As Pequenas Virtudes (Natalia Ginzburg)
As Pequenas Virtudes (Natalia Ginzburg)
As Pequenas Virtudes (Natalia Ginzburg)
Capa
Folha de rosto
Sumário
Advertência
PRIMEIRA PARTE
Inverno em Abruzzo
Os sapatos rotos
Retrato de um amigo
Elogio e lamento da Inglaterra
La Maison Volpé
Ele e eu
SEGUNDA PARTE
O filho do homem
O meu ofício
Silêncio
As relações humanas
As pequenas virtudes
Sobre a autora
Créditos
Advertência
Aí o pai mata a mulher com uma foice e a pendura num prego diante da
porta. Às vezes me pego murmurando as palavras dessa canção, e então
toda a cidade ressurge diante de mim, e com ela o sabor específico daquelas
estações, com o sopro gelado do vento e o repicar dos sinos.
Toda manhã eu saía com meus meninos, e o pessoal se espantava e
desaprovava que eu os expusesse ao frio e à neve. “Que mal fizeram essas
criaturas?”, diziam. “Não é tempo de passear, senhora. Volte para casa.”
Caminhávamos longamente pelos campos brancos e desertos, e as raras
pessoas que eu encontrava olhavam os meninos com piedade. “Mas que
pecado eles cometeram?”, me diziam. Lá, quando nasce uma criança no
inverno, não a levam para fora do quarto até que chegue o próximo verão.
Ao meio-dia meu marido vinha me encontrar com a correspondência, e
voltávamos todos juntos para casa.
Eu falava aos meninos da nossa cidade. Eram muito pequenos quando a
deixamos, não tinham nenhuma lembrança dela. Eu lhes dizia que lá as
casas tinham muitos andares, havia muitas casas e muitas ruas e uma porção
de lojas lindas. “Mas aqui também tem Girò”, diziam os meninos.
A venda de Girò ficava bem em frente à nossa casa. Girò se postava na
porta feito uma velha coruja, seus olhos redondos e indiferentes fixos na
rua. Vendia um pouco de tudo: gêneros alimentícios e velas, cartões,
sapatos e laranjas. Quando a mercadoria chegava e Girò descarregava as
caixas, os meninos corriam para comer as laranjas podres que ele jogava
fora. No Natal chegavam também os torrones, os licores, as balas. Mas ele
não abaixava um centavo do preço. “Como você é mau, Girò”, lhe diziam
as mulheres. E ele respondia: “Quem é bom vira comida de cachorro”. No
Natal os homens voltavam de Terni, de Sulmona, de Roma, ficavam uns
dias e tornavam a partir, depois de terem abatido os porcos. Por alguns dias
só se comia torresmo ou linguiça e só se fazia beber: depois os berros dos
leitõezinhos novos enchiam as estradas.
Em fevereiro o ar se tornava úmido e macio. Nuvens cinzentas e
carregadas vagavam pelo céu. Houve um ano em que, durante o degelo, as
calhas se romperam. Então começou a chover dentro de casa, e os quartos
eram verdadeiros pântanos. Mas foi assim em todo o vilarejo: nem uma só
casa ficou seca. As mulheres esvaziavam os baldes pelas janelas e varriam a
água das portas. Teve gente que foi para a cama de guarda-chuva.
Domenico Orecchia dizia que era o castigo por algum pecado. Isso durou
mais de uma semana; depois, finalmente toda a neve desapareceu dos
telhados e Aristide consertou as calhas.
O fim do inverno despertava em nós uma inquietude. Talvez alguém
viesse nos visitar: talvez finalmente acontecesse alguma coisa. Nosso exílio
afinal devia ter um fim. Os caminhos que nos separavam do mundo
pareciam mais curtos: a correspondência chegava com mais frequência.
Todas as nossas frieiras melhoravam lentamente.
Há certa uniformidade monótona nos destinos dos homens. Nossa
existência se desenvolve segundo leis antigas e imutáveis, segundo uma
cadência própria, uniforme e antiga. Os sonhos nunca se realizam, e assim
que os vemos em frangalhos compreendemos subitamente que as alegrias
maiores de nossa vida estão fora da realidade. Assim que os vemos em
pedaços, nos consumimos de saudade pelo tempo em que ferviam em nós.
Nossa sorte transcorre nessa alternância de esperanças e nostalgias.
Meu marido morreu em Roma, nas prisões de Regina Coeli, poucos
meses depois de termos deixado o vilarejo. Diante do horror de sua morte
solitária, diante das angustiantes vacilações que a antecederam, eu me
pergunto se isso aconteceu a nós, a nós, que comprávamos as laranjas de
Girò e íamos passear na neve. Na época eu tinha fé num futuro fácil e feliz,
rico de desejos satisfeitos, de experiências e de conquistas em comum. Mas
aquele era o tempo melhor da minha vida, e só agora, que me escapou para
sempre, só agora eu sei.
* “Deus nos concedeu este descanso”, palavras com que Virgílio agradece a Augusto nas Éclogas,
usadas quase sempre de modo satírico. [Todas as notas são do tradutor.]
** Cantiga em dialeto. Tradução livre: “Minha madrasta malvada/ Cozinhou-me num caldeirão/ E
meu pai glutão/ Devorou-me numa grande garfada”.
Os sapatos rotos
A cidade que era amada por nosso amigo continua a mesma; há algumas
mudanças, mas coisa pouca: puseram uns trólebus, fizeram umas passagens
subterrâneas. Não há cinemas novos. Os antigos são sempre os mesmos,
com os velhos nomes: nomes que, quando os repetimos, despertam em nós
a juventude e a infância. Agora moramos em outro lugar, numa cidade bem
diferente e maior: e, se nos encontramos e falamos de nossa cidade, falamos
sem nos queixarmos de tê-la deixado e dizemos que agora já não
poderíamos viver lá. No entanto, quando voltamos para lá, basta atravessar
o átrio da estação e caminhar na neblina das avenidas para nos sentirmos
em casa; e a tristeza que a cidade nos inspira toda vez que regressamos a ela
está nesse sentir-se em casa e sentirmos ao mesmo tempo que nós, em nossa
casa, não temos mais motivo para estar; porque aqui, em nossa casa, em
nossa cidade, na cidade onde passamos a juventude, permanecem agora
poucas coisas vivas, e somos acolhidos por uma massa de memórias e de
sombras.
De resto, nossa cidade é melancólica por natureza. Nas manhãs de
inverno, ela tem um cheiro peculiar de estação e fuligem, difuso em todas
as ruas e alamedas; chegando de manhã, a encontramos cinzenta de névoa e
envolvida nesse seu cheiro. De vez em quando se infiltra através da neblina
um sol fraco, que tinge de rosa e lilás os amontoados de neve, os galhos nus
das árvores; nas ruas e avenidas a neve foi varrida e concentrada em
pequenos montinhos, mas os jardins públicos ainda estão enterrados sob
uma grossa camada intacta e macia, da altura de um dedo, sobre os bancos
abandonados e nas margens dos chafarizes; o relógio do campo de hipismo
está parado há tempos imemoriais, marcando quinze para as onze. Para lá
do rio se ergue a colina, igualmente branca de neve, mas manchada aqui e
ali por uns arbustos avermelhados; e no cume da colina campeia uma
construção de cor laranja e forma circular, que noutros tempos foi a Ópera
Nacional Balilla. Se há um pouco de sol e a cúpula de vidro do Salão do
Automóvel resplandece, e o rio escorre com uma cintilação verde sob as
grandes pontes de pedra, a cidade pode até parecer, por um instante,
sorridente e hospitaleira: mas é uma impressão fugaz. A natureza essencial
da cidade é a melancolia: o rio, perdendo-se na distância, evapora num
horizonte de névoas violáceas que faz pensar no pôr do sol, ainda que seja
meio-dia; e em toda parte se respira aquele mesmo cheiro abafado e
laborioso de fuligem e se escuta um apito de trem.
Nossa cidade se parece — só agora nos damos conta disso — com o
amigo que perdemos e que a amava; ela é, assim como ele era, intratável
em sua operosidade febril e obstinada; e é ao mesmo tempo desinteressada
e disposta ao ócio e ao sonho. Na cidade que se parece com ele, sentimos
nosso amigo reviver por todos os lados: em cada esquina e em cada canto
achamos que de repente possa aparecer sua alta figura de capote escuro
cintado, o rosto escondido na gola, o chapéu enterrado nos olhos. O amigo
media a cidade com seu longo passo, obstinado e solitário; se entocava nos
cafés mais apartados e fumarentos, livrava-se rapidamente do capote e do
chapéu, mas mantinha jogada ao pescoço sua feia echarpe clara; retorcia
entre os dedos os longos cachos de cabelos castanhos e então se
despenteava de repente com um movimento fulminante. Enchia folhas e
folhas com sua caligrafia larga e rápida, cortando com fúria; e celebrava a
cidade em seus versos:
Questo è il giorno che salgono le nebbie dal fiume
Nella bella città, in mezzo a prati e colline,
E la sfumano come un ricordo...*
Ele sempre tem calor; eu, sempre frio. No verão, quando realmente está
quente, só faz se lamentar do grande calor que sente. E se irrita quando me
vê vestindo um pulôver à noite.
Ele sabe falar bem algumas línguas; eu não falo bem nenhuma. Ele
consegue até falar, num modo todo seu, certas línguas que desconhece.
Ele tem um grande senso de orientação; eu, nenhum. Em cidades
estrangeiras, depois de um dia, ele se movimenta com a leveza de uma
borboleta. Eu me perco em minha própria cidade e preciso pedir
informações para voltar para casa. Ele odeia pedir informações; quando
andamos por cidades desconhecidas, de carro, se recusa a pedir indicações e
me manda olhar o mapa. Eu não sei decifrar os mapas, me confundo com
aquelas bolinhas vermelhas, e ele se irrita.
Ele adora teatro, pintura e música — especialmente a música. Eu não
entendo nada de música, me interesso bem pouco por pintura e me entedio
no teatro. Amo e compreendo uma só coisa no mundo, que é a poesia.
Ele ama os museus, e eu o acompanho com esforço, com uma
desagradável sensação de dever e de cansaço. Ele ama as bibliotecas, e eu
as odeio.
Ele ama as viagens, as cidades estrangeiras e desconhecidas, os
restaurantes. Eu ficaria sempre em casa, sem sair nunca.
No entanto o acompanho em muitas viagens. Vou aos museus, às igrejas,
à ópera. Vou até aos concertos, e durmo.
Como ele conhece muitos maestros e cantores, gosta de ir, após o
espetáculo, confraternizar com eles. Eu o sigo por intermináveis corredores
que conduzem aos camarins dos cantores e o escuto falando com pessoas
vestidas de cardeais e de reis.
Não é tímido; e eu sou tímida. Certas vezes, porém, o vi tímido. Com os
policiais, quando se aproximam do nosso carro armados de lápis e bloco.
Diante deles se torna tímido, sentindo-se em falta.
E mesmo não se sentindo em falta. Creio que nutra um respeito pela
autoridade constituída.
Eu tenho medo da autoridade constituída; ele, não. Ele sente respeito. É
diferente. Se vejo um policial se aproximando para nos multar, logo penso
que vai nos levar para a cadeia. Já ele não pensa na cadeia; mas, por
respeito, se torna tímido e gentil.
