As Pequenas Virtudes (Natalia Ginzburg)

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Sumário

Capa
Folha de rosto
Sumário
Advertência
PRIMEIRA PARTE
Inverno em Abruzzo
Os sapatos rotos
Retrato de um amigo
Elogio e lamento da Inglaterra
La Maison Volpé
Ele e eu
SEGUNDA PARTE
O filho do homem
O meu ofício
Silêncio
As relações humanas
As pequenas virtudes

Sobre a autora
Créditos
Advertência

Os ensaios aqui reunidos saíram em vários jornais e revistas. Agradeço


aos jornais e às revistas que me permitiram republicá-los.
Eles foram escritos nos seguintes anos e lugares:
“Inverno em Abruzzo”, escrito em Roma, no outono de 1944, e
publicado em Aretusa.
“Os sapatos rotos”, escrito em Roma, no outono de 1945, e publicado no
Politecnico.
“Retrato de um amigo”, escrito em Roma, em 1957, e lançado no
Radiocorriere.
“Elogio e lamento da Inglaterra”, escrito em Londres, na primavera de
1961, e publicado no Mondo.
“La Maison Volpé”, escrito em Londres, na primavera de 1960, e
publicado no Mondo.
“Ele e eu”, escrito em Roma, no verão de 1962, e, pelo que sei, ainda
inédito.
“O filho do homem”, escrito em Turim, em 1946, e publicado no Unità.
“O meu ofício”, escrito em Turim, no outono de 1949, e publicado no
Ponte.
“Silêncio”, escrito em Turim, em 1951, e publicado em Cultura e Realtà.
“As relações humanas”, escrito em Roma, na primavera de 1953, e
publicado no Terza Generazione.
“As pequenas virtudes”, escrito em Londres, na primavera de 1960, e
publicado em Nuovi Argomenti.

As datas são importantes e indicativas, porque explicam as mudanças de


estilo. Não acrescentei correções a quase nenhum destes textos, já que sou
incapaz de corrigir um texto meu, exceto no exato momento em que o
escrevo. Passado um tempo, não sei mais corrigir. Assim este livro talvez
não tenha muita uniformidade de estilo, e por isso peço desculpas.
Dedico o livro a um amigo meu, cujo nome não vou revelar. Ele não está
presente em nenhum destes escritos e, no entanto, foi meu interlocutor
secreto em grande parte deles. Eu não teria escrito muitos destes ensaios
caso não tivesse conversado várias vezes com ele, que deu legitimidade e
liberdade de expressão a certas coisas que eu tinha pensado.
Deixo-lhe aqui o meu afeto e o testemunho de minha grande amizade,
passada, como toda verdadeira amizade, através do fogo das mais violentas
discórdias.

Roma, outubro de 1962.


Não creio que tenha muito a acrescentar ao que já disse sobre esta
coletânea de textos quando ela saiu, em 1962.
Quanto a “Inverno em Abruzzo”, talvez seja preciso explicar a frase
“aquilo era um exílio”: no Abruzzo estávamos confinados, ou melhor,
éramos “internos civis de guerra”; o povoado ficava nas vizinhanças da
cidade de Aquila, e talvez por isso houvesse uma águia pintada no teto de
um cômodo de nossa casa. Ficamos três anos naquele vilarejo. Desde então,
pelo que me dizem, o lugar mudou muito; tornou-se um centro turístico, um
lugar de férias; não o revi nessa nova forma, nem desejo revê-lo; embora
entenda o quanto é bom que tenha mudado, que tenham sido construídos
hotéis e restaurantes lá. Na época havia uma só pousada, a pousada Vittoria:
eram três quartos ao todo; e os proprietários, uma mãe viúva com três
filhos, eram daquelas pessoas mais queridas, humanas e hospitaleiras que se
possam encontrar. Mas, pelo que sei, eles foram embora de lá para viver em
outro lugar, e a pousada Vittoria, com a cozinha onde se ficava no inverno e
o terraço onde se ficava no verão, não existe mais.
De resto, muitos dos lugares sobre os quais se fala neste livro se
transformaram; em “Retrato de um amigo”, a cidade mencionada é
certamente irreconhecível.

Roma, outubro de 1983.


PRIMEIRA PARTE
Inverno em Abruzzo
Deus nobis haec otia fecit.*

Em Abruzzo só há duas estações: o verão e o inverno. A primavera é


coberta de neve e cheia de ventos como o inverno, e o outono é quente e
límpido como o verão. O verão começa em junho e termina em novembro.
Os longos dias ensolarados sobre as colinas baixas e queimadas, a poeira
amarela da estrada e a disenteria das crianças terminam, e o inverno
começa. Então as pessoas deixam as ruas: os meninos descalços somem das
escadarias da igreja. Na cidade de que estou falando, quase todos os
homens desapareciam depois das últimas colheitas: iam trabalhar em Terni,
em Sulmona, em Roma. A cidade era um vilarejo de pedreiros: e algumas
casas eram construídas com graça, tinham terraços e coluninhas como
pequenas mansões, e causava espanto encontrar, na entrada, grandes
cozinhas escuras com presuntos pendurados e amplos cômodos esquálidos e
vazios. Nas cozinhas, o fogareiro ficava aceso e havia vários tipos de fogo,
havia grandes fogos feitos com toras de carvalho, fogos de galhos e folhas,
fogos de gravetos recolhidos um a um pelas ruas. Era mais fácil identificar
os pobres e os ricos olhando o fogareiro aceso do que observando as casas e
as pessoas, as roupas e os sapatos, que eram mais ou menos iguais para
todos.
Quando cheguei a essa cidade, nos primeiros tempos, todos os rostos me
pareciam iguais, todas as mulheres se assemelhavam, ricas e pobres, jovens
e velhas. Quase todas tinham a boca desdentada: ali as mulheres perdem os
dentes aos trinta anos, por cansaço ou má alimentação, pelos maus-tratos
dos parceiros e dos aleitamentos que se sucedem sem trégua. Mas depois,
pouco a pouco, comecei a distinguir Vincenzina de Secondina, Annunziata
de Addolorata, e comecei a entrar em cada casa e a me esquentar naqueles
diversos fogareiros.
Quando a primeira neve começava a cair, uma lenta tristeza se apossava
de nós. Aquilo era um exílio: nossa cidade estava longe, e longe estavam
nossos livros, os amigos, as várias e cambiantes vicissitudes de uma
verdadeira existência. Acendíamos nossa estufa verde, com o longo tubo
que atravessava o teto: nos reuníamos todos na sala onde ficava a estufa, e
ali se cozinhava e comia, meu marido escrevia na grande mesa oval, os
meninos espalhavam os brinquedos no pavimento. No teto da sala havia
uma águia pintada: e eu olhava a águia e pensava que aquilo era o exílio. O
exílio era a águia, era a estufa verde que chiava, era o vasto e silencioso
campo e a neve imóvel. Às cinco os sinos da igreja de Santa Maria
tocavam, e as mulheres iam receber a bênção com seus xales pretos e os
rostos vermelhos. Todas as tardes meu marido e eu dávamos um passeio:
todas as tardes caminhávamos de braços dados, afundando os pés na neve.
As casas que margeavam a rua eram habitadas por gente conhecida e amiga,
e todos vinham à porta e nos diziam: “Muita saúde e paz”. Alguém às vezes
perguntava: “Mas quando vão voltar para casa?”. E meu marido dizia:
“Quando terminar a guerra”. “E quando essa guerra acaba? Você, que sabe
tudo e é um professor, quando vai acabar?” Chamavam meu marido de “o
professor”, já que não sabiam pronunciar seu nome, e vinham de longe para
consultá-lo sobre as coisas mais variadas, sobre a melhor estação do ano
para arrancar os dentes, sobre os subsídios que a prefeitura dava e sobre as
taxas e os impostos.
No inverno alguns velhos partiam por causa de uma pneumonia, os sinos
de Santa Maria dobravam, e Domenico Orecchia, o marceneiro, fabricava o
caixão. Uma mulher enlouqueceu, a levaram ao manicômio de Collemaggio
e a cidade falou disso por um bocado de tempo. Era uma mulher jovem e
asseada, a mais asseada de toda a cidade: disseram que tinha ficado assim
por excesso de asseio. Gigetto di Calcedonio teve duas gêmeas, além dos
dois gêmeos que já tinha em casa, e fez um escarcéu na prefeitura porque
lhe negavam o subsídio, visto que possuía muitos lotes de terra e uma horta
maior que a cidade. Quanto a Rosa, a bedel da escola, uma vizinha lhe
cuspiu no olho e ela circulava com esse olho enfaixado, para que lhe
pagassem uma indenização. “O olho é delicado, o cuspe é salgado”,
explicava. E sobre isso também se falou um bocado, até que não houve
mais nada a dizer.
A saudade aumentava dia a dia em nós. Certas vezes era até prazerosa,
como uma companhia terna e levemente inebriante. Chegavam cartas da
nossa cidade com notícias de casamentos e de mortes dos quais éramos
excluídos. Às vezes a saudade era aguda e amarga, e se tornava ódio: então
odiávamos Domenico Orecchia, Gigetto di Calcedonio, Annunziatina, os
sinos de Santa Maria. Mas era um ódio que mantínhamos oculto,
reconhecendo que era injusto: e nossa casa estava sempre cheia de gente,
que vinha tanto para pedir favores quanto para oferecê-los. Às vezes a
costureirinha vinha preparar sagnoccole. Metia um pano na cintura, batia os
ovos e mandava Crocetta circular pela cidade em busca de um caldeirão
emprestado, mas daqueles bem grandes. Seu rosto vermelho ficava absorto
e os olhos resplandeciam numa vontade imperiosa. Teria incendiado a casa
para que suas sagnoccole ficassem boas. O vestido e os cabelos se cobriam
de farinha branca, e sobre a mesa oval onde meu marido escrevia eram
colocadas as sagnoccole.
Crocetta era nossa empregada. Ainda nem era uma mulher, porque tinha
apenas catorze anos. Foi a costureira que a encontrou para nós. A costureira
dividia o mundo em dois times: os que se penteiam e os que não se
penteiam. Dos que não se penteiam era preciso manter distância, porque
naturalmente tinham piolhos. Crocetta se penteava: por isso veio trabalhar
para nós, e contava aos meninos longas histórias de mortos e cemitérios.
Era uma vez um menino que perdeu a mãe. Seu pai arranjou outra mulher, e
a madrasta não gostava do menino. Por isso o matou enquanto o pai estava
no campo e com ele fez um ensopado. O pai volta para casa e come, mas,
depois de comer, os ossos que ficaram no prato se puseram a cantar:
E la mia trista matrea
Mi ci ha cotto in caldarea
E mio padre ghiottò
Mi ci ha fatto ’nu bravo boccò.**

Aí o pai mata a mulher com uma foice e a pendura num prego diante da
porta. Às vezes me pego murmurando as palavras dessa canção, e então
toda a cidade ressurge diante de mim, e com ela o sabor específico daquelas
estações, com o sopro gelado do vento e o repicar dos sinos.
Toda manhã eu saía com meus meninos, e o pessoal se espantava e
desaprovava que eu os expusesse ao frio e à neve. “Que mal fizeram essas
criaturas?”, diziam. “Não é tempo de passear, senhora. Volte para casa.”
Caminhávamos longamente pelos campos brancos e desertos, e as raras
pessoas que eu encontrava olhavam os meninos com piedade. “Mas que
pecado eles cometeram?”, me diziam. Lá, quando nasce uma criança no
inverno, não a levam para fora do quarto até que chegue o próximo verão.
Ao meio-dia meu marido vinha me encontrar com a correspondência, e
voltávamos todos juntos para casa.
Eu falava aos meninos da nossa cidade. Eram muito pequenos quando a
deixamos, não tinham nenhuma lembrança dela. Eu lhes dizia que lá as
casas tinham muitos andares, havia muitas casas e muitas ruas e uma porção
de lojas lindas. “Mas aqui também tem Girò”, diziam os meninos.
A venda de Girò ficava bem em frente à nossa casa. Girò se postava na
porta feito uma velha coruja, seus olhos redondos e indiferentes fixos na
rua. Vendia um pouco de tudo: gêneros alimentícios e velas, cartões,
sapatos e laranjas. Quando a mercadoria chegava e Girò descarregava as
caixas, os meninos corriam para comer as laranjas podres que ele jogava
fora. No Natal chegavam também os torrones, os licores, as balas. Mas ele
não abaixava um centavo do preço. “Como você é mau, Girò”, lhe diziam
as mulheres. E ele respondia: “Quem é bom vira comida de cachorro”. No
Natal os homens voltavam de Terni, de Sulmona, de Roma, ficavam uns
dias e tornavam a partir, depois de terem abatido os porcos. Por alguns dias
só se comia torresmo ou linguiça e só se fazia beber: depois os berros dos
leitõezinhos novos enchiam as estradas.
Em fevereiro o ar se tornava úmido e macio. Nuvens cinzentas e
carregadas vagavam pelo céu. Houve um ano em que, durante o degelo, as
calhas se romperam. Então começou a chover dentro de casa, e os quartos
eram verdadeiros pântanos. Mas foi assim em todo o vilarejo: nem uma só
casa ficou seca. As mulheres esvaziavam os baldes pelas janelas e varriam a
água das portas. Teve gente que foi para a cama de guarda-chuva.
Domenico Orecchia dizia que era o castigo por algum pecado. Isso durou
mais de uma semana; depois, finalmente toda a neve desapareceu dos
telhados e Aristide consertou as calhas.
O fim do inverno despertava em nós uma inquietude. Talvez alguém
viesse nos visitar: talvez finalmente acontecesse alguma coisa. Nosso exílio
afinal devia ter um fim. Os caminhos que nos separavam do mundo
pareciam mais curtos: a correspondência chegava com mais frequência.
Todas as nossas frieiras melhoravam lentamente.
Há certa uniformidade monótona nos destinos dos homens. Nossa
existência se desenvolve segundo leis antigas e imutáveis, segundo uma
cadência própria, uniforme e antiga. Os sonhos nunca se realizam, e assim
que os vemos em frangalhos compreendemos subitamente que as alegrias
maiores de nossa vida estão fora da realidade. Assim que os vemos em
pedaços, nos consumimos de saudade pelo tempo em que ferviam em nós.
Nossa sorte transcorre nessa alternância de esperanças e nostalgias.
Meu marido morreu em Roma, nas prisões de Regina Coeli, poucos
meses depois de termos deixado o vilarejo. Diante do horror de sua morte
solitária, diante das angustiantes vacilações que a antecederam, eu me
pergunto se isso aconteceu a nós, a nós, que comprávamos as laranjas de
Girò e íamos passear na neve. Na época eu tinha fé num futuro fácil e feliz,
rico de desejos satisfeitos, de experiências e de conquistas em comum. Mas
aquele era o tempo melhor da minha vida, e só agora, que me escapou para
sempre, só agora eu sei.

* “Deus nos concedeu este descanso”, palavras com que Virgílio agradece a Augusto nas Éclogas,
usadas quase sempre de modo satírico. [Todas as notas são do tradutor.]
** Cantiga em dialeto. Tradução livre: “Minha madrasta malvada/ Cozinhou-me num caldeirão/ E
meu pai glutão/ Devorou-me numa grande garfada”.
Os sapatos rotos

Tenho os sapatos rotos, e a amiga com quem vivo neste momento


também tem os sapatos rotos. Quando estamos juntas, falamos sempre de
sapatos. Se lhe falo do tempo em que serei uma escritora velha e famosa,
ela logo me pergunta: “Com que sapatos?”. Então lhe digo que terei sapatos
de camurça verde, com uma grande fivela de ouro ao lado.
Pertenço a uma família em que todos têm sapatos sólidos e saudáveis.
Aliás, minha mãe teve até de fazer um armarinho só para guardar os
sapatos, de tantos pares que tinha. Quando volto para casa, soltam altos
gritos de dor e indignação ao verem meus sapatos. Mas sei que também se
pode viver com sapatos rotos. No período alemão eu estava sozinha aqui,
em Roma, e tinha apenas um par de sapatos. Se fosse levá-los ao sapateiro,
teria de passar dois ou três dias na cama, e isso não era possível. Assim
continuei a usá-los, e para piorar chovia, sentia que eles se desfaziam
lentamente, moles e informes, e sentia o frio do piso sob a planta dos pés. É
por isso que ainda hoje uso sempre sapatos rotos, porque me lembro
daqueles, e então estes não me parecem tão ruins em comparação, e se
tenho dinheiro prefiro gastá-lo com outras coisas, porque os sapatos já não
me parecem algo de muito essencial. Fui mimada pela vida de antes,
sempre cercada de um afeto terno e atento, mas naquele ano aqui, em
Roma, estive sozinha pela primeira vez, e por isso gosto tanto de Roma,
apesar de carregada de história para mim, carregada de lembranças
angustiantes, poucas horas alegres. Também minha amiga tem os sapatos
rotos, e por isso estamos bem juntas. Minha amiga não tem ninguém que a
reprove pelos sapatos que usa, tem apenas um irmão que vive no campo e
circula com botas de caçador. Ela e eu sabemos o que ocorre quando chove,
e as pernas estão nuas e molhadas, e nos sapatos entra água, e então há
aquele pequeno rumor a cada passo, aquela espécie de chapinhar.
Minha amiga tem um rosto pálido e másculo, e fuma numa piteira preta.
Quando a vi pela primeira vez, sentada a uma mesa, óculos com armação de
tartaruga e rosto misterioso e altivo, com a piteira preta entre os dentes,
pensei que parecia um general chinês. Na época eu não sabia que ela usava
sapatos rotos. Soube mais tarde.
A gente se conheceu poucos meses atrás, mas é como se fosse há anos.
Minha amiga não tem filhos; já eu tenho filhos, e para ela isso é estranho.
Ela nunca os viu senão em fotografias, porque eles estão no interior com
minha mãe, e isso para nós também é estranhíssimo, ou seja, que ela nunca
tenha visto meus filhos. Em certo sentido, ela não tem problemas e pode
ceder à tentação de jogar a própria vida aos cães; eu, ao contrário, não
posso fazer isso. Meus filhos estão morando com minha mãe, e por
enquanto não têm sapatos rotos. Mas como será quando crescerem? Quero
dizer: que sapatos terão na idade adulta? Que caminhos escolherão para
seus passos? Preferirão excluir de seus desejos tudo o que é agradável, mas
não necessário, ou dirão que tudo é necessário e que um homem tem o
direito de ter nos pés sapatos sólidos e sadios?
Eu e minha amiga conversamos longamente sobre isso e também sobre
como vai ser o mundo quando eu for uma velha escritora famosa e ela
estiver girando o mundo com uma mochila nas costas, como um velho
general chinês, e meus filhos seguirem seu caminho com sapatos sadios e
sólidos nos pés e o passo firme de quem não renuncia, ou com sapatos rotos
e o passo frouxo e indolente de quem sabe o que não é necessário.
Às vezes combinamos casamentos entre meus filhos e os filhos do irmão
dela, aquele que vagueia pelos campos com botas de caçador. Discorremos
assim até noite alta, bebendo chá preto e amargo. Temos um colchão e uma
cama, e toda noite tiramos no par ou ímpar quem de nós duas deve dormir
na cama. De manhã, quando levantamos, nossos sapatos rotos nos esperam
no tapete.
Minha amiga às vezes diz que está cheia de trabalhar e queria jogar a
vida aos cães. Queria se fechar num boteco e beber todas as suas
economias, ou então enfiar-se na cama e não pensar em mais nada, deixar
que venham cortar a luz e o gás, deixar que tudo vá à deriva bem devagar.
Diz que vai fazer isso quando eu for embora. Porque nossa vida em comum
durará pouco, em breve vou partir e voltar para minha mãe e meus filhos,
para uma casa onde não me será permitido andar de sapatos rotos. Minha
mãe tomará conta de mim, me impedirá de usar alfinetes em vez de botões,
de escrever até altas horas. E eu por minha vez tomarei conta de meus
filhos, vencendo a tentação de jogar a vida aos cães. Voltarei a ser séria e
maternal, como sempre acontece quando estou com eles, uma pessoa
diferente de agora, uma pessoa que minha amiga desconhece inteiramente.
Vou olhar o relógio e controlar o tempo, vigilante e atenta a cada coisa, e
cuidarei que meus filhos tenham os pés sempre enxutos e aquecidos, porque
sei que é assim que deve ser sempre que possível, pelo menos na infância.
Aliás, para aprender mais tarde a caminhar com sapatos rotos, talvez seja
bom ter os pés enxutos e aquecidos quando se é criança.
Retrato de um amigo

A cidade que era amada por nosso amigo continua a mesma; há algumas
mudanças, mas coisa pouca: puseram uns trólebus, fizeram umas passagens
subterrâneas. Não há cinemas novos. Os antigos são sempre os mesmos,
com os velhos nomes: nomes que, quando os repetimos, despertam em nós
a juventude e a infância. Agora moramos em outro lugar, numa cidade bem
diferente e maior: e, se nos encontramos e falamos de nossa cidade, falamos
sem nos queixarmos de tê-la deixado e dizemos que agora já não
poderíamos viver lá. No entanto, quando voltamos para lá, basta atravessar
o átrio da estação e caminhar na neblina das avenidas para nos sentirmos
em casa; e a tristeza que a cidade nos inspira toda vez que regressamos a ela
está nesse sentir-se em casa e sentirmos ao mesmo tempo que nós, em nossa
casa, não temos mais motivo para estar; porque aqui, em nossa casa, em
nossa cidade, na cidade onde passamos a juventude, permanecem agora
poucas coisas vivas, e somos acolhidos por uma massa de memórias e de
sombras.
De resto, nossa cidade é melancólica por natureza. Nas manhãs de
inverno, ela tem um cheiro peculiar de estação e fuligem, difuso em todas
as ruas e alamedas; chegando de manhã, a encontramos cinzenta de névoa e
envolvida nesse seu cheiro. De vez em quando se infiltra através da neblina
um sol fraco, que tinge de rosa e lilás os amontoados de neve, os galhos nus
das árvores; nas ruas e avenidas a neve foi varrida e concentrada em
pequenos montinhos, mas os jardins públicos ainda estão enterrados sob
uma grossa camada intacta e macia, da altura de um dedo, sobre os bancos
abandonados e nas margens dos chafarizes; o relógio do campo de hipismo
está parado há tempos imemoriais, marcando quinze para as onze. Para lá
do rio se ergue a colina, igualmente branca de neve, mas manchada aqui e
ali por uns arbustos avermelhados; e no cume da colina campeia uma
construção de cor laranja e forma circular, que noutros tempos foi a Ópera
Nacional Balilla. Se há um pouco de sol e a cúpula de vidro do Salão do
Automóvel resplandece, e o rio escorre com uma cintilação verde sob as
grandes pontes de pedra, a cidade pode até parecer, por um instante,
sorridente e hospitaleira: mas é uma impressão fugaz. A natureza essencial
da cidade é a melancolia: o rio, perdendo-se na distância, evapora num
horizonte de névoas violáceas que faz pensar no pôr do sol, ainda que seja
meio-dia; e em toda parte se respira aquele mesmo cheiro abafado e
laborioso de fuligem e se escuta um apito de trem.
Nossa cidade se parece — só agora nos damos conta disso — com o
amigo que perdemos e que a amava; ela é, assim como ele era, intratável
em sua operosidade febril e obstinada; e é ao mesmo tempo desinteressada
e disposta ao ócio e ao sonho. Na cidade que se parece com ele, sentimos
nosso amigo reviver por todos os lados: em cada esquina e em cada canto
achamos que de repente possa aparecer sua alta figura de capote escuro
cintado, o rosto escondido na gola, o chapéu enterrado nos olhos. O amigo
media a cidade com seu longo passo, obstinado e solitário; se entocava nos
cafés mais apartados e fumarentos, livrava-se rapidamente do capote e do
chapéu, mas mantinha jogada ao pescoço sua feia echarpe clara; retorcia
entre os dedos os longos cachos de cabelos castanhos e então se
despenteava de repente com um movimento fulminante. Enchia folhas e
folhas com sua caligrafia larga e rápida, cortando com fúria; e celebrava a
cidade em seus versos:
Questo è il giorno che salgono le nebbie dal fiume
Nella bella città, in mezzo a prati e colline,
E la sfumano come un ricordo...*

