Anna Karênina Autor León Tolstó
Anna Karênina Autor León Tolstó
Anna Karênina Autor León Tolstó
KARÊNINA
León Tolstói
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SINOPSE DE ANA KARENINA
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molas, como se quisesse de novo dormir demoradamente,
abraçou o travesseiro com força, pelo outro lado, e apertou o
rosto contra ele; mas, de repente, se ergueu de um salto,
sentou-se no sofá e abriu os olhos.
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– Ah, ah, ah! Aaah!… – pôs-se a grunhir, lembrando tudo o que
acontecera. E sua imaginação de novo reproduziu todos os
pormenores da briga com a esposa, o
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E, nessa lembrança, como acontece muitas vezes, o que
atormentava Stiepan Arcáditch era menos o fato em si do que
a maneira como ele respondeu a essas palavras da mulher.
encontrava resposta.
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C A P Í T U L O II
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satisfeita, interessada nas crianças, nos assuntos domésticos,
como desejava. De fato, foi péssimo ter sido ela a governanta
em nossa casa. Péssimo! Existe algo de trivial, de vulgar, em um
namoro com a própria governanta. Mas, que governanta!
(Lembrou-se nitidamente dos olhos negros e travessos de
mademoiselle Roland e do seu sorriso). Mas, afinal, enquanto
ela estava em nossa casa, eu não me permitia coisa alguma.
O pior de tudo é que ela já… Isso tudo até parece de propósito!
Ai, ai, ai! Aiaiai! Mas o que fazer, o quê?”
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Atrás de Matviei, entrou também o barbeiro com os
apetrechos para fazer a barba.
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fim, corrigindo mentalmente as palavras erradas, de sempre, e
seu rosto iluminou-se.
– Perfeitamente, senhor.
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Stiepan Arcáditch já estava lavado e penteado e se preparava
para vestir-se quando Matviei, pisando devagar com os
sapatos rangentes e segurando o telegrama na mão, voltou
para o quarto. O barbeiro já fora embora.
– Tudo se arranjará?
– Exatamente, senhor.
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– O que foi, Matriocha? – perguntou Stiepan Arcáditch,
saindo ao encontro dela, na porta.
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C A P Í T U L O III
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lápis grande e, depois de pôr de lado os processos, ocupou-se
com o café; durante o café, desdobrou o jornal matutino, ainda
úmido de tinta, e começou a ler.
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reformulá-lo e, de fato, a vida familiar proporcionava poucas
satisfações a Stiepan Arcáditch e o obrigava a mentir e a
dissimular, o que tanto repugnava à sua natureza. O partido
liberal dizia, ou melhor, dava a entender, que a religião não
passava de um freio para a parte bárbara da população e, de
fato, Stiepan Arcáditch não conseguia suportar sem dor nos
pés nem um breve Te Deum e não conseguia compreender para
que todas aquelas palavras terríveis e bombásticas sobre o
outro mundo quando, neste mundo, viver poderia ser tão
alegre. Além disso, Stiepan Arcáditch, que adorava brincadeiras
divertidas, gostava de às vezes escandalizar pessoas pacatas
dizendo que, se elas se orgulhavam tanto de sua origem, não
deviam deter-se em Riurik[1] e renegar o primeiro fundador – o
macaco. Assim, a tendência liberal tornou-se um hábito para
Stiepan Arcáditch, e ele gostava do seu jornal, como do charuto
após o jantar, em razão da leve bruma que produzia em sua
cabeça. Leu o editorial que explicava como, em nossa época, é
totalmente inútil clamar que o radicalismo está ameaçando
tragar todos os elementos conservadores e que o governo tem
o dever de tomar medidas para esmagar a hidra da revolução,
quando, ao contrário, “na nossa opinião, o perigo jaz não em
uma imaginária hidra da revolução, mas na persistência do
tradicionalismo, que trava o progresso” etc. Leu também um
outro artigo, sobre finanças, em que se mencionavam Bentham
e Mill e se davam agudas alfinetadas no ministério. Com a
rapidez de compreensão que lhe era peculiar, entendia o
significado de todas as
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alfinetadas: de quem, para quem e por que motivo foram
lançadas, e isso, como sempre, lhe dava certo prazer. Mas, hoje,
esse prazer fora envenenado pela lembrança dos conselhos de
Matriona Filimónovna e por andar tudo tão mal em sua casa.
Leu também que o conde Beist, pelo que diziam, partira para
Wiesbaden, e que não era mais preciso ter cabelos brancos, e
que havia uma carruagem ligeira à venda, e que uma pessoa
jovem oferecia seus serviços; mas essas notícias não lhe deram,
como antes, um prazer sereno, irônico.
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porta, chamou-as com um grito. Os dois abandonaram o porta-
joias, que fazia as vezes de um trem, e vieram ao encontro do
pai.
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– Não sei – respondeu. – Ela não mandou ir estudar, mas
dar um passeio com
– Meia horinha.
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– Pois bem, mande logo entrar – disse Oblónski, franzindo o
rosto, de irritação.
“No entanto, mais cedo ou mais tarde, será preciso; afinal, isso
não pode continuar assim”, disse ele, tentando encorajar-se.
Aprumou o peito, pegou um cigarro, pôs-se a fumar, deu duas
baforadas, jogou-o no cinzeiro de madrepérola, atravessou a
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sala escura com passos ligeiros e abriu uma outra porta, para o
quarto da esposa.
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C A P Í T U L O IV
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embora; mas, enganando a si mesma, recolhia suas coisas e
simulava que ia partir.
Num relance, ela avaliou da cabeça aos pés sua figura cheia de
frescor e de saúde. “Sim, está feliz e satisfeito!”, pensou. “Mas e
eu?! E essa benevolência repugnante, pela qual todos o adoram
e o elogiam; odeio essa benevolência”, pensou ela. A boca se
contraiu, os músculos da face começaram a tremer no lado
direito do rosto pálido e nervoso.
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– Saia, saia, saia daqui! – gritou, sem olhar para ele, como
se o grito fosse causado por uma dor física.
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mais uma vez, começaram a tremer os músculos do lado direito
da face.
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– Eu penso nas crianças e por isso faria qualquer coisa no
mundo para salvá-las; mas eu mesma não sei como salvá-las:
devo separá-las do próprio pai ou devo deixá-las com um pai
depravado?… Mas, diga-me, depois disso… que aconteceu, será
possível vivermos juntos? Será possível? Diga-me, será possível?
– repetiu, elevando a voz. – Depois de o meu marido, o pai de
meus filhos, ter um caso amoroso com a governanta dos
próprios filhos…
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Nesse momento, no quarto vizinho, uma criança começou a
gritar, na certa depois de um tombo; Dária Aleksándrovna pôs-
se a ouvir com atenção e seu rosto, de repente, se suavizou.
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Era sexta-feira e, na sala de jantar, o relojoeiro alemão dava
corda no relógio. Stiepan Arcáditch recordou uma brincadeira
que fizera a respeito desse relojoeiro calvo e pontual, quando
dissera que “tinham dado corda no alemão para ele, a vida
inteira, dar corda nos relógios” – e sorriu. Stiepan Arcáditch
gostava de um bom gracejo. “Mas, quem sabe, tudo se
arranjará? Expressãozinha boa, esta: se arranjará”, pensou.
“Tenho de usá-la.”
– Perfeitamente.
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afazeres domésticos, que logo a cercavam no instante em que
saía. Ainda agora mesmo, no momento em que fora ao quarto
das crianças, a inglesa e Matriona Filimónovna tiveram tempo
de lhe fazer várias perguntas urgentes e às quais só ela podia
responder: Como deviam vestir as crianças para o passeio?
Vão tomar leite? Não era melhor chamar outro cozinheiro?
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E Dária Aleksándrovna mergulhou nos afazeres do dia e neles
afogou seu desgosto, por um tempo.
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CAPÍTULOV
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fraldas; uma outra terça parte o tratava por “você” e a última
terça parte era formada por bons conhecidos seus; portanto,
aqueles que distribuíam as benesses da terra em forma de
empregos públicos, arrendamentos, concessões e coisas
semelhantes eram todos amigos dele e não podiam abandonar
um dos seus; Oblónski nem precisou esforçar-se muito para
obter um cargo vantajoso; bastou não fazer objeções, não se
mostrar invejoso, não discutir, não se ofender, coisas que ele,
em virtude da sua benevolência peculiar, nunca fazia. Acharia
graça se lhe dissessem que não ia conseguir um emprego
com o salário de que necessitava, ainda mais porque ele não
pedia nada de extraordinário; queria apenas o mesmo que
recebiam os homens da sua idade e podia cumprir aquela
função tão bem quanto qualquer outro.
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Ocupando havia três anos o posto de chefe de uma das
repartições de Moscou, Stiepan Arcáditch havia angariado não
só o afeto, mas também o respeito dos colegas, dos
subordinados, dos chefes e de todos os que tinham contato
com ele. As principais qualidades de Stiepan Arcáditch, que o
tornaram merecedor do respeito geral no trabalho, eram, em
primeiro lugar, uma extraordinária boa vontade com as
pessoas, amparada na consciência de seus próprios defeitos;
em segundo lugar, um perfeito liberalismo, não do tipo sobre o
qual lia nos jornais, mas aquele que trazia no sangue e
graças ao qual tratava com perfeita paridade e igualdade
todas as pessoas, qualquer que fosse sua condição e seu posto;
e, em terceiro lugar – o mais importante de tudo –, uma
completa indiferença com relação aos assuntos de que se
ocupava no trabalho, razão pela qual jamais se deixava
entusiasmar e não cometia erros.
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convinha e começou a trabalhar. Ninguém sabia, de forma
mais justa do que Stiepan Arcáditch, manter-se na fronteira
entre a liberdade, a simplicidade e a formalidade,
indispensável para o agradável desempenho de suas funções.
O secretário, alegre e respeitoso, como eram todos na
repartição com Stiepan Arcáditch, aproximou-se com papéis e
declarou, no tom familiar e liberal introduzido ali por Stiepan
Arcáditch:
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tratou imediatamente de expulsar o intruso e fechou atrás dele
a porta de vidro.
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– Na certa saiu para o saguão, mas lá vem ele ali. É o
mesmo – disse o veterano, apontando para um homem de
ombros largos, compleição vigorosa e barba crespa, o qual,
sem tirar o gorro de pele de carneiro, galgava com rapidez e
facilidade os gastos degraus da escada de pedra. Um dos
funcionários que desciam com pastas de documentos, um
homem magro, depois de se deter por um momento, olhou de
modo desaprovador para os pés do homem que corria e, em
seguida, fitou Oblónski com ar interrogativo.
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Stiepan Arcáditch era tratado de “você” por quase todos os
seus conhecidos: velhos de sessenta anos, jovens de vinte,
atores, ministros, comerciantes e generais, de tal modo que
muitos que o tratavam por “você” se situavam nos dois
extremos da escala social e ficariam bastante surpresos se
soubessem que, por intermédio de Oblónski, tinham algo em
comum. Tratavam-no de “você” todos aqueles com quem
bebia champanhe, mas ele bebia champanhe com todos, e
assim, ao encontrar, em presença de subordinados, os seus
“vocês” desonrosos, como chamava de brincadeira a muitos de
seus amigos, ele, com o tato que lhe era peculiar, conseguia
atenuar qualquer impressão desagradável nos subordinados.
Liévin não pertencia aos “vocês” desonrosos, mas Oblónski,
com o seu tato, percebia que Liévin imaginava que ele, diante
de subordinados, talvez não desejasse manifestar a
familiaridade que havia entre ambos e por isso apressou-se a
levá-lo para o seu gabinete.
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que ele mesmo levava era a vida autêntica e a vida do amigo
não passava de uma
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para a mão do elegante Griniêvitch, com dedos tão brancos e
longos, unhas tão compridas, amarelas e recurvadas na
ponta, e abotoaduras tão grandes e reluzentes nos punhos da
camisa, que aquelas mãos pareceram absorver toda a sua
atenção e privaram-no da liberdade de pensamento. Oblónski
notou isso imediatamente e sorriu.
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– Tão cedo? – disse Oblónski, com um sorriso. – Mas como?
Por quê?
– Ah! Então, pelo que vejo, você está de novo em uma nova
fase, e dessa vez, conservadora – disse Stiepan Arcáditch. –
Mas deixemos isso para depois.
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– Mas você não tinha dito que nunca mais vestiria roupas
europeias? – perguntou, observando sua nova indumentária, de
corte nitidamente francês. – Ah! Já entendi: a nova fase.
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– Bem, trata-se do seguinte – disse Liévin –, mas na verdade
não é nada de importante.
42
afastou os papéis e disse: – Faça assim. Por favor, desse modo,
Zakhar Nikítin.
– Por quê?
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pergunta – acrescentou, com um esforço desesperado,
mirando de frente os olhos de Oblónski.
quatro e cinco horas. Kitty vai andar de patins. Você irá até lá,
e eu passarei lá também, e juntos iremos jantar em algum
lugar.
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– Mas preste atenção, eu conheço você, não vá esquecer
tudo e partir de repente para o campo! – gritou Stiepan
Arcáditch, rindo.
45
C A P Í T U L O VI
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mais elevados e todas as perfeições possíveis. Para quê as três
senhoritas precisavam falar inglês e francês, em dias
alternados; para quê, em horas determinadas e em turnos
alternados, elas tocavam piano, cujos sons se ouviam o
tempo todo no quarto do irmão, no andar de cima, onde os
universitários estudavam; para quê vinham até lá aqueles
professores de
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se com o diplomata Lvov. Kitty ainda era uma criança quando
Liévin terminou a universidade. O jovem Cherbátski, depois de
ingressar na marinha, morreu afogado no mar Báltico e os
contatos de Liévin com os Cherbátski, apesar de sua amizade
por Oblónski, tornaram-se mais raros. Mas quando, no início
do inverno daquele ano, Liévin veio a Moscou após um ano no
campo e encontrou-se com os Cherbátski, compreendeu por
qual das três estava de fato destinado a se apaixonar.
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Liévin não tinha uma atividade regular e determinada, e
tampouco uma posição na sociedade, ao passo que os seus
colegas, a essa altura da vida, quando ele contava trinta e dois
anos, já eram, alguns, coronéis e ajudantes de campo, outros,
professores, outros, diretores de banco e de estrada de ferro ou
chefes de repartição pública, como Oblónski; Liévin, por sua vez
(e ele sabia muito bem como os outros o viam), não passava de
um senhor de terras, dedicava-se à
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outros por si mesmo e ele só seria capaz de amar mulheres
belas, misteriosas e fora do comum.
50
C A P Í T U L O VII
51
conversa.
52
lhe eram habituais –, não posso, de maneira alguma,
concordar com Keiss em que toda a minha representação do
mundo exterior adveio de impressões. A própria noção da
existência, a mais fundamental de todas, não me foi
transmitida por via das sensações, porquanto não há um órgão
especial para perceber essa noção.
53
Serguei Ivánovitch, que estava longe de se expressar com o
esforço e com a visão unilateral do professor,
VIII
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mera gentileza, e por isso limitou-se a falar da venda do trigo e
de dinheiro.
