Franz Kafka - Contos Absurdos

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SUMÁRIO

SOBRE OS CONTOS
O ENTE HÍBRIDO
O ABUTRE
O SILÊNCIO DAS SEREIAS
O BRASÃO DA CIDADE
UM VELHO MANUSCRITO
UM ARTISTA DO TRAPÉZIO
DIANTE DA LEI
DESISTA!
UMA PEQUENA FÁBULA
A PONTE
CRÉDITOS
SOBRE OS CONTOS

A presente coletânea reúne dez narrativas, tão breves quanto


absurdas, do célebre escritor tcheco, de expressão alemã, Franz Kafka.
Meio gato, meio cordeiro, um animal parece humanizar-se na
angústia de sua híbrida e contraditória existência (“O Ente Híbrido”).
Completamente indefeso, um homem vê os pés feitos em frangalhos
pelo assédio terrível de um abutre ferrenho e devastador (“O Abutre”).
Ulisses, amarrado ao mastro de seu navio, resiste não ao canto das
sereias, mas a uma arma ainda mais perigosa: o próprio silêncio (“O
Silêncio das Sereias”).
Os construtores da Torre de Babel conceberam um projeto grandioso,
proveitoso e irresistível, mas cuja execução, sempre postergada, é uma
fonte imorredoura de discórdia (“O Brasão da Cidade”).
“Um Velho Manuscrito” retrata a atribulação de um povo cujos
governantes se curvam ao terrível domínio de estrangeiros bárbaros e
nômades.
Em “Um Artista do Trapézio”, sentimos o desespero de um homem
exímio em sua arte, mas subjugado pelo tirânico afã de perfeição.
“Diante da Lei” revela a angústia de um camponês que pretende,
obstinadamente, adentrar a porta da Lei. Mas, diante dela, há porteiro
inflexível, que, sem qualquer justificativa, lhe obsta sempre a entrada,
malgrado não lhe suprima a esperança.
No brevíssimo conto “Desista!”, acompanhamos a aflição de um
homem que, atrasado para apanhar um trem numa estação ferroviária de
uma cidade desconhecida, procura a ajuda de quem pode e deve ajudá-lo.
Um rato vê o mundo estreitar-se, confinando-o; e, em cada extremo,
o perigo (“Uma pequena fábula”).
Em “A Ponte”, narrativa pungente, o protagonista é uma ponte-
homem atravessada sobre um precipício. Ela espera, em febril expectativa,
o momento de ser útil, de permitir a travessia segura dos transeuntes, apesar
de todos os perigos inerentes à sua condição.
O que se oculta sob as absurdas circunstâncias dessas estranhas
narrativas? Como sempre, a obra de Kafka é um perene e instigante desafio.
E profundamente significativa...
O ENTE HÍBRIDO

