Sete Faces Da 1 Vez - Vários Autores
Sete Faces Da 1 Vez - Vários Autores
Sete Faces Da 1 Vez - Vários Autores
Sumrio
Apresentao geral
Sete faces da primeira vez
A hora da verdade Carlos Queiroz Telles
Serespaperconfi Pedro Bandeira
Doce iluso Flvia Muniz
Maurcio Jlio Emlio Braz
Nunca mais Vivina de Assis Viana
Ai, Ioi Fernando Portela
Um aprendizado Maral Aquino
Para ler
Para assistir
Sete Faces
Apresentao geral
Marcia Kupsta
Sete faces da primeira vez
A primeira vez! Na vida de todas as pessoas, a iniciao em
qualquer atividade ou a primeira experincia emocional causa
expectativa, ansiedade... Para
o jovem, enfrentar esses "primeiros desafios" significa mesmo
entrar no mundo adulto; o incio de sua participao nele.
Nas sociedades modernas a passagem da infncia para a vida
adulta no apresenta festas nem impe rituais significativos.
Exceo talvez para o servio militar obrigatrio, em alguns
pases, ou cerimnias como o bar mitzvab para os judeus, a festa de
quinze anos e bailes de debutantes em certas regies. Mesmo
assim, no so solenidades abrangentes, ou mesmo to
expressivas , restringem-se a certos grupos.
Nem sempre foi assim. Os povos primitivos valorizavam (e ainda
valorizam) extremamente o momento da adolescncia. Os "ritos
de passagem" consistiam em cerimnias que envolviam toda a
comunidade, festas coletivas que reconheciam a importncia de
inserir o jovem no meio adulto. Para os olhos modernos, podem
parecer cruis algumas prticas, como as de raspar a pele e tirar
sangue dos meninos, faz-los pular de penhascos sobre o mar ou
caar, sozinhos, feras selvagens. Mas eram prticas necessrias,
para que o "mundo infantil" fosse deixado para trs. Houve
mesmo tribos indgenas norteamericanas em que os jovens
mudavam de nome, depois do rito. como se renascessem
realmente.
Hoje isso no ocorre mais; no h ritos nem cerimnias indicando
quando o jovem "virou homem". Mas h, apesar disso,
determinadas "primeiras vezes" que ganham a dimenso de rito.
Quando o meio social, o grupo a que o jovem pertence, valoriza
muito uma experincia, ela pode ser marcante e significar a
"passagem" para o mundo adulto. Um exemplo disso quando
toda a famlia e os amigos esperam ansiosamente, junto com o
jovem, pelo resultado de um vestibular faculdade. Ou, em outras
camadas sociais, quando o menino arruma o primeiro emprego e
"fica independente". Ou, ainda, quando a menina recebe seu
primeiro beijo... Momentos assim podem significar, para o jovem,
sua passagem vida adulta.
Portanto, os ritos de passagem, se no existem hoje do mesmo
modo de antes, ocorrem de maneira pessoal, quando determinado
jovem encara o momento da "primeira vez" como o "divisor de
guas" em sua vida. Verdade tambm que algumas pessoas
podem "virar adultos" nunca tendo sido marcados por nenhum
rito, nenhum momento essencial. Isso triste.
Como diz o mitlogo americano Joseph Campbell, "todas as
crianas deveriam nascer duas vezes para aprender a funcionar
racionalmente no mundo de hoje, deixando a infncia para trs".
Se isso no ocorre, podem levar a infncia para o mundo adulto,
tornando-se pessoas frgeis, incapacitadas para entender os fatos.
Muita gente vive assim, lotando as salas dos consultrios de
psiclogos, tentando amadurecer artificialmente. Essa talvez seja
uma das grandes falhas do mundo moderno.
Porm, o que aqui procuramos ressaltar foram "aquelas" primeiras
vezes que ganharam a fora de rito. Momentos que, para
determinados personagens, significaram um marco em suas vidas,
forando-os a evoluir, a rever atitudes infantis, amadurecer...
Embora as experincias sejam pessoais e no coletivas (como eram
nas sociedades primitivas, cerimnias envolvendo a todos), no
deixam de ser grandes descobertas; foras bsicas, essenciais.
O time de escritores criou personagens encontrando o amor ou
decepcionando-se com sua ausncia, devaneando sobre o primeiro
beijo ou comovendo-se com uma intensa amizade e enfrentando
com otimismo o primeiro emprego, sofrendo com seus inimigos
ou no encontro com a morte. Momentos marcantes, muitas vezes
misturando-se, j que o primeiro beijo pode selar o incio do
primeiro amor; ou no primeiro emprego pode-se encontrar o
primeiro amigo. So contos cheios de carinho por momentos to
importantes na vida de todos ns.
Primeiro beijo
A hora da verdade
Carlos Queiroz Telles
Primeiro amor
Que tema fascinante o do primeiro amor! Tantos e to variados
escritores dedicaram-se a ele, em todas as pocas... Shakespeare,
teatrlogo ingls do sculo
XVI, chegou a criar o casal romntico mais famoso de todos os
tempos: Romeu e Julieta. Na sua pea homnima, ele mostra o amor
desesperado entre os jovens, cada um vindo de uma famlia rival.
o amor que enfrenta preconceitos, tragdias, dios. Em 1968, o
diretor Franco Zeffirelli fez um filme ultra-romntico, baseado nesse
caso de amor.
O perodo literrio do Romantismo (incio do sculo XIX) explorou
o tema de inmeras formas, mostrando finais felizes em livros como
A moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, e Senhora, de Jos de
Alencar, ou trgicos, como Amor de perdio, de Camilo Castelo
Branco, e Inocncia, de Visconde de Taunay.
Amores que encontram empecilhos para se realizar e que por isso
causam tanta ansiedade esto bem retratados nos livros Os amantes
da chuva, de Carlos Queiroz Telles (foi filmado em 1979 por Roberto
Santos), e A marca de uma lgrima, de Pedro Bandeira.
O cinema explorou o tema do primeiro amor em muitas pocas, de
vrias maneiras. No comeo dos anos 80, o filme A lagoa azul
abordou o tema do primeiro amor de modo comovente. Duas
crianas nufragas acabam sozinhas numa ilha deserta. Cresceram
em meio ao lugar paradisaco e sozinhas descobrem o amor... Em
Gatinhas e gates o diretor John Hughes, especialista em filmes sobre
adolescentes, mostra um dia muito confuso na vida de uma jovem.
Ao fazer dezesseis anos, ela constata que ningum na famlia se
lembrou da data. Entre tantas peripcias, acaba se aproximando do
rapaz que ama, num happy end adolescente e atual.
Atualidade presente no conto de Pedro Bandeira, "Seres-
paperconfi", em que Marina uma garota muito interessada em
"ficar" com Renato, mas que tambm se divide em sentimentos
contraditrios.
Serespaperconf
Pedro Bandeira
O corao de Marina batia apressado, como se pretendesse
acelerar a passagem dos segundos, antecipando as cinco horas da
tarde daquela quarta-feira.
Estava muito bem "produzida", como Suzana no parara de dizer
um s minuto, enquanto preparava a amiga para o encontro com
Renato.
Tudo fora acertado com muito capricho pelas trs. Para Clarisse,
no tinha sido difcil fazer chegar aos ouvidos de
Renato que havia uma menina chamada Marina, do primeiro
colegial, que estava prontinha a "experiment-lo".
Maria Amlia marcara tudo para quarta-feira. Em sua prpria
casa, os pais trabalhando, licena normal para um grupo de
colegas "estudarem" na casa dela. Desde as duas horas, apenas
quatro amigas e todos os preparativos para a ficada. s cinco
horas chegaria Renato.
Suzana, Clarisse e Maria Amlia passariam ento a prxima hora
na lanchonete, deixando Marina na sua primeira ficada com o gato
de Bauru.
Durante toda a preparao, desde aquela tarde de domingo,
Marina quase nada dissera, meio como se tudo aquilo no fosse
com ela.
Num primeiro momento, a excitao subiu-lhe cabea. No
confessou para elas, mas sua verdade ntima era que Renato ficara
gravado em sua alma desde a primeira vez em que o vira. Aos
poucos, o garoto se fizera presente em todos os momentos no
pensamento da menina.
