MEUCCI, Rotinização e Material Didático de Sociologia
MEUCCI, Rotinização e Material Didático de Sociologia
MEUCCI, Rotinização e Material Didático de Sociologia
Simone Meucci1
RESUMO
Este texto traz alguns dados sobre os primeiros manuais didáticos de sociologia elaborados
no Brasil particularmente no período compreendido entre os anos de 1930 e 1945, quando
houve uma produção notável destes livros. Analisamos as condições institucionais e
editoriais que permitiram a formação deste conjunto de obras, procuramos identificar a
origem intelectual de seus autores e as expectativas de que a disciplina era depositária.
Constatamos que o estudo dos livros didáticos permite compreender o sentido que fora
dado a sociologia no ensino secundário exatamente no período em que se mobilizavam
esforços para a institucionalização acadêmica do conhecimento sociológico no país.
Esta análise pretende, pois, contribuir para uma abordagem sociológica do processo de
constituição da sociologia no Brasil.
Palavras-chave: Sociologia no Brasil. Manuais didáticos. Ensino da sociologia.
ABSTRACT
This text brings selected data about the first didactic sociology manuals elaborated in
Brasil, mainly foucusing on the period between 1930 and 1945 during which a great deal
of these publications was issued.We analised the institutional and editorial conditions
that made it possible for such body of work to be published.We also tried to identify the
intellectual origin of the authors and the expectations that were created concerning this
subject. We concluded that the study of didactical books enables us to understand the
meaning of sociology in the secondary education,which coincided with the period of
intense effort of academic institutionalization sociological knowledge in country. This
text is an analisys that indends to contribute to a sociological approach of the
constitutionalization of the sociology in Brasil.
Key words: Sociology in Brasil. Didactic manuals. Teaching sociology.
1
Doutora em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (2006). Docente do Centro Universitário Positivo.
N
o Brasil, a publicação de um conjunto significativo de obras introdutórias ao
conhecimento sociológico ocorreu repentinamente na década de 30. No período
compreendido entre os anos de 1931 e 1945 surgiram mais de duas dezenas de
livros dedicados ao ensino da disciplina2 , ao passo que nas décadas anteriores foram
publicados apenas alguns compêndios de sociologia criminal e o conhecido Introdução
à Sociologia, de 1926 de Pontes de Miranda (Quadro 1).
A composição repentina de um conjunto notável de livros didáticos da disciplina
esteve certamente vinculada a uma série de iniciativas dedicadas à institucionalização
da sociologia nos anos 30 que podem ser assim enumeradas:
1. Introdução da cadeira de sociologia nos cursos secundários chamados
‘complementares’ (1925) e nas Escolas Normais de Pernambuco (1928), Rio
de Janeiro (1928) e São Paulo (1933).3
2. Criação dos cursos de Ciências Sociais na Escola Livre de Sociologia e Política
(1933) (LIMONGI, 1989, 1987), na Universidade de São Paulo (1933)
(CARDOSO, 1982), na Universidade do Distrito Federal (1935) (ALMEIDA,
1989; BARBOSA, 1996; VICENZI, 1986), e na Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras do Paraná (1938) (TOMAZI, 2006; BEGA, 2006).
3. Publicação das consagradas obras Evolução Política do Brasil (Caio Prado
Júnior, 1933), Casa Grande & Senzala (Gilberto Freyre, 1933) e Raízes do
Brasil (Sérgio Buarque de Holanda, 1936).