Eu tenho um animal curioso: metade gatinho, metade cordeiro. É


parte da herança de meu pai. Sob minha guarda, ele se desenvolveu
completamente. Antes, era mais cordeiro do que gato. Agora é gato e
cordeiro em partes iguais. Ele tem do gato a cabeça e as garras; do cordeiro,
o tamanho e a forma. E, de ambos, os olhos, mas agitados e selvagens,
assim como os pelos, macios e rentes ao corpo. Os seus movimentos são
saltitantes e sorrateiros. Ao sol, no peitoril da janela, enovela-se e ronrona.
No campo, corre como um louco e ninguém o alcança. Ele foge dos gatos e
tenta atacar os cordeiros. Nas noites de luar, apraz-lhe passear sobre as
calhas dos telhados. Não sabe miar e abomina os ratos. Passa longas horas
espreitando o galinheiro, mas jamais aproveitou uma oportunidade para
assassinar.
Eu o alimento com leite adocicado. É o que lhe cai melhor. Com
grandes goles, ele sorve o leite por entre os seus dentes de predador.
Naturalmente, é um grande espetáculo para as crianças. O horário de visitas
é nas manhãs de domingo. Sento-me com o animal no colo e as crianças de
toda a vizinhanças se reúnem ao meu redor.
Elas enchem-me das mais extraordinárias perguntas, às quais
ninguém pode responder. Por que há somente um animal assim? Por que
justamente eu sou o seu dono? Houvera antes um animal como ele? E
depois que ele morrer, como fica? E ele não se sente solitário? Por que não
tem crias? Como ele se chama? E assim por diante.
Não me dou ao trabalho de respondê-las. Limito-me a mostrar-lhes o
que tenho, sem maiores explicações. Às vezes, as crianças trazem gatos.
Uma vez chegaram mesmo a trazer cordeiros. Contra todas as suas
expectativas, não houve cenas de reconhecimento. Os animais se
entreolharam, tranquilamente, com suas miradas de animais, e aceitaram
mutuamente as suas existências como um fato divino.
No meu colo, o animal não sente medo nem o desejo de caça.
Quando aconchegado a mim, ele se sente mais feliz. Ele é apegado à família
que o albergou. Essa fidelidade não é extraordinária: é o legítimo instinto de
um animal que, embora tenha na terra inúmeros semelhantes, não tem um
só parente consanguíneo. Eis por que para ele é sagrada a proteção que
encontrou em nosso lar.
Às vezes, tenho que rir quando ele resfolega ao meu redor e se
enreda entre as minhas pernas, sem jamais querer afastar-se de mim. Como
se não bastasse ser gato e cordeiro, quer ser cão também.
Certa feita – e isso pode acontecer com qualquer pessoa –, eu não via
como escapar dos apertos financeiros, e estava prestes a acabar com tudo.
Com essa ideia, eu estava recostado numa cadeira de balanço, em meu
quarto, com o animal no colo. Casualmente, baixei os olhos e vi lágrimas
gotejando de seus longos bigodes. As lágrimas eram suas ou minhas? Teria
aquele gato, de alma de cordeiro, a ambição de um homem? Não herdei
muito de meu pai, mas posso me orgulhar deste legado.
Acredito seriamente nisto. Ele tem em si tanto a inquietude do gato
quanto a do cordeiro, embora estas sejam diferentes. Por isso ele sente-se
tão incomodado na própria pele. Às vezes, ele salta à cadeira de balanço,
apoia as patas dianteiras em meu ombro, e toca-me o ouvido com o focinho.
É como se falasse comigo. De fato, ele vira a cabeça para mim e me olha,
observando o efeito que a sua comunicação produziu em mim. Para
comprazê-lo, ajo como se o compreendesse, balançando a cabeça. Então,
ele salta ao chão para brincar.
Talvez a faca do açougueiro seja um alívio para esse animal, mas ele
é uma herança de família e, por isso, eu tenho que lhe negar o favor. Por
isso, ele deve esperar até que deixe de respirar por si próprio, malgrado às
vezes ele me olhe com os olhos da razão humana, exigindo de mim uma
atitude razoável.
O ABUTRE

O abutre bicava os meus pés. Já me havia dilacerado os sapatos e as


meias, e agora bicava-me os próprios pés. Sempre que me arrancava um
pedaço, voava, inquieto, várias vezes ao meu redor, e depois prosseguia o
seu trabalho. Passou um cavalheiro, olhou-nos uns instantes e me perguntou
por que eu tolerava o abutre.
– Estou indefeso – respondi. – Quando ele chegou e começou a me
atacar, eu, naturalmente, tentei espantá-lo, e mesmo pensei em torcer-lhe o
pescoço. Mas esses animais são muito fortes e este estava prestes a saltar à
minha cara. Preferi sacrificar os pés. Agora eles estão quase despedaçados.
– Não se deixe atormentar com isto – disse o cavalheiro. – Basta um
tiro e é o fim do abutre.
– Acha mesmo? – perguntei. – E o senhor faria isto por mim?
– Com prazer – disse o cavalheiro. – Só preciso apanhar meu fuzil
em casa. Pode suportar mais meia hora?
– Não estou certo disto – respondi e, por um instante, fiquei rígido de
dor. Depois, acresci:
– Por favor, tente de qualquer forma.
– Muito bem – disse o senhor –, irei o mais rápido que puder.
Em silêncio, o abutre ouvira tranquilamente o nosso diálogo e
deixara vagar o olhar ente mim e o cavalheiro. Naquele instante, percebi
que ele compreendia tudo. O abutre voou um pouco mais distante, recuou
para obter um bom impulso e, como um atleta que arremessa o dardo,
enfiou profundamente o bico em minha boca.
Ao cair de costas, senti-me aliviado. Senti que no meu sangue – e
este me preenchia todas as profundidades e me inundava todas as margens –
o abutre, irremediavelmente, se afogava.
O SILÊNCIO DAS SEREIAS

