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DANÇA DE EXPRESSÃO
NEGRA: UM NOVO OLHAR
SOBRE O TAMBOR
BLACK DANCE EXPRESSION: A NEW
PERSPECTIVE ON THE DRUM
Edileusa Santos1
Resumo: O texto propõe revelar um novo olhar sobre se dança, no fazer do corpo em relação à cultura e na
o tambor, na busca por novas possibilidades de diálogo dança negra dentro de contexto teórico/ prático, seja
e percepção, por meio dos cincos sentidos e, também, através de ações de investigação e processo criativo, seja
compreender a função do Tambor em aula de dança respaldado por bibliografia específica e análise crítica. A
de expressão negra. Toma-se por base que esse ins- prática pedagógica se revela em uma nova relação com
trumento musical possibilita o estímulo necessário à o Tambor, na medida em que lança a possibilidade de
construção voltada para a organização de movimento investigar esse corpo Tambor como um elemento edu-
do corpo, somado a conteúdos e elementos da cultu- cativo e de criação.
ra negra baiana. A construção referida se faz durante
o processo, no experimento, e na vivência enquanto Palavras-chave: Dança Negra. Tambor. Investigação.
referentes a cada orixá, o ritmo específico para cada presentar a força telúrica, a “garra” e a alegria de
divindade, o signo que dá conta da história do orixá, viver. (Robatto, p. 56, 1994)
de modo a tornar eficaz a comunicação. No con-
junto, o tambor é o elo, é ele que faz com que se Para expressar mundos tão opostos os códigos
estabeleça a comunicação entre o universo terrestre de movimentação, por serem distintos, espelham
e o universo metafísico, no estabelecimento da rede posturas diversas:
de comunicação entre o ser humano e o orixá. a) No Balé, prima-se pela técnica sistematizada:
existem cinco posições básicas dos pés volta-
Contextualização9 Dança de Orixá dos para fora, formando uma linha reta dos
dedos ao calcanhar e do calcanhar aos dedos.
Por muitas décadas, o balé clássico foi o fio con- Nas danças do Candomblé, os pés se movi-
dutor do cenário da dança universal, mesmo com a mentam livremente, seguindo a linha dos qua-
chegada de mudanças e transformações na dança, dris e quase nunca se voltam para fora.
originadas com o surgimento da dança moderna de b) Nos pliés10 do Balé, faz-se a rotação externa
técnicas corporais diversas e novas regras de com- da articulação coxofemoral, os joelhos e pés
posição coreográfica. Segundo Silva Rodrigues: voltam-se para fora, enquanto o corpo sobe
e abaixa numa posição ereta. Já nas danças do
Historicamente se observa que a passagem do Candomblé, ao se dobrar os joelhos, os pés
século XIX ao século XX trouxe para a dança mantêm-se quase sempre paralelos, seguindo
uma transformação nada menos do que radical. a linha natural dos quadris.
A reação contra o academicismo, a afetação a e c) As posições do tronco e quadris no Balé são
artificialidade do balé clássico foi o ponto de par- rígidas, sem ondulações, enquanto nas dan-
tida para uma revisão total de valores, de técnicas ças do Candomblé o tronco é fonte vital, ora
corporais e de regras de composição. Na virada
mexendo em círculos sensuais, ora ondulando
do século, surgem Loie Fuller e Isadora Duncan
como precursoras do movimento que viria revo- de cima para baixo e ora dobrando-se brus-
lucionar toda a história da dança construída até camente ou mesmo explodindo em espasmos
aquele momento”. (Silva, 2005, p. 19). contínuos.
d) As posições dos braços no Balé complemen-
Tomemos como exemplo, a comparação da tam as dos pés. O braço se apresenta sempre
Dança Afro com o Balé Clássico feita por Lia Ro- com uma curva natural, sem formar ângulo, e
batto: a mão deve estar relaxada com o dedo médio
convertido num prolongamento natural da li-
As posturas do Balé e da Dança Afro são diver- nha do braço. Nas danças do Candomblé, os
sas e contrastantes, ficando claro para mim um braços têm movimentação livre, correspon-
significado simbólico, refletindo dois mundos dendo ao arquétipo e performance de cada
opostos: o Balé reflete uma sociedade românti- divindade.
