurecimento da performance.
Palavras-chave: Performance, Comportamento restaurado, Cultura popular.

Abstract: The present experience reports the devices used for the elaboration of the Ser (Tão)
performance, and the process of researching a work with hybrid language and motif in dance. It
describes the devising process of a performance that finds in the fusion of dance, theater and
music not only a spectacle, but a portion of restored behavior that shows a social place of the
Northeastern. With this project I circulated through 14 cities of Espírito Santo and I was able to
accompany the reception of this work by different regions audiences, so to reflect if the devices
of the assembly process were identified in the work by the spectator, and also accompanying the
development of the performance.
Keywords: Performance, Restored behavior, Popular culture.

1Graduado em Marketing pela Universidade Vila Velha (2012), graduado em Gestão Empresarial pela Uni-
versidade Vila Velha (2013) e Graduado em Gestão de Vendas pela Universidade Vila Velha (2010). Atual-
mente é Produtor e Bailarino do Coletivo Emaranhado, Instrutor de Dança da Escola Técnica de Teatro,
Dança e Música FAFI e do Museu Capixaba do Negro Verônica Paes. Bailarino e Produtor da Reverence Cia
de Dança e Produtor Cultural Independente. Tem experiência na Área de Dança e Marketing Cultural, atu-
ando principalmente nos seguintes temas: Dança Popular Capixaba, Dança Afro-brasileira, Arte e Cultura,
Música e Arte Negra.
Revista do Colóquio, N. 15, dezembro de 2018

Performatizar o cotidiano, restaurar comportamentos, esta é a concepção de Ser (Tão), traba-


lho que montei dentro do coletivo de artes cênicas do qual sou fundador, produtor e bailari-
no, o Coletivo Emaranhado, da cidade de Vitória/ES. É uma proposta híbrida entre teatro, dan-
ça e música com um dispositivo cênico em danças populares brasileiras.
Composta por 05 células performáticas, colaborei, nesta concepção dramatúrgica, para um
espetáculo de rua em que são narrados os contrapontos, oposições e contradições da vida do
retirante nordestino dos anos 60, que saíram do interior do nordeste para tentar uma vida de
maior oportunidade em São Paulo/SP.
Ser (Tão) surgiu em 2015, no curso de Arte da Performance ministrado pelo professor Cesar
Augusto Amaro Huapaya, na Universidade Federal do Espírito Santo, espaço em que estudo
bacharelado em Filosofia. Dentro da perspectiva da filosofia existencialista, com o apoio nos
estudos do conceito de liberdade em Sartre, é que a estrutura filosófica do nome dessa per-
formance foi pensada. A junção da palavra “Ser” enquanto indivíduo por fazer-se no tempo e
no espaço e “Tão”, como sufixo, que remete à intensidade e como aumentativo do verbo
“ser”, representando ao vigor da vida no sertão, é a analogia a uma polaridade que motiva o
sertanejo a procurar outras formas de viver, fora do seu contexto social.
Sartre (2017, p. 541) aponta que a liberdade é uma condição instransponível do ser humano,
fato do qual não se pode esquivar, ou seja, o ser humano está fadado a ser livre e é a partir
desta condenação à liberdade que o ser humano se constrói nas relações sociais - liberdade
nas ações de escolher, impulsionado por um desejo consciente dos preceitos dessa escolha.
Espaço em que não existem princípios prontos, definidos para guiar as escolhas humanas.
Com efeito, sou um existente que aprende sua liberdade através
de seus atos; mas sou também um existente cuja existência indivi-
dual e única temporaliza-se como liberdade [...] Assim, minha liber-
dade está perpetuamente em questão em meu ser; não se trata de
uma qualidade sobreposta ou uma propriedade de minha natureza;
é bem precisamente a textura de meu ser (SARTRE, 2017, p. 542-
543).