Eis a prova de que há meios inadequados, quase infantis, que podem


servir para a salvação:
Para se proteger do canto das sereias, Ulisses tapou os ouvidos com
cera e se amarrou ao mastro da embarcação. Embora todos soubessem que
este recurso era ineficaz, muitos navegantes poderiam ter feito o mesmo,
afora os que já haviam sido, desde longe, fisgados pelas sereias. O canto
das sereias transpassava tudo e a paixão dos seduzidos desvencilhava
prisões mais robustas que mastros e correntes. Ulisses, todavia, não pensou
nisto, embora algo a respeito talvez já lhe tivesse chegado aos ouvidos.
Confiou completamente naquele punhado de cera e no feixe das correntes.
Satisfeito com seus pequenos estratagemas, navegou por entre as sereias
com inocente alegria.
Todavia, as sereias possuíam uma arma muito mais terrível que o
canto: o seu silêncio. Malgrado isto não tenha acontecido, é possível que
alguém tenha se salvado de seus cantos. Não assim de seu silêncio. Nenhum
sentimento terreno pode equiparar-se à jactância, que consigo a tudo arrasta,
de tê-las vencido por suas próprias forças.
Mas, realmente, as terríveis sedutoras não cantaram quando Ulisses
passou. Talvez porque acreditassem que somente poderiam dobrar aquele
inimigo com o silêncio, talvez porque a maravilha de felicidade no rosto de
Ulisses – que só pensava em correntes e em ceras – fizessem-nas esquecer
de todo e qualquer canto.
Ulisses – se assim é possível exprimir – não ouviu o silêncio. Estava
convencido de que elas cantavam, e que só ele estava a salvo do fatídico
canto. Fugazmente, viu as ondulações de seus pescoços, a respiração
profunda, os olhos cheios de lágrimas, os lábios entreabertos. Acreditava
que tudo era parte de uma melodia que fluía inaudível a seu redor. O
espetáculo começou a desvanecer-se repentinamente. As sereias se
esfumaram diante de sua determinação, e, precisamente quando se achava
mais próximo delas, Ulisses já não mais as levava em conta.
E elas, mais belas do que nunca, espichavam o corpo e se
contorciam. Soltavam as suas terríveis cabeleiras ao vento, abriam suas
garras sobre os rochedos. Já não pretendiam seduzir: queriam apenas
capturar por mais um instante o fulgor dos grandes olhos de Ulisses.
Se as sereias tivessem consciência, teriam sido, então, inteiramente
destruídas. Mas elas continuaram como estavam, e Ulisses escapou.
Aliás, chegou aos nossos dias um apêndice à história. Diz-se que
Ulisses era tão astuto, tão ladino, que até mesmo a deusa do destino era
incapaz de penetrar em seu imo. Por mais que isto seja inconcebível à
mente humana, talvez Ulisses tenha percebido que as sereias haviam
silenciado, e resistiu a elas e aos deuses representado, à guisa de escudo, a
farsa acima narrada.
O BRASÃO DA CIDADE