55
– Pois é, é sempre assim! – interrompeu-o Serguei
Ivánovitch. – Nós, russos, somos sempre assim. Talvez seja
também uma característica positiva, a capacidade de
enxergar nossos defeitos, mas nós exageramos, nos
consolamos com ironias, que trazemos sempre na ponta da
língua. Pois eu lhe digo uma coisa,
– Ah, você sabia que nosso irmão Nikolai está de novo aqui?
56
– O que está dizendo? – exclamou Liévin, estarrecido. –
Como sabe?
57
– Sim, sim – disse Liévin. – Compreendo e aprecio a sua
atitude com ele; mas irei ao seu encontro.
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informar-se a respeito dos Cherbátski, foi para o local onde lhe
disseram que poderia encontrar Kitty.
59
C A P Í T U L O IX
60
imediatamente, entre todos os que patinavam, ele a
reconheceu.
Reconheceu que ela estava ali pela alegria e pelo terror que se
apoderaram do seu coração. Ela estava parada, conversando
com uma senhora, na extremidade oposta do rinque. Nada
parecia haver de especial em sua vestimenta, nem em sua
atitude; mas, para Liévin, foi tão fácil reconhecê-la na
multidão, como uma rosa nas urtigas. Por sua causa, tudo se
iluminava. Ela era um sorriso que irradiava luz em tudo, ao
redor. “Será que vou conseguir chegar até lá, sobre o gelo, e
aproximarme dela?”, pensou. O lugar onde estava Kitty lhe
parecia um
61
pareciam uns felizardos porque estavam ali, perto dela. Todos
que patinavam pareciam passar por Kitty com absoluta
indiferença, a alcançavam, até mesmo falavam com ela e, com
total independência, divertiam-se longe dela, aproveitando o
gelo excelente e o tempo propício.
62
Quando pensava nela, conseguia representá-la de forma viva e
por inteiro, sobretudo o encanto daquela cabecinha loura,
pousada com tamanho desembaraço entre os ombros esbeltos
de menina, com uma expressão infantil de clareza e de
bondade. A infantilidade da expressão do seu rosto somada à
fina beleza do talhe compunha sua graça peculiar, de que
Liévin se lembrava muito bem; mas o que sempre causava
surpresa era a expressão de seus olhos, dóceis, calmos e
sinceros, e em especial do seu sorriso, que sempre transportava
Liévin para um mundo mágico, onde ele se sentia enternecido e
plácido, como podia recordar-se em raros dias da primeira
infância.
63
– Tenho de dar valor a esse elogio. Aqui, vigora a tradição
de que o senhor é o melhor de todos os patinadores – disse ela
enquanto, com a mãozinha envolta por uma luva negra,
sacudia as agulhas de gelo que haviam caído sobre o regalo.
64
agora estou feliz, feliz, ainda que só de esperança… E então?…
Mas é preciso! É preciso! Fora, fraqueza!”
65
– Por quê?… Não, nada me aborreceu – respondeu Kitty
friamente e acrescentou, ligeiro: – O senhor não viu a
mademoiselle Linon?
– Ainda não.
66
E entristeceu. Depois de falar a respeito da sua velha
preceptora e de suas extravagâncias, Kitty interrogou Liévin
sobre a sua vida.
“Meu Deus, o que fiz! Santo Deus! Ajude-me, dê-me uma luz”,
disse Liévin,
67
numa reza, mas ao mesmo tempo sentiu a necessidade de um
movimento enérgico e patinou em velocidade, descrevendo
círculos para fora e para dentro.
68
não é ele que eu amo; mas, mesmo assim, sinto-me alegre com
ele, e é tão simpático. Mas por que falou aquilo?…”, pensava.
69
– Vamos, vamos, sim – respondeu Liévin, feliz, ouvindo sem
cessar o som da voz que lhe dissera: “Até logo mais”, e vendo o
sorriso que acompanhara essas palavras.
70
CAPÍTULOX
71
para os lados as abas do fraque. – Por favor, Vossa Excelência
– disse para Liévin, como um sinal de deferência a Stiepan
Arcáditch, ao também dar atenção ao seu convidado.
– Ah! Ostras.
72
– Pois bem, que tal começar com ostras e depois mudar
todo o nosso plano?
Hem?
73
O tártaro, lembrando que Stiepan Arcáditch não denominava
os pratos segundo o cardápio francês, não repetiu o pedido em
voz alta, mas deu a si mesmo o prazer de repetir em
pensamento o que dizia o cardápio: “Sopa printanière, linguado
ao molho Beaumarchais, poulard à l’estragon, macèdoine de
fruits…”, e no mesmo instante, como que impelido por molas,
fechou um cardápio encadernado, apanhou outro, o de vinhos,
e o ofereceu a Stiepan Arcáditch.
74
O tártaro se retirou, com as abas do fraque abertas para os
lados por cima dos quadris largos e, após cinco minutos,
reentrou ligeiro, com uma travessa de ostras, já abertas, em
conchas de madrepérola e com uma garrafa presa entre os
dedos.
75
em companhia de senhoras, e cercado por tamanha agitação e
rebuliço; os adornos de bronze, os espelhos, as lâmpadas a gás,
os tártaros – tudo, para ele, era ultrajante. Temia manchar
aquilo que inundava sua alma.
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– Sim, é um sinal de que ele não precisa executar nenhum
trabalho rude.
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– Como? Mas que disparate! É o jeito dela… Vamos lá, sirva
a sopa, irmão!… É o jeito dela, a grande dame – disse Stiepan
Arcáditch. – Irei também, mas preciso ir a um sarau na casa
da condessa Bánina. Mas, ora, não é você um selvagem, de
fato? Senão, me explique por que sumiu de Moscou, de
repente? Os Cherbátski me perguntavam por você o tempo
todo, como se eu devesse saber. Mas só sei uma coisa: você
sempre faz o que ninguém mais fará.
– Por quê?
– O que há?
78
– As coisas vão mal. Mas eu quero falar sobre você e, além
do mais, é impossível explicar tudo – disse Stiepan Arcáditch. –
E então, por que você veio a Moscou?… Ei, recolha os pratos! –
gritou para o tártaro.
79
– Por que pensa tal coisa? – disse Stiepan Arcáditch,
sorrindo da agitação de Liévin.
80
falo com você. Não há dúvida que somos, nós dois, diferentes
em tudo: no gosto, na maneira de ver, em tudo; mas sei que
você gosta de mim e me compreende e por isso eu gosto
terrivelmente de você. Mas, pelo amor de Deus, seja totalmente
sincero.
– Como assim?
– Ela não só gosta de você, como diz que Kitty será sua
esposa, inapelavelmente.
81
Entretanto Liévin não conseguia ficar sentado. Percorreu duas
vezes, com suas passadas firmes, o cubículo à semelhança de
uma jaula, enquanto piscava os olhos para que não se
notassem as lágrimas e, só depois, sentou-se de novo à mesa.
82
– Ah, mesmo assim – respondeu Liévin –, mesmo assim,
“lendo minha vida com repugnância, estremeço e me curvo, e
me lamento amargamente…”.[9] Sim.
83
C A P Í T U L O XI
84
Liévin franziu as sobrancelhas e ficou em silêncio.
85
proposta de casamento à moda clássica, e que Deus o
abençoe…
86
Os olhos de Stiepan Arcáditch brilharam mais do que o
habitual.
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– E a do Evangelho?
– Para você, está muito bem falar desse modo; não faz
diferença, como para aquele cavalheiro de um livro de Dickens
que, com a mão esquerda, jogava por cima do ombro direito
todas as questões complicadas. Mas a negação de um fato não
é uma resposta. O que fazer, diga-me, o que fazer? A esposa
envelhece enquanto você está repleto de vida. Num piscar de
olhos, você se dá conta de que não pode mais amar sua esposa
com amor, por mais que a estime. E então, de repente, aparece
o amor, e você está perdido, perdido! – exclamou Stiepan
Arcáditch, com um desespero desconsolado.
Liévin sorriu.
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– Ah, moralista! Mas imagine que há duas mulheres: uma
insiste apenas nos seus direitos, e tais direitos são o seu amor,
que você já não lhe pode dar; e a outra sacrifica tudo por você,
não exige nada. O que fazer? Como agir? Eis o terrível drama.
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íntegros, mas isso não acontece. Você despreza a atividade do
serviço público porque deseja que o trabalho sempre
corresponda a um fim, e isso não acontece. Quer também que
a atividade de um homem sempre tenha um fim, que o amor e
a vida em família sejam sempre uma coisa só. E isso não
acontece. Toda a diversidade, todo o encanto, toda a beleza
da vida é feita de sombra e de luz.
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outros tempos, como um homem do interior, ficaria horrorizado
diante de uma conta em que sua parte chegava a catorze
rublos, agora nem deu atenção a isso, pagou e voltou para
casa a fim de trocar de roupa e ir à casa dos Cherbátski,
onde se decidiria o seu destino.
91
C A P Í T U L O XII
92
surgiu Vrónski, ela ficou ainda mais contente, vendo
confirmada sua opinião de que Kitty não devia ter apenas um
bom partido, mas sim um magnífico partido.
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passou todo aquele inverno numa agitação e numa ansiedade
terríveis.
94
caçula. A princesa estava acostumada a isso, desde a primeira
filha, mas agora sentia que os escrúpulos do príncipe tinham
mais fundamento. Via que nos últimos tempos muita coisa
mudara nos costumes da sociedade, que as obrigações da
mãe se haviam tornado ainda mais difíceis. Notava que as
jovens da idade de Kitty formavam certas associações,
frequentavam certos cursos, tratavam os homens com
liberdade, andavam sozinhas pela rua, muitas não faziam
uma reverência ao cumprimentar e, sobretudo, tinham todas a
firme convicção de que cabia a elas, e não aos pais, a escolha
do marido. “Hoje em dia, não se casa mais como antes”,
pensavam e diziam todas essas jovens e até algumas pessoas
mais velhas. No entanto, como se devia casar hoje em dia: eis
o que a princesa não conseguia saber de ninguém. O costume
francês – o destino da filha resolvido pelos pais – era recusado,
e condenado. O costume inglês – a liberdade total das moças –
também era recusado, e impossível na sociedade russa. A
maneira russa de se arranjar o casamento por meio de
casamenteiras era considerada abominável e ridícula, por
todos e pela própria princesa. Mas como as filhas se deviam
casar e como se devia dar as filhas em casamento, isso
ninguém sabia. Todos com quem a princesa pôde conversar a
respeito diziam a mesma coisa: “Queira perdoar, mas nesta
época em que vivemos já é hora de pôr de lado essas
velharias. Afinal, quem se casa são os jovens, e não seus pais;
portanto é preciso deixar os jovens se arranjarem como
acharem melhor”. Mas era fácil falar assim, para quem não
95
tinha filhas; e a princesa compreendia que, por força da
proximidade, Kitty podia apaixonar-se, e apaixonar-se por
um homem que não tivesse intenção de casar, ou que não
servisse para marido. E por mais que incutissem na princesa a
ideia de que, em nosso tempo, os próprios jovens deviam
construir o seu destino, ela não era capaz de acreditar nisso,
como também não seria capaz de acreditar que, neste tempo
ou em qualquer outro, o melhor brinquedo para crianças de
cinco anos deviam ser pistolas carregadas. E por isso a
princesa se inquietava com Kitty mais do que com as filhas
mais velhas.
96
Kitty contou-o sem atribuir nenhuma importância a tais
palavras. Mas a mãe
97
– Quero dizer uma coisa – começou a princesa e, pela sua
fisionomia séria e interessada, Kitty adivinhou do que iria
tratar.
98
C A P Í T U L O XIII
99
Tendo subido ao seu quarto, a fim de vestir-se para a noite, e
tendo olhado no espelho, Kitty notou com alegria que estava
em um de seus bons dias e no completo domínio de todas as
suas forças, pois precisaria disso para o que tinha pela frente:
sentia uma serenidade interior e uma desembaraçada graça de
movimentos.
100
amo? Não seria verdade. O que vou dizer a ele? Direi que amo
um outro? Não, isso é impossível. Vou embora, vou fugir.”
101
– Eu lhe disse que eu não sabia se ficaria aqui muito
tempo… que isso dependia da senhorita…
Ela baixou a cabeça, cada vez mais, sem saber o que havia de
responder ao que estava por vir.
Como ela estivera perto dele, um minuto antes, como Kitty era
importante para a vida de Liévin! E como agora se tornara
alheia e distante para ele!
102
C A P Í T U L O XIV
103
– Adoro quando, das alturas da sua majestade, ele olha
para mim, ou quando interrompe sua conversa inteligente
porque sou uma tola, ou quando se mostra condescendente.
Isto eu adoro: quando ele se mostra condescendente comigo!
comum.
104
– Muito me lisonjeia, condessa, que a senhora recorde
minhas palavras – respondeu Liévin, que tivera tempo de se
recobrar e agora, por força do hábito, adotava sua atitude
jocosa com relação à condessa Nordston. – Não há dúvida que
elas a impressionaram profundamente.
105
apaixonadas. Mas num instante vou tirá-lo da sua toca. Adoro
tremendamente fazê-lo de tolo em presença de Kitty, e o farei”.
106
dar as costas para tudo o que houver nele de bom e só
enxergar o que tiver de ruim; há pessoas que, ao contrário,
desejam, mais que tudo, encontrar nesse rival bem-sucedido as
qualidades que o levaram a vencer e nele procuram, com uma
dor agoniante no coração, apenas o que tiver de bom. Liévin
pertencia a esta espécie. Mas não foi difícil, para ele, perceber
o que havia de bom e de encantador em Vrónski.
107
Konstantin Dmítritch Liévin. Conde Aleksiei Kirílovitch Vrónski.
108
– Mas quero crer, conde, que o senhor não aceitaria viver
sempre no campo – disse a condessa Nordston.
109
A conversa enveredou para as mesas que giram sozinhas e
para os espíritos, e a condessa Nordston, que acreditava no
espiritismo, passou a relatar prodígios
que presenciara.
110
– Então o senhor acha que eu não digo a verdade? E soltou
uma risada, sem nenhuma alegria.
111
Não, eu não vejo por que não possa tratar-se de uma força
nova, se ela…
112
– Vamos lá, jovem princesa, façamos a experiência da
mesa, por favor – disse Vrónski. – Princesa, a senhora permite?
113
tentando em vão compreender como e por que mostrava ele
uma atitude inamistosa, e Kitty ruborizou-se.
Assim que o velho príncipe lhe deu as costas, Liévin saiu sem
ser notado e a derradeira impressão que levou consigo daquela
noite foi a do rosto sorridente e feliz de Kitty, ao responder a
pergunta de Vrónski a respeito do baile.
114
C A P Í T U L O XV
115
Nesse momento, no andar de baixo, no pequeno escritório do
príncipe, ocorria uma das cenas que se repetiam com
frequência entre os pais, por causa da filha predileta.
116
e que todos desandem a bailar, mas não faça como hoje: só os
pretendentes, e depois tirar um para casar. Ver
117
palavra. – Aí está como preparamos a infelicidade de Kátienka,
como ela vai acabar enfiando na cabeça que…
118
várias vezes em pensamento: “Deus me perdoe, Deus me
perdoe, Deus me perdoe!”.
119
C A P Í T U L O XVI
120
tornava dependente dele e, quanto mais sentia isso, mais lhe
era agradável e mais carinhoso se tornava o seu sentimento
por ela.