Ele era lindo. Ai, como Marina achava lindo aquele garoto, com
aquele sorriso branco feito comercial de pasta de dente! Nunca
dissera nada para as amigas, mas tambm nunca procurara
esconder o efeito que Renato provocava em seus pensamentos. E
claro que alguma delas acabaria descobrindo, como Suzana lera
em sua expresso naquela noite de sbado, no pequeno banheiro
do apartamento de Valtinho.
E, agora, Renato estava sendo oferecido a ela pelas amigas como se
fosse um presente, uma caixa de bombons, um frasco de perfume.
As trs pareciam at mesmo mais excitadas com o presente que
ofereciam do que ela com o presente que ganhava.
Um lindo garoto, embrulhado para presente. Um presente de uma
hora, uma hora apenas. Tinha de experimentar tudo o que desse,
tinha de sorver cada gota daquele encontro, tinha de passar por
todas as sensaes, tinha de sentir todos os gostos, todos os
cheiros, tinha de engolir todos os bombons em apenas uma hora,
levando a responsabilidade de no esquecer nada, para relatar
tudinho em seguida para as amigas.
Marina fora instruda cuidadosamente. Nenhum detalhe as
amigas tinham deixado escapar. Durante os preparativos, falavam
as trs ao mesmo tempo, instruindo-a como os tcnicos de um
lutador de boxe antes de o gongo soar para o incio do primeiro
round. Marina sorria, ouvindo o que devia fazer com a lngua,
como deveria encurvar o corpo, suspirar no momento certo ("um
gemidinho discreto, rpido, na hora certa, pode tornar tudo mais
gostoso", dissera Clarisse), o que deveria fazer com as mos, o que
deveria deixar que Renato fizesse com as mos, o que deveria no
deixar, at onde Renato podia ir, at onde ela poderia ir...
Uma gotinha de perfume aqui, aqui e aqui! dizia Maria
Amlia, enquanto gastava um pouco do perfume francs da me,
tocando em pontos "estratgicos" de Marina. Quando os
garotos baixam a cabea, no meio do abrao, depois de um beijo,
aqui mesmo que pra o nariz deles. Ah, e eles ficam louquinhos ao
sentir esse perfume com a ponta do nariz bem "a"!
Suzana fizera questo de deixar meio aberta a blusa de Marina. E
Maria Amlia marcara com perfume os limites do olhar de Renato,
quase como se marcasse tambm o ponto abaixo do qual o nariz
do garoto no poderia passar. De qualquer modo, a blusa j era
transparente o bastante, quase no fazia diferena se o decote
estivesse mais ou menos desabotoado.
Marina estava pronta.
Na manh seguinte, no colgio, tudo o que Marina se permitiu foi
dar satisfao s amigas e tirar Renato do embrulho. No, o garoto
nada fizera de errado. Ela que, na ltima hora, resolvera impedir
a estria do espetculo.
O jeito da menina era to estranho! Havia uma determinao to
desconhecida em sua expresso, em suas palavras, que as colegas
resolveram no insistir. No percebiam nenhuma abertura para
exigir mais explicaes de Marina.
As aulas comearam e transcorreram com a menina calada,
fechada em uma estranha postura, as sobrancelhas um pouco
franzidas, uma ateno desligada das aulas, das palavras dos
professores, fixada em alguma coisa dentro dela, alguma coisa
forte, alguma coisa importante.
Na classe do terceiro colegial, outro aluno tambm no conseguia
concentrar-se nas aulas. Renato estava perturbado com o que
acontecera. Ele sabia que o certo seria esquecer o encontro
frustrado, como normalmente deveria esquecer uma ficada
comum, pouco depois de ter acontecido, mesmo que tudo tivesse
dado certo. bom ficar com uma garota enquanto dura a ficada.
Depois... ora, depois a vida continua.
Mas Renato no conseguia entender por que a fuga de Marina
tinha sido to importante, to marcante para ele.
Abraada aos cadernos, Marina voltava para casa, sem apressar o
passo, sem pressa alguma, levada pelo costume, imersa no que
pensava.
Numa esquina, l estava ele.
Renato.
Marina levantou os olhos para ele. Sorriu abertamente, gostoso,
mostrando sem vergonha alguma como a presena daquele garoto
era gostosa para ela.
Marina... Eu...
Oi, Renato.
Escute, Marina... Eu queria dizer que eu... Espere, voc no
vai fugir?
Eu? Fugir?! Por que haveria de fugir?
A reao leve, descompromissada, da menina no estava ajudando
Renato em nada. O rapaz depositou os livros sobre uma mureta.
Marina colocou o seu material sobre o dele, demonstrando-se
pronta para uma conversa. No parecia perturbada. Pelo contrrio,
mostrava-se perfeitamente vontade.
No entendo, eu no posso entender voc. Ontem...
Ontem foi ontem; tudo errado. Hoje um outro dia.
Marina, por favor, entenda. Se eu fiz alguma coisa errada
esteja certa de que...
Alguma coisa errada? No, voc no fez nada de errado.
Errada era a situao toda. Voc no tem nada com isso.
Mas disseram que voc estava interessada em mim. Que
queria ficar comigo...
Eu queria sim, Renato. Ah, como queria! No tenho a
menor vergonha de confessar.
J sei. No precisa dizer mais nada. Entendo. Na hora, voc viu
que no era nada daquilo. Acontece, s vezes acontece. Dizem que
cada pessoa tem alguma coisa que, s vezes, repele as outras...
Marina sorriu, linda e abertamente:
Bobinho! Deixe esse negcio de exoterismo pra l. Voc um
m humano. Se essa tal "alguma coisa" existe mesmo, a sua
demais. A vontade que a gente tem ficar grudada em voc como
um alfinete gruda na tesoura.
A voz de Renato alteou-se. Calma ele quase no tinha. E a pouca
que trouxera desapareceu.
Ora, droga! Ento por que voc no quis ficar comigo? Marina
chegou muito juntinho de Renato. Com as duas
mos, envolveu o rosto do garoto, aproximando-o do seu prprio
rosto.
Ah, Renato, como voc lindo! Lindo, lindo! No tenho
nenhuma vergonha de confessar. Desde o primeiro dia em que
meus olhos deram com voc, eu nunca mais fui a mesma...
Mas ento, por qu...
Shhh... caladinho. Deixe eu falar. Pensei a noite toda, tentando
compreender minha reao maluca de ontem. Hoje, durante as
aulas, no consegui ouvir nenhum professor. O tempo todo, s
havia a sua imagem minha frente, no meu pensamento, dentro
de mim. Eu pensava que queria ficar com voc. Estava louca para
ficar com voc. Tnhamos uma hora inteirinha, tudo preparado,
tudo perfeito. Voc seria meu, durante uma hora. E, de repente, eu
no quis mais ficar essa hora com voc. Eu no entendi por que,
mas, naquele momento, eu tive certeza de que no queria somente
ficar com voc. Foi a professora de Gramtica que acabou
resolvendo a minha dvida.
O qu?! Voc foi contar para ela que...
No. Eu no disse nada. Veja.
Soltou o rosto do Renato, devagar, como se no quisesse solt-lo.
Pegou um dos livros que estavam sobre a mureta e folheou-o,
procurando a pgina certa.
Veja, querido. Os verbos de ligao.
Os verbos de ligao? Voc ficou maluca? O que que os
verbos de ligao tm a ver com...
Com a ligao entre duas pessoas? Acho que tm muito a
ver. Examine cada um deles. Ser, estar, parecer, permanecer,
continuar, ficar...
Marina, eu no estou entendendo...
Ora, mas to fcil! No existe apenas "um" verbo de ligao.
No existe s ficar. Ah, voc... Como eu posso gostar tanto de
voc?! Como eu poderia deixar crescer mais ainda o que a sua
presena provoca em mim?! E descobri que quero muito mais do
que ficar, Renato. Eu quero ser sua, eu quero estar com voc, eu
quero parecer que sou sua, eu quero permanecer com voc, eu quero
continuar com voc e, finalmente, eu quero ficar com voc!
Enquanto lhe mostrava o livro didtico, sem pejo algum, Marina
recostara seu corpo contra o de Renato, meio de lado, abrindo-lhe
o livro frente, para que ele lesse onde o seu dedinho apontava. O
garoto enlaou-lhe os ombros.
Ah, Marina, Marina! Voc no existe. De onde voc surgiu?
De que planeta caiu? O que voc quer? Um compromisso? A gente
no tem idade para...
