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Repertório, Salvador, nº 24, p.47-55, 2015.

DANÇA DE EXPRESSÃO
NEGRA: UM NOVO OLHAR
SOBRE O TAMBOR
BLACK DANCE EXPRESSION: A NEW
PERSPECTIVE ON THE DRUM
Edileusa Santos1

Resumo: O texto propõe revelar um novo olhar sobre se dança, no fazer do corpo em relação à cultura e na
o tambor, na busca por novas possibilidades de diálogo dança negra dentro de contexto teórico/ prático, seja
e percepção, por meio dos cincos sentidos e, também, através de ações de investigação e processo criativo, seja
compreender a função do Tambor em aula de dança respaldado por bibliografia específica e análise crítica. A
de expressão negra. Toma-se por base que esse ins- prática pedagógica se revela em uma nova relação com
trumento musical possibilita o estímulo necessário à o Tambor, na medida em que lança a possibilidade de
construção voltada para a organização de movimento investigar esse corpo Tambor como um elemento edu-
do corpo, somado a conteúdos e elementos da cultu- cativo e de criação.
ra negra baiana. A construção referida se faz durante
o processo, no experimento, e na vivência enquanto Palavras-chave: Dança Negra. Tambor. Investigação.

Abstract: This text reveals a new perspective on the


1
Artista de dança: coreógrafa, dançarina, professora drum, aiming for innovative possibilities of dialogue
e pesquisadora em arte de expressão negra. Licenciada and perception through the senses, and an understan-
em Dança pela Universidade Federal da Bahia. Foi di- ding of the function of the drum in a classroom of
retora, dançarina, coreógrafa e pesquisadora do grupo Black expression. The premise is that this musical ins-
de dança Odundê, idealizou e coordenou o Núcleo de trument makes possible the necessary stimulation for
Estudos Afro- Brasileiros, coreografou o Grupo de a construction and organization of body movements,
Dança Contemporâneo com o espetáculo Macambas.e which conjoin and exist as the contents and elements of
lecionou durante dez anos no curso de graduação em the Black culture of Bahia. This construction takes pla-
dança, ênfase na cultura de expressão negra no módu- ce during the process and experimentation while dan-
lo Estudos do Corpo na Escola de Dança da UFBA. cing, and in the lived experience of the body in relation
Residências artísticas em USA: University of Florida to the culture and Black dance within a theoretical and
Gainesville, University of Temmessee, Nashvelle-Tn, practical research context, be it through active practice
University of Alabama Berminghan-AL, University and creative processes, or through reflection with bi-
Alasca e Bouder CO, New Wold Dance Theatre Miami bliographic and critical writing support. This practical
FL. Coordenou o projeto Cultural Ilê Bahia no Caver learning reveals a new relation to the drum in terms of
Cultural Center-TX.. Atualmente, é coordenadora do having the possibility of researching the drum-body as
projeto Movimento em Bate Papo- Memória da Dança an educational and creative element.
Bahia e integrante do Núcleo de Extensão e Pesquisa
da Escola de Dança da UFBA. Conselheira do Museu Keywords: Black Dance, Drum, Research.
Afro- Brasileiro- MUNCAB- BAHIA.
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INTRODUÇÃO do repelir, ao lidar com os Eguns7 e promover os


ventos. E mesmo quando, o percussionista utiliza
Esta produção escrita é uma reflexão acerca da o aguidavi8 sob o atabaque. Conhecer e executar
minha vivência artística, o fazer dançar, tendo o o movimento, saber dos rituais e da cultura negra
Tambor como parte desse processo na aula dança implicam atos de aprendizagem.
de expressão negra, como um elemento relevan- Desse modo, a reflexão, o imaginário e a análise
te na criação e na investigação artística educativa. permitem a leitura, as leituras, bem como interpre-
A primeira fonte de pesquisa foi a minha vivên- tar e compreender a importância do Tambor como
cia como aluna do Colégio Duque de Caxias, no um instrumento educativo. Nele encontra-se estí-
bairro da Liberdade, em Salvador-BA, atuando mulo para a organização do movimento vinculado
como estudante-dançarina no grupo Folclórico aos cincos sentidos e à ancestralidade. Para além do
Exaltação à Bahia, do referido colégio, onde tive o que até aqui se abordou, revela-se a corporalidade
primeiro contato com o tambor fora do universo desse músico percussionista. Como dizem os per-
afro-religioso (Candomblé)2. A partir dessa apro- cursionistas: Bira Monteiro e Eduardo Santos, “o
ximação, percebi algo que me chamou a atenção, corpo do praticante da dança de expressão negra é
seja a maneira como o músico percussionista per- como uma partitura”.