Desenvolver um trabalho cênico dentro desta proposta foi fruto das leituras realizadas no
curso de Filosofia, na disciplina de Filosofia da Libertação que estava cursando no ano de 2015,
o mesmo período em que cursei a disciplina de Arte da Performance com o professor Cesar
Huapaya.
Sou instrutor de dança e pesquisador em danças populares de motrizes culturais aplicadas às
práticas performativas afro-brasileiras desde 2010. Inspirado no meu percurso dentro da dan-
ça, tentei trazer em Ser (Tão) o que observo sobre o deslocamento migratório dos nordesti-
nos e, dentro da linguagem da dança popular brasileira, estruturei seus fragmentos textuais
como uma tentativa de rememorar a trajetória de milhares de nordestinos que são estereoti-
pados/estilizados em trabalho cênicos.
O projeto emergiu uma das várias histórias dos primeiros migrantes nordestinos que vieram
para a região sudeste do Brasil. Não se trata dos brasileiros contemporâneos e sim daqueles
pioneiros que largaram sua vida na região rural e foram para São Paulo buscar um emprego
que lhes proporcionasse ascensão financeira.
Estruturei esse trabalho com base na teoria do comportamento restaurada de Schechenner
(2012), na Filosofia da Libertação de Dussel (1977) e nos estudos das performances brasileiras
de Ligiéro (2011) e Huapaya (2017).

72
Revista do Colóquio, N. 15, dezembro de 2018

Schechner (2012, p. 91) aponta a performance como a possibilidade, fruto da interação entre o
ritual e jogo; como comportamento ritualizado permeado pelo jogo, tendo como referência
os aspectos fluidos das performances capazes de serem caracterizados como ritual ou jogo.
Jogar - fazendo algo que não é “não pra valer” – está, como ritual,
no coração da performance. De fato, uma definição de performan-
ce pode ser: comportamento ritualizado condicionado/permeado
por jogo. O ritual tem seriedade, ele é martelo da autoridade. O jo-
go é mais livre, mais permissivo – afrouxando precisamente aque-
las áreas onde o ritual está pressionado, flexível onde o ritual é rí-
gido. Para dizer em outras palavras: o comportamento restaurado
tem a qualidade de não ser inteiramente “real” ou “sério”. O com-
portamento restaurado é condicional; ele pode ser revisto (SCHE-
CHNER, 2012, p. 91).

Dentro de toda performance, a teoria do comportamento restaurado é um elemento chave


para o processo de criação. Possibilita o entendimento de que no cotidiano, sobretudo na
presença dos outros, o homem sempre estaria performatizando e/ou ritualizando a partir de
experiências e situações já vividas (SCHECHNER, 2012, p. 91).
A coreografia de Ser (Tão) faz analogia aos postos de trabalho em que os nordestinos ocupa-
vam na cidade de São Paulo/SP. Com isso, tive como intenção coreográfica estruturar uma
história anacrônica para ilustrar as vivências e situações pelas quais esses migrantes passaram.
Para melhor estruturação e retratação do tema, a coreografia desenvolvida fez as ruas das
cidades servirem como palco. Esse foi o espaço ritualístico criado para retratarmos a saída do
retirante da sua terra natal e a forma como esse corpo/personagem recebeu o cenário urba-
no.
Para elaboração da coreografia foi desenvolvida uma pesquisa dentro das representações de
passos, volteios, gingados, posturas, gestos e procedimentos coreográficos presentes no
imaginário corporal popular brasileiro, mas com o eixo de pesquisa nas danças populares ne-
gras nordestinas.
As danças africanas são incontáveis em suas modalidades e variam conforme os grupos soci-
ais. Mas, quando fazemos a relação com a dança afro-brasileira podemos ressaltar um código
estilístico comum: os trajetos do movimento do torso, as subdivisões que são feitas entre o
ombro, o quadril e o ventre, movimentos que desobedecem à unidade do torso. A diáspora
africana é um dispositivo que ajuda a compreender a multiplicidade de danças afro-brasileiras
que utilizam a descontinuidade na utilização do torso em requebrados, remelexos, rebolados
e gingas, entre outras variações que são herdadas de seus antepassados ou trazidas pelos
ascendentes africanos (LIGIÉRO, p. 132, 2011).
A vontade de estruturar uma coreografia pelos vieses das danças brasileiras me estimulou a
codificar certa linguagem corporal brasileira, reunindo passos, saltos, giros e quedas de várias
danças negras, constituído por um extenso e variado vocabulário. Com isso, fui formando uma
nova e diversificada síntese, partindo do princípio de que as nossas danças populares são o
resultado de colagens feitas de diferentes danças – indígenas, africanas e ibéricas – ou de
fragmentos delas, com suas características e particularidades referentes a cada região do
Brasil, que se desmantelaram no processo de acomodação colonizadora.
Ligiéro (2011, p. 132) aponta que no Brasil se encontram variadas formas celebratorias que os
africanos trouxeram de suas etnias, suas práticas corporais restauram comportamentos os
quais foram forçados a abandonar pela própria condição de escravos distantes de suas mani-
festações culturais nativas. A dança dos negros foi perseguida e ao longo do tempo houve um