Alguma coisa definitiva? No foi isso o que eu quis dizer,
Renato. Nada de compromissos. Nada de decises. Nada de
definitivo. Isso estraga as ligaes e os verbos. Voc gosta de
poesia? Eu adoro! Voc conhece o Soneto de fidelidade?
Renato soltou o abrao.
Fidelidade?! L vem voc com...
Do Vinicius de Moraes. A coisa mais linda. Voc conhece? Ele
tambm explica o que eu sinto por voc, o que senti quando fugi
ontem. Se eu tiver voc, pelo tempo que for, quero dizer, como o
Vinicius, "que o nosso amor no seja imortal, posto que chama,
mas que seja infinito enquanto dure..."
Marina voltou-se, sorrinho, parecendo feliz.
Foi embora, sem olhar para trs.
Marina atendeu o telefone, ainda feliz, sabendo perfeitamente
quem estava no outro lado da linha.
Al, Renato.
Marina, eu...
Sim, fale.
Eu... Eu queria dizer que...
Fale, querido, estou ouvindo.
Eu... queria... Eu queria serespaperconfi com voc, droga!
lvaro comeu sem muito apetite. Depois sentou-se um pouco na
sala, tentando acompanhar o filme na sesso especial.
Desinteressado, resolveu tomar um banho. Depois foi para o seu
quarto. Tinha um certo pressentimento de que Pedro e Carla
apareceriam novamente e, no querendo ser pego de surpresa,
trocou de roupa, pegou sua carteira, uma malha e esperou.
Onze horas e nada! Abriu a porta devagar e viu que seus pais j
haviam ido para o quarto. Quando deu onze e meia, lvaro no
agentava mais de ansiedade. Decidiu descer e esperar por eles.
Algo lhe dizia que tudo iria dar certo.
Caminhou at a entrada do prdio, deu boa-noite ao porteiro, com
a maior naturalidade, e ficou aguardando seus colegas. Qual no
foi sua surpresa ao ver um carro aproximar-se devagarinho. Era
Carla!
E estava sozinha! Mal podia acreditar. Correu ao seu encontro,
radiante. Seu pressentimento no falhara, afinal.
Puxa, Carla, parece incrvel... Mas eu estava esperando por
voc.
E ento? J se decidiu, seu bobinho?
Bem... Eu no sou muito bom nessas coisas, mas andei
pensando...
Sim? ela o incentivou com um sorriso.
Acho que tenho me comportado como um boboca ele
declarou, meio sem jeito.
Ah, no fale assim...
O Pedro at que me deu uns toques, mas eu me sentia muito
inseguro. Acho que agora eu entendi tudo...
Carla aproximou-se mais. Ela estava linda, como sempre. lvaro
teve uma sensao gostosa ao sentir o perfume que ela usava.
Encheu-se de coragem para dizer o que vinha ensaiando durante
todo o dia.
V-voc quer... namorar comigo?
Carla olhou-o espantada, e depois comeou a rir.
Namorar? Eu?!? ela disse, admirada.
lvaro teve uma sensao de irrealidade e compreendeu
subitamente que havia cometido um engano. Um grande engano.
Sentiu seu rosto afoguear-se e o corao bater mais depressa em
seu peito.
Bem... Eu pensei que... balbuciou, embaraado.
S passei por aqui para me desculpar. Acho que assustei voc
ontem, no foi?
lvaro no conseguia falar. Desejava que um buraco se abrisse no
cho para se esconder... para sempre.
Sinto muito, lvaro. Sou a namorada do Pedro. Pensvamos
que voc j tivesse percebido.
lvaro ficou ali, sentindo-se um verdadeiro tolo. Carla percebeu
que era melhor ir embora, para no eternizar aquele momento,
pois tambm ficara constrangida com a situao.
At amanh despediu-se com um tchau.
lvaro deu meia-volta e caminhou para o prdio sentindo-se mais
s, naquela cidade grande.
Flvia Muniz nasceu em Franca (SP), em 1956. pedagoga, coordenadora e
orientadora educacional. Em 1984 lanou seu primeiro livro, passando ento a
dedicar-se literatura infantil. Atua como redatora-chefe na Redao Disney da
Editora Abril Jovem.
Rita, no grita!, Uma sombra em ao, A caixa maluca, Toma l, d c, O tubo de cola e
Brincadeira de saci (as duas ltimas, indicadas para o prmio Jabuti de 1989) so
algumas de suas obras. Sua primeira novela juvenil, Viajantes do infinito, lanada
pela Editora Moderna, recebeu, em 1991, da Associao Paulista dos Crticos de
Arte, o prmio de "Melhor Texto Juvenil".
Primeiro amigo
Ter amigos fundamental para o amadurecimento da
personalidade de qualquer pessoa. Mas h "amizades" e
"amizades"... H aquelas que transcendem diferenas sociais, de
idade, de nvel intelectual... E h outras que resistem s mudanas e
ao tempo. Essas, sim, podem marcar uma pessoa de maneira a que
um "primeiro amigo" pode significar uma grande descoberta, um
"marco" na vida.
Amizade assim est representada no filme E.T. o extraterrestre, de
Steven Spielberg. O encontro do menino e do ser aliengena
comovente; eles realmente suplantam diferenas profundas para
serem amigos. Em Os heris no tm idade, o grande amigo de um
garoto um "amigo inventado", heri forte e corajoso a proteg-lo
do perigo. (No toa que o garoto fantasia seu "heri" com a cara
do prprio pai.)
Dois filmes americanos que mostram a amizade adolescente como
profunda e marcante so Clube dos cinco, de John Hughes, e Amigos
para sempre, de Arthur Penn. O primeiro se passa em um nico dia,
em que cinco adolescentes so "punidos", reunidos na sala de aula,
tendo de escrever uma redao. Aos poucos, eles enfrentam os
prprios preconceitos e desnudam suas almas num retrato forte da
adolescncia (uma garota linda e ftil; um apanha do pai bbado e
rebelde; outro o tpico esportista; h tambm o intelectual
tmido; e a introvertida, fechadona). Amigos para sempre retrata vinte
anos de amizade. O grupo reunido em torno da exuberante Gergia
vai viver muito da "revoluo de comportamento" dos anos 60.
Jorge Amado soube, nos anos 30, trazer um sensvel retrato da unio
que rene o grupo de crianas abandonadas em Capites de areia,
que supera a situao de misria em que vivem.
Amigo "normal", amigo "diferente"... No filme Asas da liberdade,
assim que eles so. Um rapaz esportista e namorador; outro
calado e obcecado por pssaros. Infelizmente, depois da Guerra do
Vietn eles se reencontraro, muito traumatizados. No livro juvenil
A maldio do silncio, de Mareia Kupstas, a amizade abalada pela
doena. Enquanto Ricardo saudvel e de famlia classe mdia, seu
amigo Joo sofre de uma doena terrvel e pobre.
A doena pode no impedir a amizade, quando esta forte. Esse o
tema do conto de Jlio Emlio Braz, "Maurcio". Enfrentando os
preconceitos das famlias e da sociedade, Maurcio encontra, no
narrador da histria, a fora necessria para reagir doena e s
maldades.
Maurcio
Jlio Emlio Braz
Adeus, Maurcio...
Samos do hospital. Papai me escoltou at o ponto de nibus. As
pessoas ficaram olhando e eu olhei para meu pai, envergonhado,
os olhos marejados de lgrimas. Ele sorriu. Deu um tapinha no
meu ombro e me apertou com mais fora contra ele.
No tinha importncia.
Continuei chorando dentro do nibus, olhando para fora. No
quis olhar para trs, para o hospital. Eu ia lembrar de Maurcio.
Bobagem. Eu ainda continuaria lembrando dele mesmo que no
olhasse, mas talvez as lembranas do passado fossem melhores.
No tempo de antes, Maurcio era a vida. Era alegre. No estava
doente. No havia morrido.
Talvez eu preferisse me lembrar sempre daquele Maurcio. No
daquele que eu deixei no hospital, que agarrou minha mo com
desespero e revolta diante da injustia da vida. Mas daquele
Maurcio do tempo de antes.
Antes...
"No queremos Aids pros nossos filhos" "Fora com o aidtico" "Ou
ele sai ou ns samos"
Jlio Emlio Braz nasceu em Manhumirim (MG), em 1959. Sua formao escolar
de tcnico em contabilidade. Autodidata, comeou produzindo textos de
histrias em quadrinhos para revistas de terror, passando depois a escrever
novelas de western.