cute o Tambor, em aula de dança negra, seja como Ao longo dos anos em experiências com dança
expressa emoções e sensações existentes em nossa de expressão negra, fui ampliando percepções em
memória pessoal e coletiva, e como, essa repercus- relação ao Tambor. Na medida em que ministrava
são ocorre no âmbito da nossa ancestralidade².3 as aulas, revelava-se uma nova forma de interagir,
Acrescente-se que tenho analisado como o de escutar, de dialogar com o ritmo do tambor. So-
corpo desse músico comporta-se ante o Tambor, mando-se às experiências obtidas até então, surgi-
diante do gesto, do movimento, do corpo do prati- ram indagações e inquietações, a partir da observa-
cante, percorrendo o espaço a partir do ritmo pro- ção sistemática dos rítmicos e sons que envolvem
porcionado pelo instrumento. A relação entre um o corpo dançante.
e outro, o músico e o tambor é valor que merece Esta pesquisa se coloca no sentido de escutar o
ser observado, pela significância de que se reveste. som do tambor por meio dos cincos sentidos, na
Desde aí, forma- se um imaginário, ao perceber escuta da embalada na perspectiva da ancestralida-
sua mão deslizar suave pelo couro do instrumento, de africana e afro-brasileira como prática educati-
a exprimir doçura, como se estivesse acariciando o va. O som do Tambor permeia todo o processo
rosto de um bebê, ainda, como se a palma da mão durante a aula. Sob a reflexão de que não existe
flutuasse igual ao movimento da onda do mar ou nem o certo nem o errado, o que se apresenta é a
seus dedos rápidos e ágeis, à semelhança da caval- possibilidade de uma nova relação, uma nova per-
gada do cavalo de Oxossi.4 Também reflete o jogo cepção com o Tambor. Como percebemos o som
do movimento que Iansã5 realiza quando utiliza do tambor no corpo? Como se processa a vibração
um dos seus objetos rituais, o Eruexim,6 parecen- do som no corpo? Como esse som move o corpo?
Como o som faz o corpo percorrer o espaço? A
relação não se limita à música percussiva vibrante,
contagiante, e nem ao ritmo acelerado do tambor,
2
Candomblé nome denominado a religião de origem
mas leva a perceber os sentidos corporais aguçados
africana na Bahia. Siqueira, (1998).
pelo som, repercutindo em sensações quando se
3
Ancestralidade confirma a imortalidade na cultura
Jeje-Nagô, a vida não se finda com a morte. Mestre
escuta. É um processo que abre espaço à criativi-
Didi,1998. dade.
4
Oxossi o rei de Ketu, Siqueira, 1998.
5
Iansã Deusa que acalma o vento e a tempestade,
Siqueira, 1998. 7
Eguns almas dos mortos. Siqueira,1998.
6
Eruexim instrumento sagrado do Orixá Iansã. Lody, 8
Aguidavi vareta de goiabeira ou araçá utilizada para
2011. percussão dos atabaques no Candomblé. Lody,2011.
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Instrumento–Corpo Tambor isso, será sacralizado, alimentado, vestido; possui-


rá nome próprio e apenas sacerdotes e pessoas de
O Tambor é um instrumento de percussão exis- importância para a comunidade poderão tocá-lo e
tente há milhões de anos atrás, e se faz presente usá-lo nos rituais” (Lody,2011, p 48).