ca-a ristocrática, com um ideal espiritual em di- Conforme visto anteriormente, nas danças do
cotomia com o natural e o terreno. A tentativa Candomblé: os pés se movimentam livremente,
de sublimar a condição “carnal” do ser huma- seguindo a linha dos quadris e quase nunca se vol-
no através da figura mítica do herói masculino
tam para fora, em acordo com o ritmo do Tam-
e da figura feminina etérea; e o individual pre-
dominando sobre o social. As danças de origem bor; ao dobrarem-se os joelhos, os pés se mantêm
africana refletem uma sociedade tribal, onde há quase sempre paralelos, seguindo a linha natural
maior integração social. Uma sociedade voltada dos quadris; o tronco é fonte vital, ora mexendo
para a natureza (animismo). Uma tentativa de re- em círculos sensuais, ora ondulando de cima para
baixo e ora dobrando-se bruscamente ou mesmo básicas emergem nas discussões entre dançarinos,
explodindo em espasmos contínuos; os braços, as- em comunidades, ou mesmo na academia: o que
sim como os pés, têm movimentação livre, corres- realmente significa dança negra? Qual a concepção
pondendo ao arquétipo11 e performance de cada dessa forma de dança? Qual a sua dimensão? Que
divindade. universo permeia essa categoria de dança? O que
Diante de tais estruturas, pode-se notar a neces- se compreende por dança negra?
sidade de se desenvolverem metodologias corpo- A terminologia Dança Negra surgiu nos Es-
rais criativos para a linguagem que corresponda à tados Unidos, entre as décadas de 50/60. O de-
reflexão do universo dos orixás e à sua linguagem sempenho da antropóloga, dançarina e coreógrafa
estética. Katherine Dunham foi fundamental para o avanço
da profissionalização e a valorização da dança ne-
Conceito: Dança de Expressão Negra – O gra naquele país e no Brasil. Sua atuação nos pal-
Que se Compreende por Dança Negra? cos, nos anos 30 e 40, trouxe inovação ao que se
conhecia a respeito de danças africanas e de des-
Uma das características principais que torna cendentes. Sua abordagem coreográfica perpassa
as culturas negras “negras” é o uso estratégico do pela antropologia, na proposta de aprofundar co-
corpo como elemento central do capital cultural nhecimentos concernentes à ancestralidade e uma
possuído pelos escravos, por seus descendentes e nova dança contemporânea, tomando como refe-
pelos destituídos de um modo geral. As centralida- rencial a linguagem de matrizes religiosas oriundas
des da música e do estilo completam a caracteriza- do continente africano, afro-caribenhas e de ele-
ção das culturas negras (Hall, p. 96, 1996). mentos da cultura negra, em busca da identidade e
Nesse contexto, situa-se a construção da cor- estética negra coreográfica. Dunham elaborou um
poralidade, que emerge a partir do significado e da método denominado de Técnica Dunham, cujas
identidade dessas culturas e danças negras: bases estavam na estética corporal do negro norte
americano. Além disso, suas produções coreográfi-
O termo corporalidade refere-se ao tratamento cas desenvolviam-se conectadas questões políticas
dado ao corpo como um conjunto de elementos e revelavam a identidade cultural negra.
simbólicos estruturados para um determinado Em 1950, ela e seu grupo de dança visitaram o
fim. No Candomblé, a corporalidade é cons- Brasil, a convite do Teatro Experimental do Negro
truída a partir da união espiritual decorrente da
(TEN), criado em 1944, por Abdias do Nascimen-
intervenção primordial da divindade Yemanjá
to, como um projeto de ações de educação, arte e
Ogunté, entidade que passou a existir na recria-
ção coletiva das práticas do Candomblé. (Mar- cultura, na consigna de luta pela valorização e ci-
tins, S. p. 81, 2008). dadania do homem negro e da mulher negra. No
entanto, foi na dramaturgia nacional que se conso-
Assim, compõem esse universo: a forma de lidou, revelando diversos talentos como as atrizes
comunicação agregada, à referida estrutura signi- Ruth de Souza e Léa Garcia.
ficativamente constitutiva de símbolos, signos, por O convite para participar do 1º Congresso do
meio da dança de expressão negra; a música, a reli- Negro Brasileiro, feito a Dunham como represen-
gião e a vida social. tante de dança, teve o intuito de compartilhar os
No entanto, considerando esses diversos as- diálogos referentes às culturas negras americanas
pectos que caracterizam a dança negra, que têm, e brasileiras. Os responsáveis pelo Congresso fo-
desde suas origens, uma forte relação de etnicidade ram Abdias do Nascimento, Edison Carneiro e
com a civilização procedente do continente afri- Guerreiro Ramos. A estada da convidada no país
cano, e particularmente da África Negra, questões tornou-se fundamental, por revelar a existência de
uma dança negra, sobretudo na construção de um
fazer artístico com posicionamento político. Além
Arquétipo termo relacionado às manifestações da
11 disso, Katherine colaborou de modo a denunciar
força da natureza. VERGER, 1981. o racismo no Brasil, haja vista ter sido vítima do
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A independência das partes do corpo aqui O corpo em estado de alerta - Corpo Tam-
abordada pode ser percebida por meio do estímu- bor versus Tambor Corpo.
