Humor e Guerra Nas Charges de Belmonte e J. Carlos
Humor e Guerra Nas Charges de Belmonte e J. Carlos
Humor e Guerra Nas Charges de Belmonte e J. Carlos
Na mais antiga e profunda tradio da caricatura, humor e poltica sempre caminharam lado
a lado, reiterando, a cada cruzamento, a vocao combativa e militante da charge. Em
1789, na Frana j se dizia que os desenhos eram mais poderosos para influenciar os
coraes humanos. Eram vistos como tendo esse forte impacto, porque eram percebidos
como algo que falava diretamente aos sentidos e s emoes do povo.
Embora nem
polticos odeiam as caricaturas... Um pblico que pode ler entre as linhas no facilmente
oprimido 4 .
Se a inverso j em si uma caracterstica da caricatura, na releitura dos fatos jornalsticos
e das notcias de guerra, temos inverses onde o acontecimento revisto como uma
afirmao e uma negao da histria num s tempo.
apresenta como uma arma ao alcance de todos (...) ele destri ou desfaz os simulacros,
desconfigura e reconfigura s avessas as imagens...
O autor das caricaturas antes de tudo um leitor, um leitor do jornal ou da revista que o
publica. Parte das notcias, de um tema ou de um contexto discursivo imediato para manter
o dilogo com seus traos e seus enunciados verbais. Temos um discurso sobre outro
discurso que o jornal, e assim se estabelece, de certa maneira, um modo de ler o
espetculo do mundo que o jornal nos oferece.
Jos Carlos de Brito e Cunha 8 costuma ser visto pela maioria dos estudiosos da caricatura
brasileira como o mais importante da trindade:
Herman Lima cita um trecho de uma entrevista de J. Carlos, onde a guerra surge como o
grande alvo de seu lpis:
10
Estabeleciam-se, assim, pontos de contato com o dia a dia do leitor, buscando referenciais que
simulassem o ponto de vista das pessoas. Em muitos casos, a guerra foi refletida a partir de
suas conseqncias na vida material, como na charge intitulada Os escombros, onde vemos
dois homens observando uma montanha de objetos, mesas, cadeiras, quadros, baldes,
garrafas, latas, objetos do interior das casas, do cotidiano. L em cima, bem no alto, a
nao vitoriosa colocar a sua bandeira, diz o personagem de olhos arregalados que
aponta para cima. 13 Ou, ainda como no caso onde vemos uma longa fila de mulheres numa
das ruas da cidade. Uma senhora se aproxima do final da fila e pergunta: Ainda h
batatas? No, senhora. Agora est distribuindo telegramas narrando vitrias.
14
e ao discurso sobre arte moderna, mostra o que seria um monumento moderno paz, com
a escultura de um gigante enfurecido com uma arma na mo, uma metamorfose da paz em
deus da guerra, marte, num deslocamento para a direita, onde as linhas do panejamento se
transformam em linhas futuristas de ao. 15
europia ao mundo dos nativos, dos africanos, dos ndios, colocando a guerra como filha da
civilizao e da insensatez humana, e o homem branco como o verdadeiro selvagem,
questionando os conceitos de barbrie e mesmo de progresso.
16
Nesse sentido
17
19
Segundo Belmonte:
Juca nasceu do arrolhamento da imprensa. Foi a caricatura de um protesto...Era
mister dar-se uma voz ao povo, e o melhor meio para escapar-se ao rigor dos
Cerberos, era criar-se uma alegoria. Juca Pato surgiu como a expresso do povo
que precisava dizer alguma coisa, criticar outras e no podia...
20
Durante o Estado Novo, muitas das charges de Belmonte foram censuradas. A partir de
1936 e at 1946, ele manteve uma acirrada campanha de charges e caricaturas contra os
nazistas, na Folha da Noite, de So Paulo, que foram impressos por toda a Amrica. No
lbum Caricatura dos Tempos h uma referncia de que at mesmo Goebbels, ministro de
propaganda de Hitler, teria criticado o desenhista: ele ataca o nazismo porque muito bem
pago pelos ingleses e norte-americanos
21
Ironizando a postura dos EUA em relao guerra, Belmonte mostra Roosevelt como
Hamlet, olhando para a caveira, com a grande dvida: To go or not to go? That is the
question 25
Num comentrio sobre a participao do Brasil na guerra, Belmonte mostra Juca Pato
seguindo, em passo de marcha, Getlio, com o mesmo porte e o mesmo gesto, indo para a
guerra, Vargas com um livro onde se l poltica internacional e Juca com uma arma. H uma
comparao verbal com a frase de D. Pedro para o dia do Fico, e ao mesmo tempo
apelando para o tempo presente e para a ao coletiva. 26
As charges nos despertam para um outro olhar, para um repensar de nossas posturas
polticas. Ao faze-lo, elas do-nos, no dia a dia, a chave, no sentido musical do termo, de
nossa leitura da atualidade. Como se, no proscnio, (e no margem) do jornal que nos
mostra o mundo, fosse preciso que algum desempenhasse o papel do palhao e nos
recontasse o jornal para que no nos enganssemos sobre do que se pode rir ou do que se
deve chorar.
