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Trabalho Cultura Clássica de Sara Alves (164842) – 1991 palavras

Após a colonização romana da Grécia, as literaturas latina e grega


desenvolveram uma relação cuja dinâmica subverte a perspetiva convencional de
domínio unilateral: ainda que, no século II a.C, Roma tenha conquistado militarmente a
Grécia, a dominação cultural deu-se inversamente –profundamente influenciados pela
cultura grega, os romanos adotaram e reconfiguraram os modelos da sua literatura.
Os conceitos da teoria pós-colonial e a sua aplicação à crítica literária clarificam
este processo, baseado nas relações interculturais no âmbito do colonialismo. Tendo
tudo isto em consideração, este trabalho analisará o impacto da colonização nas
literaturas coloniais, focando-se no caso particular da colonização da literatura latina
pela grega e no exemplo da interação entre Vergílio (e a Eneida) e Homero, o seu
predecessor grego.
Desde a Antiguidade Clássica que a colonização de civilizações ocorre tanto
militarmente e politicamente, como culturalmente. Durante o período colonial, a
supremacia da potência colonizadora é afirmada pela exploração de recursos e
habitantes da área colonizada, visando reestruturar a sociedade em conformidade com
os seus objetivos. Todavia, os estudos pós-coloniais, que estudam o impacto da
colonização nas culturas indígenas, consideram que tal não pode ser atingido sem o
controlo dos meios de comunicação, incluindo a literatura.
Efetivamente, o processo colonial afeta permanentemente a identidade cultural
das comunidades colonizadas, através do que a teorista pós-colonial Gayatra
Chakravorty Spivak denomina de “epistemic violence”1, o processo pelo qual a
relegação dos povos indígenas à categoria de “Other”2 conduz à supressão das estruturas
de conhecimento e manifestações culturais que lhes permitem articular a sua identidade,
e à substituição destes pelos paradigmas dos colonizadores.
Segue-se uma espécie de colonização cultural, que começa com a imposição de
uma visão da sociedade que distingue um “centro”, logicamente associado à potência
colonial, de uma “periferia”, em que se insere a cultura indígena3. Deste modo, a
literatura colonial passa pelas seguintes fases:
Primeiramente, a de adoção, em que a “writer’s ambition is to adopt the form as
it stands, the assumption being that it has universal validity”4, também associada ao
facto de, estando a sua cultura a ser silenciada5, restarem-lhe apenas a língua e os
modelos da cultura imposta como a central. Adicionalmente, dado que o sucesso
literário pode apenas ser atingido através da conformação com a cultura colonizadora,
naturalmente dominada por autores inseridos nesta, a cultura indígena torna-se

1
Spivak (1994: 76)
2
Spivak (1994: 76)
3
Hose (1999: 308)
4
Barry (1995: 189)
5
Hose (1999: 308)
inerentemente menos prestigiada, e a própria literatura colonial fomenta a sua
inferioridade.
Esta fase remete para o conceito definido por Homi K. Bhabha, um dos
principais intelectuais da teoria pós-colonial, como mimetismo: “colonial mimicry is the
desire for a reformed, recognizable Other, as a subject of a difference that is almost the
same, but not quite”6. Este apenas realça as diferenças entre colonizadores e
colonizados, começando estas a ser reconhecidas na fase de adaptação, em que os
autores coloniais começam a intervir mais na tradição literária. Baseiam-se ainda nos
modelos literários do centro, mas ajustando-os a temas e assuntos da cultura colonial7.
Na fase final, associada à reconquista da independência do território colonizado,
o escritor liberta-se dos modelos literários do centro, passando a ser-lhes apenas um
adepto8, ainda que estes deixem vestígios na literatura pós-colonial. As duas últimas
fases criam o que é usualmente descrito como hibridismo cultural, argumentando Stuart
Hall que a identidade cultural não é apenas uma fusão de culturas, mas a sua constante
transformação através de processos históricos de interação e negociação entre diferentes
tradições9.
Segundo esta teoria, esperar-se-ia que, aquando da colonização romana da
Grécia em 146 a.C, a cultura grega tivesse sido marginalizada e a sua mitologia reescrita
para constituir a periferia da cultura latina10. Ademais, a repressão e substituição dos
literários gregos pelos latinos, e a tentativa de integração dos autores gregos na nova
tradição literária através do mimetismo. Eventualmente, criar-se-ia uma literatura
híbrida, com origens gregas e temas romanos. Contudo, o que ocorreu foi exatamente o
oposto.
Representando uma exceção à teoria, o progresso cultural de Roma após
conquistar a Grécia desenrolou-se como se tivesse sido Roma a ser conquistada. Mesmo
antes da colonização do mundo grego, os romanos já tinham sido expostos à sua língua
e costumes, tornando-se grandes adeptos desta civilização, parcialmente devido à
afinidade entre os alicerces do legado cultural grego e os princípios-base do Império
Romano: virtude, respeito pelas leis e pietas (respeito pelos deuses e rituais). As formas
artísticas gregas eram vistas pelos romanos como insuperáveis, razão por que as
assimilaram, ao invés de a relegarem para a periferia, como acontece com a maioria das
culturas coloniais. A reversão do processo de colonização cultural, sendo a literatura
grega a colonizar a latina em vez do oposto, é reconhecida na frase famosa do poeta
romano Horácio: “Domando o próprio vencedor a Grécia/Introduzio no agreste Lacio as
artes.”11.

