Fluentes no Amor (Irmãos Salvatierra)
Fluentes no Amor (Irmãos Salvatierra)
Fluentes no Amor (Irmãos Salvatierra)
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Essa é uma obra de ficção com nomes, personagens, eventos e incidentes que são ou produto da imaginação da autora, ou
usados de forma fictícia. Qualquer semelhança com eventos reais, pessoas reais, vivas ou mortas, é mera coincidência.
NÃO A PIRATARIA!
NÃO COMPARTILHE PDF DO LIVRO, É CRIME.
Rafi Salvatierra
Carajo.
Estoy jodido.
Dormi com a melhor amiga da minha cunhada.
Para piorar, estou fodido dupla e literalmente já que, transar com Dalila
se tornou o melhor sexo da minha vida.
E, sim, ela me fodeu. Deus, as coisas que ela fez comigo e os pontos
que encontrou…
Por fim, fodido pela terceira vez, pois ela foi embora sem dizer adeus.
Direto para a cidade de Entremontes, no Brasil.
A primeira má impressão
Rafi Salvatierra
Imagine um paraíso tropical banhado pelo Mar do Caribe. Areia branca,
águas cristalinas, céu azul sem nuvens e o calor do sol que não queima, mas
esquenta a pele.
O cheiro de mar traz aquela sensação de que não existe outro mundo
fora daquele refúgio de 32 quilômetros de praias e águas límpidas.
Punta Cana é bonita e é a região mais famosa do meu país, mas é um
local feito para turistas, isso é um fato. Seus luxos e riquezas nos resorts all-
inclusive à beira da praia são chamarizes, mas raramente para os
dominicanos.
Desta forma, não é estranho que seja minha segunda visita aqui nestes
vinte e nove anos de existência. Acredite, não foi por falta de vontade, mas a
vida gostava de brincar comigo, então não tive muitas oportunidades de sair
de minha cidade natal, Santo Domingo. Não depois da GB.
GB é a forma carinhosa como chamo a síndrome autoimune de Guillain
Barré, que me atingiu aos quinze anos. Não gosto de ser amoroso com essa
maldita que me colocou na cadeira de rodas e na cama de um hospital mais
vezes do que posso contar, mas se tenho que conviver com ela para sempre,
pelo menos fica um nome menor para chamá-la.
Tudo se iniciou com uma leve dormência e formigamento nos membros
inferiores e culminou numa fraqueza muscular agressiva nas pernas e, por
isso, não conseguia me manter de pé, nem andar. Além das crises epilépticas,
que às vezes eram tão intensas que me levava à UTI, permanecendo em coma
induzido por dias.
Minha família gastou tanto com médicos e fisioterapeutas que é
impossível contar e, como desenvolvi essa síndrome de maneira crônica,
fazia acompanhamento constante. É compreensível que os lugares não
fossem tão acessíveis assim para mim, nem na parte física e nem na
financeira.
Mas neste final de semana seria diferente! Meu irmão mais velho,
Dominic, vai casar pela segunda vez com sua já esposa de mentirinha (longa
história) Jade Victorino e esse acontecimento único merece a melhor
comemoração.
Esse evento explica nossa viagem para Punta Cana. Nic mora no Brasil
com a esposa, então chegaria de avião, mas eu, meu irmão caçula, Andriel, e
nossos pais, escolhemos vir de carro mesmo.
A estrada de Santo Domingo até Punta Cana estava boa de se dirigir,
mas não quis comprar essa briga com minha mãe, portanto, vim na carona,
enquanto meu pai dirige o seu carro do século passado.
O meu automóvel é novo e potente, mas dona Mercedes diz que não
confia no carro adaptado nas rodovias, apesar de saber que, no fundo, não é
essa sua real motivação.
Madre ainda mantém suas tendências de me proteger a qualquer custo,
como se eu fosse feito de vidro e estivesse prestes a estilhaçar com o passar
do vento.
Por conta da vagareza de señor Ulisses, a viagem, que deveria ser de
duas horas, se torna longas três e meia. Não comi antes de sair de casa e é por
isso que, após o check-in no hotel, entro na área de café da manhã do resort,
morto de fome e pronto para devorar todas as delícias daquele lugar de gente
rica.
Não que possa pagar mais de duas diárias ali com meu salário de
desenvolvedor. Entretanto, meu irmão Nic está em boas condições após sua
promoção para coordenador do curso de Relações Internacionais, e pagaria a
estadia para os poucos convidados do seu casamento com Jadecita.
Lembrete para o futuro: casar é muito caro. Melhor ficar em carreira
solo e economizar dinheiro para o plano de saúde.
Eu me desloco em minha cadeira com rapidez e rodeio a mesa central
que, por sorte, é baixa e me permite ver a imensidão de doces, pães, biscoitos,
bolos e frutas. É raro que locais sejam pensados para serem acessíveis a todo
tipo de corpo.
Pego um prato branco, pronto para fazer minha montanha, quando noto
uma mulher ao meu lado que parece confusa. Aparenta ser uma trabalhadora
do local, usa um avental e toucas de cozinha, é bem alta e me impede de ver a
pessoa com quem conversa.
E, dessa outra pessoa, só consigo saber uma coisa: ela fala um espanhol
terrível. Péssimo mesmo. Nem sei se aquilo pode se chamar espanhol, na
verdade.
— Senhorita, consigo entender a parte da lactose, mas o que disse
antes? Pode repetir, por favor? — retruca a cozinheira em espanhol nativo
como o meu, mantendo as sobrancelhas franzidas.
Ouço um suspiro resignado e cansado da outra mulher. Ao menos, acho
que é uma mulher. Daquele meu ângulo, em minha cadeira, só consigo ver o
vestido preto, coturnos e um braço tatuado.
Alguém precisa avisá-la do dresscode de Punta Cana ou ela pode ficar
um pouco deslocada com toda aquela falta de cores.
Continuo com minha vida, desvio o olhar para não ser flagrado
bisbilhotando a conversa alheia e pego um donut de chocolate. Porém, o que
escuto a seguir quase me faz engasgar com a saliva.
— Buelo. De Cueco. Sin Lactose — tenta dizer a outra pessoa,
pausadamente. Não evito um riso anasalado de sair, porém, disfarço e uso a
pinça para colocar três sanduíches no prato.
Retifico o que disse: o espanhol dessa pessoa não é terrível. Ele é
inexistente.
Como costumo ser sortudo (só que não), é óbvio que minha risada não
passa despercebida, porque quando dou risada, todo mundo escuta,
infelizmente. Eu não sou nada discreto.
A senhorita Buelo de Cueco dá um passo para frente e, enfim, se
mostra. Com um inclinar de cabeça, me fita indignada e mantém os braços
tatuados cruzados sob o peito de maneira defensiva.
Uau… Se eu não estivesse sentado, com certeza teria caído para trás,
tamanho é o impacto da visão daquela deusa em mim.
Sim, deusa. Apenas uma deidade seria bonita daquele jeito que
consegue ser divino e profano. O que mais chamou minha atenção foi o
contorno de uma tatuagem que tomava sua coxa inteira e dava para ver pela
fenda do vestido.
Uma mulher com cabelos feitos de serpente.
La Medusa.
Faz todo sentido, pois estava petrificado ali, sem conseguir desviar o
olhar dela.
— Acredito que ela queira pastel de coco sin lactosa — digo em
espanhol para a cozinheira, ainda fitando Medusa e subo pouco a pouco com
minha inspeção. Eu deveria desviar, mas não consigo.
Devo estar deixando-a desconfortável.
Será que virei pedra mesmo?
Parece que só então a ficha cai para a moça e os seus olhos brilham em
compreensão, entendendo meu espanhol.
— Ah, obrigada, senhor! — agradece a cozinheira, depois se dirige
para a Medusa e fala mais devagar, empática com a situação da outra
hóspede: — Hoje não temos pastel de coco, senhorita, mas aquela mesa ali
tem itens sem lactose, sem glúten e dietéticos. Fique à vontade para me
chamar novamente se precisar.
Meneia a cabeça com educação e então junta alguns pratos, sai para a
cozinha e me deixa só com a mulher.
— Mas gostei tanto do bolo de ontem… — sussurra para si em
português e faz um bico que, apesar de demonstrar seu desgosto, é bem fofo.
— Você parece meu irmão caçula falando, ele também ama qualquer
coisa que tenha coco. — Me encosto e tento arranhar meu português, pois sei
que ela não entenderia bem o espanhol rápido que os dominicanos falam.
Agora, com a vista livre, consigo catalogar mais aspectos dela.
Baixinha, se tivesse 1,70 m era muito. Cabelos lisos, bem pretos e curtos, que
chegam à altura do queixo. Ela tem um piercing no septo e pálpebras
delineadas em preto. Parece uma gata pronta para dar o bote no homem idiota
que a encara sem vergonha.
Jesus, ela sequer é real? Se eu a tocar, ela se desfaz no ar? Parece
saída de algum sonho meu.
Medusa também me encara por alguns segundos, nota a montanha de
comida no meu prato e bufa em seguida. Desvia o olhar e analisa a mesa à
sua frente, meio emburrada.
Preciso descobrir seu nome, ou posso chamá-la de uma górgona grega
sem perceber.
— Sabia que é indelicado rir das dificuldades dos outros? — retruca
arisca, num completo português, deixando claro que poderia me matar com
apenas um piscar daqueles olhos afiados.
Não sei dizer se a surpresa em sua expressão é por conta do meu
português ser muito ruim ou por falar qualquer outra língua que ela consiga
compreender.
Sei que tenho um leve sotaque de Portugal, devido à influência de meu
pai, que nasceu lá. Pelo que pude identificar, a deusa fala o português
brasileiro, idioma esse que tento a duras custas aprender com Dominic,
praticamente fluente.
E uma opinião hispanofalante e nada enviesada? O brasileiro é melhor
de ouvir e falar. Tem mais ritmo, sabor, ou como minha cunhada Jade gosta
de falar: mais molho.
Não consigo levantar os braços, ainda ocupado com meu prato, mas
tento um dar de ombro culposo, me sentindo incriminado.
— Perdão, não quis te ofender — falo devagar e tento denotar toda
minha sinceridade em português. — Te juro que ri porque me lembrei do
Andriel, não pela sua dificuldade no espanhol. Prometo.
— Sei… — responde e parece cética com a minha desculpa. Pensa por
uns segundos, correlacionando algo. — Andriel?
— Sim, meu irmão. O que gosta de coco, como você.
— Pera, você é irmão do Dominic? O padrinho?
— Sim, Rafi Salvatierra, ao seu dispor. — Pouso meu prato no colo e
estendo a mão, para me apresentar. — E, pelo que pude entender, você fala
português, então também veio para o casamento, certo?
Ela retribui o cumprimento e sinto a quentura de seus dedos pequenos
na palma. Dá para notar que ela observa minha tatuagem do peito da mão e
parece distraída.
— Sim, prazer. Sou Dalila Deodato. A madrinha da noiva.
Ora, ora, ora. Aquele casamento ficou muito mais divertido de uma
hora para outra.
— Bom, Dalila, pelo visto, seremos um par. Vamos nos sentar e
começar novamente as apresentações? Sinto que deixei uma péssima primeira
impressão, preciso consertar isso.
— Deixou mesmo, mas vou te desculpar se você me ajudar a traduzir
essas plaquinhas do bufê, o que acha?
— Temos um acordo. E vou fazer questão de que não volte para casa
sem conhecer todas as comidas típicas da República Dominicana.
— Sem lactose? — Dalila me entrega um sorrisinho envergonhado,
porém satisfeito.
— Sin lactosa, medusa.
A falsa despedida
Dalila Deodato
Dia um na República Dominicana e logo me deparo com problemas. Essa
deveria ser uma viagem para me divertir, esquecer do meu mestrado e da
dissertação que tenho para terminar.
Punta Cana é um dos destinos mais visados na América Central e estou
aqui quase de graça, paguei apenas as passagens, mas o restante? Foi
custeado por Dominic e Jade, e, a meu ver, o hotel parece bem caro.
Você deve estar se perguntando: que problema alguém pode passar no
Caribe em um resort cinco estrelas à beira da praia?
Bom… Rafi Salvatierra é o problema, um dos grandes. Muito diferente
de seu irmão Dominic, que vai se casar pela segunda vez com minha melhor
amiga, Jade. Dom é um santo perto do olhar de cafajeste de Rafi e tenho
certeza de que ele não é boa notícia por essas bandas dominicanas.
Que homem usa um bigode como aquele, acompanhado de cavanhaque,
e não deixa um rastro de corações destruídos por onde passa?
Porém, minha pulga atrás da orelha com Rafi deriva do nosso primeiro
contato desastroso, quando achei que ele riu de mim tentando falar espanhol.
Como danado eu adivinharia que bolo é PASTEL?
Pastel é outra coisa no Brasil! Malditos falsos cognatos.
Por ser disléxica, naturalmente tenho dificuldade de aprendizado, desde
criança. Então, imagina… se foi difícil aprender o português na alfabetização,
tentar assimilar outro idioma depois de adulta é estressante. Por isso, reagi
daquela maneira com Rafi.
Ao achar que ele zombava da minha forma de me expressar, fui
impulsiva e soltei os cachorros em cima dele. Em minha defesa, tenho
traumas de infância, adolescência e até da época da faculdade, quando um
colega sem noção falou que eu deveria sair do projeto de robótica se não
conseguia apresentar um seminário em inglês.
A academia pode ser cruel com mulheres e no ambiente das exatas? É
pior ainda.
Então, fui meio bruta com Rafi, porém ele também foi meio idiota de
rir do nada. Ele mereceu, vai. Se eu soubesse antes quem era o irmão de
Dom, e o padrinho que faria dupla comigo no casamento, teria pegado leve.
Mas é isso o que temos para hoje; ficou um clima peculiar depois do
nosso encontro no café da manhã. Uma tensão misturada com expectativa de
algo que nem sabia o que era. Só foi salvo com a chegada do restante da
família Salvatierra, além de tio Aurélio, pai de Jade, e demais convidados.
Ainda assim, não deu para evitar trocar olhadelas com ele o dia inteiro
e me surpreendi ao notar que, quase sempre, Rafi me fitava de volta, com o
mesmo interesse ou até mais.
Quero só ver como vai ser agora à noite, que na organizada agenda de
casamento dos pombinhos está programada uma despedida de solteiros. Uma
bem fajuta, já que eles não são solteiros desde que se casaram de mentira no
cartório dois anos atrás. Fui testemunha do casamento falso.
Sobre os saltos, caminho devagar com minha amiga em direção ao
Hard Rock Casino, o ponto de encontro da despedida. Infelizmente, não
teremos pessoas tirando a roupa. Jade e Dom preferiram fazer uma caça ao
tesouro com seus convidados, em que cada pista encontrada levaria ao baú
premiado e todas as perguntas eram sobre o relacionamento dos noivos.
Está no papo, não tem ninguém nesse lugar que sabe mais do
casamento de Jade e Dom do que eu!
— Você está fazendo aquela cara de novo, DD.
— Qual cara?
— A mesma cara que o Cebolinha faz quando está arquitetando um
plano infalível para ser o Dono da Rua do Limoeiro.
— Estou imaginando o que tem nesse baú, considerando que serei a
vencedora. — Dou de ombros e entrelaço o braço no de Jade. — Devo
confessar, achei bem criativa essa brincadeira e se me casar um dia, vou te
copiar.
— Se você se casar? Não quando? — Ela ergue apenas uma
sobrancelha e sei o que ela pretende com o gesto. Escolho ignorar a sugestão
de reprimenda e deixo Jade continuar: — Enfim… achamos melhor juntar
ambas as despedidas num lugar só. Além disso, essa divisão é muito
heteronormativa. Por que só o noivo e padrinhos podem ver mulheres tirando
a roupa? Ninguém pergunta se a noiva não gostaria de ver mulheres peladas
também? Que absurdo!
— Eu não faço diferenciação. Se tiver um lugar com os dois, para mim,
é o melhor dos mundos.
— Quem não sabe? Você é a maior piriguete que conheço, Dalila
Deodato. Quero saber quando você vai aquietar seu facho de uma vez.
— Só porque você se amarrou com um marido, não significa que eu
também deva. Minha vida está boa desse jeito.
Não é que eu nunca tenha tentado um relacionamento sério, tentei sim
algumas vezes. Mas é como se eu fosse feita de peças de Lego que não
encaixavam bem em ninguém. Estava sempre aquém das expectativas alheias
e do que se espera de um romance romântico.
Jade solta um muxoxo e desiste dessa discussão.
— Amo meu papi, tá? A vida é boa com ele. Não “me amarrei com um
marido”. — Ela faz aspas no ar, para enfatizar a expressão.
— Não mesmo, Danda, pelo que me contou, você gosta mesmo é de
amarrá-lo na cama, nos pulsos… — comento com um sorriso faceiro.
O que mais amo em minha melhor amiga? Ela nem se abala, por ter
zero vergonha na cara. Jade simplesmente gargalha e chama a atenção do
grupo de amigos, primos e primas que estão na entrada do cassino.
Contudo, entre tantos Salvatierra reunidos, minha atenção é fisgada por
ele.
O problema. A encrenca.
Ele é um ponto sensível e nem digo só aquele que pulsa entre minhas
pernas. Nunca vi Rafi antes de chegar à República Dominicana. Apenas
brevemente, em algumas fotos antigas no Instagram de Dom, mas não deu
para analisar bem seu rosto.
Também não sabia que ele era PCD, então não relacionei com a pessoa
que encontrei mais cedo no restaurante.
Para piorar minha situação, não ajuda que Rafi tenha o jeitinho
moleque e engraçadinho que costumo amar, apesar de não admitir para
ninguém. Ele é exatamente o meu tipo de pessoa.
Não me atraio com base no gênero, me atraio pela aura que a pessoa
emite, pelas pequenas coisas que formam quem ela é. Sabe quando você
chega perto de alguém e sente que sua energia combina?
Observei Rafi durante o café da manhã e entendi por que todas as
atenções da mesa giravam ao seu redor.
— Hola, mi família! — Jade saúda a todos em espanhol e então se joga
nos braços de Dom, enfiando a cara na curva do pescoço dele.
Desvio o olhar desta demonstração pública de safadeza e cumprimento
os demais, ficando exatamente ao lado de Rafi enquanto seguimos para o
lobby do Hard Rock. Parece que éramos as únicas atrasadas.
— Boa noite — diz ele em português e, ainda que o som saia como
notchê, admiro seu esforço em falar meu idioma, já que sabe que não entendo
bem.
Por isso, lhe entrego um sorrisinho de canto.
— Buenas noches — respondo em espanhol, até porque essas duas
palavrinhas qualquer pessoa saberia, né? Quis retribuir a gentileza.
Enquanto caminho calada e devagar, noto as interações da família
Salvatierra. Não consigo compreender as brincadeiras, mas sei que Rafi sorri.
Muito. Esse gesto me hipnotiza. O irmão de Dominic parece aquela pessoa
que sempre é a alma da festa. Divertido, extrovertido e, porque não dizer…
lindo. Lindo de doer.
Os cabelos crespos têm as laterais baixas em degradê, enquanto o topo
da cabeça tem mais volume. A pele negra clara, os olhos castanhos escuros e
aqueles lábios grossos que parecem tão macios… para completar o combo da
minha perdição, ele usa brincos nas orelhas e piercings no lábio inferior e
sobrancelha.
Não posso deixar de falar das tatuagens. Principalmente aquelas que
aparecem no peito da mão e na base do pescoço, passando pelo pomo de
Adão, mesmo que parte esteja escondida pela camisa branca oversized.
As mãos grandes estão em volta das rodas da cadeira, com uma
destreza de alguém acostumado a se movimentar nela, praticamente mecânico
e automático.
Ainda bem que o casamento de Jade e Dominic não acontecerá numa
igreja e sim à beira da praia, pois eu, com certeza, seria queimada viva se os
santos soubessem meus pensamentos sobre o meu par.
Sim, definitivamente me atraí por Rafi.
E sabe o que mais me atrai nele? Sua casa está localizada na República
Dominicana. O que significa que, se algo rolar entre nós, seria apenas caso de
uma noite, sem sentimentos feridos, sem corações despedaçados e quase
nenhuma expectativa.
A única expectativa que tenho? Que ele me faça sentir bem.
Muito bem.
E se os olhares que ele me lança são algum indicativo do que ele pode
fazer comigo, acredito que podemos nos divertir bastante.
A noite de Punta Cana está fresca, mas não justifica os arrepios que
levantam cada pelinho dos meus braços descobertos.
Talvez o motivo fosse o vestido preto e longo que se segura nas minhas
costas apenas com finas alças transpassadas. A falta de tecido deixa minha
pele exposta, a enorme tatuagem do dragão traçado em tinta vermelha da base
do pescoço até o final da minha torácica à mostra.
Ou, na pior das hipóteses, é o olhar que Rafi me direciona, que causa
todo esse alvoroço.
— Posso entender que suas falas em espanhol significam que fui
perdoado pela mancada durante o café? — fala com um ritmo lento e tenta
misturar ambas as línguas, sendo melhor que eu neste quesito.
— Está tudo bem, Rafi. — Do meu lado, desisto de tentar forçar o
portunhol e respondo na minha língua materna, ainda que devagar, para que
ele entenda também. — Sei que não teve a intenção; e reagi de maneira
desproporcional. São águas passadas, essa noite é para celebrar.
— Celebrar ou lamentar? — brinca.
— Ah, então você é desses homens… — Ergo uma sobrancelha e levo
alguns segundos para admirar seu rosto e a expressão cafajeste.
— Não sei o que quer dizer. — Se faz de desentendido e dá de ombros.
— Vai levar uma plaquinha de Game Over para o Dominic também?
Ele ri, daquela maneira estrondosa, nada discreta e hipnotizante. Jade e
Dominic, que andavam metros à frente, se viram para trás.
Não acho que tenham escutado a conversa, mas, sim, o riso de Rafi que
chama a atenção de todos nos arredores. Minha amiga dá um sorrisinho
sugestivo e fala algo no ouvido do marido. Ou seria noivo?
Rafi responde à minha alfinetada sobre resistência masculina a
casamentos:
— Meu irmão e eu somos feitos de matérias diferentes. Estou feliz por
seu casamento com Jadecita, não se engane, mas não desejaria para mim.
— Então você é desses homens — enfatizo minha fala no verbo,
mordendo o cantinho do lábio enquanto seguro o riso. — Não que seja um
problema.
— Não é?
— Não, também sou dessas mulheres…
— Sinto que faremos uma boa dupla, então — comenta e suas palavras
carregam um teor insinuante.
— Na caça ao tesouro?
Óbvio que não era na brincadeira, mas não vou deixar o seu flerte ser
entendido tão fácil assim. Gosto de apresentar um pouco de desafio.
— É, na caça ao tesouro, Dalila. — É a vez de Rafi sorrir, expondo seus
dentes brancos e brilhantes. O sorriso dele é lindo também, não que eu esteja
surpresa. Aquele piercing que rodeia o canto do lábio dá um brilho especial
ao conjunto.
— Achei que era uma busca individual.
— Por que brincar sozinha, se pode brincar comigo? Vai ser mais
divertido, prometo. — O duplo sentido da sua frase não fica nada implícito.
— Não quero dividir o prêmio, obrigada.
— Tudo bem, medusa — chama pelo apelido, por conta da tatuagem
em minha coxa e me fita, brincalhão. Por incrível que pareça, gosto de como
a palavra soa no seu sotaque; o s não tem som de z e sim de ç. — Como vou
ganhar, não ligo de dividir com você.
— Claro, vou te deixar acreditar que tem alguma chance.
— Teimosa e competitiva.
Inclino lentamente, jogando meu corpo e me apoio nos braços da sua
cadeira de rodas. Sei que nessa posição, meu decote fica mais proeminente,
ainda que minha comissão de frente não seja isso tudo.
— Que vença o melhor?
— Saiba que não vou facilitar para você, Rafi Salvatierra.
Rafi Salvatierra
— Nic, você poderia ter me avisado, cojones[1]! — Dou um tapa na
omoplata de meu irmão, porque não consigo alcançar a nuca.
— Rafiel, por que me agrides? — fala Nic todo pomposo, como se
estivesse num romance da época regencial.
É incomum ver Dominic bêbado, mas acho que sua despedida de
solteiro é um dos raros momentos em que se sente seguro para perder a pose
de controlador e organizadinho. Ou meu manin só está feliz para caralho.
Voto nessa última opção.
— Por que você não me contou que a amiga de Jade, a madrinha do seu
casamento, é a mulher mais linda do mundo? Eu estava totalmente
despreparado.
Aponto para Dalila que está dançando com Jade a alguns passos de
distância, alheias aos irmãos Salvatierra que babavam, digo… encaravam a
interação.
— Porque ela não é. — Ele dá de ombros, como se aquela resposta
fosse suficiente. Vira outra golada da sua taça e fita fixamente a pista de
dança no meio do cassino. — A mais linda é a minha esposa.
Reviro os olhos, sorrindo.
— Certo, certo, príncipe encantado, entendi que você só tem olhos para
Jadecita. — Faço uma pausa, gesticulando para Dalila. — Mas puta que
pariu, Dominic, a Dalila é uma deusa, acho que estou apaixonado.
Nic solta uma gargalhada repentina e até se engasga, cobrindo a boca
com as costas da mão.
— Não seria engraçado, Raf? — diz, tossindo e com fôlego meio
recuperado.
— Não, não é nada engraçado. — Cruzo os braços, fingindo chateação.
Nic me fita, os olhos mostrando sua embriaguez.
— Ah, sei… Como é mesmo que costuma falar? Você não se apega,
não deseja ser um fardo ou se sentir insuficiente.
— Sessão de terapia uma hora dessas, Nic? — Solto um sorriso
amarelo, entretanto, sei que meu irmão está certo em me alfinetar.
— Desculpa, manin. — Levanta as mãos, admitindo a culpa — Você
sabe como fico desbocado quando bebo. Quer saber? Esquece que falei isso!
Vamos lá, chamar a minha mulher, quero começar essa caça ao tesouro
imediatamente.
— Já quer que a noite acabe cedo?
— Ah, não, Rafiel… A noite vai apenas começar. — Meu irmão ri
baixo, com malícia, e ajusta o colarinho da sua camisa. — Quando vocês
desaparecerem para achar o tesouro, vou encontrar o meu.
Ele admira Jade de uma maneira apaixonada e safada ao mesmo tempo
e logo entendo o que quis dizer.
— Modos, Dominic! Não quero saber o que meu irmão faz debaixo das
saias da esposa — ralho com tom de diversão e giro as rodas para desviar de
uma máquina caça-níqueis, seguindo meu irmão.
— Sim, o tesouro está lá mesmo. Sob as saias.
Ele cambaleia um pouco e se segura em meu ombro. Dominic bêbado é
mesmo um evento, senhoras e senhores. Apenas sorrio e balanço a cabeça,
diminuindo a velocidade ao encontrar nossa galera reunida.
— Papi! — grita Jade e enlaça os braços no pescoço de Nic. — Já
estava com saudade!
No espaço de tempo em que eles se beijam desajeitadamente e sem
vergonha na frente do nosso grupo, Dalila se aproxima e para ao meu lado.
— O que seriam dos noivinhos sem os padrinhos para cuidar deles
quando bebem, né? — pergunto.
— Muita responsabilidade mesmo, mas eu não estou cuidando de
ninguém, estou bebendo igual.
— Pronta para perder a caça ao tesouro, então?
— Não ache que, porque estou bebendo, que perderei a minha
habilidade de lembrar dos fatos desse relacionamento. Sou praticamente a
cupida deles.
— Mas tenho a vantagem de não beber.
Desde que notei que o uso irrestrito de álcool faz mal para meu sistema
nervoso central e periférico, passei a evitar. Não era legal ficar na Unidade de
Terapia Intensiva por causa de algo tão bobo quanto uma bebida.
— Injusto, mas ainda assim… Você não é páreo para esse cérebro aqui.
Ela toca a têmpora com a ponta da unha enorme pintada de preto.
Não sei se sou páreo nem para o corpo, quanto mais para o cérebro.
O curso dos meus pensamentos é interrompido quando Jade e Dom
finalmente convocam todos para um círculo e explicam as regras da caça ao
tesouro.
Charadas que vão explicar onde estão outras charadas e todas são
relacionadas com algo sobre os anos de relacionamento deles.
Fácil, tudo que Dom não me contava por conta própria, eu arrancava
dele com minha curiosidade infinita.
As pistas estão espalhadas pela área do cassino e do hotel. Ganha quem
encontrar o baú ao final.
Nem sei o que tem dentro, mas só pela obstinação de Dalila, tenho
certeza de que será divertido competir com ela.
Será sim.
A lavanderia que virou paraíso
Dalila Deodato
“Dominic, com sono, aguardava uma chamada.
Entre tecidos a girar, uma coisa foi confessada,
E de longe, Jade se viu emocionada.
Qual o lugar onde essa história começou,
E Dante, enfim, sua família encontrou?”
Dalila Deodato
— Nunca mais bebo.
— Famosas palavras de uma pessoa com ressaca.
Após muitos minutos passando litros de protetor solar nas minhas
dezenas de tatuagens, estou com Jade tomando sol na piscina do hotel.
Uma das piscinas, já que aqui tem mais de dez. Essa tem um bar
molhado e várias espreguiçadeiras acolchoadas espalhadas ao redor e fica
bem pertinho do oceano. Ainda não consigo acreditar em como o Mar do
Caribe é lindo. Não parece real.
Minha amiga noivinha também está empapada de protetor, mas por
motivos diferentes: Jade tem vitiligo e uma preocupação dobrada em ficar
exposta ao sol, onde suas manchas podem até queimar, pois não têm
melanina.
— Ressaca moral é a pior — reclamo e aproveito para beber a água de
coco no meu copo.
De ressaca, sim, desidratada nunca.
— Tá arrependida de quê, Dalila Deodato?
Da espreguiçadeira ao meu lado, Jade abaixa os óculos escuros até a
pontinha do nariz e me encara, lançando uma repreensão fingida.
— Sei lá, o que aconteceria se vocês não tivessem flagrado a gente
ontem, Danda?
Cruzo os braços na altura do rosto e me deito nas mãos, de barriga para
baixo, deixando que o sol queime minhas costas.
— O que de mal poderia acontecer? Vocês são adultos e claramente
estavam quase se comendo naquele depósito. São livres e desimpedidos.
— Não foi você que disse que eu era piriguete e que tinha que aquietar?
Observo Jade por baixo de uma fresta dos meus óculos, permitindo que
ela compreenda meu olhar sarcástico.
— Isso foi antes de saber que você e Rafi estavam se engraçando. Eu
shippo, não tem jeito. Já sei até como chamar: Ralila! #OTP — fala a hashtag
e faz o sinal nos dedos.
One True Pairing… Até parece que voltei para época em que era fã de
Delena de The Vampire Diaries.
Uma coisa é certa, saber do apoio de minha amiga até que deixou as
coisas mais reais. Sou uma pessoa teimosa que só costuma fazer o que quer,
mas não consigo fazer nada sem pedir opinião de pelo menos umas três
pessoas importantes.
Como minhas irmãs Laila e Eva não estão aqui, a validação de Jade é
suficiente para destruir o resto de resistência em mim.
Rafi é uma pessoa familiar e é até estranho, mas ele me passa
segurança, mesmo tendo o conhecido recentemente. Não teria problema
aproveitar apenas uma noite para sarar essa dor gostosa entre nós dois, certo?
Para continuar os sete minutos no armário?
Suspiro pesado e inclino meu rosto na sua direção.
— Sinto que deveria ter me preparado melhor, Jade Victorino. Você é
minha amiga há quantos anos? Devia saber que Rafi seria um ponto fraco.
— Ah, sim, sei bem como você adora uma pessoa engraçadinha e bem-
humorada.
Ela gargalha ao lembrar das coisas que lhe disse quando ela me
perguntou qual era meu tipo, como um flerte descarado.
— Cala a boca, quando a gente se pegou, mal dava para ouvir sua voz
naquela calourada, quanto mais suas piadas ruins.
Brinco e coloco meus óculos escuros.
Jade solta um arquejo, fingindo ofensa com a mão sobre o peito. No seu
anelar, brilha a aliança de noivado com Dominic, uma pedra azul-clara que se
chama Larimar e é própria da República Dominicana.
Dá para acreditar que aquele casamento falso para dar um CPF para
Dominic se tornaria real assim? Fico tão feliz por Danda.
Contudo, ainda me pergunto se, um dia, isso será para mim. Essa
conexão amorosa e a construção de algo sólido ao lado de alguém parecem
uma ideia distante, que escorre pelos meus dedos, como a areia branca dessa
praia em que estou. As pessoas sempre esperavam mais do que eu podia
oferecer, no final.
— Blasfêmia! Minhas piadas são ótimas — reclama Jade e me retira do
devaneio aleatório.
— Só você ri delas, Danda. E talvez o Dom, só para te agradar.
— O que prova que são boas, tenho faro para comédia, OK? Por isso,
sei que o Rafi também é dos meus. E voto sim para esse casal.
— Que casal?
Dominic surge do nada, o que nos assusta. Levanto a cabeça de supetão
para ver se mais alguém escutou a conversa, mas Dom está sozinho.
— Rafi e Dalila, papi. O que você diz? Ralila ou Dafi? — fala a boca
aberta da Jade, sem papas na língua.
— Cariño, não pressione sua amiga assim.
Dom adverte e se inclina para deixar um cheiro demorado nos cabelos
da esposa.
— Ai, deixa de se fazer, Dominic Salvatierra. Nem parece que de
madrugada estava na maior fofoca comigo.
Isso o deixa meio envergonhado e Dom sorri contra a curva do pescoço
dela, se escondendo ali.
— Meu Deus, gente! Não foi nada, eu só estava cansada de ficar em pé
esperando o Andriel. — Jogo os braços para cima, exasperada, e me sento na
espreguiçadeira. — Afinal, o que tinha naquele baú, hein?
— E fez o Rafi de cadeira, né? Entendo. — Jade ignora minha pergunta
e solta a provocação, sua fala meio mole por conta do carinho que recebe
atrás da orelha.
— Acontece nas melhores famílias — brinca Dom.
— Até tu, Dominic?
Dom joga a cabeça para trás quando ri e vejo o contemplar apaixonado
de Jade sobre ele.
— Desculpa, Dali. Vocês são adultos e sabem o que fazem. De
qualquer forma, vocês, alossexuais, têm tudo mais fácil, né? Aproveitem
esses dias para se conhecerem um pouco, sem pressão. Não é por ser meu
irmão, mas Rafi é uma boa pessoa.
Dom meneia a cabeça e se levanta, indo até o bar. O marido de Jade,
após muito contato com a esposa e alguns alunos da faculdade, estava todo
entendido sobre teoria queer e orientações sexuais, e se definia como
demissexual desde então.
— Tão diplomático, meu marido. — Jade acompanha o andar do
homem para longe. — E eu aqui querendo dizer para vocês se comerem logo,
que ninguém aguentou a tensão sexual daquele depósito.
— Ele é mesmo o seu oposto complementar, amiga. — Dou um risinho,
feliz por ela ter finalmente encontrado a tampa da sua panela, alguém que a
amasse do jeito certo.
— Mas, falando sério, o que tinha no baú da caça ao tesouro?
— Você vai ter que perguntar ao vencedor.
Rafi.
Que me enganou para vencer.
Não vou perguntar, MESMO.
Não confio no meu corpo perto daquele homem.
Rafi Salvatierra
Estou sentado na mesa do jantar de pré-casamento de meu irmão,
prestes a fazer um brinde, e a única coisa em que consigo pensar é na mulher
à minha frente.
Com certeza, não é adequado dizer que anseio pular logo todas as
celebrações e enfim convidá-la para usufruir do meu prêmio da caça ao
tesouro.
Não, tenho que ser o irmão e cunhado que vai fazer as piadinhas
engraçadas e depois emocioná-los com desejo de uma vida longa de amor
eterno.
Pare de pensar na Dalila montada no seu colo.
Dou uns toquinhos com a colher na taça e chamo a atenção de todos.
Hoje, apenas os noivos, seus pais, irmãos e padrinhos estão presentes. Então,
sete pares de olhos se viram para mim.
Depois das palavras emocionadas e cheias de bênçãos da nossa mãe, o
pai de Jade falou de forma tão eloquente e carinhosa sobre o amor que
emocionou a todos. Carrego uma responsabilidade grande depois desses dois.
A verdade é que não sei falar de amor, pois não sei se já o vivi. Ou se
só participei de algo que os meus antigos relacionamentos chamavam de
amor, mas que não era, era apenas apego ou paixão.
Ou, pior ainda, que fui apenas um corpo. Algo que ocupava espaço na
cama, que servia por um tempo, mas era descartado quando as coisas ficavam
difíceis.
Foi por isso que ergui minha armadura. Finjo que só quero curtir, que a
vida é feita de momentos. Mas, por dentro, ainda pergunto se um dia alguém
vai me escolher. Será que alguém vai olhar além da cadeira de rodas, das
convulsões, das dores constantes? Além das inseguranças que finjo não ter?
Afasto os pensamentos para seguir com meu brinde. Decido falar em
espanhol porque, caso me emocione, não vou saber falar o meu português
fuleiro. Então, espero que alguém ajude Dalila a entender.
Por sempre estar em altura mais baixa que os outros, tive que aprender
a projetar a minha voz, mas me cansa um pouco, mesmo depois das inúmeras
sessões de fisioterapia respiratória devido à GB. Coço a garganta antes de
começar e subo o tom da voz:
— Ontem, disse a alguém que eu e Dominic somos feitos de matérias
desiguais. Mesmo com nossos cinco anos de diferença, praticamente
crescemos juntos e tive meu irmão como um exemplo em tudo. Eu almejava
ser o que ele era. Se ele escolhia um brinquedo, queria um igual. Nossos
desenhos favoritos eram os mesmos e eu me vestia como Dominic. Parecia
sua sombra. Mas depois que crescemos, nos tornamos adultos e pouco a
pouco me toquei das nossas diferenças tão particulares. Nic é uma negação
com números e eu sou incrível nisso. Da mesma forma que ele sabe todas as
capitais do mundo, eu achava que a do Brasil era São Paulo. Eu sei, agora eu
já sei que é Brasília, não me matem, brasileiros!
Alguns risos atrasados chegam dos brasileiros da mesa.
— Uma coisa que nos difere: Nic sempre foi o planejador. Ele tinha a
sua vida descrita anos-luz à frente. E eu, depois dos quinze anos, aprendi a
enfrentar a vida de um jeito diferente. Não é possível planejar muito quando
está doente e te dizem que você está sob risco de vida.
Ouço meus pais fungarem. Não quero pesar o clima, mas é impossível
não falar sobre a GB quando ela virou minha vida do avesso tantas vezes.
Todavia, escolho seguir com o humor para desviar a atenção:
— Não precisa chorar, vieja! — Solto um beijo no ar para minha mãe e
ela sorri entre as lágrimas. — O meu ponto aqui é que Jade foi um furacão na
vida do meu irmão. Você até pode esperar um furacão; os meteorologistas
falarão para você se cuidar, dirão a sua força e por onde passará, certo? Mas
ninguém sabe os efeitos até que ele chegue e se vá. Nunca vi Nic tão triste
quanto naquela época em que Jadecita foi para a Índia. A gente conversava
todos os dias e meu pobre irmão estava inconsolável. Ele adotou um
cachorro, sabe? Alguém tinha que fazer uma intervenção nesse homem!
Mais risos ao redor da mesa, alguns atrasados após compreenderem
meu espanhol. Principalmente o de Dalila, que me encara meio estranha.
Está sorrindo e com um brilho no olhar. Hipnotizada? Encantada? Não
sei definir.
— Acho que foi numa noite dessas que liguei para Dominic e falei: “Sei
lá, manin, você já considerou que você ama de verdade a sua esposa de
mentirinha?” E agora, vocês dois noivinhos podem me agradecer pelo
empurrão dado! Brincadeiras à parte, você merece ser feliz, Nic. É nítido
como Jade é a sua pessoa e vice-versa. Que o seu amor perdure! Um brinde
aos noivos!
Levanto a taça no ar e todos me copiam.
Dom se ergue e me abraça com os olhos cheios d’água e, em seguida,
Jade vem e forma um abraço coletivo.
— Te amo mucho, hermano — fala ele, emocionado, ao meu ouvido.
— Y yo a ti, Nic.
Por mais que não acredite que possa ter o que ele tem, espero que todo
amor que Dominic conseguiu seja eterno.
Assim que meu irmão e esposa se afastam, não fico sozinho. Os
fantasmas do meu passado me rondam e aquela sensação ruim chega, sempre
que relembro de algo relacionado à GB.
Nada nos preparou para o que me ocorreu aos quinze anos. Era um
garoto enérgico, não parava quieto e assumo que dei muito trabalho para
meus pais. O basquete era meu vício e via um futuro no esporte. Então, a
síndrome bateu na porta e varreu a normalidade de nossas vidas.
Tivemos que nos acostumar com uma realidade nova de visitas a
hospitais, médicos, fisioterapeutas e ninguém sabia dizer o que eu tinha, nem
sabiam como resolver.
Obriguei Dominic a amadurecer mais rápido, deixando a juventude
prematuramente e virando um adulto que precisava apoiar seus pais no
tratamento de seu irmão. Hoje, olhando para ele e toda a felicidade que o
cerca, fico satisfeito por Nic ter encontrado o que nunca será possível para
mim.
Não será, porque amar alguém implica carregar não só as próprias lutas,
mas dividir também as dela. Não encontrei quem estivesse disposto a encarar
as minhas, então deixei para lá.
Coloco um sorriso no rosto novamente, empurrando os pensamentos
para debaixo do tapete. O foco agora é comemorar Jade e Dom.
E, talvez, deixar que a chama que se acendeu entre mim e Dalila
queime livre.
É meu modus operandi: me jogar em encontros casuais que começam e
terminam na mesma noite, porque é mais fácil.
Sem promessas, sem mágoas.
Certo?
O casamento
Rafi Salvatierra
A noiva está atrasada. Dizem que isso é comum e esperado, mas será que
minha cunhadinha poderia lembrar que a gente está embaixo do resto de sol
aqui na beira da praia? A areia ainda está quente e dá para notar que Dalila se
remexe inquieta ao meu lado, tentando desencostar seus pés onde a pele a
toca.
— Quer sentar no meu colo de novo? — provoco, sem nenhuma
vergonha.
Desde aquela noite fatídica no depósito, não tive tempo sozinho com
Dalila, a gente não conseguiu conversar ontem à noite, nem hoje o dia inteiro,
pois demandas de padrinhos tomaram nossas tarefas.
Além disso, Dalila estava toda produzida, maquiada, com os cabelos
curtos, que normalmente são lisos, com ondas lindas em um penteado
trançado. Não que ela precisasse de muito para ficar perfeita, mas deve ter
tomado grande parte do seu tempo.
Fora que ela, Jade e minha mãe ficaram juntas em algum tipo de SPA
só para mulheres e eu tive que ficar com Andriel e os amigos de Nic, Túlio e
André, resolvendo problemas de última hora. Como a gravata do noivo que
desapareceu do nada e outros surtos leves.
Logo, fiz essa brincadeira de me usar de assento sem saber qual seria a
repercussão. Quero continuar de onde fomos interrompidos, não vou negar,
mas Dalila não está mais sob efeito de álcool, então não sei se ela ainda vai
me querer.
— Agora não, Rafi. Se situa. — Seu olhar me lança adagas imaginárias
e solto um gracejo.
Tão linda, toda séria e compenetrada. Não faço ideia do que as últimas
palavras significam em português. Mas ela disse ahora no, então poderá ser
em algum momento?
Meu sangue corre rápido com a expectativa.
— Vou conseguir um sim para essa proposta ainda hoje, Dalila.
Estendo a mão e toco o dedo indicador dela com a ponta do meu.
Ela solta o ar bem fraquinho, mas consigo ver um indício de sorriso
querendo aparecer. E a correspondência ao meu toque me anima, pois quando
Dalila entrelaça nossos indicadores bem escondidos atrás da minha cadeira,
vejo a luz no fim do túnel.
— Talvez eu considere se você me contar o que tinha no baú, que tal?
— ela sussurra.
Ela ainda me deseja.
Enquanto esperávamos a chegada de Jade, percebi os arredores. Andriel
está inquieto dentro do terno que já está curto nas suas pernas longas.
Túlio e André estão de mãos dadas e conversam enquanto admiram o
mar. Meus pais se encontram sentados à frente do altar improvisado e Mamá
chora desde que o casamento começou, bem emocionada.
Odeio vê-la chorar, acho que são traumas de uma vida que nunca
perderei. Mas que bom que o choro é de felicidade e emoção e não de
preocupação comigo.
Uma música começa a tocar, mas não é a marcha nupcial. De qualquer
forma, todos se levantam para ver Jade entrar pelo corredor florido e o tapete
de fibras estendido na areia, toda trajada de branco.
A música é em português e não entendo bem o que está sendo cantado,
mas, com certeza, deve ser algo tocante, pois Nic avista sua esposa e começa
a... chorar?
Meu Deus, meu irmão está se debulhando em lágrimas.
Viro para Jade e ela está igual, porém mais contida. Ambos com um
sorriso enorme no rosto.
Ah, o amor... Torna todos grandes bobos bregas.
Aurélio a entrega para Dominic e então os pombinhos começam a
sussurrar algo entre si, decerto várias juras de amor eterno. Ficam alguns
segundos num mundinho só deles, as mãos apertadas, como se não pudessem
se soltar nem se um furacão passasse por Punta Cana.
— Acho que tô pronta para ser de verdade agora — fala Jade um pouco
mais alto e acredito que todos escutam.
— Sempre foi de verdade, amor — diz Nic e limpa uma lágrima da
bochecha dela com carinho.
— Ei, casal, deixem isso para os votos! — grito em espanhol da
posição de padrinho.
Dalila imediatamente me cutuca com seu cotovelo em repreensão. Mais
adagas imaginárias. Sorrio feliz, satisfeito em tê-la provocado e feito os
demais convidados darem risada da minha intromissão.
— Pare de distrair os noivos — reclama ela, baixinho.
Vejo que o celebrante dá início à cerimônia e me perco nas palavras
bonitas emitidas. Enquanto o tempo passa, noto o sol se pondo longe no
horizonte e dando lugar a uma lua crescente no céu.
Perdido em meu próprio mundo, só volto a prestar atenção ao notar que
Dalila saiu de fininho do meu lado.
Jadecita e essa deusa que não me sai da cabeça tramam algo e apenas
Nic, deslumbrado com sua esposa, não está percebendo.
Ah, mas eu percebo. Aparentemente me tornei especialista em notar as
tramoias de Dalila Deodato depois da nossa pequena competição na caça ao
tesouro.
E, pelo que parece, os minutos que passamos presos e apertados
naquele cubículo me fizeram aprender um pouco de como ela fica quando
está nervosa e com a expectativa de algo acontecer.
Eu me lembro de maneira nítida do movimento errático do seu peito ao
respirar pesado, com a proximidade de seus seios do meu rosto. Ela também
morde os lábios e a parte de dentro das bochechas.
