Academia.eduAcademia.edu

Oriente23-Orientalismos Midias e Arte

2023

ORIENTALISMOS MÍDIAS E ARTE André Bueno [org.] Reitor Mario Sérgio Alves Carneiro Chefe de Gabinete Bruno Redondo Direção Pró-reitora de Extensão e Cultura Cláudia Gonçalves de Lima Produção Obra produzida e vinculada pelo Projeto Orientalismo, Proj. Extens. UERJ Reg. 6078, coordenado pelo Prof. André Bueno [Dept. História]. Rede www.orientalismo.net Rede https://aladaainternacional.com/aladaa-brasil/ Ficha Catalográfica Bueno, André [org.] Oriente 23: Orientalismos: Mídias e Arte. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Proj. Orientalismo/ UERJ, 2023. 148p. ISBN: 978-65-00-77514-3 História da Ásia; Orientalismo; Comunicação; Mídias; Arte; Diálogos Interculturais. 2 Apresentação Oriente 23 é uma coleção de livros dedicada aos estudos orientais no Brasil. Construída a partir dos debates realizados no 7º Simpósio internacional de Estudos Orientais, organizado pelo Projeto Orientalismo da UERJ, Oriente 23 é formada de maneira interdisciplinar e transversal, conjugando as mais diversas experiências no campo dos estudos das civilizações do oriente próximo e do extremo oriente. Fazendo uma abordagem multitemporal e intercultural, a coleção emprega estratégias decoloniais no estudo do orientalismo, das civilizações asiáticas e dos trânsitos culturais entre os muitos orientes possíveis, procurando compreender suas características originais e sua recepção no imaginário e na intelectualidade ocidental. Nesse sentido, a coleção Oriente 23 é formada por uma série de volumes que compreendem cada uma dessas dimensões espaçogeográficas e culturais, buscando transmitir ao público uma nova perspectiva de conhecimento, capaz de ampliar os horizontes intelectuais, acadêmicos e educacionais do contexto cultural brasileiro. Estão aqui presentes estudos dos mais diversos campos, que tentam apreender a variedade das expressões das culturas asiáticas, de moda torná-las inteligíveis ao público brasileiro. Seja bem-vindo a nossa coleção! Volumes de Oriente 23:         Orientalismos e Literatura Orientalismos: Mídias e Arte Visões do Orientalismo Estudos sobre Oriente Médio Estudos Chineses Estudos Japoneses Estudos Coreanos Estudos Asioindianos 3 4 Sumário Mídias OS K-DRAMAS E A HALLYU NO BRASIL: UM BREVE PANORAMA HISTÓRICO, por Amanda Mesquita ....................................................................................................................................... 7 AS “MULHERES DE CONFORTO” COREANAS: UMA ANÁLISE ATRAVÉS DA GRAPHIC NOVEL GRAMA DE KEUM SUK GENDRY-KIM, por Camilly Evelyn Oliveira Maciel.................................. 13 ÉTICA ALIMENTAR E SIMBOLOGIAS DIETÉTICAS EM “A VIAGEM DE CHIHIRO” (2001), por Felipe Daniel Ruzene.............................................................................................................................. 19 REPRESENTAÇÕES ALUSIVAS À SEGUNDA GUERRA MUNDIAL PRESENTE NOS MANGÁS E ANIMES, por Francisco Kelvin Moreira de Sousa e Jakson dos Santos Ribeiro ........................... 26 O POSICIONAMENTO ANTIGUERRA EM NAUSICAÄ DO VALE DO VENTO [1984] DE HAYAO MIYAZAKI, por Gabriel Lacerda de Souza .................................................................................... 36 COMPARAÇÃO INTERMÍDIAS DE KOE NO KATACHI, por Giorgia Vittori Pires ............................ 44 EMBATES DISCURSIVOS QUE PASSAM ÀS TELAS: IMPACTOS DAS DISCUSSÕES ORIENTALISTAS ITALIANAS EM SEU CINEMA, POR OS ÚLTIMOS DIAS DE POMPEIA (1913), por Heloisa Motelewski .................................................................................................................................. 52 A “CHINATOWN IMAGINÁRIA”: A REPRESENTAÇÃO DO LUGAR DO IMIGRANTE CHINÊS NOS ESTADOS UNIDOS A PARTIR DA SÉRIE TELEVISIVA “WARRIOR”, por Krishna Luchetti ............... 62 GEN, O TRIGO VERDE DE HIROSHIMA: MEMÓRIAS DO PÓS-GUERRA ENTRE REPRESENTAÇÕES E NARRATIVAS (1973 – 1985), por Lucas Ciamariconi Munhóz ..................................................... 69 CONVERGÊNCIA DA ESTÉTICA DOS MANGÁS EM AUTORIAS AFRICANAS: UM BREVE EXAME DO UNIVERSO HÍBRIDO DE JUNI BA, por Márcio dos Santos Rodrigues........................................... 74 A EXPANSÃO DO ESTILO MUSICAL K-POP E O ORIENTALISMO CRESCENTE, por Maria Carolina Stelzer Campos ............................................................................................................................ 85 EM LOUVOR A “JAPONIZAÇÃO”: O ADVENTO DAS ANIMAÇÕES COMO INSTRUMENTO DE INFLUÊNCIA NA CULTURA JUVENIL BRASILEIRA, por Paulo Augusto Balbi de Oliveira .............. 91 CULTURA E DINÂMICA SOCIAL, A PARTIR DA DISCUSSÃO DO FILME: RAN (1985), DE AKIRA KUROSAWA, por Rafael Egidio Leal e Silva.................................................................................. 98 A PARATOPIA CRIADORA NO DRAMA BL HAPPY ENDING ROMANCE e Vitória Ferreira Doretto e Júlio Cézar de Souza .................................................................................................................. 104 A INFLUÊNCIA DOS MANGÁS E ANIMES NO UNIVERSO JUVENIL BRASILEIRO DE LEITURA, por Wagner Pereira de Souza e Rosete Lopes França Maciel ......................................................... 113 Arte UMA SIMULAÇÃO À EGÍPCIA: ANÁLISE DO DESFILE DOURADO À LUZ DE BAUDRILLARD, por Allyson Afonso dos Santos Silva e Hannah Cabral Dantas de Barros Teixeira .......................... 120 5 A SERPENTE ORIENTAL: HISTÓRIA, CULTURA E SIMBOLISMO NA DANÇA DO VENTRE, por Tanya Mayara Kruger........................................................................................................................... 129 SERPENTES ALADAS, DRAGÕES E OUTRAS DIVINDADES: UM ESTUDO COMPARATIVO ENTRE OS DEUSES MESOAMERICANOS E OS DRAGÕES NA MITOLOGIA CHINESA, por Luiz Vinicius Rodrigues dos Santos ................................................................................................................ 135 6 OS K-DRAMAS E A HALLYU NO BRASIL: UM BREVE PANORAMA HISTÓRICO, por Amanda Mesquita A Onda Coreana, ou Hallyu, é o nome dado ao fenômeno transnacional de exportações de produtos culturais sul-coreanos iniciado no fim da década de 1990 [Mazur, 2021]. A Hallyu engloba artefatos culturais sul-coreanos como a música, a culinária, a literatura e o cinema. Graças aos investimentos contínuos tanto do setor público quanto privado, à internet e ao engajamento de fãs, nos últimos dez anos foi possível observar um boom da Hallyu por todo mundo, atingindo mercados globais além-Ásia. Apesar de suas diversas fases e dos múltiplos produtos exportados, defende-se que um dos pilares da expansão da Hallyu, sobretudo na América Latina e no Brasil, é os dramas de TV. Dramas de TV é um termo genérico para caracterizar um formato audiovisual surgido no Japão e popularizado na década de 1980, quando passa a ser exportado aos demais países da região do leste e sudeste asiático. A partir da apropriação do formato televisivo japonês, países como China, Hong Kong, Tailândia e Coreia do Sul criam suas próprias narrativas seriadas com características particulares às suas respectivas culturas, “[...] já que a forma de se pensar as narrativas e o que funciona ou não para uma audiência é estruturada especialmente pelas demandas culturais de um país” [Mazur, 2021 p.177]. Entre tantos dramas de TV, destaca-se aqui o caso sul-coreano que nas últimas décadas se consolidou como um dos maiores exportadores de conteúdo audiovisual da Ásia [Mazur, 2021, p. 174]. A popularização dos dramas de TV na Coreia do Sul se iniciou nos anos de 1980, quando o volume de produções sul-coreanas começou a superar as importações de conteúdos estrangeiros, especialmente os dramas japoneses, ou J-dramas, e os dramas locais foram ocupando os horários nobres nas grades televisivas. Já na década de 1990, pôde-se perceber uma mudança: a influência dos K-dramas, dramas de TV produzidos na Coreia do Sul, ultrapassou os limites das emissoras de televisão nacionais e passaram a ser exportados para outros países da região do leste asiático. Esse fluxo crescente de exportação ficou conhecido como “Onda Coreana” ou Hallyu [한료]. O termo, cunhado pela imprensa chinesa no final dos anos de 1990, é um neologismo com as raízes han [한; 韓], que significa “coreano”, e ryu [류; 流 ], que significa “onda”, “tendência” ou “fluxo, e era empregado justamente para indicar a progressiva popularidade dos K-dramas na China [Kim, 2015, p. 156]. É nesse momento de crescente exportação de produtos audiovisuais sulcoreanos nos anos 90 que nasce a primeira fase da Hallyu, ou Hallyu 1.0. Essa fase é marcada pela difusão de K-dramas e do cinema sul-coreano nos 7 mercados regionais do leste asiático, sobretudo na China, em Hong Kong e no Japão [Kim, 2015, p. 158]. É interessante pontuar que o consumo e a distribuição desses produtos estavam atrelados a meios de distribuição oficiais, como as emissoras de TV regionais, as redes de cinema e DVDs. Assim, os Kdramas marcam os primeiros passos da Hallyu que, ao longo das décadas seguintes, se consolida como um fenômeno transnacional de exportação cultural. A segunda fase da Hallyu, ou Hallyu 2.0, iniciada em meados dos anos 2000, é marcada pela expansão para Europa, América do Norte e outros mercados da Ásia. Neste momento, a internet assumiu um papel importante na distribuição dos produtos culturais sul-coreanos por possibilitar que pessoas de diversas partes do mundo acessassem esses conteúdos sem a necessidade da mediação dos meios de comunicação tradicionais. Assim, diferentemente da primeira fase, na Hallyu 2.0, o consumidor não depende mais da transmissão oficial desses produtos audiovisuais via emissoras de televisão ou DVDs. Aliás, neste momento, a música pop coreana, o K-pop, passa a ser protagonista e se junta aos dramas de TV como produto de exportação cultural [Jun, 2017, p. 155]. É também nesta fase que os formatos televisivos passam a ser exportados a outros países. Neste momento, são licenciados formatos de reality shows e programas de variedade, assim como alguns K-dramas também passam a ser licenciados e adaptados para audiências estrangeiras, como é o caso da série norte-americana The Good Doctor [2017]. A característica principal da terceira fase da Hallyu, ou Hallyu 3.0, é a expansão do fenômeno e a sua globalização. Os produtos sul-coreanos chegam a outros mercados distantes cultural e geograficamente que não haviam atingido antes, como a América Latina, e se consolidam em outras regiões como na Ásia e na América do Norte. Se a internet já tinha papel importante na segunda fase, agora, as plataformas digitais são os principais meios de propagação da Hallyu, com as redes sociais servindo de alavanca para impulsionar ainda mais o fenômeno. Destacam-se nesta fase produtos culturais como o K-pop e os webtoons, quadrinhos online. Atrelados ao audiovisual, outras indústrias também ganham força e passam a fazer parte do fenômeno como, por exemplo, a indústria dos cosméticos, com os produtos de K-beauty, da culinária e da tecnologia [Jun, 2017, p. 156]. Argumenta-se que na Hallyu 3.0 os produtos não são promovidos isoladamente: ao exportar um Kdrama, por exemplo, exporta-se também o K-pop, por meio da trilha sonora ou ainda produtos de beleza e eletrônicos, a partir de cenas que envolvam propagandas diretas ou indiretas. Os programas de televisão passam a promover não só produtos, mas também um estilo de vida, como afirma Mazur: “[a] Hallyu hoje não só comercializa produtos culturais, mas também um estilo de vida, e esses programas são mais uma forma de circular essa estratégia.” [Mazur, 2021, 185]. É importante pontuar que a divisão da Hallyu em fases é interessante para a análise da sua progressão, bem como das mudanças graduais no fenômeno que envolvem os produtos exportados e os mercados atingidos. Entretanto, 8 isso não implica dizer que produtos que se destacaram em uma fase, perdem sua influência na fase seguinte. Ao contrário, essa divisão nos permite verificar que há uma expansão na variedade de produtos culturais exportados à medida em que indústrias de diferentes setores passam a fazer parte da Hallyu e potencializam seu crescimento em âmbito global. Tendo em vista o rápido panorama histórico apresentado, é possível entender que a Onda Coreana como fenômeno de exportação cultural engloba diversas indústrias e produtos que vão desde a música, literatura e cinema, até bens duráveis como eletrônicos. Entretanto, a Hallyu tem sua maior potência em duas vertentes: na música, com o K-pop, e no audiovisual, com os K-dramas. A importância e a influência dos dramas de TV para o fenômeno data sua própria origem e é central até hoje, sendo importante para sua expansão para outros mercados. A popularidade dos K-dramas nos ocidente tem crescido nos últimos anos, sobretudo na América Latina, e, hoje, já é comum que empresas multinacionais do ramo do entretenimento, como a Netflix, invistam em dramas de TV. O interesse, sobretudo de plataformas de streaming em produções sulcoreanas, pode ser observado a partir do caso da Netflix. No Brasil, o catálogo de K-dramas da plataforma inclui títulos originais, co-produzidos com empresas locais e licenciados. No fim dos anos de 2010, “o catálogo brasileiro contava com “6 co-produções originais e quase uma centena de dramas licenciados” [Urbano; Araujo, 2017, p. 2599]. Desde então, o investimento ficou cada vez maior: foram anunciadas somente para o ano de 2023 mais 34 produções sulcoreanas no catálogo da Netflix Brasil, que cresce a cada ano [BARATA, 2023]. A progressiva inclusão dessas obras no catálogo brasileiro reflete o interesse do público pela indústria audiovisual sul-coreana, o que pode resultar em uma maior divulgação desses produtos no país. A popularidade dos dramas de TV na América Latina também pode ser percebida não só pela maior oferta desses produtos nos catálogos de serviços de streaming, como também pelos números de audiência. Exemplos de sucesso são os dramas Round 6 [2021] e Uma Advogada Extraordinária [2022] que atingiram o topo do ranking global da Netflix por semanas e cativaram audiência no mundo inteiro, inclusive no Brasil. Segundo o site da empresa, Round 6 [2021] contabilizou 20 semanas no ranking das dez séries mais assistidas em língua não-inglesa e atingiu o Top 10 de séries mais assistidas em 94 países. No Brasil, o drama esteve no Top 10 por 10 semanas, de setembro a novembro de 2021, dado que se repetiu em outros países da América Latina como no Chile, no Peru e na Venezuela. Já Uma Advogada Extraordinária [2022], ocupou o ranking global de séries em língua não-inglesa por 21 semanas e atingiu o Top 10 em 57 países. Segundo a Netflix, no Brasil, o drama se manteve no Top 10 séries mais assistidas por 13 semanas. Esse número é ainda maior em localidades como Bolívia, Chile e México, onde Uma Advogada Extraordinária [2022] ocupou o Top 10 por 14 semanas, e no Peru, por 16. Esses números mostram que há um crescente interesse do público 9 latino-americano por produções sul-coreanas e apontam a América Latina como um forte mercado consumidor desses produtos. O interesse da audiência latino-americana nesse formato audiovisual tão distinto cultural e geograficamente deve-se, segundo Mazur [2021], a uma característica inerente dessas narrativas seriadas que é a sua matriz melodramática. Apesar das características locais próprias de cada produção e das questões culturais que perpassam as narrativas, o caráter melodramático supera os traços específicos da cultura coreana e dão às narrativas um potencial transnacional. Assim, estudos como os de Urbano e Araujo [2017], Santos e dos Santos [2018], e Mazur [2021] sugerem que o teor melodramático das produções sul-coreanas se assemelha ao melodrama típico das populares telenovelas latino-americanas. “O interesse desse mercado regional [América Latina] em conteúdo de raízes melodramáticas dialogou diretamente com o conceito inerente ao formato dos dramas de TV, o que reitera que a matriz melodramática é de potencial inerentemente transnacional, superando os traços culturalmente específicos dos K-dramas e fortalecendo seu apelo transcultural [MAZUR, 2021, p.185].” Esse potencial transcultural da matriz melodramática, aliado à internet e aos fãs, fez com que o interesse pelas produções televisivas e também pela cultura coreana crescesse [SANTOS e DOS SANTOS, 2018, p. 2]. Dessa forma, apesar do formato diferente das telenovelas lationa-americanas e da distância geográfica e cultural, o público tem certa familiaridade com as narrativas dos dramas de TV graças ao teor melodramático, que cativa a audiência e torna a América Latina um mercado promissor para os dramas de TV. Segundo Urbano e Araujo [2017], já foram transmitidos na grade televisiva brasileira os J-dramas Oshin [1983], na década de 1980; Haru e Natsu [2005], em 2008; Dear Sister [2014], em 2017, além dos títulos sul-coreanos Happy Ending [2012], em 2015; A Lenda - Um luxo de sonhar [2013], em 2016. O tímido número de títulos transmitidos e a significativa diferença entre o ano de transmissão no país de origem e a transmissão brasileira indicam que, sob uma perspectiva das mídias antigas, não há interesse em transmitir, no Brasil, produtos audiovisuais fora do padrão de produções ocidentais. Dessa forma, a circulação dos dramas de TV sul-coreanos no país está estreitamente vinculada à popularização da internet. Diferentemente de países como China e Japão, a circulação dos K-dramas no Brasil está diretamente associada à internet e à mediação dos fãs em redes sociais por meio de fansubs [Urbano e Araujo, 2017, p. 2592], já que não existe uma circulação sistemática de dramas de TV na mídia tradicional, como pode ser notado a partir dos casos supracitados. Assim, os fansubs, grupos de fãs que traduzem de forma gratuita e amadora, foram os responsáveis por apresentar e popularizar os K-dramas no Brasil, antes dos serviços de streaming se popularizarem no país e investirem em produções do Extremo Oriente. Mesmo sendo uma forma de tradução estigmatizada, sobretudo por 10 conta de seu caráter amador e, não raramente, ilegal, os fansubs foram, por algum tempo, praticamente o único meio disponível para que o público brasileiro pudesse ter contato com conteúdo audiovisual sul-coreano em língua portuguesa. Esse caso dos K-dramas no Brasil é um exemplo de como as traduções de fãs são, não raramente, a única forma de um grupo linguístico ter acesso a produções audiovisuais que não são consideradas rentáveis para determinado mercado e, assim, não são importadas, nem traduzidas oficialmente [Evans, 2020, p. 178]. A partir de um breve panorama histórico da Hallyu, foi possível perceber que apesar de alguns produtos terem mais ou menos protagonismo em suas diferentes fases, os K-dramas tiveram e ainda têm papel central no fenômeno. A Coreia do Sul tem expandido, a partir da Onda Coreana, sua influência na indústria audiovisual não só para países do leste e sudeste asiático, mas também para outras regiões do globo [Mazur, 2021, p. 174]. Os K-dramas, com seu caráter inerentemente melodramático, têm um potencial transnacional e transcultural pois supera os traços específicos da cultura coreana, o que permite que mesmo audiências distantes culturalmente, como o público latinoamericano, tenham interesse nessas narrativas. Apesar dos K-dramas terem chegado a mercados como a América Latina, no Brasil, ainda não há uma tentativa sistemática por parte da mídia tradicional em promover a indústria audiovisual sul-coreana. Assim, a presença de K-dramas no país está diretamente ligada à popularização da internet e dos fansubs, que, antes dos investimentos de plataformas de streaming como a Netflix, traduziam títulos sul-coreanos como uma forma de atingir os demais fãs brasileiros e divulgarem essas obras em língua portuguesa. Hoje, os fansubs, aliados ao crescente investimento dos serviços de streaming, proporcionam uma maior divulgação de produções audiovisuais sul-coreanas que antes não chegavam a países como o Brasil [Urbano e Araujo, 2017, p. 2586]. Dessa forma, podemos concluir que os K-dramas foram e continuam sendo fundamentais para a expansão da Hallyu no Brasil e a mediação dos fansubs e das plataformas de streaming, como a Netflix, são fundamentais para a divulgação dessas obras no país. Referências Amanda Mesquita é graduanda do curso de Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro [UFRJ]. BARATA, Giselly Correa. Dorama: “Netflix terá mais 34 séries e programas coreanos em 2023”. O Povo. Disponível em: https://www.opovo.com.br/vidaearte/2023/01/17/dorama-netflix-tera-mais-34series-e-programas-coreanos-em-2023.html EVANS, Johnathan. “Fan translation” in: BAKER, Mona e SALDANHA, Gabriela [ed.]. Routledge Encyclopedia of Translation Studies. London and New York: Routledge, 2020. p. 177-181. 11 JUN, Hannah. “Hallyu at a Crossroads: The Clash of Korea’s Soft Power Success and China’s Hard Power Threat in Light of Terminal High Altitude Area Defense [THAAD] System Deployment” in: Asian International Studies Review, vol. 18, n.1, Jun, 2017, p. 153-169. KIM, Bok-rae. “Past, Present and Future of Hallyu [Korean Wave]” in: American International Journal of Contemporary Research, vol. 5, n. 5, Out, 2015, p. 154160. MAZUR, Daniela. “A Indústria Televisiva Sul-Coreana no Contexto Global” in: AÇÃO MIDIÁTICA, n.22, Jul-Dez, 2021, p. 172-191. Netflix. Dados de Audiência. Disponível em: https://www.netflix.com/tudum/top10/. SANTOS, Andressa de Souza; DOS SANTOS, Aline de Caldas Costas. “AUDIOVISUAL NAS NOVAS MÍDIAS – DRAMAS SUL-COREANOS NO BRASIL” in: III Jornada Internacional GEMInIS [JIG 2018]. Disponível em: https://www.doity.com.br/anais/jig2018/trabalho/82227. URBANO, Krystral; ARAUJO, M. “OS NOVOS MODELOS DE DISTRIBUIÇÃO E CONSUMO DE CONTEÚDO AUDIOVISUAL ASIÁTICO NAS REDES DIGITAIS: OS CASOS DOS DRAMAS DE TV NA NETFLIX BR” in: X Simpósio Nacional da ABCiber Conectividade, Hibridização e Ecologia das Redes Digitais - São Paulo-SP, 2017. p. 2586 a 2603. Disponível em: <https://abciber.org.br/anais-abciber-2017.pdf>. 12 AS “MULHERES DE CONFORTO” COREANAS: UMA ANÁLISE ATRAVÉS DA GRAPHIC NOVEL GRAMA DE KEUM SUK GENDRY-KIM, por Camilly Evelyn Oliveira Maciel Introdução: As "mulheres de conforto" As “mulheres de conforto” referem-se às mulheres que foram submetidas à escravidão sexual pelo Império Japonês. Não se sabe com exatidão quantas mulheres foram levadas pelo sistema a servir como escravas sexuais, porém, estima-se que esse número esteja entre 80 mil a 200 mil, entretanto, para alguns estudiosos esses números não chegam perto da realidade, muitos acreditam que o dobro foi mobilizado pelo Império Japonês (MIN, 2003). É importante citar que cerca de 80% das mulheres que serviram eram coreanas — a Coréia, na época, era colônia do Japão — enquanto os outros 20% dividiram-se entre chinesas, japonesas, filipinas, tailandesas, entre outras (MIN 2003). Essas mulheres eram sequestradas, recrutadas à força ou enganadas por meio de falsas promessas de trabalho (SOH, 1996). Uma vez capturadas, eram mantidas em bordéis militares, nomeados de "casas de conforto", onde eram obrigadas a fornecer serviços sexuais aos soldados japoneses. O “sistema de conforto” já era utilizado pelos soldados japoneses desde 1932 — antes da Segunda Guerra Mundial eclodir. Entretanto, esse sistema foi expandido após um episódio que aconteceu durante a Segunda Guerra SinoJaponesa que ficou conhecido como Estupro de Nanquim, no qual os soldados japoneses massacraram de forma brutal os habitantes dessa cidade chinesa, estuprando e assassinando de 20 mil a 80 mil mulheres (LADINO, 2009). Esse ataque repercutiu mundialmente e afetou a imagem do Japão, devido a esse episódio e aos outros inúmeros casos de estupros cometidos pelos soldados japoneses, o Imperador ordenou a formalização das "estações de conforto" que deveriam recrutar meninas de baixa renda — em sua maioria de origem coreana, tendo em vista que após longas disputas o Japão conseguiu ocupar a Coréia em 1910, a fazendo sua colônia (SOH, 1996) — para evitar que a imagem do Império Japones denegrisse devido a escândalos do tipo. Desse modo, os soldados teriam jovens meninas a sua disposição para os "confortarem" — por esse motivo o sistema de escravidão sexual japonês ficou conhecido como sistema de conforto. (HOWARD, 1995). A Graphic Novel Grama Grama é uma graphic novel, escrita por Keum Suk Gendry-Kim, que conta a história de Ok-Sun Lee, uma coreana que foi vítima do “sistema de conforto” 13 japonês. A HQ foi lançada no Brasil pela editora Pipoca & Nanquim. Neste livro, Ok-Sun Lee narra maior parte da sua vida: desde a infância, mostrando as dificuldades que ela e sua família passaram devido ao colonialismo japonês; o momento em que ela foi raptada; como foi sua vivência como “mulher de conforto” e sua vida no pós-guerra — quando ela e outras “mulheres de conforto” decidiram expor toda a violência que elas sofreram como escravas sexuais dos soldados japoneses, lutar pelo reconhecimento e por um pedido de desculpa decente do Japão. Assim, a história intercala entre passado (a história de Ok-Sun Lee quando criança e adulta) com presente (Ok-Sun Lee já na terceira idade narrando suas vivências para a autora). No final da graphic novel é trazido um texto, com autoria de Myung-Sook Yun, que contextualiza a história das “mulheres de conforto” apresentando a realidade de várias meninas que viviam em colônias japonesas e que foram tiradas de suas casas e obrigadas a servirem como escravas sexuais, deixando para trás suas famílias e seus sonhos para passar por uma experiência bastante traumática. A HQ trata com o máximo de leveza possível um assunto tão impactante, a história nos faz refletir sobre colonização, guerra e sobre como as mulheres, nessas situações, estão mais suscetíveis à violência — principalmente à violência sexual. As “Mulheres De Confortos” através da Graphic Novel Grama A Graphic Novel expõe em seus primeiros capítulos a situação econômica da família da protagonista, Ok-Sun Lee, em 1916. Essa situação representa a realidade de miséria que diversas famílias coreanas estavam enfrentando devido à colonização japonesa que teve início em 1910 e durou até o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945 — a colonização afetou drasticamente a vida econômica e social dos coreanos, que foram obrigados a mudar radicalmente a estrutura de sua nação devido à imposição de ordens e costumes japoneses. Vivendo na dificuldade, a protagonista precisa ajudar seus pais em casa, principalmente na criação de seus irmãos pequenos enquanto os pais trabalham e, por esse motivo, não pôde frequentar a escola, um sonho que ela tanto almejava. No decorrer da história, a situação econômica de Ok-Sun Lee e sua família continua a piorar, principalmente porque em 1937 o Japão ataca a China e se inicia a Segunda Guerra Sino-Japonesa. Com a situação econômica instável, os pais de Ok-Sun Lee "doam" a filha para trabalhar em um restaurante e, após sofrer continuamente em diversos trabalhos e longe da família, a vida de Ok-Sun Lee piora quando, em 1942, com apenas 15 anos de idade, ela é raptada e levada para fazer parte do "Sistema de Conforto". Os próximos capítulos apresentam a história de muitas meninas, todas aproximadamente com a mesma idade de Ok-Sun Lee, que foram, assim como ela, sequestradas ou enganadas e colocadas em trens para serem enviadas para as diversas "casas de conforto" espalhadas pelo Extremo Oriente. Segundo Okamoto (2013), a maioria das “mulheres de conforto” estava na faixa dos 14 aos 18 anos de idade, algumas tinham até mesmo 12 ou 13 anos, o 14 motivo se devia ao fato de que o Exército Imperial Japonês preferia mulheres mais jovens, pois acreditava que estas, provavelmente virgens, não iriam passar IST’s (Infecções Sexualmente Transmissíveis) para os soldados. Ao chegarem nas "casas de conforto", as meninas eram obrigadas a utilizar um nome japonês — no caso de Ok-Sun Lee, Tomiko — e forçadas a trabalharem em condições insalubres, sofrendo constantes maus tratos e recebendo pouca alimentação. Ok-Sun Lee narra que ela e outras garotas, ao perceberem as condições de vida naquele local, até mesmo fazem um plano de fuga, porém logo percebem a impossibilidade de tal ato: eram vigiadas e monitoradas todo tempo, situação semelhante às outras “casas de conforto” (SIKKA, 2009). O capítulo 7 conta da maneira mais sensível possível, porém sem esconder o horror da situação, como ocorreu a primeira vez em que Ok-Sun Lee foi estuprada por um soldado, a protagonista diz que para ela e para muitas outras meninas foi a primeira vez tendo relação sexual e comenta que após a experiência traumática, sentiu vontade de morrer. Ao continuar contando sobre esse dia, Ok-Sun Lee relata que logo após o primeiro, outros soldados continuavam adentrando os quartos e violentando as meninas. Segundo Pyong Gap Min, em seu artigo "'Comfort Women' the intersection of colonial power, gender, and class” (2003), as mulheres de conforto eram obrigadas a "atender" de 10 a 30 soldados por dia, número que aumentava nos fins de semana. Durante os capítulos 8, 9 e 10 a protagonista narra a sua primeira menstruação e como mesmo durante esse período ainda precisava atender aos soldados, conta também como os finais de semana eram os piores uma vez que o número de soldados tendia a aumentar. No capítulo 9, há uma ilustração da parede de uma "casa de conforto" com o nome das meninas (escritos em japonês) em placas de madeira, Ok-Sun conta que os soldados apenas escolhiam um nome e entravam. Mesmo que essas mulheres fossem submetidas a exames para prevenir gestações e IST’s e que fosse recomendado aos soldados o uso de preservativos (SIKKA, 2009), muitas mulheres contraiam alguma doença venérea. Ok-Sun Lee, ainda no capítulo 9, conta que ao descobrir que está com sífilis é obrigada a passar por um tratamento com mercúrio para curar a doença, devido a esse tratamento com metal pesado ela se torna infértil. No capítulo 11, a protagonista continua narrando sobre alguns maus tratos que eram cometidos: algumas mulheres morriam por doenças, outras devido a espancamentos, elas também eram punidas por qualquer desrespeito, desde falar sua língua nativa a responder aos soldados ou desobedecer qualquer ordem. De acordo com Okamoto (2013), as “mulheres de conforto” sofriam diversos tipos de violências, como espancamento, tortura e esfaqueamento. O capítulo 12 relata a tão sonhada liberdade: com a derrota do Japão e o fim da Segunda Guerra Mundial, a maioria das "casas de conforto" foi abandonada (YUN, 1997). No caso da "casa de conforto" onde Ok-Sun Lee vivia, os soldados fugiram e as mulheres passaram um dia sem saber que estavam 15 livres, entretanto a vida dessas mulheres infelizmente não melhora, sem dinheiro e em um país diferente, Ok-Sun Lee e as outras jovens são obrigadas a se separar para tentar sobreviver. Mesmo livres, as “mulheres de conforto” tiveram que lutar sozinhas para reingressar na sociedade. Segundo Pyong Gap Min (2003), embora algumas vítimas tenham voltado para casa após o fim da guerra, muitas decidiram não viver mais com os seus pais, e, devido à vergonha dos acontecimentos do passado, elas mantiveram em segredo a sua situação como “mulheres de conforto” de familiares e amigos. Essas mulheres tampouco podiam viver uma “vida normal”, visto que muitas traziam consigo doenças físicas e/ou psicológicas devido à escravidão sexual ao qual foram submetidas. Os últimos capítulos vão narrar a vida da protagonista após o fim da guerra: o matrimônio, a vida conturbada com seu cônjuge, o amor pelo seu filho adotivo, a realização do sonho de ir para a escola, a busca pela família e a rejeição. OkSun Lee, após a morte do marido, recuperou sua nacionalidade e foi morar na "Casa se Partilha" — essa casa, também conhecida como "House of Sharing", faz parte de um projeto do "Korean Council for the women drafted for military sexual slavery by Japan" e foi fundada em 1991, a casa possui, entre outros objetivos, dar apoio às vítimas da escravidão sexual do Império Japonês, servindo como alojamento para as vítimas e também auxiliando com apoio médico e social (MIN, 2003). A Casa de Partilha foi a casa onde a autora da HQ, Keum Suk Gendry-Kim, entrevistou a halmonie para fazer a obra. O capítulo final também apresenta aos leitores as Manifestações de Quarta-feira — protesto que ocorre desde 2011, todas as quartas-feiras, em frente à Embaixada japonesa em Seul, capital da Coréia. Nesses protestos as vítimas e apoiadores lutam por reconhecimento e por justiça ao caso das "mulheres de conforto" (AZENHA, 2018). Conclusão As “mulheres de conforto" foram vítimas do brutal regime de escravidão sexual do Império Japonês. Enganadas ou sequestradas pelo sistema, eram mantidas em bordéis militares, conhecidos como "casas de conforto", onde eram exploradas sexualmente pelos soldados japoneses. Elas sofriam não somente abusos físicos e emocionais, como também negligência em termos de cuidados de saúde e direitos humanos básicos: estavam suscetíveis a infecções sexualmente transmissíveis, gestações indesejadas e viviam em condições precárias, sem suporte e sem poder voltar para casa (Yun, 1997). Após a guerra, as mulheres de conforto enfrentaram estigmatização e marginalização na sociedade coreana. Muitas sofreram com problemas de saúde física e mental decorrentes de suas experiências traumáticas, De acordo com Pyong Gap Min (2003): “Todas as vítimas sofreram de vários problemas de saúde e traumas psicológicos causados por suas experiências de escravidão sexual. Muitas vítimas continuaram a sofrer de doenças venéreas e algumas tiveram histerectomias. Elas regularmente tinham pesadelos nos quais 16 soldados japoneses as perseguiam, mas tiveram que esconder suas experiências horríveis por mais de 50 anos” [texto traduzido]. Assim, grande parte delas evitava mencionar o passado devido à vergonha e ao estigma sofrido. Desse modo, somente na década de 1990 o caso das “mulheres de conforto” começou a ser amplamente reconhecido e discutido, graças às denúncias de vítimas do sistema de conforto, apoiado por movimentos feministas, que decidiram contar suas histórias e pedir por justiça. A primeira mulher a dar seu depoimento foi Kim Hak-Sol, a partir do seu testemunho outras mulheres, incluindo Ok-Sun Lee, foram capazes de falar sobre suas experiências mesmo em um país bastante patriarcalista como a Coréia do Sul. (PARRILHA, 2022). Atualmente, sobreviventes, ativistas pelos direitos da mulher, estudiosos e defensores dos direitos humanos esforçam-se pelo reconhecimento da história das “mulheres de conforto”, lutam também por desculpas oficiais do governo japonês, compensação financeira e divulgação completa dos detalhes históricos sobre o sistema de escravidão sexual durante a guerra — com o intuito de combater a negação e a distorção dos fatos históricos por parte do Japão (SOH, 1996). As vivências e as violências praticadas contra as “Mulheres de Conforto” pelo Império Japonês durante a Segunda Guerra Mundial é um crime de guerra pouco conhecido e debatido no Brasil. Estudar sobre a história dessas mulheres é importante não somente para a preservação da memória, mas também para contribuir com a luta por uma justiça que ainda não foi feita — uma vez que o Japão se recusa a fornecer as demandas exigidas pelas vítimas. (PARRILHA, 2022). Assim, faz-se necessário que haja mais estudos sobre esse crime de guerra que afetou a vida de milhares de mulheres e uma forma bastante interessante de fazer isso é através da literatura, ao estudar a história por meio de livros, conseguimos nos conectar com os personagens e suas vivências. Grama é uma graphic novel que traz a história em primeira mão de uma mulher que vivenciou esse sistema de escravidão sexual do Império Japonês e que na atualidade luta por uma justiça que demora a chegar, fazendo com que quem leia essa HQ sinta o impacto de uma das diversas violências que aconteceu durante o período da Segunda Guerra Mundial. Referências Camilly Evelyn Oliveira Maciel é graduanda em Licenciatura em História pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). AZENHA, Tatiana Sofia Fonseca. Para além do silêncio: o sistema de conforto e o papel dos movimentos feministas na questão das Mulheres de Conforto na Coreia do Sul: 1905-2015. 2018. Tese de Doutorado. GENDRY-KIM, Keum Suk. Grama. 1ª ed. São Paulo: Editora Pipoca e Nanquim, 2020. 17 HOWARD, Keith. True stories of the Korean comfort women. 1995. LADINO, James. “Ianfu: No comfort yet for Korean comfort women and the impact of house resolution 121”. Cardozo Journal of Law & Gender, v. 15, 2009, pp. 338-339 MIN, Pyong Gap. Korean “Comfort Women” the intersection of colonial power, gender, and class”. Gender & Society, v. 17, n. 6, p. 938-957, 2003 OKAMOTO, Julia Yuri. As Mulheres de Conforto na Guerra do Pacífico. Revista de Iniciação Científica de Relações Internacionais, v. 1, n. 1, 2013. PARRILHA, Ariel da Silva. As “mulheres de conforto” coreanas e a violência sexual estratégica: uma análise. Universidade Estadual Paulista (Unesp), 2022. Disponível em: <http://hdl.handle.net/11449/236504>. SIKKA, Nisha. The official marginalization of comfort women. Honours Thesis. Communications 498. Simon Fraser University. December 11, 2009. (33 fls.) SOH, Chunghee Sarah. “The Korean ‘comfort women’: Movement for redress”. Asian Survey, v. 36, n. 12, dec. 1996, pp. 1226-1240. SOUSA, Vivian Simões de. Estupro enquanto crime de guerra: uma análise sobre as “mulheres de conforto”. 2023. YUN, Myung-Sook . As mulheres de conforto do Exército Japonês, segundo a HQ Grama. In: GENDRY-KIM, Keum Suk. Grama. 1ª ed. São Paulo: Editora Pipoca e Nanquim, 2020. 