73
Revista do Colóquio, N. 15, dezembro de 2018

processo de tolerância, transformação e negociação que gerou diversas performances, não só


pela multiplicidade de etnias presentes no Brasil, como também pela própria interação no
contexto local. Na intenção de recriar rituais e celebrações antigas nascem novas e vigorosas
tradições, genuinamente africanas, mas miscigenadas dentro do próprio processo formador
do país.
Minha proposta foi, então, a reunião desses fragmentos de danças populares negras nordes-
tinas, reorganizando e possibilitando outras configurações aos movimentos originando, assim,
novos dialetos corporais. Somado a isso, busquei diversas danças populares de outras regiões
brasileiras, as quais apresentam grande riqueza simbólica e potencial coreográfico.
No processo de montagem da encenação tomei como ponto de partida uma questão social: o
racismo contra os nordestinos. Sua base se fortificou com os conceitos da filosofia da liberta-
ção de Enrique Dussel, para elucidar a problemática da instalação performática proposta.
A filosofia da libertação de Dussel (1977, p. 163) alimenta-se na relação concreta de respeito e
alteridade com o outro, no olhar e na relação de responsabilidade mútua. Nesta filosofia, a
premissa é de que as relações pessoais estabeleçam uma cultura de respeito ao Outro em sua
totalidade, seja quem for (as relações pessoais passam a ter outro significado). Uma relação
concreta se faz apenas na alteridade, o principal meio de expressão na relação rosto a rosto,
no olhar. A filosofia da libertação é um processo de abertura para o Outro, diferente do que
ocorre na superação da dialética da dominação. Dussel chama esta abertura de analética,
método da filosofia da libertação que se opõe a dialética dominadora. A analética é o desen-
volvimento natural da dialética, que fora omitida ou não, alcançada pelos europeus.
Consequentemente, a metafísica da filosofia latino-americana é ética, pois se preocupa pri-
meiramente com a relação entre os seres, em que sua expansão gera uma racionalidade ética.
Assim, o termo liberdade é empregado em Dussel com um valor simbólico e cultural (DUSSEL,
1977, p. 65).
Para Dussel (1977, p. 51), a filosofia de libertação visa resgatar os valores culturais e as repre-
sentações dos grupos que não tiveram voz na história das instituições políticas, trazendo à
tona a essência latino-americana de inúmeras áreas de conhecimento que foram negligencia-
das ou suprimidas: crenças, artes, moral, linguagem, ideias, hábitos, tradições, usos e costu-
mes, artesanatos, folclore, etc. Assim, justifica-se pelo fato de que a cultura, em seu sentido
pleno, significa a transformação da realidade feita pelo homem, com o objetivo de utilizar a
natureza para seu benefício.
Minha intenção foi criar um espetáculo com mote também no anacronismo: o modelo de
encenação se inicia na década de 60, com o nordestino chegando à São Paulo, e as cenas ter-
minam evidenciando quais os reais motivos do deslocamento dos personagens. O dispositivo
para montar o trabalho foi a dança, mas transitamos entre o teatro, a música e o canto, um
jogo coletivo entre os personagens, dispositivos energéticos que se fundem, inspirados nos
trabalhos de Mário Nascimento e Antônio Nóbrega, nas canções do Mestre Ambrósio, além
de técnicas de Berlolt Brecht.

74
Revista do Colóquio, N. 15, dezembro de 2018

Figura 5. Primeiro ensaio aberto. Brunela Negreiros, 2016.