6
Bhabha (1994: 122)
7
Barry (1995: 189)
8
Barry (1995: 189)
9
Hall (1990: 225)
10
Hose (1999: 310)
11
Horácio, Satyras e Epistolas 2.2.223-224
A admiração da cultura grega levou à adoção sistemática da filosofia, retórica e
modelos literários gregos. As elites romanas aprendiam a língua grega, estudavam
textos gregos e muitos tinham como professores intelectuais gregos (como Dionísio de
Halicarnasso) 12, o que levou a que a literatura latina fosse profundamente moldada por
antecessores gregos.
Apesar de aplicada inversamente, a teoria pós-colonial analisada até aqui
manifesta-se neste caso específico. Começando no século III a.C, que marcou a fase da
adoção da literatura grega pela latina, salientam-se a tradução de Lívio Andrónico da
Odisseia e o poema Bellum Poenicum de Nélio, que apropriaram o género literário da
epopeia, originado na Grécia Antiga e associado a Homero, figura reverenciada pelos
romanos. Ambas as obras contribuíram para a introdução da literatura grega em Roma e
para o desenvolvimento posterior da literatura latina.
Porém, enquanto as epopeias gregas se baseavam na mitologia, o gosto romano
pela História levou à inserção desta no género épico, sendo esta uma evidência da
transição da literatura latina para a fase de adaptação, pois reorienta o foco para formas
e temas que refletiam a realidade e os valores romanos. Tome-se Annales de Énio: este
narra eventos reais da fundação de Roma, mas sem abandonar a influência grega, ao
entrelaçá-los com mitos e figuras divinas, usar o hexâmetro dactílico, e estabelecer uma
relação de subserviência face à literatura grega, pois o autor assume-se como uma
reencarnação de Homero.
A Eneida de Vergílio ilustra eficazmente o hibridismo cultural: sendo uma
epopeia, é naturalmente enraizada no modelo homérico, e o autor colonizado pela
literatura grega tenta estabelecer uma ligação direta com esta – o protagonista, Eneias,
pertence ao mundo da mitologia grega e tem o prestígio de participar na Ilíada – mas
esta ligação já não é de subserviência, dado que Eneias não é grego, mas troiano. Assim,
distancia-se a obra da tradição grega. Segundo Thomas Kerns, “Virgil wanted to use and
amplify familiar structures and images in a new setting and story, with hopes of holding
the audience's attention and surpassing the Homeric with his own version”13, ou seja,
criar uma epopeia romana que se baseasse, mas pretendesse também exceder, o modelo
grego.
A inspiração homérica é extremamente evidente desde as primeiras palavras, e
revela-se na estrutura da epopeia: exemplificativamente, os Cantos 2 e 3 da Odisseia
espelham os 9 a 12 da Eneida, tendo os heróis a narrarem as suas peripécias até então.
Também a relação entre Eneias e Dido evoca o modelo épico grego, estabelecendo um
paralelismo com aquela entre Ulisses e Calipso na Odisseia: ambas as personagens
femininas oferecem asilo, amor e imortalidade aos respetivos heróis, mas estes
abandonam-nas para executarem os seus destinos14. Observe-se a afinidade entre as
preces que cada uma dirige ao herói:
por nosso enlace, o sagrado himeneu que de pouco nos une
se algo mereço de ti ou se alguma ventura me deves,
doces lembranças, apiada-te ao menos de um lar ora esfeito.