Seus versos ressoam em nossos ouvidos quando retornamos à cidade ou


quando pensamos nela; e já nem sabemos se são versos belos, de tanto que
fazem parte de nós, a tal ponto refletem para nós a imagem de nossa
juventude, dos dias já remotíssimos em que os escutávamos de viva voz por
nosso amigo, pela primeira vez: e descobrimos, com profundo espanto, que
até de nossa cinzenta, pesada e apoética cidade se podia fazer poesia.
Nosso amigo vivia na cidade como um adolescente: e até o final viveu
assim. Seus dias eram longuíssimos, como os dos adolescentes, e cheios de
tempo; sabia achar espaço para estudar e escrever, para ganhar a vida e
vadiar nas ruas que adorava; e nós, que resfolegávamos divididos entre
preguiça e produtividade, perdíamos horas na incerteza de decidirmos se
éramos preguiçosos ou produtivos. Não quis, por muitos anos, submeter-se
a um horário no escritório, aceitar uma profissão definida; mas, quando
concordou em sentar a uma mesa de escritório, se tornou um funcionário
meticuloso e um trabalhador incansável: mesmo reservando-se uma
margem ampla de ócio, fazia suas refeições rapidíssimo, comia pouco e não
dormia nunca.
Às vezes ficava muito triste: mas por muito tempo pensamos que se
curaria daquela tristeza quando decidisse tornar-se adulto, porque sua
tristeza nos parecia meio juvenil, como a melancolia voluptuosa e distraída
do rapaz que ainda não tocou a terra e se move no mundo árido e solitário
dos sonhos. De vez em quando, à noite, vinha nos encontrar; sentava-se
pálido, com sua pequena echarpe ao pescoço, e retorcia os cabelos ou
amassava uma folha de papel; não pronunciava uma só palavra durante toda
a noite; não respondia a nenhuma das nossas perguntas. Finalmente, num
impulso, agarrava o capote e ia embora. Humilhados, nos perguntávamos se
nossa companhia o havia decepcionado, se tentara tranquilizar-se ao nosso
lado e não conseguira; ou se simplesmente se propusera passar uma noite
em silêncio sob uma lâmpada que não fosse a sua.
De qualquer modo, conversar com ele nunca foi fácil, nem quando se
mostrava alegre: mas um encontro com ele, mesmo se feito de poucas
palavras, podia ser tônico e estimulante como nenhum outro. Na companhia
dele, nos tornávamos muito mais inteligentes; nos sentíamos impelidos a
pôr em nossas palavras o que tínhamos de melhor e de mais sério em nós;
dispensávamos os lugares-comuns, os pensamentos imprecisos, as
incoerências.
Ao lado dele, frequentemente nos sentíamos humilhados: porque não
sabíamos ser sóbrios como ele, nem como ele modestos, nem como ele
generosos e desinteressados. Tratava a nós, seus amigos, com maneiras
ásperas, e não perdoava nenhum dos nossos defeitos; porém, se
estivéssemos sofrendo ou adoentados, se mostrava de repente solícito como
uma mãe. Por princípio, recusava-se a conhecer gente nova; mas podia
ocorrer que de repente, com uma pessoa inesperada e nunca vista antes,
uma pessoa às vezes vagamente desprezível, ele se mostrasse expansivo e
afetuoso, pródigo de sugestões e de projetos. Se lhe fazíamos notar que
aquela pessoa era, em muitos aspectos, antipática ou desprezível, ele dizia
que estava plenamente consciente disso, porque ele gostava de saber sempre
tudo e nunca nos dava a satisfação de lhe contar algo novo; mas por que
motivo ele se comportava de modo tão íntimo com aquela pessoa, e negava
sua cordialidade a gente mais merecedora, isso ele não explicava, e nunca o
soubemos. Às vezes se tomava de curiosidade por pessoas que ele julgava
pertencer a um mundo elegante, e as frequentava; talvez pensasse em valer-
se delas em seus romances; porém, ao avaliar a sofisticação social ou de
costume, se enganava e tomava por cristal o que era fundo de garrafa; e
nisso ele era, mas somente nisso, muito ingênuo. Equivocava-se quanto à
sofisticação dos costumes; mas não se deixava enganar em relação à fineza
de espírito ou de cultura.
Tinha um modo avaro e cauteloso de dar a mão ao cumprimentar, poucos
dedos concedidos e logo retirados; tinha um modo esquivo e parcimonioso
de extrair o tabaco da bolsa e encher o cachimbo; e tinha um modo brusco e
fulminante de nos dar dinheiro, se soubesse que estávamos precisando, um
modo tão brusco e fulminante que ficávamos desconcertados; era, ele dizia,
avaro com o dinheiro que possuía, e penava em desfazer-se dele: mas, assim
que se desfazia, já não estava nem aí. Se estivéssemos longe dele, não nos
escrevia nem respondia a nossas cartas, ou respondia em poucas palavras
curtas e geladas: porque, dizia, não sabia querer bem aos amigos quando
estavam distantes, não queria sofrer com sua ausência, e logo os incinerava
no próprio pensamento.
Nunca teve uma mulher nem filhos nem uma casa sua. Morava com uma
irmã casada, que gostava dele e de quem ele gostava; mas também com a
família ele usava os mesmos modos rudes, comportando-se como um garoto
ou um forasteiro. Às vezes vinha a nossa casa e perscrutava com cenho
franzido e ar benévolo os filhos que nos nasciam, as famílias que íamos
construindo: ele também pensava em ter uma família, mas pensava de uma
maneira que, com o passar dos anos, se tornava mais complicada e tortuosa;
tão tortuosa que daí não podia brotar nenhuma conclusão simples. Com os
anos, criara para si um sistema de pensamentos e de princípios tão
complexo e inexorável que o impedia de atuar na realidade mais simples: e,
quanto mais proibida e impossível se tornava aquela simples realidade, mais
fundo nele se arraigava o desejo de conquistá-la, emaranhando-se e
ramificando-se como uma vegetação tortuosa e sufocante. Às vezes ficava
muito triste, e nós poderíamos tê-lo ajudado; mas ele nunca nos permitiu
uma palavra de consolo, um gesto de socorro: e assim ocorreu que nós,
imitando suas maneiras, rechaçássemos na hora do nosso desconforto a
misericórdia dele. Não foi, para nós, um mestre, ainda que nos tenha
ensinado tantas coisas; porque víamos bem as absurdas e tortuosas
complicações de pensamento nas quais ele aprisionava sua alma simples; e
até gostaríamos de lhe ter ensinado alguma coisa, ensiná-lo a viver de modo
mais elementar e respirável: mas nunca fomos capazes de lhe ensinar nada
porque, quando tentávamos expor nossos motivos, ele erguia uma mão e
dizia já saber tudo.
Tinha, nos últimos anos, um rosto sulcado e escavado, devastado por
angustiosos pensamentos: mas conservou até o fim, na figura, a graça de
um adolescente. Tornou-se, nos últimos anos, um escritor famoso; mas isso
não mudou em nada seus hábitos esquivos, nem a modéstia de sua atitude,
nem a humildade — conscienciosa até o escrúpulo — de seu trabalho de
cada dia. Quando lhe perguntávamos se estava gostando de ser famoso,
dizia, com um trejeito altivo, que sempre esperara por isso: ele tinha, às
vezes, uma expressão astuta e arrogante, infantil e malévola, que lampejava
e desaparecia. Mas o fato de sempre ter esperado por isso significava que a
coisa, uma vez alcançada, não lhe dava mais nenhuma alegria: porque era
incapaz de gozar as coisas e de amá-las depois de tê-las conquistado. Dizia
já conhecer sua arte tão a fundo que ela não lhe oferecia mais nenhum
segredo: e, não lhe oferecendo mais segredos, não o interessava mais. Ele
nos dizia que até nós, seus amigos, já não tínhamos segredos para ele, e que
o entediávamos infinitamente; e nós, mortificados por entediá-lo, não
conseguíamos dizer que víamos muito bem onde é que ele errava: em não
querer dobrar-se e amar o curso cotidiano da existência, que prossegue
uniforme e aparentemente sem segredos. Faltava-lhe, pois, conquistar a
realidade cotidiana; mas ela era proibida e inapreensível para ele, que lhe
dedicava ao mesmo tempo repulsa e sede; e assim não podia senão observá-
la de intransponíveis distâncias.
Morreu no verão. Nossa cidade, no verão, fica deserta e parece muito
grande, clara e sonora como uma praça; o céu é límpido, mas não luminoso,
de uma palidez leitosa; o rio escorre plano como uma estrada, sem
transpirar umidade nem frescor. Erguem-se das alamedas lufadas de poeira;
passam, vindas do rio, grandes carroças cheias de areia; o asfalto da avenida
é todo coberto de pedrinhas, que cozinham no piche. Ao ar livre, sob os
sombreiros franjados, as mesinhas dos cafés ficam abandonadas e
escaldantes.
Nenhum de nós estava lá. Para morrer, ele escolheu um dia qualquer
daquele tórrido agosto; e escolheu o quarto de um hotel nas proximidades
da estação, querendo morrer como um forasteiro na cidade que lhe
pertencia. Tinha imaginado sua morte num poema antigo, de muitos e
muitos anos atrás:
Non sarà necessario lasciare il letto.
Solo l’alba entrerà nella stanza vuota.
Basterà la finestra a vestire ogni cosa
di un chiarore tranquillo, quasi una luce.
Poserà un’ombra scarna sul volto supino.
I ricordi saranno dei grumi d’ombra
appiattati cosí come vecchia brace
nel camino. Il ricordo sarà la vampa
che ancor ieri mordeva negli occhi spenti.**

Pouco tempo depois de sua morte, fomos à colina. Havia tavernas na


estrada com pérgulas de uvas vermelhas, jogos de bocha, montes de
bicicletas; havia chácaras com cachos de panículas, o mato ceifado a secar
sobre sacos: a paisagem que ele amava, na orla da cidade e às vésperas do
outono. Olhamos a noite de setembro subir sobre as margens relvosas e os
campos arados. Éramos todos muito amigos, e nos conhecíamos de muitos
anos; pessoas que sempre tinham trabalhado e pensado juntas. Como
acontece entre quem se quer bem e foi atingido por uma desgraça,
tentávamos agora nos aproximar ainda mais, nos acudirmos e nos
protegermos uns aos outros; porque sentíamos que ele, numa sua maneira
misteriosa, sempre nos acudira e protegera. Estava mais que nunca presente,
naquela encosta da colina.
Ogni occhiata che torna, conserva un gusto
di erba e cose impregnate di sole a sera
sulla spiaggia. Conserva un fiato di mare.
Come un mare notturno è quest’ombra vaga
di ansie e brividi antichi, che il cielo sfiora
e ogni sera ritorna. Le voci morte
assomigliano al frangersi di quel mare.***
* A autora cita este trecho do poema “Paisagem VI”, de Cesare Pavese, com ligeiras diferenças em
relação ao original: “Quest’è il giorno che salgono le nebbie dal fiume/ nella bella città, in mezzo a
prati e colline,/ e la sfumano come un ricordo”. Na tradução de Maurício Santana Dias (Trabalhar
cansa. São Paulo: Cosac Naify; Rio de Janeiro: 7Letras, 2009, p. 323): “Este é o dia em que sobe a
neblina do rio/ nessa bela cidade, entre prados, colinas,/ embaçando-a como uma lembrança”.
** “Não será necessário deixar a cama./ Só a aurora entrará nesse quarto vago./ Bastará a janela a
vestir cada coisa/ de clareza tranquila, quase uma luz./ Pousará uma sombra no rosto supino./ As
lembranças serão uns punhados de sombra/ consumidos, assim como velhas brasas/ na lareira. A
lembrança será a chama/ que ainda ontem mordia nos olhos baços.” Trecho do poema “O paraíso
sobre os telhados”, de Cesare Pavese, em Trabalhar cansa, op. cit., 331.
*** “Cada olhar que retorna conserva um gosto/ de pastagem e coisa curtida ao sol/ numa tarde de
praia. E um cheiro de mar./ Esta sombra indecisa é um mar noturno/ de tremores e ânsias antigas, que
o céu/ roça e à noite regressa. Estas vozes mortas/ assemelham-se aos golpes daquele mar.” Trecho
de “Paisagem VIII”, de Cesare Pavese, em Trabalhar cansa, op. cit., 285.
Elogio e lamento da Inglaterra

A Inglaterra é bonita e melancólica. Para ser sincera, não conheço muitos


países; mas me surgiu a suspeita de que a Inglaterra seja o país mais
melancólico do mundo.
É um país altamente civilizado. Aqui se veem resolvidos com grande
sabedoria os problemas mais essenciais da vida, como as enfermidades, a
velhice, o desemprego, os impostos.
É um país que sabe ter — creio — um bom governo, e isso se percebe
nos mínimos detalhes da vida cotidiana.
É um país onde reina o máximo respeito, e a máxima vontade de respeito,
pelo próximo.
É um país que se mostrou sempre pronto a acolher estrangeiros, as
populações mais diversas, e, ao que me parece, não os oprime.
É um país onde sabem construir casas. O desejo do homem de usufruir
uma pequena casa só para si e para sua família, com um jardim que ele
mesmo possa cultivar, é considerado legítimo, e assim as cidades são
compostas por esse tipo de pequenas casas.
Até as casas mais modestas, vistas de fora, podem ter uma aparência
graciosa.
E no entanto uma cidade grande como Londres, monstruosamente
imensa, é concebida de modo que essa grandeza não se perceba nem pese.
O olho não se perde em sua grandeza, mas é atraído e enganado pelas
pequenas ruas, pelas pequenas casas, pelos parques verdes.
Os parques se abrem na cidade como lagos, para descansar nossa vista,
dar-lhe refrigério e libertação, lavá-la da fuligem.
Porque a cidade logo se vê envolvida numa densa camada fuliginosa ali
onde não há verde, e cheira como as estações de velhos trens, a carvão e a
poeira.
As estações são os locais em que a Inglaterra é mais abertamente tétrica.
Nelas se acumulam ferro-velho, detritos de carvão, montes emaranhados e
ferruginosos de trilhos em desuso; e em seu entorno há plantações
desoladas de couve, com pobres camisolas estendidas e barracas
remendadas como velhos lençóis.
Igualmente tétrica é a periferia de Londres, onde as ruas de casinhas
todas iguais se multiplicam e prolongam até a vertigem.
A mesma vertigem se sente ao vermos aqui em Londres certas vitrines de
lojas atulhadas de sapatos todos iguais, de bico fino e salto agulha. Sapatos
que machucam os pés só de olhar. Ou vitrines repletas e transbordantes de
lingerie feminina, tão atulhadas que tiram qualquer vontade de comprar
anáguas ou meias, tanta é a saturação dos olhos. Diante de tal abundância,
nos vem a sensação de não precisarmos de nada — e um desgosto por
meias e anáguas que parece durar para sempre.

Contra os muros de tijolos vermelhos das pequenas casas sobressaem as


folhinhas verdes das árvores, minúsculas, de um verde tenro, como um fino
bordado de folhas.
De quando em quando surge na estrada uma árvore florida, de um rosa
suave ou vivamente aceso, bonito de ver, um gracioso ornamento da rua. No
entanto, observando bem, se sente que as árvores não estão ali por acaso,
mas por cálculo, em obediência a um traçado preciso. E o fato de estarem
ali não por acaso, mas em obediência a um traçado preciso, entristece sua
beleza.
Na Itália, uma árvore florida na rua de uma cidade seria algo de um
inusitado contentamento. Estaria ali por acaso, irrompendo da alegria da
terra, e não pelo cálculo de uma vontade determinada.
Em Londres, nesta cidade negra e cinza, o homem colocou com precisa
determinação alguma cor. Pode-se topar de repente com um portãozinho
azul, ou rosa, ou vermelho entre seus irmãos negros. Passam no ar cinzento
os ônibus pintados de um vermelho vivo. São cores que em outros lugares
seriam alegres, mas aqui, sob o jugo de uma intenção precisa e determinada,
não são alegres: sorriso triste e mortiço de quem não sabe sorrir.
E vermelhos são os carros dos bombeiros, que não soltam aqueles gritos
estridentes de sirenes, mas um suave tilintar de sinos.
A Inglaterra nunca é vulgar. É conformista, mas não vulgar. Nunca é
debochada, sendo triste. A vulgaridade nasce da gaiatice e da arrogância.
Nasce, ainda, do estro e da fantasia.
Às vezes acreditamos perceber a vulgaridade na voz cacarejante ou no
riso estrídulo de uma mulher, nas cores berrantes de sua maquiagem ou em
seus cabelos espigados. Mas logo nos damos conta de que neste país, em
qualquer canto, a vulgaridade é sempre esmagada pela melancolia.

Falta fantasia aos ingleses. Vestem-se todos do mesmo modo. As


mulheres que se veem nas ruas vestem o mesmíssimo impermeável de
plástico, transparente e caramelado, parecendo cortina de banheiro ou
toalha de mesa dos restaurantes. Todas têm, enfiada no braço, uma cesta de
vime. Os homens de negócios usam o uniforme que conhecemos, com
chapéu-coco preto, calça riscada e guarda-chuva. Os artistas do bairro de
Chelsea, e os estudantes com sonhos de arte, de boêmia e de vida dissipada,
têm barbas ruivas, incultas, redondas, e vestem paletó xadrez com bolsos
irregulares. As jovens desse grupo usam calças pretas e justas, malhas de
gola rulê e, mesmo na chuva, sapatos brancos.
Vestindo-se desse modo, os jovens acreditam estar afirmando em alta voz
sua condição livre, desregrada, anticonformista, a originalidade e o estro do
próprio pensamento. Não percebem, porém, que a rua acolhe milhares de
personagens perfeitamente idênticas a eles, com o mesmo corte de cabelo, a
mesma expressão de desafio ingênuo no rosto, os mesmos sapatos.
Falta fantasia aos ingleses: no entanto demonstram fantasia em duas
coisas, duas apenas. As roupas de noite das velhas senhoras e os cafés.
As velhas senhoras trajam, à noite, os vestidos mais bizarros. E pintam o
rosto de rosa e de amarelo, sem parcimônia. De quietos pardais, se
transformam em pavões e faisões exuberantes.
Não suscitam nenhum espanto à sua volta. De resto, o povo inglês
desconhece o espanto. Jamais vira a cabeça para olhar o próximo na rua.
Também nos cafés e restaurantes a Inglaterra exibe seu estro. Costuma
dar nomes estrangeiros a eles, para torná-los mais atraentes: “Pustza”,
“Chez Nous”, “Roma”, “Le Alpi”. Através de suas vidraças se veem frágeis
plantinhas trepadeiras, luminárias chinesas, picos agudos de rocha, azuis de
geleiras. Ou se veem caveiras, ossos cruzados, paredes pretas, tapetes pretos
e velas mortuárias, onde reina — estando frequentemente desertos — um
lutuoso silêncio.
A Inglaterra, não estando nada contente consigo, esmera-se em vestir as
plumas do fascínio estrangeiro, ou busca o calafrio de uma sedução funérea.
De resto, as bebidas e as comidas que se encontram no interior dessas
pustze, desses Alpes, desses sepulcros, têm o mesmo sabor miserável. A
fantasia não chegou até as bebidas e as comidas: ficou agarrada às cortinas,
aos tapetes, às luminárias.

Os ingleses, por hábito, não demonstram assombro. Se acontece de


alguém desmaiar na rua, está tudo previsto. Em poucos segundos lhe
providenciam uma cadeira, um copo d’água e uma enfermeira
uniformizada.
Os desmaios são previstos e, em torno do infortunado, tudo se move
prontamente em seu socorro, de modo automático.
No entanto os ingleses se espantam profundamente quando, no
restaurante, pedimos um pouco de água. Eles não bebem água, perenemente
saciados por infinitas xícaras de chá. Não apreciam o vinho, nem tocam em
água. Por isso o pedido de um copo d’água os desorienta, aquele mesmo
copo d’água que surge tão solícito quando alguém desmaia na rua.
Mas por fim trazem numa bandeja um pequeno copo com pouca água
morna, e uma colherinha.
Talvez tenham razão em camuflar seus cafés e restaurantes sob vestes
estrangeiras. Porque, quando esses locais são declaradamente ingleses, aí
impera um desespero tão esquálido a ponto de inspirar ideias de suicídio em
quem entra.
Muitas vezes me perguntei qual seria o motivo de tanto desolamento nos
cafés ingleses. Talvez derive do desolamento das relações sociais. Qualquer
lugar onde os ingleses se reúnem para conversar transborda de melancolia.
De fato não há nada mais triste no mundo do que uma conversa inglesa,
sempre concentrada em não beirar nada de essencial, detendo-se sempre na
superfície. Para não ofender o próximo violando sua intimidade, que é
sagrada, a conversa inglesa zumbe em torno de assuntos de extremo tédio
para todos, contanto que não apresentem perigo.
Os ingleses são um povo totalmente desprovido de cinismo. No fundo,
são sempre sérios, apesar das gargalhadas que estouram de repente e
desmoronam surdas, sem eco. Ainda acreditam em certos valores
essenciais, que, em qualquer outro lugar, já foram esquecidos: na seriedade
do trabalho, do estudo, da fidelidade a si mesmos, aos amigos, à palavra
empenhada.

A civilização, o respeito pelo próximo, o bom governo, o saber pensar e


suprir as exigências do homem, a prestação de assistência na velhice e na
enfermidade, tudo isso certamente é fruto de uma antiga e profunda
inteligência. No entanto essa inteligência não é minimamente visível ou
perceptível na gente que passa na rua. Olhando ao redor, não se vê sinal
dela. Falando ao acaso com o primeiro que passa, esperaremos em vão
palavras de sabedoria humana.
Quando entramos numa loja, a vendedora nos acolhe com as palavras
“Can I help you?”. Mas se trata de meras palavras. Ela imediatamente se
revela incapaz de nos ajudar, e nem um pouco disposta a isso. Nela não se
vislumbra nenhuma vontade de estabelecer um entendimento com a gente,
de colaborar, nenhuma vontade de nos agradar. Ao procurar o que
desejamos, ela não espicha o olhar dois centímetros além do nariz.
As vendedoras inglesas são as vendedoras mais broncas do mundo.
Mas se trata de uma estupidez da qual estão inteiramente ausentes o
cinismo, a insolência, a arrogância, o desprezo. É uma estupidez em que
não há nenhuma vulgaridade. Ela não é absolutamente ignóbil, e por isso
mesmo não ofende. Os olhos das vendedoras inglesas têm a fixidez atônita
e vazia das ovelhas nas imensas pastagens.
Quando saímos da loja, o olho da vendedora nos segue atônito e vazio,
sem ter formulado nenhum tipo de julgamento sobre nós, nenhum
pensamento. É um olho que logo se esquece de nós, assim que saímos do
brevíssimo raio de sua íris.
Assim, se por acaso acontece de encontrarmos uma vendedora menos
bronca, nos sentimos dispostos a comprar toda a loja, só pela surpresa.
A Itália é um país pronto a dobrar-se aos piores governos. É um país,
como se sabe, onde tudo funciona mal. É um país onde reina a desordem, o
cinismo, a incompetência, a confusão. E, apesar disso, se sente circular
pelas ruas a inteligência, como um sangue que pulsa.
É uma inteligência que evidentemente não serve para nada. Não é usada
em benefício de nenhuma instituição que possa melhorar minimamente a
condição humana. Entretanto aquece o coração e o consola, ainda que se
trate de um conforto enganador e, talvez, insensato.
Na Inglaterra a inteligência se traduz nas obras; contudo, se a
procurarmos nas ruas, não encontraremos nem um lampejo dela, e isso nos
parece, estúpida e injustamente, uma privação e nos deixa doentes de
melancolia.
A melancolia inglesa nos contagia de imediato. É uma melancolia
caprina, atônita, uma espécie de estupor vazio, sobre a qual flutuam na
superfície as discussões sobre o tempo e as estações, sobre todas as coisas
acerca das quais é possível falar longamente sem nunca ir ao fundo, sem
ofender e sem ser ofendido, um longo e leve zumbido de pernilongo.
Apesar de tudo, o povo inglês parece de algum modo consciente da
própria tristeza, da tristeza que seu país inspira aos estrangeiros. Parece
desculpar-se com os estrangeiros, e se mostra eternamente ansioso para ir
embora. Vive como num eterno exílio, sonhando com outros céus.

Sempre me espantou o fato de que, na Itália, quem tem filhos


adolescentes sempre sonha em mandá-los para a Inglaterra nas férias de
verão. Especialmente quando se trata de jovens que estão atravessando —
como frequentemente ocorre na adolescência — um período de timidez, de
misantropia, de mau humor e agressividade. Os pais italianos pensam na
Inglaterra como um remédio específico para esses males. Na verdade, na
Inglaterra nunca se faz nenhuma mudança. É um país onde se continua
sendo absolutamente aquilo que se é.
Quem é tímido continua tímido, e quem é misantropo permanece
misantropo. Além disso, sobre a timidez e a misantropia ainda se espalha a
grande, a interminável melancolia inglesa, como uma pradaria imensa onde
os olhos se perdem.
De resto, os pais inutilmente esperam que nessas temporadas de verão os
filhos aprendam inglês, língua muito difícil de ser aprendida, que
pouquíssimos estrangeiros sabem, e que cada inglês fala à sua maneira.
A Inglaterra é um país onde se continua sendo absolutamente aquilo que
se é. O espírito não empreende o mais mínimo desvio. Permanece ali,
imóvel, imutável, protegido por um clima ameno, temperado, úmido, sem
mudanças de estação, assim como em todas as estações permanece imutável
a relva verde dos campos, que não dá para imaginar mais verde: que a
mordida do gelo nunca fere, e o sol nunca devora. A alma não se liberta de
seus vícios nem adquire novos. Assim como a relva, a alma se embala em
silêncio em sua verdejante solidão, embebida numa chuva morna.