em muitas culturas, independentemente de cor e
nação. Sua estrutura física depende de cada cultura O Tambor à Margem do Espaço Sagrado:
e do contexto que o envolve, sendo distintos os em Aula Dança de Expressão Negra
aspectos tamanhos, formatos, as funções e o som
produzido. A presença do tambor na aula dança de expres-
Nos primórdios do continente africano, especi- são negra perpassa mais ou menos pela mesma es-
ficamente, este instrumento detinha uma analogia trutura do Candomblé: ambos apresentam caracte-
com a vida cotidiana, em contextos político, social rísticas básicas de matriz africana; o 1º músico sola
e religioso. Sua presença está, geralmente, no dia a e faz variações - é quem acompanha, conduz toda
dia da maioria das comunidades africanas; é vital a movimentação dos praticantes; o 2º mantém a
que esteja conectado à relação da ancestralidade base rítmica; o 3º trabalha efeitos e mantém a base
e com os seus descendentes que permanecem na rítmica. Por ser o candomblé uma religião holísti-
terra. “A ancestralidade é a marca de permanência ca, há uma interdependência dos elementos cons-
do ser sobre o tempo, neste se assentam todos os titutivos, uma coisa depende da outra, um objeto
processos de conhecimento e de evolução do mun- funciona em função do outro, em processo de har-
do. [ .... ] para os africanos também os tambores monia, com significados e simbologia específicos.
falam” (CUNHA, 1999, p 27). Além disso, é veículo No contexto de aula dança de expressão negra,
de comunicação entre o ser humano e as divindades conforme proposto, não se separa o Tambor da
da religião africana e dos afrodescendentes, que se dança e nem a dança do Tambor, por serem são
manifestam através desse instrumento. Atualmente, inseparáveis. No Tambor centra-se o estímulo à
ele está presente em todos os continentes, em con- construção do ambiente necessário à aula; a dan-
textos artístico, religioso, social e mesmo político. ça e a música percussiva concebem imagens. No
No Brasil este instrumento se faz presente em Candomblé, as formas físicas da expressão são as
quase todo o território, em danças diversas, cujos danças que, em relação direta com as canções e os
exemplos são: o samba de roda do recôncavo baia- ritmos dos atabaques, estabelecem o diálogo entre
no; no Maranhão, como tambor de crioula; no Rio o metafísico e o físico, entre o orum e o universo
Grande do Norte, com a dança do coco; em Sergi- terrestre:
pe, com o samba de Pareia; no Pará, com o carimbó.
Nas religiões de matrizes africanas, esse instru- Tanto a dança quanto a música estão intrinseca-
mento tem uma conotação com o sagrado, é o elo mente unidas e diretamente integradas ao fenô-
e comunicação entre o metafísico e o físico, quais meno religioso propriamente dito – nos rituais
sejam o orum e o universo terrestre. Nesse espaço, e nas cerimônias – sendo que essas expressões
artísticas são essenciais para evocar os Orixás no
o Tambor assume função importante e passa por
desenvolvimento do processo da corporificação.
um processo de ritual para ser sacralizado. São co-
(Martins, S. 2008, p. 37)
nhecidos por nomes específicos, quais sejam: rum,
rumpi e lé. O primeiro deles refere-se ao atabaque No universo dos orixás, há diferentes e diver-
grande que produz o som grave; o segundo diz do sas danças, que correspondem a histórias míticas e
atabaque médio que produz o som médio; e o últi- aquilo que cada um deles representa. Portanto, cada
mo, o atabaque pequeno que produz o som agudo. dança de orixá tem seus significados e sua histó-
Esses instrumentos sagrados são percutidos, eco- ria. Assim sendo, é válido afirmar que existe uma
am no ambiente sob o influxo de pessoas designa- orquestra que serve como narrador e revela todo
das e ritualmente preparadas, chamadas de Alabê. o contexto do orixá. Forma-se uma rede de comu-
“O atabaque não será apenas um instrumento mu- nicação intensa desde o corpo que dança, às cores
sical; ele ocupará o papel de uma divindade e, por
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referentes a cada orixá, o ritmo específico para cada presentar a força telúrica, a “garra” e a alegria de
divindade, o signo que dá conta da história do orixá, viver. (Robatto, p. 56, 1994)
de modo a tornar eficaz a comunicação. No con-
junto, o tambor é o elo, é ele que faz com que se Para expressar mundos tão opostos os códigos
estabeleça a comunicação entre o universo terrestre de movimentação, por serem distintos, espelham
e o universo metafísico, no estabelecimento da rede posturas diversas:
de comunicação entre o ser humano e o orixá. a) No Balé, prima-se pela técnica sistematizada:
existem cinco posições básicas dos pés volta-
Contextualização9 Dança de Orixá dos para fora, formando uma linha reta dos
dedos ao calcanhar e do calcanhar aos dedos.