— Como todos aqui sabem, alguns desde o início e outros que
descobriram recentemente, eu e Dominic nos casamos dois anos atrás devido
a um acordo — Jade começa seus votos. Enquanto isso, Dalila passa a
distribuir algumas folhas de papel para os convidados. — Nosso acordo era
um protocolo de intenções que visava nossa cooperação, num matrimônio de
benefícios mútuos. Esse papel que minha madrinha, Dalila, lhe entrega é a
versão final deste protocolo, escrito com todos os artigos importantes.
Quando volta para meu lado perto do altar, ela me entrega uma página
também. Eu a encaro com uma sobrancelha erguida em indagação.
Murmuro sem voz, apenas com os lábios: “O que vocês estão
fazendo?”
Medusa pisca um olho, travessa.
— Vocês podem ler enquanto me declaro para o homem da minha vida
— complementa Jade, para os convidados e então vira seu corpo, a atenção
inteira focada em Dominic.
Dalila indica o papel com a cabeça como se dissesse para ir em frente.
Começo a ler o tal do protocolo.
PROTOCOLO DE INTENÇÕES VICTORINO-SALVATIERRA
PARA UNIÃO ESTRATÉGICA ENTRE JADE DANDARA
VICTORINO E DOMINIC SALVATIERRA
Sorrio com essa loucura que nunca pensei que meu irmão todo certinho
se submeteria. Eles fizeram um protocolo como se fossem dois países juntos
em aliança. Dois nerds!
Tudo isso só está acontecendo hoje porque Dominic se meteu num
casamento falso para não perder seu visto e continuar como professor no
Brasil. Tudo para ajudar nossas finanças.
Nic sempre se preocupou com a estabilidade da família e deixou nosso
lar na República Dominicana para correr atrás da sua carreira.
Trabalho o máximo possível para desafogar meu irmão dessa
responsabilidade, porém, com uma frequência quase que bienal, ainda fico
muito doente, numa crise pesada.
É como ter uma bomba-relógio nos nervos. Não tenho certeza de
quando ela irá explodir e quanto isso me custaria, seja financeira ou
mentalmente.
Perdido nos pensamentos e na leitura do protocolo, passo as folhas um
pouco mais rápido e, antes mesmo de entender o que estava escrito em
português no final do documento, ouço minha mãe gritar animada em
espanhol:
— Finalmente, grávida!
Arregalo os olhos ao perceber que ela estava falando de Jade, uma vez
que Nic repousa as duas mãos na barriga da minha cunhada, emocionado.
Um gesto que diz tudo, mesmo sem tradução alguma.
Dalila me olha com olhos marejados e não me esforço muito para me
movimentar, porque ela me ajuda e me empurra para perto do caos que se
formou ao redor dos noivos no altar.
Tio. Serei tio.
Não dá para acreditar!
Antes de abraçar os noivos, jogo a cabeça para trás, fitando Dalila de
baixo e faço outra (embora não a última) provocação:
— Pronta para perder mais uma competição?
— Qual desta vez? — Ela revira os olhos, mas mantém um sorriso.
Amo a maneira com que consigo tirá-la do sério e, ao mesmo tempo,
fazê-la sorrir tão linda assim.
— De quem será o tio favorito do bebê, é claro. Já estou fazendo aulas
de português, pois minha sobrinha ou sobrinho será bilíngue e merece um tio
dedicado que entenderá em qualquer língua.
Dalila se abaixa e, tão de perto assim, sinto o cheiro do seu perfume
cítrico de tangerina. Com os lábios colados no meu lóbulo, sussurra apenas
para mim:
— Você não terá a menor chance, Rafi.
E é no tom maldoso de sua voz que eu sei.
Sei que não está falando sobre o favoritismo do nosso sobrinho.
E não posso deixar de concordar: não terei chances contra ela, pois não
vou nem tentar resistir.
A dança
Dalila Deodato
Esse é o segundo casamento de Jade e Dominic que presencio. É, com toda a
certeza, o mais bonito, ganhando de lavada do casamento civil.
Os recém-casados dançam sob um gazebo branco, iluminado com um
varal de luzes de corda e rodeado de tecidos translúcidos que balançam ao
vento fresco da noite.
A base elevada foi montada em cima da areia e é também onde estão as
mesas e cadeiras dos convidados. Pequenos arranjos com lavandas
embelezam e perfumam o ambiente.
Jade e Dom optaram por uma cerimônia íntima, mas, na festa, outras
pessoas foram chegando aos poucos. Amigos de Dom da época da escola,
colegas de Rafi e primos e primas que também estavam no dia da despedida.
Todos estão com o celular em mãos, registrando o momento em que o
casal se move lentamente ao som de Geleira do Tempo, de Ana Vitória e
Jorge e Mateus.
Eles estão fora do ritmo, mas parecem não se importar nem um pouco,
imersos num mundinho só deles, Jade com a cabeça recostada no peitoral do
marido.
Dominic parece o homem mais feliz do mundo com sua esposa nos
braços. Danda me contou que estava grávida algumas semanas antes e
resolveu surpreender seu marido no casamento.
Mal posso esperar para conhecer esse pequeno ser que minha melhor
amiga vai colocar no mundo. Eu já o amo e o bebê nem nasceu ainda.
Embora não tenha certeza se um dia pretendo ser mãe, sou a candidata
certa para tia babona. Minha irmã, Laila, me deu uma sobrinha e é
simplesmente a melhor coisa.
Você ama, cuida e devolve aos pais quando pode. Em especial, quando
eles começam a chorar e fazer birra.
Além das minhas incertezas sobre maternidade, meu útero me dá
problemas demais sem uma criança lá dentro, então só o pensamento me
arrepia e me deixa insegura.
A música muda e, com o toque da sanfona ao fundo, percebo a canção
Espumas ao Vento começar a tocar, só que a versão de Mariana Aydar. Jade
e Dom continuam colados no gazebo, mas gesticulam para que os demais se
juntem na pista de dança.
É forró, então não consigo evitar me balançar com a música da minha
terra, tocada aqui no Caribe. Por mais que tenha sido uma adolescente emo fã
de Paramore e Simple Plan e fingisse que não gostava para parecer cool,
sempre escutei porque a minha avó Rina ama e nos criou ouvindo
Dominguinhos, Flávio José e Luiz Gonzaga.
O meu olhar vai dar uma festa na hora que você chegar, é o que diz a
canção.
Meu olhar faz festa e meu coração faz batuque quando vejo que Rafi se
aproxima.
Ele consegue estar mais lindo que nunca. O terno bege parece desenhar
seu torso, a gravata marsala que combina com meu vestido está folgada e
desfeita em volta do pescoço.
Alguns botões da camisa branca estão abertos e a tatuagem de raios que
passa pelo pomo de Adão está totalmente exposta. Dá até para ver um dos
desenhos do seu peito e fico curiosa para ver o que mais ele esconde embaixo
dos panos.
— Me concede a honra desta dança? — Sua mão grande e com dedos
cheios de anéis está estendida na minha frente e Rafi sorri, travesso.
— Você sabe dançar forró?
Sorrio ao receber o convite e coloco a mão no quadril, abrindo mais a
fenda do meu vestido e fisgando Rafi novamente para minha Medusa.
Juro que não foi intencional, entretanto gosto de saber que ele curte as
artes que espalhei no meu corpo, assim como gosto das dele. E olha que nem
vi todas.
— Medusa, você ficaria surpresa com as coisas que eu sei.
Percebo que a mão dele está estendida por muito tempo e a seguro. Não
vou negar dançar com ele, quando o que quero é chegar mais perto de novo.
Ainda assim, Rafi percebe que estou um pouco receosa e continua:
— Prometo não passar com as rodas em cima de seus dedos.
— Não, Rafi, não é isso, eu só…
Ele ri do meu desconcerto.
— Sei que não é, estou apenas brincando contigo. Até porque, você vai
dançar sentada no meu colo, Lila.
Lila.
De todos os meus apelidos, parece até coincidência que ninguém tenha
me chamado assim antes. Na voz dele, é tão gostoso de escutar. Lila, Lila,
Lila.
No final das contas, é o apelido carinhoso que me faz segui-lo para as
laterais do gazebo.
Penso que será constrangedor me sentar nele na frente de todos, mas me
sento de lado, puxando o vestido até o meio das coxas para não enganchar
nas rodas.
Ele me envolve pela cintura com seus braços e me arrasta mais para
cima no seu colo. Sinto um volume proeminente embaixo da minha coxa.
— Espero que isso aí no seu bolso seja seu celular, Rafi.
— Não sei do que está falando, Dalila. — Se faz de desentendido
enquanto gira o piercing do lábio com a língua.
— Cínico.
— Linda. — O elogio é o mesmo em português ou espanhol, então não
tem risco de eu não entender.
Sinto meu rosto esquentar e sei que minhas orelhas e bochechas estão
avermelhadas, pois nunca aprendi como receber elogios e nem sei o que
responder, mas meu corpo fica feliz com as palavras.
— Obrigada?
— Que fofa, você está toda envergonhada.
— Parece algo que você não é capaz de ficar, pelo visto.
— Não, muito difícil. Você me ouve falando este português sem
vergonha ou remorso, pois o que importa é que você me entende. Não precisa
ter vergonha comigo, nem dos meus elogios e nem de não saber falar direito,
o importante é se comunicar.
— É, mas pelo visto, Buelo de Cueco não foi uma comunicação efetiva.
Ele ri ao relembrar nosso encontro desastroso dias atrás.
— Eu, por exemplo, não faço ideia sobre o que essa música fala, só sei
que ela parece meio triste, meio romântica e que fala de amor. Estou certo?
— Amor e desilusão. Perdão e superação. Fim de relacionamento,
talvez segundas chances e...
— Deseo?
— Sim, ela fala do desejo pegando fogo.
Ele pigarreia quando os meus olhos alcançam seus lábios e o vejo
engolindo seco, uma ação que eu mesma repito, afetada pela proximidade
entre nossos corpos e bocas.
— É uma pena que terei que tirar minhas mãos de você, Lila.
— O quê? Mas por quê? — Dá para notar a insatisfação da minha voz.
Rafi solta um risinho e as palavras saem num sopro quente que atinge
minha bochecha.
— Alguém precisa fazer a cadeira girar, medusa.
— Ah, claro. Não precisa, a gente pode só mexer o tronco. —
Exemplifico o movimento e arranco outra risada dele, mas logo sua feição se
transforma em algo mais sedutor.
— Isso tudo é vontade de ter minhas mãos te tocando?
Mais uma vez, a vermelhidão deve me tomar por inteiro e me escondo
na curva do seu pescoço, descansando a cabeça no seu ombro. Dessa posição,
os raios explodem na altura dos meus olhos e sinto seu cheiro gostoso. Não
sei dizer o que é, mas é bom.
Espumas ao Vento acaba e Por Fin Te Encontré começa. Estou calada,
respirando ar fresco do mar misturado com a pele quente de Rafi. Ele está tão
perto que acho que posso tocar meus lábios naquele pontinho abaixo de sua
orelha.
Faço isso, roçando a pontinha do nariz devagar e deslizando até a nuca.
— Sabe, no ensino médio, odiava as quinceañeras[2] de minhas colegas
da escola — Rafi passa a falar, enquanto sente o deslizar de meu nariz e o
resvalar de meus lábios.
— Por quê? — pergunto e deixo um beijo atrás de sua orelha. Dá para
ver e sentir que ele se arrepia com o toque e sei que estou cruzando barreiras
aqui em público e não posso me importar menos.
A excitação de Rafi parece tensionar sob mim e que bom que estou
sentada no seu colo, pois se não fosse assim, todo mundo ao redor veria a
prova da minha provocação deliberada.
— Elas sempre convidavam os meninos para formarem pares de dança
na valsa e eu não era chamado. Apenas observava. As garotas queriam fazer
par com quem eram apaixonadas. Eu nunca era a escolha de nenhuma. Além
disso, da sua experiência, é chato dançar com alguém sentado, não acha?
Como estou encostada nele, sinto seu ombro subir e descer, como se ele
realmente concordasse com essa fala e tivesse aceitado a realidade.
Como pode alguém ter renegado esse homem incrível? Aposto que a
Dalila adolescente não teria olhos para outra pessoa.
— Não, não acho. — Levanto a cabeça do seu ombro com cautela e o
olho com atenção, tentando transmitir a sinceridade das minhas palavras
através do olhar. — Seja sentado ou em pé, dançar é criar uma conexão com
seu par. É sobre rodar em volta do próprio eixo. E olha você, fazendo isso.
— A companhia ajuda. — Sua mão sobe por trás de meu pescoço e
envolve minha nuca. Deixa um beijo tão rápido no canto da minha boca que
parece um sopro. — E de rodas eu entendo. Se segura.
Infelizmente, ele retira suas mãos de mim e começa a girar de um lado
para outro, no ritmo da música, como se seguisse os passos de dança que os
outros convidados performam perto de nós. Me seguro nos seus ombros para
não virar de costas e acabo agarrada nele, num abraço desajeitado.
Qual é, eu não sou de ferro. Fingir que cairia foi só um pretexto. E
daí? Não foi como se ele não tivesse mandado eu me segurar.
— Por onde você esteve esse tempo todo, mulher? — pergunta
ofegante após travar a cadeira e me encarar de um jeito profundo.
— Ah, a gente teve dia de spa hoje, só para garotas.
— Eu não disse hoje, Lila.
Vejo a profundidade da pergunta nos seus olhos, que brilham em
expectativa. Vejo que há mais por trás, palavras não ditas. Tampouco
pergunto quais são. Me falta coragem e é melhor que eu não saiba.
Por isso, desconverso como a covarde que sou.
— Então, não vai me contar o que tanto tinha naquele baú? — Dedilho
suas costas, descendo pelas omoplatas.
— Vou te contar, sim. Na verdade, vou mostrar. Está preparada para
dar um passeio comigo?
Com toda coragem e tesão que há em mim, me aproximo de seu ouvido
e sussurro:
— Vou sair antes para disfarçar, mas te esperarei lá no lobby.
A Noite, por ela
Dalila Deodato
Estou sentada em Rafi e isso virou rotina nas últimas horas. Mas agora tem
um motivo mais explícito: estou vendada.
Rafi me encontra no lobby do hotel após sair de fininho da festa de
casamento e, quando o vejo à curta distância, sei que vai usar aquela gravata
para algo.
Está nítido na maneira como ele passa os dedos bem devagar no tecido
marsala; como a gravata se enrola no seu punho e dedos de uma forma
sensual. Tudo isso alinhado ao olhar dele, que me devora.
— Pronta para ver o que estava no baú? — Ele chega e agora sua blusa
está ainda mais aberta e eu consigo ver os contornos de sua pele com
facilidade.
— Me tire dessa curiosidade, por favor — é o que digo, sem nem tentar
disfarçar que estava olhando para dentro das roupas dele.
— Vou tirar, só que primeiro, quero fazer mais um pouco de suspense.
— Rafi inclina a cabeça e sorri, malicioso. — Você confia em mim, Lila?
A resposta que sai de meus lábios deveria ser negativa, mas é estranho
e, ao mesmo tempo, reconfortante entender que confio nele.
— Sim. — Aceno com a cabeça.
Ele me puxa pelas pontas dos dedos e dá alguns tapinhas no joelho,
indicando para eu me sentar.
— De novo?
— Lila, você ainda vai se sentar muito aqui nessa noite, não sabe?
Então, deixe de cerimônia.
Faço o que me pede, entretanto, desta vez não fico de lado. Sento-me
de forma que minha bunda encaixe perfeitamente em sua virilha. Minhas
costas nuas ficam à altura da sua boca e Rafi aproveita para dar um beijo
tracejado na linha da coluna.
— Vou te vendar, será rápido. Se você gostar de ser privada da visão,
podemos mantê-la até quando desejar.
— Quero ver tudo — digo sobre meu ombro e, quando sua boca
repousa na minha escápula, nossos rostos estão mais próximos do que nunca.
Eu poderia beijá-lo aqui e agora e nada me impediria.
Deus, eu desejo tanto dar para esse homem e eu ainda nem o beijei.
Rafi é perigoso.
Ele sorri e levanta as mãos para colocar a gravata cobrindo meus olhos.
O aperto não é tão forte, Rafi amarra as pontas com cuidado para não
bagunçar tanto o penteado.
Quero dizer a ele que meu desejo é ser bagunçada, que não pretendo ir
a nenhum outro lugar depois de sair com ele, então ele pode me desfazer
inteira.
Não sei por quanto tempo ele se movimenta pelo hotel, mas consigo
identificar apenas que entramos em um elevador. A expectativa do que ele
vai me mostrar torna a situação ainda mais excitante.
Tudo com Rafi é assim desde o início. Ele me leva ao limite muito
rápido e me impele a dizer e fazer coisas sem nem pensar.
Paramos e então Rafi retira a gravata.
— Preciso que você abra para a gente entrar, Lila.
Rafi passa o cartão eletrônico no leitor de uma porta enorme de madeira
entalhada. Quando a empurro, sei que estamos num andar diferente dos que
dormimos nos dias anteriores.
— Bem-vinda à suíte master presidencial — diz atrás de mim.
Contemplo o cômodo e fico estagnada com a beleza e imensidão da
suíte.
— Rafi, seu quarto é esse daqui?
— Não, Lila, esse é o prêmio do baú. Além dos últimos dias de estadia,
temos um spa e um passeio de mergulho para aproveitar.
O verbo ter no plural perfura um pouco meu coração e não entendo o
motivo, considerando que isso tudo entre nós nasceu com hora para acabar.
Ainda não quero estragar o clima dizendo que não vou para nenhum
lugar com ele, pois irei embora para o Brasil amanhã. A vida real me chama.
Levanto do seu colo e fito embasbacada o cômodo imenso em que
entramos. O quarto é enorme e perfeito para a locomoção de Rafi, sem
dificuldades. A cama está no meio, de tamanho kingsize, as janelas vão do
teto ao chão e a vista é para a praia.
Na varanda, tem duas espreguiçadeiras e um bangalô com almofadas e
panos translúcidos, dando privacidade para quem se deitasse. Para completar,
uma super hidromassagem que facilmente cabe quatro pessoas.
Mas essa noite seriam só duas. Eu e Rafi.
— Então…
— Eu disse que poderíamos usufruir do prêmio juntos, não disse? E
ainda assim, você não quis fazer dupla comigo… Me senti rejeitado —
brinca.
— Você não pode negar que competir comigo deixou tudo mais
divertido. Para mim, foi.
Quando me aproximo da cama, penso em tirar os saltos, mas Rafi está
inteiramente focado em mim e tenho certeza de que qualquer movimento meu
será captado por sua atenção irrestrita. Quero que ele me ache bonita e sexy.
Rafi encosta na cama e se transfere da cadeira para o colchão,
colocando os punhos fechados e impulsionando para subir.
É assim que percebo a força que Rafi tem nos braços. E noto mais ainda
dos seus membros superiores porque Rafi está sem camisa, usando apenas a
calça social bege, com a gravata aberta em volta do pescoço.
E, sim, ele tem tatuagens. Muitas.
— Você está me encarando, medusa. O que está imaginando?
— Que você estragou a parte mais legal de todas.
Eu me aproximo, as mãos percorrendo minhas coxas e quadris,
enquanto também levanto meu vestido.
— É? Qual?
— A parte em que tiro sua roupa.
— Você acha que essa vai ser a parte mais legal de todas, Lila? Ah, eu
vou te mostrar tanta coisa…
Ajoelho e vou subindo pela cama até ficar de frente para Rafi, que está
recostado na cabeceira. Quando chego ao seu encontro, estou apenas de saltos
e lingerie. Já que ele não me deixou tirar a sua blusa, também não tiraria meu
vestido, direitos iguais.
— Puta que pariu, Dalila, você tem um piercing no umbigo? Cada parte
que descubro de você é mais perfeita, não dá.
Sorrio com a sua descoberta e abaixo as alças do meu sutiã preto,
apenas um pouco. Desço pela barriga e toco na renda da calcinha, para
confirmar o que já sabia: estou molhada.
Movimento as pontinhas dos dedos em cima do meu clitóris, sabendo
que ele está acompanhando, cativo.
— Você não era envergonhada e tímida, Lila?
— Não, nunca disse que era tímida. Só sou mais séria que você. E
prefiro que algumas coisas sejam feitas apenas na privacidade, não com
espectadores.
Sua calça está estufada e com o botão aberto, Rafi passa a abaixar o
zíper lentamente. Esse homem é tão grande e cheio de nuances que não sei
por onde começar a me deslumbrar primeiro. Seu peitoral tem tatuagens que
tomam as clavículas até o esterno.
Aproximo-me dele e traço as linhas em sua pele. Rafi apenas
acompanha meu toque com o olhar, entretanto, percebo que sua respiração
fica mais pesada.
De um ombro a outro, ele tem uma releitura da pintura A criação de
Adão, do Michelangelo. Aquela que fica no teto da Capela Sistina, mas
rodeada de iconografias geométricas, palavras em línguas distintas.
No centro do peito, onde as mãos quase se tocam, um hexágono
preenchido por uma abelha. Um pouco abaixo, sobre as costelas, traço o
desenho de um buraco negro, planetas e uma montanha com o cume cercado
de luas. Várias luas em diferentes fases.
— São todas tão lindas, Rafi.
— Você não vai perguntar o significado?
— E preciso? É seu corpo, você faz nele a arte que quiser, não precisa
significar nada.
— Eu sabia que algo perfeito ia sair dessa sua boca gostosa, medusa.
Ao dizer isso, Rafi desliza o polegar pelo meu lábio inferior, forçando-o
a abrir um pouco mais minha boca. Ele solta para me segurar pelo queixo e se
aproxima pouco a pouco. A outra mão está na minha coxa, que tem um
desenho da criatura mágica pela qual ele me apelidou.
Ele vai me beijar.
Quero tanto que ele me beije que fecho os olhos, na iminência do
encontrar de nossos lábios. Rafi não me decepciona.
Envolvendo-me com os braços fortes, me puxa de vez para o seu colo e
toma minha boca com ânsia e a sede de alguém perdido num deserto. Seu
toque nas minhas costas é quente e grosso, apertando-me como se eu pudesse
fugir caso ele me soltasse. Sua boca ferve ao se mover contra a minha e,
quando enrolamos nossas línguas, sinto meu corpo eletrizado.
Rafi solta um gemido rouco dentro de minha boca quando movimento
meu quadril no seu colo, roçando, esfregando e procurando um ponto…
Aquele ponto que vai atritar meu clitóris e me fazer gozar só de beijá-lo.
Sim, estou excitada a esse ponto.
— Porra.
Diz com um grunhido e solta minha boca para tracejar meu colo e a
curva de meus seios, revelando-os após abaixar o tecido do meu sutiã.
Meus mamilos estão duros, rígidos e apontados na direção de seu rosto,
como se esperassem ansiosos o que ele está para fazer.
Continuo a rebolar em seu colo, porém aumento a intensidade assim
que Rafi coloca meu peito na boca. Não apenas o mamilo, mas ele suga,
morde e lambe toda a região, sem se decidir a qual lado dará atenção.
— Você é gostosa pra caralho. Se roçar mais um pouco assim no meu
pau, eu vou gozar nas calças.
Em resposta, levo meus dedos até sua boca, molho as pontas e arrasto a
minha calcinha para o lado para tocar minhas dobras, esfregando o polegar no
clitóris enquanto me penetro.
— Não prefere gozar aqui? — provoco e minha outra mão agora cerca
seu pau inchado, ainda coberto pela cueca.
Rafi continua a beijar e morder meus peitos, cercando os desenhos da
borboleta entre os seios com a ponta da língua. Em seguida, aperta minhas
costelas com as mãos fortes e praticamente enterra seu rosto na minha pele.
— Puta que pariu, suas tatuagens são perfeitas também. Só que estou
com tanta vontade de entrar em você agora que terei que apreciar depois,
Lila. Você vai me deixar te comer gostoso?
Ele fala muito rápido e mistura português com espanhol, porém grande
parte está na sua língua materna e foda-se se isso não me deixa ainda mais
excitada.
— Camisinha? — pergunto, ansiosa para que ele realize o que está me
implorando com tanta urgência.
Urgência essa que copio e entendo perfeitamente.
— Porra, acho que deixei no outro quarto. — Ele aperta minha bunda
com as duas mãos, me faz atritar em sua ereção e os meus dedos entram mais
fundo em mim — Porra, porra, porra.
Ele xinga, mas até os palavrões são sedutores, porque sua voz está
arranhada, sussurrada, algo primitivo no seu tom.
— Calma, tenho na minha bolsa.
Digo com um gemido rouco e sinto a ponta da sua glande para fora da
cueca, em contato direto com minha boceta. Ele também está molhado como
eu, a cabeça brilhando.
— Amo uma mulher preparada — diz ele e logo me beija, colocando
minhas duas mãos para trás e segurando-as com apenas uma sua, para me
apertar e restringir.
Agora, apenas a força de vontade me impede de elevar meu quadril e
cavalgar nele. Rafi está tão duro embaixo de mim que acho que escorregaria
fácil.
Não quero parar o beijo, ainda mais quando encontro seu piercing e
brinco com a língua, recebendo mordidas provocantes em resposta.
Ele me solta e levanto-me com cuidado, ainda de saltos, e pego a clutch
na mesa, vasculhando até encontrar os pacotinhos.
Assim que me inclino com a bunda no ar para retirar os ferrolhos dos
sapatos, Rafi quase rosna.
— Não tira os saltos. Tira tudo e deixa só eles.
Rafi abaixa a cueca, que está agora no meio das coxas, e o seu pau
grande está na sua mão, enquanto ele se masturba, me olhando. Aperta a
glande como se tentasse se conter.
– Mandão. — Porém, não hesito em fazer o que ele ordenou, tirando
minhas roupas íntimas restantes e largando-as no chão do quarto.
– Às vezes, sim. Mas você também pode mandar em mim se quiser. Na
verdade, mudei de ideia.
Rafi começa a se arrastar para baixo na cama e deita a cabeça em dois
travesseiros. Me chama com a ponta do dedo e eu vou.
— O que, não quer mais me comer?
— Ah, eu vou te comer, sim. Mas você que vai decidir como.
Quando estou novamente ajoelhada à sua frente, ele bate as mãos nos
ombros.
— Vem, rebola na minha cara.
Não me faço de rogada, porque amo receber oral, então vou e coloco os
joelhos ao lado de sua cabeça e os pés apoiados embaixo das suas axilas, para
não o machucar.
Rafi me agarra pelos tornozelos, me puxando para perto e me sento de
vez, abrindo mais para expor minha boceta para ele por inteiro.
Faço o que manda e me esfrego em sua boca, rebolando e sentindo sua
língua rodear meu clitóris. Suas mãos não param de apertar minhas nádegas e
seus dedos invadem o vale entre elas, cercando minhas entradas.
A sensação de seu bigode e cavanhaque ralos são exatamente o que
imaginava. Me arrepia inteira e torna a fricção ainda mais gostosa.
Estou toda aberta, montada em seu rosto e Rafi parece me dizer pelo
olhar e arquear de sua sobrancelha que ele quer mais. Que aguenta tudo.
Meu Deus, ele vai me matar.
Inclino meu tronco, me debruçando na cabeceira e continuo a roçar; a
sua língua quente, agora dentro de mim, rodeia minhas paredes, entrando e
saindo. Quando penso que não pode melhorar, ele penetra dois dedos e os
curva lá dentro.
A outra mão aperta meu pé contra seu peito, o polegar alisa a curva
interna e dá para sentir que ele se segura no salto, me firmando mais.
– Ai, caralho — gemo sem perceber e me surpreendo com o início de
um orgasmo que começa a me tomar quando ele toca meu ponto G e suga
meu clitóris com intensidade.
Não paro de rebolar, me angulando para que ele toque e chupe o nervo
exato que me fará explodir.
— Ai, meu Deus. Tô perto, Rafi.
As palavras saem como uma tormenta sem controle. Enquanto gozo o
que parecem múltiplos orgasmos, também gemo, solto gritos roucos e agarro
seus cabelos curtos com força desmedida.
Rafi leva as mãos até meus seios e os aperta com força, pinçando o
mamilo enquanto sua língua me prova inteira.
Ouvir seu nome faz com que os movimentos aumentem a velocidade e
ele só para ao notar meu corpo enfraquecer e relaxar sobre seu peitoral. E até
me distancio um pouco porque, porra, meu clitóris está sensível.
Que diabos esse homem fez comigo, hein?
É só quando relaxo e caio ao seu lado, nós dois ofegantes por motivos
diferentes, que percebo. Apenas quando tenho vontade de ser preenchida por
ele é que sinto falta de algo. As camisinhas não estão mais em minha mão.
Nem em qualquer lugar da cama.
Puta merda, deixei o pacote cair atrás da cabeceira.
Atrás da cabeceira caríssima embutida na parede desse quarto luxuoso e
mais caro ainda.
Rafi vira seu corpo de lado e, quando tenta subir por cima, percebe meu
semblante preocupado.
— O que foi? Te machuquei?
— Claro que não.
— E por que a cara de quem foi comida e não gostou? — Quase não dá
para notar o seu tom inseguro misturado no humor, mas eu noto.
— Claro que gostei, Rafi, é que… Perdi as camisinhas.
— Mas estavam na sua bolsa, não?
— É, mas enquanto você me sugava como um profissional, fiquei tão
fora de mim que deixei cair. Atrás da cabeceira.
Olho para ele com um pedido de desculpas, porém Rafi parece
inabalável.
— Sem problemas, medusa. Tem muita coisa que a gente pode fazer
sem elas.
— Mas e você?
— No encontro que iremos depois desta noite, você me compensa, OK?
Me deixa te fazer gozar mais e fico satisfeito.
Um tremor passa de leve no corpo com a menção de um depois, algo
além desta noite. Não quero que crie expectativas em mim, mas escolho
esquecer isso por agora. Pelo menos esta noite inteira, me entregarei para
Rafi Salvatierra. E isso não envolve deixá-lo sem gozar.
Não envolve mesmo.
Ergo meu corpo e é minha vez de deslizar para baixo no colchão.
Minha vez de fazer Rafi gozar em minha cara.
A Noite, por ele
Rafi Salvatierra
Sinto seu gosto em minha boca e acho que nunca vou lavá-la. Dalila está no
meu paladar, toda sua lubrificação, seu gozo e quero mais.
Ela desliza suavemente sobre o colchão e para na altura do meu quadril.
Ajuda a tirar a minha cueca de uma vez e solta a bunda no ar enquanto me
observa.
Seu foco está no meu pau duro, que consigo tensionar e fazer com que
levante mais na direção do umbigo.
— O que tanto encara? — minha pergunta sai quase como um sussurro.
Dalila morde o lábio com tanta força e sinto o tesão que exala dela
invadindo meu espaço, se entrelaçando com o meu próprio.
— Ao menos, você está sempre sentado. Deve ser pesado carregar tudo
isso por aí, Rafi.
Gargalho brevemente, mas quando ela me agarra com as duas mãos e
roça a glande nos mamilos, a risada se transforma em um gemido gutural e
alto.
Fiquei surpreso com sua ação. Não, ela não é mesmo tímida. Essa
mulher escondeu o ouro esse tempo todo.
— Grande demais para você?
Coloco minha mão sobre a dela e ajudo a me punhetar lentamente, o
que desperta mais do meu tesão. Suas mãos são pequenas, quentes, porém as
tatuagens tornam aquela visão selvagem de alguma maneira.
— Consigo aguentar. Só estou fitando assim, porque ele é... bonito.
— Esse com certeza não é um elogio que costumo receber — rio sem
vergonha e sinto vontade de ver como Dalila vai me provar. Puxo algumas
mechas que caem próximas de minha pelve e aproveito para agarrar seu
cabelo assim que ela pousa os lábios suaves na cabeça do meu pau. — Gosto
dessa Dalila. A que fala sacanagem sem receio.
— Sabe, não vejo nada de mais no ato da penetração. Li tantos livros
que diziam que a mulher se sente totalmente preenchida, mas acho que não
sei qual a sensação. Para mim sempre foi algo normal, sempre faltou algo.
Mas não sei… Talvez você possa mudar isso.
— Ah, sim, um pau que muda vidas, esse é um elogio comum por aqui.
— O que você precisa que eu faça, Rafi? Me ensina como você gosta.
— Só ver sua boquinha me engolindo será suficiente, Lila. Eu tô por
um fio aqui.
Ela não me priva mais e finalmente me abocanha. Segura e aperta a
base do meu pênis, e isso faz com que se encha mais de sangue, crescendo
dentro de sua boca.
Dalila me chupa de cima a baixo, sem parar. Usa a sua língua para
rodear a glande, suga lentamente e segue me masturbando com as mãos.
Surpreende-me quando a vejo descer uma das mãos para as minhas
bolas, mas não apenas para lá. Lila deixa seu dedo indicador e médio
explorarem a região do períneo e a sensação é tão incrível que impulsiono o
quadril para cima, querendo que vá em frente.
Ela levanta o rosto apenas para perguntar algo que quase me faz
esporrar de repente.
— Você consegue gozar só com minha boca e mãos?
Afirmo com a cabeça quando ela aumenta a velocidade em volta do
meu pênis e cerca meu cu com a ponta dos dedos. Jogo a cabeça para trás e
solto gemidos e ruídos incompreensíveis.
— E aqui, eu posso brincar? — Ela levanta um segundo para perguntar,
sua expressão é de pura lascívia.
Tudo nela me enlouquece. Ver essa mulher morder os lábios, com o
rosto avermelhado de tesão, o nariz perfeito com aquele piercing no septo e
os cabelos desgrenhados por mim. Tudo é a junção perfeita para meu fim.
Não negaria nada a ela.
— Sim, caralho, você pode tudo comigo. Não pare, Lila.
Ela me obedece e volta a trabalhar com sua língua em mim. Me seguro
em seus cabelos, apertando com força, e ela parece gostar da intensidade,
pois aumenta a velocidade com que me engole e chupa.
Seu dedo indicador pressiona minha entrada e, porra, nem reclamo da
falta de lubrificante porque é difícil encontrar uma parceira mulher que esteja
tão disposta a fazer isso comigo.
As héteros nunca querem. E eu gosto para caralho. Não que esteja
supondo que ela seja hétero, já que não conversamos sobre isso ainda.
— Você engolindo meu pau é a visão perfeita, porra. E acho que você
quer me foder também, não é? Eu também quero, pode ir em frente, mami. —
O apelido tem teor muito sexual neste momento, e acho que Dalila gosta, pois
faz algo inesperado.
Ela desce seus dedos inquietos, os molha na sua boceta que ainda pinga
e depois volta para mim. Ela vai me foder com os dedos banhados de seu
gozo. Puta merda, essa deusa é uma diaba e vai me condenar ao mais perfeito
inferno.
E então ela me penetra com um dedo enquanto suga a cabeça do meu
pau. Desço meu polegar para rodear seus lábios esticados que me tomam
inteiro, indo fundo sem reclamar. Nem os olhos lacrimejando a fazem parar
com os movimentos.
Ergo meu quadril, macetando sua boca e, ao mesmo tempo, invisto
contra seus dedos dentro de mim. Sim, agora ela está com dois.
Fecho os olhos e sinto aquela sensação que queima o pé da minha
barriga e a vontade de gozar sobe por meu corpo, me tomando em um arrepio
gostoso.
— Vai me deixar gozar na sua boca, Lila?
Ela apenas assente, me fitando de baixo com aqueles olhos escuros
cheios de excitação. Assumo a punheta com minhas mãos enquanto ela
continua metendo os dedos de maneira rápida, curvando até que toque aquele
ponto perfeito.
A boca está na pontinha do meu pau, chupando e lambendo a glande.
Aumento os movimentos e bato o punho no queixo dela, mas Dalila não
parece se importar.
Quando finalmente gozo, ela desce e envolve minhas bolas com a
língua. Depois, me chupa, ainda metendo os dedos lá, só que mais lentos.
Minha porra alcança sua bochecha, seus lábios, o nariz e vai no seu
rosto lindo por inteiro, até na sobrancelha. E Deus me perdoe, mas gosto de
vê-la marcada assim.
— Era para ser dentro da sua boca e não essa bagunça toda, medusa.
Ela põe a ponta da língua para fora e lambe uma gota de meu gozo do
seu lábio inferior.
— Gosto de ser bagunçada, Rafi. E agora estamos quites.
— É? Por quê?
— Direitos iguais. Eu gozo na sua cara e você goza na minha.
— Porra, mulher, você vai me matar. Agora me sinto na obrigação de te
dar um banho.
— Que bom que temos uma hidromassagem enorme, então.
Mesmo que eu diga que não precisa, Lila ajuda a me transferir da cama
para a cadeira e então, vamos para a hidromassagem juntos. Eu me sinto um
fodido que não pode ir facilmente buscar as camisinhas correndo, sem ser um
grande transtorno demorado.
Tenho certa dificuldade em pedir ajuda, embora quase sempre esteja
precisando. Não gosto de incomodar, então não vou pedir para Dalila buscar.
E se perdemos os preservativos de maneira tão boba, não tem problema.
Já provamos que conseguimos usar bem as mãos e bocas.
Bocas essas que não se soltaram desde que entramos na banheira.
Beijar Dalila é delicioso demais, me sinto um viciado e acho que o ar é
mesmo superestimado se posso respirar apenas o seu cheiro.
Nos lavamos bem rápido e cuido de Lila por alguns minutos,
acariciando e limpando do seu rosto o sêmen que tinha até secado com uns
lencinhos.
Não vou negar que a ver assim, sem frescura e sem se importar com
minha porra escorrendo, gerou um novo fetiche que nem sabia que tinha.
O bom de estar dentro d’água é que nossos corpos ficam leves, consigo
ter mais força no tórax e quadril e posso segurar Dalila de costas no meu
colo, enquanto me apoio na beira com os cotovelos.
Passo um longo tempo analisando as linhas do dragão desenhado em
suas costas. O contraste da sua pele branca com a tinta vermelha torna a arte
incrível.
Beijo sua nuca no final da tatuagem enquanto exploro inquieto seus
seios. Lila se segura em meus joelhos sob a água, me arranha e marca por
inteiro. Percebo que ela se arrepia com o contato, os poros ficando todos
visíveis.
Com o movimento da água da banheira, sua bunda nua repousa
lentamente sob meu pau que volta a acordar, semiereto.
Nesta posição, arreganho suas pernas sem avisar, fazendo-a soltar um
gritinho. Assim que percebe o que pretendo, o seu grito se transforma num
gemido surpreso e meio engasgado, mas definitivamente de prazer.
Coloco sua boceta nua no jato forte da hidromassagem, direcionando
para o seu clitóris e, em resposta, Lila aperta meus bíceps enquanto se mexe
para colocar a vibração direto onde ela precisa.
Suas unhas me apertam, ela geme tão gostoso que me faz aumentar a
força do jato nos botões laterais.
— Porra, Rafi.
— Sim, Lila. Está bom assim?
— Estaria melhor com seu pau dentro de mim.
— Gulosa.
O dito pau responde ao seu desejo, tensionado sob sua bunda gostosa,
duro como pedra.
Penetro sua boceta com três dedos e a minha palma descansa no seu
clitóris, segurando sua vulva inteira na minha mão e pressiono seu ponto de
prazer, tentando fazer com que goze novamente.
Dalila observa enquanto insiro e retiro lentamente, só para lhe
provocar, e então joga a cabeça para trás.
— Sua mão com essa tatuagem faz jus ao título. Você está me
destruindo aqui, Rafi.
O peito da minha mão direita tem riscos de um vidro estraçalhado com
a grafia DESTROY em maiúsculas, próxima ao polegar.
Giro seu corpo e a prendo na lateral da banheira, seus seios molhados
colados no meu peitoral. Dalila enrosca suas pernas em minha cintura, o
movimento dos jatos de água faz suas dobras quentes resvalarem em minha
ereção, me deixando ainda mais sedento para comer Dalila de uma vez.
— Juro que sempre faço com proteção, sou responsável com minha
saúde, mas porra! Você é deliciosa, irresistível e me deixa louco, medusa.
— Só um pouco, vai… Faço tratamento para endometriose e a
medicação é anticoncepcional. Nós só temos essa noite.
— Parece que não vai ser suficiente, Lila.
Começo a esfregar meu pau na sua entrada, rodeando de forma
provocativa.
— O que não vai?
— Apenas uma noite contigo.
Ela não responde. Me beija e desce no meu colo, colocando apenas a
cabeça.
— Infelizmente, é o que temos. Vou embora amanhã.
— Então, vou te fazer gozar mais algumas vezes para ter uma viagem
bem tranquila. E que fique marcada com nosso sexo gostoso. Para quando
quiser se tocar sozinha, lembrar desse pau entrando fundo em você.
— Promessas, promessas…
Abaixo seu quadril de vez e entro até o talo, e ela está certa.
Eu a preencho como um encaixe perfeito.
E é nesse milésimo de segundo em que nossos corpos estão totalmente
entrelaçados que entendo:
Estoy jodido.
A madrugada
Dalila Deodato
Perco a noção das horas. Depois de nossa longa transa na banheira, voltamos
para a cama e tiramos um breve cochilo. Quando acordamos, gozei mais duas
vezes e Rafi também.
Fiquei louca de tesão ao descobrir que ele gostava de anal e virou meta
da minha noite fazê-lo gozar sem tocar no seu pau. Me sinto vitoriosa por
conseguir.
Não sei que horas são, porém sei que a madrugada ainda será longa
para quem ficou na festa de Jade e Dom. Não deixei minha amiga
preocupada, mandei uma mensagem dizendo que saí com o padrinho para
resolver algumas questões.
A resposta de Jade foi um monte de emojis de bocas mordidas,
acompanhados de diabinhos.
Não vou negar que estar nos braços quentes de Rafi não é nada mal. O
que me faz surtar um pouco é a naturalidade com que chegamos até o
bangalô da varanda, nos deitamos totalmente pelados e nos entrelaçamos.
Estou abraçada com Rafi, nossas pernas enroscadas e seus dedos
afagam com carinho minhas costelas. Já os meus alisam sua nuca, enquanto o
silêncio das nossas vozes dá lugar ao som do mar bem distante.
Até que resolvo sabotar esse momento único, pois meu inconsciente de
alguma forma grita que algo está errado, que isso não é normal, que não
deveria ser tão certo caber assim nos braços de alguém.
— Você não acha que deveríamos voltar para a festa? É o casamento de
seu irmão.
Ergo minha cabeça para ver sua expressão e Rafi está de olhos
fechados. Abaixa sua cabeça e beija minha testa.
— Já quer se ver livre de mim, medusa? — sussurra contra minha pele,
um indício de seu riso solto se faz presente.
— Não é isso, é que vocês se veem tão pouco, achei que iria querer
curtir mais com ele.
Enquanto espero a resposta, circulo seu peito com as pontas dos dedos,
de maneira involuntária.
Venta bastante na varanda e os panos ao nosso redor se balançam, mas
Rafi é tão quente que nem me arrepio. Ele parece um aquecedor particular,
enquanto estou sempre muito fria nas extremidades.
— Você vai embora amanhã, o Nic não. — E com isso, deixa outro
beijo, agora no meu ombro.
Como se fosse explicação suficiente o que acabou de dizer. Como se eu
não fosse uma completa estranha para ele uma semana atrás.
— Quer brincar? Não estou a fim de dormir agora.
— Você não cansa, Rafi Ramos Salvatierra? — invento um sobrenome
para ele, só para fingir que estou o repreendendo com o nome completo.
Nome esse que não sei, o que só reitera que somos estranhos mesmo.
Cala a boca, cérebro. Me deixa curtir a porra da noite.
— É Santiago. E eu estou falando de brincar com palavras e não com
nossos corpos. Quero conversar contigo, saber mais de você.
— Santiago? Seu outro sobrenome?
— Meu segundo nome. Rafi Santiago Salvatierra. Agora você pode
falar inteiro quando eu te fizer gozar de novo.
Rafi cobre meu corpo com o seu e beija meu pescoço. Tenho ali a
comprovação de que ele não cansa mesmo. Está cutucando minha barriga,
inclusive.
— Você não poderia ser menos… latino? — pergunto e dou uma risada
quando ele acaricia um canto no pescoço que faz cócegas. — De santo você
não tem nada, não combina.
— Reclama com meus pais, Lila. — Rafi volta para seu lado do
colchão e se deita de lado, me encarando curioso. — E você, tem segundo
nome?
— Não, mas meu nome completo tem uma sigla engraçadinha.
— É? Conta.
— DDD. Inclusive, a Jade me chama assim, DD.
— Dalila Deodato e o que mais?
— D’Angelo.
— Uh, que apellido tan chic.
— Não é apelido, é sobrenome.
Rafi sorri.
— Suponho que apelido em português seja outra coisa, mas em
espanhol é esse nome que você herda de sua família.
— Falsos cognatos, o terror da aprendizagem — bufo e sopro alguns
fios de cabelo que escorrem da minha testa para o rosto. — Eu estava até me
perguntando qual era seu. Gostei quando me chamou de Lila. E apelido é
usado para chamar outra pessoa carinhosamente, em português.
— É o mal de nomes pequenos. São poucos apelidos. Dom me chama
de Rafiel às vezes, mas no geral é sempre Rafi. Quando eu era criança, minha
avó me chamava de Santi.
— Santi é um bom apelido, Rafi. Santi. Santi. Santi — digo o apelido
várias vezes para testar na minha língua e timbre. — Taí, gostei.
Rafi me encara de uma maneira estranha, como se estivesse meio
perdido e, quando vou perguntar o que há de errado, sou surpreendida com
um beijo.
Não um selinho, mas um beijo completo e perfeito. Com seus lábios
tomando os meus lentamente, sua língua invade minha boca e acende aquela
chama dentro de mim. Meu ventre vibra e meu clitóris pulsa ensandecido
com o contato.
– Deixo você me chamar assim, Lila. Só continua chamando por mim.
E então Rafi começa a me tocar de novo e é a vez do bangalô ser
utilizado para nossa noite infinita.
Rafi Salvatierra
Depois de várias rodadas de orgasmos alucinantes, voltamos para a cama e
cochilo com Dalila deitada em cima do meu peito, sem nem perceber. Assim
que acordo, vejo que ela não está ali. A luz que entra no cômodo é quase
inexistente, então ainda deve ser início da manhã.
Seu cheiro está em todo lugar. No meu olfato impregnado, mas também
nos lençóis. Só que suas roupas, não. Nem a bolsa.
Olho para o outro lado e percebo que a única companhia naquela suíte é
minha cadeira vazia.
Respiro bem fundo, para não deixar a ansiedade se alastrar. Pode ser
que tenha sido uma emergência e ela precisou sair, sem me avisar.
Não justifica não me acordar, não se despedir, certo?
Tento me lembrar de que nem todo mundo é igual, que nem todo
relacionamento é uma repetição do outro. Me lembro também que era apenas
uma noite, sem compromissos, não tem por que me machucar assim.
Infelizmente, existem cicatrizes que nunca fecham, ainda que eu tente
muito as ignorar. A sensação de descarte se mantém. O abandono, a
desistência.
