Versão Final Dos Anais Do SNP - 27 de Agosto
Versão Final Dos Anais Do SNP - 27 de Agosto
Versão Final Dos Anais Do SNP - 27 de Agosto
COMUNICAÇÕES
Salvador
FICHA TÉCNICA
Organização
Alícia Duhá Lose, Lívia Borges Souza Magalhães, Tamires Alice dos Santos Santana,
Aldacelis dos Santos Lima Barbosa
Projeto gráfico e diagramação
Lívia Borges Souza Magalhães
Financiamento
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES; Memória e Arte.
MEMÓRIA E ARTE
Diretora
Vanilda Salignac de Sousa Mazzoni
Conselho Editorial
Maria da Glória Bordini
Célia Marques Telles
Manoel Mourivaldo Santiago-Almeida
Alícia Duhá Lose
Jorge Augusto Alves Lima
Sandro Marcío Drumond Alves Marengo
Fabiano Cataldo de Azevedo
ISBN: 978-85-69960-11-9
As organizadoras.
SUMÁRIO
BREVE INSTRUCÇAM PARA ENSIGNAR ADOUTRINA CHRISTAÃ, LER EESCREVER AOS MENINOS:
NOTÍCIAS SOBRE UM “MÉTODO” PARA A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA NO BRASIL DO
SÉCULO XVIII ................................................................................................................................................... 187
GLUB! ESTÓRIA DE UM ESPANTO: PRÁTICAS DE ESCRITA NO TEATRO BAIANO SOB CENSURA 403
O LABOR FILOLÓGICO PARA EDIÇÃO DO POEMA RETICENCIAS, DE EULÁLIO MOTTA ............... 454
TEXTO-RIZOMA: DOSSIÊ ARQUIVÍSTICO DOS TEXTOS MANIA E MEU CARO EUDALDO: SAUDAÇÕES
DE EULÁLIO MOTTA ...................................................................................................................................... 580
INTRODUÇÃO
7
A hipótese que norteia esta pesquisa aflorou a partir do trabalho de
Santos (2011) que entendeu que essa família foi importante no processo de colonização das
terras sergipanas desde o século XVII e seus descendentes continuaram a exercer influência no
século XIX. Por isso a necessidade de recompor a história dessa família, pelo conjunto de pistas
que foram encontradas sobre a mesma.
O balizamento temporal desta pesquisa foi definido a partir da própria documentação, que
data do século XVIII e XIX. Vale ressaltar que existem documentos sobre essa família desde o
século XVII. O principal conceito trabalhado nesta pesquisa é o de família, que segundo Santos
(2016):
[...] família leva em conta não somente a consanguinidade, mas os tipos de relações
familiares adquiridas no decorrer da vida. Os aliados não eram membros do núcleo
familiar consanguíneo, mas viviam sob o mesmo teto, como genros, cunhados,
afilhados, além dos escravos. O importante é entender que todos esses moradores
estavam submetidos ao pátrio poder ou pátrio domínio, o que caracterizava a família
patriarcal naquele tempo (SANTOS, 2016, p. 172).
METODOLOGIA
Para atingir os objetivos propostos, este projeto trabalhou com o aporte teórico-
metodológico da História Cultural e com o método Indiciário de Carlo Ginzburg (1989). Para
recompor essa história, através desse Método, o autor sustenta a ideia de utilização de pistas
obscuras de modo especulativo para construir um modelo epistemológico. Assim, é preciso
buscar os indícios, perceber o que está nas entrelinhas do documento, indagar as estruturas
invisíveis dentro das quais o vivido se articula, analisar não só os resultados finais, mas também
o caminho que se percorreu para chegar à compreensão dos fatos. É com base nesse
entendimento que analisamos os dados transcritos nas fontes coletadas.
Seguem abaixo as etapas que foram desenvolvidas:
1. Levantamento e leitura da bibliografia existente sobre o tema;
8
2. Fotografia e digitalização dos documentos;
3. Transcrição e análise das fontes existentes no Arquivo Judiciário do Estado de Sergipe;
4. Coleta de dados a partir de duas fichas de perguntas: Fichas das mulheres inventariantes
e Ficha dos filhos órfãos;
5. Análise e interpretação dos dados coletados até o presente momento com base no
referencial teórico.
ASPECTOS DA METODOLOGIA
9
Figura ˗Lista dos bens de Maria Cardozo de Souza (1765)
10
Rol de bens do cazal do defunto
Meu marido o Coronel Alexandre
Gomes Ferrão Castelobranco
5 O Ouro e prata he muito pouco mays g. dos [ilegível] se continuar este inventario
[ilegível]dos avaliadores [Ilegíveis 3 palavras] o mesmo cediz dos moveis
Escravos
11
Figura – Continuação lista dos bens de Maria Cardozo de Souza (1765)
12
Damianna gege sua molher de dezaceis annos
Manoel João seu ffo crioullo de anno
Domingos sapateiro Munsabiqe. de idade de vinte e cinco annos
35 Caetana gege sua molher dezoito annos
Joze Munsabiqe. [polvozo ?] de sincoenta annos
João Cardozo de vinte e cinco annos vaqro.
Eugenia [ilegíveis - 2 palavras] de vinte e [ilegível] treis annos
Antonio seu ffo de sincoenta annos, digo sinco annos
40 [Ilegível] sua ffa de quartorze annos
Basília crioulla de quarenta annos
Maria sua ffa de quartorze annos, digo de dezasseis annos
Bras seo ffo de quartorze annos
45 Fillipe seo ffo de doze annos
Joanna sua ffa de nove annos
Antonio seu ffo de quatro annos molatinho
Jozefa sua ff.a cazada com Luiz crioullo com vinteum
Antonio seu netto de oyto annos
50 Perpetua sua netta de sinco annos
Theodozia crioulla de quarenta annos cazada com [ilegível]
Marcos seu ffo de dezoito annos
Luiz seu ffo de dezaceis annos
[ilegível] sua ffa de quartorze annos
55 [ilegível] sua [ilegível] de doze annos
[Ilegíveis 3 palavras] annos
Joze seu ffo [ilegível] annos
Damianna seu ffo de dous annos
Domingos crioullo [ilegível] annos vaqo
60 Constancia sua molher crioulla de vinte annos
Pedro seu ffo de sete annos
[Ilegíveis 3 palavras] de sinco annos
[Ilegíveis 3 palavras] mamando
[Ilegíveis 2 palavras] de vinte e dois annos [dezcazado]
65 Pedro [ilegível] crioullo [ilegíveis 2 palavras]
[Ilegíveis 2 palavras]velha
Gados
13
Figura – Continuação lista dos bens de Maria Cardozo de Souza (1765)
Terras
REFERÊNCIAS
BURKE, Peter. O que é história cultural?. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
______. Mitos, emblemas e sinais: a morfologia e história. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989a.
GALVÃO, Ana Maria de Oliveira; LOPES, Eliane Marta Teixeira. Território Plural: a
pesquisa em história da educação. São Paulo: Ática, 2010
LOPES, Elaine Marta Teixeira. Perspectivas Históricas da Educação. São Paulo: Editora
Ática, 1989.
16
LOPES, Jader Janer Moreira. Grumetes, pajens, órfãs do rei...e outras
crianças migrantes. In: Vera Maria Ramos de Vasconcelos (Org.). Educação da Infância:
história e política. Rio de Janeiro: DPTA, 2005.
PRIORE, Mary Del. Ritos da vida privada. In: SOUZA, Laura de Mello e (Org.) História da
vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo:
Companhia da Letras, 1977. p. 267-330.
NUNES, Maria Thetis. História da educação em Sergipe. Rio de Janeiro: Paz e Terra;
Aracaju: Secretaria de Educação e Cultura do Estado de Sergipe: Universidade Federal de
Sergipe, 1984.
______. Sergipe Colonial I, 2. ed. São Cristóvão: editora UFS; Aracaju: Fundação Oviêdo
Teixeira, 2006.
SERGIPE. Arquivo geral do judiciário, Catálogo dos documentos judiciais do século XVIII
de Sergipe: Inventários judiciais da Comarca de Porto da Folha, 2005. Aracaju: TJ: Sercore
Artes Gráficas, 2005.
17
A PALEOGRAFIA E A HISTÓRIA: UM ESTUDO DE APLICAÇÃO PRÁTICA DAS
FERRAMENTAS PALEOGRÁFICAS. O 10 DE FEVEREIRO EM SALVADOR (1821)
18
O movimento promovido na cidade do Porto foi bem recebido
pelos portugueses na América. Imaginava-se que o absolutismo estava com os seus dias
contados. Acreditava-se que, a partir de então, passariam a vigorar a liberdade, a igualdade e a
fraternidade entre os reinos irmãos. Os ventos revolucionários que atravessaram o Atlântico
trouxeram consigo as insígnias do liberalismo e do constitucionalismo. A partir de então, um
estado de ebulição se instalou nas diversas capitanias do reino brasileiro (RIBEIRO, 2002, p.
30).
A princípio, a Corte portuguesa presente na cidade do Rio de Janeiro não deu a devida
importância à Revolução do Porto. Silvestre Pinheiro Ferreira, por exemplo, considerou o
Movimento Vintista como um ato de temeridade. Para o ministro joanino, a sociedade lusitana
iria se restabelecer da comoção inicial, retomando as práticas habituais até então praticadas em
relação ao trono. Segundo suas considerações, passados alguns dias, o fogo revolucionário seria
extinto e o absolutismo monárquico retomaria o seu lugar de destaque (FERREIRA, 1976, p.
33).
No entanto, diferentemente do fora esperado, formou-se uma Junta Provisória de
Governo em Portugal. Esta, por sua vez, passou a articular as medidas necessárias à instalação
de uma nova administração pública. Seguindo uma perspectiva similar, no Reino americano as
ideias de superação das mazelas vinculadas ao absolutismo monárquico foram ganhando cada
vez mais espaço. Nesse contexto, a Capitania da Bahia pode ser apontada como uma das
localidades do império português onde as ideias liberais e constitucionais encontraram solo
fértil para o seu amplo desenvolvimento (SILVA, 2012, p. 25).
Desde 27 de outubro de 1820 a cidade do Salvador vivenciava uma ebulição política.
Uma embarcação inglesa que aportou na capital trouxe consigo as notícias das mudanças
ocorridas na antiga metrópole. Para José da Silva Lisboa, o fato de a Capitania possuir fortes
laços comerciais com as praças do Porto e de Lisboa acabou favorecendo a rápida divulgação
dessas notícias (LISBOA, 1827, p. 43).
A partir de então, os habitantes da Bahia passaram a discutir abertamente e
reiteradamente os rumos que a Capitania deveria seguir. Ambos os segmentos da nação
portuguesa na América expressaram o seu apoio ao novo sistema constitucional. As
manifestações públicas de adesão às propostas de Lisboa se tornaram cada vez mais recorrentes.
Planos, adesões e conspirações se tornaram corriqueiros na dinâmica social da Capital
(ROUSSIN, 1822, apud MATTOSO, 1973, p. 130).
19
Cailhé de Geine, informante do Intendente Geral de Polícia, em 4
de dezembro de 1820, remeteu ao Rio de Janeiro algumas correspondências oriundas de
Salvador. O conteúdo apresentado em uma dessas missivas registrava a situação da opinião
pública na Bahia. Segundo este relato,
20
cada dia os seus habitantes. Além disso, pesava sobre os habitantes locais
uma elevada carga de tributos, contribuindo de forma significativa para a instabilidade social
(GUIMARÃES, 1821, apud TAVARES, 1973, p. 55).
Diante de tais circunstâncias, considerando a ampla participação social e os possíveis
efeitos da ampliação do espaço público, os comandantes dos corpos de linha decidiram apoiar
a formatação de um governo constitucional para a Capitania. Articuladas as forças de apoio e
decididas as ações a serem tomadas, os grupamentos militares constitucionais se deslocaram
para o Palácio do Governo. Ao tomar conhecimento do início do levante, o conde da Palma
lançou mão de um último artifício: delegou ao marechal Felisberto Caldeira Brant Pontes a
missão de tentar fazer frente a tal investida (SOUSA FILHO, 2003, p. 28).
Como resultado dessa medida, as ruas da cidade do Salvador se tornaram palco de
repetidas escaramuças. Os confrontos envolveram civis e militares. As forças que defendiam a
manutenção do absolutismo monárquico não conseguiram subsistir. Esses enfrentamentos
resultaram em um considerável número de mortos e feridos. Inclusive, existem registros que
apontam para a incidência de prisioneiros (AMARAL, 1957, p. 16).
O marechal Luiz Paulino de Oliveira Pinto da França tentou evitar novos confrontos. Para tanto,
recomendou que fossem ouvidas as pessoas que ocupavam posição de destaque na sociedade.
O Conde da Palma, por sua vez, em caráter de urgência, decidiu convocar tais pessoas. Para o
governador da capitania, diante da crítica conjuntura, era algo bastante oportuno debater e
decidir conjuntamente acerca de possíveis medidas a serem adotadas, visando superar o quadro
de instabilidade (WISIAK, 2001, p. 38).
O Conselho então instalado se mostrou favorável à adoção do sistema constitucional.
Essa decisão fora acompanhada de uma resolução, a qual transcrevemos a seguir:
21
4° ─ Que o Governo Provisional, logo depois de sua
instalação, forme um ato por si, em nome desta Província, de adesão ao Governo de
Portugal e à nova ordem ali estabelecida, o qual será remetido ao mesmo Governo e a
El Rei Nosso Senhor;
5° ─ Que o Governo Provisional mandará logo proceder a nomeação de Deputados da
Província para se reunirem às Cortes de Portugal;
6° ─ Que todos os Atos de Administração Pública continuarão como dantes, em nome
do Sr. rei D. João VI;
7° ─ Que o dia de hoje seja de reconciliação geral entre os habitantes desta Província,
que por qualquer diferença de opinião política estejam discordes até agora (Resolução,
1821, apud RUY, 1949, p. 371).
22
Pelo comércio, Francisco Antonio Filgueiras e José Antonio
Rodrigues Vianna;
Pela agricultura, Paulo José de Mello;
Pela cidade, o desembargador Luiz Manoel de Moura Cabral;
Secretário[s] do governo, o desembargador José Caetano de Paiva e o bacharel José
Lino Coutinho (Vereação, 1821, Apud SILVA, 1936, p. 272).
Decidiu-se enfim a sorte do Brasil; quebrou-se o nexo que unia suas províncias a um
centro comum; e com a dissolução do Brasil se consuma a dissolução da monarquia
[portuguesa] [...]. A Bahia acaba de desligar-se da obediência de Sua Majestade com
o pretexto de aderir ao sistema das Cortes de Lisboa. Provavelmente a estas horas tem
feito [o mesmo outras tantas províncias] [...]. Mas o fato é que, desligados deste centro
e de um sistema existente para se ligar a uma autoridade e governar-se por uma
legislação que ainda não existe [...], é dissolver todo o nexo social; é substituir a um
governo defeituoso sim, mas enfim [um] governo que [...] [se mostrava] protetor dos
direitos civis de cada habitante, [passando então a vivenciar] a mais completa anarquia
(FERREIRA, 1821, p. 40).
23
Imperava o clima de alegria. Em sinal de comemoração, muitos
moradores mantiveram suas residências iluminadas por algumas noites.
A Junta Provisória de Governo adotou importantes medidas. Visando manter a
disciplina dos corpos militares e angariar o apoio necessário que as circunstâncias exigiam, o
Governo Civil da Província buscou não apenas parabenizar os militares pelo feito realizado no
dia 10 de fevereiro, como também se preocupou em pagar aos oficiais e praças os soldos que
lhes eram devidos ─ na mesma oportunidade, os valores também foram reajustados. Apesar de
tal medida se apresentar como um feito de cunho administrativo, a sua efetiva aplicação se
mostrou como um instrumento de suma importância. A segurança da Cidade dependia da mais
exata disciplina dos corpos militares. De outra forma, se tornaria impraticável a manutenção da
ordem e a gerência da coisa pública. Essa perspectiva não estava distante das considerações do
novo governo (Proclamação, 1821, Apud SILVA, 1931, p. 278).
Outra característica marcante desse momento de remodelação no pacto social entre os
Reinos de Brasil e Portugal encontra-se na circulação de uma nova linguagem política. A partir
de então, mostrou-se urgente a necessidade de difusão e discussão desse novo vocabulário. Tal
dinâmica impulsionou a construção de uma significativa produção editorial. Entre os anos de
1821 e 1823, a publicação de folhetos, panfletos e periódicos alcançou um grande impulso. Em
geral, essa produção tentava esclarecer um conjunto de palavras que anunciavam princípios,
definiam direitos e apontavam os deveres dos cidadãos (NEVES, 2003, p. 119).
Ao longo deste estudo, tentamos demonstrar a interlocução entre ciências. Não nos
ativemos necessariamente ao aspecto explícito da teoria, muito embora o objeto de estudo como
um todo estivesse permeado por ela. A lógica desse artigo foi tentar demonstrar na prática as
potencialidades das ferramentas paleográficas no que tange aos estudos históricos. Pegamos um
fato histórico específico – a adesão da província da Bahia ao movimento liberal e constitucional
português – e tentamos demonstrar o quanto o diálogo entre ciências se mostrou positivo. A
proposta deste estudo foi apresentar aos leitores uma análise histórica permeada por um
conjunto de instrumentos de apreciação no campo da paleografia. As fontes primárias utilizadas
neste artigo foram lidas e transcritas, bem como datadas e verificadas quanto a sua origem e
autenticidade, todas elas baseadas nas potencialidades dos usos e práticas das ferramentas
paleográficas.
24
REFERÊNCIAS
Fontes Primárias
CARTA n° 4. Rio de Janeiro: 1821. In: FERREIRA, Silvestre Pinheiro. Ideias Políticas:
Cartas sobre a Revolução do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Documentário ; PUC-RJ, 1976.
FERREIRA, Silvestre Pinheiro. Ideias Políticas: Cartas sobre a Revolução do Brasil. Rio de
Janeiro: Editora Documentário ; PUC-RJ, 1976.
GEINE, Cailhé de. MISSIVA II ─ 33, 22, 74. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Apud
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Bahia, a Corte da América. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 2010.
LISBOA, José da Silva. História dos principais sucessos políticos do Império do Brasil
dedicado ao Senhor D. Pedro I. Parte 10. Rio de Janeiro: Tipografia Imperial e Nacional,
1827.
RESOLUÇÃO adotada pelo Conselho Militar. Bahia: 10 de Fevereiro de 1821. In: RUY,
Afonso. História Política e Administrativa da Cidade do Salvador. Bahia: Tipografia
Beneditina, 1949.
25
Fontes Secundárias
ANDERSON, Benedict. Antigos Impérios, Novas Nações. In: _______. Nação e Consciência
Nacional. São Paulo: Ática, 1989.
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Nova História da Expansão Portuguesa: O Império Luso-
Brasileiro (1750-1822). v. VIII. Lisboa: Editora Estampa, 1986.
26
A PARASSINONÍMIA NO USO DE ABREVIATURAS NO PRONTUÁRIO DO
PACIENTE
INTRODUÇÃO
1
Enfermeira, graduanda do curso de Letras Vernáculas da Universidade Federal da Bahia. E-mail:
carolinaquerino@hotmail.com
2
Professora Doutora, do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia, orientadora do trabalho. E-mail:
normasuelypereira@yahoo.com.br
27
Tonello; Nunes e Panaro (2013), precisa estar legível e de fácil
entendimento, especialmente para o paciente, muitas vezes, um leigo.
Dada a importância dos registros do estado de saúde do paciente no prontuário, alguns
órgãos de classe já se posicionaram, recomendando cautela no uso de abreviaturas nestes
registros, alertando para que se utilize, de preferência, aquelas de uso corrente. Entendido como
parte das atribuições legais de vários profissionais da saúde, o registro das informações deve
ser realizado de forma sistemática e clara. Segundo Carneiro e col. (2016), o uso de abreviaturas
nos registros do prontuário do paciente, pode causar ambiguidades, resultando em potenciais
equívocos na assistência, relacionados às possibilidades de interpretação que um termo
abreviado pode suscitar. Sobre as dificuldades de leitura que as abreviaturas podem acarretar
Pereira e Telles (1982) descrevem a polissemia e a parassinonímia como uma problemática uma
vez que dão margem a diversas interpretações. No contexto da assistência de saúde, tal situação
pode trazer sérias implicações. Em função da importância de que a questão se reveste, a
discussão sobre a parassinonímia em abreviaturas utilizadas na área de saúde foi então
estabelecida como foco deste estudo.
SOBRE ABREVIATURAS
Tratando dos fatores que dificultam a leitura de documentos antigos Sobral (2007)
relaciona fatores internos e externos ao texto como responsáveis por este impasse. Como fatores
externos a autora aponta principalmente a degradação do suporte, que pode ocasionar a perda
de parte das informações ali contidas, já em relação aos fatores internos, cita os ligados a
aspectos gráficos, ao tipo de escrita, a questões ortográficas e ao que define como ato de
abreviar, representação encurtada de palavras, indicadas por sinais e elementos gráficos.
Não há consenso a respeito da origem do uso das abreviaturas. Cury (2007) diz que,
Santo Isidório em sua enciclopédia intitulada Etymologiæ, divulgada na Idade Média, apontava
o poeta Quinto Ênio (239-169 a.C.) como o primeiro compilador de siglas, que teria reunido
mais de mil e cem abreviações de escrita comum latina que chamou de notas vulgares, sendo
esta, segundo o bispo de Sevilha, a primeira iniciativa de criação de um glossário de
abreviaturas. Pereira e Telles (1982) destacam que o gramático Valério Probo (séc. I d.C.) seria
o responsável pelas primeiras compilações de abreviaturas de caráter jurídico, as notae iuris.
Por fim, Sobral (2007) lembra que ao longo da história, a criação da abreviatura foi também
28
atribuída ao filósofo Sêneca e a Tiro, escravo liberto de Cícero, não
existindo, até o que se sabe, um consenso a este respeito.
Fazendo uma retrospectiva acerca das abreviaturas, em seu estudo, Prieto (2001)
assinala que o primeiro tipo abreviativo a surgir foram as litterae singulares ou siglas, em
seguida, as notas tironianas, depois as notae iuris e por fim, os nomina sacra. A autora descreve
cada uma destas possibilidades: as litterae singulares constituem-se em um sistema de
abreviação no qual se reduz a palavra a ponto de se utilizar apenas a sua letra inicial, por isso
também é considerada como sigla, dividida pelo gramático Valério Probo em notae publicae
que eram utilizadas em leis, textos sacros, históricos e jurídicos, e notae familiares utilizadas
no âmbito privado; as notas tironianas que não são consideradas pela autora como abreviaturas,
mas sim como um sistema taquigráfico, sendo composto por dois elementos, um radical e um
signo auxiliar; as notae iuris, que foram amplamente utilizadas em textos jurídicos, com
métodos de abreviação dos mais variados; e, por fim, os nomina sacra, que têm origem nas
formas abreviadas dos nomes das divindades, como por exemplo, Xº, abreviatura para o
vocábulo (Crist)o, a partir da língua grega, Χριστός.
A Marcus Tulius Tiro, escravo liberto de Cícero, filósofo e orador do Império Romano,
foi atribuída a invenção da escrita taquigráfica, também chamada de Notas Tironianas, em
alusão ao seu nome. Através do uso de letras e outros símbolos gráficos, Tiro transcrevia
rapidamente os discursos ao vivo e copiava livros inteiros. Este sistema foi ampliado, chegando
a ser ensinado nas escolas (SPINA, 1994; FLEXOR, 2008).
A proibição do uso de abreviaturas, no final da República romana, diante do seu
emprego excessivo, se deu por intervenção dos imperadores que viram impossibilitada, por
vezes, a leitura dos textos. A reforma pedagógica, ocorrida no reinado carolíngio associado à
implantação da letra cursiva, foram outros marcos que também contribuíram para que se
limitasse os excessos com abreviaturas. (SPINA, 1994)
Em seu estudo, Cardero García (2006) alerta que apesar de ser um método antigo de
economia linguística, nos dias atuais é necessário ter cautela quanto à sua utilização, já que
verificou, por exemplo, a presença de abreviaturas em redações escolares de escolas públicas e
privadas do México. Diante da realidade encontrada nos usos de abreviaturas, Prieto (2001, p.
161) conclui que “[...] en certo sentido y por lo menos em algunos casos, lo que determina el
uso (y hasta el abuso) de algunos sistemas abreviativos es la ‘ley del mínimo esfuerzo [...]’”.
Em consonância com tal reflexão, Higounet (2003, p. 160), entende que a renovação do uso de
abreviaturas “deriva dos hábitos de preguiça mental”.
29
Dentre os estudos já realizados no Brasil acerca da temática, um dos mais
importantes é sem dúvida o glossário que reúne abreviaturas de manuscritos dos séculos XVI a
XIX, desenvolvido pela professora Maria Helena Ochi Flexor, o qual é também utilizado como
referência neste estudo.
Os autores estudados concordam com uma dada classificação para as abreviaturas,
divergindo, por vezes em alguns pontos. Assim, utiliza-se o seguinte critério de classificação:
De acordo com Flexor (2008) e Pereira e Telles (1982) os três tipos abreviativos que seguem,
são aquelas que tomam por base sinais gerais, e estão subdivididas em:
A abreviatura por sigla ocorre quando a primeira letra de uma palavra é utilizada para
representá-la por completo. Para alguns autores, constitui-se em sistema específico e
independente de redução de palavras que tem classificação própria. Para outros, seria um tipo
prévio de abreviatura por suspensão que conservou apenas a primeira letra. A denominação
provém do termo latino lettera singula. As siglas são em geral representadas por letra
maiúscula, e uma das classificações existentes (PEREIRA; TELLES, 1982; FLEXOR, 2008)
as divide em simples, como em TC = T(omografia) C(omputadorizada); Rx = R(aio) x;
reduplicadas, quando no plural ou no superlativo: MMSS = M(embro)s S(uperiore)s ou SS =
S(antíssimo); ou compostas, quando formadas pelas iniciais de várias palavras, por exemplo,
SAMU – S(erviço) de A(tendimento) M(óvel) de U(rgência). De maneira geral, as siglas são
utilizadas para abreviar nome ou prenome, titulação ou qualificação e palavras de uso frequente
(SPINA, 1994; PEREIRA; TELLES, 1982; FLEXOR, 2008).
30
Outro tipo de classificação observa a utilização de sinais especiais, ou
sinais abreviativos, para indicar os elementos que faltam na palavra abreviada, e subdivide-se
em:
● Sinais de significado fixo: são utilizados os sinais (~) til ou ( - ) hífen acima da letra.
Por exemplo: ñ = n(ão).
● Sinais de significado relativo: estão relacionados à letra sobre a qual se encontra ou da
direção que indica, como o ( ˗ ) traço horizontal. Por exemplo: ( - ) sobre a letra q = q(ue).
Verifica-se ainda a existência de abreviaturas alfanuméricas ou numéricas, tipo de
contração que pode mesclar numerais e letras, por exemplo 7bro = (setem)bro; 2º =
(segund)o. (SPINA, 1994; PEREIRA; TELLES, 1982; FLEXOR, 2008)
Diante do exposto, é possível inferir que os diferentes tipos abreviativos se confundem,
podendo ser utilizado de forma combinada, inclusive.
Por isso, Ferreira; Fidelis e Lima (2009) consideram que os registros de saúde, sendo o principal
deles o prontuário, são determinantes no atendimento ao indivíduo, pois auxiliam na
investigação da evolução do processo saúde-doença, indicando melhoria ou não do seu estado
de saúde. Além disso, os autores ressaltam que “uma vez cumpridas as finalidades para as quais
foram produzidos, passam a ser utilizados para fins de estudos e pesquisas médicas, científicas,
sociais e históricas, configurando-se, assim, o seu valor secundário” (FERREIRA; FIDELIS;
LIMA, 2009, p. 349).
Dada a importância deste documento, Ferreira, Fidelis e Lima (2009) frisam que ele deve ser
guardado com zelo e cuidado, seguindo as normas vigentes, pelo tempo mínimo de 20 anos,
31
quando em suporte de papel, contados da data do último registro
(BRASIL, 2002), pois estes dados são relevantes para a instituição hospitalar, para as instâncias
administrativas e jurídica, bem como para o paciente e seus familiares.
Sobre a nomenclatura “Prontuário Médico”, o Conselho Regional de Medicina do Distrito
Federal, em seu Guia Prático (2006), ressalta que apesar de ser amplamente utilizada, a
expressão passa uma ideia de restrição do uso do documento apenas pelo profissional médico
o que não corresponde à verdade, visto que o documento reúne informações a respeito do
cuidado prestado ao paciente por diversos profissionais. Desse modo, outra proposta de
designação como Prontuário Médico do Paciente também é contestada pelos demais conselhos
profissionais, que entendem que sendo o registro sobre o paciente, podendo ser solicitado por
ele a qualquer tempo, mais adequado seria intitulá-lo de Prontuário do Paciente.
As primeiras anotações relacionadas ao estado de saúde do paciente de que se tem notícia foram
realizadas por Hipócrates por volta de 460 a.C., que, com o intuito de estudar as moléstias da
época, já registrava tais informações. Registros mais sistematizados da assistência foram
identificados no Hospital São Bartolomeu em Londres em 1137, tendo sido aprimorado na
Itália, por volta de 1580 por Camilo de Lellis e nos Estados Unidos em 1897. No Brasil, o uso
do prontuário foi inserido no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de São Paulo pela
professora Lourdes de Freitas Carvalho, em 1944 (CONSELHO, 2006).
Tratando do registro e recuperação de informações repletas de termos técnicos e de linguagem
especializada, Galvão e col. (2008) reiteram a importância do cuidado nas anotações realizadas
neste documento, uma vez que consideram que os conteúdos que constam ali devem ser
acessados de forma rápida e precisa, e que o principal responsável por tornar estas informações
confiáveis, são os profissionais que registram as informações relativas ao cuidado no
prontuário, como estabelece a legislação vigente (BRASIL, 2002).
O prontuário agrega um compilado de informações, tais como: informações
administrativas, éticas e legais, como solicitações e autorizações para exames e procedimentos;
informações clínicas e cirúrgicas do paciente; informações sociais do paciente, como dados
socioeconômicos, aspectos relacionados à renda, moradia, escolaridade, dentre outros
(GALVÃO e col., 2008; FRANÇOLIN e col., 2012).
Independente do suporte no qual esteja, o prontuário, obrigatoriamente, deve conter a
identificação do paciente; anamnese, exame físico e exames complementares; evolução diária;
caligrafia legível e assinatura do profissional (BRASIL, 2002). Para Molina e Lunardelli (2010)
e Françolin e col. (2012), o prontuário além de sua importância para a continuidade da
32
assistência e a comunicação entre a equipe multidisciplinar, possui
também valor probatório em caso de questionamentos de qualquer ordem, portanto, precisa ter
escrita clara e legível, e para o paciente se e quando se sentir prejudicado em algum aspecto.
SOBRE O USO DE ABREVIATURAS EM PRONTUÁRIOS
Diversos podem ser os problemas relacionados ao preenchimento do prontuário, como
sinaliza Santos (2009, p. 359): “Letras ilegíveis, dados incompletos, falta do preenchimento,
rasuras, o uso de siglas, regionalismo, estrangeirismo nas prescrições e evoluções de tratamento
[...]” podem trazer problemas tanto para a equipe, já que pode levar a interpretações ambíguas
e equivocadas; quanto para o paciente, que pode sofrer infortúnios decorrentes destas
ambiguidades (SANTOS, 2009).
Os Conselhos Regionais de Medicina do Rio de Janeiro e de São Paulo, através dos
pareceres de n. 175/2006 e n. 61.624/2005 respectivamente, desencorajam a utilização de siglas
e abreviaturas no prontuário, justamente pela ausência de sistematização e rigor com os quais
são utilizadas. O parecer do Conselho de São Paulo destaca ainda a escassez de estudos a este
respeito, bem como da ausência de normas ou de padronização neste contexto. Já o Conselho
do Rio de Janeiro, destaca que tais informações pertencem ao paciente e que, portanto, precisam
estar acessíveis ao mesmo. Dada a importância na clareza dos registros em documentos dessa
área, o Ministério da Saúde recomenda, por exemplo, que impressos como a AIH – Autorização
de Internação Hospitalar, do Sistema Único de Saúde – SUS, sejam preenchidos sem
abreviaturas (BRASIL, 2005).
Em estudo que analisa a linguagem empregada em prontuários, Galvão (2008) sinaliza
que além deste vocabulário apresentar pouca clareza para indivíduos leigos, o uso excessivo de
abreviaturas e siglas dificulta ainda mais a leitura também para os profissionais.
A baixa qualidade dos registros de enfermagem verificada por Silva e col. (2011) está
relacionada ao volume excessivo de trabalho e à falta de capacitação dos profissionais, o que
os autores consideram que se reflete também diretamente na qualidade da assistência. Dentre
os principais fatores que interferem na qualidade destes registros, o uso de abreviaturas aparece
como um dos principais motivos.
Um maior risco com relação ao uso abreviaturas é relacionado por Benetoli e col. (2011)
a quando estas ocorrem em contextos de prescrição, dispensação e administração de
medicamentos, especialmente em se tratando de prescrições manuscritas. Nesse sentido,
Benetoli e col. (2011), assim como Sousa; Sasso e Barra (2012) sugerem o prontuário eletrônico
como uma ferramenta para o aperfeiçoamento dos registros de saúde, que contribui para a
33
segurança do paciente, já que consegue reparar a problemática que
envolve a legibilidade da caligrafia de diversos profissionais, proporcionando maior segurança
tanto para o especialista, quanto para o paciente.
PARASSINONÍMIA E ABREVIATURAS
[...] o sema de relação de sentido entre dois ou mais vocábulos de significação muito
próxima que permite muitas vezes que um seja escolhido pelo outro em alguns
contextos, sem alterar o sentido literal da sentença como um todo. Ocorre quando a
dois ou mais elementos do conjunto significante, correspondem dois ou mais
elementos do conjunto significado (ENCARNAÇÃO, 2008, p. 86-87).
Assim, em sentido amplo, é possível compreender este fenômeno como uma estrutura
que, ainda que seja construída de variadas formas, possui o mesmo significado. Para Laface
(2000), a parassinonímia possui uma dimensão histórica e cultural, uma vez que considera que
é na história que as relações de sentido, associada a questões ideológicas, que o significado da
palavra se constitui. Do ponto de vista da prática discursiva, este fenômeno demonstra a fluidez
e mobilidade de sentidos das unidades linguísticas no âmbito do significado.
Em sentido vasto, Aragão (2009) estabelece relação da noção de parassinonímia com
quase sinônimos, sinônimos parciais e sinônimos em distribuição, para caracterizar termos que
possuem o mesmo sentido. A autora considera que a parassinonímia possui relação estreita com
a sinonímia, o que as diferencia, é uma questão referencial. A sinonímia não possui um
referencial, podendo ser aplicada a qualquer contexto, enquanto que na parassinonímia, o
contexto de uso determina se o significado é equivalente.
Desta forma, considera-se que as diversas formas abreviativas para um termo/palavra,
que no contexto dos prontuários, possuem um mesmo significado, ficam melhor definidas no
que entende por parassinonímia.
34
ASPECTOS METODOLÓGICOS
O presente artigo foi elaborado com dados preliminares. A pesquisa sobre o uso de
abreviaturas está na fase de coleta e análise parcial de dados. O corpus da pesquisa é constituído
por 50 prontuários de pacientes internados em um hospital especializado do Sistema Único de
Saúde de Salvador – BA, no período de 01 a 30 de abril do ano de 2015. Até o momento foram
analisados 29 prontuários, e os termos abreviados foram catalogados em seis planilhas no
Microsoft Excel 2010, por ordem alfabética, separados pelo contexto no qual foram
encontrados, visando identificar se há uma maior prevalência em algum contexto específico.
As categorias utilizadas foram: Médico, Prescrição, Enfermagem, Serviço Social, Nutrição e
Fisioterapia.
Para o presente artigo, foram observadas a existência de padrões abreviativos e a
coincidência de significado para abreviaturas diferentes. Em seguida, a partir dos estudos
identificados acerca do tema, foi analisada a frequência e o contexto em que estas abreviaturas
foram utilizadas e se seria possível inferir contextos de ambiguidade ou de dificuldade no
entendimento de especialistas ou de leigos que possam, eventualmente, necessitar consultar tais
documentos. Foram relacionadas as abreviaturas que se enquadram na classificação de
parassinonímicas, em uma tabela, e posteriormente realizada a discussão à luz de autores como
Flexor (2008), Sobral (2007), Pereira e Telles (1982), Berwanger e Leal (2012), Silva (2011) e
Carneiro e col. (2016).
Abreviaturas
600
500
400
300
200 Abreviaturas
100
Dentro do corpus de análise, foi identificado o que Pereira e Telles (1982) classificam
como abreviaturas parassinonímicas, ou seja, formas diferentes de abreviar um mesmo
termo/palavra, que estão representadas na tabela abaixo:
36
Compr.
CP
Gotas Gots
Gts
Gtas
Extremidades Ext
Extr
Hemitórax Ht
HTx.
Paciente Pac
Pct
Pcte
Pact
PCT
Plaqueta Plaq.
Plq
PQT
Ressonância Magnética RM
RNM
Temperatura T
TA
Tax
Temp.
Tmax
Unidade Internacional Ui
UI
Fonte: elaboração das autoras.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ainda que baseado em dados preliminares, os resultados sinalizam para a ocorrência de
uma utilização excessiva de abreviaturas no prontuário do paciente. Apesar de o preenchimento
claro e conciso do prontuário corresponder a um dever ético e legal dos profissionais da equipe
multiprofissional, todas as categorias analisadas neste estudo, fizeram uso deste método de
economia linguística sem um critério claro, na maior parte das vezes. As categorias que mais
abreviaram termos foram as dos médicos, seguidos da categoria da enfermagem, que abarca
Enfermeiros, Técnicos de Enfermagem e Auxiliares de Enfermagem.
Cumprindo um dos objetivos deste estudo, verificou-se a ocorrência de parassinonímias
em 12 termos técnicos/palavras, ou seja, de formas diferentes para abreviar uma mesma palavra,
contando inclusive, com 5 formas diversas de abreviar as palavras paciente e temperatura,
confirmando a ausência de padrão para abreviar. Para um leigo, como muitas vezes é o paciente,
esta prática pode inviabilizar a leitura do documento e consequentemente, o entendimento sobre
o que está sendo dito a respeito do seu estado de saúde.
38
Não há ainda normas legais de impedimento no uso de
abreviaturas na área de saúde, embora algumas instituições já venham tomando iniciativas para
uma padronização e controle. Contudo, faz-se importante que se tenha conhecimento sobre os
métodos e formas que podem ser utilizadas para abreviar, tornando, assim, a prática mais
segura. Apesar de não haver uma proibição expressa por parte dos órgãos de classe quanto à
sua utilização, é importante destacar a importância da conduta dos profissionais e da
responsabilidade que possuem no preenchimento do prontuário e de outros documentos
técnicos.
O corpus de análise permite explorar outros aspectos relacionados à temática. Pretende-
se realizar novas análises até o final da coleta dos dados, com a finalidade de demonstrar a
importância do conhecimento acerca do sistema de abreviaturas, bem como dos ruídos que o
uso sem critério pode provocar, por fim, pretende-se elaborar um glossário de abreviaturas, para
posterior divulgação para o público interessado, sem a pretensão de esgotar as possibilidades,
mas de apresentar uma proposta de padronização.
REFERÊNCIAS
39
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siglas y símbolos en los vocabulários especializados. una propuesta. Debate Terminológico.
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40
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41
A PONTUAÇÃO EM TEXTOS ESCRITOS POR MÃOS INÁBEIS (1906-2000)
42
Essa é uma dimensão ainda não muito explorada em corpora
históricos, no que se refere a sua relação com as mãos inábeis3. Ressalta-se que, assim como
ocorre com o plano da escrita fonética, a depender da época em que o texto foi escrito, a
pontuação não deve ser considerada da mesma forma; para sincronias anteriores a uma maior
normativização da escrita, por exemplo, deve-se reconhecer a possibilidade de variação, com
tendências determinadas mais pela prosódia ou mais pela sintaxe.
3
A expressão mão inábil, uma tradução portuguesa para scripteurs maladroits, de Claire Blanche-Benveniste, foi
usada por Rita Marquilhas (2000) para designar os autores de alguns dos manuscritos portugueses, do século XVII,
do arquivo da Inquisição, enquanto falantes estacionados em fase incipiente de aquisição da escrita.
43
assim como demonstrar as possíveis relações entre os elementos
identificados e sua regularidade de uso, a partir de uma amostra representativa. O autor
descreve, minuciosamente, as ocorrências de cada sinal presente nos manuscritos,
demonstrando as possíveis correlações com a pontuação moderna e atestando similaridades ou
constâncias entre os manuscritos da mesma sincronia.
Uma das discussões desenvolvidas por Machado Filho (2004) é motivada pelas
hipóteses assumidas em diversos estudos acerca do fenômeno, que percebem a pontuação como
uma propriedade diretamente relacionada à língua escrita, sem relação com a fala, privilegiando
a tendência lógico-gramatical. De forma diferente, o autor propõe que os sinais de pontuação
se situam no limbo das duas modalidades, “[...] ora servindo como elemento funcional às
necessidades de expressão da escrita, ora procurando representar características moduladoras
da expressão oral” (MACHADO FILHO, 2004, p. 40). Nessa mesma direção, a análise
empreendida pelo autor o fez concluir que a pontuação medieval reflete tanto as características
sintáticas da escrita, em um uso lógico-gramatical, quanto os aspectos prosódicos da língua
oral.
Diferente do que ocorre nos textos antigos, em que há essas motivações, sejam baseadas
na prosódia ou nos critérios lógico-gramaticais, no caso dos redatores em fase inicial de
aquisição da escrita, o uso de sinais de pontuação nos manuscritos pode ser reflexo de uma
exposição ocasional às marcas específicas da escrita, e a ausência dos sinais pode indicar um
maior distanciamento aos modelos convencionais da escrita, como será discutido adiante. Fayol
(2014), ao tratar das características linguísticas da escrita, comenta sobre a dificuldade de se
definir as unidades gráficas: “A palavra aparece entre dois brancos. A frase começa com uma
maiúscula e termina com um ponto final”. No entanto, pelo “[...] nosso contato precoce e
prolongado com o impresso, elas [as unidades gráficas] nos parecem ‘naturais’” (FAYOL,
2014, p. 23). Para os redatores que não tiveram esse contato intenso, uma certa falta de
naturalidade pode ser percebida através de um uso não convencional da pontuação, assim como
na dificuldade de segmentação gráfica e na organização do formato gráfico do texto, de modo
geral.
Na perspectiva dos estudos sobre aquisição da escrita, Rocha (1996, 2012) analisou o
uso da pontuação por crianças de séries iniciais, verificando os critérios que parecem motivar o
modo de pontuar, principalmente, os que se relacionam à concepção gráfico-espacial e à
concepção prosódico-discursiva. Para a autora, o domínio da pontuação ocorre paralelamente
44
ao domínio do formato gráfico do texto, assim como da percepção das
pausas e do ritmo da fala.
Kato (2002) observou, em textos infantis, longitudinalmente, as redações produzidas
por uma criança durante as quatro primeiras séries do primeiro grau, objetivando identificar as
estratégias que ela utilizou para obter um texto coerente e coeso. A autora descreve como a
criança usa a pontuação como uma dessas estratégias, para segmentar o texto em unidades
menores, garantindo a coesão e a coerência, a partir da hipótese de que, desde o início, a criança
tem a concepção de que o texto é uma unidade formal e conceptual.
Também em uma perspectiva longitudinal, Cardoso (2002) apresenta um amplo estudo
sobre a pontuação, como parte da pesquisa que tem como um dos objetivos “explicitar alguns
mecanismos de textualização que aparecem em textos narrativos escritos”, a partir da análise
de duas unidades linguísticas: a pontuação e os organizadores textuais (CARDOSO, 2002, p.
110). A hipótese assumida é a de que essas unidades se constituem em indicadores da
organização temática e sequencial dos textos, cuja apreensão traduz formas de planejamento
cada vez mais sofisticadas. O corpus utilizado pela pesquisadora é constituído por 97 textos
narrativos correspondentes aos quatro anos de escolarização das catorze crianças envolvidas na
pesquisa. Cardoso (2002, p. 120) observou que as crianças começam muito cedo a usar os sinais
de pontuação: “De modo tateante, nem sempre formalmente correto, aparece, nos textos
iniciais, sobretudo o ponto final”. Comparando os usos em textos das quatro séries iniciais,
percebeu que, à medida que o processo de escolarização avança, aumentam, nos textos, os tipos
e a quantidade de marcas de pontuação.
Com o intuito de discutir a representação feita pelas crianças da relação entre fala e
escrita, Abaurre (2002) afirma que os aspectos convencionais da escrita são, desde cedo,
incorporados, o que pode ser explicado pelo forte apelo social das atividades de escrita e leitura:
“[...] se é verdade que, em alguns momentos, por trás das hipóteses de escrita está a fala, [...] é
também verdade que ela [a criança] já incorpora em muitos outros momentos as marcas
específicas dessa escrita que está sendo chamada a contemplar” (ABAURRE, 2002, p. 137).
A presença da pontuação nos textos de redatores adultos, estacionados em fase inicial de
aquisição, pode, como nos textos infantis, ser motivada por hipóteses construídas pelo próprio
contato, ainda que incipiente, com as marcas da escrita.
45
A PONTUAÇÃO NAS CARTAS DOS SERTANEJOS
4
Foram desconsiderados os casos de uso da vírgula na escrita de números (“outra por| 200,00 cruzeiro uma sendo
Nova| e outra já uzada” (JOM-30); “Vai 10,000 cruzeiro| da otra que Veio|” (ZSS-53)) e dos poucos casos de uso
do ponto para abreviar palavras (“amigor p. Compadi” (AFS-4); “Jacob de O. Matos” (SFS-30)).
5
A identificação dos exemplos será feita, ao longo do texto, com a indicação da sigla do remetente, seguida do
número da carta em que a ocorrência está localizada, conforme numeração usada na edição semidiplomática
apresentada em Santiago (2012).
6
Cardoso (2002, p. 128) verificou, na escrita infantil, um número significativo de textos, “[...] sobretudo, mas não
exclusivamente, nos meses iniciais da 1ª série, que aparecem sem nenhuma marca de pontuação”. Segundo a
autora, ainda na 1ª série, a grande maioria dos textos apresenta, pelo menos, um sinal de pontuação.
46
Figura ˗ Fac-símile de carta sem sinais de pontuação (ACO-44)
47
Figura ˗ Fac-símile de carta sem sinais de pontuação (MC-37)
Dentre os redatores que não usaram sinais de pontuação estão aqueles que apresentam
uma quantidade significativa de dados correspondentes às dimensões da escriptualidade e da
escrita fonética, como os redatores dos manuscritos ilustrados nas Figuras 01 e 02. Alguns de
seus textos ainda evidenciam esse pouco domínio do formato gráfico do texto, como a carta de
Mariazinha Carneiro (MCO), assim como observou Rocha (1996), para os dados da escrita
infantil. No entanto, apenas a ausência de pontuação não é suficiente para caracterização de um
grau maior de inabilidade. Algumas das cartas que não apresentam sinais foram escritas por
redatores que não estão entre aqueles que podem ser considerados como mais inábeis (como
ZBO-52, ZSS-53 e BMO-91), já que não apresentam uma quantidade significativa de dados nas
48
dimensões da escriptualidade e da escrita fonética. A seguir, a
distribuição dos redatores em relação ao uso dos sinais7.
O pouco uso da pontuação é percebido nos textos em que há apenas um sinal (em 8
cartas isso ocorre) ou dois (10 cartas). A distribuição do uso de sinais no corpus pode ser melhor
observada no gráfico a seguir:
7
No Quadro 01, não foram considerados os casos de redatores que usaram a divisão de parágrafos para pontuar.
49
Gráfico: Distribuição dos sinais por quantidade de cartas
51
não seja o início do período ou do parágrafo, como faz Gildásio Oliveira
Rios (GOR), em texto ilustrado na Figura 05:
Em relação ao ponto, além desse uso não convencional, em fim de linha, ocorre o uso
entre duas palavras, em sequências que não correspondem a unidades sintáticas, apenas
preenchendo o espaço em branco:
(01) eu farso esta Duas| linha solmenti . lida| A miha notis ca (AFS-9)
(02) Dinheiro par. u | sinhor min.| compar 20 casco| di milho par. mim| (AFS-14)
52
(03) Venho por meio desta atrevidas.| Linhas. pedir-lhi á mão de vossa.| Filha Maria Inez: á cazamento.|
para o laço do mat[.]imonio. so ella (APC-83)
Rocha (1996, p. 4), ao verificar que muitas crianças preferem inserir pontos entre
palavras que deixar espaços, comenta que “[...] deixar espaços é um procedimento altamente
abstrato para a criança manejar”. O ponto no lugar do branco pode ser uma tentativa, no caso
do redator dos exemplos (01) e (02), para lidar com a segmentação gráfica, já que também
manifesta muitos dados de irregularidade envolvendo a dimensão da segmentação gráfica, com
casos de hipersegmentação e hipossegmentação.
O uso de vírgulas está concentrado em poucas mãos: Ana Helena (9 ocorrências nas 8
cartas); Antônio Fortunato (uma ocorrência nas 26 cartas); Raimundo Adilson (7 ocorrências
em 2 cartas); Antônio Marcellino (3 ocorrências em uma carta); Antônio Pinheiro (1 ocorrência
em uma carta), Izaque (2 ocorrências em uma carta), Izaura (1 ocorrência em uma carta),
Margarida (1 ocorrência em uma carta), Maria Lúcia (5 ocorrências em uma carta). Desses usos,
em 10 casos a vírgula foi usada no lugar do hífen, nas datas, como em: “03, 02, 83| Querida
Dalva|” (RAC-85); “Fazenda Cabana 6,6,77 Ichù Bahía|” (AHC-57). Nos mesmos textos em
que a vírgula foi usada adequadamente, há sua ausência em espaços em que seria necessária,
de acordo com a convenção; como no exemplo (04), extraído na carta de Maria Lúcia, que usa
a vírgula para separar termos coordenados, porém, na mesma sequência, deixa de usá-la, e, em
seguida, coloca um ponto no lugar da vírgula.
(04) lembrança minha, José, Valdo,| Vânia Cérgio Nem Vam-Vam| Comadre Maria, Compadre David.
Zome Nem (ML-77)
(05) [...] Querido fiquem bastante alege| recebe a Sua carta consigo| asim ti amando Querido Ti amo|
amor?| Nada mais da Sua| Querida Tá o que|
Ana Helena Cordeiro de Santana|
páz é amor?!| (AHC-54)
53
As sentenças interrogativas, presentes nas cartas, de modo geral,
só podem ser assim identificadas pelo contexto, pois não há o uso do sinal de interrogação,
como em (06) e (07):
(06) [...] irman nanu como vai de caudi eu| vor indo como formi deus e civido| (MC-50)
(07) [...] prezada amiga elena boã tarde| como passou daqueli dia para| car passou bem olhe elena eu
pasei| muito bem (BMO-91)
Há dez pontos de exclamações concentrados em três cartas. Em uma dessas, escrita por
Antônio Pinheiro (APC), o uso de três exclamações coincide com um uso exagerado de outros
sinais, em um texto de pequena extensão (são 17 sinais na carta 83):
(08) [...] so ella É que poude conçagrá o meu amôr!| Para reconheçer á verdade: que eu dela-| já estou
certo. espero em Deus á| Nossa feliçidade juntamente á| Vossa familha!... e sempre as| Ordens [...] (APC-
83)
Os dois pontos são registrados seis vezes, em quatro textos. Mais uma vez, o uso
exagerado é na carta de Antônio Pinheiro (APC), que apresenta três sinais de dois pontos. Os
demais casos também não se aproximam de um uso mais convencional: nos exemplos (09) e
(10), a motivação parece ser prosódica, e no (11) pode estar indicando ênfase à expressão
seguinte.
(09) u sinhor dar| Lembrança a Pedro e a Françisca e a Augusto| mais tatá: Lembrança a meus tio todos|
aseite u meu a deuzinho de longe (JCO-31)
(10) que a vijem santiszima derramais la du| alto seu as maiores felicidades sobre a ti i todos| que ti
sercam: então meu queridinho como passas bem| (SFS-40)
(11) Comadi fasso| tenção de i lá breve se: Deus quizer sim| comadi Merie comadi Zulmira t teve criança|
(NIN-51)
Das 12 reticências, 9 são identificadas em apenas uma das cartas de Salomão Fortunato
(ele escreveu três cartas) – algumas registradas com apenas dois pontos em lugar de três. Mais
54
uma vez, um uso exagerado, que pode ser reflexo de uma certa
“representação deslumbrada”8 da escrita9:
(12) O finalizo abrasando todos du Amiguinho | sincerio... sim Pitanga eu estava fazendo tenção| di ir la
nu meis di Outubro mais eu não poso que| estou fazendos rosa... qui eu ainda não comprei| trera ... eu
faso tensão di ir la nu meis di janeiro [...] para esmerinda dar a ela i 1 apreto| di mão.. lembranca a Anna
i angelica manda| lembranca para esmerinda i todos.. i Filomena emvia| lembrança (SFS-40)
Sinais
Remetentes Nº de cartas
. ; , ? ! : ... escritas
Ana Helena 45 12 2 2 8
Ana Santana 2 1
Angélica 1 1 1
Antonia 1 1
Ant. Fortunato 28 1 26
Ant. Marcellino 2 3 1
Ant. Pinheiro 9 1 3 3 1 1
Dete 4 1
Doralice 3 1
Filomena 2 4 1 1
Izaque 4 2 1 1
Izaura 1 1 1
Jesuino 1 1
João dos Santos 1 1
João Pitanga 1 1
Lázaro 1 1
Luciana 2 1
Margarida 4 2 1 1
Maria Dalva 12 1
Maria Lúcia 6 5 1
8
A expressão “representação deslumbrada” é usada a partir da afirmação de Marquilhas (2000, p. 237) de que
“[...] ao produto do inábil preside uma representação ‘deslumbrada’ da língua escrita, altamente sensível às suas
marcas de prestígio”. Então, esse “deslumbramento” com a escrita alfabética faz com que os inábeis busquem
algumas soluções gráficas distantes das regularidades, em atitudes de hipercorreção.
9
Analisando a presença das reticências na escrita infantil, identificadas em uma etapa mais avançada do processo
de escolarização, Cardoso (2002, p. 145) comenta que esse é um traço de um planejamento textual “mais
sofisticado”. Com o uso das reticências, o enunciador “[...] sugere interrupção da fala, continuidade, surpresa,
dúvida”.
55
(continuação)
Nina 1 1 2
Raim. Adilson 11 7 2
Roma 4 1
Salomão 1 9 3
Vandinho 1 1
Zita 7 2
Total 152 2 33 4 9 6 12 -
Fonte: elaboração das autoras.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
A análise da dimensão da pontuação, nas cartas dos sertanejos, permite constatar que,
na escrita inábil do século XX, predomina a ausência ou o pouco uso da pontuação, de modo
que:
a) os redatores mais inábeis não usam sinais de pontuação em seus textos: nas cartas
em que há muitos dados correspondentes às dimensões da escriptualidade e da escrita
fonética, também consta o zero de uso de sinais;
b) a pontuação não é uma dimensão determinante para caracterizar a escrita inábil,
considerando que em textos de redatores com um nível de inabilidade menor, também
se verifica a ausência de sinais;
c) a ausência da pontuação, ainda que não seja uma característica determinante, é uma
marca identificada na escrita inábil de outras épocas, como em textos produzidos por
africanos no século XIX;
d) alguns redatores exploram os sinais de pontuação tentando se aproximar de uma
convencionalidade, mas como não dispõem de conhecimento suficiente sobre o
conjunto dos recursos que organizam a escrita, incorrem em um uso não convencional
desses sinais. Esse uso pode ser, portanto, reflexo da exposição ocasional às marcas da
escrita, da construção de hipóteses motivadas por essa exposição;
e) assim como na escrita infantil, alguns redatores baseiam-se no critério gráfico-
visual: marcam mais os limites externos ao texto, ao parágrafo, em relação ao
detalhamento interno, como frases e partes de frases. Em muitas cartas, a ausência de
56
sinais coincide com a falta de organização gráfica do texto e com
a segmentação irregular.
REFERÊNCIAS
FAYOL, Michel. Aquisição da escrita. Tradução de Marcos Bagno. São Paulo: Parábola
Editorial, 2014.
KATO, Mary Aizawa. A busca da coesão e da coerência na escrita infantil. In: KATO, Mary
Aizawa (Org.). A concepção da escrita pela criança. 3. ed. Campinas, SP: Pontes, 2002. p.
193-206.
MARQUILHAS, Rita. A faculdade das letras: leitura e escrita em Portugal no séc. XVII.
Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2000.
ROCHA, Iúta Lerche Vieira. Pontuação e formato gráfico do texto: aquisições paralelas.
D.E.L.T.A., v. 12, n. 1, p. 1-34, 1996.
ROCHA, Iúta Lerche Vieira. Aquisição da escrita: o que as crianças sabem sobre a pontuação
que usam. Revista de Letras, v. 1/2, n. 31, p. 17-24, jan./dez., 2012.
57
SANTIAGO. Huda da Silva. Um estudo do português popular
brasileiro em cartas pessoais de “mãos cândidas” do sertão baiano. 2v. Feira de Santana,
2012. Dissertação (Mestrado em Estudos Linguísticos) – Programa de Pós-graduação em
Estudos Linguísticos, Universidade Estadual de Feira de Santana, 2012.
58
A TRANSCRIÇÃO PALEOGRÁFICA COMO INSTRUMENTO DE RECUPERAÇÃO
DA MEMÓRIA HOSPITALAR DA SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DA
PARAÍBA (1860-1892)
Gerlane Farias Farias
Josemar Melo
10
Até o início do século XX, a região que hoje corresponde ao Estado da Paraíba com a capital João Pessoa era
chamada de Província da Parahyba do Norte om sua capital Parahyba. Por isso quando nos referimos ao termo
“Parahyba” estamos situando o trabalho na segunda metade do século XIX.
11
De acordo com os relatórios dos provedores da Santa Casa da Parahyba, na segunda metade do século XIX, as
mordomias se dividiam, com pequenas variações de provedorias em: hospital; expostos ou órfãos; cemitério;
presos; pensionistas ou esmolados; patrimônio; dívidas ativas e passivas e receita e despesas.
12
Membro da elite da província que assumia o cargo de comando da Santa Casa de Misericórdia. Não recebia
salário em troca de seu serviço mais conseguia bastante prestigio perante a sociedade da época. Esta era o único
cargo que não poderia ser ocupado por alguém de sangue mestiço, indígena ou semita, ou que possuísse filhos ou
cônjuge nesta situação.
59
destinado para os militares que tinham sua permanecia na instituição
pagas por parte do soldo que recebiam.
Além dos atendimentos diários prestados à população, a instituição era responsável pelo
recolhimento e manutenção de pessoas com distúrbios mentais, os chamados “alienados”13.
Estes chegavam ao Hospital de Caridade, normalmente, pelas mãos de funcionários da
Delegacia de Polícia da Parahyba, vindos de diversas regiões da Província por conta de
desordens causadas por eles em sua cidade de origem. Alguns também eram abandonados pela
cidade (sendo recolhidos pelas autoridades) ou deixados na Santa Casa por sua família que não
possuía meios de mantê-los, ou não desejavam mais sua presença entre eles.
Até o início do século XX, a Santa Casa, a exemplo do que ocorria em outras províncias
do país, não dispunham de um local próprio para o acolhimento e tratamento desse tipo de
paciente. Por conta disso, os alienados acabavam sendo “acolhidos” em um espaço reservado
para eles dentro do próprio Hospital mantendo-os encarcerados e longe das vistas da sociedade.
Apenas em 1892, a instituição recebia do governador da Província, Álvaro Lopes Machado, o
domínio útil de um terreno existente no Bairro da Cruz do Peixe 14, local afastado do centro da
cidade que crescia, com a finalidade de ser utilizado para abrigar esse tipo de paciente.
Neste terreno, já existia um prédio que, em tempos anteriores, abrigava o antigo Colégio
dos Artífices para meninos pobres da província, e que já era utilizado pela Santa Casa para
isolar pacientes com doenças contagiosas (como a varíola). A este espaço, aproveitado pela
instituição para abrigar os alienados a partir de 1892, foi dado o nome de Asylo Santa’Ana,
funcionando de forma precária e anti-higiênica neste local até o ano de 1928 quando foi
transferido para o atual endereço onde funciona o Hospital Psiquiátrico Juliano Moreira (até
hoje em funcionamento) atendendo aos diversos apelos dos provedores da instituição e da
população em geral que clamavam por um local apropriado para recolher estes pacientes
destituídos de razão.
13
O termo alienado diz respeito aos portadores de doenças mentais que eram recolhidos nas prisões e mais, tarde,
às Santas Casas de Misericórdia e aos Asilos fundados em algumas províncias do país. Nos documentos da Santa
Casa da Parahyba, estes doentes também são chamados de mentecaptos, loucos, transtornados e possessos.
14
O bairro da Cruz do Peixe é uma área de João Pessoa onde atualmente fica localizado o hospital Santa Isabel,
construído em 1914. O nome Cruz do Peixe surgiu por ocasião de naquela localidade funcionar o ponto de encontro
dos “pombeiros” (atravessadores) que ficavam em Tambaú onde hoje é a feira do peixe. Estes vendedores desciam
as ruas com a mercadoria pendurados nos “calãos” (hastes de madeira) onde prendiam dois balaios para oferecer
à burguesia e a aristocracia das ruas Nova (atual General Osório), Direita (atual Duque de Caxias) e da Areia, que
na época se chamava Barão da Passagem. (COÊLHO FILHO, 1977: 158).
60
A história das atividades realizadas pelo Hospital de Caridade e do
Asylo Sant’Ana, durante a segunda metade do século XIX, se encontra impressa nas páginas
dos relatórios de provedoria escritos a cada ano durante a gestão dos provedores da Santa Casa.
Através destes relatos, podemos conhecer o trabalho realizado pela ordem em prol dos pacientes
portadores de variadas moléstias que adentravam o hospital, como também do controle dos
pacientes acometidos pela loucura, realizado inicialmente pelo Hospital de Caridade e, com o
tempo, transferindo-se para o Asylo Sant’Ana que continuou sobre a tutela da instituição.
Estes relatórios pertencem ao acervo documental do Arquivo da Santa Casa de Misericórdia da
Paraíba e em sua maioria se encontram manuscritos. São testemunhas de um tempo passado,
que pode ser revisitado e ter suas janelas abertas ao conhecimento da dinâmica cotidiana dos
personagens que fizeram parte da história da assistência hospitalar da Parahyba durante o século
XIX e início do XX.
Infelizmente este acervo encontra-se ameaçado. Os documentos manuscritos sofrem
com a umidade do local e o ataque de insetos e fungos. Além disso, a deterioração natural do
papel e a oxidação das tintas causam a fragmentação dos suportes tomando-os ilegíveis e
causando a perda das informações que eles contêm.
' O Projeto Arquivo da Santa Casa de Misericórdia: organização e preservação
coordenado por professores da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) com o auxilio de
alunos de diferentes períodos do curso de Arquivologia da instituição e implantado no arquivo
da Santa Casa desde 2014, surge como uma possibilidade de recuperar as informações
hospitalares existentes nesses manuscritos através do trabalho de transcrição paleográfica
desses documentos.
Diante disso, a finalidade deste trabalho é mostrar a importância da utilização do método
de transcrição paleográfica na recuperação dos relatos desses provedores, atividade esta,
desenvolvida pelo Projeto. Com isso pretendo compartilhar a experiência do trabalho realizado
com os manuscritos e as dificuldades encontradas durante as atividades.
Uma parte deste trabalho foi apresentado como resumo expandido no XXI Encontro
Nacional de Estudantes de Arquivologia (ENEARQ) realizado na Universidade Estadual da
Paraíba (UEPB) entre os dias 11 e 15 de julho de 2017, recebendo o prémio de melhor trabalho
do eixo 3, Patrimônio, memória e informação, e o prémio de melhor trabalho apresentado no
evento. O relato das atividades realizadas pelo Projeto Arquivo da Santa Casa de Misericórdia:
organização e preservação também foi mencionado em artigo apresentado no VIII Seminário
61
de Saberes Arquivísticos (SESA) realizado no Campus I da Universidade
Federal da Paraíba (UFPB) entre os dias 15 e 18 de Agosto de 2017.
METODOLOGIA
Qualquer trabalho científico inicia-se com uma pesquisa bibliográfica, que permite ao
pesquisador conhecer o que já se estudou sobre o assunto (FONSECA, 2002, p. 32). Desse
modo, busquei realizar um levantamento bibliográfico acerca de trabalhos existentes que
contemplam em seu texto, análises sobre a utilização das técnicas de Paleografia em acervos de
documentos manuscritos.
Através dos documentos manuscritos, oriundos do fundo documental de um arquivo
permanente, neste caso, o acervo da Santa Casa de Misericórdia da Paraíba, foi realizada uma
coleta de dados essencial para o desenvolvimento de uma análise sobre a importância da
utilização das técnicas de Paleografia na recuperação das informações existentes nos suportes
manuscritos.
Numa perspectiva mais específica, Neves (1996, p. 3) ressalta que a pesquisa
documental
62
realizada pelo Projeto Arquivo da Santa Casa de Misericórdia:
organização e preservação, busco realizar uma explanação sobre a importância da utilização
do método de transcrição paleográfica na recuperação de informações que se encontram
ameaçadas de desaparecimento por conta da deterioração de seus suportes, usando como
exemplo o trabalho de organização que está sendo colocado em prática no Arquivo da Santa
Casa de Misericórdia da Paraíba.
ASPECTOS DA METODOLOGIA
Segundo Nora (1993) os grupos sociais trazem uma mudança profunda na relação
tradicional com o passado. O autor afirma que uma das questões significativas da cultura
contemporânea se situa justamente na intersecção entre o “respeito ao passado (seja ele real ou
imaginário) e o sentimento de pertencimento a um dado grupo; entre a consciência coletiva e a
preocupação com a individualidade; entre a memória e a identidade” (NORA,1993, p.09).
Desse modo, as relações de identidade de um indivíduo perpassam o seu contexto
histórico e, pode ser apresentado através das suas ações. Sendo assim, os arquivos constituem
espaços de memória, ao mesmo tempo em que sua organização se dá em função da
representação de um indivíduo. Considera-se que o arquivo possui uma função social no espaço
63
que ocupa, constituindo-se em fonte inesgotável para pesquisas, sejam
elas acadêmicas e científicas ou não. Pelas referências que ele mantém, é atribuído à noção de
guarda cultural, que está diretamente ligada a uma busca pela comprovação identitária, que é
construída pela manutenção da tradição no passado.
Nesse sentido, os documentos têm a capacidade de revelar uma representação do
passado de forma a nos proporcionar uma base imagética para o conhecimento do ocorrido. Ao
contrário, seriamos incapazes de progredir sem as instruções do passado. “Não é possível
preservar a memória de um povo sem, ao mesmo tempo, preservar os espaços por ele utilizados
e as manifestações quotidianas de seu viver”. (TOMAZ, 2010, p. 4).
Sendo assim, o arquivo não deve ser visto como um local inerte, onde a memória se
encontra estagnada pelo tempo, um depósito de papeis antigos que não possuem nenhuma
relação com os usuários que visitam seu ambiente. Antes de tudo, o arquivo deve ser observado
como um espaço dinâmico, possuidor de importantes informações capazes de revelar relações
de poder e de convivência entre atores sociais, assim como as ações tomadas por estes que
influenciaram na construção de hábitos, costumes, tradições e regras das sociedades atuais ou
de tempos passados.
O arquivo da Santa Casa de Misericórdia da Paraíba atualmente está localizado no
primeiro andar da Igreja da Misericórdia, no centro de João Pessoa, e é composto basicamente
por documentos pertencentes ao século XIX e XX. A documentação anterior ao século XIX
não existe mais. Apesar de Wilson Seixas (1987)15 afirmar que a fundação da Santa Casa de
Misericórdia da Paraíba remonta o século XVI, os documentos gerados por sua administração
no cotidiano de suas atividades, foram se perdendo com o passar dos séculos por conta da
destruição causada pela invasão holandesa durante o século XVII e pela ausência de métodos
de preservação, levando esta documentação a sofrer o ataque de insetos ou a se fragmentar com
a ação do tempo. Junta-se a isso, a ação de certos “profissionais” que por conta de suas
pesquisas, também contribuíram com a diminuição do número de documentos desse arquivo ao
subtrair de forma ilícita documentos importantes para a memória da instituição.
15
Embora não existam documentos que permitam precisar a data de construção desta Igreja, o historiador Wilson
Nóbrega Seixas chama atenção para algumas fontes documentais que sugerem a existência da Igreja ainda no
século XVI, em especial, a ata da Primeira Visitação do Santo Ofício à Paraíba, de 1595 (registrada e transcrita
por Eduardo Prado em 1925) que situa a “igreja da mizericordia” na rota da procissão solene que abriria os
trabalhos inquisitoriais.
64
O conjunto documental existente neste Arquivo, classifica-se
como um acervo permanente, ou seja, aquele que já cumpriu suas atividades administrativas,
mas por causa de seu valor de prova, foi recolhido pela instituição e transformou-se, com o
passar dos anos, em um importante instrumento de pesquisa para se conhecer a história da
Paraíba.
Este acervo compreende os documentos originados a partir das atividades realizadas
pela instituição durante o atendimento aos moradores da Paraíba desde sua fundação até o
século XX. Dentre os documentos existentes no arquivo, podemos citar os relatórios de
provedoria (com a descrição das atividades desenvolvidas durante a gestão destes
administradores), ofícios recebidos de diversos órgãos que possuíam ligação com a Santa Casa
(como a Delegacia de Polícia da Parahyba), livro de nomes (com a identificação dos irmãos da
ordem e dos funcionários que passaram pela instituição), livro dos mortos (com a identificação
dos indivíduos que faleceram no Hospital de Caridade), livro de bens móveis e imóveis (com a
descrição dos bens pertencentes à Santa Casa, atas de reunião (registro das reuniões realizadas
entre os irmãos e o Provedor da instituição), etc.
O Projeto Arquivo da Santa Casa: organização e preservação, teve início em meados
de 2014, como forma de tentar preservar as informações ainda existentes no Arquivo da Santa
Casa. Vale lembrar que a situação do arquivo dessa instituição na Paraíba, se comparada com
a de outras Santas Casas espalhadas pelo Brasil, ainda pode ser considerada satisfatória. Digo
isso por que em contato com pesquisadores de outros Estados, a situação relatada dos arquivos
das Santas Casas de suas regiões não é das melhores. Muitos documentos já foram perdidos nas
diversas mudanças de lugares desses acervos. Isso, quando a documentação não era destruída
de forma proposital, e pasmem, com a anuência dos próprios dirigentes dessas instituições, com
o intuito de abrir espaço no local onde antes o caos arquivístico perdurava com montanhas e
montanhas de documentos acumulados em salas úmidas e cheias de insetos. Em uma conversa
com uma pesquisadora/professora de uma das universidades de Teresina, no Piauí, que estuda
a situação dos doentes mentais tratados pelo antigo hospital da Santa Casa de sua região, pude
constatar esse fato: ao procurar documentos no Arquivo Público da sua cidade sobre a Santa
Casa, pois a mesma já fazia anos que não guardava essa documentação, ela teve a infeliz
surpresa de, depois de dias requerendo os documentos, ter sido chamada ao arquivo pelos
funcionários e recebido em suas mãos uma caixa, que segundo a atendente do arquivo, era toda
a documentação hospitalar que restava da instituição.
65
O acervo documental existente na Santa Casa de Misericórdia da
Paraíba, ao contrário desse caso, pois possui uma grande quantidade de tipologias documentais
do século XIX e XX, muitas delas ainda não pesquisadas por historiadores locais e nacionais.
Desse modo, ainda existe uma gama muito grande de informações importantes, principalmente
sobre as atividades hospitalares que a Santa Casa de Misericórdia da Paraíba exercia para com
os moradores da província/Estado da Paraíba que ainda não é conhecida.
As primeiras atividades realizadas pelo Projeto Arquivo da Santa Casa de Misericórdia:
organização e preservação, se concentraram no conhecimento do arquivo, por isso foram
implementadas ações de classificação da documentação para se ter uma ideia básica da tipologia
documental com a qual os estudantes e professores estavam lidando. Para isso, foram utilizadas
fichas de identificação para classificar os documentos. Nessa tarefa, os alunos voluntários foram
divididos em grupos de acordo com sessões. Assim, existia um grupo que se concentrava na
classificação dos relatórios de provedoria, outro que cuidava das atas administrativas, outro
responsável pelos ofícios, outro pelos livros contábeis de receitas e despesa ou bens da
instituição e assim por diante.
Como o processo de organização de um arquivo deve levar em consideração o seu
contexto de produção, sobretudo daqueles provenientes de instituições extintas ou, como a
Santa Casa de Misericórdia da Paraíba, com uma história tão longa, buscamos, durante o
decorrer do projeto, estudar a instituição e as modificações administrativas ocorridas no
decorrer do tempo, pois entendemos ser de fundamental importância essa ação para identificar
a produção documental.
Inerente ao trabalho arquivístico, também foi mantido em atuação um grupo de pesquisa
e investigação histórica, responsável pelo levantamento e estudo das referências bibliográficas
mais pertinentes, tanto da historiografia quanto da arquivística, específicas ao tema das Santas
Casas. Dada a escassez de trabalhos sobre a instituição paraibana, a própria documentação
presente no arquivo (em especial, relatórios e compromissos) serviria nesse caso, de base para
a conformação de sua história administrativa. Portanto, ao mesmo tempo em que seria aplicado
o tratamento arquivístico no conjunto documental, os estagiários e voluntários estariam
estruturando a história administrativa da Santa Casa de Misericórdia da Paraíba com o objetivo
de auxiliar a organização do acervo, esperando ainda contribuir com a historiografia que aborda
esse tema.
Nesse primeiro momento, pudemos observar as primeiras dificuldades do trabalho. Por
se tratar de uma atividade voluntária de alunos de um curso em andamento, raramente existia a
66
assiduidade de todos. Muitas vezes, o arquivo passava dias sem a presença
constante da quantidade necessária dos alunos, pois os mesmos estavam ocupados com os
estudos, trabalhos e provas de final de período. Do mesmo modo, os professores também tinham
de dar conta de suas atividades na universidade e se desdobrarem para poder estar presentes na
orientação das atividades no arquivo. Vale lembrar também que, sem um devido patrocínio
financeiro das autoridades governamentais, o material utilizado para realizar as atividades mais
básicas no arquivo, na grande maioria das vezes, saía do bolso dos alunos e, principalmente,
dos professores coordenadores.
Em 2016, mesmo com o andamento lento do Projeto, este ganhou um novo fôlego.
Principalmente devido à perseverança dos professores que tinham como meta poder promover
a organização do arquivo e a futura disponibilização das informações existentes em seus
documentos em um site de pesquisa. Um dos professores se tornou oficialmente o responsável
pelo Arquivo e este ganhou ares de Projeto de Extensão da Universidade Estadual da Paraíba
(UEPB). Novos estudantes foram incorporados ao Projeto. Estes se organizaram para arrecadar
capital para a compra de materiais básicos como mascaras luvas, álcool em gel, lápis grafite e
folhas de ofício. Para isso, realizaram uma feira de livros durante eventos de Arquivologia
ocorridos no turno da manhã e da noite na UEPB. Além disso, alguns alunos de Arquivologia
e História da instituição privilegiaram temas ligados ao Arquivo da Santa Casa da Paraíba em
seus trabalhos finais de graduação e mestrado contribuindo assim para uma maior visibilidade
do acervo.
Durante algumas disciplinas ministradas pelos professores coordenadores do Projeto,
foram realizadas visitas guiadas com as novas turmas de Arquivologia da UEPB no interior da
Igreja e do arquivo da Santa Casa, despertando assim o interesse de novos colaboradores para
a organização e difusão do acervo. Isso mostra outra parte importante do trabalho de
preservação de um arquivo: a divulgação do acervo, criando assim, a conscientização da
importância de sua existência para as futuras gerações através de ações que dessem uma maior
visibilidade ao mesmo. Ou seja, quanto mais o acervo de determinada instituição é conhecido
pela sociedade, mais ele é incorporado na memória coletiva, no dia-a-dia dos moradores de sua
localidade, se familiarizando com os indivíduos de quem guarda a história e encontrando nestes,
quem defenda sua preservação. Ao contrário, ele se torna dispensável, pois os mesmos
indivíduos têm a falsa consciência de que não necessitam das informações que ele guarda e que
o mesmo não tem importância prática para sua vida cotidiana.
67
Observamos desse modo, a importância da recuperação das
informações existentes no Arquivo da Santa Casa de Misericórdia da Paraíba, pois a
documentação disponível no referido arquivo favorece a compreensão das relações entre
inúmeras variáveis sociais locais (cultura, religiosidade, política e economia). E estas não
devem jamais ser diminuídas em sua riqueza elucidativa por se tratar de “papelada”
administrativa já que podem expressar, para além das vontades dos escrivães, os elementos de
uma sensibilidade coletiva, afinal,
[...] a história não se faz com documentos para serem históricos [...] se faz com uma
infinidade de papéis cotidianos, inclusive com o dia-a-dia administrativo, além de
fontes não governamentais. As informações rastreadas viabilizarão aos historiadores
visões gerais ou parciais da sociedade. (BELLOTTO, 2006, p. 27)
De acordo com Silva e Oliveira (2014), a memória possui uma relação de diálogo e
sociabilidade com o passado; no entanto, ela é transposta em uma representatividade
informacional, de forma a garantir o acesso e uso pelo usuário.
Com a utilização da escrita, o homem passa a delegar a um documento a validade de
suas ações, transcrevendo para estes seus atos, suas vontades e seus desejos, construindo assim
uma forma de comunicação compreendida por todos que a ele tiverem a acesso. Sendo assim,
o conteúdo informacional de uma instituição, construído ao longo de suas atividades
administrativas, ganha forma ao ser inserido em suportes que mais tarde, passarão a comprovar
a validade dos atos engendrados por seus administradores e colaboradores. Desse modo, atas
de reuniões, ofícios, livros contábeis, relatório de atividades, entre outros, passam a formar o
registro substancial de sua memória como elemento pertencente a um universo administrativo:
o Estado.
68
O relato existente em alguns documentos revela a memória dos
atos instituídos por seus personagens. Possui desse modo, a capacidade de contribuir para a
representação do passado que não mais existe, mas que pode ser imaginado e compreendido
através de seus vestígios.
Para Paul Ricoeur (2007, p. 170) “[...] com o testemunho inaugura-se um processo
epistemológico que parte da memória declarada, passa pelo arquivo e pelos documentos e
termina na prova documental”. Desse modo, os relatórios de provedoria, ofícios, atas
administrativas existentes no arquivo da Santa Casa guardam a memória dos serviços
hospitalares prestados pela instituição.
Os relatórios de provedoria, por exemplo, eram produzidos pelos dirigentes da
instituição em cada ano completado de sua gestão (que podia ser prolongada por indicação do
presidente de província, passando pelo governador do Estado em acordo com os membros da
Mesa Administrativa e da Junta Definitória16) a frente da Santa Casa.
Nesses relatórios, podemos encontrar informações relevantes sobre o trabalho realizado
pela administração da Santa Casa. Dividido em sessões, eles abarcam a movimentação do
Hospital de Caridade, os enterramentos no Cemitério Público da Boa Sentença a partir de 1855
(data de sua fundação), o acolhimento e cuidado dispensado as crianças abandonadas na roda
dos expostos, as atividades eclesiásticas da Igreja da Misericórdia, o trabalho de assistência
com os presos da província, assim como as receitas e despesas da instituição e seu património
material composto pelos bens que sobraram do morgado da família de Duarte Gomes da
Silveira, seu fundador, e das doações recebidas em vida ou por via de testamento de pessoas
falecidas pertencentes a famílias tradicionais da província.
Muitas das informações encontradas junto aos relatórios de provedoria eram produzidas
pelo escrivão da Santa Casa. Este ocupava o lugar de chefe da secretaria e a ele cabia o cuidado
com o livro das actas fornecendo ao escripturário as notas necessárias à organização das
mesmas. Também lhe cabia velar pela observância do compromisso da instituição perante a
Junta Definitória e durante as decisões da mesa, verificar a idoneidade das finanças, subscrever
e assinar todos os contratos que envolvesse a Santa Casa, fiscalizar tudo que dissesse respeito
16
A Mesa administrativa era responsável pelo governo e pela administração da instituição. A Junta Definitória
cuidava da superintendência e da fiscalização geral. Segundo o capitulo V do compromisso da instituição, estas
duas não podiam tomar resoluções contrarias as disposições da Santa Casa, ao ensino e doutrina do cristianismo,
e às leis canônicas nem ir contra as leis federais, estaduais e municipais. Se isso ocorresse, poderiam responder
civil e criminalmente os mesários e definidores que compunham tais delegações por conta de seus votos.
69
ao arquivo e a secretaria, finalizar rigorosamente as despesas, organizar
com o tesoureiro o orçamento da receita e despesa e substituir o Vice-Provedor em suas faltas
ou impedimentos. Como podemos notar, era um cargo bastante importante dentro da
organização da Santa Casa tendo grande responsabilidade tanto na produção como na avaliação
dos documentos administrativos.
A maioria desses documentos correspondentes ao século XIX, como as atas de reuniões,
relatórios de provedoria, ofícios trocados entre a Santa Casa e as demais repartições do governo
imperial, livro de nomes de irmãos que fizeram parte da administração da instituição, entre
outros, se encontra manuscrita.
Fazendo o diagnóstico dessa documentação, podemos observar que muitos se encontram
com seu suporte fragilizado por conta da ação do tempo ou do ataque de insetos e fungos. A
tinta que delineia as informações no papel também tem prejudicado o estado do mesmo, pois,
como o passar dos anos, se tornou corrosiva, causando assim a fragmentação do suporte. O
manuseio frequente de usuários sem nenhuma orientação e a falta de vigilância para com o
acervo também trouxe um grande risco a essa documentação. A acidez existente no suor das
mãos desses usuários (que na maioria das vezes não utilizavam luvas para manusear os supores)
comprometeu de algum modo, o estado de conservação. Alia-se a isso, a falta de um profissional
responsável pelo controle do acesso dos usuários ao arquivo. Durante o trabalho foi possível
notar a falta de alguns documentos ou partes deles, provavelmente levados de forma ilícita por
seus “pesquisadores”. Seja como for, compreendemos que essas pequenas ações tem um
impacto profundo na preservação da memória documentária da instituição.
Para salvaguardar as informações existentes nos documentos que se encontram
manuscritos e ainda legíveis, os professores, juntamente com os alunos de Arquivologia, deram
início ao trabalho de transcrição desses documentos com o objetivo de digitar essas informações
em um banco de dados, digitalizar os originais e disponibiliza-los em um site de pesquisa para
facilitar o acesso a um número maior de usuários.
Desse modo, a atividade abarcaria tanto a disseminação dessas informações por meio
digital, facilitando assim o acesso de diversos usuários, como também possibilitaria a
preservação desses suportes fragilizados ao diminuir o seu manuseio pelos usuários que visitam
o arquivo e que antes tinham apenas o caminho físico deste para entrar em contato com os
documentos.
Um dos documentos existentes no acervo da Santa Casa de Misericórdia da Paraíba que
demostra a importância da preservação desses suportes é o relatório do Provedor Lindolfo José
70
Correa das Neves de 1880. Nele, o provedor descreve a situação em que
se encontrava o Hospital de Caridade mantido pela Santa Casa da Parahyba, destacando os
problemas financeiros que impediam o atendimento de um maior número de pacientes. Desse
modo, o Provedor afirmava que:
Nesse período, a capital estava sendo o destino de muitos sertanejos que fugiam da seca
desoladora que ocorria no interior da província. Esta população de retirantes, que chegava a
cidade maltrapilha e faminta, esperava encontrar na capital melhores condições de
sobrevivência. Mas, ao invés disso, acabavam se tornando um contingente de pobres almas
abandonadas pelas ruas da cidade, vítimas de preconceito da sociedade e temidos por sua
aglomeração ser vista como um foco constante de maus hábitos e doenças.
O relatório de 1880 de Correa das Neves também narra a situação dos imigrantes que
aqui chegavam à Parahyba, destacando o atendimento que era dado a eles pelo Hospital de
Caridade e chamando a atenção do Governo provincial para as dificuldades causadas pelo
estabelecimento desses necessitados no espaço urbano. Segundo o provedor:
O acréscimo da população indigente com emigrantes, que não tem podido regressar
por moléstia a seus lares, a facilidade com que eram outrora recolhidos, e o bom
tractamento, que encontram, teem augmentado a concorrência as nossas enfermarias,
que necessariamente ainda muito crescerá quando o governo fechar o Hospital da Cruz
do Peixe, com já tem sido anunciado (RELATÓRIO DO PROVEDOR, 1880, p. 9).
Sobre este acanhado e mal repartido, o hospital por sua situação não oferece as
desejadas condições sob o ponto de vista de higiene, nem mesmo para passeio de
convalescentes há área aproveitável: o pavimento térreo, sobretudo, demanda
urgentíssima reforma, tais são as faltas de luz e de ar a par de escessiva humanidade
ao mesmo tempo que nele é que são condicionados os doentes de pior carácter e em
72
parte os alienados, a cuja admissões não tem sido possível
esquivar-se a Santa Casa, pelas circunstâncias especiais das finanças do Estado, sinão
[sic] talvez, principalmente por falta de iniciativa de nossas assembleias e governos.
(RELATÓRIO DO PROVEDOR, 1889, p. 3).
Podemos notar que o provedor cita neste relatório os pacientes alienados, ou seja, os
loucos que também eram atendidos pelo Hospital de Caridade. Estes tinham um espaço
reservado dentro da instituição hospitalar e eram remetidos para o local, normalmente através
da Delegacia de Polícia da Parahyba.
Um importante documento manuscrito existente no acervo da Santa Casa que possibilita
compreender essa relação existente entre o Hospital de Caridade e Delegacia de Polícia da
Parahyba com o trato dos alienados na província durante a segunda metade do século XIX são
os ofícios de internamento.
Antes de serem enviados para seu recolhimento no Hospital de Caridade, muitos
alienados eram mantidos encarcerados nas prisões da capital e do interior da província ou,
quando pertenciam a famílias mais abastadas, encerrados em quartos construídos para esse fim
no fundo de suas residências.
73
Utilizando o mesmo formato dos ofícios de internamento, também
existem no acervo da Santa Casa outros ofícios que relatam diversos pedidos feitos à instituição
como a entrada de estrangeiros em solo brasileiro, o atendimento destes no Hospital de Caridade
ou pedidos de devolução de crianças acolhidas pela instituição por mães arrependidas de seu
abandono na roda dos expostos. Estes documentos também revelam as relações existentes entre
a Santa Casa e os demais órgãos do governo provincial da Parahyba durante o século XIX, com
os quais a instituição mantinha contato administrativo frequente.
Como podemos notar, essas informações servem de base para o estudo histórico da
província da Parahyba durante o período imperial. Nelas, podemos observar elementos
importantes para a compreensão do contexto histórico do período e as relações de poder
existentes dentro da sociedade paraibana da época. Por isso, podemos concordar com Le Goff
quando ele afirma que “[...] o documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é
um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o poder”
(LE GOFF, 2003).
Contribuir para a preservação dessas informações existentes na documentação do acervo
da Santa Casa, é o principal objetivo do trabalho desempenhado pelos professores e pelos
estagiários e voluntários do Projeto. Com atividades que abarcam a organização, classificação
e restauração dos documentos existentes no acervo, parte-se então para a disponibilização
dessas informações em um site de pesquisa, contribuindo assim para a facilitação do acesso à
memória hospitalar da Santa Casa de Misericórdia da Paraíba a pesquisadores que trabalham
com o tema e a todos que se interessem pelo patrimônio documental de nosso Estado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
75
esbarram na falta de recursos provenientes da própria Santa Casa, como
também na ausência de patrocínio dos órgãos públicos que não se interessam pela preservação
de sua memória.
Por conta disso, o projeto Arquivo da Santa Casa de Misericórdia: organização e
preservação surgem como uma esperança de manter vivo e em funcionamento este acervo
documental que guarda a história de seu Estado. Através do trabalho de transcrição
paleográfica, pretendemos promover a recuperação das informações existentes nos suportes
fragilizados com o tempo para impedir que essa se perca com o tempo, causando um dano
irreparável para a história da Paraíba, história está tão preciosa para o entendimento da passada
e da presente geração.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Presidência da República - Casa Civil - Subchefia para assuntos jurídicos. Lei Nº
8.159 de 08 de janeiro de 1991. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8159.htm>. Acesso em: 15 mai. 2017.
BRASIL. Constituição (1891) Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Rio
de Janeiro, 1891. Disponível em <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao91.htm>. Acesso em
15 mai. 2016.
SILVA, Nereida Soares Martins da. Santa Casa dos mortos: Ritos fúnebres, misericórdia e
relações de poder na Paraíba oitocentista. Associação Brasileira de História das Religiões -
ABHR. Simpósio Internacional de História das religiões, II e Simpósio Nacional da ABHR
XV: História, Gênero e Religião: violências e direitos humanos. Florianópolis: ABHR, 2016.
76
MINDELLO, Thomás d’Aquino, Relatório da Provedoria da Santa
Casa de Misericórdia. Parahyba do Norte, em 2 de jul 1889.
NORA, Pierre. Entre história e memória: a problemática dos lugares. Revista Projeto
História. São Paulo, v. 10, p. 7-28, 1993. Disponível em:
<http://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/viewFile/12101/8763>. Acesso em 17 maio
2017
SEIXAS, Wilson Nóbrega. Santa Casa da Misericórdia da Paraíba 385 anos. João Pessoa:
Gráfica Santa Marta, 1987.
77
ANÁLISE DO SISTEMA BRAQUIGRÁFICO PRESENTE NOS TESTEMUNHOS DO
TESTAMENTO DO REI D. PEDRO II DE PORTUGAL
Christiane Benones de Oliveira
Soelis Teixeira do Prado Mendes
INTRODUÇÃO
As línguas mudam e, por meio de fontes manuscritas, é possível acompanhar sua evolução.
Diferentemente do que acredita o falante comum, “As línguas humanas não constituem
realidades estáticas, ao contrário, sua configuração estrutural se altera continuamente no tempo.
É essa dinâmica que constitui o objeto de estudo da Linguística Histórica.” (FARACO, 1999,
p. 10). Esse ramo dos estudos da linguagem, conforme Bynon (1983), procura “investigar e
descrever” como as mudanças ocorrem ou como o sistema linguístico preserva uma estrutura.
A partir dos documentos, prossegue a autora, é possível extrair a estrutura gramatical de cada
período e, com isso, gramáticas sincrônicas podem ser postuladas e comparadas.
A proposta deste trabalho é fazer um estudo comparativo do uso de abreviaturas em quatro
testemunhos do testamento do rei Dom Pedro II. Essa comparação será quanto à manutenção
e/ou à criação de abreviaturas ou mesmo sobre os desdobramentos que tais formas podem sofrer
durante a transmissão de um testemunho a outro.
As abreviaturas sempre causaram discussões entre os estudiosos de fontes manuscritas,
paleógrafos, filólogos, linguistas e tantos outros. No entanto, apesar das divergências, devemos
entender a importância desses usos para a história da língua, já que elas são utilizadas desde a
antiguidade clássica, como nos mostra Herrero (1993):
17
Los Griegos mas antiguos usaron mucho de quitar las Vocales, i poner solas las consonantes con la primera, i postrera letra
de la diccion, y darles una raya encima á la larga, para que se entendiese que todas las Letras que se compres hendian debajo
de la tal raya eran una parte. Y asi abreviaban. Lo qual tambien imitaron muchos Latinos, y hoy dia algunos curiosos .
78
As abreviaturas desempenhavam o papel de adiantar a escrita, mas
eram alvo de muitas polêmicas entre os escrivães e os leitores e isso afetava a transmissão dos
textos. Nesse processo, é imprescindível que o editor saiba quais são suas interferências no
momento da edição, além de deixá-las especificadas, pois toda interferência não anunciada
resulta num novo texto. Não obstante, o cuidado ao desdobrar ou introduzir abreviaturas deve
ser essencial para não influenciar a interpretação do testemunho.
Para a realização do trabalho, serão utilizados corpora formados pelos testemunhos do
testamento do rei de Portugal D. Pedro II. Conforme Mateus (2016), o primeiro deles foi escrito
em 1704 pelo padre Jesuíta Sebastião de Magalhães, posteriormente, em 1726, o tabelião José
de Mello de Macedo faz outra edição, seguido pela transcrição de D. Antônio Caetano de Sousa
em 1746, e, por fim, Rosalinda da Cunha, em 1967, também o transcreve.
Segundo Cruz (1987), “Entende-se por abreviatura a redução do número de letras que
compõem uma palavra, sem prejuízo da sua interpretação”. Como se disse, o uso de abreviaturas
era muito frequente nos textos manuscritos. Dessa forma, a partir desses testemunhos iremos
discorrer sobre quatro pontos: (i) se, na mudança de um punho para o outro, houve a
permanência das abreviaturas conforme o original, e, em caso afirmativo, se são do mesmo tipo
e (ii) se, para além disso, foram abreviadas as mesmas palavras; (iii) se houve desdobramentos
das abreviaturas ou se foram feitas de outra forma; ou, ainda, (iv) se não houve o uso de
abreviaturas em algum testemunho e como o copista ou editor procedeu quanto à palavra que,
em outros testemunhos, por exemplo, foi abreviada. Será que houve uma modificação na
estrutura da palavra? Será que houve uma atualização da palavra? A resposta a essas questões
pode nos ajudar a entrever o uso - pelo menos escrito - de uma estrutura num estágio da língua,
porque é comum haver modificações por parte dos copistas na transmissão dos manuscritos,
assim o pesquisador pode, a partir do cotejo dos testemunhos existentes, identificar os
elementos que não são originais no texto. Essas alterações podem ser de ordem voluntária ou
involuntária, de acordo com Cambraia (2005).
A seguir são apresentados casos extraídos dos corpora da pesquisa, a título de ilustração,
que mostram como as diferentes edições de um mesmo documento trazem modificações durante
a transmissão.
79
Verifica-se que, da edição de 1704 para a de 1726, houve a permanência do tipo de
abreviatura, que é a sobrescrita, já nas edições posteriores não foi feita tal redução da palavra.
Também se observa que, na segunda edição, há a transposição de consoantes na primeira sílaba,
em comparação com a primeira: [pru] > [pur], o que indica a interferência do copista no texto;
as demais seguem a mesma estrutura morfológica do primeiro testemunho.
As pesquisas sobre a história da língua são importantes para descrever os sistemas
linguísticos, interpretá-los, explicá-los e preservar a memória cultural da época em que tais usos
foram realizados, exemplo disso são as abreviaturas encontradas nos textos antigos. Como
sabemos, os textos sofrem alterações em suas transmissões, portanto, quanto mais transcrições,
maiores são as chances de haver modificações e maiores as possibilidades de ser conhecida a
língua em outro estágio de seu curso.
As diferentes edições do testamento de D. Pedro II trazem consigo a história de um
momento no passado, seus costumes, seus usos e suas memórias. Ao perceber as muitas
transmissões deste testamento, é de grande relevância entender o universo que o permeia e os
critérios adotados em cada época para que as transcrições fossem feitas. Pode-se acompanhar
os avanços paleográficos e linguísticos entre o primeiro o último testemunho.
No que tange às abreviaturas, as normas de transcrição, tendem (especialmente no Brasil)
a sugerir que se faça o desdobramento de acordo com a ortografia atual. Contudo, ao optar por
esse tipo de edição, é possível que haja muitas distorções que comprometem a fidelidade ao
texto original. Isso porque o sistema braquigráfico é riquíssimo em marcas textuais do passado,
no funcionamento da língua: sua estrutura e seus usos, daí a importância de fazer, por meio dos
documentos manuscritos, descobertas acerca desse universo linguístico pouco conhecido. É
preciso ressaltar que a “recuperação do patrimônio cultural escrito de uma dada cultura” é
imprescindível nos estudos da história da língua que vai ter “impacto sobre toda atividade que
se utiliza do texto escrito como fonte”, (CAMBRAIA, 2005, p. 19-21).
A edição de textos manuscritos de épocas pretéritas é um processo lento e criterioso, pois
além do estado de conservação do documento, que, na maioria das vezes prejudica a leitura, é
preciso se habituar ao tipo de escrita. Dessa forma, o trabalho de edição e preparação de textos
deve ser realizado com responsabilidade e cientificismo visando à fidedignidade máxima ao
documento original. Por isso, toda a metodologia empregada deve ser divulgada de modo que
outros pesquisadores possam conhecer quais procedimentos levaram aos resultados.
80
Existem, conforme Spina (1977), diversas maneiras de se editar um
texto: a edição fac-similar ou mecânica, a diplomática, a semidiplomática ou paleográfica e a
edição crítica. A opção por uma ou mais de uma dessas recairá sobre qual o público almejado,
pois dificilmente uma mesma edição pode ser adequada a um público indistintamente
(CAMBRAIA, 2005).
Como nosso interesse é fazer uma edição que tenha como público o pesquisador da área da
Linguística Histórica, que pretende fazer uso de corpora nas análises das mudanças linguísticas
de longa duração, a opção recai sobre a diplomática em que há uma “transcrição rigorosamente
conservadora de todos os elementos presentes no modelo, tais como sinais abreviativos, sinais
de pontuação, paragrafação, translineação, separação vocabular, etc.” (CAMBRAIA, 2005, p.
93). Segundo Picchio (1979), os pesquisadores que usam a edição conservadora fazem-no por
acreditar que um texto vale como realidade histórica, simultaneamente fonética e gráfica; de
modo que modificações no texto é um ato injustificável. Entretanto, é preciso considerar que,
apesar de todo o cuidado rigoroso do editor, “uma edição diplomática já constitui uma
interpretação subjetiva, pois deriva da leitura que um especialista faz do modelo”
(CAMBRAIA, 2005, p. 94).
METODOLOGIA
81
separação vocabular, diacríticos e todas as particularidades que esses
documentos apresentam. Esses cuidados servem para preservar e conhecer os usos e as
evoluções da língua escrita nos seus mais variados contextos e sincronias.
Estabelecimento do Alfabeto
Conforme Fachin (2009, p. 45), a proposição do alfabeto do manuscrito “representa
etapa essencial para a leitura e transcrição satisfatórias de qualquer manuscrito, principalmente
quando se trata de grafia de difícil decifração.”, pois , como bem pontua Spina (1977, p. 35), a
escrita cursiva é corrida e sem descanso de punho, o que pode dificultar a leitura em certos
trechos. Por esse motivo, apresentamos o alfabeto do testemunho analisado:
Linha 3, 94
Linhas 1
d/D
Linha 6,9
82
Linha 90 Linhas 1,2,35
f/F
h/H
Linha 117
Linhas 8,18,27
i/I
Linhas 3,7,11
Linhas 5,12,17
j/J
l/L
m/M
●
83
n/N
p/P
Linha 1, Linha 5
q/Q
Linha 24
Linhas 7,30
r/R
●
s/S
Linhas 2,11,12
Linhas 4, 10,20
125
Linhas
1,2,3,6,11,16,20
t/T
v/V
84
Linhas 2,4
Linha 44
x/X
Linha 68,72,85
z/Z
Linhas 7,17,297
Fonte: elaborado pelas autoras.
É necessário que sejam adotados critérios bem elaborados para o reconhecimento e para
a identificação de caracteres, de forma que o texto original seja respeitado, entre outros aspectos
filológicos de edição. Para tanto, normas devem ser propostas e seguidas à medida que o
trabalho de transcrição é realizado.