Por muitas décadas, o balé clássico foi o fio con- Nas danças do Candomblé, os pés se movi-
dutor do cenário da dança universal, mesmo com a mentam livremente, seguindo a linha dos qua-
chegada de mudanças e transformações na dança, dris e quase nunca se voltam para fora.
originadas com o surgimento da dança moderna de b) Nos pliés10 do Balé, faz-se a rotação externa
técnicas corporais diversas e novas regras de com- da articulação coxofemoral, os joelhos e pés
posição coreográfica. Segundo Silva Rodrigues: voltam-se para fora, enquanto o corpo sobe
e abaixa numa posição ereta. Já nas danças do
Historicamente se observa que a passagem do Candomblé, ao se dobrar os joelhos, os pés
século XIX ao século XX trouxe para a dança mantêm-se quase sempre paralelos, seguindo
uma transformação nada menos do que radical. a linha natural dos quadris.
A reação contra o academicismo, a afetação a e c) As posições do tronco e quadris no Balé são
artificialidade do balé clássico foi o ponto de par- rígidas, sem ondulações, enquanto nas dan-
tida para uma revisão total de valores, de técnicas ças do Candomblé o tronco é fonte vital, ora
corporais e de regras de composição. Na virada
mexendo em círculos sensuais, ora ondulando
do século, surgem Loie Fuller e Isadora Duncan
como precursoras do movimento que viria revo- de cima para baixo e ora dobrando-se brus-
lucionar toda a história da dança construída até camente ou mesmo explodindo em espasmos
aquele momento”. (Silva, 2005, p. 19). contínuos.
d) As posições dos braços no Balé complemen-
Tomemos como exemplo, a comparação da tam as dos pés. O braço se apresenta sempre
Dança Afro com o Balé Clássico feita por Lia Ro- com uma curva natural, sem formar ângulo, e
batto: a mão deve estar relaxada com o dedo médio
convertido num prolongamento natural da li-
As posturas do Balé e da Dança Afro são diver- nha do braço. Nas danças do Candomblé, os
sas e contrastantes, ficando claro para mim um braços têm movimentação livre, correspon-
significado simbólico, refletindo dois mundos dendo ao arquétipo e performance de cada
opostos: o Balé reflete uma sociedade românti- divindade.
ca-a ristocrática, com um ideal espiritual em di- Conforme visto anteriormente, nas danças do
cotomia com o natural e o terreno. A tentativa Candomblé: os pés se movimentam livremente,
de sublimar a condição “carnal” do ser huma- seguindo a linha dos quadris e quase nunca se vol-
no através da figura mítica do herói masculino
tam para fora, em acordo com o ritmo do Tam-
e da figura feminina etérea; e o individual pre-
dominando sobre o social. As danças de origem bor; ao dobrarem-se os joelhos, os pés se mantêm
africana refletem uma sociedade tribal, onde há quase sempre paralelos, seguindo a linha natural
maior integração social. Uma sociedade voltada dos quadris; o tronco é fonte vital, ora mexendo
para a natureza (animismo). Uma tentativa de re- em círculos sensuais, ora ondulando de cima para

Orixá antepassados divinizados da religião africana.


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Plié: palavra originária de verbo francês que significa
10

Verger, (1981). dobrar-se. Bertoni,1992.


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baixo e ora dobrando-se bruscamente ou mesmo básicas emergem nas discussões entre dançarinos,
explodindo em espasmos contínuos; os braços, as- em comunidades, ou mesmo na academia: o que
sim como os pés, têm movimentação livre, corres- realmente significa dança negra? Qual a concepção
pondendo ao arquétipo11 e performance de cada dessa forma de dança? Qual a sua dimensão? Que
divindade. universo permeia essa categoria de dança? O que
Diante de tais estruturas, pode-se notar a neces- se compreende por dança negra?