Por isso, por seu respeito diante da autoridade constituída, na época do
julgamento de Montesi* nós brigamos até o delírio.
Ele gosta de talharim, de cordeiro, de cerejas, de vinho tinto. Eu gosto de
minestrone, de açorda, de fritada, de verduras.
Ele costuma me dizer que eu não entendo nada em matéria de comida; e
que sou como certos frades robustos, que devoram sopa de legumes à
sombra de seus conventos; já ele, ele é um refinado, de paladar sensível.
Nos restaurantes, se informa demoradamente sobre os vinhos; manda trazer
duas ou três garrafas, as observa e reflete, cofiando a barba bem devagar.
Na Inglaterra há certos restaurantes em que o garçom cumpre este
pequeno cerimonial: serve ao cliente dois dedos de vinho na taça para que
ele diga se é de seu agrado. Ele odiava este pequeno cerimonial; e todas as
vezes impedia o garçom de cumpri-lo, tirando-lhe a garrafa das mãos. Eu o
desaprovava, observando que a cada um deve ser permitido levar a cabo
suas próprias atribuições.
Assim, no cinema, nunca deixa que a lanterninha o acompanhe até seu
lugar. Saca logo uma gorjeta, mas sempre foge para lugares diferentes
daqueles que a lanterninha lhe indica com a luz.
No cinema, faz questão de se sentar muito perto da tela. Quando vamos
com amigos e todos procuram, como a maior parte das pessoas, um lugar
afastado da tela, ele se refugia sozinho numa das primeiras filas. Eu vejo
bem, indiferentemente, de perto e de longe; mas, estando com amigos, fico
com eles, por gentileza; no entanto sofro, porque pode ser que ele, em seu
lugar a dois palmos da tela, fique aborrecido comigo porque não me sentei a
seu lado.
Nós dois adoramos cinema; e estamos sempre dispostos a assistir, em
qualquer momento do dia, a qualquer espécie de filme. Mas ele conhece a
história do cinema em cada mínimo detalhe; lembra-se de diretores e de
atores, inclusive dos mais antigos, há muito tempo desaparecidos e
esquecidos; e está pronto a andar quilômetros, nas mais remotas periferias,
em busca de filmes antiquíssimos, da era do mudo, onde quem sabe
aparecerá por poucos segundos um ator querido de suas mais longínquas
memórias de infância. Recordo, em Londres, a tarde de um domingo;
exibiam num subúrbio distante, nos limites da zona rural, um filme sobre a
Revolução Francesa, um filme dos anos 1930, que ele tinha visto quando
era menino, no qual aparecia por alguns instantes uma atriz famosa naquele
tempo. Saímos de carro à procura daquela rua perdida nas lonjuras; estava
chovendo, havia neblina, vagamos horas e horas por subúrbios todos iguais,
entre filas cinzentas de pequenas casas, calhas, lampiões e cancelas; sobre
os joelhos eu tinha um mapa aberto, que não conseguia decifrar, e ele se
irritava; por fim, encontramos o cinema e nos sentamos numa sala
completamente deserta. Mas, depois de quinze minutos, ele já queria ir
embora, logo após a breve aparição da atriz que ele adorava; eu, porém,
depois de tanta estrada, queria ver como o filme terminava. Não me lembro
se prevaleceu a vontade dele ou a minha; talvez a dele, e a gente tenha ido
embora depois de quinze minutos; até porque já estava escuro e, embora a
gente tivesse saído de casa no início da tarde, já era hora do jantar. No
entanto, ao lhe pedir que me contasse como a história acabava, não obtive
nenhuma resposta que me contentasse; porque — ele dizia — a história não
tinha importância nenhuma, a única coisa que contava eram aqueles poucos
instantes, o perfil, o gesto, os caracóis daquela atriz.
Nunca me lembro do nome dos atores; e, como não sou boa fisionomista,
às vezes tenho dificuldade de reconhecer até os mais famosos. Isso o irrita
muitíssimo; pergunto-lhe quem é sicrano ou beltrano, suscitando seu
desdém; “não vá me dizer”, diz, “não vá me dizer que não reconheceu
William Holden!”.
E de fato eu não tinha reconhecido William Holden. Apesar disso,
também amo o cinema; mas, mesmo assistindo a filmes há tantos anos, eu
não soube formar uma cultura cinematográfica. Ele, ao contrário, formou
essa cultura: formou uma cultura sobre tudo o que atrai sua curiosidade; e
eu não soube formar uma cultura sobre coisa nenhuma, nem sobre as coisas
que mais amei na vida: elas ficaram em mim como imagens esparsas,
alimentando minha vida de memórias e de emoções, mas sem preencher o
vazio, o deserto de minha cultura.
Ele me diz que me falta curiosidade: mas não é verdade. Sinto
curiosidade por poucas, pouquíssimas coisas; e, depois de conhecê-las,
conservo delas algumas imagens esparsas, a cadência de uma frase ou de
uma palavra. Mas meu universo, onde tais cadências e imagens afloram
isoladas umas das outras sem estar ligadas por nenhuma trama senão
secreta, a mim mesma desconhecida e invisível, é árido e melancólico. Já o
universo dele é exuberantemente verde, exuberantemente povoado e
cultivado, um campo fértil e irrigado onde surgem bosques, pastos, hortos e
vilarejos.
Para mim, qualquer atividade é sumamente difícil, árdua, incerta. Sou
muito preguiçosa e tenho uma absoluta necessidade de não fazer nada,
sobretudo se quero concluir alguma coisa, e ficar deitada por longas horas
nos sofás. Ele nunca está ocioso, sempre faz alguma coisa; escreve à
máquina com extrema rapidez, com o rádio ligado; quando vai descansar de
tarde, leva provas de livro para corrigir ou um volume cheio de notas; no
mesmo dia, quer que a gente vá ao cinema, depois a uma recepção, depois
ao teatro. No mesmo dia, consegue fazer — e me convencer a fazer — um
mundo de coisas diferentes, encontrando as pessoas mais disparatadas;
quanto a mim, se estou sozinha e tento fazer que nem ele, não chego a lugar
nenhum, porque, ali onde pretendia ficar só meia hora, me vejo bloqueada
pelo resto da tarde, ou porque me perco e não acho as ruas certas, ou porque
a pessoa mais tediosa e que eu menos queria ver me arrasta ao lugar aonde
eu menos desejava ir.
Se conto a ele como foi minha tarde, ele a considera uma tarde perdida e
se diverte, debocha de mim e se irrita; e diz que eu, sem ele, não sirvo para
nada.
Eu não sei administrar o tempo. Ele sabe.
Adora as recepções. Vai vestido de terno claro, quando todos estão
vestidos de escuro; a ideia de mudar de roupa para ir a uma recepção nem
lhe passa pela cabeça. Vai inclusive com seu velho impermeável e com o
chapéu desbeiçado: um chapéu de lã que comprou em Londres e que usa
enterrado até os olhos. Fica ali somente meia hora, pois ele gosta de
conversar por meia hora com um copo na mão; come muitos salgadinhos, e
eu, quase nenhum, porque ao vê-lo comer tantos penso que, por educação e
decoro, pelo menos eu devo abster-me de comer; depois de meia hora,
quando começo a ambientar-me um pouco e a me sentir bem, ele fica
impaciente e me leva embora.
Eu não sei dançar, e ele sabe.
Não sei escrever à máquina; e ele sabe.
Não sei guiar automóvel. Se lhe proponho também tirar a habilitação, ele
não quer. Diz que eu nunca vou conseguir mesmo. Acho que ele gosta que
eu dependa dele, em tantos aspectos.
Não sei cantar, e ele sabe. É um barítono. Se tivesse estudado canto,
quem sabe teria se tornado um cantor famoso.
Se tivesse estudado música, talvez tivesse sido um grande maestro.
Quando ouve os discos, rege a orquestra com um lápis. Enquanto isso,
escreve à máquina e atende o telefone. É um homem que consegue fazer
muitas coisas ao mesmo tempo.
É professor, e creio que seja bom nisso.
Poderia ter seguido várias profissões. Mas não lamenta nenhuma das que
descartou. Eu só poderia fazer um ofício, um ofício apenas: o ofício que
escolhi, e que sigo, quase desde a infância. Também não lamento nenhuma
das profissões que não segui: de qualquer modo, eu não saberia fazer outra
coisa.
Escrevo histórias, e trabalhei muitos anos numa editora.
Não trabalhava mal, mas tampouco bem. Entretanto me dava conta de
que talvez não soubesse trabalhar em nenhum outro lugar. Tinha relações de
amizade com meus companheiros de trabalho e com meu patrão. Sentia
que, se não tivesse tido ao meu redor essas relações de amizade, teria me
apagado e não saberia mais trabalhar.
Cultivei por muito tempo a ideia de um dia poder trabalhar com roteiros
de cinema. Mas nunca tive a ocasião, ou não soube ir atrás dela. Agora já
perdi as esperanças de poder trabalhar com roteiros. Ele trabalhou com
roteiros certa época, quando era mais jovem. Trabalhou também numa
editora. Escreveu histórias. Ele fez todas as coisas que eu fiz, e mais muitas
outras.
Imita bem as pessoas, especialmente uma velha condessa. Talvez pudesse
ter sido até ator.
Uma vez, em Londres, cantou num teatro. Era Jó. Teve de alugar um
fraque; e estava lá, de fraque, diante de uma espécie de púlpito; e cantava.
Cantava as palavras de Jó; algo entre o recitativo e o canto. Eu, num
camarote, morria de medo. Tinha medo de que se engasgasse, ou que a
calça do fraque arriasse.
Estava cercado por homens de fraque e senhoras com vestidos de noite,
que eram os anjos e os diabos e as outras personagens de Jó.
Foi um grande sucesso, e lhe disseram que ele era muito bom.
Se eu gostasse de música, a teria amado com paixão. Porém não a
entendo; e nos concertos, quando ele às vezes me força a acompanhá-lo, me
distraio e fico pensando em minhas coisas. Ou então caio num profundo
sono.
Gosto de cantar. Não sei cantar, sou desafinadíssima; mas canto de vez
em quando, bem baixinho, nos momentos em que estou sozinha. Sei que
sou muito desafinada porque todos me dizem; minha voz deve ser como o
miado de um gato. Mas eu, por mim, não percebo nada; e sinto, ao cantar,
um profundo prazer. Se ele me ouve, começa a me arremedar; diz que meu
canto é algo que está fora da música; algo inventado por mim.
Quando era menina, murmurava certas melodias que eu mesma
inventava. Era uma longa melopeia lamentosa, que me enchia os olhos de
lágrimas.
Não me importo se não entendo a pintura, as artes figurativas; mas sofro
por não amar a música, porque me parece que meu espírito sofre com a
privação desse amor. Mas não há nada a fazer; nunca vou entender a
música, nem vou amá-la. Se às vezes escuto uma música que me agrada,
não consigo recordá-la; e como poderia amar uma coisa que não sei
recordar?
De uma canção, lembro das palavras. Posso repetir ao infinito as palavras
que amo. Repito também o motivo que as acompanha, mas a meu modo,
com os meus miados; e experimento, miando assim, uma espécie de
felicidade.