18 ÉTICA ALIMENTAR E SIMBOLOGIAS DIETÉTICAS EM “A VIAGEM DE CHIHIRO” (2001), por Felipe Daniel Ruzene Considerações iniciais Em 2003, A Viagem de Chihiro (Sen to Chihiro no Kamikakushi, (千と千尋の神隠し) tornou-se a primeira animação japonesa a angariar dezenas de prêmios em festivais ocidentais (entre eles o ovacionado Oscar de melhor filme de animação) elevando os Studios Ghibli, sua produtora, ao status de cult em meio à cultura pop. Aclamado pela crítica e pelo público, o anime que narra as desventuras da jovem Chihiro Ogino logo superou a barreira do “exótico”, conquistou o imaginário social e se tornou um profícuo objeto para as mais diversas análises nas artes e humanidades. Dentre as inúmeras temáticas abordadas nas películas do estúdio – como xintoísmo, meio ambiente, guerra, família, capitalismo, história do Japão e relações ocidente/oriente, por exemplo – observa-se a recorrente aparição das práticas alimentares e comensalidades em cena [BAPTISTA et al, 2022, p. 6-7]. O cuidado da direção na representação dos preparos, consumos e relações com a comida é notório e permite contemplar como a alimentação é refletida para além de sua funcionalidade biológica de manutenção da vida. Assim, de modo mais abrangente que simplesmente “comer” ou “beber”, ultrapassando a mera potência nutricional, os roteiristas e animadores do estúdio deixam: “muito nítido em suas obras as múltiplas dimensões da comida e da alimentação” [BAPTISTA et al, 2022, p. 7]. O objetivo deste ensaio, portanto, é apresentar a representação e importância dos alimentos e da alimentação, bem como suas projeções ético-filosóficas nas personagens da animação, entendendo a dietética como uma troca entre a matéria animada e inanimada [cf. SUNNERSTAM, 2013, p. 5]. A partir de uma leitura pós-modernista das relações alimentares, considero as trocas e saberes relacionados ao alimento com outras práticas de existência estética, distanciando-me da leitura na qual o corpo que come simplesmente absorve uma matéria extracorpórea que passa a integrar sua entidade autônoma. De fato, as exposições dos modelos dietéticos expressam os variados desejos humanos, seus rituais, etiquetas, histórias e filosofias, perpassando simbologias sociais, sexuais, políticas, religiosas, éticas, estéticas etc. [CARNEIRO, 2003, p. 1]. À vista disso, utilizome do termo “dietética”, conforme apresentado por Michel Foucault [1998, p. 87], entendendo-o como mais abrangente para designar não apenas as comidas e bebidas, mas também as variadas práticas alimentares suscitadas pela alimentação dos corpos. As práticas alimentares são evocadas na filmografia dos Studios Ghibli através de belas cenas que mesclam os alimentos com as alegorias dos enredos e das personagens, representando-os a partir da estética peculiar dos animes 19 japoneses e combinandos à musicalidade e fotografia. A alimentação se torna tão vívida que o público é tomado pelo anseio de saltar à tela para experimentar os pratos e participar das comensalidades expostas. De fato, a comensalidade e as práticas alimentares são constantes em diversos trabalhos e, como exemplo de algumas dessas simbologias evocadas pelos animes do estúdio, podemos citar: a alimentação enquanto nostalgia, familiaridade e memória em Da colina Kokuriko (2011); comida de conforto em Ponyo (2008); comensalidade e hospitalidade em O castelo animado (2004); o afeto através da cozinha e a autonomia em O serviço de entregas da Kiki (1998); o alimento enquanto cuidado, capaz de promover vínculos e recompor a saúde em Meu amigo Totoro (1988); ou, a excruciante experiência da fome durante a guerra em O túmulo dos vagalumes (1988). Apesar dessas muitas possibilidades, talvez seja justamente em A viagem de Chihiro (2001) que encontramos um maior corpus de referências dietéticas, utilizadas para pensar as éticas alimentares, bem como as alegorias do mundo fantástico que se desenham ao longo do roteiro e suas metáforas da realidade. Sinopse Escrito e dirigido por Hayao Miyazaki (1941-), o filme narra a história de Chihiro Ogino, uma pequena menina de dez anos que está de mudança com seus pais. Durante o caminho à nova cidade, seu pai decide recorrer a um atalho para economizarem tempo, todavia, eles acabam se perdendo e parando em um túnel que guarda um misterioso e aparentemente inóspito vilarejo. A família decide explorar o lugar e, apesar dos protestos de Chihiro, param para comer em um restaurante desguarnecido. Enquanto seus pais comem, a menina os abandona para continuar a perambular no local, mas logo se depara com Haku, um jovem que a alerta para saírem dali antes de anoitecer. Haku é um ser híbrido que transita entre a forma humana e a de dragão, assim, pode ser visto como um dos: “corpos pós-humanos no imaginário animado” [SUNNERSTAM, 2013, p. 8]. Conforme escurece, diversos espíritos começam a surgir e os pais de Chihiro são transformados em porcos. Presos naquela realidade, a menina tem de recorrer à casa de banho termais da bruxa Yubaba para poder sobreviver e encontrar uma cura para o feitiço que transformou seus pais. Assim, em meio a um mundo desconhecido, repleto de espíritos, criaturas e magias, a pequena Chihiro passa por uma série de aventuras em busca do caminho de volta a sua família e ao mundo dos vivos. Ao longo de todo o enredo há uma série de trechos com referências alimentares que vão desde simples momentos de contemplação, acompanhados de alguns poucos aperitivos, até banquetes completos e ilimitados, servidos com vultosa pompa e abastança. A comida rouba a cena e se torna, simultaneamente, um motor para os acontecimentos da história e um elemento alegórico para o subtexto do roteiro. Nesta análise, argumentar-se-á que as simbologias dietéticas apresentadas em A viagem de Chihiro promovem reflexões sobre a ética alimentar que evocam as percepções, críticas e simbologias presentes no filme, apresentando os modos de vida de suas personagens e as alegorias à memória e cultura japonesas. Assim sendo, a comida e a bebida escapam aos domínios da cozinha e tornam-se objetos 20 históricos complexos, capazes de manterem relações com as visões do diretor a respeito do capitalismo, ambientalismo, tradição, modernidade, relações com o ocidente etc. Ética alimentar e simbologias dietéticas O início de todas as desventuras de Chihiro advém, justamente, de uma violação dietética. Após ela e seus pais, Akio e Yüko Ogino, adentrarem ao mundo dos espíritos, são nitidamente tentados pelos aromas de alimentos e pelo sentimento de fome que lhes invade. Guiados pelos perfumes das iguarias, são levados até um restaurante desprotegido, porém abastecido com as mais diversas delícias – aparecem numerosas carnes (aves, peixes, salsichas e embutidos variados), massas, pastéis, legumes, cogumelos e uma série de outras comidas indecifráveis. Chihiro se preocupa, mas os adultos se servem e degustam, sem aflições, o banquete ali exposto. Akio, pai de Chihiro, tranquiliza a filha dizendo que possuíam cartões e dinheiro para pagar pela refeição. Chihiro se abstém do festim e opta por continuar a investigar o lugar. Ao anoitecer ela retorna para encontrar seus pais, mas, ao chegar no restaurante, descobre que se tornaram enormes porcos. Percebo na transmutação dos pais de Chihiro em porcos certas relações com histórias bastante difundidas no ocidente – como o feitiço de Circe contra os nautas de Ulisses (transformando-os também em porcos, após um banquete) nos versos do décimo canto da Odisseia ou a condenação de Adão e Eva pelo pecado original (comer do fruto proibido) na doutrina agostiniana. Portanto, na literatura e nas artes a alimentação é, desde a Antiguidade, um bom caminho para a desvirtuação, bem como um instrumento para camuflar maldições, uma vez que evoca um dos mais instintivos desejos humanos – o desejo pela comida e bebida [FOUCAULT, 1998, p. 90]. Para além da difundida leitura de que os pais de Chihiro haviam sido punidos por sua gula [SEKINE, 2017, p. 23], proponho que Miyazaki aponta ainda para a desvirtuação da ética alimentar pela lógica de consumo, como convém a essa fase violenta do capital. A crítica estaria, portanto, não na mera quantidade de comida ou nos modos de consumi-la, mas também no fato das personagens se apropriarem de algo que não lhes pertencia, simplesmente por possuírem recursos financeiros [SUNNERSTAM, 2013, p. 17]. A própria responsável pelo feitiço, Yubaba, diz a Chihiro que seus pais foram muito corajosos comendo a comida dos convidados, como se fossem porcos e por isso foram amaldiçoados. Como expressou Miyazaki durante uma entrevista realizada em Paris, a transformação dos pais atua como uma crítica aguda ao consumo excessivo na sociedade japonesa contemporânea e ao solipsismo instituído pela lógica capitalista [SEKINE, 2017, p. 3]. Assim, impõem-se uma questão não de deslegitimar desejos, mas observar sob quais condições é conveniente praticálos [FOUCAULT, 1998, p. 52]. Podemos observar isso na mãe de Chihiro, Yüko, que é retratada comendo com delicadeza e em módicas quantidades (aparentemente), mas é igualmente transmutada em suíno. O casal não controla os seus impulsos ante à comida, pois sabe que seu dinheiro e cartões lhes dariam direito sobre o alimento. 21 Embora deva ser reconhecido que o filme evoca o alimento em muitos momentos celebrativos e, até certo ponto, aborde a glutonaria, a maioria de suas representações implicam um diálogo mais complexo com a ética, relações de consumo e alienação [SEKINE, 2017, p. 3]. As pesquisas de Hanna Sunnerstam [2013, p. 17] nos permite tal leitura, mostrando que: “o dinheiro é obviamente a resposta e a solução para pelo menos a maioria dos problemas, mas este não é o mundo humano e a moeda humana provavelmente não tem valor aqui”. Logo, quando os pais da protagonista consomem as iguarias destinadas aos espíritos, inadequadas ao consumo humano, eles sequer cogitam a possibilidade antiética de suas ações. Este é um dos primeiros embates entre a religiosidade e tradição japonesas com o capitalismo e hegemonia ocidentais no enredo dessa animação, que constantemente articula a internacionalização e o autóctone [REIDER, 2005, p. 5]. Em outra cena, há novamente a afirmação do alimento como espaço simbólico que distingue a realidade dos humanos do mundo dos espíritos. Após a transmutação de seus pais, Chihiro começa a desaparecer do reino dos espíritos. Nesse momento outro personagem, Haku, vem em socorro e dá à menina um pouco de comida daquele lugar, evitando que ela desapareça. O motivo de consumir comida de outro mundo para ali se manter nos remete ao mito de Perséfone no Hades. As sementes de romã ofertadas à deusa grega por Ascálafo – assim como o alimento dado a Chihiro por Haku – são simbolismos alimentares que representam o pertencimento a partir da dietética. Isso faz lembrar, também, a história mitológica japonesa de Izanami (イザナミ) – deusa-criadora do Japão que morreu dando à luz ao deus-fogo e tentou convencer seu esposo-irmão, Izanagi (イザナギ), que não poderia voltar ao mundo dos vivos por ter consumido alimentos do mundo subterrâneo [REIDER, 2005, p. 5-6]. O alimento enquanto espaço de pertencimento fica evidente quando Haku diz aos trabalhadores que, após três dias comendo da comida do reino espiritual, Chihiro perderia o cheiro de humana, podendo ser confundida com qualquer outro daquele mundo. Assim, quem de um lugar come, nele permanece. A comida nessa animação, portanto, é uma ferramenta capaz de evocar cultura, espaço, identidade, fantasia e virtude [SEKINE, 2017, p. 8]. As variações alimentares em A Viagem de Chihiro abarcam desde comidas tradicionalmente japonesa: Onigiri (bolos de arroz que datam do período Heian, 794-1185 EC), Kompeitō (confeitos coloridos de açúcar com origem portuguesa), Yaki-Imo (batata-doce assada), Ikameshi (lulas recheadas com arroz), Anpan (pão recheado com feijão doce), Castella (pão de ló japonês, também proveniente da culinária portuguesa) e Sushis (especialmente niguiri e makizushi), por exemplo; até um grande número de alimentos estrangeiros: pãezinhos chineses cozidos no vapor, pratos mais “ocidentais” à base de ovos e queijo, guloseimas taiwanesas, tais como salsichas, bolos de arroz (doces e salgados) com inhame ou feijão, bolinhos de carne translúcidos e sorvete de amendoim [SEKINE, 2017, p. 3]. Além desses pratos, surgem em cena uma série de alimentos ou insumos isolados, como carnes diversas, peixes, frutos do mar, legumes, frutas, verduras, grãos (sobretudo arroz), pães, bolos, doces, biscoitos, sopas e chás. A ampla gama de comidas e sabores apresentados na 22 animação destaca a dualidade da alimentação japonesa, entre a singularidade e o multiculturalismo. De modo semelhante, este é o marcador entre o mundo espiritual da casa de banho e a realidade dos viventes fora da vila [cf. REIDER, 2005, p. 4-5]. É perceptível que o Japão pseudo-tradicional é simbolizado pelo mundo dos espíritos e pela casa de banho de Yubaba e, portanto, um contraponto ao capitalismo e pós-modernidade representados pelos externos, humanos. Sua arquitetura em estilo clássico japonês e os muitos cenários que evocam o tradicional teatro Nō reforçam esse contraponto. Interessante notar que figuras de sapos (ou seres similares a anfíbios) são muito presentes na casa de banho [SUNNERSTAM, 2013, p. 21], o que pode ser mais uma referência à ideia de retorno à tradição, ao local de origem – uma vez que, em japonês, a palavra “sapo” (kaeru, カエル) é homófona do verbo “retornar” (kaeru, 帰る). Tampouco isso deve ser lido como um saudosismo por parte de Miyazaki, afinal ele próprio critica as realidades e discursos apresentados pelos seres do reino espiritual [REIDER, 2005, p. 11]. Seus habitantes são tão gananciosos e dados ao capital quanto os pais de Chihiro, há apenas uma mudança conceitual – o ouro para os espíritos tradicionais, o cartão de crédito para os humanos pósmodernos. Assim sendo, oponho-me às várias análises que apontam para o objetivo do enredo residir no resgate à identidade cultural japonesa, em verdade creio que Miyazaki expõe a complexidade ética nas formas de vida de um Japão contemporâneo [SUNNERSTAM, 2013, p. 9]. O reino espiritual e a casa de banho, além de evocarem a tradicionalidade nipônica, representam um mundo outro, marcado pela agência não-humana e habitado por diversos corpos, onde a corporeidade humana é a não-normativa ainda que em muitos casos haja elementos antropomórficos [SUNNERSTAM, 2013, p. 21]. Entre espíritos, animais, seres míticos, criaturas, humanos e outros tipos de matéria (como os próprios alimentos) observamos uma realidade marcada pela pluralidade, pelo pós-humano e pelos laços de coabitação entre "espécies companheiras" – emprestando o termo de Donna Haraway [2008] – marcados pela interdependência interespécies por meio da qual atuam enquanto “companheiros de confusão no jogo mortal” [HARAWAY, 2008, p. 19]. Contudo, renovo que não há utopia na construção dessa realidade dissímil, embora os corpos e formas sejam outros, a conjuntura e os conflitos são bastante familiares e as espécies companheiras que ali coexistem não o fazem sempre de forma pacífica e harmônica [SUNNERSTAM, 2013, p. 5]. Vemos em cena, portanto, um contato entre sujeitos que se dá a partir das mesmas relações de poder evocadas na filosofia de Foucault [1998, p. 9]. Quando Chihiro é levada por Lin até a bruxa Yubaba, dona da casa de banho sediada no reino espiritual e responsável pelos trabalhadores, ela é aceita para o cargo de atendente naquele local. Para tanto, porém, a bruxa lhe rouba magicamente o nome no intuito de impedir que ela possa deixar o local e tornando-a, assim, dependente como os demais trabalhadores [SUNNERSTAM, 2013, p. 4]. Considero que haja referências à apropriação cultural do capitalismo ocidental: roubar o nome, a identidade, estabelecer uma 23 nova cultura baseada no trabalho e exploração. Isso é ratificado no início do filme, quando Haku diz a Chihiro que ela precisa de um emprego, pois, do contrário, seria transformada em um animal. De fato, todos os seres que ali vivem têm alguma função operária, mesmo as fuligens. Assim, a exploração capitalista dá-se mesmo dentro das casas termais de Yubaba, o que evidencia uma referência à história do Japão: resistir ao projeto colonial de assimilação cultural do ocidente e, simultaneamente, ser um estado imperialista no oriente. A importância dos nomes é, provavelmente, uma menção à obra da autora estadunidense Ursula K. Le Guin (1929-2018) [REIDER, 2005, p. 10], sobretudo ao seu O feiticeiro de Terramar (1968) no qual ela narra um mundo fantástico onde magos são capazes de controlar as coisas a partir de seus verdadeiros nomes – “quem sabe o nome de alguém tem a vida desse indivíduo sob sua guarda” [LE GUIN, 2022, p. 96]. A animação Contos de Terramar (2006) de Gorō Miyazaki, por exemplo, é uma adaptação direta desse livro, de modo que não soa insólito sugerir tal aproximação com Le Guin, uma inspiração constante aos produtores do estúdio. Retornando à casa de banho, dentre os muitos seres que circulam neste mundo pós-humanista, destaca-se Kaonashi, um espírito sem face, sem voz e sem características identitárias próprias que através do consumo (alimentar) de outros seres vai aderindo aspectos de suas vítimas. A personagem é instigada pelo contexto cobiçoso da casa de banho e, ao oferecer ouro aos trabalhadores, conquista serviços, luxos e, sobretudo, comidas [REIDER, 2005, p. 20]. O consumismo torna Kaonashi cada vez mais monstruoso. De maneira análoga, Haku é amaldiçoado a partir de uma situação alimentar. O rapazdragão consome uma praga enviada por Zeniba, irmã-gêmea de Yubaba. Ante a tais vícios alimentares, o vômito é evocado como contraponto, uma forma de expurgar as corrupções provenientes do consumo alimentar. Esse é o caso de Haku e Kaonashi, ambos precisaram regurgitar os males dos quais se alimentaram para recobrar a homeostase de seus corpos que foram perturbados por uma desvirtuação da prática dietética. Como afirma Foucault [1998, p. 92]: “as evacuações – purgações e vômitos – vêm corrigir a prática alimentar e seus excessos”. Em suma, o esforço de Miyazaki com as representações dietéticas de A Viagem de Chihiro parece residir nas possibilidades de relações éticas, intentando apresentar formas de existências capazes de dialogar com a tradicionalidade e contemporaneidade nos modos de vida e desejos do Japão pós-moderno. O sucesso de Chihiro em recuperar seu verdadeiro nome e salvar seus pais da maldição, sem sequer olhar para trás, pode ser visto como uma metáfora para a possibilidade de novas formas de vida, relações interespécie e éticas alimentares em um momento histórico de crise econômica, cultural, social e política. Referências Felipe Daniel Ruzene é mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná (PPGHIS/UFPR), Pós-Graduando em Gastronomia e Bacharel em Filosofia. E-mail: felipe.ruzene@ufpr.br. 24 A VIAGEM de Chihiro. Direção: Hayao Miyazaki. Produção: Studio Ghibli. Tóquio: Toho Co. Ltd., 2001. 1 DVD (125 min.). BAPTISTA, A. et al. “Comensalidade no Studio Ghibli: um paralelo com os temas contemporâneos transversais de saúde e educação alimentar e nutricional” in Anais do IV Congresso Nacional de Pesquisa e Ensino de Ciências, p.1-12, 2022. CARNEIRO, H. Comida e sociedade: uma história da alimentação. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003. FOUCAULT, M. História da sexualidade 2: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1998. HARAWAY, D. When species meet. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2008. LE GUIN, U. K. O feiticeiro de Terramar. São Paulo: Morro Branco Editora, 2022. REIDER, N. “Spirited Away: film of the fantastic and evolving japanese folk symbols” in Film Criticism, v. 29, n. 3, p. 4-27, 2005. SEKINE, A. Food in Spirited Away: consuming with Intent. Dissertação (Mestrado em Artes) – Food Studies, Chatham University. Pittsburgh, p. 54. 2017. SUNNERSTAM, H. Food, humans and other kinds of matter: a posthumanist materialist reading of the anime film Spirited Away. Dissertação (Mestrado em Estudos de Gênero) – Gender Studies Department of Thematic Studies, Linköping University. Linköping, p. 33. 2013. 25 REPRESENTAÇÕES ALUSIVAS À SEGUNDA GUERRA MUNDIAL PRESENTE NOS MANGÁS E ANIMES, por Francisco Kelvin Moreira de Sousa e Jakson dos Santos Ribeiro O presente texto busca apresentar produções japonesas que apresentam durante seu desenvolvimento o uso de símbolos que remetem a primeira metade do século XX, tendo muita das vezes o uso errado devido ao passado atrelado a eles. Nesse sentido, o texto reflete sobre o uso passado desses símbolos e explica a carga negativa que eles carregam e como os animes podem influenciar na propagação das idéias que sustentam o uso dessas simbologias. A base teórica, desse trabalho se estabelece a partir dos autores Kenneth Henshall, Tatsuo Kawai e Edward Russel. Para o desenvolvimento da pesquisa, foram utilizadas as obras dos autores já citados, além de pesquisas em sites e acervos digitais. Os resquícios de simbologias que remetem à Segunda Guerra Mundial ainda estão presentes, mesmo que de forma sutil e maquiada, nos tempos atuais. Diversas são as formas de utilizar o fascismo midiático, onde nota-se sua frequente presença nos animes, ressaltando o nacionalismo que ainda impera no Japão e é disseminado pelo Oriente e o Ocidente. Primeiramente é necessário recordar os acontecimentos na primeira metade do século XX pelo Japão no extremo Oriente e também no Havaí, para melhor compreensão do peso desses símbolos. Segundo Kenneth Henshall, a era do imperialismo japonês teve início em no ano de 1867, quando o último Xogun abdicou em favor do imperador Meiji. Teve início a Era Meiji, com mudanças econômicas, políticas e sociais no Japão. No final do século XIX, o Japão era o país mais desenvolvido do Oriente, com uma economia dinâmica, porém com necessidades para ampliar sua expansão. (HENSHALL, cap. 4, 1999) Em busca de novos mercados consumidores e matérias-primas, o Japão adotou, assim como Inglaterra, França, EUA e Alemanha, uma política imperialista. As guerras foram o meio que os japoneses encontraram para conquistar territórios de outros países do Oriente, e a força militar tornou-se o meio necessário para alcançar o desenvolvimento nacional e a estabilidade. (HENSHALL, cap. 4, 1999) Antes de sua participação na Segunda Guerra Mundial, o Império do Japão travou duas grandes guerras depois do estabelecimento da Revolução Meiji. A primeira foi a Primeira Guerra Sino-Japonesa, que ocorreu em 1894 e 1895, e a segunda foi a Guerra Russo-Japonesa, que foi um conflito para controlar a Coreia e partes da Manchúria entre o Império Russo e o Império do Japão, que ocorreu entre 1904 e 1905. (HENSHALL, cap. 4, 1999) 26 A dominação japonesa foi oficializada na Coréia em 1910, marcando um domínio que durou por mais 35 anos, onde se tinha exploração econômica desse território e milhares de coreanos sendo submetidos a trabalhos forçados para ajudar na expansão japonesa. Em 1914 o Japão entrou na Primeira Guerra Mundial, onde expande sua esfera de influência na China e no Pacífico. O período Showa foi o mais longo período de todos os reinados dos Imperadores japoneses anteriores. Durante o período pré-1945, o Japão foi tomado pelo totalitarismo político, ultranacionalismo e imperialismo militar, culminando na invasão japonesa da China em 1937. Com essa era houve a ascensão da ideologia Kokka Gushi, que juntava elementos raciais, nacionais e imperialistas, onde os mesmos acreditavam ser a raça suprema na Ásia, sendo assim os demais orientais inferiores, além disso a ideologia foi consolidada por uma radicalização e pela aliança anticomunista com a Alemanha nazista. Como resultado dessa política imperialista e uma ideologia similar ao nazifascismo, de 1931 a 1945, cerca de 8 milhões de pessoas foram mortas. O governo japonês tentou apagar as demais culturas asiáticas e substituí-la pela Japonesa. Proibiu nomes e criminalizou até o uso da língua nativa dos territórios conquistados em espaço público (KAWAI, 1938). Além também do trabalho escravo, muitos túneis ferroviários do Japão foram construídos por prisioneiros de guerra coreanos, como por exemplo o Túnel Kiyotaki. Entre os massacres documentados desse período podem ser citados o massacre de Nanking, na China, onde a cidade foi pilhada e destruída de maneira generalizada e cerca de 200 mil chineses foram massacrados. As “marchas da morte” de Bataan, que foi uma marcha forçada de prisioneiros de guerra americanos e filipinos durante a Segunda Guerra Mundial, com destino a campos de concentração sem água ou comida. O massacre de Manilla, quando os japoneses destruíram a cidade e mataram a maior parte da população filipina, somando cerca de 300 mil mortos. Outros eventos graves são a escravização sexual de mulheres nos territórios ocupados, o uso de armas químicas e biológicas, desenvolvidas com o uso de chineses e coreanos como cobaias humanas, assim como em experimentos médicos. Tais crimes nunca de fato foram solucionados e os culpados devidamente punidos, pois no fim da Segunda Guerra grande parte dos responsáveis foram inocentados. Todos esses crimes cometidos estão marcados pela bandeira do Império do Japão, a bandeira do sol nascente que contém um círculo vermelho, muito similar com a atual, com a diferença de ter 16 raios saindo dele. Durante o século 19, o símbolo do sol nascente se tornou a bandeira militar do país. E, por esse motivo, foi hasteada durante a expansão imperialista do Japão, quando o país ocupou a Coreia e parte da China. 27 FIGURA 1: Bandeira do Japão Imperial (1889-1945): FONTE: Disponível em: <https://abagond.files.wordpress.com/2015/04/the_imperial_japanese_navy__s everal_resolutions__by_jpviktorjokinen-d5rvyo9.jpg>. Acesso em: jul. 2023. Após a Segunda Guerra Mundial que o Japão passou a receber mais influência das técnicas de cinema ocidentais e passou a produzir seus desenhos animados, os chamados animes, que tem também inspiração nos mangás, tanto na arte como na adaptação de obras originais (CLEMENTS, 2017). Hoje o mercado de anime está em constante crescimento, com a exportação de séries e filmes longa metragem por todo o globo, difundindo ideologias de seus autores. O anime, como qualquer outra forma de arte, pode influenciar o mundo interior e a psique de todas as pessoas, em especial dos mais novos. Algumas vezes símbolos alusivos ao Japão imperial foram usados nos animes, mesmo que de forma sutil. Recentemente 02 casos ganharam notoriedade, sendo a primeira no anime “Demon Slayer”, pois houve problema por conta de uma característica importante do design de Tanjiro Kamado que pode trazer lembranças de um momento sombrio da história do Japão, justamente pelo objeto possuir algumas semelhanças com a Bandeira do Sol Nascente. FIGURA 2: personagem Tanjiro Kamado e seus brincos de hanafuda (2019) FONTE: Disponível em: <https://themitm.files.wordpress.com/2021/07/tanjirohanafuda.jpg>. Acesso em: jul. 2023. A polêmica começou há bastante tempo, e voltou à tona porque a Netflix comprou, em 2021, os direitos do anime para exibi-lo ao redor do mundo inteiro e os habitantes da Coréia do Sul, na Ásia, retomaram o debate. A discussão já havia sido levantada anteriormente, mas tomou força em 2021 devido a exibição de Demon Slayer na Netflix. Com a entrada do anime no catálogo, os usuários perceberam que a plataforma de streaming não promoveu nenhuma 28 censura aos brincos, mesmo depois de toda a compreensão do peso da simbologia. Outro caso está presente no anime Tokyo Revengers, que no mangá consta a bandeira do Japão imperial em roupas de personagens. Neste caso os produtores optaram pela censura quando houve a animação da obra, pois ao contrário da primeira, este símbolo estava explícito. FIGURA 3: Censura aplicada no anime Tokyo Revengers FONTE: Disponível em: <https://preview.redd.it/3uci1fllqbe81.jpg?width=1080&crop=smart&auto=webp&s=d90 06c533d687fac9382acb91e5a4160d118e9a8>. Acesso em: 30 jul. 2023. No entanto, mesmo que a bandeira do sol nascente tenha uma história mais antiga, "ninguém no Japão usa a bandeira do sol nascente para qualquer outro propósito que não seja romantizar e reescrever os horríveis abusos de direitos humanos cometidos sob o império japonês", argumenta Koichi Nakano, professor de ciência política na Sophia University, em entrevista à BBC. Outra situação se dá pelo uso de suásticas em diversas obras, onde se encontra um impasse entre o passado e a religião. Também conhecida como Cruz Gamada, a suástica é um símbolo encontrado em muitas culturas, algumas das quais sequer tiveram contato entre si. Existem, inclusive, muitas representações gráficas da suástica. Foi usado também por bizantinos na Europa, maias e astecas na América Central e índios navajos na América do Norte. Para todos esses povos, a suástica era uma representação de boa sorte, tanto que a palavra vem do sânscrito svastika, que quer dizer “condutora do bem-estar”. No Japão, a suástica budista é chamada de manji, onde o sinal continua sendo um dos importantes símbolos religiosos para a representação do Budismo. A suástica é uma representação do bem há muitos anos, para muitos povos. No entanto, a partir da Segunda Guerra Mundial, uma conotação negativa foi associada ao símbolo graças aos nazistas. 29 A suástica representava o próprio ato de criação da raça ariana e foi adotada como efígie do Partido Nazista e símbolo mais eloquente de seu governo. Hitler apropriou-se da suástica para representar o partido, subvertendo a sua simbologia original (RUSSEL, 1954). A suástica nazista é representada em preto, virada para a direita e girada a 45º deixando os cantos apontados para cima. Devido as atrocidades cometidas pela Alemanha nazista durante a 2º Guerra Mundial e os princípios defendidos por Hitler, a suástica passou a representar o ódio, a destruição e o racismo. Com o fim da Segunda Guerra, em 1945, o símbolo foi oficialmente extinto, mas continua sendo usado por grupos neonazistas. E, como resultado de todas as coisas horríveis feitas pelos nazistas, o símbolo da suástica é, até hoje, fortemente associado à negatividade, ao ódio, à intolerância, ao nazismo e às ideologias relacionadas com o fascismo e a supremacia branca. O emblema ficou tão associado às atrocidades cometidas por Hitler e seus seguidores que hoje é proibido por lei em dezenas de países. Porém as duas suásticas apresentam algumas diferenças. Começando pelo ângulo, com a adotadas pelos nazistas estando em 45°, outra discrepância é o lado das pontas. No Budismo, a suástica orientada para a representa o amor e a misericórdia. Já, a orientada para a direita caracteriza a força e a inteligência. Ambos os símbolos podem ser empregados, embora, o sinal virado para a esquerda seja o mais predominante no Japão. FIGURA 4: diferenças entre as suásticas budista e nazista FONTE: Disponível em: <https://cdn.ome.lt/w6w6JniNMxdamXuwyqahlWJ26P8=/fitin/837x500/smart/uploads/conteudo/fotos/diferencas-suasticas.jpg>. Acesso em: jul. 2023. O uso das suásticas nos animes acontece com frequência, sofrendo censura na maioria das vezes, principalmente no Ocidente. Por fazer parte da cultura japonesa e por ser compreendido pelo público local, a suástica budista já apareceu em várias produções de sucesso, como Naruto e One Piece, assim como em quadrinhos ou em desenhos animados, frequentemente relacionado a personagens com elementos religiosos. 30 Um dos exemplos está no anime Yu Yu Hakusho, onde um lutador está disputando o torneio da Mestra Genkai logo no começo da trama, chamado de Kazemaru, um ninja. Embora use uma armadura por baixo de sua roupa, ele usa vestes parecidas com as de monges budistas, mantém o cabelo raspado e ostenta em sua testa a suástica do manji. Isso não foi um problema quando o mangá e o anime estavam restritos ao Japão e a países orientais, pois é um símbolo amplamente conhecido, mas ao sair dali a situação complicou. FIGURA 5: Kazemaru com um manji na testa FONTE: Disponível em: <https://cdn.ome.lt/eMX79v0X8qDI3j4ZLLlULhZPQs=/fit-in/837x500/smart/uploads/conteudo/fotos/kazemaru-yu-yu-hakusho.jpg>. Acesso em: jul. 2023. Quando a série de luta criada por Yoshihiro Togashi foi exportada, o símbolo na testa de Kazemaru passou a ser um problema por causa do risco do personagem ser confundido com um Nazista. A Rede Manchete, responsável pela exibição do anime no Brasil em meados dos anos 1990, precisou editar o anime para apagar o manji na testa de Kazemaru, afinal seria impossível explicar o significado positivo de uma suástica quase idêntica à que se estuda nas aulas de História. Com a popularização dos animes e mangás no ocidente, e com os japoneses lucrando bastante com isso, começou uma preocupação maior com a presença da suástica nas obras japonesas, afinal isso poderia colocar em risco alguma chance de exportação e consumo de suas obras. Os próprios japoneses passaram a retirar o manji dos mangás e animes, como aconteceu em One Piece, com o personagem Ace, que tinha em suas costas uma suástica tatuada e o símbolo foi trocado pelo autor por uma cruz (que também acabou sendo censurado no ocidente por fazer alusão ao cristianismo). 31 FIGURA 6: Ace e sua tatuagem com manji antes e depois da censura FONTE: Disponível em: <https://cdn.ome.lt/eqg8QIh0ydnh_HMXZuEv_W8Lfz0=/fitin/837x500/smart/uploads/conteudo/fotos/ace-tatuagem.jpg>. Acesso em: 30 jul. 2023. Em Naruto, o personagem Hyuga Neji, muito querido entre os fãs da obra de Masashi Kishimoto, tem em sua testa um selo que impede que o Ninja ataque outros membros do clã que pertencem à família principal. Essa segunda linhagem do clã Hyuuga é marcada por um Manji verde, uma marca que impede a insurreição e mantém a subserviência da família secundária. FIGURA 7: personagem Neji Hyuuga com sua marca da maldição em forma de manji. FONTE: Disponível em: <https://midianinja.org/files/2022/02/naruto.png>. Acesso em: jul. 2023. Mesmo na maioria dos casos havendo preocupação em corrigir o símbolo para o mercado Ocidental, algumas vezes o anime é transmitido sem a censura. A exemplo novamente será citado o anime Tokyo Revengers. A gangue Toman é formada por garotos sem futuro, que apesar de serem briguentos, os membros da Toman possuem ideais e sempre buscam um estilo de vida livre. Todos conhecem essa gangue por causa do manji que ela usa, mas é exatamente esse símbolo o precursor da polêmica, que se originou no aplicativo do Twitter. O manji adotado pela Toman é a cruz suástica, um símbolo que significa paz e prosperidade em muitas religiões. 32 FIGURA 8: bandeira da gangue Toman com a suástica como símbolo FONTE: Disponível em: <https://skdesu.com/wpcontent/uploads/2021/05/tokyo-manji-kai-revenger.jpg>. Acesso em: jul. 2023. Sabendo que o símbolo seria mal interpretado pelas pessoas, a Crunchyroll decidiu censurá-lo fora do Japão, com algumas luzes inesperadas ou cenas totalmente em branco. Porém a plataforma é paga, então a censura de nada adiantou, sendo acessada a versão sem censura com bastante facilidade. Em vista disso é necessário maior atenção das produtoras dessas obras, pois é de importância a consciência com o mercador Ocidental que consome esses conteúdos, principalmente crianças e jovens que estão inseridas em um momento de aumento dramático de células nazistas. Nitidamente o uso de suásticas ou de símbolos nacionalistas não tem o mesmo intuito que o usado na primeira metade do século XX, porém estes estão impregnados por um passado cercado de dor e sofrimento, até hoje sendo gatilho emocional e motivo de repulsa para muitas populações. Referências Francisco Kelvin Moreira de Sousa - graduando em História pela Universidade Estadual do Maranhão, Campus – Caxias. Bolsista do PIBID 2022 – 2024 e participante de projetos de pesquisa voltados para área da cultura. Jakson dos Santos Ribeiro – Professor Adjunto II, na Universidade Estadual do Maranhão – Campus Caxias. Doutor em História Social da Amazônia (UFPA). Docente do Professor do Programa de Pós- Graduação em História Mestrado e Doutorado Profissional (PPGHIST), na Universidade Estadual do Maranhão. Professor do Programa de Educação Inclusiva – PROFEI/UEMA. CLEMENTS, J. Anime : a history. London: Palgrave Macmillan On Behalf Of The British Film Institute, 2017. Como a suástica virou a marca do nazismo? Disponível em: <https://super.abril.com.br/historia/como-a-suastica-virou-a-marca-donazismo>. Acesso em: jul. 2023. Demon Slayer: anime recebe críticas por brincos de Tanjiro; entenda! Disponível em: <https://www.tecmundo.com.br/minha-serie/217176- 33 demon-slayer-anime-recebe-criticas-brincos-tanjiro-entenda.htm>. Acesso em: jul. 2023. FREDERICK, E. The Scourge of the Swastika. [s.l.] Greenhill Books/Lionel Leventhal, 1954. HENSHALL, K. A history of Japan From stone age to superpower. Gordonsville,: Palgrave Macmillan, 1999. HTTPS://WWW.FACEBOOK.COM/SUKIDESUBR. Manji - The Swastika in Anime, Manga and Japanese Culture. Disponível em: <https://skdesu.com/en/manji-suatica-anime-manga-japan/>. Acesso em: jul. 2023. Lendas: Conheça a história do Túnel Kiyotaki, no Japão. Disponível em: <https://guarientoportal.com/lendas/tunel-kiyotaki-japao>. Acesso em: jul. 2023. Manji | Entenda a polêmica envolvendo o símbolo de Tokyo Revengers. Disponível em: <https://www.omelete.com.br/anime-manga/manji-tokyorevengers>. Acesso em: jul. 2023. O que foi a marcha da morte de Bataan? - Spiegato. Disponível em: <https://spiegato.com/pt/o-que-foi-a-marcha-da-morte-de-bataan>. Acesso em: jul. 2023. Os símbolos nazistas que ainda estão presentes no Japão. BBC News Brasil, [s.d.]. SANTONI, P. R. Animês e mangas: a identidade dos adolescentes. , maio 2017. SMITH, J. Horrific Japanese Crimes in WWII That History Forgot - HISTECHO. Disponível em: <https://www.histecho.com/horrific-japanese-crimes-in-wwii-thathistoryforgot/#:~:text=Horrific%20Japanese%20Crimes%20in%20WWII%20That%20H istory%20Forgot>. Acesso em: 30 jul. 2023. Statism in Shōwa Japan - Wikipedia. Disponível em: <https://pt.abcdef.wiki/wiki/Statism_in_Sh%C5%8Dwa_Japan#:~:text=Sh%C5% 8Dwa%20Estatismo%20%28%E5%9B%BD%E5%AE%B6%E4%B8%BB%E7% BE%A9%2C%20Kokka%20Shugi%29%20foi%20um%20sincretismo>. Acesso em: jul. 2023. TATSUO KAWAI. The goal of Japanese expansion. Westport, Conn.: Greenwood Pr, 1938. 34 Tokyo Revengers e o Manji como camuflagem Neonazista. Disponível em: <https://midianinja.org/historiaoralpodcast/tokyo-revengers-e-o-manji-comocamuflagem-neonazista/>. Acesso em: jul. 2023. UNITED STATES HOLOCAUST MEMORIAL MUSEUM. History of the Swastika. Disponível em: <https://encyclopedia.ushmm.org/content/en/article/history-of-the-swastika>. 35 O POSICIONAMENTO ANTIGUERRA EM NAUSICAÄ DO VALE DO VENTO [1984] DE HAYAO MIYAZAKI, por Gabriel Lacerda de Souza Introdução Inicialmente é de suma importância se ter noção de qual é o contexto no qual Hayao Miyazaki, o diretor da animação analisada, se insere. Ele nasceu em Tóquio no dia 5 de janeiro de 1941, em meio à Segunda Guerra Mundial e seu pai era diretor na empresa familiar Miyazaki Airplane, que construía peças de aviões usados na guerra [CHAVES; TORRES, 2017], o que justifica a paixão por aeromodelismo de Miyazaki e seu deleite com abordagens sobre voar em toda sua filmografia. “Hayao Miyazaki cresceu durante o pós-guerra, as imagens de sua infância eram de um país dominado pelos Estados-Unidos, cuja ocupação teve influência no modelo econômico adotado, portanto o Japão, agora inserido em uma nova economia, utilizou de grande esforço da população para seu crescimento, a chamada ‘Época do Milagre’.” [NOVAES; VADICO, 2020, p. 149] Miyazaki é um dos diretores mais proeminentes e fundador do Studio Ghibli juntamente com Isao Takahata, Toshio Suzuki e Yasuyoshi Tokuma. Tanto Miyazaki quanto Takahata cresceram com o cenário presente da Segunda Guerra Mundial e com o Japão ocupado por tropas estadunidenses até 1952, eles viveram isso no início de suas formações como indivíduos. Ocupação essa que tinha por intuito realizar reformas políticas e econômicas no país, assim como remover as influências militaristas presentes, inclusive no cinema da época, com muitas animações sendo usadas com a intenção de espalhar discursos militaristas e políticos [NOVAES; VADICO, 2020]. Nausicaä do Vale do Vento [1984] é o primeiro filme dirigido por Hayao Miyazaki a ser considerado como parte das produções do Studio Ghibli. Mesmo que na data em questão o estúdio ainda não tivesse sido devidamente fundado, as pessoas envolvidas no projeto já eram aquelas que conjuntamente fundariam o estúdio no ano seguinte. Na narrativa da obra acompanhamos uma sociedade sobrevivente em um mundo pós-apocalíptico quase totalmente destruído após uma guerra de escalas colossais. Os pequenos grupos sociais sobreviventes mantêm uma relação complicada com a natureza, pois devido à guerra surgiram florestas tóxicas e animais gigantescos protetores desses habitats que são um risco para a vida humana sobrevivente. E ao longo dessa história Miyazaki aborda temas como o pacifismo, o ambientalismo e o protagonismo feminino, que se tornariam fortes características de toda sua filmografia. 36 Animações japonesas como ferramenta de propaganda Mesmo antes da Segunda Guerra Mundial, o Japão já fazia o uso do cinema como uma ferramenta de propaganda militar, conforme nos afirma Mônica Lima de Faria em seu texto História e Narrativa das animações nipônicas: Algumas características dos animês. No contexto da guerra contra a China, a produção cinematográfica voltada às animações, em especial, tinha um viés propagandista. Algo que condicionalmente se desenvolveu ainda mais à medida que o Japão passou a fazer parte do eixo na Segunda Guerra Mundial. Segundo Faria esse foi o período no qual a animação japonesa mais evoluiu, devido ao incentivo por parte do governo para a produção do material de propaganda contra as nações consideradas inimigas japonesas no momento. “Na década de 30 o Japão entra em guerra contra a China, e nessa época toda a produção cinematográfica é voltada à exibição de filmes e animações de propaganda militar. A influência militarista estendeu-se até a Segunda Guerra, fincando os meios de comunicação, inclusive estúdios de cinema e animação, sob controle dos militares. Porém, apesar da censura e falta de liberdade de expressão, foi no período militar que a animação japonesa mais evoluiu tecnicamente, graças ao incentivo financeiro do governo para a produção de seu material.” [SATO, 2005 apud FARIA, 2008, p. 151] Isso exemplifica de uma forma bem direta como a guerra e seu discurso já estava presente nas animações japonesas e cinema desde antes da Segunda Guerra Mundial. O que podemos ver que se estendeu mesmo para depois disso, nas produções do Studio Ghibli, porém com a intenção contrária. Neste caso, ao invés de incentivar a guerra, agora o intuito com Hayao Miyazaki é o de criticá-la e mostrar suas consequências e horrores. Ainda sobre esse aspecto propagandista do cinema nipônico, no minicurso: Os cartoons no front: A Segunda Guerra Mundial sob a perspectiva estadunidense e japonesa [1936-1955], ministrado por Viktor Danko Perkusich Novaes em 2021 na Universidade Federal do Paraná, em II Diálogos sobre a História, foi possível constatar que o Japão usou a mesma estratégia nesses dois momentos do cinema de animação como uma ferramenta popular de cunho militarista e propagandista. Em primeiro momento, esses filmes faziam uso de personagens folclóricos e de conhecimento popular japoneses em narrativas que tinham por intenção mostrar como a nação japonesa era melhor do que outras nações asiáticas. Mais tarde isso passou a ser utilizado com relação a nações ocidentais, nesse caso para se representar como superior aos referenciais culturais norte-americanos. Porém, tal uso de animações para propagar ideais militares foi censurado após a ocupação estadunidense em solo japonês, após a rendição do país ao final da Segunda Guerra Mundial. Visto que a ocupação era proibida de ser criticada publicamente durante sua vigência. “Com o fim da Segunda Guerra, o Japão sofreu imediatamente um processo de desmilitarização, entre suas com seqüências está a censura em relação ao 37 material nacionalista ou de propaganda bélica, exatamente o contrário da realidade anterior.” [LUYTEN, 2005 apud FARIA, 2008, p. 151] Novaes [2021] também aborda como esses usos cinematográficos japoneses, somados com a censura estadunidense, acabaram por influenciar o modo de se fazer animação no Japão, o que acarreta diretamente na carreira de Hayao Miyazaki quando este começou a atuar na área e por sua vez, influenciando também suas produções futuras no Studio Ghibli. Pois com a censura estadunidense, restava aos japoneses fazerem adaptações de livros e histórias de origem estrangeiras em suas animações, não mais usando seus personagens folclóricos como antes, que eram usados para expor ideias de superioridade cultural. O novo cenário das animações japonesas acaba por refletir em toda a atuação de Miyazaki produzindo e dirigindo filmes muitas vezes adaptados de obras literárias ou de sua própria autoria. Vale se salientar para o fato de que a Segunda Guerra Mundial marca a memória do povo japonês de uma forma que mesmo hoje no século XXI, mais de sete décadas depois. ainda é muito perceptível. E isso é algo que se torna fixo no imaginário de sua população, visível através das mais diferentes formas de representação cultural, como nos ressaltam Viktor Danko Perkusich Novaes e Luis Antonio Vadico em seu texto A metáfora do comportamento japonês após a Segunda Guerra Mundial presente no filme “O Serviço de Entregas da Kiki” [1989] de Hayao Miyazaki. Alguns exemplos populares desse marco na memória do povo japonês são as representações famosas do Godzilla em seus produtos culturais, como uma clara alusão aos efeitos das bombas atômicas na natureza. Então podemos afirmar que a abordagem antiguerra no cinema e produções culturais japonesas é um elemento presente mesmo bem antes do Studio Ghibli começar a sua produção de animações na década de 1980. Em um último momento, antes de partir para a análise proposta, vale ressaltar uma característica do cinema de animação realizado por Hayao Miyazaki, acerca de sua forma de tratar o onírico e o real de forma que essa separação não é direta, esses dois elementos são presentes nos trabalhos do diretor de forma muito sutil e sempre se mesclando. Ainda mais pelo fato de serem animações, como pontua Alcebíades Diniz Miguel em O fluxo imaginário da memória: A animação como arte de conjurar/construir o passado israelense, algo que se relaciona diretamente com a forma do diretor abordar as temáticas da guerra em suas histórias, de uma forma estilizada criticando a violência. E mesmo que o autor do texto trabalhe outro contexto de produção cinematográfica, com relação ao passado israelense, o ponto crucial do que fala pode ser aplicado sobre a mesma lente no contexto japonês, dado o impacto de seu passado na memória dos dois diretores em seus filmes. Já que Miguel fala sobre a utilização da animação como um modo de estilização acerca do real e portadora de ideais em seu discurso, isso é algo que também se pode correlacionar com o produzido nas narrativas de Hayao Miyazaki. 