Seu primeiro livro juvenil, Saguairu, rendeu-lhe o prmio Jabuti, da Cmara
Brasileira do Livro, em 1989. Em 1990 lanou, pela Editora Moderna, Crianas
na escurido.
Primeiro inimigo
Que Deus me proteja de meus amigos. Dos inimigos, cuido eu",
falou Voltaire, filsofo francs do sculo XVIII. Que sentimento
estranho o dio. Por que sentimos averso instantnea por
algumas pessoas e por que o "jogo do dio" consegue ser to intenso
quase igual ao amor? Que sentimento esse que se pode tornar
uma obsesso destruir o outro, aniquil-lo?
Se esse sentimento humano to intenso, ele pode ser mais
marcante se envolver adolescentes. Pelo menos como acontece no
filme Eu sou o senhor do castelo, em que dois meninos so obrigados a
conviver numa manso. Um deles filho do proprietrio, e o outro,
da governanta. Os pais acreditam numa convivncia tranqila entre
os garotos, mas ocorre o oposto. Ambos travam uma autntica
"guerra" para manter a liderana.
Rivalidade juvenil sem ser to solene, ambientada numa tpica
escola americana, est no filme Te pego l fora. Um rapaz estudioso,
sem querer, irrita o briguento da classe. Vem a a frase: "Te pego l
fora". Com pavor da surra iminente, o rapaz bonzinho apela pra
tudo: pagar a outro para brigar por ele, ficar de castigo e ser
suspenso, oferecer dinheiro ao brigo...
Conflito de rivalidade que envolve morte e horror est tanto no
filme A morte pede carona quanto em Caadores de emoo. No
primeiro, rapaz simptico oferece carona a um homem e descobre
que este um psicopata. Trava-se, pelas estradas americanas, um
autntico duelo entre os dois.
J em Caadores de emoo, um rapaz policial infiltra-se entre surfistas
para achar um bando de assaltantes. Levar um choque ao constatar
que seu mais recente grande amigo o lder dos assaltantes. O final
trgico mostra uma caada de longos meses, em que o policial
arrebenta suas emoes para prender o surfista. um caso
expressivo de amor-dio que pode permear uma histria de
inimigos-amigos.
No livro Vernnia (Ironweed), de William Kennedy, o personagem
principal um bbado que, entre tantas alucinaes, rev a figura de
um homem que ele matou na juventude. Relao de dio
envolvendo fantasmas, em uma histria deprimente e sensvel. Em
1987 houve uma filmagem da histria, pelo diretor Hector Babenco.
Tambm inimigo morto por isso mesmo, muito mais forte e difcil
de ser vencido est no conto de Fernando Portela, "Ai, ioi".
Relaes familiares neurticas e a ausncia do pai marcam a infncia
de Fbio, o narrador da histria.
Ai, Ioi
Femando Portela
O pistolo chegou atrasado. Mainha j estava se descabelando
porque requentara a comida trs vezes, nervosa como sempre,
enquanto tio Lino lhe pedia,
suplicava: "Calma, calma,
Belmira, pelo amor de Deus".
Pedir isso para mainha era
bobagem.
Me lembro dela, desde
que eu era bem
pequeno, e ela.sempre foi
assim, toda agitada,
assustada, achando que as
coisas iam dar errado e que o
mundo estava contra ela.
Uma vez eu at perguntei ao tio Lino, porque eu adoro ele, se foi
por causa do nervoso de mainha que painho largou a gente. Tio
Lino me olhou com aqueles olhos verdes bem grandes, iguais aos
de mainha (ele se parece muito com ela), e ps a mo direita no
meu ombro.
Isso no coisa pra criana de 11 anos perguntar...
E saiu passeando comigo pelo quintal da casa, olhando as flores
que ele mesmo plantava quando aparecia todo fim de semana.
Mas se arrependeu do que havia dito:
Sabe, Fabinho, acho que voc tem idade, sim, para
perguntar essas coisas. Eu que no sei responder. No sei por
que seu pai e sua me se separaram. Ningum sabe por que as
pessoas se separam. Acho que no tem por qu.
Mas eu acho, tio Lino, que painho no agentou o nervoso
de mainha.
Ou voc que no est agentando, Fabinho? Sua me
sempre foi assim, o que que a gente pode fazer?
Mas eu no me lembro de ter visto mainha to nervosa como
naquele dia em que o pistolo foi almoar l em casa. Ela estava
quase como dona Clotilde, a vizinha na frente, no dia em que o
marido morreu. Dona Clotilde gritava "ai, ai, ai, ai, benzinho"; "ai,
ai, ai, ai, benzinho", e eu fiquei muito assustado, porque ela gritava
alto, cada vez mais alto.
O pistolo era amigo de um amigo de tio Lino, um homem mais
velho que havia conseguido, no Rio de Janeiro, arrumar um timo
emprego para mainha no Departamento Nacional de Obras de
Saneamento. Diziam que era um emprego para o resto da vida.
Mainha j trabalhava nessa repartio, mas no tinha feito
concurso e foi ameaada de demisso. Quando isso aconteceu, a
nossa casa virou um inferno. Ela chorava o dia inteiro, xingava o
governo, se queixava com todo mundo, as amigas, os vendedores
que batiam palmas no porto, trazendo peixes, frutas, material de
limpeza.
Certa vez mainha se queixou at para um mendigo que pedia resto
de comida. O homem ouviu mainha com a maior pacincia e
depois disse: "A senhora chora de barriga cheia". Mainha ficou
revoltada com ele.
Eu simpatizei muito com o pistolo, seu Jos Fragoso, e a mulher
dele, dona Dinorah. Eles trouxeram um buqu de flores para
mainha e um caminho grande, de madeira, para mim. Mainha
chorou quando recebeu as flores. Disse que painho nunca tinha
levado flores para ela. "Nem no comeo do namoro, quando todo
mundo gentil..."
Eu me lembro bem que dona Dinorah desculpou painho. "Os
homens so muito distrados para essas coisas..." ela disse.
Mas eu duvido que o seu Jos aqui fizesse uma coisa dessas
com a senhora. Dez anos de casado e nunca lhe dar umas flores...
O pistolo ficou sem jeito e tio Lino mudou de assunto. Era um
domingo de muito sol, muito calor, tinha sangria para beber e o
prato principal era galinha ensopada. Tinha graviola de sobremesa
e doce de caju com requeijo. Estava caprichado o almoo.
Era mesmo para ser um dia de muita felicidade. Todo mundo ria e
brincava, falando de poltica. O pistolo queria que Juscelino
Kubitschek fosse eleito presidente. Tio Lino ainda no tinha
candidato e mainha fez questo de dizer que achava poltica um
nojo.
Eu at concordo com a senhora disse o pistolo , mas ns
temos de lutar contra os maus polticos e eleger os bons... O que
no podemos nos omitir...
Mainha insistiu que todos os polticos eram desonestos e
mentirosos, que no valiam nada, e que bastava tanto um quanto
outro na Presidncia. A tio Lino lembrou a ela que se no fossem
as amizades polticas do pistolo ela no teria conseguido
efetivao no emprego.
Mainha se calou, mas todo mundo tambm se calou. Durante o
cafezinho, que vinha acompanhado de licor de menta, comeou
minha desgraa.
Mainha desandou a chorar de repente. Ficou um tempo na mesa,
soluando. Tio Lino se levantou e tentou lev-la para um dos
quartos. Ela resistiu. Dona Dinorah, sem jeito, perguntou se podia
ajudar. "S Deus", respondeu tio Lino. Eu estava morto de
vergonha.
Aos poucos, mainha foi se acalmando, se acalmando, pediu
desculpas e explicou o que acontecera: havia dias em que, sem
mais nem menos, vinha na sua mente uma lembrana muito forte
de Augusto.
Augusto era o meu irmo mais velho que nasceu morto, depois de
um parto muito difcil.
Claro, eu sabia que Augusto existira, de vez em quando algum da
famlia tocava no assunto e mainha chorava. O que eu no sabia
era que a lembrana de Augusto tomava conta de mainha, a ponto
dela fazer um escndalo daqueles num almoo importante como o
do pistolo.
medida que ela foi contando sobre Augusto, eu me retirei da
mesa correndo, sem pedir licena. Logo eu, que era elogiado como
um menino educado. "Que graa, puxou ao pai...", diziam
algumas pessoas ao comentar minha educao. Mainha ficava
irritada: "Puxou ao pai como se s ele fosse fino nesta casa...! Que
gentalha! Pois eu sou fina tambm, sou fina pra valer!"