Aquela impressão gravada em mim de que não valho a pena o esforço,
sou apenas um invólucro, um corpo que serve para sexo, mas que dá trabalho
demais, que não serve para o restante.
Cada vez que isso acontece, me sinto menor e um pouco menos…
humano. Ninguém tinha interesse de ir em frente comigo e, quando iam, me
largavam quando tudo ficava difícil.
Puta merda, ainda comentei de sair num encontro, de levá-la para
mergulhar. Mesmo me blindando, eu não aprendo. Mesmo tratando os outros
como sou tratado, a boa e velha reciprocidade, tenho que me lembrar que é só
uma máscara.
No fundo, eu me importo e gosto do envolvimento.
Se Dalila acha que vou correr atrás, está muito enganada. Já faz muitos
anos que não corro. Nem no sentido próprio, nem no figurado da palavra.
Tento bloquear os pensamentos e não me emocionar, nem levar para o
pessoal. Mais tarde, vou fingir que está tudo bem, colocar o sorriso e fazer as
piadas certas.
Preciso me convencer de que é melhor assim. É mais fácil deixá-los
irem.
Digo a mim mesmo que estou bem e protegido desse tipo de dor.
Dalila Deodato
Minha mãe me criou uma mulher foda, não uma ratinha que foge ao
presenciar o primeiro sentimento estranho e inexplicável.
Fugi por causa de algum instinto que me impeliu a isso quando acordei
e percebi estar ao lado de Rafi. Ele dormia tão calmo, suas feições estavam
tranquilas e não queria que, ao despertar, se arrependesse da nossa noite.
Não tornaria algo que foi tão bom em outro climão sem necessidade.
Sem complicações, foi o que prometi, certo? As pessoas sempre esperam
mais do que posso oferecer.
Então, não precisava ficar na cama e acordar ao seu lado como um
casal, como se fosse a nossa noite de núpcias e não da minha amiga com o
irmão dele. Fomos apenas padrinhos que se divertiram de um jeito gostoso e
tudo bem. Vida que segue.
Manter as coisas casuais é quase uma forma de proteção e armadura
contra situações que podem acabar mal.
Por que então essa queimação no estômago, que me sobe pela garganta
ao perceber seu olhar decepcionado do outro lado da mesa?
Será comigo? Claro que não, me repreendo, nem sou tão importante
assim.
Contudo, dói não receber mais seus olhares sedentos e brincalhões.
Almejo todos de volta, mas sei que não posso exigir algo assim.
Rafi abaixa a cabeça, encara algo no colo insatisfeito e começa a digitar
com rapidez em seu celular.
Passam-se alguns segundos até que ele gire e saia do restaurante onde
almoçamos. Todos estamos de ressaca do casamento e com aquela sensação
ruim de dar adeus, pois pegaríamos nossos voos logo no início da noite. Pelo
menos os brasileiros. Jade e Dom seguirão daqui para sua lua de mel.
Dez minutos depois, termino de almoçar e Rafi ainda não regressou.
Me sinto inquieta esperando sua volta, encaro o relógio e noto o tempo que
me esvai pelos dedos. Não posso mais aguardar. Não temos tempo. Preciso
me desculpar, saber se o chateei de alguma forma.
Preciso ser honesta antes que a gente se separe de uma vez, agir com
responsabilidade sobre os sentimentos dele e minhas ações.
Levanto-me devagar, deixo o guardanapo de pano na mesa, ajeito
minha saia e caminho para sair do restaurante. Ao passar por Jade, ela segura
minha mão.
— Aconteceu algo, DD? — pergunta minha amiga e devo estar com
uma cara estranha se até ela notou.
— Preciso resolver uma coisa. Já volto, Danda.
Tento mandar uma mensagem para Rafi, mas não conta como recebida.
O hotel é grande demais para que eu o procure, mas meus pés me levam na
direção da beira da praia e vejo ao longe a areia branca.
Começo a andar rápido, quase correndo, preocupada com a urgência de
ir embora e não colocar os pontos nos is. A água cristalina brilha sob o toque
dos raios solares e consigo ver o deque de madeira que se estende da praia até
o mar azul-turquesa.
Há uma rampa com tábuas largas e corrimãos de ambos os lados, que
liga o deque a um bangalô, facilitando o acesso dos hóspedes. E é lá que
encontro Rafi.
Vibro internamente por encontrá-lo, a ansiedade e a antecipação me
fazem apressar o passo. Porém, ao me aproximar alguns poucos metros, outra
pessoa se revela no deque, atrás de algumas plantas. É um homem alto, que
inclina seu corpo para baixo e segura Rafi pelos bíceps.
Dá para ver dessa distância que as rodas da cadeira dele estão próximas
demais da beira, meio que encurralado entre o homem e o corrimão grosso.
Rafi pode até cair no mar desse jeito, por isso, dou alguns passos para avisá-
lo, mesmo que a situação seja um tanto constrangedora.
Contudo, é o que acontece em seguida que me faz estancar. O homem
se aproxima até que suas testas colem e, segurando Rafi pelas bochechas, o
beija. As mãos grandes que passaram a noite me desvendando, se levantam e
seguram a gola da camisa polo.
A realidade me bate com um soco nas fuças. Eu aqui, toda preocupada
com seus sentimentos, querendo explicar as coisas e... Meu Deus, como sou
otária!
Viro-me para voltar ao restaurante para não invadir a privacidade dele.
Não importa de qualquer maneira, era só uma noite, uma boca, só mais uma
cama que me deitei.
Não importa que a gente tenha se conectado, que tudo tenha sido tão
bom. Ele não me deve nada e eu o abandonei primeiro.
Que o carma venha me cobrar as consequências das minhas decisões,
então.
A separação
Dalila Deodato
A volta para Entremontes passa rápido, estava tão cansada que dormi antes
mesmo que o avião decolasse. Acordo com um toque de tio Aurélio no meu
ombro, pedindo para sair da sua poltrona para ir ao banheiro.
O pai de Jade é mesmo um lorde. Aposto que ele queria ir ao banheiro
há um tempão e não quis me acordar.
Me levanto ainda zonza e grogue para lhe dar passagem e, ao retornar
para o assento, desbloqueio o celular para ver as horas. Na tela do aplicativo
de mensagens, vejo a última que enviei para Rafi, antes de encontrá-lo com
outra pessoa.
Sem pensar muito, decido rascunhar algo para ele, algo que nunca vou
enviar, mas que preciso dizer de qualquer maneira. Tenho que botar para
fora.
Dalila: Oi, Rafi. Não serei mentirosa dizendo que não gostei de nossa noite,
ou que foi um erro. Não foi. Gostei e aproveitei muito. Mas não estou
acostumada a passar dessa fase com ninguém, então fiquei receosa de que
um clima estranho se formasse entre nós quando acordarmos. Por isso, fui
embora sem me despedir. Me desculpe. Desejo sorte na sua vida e que você
encontre a pessoa que poderá levar num encontro e para mergulhar. Essa
pessoa não sou eu.
Largo o celular no bolsão à frente e assim que tio Aurélio retorna, fecho
os olhos e caio num sono leve novamente. Me desperto apenas com o
sacolejar que faz no avião quando ele pousa, freando e enfim, chegando em
terra firme.
A voz da comissária de bordo soa em espanhol e só quando ela traduz
tudo para o português é que entendo que podemos utilizar nossos telefones
celulares no modo normal. Meu impulso é pegar novamente o meu aparelho e
tirar do modo avião na barra de ferramentas, para avisar que cheguei em
segurança.
E é neste momento que me dou conta de que meu telefone não estava
no modo avião.
Nunca esteve.
Com certeza, me esqueci de alterar a configuração de tão rápido que
dormi ao me acomodar na poltrona.
Duas coisas passam pela minha cabeça neste instante. Primeiro, penso
no perigo. Será que coloquei em risco todos os passageiros por esse deslize
bobo? Nunca entendi como funciona essa questão de sinal de telefone e wi-fi
quando estamos a milhares de pés de altura.
A segunda coisa que percebo é a mensagem que rascunhei para Rafi
mais cedo.
Enviada.
E para minha maior surpresa: respondida.
PARTE 2
a6 anos depois da Noite
O presente
Dalila Deodato
Dizem que trinta anos é a idade do sucesso de uma mulher.
Quem inventou essa mentira?
Sinto que “De repente, 30” impactou demais uma geração e criou essa
noção errônea de que, quando ficamos adultas, tudo melhora magicamente.
Ao completar 30 anos, ganhei uma cirurgia de presente e um pé na bunda,
isso, sim.
Hoje, aos 32 anos, ainda pareço a mesma adolescente desnorteada que
era com dezoito, a diferença é que agora tenho estrias e celulite a mais e um
órgão a menos.
Obviamente, que sou uma mulher experiente, vivida, cheia de
lembranças boas e ruins guardadas na minha bagagem. Aprendi e sei de
coisas que só se descobre vivendo, errando e quebrando muito a cara. Mas
certos dias, como aquele de dois anos atrás, tudo o que queria era chorar e
chamar por minha mãe.
Sorte a minha que ela estava lá.
Mainha, Painho, Eva e Laila. O casal e suas três filhas, nomeadas por
mulheres bíblicas infames: Dalila, que traiu Sansão; Eva, que criou o pecado
original; e Laila, a adúltera.
Sim, minha mãe, Maria, tinha uma veia rebelde poética e é
completamente agnóstica, para o desespero da minha avó, Rina, que a
nomeou como a santa Mãe do Salvador.
Vó Rina era muito católica antes de seus filhos nascerem, mas, por ser
mãe solo, sofreu bastante preconceito no meio religioso, fazendo-a se afastar
gradualmente da igreja.
Então, há trinta anos, ela segue os preceitos da doutrina espírita, mas
permanece com alguns resquícios daquela época de fervor católico. Até hoje,
mesmo com sua mente falhando, Voinha ainda sabe recitar o Credo e a Salve
Rainha inteiros.
— Oi, velhinha, bom dia! — Entro no quarto de vó Rina, após tomar
meu café da manhã reforçado antes do trabalho.
Minha avó abana a mão e chia, me falando para falar mais baixo
enquanto tenta ouvir algo na televisão.
— Bom dia, Dalilinha, meu amor. Me dê meus óculos, por favor?
Sobre o rack da televisão, pego a armação que tem aqueles fios para
pendurar ao redor do pescoço e lhe entrego. Vó está deitada na sua rede,
atenta ao programa de Ana Maria Braga.
— Estou tentando anotar essa receita, quero cozinhar algo bom e
diferente para o aniversário de sua mãe.
— Vó, você sabe que posso pegar essa receita na internet depois e te
passar, certo?
— Não confio nessa internet de vocês não, ô! Confio na Ana Maria.
— E o Louro José?
— Não confio nele também, está com a voz mudada, não parece o
mesmo de antes. Uma tristeza…
Dou um sorriso triste com o comentário e não digo mais nada. Ela não
se lembra de que o ator que fazia a voz do Louro faleceu alguns anos atrás.
Minha avó não lembra muito das coisas e, quando lembra, fala mais sobre o
passado do que sobre o presente.
— É verdade, voinha, também estou achando, viu?
— Eu sei, meu amor, sempre estou certa! Escute a voz da experiência.
— Vou para o trabalho, mas a Laila está aí contigo, tá bom? — Me
despeço dela, dando um beijo na testa.
— Certo, Dalila. E sua mãe, onde está?
— Está na loja com meu pai, lembra?
— Ah, sim, a loja. Já disse para Maria se aposentar, mas ela não me
escuta.
Meus pais são empresários e recentemente abriram mais uma filial da
loja de material de construção e ferragens da família aqui em Entremontes.
Está tudo uma loucura na implementação, então eles pediram que as
filhas fizessem companhia para Vó Rina, que já não pode ficar só em casa.
Eva, Laila e eu fazemos esse revezamento durante a semana, até que
tudo se normalize. Todas estamos crescidas e temos nossos apartamentos, só
que pelo menos uma vez por semana estou na casa de meus pais.
— Bisa!
Minha sobrinha Júlia entra no quarto de vovó e a senhorinha abre um
sorriso.
— Oi, Juju! Você chegou!
— Trouxe revistinhas para lermos juntas!
Juju tem oito anos e está viciada nos gibis perdidos da Turma da
Mônica que encontrou nas coisas guardadas da mãe, Laila.
Deixo as duas juntas e saio para a sala, onde Lai trabalha no seu
notebook.
— Bom dia, sis.
— Bom dia, Dali. — Minha irmã checa as horas. — Acho que está
atrasada para o trabalho.
— Sou a CPO[3], Lai. Acho que posso fazer meu próprio horário.
— Metida. Agora que sabe inglês e espanhol, não fala mais em
português?
Dou língua para minha irmã, como se ainda estivéssemos na infância.
Sou a mais velha, ainda que apenas por curtos dois anos.
Ela ri e volta para suas tarefas no computador. Pego minha bolsa e me
ajeito para sair, checando se não esqueci nada.
— Bye e hasta luego! — me despeço dela em outras línguas, só para
pirraçar.
No caminho até a empresa, escuto um audiolivro no som do meu carro.
Está tudo tão tranquilo, parece o dia perfeito. Amanheci, fiz minhas lições de
inglês no 2lingo, subi no ranking para o Torneio e ainda recebi uma notícia
incrível do Santi.
Ao adentrar o prédio da Safetech, estou crente de que nada poderá
estragar a minha semana. Tudo só piora quando empurro a porta de vidro da
sala de reuniões e vejo Samir.
Solto um suspiro bem profundo e todo meu bom humor se esvanece.
Samir é um dos investidores da Safetech e raramente vem à empresa.
Ele tem outras dezenas de instituições para cuidar, mas, por algum motivo,
está vindo aqui com muita frequência.
Sem. Nenhuma. Necessidade.
E por que falo assim do cara como se ele fosse um incômodo?
Bom, ele é também meu ex-noivo.
E lembra o pé na bunda de dois anos atrás?
O pé era o dele, a bunda era a minha.
Hoje será um longo dia de trabalho na Safetech.
O aplicativo
Dalila Deodato
Depois daquela fatídica viagem para Punta Cana anos atrás, das vergonhas
que passei fora do Brasil por não saber me comunicar bem em outras línguas,
decidi que precisava melhorar meu inglês e aprender de vez o espanhol.
Comecei diversos cursos de idiomas presenciais e online que nunca
consegui passar do primeiro semestre, pois me sentia inútil, não conseguia
aprender rápido como os colegas e as metodologias eram um tanto arcaicas.
Ou nada adaptadas para pessoas neurodivergentes como eu.
O inglês, precisei aprender por conta do meu curso de Engenharia de
Produção e pelas exigências do mercado de Gerenciamento de Produtos.
Já o espanhol… Bom, por trás de tudo existe aquele motivo sobre
aquela pessoa que evito pensar, mas vamos dizer que o real culpado é o
Miguel.
Meu sobrinho cresce numa casa bilíngue, com pais e familiares de
países distintos e é alfabetizado em ambos os idiomas.
Contudo, Miguel decidiu que suas primeiras palavras fossem em
espanhol. E eu preferia entender o que meu bebê falava, então, se é espanhol
que ele queria, espanhol seria!
Se alguém me perguntar, negarei até o fim, mas estou competindo
sozinha pelo cargo de tia favorita de Miguel Victorino Salvatierra.
Mesmo que não fale com Rafi desde aquela mensagem que me
mandou seis anos atrás, ainda penso nas palavras que ele me disse quando
descobriu que ia ser tio.
Aprender o espanhol não era só uma questão profissional, era uma
questão de orgulho.
Tudo parecia muito difícil de apreender e assimilar, até que descobri o
2lingo. O aplicativo de aprendizagem de idiomas que tinha um modelo de
ensino baseado na gamificação, com jogos, pontuações e torneios.
Se aquela despedida de solteiro seis anos atrás me provou algo, é que
sou competitiva, então o aplicativo foi perfeito para mim. Eu me desafiava a
vencer todos os torneios e em contrapartida, aprendia vinte e cinco novas
palavras todo santo dia.
E tinha o Santi.
Santi é excelente em português, a língua que o ajudo a aprender. E
também muito paciente ao me apoiar no espanhol. Depois de três anos de uso
do aplicativo e tendo contato diário com ele, acho que posso chamá-lo de
amigo.
No 2lingo, você pode criar uma rede social de colegas que são nativos
das línguas que você busca aprender, para ter contato orgânico com o idioma,
pedir ajuda nas atividades e participar de torneios juntos.
Santi é como o chamo, pois não sabemos os nomes das pessoas por
trás dos avatares. A intenção do aplicativo não é fazer ninguém buscar
contato pela foto bonita ou pelo perfil, e, sim, pelas similaridades de pontos e
idiomas.
Se já passou pela minha cabeça algumas vezes a maldita coincidência
de apelidos? Já, sim.
Entretanto, quais seriam as chances de algo acontecer? Num
aplicativo com mais de um milhão de usuários no mundo todo, quais seriam
as chances de meu amigo Santi do 2lingo ser o Santi que conheci anos atrás?
Possuo uma habilidade notável em probabilidade e estatística, então te
digo: poucas. As chances de isso acontecer são baixas, contudo, não são
impossíveis. Imagina se o algoritmo do 2lingo teria o poder de juntar duas
pessoas de países diferentes, mas com um passado em comum?
Difícil de crer. Aquela mascote panda não teria tanta astúcia.
Mas toda vez que falo com Santi, me lembro dele. É involuntário.
O toque do sistema intranet da Safetech me assusta e me faz reparar a
notificação de imediato.
Samir Arraes: Oi, Da. Pode vir à sala de reuniões do 1º
andar? Precisamos de você para alinhar uns pontos finais sobre
aquele projeto do seguro de Internação Hospitalar.
Já é a terceira vez na semana que ele vem presencialmente à Safetech.
Veja bem, somos uma startup focada em soluções inovadoras para o setor de
seguros.
Fico responsável pela área de produto e lidero o time que faz o
desenvolvimento e o gerenciamento do dashboard e dos aplicativos da
empresa. Supervisiono as equipes de Design e Ferramentas Internas, tornando
a experiência do usuário mais fácil e intuitiva.
Não tem motivo para precisarem de mim com urgência, então sei que
ele faz isso para me irritar. Ou para se mostrar presente quando eu disse
diversas vezes que nosso único contato seria profissional. Aqui é o lugar onde
ele consegue e pode me alcançar sem que eu tenha voz.
Dalila D’Angelo: Oi, Samir, infelizmente não posso. Já são
17h50 e tenho outro compromisso após o trabalho. Se não for nada
urgente, podemos resolver na segunda?
Espero apenas dois minutos pela resposta que não vem. Fecho meu
notebook e saio da sala, sem me importar.
Ele poderia ser o investidor, mas eu era uma das malditas sócias dessa
empresa. Não seria demitida por ignorar o seu pedido.
Bel: Jamás[5].
Santi: Belíssima aplicação numa frase, devo assumir.
Rafi Salvatierra
— Eu não preciso que ninguém cuide de mim, mamá! Por Deus, já tenho 35
anos, sou um adulto. Na verdade, estou tão velho que estou prestes a ter uma
crise de meia-idade!
Brinco e tento dar um tom leve àquela conversa tão repetida entre nós.
Dizer aquelas palavras era o mesmo que nada. Entrava por um ouvido e saía
pelo outro. Mercedes Salvatierra nunca deixaria de me cuidar, mesmo que eu
insistisse muito.
Não me entenda errado, prezo o cuidado de minha mãe e sei que ela faz
com amor; não é por mal que em alguns momentos ela seja um pouco
capacitista e duvide que possa me virar sozinho. Mas me incomoda, não
consigo evitar.
— Não use o nome de Deus em vão, filho herege. Você vive falando
que não precisa, mas e se algo acontece contigo e você não tiver tempo de
mandar mensagem? Ou ligar para a emergência? São minutos que podem ser
fatais e você sabe!
Não é mentira. Podem mesmo, pois, quando convulsiono, posso cair da
cadeira, bater a cabeça, me machucar e até me engasgar com a saliva. O
grande problema é que perco a consciência e raramente me lembro dos
momentos anteriores à crise.
Uma pessoa que me conhece sabe identificar a pausa repentina na fala e
o olhar vago, então pode agir de maneira preventiva. O único indício que
consigo captar sozinho é que começo a me tremer, e aí já pode ser tarde
demais.
Não sei o que aconteceu com meu sistema nervoso depois da síndrome
de Guillain-Barré, só sei que ele não ficou bem regulado. Tampouco consigo
identificar os gatilhos para essas crises e o porquê de nunca ter me curado
como outras pessoas atingidas pela condição. Mas remoer esse assunto é uma
coisa do Rafi do passado.
— De qualquer forma, meu filho, conversei com a Jade e ela me disse
que tinha uma amiga disposta a ajudar.
— Que amiga?
— Ay, não sei, mas isso não importa agora.
Importa, sim. Importa para caralho. Até porque amiga de Jade só me
remete à sua madrinha de casamento. Claro que minha cunhada tem outras,
mas eu só conheci essa.
E não é como se eu precisasse mesmo que a mulher por quem fiquei
perdidamente atraído seis anos atrás me visse com dificuldades ou no meio
de uma convulsão.
— Tem uns dois anos que tive uma crise, madre. Estou com a
medicação bem controlada, não preciso de babá. Consigo dar conta.
— Tudo bem, filho ingrato. Pense pelo menos no seu sobrinho que
você terá que cuidar. Como acha que ele ficaria como se precisasse de você e
não pudesse ajudá-lo?
Argh, mães. Sempre tem um ponto.
Toda essa discussão começou meses atrás quando disse que tiraria
minhas próximas férias sozinho no Brasil. Comprei as passagens com
antecedência para que ficassem baratas e estou ansioso para a viagem na
próxima semana.
Passarei trinta dias no país e será minha primeira vez em solo brasileiro.
Estou animado para colocar meu português em ação. Todos esses anos
aprendendo no 2lingo tinham que servir para algo.
Porém, uns meses atrás, Dominic me ligou para dizer que, infelizmente,
a data da minha estadia coincidiria com um congresso que ele e Jade
precisam participar no Uruguai. Ou Paraguai. Não me lembro bem.
Não cancelei as passagens, nem tentei remarcar. Afinal, eu passaria
trinta dias lá e o congresso deles seria de apenas quinze dias. Teria
oportunidades para passar tempo com meu irmão e sua família. A situação
complicou mesmo por conta do pedido do meu irmão.
— Manin, sei que você vem para curtir seu tempo livre, mas quero
aproveitar para te pedir algo — disse ele ao telefone. — Fico até surpreso
como os eventos coincidiram, sabe? Vai ser bom para a gente unir o útil ao
agradável.
— Carajo, Nic, você enrola demais. Fala logo. Estou curioso. —
Lembro de ter reclamado e fazê-lo sorrir.
— Então, tem esse congresso muito importante para nossas carreiras e
é a primeira vez que Jade é chamada para palestrar numa mesa principal. Só
que a teimosa da minha esposa disse que não vai. Algumas situações
ocorreram desde que ela ficou grávida e de licença maternidade,
relacionadas à sua produção científica. Enfim, ela ficou fragilizada por
meses. E disse que não vai, porque o Miguel ainda é muito dependente e não
quer o submeter à correria de uma viagem tão insana. Ela está certa, eu
também não desejo isso. Porém, sei que esse congresso é importante para ela
e não quero que perca essa oportunidade, tampouco pretendo ir sozinho,
quando sei que minha mulher tem tanto ou até mais potencial do que eu,
entende? Será que você pode cuidar de nosso papito esses dias?
Papito sempre foi nosso apelido entre irmãos e agora estendemos ele
para Miguel. Bastaram aquelas palavrinhas para me amolecer e foi assim que
me tornei babá por quinze dias de meu sobrinho de seis anos.
Dominic não precisou de muito para me convencer. Amo Miguel e
sinto saudades de meu afilhado todos os dias. É claro que vou cuidar dele.
Contudo, minha mãe está certa. Embora eu tenha me tornado
independente e passado a morar sozinho, ainda tenho supervisão. A
supervisão é do meu labrador Apolo, o cão de serviço que ajuda a identificar
minhas convulsões.
Mas não dá para levar o Apolo para o Brasil, pois ele ainda não
cumpria os requisitos de idade e eram tantas documentações que precisava
arranjar que não valeria todo o esforço.
É um risco até para o Miguel que eu fique sozinho. Deus, como posso
ser tão imprestável assim? Nem sei como Dominic confia em mim para essa
tarefa tão importante.
Só que ficar de babá do meu sobrinho com outra pessoa sendo minha
babá era uma coisa. Mas ter que aguentar fortemente a presença da mulher
mais linda do mundo era outra.
A presença de Dalila despertaria muito mais que desejos antigos e
sufocados. Me deixaria com essa sensação que senti por toda minha vida: de
impotência.
Esse sentimento que teima em me dizer que eu não sou suficiente, que
preciso de alguém para cuidar de mim a todo momento. Não que eu tenha
deixado de tomar minhas próprias decisões, porém sei que minhas decisões
não são equivalentes às de todo mundo. Até nisso, tenho as malditas
limitações.
O peso invisível de saber que, ainda que eu tentasse, tem barreiras que
talvez nunca fosse superar.
Sabia que era uma luta perdida assim que contei para minha mãe da
viagem para o Brasil. Ela moveu céus e terras sem nem me avisar, e arranjou
alguém para me fazer companhia com o auxílio de Jade.
Só espero que a amiga não seja Dalila Deodato.
Ou posso parar de mentir para mim mesmo e dizer que espero, sim, que
seja ela.
Mesmo com a forma como terminamos — terminar não seria bem a
palavra, considerando que não começamos nada —, não conseguia parar de
pensar nela de forma esporádica durante esses seis anos.
Por vezes, algo me vinha à mente, alguma referência ao casamento de
Dom e Jade e a sua memória esteve sempre presente. Como uma grande
interrogação sem resposta, uma frase sem ponto final e nem reticências.
Em vez da Dalila, poderia pedir ajuda para a Bel. Sei que ela mora no
Brasil, mas também sei que o país não é um ovo como a República
Dominicana, então as chances de encontrá-la são ínfimas.
E, embora a tenha como amiga, não a conheço pessoalmente, então
seria um risco expor meu sobrinho a uma desconhecida. Mesmo que a gente
se fale todo dia.
Nossa relação sempre foi à distância, essa amizade misturada com flerte
que nunca vai para a frente. Acho que nós dois aceitamos brincar com fogo
exatamente porque a possibilidade de nos conhecermos é minúscula.
Não é tangível, então tudo bem mandar fotos íntimas, tudo bem não
mostrar o rosto. A intenção é não se comprometer mesmo.
Seremos sempre parceiros do 2lingo, colegas para aprender idiomas e
amigos que fazem um sexting de vez ou outra.
Só por diversão, certo? Não era real se estava apenas nos limites do
meu celular.
Com a iminência de passar essa temporada no seu país, meus
argumentos e certezas estão mudando. Talvez eu queira conhecê-la. Talvez
mais do que isso.
Desejo testar se nossa energia e toda essa química que sinto só de
mandar mensagens para ela é mesmo real.
Meu Deus, eu poderia ser um pouco menos emocionado?
Tenho medo da sua reação ao me conhecer pessoalmente? Com certeza,
tenho.
Porém, quero pagar o preço. Quero correr o risco.
A Bel vale a pena. Quando passei dias deitado naquela cama, em
repouso e doente, a única coisa que me alegrou foi usar o aplicativo e falar
com ela.
Sempre que tinha minhas crises e acabava na UTI, ficava fraco e
praticamente sem voz para me comunicar. Quanto mais tempo entubado,
mais eu feria minhas cordas vocais. Logo, sem poder falar, usar os dedos para
conversar com quem me fazia tão bem era o que me impedia de sucumbir.
Comecei a usar o 2lingo há quatro anos, pois a empresa em que
trabalho tem sua operação em toda a América Latina, porém, a sede oficial é
no Brasil. Quase todos os meus colegas de trabalho falam inglês, espanhol e
português, então eu não podia ficar para trás.
Atualmente, sou o líder do time de tecnologia da Innoviagens, uma
plataforma digital que facilita a experiência de planejamento e reserva de
viagens.
Ajudamos nossos clientes em serviços como a comparação de preços de
passagens, reservas de hotéis e criação de roteiros personalizados de turismo.
Tudo em um único lugar.
Dizia para mim mesmo que o motivo de aprender português era
meramente profissional, afinal não vou assumir nem sob tortura o que me
impeliu a começar de verdade. Só que fico feliz de ter chegado até esse
aplicativo. Ele me ajudou a subir na carreira de maneira vertiginosa e ainda
me deu uma amiga incrível.
Foi com a possibilidade de conhecer a Bel em mente que aceitei os
termos de Dona Mercedes: iria para o Brasil, com babá ou não.
O reencontro
Dalila Deodato
Talvez eu seja responsável por destruir um lar ainda hoje. Com certeza
transformarei o estado civil de alguém, mudando de casada para viúva.
Porque eu esganaria Jade Dandara Victorino Salvatierra. Ou o marido
dela. Qualquer um dos dois servirá para aplacar minha ira.
Veja bem, quando me ofereci para cuidar do Miguel durante os quinze
dias que eles levariam para viajar todo o Mercosul, achei que seria uma tarefa
fácil. Afinal, o Miguel é um anjo de criança. Eu me ofereci de todo coração e
quero mesmo que Jade viva essa experiência sem se preocupar tanto.
Meu incômodo aqui não tem nada a ver com meu serumaninho ou a
viagem deles. Tem a ver com as condições dessa minha estadia na casa dos
Salvatierras.
Por algum motivo que desconheço, Jade e Dominic omitiram de mim
que outro alguém estaria no papel de babá.
Não qualquer alguém.
O alguém.
Ele.
O problema e a encrenca.
O meu grande “e se?”.
O carma realmente deve me odiar.
— Ra-Rafi? — gaguejo e sinto meu queixo cair um pouco.
Ele está de costas, mas eu reconheceria aquela tatuagem no pescoço a
quilômetros de distância e até no escuro.
O homem do outro lado do meu quarto de hóspedes desfaz uma mala
sobre a cama e vira sua cadeira na minha direção.
— Dalila.
Sua voz está diferente. Mais rouca. Não sabia que era possível alguém
mudar o timbre da voz, porém a dele está distinta de antes.
Ele nem parece surpreso, está até resignado. Como se falasse “ah, então
é só você”. Também não carrega nenhuma emoção além em seu tom. Está
seco, frio, indiferente a mim.
Já do meu lado, nada poderia me preparar para a visão. De aparência,
Rafi praticamente não envelheceu e continua o mesmo cara de beleza
estonteante de seis anos atrás. Se algo mudou, é que agora sua face está lisa,
sem bigode putífero e ele não tem mais os piercings.
Bom, pelo menos coisas que me fariam querer subir no seu colo foram
retiradas. Me sinto segura.
— Quanto tempo. Como você está? — pergunta ele, cruzando os braços
no peito ao me encarar.
Simples assim. E as palavras ditas num português perfeito! Nada
daquelas palavras meio quebradas e nem o sotaque de Portugal.
— Desculpe a indelicadeza, mas o que você está fazendo aqui?
É a única coisa que consigo formular. Acho que meu cérebro derreteu.
Odeio ser pega de surpresa e não me preparar para alguma conversa difícil.
Nem parece que revisei e teorizei nosso acerto de contas na cabeça por
meses depois do ocorrido. Treinando respostas aos seus argumentos,
ensaiando o diálogo como uma maluca.
— Ah, então eles não te prepararam para a surpresa antes. Vamos
esperar meu irmão e cunhada chegarem e eles te explicam tudo.
Como seria o último dia com o filho antes da viagem hoje à noite, eles
preferiram estar junto de Miguel e, considerando o horário, devem estar
buscando-o na escola. Eu já sei da rotina inteira da criança, o Dominic fez até
uma planilha no Excel.
— O que você está fazendo no meu… — me retraio na fala. — No
quarto de hóspedes?
— Sou um hóspede. — Rafi dá de ombros — Onde mais ficaria?
— Mas eu também! Durmo aqui — retruco, exasperada.
— Bom, você matou a charada. Nem precisamos esperar os pombinhos.
Somos hóspedes, cuidaremos do Miguel por alguns dias e vamos dormir aqui.
Abre os braços e indica com o polegar a cama de casal que toma grande
parte do quarto pequeno.
— Eu e você? No mesmo quarto? Mas só tem essa cama!
— É isso ou dormir no antigo berço do Miguelito. Eu já verifiquei.
— Uma armadilha — sussurro sem acreditar na minha sorte. Ou azar.
— Sempre muito inteligente. — Rafi aquiesce, confirmando minhas
suspeitas. — Sabia desde anos atrás que esse seu cérebro era incrível.
Não consigo evitar. Sinto o rosto aquecer e sei que estou corada.
Maldito homem que me elogia mesmo depois que caí fora da sua cama sem
dar adeus. E mesmo depois da mensagem desinteressada que me enviou.
Qual era a dele, afinal?
— Seis anos se passaram e você ainda ruboriza com elogios, medusa?
Sei que meus malditos mamilos estão instantaneamente eriçados
debaixo de meu vestido, que uso sem sutiã. Sei disso porque me arrepio ao
som daquele apelido na sua voz melodiosa.
Talvez deva fingir um desmaio para me livrar dessa situação
constrangedora.
— Jade e Dominic armaram para ficarmos de babá juntos? — indago,
desacreditada que Rafi Salvatierra está ali na minha frente, em toda sua
glória.
— Na verdade, eles não armaram. Eu viria para o Brasil de qualquer
forma. A variável que está diferindo aqui é você.
Tão iludido. Rafi não conhece Jade Victorino como eu. Aquela mulher
dá nó em pingo de éter e a cabecinha dela é cheia de ideias mirabolantes
sobre romances e toda essa besteira de livros.
Afinal, foi a maluca da minha amiga que propôs casamento de
conveniência ao marido oito anos atrás, achando que estava numa comédia
romântica.
— Eu me ofereci para cuidar do Miguel!
— Mesmo ciente da minha vinda? — Ergue apenas uma das
sobrancelhas e aquele movimento me faz ter um déjà vu.
— Eu não sabia!
— Bom, agora está sabendo. Mas somos adultos, certo, Dalila? Temos
mais de trinta anos nas costas, com certeza conseguimos dormir na mesma
cama e ficar sob o mesmo teto por quinze dias.
Ele diz e passa ao meu lado, tendo que manobrar um pouco a cadeira,
pois o arco da porta é estreito, ainda que acessível.
— Já sei, vou dormir no quarto deles! Na verdade, se você está aqui,
eles não precisam mais de mim. Está resolvido.
Rafi apenas ri e sai do quarto de hóspedes, no exato momento em que
ouço a voz de Jade ecoando da sala. Vou atrás dele, prestes a assassinar
minha melhor amiga e seu marido.
Contudo, todos os pensamentos homicidas se esvaem quando Miguel
entra correndo com uma mochila maior que suas costas e grita “Tio Rafi”
bem alto. Em seguida, pula no colo dele, abraçando-o pelo pescoço. Os dois
Salvatierra choram emocionados e a cena é tão linda que me amolece.
Para fechar com chave de ouro, Mi abre os olhinhos cor de caramelo e
me encara, dizendo (ou melhor, gritando):
— É verdade que vou ficar um montão de dias com vocês dois, meus
tios favoritos no mundo todo? ESSA É A MELHOR SEMANA DE MINHA
VIDA!
Espreito os pais de Miguel, que dão de ombros e sorriem amarelo,
parecendo culpados. Examino Rafi, que me encara com aquele olhar de
desafio que conheci na despedida de solteiro em Punta Cana.
Pondero por alguns segundos, mas sei que vou aceitar, pois nunca
poderei negar nada a Miguel quando ele diz que sou sua tia favorita.
— É, sim, pequeno humano! — balbucio e copio sua animação,
sabendo que perdi aquela causa e ficarei, sim, naquele apartamento com Rafi
e Miguel pelos próximos dias. — Não será incrível?
Jade quase não embarcou no avião, ela chorou tanto na despedida com
Miguel que achei que desistiria da viagem.
Porém, no final, deu certo. Acho que ela ficou perplexa com o fato de
que o filhote nem estava tão triste, pois ficar comigo e com Rafi parecia o
ponto alto da sua tão curta infância.
Voltamos do aeroporto para casa de Jade, numa viagem de carro
silenciosa entre nós dois, enquanto Miguel dormia atrás na sua cadeirinha.
Constrangedor. Como pode esse homem ter metido a cara entre as
minhas pernas e agora não consigo nem o encarar direito?
Subimos no elevador, Miguel em meu colo, passando as mãos nos
olhos, ainda meio sonolento.
Ao adentrar a residência, a primeira coisa que faço é invadir a suíte do
casal. Rafi se aproxima por trás, como se premeditasse meu desejo de dormir
ali para fugir de nossa proximidade.
— Cadê o colchão? — A cama de casal deles está apenas o estrado,
com várias sacolas de papel espalhadas e alguns livros retirados da estante
sobre a madeira.
— Eles mandaram para lavar, Tia Dadá — responde Miguel,
transparecendo um pouco envergonhado e, por fim, sussurra: — Fiz xixi nele
sem querer quando estava dormindo e tava fedorento.
Abana a mão na frente do nariz, tirando-me um sorriso.
Enquanto isso, Rafi gargalha.
— Papito, não precisa ter vergonha. Seu tio também molhou a cama até
os cinco anos.
— Quem, o titio Andri?
— Não.
— Você?
— Tem outro tio além de nós dois?
— Sim, a tia Dadá — responde Miguel em meio a um bocejo e é minha
vez de levantar a sobrancelha, sentindo-me vitoriosa.
— Acho que é hora de colocar o monstrinho na cama — digo e deixo
um beijo na bochecha da criança sonolenta. — Está tarde.
— Podem contar uma história para mim, tios? — fala Mi, de olhos
fechados e tenho certeza de que não vai aguentar a primeira vogal antes de
dormir de novo.
Noto que eu e Rafi compartilhamos o mesmo tipo de sorriso, dois
adultos bestinhas com a fofura de uma criança de seis anos. Prontos para
fazer tudo por ele se for preciso.
Gosto disso. Independente de nossas diferenças, do passado e do que
vamos fazer para decidir quem vai dormir no sofá, é bom que tenhamos esse
objetivo em comum.
Que comecem os trabalhos de babá, então.
A proximidade forçada
Bel: Ei, você viu que agora é possível enviar imagens durante as
conversas? Talvez ajude naquelas línguas em que os caracteres
são completamente diferentes e você deseje enviar uma imagem com
as letras escritas.
12h sem resposta
Bel: Como o russo. Tenho uma amiga que entrou no aplicativo
apenas para aprender e escrever uma personagem nascida na antiga
União Soviética, acredita?
24h sem resposta
Bel: Santi? Está tudo bem por aí? Vi que você perdeu a sua meta
de 150 dias consecutivos utilizando o app, você nunca perdeu
antes.
Dalila Deodato
Da última vez que Santi sumiu, passei dez dias sem sinal dele. Quando
voltou, apenas me disse que tinha ficado internado e bem doente. Desta vez,
ele não me responde há quase quarenta e oito horas.
Não consigo parar de pensar que algo pode ter acontecido. Minha
intuição diz que sim, porém deixei de acreditar nela anos atrás, então não é
uma fonte confiável.
É estranho que alguém que nunca vi antes me faça tanta falta, mas Santi
deixa um espaço vazio nos meus dias que só ele preenche.
A gente se fala ao acordar e ao se deitar, sempre no nosso esquema
diário de corrigir os exercícios um do outro, enviar memes e vídeos, contar de
algo engraçado ou surreal que ocorreu durante o dia.
Deitada na cama que dividi com Rafi na noite passada, encaro meu
celular, abrindo e fechando o 2lingo. Olha só, que reviravolta, agora foi
minha vez de acordar sozinha e a vez de ele ter fugido.
Não que tenha ocorrido algo, claro que não. Quando me deitei para
dormir, Rafi provavelmente estava no quinto sono e abraçado com Morfeu.
Ele até ressonava.
Se ainda tivéssemos intimidade, falaria que ele baba enquanto dorme,
tal como Annabeth Chase fez com Percy Jackson, apenas para implicar. Rafi
não baba, contudo, a graça estava em ele não ter como saber disso.
Ouço barulhos fora do quarto, sons de panelas batendo e de uma
criança rindo. A voz de Rafi falando em espanhol também chega até mim e
vibro de felicidade por conseguir entender o idioma.
Tudo devido à ajuda de Santi.
É neste momento que penso nele de novo; penso que deveria ter pedido
o número pessoal quando me deu vontade. Assim, poderia ligar ou mandar
mensagem.
Contudo, não queria ultrapassar os limites da nossa relação, mas é
frustrante querer saber se está tudo bem com alguém com quem me importo
tanto e estar de mãos atadas.
Tem o ChatSnap, mas ele também não serve a esse propósito, por ser
uma rede apenas de fotos.
Após usar o 2lingo por anos, quando ele sugeriu que a gente migrasse
para esse outro aplicativo, eu acatei. Afinal, não teria nada de mais, certo?
Mas um aplicativo que envia fotos e vídeos que se autoexcluem em quinze
segundos?
Era uma receita perfeita para a nossa perdição.
E aí, começaram as fotos sugestivas. Nada muito revelador, eu sempre
escondi minhas tatuagens e nunca mostrei meu rosto. Ele também não.
Só de lembrar, meu corpo esquenta.
Fico feliz quando Miguel irrompe no quarto, para desviar de onde meus
pensamentos caminhavam. Não é certo pensar em Santi e ainda sentir o
cheiro de Rafi no travesseiro ao lado.
— Tia Dadá, bom dia! Hoje é sábado e não tem aula nem trabalho.
Temos o dia inteiro para brincar juntos!
Ah, céus, a energia das crianças logo cedo. Passo os dedos nos olhos e
me espreguiço.
— Vamos, sim, meu amorzinho, a tia só tem que acordar, tomar banho,
escovar os dentes e comer antes de tudo. E você também!
— Já fiz tudo isso, o tio Rafi me ajudou.
Quando fala o nome do tio, ele aparece na porta do quarto. Sem camisa.
Me cubro de forma rápida com o lençol, pois o vestidinho que uso para
dormir tinha se levantado até o alto das coxas.
O bigode, cavanhaque e piercings podem ter ido embora, mas as
mesmas tatuagens que lambi continuam ali. E, pelo amor de Deus, ele estava
malhando? Não me lembro de Rafi ter um peitoral tão largo assim.
— Bom dia, Dalila. Achei que você fosse o tipo de pessoa que
levantava cedo da cama — fala com sarcasmo e beberica uma xícara logo
depois. — Pelo visto, me enganei.
O final da sua frase fica abafado no recipiente e dá para perceber que
ele sorri brincalhão por trás da borda da xícara. Lanço um olhar mortífero ao
homem parado sob o arco da porta.
— Adulto maduro, hein, Rafi Santiago Salvatierra? — reclamo, com
um tom de brincadeira.
Miguel acompanha nossa interação com curiosidade e, quando se cansa
de tentar entender adultos, balança as perninhas na beira da cama e salta para
o chão.
— Tio, você também tem Salvatierra no nome?
— São assim que funcionam os sobrenomes de família, papito. Seus
avós passaram para mim, Dominic e Andriel, e o seu pai passou para sua mãe
através do casamento e depois para você.
— Então, se eu quiser que a Tia Dadá seja da minha família e tenha
Salvatierra também, é só ela se casar com você?
Parece combinado, mas eu e Rafi engasgamos ao mesmo tempo. Eu
com saliva e ele com sua bebida. Começo a tossir e espero que a criança
esqueça a pergunta. Mas ele não esquece, nos encara até que a gente pare de
disfarçar.
Trocamos olhares desajeitados e me direciono ao mini-humano curioso.
— Eu já tenho sobrenome, Mi. É Deodato.
— Ah, mas ia ser tão legal se todo mundo que gosto tivesse o mesmo.
Puxo Miguel pela cintura e encho seu rostinho de beijos. Enquanto isso,
Rafi se aproxima mais, entrando no quarto e mexe em suas malas.
— Também gosto muito de você, monstrinho. Me conta, está pensando
em brincar de quê hoje?
— Jogo da memória, depois vamos para a quadra jogar basquete e, de
noite, quero assistir a um monte de filme!
— Parece que você está com tudo planejado.
— Sim, vou pegar o Charmander e o jogo no meu quarto e já volto —
diz ele, animado, e pula do meu colo novamente, correndo para fora do
cômodo.
Assim que ficamos sozinhos, Rafi me fita e parece que sua visão é de
raio-x, pois me sinto nua.
— Dormiu bem? — pergunta.
— Aham, apesar dos seus roncos, foi bem tranquilo — minto para
pirraçá-lo.
— Entendo, eu também tive que relevar os chutes que recebi de
madrugada com suas pernas nervosas.
— Que mentira! Durmo muito quieta.
— Não sei, não, Dalila. Parecia que algo te incomodou durante o sono.
Essa noite, terei que dormir com proteção.
Sorrio pequeno em resposta ao seu comentário engraçadinho e saio em
direção ao banheiro social, carregando minha necessaire.
Tenho que me cuidar. E falo isso além dos cuidados de higiene matinal.
Tenho que prestar atenção em Rafi, ele é perigoso e especialista em se
esgueirar por dentro de minhas barreiras.
Essa versão dele, afiada, mais velha e ainda assim muito parecida com
o homem que me atraiu anos atrás, não parece um bom presságio.
Rafi Salvatierra
Os dias passam rápido, entre cuidar do Miguel e conhecer a região de
Entremontes, ainda encontrei tempo para fazer todas as minhas lições do
2lingo, pelo menos uma por dia.
Não tem férias daquele aplicativo, é mais do que um estudo, é um vício.
É onde interajo com Bel.
Voltei a conversar com ela depois do sumiço de quase dois dias; estive
bem ocupado com responsabilidades de babá. Fora a canseira da viagem e
das interações com Dalila.
Raramente usava o celular na frente dela, porque infelizmente sempre
que Dalila estava no mesmo local que eu, minhas atenções eram roubadas.
Dentre minhas voltas pela cidade nessa semana, descobri uma mina de
ouro bem no bairro onde Nic mora.
Estava numa padaria, lanchando e foi o som da bachata que me fez
entrar naquele centro comercial, seguindo os acordes da música do meu país
em pleno Nordeste brasileiro.
Ao chegar à fonte da música, pisquei desacreditado. Entrei na sala e fui
recebido pelos casais e pela professora. Me enturmei tão fácil que decidi que
a aula experimental que ela me ofereceu se transformaria em aulas diárias, até
que eu voltasse para casa.
Desde que tenho a GB, que sei da importância da fisioterapia, de
movimentar meu corpo. Eu amava basquete antes da cadeira de rodas, só que
depois de tudo, infelizmente, não teve a mesma graça.
Então me encontrei na dança de salão. É um momento em que posso
me perder na música e deixar todo o resto de lado. Feliz de ter encontrado
aquele meu lazer também em Entremontes.
Além da dança, outra paixão minha são os filmes, livros e séries de
ficção científica. Sinto que maratonei todas as histórias existentes sobre o
tema: Eu, Robô; Star Wars; Westworld; O problema dos três corpos; Matrix;
Duna…
Black Mirror.