Com a equipe formada e já na sala de ensaio propus, primeiramente, uma pesquisa bibliográfi-
ca das escolas estéticas de pensadores que ajudariam a moldar o início do trabalho. Lemos
artigos de Zeca Ligiério (2011), que discute como pensar o corpo negro dentro das práticas
performativas; Richard Schecher (2012), com sua fundamentação sobre o conceito de perfor-
mance; Cesar Huapaya (2017) e sua literatura sobre o encontro da encenação com a perfor-
mance e textos que trouxessem uma contextualização sócio-histórica sobre as migrações
nordestinas no Brasil. O objetivo do estudo foi um meio de preparação do corpo cênico para o
projeto, para que juntos pudéssemos desenvolver o dispositivo impulsional e energético do
trabalho.
Após o processo de aproximação teórica, apresentei a concepção da performance, a divisão
das cenas e os seus quadros com disparadores na dança. Expus a relação entre performers e
cenas, objetos e imagens, para assim iniciar o processo de montagem. Esclarecida a proposta,
estruturamos cenário, luz, figurino, trilha e a pesquisa corporal do performer. Foram oito me-
ses de trabalho para chegarmos a uma célula inicial.
Para o elenco, com Direção Artística de Léia Rodrigues, reunimos quatro performers: (eu)
Maicom Souza e Ricardo Reis, como bailarinos que representavam os retirantes jovens; o
músico Dori Sant’ana, representando um retirante mais velho; e a cantora Elaine Vieira, repre-
sentando também uma retirante mas que, transformava-se, em algumas cenas do espetáculo,
em Nossa Senhora. A intenção foi reunir artistas de segmentos diferentes e assim formar uma
obra híbrida com dispositivo na dança. Ricardo Reis possui uma linha de pesquisa em dança
contemporânea, Dori Sant’ana é músico e ator e Elaine Vieira é cantora e atriz.

75
Revista do Colóquio, N. 15, dezembro de 2018

Figura 6. Processo de montagem na rua, Parque Pedra da Cebola, Vitória/ES. Brunela Negreiros, 2016

Figura 7. Ensaio de cena, partituras coreográficas. Léia Rodrigues, 2017

Com esta equipe fomos para a sala de ensaio/rua e elaboramos Ser (Tão). Os performers con-
tam a história de uma vida nordestina – anônima – que sai do interior do estado da Bahia e vai
para cidade de São Paulo, impulsionados pelos problemas causados pela seca e pelas condi-
ções adversas do meio. Fugindo do sertão árido e da falta de trabalho, motivados pela vonta-

76
Revista do Colóquio, N. 15, dezembro de 2018

de de alcançar uma vida menos sofrida, foram buscar nos centros urbanos do Brasil melhores
condições, iludidos por imagens de uma vida urbana confortável e progressista.
Coreograficamente, os movimentos buscavam restaurar as experiências corporais já vividas,
pensar em trazer para o momento presente as intenções de um corpo que passou por diver-
sas situações em uma dada época. Os jogos cênicos para a montagem tiveram a tentativa de
reviver comportamentos e conflitos de um povo oprimido, dessa forma, diferentes modos de
vivência aconteceram no encadeamento das cenas.
Em cada cena houve um tentativa de estabelecer um ponto de empatia e levar o espectador
ao maior número de sensações concebíveis, provocando assim as possíveis reflexões. O dis-
curso da performance era provocar a alteridade, a empatia e o criticismo sobre um fato coti-
diano brasileiro, o racismo, valendo-se de um dispositivo histórico e antropológico de um
grupo social, utilizando uma linguagem cênica corporal, verbal e musical com um gestus social.
Para essa proposta híbrida que perpassa a dança e o teatro e que trabalha propondo a des-
construção da encenação, contamos com textos e com a técnica brechtiana e uma linguagem
no simbolismo.
O distanciamento pode existir em uma montagem em vários níveis:
na fábula, que vai contar duas histórias diferentes, uma inspirada
no real e a outra metafórica; no cenário ou espaço cênico como
metalinguagem, que vai mostrando todos os truques do teatro, a
gestualidade ou o gestus da personagem, ator, diretor e especta-
dor; na música e na fala, como comentário e estranhamento nas
cenas; no trabalho de criação do ator que não representa a perso-
nagem, mas presenta e mostra ao espectador, criticando as atitu-
des e a sua forma de agir. [...] montagem constitui o elemento
fundamental na poética do teatro dialético de Brecht, na qual o
distanciamento funciona como a arte de dispor as diferenças. [...] a
montagem é um confronto de campos, uma reflexão histórica,
com representações em gestus sociais pelo ator, uma maquete
dramatúrgica (sequências gestuais). Tudo é exposto e colado em
uma mesma imagem (HUAPAYA, 2016, p. 117).