Há catedrais belíssimas. Não apertadas entre casas e lojas, mas soltas em


gramados verdes. Há lindos cemitérios, simples pedras inscritas, espalhadas
na relva numa paz profunda, aos pés das catedrais. Nenhum muro as
protege, elas estão ali, em perpétua intimidade com a vida, e mesmo assim
mergulhadas numa paz suprema.
No país da melancolia, o pensamento está sempre voltado para a morte.
Não teme a morte, já que a sombra da morte se assemelha à sombra vasta
das árvores, ao silêncio que já está presente na alma, perdida em seu verde
sono.
La Maison Volpé

Aqui em Londres, perto de minha casa, há um lugar chamado “La


Maison Volpé”. O que é, não sei, nunca entrei: acho que deve ser um
restaurante ou um café. Talvez eu nunca entre ali: aquele nome conservará
para mim seu mistério. Mas tenho a impressão de que, quando me lembrar
de Londres e do tempo que passei aqui, essas sílabas vão vibrar em meu
ouvido, e toda Londres se resumirá para mim naquele nome parisiense.
De fora, só se vê uma porta de vidro com espessas cortinas de tule cor de
avelã; além das espessas cortinas não se vê nada; o cortinado é velho,
empoeirado, pálido; talvez seja um restaurante, mas passando por perto não
se sente nenhum cheiro, nem bom nem ruim; de resto, nunca vi alma viva
entrando ou saindo por aquela porta, acima da qual estão inscritas em preto
e dourado as letras daquele estranho nome: La Maison Volpé. Quer se trate
de um café, de um restaurante ou de um salão de baile, tenho a sensação de
que ali são servidos pratos e bebidas, coisa antiga e impregnada da poeira e
das traças que recobrem as cortinas. A rua é quase de periferia. Entre um
posto de gasolina e um frigorífico, a Maison Volpé, sempre hermeticamente
fechada, lança seu mistério noturno, a promessa de prazeres secretos,
exóticos e talvez pecaminosos que se encerra nos caracteres pretos e
dourados de seu nome.
Em Londres, locais como a Maison Volpé há aos montes: surgem nos
pontos mais improváveis, têm nomes extravagantes, e de fora não se
entende bem o que são; exalam uma atmosfera noturna, exótica e
vagamente pecaminosa, e neles se encontra em pleno dia, ao entrar, uma
misteriosa penumbra dissipada apenas por tênues luminárias azuis; há
tapetes de veludo e paredes pintadas de preto, mas somos imediatamente
desiludidos pelos açucareiros sobre as mesas, cheios de um açúcar
amarronzado, o açúcar de cana que usam aqui. Não demoramos a perceber
que nesses locais não acontece absolutamente nada de estranho; e só se
bebe um café claro e morno, misturado com leite. As mesas são ocupadas
por pessoas vestidas com certo esmero; vê-se pelo tipo de roupa que não
entraram ali por acaso, de passagem, mas com o firme propósito de passar
algumas horas justamente naquele lugar e, quem sabe, se divertir. Qual é a
diversão de passar o tempo num lugar como esse, desprovido de qualquer
alegria, ignoro; não se veem amantes se abraçando, e a conversa é um
educado sussurro; as pessoas não parecem envolvidas numa conversa
íntima, entusiasmada, acesa, como as conversas íntimas que se estabelecem,
entre homem e mulher ou entre amigos, em nossos cafés. Não há naquele
sussurro educado nenhuma espécie de intimidade. Toda a decoração, a
penumbra, os cortinados, os tapetes parecem estar ali para sugerir
intimidade; mas ela continua sendo um propósito abstrato, um sonho
remoto.
Quando se encontram, os italianos em Londres falam de restaurantes.
Não existe em toda Londres um restaurante onde seja agradável reunir-se
para bater papo e jantar. Os restaurantes daqui ou são muito lotados, ou
desertos demais. E todos têm um aspecto grave ou esquálido. Às vezes os
dois aspectos se juntam; às vezes à esqualidez se sobrepõe a gravidade,
rígidas poltronas de espaldar alto, senhoras com casacos de pele e jarras de
prata; às vezes é a esqualidez que predomina, num abandono desolador;
além disso, em qualquer lugar quase sempre se comem os mesmos pratos,
os mesmos bifes escuros e retorcidos, acompanhados de um tomate cozido
e uma folha de salada sem azeite nem sal.
Há restaurantes onde só se come frango assado. Filas e filas de frango
giram no espeto. Os garçons passam correndo de uma mesa à outra
equilibrando pratos quentes de frango. Não se percebe nem sombra de outra
comida ao redor. Saímos tão enjoados de frango que parece que nunca mais
vamos conseguir pôr na boca um pedacinho de frango pelo resto da vida.
Também há restaurantes que se chamam “The Eggs and I” (Os Ovos e Eu).
E ali só há ovos, ovos duros, gelados e marmóreos sobre os quais são
jogados pequenos jatos de maionese.
Na Inglaterra se faz muita propaganda de restaurantes e comida em geral.
No cinema, nas ruas, nas estações subterrâneas, nas revistas ilustradas se
veem imagens grandes e coloridas de comidas e bebidas. “Oh, it is
luxurious! It is delicious!” No cinema assistimos a longas projeções
publicitárias de restaurantes chineses, indianos e espanhóis com orquestras,
palmas, flores, clientes comendo com um fez ou um sombreiro na cabeça,
extasiados diante de um prato onde temos a impressão de entrever o
habitual bife escuro com a mesma folha de salada. Na tela se sucedem
bosques salpicados de morangos vermelhos e pastos intermináveis que
depois se transformam no sorvete Kiaora (que se pode pegar “aqui e
agora”) ou no copo de papelão do leite Fresko (“Fresko is delicious! and
full of vitamins!”). A cidade é cheia de apelos para beber e comer. Em cada
esquina se vê um cartaz com um ovo quente e a sábia recomendação “Go to
work on an egg” (Vá ao trabalho após um ovo). Ou então “Drink a pinta
milka day” (Beba um quartilho de leite por dia), “Baby cham? I love Baby
cham!”. Ou ainda: “Have a chicken for your week-end” (Leve um frango
para seu fim de semana).
No entanto, apesar de todo esse clamor gastronômico, para as pessoas
tudo se resume simplesmente em “food”, comida: algo genérico e
melancólico. Nos romances se lê que se serve “some food”: nenhuma
especificação carinhosa. Os milhares de caixinhas expostos nos mercados
exibem imagens dos mais variados e apetitosos animais: faisões, perdizes,
corças, cabritos e cervos; e trazem deliciosos nomes exóticos entre esboços
de paisagens distantes, para onde seria um sonho poder ir. Mas quem vive
aqui há algum tempo já perdeu qualquer inocência: sabe bem que o
conteúdo dessas caixinhas é sempre “food”, ou seja, nada. Nada que se
possa comer com simpatia cordial, com prazer sereno.
Depois de vivermos certo tempo aqui, percebemos que não se pode
cometer nenhuma imprudência quando se compra comida. Não se pode
entrar numa confeitaria, escolher algum doce, levá-lo para casa e comê-lo.
Esse ato simples e inocente não é possível aqui. Porque esses doces
graciosamente cobertos de chocolate e incrustados de amêndoas ficam em
nossa boca, como empastados de carvão ou de areia. Mas, a bem da
verdade, é preciso dizer que não fazem nenhum mal. São apenas ruins,
inofensivos, mas ruins, com um gosto de centenas de anos, mas inofensivos.
Os doces das tumbas dos faraós, ao lado das múmias, devem ter esse
mesmo sabor. Nem balas podemos comprar sem preocupação. Elas podem
ser duras que nem pedra, ou grudar nos dentes, enchendo a boca de um
gosto estranho de sal.
Sobre cada local onde se vende ou se comercializa comida pesa uma
tristeza opaca. Até as vitrines das quitandas, cheias de frutas bonitas de se
ver, com pilhas de toranjas e pencas de bananas, essas vitrines de quitanda
todas iguais em qualquer lugar, nas estações de metrô, nos subúrbios mais
afastados e nos mais remotos vilarejos perdidos no campo, são sempre
tristes. Talvez porque sejam tão inexoravelmente idênticas umas às outras.
Talvez porque se saiba que aquela fruta não tem gosto nenhum. Mas talvez
simplesmente porque se trata de comida, isto é, de algo que aqui é triste.
E no entanto os ingleses são obcecados pela ideia de comida.
Percorrendo as estradinhas de campo mais remotas e desertas, à beira de um
bosque denso e selvagem ou às margens de uma encosta brenhosa e
desolada, se encontra uma placa com a inscrição “teas, luncheons, snacks”.
Olhamos ao redor, nos perguntando como e quem poderia manter uma
promessa tão convidativa. Não se vê alma viva. Mas eis que, poucos passos
adiante, nos espera um trailer onde efetivamente se pode pedir um chá, o
habitual coffee açucarado e morno, e sanduíches de presunto. Ao lado do
caixa há até um grande globo de vidro em que borbulha a laranjada, na qual
puseram, boiando, talvez para dar uma ideia mais vívida de frescor, duas ou
três laranjas de borracha.
Às vezes, em vez do trailer, topa-se em plena zona rural com uma casinha
listrada, onde se lê “farm” e a habitual promessa de “snacks”. Entramos
pensando que ali comeremos pratos rústicos e insólitos. A “farm” está
apinhada de londrinos de passagem, que comem, às quatro da tarde,
bacalhau com batatas fritas. Há o mesmo globo de laranjada e os copos de
papelão do leite Fresko (“Fresko is delicious!”) alinhados ao lado do caixa.
Os “snacks” são sanduíches. Os da “farm” são feitos com o mesmo pão
embrulhado em pacotes de papel quadriculado, já cortado em fatias e só
miolo, que se vende em qualquer Lyon’s ou drogaria inglesa. Em torno dali
se espalham os belos campos verdes, farfalhantes e úmidos, selvagens e ao
mesmo tempo mansos como nenhum outro do mundo, silenciosos,
intragáveis e inodoros. Não se sente nenhum cheiro de estrume, de bicho,
de terra arada ou de feno; não se ouve nenhum dos barulhos a que estamos
acostumados no campo, o rolar dos carros ou a pisada dos cavalos. Vacas
inodoras e limpas pastam num curral. Ninguém toma conta delas, não se
veem vaqueiros, cachorros ou camponeses. Às vezes, em pleno campo,
podemos encontrar um pub suntuosamente decorado por dentro, com
veludos vermelhos e molduras douradas. Um pub idêntico aos do centro de
Londres, em nada diferente. No canto há uma pequena lareira onde arde um
falso carvão ou uma tora falsa de madeira: falsos, mas de boa imitação. A
cerveja é bebida em copos esmerilhados, grandes e pesados. Trazem a
cerveja das cantinas em baldes de lata ou de zinco, que fatalmente fazem
pensar em água suja. De resto, em Londres também se vê o mesmo. Por que
não usar outro recipiente? Não há nenhuma explicação. Os ingleses são
insensíveis a certas associações de ideias. Além disso, esses baldes talvez
sejam o sinal do profundo desprezo e do ódio secreto que os ingleses
sentem por qualquer bebida ou comida. Parece-me até que certas palavras
usadas para indicar comidas ou bebidas têm um som injurioso, revelando
ódio e desprezo: “Snackssquash-poultry”. Palavras como essas não parecem
insultos? Mas significam apenas sanduíches, laranjada, aves.
Pensando bem, o ódio dos ingleses pela comida talvez seja a única
origem daquela obscura tristeza que pesa em cada local onde se vende ou
comercializa alimento. Um bar ou um restaurante que descuide
minimamente de um certo decoro burguês se parece de modo
impressionante com um refeitório de pobres. E à noite, em certas noites da
semana, até nas portas dos restaurantes mais sofisticados do centro ou
diante dos locais de encontro mais misteriosos e com os nomes mais
estranhos, até em frente à misteriosa Maison Volpé, se veem cinzentos
tonéis de lixo, enormes, transbordantes. Os tonéis de lixo não são alegres
em nenhum país do mundo. Mas acredito que em nenhum país do mundo
eles sejam tão grandes, cinzentos, visíveis e transbordantes, impregnados da
fumaça cinzenta do ar e carregados de uma desolada melancolia.
Ele e eu

Ele sempre tem calor; eu, sempre frio. No verão, quando realmente está
quente, só faz se lamentar do grande calor que sente. E se irrita quando me
vê vestindo um pulôver à noite.
Ele sabe falar bem algumas línguas; eu não falo bem nenhuma. Ele
consegue até falar, num modo todo seu, certas línguas que desconhece.
Ele tem um grande senso de orientação; eu, nenhum. Em cidades
estrangeiras, depois de um dia, ele se movimenta com a leveza de uma
borboleta. Eu me perco em minha própria cidade e preciso pedir
informações para voltar para casa. Ele odeia pedir informações; quando
andamos por cidades desconhecidas, de carro, se recusa a pedir indicações e
me manda olhar o mapa. Eu não sei decifrar os mapas, me confundo com
aquelas bolinhas vermelhas, e ele se irrita.
Ele adora teatro, pintura e música — especialmente a música. Eu não
entendo nada de música, me interesso bem pouco por pintura e me entedio
no teatro. Amo e compreendo uma só coisa no mundo, que é a poesia.
Ele ama os museus, e eu o acompanho com esforço, com uma
desagradável sensação de dever e de cansaço. Ele ama as bibliotecas, e eu
as odeio.
Ele ama as viagens, as cidades estrangeiras e desconhecidas, os
restaurantes. Eu ficaria sempre em casa, sem sair nunca.
No entanto o acompanho em muitas viagens. Vou aos museus, às igrejas,
à ópera. Vou até aos concertos, e durmo.
Como ele conhece muitos maestros e cantores, gosta de ir, após o
espetáculo, confraternizar com eles. Eu o sigo por intermináveis corredores
que conduzem aos camarins dos cantores e o escuto falando com pessoas
vestidas de cardeais e de reis.
Não é tímido; e eu sou tímida. Certas vezes, porém, o vi tímido. Com os
policiais, quando se aproximam do nosso carro armados de lápis e bloco.
Diante deles se torna tímido, sentindo-se em falta.
E mesmo não se sentindo em falta. Creio que nutra um respeito pela
autoridade constituída.
Eu tenho medo da autoridade constituída; ele, não. Ele sente respeito. É
diferente. Se vejo um policial se aproximando para nos multar, logo penso
que vai nos levar para a cadeia. Já ele não pensa na cadeia; mas, por
respeito, se torna tímido e gentil.
Por isso, por seu respeito diante da autoridade constituída, na época do
julgamento de Montesi* nós brigamos até o delírio.
Ele gosta de talharim, de cordeiro, de cerejas, de vinho tinto. Eu gosto de
minestrone, de açorda, de fritada, de verduras.
Ele costuma me dizer que eu não entendo nada em matéria de comida; e
que sou como certos frades robustos, que devoram sopa de legumes à
sombra de seus conventos; já ele, ele é um refinado, de paladar sensível.
Nos restaurantes, se informa demoradamente sobre os vinhos; manda trazer
duas ou três garrafas, as observa e reflete, cofiando a barba bem devagar.
Na Inglaterra há certos restaurantes em que o garçom cumpre este
pequeno cerimonial: serve ao cliente dois dedos de vinho na taça para que
ele diga se é de seu agrado. Ele odiava este pequeno cerimonial; e todas as
vezes impedia o garçom de cumpri-lo, tirando-lhe a garrafa das mãos. Eu o
desaprovava, observando que a cada um deve ser permitido levar a cabo
suas próprias atribuições.
Assim, no cinema, nunca deixa que a lanterninha o acompanhe até seu
lugar. Saca logo uma gorjeta, mas sempre foge para lugares diferentes
daqueles que a lanterninha lhe indica com a luz.
No cinema, faz questão de se sentar muito perto da tela. Quando vamos
com amigos e todos procuram, como a maior parte das pessoas, um lugar
afastado da tela, ele se refugia sozinho numa das primeiras filas. Eu vejo
bem, indiferentemente, de perto e de longe; mas, estando com amigos, fico
com eles, por gentileza; no entanto sofro, porque pode ser que ele, em seu
lugar a dois palmos da tela, fique aborrecido comigo porque não me sentei a
seu lado.
Nós dois adoramos cinema; e estamos sempre dispostos a assistir, em
qualquer momento do dia, a qualquer espécie de filme. Mas ele conhece a
história do cinema em cada mínimo detalhe; lembra-se de diretores e de
atores, inclusive dos mais antigos, há muito tempo desaparecidos e
esquecidos; e está pronto a andar quilômetros, nas mais remotas periferias,
em busca de filmes antiquíssimos, da era do mudo, onde quem sabe
aparecerá por poucos segundos um ator querido de suas mais longínquas
memórias de infância. Recordo, em Londres, a tarde de um domingo;
exibiam num subúrbio distante, nos limites da zona rural, um filme sobre a
Revolução Francesa, um filme dos anos 1930, que ele tinha visto quando
era menino, no qual aparecia por alguns instantes uma atriz famosa naquele
tempo. Saímos de carro à procura daquela rua perdida nas lonjuras; estava
chovendo, havia neblina, vagamos horas e horas por subúrbios todos iguais,
entre filas cinzentas de pequenas casas, calhas, lampiões e cancelas; sobre
os joelhos eu tinha um mapa aberto, que não conseguia decifrar, e ele se
irritava; por fim, encontramos o cinema e nos sentamos numa sala
completamente deserta. Mas, depois de quinze minutos, ele já queria ir
embora, logo após a breve aparição da atriz que ele adorava; eu, porém,
depois de tanta estrada, queria ver como o filme terminava. Não me lembro
se prevaleceu a vontade dele ou a minha; talvez a dele, e a gente tenha ido
embora depois de quinze minutos; até porque já estava escuro e, embora a
gente tivesse saído de casa no início da tarde, já era hora do jantar. No
entanto, ao lhe pedir que me contasse como a história acabava, não obtive
nenhuma resposta que me contentasse; porque — ele dizia — a história não
tinha importância nenhuma, a única coisa que contava eram aqueles poucos
instantes, o perfil, o gesto, os caracóis daquela atriz.
Nunca me lembro do nome dos atores; e, como não sou boa fisionomista,
às vezes tenho dificuldade de reconhecer até os mais famosos. Isso o irrita
muitíssimo; pergunto-lhe quem é sicrano ou beltrano, suscitando seu
desdém; “não vá me dizer”, diz, “não vá me dizer que não reconheceu
William Holden!”.
E de fato eu não tinha reconhecido William Holden. Apesar disso,
também amo o cinema; mas, mesmo assistindo a filmes há tantos anos, eu
não soube formar uma cultura cinematográfica. Ele, ao contrário, formou
essa cultura: formou uma cultura sobre tudo o que atrai sua curiosidade; e
eu não soube formar uma cultura sobre coisa nenhuma, nem sobre as coisas
que mais amei na vida: elas ficaram em mim como imagens esparsas,
alimentando minha vida de memórias e de emoções, mas sem preencher o
vazio, o deserto de minha cultura.
Ele me diz que me falta curiosidade: mas não é verdade. Sinto
curiosidade por poucas, pouquíssimas coisas; e, depois de conhecê-las,
conservo delas algumas imagens esparsas, a cadência de uma frase ou de
uma palavra. Mas meu universo, onde tais cadências e imagens afloram
isoladas umas das outras sem estar ligadas por nenhuma trama senão
secreta, a mim mesma desconhecida e invisível, é árido e melancólico. Já o
universo dele é exuberantemente verde, exuberantemente povoado e
cultivado, um campo fértil e irrigado onde surgem bosques, pastos, hortos e
vilarejos.
Para mim, qualquer atividade é sumamente difícil, árdua, incerta. Sou
muito preguiçosa e tenho uma absoluta necessidade de não fazer nada,
sobretudo se quero concluir alguma coisa, e ficar deitada por longas horas
nos sofás. Ele nunca está ocioso, sempre faz alguma coisa; escreve à
máquina com extrema rapidez, com o rádio ligado; quando vai descansar de
tarde, leva provas de livro para corrigir ou um volume cheio de notas; no
mesmo dia, quer que a gente vá ao cinema, depois a uma recepção, depois
ao teatro. No mesmo dia, consegue fazer — e me convencer a fazer — um
mundo de coisas diferentes, encontrando as pessoas mais disparatadas;
quanto a mim, se estou sozinha e tento fazer que nem ele, não chego a lugar
nenhum, porque, ali onde pretendia ficar só meia hora, me vejo bloqueada
pelo resto da tarde, ou porque me perco e não acho as ruas certas, ou porque
a pessoa mais tediosa e que eu menos queria ver me arrasta ao lugar aonde
eu menos desejava ir.
Se conto a ele como foi minha tarde, ele a considera uma tarde perdida e
se diverte, debocha de mim e se irrita; e diz que eu, sem ele, não sirvo para
nada.
Eu não sei administrar o tempo. Ele sabe.
Adora as recepções. Vai vestido de terno claro, quando todos estão
vestidos de escuro; a ideia de mudar de roupa para ir a uma recepção nem
lhe passa pela cabeça. Vai inclusive com seu velho impermeável e com o
chapéu desbeiçado: um chapéu de lã que comprou em Londres e que usa
enterrado até os olhos. Fica ali somente meia hora, pois ele gosta de
conversar por meia hora com um copo na mão; come muitos salgadinhos, e
eu, quase nenhum, porque ao vê-lo comer tantos penso que, por educação e
decoro, pelo menos eu devo abster-me de comer; depois de meia hora,
quando começo a ambientar-me um pouco e a me sentir bem, ele fica
impaciente e me leva embora.
Eu não sei dançar, e ele sabe.
Não sei escrever à máquina; e ele sabe.
Não sei guiar automóvel. Se lhe proponho também tirar a habilitação, ele
não quer. Diz que eu nunca vou conseguir mesmo. Acho que ele gosta que
eu dependa dele, em tantos aspectos.
Não sei cantar, e ele sabe. É um barítono. Se tivesse estudado canto,
quem sabe teria se tornado um cantor famoso.
Se tivesse estudado música, talvez tivesse sido um grande maestro.
Quando ouve os discos, rege a orquestra com um lápis. Enquanto isso,
escreve à máquina e atende o telefone. É um homem que consegue fazer
muitas coisas ao mesmo tempo.
É professor, e creio que seja bom nisso.
Poderia ter seguido várias profissões. Mas não lamenta nenhuma das que
descartou. Eu só poderia fazer um ofício, um ofício apenas: o ofício que
escolhi, e que sigo, quase desde a infância. Também não lamento nenhuma
das profissões que não segui: de qualquer modo, eu não saberia fazer outra
coisa.
Escrevo histórias, e trabalhei muitos anos numa editora.
Não trabalhava mal, mas tampouco bem. Entretanto me dava conta de
que talvez não soubesse trabalhar em nenhum outro lugar. Tinha relações de
amizade com meus companheiros de trabalho e com meu patrão. Sentia
que, se não tivesse tido ao meu redor essas relações de amizade, teria me
apagado e não saberia mais trabalhar.
Cultivei por muito tempo a ideia de um dia poder trabalhar com roteiros
de cinema. Mas nunca tive a ocasião, ou não soube ir atrás dela. Agora já
perdi as esperanças de poder trabalhar com roteiros. Ele trabalhou com
roteiros certa época, quando era mais jovem. Trabalhou também numa
editora. Escreveu histórias. Ele fez todas as coisas que eu fiz, e mais muitas
outras.
Imita bem as pessoas, especialmente uma velha condessa. Talvez pudesse
ter sido até ator.
Uma vez, em Londres, cantou num teatro. Era Jó. Teve de alugar um
fraque; e estava lá, de fraque, diante de uma espécie de púlpito; e cantava.
Cantava as palavras de Jó; algo entre o recitativo e o canto. Eu, num
camarote, morria de medo. Tinha medo de que se engasgasse, ou que a
calça do fraque arriasse.
Estava cercado por homens de fraque e senhoras com vestidos de noite,
que eram os anjos e os diabos e as outras personagens de Jó.
Foi um grande sucesso, e lhe disseram que ele era muito bom.
Se eu gostasse de música, a teria amado com paixão. Porém não a
entendo; e nos concertos, quando ele às vezes me força a acompanhá-lo, me
distraio e fico pensando em minhas coisas. Ou então caio num profundo
sono.
Gosto de cantar. Não sei cantar, sou desafinadíssima; mas canto de vez
em quando, bem baixinho, nos momentos em que estou sozinha. Sei que
sou muito desafinada porque todos me dizem; minha voz deve ser como o
miado de um gato. Mas eu, por mim, não percebo nada; e sinto, ao cantar,
um profundo prazer. Se ele me ouve, começa a me arremedar; diz que meu
canto é algo que está fora da música; algo inventado por mim.
Quando era menina, murmurava certas melodias que eu mesma
inventava. Era uma longa melopeia lamentosa, que me enchia os olhos de
lágrimas.
Não me importo se não entendo a pintura, as artes figurativas; mas sofro
por não amar a música, porque me parece que meu espírito sofre com a
privação desse amor. Mas não há nada a fazer; nunca vou entender a
música, nem vou amá-la. Se às vezes escuto uma música que me agrada,
não consigo recordá-la; e como poderia amar uma coisa que não sei
recordar?
De uma canção, lembro das palavras. Posso repetir ao infinito as palavras
que amo. Repito também o motivo que as acompanha, mas a meu modo,
com os meus miados; e experimento, miando assim, uma espécie de
felicidade.
Tenho a impressão de seguir, quando escrevo, uma cadência e um metro
musical. Talvez a música estivesse muito próxima do meu universo; e meu
universo, sabe-se lá por que, não a acolheu.
Todo dia se ouve música em nossa casa. Ele deixa o rádio ligado o dia
inteiro. Ou põe discos. De vez em quando eu protesto, peço um pouco de
silêncio para poder trabalhar; mas ele diz que uma música tão bela é
certamente salutar para qualquer trabalho.
Comprou um número incrível de discos. Possui — diz ele — uma das
discotecas mais belas do mundo.
De manhã, metido num roupão e ainda gotejante da água do banho, liga o
rádio, se senta diante da máquina de escrever e começa sua laboriosa,
tempestuosa e rumorosa jornada. É excessivo em tudo: enche a banheira até
que ela transborde; enche a chaleira e a xícara até fazê-las derramar. Tem
um número enorme de camisas e gravatas. Mas raramente compra sapatos.
Desde menino, segundo a mãe, era um modelo de ordem e precisão; e
parece que certa vez em que teve de atravessar riachos cheios de lama, num
dia de chuva no campo, com botinhas brancas e roupa branca, no final do
passeio estava imaculado, sem uma mancha de lama na roupa ou nas botas.
Agora não há mais nada nele do antigo, imaculado menino. Suas roupas
estão sempre cheias de manchas. Tornou-se o rei da desordem.
Conserva, porém, minuciosamente, todas as contas de gás. Nas gavetas
encontro antigas contas de gás ou recibos de hotéis deixados há tempos, que
ele se recusa a jogar fora.
Também encontro charutos toscanos, velhíssimos e ressecados, e
boquilhas de cerejeira.
Eu fumo cigarros Stop, longos, sem filtro. Ele, às vezes, os charutos
toscanos.
Eu sou muito desordenada. Mas ao envelhecer me tornei saudosa da
ordem, e por isso às vezes reordeno os armários com grande zelo. Uma
lembrança, creio, de minha mãe. Reorganizo os armários dos lençóis, dos
cobertores, e forro cada gaveta, no verão, com panos cândidos. Raramente
organizo meus papéis, porque minha mãe, não tendo o costume de escrever,
não tinha papéis. Minha ordem e minha desordem são cheias de remorso, de
pesar, de sentimentos complexos. A desordem dele é triunfante. Decidiu
que, para uma pessoa como ele, que estuda, ter a mesa em desordem é
legítimo e justo.
Ele não melhora, em mim, a indecisão, a incerteza em cada ação, o
sentimento de culpa. Costuma rir e caçoar de mim por qualquer coisa que
eu faça. Se vou às compras no mercado, ele às vezes me segue, escondido, e
me espia. Depois debocha de mim pelo modo como fiz as compras, como
sopesei as laranjas na mão, escolhendo cuidadosamente, ele diz, as piores
de todo o mercado, zomba porque demorei uma hora nas compras, comprei
as cebolas numa banca, em outra o aipo, em outra as frutas. Às vezes é ele
quem faz as compras, para me mostrar como se pode fazê-las muito mais
rápido: compra tudo numa única banca, sem nenhum titubeio; e consegue
que mandem o cesto para casa. Não compra aipo, porque não o suporta.
Assim, e cada vez mais, tenho a sensação de errar em cada coisa que
faço. Mas, se alguma vez descubro que foi ele quem errou, repito isso até a
exasperação. Porque às vezes sou chatíssima.
Suas raivas são repentinas, transbordam feito espuma de chope. Minhas
raivas também são repentinas. Mas as dele evaporam logo; já as minhas
deixam um rastro lamentoso e insistente, acho que muito enfadonho, uma
espécie de miado amargo.
Às vezes choro durante o turbilhão de suas fúrias; e meu choro, em vez
de compadecê-lo e aplacá-lo, deixa-o ainda mais furioso. Diz que meu
choro é somente uma comédia; e talvez seja verdade. Porque, em meio às
minhas lágrimas e à sua fúria, me mantenho plenamente tranquila.
Sobre minhas dores reais, não choro nunca.
Antigamente, em meus acessos de fúria, costumava atirar pratos e louças
no chão. Mas agora, não. Talvez porque eu tenha envelhecido e minhas
crises de raiva sejam menos violentas; além disso, não teria coragem de
tocar em nossos pratos, aos quais me afeiçoei e que um dia compramos em
Londres, na Portobello Road.
O preço desses pratos e de muitas outras coisas que compramos sofreu,
na memória dele, uma forte desvalorização. Porque ele gosta de pensar que
gastou pouco, que fez um bom negócio. Eu sei o preço daquele aparelho de
jantar, que custou dezesseis libras esterlinas; mas ele diz que foram doze. O
mesmo com o quadro do rei Lear que está em nossa sala de jantar: um
quadro que ele também comprou na Portobello, e que limpou com cebolas e
batatas; e agora diz ter pagado por ele uma cifra bem menor daquela que me
lembro.
Anos atrás, comprou doze tapetes de cama no Standard. Comprou porque
estavam baratos, e ele achou bom fazer um estoque; comprou para criar
polêmica, por pensar que eu não sei comprar nada para a casa. Esses
tapetinhos de esteira de vime cor de vinho se tornaram em pouco tempo
repulsivos: ficaram de uma rigidez cadavérica; e eu os odiava, ali,
pendurados no arame da área da cozinha. Eu costumava jogá-los na cara
dele, como exemplo de má despesa; mas ele dizia que tinham custado
pouco, pouquíssimo, quase nada. Foi preciso um bom tempo antes de
conseguir jogá-los no lixo: porque eram realmente muitos, e também
porque, no momento de jogá-los fora, fiquei em dúvida se não poderiam
servir de trapo. Temos, eu e ele, certa dificuldade em jogar as coisas fora:
em mim, deve ser uma forma judaica de preservação, e também fruto de
minha grande incerteza; nele, deve ser uma defesa à sua falta de parcimônia
e sua impulsividade.
Ele costuma comprar, em grande quantidade, bicarbonato e aspirina.
Às vezes adoece de seus misteriosos achaques; não sabe explicar o que
sente; fica na cama por um dia, todo enrolado nos lençóis; só se vê sua
barba, e a ponta do nariz vermelho. Então ele toma bicarbonato e aspirina
em doses cavalares; e diz que eu não posso entendê-lo, porque eu, eu estou
sempre bem, sou como aqueles fradalhões robustos, que se expõem sem
perigo ao vento e às intempéries; ele, ao contrário, é fino e delicado, sofre
de doenças misteriosas. À noite já está curado, e vai à cozinha fazer
talharim.
Quando jovem, era bonito, magro, esbelto, ainda não usava barba, mas
bigodes longos e macios; e se parecia com o ator Robert Donat. Era assim
quase vinte anos atrás, quando o conheci; e vestia, lembro bem, camisas
escocesas de flanela, elegantes. Lembro que certa noite me acompanhou até
a pensão onde eu morava; caminhamos juntos pela via Nazionale. Eu já me
sentia muito velha, carregada de experiência e de erros; e ele me parecia um
rapaz, mil séculos longe de mim. O que nos dissemos naquela noite, na via
Nazionale, não consigo lembrar; nada de importante, suponho; a ideia de
que um dia nos tornaríamos marido e mulher estava séculos distante de
mim. Depois nos perdemos de vista; e, quando nos encontramos de novo,
não se parecia mais com Robert Donat, e sim com Balzac. Quando nos
encontramos de novo, ainda usava aquelas camisas escocesas; mas agora
elas pareciam, nele, indumentos para uma expedição polar; agora usava
barba e, na cabeça, o desbeiçado chapeuzinho de lã; e tudo nele fazia pensar
numa partida iminente para o polo Norte. Porque, mesmo sempre sentindo
calor, ele costuma vestir-se como se estivesse cercado de neve, de gelo e de
ursos-brancos; ou então se veste como um plantador de café no Brasil; mas
sempre se veste diferente de toda a gente.
Se lhe recordo aquele nosso antigo passeio pela via Nazionale, ele diz
que se lembra, mas eu sei que está mentindo e não se lembra de nada; às
vezes me pergunto se éramos nós, aquelas duas pessoas, quase vinte anos
atrás pela via Nazionale; duas pessoas que conversaram tão gentilmente,
civilizadamente, no sol que se punha; que talvez tenham falado um pouco
de tudo, e de nada; dois amáveis conversadores, dois jovens intelectuais a
passeio; tão jovens, tão educados, tão distraídos, tão dispostos a fazer um do
outro um juízo distraidamente benévolo; tão dispostos a despedir-se um do
outro para sempre, naquele pôr do sol, naquela esquina de rua.