Vrónski não sabia que seu modo de agir com relação a Kitty
tinha um nome preciso, que se tratava de conquistar mocinhas
sem ter intenção de casar-se e que esse engodo é uma das
condutas condenáveis habituais entre jovens brilhantes, como
ele. Parecia-lhe ser o primeiro a descobrir esse prazer e
deleitava-se com a sua descoberta.
121
atitude poderia e deveria tomar, isso ele não conseguia
conceber.
é que nada foi dito, nem por mim, nem por ela, mas nos
compreendemos tão bem, nessa imperceptível conversa de
olhares e de entonações, que hoje, de forma mais clara do
que nunca, ela me disse que me ama. E que maneira meiga,
simples e, sobretudo, confiante! Eu mesmo me sinto melhor,
mais puro. Sinto que tenho um coração e que, em mim, há
muito de bom. Aqueles meigos olhos apaixonados! Quando ela
disse: sim, muito…”.
“Bem, e daí? E daí, nada. Para mim foi bom, para ela também…”
E passou a pensar em que lugar terminaria aquela noite.
122
e, assim que pôs a cabeça no travesseiro, adormeceu, num
sono firme e sereno, como sempre.
123
C A P Í T U L O XVII
124
– Não me diga!
125
– E então? Vamos promover um jantar para a diva, no
domingo? – perguntou, com um sorriso, e segurando-o pelo
braço.
126
trilhos em curva. Ouviu-se o apito da locomotiva a vapor, nos
trilhos ao longe, e o deslocamento de algo pesado.
127
– Então é isso!… Mas, pensando bem, acho que ela pode
contar com um partido melhor – disse Vrónski e, estufando o
peito, voltou a caminhar. – Mas, na verdade, eu não o conheço
– acrescentou. – Sim, é uma situação penosa! É por isso que
a maioria prefere procurar as Claras.[15] Com elas, se você não
conseguir nada, significa apenas que não tem dinheiro
bastante; já nesse caso é a sua dignidade que está em jogo.
Mas aí está o trem.
128
completamente da mãe. Aquilo que acabara de saber sobre
Kitty o excitava e o alegrava. Seu peito se estufava
involuntariamente e seus olhos reluziam. Sentia-se um
vencedor.
129
C A P Í T U L O XVIII
– não por ser muito bonita, nem por ter uma graça elegante
e discreta, que se percebia em toda a sua pessoa, mas porque,
na expressão do rosto gracioso, ao passar por ele, havia algo
especialmente meigo e delicado. Quando olhou para trás, ela
também virou a cabeça. Os olhos brilhantes e cinzentos, que
pareciam escuros devido aos cílios espessos, pousaram com
atenção e simpatia no rosto de Vrónski, como se ela o tivesse
reconhecido, mas, logo depois, voltou-se para a multidão que
se aproximava, como que à procura de alguém. Nesse breve
olhar, Vrónski teve tempo de perceber uma vivacidade contida,
que ardia em seu rosto e esvoaçava entre os olhos brilhantes e
o sorriso quase imperceptível, que arqueava os lábios rosados.
Parecia que o excesso de alguma coisa inundava seu ser e, a
despeito da vontade dela, se expressava, ora no brilho do olhar,
ora no sorriso. Intencionalmente, a mulher apagou a luz dos
olhos, mas essa mesma luz cintilou, à sua revelia, no sorriso
quase imperceptível.
130
Vrónski entrou no vagão. A mãe, uma velha descarnada, de
olhos negros e cabelo cacheado, estreitou os olhos, examinou o
filho e sorriu ligeiramente com os lábios finos. Após se levantar
da poltrona e entregar uma bolsa à criada, ofereceu ao filho a
mãozinha magra e, depois de erguer a cabeça de Vrónski com
a mão, beijou-o no rosto.
– Até logo, Ivan Petróvitch. Veja se meu irmão não está aqui
e mande-o vir ao meu encontro – disse a senhora bem junto à
porta e entrou de novo no compartimento do vagão.
131
Nesse momento, Vrónski se deu conta de que era Kariênina.
– Oblónski! Aqui!
132
toda a viagem. Mas e você, pelo que dizem… vous fillez le
parfait amour. Tant mieux, mon cher, tant mieux.[16]
133
condessa, sobre o filho dela – explicou Kariênina, e de novo um
sorriso iluminou seu rosto, um sorriso carinhoso, destinado a
Vrónski.
134
O mesmo pensava o filho. Seguiu-a com o olhar, até a sua
figura graciosa desaparecer, e um sorriso perdurou em seu
rosto. Pela janela, vira como ela se aproximara do irmão, o
tomara pelo braço e começara a falar animadamente com ele
– nada, é claro, que tivesse alguma relação com Vrónski, e isso
o deixou contrariado.
135
Passou também às pressas o chefe da estação, com seu quepe
de cor
– Ah, que horror! Ah, Anna, se você visse! Ah, que horror! –
repetia ele.
136
Vrónski mantinha silêncio e seu belo rosto estava sério, mas
absolutamente calmo.
137
mesmo um homem excelente? Meus respeitos, senhora
condessa.
138
– E você conhece Vrónski há muito tempo? – perguntou
ela.
139
C A P Í T U L O XIX
140
esqueceu que a cunhada ia chegar. “Sim, afinal, Anna não
tem culpa”, refletiu Dolly. “Sobre ela, só sei coisas boas e, com
relação a mim, só me trata com carinho e amizade.” É
verdade que, até onde podia recordar suas impressões de
Petersburgo, a casa dos Kariênin não lhe agradara; havia algo
de falso em toda a maneira de viver daquela família. “Mas por
que eu não a receberia? Contanto que ela não tenha ideia de
me consolar!”, pensou Dolly. “Todo consolo, exortação e
misericórdia cristã, em tudo isso eu já pensei mil vezes, e de
nada adianta.”
141
– Puxa, já chegou? – disse, beijando-a.
142
personalidade, das doenças que cada criança tivera, e Dolly
não podia deixar de apreciar isso.
143
– Mas, Dolly, o que fazer, o que fazer? Qual o melhor modo
de proceder nesta situação terrível? É nisso que é preciso
pensar.
144
Tirou o lenço às pressas e, com ele, escondeu o rosto. – Ainda
poderia compreender uma paixão – prosseguiu, depois de
calar-se um pouco. – Mas enganar-me de caso pensado, com
artimanhas… e
145
martirizou você. “Não, não, ela não perdoará”, ele não para de
dizer.
146
alegria, mas agora é um tormento. Para que sofro, trabalho?
Por causa das crianças? O horrível é que, de repente, minha
alma virou pelo avesso e, em lugar do amor, do carinho, só
sinto por ele raiva, sim, raiva. Eu poderia matá-lo e…
147
– Espere. Quando ele falou comigo, admito, eu ainda não
me dera conta de todo o horror da sua situação, Dolly. Só via a
situação dele, e que a família estava abalada; senti pena do
meu irmão, mas, depois de falar com você, eu, na condição de
mulher, vejo de outra forma; vejo seu sofrimento e nem posso
lhe dizer como sinto pena! Mas, Dolly, meu anjo, compreendo
inteiramente o seu sofrimento, só não sei uma coisa: não sei…
não sei até que ponto ainda existe, na sua alma, amor por ele.
Veja bem: se existir amor suficiente, será possível perdoar. Se
existe, perdoe!
148
elevação você representava para ele, e sei que quanto mais
tempo ele viveu ao seu lado, tanto mais elevada você se tornou
para ele. No fim, às vezes nós ríamos porque ele, a cada
palavra, acrescentava: “Dolly é maravilhosa”. Para ele, você
sempre foi uma divindade, e continuou a ser, e esse entusiasmo
de agora não é algo que lhe venha do fundo da alma…
149
Anna. – Minha querida, como estou contente por você ter vindo.
Fiquei aliviada, muito aliviada.
150
C A P Í T U L O XX
151
dama da sociedade, nem a mãe de um menino de oito anos,
mas antes uma jovem de vinte anos, pela flexibilidade dos
movimentos, pelo frescor e pela vivacidade que nunca
abandonavam o seu rosto e que se desprendiam ora do sorriso,
ora do olhar, exceto pela expressão séria, por vezes triste, dos
seus olhos, que impressionava e atraía Kitty. Sentia que
Anna era totalmente natural e nada escondia, mas que havia
nela um mundo diferente, mais elevado, de interesses
complexos e poéticos, inacessíveis para Kitty.
152
jantar e não saíam de perto dela. Entre as crianças, formou-se
uma espécie de jogo que consistia em sentar-se o mais perto
possível da tia, tocá-la, segurar sua pequenina mão, beijá- la,
brincar com seu anel ou, pelo menos, tocar nos babados do seu
vestido.
153
– E por que não poderia aborrecer-me em um baile? –
perguntou Anna. Kitty se deu conta de que Anna sabia a
resposta.
– Acho que será impossível não ir. Pronto, tome – disse para
Tânia, que puxava, de leve, o anel frouxo do seu dedo branco e
de ponta fina.
154
crianças e encaminhando-as para a sala de jantar. – Ah, eu sei
por que a senhorita me convida para o baile. Espera muito
desse baile e quer que todos estejam lá, que todos participem.
Kitty sorriu, em silêncio. “Mas como terá ela vivido tudo isso?
Como eu gostaria de conhecer todo o seu romance” – pensou
Kitty, lembrando o aspecto nada poético de Aleksiei
Aleksándrovitch, marido de Anna.
155
– O que ela contou à senhora?
–Ah, muita coisa! Sei que ele é o favorito da mãe, mas mesmo
assim é óbvio que se trata de um cavalheiro… Bem, ela contou,
por exemplo, que ele queria ceder todos os seus bens para o
irmão e que, já na infância, fez uma coisa extraordinária, salvou
uma mulher que se afogava. Em suma, um herói – disse Anna,
sorrindo e lembrando-se dos duzentos rublos que ele deixara na
estação.
156
C A P Í T U L O XXI
– Ah, ora essa, por favor, não se preocupe por minha causa
– respondeu Anna, fitando o rosto de Dolly e tentando
compreender se houvera ou não uma reconciliação.
Pelo seu tom de voz, Kitty e Anna logo entenderam que houvera
uma reconciliação.
157
“Meu Deus, será que a reconciliação foi completa?”, pensou
Anna, ao ouvir o tom de Dolly, frio e sereno.
158
todos pareceu estranho. Quando conversavam sobre
conhecidos comuns em Petersburgo, Anna levantou-se
depressa.
Por volta das dez horas, horário em que costumava dar boa-
noite para o filho e em que, muitas vezes, antes de ir a um
baile, ela mesma o punha para dormir, Anna sentiu-se triste por
estar tão longe dele; e, qualquer que fosse o assunto da
conversa, a todo instante voltava o pensamento para o seu
Serioja de cabelos encaracolados. Queria olhar o seu retrato e
falar sobre ele. Aproveitando o primeiro pretexto, levantou-se e,
com seu passo ligeiro e decidido, foi buscar o álbum. A escada,
que subia até o seu quarto, passava no patamar da grande e
aquecida escada da porta principal.
159
lampião. Anna, ao olhar para baixo, reconheceu Vrónski
imediatamente e um estranho sentimento de prazer e, ao
mesmo tempo, de medo agitou-se em seu coração. Ele estava
parado, não fazia menção de tirar o casaco e puxava algo de
dentro do bolso. No instante em que Anna alcançou a metade
da escada, ele ergueu os olhos, avistou-a e, na expressão do
rosto de Vrónski, surgiu algo de envergonhado e de apreensivo.
Anna, depois de inclinar ligeiramente a cabeça para ele,
seguiu adiante e, às suas costas, ouviu-se a voz alta de
Stiepan Arcáditch, que o chamava para entrar, e a voz baixa,
branda e serena de Vrónski, que se recusava.
Kitty ruborizou-se. Pensava que só ela sabia por que ele viera e
por que não entrara. “Ele foi a minha casa”, pensou ela, “não
me encontrou e imaginou que eu estava aqui; mas não entrou
porque achou que já era tarde, e porque Anna está aqui”.
160
Nada havia de excepcional ou de estranho no fato de um
homem passar na casa de um amigo, às nove e meia, para
saber detalhes de um jantar que se estava organizando, e não
entrar; mas, a todos, isso pareceu estranho. Mais que a
qualquer outro, pareceu estranho e ruim a Anna.
161
C A P Í T U L O XXII
162
agora, no seu complicado vestido de tule com barra cor-de-
rosa, se integrava ao baile com muito desembaraço e
naturalidade, como se todos aqueles laços de fita em forma de
rosetas, aquelas rendas, todos os pormenores do vestuário não
houvessem custado a ela e a suas criadas nem um minuto de
atenção, como se ela já tivesse nascido nesse vestido de tule,
nessas rendas, com esse penteado alto, que trazia no topo
duas folhas e uma rosa.
163
sua casa, olhando o próprio pescoço no espelho, Kitty teve a
sensação de que o veludo falava. A respeito de tudo o mais,
ainda poderia haver dúvidas, mas o veludo era um encanto.
Kitty sorriu também aqui, no baile, mirando-se de passagem
no espelho. Nos ombros e braços nus, Kitty sentia um frio de
mármore, sensação que ela especialmente apreciava. Os olhos
reluziam e os lábios rosados não conseguiam deixar de sorrir,
ante a consciência do fascínio que exerciam. Mal entrara no
salão e mal alcançara a multidão de damas, entre tules, fitas,
rendas e flores, que esperavam os convites para dançar (Kitty
nunca se demorava nessa multidão), já a convidavam para a
valsa, e o convite vinha do melhor cavalheiro, o mais
importante na hierarquia do baile, um famoso regente de
bailes e mestre de cerimônias, um homem casado, bonito e
esbelto, chamado Iegóruchka Korsúnski. Tendo deixado,
pouco antes, a condessa Bánina, com quem dançara até o
fim a primeira valsa, ele percorreu com o olhar os seus súditos,
ou seja, alguns pares que haviam começado a dançar, avistou
Kitty que entrara e apressou-se até ela, com o passo
desenvolto, peculiar e exclusivo dos regentes de baile e,
depois de fazer uma reverência, sem sequer perguntar se
Kitty aceitava ou não, levantou o braço para rodear a sua
cintura fina. Kitty olhou em volta, em busca de alguém a
quem entregar seu leque, e a dona da casa, sorrindo para ela,
segurou-o.
164
– Que ótimo que a senhorita tenha chegado na hora certa –
disse ele, abraçando sua cintura –, ao contrário do condenável
costume de chegar mais tarde.
165
encontrou os olhos de Stiva e depois avistou a encantadora
cabeça e a figura de Anna, num vestido preto de veludo. E ele
estava ali. Kitty não o vira desde a noite em que rejeitara
Liévin. Com seus olhos que enxergavam longe, Kitty
reconheceu-o de imediato e até reparou que ele olhou para ela.
– Não, obrigada.
– Como quiser.
166
estava de lilás, como Kitty desejara com tanto afinco, mas
sim de preto, num vestido de veludo de corte rebaixado, que
deixava à mostra, cheios e torneados, como que em marfim
antigo, o colo, os ombros e os braços roliços, de pulsos finos e
minúsculos. O vestido era todo ornado de guipuras venezianas.