38 “A arte da animação apresenta, como base de constituição, a estilização radical do universo que lhe serve de referência. Essa estilização, contudo, não ocorre a partir de materiais desconectados da realidade referencial, a realidade referencial, como nas caricaturas, ainda está presente e sua deformação denuncia um processo ideologicamente formativo.” [MIGUEL, 2010, p. 4] Análise de Nausicaä do Vale do Vento [1984] Roteirizado e dirigido por Hayao Miyazaki, Nausicaä do Vale do Vento [1984], é o primeiro filme do diretor a ser considerado parte do Studio Ghibli que viria a ser fundado, de fato, no ano seguinte, porém já apresenta todas as características de destaque do estúdio de animação japonês e de seu renomado diretor. Tais como, o discurso antiguerra aliado do ambientalismo, o protagonismo feminino, elementos de paixão pessoal do diretor como diferentes veículos aéreos: “[...] outra característica autoral de Miyazaki. As metáforas como forma de transmitir uma mensagem do diretor para o público que assiste suas obras.” [NOVAES; VADICO, 2020, p. 143], entre outros aspectos. “Seu pai era diretor da empresa familiar Miyazaki Airplane, que construía aviões usados na guerra. Essa ligação com o universo aéreo o levou a desenhar aviões desde cedo, mesmo antes de aprender a desenhar pessoas ou outros seres. Sua paixão pelos objetos que voam tornou-se marca registrada do autor, bem apreciada em Porco Rosso (1992) e em seu último filme, Vidas ao Vento (2013).” [CHAVES; TORRES, 2017, p. 172] Ainda sobre esse aspecto ideológico de Miyazaki, na sua forma de transmitir uma mensagem ao longo de metáforas em suas narrativas, há um trecho do trabalho de Novaes e Vadico, A influência da Segunda Guerra Mundial nas animações japonesas: Um Histórico de características e influências que são observadas até os dias de hoje, que creio ser muito relevante para se ter em vista quando observamos esse aspecto da direção e argumento de Hayao Miyazaki: “[...] Miyazaki evita elogiar qualquer agenda ideológica, liderada por sua própria desilusão pessoal com a política revolucionária, toma cuidado com qualquer sistema codificado de pensamento. Profundamente influenciado por teorias marxistas em sua juventude, como atestado por suas atividades como presidente da União Animadores na Toei Animation Studios, Miyazaki desenvolveu gradualmente uma aguda aversão à noção de aderir servilmente a qualquer doutrina e procurou, ao contrário, princípios pacifistas e igualitários. Para este efeito, ele afirmou que nos anos 90, ele ‘abandonou totalmente o marxismo’ como resultado de ter ‘parado de ver as coisas por classe. É uma mentira que alguém está certo só porque ele é um trabalhador. O público em geral faz muitas coisas estranhas. Eu não posso confiar em política’. [Miyazaki, 1994].” [CAVALLARO, 2015, p. 33 apud NOVAES; VADICO, 2019, p. 96] Dando seguimento à animação em questão, o mundo que Hayao Miyazaki nos apresenta em Nausicaä do Vale do Vento [1984] transcorre 1000 anos após a 39 devastação gerada destrutiva e quimicamente pela guerra, na história intitulada de Os Sete Dias de Fogo. Conflito este no qual seres humanos criaram criaturas de aspecto humanoide gigantescas com capacidade de destruição em massa, chamadas de Deus Guerreiro, um elemento que se pode facilmente ser comparado com a magnitude e poder de destruição das bombas atômicas. Visto que tais criaturas causam a destruição no planeta todo, alterando inclusive as propriedades da própria natureza, resultando em um mundo pósapocalíptico. Tal representação dessa figura no filme pode ser vista na imagem abaixo: Fonte: NAUSICAÄ do Vale do Vento. Direção: Hayao Miyazaki. Japão: Studio Ghibli, 1984. [117 min] “Toda a flora e fauna foram destruídas como resultado dessa guerra, ou seja, o ecossistema terrestre entrou em degradação. Como consequência, surgiram, as terríveis e temidas, florestas de gás tóxico chamada de Mar da Podridão ou Fukai.” [CHAVES; TORRES, 2017, p. 172] Florestas essas onde apenas habitam seres de aparência insectoide de proporções gigantescas, que são capazes de viverem dentro do Mar da Podridão, compartilhando dessa natureza tóxica para com os humanos sobreviventes. Algo que, com facilidade, remete a imagem perpetuada pela figura do Godzilla no cinema japonês, uma criatura gigantesca resultado da radiação, um reflexo direto da utilização das bombas atômicas. No caso de Nausicaä do Vale do Vento [1984] os insetos enormes são uma resposta da natureza frente aos danos químicos causados pela de guerra. A seguir uma cena que demonstra esse local com a protagonista o explorando atrás de recursos: Fonte: NAUSICAÄ do Vale do Vento. Direção: Hayao Miyazaki. Japão: Studio Ghibli, 1984. [117 min] 40 “‘Mar podre’ refere-se ao ecossistema das terras devastadas pela poluição da antiga cidade industrial. O mundo estava prestes a ser engolido de forma silenciosa pela floresta gigante, que produz fungos venenosos a que apenas insetos conseguem sobreviver.” [MIYAZAKI, 2006, p. 20, vol.1 apud CHAVES; TORRES, 2017, p.172] Os poucos agrupamentos populacionais de sobreviventes vivem em locais onde a toxicidade presente no chamado Mar da Podridão tem maior dificuldade de chegar, como no Vale do Vento que dá título à obra, que se trata de um povoado localizado na costa marítima e por conta dos ventos vindos do mar consegue se manter livre das partículas tóxicas. Como podemos ver na imagem a seguir que explicita de forma visual essa forma de vida com a proteção dos ventos marítimos que mantém o vale puro: Fonte: NAUSICAÄ do Vale do Vento. Direção: Hayao Miyazaki. Japão: Studio Ghibli, 1984. [117 min] Já se faz muito visível o discurso antiguerra de Miyazaki nesta breve apresentação do cenário no qual se passa a história. Além desse elemento, há a temática do ambientalismo, que anda lado a lado com o pacifismo nas obras do diretor. Como também identificam Ravena Amorim Chaves e José Wanderson Lima Torres em seu artigo Distopia e Animação: O universo fantástico em Nausicaä do Vale do Vento, de Hayao Miyazaki, a história trata de uma distopia ambiental e ressaltam como o diretor apresenta em seu argumento cinematográfico a preocupação ecológica acompanhada do humanismo [2017, p. 169]. Ou seja, os discursos tanto antiguerra quanto ambientalista característicos. Chaves e Torres ainda pontuam conforme sua análise da obra de Miyazaki que: “desta catástrofe o homem só poderá escapar, segundo entrevemos nas entrelinhas da obra, se a sua razão não reduzir a Natureza à simples fonte de matéria-prima. A Natureza não é o Outro do ser humano; é parte dele.” [2017, p. 175]. O que novamente nos possibilita relacionar com a intencionalidade do discurso antiguerra presente na história de Hayao Miyazaki, pois os seres humanos na história só conseguirão viver de forma plena novamente quando fizerem as pazes com a natureza e não seguirem mais perpetuando a cultura violenta da guerra. Um momento, logo no início da história, que nos exemplifica muito bem esse ideal pacifista e antiguerra presente no roteiro é a forma que Nausicaä lida com 41 os conflitos que cruzam o caminho de si própria e seu povo. Uma nave de um reino vizinho tenta pousar emergencialmente no Vale do Vento, enquanto está sendo atacada por insetos da floresta, o que por si só já é um risco para todo o vale, visto que poderiam contaminar o local e sua forma de subsistência. Mas ao invés de deixar que matem um grande inseto e acabem por atrair ainda outros mais, Nausicaä se prontifica a para o ato de violência antes que esse seja realizado e guia novamente o bicho para dentro de seu habitat natural. Aliviando companheiros que admitem que não fariam nem ideia do que fazer depois de matarem aquele indivíduo e atraírem mais ainda para o vale. Com esse breve momento da narrativa, Miyazaki já nos mostra claramente o posicionamento de Nausicaä frente conflitos, tomando ação contra o que seria a lógica de agir com violência e dar continuidade a um comum cenário de guerra e violência, agindo então num ato de pacifismo e direta relação de respeito com a natureza. O que podemos ver ao longo do filme, enquanto a protagonista da história que dá título à obra, Nausicaä traça um caminho pacifista para enfrentar aqueles que querem perpetuar a guerra mesmo nesse mundo já devastado em consequência desta. E ao combater a violência de forma até mesmo semelhante a um caráter messiânico, Nausicaä consegue ao fim da história chegar nesse ponto de harmonia entre as partes, da humanidade em relação ao restante da natureza. Deixando uma mensagem final de Miyazaki muito clara com relação a suas intenções contra a guerra, vide as consequências que essa causa, e juntamente com o ambientalismo estruturando tal argumento. “A animação, ao criar um universo diverso, mas ainda reconhecível, situa-se como poderosa ferramenta de ressonância, ultrapassando a prosaica associação com a realidade usual.” [MIGUEL, 2010, p. 5] Conclusão Mesmo que de forma breve, acredito que o que foi apresentado até aqui esclareça a forma na qual se dá o discurso antiguerra em uma obra em específico de Hayao Miyazaki. Ainda que sendo apenas um filme do início do Studio Ghibli, tal modo de trabalhar os temas e o discurso está presente em vários outros trabalhos tanto de Miyazaki quanto de outros diretores do Studio Ghibli. Além do que podemos ver como a memória japonesa foi extremamente marcada pelas consequências civis sofridas durante o processo da Segunda Guerra Mundial, seja em seu período de ação direta ou em suas inúmeras consequências à longo prazo. Aquilo que foi causado pela guerra na população nipônica se mantém constante em suas representações culturais mesmo nos dias de hoje. “A Segunda Guerra Mundial teve grande impacto no imaginário japonês e por consequência em suas representações culturais. Devido a isso podemos perceber diversas referências aos acontecimentos da Segunda Guerra em filmes, no entanto o diretor Hayao Miyazaki em ‘Serviço de Entregas da Kiki’ 42 [1989] se foca não nos acontecimentos em si, mas em uma consequência destes.” [NOVAES; VADICO, 2020, p. 149] Por fim, esta análise é parte de um trabalho de maior escopo em andamento, com análises de outras obras do Studio Ghibli. Uma proposta de produção neste campo historiográfico ainda tão abrangente para nós historiadores. Aberto a críticas construtivas e sugestões após sua leitura. Referências Gabriel Lacerda de Souza é graduando do 4º ano do curso de Licenciatura em História da Universidade Estadual de Ponta Grossa [UEPG]. Este texto é resultante de pesquisa desenvolvida no Programa de Iniciação Científica da UEPG, ao longo de 2021-2022, bem como de TCC em andamento. CHAVES, Ravena Amorim; TORRES, José Wanderson Lima. Distopia e animação: O universo fantástico em Nausicaä do Vale do Vento, de Hayao Miyazaki. In: Revista Desenredos. n. 27. Teresina: Publicação independente, 2017. p. 169-175. FARIA, Mônica Lima. História e narrativa das animações japonesas: Algumas características dos animês. In: Actas de Diseño. n. 5. Buenos Aires: Universidade de Palermo, 2008. p. 150-157. MIGUEL, Alcebíades Diniz. O fluxo imaginário da memória: A animação como arte de conjurar/construir o passado israelense. In: Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos. v. 4. n. 6. Belo Horizonte: UFMG, 2010. p. 4-12. NOVAES, Viktor Danko Perkusich; PAULO, Inajara Barbosa. Os cartoons no front: A Segunda Guerra Mundial sob a perspectiva estadunidense e japonesa (1936-1955). In: II Diálogos sobre História: Ciclo de Minicursos Online da UFPR. Curitiba: UFPR, 2021. NOVAES, Viktor Danko Perkusich; VADICO, Luis Antonio. A influência da Segunda Guerra Mundial nas animações japonesas: Um histórico de características e influências que são observadas até os dias de hoje. In: Revista de Debates Insubmissos. v. 2. n. 5. Caruaru: UFPE, 2019. p. 79-106. NOVAES, Viktor Danko Perkusich; VADICO, Luis Antonio. A metáfora do comportamento japonês após a Segunda Guerra Mundial presente no filme “O Serviço de Entregas da Kiki” (1989) de Hayao Miyazaki. In: Revista Latinoamericana de Ciencias de la Comunicación. v. 19. n. 34. São Paulo: ALAIC, 2020. P. 140-150. 43 COMPARAÇÃO INTERMÍDIAS DE KOE NO KATACHI, por Giorgia Vittori Pires Este trabalho tem como objetivo fazer uma análise comparativa entre o manga e o anime da narrativa de Koe No Katachi. A históri trabalha com temas pesados como suicídio, auto aceitação, redenção e perdão. O manga, escrito e ilustrado por Yoshitoki Ôima, foi publicado em sete volumes, no período de 2013 a 2014, pela editora Kodansha. Sua adaptação foi feita no formato de um filme, no ano de 2016, pela Kyoto Animation sob direção de Naoko Yamada. Este trabalho se trata de uma comparação intermídias (quadrinho e animação) onde três pontos serão abordados: o enredo, a estética e a sonoplastia, e como eles funcionam em cada uma das mídias. O seu nome original também chamou muita atenção pois, “Koe” significa “som, voz” e “Katachi” significa “forma”, em uma tradução literal e livre o título seria “A forma do som”, o que da um caráter intermídias logo no primeiro contato. Pretende-se, ao analisar o enredo, verificar a fidelidade com o texto original e de que maneira a diretora e a roteirista Reiko Yoshida escolheram adaptar a história. Como o texto original se caracteriza como quadrinhos, e estes contêm ilustrações, também serão comparadas as imagens do papel com os da animação, levando em consideração o estilo e peculiaridades de cada um. Por fim, por se tratar de uma história de uma menina surda, será discutido os ganhos e perdas no impacto da trama ao trabalhar com uma mídia que não tem sons e uma que tem. Enredo e personagens Primeiramente se faz necessário deixar o leitor deste trabalho a par da história. Tudo começa com a apresentação do personagem Shouya Ishida, retratando-o como um aluno do ensino fundamental que costuma fazer brincadeiras como forma de passar o tempo. A outra personagem principal, Shouko Nishimiya, é inserida na história em seguida, quando é transferida para escola de Ishida, e logo em sua primeira apariçãoção é mostrado como ela se diferencia dos outros alunos, ela é surda. Nishimiya precisa de alguns cuidados especiais que seus colegas de sala começam a achar inconvenientes e por isso acaba se tornando o alvo do bullying. Conforme o tempo passa as brincadeiras da sala aumentam e as de Ishida vão ficando mais cruéis, chegando a estragar vários aparelhos auditivos de Nishimiya, fazendo com que sua mãe acabe relatando para a escola os acontecimentos e tirando-a da escola. Quando os alunos da turma são confrontados a respeito do incidente, todos apontam Ishida como o único 44 responsável. Ele fica conhecido como um valentão e todos acabam por se afastar, além de começarem a praticar bullying com o mesmo. Agora no seu terceiro ano do ensino médio, Ishida ainda continua com uma fama ruim e completamente isolado, porém verdadeiramente arrependido, começa uma jornada para se redimir. Seu isolamento não dura muito tempo na história, pois personagens que eram seus amigos de infância voltam a se relacionar, mesmo que de forma ainda um pouco conturbada. No decorrer do enredo Ishida percebe que redenção não é uma tarefa fácil, para isso precisa encarar pessoas e eventos do seu passado, além de aprender que aceitação não parte só do outro mas de nós mesmos. Levando em consideração que essa passagem de um mídia para outra se trata de um ato de tradução, é interessante pensar em qual foi a perspectiva da diretora para só então argumentar se ela foi fiel ou não ao texto. A adaptação de uma historia depende muito do público alvo e qual das mensagens será repassada, isso acontece porque cada leitor tem uma bagagem cultural, logo cada um terá um relacionamento diferente com o texto e consequentemente uma interpretação distinta. A diretora Yamada comentou em diversas entrevistas que estava tentando retratar a dificuldade de todos os personagens e não só os principais, assim como a escritora Ôima fez. Por ser um filme ela não pode se aprofundar nas tramas de cada um, mas fez questão que os personagens principais dividissem os holofotes. Ela também comenta sobre o cuidado que teve com uma história tão delicada e como ela tem um respeito enorme pelo manga. É interessante perceber que são duas mulheres, em uma área com pouquíssima representação feminina, relatando uma historia sobre aceitação e redenção e que as duas concordam em uma coisa: a surdez da personagem principal não é o foco da história, ele é só mais um dos empecilhos enfrentado pela Nishimiya, elas acreditam que limitar seus problemas a surdez é limitar a própria identidade dela. Levando em consideração o quão próximo são os pensamentos e visões da escritora e da diretora não é surpresa que as cenas sejam muito parecidas com os capítulos. Aqui deixo claro que estou falando de semelhança e não fidelidade, pois o filme completamente reestrutura um manga com muitos flashbacks para algo mais linear, isso acarreta em algumas “perdas” do material original, porém acredito que estejam condizentes com a visão e objetivo de Yamada. Ao fazer a leitura do manga e assistir ao filme foi possível perceber que os volumes que retratam a infância dos personagens e apresentam os personagens secundários, foram os que mantiveram a maior riqueza de detalhes na hora de fazer a adaptação. Poucas cenas foram cortadas e até mesmo as falas se mantiveram iguais. Acredito que isso aconteça, pois, é o que explica todos os outros acontecimentos da narrativa, como as dificuldades dos personagens e a razão para os conflitos. 45 A partir da adolescência dos personagens é um grande exercício de replanejamento e reajustes. Algum arcos de personagem e algumas cenas que poderiam ser consideradas importantes foram cortadas da animação. Mas foram mantidos os momentos mais tensos da história, como a segunda separação do grupo de amigos e a tentativa de suicido de Nishimiya, que é impedida de pular do prédio por Ishida, porém este acaba caindo no seu lugar e entrando em coma. Acredito que o primeiro tenha uma carga dramática maior no manga, nele o acontecimento é contado de forma mais devagar, tudo vai se arrastando até que o grupo finalmente se separa, obrigando Nishimiya e Ishida a passarem suas férias de verão tendo encontros um tanto quanto forçados e desconfortáveis. A cena do suicídio, por outro lado, é surpreendentemente mais lenta na animação do que no manga, extremamente detalhista e te faz perder o ar, é o clímax da história, o ponto de mudança. No manga, ela é só a cena que te prepara para o clímax, este acontece quando Ishida acorda do coma e se reencontra com Nishimiya por meios, aparentemente, mágicos. No meu ponto de vista, o filme não consegue representar tão bem essa cena do reencontro. No manga, ela acontece pelo ponto de vista de Nishimiya, correndo pela noite, sem mais nenhum detalhe, sem interrupções, enquanto na adaptação acaba ficando muito misturado a perspectiva dos dois personagens. Já no fim da trama, no manga o foco esta em Nishimiya, como ela faz parte de um grupo, como ela aprende que pode ser mais do que a menina surda e com Ishida ficando preocupado, pois talvez ela não precise mais dele. Já na animação o foco está em Ishida sendo redimido pelos seus colegas e por ele mesmo, aceitando que ele pertence a algo e não está sozinho. Ao parar para analisar percebi que as duas versões mantém um ponto em comum: entrar em acordo com a sua identidade. Apesar da escritora e da diretora terem focos diferentes, a mensagem de que todos nós podemos fazer parte de algo está ali. Estética e sonoplastia Começamos a analise pelo mais óbvio, o manga é preto e branco e a animação colorida. Isso limita muito o que se pode fazer no papel, pois se colocar detalhes demais o quadro ficaria poluído, já no filme percebemos que os cenários são ricos em detalhes, o que é uma característica da Kyoto Animation. Os traços do manga são bem distintos e os personagens conseguem ter características marcantes e muito próprias, mesmo sem serem ricos em detalhes. O anime segue esses traços, porém de forma mais minuciosa, principalmente se tratando de cores e movimentos. No manga se tem uma visão em terceira pessoa, eu leitor estou observando a cena, enquanto no filme a diretora trabalha com diferentes ângulos (imagem centralizada ou não), tomadas mais abertas ou cenas mais focadas (uma parte do corpo do personagem, um cenário, etc) e até mesmo em primeira pessoa (no caso de Ishida). Isso da uma sensação um tanto quanto realista para a animação. 46 Fonte: ÔIMA, Yoshitoki. Koe no Katachi. Japan: NewPOP, 2013-2014. KOE no Katachi. Direção: Naoko Yamada . [S.l.]: Kyoto Animation, 2016. Essas duas imagens ocorrem no momento em que Nishimiya se apresenta para a sua sala. Logo após os alunos descobrirem que ela é surda, Ishida se pronuncia chamando a garota de estranha. Percebe-se que no manga os traços são mais simples e o foco está no personagem que está falando. No anime o foco continua no falante, porém de uma perspectiva diferente, o ângulo utilizado faz sentir como se o público estivesse na cena. O manga e a animação conseguem, de forma muito interessante, retratar a surdez também na forma em que apresenta suas imagens, dando bastante atenção para linguagem corporal e ações. Existem cenas onde os personagens principais não conversam, mas mesmo assim conseguimos entender a comunicação entre eles. Isso acontece porque o foco está no que o corpo quer dizer, seja com a linguagem de sinais ou com a expressão corporal. No manga existe um cuidado muito grande com o desenho das mãos dos personagens, é possível entender o sentimento dos personagens só pela forma que a mão esta desenhada. No anime isso acontece com a representação dos sinais feitos, os diretores de animação comentaram que analisavam diversas vezes o mesmo movimento para serem capazes de representar o sinal corretamente, e caso ele pudesse ser confundido com outro era retirado da cena. No caso da animação é interessante perceber ainda que eles fazem passagem de cena com imagens sem sons, mas que permitem que o público reconheça o som que deveria ter sido produzido como por exemplo uma gota caindo na água, vemos os círculos que representam o som que aquela ação deveria fazer. 47 Fonte: KOE no Katachi. Direção: Naoko Yamada . [S.l.]: Kyoto Animation, 2016 Ao ler o manga percebesse que a falta de qualquer estimulo sonoro gera uma empatia com a personagem principal e o tema da história em si. A falta de som é a trilha sonora perfeita para essa trama, todo momento de tentativa de comunicação se torna mais angustiante, ver Nishimiya tentando se comunicar com os outros personagens e não conseguir por ser surda e não conseguir emitir sons direito tem um peso muito maior no manga. O silêncio da obra enche os ouvidos de qualquer um e acaba por forçar o leitor a usar seus outros sentidos e sua imaginação. Porém a animação não fica para trás, a produção criou uma trilha sonora tão elaborada e tão ligadas as cenas que criam uma nova visão do silêncio de Nishimiya. Inspirados em fotografias e pinturas, os produtores criaram sinestesia. Para isso ser possível, a trilha sonora precisava ser minimalista, dessa forma qualquer mudança, mesmo que sutil causaria um grande impacto. Na cena em que Nishimiya é apresentada na escola podemos perceber como isso funciona, cada um de seus movimentos é acompanhado de uma nota musical até se revelar surda, onde a informação vem com um acorde, deixando o momento mais intenso. A mudança é singela do ponto de vista musical, porém muito impactante na questão cinematográfica. De acordo com Kensuke Ushio, o produtor musical, a trilha sonora do filme representa aquilo que Nishimiya talvez consiga escutar com seu aparelho auditivo, por isso é tão sútil. Ela foi gravada dentro de um piano para escutar todos os sons que se faz ao tocar (o som do pedal, uma tecla batendo, etc.) e não só a parte musical. Esses “ruídos” representam, não só, os sons externos que chegam até Nishimiya, mas também os internos, como seu coração, seu sangue correndo nas veias e todo o seu corpo se comunicando com a personagem. A diretora e Ushio trabalharam juntos cena por cena para que a trilha sonora se tornasse um complemento da imagem e vice versa. Por isso, existem momentos da trilha sonora que não apresenta uma melodia, isso acontece porque os sons estão relacionados com os sentimentos dos personagens, seus movimentos e até mesmo a quantidade de luz que tem em cena. Apesar de ser inspirado nos possíveis sons que Nishimiya escuta, a progressão das músicas acontece ao mesmo tempo que a da vida de Ishida. O produtor diz que se inspirou no modelo musical das invenções do Bach - nas invenções existe um tema sonoro que é apresentado no início da música, esse tema se repete de forma similar no decorrer da obra, porém sempre apresenta 48 características novas. É uma reformulação de uma ideia principal. - No caso do filme, a trilha sonora consiste em três atos, acompanhando os três atos da progressão histórica [John]. O primeiro ato é o flashback, toda a parte da infância que se desenrola para o segundo ato, que é o maior, por tratar de todo desenvolvimento da narrativa, agora no presente. O ato três só começa a partir do clímax do filme e vai até o seu desfecho. Não importa em que momento do filme algo na trilha sonora sempre irá remeter outra parte da história, inclusive a última parte é quase idêntica ao começo, porém com um tom mais de fechamento. Os surdos no Japão Podemos perceber no filme que não existe preparação por parte da escola para receber Nishimiya. Seu professor falava virado para o quadro, ela sentava no fundo da sala e a pessoa responsável por inseri-la na escola não tentava adaptar as situações, mas sim forçar essa inserção. Isso acontece porque a comunidade surda começou só recentemente a receber atenção. De acordo com o livro Deaf in Japan [Nakamura, 1970], até 1948 quem tinha deficiência auditiva nem mesmo precisava receber uma educação formal e fazem alguns anos que a proibição do uso de linguagem de sinais nas escolas foi retirada. Existem dois grupos que lutam pelos direitos dos surdos, o Japanese Federation of the Deaf e o D-PRO. O primeiro foca em inserir o deficiente auditivo no mundo, de forma que ele consiga se adaptar, já o segundo é particular e tem o discurso que o mesmo deve conseguir viver bem de maneira surda. A diferença pode parecer pequena, mas está relacionada com o deficiente auditivo se identificar primeiramente como japonês e depois como deficiente ou o contrário. Além disso existem duas classes de linguagem de sinais, a SimCom, que é a comunicação simultânea, e a JSL (Japanese Sign Language), que é a língua de sinais. Na JSL, mais conhecida como Shuwa (手話) não se usa só as mãos mas também as sobrancelhas, mandíbulas e expressões faciais. É uma linguagem muito ligada ao sistema de escrita japonês e por isso existem gestos específicos para soletrar o hiragana e para kanji mais usados, mas também é possível desenhar o kanji no ar. No filme, é possível perceber que Nishimiya não é cem por cento surda, ela usa aparelhos auditivos para que possa ajudar o pouco de audição que lhe resta. É possível perceber isso em cenas como a que Ishida grita perto de seu ouvido e ela sente dor, ou quando sua vó aparece conversando com um médico e na cena seguinte ela aparece sem um dos aparelhos e chorando sozinha. Essa cena mostra que ela perdeu totalmente a capacidade de ouvir de um dos lados, enquanto o outro permanece com os ruídos. Nishimiya consegue fazer leitura labial e usa muito pouco o SimCom, quem usa mais são os outros personagens quando fazem linguagem de sinal. Se ela se identifica mais como surda, ou mais como japonesa não é algo que fica claro no filme, mas em minha opinião ela só quer ser uma pessoa “normal” e por isso 49 se vê primeiro como japonesa. Isso me parece diferente da visão de sua mãe, que fica constantemente lembrando-a de que é deficiente. Os personagens que estavam a sua volta durante sua infância compartilham da mesma visão, ela é surda, e por isso é estranha. Mas com o decorrer do filme isso muda, ela é uma amiga, que também tem deficiência auditiva. Conclusão Esse trabalho teve como objetivo comparar as duas obras, não com o intuito de dizer que uma é melhor que a outra, mas simplesmente entender as mudanças que foram feitas ao passar de uma mídia para outra. Como discutido, não existe um certo e errado na adaptação, mas sim um ponto de vista. Acredito que as mudanças feitas na historia, como a escolha de reproduzir no ponto de vista do Ishida e mudar o clímax mostra exatamente as intenções da diretora, a leitura que ela fez de tal história. Acredito que em questão de narrativa o filme não aprofunda tanto quanto o manga, mas é compreensível, já que é uma mídia bem mais rápida e sucinta. Em questão estética por outro lado, o filme tem vantagens, podendo explorar os detalhes, cores e principalmente movimento em cenas que antes eram estáticas. Já na questão da sonoplastia acredito que ambas se encaixam perfeitamente em cada mídia que se encontram. O fato da animação ter trabalhado com imagem e som a cada cena, para que os dois fossem um complemento do outro demonstra, para mim, um cuidado muito grande em contar a história da melhor forma possível em outra mídia. Também foi possível perceber o respeito dos produtores do filme com o tema e pela obra original. Koe no Katachi consegue de forma muito equilibrada mostrar só aquilo que é necessário para que o seu espectador consiga fazer as conexões e inferências. A reestruturação da narrativa e a relação bem pensada entre as imagens e música ajuda a sentir o que os personagens estão pensando e torna o filme muito mais pessoal. Referências Giorgia Vittori Pires é graduada em Língua e Literatura Japonesa da Universidade Federal do Paraná e autora do livro O Som do Chá [http://lattes.cnpq.br/5366439494761261] KOE no Katachi. Direção: Naoko Yamada . [S.l.]: Kyoto Animation, 2016. (130 min). ÔIMA, Yoshitoki. Koe no Katachi. Japan: NewPOP, 2013-2014. DOI, Nobuaki. Interview: Director Naoko Yamada On “A Silente Voice. Cartoon Brew. Disponível em: https://www.cartoonbrew.com/anime/director-naokoyamada-silent-voice-now-u-s-theaters-154199.html 50 JOHN. Koe no Katachi (A Silent Voice) Analysis – Music is Perspective. Nerdy Shenanigans. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=0B6U_lfWM5c KVIN. Koe no Katachi: Director Naoko Yamada Interview. Sakuga Blog. Disponível em: https://blog.sakugabooru.com/2017/05/30/koe-no-katachidirector-naoko-yamada-interview/ NAKAMURA, Karen. Deaf in Japan: signing and the politics os identity. New York: Cornell University Press, 1970 51 EMBATES DISCURSIVOS QUE PASSAM ÀS TELAS: IMPACTOS DAS DISCUSSÕES ORIENTALISTAS ITALIANAS EM SEU CINEMA, POR OS ÚLTIMOS DIAS DE POMPEIA (1913), por Heloisa Motelewski Tendências de significação de um dito “Oriente” por um contraponto “ocidental”, os Orientalismos são teórica e metodologicamente encarados pela historiografia desde a publicação de Said [1991], com as mais distintas abordagens. No entanto, alguns elementos essenciais, apesar de críticas ulteriores à sua fundamentação, ainda permanecem fulcrais para a compreensão dessas criações discursivas ocidentais acerca da existência oriental. Ao amalgamar narrativas elaboradas sobre os sentimentos, a história, os desejos e as necessidades deste “Oriente”, o Orientalismo, em seu cerne, reuniria um processo de decomposição para uma apreensão fragmentária do desconhecido. Este “Outro”, segregado, estaria enquadrado pelo viés europeu e norte-americano como detentor de uma grandiosidade remota, submersa, porém, em uma decadência atual e passível de ser recuperada. Dessa maneira, Said [1991] examina criticamente esses discursos ao mirar as construções normativas e codificadas das sociedades e culturas por eles engendradas. À consequência disto, emerge o Orientalismo como força cultural, criadora de “arquivos de saberes” tangentes aos povos dominados com o intuito de efetivar o domínio e a governança ocidental em seus espaços. No corolário destes discursos violentos, o autor [1991] igualmente faz uma alusão direta à criação de imagens sobre este “Oriente”. A isso, o Orientalismo acaba por cingir a profusão do imaginário, por impor códigos de intepretação que passam a ser tomados como verdade pura. Códigos esses, portanto, que podem ser encontrados atingindo a materialidade pelas criações visuais e artísticas, a título da literatura, da pintura e, em nosso caso de estudo, do cinema. Não obstante, devemos sublinhar, como o faz Mackenzie [1995], a necessidade de se amplificar essa teoria crítica a partir do entendimento da multiplicidade de formatação e de agência do Orientalismo – constituindo-se, dessarte, “Orientalismos”, como dito ao início deste texto. Afinal, são discursos repletos de diversidade quanto às formas representativas, as quais, segundo este estudioso [1995], devem ser analisadas desde sua produção, invenção, recepção e historicidade. Variações essas que encaramos nesta comunicação, cujo objetivo reside em esquadrinhar como os embates discursivos orientalistas desenvolvidos na Itália do início do século XX impactaram em suas produções 52 cinematográficas a partir do estudo do filme Os Últimos Dias de Pompeia, de Ambrosio [1913]. Para isso, acrescentamos ao nosso arcabouço teórico e metodológico as imbricações entre História e Cinema, bem como os Estudos de Recepção. No que se refere aos primeiros, as produções cinematográficas são por nós entendidas enquanto formas visuais de significação dos vestígios do passado desde narrativas complexas e múltiplas, em uma história como visão [ROSENSTONE, 2010]. Desse modo, nos direcionamos a um tratamento historiográfico do material fílmico por uma mescla entre os postulados da semiótica [BUCKLAND, 2004] e da alegoria histórica [XAVIER, 2004]. Acionamos, portanto, uma metodologia que visa a decodificação de uma sistematização visual de signos variados, determinantes de relações formais simbólicas e significadoras. Esta é, simultaneamente, tecedora de narrativas individuais representativas de contextos culturais e históricos grupais, cuja retomada do passado determina o pensar de dilemas atuais. Neste aspecto, as teorias dos Estudos de Recepção fornecem ainda importantes mecanismos para pensar essa associação entre o presente e o passado fomentada pela cinematografia. Lorna Hardwick [2003], a principal estudiosa e pesquisadora do campo, fundamenta tal entendimento da recepção ao referenciá-la como caminho duplo de leituras entre o texto base, o material antigo, e a cultura de recepção, o panorama moderno. À consequência disso, as evocações da Antiguidade ascendem como objetos de pesquisa dos processos culturais que as envolvem, seja na análise da recepção em si, seu processo, ou seu contexto, seja em suas formas descritivas finais. Propondo-nos a uma discussão deslocada desde essas teorias e metodologias, este breve texto se concentrará nos meios pelos quais o passado romano de Pompeia é recuperado em uma narrativa com intuitos orientalistas e classicistas. Com tal fim, estabelecemos como recorte os impactos das discussões italianas direcionadas aos Orientalismos, aos Classicismos e aos Mediterraneísmos [DE DONNO, 2019] sobre a produção fílmica de Arturo Ambrosio, intitulada Os Últimos Dias de Pompeia, de 1913. Por esse modo, nosso objetivo reside em uma análise enfocada nos meios pelos quais a Antiguidade se funde ao passado oriental para a criação e repercussão orientalista em criações visuais – codificações repletas de particularidades alinhadas ao cenário italiano de tensões intelectuais e culturais identitárias de seu pós-unificação. Itália, início do século XX: Orientalismo, Mediterraneísmo ou Classicismo? Os movimentos de discussão orientalistas encontraram bases em disciplinas já estruturadas ao século XIX, como a Indologia e a Orientalistica, conquanto vinculados ao Risorgimento, em seus ideais de independência, nacionalidade, modernidade, cosmopolitismo e liberdade, tal qual nos demonstra De Donno [2019]. O Orientalismo, em termos mais gerais, competiu nesse cenário com outras duas vertentes: o Mediterraneísmo e o Classicismo. As três abordagens 53 seriam respostas, em conformidade com o autor [2019], frente aos amplos debates a respeito de uma identidade europeia para a nação, congregando as tensões entre as regiões Norte e Sul, assim como a transformação da Itália na região do “Outro” da Europa. Em síntese, essas proposições distinguem-se por seu enfoque ao passado, ao presente e ao futuro da Itália. O Mediterraneísmo, lançado por Giuseppe Sergi, postularia o discurso de idealização da população eurafricana, mas negaria o retorno ao passado como caminho de melhora do futuro nacional [DE DONNO, 2010]. O Classicismo, a sua vez, seria confundido com um olhar à Antiguidade itálica e grega, logo conflitando com o Romantismo Orientalista, de foco no passado ariano da península indiana. Isso pois, seguindo a argumentação de De Donno [2019], a última perspectiva visava um alinhamento mais amplo com os padrões europeus, assim rompendo com o provincialismo explícito da outra vertente. Por esse modo, descreve a aquisição de tons negativos às propostas classicistas, as quais, atreladas a uma tradição patriótica, foram assimiladas como exageradas e inverossímeis. São, pois, embates ideológicos deslocados de um mesmo alicerce nacionalista. Nacionalismo exponenciado, em conformidade com De Donno [2019], no mundo italiano pós-unificação, preocupado com a definição de uma identidade racial e com sua expansão colonial, a secularização nacional e a adequação do país aos parâmetros europeus de modernização. Tais caracteres, facilmente resumidos no racialismo e no racismo, afiguram-se em produções culturais do período, adquirindo matizes políticas de determinação de uma identidade italiana a partir da contraposição com um “Outro” – o “Outro” da alteridade oriental, orientalista. O Orientalismo do Cinema Italiano: sob a égide das discussões identitárias A forma de criação cultural escolhida para ser examinada aqui, no âmago de tais discussões orientalistas, se concentra nas produções cinematográficas históricas da Itália ao início do século XX. Assumindo com expressiva força a indústria fílmica, o país consolida-se na era do Cinema Silencioso entre os maiores produtores de dramas históricos, comercializados ao redor de todo o globo. Todavia, carrega em si alguns pontos que formam um sistema cinematográfico muito particular, especialmente ao adotar histórias já conhecidas pelo público e ao manifestar sua preocupação com a demonstração de suas raízes nacionais [SORLIN, 1996]. Assim nacionalista em suas origens, o drama histórico italiano reúne ainda outras características que virão a ser interessantes para nossa análise. Ao adotar técnicas de perspectiva e de posicionamento da câmera segundo linhas de perspectiva, suas produções situam-se dentro de um contexto de transformações que, em conformidade com o exposto por Pérez [1990] acabariam por resultar no naturalismo e no realismo cinematográfico. Ademais, tal qual também pontuado pelo escritor [1990], lançaria as bases de um sistema de estrelato próprio, o divismo. 