sidade de se desenvolverem metodologias corpo- A terminologia Dança Negra surgiu nos Es-
rais criativos para a linguagem que corresponda à tados Unidos, entre as décadas de 50/60. O de-
reflexão do universo dos orixás e à sua linguagem sempenho da antropóloga, dançarina e coreógrafa
estética. Katherine Dunham foi fundamental para o avanço
da profissionalização e a valorização da dança ne-
Conceito: Dança de Expressão Negra – O gra naquele país e no Brasil. Sua atuação nos pal-
Que se Compreende por Dança Negra? cos, nos anos 30 e 40, trouxe inovação ao que se
conhecia a respeito de danças africanas e de des-
Uma das características principais que torna cendentes. Sua abordagem coreográfica perpassa
as culturas negras “negras” é o uso estratégico do pela antropologia, na proposta de aprofundar co-
corpo como elemento central do capital cultural nhecimentos concernentes à ancestralidade e uma
possuído pelos escravos, por seus descendentes e nova dança contemporânea, tomando como refe-
pelos destituídos de um modo geral. As centralida- rencial a linguagem de matrizes religiosas oriundas
des da música e do estilo completam a caracteriza- do continente africano, afro-caribenhas e de ele-
ção das culturas negras (Hall, p. 96, 1996). mentos da cultura negra, em busca da identidade e
Nesse contexto, situa-se a construção da cor- estética negra coreográfica. Dunham elaborou um
poralidade, que emerge a partir do significado e da método denominado de Técnica Dunham, cujas
identidade dessas culturas e danças negras: bases estavam na estética corporal do negro norte
americano. Além disso, suas produções coreográfi-
O termo corporalidade refere-se ao tratamento cas desenvolviam-se conectadas questões políticas
dado ao corpo como um conjunto de elementos e revelavam a identidade cultural negra.
simbólicos estruturados para um determinado Em 1950, ela e seu grupo de dança visitaram o
fim. No Candomblé, a corporalidade é cons- Brasil, a convite do Teatro Experimental do Negro
truída a partir da união espiritual decorrente da
(TEN), criado em 1944, por Abdias do Nascimen-
intervenção primordial da divindade Yemanjá
to, como um projeto de ações de educação, arte e
Ogunté, entidade que passou a existir na recria-
ção coletiva das práticas do Candomblé. (Mar- cultura, na consigna de luta pela valorização e ci-
tins, S. p. 81, 2008). dadania do homem negro e da mulher negra. No
entanto, foi na dramaturgia nacional que se conso-
Assim, compõem esse universo: a forma de lidou, revelando diversos talentos como as atrizes
comunicação agregada, à referida estrutura signi- Ruth de Souza e Léa Garcia.
ficativamente constitutiva de símbolos, signos, por O convite para participar do 1º Congresso do
meio da dança de expressão negra; a música, a reli- Negro Brasileiro, feito a Dunham como represen-
gião e a vida social. tante de dança, teve o intuito de compartilhar os
No entanto, considerando esses diversos as- diálogos referentes às culturas negras americanas
pectos que caracterizam a dança negra, que têm, e brasileiras. Os responsáveis pelo Congresso fo-
desde suas origens, uma forte relação de etnicidade ram Abdias do Nascimento, Edison Carneiro e
com a civilização procedente do continente afri- Guerreiro Ramos. A estada da convidada no país
cano, e particularmente da África Negra, questões tornou-se fundamental, por revelar a existência de
uma dança negra, sobretudo na construção de um
fazer artístico com posicionamento político. Além
Arquétipo termo relacionado às manifestações da
11 disso, Katherine colaborou de modo a denunciar
força da natureza. VERGER, 1981. o racismo no Brasil, haja vista ter sido vítima do
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preconceito racial, ao ser impedida de se hospedar pectiva de modernidade e do contexto histórico


em um hotel cinco estrelas em São Paulo. cultural da época. Nessa abordagem, a identidade
A partir desses fatos surge o convite à bailarina e negra perpassa por um processo de construção, ou
coreógrafa Mercedes Baptista para estudar em Nova seja, vem a ser estabelecida desde quando passa a
York, na escola de Katherine Dunham. A retornar existe o diálogo com outras identidades.
ao Brasil, Mercedes, mobilizada pelos aprendizados, É durante o processo dos encontros com as di-
começa a desenvolver uma dança negra brasileira no ferenças que a identidade negra é revelada. O in-
Rio de Janeiro, ao mesmo tempo em que se une à divíduo não a constrói isoladamente, antes faz-se
militância do TEN. Em seguida, cria o Balé folcló- necessário o confronto com a diversidade cultural.