Inicialmente, a construção da Torre de Babel mantinha uma ordem


tolerável. De fato, talvez a organização fosse excessiva. Pensava-se muito
em sinalização, intérpretes, alojamentos para os operários e vias de
comunicação, como se descortinassem de séculos de oportunidade de
empregos. A opinião então prevalecente era a de que toda a lentidão na
construção seria adequada. Não era necessário esforço para enxergar-se tal
opinião e mesmo era lícito que alguém se refreasse no lançamento dos
alicerces. Pensava-se assim: o essencial estava na própria ideia de construir
uma torre que alcançasse os céus; o restante era secundário. Essa ideia,
visto como concebida com tamanha grandeza, não poderia desaparecer:
enquanto houvesse homens na terra, existiria também o firme desejo de
terminar a torre. Portanto, qualquer preocupação com o futuro seria
desnecessária. Ao contrário: o conhecimento humano cresce com o tempo,
a arquitetura experimenta avanços e continuará o seu progresso. Daí a um
século, um trabalho de um ano seria, talvez, rematado em seis meses. E com
melhor e mais duradouro resultado. Portanto, por que motivo alguém
deveria extenuar-se até os limites de suas forças? O esforço somente faria
sentido se houvesse a expectativa de que a obra estaria acabada no lapso de
uma geração. Mas tal expectativa era inconcebível. Era mais provável que a
nova geração, com seus conhecimentos superiores, condenasse o trabalho
da geração anterior e viesse a demolir tudo o que fora construído, para
recomeçar tudo novamente. Tais pensamentos paralisaram os ímpetos, e
pensou-se mais em construir uma cidade para os operários do que em erigir
a própria torre. Cada grupo nacional reivindicava o mais belo bairro e isto
deu lugar a disputas que culminaram em batalhas sangrentas. Estas batalhas
jamais cessavam. Para os dirigentes, urdiram um novo argumento para que
a torre, em razão, também, da falta de concentração, somente fosse
edificada muito devagar, preferivelmente depois da paz generalizada. Mas
não apenas em disputas gastava-se o tempo. Nos momentos de trégua,
cuidavam de embelezar a cidade, o que provocava mais inveja e novas
disputas. Assim se consumiu o tempo da primeira geração, e com nenhuma
das seguintes foi diferente. Somente se ampliava a destreza técnica e, com
ela, a ânsia de guerra. Malgrado a segunda ou a terceira geração houvesse
reconhecido a insensatez de uma torre que chegasse ao céu, as pessoas já
estavam demasiadamente interligadas para abandonar a cidade.
A profecia de que cinco sucessivos golpes, de um punho gigantesco,
aniquilarão a cidade imiscui-se em todas as lendas e trovas daquela cidade.
É por esta razão que ela ostenta um punho em seu brasão.
UM VELHO MANUSCRITO