* Em 1953, a jovem Wilma Montesi foi encontrada morta em uma praia italiana. Com graves
implicações políticas, o caso nunca foi solucionado.
SEGUNDA PARTE
O filho do homem

Houve a guerra e vimos desmoronar muitas casas e agora não nos


sentimos mais seguros em casa como antes, quando estávamos quietos e
seguros. Há algo de que não se cura, e os anos vão passando, mas não nos
curamos nunca. Quem sabe teremos de novo uma luminária sobre a mesa e
um vaso de flores e os retratos dos nossos queridos, mas não acreditamos
mais em nenhuma dessas coisas, porque antes tivemos de abandoná-las de
repente ou as procuramos em vão entre os escombros.
É inútil acreditar que podemos sair curados de vinte anos como aqueles
que passamos. Os que foram perseguidos nunca mais reencontrarão a paz.
Um toque insistente de campainha à noite não pode significar outra coisa
para nós que não a palavra “delegacia”. E é inútil dizer e repetir a nós
mesmos que por trás da palavra “delegacia” agora talvez haja rostos
amigáveis, a quem poderíamos pedir proteção e assistência. Em nós essa
palavra sempre provoca desconfiança e assombro. Se observo meus
meninos dormindo, penso com alívio que não precisarei acordá-los no meio
da noite para fugir. Mas não é um alívio pleno e profundo. Sempre acho que
mais cedo ou mais tarde precisaremos nos levantar de novo na noite e
escapar e deixar tudo para trás, quartos quietos e cartas e lembranças e
roupas.
Uma vez sofrida, jamais se esquece a experiência do mal. Quem viu as
casas desabando sabe muito bem quanto são precários os vasos de flor, os
quadros, as paredes brancas. Sabe muito bem de que é feita uma casa. Uma
casa é feita de tijolos e argamassa, e pode desabar. Uma casa não é tão
sólida. Pode desabar de um momento para outro. Atrás dos serenos vasos de
flor, atrás das chaleiras, dos tapetes, dos pavimentos lustrosos de cera há o
outro vulto verdadeiro da casa, o vulto atroz da casa caída.
Não nos curaremos nunca desta guerra. É inútil. Jamais seremos gente
tranquila, gente que pensa e estuda e modela sua vida em paz. Vejam o que
aconteceu com nossas casas. Vejam o que aconteceu com a gente. Nunca
vamos ser gente sossegada.
Conhecemos a realidade em sua face mais terrível. Mas já nem sentimos
mais desgosto. Ainda há alguns que se queixam de que os escritores se
servem de uma linguagem amarga e violenta, que contam coisas duras e
tristes, que apresentam a realidade em seus termos mais desolados.
Nós não podemos mentir nos livros, nem podemos mentir em nenhuma
das coisas que fazemos. E talvez este seja o único bem que nos veio da
guerra. Não mentir e não tolerar que os outros mintam a nós. Assim somos,
os jovens de agora, assim é a nossa geração. Os mais velhos ainda são
muito apegados à mentira, aos véus e às máscaras que recobrem a realidade.
Nossa linguagem os entristece e ofende. Não entendem nossa atitude diante
da realidade. Nós estamos perto da substância das coisas. Esse é o único
bem que a guerra nos deu, mas só nos deu a nós, jovens. Aos outros, mais
velhos que nós, a guerra só trouxe insegurança e medo. E também nós, os
jovens, temos medo, também nós nos sentimos inseguros em nossas casas,
mas não estamos indefesos diante desse medo. Temos uma dureza e uma
força que os outros, antes de nós, jamais conheceram.
Para alguns a guerra só começou com a guerra, com as casas
desmoronadas e os alemães, mas para outros ela começou antes, desde os
primeiros anos do fascismo, e por isso a sensação de insegurança e de
permanente perigo é ainda maior. O perigo, a sensação de precisar se
esconder, a sensação de precisar deixar de repente o calor da cama e das
casas, começou, para tantos de nós, há muitos anos. Insinuou-se nas
diversões juvenis, nos acompanhou nos bancos de escola e nos ensinou a
ver inimigos em todo lado. Assim foi para muitos de nós, na Itália e em
outros lugares, e se acreditava que um dia poderíamos caminhar em paz
pelas ruas de nossas cidades; mas hoje, quando talvez possamos caminhar
em paz, hoje nos damos conta de que não nos curamos daquele mal. Assim
somos constrangidos a buscar sempre novas forças, sempre uma nova
dureza para contrapor a qualquer realidade. Somos impelidos a buscar uma
serenidade interior que não nasce dos tapetes e dos vasos de flor.
Não há paz para o filho do homem. As raposas e os lobos têm seus covis,
mas o filho do homem não tem onde pousar a cabeça. Nossa geração é uma
geração de homens. Não é uma geração de raposas e de lobos. Cada um de
nós teria grande vontade de pousar a cabeça em algum lugar, cada um
gostaria de ter uma pequena toca enxuta e aquecida. Mas não há paz para os
filhos dos homens. Cada um de nós uma vez na vida se iludiu achando que
podia dormir sobre qualquer coisa, apossar-se de uma certeza qualquer, de
uma fé qualquer, e então repousar o corpo. Mas todas as certezas de antes
nos foram arrancadas, e a fé jamais será algo em que enfim se possa
mergulhar no sono.
E agora somos gente sem lágrimas. O que comovia nossos pais já não
nos comove nada. Nossos pais e as pessoas mais velhas que nos reprovam
pelo modo como criamos os meninos. Queriam que mentíssemos aos nossos
filhos como eles mentiam a nós. Queriam que nossas crianças se
divertissem com bonecos de pelúcia em graciosos cômodos pintados de
rosa, com arvorezinhas e coelhos estampados nas paredes. Queriam que
cercássemos de véus e de mentiras a infância deles, que lhes ocultássemos
cuidadosamente a realidade em sua verdadeira substância. Mas nós não
podemos fazer isso. Não podemos fazer isso com crianças que acordamos
no meio da noite e vestimos ansiosamente no escuro, para fugir ou nos
esconder ou porque a sirene de alarme rasgava o céu. Não podemos fazer
isso com crianças que viram o assombro e o horror em nossa cara. Não
podemos começar a contar a essas crianças que elas foram trazidas pela
cegonha, ou lhes dizer que os mortos partiram numa longa viagem.
Há um abismo intransponível entre nós e as gerações anteriores. Os
perigos que eles corriam eram irrisórios, e suas casas só desmoronavam
muito raramente. Terremotos e incêndios não eram fenômenos que se
verificassem com frequência e para todos. As mulheres tricotavam malhas,
ordenavam o almoço à cozinheira e recebiam as amigas em casas que não
desabavam. Cada qual meditava e estudava e esperava organizar sua vida
em paz. Era um outro tempo, e talvez se vivesse bem. Mas nós estamos
atados a esta nossa angústia e, no fundo, satisfeitos com nosso destino de
homens.
O meu ofício