Imediatamente me lembro da Bel.
Estou voltando da aula noturna, passando pela calçada do condomínio
de Nic e dando graças ao bom Deus que esse bairro tem rampas e calçadas
onde minha cadeira consegue se movimentar sem tantas dificuldades.
Ao adentrar o prédio, me identifico com o porteiro e decido ficar
um tempo no playground. Na verdade, quero falar com Bel. Talvez
envie uma foto para ela no ChatSnap.
Santi: Você não sabe o que aconteceu.
Bel: Não me deixe na curiosidade assim.
Santi: Lembra que eu te disse que ia viajar? Cheguei na
cidade e descobri uma aula de dança praticamente do lado de onde
estou hospedado.
Bel: O Don Juan dançarino ataca novamente. Fico feliz por
você, Santi. Aposto que está arrasando corações por aí.
Bel: Aliás, para onde você foi mesmo?
Dalila Deodato
Santi: Se eu estivesse aí agora, o que você faria comigo?
E é assim que sempre começa. Não sei quando e por que iniciamos essas
mensagens sugestivas, mas gostava demais para abdicar.
Na verdade, me lembro muito bem.
Começou com Santi me mandando a mensagem seguinte, meses atrás:
Santi: Acabei de voltar da aula de dança e não esperava por
essa chuva toda.
Quando ele responde, não demora muito para enviar uma foto. Abro o
aplicativo com ânsia e ali está, a foto do piercing. Aquela argola dourada no
final do seu pênis e um pouco acima do escroto.
Santi nunca manda uma foto ampla, sempre são closes próximos,
contudo, só aquele detalhe basta para me fazer arrepiar e imaginar qual seria
a sensação de tê-lo na boca.
Bel: Acho que ele poderia entrar e já te encontrar em cima
de mim.
Santi: Como? Você sabe que gosto de detalhes.
Bel: Me fodendo por trás. Puxando meu cabelo e estapeando
minha bunda.
Rafi Salvatierra
A mensagem de Bel é o banho de água fria de que eu precisava depois da
noite passada. Em outra sessão de troca de mensagens e nudes sugestivas
entre nós dois, fiz a besteira de me deitar na mesma cama com Dalila.
É claro que me masturbei durante o banho enquanto conversava com
Bel, mas não vou negar que minha mente passeou para a mulher que dividiria
a cama logo depois.
Gozei tão forte, pensando numa mistura de Bel e Lila em minhas
fantasias. Não dava para negar que, quando eu imaginava minha amiga
virtual, o desenho que se formava na mente era exatamente das curvas de
Dalila.
Quando entrei no quarto e a vi toda enrolada, pensei que estava seguro.
Esse foi meu erro, veja bem. Porque quase gozei de novo ao seu lado e tive
que me segurar muito para impedir minha porra de sujar a cueca, shorts e os
lençóis que me cobriam.
Dalila dormia, mas ela emitia sons eróticos para cacete. Gemia
baixinho durante o sono e só poderia estar tendo um sonho erótico delicioso,
que eu, obviamente, não fazia parte.
Dormi duro e acordei com uma ereção matinal enorme, feliz de
perceber que Dalila levantou antes. Caso contrário, notaria o volume
proeminente no meu short de tecido fino.
A casa está silenciosa e apenas o latido baixo de Dante me alerta de que
quase passei por cima de seu rabo com a roda da cadeira.
— Foi mal, amigão. — Afago a cabeça de cores preta e branca do vira-
lata de Nic. — Parece que seremos apenas nós essa manhã, hein?
Dalila levou Miguelito para a escola e foi para o trabalho e não estou
com muita vontade de sair para turistar hoje, pois minhas pernas estão
doendo. Sou um homem de 35 anos com uma condição autoimune, conheço
meus limites.
Melhor descansar para sair à noite para a aula de dança, pois a
professora Marina disse que vamos praticar forró. Sendo uma dança
tipicamente brasileira, não sei nem como começa, mas estou muito animado
para aprender.
Pela força do hábito, pego meu celular e abro o 2lingo. Percebo que,
depois da nossa conversa, Bel corrigiu um exercício de português.
Quero mesmo entender do que ela tem medo. Entendo o apelo do nosso
anonimato, no entanto, não quero deixar essa oportunidade passar. Só que
também não devo ser o cara insistente e chato que vai afastá-la.
Qual é, não estou pedindo um romance, só quero encontrar essa mulher
que me acompanha há anos e que faz parte da minha vida.
A notificação de ligação muda a tela do meu telefone e vejo ser Nic, via
chamada de vídeo.
— Hola, Papito, que tal? — atendo, animado.
— Como andam as coisas por aí, manin? Cuidando bem do meu
menino?
— Sim, a operação babá está a todo vapor. Miguel está bem, Dante
também, eu estou melhor do que nunca e Dalila…
Sou interrompido por uma voz feminina e o rosto de pele negra retinta
de Jade aparece ao lado de Dominic.
— Olá, cunhadinho! Como está sendo dormir com a sua medusa, hein?
— Jade toma o telefone de meu irmão para provocar e ergue as sobrancelhas
repetitivamente.
— Jadecita, você tinha mesmo que mandar o colchão para lavar
enquanto estávamos aqui, não é?
— Foi pura coincidência — Nic é quem responde.
— Não foi nada, fiz de propósito, para eles ficarem juntinhos mesmo
— assume ela e nós dois rimos.
— Cariño, o que te falei sobre tentar emular esses seus romances,
hein? — Nic adverte a esposa.
— Rafi, fale para seu irmão as coisas que me disse, pois ele não quis
acreditar em mim. Diga, abra seu coração.
— Cunhada, esse era um segredo apenas nosso.
— Que segredo? — pergunta meu irmão, desconfiado.
— Que o Rafi queria uma segunda chance com a DD, óbvio.
— Não foi bem isso aí que eu disse, não… — desconverso.
— Não sei se fico feliz ou preocupado de que você está trocando
confidências com minha mulher, Rafiel.
— E qual o problema? — indaga Jade.
— Você tem uma cabecinha muito criativa, hermosa. — E com isso,
Nic bate os dedos na têmpora dela. — Mas eles são adultos e podem se
resolver sozinhos, OK? Não precisava forçar os dois a dormirem na mesma
cama.
— Ah, mas precisava, sim! Olha, Rafi, aproveita o tempo restante para
se entender com a cabeça dura da DD, porque estamos voltando em dez dias
e aí não terei mais desculpas para forçar essa proximidade de vocês.
— Por Dios, me casei com uma dramaturga de novelas da Globo.
Dalila Deodato
Tenho uma confissão para fazer.
É algo que rondou a minha cabeça o dia inteiro, que mal consegui
trabalhar.
Eu queria montar em Rafi ontem à noite.
Preocupante, mas não fico surpresa. Considerando que estive fazendo
sexo por mensagem e que gozei com ele ao meu lado. Santi que me perdoe,
mas Rafi ali era tangível demais para ignorar.
Foi impossível não recordar de quando gozei com sua língua, seu pau,
seus dedos. É inadmissível que minha mente tenha pensado nisso por horas a
fio.
Qual é, para aprender as coisas, meu cérebro tem a maior dificuldade,
agora para relembrar cenas de seis anos no passado ele presta?
Suspiro fundo, tentando deixar isso de lado. É outra daquelas noites em
que Rafi sai sem dizer onde, não que ele me devesse alguma satisfação.
Depois da primeira semana, é fácil encontrar nosso caminho para cuidar
do Miguel. Pela manhã, ele está na escolinha e à tarde fica com Rafi,
enquanto trabalho no modo híbrido.
As noites geralmente são minhas, então fico com meu lindinho até que
ele durma, com a cabeça deitada no meu colo vendo algum filme da Disney.
Como agora.
Pareceu até premeditado que Miguel dormisse exatamente na música
Meu Bebê de Dumbo, enquanto eu fazia cafuné nos seus cabelos crespos,
iguaizinhos aos do… tio.
Argh, sai da minha cabeça, homem.
Jogo a cabeça para trás no encosto do sofá da sala de estar, relaxando
meu pescoço e trapézio que viviam tensos. Fecho os olhos e me deixo vagar
pelas lembranças.
Não, não lembranças, mas desejos… De mãos macias fazendo
massagem nesses músculos tensionados e uma boca úmida que finalizasse
tudo com um beijo tenro na minha nuca, arrepiando todos os pelos do meu
corpo.
Faz tanto tempo que não sou tocada por ninguém, ao menos para algo
com qualquer segunda intenção. Eu não me permiti. Não desde Samir.
Teve aquela vez que tentei com a Vitória, mas eu estava tão mal que
cortei todo e qualquer clima, e apenas dormi ao lado da mulher mais linda de
Entremontes, que enfim tinha me dado bola. E eu, obviamente, estraguei
tudo.
Meu celular começa a vibrar em minha mão, a tela dele sendo a outra
iluminação na sala escura, fora a TV.
Nova chamada: Samir.
É o que diz o visor.
Olho o relógio, me dando conta de que são mais de 21h. Nada de bom
pode vir dessa ligação. Samir deve estar bêbado, no mínimo. Nem quero
pensar que pode ser sob outra substância que não o álcool.
Deveria ter bloqueado quando ele me deu o pé na bunda
condescendente, como se a culpada por acabar com nosso noivado fosse
Dalila Deodato. E não Samir Arraes, que foi o condutor real das más notícias.
“Eu não posso abdicar do meu sonho, Dalila.”, ele disse, dois anos
atrás.
“A gente devia ter falado sobre essa possibilidade antes.”
“Eu tinha que dar minha opinião também.”
Suas formas de dizer que eu não servia mais para ele, apenas por conta
de uma cirurgia que fiz para não morrer, para melhorar minha saúde e
qualidade de vida.
Quem ouvisse de fora, pensaria que Samir estava muito preocupado
comigo, certo? Mas ele só pensou no próprio umbigo.
Deixo a chamada tocar até cair. Ele tenta de novo. Eu ignoro. Até que,
na terceira vez, me lembro de que preciso resolver assuntos práticos com ele,
como o financiamento de um apartamento que fizemos juntos e outras coisas
burocráticas da vida de um casal. Ou ex-casal.
— O que é, Samir? — atendo, falando bem baixo para não acordar
Miguel.
— Da? Graças a Deus você atendeu.
O apelido idiota me enche de angústia.
— Não devia, mas agora já foi. Fala logo o que quer, tenho mais o que
fazer.
— Às nove da noite? E por que você está sussurrando? Está
aprontando algo, princesa? — Sua voz transparece a bebedeira, misturando
as sílabas e falando bem devagar.
— Não é da sua conta.
Miguel se remexe, inconsciente em meu colo, virando de lado e
praticamente jogando sua mãozinha no meu rosto. Solto um risinho, sabendo
da tendência dele de dormir segurando os pais pela pontinha do nariz.
— Está sorrindo, minha princesa? Que saudade de ver seu sorriso, de
beijar essa boca…
Aí está. Entendo imediatamente o que ele quer com essa ligação. Sirvo
para me deitar de vez em quando e não precisar usar camisinha, mas para ser
sua esposa já sou carta fora do baralho.
— Estou cuidando do Miguel, Samir, se você não tem mais nada para
falar, vou desligar e colocá-lo na cama.
— Ah, o Miguel. Foi com ele que percebi que você seria a mãe perfeita
para meus filhos, sabia? Você cuida tão bem do filho da sua amiga, por que
não cuidaria dos nossos, Da?
Uma estaca perfura meu coração já machucado.
Não respondo nada, mas a sensação de amargor toma minha garganta,
com um bolo que se acumula nela e suprime um pouco do ar que respiro.
— Você teria me dado tudo que mais quis.
— Engraçado, Samir. Todo homem sonha ser pai, até a mulher dar à
luz para sanar essa vontade, sendo abandonada para fazer tudo sozinha.
Conheço essa falácia.
— Eu nunca te abandonaria, Da.
— Mentira, você já abandonou.
Desligo a chamada e o celular logo depois, com lágrimas molhando
minhas bochechas. E é neste momento inoportuno que Rafi decide chegar,
abrindo a porta do apartamento e me flagrando num pranto silencioso.
Ele me observa por poucos instantes antes de deslizar em minha direção
na cadeira motorizada. Sem dizer nada, apenas com um menear de cabeça
compreensivo, Rafi ajusta a velocidade com uma mão enquanto estende a
outra para segurar Miguel com cuidado.
Posiciona o sobrinho em seu colo delicadamente, ajustando-o contra
seu peito. Em seguida, manobra habilmente e se dirige até o quarto em
silêncio.
Quando ele volta alguns minutos depois, eu não choro mais, só que o
seu olhar preocupado se mantém.
— Posso te ajudar com algo, Lila?
Lila, Lila, Lila. O apelido que apenas ele usou em todos esses anos ecoa
na sala e em mim.
— Sabe como é... Essas músicas dos filmes infantis são sempre muito
emocionantes — tento disfarçar.
— Medusa, sou mestre em desviar atenção com humor, então não
compro sua desculpa. Se quiser conversar, também posso ser um bom
ouvinte.
— Meu ex me ligou, mas não estou chorando por ele e, sim, pelas
coisas que me disse.
— Só de te fazer chorar, sei que é um babaca.
— É, me deixei iludir bastante com essa peça. Todos eles sempre são
ótimos no início, mas mostram as garras no final.
— Queria poder falar que não precisa generalizar, mas também me
relaciono com homens, então terei que concordar.
Solto um riso frouxo com o comentário e lhe encaro. Sei que Rafi não é
hétero, pela cena que presenciei anos atrás e por captar algumas conversas
dele com Nic, mas ele nunca me disse sobre sua sexualidade antes.
— Você se abriu comigo sobre sua condição de saúde dias atrás,
lembra?
Rafi assente.
— Acontece que tive um problema sério de saúde há dois anos e esse
basicamente foi o motivo que o fez terminar nosso noivado.
— Noivado?
— Pois é... Ainda aceitei casar com o embuste. O problema é que
trabalhamos na mesma companhia e não consegui romper esse vínculo
profissional. Samir vive me ligando, querendo só sexo, querendo me ver, mas
sei que não sou suficiente, que nunca vou entregar o que ele deseja.
— Duvido que você não seja suficiente para alguém.
— Acredite, é possível. — Faço uma pausa, não pelo drama, mas
porque ainda é difícil falar dessa parte de minha vida. — Tive câncer
cervical, Rafi. Com trinta anos, e precisei fazer uma histerectomia.
Deixo que ele receba a informação, uso termos médicos de propósito
para me dar tempo para me preparar com sua reação negativa.
Esperaria tudo. Tudo mesmo, menos que Rafi impulsione sua cadeira
para meu lado, se estique todo sobre o braço do sofá e me abrace.
O contato me trouxe as lembranças do seu corpo quente e que isso nada
tinha a ver com a temperatura do Caribe.
Rafi queima, é como se ele soubesse que precisa me esquentar e
passasse calor tocando pele com pele. Naquela madrugada em que fugi dele,
foi tão difícil me soltar. Seus braços, torso e pernas eram como um enorme
cobertor que me deixava confortável, segura.
É assim que me sinto nos seus braços agora.
Parece loucura que anos depois do acontecido, tendo sido algo tão
rápido e casual, que terminou com um desentendimento…
Parece loucura que eu ainda sinta essa comichão, esse magnetismo que
insiste em me inclinar para Rafi, em aceitar seus carinhos e suas provocações.
Se eu ainda fosse aquela garota sonhadora, que acreditava em sinas e
destinos, talvez encontrasse uma explicação para isso, para o efeito que esse
homem tem em mim.
O suficiente
Rafi Salvatierra
A sala está silenciosa, preenchida apenas pelo som abafado da minha
respiração contra o pescoço de Dalila e o seu fungar contra o meu. Seu cheiro
cítrico toma minhas narinas e quero ficar naquele local e momento para
sempre.
O impulso que me fez rodar até ela e envolver meus braços nessa
mulher não foi calculado. Não pensei, apenas fiz e não me arrependo. Talvez
devesse ter feito antes. Ela não recua, mas também não corresponde
imediatamente, como se estivesse surpresa. Por fim, levanta os braços e
envolve minhas costas.
Tocar Dalila assim tão de perto é um conforto e um incômodo.
Confortável porque ela cabe perfeitamente em meu enlace e incômodo, pois
estou todo torto e me relembrando de coisas que não deveria. Mas não vou
soltá-la.
— Lila, não entendi nada do que disse, mas senti que você precisava de
um afago — sussurro ao seu ouvido e então me afasto devagar, movendo a
roda de minha cadeira, me aproximando, segurando-a pelas mãos e pousando
nos joelhos. — Sinto muito pelo que passou, mas você está bem agora?
Dalila parece pequena e distante, embora esteja a menos de um metro
de mim. Ela aperta forte meus dedos entre os seus e começa a brincar com o
anel que envolve meu polegar, dispersa.
Eu apenas a observo, esperando sua resposta. Tenho paciência e
respeito seu momento, sei que quando estiver pronta, ela vai falar.
Depois de hesitar, solta um longo suspiro e me encara, aqueles olhos
castanhos envoltos numa vermelhidão.
— Sim, estou bem. Desde novinha que enfrento sintomas da
endometriose — começa, sua voz quase inaudível. — Então, quando tudo
veio à tona, achei que não era nada de mais. Até porque esse câncer é...
sorrateiro. Não tem sintomas claros.
Permaneço calado, mas inclino um pouco a cabeça, mostrando que a
escuto. Aperto suas mãos, incentivando-a.
— Não levamos muito a sério a possibilidade de contrair doenças
durante nossa vida sexual ativa, sabe? Só nos preocupamos em não ter uma
gravidez na adolescência, como se a possibilidade de adoecer não
acontecesse contigo, fosse só uma remota chance. — Lila solta um bufo e dá
de ombros, como se carregasse algo pesado sobre eles. — Bom, eu me tornei
parte da remota chance. Poderia ter sido pior, mas… só perdi o útero. Fui
diagnosticada cedo, então consegui me salvar. Quando minha ginecologista
disse que perdeu duas pacientes com menos de 35 anos para esse câncer, foi
como se o meu mundo tivesse desabado.
— Você teve que retirar o útero? Isso resolveu a situação?
— Sim, agora estou curada, é o tratamento comum quando o tumor
invadiu o colo do útero, mas ainda não se espalhou para os outros órgãos.
Quero dizer algo, mas percebo que o melhor é ouvir. Preciso saber
mais, saber se ela está mesmo curada e livre. Desconfio que o motivo do
término do noivado possa ter algo a ver com isso, mas ela terá que me contar.
Não vou forçar quando o assunto já é tão pesado.
— Eu ia anualmente à ginecologista desde os dezoito, desde que
comecei minha vida sexual ativa. Não esperava que 12 anos a mais exigiriam
que eu fosse pelo menos duas vezes no ano. Que estivesse atenta. — Ela para,
respirando fundo antes de continuar: — E aí… teve o fato de que não fui
vacinada contra o HPV. Na época, não existia campanha no SUS, era tão cara
a vacina particular e não havia conscientização sobre isso.
Lila respira, seus olhos encontrando os meus por um breve instante
antes de desviar para as mãos. Ela parou de chorar, mas é perceptível que
esse assunto mexe bastante com suas emoções.
Essa é uma Dalila que nunca vi antes, ela me apresenta uma parte de si
que me dá vontade de cuidar, de guardá-la sob minha proteção.
— Eu me arrependo de tanta coisa, Rafi. Das escolhas idiotas que fiz
quando era mais jovem. Eu deveria ter cuidado melhor de mim. — Sua voz
falha e ela engole em seco. — Deveria ter tomado decisões diferentes, até
com você…
— Como assim comigo?
Ela ergue o olhar e tenho medo do que dirá. Meu coração dói e bate
descompassado.
— Quero que saiba que nunca me arrependi daquela noite contigo,
Rafi. Nunca mesmo. Mas sabemos que foi um descuido quase transar sem
camisinha.
Um alívio me toma. Achei que ela falaria de outra coisa, como dizer
que nós dois juntos fomos um erro, ou que, sei lá, passei alguma doença para
ela.
Relembro as loucuras que falamos naquela noite.
— Juro que sempre faço com proteção, sou responsável com minha
saúde, mas porra… você é deliciosa, irresistível e está me deixando louco,
medusa.
— Só um pouco, vai… Faço tratamento para endometriose e a
medicação é anticoncepcional. Nós só temos essa noite.
— Parece que não vai ser suficiente, Lila.
É verdade que não fomos até o fim na penetração naquele dia. Foi uma
vez apenas, só para saber como era estar dentro dela e depois não penetrei
mais. Lembro disso tão bem que quase consigo sentir agora, na minha pele.
Maldita lembrança, minhas partes baixas não entendem que estamos
falando de um assunto sensível aqui. Me endireito na cadeira, pensando em
qualquer coisa que não seja Dalila.
O problema é que relembrar aquela noite não é uma boa ideia. Ainda
mais com minha mente tão fresca com o que aconteceu na cama durante
minhas conversas com Bel.
Fico encarando a parede, vidrado, distraindo meus sentidos e me
concentrando no quadro de fotos. Penso em futebol, basquete, naquele bug
terrível que deixou o site da Innoviagens fora do ar um dia inteiro.
— Não fica louco da cabeça, Rafi. — Ela bate os dedos nas minhas
têmporas quando percebe que estou divagando. O toque é leve, quase
brincalhão, porém, carregado de uma intimidade que não sabia que ainda
tínhamos. — Não estou te culpando, OK? Até porque posso ter tido o vírus
por anos e ele nunca ter se manifestado. De qualquer forma, retirar o útero faz
com que pare de se manifestar.
— Relaxa, Lila. Sei que não está me acusando de nada — pigarreio.
— É que você ficou com uma expressão estranha. — Inclina a cabeça,
me observando de um jeito curioso.
— Não fiquei, não. Impressão sua — desconverso e faço um esforço
para voltar ao foco. Depois, pergunto diretamente: — Então, deixa eu ver se
entendi bem, você acha que deixou de ser suficiente porque não tem mais
útero?
— Eu não acho, Rafi. Tenho certeza. — Sua resposta é firme, como se
tivesse repetido aquilo mil vezes.
— Lila, desculpa, mas agora eu que vou dizer. — Ergo minhas mãos e
repito as batidinhas nas têmporas que ela fez comigo. — Você só pode estar
louca da cabeça.
A sala está mais leve agora, como se o peso que pairava entre nós
tivesse se dissipado um pouco.
Lila solta um riso triste, mas ainda assim, um riso para mim e só meu.
Desço minhas mãos das suas têmporas e pouso em seus ombros tensos.
Começo a massageá-los devagar, sentindo-a suspirar profundamente.
Ela me encara e vejo algo profundo em seus olhos.
— O Samir me disse isso, Rafi. Ele adiou nosso casamento, achando
que eu mudaria de ideia sobre a maternidade. Nunca fui daquelas mulheres
que sonhavam com filhos, sabe? Nunca me vi como mãe ou decidi que não
queria ser. E quando o câncer me obrigou a escolher entre ser mãe e ficar
viva… Bom, eu fiz a escolha egoísta de ficar viva.
— Não foi uma escolha egoísta, Dalila. — Minha voz sai firme, quase
cortante. — Foi sua escolha e apenas você poderia tomá-la.
Ela balança a cabeça, como se ainda não estivesse convencida.
— Por que você achava que não tenho filhos até hoje, Rafi? Com trinta
e dois anos?
— Por que você é uma mulher empoderada que pode tomar decisões
sobre seu corpo? — respondo de imediato, sem nem pensar e tentando aliviar
o clima.
Dalila me lança um olhar incrédulo.
— O quê? O que disse de errado?
— Nada, esse é o problema. Você fica falando as coisas certas e isso
me enerva.
Minha risada escapa antes que eu consiga conter, e vejo um brilho de
irritação em seus olhos, mas é aquela irritação que não é tão séria. Aquele
brilho que só aparece quando a provoco.
— Eu não posso e nem queria ter filhos e Samir, sim. Não invalido
outras maneiras de ser mãe, como adoção e barriga de aluguel, por exemplo,
mas ele só queria se fosse dele e de forma convencional. E por conta da
endometriose desde novinha, também tive impactos na minha reserva
ovariana.
— E por isso ele terminou contigo. Porque queria que você fosse uma
incubadora — concluo e percebo a raiva aumentando na minha voz.
— Não o julgo, mas ele poderia ter me feito sentir menos descartada.
— Pois deveria julgar, sim, esse infeliz te tratou como se fosse um
grande nada! Era seu útero ou sua vida e ele queria que você escolhesse o
quê? Que babaca! Eu escolheria mil vezes você!
Por um instante, o silêncio volta à sala. Ficamos ali, encarando um ao
outro, as palavras que acabei de pronunciar se assentando, tornando-se reais.
Palavras essas que são verdadeiras, porém não deveriam ter escapado.
— Rafi…
— Nós nunca seremos completamente suficientes para ninguém. Somos
também as partes que nos faltam. Você acha que sou, Lila? — interrompo,
falando tudo que meu coração quer dizer. — Acha que desejo casar e ter
filhos? Tenho esses genes quebrados que não quero passar para ninguém.
Fora que não seria um bom pai ou marido, não daria a ajuda necessária. Seria
egoísmo colocar uma criança no mundo para cuidar de mim. Não quero ser
um fardo para ninguém.
Dalila se inclina mais para frente e suas mãos frias envolvem minha
mandíbula, carinhosas. Ela está tão perto agora que sinto a respiração quente
contra minha boca. Nossas testas se colam e fecho os olhos.
— Não fale assim, Rafi, você seria um pai e marido incrível. Sua
deficiência não te define como pessoa — sussurra Dalila e alisa meus cabelos
devagar. — Pare de ser capacitista consigo mesmo.
Como é possível, penso, que tanto eu quanto ela carreguemos o mesmo
trauma? A mesma noção errada de quem somos?
— Não seremos definidos pelo que nos falta, Santi.
Aquele apelido brotando dos seus lábios me abala como um terremoto.
Aquele apelido me lembra como é bom beijá-la, pois provei dessa mesma
boca que emite um som tão gostoso. Ela não sabe o efeito que esse apelido
tem em mim, porque ela não conhece minha relação com Bel.
Ou será que…
Devo estar imaginando coisas. Eu mesmo disse a Dalila naquela noite
que esse era meu apelido. Assim como disse para Bel e agora as duas
mulheres de que mais gostei em toda minha vida se mesclam novamente.
Sinto vontade de dizer tanta coisa para Lila. O meu coração urge para
contar que senti sua falta, que não foi só uma noite para mim, mas mantenho
meu orgulho.
— Sinto tanto pelo que você passou, nenita. Mas você importa e vale a
pena, sim.
Então, a abraço mais uma vez, para me impedir de fazer o que meu
corpo realmente queria: roçar meus lábios nos dela, como seis anos atrás.
A Mostra de Artes e Cultura
Dalila Deodato
Chegar atrasada a um evento escolar não é bem o que chamaria de um
desastre colossal, mas, com certeza, é o tipo de mancada que Miguel
lembrará quando for adolescente e ele vai jogar na minha cara.
“Lembra, tia Dalila, aquela vez em que você perdeu a melhor parte da
minha Mostra de Artes e Cultura porque ficou horas encarando o teto,
pensando em meu Tio Rafi, naquele seu amigo virtual e em probabilidades
estatísticas?”
Claro que ele não falará assim, até porque Mi não sabe que fiquei em
estado catatônico quando Santi me mandou aquela localização.
Em Entremontes!
Tudo bem que a cidade em que nasci é basicamente a mais famosa e o
cartão postal do estado e do Nordeste como um todo. É comum que os
estrangeiros venham para cá, conhecer as praias, o centro histórico e a parte
cultural.
Mesmo assim, fiz essa conta mil vezes na cabeça e as chances eram
mínimas. Nós dois caindo na mesma cidade é coincidência demais até para os
romances que Jade gosta de ler. Diria que é um roteiro muito conveniente.
Santi está em Entremontes e me convidou para o Café Coelho Branco,
simplesmente o local que mais amo nessa cidade inteirinha.
É uma cafeteria temática de Alice no País das Maravilhas, mas o nome
não é apenas por isso. Lá você pode tomar um café na companhia de
coelhinhos fofos. Os visitantes podem interagir com os animais, sentar-se no
chão e, por vezes, têm eventos de adoção responsável por lá.
Amo a Coelho Branco! Uma pena que decidi, depois de muito matutar,
que não irei.
Sou covarde, sim, mas algo me diz que já conheço Santi e não quero
tirar a prova. Vou fazer a egípcia e ignorar.
O que não dá para ignorar é a buzina que estronda bem alto atrás do
meu carro.
Ai, Jesus, o semáforo ficou verde e nem me atentei.
— Se meu carro estivesse aqui, dirigiria para você, medusa — comenta
Rafi, rindo, sentado no banco do passageiro. — Nesse passo, não vamos
chegar a tempo para a apresentação do papito.
Os dias passaram bem corridos e outro final de semana chegou. Em
breve, Jade e Dom voltariam da turnê acadêmica deles e esse transtorno
acabaria.
Ter noção das coisas que acho que sei agora tornou a relação com Rafi
um pouco diferente. Está tudo indo bem, a gente se respeita e tivemos um
momento de conexão legal com aquele abraço e a conversa emocionada sobre
sermos ou não suficientes.
— Seu carro é adaptado? — pergunto, curiosa.
— Sim, os pedais obviamente não são pedais. — Ele solta um risinho
enquanto conta. — Para acelerar e frear, uso as mãos mesmo, com alavancas
próximas ao volante.
— Então não tem embreagem?
— Não, a maioria dos carros adaptados tem câmbio automático.
Olho o relógio no painel do veículo e vejo que a Mostra de Artes da
escola do Miguel começou há uns 30 minutos. O trânsito ao redor do teatro
também não ajuda.
— Ai, Rafi, falei que a gente tinha que sair mais cedo!
— Você passou vinte minutos escolhendo o sapato e depois passando
sua maquiagem de Morticia Addams, Lila — provoca Rafi e sei que leva na
esportiva pelo tom da sua voz. — Mas, não… vamos botar a culpa no
cadeirante que precisa desmontar a cadeira.
— Você sabe que não tenho problema com isso, Santiago! — reclamo
sem deixar de rir, finalmente achando uma vaga para pessoas com deficiência
disponível. — E olhos pretos com batom vermelho é um CLÁSSICO!
Não levamos muito tempo entre manobrar o carro na vaga e tirar a
cadeira, e logo entramos no auditório, que está lotado! A Mostra de Artes e
Dança já acontece no palco, com pais animados na frente, tirando várias
fotos. Eles praticamente se acotovelam por conta do espaço abarrotado.
— Essa sorte dupla eu não teria. Achamos uma vaga para o carro, mas
o espaço reservado para PCDs está tomado — resmunga Rafi, algo que não é
lá muito normal para o homem sempre sorridente.
— Desculpa, Rafi. — Faço um bico, sabendo que ele não conseguirá
ver a apresentação do Miguel, considerando que tem muita gente em pé.
É aí que enxergo o que está em cima de nossas cabeças e tenho a
resolução. Manobro sua cadeira e levo Rafi para o elevador do saguão do
teatro.
— Lila, seria interessante primeiro me perguntar se quero ir antes de
me arrastar, mulher!
— Rafi, você quer ir para os camarotes do auditório ver tudo do alto?
— bufo e franzo os cantos da boca, de maneira divertida.
— Ora, mas é claro. E vamos logo, antes que a dança da turma do
papito comece.
— Mandão — resmungo e saio do elevador para a parte mais alta do
teatro.
Um segurança está na frente da entrada especial e, assim que nota Rafi,
apenas assente e nos permite entrar.
— Bom demais ter passagem preferencial. — Rafi se recosta na cadeira
e relaxa o pescoço no encosto, me olhando de baixo.
Aqui em cima não tem cadeiras, mas pelo menos, são poucas pessoas
debruçadas no guarda-corpo para assistir, então posiciono Rafi bem na frente
e fico de pé ao seu lado.
Palmas soam no auditório e outra dança infantil termina. Poderia dizer
que estou bem atenta no palco, mas, na verdade, minha mente viajou para
outros lugares, não muito longe.
Pego meu celular na bolsa e clico no ícone de panda, abrindo o 2lingo.
Noto que não respondi Santi ainda e ele tampouco me mandou outra
mensagem.
Ainda com o celular nas mãos, mudo o peso do meu corpo de um pé
para outro, inquieta, enquanto espero que Miguel entre no palco. Jade me fez
prometer que filmaria tudo do início ao fim, ameaçando até acabar nossa
amizade.
Repenso se devo enviar uma mensagem no 2lingo e tirar a prova da
minha dúvida aqui e agora, mas confesso que tenho medo da resposta. Dobro
um joelho e descanso o corpo para o lado esquerdo, me apoiando na parede.
— Medusa, você sempre tem um espaço aqui se quiser — diz Rafi e
bate nas próprias pernas num gesto brincalhão. — Não precisa ficar em cima
desses saltos em pé.
Quando entendo o que ele sugere, meu corpo esquenta.
— Nem pensar.
Porém, os minutos passam lentamente e nada da dança do Miguel
começar.
— Você prefere perder a apresentação do Miguel a sentar no meu colo?
— Rafi me encara, provocativo. — Porque, do jeito que você está balançando
nesse salto, não dou cinco minutos antes de você pedir arrego.
Suspiro, verificando ao redor e percebo que ninguém está nos olhando,
todas as atenções estão à frente.
— Só porque é pelo Miguel. E não tenta nenhuma gracinha.
Enquanto me ajeito no colo dele, Rafi deixa escapar um comentário
engraçadinho:
— O destino insiste em te colocar no meu colo, literalmente.
— O destino agora se chama Rafi Santiago Salvatierra, é? — rebato,
tentando ignorar a provocação e me ajeito para ficar de lado nas suas coxas.
O calor que sobe pelas minhas bochechas não é tão fácil de ignorar, no
entanto.
— Você lembra da última vez em que esteve tão perto assim?
— Rafi… Eu falei: nenhuma gracinha.
Ele ri e cruza os braços na minha frente, me envolvendo pela cintura e
pousando a lateral do rosto nas minhas costelas expostas pelo corte do
vestido que uso.
— Estou te abraçando para parecer mais que somos um casal.
Quase engasgo com a saliva, me segurando no guarda-corpo e, sem
querer, me remexo no seu colo.
— Por que você quer que pensem isso?
— Para essa nossa ceninha romântica fazer mais sentido.
— Não é romântica — bufo, soprando uma mecha de cabelo que
escorreu para meu rosto.
— Lila, não é usual que duas pessoas que estão apenas cuidando de um
sobrinho em comum fiquem se roçando como você está fazendo. — Agora,
suas mãos sobem para minha cintura e me apertam. — Fique quieta.
— Foi você que pediu que eu me sentasse aqui — reclamo e faço
menção de me erguer, mas Rafi me prende com as costas contra seu peito, a
mão espalmando o alto do meu estômago.
— Não tem como você se levantar agora, medusa. Só… — Rafi suspira
bem lentamente. — Só não se mexa, por favor.
Eu o obedeço com tanta rapidez que até me assusto. Sinto o subir e
descer do peito de Rafi, como se ele estivesse bem ofegante, do nada.
Então me lembro das instruções dele sobre as convulsões e fico
preocupada. Não é normal que uma pessoa fique assim, puxando o ar tão
pesado e do nada, é?
Desvio a atenção do palco, onde acontece uma apresentação de hip-hop
com vários adolescentes, para tentar fitar Rafi sobre o ombro.
— Você está se sentindo bem, Rafi?
Fito seus olhos castanhos e neles encontro luxúria.
— Muito bem, Lila. Eu te disse para ficar paradinha, não foi? —
Encosta sua boca no meu ouvido por trás e o movimento repentino me arrepia
como um choque. — Mas você continua se roçando em mim, parece até que
quer sentir algo muito incômodo que cresce aqui embaixo.
Minha cabeça dá um estalo novamente, em como essa conversa sensual
que Rafi tem é muito próxima do que costumo ler por mensagens.
Toda hora uma semelhança é jogada em minha cara e eu escolho
ignorar.
Poderia dizer que não é uma coincidência tão grande, mas tive minha
cota de encontros sexuais com pessoas de todos os gêneros e sexualidades, e
poucas combinavam tanto assim comigo. Essa sinergia de saber falar e gostar
de escutar sacanagem.
Por Deus, eu vou enlouquecer.
— Desculpa, Rafi.
— Não desculpo — sussurra ele, fitando o palco, impassível.
A música acaba e uma salva de palmas enche o auditório. Rafi
aproveita esse momento em que todos estão dispersos para invadir a lateral
do meu vestido vazado e espalmar minhas costelas nuas.
— Seria tão fácil puxar sua calcinha para o lado e te invadir com meus
dedos como estou fazendo nas suas costas agora, sabe, Lila? Tão fácil… quer
pagar para ver?
Suas palavras conduzem eletricidade que me toma por inteiro e me faz
pulsar onde não devia.
Balanço a cabeça em negativa, mas não pareço muito certa do que faço.
Estou em choque e excitada, e não consigo reagir, acho que meu cérebro
derreteu.
Meu celular escorrega da minha mão e me inclino para pegá-lo no ar,
na altura do meu joelho. Esse movimento mexe minha bunda no seu colo e aí
sinto aquele algo incômodo que ele comentou.
Rafi geme. E não só isso.
Ele geme alto, um som de alguém que sofre.
— Te machuquei, Rafi? Desculpa. — Desta vez, eu não me sinto nem
um pouco culpada. Meu pedido é sarcástico e falso.
— Caralho, Lila. Tenha um pouco de dó desse homem torturado.
Quando uma mulher sobe ao palco e começa a anunciar a próxima
apresentação como sendo do 1º ano do Ensino Fundamental, dou um pulinho
do seu colo e me ponho de pé, começando a filmar.
Salva pelo gongo.
O bosque
Rafi Salvatierra
Dalila está estranhamente alegre para alguém que acordou tão cedo e Bel está
sumida.
Mas a estranheza de Dalila não é aquela a que estou acostumado. É
como se a mulher estivesse me evitando, se fechou em um casulo e não me
deixa brechas para invadir sua armadura.
E, depois daquela nossa noite de conversa sincera e de abrir o coração,
seguida por aquele esfrega-esfrega no auditório, achei que as coisas poderiam
evoluir.
Não sei bem o que esperar dela e isso me tira do sério. Veja a nossa
situação atual: Dalila estava toda séria sentada ao meu lado em nossa cama
compartilhada, mas foi só pegar no celular que ficou de risinhos como se
lesse a piada do século.
Ela ri e nem é para mim. É um absurdo ter que presenciar isso. Bufo,
irritado, e cruzo os braços no peito, virando meu corpo na sua direção.
— Qual foi a piada, Lila? Me conta, também quero rir.
Eu não gosto de ser rabugento, mas a Bel não responde ao meme que
mandei e agora vejo a reação de Dalila toda derretida para seu telefone, como
se o amor de sua vida estivesse do outro lado da tela preta.
— Bom dia, Rafi. — Ela se direciona para mim, inclinando a cabeça
sobre o ombro e piscando de forma adorável. — Acordou de ovo virado?
Não entendo essa expressão idiomática do português brasileiro. Quando
disse que ele era melhor que o de Portugal, menti. O de Portugal, pelo menos,
é literal.
Só que aprendi o brasileiro, tudo para ouvir essa mulher gostosa que
usa um pijama que mostra aquele piercing maldito, dizer essas coisas em
sentido figurativo.
Meu ovo está virado?
Bom, virado eu não sei, mas com certeza está dolorido e roxo, de tanto
querer essa feiticeira e me negar por orgulho.
— Bom dia, Lila. — Jogo o lençol que cobre minhas pernas para o ar e
me giro no colchão. — Se me lembro bem, hoje você vai ser minha guia
turística, então vamos adiantar, larga esse celular aí.
— O que é isso, Rafi Salvatierra? Tá irritado?
Faço uma mímica copiando suas palavras com os lábios, mas sem soltar
nenhum som. Pareço ter a idade de Miguel, mas pouco me importo.
— Está com ciúmes dos meus contatinhos, é? — Dalila ri, provocante,
e quase escorrego da cama para o chão enquanto me transfiro para a cadeira.
Já no meu assento, viro-me de frente para ela e aí a expressão de Dalila
se fecha como uma tempestade de nuvens carregadas.
Ela não consegue disfarçar que me seca. Passeia pelo meu peitoral nu e
desce até o abdômen, finalmente chegando à minha virilha, coberta apenas
com uma cueca boxer preta.
Como ela dormiu antes na noite passada, não viu como me deitei, mas
agora fiz questão de mostrar.
— Que foi, medusa? Tenho uma expressão em espanhol para você
também: “El que ríe último, ríe mejor”.
Quem ri por último, ri melhor.
Feliz com sua reação embasbacada ao secar meu corpo, saio do nosso
quarto para acordar o Miguel. Teremos um grande dia de turismo
entremontino hoje.
Dalila Deodato
O local escolhido para levar tanto Rafi quanto Miguel é o parque
ecológico Bosque Verde. Recente atração turística na cidade, é um bom
passeio, pois além de ter várias atividades infantis, ainda é adaptado e
acessível para Rafi. Tem trilhas que serpenteiam pela mata, alguns lagos com
peixinhos que podem ser alimentados pelas crianças, jardins e até estufas.
O dia está ensolarado e, com muita dificuldade, termino de passar uma
segunda mão de protetor solar em um Miguel inquieto.
— Ai, tia, tá bom! Vou ficar todo melecado.
— Ainda bem que não preciso disso, nasci com muita melanina —
comenta Rafi, dando alguns giros despreocupados na sua cadeira enquanto
espera.
— Nananinão, senhor Santiago Salvatierra. Quem disse que pessoas de
pele negra não precisam se proteger estava muito errado, viu? — Ergo a mão
com o dedo em riste. — Pode ir passando o protetor, você também. O sol está
de rachar.
— Só se você passar em mim, Lila. — O sem-vergonha ergue as
sobrancelhas.
— É, tia! Passa no tio e eu vou escolher aqui no mapa qual bichinho
vou ver agora! — Miguel brade o papel todo dobrado no ar e se esconde
atrás, examinando os desenhos.
Despejo mais creme na palma das mãos e me aproximo de Rafi,
pintando sua face com as pontas dos dedos melados de branco com riscos nas
suas bochechas e testa.
— Vai, agora você espalha, está muito crescidinho para precisar de
ajuda.
— Não, Lila, e se eu deixar cair nos olhos? — O homem de trinta e
poucos anos faz um bico! Um bico!
Reviro os olhos, mas não me contenho. Não vou negar que quero
mesmo continuar a tocar Rafi. Vou passando o protetor gentilmente no seu
rosto e, quando desço as mãos para o pescoço, vejo de perto a sua tatuagem
de raios.
Por Deus, por que tatuagem no pescoço tem que ser tão sexy, hein?
Quase deixo o frasco cair no chão, de tão compenetrada que fico com
os riscos em sua pele, mas como uma boa guerreira, finalizo essa tarefa sem
ceder aos encantos.
— Já sei! Quero ver os cavalos dálmatas! — Miguel salta do banco,
animado, e coloca o mapa embaixo do braço.
Rafi gargalha e pego o mapa para saber sobre o que Mi está falando.
— Dálmatas são cachorros, papito. Não cavalos.
É minha vez de gargalhar.
— Ele tem um ponto. É que o cavalo na foto é preto com manchas
brancas. Olha aí, monstrinho, fez uma boa escolha. A trilha dos cavalos é boa
pro tio Rafi também. Não tem pedras nem buracos.
Rafi me olha e um sorriso desponta em seus lábios.
— Podemos ir logo? — pergunta Miguel, dando pulinhos no lugar.
— Vamos, capitão! Estamos às suas ordens — responde o tio, fazendo
um gesto como se fosse um guarda prestando continência.
Mi corre à frente, enquanto ajudo Rafi a empurrar sua cadeira na rampa
de acesso à trilha.
— E aí, gostou do bosque? — pergunto, deixando agora que ele se
movimente ao meu lado.
— Aprovado, por enquanto.
Miguel entra num jardim, parte do caminho para o haras e apenas
seguimos o capitão do passeio.
— Miguel, espera a gente, não pode correr na frente assim!
Ele freia de frente a um lago pequeno e volta quase se arrastando para
nos acompanhar.
— Desculpa, tia Dadá. É que estou muito animado. Será que lá tem
pôneis?
— Deve ter, sim, mas primeiro, vamos ver essas plantas aqui, ó.
O jardim em que entramos tem ervas aromáticas, flores e plantas
medicinais e ao lado de cada uma, há uma plaquinha explicando sobre seus
usos e propriedades terapêuticas.
Seguro a mão de Mi e começo a ler as placas para ele e, por incrível
que pareça, meu sobrinho fica entretido. Acho que deve ser pela alfabetização
e o interesse recente por letras.
Passamos um tempinho andando pelo jardim, até que percebi que Rafi
sumiu. Procuro ao redor, mas não o encontro e fico intrigada.
Onde ele pode ter ido tão rápido assim?
Pego meu celular para ver se ele mandou alguma mensagem, mas não
tem nada. Só a notificação do 2lingo, que me lembra o meme sobre
pansexuais que Santi me mandou pela manhã.
O meme era a imagem de dois bonecos pintados nas cores da bandeira
pan, um deles tinha a face entediada e estava segurando o outro como se
estivesse em uma coleira. Dizia: “Existem dois tipos de pessoas pan. O que
odeia piadas do tipo ‘atraído por panelas’ e aquele que não vai parar de fazê-
las nunca”.
É óbvio que eu era o entediado e Santi, o endiabrado piadista.
Não evito um sorriso, assim como fiz mais cedo, com Rafi ao meu lado
na cama. Santi tem sempre uma piada na ponta dos dedos e, outra vez, o
pensamento incômodo me cutuca.
Quanto mais comparo os dois, mais percebo traços em Santi que me
lembram Rafi.
Hipóteses brotam na minha mente. Será tudo uma grande coincidência?
Mas, se eles são a mesma pessoa, como explicar a reação ciumenta de Rafi
quando me viu rindo para o celular?
Deve ser coisa da minha cabeça mesmo. Não tem como um cara tão
inteligente como Rafi não ter feito as correlações antes. Estou vendo
conexões onde não tem porque Rafi mexe comigo. Ele sempre mexeu,
mesmo que eu tente negar.
Saio dos meus pensamentos profundos, passo pelas flores e ervas
aromáticas com Miguel ao lado, até que chegamos às plantas medicinais no
final da trilha do bosque.
— E essa letra aqui, Mi, você sabe qual é?
— É a letra A! — ele responde feliz quando vê que estou apontando
para a placa escrita “Aroeira”. Quando andamos mais um pouco, passamos
pela Babosa, outra planta medicinal — E logo depois dela, tem o B!
— Muito bem, mini-humano, está sabendo tudo.
— E na letra C, temos a cannabis sativa! — fala Rafi, aparecendo
novamente na trilha principal, mas vem pela nossa frente, como se tivesse
dado a volta no jardim.