Para a transcrição deste manuscrito, foram adotadas as normas propostas por Mendes
(2008), que, por sua vez, propôs adaptações às normas estabelecidas por Cambraia et al. (2001):
1. A transcrição procurará ser fiel ao texto original;
2. As abreviaturas não serão desdobradas;
3. Não será estabelecida fronteira de palavras que venham escritas juntas nem se
introduzirá hífen ou apóstrofo onde não houver. 1 Exemplos: “adondeeu”;
“enoveannos”;
85
4. A pontuação e acentuação originais serão mantidas;
5. Será respeitado o emprego de maiúsculas e minúsculas como se apresentam
no original. No caso de alguma variação física dos sinais gráficos resultar de
fatores cursivos, não será considerada relevante. Assim, a comparação do
traçado da mesma letra deve propiciar a melhor solução;
6. Quando a leitura paleográfica de uma palavra for duvidosa, a sua transcrição
será feita entre parênteses redondos simples : ( );
7. Os numerais, tanto indo-arábicos como romanos, serão transcritos na sua
forma original;
8. As intervenções de terceiros no documento original e seu estado de
conservação serão apontadas antes da transcrição;
9. As anotações de outro punho, as alterações e borrões de tinta serão informados
em nota;
10. Os caracteres cuja leitura for impossível serão transcritos como pontos dentro
de colchetes precedidos pela cruz † (o número de pontos é o de caracteres não
legíveis) (cf. CAMBRAIA, 2005, p. 128). Entretanto, quando não for possível
identificar esse número, apenas será registrada a cruz;
11. Palavra(s) danificada(s) por corrosão de tinta, umidade, rasgaduras ou
corroídas por insetos ou outros será(ão) indicada(s) entre colchetes, assim:
[corroída] ou [corroídas]. Em se tratando de um trecho de maior extensão
danificado pelo mesmo motivo será indicada entre colchetes a expressão
[corroída + de 1 linha];
12. A divisão das linhas do documento original será preservada, ao longo do
texto, na edição, pela marca de uma barra vertical: | entre as linhas. A mudança
de fólio será indicada com duas barras verticais: || 3 ;
13. As páginas serão numeradas de acordo com o documento original, indicadas,
nesse caso, entre duas barras verticais, além de apresentar o estado do fólio.
Exemplos: ||fl.76r. ||; || fl.76 v. ||;
14. Se o original não for numerado ou estiver ilegível sua numeração, os números
acrescentados serão impressos entre colchetes, indicando-lhes o estado do fólio.
Exemplos: [fl.18r.] / [fl.18v.];
86
15. As assinaturas simples ou as rubricas do punho de
quem assina serão sublinhadas, já as assinaturas que contêm sinais públicos
serão indicadas entre colchetes [sinal público];
16. Os espaços em branco deixados pelo escrivão serão assim identificados:
[espaço];
17. Os fragmentos de frases ou palavras que foram suprimidos pelo escrivão
serão indicados em nota.
Para fins ilustrativos, será exposto o primeiro fólio do testamento do rei D. Pedro II, datado
de 1704 e sua respectiva transcrição:
87
Figura ˗ Edição fac-similar
88
[fl. 5v]
Dom Pedro por graça deD’s Rey de Potu-| gal, e’ dos Algarves d’aquem, e’ d’alem mar| em
Africa senhor de Guiné,e’ da Conquista| navegaçam d’Ethiopia, Arabia, Persia,e’| da India Eta.
pertencendo a todos cuidar na| morte,e’ dispor prudentemte. Em vida sobre as| couzas q’ despois
della podem suceder, princi-|palmte. aos Catholicos, a quem toca maior| obrigaçam de ordenar
o que pode dirigir â| salvaçam deSuas almas, e’ esta obrigaçam| he maior nos Principes
soberanos, q’ por dis-| posiçam Da. tem negocios de mais importan-| cia, a que devem dar
providencia, assim pello| q’ toca â conservaçam, e’ augmento da Religi-|am Catholica, como de
seus| Povos, e’ vassalos, por estas, e’ por outras iustas| razões, ordenei fazer este Testamento
p.rase| guardar, e’ Cumprir tudo oq’ nelle dispuser, des| pois de minha morte, o qual quero q’
valha,| e’ se cumpra inteiramte., pra. oq’ se for necessro.| como Rey e’ Principe soberano
dispenso,| e derogo todas, e’ quais quer Leys, q’ contra| a sua validade em tudo, ou em parte se
pos-| oppor, ou seia na substancia das disposiço’es| delle, ou na falta de alguãs solemnidades,
porq’| todas pra. este effeito hei por derogadas, e’ esta| disposiçam quero q’ valha nam so como
Tes-| tamto., mas como Ley. [espaço] Declaro que| sou Catholico, e’ creio firmimte. tudo oq’
cre||
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Manoel Mourivaldo Santiago. Grafemas e diacríticos em manuscritos
setecentistas. Congresso Nacional de Linguística e Filologia, 7., Anais... Rio de Janeiro,
2003. Disponível em: http://www.filologia.org.br/viicnlf/anais/caderno10-08.html. Acesso
em: 18 set. 2017.
BASSETTO, Bruno Fregni. Elementos de filologia românica: história externa das línguas.
São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001.
CAMBRAIA, César Nardelli. Introdução à crítica textual. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
CONNERTON, Paul. A memória social. In: ____. Como as sociedades recordam. Trad.
Maria Manuela Rocha. 2a. ed. Oeiras: Celta Editora, 1999, pp. 07-46.
89
FACHIN, Phablo Roberto Marchis. Critérios de leitura de manuscritos:
em busca de lições fidedignas. Filologia e Linguística Portuguesa. São Paulo, v. 10/11, p.
237-262, 2008/2009. Disponível em: <http://www.fflch.usp.br/dlcv/lport/flp/images/
arquivos/FLP10-11/Fachin.pdf>. Acesso em: 18 set. 2017.
FLEXOR, Maria Helena Ochi. Abreviaturas: manuscritos dos séculos XVI ao XIX. 2ª São
Paulo: Editora Unesp, 1991.
SALLES, Cecília Almeida. Crítica genética: fundamentos dos estudos genéticos sobre o
processo de criação artística. 3. ed. São Paulo: EDUC, 2008.
INTRODUÇÃO
METODOLOGIA
91
que “definir uma metodologia de pesquisa é um desafio enriquecedor ao
pesquisador, que precisa estar atento ao cumprimento de seus objetivos e hipóteses”.
O trajeto percorrido, inicialmente, no estudo cujo recorte é apresentado neste artigo foi
a pesquisa bibliográfica, fundamental para o aprofundamento dos objetivos. Para Gil (2002, p.
45) a pesquisa bibliográfica “[...] reside no fato de permitir ao investigador a cobertura de uma
gama de fenômenos muito mais ampla do que aquela que poderia pesquisar diretamente”.
Por ser o objeto desta investigação um documento de arquivo, a pesquisa bibliográfica, será
associada à pesquisa documental, cuja característica é que a “fonte de coleta de dados está
restrita a documentos, escritos ou não, constituindo o que se denomina de fontes primárias”
(MARCONI; LAKATOS, 1990, p. 78). Como os documentos subsistem ao longo do tempo,
tornam-se a mais importante fonte de dados em qualquer pesquisa.
Ao longo do trabalho, foi necessário digitalizar e inventariar todos os documentos do
referido livro, possibilitando o acesso às informações para a realização da pesquisa e evitando
o constante manuseio, uma das formas mais convencionais de prejudicar documentação antiga.
Na sequência, foi preciso revisitar os pressupostos teóricos da Filologia Textual no que tange à
edição de textos. Além disso, mostrou-se necessário apresentar algumas considerações sobre as
abreviaturas e assinaturas, sobre o estudo de selos no Brasil e sobre o vocabulário característico
dos documentos que compõem tal livro.
Tais caminhos compuseram a edição rigorosamente conservadora, a partir de critérios
filológicos, base fidedigna para estudos posteriores de diversas áreas. As edições de caráter
conservador em que se têm um nível moderado de mediação do editor mostram-se úteis para
uma gama significativa de leituras, pois permite ao filólogo acessar a língua do texto no seu
estado real (ou próximo disso) e permite ao historiador (e a profissionais de todas as outras
áreas de interesse possíveis) acessar o conteúdo dos textos sem criar maiores dificuldades. Vale
destacar que o caráter hermenêutico, comum às pesquisas filológicas e de acervo, faz com que
haja a possibilidade constante de novas análises, que só apareceram quando houver o real
domínio sobre o documento em estudo.
92
O LABOR FILOLÓGICO NO (R)ESTABELECIMENTO DO
TEXTO E, CONSEQUENTEMENTE, NA (RE)CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA
Não tem sido fácil precisar a definição e o âmbito da Filologia, “[...] cujos objetivos têm
variado conforme as épocas em que se praticou a atividade filológica, conforme os autores que
a exerceram e até os lugares em que ela floresceu” (SPINA, 1994, p. 82). A Filologia tem
definições diversas. Em comum, todas elas reiteram que o objeto de estudo é o texto, “[...]
manuscrito, datiloscrito, digitoscrito ou impresso, oral ou escrito, tomado para a investigação
histórica, filológica, literária e tantas sejam as atividades que envolvam o estudo de um texto”
(SANTOS, 2012, p. 19).
A Filologia “[...] não é apenas a investigação do instrumento linguístico como tal, apesar
de utilizá-lo para penetrar nos textos construídos em determinadas línguas [...]”; ela “[...] segue
como auxiliar e ao mesmo tempo como apoio a diversas outras disciplinas” (LOSE, 2010).
Entre as disciplinas e áreas, seja pelo método seja pelo objeto, associadas à Filologia cujas
contribuições são mais lembradas nos manuais utilizados pelos pesquisadores estão a
Paleografia, a Diplomática, a Ecdótica, a Codicologia, além, evidentemente, da Linguística e
da História (LOSE, 2010). Posto isso, percebe-se que o labor filológico tem em seu escopo um
93
caráter trans e pluridisciplinar. É transdisciplinar porque fornece matéria-
prima para outras áreas do saber e a pluridisciplinar pelas “[...] relações complementares entre
disciplinas mais ou menos afins” (LOSE, 2010).
Santos (2006, p. 38) afirma que
O texto visto de forma mais ampla, tomado do latim textu, significando ‘tecido’, em
cujos fios se entrelaçam, por um lado, os sentidos de “produto acabado, detentor de uma
verdade” e, por outro, “como construção, algo que se elabora através de seus elementos
constitutivos e que, em sua trama, produz sentido, indicando percursos que devem ser
respeitados” (SANTOS, [20--?]).
Desse modo, “o texto deixa, portanto, de ser um fim em si mesmo para se transformar
em um instrumento que permite aos filólogos, e também aos diferentes estudiosos, utilizarem
as conclusões e metodologias empregadas pelos críticos textuais” (SANTOS, 2012, p. 19).
Como fruto de um processo histórico, sociocultural, reflexo de uma pluralidade
polifônica, o texto exige do filólogo, na execução do seu trabalho, “[...] sagacidade, e talvez
mais do que isso, sensibilidade [...]” para entender “[...] a complexidade das intrincadas redes
sociais, observando os detalhes que escapam ao leitor comum, resgatando, além do texto, seus
meandros, principalmente” (SANTOS, [20--?]).
Assim, para alcançar o entendimento dessas redes é preciso leitura ativa, como defende
Said (2007, p. 83). “Ato indispensável, o gesto inicial sem o qual qualquer filologia é
simplesmente impossível” (SAID, 2007, p. 83). Ressalta-se que esta leitura está situada num
determinado tempo e lugar, assim como os escritos encontrados no curso do estudo humanista
estão localizados numa série de estruturas derivadas da tradição, da transmissão e da variação
dos textos, bem como das leituras e interpretações acumuladas, de acordo com Said (2007, p.
99).
94
Do exposto acima, conclui-se que a Filologia é uma ciência muito
abrangente, podendo, a partir do texto, estudar a língua em toda a sua amplitude, o que permite
ao filólogo enveredar pelos mais diversos caminhos dos estudos linguísticos. “A leitura
cuidadosa, a recuperação, a edição semidiplomática e a interpretação dos textos levam à
necessidade de explicitar dados contidos nos documentos que revelam aspectos linguísticos,
históricos, sociais e jurídicos referentes ao tempo que se referem os textos” (XIMENES, 2012,
p. 94). A consciência de tal necessidade, evocada por Ximenes (2012), tem norteado, ao longo
dos anos, os diversos trabalhos desenvolvidos com a Coleção dos Livros do Tombo do Mosteiro
de São Bento da Bahia, incluindo aí o Livro IV do Tombo, objeto de estudo apresentado neste
artigo.
A relevância histórica deste conjunto documental, como se disse, foi reconhecida pela
UNESCO através do Programa MOW/Brasil. Em 2013, esta Coleção em seis volumes, sendo
que o último deles, apesar de estar assinado e rubricado, não apresenta textos escritos, integrou
o projeto Coleção dos Livros do Tombo do Mosteiro de São Bento da Bahia: preservando e
divulgando 400 anos de história do Brasil, patrocinado pela Petróleo do Brasil S.A. −
PETROBRÁS, como parte do Programa PETROBRÁS Cultural.
Os Livros do Tombo em seu conjunto textual alcançam um período de cerca de 500 anos,
relativos aos séculos XVI, XVII, XVIII, XIX e primeira década do XX − já que o último registro
no Livro IV do Tombo data de 1913 −, e embora referentes, todos, diretamente ao “patrimônio
material – latifúndios, terrenos e casas – dos beneditinos da Bahia, trazem informações de
caráter político, social, militar, econômico, genealógico, geográfico e histórico de grande
importância para a sócio-história da Bahia” (ANDRADE; LOSE, 2007). Além de dados
relevantes para o estudo da língua na época de seus registros.
Os livros da referida Coleção apresentam especificidades que os diferem entre si, por
exemplo, os documentos no Livro Velho do Tombo − primeiro volume da coleção de Livros do
Tombo − constituem-se de traslados do original, autenticados por dois tabeliães, sendo todas as
páginas dos volumes rubricadas por um dos tabeliães, como forma de firmar que depois de
copiadas, as folhas foram lidas, comparadas e estavam idênticas aos originais, conforme
apontam Andrade e Lose (2007). Em comum, além de serem manuscritos, todos são
documentos notariais, definidos como aqueles que, emanados das autoridades supremas,
delegadas ou legitimadoras (como é o caso dos notários) são submetidos, para efeito de
validade, à sistematização, imposta pelo direito.
95
O LIVRO IV DO TOMBO DO MOSTEIRO DE SÃO BENTO DA
BAHIA: ALGUMAS CARACTERÍSTICAS MATERIAIS
97
iniciais da instituição detentora dos bens. Tais abreviaturas, objeto desse
estudo, serão elencadas a seguir.
Em relação ao conteúdo, o Livro IV é formado por documentos diplomáticos,
materializados em diversas espécies documentais, principalmente contratos, que apresentam
uma estrutura formal comum a todos os documentos. Esta estrutura formal corresponde à
configuração interna do documento. Por definição a “[...] espécie documental é a configuração
que assume um documento de acordo com a disposição e a natureza das informações nele
contidas” (CAMARGO; BELLOTTO, 1996).
O uso das abreviações, em todos os tempos, especialmente na Idade Média, esteve ligada
à necessidade de poupar espaço, devido à escassez do suporte, e poupar tempo, registrando com
mais agilidade os escritos a serem perpetuados. Posteriormente, em tempos de abundância de
suporte e de escrita mais ágil, por uma série de fatores, o uso abusivo de tais abreviações
representou o estilo, a performance do scriptor.
Ao consultar os manuscritos antigos,
[...] é complexo, uma vez que, nesse processo, as palavras são reduzidas de diferentes
formas, tais como: iniciadas e não terminadas, omissão de letras mediais, uso de letras
sobrepostas, combinação de números e letras e utilização de sinais para representar
palavras, constituindo assim um entrave à leitura. Essas diversas formas de reduzir as
palavras, muitas vezes combinadas entre si, formam o sistema de abreviaturas.
Conhecer as “abreviaturas é uma das chaves para desvendar o segredo dos manuscritos
antigos” (LOSE et al., 2009). Os referidos autores ainda acrescentam: “quem se dedica ao ofício
do filólogo precisa conhecê-las, além da grafia, do vocabulário e da terminologias da época do
documento” (LOSE et al., 2009). O bom andamento do trabalho do pesquisador pode ser
comprometido pela deficiência desse conhecimento.
Sobre isso, Maria das Graças Telles Sobral (2007, p. 10) afirma que
98
Decifrar esse sistema, isto é, recompor as letras ausentes, é laborioso, mas
compreender o teor dos documentos manuscritos para a reconstituição de fatos
históricos e estudos sociolingüísticos passa pela sua resolução, pois esses textos
possuem como característica intrínseca a presença de abreviaturas.
Buscando dirimir parte desta dificuldade, especialmente na leitura dos documentos que
compõem o Livro IV do Tombo, visto que “entrelaçados, abreviaturas e manuscritos transmitem
a cultura escrita” (SOBRAL, 2007, p. 14), apresentar-se-á uma relação com as abreviaturas
mais utilizadas pelos diversos scriptores na produção destes. Para tanto, tomando como base o
modelo usado por Sobral (2013), utilizou-se a tabela, com quatro colunas em que foram
dispostas a imagem da abreviatura, o seu desdobramento, a sua respectiva classificação, o fólio
e a linha correspondentes. Para o desdobramento, utilizou-se a forma mais produtiva no texto,
considerando a grafia dos termos abreviados quando escrita por extenso.
Assim, neste estudo as abreviaturas foram agrupadas considerando a classificação
proposta por Maurice Prou (1910 apud SOBRAL, 2013, p. 86-7): abreviação alfanumérica;
abreviação por contração; abreviação por letra sobreposta; abreviação por suspensão;
abreviação com sinais especiais, essa última não encontrada no documento em estudo. Incluiu-
se, também, a abreviação mista, tipo não classificado pelo referido autor. As definições das
abreviações foram postas no início de cada subseção.
Dentro dessa classificação, as palavras ou expressões abreviadas foram dispostas em ordem
alfabética. “A classificação das abreviaturas é realizada normalmente baseando-se nos
elementos usados para abreviar a palavra, os princípios e os sinais abreviativos” (SOBRAL,
2007, p. 22).
Os princípios abreviativos correspondem aos procedimentos usados para omitir as
letras. Estes podem ocorrer pela suspensão das letras finais, podendo a palavra ficar
reduzida apenas à sua letra inicial, pela supressão de letras mediais, pela supressão de
letras finais e mediais, colocação de uma letra de tamanho menor, geralmente no final
da palavra ou pela substituição de parte da palavra por um número. Os sinais usados
podem ser simplesmente um indicativo de uma palavra abreviada, sendo chamado,
nesses casos, de sinais gerais, ou podem ter um valor convencional, próprio ou
relativo, indicando dessa forma qual a letra, ou grupo de letras, que foi omitida
(SOBRAL, 2007, p. 22).
Figura ˗ Imagem do Fólio 15 recto, linha 37. Em destaque, o uso da letra “J” como forma de
abreviação de um nome próprio, não decifrado
Figura ˗ Imagem do Fólio 24 verso, linha 8. Em destaque, o uso da letra “R” como forma de abreviação de um
nome próprio, não decifrado.
Figura ˗ Imagem do Fólio 43 recto, linha 8. Em destaque, o uso das formas abreviadas “Cav. /Wf*/”. Tais
formas não foram desdobradas.
100
Como estas formas não apareceram escritas por extenso ao longo do texto
dos respectivos documentos, não possível fazer o desdobramento. Assim, apesar da
familiaridade com a scripta dos documentos, tais abreviaturas que não foram desdobradas
aparecem nas transcrições dos respectivos documentos, mas não foram elencadas aqui.
Antes de apresentar a listagem propriamente dita, alguns detalhes nas abreviações do Tombo IV
merecem destaque.
Devido às características dos documentos em estudo − documentos notariais −, algumas
abreviaturas aparecem repetida vezes, inclusive no mesmo documento, é caso, entre outras, das
formas “Fr.” = “Fr(ei)”, “S.” = “S(ão)”, no fólio 15 recto. Nesses casos, para evitar repetições
desnecessárias, optou-se por apresentam apenas uma de cada.
Em alguns documentos, os scriptores empregam a mesma letra para representar diferentes
palavras, só sendo possível distingui-las no contexto:
● o “D” maiúsculo, no fólio 24 recto, linhas 32 e 39, respectivamente, é usado para
abreviar as palavras “D(om)” − uso mais recorrente − e “D(ona)”; como se vê nas
imagens a seguir:
Figura ˗ Imagens do Fólio 24 recto, linhas 32 e 39, respectivamente. Em destaque, o uso da mesma
forma para se referir as palavras diferentes
101
Figura ˗ Imagem dos Fólios 1 e 5 rectos, linha 22 e 28, respectivamente. Em destaque, o uso
da mesma forma para referir-se a palavras diferentes.
● o “S” maiúsculo, nos fólios 1 recto, linha 11, 4 recto, linha 27 e 5 recto, linha 36,
abreviam, respectivamente, “S(aõ)”, “S(enhor)” e “S(ua)”. O scriptor no fólio 5 recto,
além de empregar o “S” maiúsculo para abreviar “S(ua)”, emprega-o para abreviar
“S(aõ)”.
Figura ˗ Imagens dos Fólios 1r, 4r, 5r, respectivamente. Em destaque, o uso do S maiúsculo
para abreviar palavras diferentes
Uso do
“S” no
fólio 5r
As formas abreviadas que aparecem juntas nas designações dos nomes de autoridades
eclesiásticas e instituição religiosa, por exemplo, “M(ui) R(everend)o P(adre) P(regador)
Ex(celentissimo) Abb(ade) Fr(ei) Antonio de S(am)”, no fólio do Termo de abertura, não foram
separadas na listagem, visto que a unidade significada da forma abreviada pode ser: lexia
simples, lexia composta e lexia complexa, caso das formas de tratamento. Estas devem,
portanto, aparecer unidas. As expressões como “V(ossa)Ex(celênci)a” e
“ER(eceberá)M(er)ce”, por estarem unidas graficamente nos diversos documentos do Livro IV
do Tombo e por serem expressões consagradas, não foram separadas na listagem.
As notas tironianas, “de acordo com os paleógrafos latinos, são a mais antiga forma de
taquigrafia européia” (FLEXOR, 1979, p. 9). As notas tironianas baseiam-se nas letras do
alfabeto maiúsculo romano. Os sinais são empregados em várias posições e em cada uma delas
102
têm uma significação. São assim chamadas “[...] porque se atribui tal
invenção ao liberto de Cícero, Tullius Tiro [...]” (FLEXOR, 1979, p. 11). Apesar da divergência
sobre autoria da invenção, alguns estudiosos atribuem a invenção a Ênio e outros a Sêneca, “a
maioria dos autores aceitam a como inventor Tiro que se servia desse sistema 'taquigráfico' para
captar na íntegra os discursos dos mais famosos oradores romanos” (FLEXOR, 1979, p. 9). As
notas tironianas são encontradas até o século XVI. Delas derivam algumas formas de
abreviação. Uma forma derivada das notas tironianas recorrente no Livro IV do Tombo é a
abreviação da palavra “que”, como se vê na imagem a seguir. Tais abreviações foram agrupadas
como letra por suspensão.
Figura ˗ Imagem dos Fólios 1r, l. 8. Em destaque, o uso do “q'” - forma derivada das notas tironianas
Aparecem, também, abreviação por siglas. De acordo com Flexor (1979, p. 11),
Além das siglas simples, por exemplo, D = D(om), no fólio 5r, l. 1, aparece, também, a
sigla reduplicada − quando a letra é “repetida para significar o plural das palavras representadas,
ou quando, na palavra, a letra é encontrada pelo menos duas vezes. Ex: SS = Santíssimo, RR =
Reverendíssimo ou Reverendíssimos” (FLEXOR, 1979, p. 11). Há uma ocorrência de sigla
reduplicada: PP = “P(adres)”, no fólio 11v, linha 41. Já o scriptor do fólio 5 recto utiliza a
seguinte abreviação para a palavra “P(adr)es”: “Pes.”. Todas as siglas que apareceram nos
documentos do códice em estudo foram agrupadas como abreviação por suspensão.
Em algumas abreviações as diferenças são sutis, por exemplo, nas abreviações da
palavra "Excelentíssimo", nos fólios 2v, l.1; 14r, l. 45 e 42v, l. 43, respectivamente,
representadas nas imagens a seguir. A diferença entre elas reside na ausência do ponto no fólio
2r, l. 1; a presença apenas do ponto no 14r, l. 45 e do ponto com hífen no 42v, l. 43.
103
Figura ˗ Imagens dos Fólios 2r, l. 1; 14r, l. 45 e 42v, l. 43, respectivamente
ABREVIATURA ALFANUMÉRICA
104
(Primeir)o 25r 26
(Primeir)a 25r 11
(setem)bro 4v 47
(Segund)a 25r 13
(Segund)o 25v 2
P(a)g(o) 2r 27
R(e)v(erendissi)mo 40v 38
Sen(ho)r 5r 43
105
Sen(ho)r 5v 13
Abreviatura por contração ou por síncope “[...] quando faltam letras no meio do
vocábulo” (FLEXOR, 1979, p. 12). De acordo com a classificação de Prou (1910 apud
SOBRAL, 2013, p. 87) “consiste na supressão, no interior da palavra, de uma ou várias letras,
podendo, às vezes, aparecer somente no final da palavra”. Normalmente, conserva as
consoantes e suprime todas ou quase todas as vogais.
A abreviatura por letra sobreposta “em que, em geral, é colocada a letra inicial ou prefixo
da palavra, e, em suspensão, a última ou as últimas letras da palavra” (FLEXOR, 1979, p. 12).
Abb(ad)e 26r 28
Ag(os)to 2v 50
Con(cei)cam 10v 4
Congrega(ça)õ 15r 17
106
Congreg(aça)m 28r 6
Ex(celentissi)mo 2v 1
Ex(celentissi)mo 14r 45
Ex(celentíssi)mo 42v 43
Ill(ustrissi)mo 3r 1, 27
Ill(ustrissi)mos 1r 5
Abreviatura por suspensão ou apócope “[...] quando falta o final da palavra.” (FLEXOR,
1979, p. 14) Consiste em deixar a palavra inacabada, usando, para tanto, um grupo de primeiras
palavras, como afirmam Lose et al. (2009), retomando a definição apresentada por Maurice
Prou (1910).
D(ona) 1r 1
D(om) 5r 1
107
E R(eceberá) 7r 39
M(erce)
f(olhas) 2r 5
f(olhas) 2 e 10r 3
f(olhas) 3
f(olhas) 11r 48
f(olha) 43v 22
Fr(ei) 6r 25
M(ui) Termo de 1
Encerra-
mento
N(osso) 5r 46
N(osso) 4r 27
S(enhor)
J(esus)
ABREVIATURA MISTA
A abreviatura mista por definição é “[...] aquela em que a palavra sofre a supressão de
algumas sílabas e de outras não.” (FARIA, PERICÃO, 2008, p. 26) Nesse tipo de abreviatura
ocorre a junção de outros tipos de abreviatura, por exemplo, contração e letra sobreposta.
ER(eceberá)M(er)ce 1r 26
ER(eceberá)M(er)ce 2v 18
108
M(ui) R(everend)o P(adre) Termo de 1
P(regador) Ex(celentissimo) Abertura
Abb(ade) Fr(ei)
V(ossa)Ex(celênci)a 2v 6
V(ossa)Ex(celênci)a 3r 8
V(ossas)R(everendissi)mas 1r 12, 22
CONSIDERAÇÕES FINAIS
De acordo com Lose (2010) “[...] o homem é um ser histórico e social, portanto, é o
resultado do meio em que vive.” A compreensão desse homem de hoje e o seu mundo tem como
ponto de partida o passado. “É nos registros de tempos idos que se encontra a formação do
pensamento de um povo, de uma cultura, de uma história. Boa parte desse registro se faz através
de textos, que, é claro, também guardam informações sobre a evolução das línguas” (LOSE,
2010).
Tal assertiva corrobora para reiterar a importância da Filologia Textual na preservação
dos registros escritos de uma dada sociedade, como forma de perpetuar o legado produzido nos
mais diversas áreas. Além disso, mostra o quanto os trabalhos desenvolvidos com os
documentos manuscritos e impressos, entre eles os manuscritos da Coleção dos Livros do
Tombo, são de suma importância para o estudo dos aspectos linguísticos de uma dada época,
como para servir de fonte para estudo de áreas afins. O levantamento e estudo aqui propostos
mostram essa proficiência de possibilidades, bem como o indispensável papel da Paleografia
na leitura dos documentos manuscritos de épocas remotas.
REFERÊNCIAS
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XVI e XVII do Livro I do Tombo do Mosteiro de São Bento da Bahia. 2010. 344f.
Dissertação (Mestrado em Letras e Linguística) − Programa de Pós-Graduação do Instituto de
Letras, Universidade Federal da Bahia. Salvador.
109
ANDRADE, Marla Oliveira; LOSE, Alícia Duhá. Pesquisas filológicas
nos acervos da Biblioteca Histórica do Mosteiro de São Bento da Bahia. Scripta Philológica.
Salvador, n. 3, 2007. 1 CD-ROM.2007.
AUERBACH, Erich. Introdução aos estudos literários. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1972.
FARIA, Maria Isabel; PERICÃO, Maria da Graça. Dicionário do Livro: da escrita ao livro
eletrônico. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.
FLEXOR, Maria Helena Ochi. Abreviaturas: manuscritos dos séculos XVI ao XIX. São
Paulo, SP: Divisão do Arquivo do Estado, 1979.
GIL, Antônio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2002.
LOSE, Alícia Duhá.O acervo bibliográfico e documental do Mosteiro de São Bento da Bahia.
In: PAIXÃO, Dom Gregório (Org.). O Mosteiro de São Bento da Bahia. Salvador: Versal
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LOSE, Alícia Duhá (Org.). Dietário (1582-1815) do Mosteiro de São Bento da Bahia:
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______. Textos teatrais: discutindo a relação texto e autoria no âmbito da Filologia Textual.
[20--?]. Artigo disponível em:
<http://www.textoecensura.ufba.br/files/Artigo%20Rosa%20Borges%20III%20sef%203_rosa
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______. Filologia e Literatura: lugares afins para estudo do texto teatral censurado. In:
SANTOS, Rosa Borges (Org.). Edição e estudo de textos teatrais censurados na Bahia: a
Filologia em diálogo com a Literatura, a História e o Teatro. Salvador: EDUFBA, 2012. p.
19-65.
110
SOUZA, Luís César Pereira de; CORÔA, Wiliane Silva. História e
Teatro: unidos pela Filologia para estudo do texto teatral censurado. In: SANTOS, Rosa
Borges (Org.). Edição e estudo de textos teatrais censurados na Bahia: a Filologia em
diálogo com a Literatura, a História e o Teatro. Salvador: EDUFBA, 2012. p. 139-153.
SOBRAL, Maria das Graças Telles. Livro Velho do Tombo do Mosteiro de São Bento da
Bahia: edição semidiplomática e um olhar sobre os documentos quinhentistas. 2013. 1 v. 177
p. Tese (Doutorado em Letras e Linguística) − Instituto de Letras, Universidade Federal da
Bahia, Salvador.
______. Abreviaturas: uso e função nos manuscritos. 2007. 1v. 122f. Dissertação (Mestrado
em Letras e Linguística) – Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia, Salvador.
SPINA, Segismundo. Introdução à Edótica: crítica textual. 2. ed. São Paulo: Ars Poética;
Edusp, 1994.
XIMENES, Expedito Eloísio. Filologia: uma ciência antiga e uma polêmica eterna. Revista
Philologus, ano 18, Nº 52. Rio de Janeiro: CiFEFil, jan./abr. 2012. p. 93-115. Disponível em:
<http://www.filologia.org.br/revista/52/07.pdf>. Acesso em: 15 nov. 2014.
111
AS VARIANTES GRÁFICAS EM ANTROPÔNIMOS NOS LIVROS DO
TOMBO: UM PROBLEMA PALEOGRÁFICO
INTRODUÇÃO
112
O labor filológico é importantíssimo na reconstrução do passado
linguístico e cultural. Para Calcabrine (2011), o labor filológico é antigo e seu objeto, o estudo
da linguagem humana, seus registos escritos e sua cultura, é bastante diversificados, requer do
filólogo uma postura versátil e abrangente (CALCABRINE, 2011, p. 3).
Uma observação mais profunda nos permite perceber o quão amplo é a Filologia no que
diz respeito à sua perspectiva de trabalho e ao seu raio de ação. Tentar definir ou ainda delimitar
seu campo de atuação representa uma tarefa quase impossível. No sentido mais estrito, poderia
dizer-se que o objeto de estudo da Filologia é o texto, todavia, definir suas fronteiras com
relação ao seu objeto, tem se tornado algo cada vez mais difícil de se alcançar. Através dos
estudos filológicos é possível estudar a língua em toda a sua amplitude. Portanto, poderíamos
dizer, então, que a Filologia pode e deve ser considerada como o pilar do qual se desenvolveram
os estudos linguísticos e literários, até chegar às ciências modernas, a exemplo da linguística.
Diversas são as formas disponíveis para se compreender uma sociedade, que é hoje
resultado de um contínuo histórico, de um produto de diversas conjunturas sociais. Para que
seu conhecimento seja o mais vasto possível, é necessário olhar não apenas para configuração
atual, suas práticas, suas ideologias, sua política, mas também para o passado. Ter consciência
desses variados momentos históricos de um determinado grupo social ajuda a compreender sua
formação.
O acesso de um povo à escrita, com certeza, é uma maneira de se compreender uma
sociedade. Higounet (2003), diz que escrita nada mais é do que a "expressão gráfica da
linguagem". Portanto, em sentido amplo, é possível afirmar, que escrita compreende qualquer
sistema de comunicação de caráter visual.
Não é novidade que o objeto escrito, a língua escrita por assim dizer, interessa a
inúmeras áreas do conhecimento humano. No trabalho que aqui se apresenta, pode ser
proveitoso, mais de perto, para três campos do saber: a História, a Filologia e a Linguística.
Este trabalho, inserido no contexto da Linguística Histórica e pertencente à linha de pesquisa
de Filologia Textual, tem por objetivo geral identificar os antropônimos do Livro III do Tombo
do Mosteiro de São Bento da Bahia.
113
Com relação à Bahia, parte significativa da história escrita pode
ser encontrada na biblioteca do Mosteiro de São Bento, sendo este “[...] uma das três únicas
bibliotecas tombadas pelo Patrimônio Artístico e Histórico Nacional.” (IPHAN) (TELLES,
2017). A tradição bibliográfica dos monges beneditinos baianos contribui para manter em seu
acervo grandes raridades documentais do Brasil, salvaguardando assim, em seu interior, a
memória da Bahia, com documentos que remontam aos sécs. XVI, XVII, XVIII e XIX.
Dada a sua importância, toda a instituição e seu patrimônio são tombados pelo Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) desde 1938. Atuante durante séculos, o
Mosteiro de São Bento foi um dos grandes precursores da intelectualidade na Bahia. O Mosteiro
possui um dos maiores acervos de livros raros do país (TELLES et al., 2016). O arquivo e a
biblioteca são considerados órgãos privados de interesse público. Pelo fato de se encontrar num
ambiente de clausura monástica, seu acesso é restrito. Toda essa importância deve-se também
a sua primaz participação na atividade acadêmica no Novo Mundo (TELLES et al., 2016).
Os Livros do Tombo do Mosteiro de São Bento da Bahia são das obras mais importantes
para a compreensão da sócio-história brasileira. Neles encontram-se documentos de teor
notarial, com referências sociais, culturais, políticas, históricas e geográficas do Brasil Colônia.
Essa coleção é composta por seis livros. A exceção do primeiro volume, todos os demais estão
em excelente estado de conservação. Nesses livros constam, com os devidos termos de abertura
e de encerramento, numeração, rubrica e fé pública, cartas de doações, sesmarias, codicilos, etc.
referentes ao patrimônio material do Mosteiro de São Bento ao longo dos séculos. Os Livros
do Tombo foram reconhecidos pela Organização das Nações Unidas para a Educação
(UNESCO)como Patrimônio da Memória Mundial (BRASIL, 2012).
Livro III do Tombo é o quarto volume da coleção dos Livros do Tombo. Os documentos
do L3T já tinham sido trasladados em Livros de Tombo anteriores, o Livro Velho do
Tombo, Livro I do Tombo e o Livro II do Tombo, conforme pedido do Dom Abbade do Mosteiro
de São Bento, Frei Antonio de São José Valença. Seu Termo de Abertura data de 2 de julho de
1803, tem 96 documentos transladados, em 300 fólios. Os documentos são datados entre os
séculos XVI e XVII, com registro de doações aos monges beneditinos e questões judiciais
ligadas a bens e imóveis pertencentes ao Mosteiro de São Bento da Bahia (TELLES et al.,
2016).
Esses documentos - todos de teor jurídico - foram objeto do Projeto de Pesquisa,
coordenado por Célia Marques Telles intitulado A Lição conservadora e os fatos de língua em
documentos do Mosteiro de São Bento da Bahia, desenvolvido com a pela equipe de Filologia
114
Textual do Grupo de Pesquisa Studia Philologica do Instituto de Letras
da Universidade de Letras da Universidade Federal da Bahia. A partir da edição preparada por
esse grupo, fizeram-se, concomitantemente, estudos de paleografia e estudos linguísticos,
como: os de dêixis pessoal e de dêixis temporal, o estudo das abreviaturas, o grafemático-
fonético, o de toponímia e de antroponímia.
Neste tipo de documento, o estudo das grafias também é bastante interessante. Todos os
documentos foram copiados em scripta cursiva e caligráfica. Este fato permite que uma mesma
letra possa sofrer variação de tamanho, traço e formas e por conta disso, seja possível perceber,
de forma muito clara, no que diz respeito a análise do documento, as mudanças de mãos dos
scriptores.
Nesse raciocínio, adverte Martinez Ortega (1999), que o fato de se tratar de textos não
literários e de apresentar diferentes mãos na escritura nos mostra um panorama mais amplo dos
usos gráficos da época. A característica na grafia é seu emprego aparentemente caótico, sequela
inevitável do reajuste fonológico (MARTÍNEZ ORTEGA, 1999), visto que a ortografia dos
séculos XVI e XVII baseia-se no capricho do amanuense, variando seu sistema muitas vezes
em um mesmo documento. Ainda mais: a linguagem jurídica é tão repetitiva e estereotipada
que o escrivão pressupõe o texto que vai copiar e acaba por cometer lapsos.
PALEOGRAFIA
Essencial para a história, a Paleografia, estudo da escrita antiga, traslada para caracteres
contemporâneos a escrita mais antiga e às vezes incompreensível, de textos manuscritos antigos
e medievais, independente da língua e do tipo de suporte fisico em que foi registrada, permitindo
o acesso à informação contida em documentos desse tipo. Ler manuscritos antigos, ainda hoje,
é um desafio para a sociedade. Alguns desses documentos encontram-se em péssimas condições
(manchados, rasgados e deteriorados pelo tempo), e o acesso a eles muitas vezes é restrito.
Edith Pimentel Pinto (1982) diz que “[...] as especificidades de cada texto condicionam
necessariamente atitudes e requisitos também específicos por parte do editor [...]”. Assim
sendo, trabalhar com textos antigos requer, por parte do indivíduo, que ele utilize critérios
específicos para tal tarefa e tenha conhecimento de abreviaturas, anagramas, letras arrevesadas,
signos especiais, e outras peculiaridades para produzir transcrições o mais fidedignas possível.
115
Para um leigo, tal empreitada será, com certeza, um empecilho à leitura e
à interpretação desses manuscritos no seu formato original.
O labor filológico, seja no processo de transcrição de um manuscrito ou numa edição,
assemelha-se em muito ao labor paleográfico, além de a Paleografia fornecer subsídios à
Filologia e vice-versa. Em ambos os trabalhos, é requerida prática constante e atenção quase
que exclusiva do profissional pesquisador, para proceder com à análise e à transcrição do
documento, observação do tipo de escrita e ao manuseio do manuscrito antigo.
Márcia Almada (2012) adverte que
Nessa mesma direção assinala Alícia Duhá Lose (2016), “[...] a leitura e transcrição de
documentos manuscritos é trabalho de profissionais de variadas áreas, sendo a mais evidente
delas a Paleografia e paleógrafos costumam ser os profissionais mais diretamente relacionados
à leitura de documentos manuscritos.”
A práxis filológica não se caracteriza por uniformidade, logo, deve-se levar em
consideração que, em se tratando de textos de teor jurídico, o assunto em questão se torna ainda
mais preocupante, como salienta Martinez Ortega: são parcos os trabalhos que se debruçam
sobre eles. Há uma defasagem das investigações publicadas, devido principalmente à
diversidade de campos que deveriam abarcar o legal, o histórico, o paleográfico e o filológico.
(MARTÍNEZ ORTEGA, 1999).
ANTROPÔNIMIA E FILOLOGIA
116
A Antroponímia (vertente da Onomástica) estuda os nomes
próprios das pessoas, quer sejam prenomes ou apelidos de família, e tem grande relevância para
a história política, cultural e institucional de um povo. Alia-se à Antroponímia, à Filologia,
“ciência antiga e versátil” no dizer de I. Castro (1995). O labor filológico é antigo e nasce
dialógico, visto que seu objeto − estudo da linguagem humana, seus registros escritos e sua
cultura − são bastante diversificados e requer do filólogo uma postura versátil e abrangente.
O estudo filológico, iniciado pelo processo de edição de texto, oferece inestimáveis
contribuições para os estudos antroponímicos, assim como este também contribui para os
estudos filológicos (ajuda mútua). Estabelece-se, desse modo, uma visível aliança entre essas
duas vertentes do saber: Filologia e Antroponímia. Estas, em um processo de retroalimentação,
se coadunam em um só propósito: desenvolvimento do conhecimento nos diversos saberes
evocados no exercício dessas vertentes, que são originalmente interdisciplinares
(CALCABRINE, 2013).
Bruno F. Basseto em Elementos de Filologia Românica acrescenta dizendo que,
O trabalho filológico tem por objetivo a reconstituição do texto, total ou parcial, ou a
determinação e o esclarecimento de algum aspecto relevante a ele relacionado.
Estende-se desde a crítica textual, cujo objeto é o próprio texto, até as questões
histórico-literárias, como a autoria, a autenticidade, a datação etc., e o estudo e a
exegese do pormenor. (BASSETO, 2005)
O trabalho ora apresentado terá seu foco sobre as variantes gráficas no léxico
antroponímico. Mais especificamente, os antropônimos encontrados no Livro III do Tombo do
Mosteiro de São Bento da Bahia.
No Livro III do Tombo é possível se fazer um estudo linguístico relacionado à
Antroponímia nos manuscritos, graças a Filologia, enquanto Critica textual, que oferece
condições propicias para o estabelecimento e o desenvolvimento de tal estudo. O estudo
filológico que se inicia pelo processo de edição de texto, oferece inestimáveis contribuições
117
para os estudos antroponímicos, assim como este também contribui para
os estudos filológicos (ajuda mútua).
[...] Estabelece-se, desse modo, uma visível aliança entre essas duas vertentes do
saber: Filologia e Antroponímia. Estas, em um processo de retroalimentação, se
coadunam em um só propósito: desenvolvimento do conhecimento nos diversos
saberes evocados no exercício dessas vertentes, que são originalmente
interdisciplinares (CALCABRINE, 2013, p.14).
[...] ramo da glotologia, a Onomástica (ou onomatologia, termo usado, ainda hoje, em
Portugal) se dedica a estudar os nomes próprios. Seu objeto de estudo pode ser nome
de pessoa (antroponímia), nome de lugar (toponímia), os nomes de santos
(hagionímia), corpos celestes (astronímia), marcas industriais ou artigos comerciais
(onionímia), os nomes das divindades (teonímia) entre outros (VASCONCELOS,
1928, p. 4).
Mesmo que não haja um significado exato que possa ser atribuído a um nome, já que
nomes próprios são escolhidos de maneira pessoal, ou seja, mudam de pessoa para pessoa
dependendo do meio em que vive e de experiências pessoais, é possível se fazer um
levantamento dos nomes mais comuns à época, como a grande ocorrência de nomes como
Catarina (de Catarina Alvares) durante os primeiros anos do Brasil Colônia, como Floriano
Peixoto durante a instalação do governo republicano, como menciona Dick (1992).
118
Ao considerar a importância do estudo antroponímico nos Livros
do Tombo e suas preciosas contribuições para os estudos filológicos e também para a linguística
histórica, nos documentos de teor notarial que salvaguardam a memória da Bahia e remontam
aos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX, pergunta-se aqui, sobre antropônimos presentes no Livro
III do Tombo, se já há algum trabalho elucidativo no que diz respeito a sua identificação como
actantes ou protagonistas. Quando e onde esses antropônimos (portugueses e espanhóis)
aparecem ou se está esclarecido o fato de um mesmo nome que aparece em mais de um
documento referir-se à mesma pessoa ou se se trata apenas de caso de homônimos. Trata-se do
mesmo documento ou de um documento diferente.
A propósito da grafia dos nomes próprios nos Livros do Tombo, dentro do que se acha
relacionado à Paleografia, dois fatos gráficos vêm à lembrança: a grafia Belxior (no LVT) ou a
grafia Belxor (no L3T), que num estudo grafemático-fonético documenta a pronúncia do nome
Belchior com uma realização de sibilante palatal sonora [], grafada <x>. Outro fato ligado
diretamente à transcrição paleográfica (ou diplomática) é a identificação e desenvolvimento das
abreviaturas no L3T. Dentro da Antroponímia destaca-se a abreviatura Hel em Cappitão Ro- /
berto da Silva Hel (L3T, 29r, L. 10-11), com a anotação do editor (LIVRO III DO TOMBO,
2016, f. 29r): “No manuscrito Hel.. Abreviatura por letra sobreposta, que parece ser do
sobrenome Gyraldes, escrito com <Hy>. Ver ao f. 51v, Pedro Viegas Gyraldes.” (f. 29r, nota
1). Os dois exemplos de grafia, servem para mostrar como o uso do método paleográfico vem
a auxiliar o estudo da língua do texto (a grafia com <x> para []) ou na resolução da abreviatura
pela comparação com outras grafias registradas no texto (Hel. como abreviatura de Hyraldes
(por Gyraldes).
O primeiro volume da edição diplomático-interpretativa dos Livros do Tombo traz um
índice, com atualização gráfica, de todos os antropônimos registrados nos livros editados
(LOSE, et al. 2016, p. 152-231). É importante salientar, que nesse índice não estão registradas
as variantes lexicais ou as variantes gráficas dos nomes. Basta um exemplo: no Livro Velho do
Tombo existem documentos relativos a “Catherina Alvares”, mas também aparecem as
denominações “Catherina Alvarez Caramurú” e “Catherina Correa”, a partir dos documentos
relativos à posse de terras na Graça. No entanto, no mesmo livro são citadas duas “Catherina
Alvares”: a viúva de Diogo Alvares Correa, o Caramuru, e uma de suas netas também nominada
“Catherina Alvares, neta da velha Caramurua”. A qual das duas mulheres se referem as
nominações? Esta é uma busca que se faz necessária!
119
METODOLOGIA
Para poder levar adiante o trabalho aqui proposto, serão seguidas algumas etapas. Todo
o levantamento dos nomes está sendo feito a partir da edição semidiplomática do livro). Neste
tipo de edição o nível de intervenção no texto é mínimo, mais profundo na conservação, por
parte do editor, se comparada à edição diplomática, e ainda guarda os elementos linguísticos
característicos do texto TELLES, 2009). No caso da edição semidiplomática aqui utilizada
desenvolveram-se apenas as abreviaturas. Este tipo de edição possibilita a preservação do
conteúdo dos volumes, a partir de critérios que restituem e fixam sua forma genuína, garantindo
assim, a fidedignidade necessária para as produções acadêmico-científicas e para a
consolidação do saber.
A partir dessa edição desenvolvida e finalizada pelos voluntários e bolsistas do grupo
de Filologia textual, após o levantamento do corpus em questão, far-se-á a separação, seguindo
a categorização já proposta para os antropônimos, separando-os de acordo com a origem, à
medida que forem registrados.
CONCLUSÃO
Este trabalho é o início de mais uma etapa que tem como protagonista os Livros de
Tombo do Mosteiro de São Bento da Bahia. No trabalho busca-se apresentar o levantamento de
alguns antropônimos contidos nos documentos do Livro III do Tombo.
Em função das peculiaridades dos documentos (sesmarias, testamentos, codicilos, doações), a
relação entre os membros de uma mesma família torna-se indispensável para a vinculação entre
os documentos. É preciso esclarecer, se o mesmo nome que aparece em mais de um documento
refere-se à mesma pessoa ou se se trata apenas de caso de homônimos.
A hipótese, até agora, em função dos inúmeros documentos e da quantidade de nomes é
a de que existe nos Livros do Tombo uma série de repetições devida aos documentos repetidos
(TELLES, 2017).
Esse trabalho é de suma importância para compreender a lógica e a relação entre os
documentos notariais contidos nos Livros do Tombo, visto que muitos dos personagens
históricos citados em um documento são novamente mencionados em outro (ainda que não se
trate do mesmo documento). Esse trabalho contribui ainda para o (re)conhecimento das
120
famílias, dos personagens históricos e protagonistas que deram uma
grande parcela de contribuição na construção da história da Bahia, além de ajudar a
compreender as peculiaridades linguísticas e sociais dos nominativos de pessoas.
Portanto a identificação e o reconhecimento dos antropônimos nesses documentos são
absolutamente necessários para o entendimento do contexto social dos ditos testemunhos.
REFERÊNCIAS
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Editorial, 2003.
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Tombo. CONGRESSO INTERNACIONAL DE ESTUDOS FILOLÓGICOS, 1.
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TELLES, Célia Marques; GAMA, Albertina Ribeiro da.; Perspectivas da filologia textual.
Recife-PE: Grupo de Estudos Linguísticos do Nordeste (GELNE), 2016.
122
ASPECTOS CODICOLÓGICOS E PALEOGRÁFICOS DE UM
TESTAMENTO OITOCENTISTA SERGIPANO
INTRODUÇÃO
CRITICA TEXTAL
Marengo (2018b) afirma que ler escritos de épocas passadas nos exige, além do domínio
estrutural da língua em uso, condições pragmáticas mínimas para entender o discurso que ali se
construiu e que se (re)constrói. Estas tarefas desafiadoras são típicas daquele que se dispõe a
editar um manuscrito. Mattos e Silva (2008) afirma que não se pode desprezar a relação
intrínseca que existe entre os estudos linguísticos de caráter diacrônico, em sua modalidade
estrita, e a Filologia. A autora ainda afirma que não se pode fazer linguística histórica sem
documentação remanescente do passado e, portanto, será o filólogo quem terá a
responsabilidade do seu entendimento e da sua preparação. Seu campo de atuação é o da Crítica
Textual, que tem como objetivo principal a restituição da forma genuína dos textos. Um texto
ao ser reproduzido, por muitas vezes, não condiz com o original. Isto quer dizer que a cópia
contém traços que podem ter sido proporcionados de acordo com a visão de quem o copiou ou,
até mesmo, por adaptações que lhe pareceram necessárias. Isso pode ocorrer, por exemplo, para
tornar a mensagem mais clara ou para a correção de um suposto erro (CAMBRAIA, 2005).
Ainda segundo o autor, a intenção das edições é tornar o texto acessível ao público leitor.
Além disso, é importante ressaltar que essa acessibilidade deve levar em conta a especificidade
do público a quem vai destinada a edição e dos propósitos de sua realização. Ainda que a
facilitação da leitura seja uma das metas, não se pode desprezar a sistematicidade da
metodologia para sua concretização. Assim,
No que se refere à metodologia, deve-se ressaltar que não se pode nem se deve utilizar
qualquer edição de texto do passado para a análise histórico-diacrônica: a edição tem de ser
feita com rigor filológico e com o objetivo claro de servir a estudos linguísticos; há edições
úteis ao historiador ou ao estudioso da literatura ou ao chamado grande público, mas que,
contudo, não devem ser usadas para estudos de história linguística (MATTOS E SILVA,
2008, p.15).
Então, o tipo de edição que devemos utilizar para estudos linguísticos deve atender,
prioritariamente, ao linguista e seus anseios. Cambraia (1999) endossa o predito por Mattos e
Silva (2008) ao afirmar que
124
A viabilização dos estudos diacrônicos depende, sem dúvida, da realização de edições
rigorosas e fidedignas, que ofereçam o máximo possível de informações sobre o texto,
reproduzindo, na medida do possível, todas as características do original e efetuado apenas
aquelas intervenções que se fizessem necessárias para a inteligibilidade do texto (como, por
exemplo, o desdobramento de abreviaturas) (CAMBRAIA, 1999, p. 05).
PALEOGRAFIA E CODICOLOGIA
127
costumes das Dioceses, já na epocha da Independencia
Brasileira, innumeraveis de suas disposições tinhão cahido em desuso (DA VIDE,
1853, p. 05).
NORMAS DE EDIÇÃO
130
18. Os sinais públicos, as assinaturas e rubricas simples, foram
sublinhados e indicados entre colchetes.
INFORMAÇÕES DO CORPUS
131
Faz- se necessário ressaltar que é proibido na Igreja Católica
Apostólica Romana que o sacerdote seja casado ou mantenha relações sexuais. Nesse caso o
Padre Antonio Munis, vivia em companhia de Dona Maria Luisa d' Oliveira, mãe dos seus
filhos. Contudo não cita no testamento se os filhos são legítimos ou se ele os adotou.
DESCRIÇÃO CODICOLÓGICA
132
Fonte: Fotografia do banco de dados Fac-símile do PHPB/SE
O tipo de tinta utilizado para a escrita do documento foi a ferrogálica. Esse tipo de
tinta, pelo alto teor de sulfato em sua composição aliado ao fato de o cartáceo ser de média
gramatura, acaba formando sombras ou quebrando a página como podemos ver nas figuras
abaixo.
Como podemos observar nas figuras acima, o manuscrito apresenta muitas mudanças
de punho, que podem ser justificadas pela tipologia documental do corpus. Esse fato acabou
sendo uma das principais dificuldades que apareceram no processo de edição do texto.
133
EDIÇÃO FAC-SÍMILE
134
Figura ˗ Test PAMT, APJSE, Cx.2153, 01, IX- Fól. 01v
135
EDIÇÃO SEMIDIPLOMÁTICA
[fl.1r]
f1.
Nf 21-
1878
Cidade do Aracajú.
Anno
[fl. 1v]
136
20 Telles. Do que para constar lavo este termo- Eu
Luiz Gonçalves Pedreira França Escri- vaõ que
escrevy.
024
2
Intervenção de terceiros: inseriu uma numeração (38).
3
Intervenção de terceiros: inseriu uma numeração (01).
4
Intervenção de terceiros: inseriu uma numeração (02).
137
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pesquisa que aqui apresentamos traz uma contribuição sobre o caráter prático da
atividade de edição de textos manuscritos. Além disso, traz uma reflexão importante sobre a
aplicação dos critérios metodológicos relativos à seleção e aplicação das normas de edição.
Apontamos, desta feita, a relevância da área de Crítica Textual, circunscrita às suas práticas e
atividades de edições de textos produzidas dentro do rigor filológico, para qualquer que seja o
trabalho que queiramos realizar tendo como suporte o texto escrito.
A partir do assentamento das edições semidiplomáticas dos testamentos e sua futura
disponibilização em um banco de dados diacrônico, o PHPB/SE trabalhará com vistas à
realização de análises linguísticas de viés pancrônico, sob diversas perspectivas, com a
finalidade de remontar o uso da língua portuguesa historicamente no estado de Sergipe a partir,
também, do estudo da história social, e da cultura escrita em nosso Estado.
Com base nas edições que estamos realizando, abrem-se espaços para pesquisas
linguísticas, sociológicas, históricas, antropológicas, religiosa e, sobretudo, sobre a história do
exercício jurídico no nosso Estado.
REFERÊNCIAS
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documentos manuscritos. Recife: UFP/Fundação Joaquim Nabuco, 1994.
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antigos para estudos lingüísticos” In: I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa. São
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139
ASPECTOS PALEOGRÁFICOS NA EDIÇÃO DO REGIMENTO DO
CORO DA SÉ DA BAHIA
Com o passar dos séculos, a escrita vai se modificando. No século XVII, no Brasil
Colonial, predominava a regularidade da escrita, com as letras uniformes e mais harmoniosas,
derivadas ainda dos modelos das escritas gótica e humanística. A partir do século XVIII, porém,
a escrita manuscrita vai perdendo os padrões de rigidez, tornando-se mais pessoal e por isso
mais irregular, passando a apresentar um traçado mais independente, porém rico em ligaduras
e nexos, tornando a leitura mais difícil.
No corpus em análise a escrita cursiva de traços claros e de relativa regularidade não representa
grande dificuldade à leitura. Contudo, por se tratar de fonte primária de caráter normativo, o
Regimento do Coro da Sé da Bahia, manuscrito datado de 1720, traz um léxico de natureza
140
eclesiástica que oferece alguma complexidade à leitura, tanto pela especificidade da temática,
quanto pelas características da língua do século XVIII, que, por vezes, já não é compreendida
por um leitor não especialista. Assim, acredita-se estar contribuindo, com esse estudo, para a
preservação e circulação da memória acerca das práticas culturais e da atividade religiosa na
Bahia colonial.
Destaca-se ainda a importância da realização prévia da edição semidiplomática, por
meio da qual se realizou a leitura, compreensão e posterior transcrição do documento
manuscrito, pois a capacidade de entendimento e decifração dos caracteres da escrita
manuscrita possibilita uma análise mais fiel do teor do documento, evitando frequentes
equívocos, principalmente quando algumas partes do documento estão ilegíveis, seja pela ação
do tempo, borrões, manchas, corrosão, ou outros danos que o suporte possa sofrer.
A SÉ E AS MISSAS CANTADAS
A primeira Catedral do Brasil foi a maior e um dos mais importantes templos que
existiram na colônia, sendo, durante pouco mais de dois séculos, a catedral diocesana do Brasil.
Em sua história, desde a primeira construção provisória, ainda de taipa e coberta de palha, a Sé
Primacial do Brasil presenciou uma série de importantes acontecimentos ao longo dos séculos.
De acordo com Bueno,
situada a uma pequena distância da Casa da Câmara e das Casas de Sua Majestade, a
igreja era uma construção provisória. A Sé definitiva seria erigida em 1553, entre o
hospital e o Colégio dos Jesuítas, no extremo norte da Capital em local escolhido pelo
Governador (BUENO, 2016 p. 110-111).
O novo templo, construído com vista para o mar, passou por diversas reformas e
ampliações. Em meados do século XVIII, atingiu seu estágio mais suntuoso, época em que foi
considerado o mais grandioso templo da América do Sul. Castello (1969) oferece uma descrição
da pomposa edificação à época:
tem magnífico frontispício de pedra, que olha ao mar para a parte ocidental, a obra é
dórica, com duas torres, e três portas para a mesma parte; em cada um dos lados uma
na parte do Sul vê para a praça, e da parte Norte para o Paço Arquiepiscopal: o
pavimento é de mármore, e o teto de cedro incorruptível, com painéis e florões
dourados, que parecem estrelas deste abreviado céu [...]. Treze são as capelas que de
um e de outro lado a adornam, tão excelentes todas, que, sendo tantas, cada qual
pretende ser única (CASTELLO, 1969, p. 284-285.)
141
No contexto do documento é importante ressaltar a relevância dos rituais religiosos e
das missas cantadas na América portuguesa. Conforme analisado por Pereira (2016a, 2016b),
na colônia, seguindo a tradição de origem medieval do ritual da “boa morte”, os cristãos,
orientados por manuais de conduta católicos, preparavam previamente os seus testamentos, nos
quais deviam declarar seu arrependimento pelas faltas cometidas, estabelecer doações para as
instituições pias e para os pobres, além de registrar suas últimas vontades, entre as quais
figurava a solicitação de realização de muitas missas, rezadas e cantadas, como garantia para
que sua alma pudesse alcançar a salvação. Contudo, esclarece a autora, que as práticas que
visam ao reconhecimento do sujeito como bom cristão e à salvação da sua alma, revelam, de
fato um ethos18 construído, ou seja, o testador, ao demonstrar sua disposição à caridade, também
demarca seu papel social e enfatiza a sua condição para entrar no reino do céu (PEREIRA,
2016a).
Quanto às missas cantadas, elas tinham seus momentos já determinados nas Horas
Canônicas e celebrações específicas, tendo o Chantre como responsável, que ficava à frente do
coro e iniciava os salmos:
18
Termo de retórica antiga. A parte que trata dos costumes (VIEIRA, Domingos, 1873, p. 472).
142
Também havia dias determinados para as missas cantadas:
O CORO
A tradição litúrgica, conforme assinala Boróbio (2002), utilizava o canto dos salmos
desde a Antiguidade. A meditação e as preces interiores e silenciosas, enfatiza o autor, são
produtos do racionalismo moderno. Nas celebrações da Igreja, o falar era ritmado. O canto teve
sempre lugar de destaque, pois, como destaca o mesmo autor, a música no contexto litúrgico
exprime a linguagem do inefável, do mistério, constituindo-se em meio de comunicação que
integra, une os fiéis, consolida a comunidade cristã. Conforme João Crisóstomo, um dos pais
da Igreja grega, citado por Boróbio (2002), o canto litúrgico reúne as mais diversas vozes,
conseguindo manter em momento de harmonia o que a estrutura social hierarquizava: homens
e mulheres, ricos e pobres, escravos e homens livres, jovens e velhos. Por volta do século VIII,
surge o coro, ou schola cantorum, composta por monges e localizada em espaço de destaque
na Igreja, reflexo da renovação litúrgica que vai se processando. O canto eclesiástico se
especializa progressivamente e com isso há diminuição da participação da assembleia. O coro
tem então o objetivo de conduzir o canto gregoriano, que se torna cada vez mais complexo e
que é proferido em latim, língua que os fiéis já não dominam (BORÓBIO, 2002; MENEZES,
2006).
O DOCUMENTO
O manuscrito, datado do início do século XVIII, tem caráter diplomático e normativo,
ou seja, enquadra-se como aqueles que, conforme assinala Bellotto (2002, p. 29), “[...]
143
manifestando a vontade de autoridades supremas, devem obrigatoriamente ser acatados pelos
subordinados”. O regimento em análise estabelece o modo de funcionamento do Coro da Sé da
Bahia e é assinado por D. Sebastião Monteiro da Vide. Em 1702, após ser nomeado por D.
Pedro II como Arcebispo da Bahia e Primaz do Brasil, D. Sebastião, que iniciara sua vida
religiosa como jesuíta, chegou a Salvador para ocupar a sede do bispado, onde permaneceu até
1722. Já em 1707, ele organizou o Synodo Provincial19 da Bahia, com o objetivo de regular a
vida religiosa na colônia do qual saíram as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia,
considerado o mais importante documento religioso do Brasil colonial. Conforme assinala
Olivera Hernández (2009), essas Constituições
Pereira (2016b), citando Mott (1977), explica que no período colonial as orações diárias,
mantinham a disciplina estabelecida nos Ofícios divinos, do mesmo modo que a sociedade da
19
Juntas de pessoas eclesiásticas que de diversos caminhos concorrem a um lugar na assembleia. Correspondia
ao Concílio Ecumênico e no século XVIII, chamava-se Synodo Provincial (BLUTEAU, 1728, v. 2, p. 820).
20
Festa annual, que os Christãos celebram, em memória da resurreição de Christo (FIGUEIREDO, 1913,
p.1503).
144
época guardava a observância dos sacramentos e das necessidades de se filiar a uma confraria.
Tudo isso fazia parte da preparação espiritual, que além de garantir a completude do ritual da
“boa morte”, prevenia também contra as diversas epidemias, catástrofes e tentações, que eram
entendidas como castigo de Deus em função dos pecados.
Conforme assinala Mott (1977), a tradição medieval havia dividido o dia em oito
momentos especiais para orações, momento em que a Igreja lembrava aos fiéis as horas
canônicas, por meio do toque dos sinos. As horas do Ofício divino estavam assim determinadas:
à meia noite, as matinas ou vigília; às três, as laudes; às seis da manhã, a prima ou hora do
ângelus; às nove, a terça; e, ao meio dia, a sexta. Às três da tarde, rezava-se noa, e, ao anoitecer,
as vésperas, hora das ave-marias. Antes de dormir, às oito horas, rezava-se rezava as completas.
Para manter o culto solene das catedrais com a participação cotidiana dos seus membros, o ato
litúrgico contava com a presença do Cabido21 que na segunda metade do século XVIII, como
assinalam Silva e colaboradores,
[...] era formado por cinco dignidades (deão, chantre, tesoureiro-mor, mestre-escola,
arcediago), seis cónegos simples, três cónegos de ofício (doutoral,
magistral e penitenciário) e quatro meios cónegos, para além de doze
capelães (que não são capitulares, ou seja, membros do cabido, mas
estão ao serviço da catedral) (SILVA e col., 2016, p. 165-166).
21
Corpo de todos os cônegos de uma Igreja catedral (BLUTEAU, 1728, v. 2, p. 17).
145
sair, os horários das missas, a hierarquia e as tarefas do Cabido e dos demais componentes do
coro.
DESCRIÇÃO SCRIPTOGRÁFICA
146
Transcrição:
31 O primeiro Coro se completa em Prima com a
Antifona de Nossa Senhora e Stella cœli can[ta]da: Man=
damos, que assim se observe. Porém nos dias de Pro[cisso]ẽs,
festas votivas, Officios, e outras occupaçoẽs do Cabido, se
ajuntarâ hum, e [outro Coro], e no fim concluirâ co[m] [a Anti=]
fona de Nossa Senhora, e Stella cœli.
(Regimento do Coro da Sé da Bahia, 1720, fº 42v. L. 23-28). [gifo dos autores]
Figura ˗ reclamo.
Quanto ao traçado das letras, destacam-se algumas maiúsculas mais elegantes e algumas
letras que são traçadas com caudas e hastes mais prolongadas e rebuscadas, oferecendo alguma
dificuldade à leitura, a exemplo das letras <f>, <ʃ (s caudado)> e <l>, especialmente quando
dobrados. O documento é pobre em abreviaturas e não foi observada a existência de sinais
especiais, nem marcas de dobradura.
B fº 46r, L. 8
cc fº 42v, L. 26
147
F
fº 40r, L. 7.
ff
fº 40v, L. 27.
ll fº 39v, L 13
L fº 41v, L. 13
L fº 41v, L. 24
M fº 40r, L. 6
mm fº . 42r, L. 14
S fº 39v, L. 24.
s fº 39v, L. 23
148
Por fim, percebe-se que em algumas ocasiões a tinta corrosiva perfurou o suporte, como
acontece no fólio 40v abaixo, entre outros, dificultando ou mesmo impedindo, às vezes, a leitura
do documento:
a) O texto foi numerado, linha por linha, desde a primeira linha. indicando a
numeração de 5 em 5;
b) A acentuação foi reproduzida fielmente, mantendo-se, inclusive o formato do
atual acento circunflexo nos contextos de futuro "â" como em mandarâ (fl. 39v, L.
27), em que atualmente se emprega o acento agudo, e conservando o til na última
letra do ditongo nasal "aõ", como em declaraçaõ (fl.40.r, L. 15).
c) A separação vocabular no final das linhas foi reproduzida com o sinal gráfico
"=".
d) O uso de maiúsculas e minúsculas foi mantido de acordo com o documento;
e) As abreviaturas foram desdobradas com o uso de itálico.
f) Palavras com leitura duvidosa foram indicadas com o sinal de interrogação entre
colchetes [?];
g) Para as interpolações também foram utilizados colchetes [ ];
149
h) As margens foram reproduzidas fielmente, justificadas do lado direito e
esquerdo;
i) Os números dos fólios foram identificados à margem superior, à esquerda e em
itálico: fl. 39r, fl. 39v, fl. 40r, fl. 41v, etc.
j) Conservaram-se os reclamos, como no original;
k) Os trechos em que a leitura foi impossibilitada foram indicados com o símbolo
da Crux interpretum entre colchetes [†].
150
dificuldade à leitura dos excertos destacados a título de exemplificação ao longo do artigo.
Como fonte de consulta, foram selecionadas, preferencialmente, obras lexicográficas
sincrônicas, com o objetivo de maior contextualização possível.
Antífona sf [do Lat. Antífona]. Versículo, que se entoa antes de um salmo. Primeiras palavras
de um versículo, que, entoadas, dão o tom ao coro. (FIGUEIREDO, 1913, p. 146).
Cabido ou Reverendo Cabido. sm [do Lat. capitŭlum,i ] é o corpo de todos os cônegos de uma
Igreja catedral (BLUTEAU, 1728, v.2, p. 17).
O qual Regimento assim feito, visto, e confe=/rido, como ele se contém, assinamos com os
ditos dous[?]/eleitos, e mandamos aoReverendo Cabido que o lea [?]/e faça ler em torno de
hum mez; findo [†], se re=[...]. Regimento do Coro da Sé da Bahia, cap. IV, 1720, fº 45v, L.
25-28.
Capitular sm. [Do lat. Capitularis] Religioso Capitular. Hum daqueles que tem voto nos
capítulos de sua religião (BLUTEAU, 1728, v.2, p. 128).
Se entrar algum Capitular, ou Ben[e]ficiado a tempo que os mais estejaõ em seus lugares,
farâ pri=/[m]eiro rev[e]renc[ia] â Cruz, como fica dito; e logo aos do [...] Regimento
do Coro da Sé da Bahia, cap. I, 1720, fº 39r, l. 16-18.
Capitulo: sm. [Lat. Capitulum] Cada uma das divisões de um livro, contrato, etc.
(FIGUEIREDO, 1913, p. 371).
Chantre m. [Fr. Chantre]. Dignidade eclesiástica, que dirige o coro (FIGUEIREDO, 1913, p.
425). Aquelle que numa Sé Collegiata, Capella de huma Universicdade, etc tem a direcçaõ do
governo do Coro, entoação do canto chaõ e que tem cuidado, que os officios divinos se celebrem
com devoção, silencio e toda a decência possível (BLUTEAU, 1728, v.2, p. 272).
[...]e nun=/ca hum Coro começarâ o verso, sem que o outro tenha acabado; fazendose diferença no
vagar, ou pressa, en=/tre as festas dúplices, semiduplices, e simplices; cujas/ regras dará o
Chantres, ou Subchantres, e farâ obser=/var o Presidente. Regimento do Coro da Sé da Bahia,
cap. I, 1720, fº 39v, L. 20-25.
151
Hebdomadário adj. [Lat. Hebdomadarius]. Aquelle, que no coro de hum Convento, Capitulo,
ou Collegiada preside pelo espaço de huma semana, entoando as oraçoens,etc. (BLUTEAU,
1728, v.4, p. 11).
Homília f. [Lat. Homilia] Exortações; pratica ou sermaõ ao povo (BLUTEAU, 1728, v.4, p.
49). Prática sobre coisas de religião; catechese. (FIGUEIREDO, 1913, p. 1037).
[...] sorios [†], versos, Absolviçoes, Bençoes, Textos dos E=/vangelhos antes das Homílias,
Canticos, Oraçoes, Com=/memoraçoes, âs Antifonas finaes de Nossa Senhora [...]. Regimento
do Coro da Sé da Bahia, cap. II, 1720, fº 40v, L. 11-13.
Laudes f. [Do lat. laus, laudis ] Hora canônica e segunda parte do Oficio divino, que se segue
imediatamente às Matinas (BLUTEAU, 1728, v.5, p. 54).
Os dias, em que as Matinas e Laudes se haõ de cantar, saõ as seguintes. Dia de Natal, dia de
Pascoa, [...] Regimento do Coro da Sé da Bahia, cap. III, 1720, fº 42r, l. 18-19.
[...] Coro pelos Moços delle: salvo o Presidente, Mestre Esco=/la, ou algum official no que
tocar ao seu officio; e naõ as cousas particulares, salvo se for dizer Missa, que poderá levar hum
para o ajudar. Regimento do Coro da Sé da Bahia, cap. I, 1720, fº 39v, l. 28-31.
[...] voltar della. Porém se o Capitulante estiver com ca=/pa pluvial no plano da Capella ou no
Presbyterio; so a elle se farâõ as reverencias: o qual as recebera com a cabeça descoberta,
porem naõ se levantarâ. Regimento do Coro da Sé da Bahia, cap. I, 1720, fº 39v, L. 13-16.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
152
história da língua portuguesa, permitindo entender o pensamento e o comportamento humano
em épocas passadas.
Como assinalam Borges e Souza (2012), a edição semidiplomática é marcada pela ação
menos interventiva que a edição interpretativa e mais interventiva do que a diplomática, por
isso, através dessa mediação, pode-se obter ricos dados históricos, culturais, sociais e políticos
refletindo assim o mundo de ontem e o de hoje, contribuindo para a preservação e a
continuidade das práticas culturais acerca da atividade religiosa na Bahia colonial.
O glossário dos termos eclesiásticos utilizados no documento, que será posteriormente
ampliado no âmbito da pesquisa, incluindo termos presentes em outros documentos da mesma
natureza, contribui para a compreensão do contexto da época, bem como das práticas religiosas
estabelecidas pela Igreja Católica na América portuguesa e que impactavam a realidade da
colônia.
Este trabalho corrobora a importância de recontar a história das sociedades através da
recuperação e conservação dos arquivos em documentos notariais pertencentes a instituições
religiosas. Destaca-se ainda a relevância do exercício da prática de edição como estratégia de
aprendizado para os discentes na iniciação à pesquisa científica.
REFERÊNCIAS
ACIOLI, Vera Lúcia Costa. A escrita no Brasil Colônia: um guia para a leitura de
documentos manuscritos. Recife. UFP/Fundação Joaquim Nabuco/Massangana, 1994, p.5.
BORGES, Rosa; SOUZA, Arivaldo. Filologia e edição de textos. In: BORGES, Rosa.
SOUZA, Arivaldo Sacramento de Souza; MATOS, Eduardo Silva Dantas de; ALMEIDA,
Isabela Santos. Edição e Critica Filológica. Quarteto: Salvador, 2012.
153
BUENO, Eduardo. A coroa, a cruz e a espada. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2016.
MENEZES, Ivo Porto de. Arquitetura Sagrada. São Paulo: Edições Loyola, 2006.
Disponível em <https://books.google.com.br/books?id=zekblT-
xnjsC&pg=PA107&dq=o+coro+na+arquitetura+ da+igreja&hl=pt->. Acesso em: 14 out.
2017.
MOTT, Luiz. Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o calundu. In: SOUZA, Laura de
Mello e (Org.). História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América
portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1977. p. 155- 220.
154
VIEIRA, Domingos. Grande diccionario portuguez ou thesouro da língua portuguesa.
Porto: Ernesto Chardron e Bartholomeu H. de Moraes. 1871-1874. 5 v.
155
ASPECTOS PALEOGRÁFICOS DE UM CÓDICE DO SÉCULO XVI:
VISITAÇÃO DO SANTO OFÍCIO À BAÍA DE TODOS OS SANTOS
INTRODUÇÃO
Neste aspecto busca-se identificar e descrever os punhos que redigiram o LRC. Nessa
perspectiva, a Paleografia24 é a ciência que fornecerá as bases necessárias para tal análise. O
tipo de letra empregado ao longo de todo o códice é a bastarda, variedade da humanística
22
Em 2 de março de 1591, Heitor Furtado de Mendonça foi nomeado pelo inquisidor geral “para visitador dos
bispados de Cabo-Verde, São Tomé, Brasil e administração de São Vicente ou Rio de Janeiro, chegou à capital
baiana com o governador D. Francisco de Sousa em 9 de junho, domingo da Santíssima Trindade” (ABREU, 1922,
p.7).
23
O notário, padre Manoel Francisco acompanhou a comissão da Primeira Visitação do Santo Ofício, para ser o
redator dos atos públicos. A profissão de notário corresponde nos dias atuais à de tabelião, sendo que os notários
eclesiásticos ainda subsistem. Consoante se verifica nos Regimentos da Inquisição de 1774, os Notários do Santo
Ofício “serão clérigos de Ordens Sacras, que saibam bem escrever; de suficiência, e capacidade conhecida, para
poderem cumprir a obrigação de eu Officio: Podendo se achar Letrado, terão preferencia; e todas as qualidades”.
24
Acioli (1994, p.5) define a Paleografia como ciência que estuda a escrita antiga: “Sua designação é grega e
significa: palaios = antigo e graphien = escrita”.
156
cursiva. A referência mais importante dessa modalidade de humanística é descrita no manual
de Giovani Francesco Cresci, Essemplare di piu sorti lettere25, publicado em 1578.
O punho que redige todo o corpo do texto do LRC é do notário Manoel Francisco. À
margem esquerda das confissões, observam-se anotações, cuja hipótese aventada é de que estas
pertencem ao visitador Heitor Furtado de Mendonça. Ademais, aparecem outros tantos punhos
dos depoentes que assinaram as confissões. A seguir, reproduz-se, na Imagem 1, o fólio ||1v.||
do LRC, no qual constam os procedimentos adotados para efetivar a visitação,26 conforme se
observa a seguir:
Figura – Fólio ||1v.|| do LRC.
25
CRESCI, Giovanni Francesco. Essemplare di piu sorti lettere. Disponível em:
http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k58909h/f2.item.zoom. Acesso em: 28 set. 2017.
26
No Regimento do Santo Ofício de 1640 consta que o visitador “3º. Procurará quanto for possível, começar a
visita nos Bispados, pelas cidades onde o Bispo residir; e, antes de entrar nela, avisará com tempo por carta as
justiças, e oficiais da Câmara, do dia da entrada, enviando-lhe as cartas de sua majestade, para que o venham
receber, e o possam como comodidade apresentar.” (SANTO OFÍCIO, 1640, p. 717).
157
Na Tabela 1, reproduz-se o punho do notário Manoel Francisco, cujos grafemas estão
estruturados a partir das ocorrências na posição inicial, medial e final.
Alfabeto do punho do notário Manoel Francisco
Letra A
Letra B
Letra C
Letra D
Letra E
Letra F
Letra G
Letra H
Letra I
Letra J
Letra L
Letra M
Letra N
Letra O
Letra P
158
Letra Q
Letra R
Letra S
Letra T
Letra U
Letra V
Letra X
Letra Y
Letra Z
Os caracteres ou letras são próximos ao modelo desse tipo de escrita, o que permite uma
leitura sem maiores dificuldades.
ABREVIATURAS DO LRC
159
Abreviaturas por sinais gerais:
Suspensão ou apócope – supressão de letras no final da palavra.
Referido (a, os, as)
christão/ chirstã
Folha
Bispo
Senhor
tempo
Fernandes
Pires
misericórdia
Rodrigues
160
Gonçalves
Francisco solteiro
nossa Jnteira
Pero Magestade
Licenciado testemunhas
Francisco padeira
Notario officio
Moradora antonio
Hum homem
Nem pellas
161
Huns
que
que
quem
christão/ christã
Confissão
Jtem
Item
Item
162
Chrispouã
scilicet
christo
domjnus
27
A definição de Houaiss é mais ampla; alógrafo, para ele, é “[...]cada letra ou conjunto de letras que representa
um mesmo fonema” (HOUAISS, 2009). Para Faria e Pericão (2008, p. 46) designa “nome dado aos signos
diferentes que servem para representar uma mesma letra”.
163
As letras ramistas no LRC
A variação alográfica na representação dos fonemas /i/ e /u/, /ʒ/ e /v/ é prática usual no
período. Dentre os alógrafos empregados, <j> e <v> são denominados de letras ramistas e
convivem com <i>, <u> e <y>. Para Araujo (2007, p. 17), “[...] a oscilação entre caracteres
remete à própria formação do alfabeto latino, na medida que <j> e <v> passam de variantes
caligráficas a letras distintas de <i> e <u>”. A distinção entre tais grafemas é atribuída a Pierre
de la Ramée, humanista francês que nasceu no século XVI, autor de obras diversas, dentre as
quais a Grammaire Française (1572), na qual se apresentam as particularidades entre o <i> e o
<j> e entre o <u> vocálico e o <v> consonantal (ARAUJO, 2007).
Na representação de /v/ e de /u/, empregam-se as duas variantes caligráficas <u> e <v>.
Conforme se exemplifica a seguir:
uaso uezes
hauer uelho
visitador salvador
visitação
O grafema <j> tem uso muito recorrente ao longo de todo o texto, seja para representar
/i/, seja para representar /ʒ/. Seguem exemplos:
bajxo trazejro
cjma sodomja
foj
164
yulho foy cydade
A ocorrência de tais alógrafos observa-se em maior número com os grafemas <u> e <j>;
e, em menor número, os grafemas <y> e <v>.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Coube à análise paleográfica descrever o punho que redigiu o LRC, com a descrição do
alfabeto que compõe o punho do notário Manoel Francisco. Nessa perspectiva, procedeu-se ao
levantamento do alfabeto, das abreviaturas observadas no LRC, além da conceituação e
identificação das letras ramistas.
Na essência do estudo paleográfico, localiza-se o LRC, cuja contribuição do ponto de
vista social, pelos fatos que descreve, hermeneuticamente, em relação ao conhecimento da
cultura e dos fatos ocorridos durante um período da Inquisição no Brasil. Quando se sabe que
ainda existem lacunas relativamente ao conhecimento da língua portuguesa do século XVI, uma
vez que se trata de um documento não literário, confiável pelo caráter filológico que busca a
preservação da escrita da fase quinhentista, constituindo-se em repositório para futuros
pesquisadores.
REFERÊNCIAS
ARAÚJO, Nelson. 1591, a Santa Inquisição na Bahia e outras estórias. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1991.
165
FARIA, Maria Isabel Ribeiro de; PERICÃO, Maria da Graça. Dicionário do livro: da escrita
ao livro eletrônico. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.
FLEXOR, Maria Helena Ochi. Abreviaturas: manuscritos dos séculos XVI ao XIX. Rio de
Janeiro: Arquivo Nacional, 2008.
MEGALE, Heitor; TOLEDO NETO, Sílvio de Almeida. Por minha letra e sinal:
documentos do ouro do século XVI. Cotia: Ateliê, 2005. (Série Diachronica, 1).
166
O LIVRO DOS NOMES: PROSOPOGRAFIA DOS IRMÃOS DA SANTA
CASA DE MISERICÓRDIA DA PARAÍBA
INTRODUÇÃO
167
signos, abreviaturas, vícios de escrita, entre outros, e por fim a conseguir realizar os devidos
estudos prosopográficos.
A Paleografia é a ciência que através de estudos, permite decifrar manuscritos antigos,
de maneira que através dela seja possível julgar sua idade, compreender o contexto de produção
dos documentos, a evolução da escrita, tornando o documento com conteúdo acessível a todos
os interessados. Tem como base a Filologia, que consiste no conhecimento e interpretação dos
testemunhos escritos.
168
A prosopografia é a investigação das características comuns de um grupo de atores na
história por meio de um estudo coletivo de suas vidas. O método empregado constitui-
se em estabelecer um universo a ser estudado e então investigar um conjunto de
questões uniformes – a respeito de nascimento e morte, casamento e família, origens
sociais e posição econômica herdada, lugar de residência, educação, tamanho e origem
da riqueza pessoal, ocupação, religião, experiência em cargos e assim por diante.
(STONE, 2011, p. 115)
Neste sentido, o objetivo geral desse artigo é realizar uma análise paleográfica do Livro
dos nomes dos Irmãos da Santa Casa de Misericórdia da Paraíba, a fim de que seja possível
fazer um estudo prosopográfico. E como objetivos específicos elencamos os seguintes: realizar
a transcrição paleográfica do índice do livro dos nomes dos irmãos contribuintes da Santa Casa
de Misericórdia na Paraíba; mapear os dados referentes aos irmãos contribuintes, no que diz
respeito à profissão, nacionalidade, naturalidade e investigar o quantitativo real de irmãos
contribuintes.
169
Figura ˗ Termo de Abertura
170
Figura ˗ Termo de Abertura
No termo de abertura consta a data de dois de novembro de 1872, lavrada pelo provedor
Lindolfo José Corrêa das Neves, e produzido primeiramente pelo escrivão José Marques
Camacho, sendo produzido posteriormente por diversos escrivães no decorrer do tempo,
registrando o crescente número de irmãos. A escrita é cursiva e de acordo com a época, é
parcialmente de fácil compreensão, tendo em vista, que a escrita varia porque passaram diversos
escrivães pela instituição, com isso, as letras presentes no documento acompanham essas
variações no decorrer de sua elaboração.
Não se sabe, ao certo, se a nomenclatura correta da tipologia documental era Livros dos
Nomes, mas ao analisá-lo, observa-se que, a lista de irmãos que contribuíram para com a
SCMPB é extensa. No decorrer do tempo, várias documentações referentes aos irmãos foram
perdidas devido ao armazenamento inadequado, a falta de cuidados e noções de preservação e
conservação de documentos, também é importante citar neste ponto que no decorrer da
produção, acumulação e arquivamento, houve mudanças nos locais de custódia, ou seja, ao
transferi-los de um prédio para o outro, pode ter ocorrido perda da informação.
Pode-se observar que no livro, descreve que desde “7 de agosto de 1696 a mesa ordenou
trasladar um livro que já estava muito danificado, com os nomes do irmãos vivos e mortos”
(Livro de Registro dos Irmãos, ARQUIVO DA SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DA
171
PARAÍBA). Isso significa dizer que, antes do livro que é o objeto deste estudo, já existia um
outro livro - semelhante a este - específico com os nomes dos irmãos e delineando quais estavam
vivos e falecidos.
O Livro de Registros dos irmãos da Santa Casa de Misericórdia, é uma tipologia que
não possui uma função específica, mesmo assim o conjunto de informações encontradas nele
pode ser de base para diversos estudos, inclusive um estudo prosopográfico, tal qual está sendo
feito neste trabalho. Conforme a análise realizada, foi possível certificar que ele foi elaborado
para realizar o controle dos irmãos e suas respectivas contribuições.
METODOLOGIA
172
Figura ˗ Ficha de Identificação no Corpo do Texto
173
inferência pelo fato de vê-la várias relações verdadeiras e compreensões a respeito dos dados
coletados. Segue abaixo a análise paleográfica aplicada a tipologia citada.
Análise paleográfica
Aspectos Gráficos:
a) Tipo de letra: Humanística;
b) Ductus: Cursiva;
c) Traços adicionais: Uma escrita regular, traço da letra varia devido aos diversos escrivães
que passaram no decorrer do tempo;
d) Automatismo: Palavras afastadas, com traços que facilitam o entendimento.
e) Peso da escrita: Não foi possível identificar;
f) Módulo: Letra média e fácil compreensão, com tamanho normal;
g) Ângulo da escrita: Tombada à esquerda;
h) Relação usual/canonizada: canonizada;
i) Relação maiúscula/ minúscula: São variadas as letras maiúscula e minúscula;
j) Distribuição das palavras: Não identificado;
k) Pontuação: Ponto final, traço;
l) Acentuação: acento agudo, circunflexo, til e aspa;
m) Numeração romana/ arábica: há diversos números arábicos;
n) Sinais taquigráficos: Não existem;
Aspectos materiais:
a) Suporte da escrita: documento escrito em suporte papel em bom estado;
b) Instrumento da escrita: não identificado
c) Tinta: ferrogálica
d) Encadernação: documento encadernado;
e) Dimensão: 36,5x40,15x7;
f) Estado de conservação: parcialmente em bom estado, apresentando furos, folhas
amareladas;
Aspectos complementares:
a) Época do documento: 2 de novembro de 1872
b) Origem do documento: Consistório da Igreja de Santa Casa de Misericórdia da Paraíba.
174
c) Relação autor/ escrita: Holográfo
d) Relação original/ cópia: Original
e) Localização em arquivo: Arquivo da Igreja da Misericórdia, João Pessoa.
Apresentação da transcrição
A transcrição não constará completa neste trabalho devido à grande quantidade de páginas, cuja
somatória deu 46 folhas, apenas a transcrição do índice da letra ‘A’ á ‘T’. As letras que mais
constam nomes de irmãos, são as letras ‘A’ e ‘J”, colocou-se a transcrição e abaixo foto de
como o documento se encontra. E em seguida, estão os demais resultados referentes à
nacionalidade, naturalidade e profissões.
ÍNDICE
175
Andre Dias de Figueiredo Folha 1
André de Barros Rêgo f. 2
Antonio de Sampaio f. 3
Govor. Antônio Velho Coelho f. 4
Antonio de Vasconcellos f. 5
Alberto de Cosme Ramos f. 8
Pe. Antonio Fernandes de Bastos f. 8
Agostinho Carvalho f. 9
Capm. Antonio de Andrade Bezerra f. 9
Alferes Antonio Affonso Lima f. 11
Antonio Cavalcante de Albuquerque f. 13
Govor. Antonio Fernani Castello Branco f. 16
Capm. Agostinho Cesar de Andrade f. 16
André Ferreira Ferraz f. 17
Antonio Fernandes f. 18
176
C
Alferes Cosme de Abreu Cunha f. 5
Christovão de Hollanda Figuêroa f. 25
Caetano de Mello Franca f. 36
Custodio Martins de Carvalho f. 41
Caetano Francisco Fomes f. 42
Clemente de Amorim e Souza f. 49
Cornelio Correia da Silva f. 52
J
José Soares Folhas 1
João do Rego Barros f. 2
João de Barros Vasconcellos f. 3
177
Jeronimo José de Mello Casto f. 3
Govor. João da Gama f. 4
José Freire Leitão f. 4
João de Abreu Castello Branco f. 4
João Nunes Lôto f. 4
João Bernardes Ribeiro f. 6
Alfes. João Lopes Fragôso f. 7
Capm. João de Araujo Freitas f. 7
N
Nuno Maria de Seixas f. 199
Noberto Fabio de Oliveira e Mello f. 248
Noberto José Ferreira Guimarães f. 263v
Neóphito Fernandes Bonavides f. 281
178
O
Orneville Victo de Moraes f. 210
Odorico da Silva Ramalho f. 271
Dor. Odilon Fernandes de Carvalho f. 276
Orestes de Azevêdo Cunha f. 281
Dr. Octavio Celso Novaes f. 289
P
Pedro Mendes Lisbôa Folhas 13
Capm. Paulo de Almeida f. 17
Pedro Affonso Vianna f. 18
Pedro Teixeira de Mattos f. 24
Pedro de Souza f. 32
Pe. Pedro Tavares da Silva f. 36
Pe. Pedro Velho Gondim f. 37
Q
Quintino Pavão de Vasconcellos f. 264v
T
Pe. Thomé Gomes de Bulhões Folhas 25
Dor. Thomaz da Silva Pereira f. 43
Capm. Theodoro de Lemas Duarte f. 46
Thomaz d’Aquino e Vasconcellos f. 65
Capitão Trajano Antonio Gonsalves de Medeiros f. 98
Thomaz de Aquino Costa Cirne f. 105
Trajano Antonio Gonsalves de Medeiros Jr. f. 107
Thomaz da Silva Carneiro f. 122
Cadete Trajano José Rodrigues Chaves f. 125
179
Partimos de uma análise aplicada a três variáveis: nacionalidade, naturalidade e profissões.
Construiu-se gráficos a fim de representar o somatório dos irmãos e a frequência que tais
elementos aparecem. O livro de registro de irmãos contém 1815 irmãos. Seguem os dados
abaixo.
Tabela 1
Nacionalidade
Brasileira 798
Estrangeira 119
Não Identificados 898
Total 1815
Fonte: elaboração dos autores.
Gráfico
Tabela 2
Nacionalidade dos Estrangeiros
Portuguesa 116
Espanhola 2
Italiana 1
Total 119
Fonte: elaboração dos autores.
180
Gráfico 1
Tabela
Naturalidade dos Brasileiros
Paraíba 666
Rio Grande do Norte 18
Pernambuco 65
Bahia 6
Piauí 2
Rio de Janeiro 2
Rio Grande do Sul 5
Sergipe 2
Goiás 1
Ceará 5
Maranhão 6
Espírito Santo 1
Pará 2
Não Possuíam Naturalidade Identificada 17
Total 798
181
Fonte: elaboração dos autores.
Gráfico
1901ral
1901ral
1901ral
1901ral
1901ral
1900ral
1900ral
1900ral
1900ral
1900ral 1900ral1900ral1900ral1900ral1900ral1900ral1900ral1900ral1900ral1900ral1900ral
1900ral
Foi possível identificar que os irmãos registrados eram, em sua maioria, brasileiros, e
vinham de diversos estados da federação brasileira, principalmente do estado da Paraíba,
sendo o município de maior frequência “Parahyba do Norte”, atual João Pessoa. Em seguida,
vem o estado de Pernambuco. Constam também, inúmeras Freguesias e Villas portuguesas,
sendo a do Porto com maior frequência.
Observação: as profissões que são da mesma área foram colocadas juntos e o quantitativo
encontra-se de maneira respectiva.
Tabela
Profissão
Academico/ Professor 5/7
Advogado 21
Agencias 4
Agente de Leilões 1
Agricultor 86
Alfaiate 1
Artista 4
Bacharel 2
182
Chefe do Palacio do Estado 1
Caixeiro 11
Clérigo/ Sacerdote/Vigário/Presbitero/Eclesistico 1/43/ 6/1/1
Coadjutor 1
Comerciante/Negociante 142/91
Despachante de Alfandega 1
Empregado 11
Empregado de Ofencios 1
Empregado no Comercio 9
Empregado Público 233
Engenheiro 2
Engenheiro Militar 1
Escrivão 3
Estudante 7
Guarda de Alfandega 2
Juiz Municipal 2
Magistratura 44
Marchante 3
Maritimo 1
Medico 12
Militar/Oficial do Corpo de Policia 44/1
Oficial de Carapina 1
Oficial de Carpinteiro 1
Oficial de Pedreiro 3
Oficial de Sapateiro 1
Ouvires 1
Pharmaceutico/ Droguista 7/1
Proprietário 6
Sem oficio 1
Sollicitador 4
Tabelião Publico 4
183
Gráfico
1900ral
1900ral
1900ral
1900ral
1900ral 1900ral
1900ral 1900ral
1900ral
1900ral 1900ral 1900ral
1900ral 1900ral
1900ral
1900ral
As profissões dos irmãos variam das mais simples às mais complexas, tendo em vista
que qualquer pessoa poderia se tornar Irmão da Santa Casa de Misericórdia, bastava apenas
realizar uma contribuição mensal, a chamada joia. Durante análise, foram identificadas páginas
do livro escrito “sem efeito”, isto era escrito quando algum irmão deixava de contribuir com o
pagamento. Das profissões analisadas, obtiveram maior frequência Empregado Público com
231, seguido de Comerciante com 142, e negociante 91, por último agricultor com 86. Vale
salientar que apareceu “Sem Ofício”, com frequência 1.
De acordo com os resultados, pode-se observar que o livro de registros dos irmãos possui uma
grande variedade e quantidade de informações significantes para o contexto administrativo da
Santa Casa de Misericórdia da Paraíba.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após as pesquisas e análises, foi chegada à seguinte conclusão, o livro de registro dos irmãos
de caridade da Santa Casa de Misericórdia da Paraíba é de suma importância para instituição,
por apresentar os dados característicos e singulares dos irmãos que contribuíram diretamente
184
na construção da irmandade. Além disso, foi possível observar que poucas Santas Casas
possuem essa tipologia, sendo mais específicas, apenas as mais antigas.
A Santa Casa de Misericórdia da Paraíba a quarta mais antiga do Brasil, ela foi
contemplada com esta documentação, assim como, o todo o acervo, rico em informações de
cunho religioso, biográfico, o que torna possível realizar estudos tantos sociais, quanto de
caráter administrativo e religioso; exemplo das profissões que tais irmãos exerciam, além de
saber o quantitativo real dos que contribuíram com a irmandade. O documento em analise
permite também observar alguns personagens importantes para a história da Paraíba, e a
participação da elite paraibana na Santa Casa de Misericórdia, abrindo possibilidade para
inúmeras pesquisas.
A documentação identificada e transcrita possibilita acesso a diversos pesquisadores,
estudantes, comunidade local, como também, tornar pública proporcionando acesso a pessoas
de outros locais.
REFERÊNCIAS
BERWANGER, Ana Regina et al. Noções de paleografia e diplomática. 3. ed. Santa Maria:
Editora UFSM, 2008.
GARDIN, J.C. et al. La logique du plausible: essais d’epistemologie pratique. Paris: Maison
de Sciences de L’Homme, 1981.
LIVRO DOS NOMES. Arquivo da Santa Casa de Misericórdia. João Pessoa, 1872.
RICHARDSON, Roberto Jarry. Pesquisa Social: métodos e técnicas. 3. ed. São Paulo: Altas,
2011.
185
STONE, Lawrence. Prosopografia. Revista Sociologia e Política, Curitiba, v. 19, n. 39, jun.
2011. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
44782011000200009>. Acesso em: 28 ago 2017.
186
BREVE INSTRUCÇAM PARA ENSIGNAR ADOUTRINA CHRISTAÃ,
LER EESCREVER AOS MENINOS: NOTÍCIAS SOBRE UM
“MÉTODO” PARA A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA NO BRASIL
DO SÉCULO XVIII
Na segunda metade do século XVIII, por meio da atuação de Sebastião José de Carvalho
e Melo, o Conde de Oeiras, depois Marquês de Pombal, na condição de Ministro e Secretário
de Estado dos Negócios do Reino, durante o governo de D. José I (1750-1777), a reestruturação
do espaço político-administrativo promovida na América portuguesa refletiu na reconfiguração
das relações entre autoridades civis, colonos e indígenas. Com a expulsão da Companhia de
Jesus dos domínios de Portugal em 1759, principal Ordem que era responsável pela catequese
e educação das populações indígenas brasileiras, a Coroa buscou redefinir os rumos da política
indigenista vigente ainda até primeira metade dos Setecentos, caracterizada pela atuação das
Ordens religiosas.
Antes mesmo da expulsão dos jesuítas, como passos iniciais das reformas na política
indigenista, a lei e o alvará com força de lei, respectivamente, de 6 e 7 de junho de 1755 28,
resultantes da ação de Francisco Xavier de Mendonça Furtado, meio-irmão do Marquês de
Pombal, na condição de Governador e Capitão General do Estado do Grão-Pará e Maranhão,
revogaram o sistema de catequese que se baseava em aldeamentos e instituíram a liberdade dos
índios e o casamento entre portugueses e índias, ou entre índios e portuguesas. Essa “nova”
política indigenista implementada pelo então governo ilustrado de D. José I, ratificada pelo
28
LEY, por que Vossa Magestade ha por bem restituir aos Indios do Graõ Pará, e Maranhaõ a liberdade das suas
pessoas, bens, e commercios: na fórma que nella se declara. Lisboa, 6 de junho de 1755. Collecçaõ das leis,
decretos, e alvarás, que comprehende o feliz reinado Del Rei fidelissimo D. José o I. Nosso Senhor, desde o anno
de 1750 até o de 1760, e Pragmatica do Senhor Rei D. Joaõ o V. do anno de 1749. Tomo I. Lisboa: Oficina de
Antonio Rodrigues Galhardo, 1796. Disponível em: <http://legislacaoregia.parlamento.pt/Info/about. aspx>.
Acesso em: 20 maio 2017.
ALVARÁ com força de Lei, porque Vossa Magestade ha por bem renovar a inteira, e inviolavel observancia da
Lei de doze de Setembro de mil seiscentos sincoenta e tres, em quanto nella se estabeleceo, que os Indios do Graõ
Pará, e Maranhaõ sejaõ governados no temporal pelos Governadores, Ministros, e pelos seus principaes, e Justiças
seculares, com inhibiçaõ das administrações dos Regulares, derogando todas as Leis, Regimentos y Ordens, e
Disposiçoens contrarias. Lisboa, 7 de junho de 1755. Collecçaõ das leis, decretos, e alvarás, que comprehende o
feliz reinado Del Rei fidelissimo D. José o I. Nosso Senhor, desde o anno de 1750 até o de 1760, e Pragmatica do
Senhor Rei D. Joaõ o V. do anno de 1749. Tomo I. Lisboa: Oficina de Antonio Rodrigues Galhardo, 1796.