O meu ofício é escrever, e sei bem disso há muito tempo. Espero não ser
mal-entendida: não sei nada sobre o valor daquilo que posso escrever. Sei
que escrever é o meu ofício. Quando me ponho a escrever, sinto-me
extraordinariamente à vontade e me movo num elemento que tenho a
impressão de conhecer extraordinariamente bem: utilizo instrumentos que
me são conhecidos e familiares e os sinto bem firmes em minhas mãos. Se
faço qualquer outra coisa, se estudo uma língua estrangeira, se tento
aprender história ou geografia ou estenografia ou se tento falar em público
ou tricotar uma malha ou viajar, sofro e me pergunto continuamente como é
que os outros conseguem fazer essas coisas, e sempre acho que deve haver
um modo certo de fazer essas mesmas coisas, um modo que os outros
conhecem e que eu desconheço. E tenho a impressão de ser cega e surda e
sinto como uma náusea dentro de mim. Já quando escrevo nunca penso que
talvez haja um modo mais correto, do qual os outros escritores se servem.
Não me importa nada o modo dos outros escritores. O fato é que só sei
escrever histórias. Se tento escrever um ensaio de crítica ou um artigo sob
encomenda para um jornal, a coisa sai bem ruim. O que escrevo nesses
casos, tenho de ir buscar penosamente fora de mim. Posso fazê-lo um pouco
melhor do que estudar uma língua estrangeira ou falar em público, mas só
um pouco melhor. E sempre tenho a sensação de enganar o próximo com
palavras tomadas de empréstimo ou furtadas aqui e ali. E sofro e me sinto
em exílio. Entretanto, quando escrevo histórias, sou como alguém que está
em seu país, nas ruas que conhece desde a infância, entre as árvores e os
muros que são seus. O meu ofício é escrever histórias, coisas inventadas ou
coisas que recordo de minha vida, mas sempre histórias, coisas que não têm
a ver com a cultura, mas somente com a memória e a fantasia. Este é o meu
ofício, e eu o farei até a morte. Estou muito contente com este ofício e não o
trocaria por nada no mundo. Compreendi que era meu ofício muito tempo
atrás. Entre os cinco e os dez anos ainda tinha dúvidas e às vezes imaginava
que podia pintar, ou conquistar países a cavalo, ou inventar novas máquinas
muito importantes. Mas a partir dos dez anos eu soube, e empenhei-me
como pude em romances e poemas. Ainda tenho aqueles poemas. Os
primeiros são desajeitados e com versos errados, mas bastante divertidos:
no entanto, à medida que o tempo passava, fazia poemas cada vez menos
canhestros, mas sempre mais tediosos e idiotas. Mas não sabia disso e me
envergonhava dos poemas desajeitados, enquanto os não tão canhestros,
mas idiotas, me pareciam lindos, e eu sempre pensava que um dia ou outro
algum poeta famoso os descobriria e publicaria e escreveria longos artigos
sobre mim, chegava a imaginar palavras e frases daqueles artigos e os
escrevia dentro de mim por inteiro. Pensava que ganharia o prêmio
Fracchia. Tinha ouvido dizer que havia esse prêmio para os escritores. Não
podendo publicar meus poemas em livro, visto que na época não conhecia
nenhum poeta famoso, eu os copiava com capricho num caderno e
desenhava uma florzinha no frontispício e fazia um sumário e tudo mais.
Para mim, escrever poemas se tornara muito fácil. Criava quase um por dia.
Percebera que, se não tivesse vontade de escrever, bastava ler uns poemas
de Pascoli ou de Gozzano ou de Corazzini para logo recuperar a vontade.
Eles me vinham ou pascolianos, ou gozzanianos, ou corazzinianos, e por
último muito dannunzianos, quando descobri que ele também existia. Mas
nunca pensei que escreveria poemas por toda a vida, mais cedo ou mais
tarde eu queria escrever romances. Escrevi três ou quatro naqueles anos.
Havia um intitulado Marion ou a ciganinha e outro intitulado Molly e Dolly
(policial e cômico) e outro intitulado Uma mulher (dannunziano; em
segunda pessoa; história de uma mulher abandonada pelo marido: lembro
até que havia uma cozinheira negra) e depois um muito longo e complicado,
com histórias terríveis de garotas raptadas e de carroças, eu tinha até medo
de escrevê-lo quando estava sozinha em casa: não me lembro de nada,
lembro apenas que havia uma frase que me agradava muitíssimo e me
vieram lágrimas aos olhos quando a escrevi: “Ele disse: Ah, Isabella
parte!”. O capítulo terminava com esta frase, que era muito importante
porque quem a pronunciava era o homem que estava apaixonado por
Isabella, mas sem saber, pois ainda não tinha confessado a si mesmo. Não
lembro nada daquele homem, acho que tinha uma barba ruiva, enquanto
Isabella tinha longos cabelos negros com reflexos azulados, só sei isso: sei
que por muito tempo senti um arrepio de contentamento quando repetia
para mim: “Ah, Isabella parte!”. Também repetia frequentemente uma frase
que encontrara num romance de folhetim publicado na Stampa e que dizia
assim: “Assassino de Gilonne, onde você pôs o meu menino?”. Mas eu não
estava tão segura dos meus romances quanto dos poemas. Relendo-os,
sempre descobria neles um lado fraco, algo de errado, que arruinava tudo e
eu não conseguia modificar. Enquanto isso eu patinava sempre entre o
moderno e o antigo, não conseguia localizá-los bem no tempo: em parte
havia conventos e carroças e um ar de Revolução Francesa, e em parte
havia policiais com cassetetes; e de repente despontava uma pequena
burguesia cinzenta, com máquinas de costura e gatos, como nos livros de
Carola Prosperi, e isso ficava muito mal ao lado das carroças e dos
conventos. Eu vagueava entre Carola Prosperi, Victor Hugo e as histórias de
Nick Carter, sem saber muito bem o que queria fazer. Também adorava
Annie Vivanti. Há uma frase nos Divoratori, quando ela escreve ao
desconhecido e lhe diz: “Minha veste é escura”. Esta também é uma frase
que repeti muito tempo para mim. Durante o dia, murmurava estas frases
que me agradavam tanto: “Assassino de Gilonne”, “Isabella parte”, “minha
veste é escura”, e me sentia imensamente feliz.
Escrever poemas era fácil. Meus poemas me agradavam muito, me
pareciam quase perfeitos. Não entendia qual a diferença entre eles e os
poemas verdadeiros, publicados, dos verdadeiros poetas. Não entendia por
que, quando os mostrava a meus irmãos, eles davam risinhos e me diziam
que seria melhor se eu estudasse grego. Pensava que meus irmãos talvez
não entendessem tanto de poesia. Enquanto isso, eu devia ir à escola e
estudar grego, latim, matemática, história, sofrendo muito e me sentindo
exilada. Passava dias inteiros escrevendo meus poemas e copiando-os nos
cadernos, sem fazer as lições, e por isso ajustava o despertador para as
cinco da manhã. O despertador tocava, mas eu não acordava. Acordava às
sete, quando não havia mais tempo de estudar e eu precisava me vestir para
ir à escola. Não me sentia bem, tinha sempre um medo enorme e um
sentimento de culpa e de desordem. Na escola, na hora do latim eu estudava
história, na hora de história, o grego, sempre assim, e não aprendia nada.
Por um bom tempo achei que valesse a pena, porque meus poemas eram
muito bonitos, mas a certa altura passei a duvidar de que fossem tão belos
assim, e comecei a me aborrecer ao escrevê-los, a buscar assuntos com
esforço, tinha a impressão de já ter esgotado todos os assuntos possíveis, de
já ter usado todas as palavras e rimas: esperança lembrança, pensamento
encantamento, vento argento, bonança esperança. Não encontrava mais
nada a dizer. Então começou um período péssimo para mim, e passava as
tardes a ciscar entre palavras que já não me davam nenhum prazer, com um
sentimento de culpa e vergonha em relação à escola; nunca me passava pela
cabeça a hipótese de ter errado de ofício, escrever era o que eu queria, mas
simplesmente não entendia por que de repente os dias para mim se tornaram
tão áridos e pobres de palavras.
A primeira coisa séria que escrevi foi um conto. Um conto curto, de
cinco ou seis páginas: saiu de mim como um milagre, numa noite, e quando
finalmente fui dormir estava exausta, atônita, estupefata. Tive a impressão
de que era uma coisa séria, a primeira que fiz: os poemas e os romances
com as garotas e as carroças de repente me pareciam muito distantes, numa
época desaparecida para sempre, criaturas ingênuas e ridículas de uma outra
era. Nesse novo conto havia personagens. Isabella e o homem da barba
ruiva não eram personagens: eu não sabia nada sobre eles além das frases e
das palavras de que me servira a seu respeito, e eles eram confiados ao
acaso e ao estro de minha vontade. As palavras e frases de que me servira
para eles foram pescadas assim, ao acaso: era como se eu tivesse um saco e
fosse tirando dele ora uma barba, ora uma cozinheira negra ou outra coisa
que se pudesse usar. Dessa vez, porém, não tinha sido um jogo. Dessa vez
inventara pessoas com nomes que eu mesma não poderia mudar: não
poderia modificar nada deles e sabia uma porção de detalhes sobre suas
vidas, sabia como tinha sido sua existência até o dia da narrativa, se bem
que eu não tivesse falado disso no conto, porque não tinha sido necessário.
E sabia tudo da casa e da ponte e da lua e do rio. Tinha dezessete anos de
idade e fora reprovada em latim, em grego e em matemática. Chorei muito
quando soube disso. Mas agora, que tinha escrito o tal conto, sentia menos
vergonha. Era verão, uma noite de verão. A janela estava aberta sobre o
jardim, e borboletas escuras voavam em torno da lâmpada. Tinha escrito
meu conto em papel quadriculado e me sentira feliz como jamais acontecera
em minha vida, repleta de pensamentos e de palavras. O homem se
chamava Maurizio e a mulher se chamava Anna e o menino se chamava
Villi e havia também a ponte e a lua e o rio. Essas coisas existiam em mim.
E o homem e a mulher não eram bons nem maus, mas cômicos e um tanto
miseráveis, e então me pareceu que era assim que sempre deveriam ser as
pessoas nos livros, cômicas e miseráveis, tudo junto. Achei aquele conto
bom, por onde quer que o analisasse: não havia nenhum erro, tudo
acontecia no tempo e no momento justo. Agora tinha a impressão de que
poderia escrever milhões de contos.
E de fato escrevi certo número deles, a intervalos de um ou dois meses,
alguns muito bonitos e outros não. Então descobri que nos cansamos
quando escrevemos uma coisa a sério. Se não nos cansamos, é um mau
sinal. Não se pode esperar escrever algo sério assim, na flauta, com um pé
nas costas, borboleteando leve por aí. Quando alguém escreve uma coisa
séria, mergulha dentro dela, se afunda até os olhos; e, se tem sentimentos
muito fortes, que lhe inquietam o coração, se é muito feliz ou muito infeliz
por alguma razão, digamos, mundana, que não tem nada a ver com aquilo
que está escrevendo, então, se o que escreve é válido e digno de vida,
qualquer outro sentimento se apaga nele. Ele não pode pretender conservar
intacta e fresca sua cara felicidade, ou sua cara infelicidade, tudo se
distancia e some e ele está só com a sua página, nenhuma felicidade ou
infelicidade pode subsistir nele se não estiver estritamente ligada a essa
página, não possui outra coisa nem pertence a ninguém e, se não for assim,
então é sinal de que sua página não vale nada.
Portanto escrevi contos breves por certo período, um período que durou
cerca de seis anos. Como eu tinha descoberto a existência de personagens,
parecia-me que ter um personagem bastava para fazer um conto. Assim eu
andava sempre à cata de personagens, olhava as pessoas no bonde e pelas
ruas e, quando topava com uma cara que me parecia adequada para figurar
em um conto, tecia em torno dela particularidades morais e uma pequena
história. Também buscava detalhes sobre a vestimenta e o aspecto das
pessoas, ou sobre os interiores das casas e outros lugares; se entrava num
aposento novo, me esforçava em descrevê-lo no pensamento e tentava achar
algum detalhe miúdo que combinasse bem num conto. Mantinha um
caderninho no qual escrevia certos detalhes que eu ia descobrindo ou
pequenas comparações ou episódios que me prometia inserir nos contos.
Por exemplo, escrevia assim no caderninho: “Ele saía do banheiro
arrastando atrás de si a faixa do roupão como uma longa cauda”; “Como
fede a latrina desta casa — lhe disse a menina. Quando vou ao banheiro,
não respiro nunca — acrescentou tristemente”; “Seus caracóis como cachos
de uva”; “Cobertas vermelhas e pretas sobre a cama desfeita”; “A face
pálida como uma batata descascada”. Porém descobri que dificilmente essas
frases me serviam quando escrevia um conto. O caderno se tornava uma
espécie de museu de frases, todas cristalizadas e embalsamadas, muito
dificilmente utilizáveis. Tentei infinitas vezes meter em algum conto as
cobertas vermelhas e pretas ou os caracóis como cachos de uva, e jamais
consegui. Portanto o caderninho não podia servir. Então compreendi que
não existe poupança neste meu ofício. Se alguém pensa “este detalhe é
bonito e não quero gastá-lo no conto que estou escrevendo agora, aqui já
tem muita coisa bonita, vou poupá-lo para outro conto que escreverei”,
então o detalhe se cristaliza dentro dele e perde toda serventia. Quando
alguém escreve um conto, deve pôr dentro dele o melhor que possuiu e que
viu, o melhor que recolheu da vida. E os detalhes se consomem e estragam
quando os levamos conosco sem usá-los por muito tempo. Não somente os
detalhes, mas tudo, todos os achados e todas as ideias. Na época em que
escrevia meus contos breves, com o gosto das personagens bem resolvidas e
dos detalhes minuciosos, naquela época vi certa vez passar pela rua um
carreto com um espelho em cima, um grande espelho de moldura dourada.
Nele se refletia o céu verde da tarde, e eu parei para olhá-lo enquanto
passava, com uma grande felicidade e a sensação de que algo de importante
estava acontecendo. Sentia-me muito feliz, inclusive antes de ver o espelho,
e de repente me pareceu que ali passava a imagem de minha própria
felicidade, o espelho verde e resplandecente em sua moldura dourada. Por
muito tempo pensei que colocaria isso em algum conto, por muito tempo
recordar o carreto com o espelho em cima me dava vontade de escrever.
Mas nunca pude inseri-lo em nenhum lugar, e a certa altura me dei conta de
que ele morrera em mim. E no entanto foi muito importante. Porque na
época em que eu escrevia meus contos curtos, sempre me detinha em
pessoas e coisas cinzentas e esquálidas, buscava uma realidade desprezível
e sem glória. Naquele gosto que eu tinha de vasculhar detalhes miúdos
havia certa malignidade de minha parte, um interesse ávido e mesquinho
pelas coisas pequenas, pequenas como pulgas, era uma obstinada e tagarela
procura por pulgas de minha parte. O espelho sobre o carreto pareceu abrir-
me possibilidades novas, talvez a faculdade de ver uma realidade mais
gloriosa e resplandecente, uma realidade mais feliz, que não demandava
meticulosas descrições e achados astutos, mas podia realizar-se numa
imagem resplandecente e feliz.
Naqueles contos breves que eu escrevia, havia personagens que no fundo
eu desprezava. Como tinha descoberto que era bom que uma personagem
fosse miserável e cômica, à força de comicidade e de comiseração fazia
delas indivíduos tão desprezíveis e carentes de glória que eu mesma não
conseguia amá-las. Aquelas minhas personagens tinham sempre tiques ou
manias ou uma deformidade física ou um vício meio grotesco; tinham um
braço quebrado e pendurado ao pescoço numa tipoia ou tinham terçol ou
eram gagas ou coçavam a bunda ao falar ou mancavam um pouco. Sempre
precisei caracterizá-las de alguma maneira. Para mim era um meio de
escapar ao temor de que resultassem incertas, de captar uma humanidade da
qual inconscientemente eu duvidava. Porque na época eu não entendia —
mas no período do espelho sobre o carreto eu começava confusamente a
entender — que não se tratava mais de personagens, mas de fantoches,
muito bem pintados e semelhantes a homens de verdade, mas fantoches. Ao
inventá-los, logo os caracterizava, marcava-os com um particular grotesco,
e nisso havia certa maldade, havia em mim, então, como um ressentimento
maligno diante da realidade. Não era um ressentimento fundado em alguma
coisa vivida, porque na época eu era uma jovem feliz, mas nascia como
reação à ingenuidade, se tratava daquele específico ressentimento que é a
defesa da pessoa ingênua, sempre levada a crer que está sendo zombada, do
camponês que chegou há pouco à cidade e vê ladrões por todo lado. A
princípio eu me orgulhava disso, porque me parecia um grande triunfo da
ironia contra a ingenuidade e contra aqueles abandonos patéticos da
adolescência que se notavam em tantos de meus poemas. A ironia e a
maldade me pareciam armas muito importantes ao meu alcance; achava que
me seriam úteis para escrever como um homem, tinha horror que
percebessem que eu era uma mulher pelas coisas que escrevia. Fazia quase
sempre personagens masculinas, para que fossem o mais possível distantes
e separadas de mim.
Eu me tornara bastante hábil em esquadrinhar um conto, em varrer dele
todas as coisas inúteis, em decantar os detalhes e as falas no momento certo.
Escrevia contos secos e lúcidos, bem conduzidos do início ao fim, sem
desarranjos, sem erros de tom. Mas ocorreu que a certa altura eu me vi
cansada. Os rostos das pessoas nas ruas não me diziam mais nada de
interessante. Uns tinham terçol, outros tinham um chapéu torto para trás e
outros tinham uma echarpe em lugar da camisa, mas nada disso me
importava mais. Estava cansada de olhar as coisas e as pessoas e de
descrevê-las no pensamento. O mundo se calava para mim. Eu não
encontrava mais palavras para descrevê-lo, não tinha mais palavras que me
dessem aquele prazer. Não possuía mais nada. Tentava me lembrar do
espelho, mas ele também estava morto em mim. Levava cá dentro um fardo
de coisas embalsamadas, faces mudas e palavras de cinza, países e vozes e
gestos que não vibravam, que pesavam mortos em meu peito. E depois
nasceram meus filhos e, de início, quando eles eram muito pequenos, eu
não conseguia entender como era possível escrever tendo filhos. Não
entendia como seria possível me separar deles para seguir um fulano em um
conto. Comecei a desprezar meu ofício. Às vezes sentia uma desesperada
saudade dele, me sentia em exílio, mas me esforçava em desprezá-lo e
denegri-lo para cuidar apenas dos meninos. Achava que devia agir assim.
Passei a preocupar-me com a papa de arroz e a papa de cevada, se havia sol
ou se não havia sol, se ventava ou não quando ia levar os meninos para
passear. As crianças me pareciam algo muito importante para que eu me
desviasse atrás de estúpidas histórias e de estúpidas personagens
embalsamadas. Mas sentia uma feroz nostalgia e às vezes, à noite, quase
chorava ao lembrar como meu ofício era belo. Pensava que algum dia mais
cedo ou mais tarde o recuperaria, mas não sabia quando: achava que deveria
esperar que meus filhos se tornassem adultos e fossem embora de mim.
Porque o que eu sentia por meus filhos naquela época era uma coisa que eu
ainda não tinha aprendido a dominar. Mas depois, pouco a pouco, aprendi.
Nem precisei de muito tempo. Ainda preparava o molho de tomate e a
semolina, mas ao mesmo tempo pensava em coisas para escrever. Na época
estávamos numa cidadezinha muito bonita do sul. Fazia-me lembrar das
ruas e colinas de minha cidade, e aquelas ruas e colinas se uniam às ruas e
colinas e campos do povoado onde estávamos agora, e disso nascia uma
natureza nova, algo que eu podia amar de novo. Tinha saudades de minha
cidade e amava-a muito na lembrança, amava-a e entendia seu sentido
como talvez nunca acontecera quando morava nela, e também amava a
cidade onde estávamos agora, um povoado branco e cheio de pó no sol do
sul, largos campos de relva híspida e seca se estendiam sob minhas janelas,
e no meu coração soprava forte a lembrança das alamedas de minha cidade,
dos plátanos e das casas altas, e tudo isso pegava fogo alegremente dentro
de mim, e eu tinha muita, muita vontade de escrever. Escrevi um conto
longo, o mais longo que já tinha escrito. Recomeçava a escrever como
alguém que nunca havia escrito, porque fazia muito tempo que não
escrevia, e as palavras estavam como que lavadas e frescas, tudo estava de
novo como que intacto e cheio de sabor e de cheiros. Escrevia à tarde,
quando meus meninos iam passear com uma garota do povoado, escrevia
com avidez e alegria, e era um outono belíssimo e todo dia eu me sentia
muito feliz. No conto inseri um tanto de gente inventada e um tanto de
gente verdadeira, dali da cidade; e também me ocorriam certas palavras que
sempre diziam lá, e que antes eu desconhecia, certas imprecações e modos
de dizer: e essas novas palavras fermentavam e cresciam e davam vida a
todas as palavras velhas. A personagem principal era uma mulher, mas
muito diferente de mim. Agora já não desejava tanto escrever como um
homem, porque tinha tido meus meninos e tinha a sensação de saber muitas
coisas sobre o molho de tomate, e ainda que não as colocasse no conto,
sempre era bom que soubesse disso para meu ofício: de um modo
misterioso e remoto, isso também servia ao meu ofício. Parecia-me que as
mulheres sabiam sobre seus filhos coisas que um homem nunca poderá
saber. Escrevia meu conto muito depressa, como que com medo de que
escapasse de mim. Eu o chamava de romance, mas talvez não fosse um
romance. De resto, até então sempre me acontecera de escrever depressa, e
coisas bastante breves: e a certa altura, acho que até entendi por quê. Porque
tenho irmãos bem mais velhos que eu, e quando era pequena, se eu falasse
na mesa, sempre me mandavam ficar calada. Assim me habituei a dizer
sempre as coisas muito depressa, de um jato só e com o menor número
possível de palavras, sempre com medo de que os outros recomeçassem a
falar entre si e deixassem de me escutar. Pode parecer uma explicação meio
tola: no entanto, deve ter sido exatamente assim.
Já disse que então, quando escrevia o que eu chamava de romance, foi
uma época muito feliz para mim. Nunca havia acontecido nada de grave em
minha vida, eu desconhecia a doença, a traição, a solidão, a morte. Nada
nunca havia desmoronado em minha vida, somente coisas fúteis, nada que
me fosse caro ao coração me fora arrancado. Tinha sofrido apenas ociosas
melancolias da adolescência e a dificuldade de não saber como escrever.
Naquela época eu era feliz de um modo pleno e tranquilo, sem medo e sem
ânsia, e com uma total confiança na estabilidade e na consistência da
felicidade no mundo. Quando somos felizes, nos sentimos mais frios, mais
lúcidos e distanciados de nossa realidade. Quando somos felizes, tendemos
a criar personagens muito diferentes de nós, a vê-los na luz gélida das
coisas estranhas, afastamos os olhos de nossa alma feliz e saciada e os
fixamos sem caridade nos outros seres, sem caridade, com um julgamento
sardônico e cruel, irônico e arrogante, enquanto a fantasia e a energia
inventiva agem com força em nós. Conseguimos facilmente criar
personagens, muitas personagens, fundamentalmente diversas de nós, e
conseguimos criar histórias solidamente construídas e como que
desidratadas sob uma luz clara e fria. O que nos falta nesses casos, quando
somos felizes daquela específica felicidade sem lágrimas, sem ânsia e sem
medo, o que nos falta é uma relação íntima e terna com as nossas
personagens, com os lugares e as coisas que contamos. O que nos falta é
caridade. Aparentemente somos muito mais generosos, no sentido de que
sempre encontramos força para nos interessar pelos outros, para
prodigalizar aos outros os nossos cuidados, sem nos ocuparmos tanto de nós
mesmos, já que não precisamos de nada. Mas esse nosso interesse pelos
outros — tão carente de ternura — não percebe senão poucos aspectos
bastante exteriores dessas pessoas. O mundo tem uma só dimensão para
nós, nele não há segredos nem sombras, conseguimos adivinhar e criar a
dor que desconhecemos em virtude da força fantasiosa de que somos
animados, mas o vemos sempre sob aquela luz estéril e gélida das coisas
que não nos pertencem, que não têm raízes dentro de nós.
Nossa felicidade ou infelicidade pessoal, nossa condição terrestre, tem
uma grande importância em relação àquilo que escrevemos. Disse antes
que, no momento em que alguém escreve, é miraculosamente impelido a
ignorar as circunstâncias presentes da própria vida. Certamente é assim.
Mas ser feliz ou infeliz nos leva a escrever de maneiras distintas. Quando
somos felizes, nossa fantasia tem mais força; quando somos infelizes, então
é nossa memória que age com mais vivacidade. O sofrimento torna a
fantasia fraca e preguiçosa; ela se move, mas desinteressadamente e com
langor, com o movimento frágil dos doentes, com o cansaço e a cautela dos
membros doloridos e febris; é difícil afastarmos o olhar de nossa vida e de
nossa alma, da sede e da inquietude que nos invade. Nas coisas que
escrevemos afloram então contínuas lembranças do nosso passado, nossa
própria voz ressoa continuamente, e não conseguimos impor-lhe o silêncio.
Entre nós e as personagens que inventamos, que nossa fantasia lânguida
consegue apesar de tudo inventar, nasce uma relação peculiar, terna e quase
maternal, uma relação quente e umedecida de lágrimas, de uma intimidade
carnal e sufocante. Temos raízes profundas e dolorosas em cada ser e em
cada coisa do mundo, do mundo que se tornou repleto de ecos, de soluços e
de sombras, ao qual somos ligados por uma devota e apaixonada piedade.
Nosso risco então é naufragar num escuro lago de águas mortas e
estagnadas, arrastando conosco as criaturas do nosso pensamento,
deixando-as perecer conosco no abismo tépido e escuro, entre ratos mortos
e flores apodrecidas. Diante das coisas que escrevemos, há um perigo na
dor, assim como há um perigo na felicidade. Porque a beleza poética é uma
mistura de crueldade, de soberba, de ironia, de ternura carnal, de fantasia e
de memória, de clareza e de obscuridade e, se não conseguirmos obter todo
esse conjunto, nosso resultado será pobre, precário, escassamente vital.
E, vejam bem, não é que se possa esperar da escrita um consolo para a
tristeza. Não se pode cair na ilusão de embalar-se e confortar-se com o
próprio ofício. Em minha vida houve intermináveis domingos desolados e
desertos, em que eu desejava ardentemente escrever alguma coisa para me
consolar da solidão e do tédio, para ser acariciada e embalada por frases e
palavras. Mas não havia jeito de conseguir escrever uma linha sequer.
Nessas horas meu ofício sempre me repeliu, não quis saber de mim. Porque
este ofício nunca é um consolo ou uma distração. Não é uma companhia.
Este ofício é um senhor, um senhor capaz de chicotear-nos até sangrar, um
senhor que grita e condena. Devemos engolir a saliva e as lágrimas e
apertar os dentes e enxugar o sangue de nossas feridas e servi-lo. Servi-lo
quando ele ordena. Então é de grande ajuda estarmos de pé, mantermos os
pés bem firmes na terra, nos ajuda a vencer a loucura e o delírio, o
desespero e a febre. Mas quem quer comandar é ele, recusando-se sempre a
nos dar a mão quando dele necessitamos.
Tive a oportunidade de conhecer bem a dor depois daquele tempo em que
estive no sul, uma dor verdadeira, irremediável e intratável, que estraçalhou
toda minha vida, e quando tentei remendá-la de algum modo vi que eu e
minha vida tínhamos nos tornado algo irreconhecível. De imutável
permanecia apenas meu ofício, mas também seria profundamente falso
dizer que ele não mudou; os instrumentos eram ainda os mesmos, mas o
modo como eu os usava era outro. De início o detestava, sentia asco, mas eu
sabia que acabaria voltando a servi-lo, que ele ao final me salvaria. Assim
às vezes me ocorreu pensar que não fui tão desgraçada na vida, que sou
injusta quando acuso o destino e lhe nego toda benevolência quanto a mim,
porque ele me deu três filhos e meu ofício. De resto, não poderia nem
sequer imaginar minha vida sem este ofício. Ele sempre esteve ali, nunca
me deixou nem por um momento, e, mesmo quando eu pensava que
estivesse adormecido, seu olho vigilante e luminoso me velava.
Assim é meu ofício. Dinheiro, vejam, ele não rende muito; aliás, sempre
é preciso fazer simultaneamente algum outro trabalho para viver. Contudo,
às vezes ele rende um pouco, e ter dinheiro por sua própria virtude é uma
coisa muito boa, como receber dinheiro e presentes das mãos do ser amado.
Assim é meu ofício. Não sei muito — torno a dizer — sobre o valor dos
resultados que me deu e que ainda poderá dar: ou melhor, dos resultados já
obtidos conheço o valor relativo, certamente não o absoluto. Quando
escrevo algo, frequentemente penso que aquilo é muito importante e que eu
sou uma grande escritora. Acho que acontece com todos. Mas há um
cantinho de minha alma onde sempre sei muito bem o que sou, isto é, uma
pequena, pequena escritora. Juro que sei. Mas não me importa muito.
Simplesmente não quero pensar em nomes; percebi que, se me perguntarem
“um pequeno escritor como quem?”, fico triste ao pensar nos nomes de
outros pequenos escritores. Prefiro acreditar que ninguém nunca foi como
eu, por menor que tenha sido, por mais que eu seja um mosquito ou uma
pulga de escritora. O que é importante é ter a convicção de que se trata de
um autêntico ofício, uma profissão, uma coisa que será feita por toda a vida.
E, sendo um ofício, não é uma brincadeira. Há inumeráveis perigos além
dos que já citei. Somos continuamente ameaçados por graves perigos já no
ato de preencher nossa página. Há o perigo de começarmos a tentar seduzir
e a cantar de repente. Sempre tenho uma vontade louca de começar a cantar,
devo ficar muito atenta para não fazer isso. E há o perigo de ludibriar com
palavras que de fato não existem em nós, que pescamos por acaso fora de
nós e que enfileiramos com destreza porque nos tornamos muito espertos.
Há o perigo de bancar o esperto e de enganar. Como veem, trata-se de um
ofício bastante complicado: mas é o melhor que há no mundo. Os dias e os
casos de nossas vidas, os dias e os casos da vida dos outros a que
assistimos, leituras e imagens e pensamentos e discursos, tudo isso o sacia e
cresce dentro de nós. É um ofício que também se nutre de coisas horríveis,
devora o melhor e o pior de nossas vidas, tanto nossos sentimentos ruins
quanto os sentimentos bons correm em seu sangue. Nutre-se e cresce em
nós.
Silêncio

Ouvi Pelléas et Mélisande. Não entendo nada de música. Apenas me


ocorreu comparar as palavras dos velhos libretos de ópera (“Pago com meu
sangue — o amor que depositei em ti”), palavras gordas, sangrentas,
pesadas, com as palavras de Pelléas et Mélisande (“J’ai froid — ta
chevelure”), palavras esquivas, aquáticas. Do cansaço, do desgosto por
palavras grandes e sangrentas, nasceram estas palavras aquáticas, frias,
esquivas.
Perguntei-me se não foi ela (Pelléas et Mélisande) o princípio do
silêncio.
Porque entre os vícios mais estranhos e mais graves de nossa época deve-
se mencionar o silêncio. Aqueles entre nós que, hoje, experimentaram
escrever um romance conhecem o mal-estar e a infelicidade que se instalam
quando chega o momento de fazer as personagens falarem entre si. Por
páginas e páginas nossas personagens trocam umas poucas observações
insignificantes, mas carregadas de uma desolada tristeza: “Está com frio?”,
“Não, não estou com frio”. “Quer um pouco de chá?”, “Não, obrigado.”
“Está cansado?”, “Não sei. Sim, talvez esteja um pouco cansado.” Nossas
personagens falam assim. Falam assim para enganar o silêncio. Falam
assim porque não sabem mais como falar. Pouco a pouco vão emergindo as
coisas mais importantes, as confissões mais terríveis: “Você o matou?”,
“Sim, matei”. Arrancadas dolorosamente ao silêncio, emergem as poucas e
estéreis palavras de nossa época, como sinais de náufragos, fogos acesos
entre colinas longínquas, frágeis e desesperados chamados que o espaço
engole.
Então, quando queremos que nossas personagens falem entre si, aí
medimos o profundo silêncio que se adensou pouco a pouco dentro de nós.
Começamos a nos calar desde jovens, à mesa, diante dos nossos pais, que
ainda nos falavam com aquelas velhas palavras sangrentas e pesadas.
Ficávamos calados. Ficávamos calados em protesto e por desdém.
Ficávamos calados para que nossos pais entendessem que suas palavras
gordas não nos serviam mais. Tínhamos outras guardadas no estoque.
Ficávamos calados e cheios de confiança em nossas novas palavras.
Gastaríamos essas novas palavras mais tarde, com gente que as entenderia.
Éramos ricos do nosso silêncio. Agora ele nos causa vergonha e desespero,
e conhecemos toda sua miséria. Nunca mais nos libertamos dele. Aquelas
grandes palavras velhas, que serviam aos nossos pais, são moeda fora de
circulação e ninguém as aceita. Quanto às novas palavras, percebemos que
não têm valor: com elas não se compra nada. Não servem para estabelecer
relações, são aquáticas, frias, infecundas. Não nos servem para escrever
livros, nem para manter ligada a nós uma pessoa querida, nem para salvar
um amigo.
Entre os vícios de nossa época, sabe-se que há o sentimento de culpa:
dele se fala e se escreve muito. Todos sofremos disso. Sentimo-nos dia a dia
mais envolvidos em um negócio sujo. Já se falou também do sentimento de
pânico: e também dele todos nós sofremos. O sentimento de pânico nasce
do sentimento de culpa. E quem se sente assustado e culpado se cala.
Do sentimento de culpa, do sentimento de pânico, do silêncio, cada um
tenta se curar a seu modo. Alguns se lançam em viagens. Na ânsia de
conhecer países novos e gente diversa há a esperança de deixar para trás os
próprios fantasmas turvos; há a secreta esperança de descobrir em algum
ponto da Terra a pessoa que poderá falar conosco. Alguns se embebedam
para esquecer os próprios fantasmas turvos e para poder falar. E depois há
todas as coisas feitas só para não ter de falar: uns passam as noites
dormindo numa sala de projeção, com a mulher ao lado, e assim não
precisam conversar; uns aprendem a jogar bridge; uns fazem amor, o que
também pode ser feito sem que se diga uma palavra. Frequentemente se diz
que essas coisas se fazem para passar o tempo: na verdade, as fazemos para
enganar o silêncio.
Existem duas espécies de silêncio: o silêncio com nós mesmos e o
silêncio com os outros. Ambas as formas nos fazem igualmente sofrer. O
silêncio com nós mesmos é dominado por uma violenta antipatia que nos
toma pelo nosso próprio ser, pelo desprezo à nossa própria alma, tão vil que
não merece que se lhe diga nada. É claro que é preciso romper esse silêncio
nosso se quisermos tentar romper o silêncio com os outros. É claro que não
temos nenhum direito de odiar nossa própria pessoa, nenhum direito de
calar nossos pensamentos à nossa alma.
O meio mais difundido para liberar-se do silêncio é fazer psicanálise.
Falar incessantemente de si a uma pessoa que escuta, que é paga para
escutar; pôr a nu as raízes do próprio silêncio: sim, isso talvez possa dar um
alívio momentâneo. Mas o silêncio é universal e profundo. O silêncio, o
reencontramos assim que saímos pela porta do consultório onde aquela
pessoa, paga para escutar, escutava. Imediatamente caímos nele de novo.
Então aquele alívio de uma hora nos parece superficial e banal. O silêncio
está sobre a Terra: que um só de nós se cure dele por uma hora não serve à
causa comum.
Quando nos submetemos à psicanálise, nos dizem que devemos parar de
odiar tão fortemente a nós mesmos. Porém, para nos liberarmos desse ódio,
para nos liberarmos do sentimento de culpa, do sentimento de pânico, do
silêncio, nos é sugerido viver segundo a natureza, nos abandonarmos ao
nosso instinto, seguir nosso puro prazer: fazer da vida uma pura escolha.
Mas fazer da vida uma pura escolha não é viver segundo a natureza, é viver
contra a natureza, porque não é dado ao homem escolher sempre; o homem
não escolheu a hora de seu nascimento, nem o próprio rosto, nem os
próprios pais, nem a própria infância: o homem não escolhe, no mais das
vezes, a hora de sua morte. O homem então só pode aceitar o próprio rosto,
assim como só pode aceitar o próprio destino: e a única escolha que lhe é
permitida é aquela entre o bem e o mal, entre o justo e o injusto, entre a
verdade e a mentira. As coisas que os analistas a quem nos submetemos nos
dizem não servem porque não levam em conta nossa responsabilidade
moral, a única coisa que nos é consentida na vida: aqueles de nós que fazem
análise sabem muito bem como aquela efêmera atmosfera de liberdade, que
se gozava vivendo segundo nosso puro prazer, era uma atmosfera rarefeita,
antinatural, decididamente irrespirável.
Frequentemente esse vício do silêncio que envenena nossa época é
expresso com um lugar-comum: “Perdeu-se o gosto da conversação”. É a
expressão fútil, mundana, de algo verdadeiro e trágico. Ao dizermos “o
gosto da conversação” nós não dizemos nada que nos ajude a viver: mas a
possibilidade de uma relação livre e normal entre os homens, isto sim, nos
falta, e nos falta a ponto de alguns de nós terem se matado pela consciência
desta privação. O silêncio ceifa suas vítimas todo dia. O silêncio é uma
doença mortal.
Jamais como hoje a sorte dos homens esteve tão estreitamente conectada,
umas às outras, de modo que o desastre de um é o desastre de todos. Então
se verifica este fato estranho: que os homens se encontram estreitamente
ligados uns ao destino dos outros, de modo que a queda de um arrasta
milhares de outros seres, e ao mesmo tempo todos estão sufocados pelo
silêncio, incapazes de trocar uma palavra em liberdade. Por isso — porque
o desastre de um é o desastre de todos — os meios que nos são oferecidos
para nos curarmos do silêncio se revelam insubsistentes. Sugerem-nos que
lancemos mão do egoísmo para nos defender do desespero. Mas o egoísmo
nunca resolveu nenhum desespero. Estamos habituados até demais a
chamar de doenças os vícios de nossa alma e a suportá-los, a nos deixar
governar por eles, ou a mitigá-los com xaropes doces, tratá-los como se
fossem doenças. O silêncio deve ser contemplado e julgado no âmbito da
moral. Não nos é dado escolher ser feliz ou infeliz. Mas é preciso escolher
não ser diabolicamente infeliz. O silêncio pode atingir uma forma de
infelicidade fechada, monstruosa, diabólica: murchar os dias da juventude,
tornar o pão amargo. Pode levar, como já se disse, à morte.
O silêncio deve ser contemplado e julgado no âmbito da moral. Porque o
silêncio, assim como a acídia e a luxúria, é um pecado. O fato de que seja
um pecado comum a todos os semelhantes de nossa época, de que seja o
fruto amargo de nossa época malsã, não nos exime da obrigação de
reconhecer sua natureza e de chamá-lo por seu verdadeiro nome.
As relações humanas