Tenho a impressão de seguir, quando escrevo, uma cadência e um metro
musical. Talvez a música estivesse muito próxima do meu universo; e meu
universo, sabe-se lá por que, não a acolheu.
Todo dia se ouve música em nossa casa. Ele deixa o rádio ligado o dia
inteiro. Ou põe discos. De vez em quando eu protesto, peço um pouco de
silêncio para poder trabalhar; mas ele diz que uma música tão bela é
certamente salutar para qualquer trabalho.
Comprou um número incrível de discos. Possui — diz ele — uma das
discotecas mais belas do mundo.
De manhã, metido num roupão e ainda gotejante da água do banho, liga o
rádio, se senta diante da máquina de escrever e começa sua laboriosa,
tempestuosa e rumorosa jornada. É excessivo em tudo: enche a banheira até
que ela transborde; enche a chaleira e a xícara até fazê-las derramar. Tem
um número enorme de camisas e gravatas. Mas raramente compra sapatos.
Desde menino, segundo a mãe, era um modelo de ordem e precisão; e
parece que certa vez em que teve de atravessar riachos cheios de lama, num
dia de chuva no campo, com botinhas brancas e roupa branca, no final do
passeio estava imaculado, sem uma mancha de lama na roupa ou nas botas.
Agora não há mais nada nele do antigo, imaculado menino. Suas roupas
estão sempre cheias de manchas. Tornou-se o rei da desordem.
Conserva, porém, minuciosamente, todas as contas de gás. Nas gavetas
encontro antigas contas de gás ou recibos de hotéis deixados há tempos, que
ele se recusa a jogar fora.
Também encontro charutos toscanos, velhíssimos e ressecados, e
boquilhas de cerejeira.
Eu fumo cigarros Stop, longos, sem filtro. Ele, às vezes, os charutos
toscanos.
Eu sou muito desordenada. Mas ao envelhecer me tornei saudosa da
ordem, e por isso às vezes reordeno os armários com grande zelo. Uma
lembrança, creio, de minha mãe. Reorganizo os armários dos lençóis, dos
cobertores, e forro cada gaveta, no verão, com panos cândidos. Raramente
organizo meus papéis, porque minha mãe, não tendo o costume de escrever,
não tinha papéis. Minha ordem e minha desordem são cheias de remorso, de
pesar, de sentimentos complexos. A desordem dele é triunfante. Decidiu
que, para uma pessoa como ele, que estuda, ter a mesa em desordem é
legítimo e justo.
Ele não melhora, em mim, a indecisão, a incerteza em cada ação, o
sentimento de culpa. Costuma rir e caçoar de mim por qualquer coisa que
eu faça. Se vou às compras no mercado, ele às vezes me segue, escondido, e
me espia. Depois debocha de mim pelo modo como fiz as compras, como
sopesei as laranjas na mão, escolhendo cuidadosamente, ele diz, as piores
de todo o mercado, zomba porque demorei uma hora nas compras, comprei
as cebolas numa banca, em outra o aipo, em outra as frutas. Às vezes é ele
quem faz as compras, para me mostrar como se pode fazê-las muito mais
rápido: compra tudo numa única banca, sem nenhum titubeio; e consegue
que mandem o cesto para casa. Não compra aipo, porque não o suporta.
Assim, e cada vez mais, tenho a sensação de errar em cada coisa que
faço. Mas, se alguma vez descubro que foi ele quem errou, repito isso até a
exasperação. Porque às vezes sou chatíssima.
Suas raivas são repentinas, transbordam feito espuma de chope. Minhas
raivas também são repentinas. Mas as dele evaporam logo; já as minhas
deixam um rastro lamentoso e insistente, acho que muito enfadonho, uma
espécie de miado amargo.
Às vezes choro durante o turbilhão de suas fúrias; e meu choro, em vez
de compadecê-lo e aplacá-lo, deixa-o ainda mais furioso. Diz que meu
choro é somente uma comédia; e talvez seja verdade. Porque, em meio às
minhas lágrimas e à sua fúria, me mantenho plenamente tranquila.
Sobre minhas dores reais, não choro nunca.
Antigamente, em meus acessos de fúria, costumava atirar pratos e louças
no chão. Mas agora, não. Talvez porque eu tenha envelhecido e minhas
crises de raiva sejam menos violentas; além disso, não teria coragem de
tocar em nossos pratos, aos quais me afeiçoei e que um dia compramos em
Londres, na Portobello Road.
O preço desses pratos e de muitas outras coisas que compramos sofreu,
na memória dele, uma forte desvalorização. Porque ele gosta de pensar que
gastou pouco, que fez um bom negócio. Eu sei o preço daquele aparelho de
jantar, que custou dezesseis libras esterlinas; mas ele diz que foram doze. O
mesmo com o quadro do rei Lear que está em nossa sala de jantar: um
quadro que ele também comprou na Portobello, e que limpou com cebolas e
batatas; e agora diz ter pagado por ele uma cifra bem menor daquela que me
lembro.
Anos atrás, comprou doze tapetes de cama no Standard. Comprou porque
estavam baratos, e ele achou bom fazer um estoque; comprou para criar
polêmica, por pensar que eu não sei comprar nada para a casa. Esses
tapetinhos de esteira de vime cor de vinho se tornaram em pouco tempo
repulsivos: ficaram de uma rigidez cadavérica; e eu os odiava, ali,
pendurados no arame da área da cozinha. Eu costumava jogá-los na cara
dele, como exemplo de má despesa; mas ele dizia que tinham custado
pouco, pouquíssimo, quase nada. Foi preciso um bom tempo antes de
conseguir jogá-los no lixo: porque eram realmente muitos, e também
porque, no momento de jogá-los fora, fiquei em dúvida se não poderiam
servir de trapo. Temos, eu e ele, certa dificuldade em jogar as coisas fora:
em mim, deve ser uma forma judaica de preservação, e também fruto de
minha grande incerteza; nele, deve ser uma defesa à sua falta de parcimônia
e sua impulsividade.
Ele costuma comprar, em grande quantidade, bicarbonato e aspirina.
Às vezes adoece de seus misteriosos achaques; não sabe explicar o que
sente; fica na cama por um dia, todo enrolado nos lençóis; só se vê sua
barba, e a ponta do nariz vermelho. Então ele toma bicarbonato e aspirina
em doses cavalares; e diz que eu não posso entendê-lo, porque eu, eu estou
sempre bem, sou como aqueles fradalhões robustos, que se expõem sem
perigo ao vento e às intempéries; ele, ao contrário, é fino e delicado, sofre
de doenças misteriosas. À noite já está curado, e vai à cozinha fazer
talharim.
Quando jovem, era bonito, magro, esbelto, ainda não usava barba, mas
bigodes longos e macios; e se parecia com o ator Robert Donat. Era assim
quase vinte anos atrás, quando o conheci; e vestia, lembro bem, camisas
escocesas de flanela, elegantes. Lembro que certa noite me acompanhou até
a pensão onde eu morava; caminhamos juntos pela via Nazionale. Eu já me
sentia muito velha, carregada de experiência e de erros; e ele me parecia um
rapaz, mil séculos longe de mim. O que nos dissemos naquela noite, na via
Nazionale, não consigo lembrar; nada de importante, suponho; a ideia de
que um dia nos tornaríamos marido e mulher estava séculos distante de
mim. Depois nos perdemos de vista; e, quando nos encontramos de novo,
não se parecia mais com Robert Donat, e sim com Balzac. Quando nos
encontramos de novo, ainda usava aquelas camisas escocesas; mas agora
elas pareciam, nele, indumentos para uma expedição polar; agora usava
barba e, na cabeça, o desbeiçado chapeuzinho de lã; e tudo nele fazia pensar
numa partida iminente para o polo Norte. Porque, mesmo sempre sentindo
calor, ele costuma vestir-se como se estivesse cercado de neve, de gelo e de
ursos-brancos; ou então se veste como um plantador de café no Brasil; mas
sempre se veste diferente de toda a gente.
Se lhe recordo aquele nosso antigo passeio pela via Nazionale, ele diz
que se lembra, mas eu sei que está mentindo e não se lembra de nada; às
vezes me pergunto se éramos nós, aquelas duas pessoas, quase vinte anos
atrás pela via Nazionale; duas pessoas que conversaram tão gentilmente,
civilizadamente, no sol que se punha; que talvez tenham falado um pouco
de tudo, e de nada; dois amáveis conversadores, dois jovens intelectuais a
passeio; tão jovens, tão educados, tão distraídos, tão dispostos a fazer um do
outro um juízo distraidamente benévolo; tão dispostos a despedir-se um do
outro para sempre, naquele pôr do sol, naquela esquina de rua.
* Em 1953, a jovem Wilma Montesi foi encontrada morta em uma praia italiana. Com graves
implicações políticas, o caso nunca foi solucionado.
SEGUNDA PARTE
O filho do homem
O meu ofício é escrever, e sei bem disso há muito tempo. Espero não ser
mal-entendida: não sei nada sobre o valor daquilo que posso escrever. Sei
que escrever é o meu ofício. Quando me ponho a escrever, sinto-me
extraordinariamente à vontade e me movo num elemento que tenho a
impressão de conhecer extraordinariamente bem: utilizo instrumentos que
me são conhecidos e familiares e os sinto bem firmes em minhas mãos. Se
faço qualquer outra coisa, se estudo uma língua estrangeira, se tento
aprender história ou geografia ou estenografia ou se tento falar em público
ou tricotar uma malha ou viajar, sofro e me pergunto continuamente como é
que os outros conseguem fazer essas coisas, e sempre acho que deve haver
um modo certo de fazer essas mesmas coisas, um modo que os outros
conhecem e que eu desconheço. E tenho a impressão de ser cega e surda e
sinto como uma náusea dentro de mim. Já quando escrevo nunca penso que
talvez haja um modo mais correto, do qual os outros escritores se servem.
Não me importa nada o modo dos outros escritores. O fato é que só sei
escrever histórias. Se tento escrever um ensaio de crítica ou um artigo sob
encomenda para um jornal, a coisa sai bem ruim. O que escrevo nesses
casos, tenho de ir buscar penosamente fora de mim. Posso fazê-lo um pouco
melhor do que estudar uma língua estrangeira ou falar em público, mas só
um pouco melhor. E sempre tenho a sensação de enganar o próximo com
palavras tomadas de empréstimo ou furtadas aqui e ali. E sofro e me sinto
em exílio. Entretanto, quando escrevo histórias, sou como alguém que está
em seu país, nas ruas que conhece desde a infância, entre as árvores e os
muros que são seus. O meu ofício é escrever histórias, coisas inventadas ou
coisas que recordo de minha vida, mas sempre histórias, coisas que não têm
a ver com a cultura, mas somente com a memória e a fantasia. Este é o meu
ofício, e eu o farei até a morte. Estou muito contente com este ofício e não o
trocaria por nada no mundo. Compreendi que era meu ofício muito tempo
atrás. Entre os cinco e os dez anos ainda tinha dúvidas e às vezes imaginava
que podia pintar, ou conquistar países a cavalo, ou inventar novas máquinas
muito importantes. Mas a partir dos dez anos eu soube, e empenhei-me
como pude em romances e poemas. Ainda tenho aqueles poemas. Os
primeiros são desajeitados e com versos errados, mas bastante divertidos:
no entanto, à medida que o tempo passava, fazia poemas cada vez menos
canhestros, mas sempre mais tediosos e idiotas. Mas não sabia disso e me
envergonhava dos poemas desajeitados, enquanto os não tão canhestros,
mas idiotas, me pareciam lindos, e eu sempre pensava que um dia ou outro
algum poeta famoso os descobriria e publicaria e escreveria longos artigos
sobre mim, chegava a imaginar palavras e frases daqueles artigos e os
escrevia dentro de mim por inteiro. Pensava que ganharia o prêmio
Fracchia. Tinha ouvido dizer que havia esse prêmio para os escritores. Não
podendo publicar meus poemas em livro, visto que na época não conhecia
nenhum poeta famoso, eu os copiava com capricho num caderno e
desenhava uma florzinha no frontispício e fazia um sumário e tudo mais.
