Carrascoza Caderno de Um Ausente

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Caderno de um ausente 4A PROVA.

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Copyright © 2017 by João Anzanello Carrascoza

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua


Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Capa e projeto gráfico


Elisa von Randow
Preparação
Eduardo Rosal
Revisão
Márcia Moura e Renata Lopes Del Nero

Os personagens e as situações desta obra são reais apenas


no universo da ficção; não se referem a pessoas e fatos
concretos, e não emitem opinião sobre eles
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Carrascoza, João Anzanello


Caderno de um ausente / João Anzanello Carrascoza;
posfácio de José Luiz Passos — 1a ed. — São Paulo : Alfaguara,
2017.

isbn 978-85-5652-033-3
isbn 978-85-5652-036-4 (coleção)

1. Ficção 2. Ficção brasileira i. Título.

17-01155 cdd-869.3
Índice para catálogo sistemático:
1. Ficção : Literatura brasileira 869.3

[2017]
Todos os direitos desta edição reservados à
editora schwarcz s.a.
Praça Floriano, 19 – Sala 3001
20031-050 – Rio de Janeiro – rj
Telefone: (21) 3993-7510
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Para Juliana

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De que modo ensinais as coisas futuras,
ó Senhor, para quem não há futuro?
SANTO AGOSTINHO

[…] mas que doce amargura dizer as coisas […]


RADUAN NASSAR

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ilha, acabas de nascer, mal eu te peguei
F no colo, e pronto, já chega, disse a
enfermeira, e te recolheu de mim, foi ape-
nas pra gravarmos uma cena, agora os pais
assistem ao parto, e tudo é filmado, antes
não havia nada disso, eu nasci das mãos
de uma parteira, já na época do teu irmão
— um meio-irmão, de quinze anos, é bom
que logo saibas —, a moda era o registro
fotográfico, outro dia ele se viu numa foto
comigo, logo que veio à luz, e sorriu, e, em
seguida, silenciou, e então eu imagino o
que ele, como um rio rumo à foz, leu nas
águas daquele momento inicial, e, agora,

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eu também só concordei com a filmagem
pelo mesmo motivo, pra que te vejas, no
futuro, junto a mim, eu te recebendo nesta
hora primeira, dando-te as boas-vindas, se
assim se pode dizer, vais descobrir por ti
mesma que este é um mundo de expiação,
embora haja ocasionalmente umas ale-
grias, não há como negar — as verdadeiras
vêm travestidas, é preciso abrir os olhos
dos teus olhos pra percebê-las. Acabas de
nascer e eu tenho de te explicar, como se
já pudesses entender, e, da mesma forma,
estou dizendo a mim, que não vamos pas-
sar muito tempo juntos, que deves te pre-
parar pra viver mais longe de mim do que
perto — eu farei parte, pra sempre, só do
início de tua história; não há outro jeito,
mesmo com a maior das esperanças, de
te ver crescer como vi o teu irmão e con-
tinuarei a vê-lo até se tornar adulto, ele à
beira de ser o homem que será, talvez até
dê tempo pra que eu o veja se casar e me
dar, quem sabe, um ou dois netos.
Mas tu, não. Vens com esta marca, de
minha ausência, a envolver inteiramen-

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te a tua vida, e este é um dos primeiros
sustos que temos nesta existência, somos
o que somos, não há como alterar a nos-
sa história, sobretudo se ela já começa no
meio, ou mais próxima ao fim — esta porta
do hospital, de vaivém, foi a tua porta de
entrada, talvez seja a minha de saída —, se
há destinos emaranhados, o meu e o teu
apenas vão se resvalar feito fitas, ainda
que o toque possa abrir em nós uma feri-
da, como as folhas de papel. Dependendo
da maneira como as pegamos, as folhas de
papel, inocentes, em sua aparência, nos
rasgam a pele, até mesmo as peles mais
rudes, de lavradores como o teu avô, meu
pai, que já se foi, folhas de papel, especial-
mente em branco, podem, de súbito, se
encher de sangue, pela tua própria ação
intempestiva, imagine, então, quando
nelas as palavras irrompem em incontrolá-
vel hemorragia. Ali, naquela bacia,
a placenta que até há pouco te envolvia,
como a casca de um ovo, ela te mantinha
protegida, preparando-te pra vida do lado
de cá; deves estar sentindo frio, depois de