Que que deu em voc, fedelho? gritou mainha da mesa,
mas eu j estava descendo as escadas para o quintal. Ainda ouvi
tio Lino dizer: "Calma, Belmira, calma... Voc no percebeu que o
Fabinho ficou com cimes?"
No sei o que ela respondeu, mas l dentro de mim eu dei razo
ao tio Lino novamente: eu estava louco de cimes do defuntinho,
como mainha o chamava, s vezes.
Na noite daquele dia, quando o pistolo e o tio tinham ido embora,
a situao se complicou ainda mais. Mainha me chamou at seu
quarto, e por um momento eu pensei que ela fosse pedir para que
me deitasse com ela na cama, para compensar a raiva que ela tinha
me provocado.
A melhor coisa da vida era quando mainha estava deitada na
cama e me chamava para ficar do lado dela, com a ca-
bea apoiada no seu ombro. Nesses momentos, ela era a pessoa
mais maravilhosa do mundo, e tambm a mais cheirosa. Eu sentia
o perfume no seu pescoo e o cheiro de xampu de babosa no seu
cabelo. s vezes, quando ia tomar banho, eu abria o frasco de
xampu de babosa s para sentir o cheiro de mainha. Eu fechava os
olhos, e isso era to bom... Nesses momentos em que eu ficava do
seu lado, ela sempre cantava a mesma msica:
Primeiro emprego
Em pases como o Brasil,
comum, desde muito cedo,
crianas entrarem no mercado de
trabalho. Exatamente por isso, o
primeiro emprego confunde-se com a passagem para a vida
adulta. Esse foi o tema do filme Andr, a cara e a coragem, de Xavier
de Oliveira. Ao vir do interior para o Rio de Janeiro, um
adolescente enfrenta muitas "primeiras vezes": conseguir
emprego, amigos, amor... Na pea de teatro tambm brasileira Eles
no usam black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri, o tema do trabalho
cria forte conflito num rapaz, que teme aderir greve de operrios
porque a namorada est grvida. Da vem o conflito com o pai,
que aprova a greve. (Houve uma filmagem sensvel da histria em
1981, dirigida por Leon Hirszman.)
Mas, se no Brasil a realidade profissional envolve o jovem desde
cedo, em outros pases a iniciao na carreira pode ser vista em
"profisses" bem incomuns. o caso do narrador do filme Os bons
companheiros, que se inicia no gangsteris-mo ainda menino e
adora. Para ele, a vida ideal a dos mafiosos. Em A cor do dinheiro,
o veterano jogador de sinuca Paul Newman vai dar todas as dicas
para o iniciante Tom Crui-se, para que este consiga faturar um
bom dinheiro em jogos nem sempre honestos.
Trs comdias americanas brincaram divertidamente com
"primeiros empregos" curiosos: Loucademia de polcia, A recruta
Benjamin e Um prncipe em Nova York. O primeiro mostra uma
dupla de amigos irreverentes, enviados academia como punio.
Entre muita baguna, eles acabam descobrindo que pode ser
divertido ser policial...
A recruta Benjamin parte de uma idia parecida: garota desajustada
alista-se no Exrcito e odeia a experincia. S que, quando sua
famlia vai busc-la, ela constata que sempre viveu numa
"redoma" domstica ainda pior que o Exrcito. Talvez para si
mesma seja bom encarar a disciplina e a ordem do quartel.
Um prncipe em Nova York mostra um prncipe "de verdade", de um
pas africano, que tenta encontrar na Amrica a mulher de seus
sonhos. Claro que nunca trabalhou em seu pas, mas nos Estados
Unidos ele vai empregar-se como humilde balconista em
lanchonete e adora. (Claro! Era uma grande novidade...)
Emprego novo, colegas rivais, chefe sisudo, uma mulher mais
velha (e sedutora), roubo, muito servio... Anselmo inicia a vida
profissional num jornal, no conto "Um aprendizado", de Maral
Aquino. E vai ficar para sempre marcado por essa sua "primeira
vez"...
Um aprendizado
Maral Aquino
A Tribuna da Serra fica na esquina da Avenida Argentina com a Rua
Pena Filho, num prdio verde de dois andares, que abriga a
redao e a oficina grfica do jornal. Vinte minutos antes da uma
da tarde eu atravessei a porta de vidro do prdio e informei
recepcionista, uma menina de cabelos encaracolados, que eu era o
Anselmo e que estava procurando por Romo, o editor do jornal.
A menina me olhou dos ps cabea e pediu que eu esperasse,
enquanto tirava o telefone do gancho e falava em voz baixa com
algum. A ela sorriu e
pediu que eu subisse as
escadas, que a redao do
jornal ficava na porta
direita. Eu tinha quinze
anos e aquele era o meu
primeiro dia de trabalho.
A redao ocupava um
amplo salo no andar de
cima e, quela hora,
comeava a ficar
movimentada e tomada
pelo rudo das pessoas que chegavam para mais um dia de traba-
lho e das mquinas de escrever que eram acionadas. Romo era
um sujeito gordo, que usava suspensrios e fumava charutos, e
estava lendo o jornal rival, A Notcia, em sua mesa no centro do
salo.
Ento voc o Anselmo? Seja bem-vindo, rapaz ele
disse, dobrando o jornal que lia. A dona Vilma vai explicar pra
voc qual o seu trabalho e tambm apresent-lo ao pessoal.
Dona Vilma, a secretria de Romo, levantou-se da mesa que
ocupava perto do chefe e pediu que eu a acompanhasse. E, num
giro pela redao, foi me apresentando s pessoas e explicando o
que cada uma fazia no jornal. Por fim, mostrou a mesa dos
contnuos, num canto do salo, onde um rapaz loiro separava
fotografias e as notcias que iam chegando nas mquinas de telex.
Carlo, este o Anselmo, que vai trabalhar aqui com voc. Ao
ouvir a voz de dona Vilma, o rapaz interrompeu o trabalho que
fazia e ficou me olhando com curiosidade. Ela prosseguiu:
Quero que voc ensine o trabalho a ele, est bem?
Carlo estendeu a mo em minha direo e disse um "oi"
acompanhado de um sorriso. Olhando para a mulher que estava
ao meu lado, ele falou:
Pode deixar, dona Vilma. Ele vai aprender rapidinho o servio
aqui.
Depois de me desejar boa sorte, ela voltou para sua mesa e eu me
sentei na cadeira que Carlo colocou ao seu lado.
J era hora mesmo de aparecer algum pra me ajudar. Faz mais
de dois meses que mandaram embora o Lima, que trabalhava
comigo aqui, e eu no estou dando conta do servio sozinho ele
disse, me mostrando a pilha de papis que, vinda das mquinas
de telex e de fax, ia se acumulando sua frente. Bom, deixa eu
explicar pra voc como funcionam as coisas aqui.
E Carlo foi falando, sem interromper o trabalho de separar as
fotos e os textos. Meu trabalho era simples: consistia em ajud-lo a
selecionar o material que chegava redao e encaminh-lo s
respectivas sees do jornal. Assim, por exemplo, tudo que dizia
respeito a esportes eu levava at a mesa de Moreira, um cara
brincalho que chefiava a editoria esportiva da Tribuna da Serra. Os
textos e as fotos a respeito de poltica e economia iam para Mrcio,
um homem de cabelos grisalhos, um dos poucos na redao que
estavam sempre de palet e gravata. Se o assunto era msica,
teatro, literatura ou cinema, eu entregava o material para Ldia,
uma loira alta e elegante que cuidava da parte de cultura no jornal.
E assim por diante.
No havia como errar, mesmo porque a maioria dos textos
chegava s mquinas de telex e de fax com a indicao do nome
da pessoa a quem se destinava. Outra responsabilidade minha e
de Carlo era levar os textos prontos das editorias at a grfica,
que ficava no andar de baixo do prdio.
Logo no primeiro dia, descobri que o comeo da noite era o
momento em que a redao ficava mais agitada, num corre-corre
danado, em meio ao rudo de vozes, telefones e mquinas, pois se
aproximava o horrio em que todas as notcias que iriam sair na
edio do dia seguinte tinham de chegar oficina grfica. Era o
horrio do "fechamento" do jornal, como Carlo me explicou. O
limite para todas as editorias conclurem seu trabalho era oito e
meia da noite, mas uma hora antes a agitao tomava conta de
todos. E at mesmo Romo, que me parecera simptico e tranqilo
ao me receber, se transformava num sujeito nervoso, que andava
de mesa em mesa apressando os retardatrios aos gritos de "Vai
fechar, vai fechar".