Sobre a cabeça, nos cabelos negros, todos próprios e sem
mesclas de cabelos postiços, trazia uma pequena guirlanda de
amores-perfeitos, igual à outra que estava presa à faixa negra
em torno da cintura, entre rendas brancas. O penteado nada
tinha de notável. Notáveis eram apenas os curtos aneizinhos
rebeldes dos cabelos encaracolados, que sempre caíam na
nuca e nas têmporas. No pescoço firme e bem torneado, havia
um colar de pérolas.
167
Estava parada numa postura extraordinariamente ereta, como
sempre, e, quando Kitty se aproximou daquele grupo, falava
com o dono da casa, com a
168
– Mas hoje é impossível – retrucou Korsúnski. Nesse
momento, aproximou-se Vrónski.
169
C A P Í T U L O XXIII
170
enfadonhos, a quem não pôde rejeitar, aconteceu de ficar vis-
à-vis a Vrónski e Anna. Ela não deparara mais com Anna desde
sua chegada ao baile e então, de repente, avistou-a outra vez,
de uma forma completamente nova e inesperada. Reconheceu
nela as feições da exaltação do sucesso, tão conhecidas de
Kitty. Viu que Anna estava embriagada com a admiração
entusiástica que provocava. Kitty conhecia esse sentimento,
conhecia os seus sintomas e os reconheceu em Anna – viu o
brilho trêmulo e inflamado nos olhos, o sorriso de felicidade e
de exaltação que involuntariamente arqueava os lábios, e a
graça distinta, a precisão e a leveza dos movimentos.
171
Vrónski e horrorizou-se. Aquilo que Kitty pressentira tão
claramente no espelho do rosto de
172
quando já começavam a arrumar as cadeiras e alguns pares se
deslocavam das salas menores para o salão principal, Kitty
teve um minuto de horror e desespero. Recusara cinco pares e
agora não ia dançar a mazurca. Já nem havia esperança de
que a convidassem, justamente porque ela fazia demasiado
sucesso na sociedade e não poderia passar pela cabeça de
ninguém que não tivesse sido convidada até aquele momento.
Teria de dizer à mãe que estava se sentindo mal, e ir para
casa, mas não tinha forças para isso. Sentia-se prostrada.
173
– Kitty, não está dançando a mazurca?
174
perplexidade e submissão que a assombrava, semelhante à
expressão de um cachorro inteligente quando se sente culpado.
175
lhe apertar a mão. Mas, notando que o rosto de Kitty só
respondeu ao seu sorriso com uma expressão de desespero e
de assombro, virou-lhe as costas e passou a falar alegremente
com a outra dama.
Anna não queria ficar para o jantar, mas o dono da casa veio-
lhe pedir.
176
– Sim, eu creio – respondeu, como que espantada com a
coragem de sua resposta; mas, ao falar, o brilho trêmulo e
irresistível dos olhos e do sorriso abrasou Vrónski.
177
C A P Í T U L O XXIV
178
longo trajeto até o irmão, Liévin recordava, de forma vívida,
todos os acontecimentos da vida de Nikolai de que tinha
conhecimento. Lembrou como o irmão, na universidade e um
ano após a universidade, apesar das zombarias dos colegas,
viveu como um monge, no rigoroso cumprimento de todos
os ritos da religião, nas missas, nos jejuns, evitando todos os
prazeres, em especial as mulheres; e como depois, de repente,
não pôde mais se conter, uniu-se às pessoas mais sórdidas e
atirou-se à mais desregrada devassidão. Lembrou-se, em
seguida, da história do menino que ele trouxera do campo
para educar e como, num acesso de fúria, o surrou de tal
modo que teve de responder a um processo, acusado de
provocar mutilação. Lembrou-se, depois, da história do
trapaceiro para quem Nikolai perdera dinheiro no jogo, a quem
pagara com uma
179
Liévin não parecia tão torpe quanto devia parecer aos olhos de
quem não conhecesse Nikolai Liévin, não conhecesse toda a
sua história, não conhecesse o seu coração.
– Ele está?
– Deve estar.
180
A porta do quarto doze estava entreaberta e de lá, numa
faixa de luz, saía uma densa fumaça de tabaco malcheiroso e
ordinário e o som de uma voz que Liévin desconhecia; mas
reconheceu de imediato que o irmão estava lá; ouviu sua tosse.
181
– Quer falar com quem? – perguntou, com irritação, a voz
de Nikolai Liévin.
182
Ele em nada se parecia com a pessoa que Konstantin havia
imaginado. O que havia de pior e de mais penoso em seu
caráter, aquilo que tornava tão difíceis as relações com ele,
ficara esquecido de Konstantin Liévin, quando pensara no
irmão; e então, no momento em que viu o seu rosto, em
especial aquele meneio tenso da cabeça, lembrou-se de tudo.
direção:
– Espere, eu já disse.
183
novo por todos os presentes, passou a contar para o irmão a
história de Krítski: como o expulsaram da universidade por ter
organizado uma sociedade de amparo para os estudantes
pobres, além de escolas dominicais, e como, mais tarde, se
tornou professor numa escola pública, e como também o
expulsaram de lá, e como depois respondeu a um processo por
algum motivo.
184
– Vamos, Macha, mande trazer o jantar: três porções, vodca
e vinho… Não, espere… Não, não é nada… Vá.
185
C A P Í T U L O XXV
186
quanto mais eles trabalharem, mais os comerciantes e os
senhores de terra enriquecerão, enquanto eles serão sempre as
bestas de carga. E este regime precisa mudar – concluiu e
fitou o irmão, com ar interrogativo.
187
– Não é assim, mas para que você fica falando de Serguei
Ivánitch? – perguntou Liévin, sorrindo.
188
tomar parte da conversa.
189
– Bebe muito? – sussurrou Liévin.
– Se não querem dizer, tanto faz. Só que você não tem nada
o que falar com ela. É uma prostituta e você, um fidalgo –
disse, repuxando o pescoço. – Pelo que vejo, você já entendeu e
avaliou tudo e sente comiseração pelos meus erros –
recomeçou a falar, erguendo a voz.
– Ora, está bem, está bem!… Mas e o jantar? Ah, aqui está
ele – disse, ao ver o criado com uma bandeja. – Aqui, ponha
aqui – falou, zangado, e logo apanhou a vodca, encheu um
cálice e sorveu tudo, com sofreguidão. – Beba, não quer? –
perguntou ao irmão, alegrando-se num instante. – Bem, basta
de Serguei Ivánitch. Apesar de tudo, estou contente de ver
você. Por mais que se diga, não somos estranhos. Vamos, beba.
Conte o que tem feito – prosseguiu, enquanto mastigava
sofregamente um naco de pão e enchia mais um cálice. – Como
vive?
190
– Moro sozinho no interior, como vivia antes, cuido da
propriedade – respondeu Konstantin, observando com horror a
sofreguidão com que ele bebia e comia, enquanto tentava
disfarçar sua atenção.
191
– Mas então venha logo agora – disse Liévin. – Que ótimo
seria para nós!
192
– Deixe! Não me amole! Bato em você! – gritou ele. Mária
Nikoláievna deu um sorriso manso e bondoso, que contagiou
Nikolai, e retirou a vodca. – E você pensa que ela não
compreende nada? – perguntou Nikolai. – Pois ela entende
tudo isso melhor do que qualquer um de nós. Não é verdade
que há nela algo de bom, de meigo?
193
– No outro mundo? Oh, eu não gosto desse outro mundo!
Não gosto – disse Nikolai, depois de fixar no rosto do irmão
seus olhos ferozes e assustados. – Era de imaginar que deixar
para trás todas as canalhices, todas as confusões, as nossas e
as alheias, seria uma coisa boa, mas tenho medo da morte,
tenho um medo terrível da morte. – Estremeceu. – Vamos, beba
um pouco. Quer champanhe?
194
C A P Í T U L O XXVI
195
compreender de modo completamente distinto tudo aquilo que
acontecera. Sentiu-se inteiro em si mesmo e não queria ser
outra pessoa. Agora, só queria ser melhor do que fora antes.
Em primeiro lugar, a partir desse dia, resolveu que não
alimentaria mais esperanças de uma felicidade extraordinária,
a qual deveria vir do casamento e, em consequência, não
menosprezaria tanto o seu presente. Em segundo lugar, nunca
mais permitiria arrebatar-se por paixões sórdidas, cuja
lembrança tanto o martirizara nos momentos em que se
preparava para apresentar seu pedido de casamento. Depois,
lembrando-se do irmão Nikolai, resolveu que nunca mais se
permitiria esquecê-lo, acompanharia seus passos e não o
perderia de vista, para estar pronto a ajudar, quando sua
situação piorasse. E, Liévin o pressentia, isso não demoraria a
acontecer. Em seguida, a conversa com o irmão sobre o
comunismo, que na ocasião ele não levara a sério, agora o
obrigou a refletir. Julgava absurda a reforma das condições
econômicas, mas sempre se dera conta da injustiça da sua
fartura, em comparação com a pobreza do povo, e então
decidiu que, a fim de sentir-se inteiramente justo, embora antes
já trabalhasse muito e não vivesse no luxo, agora trabalharia
ainda mais e teria ainda menos luxo. E tudo isso lhe parecia tão
fácil de executar que passou todo o trajeto entregue aos
devaneios mais agradáveis. Com um animado sentimento de
esperança numa vida nova e melhor, chegou a sua casa antes
das nove horas da noite.
196
Das janelas do quarto de Agáfia Mikháilovna, a velha ama que
desempenhava as funções de uma governanta, caía uma luz
sobre a neve, no pátio em frente à casa. Ela ainda não dormia.
Kuzmá, despertado por ela, correu para a varanda, descalço e
sonolento. A cadela perdigueira Laska, que por pouco não
derrubou Kuzmá, veio pulando e ganindo, esfregou-se nos
joelhos de Liévin, ergueu-se com vontade de pôr as patas
dianteiras em seu peito, mas não se atreveu.
197
eterna esperança de felicidade, que não veio e que, para você,
é impossível”.
198
O estábulo para as vacas mais valiosas ficava, agora, atrás da
casa. Depois de atravessar o quintal e contornar um monte de
neve e os lilases, Liévin aproximou-se do estábulo. Sentiu o
cheiro de estrume morno quando a porta, emperrada por causa
do frio, se abriu e as vacas, surpresas com a inusitada luz da
lanterna, começaram a mexer-se sobre a palha fresca.
Rebrilhou o amplo dorso liso, malhado de preto, da vaca
holandesa. Berkut, o touro, jazia com sua argola no focinho
e fez menção de levantar, mas pensou melhor e limitou-se a
bufar duas ou três vezes quando passaram por ele. Pava, a
beldade vermelha, imensa como um hipopótamo, tendo virado
de costas, encobria a bezerra dos intrusos e a cheirava.
199
– E como poderia ser feia? Ah, o empreiteiro Semion veio
um dia após a partida do senhor. Se senhor. Será preciso
acertar as contas com ele, Konstantin Dmítritch –
XXVII
200
em sua imaginação, uma réplica daquele fascinante e divino
ideal de mulher, que fora a mãe, aos seus olhos.
201
e que Prókhor gastara todo em bebida, e depois quase
matou a mulher de tanto bater; Liévin escutava, lia o livro e
recordava toda a cadeia de seus pensamentos, despertados
pela leitura. Tratava-se de um livro de Tyndall sobre o calor.
Lembrava sua crítica a Tyndall por sua ridícula presunção ante
a esperteza das experiências e pela carência de uma visão
filosófica. E, de repente,
202
que se passara em Moscou… “Pois bem, o que fazer?… Não
tenho culpa. Mas agora tudo será diferente. É um absurdo
achar que a vida não permitirá, que o passado não permitirá. É
preciso lutar para viver melhor, e muitíssimo melhor…” Ergueu a
cabeça e pôs-se a refletir. A velha Laska, que ainda não dera
vazão a toda a sua alegria com o regresso de Liévin e viera
correndo para ladrar no pátio, voltou, abanando o rabo e
trazendo consigo um aroma de ar livre, aproximou-se dele,
enfiou a cabeça sob a sua mão e, com um ganido queixoso,
exigiu que ele a acariciasse.
203
pés, depondo a cabeça sob a pata traseira, que havia
espichado. E, num sinal de que agora tudo estava bem e em
ordem, ela abriu ligeiramente a boca, fez estalar os lábios e,
depois de acomodar melhor os lábios viscosos ao longo dos
dentes envelhecidos, aquietou-se numa beatitude serena. Liévin
acompanhou com atenção esses últimos movimentos de Laska.
204
C A P Í T U L O XXVIII
205
própria, e que não vinha sem motivo e que, na maior parte
das vezes, encobria uma insatisfação consigo mesma. Após o
jantar, Anna foi ao seu quarto para trocar de roupa e Dolly a
acompanhou.
– Eu? Você acha? Não estou estranha, mas não estou bem.
Eh, isso acontece comigo. Sinto vontade de chorar. É muita
tolice, mas acontece – falou Anna, ligeiro, e baixou o rosto,
que se havia ruborizado, de encontro a uma bolsinha na qual
guardava a touca de dormir e os lenços de cambraia. Seus
olhos brilhavam de um modo peculiar e contraíam-se a todo
instante por causa das lágrimas. – Assim como antes eu não
queria partir de Petersburgo, agora eu também não quero ir
embora daqui.
– Não diga isso, Dolly. Não fiz nada, não podia fazer.
Muitas vezes me espanta ver como as pessoas parecem estar
combinadas para me estragar com elogios. O que fiz e o que
poderia fazer? Você tem no coração amor de sobra para
perdoar…
206
– Todos têm, guardados na alma, os seus skeletons, como
dizem os ingleses.
– Não, são sombrios, sim. Sabe por que parto hoje e não
amanhã? Quero lhe confessar uma coisa que me está
sufocando – disse Anna, recostando-se resoluta na poltrona e
mirando bem nos olhos de Dolly.
207
– Ah, não, não! Não sou como Stiva – retrucou, de
sobrancelha franzida. –
208
ouviu, em palavras, aquilo que ocupava seu pensamento. – Pois
veja, aqui estou eu de partida, depois de me tornar inimiga de
Kitty, de quem eu tanto gostava. Ah, como é encantadora! Mas
209
– Você me compreendeu, e me compreende. Adeus, minha
querida!
210
C A P Í T U L O XXIX
211
neve, que batia na janela da esquerda e grudava no vidro, o
vulto do condutor agasalhado que passava por ela com um dos
lados do corpo coberto de neve e as conversas sobre a terrível
nevasca lá fora
212
desejava partir em sua companhia rumo à propriedade
quando, de repente, se deu conta de que, para o herói, seria
uma vergonha e que ela, por isso mesmo, também sentiria
vergonha. Mas por que seria uma vergonha para ele? “Por que
seria uma vergonha para mim?”, perguntou-se Anna, com uma
surpresa ofendida. Baixou o livro e recostou-se na poltrona,
apertando a espátula com força, em ambas as mãos. Nada
havia de vergonhoso. Chamou à memória todas as suas
lembranças de Moscou. Tudo era bom, agradável. Lembrou-se
do baile, lembrou-se de Vrónski e do seu rosto enamorado e
submisso, lembrou-se de todas as suas atitudes com ele: nada
havia de vergonhoso. No entanto, justamente nesse ponto de
suas lembranças, o sentimento de vergonha se redobrava,
como se uma voz interior, no exato momento em que ela se
recordava de Vrónski, lhe dissesse: “Caloroso, muito caloroso,
ardente”. “Mas, e daí?”, exclamava Anna para si mesma,
resoluta, revirando-se na poltrona. “O que isso quer dizer?