Os nordestinos possuem uma produção artística muito rica, o que acabou ocasionando no
grupo um certo cuidado na concepção do figurino, dos adereços, da trilha sonora e na criação
dos personagens, para que não se estereotipasse o nordestino, mas que, ao invés disso, forta-
lecesse a sua imagem na cultura brasileira. Os quatro performers jogavam entre si – jogo do
performer com outro performer – não era um jogo individual nem com o público, apesar da
aproximação. O trabalho facial, o gestus das emoções e da face, foi pensado por Léia Rodri-
gues para que pudessem despertar a empatia e a musicalidade, meio de fortalecer a multipli-
cidade cultural nordestina. As técnicas corporais foram uma fusão entre a dança contemporâ-
nea e as danças populares nordestinas de raízes negras.
O principal objetivo foi de, por meio da performance, transportar o espectador no tempo,
assimilando realidades diferentes de uma mesma vida, proporcionando uma reflexão sobre o
povo nordestino que já foi discriminado pelos paulistas como homens incultos, que vivem à
margem da sociedade. Vejo o Ser (Tão) como uma contribuição na construção da cultura local,
trazendo uma ideia sobre a homogenia entre os códigos culturais populares do Brasil e códi-
gos tradicionais locais das cidades que apresentamos.
Preocupei-me em estudar os meios de apresentar e expor a imagem de uma persona ou de
personagens em montagens na sociedade contemporânea que não fossem reféns do discurso

77
Revista do Colóquio, N. 15, dezembro de 2018

indigenista da (re)presentação na encenação social do performer, bem como minorias (imi-


grantes, negros, índios e mulheres) no teatro e no cinema.
A concepção da teoria do comportamento restaurado de Schechner (2012) e os estudos de
encenação e práticas performativas propostas por Huapaya (2017) possibilitaram, no processo
criativo de montagem, a desconstrução dos clichês e dos estereótipos quando falamos das
minorias nos estudos de imigrantes na performance. Os autores contribuem na desconstrução
de uma imagem estereotipada e na criação artística com um novo paradigma político e uma
nova dramaturgia.
Ser (Tão) é um exemplo de desconstrução de todos os preconceitos em relação ao povo da
região do Nordeste brasileiro. A vontade afirmativa criada em sequenciais de dança, teatro e
performance conta, de forma poética, a saga dessa população que saiu de sua terra em busca
de uma nova vida, chegando na região sudeste, lugar já estigmatizado pela classe média, cheia
de preconceitos e racismos.
Uma performance feita com muita pesquisa, paixão e significado, mostrando como devemos
aprender a respeitar o outro com diferença e alteridade. Partindo da alteridade de Dussel para
montar um espetáculo poético, com gestus social, falando da região Nordeste e mostrando
uma face do ser humano, a que tem vontade de potência e orgulho de ser o que é.

Figura 8. Apresentação de Rua em Venda Nova do Imigrante/ES. Marcelo Braga, 2017.

Ser (Tão) estreou em 2015 e desde então realizamos 28 apresentações em 14 cidades do Espí-
rito Santo: Afonso Cláudio, Alegre, Cariacica, Conceição da Barra, Guaçuí, Itaguaçu, Linhares,
Montanha, Mucurici, Muqui, Pedro Canário, Venda Nova do Imigrante, Vitória e Vila Velha.
Meu objetivo, enquanto produtor e bailarino, foi o de aproximar o público da arte performáti-
ca, principalmente o público do interior do estado.
Tivemos um retorto satisfatório do público por onde passamos. O carinho e identificação dos
nordestinos para com a proposta de Ser (Tão) me deixou, por muitas vezes, emocionado. Eles
refletiam, cantavam, dançavam e sorriam, se envolvendo com as cenas. Uma performance