No centro da vida está o problema das nossas relações humanas: assim


que nos tornamos conscientes disso, isto é, assim que se nos apresenta
como um claro problema, e não mais como sofrimento confuso, começamos
a procurar seus rastros e a reconstruir sua história ao longo de toda nossa
vida.
Na infância, temos os olhos fixos sobretudo no mundo dos adultos,
escuro e misterioso para nós. Ele nos parece absurdo, porque não
compreendemos nada das palavras que os adultos trocam entre si, nem o
sentido de suas decisões e ações, nem a causa de suas mudanças de humor e
de suas cóleras repentinas. Não entendemos nem nos interessamos pelas
palavras que os adultos trocam entre si, aliás, elas nos entediam
infinitamente. O que nos interessa são as decisões que podem mudar o
curso dos nossos dias, os maus humores que ofuscam almoços e jantares, a
batida inesperada de portas e o estouro de vozes na noite. Compreendemos
que a qualquer momento, de uma troca tranquila de palavras, pode desatar-
se uma súbita tempestade, com barulho de portas que batem e de objetos
arremessados. Espreitamos, inquietos, as mais mínimas inflexões violentas
nas vozes que falam. Às vezes ocorre de estarmos sós e absortos num jogo,
e de repente aquelas vozes de cólera se erguem na casa: continuamos
mecanicamente a brincar, a meter pedrinhas e grama num montinho de terra
para fazer uma colina: entretanto aquela colina já não nos importa nada,
sentimos que não podemos ser felizes enquanto a paz não voltar à casa; as
portas batem e nós estremecemos; palavras raivosas voam de um cômodo a
outro, palavras incompreensíveis para nós; não tentamos entendê-las nem
descobrir as razões obscuras que as ditaram, pensando confusamente que
deverá tratar-se de razões horríveis: todo o absurdo mistério dos adultos
pesa sobre nós. Quantas vezes isso complica nossas relações com o mundo
das crianças que nos são próximas; quantas vezes estamos com um amigo
que veio brincar, fazemos uma colina com ele, e uma porta que bate nos diz
que a paz terminou; ardendo de vergonha, fingimo-nos muito interessados
na colina, tentamos distrair a atenção do nosso amigo daquelas vozes
selvagens a ressoar pela casa: com as mãos que de repente se tornaram
moles e cansadas, fincamos acuradamente gravetos no monte de terra.
Estamos absolutamente convencidos de que na casa do nosso amigo nunca
se briga, nunca se gritam palavras selvagens; na casa do nosso amigo todos
são educados e serenos, brigar é uma vergonha específica de nossa casa:
depois, um dia, descobriremos com grande alívio que também se briga na
casa do nosso amigo assim como na nossa, e talvez se brigue em todas as
casas da Terra.
Entramos na adolescência quando as palavras que os adultos trocam entre
si se tornam inteligíveis para nós; inteligíveis, mas sem importância, porque
já nos tornamos indiferentes ao fato de que em nossa casa reine ou não a
paz. Agora podemos seguir a trama das rusgas domésticas, prever seu curso
e duração: e não nos assustamos mais com isso, as portas batem e não
estremecemos; a casa já não é para nós o que era antes; não é mais o ponto
de onde observamos todo o resto do universo, é um lugar onde por acaso
comemos e moramos; comemos depressa, com um ouvido distraído às
palavras dos adultos, palavras que agora entendemos, mas que nos parecem
inúteis; comemos e fugimos correndo para o nosso quarto, para não
ouvirmos todas aquelas palavras inúteis; e podemos ser muito felizes,
mesmo que os adultos à nossa volta briguem e fiquem de cara amarrada por
dias e dias. Tudo o que nos importa já não acontece entre as paredes de
nossa casa, mas fora, na rua e no colégio: sentimos que não podemos ser
felizes se no colégio os outros rapazes nos desprezarem um pouco.
Faríamos qualquer coisa para nos salvarmos desse desprezo: fazemos
qualquer coisa. Escrevemos poemetos cômicos para agradar a nossos
colegas e os recitamos com caretas engraçadas, que depois nos dão
vergonha; colecionamos palavras indecentes para que nos estimem um
pouco, todo dia saímos à cata de palavras indecentes entre os livros e
dicionários que temos em casa; e, como achamos que entre nossos colegas
faz sucesso um modo de vestir vistoso e ostensivo, contra a vontade de
nossas mães nós nos esforçamos por insinuar em nossas roupas sóbrias algo
de vistoso e vulgar. Sentimos confusamente que, se nos desprezam, é
sobretudo por culpa de nossa timidez; quem sabe talvez aquele momento
longínquo, em que fazíamos uma colina de terra com nosso amigo e as
portas batiam e vozes selvagens ressoavam e a vergonha nos queimava as
bochechas, quem sabe aquele momento não lançou em nós as raízes da
timidez?; e pensamos que precisaremos de uma vida inteira para nos
libertarmos da timidez, para aprendermos a nos mover sob o olhar dos
outros com a mesma segurança e displicência de quando estamos sozinhos.
Nossa timidez nos parece o mais grave obstáculo para obter a simpatia e o
consenso universais; e temos fome e sede desse consenso: em nossas
fantasias solitárias, vemo-nos cavalgando triunfantes pela cidade, entre uma
multidão que nos aclama e nos adora.
Em casa, aqueles adultos que por tantos anos nos foram um peso com seu
mistério absurdo, agora os castigamos com um profundo desprezo, com o
mutismo e a impenetrabilidade do nosso rosto; por muitos anos eles nos
obcecaram com seus mistérios, e agora nós nos vingamos opondo-lhes
nosso mistério, um rosto impenetrável e mudo, com olhos de pedra. E
também descontamos nos adultos de casa o desprezo que nossos colegas
têm por nós. Aquele desprezo parece atingir não só nossa pessoa, mas toda
nossa família, nossa condição social, os móveis e bibelôs de nossa casa, as
maneiras e os hábitos de nossos pais. De vez em quando explodem pela
casa as cóleras de antigamente, agora às vezes despertadas por nós, por
nosso rosto de pedra; somos tomados por um turbilhão de palavras
violentas, as portas batem, mas não estremecemos; agora as portas batem
por nós, contra nós, que continuamos imóveis à mesa, com um sorriso
soberbo; mais tarde, sozinhos em nosso quarto, se esvairá de repente o
sorriso soberbo e desataremos a chorar, fantasiando sobre nossa solidão e a
incompreensão dos outros diante de nós; e sentiremos um estranho prazer
ao derramar lágrimas escaldantes, abafando os soluços no travesseiro. Então
nossa mãe aparece, se comove ao ver nossas lágrimas, se oferece a nos
levar para tomar um sorvete ou assistir a um filme; com os olhos vermelhos
e inchados, mas o rosto mais uma vez empedrado e impenetrável, sentamos
ao lado de nossa mãe à mesa de um café e tomamos o sorvete em
colheradas minúsculas: e ao redor de nós se movimenta uma multidão de
gente que nos parece serena e leve, enquanto nós, nós somos o que há de
mais tétrico, desajeitado e detestável na Terra.
Quem são os outros e quem somos nós? — perguntamos. Ficamos às
vezes tardes inteiras sozinhos em nosso quarto, pensando: com um vago
senso de vertigem, nos perguntamos se os outros existem realmente, ou se
somos nós que os inventamos. Dizemo-nos que talvez, em nossa ausência,
todos os outros deixem de existir, desapareçam num sopro: e
miraculosamente ressurgem, escapados de repente da terra, assim que
olhamos para eles. Não poderá acontecer que um dia, virando-nos
subitamente, não encontraremos nada, ninguém, e avançaremos a cabeça no
vazio? Então não há motivo — nos dizemos — para sentir tamanha tristeza
pelo desprezo dos outros: dos outros que talvez não existam e, portanto, não
pensam nada nem de nós nem de si. Enquanto estamos absortos nesses
pensamentos vertiginosos, nossa mãe aparece e nos propõe sair para tomar
um sorvete; e então nos sentimos inexplicavelmente felizes,
despudoradamente felizes pelo sorvete que tomaremos dali a pouco: mas
como pode essa felicidade em nós — nos perguntamos — pela simples
expectativa de um sorvete, em nós, que somos tão adultos em nossos
vertiginosos pensamentos, tão estranhamente perdidos num mundo de
sombras? Aceitamos a proposta de nossa mãe, mas evitamos demonstrar
que ela nos causou um grande prazer: de lábios cerrados, caminhamos com
ela rumo ao café.
Sempre nos dizendo que os outros talvez não existam, que somos nós que
os inventamos, continuamos inexplicavelmente sofrendo pelo desprezo dos
nossos colegas de escola, pelo peso e o sem jeito de nossa figura, tão digna
de desdém aos nossos próprios olhos que até dá vergonha: quando os outros
falam conosco, gostaríamos de cobrir a cara com as duas mãos, a tal ponto
nos parece feio e informe nosso rosto; no entanto sempre imaginamos que
alguém se apaixonará por nós, que nos verá enquanto tomamos sorvete com
a mãe no café, que nos seguirá escondido até nossa casa e nos escreverá
uma carta de amor; esperamos essa carta e todo dia nos espantamos
profundamente por ainda não a termos recebido; dela conhecemos certas
frases de cor, de tantas vezes que as murmuramos dentro de nós; então,
quando essa carta finalmente chegar, teremos de fato um precioso mistério
fora de casa, porque agora devemos confessar a nós mesmos que nosso
mistério é uma coisa à toa, é bem pouco o que se oculta por trás de nossa
face de pedra, que oferecemos aos nossos pais no beijo de boa-noite; depois
desse beijo, fugimos correndo para o quarto, enquanto nossos pais
cochicham perguntas suspeitosas sobre nós.
De manhã vamos ao colégio depois de termos mirado nosso rosto no
espelho com preocupação: nosso rosto perdeu a delicadeza aveludada da
infância; então pensamos na infância com nostalgia, em quando fazíamos
colinas de terra, e nossa dor surgia caso houvesse briga em casa; agora já
não se briga tanto em casa, nossos irmãos maiores foram morar sozinhos,
nossos pais se tornaram mais velhos e tranquilos; e da casa não nos importa
mais nada; caminhamos para o colégio, sozinhos na névoa; quando éramos
pequenos, a mãe nos acompanhava à escola e ia nos buscar: agora estamos
sozinhos na névoa, terrivelmente responsáveis por tudo o que fazemos.
Ama teu próximo como a ti mesmo, disse Deus. Mas isso nos parece
absurdo: Deus disse uma coisa absurda, impôs aos homens algo impossível
de realizar. Como amar nosso próximo, que nos despreza e não se deixa
amar? E como amar a nós mesmos, desprezíveis e pesados e tétricos que
somos? Como amar nosso próximo, que talvez não exista e seja apenas uma
multidão de sombras, enquanto Deus fez a nós, a nós somente, e nos pôs
aqui, numa terra que é uma sombra, sozinhos a nos nutrir dos nossos
vertiginosos pensamentos? Acreditamos em Deus quando crianças, mas
agora nos dizemos que talvez não exista; ou então existe e não se interessa
nem um pouco por nós, porque nos deixou nesta situação cruel: e então é
como se não existisse para nós. No entanto recusamos à mesa uma iguaria
de que gostamos e passamos a noite deitados no tapetinho do nosso quarto,
para nos mortificarmos e punirmos de nossos pensamentos odiosos e para
sermos queridos por Deus.
Mas Deus não existe, pensamos, depois de uma noite inteira passada no
assoalho, com os membros todos doloridos e longos arrepios de frio e de
sono. Deus não existe, porque não teria podido inventar este mundo
absurdo, monstruoso, esta complicada maquinação em que um ser humano
caminha só, de manhã, na neblina, entre casas altíssimas habitadas pelo
próximo, pelo próximo que não nos ama e a quem é impossível amar. E do
próximo também faz parte aquela raça monstruosa, inexplicável, que é de
sexo diferente do nosso, dotada de uma terrível faculdade de nos fazer todo
bem e todo mal, dotada de um terrível poder secreto sobre nós. Acaso
poderemos agradar a essa raça diversa, nós, que somos tão desprezados por
colegas de nosso próprio sexo, julgados tão tediosos e inúteis, tão ineptos e
desengonçados em tudo?
Depois um dia acontece que o mais admirado, o mais estimado dentre
todos os colegas da escola, o primeiro da classe de repente estreita amizade
com a gente. Como isso aconteceu, não sabemos: sem que se esperasse,
pousou sobre nós seu olhar azul, um dia nos acompanhou até a casa e
começou a gostar de nós. À tarde, vem nos visitar para fazer as tarefas:
temos entre as mãos o precioso caderno do primeiro da classe, preenchido
em sua bela caligrafia aguda, em tinta azul; podemos copiar seus
apontamentos, que não têm um erro sequer. Como nos coube tal felicidade?
Como conquistamos esse colega tão arrogante com todos, tão difícil de
abordar? Agora ele circula entre as paredes do nosso quarto, agitando ao
nosso lado sua cabeleira fulva, inclinando aos conhecidos objetos do nosso
quarto seu perfil agudo, salpicado de sardas rosadas: a impressão que temos
é que um raro animal dos trópicos se instalou, milagrosamente
domesticado, entre as paredes de nossa casa. Ele gira pelo quarto, nos
pergunta sobre a origem dos objetos, nos pede algum livro emprestado:
merenda com a gente, cospe com a gente os caroços das ameixas de cima
do terraço. Nós, que éramos menosprezados por todos, fomos escolhidos
pelo mais inalcançável, pelo mais inesperado colega. Para que não se
aborreça em nossa companhia e não nos abandone para sempre, falamos
com ele ansiosamente: exibimos tudo o que sabemos de palavras
indecentes, de filmes, de esportes. Ao ficarmos sós, repetimos
insaciavelmente as sílabas de seu belo e sonoro nome; e preparamos mil
assuntos para o dia seguinte: loucos de alegria, começamos a imaginá-lo
semelhante a nós em tudo; no dia seguinte, tentamos puxar com ele os
assuntos que tínhamos preparado, lhe falamos tudo de nós, até nossas
vertiginosas suspeitas de que não existem homens nem coisas; e ele nos
olha desconcertado, ri, caçoa um pouco de nós. Então nos damos conta de
que erramos, de que não se pode falar dessas coisas com ele, e retomamos
as palavras indecentes e o esporte.
Entretanto, na escola, nossa situação mudou de repente: todos começam a
gostar de nós, vendo que somos altamente estimados pelo mais estimado
dos colegas; agora os poemetos cômicos que escrevemos e que recitamos
são acolhidos com aplausos e altos gritos; antes nossa voz não conseguia
fazer-se ouvir em meio ao barulho do vozerio, agora todos se calam e se
põem a escutar quando nós falamos; agora nos fazem perguntas, nos dão o
braço, nos ajudam nas coisas em que somos menos hábeis, nos esportes ou
nas tarefas que não sabemos fazer. O mundo já não nos parece uma
monstruosa maquinação, mas uma ilhota simples e sorridente, povoada de
amigos; não agradecemos a Deus por tão afortunada mudança em nossa
sorte, porque agora não pensamos em Deus: achamos impossível pensar em
algo além dos rostos festivos dos colegas que nos circundam, do fluir fácil e
alegre das manhãs, das frases engraçadas que dissemos e que despertaram o
riso; nosso próprio rosto no espelho não é mais algo de tétrico e informe, é
o rosto que nossos colegas cumprimentam alegremente de manhã. Apoiados
assim pela amizade dos colegas do nosso próprio sexo, nós olhamos a outra
raça, as pessoas de sexo diferente do nosso, com menos horror; quase
achamos que podemos facilmente dispensar essa raça diversa, sermos
felizes mesmo sem sua aprovação: quase desejamos transcorrer a vida
inteira em meio aos nossos colegas de escola, dizendo frases engraçadas e
fazendo-os rir.
Depois, pouco a pouco, em meio à multidão desses colegas, descobrimos
um que está particularmente feliz em nossa companhia, e percebemos que
temos infinitas coisas a dizer-lhe. Não é o primeiro da classe, não é muito
estimado pelos outros, não veste roupas vistosas; mas suas roupas são de
um tecido fino e quente, semelhante ao que nossa mãe escolhe para nós; e
caminhando com ele para casa nos damos conta de que seus sapatos são
idênticos aos nossos, robustos e simples, nada chamativos ou leves como os
dos outros colegas: rindo, o fazemos notar esse fato. Descobrimos aos
poucos que na casa dele imperam os mesmos hábitos da nossa casa; e que
ele toma banho muitas vezes, e que sua mãe não lhe permite ver filmes de
amor, assim como a nossa nos proíbe a nós. É alguém como a gente:
alguém da mesma condição social. A essa altura já estamos cheios da
companhia do primeiro da classe, que continua nos visitando à tarde; já
estamos cheios de repetir as mesmas palavras obscenas, e desdenhosamente
submetemos o primeiro da classe aos assuntos que nos interessam, nossas
dúvidas sobre a existência; com tanto desdém e à vontade, com tanta
soberba, que o primeiro da classe não nos entende bem, mas sorri
timidamente; vemos nos lábios do primeiro da classe um sorriso tímido e
desprezível: tem medo de nos perder. Não mais encantados com seus olhos
azuis, agora, ao lado do primeiro da classe, desejamos os olhos redondos e
cor de avelã de outro colega; e o primeiro da classe se dá conta disso e
sofre, e ficamos orgulhosos de fazê-lo sofrer: portanto também somos
capazes de fazer alguém sofrer.
Com o nosso novo amigo de olhos redondos, desprezamos o primeiro da
classe e os outros colegas, tão barulhentos e vulgares, com todas aquelas
palavras indecentes que repetem sempre: nós agora queremos ser muito
distintos, com nosso novo amigo avaliamos as pessoas e as coisas do ponto
de vista da distinção e da vulgaridade. Descobrimos que é distinto continuar
sendo criança o maior tempo possível; para grande alívio de nossa mãe,
abandonamos tudo o que tínhamos inserido de extravagante e vistoso em
nosso modo de vestir: tanto no vestir quanto nos hábitos discretos,
buscamos uma simplicidade infantil. Passamos tardes extraordinárias com o
novo amigo; nunca nos cansamos de falar e de ouvir. Repensamos,
espantados, nossa breve amizade com o primeiro da classe, que agora não
frequentamos mais; estar com o primeiro da classe era tão penoso que ao
final sentíamos os músculos da face enrijecidos pelo esforço do riso falso, e
uma queimação nas pálpebras, e uma coceira na pele: era penoso ter de
fingir esperteza, engolir confidências, escolher continuamente entre nossas
palavras aquelas poucas que podiam ser destinadas ao primeiro da classe;
por outro lado, estar com o novo amigo é uma bênção, não temos nada a
fingir nem a engolir, e deixamos nossas palavras fluir livremente.
Confidenciamos até nossas vertiginosas suspeitas acerca da existência; e
então ele nos revela espantado que também tem as mesmas suspeitas: “mas
você existe?”, indagamos, e ele jura que existe; e ficamos infinitamente
contentes.
Lamentamo-nos com nosso amigo por sermos do mesmo sexo, porque
nos casaríamos se fôssemos de sexos diferentes, a fim de podermos estar
sempre juntos. Não teríamos medo um do outro, nem vergonha, nem horror;
entretanto paira uma sombra sobre nossa vida, que agora poderia ser até
feliz: o fato de não saber se um dia uma pessoa do sexo oposto poderá nos
amar. As pessoas do outro sexo caminham ao nosso lado, nos tocam de leve
passando pela rua, talvez tenham ideias ou intenções a nosso respeito que
nunca poderemos saber; têm nosso destino nas mãos, nossa felicidade.
Talvez entre eles haja uma pessoa que sirva para nós, que nos poderia amar
e que poderíamos amar; a pessoa certa para nós: mas onde está, como
reconhecê-la na multidão da cidade? Em que casa da cidade, em qual ponto
da Terra vive a pessoa certa para nós, em tudo semelhante a nós, pronta a
responder a todas as nossas perguntas, pronta a nos escutar infinitamente e
sem tédio, a sorrir dos nossos defeitos, a conviver por toda a vida com
nosso rosto? Que palavras devemos pronunciar para que nos reconheça
entre tantos milhares? Como devemos nos vestir, a que lugares devemos ir
para encontrá-la?
Atormentados por esses pensamentos, sofremos de uma imensa timidez
na presença de pessoas do sexo oposto, com medo de que uma delas seja a
pessoa certa para nós e que possamos perdê-la com uma palavra. Pensamos
demoradamente em cada palavra antes de pronunciá-la, e as pronunciamos
depressa, com a voz estrangulada; o medo provoca um olhar sombrio e
pequenos gestos secos; percebemos isso, mas nos dizemos que a pessoa
feita para nós deverá nos reconhecer, mesmo com os gestos secos e a voz
sufocada; se não dá mostras de nos perceber, é porque não é a pessoa certa;
a pessoa certa nos reconhecerá e nos escolherá entre milhares. Aguardamos
pela pessoa certa; todo dia, ao nos levantarmos de manhã, nos dizemos que
o encontro poderá ser justamente naquele dia; nos vestimos e nos
penteamos com um cuidado infinito, vencendo a vontade de sair com um
velho impermeável e sapatos tronchos: a pessoa certa pode estar na esquina
da rua. Milhares de vezes acreditamos estar na presença da pessoa feita para
nós; o coração bate tumultuosamente ao som de um nome, à curva de um
nariz ou de um sorriso, só porque dentro de nós decidimos de repente que
aquele é o nariz e o nome e o sorriso da pessoa feita para nós; um
automóvel com rodas amarelas e uma velha senhora nos fazem enrubescer
violentamente, porque achamos que são o automóvel e a mãe da pessoa
feita para nós: o automóvel em que faremos nossa viagem de núpcias, a
mãe que nos dará sua bênção. De repente percebemos que nos enganamos,
não era aquela a pessoa certa, somos absolutamente indiferentes aos seus
olhos, e não sofremos com isso porque não temos tempo de sofrer: de
repente o automóvel de rodas amarelas, o nome e o sorriso desbotam e se
precipitam entre as mil coisas inúteis que circundam nossa vida. Mas não
temos tempo de sofrer; estamos partindo em viagem de férias e estamos
absolutamente convencidos de que nas férias encontraremos a pessoa certa;
nos despedimos quase sem dor do nosso amigo de olhos redondos, seguros
que estamos de que o trem nos levará à pessoa certa; e o amigo, por sua
vez, está certo de que lhe acontecerá a mesma coisa: quem sabe por quê,
subitamente temos a certeza de que a pessoa certa se encontra em férias de
verão. Os longos meses de verão passam tediosos e em solidão; escrevemos
cartas intermináveis ao nosso amigo; para nos consolarmos do encontro
frustrado, recolhemos cuidadosamente opiniões favoráveis sobre nós
emitidas por velhos conhecidos da família ou por velhos parentes e as
transcrevemos para o nosso amigo; por sua vez, ele nos escreve cartas
semelhantes, com opiniões favoráveis sobre sua inteligência ou beleza,
emitidas por velhos parentes. No outono, devemos confessar a nós mesmos
que não aconteceu nada de extraordinário; mas não estamos desiludidos, é
outono, reencontramos com animação e gosto o amigo e os outros colegas;
mergulhamos contentes no outono, a pessoa certa nos espera, quem sabe, na
esquina da alameda.
Depois nos afastamos do nosso amigo, aos poucos. Começamos a achá-lo
bastante chato, “burguês”: sempre com a mania da distinção, da fineza.
Agora queremos ser pobres: nos interessamos por um grupo de colegas
pobres, todo dia vamos com orgulho à casa deles, que não tem
aquecimento. Agora usamos nosso velho impermeável com orgulho:
continuamos esperando encontrar a pessoa certa, mas ela deve amar o nosso
velho impermeável, deve amar nossos sapatos tronchos, nossos cigarros
baratos, nossas mãos vermelhas e nuas. Vestidos com nosso velho
impermeável, caminhamos sozinhos, no fim da tarde, ao longo das casas da
periferia: descobrimos a periferia, as tabuletas dos pequenos bares à beira-
rio, paramos absortos em frente a certas lojinhas onde estão penduradas
camisolas compridas e cor-de-rosa, uniformes de operário e calcinhas
amarronzadas; nos encantamos diante de uma vitrine onde jazem velhos
cartões e velhos grampos; gostamos de tudo o que é velho, poeirento e
pobre; e saímos em busca de coisas pobres e poeirentas pela cidade.
Enquanto isso chove a cântaros em nossa cabeça descoberta e no velho
impermeável, que deixa a água passar; não temos guarda-chuva, e
preferiríamos morrer a sair com um guarda-chuva na mão; não temos
guarda-chuva nem chapéu nem luvas nem dinheiro para pegar o bonde;
tudo o que temos está no bolso: um lenço sujo, cigarros amassados e
fósforos de cozinha.
De repente nos dizemos que os pobres são o próximo, os pobres são o
próximo a quem se deve amar. Vigiamos a passagem dos pobres à nossa
volta; espreitamos a ocasião de acompanhar um mendigo cego que precisa
atravessar a rua, de oferecer nosso braço a alguma velha que escorregou
numa poça; acariciamos timidamente, com a ponta dos dedos, os cabelos
imundos dos meninos que brincam nas vielas; voltamos para casa
encharcados de chuva, com frio, triunfantes. Nós não somos pobres, não
passamos a noite no banco de um jardim público, não tomamos sopa escura
numa tigela de lata; não somos pobres, mas só por acaso: amanhã seremos
paupérrimos.
Entretanto o amigo que deixamos de frequentar sofre por nossa causa;
assim como sofrera o primeiro da classe, quando deixamos de frequentá-lo.
Sabemos disso, mas não temos remorso; aliás, sentimos uma espécie de
prazer surdo, porque, se alguém sofre por nossa causa, é sinal de que temos
em nossas mãos o poder de fazer sofrer: nós, que por tanto tempo nos
achamos tão fracos e insignificantes. Nem nos passa pela cabeça que talvez
sejamos cínicos e maus, porque não temos nem a suspeita de que aquele
nosso amigo também seja o próximo; nem pensamos que o próximo sejam
nossos pais: o próximo são os pobres. Olhamos severamente nossos pais
enquanto eles comem pratos saborosos, postos na mesa iluminada; também
comemos esses pratos saborosos, mas pensamos que se trata de um acaso, e
que em pouquíssimo tempo não será mais assim: daqui a pouco, não
teremos senão um pouco de pão preto e uma tigela de lata.
Um dia encontramos a pessoa certa. Ficamos indiferentes, porque não a
reconhecemos: passeamos com a pessoa certa pelas ruas da periferia, pouco
a pouco nos habituamos a passear todo dia juntos. De vez em quando,
distraídos, nos perguntamos se não estaríamos passeando com a pessoa
certa: mas acreditamos que não. Estamos tranquilos demais; a terra e o céu
não mudaram; os minutos e as horas escoam serenamente, sem badaladas
profundas em nosso peito. Já nos enganamos tantas vezes: já achamos estar
na presença da pessoa certa, e não era. E, na presença daquelas falsas
pessoas certas, tombávamos arrastados num tumulto tão impetuoso que
quase não nos restavam forças para pensar; subitamente estávamos vivendo
como no centro de um país incendiado: árvores, casas e objetos ardiam em
torno de nós. E depois, de repente, o fogo se apagava e não restava senão
um pouco de cinza morna: às nossas costas os países incendiados são tantos
que já nem podemos contá-los mais. Agora nada queima à nossa volta.
Durante semanas e meses, sem saber, passamos os dias com a pessoa certa:
só às vezes, quando ficamos sozinhos, tornamos a pensar nessa pessoa, na
curva dos lábios, em certos gestos e inflexões de voz, e só de pensar
sentimos um breve tremor no coração — mas não levamos em conta um
tremor tão breve, tão surdo. O mais estranho é que, com essa pessoa, nos
sentimos sempre muito bem e em paz, com a respiração larga e a fronte
finalmente lisa, depois de tantos anos cerrada e tensa; e nunca nos cansamos
de falar e de ouvir. Então nos damos conta de que nunca tivemos uma
relação assim, com nenhum ser humano; depois de pouco tempo, todos os
seres humanos nos pareciam tão inofensivos, tão simples e pequenos; já
essa pessoa, enquanto caminha ao nosso lado com seu passo tão diferente
do nosso, com o perfil severo, possui uma infinita capacidade de nos fazer
todo o bem e todo o mal. No entanto estamos infinitamente tranquilos.
E deixamos nossa casa e vamos viver com essa pessoa para sempre; não
porque estejamos convencidos de que é a pessoa certa; aliás, não estamos
nem um pouco convencidos, continuando sempre suspeitosos de que a
verdadeira pessoa certa para nós se esconde quem sabe em que lugar da
cidade. Mas não temos vontade de saber onde se esconde; sentimos que
agora teríamos bem pouco a dizer-lhe, porque já dizemos tudo a essa pessoa
que talvez não seja a certa, mas com quem vivemos: o bem e o mal de nossa
vida nós queremos recebê-los dessa pessoa e com ela. Entre nós e essa
pessoa às vezes estouram violentos confrontos, que no entanto não
conseguem romper aquela paz infinita que há em nós. Depois de muitos
anos, só depois de muitos anos, depois que entre nós e essa pessoa se
formou uma densa rede de hábitos, de lembranças e de violentos contrastes,
saberemos enfim que ela era de fato a pessoa certa para nós, que não
teríamos suportado outra, que somente a ela podemos pedir tudo o que é
necessário ao nosso coração.
Agora, na nova casa aonde viemos viver e que é nossa, não queremos
mais ser pobres, aliás, temos certo medo da pobreza; sentimos um estranho
afeto pelos objetos que nos rodeiam, por uma mesa ou por um tapete, nós,
que sempre derrubávamos tinta nos tapetes de nossos pais; esse novo afeto
por um tapete nos preocupa um pouco, e nos sentimos um tanto
envergonhados; às vezes ainda vamos passear pelas ruas da periferia, mas
ao voltarmos para casa limpamos com todo o cuidado os sapatos barrentos
no capacho: e sentimos um prazer novo ao nos sentarmos em casa, sob a
luminária, com as persianas cerradas sobre a cidade escura. Já não temos
muita vontade de amigos, porque contamos todos os pensamentos à pessoa
que vive conosco, enquanto tomamos juntos a minestra servida na mesa
iluminada: aos outros, temos a impressão de que não vale a pena contar
mais nada.
Filhos nascem, e cresce em nós o medo da pobreza; aliás, medos infinitos
crescem em nós, de qualquer perigo possível ou sofrimento que possa
atingir nossos filhos em sua carne mortal. Nossa própria carne, nosso corpo,
nunca os tínhamos sentido tão frágeis e mortais no passado; estávamos
prontos a nos lançar nas aventuras mais imprevistas, sempre prontos a partir
para os lugares mais distantes, entre leprosos e canibais; qualquer
perspectiva de guerras, epidemias ou catástrofes cósmicas nos deixava de
todo indiferentes. Não sabíamos que em nosso corpo havia tanto medo,
tanta fragilidade: nunca suspeitamos de que pudéssemos nos sentir tão
ligados à vida por um vínculo de medo, de ternura lancinante. Como era
forte e livre nosso passo quando se caminhava sozinho, ao infinito, pela
cidade! Olhávamos com grande comiseração as famílias, pais e mães a
passeio bem devagar, com os carrinhos de bebê nas alamedas, aos
domingos: isso nos parecia algo aborrecido e triste. Agora somos uma
dessas tantas famílias, caminhamos devagar pelas alamedas, empurrando o
carrinho; e não estamos tristes, ao contrário, estamos até quem sabe felizes,
mas de uma felicidade difícil de reconhecer em meio ao pânico que
sentimos de poder perdê-la a qualquer momento e para sempre: o bebê que
empurramos no carrinho é tão pequeno, tão frágil, e o amor que nos liga a
ele é tão dolorido, tão assustado! Temos medo de uma lufada de vento, de
uma nuvem no céu: será que não vem chuva? Nós, que tínhamos apanhado
tanta chuva na cabeça descoberta, com os pés nas poças! Agora temos um
guarda-chuva. E até gostaríamos de ter um bengaleiro em casa, na
antessala; somos tomados pelos desejos mais estranhos, que jamais
poderíamos cogitar quando andávamos sós e livres pela cidade; gostaríamos
de um bengaleiro e de um cabideiro, de lençóis, de toalhas, de um forno a
carvão, de uma geladeira. Não exploramos mais a periferia; andamos pelas
alamedas, entre palacetes e jardins; vigiamos para que não se aproximem de
nossas crianças pessoas muito sujas e pobres, por medo de piolhos e de
doenças; e fugimos dos mendigos.
Amamos nossos filhos de um modo tão doloroso, tão assustado, que
temos a impressão de nunca ter tido outro próximo, de nunca mais poder ter
um. Ainda estamos pouco habituados à presença de nossos filhos no
mundo: ainda estamos estupefatos e transtornados por seu aparecimento em
nossa vida. Não temos mais amigos; ou melhor, aqueles poucos que temos,
pensamos neles com ódio caso nossa criança esteja mal, quase chegamos a
achar que é culpa deles, pelo simples fato de que na companhia deles nos
distraímos daquela exclusiva e lancinante ternura; não temos mais vocação;
tínhamos uma vocação, um ofício de que gostávamos, e agora basta que
prestemos ouvidos a ele por um instante para logo nos sentirmos culpados,
voltando às pressas para aquela única ternura lancinante; um dia de sol ou
uma paisagem verde só significam para nós que nosso menino poderá
bronzear-se ao sol ou brincar no jardim; quanto a nós, perdemos qualquer
capacidade de gozo ou de contemplação. Lançamos sobre as coisas um
olhar suspeitoso e perturbado; vemos se não há pregos enferrujados, baratas
e perigos para nosso menino. Gostaríamos de morar em países limpos e
frescos, com animais limpos e habitantes gentis: o selvagem universo que
nos fascinava não nos fascina mais.
E, como nos tornamos estúpidos, certas vezes pensamos com pesar ao
olharmos a cabeça do nosso menino, que nos é tão familiar, familiar como
nenhuma outra coisa no mundo, observando-o enquanto está sentado
fazendo uma colina de terra com suas mãos gordas. Como nos tornamos
estúpidos e como são pequenos e turvos nossos pensamentos, tão pequenos
que poderiam entrar numa casca de noz, e no entanto tão cansativos, tão
sufocantes! Para onde foi o universo selvagem que nos fascinava, nossa
força e o ritmo vivo e livre de nossa juventude, a descoberta ousada das
coisas dia a dia, nosso olhar resoluto e glorioso, nosso passo triunfante?
Agora onde está o próximo para nós? Onde está Deus agora? Lembramo-
nos de falar com Deus apenas quando nosso menino está doente: então lhe
dizemos que faça todos nossos dentes, todos os cabelos caírem, mas que
cure nosso menino. Assim que o menino está curado, nos esquecemos de
Deus; ainda temos dentes e cabelos e retomamos nossos pequenos
pensamentos embaçados e cansativos: pregos enferrujados, baratas,
gramados frescos, papinhas de farinha. Também nos tornamos
supersticiosos: continuamente fazemos figa, estamos sentados trabalhando e
escrevendo e de repente nos levantamos, acendemos e apagamos a lâmpada
por três vezes fazendo figa, porque de repente nos dissemos que só isso
poderá salvar-nos da desventura. Recusamo-nos à dor: sentimos que ela está
vindo e nos escondemos atrás das poltronas, atrás das cortinas, para não
sermos encontrados.
Mas então a dor chega até nós. Nós a esperávamos, mas não a
reconhecemos de imediato: não a chamamos logo pelo nome. Atordoados e
incrédulos, confiantes em que tudo será remediado, descemos as escadas de
nossa casa e fechamos aquela porta para sempre: caminhamos
interminavelmente por estradas de terra. Eles nos perseguem, e nós nos
escondemos: nos conventos e nos bosques, nos silos e nos becos, nas
estivas dos navios e em cantinas. Aprendemos a pedir ajuda ao primeiro que
passa; não sabemos se é um amigo ou um inimigo, se vai nos socorrer ou
trair: mas não temos escolha, e por um instante lhe confiamos nossa vida.
Também aprendemos a prestar ajuda ao primeiro que passa. E sempre
conservamos em nós a esperança de que daqui a pouco, em poucas horas ou
em alguns dias, voltaremos a nossa casa com tapetes e luminárias; seremos
afagados e consolados; nossos filhos se sentarão para brincar com aventais
limpos e pantufas vermelhas. Dormimos com nossos filhos nas estações,
nas escadarias das igrejas, nos abrigos de pobres; somos pobres, pensamos
sem nenhum orgulho: pouco a pouco se esvanece em nós qualquer vestígio
de orgulho infantil. Temos uma fome verdadeira e um verdadeiro frio. Não
sentimos mais medo; o medo penetrou em nós, fundiu-se inteiro com nosso
cansaço: é o olhar árido e esquecido que lançamos às coisas.
Só de vez em quando, do fundo de nosso cansaço, ressurge em nós a
consciência das coisas, tão pungente que nos provoca lágrimas: talvez
olhemos a terra pela última vez. Nunca sentimos com tanta força o amor
que nos liga à poeira da estrada, aos altíssimos gritos dos pássaros, àquele
ritmo descompassado de nossa respiração; mas nos sentimos mais fortes do
que esse descompasso, o sentimos em nós tão abafado, tão distante, que
nem parece mais nosso; nunca amamos tanto nossos filhos, seu peso em
nossos braços, a carícia de seus cabelos em nosso rosto, e já não sentimos
medo nem por nossos filhos: dizemos a Deus que os proteja, se quiser.
Dizemos a ele que faça como quiser.
E agora somos verdadeiramente adultos: é o que pensamos numa manhã,
olhando no espelho nosso rosto sulcado, escavado; olhando-o sem nenhum
orgulho, sem nenhuma curiosidade, com um pouco de misericórdia. Temos
de novo um espelho entre quatro paredes; quem sabe daqui a pouco
tenhamos de novo um tapete, talvez uma luminária. Mas perdemos as
pessoas mais queridas: então, que nos importam a essa altura os tapetes e as
pantufas vermelhas? Aprendemos a separar e a guardar os objetos dos
mortos; a voltar sozinhos aos lugares onde estivemos com eles; a interrogar,
sentindo o silêncio ao redor. Já não temos medo da morte: olhamos a morte
toda hora, a cada minuto, recordando seu grande silêncio sobre o rosto mais
querido.
E agora somos verdadeiramente adultos — pensamos — e nos sentimos
surpresos de que ser adulto seja isto, e não tudo aquilo que acreditávamos
na juventude, não a segurança de si, nem a posse serena de todas as coisas
da terra. Somos adultos porque temos nos ombros a presença muda das
pessoas mortas, a quem pedimos um juízo sobre nosso comportamento
atual, a quem pedimos perdão pelas ofensas passadas; gostaríamos de
arrancar do nosso passado tantas palavras cruéis que dissemos, tantos gestos
cruéis que fizemos, quando ainda temíamos a morte, mas não sabíamos, não
tínhamos entendido como era irreparável e sem remédio, a morte: somos
adultos por todas as respostas mudas, pelo perdão calado dos mortos que
trazemos dentro de nós. Somos adultos por aquele breve momento que um
dia nos coube viver, quando olhamos como se fosse pela última vez todas as
coisas da terra e renunciamos a possuí-las e as restituímos à vontade de
Deus; e de repente as coisas da terra nos pareceram em seu lugar preciso
sob o céu, e assim também os seres humanos, e nós mesmos suspensos a
olhar do único ponto exato que nos foi dado: seres humanos, coisas e
memórias, tudo nos pareceu em seu exato lugar sob o céu. Naquele breve
momento encontramos um equilíbrio para nossa vida oscilante; e nos parece
que sempre poderemos reencontrar aquele momento secreto, buscar ali as
palavras para o nosso ofício, nossas palavras para o próximo; olhar o
próximo com olhos sempre justos e livres, não com o olhar temeroso ou
arrogante de quem sempre se pergunta, em presença do próximo, se ele será
seu senhor ou seu servo. Durante toda a vida só soubemos ser senhores ou
servos: mas naquele nosso momento secreto, naquele momento de pleno
equilíbrio, soubemos que não há verdadeiro senhorio nem verdadeira
servidão sobre a terra. Assim, agora, tornando àquele nosso momento
secreto, tentaremos enxergar nos outros se eles já viveram um momento
idêntico, ou se ainda estão longe disso: é o que importa saber. Na vida de
um ser humano, este é o momento mais alto: e é necessário que estejamos
com os outros, mantendo os olhos no momento mais alto de seus destinos.
Maravilhados, percebemos que mesmo adultos não perdemos nossa
antiga timidez diante do próximo: a vida não nos ajudou nem um pouco a
nos liberarmos da timidez. Ainda somos tímidos. Simplesmente isso já não
nos importa; parece que conquistamos o direito de sermos tímidos; somos
tímidos sem timidez: ousadamente tímidos. Timidamente buscamos as
palavras certas em nós. E muito nos alegramos de encontrá-las, de encontrá-
las com timidez, mas quase sem esforço, nos alegramos de termos tantas
palavras em nós, tantas palavras para o próximo, que nos sentimos como
embriagados de felicidade, de naturalidade. A história das relações humanas
nunca termina em nós; porque aos poucos acontece que elas se tornam até
muito fáceis, naturais e espontâneas; tão espontâneas, tão sem esforço, que
não são mais riqueza nem descoberta nem escolha: são apenas hábito e
comprazimento, embriaguez de naturalidade. Acreditamos que sempre
seremos capazes de voltar àquele nosso momento secreto, de sempre poder
alcançar as palavras certas; mas não podemos retornar sempre àquele ponto,
muitas vezes são apenas falsos retornos: acendemos nossos olhos de falsa
luz, simulamos solicitude e calor ao próximo, mas na verdade estamos de
novo retraídos, encolhidos e gelados no breu do nosso coração. As relações
humanas devem ser redescobertas e reinventadas todos os dias. Devemos
sempre nos lembrar de que toda espécie de encontro com o próximo é uma
ação humana e, sendo assim, implica necessariamente mal ou bem, verdade
ou mentira, caridade ou pecado.
Agora somos tão adultos que nossos filhos adolescentes já começam a
nos olhar com olhos de pedra; e sofremos com isso, mesmo sabendo o que é
esse olhar; mesmo recordando bem que tivemos um olhar idêntico.
Sofremos, nos lamentamos e cochichamos perguntas suspeitosas, mesmo já
sabendo tão bem como se desenvolve a longa cadeia das relações humanas,
sua longa parábola necessária, toda a longa estrada que nos cabe percorrer
para chegar a ter um pouco de misericórdia.
As pequenas virtudes