Acaso tenho medo de olhar para isso de frente? E então? Por
acaso entre mim e esse menino militar existem, ou poderão
existir, quaisquer relações senão aquelas habituais entre
pessoas conhecidas?” Sorriu com desdém e pegou de novo o
livro, mas, positivamente, já não conseguia compreender o que
lia. Deslizou a espátula pelo vidro da janela, depois encostou
sua superfície lisa e fria contra a face e por pouco não riu em
voz alta, com a alegria que, sem motivo, se apoderou dela.
Anna sentiu que seus nervos, como cordas, se punham cada
vez mais tensos, puxados por uma cravelha que apertava.
213
Sentia que os olhos se abriam mais e mais, que os dedos das
mãos e dos pés se remexiam nervosos, que algo dentro dela
comprimia sua respiração e que todos os sons e imagens,
nessa penumbra trêmula, a impressionavam com uma clareza
incomum. De forma ininterrupta, lhe vinham momentos de
dúvida,
214
ocultou atrás de um muro. Anna sentiu que afundava. Mas nada
disso era terrível e sim, alegre. A voz de um homem, abafada e
encoberta pela neve, gritou-lhe algo junto ao ouvido. Anna
levantou-se e voltou a si; entendeu que se aproximavam da
estação e que o homem era o condutor. Ela pediu a Ánuchka
que lhe desse a pelerine que havia retirado e um xale, vestiu-os
e dirigiu-se à porta.
215
C A P Í T U L O XXX
216
pala do quepe, Vrónski curvou-se diante dela e perguntou se
não precisava de alguma coisa, se ele não poderia servi-la?
Durante um longo tempo, e sem nada responder, Anna fitou-o
e, apesar da sombra onde ele estava, viu, ou lhe pareceu ver, a
expressão do seu rosto e dos seus olhos. Era de novo aquela
expressão de admiração respeitosa que causara tamanho
efeito sobre ela no dia anterior. Mais de uma vez, Anna
dissera a si mesma, nos últimos dias, e até pouco antes, que
para ela Vrónski era apenas mais um entre centenas de jovens,
todos sempre iguais, que encontrava por toda parte e sobre os
quais nunca se dava ao trabalho sequer de pensar; mas agora,
no primeiro instante do encontro com ele, Anna viu-se
dominada por um sentimento de orgulho radiante. Não era
preciso perguntar por que ele estava ali. Anna sabia disso com
tanta certeza como se ele mesmo lhe tivesse dito que estava ali
para estar onde ela também estava.
217
locomotiva, lá na frente, pôs-se a bramir o apito penetrante, de
um modo lúgubre e tristonho. Para Anna, todo o horror da
nevasca parecia, agora, ainda mais belo. Vrónski falara
exatamente o que a alma de Anna desejava, mas que a sua
razão temia. Ela nada respondeu e, em seu rosto, Vrónski viu
um conflito.
218
quanto a alegrou. Depois de alguns segundos ali parada, Anna
entrou no vagão e sentou-se em seu lugar. Aquele estado
mágico e premente que a atormentava no início não só
recomeçou como ganhou ainda mais força e chegou ao ponto
de Anna temer que algo demasiado tenso se rompesse dentro
dela a qualquer minuto. Não dormiu, a noite inteira.
219
experimentou ao encontrá-lo. Tratava-se de um sentimento
antigo, conhecido, semelhante à condição de hipocrisia que
Anna experimentava nas relações com o marido; mas, se antes
ela não se dera conta desse sentimento, agora o percebia de
forma clara e dolorosa.
220
C A P Í T U L O XXXI
221
desregradas, desperdiçadas, estavam concentradas em um só
ponto com uma energia terrível, dirigidas para um fim
venturoso. E sentia-se feliz por isso. Só sabia que lhe dissera a
verdade, que viera para onde ela estava, que toda a felicidade
da vida, que o único sentido da vida, para ele, consistia em vê-
la e ouvi-la. E, quando saiu do vagão em Bologova para beber
soda e viu Anna, sua primeira palavra, involuntariamente,
revelou a ela exatamente aquilo que ele pensava. E sentia-se
contente de lhe ter falado assim, de que ela agora o soubesse e
pensasse nisso. Vrónski não dormiu, a noite inteira. Depois de
voltar ao seu vagão, pôs-se a relembrar todas as situações em
que a tinha visto, todas as palavras de Anna e, na imaginação,
desfilavam quadros do futuro possível, que obrigavam seu
coração a parar.
222
a ela. Sabia que Anna tinha um marido, mas não acreditava na
sua existência e só acreditou inteiramente nisso quando o viu,
com a sua cabeça, os seus ombros e as suas pernas vestidas
em calças pretas; sobretudo quando viu como o marido, com
um sentimento de propriedade, tomou calmamente Anna pelo
braço.
223
modo como Anna falava com o marido. “Não, ela não o ama, e
não pode amá-lo”, decidiu Vrónski consigo mesmo.
224
com clareza, como se cada palavra valesse um rublo. – O
senhor, naturalmente, está de volta da sua licença, não é? –
perguntou e, sem esperar resposta, dirigiu-se à mulher, no seu
tom irônico: – E então, derramaram- se em Moscou muitas
lágrimas na despedida?
225
– Oh, magnificamente! Mariette diz que ele foi muito dócil
e… tenho de lhe dar um desgosto… não sentiu sua falta, não
tanto como o seu marido. Porém, mais uma vez, merci, minha
cara, por me dar mais um dia. Nossa querida Samovar ficará
exultante… (Ele chamava de Samovar a famosa condessa Lídia
Ivánovna, porque sempre e por qualquer motivo ela se
entusiasmava e se enchia de ardor.) Pergunta o tempo todo por
você. Aliás, se me permite um conselho, seria bom visitá-la
ainda hoje. Afinal, ela se aflige por qualquer coisa. Agora, além
das próprias preocupações, anda muito interessada na
reconciliação dos Oblónski.
226
C A P Í T U L O XXXII
– Eu sabia!
227
menina chamada Tânia, que sabia ler e até ensinava às outras
crianças.
– Sim, tudo está resolvido, mas não era tão sério como
havíamos pensado – respondeu Anna. – Minha belle soeur é, em
geral, impulsiva demais.
228
– Começo a me cansar de lutar em vão em prol da verdade
e às vezes me sinto completamente exasperada. A obra das
Irmãzinhas (tratava-se de uma instituição filantrópica, religiosa
e patriótica) até poderia andar esplendidamente, mas com
aqueles cavalheiros não é possível se fazer nada – acrescentou
a condessa Lídia Ivánovna, num tom de irônica submissão ao
destino. – Eles se aferraram à ideia, a desvirtuaram e agora se
perdem a discutir ninharias e futilidades. Duas ou três pessoas,
entre elas o seu marido, compreendem todo o significado dessa
obra, mas os outros apenas a deturpam. Ontem, Právdin me
escreveu…
“Afinal, tudo está como antes; mas por que não me dei conta
disso antes?”, perguntou-se Anna. “Ou estará ela irritada, hoje?
Na verdade, é engraçado: seu
229
Após a condessa Lídia Ivánovna, veio uma amiga, a esposa de
um diretor de repartição, e contou todas as novidades da
cidade. Às três horas, ela também saiu, prometendo voltar
para o jantar. Aleksiei Aleksándrovitch estava no ministério.
Sozinha, Anna aproveitou o tempo livre antes do jantar para
assistir à refeição do filho (ele jantava em separado) e para
arrumar suas coisas, ler e responder bilhetes e cartas que se
haviam acumulado sobre a sua mesa.
230
C A P Í T U L O XXXIII
231
enfatizou a palavra incômodo) jantar sozinho.
232
serão, pôs o menino para dormir, abençoou-o com o sinal da
cruz e cobriu-o com a manta. Sentiu-se contente de não ir a
parte alguma e de ter passado a noite de forma tão agradável.
Sentia-se leve e serena, percebia claramente que tudo aquilo
que, na estrada de ferro, lhe parecera tão importante não
passava de mais um desses casos banais e rotineiros da vida e
que ela, diante de si ou de qualquer pessoa, nada tinha de que
se envergonhar. Sentou-se junto à lareira com um romance
inglês e aguardou o marido. Às nove e meia em ponto, ouviu-se
a campainha do marido e ele entrou na sala.
233
– Estou contente por tudo haver terminado de um modo
feliz e por você estar de volta – prosseguiu ele. – Mas o que
comentam por lá sobre a nova lei que fiz passar no conselho?
234
– Ah, não! – respondeu Anna, levantando-se junto com o
marido e acompanhando-o através da sala, rumo ao escritório.
– O que está lendo, agora?
235
– Bem, fique com Deus – disse ela, na porta do escritório,
onde já haviam deixado, para ele, um abajur em frente à vela e
uma garrafa de água junto à poltrona. – Eu vou escrever uma
carta para Moscou.
236
estadia em Moscou, chamejava nos olhos e no sorriso: ao
contrário, agora a chama parecia extinta, ou estava oculta em
algum lugar distante.
237
C A P Í T U L O XXXIV
238
– Bravo! Vrónski! – pôs-se a gritar Petrítski, erguendo-se de
um salto e fazendo estrondo com a cadeira. – O dono da casa
em pessoa! Baronesa, um café para ele, e da cafeteira nova.
Puxa, não esperávamos! Tomara que fique satisfeito com o
ornamento do seu escritório – disse, apontando para a
baronesa. – Vocês já se conhecem, não é?
239
Petrítski, deixando claro o tipo de relação que tinha com ele. –
Vou misturar.
– Vai estragar.
240
todas as pessoas se dividiam em duas classes
completamente opostas. Uma classe inferior: pessoas
vulgares, tolas e, acima de tudo, ridículas, que acreditavam
que um marido tinha de viver com a mulher com a qual
estava casado, que uma jovem solteira devia ser inocente, a
mulher, recatada, o marido, másculo, sóbrio e inabalável, que
era preciso criar filhos, ganhar o seu sustento, saldar as dívidas
– e várias tolices do mesmo tipo. Era uma classe de pessoas
antiquadas e ridículas. Mas havia outra classe, de pessoas
autênticas, à qual todos eles pertenciam e na qual era preciso,
acima de tudo, ser elegante, bonito, generoso, corajoso,
alegre, entregar-se a todas as paixões sem nenhum pudor e
241
falta de asseio. Portanto, o conselho do senhor é uma faca na
garganta?
242
passou a contar todas as novidades interessantes. Ao ouvir as
histórias de Petrítski, que lhe eram tão familiares, no ambiente
também familiar daqueles aposentos em que já morava havia
três anos, Vrónski experimentou a agradável sensação de estar
de volta à vida habitual e despreocupada de Petersburgo.
243
Como pode ser? Em volta, piscam para ele, acenam com a
cabeça, franzem o rosto. Dê. Não dá. Fica imóvel.
244
2. Prisma triangular de vidro, de uso obrigatório nas
repartições públicas russas, onde estavam reproduzidos três
decretos de Pedro, o Grande, relativos à justiça e aos direitos
do cidadão.
6. Inglês: “ursinho”.
PARTE II
245
CAPÍTULOI
246
relações acreditava-se, por algum motivo, que só aquele
médico famoso possuía um conhecimento específico e que só
ele podia salvar Kitty. Após um minucioso exame e após
percutir com os dedos a paciente desconcertada e atônita de
tanta vergonha, o médico famoso, depois de lavar
escrupulosamente as mãos, se encontrava na sala de estar e
falava com o príncipe. O príncipe tinha as sobrancelhas
franzidas e tossia, enquanto escutava o médico. Homem vivido,
sem nada de tolo nem de doente, o príncipe não acreditava
na medicina e, no fundo, se irritava com toda aquela
comédia, ainda mais porque só ele compreendia plenamente a
causa da doença de Kitty. “Cão sem faro que late à toa”,
pensou ele, aplicando ao médico famoso uma expressão do
dicionário dos caçadores, enquanto ouvia seu palavrório sobre
os sintomas da doença da filha. O médico, por sua vez,
continha com dificuldade uma expressão de desprezo por
aquele velho fidalgo e, com dificuldade, se rebaixava à
insignificância do entendimento dele. O médico compreendeu
que era inútil falar com o velho e que, naquela casa, o
importante era a mãe. Para ela pretendia lançar suas
pérolas. Nesse momento, a princesa entrou na sala em
companhia do médico da família. O príncipe se retirou,
tentando não dar mostras de como achava ridícula toda
aquela comédia. A princesa estava desnorteada e não sabia o
que fazer. Sentia-se culpada diante de Kitty.
247
– Então, doutor, decida a nossa sorte – exclamou. – Diga-
me tudo. – “Existe esperança?” Era o que desejava perguntar,
mas os lábios começa am a tremer e ela não foi capaz de
pronunciar a pergunta. – E então, doutor?…
248
processo de tuberculose, o que é preciso fazer a fim de manter
a nutrição?
249
– Por outro lado, em favor da viagem para o exterior, eu
apontaria a mudança de hábitos, o afastamento das
circunstâncias capazes de despertar recordações. E, além do
mais, a mãe o deseja – disse ele.
250
coração estava partido. Como queriam curá-la com pílulas e
pozinhos? Mas não podia desacatar a mãe, ainda mais porque
a mãe se julgava culpada.
251
Kitty fingiu alegrar-se. Agora, muitas vezes, e quase sempre,
tinha de fingir.
252
C A P Í T U L O II
253
vez sofrida, não podia se repetir e nem mesmo a descoberta de
uma infidelidade poderia produzir sobre ela o mesmo efeito
da primeira vez. Tal descoberta, agora, apenas perturbaria seus
hábitos familiares, e Dolly se deixava enganar, desprezando
o marido e, sobretudo, a si mesma por essa fraqueza. Além do
mais, as preocupações com a família numerosa a
atormentavam sem cessar: ora o aleitamento da criança de
peito não corria bem, ora a babá se ausentava, ora, como
agora, um dos filhos adoecia.
– Como quiser.
254
O velho príncipe levantou-se e afagou os cabelos de Kitty. Ela
ergueu o rosto e, com um sorriso forçado, fitou-o. Sempre
parecera a Kitty que o pai a compreendia melhor do que
qualquer pessoa na família, embora pouco falasse com ela.
Filha caçula, Kitty era a favorita do pai e tinha a impressão de
que o seu amor por ela o
– Ora, então ele ainda não foi para o interior vender aquela
floresta?
255
– Ora, vejam só! – exclamou o príncipe. – Então eu também
tenho de me preparar? Pois muito bem – voltou-se para a
esposa, sentando-se. – E você, Kátia, escute o que vou dizer –
acrescentou para a filha caçula. – Um belo dia, você vai
acordar e dizer a si mesma: pronto, estou completamente
saudável e alegre, e então de novo iremos juntos, seu pai e
você, bem cedinho, passear na friagem da manhã. Hem?
256
que se referia a Vrónski. – Não entendo como não existem leis
contra essas pessoas torpes, indignas.
257
resposta ao beijo molhado da princesa, que ele sentiu na mão.
E saiu da sala.
258
Para a princesa, era terrível demais pensar na grande culpa que
lhe cabia pela situação da filha, e zangou-se.
259
C A P Í T U L O III
– Daqui a pouco vou para casa e ficarei lá, você não poderá
visitar-me – disse Dária Aleksándrovna, sentando-se ao seu
lado. – Eu queria falar com você.