— Tio Rafi! — exclama Miguel. — Onde você foi? Queria te mostrar
os peixinhos ali do lago!
Percebo que Rafi saiu de um atalho estreito lateral e franzo o cenho. Ele
se aproxima sorrateiro e com um sorriso travesso. Além de tudo, sinto um
cheiro bem suspeito nele, nada a ver com o perfume amadeirado que deixou
no quarto enquanto se arrumava.
Não que eu estivesse cheirando de propósito!
O tio segue o sobrinho e, quando param numa parte da trilha, Rafi tenta
parecer atento às coisas que Miguel lhe conta, mas percebo a diferença no seu
comportamento. Está mais avoado e usa menos força nos braços para
manipular a sua cadeira.
Chegamos até o haras e sim, tem pôneis e, pelo que parece, é permitido
que as crianças brinquem com os filhotes. Deixamos Miguel numa fila de
crianças que se forma para a entrada dos estábulos.
Encosto em Rafi num canto distante e puxo sua camiseta para o lado,
chamando sua atenção.
— Ei, medusa, nada de tentar tirar minha roupa aqui. Se controle,
mulher.
Sim, Rafi está estranho. Tudo bem que ele é normalmente safado e
gosta de falar coisas constrangedoras, mas sua voz está mais arrastada e os
olhos avermelhados.
Coloco ambas as mãos nos seus ombros e sinto a maciez da sua blusa
de algodão marrom e oversized. Rafi nem disfarça que segue a linha do meu
decote quando me inclino para colocar meu rosto na altura do dele.
— Rafi, espero que você não tenha se perdido no bosque naquela saída
nada discreta.
Ele abre os dentes num sorriso que cresce à medida que ele levanta o
olhar para me fitar. Sim, ele ainda estava lentamente olhando onde não
devia!
Ele se aproxima, pousa os lábios no meu lóbulo e sussurra:
— Não me perdi. Na verdade, achei algo interessante, Lila.
E foi com a nossa proximidade, com sua boca tão perto e os dedos
ásperos traçando meu maxilar, que me dou conta.
Rafi Santiago Salvatierra está chapado.
Os 99,8%
Rafi Salvatierra
Miguel brincou tanto com os pôneis e as outras crianças que só foi entrar no
carro de Dalila na volta para casa, que capotou. E agora, ninguém pode
interferir no meu destino.
Acho que, desta vez, eu não me livro. Não passarei ileso à ira de Dalila
Deodato D’Angelo.
— Meu Deus, Lila, você vai me matar? Então, é desse jeito que
encontrarei a morte? Nas mãos de uma mulher bonita?
Sei que estou com a língua solta, mais do que o normal, porém Dalila
não pode me culpar. Ainda que eu quisesse ficar em casa por conta das dores,
fui até o bosque com ela e Miguel; não queria fazer essa desfeita com a Lila.
Mas meus nervos estavam me matando e, se você acha que sabe o que é
sentir dor, experimenta viver neste meu corpinho, que criou tolerância à
morfina. Antes, eu conseguia controlar as crises de dores sem sedação, mas
hoje só me derrubando com doses altas.
Não tomaria morfina para perder o dia inteiro na cama, logo a saída foi
o canabidiol. Na verdade, a maconha mesmo. Não foi nada difícil de
encontrar, só precisei ligar para Diego, um dos desenvolvedores da
Innoviagens e um amigo próximo e voilà!
A cara dela está avermelhada e não é do sol que tomamos pela manhã,
tampouco de vergonha por algo que falei. Dalila está realmente louca da vida
comigo.
— Caralho, medusa, você vai comer meu cu com farinha!
Ela me belisca de leve nos bíceps e sibila para que eu fale baixo,
olhando para o banco de trás pelo retrovisor.
— Vou, sim, Rafi! Para de falar palavrão, o Miguel pode acordar e o
que Jade e Dominic vão pensar quando voltarem e o filho deles estiver
falando essa palavra de duas letras?
— Você percebeu que acabou de confirmar que vai me comer com
farinha, né?
Ela belisca de novo antes de colocar a mão direita novamente no
volante.
— Bem que você queria!
— Promessas, promessas, Dalila Deodato. Depois terá que cumprir.
— Rafi, você fumou um baseado escondido! Enquanto estava de babá
do seu sobrinho! E ainda quer dizer que é o melhor tio. Sou a melhor e a
favorita.
— Relaxa. O Miguel não sabe nem o que é babosa, quanto mais
cannabis.
O efeito está passando, não costumo demorar muito chapado, mas mal
sinto quando chegamos no condomínio, depois de um longo dia passeando no
bosque.
— Eu não estou com raiva de verdade e nem por você ter fumado,
afinal seria jogar pedra no meu teto de vidro, eu só fiquei… — ela faz uma
pausa e olha pelo retrovisor enquanto coloca seu carro na vaga. —
Preocupada. Você sumiu e aí pensei que… sei lá.
— O quê?
— Que algo aconteceu e não pude te ajudar.
A realidade das suas palavras bate em minha cara como um tapa. Ela
pensou que tive uma crise? Dalila estava preocupada comigo?
— Desculpe por te preocupar, Lila. Mas é comum para mim, inclusive
é bom para minhas dores.
— E por que nunca vi você fumando antes?
— Evito fazer na frente do Miguel, ou na sua também. Sei que pode
incomodar.
Ela sai do carro, pegando a cadeira para botar na minha frente e ajudar
a montar. Dá de ombros assim que se agacha, mexendo nas rodas.
— Eu não ligo. Mas é melhor não fazer na frente do serumaninho
mesmo.
— Temos um acordo. — Me transfiro para a cadeira à frente e ajeito
meu quadril na almofada.
Enquanto espero para subirmos juntos, Dalila tira o papito do banco
dos fundos e ele se mantém adormecido.
— Você sabe que teremos que acordar ele, não é? — lamenta, com
Miguel no seu colo.
— Nada disso, ele pode dormir assim. Não vai matar uma noite com o
pé preto.
— Dominic deixou bem explícito na lista, Rafi — relembra Dalila,
entrando atrás de mim no elevador. — Se não toma banho para sair, toma
para voltar.
— Essa regra nem faz sentido. O Nic não está aqui, o papito está sob
nossa direção e eu digo que ele vai dormir.
— Mandão.
— Parece que você gosta, pois sempre acata o que digo, Lila —
provoco.
Dalila sorri sem querer com a ambiguidade de minha resposta e,
quando percebe, morde o lábio inferior e impede o riso de sair.
Mal sabe ela que essa mordida no lábio só piora minha situação.
Quando o elevador chega ao andar, deixo que ela saia na frente.
Quem precisa de um banho aqui, sou eu.
E dos frios.
Mas, de nada adiantou nossa discussão, pois quando chegamos, Dante
latiu tanto em protesto por não termos o levado para o bosque que Miguel
acordou.
Então, sua tia ficou encarregada de ajudar a dar banho nele e, enquanto
eu esperava, resolvi fazer algo doce para comermos.
Apesar de a cozinha não ser adaptada, opto por algo fácil. Só misturar
os ingredientes e usar o forno, que, por sorte, é mais baixo e acessível. Não é
o ambiente ideal, mas eu me viro, como sempre.
Focar no que dá certo e não no que me falta.
Nas noites em que não vou para a dança, ficamos na sala assistindo aos
filmes com Miguel até que o menino durma. Trocamos olhares para ver quem
vai levá-lo para o quarto, meio que virou uma batalha entre nós dois.
Ficamos o máximo de tempo possível na sala, ou na varanda, em
qualquer lugar da casa para evitar irmos para o quarto juntos.
Não sei o que pode acontecer, mas é sempre melhor que o outro só
chegue depois. Vai que Dalila começa a gemer de novo enquanto dorme…
Ou gemer acordada mesmo.
Queria muito fazer Lila gemer de novo, só que de olhos abertos,
plenamente focados em mim.
O alarme do meu celular toca para tirar o brownie do forno. Antes que
possa me movimentar, Dalila vem do corredor, entrando na cozinha.
— Deixa que eu tiro.
Coloca uma luva protetora, abre o forno e, quando levanta a forma de
bolo retangular, cheira o doce.
— Hum, que cheiro bom.
— É, e ainda é zero lactose. Fora o ingrediente especial. — Ergo as
sobrancelhas, sugestivo.
Será que devo dizer que o brownie está batizado?
Dalila me encara desconfiada e sente de novo o cheiro da fornada.
— Você fez brownie de… — sussurra o início e o final apenas leio nos
lábios dela, como se tivesse mais alguém aqui para nos ouvir. Depois, dá de
ombros aceitando a situação — Na real, diante do que vamos assistir agora à
noite, melhor ficar um pouco louco mesmo.
— E o que iremos ver?
— Black Mirror — Lila responde e algo balança em mim, um furacão
de lembranças me tomando.
Dalila Deodato
Não tem maneira melhor ou certa de falar isso, mas Dalila Deodato está
chapada. E ainda está falando na terceira pessoa.
Veja bem, meu último contato com a erva foi quando eu ainda estava
no mestrado e agora, com o metabolismo do meu corpo, de mais de trinta
anos, não esperava que os efeitos seriam tão severos.
Estou chapada. E para piorar, excitada para cacete.
Tudo por este homem!
Este maldito homem não tinha o direito de estar aqui em minha frente e
ainda ser um desgraçado inteligente que sabe falar as coisas certas nas horas
devidas.
Minha mente dá um nó e nem é pela série de ficção científica que
assistimos juntos. Finalizamos a sexta temporada de Black Mirror e, por
conta dos brownies, não consegui focar tanto, mas fiquei relaxada e quase
derretida no sofá ao seu lado. Pensando em como essa é mais uma
similaridade entre Rafi e Santi que não posso ignorar.
A vontade que cresce em mim é de abrir a boca e apenas perguntar.
Parar de especular, de imaginar coisas e somente jogar a real.
“Rafi, por acaso, você usa um aplicativo de idiomas e tem uma amiga
que se chama PalabrasDeBabel e ocasionalmente troca nudes com ela, além
das mensagens safadas no meio da madrugada?”
É óbvio que não digo.
Ao fim do último episódio, saímos do sofá para a varanda e Rafi está
fumando, recostado na sua cadeira. Ele me contou que passou o dia com
dores nas pernas e a dor melhorava um pouco com o uso da cannabis.
Eu me balanço na rede e sinto a brisa fresca e com cheiro de mar que
vem do litoral de Entremontes. Quando inclino meu pescoço para o lado,
flagro Rafi me olhando também.
A cena toda poderia ter saído de uma fantasia muito particular minha.
Rafi usa um durag que cobre seus cabelos, como toda noite. Está sem camisa,
como todo dia. E para piorar, leva o cigarro aos lábios grossos, que sei que
são macios, traga por alguns segundos e olha fixamente para mim, soltando a
fumaça no ar.
É de tanto encarar a sua boca que a pergunta sai sem meu controle:
— Por que você tirou os seus piercings?
Rafi nem parece surpreso com minha curiosidade.
— Quando eu ia para a UTI, precisavam tirar qualquer joia do meu
corpo, mas sempre estava inconsciente e quando acordava, estava sem eles.
Parei de colocar de novo na última crise.
Ele diz com simplicidade, como se fosse algo usual comparecer à
unidade de terapia intensiva.
— Ah, desculpa por perguntar.
— Não tem problema, medusa. Você gostava deles?
— Provável que na mesma medida em que você gostava do meu. —
Escolho não responder diretamente, lembrando de como ele falou do furo do
meu umbigo naquela noite.
— Gosto.
— Hã? — me finjo de desentendida.
— Você falou no passado, está errado.
Simples assim, ele consegue aumentar o nível de tesão que consigo
manter nesse meu pequeno corpo de 1,65 m.
— Posso fazer outra pergunta?
— Você fica muito tagarela e curiosa quando está chapada, medusa —
ri e se recosta, apoiando o cotovelo no braço da cadeira, me passando o
baseado. — Claro que pode.
Pego o cigarro do local entre os seus dedos e sinto aquele choque
gostoso que sempre acontece quando nos encostamos.
— O que aconteceu com sua voz? — indago, após soltar a fumaça.
Refiro-me ao timbre, que ficou mais rouco. Rafi fala diferente de seis
anos atrás e a impressão que tenho sempre que ele se comunica é como se
estivesse cansado ao falar.
— A GB, quem mais seria? — Dá de ombros, resignado. — Fiquei
muito tempo entubado, então piorou a situação, mas como ela enfraquece os
músculos, atingiu um pouco minhas cordas vocais também.
— Meu Deus, Rafi, me desculpe, todas as minhas perguntas te fazem
lembrar desses momentos. Vou só calar a boca.
— Não tem problema, nenita. — Ele solta um riso fraco e nem parece
perceber que usa o apelido, tragando novamente o cigarro que lhe retornei.
O silêncio nos faz companhia por alguns minutos enquanto encaramos
o céu estrelado e a lua em sua fase crescente no céu. Apenas meu celular está
tocando baixo a lista de reprodução que chamo de “Relax”. É confortável
ficar assim com Rafi e o balanço da rede faz parecer que estou num navio em
alto mar.
— Você acha que, se a gente estivesse em uma simulação, nosso
número daria 998 também? Será que a gente resistiria? — Rafi começa a
divagar do nada, relembrando o episódio de Black Mirror. Sei bem qual
episódio é. — Ou você ia desistir de mim lá pela quinta tentativa?
— Quem pode dizer que seria eu a desistir? — Me ergo na rede e viro o
tronco na sua direção. — Poderia ser você quem jogasse a toalha. Você não
sabe como sou num relacionamento amoroso, Rafi.
Ele emite um muxoxo.
— Duvido muito, Lila. Se nossa vida fosse uma simulação para
comprovar que combinamos como casal, eu teria quebrado todas as regras
para garantir mil pontos para nós dois.
Espero que as palavras se assentem. Deixo que minha mente raciocine a
sua intenção. Traço redes e linhas para fazer meu cérebro compreender
aquela declaração. Minha cabeça gira um pouco, mas não é consequência de
nenhuma substância.
Gira porque só Rafi está presente nela, apenas aquelas palavras
românticas que não têm distinção no espaço-tempo. Poderiam ter sido ditas
esta noite ou naquela de seis anos no passado.
Não preciso ser fluente em espanhol ou português para entendê-las. Só
preciso ser fluente na linguagem de Rafi. Ele diz que teria tentado.
Rafi teria tentado ficar comigo. Teria insistido, mesmo que eu fosse
chata, mesmo que eu não soubesse lhe amar do jeito certo. Dias atrás, ele
disse que me escolheria, mesmo que não tivesse mais útero.
Eu o abandonei. Fugi e nem sequer nos dei uma chance.
Chega de fugir.
Levanto da rede com determinação e caminho os poucos passos até que
meus joelhos toquem os deles.
Rafi me fita, ansioso e sem saber como reagir, mas dá para notar que
seus olhos castanhos pegam fogo, num tom de marte: marrom, vermelho e
quente.
O toque
Rafi Salvatierra
E se eu e Dalila fossemos os protagonistas? Testados, separados, mas
inevitavelmente atraídos de volta um para o outro?
Não conseguia evitar pensar no episódio Hang the DJ. O mesmo
episódio de Black Mirror que indiquei para Bel assistir alguns anos atrás.
O episódio contava sobre um sistema que simulava milhares de versões
de um casal para testar se eles realmente pertenciam um ao outro. Como o
Tinder, só que melhor.
Os protagonistas enfrentam separações e um ciclo interminável de
relações bem ruins, tudo para provar sua compatibilidade.
No final, eles desafiam o sistema e bom… Não vou dar spoilers, mas
Dalila me fez pensar novamente nesse enredo.
É isso, eu passei dos limites.
Ótimo, Rafi, você conseguiu assustá-la. Não sabe ficar calado por um
minuto?, brigo comigo mesmo.
Sei que ela me dará as costas mais uma vez, tudo porque não sei manter
esses malditos sentimentos guardados a sete chaves em meu coração.
Sinto o estômago afundar quando ela se levanta abruptamente. Estou
prestes a inventar qualquer desculpa esfarrapada para suavizar a fala, para
fingir que não é sério, sendo tudo uma grande brincadeira… Quando percebo
que Dalila não foi embora.
Pelo contrário, ela dá alguns passos decididos e, antes que eu possa
reagir, Lila pousa o joelho sobre minha coxa, inclinando-se para ficar de
frente comigo na cadeira de rodas.
A Medusa tatuada em sua perna se destaca quando ela faz esse
movimento e seu cheiro de tangerina me inebria. Ela está tão perto, tão perto
que consigo tocá-la.
— Toque — é a ordem que sai da boca de Dalila e me dou conta de que
falei em voz alta.
O mundo encolhe e todo o universo concentra-se apenas nela, nas suas
mãos, apertando minha nuca, na intensidade dos olhos escuros que buscam os
meus. A música lenta que sai do celular dela é apenas um ruído.
Eu estava sonhando.
— Onde devo tocar?
— Onde quiser, Rafi. Você já conhece o caminho.
Engulo em seco, meu corpo numa mistura de nervosismo e tesão na
mesma medida. Além daquele sentimento, que sempre é o último a morrer: a
esperança que crescia no meu peito.
Dalila demonstra uma impaciência que nunca vi antes, ergue um braço
meu e coloca minha mão direita espalmada na sua bunda.
Com a outra, leva meu polegar e indicador devagar até a boca e traga o
resto de cigarro direto dos meus dedos. Com esse movimento, seus lábios
roçam as pontas e sinto que eles estão molhados.
Sim, era um sonho. Um sonho erótico. E eu estava dormindo na mesma
cama que Dalila. Tinha que acordar.
Ela deixa a baga apagada na mesinha de centro da varanda.
— Não é um sonho, Rafi — declara Lila, inquieta, enquanto aperta as
coxas uma na outra. Ela também está com tesão, dá para notar em todo
movimento seu. — Posso me sentar?
As suas mãos rodeiam meus ombros nus, ela alisa a região dos meus
trapézios, costas e então dedilha o meu peitoral.
— Você tem permissão eterna para montar no meu colo, Dalila. Não
entendeu ainda? — Minha voz sai embargada, meu corpo finalmente reage e
ganha vida. Aperto suas nádegas com as duas mãos, com força. Isso faz seu
corpo vir todo para frente e ela me monta. — Nas minhas fantasias, você está
sempre por cima.
— Não sabia se você ainda iria me querer.
— Eu te quero agora, Dalila. Estou começando a desconfiar que nunca
deixei de querer.
Encontro um abrigo para meu rosto entre seu pescoço e ombro. Quando
encosto meus lábios naquele ponto logo atrás da orelha dela, Dalila treme sob
meu toque. Nos meus dedos que traçam sua coxa nua, consigo sentir que está
arrepiada.
Mordo e depois chupo de leve, sem conseguir conter minha vontade,
sem conseguir acreditar que ela está nas minhas mãos novamente.
Toco Dalila com a ânsia de um homem que teme perdê-la. Esfrego meu
nariz pela linha do seu maxilar, deixo um beijo no seu queixo e ela geme tão
gostoso. Seu arfar encontra minha respiração ofegante, ansioso pela
eminência do que está prestes a acontecer.
Quando Dalila se remexe no meu colo e sinto sua boceta atritar contra
minha ereção, é o fim para mim. Meu coração bombeia forte e me sinto
tremer. Se é assim que vou desta para melhor, aceito o destino.
Dalila coloca ambas as mãos atrás de minha cabeça e eu a seguro pela
nuca e cintura.
— Abre os olhos, Rafi, por favor.
Obedeço, nem percebendo que estava com eles fechados.
— Quero que veja, para que não se esqueça. Veja que também te quero.
Não é um sonho — Lila diz essas últimas palavras contra meus lábios e me
beija.
Poderia dizer que foi suave, mas não foi. Nos beijamos como se isso
estivesse nos faltando há anos e parece que estava mesmo. Nossas bocas se
encaixam como velhas amigas se reencontrando, mas também disputando
quem sentiu mais saudades.
Dalila suga minha língua e eu mordo seu lábio. Durante todo o beijo,
ela rebola desajeitada no meu colo e seguro seu quadril para ajudá-la a se
firmar, e isso só piora a pressão em cima do meu pau.
Gemo dentro da sua boca e sinto Lila agarrando minhas costas com
força, suas unhas grandes deixando marcas.
— Desculpa… — Ela se afasta um centímetro.
Seguro seus cabelos curtos e a puxo de volta.
— Porra, não se desculpe, Dalila. Essa é a dor que gosto de sentir.
O beijo continua e é como estar no centro da terra, queimando. Dalila
se joga em mim, seus seios colam ao meu peitoral e nos inclinamos para trás
em minha cadeira. Por um segundo apenas, ela se desequilibra e quase
caímos juntos ao chão, pelo balanço inesperado.
Ela solta um gritinho contra minha boca e depois, um riso exagerado.
Eu a acompanho, sem segurar a gargalhada que escapa. Tenho que lembrar
de que ainda estamos meio chapados, por isso até o ar é engraçado.
— Acho que sua cadeira não aguenta o tranco, Rafi.
— Não poderia me importar menos, Dalila. Se quiser, você fura até os
pneus, só fica aqui.
Abraço-a pela cintura, puxando-a ao encontro do meu peito. Ela se
senta de lado em meu colo e me envolve pelo pescoço.
— Quer ir para a rede comigo? — indaga ela, beijando a minha
clavícula.
— Não, quero ir para cama — é o que respondo, ao sussurrar e morder
o lóbulo dela.
Dalila parece considerar e até acho que aceitará, mas é o barulho de
notificação que vem de algum celular que nos joga de novo para a realidade.
Ambos levantamos as cabeças abruptamente, alertas ao som.
O som do lembrete de ofensiva do 2lingo.
Putz, deve ser algo da minha cabeça, estou mesmo chapado e pior,
viciado nesse aplicativo.
Dalila pula do meu colo e me encara como se me visse apenas agora.
Como se eu não fosse a pessoa que ela estava beijando até perder os sentidos
um minuto atrás.
E então, pega seu telefone e, só depois de me lançar um olhar sóbrio e
assustado, ela me dá as costas e corre para dentro do apartamento.
A missão secreta
Dalila Deodato
Rafi dormiu no sofá e mais uma vez me senti um zero à esquerda nessa nossa
relação conturbada.
Eu disse antes que não era covarde?
Bom, retiro o que disse.
Quando a notificação do 2lingo soou do meu celular, congelei por
inteiro, o que foi bem difícil, considerando que meu corpo queimava de tesão
por Rafi.
Foi como um chamado da realidade, me tirando daquela bolha em que
me meti quando comecei a me agarrar com ele na varanda.
Sabe a maldita intuição? Parei de acreditar nela quando comecei a
perceber que às vezes não era um aviso, era só paranoia que minha cabeça
tinha criado.
Mas desta vez, acho que não é paranoia. Desta vez, acho que estou
certa e quero tirar isso a limpo.
Marco com Santi na cafeteria amanhã. Sei o que esperar, mas posso me
surpreender com quem encontrarei lá.
Sei que amanhã é dia de Samir aparecer na Safetech, por isso vou levar
meu notebook e trabalhar na Coelho Branco, após levar Miguel na escola.
Será a última terça-feira que passarei como babá do Mi, considerando que
Jade e Dom voltam no próximo sábado.
Se Santi do 2lingo for mesmo Rafi Santiago Salvatierra, terei que
conviver poucos dias ciente desse fato ao seu lado, sob o mesmo teto.
Sempre soube do perigo que era me aproximar tanto assim dele, a noite
de ontem foi apenas a prova do que podemos ser juntos. E do potencial de
destruição que posso ter para um homem tão bom e devotado.
Desde Punta Cana, dá para ver que Rafi é uma pessoa apaixonada. Não
no sentido romântico apenas, mas também nesse: o discurso para seu irmão
durante o jantar, a forma como recebeu a notícia de que seria tio. O jeito
como ele me olha, me beija e fala de mim como se eu fosse preciosa.
Quero tanto acreditar, mas a mesma força que me impele aos seus
braços, me repele para longe. Não sou feita para namorar, romantismo ou
casamento. Sequer acredito que mereço.
As palavras de Samir ecoam sem controle na minha cabeça:
“Você é tão fria, Dalila. Estou aqui aos seus pés, dizendo que esse é o
fim do nosso relacionamento, do nosso futuro e você sequer deixa uma
lágrima cair.”
“Minha forma de ser amado é com toques, com demonstrações diárias,
com sacrifícios. Apenas sua presença e apoio não bastam. Saiba que sua
indiferença nos matou.”
Quando comecei a namorar Samir, acreditei que estivéssemos na
mesma página. Ele também parecia um espírito livre, que combinava comigo.
Mas é verdade o que falam: homens se atraem por mulheres independentes e
que voam, mas apenas para colocá-las em gaiolas.
Não me considero fria, só acho que o romance e o casamento não
precisam ser o que mais importa na vida de uma mulher. A família nuclear
importa, as amizades importam e a minha carreira também.
Tento esquecer dessas lembranças, retornando para o presente. É início
de noite e volto do passeio no parquinho com Dante e Miguel. Ainda um
pouco distraída, me deixo ser puxada pela guia do cachorro, que parece
inquieto.
É quando viro a esquina tentando acompanhar, e com o cachorro quase
me arrastando pela coleira, que o vejo à distância. Rafi está saindo do prédio,
para mais uma das suas fugas noturnas misteriosas.
Enrolo a coleira de Dante no pulso e pego Miguel no colo, apesar de ele
não gostar muito. Mi é independente e gosta de sair andando sozinho, mas
preciso ser cautelosa neste momento.
— Tia Dadá, eu não quero, quero andar de mãos dadas — reclama,
batendo as perninhas.
Urgh, como aquele pequeno humano estava ficando pesado.
— Meu amor, vamos brincar de uma coisa diferente hoje? — sussurro
na sua orelha. — Se chama Pequenos Espiões. Somos agentes secretos e
temos que nos esconder.
— Ninguém pode nos ver? — sussurra Miguel de volta, animado com a
brincadeira.
— Isso, ninguém. — Coloco o indicador nos lábios, pedindo para fazer
silêncio.
Ninguém deve nos ver, mais especificamente Rafi Santiago. Só que
Miguel não nota a presença do tio do outro lado da rua, então não vou
entregar nossa posição.
Passo a andar devagar atrás de Rafi, alguns bons metros nos separando
e vejo que ele entra no centro comercial do bairro.
Sigo seus passos até um largo e o vejo de frente a uma porta, abraçando
um casal belíssimo, um homem e uma mulher, e de maneira muito amigável.
Amigável até demais, na minha opinião. Aquela cena que presenciei há
seis anos volta com tudo.
— Que coisa feia… — Estreito os olhos e solto um grunhido, sem
querer.
Distraio-me com a imagem, ficando estática. É neste momento que
perco o fio da meada e escuto Miguel gritando:
— Olha, é o titio!
Ai, meu Deus, a criança é dedo-duro.
Viro de costas e escondo nós dois atrás de uma pilastra. Mas de nada
adianta, porque Dante começa a latir e puxar meu braço com força, a guia se
esticando e entregando nossa posição.
— Mi, o que eu te disse sobre ninguém nos encontrar, monstrinho? —
sussurro, apertando-o contra meu peito, enquanto observo os arredores,
tentando evitar que nos notem.
— Mas é o tio Rafi, não é ninguém! — fala a criança, ainda mais alto,
se possível.
É neste exato instante que Dante dá um puxão e sinto a alça escorrer
pelos meus dedos. O cachorro corre pela sua liberdade e vai diretamente para
Rafi.
Ele percebe a comoção e olha ao redor, franzindo o cenho em busca de
onde o vira-lata dedo-duro veio. Com um sorriso largo, fala algo para o casal
ao seu lado e começa a girar sua cadeira na nossa direção, parecendo
despreocupado.
Dante acha que tudo é uma grande brincadeira e segue a cadeira de
Rafi, mordendo o pneu como se fosse um brinquedo. Quando chega à nossa
frente, finjo ser uma estátua e evito contato visual.
— Miguel, lembra da missão, somos espiões e estamos invisíveis —
cochicho no ouvido do meu sobrinho.
— Nossa, posso jurar que vi meu sobrinho preferido por aqui, será que
me enganei? Logo hoje que tinha uns doces para dar a ele. — Rafi faz o
teatro e finge procurar por nós.
Miguel bate as perninhas inquieto e não resiste:
— Sou eu, tio, o Miguel! — grita, levantando os braços.
— E lá se foi a missão — resmungo, soltando-o com um suspiro.
— Tio, eu quero doce! — Rafi abre os braços e Mi vai para seu colo em
vez do meu.
— Nada de doces, está de noite e ele já tem energia demais — reclamo,
cruzando os braços e arqueando uma sobrancelha.
— Quer dizer que vocês estavam em uma missão secreta? — pergunta
Rafi, divertido, acariciando o cabelo do menino. — Estava me seguindo,
medusa?
Seu sorriso torto, que me irrita, desponta na sua boca e sinto minhas
bochechas queimarem.
— Quê? Claro que não — bufo e me finjo de desentendida.
— Estava! — Miguel me dedura sem hesitação. — A brincadeira era de
espião, tio! Quer brincar também?
Para ganhar tempo, me agacho e pego a coleira de Dante, segurando o
cachorro para evitar que fuja novamente.
— Se sua tia deixar — responde ele.
Respiro fundo, jogando os ombros para trás em rendição.
— Ai, quer saber, Rafi? Estava, sim, queria saber o que tanto você faz
todas as noites. Não pode culpar uma mulher por sua curiosidade!
Rafi sorri ainda mais com minha explosão sincera e repentina.
— Sabe… — passa a refletir e não sei onde quer chegar. — Um tempo
atrás, alguém me disse que dançar é apenas rodar.
Sim, eu dissera. Eu me lembrava.
— E você respondeu que, de rodas, entendia bem — murmuro,
entredentes.
— É. Desde então, gosto de dançar. Esse é meu segredo noturno e
gosto particularmente de forró. — Ergue uma sobrancelha e depois aponta
com o polegar para trás. — Aquele casal que você estava morrendo de
ciúmes…
— Eu não estava com ciúmes. — Ergo o queixo, tentando parecer
inabalável.
Miguel vira a cabeça para mim, com aquela expressão inocente que só
uma criança sabe fazer.
— Você disse que a moça era feia, tia Dadá — denuncia a criança.
Rafi solta uma gargalhada estrondosa.
— Não disse, eu falei que era uma coisa feia, não que ela fosse feia —
tento me justificar, mas quanto mais mexo, mais fede.
— Obrigado à minha testemunha ocular presente, Miguel Salvatierra.
Enfim, a Marina é minha professora.
— De quê? Português? Achei que já tivesse aprendido. — Me seguro
muito para não demonstrar meu tédio misturado com ciúme.
Os olhos castanhos de Rafi brilham e os cantinhos de sua boca estão
erguidos.
— Você fica um charme toda ciumenta, mami. Ela é minha professora
de dança de salão. Você deveria participar das aulas também, é divertido.
— Sei dançar, não preciso — retruco, ainda sem entender por que
fiquei tão incomodada com Rafi abraçando uma pessoa aleatória.
— Vai precisar se quiser dançar comigo. E estou mesmo precisando de
uma parceira para o evento da Innoviagens. Vai ter um baile de Halloween na
próxima semana.
— Leva a professora. — Dou de ombros.
A diversão de Rafi começa a minguar e ele me encara com seriedade.
— Papito, me faz um favor? — pede Rafi ao sobrinho. — Vai ali
naquela porta e avisa à Marina que já vou para a aula?
Miguel anui e se levanta do colo de Rafi, indo na direção da sala a
poucos metros de nós. Dante tenta ir atrás, mas seguro a guia.
— Lila, sinceramente, quem fugiu ontem foi você, então não sei por
que está com raiva.
— Não estou.
— Sei… Olha, cometemos esse erro no passado e não vou fazer isso de
novo.
— Que erro?
— De não dialogar, de não nos comunicarmos. Combinamos que
seríamos maduros e adultos, está na hora de colocar em prática.
Miguel volta para perto de nós e cutuca Rafi.
— Já avisei, tio.
— Gracias, papito. — Rafi deixa um beijo na testa de Miguel e depois
me fita. — Mais tarde, quando eu chegar em casa, conversamos. Me espere
acordada.
As palavras passam por mim como uma flecha e, num piscar de olhos,
ele se foi.
Sei que provavelmente disse por força da expressão, mas será que o
coração de Rafi bateu forte como o meu quando ele se referiu ao lugar onde
estamos juntos como casa?
O bem-entendido
Rafi Salvatierra
Envio a mensagem no 2lingo antes de entrar no apartamento, esperando
escutar o mesmo barulho que escutei quando Dalila me montava e depois
saiu correndo como se tivesse visto um fantasma.
Mas apenas o silêncio me recebe quando abro a porta. A televisão, que
sempre encontro ligada quando volto da dança, está com a tela preta. Isso
significa que Miguel já dormiu.
Lila também não está no sofá. Provavelmente fugiu de novo.
O som que escutei ontem não pode ser apenas criação de minha mente
chapada. Eu não fico tão louco desse jeito e não pode ser tão coincidência
assim.
Desloco-me para o quarto de hóspedes e é lá que a encontro. O alívio
que me envolve é um acalento. Lila se recosta na cabeceira da cama, tem um
livro no colo e fones nos ouvidos. Quando ergue a cabeça e me nota, fecha o
miolo devagar, me analisando.
Ela usa uma camiseta preta grande que diz “make brazil emo again” e
vai até o meio de suas coxas expostas sobre o colchão. Os cabelos pretos
estão presos alto num rabo de cavalo pequeno e apenas algumas mechas
revoltas caem ao redor de seu rosto triangular.
Será que ela tem noção de como fica linda de qualquer jeito?
Lila retira os fones e me encara com um olhar que não me agrada
muito. É o olhar de desistência que me atormenta.
— Desculpa por ter fugido ontem — começa a falar, dobrando uma
perna embaixo do corpo enquanto me movimento e transfiro meu corpo para
a ponta da cama, próximo ao seu pé.
Admiro seu tornozelo, decorado com uma correntinha prateada, e subo
até encontrar seu rosto.
— Precisamos conversar sobre nós dois, Lila. Essa conversa passou do
prazo de validade há anos. — Minha voz sai como um murmúrio.
— Não precisa fazer alarde, Rafi. Estávamos chapados e te agarrei, só
isso. Foi algo bobo e impensado. — Dalila morde o lábio nervosa, evitando
me fitar e faz uma pausa, como se lembrasse de algo. — Bobo, insignificante
e deve ficar no passado, OK?
As palavras me atingem como um tapa e pesam no meu peito. Um
filme em câmera lenta me faz recordar de quando as digitei. Os mesmos
adjetivos que ela me retorna, com atraso de seis anos.
Bobo e insignificante.
MENSAGEM DE RAFI EM RESPOSTA À DALILA
6 ANOS ATRÁS
Rafi: Tudo bem, Dalila. Não esquenta com algo tão bobo e
insignificante como uma noite de curtição. Nós ficamos, foi
gostoso, mas foi o que prometemos, certo? Apenas uma noite. Como
te disse, não sou desses homens de se amarrar de qualquer forma.
Era só um encontro e, quando te convidei, estava apenas sendo
educado. Boa viagem de volta.
— Não faça isso agora, Dalila. — Minha voz sai baixa, um sussurro. —
Usar as minhas próprias palavras contra mim. Você remoeu esse diálogo na
sua cabeça por anos, só esperando ter a chance de me devolver?
Dalila recebe o impacto da minha pergunta e se ajeita na cama. Se
pondo de pé, ela recua, como se eu tivesse acertado um ponto muito sensível.
— Rafi, não se faça de desentendido, tá? — defende-se, cruzando os
braços no peito e percebo o embargo na sua voz — Foi você quem me
mandou aquela mensagem. Você quem desdenhou do que tivemos primeiro.
— Mas foi você que me abandonou na cama sozinho, como se eu não
valesse nada! Como se não merecesse nem uma despedida sua. — Elevo a
voz, frustrado por não conseguir me expressar direito e por isso estar
acontecendo. Mas, de certa forma, aliviado, que vamos finalmente lavar a
roupa suja. — Você não sabe como é se sentir rejeitado. Todo mundo me
abandona, Dalila.
Dalila hesita, passa a mão pelos cabelos e encara a parede com um
olhar perdido. Anda de um lado para o outro no quarto, inquieta.
— Rafi, fui sincera contigo. Quando te mandei aquela mensagem, abri
meu coração. — Sua voz treme, ela se abraça nos cotovelos e me encara. —
Eu nunca tinha me envolvido sério com ninguém e achava que você poderia
esperar algo que eu não te daria.
— E ainda assim, você noivou com alguém depois que me conheceu —
solto a acusação, sem pensar direito.
— E veja só o que isso me custou! Também me abandonaram e me
descartaram. — Ela encara o chão, tentando desviar a atenção. — Fui atrás de
você no outro dia, sabia? Queria me desculpar, porque estava me sentindo
uma pessoa horrível. Mas quando te encontrei, entendi que não precisava.
Você tinha outras prioridades e outra pessoa. Aceitei que para você era só
uma noite mesmo e que não se chatearia.
Minha garganta aperta. Passo a mão pela testa, tentando organizar os
pensamentos.
— Dalila, você ainda não entendeu? Passei seis anos longe e nunca te
superei, você ainda acha mesmo que para mim foi só uma noite qualquer? —
Minha voz sai mais rouca. — E o que você quis dizer com outra pessoa? Do
que você está falando? Nunca namorei ninguém, muito menos depois daquele
casamento.
Dalila me estuda, confusa, e finalmente volta a se aproximar de mim.
— Rafi, quando corri atrás de você por aquele hotel imenso para me
despedir, vi você beijando um homem. Você estava acompanhado quando te
encontrei.
Minha respiração falha por um segundo e a recordação daquele
momento volta com tudo.
— Puta madre — exclamo, passando as mãos pelos cabelos curtos, um
pouco desesperado. — Eu não queria beijar o Julio, Lila. Confie em mim
quando te digo, eu estava encurralado naquele deque, não tinha como me
afastar e o desgraçado me pegou de surpresa. Ele é filho de algum magnata
daquela rede de hotéis e descobriu que eu estaria lá naquele fim de semana.
Julio estava me perseguindo. Era um filho da puta abusivo, isso que ele era!
— Mas você o segurou pela gola, puxando na sua direção… —
comenta ela, incerta, sua postura agora menos defensiva.
— Eu o segurei pela gola para tentar empurrá-lo! Até onde você viu?
— Não fiquei lá encarando você beijar outra boca após me marcar
inteira com a sua. Tem limite para tudo, até em relações casuais.
— Essa é a grande merda de ser eu, Lila. Eu não consigo me defender
tão fácil e não podia simplesmente girar meu corpo e correr, como
provavelmente você fez.
Ela fica imóvel, olhando para mim e absorvendo as palavras.
— Então… Foi tudo um grande mal-entendido?
— Pelo visto, sim. — Suspiro, esfregando meu rosto com inquietação.
— Eu te mandei aquela mensagem amargurada, pois estava com o ego ferido
e fragilizado. Peço desculpas por isso.
Ela diminui a distância entre nós e para na minha frente, os ombros
baixos em rendição. Relaxo meu tronco também, respirando fundo e tentando
acalmar meus ânimos e o bater acelerado do coração.
— Me desculpa por ter te abandonado, Rafi, nunca quis que você se
sentisse menos do que especial. — Dalila usa seu indicador para procurar
minha mão e eu entrelaço suavemente nossos dedos — Éramos jovens, você
tinha seus traumas, eu tinha os meus. Eu só… — Ela engole em seco. — Tive
medo.
— Medo?
— De te machucar.
— E acabamos por nos machucar mesmo assim. — Puxo sua mão e
trago seu corpo mais para perto. — Por que você está na defensiva e com
tanto medo, Lila? O que te aflige quando você pensa em nós dois, juntos?
— Que eu não possa te dar o que você quer de mim.
— Você sabe o que eu quero? Ou apenas supõe? Você sequer
perguntou o que desejo?
— Alguém que te ame, que seja apaixonada, que te trate com o carinho
e respeito que merece. Você quer um romance.
Dou uma risada baixa, balançando a cabeça.
— Você concluiu isso nos poucos dias que passamos juntos, mas está
errada, Dalila. Quero você da maneira que puder, sem pensar no futuro, sem
precisar planejar o amanhã. Por que não me permite decidir por mim mesmo
desta vez? Sou bem crescidinho.
Lila aquiesce, seus olhos emanando tudo que sua boca não falava:
incerteza, mas também aquela brasa de paixão. Sei que é, pois, tenho a
mesma fagulha me queimando por dentro. Me movo e a puxo pela cintura,
devagar, até que ela fique entre minhas pernas inertes.
Num movimento que parece involuntário, sua testa encosta na minha,
como uma peça de quebra-cabeça se encaixando.
— Não consigo pensar com você tão perto assim.
— O seu problema é pensar demais. Aquilo ontem foi bom para
caralho, Lila. Nós dois juntos é... — solto um suspiro — tão gostoso e não
quero parar de novo. Vamos aproveitar meus dias restantes aqui sem criar
tantas barreiras. Diga que sim, mami, por favor.
Ela solta um risinho abafado e envolve minha nuca com uma das mãos.
Seus dedos deslizam pela pele do meu pescoço, enviando pequenos choques
para todo o meu corpo. Retribuo o carinho ao deslizar a mão por baixo da
blusa, explorando seu quadril e encontrando a costura da calcinha.
— Não me chame de mami — reclama ela, mas dá para ouvir o tom
divertido na repreensão.
Inclino-me para perto e permito que a minha respiração quente toque
sua orelha.
— Por que não? — Meus dedos brincam com a barra de sua lingerie, na
intenção de não a deixar pensar demais. Na intenção de enlouquecê-la.
— Não me lembro de ter dado essas ousadias a você — provoca, dando
um empurrão leve no meu ombro.
Sorrio de lado, recuando apenas o suficiente para encará-la diretamente
nos olhos.
— Eu me lembro, medusa. Foi há seis anos, exatos 2190 dias atrás.
— Você contou? — pergunta Lila e acompanho o movimento de sua
boca quando ela morde a ponta do lábio.
— Sou bom com números. — Repouso meu rosto entre seus seios
cobertos pela blusa, mas com certeza sem sutiã. — E em outras coisas
também. Na verdade, se eu era bom seis anos atrás, imagina agora com a
maturidade.
Arqueio as sobrancelhas de forma bem sugestiva e consigo arrancar um
sorriso dela. O sorriso mais lindo da noite. E é todo meu.
— Para a gente vai ser tão fácil, Lila. Nós já nos conhecemos, eu sei
como é seu gemido e você sabe os pontos certos para me tocar. Assuma que
vai ser bom.
— Se passaram 6 anos, Rafi, nós éramos diferentes e... Posso pensar?
— pergunta ela e seus dedos brincam com a gola de minha camisa,
dedilhando a tatuagem do pescoço. — Tenho que resolver algo amanhã, antes
de poder tomar essa decisão.
Tudo em mim se suaviza. Seu suspiro é baixo, mas revela a dúvida que
ainda paira. Seus dedos continuam no mesmo ritmo lento, me acariciando e
escolho acreditar que talvez ela possa se permitir isso.
Talvez eu tenha Dalila novamente, nem que seja por poucos dias. Não
me importo, qualquer tempo será incrível ao seu lado.
Ergo a mão e seguro com delicadeza seu queixo, alisando com a
almofada do meu polegar.
— Eu te deixo pensar, mas com uma condição.
Dalila faz todo um drama, revirando os olhos, mas o sorriso não
desaparece de seus lábios.
— Ai, meu senhor, o que agora?
Coloco para jogo o meu sorriso mais travesso e sem vergonha e faço
minha exigência:
— Você terá que dormir de conchinha comigo hoje.
A sósia
Dalila Deodato
Rafi saiu cedo da cama, de novo. Para alguém que estava tão animado para
dormir agarrado comigo, ele fugiu até rápido demais.
Não acordei para vê-lo sair, de tão confortável que fiquei essa noite.
Entre fazer a vigília de minha avó, do Miguel e com o corpo retesado de
tesão sempre que me deitava ao lado de Rafi nos últimos dias, não me lembro
da última vez que dormi tão bem.
Seus braços quentes me envolveram por debaixo das cobertas e parecia
que seu torso tinha sido desenhado para ter o mesmo encaixe da minha
coluna. Não foi nada sexual, a gente só dormiu mesmo. Eu estava falando
sério quando disse que precisava resolver minha situação com Santi antes de
dar sinal verde para algo com Rafi de novo.
Não queria decepcionar nenhum dos dois. Estava cansada de machucar
as pessoas e sair das relações como a megera insensível. Não que realmente
fosse, mas a Dalila hipercrítica que vive aqui dentro não cansava de me
lembrar que eu era horrível de se conviver, egoísta e sem coração.
Batuco a mesa da Coelho Branco com os dedos, demonstrando minha
ansiedade. Checo meu smartwatch novamente e já são 10h30.
Queria aproveitar mais tempo com Santi, mesmo que fosse falar para
ele que seríamos só amigos. A menos que Santi realmente for o Rafi, como
estou desconfiando. Aí a coisa muda de figura. Tenho que confessar que
estou nervosa.
Sabe de uma coisa? Preciso ligar para Jade. Pelo que ela me contou por
mensagem, está no Paraguai agora, logo ainda são 9h30 por lá. Ajusto meus
fones de ouvido, pego meu telefone e não demora nem dois toques para que
ela atenda.
— Bom dia, DD!
— Oi, Danda! Como estão as coisas por aí?
— Tudo bem, mas esses dias estou com um mal-estar. Estou morrendo
de saudade do meu bebê. — Jade faz um bico engraçado. — Perdi muita
coisa? Como foi a apresentação na escola?
— Seu filho é um ótimo dançarino e a estrela da turma. Te mandei o
vídeo, não viu?
Volto meu olhar para o notebook aberto sobre a mesinha da cafeteria. A
luz natural da manhã entra pelas amplas janelas e o aroma de café recém-
passado no ar é delicioso.
— Tentei ver, mas aí comecei a chorar de saudade e o Dom tirou o
celular de mim — responde ela.
Dou uma risadinha.
— Ai, DD, não ri. Difícil demais ficar longe, na próxima vez trago
Miguel ou então nem venho!
— Não se preocupe, eu e Rafi estamos cuidando direitinho dele e o
serumaninho só chorou duas noites com saudade de vocês. O que é pouco,
considerando que já são dez dias. Nem quis dormir na cama com a gente, tá
todo um mocinho.
— Hum… — Dá para ouvir a malícia nesse murmúrio que Jade solta.
— Quer dizer que está dormindo com Rafi na cama, é?
— Como se você não fosse responsável por isso, dona Jade Dandara!
— reclamo, mas num tom baixo, para não incomodar as outras pessoas no
café.
Estou na área reservada para trabalho e coworking, com mesas de
madeira clara e decorações de coelhos feitas de cerâmica. Aqui é mais ao
fundo do café, distante do ambiente de interação com os coelhinhos, mas se
eu quiser, posso pedir um para me fazer companhia durante o dia.
— Vocês estão bem? Conversaram sobre os dramas do passado? Já
relembraram os velhos tempos? Me conta tudo.