rico Mercedes Baptista, formado por um corpo de “É a partir da diferença que se constroem as refe-
bailarinos negros e bailarinas negras,com o objetivo renciais identitários. A identidade se constrói com
de pesquisar e divulgar a cultura negra e afro-brasi- relação à alteridade. Com aquilo que não sou eu. É
leira, no que obteve excelente repercussão nacional diante da diferença do outro que a minha diferença
e internacional. Somado a essas conquistas, elabora aparece” (Oliveira E. p. 83, 2003)
uma metodologia de dança afro a partir de observa- Entre outros autores, citamos Stuart Hall
ções sistemáticas das danças de Orixás do Candom- (2003), que de modo instigante promove reflexões
blé e das manifestações populares. Fazemos notar a respeito da diversidade cultural. Todavia, com-
que Baptista foi a primeira bailarina negra do Teatro preender as propostas aqui defendidas depende de
Municipal do Rio de Janeiro. Tudo isso, contribuiu que o indivíduo permita o diálogo, de maneira a
assertivamente para o reconhecimento e a valoriza- acontecer primeiramente consigo, para em seguida
ção da dança negra brasileira. dar-se à relação com sua comunidade, com o gru-
po étnico a que pertence e o grupo social do qual
A cultura negra ultrapassa a esfera religiosa. Po- faz parte.
deríamos considerar vários fatores do esporte, No decorrer do processo, a identidade buscada
da música, da literatura, da dança e das artes em cai na encruzilhada, isto é, vai sendo transformada
geral, da economia, da política das organizações e aprofundada, diante das necessidades e permea-
populares, etc. (Oliveira E, p. 78, 2003)
bilidades que a vida apresenta. Neste caso, as situa-
ções de estar, ir ou cair na encruzilhada significam
Assim, a cultura negra não está limitada nem passar por um processo de transformação.
a questões religiosas de matrizes africanas, nem a
dança de expressão negra. Criam-se diálogos, e em E é pela via dessas encruzilhadas que também se
decorrência, com mais propriedade promovem-se tece a identidade afro-brasileira, num processo
reflexões e combate ao racismo, a discriminação vital móvel, identidade esta que pode ser pen-
racial, bem como o reconhecimento da identidade sada como um tecido e uma textura, nos quais
negra, do direito à cidadania, e a diversidade cultu- as falas e gestos mnemônicos dos arquivos orais
ral; além do mais, possibilita ampliar a discussão a africanos, no processo dinâmico de interação
respeito do contexto sócio-político. Para Gomes: com o outro, transformam-se e reatualizam-se,
“A produção cultural oriunda dos africanos escra- continuamente, em novos e diferenciados ritu-
vizados no Brasil e ainda presente nos seus descen- ais de linguagem e de expressão, coreografando
a singularidade e alteridades negras. (Martins, L.
dentes tem uma efetividade na construção identi-
p. 28, 1997).
tária dos sujeitos socialmente classificados como
negros”. (Gomes, p. 16, 2003)
A peculiaridade existente na dança de expressão
Desta forma, a Dança de Expressão Negra foca
negra em relação à estética corporal situa-se em
na valorização, como fator de resistência cultural,
medida semelhante à diversidade de aulas. Apesar
da construção da identidade e da estética cultural
do processo da prática ser desenvolvido em torno
negra, o que significa dizer, que a dança negra esta-
de questões afins, cada ministrante estabelece, dia-
va sendo revelada no Brasil como instrumento de
loga e constrói também a seu modo, a relação com
luta e de afirmação da comunidade negra, na pers-
a cultura negra.
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Processo de Investigação e Criação Vibração do som no corpo estimula o processo


de investigação e criação
No processo de investigação e criação revela-se
um novo olhar sobre o tambor; ao se buscarem
novas possibilidades de diálogo, fica evidenciada a
relação com o instrumento, com o corpo Tambor.