27
Essa interpretao dos fatos, pelo vis do humor, traz elementos importantes na construo
dos significados, no olhar cotidiano para o que acontecia no mundo, alm de provocar uma
releitura das notcias dos jornais e dos rdios. Possibilita novas conexes entre histria e
linguagem. Em meio s construes de intertextualidade, instauram-se novas relaes de
tempo e espao, multiplicando-se as perspectivas de leitura e de reflexo sobre a guerra. As
charges e as caricaturas constituem-se como um discurso polifnico e dialgico do qual nos
falava Bakhtin. 28 As diferenas de traos e solues grficas permitem deslocamentos nas
percepes
polticas
sociais,
dando
visibilidade
tenses,
configurando
as
CANCLINI, N. G. Hybrid Cultures. Strategies for Entering and Leaving Modernity. Trad. Chritopher L. Chiappari
and Silvia L. Lopez. Minneapolis, University of Minnesota Press, 1995, p. 249
2
GOLDSTEIN, R. J. Censorship of Political Caricature in Nineteenth-Century France. Ohio: The Kent State
University Press, 1989, p.2
3
BRAIT, Beth. Ironia em Perspectiva Polifnica.Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1996, p.31
4
RIVERS, Kenneth T. Transmutations. Understanding Literary and Pictorial Caricature. Lanham, Maryland:
London: University Press of America, 1991, p. 230
5
LANDOWSKI, Eric. No se brinca com o humor: a imprensa poltica e suas charges. In FACE, So Paulo, 4(2):
64-95, jul./dez. 1995, p. 66
LANDOWSKI, Eric. A Sociedade Refletida. Trad. Eduardo Brando. So Paulo: Educ / Pontes, 1992. p.85-90
LANDOWSKI, Eric. No se brinca com o humor: a imprensa poltica e suas charges. In FACE, So Paulo, 4(2):
64-95, jul./dez. 1995, p.81
8
J.Carlos nasceu no Rio de Janeiro, em 1884 e faleceu em 1950. Deixou o curso ginasial pela metade e iniciou
sua carreira, sob a direo de Raul e K.Lixto, em O Tagarela, em 1902. Por mais de meio sculo colaborou com
inmeros peridicos, como A Avenida, O Malho, Sculo XX, Leitura para Todos, O Tico-Tico, Fon-Fon!, Careta
(de 1908 a 1921 e de 1935 a 1950), D. Quixote, A Cigarra, A Vida Moderna, Revista Nacional, Eu Sei Tudo,
Revista da Semana, entre outras. De 1922 a 1930, foi diretor artstico das publicaes da empresa O Malho,
ilustrando Para Todos, Ilustrao Brasileira, O Malho, O Tico-Tico, Cinearte, Leitura Para Todos, Almanaque do
Malho e Almanaque do Tico-Tcio. De 1931 a 1934, fez grande nmero de capas e ilustraes para O Cruzeiro e
Fon-Fon!, bem como para A Noite, A Lanterna, A Nao, A Hora e Beira-Mar. Foi nessa poca que criou os tipos
da melindrosa e do almofadinha, que viraram personagens. Em 1933 publicou um livro infantil, Minha Bab,
escrito e ilustrado por ele.(FONSECA, p.230-231) Ver tambm CARLOS, J. J. Carlos contra a Guerra. As
grandes tragdias do sculo XX na viso de um caricaturista brasileiro. Texto Arthur Dapieve; organizao Casio
Loredano. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2000
9
FONSECA, Joaquim da. Caricatura. A imagem grfica do humor. Porto Alegre: Artes e Ofcios, 1999, p.231
10
LIMA, Herman. Histria da Caricatura no Brasil. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1963 4v., p.371
11
Charge da capa da revista Careta de 10/12/1938 in CARLOS, J. J. Carlos contra a Guerra. p.145
12
Para participar da guerra, o Brasil forma a Fora Expedicionria Brasileira (FEB). Apesar de mal treinados,
os brasileiros tm participao importante em algumas batalhas em territrio italiano, com destaque para a
tomada de Monte Castelo (21/02/1945), onde, ao preo de numerosas baixas, derrotam uma diviso alem.