Solto um suspiro.
Fora eu, outras duas pessoas estão ocupando mesas, envolvidas em suas
atividades. Por isso, quando o homem entra no ambiente e vai até o balcão de
doces e biscoitos, é impossível não o notar.
— É, então… A gente tá meio enrolado — começo a contar, mas fico
reticente e perdida na visão da pessoa que chegou.
De pele negra retinta, ombros e costas tão largas que quase não vejo
com quem conversa no balcão. Seu cabelo é trançado e os braços cheios de
tatuagens. Por um momento, penso que Baco Exu do Blues se perdeu em
Entremontes.
Quando penso que estou encarando demais e resolvo desviar a atenção,
ele se vira e vem na direção da minha mesa com duas xícaras na mão.
— Danda, preciso desligar, te ligo depois.
Ouço uma reclamação de minha amiga e desligo, bem quando a sósia
do Baco para em frente a mim.
— Oi — cumprimenta e parece tímido à primeira vista. — Você é a
Bel?
Meu sangue gela, a boca seca e o coração passa a bater com mais força.
— Sim, sou eu — respondo, incerta. — Na verdade, me chamo Dalila.
Você é o... Santi?
Ele confirma, balançando a cabeça e fico sem entender nada. Eu jurava
que Santi era o Rafi. Como assim?
— Posso me sentar? — pergunta Santi.
“O que está acontecendo?” Aquele meme do Cascão, Floquinho e Seu
Cebola correndo em círculos roda na minha mente no repeat.
Estou totalmente sem jeito e não sei onde pausar meu olhar. Tive a
impressão de que, quando conhecesse meu amigo, seria natural interagir com
ele. Mas só me sinto fora do lugar com essa pessoa na minha frente.
“Ou talvez, você estava esperando de verdade que ele e Rafi fossem a
mesma pessoa, porque aí você teria uma desculpa para se deixar levar pelo
sentimento.”, minha consciência diz em algum lugar internamente.
— Meu Deus, como sou mal-educada. Senta, por favor! — Aponto com
a mão para a cadeira vazia. — Como é seu nome real?
— Diego. — Ele se recosta e deixa as xícaras na mesa, empurrando
uma para mim.
Passa pela minha cabeça que Diego não parece nome hispânico, mas aí
me lembro de Diego Bustamante de Rebelde e afasto a desconfiança.
— Trouxe cappuccino para você.
Sorrio e pego a xícara. Como as comidas na Coelho Branco são todas
veganas, sei que não terá lactose.
— Obrigada.
— Ah, e não se preocupe, não tem lactose. — comenta Diego/Santi,
como se me conhecesse há anos e soubesse dessa minha intolerância.
Sabe aquela pulguinha atrás da orelha? Algo me diz que tem alguma
coisa fora do lugar e, desta vez, resolvo acreditar na intuição.
— Que gentil! — Coloco uma mecha atrás da orelha e bebo a bebida.
— Como sabia da minha intolerância?
— Você me disse, é claro. — Diego sorri, mas percebo que está
inquieto, seu sorriso é amarelo e não alcança os olhos.
Franzo as sobrancelhas e observo o homem à minha frente. Estou tão
compenetrada em desvendar esse enigma que nem percebo os arredores.
— Porra, Diego. Ela não disse! — A voz vem atrás de mim e quando
viro meu tronco de supetão, lá está ele.
O problema.
A encrenca.
O homem mais lindo do mundo.
Meu Santi.
Agora, sim, meu coração bate do jeito certo. Uma euforia me toma,
totalmente diferente do que senti quando vi Diego chegar.
Rafi chega com um coelhinho cinza nos braços e uma muda de planta
no colo. Direciona sua cadeira de rodas para parar ao meu lado e olho de um
homem para outro, sem entender.
— Rafi?
Assim que foco somente nele, é que percebo a mudança. Sua
sobrancelha esquerda e o lábio inferior estão furados novamente, os piercings
tornam o que já era atraente ainda mais tentador.
— Cara, você confundiu as coisas. Não foi a Bel que contou da
intolerância à lactose para o Santi. Isso é coisa minha e da Lila — fala Rafi
com Diego, enquanto alisa a cabeça do coelhinho. E quando ele me fita
novamente, com aqueles olhos castanhos penetrantes, complementa: — Foi
assim que a gente se conheceu.
Ele pisca para mim!
Como se essa situação toda não fosse uma loucura. Parece que estou
num sonho sem roteiro.
— Vocês se conhecem? — pergunto.
— Sim, o Diego é um dos devs na Innoviagens.
— É, o Rafi é meu líder de equipe e me obrigou a estar aqui. Desculpa,
Dalila. — Diego dá de ombros, mas sorri e não parece arrependido. — Bom,
cumpri meu papel e estou indo.
A sósia de Baco levanta e troca um aperto de mão breve com Rafi.
— Não te devo mais nada, hein, jefe[7]? — Diego se despede de Rafi e,
em seguida, acena com a cabeça e vai embora.
Rafi gira sua cadeira, encaixa na mesa, ficando ao meu lado e coloca a
muda de planta nas minhas mãos. Afaga a barriga do coelhinho sobre suas
pernas e aí levanta a pata do animal, como se estivesse acenando.
— Oi, Bel.
A revelação
Rafi Salvatierra
— Você já se perguntou por que o Batman e o Bruce Wayne nunca são vistos
juntos no mesmo lugar? — faço a pergunta e Lila arqueia a sobrancelha,
quase batendo na linha do cabelo. Ela nada fala e continuo com a brincadeira:
— Não que eu esteja dizendo que Peter Parker seja o Homem-Aranha, mas
você nunca os encontrou lado a lado também.
— Você sabe, não sabe? — Seu humor está melhorando e agora Lila dá
um sorrisinho.
— Sim. O que quero dizer é que você nunca viu o Santi,
AmanteDasLínguas, e eu no mesmo lugar também…
— Como você descobriu? — Lila balança a cabeça, desviando o
assunto para outra coisa. — Na verdade, nem é isso que quero saber agora,
mas o que foi esse teatrinho com o Diego?
— Os primeiros trinta anos da infância de um homem… Isso significa
que estou na adolescência e preguei uma peça em você, Lila. O Diego
trabalha na mesma empresa que eu, não sei se sabe, mas ela tem sede oficial
aqui no Brasil. Precisei da ajuda dele, porque o estúdio de piercing abria tarde
e talvez não desse tempo de chegar aqui na hora certa. Precisava que ele te
segurasse, para não ir embora.
— Meu Deus, Rafi, era só ter me falado a verdade antes! Não precisava
disso tudo.
— E que graça teria? Seu rosto brilhou quando me viu chegando, Lila.
Você ficou tão aliviada por saber que era eu, e não ele. Assim como fiquei
essa manhã, quando tive certeza de que a Bel era você. — Ela me olha sem
entender. — Seu aplicativo notificou de novo.
— Ainda não justifica…
— Precisei passar na Innoviagens cedo, depois fui colocar os piercings
e procurei em três floriculturas até achar a planta certa. Já seria demorado
fazer isso andando, imagina numa cadeira.
Solto um suspiro, como se tivesse me cansado só de falar toda a
maratona que tive nesta manhã e ainda não eram nem 11h.
— Essa muda é de rosa do deserto. Consegui encontrar exatamente a
que eu queria te dar. Sei que você não é muito de romance, Lila, por isso não
estou te dando flores. Estou te dando uma suculenta.
Lila segue com a cara de quem não entende nada. Não vou negar que
estou nervoso para caralho, com medo de que isso não funcione.
Brinco com o coelhinho no meu colo para ter o que fazer com uma
mão. A outra, levo até a mesa e seguro os dedos de Dalila com leveza,
alisando suas falanges.
— Se você cultivar da maneira correta, quando ela florescer na
primavera ou no verão, nascerá uma flor que é chamada de… Dalila.
Dá para ver na sua feição que está surpresa e sua mão aperta a minha
em resposta, enroscando nossos dedos.
— O que quero dizer é que… — pondero um pouco antes de continuar,
procurando as palavras corretas: — Seis anos atrás, éramos jovens e
imaturos. Hoje nós nos conhecemos muito mais, o Santi e a Bel são
praticamente melhores amigos. A gente se falou por anos, sem parar um
único dia, sabe o tamanho disso? Quero deixar você pensar, mas também não
quero perder nossos quinze dias restantes.
— Eu aceito, Rafi. Não precisa falar mais nada, vim hoje me encontrar
com o Santi com a decisão tomada. Colocaria na friendzone e, quando eu
voltasse para casa, diria sim para sua proposta.
— Pobre Santi, não queria ser ele — comento, fazendo-a rir. — Mas
agora todo meu esforço com as suculentas e com o horário apertado que
consegui no estúdio de piercing… Tudo isso que preparei vai para o ralo?
Ah, não, agora você vai me ouvir, medusa.
— Você colocou os piercings de novo por mim?
— Eu tinha que tentar com todas as minhas armas, Lila.
— Artilharia pesada, Rafi.
— Funcionou?
— Para caralho. Agora só falta o bigode voltar.
— Podemos trabalhar nisso, te deixo me barbear depois, se quiser.
Sorrimos ao mesmo tempo e puxo a mão dela, deixando um beijo no
peito, roçando meus lábios e sentindo a maciez de sua pele.
— Vamos ficar juntos esses dias, Lila. Aproveitamos e deixamos tudo
acontecer naturalmente e, quando eu voltar para Santo Domingo, terei mais
lembranças suas para encher minha mala.
— Então, o quê? Seremos bons amigos durante esses dias?
— Sem rótulos, medusa. Mas definitivamente não tem como ser só seu
amigo e dividir aquela cama contigo. Não depois que relembrei como é seu
gosto na minha boca, Lila.
— Tios e babás com benefícios, então.
— É. Com foco nos benefícios.
Lila se põe de pé e para na minha frente. Percebo o que ela quer fazer
quando se inclina para baixo. Ela encosta bem devagar sua boca na minha,
mas não me beija, apenas deixa que nossos lábios se toquem.
— Eu aposto que vai ser gostoso igual. Ou até melhor. — Seus
murmúrios safados são quase inaudíveis, mas escuto muito bem. Bem, até
demais. — Você lembra como era gostoso, eu sei que você lembra.
Meus sentidos ficam inebriados de Dalila e eu pisco vagarosamente;
nesse segundo em que fecho minhas pálpebras, a mulher já se afastou,
sentando-se na sua cadeira de novo.
— Porra, Lila. Precisava fazer isso na frente do Tambor? — Me refiro
ao coelho no meu colo e me abaixo para deixar o animal no chão. Ele sai de
perto, dando pulinhos.
— Mas eu não fiz nada! — Seu olhar diz ao contrário, um brilho
malicioso na sua expressão.
— Você foi a maldita da Medusa que tanto chamo. Fez meu pau virar
pedra em segundos.
Ela ri e morde aquele lábio gostoso.
— Acho que posso resolver isso.
— Você não está trabalhando?
— Posso trabalhar de casa.
— Lila, não me atiça. Temos que buscar o papito em uma hora. E saiba
que as coisas que quero fazer contigo vão levar muito mais que uma hora ou
uma noite apenas.
Dalila Deodato
A pegadinha que Rafi pregou em mim me deu vontade de bater nele na
mesma medida que deu de me sentar na sua cara. Talvez eu faça ambos, essa
noite.
Depois que tomamos café, juntos, buscamos Miguel na escola e, no
final da tarde, estou tentando trabalhar na mesa da sala, porém, foque no
verbo “tentando”.
Pois a todo momento, Rafi me olha do sofá com uma expressão sem
vergonha ou puxa assunto relembrando coisas da Bel e do Santi, fazendo as
ligações.
— Nossa, eu li aquele livro Babel por sua causa, Lila! Tem noção
disso?
— E eu assisti Black Mirror pela sua.
Miguel está no sofá assistindo televisão e brincando com suas pelúcias
de Pokémon, mas, por vezes, fica olhando de mim para Rafi, como se visse
uma partida de tênis.
Reparo no relógio do computador e vejo que faltam dez para as 18h.
Finalmente posso parar de planejar o roadmap[8] do time de produto para o
ano que vem e abaixo a tela do notebook.
Levanto e me sento no estofado, Rafi numa ponta e eu na outra. O
pequeno fica no meio entre nós. É até bom, não sei o que faria se Mi não
estivesse aqui e evito pensar nisso agora.
— Naquela vez em que você sumiu por quase duas semanas? — inicio
a pergunta. — Foi devido às crises que você me contou? Que precisou tirar os
piercings?
Rafi assente.
— Foram doze dias internado entre UTI, enfermaria e a volta para casa.
— Fiquei tão preocupada contigo, você nunca sumiu antes, sabe?
— É, quando você sumiu, eu também quase surtei. Então, aquela foto
no ChatSnap, com os curativos…
— Foi na histerectomia — confirmo, respondendo à sua pergunta que
fica no ar.
Rafi me fita com empatia e nossos olhares estão cheios de significados.
Só consigo desviar minha atenção de Rafi quando Miguel se levanta de
maneira rápida.
Larga as pelúcias na mesinha de centro e sai andando da sala. Dante vai
atrás no seu encalço.
— Papito, donde vas?
— Usar o penico — grita Miguel do corredor.
— Mira direito esse negócio, papito!
— Lava bem as mãos, hein, mini-humano?!
Troco olhares cúmplices com Rafi e, quando Miguel bate a porta do
banheiro, Santi dá batidinhas no sofá, me chamando para perto.
Balanço a cabeça negativamente.
— Se eu for aí, não vou querer sair.
— Essa é a intenção, Lila.
— Tá, mas eu não me responsabilizo por suas reações corporais.
Arrasto minha bunda no sofá de três lugares e me ajeito. Colo nossos
corpos lado a lado e Rafi envolve meus ombros com seu braço esquerdo. É
um abraço desajeitado, mas é muito bom.
— Sabe o que eu estava lembrando? — pergunto, erguendo meu rosto
para encará-lo e Rafi coloca minhas mechas escuras para atrás da orelha. —
Que você também é pan. Acho que nunca conversamos sobre nossas
sexualidades antes.
— Sabe… Eu sempre gostei de todo tipo de pessoa, mas nunca parei
para pensar no que era. O que a pessoa tinha nas calças e nem a forma como
se definia eram impeditivos para minha atração. Só que eu nunca dei um
nome, até te conhecer — Rafi pausa e um sorriso repuxa seus lábios grossos
com o piercing, chamando minha atenção para sua boca. — Na verdade,
quando conheci a Bel, é que passei a me identificar como pan. Você me
guiou nesse caminho, sabe a importância que isso tem?
— Quer dizer então…
— Que sou um panetone porque você é minha panquequinha, Lila.
Rafi gargalha, me provocando com essas piadinhas. Sei que ele fez
como uma brincadeira, por isso sorrio, mesmo que balance a cabeça em
negativa.
Ai, esse tonto safado e lindo. Quero ficar emburrada na mesma medida
que quero que ele tire toda a minha roupa e me faça coisas indizíveis.
— Eu só vou te perdoar pela piadinha porque você é um pan recém-
nascido e, porque isso é fofo, Santi — sussurro e roço nossos narizes, feliz
por saber dessa sua confissão. — Me sinto feliz por ter ajudado, mas você
sabe que sua sexualidade diz respeito apenas a ti, não aos seus amigos e nem
para as pessoas com quem você se relaciona, certo? Você poderia se rotular
se quiser, mas essa escolha seria somente sua. E tá tudo bem não saber
também. Todos nós, nesse vale, tivemos nossas dúvidas.
Rafi sorri e ergue as mãos, segurando meu rosto em concha. Traceja
minha bochecha com beijos e vai encostando até que fique em suspenso, seus
lábios entreabertos roçando os meus.
— Lila, queria utilizar do meu primeiro benefício. Posso?
Assinto e deixo que ele me beije. Borboletas batem asas na minha
barriga e meu corpo esquenta em resposta ao toque da sua língua na minha.
Mas, como tudo que é bom dura pouco, Miguel grita de dentro do
banheiro, chamando nossas atenções:
— Tiaaaaa, vem me limpar, por favor?
A escolha
Rafi Salvatierra
Quando Nic voltar da sua viagem no sábado, terei que sugerir uma atividade
extracurricular para o papito. Ele precisa gastar essa energia infinita que tem
no pequeno corpo de seis anos.
Pelo menos ele parou de rolar na cama e estava recostado no seu
travesseiro agora, me fitando com olhinhos de cachorro pidão.
— Papito, vou ler mais uma história e deixo até que se abrace com o
Dante, mas você tem que me prometer que não vai contar isso para seu pai.
— Tudo bem, tio Rafi. Eu também faço esse segredo com a mamãe.
Sorrio com a confissão da criança e é claro que Jade seria a pessoa que
faria todas as vontades dele, enquanto Nic tentava controlar os danos.
Dante sobe na cama, se aproxima dele e enrodilha o corpo, deitando-se
entre os bracinhos de Miguel.
— Certo, essa história aqui você quer em espanhol ou português?
— Espanhol, por favor!
Ajeito o livro “Contos para Garotos que sonham em mudar o mundo”
no colo e abro na página do Stephen Hawking.
— El niño que conquistó el universo sentado en silla de ruedas[9]… —
começo a ler a história em espanhol, demora um pouco, pois tenho que
traduzir na hora, já que o livro é em português.
Contudo, fico orgulhoso de saber que cheguei nesse nível de fluência. E
tudo por causa do 2lingo.
Por causa dela. A Lila.
Enquanto vou narrando a história, percebo que finalmente Miguel entra
num estágio tranquilo. Quando ele levanta a mão em direção ao meu rosto,
sei que venci.
Eu me inclino, quase apoiando o queixo na cama dele, e meu sobrinho
agarra a ponta do meu nariz, apertando de leve. Fecha as pálpebras e sua
respiração fica mais estável. Quando o braço cai sobre seu peito, sei que ele
finalmente dormiu.
Termino a frase no livro e aliso seus cabelos. Assim que manobro
minha cadeira para sair do cômodo, vejo Lila parada sob o portal, olhando
para mim como se estrelas brilhassem em suas órbitas.
Vou até ela, nós dois verificamos Miguel uma última vez e aí, encosto a
porta do quarto.
— Você é um tio muito transgressor, Rafi Santiago.
— Ah, o Dante? Pois saiba que a Jadecita faz o mesmo, ele acabou de
me confidenciar.
Lila sorri bem aberto e não resisto a puxar sua cintura, trazendo-a para
perto.
— Achou o que precisávamos? — Ergo as sobrancelhas, sugestivo.
— Tive que ir em duas farmácias, mas encontrei. — Ela tira da bolsa os
pacotes laminados em tons de vermelho. — Mas não sei por que insistiu
tanto, te disse que não podemos fazer nada até os pais do serumaninho
chegarem.
Dalila está reticente e a entendo, mas não vou conseguir ficar longe
dela por mais um segundo. Giro sua cintura e faço que fique de costas para
mim no meu colo, do jeito que gosto.
— Levanta os pés — peço, murmurando a ordem no pé da sua orelha.
Lila me obedece e movo minha cadeira até o final do corredor, para nosso
quarto. Fecho a porta atrás de mim e, quando estamos trancados e sozinhos,
arranco a bolsa dela e arremesso na poltrona.
— Rafi… — A voz de Dalila tem a intenção de ser repreensiva, mas sai
manhosa ao perceber minhas mãos invadirem sua blusinha preta. Aperto sua
cintura e com os dedos, alcanço o seu umbigo, rodeando a joia que decora a
região.
— Eu já entendi, Lila. Não precisamos usar as camisinhas que
comprou, mas não quero passar pelo sufoco que passamos seis anos atrás,
OK? — Rodo até a cama e Lila muda do meu colo para o colchão. — Vai
que o fogo é muito grande, a gente quer usar e não temos… Não ficarei só na
vontade de entrar em você de novo.
— E temos que nos cuidar. — A safada diz que não pode e que não
devemos, mas abre as pernas amplamente na minha frente, pousando com os
calcanhares na cama.
— Sim, eu cuido de você e você de mim, certo? — Meu olhar percorre
suas coxas abertas e chega ao meio de suas pernas, coberto pelo caimento da
sua saia. — E tem como eu cuidar desse seu problema aí de uma forma mais
comedida. Não precisamos fazer barulho. Vai ser tão bom que vai acabar
muito rápido e poderemos dormir tranquilos, o que acha?
— Estou ouvindo… — Ela se arrasta de costas na cama e joga os
braços para o alto lentamente, retirando a blusa e expondo seu sutiã rendado.
Preto, obviamente. Mas a renda não faz nada para esconder seus
mamilos pontudos. Está ali como mera decoração. Nem subo na cama, pois o
que quero fazer, faço dali da minha cadeira.
— Porra, você é perfeita. Era perfeita antes e parece que agora só
melhorou. — Encosto no colchão e envolvo seu tornozelo com minha mão,
puxando-a para a ponta.
— Nós dois envelhecemos como vinho. — Lila se senta na minha
frente toda arreganhada, e sobe as mãos pelo meu tronco, retirando minha
camisa com lentidão. — Porque você continua gostoso pra caralho.
Levo minha mão até o meio de suas pernas e Lila acompanha cada
movimento atentamente. Afasto o tecido da saia para o lado e encontro o
fundo da sua calcinha úmido.
— Quem você quer na sua cama hoje, Dalila? — Dedilho por cima da
lingerie, rodeando seu clitóris devagar. — O amigo virtual que se apaixonou
por você sem nem ver seu rosto? Ou o homem que te teve anos atrás e nunca
te esqueceu?
Puxo a calcinha para o lado e exponho sua boceta, esfregando as pontas
dos meus dedos de cima até sua entrada molhada e pressionando para dentro.
Não me preocupo em dizer que estou apaixonado, não irei mentir e
pouco me importo agora com as palavras que solto, só quero fazê-la gozar
nos meus dedos e depois, na minha língua.
Se Lila se incomoda, tampouco deixa transparecer. Seus olhos
castanhos estão fixos nos meus, dá para ver que suas íris perderam espaço
para as pupilas dilatadas. Solta um gemido sôfrego, repleto de desejo.
— Os dois. Quero os dois. — Com suas mãos, abaixa as alças do sutiã,
mas não mostra nada, apenas deixa que a lingerie fique caída e joga os braços
para trás, se colocando nos cotovelos. — Você é o único, Santi.
— Não, aqui você não me chama por esse apelido. Da sua boca, só
quero ouvir meu nome de verdade.
Com as duas mãos, ergo seu quadril e, ao mesmo tempo, abaixo meu
tronco e vou ao encontro de sua virilha. Dalila percebe o que pretendo com o
movimento e faz uma ponte com sua lombar, levantando até que minha boca
a encontre. Chupo-a como um homem faminto e não fecho os olhos,
encarando-a sob meus cílios e captando suas expressões de prazer.
Dalila geme tão gostoso e minha bermuda, que já estava apertada, fica
mais justa e pressiona minha ereção.
Afasto-me com um estalo molhado e lambo sua boceta demoradamente,
provocando-a.
— Não pode fazer barulho, medusa. Seja uma boa garota e fique
caladinha para mim, certo?
— Rafi… — Ela remexe o quadril inquieta, jogando-se no meu rosto e
sinto suas pernas tremerem. — Por favor.
Com uma mão apenas, desenrolo o durag e jogo para ela, caindo entre
seus seios e até aquela cena é sexy para caralho. Principalmente quando ela
pega o tecido sedoso e esfrega nos seus seios agora expostos, se
massageando.
— Porra, nunca mais vou lavar. Mas te dei para tampar sua boca
safada, mami.
O sorriso que ela me devolve é pura malícia. Dalila morde o lábio
inferior e, logo em seguida, o pano.
Volto minha atenção para sua boceta e, sem muito aviso, penetro um
dedo nela; escorrega tão fácil que me permito inserir outro. Desço meus
lábios contra seu clitóris e, num mesmo ritmo, chupo com força enquanto
meto os dedos. Lila me olha com um desespero de alguém que implora para
gozar e agarra os lençóis com as duas mãos.
É quando ela fecha seus olhos e começa a rebolar na minha boca,
perseguindo seu orgasmo, que aumento a velocidade. Sinto sua boceta apertar
meus dedos e ela molha minha mão inteira com seu gozo. Ofega e está toda
avermelhada, uma maldita deusa deitada nessa cama à minha mercê.
Tomo seu prazer direto na língua e sei que não vou encontrar gosto
mais doce do que o dela após se desfazer por mim.
Quando volta à vida, tira o tecido da boca, ofegante. Lila se ajoelha na
minha frente, retira toda sua roupa que resta e me ajuda a subir na cama sobre
seu corpo.
— Se eu disser que lembrei do teu cheiro todos esses anos, você
acredita? — sussurro, beijando seu pescoço.
— Acredito, o seu cheiro também ficou impregnado em mim —
responde ela e, num impulso, me vira de costas na cama para me montar.
— Não é um sonho, mas se parece com um.
— Só porque estou por cima? — Seus cabelos curtos caem no seu rosto
como uma cortina quando Lila se aproxima para me roubar um beijo lento.
Nosso beijo é calmo e provocativo, diferente das mãos dela, que tentam
tirar minha bermuda e cueca com pressa. Quando percebe que não vai
conseguir muita coisa assim, sorri contra meus lábios e eu respondo com um
riso abafado.
Dalila desliza para baixo e jogo a cabeça para trás extasiado, pois ela
passa pelo meu tronco lentamente e lambe meu mamilo com a pontinha.
— Ai, porra… — gemo rouco, acompanhando Lila abrir o zíper com
uma paciência de enlouquecer. — Não era um sonho!
O pensamento cai em mim sem que eu me dê conta.
— Não era um sonho erótico! Naquela noite em que você gemeu ao
meu lado, você estava se masturbando enquanto conversava comigo.
Lila demora para assimilar o que estou dizendo, perdida entre puxar
meu short para baixo e com suas mãos dentro da minha cueca.
— Sim, Bel e Santi faziam sexo por telefone e, quando eu estava
praticamente gozando, você entrou no quarto.
— Caralho, mami. Isso é... — Esqueço o que estava falando quando ela
tira minha cueca devagar e sinto Dalila lamber minhas bolas, passeando com
a língua quente em minha ereção dura e depois voltando para colocar um dos
testículos na boca.
Ergue seu olhar, me fitando de baixo e passa a me punhetar.
— Seu pau é lindo, Rafi, mas esse piercing aqui? Tornou uma obra de
arte.
Gemo sem conseguir impedir os sons lascivos que saem de mim. Eu
não tenho vergonha de emitir qualquer som no sexo e com Dalila, eu não
conseguiria impedir nem se me esforçasse muito.
Pude sentir a pontinha da sua língua rodeando a argola de metal que
coloquei meses antes de vir para o Brasil. Está fixado na pele do escroto,
entre o testículo e a base do pênis, e ver o rosto de Lila no meio das minhas
pernas se deliciando em meu pau torna aquela cena ainda mais prazerosa.
O grau de êxtase explode quando ela desce a boca e me lambe no
períneo, indo devagar na direção da minha entrada. Mas foi só a iminência;
ela sobe e me abocanha, sugando a glande, chupando com força e me levando
próximo ao orgasmo em poucos segundos.
— Lila — murmuro seu apelido em um tom desesperado —, volte para
lá.
Ela usa as mãos e rodeia com o dedo indicador, pressionando a ponta
para dentro levemente.
— Aqui, Rafi? — pergunta de um jeito safado, deixando claro que sabe
a resposta, mas quer me enlouquecer. Quer me ouvir dizer.
— Sim, porra. — Solto um grunhido e movimento meu quadril
inquieto, querendo mais.
— Você gosta?
— Como se você não se lembrasse disso, medusa. — Seguro seus
cabelos com uma mão e faço com que olhe para mim, para que me veja
suplicar. — Por favor…
— Você fica mais gostoso implorando por mim, Rafi, eu poderia me
acostumar.
E assim, ela usa a língua novamente e depois cospe, fazendo seus dedos
pequenos e potentes deslizarem facilmente pela região erógena.
— Hoje não, Rafi. Só quando estivermos sozinhos e podendo fazer
muita bagunça.
Sorri safada contra meu pau e sinto o desenho dos seus lábios quentes
me envolver de novo.
Não precisa de muito para que eu goze, basta que ela me engula duas
vezes bem fundo e dedilhe meu cu enquanto me chupa sem se engasgar.
Derramo-me na sua boca e a última coisa que penso antes de cair no
sono naquela noite é que essa seria uma ótima maneira de adormecer todos os
dias.
As bodas de esmeralda
Dalila Deodato
— É tão gostoso acordar depois de passar a noite com você e te encontrar na
cama, linda e com a cara amassada.
Rafi sussurra em meu ouvido, me abraçando por trás. Ainda estamos
nus e não é hora de acordar. Na verdade, ainda devem ser 04h30 da
madrugada, pois a luz que entra pela janela é amena, como se o sol estivesse
com preguiça de nascer. Em Entremontes, o nascer do sol era muito cedo por
ser no extremo oriente do continente.
— Está muito cedo, Rafi, e hoje eu trabalho. Não tem pena de mim?
— Pena de você? Desculpa, Lila, mas quero te comer todos os minutos
enquanto eu estiver aqui. Não tem espaço para pena, só tesão.
E sinto que ele realmente fala sério quando percebo sua ereção crescer
contra minha bunda. Rebolo devagar em seu colo, porque não sou de ferro,
mas mantenho os olhos fechados, amplificando as sensações que crescem em
mim.
Ouço Rafi se mover por trás e, em poucos segundos, o barulho de
plástico sendo rasgado. É quando abro meus olhos, sentindo a mordida dele
no meu lóbulo.
— Vou te foder agora, medusa. Vou te comer lentamente aqui, embaixo
desses lençóis, e aí, quando você for para o trabalho, vai lembrar de mim o
dia todo e ficar louca para voltar, OK?
— Sim, sim — gemo e me ajeito para que o encaixe de nossos corpos
fique mais bem colocado, empinando minha bunda, me abrindo para ele.
Sinto que ele se afasta apenas para desenrolar o preservativo e, quando
está pronto, espalma a mão na minha barriga e levanta minha perna, para que
se abra com amplitude maior.
Rafi rebola o quadril lentamente, enquanto me preenche centímetro a
centímetro, com ondulações ritmadas e enlouquecedoras.
O pau dele é grande, mas na medida certa para mim, não doía e me
pressionava em todos os pontos certos. Me sentia preenchida.
Os seus dedos inquietos me masturbam e a outra mão pinça meu
mamilo, agarrando meu peito com força, como se ancorasse em mim para
continuar metendo.
Só que gosto da lentidão. A lentidão é gostosa e torna tudo mais real,
nos obriga a enfrentar aquele momento, em como era bom nós dois, mesmo
que a gente tivesse negado por anos. Quero Rafi assim, mais vezes, e não irei
me reprimir.
Impulsiono meu quadril para trás, minha coluna encaixando no seu
tórax quente e largo. Puxo seus cachos curtos, querendo que ele explore meu
pescoço, minha orelha, que me tome inteira. Quero todos os centímetros de
nossos corpos se tocando.
Quando Rafi passa a estocar com mais rapidez, alinhado aos seus dedos
praticamente tremendo sobre meu clitóris, eu gozo de novo.
— Rafi… — falo manhosa.
— Como isso pode ser tão bom? Só com você é assim. Só você. Desde
a primeira vez, todos aqueles anos atrás e eu não consegui te esquecer. Você
marcou meu corpo e alma a ferro e fogo, Lila. — Ele continua com as
investidas lentas, rebolando o pau e me tocando em lugares tão sensíveis.
Estou em tanto êxtase que nem consigo pensar direito.
Viro o pescoço para trás, tentando beijá-lo, mas o esforço é em vão.
Quando percebo que ele aumenta a velocidade, sei que está perto.
— Isso, goza forte na minha boceta — sussurro em seu ouvido, onde
minha boca alcança —, mas lembra que, na próxima vez, vai gozar comigo
dentro de você, Santi.
Ele enterra o rosto nos meus cabelos quando seu pau se enfia inteiro em
mim e goza, urrando e gemendo palavras deliciosas. Xingamentos em
português e espanhol.
A força do nosso orgasmo é tão intensa que relaxo ao ponto de
dormirmos de novo, com Rafi ainda encaixado em mim. Encasulado.
Acordo uns trinta minutos depois e deixo que ele durma tranquilo.
Preparo Miguel para a escola e saio para o trabalho. Durante o dia, percebo
que Rafi Salvatierra é um homem de palavra: promete e cumpre. Passo o dia
trabalhando presencialmente e, entre as trocentas reuniões que tenho no dia,
ele não me sai da cabeça. Tampouco as coisas que me disse enquanto me
fodia.
Ele fala coisas pervertidas, mas também fala coisas lindas e cheias de
sentimento. Confesso que aquilo me estremece de prazer e de medo ao
mesmo tempo. Amo ouvir, mas me dá vontade de correr.
Aquela sensação de que vou machucá-lo não me larga, de que isso tudo
pode dar muito errado. Mas que também pode ser a coisa mais certa que fiz
em anos.
Uma mensagem chega em meu celular e pego o telefone ansiosa,
pensando que pode ser de Rafi.
O nome que aparece nas notificações é da minha irmã caçula.
Eva: Você não esqueceu de nada hoje, certo?
Dalila: Entre ser babá, administrar uma equipe de trinta
pessoas, receber uma notícia bombástica de um ex… Bom, posso ter
esquecido, sim, de algo.
Eva: Que ex? Samir?
Dalila: Não, um ex-ficante de muito atrás. Aquele da
República Dominicana.
Eva: O gostoso que você largou porque amarelou depois de uma
noite insana de prazer?
Eu e Eva temos quase dez anos de diferença e seus poucos vinte e três
anos a tornam uma jovem sonhadora, apaixonada e curiosa.
Culpo os duzentos livros eróticos que ela lê por ano. Desde que
começou no seu hobby de leitura, minha irmã me atazana para entender as
coisas do mundo que nunca provou, já que é virgem.
Com Laila, ela não consegue nada, pois apesar de ter a Juju, a irmã do
meio odeia falar desses temas e morre de vergonha. Sobra para mim e antes
Eva saber pela mais velha do que por bocas erradas.
Dalila: Adivinha só? Tive outra noite de prazer com ele
ontem e uma rapidinha pela manhã. Sexo matinal é incrível.
Eva: O quê? Ele tá no Brasil?
Dalila: É um rolo tão grande, que só pessoalmente para
contar.
Eva: É, que bom que temos esse jantar de casamento hoje.
Quero saber de tudo.
O JANTAR DE BODAS DE CASAMENTO DOS MEUS PAIS!
Abro a agenda virtual no computador e vejo o lembrete às oito da noite.
Dalila: É, eu esqueci, sim. Agora vou ter que ver se o Rafi
pode ficar com o Miguel.
Eva: Quem é Rafi?
Dalila: O tio do Miguel, meu amigo virtual e que também é
meu ex-ficante, com quem estou atualmente dormindo.
Eva: figurinha da Nazaré Tedesco.
Dalila: Te disse que era um rolo.
Eva: Convida ele também, boba. Aí, quem vai ficar com Miguel
não será um problema.
E quer saber? Talvez minha irmã caçula seja a mais nova, mas até que
ela dá bons conselhos.
Mais tarde naquela noite, estou agarrada a Rafi em nossa cama, sem
conseguir dormir. Depois do desastre, passei o caminho de volta para casa,
me desculpando.
Ainda sinto um amargor na garganta e uma dor impertinente no peito
por ser a responsável por isso. Eu que o levei para aquele jantar e realmente
esperava que fosse bem intimista, só minha família. Se eu soubesse antes…
— Você está pensando muito alto e não consigo dormir, Lila. Relaxa,
vai. — Rafi me aperta em seus braços e alisa minhas costas.
— Não consigo.
— Olha, estou acostumado a ser a atração em todo lugar que vou. Me
acostumei com os olhares e as perguntas indiscretas. Sinto que sou o bobo da
corte, mas não tem muito o que fazer.
— Eu não gosto quando você brinca com isso, Rafi. E não gostei de ver
o que ela fez com você.
— Por quê? É só a verdade.
— Porque isso me parece algo que outras pessoas te falaram a vida
inteira e agora você só reproduz para se blindar da dor. Porque você está
fazendo piada de alguém que me importo muito, Santi.
— Se importa, é? — sussurra ele, faceiro, contra minha orelha e, em
seguida, deixa um beijo na minha têmpora. — Acho fofo que você seja toda
baixinha, mas quase virou uma mãe urso para me defender lá no restaurante,
sabia?
Bufo no seu peito, mas não evito dar um sorrisinho. Rafi acaricia meus
cabelos enquanto aperto seu tronco num abraço. Ele continua falando:
— Sempre que tenho uma crise e preciso ir para o hospital, todo
progresso que fiz parece perdido e chegou num momento em que eu
simplesmente… aceitei minha condição. — Solta um suspiro cansado. —
Continuei tomando minhas medicações e segui a vida. Foi preciso muita
terapia para entender que sou um caso raro e que talvez não tenha solução, e
tá tudo bem, Lila. Certos dias, é muito difícil aceitar que nunca mais irei
andar, correr, pular ou fazer as coisas de forma fácil como grande parte das
pessoas. Tentei de todas as maneiras, mas meu corpo não é forte o suficiente.
— Você é forte o suficiente e o seu corpo faz parte de quem é. Lembro
que alguém me disse que somos também as partes que nos faltam.
— Hum, quem foi esse grande pensador e filósofo?
Sorrio e ergo meu rosto, tentando encontrar seu rosto no escuro do
quarto.
— Sei que posso estar me repetindo, mas sinto muito.
— Não sinta, não é sua culpa.
— Mesmo assim, não consigo tirar isso da cabeça. Queria poder te
compensar.
— Hum… Posso pensar numa maneira.
— Hoje não tem clima, Rafi Santiago.
— Nossa, Lila, que mente suja a sua. Eu iria dizer que você pode ir à
festa da Innoviagens comigo no sábado.
— Um encontro?
— Nah, não é encontro. É trabalho, você está oficialmente contratada
com minha guarda-costas com benefícios.
— Tá, eu vou.
— Mesmo se a gente precisar se fantasiar?
— Não vamos nos fantasiar, Rafi.
— Qual é! É Halloween.
— Nada de fantasia ou juro que não vou!
O Halloween
Dalila Deodato
Sábado chega e com ele, duas coisas inesperadas acontecem.
Primeiro: Jade e Dom voltam da sua viagem e eu descubro que serei tia,
de novo. Quando chegou do aeroporto logo cedo, Jade me puxou para o
banheiro da mesma forma que sete anos atrás e me fez esperar pelo resultado
do teste.
Dos testes no plural, considerando que ela comprou um de cada marca
no caso de dúvidas. Todos estavam com o mesmo resultado, dito de formas
diferentes: duas linhas, o sinal + e a palavra grávida.
A comoção só não foi maior porque ela estava passando mal e
vomitando, algo que não aconteceu tanto assim na gravidez do Miguel.
Deixei que o seu marido cuidasse dela, Mi ficou com o tio e voltei para
meu apartamento, de mala e cuia. Após quinze dias como babá na casa de
Jade e Dom, volto e me sinto uma estranha aqui. Depois de uma semana nos
braços de Rafi, esse lugar só parece uma casca oca.
Se, anteriormente, já não me sentia bem, agora, devido às comparações
que faço entre estar com Rafi e estar sozinha, a sensação se tornou ainda pior.
Por isso, chamo Rafi no impulso para ficar aqui comigo, logo após a festa de
hoje à noite.
Sei que sua presença será um conforto, mesmo que meus sentimentos
por ele estejam uma grande bagunça indefinida.
Não é nenhuma surpresa para mim quando me dou conta de que não
quero ficar longe dele. Rafi não me sufoca, sério. Pelo contrário, ele me dá
vontade de respirar o mesmo ar que o seu.
Quero de verdade me reconectar com esse homem que voltou para
minha vida e estar ao seu lado pode ser uma forma de entender melhor o que
sinto e o que podemos ser.
Enquanto limpo o apartamento, a segunda coisa inesperada acontece no
dia: recebo uma entrega.
Uma caixa preta com um bilhete colado na tampa.
“Medusa,
A maquiagem você já sabe fazer perfeitamente, assim
como tem a mesma personalidade. Elegante e
irresistível aos olhos desse reles mortal, nascido para te
venerar.
Para te ajudar, envio o vestido e a peruca. E por favor,
não use nada por baixo dele. Não vá estragar a
fantasia.
P.S: A fantasia que estou falando é a que criei para nós
quando voltarmos do baile.
Para sempre seu,
Santi”
Esse homem incuravelmente romântico que faz essas coisas que eu não
deveria incentivar. Contudo, quando levo meus dedos aos lábios, percebo que
estou sorrindo como nunca.
Abro a caixa preta e encontro a fantasia.
Rafi Salvatierra
Meu bigode cresceu nos últimos dias e, quando me barbeio, deixo
apenas o fino traço sobre meus lábios, combinando com o personagem que
estou representando. Se Lila gostava do meu bigode antes, sinto que hoje ela
irá amar. Inquieto, ajeito o terno risca-de-giz nos ombros, enquanto aguardo
que ela chegue à Innoviagens.
O salão da empresa está irreconhecível, transformado com as
decorações de Halloween. O tema escolhido pelo time de People[10] foi
“Viagens Assombradas”, inspirado em lugares que possuem um turismo meio
macabro, como o Castelo de Drácula, na Romênia, as Catacumbas de Paris e
até a cidade de Salem, nos Estados Unidos.
Não sou de ficar nervoso em encontros (não que isso seja um encontro,
na cabecinha teimosa dela), mas é a Lila e realmente não sei se ela vai
comprar minha ideia. Se ela realmente vier, sinto que já estarei no lucro.
Ao meu redor, vejo colegas de equipe um tanto quanto deslocados e
nem um pouco dedicados à ideia de se fantasiar. Ah, o pessoal de
tecnologia… Um bando de nerds, e posso falar porque tenho vivência e local
de fala.
Enquanto isso, o time de Atendimento e Vendas, sempre conhecidos
por serem mais extrovertidos e a alma da festa, está na pista de dança. Uma
grande bagunça de trajes elaborados: múmias, vampiros, coringas, arlequinas.
Tem de tudo um pouco.
A ansiedade me consome e tenho vontade de girar como um peão em
cima da minha cadeira. Tem grandes chances de que eu e Lila vençamos o
concurso de fantasia, porque aposto que ninguém se dedicou como eu.
Achar essas fantasias de última hora foi um transtorno, mas parece que
posso ir até o fim do mundo por Dalila e me dar conta desse fato não me
preocupa nada.
Espero que ela tenha aprovado a ideia e que venha fantasiada, pois,
quando vi o vestido, sabia que ela ficaria deliciosa dentro dele.
Não preciso esperar muito para descobrir.
O corredor de acesso ao salão foi transformado com luzes bruxuleantes
e fumaça artificial, e é de lá que surge a minha medusa.
Ou melhor dizendo, minha Morticia.
Levo a mão até meu pomo de adão, tentando afrouxar a gravata, pois
Dalila me tira todo o ar com sua mera visão.
Deslumbrante era pouco para definir. O vestido preto parece costurado
em sua pele, delineando suas curvas e, mesmo que Lila usasse saltos
altíssimos, a cauda ainda arrasta no chão, seguindo seus passos lentos.
Lila flutua até mim e preciso de um segundo para me recompor do
impacto.
Como seus cabelos são naturalmente pretos como os fios artificiais da
peruca, nem parece que usa nada. Os fios descem pelo seu torso, indo até a
cintura e envolvem os seios, que com certeza não estão segurados por sutiã
algum.
Engulo em seco e ajeito de novo o meu terno, como uma maneira de
pousar minhas mãos em algo que não fosse o corpo dela. Para me impedir de
apertar o botão da cadeira, acelerar e ir embora com Dalila no meu colo.
Chega, ninguém olha para a minha medusa assim. É uma visão divina
que só eu posso apreciar!, ruge o homem australopiteco dentro de mim.
Quando Lila finalmente para na minha frente, percebo que estou
sorrindo como um bobo. Mas como evitar?
— Cara mia[11] — Estendo minha mão para ela. — Você veio.
Lila sorri e entrega seus dedos elegantemente, muito dentro da sua
personagem.
— Você convidou, mon sauvage[12].
Beijo sua mão com um gesto cavalheiresco.
— Devo ser o homem mais sortudo no mundo. — Subo meus beijos
por sua mão e depois no pulso e, à medida que levo meus lábios para cima,
puxo Lila em minha direção. — Você está tão linda nesse vestido que
ofuscou todo o resto.
Finalizo os beijos na altura do cotovelo, após roçar meus lábios pelo
antebraço. É uma pena que o vestido cubra sua pele nesse momento. Subo as
mãos por trás das coxas dela e acaricio com calma.
— Você quer dançar, Morticia?
— Não sem meu Gomez. — Lila pisca e entrelaça nossos dedos,
seguindo para a pista de dança quando a música My Family, de Migos e
Karol G, começa a tocar.
Gargalhamos juntos ao reconhecer os acordes da música tema de
Família Addams, misturado com toques de trap e reggaeton.
— É, acho que vamos, sim, ganhar esse concurso de fantasia —
comento quando fico no centro e faço com que Lila dê alguns giros ao meu
redor. — Talvez até o concurso de dança, que nem existe!
— Somos a atração da noite, Santi — comenta Lila, após outro rodopio.
— Me sinto uma protagonista de romance. E eu nem gosto de romances!
— Você que é. Sou um mero coadjuvante, medusa.
— Ai, para, você tá irresistível nesse terno e com esse bigode de puto.
— Vejo que Dalila morde seu lábio pintado de um vermelho sangue e sorrio
safado com seu comentário.
Não consigo me conter: seguro sua cintura e levanto seu corpo no ar
num só impulso, colocando-a, como sempre, sentada de lado no meu colo.
— Sabe o que tem de diferente dessa nossa dança para aquele forró de
seis anos atrás?
Jogo seus cabelos longos para trás e Lila envolve meu pescoço.
— Não lembro de ter visto Gomez e Morticia no casamento de Dom e
Jade.
— Não é isso. É que agora minha cadeira é motorizada e roda sozinha.
— Então, você não vai precisar tirar as mãos de mim.
— Incrível como você lembra de tudo, mami.
Ela ruboriza, mas só por um momento fugaz.
— Uma pena que estejamos numa festa de sua empresa.
— Por que, hein?
— Daria tudo para te beijar agora. E que você pudesse me tocar e
descobrir como sou uma boa garota que faz o que você diz.
— Sabe o que aconteceu? Me deu vontade de ir embora agora… Não
sei o que pode ter sido — brinco, ironizando.
— Não vamos embora, não. Eu me arrumei toda só para te fazer feliz,
agora você vai usufruir até a noite acabar.
— Não posso te usufruir na sua cama em vez disso? — Faço um bico
fingido.
Lila deixa um beijo no canto da minha boca e consegue se livrar de
minhas mãos, se pondo de pé quando a música acaba. Para provocar mais,
empina sua bunda no alto, se apoia nos braços da cadeira e me mostra seu
enorme decote em forma de coração.