No que diz respeito à educação dos filhos, penso que se deva ensinar a
eles não as pequenas virtudes, mas as grandes. Não a poupança, mas a
generosidade e a indiferença ao dinheiro; não a prudência, mas a coragem e
o desdém pelo perigo; não a astúcia, mas a franqueza e o amor à verdade;
não a diplomacia, mas o amor ao próximo e a abnegação; não o desejo de
sucesso, mas o desejo de ser e de saber.
No entanto fazemos frequentemente o contrário: apressamo-nos a ensinar
o respeito pelas pequenas virtudes, fundando sobre elas todo nosso sistema
educativo. Desse modo, escolhemos a via mais cômoda: porque as
pequenas virtudes não apresentam nenhum perigo material, ao contrário,
nos mantêm ao abrigo dos golpes da sorte. Descuidamos de ensinar as
grandes virtudes, apesar de amá-las, e gostaríamos que nossos filhos as
assimilassem: mas nutrimos a confiança de que elas emergirão
espontaneamente de seu espírito, num dia futuro, considerando-as de
natureza instintiva, ao passo que as outras, as pequenas, nos parecem fruto
de reflexão e cálculo, e por isso pensamos que devam ser absolutamente
ensinadas.
Na verdade a diferença é só aparente. As pequenas virtudes provêm
igualmente do fundo de nosso instinto, de um instinto de defesa: mas nelas
a razão fala, sentencia, disserta, como um brilhante advogado da integridade
pessoal. As grandes virtudes jorram de um instinto em que a razão não fala,
um instinto ao qual me seria difícil dar um nome. E o melhor de nós está
nesse instinto mudo, e não em nosso instinto de defesa, que argumenta,
sentencia e disserta com a voz da razão.
A educação não é outra coisa senão um certo vínculo que estabelecemos
entre nós e nossos filhos, certo clima no qual florescem os sentimentos, os
instintos, as ideias. Ora, creio que um clima todo inspirado no respeito às
pequenas virtudes resulte insensivelmente em cinismo, ou no medo de
viver. Em si mesmas, as pequenas virtudes não têm nada a ver com o
cinismo ou com o medo de viver: mas todas juntas, e sem as grandes, geram
uma atmosfera que leva àquelas consequências. Não que as pequenas
virtudes sejam, em si mesmas, desprezíveis: mas seu valor é de ordem
complementar, e não substancial; elas não podem estar sós, sem as outras, e
são — quando desacompanhadas — um pobre alimento para a natureza
humana. O modo de exercitar as pequenas virtudes, em medida temperada e
quando for de todo indispensável, o homem pode encontrá-lo em torno de si
e bebê-lo no ar: porque as pequenas virtudes são de uma ordem bastante
comum e difusa entre os homens. Mas as grandes virtudes, essas não se
respiram no ar: e devem ser a primeira substância da relação com nossos
filhos, o primeiro fundamento da educação. Além disso, o grande também
pode conter o pequeno: mas o pequeno, por lei natural, não pode jamais
conter o grande.
Não ajuda em nada buscarmos recordar e imitar, nas relações com nossos
filhos, os modos com que nossos pais nos educaram. A época de nossa
infância e juventude não era um tempo de pequenas virtudes: era um tempo
de palavras fortes e sonoras, que pouco a pouco, porém, perdiam sua
substância. Agora é um tempo de palavras flébeis e frígidas, sob as quais
talvez refloresça o desejo de uma reconquista. Mas é um desejo tímido e
cheio de temor do ridículo. Assim nos revestimos de prudência e astúcia.
Nossos pais não conheciam nem prudência nem astúcia; não conheciam o
medo do ridículo; eram inconsequentes e incoerentes, mas nunca se davam
conta; frequentemente se contradiziam, mas nunca admitiam ser
contestados. Usavam conosco de uma autoridade que seríamos
completamente incapazes de usar. Convictos de seus princípios, que
supunham indestrutíveis, reinavam sobre nós com poder absoluto. Éramos
ensurdecidos por palavras tonitruantes; um diálogo era impossível, porque
assim que suspeitavam que haviam errado nos mandavam calar a boca;
batiam o punho na mesa, fazendo a sala tremer. Recordamos aquele gesto,
mas não saberíamos imitá-lo. Podemos ficar furiosos, uivar feito lobos; mas
no fundo de nossos uivos de lobo há um soluço histérico, um rouco balido
de cordeiro.
Portanto não temos autoridade: não temos armas. A autoridade, em nós,
seria uma hipocrisia e uma ficção. Somos demasiado conscientes de nossa
fraqueza, demasiado melancólicos e inseguros, demasiado conscientes de
nossas inconsequências e incoerências, demasiado conscientes de nossos
defeitos: olhamos dentro de nós com muita demora e vimos em nós coisas
demais. E, como não temos autoridade, devemos inventar uma outra
relação.
Hoje, que o diálogo se tornou possível entre pais e filhos — possível,
embora sempre difícil, sempre cheio de cautelas recíprocas, de recíproca
timidez e inibição —, é preciso que nós, nesse diálogo, nos revelemos tal
como somos, imperfeitos, e confiantes de que eles, nossos filhos, não se
pareçam conosco, que sejam mais fortes e melhores que nós.
Como estamos todos premidos, de uma maneira ou de outra, pelo
problema do dinheiro, a primeira pequena virtude que nos ocorre ensinar
aos nossos filhos é a poupança. Damos a eles um mealheiro, explicando
como é bom guardar o dinheiro em vez de gastá-lo, de modo que, após
alguns meses, haja ali um bom montinho de moedas; e como é bom resistir
à vontade de gastar para, ao final, poder comprar um objeto de valor.
Recordamos que, em nossa infância, ganhamos de presente um mealheiro
igual; mas esquecemos que, no tempo de nossa infância, o dinheiro e o
gosto de conservá-lo eram algo menos horrível e sujo que hoje: porque
quanto mais o tempo passa, mais o dinheiro é sujo. Então o mealheiro é o
nosso primeiro erro: instalamos em nosso sistema educativo uma pequena
virtude.
Aquele pequeno cofre de barro, de aspecto inócuo, em forma de pera ou
de maçã, passa a morar meses e meses no quarto de nossos filhos, que se
habituam à presença dele; se habituam ao prazer de introduzir, dia a dia, o
dinheiro na fenda; se habituam ao dinheiro guardado lá dentro, que ali, em
segredo e no escuro, cresce como uma semente no seio da terra; se
afeiçoam ao dinheiro, primeiro com inocência, como nos afeiçoamos a
todas as coisas que crescem graças ao nosso zelo, plantinhas ou pequenos
animais; e sempre imaginando aquele objeto caro, visto numa vitrine, que
poderemos comprar — como nos disseram — com o dinheiro poupado.
Quando finalmente o cofre é quebrado, e o dinheiro, gasto, os meninos se
sentem sós e frustrados; não há mais dinheiro no quarto, guardado no ventre
da maçã, e já não há nem mesmo a rósea maçã: em vez disso, há um objeto
por muito tempo imaginado na vitrine, do qual nós louvamos a importância
e o valor, mas que agora, ali no quarto, parece cinzento e sem graça,
murcho após tanta espera e tanto dinheiro. Os meninos não culparão o
dinheiro por essa desilusão, mas o próprio objeto: porque o dinheiro
perdido conserva na memória suas promessas vãs. Os meninos pedirão um
novo cofre e mais dinheiro para guardar; e dedicarão ao dinheiro
pensamentos e uma atenção que deveriam estar voltados para outras coisas.
Preferirão o dinheiro às coisas. Não faz mal que tenham sofrido uma
desilusão; faz mal que se sintam sozinhos sem a companhia do dinheiro.
Não deveríamos ensiná-los a poupar: deveríamos habituá-los a gastar.
Deveríamos dar-lhes com frequência alguns trocados, pequenas somas sem
importância, e incentivá-los a gastar logo, como bem quiserem, seguindo
um capricho momentâneo: os meninos comprarão alguma miudeza, que
esquecerão logo, assim como se esquecerão do dinheiro gasto tão depressa
e sem pensar, ao qual não chegaram a afeiçoar-se. Quando tiverem nas
mãos essas miudezas, que serão logo quebradas, os meninos vão ficar um
pouco decepcionados, mas rapidamente esquecerão tanto o desgosto com as
miudezas quanto o dinheiro; aliás, associarão o dinheiro a algo de
momentâneo e estúpido; e pensarão que o dinheiro é estúpido, como é justo
pensar durante a infância.
É justo que os meninos vivam os primeiros anos de sua vida ignorando o
que é o dinheiro. Às vezes isso é impossível, se formos muito pobres; e às
vezes é difícil, se formos muito ricos. Contudo, quando somos muito
pobres, quando o dinheiro está estritamente ligado a um fato de
sobrevivência cotidiana, a uma questão de vida ou morte, ele se traduz tão
imediatamente aos olhos de um menino em comida, lenha ou pão, que não
tem meios de arruinar-lhe o espírito. Porém, se formos assim, assim, nem
ricos nem pobres, não será difícil deixar que um menino viva sua infância
sem saber bem o que é o dinheiro e sem se interessar minimamente por ele.
No entanto, nem muito cedo nem muito tarde, é preciso acabar com essa
ignorância; e, se tivermos dificuldades econômicas, é necessário que nossos
filhos, nem muito cedo nem muito tarde, tenham conhecimento disso; assim
como é justo que a certa altura eles compartilhem conosco nossas
preocupações, nossos motivos de contentamento, nossos projetos e tudo o
que concerne à vida familiar. E, habituando-os a considerar o dinheiro como
algo que pertence igualmente a nós e a eles, e não mais a nós que a eles, ou
o contrário, também podemos convidá-los a serem sóbrios, a estarem
atentos ao dinheiro que gastam; e desse modo o convite à poupança deixa
de ser respeito às pequenas virtudes, um convite abstrato a ter respeito por
uma coisa que não merece respeito por si, como o dinheiro; mas é recordar
aos meninos que o dinheiro de casa não é muito, um convite a sentirem-se
adultos e responsáveis diante de uma coisa que pertence tanto a nós quanto
a eles, uma coisa não particularmente bela nem amável, mas séria, porque
está ligada às nossas necessidades cotidianas. Mas não muito cedo nem
muito tarde: o segredo da educação está em adivinhar os tempos.
Ser sóbrio consigo mesmo e generoso com os outros: isto significa ter
uma relação justa com o dinheiro, estarmos livres diante do dinheiro. E não
há dúvida de que, nas famílias em que o dinheiro é ganho e prontamente
gasto, em que escorre como água limpa da fonte e, praticamente, não existe
como dinheiro, é menos difícil educar um jovem para esse equilíbrio, para
essa liberdade. As coisas se tornam complicadas ali onde o dinheiro existe e
existe pesadamente, água de chumbo, estagnada, que exala miasmas e
odores. Rapidamente os jovens percebem a presença desse dinheiro na
família, como uma potência oculta, de que nunca se fala em termos claros,
mas à qual os pais aludem, conversando entre si, com nomes complicados e
misteriosos, com uma plúmbea fixidez nos olhos, com uma ruga amarga na
boca; dinheiro que não é simplesmente guardado na gaveta do escritório,
mas campeia sabe-se lá onde, podendo a qualquer momento ser sugado pela
terra, sumindo sem remédio para sempre, engolindo a família e a casa. Em
famílias como essas, os jovens são continuamente advertidos a gastar com
parcimônia, todo dia a mãe os incita à atenção e à economia, quando lhes dá
o trocado para o bonde; e há no olhar da mãe aquela preocupação de
chumbo, aquele profundo vinco na fronte, que sempre surge quando o
assunto é dinheiro; há o obscuro terror de que todo o dinheiro se desmanche
no nada, de que até os poucos trocados possam significar as primeiras
migalhas de um desmoronamento súbito e mortal. Os jovens dessas famílias
não raro vão à escola com roupas puídas e sapatos gastos, e precisam
suspirar longamente, às vezes em vão, por uma bicicleta ou uma máquina
fotográfica, objetos que alguns colegas certamente mais pobres possuem há
tempos. E quando finalmente a bicicleta que desejam lhes é dada, o
presente é acompanhado da severa recomendação de não estragar nem
emprestar a ninguém um objeto tão luxuoso, que custou tanto dinheiro. Os
apelos à economia, em casa, são perenes e insistentes: a ordem é comprar os
livros da escola em sebos, e os cadernos, no Standard. Isso ocorre em parte
porque os ricos muitas vezes são avaros, porque se acham pobres; mas
sobretudo porque as mães das famílias ricas, mais ou menos
conscientemente, têm medo das consequências do dinheiro e procuram
proteger seus filhos, forjando em torno deles uma ficção de hábitos simples,
acostumando-os até a pequenas privações. Mas não há pior erro que fazer
um jovem viver em tal contradição; o dinheiro fala em qualquer canto, na
casa, sua linguagem inconfundível; está presente nas porcelanas, na
mobília, na prataria pesada, está presente nas viagens confortáveis, nas
férias luxuosas, nos cumprimentos do porteiro, na cerimônia dos criados;
está presente nas falas dos pais, é a ruga na testa do pai, a profunda
perplexidade no olhar materno; o dinheiro está em toda parte, intocável
porque talvez terrivelmente frágil, algo com que não se pode brincar, um
deus fúnebre ao qual não se pode dirigir senão num sussurro; e, para honrar
esse deus, para não molestar sua lutuosa imobilidade, é preciso usar o
casaco do ano anterior, que ficou curto, e estudar a lição em livros
desencadernados e sebosos, e divertir-se com a bicicleta do camponês.
Se, sendo ricos, quisermos ensinar a nossos filhos hábitos simples, deve
ficar bem claro que todo dinheiro poupado com esses hábitos deverá ser
gasto sem parcimônia com outras pessoas. Hábitos como esses só fazem
sentido se não forem avareza ou temor, mas livre escolha da simplicidade
em meio à riqueza. Um jovem de família rica não aprende a sobriedade
porque o fazem vestir roupas velhas, ou porque o fazem comer maçãs
verdes na merenda, ou porque é privado de uma bicicleta que deseja há
muito tempo: essa sobriedade em meio à riqueza é pura ficção, e as ficções
são sempre deseducativas. Desse modo ele aprenderá apenas a avareza e o
medo do dinheiro. Privando-o de uma bicicleta desejada e que poderíamos
presentear-lhe, só faríamos frustrá-lo numa coisa legítima para um garoto,
só faríamos tornar sua infância menos feliz em nome de um princípio
abstrato, sem justificativa na realidade. E, tacitamente, estaríamos
afirmando diante dele que o dinheiro é melhor que uma bicicleta; no
entanto, é preciso que ele saiba que uma bicicleta é sempre melhor que o
dinheiro.
A verdadeira defesa da riqueza não é o medo da riqueza, de sua
fragilidade e das viciosas consequências que pode trazer: a verdadeira
defesa da riqueza é a indiferença ao dinheiro. Para ensinar a um jovem essa
indiferença, não há outro meio senão lhe dar dinheiro para gastar, quando
houver dinheiro: para que aprenda a se afastar dele sem sofrimento ou
remorso. Podem me dizer que, assim, um jovem se habituará a ter dinheiro
para gastar e já não poderá viver sem ele; se amanhã não for mais rico,
como vai ser? Mas é mais fácil não ter dinheiro quando já aprendemos a
gastá-lo, quando aprendemos como ele voa depressa de nossas mãos; é mais
fácil prescindir do dinheiro quando já o conhecemos bem do que quando
lhe tributamos reverência e medo na infância, quando pressentimos sua
presença no ar sem que nos tenham permitido erguer os olhos para fixá-lo.
Assim que nossos filhos começam a ir à escola, nós imediatamente lhes
prometemos, se estudarem bem, um prêmio em dinheiro. É um erro. Assim
misturamos o dinheiro, que é uma coisa sem nobreza, com algo meritório e
digno, como o estudo e o prazer do conhecimento. O dinheiro que damos
aos nossos filhos deveria ser dado sem motivo; deveria ser dado com
indiferença, para que aprendam a recebê-lo com indiferença; e deve ser
dado não para que aprendam a amá-lo, mas para que aprendam a não amá-
lo, a compreender seu verdadeiro caráter, sua impotência em satisfazer os
desejos mais autênticos, que são os do espírito. Elevando o dinheiro à
função de prêmio, de ponto de chegada, de objetivo a ser alcançado, nós lhe
conferimos um lugar, uma importância, uma nobreza que não deve ter aos
olhos dos nossos filhos. Afirmamos implicitamente o princípio — falso —
de que o dinheiro é a coroação de um esforço e seu escopo último.
Entretanto o dinheiro deveria ser concebido como a retribuição por um
esforço; não sua finalidade, mas sua recompensa, isto é, seu legítimo
crédito: e é evidente que os esforços escolares dos meninos não podem
receber um pagamento. É um erro menor — mas é um erro — oferecer
dinheiro aos filhos em troca de pequenos serviços domésticos, de pequenas
tarefas. É um erro porque nós não somos empregadores dos nossos filhos; o
dinheiro familiar é tanto deles quanto nosso: aqueles pequenos serviços,
aquelas pequenas tarefas não deveriam ter nenhuma recompensa, mas ser
uma colaboração voluntária na vida familiar. E, em geral, creio que se deva
ter muita cautela ao se prometer e aplicar prêmios e punições. Porque a vida
raramente terá prêmios e punições: no mais das vezes os sacrifícios não têm
nenhum prêmio, e frequentemente as más ações não são punidas, mas, ao
contrário, lautamente recompensadas com sucesso e dinheiro. Por isso é
melhor que nossos filhos saibam desde a infância que o bem não é
recompensado, nem o mal recebe castigo; todavia é preciso amar o bem e
odiar o mal — e a isso não é possível dar nenhuma explicação lógica.
Costumamos dar uma importância ao rendimento escolar de nossos filhos
que é totalmente infundada. E também isso não é senão respeito pela
pequena virtude do sucesso. Deveria bastar-nos que não ficassem muito
atrás dos outros, que não fossem reprovados nos exames; mas não nos
contentamos com isso; deles queremos o sucesso, queremos que satisfaçam
nosso orgulho. Se forem mal na escola, ou se simplesmente não forem tão
bem quanto pretendemos, logo erigimos entre eles e nós a barreira do
descontentamento permanente; adotamos diante deles o tom de voz
rabugento e lamentoso de quem se queixa de uma ofensa. Aí nossos filhos,
entediados, se afastam de nós. Ou então os apoiamos em seus protestos
contra os professores que não os entenderam, colocando-nos ao lado deles
como se fossem vítimas de uma injustiça. E todo dia corrigimos seus
deveres de casa, ou melhor, nos sentamos junto deles quando fazem as
tarefas, estudando com eles a lição. Na verdade, para um garoto, a escola
deveria ser desde o início a primeira batalha a enfrentar sozinho, sem nossa
ajuda; desde o início deveria estar claro que aquilo é seu campo de batalha,
onde não lhe podemos dar mais que um socorro esporádico e irrisório. E se
lá ele sofre injustiças ou é incompreendido, é preciso deixá-lo entender que
não há nada de estranho nisso, porque na vida devemos esperar
continuamente a incompreensão e o descaso, e ser vítimas de injustiças: a
única coisa que importa é não cometermos, nós mesmos, injustiças.
Compartilhamos os sucessos ou insucessos de nossos filhos porque
gostamos deles, do mesmo modo e na mesma medida com que eles
compartilham, no processo de se tornarem adultos, nossos sucessos ou
insucessos, nossas alegrias ou preocupações. É falso que eles, diante de nós,
tenham a obrigação de serem bons na escola e de dar ao estudo o melhor de
si. Seu único dever perante nós, visto que os introduzimos ao estudo, é
seguir adiante. Se não quiserem dar o melhor de si na escola, mas em outras
coisas que os apaixonem — coleção de besouros ou o estudo da língua turca
—, é uma escolha deles, e não temos nenhum direito de recriminá-los, de
nos mostrarmos feridos no orgulho, frustrados em nosso desejo. Se por ora
eles não dão mostras de querer gastar suas capacidades em nada, passando
dias na escrivaninha mastigando uma caneta, nem neste caso temos o
direito de reprová-los em demasia: quem sabe o que nos parece ócio seja na
realidade fantasia e reflexão que, amanhã, talvez deem seus frutos. Se
parecem desperdiçar o melhor de suas energias e de seu talento jogados
num sofá, lendo romances estúpidos, ou correndo desenfreados num
gramado atrás da bola, ainda assim não podemos saber se realmente se trata
de desperdício de energia e de talento ou se até isso, amanhã, de alguma
maneira que agora ignoramos, dará seus frutos. Porque infinitas são as
possibilidades do espírito. Mas não devemos nos deixar tomar — nós, pais
— pelo pânico do insucesso. Nossas repreensões devem ser como rajadas
de vento ou um temporal: violentos, mas logo esquecidos; nada que possa
obscurecer a natureza de nossas relações com os filhos, turvando-lhes a
limpidez e a paz. Estamos aí para consolar nossos filhos, caso um fracasso
os faça sofrer; estamos aí para lhes dar coragem, se um insucesso os
mortificar. Também estamos aí para fazê-los baixar a crista, caso um
sucesso lhes suba à cabeça. Estamos aí para reduzir a escola a seu humilde e
estreito limite; nada que possa hipotecar o futuro; uma simples oferta de
instrumentos, entre os quais talvez seja possível escolher um de que se
orgulhar no futuro.
Na educação, o que deve estar no centro de nossos afetos é que nossos
filhos nunca percam o amor à vida. Esse sentimento pode tomar formas
diversas, e às vezes um jovem desinteressado, solitário e esquivo não sofre
de desamor à vida ou de opressão pelo medo de viver, mas simplesmente
está num estado de espera, concentrado em preparar-se para a própria
vocação. E o que é a vocação de um ser humano senão a mais alta
expressão de seu amor à vida? Então devemos esperar, ao lado dele, que sua
vocação desperte e ganhe corpo. Sua atitude pode parecer a da toupeira ou
da lagartixa que fica imóvel, fingindo-se de morta: mas na realidade fareja e
escruta o rastro do inseto, sobre o qual se lançará num salto. Ao lado dele,
mas em silêncio e um pouco à parte, devemos esperar o estalo de seu
espírito. Não devemos pretender nada; não devemos pedir ou esperar que
seja um gênio, um artista, um herói ou um santo; no entanto devemos estar
preparados para tudo; nossa expectativa e paciência devem conter a
possibilidade do mais alto e do mais modesto destino.
Uma vocação, a paixão ardente e exclusiva por algo que não tenha nada a
ver com o dinheiro, a consciência de ser capaz de fazer uma coisa melhor
que os outros, e amar essa coisa acima de tudo, é a única possibilidade de
um garoto rico não ser minimamente condicionado pelo dinheiro, de ser
livre diante do dinheiro: de não sentir em meio aos demais nem orgulho
pela riqueza, nem vergonha por ela. Ele nem se dará conta das roupas que
usa, dos costumes que o circundam, e amanhã poderá passar por qualquer
privação, porque a única fome e a única sede serão, nele, sua própria
paixão, que devorará tudo o que é fútil e provisório, despojando-o de todo
hábito ou atitude contraído na infância, reinando sozinha em seu espírito.
Uma vocação é a única saúde e riqueza verdadeiras do homem.
Que possibilidades nos são dadas de despertar e estimular em nossos
filhos o nascimento e o desenvolvimento de uma vocação? Não dispomos
de muitas; entretanto talvez haja algumas. O nascimento e o
desenvolvimento de uma vocação demandam espaço: espaço e silêncio — o
livre silêncio do espaço. A relação que intercorre entre nós e nossos filhos
deve ser uma troca viva de pensamentos e sentimentos, mas também deve
compreender largas zonas de silêncio; deve ser uma relação íntima, sem no
entanto misturar-se violentamente com a intimidade deles; deve ser um
justo equilíbrio entre silêncio e palavras. Devemos ser importantes para os
nossos filhos e, contudo, não demasiado importantes; devemos fazer com
que gostem de nós, mas não demais: para que não queiram se tornar
idênticos a nós, imitar-nos no ofício que fazemos, buscar nossa imagem nos
companheiros que escolherão para sua vida. Com eles devemos manter uma
relação de amizade: contudo não devemos ser excessivamente amigos, para
que eles não tenham dificuldades em fazer verdadeiros amigos, aos quais
possam dizer coisas que silenciam conosco. É preciso que sua busca por
amigos, sua vida amorosa, sua vida religiosa, a busca por uma vocação
sejam circundadas de silêncio e sombra, que se desenvolvam apartadas de
nós. Nesse caso, podem me dizer que nossa intimidade com os filhos se
reduziria a pouca coisa. Mas em nossa relação com eles deve estar contido
tudo isso em linhas gerais, quer a vida religiosa, quer a vida intelectual,
quer a vida afetiva e o julgamento sobre os seres humanos; devemos ser
para eles um simples ponto de partida, oferecer-lhes o trampolim de onde
darão o salto. E devemos estar ali para qualquer socorro, caso seja
necessário; eles devem saber que não nos pertencem, mas nós, sim,
pertencemos a eles, sempre disponíveis, presentes no quarto ao lado,
prontos a responder como pudermos a qualquer pergunta possível, a
qualquer pedido.
E, se nós mesmos tivermos uma vocação, se não a traímos, se
continuamos a amá-la no decurso dos anos, a servi-la com paixão, podemos
manter longe do coração, no amor que sentimos por nossos filhos, o
sentimento de posse. Porém, se não tivermos uma vocação, ou se a tivermos
abandonado e traído por cinismo, ou medo de viver, ou um amor paterno
mal compreendido, ou por uma pequena virtude que se instala em nós,
então nos agarramos aos nossos filhos como um náufrago ao tronco da
árvore, pretendemos vigorosamente que nos devolvam tudo o que lhes
demos, que sejam absoluta e implacavelmente tais como nós os queremos,
que obtenham da vida tudo o que nos faltou; terminamos pedindo a eles
tudo o que somente nossa vocação nos pode dar: queremos que sejam em
tudo uma obra nossa, como se, por tê-los procriado uma vez, pudéssemos
continuar procriando-os pela vida inteira. Queremos que eles sejam nossa
obra em tudo, como se fossem não seres humanos, mas obra do espírito.
Porém, se tivermos em nós uma vocação, se não a renegamos nem traímos,
então podemos deixá-los germinar tranquilamente fora de nós, circundados
da sombra e do silêncio que o brotar de uma vocação e de um ser requer.
Esta talvez seja a única oportunidade real que temos de ajudá-los em
alguma medida na busca de uma vocação: termos nós mesmos uma
vocação, conhecê-la, amá-la e servi-la com paixão, porque o amor à vida
gera amor à vida.
PAOLA AGOSTI