54 Tais métodos de construção de imagens em movimento com intenções realistas afirmam-se em um momento histórico não apenas nacionalista, mas igualmente de intenções colonialistas [PÉREZ, 1990]. Com especial foco na região da Líbia, o neorrealismo cinematográfico transportaria às salas de cinema os discursos do colonialismo italiano. Sob narrativas propagandísticas, buscava-se mostrar que “novas audiências saudaram uma nova forma de arte, enquanto o território líbio foi aprisionado para uma jovem nação” [DALLE VACCHE, 1992, p. 29, tradução nossa] [1]. Essas imagens discursivas refletiam, portanto, o extenso contexto de debates identitários esmiuçado anteriormente. E, como o território visado situava-se em um “Oriente” arábico, este era lançado a um dos objetos de representação nos cinemas – uma representação acompanhada, muitas vezes, da figuração do próprio passado romano. Por isso, observamos como o filme acaba por situar-se no centro desse panorama de indústria cinematográfica, igualmente posta no meio de discussões orientalistas e classicistas. Desse modo, defendemos como essas produções não podem ser simplesmente qualificadas como adeptas de apenas uma dessas abordagens. Pelo contrário, devem ser examinadas em sua mobilização dos distintos aspectos dos Orientalismos, Classicismos e Mediterraneísmos criados e recriados na Itália desse período. É isso que se torna, pois, o fio condutor da análise d’Os Últimos Dias de Pompeia, uma produção de Arturo Ambrosio oficialmente lançada em 1913. Haveria orientalismos n’Os Últimos Dias de Pompeia? Fabricada e distribuída pela Società Anonima Ambrosio, a película intitulada no original italiano Gli ultimi giorni di Pompei (Os Últimos Dias de Pompeia, em tradução literal) é uma dentre inúmeras outras que evocam o passado pompeiano narrada pelo romance homônimo de Edward Bulwer-Lytton, publicado originalmente em 1834. Uma adaptação feita pelo roteirista Mario Casarini, e dirigida por Eleuterio Rodolfi, o filme foi exibido internacionalmente, com registros de sua presença no Brasil no mesmo ano de seu lançamento, em 1913. Seus quadros, projetados em 35 mm num total de 107 minutos, relatam a história de Nídia, uma escravizada grega que, apaixonada por Glauco, seu amo, recorre ao auxílio de Arbaces para obter seu amor – este um sacerdote egípcio, devoto ao culto a Ísis, apaixonado por Ione, napolitana que tem um relacionamento amoroso com o mesmo Glauco. A tragédia, após passar pelas maléficas ações do egípcio e pelos arrependimentos e devoções da cativa grega, encerra-se com a erupção do vulcão, levando ao salvamento único do casal protagonista. No seu desenrolar narrativo e em sua construção visual, constatamos a presença de uma variada gama de elementos orientalistas, como já percorrido em alguns trabalhos anteriores [MOTELEWSKI, 2022a; 2022b]. No entanto, nos é interessante situar esse discurso orientalista no meio dos debates anteriormente apresentados, compreendendo como os vieses classicistas e 55 orientalistas trabalham em conjunto para a elaboração do nacionalismo da película. Sendo assim, o visualizamos sendo composto no período a que De Donno [2019] qualifica como sendo o segundo do Orientalismo na Itália. Alimentada pelo panorama extremista nacionalista do pós-unificação, a produção de Ambrosio não se distancia das perspectivas colonialistas [DALLE VACCHE, 1992] e do cinema histórico [PÉREZ, 1990], características da época. Desse modo, com o foco nas representações de indivíduos caracterizados como “orientais” em sua trama, nos deparamos com uma série de problemáticas a serem desenvolvidas. Notadamente expressos na figura do sacerdote Arbaces e no culto isíaco, essas representações passíveis de crítica advém de um discurso já consolidado no Classicismo italiano [DE DONNO, 2019]: dentre as alternativas para visualizar o desenvolvimento do futuro da nação, o Oriente não lhe parece um exemplo, e tampouco uma alternativa, válido. Ao contrário, a Antiguidade romana, cuja virtuosidade e ação histórica são amalgamadas alegoricamente nos personagens de Glauco e Ione, emerge como potencial de orientação para a construção da nova nação. Com o intuito de conferir embasamento a esse posicionamento, ocorre que a película redunda em uma nova absorção das teorias orientalistas anteriores a seu momento de criação. Similarmente ao defendido por Leopardi, segundo indicado por De Donno [2019], suas imagens e sua trama pretendem atestar o vínculo entre as crenças orientais, aqui representadas sob a égide de Ísis, e as superstições, tidas como prejudiciais ao serem errôneas e corruptivas para o caráter humano. A isso, adiciona-se a “humanização” da divindade isíaca, ao passo de ter sido o processo de antropomorfização religiosa igualmente considerada decadente pelos pensadores adeptos a essa aproximação classista/orientalista. Tal ideário assume especial realce na retratação de um momento de culto isíaco, em que a estátua de Ísis com um sistro é posicionada centralmente no enquadramento cênico (Imagem 1), ascendendo a sua figura humana, feminina, em detrimento de qualquer forma abstrata outra. Imagem 1 – I Sigreti di Iside Fonte: Gli ultimi giorni di Pompei (1913). 56 Assim sendo, afirmam-se os motivos visuais passíveis de serem atribuídos ao imaginário do que seria o “oriental” e o “Oriente” para o público do período. Com especial realce, podemos elencar a presença de um vestuário que reúne colares e peças de cabeça, como o nemés, com referências a materiais arqueológicos encontrados em regiões do Antigo Egito. Concomitantemente, afrescos ao fundo remetem a temas egípcios e nilóticos, em uma similaridade com aquelas pinturas encontradas no Templo de Ísis pompeiano (Imagem 2). Para além dessa cena, outras em que os adeptos do culto são retratados, como o próprio Arbaces e seu discípulo Apoecide, irmão de Ione, carregam em si elementos codificados como “orientais” (Imagem 3). São signos inerentes às suas formas de se vestir, com longas túnicas diferentes das vestes mais curtas dos personagens romanos, bem como com adereços parecidos às joias achadas junto à cultura material egípcia antiga. Imagem 2 - Due Sfingi con ali sollevate ai lati di un'idria isiaca Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Fresco_Isis_N%C3%A1poles_09.JPG Imagem 3 – Il Sommo Sacerdote avvia il suo discepolo, ai misteri di Iside Fonte: Gli ultimi giorni di Pompei (1913). 57 Com a reunião dessa totalidade de fatores visuais e narrativos, então, nos debruçamos sobre o elementar providencialismo que a película almeja reproduzir. Por sua narrativa, tece um discurso em que o mundo “oriental”, protegido pela deusa, age como o vilão corruptivo do povo romano, fator a mover um suposto “expurgo” sobre a cidade de Pompeia com a ação vesuviana. Dessa forma, os discursos orientalistas e classicistas adquirem uma expressão material visual ao reproduzirem nas telas o ideal de uma identidade italiana em termos raciais, racialistas e racistas, negando-lhe sua associação com o mundo norte-africano. Tendo isso em vista, a produção mobiliza estrategicamente aspectos da Antiguidade, com seleções de objetos e de aspectos religiosos que remontam a um imaginário de conquista do Egito por Roma. Ou também, nos termos de Swetnam-Burland [2015, p. 1, tradução nossa], “o gosto pelas obras de arte vindas de longe ou evocadoras de estilos estrangeiros era inerentemente político, refletor da realidade que uma região (Itália) dominava sobre o Outro (Egito)” [2]. Sendo assim, nos torna possível observar como a produção do filme retoma esse mesmo passado romano, com ideais imperiais, com o intuito de adequar em reproduções visuais os discursos de dominação, racialismo, orientalismo e imperialismo ecoantes em seu momento histórico. É, ao fim, uma leitura particular do passado romano cujas adequações formatam-se de modo a criar uma narrativa que cria e projeta ideais racistas, (re)postulando “diferenças” supostas entre o indivíduo europeu, italiano, e o indivíduo oriental, genericamente qualificado e posicionado no norte árabe africano. Considerações finais Por esse modo, encontramos n’Os Últimos Dias de Pompeia a emersão de uma recepção de Pompeia próxima das discussões orientalistas e classicistas do amplo contexto de debates intelectuais italianos dos fins do século XIX e do século XX. Em sua trama providencialista, deixa latente o nacionalismo racista e orientalista presente em muitas das produções cinematográficas (e culturais em termos mais amplos) italianas da década de 1910. Tal representatividade de discursos racialistas ecoa, pois, em signos visuais do filme, ao passo de se apropriar do passado romano e egípcio para elaborar ligações entre os elementos materiais de um suposto “Oriente” antigo e os modernos “orientais” na trama, nos trajes de seus personagens e na ambientação espacial de suas ações. Anos estes perpassados pelas intenções de colonização da região ao Norte da África, de dominação da Líbia, das sementes de racialização com o fito de inferiorização para a subordinação violenta. Em tempos posteriores, de um fascismo já presente e difundido em sua sociedade e em sua política, encontraremos esses mesmos Orientalismos intensificando ainda mais seus teores racistas e racialistas. Como demonstra De Donno [2019], Mussolini e seus adeptos os aglomerariam em propostas de assimilação e de aliança com outras colônias europeias, desmembrando as 58 teorias raciais de proximidade e/ou de superioridade entre as ditas “raças” italiana, árabe e indiana. Esse é um período político e histórico também responsável por concentrar particularidades de apropriação do passado romano, ao que Fleming [2006] exorta para uma consideração das particularidades dessa dinâmica. Afinal, reúne em si uma complexidade de práticas político-culturais e estéticas, as quais devem ser compreendidas para além de uma ideia de “abuso” do passado. São, ao fim, práticas e ideais criticados e reprovados pelos posicionamentos políticos; mas tais críticas e reprovações não devem ser empecilhos para estudos mais aprofundados de sua essência teórica, de sua construção e de suas formulações mais básicas. Enfim, essa necessidade de explorar as recepções do passado romano para além das críticas políticas e sociais às suas apropriações violentas merece ser também estendida aos Orientalismos. Tal qual apreendido no caso italiano, esses discursos possuem uma medida similar de criação de mecanismos políticos, culturais e estéticos para a afirmação de seus ideais a partir do passado. Um passado que, mirado sob a ótica “ocidental”, tem orientalizado tudo aquilo que os europeus de outrora julgaram “inferiores demais” para serem seus; aquilo “corrupto demais” ou “maldoso demais”, que necessitaria de um “expurgo” de sua história. História esta que, agora, precisa ser mirada reflexivamente para ter esse mesmo olhar violento de Orientalismos detectado e criticado. Notas [1] Do inglês, no original: “new audiences saluted a young art form, as the Lybian territory fell prey to a young nation”. [2] Do inglês, no original: “the taste for works of art from far-off places or evoking foreign styles was inherently political, reflective of the reality that one region (Italy) held sway over the Other (Egypt)”. Referências Heloisa Motelewski é estudante de Graduação em História (Licenciatura) e realiza pesquisa de Iniciação Científica na modalidade voluntária (PIBIC) na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Currículo lattes: [http://lattes.cnpq.br/7022532050657480]. Fonte documental: GLI Ultimi Giorni di Pompei. Direção: Eleuterio Rodolfi. Turim: Società Anonima Ambrosio, 1913. 1 filme (107 min), mudo, legenda, p&b, 35 mm. Referências bibliográficas: BUCKLAND, Warren. Film Semiotics. In: MILLER, Toby; STAM, Robert. (Ed.). A Companion to Film Theory. Malden: Blackwell, 2004. p. 84-104. 59 CINEMATECA BRASILEIRA. Os últimos dias de Pompeia. In: JORNADA BRASILEIRA DE CINEMA SILENCIOSO, V, 2011, São Paulo. Catálogo... São Paulo: Cinemateca Brasileira, 2011. p. 50. DALLE VACCHE, Angela. The Body in the Mirror: Shapes of History in Italian Cinema. Princeton: Princeton University Press, 1992. DE DONNO, Fabrizio. Italian Orientalism: Nationhood, Cosmopolitanism and the Cultural Politics of Identity. Berna: Peter Lang, 2019. ______. Routes to Modernity: Orientalism and Mediterraneanism in Italian Culture, 1810-1910. California Italian Studies, v. 1, n. 1, p. 1-23, 2010. FLEMING, Katie. The Use and Abuse of Antiquity: The Politics and Morality of Appropriation. In: MARTINDALE, Charles; THOMAS, Richard. (Ed.). Classics and the Uses of Reception. Malden: Blackwell Publishing, 2006. p. 127-138. HARDWICK, Lorna. Reception Studies. New York: Cambridge University Press, 2003. MACKENZIE, John. Orientalism: History, Theory and the Arts. Manchester: Manchester University Press, 1995. MOTELEWSKI, Heloisa. A Mística Egípcia, a Natureza e o Olhar Orientalizante: A mirada contemporânea sobre o passado romano dos cultos orientais sob a produção de Ambrosio. In: BUENO, André (Org.). Novas Mídias e Orientalismos. Rio de Janeiro: Proj. Orientalismos/UERJ, 2022a. p. 91-103. Disponível em: https://www.academia.edu/93877023/A_M%C3%ADstica_Eg%C3%ADpcia_a_ Natureza_e_o_Olhar_Orientalizante_A_mirada_contempor%C3%A2nea_sobre _o_passado_romano_dos_cultos_orientais_sob_a_produ%C3%A7%C3%A3o_ de_Ambrosio_1913_ ______. Orientalismo à Romanidade? A Criação da Vilania Antigo-Oriental na Modernidade em Os Últimos Dias de Pompeia, de Ambrosio (1913). In: ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA, XIX, 2022b, Santa Catarina. Usos do passado, ética e negacionismos: anais. UDESC, 2022b. Disponível em: https://www.academia.edu/93877721/Orientalismo_%C3%A0_Romanidade_A_ Cria%C3%A7%C3%A3o_da_Vilania_Antigo_Oriental_na_Modernidade_em_O s_%C3%9Altimos_Dias_de_Pompeia_de_Ambrosio_1913_ PÉREZ, José M. La génesis del gran cine histórico: Italia, 1910-1923. Nosferatu, Revista de Cine, n. 4, p. 4-19, out. 1990. ROSENSTONE, Robert. Tradução de: Marcello Lino. A História nos filmes, os filmes na História. São Paulo: Paz e Terra, 2010. 60 SAID, Edward W. Tradução de: Tomás Rosa Bueno. Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. SORLIN, Pierre. Italian National Cinema (1896-1996). New York: Routledge, 1996. SWETNAM-BURLAND, Molly. Egypt in Italy: Versions of Egypt in Roman Imperial Culture. New York: Cambridge University Press, 2015. XAVIER, Ismail. Historical Allegory. In: MILLER, Toby; STAM, Robert. (Ed.). A Companion to Film Theory. Malden: Blackwell, 2004. p. 333-362. 61 A “CHINATOWN IMAGINÁRIA”: A REPRESENTAÇÃO DO LUGAR DO IMIGRANTE CHINÊS NOS ESTADOS UNIDOS A PARTIR DA SÉRIE TELEVISIVA “WARRIOR”, por Krishna Luchetti Bruce Lee povoou o imaginário e as telas ocidentais como um exímio artista marcial, um ator talentoso e um diretor criativo. Recentemente sua filha, Shannon Lee, deu início há uma série televisiva baseada em um romance histórico escrito por seu pai, nesse, Bruce Lee, mobilizou como espaço literário a cidade de São Francisco, e como recorte temporal a segunda metade do século XIX. Até então, esses escritos eram praticamente desconhecidos e foram redescobertos por Shannon no início dos anos 2000, “em um amontoado de caixotes” (RAMOS, 2023), o que a motivou a procurar apoiadores para transformar esses escritos em uma produção midiática. Segundo Shannon, houve pouco interesse dos produtores estadunidenses em ler o romance de seu pai, por isso o projeto passou anos em hiato. Todavia, quase uma década depois quando o diretor taiwanês-estadunidense Justin Lin, que a pouco tempo tinha dirigido o documentário “Finishing the Game: The Search for a New Bruce Lee” [2007], entrou em contato com Shanon a situação mudou. A herdeira de Bruce Lee, e diretora da “Bruce Lee Foundation”, finalmente tinha um diretor que se entusiasmou com os textos do pai, assim como conseguiu que outros produtores apoiassem o projeto (RAMOS, 2023). Dessa forma, a série baseada no romance histórico de Lee e com o roteiro do norte-americano Jonathan Tropper, ganhou o formato de série televisiva. Neste ano de 2023, a série “Warrior” chega a sua terceira temporada, disponível para o público brasileiro no streaming MAX. Ressalto que Shannon Lee, uma mulher sino-estadunidense, buscou ativamente divulgar a literatura de seu pai, um homem sino-estadunidense, sobre um bairro construído e povoado por imigrantes, Chinatown. Na série, o ponto focal da narrativa é justamente este lugar dos imigrantes chineses que procuram criar sua própria comunidade dentro da cidade de São Francisco, EUA, em busca de uma vida melhor. O bairro, que cresce ao longo do século XIX, denota o caráter significativo deste local para a comunidade de imigrantes, que se aglutina entre seus semelhantes e recria costumes, arquitetura e outros aspectos de seu país natal, o que provoca estranhamento e até agressividade vindos dos estadunidenses, sobretudo brancos (RELPH, 1977). Na série televisiva esses elementos e conflitos são explorados, de forma que a representação midiática tanto do romance histórico, como do processo histórico deste local, é divulgada para o público. 62 Tendo isso em vista, pretendo discutir como a série faz uma representação desse “lugar do imigrante chinês” nos Estados Unidos da América, e como essa representação pode ser mobilizada para combater a xenofobia e estereótipos racistas acerca de imigrantes do leste asiático na atualidade. Assim, essa “Chinatown imaginária”, ou seja, aquela que é representada na série torna-se um objeto de estudos interessante para o campo da História. A série, por mais que seja uma produção midiática estadunidense, é baseada nos romances de um sino-estadunidense, que morou em Chinatown e que procurava divulgar a história de outros imigrantes como ele (RAMOS, 2023). Portanto, mobilizá-la, também é uma forma de valorizar a produção de um imigrante chinês, de sua prole e da equipe, majoritariamente formada por descendentes de imigrantes do Leste asiático. Em “Warrior”, temas como a xenofobia, a perseguição e violência contra a etnia amarela são recorrentes, seja no cotidiano dos imigrantes que vivem aglutinados em Chinatown, seja no campo político, em que agentes criam leis cerceando a liberdade e os direitos desses “outros”. A “São Francisco imaginária” dos anos finais do século XIX, é constantemente violentada pelas autoridades do Estado, por grupos extremistas, e por sua própria violência interna representada pelas gangues [Tongs]; paralelamente a isso, esse se mostra um espaço de riqueza, tanto cultural quanto material. O espaço e os homens e mulheres desse espaço representativo, ou seja, de como Bruce Lee concebeu a São Francisco dos anos finais do século XIX, e de como Tropper e demais roteiristas adaptaram esses textos é uma interpretação que cria e recria esse local do passado. Assim, nesse “esforço para descrever as pessoas, lugares, eventos e assim por diante irá moldá-los inevitavelmente.” (TALLY, 2019). A série de tv, portanto não é um reflexo dessa espacialidade do passado, contudo, é um objeto midiático que se baseia neste e o recria. No que concerne ao autor do romance histórico que é basilar para o roteiro, o professor Wu da Universidade Nacional de Chengchi, denota que Bruce Lee por meio de entrevistas e produções cinematográficas procurou subverter a visão xenofóbica e racista que muitos estadunidenses possuíam acerca dos imigrantes chineses. Segundo Wu, Lee ia contra as teorias racistas que criavam uma imagem dos chineses como incapazes de exercícios físicos vigorosos, capacidades de raciocínio e até higiene semelhante à dos europeus e caucasianos no geral. Em seus filmes, sobretudo aqueles associados as equipes de gravação de Hong Kong, o artista procurou retratar a si e outros chineses, como poderosos lutadores, sábios e em alguns casos quase indestrutíveis, afinal na visão de Lee o Kung Fu era a arte marcial suprema (WU, 2016). Na série, a arte marcial também é um elemento constante, e muitas vezes enfatiza sua eficiência como ferramenta para combater a opressão dos estadunidenses brancos dentro de Chinatown. A discussão de Wu corrobora com a construção deste trabalho, pois denota que desde os “textos de base” que inspiraram a série, há um teor de subverter a visão racista ocidental quanto aos chineses. Dito isto, farei um breve resumo 63 da narrativa “Warrior”: a série televisiva é um drama com diversas cenas de ação que se propõe e representar as guerras de gangues chinesas em São Francisco na segunda metade do século XIX, a chamada “Tong war”. O protagonista da série, Ah Sahm, é construído como um prodígio do Kung Fu que imigra da China para os Estados Unidos. Nas américas, o jovem se une a uma das principais gangues de Chinatown em São Francisco, a Hop Wei (RAMOS, 2023). Nesse contexto, o bairro é apresentado, tanto pela visão das gangues, como também de outros núcleos, seja dos comerciantes, das prostitutas, vendedores e viciados em ópio, policiais, figuras políticas e demais cidadãos. Apesar da simplificação feita nesse resumo, ressalto que em meio a sangrenta guerra de gangues, a série trás a problematização do racismo estrutural, da discriminação violenta, linchamentos, desigualdade social, machismo e a política estadunidense do período. Os personagens chineses, fogem tanto dos estereótipos do “terror amarelo”, quanto dos relacionados a teorias do darwinismo social, que já vinham sendo criticados pelo próprio Bruce Lee. Na série, Chinatown também aparece como um lar, um espaço que sofre com a violência interna e externa, mas que paralelamente se mostra o local mais seguro para esses imigrantes. São numerosos os personagens que declaram isso, desde Ah Toy, dona de um prostíbulo e exímia artista marcial, até figurantes que representam pequenos comerciantes, o medo de sair do bairro impera. O próprio Ah Sahm rapidamente se apega a este local, e o declara como “seu lugar”. Segundo, Edward Relph, pessoas que estão imigrando podem ser “capazes de alcançar muito rapidamente um apego a novos lugares”, em parte porque as paisagens são semelhantes a outras já conhecidas (RELPH, 1977), ou seja, por mais que seja diferente, a “Chinatow imaginária” se mostra semelhante a localidade da China de onde o imigrante veio originalmente. Na série, essa semelhança pode ser notada a partir da arquitetura do bairro, da culinária, vestimentas e tantos outros aspectos. As gangues, ou “Tongs”, tem um papel decisivo na narrativa da série, e compõem a paisagem dessa “Chinatown imaginária”. Historicamente falando, o professor Benjamin Chang da Universidade da Carolina do Norte, ressaltou que essas gangues “compunham um retrato da criminalidade em Chinatown” (CHANG, 2015). Para esse pesquisador, políticos racistas e grupos antiimigrantistas, argumentavam que a criminalidade estava fora de controle nas “chinatowns” por todo os Estados Unidos devido à ação das “Tongs” e, portanto, estas deveriam ser eliminadas. Essa conotação negativa aparece em periódicos norte-americanos e em discursos políticos desde o início do século XIX, em alguns casos antecedendo ataques a estes locais de imigrantes. Risser ressalta que a impressa estadunidense propagava por meio de cartazes e jornais a suposta falta de higiene, saúde e caráter dos chineses de Chinatown, e espalhavam esse tipo de anúncio dentro da própria comunidade. Os inspetores de higiene pregavam avisos nas portas e vidraças de lojas e moradias em Chinatown, alegando que 64 o local era sujo e impróprio para o convívio, expulsando os moradores sem lhe dar qualquer compensação e usando da força para tal (RISSE, 2012). Essas manobras racistas, são representadas e problematizadas em “Warrior”, tanto denotando a comunidade chinesa como vítima, quanto táticas desse grupo para subverter as estratégias do poder que lhes oprime (CERTEAU, 1994). As gangues, muitas vezes aparecem como agentes dessas táticas, utilizando o contrabando para burlar fiscalizações e confiscos das autoridades do Estado. Assim como, impedindo ou minorando a violência policial dentro dos limites de Chinatown. Vale ressaltar que as “Tongs” estavam presentes nos Estados Unidos desde os anos 1800 e eram tanto de etnias chinesas, diversas por sinal, como também de outros países do leste asiático, como Tailândia e Cingapura (CHANG, 2015). Dessa forma, é possível perceber que essas gangues de fato atuaram no território da Chinatown histórica, assim como povoam a “Chinatown imaginária” de “Warrior”. Na série, elas servem tanto para extorquir e violentar a própria população local, mesmo que sejam representadas como uma “violência menor”, menos brutal do que a vinda do exterior (polícia estadunidense, grupos de imigrantes irlandeses de extrema direita, políticos racistas, etc.), como também para resguardar o bairro. As ações profundamente racistas também foram representadas na série, de forma que o expectador possa compreender que foram construções narrativas e ações políticas para fins específicos de sujeitos que se opunham aos imigrantes. Assim como, aparecem como impulsos violentos alimentados pela ideologia racista que circulava nas classes baixas brancas, como no caso dos imigrantes de irlandeses. Nesse espaço, os imigrantes chineses operavam por meio do que Certeau denominou de tática, ou seja: “este opera no campo de um sistema linguístico; coloca em jogo uma apropriação, ou uma reapropriação da língua por locutores” (CERTEAU, 1994). A dificuldade na aprendizagem da língua é um ponto trabalhado na série e constantemente mobilizado pelas entidades racistas para o descrédito de imigrantes chineses, e sinoestadunidenses que habitavam Chinatown. Paralelamente a isso, é possível ver em “Warrior”, personagens como o comerciante Chao que fingem não falar e compreender bem o inglês, para ter vantagens em negociações com os estadunidenses brancos. Assim, tanto pela inspiração da obra de Bruce Lee, como pela ação contemporânea dos roteiristas e produtores, é notável que há uma crítica contundente as noções racistas para como a etnia amarela. E em nosso contexto atual, isso é profundamente significativo, uma vez que, ideais racistas que muito se assemelham ao que era propagado em meados do século XIX voltam a ser publicadas, sobretudo nas redes sociais. A título de exemplo, trago a situação do Brasil, que recentemente viu crescer uma onda de ataques racistas aos povos do leste asiático em decorrência de Fake News acerca do Corona Vírus. Kahotsu, Saito e Andrade, inclusive, 65 denominam de “reedição do perigo amarelo”, os diversos casos de xenofobia sofridos por brasileiros de descendência asiática. Segundo os autores a: “Sopa de Wuhan” e outras produções, inclusive as jornalísticas, remetem que a xenofobia se tornou mercadoria consumível e aparentemente gratuita (KAHOTSU, SAITO, ANDRADE, 2021). Memes com essa temática povoam a internet, alimentando comentários racistas, violentos e xenofóbicos. Dessa forma, no cenário político e social brasileiro, vê-se uma problemática que infelizmente se arrasta a séculos e se renova de acordo com os meios midiáticos disponíveis. Se no passado, o “terror amarelo” era disposto em cartazes, jornais e tratados pseudocientíficos, atualmente, tanto no Brasil, quanto nos Estados Unidos, são as redes sociais e a mídia os principais responsáveis por alimentar o monstro do racismo. Nos Estados Unidos a situação é ainda mais dramática, segundo o Portal G1, os casos de violência são numerosos e os principais alvos de ataques são mulheres chinesas. A título de exemplo, é possível pensar no massacre ocorrido na Georgia em que seis mulheres do leste asiático foram assassinadas a tiros. As trajetórias dos personagens sino-americanos e chineses da “Chinatown imaginária” de “Warrior” contribuem para que estereótipos negativos que ainda são perpetuados sobre os imigrantes do leste asiático sejam pelo menos questionados por seus espectadores. A série procura subverter e criticar, ora de forma velada, ora explícita, o pensamento racista e xenofóbico. Nessa representação fantasiosa do passado dos imigrantes chineses em Chinatown, são construídas narrativas que alteram a percepção preconceituosa sobre essas pessoas, sem necessariamente romantizá-las, ou transformá-las em “super-heróis”, como fazia Bruce Lee em alguns de seus filmes. Além disso, a construção do próprio local, perpassa a criação de seus autores, tanto do próprio Bruce Lee, quanto daqueles que dão vida a série. Sendo assim, ressalto as palavras de Tally: “conhecer um lugar é realmente saber pouco sobre o lugar, pois seria impossível conseguir algo remotamente que se aproximasse de uma representação completa dele” (TALLY, 2019). Contudo isso não anula o fato de que essas representações do plano midiático tem um valor representativo para a história, e para nossa sociedade, pois nos leva a imaginar e problematizar esse passado que já não existe, há não ser por meio de documentos, pesquisas históricas, ou no caso dos romances de Bruce Lee, “em um amontoado de caixotes”. Ao assistir “Warrior”, um estadunidense, ou um brasileiro, pode questionar, por exemplo, diversos estereótipos debilitantes atribuídos aos chineses, pois sua percepção é levada a lidar com outra simbologia relativa a este povo. Se no Brasil, ideias xenofóbicas como a do “vírus chinês”, ou da ideia de que “chineses comem quaisquer coisas”, e tantos outros disparates propagados pela mídia e até por figuras políticas, como o ex-presidente da república Jair Bolsonaro (CHEN, SACRAMENTO, MONARI, 2020), ainda circulam e tem apoiadores, esses devem ser problematizados e expurgados. Para além das 66 campanhas de conscientização, séries de tv como “Warrior” podem se tornar aliadas para botar abaixo esse tipo de concepção. A “Chinatown imaginária” da série não aparece como um local imundo, em que são consumidos estranhos animais silvestres, ou ainda, costumes “alienígenas” presentes em cartilhas de “terror amarelo”. Esse é o local dos imigrantes na série, seu lar, segundo Relph, “um lugar é essencialmente seu povo”, ou seja, a aparência ou a paisagem são elementos que compõem este quadro, mas cuja importância é menor diante da identificação entre semelhantes (RELPH, 1977). Dessa forma, a Chinatown de São Francisco é representada na série como um lugar para os imigrantes chineses, não de forma romantizada, como uma espécie de paraíso, mas como um lar, mesmo que repleto de conflitos internos e permeado pela pobreza. Assim, “Warrior”, enquanto uma série televisiva pode contribuir para este debate, seja criticando estereótipos negativos, sem ilusões excessivamente positivas. Afinal, seus personagens asiáticos aparecem tanto em papéis de “mocinhos” como de “vilões”, inclusive o protagonista, um gangster, passeia entre esses extremos. Se pensarmos no passado, no caso do próprio Bruce Lee em seus filmes, a forma de lutar contra os estereótipos negativos era justamente construir novos estereótipos de cunho positivo, que na atualidade também são problematizados pelo público, pesquisadores e críticos. Em “Warrior” a “Chinatown imaginada” se tornou o lar dos imigrantes chineses, um espaço de vivência e desafios, que transita entre a segurança e insegurança. Lá os imigrantes chineses mobilizam táticas para lidar com as estratégias do sistema do Estado e dos estadunidenses brancos, combatendo o ódio alimentado pelo racismo e xenofobia, para sobreviver. Essa representação histórica e espacial, nos serve para problematizar o passado, e pensar como esse produto midiático pode contribuir no debate atual para minorar e quebrar pensamentos e ações xenofóbicas e racistas contra a comunidade sino-brasileira e sino-estadunidense. Referências Mestre Krishna Luchetti é professora de História no Ensino Básico, e pesquisadora na base de pesquisa Teoria da História, Historiografia e História dos Espaços da UFRN. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. In: As artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994. CHANG, B. Chinatown gangs in the United States. In: J.H.X. Lee (Ed.), Chinese Americans: The history and culture of a people. Santa Barbara: ABC-CLIO, 2015. CHEN, XueWu. MONARI, Ana C.P. SACRAMENTO, Igor. O vírus do morcego: fake News e estereotipagem dos hábitos alimentares chineses no contexto do covid-19. Comunicação e Inovação, v.21, n°47, São Caetano do Sul, 2020. 67 Dados da violência contra pessoas do Leste Asiático nos EUA. Disponível em < https://g1.globo.com/mundo/noticia/2021/03/17/estados-unidos-registrammilhares-de-ataques-a-asiaticos-durante-pandemia.ghtml> acessado em 11 de julho de 2023. KOHATSU, Lineu N. SAITO, Gabriel K. ANDRADE, Patrícia F. Imigração, mídia e xenofobia: a ameaça imaginária em questão. In: Teoria crítica, violência e resistência. São Paulo: Blucher, 2021. RAMOS, Dino-Ray. Shannon Lee Talks ‘Warrior’ And How Hollywood Honors And Exploits Her Father’s Legacy. Disponível em <https://deadline.com/2019/06/shannon-lee-bruce-lee-warrior-interviewcinemax-1202622774/> acessado em 06 de julho de 2023. RELPH, Edward. Place and placelessness. London: Pion Limited, 1977. RISSE, Guenter B. Plague, fear, and politics in San Francisco’s Chinatown. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2012. TALLY JR. Robert T. Topophrenia: Place, Narrative, and the Spatial Imagination. Indiana: Indiana University Press, 2019. WU, Min-Hua. Confronting Orientalism with Cinematic Art: Cultural Representation in Bruce Lee’s The Way of the Dragon. Intergrams: Studies in Languages & Literatures, No.16.2, 2016. 68 GEN, O TRIGO VERDE DE HIROSHIMA: MEMÓRIAS DO PÓSGUERRA ENTRE REPRESENTAÇÕES E NARRATIVAS (1973 – 1985), por Lucas Ciamariconi Munhóz A Segunda Guerra Mundial foi encerrada com o lançamento de armas nucleares nas cidades de Hiroshima e Nagasaki, com a rendição japonesa oficializada pela Declaração de Postdam em julho de 1945 e pela ocupação americana em território nipônico. O pós-guerra japonês foi ambientado por um discurso pacifista e progressista, entretanto, estruturado por uma historiografia negacionista que silenciava os corpos pulverizados pelas duas bombas atômicas, assim como ocultava o passado obscuro e recente do imperialismo japonês. Essa narrativa foi trazida a cabo em comunhão pelos governos americano e japonês, estruturada não apenas por dispositivos acadêmicos e políticos, mas também por veículos culturais, de comunicação de massa, pela imposição da censura e pela construção de uma memória alinhada ao novo modelo de nação propagado durante o período. Como consequência desses desdobramentos, observa-se não apenas uma ruptura com o passado, mas também uma ruptura com a identidade cultural japonesa predominante naquele momento. A veloz e ríspida transição alavancada pelo fim da guerra e pelas novas narrativas levou a nação japonesa a um processo voluntário de esquecimento e ocultação de suas memórias e perdas, apesar de, como pontua o historiador Yoshikuni Igarashi, elas serem elementos fundamentais na construção da nova identidade cultural apresentada pelo pós-guerra. O autor aprofunda: “O Japão do pós-guerra naturalizou a ausência e o silêncio do passado ao erradicar sua própria luta para lidar com suas memórias. Pode parecer que a sociedade do pós-guerra facilmente deixou suas experiências para trás na busca por sucesso econômico. Entretanto, o progresso atual de esquecimento da perda não foi fácil: isto envolveu uma luta constante para transformar as memórias de guerra em uma forma nostálgica e benigna.” [IGARASHI, 2011, p. 40] A censura e o controle dos meios de comunicação e informação no pós-guerra imediato buscavam suprimir qualquer discurso que fosse crítico e subversivo ao novo modelo de nação, e assim, muitas das produções culturais e acadêmicas que se orientassem nesse sentido, eram rapidamente rejeitadas e reprimidas. Dessa maneira, a narrativa gerada em cooperação entre Estados Unidos e Japão, buscava tornar aceitáveis os acontecimentos das bombas atômicas e a rápida transição de relacionamento entre as duas nações, outrora inimigas, agora aliadas, num vínculo que inverteu os ideais do imperialismo japonês, onde o colonizador passa a ter o status de colonizado. A empreitada 69 imperialista japonesa e as vítimas das bombas atômicas foram propositalmente esquecidas, deixando espaço apenas para as memórias e corpos japoneses que confirmassem a narrativa oficial construída. É nesse cenário de disputa pelo passado que o Japão se reestrutura durante o pós-guerra, gerando consequências refletidas no presente. Os discursos negacionistas ainda possuem espaço no meio acadêmico, assim como são operados pela política conservadora predominante no país. No entanto, produções críticas frente a esse discurso são muito mais presentes e aceitas, bem como se internacionalizaram e se complexificaram ao longo do tempo. No ano de 1973, vinte e oito anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, é iniciada a publicação de はだしのゲン Hadashi no Gen, mangá criado pelo quadrinista Keiji Nakazawa, sobrevivente e testemunha direta da explosão da bomba atômica na cidade de Hiroshima. A narrativa sequencial gira em torno do personagem Gen, um menino de cinco anos que sobrevive a explosão da bomba, e perde toda sua família, exceto pela sua mãe e dois de seus irmãos mais velhos. Nakazawa representa com detalhes os meses finais da guerra e os anos seguintes que denominam o pós-guerra. A trama se encerra após doze anos de publicação, no ano de 1985, com o décimo volume, momento em que o personagem Gen se muda para Tóquio, em busca de se tornar um quadrinista. Apesar da arte sequencial do autor não ser uma fonte essencialmente acadêmica, é uma contribuição importante para o debate acerca da construção da memória do pós-guerra, levando em consideração que representa um evento historicamente relevante, também fundamentado nas memórias pessoais selecionadas pelo autor. Acima de tudo, Gen Pés Descalços é o relato de uma testemunha sobrevivente do evento nuclear em Hiroshima. Para muitos, o mangá é considerado um relato autobiográfico e um signo da luta contra o negacionismo no Japão. Para a historiadora Hillary L. Chute, a narrativa sequencial de Nakazawa teria inaugurado o gênero de mangá-documentário. Hadashi no Gen fez muito sucesso no Japão, assim como em vários outros países, incluso o Brasil. Sabe-se que chegou as prateleiras das escolas japonesas e por lá permanece até o presente. Entretanto, a presença da obra no meio escolar e cultural, não agrada grupos políticos conservadores atuantes no país há vários anos. Dos fatos que foram possíveis levantar, vale citar dois acontecimentos separados geograficamente e temporalmente, mas que confluem para uma mesma situação: a presença do negacionismo nos meios políticos e acadêmicos japoneses. A primeira polêmica envolvendo Gen acontece em Matsue, a sudoeste do arquipélago, no ano de 2013. O Conselho Escolar Municipal decidiu retirá-lo das bibliotecas escolares, após uma avalanche de cartas direcionando críticas ao antimilitarismo promovido pelo autor, e pela sua abordagem perante as ações imperialistas na Ásia, principalmente na China e Coréia. Contudo, a medida não durou muito, e em cerca de dois meses a maioria dos diretores 70 escolares da cidade se manifestaram contrários a decisão. A obra permaneceu onde estavam apesar de ficar a cargo de cada diretor decidir se ia restringir ou não o seu acesso. Segundo a pesquisadora Janaína de Paula do Espírito Santo esse evento: “[...] representa um eco da resistência nacionalista que, por vezes, acompanha a obra em questão e outros mangás e livros que optam por uma abordagem questionadora frente ao exército japonês ou a participação nipônica na Segunda Guerra Mundial, bem como no período anterior a ela. De fato, no período de publicação, a opção de Nakazawa de apontar o papel central do militarismo e do nacionalismo japonês ia na contramão de um certo conservadorismo político, que marcou a explicação mais cara aos historiadores japoneses, entre as décadas de 1960 e 1980, centrada em uma afirmação do papel do Japão como uma grande vítima do conflito mundial.” [SANTO, 2016, p. 55] Em segundo, é imperativo expor o recente ataque a obra, desta vez ocorrido na cidade de Hiroshima, no final de março de 2023. A Secretaria de Educação da Prefeitura anunciou que irá retirar Gen Pés Descalços dos materiais do Programa de Educação pela Paz, conteúdo voltado para o Ensino Fundamental. Entre os argumentos, citam a falta de tempo para abordar em sala e a desconexão entre o evento nuclear e a realidade das crianças. O mangá também foi acusado de possuir um viés ideológico que privilegia apenas um lado, e que esses materiais deveriam prezar pela neutralidade política. O caso revoltou um grupo de japoneses e ganhou atenção da mídia após uma petição para vetar a ação ter sido assinada por mais de 55 mil pessoas. Ambos exemplos levantam a suspeita não apenas de um eco nacionalista, mas a da manutenção do discurso negacionista presente desde o pós-guerra imediato, que é reinventado e reapresentado de acordo com as especificidades da temporalidade em que está inserido. Gen Pés Descalços chegou a ser publicado por diversas revistas, mas principalmente pela revista 週刊少年ジャンプ Shūkan Shōnen Janpu. Chegou aos leitores pela primeira vez em formato semanal, e após obter certo alcance, foi reeditado e publicado em dez volumes comemorativos, os chamados Tankobon. A fama do mangá de Keiji Nakazawa o levou a ser adaptado em outros gêneros culturais. Entre 1976 e 1980 foram produzidas três Live Actions pelo diretor Tengo Yamada. Também foram feitos dois longas-metragens em formato de animês pelo estúdio 株式会社マッドハウス Kabushiki-gaisha Maddohausu entre 1983 e 1986. Nakazawa também produziu conteúdo extra em algumas Light Novels, e o mangá chegou a ser transformado em ópera e musical. O mangá de Keiji Nakazawa é o testemunho de um sobrevivente da devastação nuclear em Hiroshima. O autor não somente sobreviveu a guerra, mas carregou o peso e o trauma de ser um Hibakusha (sobrevivente da bomba). Após a morte de sua mãe em 1966, causada por leucemia e pela longa exposição a radiação no período pós-guerra, Nakazawa decide então 71 expor e relatar suas memórias. Gen é uma obra densa, composta por dez volumes, totalizando mais de 2 mil páginas. Em seu âmago, encontramos uma produção cultural, de ficção, mas que se assemelha fortemente com a vida e as agruras vividas de seu autor, narrando memórias, pensamentos, situações. Mas que de forma alguma se limita a uma narração rasa de memórias e fatos históricos. Hadashi no Gen é claramente uma produção que se encontra no extremo oposto do negacionismo e das narrativas oficiais propagadas durante o pós-guerra japonês, e que ainda são presentes na historiografia, seja na temática em análise, seja em outras temporalidades e situações. O posicionamento de Nakazawa é transparente e direto, de essência antimilitarista, declaradamente pacifista e contrário as ações perversas tanto dos Estados Unidos, quanto as do imperialismo japonês. Apesar de sua narrativa ser focada nos meses finais da guerra, e na sobrevivência do personagem durante o pós-guerra, descortina um passado e as memórias ocultadas ativamente durante o período. Apesar de ter sido produzido quase trinta anos após a guerra, expor os efeitos das bombas de forma explícita, e tocar em assuntos não cicatrizados como os crimes e as atrocidades cometidas pelo império japonês em suas empreitadas coloniais era algo inédito e delicado, afinal, essas mesmas memórias, esses mesmos fatos, já haviam sido retirados a força da identidade nacional e de seu passado recosturado após a guerra. Em síntese, a arte sequencial de Keiji Nakazawa é composta por suas memórias individuais e coletivas, seus traumas, seus sonhos, sua esperança, esperança de que o futuro da nação japonesa fosse algo parecido com o plantio do trigo, que é pisoteado, esmagado, e que, apesar de seu sofrimento, cresce forte e imponente. Por um lado, o mangá nos desperta sentimentos e ideais mais subjetivos, como por exemplo o ideal de paz do autor, e a esperança na nação japonesa e nas futuras gerações, um verdadeiro grito daqueles que por muito tempo foram silenciados. Por outro, nos faz refletir acerca dos processos de construção de memória e de representação de eventos e recortes temporais e históricos relevantes, que como corpos vivos, entram constantemente em embates e disputas, e que nunca se cristalizam no tempo. A memória se reinventa, se recicla, é sobreposta, costurada, em constante transformação, para o bem ou para o mal. Acerca dessa questão, o historiador Michael Pollak nos esclarece: “A memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado que se quer salvaguardar, se integra, como vimos, em tentativas mais ou menos conscientes de definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de tamanhos diferentes: partidos [...] clãs, famílias, nações etc. A referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua complementariedade, mas também as oposições irredutíveis.” [POLLAK, 1989, p. 7] 72 Nesse sentido, Gen Pés Descalços, ao meu ver, é uma obra essencialmente relevante no campo historiográfico, legitimando a necessidade de sua análise ser feita a partir do método e da lógica da ciência histórica, que em nosso caso, se liga ao meio da memória e das imagens. A narrativa apresentada pelo autor, como bem já avisamos, é contrária ao discurso oficial propagado e ao viés negacionista, que oculta e apaga crimes de guerra de ambos os lados, mas que também contribuiu para a auto vitimização do povo japonês, apagando por exemplo, as ações do imperador Hiroito, concentrado a culpa do fiasco colonial e de guerra apenas aos militares japoneses. No que diz respeito a construção de memórias, representações e narrativas, Gen Pés Descalços se torna relevante não só pelo seu conteúdo em si, mas por ser um signo, um símbolo do passado que a política conservadora japonesa insiste tanto em ocultar até o presente. A disputa discursiva pelo passado, tal qual fala Pollak, se faz presente no arquipélago nipônico, e, apesar dos dias de censura terem cessado, a obra parece longe de alcançar o ideal de seu autor, e de ser legitimada politica e historicamente como uma parte do passado imperialista e de guerra do Japão. Os ataques recentes ao mangá exemplificam o eco nacionalista que Janaína de Paula nos avisa em seu texto, e que ainda perseguem obras e produções que buscam dar voz aos corpos e as memórias silenciadas durante o pósguerra. A disputa pelo passado é feita de diferentes maneiras, e os ataques a Gen nos mostra como o mangá é um meio de comunicação solidificado e extremamente relevante e importante, tanto no Japão, quanto no mundo. Lutemos com as armas que temos, o negacionismo político e histórico não deve ser aceito e nem legitimado, para que talvez, num futuro não tão próximo, os sonhos de paz mais utópicos de Nakazawa, se tornem realidade. Referências Lucas Ciamariconi Munhóz é graduado em História e mestrando em História Social pela Universidade Estadual de Londrina. É membro do Laboratório de Pesquisa de Culturas Orientais (LAPÉCO), e atua como revisor de provas no periódico semestral Prajna: Revista de Culturas Orientais. IGARASHI, Yoshikuni. Corpos da memória: narrativas do pós-guerra na cultura japonesa (1945 – 1970). São Paulo: Annablume, 2011. NAKAZAWA, Keiji. Hadashi no Gen. vol. 1 – 10. Tóquio: Chuokoron Shinsha Chuko Bunko, 2001. POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Rio de Janeiro: Estudos Históricos, v.2, n. 3, p. 3 – 15, 1989. SANTO, Janaína. Gen Pés Descalços e o nacionalismo japonês: interseções. In: PATSCHIKI, Lucas; SMANIOTTO, Marcos; BARBOSA, Jefferson (Orgs.). Tempos Conservadores: estudos críticos sobre as direitas. Goiânia: Edições Gárgula, p. 53 – 76, 2016. 