Esse era o momento em que o meu trabalho se complicava um
pouco, pois eu tinha de ajudar Carlo a continuar separando as
notcias e fotos que chegavam na ltima hora e, ao mesmo tempo,
atender ao chamado dos jornalistas, para levar seus textos at a
oficina.
s nove da noite, enquanto esperava o nibus num ponto da
Avenida Argentina, eu percebi que estava cansado mas feliz ao fim
do meu primeiro dia de trabalho. Tanto que no sentia fome e, em
vez de ir pra casa, preferi dar uma passada no bar do Afonso, um
boteco que ficava perto da rua em que eu morava e onde
encontrava meus amigos para jogar bilhar e tomar cerveja.
Naquela noite de quarta-feira, o bar tinha poucos fregueses e eu
aproveitei para ficar conversando com Afonso, contando-lhe em
detalhes como era o meu emprego na redao da Tribuna da Serra.
Quando cheguei em casa, minha me assistia televiso e
perguntou se eu queria que ela esquentasse a comida para mim.
Eu no quis, pois havia comido um sanduche no bar. Contei-lhe
como tinha sido o meu primeiro dia de trabalho. Falei que tudo
tinha ido bem, que estava cansado e ia dormir, pois teria de
levantar cedo para ir escola.
No dia seguinte, eu no via a hora que as aulas acabassem para
passar em casa e almoar voando, antes de ir para a Tribuna. S
que, no caminho para casa, no resisti e parei numa banca para
comprar um exemplar do jornal. E, enquanto almoava, fiquei
lendo fascinado notcias que eu havia levado para a grfica e que,
portanto, tinha lido no dia anterior, muito antes dos leitores
comuns do jornal.
Ao chegar redao, espantei-me com os gritos de Romo com a
equipe de editores reunida sua volta. Todos ouviam em silncio
e ele gritava palavres a cada pgina do jornal que ia virando,
comparando-as com um exemplar do A Notcia que estava sobre
sua mesa. Fiquei parado na entrada da redao, olhando aquilo
assustado, at que Carlo fez sinal para que eu me mexesse, pois o
servio se acumulava sobre a nossa mesa.
O que est acontecendo, Carlo? quis saber, logo que ocupei
meu lugar.
Ih, Anselmo, v se acostumando com essa mesma histria:
o jornal concorrente publica todos os nossos "furos" e o chefe fica
assim ele disse, enquanto examinava uma foto.
"Furos"?
Ah, voc ainda no est por dentro das grias do jor-
nalismo, n? o seguinte: tem notcias que os reprteres aqui da
Tribuna conseguem descobrir com exclusividade. Isso um "furo"
de reportagem. S que vira e mexe A Notcia tambm publica essas
reportagens no mesmo dia, o que acaba com a exclusividade,
entendeu?
E como que o pessoal do A Notcia consegue as in-
formaes, se elas so exclusivas?
A que est, rapaz. Ningum sabe. S que, cada vez que
isso acontece, o Romo fica uma fera, como voc est vendo agora.
O caso hoje esta notcia aqui Carlo apontou na primeira
pgina do jornal.
Eu peguei o exemplar e li: "Exclusivo: A Tribuna da Serra descobre
desvio de dinheiro na prefeitura". E vi que a mesma notcia estava
tambm estampada na primeira pgina do A Notcia.
Est vendo? Isso fica ridculo para o nosso jornal, que anunciou
como exclusiva uma notcia que o concorrente tambm est
publicando. Voc no acha que o homem tem razo de ficar p da
vida? perguntou Carlo, apontando para a mesa de Romo,
onde ele continuava gritando e gesticulando com o grupo de
jornalistas.
Enquanto comeava o trabalho de seleo das fotos e textos, eu
fiquei pensando naquilo. A equipe de jornalistas do A Notcia
devia estar morrendo de rir do "exclusivo" que aparecia na
primeira pgina da Tribuna. Durante todo o dia, o ambiente na
redao permaneceu pesado e s na hora do fechamento, quando
a agitao tomou conta do ambiente, o incidente foi
aparentemente deixado de lado.
Naquela tarde, eu aproveitei um momento em que o ritmo de
chegada das fotos e textos estava mais tranqilo e fui at a mesa
em que ficavam as garrafas trmicas com caf. To distrado estava
com o copo na mo que nem reparei no sujeito que se aproximou.
Quando me voltei, levei um tremendo susto. Ao meu lado.
pegando seu caf, estava nada mais nada menos que a grande
estrela do jornal: o reprter policial Fbio Bandeira. Bandeira,
como era chamado no jornal, havia ficado famoso com certa
matria que escrevera e que acabou ajudando a polcia da cidade a
prender uma quadrilha de traficantes.
Era um homem alto, com um bigode em que j apareciam fios
grisalhos, e andava sempre com os culos pendurados na altura
do peito, presos por uma correntinha. Bandeira pegou caf e
sorriu para mim:
E a, rapaz, gostando do trabalho?
H, es... Estou sim respondi, sem conseguir esconder
meu nervosismo por estar conversando com um homem de quem
eu ouvira falar tanto.
O ambiente aqui legal, n? E, tirando os probleminhas
que surgem de vez em quando, um timo lugar para se
trabalhar, voc vai ver ele disse, ao mesmo tempo que ca-
minhava de volta para sua mesa.
Voc est atrs de algum novo furo, Bandeira? eu
arrisquei, usando a palavra que havia aprendido horas antes.
Ah, a gente tem de estar sempre atrs de furos. Mas no
momento no h nenhuma grande notcia policial, no. S o
trivial.
Voltei feliz para a minha mesa, e Carlo, vendo minha expresso,
perguntou o que estava acontecendo. Contei a ele que havia
conversado com Bandeira e ele comentou:
O Bandeira o melhor reprter aqui da Tribuna, Anselmo. O
jornal concorrente vive oferecendo dinheiro para que ele v
trabalhar l. Mas parece que ele gosta muito do Romo e prefere
ficar aqui.
, ele falou que aqui um timo lugar.
E a Tribuna era realmente um lugar maravilhoso. Tanto que eu
nem me incomodava de ter de trabalhar pelo menos dois fins de
semana por ms, alternando minhas folgas com as de Carlo.
Havia momentos em que o movimento de fotos e textos que
chegavam nossa mesa era pequeno e ento a gente ficava
conversando. Eu aproveitava para aprender com Carlo as grias
da profisso de jornalista. Foi assim que fiquei sabendo que eles
chamavam de lauda a folha de papel em que a notcia era escrita;
que matria era o nome dado aos textos em geral; e que os
jornalistas novos e inexperientes eram apelidados de focas. Foi
tambm nessas conversas que eu soube que Carlo estava para
completar dezoito anos e h muito tempo guardava dinheiro para
realizar seu sonho, que era comprar uma moto.
Em outros momentos de tranqilidade na redao, eu e ele ramos
chamados para fazer pequenos favores pessoais aos jornalistas,
como ir at o bar que existia prximo ao jornal para comprar
cigarros ou sanduches. Teve uma vez em que Romo me pediu
que lhe comprasse charutos e me deu uma tima gorjeta. E, em
outra ocasio, fui buscar um refrigerante para Ldia, mas me
recusei a aceitar o troco que ela me estendia:
No precisa, Ldia. Eu fao essas coisas para voc com o maior
prazer.
Ela me encarou com aqueles lindos olhos azuis e me presenteou
com um dos sorrisos mais bonitos que vi na vida:
Fico muito agradecida pela gentileza, Anselmo. Sabe que voc
uma gracinha?
Acho que foi nesse momento que comecei a me apaixonar por ela.
Quando voltei para a mesa dos contnuos, Carlo ficou me
olhando curioso:
Que bicho te mordeu, Anselmo?
Nenhum, ora. que acabei de ganhar um elogio da Ldia. Ela
no uma gata?
Carlo olhou na direo da editoria de Cultura, onde ela dava
instrues sobre uma matria para um reprter, e falou:
uma gata safada, Anselmo, isso sim.
Como assim?
Todo mundo aqui na redao sabe que ela tem um caso com o
Moreira, da editoria de Esportes. S que ele casado, entendeu?