— Vamos socializar. Se você quer ser o rei do baile, precisa angariar os
votos, mon cher. — É sua vez de me estender a mão e noto que suas unhas
estão pintadas de preto, porém mais curtas.
— Quem diria que a Bel poderia falar até francês?
Dividido entre a vontade de tê-la só para mim e o impulso de mostrar
para todos ali que tenho uma pessoa incrível ao meu lado, aceito sua mão.
Negarei até a morte se Dalila me perguntar, mas amo a sensação de
estar com ela em uma situação além da sexual, das quatro paredes.
Pode não ser um encontro para a perfeita mulher arredia a romances,
mas é bom me sentir querido e valorizado.
A pequena chama que queimou em meu coração na noite anterior,
quando ela me defendeu?
Bom, esse fogo virou um incêndio.
E estou pronto para me queimar.
A inversão
Dalila Deodato
Não fico surpresa quando ganhamos o concurso de fantasia da Innoviagens.
Fora alguns colegas de Rafi que se dedicaram muito ao cosplay, nós dois
éramos a dupla dinâmica da noite e também a mais dedicada.
Pode ter sido também pelo fato de que somos tão parecidos em
personalidade com os personagens, ou por termos a mesma química
impossível de ignorar.
Todos na festa notaram. A sincronia de nossos movimentos enquanto
dançamos, os olhares que trocamos e a tensão sexual palpável que nos
envolvia.
Quando subimos ao palco para receber o prêmio, a sósia do Baco,
Diego, puxa um coro de “beija, beija, beija”. O cúmplice que ajudou Rafi a
pregar a peça em mim era o único ali que sabia do nosso envolvimento
profundo, desde Punta Cana até Santi e Bel no 2lingo.
A recordação daquela brincadeirinha me aquece de um jeito e lembro
que finalmente poderei punir Rafi como quero por conta da pegadinha sem
graça. Na minha cama, sem ninguém para escutar a bagunça que iremos
fazer.
Rafi sorri sem jeito, um milagre de Deus na Terra, e sou eu, um pouco
alta por tomar alguns copos de sangria, que puxo seu rosto e deixo um
selinho rápido nos seus lábios grossos. Todos vibraram no salão e entoaram
um cântico de Morticia, Morticia.
Ficamos até tarde no evento e depois que enturmamos com os colegas
de Rafi, o tempo passa que nem sinto. O DJ bota novamente a música da
série Wandinha pela décima vez e há anos que não me divirto assim, como
nesta noite.
O calor em Entremontes não dá trégua e, quando saímos do salão de
festas para voltar para casa, começamos a nos desmontar no banco de trás do
Uber. Já estou sem minha peruca; Rafi tirou o terno risca-de-giz do Gomez,
ficando com a camisa branca desabotoada e a gravata está aberta, pendurada
no pescoço. Assim como seis anos atrás.
Começo a retirar os grampos que seguram meus cabelos no alto e,
assim que os fios lisos passam a escorregar por meus ombros, rosto e nuca,
capto a atenção de Rafi.
Sem aviso, ele envolve minha nuca com impetuosidade e me beija.
Desta vez, não apenas um selinho casto. Não, nesse beijo, Rafi me engole.
Sua outra mão pousa em meu quadril e o sinto dedilhar a região, procurando
por algo que definitivamente não está lá.
— Eu disse que tinha obedecido à sua ordem — sussurro contra seus
lábios bem baixinho.
— Por Dios, Dalila Deodato. Você vai me matar assim, eu sou
cardíaco, sabia? — brinca ele, mordendo meu lábio; sua mão grande desce e
aperta de leve minha bunda.
Sem que eu note, o carro freia em frente ao meu prédio. Tento me
desvencilhar das mãos sedentas do homem ao meu lado. Tento muito mal,
para ser sincera.
— Você pode entrar no estacionamento, moço. O porteiro vai te liberar
quando perceber que sou eu. Temos que desembarcar a cadeira lá dentro,
perto do elevador.
O motorista resmunga algo e parece incomodado de ter que trabalhar de
madrugada e ainda montar a cadeira, mas o olhar de morte que lanço pelo
retrovisor deve ter sido tão horripilante que o homem nada diz.
Avaliação de uma estrela na Uber por fazer cara feia para meu Gomez.
Mal me atento que não é a primeira vez que me refiro a Rafi
acompanhado por pronomes possessivos. Se só teremos esses últimos dias
juntos, ele pode muito bem ser meu. Porque estou me dando inteira para Rafi,
para o Santi.
Entramos no elevador e, assim que as portas se fecham e nos
encontramos sozinhos, começo a deslizar minhas mãos por seus ombros
largos, abaixando a camisa branca que ainda reveste seu tronco.
— Lila… — murmura ele, como um aviso.
— Sim, Santi? — Me faço de boba, puxando a gravata lentamente,
quando a camisa já está caída sobre os braços da cadeira dele e seu peito,
finalmente nu.
As tatuagens se movem erraticamente, acompanhando seu respirar
pesado de expectativa.
— Por que você tinha que morar no décimo quarto andar? Esse
elevador não chega nunca?
A sua impaciência me faz sorrir e uso a gravata em minhas mãos para
fazer algo que disparará gatilhos deliciosos em nós dois.
— Rafi, vou te vendar hoje. Tenho algumas surpresas.
Ele acena com a cabeça e geme tão gostoso que envia arrepios
deliciosos por meu corpo todo.
— Essa noite, sou sua dona e mando em tudo, ok?
— Carajo, Lila — xinga ele em espanhol, ofegante.
— “Sim, senhora” é a resposta correta. Cada vez que você errar, terá
uma punição. — Enrolo e desenrolo a gravata nos meus punhos, com a
promessa iminente de fazê-la de venda.
— Sim, senhora.
— Bom garoto. — Seguro seu queixo entre meu indicador e polegar.
Quando o elevador chega, Rafi e eu entramos com tanta pressa no meu
apartamento, que tropeço no tapete e jogo meus saltos num canto qualquer da
sala, a peruca no sofá. Deixo que ele fique parado no meio do cômodo e
começo a levantar meu vestido, expondo o meu corpo completamente nu.
Rafi Salvatierra
Dalila é a personificação do pecado. Me dou conta disso ao fitar seu
corpo nu, a expressão safada, além daquela veia dominadora que passou a
encenar desde que chegamos a sua casa.
Ela caminha até mim devagar, sem roupa alguma, apenas os lábios
vermelhos manchados de batom após me beijar no banco de trás do carro.
Estende a gravata sobre meus olhos e me impede de continuar vendo
aquela perfeição. Ela aperta o nó bem forte e sinto a pulsação nas minhas
têmporas. Emito um grunhido, irritado e excitado ao mesmo tempo, e meu
pau pulsa, implorando para se ver livre da calça.
— Preciso de você sem roupas, Rafi. Agora mesmo.
Não consigo vê-la, mas minha audição está mais aguçada e ouço seus
joelhos baterem no chão. Além disso, sinto suas mãos pequenas tateando
minha virilha, abrindo a calça e agarrando meu pau com força, sem nenhuma
cerimônia.
— Você está duro assim desde quando?
— No momento em que pus meus olhos em você na festa.
Suas mãos me envolvem num movimento delicioso, subindo e
descendo na minha ereção, passando a almofada do polegar na ponta e
espalhando a lubrificação na glande.
— Tem camisinha no bolso da calça, pega e me cavalga, por favor, Lila
— imploro; minha voz grossa é suplicante e nem tenho vergonha.
O que acontece em seguida me pega desprevenido e nem é porque
estou vendado e não pude antecipar.
Dalila me dá um tapa na cara. É leve, mas ainda assim… Uma energia
diferente corre meu corpo. Pura adrenalina e tesão tomam minha corrente
sanguínea e me sinto crescer na sua outra mão, que continua me
masturbando.
— Puta que pariu — rosno.
— Não lembro de ter deixado você falar. Essa foi sua primeira punição.
— Tem mais? — pergunto, implicando de propósito.
Dalila usa a mão livre para pressionar minha garganta e sinto seu cheiro
mais perto, invadindo minhas narinas.
— Você é tão impertinente, Rafi, falando sem minha permissão. No
fundo, acho que você gosta de apanhar, não é? — Seus lábios tocam os meus,
um suave resvalar, enquanto ela desenrola a camisinha em meu pau. —
Pensando bem, mudei de ideia. Eu já te vi completamente nu, e acho que
nudez é superestimada.
Sinto-me envolvido por sua quentura e minha ereção é abraçada,
apertada como um torno. Seu peso cai no meu colo e, então, estou dentro
dela.
Desejo ver essa cena à minha frente da mesma forma que quero
permanecer vendado, pois ter Lila rebolando em meu colo e ter apenas o
sentido do tato é enlouquecedor. Me excita além do que pensei que poderia
ficar por alguém.
Nem minha calça e cueca ela retirou por completo, apenas me colocou
para fora e está cavalgando no meu pau, num ritmo tão lento que se torna
uma tortura.
É perfeito sentir meu comprimento se acomodando nela, preenchendo
aquele espaço por inteiro.
— Me deixa ver, mami, por favor. Está tão bom a sua boceta me
engolindo assim, mas quero apreciar seu dragão com meus olhos.
Dedilho suas costas, onde sei que há os traços vermelhos da tatuagem
enorme.
Outro tapa, desta vez mais pesado, e ela agarra meus cabelos curtos
pela nuca, fazendo uma ondulação com sua coluna que me enfia mais, se é
possível.
— Sei que está bom, consigo olhar para trás. Eu te sinto tão fundo,
porra. — Lila geme entre suas falas e ouço a sua respiração entrecortada.
Seus pés pousam nos meus e, naquela posição de costas, sua bunda bate
contra meu abdômen enquanto ela sobe e desce em minha extensão. Estamos
ambos suados, o calor do encontro de nossos corpos se soma à temperatura
do ambiente.
Não há outra coisa que eu possa fazer além de traçar sua coluna com
meus beijos e minha língua. Seguro seus peitos e encho minhas mãos com
sua carne, me ancorando nela. Deliberadamente, desobedecendo suas ordens,
movo meu quadril por baixo, buscando proximidade, ir mais fundo.
Sei que estou perto de gozar, logo passo a gemer no seu ouvido,
tentando enlouquecer Dalila da mesma forma que ela está me deixando louco.
— Vou gozar, gostosa.
— Não vai, não. Eu disse como seria a próxima vez que você gozasse,
não disse?
E quando ela quica mais duas vezes no meu colo, Dalila se levanta,
abaixa a venda dos olhos para o pescoço novamente, puxando-me para o
quarto, usando a gravata para me arrastar, como se fosse uma coleira.
Considerando que ela é minha dona, não poderia combinar mais.
Seu quarto está escuro e apenas a luz que vem da sala ilumina o
cômodo. Quando chegamos aos pés da sua cama, Lila se ajoelha novamente e
começa a retirar o resto das minhas roupas com um cuidado e reverência que
diverge da sua dominância desde o início da noite.
Mas quando com Dalila não foi assim? Ela cuida e me protege até sem
perceber. Como ela pode pensar que isso não é romântico? Que sua forma de
amar difere dos outros, mas é exatamente o tipo de amor que me aquece por
inteiro?
Ela levanta minhas pernas fracas com delicadeza e ergue o olhar para
mim por um instante.
— Ergue os quadris, meu bem.
Meu bem. Esse apelido ainda vai me matar. Estou tão hipnotizado pelos
seus pedidos e movimentos que obedeço imediatamente, fazendo força com
meus cotovelos nos braços da cadeira.
Perco a fala, focado nas suas mãos que escorregam pelas minhas coxas,
joelhos, panturrilhas, até meus pés. Retira meus tênis e repousa o par ao lado
da roda.
— Você está tão calado agora — sussurra Lila e deixa um beijo no
interior das minhas coxas, enquanto retira o preservativo. — O gato comeu
sua língua?
Continuo silencioso quando sua boca sobe mais e ela rodeia a língua na
cabeça do meu pau, sem desafixar o olhar despudorado.
Não falo, mas emito ruídos. Gemidos, rosnados, grunhidos, até que ela
pare de me chupar e se erga do chão.
— Se eu falar, você vai me punir, me deixando sem gozar e quero
muito, muito mesmo gozar, medusa.
— Impaciente. — Lila roça os lábios aos meus. — Vou precisar ir ao
banheiro, mas vai se deitando na cama, não vou te fazer esperar mais, Rafi.
— Sim, senhora — respondo com tom brincalhão e ela solta um sorriso
pequeno.
Dalila some para dentro do banheiro da suíte e fecha a porta. Obedeço à
sua ordem e me ajeito no colchão.
Começo a me tocar lentamente, deslizando meus dedos ao meu redor,
apertando a base e massageando minhas bolas. Tudo dói, a negação do
orgasmo me deixa excitado demais e preciso de liberação.
Dalila volta do banheiro e meus olhos não acreditam no que veem.
Aumento o movimento da mão no meu cacete quando Lila se aproxima da
cama, usando o caralho de uma cinta strap-on. Melhor dizendo, um
cintaralho.
Nos seus lábios, um sorriso sem vergonha se expande e dá para ver que
ela está muito confortável, as fitas pretas de couro abraçando seu quadril,
coxas e nádegas.
— Me fala, como você quer que eu te coma essa noite, Rafi?
Ajeito-me na cama, encostando na cabeceira, e minha ereção tensiona
de forma involuntária, um impulso de tesão correndo por mim. Seguro meu
membro e continuo a bater a punheta devagar.
Lila caminha na minha direção como uma leoa em torno da presa, seus
seios pequenos e redondos apontando para o alto, os mamilos túrgidos.
— Ficou sem palavras, meu bem? — A pergunta é carregada de
lascívia.
— Caralho, Lila. Você tá gostosa demais assim. — Ela chega até a
cama, botando apenas um joelho no colchão. Se abre toda para mim e, com o
movimento, solta um gemido sôfrego. — Está vibrando no seu clitóris
também, mami?
— Sim. Vai ser tão bom te foder. Chupa, vai. — Aponta para a prótese
de tamanho mediano e com textura natural.
— Você é tão mandona, Lila. Isso me deixa duro para caralho.
E sem pestanejar, abro a boca para que ela enfie o brinquedo devagar,
molhando com minha saliva. Solto com um estalo e aperto sua bunda com as
duas mãos, fazendo com que ela se ajoelhe na cama à minha frente.
— Acho que deveria ter perguntado antes se você topava, mas
considerando tudo que fizemos em Punta Cana… — sussurra ela, incerta,
ainda que o fogo continue queimando em sua expressão. — Achei que você
gostaria.
— Achou certo. — Com minhas mãos agora em sua cintura, puxo-a
para perto até que alcance seus mamilos, colocando na minha boca com
vagareza proposital, fitando sua reação.
Lila agarra meus cabelos, conduzindo as sugadas que dou no seu peito.
— Quero que me morda aí, forte. Quero meu corpo marcado por você
por semanas.
— Seu desejo é uma ordem — digo, apenas para voltar a me
banquetear em seus seios, deixando uma trilha molhada no seu colo e sua
pele avermelhada.
— Não, minha ordem é uma ordem.
Minha resposta é sugá-la por inteiro e forçar, até que meu maxilar doa,
me certificando de que vou deixar Dalila arroxeada.
— Isso, Rafi — incentiva ela, com um gemido. Pela visão periférica,
noto que pega o lubrificante numa gaveta ao lado da cama.
Alguns segundos mais me masturbando aqui e vou gozar minha mão
inteira. Dalila olha para os movimentos erráticos que faço na minha ereção e
decide que foi o suficiente.
Com um puxão no meu cabelo e um agarre forte no pescoço, ela me tira
do seu peito. Pega uns travesseiros, ajeita um monte no meio da cama e, com
alguns toquinhos no meu quadril, indica para que eu me vire.
Entendo o que ela quer apenas com o olhar e me ponho de barriga para
baixo sobre os três travesseiros, meu pau apertado, sufocado contra eles.
Sinto mais do que vejo a pressão por trás, quando Lila me abre e começa a
molhar minha entrada com seus dedos pequenos e carinhosos.
Uma mão está me rodeando, esfregando a região do períneo, tocando as
bolas e me estimulando mais.
— Eu ainda sou fissurada em você, Rafi. Nessas suas covinhas… —
Lila espalma minha lombar, onde tenho dois buraquinhos na pele — Seis
anos atrás, achei lindo cada detalhe do seu corpo. Hoje, que te conheço por
dentro, te acho mais bonito ainda, como é possível?
Com cuidado, passa a me penetrar com as primeiras falanges do
indicador e médio e, como estão cheios de lubrificante, escorregam fácil.
Mordo o travesseiro ao meu alcance e sinto tudo em mim se contrair de
tesão.
— Dói? — pergunta.
— No, quiero que me cojas. — Minha voz sai rouca, mais grossa que o
normal.
Peço em espanhol que Dalila me foda e sei que ela entende
perfeitamente. Entende, pois Santi falou para Bel por mensagens diversas
vezes.
E com isso, penetra dois dedos inteiros bem devagar, me alargando, a
mão esquerda pressionando a minha lombar, onde os furinhos sobre a bunda
estão bem aparentes.
— Sou doida por você inteirinho, Santi. Você acaba com todas as
minhas convicções e certezas, sabe disso, não sabe?
Seus sussurros me acalmam na mesma medida que me excitam. Ela se
encaixa atrás de mim, inserindo o dildo, e a dor é tão gostosa que meu quadril
se ergue de forma involuntária, me abrindo para recebê-la.
Seus seios se colam na curva de minha coluna e, em seguida, Dalila me
morde com força na altura do ombro; eu gemo alto, sem conseguir controlar.
Ainda me mordendo e com certeza com intenção de me deixar todo marcado,
Lila começa a se movimentar, rebolando o quadril e metendo cada vez mais
fundo.
Aumenta a velocidade das investidas gradativamente e sinto a vontade
de gozar crescer desde as minhas bolas ao pé da barriga. E eu nem estou
tocando na porra do meu pau. Dalila vai me fazer gozar no seu travesseiro, só
me fodendo e nada mais.
Começo a sarrar meu quadril, esfregando na cama, colchão, travesseiro,
o que estiver pela frente, acompanhando suas estocadas. Nossos gemidos se
misturam e sei que ela está perto de gozar também, sinto a vibração que
estimula seu clitóris me batendo por trás.
Lila agarra meu pescoço com a mão direita, apertando minha garganta
com uma força descomedida e suas unhas curtas cravam forte enquanto a
mão esquerda lhe dá apoio no meu ombro.
— Não vá gozar ainda, minha putinha — murmura no meu ouvido, o
xingamento inédito me excita de um jeito que nem esperava. Assim como o
tapa que ela desfere na minha nádega.
— Dame más fuerte — começo a xingar também, mas em espanhol.
Sei que Lila sorri, pois sua boca está no meu ombro e seu sorriso se
desenha na minha pele. Ela empurra outra vez e, depois, retira a prótese
inteira.
— Eu disse mais forte, mami. Por que parou? — reclamo, meus
gemidos abafados no travesseiro e me sentindo vazio sem que ela esteja me
comendo.
— É isso que não entendeu ainda sobre essa noite, Santi. Você não está
no controle de nada. Eu digo quando você goza e eu decido se quero te foder
mais forte. Vira para cima.
Ela demanda e acato. Dalila coloca um apoio para minha cabeça e volta
a jogar seu corpo quente sobre o meu.
Ela levanta minhas pernas com um carinho que me emociona e, se eu
não tivesse prestes a gozar, talvez eu chorasse. Lila beija minhas panturrilhas,
uma depois a outra, colocando-as nos seus ombros.
— Vai pesar muito, medusa.
— Cala a boca.
Eu sorrio, porque apenas ela consegue ser amável e bruta comigo no
mesmo segundo.
Não consigo só olhar enquanto ela me provoca, lambendo a parte
interna da minha coxa e deixando mordiscadas. Seguro meu pau duro e
começo a me masturbar. Ao notar o movimento, Dalila entra em mim de
novo.
Volta a me foder bem lentamente, me levando ainda mais perto do
êxtase. Mas é apenas quando ela se deita, alterando o ângulo e fazendo o
vibrador me tocar fundo, que eu esporro na sua barriga e peitos.
Tomo sua boca num beijo descontrolado, deixando gemidos e arfadas
nos seus lábios, enquanto me derramo por ela. Lila chupa minha língua com
uma leve pressão e se afasta. Precisa apenas de duas investidas mais para
gozar com o atrito do seu clitóris no vibrador interno da cinta.
Caralho, a visão de seu corpo delicioso melado com minha porra é
linda. Dalila é minha e sou inteiramente dela, nem que seja pelo milésimo de
segundo que me reivindica nessa cama.
Se despenca sobre meu peitoral, ofegando; o seu coração bate acelerado
no mesmo compasso que o meu. Enrolo meus braços em seu tronco e viro
nossos corpos de lado. Lila se remexe e retira a cinta do seu quadril, jogando
para o lado.
Ficamos assim, abraçados um ao outro por bons minutos, num silêncio
que não me incomoda. Meu pau ainda está pronto para continuar, apesar de
ter acabado de gozar em Dalila e sua cama.
— Medusa… — murmuro na sua orelha e lambo o lóbulo. Ela apenas
solta um “hmmm” preguiçoso em resposta. — Você poderia, por favor, me
deixar te chupar agora?
Seu peito balança com o riso, pois minha voz saiu mais implicante e
impaciente do que eu esperava. Olho para baixo, e encontro sua feição
relaxada e Lila apenas assente, confirmando.
— Por Deus, é minha vez de te fazer ficar louca agora. — Deslizo para
baixo e vou abrindo suas pernas ao mesmo tempo. — Um orgasmo por cada
tapa dado, está me ouvindo?
— Você precisa aprender a fazer boas ameaças, Rafi Santiago — diz,
sob as pestanas, enquanto mordisco seu umbigo, brincando com seu piercing.
— É fofo você tentando retomar o controle.
— Ah, é? Você me deu três tapas e eu vou te retornar mais quatro
orgasmos, o que acha?
— Estou vendo vantagem.
— Porra, Lila. Você é tão perfeita, caralho. Sinto que alguém te
inventou só para mim — sussurro no pé da sua barriga e beijo suas cicatrizes
da cirurgia carinhosamente.
Só após mapear seu ventre com minha boca é que desço minha boca e
provo seu gosto pela primeira vez na noite. Mas com certeza, não será a
última.
A rotina
Rafi Salvatierra
Dalila saiu para o trabalho, mas as palavras que trocamos cedo
continuam me acompanhando, por isso, decido que preciso espairecer ou
gastar energia. Além de tudo, sei que esse apartamento que estou era de
Dalila com o infeliz do ex, então não me sinto bem de ficar aqui sozinho, sem
ela.
Mando uma mensagem para Nic, pedindo que me encontre na quadra
do seu condomínio.
Preciso conversar com alguém que possa me dizer que não estou
perdendo a sanidade. Que isso que sinto por Dalila Deodato não é o mais
puro e lindo amor, pois o meu corpo e coração dizem que sim, sim, sim. Mas
minha mente só pensa que isso é outro desastre, que vou assustá-la.
Quando Nic chega com Miguel na quadra, estou tentando pela décima
vez acertar uma cesta, mas não consigo.
Pelo visto, Rafi Salvatierra não dá uma dentro. A bola bate na tabela,
rodeia a cesta e cai para fora, quicando no piso verde da quadra.
— Tio Rafi! — Miguel me vê e corre para me abraçar.
— Hola, papito. Como foi hoje na escola?
— Foi legal, mas estou com saudades de você e da titia lá em casa.
— Quer que eu mande seus pais viajarem de novo? — brinco com meu
sobrinho, erguendo as sobrancelhas. — Para o Dante dormir na sua cama
escondido?
Nic encosta em mim e recebo um tapa leve na nuca. Sorrio travesso
para meu irmão. Miguel gargalha e pula do meu colo, correndo para buscar
seu patinete.
Dominic pega a bola, quica uma vez e arremessa para mim. A bola
laranja pesada cai em minhas mãos com um leve impacto. Tento mais um
arremesso, só que sem força e altura alguma, a bola passa direto para o final
da quadra.
— Você está fora de forma, Rafiel — repreende meu irmão.
— Só preciso me aquecer e consigo te vencer de olhos fechados, Nic.
Solto um suspiro cansado e, em seguida, algo que parece um rosnado.
— Manin, você está mesmo precisando de resgate, não é?
— Odeio a forma como você me conhece sem que eu precise dizer
nada.
— Crescemos juntos, Rafi. Não tem como me enganar.
— É a Dalila.
— É claro que é com a Dalila, você não ficaria neste estado ansioso por
conta do trabalho ou qualquer outra coisa.
— O que tem a titia? Vocês não são mais namorados? — Miguel volta
e bate a bola no chão, despreocupado e sem ritmo nenhum.
Engulo em seco com a pergunta da criança.
— Namorados? Quem te disse isso, mijo[13]? — pergunta Nic, olhando
para seu filho com uma expressão divertida.
— Ué, eles dormem juntos na mesma cama, que nem você e a mamãe,
papá. Teve uma vez que eles se beijaram também, mas vi escondido. —
Miguel faz expressão de nojo, como se dois adultos se beijando fosse algo
terrível. — Isso é namorar, não é?
— Eu fico com a pureza da resposta das crianças. — Nic aponta para
seu filho como se estivesse provando um ponto.
— Não temos rótulos, Dominic. — Minha voz é firme.
— Mas você quer ter? — Nic semicerra os olhos.
— Não me importo, só quero estar ao lado dela, por quanto tempo
puder estar.
Meu irmão cruza os braços, sua feição se torna séria.
— Por que sinto que essas palavras têm a ver com sua situação de
saúde e não com a decisão de Dalila em se relacionar contigo?
— Você sabe, Nic. Fiquei internado doze dias e a Mariah nem se dispôs
a ir no horário de visitas me ver. O Julio nunca quis me assumir, porque sua
família não aceitaria seu relacionamento com um homem e ele ainda disse
que precisava de alguém forte ao seu lado. Para construir seu império
hoteleiro.
Seguro o braço da cadeira com força, respirando lentamente antes de
continuar.
— Não sou forte, sou a ponta fraca, sou um estorvo. Você, mais do que
ninguém, sabe. Eu te dei muito trabalho nessa vida, Nic.
Dominic suaviza sua expressão. Para ao meu lado e põe a mão no meu
ombro de forma carinhosa.
— Amamos você, Rafi. Você não é um fardo ou um estorvo. E se a
Dalila te amar também, aposto que ela sentirá o mesmo — diz Nic, com
completa convicção. E sei que meu irmão nunca mente, aprendi a ser assim
com ele.
— Talvez ela venha a amar, mas nunca saberei.
— Por quê?
— Porque ela não me dirá. Não é do seu feitio.
— O amor pode ser externado de outras formas além de palavras,
manin. — Sua mão agora está na minha nuca, dando tapinhas amenos.
— Fora que ela acha que também não serve para essas coisas, porque
não pode ser mãe.
— Como se você quisesse ser pai! — responde Nic, completando meus
pensamentos. — Você já não queria desde antes da síndrome, Rafi. Só Deus
sabe o quanto ouvi dona Mercedes reclamar no meu ouvido sobre isso.
Um sorriso pequeno escapa dos meus lábios.
— Sobrou para você o peso de dar todos os netos que ela quer, papito.
— Que bom que encomendei mais um, então.
— Será que teremos finalmente uma menina nessa família de machos
Salvatierra?
Minha mãe foi a única filha mulher de meus avós e, depois, teve três
filhos homens. Quando veio seu primeiro neto? Um menino também. Ela
vive cercada do sexo masculino por todos os lados e deve ser por isso que se
apaixonou tanto por Jadecita, como nora.
— Talvez assim ela se acalme de uma vez.
— Até parece, o Andri ainda vai sofrer naquelas mãos.
Rimos juntos.
— Estou com saudade de nuestra madre, Nic. — Suavizo minha voz e
esfrego minha barba que está bem crescida. — Ficarei mais algumas semanas
no Brasil, trabalhando presencialmente e tentando firmar meu relacionamento
com Lila. Mas tenho que voltar em breve, nem que seja para resolver minha
vida, buscar o Apolo e deixar as coisas acertadas em Santo Domingo.
— Amaria te ter por perto, hermano. — Nic sorri, caloroso. — É uma
grande decisão, mas acho que você está grandinho o suficiente para tomá-la.
— É, acho que estou mesmo.
O apartamento
Dalila Deodato
O domingo que seria a partida de Rafi chega e vai embora. Porém, ele
continua comigo.
Na segunda, Rafi acorda cedo, já que marcou com corretores de
imóveis para visitar alguns apartamentos para alugar. Se me passou pela
cabeça sugerir continuar morando com ele?
Sim, mas sei que não tenho esse direito.
A verdade é que não quero mais ficar no antigo apartamento que dividi
com Samir. Por mim, teria alugado ou vendido há muito tempo, mas o babaca
do meu ex me deixou o apartamento, mas não me permite fazer nenhuma
transação com ele.
Talvez seja a última forma que ele possa ter controle da minha vida e
não queira largar o osso. É tão a cara dele, essa manipulação e passivo-
agressividade mascarada de boa ação.
“Olhem só, deixei a minha ex-noiva morando no nosso apartamento e
fui para outro, estão vendo como sou uma boa pessoa? Mesmo que ela não
tenha sido boa comigo?”
É o que imagino que tenha dito na sua roda de amigos. Até para pessoas
da empresa, pois não duvido nada que ele seja baixo desse jeito.
A campainha toca e me assusto. O porteiro não me avisou no interfone
que estava chegando alguém.
Levanto-me da mesa onde estou trabalhando e vou até a porta, com o
coração acelerado. Talvez fosse algum vizinho, o síndico, ou até mesmo Rafi
de volta.
Mas é Samir Arraes.
Meu corpo gela. Ele está acompanhado de uma mulher desconhecida,
vestida formalmente. Sem pedir licença, ele entra no apartamento como se
ainda morasse aqui, como se fosse o dono. O que não deixa de ser verdade.
— Boa tarde, Dalila — diz, seco.
— Samir, o que está fazendo aqui? — Minha voz sai firme, mas minhas
mãos começam a suar.
— Então, tem alguns interessados em alugar meu apartamento. — Ele
indica casualmente a mulher. — Essa é a corretora que vai ficar responsável
por todos os trâmites, ela veio tirar fotos e medidas dos cômodos para
anunciar.
Meu apartamento, ele diz. Não seu ou nosso.
Ele fala para a mulher ficar à vontade e dá um aceno com a cabeça. Ela
sai andando meio comedida e começa a averiguar, me deixando só com meu
ex sob o beiral da porta.
— Samir, eu moro aqui, se esqueceu? — Elevo minha voz,
completamente indignada.
— Sei que mora. Mas acho que não tem mais o direito de estar. — Sua
feição esbanja desdém e ele nem me olha, procurando algo atrás de mim.
Sinal de alguma outra pessoa, com certeza.
O sangue sobe ao meu rosto e sinto que estou tremendo, a adrenalina
corre por meu corpo sem controle algum.
— E você não achou de bom-tom me avisar antes que estaria me
despejando? Você nunca teve interesse no apartamento, Samir. O que mudou
agora? Você resolveu me atormentar um ano depois, é isso?
O homem que já não conheço mais dá de ombros e solta um sorriso
falso, gélido.
— Deveria ter se preocupado antes de beijar pessoas em seus ambientes
de trabalho.
Encaro o homem à minha frente, tentando ligar os pontos. Ele me viu
com Rafi, é isso? Tento calcular, conjeturar, entender, mas tudo gira na
minha cabeça acelerada.
— Eu também sou acionista na Innoviagens, Dalila. — Ele cruza os
braços, assumindo um tom superior. — E fiquei muito chateado quando
recebi uma foto no grupo da empresa semana passada.
— Eu não entendo. — Meu peito reverbera de tanta raiva e injustiça. —
Por que você está fazendo isso comigo, Samir? Foi você quem terminou
tudo!
— Mas foi pela sua decisão que tudo entre nós acabou. Eu te amava
quando rompi nosso noivado, Dalila, estou fazendo isso porque você é uma
megera sem coração e merece.
As palavras me atingem como um soco no estômago. E é verdade o que
diz o ditado: uma desgraça nunca vem só.
Neste momento, a porta do elevador se fecha e chama minha atenção.
Viro a cabeça e vejo Rafi no meio do corredor, com mais uma muda de rosa
do deserto no seu colo. Seu corpo está rígido e a expressão preocupada.
— Lila? O que houve? — pergunta Rafi, enquanto se aproxima de nós.
— Lila? Que lindo, os dois já têm até apelidos. — Samir zomba,
sarcástico. — Pobre desse homem que está perdidamente apaixonado por
você, não sabe onde se meteu. Será que ele acha que vai conseguir sustentar
um relacionamento sério contigo, uma vida inteira de companheirismo?
Mal consigo respirar, quanto mais responder às suas ofensas. Os olhos
de Samir são cruéis e ele cospe as palavras seguintes com desprezo:
— Só está encantado, até porque essa sua bocetinha é muito boa de
comer mesmo. Contou que, ficando contigo, ele nunca vai ser pai?
Não choro. Não consigo chorar. Estou estática, sem reação, ouvindo
todas essas coisas e tentando ignorar, tentando fingir que são afirmações
mentirosas. Não posso absorver isso.
Não é verdade, não é verdade, não é verdade.
Parecem horas, mas apenas segundos se passam enquanto Samir me
observa, esperando qualquer reação.
— Está vendo? Eu te digo todas essas coisas e você não emite uma
emoção, nem tristeza. Você é vazia por dentro, Dalila.
O barulho que ecoa no corredor vem de mim. Um estalido alto e a
palma da minha mão queima com o impacto, mas me sinto imediatamente
aliviada. No impulso e no desejo de me defender, eu dei um tapa no rosto de
Samir.
— Isso é emoção suficiente para você? — praticamente rosno para ele.
Quando Samir põe a mão na bochecha e se dá conta do que aconteceu,
caminha dois passos em minha direção com uma expressão sombria. Mas
antes que ele possa se aproximar, Rafi se coloca entre nós. E seus olhos estão
emitindo tanta raiva, brilhando em ira.
— Primeiro, não me trate como se eu não estivesse aqui, se referindo a
mim na terceira pessoa. — A voz de Rafi é baixa, mas ameaçadora. — Que
bom que a Dalila privou uma criança de ter um escroto como pai. Você não a
merece. Não merece seu amor e sua devoção. Ela é perfeita demais para um
desgraçado como você.
— Ah, e você merece? — Samir dá um passo para trás, o sorriso falso
desapareceu e agora apenas sua real face se mostra. — Aposto que ela nunca
disse “eu te amo”, não é?
Rafi coloca uma mão na minha frente e me coloca atrás dele, como se
me protegesse. Levanta o queixo, mantendo a firmeza de suas ações.
— Não é da sua conta. E que mesmo que fosse, diferente de você, meu
amor por ela é incondicional e independente do amor dela por mim.
As palavras pairam no ar e não tenho a chance de responder nada para
Rafi, pois a corretora volta para o corredor e acena para Samir.
— Você tem até o fim dessa semana para sair, Dalila — profere sua
sentença final.
O homem dá as costas e vai embora, como se não tivesse acabado de
me humilhar outra vez.
Rafi Salvatierra
— Ele me expulsou do apartamento — diz Lila após longos minutos
olhando para o nada, estagnada no sofá da sala.
— Lila, o apartamento não é seu também? — pergunto preocupado,
sentado ao seu lado.
Seus ombros estão tensos e Lila se vira para mim; seu rosto demonstra
um cansaço, mas também culpa. Quero tirar todo o sentimento ruim de dentro
dela. Odeio vê-la sofrendo, ainda mais por um escroto.
— Compramos juntos, mas ele investiu mais e, por isso, colocou no seu
nome. De toda forma, ele deu trabalho para a divisão dos bens e postergou
isso o quanto pode. Eu queria comprar a parte dele e Samir não permitiu. —
Sua voz está baixa, apagada. — Acho que estava esperando ter um bom
motivo para fazer o que fez. E eu dei. Quando me viu te beijando, Samir
surtou.
Cerro meus punhos, ainda sem acreditar que ele falou todas aquelas
coisas sobre Dalila. A raiva me queima por dentro. Só a ideia de alguém usar
um momento tão perfeito entre nós contra ela e para machucá-la me faz
querer gritar de ódio.
— Venha morar comigo. — As palavras escapam, mas não me
arrependo. Lila ergue o olhar, surpreendida com meu convite. — Fechei hoje
o aluguel de um apartamento no prédio do Nic. Fica comigo até você ajeitar
isso.
— Não posso, Rafi, não quero te incomodar — responde, nervosa.
Não hesito e envolvo seu rosto suavemente com as mãos, segurando
Dalila como a coisa mais valiosa do meu mundo. Beijo a ponta do seu nariz
arrebitado e sussurro novamente a declaração.
— Não sei se você ouviu, medusa, mas acabei de dizer ali fora que amo
você.
Lila arregala os olhos e, por um instante, vejo-os marejarem, mas ela
segura as lágrimas até onde pode.
— Você falou sério? Achei que era só para irritar o Samir e... — Sua
voz falha. — Rafi… Me desculpa, desculpa por tudo que ele disse. — Lila
me abraça, escondendo o rosto no meu pescoço e desata a falar: — Quero
você, quero ter um amor. Não imagino outra pessoa para ser meu parceiro na
vida. Não é que eu seja totalmente avessa a essas coisas…
Ela fala, se atropelando nas palavras, nervosa demais para pensar
direito.
— Calma, Lila. — Abraço-a forte pela cintura e seu corpo relaxa em
meus braços. — Quando estava voltando para cá, passei naquela mesma
floricultura de antes, sabe?
Pauso minha declaração, alentando-a e esperando que ela gradualmente
se acalme, vendo sua respiração normalizar.
— Te trouxe outra rosa do deserto.
Solto-a por um momento, pegando a segunda muda que deixei sobre a
mesinha quando entramos.
— Não sei se sabe, mas ela não precisa de muita água para crescer e
viver. Na verdade, são de sete a dez dias sem precisar regar. Ela precisa de
manutenção e amor, é claro, mas água demais a afoga. — Entrego o pote nas
suas mãos e fecho ao redor, sobrepondo-as com as minhas. — Eu te sinto e te
entendo, Lila. E concordo com seu jeito de amar, não é problema para mim.
Não irei te encharcar.
As lágrimas finalmente rolam por suas bochechas, mostrando que
minha Lila, minha medusa, tem, sim uma miríade de sentimentos em seu
coração perfeito.
— Posso te amar por nós dois até você chegar lá. Disse que te
esperaria.
Completo com minha declaração, beijando suas lágrimas com devoção.
Ela ergue a muda com cuidado e vejo que suas mãos tremem um pouco.
Quando me encara, seu olhar transparece tudo que ela não consegue
dizer.
— Prometo que vou cuidar para que ela cresça saudável. — Lila sorri
pequeno. — Você é muito mais do que mereço, Rafi.
— Aí que você se engana, nenita. Somos exatamente o que o outro
precisa.
Toco seus lábios devagar e com cuidado, selando nossas palavras com
o gesto. Deixando que o encontro entre nossas bocas e corpos emita o que
palavras ainda não podem expressar.
O coelho
Dalila Deodato
Passo a manhã de sábado na cafeteria Coelho Branco com Jade, ajudando
minha amiga a organizar a festinha de revelação do próximo sobrinho ou
sobrinha que ela carregava. Só eu sabia o sexo do bebê e encomendei o bolo
com a cor roxa, se fosse menina, e laranja, caso fosse um menino.
Miguel ficou na área reservada ao contato com coelhos e nem viu o
tempo passar. Ele está rodeado de cinco coelhinhos e nunca vi o mini-
humano tão feliz como agora.
— Mamãe, por favor, podemos levar um para casa? Por favor!
— Meu neném, lembra o que aconteceu da última vez que levamos um
bichinho escondido para casa?
Dou risada escondida, para não incentivar o Mi.
— Papá ficou dodói.
— Aquele gatinho subiu na nossa cama e se escondeu no travesseiro do
seu pai.
— E ele ficou sem ar… — reflete Miguel.
— Pois é, monstrinho. Não queremos o Dominic no hospital de novo,
né? — interfiro, ajudando a mãe em perigo.
— Mas é um coelhinho, ele nem sobe em camas!
— Vamos ver, meu amor — Jade tenta negociar. — Na volta, a gente
adota, tá?
— Tá bom. — Mi faz um bico, mas logo em seguida se alegra — Posso
brincar com eles só mais um pouquinho antes de ir embora, mãe?
Danda anui e ele volta para o cercado. Ela afaga a própria barriga sem
perceber, num movimento carinhoso e involuntário.
Jade está com dezessete semanas e o tempo parece correr,
principalmente depois que passei a dividir moradia com Rafi.
Desde aquele dia em que Samir me expulsou, estamos morando juntos
há quase um mês, enquanto resolvo a papelada do meu novo apartamento e
entro na justiça contra o abuso financeiro de Samir.
Quando terminamos, não quis levar as coisas para esse lado e pensei
que Samir estava mesmo de boa-fé ao deixar o apartamento para mim. Ainda
que não quisesse aquele lugar de volta, também não deixaria tudo para ele.
Investi muito das minhas economias e agora quero a minha parte.
Rafi voltou a trabalhar, indo mais vezes para o escritório, e a
organização do novo time toma muito do seu tempo. Assim como ele,
também estou trabalhando bastante e, além da Safetech, tenho um projeto
paralelo secreto na Universidade Federal de Entremontes, a UFEN.
— Como estão as coisas com Rafi, DD? — indaga minha amiga
casualmente, enquanto beberica sua xícara de café descafeinado.
— Tenho medo de dizer que estão perfeitas e agourar. — Passo o dedo
pela borda da minha própria xícara, sonhadora. — Por isso, prefiro dizer que
estão ótimas mesmo.
— Você pode ser feliz, amiga — rebate Jade, pousando a xícara na
mesa e me encarando com sinceridade. — Não precisa ter medo, sabe disso,
né? Você merece ser feliz.
Emito um suspiro, aliviada.
Desde a crise de ansiedade que tive no encontro com Samir, decidi
voltar para a terapia que havia largado. Fiz por um tempo depois da cirurgia,
mas por conta da correria da vida, eu me dei alta. Sem contar para minha
psicóloga, no caso. Posso dizer que a bronca que recebi dela quando voltei foi
bem aplicada.
— É, eu sei. Estou trabalhando nisso.
— Passos de bebê. — Acena com a cabeça, me encorajando.
— Ajuda muito que Rafi facilite tudo — admito, um sorriso
involuntário brotando em meus lábios à mera menção de Rafi.
— Eu ainda estou de cara que vocês passaram esses quatro anos se
falando todos os dias — diz Jade, arqueando as sobrancelhas. — Eu tinha
uma amiga antigamente, Dalila Deodato o nome dela, que diria que isso é
muito coisa de destino.
— Sabe que parei de acreditar nisso quando o destino começou a me
dar um monte de rasteiras, né? — devolvo, cruzando os braços.
— O destino não é sempre bonzinho, você tem que fazer por onde
também. — Levanta o dedo em riste, me passando um sermão fingido.
— Prefiro acreditar que minha amiga enxerida foi a responsável —
retruco, lhe lançando um olhar de falsa acusação.
— Ah, o truque do “só tem uma cama”. Nunca falha! — Jade ergue sua
xícara em um brinde e eu respondo, balançando a cabeça e levantando minha
xícara em resposta.
— Geralmente esse truque é apenas por uma noite nos romances, Jade
Dandara, não o livro inteiro!
— Vocês precisavam de mais tempo que apenas uma noite.
— É, precisávamos de tempo, sim. E de muito diálogo também. Se não
fosse Rafi sendo maduro e me fazendo conversar, não sei não…
— Você nunca foi muito de falar, DD. Não é seu forte. Você é mais de
fazer, de estar presente. O Samir é que era otário para não entender isso.
— Otário por ter me abandonado também, né? Não esqueça disso.
Minha psicóloga, Helena, fez um bom trabalho em me fazer refletir
sobre como Samir foi tóxico comigo. Como ele não respeitou minha decisão
e me abandonou depois de um diagnóstico de câncer, quando estava no meu
ponto mais vulnerável.
— Isso também! Mas as águas passadas não movem moinhos. Quero
que me conte o que está aprontando com a Eva e essas suas idas à
universidade… É do pedido de nam…
— AI, MEU DEUS! — grito e interrompo Jade, que é uma tremenda
boca de sacola, quando Nic e Rafi se aproximam da nossa mesa
sorrateiramente.
Jade franze as sobrancelhas sem entender meu grito repentino e até
outras pessoas ao redor me encaram. Devem achar que estou doida.
— Oi, Dom. — Me levanto da cadeira e aceno para o marido de Jade,
que beija sua bochecha com carinho.
Estou toda sem jeito, tentando disfarçar e pedindo muito que ele não
tenha escutado nada. Me jogo no colo de Rafi desajeitada.
— Mon cœur. — Me surpreendo por ter falado as palavras
corretamente nesse momento de nervoso.
— Medusa. — Rafi está com os olhos meio arregalados e os cantos dos
lábios erguidos num sorriso. — Está tudo bem, cara mia?
— Tudo ótimo, beleza, supimpa!
Supimpa? De onde raios tirei essa palavra? Do século vinte?
— Então, tá bom. — Rafi dá uma risada sem som, apenas balançando o
peito.
— Papá! — Miguel corre com um coelho nos braços, em direção a
Dominic.
— Sem correr! — advertimos eu e Rafi ao mesmo tempo, ainda
acostumados com os dias que passamos de babá. Olhamos um para o outro e
rimos da coincidência.
Dom e Jade nos encaram com expressões misteriosas.
— Vocês levaram o trabalho de babá muito a sério mesmo, hein? —
comenta Jade. — Papi, vamos deixar nosso pequeno mais um tempo com os
tios?
— Por favor, tô morrendo de saudade do monstrinho.
— Mas ele vai levar esse coelho que está aí nas mãos, o que acha, DD?
— Sim, tia Dadá. Você pode adotar o conejo e aí poderei visitar,
brincar com ele e o papai não vai morrer sem ar! — fala Miguel, tudo numa
rapidez e ainda mistura espanhol com português.
— É... — balbucio, sem saber como responder e sair dessa saia justa.
— Mas a casa é do tio Rafi, serumaninho, tem que pedir para ele.
— É sua casa também, Lila — sussurra Rafi apenas para mim, rente à
minha orelha.
As palavras me aquecem e, sim, é verdade. Eu me sinto em casa com
ele.
E essa é a história de como adotamos o Tambor.
Rafi Salvatierra
— Quando você trouxer o Apolo, esse coelho vai sofrer o pão que o
diabo amassou — comenta Lila, dois dias depois que adotamos o coelhinho
cinza.
— Não fale assim. Só porque ele faz um cocozinho em formato de
Nescau Balls na casa toda? Que besteira, ele é só um neném — defendo o
animal, pegando-o nos braços. — E o Apolo é um cão adestrado e
comportado.
Lila me ajuda a arrumar minha mochila da viagem.
Sim, mochila. Não levarei a mala de volta. Até porque meu plano é
retornar para viver no Brasil.