73 CONVERGÊNCIA DA ESTÉTICA DOS MANGÁS EM AUTORIAS AFRICANAS: UM BREVE EXAME DO UNIVERSO HÍBRIDO DE JUNI BA, por Márcio dos Santos Rodrigues A popularidade dos mangás – ou seja, dos quadrinhos japoneses – tem se expandido ao redor do mundo nas últimas décadas, em razão de suas adaptações em outras mídias como animes, games e filmes live-action, além da disponibilidade cada vez maior de títulos traduzidos e digitalizados para o consumo internacional. Num cenário cada vez mais globalizado como o contemporâneo, com seus dispositivos e mecanismos de circulação de produtos culturais em nível transnacional, os mangás encontraram espaço para se disseminar. Autores como Frederik L. Schodt, que com seu Manga! Manga!: The World of Japanese Comics (1983) foi um dos primeiros estudiosos a explorar em profundidade o fenômeno dos quadrinhos (também chamados de HQs) fora do Japão, e Marc Steinberg, com sua obra “Anime's Media Mix: Franchising Toys and Characters in Japan” (2012), já haviam destacado o papel das produções japonesas na formação de uma estética visual e narrativa que, embora profundamente enraizada em sua cultura de origem, seriam capaz de transcender barreiras culturais e linguísticas para encontrar ressonância em públicos diversos em todo o mundo. Steinberg ressaltou, particularmente, o papel dos mangás como mercadoria cultural global, situando-os dentro de um ecossistema maior de media mix que inclui anime, videogames, brinquedos e outros produtos. Em diferentes países de África, artistas estão e têm dialogado com esse ecossistema examinado por Steinberg, criando obras que combinam elementos estilísticos e narrativos dos mangás com temas e contextos africanos, em um processo marcado por hibridismos culturais. Quadrinistas que vivem fora do continente também têm contribuído significativamente para este processo, trazendo suas experiências pessoais, culturais e diaspóricas para suas obras. Aqui pode-se evocar Néstor García Canclini, antropólogo e teórico cultural argentino, que com “Culturas Híbridas: Estratégias para Entrar e Sair da Modernidade” (1990) discutiu os processos de hibridização cultural, similares aos que podemos ver no caso de produções genericamente chamadas de “mangafrica” – termo que correlaciona mangá e África. Por culturas híbridas, Canclini se refere à mistura de diferentes tradições culturais em um novo produto ou forma cultural, um fenômeno que é amplamente observado em um mundo globalizado, onde os fluxos culturais não são mais limitados por fronteiras geográficas. A ideia central é que as culturas não são estáticas e puras, mas sim dinâmicas e influenciadas por trocas constantes. O mangafrica é um exemplo perfeito de como culturas podem surgir e se desenvolver em um contexto de intercâmbio cultural. 74 Global Manga: “Japanese” Comics without Japan? (2015), organizado pela pesquisadora Casey Brienza, é outra obra fundamental que nos ajuda a entender a dimensão de hibridismos em torno das HQs oriundas do Japão. Este livro explora como os mangás se transformaram em um produto global, com artistas e fãs em todo o mundo recriando e reinterpretando este estilo de arte de modo a expressar seus contextos culturais. Desfilavam nas páginas do livro organizado por Brienza temas como a influência do manga na cultura feminina na América do Norte (p.23-44); as negociações de diferenças culturais em obras como Scott Pilgrim e MANGAMAN; as dimensões híbridas do “euromanga” (p.75-93), as questões étnico-raciais envolvendo o fandom de anime e mangás nos Estados Unidos (p.95-113), o movimento da Nouvelle Manga na França (p.115-132), a moda gótica nos mangás alemães (p.147166), as narrativas da apropriação pela Marvel Comics (p.167-184), e o mangá na indústria de quadrinhos das Filipinas (p.185-199). Há inclusive um capítulo curtíssimo de pesquisadores do Observatório de Quadrinhos da USP sobre o estilo e produção de mangá no Brasil (p. 45-54), que, em minha opinião, careceria de uma abordagem mais aprofundada sobre o impacto dos mangás na cultura de HQs brasileira, considerando a crescente popularidade, aspectos de hibridismos e não se deter tanto em ídolos de origem para a criação de quadrinhos brasileiros em estilo mangá. Nesse livro não há um capítulo específico dedicado à influência dos mangás na produção de obras em contextos africanos. As menções sobre o continente na obra são tão-somente breves, pontuais, e, por vezes, tomam África como se fosse um país. Diante dessa lacuna, este texto coloca a necessidade de se estudar os processos de circulação e recepção de mangás entre autores ditos africanos. Tal fenômeno, acredito, deve ser estudado tendo em conta o caráter afropolitanista desses artistas, isto é, a predisposição deles de se engajar ativamente em trocas culturais globais. Ao adotarem e reinterpretarem o estilo dos mangás estão consumindo referências externas e, simultaneamente, redefinindo o que significa ser um artista de quadrinhos africano na era globalizada. Esta perspectiva afropolitanista enfatiza a flexibilidade cultural, a mobilidade e o hibridismo. Mbembe trata disso, através do conceito de “afropolitanismo”, formulado inclusive por ele, para defender a ideia de que a identidade africana moderna é moldada por uma confluência de culturas, histórias e experiências de vida tanto dentro como fora do continente africano. O conceito, como Mbembe descreve, surge como uma rejeição do localismo restrito para afirmar África como parte integrante do mundo contemporâneo, não isolada ou à margem, mas em constante diálogo e intercâmbio com outras culturas. Nessa perspectiva, os artistas africanos que incorporam estilos de mangá em suas obras não estão simplesmente imitando uma forma de arte estrangeira, mas participando ativamente de um diálogo cultural global, redefinindo e enriquecendo tanto o campo do mangá quanto das HQs a partir de uma perspectiva africana. Problematizando a ideia de mangá africano Aqui não se defende a ideia de mangá africano, tampouco a ideia de que autores estariam fazendo uma cópia ou imitação de produções do Japão, mas 75 sim como uma fusão de elementos da cultura africana com repertórios dos quadrinhos japoneses configura algo novo, híbrido. A própria ideia de mangá africano deve ser entendida com ressalvas, de forma a não reificar categorizações estanques ou exotizar essa produção. Deste modo, aciono novamente aqui as ideias de Cancllini sobre hibridismo cultural e as contribuições que esse fenômeno traz para a construção de identidades múltiplas e em constante diálogo. Ao rejeitar o conceito de “mangá africano”, reafirmo a importância da nuance, do contexto e da individualidade na criação artística, reconhecendo que os artistas africanos que utilizam elementos do mangá estão criando obras que são ao mesmo tempo pessoais e universais, africanas e globais. Eventualmente, é possível ver tentativas de enquadrar todas as produções em quadrinhos africanas que se inspiram no mangá japonês sob o rótulo de “mangafrica”, o que, a meu ver, conduz a uma visão simplista e generalizante. Se utilizo aqui mangrafrica é justamente como categoria nativa, como um termo de conveniência, sem, no entanto, me limitar a essa definição e reconhecendo a singularidade de cada obra e autor. Para este texto, discutirei o trabalho de um quadrinista que tem navegado nessa intersecção de influências de maneira particularmente interessante: Juni Ba, artista senegalês radicado na França. Ba, que nasceu em 1992, vem ganhando reconhecimento internacional por sua arte que combina uma ampla variedade de influências, não apenas do mangá japonês, mas dos quadrinhos em geral. Ele é um dos tantos artistas que tem construído seu estilo narrativo e visual a partir de uma mistura complexa de influências culturais diversas. Em virtude de a exigência deste texto ter um número específico de palavras, precisei fazer um recorte, mas nesse cenário de produções destacam-se autores como, por exemplo, o nigeriano Huzafya Umar, conhecido artisticamente como Zayf (autor da série Orisha), Odunze Oguguo, também nigeriano e que responde pelo apelido Whyt Manga, e Pap Souleye Fall, artista senegalês autor da série Oblivion Rouge. Os três têm seus trabalhos publicados na plataforma Saturday AM, uma revista digital de mangá, que publica trabalhos de artistas de diversas partes do mundo, incluindo trabalhos de africanos. São autores que serão discutidos em um momento futuro, quem sabe em outra edição deste simpósio ou mesmo em um artigo mais extenso. Por enquanto, me concentrarei no estudo de produções de Juni Ba, cujo trabalho apresenta esse componente de diálogo com diversas influências artísticas e culturais que atravessam fronteiras geográficas. A convergência de culturas em obras de Juni Ba Radicado atualmente em Montpellier, na França, Juni Ba tem se dedicado a projetos variados, da ilustração para campanhas publicitárias até a criação de obras seriadas e graphic novels (em português, romances gráficos) de sua própria autoria, da criação de capas para livros infantis a trabalhos como ilustrador freelancer para revistas em quadrinhos nos Estados Unidos. A publicação de Djeliya, seu primeiro romance gráfico, publicado pela TKO Studios nos Estados Unidos, fez com que Ba se tornasse um dos jovens 76 talentos africanos mais proeminentes no cenário global dos quadrinhos. Aqui no Brasil Djeliya teve uma versão, editada e traduzida por mim no ano de 2021. Figura 1: Capa original de Djeliya, lançado pela TKO Studios. Fonte da imagem: BA, Juni. Djeliya: A West African Fantasy Epic. Los Angeles: TKO Studios, 2021. Djeliya é uma história de fantasia épica que se passa em um universo em que tradições orais dos djeli da África Ocidental – isto é, das figuras que atuam como contadores de histórias, historiadores e músicos - dialogam com elementos entendidos como futuristas, embora não se possa pensar em Djeliya como afrofuturista. É, na verdade, africanofuturista, já que a perspectiva é intrinsecamente africana, moldada pelas tradições, histórias e culturas do continente. Portanto, não se limita a retratar um cenário africano influenciado por tecnologias “avançadas”, mas retrata um futuro que é informado e moldado pelas complexidades do passado e do presente africanos. Este termo advém de “africanofuturismo”, cunhado pela autora nigeriana-americana Nnedi Okorafor (2019) para distinguir a representação da África no afrofuturismo, que frequentemente é filtrada através de uma perspectiva diaspórica e pode correr o risco de simplificar ou generalizar as experiências africanas, e aquelas centradas em realidades africanas contadas e formuladas por ditos africanos. Djeliya é um exemplo de como os artistas do continente dialogam com múltiplas referências, desde os quadrinhos estadunidenses ao mangá japonês, 77 dos seriados tokusatsu às animações do Cartoon Network (particularmente, Samurai Jack). Em Djeliya há uma foto do próprio Ba segurando um robô gigante de brinquedo, que faz referência ao gênero mecha dos animes japoneses e dos seriados tokusatsu. Ao mesmo tempo em que ele se apropria dessas referências estrangeiras, adiciona elementos culturais da África Ocidental em suas ilustrações, como as máscaras de madeira usadas pelos personagens. Ba, assim, cria uma história que é, ao mesmo tempo, conectada com sua própria cultura e tradições, mas também inserida na linguagem global das HQs. Em um de seus quadrinhos mais recentes, Monkey Meat, lançado pela Image Comics, vemos referências às produções nipônicas de forma mais evidente. Trata-se de uma série ambientada em uma ilha transformada em uma realidade hiper-capitalista pela Monkey Meat Company, uma megacorporação que fez fortuna vendendo carne processada em todo o mundo. Aqui vemos uma crítica social aguçada disfarçada de uma história gráfica de aventura, com cores bastante vibrantes e saturadas, que se contrapõem à narrativa por vezes sombria. Figura 2: Capa de Monkey Meat. Fonte da imagem: BA, Juni. Monkey Meat: The First Batch. Portland, OR: Image Comics, 2022. 78 Acompanhamos a vida dos habitantes dessa ilha quando eles se esforçam para encontrar equilíbrio e felicidade em um mundo dominado não apenas por essa grande empresa, mas também pelos desafios trazidos pelo choque de tradições locais e modernidade forçada. Os personagens da série apresentam características típicas das animações e dos mangás, sendo representados por linhas expressivas e contornos fortes, além de inseridos em cenas de ação carregadas de movimento e dinamismo. Juni Ba não é propriamente um autor de mangafrica, mas incorpora em Monkey Meat elementos e referências diretas ao universo dos mangás. Um exemplo evidente disso aparece no segundo número (publicada em uma edição individual e, posteriormente, em um compilado reunindo os volumes de 1 a 5). Abaixo vemos uma das poucas passagens sem cor, na qual Harricot, personagem destaque da edição (apresentado como um aficionado em mangás e vítima de bullying), aparece segurando uma revista de King Saru: Figura 3: Cena de Monkey Meat #2 apresentando Haricot e King Saru. Fonte da imagem: BA, Juni. Monkey Meat: The First Batch. Portland, OR: Image Comics, 2022. 79 Vemos acima um quadrinho dentro de um quadrinho, um uso bem evidente do conceito/recurso de metalinguagem, onde uma obra faz referência a outra dentro dela mesma. Aqui King Saru é um mangá fictício dentro de Monkey Meat. Vale mencionar que a palavra “saru” é a palavra mais comum em japonês para “macaco”. Literalmente, o nome do personagem pode ser traduzido como “Rei Macaco”. Temos aqui a fusão de duas palavras, sendo uma de origem japonesa e a outra em inglês, do idioma em que a obra é apresentada, criando um diálogo intercultural dentro da própria narrativa. Não faria menor sentido algum, acredito, verter literalmente King Saru para o português ou para qualquer outra língua, pois essa tradução eliminaria a intenção artística e a dimensão cultural intrínsecas na escolha original do nome. Uma simples tradução por “Rei Macaco” não consegue transmitir a essência deste personagem, que é um ponto de convergência de culturas distintas. Além disso, é comum vermos que no Japão mangás costumam receber títulos com palavras em inglês (esse fenômeno, conhecido como “Engrish”, é uma forma também de globalização). Vale a pena ressaltar que Juni Ba, o autor, se expressa inglês, mas, como senegalês, é um falante nativo de outros idiomas, como o francês (língua imposta pelo colonialismo em África) ou algum idioma local do Senegal. Como estamos diante de uma autoria que transita por diversos idiomas, estando inserido em uma realidade multilíngue, é possível ver essa passagem e/ou mesmo a Monkey Meat em sua totalidade como um exemplo de obra marcada por um processo de hibridização cultural. Sobre a representação dos macacos na cultura japonesa, cumpre dizer que eles têm uma forte presença simbólica, associada a diversos significados e mitologias. São figuras proeminentes na religião, folclore e arte japoneses, figurando também em expressões idiomáticas. Há um provérbio pictórico japonês sobre a figura de três macacos sábios: “Não veja o mal, não ouça o mal, não fale o mal”. Um deles, Mizaru, não vê o mal por preferir cobrir os olhos; Kikazaru, por sua vez, ouve o mal, mas, imprudente, cobre os ouvidos; e, por fim, Iwazaru, que não fala o mal, mas cobre a boca. É um provérbio que ensina que o mal deve ser, em qualquer hipótese, evitado ou mesmo ignorado. Acredita-se que esse provérbio seja de origem chinesa, tendo chegado ao Japão a partir de lendas do budismo Tendai do século VIII. A frase também existe em versões chinesas e possui sentidos semelhantes. No original, se vê um jogo de palavras entre verbos e o termo “saru” (macaco). Há ainda no contexto japonês o provérbio “Saru mo ki kara ochiru” (猿も木から落ちる), que significa literalmente “Até mesmo macacos caem de árvores”, sendo usado para expressar que até mesmo pessoas habilidosas cometem erros. Ba, através do King Saru, evoca personagens como Uzumaki Naruto (うずまきナルト) e o Rei Macaco, personagem de Jornada ao Oeste 西|遊|記, um romance chinês do século XVI. Comecemos pelo Rei Macaco ou melhor, por Sun Wukong (孫悟空). Trata-se de um personagem conhecido por sua astúcia e habilidades mágicas, frequentemente retratado em mangás e animes, como, por exemplo, Dragon Ball, onde o personagem Son Goku (孫 悟空) é 80 inspirado em Sun Wukong. Inclusive, o protagonista de Dragon Ball tem um bastão chamado Nyoibō, semelhante ao Ruyi Jingu Bang de Sun Wukong. Assim como o cajado do Rei Macaco, o Nyoibō também possui propriedades mágicas e é capaz de se estender e encolher à vontade de Goku. Goku ainda se transforma na forma oozaru – isto é, um gigantesco macaco - quando a lua cheia está presente. Nas mãos do King Saru de Monkey Meat vemos também um bastão, um possível aceno ao objeto mágico de Sun Wukong e Goku, reforçando a conexão simbólica entre os macacos e esses personagens de histórias famosas. Naruto, por sua vez, é o protagonista da série de mangá homônima escrita e ilustrada por Kishimoto Masashi (岸本 斉史). Se observarmos a bandana que King Saru usa (Figura 3), a referência ao jovem ninja de Konoha, a Vila Oculta da Folha, se torna um tanto óbvia. É possível notar uma semelhança visual com a bandana usada por Naruto (Figura 4). Ao invés do símbolo de uma folha, encontramos na de King Saru o emblema de uma nuvem. Na capa da primeira edição de Naruto, nuvens surgem como um elemento decorativo. Já na representação de Ba elas aludem a um simbolismo que atravessa diferentes contextos culturais e literários. Na Jornada ao Oeste, Sun Wukong é muitas vezes retratado voando sobre as nuvens. Por isso, a nuvem na bandana não é apenas uma simples homenagem a uma obra contemporânea de mangá, mas também uma referência à clássica literatura chinesa. 81 Figura 4: Capa da edição #1 de Naruto, publicada originalmente pela Shueisha no Japão, em 1999. Fonte de imagem: KISHIMOTO, Masashi. Naruto #1. Tokyo: Shueisha, 1999. (Coleção Weekly Shōnen Jump) Ba hibridiza esses diferentes personagens para para trazer à tona, mesmo que de forma não intencional, o impacto de produções japonesas no seu trabalho e na cultura de entretenimento em geral. A edição #2 é em grande parte em preto e branco, o que se justifica por ser uma homenagem aos mangás, uma das principais influências de Ba. A própria capa de Monkey Meat #2 também se conecta com a estética atribuída aos mangás, apresentando Harricot com as mãos emanando energia, algo bastante comum em produções shounen (aqueles entendidos genericamente como destinados “para meninos”). Figura 5: capa da edição #2 de Monkey Meat. Fonte de imagem: BA, Juni. Monkey Meat: The First Batch. Portland, OR: Image Comics, 2022. 82 Nessa edição em particular de Monkey Meat, Ba cria uma ponte com o universo dos mangás, incorporando referências visuais e temáticas de produções bastante populares. O design tanto de King Saru quanto de Haricot, por exemplo, não é apenas uma homenagem aos personagens clássicos de mangás “de lutinha”, com suas poses dinâmicas e expressões exageradas. Ele evidencia como influências podem se cruzar, se mesclar e se reinventar para configurar novos templos simbólicos. Essa conexão com a estética de mangás permite que Ba explore e expanda as possibilidades de sua arte, oferecendo um elemento visualmente atrativo para as suas histórias. Muito antes de Djeliya, a mistura de influências culturais é uma característica que se faz presente em seus trabalhos. É possível ver essa faceta em Kayin and Abeni - Afro Space Adventures, uma espécie de esboço para Djeliya, e em trabalhos feitos para a Kugali, uma antologia panafricana dedicada a contar histórias do continente, e Ndaw, quadrinho que lida com aspectos comuns aos contos populares africanos, mas em uma estrutura narrativa e visual que dialoga com influências variadas. As referências a figuras icônicas do mangá aqui expressam a relevância de produções do cenário oriental na cultura de entretenimento global e seu impacto. Em síntese, a obra de Ba exemplifica a intersecção de repertórios culturais distintos em sua arte, amalgamando elementos da cultura popular oriental, particularmente a japonesa, com temas africanos. É, portanto, um testemunho da transcendência das fronteiras culturais, criando uma ponte entre o Japão e a África Ocidental e reconfigurando simbolismos através da mistura de influências culturais. Referências biográficas Márcio dos Santos Rodrigues é doutorando em História pelo Programa de PósGraduação em História Social pela Universidade Federal do Pará (UFPA), na linha de pesquisa Arte, Cultura, Religião e Linguagens. Mestre em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), na linha de pesquisa 'História e Culturas Políticas' (2011) e licenciado em História pela mesma instituição federal (2007). Atua também como editor e tradutor de histórias em quadrinhos. E-mail: marcio.strodrigues@gmail.com Referências bibliográficas BA, Juni. Djeliya: A West African Fantasy Epic. Los Angeles: TKO Studios, 2021. BA, Juni. Djeliya: uma fantasia épica africana. Traduzido por Márcio dos Santos Rodrigues. Florianópolis: Skript, 2021. BA, Juni. Monkey Meat: The First Batch. Portland, OR: Image Comics, 2022. BRIENZA, Casey (Ed.). Global Manga: “Japanese” Comics without Japan? UK: Ashgate Publishing, Ltd., 2015. 83 CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas: Estratégias para Entrar e Sair da Modernidade. São Paulo: EdUSP, 1990. KISHIMOTO, Masashi. Naruto #1. Tokyo: Shueisha, 1999. (Coleção Weekly Shōnen Jump) MBEMBE, Achille. Afropolitanismo. Áskesis-Revista des discentes do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar, v. 4, n. 2, p. 68-68, 2015. Disponível em: https://www.revistaaskesis.ufscar.br/index.php/askesis/article/view/74 OKORAFOR, Nnedi. “Africanfuturism Defined.” Nnedi’s Wahala Zone Blog, 2019. Disponível em: http://nnedi.blogspot.com/2019/10/africanfuturismdefined.html SATURDAY-AM: https://www.saturday-am.com/ SCHODT, Frederik L. Manga! Manga!: The World of Japanese Comics. Tokyo: Kodansha International, 1983. STEINBERG, Marc. Anime's Media Mix: Franchising Toys and Characters in Japan. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2012. 84 A EXPANSÃO DO ESTILO MUSICAL KPOP E O ORIENTALISMO CRESCENTE, por Maria Carolina Stelzer Campos O debate social do orientalismo, conforme analisado por Edward Said, revelase de extrema importância ao examinarmos o fenômeno do K-pop e sua expansão global. O conceito de orientalismo destaca como o Ocidente construiu e perpetuou estereótipos e representações exóticas do Oriente, criando uma visão distorcida dessas culturas. No contexto do K-pop, essa construção orientalista influencia a forma como o gênero musical é percebido no Ocidente, muitas vezes estigmatizando-o como um mundo obscuro ou estranho. O debate social sobre o orientalismo é crucial para desafiar esses estereótipos e promover uma compreensão mais complexa e justa do K-pop como uma forma cultural genuína e diversificada. O surgimento do K-Pop e a Hallyu A expressão Hallyu tem como significado onda coreana [COSTA, 2022], esse fenômeno possui como característica principal a distribuição pelo mundo dos produtos culturais coreanos, como o gênero musical, k-pop ou as séries coreanas. De acordo com o guia sobre a Hallyu, criado pelo Serviço Coreano de Cultura e Informação “o primeiro produto sul-coreano a ter popularidade nos países asiáticos vizinhos foram os k-dramas. Os fãs internacionais dos dramas sul-coreanos começaram a enxergar o povo sul-coreano como educado, generoso e sofisticado. Assim, a Hallyu passou a ser tratada não somente como um plano lucrativo, mas também como um instrumento político poderoso para formação de opinião sobre a Coreia do Sul.” [COSTA, 2022, p. 27] A década de 1990 foi essencial para o desenvolvimento da “onda coreana”, e não por coincidência foi nessa mesma década em que o estilo musical K-pop nasce. O K-pop é um gênero musical que tem origem na Coreia do Sul e se destaca por sua rica variedade de elementos audiovisuais, e é considerado um gênero musical composto por vários ritmos musicais [COSTA, 2022]. O surgimento do gênero pode ser atribuído ao grupo Seo Taiji and Boys, um dos primeiros grupos de K-pop formado em 1992. O seu estilo musical misturou vários estilos musicais, reformulando a estrutura musical da Coreia do Sul, que até o momento era voltada para majoritariamente para músicas que possuíam letras de exaltação do país. O Seo Taiji and Boys trouxe consigo uma das mais marcantes características do Kpop: o “sistema de ídolos” – que basicamente é o ato de treinar adolescentes e jovens que desejam ingressar no meio musical com todo aparato necessário para que eles alcancem o sucesso [CUNHA, 2013]. 85 Podemos compreender como as representações do K-pop são moldadas por discursos e narrativas que têm suas raízes em contextos históricos e culturais específicos. Essas representações não são fixas ou imutáveis, mas sim produtos de um processo contínuo de construção e desconstrução cultural [CHARTIER, 1988]. Ao examinarmos a história cultural do K-pop, podemos desvendar como as representações ocidentais e orientalistas foram forjadas ao longo do tempo e, assim, questionar sua validade e impacto na construção da identidade do K-pop. Em suma, a importância do debate social do orientalismo no contexto do K-pop reside na necessidade de questionar e desafiar as representações estereotipadas e exóticas que podem obscurecer a complexidade e a diversidade dessa forma cultural. Chartier [1988] nos permite compreender como essas representações são construídas ao longo do tempo e espaço, e como as narrativas ocidentais podem moldar nossa percepção do K-pop. Ao considerarmos o debate social do orientalismo, podemos promover uma compreensão mais informada e justa do K-pop como uma expressão artística genuína e significativa que transcende fronteiras culturais. A Representação do gênero Kpop no Ocidente De acordo com Silva [2014], a identidade é construída através da relação com o outro, sendo a diferença um elemento fundamental nesse processo, então quando pensamos no K-pop e sua identidade formada no ocidente, é possível perceber que ela acaba sendo construída baseada em uma hipotética diferença entre a indústria cultural coreana e a indústria cultural ocidental. Construindo-se então um processo de estigmatização do K-pop no Ocidente. As percepções ocidentalistas e estereotipadas sobre o K-pop muitas vezes destacam suas diferenças culturais em relação à música popular ocidental, o que pode levar à marginalização e à visão do K-pop como um gênero musical "estranho" ou "exótico", e seus fãs podem ser rotulados como fanáticos ou marginais. A estigmatização do K-pop no Ocidente está enraizada nesses preconceitos culturais e ideias estereotipadas sobre a cultura asiática. Essa estigmatização pode ser atribuída à dinâmica de poder entre os grupos [ELIAS; SCOTSON, 2000] estabelecidos no Ocidente, que tendem a ser dominantes culturalmente, e o K-pop, que é visto como um gênero musical outsider em relação ao cenário musical ocidental. À medida que o K-pop continua a ultrapassar as fronteiras culturais e a conquistar um público cada vez maior, sua identidade se torna mais complexa e multifacetada. A rejeição e estigmatização enfrentadas pelo K-pop no Ocidente não impedem sua expansão global, mas, em vez disso, tornam-se um componente importante na formação de sua identidade única e influente na cena musical mundial. Essa expansão e a popularidade global do K-pop o levou a ocupar diferentes espaços em todo o mundo, tornando-se uma força cultural transnacional, podendo ser vista como uma forma de exercer poder cultural e influência, mas também pode levar a delimitações e estigmatizações. O espaço, como 86 explorado no livro "História, Espaço e Geografia" de Barros [2017] é muito mais do que um simples cenário físico; mas sim um lugar de poder e significado, sendo construído e moldado por relações sociais, políticas e culturais, onde ocorrem então as dinâmicas de poder. A forma como o espaço é organizado e utilizado reflete as hierarquias e desigualdades presentes em uma sociedade, tornando-se uma ferramenta importante para exercer controle, influência e exclusão. O espaço pode ser delimitado por fronteiras físicas e simbólicas, criando divisões entre diferentes grupos sociais. Essas delimitações espaciais podem ser usadas para reforçar estigmatizações, segregando e marginalizando aqueles que são considerados diferentes ou desviantes das normas estabelecidas. E no contexto do mundo Kpop, o espaço também desempenha um papel significativo nas dinâmicas de poder e estigmatização. O Orientalismo O conceito de orientalismo, conforme apresentado por Edward Said, aborda as representações e construções culturais do "Ocidente" em relação ao "Oriente". Said argumenta que o orientalismo é uma forma de pensamento que coloca o Ocidente como superior e o Oriente como inferior, resultando em estereótipos e visões distorcidas dos povos orientais e de suas culturas. Essa visão dicotômica cria uma narrativa de poder, na qual o Ocidente se posiciona como dominante e civilizado, enquanto o Oriente é retratado como exótico e bárbaro [SAID, 2007]. Essa perspectiva orientalista não só influenciou as relações coloniais, mas também continua a moldar as percepções e interações entre o Ocidente e o Oriente atualmente. Barros [2017] acaba dialogando com o conceito de orientalismo de Said [2007], ao abordar como o espaço geográfico é uma construção social e cultural, que reflete relações de poder e dominação. A geografia, como disciplina acadêmica, muitas vezes perpetuou visões eurocêntricas e ocidentalistas do mundo, relegando outras culturas e espaços a posições subalternas. Barros [2017] destaca como o conhecimento geográfico, ao longo da história, tem sido utilizado para legitimar as ações coloniais e imperialistas do Ocidente, reforçando a ideia de superioridade ocidental sobre outras culturas e territórios. Essa geografia eurocêntrica e ocidentalista contribui para a criação de fronteiras simbólicas e reais, que separam o "Ocidente civilizado" do "Oriente exótico" e, assim, reforçam a narrativa orientalista de Said [2007]. Além disso, Barros [2017] também explora como o espaço é uma arena de poder, onde se desenrolam dinâmicas de dominação, exclusão e estigmatização. Os espaços são delimitados e organizados de acordo com relações de poder, criando lugares de inclusão e exclusão social. Através do orientalismo, as culturas e povos orientais são frequentemente estigmatizados e marginalizados, sendo relegados a espaços subalternos na narrativa global. O orientalismo contribui para a construção de uma identidade do "Outro", que é visto como diferente e inferior [SILVA, 2014], e, consequentemente, subjugado pelos valores e normas do Ocidente. Essa dinâmica de poder no espaço geográfico perpetua visões distorcidas e estereotipadas das culturas orientais. 87 O sucesso global do K-pop é frequentemente retratado como um fenômeno exótico e oriental, alinhando-se com as representações orientalistas do "Oriente misterioso" [SAID, 2007] que fascina o Ocidente. O espaço do K-pop é delimitado e organizado por relações de poder, onde os fãs e seguidores ocupam um lugar de inclusão e os críticos podem estigmatizar o gênero musical e seus artistas, encaixando-os em visões preconceituosas de uma cultura estrangeira e inferior. A Hallyu, embora seja uma forma de expressão cultural coreana, também é afetada pelas relações de poder e representa um espaço onde a identidade e a diferença [SILVA, 2014] são construídas e negociadas entre o Oriente e o Ocidente. Em um artigo na revista “El país”, é possível analisar traços do orientalismo presente em alguns discursos. Abaixo é possível ver alguns trechos onde se descrevem o universo da indústria do k-pop “Quase sem contato com o mundo exterior, ensaiavam 14 horas diárias, com um só dia livre a cada duas semanas. A indústria do k-pop projeta uma imagem moderna, saudável e positiva da Coreia do Sul, mas seu sistema de fabricação de estrelas esconde contratos abusivos, a anulação do indivíduo e condições sub-humanas.O k-pop nasceu com uma formulação quase matemática: bases musicais sintéticas de hip hop, rock, eurodance, funk, reggae, techno, disco e country, com sons africanos, árabes e asiáticos. Sua estética de fantasia de animação se adaptou ao olhar lascivo do erotismo ocidental. O k-pop, um híbrido de todos os produtos populares do planeta, é a sublimação da globalização. Nos Estados Unidos, as estrelas nascem; na Coreia do Sul, são fabricadas. Mas os que conseguem se formar são máquinas perfeitas de fazer pop, com uma energia e entusiasmo que jamais fraquejam (as câmeras estão constantemente voltadas para eles) e coreografias sincronizadas que os fazem parecer clones digitais. ‘Costumamos praticar danças com pesos de 4 quilos atados aos tornozelos durante dias, para assim nos acostumarmos a esse peso e depois nossos movimentos ficarem mais leves ‘ A cantora JinE, do Oh My Girl, teve que tirar um período de descanso quando a anorexia a levou a pesar pouco mais de 30 quilos, com altura de 1m59. Sojung, do Ladies 'Code, disse que sua dieta diária consistia em uma laranja, 15 tomates-cereja e um pedaço de abóbora, e que fazia um ano que não menstruava.” [SANGUINO, 2020] Todos esses discursos trazem aspectos extremamente problemáticos na indústria do entretenimento musical coreana, entretanto o que chama a atenção, não são os problemas apresentados, e sim o julgamento que esses problemas acontecem unicamente no universo do K-pop. Em especial quando o artigo faz a comparação entre os Estados Unidos e a Coréia do Sul, apontando que os artistas sul coreanos seriam frutos de uma máquina de produção, e um dos argumentos seguintes para tal afirmativa, é de que os idols coreanos participam de treinos exaustivos de canto e dança. Um exemplo desse treinamento seria o uso de pesos nas pernas enquanto as artistas executam seus treinamentos de dança, esse fato é apontado como um 88 ponto fora da curva e algo totalmente inesperado e ruim, entretanto é algo extremamente comum no meio da dança, utilizado por dançarinos profissionais e até mesmo pelos não profissionais. Nesse pequeno exemplo é possível perceber o orientalismo e a reafirmação do Oriente como um local exótico, com problemas exclusivamente de lá. Em especial, outro exemplo que é interessante a observação, é a descrição de uma idol com distúrbios alimentares, mais uma vez sendo retratado como um problema exclusivo do mundo do k-pop, entretanto, esse é mais um problema extremamente comum no meio do entretenimento mundial. A artista Demi Lovato, é um exemplo no meio artista ocidental, de vários artistas que falaram abertamente sobre como a pressão estética é extremamente forte no meio musical e do entretenimento. Considerações Finais O conceito de orientalismo [SAID, 2007] nos alerta sobre a tendência do Ocidente em construir narrativas de poder e superioridade em relação ao Oriente, alimentando estereótipos e visões distorcidas. Essa perspectiva orientalista tem sido historicamente utilizada para justificar a dominação colonial e imperialista, perpetuando a ideia de que a cultura ocidental é civilizada e avançada, enquanto a cultura oriental é exótica e inferior. No contexto do K-pop, essa dinâmica pode ser vista quando o gênero musical é retratado como uma forma de entretenimento estranha e exótica, reforçando estereótipos sobre a Coreia do Sul e seus artistas. O espaço do K-pop também é influenciado por dinâmicas de dominação e poder, onde o gênero musical ocupa diferentes lugares de poder na narrativa cultural global. Enquanto alguns fãs encontram identificação e pertencimento no espaço do K-pop, outros podem estigmatizá-lo, colocando-o em um lugar subalterno e exótico. Essas delimitações espaciais contribuem para a perpetuação das desigualdades e injustiças, que afetam não apenas o K-pop, mas também outras formas de expressão cultural oriundas do Oriente.] Promover um diálogo intercultural respeitoso e inclusivo é fundamental para combater a estigmatização e as dinâmicas de poder que afetam o K-pop e outras formas de cultura oriental no cenário global. É necessário questionar as representações simplistas e distorcidas, buscando compreender a complexidade das culturas asiáticas e suas contribuições para a diversidade cultural do mundo. E isso não significa ignorar as problemáticas e os erros presentes, mas sim, executar as críticas sem as diferenciá-las e sem colocá-las em um meio de estereótipos. Ao fazermos isso, podemos valorizar a autenticidade e a originalidade do Kpop, respeitando sua identidade e a diversidade de seus fãs em todo o mundo. A Hallyu e o K-pop são expressões culturais influentes que transcendem fronteiras, e é através do diálogo, e da abertura que podemos promover uma apreciação significativa dessas formas de arte. 89 Referências Maria Carolina Stelzer Campos é mestranda no Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), e Licenciada em História pela UFES. BARROS, José D’Assunção. História, espaço, geografia: diálogos interdisciplinares. Petrópolis/RJ: Vozes, 2017. CHARTIER, Roger. A História cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1988. (Memória e Sociedade). COSTA, Larissa G. Silva. Mídias sociais e Hallyu: um estudo sobre a projeção no Twitter do grupo K-pop sul coreano BTS. 2022. 69 f. Monografia (Bacharel em Gestão da Informação), Faculdade de Informação e Comunicação, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2022. CUNHA, Vinícius Ferreira. A ascensão do pop coreano: o boom do K-pop a trotes de cavalo, o papel da comunicação e as articulações com o modelo pop ocidental. 2013. 