4. Surgimento de dicionários, coletâneas de textos e periódicos que, juntamente
com os manuais didáticos, se constituíram como os primeiros veículos de
difusão do conhecimento sociológico, entre eles o Dicionário de etnologia e
Sociologia (1939) de Herbert Baldus e Emílio Willems; o Dicionário de
2
Alguns dos manuais didáticos publicados na década de 30 tornaram-se verdadeiros clássicos do ensino da sociologia
no meio intelectual brasileiro: foram reeditados várias vezes e, em muitos casos, por várias décadas. Lições de
Sociologia de Achiles Archero Júnior, publicado pela primeira vez em 1932, chegou à nona edição em 1949;
Princípios de Sociologia de Fernando de Azevedo, reeditado onze vezes entre 1935 e 1973; Programa de Sociologia
de Amaral Fontoura, reeditado quatro vezes no período de 1940 e 1944 (e, sob o novo título Introdução à
Sociologia foi ainda reeditado cinco vezes entre 1948 e 1970); Fundamentos de Sociologia de Carneiro Leão
reeditado cinco vezes entre 1940 e 1963 e, finalmente, Sociologia de Gilberto Freyre, reeditado também cinco vezes
entre 1945 e 1973. O sucesso editorial destas obras coloca seus autores entre os mais notáveis divulgadores da
Sociologia no sistema escolar e acadêmico brasileiros. E evidencia a consolidação de um modo de difusão do
conhecimento sociológico surgido repentinamente nos anos 30 que, não obstante, percorreu incólume longas
décadas.
3
Sobre o ensino da sociologia no sistema escolar brasileiro ver: (MORAES, 2003; PEREZ, 2002; MEUCCI, 2006,
2005).
OS AUTORES
Como observamos, no Brasil, a substituição sistemática de compêndios de
sociologia estrangeiros por nacionais ocorreu a partir dos anos 30, após a implantação da
6
Ver em anexo a relação dos principais autores, ocupações exercidas e obras publicadas.
7
Francisco Pontes de Miranda pertenceu à mesma turma de Antonio Carneiro Leão na Faculdade de Direito do
Recife: ambos formaram-se em 1911. Carneiro Leão, além de autor de um importante manual de sociologia dos
anos 40, foi introdutor da cadeira de sociologia na Escola Normal Oficial de Pernambuco em 1928, conforme já
citamos.
8
Ver em anexo a relação dos principais autores, ocupações exercidas e obras publicadas.
9
É possível que o Pe. Alcionílio tenha concluído estudos na área jurídica, pois entre suas obras encontramos um livro
de introdução à Ciência do Direito.
10
O próprio Donald Pierson inaugurou, em 1943, a Divisão de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais na Escola
Livre de Sociologia e Política de São Paulo.
11
A Escola Nova foi um movimento no âmbito da educação com ressonância mundial que teve como protagonistas
os seguintes educadores: na Europa, Edouard Clapedère (1973-1940), Adolphe Ferrière (1879-1960) e Maria
Montessori (1870-1952); nos Estados Unidos, John Dewey (1859-1952). No Brasil, embora o escolanovismo estivesse
presente nas reformas educacionais dos anos 20, só adquiriu contornos de um movimento intelectual sistemático
nos anos 30 com a publicação do Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova (1932) do qual Fernando de Azevedo
e Carneiro Leão foram signatários.
12
Ao cotejar os dados dos autores constatamos uma coincidência: Severino Sombra e Djacir Menezes nasceram
ambos no ano de 1907, na cidade de Maranguape (que hoje compõe a região metropolitana de Fortaleza).
13
Acerca da acomodação de literatos nordestinos no Rio de Janeiro ver: (SORÁ, 1998).
14
Freyre foi, também, no período compreendido entre os anos de 1926 e 1930, chefe de gabinete de Estácio Coimbra,
Governador de Pernambuco, um dos mais importantes oligarcas do período.
15
Werneck Vianna analisa os dilemas da institucionalização das ciências sociais no Brasil, especialmente a relação
ambígua dos intelectuais com o Estado (VIANNA, 1997).