Para mim, escrever poemas se tornara muito fácil. Criava quase um por dia.
Percebera que, se não tivesse vontade de escrever, bastava ler uns poemas
de Pascoli ou de Gozzano ou de Corazzini para logo recuperar a vontade.
Eles me vinham ou pascolianos, ou gozzanianos, ou corazzinianos, e por
último muito dannunzianos, quando descobri que ele também existia. Mas
nunca pensei que escreveria poemas por toda a vida, mais cedo ou mais
tarde eu queria escrever romances. Escrevi três ou quatro naqueles anos.
Havia um intitulado Marion ou a ciganinha e outro intitulado Molly e Dolly
(policial e cômico) e outro intitulado Uma mulher (dannunziano; em
segunda pessoa; história de uma mulher abandonada pelo marido: lembro
até que havia uma cozinheira negra) e depois um muito longo e complicado,
com histórias terríveis de garotas raptadas e de carroças, eu tinha até medo
de escrevê-lo quando estava sozinha em casa: não me lembro de nada,
lembro apenas que havia uma frase que me agradava muitíssimo e me
vieram lágrimas aos olhos quando a escrevi: “Ele disse: Ah, Isabella
parte!”. O capítulo terminava com esta frase, que era muito importante
porque quem a pronunciava era o homem que estava apaixonado por
Isabella, mas sem saber, pois ainda não tinha confessado a si mesmo. Não
lembro nada daquele homem, acho que tinha uma barba ruiva, enquanto
Isabella tinha longos cabelos negros com reflexos azulados, só sei isso: sei
que por muito tempo senti um arrepio de contentamento quando repetia
para mim: “Ah, Isabella parte!”. Também repetia frequentemente uma frase
que encontrara num romance de folhetim publicado na Stampa e que dizia
assim: “Assassino de Gilonne, onde você pôs o meu menino?”. Mas eu não
estava tão segura dos meus romances quanto dos poemas. Relendo-os,
sempre descobria neles um lado fraco, algo de errado, que arruinava tudo e
eu não conseguia modificar. Enquanto isso eu patinava sempre entre o
moderno e o antigo, não conseguia localizá-los bem no tempo: em parte
havia conventos e carroças e um ar de Revolução Francesa, e em parte
havia policiais com cassetetes; e de repente despontava uma pequena
burguesia cinzenta, com máquinas de costura e gatos, como nos livros de
Carola Prosperi, e isso ficava muito mal ao lado das carroças e dos
conventos. Eu vagueava entre Carola Prosperi, Victor Hugo e as histórias de
Nick Carter, sem saber muito bem o que queria fazer. Também adorava
Annie Vivanti. Há uma frase nos Divoratori, quando ela escreve ao
desconhecido e lhe diz: “Minha veste é escura”. Esta também é uma frase
que repeti muito tempo para mim. Durante o dia, murmurava estas frases
que me agradavam tanto: “Assassino de Gilonne”, “Isabella parte”, “minha
veste é escura”, e me sentia imensamente feliz.
Escrever poemas era fácil. Meus poemas me agradavam muito, me
pareciam quase perfeitos. Não entendia qual a diferença entre eles e os
poemas verdadeiros, publicados, dos verdadeiros poetas. Não entendia por
que, quando os mostrava a meus irmãos, eles davam risinhos e me diziam
que seria melhor se eu estudasse grego. Pensava que meus irmãos talvez
não entendessem tanto de poesia. Enquanto isso, eu devia ir à escola e
estudar grego, latim, matemática, história, sofrendo muito e me sentindo
exilada. Passava dias inteiros escrevendo meus poemas e copiando-os nos
cadernos, sem fazer as lições, e por isso ajustava o despertador para as
cinco da manhã. O despertador tocava, mas eu não acordava. Acordava às
sete, quando não havia mais tempo de estudar e eu precisava me vestir para
ir à escola. Não me sentia bem, tinha sempre um medo enorme e um
sentimento de culpa e de desordem. Na escola, na hora do latim eu estudava
história, na hora de história, o grego, sempre assim, e não aprendia nada.
Por um bom tempo achei que valesse a pena, porque meus poemas eram
muito bonitos, mas a certa altura passei a duvidar de que fossem tão belos
assim, e comecei a me aborrecer ao escrevê-los, a buscar assuntos com
esforço, tinha a impressão de já ter esgotado todos os assuntos possíveis, de
já ter usado todas as palavras e rimas: esperança lembrança, pensamento
encantamento, vento argento, bonança esperança. Não encontrava mais
nada a dizer. Então começou um período péssimo para mim, e passava as
tardes a ciscar entre palavras que já não me davam nenhum prazer, com um
sentimento de culpa e vergonha em relação à escola; nunca me passava pela
cabeça a hipótese de ter errado de ofício, escrever era o que eu queria, mas
simplesmente não entendia por que de repente os dias para mim se tornaram
tão áridos e pobres de palavras.
A primeira coisa séria que escrevi foi um conto. Um conto curto, de
cinco ou seis páginas: saiu de mim como um milagre, numa noite, e quando
finalmente fui dormir estava exausta, atônita, estupefata. Tive a impressão
de que era uma coisa séria, a primeira que fiz: os poemas e os romances
com as garotas e as carroças de repente me pareciam muito distantes, numa
época desaparecida para sempre, criaturas ingênuas e ridículas de uma outra
era. Nesse novo conto havia personagens. Isabella e o homem da barba
ruiva não eram personagens: eu não sabia nada sobre eles além das frases e
das palavras de que me servira a seu respeito, e eles eram confiados ao
acaso e ao estro de minha vontade. As palavras e frases de que me servira
para eles foram pescadas assim, ao acaso: era como se eu tivesse um saco e
fosse tirando dele ora uma barba, ora uma cozinheira negra ou outra coisa
que se pudesse usar. Dessa vez, porém, não tinha sido um jogo. Dessa vez
inventara pessoas com nomes que eu mesma não poderia mudar: não
poderia modificar nada deles e sabia uma porção de detalhes sobre suas
vidas, sabia como tinha sido sua existência até o dia da narrativa, se bem
que eu não tivesse falado disso no conto, porque não tinha sido necessário.
E sabia tudo da casa e da ponte e da lua e do rio. Tinha dezessete anos de
idade e fora reprovada em latim, em grego e em matemática. Chorei muito
quando soube disso. Mas agora, que tinha escrito o tal conto, sentia menos
vergonha. Era verão, uma noite de verão. A janela estava aberta sobre o
jardim, e borboletas escuras voavam em torno da lâmpada. Tinha escrito
meu conto em papel quadriculado e me sentira feliz como jamais acontecera
em minha vida, repleta de pensamentos e de palavras. O homem se
chamava Maurizio e a mulher se chamava Anna e o menino se chamava
Villi e havia também a ponte e a lua e o rio. Essas coisas existiam em mim.
E o homem e a mulher não eram bons nem maus, mas cômicos e um tanto
miseráveis, e então me pareceu que era assim que sempre deveriam ser as
pessoas nos livros, cômicas e miseráveis, tudo junto. Achei aquele conto
bom, por onde quer que o analisasse: não havia nenhum erro, tudo
acontecia no tempo e no momento justo. Agora tinha a impressão de que
poderia escrever milhões de contos.
E de fato escrevi certo número deles, a intervalos de um ou dois meses,
alguns muito bonitos e outros não. Então descobri que nos cansamos
quando escrevemos uma coisa a sério. Se não nos cansamos, é um mau
sinal. Não se pode esperar escrever algo sério assim, na flauta, com um pé
nas costas, borboleteando leve por aí. Quando alguém escreve uma coisa
séria, mergulha dentro dela, se afunda até os olhos; e, se tem sentimentos
muito fortes, que lhe inquietam o coração, se é muito feliz ou muito infeliz
por alguma razão, digamos, mundana, que não tem nada a ver com aquilo
que está escrevendo, então, se o que escreve é válido e digno de vida,
qualquer outro sentimento se apaga nele. Ele não pode pretender conservar
intacta e fresca sua cara felicidade, ou sua cara infelicidade, tudo se
distancia e some e ele está só com a sua página, nenhuma felicidade ou
infelicidade pode subsistir nele se não estiver estritamente ligada a essa
página, não possui outra coisa nem pertence a ninguém e, se não for assim,
então é sinal de que sua página não vale nada.
Portanto escrevi contos breves por certo período, um período que durou
cerca de seis anos. Como eu tinha descoberto a existência de personagens,
parecia-me que ter um personagem bastava para fazer um conto. Assim eu
andava sempre à cata de personagens, olhava as pessoas no bonde e pelas
ruas e, quando topava com uma cara que me parecia adequada para figurar
em um conto, tecia em torno dela particularidades morais e uma pequena
história. Também buscava detalhes sobre a vestimenta e o aspecto das
pessoas, ou sobre os interiores das casas e outros lugares; se entrava num
aposento novo, me esforçava em descrevê-lo no pensamento e tentava achar
algum detalhe miúdo que combinasse bem num conto. Mantinha um
caderninho no qual escrevia certos detalhes que eu ia descobrindo ou
pequenas comparações ou episódios que me prometia inserir nos contos.
Por exemplo, escrevia assim no caderninho: “Ele saía do banheiro
arrastando atrás de si a faixa do roupão como uma longa cauda”; “Como
fede a latrina desta casa — lhe disse a menina. Quando vou ao banheiro,
não respiro nunca — acrescentou tristemente”; “Seus caracóis como cachos
de uva”; “Cobertas vermelhas e pretas sobre a cama desfeita”; “A face
pálida como uma batata descascada”. Porém descobri que dificilmente essas
frases me serviam quando escrevia um conto. O caderno se tornava uma
espécie de museu de frases, todas cristalizadas e embalsamadas, muito
dificilmente utilizáveis. Tentei infinitas vezes meter em algum conto as
cobertas vermelhas e pretas ou os caracóis como cachos de uva, e jamais
consegui. Portanto o caderninho não podia servir. Então compreendi que
não existe poupança neste meu ofício. Se alguém pensa “este detalhe é
bonito e não quero gastá-lo no conto que estou escrevendo agora, aqui já
tem muita coisa bonita, vou poupá-lo para outro conto que escreverei”,
então o detalhe se cristaliza dentro dele e perde toda serventia. Quando
alguém escreve um conto, deve pôr dentro dele o melhor que possuiu e que
viu, o melhor que recolheu da vida. E os detalhes se consomem e estragam
quando os levamos conosco sem usá-los por muito tempo. Não somente os
detalhes, mas tudo, todos os achados e todas as ideias. Na época em que
escrevia meus contos breves, com o gosto das personagens bem resolvidas e
dos detalhes minuciosos, naquela época vi certa vez passar pela rua um
carreto com um espelho em cima, um grande espelho de moldura dourada.