Disponível em: <http://legislacaoregia. parlamento.pt/Info/about.aspx>. Acesso em: 20 maio 2017.
187
alvará com força de lei de 8 de maio de 175829 e, por sua vez, pelo Diretório dos índios,
confirmado pelo alvará de 17 de agosto do mesmo ano30, que passou então a vigorar nas duas
colônias portuguesas na América, previa a extinção do poder temporal e espiritual das Ordens
religiosas, em particular da Companhia de Jesus, sobre as populações indígenas brasileiras,
instituindo o governo civil dos antigos aldeamentos que deveriam então ser transformados em
vilas e lugares31.
Elaborado, em 1757, por Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Governador e Capitão
General do Estado do Grão-Pará e Maranhão (1751-1759), o Directorio, que se deve observar
nas povoaçoens dos indios do Pará, e Maranhaõ em quanto Sua Magestade naõ mandar o
contrario, pelo alvará régio de 17 de agosto de 1758, foi confirmado e estendido ao Estado do
Brasil até sua revogação por meio da carta régia de 12 de maio de 179832. Lei colonial que se
tornou conhecida como Diretório pombalino, ou Diretório dos índios, entre as diversas
questões abordadas ao longo dos seus 95 (noventa e cinco) parágrafos, interessa-nos, em
específico, aquelas que se debruçam sobre a história social linguística do Brasil focalizada nos
parágrafos seis, sete e oito do referido documento. Nesses parágrafos, o governo josefino, por
meio das ações do Marquês de Pombal instituiu uma política linguística de proibição do uso de
quaisquer línguas indígenas e, em particular, da chamada língua geral33, e planejou executá-la
29
ALVARÁ com força de Ley, porque V. Magestade he servido ordenar, que a liberdade, que havia concedido
aos Indios do Maranhaõ para as suas Pessoas, bens, e Commercio, pelos Alvarás de seis, e sete de Junho de mil
setecentos cincoenta e cinco, se estenda na mesma fórma aos Indios, que habitaõ em todo o continente do Brasil,
sem restricçaõ, interpretaçaõ, ou modificaçaõ alguma, na fórma que nelle se declara. Belém, 8 de maio de 1758.
Collecçaõ das leis, decretos, e alvarás, que comprehende o feliz reinado Del Rei fidelissimo D. José o I. Nosso
Senhor, desde o anno de 1750 até o de 1760, e Pragmatica do Senhor Rei D. Joaõ o V. do anno de 1749. Tomo I.
Lisboa: Oficina de Antonio Rodrigues Galhardo, 1796. Disponível em: <http://legislacaoregia.parlamento.pt/
Info/about.aspx>. Acesso em: 20 maio 2017.
30
ALVARÁ, por que Vossa Magestade ha por bem confirmar o Regimento, intitulado: Directorio, que se deve
observar nas Povoações dos Indios do Pará, e Maranhaõ, em quanto Sua Magestade naõ ordenar o contrario.
Belém, 17 de agosto de 1758. Collecçaõ das leis, decretos, e alvarás, que comprehende o feliz reinado Del Rei
fidelissimo D. José o I. Nosso Senhor, desde o anno de 1750 até o de 1760, e Pragmatica do Senhor Rei D. Joaõ
o V. do anno de 1749. Tomo I. Lisboa: Oficina de Antonio Rodrigues Galhardo, 1796. Disponível em:
<http://legislacaoregia.parlamento.pt/Info/about. aspx>. Acesso em: 20 maio 2017. O alvará também se encontra
publicado em Apêndice na obra de Almeida (1997).
31
Segundo Flexor e Ribeiro (2003), apenas uma povoação foi instituída com o título de cidade, a vila de Moucha,
no interior do Piauí, elevada à cidade de Oeiras.
32
Cópia da Carta régia de 12 de maio de 1798 sobre a civilisação dos índios, enviada a Antônio Peres da Silva
Pontes, em 29 de agosto de 1798. In: OLIVEIRA, José Joaquim Machado de. Notas e apontamentos e notícias
para a história da província do Espírito Santo. Revista do IHGB, Rio de Janeiro, tomo XIX, n. 22, p. 161-335,
1856, p. 313-325.
33
Embora compreendamos que a expressão “língua geral” recobre uma série de conceitos e concepções, não nos
ateremos a esta questão no presente estudo. Fazemos uso da expressão “língua geral” no singular, considerando a
forma como se apresenta nas fontes documentais investigadas, a despeito da distinção estabelecida por Rodrigues
(2002), Argolo (2016), Argolo (no prelo), além de outros estudiosos, entre a língua geral paulista, a língua geral
do sul da Bahia e a língua geral amazônica.
188
por meio do ensino escolarizado da língua portuguesa aos meninos e às meninas indígenas,
assim como aos adultos “inclinados” a essa matéria.
Em relação à proibição expressa pelo Diretório dos índios quanto ao uso da língua geral,
e das diversas línguas indígenas, em detrimento da língua portuguesa, bem como à instituição
de escolas para os meninos e meninas indígenas, Lopes (2005) informa que, ao ser estendido
para o Estado do Brasil e enviadas as cópias do decreto pombalino para os Governadores das
Capitanias Gerais, o então Governador de Pernambuco, Luiz Diogo Lobo da Silva, confirmou
não fazer objeção a nada previsto pelo documento e informou às autoridades reinóis ter feito
algumas pequenas alterações, apresentadas na Direcçaõ comque interinamente se devem
regular os Indios das novas Villas, e Lugares, que Sua Magestade Fidelissima manda erigir
das Aldeas pelo que pertence as que estaõ cituadas nesta Cappitannia dePernambuco, esuas
annexas emquanto omesmo Senhor naõ determina o contrario, dando nova emelhor forma pàra
oseu Regimen, assim como na Breve instrucçam para ensignar aDoutrina christaã, Ler
eescrever aos Meninos eaomesmo tempo osprincipios daLingoa Portugueza
eSuaOrthografia34, sendo esta última constituída por uma cartilha e uma instrução para os
Mestres, não apresentadas de forma linear, na medida em que estas orientações direcionadas
aos professores aparecem em meio às regras gramaticais da cartilha.
Embora não seja nossa intenção mensurar a execução das orientações apresentadas nos
documentos acima referidos, é certo que foram pensados com vistas a apresentar as diretrizes
para a implementação da “nova” política indigenista do governo josefino nesse espaço da
América Portuguesa. Considerando, portanto, a importância da Breve instrucçam para uma
compreensão da prática metodológica pensada para a educação escolar indígena no âmbito da
Capitania de Pernambuco e suas anexas (Paraíba, Rio Grande e Ceará), realizamos uma edição
semidiplomática do documento e, partir disso, apresentaremos nesse trabalho breves notícias
do método em questão. Destacamos ainda o caráter único dessa fonte documental, haja vista,
até o momento, não termos conhecimento de outras “cartilhas” que, de forma tão explícita,
apresentem o modelo de educação escolar indígena a ser promovido nos aldeamentos elevados
a vilas no Estado do Brasil, em atendimento ao disposto no alvará de 8 de maio de 1758. Antes,
porém, de discutirmos as questões evidenciadas na Breve instrucçam e, consequentemente, o
34
Ao citarmos esses documentos, apenas nos referiremos, respectivamente, como Direcçaõ e Breve instrucçam.
Embora não apareça a data, inferimos ainda que se trata de documentos de inícios de 1759. Além disso,
identificamos três cópias de ambos documentos, feitas por diferentes scriptors, haja vista as suas características
gráficas. Aleatoriamente, optamos por transcrever a primeira cópia.
189
método proposto, trataremos, em linhas gerais, de alguns trabalhos que nos informam sobre a
educação para índios no referido espaço político-administrativo.
Maria Helena Ochi Flexor (2001), destacando o contexto das reformas promovidas no
reinado de D. José I apresenta a transcrição de uma cartilha35 para ensinar a ler, escrever, contar
e a doutrina cristã, destinada ao ensino dos índios da Capitania de Pernambuco e suas anexas.
Além disso, a autora ainda faz algumas reflexões sobre o processo de civilizar os índios, a partir
da análise das correspondências enviadas a Sua Majestade pelo segundo Ouvidor da antiga
Capitania de Porto Seguro, José Xavier Machado Monteiro, informando ainda sobre a presença
de intérpretes, chamados de “línguas”, nos diversos núcleos, sobretudo da Amazônia, que eram
constituídos por índios de etnias diversas. Flexor (2001, p. 155-156) destaca que o “[...] estudo
do papel do ‘língua’ no século XVIII, bem como o resgate das noções da chamada língua geral,
que a língua portuguesa imposta nesse período pela política pombalina fazia proibir”, seriam
assuntos para outros estudos. Não localizamos, no entanto, uma retomada dessa discussão como
teria sugerido a autora. Em trabalhos posteriores, Maria Helena Ochi Flexor ainda retomou a
discussão sobre a questão da edição da cartilha para o ensino da leitura e da escrita aos meninos
índios no século XVIII (FLEXOR; RIBEIRO, 2003; FLEXOR, 2009), a partir das instruções
de implantação da política pombalina na Capitania de Pernambuco, abrindo, assim, a discussão
sobre a educação para os índios após a saída, teoricamente, dos jesuítas, em 1759. Nesse
aspecto, trata-se de um trabalho pioneiro, mas que não resultou em estudos posteriores.
Embora objetivasse analisar as formas como autoridades locais receberam e aplicaram
a legislação indigenista pombalina, verificando as reações dos colonos e dos índios aldeados
diante da imposição da nova ordem e suas consequências, Fátima Martins Lopes (2005), em
tese intitulada Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande do Norte sob o Diretório
pombalino no século XVIII, dedica uma seção de seu trabalho à educação para índios. O
35
A autora informa de que se trata de uma cartilha simplificada, destinada a facilitar o ensino aos índios, não
esquecendo as instruções da doutrina cristã, misturadas em meio às regras gramaticais e indica a localização: AHU,
Pernambuco, s.d., Cx. 59, Doc. s/n. Em nosso levantamento de fontes, não encontramos, inicialmente, o referido
documento. Localizamos, outrossim, uma Breve instrucçam, onde aparece a cartilha, como anexo 4 ao OFÍCIO
do [Governador da Capitania de Pernambuco], Luiz Diogo Lobo da Silva, ao [Secretário de Estado da Marinha e
Ultramar] Tomé Joaquim da Costa Corte Real, sobre a ereção de vilas nas antigas aldeias dos índios. Recife, 6 de
março de 1759. AHU_CU_015, Cx. 89, D. 7202. Também está transcrita em: ANDRADE, Antonio Alberto Banha
de. A reforma pombalina dos estudos secundários no Brasil. São Paulo: EDUSP; Saraiva, 1978, p. 199-153.
190
percurso seguido pela autora permitiu a identificação das variadas estratégias de dominação e
vigilância dos colonizadores, que, por sua vez, teriam contribuído para a “desestruturação” de
etnias que ainda sobreviviam no período, embora não tenham sido suficientes para extinguir a
população indígena local, haja vista a resistência desses povos ter imposto limites à implantação
das determinações legais, mesmo diante da situação de miserabilidade vivida, além de concluir
que o Diretório pombalino teria obrigado os índios “vilados” a servirem compulsoriamente
como trabalhadores precariamente pagos, assumindo práticas e costumes culturais e políticos
ocidentais-cristãos por meio de “uma educação precária voltada ao objetivo primeiro de
transformar o índio em vassalo útil à Coroa e ignorante sobre a própria terra, língua e cultura”
(LOPES, 2005, p. 9).
Lopes (2005) chama a atenção para o fato de que os Mestres e Diretores escolhidos pelo
então Governador de Pernambuco, Luiz Diogo Lobo da Silva, para atuarem nas vilas de índios
eram soldados e sargentos e, por isso, inábeis para a execução de suas respectivas funções.
Como os índios do Rio Grande do Norte continuavam a falar suas línguas, objetivando debelar
esse costume, a implantação de escolas foi agilizada logo com a chegada dos Diretores em
junho de 1759. Lopes (2005, p. 471) destaca que, em janeiro de 1760, “[…] o Mestre de
Estremoz tinha 160 meninos a quem ensinava português com a cartilha enviada por
Pernambuco e, conforme informou, já tinha uns alunos que por si já tomavam a lição, escreviam
e faziam conta”, sendo tal fato demonstrado pelos exercícios de escrita enviados ao Rei. A
autora ressalta que os referidos “escritos” mencionados seriam cópias do alfabeto minúsculo e
maiúsculo, além de trechos de referência religiosa. Os índios da Vila de Arez, da mesma forma,
teriam feito cópias de trechos religiosos para que os funcionários pudessem demonstrar ao Rei
o adiantamento da civilização por estes empreendido36. Das meninas das mencionadas vilas,
por sua vez, teriam sido apresentados apenas os fiados e mostras das rendas que faziam, o que
atesta uma preocupação com o ensino dos ofícios femininos, sendo desnecessário ensinar as
letras. Embora as escolas tenham iniciado bem, conforme as “mostras” dadas, a autora destaca
que logo também começaram a apresentar problemas relativos à frequência dos alunos,
motivados tanto pela ausência para auxiliar nas atividades de subsistência da família, quanto na
própria distinção entre a educação indígena e a educação europeia e a não adaptação dos índios
a esse modelo educativo.
36
Flexor (2001, p. 155) menciona a existência, no Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), de um material
produzido pelos meninos índios da Amazônia. Também informa de que foram mandadas para o Conselho
Ultramarino, como prova de que as instruções estavam sendo executadas, amostras de fios de algodão, de rendas
de modelos diversos, executadas pelas meninas, e folhas de papel com exercício de escrita dos meninos.
191
Ainda avaliando o papel das escolas, Lopes (2005) destaca que, no Rio Grande do Norte, não
houve a criação de seminário para os estudos avançados dos índios, nem mesmo na Capitania
de Pernambuco, embora se registre a tentativa de educação da elite da terra quando, em 1767,
o Visitador Manuel Garcia Velho do Amaral, Cônego na Catedral de Olinda, levou para a cidade
de Olinda dois rapazes índios para ensinar-lhes latim e lições mais avançadas, com vistas à
formação eclesiástica, mas que não se concretizou. A autora ainda nos informa que, no
levantamento dos habitantes da Capitania de Pernambuco e suas anexas, mandado fazer pelo
Governador José César de Menezes, em 1784, há referências a vilas nas quais os índios
continuavam falando suas línguas, mesmo com a proibição, chegando ao ponto de serem
identificados por suas respectivas línguas (em Estremoz, Portalegre, São José, Arez e Flor),
refletindo, assim, uma estratégia de resistência indígena.
Em termos gerais, Lopes (2005) destaca que, na Capitania Rio Grande do Norte, alguns
índios conseguiram lograr resultados, uma vez que foram localizados registros de indígenas que
se alfabetizaram e participaram da administração das vilas, no entanto a maioria dos índios e
muitos dos que participavam das Câmaras eram analfabetos. Nessa análise, a autora ainda
aponta a falta de professores nas vilas, as queixas de que os mestres não se dedicavam às
crianças, descumprindo os horários de estudos, o acúmulo de funções dos professores por conta
dos baixos provimentos e a necessidade de manter suas famílias, o não atendimento aos
requisitos para a ocupação do cargo de mestre, entre outros fatores que colaboravam para a
precariedade da educação escolar indígena na Capitania Rio Grande do Norte, atestando que o
analfabetismo entre os índios não era uma exceção entre a pobre população colonial. O quadro
apresentado evidencia, nas conclusões da autora, que
Discutindo as mudanças históricas pelas quais passaram os grupos indígenas nas Serras de
Ibiapaba, na Capitania do Ceará, ao longo do século XVIII, procurando entendê-las também a
partir da perspectiva dos índios, Lígio José de Oliveira Maia (2010), na tese intitulada Serras
de Ibiapaba. De aldeia a vila de índios: vassalagem e identidade no Ceará colonial – século
192
XVIII, apresenta dados referentes à educação dos novos vassalos do Rei na Vila Viçosa Real.
De início, o autor faz uma análise do Diretório e dos documentos elaborados pelo Governador
Luiz Diogo Lobo da Silva, com vistas à execução da política pombalina na Capitania de
Pernambuco e suas anexas, como pontuado ao tratarmos do estudo realizado por Lopes (2005).
Em relação, especificamente, à Vila Viçosa Real, transformada vila em 1759, Maia (2010)
informa que o cargo de Mestre ficou sob responsabilidade do soldado Albano de Freitas, que,
em 1761, acumulava também a serventia de escrivão da vila e encontrava-se doente, motivo
pelo qual solicitou sua substituição ao Governador. Na escola para os meninos, havia 63
rapazes, sendo outros 5 enviados para Recife, a fim de que aprendessem ofícios mecânicos,
enquanto que, na escola para as meninas, apenas 40 frequentavam. O autor considera difícil
mensurar o real alcance da apropriação desse ensino pelos índios que se pretendia regular na
vila, mas a preocupação dos pais em retirar suas filhas por causa do mau exemplo da Mestra
parece apontar para um cuidado com os “bons costumes”.
Da mesma forma que para as supracitadas vilas do Rio Grande do Norte, também foram
remetidos ao Rei “escritos” dos índios Pascoal de Sousa de Araújo e Gabriel Saraiva, ambos da
Vila Viçosa Real. Embora não haja exemplos diretos e sistemáticos, Maia (2010, p. 257) destaca
ter sido possível que alguns índios tenham aprendido a escrever em língua portuguesa, “pois no
início do século XIX, há cartas escritas por índios de Viçosa Real, logo, havia também interesse
dos índios no uso desta língua, sobretudo, na defesa de seus interesses”. De qualquer modo, as
similaridades entre os escritos das três vilas demonstram, para o autor, certa uniformização dos
preceitos ideológicos do ensino nas vilas de índios que, de alguma forma, também foram por
eles apropriados.
Para o Governador de Pernambuco, esses escritos seriam formas de comprovar a
inteligência dos índios e suas habilidades, evidências da importância da instrução para essas
populações. Além disso, considerava estar colocando em prática as determinações do Diretório
dos índios satisfatoriamente, com resultados que indicavam um progresso (MAIA, 2010). Não
podemos perder de vista, no entanto, que se trata do entusiasmo de alguém que estava prestando
contas de seu trabalho. De todo modo, Maia (2010) destaca que o período de funcionamento
das escolas em Vila Viçosa Real ainda teria ultrapassado o século XIX, como atesta a
elaboração de um regimento interno da vila, em 1805, pelo então Governador do Ceará, João
Carlos Oeynhausen.
Sobre a implantação da “nova” política indigenista do governo de D. José I,
materializada pelo Diretório, especificamente na Capitania de Pernambuco, podemos ainda
mencionar o estudo de Maria Idalina da Cruz Pires (2004), sob o título Resistência indígena
193
nos sertões nordestinos no pós-conquista territorial: legislação, conflito e negociação nas vilas
pombalinas (1757-1823), o de Elba Monique Chaves da Cunha (2013), intitulado Sertão,
sertões: conflitos e história indígena em Pernambuco no período pombalino (1759-1798), e o
de Anna Elizabeth Lago de Azevedo (2004), sob o título O Diretório pombalino em
Pernambuco. Todos os trabalhos, sobretudo os dois primeiros, retomam a política pombalina
no que diz respeito ao estabelecimento das escolas nas novas vilas e voltam-se para os
encaminhamentos do Governador Luiz Diogo Lobo da Silva, não apresentado, portanto, dados
sobre a execução da política expressa nessa documentação. Precisamos atentar, no entanto, para
o fato de que esses trabalhos não possuem a intenção de fazer uma discussão sobre a educação
escolar nas vilas de índios da Capitania de Pernambuco, apresentada de forma periférica.
Considerando atuação do Governador Luiz Diogo Lobo da Silva na execução das ordens
do Diretório dos índios na Capitania de Pernambuco e suas anexas, na próxima seção,
voltaremos nosso olhar para os documentos que foram produzidos em seu governo como formas
de orientar a execução do decreto pombalino, sendo, portanto, de grande importância para
refletirmos sobre a escolarização das populações indígenas nos sertões do Nordeste.
194
Assim, ao receber cópia do Diretório, possivelmente, entre fins de 1758, da mesma
forma como procedeu o Conde dos Arcos, Marcos de Noronha, Vice-Rei do Estado do Brasil,
o Governador Luiz Diogo Lobo da Silva também fez uma análise dos parágrafos aplicáveis do
decreto à Capitania de Pernambuco e suas anexas e elaborou uma Direcçaõ comque
interinamente se devem regular os Indios das novas Villas, e Lugares, que Sua Magestade
Fidelissima manda erigir das Aldeas pelo que pertence as que estaõ cituadas nesta Cappitannia
dePernambuco, esuas annexas emquanto omesmo Senhor naõ determina o contrario, dando
nova emelhor forma pàra oseu Regimen. Em ofício datado de 6 de março de 175937, ao então
Secretário de Estado da Marinha e Negócios de Ultramar, Thomé Joaquim da Costa Corte Real,
o Governador enviou, para aprovação, a referida Direcção e uma Breve instrucçam para
ensignar aDoutrina christaã, Ler eescrever aos Meninos eaomesmo tempo osprincipios
daLingoa Portugueza eSuaOrthografia, sendo esta constituída por uma Cartilha e uma
Instrução para os Mestres, como mencionamos na introdução.
No referido ofício38, o Luiz Diogo Lobo da Silva faz esclarecimentos quanto aos
motivos para a elaboração dos supracitados documentos, destacando que havia conferido “o
novo regulamento, accomodando o quanto mefoy possível à natureza dos povos, que se
pertendem civilizar […] o qual mando observar emquanto o dito Senhor ohouver por bem e naõ
for servido revogá-lo em todo, ou naquella parte, que lhe pareceo justo”. A Direcçaõ possui
117 (cento e dezessete) parágrafos e mais o modelo de um Termo, que fazem os Directores para
Satisfazerem as obrigaçoens, quese lheencarregaõ, que deveria ser assinado pelos Diretores e
Mestres nomeados. Transcrevemos abaixo o mencionado termo39:
37
OFÍCIO do [Governador da Capitania de Pernambuco], Luiz Diogo Lobo da Silva, ao [Secretário de Estado da
Marinha e Ultramar], Tomé Joaquim da Costa Corte Real, sobre a ereção de vilas nas antigas aldeias dos índios.
Recife, 6 de março de 1759. AHU_CU_015, Cx. 89, D. 7202. Optamos por referenciar as fontes documentais
citadas como notas de rodapé.
38
OFÍCIO do [Governador da Capitania de Pernambuco], Luiz Diogo Lobo da Silva, ao [Secretário de Estado da
Marinha e Ultramar], Tomé Joaquim da Costa Corte Real, sobre a ereção de vilas nas antigas aldeias dos índios.
Recife, 6 de março de 1759. AHU_CU_015, Cx. 89, D. 7202.
39
Na transcrição da documentação, optamos pela edição semidiplomática, utilizando as Normas de Transcrição
de Documentos Manuscritos e Impressos, definidas no âmbito do Projeto para a História do Português Brasileiro
(PHPB), que podem ser consultadas em https://sites.google.com/site/corporaphpb/home. Nesse trabalho, a única
alteração diz respeito a não usar | para definir final da linha, nem || para término do parágrafo. Optamos por manter
como está nas fontes editadas, assim como mantivemos os recuos da paragrafação, quando forem citados trechos
de dois parágrafos ou mais, e dos títulos.
195
lhetoca seguir emtudo o Refferido Directorio, eCartilha gradualmente segundo
anatureza dos habitadores aquesederegiaõ as Refferidas Instrucçoens opermetissem
fosseconducente aCivilizalos comosepertende, paraoque lhes lembrava Ser percizo
obrigallos quanto fossejusto pelos meyos da brandura, eSuavidade, afim deque
ajudados com asua doutrina vencaõ as trevas daignorancia emque seachaõ
embolvidos, paracom oconhecimento da Razaõ, edobeneficio, queSelhes Seguirá
venhaõ com facelidade anaõ lhesercustozo osjustosmeyos, queSelhe offereciaõ para
asua mayor utilidade temporal, eEspiritual, eque elles Director, eMestre tem amayor
gloria, edevem trabalhar com osseu exemplo aconseguila naCerteza deSer o meyo
mais efficaz para asenaõ afastarem danova regularidade, quepelos Seus empregos
ficaõ naobrigaçaõ de lhespropôr; ede como assim oprometeraõ executar, edenão tirar
dos ditos habitadores directa, ou indirectamente Couza alguã, alem doque pelo
mencionado Directorio lhe hé premetido, queSó Receberaõ emquanto Sua Magestade
Fidelissima houver porbem aSua observancia, econcorrer quanto couber afazer
interter entre elles as Leys dopodôr, ehonestidade embaraçando toda aLiberdade,
quepossaser demaô exemplo aconservaçaõ desta taõ esencial virtude seobrigaraõ
naparte, quelhes hé Licita, epermetida, como atudo omais que fica Refferido,
oquetudojuraõ naõ faltar deobservar naforma expressada, deque mandey fazer este
termo, que os mesmos aSignaraõ para atodo o tempo constar onde necessario for40.
40
Faz parte da Direcçaõ, sendo esta o terceiro anexo do OFÍCIO do [Governador da Capitania de Pernambuco],
Luiz Diogo Lobo da Silva, ao [Secretário de Estado da Marinha e Ultramar] Tomé Joaquim da Costa Corte Real,
sobre a ereção de vilas nas antigas aldeias dos índios. Recife, 6 de março de 1759. AHU_CU_015, Cx. 89, D.
7202. Localizamos três cópias escritas por scriptors diferentes. Não fizemos o cotejamento entre ambas, optando
em transcrever a primeira do conjunto documental.
41
DIRECÇAÕ comque interinamente se devem regular os Indios das novas Villas, e Lugares, que Sua Magestade
Fidelissima manda erigir das Aldeas pelo que pertence as que estaõ cituadas nesta Cappitannia dePernambuco,
esuas annexas emquanto omesmo Senhor naõ determina o contrario, dando nova emelhor forma pàra oseu
196
6
Sempre foi maxima inalteravel entre asNasçoens, que conquistaraõ novos dominios
introduzir Logo nos Povos novamenteConquistados oseuproprio Idioma por ser
indisputavel hum dosmeyos mais efficazes para os apartar das Rusticas barbaridades
deSeus antigos Costumes, eter mostrado aexperiencia que aomesmo passo queSe
introduz nelles ouzo da Lingoa do Principe, que os domina; Selhes radica tambem
oafecto, veneraçaõ eobediencia; observando pois todas as Nasçoens polidas do Orbe
esteprudente, esolido Systema, nesta Conquista Sepracticou tanto pelo contrario,
queSó Cuidaraõ os primeyros conquistadores de estabelecer nella ouzo daLingoa aque
chamaõ geral, invençaõ verdadeiramente diabolica, para queprivados os Indios
detodos osmeyos, queos podiaõ Civilizar, permanecessem na Rustica, ebarbara
Sugeiçaõ emque até agora SeConservaõ.
7
Para desterrar esteperniciozo abuzo, Serâ hum dos principaes cuidados dosDirectores
estabalecer nasSuas RespectivasVillas ou Lugares uzo da Lingoa portugueza,
naõconsentindo demodo algum, que osmeninos, emeninas, que pertencerem as
escollas, etodos aquelles Indios, que forem capazes deinstrucçaõ nesta materia, uzem
dalingoa propria das Suas Nasçoens, ou dachamada geral; mas unicamente
daportugueza naforma que Sua Magestade tem recommendado em Repetidas Ordens,
que até agorasenaõ observaraõ com total Ruyna espiritual etemporal doEstado.
8
Ecomo esta determinaçaõ hê abaze fundamental, haberã emtodas asVillas, ou Lugares
duas escollas publicas, huã para Rapazes, eoutra para Raparigas, nasquaes seinsignarâ
a Douctrina Christaã, Ler, escrever, eContar na forma que Sepratica emtodas asdas
Nasçoens Civilizadas ensignandosse nas Raparigas, alem da Douctrina cristaã, aLer,
escrever, fiar, fazer renda, Costuras, etodososmais menisterios proprios daquelleSexo.
9
Para subsistencia dasSobreditas Escollas haverâ hum Mestre, e huã Mestra, quedevem
serpessoas dotadas debons Costumes prudencia, eCapacidade, deSorte; que possaõ
desempenhar as Obrigaçoens dos Seus empregos, as quaes Se destinarâ oemolumento
de meyo tustaõ pormes de cada descipulo, emeyo alqueire defarinha por anno na
occaziaõ daColheyta, pago peloPays dosmesmos Indios, oupelas pessoas emcujo
poder viverem Concorrendo Cada hum com aporçaõ, que lhe competir emdinheyro,
ou effeitos, oque prezentemente SeRegula emattençaõ agrande mizeria epobreza
aqueSeachaõ reduzidos: noCazoporem denaõ haver nas Villas, ou Lugares pessoa
alguã que possaSer Mestra demeninas poderaõ estas ate aidade denoveannos, ser
instruidas nados meninos, naqual selhes ensignarâ oque a estes deyxo referido para
quejuntamente com as infaliveis verdades danossa Sagrada Religiaõ adquiraõ com
mayor felecidade ouzo dalingoaportugueza (Direcção, 1759, 6º, 7º, 8º e 9º
parágrafos).
Regimen. Anexo 3 do OFÍCIO do [Governador da Capitania de Pernambuco], Luiz Diogo Lobo da Silva, ao
[Secretário de Estado da Marinha e Ultramar], Tomé Joaquim da Costa Corte Real, sobre a ereção de vilas nas
antigas aldeias dos índios. Recife, 6 de março de 1759. AHU_CU_015, Cx. 89, D. 7202. Quando citarmos a
Direcçaõ não faremos mais a referência completa do documento. Apenas indicaremos o parágrafo transcrito.
197
crítica à política linguística executada pelos primeiros colonizadores; a abertura de duas escolas,
uma para meninos e a outra para meninas; a indicação de mestres e mestras para trabalharem
nas respectivas escolas; a orientação de que, não havendo mestra, as meninas frequentassem a
escola para os meninos; a orientação para uma educação sexista, na medida em que as meninas
deveriam aprender as “coisas próprias” de seu sexo; a exigência quanto ao perfil dos mestres e
mestras, de “bons costumes”. Em dois aspectos, no entanto, a Direcçaõ para a Capitania de
Pernambuco e suas anexas não segue à risca o Diretório: primeiro, prevê o pagamento de
emolumentos aos mestres e às mestras no valor de meio tostão por mês de cada discípulo e meio
alqueire de farinha por ano; o Diretório, por seu turno, não fixa valores, embora também
destaque ser de responsabilidade dos pais ou das pessoas responsáveis pelas crianças indígenas
o pagamento dos salários aos professores, que poderiam ser por prestação de serviço, sempre
levando em conta o “estado de miséria e pobreza” dos índios; segundo, o Diretório determina
que, não havendo mestras, as meninas poderiam frequentar as escolas de meninos até a idade
de dez anos; na Direcçaõ, as meninas poderiam frequentar essas escolas até aos nove anos.
Evidentemente, essas duas diferenças não refletem em impactos significativos na política
indigenista proposta de gestão das línguas e da escolarização dos meninos e meninas indígenas,
mas não poderíamos deixar de apontá-las.
Para nortear a atuação dos mestres e mestras nas Capitania de Pernambuco e suas
anexas, o Governador Luiz Diogo Lobo da Silva também instituiu a Breve instrucçam para
ensignar aDoutrina christaã, Ler eescrever aos Meninos eaomesmo tempo osprincipios
daLingoa Portugueza eSuaOrthografia, sendo constituída por uma cartilha e por uma instrução
para os professores, esta sob o título Aoz Mestres das Escolas42. Destacamos a importância
desse documento, uma vez que não temos notícias de outro material similar na América
portuguesa, especificamente no que diz respeito a uma cartilha para servir de método de ensino
para as crianças indígenas. A Breve instrucçam também foi encaminhada para avaliação do Rei
e de seus Conselheiros, por meio do ofício do Governador Luiz Diogo Lobo da Silva enviado
ao Secretário de Estado, Thomé Joaquim da Costa Corte Real. Nesse ofício, da mesma forma
como se explicam as razões para a elaboração da Direcçaõ, como pontuamos acima, também
se esclarecem os motivos para a definição de uma cartilha como método de ensino. Assim
informa o Governador às autoridades do Reino:
42
Embora tenhamos optado por considerar o documento subdivido em duas partes, precisamos esclarecer que, na
Breve instrucçam, há trechos em que os limites entre a cartilha e a instrução para os mestres não são bem
delimitados, misturando as orientações aos mestres às regras gramaticais. Em função da importância dessa Breve
instrucçam, realizamos a edição semidiplomática.
198
E para que com melhor methodo oz Mestres das escolas instruíssem os rapaces naõ
só aler, e escrever, mas ao habito dos bons costumes, eaos principios necessarios para
a vida eterna, me valy de huma cartilha Franceza, que me pareceo conveniente ao
intento, de que se encarregou traduzir, eampliar no que foy justo oDoutor Francisco
Guedes cardozo eMenezes Secretario da Reforma Jezuita Juiz dos Residuoz deste
Bispado, eArcediago daSeé deOlinda o qual desempenhou com zelo, eacerto tal, que
naõ Só mereceo a aprovaçaõ do Reverendo Bispo, mas entendo se forcredor da de
Vossa Excelencia como lefor certo da copia denumero 443.
Nessa parte de seu ofício, Luiz Diogo Lobo da Silva nos informa que a cartilha, que
serviria de método para os mestres das escolas das novas vilas, teria sido traduzida de uma
cartilha francesa, trabalho realizado pelo padre Dr. Francisco Guedes Cardoso e Meneses,
Secretário da Reforma Jesuítica, Juiz dos Resíduos do Bispado e Arcediago da Sé de Olinda,
sendo aprovada pelo Bispo D. Francisco Xavier de Aranha. Remete, então, cópia da Breve
instrucçam, na forma de anexo 4. Flexor e Ribeiro (2003, p. 131), destacam que, em sua
“ampliação, e obedecendo instruções, com certeza [a cartilha em questão] se baseou no ‘livro
de Andrade’, isto é, de Manoel de Andrade Figueiredo (1722, 156p), escrito em 1718 e
publicado, depois das devidas licenças, em 1722”. As autoras chegam a essa conclusão pela
comparação entre as cartilhas e a percepção da existência de “muitas partes coincidentes,
sobretudo no que diz respeito às regras gramaticais” (FLEXOR; RIBEIRO, 2003, p. 131).
Na Breve instrucçam, não há datação explícita, mas, considerando a data do ofício de 6
de março de 1759 e as referências de que se tratava de uma resposta às orientações chegadas de
Portugal em dezembro de 1758, parece que o trabalho foi realizado entre fins deste ano e os
primeiros meses de 1759. Para uma apresentação das principais orientações dadas aos
professores, reproduziremos alguns trechos das instruções. De início, destaca-se a importância
dos mestres na formação da “imagem” que teriam as crianças sobre o Estado e a Igreja:
43
OFÍCIO do [Governador da Capitania de Pernambuco], Luiz Diogo Lobo da Silva, ao [Secretário de Estado da
Marinha e Ultramar], Tomé Joaquim da Costa Corte Real, sobre a ereção de vilas nas antigas aldeias dos índios.
Recife, 6 de março de 1759. AHU_CU_015, Cx. 89, D. 7202.
199
Reverenceem. Ainda naantiga Roma aquelles Imperadores que Canfundiraõ Com
acrueldade opoder, respeytaraõ àSeus MMestres, Como Sevio em Nero com Seneca
ẽ emoutros muytos maiz que Conserva a memoria para horror da humanidade eozmaiz
amantes porque com oSeo disvelo nostiraõ daztrevas daignorancia énospoem
noCaminho da aptidam para chegarmos ao dileitavel Pais daSabedoria44.
Nesse trecho da instrução para os mestres, destaca-se a sua importância para a formação
das “mentalidades”, “formas de ver”, ressaltando sua influência sobre os discípulos, que se
manifesta no respeito destes por aqueles. No que diz respeito ao papel dos mestres para o
Estado, pontua-se a sua atuação para atendimento aos interesses da Pátria e da Monarquia.
Prosseguindo, o documento passa a especificar e detalhar algumas instruções sobre o
desenvolvimento da prática docente:
44
No caso das citações da Breve instrucçam, mantivemos a mesma configuração de apresentação do título
(centralizado) e dos parágrafos (com recuos), como dispostos no documento. Seguimos as demais normas de
transcrição já esclarecidas em nota anterior.
200
das seguintes questões: a Santíssima Trindade e sua relação com o ato de se benzer; o ensino
do Pai Nosso, indicando o significado das sete petições da oração, e da Ave Maria, dando
explicações sobre a saudação do anjo Gabriel a Nossa Senhora; outras orações, como o Credo,
e as bases da fé cristã; a importância da confissão e como proceder; os preceitos dos dez
mandamentos (Decálogo), ensinando sobre sua emergência na história do povo judeu; os
mandamento da Santa Madre Igreja, que se relacionam com participação nas missas aos
domingos e dias santos, confissão ao menos uma vez por ano, comunhão na Páscoa, jejum
quando for determinado pela Igreja e pagamento dos dízimos; o ensino das virtudes teológicas
(fé, esperança e caridade); as obras da misericórdia, que são quatorze; os sete sacramentos da
Igreja (batismo, confirmação, comunhão, penitência, extrema-unção, ordem e matrimônio); os
sete pecados capitais (chamados de mortais); os “novicismos” do homem (morte, juízo, inferno
e paraíso); os artigos da fé; a necessidade de os mestres persuadirem seus discípulos à veneração
da cruz, a rezarem ao se deitarem e ao sentarem à mesa. Em geral, as instruções relativas à
doutrina cristã dão ênfase aos aspectos mencionados, deixando evidente a atuação dos mestres
na formação religiosa dos meninos. Após essas instruções sobre como os mestres deveriam
tratar das questões da doutrina cristã, o documento retoma sua atuação no ensino da leitura,
como no trecho reproduzido abaixo:
Fasse precizamente necessario que os Mestres adocêm apenoza tarefa daLeytura aoz
meninosCom alguãs breves praticasCom que sevam Christianizando, einstruindo:
Como Verbi gratia ja conheceis az Letras, jaSabeis az Silabas, easpalavras; he
necessario agora aprender az Letras eajuntalasCom perfeyçaõ, trabalhay com disvello
para Ser bonsCatholicos, bonsCidadoẽs epara ordenadamente poderes manejar
azvossas dependencias. Principiay auzar davossa Razam, eConcebey, que Deuz
Voscriou para oConheceres, para oamares, para oServires, epara gozardes davida
Eterna.
[…] e notempo emque nam podieis andar, nem vosSabieis vestir, Nem podieis
explicar oz vossos Sentimentos. Vossos Pays vospriveniraõ dazincalamidades
dotempo, etalves que bem apezar das Suas impossebelidades vosvestiam
eSustentavaõ; esoeraõ agora que vos apliqueis Comtodo oCuydado, aaprender oque
voshe necessario para passares o curso davossa vida. Esta vida he cheya
dedependencias, eimbarassoz, que voscauzaram bastantes dizvellos, emaisCrescidos
Sevos faltar aComodidade debem fallar, bem Ler, e bem escrever.
Tem geral estimaçaõ o homem honesto, que falla com acerto, que Lé com
desembaraço, eque Escreve com perfeyçaõ; porque das certezas infaliveis que foy
bem educado. Aquelle que caresse destasCircunstancias he vistoComo subjeito inêrte;
Servem az Suas vozes deaSumpto para o escarneô para azombaria, epara odezprezo.
Aquelle quenam Sabe Ler passa ametade davida cego, epara poucasCouzas he capaz
ohomem que nam Sabe Ler, Eescrever.
201
estivessem direcionando-se aos seus alunos, exortando-os às práticas da leitura e da escrita,
consideradas como meios de ocuparem um melhor espaço na sociedade. Dá-se, então, uma
ênfase à educação como veículo para se conquistar o respeito e ter uma “vida sem cegueira”.
No que diz respeito às regras gramaticais apresentadas na “cartilha”, podemos observar
uma ênfase na declinação dos nomes e das conjugações dos verbos. Em termos gerais, com base
nas práticas gráficas da época, a cartilha busca contemplar aspectos relativos à grafia correta
das palavras, aos usos dos sinais gráficos de acentuação e de pontuação entre constituintes de
sentenças e entre sentenças, além de tratar dos desenho das letras, seus usos, a questão da
nasalização e o uso de diacrítico (~) para representar esse fenômeno fonético-fonológico.
Também parece haver uma concepção explícita dos valores das consoantes enquanto elementos
que precisam de apoio de uma vogal para sua realização na fala. Outras questões abordadas são:
a representação de tipos de sílabas; os artigos; os nomes, substantivos ou adjetivos; os
pronomes; as conjugações dos verbos auxiliares ser e estar, seguidas de outros verbos; o
advérbio; a preposição; conjunção e a interjeição. A declinação dos termos (ou classes de
palavras) é entendida como um processo de concordância dos constituintes do sintagma
nominal, como podemos atestar do trecho reproduzido abaixo:
Destas nove vozes, ounove partes do discurso, devemos saber, que tres Respeytaõ
aonome, asquaes Sam osrticulo, oupronome; eo participio. O Adverbio aproposiçaõ,
eintergeiçaõ, Sam indeclinaveis, etem sempre amesma pronuncia, eguardam amesma
escripta. Resta unicamente onome, eoverbo, que merecem huã grande attençaõ;
porque oVerbo Seconjuga, eonome Sedeclina; Mas Sepracticarmos bem o que
devemos observar com osnomes, eCom osverbos fallarã qual quer Sujeito
Correptamente, eCarecerã denecessidade delivros de Orthografia para escrever com
baztante Certeza.
[…] devem taõ bem ozMestres ensinar aconjugar aos seos Discipulos quando lhes
forem ensinando aLer asCartas. Nacerteza que a falta da declinaçaõ dosnomes
edaconjugação dos verbos, edenaõ darem aoz meninos nas Escholas, aomenos esta
leve tintura deGramatica Portugueza, he aorigem dozbarbarismos, que Senottaõ nas
converçaçoẽs, e Se devizaõ naEscripta.
He moralmente impocivel Saber bem aorthografia, eignorando ozprimeyros
principios daLingia emque Seescreve.
202
Vale destacarmos que os citados “barbarismos” podem ser entendidos com a ausência
de concordância, seja nominal ou verbal, que nada têm a ver com o que se entende por ortografia
na contemporaneidade.
No que se refere às pessoas verbais, chama ainda nossa atenção a preocupação com a
realização das formas de terceira pessoa do plural dos verbos, como podemos observar no trecho
transcrito:
Devem os Mestres ensinar Como Regral geral aoz seus discipulos, que az terceyras
pessoas dosverbos no plural acabaõ em-am- ou em -em- Como Verbi gratia amaõ,
ensinaõ, Levaõ, Uzaõ, trazem, Lembraõ, Lavaõ, estudam, et cetera. Em -em: Como
Verbi gratia Lem, ouvem, querem, dizem, conhecem, Aborrecem et cetera. Que a
falta desta Reflexaõ faz cahir emmuitoz erros assim napronuncia, como na escripta.
A não referência às outras pessoas do plural parecem ser indícios de que somente nos
contextos de terceira pessoa seriam mais suscetíveis os casos de ausência de concordância, o
que se aproxima aos resultados dos estudos sobre a variação de concordância verbal na atual
sincronia.
De modo geral, as orientações da cartilha vão na seguinte direção: “epersuadaõ seoz Mestres
que nocuydado debem conjugar osverbos edeclinar osnomes, Consiste aperfeyçaõ debem falar,
ebem Escrever”.
PARA FINALIZAR…
45
RELAÇÃO dos Nomes Comquesedenomiaõ as Novas Villas e Lugares; erectas das antogas Aldeas, Seus
Oragos, Vigarios, Directores, eMestres. Anexo 1 do OFÍCIO do [Governador da Capitania de Pernambuco], Luiz
Diogo Lobo da Silva, ao [Secretário de Estado da Marinha e Ultramar], Tomé Joaquim da Costa Corte Real, sobre
a ereção de vilas nas antigas aldeias dos índios. Recife, 6 de março de 1759. AHU_CU_015, Cx. 89, D. 7202.
203
No que se refere ao método apresentado na Breve instrucçam, observamos a repetição
oral e a leitura como propostas metodológicas a ser implementadas na educação escolar
indígena na Capitania de Pernambuco e suas anexas, cabendo ainda à escola a responsabilidade
de educação religiosa, civil e doméstica. Quanto aos conteúdos, a ênfase recai no estudo da
declinação dos nomes e da conjugação dos verbos.
Em síntese, a análise sobre a Breve instrucçam aqui proposta, embora seja de caráter
preliminar, haja vista a necessidade de refinamento de algumas questões mencionadas no
presente trabalho, podemos já entrever uma proposta de ensino de língua portuguesa aos
meninos indígenas atrelado à doutrina cristã, à medida que a leitura e repetição oral das orações
cristãs era considerado um bom método de ensino da língua portuguesa.
REFERÊNCIAS
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n. 26, v. 1, p. 7-52, jan./jun. 2016.
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Pernambuco no período pombalino (1759-1798). 2013. 134 f. Dissertação (Mestrado em
História Social) – Universidade Federal Rural de Pernambuco, Recife, 2013.
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Revista Filologia e Lingüística Portuguesa, São Paulo, USP, n. 4, p. 97-157, 2001.
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século XVIII. In: SEMINÁRIO DE ESTUDOS FILOLÓGICOS – FILOLOGIA E ESTUDOS
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Seminário de Estudos Filológicos – Filologia e Estudos da Linguagem: O léxico em questão.
Salvador: UCSal, 2009. p. 204-239.
FLEXOR, Maria Helena Ochi; RIBEIRO, Ilza M. O ensino da língua portuguesa no Brasil,
após os jesuítas: uma cartilha do século XVIII. In: MACEDO, Joselice; ROCHA, Maria José
Campos; SANTANA NETO, João Antonio de (Org.). Discursos em Análise. Salvador:
Universidade Católica do Salvador; Instituto de Letras, 2003. p. 126-142.
LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande do Norte
sob o Diretório pombalino no século XVIII. 2005. 700 f. Tese (Doutorado em História) –
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2005.
204
MAIA, Lígio José de Oliveira. Serras de Ibiapaba. De aldeia a vila de índios: vassalagem e
identidade no Ceará colonial – século XVIII. 2010. 409 f. Tese (Doutorado em História) –
Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010.
PIRES, Maria Idalina da Cruz. Resistência indígena nos sertões nordestinos no pós-
conquista territorial: legislação, conflito e negociação nas vilas pombalinas (1757-1823).
2004. 284 f. Tese (Doutorado em História) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2004.
SALGADO, Graça. Traços gerais da administração colonial. In: SALGADO, Graça (Coord.).
Fiscais e meirinhos: administração no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
p. 47-72.
205
Cartinhas e catecismos nas colônias portuguesas como formas de
aprendizagem da leitura e da doutrina cristã: breves considerações
INTRODUÇÃO
O que vai ser discutido neste texto se situa no âmbito da História da Cultura Escrita, no
viés da escolarização e o estudo da língua portuguesa. Nessa perspectiva, propõe-se a dialogar
com a Paleografia, uma vez que essa é vista como uma disciplina auxiliar da história, no que
diz respeito ao estudo dos testemunhos gráficos. Numa visão contemporânea, a Paleografia é
considerada uma disciplina que estuda a história da escrita e, em particular, da escrita a mão em
suas diferentes fases, em suas diferentes épocas, assim como as técnicas empregadas na
produção desse escrito. (FRAGA, 1996). O objeto de investigação são as cartilhas ou cartinhas
e os catecismos que se constituíram entre os séculos XVI e XVIII, em Portugal e em suas
colônias de além mar. Como objetos de doutrinação e pedagógicos, como foram utilizados,
verifica-se quais foram seus contextos de uso, quem os produziu e com que propósitos. A título
de ilustração, vai-se apresentar uma cartilha, do século XVIII, produzida no Brasil.
Petrucci (2002, p. 8) apresenta algumas questões que podem ser postas diante de um
testemunho escrito, a partir dos problemas que se propõem enfrentar durante a análise: o que
são esses escritos? Quais foram seus contextos de uso? Quem os produziu? Quando foram
produzidos? Com que propósitos? Pretende-se, de alguma forma, contemplar essas questões,
para que se possam compreender esses objetos históricos, que estiveram presentes no Brasil
colonial, servindo como materiais pedagógicos.
Segundo Barros, em seu artigo A história cultural e a contribuição de Roger Chartier,
(2005, p. 127- 128), o livro é um objeto cultural reconhecido por todos os que até hoje se
debruçaram sobre os problemas culturais. A leitura de um livro também gera práticas criadoras,
podendo produzir, concomitantemente, práticas sociais. E é a partir desse entendimento, que se
vai olhar as cartilhas ou cartinhas assim como os catecismos, como objetos culturais, que geram
práticas sociais.
Este texto está assim dividido: contém uma Introdução, três partes e as Considerações
finais. Na primeira parte, apresentam-se as cartinhas e como elas se distribuem nas colônias
206
portuguesas da África, Ásia e América, no século XVI. Na segunda parte, vai-se tratar do
catecismo e como essa obra se difundiu por todas as possessões portuguesas de além-mar e
como esse se estabelece em relação às cartinhas ou cartilhas. Na terceira parte, apresenta-se
uma cartilha do século XVIII, produzida em Pernambuco - Brasil.
Do ponto de vista metodológico, se lida com os pressupostos da História da Cultura
Escrita, que servem como norteadores das questões que vão ser levantadas sobre as cartilhas e
catecismos; também se pretende contemplar com respostas as indagações propostas por
Petrucci (2002), não de uma forma direta, mas dentro da exposição e relato sobre o uso das
cartinhas e dos catecismos nas possessões portuguesas de África, Ásia e da América. Sobre a
cartinha do século XVIII, serão feitos breves comentários sobre sua composição, em termos de
estrutura e conteúdo.
207
páginas eram preenchidas com um pequeno catecismo, que pouco mais tinha do que
as orações quotidianas e mais familiares da doutrina cristã. (VERDELHO, 2001, p.
81).
Está em Mattos e Silva (2002, p. 33) que “já em 1504 eram enviados livros para o
Congo, entre eles, provavelmente cartinhas.” Além de livros, muitos “mestres de ler e escrever”,
para que abrissem escolas para ensinar os meninos (CORTEZ PINTO, 1948). Em 1512 e 1515
seguem para Abissínia (atual Etiópia) e para o oriente novas remessas de livros de que faziam
parte cartinhas. Há, também, remessas para Goa, Cananor e Malaca. Essas levas de livros,
dentre eles cartinhas, faziam parte do processo colonizador português, em terras do Oriente,
África e América.46
Segundo Américo Cortez Pinto (1948, p. 238), Portugal foi o primeiro país que imprimiu
cartilhas de ABC, para ensinar a ler os povos africanos e asiáticos. Em 1515, ainda não havia
imprensa em muitos países da Europa, e Portugal já enviava 2000 cartilhas, na mesma relação,
42 Cathecismos para Negus47. Esse autor ressalta os feitos de D. Manuel, como um grande
incentivador do saber, da cultura. Em 1512, acrescenta Cortez Pinto, foi enviado um caixote de
cartinhas para o Oriente, destinado ao ensino dos meninos índios. Com elas, Afonso de
Albuquerque48 fundou a primitiva escola de Cochim49. Em carta de 1512, Albuquerque
comunicou a El Rei “que já andavam” 100 meninos índios aprendendo a língua portuguesa. Ele
narra que foi sua a iniciativa de abrir os baús cheios de livros que foram mandados de Portugal,
pois não vieram acompanhados de mestres, para ensinar os meninos; os livros estavam como
apodrecendo nas caixas, só que ele, Albuquerque, mandou um homem casado para que as
abrisse e ensinasse aos meninos a ler e escrever. Segundo Maria Cândida Barros (2001 p. 37),
Portugal mandava baús de livros que ficavam sem uso nas colônias, pois não eram
acompanhados de mestres. Segue uma passagem da carta de Albuquerque apresentada por
Barros:
Em Cochim achey hua arca de cartinhas por omde imsynam os meninos e pareceo-me
que Vossa Alteza as nam mandara pera apodrecerem estamdo n’arca e ordeney huum
46
Embora, como diz Faraco (2016, p. 58-59), o interesse português nas terras do Oriente e África fosse o
estabelecimento não de colônias de ocupação territorial e povoamento, mas de pequenos enclaves. Interessava à
coroa obter o império do comércio marítimo; nas terras da América pretenderam não apenas estabelecer
entrepostos comerciais, mas essa “se desenhou” como uma colônia de exploração e povoamento.
47
Título do soberano da antiga Abissínia, atual Etiópia.
48
Conquistada por Afonso de Albuquerque em 1510, Goa tornou-se, já em 1530, o centro administrativo,
econômico, militar e religioso do império português da Ásia. Tornou-se sede de um bispado em 1534, elevado a
arcebispado em 1557. Tinha sob sua jurisdição todos os entrepostos, feitorias e fortalezas da costa de Moçambique
a Timor Leste e Macau. Nesse sentido foi a principal cidade do império português no século XVI, afora Lisboa.
(FARACO, 2016, p.73)
49
É a maior cidade do estado de Kerala, na Índia. No passado, sede de um principado, reino de Cochim.
208
homem cassado aquy que imsinase os moços a ler e escrever, e avera na escola perto
de cem moços e Sam deles filhos de pamcares e d’homees homrrados. Sam muito
agudos e tomam bem ho que lhe ensynam e em pouco tempo, e sam todos cristãos.
(BARROS, 2001, p.37 apud PEREIRA, 1993, p. 367)50
Esse processo de escolarização dos povos africanos já tinha se iniciado antes, por
exemplo, em 1492, sacerdotes negros, educados em Portugal desde pequenos, foram enviados
para a África, diz Cortez Pinto (1948, p. 238).
Seguem as informações sintetizadas, por esse Autor, sobre as remessas de livros para o
ultramar. (p. 247):
1488 – expedição de Mestre Álvaro, com muitos livros eclesiásticos e morais
1490 – expedição para o Congo em que vão muitos livros e impressores
1504 – vão para o Congo mestres de ler e muitos livros
1512 – remete-se um caixote de cartilhas para o Cochim
1514 – vão 2000 cartinhas para Negus
Ao término do século XVI, diz Hallewell (p. 82), chegaram à África prensas de
impressão, que foram instaladas nos colégios jesuítas de Salvador do Congo e São Pedro de
Luanda. A primeira tentativa para instalar uma tipografia na Etiópia não se obteve êxito; muitas
vezes, remessas de livros se perdiam no mar, como foi o que ocorreu com os 2.495 livros e um
prelo enviados para a Etiópia, em 1513. A segunda tentativa para instalar uma tipografia na
Etiópia foi frustrada, o navio que transportava o prelo, em vez de aportar no seu destino, aportou
em Goa, na Índia portuguesa, que passou a ter sua tipografia em 1556. Em pouco tempo, Goa
passou a ter três oficinas de impressão, que faziam publicações nas línguas locais. Hallewell
(p.83) faz menção a um prelo mais antigo, em Salsette, instalado em 1542.
Posteriormente, os portugueses instalaram prelos em outras cinco localidades da Índia;
no Japão foi entre 1590 e 1614; na China, os jesuítas começaram a imprimir em Macau, em
1588, depois estenderam sua atividade a Cantão e Hong Kong. Hallewell (p. 82) diz que nos
dois primeiros séculos da colonização portuguesa e espanhola “a impressão foi, em toda parte,
a auxiliar da Igreja evangelizadora, implantada em quase todos os casos por iniciativa dos
clérigos, de modo que a maior parte de sua produção destinava-se a suprir as necessidades do
clero e das missões.”
As prensas foram distribuídas por todas as costas continentais até a Índia, e “ganhava
nitidamente o caráter dum sistema no plano de organização do Império, sobretudo no tempo de
209
D. Manuel”. (CORTEZ PINTO, p. 240). Foi durante o seu reinado que os prelos ganharam um
desenvolvimento mais amplo, “e a figura deste rei se nos impõe como o maior propagandista
do livro do seu tempo” (p. 241). Ele mandou abrir escolas e mandava pagar bons salários aos
mestres para a regerem.
No caso do Brasil, esse só veio a ter uma tipografia no século XIX, com a vinda de D.
João e sua corte; antes disso não era permitido. Segundo Martins (1996, p. 299), o que existe a
respeito da introdução da imprensa no Brasil é muito pouco – e muito confuso. Existe uma data,
1747, como de instalação da primeira oficina tipográfica no Rio de Janeiro, a que pertenceu a
Antonio Isidoro da Fonseca. Também Hallewell diz:
Portugal mostrou muita paranoia com o risco de seus funcionários locais adquirirem
algum grau de independência, e, quando o governador de Pernambuco, em 1703, e o
governado do Rio de Janeiro, em 1747, ousaram instalar um prelo, os dois receberam
ordens de fechá-los assim que Lisboa tomou conhecimento de sua existência.
(HALLEWELL, 2005, p. 65)
Ainda segundo Hallewell (2005, p. 61), de acordo com Nelson Werneck Sodré, “a
imprensa foi introduzida nas possessões ultramarinas da Europa somente onde havia uma
cultura nativa desenvolvida que o poder colonial quisesse aculturar e suplantar.” No caso do
Brasil, por exemplo, em que os indígenas não tinham desenvolvido um alto grau de civilização,
a aculturação não precisava de tanta sofisticação, bastavam os ensinamentos orais por parte dos
missionários.
A presença da imprensa era, muitas vezes, uma ameaça. Para Portugal, o controle do
material escrito se dava de uma forma mais eficiente. Na sua colônia da América portuguesa,
só se tinha acesso às obras as que eram permitidas serem enviadas. Acrescente-se a esse
processo a Inquisição instalada desde o século XVI, em Portugal e em suas colônias. Em Goa,
a principal cidade do Império português na Ásia, a Inquisição se instalou em 1560, abrindo,
segundo Faraco (2016, p. 76), um período de grande intolerância e perseguição. Nesse processo,
os livros de leitura eram passados pelo crivo do Tribunal da Inquisição, verificava-se o que se
imprimia, quais eram os livros, para quem etc.
Quanto às cartinhas, durante muito tempo, o seu uso se fazia em grande escala. Cortez
Pinto (p. 243) põe uma questão: “De que cartinhas se serviram aqueles mestres que ensinavam
a ler, a escrever os Etíopes do Congo, muito anteriormente às remessas para Cochim e para a
Abissínia?” O autor conclui dizendo que o ensino se fazia ali com uma intensidade notável,
segundo o que se verifica em várias passagens dos cronistas. Em 1514, havia muitas escolas
nas regiões de Sândi, Bamba, Bata, Pango. “E já seus mestres eram pretos já ensinados uns em
210
Lisboa e outros em São Salvador”. E o autor acrescenta que as cartinhas de Cochim não eram
certamente as primeiras a atravessarem os mares. Quanto ao rei D. João II51, esse utilizara as
cartinhas impressas, “o que implicaria a impressão de incunábulos desaparecidos”. (p. 241).
As cartinhas usadas nesse período, entre os séculos XV e XVI se perderam, seja pelo manuseio,
seja por não as considerarem um objeto cultural, que poderia ser preservado.
Mas há uma cartinha, muito anterior às outras que, segundo Cepeda (1992, p. 257),
talvez seja “[...] o primeiro intento deste gênero de livrinho que conheceu grande voga como
‘catecismo do fórmulas’ [...] e que ao mesmo tempo servia de base ao ensino das primeiras
letras”. Essa cartinha foi publicada em 1502, pelo impressor João Pedro Buonhomini de
Cremona, em Lisboa. Essa cartinha contém sete textos e, conforme Cepeda, todos eles aparecem
nas várias edições das cartinhas de que hoje há notícias e cujos exemplares são extremamente
raros. Este teria apenas as fórmulas essenciais e de reduzido tamanho, para poderem integrar-
se no formato escolhido, o in 16º.52
Os textos que, nas duas folhas não dobradas, chegaram até hoje são: Pai e Nosso, Avé
Maria, Salvé Rainha, Dez Mandamentos, Sete obras de misericórdia (espirituais), Oração à
Hóstia e Oração ao Cálice. Esses textos, em número de sete, vão estar presentes nas cartinhas
produzidas posteriormente.
Segue o Pai e Nosso53, que, segundo Cepeda (p. 258) apresenta-se numa
transcrição muito próxima do original com desdobramento das
abreviaturas (em itálico) e mantendo as maiúsculas e minúsculas bem
como a pontuação.
Pai Nosso
Padre nosso que es nos ceeos sanctificado seja o teu nome. Venha a nos o teu regno.
Seja feyta a tua voõtade e[m] a terra assi como he no ceeo. Ho pam nosso de cada
huum dia nos da oje eneste dia. E perdoa a nos has nossas diuidas e pecados: assi
como nos perdoamos aos nossos deuidores. E non nos deyxes cayr em temptaçom.
Mais liura nos de todo mal. Amen. (Cartilha de 1502)
51
Governou Portugal de 1481 a 1495 (data da morte). Sucedeu- lhe D. Manuel I.
52
Hallewell (p. 59) “Para atender a esse novo tipo de freguês leigo, foi preciso [...] produzir obras menores,
menos elaboradas, [...] de modo que o período dos incunábulos é testemunho da sucessiva introdução de
formatos menores. [...] o primeiro in-16 impresso aconteceu em 1474.”
Martins (1996, p. 123) – na tabela organizada por Rouveyre para o fácil reconhecimento dos volumes publicados
desde a invenção da imprensa até aos fins do século XVIII, o in-16 tem a folha dobrada em 16, contém 32
páginas e seus pontuseaux são horizontais: -
211
sacramentos etc. Esse modelo de cartinha ou cartilha permanece, praticamente, até o século
XVIII, em que se alia o ensino do vernáculo à doutrina cristã. Mattos e Silva (2004) estabelece
um confronto da Cartinha de João de Barros, impressa em 1539, com a Cartilha em tamul e
português, impressa em 1554, com a Cartilha para instrução dos meninos, de 1718, publicada
em 1722, a Breve instrucçam para ensinar aDoutrina christaã, Ler eescrever aos Meninos eao
mesmo tempo, osprincípios daLingoa Portugueza eSuaOrthografia. Da análise feita e do
confronto estabelecido, Mattos e Silva ressalta a maior elaboração linguístico-pedagógica da
Cartinha de João de Barros, que também prima pela qualidade gráfica e imaginação didática
em comparação com a Cartilha anônima e bilíngue tamul/português. Com referência à Cartilha
do século XVIII, há orientações para os mestres, e seu conteúdo alia o ensino do vernáculo à
doutrina cristã. Esta cartilha foi pensada para ensinar os índios da capitania de Pernambuco.
Esse modelo de cartilha adentra o século XIX.
Vojniak (2011, p. 48) afirma que as cartinhas e catecismos são mais numerosos no
século XVI do que no século XVII. Depois da grande difusão e distribuição de cartinhas no
século XVI, constata-se o retorno do latim e uma multiplicação de edições do catecismo que
servirá de instrumento de alfabetização no momento em que a monarquia se preocupava com a
evasão da força de trabalho, por meio da escolarização. Somente a partir do século XVIII, é que
se verifica o crescimento das edições e reedições de cartilhas. Esse fato coincide com a
laicização dos manuais escolares e vernaculização do ensino do latim que contribuirá para certa
valorização da língua portuguesa na transposição para o século XIX. (p. 49). O autor diz que
nos séculos XVII e XVIII os catecismos passaram a cumprir a função alfabetizadora. A doutrina
religiosa continuou – e com mais força ainda – a servir de base para o ensino das primeiras
letras e os recursos lúdicos e visuais ficaram em segundo plano.
Verdelho (2001) apresenta três autores de cartinhas que se sobressaíram: D. Diogo Ortiz
de Villegas (de origem espanhola, foi bispo de Viseu e faleceu em 1519); João de Barros (ca
1496 – ca 1570); D. Frei João Soares (bispo de Coimbra, 1507 – 1572).
A Cartinha para ensinar a ler. Cõ as doctrinas da prudência. E os dez Mandamentos
da ley: co suas contras de Diogo Ortiz de Villegas e que teve uma edição datada de 1534 é
anterior a de João de Barros (1539), e, segundo Verdelho, menos interessante que a de João de
Barros. O texto de D. Frei João Soares Cartilha para ensinar a ler com os dez Mandamentos
de Deus, & a cõfissão geral, & outras cousas muito proveitosas, & necessárias, parece ter sido
muito requisitada pelos impressores.
Segundo Cristóvão (1998, p. 691), há uma cartinha de D. Diogo Ortiz referida num
Alvará real de maio de 1539, que assim está dito: e assy as Cartinhas por onde se emsynão os
212
menynos que fez o bpo de Viseu dom Diego Ortiz que Deus aja. Também, o vigário de Malaca54
P. Afonso Martins, escrevendo a El-Rei e ao se referir ao trabalho com os meninos afirmava:
Estes todos ou a maior parte deles tenho ensynado ho Pater Noster, a Ave Maria, Credo in
Deum, Salve Rainha, e ajudar a missa, e agora andam cada huum com sua cartilha de
Calçadilha55 (p. 691-692). Cristóvão chama atenção para o fato de que essas referências não
são relativas ao Cathecismo Pequeno de D. Diogo Ortiz, pois este “não é um compêndio
elementar, mas um tratado bastante profundo”. E referindo-se ao que o Alvará menciona, diz
que essas e outras cartinhas são obras diferentes, que se destinavam à aprendizagem da leitura
e às primeiras noções de catequese e que constam, geralmente, de duas partes, uma com o
alfabeto e junção de letras e a outra com os elementos da doutrina cristã. A leitura aprendia-se
com a catequese. Ressalta Cristóvão que das cartinhas que restaram do século XVI algumas
podem ser de autoria de D. Diogo, mas não há provas suficientes sobre isso. (p. 692). Sobre o
Cathecismo Pequeno diz Cristóvão: “No frontispício do livro de D. Diogo e, ao meio da página,
vem o título escrito em elegantes caracteres góticos: Cathecismo Pequeno da doctrina e
instruiçam que os xpaãos ham-de creer e obrar pêra conseguir a benauenturança eterna feito
e copilado pollo reuerendissimo senor dom Dioguo ortiz bispo de çepta. Emprimido com
priuilegio dei Rey nosso senhor etc. Este catecismo é de 1504.
54
Carta de Malaca de 27-XI-1532, in Antônio da Silva Rego, “Documentação para a História das Missões do
Padroado Português do Oriente, Índia”. Lisboa, 1949, II, p. 225
55
Calçadilha - uma referência ao local de nascimento de D. Diogo Ortiz.
213
livros religiosos, em latim e em português. Esses tinham um caráter mais simbólico (eram
“suntuosamente encadernados”) do que mesmo possa ter sido uma política de difusão do
cristianismo nessas regiões, considerando-se a pouca quantidade de obras remetidas. Veja-se
que foram enviados trinta catecismos para Etiópia em 1515, sete para Goa em 1518, e trinta e
quatro de novo para Goa em 1521. (BARROS, 2001, p. 37). Em maior número que os
catecismos foram enviadas cartinhas, como foi visto. Entre a cartinha e um catecismo a
diferença estava em que a cartinha continha um alfabeto. Era uma combinação de catecismo,
texto doutrinário, com aprendizagem para a leitura e a escrita.
Segundo Barros (2001, p.37), as primeiras obras de doutrinas feitas exclusivamente para
as colônias estiveram próximas do formato de cartinhas para ler. Assim é que o primeiro
catecismo em tamul, impresso em Lisboa em 1554 e traduzido por três autores tamul, vinha
acompanhado do alfabeto. Posteriormente, os catecismos para as colônias vinham sem as
páginas com o alfabeto. “Desapareciam assim traços do seu uso como método de aprendizado
da leitura e se restringiam ao caráter de texto de instrução religiosa”.
Alguns autores de catecismos europeus serviram de base para obras dirigidas às colônias
portuguesas, além de João de Barros. Entre os autores que foram traduzidos nas línguas
vernáculas das colônias portuguesas estão: Roberto Belarmino (jesuíta italiano, cujo catecismo
foi traduzido para o konkani56 em 1623), Luís de Granada (dominicano espanhol teve seu “Guia
do pecador” traduzido para o japonês e impresso em Amakusa em 1592) e Marcos Jorge e
Inácio Martins. De todos os catecismos europeus aquele que teve maior difusão dentro do
Padroado Português foi a “Doutrina Cristã” de Marcos Jorge e Inácio Martins.
O catecismo é definido por Barros (2001, p. 28) como um gênero literário destinado à
instrução cristã. Acrescenta a Autora que a partir do século XVI os catecismos se popularizaram
ao serem impressos nas línguas vernáculas europeias, sendo uma decisão do Concílio de Trento
(1545-1563). Nessa época, a luta era travada em relação aos protestantes, que tinham também
seus catecismos em vernáculo e eram bastante difundidos, tendo várias reedições. Era uma
forma pela qual os principais líderes religiosos protestantes tinham de difundir seus
pensamentos.
Como uma reação ao protestantismo, a Igreja Católica criou expedientes para a
formação cristã, tendo o catecismo como seu maior veículo. A doutrinação começaria na
infância e se estenderia pela fase adulta. Foram produzidos catecismos populares, que tinham
como objetivo levar a doutrina cristã, católica, tanto para as crianças, quanto para adultos com
56
Konkani – falada em Goa
214
pouca instrução. A Companhia de Jesus surge como a ordem religiosa mais importante nessa
questão do ensino da doutrina, fazendo parte de suas constituições.
O catecismo dos jesuítas Marcos Jorge e Inácio Martins, é um dos mais famosos e
populares da história da Igreja em Portugal, recebeu várias reedições, e foi traduzido em línguas
vernáculas das colônias portuguesas de além-mar. Esses catecismos populares mantinham um
elenco de temas comuns, deveriam ter as orações (em particular o Pai e Nosso), os sacramentos,
os mandamentos e Artigos da Fé (Credo). Poderiam ter ainda as regras que o cristão deve seguir
no seu cotidiano, como ajudar a missa (Jorge e Martins, 1602). O Concílio de Trento impôs
sobre o catecismo popular regras em relação aos mecanismos para sua oficialização e
impressão. Embora não tenha tratado da evangelização nas colônias, as decisões do Concílio
na Europa foram levadas para as colônias. (BARROS, 2001, p. 34).
Línguas nas quais houve tradução e impressão do catecismo de Marcos Jorge e Inácio
Martins (p. 43):
a) língua tamul (1579)
b) língua japonesa (1592)
c) língua konkani (1622)
d) língua kikongo (1624)
Para o tupi, foi feita uma tradução em 1574, pelo jesuíta Leonardo do Vale, mas não
chegou a ser impressa. Não se conheceu o documento autógrafo desse jesuíta. Apenas em 1618,
foi publicado o primeiro catecismo tupi tendo como autor Antônio de Araújo. No prólogo é dito
que esta é uma versão que se usava nas missões jesuíticas havia muito tempo. Tanto o texto de
Anchieta Diálogo da Fé, quanto o de Araújo apontam parentesco com o catecismo de Marcos
Jorge e Inácio Martins. (BARROS, 2001 p.46).
Segundo Daher (2012, p. 42-43), Anchieta escreveu a Arte de gramática da língua mais
usada na costa e mais duas doutrinas em tupi: Diálogo da fé e Doutrina cristã “[...] esta
provavelmente traduzida e completada por ele, compondo um conjunto de suma importância
na instrução religiosa [...].” A Arte de gramática de Anchieta já era utilizada desde 1555,
quando uma cópia teria sido entregue a Nóbrega, e desde 1556 a gramática já servia de texto
para o ensino do tupi no colégio da Bahia. A Arte de gramática teve a licença para a publicação
em 1574; esta previa a impressão, conjuntamente, dos diálogos em tupi. Ao final, só a gramática
de Anchieta viria ao prelo em 1595. A hipótese levantada é de ter havido um problema de ordem
econômica. Esses diálogos de Anchieta, conforme Daher (2012), só seriam publicados em 1618,
numa forma bastante adaptada, pelo padre Antonio de Araújo – “[...] impresso, por sua vez, ‘às
custas dos padres do Brasil’, como se pode ler no frontispício do livro -, sob o nome de
215
Catecismo na lingoa brasilica, no qua se contem a summa da doctrina christã, reeditados a
seguir, em 1686, por Bartolomeu Leão”. Daher (2012, p.47), ainda com referência a O
Catecismo da lingoa brasilica de Antônio Araújo, diz que como muitos catecismos, desde o
Prólogo, esse se dirige ao missionário, “que deverá reunir as virtudes apostólicas para o domínio
da língua, não por milagre, mas através de trabalho.” Uma referência ao uso gramaticalizado
do tupi.
Há polêmicas quanto ao ano da primeira edição do catecismo de Marcos Jorge e Inácio
Martins, uns dizem 1561, Serafim Leite57 defende 1566, baseado em cartas jesuíticas trocadas
entre Roma e Lisboa, em 1565, que autorizavam a sua impressão. Era este um catecismo voltado
para crianças. O apoio desse catecismo de Jorge e Martins não veio apenas da Companhia de
Jesus, mas também da coroa portuguesa ao financiar sua primeira edição em 1566. Este
catecismo foi contemporâneo do Catecismo Romano - catecismo oficial tridentino, para ser lido
pelos sacerdotes.
O catecismo de Marcos Jorge e Inácio Martins chegou à Índia em 1566. Neste mesmo
ano, já estava se fazendo uso em Goa e na Costa da Pescaria. Em 1573 foi traduzido para o
tamul, pelo jesuíta Henrique Henriques (1520 - 1600); em 1579 foi impresso. O catecismo
desses autores jesuítas foi usado simultaneamente em português e em “canarim”58.
No Congo, no século XVI, a evangelização não ocorreu através de um aprendizado das
línguas locais por parte dos missionários, mas os padres recorriam a intérpretes nos seus
sermões e confissões. De outro lado houve a formação de um clero secular congolês. Os jesuítas
ficaram no Congo de 1548 até 1554, quando foram expulsos pelo rei do Congo. Retornaram em
1620.
Informa Barros (2001, p. 48-49) que esse catecismo português apresenta uma situação
de diálogo. O catecismo era uma obra escrita destinada essencialmente à oralidade. Os vários
textos de que se compunha a obra (orações, fórmulas dos sacramentos e diálogos) eram para
serem lidos em voz alta, ou serem memorizados. A importância da oralidade como forma de
uso do catecismo se devia a ser essa a forma de expressão de religiosidade reconhecida pela
Igreja Tridentina. Professar a fé cristã significava ouvir e dizer. Daí que o diálogo de perguntas
57
LEITE, 1956; vol. IV, 286 e 288.
58
Barros (2001,p. 44) fazendo uma referência a Buescu (1982), diz que vão existir várias versões do catecismo
de Jorge e Martins em línguas vernáculas no Padroado Português: escritas vernáculas com apenas o título em
português (tamul e japonês); e/ou estabeleceram escritas alfabéticas latinas. Obra bilíngue (kikongo) ou
monolíngue (konkani ou tupi). Essas opções de monolinguismo ou bilinguismo “apontavam diferentes políticas
linguísticas em cada região”.
(b) É uma referência à língua concani, que os portugueses chamavam canarim.
216
e respostas ganhasse uma grande difusão como principal tipo de texto usado nos catecismos da
Europa e de suas colônias.
Daher (2012, p.49) esclarece que:
Martins descreve no catecismo o cerimonial que deveria ser seguido na doutrina: muitos
cânticos, ladainhas. O exercício da doutrina tinha como objetivo reprimir as “cantigas ruins da
terra”. Havia cerimonial e prêmios, de Portugal para suas colônias: chamavam as crianças para
a doutrina pela campainha e traziam-nas por meio de procissão pela aldeia até a porta da igreja,
quando se iniciava a doutrina. Já era uma prática, mesmo antes da chegada do catecismo de
Marcos Jorge e Inácio Martins. A premiação era para as crianças que melhor memorizassem a
doutrina.
A forma de aprendizagem dos textos cristãos pelos índios era através da memorização.
Esses aprendiam as orações pela repetição, nas horas de doutrina. No Brasil, houve dois
momentos da evangelização jesuítica, (antes e depois do catecismo dos jesuítas portugueses)
uma anterior ao concílio de Trento e outra depois. O período anterior ao Concílio de Trento é o
do governo de Manuel da Nóbrega, que pode ser caracterizado como pregar ao “modo gentio”,
em que se faziam presentes elementos da cultura tupi, retórica, ritual, gestualidade. Havia a
presença de indivíduos bilíngues, oriundos da sociedade mestiça como tradutores do texto
cristão para o tupi. Essa forma de Nóbrega aproximar a evangelização ao modo gentio
contribuiu para que o texto da doutrina em tupi fosse assimilado à oratória tupi dos pajés e dos
profetas. Na Bahia, o jesuíta Azpicuelta Navarro fazia uso de formas gestuais e de oratória tupi
na pregação cristã, além de usar músicas e danças indígenas para as orações, como o Pai e
Nosso. A inclusão desse modo gentio ficou condicionada à forte presença dos colonos
bilíngues, na Ordem jesuítica, nesses primeiros anos. Esses colonos portugueses bilíngues eram
participantes de uma cultura mestiça. (BARROS, 2001 p. 53- 54).
Ainda no século XVI, na fase de tradução do catecismo de Marcos Jorge e Inácio
Martins para o tupi (1574), passou-se a pregar pelo modo dos brancos, tendo o catecismo
português como roteiro. A autora diz que um quarto de século depois, as missões não eram mais
itinerantes e as pregações se faziam nos púlpitos das igrejas construídas nas aldeias jesuíticas e
217
não mais no espaço dos “senhores da fala”, uma referência aos pajés e aos profetas. Em 1579
houve a proibição da entrada na Companhia de Jesus dos “nascidos no Brasil”59, uma referência
aos colonos bilíngues.
No século XVIII, uma Cartilha que foi usada nas aulas de Pernambuco, entre 1759 -
1760: Breve instrucçam para ensinar aDoutrina christaã, Ler eescrever aos Meninos eao
mesmo tempo, osprincípios daLingoa Portugueza eSuaOrthografia. Esta Cartilha foi do
período pombalino, de 1759, depois da expulsão dos jesuítas. Em Nota, Andrade diz:
Parece desfazer dúvidas a respeito da sua origem, o nome da vila de Recife, único
topônimo brasileiro, no meio das vilas e cidades portuguesas, posto que noutro passo,
se acrescentem Olinda, Bahya, Rio de Janeiro. Demais é natural que se trate da
Cartilha que o ouvidor geral, como vimos, informa a Sebastião José, que o Governador
de Pernambuco traduziu do francês. (ANDRADE, 1978, NOTA 30, p. 12).
Segundo Andrade (1978, p. 12), era costume antigo utilizar-se o catecismo como
cartilha de ensino da língua. O autor faz referência à cartilha de Diogo Ortiz e a de João de
Barros. Acrescenta que o Governador da Capitania de Pernambuco, Luiz Diogo Lobo da Silva,
terá mandado redigir a referida Cartilha. No Arquivo Histórico Ultramarino se encontra a
Cartilha, vem como um anexo ao ofício do Governador de Pernambuco (e capitanias anexas),
Luiz Diogo Lobo da Silva, que foi enviado ao Secretário de Estado, Thomé Joaquim da Costa
Corte Real, para que essa fosse avaliada pelo Rei e os seus Conselheiros.
Vão-se tecer breves considerações sobre esta cartilha, do ponto de vista de sua
organização e de alguns aspectos linguísticos. A edição que vai ser tomada é a apresentada por
Flexor (2001).
Esta Cartilha apresenta, na parte inicial, as letras minúsculas e maiúsculas; as cinco
vogais; letras abreviadas; os acentos; sinais de pontuação; sílabas de duas letras, de três letras;
nomes de homens; nomes de mulheres; nomes de cidades.
59
LEITE, 1938: t. II, p. 432.
218
Fonte: AHU – CU- 015-, Cx. 89, D. 7202.
Devem os Mestres ensinar aos discipulos que estes preceytos sam de direyto divino
[...]”
Devem os Mestres ensinar os peccados mortaes.
He percizo ensinarlhe o Padre Nosso [...] (fl.6v)
Concluindo essa parte, se orienta exatamente como o Mestre deve falar aos discípulos,
ressaltando o comportamento moral e a aprendizagem da leitura e da escrita. Seguem as
seguintes passagens:
Fasse precizamente necessario que os Mestres adocem a penoza tarefa da Leytura aos
meninos, com alguás breves praticaz, com que Sevaó Christianizando, e instruindo:
como Verbi gratia. já conheceis as Letras, já sabeis as Silabas e as palavraz, hé
necessário, agora aprender as Letras e ajuntallas com perfeiçáo
60
Observação feita por Flexor (NOTA 23, p. 105): os fólios não estão numerados nos originais.
219
Tem geral estimação o homem honesto que falla com acerto, que Lê com
desembaraço, escreve Com perfeição; porque dâ Certezas infaliveiz, que foi bem
educado [...]. Aquelle que não Sabe Lêr, passa à metade da vida Sego; e para poucas
couzas He capaz o homem, que não Sabe Ler, e escrever.
Foram impressos os Livros para vossa instrucçaó. Toda essa maquina, que vedes de
(fl.15) Livros hé composta de vinte e Sinco Letras [...]
He percizo quevos costumeis a pornunciar bem as Silabas para bem vos poderes
regular na escripta.
Aqui tendes meuz Discipulos as nove vozes, ou Instrumentos com a sua explicação.
Ai começa o tratamento das vozes (classes gramaticais) em número de nove.
Primeiro, o articulo significa união; os articuloz Saó huáz pequenas dicções, que
sepoêm antes dos nomez para a demonstração do gênero, do numero e do cazo [...]
220
Expressa-se, nesse contexto, a crença da condição da prescrição gramatical de levar o
falante a falar corretamente, também a escrever. Depois da conjugação dos verbos, mais para o
final da cartilha é dito:
Na certeza que a falta da declinação dos Nomes, e de não darem aos meninos nas
Eschólas, ao menos esta leve tintura de Gramatica Por- (fl. 25) tugueza, he a origem
dos barbarismos, queSenottaó nas conversações e sedevizam na escripta.
Hé moralmente impossível saber bem a orthografia ignorando os primeiros princípios
da lingoa em queSeescreve.
Vê-se uma postura purista em relação à língua, isentando-a dos contextos de uso. O bem
falar estaria ligado diretamente ao conhecimento das regras da gramática normativa, de sua
metalinguagem. Esse ideal normativo adentra o século XIX e o XX.
Esta cartilha do século XVIII, comparando-se com as anteriores, possui uma
complexidade maior. Isso não só do ponto de vista do tratamento da doutrina cristã, mas,
principalmente, em razão dos aspectos da língua que são tomados como objetos de ensino. Além
disso, destaca-se a orientação didático-pedagógica presente em toda a obra. É uma cartilha
dirigida ao Mestre, com orientações sobre a abordagem doutrinária e a de ensino da língua.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
221
representa(m) não apenas uma pedagogia para ensinar a ler, mas também constrói(em)
horizontes de leitores e representações sobre uma cultura gráfica e material de um
período. Essa representação construída não apenas pelos conteúdos, mas também pela
forma de encadernação, tipo de impressão, de papel e pela configuração gráfica [...]
(FRADE, 2011, p. 185)
Sobre a materialidade desses objetos gráficos, coloca-se uma pergunta final. Que tipo
de competência gráfica adquiriam aqueles que eram alfabetizados por essas cartinhas?
REFERÊNCIAS
FARACO, Carlos Alberto. História sociopolítica da língua portuguesa. 1 ed. São Paulo:
Parábola Editorial, 2016.
FLEXOR, Maria Helena O. Aprender a ler, escrever e contar no Brasil do século XVIII.
Revista de Filologia e Linguística Portuguesa, Nº 4, p. 97-157. São Paulo: USP, 2001.
222
FRAGO, Antonio VIÑAO. Por una historia de la cultura escrita: observaciones y reflexiones,
"SIGNO. Revista de Historia de la Cultura Escrita" 3 (1996) Universidad de Alcalá de
Henares, p. 41-68.
HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil: sua história. 2ed. Ver. ampl. Universidade de
São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005.
PINTO, Américo Cortez. Da famosa arte da imprimissão. Lisboa: Editora Ulisseia LTDA,
1948.
223
CATHALOGO DE ALGUNS ESCRITORES DA CAPITANIA DO GRÃO-PARÁ:
APONTAMENTOS ACERCA DA PRODUÇÃO ESCRITA DOS FRANCISCANOS NO
ESTADO DO MARANHÃO E GRÃO-PARÁ (SÉCULOS XVII E XVIII)
INTRODUÇÃO
224
manifestava uma preocupação com a sua memória e a consciência da possibilidade de seu uso
para fins políticos, tal processo, no caso da Ordem dos Frades Menores, foi ocorrendo aos
poucos, sobretudo a partir da segunda metade do século XVI e do XVII, com o surgimento das
primeiras Histórias Gerais da Ordem (OLIVEIRA, 2008, p. 32-36).
Com a edição crítica e o estudo do Cathalogo de alguns escritores da Capitania do
Grão-Pará pretende-se contribuir com a historiografia não só tornando acessível ao
pesquisador um documento até então inédito mas, também, buscando entender quem foram
esses autores, o que produziram, sob quais condições produziram e com quais finalidades. É
nosso objetivo apresentar algumas respostas para tais questões nas linhas subsequentes.
METODOLOGIA
Foi realizada a transcrição conservadora do fólio 288 ao 293 do códice 908 pertencente
a Biblioteca Nacional de Portugal a partir de uma cópia digitalizada fornecida pela instituição.
Após a fixação do texto, na condição de editores inserimos uma série de notas explicativas a
partir da leitura da bibliografia geral e específica sobre o tema, assim como de instrumentos de
pesquisa como os dicionários de Diogo Barbosa Machado, Innocêncio Francisco da Silva e
Raphael Bluteau.
O presente artigo diz respeito à segunda parte do projeto em desenvolvimento, ou seja,
a realização de um estudo introdutório a respeito da produção do manuscrito, da circulação das
informações que nele constam e da caracterização da produção dos autores descritos. Para isso
nos debruçamos sobre a leitura da bibliografia que trata da colonização do Estado do Maranhão
e Grão-Pará e da presença dos franciscanos nessa região, a fim de entender aspectos políticos,
econômicos, sociais e culturais da sociedade que produziu esse manuscrito e nele está descrita.
O início da presença efetiva dos portugueses na região que, a partir de 1621, viria a ser
designada como Estado do Maranhão e Grão-Pará se deu entre os anos de 1614 e 1615, com a
Batalha de Guaxenduba (1614) e as negociações da retirada dos franceses da Ilha Grande (onde
foi fundada a cidade de São Luís do Maranhão).
225
O período antecedente, ou seja, do estabelecimento do regime das capitanias hereditárias
até o conflito militar com os franceses, foi marcado por sucessivas iniciativas malogradas de
ocupação daquele espaço. Em 1534 o território foi repartido em três capitanias, sendo duas
delas do historiador João de Barros. Uma primeira expedição foi organizada pelos donatários
em 1535, tendo naufragado já estando em águas maranhenses, fato que resultou no desinteresse
dos donatários para com as capitanias.
Parte delas foi requerida por Luís de Mello da Silva no ano de 1549 e a ele foi concedida.
Partiu de Lisboa em 1554 numa expedição que veio a naufragar no litoral maranhense. Em 1573
os filhos de João de Barros tentaram uma nova investida, tendo o mesmo resultado das outras
duas expedições aqui citadas. Dadas as condições de navegação, as tentativas subsequentes
ocorreram por terra, sendo uma a de Pero Coelho de Sousa, em 1603, que não ultrapassou o
território do atual Ceará, e a outra, dos jesuítas Francisco Pinto e Luís Figueira, tendo sido o
primeiro morto por indígenas e a expedição não tendo também ultrapassado o território do atual
Ceará.
Segundo Mário Meireles, as primeiras notícias dos franceses em território maranhense
são da década de 1520, sendo essa presença caracterizada por atividades de pirataria até a
década de 1590 quando, em 1594, chegou à Ilha Grande o capitão Jacques Rifault. Ali ele
estabeleceu uma feitoria que em 1612 serviria como base para a fundação da França Equinocial.
(MEIRELES, 2001, p. 28).
A colônia francesa no Maranhão foi formalmente fundada em setembro de 1612 e se
manteve até 1614. O processo de conquista do Maranhão pelos portugueses teve como sede a
capitania de Pernambuco, de onde partiram os homens e as armas para o cumprimento das
ordens reais de assenhoreamento da região. Analisando os projetos luso-americanos para a
conquista colonial, Antonio Filipe Pereira Cardoso escreve que a conquista colonial dessa
região só foi possível graças à aliança feita tanto com os portugueses de Pernambuco quanto
com os missionários religiosos, tendo os primeiros fornecido a força militar e os segundos o
apaziguamento dos indígenas através da missionação. (CARDOSO, 2011).
Após a conquista portuguesa e a expulsão dos franceses do Maranhão, a região foi
organizada administrativamente em duas capitanias, Maranhão e Grão-Pará, estando ambas
submetidas ao Estado do Brasil, quadro que se manteve até 1621 com a criação de um Estado
autônomo. O primeiro governador só chegaria em 1624. Com ele vieram 18 missionários, entre
eles Frei Cristóvão de Lisboa, na condição de Custódio da Custódia de Santo Antônio do
Maranhão e Grão-Pará (AMORIM, 2005, p. 81-82; MEIRELES, 2001, p. 65).
226
A presença de franciscanos portugueses no Maranhão ocorreu logo após a Batalha de
Guaxenduba (1614) com missionários da Província de Santo Antônio do Brasil que lá foram
atuar, nomeadamente Frei Cosme de São Damião e Frei Manuel da Piedade. Todavia, a
presença de frades franciscanos naquela localidade é anterior, se considerarmos que entre os
religiosos que atuavam na França Equinocial estavam os capuchinhos franceses Claude
D’Abeville (autor de História da missão dos padres capuchinhos na ilha de Maranhão e terras
circunvizinhas, 1614), Yves d’Évreux (autor de Viagem no norte do Brasil, 1615), Arsênio de
Paris e Ambrósio de Amiens.
Cabe aqui um parênteses quanto à organização da Ordem dos Franciscanos. A Ordem
possui diversos ramos tanto masculinos quanto femininos. No caso masculino, tem-se a Ordem
dos Frades Menores Conventuais, da Imaculada, Secular, dos Capuchinhos e a Terceira Ordem
Regular de São Francisco. Embora a Ordem tenha como nome oficial Ordem dos Frades
Menores, tal nome também corresponde a um ramo franciscano que são os Observantes. A
diferença entre os ramos gira um torno da observância da regra, sobretudo no que diz respeito
ao retorno à pobreza. Logo, os Observantes são designados pelo nome oficial da Ordem
exatamente por manterem a proximidade com os preceitos fundadores.
Na América portuguesa, o ramo que atuou tanto no Estado do Brasil quanto no Estado
do Maranhão e Grão-Pará foi o dos Observantes da Província de Santo Antônio de Lisboa.
Administrativamente, a Ordem se organiza em Comissariado (formado por um conjunto de
conventos) submetido a uma Custódia que é submetida a uma Província. Na América
portuguesa houve duas Províncias, a de Santo Antônio do Brasil (criada em Olinda como
custódia submetida a Portugal em 1584 e declarada autônoma em 1657) e a da Imaculada
Conceição (criada no Rio de Janeiro em 1675). No que concerne ao Maranhão e Grão Pará, em
1616 foi criado um comissariado submetido a Portugal que, entre 1622 e 1655, recebeu o título
de custódia, tendo retornado à condição de comissariado e assim permanecido até 1829
(AMORIM, 2005, p.51-52).
Após Frei Cosme de São Damião e Frei Manuel da Piedade terem retornado para a
Custódia de Santo Antônio do Brasil, em 1617 foram enviados de Portugal para o comissariado
recém-criado quatro frades do Convento de Santo Antônio de Lisboa: Frei Antônio de
Merceana (na condição de comissário, ou seja, aquele que exercia o governo espiritual do
comissariado), Frei Cristóvão de São José (vice-comissário), Frei Filipe de São Boaventura e
Frei Sebastião do Rosário (AMORIM, 2005, p.81).
Esses religiosos atuaram tanto no Maranhão quanto no Grão-Pará. Após a conquista de
São Luís, Francisco Castelo Branco seguiu para o Grão-Pará a fim de expulsar os estrangeiros
227
que lá permaneciam. Concluído o feito e estabelecido o sítio de Belém, segundo Maria Adelina
Amorim, foi Castelo Branco, na condição de governador, quem solicitou o envio de religiosos
da Ordem dos Frades Menores para a missionação de Belém e de São Luis, sendo os enviados
aqueles que mencionamos acima (AMORIM, 2005, p.136).
A consolidação da atuação franciscana na região veio com o estabelecimento da
Custódia de Santo Antônio do Maranhão e Grão-Pará. Embora a Custódia tenha sido criada em
1622, apenas em 1624 Frei Cristóvão de Lisboa, na condição de custódio, embarcou para a
América portuguesa com diversos outros religiosos. Esse intervalo de dois anos ocorreu por
conta da persistência de Frei Cristóvão em conseguir um alvará que lhe desse o governo
temporal dos índios.
A questão do uso da mão de obra indígena foi algo que permeou toda a história do
Estado do Maranhão e Grão-Pará. Antonio Filipe Pereira Caetano ao escrever sobre os projetos
luso-americanos para essa localidade caracteriza a aliança feita pela Coroa com os
pernambucanos e os missionários para a conquista dessas terras como algo “que custou
caríssimo para a construção da autoridade monárquica no Estado do Maranhão e Grão-Pará”
(CARDOSO, 2011, p.5). De um lado, um grupo de pessoas que viu no espaço conquistado e na
implementação da administração régia em um local sem uma elite consolidada – diferente do
que ocorria no Estado do Brasil – uma oportunidade de conquistar cargos, postos, honras e
mercês, sobretudo por meio da produção de açúcar; do outro, os missionários, desejosos em
manterem os indígenas em seus aldeamentos e missões trabalhando sob os seus cuidados, ou
seja, estes últimos concorrendo diretamente com os primeiros pelo uso da mão de obra nativa.
Contrastando com o que ocorreu no Estado do Brasil, onde a produção açucareira teve
como principal força de trabalho os escravizados oriundos do continente africano, estes, com
preços altíssimos no Estado vizinho e, portanto, disponíveis em menor quantidade, traziam à
tona a disputa pelo uso da mão de obra indígena em abundância na região. Denominados “índios
cristãos”, eles eram retirados de seus locais de origem e passavam a viver nas missões, nas
fazendas e nas cidades desempenhando as mais variadas funções. No caso dos homens, eram
remadores, proeiros e artesãos que exerciam diversos ofícios técnicos na ausência de pessoas
vindas do reino. Segundo Almir Diniz de Carvalho Júnior, “mandados às missões e às casas
dos brancos, esses índios aprendiam os ofícios com tanta destreza e perfeição que a nenhum
mestre europeu ficavam a dever.” (JÚNIOR, 2013, p. 83).
A pobreza do Estado do norte é citada por diversos autores. Mário Meireles, por
exemplo, atribui essa situação econômica aos negócios precários, tendo em vista que o contato
com a metrópole era feito por um único navio uma vez ao ano, enquanto que com o Estado do
228
Brasil o contato era dificílimo. O autor traça um panorama econômico estático, pautado no
“escravo indígena, a única fonte de enriquecimento, o algodão, o açúcar, aguardente, os artigos
comerciáveis na Colônia, o cacau, a baunilha e agora o cravo, os mais exportáveis”
(MEIRELES, 2001, p. 196).
Para Antonio Filipe P. Cardoso, foi apenas após a Revolta de Beckman (1684-1685) que
um projeto luso-americano de exploração econômica se definiu no Maranhão e Grão-Pará: fazer
da região um “celeiro de drogas do sertão”. Segundo o autor, o período anterior foi marcado
pela inconstância da Coroa em, ora apoiar a produção açucareira (e de seus subprodutos), ora
incentivar a descoberta, produção e extração das drogas do sertão, de modo que nenhuma das
duas atividades pudesse se desenvolver plenamente (CARDOSO, 2011, p.13).
O desenvolvimento urbano de São Luís e de Belém nos séculos XVII e XVIII ocorreu
sob condições precárias. Estudando as cidades e vilas da Amazônia colonial, Alírio Cardoso e
Rafael Chambouleyron descrevem ambas como formadas por prédios em sua maior parte
construídos de taipa e com telhas de maniçoba, sendo as reformas uma necessidade constante.
Somada à falta de materiais, havia a falta de “homens práticos nos ofícios necessários às
construções mais sólidas”, suprida em sua maior parte por indígenas que haviam aprendido tais
ofícios nas missões religiosas (CARDOSO; CHAMBOULEYRON, 2009, p. 41).
Como veremos adiante, a precariedade marcará também os autores listados no
Cathalogo, tendo em vista que a maior parte das obras citadas encontrava-se manuscrita no
período em que D. Lourenço Álvares Roxo enviou suas notícias a D. Francisco de Almeida
Mascarenhas. Entre os argumentos citados por Álvares Roxo, além da maior parte das obras
terem sido compostas em “Linguas de Nasções de gentios”, ou seja, não eram do interesse dos
religiosos de Ordem que não fosse a dos franciscanos, estas também não foram impressas “por
razão da pobreza dos Religiozos” (Cathalogo, 1742, fl. 288).
Tendo esboçado sucintamente o quadro histórico no qual o Cathalogo se insere,
passaremos ao manuscrito propriamente dito, abordando-o não só individualmente mas,
também, considerando-o dentro do conjunto documental do qual ele é oriundo, os seis códices
da Biblioteca Nacional de Portugal compostos por notícias biobibliográficas enviadas de
diversas localidades portuguesas e da América portuguesa para D. Francisco de Almeida
Mascarenhas.
229
“Em Observancia do que Vossa Excelência Reverendíssima me ordena nas cartas que me
fez honra escrever”: O Cathalogo e os códices com informações biobibliográficas de
autores portugueses
230
O Cathalogo faz parte de um universo documental mais amplo, um conjunto de seis
códices (do 908 ao 913) pertencentes a Biblioteca Nacional de Portugal. Cinco desses códices
(909-913) estão digitalizados e disponíveis online. O códice 908, no qual o manuscrito em
questão se encontra, não está digitalizado, de modo que o nosso trabalho foi realizado a partir
de uma cópia dos fólios de número 288 ao de número 293 (fólios que correspondem ao
Cathalogo) solicitada na instituição. Esse conjunto de códices diz respeito às notícias
biobibliográficas enviadas a D. Francisco de Almeida Mascarenhas por indivíduos de Portugal
e da América portuguesa.
O códice 908 (336 fólios) é o único no qual constam notícias de autores da América
portuguesa, todavia, por não estar digitalizado, ainda não pudemos realizar um levantamento
completo sobre de quais partes do território foram remetidas notícias, exceto do Grão-Pará e
Maranhão e Rio de Janeiro. O códice 909 (171 fólios) diz respeito aos escritores do Porto e as
notícias nele presentes foram remetidas por Antônio Cerqueira Pinto, confrade de Almeida
Mascarenhas na Academia Real.
Os códices 910 (297 fólios), 911 (120 fólios) e 912 (212 fólios) são notícias, cartas e
apontamentos a respeito de diversos autores de língua portuguesa, espanhola e latina, de autores
que possuíam obras na biblioteca do Convento de Santa Maria Scala Coeli, mais conhecido
como Convento da Cartuxa, em Évora, pertencente à ordem de São Bruno, e de escritores de
diferentes ordens – jesuítas, carmelitas e dominicanos – sendo todas as informações remetidas
pelo Frei Eustáquio da Virgem Maria, da Ordem dos Cartuxos.