É como se muita coisa houvesse sido negligenciada à defesa da nossa


pátria. Até agora, não nos havíamos importado com isso, ocupados que
estávamos com a nossa faina cotidiana. Mas os acontecimentos dos últimos
tempos nos têm preocupado.
Tenho uma oficina de sapateiro na praça que fica em frente ao
palácio imperial. Mal abro a minha oficina ao amanhecer e já vejo os
acessos de todas as ruas que aqui desembocam ocupadas por homens
armados. Não são os nossos soldados, mas, evidentemente, os nômades
vindos do Norte. De uma forma incompreensível para mim, abriram passos
até a capital que, todavia, está muito distante da fronteira. De toda forma, já
estão aqui e parece que a cada dia são mais numerosos.
Conforme o seu costume, eles acampam ao ar livre porque odeiam
casas. Ocupam o seu tempo afiando as espadas, aguçando as pontas das
lanças e exercitando-se a cavalo. Fizeram de verdadeiro estábulo esta praça
tranquila, mantida sempre escrupulosamente limpa. É bem verdade que, às
vezes, tentamos sair de nossas lojas para retirar ao menos a maior parte da
sujeira, mas isto ocorre com menor frequência, pois o esforço é inútil e,
além disso, expomo-nos ao perigo de cair sob as patas dos furiosos cavalos
ou aos ferimentos causados pelos chicotes.
Não é possível falar com os nômades. Eles não conhecem a nossa
língua, já que mal têm uma língua própria. Entendem-se entre si de uma
forma semelhante à das gralhas. Ouvem-se frequentemente esses gritos de
gralhas. Nosso modo de viver e nossas instituições lhes são tão
incompreensíveis quanto indiferentes. Por esta razão, recusam-se também à
linguagem de sinais. Você pode deslocar as mandíbulas e torcer as mãos:
eles não o compreendem e nem jamais o compreenderão. Às vezes fazem
caretas; volteiam o branco dos olhos e deixam sair a espuma da boca. Mas
não pretendem dizer nada com isto, nem assustar ninguém. Fazem-no
porque é este é o seu modo de ser. Apoderam-se de tudo o que necessitam.
Não se pode afirmar que usem da violência. Ante a sua intervenção, as
pessoas se põem de lado e deixam tudo à sua mercê.
Também tomaram uma boa parte de minhas provisões. Mas não
posso me queixar disto quando vejo o que acontece ao açougueiro. Mal ele
traz as suas mercadorias, e tudo já lhe foi arrebatado e devorado pelos
nômades. Os seus cavalos comem carne. Às vezes um cavaleiro para ao
lado do seu cavalo e os dois se alimentam do mesmo pedaço de carne, cada
qual por uma extremidade. O açougueiro tem medo e não ousa acabar com
o fornecimento de carne. Todavia, nós entendemos o que acontece,
juntamos dinheiro e o ajudamos. Se os nômades não recebessem carne
alguma, quem sabe o que lhes ocorreria fazer? De qualquer maneira, quem
sabe o que lhes vai ocorrer, mesmo que recebam carne diariamente?
Há pouco, o açougueiro pensou que poderia, pelo menos, livrar-se do
esforço do abate: numa manhã, trouxe um boi vivo. Isto jamais voltará a
acontecer. Eu permaneci por cerca de uma hora estendido, fincado no chão,
no fundo de minha oficina, com todas as roupas, cobertas e almofadas
colocadas sobre mim, somente para não ouvir os mugidos do boi sobre os
quais os nômades se lançaram, de todos os lados, para arrancar com os
dentes pedaços de carne quente. Quando ousei sair, já fazia silêncio há um
bom tempo. Cansados, estavam deitados em torno das carcaças do boi como
bêbados em volta de um barril de vinho.
Precisamente naquela ocasião acreditei ter visto o imperador em
pessoa numa janela do palácio. Noutras ocasiões, ele nunca vinha a esses
aposentos exteriores, pois vive sempre nos jardins mais profundos. Mas,
desta feita, ao menos assim me pareceu, ele estava na janela e olhava, de
cabeça baixa, o que acontecia diante do seu castelo.
— O que irá acontecer? — todos nós nos perguntamos. — Por
quanto tempo vamos suportar este peso e este tormento? O palácio imperial
atraiu os nômades, mas não sabe como expulsá-los. O portão permanece
fechado. A guarda, que antes entrava e saía desfilando alegremente,
mantém-se, agora, atrás das janelas gradeadas. A salvação da pátria foi
confiada a nós, artesãos e comerciante. Mas não estamos em condições de
fazer frente a semelhante missão, nem jamais nos vangloriamos de estar. É
um equívoco e todos nós pereceremos em por causa dele.
UM ARTISTA DO TRAPÉZIO
(A Primeira Dor)