– Chega, Kitty. Por acaso acha que eu posso não saber? Sei
tudo. E, creia, é tão insignificante… Todas passamos por isso.
260
Kitty se manteve calada e seu rosto tinha uma expressão
severa.
– Mas quem lhe disse tal coisa? Ninguém falou isso. Tenho
certeza… de que ele estava apaixonado por você, e continuou
apaixonado, mas…
261
– Por que me atormenta?
262
com um lenço, baixou a cabeça. O silêncio continuou por uns
dois minutos. Dolly pensava em si mesma. Aquela humilhação,
que ela sentia o tempo todo, afetou-a de modo especialmente
doloroso quando Kitty a lembrou do assunto.
Aleksándrovna.
263
Vrónski e agora ela estava pronta para amar Liévin e odiar
Vrónski. Kitty não disse uma palavra sobre isso; falou apenas
sobre o seu estado de ânimo.
264
encantava comigo mesma; agora, sinto vergonha,
constrangimento. Também, o que quer? O médico… Ora…
Kitty hesitou; queria falar ainda, dizer que, desde que sofrera
essa transformação, Stiepan Arcáditch se tornara
insuportavelmente desagradável aos seus olhos e ela não podia
vê-lo sem imaginar as coisas mais vulgares e repulsivas.
265
C A P Í T U L O IV
266
pequeno, formado por mulheres velhas, feias, virtuosas e
devotas, e por homens inteligentes, cultos e ambiciosos. Uma
das pessoas inteligentes que pertenciam a esse círculo o
chamava de “a consciência da sociedade petersburguesa”.
Aleksiei Aleksándrovitch prezava muito esse círculo e Anna, que
sabia tão bem como conviver com todos, encontrou amigos
também ali, ainda nos primeiros tempos de sua vida em
Petersburgo. Agora, após o seu regresso de Moscou, esse
pequeno círculo se tornou insuportável para Anna.
Por fim, o terceiro círculo a que Anna estava ligada era a alta
sociedade, propriamente dita – a sociedade dos bailes, dos
jantares, das vestimentas suntuosas, a sociedade que, com
uma das mãos, se agarrava à corte para não baixar ao nível
da sociedade mediana, que os membros daquele círculo
pensavam desprezar, porém cujos gostos eram não apenas
semelhantes aos seus, como exatamente os mesmos. O elo
entre Anna e esse círculo se mantinha por meio da princesa
Betsy Tviérskaia, esposa do seu primo, a qual possuía uma
renda de cento e vinte mil rublos e se afeiçoara a Anna, de um
modo especial, desde o seu ingresso na sociedade, zelava por
Anna e a atraía para o seu círculo, ao mesmo tempo que
zombava do círculo da condessa Lídia Ivánovna.
267
– Quando eu for velha e feia, também farei o mesmo – dizia
Betsy –, mas para a senhora, uma jovem bonita, ainda é cedo
para ficar naquele asilo.
268
claramente que se enganava, que esse assédio não só não
lhe desagradava como constituía o principal interesse de sua
vida.
269
dizendo que entendia muito bem, e tanto quanto Vrónski, a
esperança que ele podia ter.
270
– Quase.
271
CAPÍTULOV
272
– Ora, depois do que a senhora acabou de me dizer? Bem,
os jovens entraram na casa do amigo, onde haveria um jantar
de despedida. Ali, de fato, beberam talvez em excesso, como
sempre ocorre nos jantares de despedida. E, durante o jantar,
perguntaram quem morava no andar de cima daquela casa.
Ninguém sabia e só o criado do anfitrião acudiu à pergunta: se
lá em cima moravam umas mamzeles?[2] Respondeu que ali
havia muitas. Depois do jantar, os jovens foram ao escritório do
anfitrião a fim de escrever uma carta para a desconhecida.
273
– Como o senhor sabe que ele tinha suíças que, como disse,
pareciam salsichas?
– Qual a dificuldade?
274
imagine que os tais moleques estavam ali, presentes, e eu tinha
de reconciliá-los. De novo, pus em ação a diplomacia e, de
novo, justamente quando era preciso pôr um ponto final
naquele assunto, o meu conselheiro titular se inflamou, se
ruborizou, as salsichas ficaram eriçadas e, de novo, eu me
derramei em sutilezas diplomáticas.
275
importante é que a questão envolvia os interesses do
regimento.
276
inteligente e, sobretudo, por um homem que prezava o bom
nome do regimento. Eles deliberaram e resolveram que
Petrítski e Kiedrov teriam de ir, em companhia de Vrónski, ao
encontro do conselheiro titular para se desculparem. O
comandante do regimento e Vrónski entendiam que o nome de
Vrónski e suas insígnias de ajudante de campo haviam de
contribuir bastante para apaziguar o conselheiro titular. E, de
fato, esses dois expedientes se revelaram em parte eficazes;
mas o resultado da reconciliação continuava incerto, como
vinha explicar Vrónski.
277
esse cavalheiro! Ele se enfureceu tanto assim? – perguntou
de novo, rindo. – Mas e que tal a Claire, hoje? Que maravilha! –
disse, referindo-se à nova atriz francesa.
278
C A P Í T U L O VI
279
conversa mostrou-se hesitante, interrompida a todo momento
por encontros, cumprimentos, ou pelo chá, como que em busca
de um ponto de apoio.
280
Tudo depende disso. Com o tema nas mãos, é fácil bordar
sobre ele. Muitas vezes penso que os célebres conversadores do
século passado se veriam em apuros para dizer coisas
inteligentes, hoje em dia. Estamos todos fartos de ditos
inteligentes…
– Ah, sim! É do mesmo estilo que o salão, por isso vem aqui
tantas vezes.
281
– Sabiam que a Maltícheva, não a filha, mas a mãe, está
costurando para si um traje de diable rose?[6]
282
– Mostre. Aprendi bastante em casa daqueles, como
chamam?… Banqueiros… Na casa deles, há gravuras
magníficas. Mostraram para nós.
283
embaixador havia cessado, a anfitriã quis reunir os dois grupos
de convidados em um só e dirigiu-se a ela:
284
ela, eu adoro.
285
mercê dos senhores. Ela é tão admirável, tão gentil. Que culpa
pode ter, se todos se apaixonam por ela e seguem seus passos,
como sombras?
286
confessar: do teatro bufo. Pela centésima vez, eu creio, e
sempre com um prazer renovado. Magnífico! Sei que é uma
vergonha; mas, na ópera, eu pego no sono e, no teatro bufo,
presto atenção até o fim e me divirto. Hoje mesmo…
287
C A P Í T U L O VII
288
– Sim, contou coisas muito interessantes sobre a vida dos
indianos.
– Sir John! Sim, Sir John. Eu o vi. Fala bem. Vlássieva está
completamente apaixonada por ele.
289
– Mas chamamos de casamentos de conveniência aqueles
em que ambas as partes já tomaram juízo. É como a febre
escarlatina, é preciso ter sofrido para não adoecer de novo.
290
De súbito, Anna voltou-se para ele:
– perguntou.
291
– Não entendo em absoluto o sentido de suas palavras –
disse Vrónski, entregando-lhe a xícara. Anna olhou de relance
para o sofá a seu lado e imediatamente Vrónski sentou-se.
292
corado que queimava –, e hoje vim aqui de propósito, sabendo
que o encontraria. Vim dizer ao senhor que isto deve
terminar. Nunca me ruborizei diante de ninguém, mas o senhor
me obriga a me sentir culpada.
293
infelicidade… ou vejo a possibilidade de felicidade, e que
felicidade!… Será mesmo impossível? –
294
– Apenas não mude nada. Deixe tudo como está – disse ele,
com voz trêmula.
295
Mas não só aquelas senhoras como também quase todos os
presentes no salão, até a princesa Miágkaia e a própria Betsy,
lançavam olhares na direção do par que se havia isolado do
círculo comum, como se aquilo os incomodasse. Só Aleksiei
Aleksándrovitch não dirigiu o olhar nem uma vez naquela
direção e não
296
O cocheiro de Kariênina, um tártaro velho e gordo, de casaco
de couro lustroso, controlava com dificuldade o cavalo
cinzento da esquerda, que, gelado com a friagem, empinava
no pátio de entrada. O lacaio estava imóvel, e segurava
aberta a portinhola da carruagem. O porteiro estava imóvel, e
segurava aberta a porta de saída. Anna Arcádievna, com a
mãozinha ligeira, desembaraçava a renda da manga que se
prendera no colchete do seu manto e, com a cabeça inclinada,
ouvia com admiração o que dizia Vrónski, que a acompanhava.
297
de que, naquela noite, ele se aproximara do seu objetivo mais
do que nos dois meses anteriores.
298
C A P Í T U L O VIII
299
percebendo que antes era indispensável refletir sobre a nova
circunstância que surgira.
300
conta de que a ponte foi desmontada e que em seu lugar há
uma voragem. A voragem era a vida real; a ponte, aquela vida
artificial que Aleksiei Aleksándrovitch levava. Pela primeira vez,
lhe ocorreu a questão da possibilidade de sua esposa vir a
amar um outro, e se apavorou com isso.
301
volta no escritório, “o que aconteceu? Nada. Anna conversou
longamente com ele. E daí? Não pode uma mulher, em
sociedade, conversar com quem quiser? Além do mais, ter
ciúme significa rebaixar a mim e a ela”, disse para si mesmo,
ao entrar no escritório de Anna; mas tal raciocínio, que antes
tinha tanto peso para ele, agora nada pesava, nem significava
coisa alguma. E, da porta do dormitório, dava de novo
meia-volta, rumo à sala; porém, tão logo retornava à escura
sala de visitas, uma voz lhe dizia que não estava bem assim e
que, se os outros notavam algo, era porque havia alguma
coisa. E de novo ele dizia a si mesmo, na sala de jantar: “Sim, é
imprescindível resolver e dar um basta, declarar o meu ponto
de vista…”. E de novo, na sala de visitas, antes de dar meia-
volta, se indagava: como resolver? E depois se indagava: o que
aconteceu? E respondia: nada, e lembrava que o ciúme era um
sentimento que rebaixava a esposa, mas de novo na sala de
visitas convencia-se de que algo havia acontecido. Seus
pensamentos, como seu corpo, perfaziam uma volta completa,
sem topar com nada de novo. Ele o percebeu, esfregou a testa
e sentou-se no escritório de Anna.
302
tão assustadora que tratou de rechaçá-la às pressas. Era
aquela voragem, para a qual tinha pavor de dirigir seu olhar.
Transferir-se para os pensamentos e os sentimentos de outra
pessoa era um exercício espiritual alheio a Aleksiei
Aleksándrovitch. Julgava esse exercício espiritual uma fantasia
nociva e perigosa.
303
“Portanto”, disse para si mesmo Aleksiei Aleksándrovitch,
“questões relativas aos sentimentos dela e coisas semelhantes
são, em essência, questões de consciência, com as quais não
posso me envolver. A minha obrigação está claramente
definida. Como chefe de família, sou a pessoa a quem cabe o
dever de orientá-la e por isso sou, em parte, responsável; devo
lhe mostrar o perigo que vejo, prevenir e até empregar a
autoridade. Devo falar-lhe com toda a franqueza”.
304
tanto necessitava. Na entrada, ouviu-se o som de uma
carruagem que se aproximava. Aleksiei Aleksándrovitch deteve-
se no meio do salão.
305
C A P Í T U L O IX
306
– Advertir? – perguntou. – Por quê?
Anna o fitava de modo tão simples, tão alegre que quem não a
conhecesse, como a conhecia o marido, não notaria nada de
artificial nem no som nem no sentido de suas palavras. Mas
para ele, que a conhecia, que sabia que quando ele se deitava
cinco minutos atrasado, ela notava e perguntava a causa, para
ele, que sabia que Anna imediatamente lhe comunicava todo
contentamento, alegria e mágoa – para ele, ver agora que ela
não queria perceber a sua situação, que ela não queria dizer
nem uma palavra sobre si mesma, significava muito. Via que as
profundezas da alma de Anna, antes sempre abertas para ele,
se haviam fechado. Mais ainda, pelo tom de voz da esposa, via
que ela não se perturbava com isso e parecia dizer-lhe de
forma direta: sim, estão fechadas, assim deve ser e assim será,
daqui em diante. Ele agora experimentava um sentimento
semelhante ao de um homem que, ao voltar para casa,
encontra a porta trancada. “Mas talvez ainda possa encontrar a
chave”, pensou Aleksiei Aleksándrovitch.
307
Falava e fitava os olhos risonhos da esposa, agora
assustadores para ele, no seu brilho impenetrável, e enquanto
falava percebia como eram inúteis e ociosas suas palavras.
os dedos.
308
– Eis o que eu tinha intenção de lhe dizer – prosseguiu, de
modo frio e sereno
Seu rosto estava feio e sombrio, como Anna jamais vira. Ela
parou e, depois de inclinar a cabeça para trás e para o lado,
começou a retirar os grampos de cabelo, com sua mão ligeira.
309
e até prejudicial – começou Aleksiei Aleksándrovitch. – Ao
escavar nossa alma, não raro trazemos à superfície aquilo que,
de outro modo, lá permaneceria sem ser notado. Os seus
sentimentos dizem respeito apenas à sua consciência; mas sou
obrigado, diante de você, diante de mim e diante de Deus, a
apontar os seus deveres. Nossas vidas estão unidas, e não por
pessoas, mas sim por Deus. Só um crime pode romper essa
união e um crime desse tipo trará sobre você um pesado
castigo.
grampos.
310
– Perdoe, deixe-me terminar. Amo você. Mas não falo por
mim; as pessoas mais importantes, no caso, são o nosso filho e
você mesma. É muito possível, repito, que minhas palavras lhe
pareçam infundadas e descabidas; talvez se devam a um
engano de minha parte. Nesse caso, peço que me perdoe. Mas
se você mesma sentir que existe para elas um mínimo
fundamento, peço-lhe que reflita e que, se o seu coração assim
determinar, me conte com franqueza…
311
assustado com o próprio assobio, Aleksiei Aleksándrovitch
interrompeu-se; mas, após duas expirações, o assobio ressoou
de novo, com serena regularidade.
312
CAPÍTULOX
A partir dessa noite, teve início uma vida nova para Aleksiei
Aleksándrovitch e sua esposa. Nada de especial acontecera.
Anna, como sempre, frequentava a sociedade, em especial a
casa da princesa Betsy, e encontrava Vrónski em toda
313
quem dissesse o que ele estava dizendo. E nesse tom era
impossível falar o que se impunha dizer a ela.
314
C A P Í T U L O XI
315
sentir um assassino quando vê o corpo do qual tomou a vida.
Esse corpo, cuja vida ele tomara, era o amor dos dois, a
primeira fase do seu amor. Havia algo assustador e repulsivo
na lembrança do que fora comprado ao preço daquela cena de
vergonha. A vergonha diante da sua nudez espiritual oprimia
Anna e se comunicava a Vrónski. Porém, por maior que seja o
horror do assassino diante do corpo do assassinado, é preciso
316
– Não posso esquecer aquilo que é a minha vida. Por um
minuto dessa felicidade…
Dizia consigo: “Não, agora não sou capaz de pensar nisso; mais
tarde, quando estiver calma”. Mas essa calma para pensar
jamais chegava; toda vez que pensava sobre o que havia feito,
sobre o que seria dela e o que devia fazer, o horror a dominava,
e ela rechaçava tais pensamentos.