49 f. Monografia (Bacharel em Comunicação Social – Jornalismo), Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013. ELIAS, Norbert; SCOTSON, John. L. Os estabelecidos e os outsiders. Rio de Janeiro: Jahar, 2000. SAID, Edwuard W. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. SANGUINO, Juan. Sob a perfeição do K-pop, contratos leoninos, dietas radicais e vigilância contínua. El País, 28 out. 2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/cultura/2020-10-28/sob-a-perfeicao-do-k-pop-contratosleoninos-dietas-radicais-e-vigilancia-continua.html. Acesso em: 20 jul. 2023. SILVA, Tomaz Tadeu (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis/RJ: Vozes, 2014. 90 EM LOUVOR A “JAPONIZAÇÃO”: O ADVENTO DAS ANIMAÇÕES COMO INSTRUMENTO DE INFLUÊNCIA NA CULTURA JUVENIL BRASILEIRA, por Paulo Augusto Balbi de Oliveira Com o advento das comunicações, em particular a internet, streamings e das redes televisivas, estamos cada vez mais conectados com diversas pessoas, países, culturas, produções e conteúdo que circundam o mundo. Entre eles a cultura Pop, especialmente a japonesa, popular no Brasil e em diferentes espaços territoriais no planeta, faz cada vez mais parte do dia a dia das pessoas, especialmente, do público jovem, “compreendida na faixa de 15 a 24 anos” (Dayrell; Gomes, 2009, p. 4). Podemos entender a ideia de cultura, segundo Roniel Sampaio Silva (2022), como “o conjunto de valores, normas, crenças, costumes, artefatos e práticas compartilhados por um determinado grupo social. Esses elementos culturais são transmitidos de geração em geração e moldam a forma como os indivíduos percebem e interagem com o mundo” enquanto o Pop se remete àquilo que é popular. Tendo isso em vista, a cultura pop japonesa pode ser definida segundo à entrevista de Crtiane A. Sato ao site Cultura Japonesa, como o “[...] conjunto das manifestações culturais industrializadas produzidas no Japão. [...] se estende à tevê, ao cinema, à moda e ao comportamento. A cultura pop japonesa mistura história com modernidade e tradições com modismos, e é isso que atrai a atenção do mundo para o país”. E, tendo isso em vista; o Japão, de acordo com Célia Sakurai (2007), passou a influenciar as pessoas além de suas fronteiras, principalmente no quesito cultural. E a principal expressão dessa manifestação cultural japonesa, é o advento das animações, tambéms conhecidos como animes. Esses animes, segundo o site japonês.net (2011), “são os desenhos animados produzidos no Japão” onde carregam diversos traços culturais, sociais e políticas. Essa questão acaba abrindo um “leque” de oportunidades para investigar acerca desse advento e, principalmente, quais os impactos que isso acaba por influenciar no outro, considerando uma espécie de “hibridismo cultural”. Peter Burke (2010) e Ary Batista Neto (2019) pontua que temos de um lado o enriquecimento cultural, mesmo sabendo que ocorre em detrimento de uma parte, e de outro lado, uma espécie de estratégia que acaba beneficiando uma cultura e interferindo em outras. Porém a ideia de “Hibridismo Cultural” segundo Stuart Hall, acaba nos dando ainda mais formas de se pensar esse advento da cultura Brasil-Japão, sendo as influências externas na cultura nacional que corrobora tanto para desvincular as identidades de um lugar, de uma história e de um arcabouço de tradições, que segundo Tabet; Souza; 91 Baeta (2016), acaba “constituindo uma grande, por assim dizer, fusão de situações e caracteres díspares, para se produzir novas formas de cultura”. As identidades culturais, nesse processo de contato com o outro, há uma fragmentação da identidade do sujeito em função de diluições das fronteiras culturais, o que no caso do Brasil, tendo em vista o crescente consumo de cultura pop japonesa, interfere tanto no estilo de roupa a utilizar ou nas próprias tradições ao se desvincular de uma ideia propagada em seu meio e se vincular, por contato com outra cultura, à uma outra ideia. Porém isso acarreta um problema que ainda é muito consolidado, tendo em vista a experiência de estudantes bolsistas de pesquisa do MEXT, JICA ou de outros meios, que acabam sofrendo xenofobia durante seu tempo estudando no Japão, sendo as forças contrárias às fragmentações que tendem a se fortalecer no intuito de proteger suas tradições, como é o caso do Japão, onde, apesar da grande influência dos Estados Unidos advindo do póssegunda guerra, passam a incorporar elementos de suas tradições, costumes, moda, e diversas outras características em animações. Além disso, outra questão que acaba por acarretar no hibridismo, são as “imagens canônicas” abordadas por Elias Thomé Saliba (2007). Para Saliba, as “imagens constituem pontos de referência inconscientes, sendo, portanto, decisivas em seus efeitos subliminares de identificação coletiva. São imagens de tal forma incorporadas em nosso imaginário coletivo, que as identificamos rapidamente” (SALIBA, 2007, p. 88). Onde entramos na ideia de Walter Benjamin (2017), como estes imaginários influenciam no nosso comportamento, como transmitimos, como vemos a realidade através destes signos mentais, etc. Essas imagens, muitas vezes produzidas e difundidas pelo contato com o outro, e, principalmente, pela cultura Pop, acaba por criar certo imaginário especifico de cada cultura, o que corrobora com o que é construído e absorvido pelos jovens que, comumente, consomem esses conteúdos. É claro que dependendo do grau que isso ocorre, tendo em vista que, segundo Dayrell (2005), é necessário levar em consideração a posição social dos jovens e suas particularidades em contextos sociais, históricos e culturais distintos. Diante dessas questões, podemos pensar ainda mais nas animações, tal como qualquer produção, contendo certas intencionalidades, afinal, assim como um fotógrafo tira uma foto de um local especifico que ele quer, também ocorre isso em quaisquer produções diversas. No caso do Japão, elas não são diferentes. Segundo Paulo (2019), durante o imperialismo Japonês, sua expansão e “veiculação de sua ideologia, o Japão investiu tanto no cinema quanto na animação, tendo em vista seu potencial educacional”, é o período em que começa a surgir a indústria das animações que traziam temas referentes à cultura japonesa e construção de uma identidade japonesa. Essa ideia é percepítivel até os dias atuais, onde temos grande parte das animações, seja nas próprias histórias e, ou, nas imagens, características baseadas em mitologias, lendas, histórias e crenças japonesas, como é o caso do Naruto (2007). Na obra há a utilização da raposa de nove caudas, se 92 referindo às entidades ligadas à mitologia nipônica, como a kitsune (raposa), as Kyuubi, além de costumes, roupas, termos como “ninja” e diversos outros fatores, que vão ligar à ideia de imagem canônica no imaginário dos jovens e, ao mesmo tempo, sustentar a ideia de hibridismo cultural, no qual, parte do que entra em contato com o indivíduo é absorvido e desvinculado com ideias prévias advinda de sua própria cultura. Outra animação, que é possível pensar, é Jujutsu Kaisen (2020), que traz um tema em sua história e também em sua arte, ligada ao sobrenatural religioso japonês, o que fortalece ainda mais o imaginário do indivíduo acerca do tema ou da própria ideia do que é o “Japão”. Além disso, é possível identificar outra característica comum em todas essas animações, tal como evidencia Neto (2017, p. 30), “os horrores do nacionalismo na Segunda Grande Guerra tornam os heróis dos mangás em heróis da humanidade, defensores da paz”. Há essa característica de heróis e defensores da paz nessas animações apresentadas, como se fosse um ideal e uma intencionalidade que busca a se difundir, o que corrobora com a ideia de construção de uma identidade japonesa e, além disso, acaba propaganda essas ideias para o público jovem, que acabam sendo influenciadas de modo tão profundos que criam uma relação entre os consumidores para com o produto, havendo, por exemplo, a própria idealização dos indivíduos enquanto pertencentes daquela história, ocorrendo, como uma dessas idealizações, a própria vontade de customizar-se com a intenção de representar uma personagem específica, fora a própria influência que esse pensamento acaba corroborando para a construção do indivíduo em sociedade. Tendo essas questões em vista, podemos identificar, no Brasil, uma proporção crescente ao consumo segundo o site Jovem Nerd (2017), “Durante o Anime Slate 2017, a Netflix divulgou um mapa de calor mostrando os países que mais assistem animes ao redor do globo”, evidenciando o Brasil com uma cor em maior destaque em relação à diversos outros países. Fonte: https://jovemnerd.com.br/nerdbunker/brasil-esta-entre-os-paises-quemais-assistem-anime-no-mundo/ 93 O consumo é tão intenso que, segundo a reportagem da AnmTV (2022), cada vez mais expande a quantidade de animações dubladas para o português, especialmente realizadas pelos Streamings. Além desta questão, uma consequência desse aumento de expressão dessas culturas, é a criação de eventos de cultura pop, como é o caso do recém criado Campo Geek em Campo Mourão, Paraná, que surgiu em 2019, sendo a primeira edição do evento em 14 e 15 de março de 2020 ou da Animes Friends, o mais expressivo festival de cultura pop asiática da América Latina há pelo menos 20 anos segundo o G1 (2023). É claro que, em grande parte, as redes televisivas e, atualmente, de Streaming, sendo observado até o presente momento em diversos catálogos, como a do Prime Vídeo e a Netflix, e também Streamings próprios, como a Crunchyroll, são as responsáveis por grande parte da difussão dessa cultura no Brasil, contendo inúmeras animações japonesas. Além disso, é possível encontrar incontáveis sites ilegais que acabam publicando essas animações na internet, aumentando ainda mais a difusa do conteúdo. Este tipo de conteúdo é presente no Brasil, segundo o site Super Interessante (2018), desde os anos 1960, transmitidos, inicialmente, pela antiga TV Tupi e a Record, como Speed Racer e Zoran. Segundo NETO (2017, p. 31), “Os anos 1990 marcam a decadência dos live-actions e o boom do animê”. Após isso, diversos canais brasileiros, foram palco para essas animações, como a Globo, a SBT e a Rede TV, onde produções como Cavaleiros do Zodiaco (1986) e Sailor Moon (1992) eram altamente populares. Atualmente, no meio acadêmico, se pegarmos os estudos acerca do Japão no Brasil, é possível encontrar uma boa quantidade acerca de referências sobre a questão das animações japonesas. Grande parte dessas pesquisas buscadas se pautam em sua própria história como é o caso de FARIA (2008), que evidencia um contexto histórico e um estudo acerca das animações em geral, o que acaba por corroborar com a ideia das intencionalidades revelando certas características sobre essa forma de expressão japonesa. Também podemos ver acerca da presença da cultura pop japonesa no Brasil de Neto (2017), bem, como também, aspectos referentes a indústria cultural, onde traça alguns elementos acerca desses produtos culturais, observável também na pesquisa de Urbano (2013), onde apreciadores mais imersivos da cultura japonesa acaba por ter atuações práticas na sociedade, como são os casos dos eventos de animes e os cosplays. Outro elemento que podemos destacar para o debate acadêmico, é a identidade que é trazida em questão por Carlos (2010), em que relacionam a formação de identidade de indivíduos que acabam por consumir essas produções. Porém, diante a todas essas questões apresentadas, foi observado que há uma lacuna nessas pesquisas, no que consiste em como essas animações afetam, ou melhor, influenciam a cultura juvenil no Brasil, tendo em vista que os maiores consumidores dessas produções são os jovens e, em grande parte, entram em contato excessivamente pelas mídias. 94 Com essas características evidenciadas, farei uma análise ainda mais profunda de duas animações escolhidas, Jujutsu Kaisen (2020) e Naturo: Shippuden (2007) sendo as mais assistidas em 2022 segundo o site Married Games (2022), e disponíveis no streaming da Crunchyroll, onde pode nos ajudar a entender e a evidenciar as características culturais japonesas e práticas que acabam afetando o imaginário, como, por exemplo, no caso das imagens canônicas, e as suas influências, como é a questão do hibridismo cultural, além também de evidenciar, no decorrer das análises, outras questões que nos ajude a entender sobre esse advento das animações japonesas no Brasil. Em uma outra parte da pesquisa, será utilizada como fonte, para se tornar mais evidente essa relação aos impactos , e, também, a proporção dessas animações no Brasil, será realizado uma pesquisa em algum colégio da rede básica estadual, em especial, turmas de ensino médio, de preferência, uma sala de cada ano (1°, 2° e 3º), de Campo Mourão-PR, procurando compreender como as animações são representadas e consumidas pelos alunos, em virtude de seu perfil juvenil. Diante de todas essas questões, evidencio, até o presente momento, que a justificativa para esta pesquisa se pauta, além de estar vinculado a uma perspectiva pessoal, na qual me declaro um entusiasta da história e cultura japonesa, assim também, suas produções, como os quadrinhos japoneses conhecidos como mangás e as animações, esta pesquisa têm intenção de corroborar para com os estudos acerca do Japão no Brasil, no qual encontrase uma carência tanto de fonte, como visto a questão do idioma, quanto de um vasto arcabouço historiográfico. E, também, contribuir para com o debate sobre as influências que produções com viés cultural acaba gerando acerca do comportamento, no imaginário e nas práticas dos jovens sobre as animações japonesas no Brasil, o que torna relevante esta pesquisa. Referências Paulo Augusto Balbi de Oliveira é graduando do curso de História da Universidade Estadual do Paraná, campus de Campo Mourão, e, até o presente momento, residente do programa da Residência Pedagógica. Contato: pauloaugustobalbi@gmail.com Abbade, João. Brasil está entre os países que mais assistem anime no mundo, 2017. https://jovemnerd.com.br/nerdbunker/brasil-esta-entre-os-paises-quemais-assistem-anime-no-mundo/; Anônimo. Campo Geek, 2020: https://campogeek.com/; Anônimo. O que são Animes?, 2011. https://www.japones.net.br/o-que-saoanimes/; BENJAMIN, Walter. Imagens de pensamento. Sobre o haxixe e outras drogas. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. 95 BRITO, Quise Gonçalves; GUSHIKEN, Yuji. Animê: o mercado de animações japonesas. Congresso: XIII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Centro-Oeste. Cuiabá, 8 a 10 de junho, 2011. BURKE, Peter. Hibridismo Cultural. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2010. CARLOS, Giovana Santana. Identidade(s) no consumo da cultura pop japonesa. Lumina, Revista do Programa de Pós-graduação em comunicação. Vol.4, nº2, dez. 2010. DAYRELL, J.; GOMES, N. L. A juventude no Brasil. Belo Horizonte: Observatório da juventude, 2009. DAYRELL, J. Juventude, grupos culturais e sociabilidade. Jóvenes-Revista de Estudios sobre Juventud, México, ano 9, n. 22, p. 296-313, jan/jun 2005. FARIA, Mônica Lima de. História e narrativa das animações nipônicas: algumas características dos animês. In: Actas de diseño, Buenos Aires, v.5, p.150-157, jul/agosto. 2008. GUSHIKEN, Yuji; HIRATA, Tatiane. Processos de consumo cultural e midiático: imagem dos ‘Otakus’, do Japão ao mundo. Intercom – RBCC São Paulo, v.37, n.2, p. 133-152, jul./dez. 2014. Meireles, Rafael. Top 30: Os Animes Mais Assistidos Do Mundo Em 2022, 2022. https://marriedgames.com.br/dicas-guias/animes-mais-assistidos-domundo/; MEIRELES, Selma Martins. O Ocidente Redescobre o Japão: O Boom de Mangás e Animes. Revista de Estudos Orientais, [S. l.], n. 4, p. 203-211, 2003. NETO, Ary Batista. “hibridismo estratégico” como característica de uma identidade japonesa e sua utilização nos animês. Simpósio: III Seminário Nacional de Pesquisa em História Social História, margens e fronteiras. pp. 12, 2019. NETO, Ary Batista. Mangás e Animês: A cultura pop japonesa no Brasil. TCC: História, pela Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES. São Francisco, pp. 56, 2017. PAULO, Inajara Barbosa. Os Cartoons vão a Guerra: A Representação do Japonês, do Nazista e do Estadunidense nos Desenhos da Warner Bros. (1942-1945). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Paraná. Curitiba. 2019 Oráculo. Qual foi o primeiro anime lançado no Brasil? E o primeiro mangá?, 2018. https://super.abril.com.br/coluna/oraculo/qual-foi-o-primeiro-animelancado-no-brasil-e-o-primeiro-manga/; 96 Regis, Diego. Crunchyroll anuncia novos animes dublados em sua plataforma, 2022. https://anmtv.com.br/crunchyroll-anuncia-novos-animes-dublados-emsua-plataforma/; SALIBA, Elias Thomé. As imagens canônicas e a história. In: História e cinema: duas dimensões históricas do audiovisual. Tradução. São Paulo: Alameda, 2007. Sakurai, Célia. Os Japoneses. Editora contexto. São Paulo, 2007. Sato, Critiane A.. Autora de JAPOP: O Poder da Cultura Pop Japonesa, 2012. http://www.culturajaponesa.com.br/index.php/entrevistas/cristiane-a-sato/ Silva, Roniel Sampaio. O que é cultura?, 2022. https://cafecomsociologia.com/oque-e-cultura/; SP, G1. 'Anime Friends' comemora 20 anos de festival de cultura asiática com shows e concursos de cosplay em SP, 2023. https://g1.globo.com/sp/saopaulo/noticia/2023/07/15/anime-friends-comemora-20-anos-de-festival-decultura-asiatica-com-shows-e-concursos-de-cosplay-em-sp.ghtml; Tabet, Ciro José; Souza, Rosalia Beber de; Baeta, Odemir Vieira. Hibridismo cultural e identidades nas organizações: uma possibilidade analítica. Revista Espacios. ISSN 0798 1015. Vol. 37 (N° 34), 2016. URBANO, Krystal. Fãs, Cultura Otaku e o “consumo da experiência” dos animes no Brasil. X POSCOM Seminário dos Alunos de Pós-Graduação em Comunicação Social da PUC-Rio. Rio de Janeiro, 2013. URBANO, Krystal. ARAUJO, Mayara. O fluxo midiático dos animês e seus modelos de distribuição e consumo no Brasil. AÇÃO MIDIÁTICA, n. 21, jan./jun. 2021, Curitiba. PPGCOM - UFPR, ISSN 2238-0701. 97 CULTURA E DINÂMICA SOCIAL, A PARTIR DA DISCUSSÃO DO FILME: RAN (1985), DE AKIRA KUROSAWA, por Rafael Egidio Leal e Silva Este artigo tem por objetivo analisar e relacionar o tema da cultura e do comportamento social no filme Ran (1985) de dirigido por Akira Kurosawa (1910-1998), a partir da historicidade da obra de arte. Tal proposta justifica-se plenamente, pois, ao nosso ver, a análise de filmes é de grande relevância tanto ao cientista da área de Ciências Humanas, como ao futuro educador. Os filmes podem conter elementos válidos para a interpretação/observação de determinada situação social ou cultural, sob determinada teoria. Serve, por outro lado à prática do educador pois esses mesmos elementos norteadores da pesquisa científica poderão servir de apoio pedagógico para debates, trabalhos, ou mesmo para o despertar de uma visão mais crítica da realidade social em sala de aula. A formação educativa implica em muito mais que a apreensão de conteúdos ditos científicos, ou da realidade social (ainda mais considerando as Ciências Sociais e Humanas) mas também na formação humana integral e assim, as artes devem servir de subsídios para uma compreensão de homem mais próxima dessa concepção. Os filmes como forma de arte guardam uma particularidade bastante interessante. É considerada uma das últimas formas de arte, já inserida no contexto de uma indústria de entretenimento. Assim, as produções fílmicas envolvem centenas de pessoas, entre artistas e técnicos. A tecnologia envolvida também deve ser considerada, uma vez que como entretenimento, os filmes procuram atrair o grande público, com a promessa de diversão a qualquer custo, considerando também que a produção de um filme é extremamente cara. No entanto, o filme aqui analisado é mais voltado a um publico específico, e daí ser considerado um filme de “arte” (em contraposição ao “enlatado”, em referência ao filme industrial, dos grandes públicos. No entanto, a vida reproduzida no cinema é datada, ou seja é produzida em contexto histórico, o que corresponde à modernidade capitalista: “Cada época crea sua arte. Las grandes épocas, las épocas en que la humanidad vive una vida particularmente elevada e intensa, en que se producen cambios sociales que ponen en movimiento a masas populares de millones de seres, dan vida a un gran y elevado arte.” (Korin, [s.d.]: 93). A análise aqui será pautada pela observação histórica da materialidade retratada na película. Desta forma, Ran (1985) apresenta a sociedade japonesa feudal do século XVI, principalmente o momento de destruição do poderoso clã nobre Ichimonji, e da própria decadência da nobreza japonesa. O filme é inspirado na peça de teatro de W. Shakespeare, Rei Lear (2016), que conta a história do Rei que vê a destruição de seu reino após dividi-lo entre suas filhas. 98 Desta forma, como relacionar a estória shakesperiana, típica da Inglaterra na transição do século XVI-XVII, com o Japão Feudal? E ainda devemos considerar que Ran (1985) é uma obra de arte do fim do século XX, portanto, guarda ali todas as suas contradições da época e da sociedade que o produziu. A primeira observação geral que faremos é que a arte, e qualquer outra produção da sociedade humana, implica na existência de indivíduos humanos vivos. Assim, acerca de que homens estamos falando? Como poderíamos apreender esse homem? O homem, nesta visão, não poderia ser um modelo ideal com validade universal, mas deve ser apreendido historicamente, em sua realidade humana e material de cada época e espaço em questão. Assim, o homem passa a ser visto a partir de sua produção material, ou seja a produção dos meios necessários para sua manutenção no mundo, e não mais como o produto do mundo. “A maneira como os indivíduos manifestam sua vida reflete exatamente o que eles são. O que eles são coincide, pois, com sua produção, isto é, tanto com o que eles produzem quanto com a maneira como produzem. O que os indivíduos são depende, portanto, das condições materiais de sua produção.” (Marx & Engels, 2002, p. 11) O pensamento marxiano conclui, assim, que cada época resulta na configuração de um determinado tipo de homem. No entanto, a história é dinâmica, refletida nas necessidades dos homens, que produzem os meios de satisfazê-las, e na formação de classes sociais, que, pela divergência de interesses e pela oposição na forma de produzir a realidade, estão em verdadeira luta – a luta de classes. Em um processo dinâmico e histórico, em determinado momento a estrutura econômica desenvolvendo-se em outro sentido (por exemplo, a transformação do modo feudal para o capitalista) passa a conflitar com a superestrutura jurídica e política, comprometida com a manutenção da antiga ordem. Desses entraves, surgem um momento de revolução social, de renovação da superestrutura, onde ela passará a se adequar à nova realidade. E como a teoria da materialidade pode ser apreendida em um filme, especificamente, Ran (1985)? Ran significa caos em japonês, inicia quando o poderoso Lorde Hidetora Ichimonji resolve dividir seu feudo entre os três filhos: Taro, Giro e Saburu, conservando para si o título e os privilégios de grande Lorde, além da guarda pessoal e a moradia de sua corte em um de seus castelos. Taro e Giro ambiciosamente concordam com o pai e Saburu, o filho mais novo, discorda veementemente desta atitude. Há um elemento importante aqui que Hidetora, senil naquele momento, foi um grande guerreiro no passado que conquistou a custa de muito sangue os feudos que compunham o vasto território de seu reino. Hidetora angariou para si uma infinidade de inimigos, inclusive dentro de sua própria família, já que suas noras Kaede (esposa de Taro) e Sue (esposa de Giro) tiveram suas famílias massacradas e seus castelos arrasados por ele. 99 Kaede tem em si o desejo de vingança com a destruição completa do clã Ichimonji. Sue, budista, preferiu o perdão ao sogro. Hidetora, contrariado, deserda Saburu e divide as terras entre os filhos. Contudo, a previsão de Saburu se realiza: Taro, influenciado por Kaede, resolve extinguir os privilégios do pai, fazendo-o assinar um contrato, onde ele abria mão dos privilégios de Grande Lorde. É interessante pensarmos aqui que o contrato é uma figura jurídica e que, portanto, faz parte da superestrutura da sociedade. A história se passa em um momento de grande transformação social no Japão: “Na segunda metade do século XVI, uma série de guerras civis massivas entre os principais potentados daimyo levaram a uma unificação vitoriosa do país por sucessivos comandantes militares” (Anderson, 2004, p. 348). Assim, a estrutura feudal estava em profunda crise, e sendo assim, o filme trata de uma sociedade que estava desaparecendo. Ante a figura do contrato, Hidetora não sabe como agir, uma vez que em sua sociedade o contrato escrito não tinha a mesma validade da palavra empenhada com honra. Hidetora assina o contrato como uma profunda ofensa. É interessante notarmos o choque que o nobre tem com os atos dos filhos. O Japão é caracteristicamente uma sociedade que preza fortemente os laços familiares, sendo que isto também era muito forte entre a nobreza, mais até que a nobreza européia, comparativamente: “O feudalismo europeu sempre foi abundante em disputas interfamiliares e caracterizado por extrema litigiosidade; o feudalismo japonês, entretanto, não só careceu de qualquer tendência legalista, mas seu arranjo quase patriarcal tornou-o mais autoritário pelos direitos paternos extensivos de adoção e deserdação, que efetivamente reprimiam a insubordinação filial do tipo comum na Europa.” (Anderson, 2004, p. 348). Tanto a indignação de Saburu quanto a audácia de Taro foram uma novidade para o mundo de Hidetora. No entanto, com a transformação do modo de produção japonês, a superestrutura política, jurídica e familiar também se alterava, e essas eram as condições que o ex-guerreiro deveria enfrentar. É interessante notarmos que Shakespeare também soube mostrar em seus personagens as transformações que a modernidade trazia, com muita sutileza. O príncipe Hamlet (2016), por exemplo, ante a corrupção e a podridão que envolviam a trama que culminou na morte de seu pai o Rei da Dinamarca e que envolvia até sua mãe pelo jogo de poder sente-se um estranho na corte, mas obstinado pela vingança. O príncipe, que representa justamente o homem que vê a transformação do mundo e não se sente parte daquela realidade que lhe salta aos olhos, em determinado momento, ao fugir para a Inglaterra, encontra uma tropa de soldados noruegueses que se dirigiam a uma batalha por um feudo na Polônia. Vejamos alguns trechos do diálogo: HAMLET: Vão contra toda a terra da Polônia, Ou para alguma fronteira? O CAPITÃO: Para falar a verdade, sem rodeios, Vamos tomar uma pequena terra 100 Que nada vale além do simples nome (...). HAMLET: A Polônia não há de defendê-la. O CAPITÃO: Sim, ela já se acha guarnecida. HAMLET: Duas mil almas, vinte mil ducados, Não são o preço dessa ninharia! Esse é o abscesso da paz e da opulência, Que arrebenta por dentro e não exibe Qual a causa da morte. (...). (Shakespeare, 2016, p. 463) Vemos que o valor das coisas já se alterava. Hamlet e o capitão eram homens do mundo, e sua noção de valor já estava mais ligada ao valor burguês, ao valor do mercado: se o feudo valesse muito, o sacrifício compensaria. Hamlet se sentia estranho na corte, onde os valores da nobreza feudal vigiam, e isso o angustiava profundamente. Com Hidetora acontece o contrário. Seus valores estavam morrendo junto com ele, e a nova realidade o desesperava. O momento era, inclusive, de extrema violência. Rejeitado também por Giro (este mais ambicioso que o irmão Taro), o nobre vai para o terceiro castelo, o que seria de Saburu. Neste momento, há uma cena tão bela quanto violenta: os dois exércitos de Taro e Giro se unem para massacrar o que restara ao pai: seus guardas e suas concubinas, além da morte de Hidetora. Neste momento, Taro é assassinado por um dos asseclas de Giro, que assume o poder absoluto do feudo. Hidetora escapa com vida, apenas ele e Koyiomi, o bobo da corte, mas a insanidade toma conta dele. Um motivo é que seu passado de carnificina retorna contra ele próprio, e promovida por seus próprios filhos. Este passado vem na forma dos fantasmas de seus antigos inimigos, que são os filhos deles, para lhe assombrar, como o irmão cego e mendigo de Sue. Vem ainda, quando ele se refugia nas ruínas no castelo da família de Sue, que parece o inferno em sua jornada. Em certo diálogo, diz ao bobo: “Estou perdido”, e segue a resposta: “É a condição humana”. É interessante notarmos que em Shakespeare, e que aparece fortemente em Ran (1985), é a loucura como um desajuste à realidade. Assim como Hidetora, a jovem cortesã Ofélia de Hamlet (2000), sem conseguir entender as tramas na corte dinamarquesa que desembocaram na morte de seu pai, Polônio, pelas mãos de seu amado, Hamlet, enlouquece por não conseguir mais lidar com a transformação social a que assistia. Saburu, refugiado com outro Lorde, o Sr. Nobuhiro Fujimaki, retorna ao feudo Ichimonji com o intuito de salvar seu pai da destruição promovida por seus irmãos. Giro, também influenciado por Kaede, declara guerra contra um exército em muito superior ao seu, decretando assim o fim do feudo Ichimonji. Saburu e Hidetora são assassinados a mando de Giro, destruindo completamente a família de Hidetora (e finalizando a vingança de Kaede). O filme irá retratar a violência extrema com que se deu a acumulação primitiva japonesa. No entanto, no Japão os rumos que essa acumulação tomou foram totalmente distintos do que o ocidente. Já fizemos referência acerca da violência que tomou conta do Japão no século XVI. No entanto, vejamos os resultados dela, segundo a antropóloga cultural Ruth Benedict: 101 “No século XVI a guerra civil tornara-se endêmica. Após décadas de desordem, o grande Ieyasu obteve vitória sobre todos os rivais e em 1603 passou a ser o primeiro Xógum da Casa de Tokugawa. O Xogunato conservou-se na linhagem de Ieyasu por dois séculos e meio e terminou somente em 1868, quando o ‘governo duplo’ de Imperador e Xógum foi abolido no começo do período moderno. Em muitos sentidos este longo Período Tokugawa constitui-se num dos mais notáveis da história. Manteve uma paz armada no Japão até a última geração antes do seu término, pondo em exercício uma administração centralizada que serviu admiravelmente aos propósitos dos Tokugawa. (...) A fim de manter este difícil regime, os Tokugawa recorreram à estratégia de evitar que os senhores feudais, os daimios, acumulassem poder, impedindo quaisquer combinações entre eles, que viesse a ameaçar o domínio do Xógum. Os Tokugawa simplesmente não aboliram a organização feudal, como também, visando manter a paz no Japão e o domínio da Casa de Tokugawa, tentaram fortalecê-la e torná-la ainda mais rígida.” (Benedict, 2002, p. 56-57). Desta forma, muito embora seja um regime em decadência, ele foi mantido à força para garantir a manutenção do poder e da centralidade japonesa. Conforme esta antropóloga, a Casa de Tokugawa passou a regulamentar minuciosamente os estratos e a posição social de cada nobre, e também “os pormenores do comportamento diário de cada casta” (Benedict, 2002, p. 57), e assim, garantindo a estabilidade necessária ao seu governo. Talvez, antes de encerrarmos este texto, seja interessante fazermos referência a alguns pontos levantados por essa antropóloga, acerca da constituição da sociedade japonesa. Assim ela a caracteriza: “Tanto a espada quanto o crisântemo fazem parte do quadro geral. Os japoneses são, no mais alto grau, agressivos e amáveis, militaristas e estetas, insolentes e corteses, rígidos e maleáveis, submissos e rancorosos, leais e traiçoeiros, valentes e tímidos, conservadores e abertos aos novos costumes. Preocupam-se muito com o que os outros possam pensar de sua conduta, sendo também acometidos de sentimento de culpa quando os demais nada sabem do seu deslize. Seus soldados são disciplinados ao extremo, porém, são igualmente insubordinados.” (Benedict, 2002, p. 10-11). Benedict está mostrando aqui que a cultura japonesa é tão complexa e contraditória quanto a nossa. O olhar ocidental vê a cultura oriental, e especialmente a japonesa, como exótica e até mesmo envolta em mistério. A apreensão da materialidade histórica implica em observarmos a cultura japonesa como resultante de um processo histórico específico de acordo com a construção material e social própria dos Japoneses. A antropologia cultural, iniciada pelos estudos do alemão Franz Boas, considera a apreensão da cultura o principal aspecto a ser observado pelo pesquisador da antropologia, cultura esta sempre vista como contraditória, não apenas tomada em si mesma, mas quando comparada com a cultura de outros povos, e resultante de desenvolvimento histórico. Não pude, em meus estudos iniciais em antropologia, apreender a vinculação (ou não) com as teorias marxianas e a 102 antropologia cultural. No entanto, o estudo de Benedict é bastante idôneo, não só por não ser um estudo etnocêntrico, mas por procurar, através da materialidade da vida social dos japoneses, definir seu padrão de cultura. Assim, ela irá definir a cultura japonesa como uma cultura da ordem e da hierarquia. Os japoneses organizam sua vida dentro desses padrões, de maneira altamente contraditória, assim como os norte-americanos se organizaram contraditoriamente dentro do padrão de igualdade e liberdade: “Qualquer tentativa de entender os japoneses deverá começar com a sua versão do que significa ‘assumir a posição devida’.” (Benedict, 2002, p. 43). Quando o lorde Hidetora adentra ao seu palácio e vê Taro em seu trono, ocupando o lugar de Grande Lorde, fica extremamente contrariado, mas ainda assim se ajoelha perante o filho e lhe presta respeito. Giro, ao comunicar-lhe que seus privilégios também acabaram, no palácio sob sua guarnição ajoelhase em respeito ao pai. Estes são aspectos que aos olhos ocidentais mostram um mundo bastante diferenciado do nosso, mas que, no fundo, revela a condição humana: estamos perdidos em nossa materialidade da história. Referências Rafael Egidio Leal e Silva é professor Me. de Sociologia do Instituto Federal do Paraná Campus Umuarama. Ran. Direção de Akira Kurosawa. Japão/França: Greenwich Films Productions, 1985. (160 min.) ANDERSON, P. O feudalismo japonês. In: ____________. Linhagens do estado absolutista. 3. ed. 2. reimp. São Paulo: Brasiliense, 2004. BENEDICT, R. O crisântemo e a espada: padrões da cultura japonesa. 3.ed.São Paulo: Perspectiva, 2002. KORÍN, P. Pensamientos em torno al arte. In: El realismo socialista em literatura y el arte. Moscú: Editorial Progreso [s.d.]. MARX & ENGELS. A ideologia Alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2002. SHAKESPEARE, W. Hamlet. In: SHAKESPEARE, W. Tragédias e comédias sombrias. São Paulo: Editora Nova Aguilar, 2016. Vol. 1. SHAKESPEARE, W. Rei Lear. In: SHAKESPEARE, W. Tragédias e comédias sombrias. São Paulo: Editora Nova Aguilar, 2016. Vol. 1. 103 A PARATOPIA CRIADORA NO DRAMA BL HAPPY ENDING ROMANCE e Vitória Ferreira Doretto e Júlio Cézar de Souza Tema dos temas em diversos campos do saber [Salgado, 2020], inclusive (ou talvez, principalmente) quando tratamos de questões editoriais, a autoria não poderia não ser problematizada em um K-drama com um recorte singular do funcionamento do mercado editorial como pano de fundo. Desta forma, neste texto propomos tecer uma breve análise sobre a autoria dos personagens Cha Jung Woo e Kim Jung Hyun, dois dos personagens principais no K-drama de boys love (BL) “Happy Ending Romance” (no original, 펜스 밖은 해피엔딩 e em tradução livre, Romance com Final Feliz), a partir do conceito de paratopia criadora [Maingueneau, 2006]. Com oito episódios exibidos entre novembro e dezembro de 2022, “Happy Ending Romance” traz a história de Cha Jung Woo (interpretado por Karam), um escritor que, após denunciar a corrupção de um autor já antigo na indústria do livro, vê sua carreira promissora ser pulverizada por comentários de leitores e grandes esforços da rede de influência desse escritor poderoso. Sua vida como escritor parecia estar encerrada, mas seu veterano Kim Jung Hyun (interpretado por Leo, do grupo de K-pop VIXX) lhe apoia e assim nasce não só um romance mais complexo entre os dois (em que um é dependente do outro em níveis diferentes), mas também uma vida nova para Cha Jung Woo, agora como escritor-fantasma. Sua sinopse ainda traz algumas outras informações: “Cha Jung Woo poderia ter um futuro brilhante como escritor, se tivesse conseguido ficar em silêncio depois de testemunhar a corrupção entre seus superiores. Infelizmente, ao optar por falar contra o comportamento inescrupuloso, Jung Woo essencialmente encerrou sua carreira antes mesmo de começar. Pelo menos é assim que as coisas teriam acontecido, se Kim Jung Hyun não tivesse escolhido ficar ao lado dele. Uma das estrelas mais brilhantes do mundo literário, Jung Hyun não se assusta com a reputação manchada de Jung Woo e oferece a ele um refúgio para reconsiderar seu futuro. Fortemente protetor de seu jovem amigo, Jung Hyun fica mais do que um pouco cauteloso quando Jung Woo é abordado pelo jovem editor empreendedor, Han Tae Young. Acreditando firmemente que Jung Woo deve voltar a escrever, Tae Young está preparado para arriscar seu futuro ao fazer isso, e faz a Jung Woo uma oferta que ele não pode recusar. Mas Jung Hyun não está convencido de que os motivos de Tae Young sejam totalmente nobres. 104 Alimentado pelo ciúme e desconfiança, Jung Hyun tenta manter Jung Woo longe do ambicioso editor; mas apesar de todos os seus esforços, Jung Woo parece incapaz de resistir aos muitos encantos de Tae Young. Dividido entre o escritor que ele admira e o editor que ele não consegue resistir, onde o coração vacilante de Jung Woo irá parar?” [MyDramaList, 2022] Como indicado na sinopse, há dois autores em situações diferentes no drama. No movimento de sair dos holofotes e desenvolver uma autoria anônima, com o trabalho como escritor fantasma, as instâncias de autoria constitutivas da paratopia criadora do protagonista Cha Jung Woo mudam e ao mesmo tempo, a situação de Kim Jung Hyun como autor também é modificada quando sua popularidade amplia com as publicações das obras de Cha Jung Woo em seu nome — e são estas mudanças o foco deste texto. De partida, é necessário entender que a autoria é um lugar de pertencimento impossível, uma vez que “a existência social da literatura supõe ao mesmo tempo a impossibilidade de ela se fechar em si mesma e a de se confundir com a sociedade ‘comum’, a necessidade de jogar com esse meio-termo e em seu âmbito” [Maingueneau, 2006, p. 92] e “para produzir enunciados reconhecidos como literários, é preciso apresentar-se como escritor, definirse com relação às representações e aos comportamentos associados a essa condição” [Maingueneau, 2006, p. 89]. Assim, apenas podemos falar em paratopia se ela estiver inserida em um processo de criação (por isso, criadora) e envolve o pertencimento e o não pertencimento verdadeiro do escritor em um lugar (a sociedade e o campo/espaço literário), numa relação de negociação entre escritor e obra, escritor e sociedade e obra e sociedade. Desta forma, Maingueneau propõe que, ao pensarmos na figura de um autor, pensemos também nas unidades que o compõem, como seus aspectos pessoais, inscricionais e ligados ao reconhecimento social do pertencimento à instituição literária — a essas unidades chamamos de instâncias, denominadas pessoa, inscritor e escritor. Nessas instâncias estão contidas as características pessoais, sociais e inscricionais de uma autoria. Assim, a instância inscritor se refere ao sujeito da enunciação, abarcando os ritos inscricionais, os atos realizados pelo autor para produzir sua obra e seus comportamentos não escriturísticos. A instância pessoa se refere ao indivíduo no mundo, com estado civil, partícipe de um grupo social, de uma família etc. E a instância escritor se refere ao ator que define sua trajetória na instituição literária, ao modo de circulação de sua obra. Em resumo, a paratopia criadora é uma proposta de entendimento do funcionamento da autoria no discurso literário, formulada por Dominique Maingueneau [2006] e tributária das clássicas discussões sobre autoria na análise do discurso, em especial da noção de função-autor. Este conceito pressupõe que há o entrelaçamento de três instâncias indissolúveis que constituem a autoria: pessoa, escritor e inscritor. Uma autoria é então uma 105 forma de gestão, um funcionamento que pode também ser ficcional — e por isso podemos tratar da autoria dos protagonistas de “Happy Ending Romance”. Aliado a esse entendimento de autoria como gestão, na perspectiva dos estudos editoriais: “toda autoria se define balizada por duas posições que, extremadas, assim se apresentam: a glamourização de um gênio absoluto e a dissolução de qualquer fonte criadora. No primeiro caso, cultiva-se a ideia da inspiração dos eleitos; no segundo, o trabalho dos comuns. Nas práticas editoriais, o que se passa é a administração do jogo entre essas posições: a autoria é um ponto nodal numa rede.” [Salgado, 2020, p. 40] Assim, uma obra é feita por muitos atores dentro de um longo processo e a autoria está no início dessa feitura. E, ainda, todo autor precisa responder por o que escreve, pois: “a autoria está sempre ligada a uma autorização para dizer, conferida pela possibilidade de atestar a fonte do dizer. A legitimidade do que se diz está, assim, atrelada a um entendimento consensuado numa dada comunidade ou sociedade (a escala de reconhecimento é variável), conforme suas formas de testificação ou seus sistemas de consagração.” [Salgado, 2020, p. 40] Ao voltarmos ao drama e seus protagonistas, podemos dizer que é a denúncia de corrupção contra autores veteranos que faz com que a condição de autor de Cha Jung Woo seja modificada, pois sua “autorização para dizer” é colocada à prova pelos leitores e internautas — o que acaba por levá-lo de autor promissor para autor fantasma. Podemos então, começar a identificar as mudanças em suas instâncias de autoria. Para melhor visualização, representamos as instâncias e seu entrelaçamento com o nó borromeu conforme a representação proposta por Salgado [2010] (Figura 1): “Pensa-se aqui numa estrutura de nó borromeu; os três anéis deste se entrelaçam de modo que, se se rompe um dos três, os dois outros se separam. É-se sempre tentado a reduzir o nó a um de seus anéis: a pessoa, para a história literária, seja ela sociologizante ou psicologizante; o escritor, para as pesquisas sobre as instituições literárias; o inscritor, para os adeptos da obra ou do texto em detrimento de tudo mais.” [Maingueneau, 2006, p. 137] 106 Figura 1 – Nó borromeu representando as instâncias de autoria Fonte: adaptado de Salgado [2010]. Essa representação é modificada a partir das especificidades existentes em cada caso analisado, pois a autoria vai se configurando de acordo com o funcionamento de cada uma das três instâncias, e o funcionamento possui diferenças ligadas a cada indivíduo ou situação. Como mencionado, é no rebatimento recíproco das instâncias que se faz uma unidade autoral — os aspectos sociais, ritualísticos e pessoais que compõem a voz individualizada do autor não podem ser retiradas para que uma obra seja criada, tudo faz parte da construção do texto (em escala maior ou menor) e é retrabalhado, renegociado, afinal: “A paratopia é o clinamen que torna possível o nó e que esse nó torna possível; não se trata de alguma separação ‘inaugural’ que mais tarde se desfaria diante da obra, mas de uma diferença ativa, incessantemente retrabalhada, renegociada, diferença que o discurso está fadado tanto a conjurar como a aprofundar.” [Maingueneau, 2006, p. 137] Se observarmos os poucos traços característicos de Cha Jung Woo como autor promissor, podemos montar uma representação (Figura 2) de suas instâncias de autoria em que a instância escritor se sobressai, porque vemos que o personagem é considerado um novo autor promissor, é contratado por uma grande editora, teve bons resultados de venda de seu primeiro livro, o que significa que também ocorreu uma certa circulação de seu nome como autor, e já tinha um segundo manuscrito em processo de edição. Neste contexto, as instâncias pessoa e inscritor são menores também porque pouco se sabe sobre seus costumes e práticas de escrita e suas relações sociais — apenas sabemos sobre seu senso de justiça e moral porque a história já começa com o protagonista sofrendo as consequências de ter denunciado o veterano, o que torna sua instância pessoa um pouco maior que a instância inscritor. 