12
Hose (1999: 325)
13
Kerns (1992: 40)
14
Kerns (1992: 40)
Muda de idéia, no caso de as preces contigo valerem.15

Mas se pudesses saber o que o Fado te tem reservado


de sofrimentos, primeiro que alcances a terra nativa,
escolherias comigo ficar e guardar esta casa,
como tornar-te imortal, apesar das saudades que sentes16

Contudo, nesta fase de adaptação, a intervenção no modelo vê-se no uso de


narrativas mitológicas para justificar eventos históricos, e para enaltecer Roma e o seu
imperador. Primeiramente, Eneias, filho de Afrodite e antepassado adotivo de gens
Julia, legitima a liderança divina de Augusto. Além disso, o episódio de Eneias e Dido
representa a causa mitológica do conflito histórico entre Roma e Cartago: chegado a
Cartago, Eneias desenvolveu um romance com a rainha Dido, interrompido por ordem
divina para que o herói partisse para cumprir o seu destino de fundar Roma. Rancorosa,
Dido amaldiçoou Eneias e os seus descendentes, antes de se suicidar. Criou-se, assim,
um antagonismo eterno entre os povos romano e cartaginense, que culminou nas
Guerras Púnicas.
Adicionalmente, a tradição literária sofreu alterações no que toca ao modelo do
herói, tornando-o mais compatível com os ideais romanos. O herói grego era
determinado pela posse de qualidades extraordinárias e pela busca do individualismo e
da glória. Vê-se isto em Aquiles, o guerreiro supremo, mas que age por raiva e causa,
egoistamente e sem culpa, a morte de milhares de aqueus ao abandonar a Guerra de
Troia. Furioso, pede à mãe Tétis que convença Zeus a favorecer os troianos, apenas para
“que reconheça o Atrida, Agamémnon de vasto poder,/a sua loucura, por em nada ter
honrado o melhor dos Aqueus”.17
Em contrapartida, o heroísmo de Eneias adapta o modelo literário à identidade
romana, valorizando o sacrifício e a responsabilidade. Descrito como o herói da pietas
(qualidade central na mentalidade romana que envolve devoção religiosa e à
comunidade), ele coloca a missão de fundar Roma acima de desejos individuais, ao
contrário de Aquiles, guiado apenas por preocupações pessoais. Ao deixar Dido, Eneias
diz-lhe: “Não busco a Itália por gosto”18, mas deve deixá-la pois “Apolo de Grínia
ordenou-me há pouquinho buscarmos/a Grande Itália”19
Concluindo, tendo em consideração as transformações que as literaturas
coloniais normalmente sofrem no âmbito da colonização, torna-se claro que a literatura
latina foi, de facto, colonizada pela grega. Inicialmente marcada pelo mimetismo dos
modelos gregos, evoluiu para um hibridismo cultural, apresentando uma literatura
moldada pelos valores romanos, mas mantendo um diálogo com a tradição grega. A
Eneida, de Vergílio, ilustra isso mesmo, ao ser uma síntese e superação das epopeias
homéricas, influenciando outras obras, como Metamorfoses, de Ovídio.

15
Vergílio, Eneida 4. 316-319
16
Homero, Odisseia 5.206-209
17
Homero, Ilíada 1.411-412
18
Vergílio, Eneida 4. 361
19
Vergílio, Eneida 4.346-347
A teoria de crítica literária pós-colonial é o que torna esta análise da literatura
latina possível, ao fornecer ferramentas teóricas que ajudam a desvendar as complexas
relações de poder, resistência e assimilação cultural resultantes do colonialismo. É
graças aos conceitos que originou que se pode observar a interação entre as literaturas
grega e latina com tanta nuance, ainda que este caso represente uma exceção à teoria.
Bibliografia
Barry, P. (1995). “Postcolonial criticism”. In Beginning Theory: An Introduction to
Literary and Cultural Theory. Manchester: Manchester University Press, pp. 185-195.
Bhabha, H. K. (1994). “Of mimicry and man: The ambivalence of colonial discourse”.
In The Location of Culture. London: Routledge, pp. 121-131.
Hall, S. (1990). “Cultural identity and diaspora”. In Identity: Community, Culture,
Difference, ed. J. Rutherford. London: Lawrence and Wishart, pp, 222-237.
Homero (2019). Ilíada, tr. F. Lourenço. Lisboa: Quetzal Editores.
Homero (2001). Odisseia, tr. C. A. Nunes. Belém: Universidade Federal do Pará.
Horácio (1846). Satyras e Epístolas, tr. A. L. Seabra. Porto: Casa de Cruz Coutinho.
Hose, M. (1999). “Post-Colonial Theory and Greek Literature in Rome”. Greek, Roman
and Byzantine Studies 4: 303-327.
Kerns, T. (1992). “Homer in Virgil”. Anthós Journal 3: 37-43.
Spivak, G. C. (1994). “Can the Subaltern Speak?”. In Colonial Discourse and Post-
Colonial Theory: A Reader, eds. P. Williams e L. Chrisman. New York: Columbia
University Press, pp. 66-111.

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