78
Revista do Colóquio, N. 15, dezembro de 2018

que diz muito e fala de forma respeitosa sobre o povo brasileiro, o sertanejo forte que luta
todos os dias e sabe que o nosso país foi construído e se mantém, em grande parte, graças à
força e à dignidade do povo nordestino.
Estamos repletos de instituições, costumes e tradições com as quais vivemos de modo natura-
lizado. Entretanto, não percebemos que algumas atitudes e pontos de vista estão enraizados
em relatos históricos que ainda precisam ser discutidos. Quando o indivíduo sai de seu perí-
metro vital e entra em contato com outras tradições e costumes, começa a compará-las com
as suas histórias e vivências, nesse momento surgem as reflexões pelas verdades de umas e as
outras. A reflexão histórica se une à reflexão filosófica, e a intenção de Ser (Tão) era fazer
uma ponte entre os costumes de povos brasileiros de territórios distintos, com realidades
diferentes, para que assim o público pudesse comparar, relacionar e refletir.
O objetivo era encantar o público, abrir o diálogo através da temática escolhida - e o encanta-
mento aconteceu em várias apresentações. Foi incrível ouvir da plateia que representamos o
sertão com muito respeito e amor. Em cada cidade recebemos palavras de carinho e muita
emoção. Levar essa performance para as cidades do Espírito Santo foi uma experiência enri-
quecedora. Montar esse espetáculo era uma vontade que me acompanhava há um tempo,
mas eu precisava esperar a oportunidade de estudar meios cênicos que pudessem tornar a
obra Ser (Tão) mais alinhada. Tinha consciência de que somente com o passar do tempo e
com a realização de várias apresentações, o espetáculo poderia amadurecer. E foi isso o que
aconteceu, entre 2015 e 2018 a obra amadureceu, o espetáculo ganhou um novo formato,
toda a equipe envolvida cresceu e com essas apresentações ganhamos mais maturidade e
força.

Figura 9. Adaptação para palco italiano, Apresentação Itaguaçu/ES. Marcelo Braga, 2017

79
Revista do Colóquio, N. 15, dezembro de 2018

Figura 10. Adaptação para palco italiano, Apresentação Afonso Cláudio/ES. Marcelo Braga, 2017

Figura 11. Adaptação para formato em arena, público no palco com os performers. Apresentação Guaçuí/ES.
Marcelo Braga, 2017.

80
Revista do Colóquio, N. 15, dezembro de 2018

Levamos para o público as sensações que a arte contemporânea pode proporcionar, momen-
tos de reflexão e crítica, que possibilitaram a interpretação pessoal a partir dos signos que
lhes são apresentados. Sempre após as apresentações, no dia seguinte ou mesmos no trans-
porte, nós do elenco realizamos reuniões para falar sobre a apresentação e como nos organi-
zaríamos para as próximas. Cada apresentação era uma junção de novas experiências e ainda
tínhamos esta roda de conversa para melhorarmos o nosso trabalho. Notei nessas vivências
que o processo de montagem é contínuo e que, enquanto estivermos apresentando a obra
nunca estará finalizada e sim sempre evoluindo e sendo somada às questões sociais que acon-
tecem no Brasil nos momentos atuais.
Descobri que nossa equipe cresceu muito, fiquei feliz em concluir que nossas discussões acon-
teciam sempre pelos mesmos objetivos: qualificar nossa obra, crescer enquanto artistas e
valorizar nosso trabalho cênico.

Referências
DUSSEL, Enrique. Filosofia da Libertação na América Latina. Trad. João Luiz Gaio. São Paulo:
Co-Edição Edição Loyola, 1977.
HUAPAYA, Cesar Augusto Amaro. Estética e performance: Dispositivos das Artes e das Práti-
cas performativas. 02. ed. Vitória/ES: Editora Cousa, 2017.
HUAPAYA, Cesar. Montagem e Imagem com o Paradigma. Rev. Bras. Estud. Presença, Porto
Alegre, v. 6, n.1, p. 110-123, jan./abr. 2016. Disponível em: <http: //www.seer.ufrgs.br/presenca>
LIGIÈRO, Zeca. Corpo a Corpo: estudo das performances brasileiras. Rio de Janeiro/RJ: Gara-
mond, 2011.
SARTRE, J.-P. O ser e o nada. Ensaio de uma ontologia fenomenológica. Trad. Paulo Perdigão.
24 ed. Petrópolis, RJ: Vozes 2017.
SCHECHNER, Richard. Performance e antropologia de Richard Schechner. Seleção de ensaios
organizados por Zeca Ligièro. Rio de Janeiro/RJ: Muad X, 2012.

Recebido em 11 de abril de 2018.


Aprovado em 15 de novembro de 2018.

81

Você também pode gostar

pFad - Phonifier reborn

Pfad - The Proxy pFad of © 2024 Garber Painting. All rights reserved.

Note: This service is not intended for secure transactions such as banking, social media, email, or purchasing. Use at your own risk. We assume no liability whatsoever for broken pages.


Alternative Proxies:

Alternative Proxy

pFad Proxy

pFad v3 Proxy

pFad v4 Proxy