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tanto tempo no calor do ventre, a tua mãe
agora dorme, tu, que vens de dentro dela,
deves saber o quanto ela padeceu, e esse
é outro fato inescapável de teu destino,
uma mãe de saúde débil, mas que correu
todos os riscos pra te trazer aqui, amor
não te faltará, eu te asseguro, ela é dessas
mulheres que deseja a proximidade o tem-
po inteiro, capaz até de te sufocar, de tanto
amor, mas de tua mãe falarei depois, pelo
cordão umbilical tu já a conheces mais
no âmago do que eu, apesar do que dizem
sobre os casais — que tanto se conhecem
a ponto de se confundirem —, o mistério
de cada um só a ele pertence, há regiões
nossas às quais nem nós mesmos alcança-
mos. Desculpe-me por te dizer isso
quando ainda mal chegaste, eu sou sau-
dável pra um homem de cinquenta e tan-
tos anos que cometeu lá os seus excessos,
tenho vitalidade de sobra, há manhãs que
me sinto em plenitude, com um desejo de
viver maior do que em menino, quando
queria crescer logo e imaginava existir um
abre-te sésamo pra me revelar os mistérios

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do mundo, eu acreditava que havia uma
escrita cifrada em algum documento ocul-
to, por meio da qual todo o sem-sentido da
existência, de repente, se iluminaria, eu
supunha que podia encontrar o pergami-
nho, a chave lendária, o livro sagrado que
explicaria o engenho humano e o segredo
das divindades — tu descobrirás, filha, que
sonhar nos salva da rotina, mas, também,
nos desliga da única coisa que nos man-
tém em vigília: o muro concreto do presen-
te. Sim, estou ótimo pra alguém da
minha idade, ao menos é como me sinto,
quero permanecer ainda um tempo por
aqui, mas, preciso te dizer, filha, sei bem
distinguir quando aquilo que capto, na
configuração das nuvens, é apenas uma
suspeita ou um fato a caminho, ineludível,
aprendi a ler o que está escrito nas altas
esferas, e também no rodapé da nossa roti-
na. Apesar de vítimas dia a dia de
enganos, há uma hora em que aprende-
mos a reconhecer a verdade em qualquer
rosto, mesmo num rosto disfarçado com
máscara grosseira, ou refeito por mil cirur-

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gias, haverá sempre quem diga, mirando a
tua face rubra, ainda amassada, depois de
rascunhada e, ao longo dos últimos meses,
envelhecida dentro de tua mãe — este pro-
cesso nunca para, é a silenciosa bomba-
-relógio de nossa existência —, que tens
alguns de meus traços, talvez os menos
marcantes; por isso, eu te peço perdão,
filha, por não ser o anfitrião ideal, por te
recepcionar com estas palavras rascantes,
mas não há como esconder a morte ante a
estreia de uma vida.

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tua mãe, tão reservada, pediu a fil-
A magem do parto apenas pra rebobi-
nar as lembranças quando quisesse te ver
chegando, novamente, jamais pra exibir à
visita ou a familiar distante, ela preferiu
o “livro do bebê”, no qual se registram o
primeiro banho, a primeira palavra, o pri-
meiro dentinho e tudo o mais ao longo de
um ano, amanhã vai começar a assinalar
cada progresso teu, e com qual idade tu
o lograrás, pra depois dizer ao pediatra, e
conferir, com orgulho, que estarás crescen-
do forte, apesar de ser fruto de um esper-
ma velho e de um amor tardio. Tua

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tia Marisa tentou convencê-la a fazer um
álbum de fotografias, desses anunciados
na internet, vinte reais a cópia, sete tama-
nhos, quatro estilos de capa, cinco tipos
de papel, mais de mil opções de layout, a
história do bebê contada com desconto
de até sessenta por cento — enfim, vai te
acostumando com a matemática, filha,
os números vão reger as tuas decisões —,
mas ela não se motivou, talvez tenha se
enfastiado com tantas dicas que recebeu
pra cuidar de ti, sobretudo os guias prá-
ticos das mamães, A encantadora de bebês
resolve todos os seus problemas, Pequena
biblioteca do bebê, O que esperar quando
você está esperando, Nana nenê, O primeiro
ano de seu bebê mês a mês, mas a tua mãe
optou por este caderno de notas, registro
de tuas iniciações, poderia já preencher a
primeira página, a caligrafia dela é linda,
as letras bem definidas, tu verás, fácil pra
qualquer leitor reconhecer — diferente do
meu “j” que parece “g”, de meu “l” que se
confunde com o “i” —, as palavras grafa-
das com limpidez, igual água dentro do