317
Em compensação, durante o sono, quando não tinha controle
sobre seus pensamentos, sua situação se apresentava a ela em
toda a sua hedionda nudez. O mesmo sonho a visitava quase
todas as noites. Sonhava que os dois eram seus maridos, ao
mesmo tempo, que ambos não poupavam suas carícias com
ela.
318
C A P Í T U L O XII
319
casamento estava mais distante do que nunca. O lugar ficara
vago e quando agora, na imaginação, ele punha nesse lugar
alguma das moças que conhecia, se dava conta de que era
totalmente impossível. Além do mais, a lembrança da rejeição e
do papel que ele havia representado o martirizava de vergonha.
Por mais que dissesse a si mesmo que não havia nada de que
se culpar, essa lembrança, assim como outras lembranças
vergonhosas do mesmo tipo, o compelia a sobressaltar-se e
ruborizar-se. No seu passado, como no de qualquer pessoa,
havia atos que ele tinha por condenáveis e cuja consciência
deveria martirizá-lo; mas a lembrança de atos condenáveis
remotos não o martirizava tanto quanto aquelas lembranças
insignificantes, mas vergonhosas. Tais feridas jamais
cicatrizavam. E agora a rejeição e a posição lamentável em que
ele se havia mostrado aos olhos dos outros naquela noite se
manifestavam com a mesma força daquelas lembranças. Mas o
tempo e o trabalho faziam a sua parte. As lembranças penosas
ficavam cada vez mais encobertas pelos acontecimentos
triviais, para ele, mas importantes na vida rural. A cada
semana, pensava em Kitty mais raramente. Aguardava com
impaciência notícias de que se casara ou de que em breve se
casaria, na esperança de que tal notícia, como a extração de
320
raras primaveras em que se regozijam ao mesmo tempo as
plantas, os animais e as pessoas. Essa linda primavera
estimulou Liévin ainda mais e reforçou sua intenção de
renunciar a tudo o que havia passado, a fim de organizar com
firmeza e independência sua vida solitária. Embora muitos dos
planos com os quais ele voltara para o campo não se
tivessem realizado, pelo menos o mais importante deles, o de
levar uma vida pura, estava sendo cumprido. Não
experimentava aquela vergonha que costumava martirizá-lo
após uma queda e podia atrever-se a fitar as pessoas nos
olhos. Ainda em fevereiro, recebera uma carta de Mária
Nikoláievna informando que a saúde do irmão Nikolai havia
piorado, mas que ele não queria tratar-se e, logo depois dessa
carta, Liévin foi a Moscou, à casa do irmão, e conseguiu
persuadi-lo a consultar um médico e ir tratar-se numa estação
de águas, no exterior. Liévin se saíra tão bem em sua missão
de persuadir o irmão e de lhe emprestar dinheiro para a
viagem, sem irritá-lo, que ficou satisfeito consigo mesmo,
nesse aspecto. Além dos afazeres da propriedade, que exigiam
uma atenção especial na primavera, e além das leituras, Liévin
começara naquele inverno a redigir uma obra sobre
agricultura, cujo intuito era provar que o caráter do
trabalhador agrícola era um dado absoluto, assim como o
clima e o solo e, por conseguinte, todos os preceitos da ciência
agrícola não deviam ser deduzidos somente a partir dos dados
do clima e do solo, mas sim a partir dos dados do clima, do solo
e do caráter sabidamente invariável do trabalhador rural.
321
Portanto, apesar da solidão, ou em consequência da solidão,
sua vida era extremamente atarefada e só raras vezes
experimentava um desejo insatisfeito de comunicar os
pensamentos que fermentavam em sua cabeça a alguma outra
pessoa que não Agáfia Mikháilovna, embora mesmo com ela
lhe acontecesse, muitas vezes, de raciocinar sobre física, sobre
teoria agrícola e em especial sobre filosofia; filosofia constituía
o tema predileto de Agáfia Mikháilovna.
322
verdadeira primavera. De manhã, o sol que brilhava claro
corroeu rapidamente o gelo fino que recobria a água e todo o
ar quente se pôs a tremer, saturado com os vapores que
subiam da terra castigada. A relva antiga verdejava e a nova
irrompia como agulhas, inchavam os brotos do viburno, da
groselheira e da bétula, viscosa de resina e, no cacho do
salgueiro envolto pela luz dourada, começava a zunir a abelha
que se lançava a voar. Cotovias invisíveis puseram-se a piar
acima do verdor aveludado e do restolho coberto de gelo,
ventoinhas começaram a gemer acima dos pântanos e dos
fossos inundados pela tempestade e pela água que não
escoara e grous e gansos passaram voando bem alto, com
grasnidos primaveris. O gado, escalvado nos pontos em que o
pelo novo ainda não crescera, pôs-se a mugir nas pastagens,
os cordeirinhos de pernas tortas começaram a brincar em
volta das mães, que baliam e perdiam pelo, crianças de pernas
ligeiras corriam pelas veredas que secavam com as marcas dos
pés descalços, as vozes alegres das camponesas crepitavam no
tanque, entre panos de linho, e no pátio começavam a bater
os machados dos mujiques, que consertavam grades e
arados. A verdadeira primavera chegara.
323
C A P Í T U L O XIII
324
Depois de admirar as crias daquele ano, de beleza incomum –
as bezerras novinhas eram do tamanho de uma vaca de
mujique, a filha de Pava, de três meses, tinha a altura de uma
novilha de um ano –, Liévin mandou trazer uma gamela e lhes
dar feno por trás de um tapume. Mas viu-se que os tapumes,
feitos no outono e deixados sem uso durante o inverno,
estavam quebrados. Mandou
325
cordeiro, enquanto partia entre as mãos um canudinho de
palha.
– E o trevo?
– Quantas diessiatinas?
– Umas seis.
326
– Por que não tudo? – gritou Liévin.
– gritou.
327
Liévin abanou a mão, irritado, foi ao celeiro examinar a aveia e
voltou para a cavalariça. A aveia ainda não se havia
estragado. Mas os trabalhadores a reviravam com pás,
quando se poderia despejá-la direto para o celeiro de baixo e,
depois de dar ordens nesse sentido e arrancar dali dois
trabalhadores para semear o trevo, Liévin aplacou sua
irritação contra o administrador. Na verdade, o dia estava
tão bonito que era impossível se zangar.
– Bem, o Kólpik.
– Sim, senhor.
328
O administrador ouvia com atenção e fazia um esforço óbvio
para aprovar as ideias do patrão; contudo ele estava com
aquela expressão desanimada e sem esperança que Liévin tão
bem conhecia e que sempre o exasperava. Essa expressão
dizia: tudo isso é muito bonito, mas será como Deus quiser.
Nada amargurava Liévin tanto como esse tom. Mas era o tom
comum a todos os administradores que trabalharam com ele.
Todos tinham a mesma atitude com relação às suas ideias e
por isso, agora, ele já não se zangava, porém se amargurava e
sentia-se ainda mais estimulado a lutar contra essa força
espontânea à qual não tinha como chamar senão “como Deus
quiser” e que constantemente se contrapunha a ele.
329
– Mande buscar em Súri, em Tchefirovca, se não
aparecerem. É preciso procurar.
330
travessia da floresta, pela neve que ainda restava, aqui e ali,
a se esfacelar e se derreter com manchas que se alastravam,
Liévin se alegrava com cada uma de suas árvores, em cuja
casca o musgo renascia e cujos brotos inchavam. Quando saiu
do lado oposto da floresta, estendeu-se na imensa vastidão à
sua frente um verdor aveludado e liso como um tapete, sem um
único ponto escalvado ou alagadiço, apenas manchado aqui e
ali, nas depressões do terreno, com o que restara da neve
derretida. Liévin não se enfureceu nem ante a visão do cavalo
e do potro de um camponês que pisavam a sua relva (mandou
um mujique que encontrou enxotá-los dali), nem ante a
resposta zombeteira e estúpida do mujique Ipat, a quem
encontrou e perguntou: “E então, Ipat, vamos semear
logo?”. “Antes, é preciso arar, Konstantin Dmítritch”,
respondeu Ipat. E quanto mais avançava, mais Liévin se
alegrava e os planos para a propriedade vinham ao seu
pensamento, cada um melhor do que o outro: plantar
salgueiros à margem de todos os campos, numa barreira
voltada para o sul, para que
331
diessiatinas de trigo, cem de batata e cento e cinquenta de
trevo, e sem esgotar uma única diessiatina de terra.
332
– Mas por que a terra não está peneirada? – perguntou
Liévin.
333
– Pois é, no verão, o senhor vai ver só. Vai se notar a
diferença. O senhor devia ter visto onde eu semeei na
primavera passada. Como espalhei bem! Sabe, Konstantin
Dmítritch, eu me esforço como se trabalhasse para o meu
querido pai. Eu mesmo não gosto de coisas malfeitas e não
mando os outros fazerem nada no meu lugar. O que é bom
para o patrão, é bom para nós também. Só de olhar por aí
afora – disse Vassíli, apontando para o campo –, o coração se
alegra.
334
– Minha humilde gratidão. Estamos muito satisfeitos com
o senhor. Liévin montou no cavalo e seguiu para o campo em
que, no ano anterior,
crescera o trevo e que dessa vez tinha sido arado para o trigo
de primavera.
335
C A P Í T U L O XIV
336
E, nesse lindo dia de primavera, percebeu que a lembrança dela
não o fazia sofrer de maneira alguma.
337
Quando Liévin voltou, Stiepan Arcáditch, lavado, penteado e
com um sorriso radiante, saiu pela porta e foram os dois juntos
para o andar de cima.
338
primavera, os fracassos e os planos para a propriedade, os
pensamentos e as ressalvas a respeito dos livros que lera e
sobretudo a ideia do seu próprio livro, cujo fundamento,
embora ele mesmo não se desse conta, consistia numa crítica
de todas as antigas obras sobre agricultura. Stiepan
Arcáditch, sempre gentil, capaz de tudo compreender com uma
simples alusão, mostrava-se particularmente gentil nessa visita
e Liévin notou no amigo um novo e lisonjeiro traço de
respeito, e como que de ternura, com relação a ele.
339
vapor. Quer dizer então que, segundo você, o fator
representado pelo trabalhador agrícola deveria ser considerado
e deveria orientar a escolha dos métodos agrícolas. Claro, sou
um leigo nesse assunto; mas me parece que a teoria e a sua
aplicação produziriam um efeito também sobre o trabalhador.
340
novo. Kuzmá, que já farejava uma boa gorjeta, não saía de
perto de Stiepan Arcáditch e calçou nele as meias e as botas, o
que Stiepan Arcáditch de bom grado o deixou fazer.
341
cetro do prazer. Isto é que é vida! Que maravilha! É assim que
eu gostaria de viver!
– Sei bem que você não admite que uma pessoa possa
gostar de um brioche quando já recebeu a sua devida ração;
342
para você, isso é um crime; mas eu não admito a vida sem o
amor – disse, entendendo a seu modo a pergunta de Liévin.
– Há, sim, meu caro! Veja bem, acaso você conhece o tipo
das mulheres ossianescas… mulheres que vemos em sonhos…
Pois elas existem no mundo real… e essas mulheres são
terríveis. Veja bem, mulher é um tema de tal ordem que, por
mais que você o estude, sempre se apresenta como algo
totalmente novo.
343
C A P Í T U L O XV
344
anterior que se remexiam por causa do degelo da terra ou do
brotar da relva. “Puxa! Dá até para ouvir e ver como a relva
cresce!”, disse Liévin para si mesmo, depois de notar que uma
folha de choupo molhada, cor de ardósia, se
345
A figura de Stiepan Arcáditch voltou para trás do arbusto e
Liévin viu apenas a centelha clara de um fósforo, logo seguida
pela brasa vermelha de um cigarro e por uma fumaça
azulada.
346
desceu como uma flecha e de novo, com ímpeto, voou para as
alturas. De novo, deflagrou-se um raio e ouviu-se um estrondo;
meneando as asas, como se tentasse segurar-se ao ar, o
pássaro deteve-se, imobilizou-se por um momento e,
347
A caçada foi excelente. Stiepan Arcáditch matou mais duas
peças e Liévin, outras duas, uma das quais não foi encontrada.
Começou a escurecer. A oeste, baixa, Vênus já brilhava clara e
prateada por trás das bétulas com o seu cintilar suave e, no
alto, a leste, a sombria Arcturo já reverberava seu ardor
vermelho. Acima da sua cabeça, Liévin divisava e perdia de
vista as estrelas da Ursa Maior. As galinholas já haviam parado
de voar; mas Liévin resolveu esperar um pouco mais, até que
Vênus, que ele via por baixo de um ramo de bétula, se erguesse
acima do galho e até que as estrelas da Ursa Maior estivessem
todas visíveis.
– Como quiser.
348
Liévin sentia-se tão seguro e tranquilo que pensava que a
resposta, qualquer que fosse ela, não poderia perturbá-lo.
349
– Que ótimo! Juntinhos! – exclamou Liévin, e correu com
Laska na direção da mata para procurar a galinhola. “Ah, sim, o
que havia de desagradável, mesmo?”, tentou-se lembrar. “Sim,
Kitty está doente… Mas, o que fazer? É uma pena”, pensou.
350
C A P Í T U L O XVI
351
– Mas como de graça? – retrucou Stiepan Arcáditch, com
um sorriso afável, ciente de que, agora, para Liévin, qualquer
coisa seria ruim.
352
– Não me atrevo a lhe ensinar aquilo que você escreve na
sua repartição – disse ele – e, se necessário, pedirei seus
conselhos sobre o assunto. Você, porém, está muito convencido
de que conhece todo o dicionário da floresta. Ele é difícil. Acaso
contou as árvores?
353
– Nem um pouco – disse Liévin, soturno, quando se
aproximavam da casa.
354
Dmítritch, meus respeitos – dirigiu-se a Liévin, tentando
apoderar-se também da mão dele. Mas Liévin, de rosto
franzido, fingiu não perceber a mão do outro e retirou as
galinholas da bolsa. – Os senhores se deleitaram com os
prazeres da caça? Que pássaros são estes, por obséquio? –
acrescentou Riabínin, olhando com desdém para as galinholas.
– Têm bom sabor, quero crer. – E balançou a cabeça com ar
reprovador, como se tivesse sérias dúvidas de que aquele fogo
valesse o pavio da vela.
355
– E então, o senhor trouxe o dinheiro? – perguntou Oblónski.
– Sente-se.
356
– Para que eu lhe daria de graça o que é meu? O que tenho,
não roubei, nem achei na terra.
357
balançou a cabeça com um sorriso.
– Assim, assim…
358
C A P Í T U L O XVII
359
– Então, negócio fechado? – perguntou, ao encontrar
Stiepan Arcáditch no andar de cima. – Quer jantar?
360
– Ora, chega! – disse. – Quando foi que alguém vendeu
alguma coisa sem que
361
– O que fazer? Contar árvore por árvore?
362
sem importância, e sem encontrar forças para perguntar o que
queria.
363
lado tinha as maiores chances. Por que você não foi em frente,
sem mais rodeios? Eu bem que lhe disse, então, que… – Bocejou
só com os maxilares, mas sem abrir a boca.