Nele se refletia o céu verde da tarde, e eu parei para olhá-lo enquanto
passava, com uma grande felicidade e a sensação de que algo de importante
estava acontecendo. Sentia-me muito feliz, inclusive antes de ver o espelho,
e de repente me pareceu que ali passava a imagem de minha própria
felicidade, o espelho verde e resplandecente em sua moldura dourada. Por
muito tempo pensei que colocaria isso em algum conto, por muito tempo
recordar o carreto com o espelho em cima me dava vontade de escrever.
Mas nunca pude inseri-lo em nenhum lugar, e a certa altura me dei conta de
que ele morrera em mim. E no entanto foi muito importante. Porque na
época em que eu escrevia meus contos curtos, sempre me detinha em
pessoas e coisas cinzentas e esquálidas, buscava uma realidade desprezível
e sem glória. Naquele gosto que eu tinha de vasculhar detalhes miúdos
havia certa malignidade de minha parte, um interesse ávido e mesquinho
pelas coisas pequenas, pequenas como pulgas, era uma obstinada e tagarela
procura por pulgas de minha parte. O espelho sobre o carreto pareceu abrir-
me possibilidades novas, talvez a faculdade de ver uma realidade mais
gloriosa e resplandecente, uma realidade mais feliz, que não demandava
meticulosas descrições e achados astutos, mas podia realizar-se numa
imagem resplandecente e feliz.
Naqueles contos breves que eu escrevia, havia personagens que no fundo
eu desprezava. Como tinha descoberto que era bom que uma personagem
fosse miserável e cômica, à força de comicidade e de comiseração fazia
delas indivíduos tão desprezíveis e carentes de glória que eu mesma não
conseguia amá-las. Aquelas minhas personagens tinham sempre tiques ou
manias ou uma deformidade física ou um vício meio grotesco; tinham um
braço quebrado e pendurado ao pescoço numa tipoia ou tinham terçol ou
eram gagas ou coçavam a bunda ao falar ou mancavam um pouco. Sempre
precisei caracterizá-las de alguma maneira. Para mim era um meio de
escapar ao temor de que resultassem incertas, de captar uma humanidade da
qual inconscientemente eu duvidava. Porque na época eu não entendia —
mas no período do espelho sobre o carreto eu começava confusamente a
entender — que não se tratava mais de personagens, mas de fantoches,
muito bem pintados e semelhantes a homens de verdade, mas fantoches. Ao
inventá-los, logo os caracterizava, marcava-os com um particular grotesco,
e nisso havia certa maldade, havia em mim, então, como um ressentimento
maligno diante da realidade. Não era um ressentimento fundado em alguma
coisa vivida, porque na época eu era uma jovem feliz, mas nascia como
reação à ingenuidade, se tratava daquele específico ressentimento que é a
defesa da pessoa ingênua, sempre levada a crer que está sendo zombada, do
camponês que chegou há pouco à cidade e vê ladrões por todo lado. A
princípio eu me orgulhava disso, porque me parecia um grande triunfo da
ironia contra a ingenuidade e contra aqueles abandonos patéticos da
adolescência que se notavam em tantos de meus poemas. A ironia e a
maldade me pareciam armas muito importantes ao meu alcance; achava que
me seriam úteis para escrever como um homem, tinha horror que
percebessem que eu era uma mulher pelas coisas que escrevia. Fazia quase
sempre personagens masculinas, para que fossem o mais possível distantes
e separadas de mim.
Eu me tornara bastante hábil em esquadrinhar um conto, em varrer dele
todas as coisas inúteis, em decantar os detalhes e as falas no momento certo.
Escrevia contos secos e lúcidos, bem conduzidos do início ao fim, sem
desarranjos, sem erros de tom. Mas ocorreu que a certa altura eu me vi
cansada. Os rostos das pessoas nas ruas não me diziam mais nada de
interessante. Uns tinham terçol, outros tinham um chapéu torto para trás e
outros tinham uma echarpe em lugar da camisa, mas nada disso me
importava mais. Estava cansada de olhar as coisas e as pessoas e de
descrevê-las no pensamento. O mundo se calava para mim. Eu não
encontrava mais palavras para descrevê-lo, não tinha mais palavras que me
dessem aquele prazer. Não possuía mais nada. Tentava me lembrar do
espelho, mas ele também estava morto em mim. Levava cá dentro um fardo
de coisas embalsamadas, faces mudas e palavras de cinza, países e vozes e
gestos que não vibravam, que pesavam mortos em meu peito. E depois
nasceram meus filhos e, de início, quando eles eram muito pequenos, eu
não conseguia entender como era possível escrever tendo filhos. Não
entendia como seria possível me separar deles para seguir um fulano em um
conto. Comecei a desprezar meu ofício. Às vezes sentia uma desesperada
saudade dele, me sentia em exílio, mas me esforçava em desprezá-lo e
denegri-lo para cuidar apenas dos meninos. Achava que devia agir assim.
Passei a preocupar-me com a papa de arroz e a papa de cevada, se havia sol
ou se não havia sol, se ventava ou não quando ia levar os meninos para
passear. As crianças me pareciam algo muito importante para que eu me
desviasse atrás de estúpidas histórias e de estúpidas personagens
embalsamadas. Mas sentia uma feroz nostalgia e às vezes, à noite, quase
chorava ao lembrar como meu ofício era belo. Pensava que algum dia mais
cedo ou mais tarde o recuperaria, mas não sabia quando: achava que deveria
esperar que meus filhos se tornassem adultos e fossem embora de mim.
Porque o que eu sentia por meus filhos naquela época era uma coisa que eu
ainda não tinha aprendido a dominar. Mas depois, pouco a pouco, aprendi.
Nem precisei de muito tempo. Ainda preparava o molho de tomate e a
semolina, mas ao mesmo tempo pensava em coisas para escrever. Na época
estávamos numa cidadezinha muito bonita do sul. Fazia-me lembrar das
ruas e colinas de minha cidade, e aquelas ruas e colinas se uniam às ruas e
colinas e campos do povoado onde estávamos agora, e disso nascia uma
natureza nova, algo que eu podia amar de novo. Tinha saudades de minha
cidade e amava-a muito na lembrança, amava-a e entendia seu sentido
como talvez nunca acontecera quando morava nela, e também amava a
cidade onde estávamos agora, um povoado branco e cheio de pó no sol do
sul, largos campos de relva híspida e seca se estendiam sob minhas janelas,
e no meu coração soprava forte a lembrança das alamedas de minha cidade,
dos plátanos e das casas altas, e tudo isso pegava fogo alegremente dentro
de mim, e eu tinha muita, muita vontade de escrever. Escrevi um conto
longo, o mais longo que já tinha escrito. Recomeçava a escrever como
alguém que nunca havia escrito, porque fazia muito tempo que não
escrevia, e as palavras estavam como que lavadas e frescas, tudo estava de
novo como que intacto e cheio de sabor e de cheiros. Escrevia à tarde,
quando meus meninos iam passear com uma garota do povoado, escrevia
com avidez e alegria, e era um outono belíssimo e todo dia eu me sentia
muito feliz. No conto inseri um tanto de gente inventada e um tanto de
gente verdadeira, dali da cidade; e também me ocorriam certas palavras que
sempre diziam lá, e que antes eu desconhecia, certas imprecações e modos
de dizer: e essas novas palavras fermentavam e cresciam e davam vida a
todas as palavras velhas. A personagem principal era uma mulher, mas
muito diferente de mim. Agora já não desejava tanto escrever como um
homem, porque tinha tido meus meninos e tinha a sensação de saber muitas
coisas sobre o molho de tomate, e ainda que não as colocasse no conto,
sempre era bom que soubesse disso para meu ofício: de um modo
misterioso e remoto, isso também servia ao meu ofício. Parecia-me que as
mulheres sabiam sobre seus filhos coisas que um homem nunca poderá
saber. Escrevia meu conto muito depressa, como que com medo de que
escapasse de mim. Eu o chamava de romance, mas talvez não fosse um
romance. De resto, até então sempre me acontecera de escrever depressa, e
coisas bastante breves: e a certa altura, acho que até entendi por quê. Porque
tenho irmãos bem mais velhos que eu, e quando era pequena, se eu falasse
na mesa, sempre me mandavam ficar calada. Assim me habituei a dizer
sempre as coisas muito depressa, de um jato só e com o menor número
possível de palavras, sempre com medo de que os outros recomeçassem a
falar entre si e deixassem de me escutar. Pode parecer uma explicação meio
tola: no entanto, deve ter sido exatamente assim.
Já disse que então, quando escrevia o que eu chamava de romance, foi
uma época muito feliz para mim. Nunca havia acontecido nada de grave em
minha vida, eu desconhecia a doença, a traição, a solidão, a morte. Nada
nunca havia desmoronado em minha vida, somente coisas fúteis, nada que
me fosse caro ao coração me fora arrancado. Tinha sofrido apenas ociosas
melancolias da adolescência e a dificuldade de não saber como escrever.
Naquela época eu era feliz de um modo pleno e tranquilo, sem medo e sem
ânsia, e com uma total confiança na estabilidade e na consistência da
felicidade no mundo. Quando somos felizes, nos sentimos mais frios, mais
lúcidos e distanciados de nossa realidade. Quando somos felizes, tendemos
a criar personagens muito diferentes de nós, a vê-los na luz gélida das
coisas estranhas, afastamos os olhos de nossa alma feliz e saciada e os
fixamos sem caridade nos outros seres, sem caridade, com um julgamento
sardônico e cruel, irônico e arrogante, enquanto a fantasia e a energia
inventiva agem com força em nós. Conseguimos facilmente criar
personagens, muitas personagens, fundamentalmente diversas de nós, e
conseguimos criar histórias solidamente construídas e como que
desidratadas sob uma luz clara e fria. O que nos falta nesses casos, quando
somos felizes daquela específica felicidade sem lágrimas, sem ânsia e sem
medo, o que nos falta é uma relação íntima e terna com as nossas
personagens, com os lugares e as coisas que contamos. O que nos falta é
caridade. Aparentemente somos muito mais generosos, no sentido de que
sempre encontramos força para nos interessar pelos outros, para
prodigalizar aos outros os nossos cuidados, sem nos ocuparmos tanto de nós
mesmos, já que não precisamos de nada. Mas esse nosso interesse pelos
outros — tão carente de ternura — não percebe senão poucos aspectos
bastante exteriores dessas pessoas. O mundo tem uma só dimensão para
nós, nele não há segredos nem sombras, conseguimos adivinhar e criar a
dor que desconhecemos em virtude da força fantasiosa de que somos
animados, mas o vemos sempre sob aquela luz estéril e gélida das coisas
que não nos pertencem, que não têm raízes dentro de nós.
Nossa felicidade ou infelicidade pessoal, nossa condição terrestre, tem
uma grande importância em relação àquilo que escrevemos. Disse antes
que, no momento em que alguém escreve, é miraculosamente impelido a
ignorar as circunstâncias presentes da própria vida. Certamente é assim.