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vidro, exibindo toda a transparência de
sua escritura líquida e, ao mesmo tempo,
escondendo resíduos de substâncias, mila-
grosas ou nocivas, a revelar e ocultar seu
segredo em qualquer punhado de corren-
teza que colhemos; a tua vida, filha,
é um texto que há tempos começamos a
escrever, mas, daqui em diante, também te
cabe pegar esta tinta e delinear o teu curso,
tome só cuidado com o que retiras do nada
e trazes à superfície, é comum borrar ou
rasurar um trecho, mas é impossível apa-
gá-lo, a palavra se faz carne, e a carne se
lacera, a carne apodrece aos poucos, mas é
também pela carne que a palavra se imor-
taliza. Não há borracha para um fato já
vivido, pode-se erguer represas e costões,
muralhas e fortalezas para barrar o fluxo
das horas, mas, uma vez que o sol se torne
sombra, que o luar penda no céu em luto,
a névoa se disperse na paisagem pendura-
da à parede, o dedo acione o gatilho, nada
mais se pode fazer; nossa jornada, aqui, é
única, a ninguém será dada a prerrogativa,
salvadora ou danosa, da reescrita.

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Filha, tua mãe, amanhã, vai abrir o teu livro
de bebê e anotar na primeira página o que,
em verdade, já está escrito — a mão dela
vai apenas confirmar, como um composi-
tor confirma, ouvindo seu ritmo interior,
as notas que ele dispõe na partitura. Nome
do bebê: Beatriz Sexo: feminino Tamanho:
50 centímetros Cor da pele: branca Cor dos
olhos: cinza (tua mãe gostaria que se tor-
nassem azuis, mas serão castanhos) Cor
dos cabelos: preto Dia de chegada: 30 de abril
Ano: 2002 Horário: 14h21 Lugar: Maternida-
de Santa Catarina Cidade: São Paulo País:
Brasil Nome da mãe: Juliana Nome do pai:
João. Imagino os outros dados desta
página inaugural e das seguintes que preci-
sam ser preenchidos, a primeira roupa que
te vestiram, e quem a deu, se era verão ou
inverno, se naquela noite chovia, quem foi
a tua primeira visita, e se há alguma marca
em teu corpo, se tu espirras, se choras, se
tuas unhas estavam crescidas, o teu primei-
ro arroto, o primeiro vômito, o primeiro pei-
do, não há fronteiras, filha, para a criativi-
dade — e para a pieguice — humana, tudo

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pra honrar a tua história, pra te conferir
uma aura de singularidade, embora sejas
apenas mais um, entre milhares de neó-
fitos, que vai se igualar a todos no espan-
to de te descobrir finita, no aprendizado
do amor e da inveja, na dolorida jornada
rumo à conscientização de tuas misérias,
no sonho de encontrar a explicação que te
salve de ti mesma, a magia que retire de
teu corpo o limite que o aprisiona, e de tua
imaginação o medo que a refreia.
Logo, tua mãe terá tantos afazeres, que se
esquecerá deste livro, concebido, aliás, só
para esses primeiros dias de espanto; em
breve, filha, os teus progressos não serão
mais anotados no papel, mas em nossa
carne e em nossa memória, especialmente
na tua, porque a dor de dente é menor na
boca alheia, as angústias não podem ser
partilhadas ainda que queiramos, somen-
te nós mesmos sabemos (sabemos?) o
bem e o mal de ser quem somos. Deveriam
inventar um livro correspondente para os
pais, eu e tua mãe poderíamos anotar nele
o que tu, mesmo involuntariamente, nos

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causou com a tua vinda e o que vais nos
causar adiante: o primeiro susto (será que
ela é mesmo normal, sem nenhum defei-
to?), a primeira decepção (é tão feia quanto
qualquer recém-nascido), a primeira triste-
za (ainda que tenhamos amor por ti, não
é um amor grande o suficiente pra ter te
deixado só no sonho), a primeira dor (afi-
nal, somos responsáveis por ter te trazido
aqui — aqui, onde terás de conviver diaria-
mente com o não, quando todo o teu ser
suplicará pelo sim).

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