NATALIA GINZBURG nasceu numa família judia em Palermo, em


1916. Seu pai e seus irmãos se integraram à resistência antifascista, da
qual fazia parte também o primeiro marido da escritora, Leone
Ginzburg, com quem teve três filhos, entre eles o historiador Carlo
Ginzburg. Durante anos, Natalia trabalhou na editora Einaudi ao lado
de Cesare Pavese e Italo Calvino. Entre suas obras mais importantes
estão Léxico familiar, Caro Michele e A família Manzoni. Morreu em
Roma, em 1991.
Copyright © 1962, 1998 by Giulio Einaudi editore s.p.a., Turim.
Primeira edição “Saggi”, 1962

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em
vigor no Brasil em 2009.

Título original
Le piccole virtú

Capa
Raul Loureiro

Foto de capa
Louise Bourgeois, Sem título (detalhe), 2005.
© A Fundação Easton/ AUTVIS, 2019

Revisão
Valquíria Della Pozza
Angela das Neves

ISBN 978-85-5451-626-0

Todos os direitos desta edição reservados à


EDITORA SCHWARCZ S.A.
Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32
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Telefone: (11) 3707-3500
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Léxico familiar
Ginzburg, Natalia
9788554510626
256 páginas

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A história de uma família e a memória de tempos difíceis através da


prosa da maior escritora italiana do século XX.
"Neste livro, lugares, fatos e pessoas são reais. Não inventei nada", escreve
Natalia Ginzburg sobre sua obra mais célebre, Léxico familiar, de 1963.
Nos anos 1930, como consequência da criação de leis raciais na Europa,
inúmeras famílias foram obrigadas a deixar seu lar, tornando-se apátridas ou
sendo literalmente destroçadas pela guerra que se seguiu. É nesse cenário
que se inscrevem as memórias de Ginzburg. Nelas, o vocabulário afetivo de
um clã de judeus antifascistas se contrapõe a um mundo sombrio,
atravessado pelo autoritarismo. Trata-se de uma história de resistência,
narrada em tom menor, e, sobretudo, da gênese de uma das escritoras mais
poderosas do nosso tempo.
"Natalia escreve com precisão e fluidez, com genuíno amor às pessoas e às
palavras." — Alejandro Zambra, em prefácio inédito escrito para esta
edição
"Uma obra-prima [...] Um romance que apresenta à geração de leitores de
Elena Ferrante a incomparável obra de Natalia Ginzburg." — The New
Yorker

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A origem dos outros
Morrison, Toni
9788554515843
152 páginas

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Toni Morrison, ganhadora do prêmio Nobel de literatura, reflete sobre


questões raciais, políticas públicas de imigração e outros temas
contemporâneos em ensaios pungentes e profundos.

Baseado nos discursos que Toni Morrison proferiu na universidade de


Harvard, A origem dos outros é uma busca de respostas para questões
históricas, políticas e literárias sobre o racismo e a radicalização da
identidade. Se o racismo é aprendido com exemplos cotidianos, a literatura
mostra-se uma arma fundamental para combater o problema.
Pensando nisso, a autora analisa autores desde Harriet Beecher Stowe até
Ernest Hemingway e William Faulkner para entender melhor o papel da
narrativa no estabelecimento dos padrões de pensamento racial.
A origem dos outros é um livro de atualidade extraordinária, no qual os
temas que estamos acostumados a ver banalizados e desencorajados no
debate público são abordados pela escritora americana com extrema
elegância.
Com prefácio de Ta-Nehisi Coates e ensaios intitulados "Romantizando a
escravidão", "Ser ou tornar-se o estrangeiro", "O fetiche da cor",
"Configurações de negritude", "Narrar o outro" e "O lar do estrangeiro", A
origem dos outros é um livro necessário de uma das mais importantes
intelectuais do século.

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Meninos de Zinco
Aleksiévitch, Svetlana
9788554516338
320 páginas

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A brutalidade da guerra soviético-afegã é retratada neste livro


extraordinário, com o olhar sempre preciso e humano de Svetlana
Aleksiévitch.

Entre 1979 e 1989, as tropas soviéticas se envolveram em uma guerra


devastadora no Afeganistão, que causou milhares de baixas em ambos os
lados. Enquanto a URSS falava de uma missão de "manutenção da paz",
levas e levas de mortos eram enviadas de volta para casa em caixões de
zinco lacrados. Este livro apresenta os testemunhos honestos de soldados,
médicos, enfermeiras, mães, esposas e irmãos que descrevem os efeitos
duradouros da guerra.
Ao tecer suas histórias, Svetlana Aleksiévitch nos mostra a verdade sobre o
conflito soviético-afegão: a destruição e a beleza de pequenos momentos
cotidianos, a vergonha dos veteranos que retornaram, as preocupações com
todos que ficaram para trás. Publicado pela primeira vez em 1991, Meninos
de zinco provocou enorme controvérsia por seu olhar perspicaz e
angustiante sobre as realidades da guerra.

"A proeza de Aleksiévitch elevou a história oral a uma dimensão totalmente


diversa." — Antony Beevor

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Sejamos todos feministas
Adichie, Chimamanda Ngozi
9788543801728
24 páginas

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O que significa ser feminista no século XXI? Por que o feminismo é


essencial para libertar homens e mulheres? Eis as questões que estão no
cerne de Sejamos todos feministas, ensaio da premiada autora de
Americanah e Meio sol amarelo. "A questão de gênero é importante em
qualquer canto do mundo. É importante que comecemos a planejar e sonhar
um mundo diferente. Um mundo mais justo. Um mundo de homens mais
felizes e mulheres mais felizes, mais autênticos consigo mesmos. E é assim
que devemos começar: precisamos criar nossas filhas de uma maneira
diferente. Também precisamos criar nossos filhos de uma maneira diferente.
"Chimamanda Ngozi Adichie ainda se lembra exatamente da primeira vez
em que a chamaram de feminista. Foi durante uma discussão com seu
amigo de infância Okoloma. "Não era um elogio. Percebi pelo tom da voz
dele; era como se dissesse: 'Você apoia o terrorismo!'". Apesar do tom de
desaprovação de Okoloma, Adichie abraçou o termo e — em resposta
àqueles que lhe diziam que feministas são infelizes porque nunca se
casaram, que são "anti-africanas", que odeiam homens e maquiagem —
começou a se intitular uma "feminista feliz e africana que não odeia
homens, e que gosta de usar batom e salto alto para si mesma, e não para os
homens". Neste ensaio agudo, sagaz e revelador, Adichie parte de sua
experiência pessoal de mulher e nigeriana para pensar o que ainda precisa
ser feito de modo que as meninas não anulem mais sua personalidade para
ser como esperam que sejam, e os meninos se sintam livres para crescer
sem ter que se enquadrar nos estereótipos de masculinidade.

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A barata
McEwan, Ian
9788554516291
104 páginas

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Com sua inteligência e verve peculiares, Ian McEwan dá tratamento


literário à experiência contemporânea de um mundo virado do avesso.

A frase de abertura de A barata, o novo livro de Ian McEwan, é um


evidente tributo à mais famosa obra de Franz Kafka, A metamorfose:
"Naquela manhã, Jim Sams, inteligente mas de forma alguma profundo,
acordou de um sonho inquieto e se viu transformado numa criatura
gigantesca".
Por meio dessa divertida inversão, McEwan cria a trama desta deliciosa
sátira política. Nela, Jim Sams é um inseto que, do dia para a noite, assume
a forma humana de primeiro-ministro da Grã-Bretanha.
Sua missão é realizar a vontade do povo, expressa na aprovação da Lei do
Reversalismo, que pretende remodelar o funcionamento da economia: as
pessoas pagarão para trabalhar e ganharão dinheiro por consumir. Além de
radical, a medida criaria uma enorme complicação na relação do Reino
Unido com os demais países. Trata-se, é claro, de uma engenhosa metáfora
para o Brexit.
Mas nada poderá deter o primeiro-ministro: nem a oposição, nem os
dissidentes de seu próprio partido, nem mesmo as regras da democracia
parlamentar.

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