Um artista do trapézio (como se sabe, esta arte praticada no alto das


cúpulas dos grandes circos é uma das mais difíceis de todas as realizáveis
pelo homem) havia organizado sua vida de tal maneira — primeiro por afã
profissional de perfeição, depois por um costume que se fizera tirânico—
que, enquanto trabalhava para a mesma companhia, permanecia dia e noite
no trapézio. Todas as suas necessidades — aliás, muito pequenas — eram
satisfeitas por criados que, embaixo, ficavam a vigiá-lo, revezando-se a
intervalos. Tudo o que lá em cima era necessário, faziam subir ou descer em
cestinhos a tal fim preparados.
Esta maneira de viver não trazia para o trapezista dificuldades com o
resto do mundo. Criava, somente, algum incômodo para os demais números
do programa, porque não se podia ocultar que ele estava o tempo inteiro lá
em cima e, malgrado ele permanecesse quieto, sempre alguns olhares do
público se desviavam para ele. Mas os diretores perdoavam-no porque era
um artista extraordinário, insubstituível. Além disso, sabia-se que não vivia
assim por capricho e que somente daquela maneira ele podia estar sempre
treinado, conservando, pois, a extrema perfeição de sua arte.
Ademais, lá em cima ele estava sempre muito bem. Quando, nos dias
cálidos de verão, abriam-se as janelas laterais que ficavam redor da cúpula,
e o sol e o ar irrompiam no âmbito crepuscular do circo, até era belo. Sua
convivência humana era muito limitada, naturalmente. Às vezes, algum
colega de turnê trepava pela corda de ascensão, sentava-se a seu lado no
trapézio, e, apoiado um na corda da direita e o outro na da esquerda,
conversavam longamente. Ou alguns operários que consertavam o teto
trocavam algumas palavras com ele através de uma das claraboias, ou o
eletricista, que verificava os fios na galeria mais alta, gritava-lhe alguma
palavra respeitosa, se bem que bem pouco compreensível.
Salvo nestas circunstâncias, estava sempre solitário. Às vezes, um
empregado errava, cansadamente, na hora da sesta, pelo circo vazio, e
elevava o olhar à quase atraente altura em que o trapezista descansava ou se
exercitava em sua arte, sem saber que era observado.
Assim, poderia viver tranquilo o artista do trapézio não fossem as
inevitáveis viagens de lugar em lugar, que o incomodavam
extraordinariamente. Certo é que o empresário cuidava de que este
sofrimento não se prolongasse desnecessariamente. O trapezista saía para a
estação num automóvel de corrida que voava, de madrugada, pelas ruas
desertas, à máxima velocidade (mas demasiado lento a para sua saudade do
trapézio).
No trem, estava reservado um camarote só para ele, onde encontrava,
em cima, na pequena rede de bagagem, uma substituição mesquinha — mas
de algum modo equivalente — à sua maneira de viver.
No local de destino, já se encontrava montado o trapézio muito antes
de sua chegada, quando o palco não fora armado e nem as portas colocadas.
Para o empresário, o momento mais prazeroso era aquele em que o
trapezista apoiava o pé na corda de subida e num instante içava-se ao seu
trapézio. Apesar de todas essas precauções, as viagens perturbavam
gravemente os nervos do trapezista, de modo que, por mais felizes que
resultassem, do ponto de vista econômico, para o empresário, sempre eram
penosas ao artista.
Certa feita, quando viajavam — o artista na rede, como se sonhasse,
e o empresário junto à janela, lendo um livro —, o homem do trapézio
interpelou o chefe suavemente. E disse-lhe, mordendo os lábios, que,
doravante, necessitava, para viver, não de um trapézio apenas, como até
então, mas de dois, um de frente ao outro.
O empresário prontamente aquiesceu. Mas o trapezista, como se
quisesse demonstrar que a aceitação do empresário não tinha mais
importância que a recusa, acrescentou que nunca mais, em nenhuma
ocasião, trabalharia sobre um só trapézio. Parecia horrorizar-se diante da
ideia de fazê-lo novamente. O empresário, detendo-se e observando seu
artista, declarou novamente a sua absoluta conformidade. Dois trapézios
seriam melhores do que apenas um. Além disso, os novos trapézios seriam
mais vantajosos, proporcionando evoluções mais variadas e vistosas.
Mas o artista pôs-se a chorar subitamente. O empresário,
profundamente comovido, levantou-se de um salto e perguntou o que havia,
e, como não recebeu resposta alguma, subiu à rede, afagou-o, abraçou-o e
encostou o seu rosto no dele, até sentir as lágrimas em sua pele. Depois de
muitas perguntas e palavras carinhosas, o trapezista exclamou, soluçando:
—Só com uma barra nas mãos! Como eu poderia viver assim?
Então, foi mais fácil ao empresário consolá-lo. Prometeu-lhe que na
primeira estação, na primeira parada, no primeiro hotel telegrafaria para que
instalassem o segundo trapézio, e censurou a si mesmo duramente pela
crueldade de ter deixado o artista trabalhar por tanto tempo com um único
trapézio. Enfim, agradeceu-lhe por ter-lhe feito notar, finalmente, aquela
omissão imperdoável. De toda sorte, o empresário pôde tranquilizar o
artista e voltar ao seu lugar.
O empresário, todavia, não estava tranquilo. Com grave preocupação
espiava-o, às furtadelas, por cima do livro. Se semelhantes pensamentos
haviam começado a atormentá-lo, poderiam cessar por completo? Não
continuariam aumentando dia a dia? Não iriam ameaçar-lhe a existência? E
o empresário, alarmado, julgou ver naquele sono aparentemente tranquilo,
em que havia terminado o pranto, começar a desenhar-se a primeira ruga na
lisa fronte infantil do artista do trapézio.
DIANTE DA LEI