lo produzido pelo som do Tambor. Assim, com-
preende-se que o movimento do ombro é inde-
pendente do movimento do quadril, que também
é independente do braço e das pernas, embora
estejam aliados ao ritmo do Tambor. No decor-
rer do processo, toma-se consciência de que cada
parte do corpo tem relação específica com um
Orixá. Estar atento ao ritmo, a cada instrumento,
a cada impulso, torna-se uma experiência singular
para aquele que enseja o experimento corpóreo e
transcendental, quando o corpo se fragmenta- em Figura 2 - Aula Edileusa Santos dança de expressão negra,
partes e, no entanto, funciona e se expressa como no Centro Coreográfico do Rio de Janeiro, 2012. Fotógrafa:
um todo. “O corpo, na perspectiva do Candomblé Cris Gomes.
desempenha função fundamental nesse processo
religioso e cada parte dele possui significado espe- Nesta proposta, ao fazer dançar, nota-se que os
cífico”. (Martins, 2008). cincos sentidos se alteram, em conexão e diálogo
A respiração, no processo como um todo, é sob o som do Tambor. É quando a expressão negra
conectada ao movimento da vida, em expansão e se revela, dando surgimento a espaços abertos a no-
contração, movimentos estes aliados ao som do vas possibilidades, para um novo olhar, uma nova
tambor. Isto significa respirar no ritmo ao fazer relação com o instrumento, e a partir dele. Com o
do corpo, pois o respirar tem ritmo, e cada cul- estabelecimento da relação Corpo / Tambor, tam-
tura, cada indivíduo, tem o seu próprio pessoal e bém se dá a percepção de cada instrumento ali
interior. apresentado, na observação de como cada músico
Durante o processo, importa estimular o pra- percussionista tem um ritmo próprio de percutir o
ticante a reconhecer o próprio corpo, por meio Tambor, sua postura corporal, o espaço de tempo
do som do tambor, dispor de cada parte do corpo entre a mão e o couro do instrumento, a carga emo-
para construir um diálogo entre este e o Tambor, cional e o histórico de conhecimento pessoal, social
no ensejo de revelar a expressão negra de cada pra- e ancestral. O que se aborda, afirma-se, é aliado à
ticante. Essa proposta vem no sentido de levar o alteração dos sentidos no corpo do praticante, no
praticante a perceber o som do tambor por meio respirar junto com o ritmo ali produzido, no olhar
do estímulo aos cinco sentidos, com os quais entra do protagonista / percussionista, no canalizar e co-
em contato com a ancestralidade. Propõe, paralela- nectar o ritmo a cada parte do corpo. Todo o pro-
mente, a percepção do corpo no tempo e no deslo- cesso ocorre enquanto se dá a relação Corpo versus
camento, assim como permitir-se novas vivencias Tambor, Tambor versus Corpo, de forma lúdica,
corporais por meio do Tambor. estimulado pelo proponente / praticante.
O praticante, então, tende a aproximar-se do Assim, estabelece-se o reconhecimento do som
Tambor. Inicialmente, pode haver o receio de estar ecoado por cada um dos instrumentos, seja de me-
da proximidade, o que deixa o corpo em estado de tal, de couro, de sementes, como a conga, o ata-
alerta, espécie de pausa corporal, quando não pro- baque, o xequerê, o pau de chuva, dentre outros.
duz movimento, nenhum gestual. Todavia, possibi- Estes são embalados a produzir ritmos a partir da
lita o corpo a perceber, a ouvir o som do Tambor, relação construída pelos músicos percussionistas e
no uso dos cincos sentidos. O processo, por ser os praticantes.
novo, causa estranhamento, mas esse mesmo estra- Decorrente de experiências, pesquisas, observa-
nhamento vai dando espaço a uma nova vivência ções e reflexões, percebo que o instrumento Corpo
corporal, quase sempre instigante, favorecendo, / Tambor se revela como um componente educa-
assim, uma intimidade entre o corpo e o Tambor. tivo que possibilita o processo de investigação e de
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criação, em aula Dança de Expressão Negra. Des- LODY, Raul& SABINO, Jorge. Danças de Matrizes
te modo, o Corpo Tambor versus Tambor Corpo, Africanas- Antropologia do Movimento – Rio de Janeiro.
investe-se de novas possibilidades de perceber e de Pallas.2011.
criar uma relação mais íntima entre ambos, fazen- MARTINS, Leda Maria. Afrografia da memória: o
do por não mais escutá-lo somente como um som reinado do Rosário no Jatobá. São Paulo: Perspectiva,
vibrante e contagiante. 1997.
E se a arte e a dança negra contemporânea bus- MARTINS, Suzana. A Dança de Yemanjá Ogunté,
cam desvendar novos desafios, novos estímulos, Sob A Perspectiva Estética do Corpo, Salvador: EGBA,
revelam-se, aqui, novas abrangências da expressão 2008.
corporal e novos procedimentos metodológicos OLIVEIRA, Eduardo Davidde. Cosmovisão Afri-
que estimulam essa prática e essa escrita no âmbi- cana no Brasil para uma filosofia afrodescendentes.
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