O códice 913 (322 fólios) é o que mais se diferencia dos demais, tendo em vista que,
consta, também, a transcrição de algumas obras e a relação de livros existentes em livrarias
particulares, como a de Francisco Luís Ameno (com obras em espanhol e catalão), a de Belchior
de Andrade Leitão e a relação de manuscritos das livrarias do Marquês Mordomo-mor e do
Marquês de Gouveia, feitas pelo célebre bibliógrafo, genealogista e membro da Real Academia
D. Antônio Caetano de Souza. As obras transcritas no códice são: Resõens que persuadem não
ser portugues o grande Patriarcha São João da Mata, de autoria do Frei Irmão de Brito,
Dissertação historica em que se examinou qual foi a Patria de Idacio, e de onde era Bispo, por
Fr. Manoel da Rocha e Carta del Padre Fray Luis de Granada al christiano lector.
No que diz respeito ao trabalho de recolhimento de notícias realizado em Portugal, as
cartas enviadas por Antônio Cerqueira Pinto nos fornecem informações importantes acerca do
processo. Cerqueira Pinto se correspondeu com D. Francisco entre 1735 e 1737, sendo que na
maior parte dos meses chegou a enviar entre quatro e cinco remessas de notícias ao destinatário.
Entre as informações requeridas por D. Francisco de Almeida Mascarenhas estavam “nomes de
231
Escriptores Portuguezes, suas patrias, pais, dignidades, officios e obras que compuzerão”, como
escreveu Antônio Cerqueira Pinto em carta enviada do Porto em 18 de agosto de 1736 (códice
909, fl. 3v).
Em carta de 29 de setembro do mesmo ano, Cerqueira Pinto relata não só as condições
sob as quais trabalhava, mas também a dificuldade em realizar esse tipo de estudo sobre o qual
estava se debruçando:
No caso do trabalho empreendido por Lourenço Álvares Roxo, o pouco que sabemos é
o que se encontra na única carta aqui já citada. Ao receber a tarefa, ele procurou pessoas que
poderiam lhe dar as respostas requeridas por D. Francisco. Todavia, não as conseguindo,
recorreu ao arquivo do Convento de Santo Antônio do Pará e às próprias lembranças.
Considerando que essa é a única carta nos fólios correspondentes ao Maranhão e Grão-Pará e
dado o reduzido número de embarcações que anualmente ligavam São Luís e Belém a Lisboa,
é possível afirmarmos que as informações obtidas por Álvares Roxo foram enviadas em uma
única só viagem, diferente das diversas e frequentes remessas de notícias enviadas por
Cerqueira Pinto.
Fica em aberto a questão se foram enviadas as demais notícias que no momento da
conclusão do Cathalogo não estavam “bem averiguadas” e que, por isso, seriam remetidas em
outro catálogo, como sinalizou Álvares Roxo no escrito de 1742. Ao se despedir na mencionada
carta, disse que continuaria a recolher as informações solicitadas e que as enviaria na próxima
monção, somando-se a elas as “memorias Zoologicas, que vou trabalhando nella com todo o
calor, Visto Vossa Excelência Reverendíssima mo ordenar, pois lhe devo em tudo obedecer”.
As tais memórias mencionadas dizem respeito ao manuscrito inconcluso intitulado
Memórias Zoológicas, Fitológicas e Mineralógicas ou Descrições físico-históricas das mais
notáveis produções Animais, Vegetais e Minerais do Estado do Grão-Pará, cuja autoria é de
D. Lourenço de Álvares Roxo. Este é composto de 90 fólios e encontra-se sob a guarda do
Museu Nacional de História Natural de Paris. O manuscrito data de 1752, ou seja, dez anos
após a menção a ele feita na carta a D. Francisco de Almeida Mascarenhas, tendo este morrido
232
em 1745. Dante M. Teixeira, Nelson Papavero e Lorelai B. Kury, em um estudo realizado em
2010 sobre as aves do Pará na obra de D. Lourenço, publicaram em anexo uma carta (datada de
1752) deste ao francês Charles Marie de La Condamine, famoso cientista e explorador francês
que esteve na bacia do Rio Amazonas em 1743, tendo também visitado Belém.
A carta de Álvares Roxo a La Condamine permite justificar a presença do manuscrito
original em Paris, enviado pelo próprio autor. Como já citado, D. Lourenço de Álvares Roxo
era sócio correspondente da Académie de Sciences de Paris, sendo ele próprio filho de um
francês, Franz Potflis, que chegou ao Pará em 1692. A nomeação para a academia francesa veio,
segundo Teixeira, Papavero e Kury, em janeiro de 1748, por intermédio de La Condamine.
Embora a encomenda das Memórias Zoológicas tenha sido feita por D. Francisco de Almeida
Mascarenhas, como já dito, este morreu em 1745, de modo que a obra não concluída de Álvares
Roxo fosse enviada a Paris em 1752.
La Condamine esteve em Belém em 1743, período no qual as Memórias Zoológicas
estavam em processo de construção. Foi nessa estadia no Grão-Pará que conheceu Álvares
Roxo, relação mantida ao longo dos anos subsequentes, como pudemos perceber pela menção
feita na carta de 1752 a correspondências anteriores e promessas de presentes, assim como pelo
envio, por parte de D. Lourenço, de “caixotes de variedades” para a França, constando nesses
caixotes diversas espécies nativas por ele coletadas e preservadas a fim de remeter ao cientista
francês.
Sendo assim, é digno notar a rede de informações na qual o autor do Cathalogo de
alguns escritores da Capitania do Grão-Pará estava inserido. Não só mantinha
correspondências com D. Francisco de Almeida Mascarenhas, membro da Academial Real da
História Portuguesa que, se o escolheu para tal tarefa, foi porque tinha conhecimento da sua
capacidade em realizá-la, mas também foi autor de uma obra de História Natural que, como
destacam Teixeira, Papavero e Kury, antecedeu os estudos do baiano Alexandre Ferreira
Rodrigues (1756-1815).
Ainda sobre a rede de informações, também é digna de nota a relação estabelecida com
La Condamine, que o levou à nomeação de sócio correspondente da Académie de Sciences de
Paris no ano de 1748 e ao interesse do cientista europeu pela sua obra inconclusa, além do envio
de espécies nativas para a França e do recebimento de presentes mandados pelo confrade
francês. Dito isso, é válido enxergarmos D. Lourenço Álvares Roxo como alguém pertencente
e agente do circuito de produção e circulação de saberes existente entre a Europa e a América
portuguesa no século XVIII.
233
Apontamentos acerca da produção escrita dos franciscanos no Estado do Maranhão e
Grão Pará nos séculos XVII e XVIII
D. Lourenço Álvares Roxo organizou o seu Cathalogo numerando cada um dos autores
e seguindo um padrão de primeiro apresentá-los e posteriormente citar as respectivas obras das
quais tinha conhecimento. As linhas subsequentes foram compostas a partir da transcrição por
nós realizada e das notas explicativas que nós, na condição de editores, inserimos no texto.
Essas notas foram escritas a partir do cruzamento do texto transcrito com instrumentos de
pesquisa como os dicionários de Diogo Barbosa Machado, Innocêncio Francisco da Silva e
Raphael Bluteau, a História da História do Brasil, de José Honório Rodrigues e a bibliografia
concernente ao tema por nós consultada.
O primeiro autor já foi mencionado por nós em diversos momentos do texto. Frei
Cristóvão de Lisboa ou Frei Cristóvão Severim é irmão do célebre Chantre de Évora Manuel
Severim de Faria. Capucho de Santo Antônio de Lisboa, ele foi Lente da Sagrada Teologia e
Bispo nomeado de Angola. Recebeu o hábito da Ordem ainda na adolescência, primeiro na
Província da Piedade e depois foi transferido para a de Santo Antônio. Veio para a América
portuguesa em 1624 na condição de primeiro custódio da Custódia de Santo Antônio do
Maranhão e Grão-Pará, recém-criada.
Frei Cristóvão atuou por doze anos nas missões do Estado do Maranhão, quatro anos na
Província da Piedade e quarenta e cinco na Província de Santo Antônio de Lisboa, tendo lá
exercido os postos de Prelado Local, Definidor da Província, Visitador da Província de Portugal
e Guardião do Convento de Santo Antônio dos Capuchos. Sobre a sua atuação na América
portuguesa, Álvares Roxo escreve: “Seria necessario hum Livro inteyro para se fazer menção
do fruto, que fez, exemplos, que deu de sua pessoa, conversão dos gentios, e mosteyros que
edificou, successos, e descripção desta dilatada Conquista;” (Cathalogo, 1742, fl. 289).
Dos autores presentes no Cathalogo, Frei Cristóvão é o que mais teve obras listadas e o
que mais teve obras publicadas. Tomamos conhecimento de um total de dezoito obras de sua
autoria, catorze delas foram descritas por Diogo Barbosa Machado, uma apenas, por Innocêncio
Francisco da Silva, por se tratar de uma obra póstuma e três foram mencionadas apenas por
Álvares Roxo. As citadas no Cathalogo são: Sermão que pregou na 4ª Dominga da Quaresma
(impresso em Lisboa, por Pedro Craesbeeck em 1641); Santoral de vários sermões dos santos
(1638); Sermão da terceira Dominga do Advento na Misericordia de Lisboa, quando se jurou
ElRey D. João o IV por Rey deste Reyno (impresso em Lisboa, por Antonio Alvares em 1641);
Sermão do Sacramento (1644); Sermão da Immaculada Conceição da Sacratissima Virgem
234
Nossa Senhora Padroeira do Reyno préggado na Capella Real a 8. de Dezembro de 1645
(impresso em Lisboa, por Paulo Crasbeeck em 1646); Manifesto da injustiça, cegueira, e
declinação presente, e futura ruina de Castella, e do abono, patrocinio, e ambora dividno da
Justiça de Portugal,verdades todas estampadas no maravilhoso caso, que sucedeo em a Cidade
de Lisboa, dis do Corpo de Deos em que o Senhor livrou com a sua omnipotencia a Magestade
delRey D. João o IV da morte, que á traição lhe intentàrão dar os Castelhanos (impresso em
Lisboa, por Paulo Crasbeeck em 1647); Sermão de Lázaro (1648); Jardim da Sagrada Escritura
disposto em modo alphabetico com hum elencho de discursos, e conceitos sobre os Evangelhos
das Domingas, Quartas, e Sextas Feiras da Quaresma, e Domingas de Advento, utilissimo para
Prégadores, e Curas de almas (obra póstuma, impressa em Lisboa, por Paulo Crasbeeck em
1653); História das Árvores e Animais do Maranhão (sem referência de quando foi escrito e
ainda manuscrito em 1742).
O segundo a constar no Cathalogo é Frei Boaventura de Santo Antônio, capucho,
nascido no Bispado de Viseu, Portugal. Recebeu o hábito da Ordem em 1678, tendo se dedicado
à Teologia e à Moral ao longo de sua vida. Passado para a América portuguesa, atuou por três
anos na Aldeia dos Aruãs e por outros sete na do Joanes. Embora Álvares Roxo cite de maneira
genérica a Aldeia dos Aruãs, durante o período colonial os franciscanos tiveram três missões
entre os Aruãs: a de São José (na ilha do Joanes), a de Bom Jesus (também de índios Maranus)
e a de Santo Antônio de Anajatiba (AMORIM, 2005, p. 91). Já a mencionada missão do Joanes
diz respeito à missão de Nossa Senhora do Rosário, na chamada ilha de Joanes.
Nessas missões instituiu escolas de ler e escrever para rapazes e moças, nas quais se
aplicou ao ensino da doutrina, dos “bons costumes”, e de habituá-los nos “Santos exercícios”,
ressaltando Álvares Roxo que tudo isso Frei Boaventura realizava nas línguas nativas, sendo
que, devido ao conhecimento que tinha delas, compôs várias obras. São elas: Hum vocabulario
de 4º do idioma Sacaca, que tera 400 folhas, e no fim a doutrina Christaã no mesmo idioma;
Hum Confissionario com admoestações sobre os Mandamentos com toda a individuação no
mesmo idioma; e hum breve Dialogo sobre a doutrina Christaã em Lingua dos Guaianas, de
que tambem tinha noticia; Huma Arte da Lingua Arooãs do tamanho da Arte Latina do Padre
Manoel Alvares; Arte da Lingua Commua, a que chamão Lingua geral in 4º com hum
Confessionario da mesma Lingua, e practicas varias, tudo no mesmo volume; Hum vocabulario
da Lingua geral, ou Commua in folio, que ja tem muitoz Cadernos dispersos, a imitação da
Prozodia do Padre Bento Pereyra.
Frei Paulo de São Francisco, o terceiro autor, nasceu em Arcos, na comarca de Chaves,
província de Trás-os-Montes. Antes de se tornar capucho do Convento de Santo Antônio de
235
Lisboa, Frei Paulo estudou os sagrados Cânones na Universidade de Coimbra, onde recebeu o
título de bacharel em 1692. Ao chegar ao Maranhão passou a estudar Teologia, matéria na qual
passou a ter destaque, pois, segundo Álvares Roxo, ele era uma espécie de oráculo da província.
Foi Guardião do Convento do Pará assim como Comissário Provincial. Morreu no Convento de
Santo Antônio do Pará em 1710, deixando como única obra um “Peculio de Direyto sem titulo”,
formado por 748 fólios.
O quarto autor trata-se de Frei Joaquim da Conceição, capucho da Província de Santo
Antônio, natural do Termo de Torres. Dedicou-se à Moral, tendo Álvares Roxo o qualificado
como um dos maiores moralistas do Estado. Nos seus vinte anos de atividade missionária não
só combateu as doenças espirituais, mas também as da carne, tratando as enfermidades
cotidianas daqueles que estavam ao seu redor. Foi Presidente das Missões por três anos,
Guardião do Convento e Comissário Provincial também por três anos em cada uma das funções.
Ainda vivia e atuava nas missões quando o Cathalogo foi escrito. Foi autor de quatro obras:
“tres Confessionarios de 4º”, um na língua dos Maraunus, outro na dos Aruãs e outro na dos
Aracajús. A quarta obra trata-se de um Livro 8º Explicação breve doz misterios mais essenciaes
da nossa Santa Feé no idioma Aroaã.
O quinto autor, Frei Antônio de Santa Maria, capucho e natural de Lisboa, entrou para
a Ordem em 1699. No Grão-Pará foi mestre de Álvares Roxo, tendo atuado como Lente de
Artes, Teologia e Presidente das Missões. Vivia no Convento de Lisboa quando o Cathalogo
foi escrito. Compôs dois sermões que, embora os títulos não sejam citados, a partir dos dados
apresentados por Diogo Barbosa Machado é possível afirmar que se trata do Sermão da flor de
Padua Santo Antonio pregado no Convento do Santo da Cidade de Lisboa (1630) e Sermão de
Santo Antonio pregado em Santo Estevão de Alfama (1732), ambos publicados em Lisboa pela
Officina Augustiniana.62 Como obras ainda manuscritas, Álvares Roxo cita alguns tomos de
sermões, uma “practica Criminal” e a “vida da Senhora Santa Anna”.
Frei Jozé da Natividade é o sexto autor listado. Foi teólogo, Guardião do Convento do Pará e
Comissário Provincial, além de ter atuado muitos anos nas missões dos capuchos no Estado do
Maranhão e Grão-Pará. Encontrava-se vivo no Convento de Santo Antônio de Lisboa quando
o Cathalogo foi escrito. É autor de catecismos da doutrina e mistérios da santa fé para o governo
dos índios, todos na língua geral, Aruã e Maraunú.
62
Seguramente, Diogo Barbosa Machado e Lourenço Álvares Roxo estão falando da mesma pessoa, tendo em
vista as informações biográficas fornecidas serem equivalentes. Todavia, o fato de Álvares Roxo citar que o
religioso ainda vive no Convento de Santo Antônio de Lisboa em 1742, somado à diferença de 102 anos entre uma
publicação e outra, nos faz questionar se não houve erro de edição no caso da primeira data, 1630.
236
O sétimo autor trata-se do Frei Francisco de Santo Antônio, capucho e natural de
Coimbra. No Grão-Pará foi Lente de Artes, Pregador e Comissário Visitador da Ordem 3ª da
Penitência, sendo muito consultando em casos de consciência e assistência de moribundos.
Atuou poucos anos como missionário. Voltou para o Reino em 1733 e, em 1742, vivia no
Convento de Santo Antônio de Lisboa.
Escreve Álvares Roxo que ele “compoz hum Tratado sobre o meyo mais conveniente
para livrar as Consciencias destes povos na extracção dos Indios do Certão”, obra que, feita a
mando do governador João da Maia da Gama ficou registrada nos livros de câmara de Belém.
A segunda obra de Frei Francisco é um “Tratado sobre as Visitas das Aldeas, não pertencerem
aoz Ordinarios, mas Sim aoz Regulares”. Álvares Roxo não forneceu data alguma para as duas
obras, todavia, o fato da primeira ter sido escrita a mando de João da Maia da Gama nos permite
datá-la entre 1722 e 1728, período de seu mandato. (Cathalogo, 1772, fl. 292; BOXER, 2000,
p. 400-2).
O oitavo autor, o também capucho Frei Francisco de Santa Roza, é natural da vila de
Torres Vedras, e ao longo da sua vida religiosa passou não só pelo Convento de Santo Antônio
de Lisboa, mas também pelo Convento da Castanheira (Vila Franca de Xira) e Convento da
Pedreira (Coimbra), no qual estudou Artes e Teologia. Exerceu os postos de presidente do
Convento de Santo Antônio de Lisboa, secretário da Província e Guardião do Convento da
Carnota (Convento de Santa Catarina, no Concelho de Alenquer).
Ao vir para a América portuguesa, frei Francisco foi Comissário Provincial do Grão-
Pará, Presidente das Missões e Juiz Sinodal do Bispado de Santa Maria de Belém do Pará. É
autor das seguintes obras manuscritas: Expurgatorio de Conservatorias regulares antigas e
Formulario de Conservatorias regulares modernas (dividida em duas partes); Carta
Apologetica em defensa da Bulla Benedictina Confirmatorias dos privilegios dos Frades
menores de São Francisco; Decisões Consultivas sobre quatro pontos do Direyto Ecclesiastico
Cathedral e estatuario a favor da jurisdicção Capitular Sede vacante do Bispado de Santa
maria de Belem do Gram Pará; Collecção Cronologico Canonica de todas as izenções
concedidas aos regulares pertencentes as Epistolas do Livro 5º de Gregorio 9º titulo 3º et cetera
e Consultatio Canonies regulares.
Do nono autor poucas informações são citadas por Álvares Roxo e nada encontramos
além do que está no Cathalogo. Trata-se do frei Pedro de Santa Roza, da mesma Província de
Santo Antônio de Lisboa e natural da vila de Vilarinho (Concelho da Lousã). Foi missionário
por vinte e cinco anos e se encontrava vivo em 1742. É autor de um confessionário na língua
dos Aracajús.
237
O décimo autor, embora tenhamos pouquíssimas informações biográficas, foi autor de
uma volumosa obra. Frei Matheus de Jesus Maria, também da Província de Santo Antônio de
Lisboa, nasceu em Pombal, Portugal. Foi confessor e missionário. Compôs os seguintes
manuscritos: Vocabulario de 4º da lingua Brasilica e Com frases da mesma lingua; Livro de 4º
das couzas mais necessarias aos Missionarios que asistem entre gentios em o anno de 1732
(em Língua Geral); Cartapacio de Nomes da lingua Maraunù (com 1219 vocabulários) e outro
Cartapacio de verbos da mesma língua; outro cartapacio, este de Nomes e Pronomes;
Vocabulario de 4º da lingua Aroaã (sendo missionário do Igarapé Grande em 1734);
Vocabulario de 4º com advertencias pertencentes a Grãmatica da lingua geral; Vocabulario
de 4º de practicas Sobre oz Sacramentos, Mandamentos e devoções varias (na Língua Geral);
Tomo de 4º Arte da lingua Aroaã; Tomo de 4º Confessionario na Lingua Maraunù; Livrinho
em 12 Significados mais Communs da lingua geral (composto no ano de 1731 e dividido em
duas partes) e Tomo de 4º Doutrina pello idioma Maraunù, com hum Confessionario, e com
hum breve vocabulario no fim, tudo na mesma Lingua, e no mesmo Volume.
Frei João de Jesus, décimo primeiro autor, é natural da Vila de Ulme, Portugal. Estudou
Artes no Convento do Pará, porém, desistiu, tendo atuado apenas como confessor. Durante sete
anos ele atuou como missionário, sendo que, em 1742, encontrava-se no posto de Guardião do
Convento do Pará. Escreveu: Livro de 4º com o titulo de compendio de practicas pella lingua
geraL; Arte, ou regras mais necessarias para os que principião a aprender a Lingua doz
Aroaãs; Confessionario da Lingua Aroaã em 4º e Vocabulario de 4º da lingua geral (contendo,
no mesmo volume, algumas conjugações de verbos).
O décimo segundo e o décimo terceiro autor são os únicos não pertencentes à Ordem
dos Frades Menores. Frei André de Christo, o décimo segundo, pertencia à Real e Militar
Ordem de Nossa Senhora das Mercês. Já o décimo terceiro, Antônio Álvares, pertencia ao clero
secular, sendo referido como “Presbytero do hábito de São Pedro”.
A partir do quadro apresentado podemos caracterizar essa produção escrita dos onze
autores franciscanos mencionados que atuaram no Estado do Maranhão e Grão-Pará entre os
séculos XVII e XVIII. Primeiramente, a respeito do perfil dos autores, vimos que todos eles são
portugueses que, em algum momento das suas carreiras religiosas, foram para as missões do
Maranhão e Grão-Pará, sendo que alguns morreram e foram sepultados em terras americanas e
outros voltaram para a casa-mãe em Lisboa. Dos onze autores citados, nove, em maior ou menor
grau, tiveram formação em áreas como Teologia, Moral, Artes ou Cânones e ocuparam diversos
cargos, como os de Comissário Provincial, Presidente das Missões, Guardiães do Convento,
entre outros. Os únicos a fugirem desse perfil são sutilmente destacados por Álvares Roxo.
238
Sobre frei Pedro de Santa Roza e frei Matheus de Jesus Maria o autor do Cathalogo escreveu:
“he Confessor somente” no caso do primeiro e “he somente Confessor, e Missionario” no caso
do segundo (Cathalogo, 1742, fl. 292, grifo nosso).
Em segundo lugar, a respeito das obras, apenas Frei Cristóvão de Lisboa e Frei Antônio
de Santa Maria tiveram suas obras impressas, todos os demais possuíam suas obras ainda
manuscritas e, todos os que ainda estavam vivos no momento em que o Cathalogo foi escrito,
as mantinham em suas respectivas mãos. A maior parte dessas obras estava ligada às questões
do cotidiano, ou seja, eram manuscritos que objetivavam auxiliar os missionários nas atividades
que envolviam questões legislativas, de resolução de conflitos e principalmente de missionação,
seja na catequização, na doutrinação, na pregação, seja no ensino e aprendizagem das línguas
nativas pelos próprios religiosos, como é o caso das gramáticas e vocabulários.
Se a maior parte desses escritos visava auxiliar os religiosos no cotidiano missionário,
é justificável a observação que D. Lourenço de Álvares Roxo faz a D. Francisco de Almeida
Mascarenhas na carta que precede o Cathalogo, segundo a qual a maior parte dessas obras está
na “língua das nações dos gentios”, ou seja, as línguas Aruãs, Aracajúz, Maraunús e Sacacas,
aparecendo em menor grau obras na língua geral, não considerada como língua gentílica.
Desses onze autores listados, apenas dois são citados em instrumentos de pesquisa como
os dicionários de Diogo Barbosa Machado e o de Innocêncio Francisco da Silva, sendo eles
Frei Cristóvão de Lisboa – inegavelmente o mais célebre entre todos eles – e Frei Antônio de
Santa Maria, ou seja, a única menção encontrada até o presente momento da vida e obras dos
outros nove autores mencionados é a feita por Álvares Roxo no manuscrito em questão, estando
entre eles autores com uma volumosa obra, como é o caso de Frei Matheus de Jesus Maria,
autor de obras em sua maioria com mais de cem páginas, chegando uma delas a quatrocentas e
outra, a oitocentas páginas.
CONCLUSÃO
A produção escrita dos franciscanos que atuaram nas missões do Maranhão e Grão-Pará
entre os séculos XVII e XVIII pode ser caracterizada como uma produção orientada pelo
cotidiano desses religiosos e também para a atuação religiosa cotidiana na região norte da
América portuguesa. É, a partir da interação com os indígenas retirados de seus locais de origem
e levados para as missões, fazendas e cidades sob a vigilância dos missionários, que a maior
parte das obras citadas no Cathalogo de alguns escritores da Capitania do Grão-Pará foram
239
construídas, ou seja, considerando o trato com indígenas Aruãs, Sacacas, Maraunús e Aracajúz,
para isso sendo desenvolvidas gramáticas, vocabulários, confessionários, sermões, entre outros
gêneros textuais que auxiliassem na atividade de mediação, catequização e doutrinação dos
índios.
Dada a pobreza da região na qual estavam, assim como da ordem da qual eram parte,
apenas dois dos onze autores num período de mais de 120 anos conseguiram fazer com que os
seus manuscritos fossem impressos em oficinas tipográficas em Lisboa. Somado a isso, há a
especificidade linguística do local onde esses religiosos atuaram, pois, como destacou o próprio
autor do Cathalogo, por esses escritos terem sido compostos em línguas circunscritas aos
grupos daquela região, estes serviam apenas a eles, logo, o manuscrito original ou algumas
cópias cumpriam a função de compartilhamento daquele material entre os outros religiosos e
missionários da Ordem.
Do total de autores mencionados, a maior parte deles havia se aplicado em estudos de
Teologia, Artes, Moral ou Cânones, assim como ocupado cargos dentro da Ordem tanto em
Lisboa quanto na América portuguesa, ou seja, eram pessoas que não só haviam tido preparação
intelectual durante alguns anos, mas também que inspiravam confiança em seus superiores a
ponto de serem designados aos cargos que ocuparam. Embora dois deles se dedicaram
“somente” à confissão e missionação, como destacou Álvares Roxo, um deles, frei Matheus de
Jesus Maria é um dos autores com produção mais volumosa citada no Cathalogo, autor de
gramáticas e vocabulários, tarefas que não poderiam ser desempenhadas por alguém com uma
má formação.
O fato de apenas dois dos onze autores constarem em instrumentos de pesquisa que
fornecem informações biobibliográficas de autores de língua portuguesa permite que os futuros
pesquisadores venham a se debruçar sobre a busca das obras citadas ao possuírem em mãos não
só o nome dos autores e as respectivas obras, mas também algumas pistas dos locais pelos quais
esses autores andaram.
Cabe aqui afirmar que, mesmo que tais obras tenham se perdido no tempo, o registro
documental da existência de cada uma delas permitiu que caracterizássemos a produção escrita
dos religiosos de Santo Antônio de Lisboa no Maranhão e Grão-Pará, comungando com a
historiografia que vem sendo produzida nas últimas décadas no sentido de recusar a máxima
citada no início, segundo a qual os franciscanos teriam “escrito a sua história na areia”. Afastar-
se de um modelo pré-concebido que tem como base a produção escrita da Companhia de Jesus,
assim como pautar as questões orientadoras da pesquisa a partir da realidade da Ordem dos
240
Frades Menores, é o que esses pesquisadores fizeram nos últimos anos e nós aqui tentamos
fazer.
REFERÊNCIAS
Fontes manuscritas
Códices 908, 909, 910, 911, 912 e 913 da Biblioteca Nacional de Portugal, Lisboa.
Livros e artigos
BOXER, Charles. A idade de ouro do Brasil: dores de crescimento de uma sociedade colonial.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 3ª ed., 2000.
CAETANO, Antonio Filipe Pereira. “’Para aumentar e conversar aquelas partes...’: Conflitos
dos projetos luso-americanos para uma conquista colonial (Estado do Maranhão e Grão-Pará,
séculos XVII-XVIII)”. Revista Estudos Amazônicos, vol. VI, nº 1 (2011), p. 1-20.
JÚNIOR, Almir Diniz de Carvalho. “Índios cristãos no cotidiano das colônias do norte (séculos
XVII e XVIII)”. Revista de História (USP), nº 168, janeiro-junho de 2013, p. 69-99.
KURY, Lorelai Brilhante; PAPAVERO, Nelson; TEIXEIRA, Dante Martins. “As aves do Pará
segundo as ‘Memórias’ de Dom Lourenço Álvares Roxo de Potflis (1752)”. In Arquivos de
Zoologia do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo, vol. 41(2), 2010, p.97-131.
OLIVEIRA, Maria Lêda. A história do Brasil de Frei Vicente do Salvador: história e política
no Império Português do Século XVII. Rio de Janeiro: Versal; São Paulo: Odebrecht, 2008. 2v.
241
SILVA, Innocencio Francisco da. Diccionario bibliographico portuguez. Lisboa: Imprensa
Nacional,1858-1923.23v.
242
‘CHARISSIMOS IRMÃOS’: ANÁLISE DOS RELATÓRIOS DOS
PROVEDORES DA SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DA
PARAHYBA
Josemar Melo
Nereida Soares Martins Silva
INTRODUÇÃO
63
Sobre isso, ver: ABREU, Laurinda. O Papel das Misericórdias dos “Lugares de além-mar” na Formação do
Império Português. Évora: Editora Universidade de Évora, 2001; PAIVA, José Pedro (coord.) PMM - Fazer a
história das Misericórdias, vol. 1, Lisboa: Centro de Estudos de História Religiosa - União das Misericórdias
Portuguesas, 2002; RUSSELL-Wood, A. J.R. Fidalgos e filantropos: a Santa Casa da Misericórdia da Bahia,
1550-1755. Trad. De Sérgio Duarte. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1981.
243
lusitana, em especial a Câmara, formando uma rede de relações de poder que resultava em
trocas, benefícios e, por fim, na perda gradativa da autonomia administrativa da Santas Casas.
No caso da Paraíba não foi diferente, e seu acervo é testemunha dessa secular e profícua relação
do Estabelecimento Pio com diversas outras instituições do poder público desde à colônia até o
período republicano.
A partir da segunda década do século XIX64, a administração imperial reformulou e
aumentou o número de órgão públicos ligados às três esferas de atuação do poder político e
salta aos olhos como, pela diversidade de suas funções, a Santa Casa da Paraíba relacionava-se
constantemente com vários deles. O aumento da burocracia resultou na maior produção de
documentos e a preservação deles no Arquivo evidencia a afirmação anterior. São centenas de
correspondências, em primeiro lugar, com o gabinete da presidência da província, mas também
com a Câmara, com órgãos de segurança pública, como Secretária de Segurança, Departamento
de Polícia; de Saúde e Higiene, a exemplo das Inspetorias de Saúde e Comissões de
higienização; Marinha; Escola de Aprendizes etc. Além de proporcionar material para pesquisas
históricas diversas, as transcrições nos ajudam a compreender melhor a Instituição e, por
seguinte, ordenar o arquivo de forma a atender princípios arquivísticos importantes como o da
proveniência e ordem interna.
De caráter filantrópico, a irmandade desdobrava-se na prestação de assistência
hospitalar, funerária e carcerária, além de receber e zelar pelo cuidado de órfãos65, pagar pensão
para viúvas de irmãos mortos no desamparo. Era responsável pelo único atendimento hospitalar
prestado na capital da Paraíba, até as primeiras décadas do século XX. A instituição servia ainda
como asilo aos pobres e alienados, inclusive escravos velhos e/ou doentes, abandonados pelos
senhores. É importante ressaltar que, numa região de economia insuficientemente desenvolvida,
como a Paraíba, não eram poucos os que se serviam da caridade desta Pia Instituição,
principalmente em períodos de epidemias ou grandes secas que assolavam a população
paraibana da época.
A Santa Casa de Misericórdia da Paraíba foi fundada pelo particular Duarte Gomes da
Silveira, na última década do século XVI, e está situada, atualmente, na Rua Duque de Caxias,
antiga Rua Direita, no centro histórico e comercial da Cidade de João Pessoa66, onde também
64
Mesmo com uma história secular, atualmente o acervo da Santa Casa de Misericórdia é formado principalmente
por documentos do século XIX e XX, com poucos documentos referentes ao século XVII e XVIII.
65
A Igreja manteve, até fins do século XIX a ‘roda dos enjeitados’, que recebia as crianças abandonadas pelos
progenitores.
66
Embora não existam documentos que permitam precisar a data de construção desta Igreja, o historiador Seixas
(1987) chama atenção para algumas fontes documentais que sugerem a existência da Igreja ainda no século XVI,
em especial, a ata da Primeira Visitação do Santo Ofício à Paraíba, de 1595 (registrada e transcrita por Eduardo
244
se encontra o seu arquivo. Tendo passado por mudanças e reformas significativas no decorrer
dos séculos, compunha-se, até as primeiras décadas do século XX, de um conjunto arquitetônico
que reunia, a época de sua instalação, além da Igreja, o Hospital de Caridade e o Adro que
servia como cemitério. Sua administração seguia os padrões de um sistema administrativo, que
se alterou ao longo dos anos, e funcionava de maneira colegiada, a partir da Mesa
Administrativa, dividindo o trabalho da administração por ‘setores’ de caridade, formada com
base nas mordomias67, Hospital, Cemitério, Expostos, Pensionistas e Patrimônio. Além deles,
existiam um escrivão, procurador e visitador, todos submetidos à supervisão geral de um
provedor.
As diretrizes que regiam as funcionalidades e regulamentações da Santa Casa de
Misericórdia da Paraíba, tal como nas demais instituições de mesma categorização, eram
estabelecidas pelos “Compromissos”68, reformados de tempos em tempos. Sabe-se, no entanto,
que as linhas gerais de todos os ‘compromissos’ das Santas Casas no Brasil e espalhadas no
Império português tiveram como base o Compromisso da Santa Casa de Misericórdia de Lisboa,
datado de 1499 e impresso, já provavelmente reformado, em 151669. (SEIXAS, 1983).
O primeiro compromisso firmado pela Santa Casa de Misericórdia da Paraíba perdeu-
se, tal como a maior parte dos seus documentos produzidos nos séculos XVII e XVIII. Nos
relatórios é citado o incêndio provocado pelos holandeses, quando invadiram a capitania, em
1634. Este é um dos motivos para a falta de documentação anteriores ao século XVII.
Atualmente, no arquivo da Santa Casa da Paraíba, o regulamento mais antigo encontrado é o
de 1850.
Constava no Compromisso da Santa Casa de Misericórdia o dever do provedor em
apresentar no último dia do seu mandato um relatório sobre “[...] os sucessos e melhoramentos”
realizados naquele período. Desta forma, o objetivo deste artigo é apresentar o trabalho de
leitura e transcrição paleográfica realizado, importância deste tipo documental e,
Prado em 1925) que situa a “igreja da mizericordia” na rota da procissão solene que abriria os trabalhos
inquisitoriais.
67
De acordo com os relatórios dos provedores da Santa Casa da Paraíba, na segunda metade do século XIX as
mordomias se dividiam, com pequenas variações de provedoria, em: hospital; expostos ou órfãos; igreja; cemitério;
presos; pensionistas ou esmolados; patrimônio; dívidas ativas e passivas e receita e despesa.
68
OS Compromissos das Santas Casas são documentos normativos e constituintes de grande importância que
expressam a missão/finalidade da Instituição, as regras concernentes às suas atividades e os meios de concretizá-
las.
69
De acordo com este compromisso, a irmandade organizava-se em torno das chamadas 14 obras de caridade, sete
espirituais e sete corporais, inspiradas pelo Evangelho, consignados segundo são Mateus, a saber: Ensinar os
ignorantes, dar bom conselho, punir os transgressores com misericórdia, consolar os infelizes, perdoar as injúrias
recebidas, suportar as deficiências do próximo, orar a Deus pelos vivos e mortos, resgatar cativos e visitar
prisioneiros, tratar os doentes, vestir os nus, alimentar os famintos, dar de beber aos sedentos, abrigar os viajantes
e os pobres, sepultar os mortos (RUSSEL WOOD, 1981, pp. 14-5).
245
principalmente, as informações fundamentais que possibilitaram a uma compreensão maior da
Instituição em foco, bem como estabelecer o contexto de produção documental, fator
preponderante no trabalho de organização do acervo desta instituição. É importante também
destacar que este artigo está no âmbito do Projeto de Extensão apresentado à Universidade
Estadual da Paraíba, que se encontra em desenvolvimento, tendo como objetivo a organização
do Arquivo da Santa Casa de Misericórdia.
70
Este trabalho é resultado parcial de um Projeto de Extensão financiado pelo Universidade Estadual da Paraíba
(UEPB), vinculado ao curso de Arquivologia daquela universidade e sob coordenação de professores das
disciplinas de Arquivologia e de História. Também faz parte de um projeto geral de reorganização do acervo da
Santa Casa de Misericórdia da Paraíba.
246
o esforço de pesquisa que empreendido tem apresentado resultados claros e a Paleografia
exerceu um papel fundamental nesse processo.
A Santa Casa de Misericórdia era uma instituição com estrutura colegiada, formada pela
Mesa Administrativa, composta pelo Provedor, eleito ou indicado pelo presidente de província
para um mandato de um ano compromissal que se diferenciava do ano em exercício, pois,
iniciava no dia 2 de julho, quando a Mesa se reunia e o documento era lido. Sendo assim, esses
247
relatórios prestam conta de acontecimentos importantes para a instituição ocorridos ao longo
do segundo semestre do ano anterior e primeiro semestre do ano em que se apresenta o relatório.
Além do Provedor, a Mesa Administrativa era composta pelos Mordomos das suas respectivas
áreas de caridade, incluindo o Procurador Geral e um escriturário. O relatório era produzido
pelo Provedor em função do Artigo 29 do Compromisso da Instituição e aprovado pela Mesa
Diretora na última sessão da sua administração, como podemos observar na transcrição do
relatório abaixo:
Cumprindo o preceito do artº. 29 do compromisso
venho ler-vos o relatório dos sucessos, e melhoramentos,
qe tiveram lugar em nosso pio estabelecimento
durante o anno compromissal de 1859 a 1860. (Relatório do Provedor 1860 – Acervo
SCM)
A equipe do projeto de reestruturação do acervo identificou a necessidade de executar a
transcrição paleográfica, a fim de auxiliar nos trabalhos de organização do arquivo, tendo em
vista que os Relatórios dos Provedores apresentam uma série de informações importantes ao
descreverem as atividades que foram desenvolvidas nos mandatos destes irmãos.
A estrutura dos relatórios mante-se constante, ao longo dos séculos XIX e XX, com
pequenas variações71. Inicialmente o provedor faz um preambulo em que pode destacar algum
fato marcante ocorrido durante o seu mandato, comumente se justifica dos insucessos ou faltas
cometidas e, em seguida, apresenta as atividades realizadas por áreas de caridade: Igreja,
Hospital, Cemitério, Expostos, Pensionistas e administrativas: arquivo, Patrimônio, Dívida
Ativa e Dívida Passiva (balanço e orçamento) e conclui com a entrega do cargo ao seu sucessor.
Para reunir em síntese as atividades desenvolvidas no ano compromissal, o provedor
contava com relatórios dos mordomos de cada uma das áreas de caridade, incluindo o
procurador geral. É interessante destacar que nos próprios relatórios os Provedores reclamam
não terem recebido estas informações por escrito. Porém, é importante ressaltar que em alguns
casos, encontramos nos códices os relatórios dos de algumas mordomias. Três áreas destacam-
se em todos os relatórios analisados e transcritos:
Hospital: É provavelmente a atividade mais dinâmica da Instituição, onde a Santa
Casa de Misericórdia despende mais esforços financeiros e administrativos, pois
atende a uma demanda constante, significativamente ampliada, principalmente em
períodos de epidemias e secas. Via de regra, todo o tratamento era gratuito, cabendo
a instituição, com as rendas próprias e subvenção do governo, o pagamento dos
71
Podemos destacar como exemplo que no decorrer dos anos há uma diminuição no espaço dedicado aos presos,
não havendo absolutamente mais nada escrito a partir dos anos de 1870.
248
salários dos enfermeiros, médicos e de todos os insumos necessários utilizados nos
cuidados prestados pelo Hospital de Caridade. Porém, os soldados, de acordo com
um convênio entre a Santa Casa e o Governo Provincial, pagavam, com parte do
soldo, o tratamento hospitalar que recebiam.
Cemitério: Sempre referenciado em todos os relatórios esta área era fundamental,
poisse tratava da higiene e saneamento público. Cabia à Santa Casa de Misericórdia
a administração dos enterramentos na capital. Os relatórios dos provedores
apontavam diversos problemas, sendo o que causava maior apreensão era a
superlotação, causada nomeadamente nos períodos grandes epidemias. É
importante salientar que mesmo com a proclamação da República e a secularização
dos serviços de enterramento, a administração do cemitério continuou com a Santa
Casa.
Patrimônio: É nesta parte que os Provedores apresentavam os bens móveis e
imóveis, rendas anuais e destacavam as dificuldades financeiras, bem como
mostravam que a maior parte do dinheiro para manutenção dessas atividades vinha
de subvenções governamentais, pois as rendas advindas de aluguéis não pagariam
todas as despesas da Instituição.
Passaremos no item seguinte a apresentar parte do relatório do Provedor do ano de
1860 e a transcrição paleográfica.
O documento apresenta variações de acordo com o escrivão que poderia ser o próprio
provedor ou o escriturário a seu serviço. A escrita invariavelmente cursiva, e com ângulos
tombados a direita, apresentado maiúsculas para início das frases e nomes próprios e minúsculas
no decorrer do texto. Letras pequenas com um certo grau de dificuldade na compreensão do
texto. Utilização de pontuação mais frequente diz respeito ao o ponto final e a vírgula,
ocasionalmente o ponto de exclamação e dois pontos, no entanto não parece obedecer a regras
gramaticais claras e ordenadas. Quanto a acentuação, o agudo e o til são utilizados, ainda que
não de forma uniforme por todo o texto, podendo a mesma palavra ser escrita com ou sem
acentuação. Em alguns casos, a letra “m” assume a função fonética anasalada do til, mas sobre
esse aspecto da escrita, também não foram identificadas regras claras. Quando há necessidade
de numeração, foi empregada a arábica. O escriba aplicou o uso de abreviaturas e sinais
249
braquigráficos em toda a extensão do texto, como podemos observar na imagem abaixo, quando
o autor se refere a visita de SS. MM. II – Suas Majestades Imperiais.
Quanto ao papel, encontra-se fragilizado, amarelado e com certo grau de acidez. Já no
caso da tinta, observa-se ser ferro-gálica, causando em alguns pontos corrosão do papel,
nomeadamente nas letras “a”, “e”, e “o” quando foram escritas mais fechadas.
250
Transcrição Paleográfica
Senres Mesarios, e Irmãos da Santa Casa
da Misericórdia
Cumprindo o preceito do art. 29 do compromisso
venho ler-vos o relatório dos sucessos, e melhoramentos,
5 qe tiveram lugar em nosso pio estabelecimento
durante o ano compromissal de 1859 a 1860.
Provedoria do Dr. Franco de Assis Pereira Rocha.
Visitação de SS. MM. II. [Suas Majestades Imperiais]
Foi este sem dúvida o mais memorável, e feliz suces-
10 so do anno, e dos annos anteriores! Sabeis, senhores,
e deve ficar consignado em todos os documentos da
irmandade, pa que os vindouros irmãos também o
saibam, que em o dia, já memorável, 25 de
dezembro de 1859, pelas duas horas da tarde, o
15 senhor D. Pedro II, imperador constitucional,
e defensor perpétuo do Brasil, visitou esta
Santa Casa da Misericórdia, qe, segundo os De-
cretos da providência divina, no 3º século a-
diantado de sua fundação, tinha de ver, e vio,
20 pela primra vez em seu recinto sagrado um
filho, e descendente também sagrado, de reis e im-
peradores!
O Imperador, apeando-se no adro da igreja
foi recebido, e introduzido com todas as demons-
25 trações de profundo respeito, e veneração, qe seu
primro e supremo lugar infunde, e com o amor,
e enthusiasmo que só ele pr sua natural, e incompa-
rável benevolência soube inspirar á todos, á nós,
qe estávamos orgulhosos de sermos súbditos seus,
30 e ao estrangeiro, qe não cessava de admirar
o bello, e magnífico espetáculo da nação
brasileira, – o povo elevado pr seu monarcha
251
Figura ˗ Relatório do Provedor
252
Hospital
Fizeram-se no salão inferior correspondente a cosinha
dous quartos seguros pª loucos. Esta obra era ur-
gente e seu adiamto prejudicial, e anti-economico,
5 pr q. os alienados soltos, e mal seguros, como estavam,
causarão frequentes destruições, estando pr isso
inutilisados os repartimto do pavimto térreo. Felizmte
deps de promptos os quartos não entrou pa o hospital
alienado furioso, tendo até hoje servido para accom-
10 modação de doentes de outras moléstias.
Fez-se o reparo interno do referido pavimento,
e uma rampa fora ao correr da parede, q fica do
lado opposto ao da sacristia, no intento de evitar-se a
humidade, q tornava inaproveitáveis os quartos d’a-
15 quelle lado. Augmentando-se assim o nº dos repartimtos,
253
Figura ˗ Relatório do Provedor
254
Transcrição Paleográfica
Cemitério
A obra da capela + do depósito dos restos mortais, e
da cacimba contratada em 13 de Junho de 1859
com Antº Palosi, está concluída.
5 Houve alterações nessa obra comparativamte á sua
planta, segdo a qual a casa destinada pª o referido de-
pósito deveria ser edificado com 1 dos angulos do
fundo do cemitério, e não devião ajuntar-se á capella
os dous acréscimos laterais qe n’ella existe.
10 A alteração, qe não nos trouxe augmento de despesa,
e qe nem melhorou a condição do empreiteiro, te-
ve pr fundamento 1º a ordem e symetria, qe se devem guar-
dar nas construções; 2º a vantagem de se aprovei-
tar um dos acréscimos pa a sacristia, qe não tinha si-
15 do prevista na planta, sendo o outro acréscimo
sufficiente para prehencher o fim de [caiar] iso-
lada, além de poder lhe servir pa guar-
da de objetos do serviço da capela. Em sessão de
30 de outubro deliberou-se a dita alteração
20 qe foi levada a effeito deps. de ser approvada pª
presidência em offício de ....
Deixou o empreiteiro com sciência minha e dos
outros Mesários 21 vãos nas paredes de dentro da
capella, destinado depósito das cinzas destas pessoas
25 a qm foram concedidas, a si e seus familiares mediante uma esmola,
ou pensão e condições convenientes. Com suas pe-
quenas campas de mármore serão simples, e
modestos monumtos à memória d’aqes qe não poderem
29 ou não quesirem ter monumentos sumptuosos.
255
Figura ˗ Relatório do Provedor
256
Transcrição Paleográfica
dos defeitos da minha intelligência, das oc-
cupação, qe tenho estado sobrecarregado,
faltarão-me os dados e documtos precisos pa
apresentar-vos o quadro fiel, e completo
5 da administração
da Santa Casa de
Misericórdia, á cuja frente foi servido o
irmão protector pr portaria de
9 de Junho findo mandou-me continua,
10 não recusando-me a esta nova, e inesperada
honra, por julgar-me obrigado à aceitar, e
prevenir qe a irmandade, a quem sempre sevi-
rei; como o ms humilde irmão, ainda me
anima e honra com sua confiança.
15 Vamos dar graças a Ds, e pedir-lhe pr
intermédio de nossa Santa padroeira abençoai os
trabalhos da nova Mesa.
Para, 2 de Julho de 1860.
O provedor
20 Francisco de Assis Pera Rocha
257
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
ABREU, Laurinda. O Papel das Misericórdias dos “Lugares de além-mar” na Formação
do Império Português. Évora: Editora Universidade de Évora, 2001.
PAIVA, José Pedro (coord.) PMM - Fazer a história das Misericórdias, vol. 1, Lisboa: Centro
de Estudos de História Religiosa - União das Misericórdias Portuguesas, 2002
SEIXAS, Wilson Nóbrega. Santa Casa da Misericórdia da Paraíba 385 anos. João Pessoa:
Gráfica Santa Marta, 1987.
258
KHOURY, Yara Aun (coord.). Guia dos Arquivos das Santas Casas de Misericórdia do
Brasil. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: PUC-SP: FAPESP, 2004.
Documento Manuscritos:
Arquivo da Santa Casa de Misericórdia
Relatório dos Provedores – 1860 vol. 1.
259
COMENTÁRIOS PALEOGRÁFICOS DE DOCUMENTOS
HISTÓRICOS: CARTA DO SÉCULO XVIII
INTRODUÇÃO
72
O referido projeto de pesquisa conta com o auxílio de bolsistas CNPQ - UFBA, PERMANECER - UFBA e
PIBIC - UFBA.
260
Destaca-se que o presente trabalho será fundamentado teoricamente com base em
considerações de caráter paleográfico, filológico e diplomático, trazendo como aportes teóricos
as leituras de Gonçalves (2017), Cambraia (2005), Bellotto (2002), Saéz & Castillo (1999),
entre outros. Além disso, para a realização deste artigo, utilizaram-se critérios baseados nas
Normas técnicas para transcrição e edição de documentos manuscritos do Arquivo Nacional
Brasileiro, adaptados conforme as características do documento. Para fins de análise, será
considerado o contexto histórico-social em que o manuscrito está inserido e outros aspectos
fundamentais junto à composição de uma leitura paleográfica, tais como a descrição física e as
características estruturais do documento, os critérios de transcrição, a descrição scriptográfica,
na qual serão apresentadas as imagens dos diferentes tipos de escrita que aparecem no texto, e
a classificação das abreviaturas. Serão apresentadas também algumas reflexões resultantes do
desenvolvimento da leitura interpretativa do texto.
73
Tratado comercial firmado entre os reinos de Portugal e Inglaterra.
261
mecânicos, marinheiros, soldados e oficiais dos Terços74 da cidade tomaram as ruas,
insatisfeitos com os excessos da fiscalidade metropolitana (PITA, 1976, p. 256- 257 apud
SALLES, 2014, p. 33).
Visto isso, o Conselho Ultramarino constatou a ineficiência do governador-geral Pedro
de Vasconcellos em estabelecer a ordem na colônia da Bahia, nomeando imediatamente um
sucessor, Pedro Antônio de Noronha Albuquerque e Sousa, vice-rei e capitão-general de mar e
terra do Estado do Brasil, que, por Carta Régia de 21 de janeiro de 1714, recebeu o título de
Marquês de Angeja (SALLES, 2014, p. 36). O bom desempenho de seu governo “[...] conseguiu
ser estabelecido por meio das ameaças veladas e das concessões feitas” (SALLES, 2014, p. 42).
Desta forma:
[...] estabeleceu a imposição dos dez por cento, deu forma a sua arrecadação, criou os
oficiais para esta dízima, distribuiu por eles as incumbências, arbitrou-lhes os salários
[...]. Fez continuar as obras das Fortalezas, e fábricas para defensa da Praça, a cujas
despesas aplicara o Sereníssimo Senhor Rei D. João V, aqueles direitos; aumentou a
de São Pedro, levantada em um dos arrabaldes; ampliou a de
São Marcelo [...] (PITA, 2012, p. 447).
1.Grafia
74
Segundo Nunes (2017, p. 316), o Terço era um “corpo de tropas do exército português e espanhol dos séculos
XVI e XVII que hoje corresponde ao regimento. Dez companhias de cem homens cada uma, comandada por
capitães; era governado por um mestre-de-campo auxiliado por um sargento-mor e um ajudante”.
75
Tratado de Utrecht (1713): acordos firmados na cidade de Utrecht, nos Países Baixos, (1713 - 1715), que
puseram fim à guerra da sucessão espanhola (1701 - 1714).
76
Tratado de Rastadt (1715): Acordo firmado na cidade alemã de Rastadt, no ducado de Baden, entre o rei francês
Luis XIV e o imperador do Sacro Imperio Romano Germánico, Carlos VI.
262
1.1. A ortografia será mantida na íntegra, não se efetuando nenhuma correção gramatical.
1.2. As maiúsculas e minúsculas serão mantidas.
1.3. A acentuação será conforme o original.
1.4. O sinal de nasalização ou til, quando com valor de m ou n, será mantido.
1.5. A pontuação original será mantida.
1.6. As abreviaturas serão desenvolvidas com os acréscimos em grifo itálico.
2. Convenções
Para indicar acidentes no manuscrito original, como escrita ilegível ou danificada, serão
utilizadas as seguintes convenções:
2.1. Quando os elementos textuais não forem autógrafos, serão indicados em nota de rodapé.
2.2 As notas marginais, não inseríveis no texto, serão mantidas em seu lugar ou em sequência
ao texto principal com a indicação: à margem direita ou à margem esquerda.
2.3 Os elementos textuais interlineares ou marginais autógrafos que completam o escrito serão
inseridos no texto entre os sinais de tilde simples <...>.
3. Apresentação gráfica
3.1 A transcrição dos documentos será feita linha por linha.
3.2 Será respeitada a divisão paragráfica do original
3.3 A numeração das linhas será apresentada a cada 5 linhas, a começar pela quinta linha. Essa
numeração será encontrada à margem direita da mancha, à esquerda do leitor.
3.4 As anotações feitas posteriormente não pertencentes ao texto autógrafo não serão
contabilizadas como linhas do documento.
3.5 A indicação da numeração do fólio é feita na parte superior do texto, indicando se recto ou
verso: ||1r.||.
4. Assinaturas e sinais públicos
4.1 As assinaturas em raso ou rubricas serão transcritas entre colchetes [rubrica].
263
TRANSCRIÇÃO DA CARTA (1716)
||1fr.||
Senhor.7778
79
Coluna B do manuscrito:
cópia da provisão do rei D.
João V., recebida pelo
<DomJoam porgraça deDeos, Rey de Por=79 Marquês de Angeja (linha 1 -
linha 36). Dessa forma, por
tugal, edos Algarves daquem, edalem mar emAfri= não se tratar da continuidade
da Carta, tal coluna ganhará
ca, SenhordeGuine VossaSenhoria Faço saber avos meu uma nova numeração, não
Vice seguindo a sequência de linhas
da Carta e respeitando-se a
disposição do texto.
264
Rey, eCapitaó General demar, eterra do Estado do
5 Brazil, que vi oque informastes (como sevos ordenou)
sobre aReprezentaçaó que oGovernador geral desse Esta=
do Pedro deVasconcellos mehaviafeito, em Rezaõ da in=
capacidade comque seachavaó varios officiaes da infan=
taria paga dessaPraça para continuarem noexercicio
10 dos Seus postos, edeviaó ser Reformados, e’novamente
pRovidos empessoas capazes. Epareceo dizervos que
eufui servido por Rezoluçam devinte etres de De=
zembro doanno passado em Consulta domeuConcelho
Ultramarino, quepor hora noestado emque seachaó
15 as couzas daEuropa sedevem escuzar estes interte=
nimentos; porque ainda que ostais officiaes senaó
achem com todo o vigor paratodas as acçoens mellita=
res; com tudo não estaó tam destituidos para naó po=
derem soportar otrabalho da mellicia, que consiste
20 só em entrar esahir deguarda nessa Cidade, eSeus
fortes, nem aRenda destinada para este effeito seacha
emtermos depoder suprir esta nova despeza, pois naó
chega acobrir opagamento ordinario dos Terços, fazen=
dose parte della pellas consignaçoens daminhafazenda
25 por naõ chegarem aoqueestam aplicadas aomesmo
pagamento, e’tambem por seevitar porestemodo ades=
consolaçam quejustamente teriam os ditos officiaes
desevirem excluidos domeu serviço, tendose nelle
havido comhonrado pRocedimento, enaõ estando inca=
30 pazes. ElRey NossoSenór omandou por Joam
Telles daSilva eAntonio Roiz daCosta Concelhei=
ros doSeuConcelho Ultramarino esepassou por duas vias.
Dionizio Cardozo Pereyra afes em Lixboa adous de
Janeyro demil setecentos edezaSeis. OSecretario
35 AndreLopes de Lavre afes escrever. JoamTelles
daSilva. Antonio Roiz daCosta ∫.>
265
AS INTERFACES DA CARTA DE PEDRO ANTONIO DE NORONHA
ALBUQUERQUE E SOUSA (1716)
266
1) as Tropas regulares ou pagas (de primeira linha), compostas pelos segundos
filhos das famílias nobres, responsáveis pelas operações de grande guerra e que se
dividiam em terços;
2) os Corpos de Ordenança, isentos de remuneração, compostos também por
membros das famílias mais prestigiadas e antigas, que incluíam uma população
masculina adulta de 18 a 60 anos e capaz para o combate; cuja responsabilidade era
tratar de pequenas guerras locais e às vezes da guarnição de praças mais vizinhas;
3) as Tropas de Auxiliares ou Milícias, também não-remuneradas, que incluíam os
filhos únicos de viúvas e lavradores e homens casados em idade militar. Eram
organizados em terços, cada terço comandado por um Mestre de Campo, que só
poderia ser de origem nobre, instruídos também por homens do exército de primeira
linha. Sua responsabilidade era resguardar as fronteiras.
Oliveira (2004) informa que os terços dos militares quase nunca estavam completos,
seja por conta das dificuldades de recrutamento, ou por deserções. Alega também que os
soldados neste período não gostavam de suas funções ou não tinham ainda adquirido motivação
para exercê-las. O autor ainda traz inúmeros relatos presentes em documentos do Brasil colonial
que demonstram a insatisfação dos governantes e do próprio rei em não poder contar com
cidadãos aptos ao serviço, muitas vezes tendo que investir em capacitação.
O rei D. João V parece querer contornar a situação de impotência em que vivem os oficiais
da infantaria da Bahia, alegando que os mesmos oficiais do terço regular fossem capazes de
realizar o trabalho da milícia, que consistia apenas em fiscalizar as fortalezas e as imediações da
cidade: “[...] ainda que ostais officiaes senaõ achem com todo o vigor paratodas as acçoens
mellitares; com tudo não estaõ tam destituidos para naõ poderem soportar otrabalho da mellicia”
(Carta, 1716, Coluna B, linhas 16 - 19).
Entretanto, o Marquês de Angeja sinaliza em sua Carta, que de fato, os tais oficiais podem
realizar este trabalho de milícia, mas não o exercício militar, de maior enfrentamento, para o qual
não estão aptos. Inclusive, o Marquês de Angeja demonstra alguma preocupação, identificando
que este remanejamento de função poderia ser perigoso aos oficiais: “[...] posto que ascouzas
daEuropa seachaõ emtermos, que podem desimullar este cuidado, pode haver accidente, que
nesta distancia façamuy prejudicial atal deSimulação” (Carta, 1716, Coluna A, linhas 15 – 18).
267
Figura ˗ Fac-símile de Carta do Conselho Ultramarino – Capitania da Bahia – 3 de junho de 1716 -
AHU_ACL_CU_005, Cx. 10, D.
Fonte: Biblioteca Nacional Digital Brasil – Projeto Resgate Barão do Rio Branco
http://bndigital.bn.gov.br/dossies/projeto-resgate-barao-do-rio-branco/
268
COMENTÁRIOS PALEOGRÁFICOS
269
Quadro – Amostragem - classificação das abreviaturas utilizadas na Carta (1716) – Coluna A
Abreviatura por
Vossa suspensão
e Coluna A: L.
VMag. 2; L. 19; L. 21
Abreviatura por letra
Magestade
sobrescrita
Abreviatura por
Vossa
suspensão
a
VS . Coluna B: L. 3
Abreviatura por letra
Senhoria
sobrescrita
Abreviatura por
Senhor
Snõr síncope Coluna B: L. 30
a
Lx . Lixboa Abreviatura por letra Coluna B: L. 33
sobrescrita
270
DESCRIÇÃO SCRIPTOGRÁFICA
S Coluna A: Linha 1
S Coluna B: Linha 32
ESPÉCIE DOCUMENTAL
271
Segundo Bellotto (2002, p. 19), o tipo documental pode ser entendido como a “[...]
configuração que assume a espécie documental de acordo com a atividade que a gerou [...] ”. A
tipologia documental estuda o documento enquanto um integrante de um mesmo conjunto de
atividades homogêneas. A contextualização, as competências, funções e atividades do órgão
emissor do documento são de observância da tipologia documental, que busca a relação destes
documentos com as atividades institucionais / pessoais.
A espécie documental, ou seja, a estrutura formal do documento, objeto de estudo da
Diplomática, é um campo de estudo que se dedica justamente aos documentos que emanam de
autoridades públicas e dizem respeito às relações estabelecidas pelo Estado, documentos que
têm uma natureza jurídica, portanto. Assim, define-se este documento pela tipologia Carta, que
vem acompanhada de uma Provisão. Segundo Beltrão (1993, p. 151), a Carta pode ser
compreendida como um “ [...] instrumento usual da correspondência social do administrador e
altas chefias [...] empregada nas comunicações de caráter social decorrentes do cargo ou função
públicos”. Contudo, Bellotto (2012, p. 51) classifica carta como “ [...] documento não-
diplomático, mas de desenho mais ou menos padronizado, informativo, ascendente”, por não
haver obrigatoriedade em seguir a padronização estrutural diplomática, como ocorre na gênese
de outros documentos, como a Provisão.
ANÁLISE DIPLOMÁTICA
Como foi dito anteriormente, existem dois tipos de configurações para o documento. A
configuração que o documento jurídico assume de acordo com sua atividade de origem, é o tipo
documental, já a configuração que o documento assume de acordo com
a disposição, a natureza das informações e a espécie documental (BELLOTTO, 2002).
Podemos identificar a espécie documental Carta, conforme as orientações de Bellotto (2002) e,
a partir desse caminho, destaca-se que a Carta do Marquês de Angeja ao rei D. João V apresenta:
1) Natureza não-diplomática, pois, apesar de partir de uma autoridade pública e
informar sobre questões administrativas, o documento não é redigido conforme uma
fórmula rígida, solene e pré-estabelecida de caráter oficial, que lhe garanta fé e força
de prova (BELLOTTO, 2002, p. 36);
2) Cunho ascendente, por ser proveniente de uma autoridade pública, o vice-rei, que
se dirige a uma autoridade pública superior; neste caso, o Rei;
272
3) Caráter informativo, porque dá conhecimento de um assunto contido em outro
documento: a incapacidade militar dos oficiais da praça da Bahia.
O texto segue o informado pela autora: 1) direção - Senhor, seguido da titulação do
signatário, no protocolo inicial; 2) conteúdo, mais frequentemente de teor administrativo, no
corpo do texto; 3) data tópica, cronológica e assinatura do autor, no protocolo final
(BELLOTTO, 2002, p. 52).
Quanto à Provisão que acompanha o referido documento, podemos afirmar que
apresenta:
1) Natureza diplomática, por emitir uma ordem baseada em dispositivos anteriores,
ou seja, ser um documento baseado em jurisprudência e que segue uma
padronização regular e invariável;
2) Cunho descendente, pois parte de uma autoridade superior (o Rei) para um
subalterno;
3) Caráter dispositivo de correspondência, por derivar de um ato normativo, cuja
redação determina a execução de uma ordem.
Conforme orienta Bellotto (2002, p. 82), a Provisão apresenta: 1) titulação –
“Faço saber a vós” e nome do destinatário: o vice-rei e capitão general de mar e terra, Marquês
de Angeja, no protocolo inicial; 2) no texto, a exposição e o dispositivo de que não é possível
fazer substituição dos oficiais da infantaria paga dos Terços e 3) a assinatura dos responsáveis
pela transmissão da ordem do rei: Antonio Roiz da Costa e Joam Telles da Silva, no protocolo
final.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
273
A Carta trata de um registro que tem significância, na medida em que buscamos
compreender as motivações e justificativas sobre o que levou esses oficiais a estarem inaptos
para o serviço e de não ser possível realizar a reposição e capacitação dos mesmos. Percebemos
que a análise do texto escrito, realizada de um modo que articule a leitura filológica com a
paleográfica, oportuniza e conclama ao conhecimento e reconhecimento da história. Portanto,
rever documentos históricos escritos no século XVIII, por meio da leitura paleográfica de Cartas
é também reavaliar e interpretar a trajetória de um povo e narrar a sua história, construindo a
memória coletiva em torno do passado e, ao mesmo tempo, ressignificando esses contextos no
tempo presente.
REFERÊNCIAS
BORGES, Rosa; SOUZA, Arivaldo Sacramento de. Filologia e edição de texto. In: BORGES
et al. Edição de texto e crítica filológica. Salvador: Quarteto, 2012.
CAMBRAIA, César Nardelli. Introdução à crítica textual. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
FLEXOR, Maria Helena Ochi. Abreviaturas: manuscritos dos séculos XVI ao XIX. 2. ed.
aum. São Paulo: UNESP/ Arquivo do Estado, 1991.
274
GONÇALVES, Eliana Brandão Correia. Léxico e história: lutas e contextos de violência em
documentos da Capitania da Bahia. Revista da ABRALIN, v.16, n.2, p. 191-218,
Jan./Fev./Mar./Abril de 2017.
275
CONCUBINATO DE ESCRAVOS NO MARANHÃO COLONIAL: JOSÉ
PEREIRA DE LEMOS E MÔNICA, A INVERSÃO DE PAPÉIS E O
ESCÂNDALO
INTRODUÇÃO
Faz-se importante destacar aqui o momento conturbado em que vivia a Europa com as
medidas adotadas pela Reforma Católica e os ecos dessas perturbações que alcançavam as
colônias no Novo Mundo. A Igreja Católica Apostólica Romana realizou o Sacrosanctum
Concilium Tridentinum (1545-1563), um dos mais importantes eventos da história da Igreja,
onde foram estabelecidas as Resoluções Tridentinas que representavam diante do povo que a
igreja estava tomando as medidas necessárias para se reestruturar e continuar sendo um modelo
de retidão, daí “[...] as reformas de Trento se apresentaram deveras ainda mais emblemáticas
que outras reformas anteriores” (SILVA, 2015, p. 131).
As Resoluções Tridentinas demonstram o forte desejo da Igreja Católica de reafirmar
sua soberania através da fé cristã, além de um desejo de exercer um controle social através da
fé e da ideia de pecado. Daí,
276
1564, determinou que elas fossem publicadas para que chegassem ao conhecimento da
população. As regras foram importadas para as colônias europeias, assim como os modos de
vida da época. Mas, ao chegarem às colônias no Novo Mundo, os europeus estabeleceram as
linhas abissais81 que o separam do Velho Mundo, e o tornam um lugar sem a “a ciência e o
direito” (SILVA, 2015, p. 26 ), onde é impossível estabelecer as mesmas regras sociais e de
conduta que vigoram na Europa. E assim, a “[...] máxima que então se populariza ‘para além
do Equador não há pecados” (SILVA, 2015, p. 28) reflete a imagem que se teve dessas novas
terras, um espaço de liberdade e libertinagem em que é impossível a implementação das
Resoluções Tridentinas, imagem que perdurou durante muito tempo na própria historiografia.
Diante disso, os religiosos católicos em terras brasileiras deparam-se com uma grande
batalha a ser travada contra os costumes libertinos da população, principalmente nas classes
subalternas, onde os vícios proliferamvam-se. As dificuldades da vida na colônia, e a forma
como se davam as relações sociais, mostraram uma solida barreira para implementação das
Resoluções Tridentinas no território colonial. Por outro lado, o refinamento da malha diocesana,
a criação de bispados, a realização de visitas pastorais, a implantação de tribunais episcopais,
eram o contragolpe da Igreja na tentativa de disciplinar os modos de vida nos espaços coloniais.
81
A esse respeito ver: SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a
uma ecologia de saberes. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (Org.). Epistemologias
do Sul. Coimbra: ALMEDINA, 2009.
82
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Brasília: Senado Federal,
Conselho Editorial. 2011.
277
destarte, exercia jurisdição sobre uma variada gama de delitos. Muitos desses delitos, inclusive,
estão presentes também na legislação civil que vigorava na metrópole e suas colônias desde
1603, as Ordenações Filipinas. (MENDONÇA, 2011, p. 43).
O sistema escravista, a presença de comunidades indígenas e a vinda de africanos do outro lado
do Atlântico matizaram muito as percepções e formas de vivenciar a religiosidade para as
populações do Brasil colonial. Era necessário mesmo um conjunto de leis diocesanas que se
afinassem à essa realidade.
O Arcebispo D. Sebastião Monteiro da Vide determinou que as ditas constituições
fossem impressas e publicadas, providenciando que alcançassem grande parte da população. E
que tivessem posse dela os membros do clero, advogados, administradores da colônia, e pais
de família desejosos de manter seus familiares bons católicos. Mas a obra impressa era cara e
de difícil aquisição, ficando assim os párocos os grandes responsáveis por difundir essas
determinações entre seus fieis.
As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia buscavam adaptar as Resoluções
Tridentinas de forma a serem aplicadas na colônia. Eram aplicadas ao clero, aos fiéis (os leigos),
e regulavam a vida na sociedade colonial. Determinavam normas, procedimentos, sanções, e
segundo seus ditames os pecadores e criminosos eram julgados e sentenciados.
83
CARVALHO, Joaquim Ramos de. A jurisdição episcopal sobre os leigos em matéria de pecados públicos: as
visitas pastorais e o comportamento moral das populações portuguesas de Antigo Regime, Revista Portuguesa
de História, n° 24, 1988, 142. Disponível em:
https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&cad=rja&uact=8&ved=0ahUKEwi
756vUx_vVAhUE3SYKHQqfBEMQFggmMAA&url=https%3A%2F%2Festudogeral.sib.uc.pt%2Fbitstream%2
F10316%2F12788%2F1%2FJoaquim%2520Ramos%2520de%2520Carvalho24.pdf&usg=AFQjCNETEB1-
wQKg1zRz0yMJmN31W_unvQ. Acesso em: 13 de maio. 2017.
278
reproduzia o padrão estrutural do matrimônio quando reunia mulher e homem solteiros, ora era
mantido concomitantemente ao casamento, ligando viúvas e solteiras a homens casados” (DEL
PRIORE, 1988, p. 33). Em casos mais raros, as mulheres deixavam suas famílias para viver
com outro companheiro.
Por ser uma prática muito comum acabava por ser tolerado pelo clero quando alegado
pelos envolvidos que era um “casamento por juras”84, onde os envolvidos declaravam que
tinham a intenção de casar no futuro e ainda não o haviam feito por motivos que normalmente
envolviam a falta de dinheiro. Assim, muitos casais adeptos dessa prática passavam a vida
inteira sem receber as bênçãos oficiais da Igreja e vivendo tranquilamente em sociedade.
Mesmo contando com a conivência de vizinhos e parentes, e com a dificuldade da Igreja
- dado o tamanhos dos bispados e a pouca quantidade de clérigos - , para fiscalizar tais uniões
muitos foram os casos de concubinato que levaram homens e mulheres ao Tribunal Eclesiástico.
“’Teúdas e manteúdas’ antagonizavam-se nos tribunais eclesiásticos com esposas abandonadas,
costurando no avesso dos fatos históricos, episódios de desventura e sofrimento de umas, em
detrimento da satisfação de outras”85. E aqui abordaremos alguns desses casos levados ao
tribunal, causadores de escândalo na sociedade da época por se tratarem de concubinato em que
pelo menos um dos denunciados eram escravizados.
METODOLOGIA
84
Idem, pp. 31.
85
Idem, pp. 33.
279
na bibliografia especializada, e as obtidas na análise das fontes primarias. E ainda através da
pesquisa bibliográfica que foram obtidos os conhecimentos de Paleografia necessários para a
leitura das fontes primarias.
Durante a transcrição, as informações coletadas foram referentes ao ano e o número do
documento, série documental, os denunciados e denunciantes, as autoridades eclesiásticas que
apareceram no transcorrer do processo, os procuradores, os motivos das denúncias, duração e
custo final do processo e o desfecho do caso. Através desses documentos, e das informações
contidas neles, é possível visualizar a complexa teia social em que esses indivíduos estavam
envolvidos e identificar aspectos das formas em que se relacionavam com a família e com a
sociedade em geral.
A estratégia metodológica foi a microanálise, ou seja, baseada na tradição da
historiografia italiana que defende a redução de escalas de observação, a proposta desta
pesquisa foi de centralizar nos sujeitos, de perseguir suas trajetórias pessoais e buscar outros
fundos documentais para alcançar mais informações sobre esses sujeitos. O processo de Autos
e Feitos de Libelo Crime, doc. 4228 foi analisado detalhadamente e problematizado de acordo
com as informações contidas nele a respeito das relações de concubinato com escravizada, e
com a bibliografia estudada.
CONCLUSÕES
A valorização do casamento era uma das metas da Igreja, uma forma de evitar que seu
rebanho vivesse em pecado. No Brasil Colonial tal meta se mostrou difícil de ser atendida e
provavelmente em outras terras do império português tenha se processado da mesma forma.
Diante disso um “discurso normatizador fora imposto às elites no Seiscentos português como
reflexo de uma onda, ou melhor, de um processo civilizatório”, onde “a reorganização das
funções do corpo, dos gestos e dos hábitos proposta nesse discurso deveria traduzir-se nas
condutas individuais”86(DEL PRIORE, 2009, p. 24).
Esse processo de “adestração do corpo” atingiu homens e mulheres a níveis diferentes,
pois estas passaram por um processo mais radical de adestração, tanto do corpo quanto de
costumes, ao ponto de ser determinado que a elas só cabia o papel que exerciam na vida familiar.
86
Idem, pp. 24.
280
A relação de poder já implícita no escravismo reproduzia-se nas relações mais intimas
entre marido e mulher, condenando esta a ser uma escrava domestica, cuja existência
se justificasse em cuidar da casa, cozinhar, lavar a roupa, servir ao chefe da família
com o seu sexo, dando-lhe filhos que assegurassem a sua descendência e servindo
como modelo para a sociedade familiar com que sonhava a Igreja. (DEL PRIORE,
2009, p. 26).
O viver em colônia era implacável com as mulheres ainda mais com as escravizadas que
se viam em situação de vulnerabilidade diante da impiedade do sistema escravista. Desprovidas
de liberdade e do direito a seus corpos, para essas mulheres muitas das vezes essas relações
eram impostas, mas também uma pequena oportunidade de fugir das mazelas de sua condição
de escravizada e obter algumas melhorias em sua condição de vida.
Apresentamos aqui o caso de José Pereira de Lemos, denunciado ao Tribunal
Eclesiástico no ano de 1742 por manter tratos ilícitos “com uma sua escrava por nome Mônica”
89
, onde “esquecido de sua salvação esta cometendo o gravíssimo crime de adultério contra a fé
87
Idem, pp. 24.
88
Idem, pp. 33.
89
Arquivo Público do Estado do Maranhão, Juízo Eclesiástico, Autos e Feitos de Libelo Crime, doc. 4228, fl. 2.
281
do matrimonio” 90
. José e Mônica já eram figuras conhecidas das autoridades eclesiásticas,
tendo sido denunciados pelo mesmo amancebamento anos antes, não se emendaram. Muito pelo
contrário. As revelações desse processo mostram a longevidade do relacionamento e por que
não dizer, do amor entre eles.
Encontros sexuais entre os senhores e suas escravas eram comuns à sociedade da época
ao ponto de ser reconhecido como um direito dos senhores (brancos) viverem amancebados
com suas escravas. A alcunha de “concubinato” era reservada ao caso do homem que abriga em
sua casa, e mantém tratos ilícitos com uma mulher livre. O que nos faz destacar esse caso em
particular.
Nota-se que o caso de José Pereira de Lemos e Mônica choca a sociedade da época pela
forma como se dá. O réu é acusado de manter tratos ilícitos com a dita escrava, mas mais do
que isso é acusado de, “sendo uma das obrigações do matrimônio o viver e ter sua mulher e
filhos em sua companhia satisfaz tão pouco a esta sua obrigação que os tendo quase degradados
na sua roça sem fazer caso deles nem de sua dita mulher”91. Agravando ainda mais a situação
por estar “vivendo nesta cidade com a dita sua manceba de portas a dentro fazendo dela grande
estimação pois lhe governa a casa e dos filhos que dela tem pois os traz bem vestidos e tratados
e um deles na escola”92. O que comprova que “a opção pela concubina a faz mais do que a
dona-de-um-coração, dona de bens materiais que significam sustento cotidiano” (DEL
PRIORE, 1988, p. 34), para elas e para os seus.
Sendo o concubinato uma prática comum á época, muitos foram os casos onde “as
mulheres concubinadas acabam por gozar de regalias como um teto, a garantia de alimentos e
vestuário, e ainda assistência nas moléstias, não sem motivos as esposas abandonadas vingam-
se, denunciando-as ao bispo”93. No caso em questão soma-se a esses “muitos motivos”, a
humilhação que esposa sofre ao ser preterida em favor de escrava, o que provavelmente gerou
muito desconforto aos que observavam por se tratar de uma escrava fazendo às vezes de sinhá.
Nota-se uma evidente inversão de papéis, onde a legitima esposa se diz exilada em uma
propriedade rural sem receber os devidos cuidados que lhe foram garantidos pela Igreja através
do matrimonio enquanto a manceba, escrava, era tratada com zelo e estima que deveriam ser
dedicadas à legítima esposa.
90
Idem.
91
Idem.
92
Idem.
93
Idem, pp. 34.
282
O réu, que era reincidente na culpa com a mesma manceba já havia pago pena pecuniária de 10
mil réis. E sendo reincidente “devendo emendar-se não o fez mas sim continuou com o mesmo
e maior excesso por quanto saiu compreendida na presente visita”94.
Considerado culpado e admitindo tal culpa, foi “obrigado a lançar mão fora de sua casa
(ilégivel) escrava vendendo-a e que não possa ter comunicação com ela”, sendo condenado “nas
penas pecuniárias... e castigado... exemplo de outros”95. Se Mônica foi mesmo vendida, só
investigações mais profundas vão poder responder. O certo é que a relação afetivo-sexual
mantida com seu senhor, lhe conferiu uma certa notoriedade social. As relações concubinárias,
como é o caso desta, são testemunho da dificuldade de se processarem reformas
comportamentais mais efetivas. O projeto da Igreja era um. A realidade cotidiana, outra.
Podemos aqui perceber os sujeitos envolvidos nesses casos, suas particularidades e como
encaravam a ideia de salvação e pecado tão apregoada pela igreja católica. Os depoimentos
tratando da vida de homens e mulheres das mais diversas camadas sociais nos dão uma visão
da comunidade em que estavam inseridos.
O documento estudado nos da muitas respostas, mas também gera muitos outros
questionamentos, é um quebra-cabeças que precisa ser analisado e montado com atenção. O
estudo desses materiais nos permitirá compreender um pouco mais da história do Maranhão no
século XVIII, e no caso dessa pesquisa em particular, buscamos também uma melhor
compreensão da história das relações afetivas, do espaço de construção de famílias alternativas,
no Brasil e no Maranhão, tendo em vista que os materiais sobre o tema ainda são escassos e há
muito que se fazer a esse respeito.
REFERÊNCIAS
94
Autos e Feitos de Libelo Crime, doc. 4228, fl. 2.
95
Idem.
283
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erotismo na história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2011. cap. 1, p. 11-53.
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Fontes Manuscritas
Arquivo Público do Estado do Maranhão, Juízo Eclesiástico, Autos e Feitos de Libelo Crime,
doc. 4228.
285
CORES DA ESCRITA SEDICIOSA: DISTRIBUIÇÃO SOCIAL DA
ESCRITA NOS MOVIMENTOS SEDICIOSOS DA BAHIA, DE MINAS
GERAIS E DO RIO DE JANEIRO EM FINAIS DO SÉCULO XVIII
INTRODUÇÃO
Quando se trata de história da cultura escrita enquanto objeto teórico e/ou empírico de
pesquisa, Armando Petrucci (1999, p. 25), um dos principais destaques da área 96, sugere que
toda investigação que queira estudar as relações entre cultura escrita e sociedade, de uma
maneira geral, deve levar em conta, em qualquer caso,
Dessa forma, segundo o paleógrafo italiano, por em foco a difusão social da escrita
especificamente significa estudar, dentre vários direcionamentos, a diferente distribuição do
grau de alfabetização, ativa e passiva, nos distintos setores de uma sociedade dividida em
classes. Contudo, no Brasil, esse direcionamento ainda requer uma atenção para tempos
pretéritos, pois, segundo Ana Maria Galvão (2010, p. 241),
96
É importante destacar o importante papel de Antonio Castillo Goméz e Roger Chartier na proposição de diversos
elementos teórico-metodológicos do campo História da Cultura Escrita, o qual abarca, a partir das últimas
décadas, as pesquisas que se debruçam por questões que se enveredem sobre as práticas, as representações e/ou os
discursos do elemento escrito em suas diversas dimensões.
97
A difusão social da escrita, entendida genericamente como pura e simples capacidade de escrever, inclusive em
seu nível mais baixo, quer dizer, como porcentagem numérica dos indivíduos que em cada comunidade estão em
condições de empregar ativamente os signos do alfabeto; que deve unir-se e comparar-se com o quociente de
difusão social passiva dos produtos gráficos, constituído pelos destinatários das mensagens escritas, seja como
leitores, seja como usuários do escrito, inclusive de uma maneira indireta, quer dizer, meramente visual.
98
A função que a escrita em si mesma assume no âmbito de cada sociedade organizada e que cada tipo de produto
gráfico assume, por sua vez, no âmbito de um ambiente cultural concreto que o produz e o emprega; de onde deriva
(ou pode derivar) o grau de prestígio social dos escreventes (ou melhor, dos capazes de escrever) na hierarquia
social.
286
[...] não temos (ou pelo menos não localizamos), no caso brasileiro, uma produção, tal
como ocorre na Europa ou nos Estados Unidos, que permita situar, em escala societal,
a presença da alfabetização e do letramento ao longo desses cinco séculos de história
do país. No levantamento realizado, não foi localizado nenhum estudo que pudesse
ser classificado estritamente como pertencente a essa linha de investigação. Portanto,
no país não há um mapeamento da distribuição social da alfabetização anterior ao
primeiro censo demográfico, que foi realizado em 1872. Não sabemos, por exemplo,
quem eram e onde estavam aqueles que sabiam ler e escrever (GALVÃO, 2010, pp.
241-242).
[...] na maior parte do país, não existem acervos organizados que nos permitam
reconstruir séries de registros paroquiais, por exemplo, fundamentais para se realizar
uma história demográfica e quantitativa. Esses registros estão dispersos em arquivos
eclesiásticos ou em paróquias isoladas e são extremamente fragmentados. Além disso,
nem sempre esses registros trazem o tipo de informação que precisamos (GALVÃO,
2010, p. 241).
99
No caso da Itália, por exemplo, vários estudiosos se concentraram em estudos localizados, a partir de arquivos
dispersos, para alcançarem uma visão coletiva dos dados históricos dos níveis de alfabetismo no país (BARTOLI;
TOSCANI, 1991). Estranha-se, ainda, o fato de a autora não ter mencionado como fontes para este tipo de estudo
testamentos e inventários que, pelo menos a partir do século XVII, são mananciais sistemáticos, seriados e
localizados.
287
depoimentos e acareações testemunhais, pareceres e relatórios de tributos gastos com o
processo de devassagem.
A instauração de uma devassa tem por finalidade investigar um delito que infrinja as
leis que estruturem uma determinada esfera social. Ela, enquanto mais um elemento judiciário,
imprime em seu conteúdo aspectos relevantes da constituição sociológica do contexto em que
está sendo implantada. E é isso que a elege como uma fonte documental privilegiada para a
história da alfabetização no Brasil, pelo menos em relação à mensuração de níveis de
alfabetismo, pois, para além das características dos perfis sociais dos depoentes, nela se fazem
presentes os seus registros de assinatura, demarcando aqueles que assinaram, a partir de firmas
autógrafas e/ou idiógrafas, ou aqueles que não assinaram, a partir de sinais indicativos que
denunciam sua inabilidade de execução gráfico-alfabética.
No Brasil, muitas foram as devassagens no período colonial e pós-colonial, as quais
brotavam dos mais variados contextos, desde os mais pontuais e localizados até os mais globais,
como sedições e movimentos separatistas, a exemplo da Conspiração dos Alfaiates (1798), na
Bahia, da Inconfidência Mineira (1789), em Minas Gerais, e da Revolta dos Letrados (1794),
no Rio de Janeiro. O que parece ficar claro, então, é que, mesmo dispersas por todo território,
as devassas são uma importante fonte documental para as investigações da história do
alfabetismo, pois, a partir do método do cômputo de assinaturas e das descrições sociológicas
que os escrivães nos deixaram, poderemos delimitar os perfis dos sujeitos envolvidos nessas
sindicâncias, construindo histórias parciais de cada contexto específico da difusão e da
penetração da cultura escrita no país, em que se fez presente esse tipo de procedimento jurídico.
Sobre o método do cômputo de assinaturas designadamente, Roger Chartier (2006, p.
14) nos diz que “a porcentagem de signatários pode indicar muito globalmente o limite de
familiaridade com a escrita alcançado por uma sociedade”, pois o número de assinaturas
registradas não pode representar fielmente a competência cultural particular dos níveis de
alfabetismo. Por isso mesmo, propõe-nos que
[...] tal constatação não nos leva a negar as porcentagens de assinaturas pacientemente
coletadas através dos séculos e dos sítios, mas apenas a avaliá-las pelo o que são:
indicadores culturais macroscópicos, compósitos, que não medem exatamente nem a
difusão da capacidade de escrever, mais restrita do que os números indicam, nem a da
leitura, que é mais extensa. (CHARTIER, 2006, p. 114).
Dessa forma, com base no que nos propõe o pesquisador francês, temos o objetivo de
demonstrar panoramicamente a distribuição social da escrita nos três principais movimentos
sediciosos de finais do século XVIII, a partir dos dados gerais levantados nos Autos da Devassa
288
da Conspiração dos Alfaiates, nos Autos da Devassa da Inconfidência Mineira e nos Autos da
Revolta nos Letrados. Para este momento, centrar-nos-emos na relação da variável com cor
com a presença ou ausência de assinaturas alfabéticas nos depoimentos dos envolvidos, direta
ou indiretamente, em tais processos.
Sobre a variável cor, no caso dos dados levantados para a Conspiração dos Alfaiates
(1798), os homens apresentam-se numa composição racial “colorida”, pois é possível notar a
presença de brancos, de pardos, de crioulos, de pretos e de cabras nos autos analisados, além
daqueles cuja a cor o notário não especificou. Tais indivíduos, distribuídos em assinantes e não
assinantes, podem ser visualizados da seguinte maneira:
100
Para esta investigação, trataremos especificamente da distribuição social da escrita do contingente masculino
dos dados coletados. Contudo, é preciso ressaltar que, mesmo infimamente, as mulheres também se fizeram
presentes em tais processos devassatórios.
289
Esses dados nos revelam a existência de dois grupos distintos de indivíduos, quando
analisamos a competência de assinar autograficamente os depoimentos: os brancos e pardos de
um lado e os africanos, negros brasileiros e cabras de outro. Apesar disso, é possível notar que
um cabra e dois crioulos assinaram seus testemunhos. Quais elementos podem ser elencados
para tentar explicar os motivos que levaram esses três homens a terem desenvolvido, pelo
menos, a habilidade de assinar seus nomes? Vejamos o quadro abaixo:
Quadro –
(Conspiração dos Alfaiates) – Crioulos e cabras assinantes
Nome Cor Est. civil Est. Social Profissão Idade
Quando observamos o cruzamento dos homens com a variável cor no caso dos Autos da
Inconfidência Mineira, temos a seguinte tabela:
290
Fonte: elaboração própria, 2017.
Dos 181 homens, somente 24 apresentam sua cor explicitada. Entre os brancos, temos
nove assinantes, com um percentual de 90%. Entre os pardos, temos doze firmantes, com um
percentual de 92.3%. Há, ainda, um crioulo, que assina seu depoimento. É possível observar
também um preto (de origem africana) não assinante. Além desses dados, temos 157 homens
cuja cor não foi apresentada. Destes, 154 firmaram suas assinaturas após seus depoimentos,
representando um percentual de 98.08%. Em relação a este último aspecto, provavelmente, por
ser a cor branca o dado não marcado, tais indivíduos sejam igualmente brancos. Sendo assim,
quando agrupamos os brancos com os que não tiveram sua cor identificada, temos o número de
aproximadamente 90% de assinantes. Ou seja, como ocorre nos dados mensurados dos autos
da Conspiração dos Alfaiates, os dois grupos significativos de firmantes, na variável cor, são
os brancos e pardos.
Sobre a cor dos homens envolvidos na insurreição carioca, temos os seguintes dados:
Como é possível notar, entre os 79 homens envolvidos, somente um teve sua cor
explicitada, representando um percentual mínimo de 2.5%. Este era Estácio Gomes de
Carvalho, natural do Brasil, solteiro, de 41 anos, que vivia do ofício de alfaiate. Já 97.5% dos
homens que não tiveram suas cores identificadas, por ser esta a realidade não marcada
socialmente, poderiam ser classificados como brancos, porém, temos uma questão que
problematiza tal consideração. Segundo Lucas (2002), Manoel Avarenga, fundador e principal
articulador da Sociedade Literária do Rio de Janeiro, era um homem mestiço, sendo,
obviamente, não branco. A pergunta que emerge, diante do apagamento desse dado durante o
processo, é por que sua condição de mestiço não foi demarcada?
Para nós, a condição de mestiço não é uma questão que recai somente sobre o fenótipo
dos indivíduos, mas fundamentalmente sobre seu perfil sociológico, pois, como apontou Darcy
Ribeiro (1995), os chamados “brancos” brasileiros não necessariamente eram filhos de
291
europeus que para cá migraram, mas, sim, em sua grande maioria, homens e mulheres mestiças
que, afastadas da lógica escravocrata, estavam inseridas em contextos privilegiados da
sociedade, marcadamente dominados por brancos. Sendo assim, mesmo sendo geracionalmente
mamelucos ou pardos, por exemplo, estes poderiam ser identificados como brancos devido à
sua condição e posição na sociedade colonial. Para mais, mesmo tendo sua cor explicitada, os
pardos aproximam-se da realidade, no que diz respeito aos nossos dados, conferida para os
sujeitos apontados como brancos, pois essa categoria apresenta um percentual de assinantes
muito próximo do que foi observado para estes. Ou seja, é possível dizer que, quando a cor não
é explicitada nos autos, o indivíduo é considerado um sujeito que está no rol dos privilegiados
socialmente, tanto econômica quanto politicamente.
Contudo, é extremamente relevante apontar que o detentor de uma das melhores
bibliotecas da cidade do Rio de Janeiro, fundador e articulador de uma sociedade literária, e,
também, formador de muitos intelectuais do período, era um homem mestiço, que poderia ser
identificado como pardo, mas que, todavia, não o foi. Isso poderia ter acontecido por causa
justamente de sua posição perante à sociedade da capital da colônia, que o via como um homem
que carregava a estirpe, mesmo que simbólica, do universo dos brancos, por ter estudado na
metrópole e por ser um professor e intelectual muito atuante. Então, como lidar com essa
questão? Nós, quando foi possível identificar a ascendência dos indivíduos, explicitamos suas
cores, contudo, quando isso não foi possível, por estas não estarem demarcadas nos autos,
seguimos a lógica da realidade não marcada, que marca indivíduos como brancos por estarem
em inseridos nos contextos privilegiados socialmente demarcados.
292
Repartição por cor: homens assinantes
1900ral
1900ral
1900ral
1900ral
293
Repartição por cor: homens não assinantes
1900ral
1900ral
1900ral
1900ral
1900ral
1900ral
1900ral
Como é possível observar, nas esferas da insurreição baiana e mineira, nenhum preto –
caracterização de cor dada aos africanos – assinou seu depoimento. Esse fato pode ser
explicado, como já apontado em momentos anteriores, por dois motivos. Primeiramente,
quando tratamos de africanos, não podemos deixar de pautar que estamos tratando de sujeitos
que não tinham o português como primeira língua, aprendendo-a aqui em contextos de
transmissão linguística irregular, além do fato de que, se estavam em contextos irregulares de
aquisição, mais dificultoso seria ainda adentrar no universo cultural da escrita dessa mesma
língua. Além disso, a condição de escravizado, como notamos na análise dos dados, foi um
elemento desfavorável para tais indivíduos se inserirem nesse universo, principalmente em se
tratando de sujeitos que não possuíam nenhuma profissão qualificada específica, estando fora
da intensa mobilidade social das microzonas urbanas.
Assim sendo, há divergências somente entre os números de crioulos e pretos, pois, os
autos da inconfidência baiana agruparam um percentual relativamente maior do que o que pode
ser observado para os autos da Inconfidência Mineira. Isso pode ter acontecido, provavelmente,
devido ao número maior de testemunhantes da Conspiração dos Alfaiates, ou mesmo por causa
da própria realidade conjuntural da sedição das Gerais. Como sabemos, tal movimento
apresentou nítidas divergências quando o assunto era a condição dos escravizados, pois uma
parcela dos insurgentes queria a abolição e outra queria a manutenção desse sistema de mão de
obra. Dessa maneira, diante dessas desarmonias, a presença de africanos e de seus filhos
escravizados pode ter sido desfavorecida, contribuindo para o desequilíbrio percentual dos
dados aqui analisados.
Contudo, estes não tiveram totalmente fora do universo da escrita, pois, como apontou
Oliveira (2006) em sua Tese de Doutoramento, uma irmandade negra, fundada por africanos
294
em 1832, produzia extensamente documentos escritos por homens oriundos de África e isso
pode ter ocorrido justamente por causa da atmosfera institucional da própria Irmandade, que
exigia trâmites administrativos pautados na escrita. Além disso, um outro motivo era a própria
realidade urbana, que, como pontuamos, colabora para que tais indivíduos se envolvessem,
mesmo que indiretamente, com a circulação da escrita, seja devido às relações comerciais, seja
por questões notariais, como os depoimentos que eram comumente feitos para as investigações
devassas.
Sobre os outros grupos, é notório que os percentuais de homens brancos, de pardos e
dos que não tiveram suas cores explicitadas são similares para as três insurreições, excetuando-
se, em relação à cor branca, a Revolta dos Letrados, que teve somente um homem cuja a cor
parda foi identificada. Correspondendo a uma minoria de sujeitos não assinantes, estes podem
ser agrupados numa categoria minoritária de indivíduos que, por motivos diversos, não
souberam firmar seus nomes após seus testemunhos.
Entretanto, como vimos antes, os homens demarcados como brancos e pardos, além dos
que não tiveram cor explicitada, representam um enorme contingente de assinantes,
aproximando, no caso da escrita das firmas, os pardos aos brancos. Por isso, consideramos
necessário entendermos, afinal, o que significaria ser pardo no período colonial. Vejamos.
No período colonial, a cor indicava a procedência dos indivíduos, marcando seu registro
social no diversificado sistema de hierarquias, principalmente durante o século XVIII. Segundo
Mariza Soares (2000, p. 29),
No século XVIII, a inscrição social se faz, em primeiro lugar, pela cor. As elites são
supostamente ‘brancas’ e de ‘sangue limpo’. Os ‘pretos’ são escravos ou forros,
raramente livres. Entre uns e outros, os ‘pardos’. No século XVIII, a cor fala da
condição social de cada um e, como tudo mais nas sociedades do Antigo Regime,
distingue e hierarquiza. (SOARES, 2000, p. 29).
Em meio a esse contexto, a categoria de pardo foi criada, segundo Hebe Mattos (1995,
p. 101), como uma especificidade linguística “para expressar uma nova realidade, sem que
sobre ela recaísse o estigma da escravidão, e sem que se perdesse a memória dela e das restrições
civis que implicava”. Isso quer dizer que, para tais pardos, as novas demandas sociais exigiram
a criação de classificações para marcar aqueles que, apesar de terem um passado com a
295
escravidão, não mais se encaixavam nessa realidade. Dessa forma, esse aspecto tornava possível
aos chamados pardos uma ascensão social, mesmo que parcial, na sociedade colonial brasileira.
Como foi possível observar, nos dados apresentados para a Conspiração dos Alfaiates,
por exemplo, dos 61 pardos, 57 assinaram seus testemunhos, representando um percentual de
93%. Esse número se apresenta extremamente alto, revelando estarem os pardos no mesmo
patamar dos números registrados para os brancos. Alguns destes são identificados como livres
(33), como alforriados (17) e, também, como escravizados (11). Entre estes, 09 pardos
escravizados assinaram seus testemunhos e 15 ex-escravizados também firmaram seus nomes
após seu depoimento. Para a Inconfidência Mineira, mesmo com um quantitativo menor,
encontramos dados muito similares, pois todos os 12 homens pardos assinaram seus
testemunhos e, entre as duas mulheres, uma também assinou. Para mais, em relação aos homens,
dois destes são escravizados. Encontramos, também, um pardo para a Revolta dos Letrados,
que também assina seu nome, contudo, não tem seu estatuto social demarcado, podendo,
conjecturalmente, ser classificado como um homem livre.
Se, como coloca Mattos (1995), essa é uma categoria que distancia tais indivíduos do
contexto da escravidão, o que dizer dos chamados pardos apontados como escravizados ou ex-
escravizados, os quais, em muitos casos, assinaram seus depoimentos?
Sobre isso, Oliveira (2006) diz que os pardos, entre os não brancos, eram os mais
privilegiados, porque angariavam com maior facilidade, seja na infância ou na fase adulta, a
liberdade, pois a estrutura social da colônia era mais aberta a esse contingente, viabilizando,
mesmo para os pardos ainda escravizados, condições favoráveis para a aquisição da escrita,
como o caso da especialização de alguma profissão. Além disso, segundo ele, há registros de
que muitos deles foram aceitos em instituições de ensino, como o caso da Casa Pia Colégio dos
Órfãos de São Joaquim, fundada em 1825. Ou seja, é possível identificar uma posição distinta
para os pardos em relação aos outros contingentes de não brancos.
Porém, a cor parda apresenta uma complexa realidade no período colonial, pois esta
emerge com a diversidade e a mobilidade social latente a este período. Segundo Paiva (2001,
p. 32),
Novas cores eram forjadas pela sociedade colonial e por ela apropriadas para designar
grupos diferentes de pessoas, para indicar hierarquizações das relações sociais, para
impor a diferença dentro de um mundo cada vez mais mestiço. De cor de pele à dos
panos que a escondia ou a valorizava até a pluralidade multicor das ruas coloniais,
reflexo de conhecimentos migrantes, aplicados à matéria vegetal, mineral, animal e
cultural: a colônia criava tonalidades ainda desconhecidas pela metrópole.
296
Como é possível notar, as novas composições sociais da colônia contribuíram para o
forjamento de novas categorias de cor, que tentavam agrupar indivíduos que não mais se
encaixavam em contextos que classificavam apenas brancos, pretos ou índios. Novas realidades
surgiram e, com isso, novas classificações precisaram emergir para dar conta dessa nova
sociedade que se formava. Como ficou claro, as conjunturas das sedições aqui analisadas,
apesar de concentrar indivíduos brancos ou que não tiveram suas cores delimitadas, reflete bem
essa atmosfera de transformações quando tratamos, por exemplo, da condição dos pardos.
Vimos, por exemplo, que a circunstância de mineração proporcionou uma intensa
mobilidade social por contribuir fortemente com o desenvolvimento urbano das Gerais e do Rio
de Janeiro, colaborando, assim, com o surgimento de novas categorias étnicas. Porém, essa
realidade também pôde ser vista para Salvador, quando tratamos da Conspiração dos Alfaiates.
Mesmo longe da economia do extrativismo mineral, a primeira capital do Brasil já possuía uma
estrutura urbana relativamente desenvolvida, contribuindo fortemente para o desenvolvimento
de novas palhetas de cor.
Dessa forma, tratando especificamente dos pardos, é possível dizer que essa nova
concepção étnica aparece para dar conta de um contingente de mestiços que se afastava do perfil
sociológico atribuído aos africanos e aos seus filhos, que comumente atuavam nas zonas rurais,
e que não tinham acesso ao universo cultural da escrita por exemplo. Ou seja, pelo que vimos,
os pardos estão explicitamente muito mais presentes nas áreas urbanas, contextos em que a
pluralidade e a mobilidade social são muito mais evidentes, contribuindo, inclusive, para a
qualificação destes em profissões especializadas, um outro fator favorável para a aquisição da
escrita.