Claro que Dalila é um dos principais motivos, mas também porque vai
ser um passo importante para minha independência. É estranho falar de
independência quando sou um homem de quase trinta e seis anos, mas a vida
de uma pessoa com deficiência funciona diferente das pessoas sem.
Lá na República Dominicana, só recentemente passei a morar sozinho,
usando meu cão de serviço como principal apoio. E tudo porque mantive um
bom acompanhamento constante com meus médicos e fisioterapeutas, e
estava bem fortalecido.
A intenção era continuar assim. Mudar para outro país era um passo
grande, longe da proteção exagerada dos meus pais. Contudo, ainda assim
estaria perto do meu irmão e da mulher que amo.
Aqui também serei amado e cuidado. Lila não me diz com todas as
palavras, mas sinto seu amor e proteção nos atos. Quando me defende,
quando xinga alguém que é capacitista comigo ou simplesmente quando me
fita ao acordar, com brilhos perpassando seus olhos castanhos.
Uma pequena parte minha ainda acredita que ela merece alguém mais
forte e inteiro. Odeio sentir isso, de verdade, mas é como um eco que não se
cala, um pensamento intrusivo.
Afasto isso da mente e volto a fitá-la.
— Estou ansiosa para conhecer seu garoto educado. — Lila dobra uma
camisa minha e me passa, para que eu ajeite na mochila.
— Ele vai te amar.
— Se ele cuida de você e te protege, sinto que seremos bons amigos.
Suspiro e fico olhando para ela, abobalhado. Num ímpeto, jogo a
mochila para o lado e puxo Dalila para perto.
— Tem certeza de que não quer ir comigo? Será apenas uma semana
em Santo Domingo.
— Nossa, amor, se você soubesse o tanto de coisa que tenho para
resolver esse final de ano… — Encosta a cabeça no meu ombro e respira,
cansada.
Meus ouvidos quase não registram que ela me chamou de amor
naturalmente. Nem Dalila se tocou, e, se ela percebeu, escolheu fingir que
nada aconteceu.
— Caramba, você trabalha demais, mulher! — sigo com a conversa,
mais feliz do que um segundo atrás, e aperto-a em meus braços.
— Você acha que é fácil manter minha posição de liderança sendo
mulher no mundo das exatas e tecnológicas?
— Sei que não. Falei brincando, nenita. Você tem que dar o dobro de
suor.
— A parte boa é que ficarei tão ocupada que nem vou perceber o tempo
passando.
— E logo estarei de volta para você.
O projeto
Dalila Deodato
Desde que Eva conheceu Rafi no jantar de nossos pais, ela passou a encher
minha cabeça com um assunto antigo entre nós duas. Eva está se formando
na graduação e pretende se especializar no mestrado em fisioterapia
traumato-ortopédica. No futuro, quer ser professora universitária.
Apenas os corajosos vão para a carreira acadêmica. Jade, Dom e Eva
são guerreiros, viu… Quando me formei em Engenharia da Produção, nunca
pensei em trabalhar em outra coisa que não gerenciamento de produtos. Não
é à toa que lidero a área na Safetech.
Contudo, durante meus anos de faculdade e mestrado, participei de
projetos de pesquisa e extensão em robótica, como carga horária
extracurricular.
Foi o que bastou para Eva se animar e achar que eu conseguiria
construir uma prótese para atrelar ao seu projeto de pesquisa final.
Na época, descartei a ideia da minha irmã caçula. Não era minha
expertise e tampouco tinha material, verba ou laboratório para fazer algo
assim.
Talvez agora eu estivesse um pouco emocionada? Sim, mas quando
abri os stories de Eva na faculdade umas semanas atrás e a encontrei falando
sobre seu projeto de pesquisa, a ideia retornou para minha mente e fez
morada.
Criei o plano perfeito e dei sorte que tinha minha irmã do lado da
fisioterapia e a Rafa do lado da engenharia mecânica. Precisava de ajuda e ela
foi a peça que faltava para esse projeto secreto.
Bato ansiosa na porta do Laboratório de Automação e Robótica da
Universidade Federal de Entremontes.
A professora doutora Rafaela Andrade me recebe com seu sorrisão
característico.
— Dali, olha você novamente pelos corredores da UFEN! — exclama
Rafa, surpresa, e me abraça.
— Rafa! Quanto tempo. Obrigada por me receber.
Rafa foi minha colega de mestrado. Nossos caminhos se separaram
quando ela decidiu seguir carreira acadêmica e fui para o meio empresarial.
Assim como toda amizade de adultos, raramente nos vemos, cada uma
com suas demandas e vidas corridas. Principalmente depois que Rafa e sua
esposa Fabiana resolveram entrar com o processo de adoção de duas bebês
gêmeas de sete meses.
— Quando você disse que precisava de minha ajuda, fiquei surpresa. A
grande e famosa Dalila Deodato, CPO da maior unicórnio[14] de Entremontes,
querendo um pedaço do meu tempo?
— Até parece. Nem sou tão ocupada assim, você é muito mais.
— Em que posso te ajudar? Não diga que quer construir um robô
aspirador, por favor. Ouvi essa piada tantas vezes que vale para uma vida
inteira. — Ela faz uma careta, rindo levemente.
— Não é isso, relaxa. Lembra da Eva, minha irmã?
— A caçula? — Rafa ergue uma sobrancelha, curiosa.
— Sim, ela vai formar em fisio. Uns anos atrás, ela me deu algumas
ideias para reabilitação robótica, sabe?
— Eu me lembro, você chegou a comentar comigo. O projeto do
Lopomarch infelizmente não foi para frente — afirma ela e seus lábios se
contraem com pesar. — Faltou verba e abandonaram a construção do
dispositivo. Ficou pela metade.
— É, então… — suspiro, minha postura relaxando um pouco. —
Retomei o contato com uma pessoa do meu passado e voltei a pensar sobre
isso recentemente. Queria saber se posso voltar a trabalhar nele, tentar
finalizar. Eu e Eva, no caso.
Rafa se recosta na bancada de trabalho do laboratório, enquanto parece
avaliar meu pedido.
— Acho que consigo te liberar — diz, meio incerta. — E se eu não
conseguir com meu aval de doutora, talvez sua irmã consiga, por ser discente
da UFEN.
— É, mas se inicialmente você não conseguir, estou disposta a tentar
um aporte da Safetech, nem que seja para financiar uma parte.
Falo com confiança sobre essa possibilidade, apesar de não ter a certeza
de que Samir não interferiria caso soubesse o destino desse financiamento.
— Ui, que rica. — Rafa dá uma risada e levanta as mãos ao lado dos
ombros, em uma brincadeira. — Falando de aportes e investimentos.
— A empresa é voltada para a área de saúde e seguros, eles têm
interesse em ter seu nome atrelado ao projeto, já conversei até com o pessoal
de Branding e Marketing.
— Se é assim, acho que pode dar certo, Dali.
Suspiro aliviada e feliz com a luz verde vindo dela. Alguns segundos
passam até que Rafa volte a falar, um sorriso travesso nos lábios.
— Finalmente achou a tampa da sua panela, foi?
— Tá tão na cara? — pergunto, sentindo as bochechas esquentarem.
— Te conheço, Dalila. A pessoa que se apaixonou por você dez anos
atrás não te entendia, mas hoje, com a maturidade, eu compreendo. — Rafa
tem um tom nostálgico, como se se lembrasse daqueles tempos
carinhosamente.
Ah, tem isso. Nos meus vinte anos, namorei Rafa por dois meses. Eu
era mesmo uma jovem que curtia a vida, não posso negar meu passado e que
meti muito os pés pelas mãos.
— Nenhum amor é igual — conclui Rafa, sabiamente, sua voz bem
reflexiva. — Cabe entendermos qual amor temos para dar e qual gostaríamos
de receber.
Dalila Deodato
O próximo voo foi apenas na outra noite, o que significou quase quarenta e
oito horas a mais longe dele. Quase uma semana de UTI.
Dominic me explicou como é difícil fazê-lo acordar, que os médicos
vão tentando tirar a sedação pouco a pouco, mas ele volta a convulsionar. É
como se o cérebro dele não parasse de ter curtos-circuitos contínuos.
Em estado epiléptico, tendo múltiplas convulsões e crises mais longas
que cinco minutos sem recobrar a consciência. E a cada dia na entubação,
pior pode ser sua recuperação depois.
Assim que chego a Santo Domingo, quem vai me buscar no aeroporto é
o irmão caçula deles, Andriel. Reservei uma acomodação próxima ao hospital
onde ele está internado, pois pretendo passar todo o tempo disponível para
visitas ao lado de Santi.
No sétimo dia de internação, acordo com o coração pesado. Encontro
com dona Mercedes na recepção do hospital. Não sei se ela me reconhece do
casamento de Jade e Dom, mas seu primeiro ato ao me ver é me abraçar forte.
— Olá, querida, muito obrigada por ter vindo. Quando o Rafi acordar,
ficará tão feliz em ver você. — Sua voz é acolhedora e ela parece serena,
apesar da situação toda.
Quando ele acordar, e não se ele acordar.
Quando.
Sinto meus olhos arderem, mas me mantenho forte. Pelo menos por
enquanto.
O horário de visitas é sempre pela tarde, limitado a duas pessoas por
vez e dura no máximo trinta minutos.
Apenas trinta minutos.
O que farei nas demais vinte e três horas restantes?
— Eles já te passaram o estado dele hoje, dona Mercedes? — pergunto,
enquanto me afasto do abraço.
— Sim, querida. Graças a Nossa Senhora e ao bom Deus, ele não
convulsionou mais. Ainda está sedado e em acompanhamento, mas
diminuíram as doses dos medicamentos. — Ela suspira entre as frases,
demonstrando uma resignação e certa tranquilidade, como se o pior tivesse
passado. — Diminuindo a sedação e aumentando a saturação de oxigênio, ele
poderá ser extubado. Acho que hoje estará mais consciente também, você
poderá falar com ele. Sei que mi niño te ouvirá.
— A senhora explica tudo de maneira tão clara e calma. E eu aqui,
prestes a desmaiar ou vomitar de nervoso — tento brincar, mas a minha voz é
fraca, incerta.
Com um gesto maternal e cuidadoso, ela segura minhas mãos nas suas e
dá um leve aperto. Quando a encaro, vejo que os olhos de dona Mercedes são
do mesmo tom dos de Rafi.
— Sou enfermeira e, infelizmente, acostumada com esses processos.
Entenda, hija, o Rafi esteve nesse hospital tantas vezes. Ele é muito forte,
pois outras pessoas não aguentariam ser entubadas mais de dez vezes na vida.
Dez vezes que passamos por isso, então é normal conhecer todos os detalhes.
— Dez? — indago, engolindo em seco logo depois.
— Uma a cada dois anos, praticamente. — Um sorriso triste se forma
nos lábios dela.
Mordo o lábio, ansiedade perpassando cada canto do meu corpo. Fico
calada, sem saber o que dizer ou pensar.
Uma enfermeira vem na nossa direção e gesticula para que a sigamos.
Entramos num corredor silencioso e ela nos entrega touca, luvas e máscara.
Visto todos os equipamentos com cuidado e, quando tento pôr as luvas,
percebo que estou tremendo.
Após passarmos por uma porta pesada, seguimos a mulher para acessar
a UTI, o cheiro forte de antisséptico invadindo meus sentidos e aquele
ambiente branco e pristino me incomoda. Lembro das vezes que precisei ir ao
hospital por conta do câncer.
Dou uma olhada rápida nos leitos procurando Rafi, mas vejo outros
pacientes imóveis, com monitores piscando e bipes intermináveis.
Eu o vejo de longe. Sinto um alívio no meu corpo porque ele está vivo
e suas máquinas piscam e apitam. Já o choque e a vontade de chorar por vê-lo
tão vulnerável é o que se segue.
Olho para Mercedes, perguntando silenciosamente se posso me
aproximar, e ela apenas acena com a cabeça. A mãe de Rafi fica para trás
enquanto me aproximo do leito.
Rafi tem um tubo na boca, conectado a um ventilador mecânico, e suas
pálpebras estão fechadas. Está sem seus piercings e brincos, usando uma bata
branca e cheio de cobertores. Parece tão diferente sem sua habitual energia e
alegria que fizeram eu me apaixonar por ele.
— Posso pegar na mão dele? — pergunto à enfermeira.
— Pode, sim.
Toco seus dedos com cuidado, com medo de machucá-lo. Tive tanto
medo de feri-lo com meu jeito torto de amar e relacionar e, ainda assim, aqui
está Rafi machucado na minha frente.
— Não que seja minha culpa, Santi, mas é realmente impossível te
proteger de tudo, não é? — falo, enquanto seguro seus dedos frios. É mais
como uma autorreflexão, mas desejava que ele pudesse me ouvir. — Queria
te blindar. Te guardar apenas para mim e impedir que as pessoas pudessem te
fazer mal. Mas entendi que sua saúde é algo que nunca poderei controlar.
Você me disse que o meu problema era pensar demais. E acho que está certo.
Talvez eu precise apenas viver um dia após o outro, como se fosse o último.
Meu suspiro é pesado e sinto minha voz embargar, com a iminência do
choro que sei que está chegando. Aliso suas falanges devagar e aperto de leve
sua mão na minha.
— Mas preciso de você para continuar. Você tem que acordar e me
ensinar, meu amor. Por favor, Santi, volte logo, não aguento ficar sem você
um segundo mais. Sinto muito se te fiz pensar ser menos do que realmente
significa para mim. Você é o homem que amo.
As lágrimas que contive por tantos dias caem nas nossas mãos
entrelaçadas. Deixo uma carícia leve em seus dedos e é neste momento que
sinto. Um breve tremor que responde ao meu carinho. Pode ser um
movimento involuntário de seus músculos, mas prefiro acreditar que ele
escutou e que essa era sua resposta.
Afasto-me devagar e deixo que a sua mãe se aproxime. Dona Mercedes
afaga a testa de Rafi, onde tem um curativo.
— Ele caiu da cadeira, não sei se Dominic te contou. Espero que o
Apolo ajude nas próximas vezes. Ele sente o cheiro da convulsão chegando,
sabia? É incrível o que esses animais podem fazer.
— Eles são, de verdade, os melhores amigos do homem.
Dona Mercedes ergue o olhar, sua expressão é séria e me encara com
firmeza e talvez um pouco de preocupação.
— Terão próximas vezes, hija. Sabe disso, não é?
Aceno em concordância, com a garganta apertada.
— Se ele me permitir, estarei lá para ampará-lo.
Mercedes sorri, satisfeita.
— Rafi já te permitiu. Sei que ele não vai se mudar para o Brasil só por
conta do trabalho. Meu filho não me engana.
A sua certeza me aflige de certa forma. É bom saber que Rafi estará ao
meu lado, mas aquela sensação de que, ao ser escolhida, estragarei seu futuro
ainda remanesce. Ainda que eu tente esquecer ou acreditar no seu amor.
— Dona Mercedes, ele disse que me ama e... eu nem tive a
oportunidade ainda de dizer de volta. Tem algo sobre mim que pode ser
determinante no futuro da gente. No futuro da sua família. Eu não… —
Minha voz sai trêmula e não consigo encarar a idosa ao meu lado. — Não
tenho útero. Não posso ter filhos. Não quero privá-lo dessa possibilidade
apenas porque ele escolheu ficar comigo. Ele é teimoso.
— Ah, ele é! — atesta, soltando uma risada curta em seguida. —
Sempre soube o que queria e, quando decide, não tem quem faça mudar de
ideia.
— Sei que a senhora quer netos, lembro como ficou feliz quando Jade
contou que estava grávida no casamento… — Mantenho a voz baixa e o
olhar fixo em qualquer lugar que não nos olhos de Mercedes.
Contudo, ela nem me deixa terminar.
— Dalila, escúchame bien — falando firme Mercedes me interrompe
—, pouco me importa se você não tem útero, rim ou pulmão. É com você que
Rafi tem que ficar. Sabe as dez vezes em que ele ficou internado? Sabe
quantos namorados ou namoradas vieram até aqui, onde você está? Nenhum.
— Ela pausa por um segundo e segura minha mão, passando certeza e
tranquilidade. — Você atravessou mares, hija. Por ele. Algumas palavras são
ditas no silêncio.
Mais lágrimas escapolem e, antes que eu consiga responder, a
enfermeira aparece de volta.
— O tempo infelizmente acabou — diz ela, com um sorriso educado.
Antes de ir embora, acaricio as bochechas de Rafi uma última vez.
— Vamos, chica. Vamos conversar com o médico e saber quando
poderemos levar nosso garoto para a enfermaria.
Contudo, é apenas no nono dia de internação que Rafi desperta. Recebo
a ligação de Mercedes logo cedo, dizendo que, durante a noite e madrugada,
ele esteve bem, sem convulsões, e seria transferido para a enfermaria.
Conta que Rafi chamou meu nome aos primeiros sinais de consciência.
Isso significa que ele sabe que estou ali?
A parte mais positiva da ligação de Mercedes? Ela me informa que na
enfermaria poderia ficar um acompanhante, dormindo lá, sem sair do seu
lado.
E seria eu.
Rafi Salvatierra
É sempre como se o mundo estivesse apagado e eu emergisse da
escuridão. Como se eu estivesse preso num canto minúsculo da minha
cabeça, tomada de neurônios brigando entre si para saber quem seria o
controlador das minhas sinapses.
Na verdade, quando acordo, nunca me lembro de nada. Sempre me
contam o que aconteceu antes e os dias que passei apagado. Acordo para a
realidade e parece que a neblina densa se dissipa.
Percebo os arredores, meu corpo pesado e os músculos doloridos de
tanto ficarem parados, sem movimentos. Atrofiados.
A luz baixa, os sons tão comuns que parecem gravados na minha
cabeça, aquelas vozes indistintas, os bipes intermitentes. Meu braço dolorido
onde o acesso foi colocado.
E a garganta seca, a irritação na traqueia por conta do tubo. A médica
disse que foram nove dias. Para quem já esteve quinze dias entubado, até que
me recuperei fácil desta vez.
Sonhei tanto. Sonhei com Dalila. Pude sentir seu toque como se minha
medusa estivesse aqui.
Tento falar, chamar alguém, mas apenas um som rouco sai da minha
boca. Frustrado, me agito e lágrimas correm soltas dos meus olhos até o
travesseiro onde me recosto.
Afonia[15] de novo. Minhas cordas vocais inflamadas e aquela sensação
incômoda de um bolo na garganta. Os bipes aumentam, indicando que meu
coração bate mais acelerado.
— Ei, meu bem. Calma, estou aqui contigo.
Viro meu pescoço dolorido na direção da voz mais linda, aquela voz de
deusa que esteve em meus sonhos durante as últimas noites.
Não foi um sonho.
Lila está de pé ao lado do meu leito e suas mãos pequenas encontram a
minha, apertando de leve, mostrando que ela é real.
Tento dizer algo novamente, mas nada sai. Em vez disso, choro mais e
aperto sua mão em resposta. Ergo devagar minha mão esquerda, mas percebo
estar ligado ao soro que devo estar tomando.
Porém, Lila entende. Não preciso dizer nada, ela acaricia minhas
têmporas com cuidado e deixa uma lágrima solitária escapar.
— É só por um tempo, meu amor. Em breve, você estará falando de
novo como uma matraca, sendo o Rafi que todos conhecemos e amamos —
diz Lila com um sorrisinho pequeno e correspondo seu gesto.
A sua voz é tenra, suave e parece aplacar a dor, levar embora todo
desconforto. Gesticulo com os dedos, como se estivesse digitando, e Dalila se
afasta um pouco, abre sua bolsa, pega algo e me entrega o meu celular.
— Você recebeu tantas notificações do 2lingo nesse meio tempo, Santi.
Até a mascote Panda do aplicativo sente sua falta.
Sorrio e passo a digitar uma mensagem.
Santi: Passei mal no Brasil?
Deixo que Lila leia e ela me responde com sua voz mesmo:
— Não, mon cœur, estamos em Santo Domingo. Sabia que você é
praticamente uma celebridade aqui nesse ambulatório? Todos te conhecem e
estavam esperando você acordar.
Santi: Você veio ficar comigo? E seu trabalho? Há quantos
dias está aqui, medusa?
Lila termina de ler a mensagem e ergue sua mão para envolver meu
rosto, me tocando com delicadeza.
— É isso que você não entendeu ainda, Rafi. — Com um leve impulso,
ela se senta na ponta do leito, ficando mais próxima. — Eu quis ficar contigo
independente disso. Quando soube que estava aqui, meu primeiro impulso foi
fazer algo por você mesmo à distância e ainda acho que demorei muito para
entrar nesse avião. Mas eu vim.
Meus olhos ardem de tantas lágrimas, mas não sinto vergonha de
demonstrar para Dalila. Com ela, me sinto seguro para fraquejar e colocar
para fora.
Santi: Não te assusta me ver assim? Tão… incapaz?
Digito e a encaro, tentando ver um vislumbre de arrependimento,
porém não encontro. Vejo apenas sua conhecida determinação. O olhar de
quem lutaria por mim.
— Sua condição não me assusta, Santi. Quero ficar contigo, não
pretendo sair de seu lado. Estar aqui é a única coisa que importa agora. É
assim que amo você e nada do que me disser vai me fazer desistir.
Lila diz com muita firmeza, mas as suas lágrimas correm soltas,
denunciando a profundidade do seu sentimento. Da sua verdade.
Choro, ouvindo as palavras saindo da sua boca. Ela disse que me ama,
naturalmente e sem receios.
Murmuro um “eu te amo” mudo, com os lábios, para que ela leia e
Dalila envolve minha outra bochecha com sua mão, o toque leve em minha
pele cura cada ferida aberta.
Encosta a testa na minha e sussurra:
— Onde eu estive quebrada, estar contigo me reparou e me curou.
Espero fazer o mesmo por você. Quero que saiba o que é amor, o que é ter
alguém ao seu lado incondicionalmente e nunca mais se sentir abandonado.
Foi contigo que me dei conta, Rafi Santiago Salvatierra, que não havia
conhecido o amor antes. Até você. Sei o que é amar alguém de verdade
porque você existe.
Mesmo com toda minha bagagem, ao escutar a declaração de Dalila,
entendi que queria mesmo tentar ser feliz com ela, ser amado de verdade.
Provar que essa sensação que me persegue por tanto tempo é vencível e
que posso ser mais do que minha mente teima em acreditar.
Tudo por ela.
O grande gesto
Rafi Salvatierra
Vai parecer brega dizer isso, mas quando Lila chega e me faz companhia na
enfermaria, me sinto melhorar em uma velocidade insana. Que minha mãe
nunca escute isso.
Fico apenas mais dois dias em observação, fazendo alguns exames de
sangue e de imagem. Fora a fisioterapia respiratória para recuperar minha
voz.
Recebo alta e volto para o mundo real. Sei que preciso voltar a fazer
exercícios, com as aulas de dança, mexer meu corpo e retomar a força que
tinha antes. Todo período no hospital me deixa meio fragilizado, porém, com
Lila ao meu lado, me sinto energizado e com vontade de viver e melhorar.
Ela me ama. Dalila me viu no meu momento mais débil e ficou ao meu
lado. Eu já não tinha dúvidas antes, mas agora sei: ela é mesmo a mulher da
minha vida.
Passo uma semana inteira na República Dominicana com meus pais,
organizando minha vida e mudança, e resolvendo todas as papeladas para
levar o Apolo na cabine.
Lila, por sua vez, trabalha remotamente na Safetech, seja no notebook
ou no celular, em alguma chamada. Passa os dias falando também com uma
tal de Rafaela e com a irmã, Eva. Toda vez que me aproximo nesses
momentos, ela desconversa bem rápido ou fecha de vez a tela do laptop.
Suspeito...
Finalmente, depois de um voo cansativo de doze horas de Santo
Domingo até Entremontes, estamos de volta ao nosso apartamento. Mal cruzo
a entrada, Lila me obriga a tomar banho e ir para a cama.
— Não precisa disso tudo, medusa, não sou de vidro e não vou quebrar.
— Sei que você não vai quebrar, só quero cuidar para que tenha uma
boa noite de sono. Pode ir que cuido das coisas do Apolo.
É bem óbvio que eu a obedeço. Se eu tentei ludibriá-la a tomar banho
comigo sem roupas? Mais óbvio ainda, mas Lila só tinha uma missão: me
fazer descansar. Sexo para matar as saudades estava fora de cogitação,
palavras dela.
Quando estou perfeitamente acomodado na cama, ela chega com uma
bandeja e põe no meu colo. Tem um copo de suco e uma tigela com pão de
queijo.
— Se você me mimar sempre, posso me acostumar a viver assim.
Passo a comer o que ela me trouxe.
— Pode se acostumar, não irei a lugar nenhum. — Lila dá de ombros e
meu peito se aquece com suas palavras. — Você tem que dormir bem, temos
um compromisso essa semana.
— Você não vai me dizer o que é, certo?
Ela nega com a cabeça, um sorriso de menina traquina formado nos
lábios.
Deixo a bandeja na mesinha ao lado da cama.
— Nem se eu fizer todas as suas vontades? — Tento um pouco de
persuasão.
— Nem assim.
— Tudo bem, se o que me sobra é dormir… — Estico a mão na sua
direção, chamando-a. — Sobe aqui na cama comigo, Lila. Quero dormir
agarradinho com minha mulher.
Ela nem hesita, nem treme ao som de minhas palavras. A aceitação de
que ela é minha e eu sou dela brilha em sua expressão.
Deita-se ao meu lado e me enrosco nela, juntando todas as partes de
nossos corpos carentes e saudosos.
Minha. Minha medusa.
Lila beija minha testa e fecho as pálpebras, o peso do cansaço tomando-
me por inteiro.
— Mi corazón — diz, sua mão pequena tocando o meu peito,
exatamente onde o órgão bate tranquilo por ela.
Estar com Dalila é paz. Meu coração relaxa, repleto de amor e então
adormecemos juntos.
Dalila Deodato
Minha sobrinha Isabelle resolveu nascer às quatro da manhã na trigésima
nona semana de gestação. Jade, que não era mais uma mãe de primeira
viagem, sentiu todos os sinais da vinda de sua caçula com antecedência.
Por isso, Rafi e eu estamos de babá do pequeno Miguel novamente,
desta vez em nossa casa. Rafi está permanentemente morando no Brasil e
consegui vender o apartamento que era de Samir, ajudando meu namorado a
investir nesse que agora vivemos, no mesmo prédio da minha amiga.
Pela proximidade, sei que somos a principal rede de apoio de Jade e
Dominic, por isso, sempre estou a postos para cuidar do monstrinho em
qualquer necessidade.
Falando nele, Miguel está num pico de energia desde que acordou.
Insiste a todo momento que quer logo ir para o hospital conhecer a sua
irmãzinha, mas o horário de visitas é só mais tarde.
— Papito, sei que você está animado para ver a Belle, mas o que tia
Lila te disse uns minutos atrás?
— Que ainda não está na hora. — Miguel cruza os bracinhos,
emburrado. — Seu relógio que tá quebrado, tio Rafi, ele demora de girar!
— Venha cá, mini-humano. Vamos tirar uma foto nossa para mandar
para seu pai.
— E aí ele vai poder mostrar para a Belle! Que ideia incrível, medusa!
— complementa Rafi, tentando dobrar a criança.
Estou sentada ao lado dele no sofá com Tambor no colo e Apolo jogado
aos nossos pés, como um tapete.
Miguel se aproxima arrastando os pés e parece desacreditado de que
uma foto será suficiente para que sua irmãzinha o reconheça. Entretanto, não
hesita em subir no sofá ao meu lado e abraçar o Tambor bem apertado, como
se fosse a Felícia.
— Apolo, levanta e senta, garoto! Vem aparecer na foto.
Ao ouvir seu nome na voz de Rafi, o cão de serviço levanta as orelhas,
atento. Responde ao pedido, sentando-se rente ao sofá, olhando para o tutor e
esperando outro comando.
Assim que todos estão enquadrados, tiro a selfie. Faço várias
fotografias, na verdade, para ter bastante opção e o libriano do meu sobrinho
demorar para escolher qual quer enviar para os pais.
— Toma, Mi, escolhe qual você gosta mais e já mandamos.
Rafi me olha como se soubesse a trapaça que acabei de armar para cima
de nosso sobrinho em comum. Ele apenas ri escondido e me puxa para dar
um beijo na têmpora.
Desde o pedido de namoro, Rafi vai semanalmente usar o Lopomarch,
não só para desenvolver ainda mais o equipamento junto à Eva e à UFEN,
mas para auxiliar em sua reabilitação após a internação.
Ele não teve outras crises desde a última em Santo Domingo, contudo,
sei que essa é uma possibilidade que nunca vai deixar de existir. Não até a
medicina evoluir e encontrar uma solução para o que quer que Rafi tenha no
sistema nervoso.
O medo de perdê-lo é constante, porém, fico tranquila com Apolo
acompanhando meu namorado em todos os lugares que ele vai, quando não
posso estar presente.
— Pronto, titia. Manda essa aqui! — Miguel devolve o meu celular e se
vira para Rafi. — Tio, seu relógio já andou?
Sorrimos em conjunto por conta da impaciência dele. Pressinto que
Miguel será um grande irmão para Belle.
Na verdade, tenho certeza de que ele vai cuidar bem de sua irmã,
levando em conta que cresce ao lado de pais e familiares versados na
linguagem do amor e cuidado.
— Ainda não, papito. Mas quer saber? Vamos sair logo! Passamos no
café dos coelhos, comemos e aí logo o tempo vai passar. Que tal?
— Sim! — Miguel se levanta e pula animado, Tambor no seu colo
como se fosse uma marionete. — Vamos escolher uma irmã para o Tambor
também! E será um presente para a Belle!
Encaro Rafi, sem acreditar que ele deu espaço e trela para a criança nos
enrolar para adotar um coelho.
Novamente.
Contudo, pouco me importo.
Faria qualquer coisa para manter esse sorriso lindo nos seus lábios,
repuxado em volta daquele piercing. O maldito piercing que me atraiu no
início de toda essa história.
Falo que o culpado é ele, pois ainda não assumi que voltei a acreditar
em sinas.
Sei que Rafi foi feito para mim de alguma forma muito bem encaixada,
então preciso acreditar em algo. Em algo lindo e mágico que me deu a vida
que nunca achei que poderia ter.
Ao lado da pessoa que eu, finalmente, descobri como amar
incondicionalmente e sem reservas.
Talvez tenha sido o processo de aprendizagem mais simples de toda a
minha vida como disléxica.
Amar Rafi é fácil, como aprender o abecedário.
O epílogo
Rafi Salvatierra
Se tem uma coisa que namorar Dalila me ensinou foi aprender a pedir ajuda.
Mais de vinte anos como cadeirante me moldaram a ser alguém que precisa
pedir ajuda, mas que sempre acha que está incomodando ou atrapalhando.
Não estou acostumado a receber gentileza sem parecer pena ou proteção
exacerbada e isso sempre me incomodou.
Algumas pessoas simplesmente não conseguem se colocar no lugar do
outro e imaginar como é viver na nossa pele por um minuto.
Mas o amparo de Dalila… Era diferente. Deixei que cuidasse de mim,
pois entendi que essa é sua maneira de me amar.
Viajando com Lila todo ano em nossas férias, aprendi que países
diferentes têm culturas distintas e que eles também têm suas maneiras de
cuidar das pessoas.
Quando permito que essas pessoas me ajudem, crio certa conexão com
elas, que é duradoura. Então, ao ser carregado nas costas por um guia
turístico no meio de um deserto de sal na Bolívia, eu simplesmente aceito.
Aprendi a deixar a gentileza entrar, principalmente quando sinto que ela
é genuína.
Se Milo, nosso guia, parece tranquilo em carregar um homem de quase
1,80 m nas costas, quem sou eu para me irritar? Ele até ri das minhas piadas
ruins!
Quando pesquisei lugares acessíveis para visitar na Bolívia, quase não
encontrei informações. Era frustrante, como sempre, mas não me impediria.
Até porque, a viagem para La Paz aconteceria de qualquer forma.
E o motivo?
Eu, Rafi Santiago Salvatierra e minha parceira de vida, Dalila Deodato
D’Angelo, agora éramos dançarinos profissionais.
Quem diria?
Bom, eu, sim, após convencê-la a participar das aulas de dança comigo.
Participamos de campeonatos no Brasil, sempre na modalidade Combi,
um parceiro andante e outro cadeirante. Essa é nossa segunda viagem
internacional juntos e foi a primeira vez que competimos num campeonato
internacional de Dança Artística em Cadeira de Rodas.
Não ganhamos, mas a experiência foi sensacional. Tudo com minha
medusa se torna melhor e podemos aperfeiçoar nosso tango para o próximo
ano.
Bom, voltando para o motivo de estar sendo carregado? Decidimos, de
última hora, visitar o Salar do Uyuni. Sobraram alguns dias na Bolívia antes
das férias acabarem e fechamos o tour.
Eu não perderia nunca a experiência de conhecer um dos locais de
filmagem de Star Wars: Os Últimos Jedi.
Situado no sopé da cordilheira dos Andes, o Salar é um extenso deserto
com mais de dez mil quilômetros quadrados completamente feitos de sal. A
sua brancura cria um efeito espelhado belíssimo quando está molhado.
E, por estar molhado, é que o terreno ficou irregular e com muitas
poças, e fez minha cadeira atolar em vários pontos quando estávamos
voltando para a van do tour.
— Na próxima vez que formos para um deserto, me lembre de comprar
uma cadeira de rodas off-road, Lila! — reclamo em tom de brincadeira,
olhando para trás e provocando minha mulher que empurra minha cadeira.
Mulher, sim, porque casamos um ano atrás, mas não foi nada muito
grandioso. Apenas no civil e com nossos amigos e familiares mais íntimos.
Do jeito que queríamos desde o início.
Lila revira os olhos, ainda que mantenha um sorrisinho travesso.
Levanta o celular e tira uma foto minha, com certeza para guardar para
posteridade e me ameaçar caso não a obedeça.
Como se ela precisasse disso para mandar em mim…
Seguiríamos daqui para o Cemitério de Trens, um local no meio do
deserto com locomotivas e vagões enferrujados desde a década de 1940.
— Ei, Milo, pode me descer aqui, por favor? — peço baixo, cutucando
o homem, considerando que estou bem próximo ao seu ouvido. — Quero
tirar uma foto.
— Claro, Rafi — responde Milo e dá para ouvir a gentileza na sua voz.
— Outra foto, Santi? — reclama Lila quando o guia me desce e me
acomodo na cadeira. Ela reclama, mas entrega a câmera para que Milo nos
fotografe.
— Gracias, amigo — digo para Milo e logo me viro para Lila. — Outra
foto, sim. Dez minutos atrás, o chão não estava refletindo aquela nuvem em
formato de urso panda, como o mascote do nosso aplicativo favorito.
Aponto para o céu azul com poucas nuvens. Lila põe a mão sobre o
rosto para proteger da luminosidade e olha para cima.
— Não estou vendo.
— É que você precisa ver de perto, nenita. Vem cá. — Bato com as
duas mãos nos meus ombros. — É nossa tradição.
A mesma foto. Seja em Entremontes, Salvador, Punta Cana ou
Santiago. E para onde formos juntos por este mundo imenso.
Dalila caminha até mim e, acostumada a fazer essa pose em todos os
destinos a que vamos, rodeia minha cadeira, coloca os pés nas rodas por trás,
se ergue e monta nos meus ombros. Ela praticamente se senta, mas não pesa
nada, pois está deixando o peso nas pernas sobre as rodas.
— Vê se não me deixa cair, hein, amor.
— Nunca. Agora me dê o seu melhor sorriso, medusa.
— Com você, eles sempre são os melhores, Santi.
Quando a fotografia no Salar é eternizada, dá para ver o encontro de
nossos olhares apaixonados de forma espontânea. Estamos fitando-nos
reciprocamente, no meio de uma imensidão, como se nada importasse além
da nossa sintonia.
E é assim que vivemos, aproveitando dia após dia, construindo juntos
um futuro bom.
FIM.
Por favor, não se esqueça de avaliar com suas estrelinhas no final.
Ajuda demais saber o que achou do livro e também para que ele chegue a
mais pessoas. <3
Se, por um acaso, você ainda não leu Amor Sob Protocolo, fica mais
um pouco aí para ler um trecho de Jade e Dom. Rafi e Dalila aparecem um
pouco mais novos em alguns momentos, caso queira matar a saudade.
Conheça Amor Sob Protocolo
O peso dos bolsos vazios e mal remunerados doeu ainda mais no coração. Expirei e resmunguei
algo ininteligível, até para mim mesma.
— Disse algo? — questionou o homem que me acompanhava na lenta viagem de elevador.
Balancei a cabeça negativamente para sua pergunta e só então ergui o olhar para encará-lo. Quase
cambaleei com o impacto, mas mantive a postura ereta.
Nossa. O companheiro de elevador era muito gato.
O cubículo pareceu esquentar quando percebi um rápido sorriso brotando nos seus lábios. Parecia
satisfeito por chamar minha atenção e eu agradecia por isso. Se não fosse por esse gesto, talvez meus
olhos não estivessem sendo agraciados com sua aparência agora.
E que aparência!
Os óculos redondos de aro fino contornavam seus olhos, que eram banhados numa cor castanha
que transitava entre o escuro e o claro. Não conseguia definir, mas acho que se ele olhasse para o sol, a
cor diferiria do tom mais escuro, iluminados pela luz artificial do elevador.
Os cabelos eram pretos, ondulados e raspado nas laterais, finalizando com uma bagunça toda
lindinha na parte alta da cabeça. Para completar, ele tinha aquela barba cerrada, causando uma espécie
de efeito sombreado no lindo rosto.
Vestia uma camisa de botões azul-claro com as mangas dobradas até os cotovelos, combinada
com uma calça de alfaiataria elegante e sapatos de couro. Já falei que ele usava óculos? Não sei o
motivo, a armação o tornava 100% mais atraente.
Ele era tão bonito que chegava a ser profano.
Deve ter percebido que eu permanecia encarando, já que um sorriso de canto apareceu em sua
boca de lábios cheios.
— Pensei alto — respondi e desviei rápido o olhar para o edital maldito, sorrindo de forma
involuntária em resposta e tentando esconder isso. — Tenho mania de fazer isso.
Não faço ideia do porquê falei aquilo para um estranho, eu tinha esse hábito peculiar de falar
sozinha. De acordo com meu pai, falava até enquanto dormia, especialmente em dias estressantes ou
quando estava exausta. Meu cérebro era muito difícil de desligar.
E o que se desenrolou a seguir só aumentou o nível de estresse, que não estava baixo.
O elevador parou de maneira abrupta e as luzes piscaram, se apagando por completo, deixando
apenas uma lanterna de emergência acesa.
Tentei manter a calma, porém a sensação de nervosismo se instalou como um raio passando por
mim. Soltei um grito fininho antes de reclamar sem pensar:
— Minha nossa senhora dos romances clichês, isso aqui é a realidade, não é um livro! — falei
nervosa, hiperventilando um pouco e aumentei o tom de voz na última palavra.
O estranho gostoso teve a audácia de rir baixinho e se inclinou na minha direção. Dando apenas
dois passos, ele esticou o braço largo ao lado da minha cintura e apertou o botão vermelho de
emergência. Senti o seu cheiro, me embriagando com a fragrância do perfume amadeirado.
— Sabe, você parece muito cheiros… — percebi estar falando a palavra errada e me corrigi
rápido — Calmo! Muito calmo para alguém que está preso num elevador — reclamei e ergui o olhar,
atravessando os poucos centímetros de altura que a gente tinha de diferença.
Empurrei o dedo indicador no peito duro, másculo e forte feito pedra. Nossa.
— Você costuma encostar assim do nada em mulheres estranhas?
— Tentei encenar algo clichê. — Ele deu um meio sorriso e se afastou, respeitando o empurrão
de meu dedo.
— Isso não fez o mínimo sentido. — Minha respiração estava ofegante e as palavras saíram
cortadas. — Mas gostei.
— Poderia estudar, só que agora estou repensando, analisando essa estrutura precária — menti,
até porque queria tanto aquele mestrado que cursaria mesmo se a aula fosse embaixo da ponte.
— Não desista ainda. Certeza de que foi apenas uma queda de energia. Ficar preso em elevadores
é muito mais comum do que você imagina. — O moço bonito sem nome se recostou e me encarou com
as mãos nos bolsos da calça. — Você é claustrofóbica?
— Não que eu saiba — bufei, assoprando um cacho que caiu no meu rosto, prolongando a
respiração para ficar menos ansiosa. — Você é?
Ele negou, balançando a cabeça.
— Não se preocupe, o socorro não demora a chegar. Pode ficar tranquila.
Mesmo com as palavras que deviam acalmar, meu coração continuava a bater acelerado.
— Você parece entendido — ponderei, para ter o que pensar e também porque estava um pouco
curiosa sobre ele. — Estuda aqui?
— Podemos dizer que sim — respondeu com um sorriso amigável.
— Está em dúvida? — provoquei, elevando uma única sobrancelha. Ele riu baixinho, sua
expressão mostrava uma mistura de seriedade e descontração.
— Sou professor daqui — começou ele, pausando para enfatizar a seguinte expressão. — Mas,
como algum sábio disse, os professores nunca deixam de estudar, o conhecimento é vivo. Então,
também sou estudante. Faz sentido?
— Professor? — Abri a boca, sem acreditar. Aquilo elevou em noventa por cento o seu apelo. —
Você nem aparenta ter mais de trinta anos. É um daqueles garotos prodígios? — Dei uma risadinha e
ele riu junto, entrando na brincadeira.
— Realmente, fiz tudo bem corrido na parte acadêmica, isso justifica a minha juventude. Mas
tenho mais de trinta anos, sim.
— Não diria nunca por sua carinha bonita.
Caralho, a sensação de desmaio passou, mas pelo visto, o filtro ainda permanecia danificado.
Hermosa?
Hermosa?
O estranho sorriu, apoiando uma mão no joelho dobrado, sem desviar o olhar por um instante.
— Alguém já te disse que você é meio… engraçada?
— Claro que sim! Hoje você está assistindo ao stand-up da Jade Victorino. Espetáculo do dia:
“desgraça pouca é bobagem”.
— Jade… — disse e parecia estar saboreando meu nome da boca.
Não me passou despercebida a forma que o fonema da letra J foi pronunciado. O som saiu
diferente, vibrante e deu para ver, da distância que estávamos, a parte de trás da língua dele se
movimentando.
Que loucura, eu agora sabia identificar partes da língua de um estranho?
— Sim, sou eu. E você é…
— Dominic.
— Belo nome. Forte. Posso te chamar de Dom ou de Nic? — quis saber, intrometida.
Alguns poderiam dizer que eu era oferecida, que forçava simpatia demais. Nada que não tenha
escutado a vida inteira, somente por ter um jeito de ser mais enérgico.
Desatenta, impulsiva. Os resquícios capacitistas ainda ecoavam na cabeça, de maneira intrusiva.
Porém, naquele momento, não me restava nada para fazer além de reler o edital ou surtar por
estar presa. Melhor me distrair, flertando por alguns minutos com aquele homem que dificilmente
encontraria de novo.
— Você pode me chamar do que você quiser, Jade. Menos Nic, porque aí pareceria meus irmãos
falando comigo.
Cruzes, não queria que ele me visse como irmã. Não mesmo.
— Que tal El Professor, como em La Casa de Papel? — Segurei o riso, mas não aguentei quando
ouvi ele gargalhar.
— Sem chances, hermosa.
Ficamos nos olhando e sustentando pequenos sorrisos, um de frente para o outro, no chão gelado
do elevador. Sentia uma energia tão boa no ar rarefeito que respirávamos.
Uma sensação estranha passou por mim, algo que não sabia nomear, mas que parecia… certo. O
silêncio não era incômodo, porém o barulho de algo balançando em cabos e um solavanco quebrou
nossa encarada. O elevador foi aberto e dei de cara com dois bombeiros civis nos resgatando.
— Vocês estão bem? — interrogou um deles e nós apenas balançamos a cabeça em concordância.
Respirei fundo, aliviada e verifiquei o relógio. Dominic estava correto; mal haviam se passado
vinte minutos. Ele se ergueu, colocou a mochila no ombro e estendeu a mão para me ajudar a levantar.
— Parece que nosso tormento acabou — eu disse, aceitando sua mão como apoio.
— Poderia ter sido pior.
— Sim, poderia. Eu poderia estar sozinha. Obrigada pela ajuda. — Apertei sua mão com um
pouco mais de força, lancei um rápido olhar e me virei, saindo do elevador.
— Bom te conhecer, Jade! — ele falou, parado diante das portas com os bombeiros e outras
pessoas, provavelmente colegas de trabalho, preocupados.
Apenas acenei com a cabeça com um sorriso minúsculo despontando nos lábios. Andando em
direção às escadas, percebi que não me sentia mais nervosa. Me sentia reconfortada.
Poderiam ter sido os piores vinte minutos do meu dia em outra situação, porém tive a sorte de
estar acompanhada de um cara legal e gentil, que me fez esquecer tanto do estorvo da mensalidade
quanto da surpresa emergencial.
Ignorei a comichão na mão onde o toque de Dominic havia ficado e segui os onze andares
abaixo, degrau por degrau. Sentia uma energia estranha e precisava gastá-la.
Agradecimentos
Amores em Festa
Opostas em Guerra
Sobre a autora
[1]
Em espanhol é uma gíria para demonstrar ênfase, intensidade e surpresa.
[2]
Festa de celebração do 15º aniversário de uma menina, que marca a sua transição para a vida adulta.
A palavra é utilizada em países hispânicos.
[3]
Chief Product Officer (Diretora de Produto). Todos os termos C-level (como CEO) se referem aos
principais executivos de uma empresa, de alto nível de gestão.
[4]
Uma região fictícia baseada na região de Kanto do Japão e foi o palco histórico das primeiras
jornadas Pokémon.
[5]
Nunca.
[6]
Estraga-Prazeres.
[7]
Chefe.
[8]
Um roadmap é uma ferramenta estratégica que apresenta um planejamento de ações, metas ou
etapas a serem alcançadas. É frequentemente usado em gestão de projetos e desenvolvimento de
produtos.
[9]
O garoto que conquistou o universo sentado em uma cadeira de rodas.
[10]
Forma comum que o time de Recursos Humanos é chamado em empresas de tecnologia e startups.
[11]
Minha querida ou minha amada em italiano. Expressão usada por Gomez Addams para se referir à
Morticia.
[12]
Meu selvagem em francês. Expressão carinhosa usada por Gomez e Morticia Addams.
[13]
Mi hijo, meu filho em espanhol.
[14]
Uma startup unicórnio é uma empresa de capital privado que atinge um valor de mercado de pelo
menos US$ 1 bilhão, sem estar listada na bolsa de valores. O termo “unicórnio” é usado para descrever
startups que se destacam por seu crescimento exponencial e inovação.
[15]
Perda temporária da voz.
[16]
“Hermosa” é uma palavra em espanhol que significa “bonita” ou “linda”.
[17]
Personagem da série A Mediadora, da autora Meg Cabot.