107 Figura 2 – Instâncias de autoria de Cha Jung Woo como autor promissor Fonte: Elaborado pelos autores. Temos outra configuração na representação do borromeu quando identificamos os aspectos constituintes do personagem enquanto autor-fantasma. Nesta situação, suas instâncias inscritor e pessoa são maiores do que a instância escritor (Figura 3) porque são justamente os ritos inscricionais e seus aspectos pessoais que ficam em relevo. Enquanto autor-fantasma, vemos sua rotina de escrita — sempre sentado em uma cadeira simples, usando uma mesa simples num canto de um quarto pequeno no térreo da casa de Kim Jung Hyun, seu amigo e antigo interesse romântico, usando qualquer horário do dia para escrever, mas principalmente à noite — e suas relações pessoais, seus sentimentos (ele ficou abatido, triste e desmotivado por escrever mas não publicar com seu próprio nome); como o que ele escreve é publicado com o nome de Kim Jung Hyun (e é ele quem vai aos lançamentos e sessões de autógrafos) e ele não tem mais propriamente uma vida na instituição literária, sua instância escritor é menor. Figura 3 – Instâncias de autoria de Cha Jung Woo como autor-fantasma Fonte: Elaborado pelos autores. 108 Quanto a Kim Jung Hyun, no começo da história temos uma ideia geral de que sua carreira está consolidada e que além de ter popularidade com os leitores, também é bem conhecido e reconhecido por seus pares no meio literário e goza de boa reputação e muitos contatos na indústria literária. Da mesma forma, enquanto as obras de Cha Jung Woo eram publicadas com seu nome na capa e era ele quem aparecia nos eventos de lançamento e autógrafo, sua popularidade aumentou e sua autoridade como escritor também. Sendo assim, na representação de suas instâncias de autoria (Figura 4), a instância escritor se sobressai. As instâncias inscritor e pessoa não são abordadas nessa ocasião, de forma que suas representações são menores em relação à representação de escritor e são do mesmo tamanho. Ainda sobre o nome de Kim Jung Hyun em obras de Cha Jung Woo, é interessante notar que depois da primeira obra publicada a popularidade de Kim Jung Hyun aumenta, mas o editor que deseja publicar as histórias de Jung Woo consegue observar, ao "estudar" o texto, diferenças de escrita. Essa é uma das poucas, senão a única, indicações sobre o “fazer do texto” para este autor, pois mostra que as marcas de estilo de escrita, mesmo sendo tratadas ou revisadas, se mantém em uma "versão final" (e neste caso apontaram para Cha Jung Woo e não Kim Jung Hyun). Figura 4 – Instâncias de autoria de uma estrela brilhante do mundo literário Fonte: Elaborado pelos autores. Aqui é interessante notar que vimos a instância escritor ser proeminente na representação de autor promissor de Cha Jung Woo (Figura 2) justamente pelo personagem ter perspectivas que parecem ser boas, mas no caso de Kim Jung Hyun (Figura 4), ele já tem uma vida literária, já é um ator importante na indústria — já é considerado uma das estrelas mais brilhantes do mundo literário —, de forma que são duas representações parecidas, mas são duas situações quase opostas. Depois de Cha Jung Woo decidir voltar a escrever e publicar com seu próprio nome e de Kim Jung Hyun decidir recomeçar sua carreira, sem precisar do 109 peso de ter seu nome em obras que não são suas, e vendo suas relações pessoais com o próprio Cha Jung Woo e com um professor importante da universidade em que estudou que se torna editor de uma grande casa publicadora, suas instâncias são modificadas. No fim do drama, sua reputação como autor não mudou, de forma que sua instância escritor ainda é proeminente, mas sua instância pessoa ganha mais espaço, com suas relações e características de personalidade (como o desconforto por ter seu nome publicado nos livros de Cha Jung Woo ou a falta de outros amigos próximos) — entretanto, sua instância inscritor segue menor em relação às outras instâncias pela falta de informações sobre seus ritos de escrita. Figura 5 – Instâncias de autoria de Kim Jung Hyun no final do drama Fonte: Elaborado pelos autores. Essas representações nos ajudam ver como as autorias se configuram conforme cada uma das instâncias funcionam e: “Numa síntese bastante ligeira, se poderia dizer que o gesto inscricional, isto é, a tomada de palavra ou a enunciação, se se quiser, dispara a conjugação dessas três instâncias: justamente porque há um texto ensejando vida pública, é que todo o aparato de constituição desse lugar de criação ganha uma vida potencial, que pulsará em dinâmicas conjunturais específicas e, portanto, nunca modelarmente.” [Salgado, 2016, p. 10] Com isso, queremos dizer que uma autoria é formada não apenas por uma ideia de um “gênio escritor”, mas por diversos aspectos que se convergem num objeto final (as obras) e: “a perspectiva editorial nos leva a entender a autoria como transitiva, isto é, exigente de complemento que lhe dê sentido, sendo esse complemento o que demanda administração. Pode-se dizer, então, que a gestão da obra aponta para a autoria, configurando-a. Ser autor de x implica que x resulta de todo um processo levado a cabo pelo funcionamento sistêmico de um campo, de um entrecampo, de um limiar… Conhecendo x, podemos entender como uma dada 110 autoria se produz, às vezes até apagando seu processo de produção. Conhecendo x, entendemos de que modo uma obra dá sustentação a uma autoria e a projeta (ou procura projetar) para este ou aquele panteão” [Salgado, 2020, p. 43-44] Mesmo que tenhamos tratado de autorias ficcionais, os movimentos mostrados são possíveis (e até mesmo comuns) em autorias reais e sua representação ficcional é um recurso interessante para ampliar o conhecimento do público geral sobre o funcionamento do mundo literário. Ainda, é importante ressaltar que, ainda que seja uma obra audiovisual de ficção, “Happy Ending Romance” propõe uma construção de enredo e ambientação próxima, mimética, da realidade das casas editoriais sulcoreanas. Desta forma, apesar de ficcional, usá-la como recorte para análise da gestão de autoria transpassado por relações de poder, seja de conglomerados ou da opinião pública, nos permite, ao menos, compreender as dinâmicas e observar as modificações nas instâncias da autoria. Ficcionais ou reais, estas dinâmicas de autoria se estabelecem da mesma forma. Dentro do estudo de caso, é preciso considerar as especificidades socioculturais do recorte analisado. Assim, aqui ainda é necessário atentar para a força da opinião pública, majoritariamente on-line, e seu peso nas decisões — de renovação ou não de contrato, de publicação ou não de novo material, entre outros — dos grandes conglomerados editoriais. Estas, por mais que não pareçam, influem diretamente na gestão da autoria, como observamos nas breves análises apresentadas, pois interferem na própria vida do autor — por exemplo, lembramos que no caso de Cha Jung Woo, sua decisão de “sair de cena” do mundo literário se dá após o ataque que sua pessoa, enquanto ser civil, sofre e que destrói sua credibilidade como autor e o interesse de seu editor em continuar publicando obras com seu nome (e é isso que faz com que vejamos mudanças na constituição de sua autoria). Por mais que não apareça de forma alguma, o escritor-fantasma (Cha Jung Woo) possui uma gestão de autoria que difere de autores que publicam seus próprios textos sob pseudônimos. Com os segundos, a pessoa que escreve e publica se mantém a mesma, o que não ocorre no primeiro caso. Neste caso, o autor, Kim Jung Hyun, que não é o escritor neste momento da narrativa, mas assina os textos de Cha Jung Woo, possui uma gestão de autoria mais focada na sua gestão enquanto partícipe ativo do mundo literário. Por fim, este recorte nos permite compreender como a paratopia criadora é constituída no “nome final”, ou melhor, o nome que assina o texto. Referências Ma. Vitória Ferreira Doretto é doutoranda e mestra em Estudos de Literatura pela Universidade Federal de São Carlos, integrante do Grupo de Pesquisa COMUNICA - inscrições linguísticas na comunicação, do Laboratório de Escritas Profissionais e Processos de Edição e pesquisadora associada à 111 Curadoria de Estudos Coreanos da Coordenadoria de Estudos da Ásia da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: vitoriaferreirad23@gmail.com. Júlio Cézar de Souza é graduando em Licenciatura plena em Letras Português/Inglês pela pela Universidade Federal de São Carlos, integrante do Grupo de Pesquisa COMUNICA - inscrições linguísticas na comunicação, do Laboratório de Escritas Profissionais e Processos de Edição. E-mail: cezar.julio.a@gmail.com. MAINGUENEAU, Dominique. Discurso Literário. São Paulo: Contexto, 2006. MYDRAMALIST. Happy Ending Romance, 2022. Disponível em: https://mydramalist.com/720645-happy-ending-outside-the-fence SALGADO, Luciana Salazar. Escritura e leitura, elementos da autoria. In: RIBEIRO, Ana Elisa et al. (Org). Leitura e escrita em movimento. São Paulo: Peirópolis, 2010. p. 252-268. SALGADO, Luciana Salazar. Grupo de pesquisa “Comunica – Inscrições linguísticas na comunicação”: Um trabalho no limiar. In: Anais JIG, 2016. Disponível em: http://www.jig.ufscar.br/?wpfb_dl=33 SALGADO, Luciana Salazar. Autoria. In: RIBEIRO, Ana Elisa; CABRAL, Cléber Araújo (Org.). Tarefas da Edição. Belo Horizonte: Impressões de Minas; LED, 2020. Disponível em: http://www.letras.bh.cefetmg.br/wpcontent/uploads/sites/193/2019/10/Tarefas-da-Edic%CC%A7a%CC%83oarquivo-digital-07-10-20.pdf 112 A INFLUÊNCIA DOS MANGÁS E ANIMES NO UNIVERSO JUVENIL BRASILEIRO DE LEITURA, por Wagner Pereira de Souza e Rosete Lopes França Maciel Discussão inicial Os Mangás são escritos de origem japonesa que se assemelham às Histórias em Quadrinhos (HQs). Segundo definições, essa representação é considerada como uma subliteratura ou para-literatura que não chega a constituir totalmente um "gênero textual" propriamente dito em virtude da pluralidade de transfiguração dentro de outros gêneros, tanto possível quanto imagináveis, a exemplo da comédia, do terror, do drama, a ficção científica, entre outros, mas que fidelizou o gosto de muitos jovens brasileiros que se tornaram potenciais consumidores desse produto oriundo deste país asiático, o Japão. Configurado e organizado com características acessíveis, nos mangás a leitura é realizada da direita para a esquerda e traços comuns nessa produção são os de os personagens de olhos grandes, às vezes, bochechas avantajadas e com traços voltados para a expressão oriental. Segundo um estudioso do assunto, “Os mangás, por sua vez, são histórias em quadrinhos nipônicas. Eles também são repletos de características próprias, sendo eles, em sua grande maioria, pintados com nanquim em preto e branco e impressos em papel jornal. Mesmo não sendo uma animação, seus quadros sequenciais são repletos de movimentações e onomatopeias, se comparados ao estilo americano.” [Santoni, 2017, p. 11] Nesse sentido, observa-se que a acessibilidade à leitura desse material é um fator que favorece a sua procura e também por se apresentar num formato que fideliza o gosto dos leitores, inclusive os jovens e adolescentes. Desse contexto depreende-se que por esse motivo essa produção se torna tão lida entre a juventude. Acrescido a essa questão, faz-se importante observar que, uma vez imergido nesse universo, por menos que pareça, há também um processo de modificação da realidade produzida por meio dessa leitura em diversos pontos da vida desses leitores cumprindo assim o papel da literatura que é o de provocar mudanças na vida daquele que a consome. Por isso mesmo que é proeminente destacar que, “Esses [re]significados transformam o modo pelo qual as pessoas enxergam o mundo a sua volta, com as mudanças atenuantes que ocorrem diariamente naquilo que as cercam e/ou nelas mesmas. Tais mudanças ocorrem constantemente na vida das pessoas à medida que passam a conhecer novos elementos e interagem com pessoas diferentes, seja na escola, no trabalho ou 113 na internet, essas relações descontroem certas ideias pré-estabelecidas e assim, surgem novas percepções de mundo.” [Santoni, 2017, p. 20] Do mesmo modo, faz parte desse universo também outras contribuições que, talvez mesmo de forma implícita fideliza a mente do leitor por aspectos da vida real como “(...) a influência moral e ética que é passada para o público, pois a maioria destes produtos possuem em seu enredo, mensagens repletas de bons valores como amor, persistência, busca por um sonho, amor e vários outros. E mesmo os mais violentos tem alguma mensagem no contexto.” [Santos, 2020, p. 14] Somado ao que já foi mencionado, destaca-se também, em relação aos Mangás, é o fato deles serem uma “literatura” de fácil leitura e que possuem uma objetividade muito grande, de certa forma, diante de um público consumista como o atual, os mangás se encaixam como uma alternativa excepcional, pois “Uma das características mais importantes do mangá é a utilização da linguagem cinematográfica, a qual resulta em uma leitura mais dinâmica do material impresso e dá ritmo para a história, somando-se à preferência por enredos cujos sentimentos humanos sejam abordados de forma universal. É preciso destacar que as comparações feitas aqui correspondem a HQs e mangás mais comerciais, passíveis de até certo ponto algumas generalizações, diferenciando-se de obras mais autorais e alternativas.” [Amaral & Carlos, 2013, p. 03] A força oriental do Mangá na cultura brasileira Assim como toda escrita se pauta em estrutura específica, o Mangá também tem as suas características principais, e isso, junto ao que foi dito antes, pode ser considerada uma grande fonte geradora de consumo inclusive pelo público jovem pelo o seu dinamismo e processo estrutural. Nesse sentido, “Em todos os formatos, é comum os desenhos serem monocromáticos. Na maioria dos casos é em preto e branco, embora existam títulos cujas páginas são coloridas só de rosa ou só de azul, por exemplo. Há também páginas especiais totalmente coloridas, e em papel de melhor qualidade, tratando-se de páginas iniciais do capítulo ou de bônus com desenhos que completam a página. Além disso, a ordem de leitura dos mangás segue a ordem de leitura japonesa, que para os ocidentais é ‘ao contrário’, ou seja, abre-se a revista do que para nós seria a contracapa e lê-se da direita para a esquerda, tanto a ordem dos quadros da página quanto a ordem dos balões de fala.” [Amaral & Carlos, 2013, p. 02] Aprofundando essa discussão, entre tantos fenômenos citados sobre o porquê de o Mangá ter ocupado uma parcela tão grande no gosto dos leitores brasileiros, destaca-se também a similaridade de quase realidade que esses escritos carregam com consigo e nesse sentido ocorre a chamada 114 correspondência intuitiva. Dito de outra maneira, é quando o leitor vê nos escritos possibilidades reais que se assemelham com as da realidade. Diante dessa questão, constata-se que “Após a leitura sobre a força que os quadrinhos japoneses possuem diante dos jovens no país, é necessário refletir sobre o aspecto principal de seu sucesso no Brasil. Podemos citar a linguagem atual e jovem, ou o estilo diferenciado no desenho, na leitura. Ou os temas abordados, políticos, sexuais, românticos, dramáticos, que abrangem o público em gostos e idades. Como hipótese, atrevo-me a ressaltar a humanidade de seus personagens, como já citado anteriormente. O fato de não serem somente super-heróis fortes, bravos, quase sem pontos fracos, aproximam o personagem de seu leitor. Que pode, por vezes, se identificar com o herói escolhido. Como um reflexo, um espelho, tendo em vista que, todo adolescente quer ser como seu herói predileto. O mangá proporciona isso. Personagens que choram, riem, comentem erros, brigam, xingam, se iludem, fazem com que essa fase de confusão, insegurança, na cabeça de um adolescente, não pareça tão assustadora, exclusiva ou errada. Mostra que todos possuem dúvidas e medo, sem deixar de ser, obviamente, forte, justo, e corajoso em alguns momentos. As meninas, que são geralmente excluídas ou objetificadas nos quadrinhos tradicionais, também possuem referencias positivas no mangá, com histórias exclusivas ou temas mais apreciados voltados paras as mesmas.” [Brasil Escola, 2018, p. 11] Mangás x Animes: relação entre a leitura e animação Como visto acima, os Mangás têm longa tradição no Japão, o seu país de origem, além de exercer grande influência por lá. Por sua vez de acordo com [Garcia, 2022, p. 29] “Anime é o nome que se dá às animações japonesas, geralmente desenhadas à mão, e produzidas como séries”. No entanto, nem toda animação japonesa é um Anime. Neste sentido, os Animes é uma cultura asiática e principalmente uma cultura japonesa, retratando diferentes forma de ficção. O Anime, traduzido literalmente como animação, segundo [Sato, 2007], apresenta duas definições distintas, uma dentro e outra fora do território japonês. Dentro do Japão, é considerado todo e qualquer tipo de desenho animado. Fora do país, essa palavra foi convencionada a caracterizar, especificamente, os desenhos animados produzidos no Japão. Majoritariamente, os Animes são baseados nas narrativas apresentadas nos mangás de sucesso no Japão. Contudo, a violência e a sensualidade encontradas nessas narrativas são minimizadas quando transpostas para o formato de animação, por ter uma maior veiculação, dentro e fora do Japão, e ser mais atrativa para o público infantil. O anime, no seu país de origem, não é algo voltado somente para crianças. Dessa forma, através do sucesso dos Mangás, alguns deles foram deportados para outro tipo de mídia, a exemplo do áudio visual, sendo o Astro Boy o primeiro Anime a ser transmitido nas televisões japonesas em 1963, baseado 115 na obra de Osamu Tezuka, que com esse marco, essas animações começaram a ser uma forma de entretenimento frequente no Japão. Assim, com o sucesso dos Animes no Japão, os vários já escritos e animados pelos japoneses, começaram a ser comprados e transmitidos nas televisões: estadunidenses e europeias a partir do início do século XXI, iniciando a fase de ouro dos Animes. [Sato, 2007] O sucesso dos Animes pode ser atribuído pela sua forte carga cultural, pois há um fascínio pela cultura asiática, um fenômeno que pode ser percebido pelo crescimento dos Mangás, em que, cada Anime, assim como os Mangás sobre os quais são baseados, têm seu estilo, o que intensifica sua identidade e, isso os tornam mais populares. Neste contexto, observa-se que o público dessa modalidade, costuma gostar tanto dos Mangás como dos Animes, pois ambos possuem aspectos semelhantes. Como afirma [Nagado, 2007 apud Batistella, 2014, p. 96], quando explica que “a popularidade devastadora e definitiva do Anime, juntamente com o fanatismo ligado a esse suporte de leitura, permitiu a veiculação de um número cada vez maior de animações japonesas na programação das redes de televisão do mundo.” Deste modo os textos de Dragon Ball, Naruto, Dragon Ball Z, Sailor Moon, Yuyu Hakusho e Pokémon, fizeram parte dos suportes de leitura mais consumidos na década de 80 e 90. Acredita-se que isso se deu, devido a veiculação dos Animes em redes de televisão sendo um fato motivador para a busca dessas narrativas em formato impresso, contribuindo assim para o fomento da prática da leitura um ato tão essencial. No Brasil, a década de 1990 é considerada um marco no mercado dos Animes, dando destaque principalmente para: Cavaleiros do Zodíaco, Sailor Moon, Dragon Ball e Pokémon, devido aos seus estilos que, graças à popularização e desenvolvimento da internet, teve espaço para a solidificação dessa cultura que permanece até os dias atuais, sendo seu consumo mais frequente por meio de plataformas de streaming, como o Crunchyroll, que é especializado nestes Animes, e a Netflix, que vem investindo cada vez mais em conteúdo audiovisual vindo da Ásia. Apesar de os Animes serem em formatos áudio visual os mesmos contribuem para o enriquecimento do repertório de leituras, imaginação e consequentemente desenvolve o aprendizado, pois, as diferentes formas de ficções trazidas no contexto, faz com que as crianças e simpatizantes desenvolvam uma personalidade criativa, na área de música e desenhos isso contribui para o desenvolvimento de habilidades essenciais. Como destaca [Batistella, 2014, p. 152] “Ao abarcar aspectos presentes em situações sociais em suas narrativas, o mangá e o anime contornam barreiras culturais, representam referenciais composicionais com marcas histórico-geográfica, ideológica e comportamental intertextualmente infinitas e tornam-se comunicáveis por meio de seus gêneros e subgêneros.” 116 Isso promove uma reflexão sobre a importância desse tipo de texto incluído nas diversas culturas de diferentes países, pois como descrito, contribuem para a construção de aspectos positivos no desenvolvimento humano e nas suas relações sociais. De acordo com [Cândido, 1968 apud Batistella, 2014, p. 152], observa-se que, “Por meio dos processos de apreensão e de inferência da leitura defronta-se com a representação de seres humanos definidos, definitivos e ‘integrados em um denso tecido de valores de ordem cognitiva, moral, político-social’ e que, assim como os que visam a representar, tomam determinadas atitudes em face desses valores. Nesse identificar entre personagens, narrativa e realidade, o sujeito leitor subsisti as possibilidades humanas dificilmente propiciadas por seu desenvolver individual por elementos ficcionais descritos e ilustrados de modo a aparecer concreto e quase sensível. Logo, é no vivenciar enleado de ideais e escolhas da personagem e do sujeito leitor que há adesão afetiva e intelectual, identificação, projeção e transferência.” Considerações finais Através das pesquisas realizadas observou-se que tanto os Mangás quanto os Animes são grandes influenciadores para um grande número de leitores tanto em solo brasileiro quanto em todo o mundo. De origem asiática, os mesmos contribuíram e continuam contribuindo para que a prática leitora se torne cada dia mais constante, principalmente entre os mais jovens, tendo em vista o gosto deles por histórias de ficção dos mais variados tipos. Em especifico, os Animes, apesar de ser no formato áudio visual, contribuem para o incentivo à leitura, pois, sua vinculação em diversas plataformas, contribui para a disseminação das leituras impressas dos Mangás. Deste modo, pode-se concluir que, os Mangás e os Animes têm grande influência no universo juvenil para leituras. Outrossim, essa pesquisa não teve objetivo de exaurir as discussões em torno do tema, mas sim, de debater o assunto e produzir algum material relevante sobre o tema. Sendo assim, sugere-se estudos posteriores que venham somar a este ou até mesmo que aprofunde a temática em órbita a fim de que a produção científica continue sendo um canal proficiente, articulador e verticalizador de pesquisas. Referências biográficas Wagner Pereira de Souza é professor efetivo de Língua Portuguesa da SEDUC/MT, Mestre em Letras pelo PPGLetras/UNEMAT, possui Especialização em Coordenação Pedagógica e Língua Portuguesa, Oratória e Redação, ambas pela FAEL – Faculdade Estadual da Lapa, Graduação em Letras com fulcro em Português e suas respectivas Literaturas pela UNIR – Universidade Federal de Rondônia. 117 Rosete Lopes França Maciel é Mestranda pelo PROFEI/UNEMAT - Mestrado Profissional em Educação Inclusiva, Pós-Graduada em Alfabetização e Letramento pelo Centro Universitário Internacional - UNINTER, possui Licenciatura plena em Pedagogia pela Faculdade de Itaituba/PA, é professora concursada da SEDUC/MT, atuando nas series iniciais do Ensino Fundamental. Referências Bibliográficas AMARAL, Adriana; CARLOS, Giovana Santana. Caracterizando o “estilo mangá” no contexto brasileiro: hibridização cultural na Turma da Mônica Jovem. Vozes & Diálogos - Itajaí, v. 12, n.1, jan./jun. 2013 – disponível em: file:///C:/Users/PC/Downloads/praxedes1974,+04.+Amaral.pdf – Acesso em: 11 de mai. de 2023. [Artigo] BATISTELLA, Danielly. Palavras e imagens: a transposição do mangá para o anime no Brasil, 2014. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/102191/000930130.pdf?Sequence =1&isallowed=y. Acesso em: 12 de mai. de 2023. [Tese de Doutorado] BRASIL ESCOLA. A utilização do mangá no âmbito da ilustração na cultura jovem brasileira, 2018. Disponível em: https://monografias.brasilescola.uol.com.br/arte-cultura/a-utilizacao-manga-noambito-ilustracao-na-cultura-jovem-brasileira.htm - Acesso em: 11 de mai. de 2023. [Site] GARCIA, Camila. Anime: entenda o que é, conheça categorias e porque faz sucesso.Disponível em: <https://www.opovo.com.br/vidaearte/2022/06/21/anime-entenda-o-que-econheca-categorias-e-por-que-faz-sucesso.html>. Acesso em: 12 de mai. de 2023. [Artigo] REVISTA MULTIDISCIPLINAR DE ESTUDOS NERDS/GEEK. Neon Genesis Evangelion e a ressignificação do tecno-orientalismo pela sociedade japonesa. Rio Grande, v. 3, n. 5, jan-jul. 2021. Disponível em: https://revistaestudosnerds.furg.br/images/v3n5/silva_et_al_2021.pdf. Acesso em: 12 de mai. de 2023. [Revista] ROSA, Sara Carulina Silva da. Anime: do Japão para o mundo, 2017. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/artenosul/2017/11/13/anime-do-japaopara-o-mundo/ - Acesso: 12 de mai. de 2023. [Artigo] SANTOS, Nilson. Por que mangás e animes fazem tanto sucesso? – 2020. Disponível em: https://skdesu.com/por-que-animes-fazem-tanto-sucesso/ Acesso em: 11 de mai. de 2023. [Artigo] SANTONI, Pablo Rodrigo. Animês e Mangás: a identidade dos adolescentes, 2017. Disponível em: 118 https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/24480/1/2017_PabloRodrigoSantoni. pdf - Acesso em: 11 de mai. de 2023. [Revista] SATO, C. A. Japop. O poder da cultura pop japonesa. São Paulo: NSPHakkosha, 2007. [Livro] 119 UMA SIMULAÇÃO À EGÍPCIA: ANÁLISE DO DESFILE DOURADO À LUZ DE BAUDRILLARD, por Allyson Afonso dos Santos Silva e Hannah Cabral Dantas de Barros Teixeira Ato I: Introdução Os últimos 3 anos foram recheados de eventos, produções e discussões que movimentaram a área para curiosos e interessados em História Antiga, ou, mais particularmente, na História do Egito Antigo. Em 2021, tivemos a Pharaoh’s Golden Parade (Desfile Dourado dos Faraós), em ocasião da transferência de 22 governantes mumificados dos períodos faraônicos para o Museu Nacional da Civilização Egípcia; The Grand Opening of the Sphinx Avenue in Luxor (A Grande Abertura da Avenida das Esfinges em Luxor), em comemoração à abertura ao público da antiga Avenida das Esfinges, que liga os templos de Luxor e Karnak; mas também comemorações de datas caras a Egiptologia, como os 200 anos desse campo de estudos e 100 anos da descoberta da tumba do faraó Tutancâmon, ambos em 2022. Tais eventos evocaram elementos do Egito Antigo em nome de uma revitalização da história do país em um contexto muito específico, que gerou debate sobre as formas com as quais esse passado foi usado ou apresentado. Não obstante, desfiles anteriormente citados destacaram-se não apenas pelos signos utilizados, mas também pela reverberação nas diversas mídias, tendo sido transmitidos em tempo real em lives, especialmente por canais no YouTube, com traduções simultâneas em francês, espanhol, inglês e outros. Há neste contexto a propagação de um discurso não apenas para si (egípcios), mas também para nações estrangeiras. Diante deste contexto, nos parece acertada a afirmação de Christian Langer, segundo o qual: “Em última análise, a herança egípcia é um espaço contestado, um campo de batalha ideológico entre as diferentes partes [...]. [2021, p.255 – 256]. O Egito, como espaço histórico e ideológico, é, ao que indica Langer, um território em disputa. Essa, discursiva e narrativa, gera diferentes versões sobre o Egito real, — por vezes, propostas como mais reais do que esse — cópias imperfeitas, ou, devemos chamá-las de Simulações? A discussão em eventos e revistas acadêmicas acerca do Desfile Dourado dos Faraós no Brasil contou com duas publicações de destaque: Quando os faraós desfilam no presente: a Marcha Dourada dos Faraós no Egito Contemporâneo (2021), de Francismara Lelis; e O Desfile Dourado dos Faraós (2021): Múmias, museus e identidade nacional egípcia, de Nina Paschoal, Naiara de Assunção e Francismara Lelis. Se a primeira publicação focou numa análise dos discursos visuais e orais proferidos, por meio do qual pensou-se as representações elaboradas e o uso do passado faraônico do Egito, o segundo 120 focou em elementos simbólicos do desfile, contextualizando-os em meio a teoria do orientalismo de Edward Said. Apesar de estarmos em diálogo com essas publicações, propomos uma abordagem diferente nesta comunicação. Iremos analisar brevemente o Desfile Dourado dos Faraós e seu contexto político de produção, buscando interpretálo sob as noções de simulação e simulacro do filósofo francês Jean Baudrillard. Defendemos que dentre as diversas interpretações em torno da narrativa que se constituiu o mencionado desfile, resta pensá-lo também sob essa (ou essas) formas. Ato II: O Contexto político O Desfile Dourado dos Faraós foi um momento de mobilização do passado egípcio pelo presente. Um movimento que, no entanto, não parece ser uma novidade, mas um fruto da própria cunhagem do campo da Egiptologia, cujo momento fundante se dá entre o fim do século XVIII e o início do século XIX, coincidindo com a então invasão e conquista do território egípcio pelos franceses. Ocorrendo em paralelo com o colonialismo europeu no Oriente Médio, como aponta Langer [2015, p.245]. O legado de grandiosidade da antiga civilização faraônica foi, então, cooptado como forma de legitimação da dominação europeia sobre o Oriente e a África. A aparente posse e aparelhamento do passado pelos europeus serviu naquele momento para marcar uma dualidade: os conquistadores, se destacam pela “civilidade” e “esclarecimento”, enquanto seus conquistados, pelo “obscurantismo” e “barbarismo”. Se os conquistadores versavam civilidade no presente, nada mais lógico do que ter as civilizações do passado como seus prenunciadores. A história do Egito Faraônico foi então concebida enquanto prenunciadora da civilização ocidental. “No final do século XIX, o Egito faraônico havia se tornado uma tela de projeção de valores monárquicos e de um senso europeu de superioridade cultural e racial” [LANGER. 2015, p.249]. Se a produção de uma história Antiga do Egito tem seu início formal obedecendo a moldes colonialistas e eurocêntricos, no século XX, movimentos de libertação do colonialismo ocorreram por todo o território africano, com resultados que incluíram a independência do Estado Egípcio do domínio britânico. O combate ao domínio colonial foi além dos limites geográficos, narrativas e interpretações passaram a surgir como modo a permitir as antigas colônias criarem suas próprias narrativas sobre si e seus passados. Não abastante, narrativas sobre o passado são evocadas e interpretadas de modo a justificar e exaltar aspectos do presente, sejam nacionalismos ou figuras específicas, por exemplo: na busca por corroborar a crença de que o Egito foi sempre liderado mediante uma figura de autoridade forte, que a iconografia egípcia antiga é usada publicamente. “As paredes externas dos quartéis egípcios, por exemplo, são decoradas com relevos que retratam a 121 gloriosa história dos militares egípcios ao longo dos tempos. A sequência começa com um relevo de batalha ao estilo do Reino Novo, mostrando o poderoso rei em sua carruagem, descendo e atirando em inimigos estrangeiros com seu arco”. [LANGER. 2015, p.253]. E é como um passado a serviço do presente que Pharaoh’s Golden Parade se insere. Ato III: A Simulação Dourada O Desfile Dourado dos Faraós (Pharaoh’s Golden Parade) ocorreu no dia 3 de abril de 2021, na cidade do Cairo, Egito, e, apesar da sua denominação “desfile”, foi um evento de proporções maiores, contando com um concerto de orquestra, cantores de ópera egípcios, atores, a presença de delegações de países estrangeiros, assim como do Ministério do Turismo e Antiguidade Egípcio [LELIS, 2021, p.111] e diversos voluntários, especialmente estudantes, que trabalharam nas encenações, danças e logística [LE POINT, 2021]. O objetivo do Desfile era transportar 22 múmias, 18 faraós e 4 rainhas, do Museu Egípcio em Tahir ao novo Museu da Civilização Egípcia, localizado em Old Cairo, um trajeto de cerca de 6 km. Numa demonstração única de beleza, glorificação, exaltação e uso do passado do século XXI, o governo egípcio decidiu tornar o transporte um evento e assim o fez, transformando trechos da cidade do Cairo no cenário de uma grande festa em que todas as músicas, danças, discursos e encenações entoadas seriam em honra ao Egito e seus históricos (e porque não também atuais) governantes. Realizado numa noite de primavera, as festividades do desfile duraram cerca de 2h e foi transmitido ao vivo em 18 canais internacionais, assim como contou com cobertura jornalística do mundo todo [LELIS, 2021, p.111]. O evento articulou o Egito moderno, por meio dos atores e atrizes, cantores e músicos, mas também o Egito Faraônico, com o uso de símbolos, objetos, gestos e até mesmo o idioma antigo repensados e reclamados pelo Egito do presente. Os faraós e rainhas, que contavam com múmias conhecidas como as de Amose Nefertari, Ramsés II, Hatshepsut e Tutmés III, foram transportadas em carros projetados especificamente para o momento. Gravados na parte visível e externa dos carros estavam em três alfabetos e idiomas (inglês, hieróglifo e árabe), o nome da múmia que estava sendo transportada. As cores e os designs em padrões de dourado simulavam a forma da barca solar, emanando seus feixes de luz. Internamente, uma tecnologia minuciosamente planejada foi aplicada, contando com câmaras de alta conservação em nitrogênio, protegidas também por um sofisticado sistema de suspensão que permitisse o mínimo de movimentos internos, afim de preservar seu valioso conteúdo: os corpos mumificados de mais de 2000 anos [CARMO, 2021, s/p]. Eram carruagens dignas de faraós. Em procissão, ao som de cantoras e da orquestra sinfônica da Opera House do Cairo, homens e mulheres executavam belas danças, vestidos com uma indumentária leve (porém com as penas cobertas) de cores 122 predominantemente azuis, os olhos marcados e adereços dourados que em muito remeteram a ideia popular de uma vestimenta egípcia [O GLOBO, 2023, s/p]. Bastava uma imagem, e o ideário popular construído por grandes filmes como Cleópatra [1963], faria o espectador associar aquele momento a um passado do Egito antigo, agora vivo, pulsante e mais uma vez deslizando pelos bancos orientais do Nilo estavam egípcios a acompanhar seus faraós e suas rainhas. Também estavam no desfile carruagens puxadas por dois cavalos conduzidas por homens vestidos de túnica branca com adereços dourados. A carruagem em si, muito semelhante àquela encontrada na iconografia associada a Ramsés II, mas também naquela encontrada na tumba de Tutankamon. Ao longo das avenidas, plumas azuis com detalhes dourados e a logo identificadora so evento no topo, maiores que homens, ladeavam o festejo. Uma reprodução adaptada da famosa pluma de Maat, princípio do Egito Antigo ligado à “[...] à justiça, à ordem e ao equilíbrio. Representava a ética segundo a qual a humanidade deveria agir em concordância com uma consciência universal.” [BRANCAGLION, 2004, p.139]. Cenas filmadas no Novo Museu Nacional da Cultura Egípcia foram apresentadas, mostrando sua grandiosidade, assim como as tecnologias aplicadas no estudo e conservação da cultura material ali guardada [EXPERIENCE EGYPT, 2021, s/p]. Ademais, dentre os diversos momentos, um deles também merece ser comentado. O presidente egípcio e muçulmano recebeu as múmias com cerimônias de Estado ao postar-se diante das carruagens enquanto estas passavam, recepcionando aqueles faraós e rainhas [EXPERIENCE EGYPT, 2021, s/p]. O momento capitalizou não apenas uma reverência aos líderes faraônicos do Egito, mas também associou a figura do presidente Abdul Fatah Khalil Al-Sisi e do próprio Egito ao seu passado faraônico, e não apenas islâmico, clamando para si a história de uma das mais antigas sociedades do mundo. Diante desta breve descrição, o pensemos, então, sob os ensinamentos de Baudrillard. Ato IV: A Simulação faz-se Simulacro (?) Se educacionalmente, nas escolas egípcias o ensino de hieroglifos faz necessária a tradução da escrita do Egito Antigo para o árabe, politicamente, o presidente Al Sisi precisa traduzir a História Antiga de seu país para um constructo que abrace uma gama maior de interlocutores. Equilibrando os países ocidentais, ainda saudosos do Egito Eterno [PIRES, 2019], com grupos internos do país, como a maioria de egípcios árabe muçulmana e minorias, de importância, como os egípcios cristãos, coptas, minoria “construída como legítima sucessora do Egito faraônico no início do século XX [...] ” [HORDURY, 2003, p. 154 – 158; REID, 2002, p. 258 – 285; REID, 2015, p. 212 – 218; apud LANGER, 2021, p.255]. Alguns aspectos dessa complexidade ficam evidentes ao analisar o Desfile Dourado dos Faraós. Mas, e como Baudrillard nos ajuda a entender esse jogo de equilíbrio, de um Egito que tenta dialogar, agradar, interlocutores em diferentes frentes, 123 enquanto se afirma como detentor legítimo do legado faraônico? Como o desfile se encaixa nesse propósito? Para tentar responder a estes questionamentos, vamos nos apropriar e discutir os conceitos de Simulação e Simulacro, formulados pelo autor. É inegavelmente estranho fazer agenciar conceitos que inspiram obras contemporâneas, como os filmes Matrix, para falar de Egito Antigo e de seus usos no presente; no entanto, o próprio autor se adiantou ao conversar o conceito de Simulacro com a múmia de Ramsés II, na segunda parte do primeiro capítulo de seu livro Simulacro e Simulação. (BAUDRILLARD, 1991, p.13 – 18). A múmia do faraó, naquela análise, aparece enquanto um Simulacro de si. Enquanto um corpo, que até há pouco havia sido deixado de lado em algum museu, mas que na iminência de sua perda faz-se necessário trazer-lhe de volta à vida. Uma vez que, mesmo desprovida de vida, ela é Ramsés II. De modo que não importa o homem que uma vez viveu, o Ramsés do passado, ou se aquele corpo realmente lhe pertenceu. Nós o reconhecemos como real, de tal modo que: aquele é Ramsés (hiper)real. De maneira diferente, o Desfile Dourado dos Faraós foge a categoria de simulacro, adentrando, em contraponto, no conceito de Simulação. “Simular é fingir ter o que não se tem.