Diante dos dados obtidos, é possível levantar algumas hipóteses para entendermos os
altos índices de alfabetismos encontrados nos autos aqui analisados, principalmente quando
tratamos dos contingentes de não brancos. Para isso, avaliaremos os caminhos para a
alfabetização de escravos no Brasil colonial e pós-colonial, explicitados por Klebson Oliveira
(2006), quando este, a partir de um conjunto de propostas diversificadas, sugere possíveis
respostas para entendermos como tais indivíduos conseguiram desenvolver as habilidades da
escrita, da leitura e/ou da contagem num período em que a escolarização era proibida a esse
contingente.
297
Sendo assim, a partir dos elementos sociológicos explicitados anteriormente, sugerimos,
no desenrolar da descrição dos dados, alguns indícios que tenham favorecido a aquisição,
mesmo que ínfima, da escrita pela maioria das testemunhas e/ou acusados dos autos da
Conspiração dos Alfaiates. Mas esses resultados seriam extensivos a toda população baiana?
Se sim, quais são os elementos que podem fortalecer essa afirmativa? Se não, quais os
elementos que podem explicar o alto índice de assinantes encontrados nos autos do processo
devassatório em questão?
Para nós, os números obtidos não representam de forma clara e consistente a realidade
dos índices de alfabetismos na Salvador de finais do século XVIII, pois, se assim fosse,
estaríamos tratando de uma provável “república das letras”. Na realidade, muitos historiadores,
a partir de investigações diversas, ainda afirmam que o Brasil, nos períodos colonial e pós-
colonial, apresentava números muito baixos de alfabetizados. Então, por que os dados
mensurados apresentam números tão altos? Sobre isso, faremos algumas explanações,
levantando hipóteses que possam nos indicar os motivos que nos levaram a encontrar índices
extremamente elevados de alfabetismos.
Para dar cabo disso, primeiramente, buscaremos explanar algumas questões sobre o
primeiro censo oficial do Brasil, em relação aos dados sobre a instrução da população da
província da Bahia, em 1872, com o intuito de estabelecer referenciais diacrônicos que possam
nos aproximar dos números de alfabetizados na província da Bahia. Assim sendo, as
informações coletadas em finais do século XIX revelam que cerca de 249.136 indivíduos
sabiam ler e escrever, cujo percentual era de 18% do total da população baiana. Os que não
sabiam ler e escrever chegavam a 1.130.542 indivíduos, compondo um percentual de 82% de
analfabetos. Para mais, somente 35.365 frequentavam escolas, cujo percentual não passava de
2.5% da população101.
Diante de tais dados, levantados quase um século após tais movimentos, é possível
afirmar que a maioria da população baiana, mineira e carioca, em fins dos oitocentos, não sabia
ler e/ou escrever. Partindo-nos disso, se recuarmos oito décadas, para finais dos setecentos, esse
número provavelmente não seria muito diferente. Aliás, o número de analfabetos poderia ser
demasiadamente maior se levarmos em conta que o século XIX foi marcado por profundas
transformações sociais, que poderiam ter viabilizado o aumento gradativo dos índices de
alfabetismo. Dessa forma, como seria possível tratar os resultados encontrados para a
Conspiração dos Alfaiates, para a Inconfidência Mineira e para a Revolta dos Letrados? Uma
101
Os dados do primeiro censo oficial do Brasil de 1872 estão disponíveis no Núcleo de Pesquisa em História
Econômica e Demográfica, através do sítio eletrônico www.nphed.cedeplar.ufmg.br.
298
resposta plausível seria investigar as conjunturas dos movimentos de inconfidência no Brasil.
Vejamos.
Buscando identificar outras possibilidades para o entendermos o fenômeno da
alfabetização na história do Brasil colonial e pós-colonial, alguns pesquisadores, interessados
em desvendar os caminhos que explicariam, talvez, o porquê de o analfabetismo não se ter feito
presente em 100% da população escrava, investigaram diversas circunstâncias históricas que
tenham favorecido esse contingente a adentrar efetivamente no universo da cultura escrita. Um
deles foi Klebson Oliveira (2006). O referido pesquisador propõe basicamente três vias para
compreendermos como os africanos e seus descendentes aprenderam a ler e escrever num
contexto em que, na sociedade brasileira, o negro era proibido de frequentar escolas, pelo menos
até o ano da abolição de seu sistema escravocrata, em 1888. São eles:
Em relação ao primeiro caminho, Oliveira (2006) nos diz que uma provável
possibilidade de esse contingente ter aprendido a ler e a escrever foram as relações afetuosas
destes com os seus “senhores”. Isso quer dizer que, no convívio doméstico, haveria maiores
chances de um estreitamento dos laços entre escravos e seus donos, situação que poderia
oferecer um ambiente propício para que alguns destes adquirissem a leitura e a escrita, quando,
por exemplo, os filhos de seus “senhores” estivessem expostos à alfabetização com professores
particulares que atuassem diretamente em suas residências, tanto em contextos rurais, quanto
urbanos. Mas, para que possamos entender tais relações claramente, ele revela que é necessário
entendermos os envolvimentos dos chamados escravos domésticos com seus “senhores”,
apontando que este é um
[...] percurso difícil de ser reconstruído, uma vez que essas relações, estabelecidas
dentro dos casarios, não deixaram, quanto ao aspecto que se busca, registros em outros
lugares da sociedade passada. Os estudos de história social, entretanto, parecem deixar
claro que as relações mais ‘afetuosas’ entre escravos e famílias dos senhores tinham
mais chances de se estreitar com os chamados escravos domésticos, ou seja, aqueles
que ocupavam lugares de trabalho dentro dos domicílios, o que seria mais raro com
os escravos urbanos, uma vez que viviam a trabalhar nas várias atividades comerciais
(ambulantes, carregadores etc) e o ganho obtido era dado ao seu dono, e com os
escravos rurais, porque as atividades agrícolas não possibilitavam contatos mais
diretos entre eles e senhores (OLIVEIRA, 2006, p. 56).
299
O segundo caminho apontado por ele é a especialização de algumas profissões de
escravos, que exigiam algum conhecimento da leitura, da escrita e da contagem. Oliveira (2006,
p. 60) elucida, com base em pesquisas desenvolvidas por Maria José de Sousa Andrade (1998),
que
[...] quanto aos pouquíssimos escravos que sabiam ler e escrever, as fontes estudadas
pela historiadora não se calaram: “Cândido, pardo, moço, que tem habilidade de
caixeiro do trapiche e que sabe ler e escrever e contar, sem moléstia, avaliado em
900$000”. Como nota Andrade (1988), nesse caso acima transcrito, o ofício do
escravo em questão mais a habilidade na leitura, na escrita e nas contas fizeram que
fosse ele mais valorizado, em 900$000, uma vez que existiam outros, que também
trabalhavam no trapiche, estimados em, no máximo, 600$000 (OLIVEIRA, 2006, p.
60).
[fl. 4] Dice, que ela declarante tem cinco filhos, o mais velho tem de idade oito annos,
e aprende a ler na escola de Fulano da Motta de tras da Capella de Nossa Senhora da
Ajuda, e agora esta escrevendo por sima de letra branca e ainda não aprende a contar,
e nem ella declarante sabe quem escreveo o sobredito papel (FLEXOR et al, 1998,
p.401)
300
Como já fora apontado, era proibido a negros, em suas diversas matizes, frequentar
ambientes escolares. Contudo, tal fato nos revela algo inquietante e que ainda carece de
pesquisas mais aprofundadas para responder, por exemplo, se esse dado poderia ser um indício
de uma prática comum nesse período, já que esse contingente parece não ter ficado totalmente
alheio ao universo da cultura escrita.
Além desse aspecto, segundo ele, há “ainda indícios de que o letramento encontrasse
valor positivo dentro de irmandades negras, tão comuns ao Brasil colonial e pós-colonial”. Em
relação a isso, Oliveira (2006) nos revela que as irmandades negras foram muito comuns no
passado brasileiro e tinham o objetivo de, a partir da devoção a um santo católico, congregar
um conjunto de indivíduos para firmar um pacto que poderia significar um fortalecimento das
relações destes entre si, pois elas “angariavam prestígio entre negros, escravos ou libertos, por
terem se constituído em um dos poucos espaços legítimos na sociedade em que se praticavam
ações assistenciais e por possuírem intensa vida social” (OLIVEIRA, 2006, p. 62-65).
Sobre as irmandades negras do Brasil especificamente, diz-nos o historiador João José
Reis (1997, p. 12) que
Essa afirmação, junto às pesquisas desenvolvidas por Klebson Oliveira (2006) sobre a
Sociedade Protetora dos Desvalidos102, faz-nos pensar que os espaços das irmandades negras
poderiam ter favorecido a seus integrantes o aprendizado da leitura e da escrita, pois, em sua
esfera, as ações de colaboração entre seus congregados, unidas à valorização da alfabetização
entre os negros, possam ter colaborado para esse fim. Além disso, o caráter étnico de algumas
delas, como a que há pouco foi referida, impedia a participação de brancos em sua conjuntura,
por isso mesmo, eram os próprios negros quem deveriam desenvolver as atividades
administrativas, como o caso de escrivães, tesoureiros, secretários e conselheiros, que exigiriam
o conhecimento, mesmo que parcial, da leitura, da escrita e da contagem. Essa questão foi,
inclusive, tratada pelo próprio João José Reis (1997), quando este nos fala sobre algumas
petições feitas por irmandades étnicas à Coroa portuguesa solicitando que os próprios negros
102
Conferir Negros e escrita no Brasil do século XIX: sócio-história, edição filológica de documentos e estudo
linguístico, de Klebson Oliveira (2006).
301
assumissem os cargos de escrivão e tesoureiro, com a justificativa de que, com a “iluminação”
do século, estes estariam aptos para desempenhar tal papel.
Perante tais vias, e com base nos números obtidos a partir da mensuração dos dados dos
autos da Conspiração dos Alfaiates, propomos a inclusão de mais um caminho que possa ter
favorecido a aquisição da escrita no período colonial e pós-colonial no Brasil, que abrange não
somente negros, escravizados e/ou alforriados, mas também brancos e mestiços livres. Fala-se
dos movimentos de inconfidência. Estes foram muito comuns entre meados do século XVIII e
início do século XIX, no Brasil, e abarcaram um conjunto variado de indivíduos, que estavam
interessados basicamente na independência da colônia e em relações sociais mais igualitárias103.
No caso da Sedição Intentada de 1798, os “homens de consideração”, através de
conversas e/ou reuniões, difundiram os ideais franceses de liberté, fraternité et egalité para as
camadas mais profundas da sociedade colonial. Foram esses homens e mulheres
desfavorecidos, embebidos por tais pensamentos revolucionários democrático-burgueses, que
iniciaram um movimento sedicioso que via a república como a solução para suas mazelas. Mas
como estes iriam apreender os elementos teóricos da conspiração se, em sua maioria, não
sabiam ler e/ou escrever? Suas bases seriam unicamente as falas dos “homens de
consideração”? Se estamos falando de um projeto de construção de uma sociedade mais
igualitária, por que não adentrar efetivamente no universo da escrita, visto de forma tão
prestigiada pela sociedade colonial brasileira, sobretudo a partir do século XVIII?
Foram muitas as apreensões feitas de manuscritos com cópias, em sua maioria
traduzidas, de livros teóricos sobre a Revolução Francesa. Como tais indivíduos as adquiriram?
Através dos profissionais da escrita, identificados nos autos como os homens que viviam de
escrever? Ou, na realidade, foram eles mesmos quem os copiaram? Mesmo que não os tenham
efetivamente reproduzido, por que esses homens e mulheres cobiçavam possuir tais
manuscritos? Para lê-los? Não há respostas claras para tais questionamentos, mas não podemos
deixar de lado o fato da intensa presença da escrita no movimento que compôs a Revolução dos
Búzios.
Na Inconfidência Mineira, indivíduos das diversas camadas sociais agruparam-se num
movimento com o intuito de aniquilar o domínio político-econômico que a metrópole matinha
sobre a colônia, questionando, dentre outras questões, a enorme carga tributária exigida pela
103
Sobre a ideia de igualdade propagada pelos ideais da Revolução Francesa, a Declaração Universal dos Direitos
do Homem e do Cidadão, de 02 de outubro de 1789, em seu XI artigo, diz-nos que a capacidade de escrever é um
direito universal de todo e qualquer homem, como pode ser observado no trecho a seguir: “A livre comunicação
de pensamentos e opinião é um dos direitos mais preciosos do homem; todo cidadão pode pois falar, escrever,
imprimir livremente, salvo quando tiver que responder do abuso dessa liberdade nos casos previstos pela lei”.
302
coroa sobre ouro. Esta, além de impedir o maior acúmulo do minério dourado, atingia
fortemente os sujeitos mais pobres, pois inviabilizava a clara mobilidade social que caracteriza
o contexto dos aglomerados urbanos que se constituíram entorno do extrativismo mineral.
Dessa maneira, homens da elite, juntamente com indivíduos de camadas sociais intermediárias,
viram na independência administrativa, pelo menos parcial, e monetária uma forma de compor
uma nova realidade econômica para o Brasil, que proporcionaria aos abastados mais poder e
aos pobres oportunidades de ascensão social.
O mote ideológico para essa sedição seriam os referencias da independência dos Estados
Unidos da América e do pensamento iluminista europeu. Tais propostas aqui chegavam através
de livros diversos, que estavam sob a censura do Reino. Estes circularam entre os inconfidentes,
quando tais obras eram emprestadas ou quanto eram copiadas, traduzidas e distribuídas entre
os envolvidos nesse movimento, fato este que contribuiu fortemente para a propagação de ideias
contrárias à lógica colonialista portuguesa. Em meio a isso, muitos homens acessaram produtos
escritos variados, envolvendo-se intensamente com esse universo cultural, contribuindo com a
circulação desta no seio do movimento. Sujeitos das camadas mais baixas, que não tinham
adquirido a escrita, viram nela uma forma de acessar pressupostos que poderiam favorecer sua
ascensão social, e isso pode ter cooperado para que esses homens buscassem se alfabetizar, pois
adquirir a escrita era uma das formas de se mover socialmente em direção às camadas mais altas
da pirâmide social daquele período. Assim, os ventos sediciosos poderiam ter assoprado
fortemente para que a escrita se propagasse entre os envolvidos, seja direta ou indiretamente,
na Inconfidência das Minas Gerais.
Já a Revolta dos Letrados não compôs uma sedição nos moldes de um levante
arquitetado, como observamos para os outros casos analisados aqui. Na realidade, no seio de
uma Sociedade Literária, na qual muitas obras eram lidas e discutidas, e muitos escritos eram
produzidos, diversos temas proibidos circularam entre os associados, principalmente quando
tratavam das ideias iluministas que insistiam em circular. No seio dessa instituição, as
personagens principais para a composição da forjada insurreição seriam justamente a leitura e
a escrita, pois, por causa delas, foram feitas as denúncias sobre um possível movimento
sedicioso que estava a se formar. Como as feridas da Inconfidência Mineira ainda estavam
abertas, pois a condenação de seus envolvidos tinha sido recentemente concretiza, culminando,
inclusive, no esquartejamento de um dos seus representantes, em 1792, as organizações que
debatiam assuntos proibidos eram fortemente combatidas, não sendo diferente com a que foi
fundada por Manoel Avarenga.
303
Na Sociedade Literária do Rio de Janeiro, além de notarmos uma intensa atividade de
leitura e discussão de obras diversas, realizadas em sessões plenárias, como indica seu estatuto,
também observamos uma grande produção de escritos, os quais, inclusive, passavam pelo crivo
de revisores quando algum associado não escrevesse nos moldes normativos do português de
então. Dessa forma, é visível que essa instituição contribuiu fortemente para a circulação da
escrita entre os homens que eram associados a ela, colaborando, também, com a formação
intelectual de muitos que ali estavam.
Porém, para se associar, o candidato precisaria conhecer a escrita para que pudesse
acompanhar o andamento dos trabalhos desenvolvidos na Sociedade. Assim sendo, muitos
indivíduos, vendo nesta instituição uma escada para ascender socialmente, poderiam ter
buscado formas para se alfabetizar, com o objetivo de tentar ser aceito como sócio, entrando
para o rol dos chamados intelectuais da época. Uma possível evidência dessa questão seria a
diversificação dos perfis sociológicos encontrados para os sujeitos que foram envolvidos no
processo investigativo dessa forjada sedição, pois, apesar de termos um grande quantitativo de
portugueses, muitos dos indivíduos que compunham os dados dos autos da Revolta dos
Letrados eram oriundos de camadas sociais mais baixas. Para mais, é possível dizer ainda que
o perfil de letrado não necessariamente tinha relação direta com o perfil dos homens
pertencentes à elite econômica da época.
Levando em consideração a conjuntura de tais sedições, que contribuíram para a difusão
social da escrita entre os insurgentes, os processos investigativos que pautaram os movimentos
de inconfidência podem nos dar uma margem quantitativa parcial, a partir do contexto
macroscópico e compósito da assinatura, para entendermos como estava difundida socialmente
a escrita no Brasil colonial e pós-colonial, pois foram inúmeras as sedições, intentadas e
concretizadas, nesse período em nosso país. Para mais, além de oferecer o escopo quantitativo,
os processos dos movimentos de insurreição também nos oferecem indícios sobre a circulação
da escrita em meio às atmosferas sediciosas, quando analisamos as apreensões feitas durante as
investigações. Materiais de uso corrente da escrita, manuscritos que continham cópias de
diversos livros censurados e até mesmo bibliotecas inteiras foram apanhados como prova para
a acusação de crime de leja majestade. Sendo assim, além de podermos observar a visível
presença da escrita a partir do cômputo das assinaturas dos sediciosos, podemos também
analisar a intensa circulação desta em tais contextos, demonstrando, assim, que essa atmosfera,
além de agrupar um diversificado perfil de sujeitos escreventes, e colaborar para a intensa
circulação da escrita nesse universo, pode ter contribuído fortemente para sua difusão entre
304
aqueles que ainda não tinham a adquirido, principalmente os que não estavam em condições
favoráveis para adentrar na orbe cultural da escrita104.
De uma forma ou de outra, essa investigação ilumina rastros que podem colaborar para
o estabelecimento de indícios que contribuam para a reconstituição histórica da difusão social
da escrita no Brasil colonial. Assim sendo, levantando questionamentos e propondo novos
caminhos para o entendimento desse fenômeno, trouxemos aqui algumas “fotografias” de um
extenso “álbum” das cores da escrita sediciosa. Aqui, demos um pequeno passo de um longo
caminho que precisa ser percorrido.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do que foi apresentado até aqui, podemos tecer algumas considerações sobre essa
investigação. Primeiramente, como vimos, a afirmativa de que não haveria fontes para as
pesquisas que se enveredam sobre a difusão social da escrita no Brasil não se confirma, pois as
devassas são manifestações documentais da realidade jurídico-administrativa de nosso país,
desde sua fase colonial, muito utilizadas para os trâmites legais que aqui foram desenvolvidos.
Por isso mesmo, levando em conta uma lógica programática de levantamento de fontes e análise
de informações colhidas em tais testemunhos, podemos compor, mais tarde, uma base de dados
que poderá nos aproximar de uma realidade tão longínqua de nossa história, e que ainda carece
de muitas pesquisas. Para este trabalho, pautamos três esferas que compõem um conjunto de
histórias parciais que serão constituídas paulatinamente e que poderão, no futuro, explanar de
forma panorâmica os perfis sociais da escrita daqueles que se fizeram presentes nos diversos
processos judiciais de nosso país.
Para além disso, especificamente sobre nossa pesquisa, é possível dizer que as devassas
aqui analisadas agruparam, em sua maioria, indivíduos que conheciam minimante o universo
cultural da escrita, havendo somente poucos sujeitos que não assinaram seus depoimentos,
como podemos observar durante a descrição e análise dos dados apresentados aqui. Dessa
maneira, levantamos a hipótese de que os movimentos de inconfidência são contextos
favoráveis para agrupar indivíduos que tinham alguma relação com a escrita, mesmo que
ínfima, quando tratamos do universo compósito da assinatura. Para mais, além de congregar
aqueles que sabiam assinar seus nomes, tais movimentos poderiam ter contribuído para a difusão
104
A descrição e a análise dos elementos que indicam a intensa circulação da escrita em movimentos sediciosos,
quando tratamos das apreensões das sedições baiana, mineira e carioca, serão abordados na versão final desta Tese.
305
da escrita entre aqueles que não poderiam, por exemplo, frequentar ambientes escolares, como
africanos e afrodescendentes. Como vimos, os pardos, entre os não brancos, representam um
contingente de maioria de firmantes, assemelhando-se da realidade dos brancos e prováveis
brancos. Além disso, encontramos filhos de africanos que também assinaram seus nomes diante
do notário. Assim sendo, perante uma atmosfera sediciosa, que debatia constantemente aspectos
teóricos censurados pela Coroa, com base em obras contrabandeadas, copiadas por muitos
indivíduos, a escrita pôde ter sido adquirida por aqueles que não tiveram acesso a procedimentos
de alfabetização comuns para aquela época.
Nossa hipótese se confirmará mais claramente quando pautamos a circulação da escrita
em tais conjunturas. Em uma avaliação preliminar, a escrita parece ter circulado intensamente
em tais movimentos, sendo, inclusive, motivação primordial para a composição das devassas
da Conspiração dos Alfaiates e da Revolta dos Letrados, por exemplo. Por isso mesmo, levando
em conta os autos de sequestros de bens dos insurgentes, além de pesquisas anteriores sobre a
questão do livro e da manuscritura em tais sedições, é possível notar a clara presença e a intensa
circulação da escrita entre aqueles que não a conheciam e que se integraram aos movimentos
de insurreição de finais do século XVIII.
REFERÊNCIAS
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Deputados; Belo Horizonte: Imprensa Oficial de Minas Gerais.
CASTILLO GÓMEZ, Antonio. Historia de la cultura escrita: ideas para el debate. Revista
Brasileira de História da Educação, n. 5, janeiro/junho, 2003, p. 94-124.
FLEXOR, Maria Helena Ochi et al (1998). Autos da Devassa da Conspiração dos Alfaiates.
Salvador: Secretaria de Cultura e Turismo/Arquivo Público do Estado da Bahia. 2 v.
GANDRA, Ana Sartori. Cartas de amor da Bahia do século XX: Normas linguísticas,
práticas de letramento e tradições do discurso epistolar. 525f. Dissertação (Mestrado em
Letras) – Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2010.
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storia dell'alfabetizzazione in Italia (sec. XV-XIX). Milão: FrancoAngeli, 1991.
MARQUILHAS, Rita. A faculdade das letras: leitura e escrita em Portugal no século XVII.
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Disponível em:< http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/fortaleza/3245.pdf>.
Acesso em: 15 mar 2012.
SOARES, Magda.. Letramento: como definir, como avaliar, como medir. In: SOARES,
Magda. Letramento: um tema em três gêneros. 2 ed, 11 reimpr. Belo Horizonte: Autêntica,
2006.
307
DECLARAÇÕES DE TERRAS: FONTES PARA O ESTUDO DOS
NÍVEIS DE ALFABETISMO NA BAHIA RURAL OITOCENTISTA
INTRODUÇÃO
308
UMA BREVE DISCUSSÃO CONCEITUAL
Os trabalhos que discutem sobre temas relacionados ao uso da leitura e escrita, com uma
grande frequência, usam os termos alfabetização, letramento e alfabetismo. A discussão desse
aspecto, que é muito importante, não se exaure nessas poucas linhas, mas é preciso ter muito
claro que as sociedades mudam e, com isso, a relação do homem com as práticas de leitura e de
escrita também sofrem transformações. Assim, para dar conta dessas relações entre escrita e
sociedade, que se renovam constantemente, surgem, na língua, termos novos. Sobre essa
questão, Soares (2012, p. 16) afirma que “[...] novas palavras são criadas ou a velhas palavras
dá-se um novo sentido, quando emergem novos fatos, novas ideias, novas maneiras de
compreender os fenômenos”.
É nesse contexto que a autora traz para o debate a questão da utilização das palavras
analfabetismo, analfabeto, alfabetizar, alfabetização, alfabetismo e letramento. Afirma Magda
Soares (2012, p. 16):
Nota-se que foi comum o emprego do termo analfabetismo, porque tal palavra
representava um contexto no qual não havia uma necessidade de se representar um estado ou
condição de quem sabe ler ou escrever, o termo oposto a analfabetismo não se mostrou
necessário e, por isso, não se utilizou o termo alfabetismo. Para Soares, o termo alfabetismo só
passou a ser utilizado quando dos indivíduos se exigia não apenas o domínio da tecnologia do
ler e do escrever, mas também que soubessem fazer uso dela, incorporando-a a seu viver,
transformando-se assim seu “estado” ou “condição”, como consequência do domínio dessa
tecnologia (SOARES, 2011, p. 29). Uma vez que a sociedade encontra-se imersa no mundo da
escrita, cabe, então, identificar as capacidades de uso da leitura e da escrita, denominada por
Rojo (2010, p.23) de níveis de alfabetismo. No bojo dessa discussão, Moreno (2014 p. 68)
esclarece que
compreendemos por alfabetismo a condição da distribuição social dos níveis que
podem ser mensurados em cada contexto analisado. Ou seja, alfabet- somado à ideia
do sufixo –ismo pode ser utilizado como a imagem da condição global da realidade
que está sendo realizada. Sendo assim, esse conceito pode ser válido para uma
observação indiciária, quantitativo – usando tratamos de mensuração de níveis de
alfabetismo – que envereda por uma observação da difusão social da cultura escrita,
309
levando em conta um elemento ativo – a produção gráfica de assinaturas, que são,
segundo Chartier (2004), indicadores macroscópicos e compósitos.
As Declarações de Terras aqui analisadas têm sua origem legal estabelecida pelo artigo
100 do Decreto N.º 1.318, de 20 de janeiro de 1854, que regulamentou a Lei de Terras, de 1850,
e determinava o registro das posses de terras de todo o país. Para efetivar o registro, a declaração
devia conter as seguintes informações: o nome do possuidor, designação da freguesia em que
estão situadas; o nome particular da situação, se o tiver; sua extensão, se fosse conhecida e seus
limites. Nesse contexto, consistiam em certidões comprobatórias do registro das Terras.
Quanto à estrutura, variavam de freguesia para freguesia e podiam variar até mesmo
dentro da própria freguesia, como é o caso da Freguesia de Santana do Campo Largo. Verifica-
se que os documentos aqui analisados possuem a estrutura proposta por Belloto (2002) com
algumas variações. Eles não apresentam o protocolo inicial nem a titulação do declarante. O
que se observa é o texto contendo as informações estabelecidas pelo Artigo 100 do Decreto de
1854, a assinatura, o local e data, conforme se observa na figura abaixo:
310
Figura ˗ Declaração de Antonio Bomfim Beltrão
Texto
Local e data
Assinatura
CONTEXTO DE PRODUÇÃO
A Lei de Terras, como ficou conhecida a Lei nº 601 de 18 de setembro de 1850, foi a
primeira iniciativa do governo no sentido de organizar a propriedade privada no Brasil, no
século XIX. Até então, não havia nenhum documento brasileiro que regulamentasse a posse de
terras. Com as modificações sociais e econômicas pelas quais passava o país - momento de
transição do trabalho escravo para o livre, iniciado com a cessação do tráfico e um contexto de
conflitos entre diferentes grupos -, o governo se viu pressionado a organizar esta questão. Por
essa lei, que tratava sobre a ordenação das terras devolutas do Império, todos os proprietários e
posseiros de terras, possuídas por título de sesmarias sem preenchimento das condições legais
ou simples título de posse, eram obrigados a registrar seus domínios nas respectivas freguesias.
O primeiro artigo da Lei de Terras determina que a partir daquela data, as terras só
poderiam ser adquiridas através de compra. Sobre essa questão, Zarth (1997, p. 60) explica que
do ponto de vista legal, o acesso terra ficou difícil para as camadas mais pobres da população
311
camponesa, enquanto para as elites locais a situação foi favorável, pois além de regularizar suas
propriedades, avançavam e incorporavam novas áreas onde viviam muitos posseiros pobres
sem poder para reagir.
De acordo com Silva (1996), a lei de 1850 desempenhou um importante papel de
delimitar o espaço de relacionamento entre o poder público e os proprietários de terras,
estabelecendo normas pelas quais os sesmeiros em situação irregular e os posseiros se
transformariam em proprietários de pleno direito das terras que ocupavam. O que se percebe,
ainda segundo a autora, é que a aplicação dessa lei à sociedade foi um processo no qual as
diferentes camadas sociais interessadas entraram em conflito, gerando a exclusão das camadas
mais pobres da população, em especial os ex-escravos e os imigrantes, da propriedade da terra.
Em janeiro de 1854, o governo imperial baixou o Decreto Nº 1318, que regulamentava
e mandava executar a Lei de Terras. Por esse decreto, definiram-se questões de estrutura,
funcionamento e competências da Repartição Geral das Terras Públicas. Além disso,
estabelecia as normas para a medição, revalidação e legitimação de domínios públicos e
particulares, a venda e conservação das terras devolutas e determinava como se proceder ao
registro das terras possuídas.
105
O que se denomina neste trabalho como “oeste da Bahia” ou “oeste baiano” compreende o recorte de 35
municípios situados geograficamente à margem esquerda do Rio São Francisco. Não confundir com a Região
Oeste da Bahia – divisão econômico-administrativa do Estado.
312
da Província de Pernambuco, que se estabeleceram à margem do Rio Grande, desenvolvendo a
agropecuária.
DESCRIÇÃO FÍSICA
Número
do Folha do
registro registro.
Data do
(Nº 2)
registro
Rubrica Texto da
do declaração
vigário
Número
da Assinatura
declaração
313
Percebem-se, também, algumas interferências feitas ou por outros pesquisadores no ato
de colher os dados ou por funcionários do arquivo na tentativa de catalogação dos manuscritos.
Observam-se, além da tentativa de numerar o fólio, marcas na cor vermelha sublinhando a
localização da terra declarada e o nome do declarante. Há ainda a indicação da data redigida a
lápis.
Não se pode deixar de mencionar a presença de borrões causados pela tinta utilizada
para a escrita do texto. Além disso, há o uso de algumas abreviaturas que, se não observadas
atentamente, podem causar equívocos na leitura do texto.
A AUTORIA
Ficam claras, na lei, todas as formalidades para a elaboração das declarações. De forma
específica, podiam ser elaboradas das seguintes formas:
Desse modo, de acordo com a lei, só se justifica o ato de uma pessoa assinar o
documento pelo declarante o fato de esse declarante não saber ler e escrever. Nas declarações
de Campo Largo, quando o declarante não assina, o representante que a redigiu, antes de assinar,
usa as expressões a rogo, a pedido ou por antes do nome do declarante. Quando o escriba não
menciona uma das expressões acima, ele deixa claro, no texto, a incapacidade de o declarante
assinar. Além desses contextos, há também declarações que são redigidas por outras pessoas e,
apenas, assinadas pelo declarante e aquelas feitas por procuração.
As formalidades da lei para a elaboração das declarações permitem classificar a autoria
de duas maneiras: aquelas escritas e assinadas pelo declarante (autor material e intelectual) e
314
aquelas acompanhadas do autor intelectual, mas escritas por terceiros (autor material). A autoria
intelectual, nas Declarações de Terras aqui analisadas, pode ocorrer em três contextos: o
primeiro contexto refere-se ao fato de o declarante não saber ler e escrever, por isso solicita que
outro escreva e assine ; o segundo contexto ocorre quando o declarante não escreve, mas assina.
O terceiro contexto se dá com as declarações feitas por procuração. Há, a seguir, exemplos de
como essas declarações eram produzidas106.
106
As transcrições aqui apresentadas seguem as normas de transcrição de manuscritos do PHPB – Projeto Para a
História do Português Brasileiro, com algumas adaptações.
315
Figura ˗ Modelo 2. Autoria intelectual – os declarantes apenas assinavam a declaração que era
escrita por outra pessoa
107
Os declarantes poderiam solicitar que outra pessoa fizesse e assinasse a declaração, caso não soubessem ler e
escrever. Nessas declarações, a incapacidade de escrever do declarante era indicada no corpo do texto ou no final
da usando as seguintes expressões: a rogo de, a pedido de .
316
Figura ˗ Modelo 4. Autoria intelectual – procuração.
D. Anna
Rafaela de
Almeida
representada
por um
Procurador
abaixo
assinado
Para o estudo dos níveis de alfabetismo em períodos anteriores aos censos oficiais
aplica-se a metodologia oitocentista do cômputo de assinaturas. Para Chartier (2001, p. 74), a
única fonte global que permite estudos quantitativos de longa duração é a que oferece as
assinaturas, principalmente dos arquivos de cartórios ou os registros paroquiais. Sobre a
metodologia oitocentista da contagem de assinatura, sabe-se, segundo Marquilhas (2000, p. 85),
que ganhou lastro teórico em 1968, quando Roger S. Schofield quis reconhecer, na “capacidade
de escrever o próprio nome”, a única medida “universal, padronizada e direta” que indicava
quase satisfatoriamente a competência alfabética de grupos sociais historicamente delimitados.
Quanto à exata correspondência entre a capacidade de assinar e o nível de competência de
leitura e escrita, Schofield aceitava a opinião de um inspetor de ensino do século XIX, J.
317
Fletcher, que encontrava, na assinatura alfabética, um indicador de leitura fluente: desde o
século XVI, e até o início de Oitocentos, dada a sucessão de fases de ensino das primeiras letras,
quem apenas soletrava não saberia ainda assinar, mas quem lia fluentemente já saberia pelo
menos escrever o nome.
No Brasil, Britto (2007, p. 20), ao tratar do conceito de alfabetizado, no século XIX, período
em que foram feitas as Declarações de Terras aqui analisadas, declara que:
[...] devemos ter claro que o conceito de alfabetizado não se manteve o mesmo ao
longo da história. Inicialmente, no século XIX, as enquetes sobre alfabetização
consideravam como alfabetizadas pessoas capazes de escrever o próprio nome;108
só em torno dos anos de 1940, passou-se a considerar alfabetizada quem se
demonstrasse capaz de ler e escrever um bilhete simples.
Ao tratar do assunto, para a primeira metade do século XX, também, no Brasil, Rojo (2010, p.
24) destaca que, para ser considerado alfabetizado e viver na cidade, bastava saber assinar o
próprio nome. Afirma que, excetuando as elites que tinham acesso a variados bens culturais e
à escolaridade mais longa, até 1950, a maior parte da população brasileira (52,7%) vivia em
situação de analfabetismo e boa parte dos (42,8%) sabia apenas assinar o nome e escrever
poucas palavras.
ALGUMAS CONCLUSÕES
108
Grifos meus
318
como ocorreu o processo de ocupação territorial no interior da Bahia oitocentista,
conhecimento importante para se compreender as distribuições demográfico-
linguísticas e apontar localidades com indícios da existência de corpora para o estudo
histórico do português brasileiro;
BRITTO, Luiz Percival Leme. Alfabetismo e educação escolar. In: SILVA, Ezequiel
Theodoro (Org.). Alfabetização no Brasil: questões e provocações da atualidade. Campinas:
Vozes. 2007. p. 19-34.
CHARTIER, Roger. As práticas de escrita. In: ARIÈS, Philipe; CHARTIER, Roger (Org.).
História da vida privada: da Renascença ao século das luzes. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004. p. 133-161.
CHARTIER, Roger. Cultura escrita, literatura e história Porto Alegre: Artmed, 2001.
DECRETO N.° 1.318, DE 20 DE JANEIRO DE 1854.
Lei de Terras Lei no 601 de 18 de setembro de 1850
MARQUILHAS, Rita. A faculdade das letras: leitura e escrita em Portugal no séc. XVII.
Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2000.
MORENO. André Luiz Alves. Devassa em Devassa: A difusão social da escrita na Salvador
de finais do século XVIII. 2014. 2v. Dissertação (Mestrado em Língua e Cultura) – Programa
de Pós-Graduação em Língua e Cultura, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014.
RIBEIRO, Vera Maria Masargão. Alfabetismo e atitudes: Pesquisas com jovens e adultos.
Campinas: Papirus, 1999.
SILVA, Ligia Osório . Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850. Campinas,
Unicamp, 1996.
319
SILVA. Adilson. Nos caminhos da terra: mensuração dos níveis de alfabetismo no interior da
Bahia oitocentista. 2015. 2 v. Dissertação (Mestrado em Língua e Cultura) – Programa de
Pós-Graduação em Língua e Cultura, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015.
320
EDIÇÃO CRÍTICO-GENÉTICA DO POEMA SILÊNCIO, DE EULÁLIO
MOTTA
INTRODUÇÃO
321
O poeta baiano Eulálio de Miranda Motta nasceu em abril de 1907 em uma vila da
cidade de Mundo Novo-BA e faleceu em 1988. Formado em farmácia pela Faculdade de
medicina da Bahia, dividiu-se entre as funções de farmacêutico e o seu maior labor: a escrita
literária. Ele começou a escrever seus primeiros versos ainda na adolescência para externar o
seu sentimento amoroso por uma jovem colegial a quem o poeta se refere em sua poesia pelo
nome de Edy.
O amor por Edy motivou Eulálio Motta a escrever inúmeros poemas. A maioria deles
lamentando não ter conseguido concretizar esse sentimento que acabou por se tornar a mais
significativa temática da poesia do poeta mundonovense.
Acerca desse amor Barreiros (2012, p.41) afirma que: “As lembranças do namoro
adolescente jamais abandonaram o poeta que cantou em seus versos a saudade do passado”. Os
versos do poema Sozinho, pertencente ao dossiê das poesias avulsas, evidenciam o sofrimento
do eu-lírico diante do desalento de não ter sua amada perto de si.
[...]
Imagino que já estás velhinha...
Cabelos grisalhos...
como eu gostaria
de passar a mão
em teus cabelos...
olhando
os teus olhos...
recordando
versos que escrevi na mocidade:
“Tem duas noites sem luar nos olhos...
“E um luar dentro do coração...
322
criação literária. De qualquer forma, o poeta transforma o amor por Edy em sua voz lírica e
declara fidelidade eterna a esse amor juvenil.
Eulálio Motta enquanto poeta não cantou somente as amargas dores de um amor perdido
no tempo, usou seus versos para os mais variados fins. Desde cobranças por benefícios sociais
para Mundo Novo até denúncias de corrupção. A exemplo do poema de cordel A santa do pau
oco:
[...]
E não funcionava o Hospital!
O que funcionava era comércio,
comércio clandestino,
descarado,
fazendo concorrência desleal,
imoral
as farmácias locais
ao comércio legal,
Eulálio Motta foi um intelectual de sua região e através de sua escrita influenciava
opiniões tanto no que concerne à política quanto em outros assuntos como religião e literatura.
Sua coluna Rabiscos do jornal Mundo Novo traz, por exemplo, um texto em que o poeta
mundonovense critica os poetas modernistas no ano de 1932. O autor utilizou-se de seu
pseudônimo Liota para tecer duras e afiadas críticas aos filiados ao novo movimento literário
que já influenciava o fazer literário baiano. E sobre os poetas que aderiram a esse novo
movimento Motta disse que:
Ao falecer em 1988, Eulálio Motta deixou apenas três livros publicados: Ilusões que
passaram; Alma enferma e Canções de meu caminho primeira e segunda edição. Deixou ainda
poemas publicados em revistas, jornais e panfletos. Alguns projetos de livros e vários poemas
323
avulsos em suas gavetas e dentro de livros. De tal modo que, as publicações de Eulálio Motta
representam uma minoria de sua produção escrita. A grande maioria continua ainda inédita e
salvaguardada em seu acervo. Eulálio Motta deixou para a posteridade a missão de tornar
público o que o tempo não lhe permitiu.
O ACERVO DO ESCRITOR
Barreiros (2015, p. 29) afirma que “os acervos estão necessariamente vinculados à vida,
por suas travessias sinuosas, trazendo as marcas dos acontecimentos individuais e coletivos”.
Desse modo, as pessoas estão habituadas a arquivarem objetos e documentos particulares e
coletivos que as ajudem a não apagarem as lembranças do passado. Assim, esses objetos
tornam-se lugares de memória, já que desde que a memória oral foi se tornando mais externa
ao homem, este necessitou de objetos que lhe servisse de intermediário entre si e os resquícios
de sua memória.
Segundo Nora (1993, p. 15 apud BARREIROS, 2015, p. 25):
324
[...] essa exigência do arquivamento de si não tem somente uma função ocasional. O
indivíduo deve manter seus arquivos pessoais para ver sua identidade reconhecida.
Devemos controlar as nossas vidas. Nada pode ser deixado ao acaso; devemos manter
arquivos para recordar e tirar lições do passado, para preparar o futuro, mas sobretudo
para existir no cotidiano.
325
Assim, Eulálio Motta, ao arquivar a si mesmo, deixou preservada as pistas necessárias
para que seja possível compreender o seu fazer literário, bem como a leitura que fez de seu
tempo, o turbulento e importante século XX. A consulta feita somente em sua obra publicada
jamais abarcaria a quantidade de informações que permaneceram silenciadas em seu acervo
particular até que pudesse ser aberto e estudado. O acervo é, pois, extremamente relevante no
que concerne aos estudos literários e filológicos.
A EDIÇÃO CRÍTICO-GENÉTICA
Embora os primeiros trabalhos de cunho filológico tenham sua gênese no século III a.
C. na biblioteca de Alexandria, foi somente no século XIX que a filologia foi reconhecida como
ciência a partir do trabalho de Karl Lacmann que conferiu as bases e princípios científicos
necessários à filologia. Lacmann propôs a confrontação dos diversos testemunhos de um
documento com o propósito de conseguir identificar qual deles se aproximava mais do original
perdido. Pois até então, os textos eram editados sem uma metodologia específica,
comprometendo assim a confiabilidade da edição.
Segundo Borges et al (2012, p. 17):
A mais famosa das perspectivas ficou conhecida através do nome de Karl Lachmann
(1793-1851), que sistematiza o debate sobre a edição crítica dos textos bíblicos e
propõe um método inspirado em um modelo historicista e positivista, cujo objetivo
consistia em, a partir do estudo da tradição, formular um arquétipo, texto mais
próximo de um original perdido.
O método lachmaniano (como foi batizado) concentrou-se numa realidade textual cuja
busca pelo original perdido foi o seu maior objetivo, instituindo rigor no
estabelecimento do texto crítico. Esse método foi influenciado pelas teorias
326
positivistas do século XX a atendeu às exigências do rigor científico próprias da
época. Durante o século XX, o método lacmaniano foi questionado e adaptado às
novas realidades textuais, ao lidar com textos autorais. Assim, não se buscava mais o
original perdido, mas a recuperação do “ânimo autoral” diante da pluralidade dos
testemunhos autógrafos.
Assim, ancorado no que pontua Gresillon (2007), compreende-se que a edição genética
está interessada em todos os documentos que estão ao redor do texto a ser editado, pois esses
materiais serão fundamentais para compreender como o autor pensou a sua obra e o que o
influenciou. Analisando as rasuras, cancelamentos, acréscimos e supressões é possível rastrear
o processo de montagem do texto, os momentos de dúvidas e desistências do autor, bem como
suas mudanças de ideias, suas reviravoltas escriturais.
Ao se apropriar da biblioteca do autor, cartas, bilhetes de passagens, ingressos,
fotografias, vestuários e documentos o filólogo também apropria-se das ideologias ao qual o
autor se filiou em sua vida e isso obviamente estará de alguma maneira impregnado na obra
desse autor. Eulálio Motta, por exemplo, possui uma vasta coleção de livros de Plínio Salgado,
tratando do integralismo. O que explica sua postura política e de valores conservadores em
327
muitos de seus textos tanto literários como de opinião. Livros acerca da fé católica também
aparecem em sua biblioteca. Eulálio Motta foi, a partir de um dado momento de sua vida, um
fervoroso católico. Há também cartas e bilhetes comprovando a intensa comunicação entre
Eulálio Motta e outros escritores e poetas de sua época, inclusive com envio e recebimento de
poemas e opiniões acerca de sua poesia. Esses materiais encontrados no acervo do escritor, e
que estão girando em torno do documento a ser editado, influenciam no processo de escrita do
texto e, por esse motivo são levados em conta nas edições de crítica genética, pois segundo
Barreiros (2015), uma edição que leva em conta a documentação paratextual é muito mais
completa.
328
(iii) Foi sinalizada a correção ortográfica no aparato.
(iv) Foram utilizados no texto os operadores genéticos a seguir para sinalizar o processo de
escrita do texto: { } / \ substituição por sobreposição, na relação {substituído} /substituto\;
[↑{†}] acréscimo na entrelinha superior ilegível; { } seguimento riscado, cancelado.
SL 1
Este documento ocupa o reto de três folhas do caderno Luzes do crepúsculo que é um
projeto de livro de poesia de Eulálio Motta. As folhas encontram-se numeradas pelo autor. Na
primeira folha verificam-se rasuras e correções. As folhas estão com aspecto amarelado pela
ação do tempo. O arame da encadernação apresenta sinais de corrosão nas folhas. A tinta
espalhou-se deixando alguns borrões na folha. A mancha escrita está em cor azul, mas também
aparece tinta vermelha no título e na paginação do documento e tinta preta na parte superior,
próximo ao título. Há um sinal de conferência na margem superior.
A folha mede 22,5mm de comprimento e 16,0mm de largura. A mancha escrita da
primeira folha contém 24 linhas, a segunda 20 e a terceira 22 linhas.
SL 2
Este documento é dividido em três folhas pautadas avulsas. No primeiro fac-símile o
poema é composto por três estrofes. Não há rasuras, acréscimos ou marcas de correção do autor.
A tinta de escrita do documento é preta. O documento está conservado, embora o papel esteja
com aspecto bastante escurecido pela ação do tempo. A folha mede 21,9 mm de largura por 33
mm de altura. A mancha escrita corresponde a 32 linhas.
A segunda folha pautada avulsa é composta por quatro estrofes, sendo que a primeira
corresponde à continuação da última estrofe da primeira folha pautada avulsa. Não há rasuras,
acréscimos ou marcas de correção do autor. A tinta de escrita do documento é preta. O
documento está conservado, embora o papel esteja com aspecto bastante amarronzado. A folha
mede 21,9 mm de largura por 33 mm de altura. A mancha escrita corresponde a 30 linhas.
Na terceira folha pautada avulsa o documento é composto pela última estrofe do poema.
Não há rasuras, acréscimos ou marcas de correção do autor. A tinta de escrita do documento é
329
preta. O documento está conservado, embora o papel esteja com aspecto bastante amarronzado.
A folha mede 21,9mm de largura por 33mm de altura. A mancha escrita corresponde a 7 linhas.
As folhas pautadas avulsas deste poema são manuscritas.
SL1 - {RETÔRNO...}/Silencio...\
SILÊNCIO SL2 – SILÊNCIO
SL1 - {Para o PITHON BARRETO}
330
Filas. Filas. Filas.
10 Jornais. Revistas. Camelôs.
SL1 corre-corre SL2 Corre-corre
“Baianas”. Acarajés.
Corre-corre. O relógio.
- Que horas são? SL1 Ruidos. Comícios SL2 Ruidos. Comicios
Corre-corre. Paradas forçadas nas filas.
SL1 altos-falantes SL2 altos-falantes
15 -Que horas são? SL1 E o [↑{†}] povo
Suor. Lotação.
Ruídos. Comícios. Candidatos. SL1 {Risonho} SL2 Risonho
Nomes de candidatos:
SL1 Se é Jânio / vem, SL2 se é Jânio / vem
no asfalto, nos postes, nas paredes. SL1 que vai… SL2 que vai
20 Nas bocas horríveis dos alto-falantes.
E o povo indiferente. Cansado.
Cético. Risonho. Resignado.
Não se importando
se é Jânio que vem
25 se é Lott que vai.
331
Perguntas no silêncio... SL2 [Eulálio Motta]
2,10,960
55 Monólogo de quem não teve
alguém para o diálogo:
[Eulálio Motta]
2,10,960
A análise das variantes do poema Silêncio evidenciou que o autor fez consideráveis
modificações no poema no decorrer de sua escrita. Muitas destas modificações são evidenciadas
no testemunho elencado como última versão, evidenciando que o processo de escrita de Eulálio
Motta foi marcado por desistências, cancelamentos e quebra de versos. O testemunho escolhido
como versão final foi o manuscrito avulso SL2, pois este traz o texto limpo e com as
modificações sinalizadas no documento SL1. O autor cancelou o título de SL1 que era Retorno
e substituiu para silêncio. Esta mudança é confirmada em SL2. Assim como o cancelamento da
dedicatória do poema para Pithon Barreto. O testemunho SL2 também traz outras mudanças
que não foram sinalizadas no SL1, a exemplo das quebras de verso, deslocamentos de palavras,
acréscimos de palavras e versos. Foram também detectadas palavras iniciadas em maiúsculas
no SL1 que aparecem em minúscula no SL2 e vice-versa.
O testemunho elencado como versão mais recente do documento ora editado é,
curiosamente, o testemunho avulso. Geralmente, espera-se que o texto seja escrito em suportes
avulsos como rascunho para só então ser copiado para o caderno. Mas Eulálio Motta inverte
essa ordem. Tornando rascunho o texto que se encontra no caderno em que estava organizando
seu projeto de livro. Esse fato mostra o quanto o processo de escrita é dinâmico e aberto. O
autor pode escrever o seu texto em um suporte aparentemente definitivo, mas a consulta e
332
correção do seu texto nesses suportes pode levá-lo à reescrita do documento, tornando evidente
muitas vezes consideráveis modificações. Esse trabalho laborioso só pode ser evidenciado
através de uma análise que leve em conta os rascunhos com suas rasuras, correções, supressões
e acréscimos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O trabalho filológico de edição de textos tem como objetivo primeiro legar a outros
pesquisadores textos com a máxima segurança para que novos estudos sejam possíveis. Porém,
ao se debruçar sobre o universo que permeia a escrita do texto a ser editado, o filólogo se depara
com um oceano de informações que estão circulando em torno deste documento. Assim, a sua
edição precisa pensar não somente no documento, mas também nas possibilidades deixadas
para trás pelo autor, ou seja, os rascunhos, as rasuras. Precisa ainda levar em conta todo o acervo
do autor, pois muitas palavras e ideias que estão inseridas no texto em processo de edição foram
cunhados desses materiais que se encontram ao redor do texto em processo de edição. O
trabalho de editar um documento é um labor delicado que exige o máximo cuidado e atenção.
A edição do poema Silêncio, de Eulálio Motta revela a necessidade de levar em conta
os rascunhos, pois estes evidenciaram o processo meticuloso de escrita do autor. A exclusão
dos rascunhos teria cimentado a movimentação de escrita de Eulálio Motta neste documento.
Contudo, a confrontação dos testemunhos traz à tona o trabalho do autor e o modo como este
esculpiu o seu texto a fim de lançar no papel as imagens e sentidos desejados.
Este trabalho de edição da poesia avulsa de Eulálio Motta é significativo ainda para que
se traga a pública à figura do poeta e intelectual que permaneceu silenciado em seu acervo
pessoal, mas que agora pode ser revisitado pela sociedade do presente. Assim, sua escrita
literária e não literária pode ser acessada. Além, é claro, da leitura crítica que Motta fez de seu
tempo através de sua escrita.
REFERÊNCIAS
333
BARREIROS, Patrício Nunes. Sonetos de Eulálio Motta. Feira de Santana: UEFS Editora,
2012.
BORGES, Rosa. et al. Edição de texto e crítica filológica. Salvador: Quarteto, 2012.
MOTTA, Eulálio de Miranda. Sozinho. Obra inédita. Mundo Novo: Acervo de Eulálio Motta,
s/d.
MOTTA, Eulálio de Miranda. A santa do pau oco. Obra inédita. Mundo Novo: Acervo de
Eulálio Motta, 1968.
SANTOS. Tailane Vieira dos. Edição do poema Recordação de Monte Alegre: uma das
canções dos caminhos de Eulálio Motta. Revista A cor das Letras. Feira de Santana –
UEFS. v. 17, n.1, p. 77-89, 2016. ISSN 14158973. Disponível:
<http://periodicos.uefs.br/index.php/acordasletras/article/view/1446/pdf > Acesso em 21 de
jul. de 2017.
334
EDIÇÕES FAC-SIMILAR E SEMIDIPLOMÁTICA DE UM
TESTAMENTO DO INÍCIO DO SÉCULO XX
INTRODUÇÃO
Inegavelmente, não se pode estudar um texto sem estudar a história das pessoas
envolvidas naquele. Assim, ao nos debruçarmos sobre documentos escritos em épocas
pretéritas, somos levados, como um rio que não pode desviar o seu caminho, a conhecer, a
pesquisar e a preservar as informações contidas em tais escritos. Com isso, o trabalho do
filólogo vai se solidificando ainda mais, porque é difícil fazer edição filológica sem nos
ampararmos no aporte teórico, disponibilizado pela Crítica Textual.
A Crítica Textual, legada como ciência no século XIX, a partir dos trabalhos de Karl
Lachmann, vem ampliando seu campo de atuação no que diz respeito ao estabelecimento de um
texto, este não apenas como produto final, mas como fruto de processos que desencadearam a
sua produção e a sua transmissão. Em outras palavras, através da Crítica Textual, um texto é
estabelecido e fixado, a partir da realização das edições textuais.
Logo, a Filologia desponta como a ciência que possui os métodos e critérios
imprescindíveis à realização de uma edição fidedigna e passível de confiabilidade para os
trabalhos sócio-histórico-linguísticos. Desta feita, duas das edições que mais são plausíveis de
rigor científico são a fac-similar - fotografia fotomecânica do texto original, o que permite que
as informações sejam preservadas sem quaisquer tipos de alterações, haja vista “o grau zero de
intervenção feita pelo editor”– e a semidiplomática – que permite que o texto mantenha todas
as suas características, já que o editor não intervém em sua ortografia nem tampouco na
paragrafação, na pontuação, na separação de sílabas ou de palavras, apenas interferindo no
desdobramento de abreviaturas, apresentando-as em itálico, a fim de “facilitar” a leitura das
informações constantes no documento etc., ou seja, o texto é transcrito em sua íntegra
(CAMBRAIA, 2005).
Partindo disso é que selecionamos, para este trabalho, um dos dez documentos
encontrados no acervo do Centro de Documentação e Pesquisa, doravante CEDOC, localizado
na Universidade Estadual de Feira de Santana – Ba, cujo testamenteiro foi o Coronel Agostinho
Fróes da Motta, patriarca da influente Família Fróes da Motta, residente na cidade de Feira de
335
Santana nas primeiras décadas do século XX. Após a seleção do documento, decidimos editá-
lo filologicamente, a fim de manter as suas informações preservadas, já que aquele conta um
pouco da história da referida cidade, o que inclui a estrutura geográfica e a dinâmica social
daquele período, além de retratar os laços familiares existentes entre o então intendente de Feira
de Santana, o Coronel Agostinho Fróes da Motta, e os seus filhos e esposa.
Portanto, apresentamos, a seguir, as edições fac-similar e semidiplomática de alguns
fólios do testamento do Coronel Agostinho Fróes da Motta, além do levantamento de alguns
aspectos codicológicos presentes no referido documento.
Como dito na seção anterior, há dez documentos pertencentes aos membros da Família
Fróes da Motta, armazenados e encontrados, até o momento, no CEDOC, a saber: um
testamento de José Borges da Motta (pai do Coronel Agostinho Fróes da Motta), lavrado entre
1912 a 1914, com 18 fólios; um testamento de Dona Maximiana de Almeida Motta (primeira
esposa do Coronel Agostinho Fróes da Motta), datado de 1918, com 9 fólios; dois do Coronel
Agostinho Fróes da Motta, sendo o primeiro um testamento com 9 fólios e, o segundo, um
inventário, subdividido em quatro volumes, ambos documentos totalizando 780 fólios, lavrados
entre 1922 a 1925; dois testamentos de Anna Victória Motta (ainda não se sabe, com precisão,
qual é o grau de parentesco dela com o Coronel Agostinho Fróes da Motta, mas é sabido que
são parentes por conta de terem o mesmo sobrenome e por ela ter sido citada no testamento do
pai do Coronel Agostinho Fróes da Motta), datados de 1933, ambos totalizando 31 fólios; dois
de Dona Albertina da Motta Barretto (filha do Coronel Agostinho Fróes da Motta), sendo o
primeiro lavrado entre 1919 a 1922, uma ação de desquite com 97 fólios, e o segundo, um
testamento datado de 1940 a 1943, com 12 fólios; e dois inventários de Arthur Fróes da Motta
(filho do Coronel Agostinho Fróes da Motta), lavrados entre 1951 a 1959, ambos totalizam 332
fólios.
Descritos os documentos encontrados no CEDOC, cabe salientar a diferença entre
testamento e inventário, haja vista a mescla no uso dos termos, neste trabalho. Juridicamente, o
testamento é um documento formal, elaborado ainda em vida, que garante que a vontade do
testamenteiro seja feita após a sua morte, enquanto que o inventário é um documento em que
consta a arrolação dos bens obtidos durante a vida do inventariante e que serão divididos entre
336
os seus herdeiros, após a abertura do testamento, ou seja, o testamento, de 9 fólios, do Coronel
Agostinho Fróes da Motta foi feito ainda em vida do autor, enquanto que o seu inventário, de
771 fólios, foi produzido após a sua morte, sem deixar de levar em consideração a divisão dos
bens pretendida pelo autor, em seu testamento, para cada um dos seus herdeiros.
Como se pode constatar, dos dez originais encontrados, os que possuem maior
quantidade de fólios são os dois pertencentes ao Coronel Agostinho Fróes da Motta, o que se
justifica pela quantidade de bens arrolados em seu inventário, evidenciando o quão rica era a
família. Além disso, podemos notar que, com exceção de Anna Victória Motta, já temos
precisão do grau de parentesco de todos os envolvidos, o que nos leva a afirmar que o Coronel
Agostinho Fróes da Motta era o centro do seio familiar, não apenas por ser o patriarca, mas,
principalmente, porque é a partir dos seus bens que todos os seus herdeiros prosperam
econômica e socialmente. Vale salientar que, embora o pai do Coronel Agostinho Fróes da
Motta, o senhor José Borges da Motta, tenha deixado um testamento em 1912, cuja
testamenteira foi a senhora Anna Victoria Borges, a prosperidade financeira e o reconhecimento
público do nome da Família Fróes da Motta só ganhou visibilidade no cenário feirense, a partir
da acumulação de riqueza e do cargo político adquirido pelo Coronel Agostinho Fróes da Motta.
Podemos constatar estas informações a partir da leitura da dissertação de mestrado
intitulada Agostinho Fróes da Motta: trajetórias e conquistas de um “homem de cor” em Feira
de Santana (1856-1922) de autoria de Wagner Alves Reis, defendida em 2012, pelo Curso de
Mestrado em História da Universidade Estadual de Feira de Santana. Naquela, encontramos
detalhes da trajetória de vida do Coronel Agostinho Fróes da Motta, desde sua origem simples
até o momento em que ele desponta socialmente como grande comerciante e político, além de
identificarmos uma trajetória entremeada por problemas familiares que influenciaram
diretamente na feitura do seu testamento, enquanto ele ainda estava vivo.
Pensando nisso, elencamos, a seguir, alguns fatos importantes que nos permitem
conhecer a história e um pouco da personalidade do Coronel Agostinho Fróes da Motta. Assim,
sabe-se, de acordo com Reis (2012), que o Coronel Agostinho Fróes da Motta nasceu em 04 de
maio de 1856 e faleceu, aos 66 anos, em 23 de março de 1922 de arteriosclerose. Enquanto
vivo, ele era considerado um “homem de cor”, filho legítimo de José Borges da Motta e Maria
Valéria de Jesus, os quais não se sabe, ao certo, se eram escravos, quando o mandaram para
morar em Feira de Santana, ou se já eram libertos.
Acredita-se que o Coronel Agostinho Fróes da Motta tenha nascido em São Gonçalo
dos Campos, uma pequena cidade do interior da Bahia, localizada a 115 km de Salvador, da
qual saiu, em 1870, enviado por seus pais, em direção à Feira de Santana, onde só adquiriu
337
prestígio social, tornando-se comerciante, intendente, conselheiro municipal e coronel, após 40
anos decorridos de sua saída de sua cidade natal.
No dia 11 de maio de 1875, aos dezenove anos, o Coronel Agostinho Fróes da Motta
casou-se com D. Maximiana de Almeida Motta, com quem teve seis filhos: Albertina, que se
desquitou em 1922 e quem recebeu o apoio financeiro, moral e paternal do seu pai durante todo
o processo judicial de desquite; Arthur, que se tornou um reconhecido farmacêutico na cidade;
Augusto, que foi um reconhecido Capitão da Brigada Nacional; Amália, que foi deserdada pelo
pai por ter desobedecido às suas ordens de não se casar com um determinado rapaz, filho de
pessoas mal quistas pelo Coronel Agostinho Fróes da Motta, por conta de uma briga entre este
e o pai do noivo de Amália; Eduardo, que foi médico e a quem foi dado o direito legal, por parte
de seus pais, de administrar os bens e o zelo pelo nome da família; e Adalgisa, que se desquitou
também e sobre quem poucas informações há nos documentos a que tivemos acesso até o
presente momento. Vale destacar que essas informações foram recolhidas a partir de vários
processos judiciais disponíveis no CEDOC e das informações circuladas, no período em
questão, nas páginas do Jornal Folha do Norte, jornal feirense ainda existente na cidade, cujos
exemplares do início do século XX foram digitalizados e disponibilizados para pesquisa local
no Museu Casa do Sertão, também localizado na Universidade Estadual de Feira de Santana.
Do ponto de vista comercial, pelo fato de Feira de Santana possuir terras férteis à
plantação de fumo e uma significativa presença de negros escravizados ou libertos e um
território geográfico propício à comercialização - e por isso existia um fluxo de mercadorias e
de pessoas entre Feira de Santana e São Gonçalo dos Campos nos séculos XIX e XX - o Coronel
Agostinho Fróes da Motta tornou-se, então, um grande exportador de fumo, além de alguém
que emprestava dinheiro a juros, alugava casas, possuía comércio de gado e atuava como
banqueiro, atividades que favoreceram o crescimento substancial de sua fortuna.
Enquanto político, o Coronel Agostinho Fróes da Motta foi intendente na cidade de Feira
de Santana entre 1914 a 1918 e neste período construiu escolas, na Rua dos Remédios,
destinadas aos pobres, embora se suponha que ele possuía “instrução incompleta”, pois não há
registro documental, até o momento, que ateste o seu nível de escolaridade. Apesar disso, ele
dispensou bastante recursos para a criação de uma comissão que construiu a escola, em 1916,
chamada Grupo Escolar Dr. J.J. Seabra, atual Centro Universitário de Cultura e Arte – CUCA,
localizado no centro de Feira de Santana. Ele também criou mais duas escolas, em 1917: uma
na Rua dos Remédios denominada Escola Municipal, que atualmente se chama Escola Maria
Quitéria; e outra situada na Rua Senhor dos Passos, denominada Escola João Florêncio, atual
338
Arquivo Público Municipal de Feira de Santana, ambas também no centro da cidade, como
podem ser identificadas nas imagens a seguir.
Figura ˗ Antigo Grupo Escolar Dr. J.J. Seabra, atual Centro Universitário de Cultura e Arte –
CUCA
339
Figura ˗ Antiga Escola João Florêncio e atual prédio do Arquivo Público Municipal
340
Figura ˗ Prédio da Vila Fróes da Motta
Além disso, na atual Feira de Santana, há colégios, ruas e avenidas que recebem os
nomes do Coronel Agostinho Fróes da Motta e de seu filho, Eduardo Fróes da Motta, como
homenagens às contribuições que eles fizeram à Feira de Santana de sua época.
Como se pode notar, portanto, a história dos Fróes da Motta é rica em aspectos que nos
levam a conhecer e a compreender a atual conjuntura geográfica e social de Feira de Santana,
haja vista os papéis importantes, enquanto político, comerciante, banqueiro, homem que fazia
caridade às instituições públicas, exercidos pelo Coronel Agostinho Fróes da Motta.
Posto isto, eis algumas características inerentes ao corpus aqui analisado: trata-se de um
documento com 780 fólios, os quais estão divididos em duas partes: um testamento, elaborado
ainda em vida do testamenteiro; e um inventário, produzido após a sua morte. Destes,
apresentamos aqui apenas alguns fólios do primeiro, haja vista a sua dimensão, apenas 9 fólios,
e o teor constante naquele, já que se trata de um testamento elaborado sob a sã consciência do
Coronel Agostinho Fróes da Motta, representando a sua última vontade.
Esse testamento foi lavrado em 1922, em Feira de Santana, e escrito em tinta preta, em
papel almaço e em letra cursiva, cujas partes interessadas são o próprio testamenteiro e o seu
filho caçula, Eduardo Fróes da Motta, como se pode identificar na ficha catalográfica exposta
a seguir.
341
Figura ˗ Ficha catalográfica constante no primeiro fólio do testamento do Coronel Agostinho
Fróes da Motta
342
Quadro ˗ Aspectos codicológicos constantes no testamento do Coronel Agostinho Fróes da
Motta
Rubrica na parte f. 4r
superior direita dos
fólios recto
Selos f. 5v
343
Seta feita por um dos f. 8r
scriptor
Numeração em f. 7r
todos os fólios no
ângulo superior
direito
344
DOS CRITÉRIOS DE EDIÇÃO ADOTADOS ÀS EDIÇÕES FAC-SIMILAR E
SEMIDIPLOMÁTICA DO TESTAMENTO DO CORONEL AGOSTINHO FRÓES DA
MOTTA
Como já se sabe, todo filológo tem autonomia para decidir qual(is) o(s) tipo(s)
de edição apropriado(s) para cada tipo de documento. Sendo assim, ao produzirmos este
trabalho, optamos por realizar as edições fac-similar e semidiplomática do corpus selecionado.
A escolha por essas edições se dá por dois motivos principais: primeiro, por conta do rigor
filológico exigido para cada uma dessas edições; e, segundo, por conta da necessidade de
preservação das informações constantes no documento, antes que o seu suporte material seja
deteriorado completamente, ou seja, com esses tipos de edição, as informações encontradas no
documento serão mantidas ipsis litteris, o que torna o trabalho do filológo confiável, já que os
critérios de edição são definidos prévia e rigorosamente.
Assim, ao realizarmos uma edição fac-similar, estamos partindo do pressuposto de que
haverá apenas a reprodução, através de meios fotomecânicos, da imagem do texto original, ou
seja, neste tipo de edição, o grau de intervenção do editor é zero. Em contrapartida, na edição
semidiplomática, o editor interfere, de fato, no texto, porém com um grau médio de mediação,
já que todas as características textuais são mantidas, havendo, assim, a transcrição de todo o
conteúdo do documento. Assim, notamos que ambos os tipos de edição mantêm a fidedignidade
do texto, sendo as edições destinadas, portanto, a um público especializado, posto que são tipos
de edição apropriados para pessoas que possuem algum tipo de conhecimento acerca da história
da escrita e das dificuldades de leitura inerentes a cada tipo de documento (CAMBRAIA, 2005).
Dito isto, as edições realizadas, neste trabalho, destinam-se ao público especializado, já
que optamos por dois tipos de edição que possuem bastante rigor filológico. Entretanto, antes
de apresentarmos as edições fac-similar e semidiplomática de três fólios do testamento do
Coronel Agostinho Fróes da Motta, listamos, a seguir, os critérios de edição adotados para a
transcrição do documento, adaptados a partir das Normas para transcrição de documentos
345
manuscritos para a história do português do Brasil (NHPB), disponíveis em Megale e Toledo
Neto (2005, p. 147-148):
346
|| 2r.|| Joaõ CarneiroVital <2>
Em nome de Deus, Amem.
Eu, Agostinho Fróes da Motta, achando-me em
perfeita saude e em juizo seguro, mas, desejan-
5 do acautelar alguns interesses que me cumprem
assegurar, delibero sem constrangimento algum
e
de minha livre e expontanea vontade fazer o
meu testamento do modo seguinte:
1ª Verba Declaro que professo a
10 religião Catholica Apostolica Romana, em a
qual
nasci e espero morrer.
2ª Verba Declaro que fui casado,
em primeira nupcias, com Dona Maximiana de
Almei-
da Motta, de cujo casamento sobrevivem as
15 seguintes filhos: Albertina, Arthur, Amalia, Au-
gusto, Eduardo e Adalgisa; e que actualmente
sou casado, em segunda nupcias, com Dona Gui-
lhermina de Almeida, pelo regimem de separa-
ção de bens, conforme escriptura ante_nupcial
20 lavrada nas notas do Tabelliaõ desta cidade, João
Carneiro Vital.
3ª Verba Declaro que sou natural
desta cidade da Feira de Sant’Ama do Estado Fe-
derado da Bahia, e que os meus paes já são fal-
25 lecidos.
4ª Verba Nomeio meus testa-
menteiros, em primeiro lugar, o meu filho doutor
347
Eduardo Fróes da Motta, em segundo lugar, o
meu
amigo Coronel Epephanio José de Souza, e em
tercei-
30 ro lugar, o meu filho Pharmaceutico Arthur
Fróes
da Motta.
5ª Verba Deixo ao testamenteiro
que acceitar a testamentaria a quantia de cinco
contos de reis (5:000$000).
348
35 || 2v.|| 6ª Verba Declaro que minha
filha Amalia, casada, em segunda nupcias, com
o senhor João Grego Fascomy, deixa de ser mi-
nha herdeira, em virtude de um processo de
desher-
dação a que, forçado pela causa constante do
mes-
40 mo processo, fui obrigado a mover contra ella, e
con-
tra a qual a mesma actualmente propõe uma
acção, cuja decisão acha-se pendente do
Superior
Tribunal de Justiça deste Estado; que é de minha
vontade manter tudo quanto venho fazendo a
res-
45 peito.
7ª Verba Declaro que o meu en-
terro deverá ser feito com a devida decencia.
8ª Verba Declaro que cumpri-
dos todos os legados que faço no presente
testamento,
45 e que sahirão da minha meação, para cujo cum-
primento marco o praso de dois annos, deixo o
res-
tante ou remanescente da minha dita meação
ao meu filho Doutor Eduardo Fróes da Motta,
a quem recommendo attender sempre ás preci-
50 sões dos nossos parentes pobres, a seu criterio,
como tenho feito durante a minha vida.
9ª Verba Deixo ao Asylo de Nos-
349
sa Senhora de Lourdes, desta cidade, a quantia
de
dez contos de reis (10:000$000).
55 10ª Verba Deixo á Santa Ca-
sa de Misericordia, desta cidade, a quantia de
dez contos de reis (10:000$000).
11ª Verba Deixo á Igreja de
Nossa Senhora dos Remedios, nesta cidade, a
quan-
60 tia de um conto de reis (1:000$000), para reparos
que
forem necessarios, cuja quantia ficará em po-
der do meu filho Doutor Eduardo Fróes da
Motta,
350
|| 3r.|| Joaõ CarneiroVital <3>
Motta, para ser applicada conforme as necessi-
dades
6 que fôr tendo a referida Igreja, a criterio
5
do mesmo meu filho.
12ª Verba Deixo aos meus
sobrinhos Julieta Magdalena Fructuoso, Maria de
Lourdes, Adalberto Fructuoso e Octavio Fructu-
70 oso, filhos de minha irman Amelia, residente
nesta cidade, casada com Febronio Joaquim
Fructuoso, a quantia de dois contos de reis,
(2:000$000) a cada um.
13ª Verba Deixo aos meus
sobrinhos
7 Joanna, casada com Ambrozio, Izac
5
Aguiar e Hermenegildo de Sant’Anna Aguiar,
todos filhos do meu fallecido irmão Jorge Perei-
ra de Aguiar, a quantia de dois contos de reis
(2:000$000)
a cada um.
14ª8Verba Deixo á minha
0
irman Romana Chagas a quantia de cinco con-
tos de reis (5:000$000).
15ª Verba Deixo á minha
sobrinha Auta Taurinho Aguiar, filha do meu fal-
lecido
8 irmão Floriano Pereira de Aguiar, a quantia
5
de cinco contos de reis (5:000$000); e á minha
sobrinha Fortunata, filha do mesmo meu
fallecido irmão Floriano Pereira de Aguiar, a
351
quantia de dois contos de reis (2:000$000).
16ª9Verba Deixo aos meus
0
afilhados Albertino e Elzira, filho e filha do
meu compadre e amigo Manoel Portugal dos
Santos, a quantia de dois contos de reis
(2:000$000)
a cada um.
17ª9Verba Deixo a quantia
5
de um conto de reis (1:000$000) para ser
distribui-
352
REFERÊNCIAS
ACIOLI, Vera Lúcia Costa. A escrita no Brasil colônia: um guia para leitura de documentos
manuscritos. Recife: Massangana, Editora da Universidade Federal de Pernambuco, 1994.
CAMBRAIA, César Nardelli. Introdução à crítica textual. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
MEGALE, Heitor; TOLEDO NETO, Silvio Almeida (Org.). Por minha letra e sinal:
documentos do ouro do século XVII. Cotia, SP: Ateliê Editorial/ FAPESP, 2005.
SPINA, Segismundo. Introdução à edótica: Crítica textual. 2. ed. São Paulo: Ars Poetica/
Editora da Universidade de São Paulo, 1994.
353
ESTRATÉGIAS DEFENSIVAS DE GUERRA PARA A BAHIA: UM
ESTUDO PALEOGRÁFICO DE OFÍCIO DO SÉCULO XVIII
INTRODUÇÃO
Este artigo se propõe a apresentar notícias sobre a pesquisa com a edição do Ofício D.
Rodrigo de Sousa Coutinho a D. Fernando Jozé de Portugal, datado de 02 de fevereiro de 1800,
disponibilizado pelo acervo digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. O referido
documento que pertence ao acervo de documentos que estão disponíveis no Arquivo Histórico
Ultramarino, em Lisboa, faz parte da nossa pesquisa com Ofícios relativos à Capitania da Bahia,
que fazem referência à história das guerras e revoltas na Bahia. A pesquisa, desenvolvida no
Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia - UFBA, com o auxílio de bolsa PIBIC-
UFBA, está vinculada ao grupo de pesquisa Studia Philologica e ao projeto de pesquisa
“Guerras, revoltas e contextos de violência em documentos de arquivos histórico-culturais:
edição e estudo linguístico”, coordenado pela Profa. Dra. Eliana Brandão.
Nesse contexto a nossa pesquisa tem por objetivo geral realizar o mapeamento, em
forma de inventário documental, seguida da leitura paleográfica de Ofícios relativos à Capitania
da Bahia, referenciados nos catálogos elaborados pelo Projeto Resgate, em 2009, constantes no
Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa, e que fazem referência à história da Bahia,
principalmente durante a vigência do sistema de Capitanias Hereditárias.
Deste modo, selecionamos para a leitura paleográfica o Ofício (1800) de D. Rodrigo de
Sousa Coutinho a D. Fernando Jozé de Portugal, no qual ordena-se que se torne público na
Capitania da Bahia o estado de guerra entre Portugal e Espanha, haja vista que isso propiciaria
tentativas de invasões nas capitanias de Porto Seguro e Ilhéus, por parte dos espanhóis, os quais
poderiam utilizar-se de subterfúgios, entre os quais utilizar a bandeira francesa para adentrar
em território brasileiro, sendo necessário reforçar e adotar novas estratégias de defesa para a
Capitania da Bahia.
Será feito, a partir de pesquisa bibliográfica acerca do tema, um estudo sobre o contexto
histórico, social e militar do documento, demonstrando também as conexões entre a
Paleografia, a História, a Diplomática e a Filologia, com vistas a propiciar uma releitura do
texto que é registrado no Ofício (1800) de D. Rodrigo de Sousa Coutinho a D. Fernando Jozé
354
de Portugal. Além disso, será realizada, a partir da pesquisa documental, a edição
semidiplomática e o estudo paleográfico, considerando as abreviaturas encontradas na espécie
documental, os carimbos e marcações encontrados no documento, bem como a variedade de
escrita e a estrutura da espécie documental.
A Paleografia é designada, a priori, como a ciência que estuda a escrita antiga, ou ainda,
a “evolução” da letra. Contudo, de acordo com Sáez y Castillo (1999, p. 27) “La Paleografía
deja de ser el estudio descontextualizado de los tipos de escritura y pasa a definirse en virtud
de la consideración del hecho escrito como un producto sociocultural cuyo estudio e
interpretación provee de un conocimiento más rico del pasado y el presente.” Assim, a
Paleografia não se preocupará apenas com a escrita de forma isolada, ao contrário,
hodiernamente a Paleografia se ocupará desde o signo a escrita propriamente dita a partir de
uma perspectiva histórica e cultural. Tão logo, a Paleografia estudará não só o desenvolvimento
da escrita, mas as técnicas de escritura, modos de produção, suportes e produtos escritos,
visando compreender o que está escrito, quem, quando, onde, como e por que se escreveu algo.
Com isso,
Outrossim, seja qual for o conceito adotado pela Paleografia, seja como arte ou ciência,
ambos coadunam em uma coisa: a Paleografia é uma técnica de decifração de manuscrito, a
qual se relaciona com várias outras ciências que também se ocupam do texto, seja de forma
analítica, complementar ou subsidiária, ratificando-o como um patrimônio histórico-cultural,
social e político. Sendo assim, nas palavras de Berwanger e Leal (2008), são várias as conexões
da Paleografia, das quais destacamos as principais, para o estudo paleográfico em questão:
No ano de 1500, no dia de 22 de abril, dá-se o achado do Brasil pelos portugueses. Numa
tentativa de reerguer a economia de Portugal, o Brasil que até então era ocupado pelos índios é
invadido, sendo subjugado a condição de colônia portuguesa, por aproximadamente quatro
séculos. É fato, que as terras brasileiras eram ricas em recursos naturais, além de ser muito
propicia a agricultura e pecuária, além do mais, devido a sua topografia permitia comércios
nacionais e internacionais seja por via terrestre ou marítima. Sendo assim, apesar de o Tratado
de Tordesilhas, assinado em 1494 pela Espanha e por Portugal, conceder as terras brasileiras
por direito a Portugal, muitos eram os países que também queriam se aproveitar das riquezas
do Brasil, tentando por diversas vezes invadi-lo e se apossar de suas terras, apenas na Bahia há
notícias de invasões francesas, holandesas e espanholas, fora os contrabandos e roubos que
ocorriam em sua costa muito extensa.
Da mesma forma, Portugal como colonizador precisava pensar em uma estratégia de
defesa da região, bem como de garantir-lhe o direito ao usufruto e gozo das terras, sendo
beneficiário primaz dos recursos ali produzidos, tanto para comercializar, quanto para utilizar-
356
se de meios para sua própria subsistência. Nas palavras de Del Priore e Venâncio (2010, p. 41),
“povoar o Brasil fazia-se urgente. A acintosa presença francesa obrigava uma tomada de
posição.” Surge então o sistema de Capitanias Hereditárias, visando povoar e ocupar o território
brasileiro. Quanto a isso, destaca Nunes (2013):
[...] foram doadas 14 capitanias a 12 donatários, que por sua conta, deveriam
povoá-las e explorá-las procurando, sobretudo metais preciosos tal como os
encontrados do lado espanhol da América. [...] A capitania se compunha, no
entanto, de dois institutos: o público, que poderia ser revogado por caber ao rei
gerir a administração do reino, e o patrimonial, vitalício e hereditário,
inviolável ao próprio rei, que mais tarde, retomou os direitos compreendidos
neste instituto por compra, renúncia dos proprietários ou justo confisco
(NUNES, 2013, p.59)
Sendo assim, “quanto à relação entre os assuntos políticos e guerra é a sua concepção
trinitária: a violência primordial; o jogo das probabilidades e do acaso; e subordinação à
política”. Portanto, partindo dessa premissa, e como critério de subsistência para o próprio
Estado Português, se utilizando da subordinação política das chamadas Capitanias, D. Coutinho
traça uma estratégia de defesa que atua de forma preventiva como: aumento de número de
soldados, jogos de probabilidades do inimigo (uso de bandeiras de outros países), e de forma
defensiva, isto é, o uso da força caso esses alcancem êxito em suas invasões. No entanto, ciente
da deficiência de suas tropas e da demora em que se cheguem reforços nas terras brasileiras, a
Coroa Portuguesa pensando nessas situações, já havia previamente estabelecido organizações
e instituições que a auxiliassem nos casos de guerra e revoltas que envolvessem ou necessitem
de auxílio do Brasil. Com isso as instruções são encaminhadas a D. Fernando Capitão-general,
como forma de orientação para que tomasse as devidas providências.
357
Para dar conta da administração da colônia brasileira, foram criadas, a partir
do Governo-Geral, instituições e órgãos[...]Dentre as autoridades que dirigiam
tais instituições estavam os governadores de capitania, subordinados ao
governador-geral, ao qual, a partida transferência da sede do governo da Bahia
para o Rio de Janeiro, em 1763, o rei outorgava o título de Vice-Rei e Capitão
General do Mar e Terra do Estado do Brasil, passando a encarnar mesmo de
longe, a pessoa do monarca do português. [...] o Militar, composto por tropas
de linha, das milícias e dos corpos de ordenança.” (SANTIAGO-ALMEIDA,
ANDRADE, BARONAS, 2014, p.20)
Fonte: https://mapas.ibge.gov.br/images/mapas/mapaantigo.gif
Todavia, administrar tais capitanias não era uma tarefa fácil, ou seja, por estarem
situadasas em regiões, nas quais habitavam os índios, donos e proprietários anteriormente
dessas terras, as Capitanias de Ilhéus e Porto Seguro eram invadidas por diversas vezes, pelos
358
grupos indígenas dos Aymorés, o que ensejava para seus donatários um gasto muito grande e
um sentimento na coroa de que estes desproviam de recursos suficientes para defendê-la.
Com isso, tanto Porto Seguro quanto Ilhéus, em meados do século XVIII, não mais
pertenceriam aos seus donatários, mas ao Rei que passaria a ser o responsável por defender e
administrar essas terras, agora de forma direta. Quanto a isso Tavares (2008, p. 95) aduz que
“na segunda metade do século XVIII, com a incorporação das capitanias hereditárias dos Ilhéus
e de Porto Seguro à capitania da Coroa, a da Bahia era descrita compreendendo quatro
comarcas: Bahia, Recôncavo, Sertão Baixo e Sertão de Cima”.
Salienta-se que, as duas Capitanias eram ricas em madeira, pescado e farinha, além de
outras atividades econômicas e extrativistas, sendo alvo por diversas vezes de tentativas de
invasões de nativos, colonos e estrangeiros. Elas exerciam papéis importantes para o
abastecimento não só do Recôncavo da Bahia, mas do Brasil e de Portugal, desde a produção
de alimentos a expansão de seus comércios nacionais e internacionais, o que influenciava
diretamente na forma de gestão e adoção de medidas por parte da administração colonial, a qual
de forma exacerbada e imperativa, buscava regulá-las conforme seus interesses políticos e
econômicos.
De certo que outras atividades econômicas tiveram lugar na história dos dois
primeiros séculos da antiga Capitania de Porto Seguro. Em diferentes
conjunturas e com diferentes dimensões, o fabrico da farinha, a pesca da
garoupa e a produção de milho, feijão e algodão ganharam maior ou menor
359
destaque no rol das atividades econômicas desenvolvidas na região.
(CANCELA, 2012, p.84)
Quanto ao sistema militar português aduz Gonçalves “O sistema militar português era
baseado nas Ordenanças, que obrigavam a população a manejar armas para sustentar o
patrimônio da Coroa.” (GONÇALVES, 2017, p.212). No que diz respeito ao alistamento do
povo brasileiro, salienta-se que o efetivo local, por muitas vezes era formado por pessoas que
não tinham preparo para o combate, pois segundo Oliveira (2004)
Ressalta-se que o Terço fora instituído após a as guerras holandesas, na qual a Coroa
Portuguesa já havia perdido parte de seu território, obrigando a cada região que lhe remanesceu
a doar 1/3 de indivíduos locais, para uma organização militar. No entanto, tais tropas ficavam
responsáveis por uma defesa local, o que justifica um descaso por parte da Coroa em se
empenhar para treiná-los, além do que isso decorria em gastos. Ademais, em casos de invasões
estrangeiras ou revoltas, a Coroa tinha como uma de suas estratégias, conforme relatado no
Ofício de D. Coutinho, o envio de reforço da Força Naval Portuguesa, como também o auxílio
de seus aliados mais próximos, que neste caso eram as capitanias de Minas Gerais e Rio Doce,
para aumentar o número de soldados.
Quanto à participação das Capitanias neste Estado de Guerra entre Espanha e Portugal,
temos que:
[...] a guerra é um método para proteger interesses, alcançar objetivos e que
tem uma natureza intrinsecamente política. Por esta razão, é também aplicável
a todos os grupos ou centros de decisão política para além do Estado,
colocando, todavia, a política no centro da guerra. (GARCIA e LOUSADA,
2013; p.173).
360
Deste modo, numa análise histórica do Ofício de D. Rodrigo percebe-se que a
preocupação da Coroa Portuguesa em comunicar o estado de guerra que vive com a Espanha,
na qual essa poderia se utilizar das bandeiras francesas para poder aportar e invadir as terras
brasileiras, haja vista que por possuir terras próximas às portuguesas (Maranhão e Guiana
Francesa), a França tinha autorização para navegar pelas costas portuguesas. Salienta-se, que
as capitanias de Porto Seguro e Ilhéus, também estavam sob a tutela da Coroa Portuguesa no
século XVIII. Ademais, traçar estratégias de defesa e medidas para possíveis invasões era uma
competência de D. Coutinho, Ministro dos negócios estrangeiros e da Guerra, enquanto pô-las
em prática era uma obrigação do Governador e Capitão-Geral D. Fernando. Defender Porto
Seguro e Ilhéus era defender os interesses da Coroa, bem como garantir-lhes a subsistência
econômica e política da localidade.
361
Imagem - Fac-símile do Ofício de D. Rodrigo Coutinho (1800)
362
7) Letra ou palavra não legível por deterioração justificam intervenção do editor na forma do
item anterior, com a indicação entre colchetes: [ilegível];
8) A divisão das linhas do documento original será preservada, ao longo do texto, na edição;
9) A indicação da numeração do fólio é feita na parte superior do texto, indicando se recto ou
verso, ||1r.||;
10) Na transcrição, as linhas serão numeradas de cinco em cinco a partir da quinta linha. Essa
numeração será encontrada à margem direita da mancha, à esquerda do leitor;
11) As assinaturas simples ou as rubricas serão sublinhadas.
10) Na edição, as linhas serão numeradas de cinco em cinco a partir da quinta linha. Essa
numeração será encontrada à margem direita da mancha, à esquerda do leitor;
11) As assinaturas simples ou as rubricas serão sublinhadas.
TRANSCRIÇÃO DO DOCUMENTO
||1r.||
363
||1v.||
pa, que cortará ao Inimigo todas as Communicações
todos os meios de ter Provimentos, aos Pontos Centr[ais] Rasgadura na borda esquerda
do documento: [ais]
em que possa encorpora se com as Forças que chega
das outras Capitanias; e reunidas todas em numero [su] [su]
5 periôr ao Inimigo, poderá VossaSenhoria atacâ-lo, e , sem lh[e] Abreviatura: V.S.a Rasgadura
na borda esquerda do
documento: [e]
dar quartel, pô-lo em total derrota e aniquillâ[-lo] [-lo]
de maneira que por huma vez se desgoste para sem[pre] Rasgadura na borda esquerda
do documento: [pre]
de similhantes tentativas.
DeusGuarde aVossaSenhoria Palacio deQueluz em 2 de F[eve] Abreviaturas: DsG e e V.S.a
Rasgadura na borda esquerda
do documento: [eve]
10 reiro de 1800.
D. Rodrigo de Souza Coutinho Abreviatura: D. e uma
assinatura
Senhor Dom Fernando Jozé Abreviaturas: Sor e D.
de Portugal.
v. Indicação do verso
COMENTÁRIOS PALEOGRÁFICOS
364
catalogação do Ofício na seção de manuscritos da Biblioteca, pois de forma digital, pode-se
encontrá-lo, em PDF, pelo seguinte endereço:
<http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_manuscritos/mssp0000172/mssp000017
2.pdf>.
No que pese a coloração da tinta, não se faz possível definir com exactidão, haja vista
que o manuscrito está em uma plataforma digital. No entanto, há um pingo de tinta no verso do
documento acima do endereçamento feito a D. Fernando de Jozé de Portugal, bem como dois
borrões um na palavra <desembar[q]ue> (f. 1r, l. 20) e outro no nome <Fernando> (f. 1v - l.12),
os quais apresentam uma colaração escura, mais aproximada para a cor preta.
365
Sobre as Abreviaturas
A abreviatura é um modo de grafar com omissão de certas letras ou sílabas, seja por
supressão ou suspensão, que podem ocorrer tanto no meio da palavra quanto em seu final. Tal
recurso estilístico é muito utilizado para economia de tempo e espaço. No Ofício de D. Rodrigo
Coutinho (1800), nota-se que este fez uso por onze vezes desse recurso, sendo a grande maioria
de abreviaturas com letra sobrescritas. Ressalta-se que a abreviatura < V.S.a > fora a mais
utilizada no texto, aparecendo por oito vezes. Destarte, conforme a classificação de abreviaturas
apresentada por Flexor (1991, p.13-14), foram encontradas no Ofício em análise duas
classificações diferentes: abreviatura com letras sobrescrita e sigla simples. Vejamos:
ABREVIATURA IMAGEM DESDOBRAMENTO CLASSIFICAÇÃO LINHA
1v.: L. 9.
Dsg e Deusguarde Abreviatura com
letras sobrescritas
D. 1v.: L. 11 e L.
Dom Sigla Simples 12
O alfabeto utilizado por Dom Rodrigo foi o alfabeto latino. Salienta-se que por se tratar
de um manuscrito do século XVIII, escrito em português, não se encontrara as letras
estrangeiras K, W, Y, hodiernamente integradas ao alfabeto brasileiro. Ademais, no que diz
concerne às letras maiúsculas, apenas as letras: Ç, H, U, X e Z, não foram detectadas, sendo
devidamente sinalizadas com o asterisco (*). No que diz respeito às letras minúsculas todas
foram encontradas. Salienta-se que nas letras ramistas <I> e <J> maiúsculas, há semelhança,
no entanto, a letra <j> apresenta uma fechadura ao contrário da vogal <i>, por esse motivo,
366
foram tratadas como letras diversas. O campo linha de ocorrência, a título de ilustração, foram
preenchidas apenas uma linha de ocorrência, entretanto, as letras aparecem mais vezes em todo
o texto.
C c 1r. L.3
Ç * ç 1r. L.5
D d 1v. L.12
E e 1r. L.5
I i 1r. L.20
L l
1r. L.17
M m 1r. L.18
367
O o 1r. L.1 e 1r. L.18/1r.
L.1
R r 1r. L.1
T t 1r. L.22
Os Tipos de Pontuação
No que tange a pontuação, por ser um tipo documental, que em regra, exige uma
formalidade na escrita, foram encontradas no Ofício de D. Rodrigo (1800), nove tipos de
pontuações diferentes, são elas:
PONTUAÇÃO IMAGEM TIPO DE PONTUAÇÃO LINHA
368
, Vírgula 1r. L.2
3.3.4 Os Números
No que se refere aos números, foram encontrados apenas os ilustrados abaixo,
constantes na data cronológica do documento, a partir do texto, observa-se:
0 1v L.10
1 1v L.10
2 1v L.9
8 1v L.10
O ofício, em regra, é de gênero textual administrativo, o qual é muito utilizado para assuntos
técnicos e burocráticos, dando a conhecer diversas práticas administrativas adotadas pela
Administração Pública, em suas relações hierárquicas.
ANÁLISE DIPLOMÁTICA
369
O Ofício, no que diz respeito a sua espécie documental, é classificado por Bellotto
(2002) como um documento não diplomático. Conquanto, no texto do discurso de um Ofício é
possível notar-se uma estrutura já estabelecida, mormente usada em documentos diplomáticos,
a qual é dividida em três partes: protocolo inicial, o texto propriamente dito e o protocolo final.
Segundo Bellotto (2002, p. 39) o protocolo inicial é constituído por: invocação, titulação,
direção ou endereço e saudação; o texto propriamente dito do preâmbulo, notificação,
dispositivo, sanção e cláusulas finais; e o protocolo final por subscrição ou assinatura, datação
e precação. Salienta-se que nem todas às partes diplomáticas estarão presentes em todos os
documentos, bem como a sequência apresentada, também poderá sofrer alguma modificação.
Outrossim, percebemos que no Ofício de D. Rodrigo Coutinho Souza (1800), o protocolo inicial
está ao final do documento. Analisemos quanto a sua estrutura e a sequência de dados:
Protocolo Inicial:
Senhor [vocativo]
Dom [titulação]
Fernando Jozé de Portugal. [direção]
Texto:
Sua Alteza Real
náo deichará de mandar Forças superiores Suas e de Seus
Aliados ao Lugar que fôr atacado, logo que conste que
da Europa parta alguma Força Naval: O Mesmo
Senhor recommenda mui particularmente a VossaSenhoria
que primeiro procure impedir o desembar[q]ue do Inimi=
go em qualquer Ponto que ataque; mas se infelizmente se
náo puder assim executar, então fará VossaSenhoria retirar a Tro= [informativo]
pa, que cortará ao Inimigo todas as Communicações
todos os meios de ter Provimentos, aos Pontos Centr[ais]
em que possa encorpora se com as Forças que chega
das outras Capitanias; e reunidas todas em numero [su]
periôr ao Inimigo, poderá VossaSenhoria atacâ-lo, e , sem lh[e]
dar quartel, pô-lo em total derrota e aniquillâ[-lo]
de maneira que por huma vez se desgoste para sem[pre]
de similhantes tentativas.
Protocolo Final:
CONSIDERAÇÕES FINAIS
371
trabalhar com manuscrito é mantê-lo vivo como memória e história, é tornar o tempo não linear,
é recordar o que, até então, estava esquecido.
REFERÊNCIAS
GARCIA. Francisco Proença Garcia; LOUSADA. Abílio Pires Lousada (Orgs). Da História
Militar e da Estratégia: Estudo de homenagem ao General Loureiro dos Santos. Lisboa:
Edição Exército Português Estado-Maior do Exército, 2013.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Tradução Bernardo Leitão ... [et al.]. Campinas, SP
Editora da UNICAMP, 1990.
372
PEIXOTO. Afrânio. História do Brasil. 2ª edição. Biblioteca do Espírito Moderno - Série 3.ª
- História e Biografia. São Paulo: Cia. Editora Nacional – 1944
TAVARES, Luís Henrique Dias. História da Bahia. 11 ed. rev. e ampl. São Paulo:
EDUNESP; Salvador: EDUFBA, 2008.
373
EULÁLIO MOTTA TROVADOR: EDIÇÃO DA TROVA FATALISMO
INTRODUÇÃO
Entre o campo e a cidade, Eulálio Motta compôs suas trovas, que, juntamente com os
causos e com os cordéis, demonstram o interesse do escritor para a literatura tida como popular.
Segundo Barreiros (2012), as primeiras composições de Eulálio Motta, escritas ainda em
Mundo Novo, foram os “versos rimados ao sabor das cantigas populares, carregados de
sonoridade e ritmo” (BARREIROS, 2012, p. 62) que, “[...] segundo anotações em diários,
Eulálio Motta os recitava em público, causando admiração, principalmente entre as moças”
(BARREIROS, 2012, p. 62). Por ter passado grande parte de sua vida em um ambiente
sertanejo, o escritor manteve contato direto com as crenças, os costumes e com o cotidiano
local. Tendo em vista a circulação de suas trovas e a participação da população para a produção
das mesmas, ainda que de forma indireta, observa-se, em suas trovas, as relações do poeta com
a comunidade a que estava inserido.
Ao compor suas trovas, Eulálio Motta assumiu um perfil de trovador, cantando em suas
redondilhas o drama amoroso do eu lírico, temática basilar das trovas. Entremeados ao amor,
observa-se em seus versos recortes de imagens do campo e da metrópole, bem como fragmentos
lembranças da infância do e juventude do escritor. A temática amorosa atravessa toda a
produção de trovas do poeta, mas nota-se também a presença de outras temáticas em suas
trovas, principalmente nas trovas escritas em meados da década de 1970, em que o escritor
utiliza seus versos para tratar de problemas sociais e fazer reivindicações de melhorias para sua
cidade natal. Para Barreiros,
375
[...] foi pelo fato de Eulálio Motta ter escolhido a escrita como uma forma de dialogar
com o mundo e expressar a sua existência, que se considera a sua produção literária e
suas anotações em diários com fontes para traçar a sua biografia ou uma de suas
possíveis história de vida. (BARREIROS, 2012, p. 30).
Eulálio de Miranda Motta preocupou-se em arquivar a sua própria vida. Ele reuniu
um grande volume de papéis, cadernos, diários, cadernetas, cartas, fotografias, livros
e objetos pessoais que contam a sua história. Se não fossem estes “documentos”, seria
muito difícil compor o mosaico da vida desse escritor, já que ele se manteve num
profundo ostracismo, não se casou e não teve filhos. O espólio constitui-se, quase que
exclusivamente, na única fonte de informação sobre a sua vida. Portanto, o valor de
cada peça que compõe o conjunto de documentos que denominamos “espólio de
Eulálio Motta” é indispensável à preservação da memória do escritor. (BARREIROS,
2012, p. 93).
Nos três livros de poesias, publicados pelo autor, Ilusões que passaram... (1931), Alma
Enferma (1933), e Canções de Meu Caminho 1ª e 2ª ed (1948 e 1983?), constam trovas em e
outros tipos de poemas. Também em livros com sua participação, o poeta divulgou suas trovas,
a exemplo de: Poetas da Bahia e Minas (Antologia) (1981), Mundo Novo, Nossa Terra, Nossa
376
Gente. (1998), Suplementando O Quadriolê de Cordel (1982), Poetas do Brasil/V.2 (1981) e
Poetas do Brasil/V.4 (1982). Em sua carreira de jornalista, Eulálio Motta aproveitou o espaço
de colunista para apresentar, não apenas suas crônicas e textos de opinião, como também seus
poemas, dentre os quais verifica-se a produção das trovas. Além do mais, publicou suas trovas
também em panfletos.
Há no acervo, quinze cadernos com textos manuscritos e onze desses cadernos
apresentam trovas manuscritas, incluindo uma caderneta de anotações, que além de conter
testemunho de trovas, possui anotações feitas pelo escritor sobre o envio de suas trovas para
seus leitores através de cartas. Em meio a esses cadernos, destaca-se Meu Caderno de Trovas
por ser inteiramente dedicado à escrita das trovas, no qual, cuidadosamente, o poeta organizou
e reuniu suas trovas escritas desde 1920 até 1987.
Verifica-se um grande número de trovas nos manuscritos e datiloscritos avulsos, bem
como em sua correspondência, nota-se um número significativo de trovas e também de
anotações referentes às mesmas, como a opinião de seus leitores e correspondentes. Das cartas
que compõem sua correspondência, ressalta-se a carta de Carlos Ribeiro Rocha para Eulálio
Motta. Categorizada como Correspondência passiva, datada de “outubro de 1981” e remetida
da cidade de Xique Xique - Bahia. Essa carta aponta para as relações que o escritor Eulálio
Motta manteve com outros trovadores, pois nela Carlos Rocha apresenta quatro trovas de sua
autoria, feitas em homenagem a Eulálio Motta, que, segundo ele, foram publicadas no segundo
volume de Poetas do Brasil/81.
377
em “POETAS DO BRASIL”.
(ROCHA, 1981, EB1. 18. CV1. 17. 002.109 grifo do autor).
Nesses versos, Carlos Ribeiro Rocha trata da escrita de Eulálio Motta e apresenta, em
meio aos versos, os nomes de alguns poemas de Eulálio Motta. Cabe ressaltar que, no segundo
volume de Poetas do Brasil/81 e no quarto volume de Poetas do Brasil/82, constam poemas de
autoria de Eulálio Motta, livro organizado por Aparício Fernandes, nome de destaque nos
estudos sobre trovas e sobre literatura popular.