Mas ser feliz ou infeliz nos leva a escrever de maneiras distintas. Quando
somos felizes, nossa fantasia tem mais força; quando somos infelizes, então
é nossa memória que age com mais vivacidade. O sofrimento torna a
fantasia fraca e preguiçosa; ela se move, mas desinteressadamente e com
langor, com o movimento frágil dos doentes, com o cansaço e a cautela dos
membros doloridos e febris; é difícil afastarmos o olhar de nossa vida e de
nossa alma, da sede e da inquietude que nos invade. Nas coisas que
escrevemos afloram então contínuas lembranças do nosso passado, nossa
própria voz ressoa continuamente, e não conseguimos impor-lhe o silêncio.
Entre nós e as personagens que inventamos, que nossa fantasia lânguida
consegue apesar de tudo inventar, nasce uma relação peculiar, terna e quase
maternal, uma relação quente e umedecida de lágrimas, de uma intimidade
carnal e sufocante. Temos raízes profundas e dolorosas em cada ser e em
cada coisa do mundo, do mundo que se tornou repleto de ecos, de soluços e
de sombras, ao qual somos ligados por uma devota e apaixonada piedade.
Nosso risco então é naufragar num escuro lago de águas mortas e
estagnadas, arrastando conosco as criaturas do nosso pensamento,
deixando-as perecer conosco no abismo tépido e escuro, entre ratos mortos
e flores apodrecidas. Diante das coisas que escrevemos, há um perigo na
dor, assim como há um perigo na felicidade. Porque a beleza poética é uma
mistura de crueldade, de soberba, de ironia, de ternura carnal, de fantasia e
de memória, de clareza e de obscuridade e, se não conseguirmos obter todo
esse conjunto, nosso resultado será pobre, precário, escassamente vital.
E, vejam bem, não é que se possa esperar da escrita um consolo para a
tristeza. Não se pode cair na ilusão de embalar-se e confortar-se com o
próprio ofício. Em minha vida houve intermináveis domingos desolados e
desertos, em que eu desejava ardentemente escrever alguma coisa para me
consolar da solidão e do tédio, para ser acariciada e embalada por frases e
palavras. Mas não havia jeito de conseguir escrever uma linha sequer.
Nessas horas meu ofício sempre me repeliu, não quis saber de mim. Porque
este ofício nunca é um consolo ou uma distração. Não é uma companhia.
Este ofício é um senhor, um senhor capaz de chicotear-nos até sangrar, um
senhor que grita e condena. Devemos engolir a saliva e as lágrimas e
apertar os dentes e enxugar o sangue de nossas feridas e servi-lo. Servi-lo
quando ele ordena. Então é de grande ajuda estarmos de pé, mantermos os
pés bem firmes na terra, nos ajuda a vencer a loucura e o delírio, o
desespero e a febre. Mas quem quer comandar é ele, recusando-se sempre a
nos dar a mão quando dele necessitamos.
Tive a oportunidade de conhecer bem a dor depois daquele tempo em que
estive no sul, uma dor verdadeira, irremediável e intratável, que estraçalhou
toda minha vida, e quando tentei remendá-la de algum modo vi que eu e
minha vida tínhamos nos tornado algo irreconhecível. De imutável
permanecia apenas meu ofício, mas também seria profundamente falso
dizer que ele não mudou; os instrumentos eram ainda os mesmos, mas o
modo como eu os usava era outro. De início o detestava, sentia asco, mas eu
sabia que acabaria voltando a servi-lo, que ele ao final me salvaria. Assim
às vezes me ocorreu pensar que não fui tão desgraçada na vida, que sou
injusta quando acuso o destino e lhe nego toda benevolência quanto a mim,
porque ele me deu três filhos e meu ofício. De resto, não poderia nem
sequer imaginar minha vida sem este ofício. Ele sempre esteve ali, nunca
me deixou nem por um momento, e, mesmo quando eu pensava que
estivesse adormecido, seu olho vigilante e luminoso me velava.
Assim é meu ofício. Dinheiro, vejam, ele não rende muito; aliás, sempre
é preciso fazer simultaneamente algum outro trabalho para viver. Contudo,
às vezes ele rende um pouco, e ter dinheiro por sua própria virtude é uma
coisa muito boa, como receber dinheiro e presentes das mãos do ser amado.
Assim é meu ofício. Não sei muito — torno a dizer — sobre o valor dos
resultados que me deu e que ainda poderá dar: ou melhor, dos resultados já
obtidos conheço o valor relativo, certamente não o absoluto. Quando
escrevo algo, frequentemente penso que aquilo é muito importante e que eu
sou uma grande escritora. Acho que acontece com todos. Mas há um
cantinho de minha alma onde sempre sei muito bem o que sou, isto é, uma
pequena, pequena escritora. Juro que sei. Mas não me importa muito.
Simplesmente não quero pensar em nomes; percebi que, se me perguntarem
“um pequeno escritor como quem?”, fico triste ao pensar nos nomes de
outros pequenos escritores. Prefiro acreditar que ninguém nunca foi como
eu, por menor que tenha sido, por mais que eu seja um mosquito ou uma
pulga de escritora. O que é importante é ter a convicção de que se trata de
um autêntico ofício, uma profissão, uma coisa que será feita por toda a vida.
E, sendo um ofício, não é uma brincadeira. Há inumeráveis perigos além
dos que já citei. Somos continuamente ameaçados por graves perigos já no
ato de preencher nossa página. Há o perigo de começarmos a tentar seduzir
e a cantar de repente. Sempre tenho uma vontade louca de começar a cantar,
devo ficar muito atenta para não fazer isso. E há o perigo de ludibriar com
palavras que de fato não existem em nós, que pescamos por acaso fora de
nós e que enfileiramos com destreza porque nos tornamos muito espertos.
Há o perigo de bancar o esperto e de enganar. Como veem, trata-se de um
ofício bastante complicado: mas é o melhor que há no mundo. Os dias e os
casos de nossas vidas, os dias e os casos da vida dos outros a que
assistimos, leituras e imagens e pensamentos e discursos, tudo isso o sacia e
cresce dentro de nós. É um ofício que também se nutre de coisas horríveis,
devora o melhor e o pior de nossas vidas, tanto nossos sentimentos ruins
quanto os sentimentos bons correm em seu sangue. Nutre-se e cresce em
nós.
Silêncio
No que diz respeito à educação dos filhos, penso que se deva ensinar a
eles não as pequenas virtudes, mas as grandes. Não a poupança, mas a
generosidade e a indiferença ao dinheiro; não a prudência, mas a coragem e
o desdém pelo perigo; não a astúcia, mas a franqueza e o amor à verdade;
não a diplomacia, mas o amor ao próximo e a abnegação; não o desejo de
sucesso, mas o desejo de ser e de saber.
No entanto fazemos frequentemente o contrário: apressamo-nos a ensinar
o respeito pelas pequenas virtudes, fundando sobre elas todo nosso sistema
educativo. Desse modo, escolhemos a via mais cômoda: porque as
pequenas virtudes não apresentam nenhum perigo material, ao contrário,
nos mantêm ao abrigo dos golpes da sorte. Descuidamos de ensinar as
grandes virtudes, apesar de amá-las, e gostaríamos que nossos filhos as
assimilassem: mas nutrimos a confiança de que elas emergirão
espontaneamente de seu espírito, num dia futuro, considerando-as de
natureza instintiva, ao passo que as outras, as pequenas, nos parecem fruto
de reflexão e cálculo, e por isso pensamos que devam ser absolutamente
ensinadas.
Na verdade a diferença é só aparente. As pequenas virtudes provêm
igualmente do fundo de nosso instinto, de um instinto de defesa: mas nelas
a razão fala, sentencia, disserta, como um brilhante advogado da integridade
pessoal. As grandes virtudes jorram de um instinto em que a razão não fala,
um instinto ao qual me seria difícil dar um nome. E o melhor de nós está
nesse instinto mudo, e não em nosso instinto de defesa, que argumenta,
sentencia e disserta com a voz da razão.
A educação não é outra coisa senão um certo vínculo que estabelecemos
entre nós e nossos filhos, certo clima no qual florescem os sentimentos, os
instintos, as ideias. Ora, creio que um clima todo inspirado no respeito às
pequenas virtudes resulte insensivelmente em cinismo, ou no medo de
viver. Em si mesmas, as pequenas virtudes não têm nada a ver com o
cinismo ou com o medo de viver: mas todas juntas, e sem as grandes, geram
uma atmosfera que leva àquelas consequências. Não que as pequenas
virtudes sejam, em si mesmas, desprezíveis: mas seu valor é de ordem
complementar, e não substancial; elas não podem estar sós, sem as outras, e
são — quando desacompanhadas — um pobre alimento para a natureza
humana. O modo de exercitar as pequenas virtudes, em medida temperada e
quando for de todo indispensável, o homem pode encontrá-lo em torno de si
e bebê-lo no ar: porque as pequenas virtudes são de uma ordem bastante
comum e difusa entre os homens. Mas as grandes virtudes, essas não se
respiram no ar: e devem ser a primeira substância da relação com nossos
filhos, o primeiro fundamento da educação. Além disso, o grande também
pode conter o pequeno: mas o pequeno, por lei natural, não pode jamais
conter o grande.
Não ajuda em nada buscarmos recordar e imitar, nas relações com nossos
filhos, os modos com que nossos pais nos educaram. A época de nossa
infância e juventude não era um tempo de pequenas virtudes: era um tempo
de palavras fortes e sonoras, que pouco a pouco, porém, perdiam sua
substância. Agora é um tempo de palavras flébeis e frígidas, sob as quais
talvez refloresça o desejo de uma reconquista. Mas é um desejo tímido e
cheio de temor do ridículo. Assim nos revestimos de prudência e astúcia.
Nossos pais não conheciam nem prudência nem astúcia; não conheciam o
medo do ridículo; eram inconsequentes e incoerentes, mas nunca se davam
conta; frequentemente se contradiziam, mas nunca admitiam ser
contestados. Usavam conosco de uma autoridade que seríamos
completamente incapazes de usar. Convictos de seus princípios, que
supunham indestrutíveis, reinavam sobre nós com poder absoluto. Éramos
ensurdecidos por palavras tonitruantes; um diálogo era impossível, porque
assim que suspeitavam que haviam errado nos mandavam calar a boca;
batiam o punho na mesa, fazendo a sala tremer. Recordamos aquele gesto,
mas não saberíamos imitá-lo. Podemos ficar furiosos, uivar feito lobos; mas
no fundo de nossos uivos de lobo há um soluço histérico, um rouco balido
de cordeiro.
Portanto não temos autoridade: não temos armas. A autoridade, em nós,
seria uma hipocrisia e uma ficção. Somos demasiado conscientes de nossa
fraqueza, demasiado melancólicos e inseguros, demasiado conscientes de
nossas inconsequências e incoerências, demasiado conscientes de nossos
defeitos: olhamos dentro de nós com muita demora e vimos em nós coisas
demais. E, como não temos autoridade, devemos inventar uma outra
relação.