LEMOS, Renato (org.) Uma histria do Brasil atravs da Caricatura. 1840-2001. Rio de Janeiro: Bom Texto /
Letras & Expresses, 2001.p.68
13
Charge da capa da revista Careta de 9/11/1940 em CARLOS, J. J. Carlos contra a Guerra. p. 227
14
Charge da capa da revista Careta de 25/05/1940 em CARLOS, J. J. Carlos contra a Guerra. p 244
15
Careta 3/03/1945 em CARLOS, J. J. Carlos contra a Guerra. p.228
16
CARLOS, J. J. Carlos contra a Guerra. p.232-235
17
Careta 29/09/1945 em CARLOS, J. J. Carlos contra a Guerra p.263
18
Belmonte abandonou o curso de medicina ainda no primeiro ano para dedicar-se inteiramente caricatura.
Comeou aos 15 anos na revista Rio Branco. Em 1912, Belmonte fez seus primeiros desenhos profissionais para
a revista D. Quixote. Depois colaborou com as revistas do Rio de Janeiro Careta, Revista da Semana, O
Cruzeiro, e Fon-Fon!, nas quais foi tambm redator e diretor de arte. Na Folha da Noite, de So Paulo trabalhou
de 1921 at sua morte.
Belmonte fez tambm ilustraes para livros, notavelmente para Povos e Trajes da Amrica Latina, Histria do
Brasil para crianas, A Bandeira das Esmeraldas, estes dois ltimos de autoria de Viriato Correia. Como
ilustrador dos livros infantis de Monteiro Lobato, criou um universo que deliciava crianas e adultos, ao lado de
outros artistas que deram corpo aos personagens do Stio do Picapau Amarelo (os outros foram Oswaldo,
J.U.Campos e Andr L Blanc). Interessou-se pelo ensaio histrico e na investigao histrica. Nesses termos
publicou Brasil de Ontem (1940), com desenhos inspirados em Rugendas, Velhas Igrejas do Brasil e Biografias
de uma cidade, uma histria de So Paulo. Os cartuns de Belmonte foram publicados na forma de livros, com os
ttulos Angstias de Juca Pato (1926) e No Reino da Confuso (1939). Suas crnicas humorsticas, ilustradas por
ele mesmo, foram tambm publicadas em antologias, como Assim falou Juca Pato (1933) e Idias de Joo
Ningum (1935). (FONSECA, p.238-239) As caricaturas de guerra de Belmonte, reunidas, primeiramente, no
lbum Reino da Confuso, foram novamente reproduzidas em edio pstuma, no volume Caricatura dos
Tempos.
19
FONSECA, Joaquim da. Caricatura. A imagem grfica do humor. Porto Alegre: Artes e Ofcios, 1999, p.238
20
LAGO, Pedro Corra do. Caricaturistas Brasileiros 1836-1999. Rio de Janeiro: Sextante, 1999, p.101
21
BELMONTE. Caricatura dos Tempos. So Paulo: Melhoramentos, 1982, p. III
22
21/03/1939 em BELMONTE. Caricatura dos Tempos. So Paulo: Melhoramentos, 1982, p.23
23
07/01/1943 em BELMONTE. Caricatura dos Tempos. So Paulo: Melhoramentos, 1982, p.83
24
28/07/1944 em BELMONTE. Caricatura dos Tempos. So Paulo: Melhoramentos, 1982, p.96
25
15/06/1940 em BELMONTE. Caricatura dos Tempos. So Paulo: Melhoramentos, 1982, p. 43
26
22/08/1942 em BELMONTE. Caricatura dos Tempos. So Paulo: Melhoramentos, 1982, p. 73
27
LANDOWSKI, Eric. No se brinca com o humor: a imprensa poltica e suas charges. In FACE, So Paulo, 4(2):
64-95, jul./dez. 1995, p.89
28
Ver especialmente BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Mdia e no Renascimento. O contexto de
Franois Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. So Paulo:Hucitec; Braslia: Ed. da UNB, 1987 e BAKHTIN,
Mikhail. Problemas da Potica de Dostoivski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2002.
7