Dessa forma, compreende-se que a correspondência que integra o acervo do escritor
revela seus contatos intelectuais e pessoais. Nelas pode-se acessar, dentre outras coisas,
informações acerca de sua produção literária. As trovas em homenagem a Eulálio Motta
retratam o amor tão presente na maioria de suas trovas, inclusive, alguns títulos que Carlos
Ribeiro destaca na referida carta são de trovas que fazem parte do Meu Caderno de Trovas.
Ainda nessa carta Carlos Rocha agradece a Eulálio Motta por uma dedicatória, porém,
esse assunto não fica muito claro na carta, mas pode-se inferir que, possivelmente, Eulálio
Motta tenha homenageado o amigo em alguma de suas publicações, até então não encontrada
no acervo. Ainda, na mesma carta, o remetente diz enviar uma cópia de uma reportagem sua
sobre Trova, Vida e Amor, que, segundo ele, seria do interesse de Eulálio Motta e, ao final da
carta, exibe mais quatro trovas de sua autoria apresentando-as da seguinte forma: “Para não
perder o velho hábito, aí vão minhas trovas mais recentes”. (ROCHA, 1981). Portanto, pode-se
deduzir que havia entre eles o hábito de compartilhar suas produções. Assim, Borges e Souza
(2012) destacam a relevância do estudo de cada texto correlacionado com seu entorno:
Cada texto é um problema particular e, como tal, deve ser estudado pelo crítico
textual, o filólogo, a partir do conhecimento e da experiência necessário ao exame de
tradição textual. Ao se fazer a opção pela edição de um texto, seja romance, novela,
poema, texto teatral, ou qualquer que seja o gênero textual, deve-se levar em conta
seu processo de produção e de transmissão, considerando as peculiaridades que os
testemunhos apresentam. [...] (BORGES; SOUZA, 2012, p. 23).
109
Numeração que se refere ao código catalográfico do documento.
378
Diante do exposto, atesta-se a imagem de Eulálio Motta trovador, a partir da visível presença
das trovas em sua escrita, testemunhada pela documentação do acervo, revelando a predileção
do escritor para este gênero literário. Os documentos do acervo também apontam para o
reconhecimento da figura do escritor Eulálio Motta como trovador, como se observa no artigo
publicado no suplemento Vida Literária do jornal A Manhã do Rio de Janeiro, em 24 de abril
de 1949, por Bráulio Alves Filho:
UM POETA DESCONHECIDO
Os olhos da poesia e literatura andam embevecidas com os grandes centros, só
conhecendo o que a eles afluem ou neles vivem. Torna-se óbvio, portanto, procurar
volvê-los a paragens longínguas, encaminhá-los para o sertão brasileiro que também
é Brasil.
Lá vive o ignoto trovador. Sentindo a doçura de viver mais em contato com a natureza
e usufruindo o prazer das coisas simples e quotidianas, eis que, a circustancia faz
nascer o poeta que dotado naturalmente de espírito mais elevado, tendo mais
facilidade no manusear a pena que manipular com o seu laboratório farmacêutico,
escreve os seus versos exteriorizando sentimentos recônditos de sua alma. [...]
Necessário se torna, portanto, que a poesia brasileira procure incluir entre os nomes
dos seus inúmeros associados, mas um: o farmacêutico Eulalio de Miranda Motta.
Nos sertões da Bahia, berço de grandes homens do Brasil, no Município de Mundo
Novo, lá vive êle procurando traduzir a mágoa do caboclo através dos seus poemas e
as suas também. [...] Ele não teve a felicidade de ser gerado num meio onde a
publicidade e divulgação o cercassem imediatamente. (ALVES FILHO, 1949, p. 1).
Nas palavras de Bráulio Alves Filho, fica evidente seu anseio para que seja reconhecida
a poesia do trovador Eulálio Motta, revelando seu apreço pelo poeta. Pode-se observar que tanto
a carta de Carlos Ribeiro como o artigo de Bráulio Alves Filho, junto a outros documentos do
acervo, representam a construção de uma memória coletiva. Não se trata apenas da memória
individual do escritor, mas também de suas relações com a sociedade. Seu acervo contribui para
a construção de uma memória cultural e literária da população de Mundo Novo.
As trovas escritas por Eulálio Motta, como mencionado, estão presentes nos mais
variados documentos e suportes presentes no seu acervo. Em muitos casos, o escritor lança mão
de suas trovas para integrá-las em outros textos, mais especificamente, em outros poemas, que
não mais atendem às características estruturais da trova, que por sua vez, consiste num poema
autônomo, de forma fixa, composto por quatro versos em redondilha maior e com rimas
dispostas nos esquemas: ABAB ou ABCB.
379
A trova Fatalismo, por sua vez, é um dos exemplos de trova que teve seus versos
reescritos em outros poemas. Assim, os versos que a compõe possuem sete testemunhos,
identificados no acervo até o momento. Desses sete testemunhos, dois correspondem à trova,
os demais testemunhos, se tratam de poemas em que os versos da trova Fatalismo reescritos
como foram reescritos como parte das mesmas. Esse processo de reescrita, em que se verifica
nitidamente o processo de intertextualidade aponta para a necessidade de pensar a edição que
contemple tais particularidades.
Desse modo, com base nos estudos filológicos da Crítica Textual e Crítica Genética,
para a edição da trova Fatalismo, utilizou-se o método da edição crítica em perspectiva
genética, orientada por dois objetivos básicos: o estabelecimento do texto que mais se aproxime
da última vontade do autor e a documentação do processo de sua composição. Ou seja, a
proposta de edição que se pretende realizar baseia-se no método de Edição Crítica, porém com
diferenciada atenção para o estudo da gênese do texto, buscando evidenciar o processo criativo
da trova Fatalismo.
Segundo Willemart (2016, p.38), a cada vez se torna mais latente a necessidade de
apresentar edições críticas que adentrem no campo da Crítica Genética.
Para Grésillon (2007), a Crítica Genética empreende um olhar sobre a literatura voltado
para o texto em processo, a percebe como uma atividade em constante movimento, seu método
consiste no desnudamento do texto, para isso, o editor lança mão de diferentes hipóteses sobre
as operações escriturais. O manuscrito, objeto de estudo da Crítica Genética, revela a
dinamicidade intrínseca ao momento da criação literária. Ao tratar do surgimento da Crítica
Genética, seu método, objeto e ponto de vista, Hay (2007) diz o seguinte:
[...] Ela nasceu observando como os escritores escrevem e o que escrevem. Esse
procedimento tão simples em seu princípio acarreta, entretanto, uma mudança de
objeto, de método e de ponto de vista crítico. Nesse sentido ela é, e de maneira inédita,
“uma via de acesso à literatura”. Mudança de objeto: a genética se deu um objeto
visível e específico, a escritura, etapa central de um processo de criação, aquela em
que o espírito se apropria dos instrumentos que lhe permitem exprimir-se no tempo
380
da escritura e no espaço da página; aquela em que suas operações se materializam em
inscrições observáveis, quer pertençam ou não à linguagem articulada. Mudança de
método: em vez de se confrontar com um texto, de interrogar uma obra sobre os seus
efeitos de leitura, o estudo genético procura apreendê-la no movimento que a
engendrou; compreendê-la através de seu devir, concebê-la na plenitude de suas
significações possíveis. Mudança de ponto de vista: após haver renunciado a “ler nas
almas”, a reviver a experiência interior do escritor, a genética pôde se dar uma posição
crítica autônoma. Ela visa aos processos de escritura, na realidade de sua execução,
no testemunho de um traço escritural (HAY, 2007, p. 84-85).
Nessa perspectiva, Wilemart (2009) salienta que a Crítica Genética busca não somente
classificar, descrever e decifrar os manuscritos e detectar suas variantes, mas compreender os
mecanismos de criação, as relações entre o pensamento e os rascunhos. Para ele, “[...] o objeto
da crítica genética se concentra no estudo dos processos de criação que podem ser captados
tanto nos rascunhos, croquis ou esboços [...].” (WILLEMART, 2009, p. 79-80).
Observa-se que a Crítica Genética considera o texto a partir de sua dinamicidade, não como um
elemento estável e estático. Compreende as distintas redações de uma mesma obra como etapas
de um processo, cada uma com singularidades que necessitam ser compreendidas tanto em suas
relações com os demais elementos do acervo, quanto em sua individualidade, considerando sua
autonomia. Dessa forma, evidenciam-se os bastidores da criação, os percursos que o texto
percorre em sua feitura. Como afirma Hay (2007),
Assim, lança-se mão de uma atividade de edição que busque trilhar os caminhos até
chegar-se à obra, nesse caso empreende-se uma edição crítica em perspectiva genética, uma
prática editorial que articula a metodologia da Crítica Textual e da Crítica Genética. Segundo
Borges e Souza (2012),
381
Portanto, a edição crítica em perspectiva genética é concebida a partir da combinação
de metodologias afins do campo da Filologia, nesse caso da Crítica Textual e Crítica Genética,
que embora apresentem perspectivas distintas acerca do texto, fazem-se complementárias de
acordo com as necessidades de edição de uma obra.
382
f) A pontuação do texto foi mantida conforme apresentada no texto de base;
g) Atualizou-se a ortografia das palavras conforme norma vigente na língua portuguesa,
indicando no aparato a ortografia do texto;
h) Apresentaram-se palavras de origem estrangeira em itálico;
i) Serão utilizadas notas de pé de página para:
I.) Indicar os testemunhos utilizados na edição como os seus respectivos códigos;
II.) Explicar as interferências do editor;
III.) Apresentar informações complementares.
EDIÇÃO
383
O poema Conjecturas, por sua vez foi publicado em dois livros, um com sua
participação, organizado pelo também trovador Aparício Fernandes, Anuário Poetas do Brasil,
quarta edição, publicado em 1982 e outro de autoria do próprio escritor Eulálio Motta, Canções
do meu caminho 2ª ed., o qual, a partir das fontes documentais, conjectura-se ter sido publicado
em 1983.
Ainda compondo a gama de testemunhos estão a trova Fatalismo, localizada no caderno
manuscrito inédito Meu Caderno de Trovas e o poema Conjecturas, localizado também num
caderno manuscrito, intitulado Canções do meu caminho 3ª edição. De acordo com a datação
presente em ambos os cadernos, observa-se que esses dois últimos testemunhos são
contemporâneos entre si.
Observa-se a partir dos testemunhos que Eulálio Motta reescreveu seu texto inúmeras
vezes, não com o intuito de apresentar correções ou passar a limpo suas versões, e sim utilizar
seus versos em projetos de escrita distintos, com características e objetivos específicos. Dessa
maneira, compreende-se que a reescrita desses versos corresponde aos anseios do escritor em
fazer circular sua produção poética.
FI
MOTTA, Eulálio. Canções do meu caminho. Serrinha: Tipografia d’O Serrinhense, 1948, p.
23.
Trova Fatalismo, localizada na primeira edição do livro de poesias Canções do meu
caminho, publicado em 1948, LCMC1 - p. 23. O livro encontra-se em bom estado de
conservação, apresentando poucas manchas de desgaste provocadas pela ação do tempo. O
texto está impresso em preto. Na páginaconsta apenas a trova Fatalismo, composta por quatro
versos recuados à margem esquerda e iniciados em letra maiúscula. O título também está
recuado à margem esquerda e em maiúscula.
No terceiro verso verifica-se a supressão da vogal a na primeira sílaba da preposição
para. Essa supressão ocorre em função da métrica, para que se possa manter o verso em
redondilha maior. No verso quatro observa-se que o verbo nascer, conjugado na primeira
pessoa do singular do tempo pretérito perfeito do modo indicativo – nasci – está acentuado:
nascí.
384
CD
Datiloscrito do poema Conjecturas, localizado em Datiloscritos de Canções do meu
caminho 2ª ed. - s.d >1948, <1982 – DCM2, encontra-se em bom estado de conservação, texto
datilografado em fita preta, composto por quinze versos, agrupados em três estrofes, dentre as
quais a última estrofe da sequência corresponde à variante dos versos de Fatalismo,
apresentando modificação apenas na acentuação gráfica do verbo nascer, que nesse testemunho
não se encontra acentuado. Os versos estão alinhados à margem esquerda, o título está
centralizado, em maiúscula e sublinhado por linhas interrompidas.
DM
Manuscrito do poema Destinos, localizado no caderno Luzes do Crepúsculo, o qual,
devido a algumas datas presentes em determinadas folhas, conjectura-se que foi escrito entre
os anos de1950 e 1970, f. 1v – CMLC. A folha apresenta uma mancha no ângulo superior
direito, de tonalidade amarronzada, aparentemente causada pela umidade. No entanto, essa
mancha não interfere na leitura do texto. A mancha escrita ocupa 14 pautas, das 23 que
compõem a folha e também a margem superior. O poema é composto por doze versos,
agrupados em três estrofes, recuadas à margem esquerda, escritas a partir da L. 2: V1 até a L.
15: V. 12. Os versos estão escritos em tinta azul, iniciados em maiúscula. O título, também
manuscrito em tinta azul, está localizado na margem superior, sublinhado e em maiúscula.
Nesse poema, os versos da trova Fatalismo foram reescritos correspondendo à primeira
estrofe do poema, apresentando algumas mudanças na pontuação. Nesse caso, os dois últimos
versos da estrofe possuem o sinal de ponto em lugar do sinal das reticências.
CI1
MOTTA, Eulálio. Conjecturas. In: FERNANDES, Aparício (Org.). Anuário Poetas do Brasil.
Rio de Janeiro: Folha Carioca, 1982, p. 149.
Poema Conjecturas impresso em tinta preta, contendo quinze versos, distribuídos em
três estrofes. Os versos e o títulos estão recuados à esquerda. O título encontra-se em maiúscula
e negrito. Os quatro últimos versos do poema correspondem ao testemunho dos versos da trova
Fatalismo.
385
CI2
MOTTA, Eulálio. Canções do meu caminho. 2ª ed., 1983? p. 13.
Poema Conjecturas impresso em tinta preta, contendo quinze versos, distribuídos em
três estrofes. Os versos e o títulos estão recuados à esquerda. O título encontra-se em maiúscula
e negrito. Os quatro últimos versos do poema correspondem ao testemunho dos versos da trova
Fatalismo. Nesse testemunho o verbo nascer, bem como no testemunho FI, está acentuado.
CM
A Poema Conjecturas, manuscrito em tinta preta, localizado no caderno de poesias
Canções do meu caminho 3ª ed. – CCMC (f. 9r), datado de 1987. A mancha escrita ocupa 18
pautas, das 22 que compõem a folha e também a margem superior. O poema é composto de
quinze versos, distribuídos em três estrofes recuadas à margem esquerda, com o título em
maiúscula, também escrito em tinta preta e recuado à margem superior esquerda, circulado com
tinta vermelha. Nessa folha, no ângulo superior direito consta o número {13}/10\, escrito em
tinta vermelha, com uma substituição sobreposta. Conjectura-se que essa numeração se refere
a uma ordenação das folhas do caderno feitas pelo próprio escritor.
Os quatro últimos versos do poema correspondem ao testemunho dos versos da trova
Fatalismo. Nesse testemunho o verbo nascer não está acentuado e os versos apresentam mais
modificações na pontuação em relação aos demais testemunhos.
FM
A trova Fatalismo está localizada no caderno Meu Caderno de Trovas – CMCT (f.10v),
datado de 1987. O caderno tem as dimensões 150mm × 210mm e encontra-se em bom estado
de conservação. A mancha escrita ocupa 19 pautas, das 22 que compõem o papel. Nessa folha
constam quatro trovas independentes: Destruida, Motivo, Fatalismo e Telefone,
correspondendo a um total de dezesseis versos manuscritos, escritos a partir da L. 2: V.1, até a
L. 19: V. 16. Os títulos da primeira, segunda e quarta trova estão recuados à margem direita e
o título da terceira trova está recuado à margem esquerda, todos escritos em maiúscula e em
tinta vermelha. Os versos estão escritos em tinta azul, alinhados à margem esquerda. Os versos
estão escritos em tinta azul, alinhados à margem esquerda.
386
No ângulo superior direito consta o número {22}, escrito em tinta vermelha e riscado,
com u traço central na horizontal feito em tinta azul, conjectura-se que essa numeração se refere
a uma ordenação das folhas do caderno feitas pelo próprio escritor. Na margem esquerda, ao
lado do primeiro verso de cada trova constam numerações feitas pelo escritor para organizar e
ordenar suas trovas: 86, {8}/5\7, {8}/5\8, {8}/5\9, essas numeração estão escritas em tinta
vermelha, exceto a primeira “86”, que está escrita em azul e não apresenta marcas de correção.
Ainda ao lado esquerdo do título da primeira trova consta a numeração: 56 {{8}/5\6}.
A trova Fatalismo, terceira trova da folha, está ordenada como trova de nº {8}/5\8. Os versos
estão dispostos da L. 11: V.1 até a L. 14: V. 4 e o título na L.10. Na L. 11: V.1 verifica-se
marcas de anulação por meio de dois traços horizontais feitos sobre a palavra {Não} que inicia
o verso.
Os testemunhos não apresentam muitas variantes substanciais, pois o que se observa são
modificações apenas na pontuação e oscilações na acentuação do verbo nascer como descrito
acima. De todos os testemunhos, apenas e, CM nota-se maiores modificações na pontuação,
em que: ao final do primeiro verso o escritor acrescenta uma vírgula, no segundo verso verifica-
se a substituição do sinal de dois pontos pelas reticências, e no quarto verso observa-se a
substituição das reticências pelo sinal de exclamação – Com um pouco de fatalismo, /
compreendo o que se deu... / não nasceste para ser minha... / não nasci para ser teu!.
Mesmo não apresentando muitas variantes, cabe ressaltar as modificações mais
significativas dizem respeito à reescrita dos versos em textos de gêneros distintos, localizados
em suportes específicos e que correspondem a projetos de escrita específicos.
387
Texto crítico com o aparato
FM
não nasceste para ser minha FI Não nasceste para ser minha...
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Vestindo-se da imagem de trovador, Eulálio Motta fez da escrita das trovas um hábito
corriqueiro que o acompanhou até o ano de sua morte, como apontam as fontes documentais de
seu acervo. Assim, ao acessar os materiais do acervo, o pesquisador vê-se munido de diferentes
possibilidades de estudo, dentre elas está a possibilidade de estudar o processo de criação
literária e também o processo de construção desses perfis que o escritor assume ao se dedicar à
produção de seus textos, que por sua vez, são bastante diversos no que se refere ao tipo e gênero.
Com o estudo das trovas de Eulálio Motta, foi possível observar as relações sociais que o
escritor manteve ao longo dos anos e o processo de criação, circulação e recepção de seus
versos. Suas trovas revelam-se como lugar de memória individual e coletiva, pelo qual se tem
acesso às lembranças da infância e da juventude do poeta e também as vivências desse trovador
em contato com seus leitores.
Cabe ressaltar que, desenvolver um estudo e edição das trovas de Eulálio Motta é uma
tarefa laboriosa, que reclama dedicação, atenção e um olhar diferenciado para as singularidades
de cada trova, compreendendo que a não linearidade faz parte do processo de construção de
cada uma. As trovas apresentam processos de escrita e reescrita particulares, sendo necessário
lançar mão de diferentes estudos e modelos editoriais para que se possa desenvolver uma edição
388
(ou edições) que contemple a realidade do texto. É pensar o processo de criação associado às
práticas culturais da escrita, à materialidade do texto, sua transmissão histórica, circulação e
recepção social em uma data época, tendo em vista também todos os sujeitos envolvidos, de
forma implícita ou explicita, no processo de produção, leitura e circulação das trovas.
Em suma, observou-se com o exemplo de edição da trova Fatalismo, que Eulálio Motta
fez do acervo seu laboratório de experimentações. No que se refere à produção das trovas, vê-
se que o processo de escrita e reescrita obedecem aos anseios do escritor de acordo com cada
projeto pensado pelo mesmo. A ação de reconfigurar e deslocar os versos para textos e suportes
diferentes é uma constante na produção das trovas, que ora se configuram como trova, ora
passam a compor poemas de outra natureza, o que apenas reafirma a instabilidade e
movimentação do texto.
REFERÊNCIAS
BARREIROS, Patrício Nunes. Sonetos de Eulálio Motta. Feira de Santana: UEFS Editora,
2012.
BORGES; SOUZA, Rosa; Arivaldo Sacramento de. Filologia e edição de texto. In: BORGES,
Rosa; SOUZA, Arivaldo Sacramento de; MATOS, Eduardo Silva Dantas de; ALMEIDA,
Isabela Santos de. Edição de Texto e Crítica Filológica. Salvador: Quarteto, 2012.
389
FENANDES, Aparício (org.). Anuário de poetas do Brasil – 1981:Vol. 2. Rio de Janeiro:
Folha Carioca, 1981.
HAY, Louis. Literatura dos escritores: questões de crítica genética. Tradução Cleonice
Paes Barreto Mourão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
LIMA, Dante. Mundo Novo, nossa terra, nossa gente. Salvador: Contemp, 1988.
MOTTA, Eulálio. Canções do meu caminho. Serrinha: Tipografia d’O Serrinhense, 1948.
SANTOS, Taylane Vieira dos. Edição de Canções do meu caminho de Eulálio Motta.
366p.:il. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) – Departamento de Letras,
Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de Santana, 2017.
DOCUMENTOS DO ACERVO
390
EC1.43.CV1.22.004. Datiloscrito, poesia dispersa: Trovas.
391
GLOSSÁRIO DE ABREVIATURAS: APOIO A LEITURA
PALEOGRÁFICA NOS DOCUMENTOS MANUSCRITOS DA SANTA
CASA DE MISERICÓRDIA DA PARAÍBA
Analecia Sales
Josemar Melo
INTRODUÇÃO
A leitura de um manuscrito antigo pode trazer uma mistura de sentimentos tais como:
admiração, curiosidade, deslumbramento bem como problemas que surgem devido a falta de
compreensão e entendimento das informações contidas naquele documento. O que, a princípio,
gera dificuldades ao leitor, ocasionada pela falta de conhecimento do texto. Desse modo, há
uma grande frustação ao deparar-se com um texto aparentemente ilegível, criando barreiras na
compreensão dos usuários, pesquisadores e arquivistas.
Além disso, a linguagem é dinâmica e com o passar do tempo alguns termos linguísticos
caem em desuso e são substituídos por outros. Mediante essa realidade, o leitor ou profissional
da informação ao se deparar com os manuscritos antigos sente dificuldade em compreender os
termos e, principalmente, as abreviaturas nesses documentos. Podemos fazer uma analogia
entre o pesquisador sem conhecimentos paleográficos com um analfabeto em frente a um livro.
Assim, como facilitar a compreensão do leitor diante de textos ilegíveis? O leitor ou
pesquisador, por não conhecer a escrita o vocabulário e as abreviaturas, sente-se desmotivado
e pode até desistir da sua pesquisa por não conseguir o acesso a essas informações.
No caso específico do arquivista, é de suma importância saber utilizar os conhecimentos
da Paleografia a fim de ajudar no processo de análise das informações e interpretações do
conteúdo dos documentos manuscritos sob sua guarda, para que possa organizar a massa
documental nas etapas de identificação tipológica, classificação e descrição arquivística com o
intuito de produzir, o mais corretamente possível, os instrumentos de acesso.
É preciso ter persistência, comprometimento e paciência na leitura de documentos
antigos. No início pode parecer difícil a compreensão do texto, mas com a ajuda dos
conhecimentos paleográficos é possível ler e conhecer as informações nele contidas. Descobrir
em que época foi escrito aquele documento, qual o tipo de caligrafia, entre outros aspectos,
trazendo ao conhecimento do pesquisador, histórias, até então desconhecidas, proporcionando
o acesso às informações.
392
A Paleografia é uma importante aliada nesse processo de compreensão de palavras
termos, parágrafos e abreviaturas encontradas nos documentos históricos de várias instituições
tornando a leitura acessível. Esta disciplina pode ser entendida como o estudo e análise da
escrita antiga. A sua etimologia é de origem grega: paleos antiga + graphein escrita. Segundo
Jordám (2003 p.13), “paleografia é a ciência que ocupa do conhecimento e interpretação das
escritas antiga, e estuda sua origem e evolução”.
Além de se tornar um excelente método de pesquisa, é um dos propósitos paleográficos
a correta e fiel análise de conteúdos, tornando-se fundamental para a construção de
conhecimentos científicos sobre as informações manuscritas. Neste sentido, o Brasil possui uma
vasta documentação valiosíssima do período colonial e do Império que ainda não foram
transcritas e podem dar outras perspectivas a nossa história com um rico material para qualquer
pesquisador.
Segundo Kruger (2014 p. 221), “o acervo documental é um registro histórico de grande
feito torna-se possível, portanto, a leitura da cultura local a partir destes documentos”. Dessa
forma, [...] o arquivista, a partir da prática paleográfica, pode organizar o acervo, para em
seguida disponibilizar aos usuários instrumentos de pesquisa como guias, catálogos, inventários
índice e outros, proporcionando o acesso à informação dos acervos como resultado destas
atividades.
Destarte, por compreender a importância de Paleografia para a Arquivologia,
percebemos as dificuldades existentes na transcrição, principalmente no caso das abreviaturas,
nos documentos manuscritos e assim, decidimos como objetivo geral do nosso trabalho propor
a criação de um glossário das abreviaturas dos livros de atas da Santa Casa de Misericórdia da
Paraíba para facilitar a transcrição dos documentos daquela instituição e tornar a pesquisa mais
rápida e eficaz. Como objetivos específicos traçamos os seguintes: verificar quais abreviaturas
fazem parte das atas da Santa Casa; transcrever o significado das abreviaturas, termos, símbolos
e sinais braquigráficos existentes nas atas. Ressaltamos que essa pesquisa ainda se encontra em
andamento.
É importante também salientar que o estudo das abreviaturas se encontra diluído nos
diversos trabalhos e títulos de Paleografia, não havendo, durante a realização do levantamento
bibliográfico que efetuamos, pesquisas ou publicações mais exclusivas que se debruçassem
acerca do tema em tela. Uma vez que entendemos a importância das abreviaturas na leitura e
transcrição paleográfica.
393
METODOLOGIA
Este trabalho teve início durante nossa participação, de forma voluntária, na transcrição
de manuscritos do arquivo da Santa Casa de Misericórdia da Paraíba, onde encontramos
inúmeras dificuldades ao depararmo-nos, não só com algumas caligrafias, mas, principalmente,
com as abreviaturas naqueles documentos. Dentre as abreviaturas algumas eram de fácil
entendimento, porém, existem outras que dificultavam as transcrições paleográficas, gerando
dúvidas e falta de entendimento de seus significados. Neste sentido, depreendemos que a nossa
proposta de um glossário de abreviaturas poderá auxiliar a compreensão dos termos, facilitando
as transcrições paleográficas daqueles manuscritos.
As abreviaturas fazem parte do processo evolutivo da escrita, constituindo-se como
parte dos sistemas braquigráficos. Etimologicamente a palavra braquigrafia que vem do grego
braqui= curto e graphien = escrever, ou seja, escrever abreviado, ela é utilizada para encurtar
palavras.
Segundo Costa (1994 p.45):
Ainda de acordo com essa mesma autora o sistema braquigráficos era um costume dos hebreus
em ocultar os nomes sagrados em um tetragrama. Porém, em sua análise Costa (1994, p. 46)
nos aponta o seguinte:
395
[...] já eram usadas abreviaturas [...] nos papiros egípcios e nas inscrições gregas e
caldaicas. Portanto, o mais correto será admitir a origem simultânea dos sistemas em
vários lugares [...] que levava o escriba a abreviar as palavras para dispender menos
tempo e energia em seu trabalho.
q.
Senres
396
M - Mordomo
SS. MM. II. – Suas Majestades Imperiais
ERM – Espera Real Mercê.
Contração ou síncope: supressão de letras intermediárias, permanecendo a terminação das
palavras.
Exemplos:
Tente - Tenente
Primrº - Primeiro
Pla - Pela
Sinais especiais: São abreviaturas no meio da palavra em que uma letra possui valor de sílaba:
Exmplos
Pºpiedade – Propriedade
Oªtra – Outra
Letras inclusas: Abreviaturas com inserção de letras nas outras. Não encontramos este tipo
de abreviatura nos documentos estudados. Por este motivo não temos nossos próprios
exemplos.
Monogramas: Letras, em sua maioria ornamentais e muito utilizadas nas assinaturas.
ANÁLISE PALEOGRÁFICA
O corpus que trazemos em análise são datados segunda metade do século XIX e os
originais pertencentes ao arquivo da Santa Casa de Misericórdia, trata-se de um códice com
relatos das reuniões da Mesa Administrativa110 presidida pelo Provedor em exercício,
secundado pelo Tesoureiro, Escrivão e demais membros do corpo Administrativo da Santa Casa
de Misericórdia, conhecidos como Mordomos. Cada Mordomo coordenava um ramo específico
de caridade, sendo eles: hospital, cemitério, expostos, presos e igreja. Essas reuniões ocorriam
durante o ano compromissal que decorria entre julho de um a junho do ano seguinte. Eram
tratos diversos assuntos como balanço de entradas e saídas do dinheiro da Instituição, petições
110
Órgão colegiado que, acompanhado com a Junta Definitória, administrava as atividades de caridade e o
patrimônio da Santa Casa de Misericórdia.
397
para compra e vendas de casa e terrenos, pedidos de ajuda financeiras, indenizações por serviços
prestados a Santa Casa, reclamações e sugestões de melhoria dos serviços da Instituição dentre
outros assuntos.
Quanto aos seus aspectos gráficos:
Tipo de Letra: a letra utilizada na escrita das atas foi a humanista, cuja letra está presente,
segundo Berwanger e Leal (2008), na maioria da documentação brasileira.
O traçado da letra é a cursiva tombada a direita, fica evidenciada uma pressa na escrita do
escrivão. No correr do texto nota-se a presença de palavras maiúsculas e minúsculas, utilizadas
na ordem básica mais parecida como nos dias atuais.
A numeração presente no texto é a arábica para indicar as datas e os valores em dinheiro,
nota-se a presença de mais de um escrivão. O que inicia a escrita possui uma letra mais clara e
caprichada, possuindo muitas abreviações. Já o segundo escrivão, utilizava pouquíssimas
abreviaturas, no entanto a qualidade da sua escrita era de difícil entendimento.
Aspectos materiais.
Os documentos da pesquisa foram escritos em papel pautado, cujo instrumento de
escrita não foi identificado, a tinta utilizada foi de cor preta, provavelmente ferrogálica. Os
documentos apresentam-se em um bom estado de conservação, porém contém furos, páginas
soltas, papel amarelado devido a acidez, manchas e a escrita de algumas páginas bem apagados
devido a ação do tempo e a falta de acondicionamento adequado. É necessário, portanto, que o
pesquisador utilize esta documentação com bastante cuidado, por isso é muito importante a
preservação dessas informações através da transcrição desses manuscritos.
No que diz respeito às abreviaturas do livro de atas da Mesa Administrativa da Santa
Casa estão sendo encontras, em sua maioria, abreviaturas do tipo apócope e síncope.
Tabela – Exemplos de abreviaturas
Abreviaturas encontradas por apócope: Abreviaturas encontradas por Síncope
P – Padre actualme= atualmente
M - Mordomo aforamto= aforamento
S - Santa annualme= anualmente
q - que arrendamt= arrendamento
D – Dona conformidade= conformidade
conseqcia= consequencia
difficulde= dificuldade
Estabelecimto= Estabelecimento
Ferra= Ferreira
Requerimto= Requerimento
Ultimame= ultimamente
398
Fonte: elaborado pela autora, 2017.
Foram encontradas também algumas variações apresentadas na letra “P”: pª – para; pr – por e
pla – pela. O mesmo acontece com a letra “Q”: q. – que e ql – qual.
Apresentaremos agora no formato que pretendemos desenvolver para o nosso glossário
as abreviaturas encontradas nas atas de reunião da Mesa Administrativa da Santa Casa de
Misericórdia da Paraíba.
Tabela – Glossário de Abreviaturas de palavras em geral
Abreviaturas Significados
Authorizdo Authorizado
Caride Caridade
Compa Companhia
Convenienteme Convenientemente
Conseq cia Consequencia
Cor el = Coronel
Emq to Emquanto
Escram Escrivam
Exmo Excelentíssimo
Finalm te Finalmente
Hosp al Hospital
Indevidame Indevidamente
Ir. Irmão
Irs. Irmãos
Juntame Juntamente
Mm Mesmo
Mord o Mordomo
Pa Para
Pagam t Pagamento
Presid e Presidente
Proc do Procurador
Prov dor Provedor
Ql Qual
Ref do Referido
Rs Réis
399
Sta. Santa
Suppe Supplicante
Thesour o Thesoureiro
Vencim tos Vencimentos
Fonte: elaborado pela autora, 2017.
Anto Antonio
Clemtno Clementino
Franco Francisco
Joaqna Joaquina
Nascim to= Nascimento
Praz es Prazeres
Fonte: elaborado pela autora, 2017.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O uso das abreviaturas é uma constante no processo de escrita, sendo frequentemente
utilizado nos documentos manuscritos e também na comunicação atual. Sua popularidade pode
ser entendida por diversos fatores, entre eles está o de economizar espaços, aumentar a agilidade
e velocidade de escrita, extremamente necessário para os ganhos dos escrivães. Em alguns casos
o uso abusivo de abreviaturas prejudica enormemente todo o procedimento de leitura e
transcrição dos documentos.
Neste sentido, este trabalho, portanto, buscou apresentar os nossos esforços para uma
proposta de criação de um glossário de abreviaturas para, através dele, facilitar a compreensão
e o entendimento dos textos manuscritos encontrados no arquivo da Santa Casa de Misericórdia
da Paraíba, nomeadamente no que concerne as atas de reunião da Mesa Administrativa daquela
Pia Instituição.
Destarte, salientamos que a Paleografia esta sendo fundamental para esse processo de
conhecimento e interpretação da escrita desses manuscritos, oferecendo uma preciosa
contribuição para usuários, pesquisadores e arquivistas no acesso das informações.
400
Para a Arquivologia o acesso à informação é vital na descrição e classificação dos
documentos sob sua guarda proporcionando a criação de instrumentos de pesquisa.
Assim, esperamos que através do glossário proposto venha, primeiramente despertar a
necessidade de estudos sobre o tema em destaque, como também, suprir a necessidade de
entendimento das abreviações e facilitar a pesquisa de estudiosos de textos manuscritos
proporcionando a preservação dessas informações e o descobrimento da nossa história contida
nessa documentação.
REFERÊNCIAS
ACIOLE, Vera Lucia Costa. A escrita no Brasil Colônia: Um guia para leitura de
documentos manuscritos. Recife: Fundaj, Massarigana; UFPE, Editora Universitária, 1994,
p.45-48.
GIL, Antônio Carlos, Métodos e técnicas de Pesquisa Social. 5.ed Atlas São Paulo,2007
401
KRÜGER, Aline Carmes. O ensino de paleografia no curso de graduação em
Arquivologia da UFSC: um exercício com os documentos do Instituto Histórico e
Geográfico de Santa Catarina. Disponível em: <https:// ojs.unifor.br> setlocale> pt-BR
Acesso em: 18 fev. 2017.
SEIXAS, Wilson Nóbrega. Santa Casa de Misericórdia da Paraíba 385 anos. João Pessoa:
Gráfica Santa Marta 1987.
402
GLUB! ESTÓRIA DE UM ESPANTO: PRÁTICAS DE ESCRITA NO
TEATRO BAIANO SOB CENSURA
Débora Souza
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
403
e tipos gráficos utilizados; v) quem escreveu e qual o contexto sócio-histórico de transmissão,
circulação e recepção; vi) qual a finalidade (PETRUCCI, 2002), etc., promovendo enlaces entre
campos do saber e desenvolvendo diferentes estudos.
No lugar teórico-metodológico da paleografia como história social da cultura escrita,
em diálogo com a filologia, propõe-se, neste trabalho, tecer uma leitura crítica das práticas de
escrita desenvolvidas no teatro baiano, no período da ditadura militar (1964-1985). Toma-se,
como objeto de análise, o texto teatral censurado Glub! Estória de um espanto – considerando-
se sua tradição, representada em dois testemunhos, e todos os demais documentos relacionados
aos processos de transmissão, circulação e recepção – de Nivalda Costa, pertencente ao dossiê
da Série de estudos cênicos sobre poder e espaço, parte integrante do Acervo Nivalda Costa,
fundo Textos Teatrais Censurados, vinculado ao Instituto de Letras da Universidade Federal da
Bahia.
A obra teatral [...] inclui um conjunto de documentos constituído pelo texto impresso
e sua representação. Ou seja, de um lado, os diálogos e as rubricas; de outro, a
representação, juntamente com a sua encenação, ou melhor, as diversas encenações
[...]. Cada obra teatral inclui, assim, uma sobreposição de substratos complexos e em
permanente evolução [...] (GRÉSILLON; THOMASSEAU, 2014, p. 117, grifo do
autor).
405
Nesse contexto, a criação teatral realizou-se em constante tensão, sob a ação dos Órgãos de
Censura, mecanismo de repressão, e também sob autocensura, consciente e/ou
inconscientemente. Muitos artistas, preocupados com as forças opressivas que atuavam sobre a
sociedade, desenvolveram um teatro mais crítico, engajado, inscrevendo, nas peças de teatro,
uma reflexão sobre a realidade, a fim de denunciar injustiças sociais e preconizar um
posicionamento político do público.
Essas coerções sociopolíticas limitaram as condições de produção, mas também
funcionaram como elemento propulsor, catalizador, uma vez que a necessidade de driblar o
sistema repressivo promoveu uma das fases mais produtivas do teatro brasileiro. Esse assumiu,
em âmbito nacional, importante função sociopolítica, como rede de polos de resistência, os
quais eram formados por diversos grupos, profissionais, estudantis e mistos. Os mesmos
buscaram inúmeras formas de não silenciar, de construir, por via da/e na linguagem teatral,
maneiras de se comunicar com o público, travando diálogos com a própria arte teatral (coletiva,
intertextual e autoreflexiva), consigo mesmo (e entre os grupos) e com o regime (gesto de
enfrentamento/recuo/enfrentamento), participando, decisivamente, das relações de poder e dos
processos de transformação da história do país (SOUZA, 2017).
Os textos teatrais censurados, produzidos por sujeitos/artistas que atuaram de forma
significativa na sociedade baiana, são substancialmente relevantes no desenvolvimento de
diversificados estudos, principalmente, na Filologia, no que tange aos trabalhos de edição e
estudos crítico-filológicos; na Literatura, no processo de (re)construção da literatura dramática
produzida na Bahia; na História, para tratar sobre o período ditatorial e seu impacto na
sociedade baiana; e no Teatro, ao propor uma leitura da dramaturgia baiana, daquele contexto
(SANTOS, 2012).
No teatro baiano, destaca-se, aqui, a produção e a atuação estrategicamente marginais
da dramaturga, diretora e intelectual militante Nivalda Costa, líder do Grupo de Experiências
Artísticas, Grupo Testa, criado e fundado em 1975. O mesmo tinha como objetivo denunciar
injustiças sociais, promover uma renovação estética e reivindicar a posição do negro no teatro
e na sociedade (QUATRO..., 15 e 16 jun. 1975, p. 11). Aquela artista desenvolveu, no período
de 1975 a 1980, um conjunto de seis textos cênicos com temática sobre poder e espaço, dentre
os quais se toma para estudo, neste trabalho, Glub! Estória de um espanto.
406
GLUB! ESTÓRIA DE UM ESPANTO: DA AÇÃO DOS ÓRGÃOS DE CENSURA E DOS
MOVIMENTOS DE RESISTÊNCIA
407
A partir desse documento, a Chefe da Seção de Censura de Teatro e Congêneres, do
Serviço de Censura, Maria Arlete L. Gama, em 13 de março de 1979, solicita que se emita “[...]
o certificado, de acordo com requerimento de censura e com a classificação: imprópria para
menores de quatorze anos, sem cortes, condicionada ao exame do ensaio geral” (FICHA...,
1979). Um dia depois, encaminha-se à SR/DPF/BA o Certificado de Censura, nº 9280/79,
através de ofício nº 164/79.
Durante o exame do ensaio geral, os responsáveis pelos Órgãos de Censura, segundo
Nivalda Costa (2007), “[...] não só cortaram111 algumas falas da peça, [como] proibiram [a
encenação por] até dezoitos anos e, até por maldade, foi proibida de ser exibida fora do território
baiano [...]” (informação verbal)112; o que provocou, consequentemente, o cancelamento da
temporada da peça, no Rio de Janeiro.
Após tal deliberação dos Órgãos de Censura, no processo de divulgação do espetáculo,
em Salvador-Ba, conforme Nivalda Costa (2007), os atores do grupo criaram uma espécie de
panfleto, em formato circular, e anexaram em diferentes lugares da cidade, inclusive, no prédio
do Fórum Rui Barbosa. Por conseguinte, a mesma, responsável legal pelo espetáculo, recebeu
uma intimação da Polícia Federal, que a acusou de danificar patrimônio público, sendo
condenada e obrigada a pagar a pintura do muro (SOUZA, 2010).
Em diferentes matérias de jornais, informa-se sobre o adiamento da estreia do
espetáculo, prevista para o período de 18 a 22 de abril, por problemas relativos à produção.
Glub! Estória de um espanto, com texto e direção de Nivalda Costa, foi encenada em Salvador-
Ba, de 09 a 13 de maio, às 21h, no palco principal do Teatro Castro Alves, com produção do
Grupo Testa e colaboração da Fundação Cultural do Estado da Bahia e do Jornal da Bahia. Em
uma matéria de jornal, informa-se que após “[...] apresentação no Castro Alves, o espetáculo
será levado a [sic] Penitenciária Lemos de Brito e em [sic] algumas cidades do interior do
Estado” (“GLUB!..., 09 maio 1979, p. 2).
Duas daquelas três vias do texto encaminhado à DCDP, em 1979, para fins de exame
censório, constituem a tradição do texto Glub! Estória de um espanto. Cada uma dessas vias
apresenta determinadas particularidades, quanto à materialidade e à historicidade, e são
111
Nos documentos consultados, provenientes do Acervo do Arquivo Nacional, não constam informações quanto
a cortes ao texto Glub! Estória de um espanto. Os cortes aos quais Nivalda Costa faz referência, possivelmente,
foram realizados durante o exame do ensaio geral, quando um técnico de censura assistiu à encenação da peça. O
resultado desse exame, geralmente, era registrado em um relatório; contudo, esse documento não consta do
processo censório daquela peça. Trata-se, pois, de processo censório lacunar.
112
Informação obtida em entrevista concedida por Nivalda Costa, em nov. 2007, à ETTC, na Sociedade Amigos
da Cultura Afro-Brasileira – AMAFRO, em Salvador-Ba.
408
relevantes para uma leitura da história do texto. Tem-se, pois, um mesmo texto datiloscrito,
materializado em duas vias distintas (dois testemunhos), no que concerne a carimbos,
inscrições, marcas de perfurador, clipe e grampo, peculiaridades que resultam, em sua maioria,
da movimentação e da intervenção próprias do processo censório, conforme os trâmites legais
em vigor na época, e do modo de armazenamento/conservação do documento por parte da
instituição de guarda (SOUZA, 2017).
O testemunho GEEAN, (COSTA, 1979a), cópia de datiloscrito, conservada no Acervo
da Coordenação Regional do Arquivo Nacional – Distrito Federal, fundo DCDP – Peças
Teatrais (COREG-AN-DF (DCDP)), possivelmente, foi, desde a abertura do processo censório,
em 14 de fevereiro daquele ano, arquivado na DCDP, do Departamento de Polícia Federal –
DPF e ali permaneceu, conforme ofício de encaminhamento da Chefe do SCDP/SR/DPF/BA
ao Diretor da DCDP, em 08 de fevereiro de 1979, após mediação da SBAT-Ba. Logo, apresenta,
em sua materialidade, carimbo dessa instituição, em formato circular, com a rubrica em seu
interior, localizado no ângulo inferior, à esquerda, às folhas 01, 02 e 10. Esse documento faz
parte do processo censório, no qual constam solicitação/requerimento, ofícios, ficha de
protocolo e parecer, todos arquivados na COREG-AN-DF (DCDP). O Certificado de Censura,
contudo, que se configura também como documento censório, encontra-se apenas conservado
no Arquivo Pessoal de Nivalda Costa.
O testemunho GEEEXB, (COSTA, [1979b]), datiloscrito, por sua vez, embora seja outra
via do mesmo documento, encaminhado à DCDP, teve um processo de circulação distinto.
Possivelmente, a partir das marcas inscritas na materialidade, acredita-se que o mesmo passou
pelas mãos dos técnicos de censura, durante exame censório do texto, e, posteriormente, foi
reencaminhado ao SCDP/SR/DPF/BA para que fosse devolvido a Nivalda Costa, juntamente
com o Certificado de Censura, em 14 de março de 1979. Este documento, arquivado no Núcleo
de Acervo do Espaço Xisto Bahia, apresenta aspecto amarelado, devido à ação do tempo, e
marcas de grampo e de clipe, enferrujados, no ângulo superior, à esquerda. Um pedaço de
barbante que perpassa duas perfurações, centralizadas à margem esquerda, une o texto.
Há, nesse documento, às folhas 01, 02 e 10, conforme se observa em GEEAN, o carimbo
da SBAT-Ba, em formato circular, à tinta preta, localizado no ângulo inferior, à esquerda, com
a rubrica em seu interior, à tinta azul. Todavia, em GEEEXB apresenta-se, em todas as folhas,
um carimbo da DCDP, com a sigla do DPF, em formato circular, à tinta preta, com rubrica em
seu interior, à tinta azul, no ângulo superior direito. Além disso, à folha 01, há duas inscrições,
409
à mão: NIVALDA COSTA, na margem superior, centralizado e sublinhado, à tinta preta; e BA,
no ângulo superior, à direita, em tinta vermelha.
Vejam-se, a seguir, as figuras 2 e 3, fac-símile da primeira folha de GEEAN e de GEEEXB,
respectivamente:
Fonte: Acervo do Arquivo Nacional (à esquerda) e Núcleo de Acervo do Espaço Xisto Bahia (à direita)
O texto possui 10 folhas, em formato A4, e 310 linhas. À folha 1, há título do texto,
epígrafe, lista de personagens (07, Limiares – o cineasta; Gene Pull – o biólogo; LÚCIFER – a
tradutora; Evento – o matemático; Interferente A; Signo (Alpha); Voz, além de Objeto Sonhado,
uma espécie de meta-personagem), indicação de atos (03, Ato 1 – Estruturas de suporte; Ato 2
– Manual de instruções; Ato 3 – Observações acerca de planalto verde) e duas notas sobre os
personagens e os atos. Das folhas 2 a 10, tem-se o texto teatral, constituído por 19 cenas.
Glub! Estória de um espanto é apresentado como “Take – Teatral/Roteiro/‘Take’ Experimental
para Teatro” (COSTA, [1979b], f. 1). O termo “experimentar”,
410
[...] pressupõe que a arte aceita fazer tentativas, até mesmo errar, visando à pesquisa
do que ainda não existe ou a uma verdade oculta. [...]. O direito à pesquisa e, portanto,
ao erro, estimula os criadores a assumirem riscos a propósito da recepção [...], a
modificar incessantemente a encenação, a buscar e a transformar em profundidade o
olhar do espectador [...] (PAVIS, 2008, p. 389).
[...] o espetáculo se propõe a contar uma fábula sobre a juventude dos anos 50, a partir
das dicotomias resultantes de um estudo das relações entre o poder e o espaço.
Dividida em três atos contínuos, mas distintos, a peça está voltada principalmente para
a problemática atual da sociedade, que limita, reprime e padroniza o homem – objeto
central do questionamento do texto (“GLUB!..., 09 maio 1979, p. 2).
Esse texto teatral apresenta uma epígrafe, um prólogo gestual e três atos com três, onze
e cinco cenas, respectivamente. No enredo, que tem como referência os anos 1950, 1960 e 1970,
aborda-se acerca da perda de identidade e de liberdade diante da alienação e da repressão
vivenciadas, bem como do comportamento e da ação de diferentes jovens para sobreviver, em
determinado contexto opressor (SOUZA, 2010). A construção dessa narrativa, no que concerne
à estrutura, assemelha-se à fábula brechtiana.
411
A fábula, no teatro, tem, ao menos, duas concepções: uma, que toma a fábula “[...] como
material anterior à composição da peça” (PAVIS, 2008, p. 157, cf. verbete fábula), atrelada à
invenção, imaginação; outra, “[...] como estrutura narrativa da história” (PAVIS, 2008, p. 157,
cf. verbete fábula), adotando a fábula como dispositivo para a criação de intrigas/maquinações
implícitas. Neste caso, significa, “[...] para o autor dramático, estruturar as ações – motivações,
conflitos, resoluções, desenlace – num espaço/tempo que é ‘abstrato’ e construído a partir do
espaço/tempo e do comportamento dos homens” (PAVIS, 2008, p. 157).
No teatro de Brecht, a fábula é explicitada e construída por todos os profissionais
envolvidos na produção teatral. Construir a fábula “[...] é ter ao mesmo tempo um ponto de
vista sobre a história (o relato) e a História (os acontecimentos considerados à luz do
marxismo)” (PAVIS, 2008, p. 158). A fábula brechtiana apresenta estrutura descontínua,
fragmentada e inacabada, ou seja, a sequência causal das ações é não linear e temporal, pois,
no relato de acontecimentos, insiste-se na causalidade dos fatos. A mesma está em constante
elaboração, em um processo dialético, no qual a produção de sentido “[...] passa primeiro pela
compreensão do gestus que não informa sobre as personagens em si mesmos [sic], mas sobre
suas ‘inter-relações’ no seio da sociedade” (PAVIS, 2008, p. 159).
Em Glub! Estória de um espanto, a narrativa é construída por meio de uma linguagem
implícita, que perpassa todos os diálogos e as cenas, na construção da estória, a fábula ficcional
Glub, e da história, a apresentação e a problematização de acontecimentos sócio-históricos
vivenciados na época, década de 1970, no Brasil. Confiram-se, por exemplo, alguns trechos do
texto teatral nos quais, após fazer uma reflexão sobre a década de 1950, passa-se a relatar sobre
os primeiros anos da década de 1960:
A T O – 1 – ESTRUTURAS DE SUPORTE
CENA 1 – Prólogo (Gestual)
CENA 2 – Quatro personagens em quatro ponta/planos distintos do espaço/palco executam tarefas:
EVENTO – Mexe com computadores.
LUCIFER – Escreve e pagina livros.
GENE PULL – Observa situações com um telescópio ou lente de aumento.
LIMIARES – Filma com uma câmera.
SONS – Clima solidão/angústia (COSTA, [1979b], f. 2).
[...]
CENA 03 – PEQUENOS ACIDENTES
Cenas simuladas/Mímica
a) – Assalto
b) – Assassinato
p/ sobre o poema DEVORAR
CENA 04 – West Side Story – 2º parte
CENA MUDA – Reconstrução de uma fita de quadrinhos (COSTA, [1979b], f. 10).
414
ATO 02 MANUAL DE INSTRUÇÕES
CENA 01 – Instruções para dar corda no relógio (gestual) “por/sobre texto de Júlio
Cortázar”
CENA 02 – Instruções para matar formigas em Roma (gestual com ruídos) por/sobre
fotos/Slides e Audio-Visuais.
CENA 03 – Geografias –:
Lucifer, Limiares e Evento brincam com objetos bélicos [...] (COSTA, [1979b], f.
6).
A referida cena 01 é construída a partir dos textos “Preâmbulo às instruções para dar
corda no relógio” (CORTÁZAR, 2015 [1962], p. 26) e “Instruções para dar corda no relógio”
(CORTÁZAR, 2015 [1962], p. 27). No primeiro texto, o leitor é levado a refletir sobre o
processo de coisificação do ser humano, a partir de ações cotidianas. Inicia-se com a frase
imperativa “Pense nisto [...]” (CORTÁZAR, 2015 [1962], p. 26), afirmando-se que, quando
dão um relógio, dão “[...] um novo pedaço frágil e precário de você mesmo [...]” (CORTÁZAR,
2015 [1962], p. 26). No mundo capitalista e consumista, o homem transforma-se em coisa, em
mercadoria, em vitrine, sem perceber.
No segundo texto, “Instruções para dar corda no relógio”, aborda-se sobre a efemeridade
da vida, a certeza de morte e a possibilidade de escolha do ser humano. Afirma-se, no início do
texto: “[l]á no fundo está a morte, mas não tenha medo [...]” (CORTÁZAR, 2015 [1962], p.
27), por que este sentimento paralisa, “[o] medo enferruja as âncoras [...]” (CORTÁZAR, 2015
[1962], p. 27). Orienta-se o leitor, apresentando determinadas instruções, para que possa “dar
corda no relógio”, ou seja, melhor aproveite o tempo, a vida, o percurso, a caminhada:
[s]egure o relógio com uma mão, pegue com dois dedos o pino da corda, puxe-o
suavemente. Agora se abre outro prazo, as árvores soltam suas folhas, os barcos
correm regata, o tempo como um leque vai se enchendo de si mesmo e dele brotam o
ar, as brisas da terra, a sombra de uma mulher, o perfume do pão (CORTÁZAR, 2015
[1962], p. 27).
417
Quadro – Fac-símile de manuscrito: mandala (verso) (à esquerda) e transcrição (à direita)
MANDALA = Termo hindu que significa
círculo. São (coletivo) uma forma contra|
(instrumento médio emblema) diagrama
geométrico ritual, algumas vêzes com| uma
correspondência com um atributo divino
determina<†>/ndo\ uma forma de
encanta|mento (mantra) do qual vem a ser a
cristalização visual
[↑Encontram-se] † todo o oriente, sempre com
a finalidade de servir como instrumentos de
contemplação| e concentração e como ajuda
para precipitar certos estados mentais e para
ajudar o espirito| a dar certos avanços em sua
evolução, desde o biológico ao geométrico,
desde| o reino das formas corpóreas ao
espiritual) Segundo Heinrich Zimmer, não| se
pode <†> [copiar] o símbolo sem que antes
tambem se[↑o] construam
tridimensional|mente em certas festividades.
Lingdam Gonchen do convento Lamaista| da
Bhutia Bust, explicou a Jung o mandala como
uma imagem mental| que pode
Provavelmente, a estrutura da mandala, um círculo, foi usada como base para repensar
o espaço cênico e, por conseguinte, a relação entre palco e plateia. Acredita-se, fazendo uma
leitura da imagem, que a disposição do público, no espaço físico, deu-se em círculos, e os
enquadramentos e planos de ação, no que tange à área de atuação, a partir de sete triângulos,
sobrepostos, inscritos sob o primeiro círculo.
No ato 2, há ainda a construção de uma “Cena auditiva”, a partir de valores expressivos
sonoros, de silêncios e de gritos. Veja-se:
418
exprimir sons agudos, estridentes [...]” (MARTINS, 2008, p. 51) e da série posterior, “ó”, “ô”,
“u”, para “[...] imitar sons profundos, cheios, graves, ruídos surdos, e sugere[m] ideias de
fechamento, redondeza, escuridão, tristeza, medo, morte” (MARTINS, 2008, p. 52). As vogais
nasais, por sua vez, tendem a “[...] exprimir sons velados, prolongados [...] e a sugerir distância,
lentidão, moleza, melancolia [...]” (MARTINS, 2008, p. 53).
A partir do exposto, em uma leitura sócio-histórica quanto a determinada prática de escrita
e modo de apresentação teatral, reconhece-se que “[...] historicamente mediado, o texto assume
formas e significados diferentes na sua circulação histórica, pelas relações que estabelece com
as instituições de recepção e transmissão e com o público” (LOURENÇO, 2009, p. 228), e que
a atividade do pesquisador crítico, mediador, independentemente da área e da tendência
adotada, também contribui para o processo de dispersão textual.
Nesse sentido, todos os documentos relativos ao texto Glub! Estória de um espanto são
relevantes para melhor compreender a história do texto, os processos de produção, transmissão
e circulação, assim como de encenação do mesmo, e podem ser tomados como subsídios na
atividade de leitura crítica das práticas de escrita do teatro baiano sob censura.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
COSTA, Nivalda Silva. Glub! Estória de um espanto. 1979a, 10 folhas. Acervo do Arquivo
Nacional – Distrito Federal, fundo Divisão de Censura de Diversões Públicas – DCDP –
Peças Teatrais.
COSTA, Nivalda Silva. GLUB! “Para aqueles... Salvador, [1979d]. 02 folhas datiloscritas.
Arquivo Pessoal de Nivalda Costa.
FRANCO, Aninha. O teatro na Bahia através da imprensa: século XX. Salvador: FCJA;
COFIC; FCEBA, 1994.
“GLUB! A Estória de um Espanto” estreia hoje no Castro Alves. Jornal da Bahia, Salvador,
09 maio 1979. Teatro, p. 2. Recorte de Jornal arquivado no Acervo da Biblioteca Pública do
Estado da Bahia.
GLUB!, vem aí outra peça de Nivalda Costa. Jornal da Bahia, Salvador, 23 abr. 1979.
Teatro.
LOURENÇO, Isabel Maria Graça. The William Blake Archive: da gravura iluminada à
edição electrônica. 2009. 490f. Tese (Doutorado em Letras) – Instituto de Letras,
Universidade de Coimbra, Coimbra, 2009. Disponível em:
<https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/12069/3/IsabelLourenço_tese.pdf>. Acesso em:
20 abr. 2017.
PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. Tradução J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São
Paulo: Perspectiva, 2008.
QUATRO dias para “Aprender a Nadar” lá no Vila Velha. Diário de Notícias, Salvador, p.
11, 15 e 16 jun. 1975.
SANTOS, Rosa Borges dos (Org.). Edição e estudo de textos teatrais censurados na
Bahia: a Filologia em diálogo com a Literatura, a História e o Teatro. Salvador: EDUFBA,
2012.
SOUZA, Débora de. Série de estudos cênicos sobre poder e espaço, de Nivalda Costa:
edição e estudo crítico-filológico. 2017. Exame de qualificação ao doutorado. Instituto de
Letras, Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura, Universidade Federal da Bahia,
2017.
SOUZA, Débora de. Aprender a nada-r e Anatomia das feras, de Nivalda Costa: processo
de construção dos textos e edição. f. 251. 2012. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Letras,
Programa de Pós-graduação em Literatura e Cultura, Universidade Federal da Bahia,
Salvador, 2012.
SOUZA, Débora de. Glub! Estória de um espanto, de Nivalda Costa: edição e estudo do
auditório e das condições de argumentação. 2010. 51f. Trabalho de Conclusão de Curso
(Especialização em Estudos Linguísticos) – Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira
de Santana, 2010.
421
Manuscrito do Recolhimento de Nossa Senhora dos Humildes: primeiras
notícias
INTRODUÇÃO
As ordens religiosas têm papel especial para a conservação e preservação dos acervos
bibliográficos e documentais, pois em seus mosteiros e conventos salvaguardavam os seus
escritos em bibliotecas e arquivos que hoje são verdadeiro patrimônio cultural.
As bibliotecas religiosas se situavam no interior desses conventos e monastérios, locais
de difícil acesso ao leitor comum e aos pesquisadores. Segundo Martins (2002), as bibliotecas
não estavam à disposição dos profanos: eram organismos mais ou menos sagrados e religiosos,
com isso somente quem possuía um corpo e uma ordem igualmente sagrados e religiosos
poderia ter acesso aos livros presentes nas estantes dessas bibliotecas.
No interior do Convento, em Santo Amaro da Purificação, na Bahia, está guardada a
documentação referente à fundação do Recolhimento de Nossa Senhora dos Humildes e à
história das religiosas que por ali passaram, muitas delas estão diretamente relacionadas à
história da região.
Os documentos que constituem este acervo são da vida burocrática, espiritual e social
da instituição e das pessoas que nela viveram desde a sua fundação. São os testamentos das
recolhidas; certidões de batismo; certidões de óbito das recolhidas; registro civil; escrituras de
casas e terrenos doados; doação de escravos; documentos de doações que comprovam os bens
que fazem parte do Museu; licença para visita das recolhidas; documento de isenção de
impostos (Décima) para o Convento, entre outros.
O documento intitulado Cerimonial para se lançar o Habito e serem recebidas as Recolhidas
de Nossa Senhora dos Humildes, extrahido do cerimonial das Recolhidas do Senhor Bom Jesus
dos Perdoes é um livro manuscrito, que não possui mais a capa que um dia deve ter tido, mede
214mm x 155mm.
O papel do manuscrito Cerimonial parece ser um papel trapo, de gramatura média,
poroso e de cor pardacenta. O manuscrito ora trabalhado possui marca d'agua com o provável
nome relacionado à empresa que fabricou o papel. Trata-se de um brasão onde se lê abaixo a
inscrição "Gior Magnani".
422
O Cerimonial possui 100 fólios numerados, destes, 90 estão numerados e rubricados e
83 estão escritos no recto e no verso. Os fólios 95 ao 100 não possui texto, apresentam apenas
a rubrica e a numeração, que só ocorrem no recto. A mancha escrita mede 191 mm × 138mm.
Em geral, são escritas 25 linhas por fólio.
As scriptae do Ceremonial datam do século XIX (1817), sendo scriptae em letra
humanística cursiva, como era de se esperar, pois, “Segundo Berwanger, na América
portuguesa, a escrita mais utilizada já a partir do século XVI foi a humanística, criada em
Florença e introduzida na península Ibérica no final do século XV. De acordo com a autora, a
maioria da documentação brasileira foi grafada com esta escrita” (OLIVEIRA, 2011, p. 22).
423
Nas imagens a seguir, mostra exemplos da escrita do scriptor 1 em diferentes pontos do
documento.
A escrivã Genoveva Joaquina aparece nos fólios 12r° ao 13r°. Eles abrangem o período
de 8 de dezembro de 1817 à 2 de abril de 1818. Trata-se de uma escrita em tinta ferrogálica
bastante escura, com muito fixador e oxidada em alguns pontos; a escrita é pausada e levemente
inclinada para direita com hastes ascendentes voltadas para esquerda.
Na imagem a seguir, mostra um exemplo da escrita da escrivã Genoveva Joaquina no
documento.
425
Figura ˗ Excerto do fólio 13rº do Livro Cerimonial para se lançar o Habito...
426
Figura ˗ Excerto do fólio 19vº do Livro Cerimonial para se lançar o Habito...
A escrivã Ritta Maria do Sacramento aparece entre os fólios 13v° ao 18r° que
compreendem o período de 20 de setembro de 1818 à 11 de julho de 1819. Aparece também no
fólio 62r° cuja datação é 10 de Março de 1820. Trata-se de uma escrita em tinta ferrogálica
escura, com muito fixador e oxidada em alguns pontos, por conta disso, ocorreu perda de
suporte, o que dificulta a transcrição. A escrita é aligeirada e inclinada para a direita.
Nas imagens a seguir, mostra exemplos da escrita da escrivã Ritta Maria do Sacramento em
diferentes pontos do documento.
427
Figura ˗ Excerto do fólio 17rº do Livro Cerimonial para se lançar o Habito...
Nos fólios 15rº, 19rº, 20vº, 24rº, 26r°, 29vº, 63rº, 64vº e 65rº aparece o secretário eleito
Padre Domingos José Duarte dando um parecer sobre o livro Cerimonial para se lançar o
Habito...juntamente com os visitadores, o senhor Joze Francisco da Costa Nogueira, o senhor
Vicente [†] /dos Santos*/ e o senhor Conego Vigario Bernardino de Sena e Souza, que assinam
o texto escrito pelo secretário. As vistas foram realizadas nesses períodos de 17 de Fevereiro de
1819, 20 de Fevereiro de 1821, 8 de Março de 1824, 13 de Fevereiro de 1827, 6 de Fevereiro
de 1830 e 18 de Dezembro de 1833.
Nos fólios 39vº, 57vº, 66vº e 75vº, que abrangem os períodos de 15 de Fevereiro de
1846, 7 de Fevereiro de 1862, 16 de (...) de 1830 e 15 de Fevereiro de 1846, não há indicação
de secretário e nem foi possível identificar o visitador.
A escrita do secretário é feita em tinta ferrogálica bastante escura, com bastante fixador.
O traçado é pausado e inclinado para a esquerda.
Na imagem a seguir, mostra exemplo da escrita do secretário eleito Padre Domingos José
Duarte no documento.
428
A escrita do visitador Joze Francisco da Costa Nogueira é feita, provavelmente, com a
mesma tinta usada pelo secretário. O traçado apresenta inclinação para direita e muitos enlaces
nas hastes superiores pendendo para esquerda.
Na imagem a seguir, mostra um exemplo da escrita do visitador Joze Francisco da Costa
Nogueira no documento.
A escrita do visitador Vicente [†] /dos Santos*/é feita, provavelmente, com a mesma tinta usada
pelo secretário. O traçado apresenta uma leve inclinação para direita e enlaces nas hastes
superiores pendendo para esquerda.
Na imagem a seguir, mostra um exemplo da escrita do visitador Vicente [†] /dos Santos*/ no
documento.
429
A escrita do visitador do Conego Vigario Bernardino de Sena e Souza é feita, provavelmente,
com a mesma tinta usada pelo secretário. O traçado apresenta inclinação para direita.
Na imagem a seguir, mostra um exemplo da escrita do visitador do Conego Vigario Bernardino
de Sena e Souza no documento.
A escrita do visitador não identificado, o seu traçado apresenta inclinação para direita. Na
imagem a seguir, mostra um exemplo da escrita do visitador não identificado no documento.
A escrivã Maria Salomé Cardozo (ou Maria Salomé de Jesus que acreditamos se tratar
da mesma pessoa) aparece nos fólios 20r° ao 27r° que compreendem o período de 16 de
Setembro de 1821 à 13 de Junho de 1830. Aparece também nos fólios 63v° ao 66v° que
compreendem o período de 21 de Outubro de 1824 à 27 de [†] de 1830. Trata-se de uma escrita
em tinta ferrogálica escura, com muito fixador e oxidada em alguns pontos. A escrita do verso
aparece no recto o que dificulta a transcrição; a letra é aligeirada e inclinada para a direita.
Na imagem a seguir, mostra um exemplo da escrita da escrivã Maria Salomé Cardozo no
documento.
430
Figura ˗ Excerto do fólio 20rº do Livro Cerimonial para se lançar o Habito...
A escrivã Maria Benta do Patrocinio aparece nos fólios, 27v° ao 46v° que compreendem
o período de 15 de Dezembro de 1830 à 12 de Fevereiro 1853. Ela aparece também nos fólios
66v° ao 81v° que compreendem o período de 24 de Janeiro à 27 de Fevereiro. Trata-se de uma
escrita em tinta ferrogálica escura; é pausada e levemente inclinada para a esquerda; possui
haste superior bastante longa e inclinada para esquerda, à exceção da haste do <d> que apresenta
inclinação para direita.
Na imagem a seguir, mostra um exemplo da escrita da escrivã Maria Benta do Patrocinio no
documento.
A escrivã Gertrudes da Santissima Virgem aparece nos fólios 47r° ao 49v°, que
compreendem o período de 15 de novembro 1853 à 8 de Julho de 1855. Ela aparece também
431
nos fólios 81v° ao 84vº que compreendem o período de 22 de Maio 1853 à 11 de Abril de 1855.
Trata-se de uma escrita em tinta ferrogálica escura, com muito fixador, por conta disso, o texto
do verso aparece no recto e vice-versa o que prejudica um pouco a leitura; a escrita é pausada
com uma leve inclinação para a direita, possui haste superior bastante inclinada.
Na imagem a seguir, mostra um exemplo da escrita da escrivã Gertrudes da Santissima Virgem
no documento.
432
Figura ˗ Excerto do fólio 49vº do Livro Cerimonial para se lançar o Habito...
A escrivã Maria Carlina Ayres aparece nos fólios, 54vº ao 61r°, que compreendem o
período de 5 de Fevereiro de 1859 à 10 de maio de 1866. Ela aparece também nos fólios 86r°
ao 95r°, que compreendem o período de dezembro de 1855 à 1º de Fevereiro de 1870. Trata-se
de uma escrita em tinta ferrogálica castanha com pouco fixador; a escrita é pausada de fácil
decodificação, com uma leve inclinação para a esquerda, possui haste superior longa e inclinada
para direita.
Na imagem a seguir, mostra um exemplo da escrita da escrivã Maria Carlina Ayres no
documento.
433
Como se vê, a diversidade de mãos na produção do Cerimonial para se lançar o Habito
e serem recebidas as Recolhidas de Nossa Senhora dos Humildes, extrahido do cerimonial das
Recolhidas do Senhor Bom Jesus dos Perdoes é significativa e denota a variação na ocupação
da função de escrivã entre as recolhidas, além de apresentar subsídios para o estudo da escrita
feminina no interior do nordeste do Brasil no período de abrangência do documento, e essa é
apenas mais uma das facetas interessantes do trabalho de edição que ora se realiza.
REFERÊNCIAS
ACCIOLI, Vera Lúcia Costa. A escrita no Brasil colonial: um guia para leitura de
documentos manuscritos. Recife: EDUFPE; Fund. Joaquim Nabuco; Massangana, 1994.
BARRÊTTO, Bruna Helena. A relação da comunidade de Santo Amaro com o Museu dos
Humildes e seu patrimônio. 52f. 2010. Monografia. (Bacharelado em Museologia).
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Centro de Artes, Humanidades e Letras,
Cachoeira.
OLIVEIRA, Nelson Henrique Moreira de. Oficina de Paleografia III. Rio de Janeiro:
Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2011. Disponível em: <
https://pt.scribd.com/document/127070655/Oficina-de-Paleografia-III-Tecnica-paleografica-
Tipos-Caligraficos-e-Documentais>. Acesso em: 12 nov. 2017.
434
O ENSINO DA PALEOGRAFIA NOS CURSOS DE ARQUIVOLOGIA E
HISTÓRIA: ASPECTOS E DIFICULDADES
INTRODUÇÃO
435
alunos devido, muitas vezes, a ausência de uma familiaridade dos estudantes com as técnicas
paleográficas, consequência da não obrigatoriedade dessa disciplina nos referidos cursos e até
mesmo a sua inexistência.
Essa deficiência do ensino da Paleografia, nos cursos de Arquivologia e História, acaba
refletindo diretamente na formação dos futuros professores da disciplina. Como não existe um
curso estritamente voltado para a Paleografia no país, muitos desses profissionais precisam se
especializar fora do território brasileiro, em locais de difícil acesso e de custo elevado, o que,
muitas vezes, provoca a desistência por tal aprendizado.
O que vemos, diante dessa situação, são professores de Arquivologia e História se
esforçando para aprender a disciplina de forma autodidata, através da pouca bibliografia sobre
o tema que chega ao Brasil ou da que é produzida no país por profissionais que tiveram a
oportunidade de realizar trabalhos que envolvessem o tema em países no exterior.
Este descompromisso com o ensino das técnicas paleográficas no Brasil provoca uma grande
dificuldade nos alunos, tanto do curso de Arquivologia como de História, de lidar com
documentos manuscritos, seja na descrição e classificação desses documentos, ou na
interpretação das informações que ele possui, acarretando assim a formação de profissionais
inseguros e não capacitados para trabalharem em acervos que possuem documentos
manuscritos.
Por conta disso, objetiva-se com este trabalho mostrar a importância do aprendizado da
Paleografia para profissionais egressos de cursos de Arquivologia e História, além de revelar
um breve panorama da importância dada a essa disciplina pelas Universidades Públicas
Estaduais e Federais do país que contém simultaneamente os dois cursos, através da análise de
suas matrizes curriculares, comparando a disponibilização da disciplina, carga horaria e
formação dos professores responsáveis por ministra-la.
Este artigo compartilha dados que se encontram em processo de análise para o
desenvolvimento do Trabalho de Conclusão do Curso de Arquivologia da Universidade
Estadual da Paraíba (UEPB) intitulado A importância da disciplina de Paleografia nos cursos
de Arquivologia e História, cujo tema aborda a relevância que é dada a disciplina de Paleografia
pelas Universidades Públicas Estaduais e Federais que possuem os cursos de Arquivologia e
História.
METODOLOGIA
436
Ainda são escassos na área da Ciência da Informação trabalhos que abordam os aspectos
e as dificuldades que envolvem as atividades de profissionais que trabalham com a transcrição
paleográfica. A impressão que fica, muitas vezes, é que muitos pesquisadores não se interessam
pela área por a acharem desinteressante ou extremamente complexa devido ao desconhecimento
gerado na academia de suas técnicas de transcrição.
Diante desse quadro, busquei realizar um levantamento bibliográfico acerca de trabalhos
existentes que contemplam em seu texto análises sobre a aplicação das técnicas de paleografia
para a transcrição documental com a finalidade de demostrar a importância dessa disciplina
para o profissional egresso de cursos de Arquivologia e/ou História que necessitam em seus
trabalhos utilizar o conhecimento que tal técnica proporciona como disciplina básica para o
conhecimento de escritas antigas. Com isso, me alinho ao pensamento de Fonseca (2002, p.32)
quando ele ressalta que:
437
ASPECTOS DA METODOLOGIA
Ao se deparar pela primeira vez com um documento manuscrito antigo, é muito comum
que o pesquisador fique deslumbrado pela sua escrita, ao mesmo tempo em que sinta certa
insegurança em tentar transcreve-lo já que este possui uma série de elementos gráficos bastante
utilizados em séculos anteriores, mas que não fazem mais parte da escrita atual.
Em seu livro Noções de Paleografia, Mendes (2008) problematiza sobre a evolução da escrita,
como reconhecer a caligrafia dos antigos manuscritos, que material era utilizado, quais as
438
dificuldades que os documentos escritos há muito tempo nos colocam e que até hoje preocupam
os pesquisadores, historiadores, filólogos, arquivistas e instituições de guarda de acervos
permanentes, que buscam respostas para auxiliar seu trabalho tomando por base as primeiras
reflexões sobre o assunto (FERES, 2008, p. 139).
Nesta obra, o autor afirma que na arte de ler o documento antigo estariam englobados
“a capacidade de superar as vicissitudes sofridas pela escrita, a interpretação desta, o
conhecimento de sua origem, evolução e época” (MENDES, 2008, p. 18).
Por isso, a leitura dessa documentação antiga se torna uma tarefa difícil que vai muito
além da prática e familiarização com o manuscrito, exigindo o conhecimento do período em
que foi produzido, ao lado de certa intimidade com a caligrafia, a grafia, o vocabulário, a
pontuação, a divisão de palavras, a paragrafação, a numeração e o sistema de abreviaturas
comuns na época.
Para Krüger (2014) a prática de ler manuscritos antigos, denominada Paleografia, faz
referência a épocas distantes, desde que começou a ser necessário registrar e documentar atos
jurídicos e administrativos ou interpretar registros e documentos antigos, escritos em caracteres
que se tornavam ilegíveis para o comum das pessoas. Desse modo, a “Paleografia abrange a
história da escrita, a evolução das letras, bem como os suportes da escrita e os instrumentos de
escrever” (BERWANGER, 2008, p.16).
Segundo João Eurípedes Franklin Leal (2008, p.16), a Paleografia é o estudo técnico de
textos antigos, na sua forma exterior, que compreende o conhecimento dos materiais,
instrumentos para escrever, a história da escrita e a evolução das letras, objetivando sua leitura
e transcrição.
Para Berwanger e Leal (2012) a Paleografia “[...] é uma ciência na parte teórica. É a arte
na aplicação prática. Porém, acima de tudo, é uma técnica”. Para Teixeira (2015, p. 10)
Ainda segundo Berwanger e Leal (2008) a paleografia tem como objetivo o estudo das
características extrínsecas dos documentos e livros manuscritos, para permitir sua leitura e
transcrição, além da determinação de sua data e origem. Desse modo, a paleografia é bastante
utilizada para identificar e decifrar os diferentes tipos de escritas existentes na época moderna
439
a partir da leitura e transcrição de documentos produzidos por órgãos administrativos do
império português. Ainda segundo Krüger (2014, p. 212)
Essa prática de ler manuscritos antigos requer muita leitura e muito aprendizado, pois
precisamos conhecer não somente o tipo de letra da época em que o documento foi
escrito, mas também a época em que o documento foi elaborado, o momento histórico
em que o mesmo foi produzido.
Ao ler um documento antigo o pesquisador pode se deparar ainda com alguns problemas
que inicialmente despertam certa dificuldade e recusa, como por exemplo, o não
reconhecimento do tipo de letra, as disparidades nas formações das palavras e frases, expressões
e abreviaturas não usuais nos dias de hoje, o estado de conservação do papel e da tinta, que
440
podem causar borrões, abrasões, perfurações ou deterioração do papel o que acarretam
dificuldades na leitura. Krüger (2014, p. 213) ressalta que:
113
Segundo Acioli, essa é a denominação dada à escrita degenerada da corte de Castela, usada também em Portugal
e no Brasil.
441
Outros a tem como uma disciplina eletiva onde os alunos podem escolher cursa-la ou não. Mas
há também os cursos que simplesmente não oferecem a disciplina de Paleografia fazendo com
que os estudantes que desejam se aprimorar nas técnicas de leitura de documentos manuscritos
tenham que realizar uma formação complementar em Paleografia fora de seu curso.
Para Krüger (2014) a institucionalização do ensino da Paleografia no exercício
profissional dos arquivistas é condição importante e imprescindível para o desempenho dessa
profissão, pois além de auxiliar na leitura e interpretação de documentos, ela colabora na exata
Classificação e Descrição dos mesmos.
Desse modo, podemos observar a importância que a paleografia possui como disciplina
nos cursos de Arquivologia e História sendo ferramenta base para a leitura e interpretação de
documentos antigos, como também, para a exata classificação e descrição dos mesmos.
Segundo Acioli (1994) problemas sérios tem sido enfrentados pelos profissionais que
se fiam cegamente nas publicações de textos raros, comuns nos livros e revistas de história. Ao
realizar o confronto dos originais com as suas transcrições, pode-se perceber quão viciadas são
muitas dessas edições, por conta dos vários erros de leitura paleográfica que estes contêm.
Diante disso, a autora afirma que o melhor processo de divulgação de textos manuscritos ainda
são as edições fac-símile por estas oferecerem, ao pesquisador atento, a oportunidade de análise.
Se este profissional “estiver acostumado à prática de leitura de manuscritos, poderá facilmente
discernir, mesmo numa cópia impressa de um texto, os erros introduzidos na transcrição em
consequência da má interpretação na leitura de um documento” (ACIOLI, 1994, p. 1).
A desenvoltura na leitura de documentos manuscritos é o que poderíamos esperar de
alunos egressos de cursos que tem como base o trabalho em acervos documentais. Mas
profissionais formados nos cursos de Arquivologia e História, oferecidos pelas universidades
públicas Estaduais e Federais do país, após finalizarem seus cursos, se deparam com um cenário
bem diferente daquilo que conheceram enquanto estudantes. No seu contato diário com os
arquivos, este profissional muitas vezes sente a necessidade de conhecimentos que não foram
devidamente prestados durante a sua formação acadêmica.
Um desses conhecimentos diz respeito justamente à técnica de Paleografia. Muitos dos
alunos que se formam em cursos de Arquivologia e História, relatam que não tem a habilidade
necessária para realizar a leitura e transcrição segura de documentos manuscritos. Alguns deles
admitem que, diante da necessidade de leitura de um documento manuscrito imposta por uma
necessidade de pesquisa ou de trabalho, acabam recorrendo a profissionais que realizam essa
atividade de forma remunerada, ou seja, mesmo formados em cursos que tem como uma de
442
suas bases a leitura do documento, tais profissionais preferem recorrer a serviços terceirizados
para cumprir suas tarefas com os mesmos.
Diante de tal cenário, chego as seguintes interrogações em meu trabalho: que relevância
a disciplina de Paleografia possui dentro dos cursos de Arquivologia e História ofertados pelas
universidades públicas Federais e Estaduais brasileiras que possuem em simultaneidade os dois
cursos? Diante da presença da disciplina de paleografia nos referidos cursos, qual a carga
horária reservada para ela? E qual a formação dos professores que a ministram nesses referidos
cursos?
Como hipótese, posso constatar que através de uma análise de dados, realizada nas
matrizes curriculares de Universidades Públicas Estaduais e Federais que possuem ao mesmo
tempo o curso de Arquivologia e História, existe a possibilidade de construir o cenário da
presença/ ausência da disciplina de Paleografia, sua carga horária e a modalidade (obrigatória
ou opitativa), mostrando assim a relevância dada à disciplina por tais instituições.
443
Quadro ˗ Análise dos dados existentes nas matrizes curriculares encontradas nos sites das
Universidades Públicas Estaduais e Federais brasileiras que possuem o curso de Arquivologia.
444
Quadro ˗ Análise dos dados existentes nas matrizes curriculares encontradas nos sites das
Universidades Públicas Estaduais e Federais brasileiras que possuem o curso de História
445
Quadro ˗ Análise dos dados existentes nas matrizes curriculares encontradas nos sites das
Universidades Públicas Estaduais e Federais brasileiras que possuem o curso de Arquivologia
e História
446
momento, precisará fazer a leitura dos mesmos com o auxílio das técnicas de Paleografia para
poder realizar atividades de descrição e classificação de tais documentos.
O ideal seria que esses profissionais obtivessem o conhecimento das técnicas de
Paleografia em seus cursos de formação, já que os mesmos, em suas carreiras, farão uso de
diversas tipologias documentais para realizar seus trabalhos. Mas, ao promover uma pesquisa
básica sobre a oferta da disciplina de Paleografia nos referidos Cursos, podemos notar que em
muitos deles ela se caracteriza como uma disciplina eletiva, quando não constatamos a sua total
inexistência.
No curso de Arquivologia da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) localizado em
João Pessoa (Campus V) a disciplina de Paleografia é ofertada nos períodos diurno e noturno
desde que o curso foi criado em 2006, sendo obrigatória e com carga horária de 30 horas. No
entanto, pela nova matriz curricular que em breve será colocada em funcionamento, a sua carga
horária será elevada para 60 horas. Isso se deve, principalmente, à percepção dos professores
que ministram a disciplina de que a carga horária anterior é insuficiente para abarcar com
segurança as técnicas básicas de leitura de documentos manuscritos.
Mas enquanto o curso de Arquivologia da UEPB possui a disciplina de Paleografia
como básica em sua matriz curricular, em outros cursos de Arquivologia não ocorre à mesma
coisa. Podemos comparar, por exemplo, com outro curso de Arquivologia existente na mesma
cidade: o da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Apesar de haver em sua matriz curricular
a disciplina de Paleografia com a carga horária de 60 horas, esta é eletiva, ou seja, não
obrigatória.
Na Universidade Federal do Pará (UFPA), onde o curso de Arquivologia é o mais
recente do Brasil, a disciplina de Paleografia é obrigatória com 60 horas. Já na Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), mesmo sendo este curso de Arquivologia o
primeiro a existir no Brasil, a disciplina é disponibilizada de forma optativa com 60 horas. Na
Universidade Federal da Bahia (UFBA) a disciplina de Paleografia também é ofertada de forma
optativa tanto no turno diurno quanto no noturno com a carga horária de 68 horas.
Situação semelhante à oferta da disciplina de Paleografia como optativa pode ser
encontrada nos cursos de História existentes nas universidades Públicas Estaduais e Federais
do Brasil. No curso de História da UEPB localizado nas cidades de Campina Grande (Campus
I) e Guarabira (Campus III) com horários diurno e noturno a disciplina é optativa. O mesmo
ocorre na UFPB. Apesar deste curso ter sido criado em 1951, como já vimos, ou seja, quatro
447
anos antes da fundação da própria universidade (1955), a disciplina de Paleografia continua
sendo relegada a categoria de disciplina optativa.
A partir das pesquisas realizadas até o momento nos sites das Universidades Públicas
Estaduais e Federais que possuem os dois cursos, foi possível também a elaboração do quadro
representativo com as informações sobre a ausência/presença da disciplina de Paleografia em
suas matrizes curriculares, além da carga horária disponibilizada para seu ensino e a modalidade
em que esta se caracteriza, ou seja, se a disciplina é proposta de forma obrigatória ou optativa.
Desse modo, as informações encontradas ficaram dispostas da seguinte maneira:
Quadro ˗ Análise dos dados existentes nas matrizes curriculares encontradas nos sites das
Universidades Públicas Estaduais e Federais brasileiras que possuem o curso de Arquivologia
e História.
(continua)
Arquivologia História
Na verdade, a disciplina de Paleografia no curso de História da UNIRIO não pertence ao Departamento de
História. Ela é ofertada como eletiva com 45 h/a pelo Departamento de Estudos e Processos Arquivísticos.
448
Grande do Sul –
UFRGS
Universidade SIM 30 h Obrigatória NÃO - -
Estadual Paulista
–
UNESP/MARÍLI
A
Universidade SIM 60 h Obrigatória SIM 80 h Optativa
Estadual da
Paraíba – UEPB
Universidade SIM 60 h Optativa SIM 60 h Optativa
Federal da
Paraíba – UFPB
Universidade SIM 60 h Obrigatória NÃO - -
Federal de Minas
Gerais – UFMG
Universidade SIM 45 h Obrigatória NÃO - -
Federal do
Amazonas –
UFAM
Universidade SIM 30 h Optativa NÃO - -
Federal do Rio
Grande – FURG
Universidade SIM 36 h Obrigatória SIM 72 h Optativa
Federal Santa
Catarina – UFSC
Universidade SIM 60 h Obrigatória NÃO - -
Federal do Pará –
UFPA
Fonte: elaboração dos autores, 2017.
Analisando o quadro acima podemos constatar que das 16 Universidades que possuem
os cursos de Arquivologia, apenas duas não possuem a disciplina de Paleografia. Desses 14
cursos onde a disciplina de Paleografia se faz presente, 9 a tem como modalidade obrigatória
enquanto 6 a mantém como disciplina optativa.
Chamo a atenção para o caso da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Nesta
instituição a disciplina de Paleografia é oferecida tanto na modalidade obrigatória como na
optativa. Acontece que a disciplina está dividida em duas partes: Paleografia e Diplomática I
e Paleografia e Diplomática II. Desse modo, além de ser apresentada na matriz curricular da
instituição em conjunto com a Diplomática, a disciplina acaba sendo dividida, cabendo ao aluno
a escolha de aprofundar os conhecimentos que foram vistos na disciplina anterior, ofertada
como obrigatória no 3º período do curso (tanto diurno quanto noturno) tendo agora, que cursa-
la como optativa.
449
Quanto à carga horária, podemos observar que metade dos cursos de Arquivologia que
contém a disciplina de Paleografia, dispõe das 60 horas/aulas para seu aprendizado tendo no
mínimo às 30 horas aulas reservadas para a disciplina nas outras universidades.
No caso do curso de História, podemos contabilizar a presença da disciplina de
paleografia em apenas 7 dos 15 cursos pesquisados, lembrando que desde o início afirmei que
a Universidade Estadual Paulista (UNESP/MARÍLIA) não possuía o curso de História em sua
universidade. Mesmo assim, decidi mantê-la no quadro para que o curso de Arquivologia que
a instituição possui pudesse ser analisado.
A carga horária da disciplina de Paleografia existente nesses cursos varia entre 45 e 80
horas, sendo interessante notar que apesar da média da carga horária ser bem mais alta do que
a disponibilizada nos cursos de Arquivologia, em apenas num dos cursos de História ela é
obrigatória. Isso ocorre no curso de História pertencente à Universidade Federal da Bahia
(UFBA) onde o curso é dividido em bacharelado e licenciatura. Desse modo, no bacharelado é
exigido que o aluno curse obrigatoriamente a disciplina de Paleografia, o que não acontece
quando este aluno opta apenas pela licenciatura. A impressão que fica é a de que a Universidade
tem a seguinte opinião sobre a disponibilização da disciplina: se o aluno escolheu não seguir a
carreira de pesquisador, proporcionada pelo bacharelado, então ele não necessitará dos
conhecimentos das técnicas paleográficas e por isso a disciplina, na licenciatura, ficará relegada
a modalidade optativa.
No caso do curso de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) a disciplina
de Paleografia é ofertada na modalidade optativa tanto na licenciatura quanto no Bacharelado.
Já na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) a disciplina de Paleografia
não é ofertada pelo programa de História. Mesmo assim ela existe na matriz curricular deste
curso sendo ofertada na modalidade optativa pelo Departamento de Estudos e Processos
Arquivísticos, demostrando um inesperado (e feliz) intercâmbio entre os cursos de História e
Arquivologia da instituição.
Através dos dados construídos até o momento, com a pesquisa das matrizes curriculares
dos cursos de Arquivologia e História nos sites destas instituições, é possível notar as
peculiaridades que cercam as referidas universidades. Um estudo mais aprofundado das
demandas que estas instituições recebem de suas regiões referentes à formação de seus
estudantes para o mercado de trabalho talvez explique determinadas escolhas da
disponibilização ou não da disciplina de Paleografia em seus cursos de Arquivologia e História,
como também o tempo das horas aulas reservado para o seu ensino. Embora esse não seja o
450
objetivo do trabalho, entendo que uma pesquisa desses pontos poderia revelar diversos aspectos
intrínsecos que envolvem as escolhas, por parte das instituições, das disciplinas que deveriam
ser ofertadas dentro de seus cursos e, entre elas, a escolha ou não pela Paleografia.
Apesar de ainda não ser possível realizar a análise dos dados referentes à formação dos
professores responsáveis por ministrar as aulas de Paleografia nos cursos de Arquivologia e
História das Universidades abordadas, atividade esta que levará mais tempo e que estará
presente no Trabalho de Conclusão de Curso já citado, esperamos ter conseguindo, com os
dados que foram construídos até o momento, realizar um panorama da disponibilização da
disciplina de Paleografia nos referidos cursos com a finalidade de compreender a relevância
dada ao ensino desta disciplina pelas Universidades Públicas Estaduais e Federais do país.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
451
REFERÊNCIAS
ACIOLI, Vera Lúcia Costa. A escrita no Brasil colônia: um guia para leitura de documentos
manuscritos. Recife: FUNDAS, Editora Massangana, UFPB: Editora Universitária, 1994.
FERES, Glória Georges. MENDES, Ubirajara Dolácio. Noções de Paleografia. 2. Ed. São
Paulo: Arquivo Público do Estado de São Paulo, 2008. [Resenha]. Revista Brasileira de
Biblioteconomia e Documentação, Nova Série, São Paulo, v.4, n.2, p. 139, jul./dez. 2008.
GIL, A. C. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6 Ed. São Paulo. Atlas, 2008. Disponível
em: http://www.moodle.ufba.br/file.php/12618/livroantoniocarlosgil.pdf. Acesso em: 21 jul.
2017.
MENDES, Ubirajara Dolácio. Noções de Paleografia. 2. Ed. São Paulo: Arquivo Público do
Estado de São Paulo, 2008.
452
http://www.unisc.br/portal/upload/comarquivo/pesquisaqualitativacaracteristicas usos e
possibilidades.pdf. Acesso em: 23 jul. 2017.
453
O LABOR FILOLÓGICO PARA EDIÇÃO DO POEMA RETICENCIAS,
DE EULÁLIO MOTTA
INTRODUÇÃO
454
Após se formar no curso de Farmácia, na Faculdade de Medicina da Bahia, em 1933, e
ter vivido em Cachoeira e num povoado do município de Miguel Calmon, o poeta de “água
doce”, Eulálio Motta, refugiou-se na Fazenda de Morro Alto, dedicando-se à criação de gado,
ao jornalismo, e, eventualmente, exercia os conhecimentos farmacêuticos.
Tal como o bom filho que a casa torna, Eulálio Motta regressou a Mundo Novo e se
entregou ao destino por ele mesmo traçado. Aspirando se tornar escritor, assumiu a identidade
do “escriba da roça”, dedicando-se à atividade literária e jornalística. De acordo com Barreiros
(2012), Eulálio Motta utilizou-se da palavra escrita nas mais diversas circunstâncias:
Foi através da prática escriturística que Eulálio Motta deu sentido a sua existência.
Ele criou um mundo a partir da palavra escrita e nesse mundo manteve vivos os sonhos
do amor platônico pela jovem Edy; da transformação da sociedade a partir de suas
teorias políticas; da correção do caráter das autoridades através da crítica mordaz de
seus panfletos; etc (BARREIROS, 2012, p.25).
Na busca incessante por ser reconhecido como escritor, Eulálio Motta fez da palavra
escrita instrumento para marcar sua presença no mundo. Por meio dela, legou-nos uma
produção literária de contorno autobiográfico. As temáticas recorrentes na lira do poeta,
trovador e cordelista, versavam entre a frustração amorosa, a saudade da infância, a fugacidade
do tempo e o vazio existencial.
A compulsão pela escrita é justificada pelo poeta como uma forma de atender ao
chamado dos seus instrumentos de trabalho: “Sobre a pequena mesa em que trabalho, o tinteiro
e o papel parecem que me olham e me convidam para trabalhar. Encostada ao tinteiro, a pena,
parada, parece que também me olha, chamando-me [...]” (MOTTA, 1932, p.6).
Apesar da vasta produção literária, Eulálio Motta publicou apenas alguns poemas em
jornais e revistas e três livros de poesias: Ilusões que passaram (1931), Alma enferma (1933) e
a primeira edição de Canções do meu caminho (1948), além da regular publicação de panfletos,
entre os anos de 1949 e 1988, na cidade de Mundo Novo. No entanto, de acordo com Barreiros,
“[...] todas essas publicações representam menos de um terço de sua produção escrita que ainda
se encontra inédita e foi preservada em cadernos, datiloscritos e folhas dispersas” (MOTTA,
2012, p. 50), a exemplo dos poemas escritos em papel avulso que integraram o livro inédito
Luzes do crepúsculo e o próprio projeto editorial esboçado em caderno homônimo.
Os mais de sessenta anos dedicados ao fazer literário resultou na constituição de um
grande acervo, uma fonte documental primária salvaguardada pelo próprio escritor. A relação
que Eulálio Motta estabeleceu com seus escritos, não se desfazendo dos textos manuscritos
(copiados, inacabados e rasurados), prova como o escritor valorizava o percurso da composição
455
de seus textos, facultando o que mais tarde se tornaria um corpus para pesquisas na área de
Crítica Genética.
O ACERVO DE EULÁLIO MOTTA: UM LABORATÓRIO DE PESQUISA
457
Canonizando textos literários por meio de métodos e procedimentos consubstanciados
na “Crítica Textual” (SPINA, 1994, p. 82), a filologia legou-nos importantes documentos
textuais. Desse modo, foram os filólogos alexandrinos os precursores da Crítica Textual, ciência
voltada para o estabelecimento do texto.
A Crítica Textual, como disciplina científica, nasceu no século XIX com o método
lachmaniano criado pelo alemão Karl Lachmann, que institui rigor científico no
estabelecimento do texto crítico buscando a eliminação da subjetividade do editor na
reconstituição do texto original perdido. No entanto, no século XX, o método lachmaniano não
atendeu mais às novas realidades textuais, fato que resultou em questionamentos e na sua
adaptação.
Giorgio Pasquali (1952), após refletir sobre a rigidez do método lachmanniano
sistematizado por Paul Mass (1949), fez importantes intervenções que mais tarde tornou sua
aplicação menos rígida. Dentre os muitos conceitos produtivos, distinguiu a crítica do texto e a
história da tradição, disciplinas consideradas fundamentais e complementares, mas com
propósitos diferenciados. O olhar para a história do texto é o que hoje chamamos de sociologia
do texto, que consiste no estudo das vicissitudes do mesmo ao longo do tempo. Em suma, o
exame das modalidades de transmissão desse produto cultural que é lido, copiado e difundido,
prática da qual já se ocupara o filólogo.
Após as críticas e refutações de Bédier (1913) ao método de Lachmann, o interesse da
Crítica Textual, no século XX, passou a ser a recuperação do “ânimo autoral” ao lidar com os
textos autorais e a grande quantidade de testemunhos autógrafos. Contudo, a preocupação da
Crítica Textual continuou sendo o estabelecimento do texto sustentado na concepção de que
somente um testemunho, o considerado ideal, deveria se tornar conhecido. Os demais
testemunhos de um mesmo texto entravam na categoria de variante, como prova documental da
veracidade do texto tido como ideal (BARREIROS, 2015).
A nova perspectiva da Crítica Textual Moderna, após a revisão crítica do método
lachmaniano, configurou uma nova concepção de filologia que deu espaço para a publicação
de textos de autores modernos. Trata-se da filologia do autor presente. A rigor, é nos
manuscritos autógrafos modernos que se verifica a presença de variantes genéticas (ou de
autor), que difere das variantes dos copistas. Dito isto, é importante salientar que o texto original
“não apresenta apenas uma evolução posterior à sua publicação, mas também uma pré-história
que revela a própria gênese da obra” (SPAGGIARI; PERUGI, 2004 p. 51-52). Assim, para o
458
estudo da gênese de uma obra em suas várias fases de elaboração, torna-se indispensável a
existência do espólio relativo ao autor ou a sobrevivência de redações múltiplas de sua autoria.
De acordo com Grésillon (2007), é a partir da tradição editorial alemã de Lachmann,
mais precisamente com a concepção da edição crítica de Friedrich BeiBner ( Beissner), criada
em 1937, que se observa o interesse pela concepção dinâmica do texto. A partir dessa inovação
editorial que conta com o aparato crítico das variantes, denominado de aparato sinóptico, cada
segmento do texto de base é confrontado com cada uma das variantes de gênese presentes no
conjunto dos testemunhos. Desse modo, a “história do texto” é apresentada permitindo pensar
a obra em termos de processo. Logo, nota-se que a correspondência existente entre a prática da
edição alemã com as reflexões sobre a gênese fora estabelecida há muito tempo.
Nesse contexto, o surgimento do fac-símile tornou o manuscrito multiplicável,
favorecendo sua exploração por parte dos pesquisadores e facilitando o trabalho do filólogo,
além de privilegiar o estudo da gênese. Tal estudo também se beneficiou a partir do momento
que os filólogos e geneticistas passaram a olhar para dentro do laboratório do escritor, reduto
que fornece material para análise e interpretação da criação literária, que vai “desde a eclosão
da ideia generativa até à sua realização, passando através do processo de elaboração duma
matéria não raro informe” (BONACCORSO, 1983, apud, SPAGGIARI; PERUGI, 2004).
Na edição crítica, o estabelecimento do texto é realizado depois da checagem das
variantes autorais (se houver), pois elas atestam o caráter de criticidade da edição e permitem
chegar à versão considerada de última vontade do autor, conforme aponta Spina ao afirmar que
A edição genética não tem somente como função fazer ler ou fazer ver. Ela deve,
também, fazer compreender. Qual foi o processo de trabalho do escritor? Como
interpretar a função de uma caderno, o lugar de um acrécimo, o destino de um rabisco?
Daí, a utilidade de um comentário de acompanhamento da gênese [...] (HAY, 2003,
p.76).
Tratando da edição crítica em perspectiva genética, Borges (2012, p. 60) ressalva que
esse tipo de edição “é uma prática editorial que concilia duas metodologias afins no campo da
filologia: a crítica textual e a crítica genética”, pois prima pelo estabelecimento do texto crítico,
mas seu objetivo central está no “processo” de criação do texto. Não obstante, essa edição
permite perceber a construção da identidade autoral do sujeito na captura das inconstâncias
escriturais presentes nas campanhas de redação dos manuscritos. Ainda segundo a autora:
[...] em uma edição crítica, o objetivo está ainda na fixação do texto. Quando, porém,
se leva em conta o “processo” da criação de um texto dentro daquilo que seria, com
maior exatidão, a situação textual planejada, projetada e realizada pelo autor, a edição
reverte-se em um exemplo concreto da práxis filológica, ao tirar do recôndito obras
que não alcançaram grande público (BORGES, 2012, p. 61).
460
um diálogo com pesquisadores e pensadores de outras áreas do conhecimento, a exemplo de
Rudolf Arnheim, Ítalo Calvino, Freud, Vigotski e tantos outros. Muitos foram os poetas e
escritores que lutaram em defesa de uma crítica fundada na literatura em ato, em um estudo que
dessa conta do processo de fabricação, do modus operandi do texto literário. Nesse ensejo,
Maiakovski, no ano de 1926, observou que “[...] a própria essência do trabalho sobre a literatura
não reside em um julgamento das coisas já feitas [...], mas antes em um legítimo estudo do
processo de fabricação” (MAIAKOVSKI, 1957, p.344 apud GRÉSILLON, 2007, p. 20).