Hoje, que o diálogo se tornou possível entre pais e filhos — possível,
embora sempre difícil, sempre cheio de cautelas recíprocas, de recíproca
timidez e inibição —, é preciso que nós, nesse diálogo, nos revelemos tal
como somos, imperfeitos, e confiantes de que eles, nossos filhos, não se
pareçam conosco, que sejam mais fortes e melhores que nós.
Como estamos todos premidos, de uma maneira ou de outra, pelo
problema do dinheiro, a primeira pequena virtude que nos ocorre ensinar
aos nossos filhos é a poupança. Damos a eles um mealheiro, explicando
como é bom guardar o dinheiro em vez de gastá-lo, de modo que, após
alguns meses, haja ali um bom montinho de moedas; e como é bom resistir
à vontade de gastar para, ao final, poder comprar um objeto de valor.
Recordamos que, em nossa infância, ganhamos de presente um mealheiro
igual; mas esquecemos que, no tempo de nossa infância, o dinheiro e o
gosto de conservá-lo eram algo menos horrível e sujo que hoje: porque
quanto mais o tempo passa, mais o dinheiro é sujo. Então o mealheiro é o
nosso primeiro erro: instalamos em nosso sistema educativo uma pequena
virtude.
Aquele pequeno cofre de barro, de aspecto inócuo, em forma de pera ou
de maçã, passa a morar meses e meses no quarto de nossos filhos, que se
habituam à presença dele; se habituam ao prazer de introduzir, dia a dia, o
dinheiro na fenda; se habituam ao dinheiro guardado lá dentro, que ali, em
segredo e no escuro, cresce como uma semente no seio da terra; se
afeiçoam ao dinheiro, primeiro com inocência, como nos afeiçoamos a
todas as coisas que crescem graças ao nosso zelo, plantinhas ou pequenos
animais; e sempre imaginando aquele objeto caro, visto numa vitrine, que
poderemos comprar — como nos disseram — com o dinheiro poupado.
Quando finalmente o cofre é quebrado, e o dinheiro, gasto, os meninos se
sentem sós e frustrados; não há mais dinheiro no quarto, guardado no ventre
da maçã, e já não há nem mesmo a rósea maçã: em vez disso, há um objeto
por muito tempo imaginado na vitrine, do qual nós louvamos a importância
e o valor, mas que agora, ali no quarto, parece cinzento e sem graça,
murcho após tanta espera e tanto dinheiro. Os meninos não culparão o
dinheiro por essa desilusão, mas o próprio objeto: porque o dinheiro
perdido conserva na memória suas promessas vãs. Os meninos pedirão um
novo cofre e mais dinheiro para guardar; e dedicarão ao dinheiro
pensamentos e uma atenção que deveriam estar voltados para outras coisas.
Preferirão o dinheiro às coisas. Não faz mal que tenham sofrido uma
desilusão; faz mal que se sintam sozinhos sem a companhia do dinheiro.
Não deveríamos ensiná-los a poupar: deveríamos habituá-los a gastar.
Deveríamos dar-lhes com frequência alguns trocados, pequenas somas sem
importância, e incentivá-los a gastar logo, como bem quiserem, seguindo
um capricho momentâneo: os meninos comprarão alguma miudeza, que
esquecerão logo, assim como se esquecerão do dinheiro gasto tão depressa
e sem pensar, ao qual não chegaram a afeiçoar-se. Quando tiverem nas
mãos essas miudezas, que serão logo quebradas, os meninos vão ficar um
pouco decepcionados, mas rapidamente esquecerão tanto o desgosto com as
miudezas quanto o dinheiro; aliás, associarão o dinheiro a algo de
momentâneo e estúpido; e pensarão que o dinheiro é estúpido, como é justo
pensar durante a infância.
É justo que os meninos vivam os primeiros anos de sua vida ignorando o
que é o dinheiro. Às vezes isso é impossível, se formos muito pobres; e às
vezes é difícil, se formos muito ricos. Contudo, quando somos muito
pobres, quando o dinheiro está estritamente ligado a um fato de
sobrevivência cotidiana, a uma questão de vida ou morte, ele se traduz tão
imediatamente aos olhos de um menino em comida, lenha ou pão, que não
tem meios de arruinar-lhe o espírito. Porém, se formos assim, assim, nem
ricos nem pobres, não será difícil deixar que um menino viva sua infância
sem saber bem o que é o dinheiro e sem se interessar minimamente por ele.
No entanto, nem muito cedo nem muito tarde, é preciso acabar com essa
ignorância; e, se tivermos dificuldades econômicas, é necessário que nossos
filhos, nem muito cedo nem muito tarde, tenham conhecimento disso; assim
como é justo que a certa altura eles compartilhem conosco nossas
preocupações, nossos motivos de contentamento, nossos projetos e tudo o
que concerne à vida familiar. E, habituando-os a considerar o dinheiro como
algo que pertence igualmente a nós e a eles, e não mais a nós que a eles, ou
o contrário, também podemos convidá-los a serem sóbrios, a estarem
atentos ao dinheiro que gastam; e desse modo o convite à poupança deixa
de ser respeito às pequenas virtudes, um convite abstrato a ter respeito por
uma coisa que não merece respeito por si, como o dinheiro; mas é recordar
aos meninos que o dinheiro de casa não é muito, um convite a sentirem-se
adultos e responsáveis diante de uma coisa que pertence tanto a nós quanto
a eles, uma coisa não particularmente bela nem amável, mas séria, porque
está ligada às nossas necessidades cotidianas. Mas não muito cedo nem
muito tarde: o segredo da educação está em adivinhar os tempos.
Ser sóbrio consigo mesmo e generoso com os outros: isto significa ter
uma relação justa com o dinheiro, estarmos livres diante do dinheiro. E não
há dúvida de que, nas famílias em que o dinheiro é ganho e prontamente
gasto, em que escorre como água limpa da fonte e, praticamente, não existe
como dinheiro, é menos difícil educar um jovem para esse equilíbrio, para
essa liberdade. As coisas se tornam complicadas ali onde o dinheiro existe e
existe pesadamente, água de chumbo, estagnada, que exala miasmas e
odores. Rapidamente os jovens percebem a presença desse dinheiro na
família, como uma potência oculta, de que nunca se fala em termos claros,
mas à qual os pais aludem, conversando entre si, com nomes complicados e
misteriosos, com uma plúmbea fixidez nos olhos, com uma ruga amarga na
boca; dinheiro que não é simplesmente guardado na gaveta do escritório,
mas campeia sabe-se lá onde, podendo a qualquer momento ser sugado pela
terra, sumindo sem remédio para sempre, engolindo a família e a casa. Em
famílias como essas, os jovens são continuamente advertidos a gastar com
parcimônia, todo dia a mãe os incita à atenção e à economia, quando lhes dá
o trocado para o bonde; e há no olhar da mãe aquela preocupação de
chumbo, aquele profundo vinco na fronte, que sempre surge quando o
assunto é dinheiro; há o obscuro terror de que todo o dinheiro se desmanche
no nada, de que até os poucos trocados possam significar as primeiras
migalhas de um desmoronamento súbito e mortal. Os jovens dessas famílias
não raro vão à escola com roupas puídas e sapatos gastos, e precisam
suspirar longamente, às vezes em vão, por uma bicicleta ou uma máquina
fotográfica, objetos que alguns colegas certamente mais pobres possuem há
tempos. E quando finalmente a bicicleta que desejam lhes é dada, o
presente é acompanhado da severa recomendação de não estragar nem
emprestar a ninguém um objeto tão luxuoso, que custou tanto dinheiro. Os
apelos à economia, em casa, são perenes e insistentes: a ordem é comprar os
livros da escola em sebos, e os cadernos, no Standard. Isso ocorre em parte
porque os ricos muitas vezes são avaros, porque se acham pobres; mas
sobretudo porque as mães das famílias ricas, mais ou menos
conscientemente, têm medo das consequências do dinheiro e procuram
proteger seus filhos, forjando em torno deles uma ficção de hábitos simples,
acostumando-os até a pequenas privações. Mas não há pior erro que fazer
um jovem viver em tal contradição; o dinheiro fala em qualquer canto, na
casa, sua linguagem inconfundível; está presente nas porcelanas, na
mobília, na prataria pesada, está presente nas viagens confortáveis, nas
férias luxuosas, nos cumprimentos do porteiro, na cerimônia dos criados;
está presente nas falas dos pais, é a ruga na testa do pai, a profunda
perplexidade no olhar materno; o dinheiro está em toda parte, intocável
porque talvez terrivelmente frágil, algo com que não se pode brincar, um
deus fúnebre ao qual não se pode dirigir senão num sussurro; e, para honrar
esse deus, para não molestar sua lutuosa imobilidade, é preciso usar o
casaco do ano anterior, que ficou curto, e estudar a lição em livros
desencadernados e sebosos, e divertir-se com a bicicleta do camponês.
Se, sendo ricos, quisermos ensinar a nossos filhos hábitos simples, deve
ficar bem claro que todo dinheiro poupado com esses hábitos deverá ser
gasto sem parcimônia com outras pessoas. Hábitos como esses só fazem
sentido se não forem avareza ou temor, mas livre escolha da simplicidade
em meio à riqueza. Um jovem de família rica não aprende a sobriedade
porque o fazem vestir roupas velhas, ou porque o fazem comer maçãs
verdes na merenda, ou porque é privado de uma bicicleta que deseja há
muito tempo: essa sobriedade em meio à riqueza é pura ficção, e as ficções
são sempre deseducativas. Desse modo ele aprenderá apenas a avareza e o
medo do dinheiro. Privando-o de uma bicicleta desejada e que poderíamos
presentear-lhe, só faríamos frustrá-lo numa coisa legítima para um garoto,
só faríamos tornar sua infância menos feliz em nome de um princípio
abstrato, sem justificativa na realidade. E, tacitamente, estaríamos
afirmando diante dele que o dinheiro é melhor que uma bicicleta; no
entanto, é preciso que ele saiba que uma bicicleta é sempre melhor que o
dinheiro.
A verdadeira defesa da riqueza não é o medo da riqueza, de sua
fragilidade e das viciosas consequências que pode trazer: a verdadeira
defesa da riqueza é a indiferença ao dinheiro. Para ensinar a um jovem essa
indiferença, não há outro meio senão lhe dar dinheiro para gastar, quando
houver dinheiro: para que aprenda a se afastar dele sem sofrimento ou
remorso. Podem me dizer que, assim, um jovem se habituará a ter dinheiro
para gastar e já não poderá viver sem ele; se amanhã não for mais rico,
como vai ser? Mas é mais fácil não ter dinheiro quando já aprendemos a
gastá-lo, quando aprendemos como ele voa depressa de nossas mãos; é mais
fácil prescindir do dinheiro quando já o conhecemos bem do que quando
lhe tributamos reverência e medo na infância, quando pressentimos sua
presença no ar sem que nos tenham permitido erguer os olhos para fixá-lo.