16
Em 1928, ao assumir a presidência do Centro D. Vital, Alceu de Amoroso Lima quis converter o Centro num núcleo
de estudos para a formação de uma cultura católica superior. Para isso, promoveu conferências semanais
sobre temas filosóficos, sociológicos, educacionais e religiosos. O nascimento do Instituto Católico de Estudos
Superiores, fundado em 1932, foi um avanço institucional nesta direção da formação de uma intelectualidade
católica. Representou a especialização da tarefa de difundir uma cultura católica superior e a abolição do
amadorismo das palestras e cursos até então vigentes no Centro D. Vital. No seu primeiro ano de funcionamento
eram três as disciplinas obrigatórias: Sociologia, Filosofia e Teologia. Foi este o germe para a fundação da
Universidade Católica (SALEM, 1982)
17
Sobre os manuscritos de aula de Gilberto Freyre consultar: (MEUCCI, 2006, p. 139). Especificamente sobre a
introdução da sociologia no currículo da Escola Normal de Pernambuco pela Reforma Carneiro Leão (MEUCCI,
2005).
AS EXPECTATIVAS
Inevitável indagarmos acerca das expectativas que mobilizaram estes autores
nesta empreitada de constituição do primeiro conjunto de livros didáticos de sociologia.
Decifrar isto é afinal compreender mais profundamente o sentido que o conhecimento
sociológico adquiriu para uma geração inteira.
As páginas dos manuais de sociologia nos oferecem algumas pistas interessantes.
Os testemunhos dos autores sugerem, sobretudo, que o interesse pela sociologia estava
relacionado ao que chamaremos aqui de movimento ‘realista’ no meio intelectual
brasileiro. O fundamento social deste movimento foi o lento esgarçamento do pacto
republicano, pois foi ao longo do desenrolar desta crise (que na segunda metade dos anos
20 adquiriu contornos dramáticos) que os intelectuais, no esforço para compreensão do
processo social e político em curso, consagraram a seguinte interpretação: a inoperância
do governo diante das dificuldades era, sobretudo, resultante da cisão entre o Estado e a
sociedade brasileira. Na expressão de Alberto Torres, havia uma oposição entre o Brasil
real e o Brasil legal.
Com efeito, segundo o ponto de vista da inteligência brasileira do período, os
pressupostos liberais evocados nas leis que davam ossatura ao Estado brasileiro de então
não encontravam correspondência na sociedade que, por sua vez, diante da inoperância
É freqüente nas introduções e apresentações aos livros, o alerta dos autores de que
seus compêndios de sociologia não se destinavam à formação de intelectuais eruditos. As
primeiras palavras de apresentação do manual ‘Noções de Sociologia’, de Francisca
Peeters, nos previnem: ‘este modesto ensaio não aspira foros de erudito’. (PEETERS,
1938). Fernando de Azevedo, igualmente, na introdução ao ‘Princípios de sociologia’
nos diz que o ensino da disciplina deve ser marcado pelo ‘caráter diferencial da
formação da formação de um erudito’ (AZEVEDO, 1939). Achiles Archero ressalta em
‘Lições de Sociologia’ que seu manual ‘não foi feito para eruditos’. (ARCHERO,
1935, p.11).
Diletantismo, proselitismo e enciclopedismo foram compreendidos como atitudes
a serem combatidas. Não se queria, principalmente, ver a sociologia como uma disciplina
objeto do exercício intelectual de diletantes. Nelson Omegna, em Elementos de sociologia,
preocupa-se com o fato dos ‘diletantes’ pensarem que a sociologia é uma ciência na qual
podem transitar despreocupada e serenamente. (OMEGNA, 1934, p. 24).
Os autores dos livros didáticos de sociologia afirmavam repetidamente a intenção
de realizar, nas páginas de seus livros, sínteses adequadas à formação de novos espíritos
especializados a fim de tornar o conhecimento sociológico mais prestativo e útil
(AZEVEDO, 1939). A maioria afirmava que o objetivo era iniciar os alunos na nova área
de conhecimento, familiarizá-los com as teorias e técnicas de pesquisa sociológica e,
principalmente, despertar o interesse para o novo campo de estudos que estava então para
se formar.