Edgar Alan Poe exemplifica a noção de literatura como construção ao escrever o texto
intitulado The Fhilosophy of Composition, no qual o escritor descreve a composição do seu
poema The Raven (O Corvo) como um labor metódico e analítico, de modo a abalar a visão
conservadora e ao mesmo tempo simplista que colocava a arte como espaço aberto para
subjetividade e sensibilidade, opondo-a a objetividade e rigor que seriam próprios da ciência,
dentro de uma perspectiva dicotômica. Nas palavras de Poe, “nenhuma parte da composição
pode ser atribuída ao acaso ou à intuição”, pois toda obra segue, tal como a lógica de um
problema matemático, uma solução. Nesse sentido, Willemart (2009) reafirma o pensamento
de Põe ao igualar a mente do escritor a do cientista, ao postular que ambas seguem regras
comuns.
De acordo com Salles (2002), a análise dos passos dado pelo escritor em direção à sua
obra faz com que esse encalço da Crítica Genética possibilite uma investigação de caráter
indutivo acerca do processo criativo. Desse modo, a Crítica Genética é a ciência que parece
atender a esse desejo de escrutinar o ateliê mental do escritor por meio do estudo dos
manuscritos (portadores de traços que evidenciam a dinâmica própria do texto em devir), em
busca de elucidar o percurso de criação da obra, “o ir e vir da mão do artista”.
Assim, a Crítica Genética, em seus primórdios, nasce alimentada pela tradição editorial
alemã de BeiBner que, ao pensar a obra em termos de processo e introduzir na teoria do texto
sua concepção dinâmica, alimentou também o nascimento de um novo tipo de edição: a “edição
genética ou crítico-genética”.
A EDIÇÃO
A seguir, será apresentada a edição do poema inédito Reticências, que dispõe de dois
testemunhos manuscritos. O poema trata da possível motivação que seria tema do poema em
461
estado nascente, as lembranças do poeta quando vira pela primeira vez a mulher amada.
Sentindo-se impelido a escrever as recordações dos sentimentos da paixão adolescente, por
medo do ridículo que considerou serem as pieguices sentimentais, a poesia narra o insucesso
de uma não criação literária coberta por reticências, que o poeta tentou trazer à tona no dia 29
de abril de 1961, mas interrompeu. O resultado dessa interrupção resultou no esclarecimento
de um texto que não chegou a ser o que deveria ter sido, sem, contudo, deixar de esclarecer a
composição do poema originado.
TIPO DE EDIÇÃO
uma prática editorial que concilia duas metodologias, afins no campo da Filologia: a
crítica textual e a crítica genética. Têm-se, portanto, dois propósitos: estabelecer o
texto, considerando a pluralidade de versões manifestas nas marcas autógrafas, e
documentar o percurso seguido pelo autor na construção de cada texto ou da obra
(BORGES, 2012, p.60).
Critérios
a) Descrição dos testemunhos;
b) Para cada testemunho é atribuído um código para orientar a estrutura do aparato;
c) Análise das variantes;
d) Justifica-se a escolha do texto de base;
e) O texto crítico é apresentado da seguinte forma:
- Linhas numeradas de 5 em 5 à margem esquerda;
- O aparato à margem esquerda corresponde a cada linha do texto, sendo sinalizadas
as variantes, em negrito, de cada um dos testemunhos indicados por meio do código
previamente estabelecido na descrição dos testemunhos;
- O aparato apresenta as variantes em ordem cronológica;
f) Manteve-se o uso de maiúsculas e a pontuação;
g) Atualização da grafia;
462
h) Foi utilizado o seguinte operador genético para registrar o movimento de
escritura do texto: { } segmento riscado, cancelado.
RTM1
Manuscrito do caderno Luzes do Crepúsculo, p. 14-15.
Texto em tinta azul, letra legível, com rasuras. Título centralizado grafado com letra maiúscula
de cor azul, com contorno feito a tinta vermelha. A numeração da página na margem superior,
lado direito, encontra-se de tinta vermelha. A folha de papel amarelada com partes do texto
manchadas pela tinta, sem comprometer a leitura.
RTM2
Manuscrito avulso, sem código catalográfico
Texto em tinta preta, letra legível, sem rasura. Título centralizado grafado com letra maiúscula.
Documento em bom estado de conservação.
Tendo em vista que se trata de dois manuscritos avulsos não datados, optou-se pela escolha do
testemunho sem rasuras, pois se acredita que o mesmo atende a última vontade do autor. Trata-
se de um documento escrito com caligrafia bem realizada, de traçado levemente inclinado,
demonstrando falta de ligeireza no deslizar da tinta da caneta sobre o papel, típico de um texto
passado a limpo.
463
Fonte: Fac-símile do MA.
464
uma rua...
uma casa...
15 uma janela... RTM1 {jinela}/janela\...
............................................................. RTM1 .............ELA!
Olho a caneta ...
Olho o papel em branco sobre a mesa... RTM1 olho o papel em branco
.............................................................. RTM1 sobre a mesa...
RTM1 vontade de escrever...
RTM1 {Repelido} Sinto-me repelido...
20 Debruço-me sobre a caneta... RTM1 {Debruço}/Debruço a cabeça sobre a mesa\ sobre a caneta...
Sobre o papel em branco... RTM1 sobre
.............................................................. RTM1 . Fecho os olhos... . . . . . . .
RTM1 E...
[Eulálio Motta]
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
BARREIROS, Patrício Nunes. Sonetos de Eulálio Motta. Feira de Santana: UEFS Editora,
2012.
BORGES, Rosa. Edição crítica em perspectiva genética. In: __________. et al. Edição de
texto e crítica filológica. Salvador: Quarteto, 2012, p. 60-105.
__________. Entre acervos, edição e crítica filológica. Cadernos do CNLF, Vol. XVI, nº 04,
t. 1 – Anais do XVI CNLF. Rio de Janeiro, 2012, p. 515-524.
__________. Alguns Pontos sobre a História da Crítica Genética. Estudos Avançados, São
Paulo, v.5, n. 11, jan./abr. 1991.
HAY, Louis. A literatura sai dos archivos. In: SOUZA, Eneida Maria de; MIRANDA,
Wander Melo (Org.) Arquivos literários. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.
MOTTA, Eulálio. Rabiscos, depois. Jornal Mundo Novo, Mundo Novo, 19 de fev., 1932ª, p.
6.
POE, Edgar Allan. Poemas e Ensaios. Tradução de Oscar Mendes e Milton Amado. 3. ed.
São Paulo: Globo, 1999.
466
SPINA, Segismundo. Introdução à edótica: Crítica textual. 2ª ed. revisada e atualizada. São
Paulo: Ars Poética; Edusp, 1994.
467
O GOVERNO ECLESIÁSTICO NA CAPITANIA DA BAHIA NO
SÉCULO XIX: ASPECTOS PALEOGRÁFICOS DA EDIÇÃO
SEMIDIPLOMÁTICA
INTRODUÇÃO
Para se compreender a configuração atual das sociedades, parte-se do estudo das mais
variadas fontes de informação. O texto, nas suas variadas possibilidades de suportes e formatos,
é uma das principais fontes de informação para a constituição da história das civilizações. O
historiador, assim como o estudioso da história da língua, e pesquisadores de outras áreas afins,
que se servem do texto como testemunho, memória de épocas pretéritas, compreendem a
importância das fontes primárias do passado no esclarecimento das práticas da sociedade atual
(LE GOFF, 1990, ELLIS, 1953). Nesse sentido, conforme reiteram Samara, Dias e Bivar
(1986), a Paleografia, entendida como a ciência que possibilita a adequada leitura de
documentos antigos escritos em suporte brando, sobretudo os manuscritos, aliada à Diplomática
e a outras ciências auxiliares, colaboram na função primordial de preservação e difusão da
História, já que através da leitura, análise e esclarecimento destas fontes de informação, é
possível torna-las acessíveis a um número maior de indivíduos.
O presente estudo objetiva apresentar alguns aspectos paleográficos observados no
desenvolvimento de uma edição semidiplomática de dois fólios do documento Notícia geral de
toda esta capitania da Bahia desde o seu descobrimento até o prezente anno de 1759. O trecho
selecionado é um fragmento da seção intitulada A Bahia dividida em três governos.
Ecleziástico, Civil ou Secular, e Militar, o qual introduz a Notícia do Gov(ern)o Ecleziástico.
O documento é de autoria do Sargento-mor José Antônio Caldas, engenheiro militar, arquiteto,
escritor e professor baiano de grande erudição, que exerceu importantes cargos em comissões
técnicas e civis, destacando-se na docência, na prática da arquitetura militar e também nos
contextos político e literário da época. Em 06 de junho de 1759, conforme destaca a historiadora
Myriam Ellis (1953), o documento fora apresentado à Academia Brasílica dos Renascidos em
Salvador, quando da sua inauguração, pelo professor Caldas, um dos seus fundadores, que teve
como propósito inicial, registrar a história eclesiástica, geográfica e natural, política e militar
da cidade.
468
A obra em foco, datada do século XVIII, reuniu alguns dos primeiros documentos da
história brasileira, sobre a Capitania baiana até o ano de 1750, período do reinado de D. José I
em Portugal. A leitura dos fólios editados foi feita a partir da edição fac-similar do documento,
disponível no Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. O trecho selecionado traz a introdução
da seção Notícia do Gov(ern)o Ecleziastico, que regulamenta questões espirituais e descreve as
instâncias hierárquicas do poder eclesiástico como o Bispado Metropolitano, Conventos,
Irmandades, entre outros.
O CONTEXTO HISTÓRICO-SOCIAL
114
Couro não curtido. (SANTOS, 2013, p. 72).
469
Figura ˗ Prospecto da Cidade da Bahia, 1801
115
Assembleia de eclesiásticos convocados para tratar de assuntos da diocese (NUNES, 2017, p.316).
116
Conforme Bellotto, 2002, é o tipo de documento não-diplomático informativo, ascendente, no qual se disserta
acerca de assunto científico, literário ou artístico para ser apresentada ao governo a uma corporação ou academia
(BELLOTTO, 2002, p. 74).
470
a importância da descrição pormenorizada da instância do Governo eclesiástico, dada a
relevância da penetração da Igreja por toda a colônia, servindo de veículo de divulgação das
determinações da Coroa portuguesa e, ao mesmo tempo configurando-se como testemunho da
presença lusa na América, fazendo fazer valer sua soberania frente aos seus adversários diretos
(PESSOTI, 2009).
Na leitura dos primeiros fólios do documento observa-se assim, a importância do
tratamento pormenorizado que Caldas conferiu à instância do Governo eclesiástico ao catalogar
os Bispos e Arcebispos além de quantificar e descrever, entre outros aspectos, as aldeias,
freguesias, conventos e irmandades leigas de Salvador no período (CALDAS, 1951 [1759]).
O DOCUMENTO
A edição fac-similar da Notícia geral de toda esta capitania da Bahia desde o seu
descobrimento até o prezente anno de 1759, data do ano de 1951 e encontra-se disponível na
Biblioteca do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. Embora outras edições do documento
já tenham sido preparadas, esta é, certamente, a mais conhecida e a mais consultada pelos
pesquisadores. A referida edição encontra-se em bom estado de conservação, sem marcas de
perfurações por insetos. É encadernada em brochura e apresenta alguns fólios soltos,
possivelmente em decorrência de desgaste relacionado ao tempo e ao manuseio. O documento,
organizado à maneira de livro manuscrito é escrito em ambas as faces dos fólios, com
numeração inserida em cada uma delas, a partir da sexta página de texto apresentando ainda
mapas e gravuras. O estudo aqui exposto toma por base a edição semidiplomática de dois fólios
do documento, desenvolvida pelas autoras, cujo trecho corresponde aos fólios de número 9 a
12, recto e verso, considerando a numeração original do documento, os quais descrevem a
constituição do Governo Eclesiástico da Capitania da Bahia. O fólio 9 apresenta o título A Bahia
dividida em tres Governos Ecleziastico, Civil ou Secular, e Militar e como subtítulo: Noticias
do Gov(ern)o Ecleziastico. Ao final do fólio 12, observa-se o próximo subtítulo: Noticia dos
Conventos deReligiozos que ha nesta Cid(ad)e., assunto que que será tratado na seção seguinte
do texto.
O trecho compreendido pelos 2 fólios selecionados, possui ao todo 82 linhas de mancha
escrita, lançadas em uma coluna, no recto e no verso de cada fólio, sendo numerada cada uma
471
das faces: 9, 10, 11 e 12 117. Quanto à mancha escrita, o fólio 10 possui 22 linhas, enquanto que
os outros três possuem 20 linhas cada. O texto é bem alinhado, margeado, e possui pontuação,
exceto na finalização dos parágrafos, que é marcada pelo alinhamento, de forma que o parágrafo
seguinte se inicia na mesma direção em que o anterior terminou. Já o início de cada novo
parágrafo é indicado por acréscimo de numeração progressiva, como se observa na figura a
seguir:
Figura – Uso do sinal de nasalidade (~) sobre a última letra do ditongo nasal
Fonte: Noticia...edição fac-similar (1951, f.9, L 10-12 )118. Grifo das autoras
117
Na margem superior direita (no recto: 9 e 11), e na margem superior esquerda (no verso: 10
e 12).
118
“[...]Compu-/nhase a Dioceze de 13 Capitulares que continhaõ 5/ Dignidades, Deam,
Chantre, Mestre Escola,[...]” (CALDAS, 1951 [1759], f.9, L.10-12, grifo nosso).
472
Figura – Ligaduras presentes no texto
DESCRIÇÃO SCRIPTOGRÁFICA
Trata-se de um documento escrito em letra cursiva do século XVIII, com escrita clara e
bastante regular. Na linha 1 do fólio 9, o título apresenta a uma maiúscula de destaque, com
dimensões maiores que as demais, à maneira de letrina A. Outras letras maiúsculas interessantes
como B, M e N nas linhas 1, 3 e 4, respectivamente, além de outras capitulares iniciando os
parágrafos, merecem destaque:
473
Quadro ˗ Aspectos scriptograficos
LETRAS IMAGEM LINHA DE
OCORRÊNCIA
A l.1
ch l.9
lh l.32
h l.5
ll l.5
p l.22
q l.36 e l.80
Figura – Letra “h” com grafia semelhante a uma letra “E” maiúscula
Abreviatura por
Govº Governo l.4
letra sobreposta
Abreviatura por
Serenº Serenissimo l.8
letra sobreposta
l.8;
Abreviatura por 29;
D. Dom
sigla 43;
Abreviatura l.8;
3º terceiro
Alfa-numérica 18
Abreviatura por
dº dito l.9
letra sobreposta
Abreviatura por
N Nossa l.10
sigla
Abreviatura por
Srª Senhora l.10
letra sobreposta
Abreviatura por
S. São l.10
sigla
Abreviatura por
Mᵉ Mestre l.14
letra sobreposta
l.18;
Abreviatura
2º segundo 30;
Alfa-numérica
476
Abreviatura por l.36;
q que
suspensão 80
Abreviatura por
S São l.42
sigla
Abreviatura
5.º quinto l.43
Alfa-numérica
Abreviatura por
Ger.as Geraes l.65
letra sobreposta
Abreviatura por
Pagam.to pagamento l.71
letra sobreposta
Abreviatura por
S. Sua l.74
sigla
Abreviatura por
Mag.ᵉ Magestade l.75
letra sobreposta
Abreviatura por
Cid.ᵉ Cidade l.82
letra sobreposta
477
GLOSSÁRIO
478
Nimia: adv. Excessivo, demasiado. (FIGUEIREDO, 1913, p.1393).
“[...]Bispadoz sufraganeos. Porque parecendo aEl Rey Dom /Pedro segundo que pela nímia
extensaõ desta Dioceze, quecom /Prehendeso de Costa mais de mil legoas, epelo Sertão /ainda
se lhe naõ sabe ofim, senaõ podia governar por /humso Prelado por mais vigilante quefose,
suplicou /a Santidade deInocencio 11dismembrase esta Dioce [...]”(CALDAS, 1951 [1759],
f.10, l.29-34. Grifo das autoras).
Prebendados: s.m. e adj. Indivíduo, que tem prebenda.
Prebenda: s.f. [Lat. praebenda] Rendimento de um canonicato; canonicato. Ext. Renda
eclesiástica. (FIGUEIREDO, 1913, p.1625).
“[...]Nossa Senhora da Vitoria e São Jorge doz Ilheos. Compu- /nhase a Dioceze de 13
Capitulares que continhaõ 5 /Dignidades, Deam, Chantre, Mestre Escola, Arcedia- /go,
eThezoureiro Mor, 6 Conegos Prebendados, e2 /meios-Prebendados com 6 Capelaens,[...]”
(CALDAS, 1951 [1759], f.9, l.10-14. Grifo das autoras).
Prelado: s.m.[Do lat.praelatus] Título de certas dignidades eclesiásticas (FIGUEIREDO, 1913,
p.1629).
“[...]Bispadoz sufraganeos. Porque parecendo aEl Rey Dom /Pedro segundo que pela nímia
extensaõ desta Dioceze, quecom /Prehendeso de Costa mais de mil legoas, epelo Sertão /ainda
se lhe naõ sabe ofim, senaõ podia governar por humso Prelado por /mais vigilante quefose,
suplicou /a Santidade deInocencio 11dismembrase esta Dioce[...]” (CALDAS, 1951 [1759],
f.10, l.29-34. Grifo das autoras).
Sufraganeos: s.m [Do lat. suffrago]. Relacionado a bispo – Bispo Sufragâneo, aquele que está
subordinado ao bispo metropolitano. Ao bispo sufragâneo é atribuída uma região que ainda não
possui catedral própria, ou seja, depende de um bispo ou bispado metropolitano (BLUTEAU,
1728, p.777).
“[...]Repartindose em seos /Bispadoz sufraganeos. Porque parecendo aEl Rey Dom[...]”
(CALDAS, 1951 [1759], f.10, l.28-29. Grifo das autoras).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
CALDAS, Jozé Antonio. Noticia geral de toda esta Capitania da Bahia desde o seu
descobrimento até o prez(en)te ano de 1759. Edição fac-similar. Salvador: Tipografia
Beneditina, 1951 [1759].
CAMBRAIA, César Nardelli. Introdução à crítica textual. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
480
ELLIS, Myriam. A Capitania da Bahia nos meados do século XVIII. A propósito da
publicação recente de uma obra de grande valor documental. Revista de História, Brasil, v.
6, n. 13, p. 197-209, mar. 1953. ISSN 2316-9141. Disponível em:
<http://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/35230/37951>. Acesso em: 28 ago. 2017.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Tradução Bernardo Leitão [et al.] Campinas, SP:
Ed. da UNICAMP, 1990.
LOSE, Alícia Duha; TELLES, Célia Marques. Sobre a Noticia Geral de toda esta Capitania da
Bahia, apenas uma crônica de José Antônio Caldas? In: Labor Histórico. Rio de Janeiro. n.2, v.2,
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2.ed revisada. Simões Filho – Ba: Kalango, 2017.
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do Brasil. In:______. As fortificações portuguesas de Salvador quando cabeça do Brasil.
Salvador: Fundação Gregório de Mattos, 2004. p. 87-143.
SAMARA, E.; DIAS, M.; BIVAR, V. Paleografia e fontes do período colonial brasileiro.
São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 1986.
481
O TRABALHO DE TRANSCRIÇÃO PALEOGRÁFICA DAS ATAS
ADMINISTRATIVAS DA SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DA
PARAÍBA DO
INTRODUÇÃO
119
Embora não existam documentos que permitam precisar a data de construção desta Igreja, o historiador Wilson
Nóbrega Seixas chama atenção para algumas fontes documentais que sugerem a existência da Igreja ainda no
século XVI, em especial, a ata da Primeira Visitação do Santo Ofício à Paraíba, de 1595 (registrada e transcrita
482
Seu conjunto arquitetônico, aos poucos foi formado pela pequena Igreja da Misericórdia, o
Hospital de Caridade ao fundo e um pequeno cemitério localizado ao redor da Igreja. Esses
prédios foram se formando no centro da atual João Pessoa, na época conhecida como cidade de
Nossa Senhora das Neves120. Desses espaços, apenas Igreja da Misericórdia se encontra ainda
em funcionamento, localizada na atual rua Duque de Caxias, no centro da capital paraibana.
Durante a metade do século XIX, a instituição ainda era responsável pela realização de
diversas atividades voltadas à assistência da população paraibana como o enterramento de seus
habitantes no Cemitério Senhor da Boa Sentença, também administrado pela ordem, o
acolhimento de crianças abandonadas na roda dos expostos e mais tarde entregues aos cuidados
de criadeiras, com um auxilio financeiro pelo seu sustento, pedidos de esmolas para os presos
que padeciam nas celas insalubres das prisões, e serviços religiosos, comuns a instituição.
A frente da administração da Santa Casa estava o provedor121, auxiliado por membros
pertencentes a Mesa Administrativa e a Junta Definitória122. Para administrar os diferentes
“setores de caridade” conhecidas como mordomias123, o Provedor escolhia pessoas de sua
confiança com a anuência do presidente de província para delegar a responsabilidade por cada
um desses setores.
Em alguns períodos do ano, ocorriam as reuniões entre o provedor e os demais membros
pertencentes a Mesa Administrativa e a Junta Definitória. Nestas reuniões, ocorria o registro
das ações e dos acordos feitos entre os membros, como ocorre atualmente, em atas
administrativas.
por Eduardo Prado em 1925) que situa a “igreja da mizericordia” na rota da procissão solene que abriria os
trabalhos inquisitoriais.
120
Fundada pelos portugueses em 1585, a cidade de João Pessoa teve como primeiro nome Nossa Senhora das
Neves. Durante a União Ibérica estabelecida entre Portugal e Espanha, a cidade passou a se chamar Filipeia de
Nossa Senhora das Neves. No século XVII, devido as invasões holandesas, recebeu o nome de Frederica tendo,
ao termino dessa, recebido a denominação de Parahyba. Em 1930, devido ao assassinato de seu presidente, a cidade
passou a se chamar João Pessoa.
121
Membro da elite da província que assumia o cargo de comando da Santa Casa de Misericórdia. Não recebia
salário em troca de seu serviço mais conseguia bastante prestigio perante a sociedade da época. Esta era o único
cargo que não poderia ser ocupado por alguém de sangue mestiço, indígena ou semita, ou que possuísse filhos ou
cônjuge nesta situação.
122
A Mesa administrativa era responsável pelo governo e pela administração da instituição. A Junta Definitória
cuidava da superintendência e da fiscalização geral. Segundo o capitulo V do compromisso da instituição, estas
duas não podiam tomar resoluções contrarias as disposições da Santa Casa, ao ensino e doutrina do cristianismo,
e às leis canônicas nem ir contra as leis federais, estaduais e municipais. Se isso ocorresse, poderiam responder
civil e criminalmente os mesários e definidores que compunham tais delegações por conta de seus votos.
123
De acordo com os relatórios dos provedores da Santa Casa da Parahyba, na segunda metade do século XIX, as
mordomias se dividiam, com pequenas variações de provedorias em: hospital; expostos ou órfãos; cemitério;
presos; pensionistas ou esmolados; patrimônio; dívidas ativas e passivas e receita e despesas.
483
A maior parte dessa tipologia documental datada da segunda metade do século XIX se
encontra manuscrita e pertence ao acervo do Arquivo da Santa Casa de Misericórdia da Paraíba
localizado no primeiro andar da pequena Igreja da Misericórdia, centro de João Pessoa. Em
2014 teve inicio nesse arquivo o Projeto Arquivo da Santa Casa de Misericórdia: organização
e preservação tendo como objetivo a organização, preservação e restauração dos documentos
existentes nesse acervo. O projeto é composto por Professores e alunos do curso de
Arquivologia da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) que o veem como um futuro projeto
de extensão agregando valor ao conhecimento adquirido pelos alunos no curso de Arquivologia
da instituição.
Em 2017 o projeto iniciou as atividades de transcrição paleográficas com os documentos
manuscritos do acervo. Entre as tipologias documentais existentes podemos destacar a
importância desse trabalho com as atas administrativas devido ao conteúdo informacional que
elas possuem, construído durante as atividades cotidianas dos membros que estavam na direção
da instituição.
Desse modo, o artigo aqui apresentado tem como objetivo relatar o trabalho de
transcrição paleográfica realizado com as atas administrativas de 1860 pertencentes ao acervo
da Santa Casa, mostrando assim como a utilização das técnicas de paleografia podem beneficiar
na recuperação das informações existentes nesses manuscritos, sendo um importante
instrumento para a recuperação da memória institucional.
METODOLOGIA
O trabalho que aqui apresentamos foi realizado a partir de uma pesquisa bibliográfica e
documental. Inicialmente fizemos uma pesquisa em artigos, livros e periódicos que possuem
trabalhos com abordagem sobre a Paleografia para compreender os conceitos que existem sobre
o tema, assim como os trabalhos que funcionam como estudos de caso, experiências relatadas
por professores e estudantes sobre sua experiência com a transcrição em documentos
manuscritos durante projetos realizados em acervos permanentes.
Neste caso, concordamos com Gil (2002, p.45), quando ele ressalta que a importância
da “pesquisa bibliográfica [...] reside no fato de permitir ao investigador a cobertura de uma
gama de fenômenos muito mais amplo do que aquela que poderia pesquisar diretamente”.
Para realizar a pesquisa documental, utilizamos como cenário o Arquivo da Santa Casa de
Misericórdia da Paraíba onde existem documentos manuscritos datados do século XIX de
484
diversas tipologias documentais. Entre elas, estão as atas administrativas produzidas no
decorrer das reuniões dos provedores com as delegações existentes na instituição, ou seja, a
Mesa Administrativa e A Junta Definitória.
Para Severino (2007, p.122-123), na pesquisa documental
[...] tem-se como fonte documentos no sentido amplo, ou seja, não só de documentos
impressos, mas sobretudo de outros tipos de documentos, tais como jornais, fotos,
filmes, gravações, documentos legais. Neste caso, os conteúdos dos textos ainda não
tiveram nenhum tratamento analítico, são ainda matéria-prima, a partir da qual o
pesquisador vai desenvolver sua investigação e análise.
CARACTERISTICAS DA METODOLOGIA
O universo dessa pesquisa será constituído pelos documentos manuscritos da Santa Casa
de Misericórdia da Paraíba. Segundo Lakatos e Marconi (2008), a caracterização deste universo
485
é importante por ele compreender o conjunto de seres animados e inanimados que apresentam
caracterização em comum, ou seja, ocupam um mesmo espaço ou desenvolvem uma mesma
atividade de uma instituição e/ou empresa. Desse modo, através da escolha do universo da
pesquisa, podemos limitar a amostra, elemento selecionado pelo pesquisador para demostrar
uma parte do todo, ou seja, uma parte deste universo (LAKATOS E MARCONI, 2008, p. 30).
Partindo desse pressuposto, a amostra selecionada se refere às Atas Administrativas datadas da
segunda metade do século XIX, estabelecidas dentro de um recorte temporal entre o ano 1859
a 1860. Optou-se por este recorte por este ter um prazo reduzido, possibilitando a realização de
uma melhor análise e descrição das informações existentes nos documentos.
486
Segundo Berwanger e Leal (2008, p.20), “sem o concurso da Paleografia, a história não
poderia reconstituir registro e fatos de diferentes períodos históricos, sobretudo os mais
antigos”.
A Paleografia e a Diplomática surgiram juntas, porém, mesmo sendo estudadas de forma
individual a partir de um determinado período, mantêm a relação de interdependência com
características diferentes. Segundo Berwanger e Leal (2008, p.35)
Enfim, sem o uso das técnicas de tradução que a Paleografia possui, seria muito difícil
a compreensão dos conteúdos dos documentos manuscritos antigos prejudicando a leitura e a
descrição dos mesmos.
Transcrever um documento significa escrever de novo um manuscrito em outro suporte,
respeitando as características do documento. Precisa ser executado com exatidão ao original, se
erros ou rasuras. Os documentos manuscritos antigos geralmente são de difícil entendimento
para os usuários, sendo assim, a transcrição se caracteriza como uma técnica, capaz de
reproduzir o texto para os usuários e/ou pesquisadores que muitas vezes, não possuem o
conhecimento necessário para a leitura do conteúdo documental.
A transcrição de documento enfrenta diversas dificuldades, desde a rasura dos suportes
por seus produtores ao desgaste dos documentos que muitas vezes são encontrados em péssimo
estado de conservação ou danificados, seja pela tinta que pode manchar e dificultar a leitura do
documento que está sendo trabalhado, seja pelo mal acondicionamento na guarda dos referidos
documentos. A caligrafia e as abreviaturas do escrivão também são um ponto importante. Essas,
muitas vezes, se apresentam de forma ilegível no decorre do texto, o que torna a leitura e a
transcrição dificultosa devido à caligrafia do autor.
Para evitar problemas durante a transcrição de documentos manuscritos, é preciso
utilizar as recomendações aprovadas nas Normas de Transcrições Paleográficas que foram
reelaboradas durante o II Encontro Nacional de Paleografia e de Ensino da Paleografia realizado
em São Paulo no ano de 1993. Para Berwanger e Leal (2008, p. 104)
487
a partir da aprovação da Norma, os pesquisadores podem utiliza-la para “proceder
com os documentos manuscritos em sua transcrição, a reproduzir o documento da
forma que foi feito pelo seu autor, transcrever e reproduzir todas as letras que se
constar no texto original, respeitar a ortografia da época que o documento foi criado,
entre outros.
Sabemos que por meio da escrita o homem passa a registra suas ações através de
documentos manuscritos expondo suas vontades, criando uma forma de comunicação
assimilada por aqueles que possuem o acesso a documentação. Desse modo, os registros
informacionais de uma entidade produtora no decorrer de suas atividades podem durar por
muito tempo e passarão a comprovar a legitimidade dos atos gerados por seus administradores.
Sendo assim, atas de reunião, relatórios, ofícios entre outros passam a registrar a memória.
Conforme Le Goff (1990, p.423) ressalta a memória utilizada [...] “como propriedade
de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções
psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que
ele representa como passadas”. Sendo assim os ofícios, atas administrativas, relatórios
pertencentes no acervo da Santa Casa guardam a memória das atividades realizadas pela
instituição durante sua existência.
As atas administrativas, por exemplo, eram produzidas pelos seus administradores,
escritas pelos escrivães em cada ano de gestão dos diferentes provedores que passaram pela
Santa Casa. Nessas atas, encontramos informações consideráveis sobre a organização da
administração da instituição.
Ao se realizar o diagnostico na documentação dessa entidade, notamos que vários dos
suportes se encontram em estado de má conservação, seja pela ação dos agentes biológicos
(bactérias, fungos, insetos, traças, cupins), seja pela degradação natural da própria composição
do papel, ou mesmo o manuseio incorreto dos documentos pelos usuários que não conhecem
os procedimentos de manipulação dos suportes e acabam por fazê-lo sem a utilização de luvas,
comprometendo assim a conservação das informação existentes nessa documentação.
Por isso, com o intuito de proteger a informação dos manuscritos existes no acervo desta
instituição, que ainda se encontram com sua escrita preservada, foi implantado em 2014 o
488
Projeto Arquivo da Santa Casa de Misericórdia: Organização e Preservação coordenado por
professores da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) juntamente com alunos do curso de
Arquivologia na condição de estagiários e voluntários.
Após a organização do acervo, através de atividades ligadas a descrição das diferentes
tipologias existentes, os professores e alunos deram inicio às atividades de transcrição dos
documentos manuscritos com o objetivo de digitar as informações em banco de dados,
digitalizar os originais e torna-los disponíveis em site de pesquisa, contribuindo assim, para a
expansão dessas informações ao maior número possível de usuário.
A disponibilização dessas informações em sites de pesquisa também irá contribuir de
forma significativa para a preservação dos documentos manuscritos, evitando seu manuseio
constante e possibilitando a preservação dos suportes já bastante fragilizados pelo uso e pelos
outros agentes externos.
As atas administrativas do século XIX existentes no arquivo da Santa Casa de
Misericórdia da Paraíba se encontram manuscritas. Estas contêm os registros dos assuntos
debatidos durante as reuniões entre a Mesa Administrativa e seus Provedores.
Uma dessas atas diz respeito à reunião da Mesa com o Provedor Francisco de Assis
Pereira Rocha e seus Membros, ocorrida na primeira reunião ordinária da Mesa regedora no
ano compromissal de 1859 a 1860. Nesta ata administrativa, podemos observar a descrição do
provedor a respeito da nomeação do escrivão e dos mordomos, a feitura do juramento e também
a leitura do oficio do tesoureiro a respeito do balanço do cofre relativo ao ano compromissal da
instituição. Nesta ata encontramos a seguinte transcrição:
489
Figura ˗ Ata administrativa de 1859-1860 criada durante a gestão do provedor Francisco de
Assis Pereira Rocha
Acta da reuniao da Meza
Aos dous dias do mez de Julho de
mil oitocentos e cincoento e nove no
consistorio da Santa Caza da Meza
ricordia desta Cid.e da Par.a do Norte
reunidos o sen.r Provedor D.or Fran
ciso de Assis Per.a Rocha e Mezario
abaixo assignado comparecerao os
Irmaos Joao Rodrigues Chaves e Joao
Pinto Monteiro e Silva novan.te
Nomeados o prim.o p.a servir inte
Reiramente o lugar de Escrivao e o seg.o
de Mordomo do Hospital e expos
tos os quais prestarao juram.to seg.do
o estilo e forao impassados em seus
rescptictivos cargos depois do q torna
rao assinto e abrio-se a sessao.
Sen.r Provedor leu um officio do Ex.mo
Senr Prezid.te da Prov.cia com
municado q p.r Portaria de 28
de quatro ultimo figura os nomea
coes supra declaradas e determina
ra q a actual Meza administra
tiva da Santa Caza da Mizericor
dia continuava a funcionar além
do dous de Julho deste anno ate
q seja apresentada novo propôs.
Quatro dias após a primeira ata (realizada no dia sete de julho de 1859 do ano compromissal),
o mesmo Provedor faz a nomeação de nove cargos (Tesoureiro, Mordomo Visitador, Mordomo
do Hospital, Mordomo dos Expostos, Mordomo dos Prédios Urbanos e Terras, Mordomo da
Igreja e Cemitério, Escrivão e o Procurador Geral) Na Mesa deliberou-se que as reuniões
ordinárias deveriam ter cargos na forma determinada pelo art. 40 do compromisso. Todos os
quais prestarão seu devido juramento segundo o estilo, e assinaram em seus respectivos cargos.
O senhor Provedor declarou então que assim ficava composta a nova Mesa Administrativa da
Santa Casa de Misericórdia. Na ata estava escrita a seguinte transcrição:
490
Figura ˗ Ata Administrativa de 1859-1860 criada durante a gestão do Provedor Francisco de
Assis Pereira Rocha
491
Figura ˗ Ata Administrativa de 1859-1860 criada durante a gestão do Provedor Francisco de
Assis Pereira Rocha.
Acta da 3a reuniao ordinária da Me
za Regedoura da Santa Caza da Mize
ricordia no anno compromissal de 1859
a 1860.
492
contam um período importante das atividades desenvolvidas pela administração da Santa Casa
de Misericórdia da Parahyba durante a segunda metade do século XIX.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
493
DESLAURIERS, J. P. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos.
Tradução de Ana Cristina Nasser. Petrópolis, RJ. Editora Vozes. 2008.
GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projeto de pesquisa. 4ed. São Paulo: Altas, 2002.
494
O TRIBUNAL ECLESIÁSTICO E A MULHER NEGRA NO
MARANHÃO COLONIAL: A PRETA FORRA DIONÍSIA FERNANDEZ
INTRODUÇÃO
A chegada dos primeiros colonos portugueses que, em sua maioria, eram homens e suas
relações com os povos indígenas foi o que deu início a formação do povo brasileiro tal qual o
conhecemos. Com o propósito de promover o povoamento da nova colônia, em 04 de
abril de 1755, o rei de Portugal, Dom José, assinou um decreto autorizando a miscigenação de
portugueses com índios, incentivando os colonos a constituir famílias, e tais relações familiares
são o que Mary Del Priori (1999) nos apresenta como “uniões a moda da terra”124. Essa foi a
primeira vez que a miscigenação foi incentivada e vista como um aspecto positivo no Brasil.
Entretanto, tais práticas eram repudiadas pela Igreja Católica, que condenava a miscigenação
em geral e tentava importar para a colônia o modelo de família determinado pelas Resoluções
Tridentinas.
Foi somente a partir do século XVI que começou a chegar ao Brasil outro povo que
compõe uma grande parcela da nossa população: os negros africanos. Diferente dos colonos
portugueses, os africanos sofreram uma migração involuntária, pois foram trazidos
escravizados para trabalhar nas lavouras de cana-de-açúcar, de café e na mineração. A Coroa
Portuguesa não incentivava o casamento entre colonos brancos e pretos ou mulatos.
Mesmo com a forte tentativa de desumanização desses sujeitos escravizados, eles
resistiram e buscaram formas de exercer a sua afetividade. Nessas tentativas, esbarraram nas
muitas dificuldades impostas pela Igreja Católica para a realização de uma cerimônia oficial,
dentro dos dogmas da cristandade. Diante de tais exigências, os escravizados e grande parte da
população livre acabavam encontrando nas relações concubinárias um espaço para formar
família e exercer sua afetividade.
Diante do exposto, buscamos lançar um olhar sobre as relações concubinárias entre
homens brancos e mulheres negras, livres ou escravizadas, através da análise de documentos
do Tribunal Eclesiástico do Maranhão Setecentista.
124
A esse respeito ver: PRIORE, Mary Del. A família no Brasil Colonial. São Paulo: Moderna, 1999.
495
Este trabalho é fruto das pesquisas realizadas enquanto bolsista do PIBIC,
primeiramente com o plano de trabalho “Vivendo em pecado”: concubinato de escravos no
Maranhão colonial em vigências de Julho de 2016 a Julho 2017, e o plano de trabalho
Mancebia e resistência: relações afetivas entre escravizados no Maranhão colonial, em
vigência no período de julho de 2017 a julho de 2018. Ambos sob a orientação da Profª Drª
Pollyanna Gouveia Mendonça Muniz e fazendo parte do projeto de pesquisa Os leigos e a
jurisdição episcopal: catolicismo e reforma de costumes no Maranhão Colonial125, que conta
com financiamento do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq), e cujo objetivo é analisar a
atuação da justiça episcopal sobre a população comum, os leigos.
A Europa passava por um momento conturbado, com muitas mudanças em curso. Diante
disso, “[...] duas causas tornavam necessária a reunião de um Concílio geral: o conflito
declarado pelos protestantes à Igreja e os abusos que corrompiam a disciplina e os costumes”
(FARIA, 2008, p. 1). Pairava um clima de insegurança sobre a população, e uma boa parte desta
já manifestava sua insatisfação com a Igreja Católica, cujo o clero protagonizava muitos
escândalos e somando-se a isso, o movimento das Reformas Protestantes fez com que os ânimos
se acirrassem entre a população.
125
Durante os dois anos de projeto, seguindo os planos de trabalhos citados a cima, optamos por analisar poucos
casos focando em apenas um por plano de trabalho o que proporcionou uma análise mais minuciosa de cada um
deles considerando o curto período de tempo para a realização de tais tarefas. Cabendo a coordenadora do projeto,
Profª Drª Pollyanna Gouveia Mendonça Muniz, a análise dos dados quantitativos gerais do mesmo.
496
Ao situar os fatos específicos no âmbito mais geral da história, há que ressaltar, acima
de tudo, que era necessário haver uma condenação dos princípios do protestantismo,
mas, sobretudo, necessitava-se de uma exposição positiva da doutrina católica que
servisse de norma para sacerdotes e fiéis. Nesse sentido, rejeitado o individualismo
protestante, afirmava-se a necessária mediação da Igreja, corpo místico de Cristo e,
ao mesmo tempo, organismo jurídico. Uma Igreja que tinha sua primeira afirmação
na hierarquia estabelecida por Cristo e que, diferenciando-os, subordinava os leigos
ao episcopado. (FARIA, 2008, p. 3)
Silva (2015) destaca que as discussões travadas durante o Concílio não tratavam de
assuntos novos, muito pelo contrário, tratavam-se de questões que há muito vinham sendo
discutidas pelos bispos que tentavam, isoladamente, implementar soluções para as mesmas.
Em Portugal o poder das ditas resoluções teve seu alcance ampliado em 1564, quando
o regente D. Henrique determinou que os decretos de Trento passariam a ser lei. Tais
acontecimentos tiveram um impacto profundo no modo de vida da população europeia e seus
ecos não tardaram a alcançar as colônias, sendo levados na bagagem dos colonos que vinham
tentar a sorte nas novas terras e dos eclesiásticos que vinham difundir o catolicismo.
A difusão do catolicismo era uma parte importante do projeto colonizador português. Eduardo
Hoornaerte (1983) diz que a evangelização era uma justificativa e uma ferramenta da
colonização, que se apoiava na “[...] famosa lenda de São Tomé”. E que esta não escapava da
497
“agressividade” do sistema escravista, passando “a ser justificativa da opressão e escravização
de indígenas e africanos” (HOORNAERTE, 1983, p. 26).
Esta lenda, assim como outras parecidas, funcionava poderosamente para justificar o
discurso evangelizador universalista, desconhecedor da fronteira do outro. [...] e só
considerava o outro como marginal, nunca como “outro” no sentido pleno desta
palavra. Daí o zelo quase fanático dos missionários em extirpar qualquer vestígio do
que era interpretado como idolatria, barbárie, aberração da “verdadeira fé”.
(HOORNAERTE, 1983, p. 25)
Tal tentativa dos colonizadores de importar os valores europeu para a colônia esbarrou
nas particularidades da vida nos trópicos. “Nudez e promiscuidade combinavam-se com o mais
absoluto desregramento nas relações sexuais – foi o que viram (ou deduziram) os observadores
dos primeiros tempos” (VAINFAS, 1989, p. 22). A sociedade que aqui encontraram era
marcada por sua heterogeneidade de povos e culturas, o que dificultava qualquer tentativa de
normatização de corpos e costumes.
Fosse pela intolerância moral que ostentavam por princípio, fosse pelo que
observaram no início da colonização, os jesuítas cedo perceberam que o mal não
campeava só entre o gentio. O “excesso de liberdades”, a “falta de lei” moral com que
o ameríndio ofendia a Deus, viram-nas também na conduta dos portugueses recém-
chegados do Reino. (VAINFAS, 1989, p. 28)
“Não se pode negligenciar a dificuldade de pôr em prática tais reformas, mesmo pela
própria especificidade do viver em colônia e mais ainda porque o próprio clero se via envolto
nas características morais da sociedade em que vivia” (MENDONÇA, 2011, p. 21). Diante da
situação, os olhos que viam o pecado em toda a parte apontavam para esse clima de
licenciosidade na colônia e a Igreja constatou que promover uma reforma de costumes era tarefa
muito onerosa, que se tornava ainda mais difícil quando membros do clero brasileiro também
se mostravam adeptos dos muitos desvios morais que irradiavam pela colônia.
Um dos desvios de conduta mais praticados por leigos e clérigos era o concubinato, uma
prática comum, que não excluía ninguém. Muito pelo contrário, abarcava homens e mulheres,
solteiros, casados, religiosos, brancos, negros, índios, ricos e pobres, livres e escravizados.
Essas ditas relações a moda da terra iam de encontro com as resoluções tridentinas, que
depositaram sobre a mulher e a família, através do sagrado matrimônio, o papel de
multiplicadores de seus ditames e ferramentas no processo de normatização de corpos e
costumes.
O êxito do processo pressupunha, assim, ampla reordenação da sociedade à luz dos
valores cristãos, implicando profunda reforma dos costumes e das moralidades
vigentes. Na versão católica da Reforma, procurou-se já antes de Trento, mas
sobretudo após 1563, defender o matrimônio enquanto sacramento e instituição.
(VAINFAS, 1989, p. 10)
498
E foi assim, em meio as complexidades da vida na colônia, que em Synodo Diocesano
celebrado em 1707, na Bahia, por D. Sebastião Monteiro da Vide, 5º Arcebispo do Arcebispado
da Bahia e do Conselho de Sua Majestade, foram aprovadas as Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia. Conjunto de leis que adaptavam as resoluções tridentinas a real situação
da colônia.
Fizemos diligencia pelas Constituições, por onde o Arcebispado se governava; e
achamos, que pelas do Arcebispado de Lisboa, de quem este havia sido sufragâneo;
porque suposto todos nossos digníssimos Antecessores as procurassem fazer, o não
conseguirão, ou por sobra das ocupações, ou por falta de vida. E considerando Nós,
que as ditas Constituções de Lisboa se não podião em muitas cousas accomodar a esta
tão diversa Região, resultando dahi alguns abusos no culto Divino, administração da
Justiça, vida, e costumes de nossos súbditos: e querendo satisfazer ao nosso Pastoral
officio, e com oportunos remédios evitar tão grandes damnos, fizemos, e ordenamos
novas Constituições, e Regimento do nosso Auditorio, e dos Officiaes de nossa
Justiça, por ser mui necessário para boa expedição dos negocios, e decisão das causas,
que nelle se houverem de tratar, conferindo-as com pessoas doutas em sciencia, e
versadas na pratica do foro, e governo Ecclesiastico [...]. 126 (CONSTITUIÇÕES
...,1853)
126
Constituições primeiras do arcebispado da Bahia feitas, e ordenadas pelo Ilustríssimo e Reverendíssimo Senhor
D. Sebastião Monteiro da Vide, Arcebispo do dito arcebispado.
499
era uma prática comum entre os colonos, os gentios e, posteriormente, os escravizados.
Constituía-se em uma forma de relação afetivo-sexual fora dos laços do sagrado matrimônio,
“[...] as pessoas se escolhiam porque se gostavam, passando a trabalhar juntas, a dividir tarefas
dentro de casa ou na roça e a ter filhos. Muitas delas só no final da vida recorriam à Igreja para
casar, por medo de ir para o Inferno” (PRIORE, 1999, p. 15).
Muitas eram as motivações que levavam homens e mulheres a viverem essas relações
consideradas pecaminosas. Algumas delas eram questões práticas, como as dificuldades em
obter os papeis exigidos pela Igreja e o alto custo das cerimonias.
Para as mulheres, muitas vezes, essas relações eram um meio para alcançar bens
materiais e ascensão social. Mas não podemos ignorar, também, as motivações subjetivas pois
o concubinato proporcionava para essas populações um espaço para o exercício de sua
afetividade e, principalmente, segurança. As relações concubinárias afloraram dentro das
camadas populares, e a bibliografia especializada127 mostra que elas eram uma parte importante
dessas relações e que não devem ser vistas apenas como vítimas, donzelas seduzidas.
Tais relações possuíam muitas faces. Podiam se dar entre indivíduos solteiros, onde “[...]
reproduzia o padrão estrutural do matrimônio” (PRIORE, 1988, p. 33), apenas uma das partes
127
PRIORE, Mary Del. A mulher na história do Brasil. São Paulo: Contexto, 1988; PRIORE, Mary Del. Ao sul
do corpo: condição feminina, maternidade e mentalidades no Brasil Colônia. São Paulo: Editora UNESP,
2009; VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados: moral, sexualidade e inquisição no Brasil Colonial. Rio de
Janeiro: Campus, 1989; PEREIRA, Maria Angélica. Concubinato: traço cultural do Brasil Colonial. Revista Caos,
João Pessoa, n. 4, p. 1-8, 2002. Disponível em: <www.cchla.ufpb.br/caos/numero4/04pereira.pdf>; SILVA, Maria
Beatriz Nizza da. Sistema de Casamentos no Brasil Colonial. São Paulo: T.A Queiróz e Editora da USP, 1984;
FIGUEREDO, Luciano R. Barrocas famílias – Vida familiar em Minas Gerais no século XVIII. São Paulo:
HUCITEC, 1997; TORRES-LONDOÑO, Fernando. A outra família: concubinato, Igreja e escândalo na
colônia. São Paulo: Edições Loyola, 1999; FIGUEREDO, Luciano. Mulheres nas Minas Gerais. In: PRIORI, Mary
Del (Org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997, p. 44-141; SAMARA, Eni de Mesquita.
A família brasileira. 4.ed. São Paulo: Brasiliense, 1993.
500
sendo solteira, ou ambas as partes sendo casadas. As relações entre indivíduos solteiros
costumavam ser menos escandalosas, muitas vezes os mesmos contavam com a proteção e
conivência de vizinhos, amigos e familiares, passando a vida toda sem enfrentar as penas
impostas pela Igreja.
Tal conivência, e a facilidade com que a população, principalmente a mais pobre,
aceitava tais relações eram alguns dos motivos pelo qual “[...] a Igreja exportava infalivelmente
para fora de conventos e claustros a ideia de vergonha, escrúpulo, vício e danação” (PRIORE,
2009, p. 32). A sociedade colonial precisava se adequar ao modelo da sociedade europeia e se
enquadrar nas determinações impostas pela Igreja católica, se não pela fé, então pelo medo.
Organizar as massas com base na família cristã, fazê-las crer na verdade divina
segundo as regras da Igreja, o amplo programa da moderna Reforma Católica carecia
de outros meios além dos arranjos institucionais e da disciplina eclesiástica
homologados em Trento. A viabilização da nova pastoral – ou a moderna difusão do
antigo cristianismo – pressupunha sistemática intimidação dos fiéis, permanente
ameaça com os horrores que Deus reservava aos que ousassem desviar-se de si. A
irradiação dessa “pastoral do medo”, conforme a chamou Delumeau, não esteve
ausente do Brasil – Colônia formada de variadas culturas, gentes e religiões, somente
ocupada para fornecer riquezas à Metrópole, e que por isso imporia muitos entraves
ao catolicismo. (VAINFAS, 1989, p. 32)
Aos olhos da Igreja, a mulher era uma importante ferramenta para esse processo. A
instituição acreditava que ao conseguir domesticar a mulher, enquadrando-as dentro do ideal
de mulher, mãe, esposa, filha, submissa e devotada a Deus e à família, conseguiriam, também,
difundir esse ideal dentro das famílias como um todo. “Este papel deveria não só refletir a
participação feminina na conquista ultramarina, mas também a sua atividade na defesa do
catolicismo contra a difusão da Reforma protestante” (PRIORE, 2009, p. 22).
Cientes de que seu projeto não alcançava as elites e as classes populares da mesma
maneira, e conhecedores das particularidades do viver na colônia, o clero esmerou-se em
elaborar formas de lidar com tais relações que divergiam em tudo do que era estimado pela
Igreja. Seguiu com seu projeto de implantar uma normatização de corpos e costumes através
do matrimônio e, para conseguir fiscalizar suas ovelhas, mesmo nas localidades mais distantes,
e, assim, alcançar esse objetivo, contou com as Devassas, Visitas Pastorais e denúncias feitas
ao Tribunal Eclesiástico, onde esses casos eram analisados e julgados de acordo com as
determinações das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia.
501
AS CONSTITUIÇÕES PRIMEIRAS DO ARCEBISPADO DA BAHIA E AS RELAÇÕES
CONCUBINÁRIAS
[...] 980. Por tanto ordenamos, e mandamos, que as pessoas leigas, que em Visitas
geraes, ou por via de denunciações forem culpadas, e convencidas de estarem
amancebadas com infâmia, escândalo, e perseverança no peccado, sejão admoestadas,
que se apartem (6) de sua illicita conversação, e fação cessar o escândalo; e se a tiver
em casa, que a lance fora em termo breve, (7) que lhe assignará, sob pena de ser
castigado com maior rigos: e sendo ambos solteiros pagará cada um (8) oitocentos
réis; e sendo ambos, ou algum deles casado (9) pagará cada um mil réis.
981. E sendo segunda vez compreendido com outra cumplice, ou com a mesma, (10)
será admoestado na forma sobredita, e pagará a pena pecuniaria em dobro (11). E pela
terceira vez (12) será outrosim admoestado na sobredita fórma, e sendo ambos
solteiros, pagará cada um deles seis cruzados; e se forem casados, ou algum deles,
cada um pagará tres mil réis.
502
982. E se depois de serem tres vezes admoestados se não emendarem, antes forem
convencidos na continuação do pecado, se procederá contra eles com maior pena
pecuniária, e com as de prisão (18) degredo, ou excommunhão, segundo o que parecer
mais conveniente, ilegível para se conseguir a emenda que se pretende, e é o principal
intento. (CONSTITUIÇÕES..., 1853, Livro V, Titulo XXII, p. 338-339)
De acordo com as constituições, os leigos que fossem pegos nas Devassas, Visitas
Gerais e Pastorais ou denunciados em qualquer instância da Igreja devido a um pecado-crime
estariam sob jurisdição do bispo. E dizem, também, que a denúncia por si só não era suficiente
para levar direto a uma condenação, as denúncias deviam ser averiguadas e todos deviam ter o
direito de serem ouvidos.
E porque o amancebamento dos escravos necessita de prompto remedio, por ser usual,
e quais commum em todos deixarem-se andar em estado de comdemnação, a que eles
por sua rudeza, e miséria não attendem, ordenamos, e mandamos, que constando na
fórma sobredita de seus amancebamentos sejão admoestados, mas não se lhes ponha
pena alguma pecuniaria [...]. (CONSTITUIÇÕES..., Livro V, Titulo XXII, n. 989, p.
340)
O texto diz que os escravizados são passiveis às mesmas punições impostas aos sujeitos
livres, com exceção das penas pecuniárias, “[...] por que o serem captivos os não isenta (30) da
pena; que por seus crimes merecerem” (CONSTITUIÇÕES ..., Livro V, Titulo XXII, n. 989, p.
341). Mas deixa claro que a responsabilidade pelos atos pecaminosos dos mesmos, é dos seus
“Senhores”. E que estes devem cuidar para que os escravizados não mantenham tratos ilícitos,
pois a eles pertence a responsabilidade por suas almas. E caso falhem nessa missão, “[...] se ha
de proceder contra os ditos escravos a prisão, e degredo, sem se attender á perda que os ditos
Senhores podem ter em lhe faltarem os ditos escravos” (CONSTITUIÇÕES ..., Livro V, Titulo
XXII, n. 989, p. 341).
Diante do exposto, podemos observar que as Constituições Primeiras não citam, nem
determinam nenhuma punição para casos de concubinato entre sujeitos livres e escravizados.
A ausência de normas que tratem do concubinato entre sujeitos livres e escravizados se deve,
em grande parte, a natureza da sociedade colonial. Uma sociedade marcada pela forte
503
segregação imposta pelo sistema escravista, onde o escravizado não era tido como uma pessoa,
e sim, como uma coisa, um objeto que pertence à alguém. Um objeto do qual o “dono” pode
dispor da maneira que desejar. Portanto, sem direito a seu corpo e obrigado a se sujeitar a
vontade de terceiros128.
O próprio sistema escravista abria uma brecha perante as leis da Igreja. Um sujeito livre
poderia manter um escravizado “de portas a dentro” e manter com ele “tratos ilícitos” sem que
isso se configure como uma relação concubinária, devido ao lugar que o escravizado possuía
na sociedade da época e ao status que lhe era imposto. “No funcionamento do sistema escravista
prevalece uma separação de mundos, como se o escravo devesse pertencer a uma humanidade
de segunda categoria” (FILHO, 2013, p. 26).
Dentro dessa realidade, a mulher era quem se encontrava mais vulnerável. Foram muitos
os casos de Senhores que mantiveram mulheres escravizadas por concubinas, na grande maioria
das vezes contra sua vontade.
Por ser uma sociedade escravista, o poder do senhor sobre sua escrava, era um outro
fator que favorecia a prática do concubinato de maneira bastante intensa, uma vez que,
o mesmo achava-se no direito de utilizar suas escravas para satisfazer seus desejos
carnais, [...]. É importante lembrar que essa relação não era, em si, acometida apenas
pela classe social inferior; inclusive, algumas pessoas distintas da sociedade colonial,
que ocupavam cargos públicos de destaque nas capitanias, incorriam neste mesmo
tipo de prática, chegando até, terem num mesmo momento, mais de uma concubina
sob seu jugo. (PEREIRA, 2002, p. 4)
128
A esse respeito ver: FILHO, Benedito Souza. Escravidão e a resignificação de corpos dos africanos. In: ______.
Entre dois Mundos: escravidão e a diáspora africana. São Luis: EDUFMA, 2013. p. 19-49.
504
(MENDONÇA, 2011, p. 119). Dentro de uma sociedade que não considerava o negro como
humano, tal limitação tornava-se ainda mais acentuada ao tratar de uma mulher negra. Algumas
aparecem não sendo o principal alvo do processo, não sendo a ré. Outras foram denunciadas,
processadas, apresentadas como ré e pivô de algum escândalo por sua má conduta. Esse é o
caso de Dionizia Fernandez, preta gege e liberta, moradora da Vila de Mocha, freguesia de
Nossa Senhora da Vitória. Em maio de 1745, Dionizia entrou com uma defesa junto ao Tribunal
Eclesiástico após ser denunciada, por testemunhas, durante uma Visita Geral, por estar em
terceiro laço de concubinato com Manoel de Souza Machado. “Dionizia preta forra e moradora
nesta villa e compreendida na prezente visita no terceyro laço de concubinato com Manoel de
Souza Machado, homem solteiro que serve nesta villa de caixero da lojea de Alex Pereira de
Mello” (Autos e Feitos de Libelo Crime, doc. 4692, fl. 12).
Por ser mulher, Dioniza não compareceu ao tribunal nem se defendeu pessoalmente,
para isso ela contou com a ajuda de um procurador. Seu procurador foi o capitão Antonio
Martins dos Santos, responsável por realizar a sua defesa e reunir testemunhas que atestassem
sua inocência diante do tribunal.
Sobre a “qualidade” das testemunhas tidas como hábeis para falar nos tribunais,
Mendonça (2011) diz que estas não podem ser judeus, mouros ou escravos, ter menos de 14
anos, parentesco com os envolvidos ou inimizade com o réu. O processo em questão conta com
cinco testemunhas, todos homens, brancos, entre 56 e 35 anos, donos de pequenas propriedades.
As testemunhas reunidas eram consideradas hábeis segundo tais critérios.
Segundo o testemunho de Manoel Gomes Pereira, branco, vizinho de Dionísia, “sabe
pello ver e ser vezinho da re que he molher muito recolhida e vive muyto honestamente... e sabe
também que a re he boa christam porque a ve ir muytas vezes na Igreja a confeçarse e ouvir
missa e sabe que a re he temente a Deos as Justiças” (Autos e Feitos de Libelo Crime, doc.
4692, n.p.) e “nunca vio ir a caza della a Manoel de Souza Machado nem de dia nem de noite
nem a re ir a caza do dito... nem sabe anda amancebada com a re com o dito Manoel” (Autos e
Feitos de Libelo Crime, doc. 4692, n.p.).
Dentre as cinco, duas testemunhas a defendem falando sobre o “recolhimento” da ré e
de ser “boa christam”, mas admitem “ter ouvido dizer” sobre a má conduta da mesma. Como é
o caso de Jose Estevam Falcam, homem branco, que vivia de fazendas secas e alega em seu
depoimento saber “pello ver e ser seo vezinho que em caza da re nam entra pessoa de ma
suspeita nem de escândalo” (Autos e Feitos de Libelo Crime, doc. 4692, fl. 13). Mas
posteriormente diz: “ter ouvido dizer que a re he molher meretriz, mas que nam obstante isso
505
vive com bastante recolhimento em sua caza sem dar escândalo a sua vizinhança” (Autos e
Feitos de Libelo Crime, doc. 4692, fl. 13). Ou, Ignacio de Souza Abreu, 56 anos, branco,
solteiro, vivia de fazendas secas que diz “tinha ouvido dizer a huma escrava sua que a re tinha
tido tratos ilícitos com o dito Manoel de Souza Machado” (Autos e Feitos de Libelo Crime,
doc. 4692, fl. 12-13).
Já as outras duas a defendem e vão mais longe ao dizer que ouviram os boatos e
levantam a possibilidade de que estes tenham sido criados “por pessoas suas inimigas”. Como
Paulo Louzada Britto, 47 anos, solteiro, vive dos seus negócios, disse que “a re vevia com bom
recolhimento e não dava nem nunca deu escândalo a sua vizinhança... nam faltava nunca as
obrigações de christa”. (Autos e Feitos de Libelo Crime, doc. 4692, n.p.), e que “haverá hum
anno a esta parte ouvira dizer a pessoas que nam lembra que a re falava e tratava com Manoel
de Souza Machado, mas que nam ouvira dizer que desse escândalo e nam sabe ele testemunha
se pessoas suas inimigas lhe maquinaram este crime”. (Autos e Feitos de Libelo Crime, doc.
4692, fl. V).
Outro a levantar essa possibilidade foi Domingos Barreiras de Machado, 35 anos,
branco, solteiro, vivia de seus negócios de vender fazendas, e que nos primeiros parágrafos de
seu depoimento defende a vizinha, mulher pacifica que vivia com “recolhimento”. Conclui
dizendo que, “... algumas vezes ouviu dizer que a re tratava com o dito Manoel de Souza
Machado, porem que nam sabe que pessoas suas inimigas lhe arguicem tal crime” (Autos e
Feitos de Libelo Crime, doc. 4692, n.p.).
A alcunha de meretriz era algo que pesava sobre as mulheres da época. Eram
consideradas prostitutas todas “[...] as mulheres que usassem seus corpos em desacordo com as
prédicas institucionais” (PRIORE, 1988, p. 26). Nesse contexto, as ‘[...] “mal procedidas”,
concubinárias contumazes, mães alcoviteiras, vagabundas ocasionais misturavam-se às
meretrizes de oficio, num jogo ditado pela pobreza e miséria sexual” (PRIORE, 1988, p. 29.
E foi apoiado nessa crença que, mesmo com os testemunhos de defesa alegando se tratar
de uma mulher “honesta”, “boa christa”, de hábitos pacíficos e recolhidos, e com a suspeita de
que tais denúncias se tratassem de uma manobra de “pessoas suas inimigas”, que Dionizia foi
condenada. O promotor, Francisco de Godois Barros, pediu a condenação da ré alegando que
mesmo com as testemunhas apresentadas não é possível afastar a suspeita do concubinato. E
acrescenta que entre as testemunhas houveram aquelas que “ouvirão dizer que a re tenha tractos
ilícitos com o dito Manoel de Souza Machado”, e que diante disso, mesmo que as testemunhas
506
tenham dito que “nunca viram entrar hum em caza do outro nem perisso se livra a re de que
desse escandalo” (Autos e Feitos de Libelo Crime, doc. 4692, n.p.).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os processos do Tribunal Eclesiástico mostram-se como uma janela que nos permite
lançar um olhar sobre essas mulheres. Através das denúncias e depoimentos, acusações e
defesas, podemos identificar como tais mulheres eram vistas e tratadas pela sociedade da época.
E em ambos os casos aqui abordados pode-se notar o papel dos aparatos da Igreja e do Estado
para a manutenção da estratificação social.
Vítimas do “estigma da cor”, por mais que buscassem viver pacificamente se
enquadrando, dentro de suas possibilidades, ao modelo estabelecido para a conduta feminina
ainda assim essas mulheres continuavam a ser fortemente marginalizadas.
Dionizia, traz nas entrelinhas de seu testemunho um relato das desigualdades da época, acusada
de cometer um pecado público que ao extrapolar os limites da casa configurou-se como uma
desordem, uma ameaça à paz da comunidade tornando necessária uma punição rígida para que
servissem de exemplo.
O processo mostra no desenrolar da história que embora ela conte com a solidariedade
de amigos e vizinhos, isso não é o bastante para alguém como ela. Alguém que ocupa um lugar
muito abaixo nas esferas sociais, acometida pela tripla maldição que é ser mulher, pobre e
negra129 em uma sociedade elitista, patriarcal e marcada pela presença do sistema escravista.
REFERÊNCIAS
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande e Senzala. 6. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1950. v. 1.
HOORNAERT, Eduardo. História da Igreja no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1983. TOMO II.
PEREIRA, Maria Angélica. Concubinato: traço cultural do Brasil Colonial. Revista Caos,
João Pessoa, n. 4, p. 1-8, 2002. Disponível em:
<www.cchla.ufpb.br/caos/numero4/04pereira.pdf>. Acesso em: 16 de agosto. 2016.
PRIORE, Mary Del. A família no Brasil colonial. São Paulo: Moderna, 1999.
PRIORE, Mary Del. A mulher na história do Brasil. São Paulo: Contexto, 1988.
SILVA, Jamerson Marques da. Concílio de Trento: uma trama de crises e decretos nos passos
de uma ecclesia semper reformanda. Revista Eletrônica Espaço Teológico, v. 9, n. 16,
jul/dez. 2015. p. 130-150. Disponível em: < http://revistas.pucsp.br>article>view>. Acesso
em: 12 de maio. 2017.
VAINFAS, Ronaldo. Casamento, amor e desejo no ocidente cristão. São Paulo: Ática,
1992.
Fontes Manuscritas
Arquivo Público do Estado do Maranhão, Juízo Eclesiástico, Autos e Feitos de Libelo Crime,
doc. 4692.
508
PALEOGRAFIA E A MEMÓRIA SOCIAL OU INTRODUÇÃO AO
ESTUDO DAS FORMAS DA PELE MORTA DEPOSITADA PELAS
SERPENTES: PROVÍNCIA DA PARAHYBA DO NORTE, 1830
INTRODUÇÃO
130
Prevenindo-se contra extravios imprevistos informa-se que este trabalho foi registrado em cartório como
documento público.
131
A autoria é indicada como sendo provável e não certa por dois motivos: a) não há como conferir, por enquanto,
a autenticidade da assinatura; b) pelo fato de que não era necessária a alfabetização para o exercício da cidadania
política naquele ano de 1830 no Império do Brasil.
132
Celso Mariz (1987, p. 27) não incluiu Joaquim José Ribeiro Pessoa entre os integrantes do Conselho Geral de
Província da Parahyba do Norte para o período de 1830-1833. No entanto, Celso Mariz não cita as fontes
documentais que usou para listar os políticos provinciais eleitos naquele período, esclarecendo apenas que as
informações foram extraídas “de antigos livros e atas, já de tintas esmaecidas e folhas perfuradas pelo caruncho,
livros que encontramos na biblioteca da Assembleia e que não revimos após a dispersão ou recolhimento deles ao
Depósito de Obras Públicas em 1930. ”
509
se, em seguida, a corrente da Paleografia com a qual o presente trabalho se identifica, a
Paleografia Crítico-Analítica (CONTRERAS, 1994, 20-21; 44).
Foi muito importante para o desenvolvimento desse estudo definir um conceito de
memória e localizar a escrita do documento digitalizado e transcrito numa periodização da
história da memória no Brasil, que desenvolvemos introdutoriamente. Por fim, fez-se uma
discussão sobre abreviaturas e um quadro sobre as abreviaturas não correntes presentes na
matriz digital.
No que diz respeito à relação entre escrita e memória, embora não haja discordância a
seu respeito por parte de autores como Le Goff (1990, p. 372), Pierre Nora (1993, p.10) de um
lado e Paul Ricouer (2003, p. 4), de outro, preferiu-se desenvolver o trabalho a partir das
contribuições dos dois primeiros autores, já que Paul Ricoeur (2007) valoriza excessivamente
aspectos subjetivos e sem referentes – a exclusividade das significações - pelo fato de filiar-se
ao pensamento de Edmund Husserl.
Sobre a análise com valorização crítica de Andresa Huyssen (apud GONDAR &
DODEBEI, 2005, p. 9) a respeito da constituição dos lugares de memória, parece-nos carecer
de fundamentação epistemológica e ser impositiva. A. Huyssen viu o que gostaria de ver.
Por que carece de fundamentação? Porque os argumentos de P. Nora (1993, p. 7-8; 14-
15) são explicitamente históricos. E, embora individualizantes, Nora relaciona a constituição
dos lugares de memória aos “tempos modernos” resultantes da mundialização, democratização,
midiatização, massificação, formação dos estados modernos e os processos de “descolonização
interior”. Nessa exata medida não se pode atribuir à noção de lugares de memória um sentido
de “negação do presente” e “correção de uma perda”, objetivo da função compensatória que é
uma das formas de operar do pensamento mítico (CHAUÍ, 2000, 204 - 205). Parece-nos que a
função compensatória da memória seja afirmada por Nora relativamenta ao período anterior
aos “tempos modernos”.
P. Nora (1993, p.14-15) entendeu que nos “tempos modernos” o indivíduo desenvolveu
uma outra forma de organizar a memória, exteriorizando-a cada mais através também da escrita,
e organizando-a sistematicamente em arquivos. Essa forma de memória foi denominada de
arquvística e é expressa nos lugares de memória numa oposição ao que ele chamou da memória
verdadeira, característica de períodos históricos anteriores aos “tempos modernos”, que
corresponde, grosso modo, ao que os historiadores chamam de Idade Moderna em diante. Note-
se que o autor não reduz os lugares de memória, aos arquivos. A noção de lugares de memória
510
foi expressa a partir da métafora sensacional da pele morta – os vestígios - depositada pela
serpente – o indivíduos. Nós demos uma dimensão social a essa noção metafórica.
A exteriorização crescente da memória dos sujeitos – grosso modo, o processo de tirar
dos indivíduos as formas de memória, inclusive da pele dos seus próprios corpos - nos “tempos
modernos” ocorreu incialmente através da escrita, ultrapassando a fala. Não foi à toa que se
preferiu instaurar, para tanto, um tipo de escrita sóbrio e claro, nada “luxuriante” ou seja, repleta
de ornamentos (MARQUES, 2002). Como fazer crescer o registro da memória sem que se
pudesse compreendê-lo facilmente, possibilitando um processo ágil de eficiente de
armazenamento e comunicação de informação?! Nessa medida, a adoção das carcterísticas
extrínsecas de uma denominada de escrita humanista foram uma solução histórica para esse
problema, muito bem sucedida.
No que diz respeito ao caráter binário da análise de P. Nora mencionado por Andreas
Hyusssen (apud GONDAR & DODEBEI, 2005, p. 9), ele decorre do fato de que os lugares de
memória seriam um traço distintivo do período feudal anterior. Mas, não vemos margem para
crítica nesse ponto porque não há reducionismo pois não é o único traço que distingue a
mudanção ocorrida. Ao contrário, os lugares de memória têm vários sentidos e são parte de um
conjunto de mudanças já citadas acima (mundialização, etc). Jacques Le Goff corrobora de certa
forma essa análise, na medida em que argumenta que da Renascença em diante a escrita ganha
preponderância relativamente à fala no processo de estruturação da memória (1990, p. 394-
402).
A influência do pensamento de E. Husserl parece não estar ausente da análise de Pierre
Nora, pois essse historiador francês fez uso da noção de intencionalidade para formular sua
noção de lugares de memória e se detém nas significações de objetos e acontecimentos. Porém,
P. Nora atribui-lhes historicidade e realismo quando os relaciona à história e a referentes, ao
contrário de se deter na análise da “significação” (RICOUER, 2007, p.18).
Dessa maneira P. Nora dissociou-se, com sucesso, do traço mais geral da fenomenologia
de E. Husserl (CHAUÍ, 2000, p. 102), qual seja, o entendimento de que o mundo real não existe,
apenas as “significações” ou “sentidos” dele, estruturados pela razão e independentes da
experiência como propõe Kant, bem como que os “objetos são ideais, são ‘significações’,
alheias ao tempo e ao espaço, de validade permanente”133.
Sobre o conceito de memória, “crucial”, no entendimento de Jacques Le Goff (1990, p.
366), entendemos ser pertinenete também a conceituação das ciências humanas e sociais, a qual
133
Cf. https://educacao.uol.com.br/biografias/edmund-husserl.htm
511
"considera que o ato mnemônico fundamental é o ‘comportamento narrativo’ que se caracteriza
antes de mais nada pela sua função social, pois que é comunicação (...) a outrem de uma
informação, na ausência do acontecimento ou do objeto que constitui o seu motivo” (JANET
apud LE GOFF, 1990, p. 367).134
Finalizando essa introdução é importante mencionar que o projeto de pesquisa do qual
resultaram a matriz digital transcrita nesse trabalho e várias outras, desenvolveu-se no Acervo
Documental Waldemar Bispo Duarte, em João Pessoa-PB, no Arquivo Público Estadual Jordão
Emerenciano, em Recife-PE e no Instituto Histórico e Geográfico do RN, em Natal-RN, e foi
financiado pelo PROPESQ da Universidade Estadual da Paraíba. Por último, agradecemos a
revisão conjunta com esse autor da trasncrição por parte da profª. Maria da Vitória Barbosa
Lima.
ANÁLISE PALEOGRÁFICA
134
Obviamente que não se desconsidera a importância atual da outra noção de memória na sua formulução mais
“complexa” que levou a aproximação dos estudos de memória das ciências humanas e sociais (LE GOFF, 1990,
p. 367).
512
pontuação: estão presentes o ponto final e a vírgula; acentuação: o til e o cedilha; numeração:
aparecem numerais arábicos; sinais taquigráficas: não há.
Aspectos materiais: suporte da escrita: papel; instrumento da escrita: pena de ave; tinta:
ferro-gálica; encadernação: avulsa; dimensão: semelhante às dimensões, largura e altura, da
atual folha de papel A4; estado de conservação: muito bom. A seguir estão a matriz digital e
sua transcrição.
MATRIZ DIGITAL
513
[fl.1]
514
ESCRITA E MEMÓRIA SOCIAL
135
Elaborado com um dos três tipos de escrita classificados por C. Higounet (2003, p. 11-13)135, a escrita alfabética
fonética, sendo que caligraficamente é uma escritas latinas chamadas de escrita humanística porque foi
“ressuscitada” por humanistas no final do século XIV, em Florença, na Itália (HIGOUNET, 2003, p. 143-145;
MARQUES, 2002, p. 75-80).
136
A disciplina da Epigrafia é da Idade Moderna.
515
Além de proporcionar progressos no desenvolvimento da memória, a escrita também
provocou mudanças na maneira de ocorrer o ato mnemônico. Nas sociedades sem escrita
ocorria e era valorizado um tipo de memorização caracterizado pela variação e não pela
memorização integral com raras exceções como no caso da memorização através do canto
(GOODY apud LE GOFF, 1990, p. 371-372). Por isso, os relatos tendiam a ser diversos embora
se referissem ao mesmo acontecimento, real ou imaginário, como no caso das “numerosas
variantes nas diversas versões” do mito do Bagre da sociedade dos LoDagaa, sendo que isso
era mesmo valorizado entre seus integrantes (GOODY apud LE GOFF, 1990, p. 371). Com o
aparecimento da escrita desenvolveram-se a exteriorização da recordação e apareceram
sistemas de educação da memória: as mnemotécnicas (LE GOFF, 1990, p. 366).
No que se refere a um conceito de escrita, é importante mencionar que seu aparecimento
proporcionou também o desenvolvimento das capacidades eminentemente mentais de
“descontextualizar” e “recontextualizar”, sendo que tais modificações no psiquismo humano
possibilitaram a compreensão da escrita como sendo mais que um “saber-fazer técnico” e sim
uma “aptidão intelectual” (GOODY apud LE GOFF, 1990, p. 376).
Um último aspecto importante relacionado ao aparecimento da escrita após seu
aparecimento 3.500 anos a. C, na Antiguidade, na Suméria, deve ser mencionado. Mais de três
milênios depois de aparecido começou a desenvolver-se uma espécie de autonomização da
escrita relativamente à fala como meio de comunicar informação. Esse fenômeno expressou-se
na leitura silenciosa como alternativa à leitura em voz alta e pela percepção de que a escrita
continha ideias, pensamento. Tais mudanças decorrem da proliferação da linguagem escrita em
pergaminho - mais barato do que o papiro - já a partir do século II d. C, bem como, do acesso
de mais pessoas ao texto manuscrito (FISCHER, 2009, p. 210).
Sem ter a pretensão, inclusive extremamente equivocada de desvalorizar a oralidade
como forma de memória, pelo exposto, pode se sugerir que a história da memória se divide em
a. E e d. E, ou seja, antes da Escrita e depois da Escrita. É necessário para esse estudo, então,
entender de que maneira um dos aspectos da escrita, as características extrínsecas, estão
relacionadas à memória e, em particular, à memória social.
516
CARACTERÍSTICAS EXTRÍNSECAS DA ESCRITA E MEMÓRIA SOCIAL
O que permite a escrita existir enquando tal? Os símbolos gráficos. De que são feitos os
símbolos gáficos? Do que se denomina, em Paleografia, de características extrínsecas da escrita.
Então a prerrogativa de comunicar inforções esta ligada, obviamente, à existência de símbolos
grafados de uma certa maneira, grafologia essa que permite classificar (sintética, analítica,
alfabética) as escritas e também tipificá-las (capital quadrada, uncial, carolina, gótica e
humansita, citando alguns tipos de escritas alfabéticas fonéticas latinas).
Pode se dizer então as caracterísitcas extrísecas são um comportamento narrativo com
função social sobre a escrita de uma época e a respeito de outros objetos e acontecimentos
ausentes. Mas, deve se ressaltar a falta de exclusividade das características extrínsecas, sendo
necessário considerar que a memória, individual e social, se constitui também a através das
informações comunicadas.
Por isso, que se deve associar forma e conteúdo para ocorrer esse comportamento
narrativo com função de recordação de maneira plena. Por exemplo: a escrita gótica permite
uma recordação sobre a sociedade medival, mas se deve associar à forma do traço, a informação
passada através deles, para se completar o ato menmônico.
Embora seja profundamente marcada pelo simbolismo, a escrita e também as
características extrínsecas da escrita, há uma dimensão propriamente material, objetal, em
ambas, nos termos mais recentes formulados pela lingüística (CHAUÍ, 2000, p.182).
Entendemos que Pierre Nora (1993, p.14-15; 21) associa-se a essa linha, por exemplo, quando
enfatiza tanto a natureza minunciosa da memória arquivística, produzida pelo traço, pelo
registro, como também quando indica o sentido material dos lugares de memória. Essa
tangibilidade das características extrínsecas também está indicada na “passagem da esfera oral
à visual” (LE GOFF, 1990, p. 374) na organização da memória possibilidade pelo aparecimento
da escrita.
Essa prerrogativa peculiar das características extrínsecas de serem elas a possibilitar a
comunicação da informação vista e não ouvida, através da visão dos símbolos escritos (e do
seu significado) deve, claro, está associada a uma outra que é a possibilidade de compreensão
dos símbolos da escrita como resultado da legibilidade de tais símbolos grafados. Essa
exigência da escrita ser antes de mais nada legível pode ser exemplificada historicamente
através das críticas dos literatos humanistas Petrarca e Boccaccio à escrita gótica librária e às
escritas nacionais que levaram à adoção crescente da escrita carolina (MARQUES, 2002, p. 77;
517
HIGOUNET, 2003, p. 103-183; 143-145), sendo que essa legibilidade da escrita, enfatizamos,
está diretamente ligada às características extrínsecas de uma determinada escrita.
Petrarca e Bocaccio, a partir de 1366, passaram a dizer a respeito da(s) escrita(s) da
época, que parecia(m) ser feita(s) para qualquer coisa menos para ser(em) lida(s), por ser(em)
luxuriante(s), ou seja, “excessivamente ornada[s], parecendo obras de pintores e não de
escritores”, tendo-se como resultado dessa crítica a adoção de uma escrita chamada de
humanista, “sóbria, elegante, simples e clara”. Não era somente o conteúdo dos textos escritos
do século XIV que incomadava os literatos humanistas. A forma da escrita ou suas
características extrínsecas - sendo que nesse século XIV não se designava as formas gráficas
dessa maneira - também foram objeto de críticas que resultaram na organização de uma
“unidade gráfica” internacional através da escrita humanista que foi desenvolvida a partir da
antiga escrita carolina, usada nos século IX, X e XI (MARQUES, 2002, p. 77).
Portanto, entende-se que as características extrínsecas da escrita são formas de memória
da própria escrita porque podem comunicar informações a outrem sobre a própria escrita
ausente, passada. Quando se associa essas características extrínsecas à informação por elas
transmitidas, temos a comunicação narrativa mais específica e com função social a respeito da
própria escrita e objetos ou acontecimentos ausentes outros que não a própria escrita. Essa foi
a generalização mais abragente - e pertinente, entendemos - que conseguimos fazer nesse
trabalho.
519
por Pierre Nora (1993, p. 7-8; 22), para quem a intenção de que um acontecimento ou um
objeto, permaneçam enquanto tal, é determinante para o constituição dos lugares da memória
numa certa oposição aos lugares da história.
Também Le Goff (LE GOFF, 1990, p. 376-382) permite essa relação entre
características da escrita e memória, ao definir os progressos da memória ligados à escrita e
especificar a relação entre escrito manuscrito e memória social.
A partir dos critérios de periodização de Jacques Le Goff (1990, p.369) e Pierre Nora
(1993, p.7-8), bem como considerando as especificidades do processo histórico da sociedade e
da formação social brasileira (incluindo aqui as várias sociedades nomeadas como indígenas),
podem ser propostos quatro grandes períodos para a história da memória no Brasil, a título de
introdução, haja vista os limites de explorar um tema como num trabalho com outros objetivos.
Um período anterior a 1500, dos povos sem escrita de memória étnica; outro período,
desta data de 1500 até 1808/1822, no qual se desenvolveu, principalmente, embora sem
exclusividade137, o uso da escrita manuscrita associada à fala que pode ser chamado de memória
tradicional, pois esteve predominantemente ligado à sociedade colonial brasileira, com pouca
alfabetização e circulação de impressos; o período seguinte denominado de memória dos
“tempos modernos”, que vai de 1808/1822 até a Revolução de 1930, no qual ocorreu a
disseminação lenta da alfabetização e da produção da escrita impressa (ABREU, 2010, p. 41-
67); e o atual, de 1930 em diante que pode ser chamado de período da memória contemporânea,
no qual a memória passa a ser amplamente exteriorizada dos indivíduos pela disseminação da
alfabetização e o aparecimento de outros meios de registro da memória, incluindo aí os meios
eletrônicos, como o computador, numa sociedade cada vez mais industrializada, urbanizada e
globalizada.
A escrita humanista138 do nosso documento manuscrito digitalizado e suas
características extrínsecas situam-se nos inícios dos “tempos modernos” brasileiros, pois foram
137
É importante considerar, por exemplo, a importação de escritos impressos de Portugal para o Brasil colonial
(BRAGANÇA, 2010, p. 25-40). Mas é possível sugerir com larga margem de certeza que a produção de escritos
manuscritos prevalecia em muito o uso de escritos impressos, que só começarão a ser produzidos aqui,
continuamente, a partir de 1808.
138
A invenção da escrita humanista é bem anterior ao século XIX, datando do final do século XIV. Sua adoção
em altas esferas governamentais portuguesas inciou-se já em 1403 (MARQUES, 2002). A sua presença em várias
520
grafados em 1830, fazendo parte do comportamento narrativo com função social relacionado à
reprodução de um poder novo no âmbito provincial, que era Conselho Geral de Província da
Parahyba do Norte do estado nacional monárquico e constitucional do Brasil, do qual a
Parahyba do Norte era uma das vinte províncias e simbolizando uma inciativa relacionada ‘ao
processo de “descolonização interior”. Estão aí, inclusive, os sentidos dos lugares de memória
mencionados por Pierre Nora (1993, p. 21) que são o material, o funcional e o simbólico.
Vamos discutir um pouco sobre as abreviaturas, que estão presentes desde longa data
na história da memória por serem parte antiga da escrita.
AS ABREVIATURAS
regiões da Europa, a partir de sua criação na Itália como parte do processo geral e lento do que foi denominado
de “desmoronamneto” do mundo feudal por Pierre Nora (1993, p. 7-8) promoveu uma nova “unidade gráfica” e
seus aspectos extrínsecos, de acordo com José Marques (2002, p.77), são “mercê do seu carácter arredondante,
tendência para a perpendicularidade das hastes face à regra ou linha, distinção das palavras e das próprias sílabas
e letras dentro da mesma palavra, ausência de nexos, etc.” Foi em decorrência da colonização portuguesa, portanto,
que a escrita humanista foi adotada no Brasil, de forma lenta, mas tendo predominado na produção dos escritos
coloniais (BERWANGER & LEAL, 2008, p. 68).
521
Por abreviatura entende-se a “Representação reduzida, em maior grau ou menor grau, de
palavras, de sílabas ou expressões, utilizando-se letras, sílabas e pontuação” (LEAL &
SIQUEIRA, 2011, p. 15-16). Há pelo menos mais um recurso gráfico utilizado para produzir
as abreviaturas que é o uso de sinais especiais, os quais são símbolos que “indicam a própria
abreviação ou substituem letras, sílabas ou palavras” (BERWANGER & LEAL, 2008, p. 92-
93; HIGOUNET, 2003, p.148). No nosso documento transcrito há uma abreviação por sinal um
especial na “forma aproximada” de um 9, representando as duas sílabas iniciais da palavra
“novembro”.
O procedimento de abreviar para escrever remonta à Antiguidade romana, através das
famosas notas tironianas (BERWANGUER & LEAL, 2008, p. 93; HIGOUNET, 2003, p. 145).
De acordo com C. Higounet (2003, p. 145-152), “O grande período de uso das abreviações foi
o das escritas carolíngia e gótica, do século IX ao século XV.” Os sistemas de abreviar eram
bem semelhantes aos atuais, que são por sigla, contração, suspensão, letras sobrescritas e sinais
especiais.
No período da Renascença e após ele também se desenvolveu um modo de escrever
abreviado moderno, a estenografia ou taquigrafia, produto do “desejo de possuir uma escrita
tão rápida quanto a fala” (ACIOLLI, 1994, p.46).
Essa necessidade de abreviar foi mantida na Idade Contemporânea na vida pública e no
mundo dos negócios pelo desenvolvimento de uma escrita abreviada mecânica, a estenotipia,
(HIGOUNET, 2003, 173). Sobre o porquê das palavras seram abreviadas, indicado no parágrafo
anterior, diz-se que foi por economia de tempo e de material suporte para escrever entre outras
explicações, embora não haja consenso sobre esse ponto e mesmo se é posssível explicar os tais
“representantes linguísticos” (CONTRERAS, 1994, p. 107-108; HIGOUNET, 2003, p.145;
ACIOLLI, 1994, p. 45; STIENNON & CONTRERAS, 1994, p.108).
Constam duas normas nas Normas Técnicas para Transcrição e Edição de Documentos
Manuscritos para transcrever abreviaturas (LEAL & BERWANGUER, 2008, p.100). A norma
técnica 1.9 se refere às abreviaturas de uso corrente, abreviaturas conhecidas e das quais não se
deve proceder o desenvolvimento na transcrição. Nesse sentido, “Sr.”, “Illmo.” e Exmo. são
522
exemplos de abreviaturas que devem ser transcritas apenas atualizando a forma dos caracteres
existentes na escrita original.
A norma técnica 1.8, da qual tratamos, estabelece que as abreviaturas de uso não
corrente devem ser desenvolvidas na transcriação e que a parte acrescida à abreviatura deve ser
grifada. Por abreviaturas pouco usuais se deve entender as abreviaturas pouco conhecidas, que
podem realmente dificultar a leitura da escrita mesmo após a transcrição. Por exemplo: cide,
que deve ser transcrita cidade; qualide que deve ser transcrita por qualidadade; etc.. Há milhares
de exemplos de abreviaturas na escrita latina humanista presentes na imensidão da
documentação manuscrita brasileira (FLEXOR, 2008).
Na matriz digital do documento manuscrito transcrito nesse trabalho, há algumas delas
e seguiu-se o que está estabelecido na Norma Técnica para Transcrição e Edição de
Documentos Manuscritos n. 1.8 (BERWANGER & LEAl, 2013), a qual estabelece que “As
abreviaturas não correntes deverão ser desenvolvidas com os acréscimos em grifo”, como foi
dito acima. Resolveu-se reunir as abreviaturas da dita matriz digital e elaborou-se um quadro
que mostra as linhas do documento onde se encontram, as abreviaturas (já atualizadas) e as
transcrições.
3ª qualide Qualidade
4ª q’ Que
5ª p’ Por
6ª pa Para
6ª ma Minha
9ª ma Minha
10ª pm Porem
12ª qm Quem
523
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No que diz respeito à aplicação da norma técnica sobre abveviaturas não usuais,
considera-se que o objetivo foi atingido, pois as abraviaturas não correntes trasncritas com o
devido desenvolvimento grifado foram várias, possibilitando perceber como se faz esse
procedimento. A pertinência da norma técnica não tem motivos para ser posta em cheque, já
que a facilita a compreensão da escrita original do documento, sem alterá-la.
No tocante à relação entre caraterísticas extrísnsecas e memória social entende-se que
conseguiu-se mostrá-la, pois evidenciou-se que elas, as características extrínsecas, possibilitam
um comportamento narrativo com função social relacionado à própria escrita e outros
acontecimentos, na medida em que comunicam informações a outrem sobre a escrita da época,
a atividade do conselheiro geral de província e uma instância de poder novo.
Nesse sentido, pode se dizer que: a) por ser o meio de registrar a escrita num material
brando as caracterísitcas extrínsecas da matriz digital possibilitam o armazenamento de
informações que podem ser comunicadas através do tempo e do espaço; b) e que, enquanto
formas determinadas, humanistas, dos símblos grafados expressam materialmente a passagem
da esfera auditiva à visual do ato menemônico, ou a maneira pela qual se evidenciou a passagem
da oralidade à escrita na estruturação da memória que permite reexaminar, reordenar e retificar
frases e palavras. Por isso, as nossas caracterísitcas extrínsecas possibilitam um progresso da
memória ligado ao aperecimento e disseminação do documento escrito num material
especialmente designado a esse fim, nos termos da análise que consta em Le Goff (1990).
Pode se dizer, então, que as características extrínsecas da escrita da nossa matriz digital
são memória na medida em que permitem um comportamento narrativo a outrem, ou seja,
permitem comunicar informações sobre a escrita humanista e sobre as atividades de um
membro de um poder novo, o Conselho Geral de Província da Parahyba do Norte, uma instância
provincial da monarquia constitucional centralizada brasileira no ano de 1830, e também sobre
instâncias de poder provinciais.
A respeito da filiação do presente texto à corrente da Paleografia Crítico-Analítico,
importa dizer novamente foi essa corrente que desenvolveu a análise das técnicas ou o como as
características extrínsecas da escrita são grafadas. Se as características extrínsecas que
possibilitam o registro da escrita são a expressão do como esse registro foi feito e isto pode ser
relacionado a um comportamento narrativo com função social, nada mais pertinente do que
dimensionar no âmbito da dita Paleografia Crítico-Analítica a relação das características
524
extrínsecas da escrita e a memória social, pois tanto essa corrente de estudos paleográficos
como o presente texto têm em comum o objeto de estudo da Paleografia que é, como se sabe,
as referidas características extrínsecas da escrita em material brando e não a escrita como um
todo.
Pudemos afirmar também que as características extrínsecas tiveram papel fundamental
na constituição da chamada memória integral das sociedades com escrita, pois foi o registro do
traço constituinte de símbolos que estimulou esse tipo de recordação, “palavra por palavra”, em
oposição à variação no ato mnemônico, predominantemente presente e valorizada nas
sociedades sem escrita. Porque se desenvolveu essa valorização da memória integral é outra
questão, estando sua resposta relacionada ao desenvolvimento da produção escoada pelo
comércio, à urbanização e à luta de grupos sociais pelos poderes.
Na medida em que todas as escritas em material brando têm características extrínsecas,
pode se dizer que esses raciocínios são extensivos às escritas em geral, embora estejamos
partindo de uma escrita específica como foi dito.
Relacionou-se Paleografia e memória social de outra maneira, concluindo-se que as
características extrínsecas do nosso documento podem ser lugares de memória, ou seja,
constituem parte da memória dita arquvística, indivual, embora não consideramos que exista
somente tal possiblidade individualizada de estruturar a memória nos “tempos modernos”.
Existem a memória individual e a memória social. Para P. Nora (1993) os lugares de memória
se constituem nos “tempos modernos” nos quais se desenvolveu a memória arquivística.
Essas características extrínsecas que compõem a escrita da nossa matriz digital foram
elaboradas pelo conselheiro geral provincial com a intenção de que permanecesse enquanto tal,
sem alteração, e nos inícios dos “tempos modernos” brasileiros, como vimos. Sendo assim se
pode compreendê-las como sendo lugares de memória nos três sentidos da palavra “lugar”, o
material, o funcional e o simbólico.
Material na medida em que são registros objetais a respeito de acontecimentos passados
da história paraibana e da escrita da época.
O sentindo funcional está relacionado ao uso das caracterísitcas extrínsecas da escrita e da
comunicação de informação pela escrita para reproduzir a dinâmica de um órgão provincial do
estado nacional brasileiro e também ao ato de comunicar dessa maneira, por escrito, fixando a
comunicação das informações.
E o sentido simbólico da escrita e especificamente de suas caracterísiticas extrínsecas
relaciona-se à contribuição para instauração dos “tempos modernos” no Brasil e da
525
“descolonização interior”, pois estão relacionados ao processo de emancipação política do
Brasil da condição de colônia e à constituição do estado nacional, bem como por afirmar uma
escrita, a escrita humanista, relacionada aos “tempos modernos”, que são os tempos oriundos
das mudanças relativas às sociedades de estruturas tradicionais, quer seja o mundo feudal
europeu quer seja o mundo colonial brasileiro.
Finalizando, entendemos que Pierre Nora se equivocou pelo menos em dois pontos.
Primeiramente parece ter havido uma contradição na fundamentação a respeito da existência de
dois\ tipos de memórias, a verdadeira e a arquivística, diferenciadas pelo registro. Se a
diferenciação é essa, por que não entender as inscrições das civilizações da epigrafia e os
documentos escritos da Antiguidade como registros?
O segundo ponto diz respeito ao entendimento por parte de Nora de que nos “tempos
modernos” só há memória individual, a memória registrada do sujeito, e antes daqueles “tempos
modernos”, só havia a memória coletiva. Parece-nos que esses aspectos individual e social
estiveram presentes ao longo da história da memória. O que é, por exemplo, a variação no ato
mnemônico das sociedades sem escrita senão uma característica subjetiva da memória?
Essa opção feita P. Nora por uma ou outra memória, social ou individual, pode ser vista
como uma expressão do pensamento mais geral do século XX percebido por M. Bermam (1981,
p. 25), diferente do pensamento de intelectuais do século XIX, como Marx e Nietzsche, no qual
prevaleciam as “Visões abertas da vida moderna [sendo que] foram suplantadas por visões
fechadas: Isto e Aquilo substituídos por Isto ou Aquilo”.
Nesse sentido, concluindo, entendemos que as características extrínsecas da nossa
matriz digital são lugares de memória e são também um comportamento narrativo com função
social.
REFERÊNCIAS
ABREU, Márcia. Duzentos anos: os primeiros livros brasileiros. In: BRAGANÇA, Aníbal,
ABREU, Márcia. Impresso no Brasil: dois séculos de livros brasileiros. São Paulo: UNESP,
2010, p. 41-67.
ACIOLI, Vera Lúcia. A escrita no Brasil colônia. Recife: Editora Universitária, 1994.
526
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São
Paulo: SHWARCZ, 1986.
FISCHER, Steven Roger. História da escrita. São Paulo: Editora Unesp, 2009.
FLEXOR, Maria Helena Ochi. Abreviaturas: manuscritos dos séculos XVI ao XIX. 3. ed.
revista e aumentada. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2008.
HIGOUNET, Charles. História concisa da escrita. São Paulo: Parábola Editorial, 2003.
GONDAR, Jô, DODEBEI, Vera. O que é memória social? Rio de Janeiro: Contra Capa,
2005.
NORA, Pierre. Entre História e Memória. A problemática dos lugares. Projeto História
Revista do programa de estudos pós-graduados em História. São Paulo, v. 10, p. 7-28, dez.
1993. Disponível em: http://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/download/12101/8763.
Acesso em: 12 out. 2012.
527
__________. História, memória, esquecimento. Disponível em:
http://www.uc.pt/fluc/lif/publicacoes/textos_disponiveis_online/pdf/memoria_historia.
Acesso em: 12 dez. 2016.
528
PALEOGRAFIA E COGNIÇÃO: A CONCEPTUALIZAÇÃO DO
PECADO NO TESTAMENTO DE GABRIEL SOARES DE SOUZA
INTRODUÇÃO
529
Para tanto, parte-se de uma leitura conservadora, com utilização dos métodos da
Paleografia, bem como de outras ciências auxiliares do labor filológico, procurando preservar
as características linguísticas do documento. De acordo com Bellotto (2002), o testamento,
representa a vontade solene do testador do que deve ser feito com os seus bens após sua morte,
tendo essa característica, tais tecidos textuais representam grandes fontes de dados para que
haja análise do pensamento humano vigente em uma determinada época.
Na Bahia colonial, conforme atestam às fontes documentais, a Igreja Católica
recomendava a seus seguidores a prática do ritual da “boa morte”, um rito de passagem que
buscava garantir ao cristão uma morte segura, um processo em que havia várias etapas tanto
antes da morte quanto depois. Tal evento se dava como um meio de alcançar a salvação, para
que o fiel diminuísse as suas faltas diante Deus, negociando assim as suas dividas com o Pai
Celestial a fim de angariar um lugar ao lado dele. Segundo Pereira (2016) a preocupação com
o desenlace final estimulava os membros da elite da Bahia colonial a seguirem este ritual, sendo
a doação de muitos dos seus bens a Igreja uma das etapas para a garantia da salvação.
Na construção desta argumentação é possível perceber que o que impede a alma de
chegar próximo de Deus são os pecados. Entretanto, através do ritual da “boa morte” pela
demonstração de arrependimento do cristão essa chance é disponibilizada, sendo um estudo de
um de seus processos relevante para uma melhor compreensão da cognição social. Em vista
disso, compreendendo que, como assinala Ferrari (2014), o contexto orienta a construção do
significado, busca-se analisar neste trabalho como o peso da significação do pecado e de ser um
pecador interferia na representação mental do cristão, considerando o evento da morte, o que
tornará possível entender porque a ideologia predominante nesta conceptualização
proporcionava tanto receio a estes fiéis.
530
Cotidiana em tradução brasileira de 2002. Esses teóricos trouxeram uma revolução para os
estudos da metáfora e da cognição, ao propor que a metáfora não é somente um elemento de
embelezamento textual, como afirmado por Aristóteles na Antiguidade, atrelada apenas à
literatura, mas sim, um componente fundamental e natural do pensamento e da ação humana,
ou seja, os falantes de línguas naturais manifestam-se através de expressões metafóricas o dia
inteiro (LOPES, 2015), ainda que não tenham consciência de que em sua fala cotidiana
conceituam os objetos no mundo através do conhecimento de outros.
Naturalmente, os seres humanos em seu processo de formação, dão nome às coisas,
categorizam classes (tipos de animais, tipos de árvores, dias da semana e etc) e também
ressignificam o sentido para itens lexicais da sua língua, podendo um item lexical “x” possuir
conotações diferentes para os indivíduos de um mesmo corpo social. Por isso, a Linguística
Cognitiva, ao tomar caminho inverso ao da teoria gerativa postulada por Noam Chomsky (1965)
propondo que a palavra tem relação direta com a realidade, ou seja, os itens lexicais devem
possuir referência externa com o mundo, contraria esse postulado, afirmando que essas
construções são individuais-pessoais, visto que não há uma realidade objetivamente dada e
homogênea para que os indivíduos conceituem os haveres igualmente (FERRARI, 2014).