Assim que nossos filhos começam a ir à escola, nós imediatamente lhes
prometemos, se estudarem bem, um prêmio em dinheiro. É um erro. Assim
misturamos o dinheiro, que é uma coisa sem nobreza, com algo meritório e
digno, como o estudo e o prazer do conhecimento. O dinheiro que damos
aos nossos filhos deveria ser dado sem motivo; deveria ser dado com
indiferença, para que aprendam a recebê-lo com indiferença; e deve ser
dado não para que aprendam a amá-lo, mas para que aprendam a não amá-
lo, a compreender seu verdadeiro caráter, sua impotência em satisfazer os
desejos mais autênticos, que são os do espírito. Elevando o dinheiro à
função de prêmio, de ponto de chegada, de objetivo a ser alcançado, nós lhe
conferimos um lugar, uma importância, uma nobreza que não deve ter aos
olhos dos nossos filhos. Afirmamos implicitamente o princípio — falso —
de que o dinheiro é a coroação de um esforço e seu escopo último.
Entretanto o dinheiro deveria ser concebido como a retribuição por um
esforço; não sua finalidade, mas sua recompensa, isto é, seu legítimo
crédito: e é evidente que os esforços escolares dos meninos não podem
receber um pagamento. É um erro menor — mas é um erro — oferecer
dinheiro aos filhos em troca de pequenos serviços domésticos, de pequenas
tarefas. É um erro porque nós não somos empregadores dos nossos filhos; o
dinheiro familiar é tanto deles quanto nosso: aqueles pequenos serviços,
aquelas pequenas tarefas não deveriam ter nenhuma recompensa, mas ser
uma colaboração voluntária na vida familiar. E, em geral, creio que se deva
ter muita cautela ao se prometer e aplicar prêmios e punições. Porque a vida
raramente terá prêmios e punições: no mais das vezes os sacrifícios não têm
nenhum prêmio, e frequentemente as más ações não são punidas, mas, ao
contrário, lautamente recompensadas com sucesso e dinheiro. Por isso é
melhor que nossos filhos saibam desde a infância que o bem não é
recompensado, nem o mal recebe castigo; todavia é preciso amar o bem e
odiar o mal — e a isso não é possível dar nenhuma explicação lógica.
Costumamos dar uma importância ao rendimento escolar de nossos filhos
que é totalmente infundada. E também isso não é senão respeito pela
pequena virtude do sucesso. Deveria bastar-nos que não ficassem muito
atrás dos outros, que não fossem reprovados nos exames; mas não nos
contentamos com isso; deles queremos o sucesso, queremos que satisfaçam
nosso orgulho. Se forem mal na escola, ou se simplesmente não forem tão
bem quanto pretendemos, logo erigimos entre eles e nós a barreira do
descontentamento permanente; adotamos diante deles o tom de voz
rabugento e lamentoso de quem se queixa de uma ofensa. Aí nossos filhos,
entediados, se afastam de nós. Ou então os apoiamos em seus protestos
contra os professores que não os entenderam, colocando-nos ao lado deles
como se fossem vítimas de uma injustiça. E todo dia corrigimos seus
deveres de casa, ou melhor, nos sentamos junto deles quando fazem as
tarefas, estudando com eles a lição. Na verdade, para um garoto, a escola
deveria ser desde o início a primeira batalha a enfrentar sozinho, sem nossa
ajuda; desde o início deveria estar claro que aquilo é seu campo de batalha,
onde não lhe podemos dar mais que um socorro esporádico e irrisório. E se
lá ele sofre injustiças ou é incompreendido, é preciso deixá-lo entender que
não há nada de estranho nisso, porque na vida devemos esperar
continuamente a incompreensão e o descaso, e ser vítimas de injustiças: a
única coisa que importa é não cometermos, nós mesmos, injustiças.
Compartilhamos os sucessos ou insucessos de nossos filhos porque
gostamos deles, do mesmo modo e na mesma medida com que eles
compartilham, no processo de se tornarem adultos, nossos sucessos ou
insucessos, nossas alegrias ou preocupações. É falso que eles, diante de nós,
tenham a obrigação de serem bons na escola e de dar ao estudo o melhor de
si. Seu único dever perante nós, visto que os introduzimos ao estudo, é
seguir adiante. Se não quiserem dar o melhor de si na escola, mas em outras
coisas que os apaixonem — coleção de besouros ou o estudo da língua turca
—, é uma escolha deles, e não temos nenhum direito de recriminá-los, de
nos mostrarmos feridos no orgulho, frustrados em nosso desejo. Se por ora
eles não dão mostras de querer gastar suas capacidades em nada, passando
dias na escrivaninha mastigando uma caneta, nem neste caso temos o
direito de reprová-los em demasia: quem sabe o que nos parece ócio seja na
realidade fantasia e reflexão que, amanhã, talvez deem seus frutos. Se
parecem desperdiçar o melhor de suas energias e de seu talento jogados
num sofá, lendo romances estúpidos, ou correndo desenfreados num
gramado atrás da bola, ainda assim não podemos saber se realmente se trata
de desperdício de energia e de talento ou se até isso, amanhã, de alguma
maneira que agora ignoramos, dará seus frutos. Porque infinitas são as
possibilidades do espírito. Mas não devemos nos deixar tomar — nós, pais
— pelo pânico do insucesso. Nossas repreensões devem ser como rajadas
de vento ou um temporal: violentos, mas logo esquecidos; nada que possa
obscurecer a natureza de nossas relações com os filhos, turvando-lhes a
limpidez e a paz. Estamos aí para consolar nossos filhos, caso um fracasso
os faça sofrer; estamos aí para lhes dar coragem, se um insucesso os
mortificar. Também estamos aí para fazê-los baixar a crista, caso um
sucesso lhes suba à cabeça. Estamos aí para reduzir a escola a seu humilde e
estreito limite; nada que possa hipotecar o futuro; uma simples oferta de
instrumentos, entre os quais talvez seja possível escolher um de que se
orgulhar no futuro.
Na educação, o que deve estar no centro de nossos afetos é que nossos
filhos nunca percam o amor à vida. Esse sentimento pode tomar formas
diversas, e às vezes um jovem desinteressado, solitário e esquivo não sofre
de desamor à vida ou de opressão pelo medo de viver, mas simplesmente
está num estado de espera, concentrado em preparar-se para a própria
vocação. E o que é a vocação de um ser humano senão a mais alta
expressão de seu amor à vida? Então devemos esperar, ao lado dele, que sua
vocação desperte e ganhe corpo. Sua atitude pode parecer a da toupeira ou
da lagartixa que fica imóvel, fingindo-se de morta: mas na realidade fareja e
escruta o rastro do inseto, sobre o qual se lançará num salto. Ao lado dele,
mas em silêncio e um pouco à parte, devemos esperar o estalo de seu
espírito. Não devemos pretender nada; não devemos pedir ou esperar que
seja um gênio, um artista, um herói ou um santo; no entanto devemos estar
preparados para tudo; nossa expectativa e paciência devem conter a
possibilidade do mais alto e do mais modesto destino.
Uma vocação, a paixão ardente e exclusiva por algo que não tenha nada a
ver com o dinheiro, a consciência de ser capaz de fazer uma coisa melhor
que os outros, e amar essa coisa acima de tudo, é a única possibilidade de
um garoto rico não ser minimamente condicionado pelo dinheiro, de ser
livre diante do dinheiro: de não sentir em meio aos demais nem orgulho
pela riqueza, nem vergonha por ela. Ele nem se dará conta das roupas que
usa, dos costumes que o circundam, e amanhã poderá passar por qualquer
privação, porque a única fome e a única sede serão, nele, sua própria
paixão, que devorará tudo o que é fútil e provisório, despojando-o de todo
hábito ou atitude contraído na infância, reinando sozinha em seu espírito.
Uma vocação é a única saúde e riqueza verdadeiras do homem.
Que possibilidades nos são dadas de despertar e estimular em nossos
filhos o nascimento e o desenvolvimento de uma vocação? Não dispomos
de muitas; entretanto talvez haja algumas. O nascimento e o
desenvolvimento de uma vocação demandam espaço: espaço e silêncio — o
livre silêncio do espaço. A relação que intercorre entre nós e nossos filhos
deve ser uma troca viva de pensamentos e sentimentos, mas também deve
compreender largas zonas de silêncio; deve ser uma relação íntima, sem no
entanto misturar-se violentamente com a intimidade deles; deve ser um
justo equilíbrio entre silêncio e palavras. Devemos ser importantes para os
nossos filhos e, contudo, não demasiado importantes; devemos fazer com
que gostem de nós, mas não demais: para que não queiram se tornar
idênticos a nós, imitar-nos no ofício que fazemos, buscar nossa imagem nos
companheiros que escolherão para sua vida. Com eles devemos manter uma
relação de amizade: contudo não devemos ser excessivamente amigos, para
que eles não tenham dificuldades em fazer verdadeiros amigos, aos quais
possam dizer coisas que silenciam conosco. É preciso que sua busca por
amigos, sua vida amorosa, sua vida religiosa, a busca por uma vocação
sejam circundadas de silêncio e sombra, que se desenvolvam apartadas de
nós. Nesse caso, podem me dizer que nossa intimidade com os filhos se
reduziria a pouca coisa. Mas em nossa relação com eles deve estar contido
tudo isso em linhas gerais, quer a vida religiosa, quer a vida intelectual,
quer a vida afetiva e o julgamento sobre os seres humanos; devemos ser
para eles um simples ponto de partida, oferecer-lhes o trampolim de onde
darão o salto. E devemos estar ali para qualquer socorro, caso seja
necessário; eles devem saber que não nos pertencem, mas nós, sim,
pertencemos a eles, sempre disponíveis, presentes no quarto ao lado,
prontos a responder como pudermos a qualquer pergunta possível, a
qualquer pedido.
E, se nós mesmos tivermos uma vocação, se não a traímos, se
continuamos a amá-la no decurso dos anos, a servi-la com paixão, podemos
manter longe do coração, no amor que sentimos por nossos filhos, o
sentimento de posse. Porém, se não tivermos uma vocação, ou se a tivermos
abandonado e traído por cinismo, ou medo de viver, ou um amor paterno
mal compreendido, ou por uma pequena virtude que se instala em nós,
então nos agarramos aos nossos filhos como um náufrago ao tronco da
árvore, pretendemos vigorosamente que nos devolvam tudo o que lhes
demos, que sejam absoluta e implacavelmente tais como nós os queremos,
que obtenham da vida tudo o que nos faltou; terminamos pedindo a eles
tudo o que somente nossa vocação nos pode dar: queremos que sejam em
tudo uma obra nossa, como se, por tê-los procriado uma vez, pudéssemos
continuar procriando-os pela vida inteira. Queremos que eles sejam nossa
obra em tudo, como se fossem não seres humanos, mas obra do espírito.
Porém, se tivermos em nós uma vocação, se não a renegamos nem traímos,
então podemos deixá-los germinar tranquilamente fora de nós, circundados
da sombra e do silêncio que o brotar de uma vocação e de um ser requer.
Esta talvez seja a única oportunidade real que temos de ajudá-los em
alguma medida na busca de uma vocação: termos nós mesmos uma
vocação, conhecê-la, amá-la e servi-la com paixão, porque o amor à vida
gera amor à vida.
PAOLA AGOSTI
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em
vigor no Brasil em 2009.
Título original
Le piccole virtú
Capa
Raul Loureiro
Foto de capa
Louise Bourgeois, Sem título (detalhe), 2005.
© A Fundação Easton/ AUTVIS, 2019
Revisão
Valquíria Della Pozza
Angela das Neves
ISBN 978-85-5451-626-0