Aquilo foi como um balde de gua fria na minha cabea. Fiquei
olhando para aquela loira bonita que caminhava at a mesa do
caf e no entendia direito o que estava sentindo. Depois, voltei
minha ateno para a editoria de Esportes, onde Moreira e mais
dois jornalistas davam gargalhadas, provavelmente por causa de
alguma das brincadeiras do chefe. Passei o resto do dia sem
conseguir me concentrar no trabalho, e Carlo percebeu isso:
Que que h, Anselmo, voc no est se sentindo bem?
Est tudo bem, Carlo. S estou com um pouco de dor de
cabea menti, pois no queria que ele percebesse que eu ficara
chocado com a revelao do caso entre Ldia e Moreira. Procurei
mudar de assunto: Carlo, o que aconteceu com o rapaz que
trabalhava aqui no meu lugar? Ele foi demitido, n?
Ah, o Lima? Foi sim, rapaz. Ele era um timo colega de
trabalho, mas tinha um vcio terrvel: roubava coisas.
Roubava?
Sim. Na poca, andaram sumindo coisas aqui na redao e
o pessoal inclusive chegou a desconfiar de mim. At que um dia o
pessoal da segurana, que andava de olho em ns dois, deu uma
revista geral na gente e encontrou o relgio da Ldia no bolso dele.
Srio? eu gelei ao ouvir o nome dela.
Pois , Anselmo. Ele negou at o fim que fosse o ladro,
mas a no teve jeito. Todo mundo aqui gostava muito dele e por
isso no quiseram avisar a polcia. Mandaram o Lima embora e
pronto.
P, que chato eu comentei. E acabei achando graa
naquilo: eu tentara mudar de assunto para Carlo no desconfiar
de nada, e Ldia voltou para a conversa sem que eu esperasse.
Numa segunda-feira, logo que cheguei para trabalhar, notei que
havia grande agitao na redao. A polcia havia descoberto o
cadver de uma menina de doze anos no parque central da cidade.
Ela havia sido estrangulada na madrugada daquele dia e esse era
o assunto de uma reunio entre Romo e Bandeira.
Puxa vida, voc viu o que aconteceu? perguntei para
Carlo, que j estava s voltas com as fotos e os textos.
Pois , rapaz. E todo mundo pensa que essas coisas s
acontecem nas cidades grandes. Bom, de qualquer forma, uma
grande matria policial para o Bandeira, voc no acha?
Isso . Ele andava mesmo reclamando que no acontecia
nada de interessante na rea nos ltimos tempos. Aposto que vai
sair agora e voltar com uma grande matria.
No sei se voc sabe, mas esse tipo de assunto que vende
jornal explicou Carlo, levantando-se para ir at a mesa do caf.
Tanto que o Romo est colocando mais dois reprteres para
trabalhar no caso junto com o Bandeira.
E de fato, perto da mesa de Romo, dois jornalistas ouviam as
instrues de Bandeira para a cobertura do caso. Pouco depois, os
trs saram rapidamente da redao caa da notcia. Pelo que eu
tinha ouvido falar, a polcia no tinha pistas do caso, e um
mistrio policial com certeza ia render boas matrias na Tribuna e
tambm provocar uma disputa grande com o pessoal do A Notcia
na busca de algum furo exclusivo.
Comecei o trabalho de seleo do material, mas, como estava
acontecendo nas ltimas semanas, no conseguia me concentrar.
S pensava em Ldia, o dia inteiro. Na escola, no havia meio de
prestar ateno nas aulas, e noite, em casa, ficava um tempo
acordado na cama, lembrando seu rosto, seu sorriso e a maneira
elegante com que ela andava pela redao. No trabalho, cada vez
que olhava na direo da editoria de Cultura, eu sentia um frio na
barriga. E, pra complicar, tinha de tomar cuidado para que Carlo
no percebesse a minha paixo.
No fundo, eu no acreditava na histria do caso dela com Moreira.
E tinha meus motivos para isso. Durante o dia eu prestava total
ateno aos mnimos gestos e olhares de Ldia e, at ento, no
tinha notado nem um sorriso nem um olhar sequer na direo de
Moreira. Eu fazia fora para acreditar que aquilo tudo no passava
de fofoca, coisa muito comum na redao quando o assunto era a
vida sentimental de cada um.
Um pouco antes do fechamento do jornal, vi que Bandeira se
dirigia at a mesa do caf e fui para l:
E ento, Bandeira, alguma novidade no caso da menina
estrangulada?
Como sempre, a polcia diz que est sem pistas, Anselmo.
Mas acho que a gente trabalhou bem e conseguiu descobrir uma
coisa bem interessante ele disse, olhando-me com uma
expresso enigmtica.
mesmo?
Olha, Anselmo, isso sigilo, hein? Mas parece que h uma
testemunha que viu o homem atacando a menina no parque. A
gente andou pesquisando l e conseguiu levantar essa informao.
S que a polcia nega a existncia dessa testemunha. A gente acha
que porque eles ainda no sabem direito quem a pessoa que
viu o crime e tentam despistar os reprteres.
Quando voltei para a mesa, comentei com Carlo a conversa que
tivera com Bandeira. Ele sorriu e balanou a cabea:
No toa que o Bandeira tem a fama que tem. Ele um
senhor reprter, voc no acha?
Depois do fechamento da edio, eu estava no ponto de nibus
quando Ldia parou o carro e me chamou. Ela me perguntou onde
eu morava e se queria uma carona. Fiquei to nervoso com a
presena dela e, gaguejando, disse que no precisava, que eu ia
desvi-la de seu caminho. Lembro-me de que ela ainda insistiu,
mas, diante da minha recusa, despediu-se, desejando-me bom
descanso, e fez com que eu me inclinasse na janela do carro para
me dar um beijo no rosto.
Aquilo me descontrolou: durante todo o trajeto do nibus at
minha rua, eu no conseguia pensar em nada. S ficava passando
a mo no rosto, no lugar onde ela tinha me beijado, e me
lembrando do perfume suave que senti quando me curvei. Claro
que no consegui ir para casa, e sim para o bar do Afonso, onde
fiquei bebendo cerveja quieto, num canto do balco.
Um rapaz moreno bebia ao meu lado e me convidou para uma
partida de bilhar, que eu recusei, pois sabia que, no estado em que
estava, no conseguiria me concentrar no jogo. Mesmo assim, ele
puxou conversa e insistiu em dividir comigo a cerveja que bebia.
Eu tentava conversar com ele, mas a minha cabea estava tomada
pela figura de Ldia. A o rapaz contou que estava desempregado e
perguntou o que eu fazia na vida. Espanto: foi isso que vi em seus
olhos quando informei que trabalhava na Tribuna:
Ah, quer dizer que voc contnuo l, ? Escuta: o Carlo
est l ainda?
U, voc conhece o Carlo? s ento eu passei a prestar
ateno conversa.
E como, rapaz! ele disse, enquanto esvaziava o copo num
s gole. E vou te dar um conselho: cuidado com ele.
Por qu? Ele no um cara legal?
O rapaz deu uma gargalhada, enquanto pagava sua conta para
Afonso. Antes de sair, ele me deu um tapinha no ombro e falou:
Ele no isso que parece ser, no. Eu te dou um conselho:
abra os olhos com ele. um cara muito perigoso. Ah, e diga que
eu mandei um abrao pra ele.
Mas quem voc? eu perguntei, vendo que ele j ia
saindo rua.
Ora, eu sou o Lima ele disse e me acenou, sumindo na noite.
Eu ainda lembrava dessa estranha conversa no dia seguinte
quando entrei na redao, onde o tumulto era grande. Romo
discutia violentamente com Bandeira e eu nem precisei pensar
muito para saber o que estava acontecendo. Quando cheguei
minha mesa, Carlo me mostrou a manchete em que a Tribuna
anunciava informaes exclusivas sobre o caso da menina
estrangulada no parque. Essas mesmas informaes, de que o
crime teria uma testemunha, estavam tambm na primeira pgina
do A Notcia.
Foi um dia terrvel. O nervosismo de Romo contaminou a todos
na redao, e at mesmo Moreira passou o dia calado, sem fazer
nenhuma de suas brincadeiras. O clima estava to pesado que
acabei at esquecendo de comentar com Carlo o meu encontro
com Lima na noite anterior.