Imparcialidade, crítica e nexo com os fatos da realidade são compreendidos como
virtudes entre os autores dos manuais. A emissão de opiniões pessoais e a atenção
privilegiada a um ponto de vista teórico apenas deveriam ser evitados. Djacir de Menezes
em ‘Princípios de sociologia’ afirma que como não lhe interessa o proselitismo, adotou
o critério frio da imparcialidade científica no estudo dos fatos sociais, não adotando
nenhum ponto de vista sectário (MENEZES, 1934, p. 7).
Amoroso Lima, na apresentação ao manual ‘Programa de Sociologia’ de Amaral
Fontoura, louva a atitude imparcial do autor: ‘[...] o autor [Amaral Fontoura] tem o
cuidado de expor, sempre que o assunto exige, as várias correntes em jogo, sem
procurar iludir o leitor pela adoção de uma determinada corrente, como se essa
fosse a única verdadeira’. (FONTOURA, 1944, p. 14).
Para este trabalho muito nos ressentimos de falta de literatura sobre as questões
brasileiras. Por iniciativa dos próprios alunos foram endereçados aos secretários e
autoridades dos Estados apelos para que encaminhassem à nossa escola publicações
relativas ao movimento demográfico, de assistência e de educação, etc. E dados
informativos das realizações sociais do país. Do Estado de Minas Gerais, por intermédio
de Mario Casassanta, e da Baía por intermédio do Dr. Bernardino José de Souza, nos
foi remetido copioso material sobre a vida daqueles Estados. Essas obras foram a base
e o início da pequena biblioteca de sociologia. E para aumento das mesmas os
estudantes resolveram organizar uma cooperativa do livro, tendo assim conseguido
as obras necessárias para o exercício do nosso primeiro ano de trabalho. (OMEGNA,
1934, p. III).
Com efeito, Amaral Fontoura chegava mesmo a publicar, entre as páginas dos
seus manuais, alguns levantamentos empíricos produzidos pelos próprios alunos. A
publicação dos trabalhos e inquéritos dos alunos parecia ser, para Amaral Fontoura, uma
das soluções para a ausência de material empírico sobre a realidade social brasileira.18
Não obstante, apesar dos esforços para tentar estabelecer um vínculo maior entre
realidade e teoria social, os autores com freqüência observavam que os próprios conteúdos
propostos pelos Programas Oficiais de Ensino eram demasiadamente extensos, abrangiam
assuntos estranhos à sociologia e dificultavam os nexos da disciplina com a vida social
(CARVALHO, 1939). As críticas de Amaral Fontoura nessa direção são mais uma vez
exemplares:
Discordamos um pouco desse programa oficial: é por vezes muito prolixo, perde-se
em questões de importância secundária, desconhece muitos dos trabalhos modernos
atinentes à matéria. [...] Salvo exceções, faz-se ainda, entre nós, um ensino de
sociologia morta. Decoram-se definições. Fica-se no terreno estéril das digressões
sobre escolas, sobre teorias sobre orientações metodológicas... O estudo dos problemas
vivos, a discussão palpitante sobre os problemas sociais são inteiramente abandonados!
Chegamos ao seguinte cúmulo: discutem-se problemas sociais por toda a parte
menos... na aula de sociologia. (FONTOURA, 1944, p. 15-18).
REFERÊNCIAS
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Janeiro. In: MICELI, Sérgio. História das Ciências Sociais no Brasil. São Paulo: Edições
Vértice: 1989.
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ARCHERO JR., Achiles. Lições de sociologia. 2. ed. São Paulo: Ed. Pub. Brasil, 1935.
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BARBOSA, Rosângela Nair de Carvalho. O projeto da UDF e a formação dos intelectuais.
Dissertação de Mestrado, IFCS, UFRJ, 1996.
BEGA, Maria Tarcisa Silva. Gênese das Ciências Sociais no Paraná. In: OLIVEIRA, Márcio
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CARDOSO, Irene. A universidade da comunhão Paulista. São Paulo: Cortez Editores
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CARLOS, Manuel. Sociologia outros aspectos da filosofia universal: solução dos problemas
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