E, é notório que essa afirmativa se confirma na realidade, pois cada pessoa vive em um
local, é criada de uma forma, é influenciada pelos grupos sociais que perpassam sua vida, de
forma que esse processo de formação contribui para a estruturação do conhecimento. Logo, o
estudo das estratégias de conceptualização no testamento de Gabriel Soares de Souza,
documento que integra o Livro Velho do Tombo do Mosteiro de São Bento da Bahia, se faz
relevante, tanto para os estudos linguísticos, quanto para os estudos históricos e culturais, uma
vez que, ao serem analisados os laços, as redes e pontes que contribuem para a estruturação do
significado, pode-se evidenciar como o indivíduo, e o grupo social do qual fazia parte,
conceptualizava o seu pensamento em relação a certo item lexical. As práticas culturais de uma
sociedade são atividades importantes para a valorização da identidade humana, desse modo,
seria estranho pensar que os ritos religiosos não fazem parte dessas práticas, já que as rotinas
religiosas são de extrema importância para muitos seres e essas práticas influenciam o
comportamento desses no mundo.
O Ritual da “boa morte” era uma dessas condutas, recomendada pela Igreja Católica,
aos seus fiéis, que conscientes dos seus compromissos como cristãos, produziam um testamento
informando aos seus familiares e à sociedade local o que deveria ser feito após a sua morte a
fim de angariar um lugar no Reino dos Céus. Tais documentos traziam também a informação
531
do que deveria ser realizado com os bens e posses do indivíduo em prol da comunidade, a fim
de atender ao princípio cristão de amor ao próximo e também, com o intuito de atestar seu
arrependimento, aliviando os erros cometidos em sua vida no plano terrestre, pois, como
observa Pereira (2014):
[...] o medo das penas do Purgatório e do Inferno fazia com que os homens
observassem as práticas do bem morrer que eram iniciadas ainda em vida, com as
obras de caridade e a redação do testamento e se completavam com o cumprimento
dos últimos desejos do falecido por seus familiares e demais herdeiros, o que, para
além da religiosidade, demonstrava também o lugar de prestígio do morto naquela
sociedade, suas posições e valores (PEREIRA, 2014, p. 4).
Um dos itens lexicais que aparecem constantemente nos testamentos é a palavra pecado,
uma unidade de sentido relevante para os testadores, pois o pecado era visto como uma barreira
que impedia o indivíduo de alcançar a graça divina, sendo esse, um elemento que trazia uma
carga de preocupação com relação à conquista da salvação. Desse modo, utilizando os
elementos metodológicos da Semântica Cognitiva, busca-se neste trabalho fazer uma análise de
quais liames estruturavam a construção de sentido para “o ato de pecar”, ação essa que trazia
medo aos testadores, por ser uma prática perigosa que poderia impedir o cristão de chegar a
Deus. Em geral, na organização do documento,
532
deixada por seu irmão João Coelho, grande conhecedor dos sertões, com o objetivo de descobrir
minas de pedras preciosas, as Minas Gerais, descobertas um século depois (SILVA, 2011).
Na intenção de interpretar e demonstrar o processo de conceptualização de um item
lexical em um determinado contexto, este trabalho toma sua ação a partir da aproximação
temporal, já que esse testamento está sendo analisado em uma época diferente da sua produção,
não sendo possível assim se ter acesso ao momento de construção da escrita pelo testador.
Tratando-se de um documento manuscrito datado do século XVI, o conhecimento da
Paleografia e de outras ciências auxiliares são requisitos indispensáveis para sua adequada
leitura e interpretação.
A decifração e o desenvolvimento de abreviaturas, bem como a identificação das
ligaduras em documentos antigos são algumas das tarefas do trabalho do filólogo, fazendo o
uso dos conhecimentos de Paleografia, o que demonstra a importância da disciplina para o
desenvolvimento de outras ciências, permitindo que o leitor da atualidade conheça a cultura e
o pensamento de um povo antepassado, sendo ainda de grande relevância para os pesquisadores
de diversas áreas do saber. Os quadros a seguir apresentam exemplos das dificuldades
encontradas na leitura do documento:
Quadro ˗ Abreviaturas.
533
do d(it)o Abreviatura por f. 165r l. 35
letra sobreposta
Quadro ˗ Ligaduras.
LOCALIZAÇÃO
aCerteza f. 164r l. 17
LOCALIZAÇÃO
f. 165r l. 47
ComaCampa
f. 165r l. 8
deCuio
f. 165r l. 49
Eaodiante
534
no ato de fala. Ao fazer essa análise e encontrar esse fenômeno cognitivo, é preciso representa-
los com a sentença formulada em um estilo de predicativo do sujeito, por exemplo: PECADO É
UM CRIME.
O tratadista, logo no início de seu ato documental define o local onde escreve o seu
testamento e afirma estar em perfeito juízo mental para escrever tal tecido textual. O testador
apresenta também a motivação para a redação do documento: como vai fazer uma longa viagem
por mar, teme o risco da morte repentina e preocupa-se com as possíveis repercussões, após a
morte, dos atos praticados durante sua vida, e dos prejuízos que esses podem causar à conquista
de sua salvação.
Para escapar às penas infernais, roga a misericórdia do Cristo na cobrança de suas
dívidas:
[...] IeZus Christo aquem humilmente peso perdam demeus peCados a honrra
das sin/Co Chagas queelle padeseonaaruoredaSantaCrus e honrradetodos os
misterios desua/ Sagrada Morte ePayxão a quem pesoque não Julge minhas
Culpas ComaquellaIra quepella/ Grauezadellasestou meresendo senão Coma
grandeza desua MiZericordia em a qu/al ponho a Esperancademinha saluaCam [...].
(TGSS, 1584: 164r L. 0-5, Grifos nossos).
535
dequeelleTantoGoza e ahonrrada/quellasanta EmBaixada que elle Leuou a Virgem
Nosasenhora queseiaTerseiro/ diantedellaperaqueella o seia diantedoseupRecioZo
filho, edellamealCcamse per/dam demeus peCados [...]. (TGSS, 1584: 164r L. 12-17,
Grifos nossos)
Neste fragmento é possível observar que Gabriel S. de Souza pede à Virgem Mãe de
Deus que defenda a sua alma pecadora do inimigo tentador para que este não o perturbe na hora
da sua morte. O pecado se configura neste extrato como uma falha a ser castigada, assim como
têm-se a noção de que quando alguém comete um crime, esse crime deve ser pago para que se
faça justiça. O pecado nesse contexto aparece como a violação de uma conduta, logo, PECADO
É UMA INFRAÇÃO. O testador reconhece que é um infrator e têm consciência das suas faltas,
mas, mesmo assim, pede que, como um advogado, o anjo Gabriel juntamente com a Virgem
Mãe de Deus o defendam, intercedam na justiça por ele, um criminoso, perante aquele que pode
influenciar negativamente os que já são infratores, no caso, "o inimigo tentador", para que não
o perturbe na hora da morte. Portanto, se pecado é infração a ser advogada, reconsiderada e
aliviada, logo, aquela que será julgada será a alma pecadora, por isso constata-se a ocorrência
de outra metáfora: A ALMA É UM RÉU.
Na terceira e última verificação, localiza-se mais uma metáfora conceptual:
Para local de seu sepultamento, o testador pede a Capella Mor, e que se ponha no
letreiro de seu jazigo a frase “aqui jas um pecador”. É perceptível que, cotidianamente muitos
cristãos que viveram não só no período em que Gabriel Soares de Souza viveu, mas em outros
também, pediram e pedem para que essa mesma sentença seja escrita em suas lápides. E, ao
analisar essa afirmação, constata-se a ocorrência da metáfora ADMITIR O PECADO É ATESTAR A
HUMILDADE, demonstrando dessa forma, que a atitude de humildade é uma característica
desejada no perfil de um cristão. O pecado se torna assim um reconhecimento de identidade do
cristão que deve mostrar-se arrependido e contrito a Deus.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Através da publicação de Metaphors of Live By, Lakoff e Johnson introduziram nos
estudos Linguísticos a Teoria da Metáfora Conceptual (1980) e desde então diversos
536
pesquisadores têm se debruçado sobre os estudos cognitivistas com o intuito de compreender a
complexa estruturação do significado na mente humana. Tendo em vista que a Paleografia é
uma das ciências auxiliares da Crítica Textual, a qual, permite a partir de suas intervenções
científicas que os seres humanos do presente, conheçam realidades do passado, é possível, por
meio de um estudo linguístico-cognitivo se chegar a conclusões aproximadas acerca de como
os cristãos daquela época pensavam.
As metáforas pelas quais o homem setecentista conceptualiza suas impressões acerca
das relações que se estabelecem entre a vida e a morte ratificam a compreensão a respeito da
extensão da influência da Igreja católica sobre as práticas socioculturais na Bahia colonial,
demonstrando como a pedagogia do medo determina as ações do cristão naquele período.
Desta forma, defendendo que a interdisciplinaridade entre os estudos linguísticos e
culturais podem trazer ricos resultados para o conhecimento do passado, buscou-se com este
trabalho trazer mais uma contribuição para o conhecimento dos processos mentais do homem
colonial, em especial ao que se refere ao contexto do ritual “da boa morte” e suas repercussões
tanto na vida do cristão, como na conceptualização do conceito de pecado para tais indivíduos.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Maria Cecília Jurado de. Paleografia. In: SAMARA, Eni de Mesquita
(Org.). Paleografia, Documentação e Metodologia Histórica. São Paulo: Humanitas, 2010.
CAMBRAIA, César Nardelli. Introdução à crítica textual. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
CHOMSKY, N. Aspects of the Theory of Syntax. Cambridge, MA: MIT Press, 1965.
FIORIN, José Luiz (Org.) Linguística? Que é isso? São Paulo: Contexto, 2013.
SÁEZ, C.; CASTILLO, A. Paleografía e historia de la cultura escrita: del signo a lo escrito.
In: TERRERO, Ángel Riesco (Ed.). Introducción a la Paleografía y la Diplomática
general. Madrid: Síntesis, 1999, p. 21-31. Disponível em: <
http://dspace.uah.es/dspace/handle/10017/6784?show=full> Acesso em: 28 set. 2017.
538
REGIMENTO DA SÉ DA CIDADE DA BAHIA: AS DIGNIDADES DO
CABIDO
INTRODUÇÃO
O início do século XVIII é marcado por um grande fluxo migratório em busca do ouro
localizado nos sertões da América Portuguesa. Tal contexto determina a ocorrência de diversas
transformações na colônia, entre as quais a necessidade de maior sistematização das atividades
do Cabido da Sé, a fim de garantir e ampliar a difusão do Cristianismo na colônia. Por meio da
edição semidiplomática dos quatro primeiros fólios do Regimento da Sé da Bahia, que integra
o Estatuto da Sé da Cydade da Bahia, é possível compreender as práticas eclesiásticas do
período em um contexto marcado pela estreita relação entre a Coroa Portuguesa e a Santa Sé
(BRASÃO, 1937). O documento em análise, datado de 1719, e sistematizado pelo então
Arcebispo Primaz da Arquidiocese da Bahia, Dom Sebastião Monteyro da Vide, descreve as
obrigações que norteiam a prática de cada capitular do Cabido da Sé da Cidade de Salvador, os
quais estão sob ordem da Majestade real, o rei Dom João V (ESTATUTOS, 1719).
Apresentam-se, neste trabalho, algumas das características paleográficas observadas no
documento original, o qual foi consultado no Laboratório de Conservação, Restauração e
Tratamento Arquivístico Reitor Eugênio de Andrade da Veiga (LEV), da Universidade Católica
do Salvador, onde se localiza atualmente o Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador. O
conteúdo dos fólios selecionados é de grande importância para a compreensão da vida religiosa
na cidade do Salvador, por explicitar aspectos da hierarquia e das incumbências de cada uma
das dignidades da Sé – Deão, Chantre, Thesoureiro-mor, Mestre Escola e Arcediago. Depois
do Arcebispo, eram esses os integrantes do clero que tinham acesso ao altar-mor da Santa Sé
da Bahia para realização dos rituais eclesiásticos.
540
Dessa forma, em 1718, o rei Dom João V escreveu ao Arcebispo da Bahia, Dom
Sebastião Monteyro da Vide, para que estabelecesse os estatutos da Sé, garantindo-lhe maior
sistematização, visto que mais do que uma construção imponente, a Igreja Sé da Bahia
representava um modelo a ser seguido na colônia, dada a importância da constituição do Cabido
dos eclesiásticos como peça de fundamental importância para o Governo eclesiástico na defesa
da fé cristã na colônia, a qual estava intimamente relacionada com os interesses da Coroa
Portuguesa (ESTATUTOS, 1719; BRASÃO, 1937; ARAÚJO, 2011). Assim, foram feitos os
Estatutos da Santa Sé da Cydade da Bahia, documento ao qual se integra o Regimento, do qual
foram selecionados para edição e análise os quatro fólios iniciais.
541
manipulação do documento ao passar as páginas, visto que marcam o suporte na margem
inferior, à direita no reto e à esquerda no verso.
Documento lançado em uma única coluna, em letra cursiva do século XVIII, a qual
apresenta leve inclinação à direita. A letra é bem traçada, com pouca variação scriptografica.
A pigmentação da mancha escrita se aproxima do marrom avermelhado sugerindo tinta
ferrogálica traçada, possivelmente, com uso de pena.
Observa-se a utilização de letras ramistas e poucas abreviaturas. O texto se apresenta
pontuado com uso de dois pontos, vírgulas e pontos; segmentado em parágrafos; acentuado,
destacando-se o acento circunflexo, indicando o futuro verbal, e o uso de til (~), como marca
de nasalização.
A separação vocabular no final das linhas é marcada por dois traços diagonais. Entre as
linhas e a margem direita há anotações lançadas a lápis ao documento indicando a numeração
dos folio no reto.
542
Figura ˗ Reclamo.
543
No fólio 25r, a mancha escrita se apresenta levemente desbotada próxima à margem direita
entre as linhas 3 e 31, aproximadamente, 10 mm, possivelmente pelo processo de restauro como
pode ser observado na Figura 5, o que, também ocorre, no fólio 26r, entre as linhas 3 e 30.
Alguns dos aspectos scriptográficos que com frequência estão presentes em manuscritos
constituem-se, por vezes, em barreiras que retardam a leitura dos documentos. Assim, quadros
que auxiliam a identificação das nuances apresentadas pelo traçado se tornam ferramentas que
facilitam a leitura.
A f.24r l.4
A f.24r l.9
544
B f.24r l.6
C f.24r l.18
C f.24r l.10
D f.24r l.
D f.24r l.10
E f.24r l.19
E f.24r l.10
F f.24r l.18
G f.24r l.22
I f.24r l.4
I f.24r l.18
545
f.24r l.8
h
f.24r l.13
J
L f.24r l.10
M f.24r l.15
M f.24r l.11
N f.24r l.15
N f.24r l.12
O f.24r l.8
f.24r l.9
o
P f.24r l.9
Q f.24r l.17
R f.24r l.11
546
R f.24r l.8
S f.24r l.11
(inicial)
S f.24r l.11
(final)
f.24r l.14
T f.24r l.16
T f.24r l.9
V f.24r l.21
V f.24r l.25
Y f.24r l.14
548
RELAÇÃO E CLASSIFICAÇÃO DAS ABREVIATURAS
Saõ Lourenço
S. Lourenço f. 27v l.8
AS DIGNIDADES DO CABIDO
O Deaõ he a primeira Dignidade desta Sé de=/ pois do Prelado: e alem das suas
semanas de Missas/ ordinarias, que tem como os mais Ca[p]itulares, dirá tam=/ bem
por respeito da sua primeir[a] Dignidade as Missas/ nas festas seguintes, em [as] quais
tambem capitu[l]arâ./ Dia de Reys a 6. de Jane[iro], dia da Ascesaõ do Se=/ nhor, dia
de Todos os Santos em o primeiro de Novembro,/ e a Missa da noyte de Natal [...]
(REGIMENTO, 1719, f. 24r, l. 8-15).
Sendo responsável pelo coro, cabe ao Chantre “reger todo officio, e ordenalhe as
[c]ousas necessarias, e dar o modo de cantar conforme ao tempo” (f. 25r 9-11), sendo também
responsável por acompanhar as procissões, bem como assegurar que o Subchantre, os capelães
e os moços do coro cumpram sus obrigações conforme aponta o Regimento, sem agir de forma
severa ou repugnante em público. O Chantre tinha o dever de dizer a missa nas festas da Nossa
Senhora, Domingo de Ramos, Natividade de Nossa Senhora e Oitava de Natal; conforme está
disposto abaixo:
O Chantre he a segunda Dig[ni]da[d]e desta Sé./ Alem de ter suas semanas, e Missas
[o]rdinarias, como/os outros Capitulares, dirâ tambem por razaõ da sua/Dignidade as
Missas das festas seguintes: dia da Pu=/ rificaçaõ de Nossa Senhora em 2. de/
Fevereiro, Domin=/ ga de Ramos, Natividade de Nossa Senhora em 8. de/ Septembro,
e a primeira [O]itava de Natal. (REGIMENTO, 1719, f. 25r, l. 2-8).
Cabia ao Tesoureiro-mor garantir a perfeição da Santa Sé a fim que ela sirva de modelo
às outras igrejas em limpeza e organização, não deixando nada faltar nas festas e garantindo a
arrumação dos altares em todas as semanas. Como terceira dignidade do Cabido da Sé, o
Thesoureiro-mor tinha o compromisso de dizer a missa no dia da Circuncisão, na Anunciação
da Nossa Senhora, na Dominga da Santíssima Trindade e no dia de São João Batista conforme
dito no Regimento da Sé.
Por fim, ao Arcediago, quinta e última dignidade da Santa Sé, cabe estar presente em
todas as vezes que o Prelado fizer missas ou ofício pontifical. Compete a ele a responsabilidade
por dizer as missas na Invenção da Santa Cruz, na primeira Oitava Festa do Espírito Santo, na
comemoração da Visitação de Nossa Senhora e no dia de São Lourenço:
GLOSSÁRIO
551
MURAKAWA, 2010). Dessa forma, a feitura dos verbetes evidencia o compromisso da
Filologia com o texto em sua completude, sem desconsiderar as questões lexicais.
Assim, apresentam-se cinco lexias extraídas do trecho editado, demonstrando a
importância do estudo do léxico para compreender o conteúdo do documento, destacando-se a
importância, conforme assinala Murakawa (1998), da consulta a obras lexicográficas
sincrônicas para o adequado estudo dos sentidos presentes no texto. Dessa forma, o glossário
apresentado busca ilustrar a relevância do trabalho da lexicografia na interpretação das práticas
culturais manifestadas no documento. Estabeleceu-se como destaque o campo lexical dos
objetos utilizados nas celebrações católicas:
AMICTOS s.m [do latim amicire] “AMICTO, ou amito. [...]. He huma especcie de veo branco,
que o Sacerdote, poem na cabeça, quado se reveste para dizer Missa. Significa o panno, com que os
judeocompletars cobiraõ o rosto a Christo em casa de Caifaz” (BLUTEAU, 1728, v.1, p. 336).
CALDEIRINHAS s.f [do latim caldaria] “CALDEIRINHA. Pequena caldeira de água benta. “
(BLUTEAU, 1728, v. 2, p. 54-55).
CORPORAES s.m [do latim corporalis] “CORPORAL, ou amito. [...]. Panno bento, sobre o qual
se poem a Hostia no altar” (BLUTEAU, 1728, v. 2, p. 560).
GALHETAS s.f [do castelhano galleta] “GALHETA. Galhêta. Pequeno vaso de vidro, ou metal,
com que se dá o vinho, & a agoa para o sacrificio da missa, ou em que se poem o azeite; & vinagre
nas mesas” (BLUTEAU, 1728, v. 4, p. 16).
SANGUINHOS s.m [do latim sanguinus] “SANGUINHO. [...]. “O panninho com que se alimpa, &
purifica o caliz” (BLUTEAU, 1728, v. 7, p. 473).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
552
Paleografia com outras ciências, a exemplo da Diplomática, da Codicologia e da Lexicografia,
as quais participam do labor filológico no desenvolvimento de uma edição.
Dessa forma, as informações eclesiásticas registradas nos quatro primeiros fólios do
Regimento do Cabido da Sé, sob a deliberação do então rei Dom João V, bem como em outros
documentos que evidenciam e atestam a sistematização das atividades eclesiásticas acontecidas
em épocas pretéritas, hoje possibilitam o desenvolvimento de conhecimentos sobre os rituais e
demais práticas sociorreligiosas, a exemplo das observadas acerca da Santa Sé da Cidade da
Bahia no período setecentista.
A edição, que integra leitura e interpretação possibilita ainda o exame de outros aspectos
do sistema linguístico do período a partir da edição realizada por uma abordagem conservadora,
e pelo estudo lexical no desenvolvimento de glossários. Assim, a edição dos documentos
selecionados evidenciou a importância do conhecimento das fontes primárias, seja para o
esclarecimento da história da língua, seja na construção da História.
REFERÊNCIAS
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Documentos Manuscritos. Recife: Fundação Joaquim Nabuco / Massangana, 1994.
BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico ...
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2003.
553
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História da América latina: América latina colonial. Tradução: Maria Clara Cescato. 2.ed.
São Paulo: EDUSP; Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2012. p. 553-568.
554
REVISITANDO A HISTÓRIA ATRAVÉS DO CÓDICE 128: ÍNDICE DE
BATIZADOS, MATRIMÔNIOS, ÓBITOS, ARROLAMENTOS DOS
ESCRAVOS DO MOSTEIRO DE SÃO BENTO DA BAHIA
INTRODUÇÃO
O presente trabalho traz as histórias dos negros escravizados contidas no Códice 128 –
índice de batizados, matrimônios, óbitos, arrolamento dos escravos nas fazendas do Rio São
Francisco em Alagoas (1865-1870), documento manuscrito em um volume, acondicionado no
Arquivo do Mosteiro de São Bento da Bahia. Objetiva-se, com este trabalho, conhecer e analisar
o cotidiano dos negros escravizados pelo Mosteiro de São Bento em Alagoas, no recorte
temporal de meados do século XIX, mais especificamente, dos anos compreendidos entre 1865
e 1870.
A prática da escravidão também “[...] ecoou nos claustros e no capítulo dos mosteiros
beneditinos e de outras ordens [...]” (PERES, 2011, p. 371), que a utilizaram de forma constante
no manejo das suas propriedades. Sem eles (os escravos),
Assim, como estava acontecendo com toda sociedade colonial, a escravidão fez parte
do Mosteiro de São Bento que utilizava esse tipo de mão de obra para os trabalhos domésticos
e nas plantações.
555
O MOSTEIRO DE SÃO BENTO DA BAHIA
A Ordem de São Bento foi fundada na Itália nos primeiros anos do século VI e trouxe
para a Bahia sua história, baseada na oração, no estudo e no trabalho, e sua experiência milenar.
Tal ordem foi fundada por São Bento, nascido em 476, quatro anos depois da queda do
Império Romano. São Bento foi o “[...] legislador do monarquismo ocidental, cuja vida e obra
contribuíram para a reconstrução de uma nova civilização, alicerçada sobre a rocha que é Jesus
Cristo”. (PAIXÃO, 2011, p. 66)
O seu empreendimento monástico foi consolidado através da Regra que escreveu para
os mosteiros beneditinos. “Com humildade e sabedoria, ele resgata o ensinamento dos grandes
mestres da vida monástica, a exemplo de Santo Agostinho, São Cesário, São Basílio, dentre
outros, citando-os abundantemente ao longo de sua redação, resultando num texto que se
tornará célebre pela discrição e discernimento.” (PAIXÃO, 2011, p. 72) Tal Regra é “[...] um
código completo, que deve reger à vida monástica para tantos quantos quisessem praticar os
valores evangélicos, podendo a Regra se adaptar às mais diferentes culturas, o que pode explicar
a sua longevidade.” (PAIXÃO, 2011, p. 76)
Buscando alcançar estes ensinamentos, “[...] os monges que ingressavam no mosteiro
eram orientados para desenvolver o bom hábito da leitura.” Ocorre, então, um fenômeno
interessante na sociedade da época, “[...], pois São Bento erradica nos mosteiros, no século VI
o analfabetismo que não conseguimos extirpar em pleno século XXI.” (PAIXÃO, 2011, p. 80).
Seguindo os preceitos e ensinamentos do patriarca São Bento, os monges “[...]
transformaram as principais abadias europeias em centros de irradiação missionária.” Além
disso, os mosteiros tornaram-se conhecidos como “mantenedores da cultura eclesiástica e
556
profana.” Nesse cenário de efervescência cultural surgem as “[...] escolas claustrais,
responsáveis pela transmissão dos conhecimentos humanísticos nacionais, em meio aos
impérios feudais cada vez mais trancafiados.” (PAIXÃO, 2011, p. 82)
A partir da Idade Média, os mosteiros passaram a ser verdadeiros centros difusores da
cultura. Esta profusão cultural foi consolidada com o crescimento das bibliotecas beneditinas,
que ficaram “[...] repletas dos livros da literatura clássica, à época esquecidos por conta de uma
Europa cada vez mais pietista e desvinculada da história que lhe fora basilar.” (PAIXÃO, 2011,
p. 83) Muitos desses livros foram adquiridos por monges que viajavam por meses em busca de
algum autor famoso, representativo dos avanços da ciência de então.
O “temor da perda”, primeira inquietação que dominou a relação com a cultura escrita
de acordo com Chartier (1999, p. 99), marca a existência humana, que das formas mais variadas
e nas mais diversas atividades tenta preservar dos efeitos do tempo tudo que possa testemunhar
o legado histórico, cultural da comunidade e/ou sociedade em que está inserida. Assim sendo,
procurando preservar do esquecimento, por exemplo, os textos clássicos antigos,
principalmente da Bíblia, surgem os copistas beneditinos.
Como foi mencionado anteriormente, a fundação do Mosteiro beneditino em terras
brasileiras, mais especificamente em solo baiano, celebrou os 1.100 anos de presença da Ordem
em território europeu. Assim sendo, “[...] após celebrar os 1.100 anos de frutífera presença no
continente europeu [...]”, os monges beneditinos, “[...] sediados no Mosteiro de Tibães
(Portugal), resolvem ‘conquistar para Cristo’ outros povos, desembarcando definitivamente nas
terras da Bahia em 1582.” (PAIXÃO, 2011, p. 87).
Maria Hermínia O. Hernández (2007, p. 114) afirma que a “[...] fundação de Mosteiros
da Ordem de São Bento no Brasil esteve vinculada às profundas transformações estruturais
acontecidas na sociedade, sobretudo no ocidente, a partir do século XV.” De acordo com
Hernández (2007, p. 114), “[...] o braço secular representado pela figura do Rei, e através do
Padroado Régio não só conduziu à reforma das ordens religiosas em Portugal, como também
assumiu a responsabilidade de estender aos territórios ultramarinos a ação evangelizadora, por
intermédio do clero regular e secular da igreja”.
A missão de evangelização do Mosteiro foi lançada no segundo Capítulo Geral da
Congregação celebrado em 13 de fevereiro de 1575 e objetivava alcançar os territórios
conquistados no Ultramar pela Coroa, dentre eles o Brasil. Assim aconteceram as fundações
pelo território brasileiro.
557
Em 2011, o Mosteiro de São Bento da Bahia celebrou 430 anos de fundação em terras
brasileiras. A presença multissecular desta instituição no cenário cultural do Brasil e da Bahia,
sempre relacionada à promoção e preservação das artes, da cultura e do saber, confere a
mesma uma inserção plena no desenvolvimento local e regional, constituindo-se, assim, em
um espaço privilegiado para a produção e difusão do conhecimento.
Como guardião do tempo e da memória, possui um grande e importante acervo
composto de obras raras, documentos, livros, manuscritos, entre outros, que, submetidos à
análise, poderão imprimir um diferencial na história da Bahia e do Brasil. Além de abrigar este
rico acervo, o Mosteiro foi cenário e personagem de diversos acontecimentos relevantes para a
história da Bahia e, especialmente, para a cidade de Salvador. Contribuiu de modo categórico
para a expansão urbana da capital baiana, atuando em diversas frentes de trabalho no sentido
de proporcionar o desenvolvimento intelectual por meio de sua atividade na área da educação
Básica (Colégio São Bento) e Superior (Faculdade São Bento da Bahia).
Desde a fundação do Mosteiro da Bahia, conforme as informações históricas que se
encontram nos arquivos da Ordem de São Bento em Portugal, os monges beneditinos da Bahia
dedicaram-se ao ensino das Letras e das Humanidades, à pesquisa filológica e histórica, muitas
vezes, usando como ponto de partida as suas próprias experiências, de forma empírica. Devido
à carência de Colégios e Universidades no Brasil, os monges foram procurados pela população
sendo constituídos como tutores da educação dos jovens e crianças da capital baiana.
Em todo o Brasil, os monges beneditinos contribuíram, direta ou indiretamente, para a
criação das primeiras instituições universitárias: fundando a primeira Escola Agrícola Superior
do Estado da Bahia que, posteriormente, no século XX, foi transformada em Escola Agrícola
Federal no Município de São Francisco do Conde, no Recôncavo. No Estado de Pernambuco,
também foi fundada pelo Mosteiro de São Bento a primeira Escola Superior de Medicina
Veterinária no início do século XX, sendo atualmente a principal Escola Agrícola e Veterinária
do Estado de Pernambuco. Nestas Escolas, além das atividades específicas, tinha lugar a
formação clássica humanística cristã e o ensino das Letras.
Os documentos encontrados no acervo do Mosteiro de São Bento da Bahia mostram que
o mesmo contribuiu para o desenvolvimento econômico do Recôncavo baiano incentivando
também a educação de jovens e adultos. Participou ativamente da luta pela Abolição da
escravatura, sendo a primeira Instituição Religiosa a libertar integralmente os seus escravos, o
que se deu em 1877. Nestes documentos, pode-se notar o trabalho de ensino das Letras também
558
aos escravos agregados ao Mosteiro, juntamente com o ensino das artes e dos ofícios.
(ANDRADE; LOSE, 2007, p. 85).
559
O Mosteiro, como um dos senhorios mais importantes do território, tinha um sistema
administrativo fundamentado na Regra de São Bento, nas determinações das Constituições da
Congregação Portuguesa e as Definições dos respectivos Conselhos e Juntas. Esse sistema teve
grande importância para a manutenção da vida econômica da casa e, consequentemente, da vida
religiosa. A administração do patrimônio na casa ficava a cargo do Dom Abade, pelo Conselho
da Abadia e seus subordinados.
“Com essa estrutura administrativa e funcional, o Mosteiro explorava suas propriedades
urbanas e rurais, precisando, em algumas ocasiões, do apoio de dependentes, agregados,
pessoas contratadas e escravos.” (HERNÁNDEZ, 2006, p. 44)
O patrimônio do Mosteiro estava dividido em bens de domínio direto (gerenciados
diretamente pelos monges ou por seus criados e feitores) e bens de domínio indireto
(controlados por outros que detinham o direito de explorar as propriedades, por meio de
distintos contratos, que tinham em comum o reconhecimento do Mosteiro como senhorio direto
de seus domínios). Entre os bens de domínio direto destacava-se o conjunto da cerca do
Mosteiro, por ser o mais próximo. A esta se adicionavam os engenhos, as fazendas, os currais
e sítios onde o braço administrativo funcionava diretamente.
Com o passar do tempo, a proporção dos bens de domínio direto, em relação aos de
domínio indireto, mudou. “Aproximadamente, até o primeiro quartel do século XIX, o Mosteiro
teve condições de estender seu sistema direto a numerosas e extensas propriedades.”
(HERNÁNDEZ, 2006, p. 44) Como foi dito anteriormente para manter este patrimônio
recorria-se à mão de obra de dependentes, agregados, pessoas contratadas e escravos.
No Brasil, a escravidão iniciou-se com a produção de açúcar na primeira metade do
século XVI. Os portugueses traziam os negros africanos de suas colônias na África para utilizar
como mão de obra escrava nos engenhos de açúcar do Nordeste. A inserção da mão de obra
escrava no Brasil foi condicionada por vários fatores, entre eles: a substituição da mão de obra
indígena, maior adaptação ao trabalho na agricultura e, principalmente, interesses econômicos,
visto que a escravidão surge pela possibilidade lucrativa encontrada por Portugal com o tráfico
negreiro e não o contrário. Reiterando o aspecto econômico envolvido na escravidão, afirmam
Koshiba e Pereira (1987, p. 46) “[...] o tráfico foi o elemento que tornou viável a escravidão no
Novo Mundo. A partir da alta rentabilidade econômica do tráfico negreiro e das exigências da
lavoura canavieira, o número de peças (nome dado à mercadoria escravo) aumentou
consideravelmente.” A exploração desta mão de obra durou alguns séculos. Tal realidade só
560
começou a mudar no Século do Ouro (XVIII), em que alguns escravos conseguiram comprar
sua liberdade, adquirindo a sua carta de alforria.
Desde o período colonial, a escravidão constitui-se como elemento básico da sociedade,
impulsionando de forma significativa enquanto força produtiva o seu desenvolvimento.
Discorrendo sobre a situação da economia nacional no raiar do século XVIII, em Cultura e
Opulência no Brasil, André João Antonil (1982, p. 89) afirma que os “[...] escravos são as mãos
e os pés do senhor do engenho, porque sem eles no Brasil não é possível fazer, conservar e
aumentar fazenda, nem ter engenho corrente. E o modo com que se há com eles, depende tê-los
bons ou maus para o serviço.” Ressalta-se que este uso dependente de mão de obra escrava,
principalmente a africana, descrito no período colonial por Antonil perdurou até o império,
época marcada por várias transformações políticas, sociais e econômicas que resultaram na
abolição da escravatura.
Dom Gregório Paixão refletindo sobre a milenar cultura beneditina que atravessou o
Atlântico, reitera que,
[...] Chegando ao Brasil, os primeiros monges não viram nenhum problema de contar
com a mão de obra escrava para a construção do seu patrimônio imobiliário. Os
‘escravos da religião’, como eram conhecidos os negros que serviam às igrejas,
conventos e mosteiros, estariam, assim, conforme a mentalidade da época, não
servindo apenas aos senhores temporais, mas ao próprio Senhor dos homens. Deve-
se aos escravos, como a tantos outros mestres de obras que se sucederam ao longo dos
séculos, a locomoção de pedras, a produção de argamassa e da cal, o fabrico de
ferramentas em metal, e muitos outros serviços que prestaram na qualidade de cativos.
(PAIXÃO, 2011, p. 91),
Assim sendo, percebe-se que “[...] essa inumerável multidão de negros, aqui
escravizados [...]”, tenha contribuído, mesmo que inconscientemente, para o crescimento
extraordinário do patrimônio do mosteiro ao longo dos séculos, “[...] seja transportando cargas
para a construção das igrejas e conventos, seja como pedreiros, carpinteiros, ferreiros, [...], ou
mesmo como artistas anônimos, cujos nomes se perderam, mas cujo reconhecimento é meritório
[...]” (PAIXÃO, 2011, p. 91).
Os escravos do Mosteiro, em sua maioria, foram adquiridos pelo Padre Gastador.
Existem, como afirma Hernández, poucas evidências da aquisição de escravos por outros meios.
No entanto, no decorrer da pesquisa, não foram encontradas informações conclusivas sobre que
outros meios seriam esses. Analisando a relação do Mosteiro com a mão de obra escrava,
Hernández ratifica que eles (os escravos) aparecem e estão referenciados, indiretamente, em
vários livros pertencentes ao acervo do Mosteiro de São Bento da Bahia, por exemplo, no Livro
Velho do Tombo, no Códice 136, no Códice 137, 107. Estes registros, entre outras coisas,
561
mostram que no período de 1652-1656, existiam, aproximadamente, 233 escravos distribuídos
entre o Mosteiro, com 37 (desses, cinco eram mulheres), e o Engenho de Sergipe do Conde,
com 112 (oitenta e sete, homens e mulheres, e mais vinte e cinco crianças). Os demais estavam
distribuídos nas fazendas (Itapoã, São Francisco, Pitinga) e currais (Villa Velha, Itapoã,
Tapucurú). O número de escravos aumentou. Em 1660, eram 433. Porém, entre 1663-1666 os
documentos registram um número menor: 397. No início do século XVIII, existiam 322
escravos, faltando a relação dos existentes no Rio São Francisco. Em 1800, eram 293, sem
contar novamente com os do Rio São Francisco. Nos meados do século XIX, em 1854, dessa
vez incluindo a Fazenda do Rio São Francisco, seu número era de 546. (Cf. HERNÁNDEZ,
2006, p. 45)
A partir da metade do século XIX a escravidão no Brasil passou a ser questionada
pela Inglaterra. A independência do Brasil em 1822, de acordo com Manolo Florentino
(1997), “[...] criou um novo conjunto de circunstâncias favoráveis ao aumento das pressões
inglesas contra o tráfico.” Juridicamente, nada impedia a nova nação de participar do
comércio negreiro, ao norte ou ao sul do Equador. Entretanto, ainda segundo Florentino,
562
Somente no final do século XIX é que a escravidão foi mundialmente proibida.
Aqui no Brasil, temendo os efeitos da pressão dos ingleses, especialmente na economia,
abolição da escravatura se deu em 13 de maio de 1888 com a promulgação da Lei Áurea,
pela Princesa Isabel. Ressalta-se que a abolição da escravatura no Brasil também esteve
relacionada às duas mudanças fundamentais na vida econômica e social brasileira: uma
consistiu na ascensão das exportações de café e na expansão de novas regiões cafeeiras;
a outra, no crescimento e importância das cidades.
Como Instituição Religiosa inserida e envolvida nas questões da sociedade em que está
imersa, o Mosteiro de São Bento, de acordo com os registros encontrados no próprio Arquivo
da Instituição, participou significativamente da luta pela Abolição da Escravatura, sendo a
primeira Instituição Religiosa a libertar integralmente a seus escravos, o que ocorreu em 1877
(ANDRADE; LOSE; 2007). Sobre essa participação, Peres reitera que:
Como já foi mencionado, Frei Manoel de São Caetano Pinto, durante a sua gestão,
concedeu alforria a aproximadamente quatro mil escravos da ordem. Este fato histórico pioneiro
foi reconhecido pelo imperador Dom Pedro II que o presenteou com uma caixa de rapé, em
ouro, com suas iniciais cravejadas de brilhantes na tampa. Além disso, dentro da instituição,
por este e por outros feitos, foi agraciado com o título de Dom Abade in partibus ou ‘em partes’
de Santa Maria Eboracense Extramuros, com honras de bispo, pelo Papa Pio IX. ( SENNA,
2011, p. 130)
Ainda discorrendo sobre a ação dos beneditinos frente à escravidão, Lose reintera que,
Na segunda metade do século XIX, os monges foram os arautos da abolição da
escravatura no Brasil, em 1867, o Abade Geral determinou a libertação de todos os
escravos da Ordem de São Bento no Brasil, assumindo as consequências desse ato: o
comprometimento considerável da economia do Mosteiro e ainda a hostilidade e a
perseguição política dos grandes senhores da época, que tentavam, a todo custo,
sufocar o movimento abolicionista. (LOSE, 2009, p. 19).
563
pretendido toma como base os indícios fornecidos pelo documento editado, não
pretendendo ser um estudo histórico.
No Códice 128 são arrolados mais de duzentos escravos, entre homens, mulheres e
crianças que viviam nas fazendas no Rio São Francisco, em Alagoas. Vale mencionar que o
processo de povoamento do interior nacional foi um procedimento adotado pela Coroa desde o
princípio da colonização brasileira. O rio São Francisco despertou a atenção do Governo Geral
que, desde meados do século XVI, organizou expedições para percorrê-lo. Segundo Pinho
(2001), mencionado por Nogueira (2011, p. 30), “[...] as primeiras entradas no vale do São
Francisco foram motivadas pela busca de metais preciosos [...]” e pela necessidade de mão de
obra para o trabalho no litoral, inicialmente indígena. Os primeiros desbravadores dessas terras
“[...] vinham de lugares distintos do Brasil colonial: uns vinham da sede da Capitania da Bahia,
outros de Pernambuco e, também, aqueles que partiam do Sul (São Vicente, Santos e São
Paulo).” (NOGUEIRA, 2011, p. 31)
Por trazer informações relativas à escravidão nesta região, reitera-se a relevância do
estudo do Códice 128, visto que a temática da escravidão é um tema carente de fontes devido
ao desaparecimento da maioria dos arquivos sobre a mesma no Brasil. Em seus relatos é
possível recuperar informações sobre os escravos que receberam gratuitamente a libertação, os
que pagaram por ela e a que valores.
Em um fólio do documento em estudo, 1º recto, sob o título Baptisados, o scriptor
fornece indícios da influência dos ensinamentos católicos na vida dos escravos já na escolha
dos nomes. Isso porque historicamente, visto que esta prática é referenciada, por exemplo, em
textos bíblicos, a conversão do gentio em cristão ficava evidenciada na troca de nome.
Apoiando-se neste princípio como forma de marcar a mudança de vida, a igreja católica segue
algumas normas. As normas para a atribuição de nomes (prenomes e sobrenomes) deveria
respeitar os preceitos por ela estabelecidos. Mesmo as práticas que não seguiam à normatização
estavam ligadas ao rito católico, já que o nome é uma das “graças” que se recebe no batismo.
Nesse ato, as crianças e, eventualmente, adultos pagãos ou infiéis convertidos eram nomeados,
recebendo nomes cristãos ou de santos, sendo vetados os nomes pagãos ou não canonizados.
564
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O códice 128 resalta a história do Brasil. Através dos fólios é possível vivenciar o
cotidiano e as experiências de vida de autores sociais de suma importância para a historiografia
brasileira.
A análise dos registros de documentos ligados às ordens religiosas revela-se de suma
importância para compreender o período colonial e imperial no Brasil. Isso porque os registros
de batismos, casamentos, óbitos das ordens religiosas, por exemplo, paróquias, se
generalizaram a partir do Concílio de Trento.
REFERÊNCIAS
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documentos manuscritos. Pernambuco: Universitária; Editora da Universidade Federal de
Pernambuco, 1994.
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567
SOBRE UM DATILOSCRITO DO BOLETIM INTERNO DO
DESTACAMENTO DO NORDESTE EM GEREMOABO DE 1° DE
JANEIRO DE 1936
INTRODUÇÃO
O cangaço, enquanto uma expressão de banditismo social no Brasil e um ofício, foi fruto
da confluência de questões políticas e econômicas com as mazelas sociais nos interiores,
sobretudo no Nordeste. É um fenômeno que deixou marcas na história, na cultura e no
imaginário coletivo dos nordestinos e dos brasileiros. Os cangaceiros e seus afiliados,
essencialmente, apresentavam perfis peculiares: ex-escravos, agricultores, criminosos
foragidos, jovens sem alternativas favoráveis à sobrevivência, desertores etc.
Sobre esse período emblemático de tensões, afirma-se que
568
de civilização”, conforme Clemente (2013, p. 139). Nessa luta, houve uma grande mobilização
das capitais nordestinas e o estabelecimento de convênios entre os Estados,
139
“Papel aéreo: papel muito fino usado nas cartas destinadas a serem transportadas por via aérea.” (FARIA;
PERICÃO, 2008, p. 548)
569
SOBRE O BOLETIM INTERNO DO DESTACAMENTO DO NORDESTE DE 1936:
DESCRIÇÃO E CRITÉRIOS PARA TRANSCRIÇÃO
570
Figura – Facsímile da Página 1
571
Figura – Destaque do código em giz de cera vermelho e rubrica no documento
b) uma rubrica feita com caneta esferográfica azul, no plano superior da página, sobre o trecho
“da cidade”;
Figura – Destaque da rubrica ampliada
c) um recorte de papel retangular anexado ao centro do plano inferior da página, com o código
U-Z, o que parece indicar alguma informação sobre a localização do livro no arquivo;
Figura 4 – Recorte de papel colado ao documento
572
d) a letra N escrita à mão em giz de cera azul, no plano inferior, próxima ao recorte de papel;
Figura – N em giz de cera azul
e) o canto inferior à direita, onde há um rasgo que não altera substancialmente o texto;
f) um furo no canto inferior direito, acima do N outrora citado, que intercepta a identificação
da rubrica.
Figuras 6 e 7 – Danos do suporte
573
b) indicação da ordem de serviço e do uniforme, “serviço para o dia 2, (5ª-feira)”,
seguindo o “Uniforme – o de Campanha para Officiaes e Praças”;
c) identificação do n° do boletim, o “(Boletim n.1)”;
d) introdução das publicações;
e) assunto e corpo do texto, referentes, na amostra, à “Transferência de praças e
contractados”, “Prisão” e “Seguimento de official”.
O encerramento dos boletins não é feito pelo serviço de datilografia, mas pela autoridade
competente que revisa o documento e concede a rubrica. A única intervenção manuscrita que
se pôde identificar nesta página se refere a uma retificação de sobrenome, feita à caneta tinteiro
preta, corrigindo Pereira para Ferreira.
Sobre a rubrica deste boletim, como foi dito anteriormente, não foi identificada
inicialmente em função de suporte danificado, mas a visita a outras páginas permite seu
conhecimento, como se vê na figura 2.
Como bem afirma Santos (2012,p.19), no que concerne ao trabalho com o texto,
574
Sobre a transcrição dos boletins, tendo em vista a missão de salvaguardar a língua escrita
da primeira metade do século XX, assim como a história do documento, optou-se por uma
edição diplomática ou paleográfica, compreendida aqui como “uma reprodução tipográfica
rigorosa da lição de um testemunho conservando todas as suas características (erros, lacunas,
ortografia, fronteiras de palavras, abreviaturas, etc.)” (DUARTE, 1997). A edição do Dietário
(1582-1815) do Mosteiro de São Bento da Bahia: edição diplomática elaborada Lose et al.
(2009) também foi tomada como parâmetro para o trabalho.
No que diz respeito aos critérios adotados, enumeram-se:
1. A transcrição de cada página será desenvolvida em tabelas de duas colunas,
nas quais constarão, na primeira linha da coluna à esquerda, a indicação da
página e na segunda, o texto do documento.
2. As linhas escritas serão numeradas em intervalos múltiplos de cinco, a partir
da linha de identificação do documento, e se respeitará, à medida do possível, a
disposição gráfica do texto original, dentro das tabelas.
3. Na margem superior da página, acima da tabela, será indicado, centralizado,
o código de identificação do volume transcrito, seu ano e semestre referentes.
4. A transcrição de cada página será feita isoladamente, inserindo-se quebra-
de-página somente após o seu término para dar início a transcrição da página
seguinte.
5. A transcrição será conservadora, com respeito à ortografia, ao sistema de
pontuação, ao espaçamento, à separação silábica, aos caracteres e aos recursos
de destaque (sublinhado).
6. Aspectos relativos à datilografia do documento serão comentados em nota
de rodapé, no sentido de se preservar a disposição gráfica do texto, assim como
notas do transcritor.
7. Serão utilizados os seguintes indicadores, nas notas de rodapé, para
demarcar fenômenos do texto (LOSE et al., 2009):
(†) rasura ilegível;
[†] escrito não identificado;
(...) leitura impossível por dano do suporte;
< > supressão;
( ) rasura ou mancha;
<†> supressão ilegível;
575
[ ] acréscimo;
[←] acréscimo na margem esquerda;
[→] acréscimo na margem direita;
[↑] acréscimo na entrelinha superior;
/ \ substituição por sobreposição;
576
TRANSCRIÇÃO DO BOLETIM N. 1 DE 1° DE JANEIRO DE 1936
BGO1936JAN-JUL
p. Commando das Forças em Operações Contra o Banditismo no Nordeste
1
5 ( Boletim n. 1)¹ -
-----------
20 José de Sá Novaes.
577
a noite de natal, deixando de lhe applicar maior castigo em atten-
N[U-Z]
¹ ↑ D- IV - 30 - 3,1
² Há uma rubrica ainda não decodificada sobre o trecho.
³ Pe/Fer\reira
CONSIDERAÇÕES FINAIS
578
elaboração de um vocabulário contrastivo da toponímia, em que se possam verificar as
mudanças dos nomes das localidades, comparando com os dados atuais.
REFERÊNCIAS
CAMBRAIA, César Nardelli. Introdução à crítica textual. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
COLMAS, Florian. Escrita e sociedade. Trad.: Marcos Bagno. São Paulo: Parábola, 2014.
FARIA, Maria Isabel; PERICÃO, Maria da Graça. Dicionário do Livro: da escrita ao livro
eletrônico. São Paulo: Edusp, 2008. p. 548.
LOSE, Alícia Duhá et al. Dietário (1582-1815) do Mosteiro de São Bento da Bahia: edição
diplomática e estudo filológico. Salvador: Mosteiro de São Bento; EDUFBA, 2009.
MAGALHÃES, Rafael Marques Ferreira Barbosa. Proposta de edição do códice 132. In:
SIMPÓSIO NACIONAL DE ESTUDOS FILOLÓGICOS E LINGUÍSTICOS, 4., 2012, São
Paulo. Anais... Rio de Janeiro: UFF, 2012. Disponível em:
<http://www.filologia.org.br/iv_sinefil/textos_completos/proposta_de_edicao_do_codice_132
_RAFAEL.pdf>. Acesso em: 8 out. 2017
SANTOS, Rosa Borges (Org.). Edição e estudo de textos teatrais censurados na Bahia/A
Filologia em diálogo com a Literatura, a História e o Teatro. Salvador: EDUFBA, 2012.
579
TEXTO-RIZOMA: DOSSIÊ ARQUIVÍSTICO DOS TEXTOS MANIA E
MEU CARO EUDALDO: SAUDAÇÕES DE EULÁLIO MOTTA
INTRODUÇÃO
580
são apresentados os dossiês de dois textos140: Mania do jornal Mundo Novo e Meu caro
Eudaldo: Saudações do caderno Farmácia São José, com o objetivo de publicá-los em uma
hiperedição. Dessa forma, busca-se contribuir para a elaboração das narrativas biográficas do
escritor, principalmente com relação à sua atuação como jornalista e a sua vida religiosa, além
de promover a literatura e a cultura do interior baiano, tornando esses documentos acessíveis
ao publicá-los em meio digital.
A PERSPECTIVA ARBORESCENTE
140
Este trabalho é parte da pesquisa em desenvolvimento no projeto Edição das obras inéditas de Eulálio Motta
que consiste na elaboração de uma hiperedição dos textos publicados no jornal Mundo Novo por Iago Gusmão
Santiago (IC/FAPESB/UEFS) e dos rascunhos de cartas do caderno Farmácia São José por Stephanne da Cruz
Santiago (IC/CNPq/UEFS).
581
Restauração e Edição crítica, com
estabelecimento das edições aparato indicando as
Moderna de manuscritos autorais. variantes autorais.
Representação do processo de
escrita.
Impressa
Fonte: Elaborada pelos pesquisadores com base em Spina (1994) e Cerquiglini (2000).
A partir dos fatores elencados acima é possível perceber como eles influenciam na
proposta metodológica empregada para o estabelecimento do texto. Ao tomar-se como exemplo
a Crítica Textual Tradicional e a Moderna, pode-se observar que o método empregado encontra-
se condicionado à natureza do texto que se tinha em mãos. Na primeira, um texto com o
testemunho original ausente que se buscava reconstruir por meio do estudo da tradição, na
segunda, com original presente, um texto que não necessitava mais ser idealizado. Vale ressaltar
que o que se menciona aqui como necessidade dos textos se refere às necessidades que lhes
atribuíam os filólogos de cada época. Por outro lado, é também notória a influência da
concepção de texto sobre o método empregado. Em ambos os casos o texto é observado como
um construto linguístico, um conjunto de caracteres que devem ser transferidos para outro
suporte visando sua restauração e acessibilidade.
O processo de estabelecimento do texto também encontrava-se condicionado às
tecnologias que se dispunha em cada estágio. Desde o período alexandrino até a modernidade
os filólogos se viam sujeitos à elaboração de edições em um suporte material (manuscrito e
impresso) que, apesar de permitir a preservação destes textos para a posteridade, não lhes
possibilitava explorar toda a realidade textual, considerando os códigos alfanumérico,
bibliográfico e contextual (CHARTIER, 2001; BORNSTEIN, 2001 apud BARREIROS, 2014).
Nos últimos estágios da antiga filologia surgiram as edições fac-símiladas que passaram a ser
as únicas capazes de valorizar os aspectos bibliográficos, porém, por inúmeras razões, dentre
elas o alto custo financeiro, essas edições nem sempre eram viáveis.
Em consonância com os fatores apresentados surgiram os métodos de estabelecimento
de textos aplicados em cada estágio. Tais métodos trabalhavam em favor de uma proposta
hierarquizante, pois só se buscava preservar uma versão única do texto, julgada ideal, reduzindo
sempre a multiplicidade à unidade. Nesse sentido, pode-se afirmar que a filologia adotou
métodos baseados na metáfora da árvore que visavam a construção de um produto idealizado,
com um tronco, considerado como representante de toda uma tradição textual, galhos, folhas e
frutos, que simbolizam as partes integrantes desta tradição. Segundo Cerquiglini (2000), na
metáfora da árvore:
582
Les manuscrits dont on dispose ne sont que des copies de copies. Il convient de les
classer, afin de faire appara”tre leur lien génétique, puis de les évaluer, en fonction de
leur distance l'original supposé. Pensée du XIX e siècle, arborescence verticale qui
dispose les manuscrits comme des espèces darwiniennes, ou des langues indo-
européennes (CERQUIGLINI, 2000, p. 3).
583
eliminando a ideia da invenção, que, por conseguinte, conduz ao reprodutivismo cultural e à
resistência às inovações. A metáfora da árvore funcionava, portanto, como um instrumento
ideológico de dominação, tendo sido utilizado constantemente por instituições como a Igreja,
por exemplo. Em seguida, os sistemas arborescentes dão lugar a ideia de estrutura (BURKE,
2003), que, apesar de geralmente não apresentarem explicitamente representações arbóreas,
herdaram as mesmas características hierarquizantes, sintetizadoras e reducionistas desse
modelo.
O enfoque consolidado na filologia tradicional, que considera o texto acabado em lugar
do processo e o estabelecimento da unidade em lugar da multiplicidade, potencializou o
princípio idealista já existente em Alexandria e condicionou os métodos criados no âmbito da
edição de textos durante muito tempo. Nos últimos anos o trabalho filológico tem
experimentado diversas inovações com o advento da informática, o intenso desenvolvimento
científico da crítica textual, da linguística, da teoria literária e de outras disciplinas auxiliares.
Tais mudanças têm caracterizado um novo paradigma, denominado por Cerquiglini (2000) de
nova filologia. Nesse contexto, os fatores já mencionados se transformam, conforme apresenta
o autor, de quem se adapta os novos fatores: O texto passa a ser considerado como essência
verbal, materialidade e uso; as necessidades do texto se ampliam, abarcando restauração,
acessibilidade, confiabilidade, fidedignidade, o respeito à variação, a multiplicidade, etc.; a
tecnologia utilizada é a digital; o principal modelo de edição passa a ser a hiperedição; e a
metáfora da árvore é substituída pela metáfora da rede, ou rizoma.
584
edições em formato digital, que reproduzem as mesmas características dos impressos, e as
edições que aproveitam de modo mais abrangente as potencialidades da informática. É
importante considerar que os textos em ambiente digital não possuem as mesmas características
dos impressos, como a estaticidade, a monomidialidade e a linearidade, o que implica tanto em
uma mudança nas práticas de utilização desses textos, como na expectativa do leitor com
relação a eles. Assim, ao transpor um texto de tradição manuscrita ou impressa para o meio
digital, o editor deve considerar as especificidades desse novo ambiente, bem como do usuário-
leitor.
Assim, além dos grandes benefícios oferecidos pelo ambiente digital, como a
possibilidade de explorar todos os códigos que constituem a realidade textual, a redução do
nível de intervenção do editor e os gastos de produção, é necessário pensar em uma edição que
se adeque ao novo contexto, por meio da mobilização de uma grande diversidade de mídias e a
criação de interfaces amigáveis, princípios tacitamente exigidos pelos usuários. Considerando
esses aspectos Barreiros (2013; 2015) propõe a realização de hiperedições que consistem em
[...] uma hipermídia que geralmente apresenta mais de um tipo de edição convencional
- crítica, facsimilada, diplomática, sinótica etc., de modo integrado e dinâmico,
documentos paratextuais diversos - textos, imagens, videos, sons e animações,
organizados conforme critérios estabelecidos pelo editor (BARREIROS, 2014, p. 49).
Por conta disso, o método em questão, rompe com o paradigma anterior ao aplicar uma
nova metáfora: a do rizoma. O rizoma é um tipo de caule que cresce horizontalmente, sendo
capaz de ramificar-se a partir de qualquer ponto, ao contrário da árvore, em que as suas partes
constituintes se conectam de modo unilateral. A metáfora do rizoma baseia-se nos postulados
585
de Deleuze e Guattari (1995), que, ao utilizar a terminologia botânica, apresentam uma nova
possibilidade de ordenação das ideias e de construção do conhecimento que nega as hierarquias
e as limitações do modelo arborescente.
O pensamento rizomático volta-se para as multiplicidades, abandonando os arquétipos
juntamente com pretensão de criar sínteses ou simplificações, e passa a construir representações
em torno da complexidade. É, portanto, um modelo que leva em consideração a coexistência
dialógica das coisas que se dá por meio de uma relação conjuntiva. Segundo os autores:
Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas,
inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é aliança, unicamente aliança.
A árvore impõe o verbo “ser”, mas o rizoma tem como tecido a conjunção “e... e...
e…”. Há nesta conjunção força suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser. Entre
as coisas não designa uma correlação localizável que vai de uma para outra e
reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento transversal que as
carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que rói suas duas margens e adquire
velocidade no meio (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 37).
Diferente dos métodos criados no paradigma anterior da filologia que buscava fixar um
texto arquetípico, o texto-árvore, o método em questão não busca mais estabelecer a versão
final do documento editado, mas as possibilidades que o seguem e as multiplicidades que o
constituem. O reconhecimento da condição rizomática do texto conduz à superação de alguns
problemas que têm sido intensamente discutidos pelos filólogos nos últimos anos, como a
questão da subjetividade das edições críticas e da deficiência no que diz respeito à exploração
dos códigos contextuais.
Deleuze e Guattari (1995) apresentam seis características aproximativas do rizoma:
conexão, heterogeneidade, multiplicidade, ruptura a-significante, cartografia e decalcomania.
Na tabela abaixo é possível observar como essas seis características se apresentam no dossiê
arquivístico:
Multiplicidade O texto não é mais considerado como unidade, mas como multiplicidades,
se materializando no conjunto dos documentos que são percebidos como
586
extensão deste. Estes documentos complementam, ampliam os sentidos
do texto e, em alguns casos, se mostram indispensáveis para que se possa
compreendê-los. Não há centralização do texto, visto que qualquer
documento pode tornar-se ponto de partida para a elaboração de um
dossiê e não apenas os textos literários.
Ruptura a-significante Cada dossiê elaborado consiste em um recorte dentro do acervo, havendo
uma ruptura entre o que aparece e o que não aparece na edição. Tal ruptura
não anula a autonomia e a coerência de sentido que são construídos a
partir do dossiê estabelecido.
Cartografia Apesar de haver uma metodologia pensada para a elaboração dos dossiês,
não há uma arquitetura fixa. A estrutura é ditada pelo percurso lógico
criado a partir de cada texto tomado como ponto de partida.
[Coluna 1]
Rabiscos
589
da era de Nosso Senhor Jesus
Christo, tratando da viagem de
Juraci ao Rio escreve:
Ag(ora,) depois de um passeio
70 ao Rio, onde tratou acertada-
mente deste assunto, declara aos
jornaes, o interventor da Bahia,
que ficou acertada a conclusão
[Coluna 2]
[Coluna 3]
5 LIOTA.
F. Morro Alto, 1931.
590
Jornal Gazeta do Povo Evidencia Discussão sobre a “inconstitucionalidade”
da lei que criou o município de Piritiba.
Caderno Monitor Instantâneos Prototexto de Evidencia.
Conforme pode ser visto na tabela acima, foram identificados um total de dez textos no
acervo do escritor que auxiliam na leitura do texto tomado como ponto de partida, como
também ampliam os conhecimentos sobre o tema. Dentre os textos elencados, quatro são do
jornal Mundo Novo, sendo que dois estabelecem uma relação maior, pois são citados
diretamente no texto, e os outros dois apenas se relacionam devido ao fato de tratarem sobre o
primeiro governo Juracy Magalhães, assim como os demais textos encontrados em outros
documentos.
O dossiê contribui para a compreensão integral do texto ao trazer esclarecimentos sobre
o posicionamento político do autor na época da escrita do texto, já que essa informação não
aparece de forma explícita no texto editado, e também amplia os conhecimentos do leitor sobre
a mudança desse posicionamento com o passar do tempo. Os outros textos do jornal Mundo
Novo que foram publicados no mesmo período revelam o apoio do escritor ao governador
Juracy Magalhães, o que leva a inferir que o texto em questão não se trata de uma crítica. Já os
demais textos foram escritos em dois períodos: o período em que Eulálio Motta deixou de apoiar
o político, no início da década de 1960, e o período em que voltou a apoiá-lo, nas eleições de
1976.
Escrito na década de 40, mais precisamente entre os anos de 1940 e 1944, o caderno
Farmácia São José mede 166mm de largura, 237mm de comprimento e 20mm de espessura, é
composto por 149 folhas (reto e verso), contudo, a mancha escrita ocupa apenas 146 destas
folhas. Sua composição é majoritariamente manuscrita, havendo apenas um texto tiposcrito
591
inserido no caderno por meio de colagem, na folha 3r. Possui capa dura azul com uma colagem
de papel personalizada da Farmácia São José em que consta o nome do autor e a data de 1º de
outubro de 1940, localizada ao centro da capa. Os textos do caderno foram escritos em sua
maioria com tinta preta e a lápis grafite, no entanto, há passagens, geralmente correções,
marcações e acréscimo de palavras, que se encontram feitas com lápis de cor azul e vermelha;
além de um endereço escrito na parte superior da folha 2v que foi feito com tinta azul. O
caderno encontra-se bastante conservado e os textos, principalmente os escritos a lápis, não
sofreram apagamentos com o decorrer do tempo e, por ser feito em capa dura e com
encadernação artesanal costurada (brochura), conseguiu preservar as folhas mantendo-as em
bom estado.
Se tratando de rascunhos manuscritos, os textos possuem muitas rasuras, borrões,
emendas, cancelamentos, o que dificulta a leitura do caderno, e em determinados pontos chega
a ser inviável. Por meio destas marcas presentes no texto é que podemos a gênese do texto e
até mesmo o seu cancelamento parcial/total ou abandono, como ocorre em cartas que foram
totalmente canceladas por meio de traços, ou foram interrompidas pelo autor e não foram
finalizadas.
A tipologia textual encontrada no caderno é bastante diversificada. Eulálio Motta fez da
maior parte deste caderno um meio de se expressar acerca de vários temas, em forma de cartas,
crônicas, anotações do cotidiano, poemas. Há também anotações financeiras, uma peça autoral,
um prefácio de livro que pretendia publicar, além de algumas citações literárias. Assim como
os tipos de texto, a temática do caderno é bastante variada, dando ênfase na religiosa e política,
em que foram pautadas diversas discussões por meio de cartas e posicionamentos por meio de
crônicas.
Dentre as cartas de temática religiosa se encontra a carta intitulada de Meu caro
Eudaldo: Saudações, localizada nas folhas 9r-9v, escrita no ano de 1941. A carta em questão é
de relevância ímpar para o entendimento das discussões religiosas travadas por Eulálio Motta
e Eudaldo Lima entre os anos de 1941 e 1942, em que Eulálio, como católico, tentava catequizar
Eudaldo, que por sua vez, como pastor presbiteriano, buscava evangelizá-lo. A discussão tomou
proporções tão grandes que passou do âmbito privado para o público, pois ambos publicaram
cartas abertas para explicitarem seus posicionamentos acerca das religiões e de escritores de
livros religiosos.
A carta Meu caro Eudaldo: Saudações é a primeira carta ativa de Eulálio Motta para
Eudaldo Lima, no caderno Farmácia São José, e antecede a carta aberta feita por Eulálio em
592
que o autor faz duras críticas sobre o livro Cochilos de um sonhador, de autoria de Basílio
Catalá Castro. O livro em questão foi dado a Eulálio Motta por Eudaldo Lima afim de tecer
discussões sobre a abordagem religiosa contida no livro, contudo, Eulálio achou por bem abrir
a discussão para o público com a polêmica Carta Aberta a um amigo (Sobre um livro de
polêmicas do Sr. Basilio Castro – Cochilos de um sonhador) (f.9v) que Eudaldo Lima afirma
ter sido publicada em avulsos.
Para a edição do texto em questão recorre-se aos critérios estabelecidos por Barreiros
(2012; 2013) para a edição dos textos do acervo:
593
(10) [↑{†} / \] acréscimo na entrelinha superior ilegível e substituído por outro na
sequência;
(11) [↓{ }] acréscimo na entrelinha inferior riscado;
(12) [↓{†}] acréscimo na entrelinha inferior ilegível;
(13) [↓{ }/ \] acréscimo na entrelinha inferior riscado e substituído por outro na
sequência;
(14) [↓{†} / \] acréscimo na entrelinha inferior ilegível e substituído por outro na
sequência;
(15) [*↑] parte do texto localizada à margem superior indicada pelo autor através de
seta, linha ou números remissivos;
(16) [*↓] parte do texto localizada à margem inferior indicada pelo autor através de
seta, linha ou números remissivos;
(17) [*→] parte do texto localizada à margem direita indicada pelo autor através de
seta, linha ou números remissivos;
(18) [*←] parte do texto localizada à margem esquerda indicada pelo autor através
de seta, linha ou números remissivos;
(19) [*(f. ou p.)] parte do texto localizada em outro fólio ou página indicada pelo
autor a partir de números e letras remissivos ou anotações. Nesses casos, o número do
fólio ou da página aparece entre parênteses;
(20) / * / leitura conjecturada;
(21) ( ) intervenção do editor (acréscimos e informações).
f. 9r
f. 9v
Por meio do dossiê arquivístico apresentado acima é possível ter uma dimensão da
quantidade de documentos que se envolveram nas discussões religiosas entre Eudaldo Lima e
Eulálio Motta, além de fornecer informações de terceiros que foram envolvidos nas discussões,
como é o caso de Nemésio Lima, que foi dono do jornal O Lidador, no qual Eulálio Motta era
colunista. O dossiê proporciona também a identificação de textos ausentes no acervo, mas que
foram em algum momento citados nos textos, como é o caso do próprio livro de Basílio Catalá
Castro, Cochilos de um sonhador, que serviu de base para boa parte das discussões religiosas
do caderno em questão.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nos últimos anos, a filologia tem passado por mudanças significativas graças as
discussões recentes sobre o estatuto do seu objeto de pesquisa e as contribuições das novas
tecnologias informáticas, que têm ampliado as suas possibilidades de trabalho. A mudança na
concepção de texto, do texto-árvore para o texto-rizoma, exige dos filólogos inovações
596
metodológicas que lhe permitam dar o devido tratamento ao seu objeto de estudo, agora
conceptualmente ampliado. Assim, é no ambiente digital que a filologia encontra formas de
concretizar uma edição compatível com essa nova concepção de texto, sendo a hiperedição a
única modalidade de edição capaz de resolver essa questão de modo satisfatório.
Os dossiês arquivísticos em questão possibilitam a elaboração de uma edição capaz de
representar os aspectos rizomáticos dos textos editados, contextualizando-os dentro do acervo
e ampliando as possibilidades de leitura. A pesquisa realizada passa a ser feita não somente em
função do texto editado, mas de todo o conjunto que se integra a ele. O mapeamento resultante
desse processo possibilita a integração dessa documentação, contribuindo para a elaboração das
narrativas biográficas do escritor, assim como um conhecimento mais aprofundado da sua obra.
REFERÊNCIAS
BARREIROS, Patrício Nunes. Novas práticas culturais da escrita, novas perspectivas da Crítica
Textual: rumo às hiperedições. Linguística e Filologia Portuguesa (USP), São Paulo, v. 16, p.
31-62, 2014.
______. SANTIAGO, Iago Gusmão. Eulálio Motta: jornalista de Mundo Novo. Anais...VIII
Seminário de Estudos Filológicos: Filologia e Humanidades Digitais, Universidade Estadual de
Feria de Santana, p. 182-195, 2016.
______. SANTIAGO, Stephanne da Cruz. Edição e estudo do caderno Farmácia São José, de
Eulálio Motta. Anais...VIII Seminário de Estudos Filológicos: Filologia e Humanidades
Digitais, Universidade Estadual de Feria de Santana, p. 92-105, 2016.
597
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil platôs - Capitalismo e Esquizofrenia - Volume
1. Tradução de Aurélio Guerra Neto e Celia Pinto Costa. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.
LOSE, Alicia Duhá. Edição digital de texto manuscrito: filologia no séc. XXI. Estudos
Linguísticos e Literários, n. 42, p. 11-30, jul./dez., 2010.
SPINA, Segismundo. Introdução à edótica: crítica textual. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Ars
Poetica/EDUSP, 1994.
598
UM OLHAR PALEOGRÁFICO E CODICOLÓGICO SOBRE UM
PROCESSO DE DEFLORAMENTO EM UM MANUSCRITO DO
SERGIPE OITOCENTISTA
INTRODUÇÃO
599
REVISÃO DA LITERATURA
600
de qual é o seu objetivo primeiro, para o desenvolvimento deste projeto optou-se por seguir as
indicações e preceitos apresentados por Mattos e Silva (2008). Segundo a autora, a linguística
histórica pode ser tratada por meio de duas vertentes: uma lato sensu, que "trabalha com dados
datados e localizados, como ocorre em qualquer trabalho de linguística baseado em corpora
[...]" (MATTOS E SILVA, 2008, P.09); e outra stricto sensu, que "se debruça sobre o que muda
e como muda nas línguas ao longo do tempo em que tais línguas são usadas" (MATTOS E
SILVA, 2008, P.09). Na sua proposta de uma orientação stricto sensu, Mattos e Silva (2008)
ainda afirma que a pesquisa pode ser realizada sob dois prismas: uma linguística histórica sócio-
histórica ou uma linguística diacrônica associal. Mattos e Silva (2008) ainda afirma que não se
pode desprezar a relação íntima que os estudos linguísticos de perspectiva diacrônica em caráter
estrito possuem com a Filologia, pois se sabe que não se pode fazer linguística histórica sem
documentação remanescente do passado e o responsável pelo seu entendimento, pela sua
preparação, em suma, pela "Ciência do Texto", é o filólogo. Ainda sobre essa questão, Janotti
(2005, p.21) esclarece que a importância do conhecimento do texto, de modo a "conhecer o
contexto da produção; descobrir o seu sentido próprio; localizar seus modos de transmissão,
sua destinação e suas sucessivas interpretações", é ponto importante para o entendimento de
problemas e procedimentos pertinentes à compreensão das fontes. Essa afirmativa da autora
corrobora com a necessidade de intervenção do trabalho filológico na preparação das fontes
documentais para estudos científicos.
TIPOS DE EDIÇÃO
601
PALEOGRÁFICA/ Não é tão fiel ao modelo como a diplomática, fazendo
SEMIDIPLOMÁTICA assim, com que a leitura seja mais fácil para o leitor que
não é especialista.
Características
Título I - "Da violencia carnal", no Artigo 267 determina: Deflorar mulher de menor
idade, empregando seducção, engano ou fraude: Pena - de prisão cellular por um a quatro
annos." E no Artigo 268 - "Estuprar mulher virgem ou não, mas honesta:Pena - de prisão
cellular por um a seis annos. §1º Si a estuprada for mulher publica ou prostituta: Pena - de prisão
cellular por seis mezes a dous annos" (QUEIRÓZ, 2017).
METODOLOGIA
603
NORMAS DE EDIÇÃO141
141
Estas normas estão disponíveis em https://sites.google.com/site/corporaphpb/ (acesso 01/06/2017, às 09:20) e
foram estabelecidas em conjunto pelos professores: Afranio Gonçalves Barbosa (UFRJ), José da Silva Simões
(USP), Maria Clara Paixão de Sousa (USP), Verena Kewitz (USP) e Zenaide de Oliveira Novais Carneiro (UEFS),
responsáveis pela linha de Linguística de Corpus em âmbito nacional.
604
9. Inserções do escriba ou do copista, para não conferir à mancha gráfica um aspecto demasiado
denso, obedeceram aos seguintes critérios:
a. Se na entrelinha do documento original, entraram na edição em alinhamento normal e entre
os sinais: < >; <↑>, se na entrelinha superior; < >, se na entrelinha inferior. Quando houve
palavras riscadas abaixo da inserção, foi mencionada ou, conforme sua legibilidade, transcrição
em nota de rodapé.
b. Quando nas margens superior, laterais ou inferior, entraram na edição entre os sinais < >, na
localização indicada. Quando foi necessário, ficou em nota de rodapé a devida descrição da
direção de escritura ou quaisquer outras especificidades.
10. Supressões feitas pelo escriba ou pelo copista no original foram tachadas. No caso de
repetição que o escriba ou copista não suprimiu, passou a ser suprimida pelo editor que a
colocou entre colchetes duplos.
11. Intervenções de terceiros no documento original apareceram em nota de rodapé informando-
se a localização.
12. Intervenções do editor foram raríssimas, permitindo-se apenas em caso de extrema
necessidade, desde que elucidativas para não deixarem margem à dúvida. Quando ocorreram,
vieram entre colchetes. Quando houve dúvida sobre a decifração de alguma letra, parte de ou
vocábulo inteiro, o elemento em questão foi posto entre colchetes e em itálico.
13. Letra(s) ou palavra(s) não legíveis por deterioração ou rasura justificaram intervenção do
editor com a indicação entre colchetes, conforme o caso: [.] para letras, [ilegível] para
vocábulos e [ilegível. + n linhas] para a extensão de trechos maiores.
14. Letra(s) ou palavra(s) simplesmente não decifradas, sem deterioração do suporte,
justificaram intervenção do editor com a indicação entre colchetes conforme o caso: [?] para
letras, [inint.] para vocábulos e [inint. + n linhas] para a extensão de trechos maiores.
15. A divisão das linhas e colunas do documento original foram preservadas, ao longo do texto,
na edição.
16. A mudança de fólio ou página recebeu a marcação entre colchetes, com o respectivo número
e indicação de frente ou verso.
17. Na edição, as linhas foram numeradas de cinco em cinco a partir da quinta. Essa numeração
se encontrada à margem direita da mancha, à esquerda do leitor. Foi feita de maneira contínua
por documento. Consideramos linha somente os espaços ocupados pela escrita.
18. Os sinais públicos, as assinaturas e rubricas simples, foram sublinhados.
605
RESULTADOS E DISCUSSÕES
Sobre o corpus
606
Descrição codicológica
607
Figura ˗ Mudança de punho
608
Edição Fac-símile do Auto de perguntas feita a Dona Alice Ramalho Porto.
Figura ˗ PC, DEF, APJSE, Cx.2544, 01, IV – [fól. 8r]Figura ˗ PC, DEF, APJSE, Cx.2544, 01,
IV – [fól. 8v]
Fonte: Edição Fac-símile do Banco de dados do PHPB/SE Fonte: Banco de dados do PHPB/SE
[fol.8r] 8
Auto de perguntas feita a Dona
320 Alice Ramalho Porto como
abaixo se declara:
Aos vinte cinco dias do mez de
Novembro de mil oito centos e no
venta e trez, nesta cidade e ca-
325 as da Intendencia Munici-
pal aonde estava o Juiz de
Paz em exercício Tenente Coro-
nel Manoel Antonio Carnei-
ro Leão com migo escrivão de
330 Paz abaixo assignado, aonde
ahí compareceu a paciente
Dona Alice Ramalho Porto á
quem o Juiz fez ditas perguntas:
Qual o seu nome, naturalida
335 de, estado, idade, profissão, e re-
sidencia? Respondeu cha-
marse Alice Ramalho Port-
to, natural de Riachuelo, soltei-
609
ra, com desoito anos de ida-
340 de, profissão vive dos recursos de
seus pais; reside nesta cida
de em [Chica] Chica Chaves.
Perguntado quem foi o autor
do seu defloramento, e em que
345 data isto se deu, e o lugar em
que lugar digo se realisava? Res
pondeu quefoi o cidadão Adolpho
Augusto de Almeida, não poden
do precisar a data, affirmando
350 que de tempos a esta parte o mes-
mo Adolpho gosava-se della
[fol.8v]
respondente, sentindo que sua
maior gravidade no deflo-
350 mento deuse em principi-
o de Outubro findo, sendo mes-
mo na casa em que residia, e
tarde da noite. Perguntada
que motivo a levou a prestar
355 se ao mesmo Adolpho sa-
crificando assim a sua
honra? Respondeu o motivo
foi a promessa contínua do
referido Adolpho prometer ca-
360 sar-se, isto verbalmente e em
inúmeras cartas a si dirigidas
isto affirmãm, as quaisestão en-
tregues ao Senhor Juiz de Paz, é o
aqui tem as diser com relação ao
365 facto, affirmando ainda
que além do referido Adolpho,
homem algum segosara della
pois somente com elle, é que en-
tritinha a maior relação pa-
370 ra o fim de casar se. E como na-
da mais soubesse nem lhe fos-
se perguntado deu se por findo
este auto que depois de lido e o
achar conforme assignaram
375 o Juiz. Eu José Barbosa de Amo-
rim Escrivão de Paz o escrevi.
Manoel Antonio Carneiro Leão
Alice Ramalho Porto
610
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
CAMBRAIA, César Nardelli. Subsídios para uma proposta de normas de edição de textos
antigos para estudos linguísticos. In: I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa. São
Paulo: FFLCH-USP/Humanitas, 1999. p. 13-23.
FLEXOR, Maria Helena Ochi. Abreviaturas - manuscritos dos séculos XVI ao XIX. Rio de
Janeiro: Arquivo Nacional, 2008.
FREITAG, Raquel Meister Ko. Banco de dados falares sergipanos. Working Papers em
Linguística. v.14, p.156-164, 2013.
FREITAG, Raquel Meister Ko.; MARTINS, Marco Antonio; TAVARES, Maria Alice.
Bancos de dados sociolinguísticos do português brasileiro e os estudos de terceira onda:
potencialidades e limitações. Alfa, v.56, n.3, p.917-944, 2012.
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Christina (Org.). Introdução à linguística. Domínios e Fronteiras. vol. 1. São Paulo:
Cortez, 2006.
JANOTTI, Maria de Lourdes. O livro Fontes Históricas como fonte. In: PINSKY et al.
Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2005. p.09-22.
611
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Linguística histórica, História das línguas e outras histórias. Salvador: EdUFBA, 2012
MARENGO, Sandro Marcío Drumond Alves; FREITAG, Raquel Meister Ko. Edição
semidiplomática do processo-crime de defloramento de Idalina Cardoso Barretto na Aracaju
Oitocentista (APJ, 2544,02,01). Revista Philologus, Ano 22, nº66, supl.: Anais da XI
JNLFLP. Rio de Janeiro: CiFEFiL, set./dez.2016.
QUEIRÓZ, Rita de Cássia Ribeiro de. Autos de defloramento: para que editar? Paraná:
Revista da ABRALIN v.16, n.3, p. 185-200, jan./fev./mar./abr. 2017. Disponível em:
http://revistas.ufpr.br/abralin/article/view/52310/32230. Acesso em 01/07/2017.
SANTOS, Maria Nely. Aracaju: Um olhar sobre sua evolução. Aracaju: Triunfo, 2008.
612
UMA ESCRITURA DE COMPRA E VENDA DO SÉCULO XIX: A
INTERFACE DA PALEOGRAFIA COM A HISTÓRIA ECONÔMICA
INTRODUÇÃO
1. ¿Qué? En qué consiste el texto escrito, qué hace falta transferir al código
gráfico habitual para nosotros, mediante la doble operación de lectura y
transcripción.
2. ¿Cuándo? Época en que el texto en sí fue escrito en el testimonio que
estamos estudiando.
3. ¿Dónde? Zona o lugar en que se llevó a cabo la obra de transcripción.
4. ¿Cómo? Con qué técnicas, con qué instrumentos, sobre qué materiales,
según qué modelos fue escrito ese texto.
5. ¿Quién lo realizó? A qué ambiente sociocultural pertenecía el ejecutor y
cuál era en su tiempo y ambiente la difusión social de la escritura.
613
6. ¿Para qué fue escrito ese texto? Cuál era la finalidad específica de ese
testimonio en particular y, además, cuál podía ser en su época y en su lugar de
producción la finalidad ideológica y social de escribir. (PETRUCCI, 2002, p.
7-8, grifos do autor).142
Essa metodologia para a abordagem aos testemunhos escritos é a chave para acessar a
dimensão cultural da escrita, cuja contrapartida material é o texto escrito, uma fonte profícua
para as ciências que estudam o homem e sua história (MAGALHÃES, 2016, p. 14). Para Carla
Pinsky, “Historiadores trabalham com fontes. Nós nos apropriamos delas por meio de
abordagens específicas, métodos diferentes, técnicas variadas.” (PINSKY, 2008, p. 7). O texto
escrito já foi considerado condição para existência da história (HIGOUNET, 2003 [1955], p.
10), “Um ponto de vista que evolui no tempo e que seria superado pelo avanço da História
como disciplina científica [...].” (SAMARA; TUPY, 2010, p. 17), mas não se pode prescindir
das diversas informações que se pode acessar através dos documentos escritos, sejam relativas
às nuances da produção, à forma material, à fórmula ou à infinidade de assuntos que podem
conter:
142
Tradução nossa: “1. O quê? Em que consiste o texto escrito, que será transcrito para o código gráfico habitual,
mediante a dupla operação de leitura e transcrição.
2. Quando? Época em que o texto em si foi escrito no testemunho que se está estudando.
3. Onde? Zona ou local onde se levou a cabo a obra de transcrição.
4. Como? Com que técnicas, com que instrumentos, sobre que materiais, segundo que modelos foi escrito esse
texto.
5. Quem o realizou? A que ambiente sociocultural pertencia o executor e qual era em seu tempo e ambiente a
difusão social da escrita.
6. Para que foi escrito esse texto? Qual era a finalidade específica desse testemunho em particular e, também, qual
poderia ser em sua época e em seu local de produção a finalidade ideológica e social de escrever.”
614
CARACTERÍSTICAS DO DOCUMENTO
615
Trata-se de um livro manuscrito em papel de qualidade razoável, com média gramatura,
a tinta ferrogálica. Apresenta marcas provenientes da ação do tempo e de manuseio constante.
Os fólios estão oxidados, em muitos deles é possível observar a sombra da mancha escrita do
lado recto no verso e vice-versa. Muitos fólios passaram por uma tentativa de restauro mediante
a colagem de papel manteiga, tornando a leitura muito difícil ou mesmo ilegível em alguns
casos.
Apesar de serem identificados diversos scriptores, o texto é lançado no papel, na maioria
absoluta das vezes, por Joaquim Tavares de Macedo Silva Junior, que também os autentica,
como no documento ora editado há, também, autenticações do titular da Nota, Joaquim Tavares
de Macedo Silva. Os fólios recebem numeração manuscrita em algarismos arábicos e são
rubricados no ângulo superior direito do lado recto, abaixo da numeração. Há uma intervenção
posterior em que se reproduz a numeração no centro dos fólios próximo à apara superior, a
caneta de tinta preta.
CARACTERÍSTICAS INTRÍNSECAS
Chama a atenção a semelhança entre os grafemas <h> em posição inicial e <E>, que
se apresentam a seguir:
O <s> intervocálico com valor de sibilante alveolar surda. é sempre grafado <s> longo:
616
Quando acentuado, <i> recebe acento e ponto, como no exemplo da palavra baldía, à linha 31
do fólio 27r:
É de difícil leitura <s> em alguns contextos. Sucedendo <u> em seus, à linha 26 do fólio
27v:
617
Figura 13 – Segmento disse, <s> curto no seguimento ss, precedido de s longo, f. 27v, l. 9.
Figura 15 – Segmento Administra[dôr], leitura difícil de <m>, <i> e <n>, l. 34, f. 27r
TRANSCRIÇÃO E CRITÉRIOS
TRANSCRIÇÃO DO DOCUMENTO
27v cargo [†]m da do mesmo foro the do dia da data dest[a], c[†]
{†} Outorgou aoComprador pa[ra]Conservaçam da[†]
ta asim e damesma forma que apesoa emelhor Semilhor [puder]
dise ella vendedora que vendia como com efeito logo vem
5 [deu] por este publico instrumento a oComprador para [†]
herdeiros e SuÇesores, pelo preÇo e quantia de hum Conto etrezen
tos mil reis, que neste acto recebeu doComprador, em dinhei
ro deContado, moedas correntes neste Estado, doque dou minha
fe, edepois de os receber, contar, e guardar, disse que dava a
10 o mesm oComprador, pura, geral, eiRevogavel quitaçam [pa]
ra mais lhenam pedir, nem repetir em tempo algum por estar
paga e Satisfeia, e que pela referida quantia havia [por]
muito bem vendida a dita rosa, pedaço deterra, emais bem
feitorias asima deClaradas, [†] tirava, edimitia desi, Seus bens
15 herdeiros, e Sucesores, todo Odireito, aCÇam e pertençam pose
Senhorio eUtil dominio que nellas tinha, Oupodia ter, Oque
tudo desde logo, com todas assuas aCÇoens, reais, epe[so]ais, ati=
vas e pasivas, prezentes efuturas, ced[e] [e]traspassa napesoa do Com
prador, para que elle tudo logre, g[†] haja e poss[ua], mança
20 epacificamente comoCouza Sua propria que fica
Sendo por vertude deste instrumento, pelo qual lhedâ puder e
lugar para que porelle sómente Sem mais authoridade [†] =
Justiça posa tomar pose dellas, e quer atome quer não, e
llavendedora desde já lhahâ por dada, enelleComprador
620
25 por inCorporada, pela Clauzula Constitute pose real, atual
Corporal, Civel, enatural que emsi podera reter, e Continuar [p]a
ra Sempre, asim Como ofazia ella vendedora, eseus antepo
suidores, eque Outrosim Seobriga a responder digo Seobriga
afazer Sempre boa esta venda, [depás] livre edezembargada
30 detoda apesoa, Oupesoas que al[g]umas duvidas, Ou demandas
lhe ponhaõ, porque a tudo Sahira e Sedara por Autora e defen
çora asua propria Custa dis[p]eza, the que detoda Seja fin
da e aCabada, eoCommprador restituhido asua pose paCifi
ca eSucedendo OContrario lhetornarâ a dâr oseu dinhei=
35 ro que reCebeu preÇo desta venda, e lhepagará todas as bem
feitorias, e milhoramentos que demais tiver feito que tudo [†]
ra avaliado naforma da Ley, por que asim Sehavia justoe
Contratado Com oComprador pelo qual foi tambem dito que
elle aseitava esta Escritura, a ele feita Comtodas as Clau
40 zulas Condi[çoens] e Obrigaçoens della Efinalmente por
ellas partes Cada hum na que lhetoca foi mais dito que por Su
42 as pesoas e bens Se obrigaõ a têr emanter, Cumprir e guardar esta
621
Quadro – Abreviaturas presentes no documento
Je Jose
Nascimto Nascimento
As Silva
Fonte: elaboração dos autores, 2017.
AS ESCRITURAS PÚBLICAS
143
Para um estudo mais aprofundado de uma rede de negócios com dimensões continentais no contexto do Império
português: cf. GODINHO, 1953; PEDREIRA, 1995; COSTA, 2002.
622
A escritura de dívida com ou sem hipoteca também foi muito comum nos tabelionatos
da Salvador colonial. A falta de liquidez da economia baiana, no período, colaborava com esta
situação, exigindo que os credores fossem aos cartórios para registrar suas transações, a fim de
diminuir as chances de perdas futuras. As escrituras de dívida com hipoteca eram mais assíduas
nos livros de notas. A não exigência de hipoteca, em alguns casos, é devida à proximidade entre
credor e devedor ou ao caso de dívidas menores. As escrituras de dívida que envolviam grandes
valores financeiros, quase na sua totalidade, possuíam hipotecas de bens do devedor como
garantia.
As escrituras de liberdade também foram consideráveis na Bahia no final do período
colonial. As grandes cidades coloniais, a exemplo de Salvador, com sua intensa dinâmica
econômica, eram ambientes propícios para os escravizados angariarem pecúlio para a aquisição
de sua liberdade (REIS; SILVA, 1989; MATTOSO, 1978; MATTOSO, 2003, p.45-67;).
As escrituras de contrato de sociedade eram cada vez mais presentes com o avançar do
setecentos. Os investimentos de vulto ou de alta periculosidade eram quase sempre realizados
em parceria (sociedade) entre dois ou mais indivíduos. As viagens mercantis transatlânticas,
por seu alto risco, e as construções de embarcações de grande porte, por envolverem altas cifras,
raramente eram bancadas por um indivíduo apenas. Entretanto, as sociedades comerciais não
eram restritas aos grossos cabedais, ocorriam, também, negócios menos vultosos, como no
comércio a retalho. Era comum, por exemplo, grandes negociantes abastecerem vendas ou lojas
falidas e se tornarem sócios do negócio144.
As escrituras de distrato ocorriam normalmente quando havia divergências entre os
sócios. Nesses casos, as partes interessadas dirigiam-se até o tabelião para registrar o distrato,
pondo fim àquela sociedade. Estas escrituras costumavam dar origem a outra, geralmente de
dívida e obrigação, comprometendo-se uma das partes a indenizar sobre os prejuízos
decorrentes da sociedade145.
A escritura de cessão e transpasse foi recorrente pela falta de liquidez da economia
baiana colonial (SANTOS, 2010, p. 71-89). A ausência de dinheiro de contado promovia uma
circulação entre credores e devedores de documentos (muitas vezes com valor cartorário), como
uma espécie de moeda escritural, substituindo, mesmo que precariamente a moeda metálica.
Em outras palavras: com o crédito, tudo se comprava e tudo se pagava. Para explicar melhor,
observe-se um exemplo hipotético: Um indivíduo A devia ao indivíduo B, que, por sua vez,
144
Livros de Notas de Salvador, 1777-1808, Seção: Judiciário, Arquivo Público do Estado da Bahia- APEB.
145
Livros de Notas de Salvador, 1777-1808, Seção: Judiciário, Arquivo Público do Estado da Bahia- APEB.
623
devia a C; o indivíduo B, para se desonerar em relação ao indivíduo C, passava-lhe o crédito
que possuía em relação ao indivíduo A, sendo o indivíduo A, a partir de tal momento, o único
devedor de C. Negociantes e prestamistas aproveitavam-se destas características da economia
baiana colonial e compravam esses créditos (títulos) cobrando, obviamente, um ágio por esta
operação.
As escrituras de aluguel, como sua própria nomenclatura evidencia, referem-se a um
contrato entre locador e locatário, que passa a ter o direito de posse sobre uma determinada
propriedade em troca de um pagamento periódico. Usualmente, estas escrituras versavam sobre
casas de morada. A principal diferença entre as escrituras de aluguel do período colonial e as
da atualidade está intimamente relacionada ao tempo. No Brasil pré-capitalista (séculos XVI ao
XIX) com sua dinâmica econômica mais lenta, os prazos convencionais para pagamentos eram
baseados no tempo da safra, ou seja, anuais e não mensais como na era do capital.
As escrituras de arrendamento, diferentemente das escrituras de aluguel que se referiam,
geralmente, a casas de morada, eram feitas, via de regra, sobre propriedades que possuíam
potencial para oferecer alguma renda ao locatário. Eram, muitas vezes, casas de morada com
comércios acoplados (vendas, tabernas, lojas, etc) ou, mesmo, prédios com benfeitorias para
comércio, ou seja, algum tipo de instalação que facilitaria a abertura de um negócio.
As escrituras de aforamento dizem respeito ao pagamento de um foro chamado
laudêmio, em que o enfiteuta, aquele que tem o domínio útil do imóvel, paga um valor periódico
anual chamado foro ao senhorio direto. Esse tipo de situação era muito comum no caso de
construções de particulares em terrenos de propriedade do Estado ou de instituições religiosas.
Geralmente, os foreiros da Bahia colonial eram proprietários das casas e das benfeitorias nelas
realizadas, mas não do terreno, isto gerava uma taxa denominada foro, que, quando registrada
em cartório, originava as escrituras de aforamento. Por uma complexa soma de fatores (precária
fiscalização dos imóveis, disputas de heranças, presença de consideráveis quantidades de
terrenos baldios e doações sem a devida comprovação) dentre outros motivos, os aforamentos
foram recorrentes na Bahia colonial.
Conscientes ou não, os particulares construíam imóveis em terras foreiras,
possibilitando a abertura de uma via de arrecadação estatal e religiosa, sobretudo, a segunda,
pois as instituições religiosas a exemplo das Santas Casas de Misericórdia recebiam muitas
doações em bens de raiz possibilitando beneficiar-se com o recebimento de foros
(FAGUNDES, 2015, p. 98-104).
624
As escrituras de doação foram frequentes dentre vários outros motivos pela alta taxa de
mortalidade infantil e de esterilidade das mulheres brancas, aliadas às “dificuldades” dos
homens de mor qualidade em arranjar bons casamentos numa sociedade que buscava imitar os
valores fidalgos metropolitanos (RUSSEL-WOOD, 1981, p. 116). As somas de tais fatores
fizeram com que muitos indivíduos abastados não deixassem herdeiros, doando seu patrimônio
às instituições religiosas.
As escrituras de fiança comumente envolviam as pessoas menos abastadas da sociedade,
principalmente escravizados. Seus senhores costumavam pagar a fiança, pois esta possuía um
valor mais baixo do que o valor de mercado do cativo. Entre os livres, o pagamento da fiança
poderia assegurar ganhos econômicos, seja pelos juros cobrados em relação ao valor da fiança,
seja por melhores oportunidades de negócio futuro com, ou através de, o ex-preso ou, ainda,
um aumento de produtividade do favorecido em decorrência de uma fidelização e
fortalecimento de vínculos parentais entre o fiador e o afiançado146.
Os fortes valores dogmáticos católicos presentes na Bahia colonial certamente contribuíram
para a presença de escrituras de filiação e legitimação. Os indivíduos, na busca pela remissão
dos pecados e pela salvação da alma, por vezes reconheciam a paternidade através de
testamentos e dos livros de notas (ARAÚJO, 2007).
146
Para se aprofundar nas relações interpessoais em sociedades pré-capitalistas Cf. POLANYI, 2000; GODELIER,
2001; MAUSS, 1974.
625
de 1805 no cartório do tabelião Joaquim Tavares de Macedo Silva. Tendo como objeto da
escritura a venda de uma roça no termo de Salvador, mais precisamente nas proximidades da
Igreja do Senhor do Bonfim. Sendo sua vendedora Maria Roza do Nascimento e o comprador
João Espínola Bitencourt.
Algumas questões chamam atenção neste documento. Uma delas é que, ao que tudo
indica, tratou-se de um negócio realizado entre indivíduos de grupos sociais distintos, sendo o
comprador João Bitencourt de um grupo social considerado mais abastado que o da vendedora.
Embora reconheçamos que para sustentar tal afirmação precisaríamos de um estudo de trajetória
destes sujeitos, há fortes indícios para esta constatação no próprio documento. O primeiro deles
é a forma como a vendedora é tratada na escritura “dona de roça”, embora seja possível que
pudesse possuir mais de uma roça, é importante alertar que no Brasil colonial o tipo de posse/
propriedade de um indivíduo não era mera descrição de uma atividade econômica, mas
simbolizava título, status, prestígio e honra. Destarte, nenhum senhor de engenho, ou senhor de
terras, aceitaria ser chamado de dono de roça. Esta designação demarca o lugar social do
indivíduo.
Maria José Rapassi Mascarenhas, utilizando o monte mor dos inventários post mortem
de salvador no final do período colonial, hierarquizou a sociedade soteropolitana colonial a
partir de critérios econômicos. A autora dividiu os grupos sociais a partir de seus níveis de
riqueza, categorizando a sociedade examinada em dez grupos. Segundo a autora, os senhores
de engenho foram registrados até a faixa dos 13 contos de réis. Desse montante para baixo,
escasseavam as propriedades rurais propícias à atividade açucareira (MASCARENHAS, 1999).
Apareciam, então, os senhores de terra, indivíduos com faixa de riqueza até os 2 contos de réis,
uma categoria bem mais ampla que a dos senhores de engenho.
Dos 2 contos de réis para baixo, o termo senhor de terra também era raro. Entre os 2 contos de
réis até os 700 mil réis de montemor, a autora não localizou mais nem o termo “senhor de terra”,
aparecendo apenas a categoria donos de roças. Segundo a historiadora a maioria delas eram
foreiras147.
Por que a designação era dono de roça e não senhor de terras? Além da distinção social
já apresentada, senhor de terra significava a propriedade plena da terra, já no caso de um dono
de roça, o sujeito era proprietário apenas do que estava “em cima da terra”, ou seja, plantações,
casas, benfeitorias, sendo a terra propriedade de outrem.
147
Propriedade que pertence a outrem, nestes casos o indivíduo detinha apenas a posse, mas não a propriedade,
sendo obrigado a pagar um valor periódico pela utilização da mesma.
626
Parece que a nossa personagem histórica, a vendedora Maria Roza do Nascimento é uma típica
dona de roça. Neste aspecto, o documento é bem explícito, pois declara o aforamento ao
Convento de Nossa Senhora das Mercês, comprovando o aspecto supracitado, e enumera as
benfeitorias realizadas, tais como: casas de pedra e cal; fontes de água devidamente protegidas
com telhas; além de uma significativa quantidade de árvores de várias espécies.
O segundo aspecto que chama a atenção sobre os níveis sociais distintos do comprador
e da vendedora é que, diferentemente do comprador que foi devidamente reconhecido pelo
tabelião, a vendedora não foi reconhecida por ele, tendo que ser identificada pelas testemunhas
presentes no local. Ao que tudo indica, uma personagem que pertencia a um grupo social de
pouca visibilidade social. Em caráter de exemplo, esta passagem do documento merece
destaque:
O documento também nos oferece o valor do foro anual da propriedade comprada por
João Bitencourt: 8$000 réis. O custo de um aforamento não era um obstáculo para uma
aquisição imobiliária na Bahia colonial, custava, apenas, 0,61% anuais do valor total do bem
de raiz.
Algo também relevante é o valor da propriedade, considerado significativo para uma
roça148. Sem dúvidas, o que valorizou de forma considerável as propriedades foram as
benfeitorias. As duas fontes cobertas de telha eram o mais importante, motivo de muita cobiça
na Salvador do final do período colonial, como nos alertou o cronista Luis dos Santos Vilhena,
no início do século XIX. Segundo tal autor, havia poucas fontes com água potável e muitos
senhores colocavam seus escravizados para comercializar água pelas ruas da urbe baiana.
[...] a míngua d’água que nesta cidade há para o uso da população, onde é raro o que
não toma mais de um banho por dia...motivo por que é indizível a desordem que nelas
há, e os pretos fazem para tomar água, quebrando-se mutuamente as cabeças e
braços...uma infinidade ficam aleijados, e muitos vem a morrer... quase todas as fontes
secam em passando dois meses sem chover; motivo porque os catingas avaros , que
tem suas fontes particulares, se põem na borda delas a vender água; gênero este, que
apesar de ser da primeira, e urgentíssima necessidade, só se paga por ela o trabalho da
condução; sendo pois tanta a sua preciosidade que... há nesta cidade, entre outros, um
eclesiástico, formado, que sem pejo se põe junto à sua fonte a receber dinheiro de
148
Inventários post mortem, 1777 a 1808. Seção Judiciário. Arquivo Público do Estado Bahia- APEB.
627
quem a ela manda buscar água, com receio de que os seus escravos sejam estropiados
nas fontes públicas. (VILHENA, 1969, v. 1, p. 108-109)
Por fim, destacamos o fato de João Bitencourt ter pago pela propriedade o valor em de
1:300$000 réis em dinheiro de contado, ou seja, à vista. Em se tratando de uma sociedade com
escassez pecuniária, onde a maioria das transações eram realizadas a prazo, isso demonstra, de
alguma forma, o poderio econômico do comprador.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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628
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XVIII: Edição do Códice 132 do Arquivo do Mosteiro de São Bento da Bahia. 2016. 831 p.
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630