Na hora da sada, cruzei com Ldia na escada do prdio. E a achei
que era hora de abrir o jogo, aceitando a carona que ela estava me
oferecendo. No carro, eu no conseguia disfarar a tenso que
sentia, sem saber o que fazer com as mos. Ldia percebeu:
Puxa, que dia, hein? Pelo jeito at voc foi atingido pelo
nervosismo da redao, no ?
Eu disse que o clima l estivera mesmo pavoroso. E aproveitei a
brecha:
Mas na verdade o que est me deixando assim outra coisa...
Ela me voltou os olhos azuis carregados de curiosidade:
Ah, ? E o que que est deixando voc nervoso desse jeito?
Estava trmulo e morto de medo de perder a fala naquela hora.
Mas eu sabia que era tudo ou nada:
que... que eu estou gostando de voc...
Ldia franziu a testa, numa reao de surpresa. Na seqncia, ela
balanou a cabea e estacionou o carro numa manobra hbil.
Anselmo, meu querido. Ento isso que est fazendo com que
voc me evite? Notei que faz dias que voc no aparece na minha
mesa pra saber se eu preciso de alguma coisa.
Diante do meu silncio, ela prosseguiu:
Olha, eu s acho que voc est apaixonado pela pessoa errada.
Eu sou muito mais velha do que voc, meu bem. E, embora isso
no seja um impedimento, eu tenho de lhe dizer uma coisa: tenho
um compromisso com outra pessoa, de quem gosto muito.
Eu tinha um n na garganta e lutava para no chorar ali na frente
dela. A frase que eu disse saiu como uma bofetada:
o Moreira?
Ldia sorriu com delicadeza e, quando falou, sua voz revelava
calma:
Voc deve ter ouvido isso na redao, no ? at bom que o
pessoal pense que eu tenho um caso com o Moreira. Mas no ele,
no, Anselmo. Posso confiar em voc?
Eu s consegui mover minha cabea, num gesto afirmativo.
Olha, na verdade, meu noivo o editor-chefe do A Notcia. Eu
no quero que ningum l no jornal saiba. Principalmente com
esse rolo das notcias exclusivas, est certo? por isso que eu nem
ligo para esses boatos sobre o Moreira. Assim, o meu segredo est
protegido. Voc o nico que sabe disso agora.
O que ns conversamos depois disso se apagou da minha cabea.
S lembro que j era bem tarde quando ela me deixou na porta de
casa. Antes de me deixar descer, Ldia me fez jurar que
continuaramos amigos, dizendo que gostava muito de mim e no
queria perder essa amizade, especialmente agora que eu conhecia
seu segredo.
No dia seguinte, quando cheguei redao, Ldia me recebeu com
um beijo no rosto, como se nada tivesse acontecido. Tentei fingir
que estava tudo bem, mas a minha cara desmentia isso: tinha
olheiras, pois no conseguira dormir depois da nossa conversa.
Passei a noite rolando na cama, numa espcie de delrio em que os
rostos de Ldia e Moreira se misturavam ao de Romo, xingando.
E eu estava tomando caf, num momento de calma na redao,
quando Bandeira se aproximou, com uma cara pior do que a
minha. Ele me olhou, esboou um sorriso e disse:
Puxa, rapaz, voc est com uma cara terrvel. Ficou na farra esta
noite?
Disse a ele que era poca de provas na escola e eu tinha ficado
estudando at mais tarde. E, para desviar o rumo da conversa,
perguntei pelo caso da menina estrangulada. Era aquilo que o
estava deixando com aquela expresso abatida:
Sabe de uma coisa? O Romo est pensando que sou eu que
passo as prprias informaes exclusivas para o concorrente e em
troca recebo dinheiro, v se pode. Ele ameaou inclusive me
afastar do caso e eu estou pensando em pedir a conta...
E a tal testemunha?
Eu nem tenho nimo para continuar investigando, An-
selmo. Que que adianta eu descobrir essa pessoa e tentar uma
entrevista exclusiva com ela? Tenho certeza de que a matria sai
no A Notcia no mesmo dia. V que situao a minha?
Pois eu acho que sei uma maneira de desmascarar a pessoa
que est passando as nossas informaes para o jornal
concorrente.
Os olhos de Bandeira brilharam. Agarrando-me pelo brao, disse
que ia me levar para falar com Romo, pois no queria deixar o
jornal que tanto amava. Pedi-lhe calma e apenas perguntei se ele
estava disposto a me ajudar na armadilha. Bandeira queria saber
detalhes da coisa, mas eu lhe expliquei que, para funcionar, meu
plano precisava de sigilo. E ele topou na hora.
Eu estava levando para a grfica a matria escrita por Bandeira,
uma entrevista exclusiva com a testemunha que tinha visto o
estrangulador do parque, quando Ldia me perguntou se eu podia
pegar um refrigerante para ela no bar. Arrimei o meu melhor
sorriso e disse que iria na mesma hora. Ento, fui at a minha
mesa e pedi que Carlo entregasse a matria na grfica,
explicando que ia sair para atender ao pedido de Ldia. Ele sorriu,
malicioso, e disse que, se eu estivesse de paquera com ela, era
melhor tomar cuidado com o Moreira. Eu no disse nada: apenas
entreguei a matria de Bandeira para ele e fui para o bar.
Quando voltei, corri para a grfica e recuperei a matria de
Bandeira, explicando que o reprter ia fazer algumas modificaes
no texto. Dobrei as laudas cuidadosamente e guar-dei-as no bolso
da cala.
No dia seguinte, a Tribuna da Serra trazia uma matria pequena
sobre o caso do parque, informando que a polcia no tinha
novidades sobre o crime. J a primeira pgina do A Notcia
anunciava uma entrevista com a testemunha do caso. E
reproduzia praticamente inteiro o texto falso que Bandeira havia
escrito a meu pedido. Quando Carlo comparou os jornais,
imediatamente percebeu que havia sido enganado e passara a
falsa notcia para o jornal concorrente.
Desmascarado, ele foi demitido por Romo, e eu imagino que teve
srios problemas para explicar para o pessoal do A Notcia como
que tinha passado a eles uma entrevista que no existia.
Descobriu-se mais tarde que ele fazia isso h muito tempo,
recebendo dinheiro do jornal concorrente para passar as notcias
exclusivas que conseguia ler no momento em que levava as laudas
da redao para a grfica.
Romo fez questo de me dar uma gratificao pela descoberta do
espio do jornal concorrente. E tambm me ofereceu a chance de
acompanhar Bandeira em seu trabalho dirio, para que, aos
poucos, eu fosse aprendendo a profisso de reprter. Em pouco
tempo, foram contratados dois novos contnuos e eu passei a
ocupar uma mesa ao lado daquela utilizada por Bandeira.
Confesso que no foi difcil aprender a fazer reportagens,
principalmente tendo como professor um reprter como Bandeira.
Difcil at hoje tem sido trabalhar ao lado de Ldia, que, sempre
que me olha, sorri de um jeito cmplice. Afinal, tnhamos e temos
at hoje um segredo que no pode ser publicado em jornal
nenhum.
Para Ler
Muitos dos livros aqui relacionados foram publicados por
inmeras editoras, por isso indicamos apenas ttulo e autor. Os
assinalados com asterisco so da Editora Moderna.
Dom Casmurro, Machado de Assis. Contos consagrados de
Machado de Assis, Machado de Assis.
O primeiro beijo * , Mareia Kupstas.
A Moreninha, Joaquim Manuel de Macedo.
Senhora, Jos de Alencar.
Amor de perdio, Camilo Castelo Branco.
Os amantes da chuva * , Carlos Queiroz Telles.
A marca de uma lgrima * , Pedro Bandeira.
Moll Flanders, Daniel Defoe.
E agora, me?*, Isabel Vieira.
Essa doce obsesso, Patricia Highsmith.
Crescer perigoso * , Mrcia Kupstas.
Capites de areia, Jorge Amado.
A maldio do silncio * , Mareia Kupstas.
Oliver Twist, Charles Dickens.
O marido da me * , Maria do Carmo Brando.
O cemitrio, Stephen King.
Quatro estaes, Stephen King.
Vernnia, William Kennedy.
Para assistir
Todos os filmes sugeridos nesta relao (pela ordem: ttulo,
diretor, ano de produo) encontram-se disponveis em vdeo.
http://www.manuloureiro.blogspot.com/
http://www.livros-loureiro.blogspot.com/
http://www.romancesdeepoca-loureiro.blogspot.com/
http://www.romancessobrenaturais-loureiro.blogspot.com/
http://www.loureiromania.blogspot.com/