Para percebê-lo, repetimos a proposta vincula-se
ao uso dos cincos sentidos; com o aporte seme-
lhante, deve-se investir na busca por compreender
a relevância do Tambor, pois nele está o estímulo
à construção necessária para a organização de mo-
vimento do corpo, fazendo por eleger conteúdos
e elementos da cultura negra baiana. O conjunto,
Figura 1 - Aula Edileusa Santos dança de expressão negra,
insistimos, é revelado durante o processo, no expe- no Centro Coreográfico do Rio de Janeiro, 2012. Fotógrafa:
rimento, e na vivência enquanto se dança, no fazer Cris Gomes.
do corpo em relação à cultura e à dança negra den-
tro de contexto teórico/prático, através de ações A presente proposta inclui, entre outras, pensar
de investigação, processo criativo, leitura e análise o Tambor como elemento transcendental e instru-
crítica. É dada ênfase na relação do corpo ao som mento educativo. Imaginemos que na língua culta
do Tambor, à independência de cada parte do cor- dos povos, em específico a brasileira e africana, o
po e sua relação com os orixás. verbo determina a ação ou fenômeno, exprime um
Este estudo vincula-se à análise de encenação estado. No caso do Tambor, ele é o verbo, porém,
que perpassa na cultura local, na qual imbrica a o corpo é quem constrói a oração, seja ela de qual
pesquisa de campo, tendo a cidade de Salvador variante for, se aditiva, conclusiva, adversativa ou de
como uma sala de aula aberta. Segundo Inaicyra outra constituição. O Tambor tem como protagonis-
Falcão (2002) a improvisação na dança social Yo- ta uma energia presente, viva, que tem movimento
ruba é o que permite que novos tipos de danças e propicia movimentação; enquanto elemento vivo,
surjam sempre, resultando numa riqueza e dinâmi- não se liga e desliga como um aparelho elétrico, tam-
ca de encaminhamento da criatividade do povo. bém não é como um CD que só reproduz o som.
Trata-se, aqui, de um universo direcionado tan- O som do tambor emerge no corpo, estimula as
to para a investigação quanto para a criação e o vibrações e as sensações; propõe novas possibili-
ensino. Esta abordagem pode ser desenvolvida dades, vivências corporais e novas atitudes, sobre-
tanto para profissionais das artes cênicas, quanto tudo uma nova maneira de organização, uma nova
para interessados em conhecer uma nova possibili- harmonia, uma nova identidade Corpo/Tambor.
dade de se relacionar com o Tambor, inclusive para Os elementos que fazem parte do Tambor esta-
as crianças. Estas, por meio da ludicidade, passam belecem o reconhecimento das independências das
a conhecer o seu corpo e suas possibilidades esti- partes do corpo e das possibilidades de cada parte
muladas pelo som do instrumento e o progressivo movimentar -se com um ritmo diferente, associa-
contato com a ancestralidade. Essa abrangência do a um orixá. Nessa etapa do processo, é preciso,
de praticantes deve-se a características da própria sobretudo, observar a independência de cada par-
cultura negra no ritual do candomblé, que se faz te do corpo, o qual, como um centro energético
presente junto a crianças, jovens, adultos, idosos, estimulado pelo som e ritmo do Tambor, cria a
homens e mulheres. percepção entre músico e dançarino. É sobremodo
A prática estimula o corpo a vibrar ao ritmo do importante ressaltar não somente a independência,
tambor, proporcionando liberdade de expressão mas também a interrelação das partes do corpo, o
corporal. O som do tambor, por sua vez, enseja a que é observável por meio da percepção do ritmo e
mediação entre os sentidos corporais, a investiga- dos sentidos, presentes na construção do que cha-
ção e a criação. mamos de polirritmia.
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A independência das partes do corpo aqui O corpo em estado de alerta - Corpo Tam-
abordada pode ser percebida por meio do estímu- bor versus Tambor Corpo.
lo produzido pelo som do Tambor. Assim, com-
preende-se que o movimento do ombro é inde-
pendente do movimento do quadril, que também
é independente do braço e das pernas, embora
estejam aliados ao ritmo do Tambor. No decor-
rer do processo, toma-se consciência de que cada
parte do corpo tem relação específica com um
Orixá. Estar atento ao ritmo, a cada instrumento,
a cada impulso, torna-se uma experiência singular
para aquele que enseja o experimento corpóreo e
transcendental, quando o corpo se fragmenta- em Figura 2 - Aula Edileusa Santos dança de expressão negra,
partes e, no entanto, funciona e se expressa como no Centro Coreográfico do Rio de Janeiro, 2012. Fotógrafa:
um todo. “O corpo, na perspectiva do Candomblé Cris Gomes.