Diante da Lei há um porteiro. Um camponês apresenta-se a este


porteiro e pede permissão para entrar na Lei. Mas o porteiro responde que,
no momento, não pode deixá-lo entrar. O homem reflete e pergunta se mais
tarde estará autorizado a entrar.
—É possível — diz o porteiro —, mas não agora.
Como de costume, a porta da Lei está aberta. Quando o porteiro se
põe de lado, o homem se inclina para espiar. O porteiro o vê, sorri e diz:
—Se teu desejo é tão grande assim, experimenta passar apesar de
minha proibição. Mas lembra-te que sou poderoso. E sou apenas o último
dos porteiros. De sala para sala há, também, porteiros, cada um mais
poderoso que o outro. Já o terceiro porteiro é tão terrível que sequer posso
olhar para ele.
O camponês não havia previsto estas dificuldades; a Lei deveria ser
sempre a todos acessível, pensa ele. Mas, ao olhar o porteiro, com o seu
casaco de peles, seu grande nariz agudo e sua barba de tártaro, rala e negra,
decide que é conveniente esperar até que lhe seja dada permissão para
entrar. O porteiro lhe dá um banquinho e deixa-o sentar-se ao lado da porta.
Ali ele espera dias e anos. Ele faz várias tentativas para entrar e
cansa o porteiro com suas súplicas. Frequentemente, o guarda conversa
brevemente com ele, pergunta-lhe sobre o seu país e sobre muitas outras
coisas. Mas são perguntas indiferentes, como as dos grandes senhores e,
finalmente, acaba por repetir que não pode deixá-lo entrar. O homem, que
se provera de muitas coisas para a viagem, sacrifica tudo, por valioso que
seja, para subornar o porteiro. Este, de fato, aceita tudo, mas lhe diz:
—Somente aceito para que creias que não omitiste nenhum esforço.
Durante esses longos anos, o homem observa quase
ininterruptamente o porteiro. Esquece-se dos outros guardiães e aquele
parece ser-lhe o único obstáculo que o separa da Lei. Durante os primeiros
anos, audaciosamente, maldiz sua má sorte. Mais tarde, à medida que
envelhece, limita-se a resmungar consigo mesmo. Retorna à infância e
como, em sua cuidadosa e longa contemplação do porteiro, chegou a
conhecer até mesmo as pulgas da gola do casaco de peles, suplica a elas que
o ajudem a demover o guardião. Por fim, a sua visão debilita-se e ele já não
sabe se realmente está mais escuro ou se os seus olhos o enganam. Mas, em
meio à escuridão, vislumbra um clarão que irrompe inextinguível da porta
da lei. Resta-lhe, todavia, apenas pouco tempo de vida. Antes de morrer,
todas as experiências desses longos anos se confundem em sua mente em
uma única pergunta, que até agora não formulara ao porteiro. Faz-lhe um
aceno para que este se aproxime, já que não pode erguer o corpo enrijecido.
O porteiro vê-se obrigado a agachar-se, porque a diferença de estatura entre
ambos aumentou bastante com o tempo, em detrimento do camponês:
—O que ainda queres saber? — perguntou o porteiro. — Tu és
mesmo insaciável.
—Todos se esforçam por chegar à Lei — disse o homem. — Como é
possível, então, que, durante tantos anos, ninguém mais, senão eu, implorou
para entrar?
O porteiro percebeu que o homem estava no fim e, para que aqueles
fracos ouvidos captassem as suas palavras, respondeu, aos berros:
—Ninguém mais poderia ser admitido aqui porque esta porta foi feita
apenas para ti. E agora eu vou fechá-la.
DESISTA!