[...] uma ausência” [BAUDRILLARD, 1991, p.9-10]. Essa, se tenta preencher no Museu Nacional da Civilização Egípcia, em verdade, no percurso comemorativo que leva até ele. As bigas e seus condutores, as Cleópatras, as barcas que levam os corpos mumificados e os cânticos entoados, todos esses simulam a presença de um passado que já não é. Entretanto, dos homens que conduzem as bigas, às mulheres vestidas de Cleópatra e, até mesmo, nós, contribuímos para que a Simulação não se faça Simulacro. Se acreditamos piamente que a múmia de Ramsés, é Ramsés II, o mesmo não acontece com o desfile. Tanto nós, quanto os participantes, sabemos que aqueles não são guerreiros da antiguidade, que aquelas não são Cleópatra e que aquele não é um cortejo egípcio antigo. Apesar de buscar se ancorar em fatos históricos, o desfile, com diferentes níveis de fidelidade, — que não são ingênuos — apenas os simula. Todavia, o assunto se mostra mais complexo, “pois simular não é fingir: ‘Aquele que finge uma doença pode simplesmente meter-se na cama e fazer crer que está doente. Aquele que simula uma doença determina em si próprio alguns dos respectivos sintomas’” [BAUDRILLARD, 1991, p.9-10]. E quais são os “sintomas” que o Egito atual determina em si próprio? O evento de 2021, recorre à história, fatos e artefatos históricos que norteiam, oferecem referencial e veracidade a tudo aquilo que está ocorrendo. Como aponta Francismara Lélis [2021, p.114], em momentos do cortejo, assim como em apresentações, dançarinas performam uma coreografia cujos movimentos remetem à iconografia do Egito Antigo. Assim, é mantida uma ligação ao Real, a fonte histórica. 124 Entretanto, assim como a Simulação de Jean Baudrillard não demanda exatidão e fidelidade, apenas algum vínculo ao Real, a performasse descrita não propõe a exatidão, mas a referência. Uma vez que “[...] o posicionamento dos corpos na arte oficial do Reino Novo não objetivava retratar movimentos, mas deixar visível o máximo dos membros dos corpos representados, sem sobrepô-los nem os esconder” [LÉLIS, 2021, p.114]. A iconografia não representa dança, mas torna-se. Um Simulação inexata não necessariamente ocorre como erro ingênuo, mas como adaptação com fins artísticos, ideológicos ou, mesmo, políticos. Nos atentemos ao que aponta Lélis: “O desfile dos faraós utilizou aspectos orientalistas que podem comover a população egípcia, mas principalmente o público ocidental, se servindo de símbolos familiares ao imaginário do público estrangeiro, como o cortejo de mulheres com figurinos que remetem à figura de Cleópatra interpretada por Elizabeth Taylor no filme de 1963” [2021, p.114]. “Os impérios europeus construíram a concepção do Egito como precursor da civilização ocidental e, dessa forma, como seu apêndice natural” [LANGER, 2021, p. 247]. A afirmação de Langer torna-se aqui importante para compreender o invocar de signos que a primeira vista nos parecem estranhos: um país de maioria árabe invocando imagens orientalizadas, tomando o conceito de Said, para falar sobre si. O Egito moderno evoca o mito do “Egito Eterno” (Pires, 2019) para capitalizar o seu passado via turismo, um dos maiores geradores de receita para o país [LANGER, 2021]. Assim, não seria estranho nos depararmos com o apontado por Lélis acima sobre a figura da Cleópatra. Ao retratar a rainha, não se retrata diretamente a original, a qual nem mesmo conhecemos o rosto, se retrata a Elizabeth Taylor performando Cleópatra; uma simulação de uma simulação. Uma mescla de signos possíveis de serem reconhecidos pelos próprios egípcios, pelo ocidente e pelo oriente. Como essas simulações do Egito lá da História Antiga migram à Simulacro? Nossa hipótese, amparada em nossa aplicação dos conceitos de Baudrillard, é que se tenta criar uma realidade no presente, que, apesar de inspirada em signos do passado “real”, se desconecta dele. Explicamos: o primeiro Egito, o faraônico, já não existe. Temos acesso a fragmentos dele por meio da história e arqueologia. Disciplinas geradoras de um segundo Egito, o egiptológico, que como um quebra-cabeça com peças faltantes, nos oferece vislumbres incompletos do primeiro, por meio das fontes literárias e materiais. O terceiro Egito, do discurso, apesar de falar sobre o primeiro, o acessa intermediado pelo segundo. O que ele cria é filtrado subjetivamente, por interesse, ideologia ou escolha, exaltando certos aspectos, enquanto deixa outros de lado. O quarto, é a versão do Egito que se visa criar e do qual o Desfile Dourado oferece evidências: um Egito mais real que o real. Um Simulacro. O segundo e o terceiro “Egitos” são Simulações, versões que mimetizam o primeiro com diferentes graus de fidelidade, mas que mantém sempre o Egito original, faraônico, enquanto âncora. O Simulacro, por sua vez, não é ancorado no Egito real, suas referências estão em um Egito idealizado, que não existiu 125 para além da narrativa, discurso ou do mito. E é esse ideal que se tem em vista materializar, tornar real. Ato V: Encerramento Na velocidade da era tecnológica moderna, as transmissões simultâneas em diferentes línguas, a cobertura jornalística, os turistas, as fotos e as redes sociais, permitiram ao Desfile Dourado dos Faraós percorrer muito mais que os 7 quilômetros entre museus. Ele percorreu o mundo, mas não sozinho. A escolha de locais, figurinos, músicas, do que foi dito, assim como das pessoas, visou criar imagens específicas sobre o Egito, buscou-se criar discursos. Esses, não apenas como falas sobre a realidade, mas como tentativa de instituir um real. Uma realidade hiper-real, pois não mais é ancorada no Egito original, no passado, mas em um discurso sobre esse. Um Simulacro. A partir desse, o Egito moderno tenta, assim como fez a França quando do surgimento da ciência egiptológica, parafraseando Langer, inserir-se em uma tradição da “outrora grande” civilização egípcia. A partir de uma suposta missão de restaurar o país à grandeza ancestral. [LANGER, 2021, p. 247]. Essa busca visa fazer encontrar o Egito do presente, com o Egito do passado idealizado. Visa exaltar o nacionalismo e fazer entender-se, diante dos observadores externos, herdeiro digno e legítimo do legado faraônico. Cunhar linearidade entre o passado islâmico e o passado dinástico, passando, entre eles, pelo passado dos cristãos egípcios, coptas. Cunhar bons termos, políticos e turísticos com oriente e ocidente para, por fim, transformar o Egito “Eterno”, o “Orientalizado” e o “Outrora Grande” em um novo Egito “Real”. Referências Allyson Silva é mestrando em História e Espaços pelo programa de pósgraduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), bolsista CAPES (2023-2024). Licenciado e bacharelando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Hannah Cabral é mestranda em História e Espaços pelo programa de pósgraduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), bolsista CAPES (2023-2024). Bacharela em História e em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Lisboa: Relogio d'Agua,1991. BRANCAGLION JUNIOR, Antonio. Manual de arte e arqueologia do Egito Antigo II. Rio de Janeiro: Sociedades dos Amigos do Museu Nacional, 2004. CARMO, Mayara. Egito nos holofotes do Mundo com o Desfile de Ouro dos Faraós. Site Vida no Egito. [S.L.], 2021. Disponível em: https://vidanoegito.com/2021/04/07/egito-nos-holofotes-do-mundo-com-odesfile-de-ouro-dos-faraos/. Acesso em: 28 jul. 2023 COSTA, Márcia Jamille. Egito dará aulas de hieróglifos para alunos do ensino fundamental e médio. Arqueologia Egípcia, 16 Abr. 2021. Disponível em: 126 http://arqueologiaegipcia.com.br/2021/04/16/egito-dara-aulas-de-hieroglifospara-alunos-do-ensino-fundamental-e-medio/ . Acesso em: 28 jul. 2023. EGYPT TODAY. Egypt to introduce hieroglyphs into educational curricula next year. 05 Abr.. 2021 Disponível em: https://www.egypttoday.com/Article/4/100553/Egypt-to-introduce-hieroglyphsinto-educational-curricula-next-year . Acesso em 28 Jul. 2023 EGYPT TODAY. BA organizes hieroglyphics training courses for teachers of Egypt’s primary schools. Disponível em: https://www.egypttoday.com/Article/4/100813/BA-organizes-hieroglyphicstraining-courses-for-teachers-of-Egypt%E2%80%99s-primary . Acesso em: 28 jul. 2023 EXPERIENCE EGYPT. Experience Egypt live stream - The Pharaoh’s Golden Parade. Youtube, 03 abril 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=bnlXW7KZl0c&t=541s. Acesso em: 28 jul. 2023. FOLHA DE S. PAULO. Desfile de múmias no Egito. 3 abr. 2021. Disponível em: https://fotografia.folha.uol.com.br/galerias/1696045505788639-desfile-demumias-no-egito. Acesso em: 28 jul. 2023. GUBASH. Charlene; CAHILL. Petra, Egypt reopens 3,000-year-old Avenue of Sphinxes in grand, glitzy Luxor ceremony. NBC News. 25 nov. 2021. Disponível em: https://www.nbcnews.com/news/world/egypt-reopen-ancient-avenuesphinxes-luxor-karnak-parade-rcna6723 Acesso em: 28 jul. 2023 LANGER, C. O colonialismo informal da Egiptologia: da missão francesa ao Estado de segurança. Mare Nostrum, [S. l.], v. 12, n. 1, p. 243-268, 2021 LELIS, Francismara de Oliveira. Quando os faraós desfilam no presente: a Marcha Dourada dos Faraós no Egito Contemporâneo. In: BUENO, André [org]. Mundos em movimento: Próximo Oriente. Rio de Janeiro: Projeto Orientalismo/UERJ, 2021, p. 111-118. LE POINT. Spectacle pharaonique et défilé de momies royales au Caire. 03 abr. 2021. Disponível em: https://www.lepoint.fr/monde/ramses-ii-ethatchepsout-au-grand-defile-des-momies-royales-au-caire-03-04-20212420562_24.php#11 . Acesso em: 28 jul. 2023. O GLOBO. Veja como foi o desfile dourado dos faraós pelas ruas do Cairo capital do Egito. 08 abril 2021. Disponível em: https://oglobo.globo.com/boaviagem/veja-como-foi-desfile-dourado-dos-faraos-pelas-ruas-do-cairo-capitaldo-egito-24960589. Acesso em: 28 jul. 2023 PASCHOAL, Nina; ASSUNÇÃO, Naiara; LELIS, Francismaria. Desfile Dourado dos Faraós (2021): Múmias, museus e identidade nacional egípcia. Revista espacialidades, [online], Natal, v. 18, n. 2, 2022. 127 PIRES, Rafael dos Santos. O mito do Egito Eterno: desenvolvimento acadêmico, impactos políticos. Faces da História, Assis/SP, v.6, nº2, jul./dez.,2019, p. 290-311. 128 A SERPENTE ORIENTAL: HISTÓRIA, CULTURA E SIMBOLISMO NA DANÇA DO VENTRE, por Tanya Mayara Kruger Uma breve história sobre a origem da dança do ventre O termo “Dança do Ventre” origina-se a partir do francês “danse du ventre”, nomenclatura dado pelos europeus após os primeiros contatos com as formas de dança observadas, sobretudo, no Norte da África e no Oriente durante os processos imperialista. A “dança do ventre” ou também denominada “dança oriental” é uma dança milenar praticada no Norte Africano e no Oriente Médio Não se sabe ao certo onde surgiu, sendo a hipótese mais aceita entre os historiadores é que ela tenha emergido no Antigo Egito, como uma dança ritualística, realizada em templos, para homenagear as deusas. Contudo, vale ressaltar que alguns estudiosos acreditam que a dança do ventre tenha surgido durante a préhistória. Desse a Antiguidade, é possível através de esculturas, produzidas em argila, encontrar características presentes na dança do ventre torço curvado para frente e braços erguidos com as mãos viradas para dentro. Diante disso, acerca das origens históricas da dança do ventre, segundo o estudioso Relke (2011, p. 397): “Com o avanço da teoria e técnicas arqueológicas, egiptólogos, abandonaram esta interpretação como simplista e sem evidências, com exceção de um grupo de feministas que reviveu a teoria da Deusa Mãe, reinvestindo estatuetas pré-históricas femininas com status divino” Segundo Assunção (2021), é extremamente complexo datar e afirmar onde tenha emergido a dança, haja vista que também há trabalhos históricos que alegam que essa dança tenha surgido no Oriente Médio, em regiões como a atual Turquia e Síria. De acordo com a autora, Assunção (2021, p.38): “Essa multiculturalidade sincrônica e diacrônica dificulta pensar na transmissão de manifestações culturais – como a dança – que tenham permanecido inalteradas ao longo de todo esse tempo. Soma-se a isso a dificuldade em estudar “dança” historicamente por conta da acessibilidade às fontes.” Desse modo, movimentos ondulatórios, premissa base da dança do ventre e movimentos de quadril, são encontrados em pinturas na atual Síria, Turquia, Líbano, dentre outros países, sendo complexo datar e demarcar o local de sua origem. De acordo com Wendy Buonaventura (1989), autora do livro “Serpent of the Nile: Women & Dance in the Arab”, encontra-se vestígios de uma dança pélvica que ainda pode ser encontrada em algumas regiões do Oriente Médio e do 129 norte da África, e que era usada por mulheres desde a antiguidade. A autora (1989, p.32) afirma que:” É quase certo que essa dança tinha conexões com ritos de fertilidade e também com alguns movimentos feitos durante o parto, para ajudar no nascimento da criança.” Boaventura (1989) afirma que dança do ventre é uma dança de caráter feminino, na qual seus movimentos estão muito ligados a região pélvica, quadris e barriga. Contudo, para Assunção (2021) é importante salientar que a prática masculina foi sensivelmente apagada e silenciada em detrimento das representações das danças femininas no Egito Antigo, sobretudo pelo olhar ocidental, patriarcal, imperial, heteronormativo masculino. O discurso heteronormativo torna a discussão sobre a dança do ventre ainda mis complexa, para Sellers-Young ( 2014, p.136) o que causou a ruptura das tradições locais e levou à criação de uma comunidade global ampliada de dança do ventre no século XX, durante um período em que um extenso diálogo sobre a formação da identidade feminina e masculina estava em curso na Europa Ocidental e na América do Norte. Além disso, uma outra consequência é que homens até hoje são proibidos de atuar profissionalmente como dançarinos de dança do ventre, sendo liberados para atuar nessa profissão apenas como instrutores (ASSUNÇÃO, 2021). A evolução histórica da dança do ventre Assunção (2021) chama a atenção para a distinção existente entre ‘awalim’ e ‘ghawazi’. As primeiras, eram um grupo de mulheres eruditas que cantavam e letras improvisadas para ‘mawal’ ou baladas, um feito pelo qual eram altamente valorizadas. Já as ‘ghawazi’ dançavam em espaços públicos e muitas vezes também, por uma questão financeira, acabavam se prostituiam. Assim, mesmo diante da complexidade do seu surgimento, acreditasse que a expansão da dança do ventre se deu devido as diversas invasões árabes e também aos inúmeros processos de colonização. De acordo com Assunção (2021), quando o Egito foi invadido pelos europeus no século XIX, o governo de Muhammad ‘Ali Pasha lançou uma lei que impedia apresentações públicas de dança no Cairo e em Alexandria. Desse modo, a dança milenar foi estigmatizada. Acerca da dominação no Egito segundo o estudioso Abel- Malek (2010, 402): “a imitação do Ocidente era vista, com alegria, como uma operação de superfície – um espelho do ser possível, já que não podia se tratar de um possível atualizável: a vestimenta; o urbanismo; a música sob a forma de ópera, mas também de composições militares; o teatro, sobretudo; esboços de romance.” Para Malek (2010), o mundo ocidental era o modelo a ser seguido, sua cultura, sua arte era o paradigma historiográfico a ser seguido. Para o autor (2010, p.402): “a expressam os ditados, os provérbios e os costumes, era impregnada por um sentimento de usurpação.” De acordo com a autora, é a partir do imperialismo europeu que surge a raqs sharqi, que significa “dança oriental”, 130 para assim, se distinguir das danças ocidentais. A raqs sharqi era praticada em casa de entretenimento no Egito no século XIX. A evolução da dança do ventre está nitidamente ligado o colonialismo europeu, que assim como todo o processo de colonização, há uma transculturação, na qual a cultura do dominar, tende a se sobressair ou mesmo ser imposta ao dominado. No Egito e nos demais países do Oriente Médio e do Norte Africano não fogem a regra. Logo, há uma mudança na dança em seu caráter simbólico e também cultural. Assunção (2021), alega que foi nesse momento que a dança passa a assumir um caráter de certa forma “comercial”. Antes, como vimos, a dança era uma forma ritualística e era dançada só em momentos especiais e festivos. Contudo, nesse período, a dança assume um caráter comercial e passa a ser performada como uma atração artística. Como vimos, vale ressaltar que a proibição da dança do ventre em espaços públicos nos séculos XVIII e XIX contribuiu para que houvesse uma transformação dentre do próprio contexto em que a dança estava inserida e também dentro da sua simbologia Vale ressaltar que, a dança do ventre ainda é um tema polêmico em termos históricos, tendo em vista que muitas fontes que temos a respeito da dança do ventre são de viajantes ocidentais que retrataram através do seu olhar cultural e identitário, os processos orientais. Um dos elementos orientais que mais causavam interesses dos europeus era o harém. Vale frisar que, o harém nada mais é do que o espaço reservado à vida íntima, familiar, seja num palácio ou numa casa comum, um ambiente familiar na qual outras pessoas não podiam entrar Assunção (2021). Entretanto, de acordo com Fernanda de Camargo-Moro (2012), o harén será visto pelo europeu como um lugar de sexualidade. É dentro desse contexto que se é propagado de forma errônea a imagem da Odalisca. O termo odalisca vem do turco uadahlik, que significa criada de quarto. Sobre as Odalisca, Dib (2018) que dentro da hierarquia que existia nos palácios, quem estava no patamar mais baixo, eram mulheres escravas compradas em mercados, ou adquiridas em guerras, vendidas muitas vezes por sua própria família ou raptadas, que posteriormente eram levadas para o palácio para serem criadas. Ainda segundo Dib (2018, p04), sobre as odaliscas, ele afirma que elas chegam muito novas ao harém e logo, recebem um treinamento. “ Este treinamento incluía modos, etiqueta, leitura do Alcorão, bordado, tecelagem, poesia, música, dança. Ao contrário daquelas retratadas reclinadas à espera de alguém, sabe-se que as odaliscas tinham suas ocupações e também suas ambições.” 131 Desse modo, a autora defende que a imagem que foi propagada a certa da figura da Odalisca, nada mais é do que uma visão eurocêntrica distorcida. De acordo com Metin Nad (1989,p.93), historiador da dança turco, que resume de forma precisa os desafios e perspectivas de se estudar a dança oriental a partir de fontes ocidentais, segundo o autor: “Fontes turcas oferecem pouca informação em relação a dançarinos e dançarinas. Isto porque a dança era considerada, por muitos escritores do passado, como um esporte impróprio e imoral, especialmente quando praticado por mulheres e garotos profissionais. Ainda de acordo com o autor, Ned (1989, p.93):”por outro lado, viajantes estrangeiros deram muita atenção a este tópico em seus livros e, apesar de enfatizar a moralidade frouxa e o caráter obsceno da dança, eles não podiam esconder de suas descrições seu interesse, que lhes tirava o fôlego, em relação a estas performances.” Devido a uma visão eurocêntrica e propagada de forma errônea, muitas vezes, até hoje, a dança do ventre é associada a figura da odalisca, sempre retrata de forma sexualizada e seduzente. Sobre essa distorção da representação da dança do ventre Assunção (2021, p.34) alega: “essas representações, portanto, associam-se diretamente com a ideia fantasiosa que os europeus construíram sobre o que eles mesmos denominaram “dança do ventre”, a partir do contato que com as apresentações de três grupos associados ao entretenimento...” Dessa forma, o Oriente nasce a partir de uma visão eurocêntrica, na qual o “orientalismo” estaria associado ao “outro”, a algo exótico que diverge da cultura ocidental. De acordo com Assunção (2021, p.80), a dança do ventre surge com o imperialismo inglês e nesse contexto eurocentrista. a apresentação de dançarinas e dançarinos profissionais ocorria em ocasiões especiais: em festivais de rua, celebrações de casamentos, de batizados ou uma festa em honra a algum visitante especial no caso de famílias abastadas.” Assunção (2021), afirma que no século XX, principalmente através da TV, a dança do ventre terá uma ampla divulgação. A partir disso, surgirão ramificações da dança do ventre, como a Tribal Fusion, um estilo de dança que mistura elementos da dança do ventre com os da cultura ocidental. Esse tipo de dança ganhará bastante destaque principalmente nos Estados Unidos. Contudo, mesmo havendo variações, de acordo com Assunção (2021, p.56): “em se tratando de dança, em geral cada grupo tem estilos e movimentos próprios, mas que não são estáticos e imutáveis, tendo se transformado ao longo do tempo e são, claro, suscetíveis ao estilo pessoal de cada dançarina” Vela ressaltar que o cinema também teve grande propagação da cultura árabe ao ocidente. Programas de Tvs e filmes retratam a imagem das dançarinas de dança do ventre como figuras sensuais, com roupas que são consideradas “exóticas” e muitas vezes, até mesmo vulgares. Sendo assim, como já citado, a dança do ventre e também as dançarinas que a praticavam, eram vistas como mulheres sedutoras e muitas vezes, como mulheres “não descentes”, como foi o caso da dançarina brasileira Luz Del 132 Fuego. Mesmo não sendo uma dançarina propriamente dita de dança do ventre, Luz Del Fuego utilizava serpentes em suas apresentações, na qual dizia que foi inspirada em sacerdotisas da Macedônia. Apesar de ser uma ativista política e também ecologistas, devido a “má fama” criada pela dança que tinha poucas roupas ou mesmo nenhuma, tendo em vista que Fuego foi a primeira bailarina a se apresentar nua no Brasil, ela acabou no ostracismo de uma sociedade regida pelo patriarcado, tendo em mente que nesse contexto, uma mulher dançar com poucas roupas, levava um processo de estigmatização social, bem como a errônea ideia que essas mulheres são sedutoras e de certa forma, oferecem perigo pra a ordem estabelecida. Logo, assim como Luz Del Fuego, muitas dançarinas de dança do ventre também sofriam as represálias de um sociedade marcada pela dominação masculina e por padrões sociais altamente demarcados. Contudo, mesmo diante desse processo de estigmatização e transculturação que a dança do ventre sofreu ao longo dos séculos, a dança do ventre vem resistindo e se adaptando a novos estilos e versões a ela introduzida, como elucida Roberta Salgueiro (2012, p.42) acerca da dança do ventre: “é antes uma linguagem de sobrevivência, resultado bem-sucedido de uma adaptação longa e dolorosa”. A dança do ventre, que possui diversos movimentos relacionados a animais, principalmente as serpentes, mesmo sofrendo pelo processo de colonização e sendo perpassada ao longo dos séculos de forma distorcida, como uma dança de cunho sexualizada e de carater seduzente, a dança do ventre resiste como uma performance milenar, que retrata a arte, os ritos e os cultos da “cultura do leste”, a dança vem mostrando a sua resiliência dentro do mundo ocidental. Referências bibliográficas e biográficas: Tanya Mayara Kruger é Mestra em História pela Universidade Federal do Espírito Santo e professor de História pela Prefeitura Municipal de João NeivaES e Secretaria de Estado da Educação (SEDU). ASSUNÇÃO, Naiara Müssnich Gomes de (2018). Entre Ghawazee, Awalim e Khawals: viajantes inglesas da Era Vitoriana e a “Dança do Ventre”. 2018 198 f. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2018. Disponível em: Acesso em: 20 mar. 2023 ASSUNÇÃO, Naiara Müssnich Rotta Gomes de. Entre Ghawázee e Awálim: a dança egípcia a partir da obra de Edward Willian Lane. 2014. 62 f. TCC (Graduação) - Curso de História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2014. Disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/182762 . Acesso em: 20 mar. 2023 DIB, Marcia. Música Árabe: expressividade e sutileza. São Paulo: Ed. do autor, 2013. 133 MONTEIRO, Maria Conceição. Figuras errantes na Época Vitoriana: A preceptora, a prostituta e a louca. Revista Fragmentos, Volume 8, nº 1. Florianópolis: UFSC, juldez / 1998. P. 61 – 71. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/fragmentos/article/viewFile/6038/5608 134 SERPENTES ALADAS, DRAGÕES E OUTRAS DIVINDADES: UM ESTUDO COMPARATIVO ENTRE OS DEUSES MESOAMERICANOS E OS DRAGÕES NA MITOLOGIA CHINESA, por Luiz Vinicius Rodrigues dos Santos Introdução Apesar de os símbolos serem condicionados ao espaço e à cultura em que surgiram, as culturas chinesa e mesoamericana possuem muitos atributos semelhantes na construção iconográfica de algumas divindades. As similaridades e disparidades entre esses dois extremos permitem compreender as interseções nas imagens de suas divindades, os motivos por trás dessas iconografias e o contexto ritualístico em que estão inseridas. O percurso teórico consiste na análise das imagens, em primeiro lugar, como símbolos de suas respectivas culturas, com base nas leituras de Eduardo Natalino, Paul Gendrop e Esther Pasztory. Além disso, será explorado o emprego místico-religioso desses símbolos, com base no pensamento de Mircea Eliade em “Imagens e símbolos: ensaio sobre o simbolismo mágicoreligioso”. Nessa obra, além de analisar como determinados símbolos se desenvolvem de forma particular em cada cultura, o autor estabelece aproximações entre culturas distintas. Uma leitura indissociável dos objetos apresentados é a das imagens como símbolos culturais, porém, também será realizada uma análise contemporânea dessas obras de arte. Gombrich, ao examinar uma máscara de Taotie, além de abordar os aspectos mencionados anteriormente, possibilita um estudo comparativo formal entre a Mesoamérica e a China no âmbito iconográfico e religioso. Por fim, o hibridismo presente nessas divindades evidencia a reação genuína do ser humano em relação à cultura, ao clima e às condições geográficas do ambiente em que vive, bem como o impacto desses elementos em sua cultura. Atributos felinos A Entrada de caverna em Chalcatzingo (Imagem 1) trata-se de uma representação da divindade felina, esculpida em pedra. A entrada da caverna apresenta, em baixo-relevo, a representação da boca de um jaguar. Essa entrada, por si só, carregada diversos simbolismos. Em primeiro lugar, destacase o Culto às Cavernas, pois para os mesoamericanos, as cavernas e grutas eram considerados lugares sagrados, espaços de transição para o mundo dos mortos, o que evidencia a importância do culto para sua cultura. As entradas de grutas e cavernas eram adornadas com relevos de boca de jaguares, sendo a boca do jaguar um canal simbólico de morte. Isso evidencia a importância do 135 jaguar para as culturas mesoamericanas e seu valor nos ritos do animismo/xamanismo. Imagem 1: Entrada de caverna, Boca de jaguar, Chalcatzingo. Disponível em: <Kerr Portfolio Hi-Resolution (mayavase.com)>. A divindade felina possui a capacidade de fazer a transição entre o mundo dos vivos e dos mortos devido às características dos felinos, como a atividade noturna e a visão apurada durante a noite. Além disso, o fato de habitar em cavernas e grutas fez com que essa divindade fosse associada a essa transição no mundo dos mortos. Embora a presença do jaguar seja recorrente em diversos momentos da cultura mesoamericana, não há relatos específicos sobre essa divindade. Todo o conhecimento disponível provém de registros materiais, como máscaras e imagens votivas, em que a forma humana é representada com características felinas. Com base nessas representações, antropólogos e estudiosos da cultura Olmeca atribuíram a essas imagens a condição de deuses ancestrais. A transição entre mundos é uma constante nos ritos xamânicos. O animismo e o xamanismo desempenham um papel fundamental na construção das civilizações arcaicas, abrangendo mitos de origem e a vida do universo. Esses mitos derivam de uma visão mítico-religiosa perpetuada por indivíduos que assumem o papel de mentores espirituais nessas culturas, conhecidos como xamãs (VILLAJOS, S. G. 2009). Nesse contexto, cabe refletir sobre a associação dos deuses a múltiplos animais, como uma seleção de características intrínsecas às suas vidas, que podem ser interpretadas como qualidades na construção dessas figuras divinas (NATALINO, E. 2002). 136 Como é possível observar, é fácil identificar a presença de um felino na composição. No entanto, sua construção também apresenta elementos que, de certa forma, remetem a um dragão chinês, como seu bigode, círculos ao redor dos olhos, presas e "sobrancelhas" (Imagem 2). Imagem 2: Acrotério, cabeça de Dragão. Dinastia Ming, 1368-1644, louça de barro vidrada. British Museum Disponível em: <acroterion | British Museum>. Assim como o jaguar no xamanismo mesoamericano, o dragão também desempenha um papel importante na comunicação entre mundos no xamanismo chinês. Em seu trabalho "Reworlding the ancient Chinese tiger in the realm of the Asian Anthropocene", Annu Jalais discorre, em diálogo com Kwang-chih Chang, sobre o papel dos animais nos ritos xamânicos. “Alguns desses animais, sugere Chang, de alguma forma ajudam os xamãs em sua comunicação entre o Céu e a Terra, entre a vida e a morte. Esses animais eram pareados com dragões ou serpentes e acreditavam-se que eles ajudavam nos ritos xamânicos a fazer a transição entre os mundos como era apontado nos ossos oraculares.” (JALAIS, A, 2018, Tradução nossa) Além do dragão, o felino também é característico das culturas do leste asiático e está presente no xamanismo chinês como uma ponte entre mundos. É comum encontrar representações de felinos, ou outras bestas, com a boca aberta e uma cabeça humana dentro, simbolizando a separação entre os mundos da morte e da vida. Serpentes e hirbridismos Fazendo a transição entre mundos, céus e terras, as serpentes também estão vinculadas às entidades nas culturas mesoamericanas. Na "Pirâmide de Serpente Emplumada" estão representadas duas divindades importantes: Quetzalcoatl e Tlaloc. 137 A serpente emplumada, que dá nome à pirâmide, é Quetzalcoatl (Imagem 3). Essa divindade está associada à movimentação das águas nos céus, como chuvas, ventos e tempestades, e sua narrativa está em diálogo com Tlaloc, responsável pelas águas terrestres. Uma forma de entrar em contato ou se aproximar de Quetzalcoatl era por meio do Culto às Montanhas, que simbolizavam a ligação com o céu e a importância das chuvas. Considerando que a agricultura era crucial para a economia e a vida das sociedades sedentárias, era comum a adoração e o respeito aos deuses ligados às águas doces (GENDROP, P. 1987). Imagem 3: Pirâmide de Serpente Emplumada. Disponível em: <Teotihuacán | Guia México>. Assim como na iconografia do tigre, detalhes como aros ao redor dos olhos e “sobrancelhas” proeminentes aproximam as criaturas. Outro detalhe que chama atenção na escultura de Quetzalcoatl na pirâmide é sua arcada dentária, em vez de duas presas salientes, apresentando dentes semelhantes aos de um felino. Além disso, a presença de um nariz “achatado”, que não se assemelha às narinas de um réptil ou ave, remete ao nariz de Lung, embora o dragão chinês seja conhecido por ter uma cabeça semelhante à de um camelo, conforme a iconografia analisada pela revista Macau. (DRAGÃO CHINÊS…, 2013) Já Tlaloc é representado como uma criatura híbrida entre anfíbio e felino. Responsável pelas águas terrestres, como rios, lagos, nascentes, e também pelas águas subterrâneas em cavernas e grutas. Junto com Quetzalcoatl, ele é responsável pelo ciclo das chuvas. Tlaloc é uma deidade de extrema importância na sociedade mesoamericana, sendo não apenas o protetor das águas, mas também associado ao submundo. No mural do Palácio de Tepantitla, é possível observar a representação desse submundo, intitulado “Paraíso de Tlaloc” (Imagem 4). Nele, identifica-se a entrada de uma caverna com um relevo em forma de boca de jaguar e um fluxo de água, além de 138 sacerdotes trajados em homenagem à deidade, lançando sementes ao solo (Imagem 5). Imagem 4: Palácio de Tepantitla, detalhe mural, Paraíso de Tlaloc. Disponível em: <Opera Mundi>. Imagem 5: Palácio de Tepantitla, detalhe mural, Sacerdotes semeando. Disponível em: <Palacio de Tepantitla, Teotihuacan> A figura de Tlaloc, presente nas pirâmides, apresenta atributos que o aproximam do Taotie (Imagens 6 e 7), assim como Quetzalcoatl. Esses atributos incluem os aros em volta dos olhos, boca achatada/quadrada e "sobrancelhas" volumosas. Além disso, os sacerdotes de Tlaloc no Palácio de Tepantitla utilizam máscaras que lembram um dragão chinês (GOMBRICH, E. 2012). 139 Imagem 6: Vaso com relevo de motivo de máscara animal (taotie). Esse vaso foi encontrado no interior da muralha da China. Datação entre as Dinastias Shang e Zhou ocidental, 21.4 x 16.4 x 16.2cm.. Brooklyn Museum. Disponível em: <Brooklyn Museum>. Imagem 7: Machado de Jade, como motivo de Taotie. Período Neolítico, cultura de Liangzhu, 29.5cm. Disponível em: <Kwonglam Museum of Art>. 140 O conhecimento do ciclo da chuva e da interconexão dos elementos da natureza é comum a ambas as culturas abordadas aqui. Nas lendas chinesas, atribui-se o nascimento dos quatro rios mais importantes da China aos dragões: Heilongjian (Rio Negro), Huanghe (Rio Amarelo), Changjiang (Yangtze, ou Rio Comprido) e Zhujiang (Pérola). Esses quatro dragões, vendo o sofrimento dos humanos por falta de comida devido a um longo período de seca, procuraram o Imperador Jade para pedir que ele enviasse chuva para as pessoas. Apesar de ter prometido aos dragões, o Imperador Jade não cumpriu com sua promessa . Ao verem o sofrimento dos humanos, os quatro dragões decidem ir ao oceano, pegar água em suas bocas e levá-la aos céus para que chovesse. Ao tomar conhecimento disso, o Imperador Jade decide punir os quatro dragões e pede ao Deus das Montanhas que lance montanhas sobre eles, mantendo-os eternamente separados e distantes uns dos outros como forma de castigo. O Deus das Montanhas atende ao pedido e realiza a punição. Determinados a continuar beneficiando as pessoas, os quatro dragões se transformam em rios, fluindo desde as alturas das montanhas até os vales profundos, até finalmente desembocarem no mar (LEMOS, L. P. 2017). Outro ponto em comum entre as duas culturas é a adoração às serpentes, presentes em diversas manifestações artísticas relacionadas aos ritos xamânicos. As serpentes, tanto na cultura mesoamericana quanto na chinesa, possuem uma ligação com o mundo dos feitiços. O mosaico peitoral AstecaMixteca (Imagem 8), datado entre 1400 – 1521, representa uma serpente de duas cabeças. Essa serpente, assim como outras representações mencionadas anteriormente, possui elementos em sua composição que remetem ao hibridismo e, mais uma vez, se assemelham à imagem de um dragão chinês. No contexto das representações de serpentes, temos a Xiuhcoatl (Imagem 9), uma serpente de fogo que serve como arma para Huitzilopochtli. A Xiuhcoatl, assim como outras criaturas do panteão mítico americano, está longe de uma construção visual pura, apresentando braços e garras, o que a torna ainda mais semelhante a um dragão chinês (Imagem 10). 141 Imagem 8: Peitoral, em forma de serpente de duas cabeças. Cultura AstecaMixteca, 1400-1521, México, turquesa; madeira de cedrela; Concha de ostra; concha; resina de pinho; copal; cera de abelha; hematita 20.30x43.30x5.90 cm. Britsh Museum. Disponível em: <British Museum>. Imagem 9: Xiuhcoatl. Escultura em pedra da serpente de fogo Asteca, Xiuhcoatl, com cabeça de serpente, pernas curtas com garras curvadas. Na extremidade a figura é formada pelo convencional símbolo mexicano, para marcação de tempo, de xihuitl. Cultura Asteca, 1300-1521. México, Texcoco, pedra, 77x60 cm. Britsh Museum. Disponível em: <British Museum>. 142 Imagem 10: Vaso com motivo de lótus e dragão em vidrado azul. Dinastia Ming, 1403-1424. Porcelana. Alt. 42.9 cm; diâmetro 9.7 cm; diâmetro da base 15.8 cm. Disponível em: <National Palace Museum>. Desviando um pouco do contexto Mesoamérica-China, em Chavin, no Peru, encontramos a imagem de Lanzón (Imagem 11), que compartilha características com o Taotie (Imagem 12). Embora a criatura chinesa seja um ser mítico, enquanto o deus andino seja um híbrido. Assim como os deuses mesoamericanos, a divindade andina também possui atributos do jaguar, como o focinho e as presas, detalhados no desenho esquemático. 143 Imagem 11: Estela Lanzón. Cultura Chavín 900-200 AEC. Chavín de Huantar, Peru. Disponível em: <Lanzón Stela>. Imagem 12: Adorno para cavalo em forma de máscara de taotie. Dinastia Shang 1300-1050 AEC, Bronze. Disponível em: <Asian Art Museum Online Collection>. 144 O hibridismo com anfíbios ou répteis é uma característica comum na construção iconográfica dessas divindades. Isso ocorre porque as características dos deuses estão diretamente relacionadas a situações concretas das sociedades mesoamericanas, conferindo-lhes sentido apenas dentro daquele contexto. Alguns “símbolos” são facilmente associados, não sendo surpreendente que o Quetzalcoatl, deus dos céus e controlador de ventos e tempestades, possua atributos de ave, enquanto a representação da serpente está ligada à dimensão mística do xamanismo, uma vez que as serpentes simbolizam a magia e os feitiços. A presença de elementos característicos de sapos ou outros anfíbios, como no Tlaloc, está intrinsecamente ligada à sua condição de deus das águas terrenas. Nas sociedades arcaicas, havia uma forte observação da natureza, e sapos e rãs são espécies que habitam regiões com presença de água. Portanto, há uma associação entre esses elementos, considerando também a peregrinação ou caça, onde a presença dessas criaturas indicaria a proximidade de água. Além disso, sapos e rãs têm a capacidade de pressentir a chegada das chuvas, e durante esse período ocorre o acasalamento. O canto dos sapos é uma forma de comunicação, através do qual eles anunciam uns aos outros a chegada da chuva e a disponibilidade de locais para o acasalamento (HAYASAKA, E. Y.; NISHIDA, S. M. 2021). Com isso, os animais, ou seus atributos, tornam-se símbolos da natureza devido à sua relação com o ambiente. A observação da natureza e sua assimilação pelas culturas arcaicas não são meras casualidades. Os anfíbios tendem a habitar áreas pantanosas ou com grande presença de água, seja na China, no México ou em qualquer outra parte do globo. Os canídeos têm a tendência de caçar em grupo, independentemente da região em que estejam, assim como os felinos têm atividades noturnas. Mircea Eliade abordará essa relação entre os povos arcaicos e a natureza na construção de seus símbolos. “Tomemos um só exemplo; sabe-se hoje que certos mitos e símbolos circularam através do mundo divulgados por determinados tipos de cultura; quer dizer que estes mitos e estes símbolos nem por isso são descobertas espontâneas do homem arcaico, mas criações de um complexo cultural bem delimitado, elaborado e veiculado por certas sociedades humanas; tais criações foram difundidas muito longe do Seu lugar de origem e foram assimiladas por povos e sociedades que doutro modo as não teriam conhecido.” (ELIADE, M. 2002. p. 33 – 34). Considerações finais Para além do que a China e a Mesoamérica transformaram em símbolos e de todo o significado místico-religioso empregado, as histórias por trás desses símbolos encontram interseções entre as narrativas rituais e iconográficas. 145 As ideias de Eliade atendem aos tensionamentos que as práticas místicas mesoamericanas fazem com os limites do conceito de xamanismo, uma vez que as religiões não são conceitos quadrados, sólidos e estáticos. A partir desses tensionamentos, é possível, por meio do comparativismo iconográfico, compreender até onde a iconografia americana dialoga com a chinesa, e como a relação das civilizações antigas com a natureza permitiu o desenvolvimento de um repertório cultural que vai além das ideias orientalistas ou exóticas construídas em cima dessas figuras. Referências Luiz Vinicius Rodrigues dos Santos é bacharel em História da Arte pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e co-coordenador do Grupo de Estudos em Arte Asiática (GEAA). [luizvrs21@gmail.com] AUR, D. Os animais que preveem o tempo e as catástrofes ambientais. 2018. Disponível em: <Os animais que preveem o tempo e as catástrofes ambientais - greenMe>. Acesso em: 26 mai 2021. BEAM, L. R. A Comparative Analysis of Historical Chinese And Mayan Civilization To Modern Western Society. 2013. Disponível em: <(DOC) A Comparative Analysis of Historical Chinese And Mayan Civilization To Modern Western Society | LR Beam - Academia.edu> Acesso em: 14 mai 2021. Dragão Chinês (Lung). 2013. Disponível em: <Dragão chinês (Lung) | Revista Macau>. Acesso em: 13 mai 2021. ELIADE, M. Redescoberta do simbolismo; Simbolismo do centro; simbolismo das conchas. In: ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos: ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 5-178. GENDROP, P. A Civilização Maia. São Paulo: Editora Schwarcz. 1987. GOMBRICH, E. A Máscara Elusiva. In: O Sentido de Ordem Um Estudo Sobre a Psicologia da Arte Decorativa. p.267-270. 2012. HAYASAKA, E. Y.; NISHIDA, S. M. Reprodução dos Anfíbios Anuros. Disponível em: <Reprodução dos Anfíbios Anuros (unesp.br)>. Acesso em: 26 mai 2021 JALAIS, A. Reworlding the ancient Chinese tiger in the realm of the Asian Anthropocene. International Communication of Chinese Culture. 2018. LEMOS, L. P. Lenda dos Dragões: ilustração e design de personagens para livro didático; 2017; Trabalho de Conclusão de Curso; (Graduação em Comunicação Visual Design) - Universidade Federal do Rio de Janeiro; Orientador: Marcelo Gonçalves Ribeiro. 146 LOPES, F. S. Os Mitos da Criação na Cultura Chinesa. 2015. Disponível em: <Os Mitos da Criação na Cultura Chinesa | Revista Macau>. Acesso em: 8 mai 2021. NATALINO, E. Deuses do México Indígena. São Paulo: Ed. Palas Athena, 2002. PASZTORY, E. Estética e Arte Pré-Colombiana. In: Thinking with things. Toward a new vision of Art. Austin: University of Texas Press, 2005, pp. 189196. VILLAJOS, S. G. Art and Ritual in Early Chinese and Mesoamerican Cultures. Independent Study Module Supervision by Charles Robertson History of Art Department Oxford Brookes University. 2009. Disponível em: <(PDF) Art and Ritual in Early Chinese and Mesoamerican Cultures: The Shang Dynasty and the Olmec | Santiago Villajos - Academia.edu> Acesso em: 15 mai 2021. 147 148
pFad - Phonifier reborn

Pfad - The Proxy pFad of © 2024 Garber Painting. All rights reserved.

Note: This service is not intended for secure transactions such as banking, social media, email, or purchasing. Use at your own risk. We assume no liability whatsoever for broken pages.


Alternative Proxies:

Alternative Proxy

pFad Proxy

pFad v3 Proxy

pFad v4 Proxy