desempenha função fundamental nesse processo
religioso e cada parte dele possui significado espe- Nesta proposta, ao fazer dançar, nota-se que os
cífico”. (Martins, 2008). cincos sentidos se alteram, em conexão e diálogo
A respiração, no processo como um todo, é sob o som do Tambor. É quando a expressão negra
conectada ao movimento da vida, em expansão e se revela, dando surgimento a espaços abertos a no-
contração, movimentos estes aliados ao som do vas possibilidades, para um novo olhar, uma nova
tambor. Isto significa respirar no ritmo ao fazer relação com o instrumento, e a partir dele. Com o
do corpo, pois o respirar tem ritmo, e cada cul- estabelecimento da relação Corpo / Tambor, tam-
tura, cada indivíduo, tem o seu próprio pessoal e bém se dá a percepção de cada instrumento ali
interior. apresentado, na observação de como cada músico
Durante o processo, importa estimular o pra- percussionista tem um ritmo próprio de percutir o
ticante a reconhecer o próprio corpo, por meio Tambor, sua postura corporal, o espaço de tempo
do som do tambor, dispor de cada parte do corpo entre a mão e o couro do instrumento, a carga emo-
para construir um diálogo entre este e o Tambor, cional e o histórico de conhecimento pessoal, social
no ensejo de revelar a expressão negra de cada pra- e ancestral. O que se aborda, afirma-se, é aliado à
ticante. Essa proposta vem no sentido de levar o alteração dos sentidos no corpo do praticante, no
praticante a perceber o som do tambor por meio respirar junto com o ritmo ali produzido, no olhar
do estímulo aos cinco sentidos, com os quais entra do protagonista / percussionista, no canalizar e co-
em contato com a ancestralidade. Propõe, paralela- nectar o ritmo a cada parte do corpo. Todo o pro-
mente, a percepção do corpo no tempo e no deslo- cesso ocorre enquanto se dá a relação Corpo versus
camento, assim como permitir-se novas vivencias Tambor, Tambor versus Corpo, de forma lúdica,
corporais por meio do Tambor. estimulado pelo proponente / praticante.
O praticante, então, tende a aproximar-se do Assim, estabelece-se o reconhecimento do som
Tambor. Inicialmente, pode haver o receio de estar ecoado por cada um dos instrumentos, seja de me-
da proximidade, o que deixa o corpo em estado de tal, de couro, de sementes, como a conga, o ata-
alerta, espécie de pausa corporal, quando não pro- baque, o xequerê, o pau de chuva, dentre outros.
duz movimento, nenhum gestual. Todavia, possibi- Estes são embalados a produzir ritmos a partir da
lita o corpo a perceber, a ouvir o som do Tambor, relação construída pelos músicos percussionistas e
no uso dos cincos sentidos. O processo, por ser os praticantes.
novo, causa estranhamento, mas esse mesmo estra- Decorrente de experiências, pesquisas, observa-
nhamento vai dando espaço a uma nova vivência ções e reflexões, percebo que o instrumento Corpo
corporal, quase sempre instigante, favorecendo, / Tambor se revela como um componente educa-
assim, uma intimidade entre o corpo e o Tambor. tivo que possibilita o processo de investigação e de
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Repertório, Salvador, nº 24, p.47-55, 2015.1

criação, em aula Dança de Expressão Negra. Des- LODY, Raul& SABINO, Jorge. Danças de Matrizes
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investe-se de novas possibilidades de perceber e de Pallas.2011.
criar uma relação mais íntima entre ambos, fazen- MARTINS, Leda Maria. Afrografia da memória: o
do por não mais escutá-lo somente como um som reinado do Rosário no Jatobá. São Paulo: Perspectiva,
vibrante e contagiante. 1997.
E se a arte e a dança negra contemporânea bus- MARTINS, Suzana. A Dança de Yemanjá Ogunté,
cam desvendar novos desafios, novos estímulos, Sob A Perspectiva Estética do Corpo, Salvador: EGBA,
revelam-se, aqui, novas abrangências da expressão 2008.
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que estimulam essa prática e essa escrita no âmbi- cana no Brasil para uma filosofia afrodescendentes.
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do Indizível. Salvador: Centro Editorial da UFBA,
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Ballet e seu Contexto Teórico, Programação Didática. São Salvador: EDUFBA, 2005.
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uma educação do movimento. Salvador, 1996. res, 2007.
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