Era muito cedo de manhã, as ruas estavam limpas e vazias e eu ia à


estação ferroviária. Ao confrontar o relógio de uma torre com o meu,
verifiquei que era muito mais tarde do que supunha e eu teria que apressar-
me muito; o choque desta descoberta faz-me ficar inseguro quanto ao
caminho a seguir, pois eu ainda não conhecia bem aquela cidade.
Felizmente, havia um policial nas proximidades; corri a ele e, sem fôlego,
lhe perguntei qual era o caminho da estação. Ele sorriu e disse-me:
—Queres, por mim, conhecer o caminho?
—Sim, já que eu não posso encontrá-lo por mim mesmo.
—Desista, desista! — disse ele, e se virou com grande ímpeto, como
as pessoas que querem ficar a sós com as suas risadas.
UMA PEQUENA FÁBULA

— Ah —disse o rato — o mundo se torna mais estreito a cada dia.


Antes, ele ela era tão vasto que me dava medo; então eu corria, ficava feliz
em finalmente vislumbrar, à distância, à direita e à esquerda, as longas
paredes. Mas agora elas convergem tão rapidamente uma à outra que eu já
estou no último quarto, e lá no canto está a ratoeira para qual eu corro.

— Você só tem que mudar de direção — disse o rato, e o devorou.


A PONTE

Eu estava rígido e frio; eu era uma ponte atravessada sobre um


precipício. Em uma das extremidades estavam as pontas dos pés; na outra,
as mãos; no barro quebradiço cravei os dentes, firmando-me. As abas de
meu casaco esvoaçavam às minhas costas.
Nas profundezas, rumorejava o gélido arroio de trutas. Nenhum
turista desviava-se a estas alturas intransitáveis: a ponte não figurava nos
mapas. Assim, eu ali permanecia, esperando. Tinha que esperar. Toda ponte,
uma vez construída, não pode deixar de ser ponte sem desmoronar.
Foi num entardecer — não sei se foi o primeiro ou o milésimo, meus
pensamentos, sempre confusos, giravam sempre em círculos —, foi num
entardecer de verão, em que o arroio murmurava soturnamente, que escutei
os passos de um homem. Para cá, para cá. Estira-te, ponte; apruma-te, viga
sem corrimões; sustenta quem a ti foi confiado. Nivela imperceptivelmente
a insegurança de seu passo; se ele vacila, dá-te a conhecer como um deus da
montanha, põe-no em terra firme.
Ele chegou e me tateou com a ponta metálica de seu bastão; depois
ergueu com ela as abas de meu casaco e as acomodou sobre mim. A ponta
do bastão imiscuiu-se entre os meus cabelos emaranhados e ali permaneceu
por um tempo, enquanto ele olhava, provavelmente com olhos selvagens, ao
redor. Foi então — apenas sonhei-o sobre montanhas e vales — que ele
saltou, caindo com ambos os pés sobre o meio do meu corpo. Uma dor
selvagem me fez estremecer, ignorante do que acontecia. Quem era ele?
Uma criança? Um sonho? Um salteador? Um suicida? Um tentador? Um
destruidor? Virei-me para vê-lo. A ponte girava. Não havia terminado de
virar-me e eu já caía, caía e estava dilacerado, empalado pelos seixos
pontiagudos que sempre haviam olhado para mim tão pacificamente através
das águas turbulentas.
CRÉDITOS
CONTOS ABSURDOS
Franz Kafka (1883 – 1924)
Textos originais de domínio público.
Os contos não foram traduzidos diretamente do alemão.
Série Mestres do Terror, Horror e Fantasia nº 16.
Imagem da capa: Franz Kafka.
Leiaute: Canva.
Versão em português: Paulo Soriano.
2ª. Edição, 2017
© Versão em português: Paulo Soriano, 2016.

Edições TRIUMVIRATUS, MMXVI - MMXVII.


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O objetivo das Edições Triumviratus é levar ao leitor de língua portuguesa obras de clássicos da literatura, sobretudo fantástica,
escritas por grandes mestres da Literatura Universal. Muitos de nossos livros eletrônicos contêm obras raras de grandes autores.
As traduções são originais e exclusivas ou de domínio público.
A Série Mestres da Literatura de Terror, Horror e Fantasia apresenta, a cada edição, pelo menos uma narrativa de consagrado
autor do gênero.

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