364
grau de educação (talento e inteligência, já é outra história), e
que nunca, diante de ninguém, se rebaixaram, nunca
precisaram da ajuda de ninguém para viver, assim como
viveram o meu pai e o meu avô. E conheço muitos outros do
mesmo tipo. A você, parece mesquinho que eu conte as
árvores da floresta, e assim entrega de mão beijada trinta mil
rublos para Riabínin; mas você receberá o arrendamento por
suas terras e não sei o que mais, enquanto eu nada receberei e
por isso valorizo aquilo que se obtém por meio de herança e
pelo trabalho… Nós somos os aristocratas, e não esses que só
conseguem viver à custa de esmolas obtidas com os poderosos
do mundo, a quem se pode comprar com uma moeda de vinte
copeques.
– Não, eu não sei, talvez você saiba, talvez não, mas para
mim tanto faz. Vou lhe contar: fiz o pedido de casamento e fui
rejeitado, e agora, para mim, Katierina Aleksándrovna é uma
lembrança penosa e humilhante.
365
– Por quê? Mas que disparate!
– Não vou falar. Perdoe, por favor, se fui rude com você –
disse Liévin. Agora, depois de revelar tudo, era de novo o
mesmo que fora de manhã. – Não está aborrecido comigo,
Stiva? Por favor, não se zangue – disse e, sorrindo, segurou-
lhe a mão.
– Ótimo.
366
C A P Í T U L O XVIII
367
com maior ou menor exatidão, suas relações com Kariênina –, a
maioria dos jovens o invejava exatamente por aquilo que havia
de
368
podia encontrar-se com Kariênina, e soube que por isso
pessoas da mais alta posição ficaram descontentes com ele, e
a condessa mudou de opinião. Tampouco lhe agradava que,
segundo tudo o que apurou sobre o caso, não se tratava da
relação requintada, elegante e mundana que ela de bom grado
aprovaria, mas de uma paixão desesperada, à maneira de
Werther,[11] segundo lhe contaram, que podia levar seu filho
a cometer alguma tolice. A condessa não o via desde o dia de
sua inesperada partida de Moscou e, por intermédio do filho
mais velho, exigiu que Vrónski viesse ter com ela.
369
As duas paixões não perturbavam uma à outra. Ao contrário,
Vrónski precisava de um interesse e de um entusiasmo
independentes do seu amor, nos quais pudesse revigorar-se e
repousar das emoções que o inquietavam em
demasia.
370
C A P Í T U L O XIX
Mas fazia três dias que ele não a via e, em razão do regresso
do marido do exterior, não sabia se o encontro seria de fato
possível e não sabia como confirmá-lo. Estivera com Anna pela
última vez na datcha da sua prima Betsy. Vrónski ia à datcha
dos Kariênin o mais raramente possível. Agora, queria ir até lá
e refletia sobre a maneira de fazê-lo.
371
levantando a cabeça e deixando o livro. Ao imaginar com ardor
a felicidade de vê-la, seu rosto resplandeceu.
372
– Garçom, xerez! – disse Vrónski, sem responder e, depois
de pôr o livro em outro lugar, continuou a ler.
373
– Lá estão os inseparáveis – acrescentou Iáchvin, olhando
com sarcasmo para os dois oficiais que saíam nesse momento.
Sentou-se ao lado de Vrónski, depois de dobrar num ângulo
agudo suas pernas, vestidas em apertadas calças de montaria
e demasiado compridas para a altura da cadeira acolchoada. –
Por que não foi ontem ao teatro de Krásnoie Sieló? A
Numiérova não se saiu nada mal. Por onde você andava?
374
desprezar todo sentimento – e só ele, assim parecia a Vrónski,
poderia entender aquela forte paixão que agora preenchia
toda a sua vida. Além disso, estava convencido de que Iáchvin,
seguramente, não encontrava prazer nenhum em mexericos e
em escândalos e compreendia aquele sentimento da forma
devida, ou seja, sabia e acreditava que esse amor não era uma
brincadeira, não era um passatempo, mas algo sério e
importante.
Vrónski não falava com ele sobre o seu amor, mas sabia que
estava a par de tudo, o compreendia da forma devida e lhe era
agradável ver isso nos olhos de Iáchvin.
375
– O único perigo é Makhotin.
376
C A P Í T U L O XX
377
levantando-se e agasalhando-se com a manta tigrada segura
pelas mãos. – Saiu pela porta do tabique, ergueu as mãos e
desatou a cantar em francês: “Havia um rei em Tu-u-le”. – Bebe,
Vrónski?
378
Vrónski deteve-se.
379
mesmo motivo. “O que têm eles a ver com o assunto?”, pensou
e, depois de amassar as cartas, enfiou-as entre os botões da
sobrecasaca para ler com atenção, na estrada. Na saída da
isbá, dois oficiais vieram ao seu encontro: um deles, do seu
regimento.
– Aonde vai?
– Tenho de ir a Peterhof.
380
música, a marcha fúnebre! Ele pegou no sono, no telhado, ao
som da marcha fúnebre.
– O que foi?
381
para não se distrair antes de examinar a sua égua. “Mais
tarde!…”
382
C A P Í T U L O XXI
383
Entraram no pequeno pátio diante do barracão. O menino
de serviço, elegante, garboso, de japona limpa, com uma
vassoura na mão, recebeu os dois e os seguiu. No barracão,
havia cinco cavalos, cada um em sua baia, e Vrónski sabia que
seu principal rival, o alazão Gladiador de Makhotin, fora trazido
nesse dia e estava ali. Mais do que a própria égua, Vrónski
estava interessado em ver o Gladiador, que nunca vira; mas
Vrónski sabia que, pelas normas éticas das corridas de
cavalos, não só não podia vê-lo como era condenável até
perguntar a respeito do animal. Na hora em que caminhava
pelo corredor, o menino abriu a porta da segunda baia à
esquerda e Vrónski entreviu um possante cavalo ruivo e as
pernas brancas. Logo entendeu que se tratava do Gladiador,
mas, com o sentimento de um homem que abriu uma carta
endereçada a outra pessoa, virou-se e seguiu para a baia de
Fru-Fru.
384
– Numa corrida de obstáculos, tudo depende da habilidade
do cavaleiro e do pluck – afirmou o inglês.
385
o dorso era extraordinariamente largo, o que chamava a
atenção especialmente agora, quando tinha a barriga mais
magra em razão dos exercícios. Os ossos das pernas abaixo
do joelho pareciam não ter sequer a espessura de um dedo,
olhando de frente; em compensação eram excepcionalmente
largos, olhando de lado. Toda ela, com exceção das costelas,
parecia como que estrangulada pelos flancos e esticada pelas
pontas. Mas sua principal qualidade era o sangue, aquele
sangue que se faz sentir, segundo a expressão inglesa. Os
músculos, que sobressaíam abruptos sob a rede de veias
que se alastrava na pelagem fina, movediça e lisa como cetim,
pareciam sólidos como osso. A cabeça magra, com os olhos
proeminentes, cintilantes e vivazes, se alargava no focinho e
nas narinas dilatadas, com a mucosa sumarenta de sangue.
Toda a sua figura e, em especial, a sua cabeça tinham uma
expressão de vigor e, ao mesmo tempo, de ternura. Era um
desses animais que pareciam não falar só porque a
constituição mecânica da boca não permitia.
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flexíveis, mudava o peso do corpo de uma perna para outra.
387
– Pois bem, então conto com o senhor – disse para o inglês
–, às seis e meia, na pista.
388
“Péssimo!”, pensou Vrónski, desdobrando a capota da
carruagem. “Se antes já estava um lamaçal, agora vai ficar um
verdadeiro pântano.” No isolamento da
389
tinham razão. Sentia que o amor que o ligava a Anna não era
um entusiasmo momentâneo que passaria, como passam as
relações mundanas, sem deixar outros vestígios na vida de
um e de outro senão lembranças agradáveis ou
desagradáveis. Sentia todo o tormento da situação, dele e de
Anna, tão expostos aos olhos de toda a sociedade, sentia
toda a dificuldade que havia, para eles, de esconder seu
amor, de mentir e de enganar; e mentir, enganar, usar de
astúcia e pensar constantemente nos outros, quando a paixão
que os unia era tão forte que ambos esqueciam tudo, exceto o
seu amor.
390
“Sim, antes ela era infeliz, mas orgulhosa e serena; agora,
não pode ser serena e honrada, embora não o demonstre. Sim,
isto tem de acabar”, resolveu consigo mesmo.
E pela primeira vez lhe veio à mente uma ideia clara de que
era preciso pôr fim a essa mentira, e quanto antes, melhor.
“Abandonarmos tudo, ela e eu, e nos escondermos em algum
lugar, sozinhos com o nosso amor”, disse para si.
391
C A P Í T U L O XXII
392
E, seguro de que Anna estava sozinha e querendo surpreendê-
la, pois não prometera vir nesse dia e ela, sem dúvida, não
pensava que ele viria antes da corrida, Vrónski avançou,
segurando o sabre para não tilintar e pisando com cuidado
sobre a areia da vereda, margeada de flores, rumo à varanda
que dava para o jardim. Agora, Vrónski esquecera tudo o que
havia pensado no caminho sobre o fardo e as dificuldades da
situação deles. Só pensava que logo veria Anna, não apenas na
imaginação, mas viva, completa, como era na realidade. Ele já
entrava, pisando com a planta do pé inteira, para não provocar
rangidos, nos degraus inclinados da escadinha da varanda,
quando de repente se lembrou daquilo que sempre esquecia e
que constituía o aspecto mais doloroso de sua relação com
Anna – o filho dela, com seu olhar questionador e hostil, ou
pelo menos assim lhe parecia.
393
e perplexo do garoto concentrado sobre ele e um estranho
acanhamento, uma hesitação, ora uma ternura, ora uma frieza
e uma timidez, na atitude do menino com relação a ele. Como
se a criança sentisse que
“O que isso quer dizer? Quem é ele? De que modo devo gostar
desse homem? Se não entendo, é culpa minha, ou sou burro,
ou sou um mau menino” – pensava; e daí lhe vinha a
expressão perscrutadora e inquisitiva, em parte hostil, e
também a timidez, a hesitação, que tanto constrangiam
Vrónski. A presença do menino sempre e invariavelmente
provocava em Vrónski aquele sentimento estranho de uma
repulsa sem motivo, que ultimamente experimentava. A
presença do menino provocava em Vrónski e em Anna um
sentimento semelhante ao de um navegador que verifica na
394
bússola a direção em que se desloca rapidamente e vê que se
desvia para muito longe do rumo certo, mas não tem meios
de deter o movimento que, a cada minuto, o afasta mais e
mais da direção devida, e admitir para si o desvio é o mesmo
que admitir sua perdição.
395
– O que tem a senhora? Está doente? – perguntou em
francês, caminhando para ela. Quis chegar perto de Anna;
mas, lembrando que podia haver estranhos, olhou para trás, na
direção da porta da sacada, e ruborizou-se, como sempre se
ruborizava, ao sentir que devia recear e manter-se alerta.
396
– Sempre na mesma coisa – respondeu, com um sorriso.
397
– Percebo que aconteceu alguma coisa. Acaso eu poderia
ter um minuto de paz sabendo que a senhora tem um desgosto
que eu não compartilho? Conte, pelo amor de Deus! – repetiu,
em tom de súplica.
– Devo contar?
398
mas ao mesmo tempo entendeu que a crise que ele desejava
havia afinal começado, que não era mais possível esconder do
marido e era imprescindível, de um modo ou de outro, romper
rapidamente com essa situação antinatural.
399
– Para toda situação existe uma saída. É preciso decidir-se
– afirmou Vrónski.
400
C A P Í T U L O XXIII
401
– Muito bem; vamos supor que eu faça isso – respondeu
Anna. – O senhor sabe o que daí resultará? Posso relatar tudo
com antecedência. – E uma luz cruel reluziu em seus olhos,
tão meigos um minuto antes. – “Ah, a senhora ama um outro
e estabeleceu com ele uma relação criminosa? (Fazendo-se
passar pelo marido, fez o mesmo que Aleksiei Aleksándrovitch,
pôs ênfase na palavra criminosa.) Eu preveni a senhora quanto
às consequências nos aspectos religioso, civil e familiar. A
senhora não me deu ouvidos. Agora não posso entregar meu
nome à desonra…” – nem entregar o meu filho, quis dizer
Anna, mas com o filho ela não conseguia fazer ironias… – “meu
nome à desonra”, e outras coisas do mesmo tipo –
acrescentou. – Em termos gerais, ele dirá, com seu jeito de
homem de Estado, com toda a clareza e precisão, que ele não
pode deixar-me partir, mas tomará as medidas a seu alcance
para evitar o escândalo. E executará, com calma, com apuro,
aquilo que diz. Eis o que vai acontecer. Não é um homem,
mas uma máquina, e uma máquina cruel quando se enfurece –
acrescentou ela, enquanto se lembrava de Aleksiei
Aleksándrovitch em todos os pormenores da sua figura, da
sua maneira de falar e do seu caráter, incriminando o marido
por tudo de ruim que nele conseguia encontrar, sem perdoá-lo
em nada, por causa da terrível falta de que era culpada perante
ele.
402
– Mas, Anna – disse Vrónski, com voz persuasiva e suave, na
tentativa de acalmá-la –, seja como for, é preciso contar a ele, e
depois procederemos conforme o que ele fizer.
403
antes e para esquecer, se possível, a terrível questão do que
aconteceria com o seu filho.
– Mas, Anna…
404
– Eu, infeliz? – disse ela, aproximando-se dele e fitando-o
com um extasiado sorriso de amor. – Eu sou como uma pessoa
faminta a quem deram o que comer. Talvez essa pessoa esteja
com frio, e suas roupas estejam rasgadas, talvez sinta
vergonha, mas infeliz não é. Eu, infeliz? Não, aqui está a minha
felicidade…
405
Betsy prometeu ir comigo.
406
C A P Í T U L O XIV
407
a Briánski sua palavra de que iria à casa dele e por isso
resolveu seguir em frente, ordenando ao cocheiro que não
poupasse a troica.
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levassem até o acampamento. Das barracas, já se podia
avistar o mar de carruagens, de pedestres e de soldados em
torno do hipódromo, e as tribunas que fervilhavam de gente. A
segunda prova na certa estava em curso pois, quando ele
entrou no acampamento, ouviu a campainha. Ao aproximar-se
da cavalariça, cruzou com o Gladiador de Makhotin, o
alazão de pernas brancas, coberto por um xairel laranja com
debruns azuis semelhantes a enormes orelhas, que estava
sendo levado para o hipódromo.
– Cheguei tarde?
409
oficiais da cavalaria da guarda manifestavam, em altos
brados, a alegria com o triunfo do seu oficial e camarada.
Vrónski, sem ser notado, penetrou no meio da multidão quase
ao mesmo tempo em que soava a campainha que deu por
encerrada a corrida e o cavaleiro da guarda, alto, respingado
de lama, que chegara em primeiro lugar, recurvado sobre a
sela, soltava as rédeas do seu garanhão cinzento, escurecido
pelo suor e muito ofegante.
410
dragonas vistosas, de baixa estatura, um tipo robusto como o
próprio Aleksiei, porém mais bonito e corado, de nariz
vermelho, rosto franco e de aspecto embriagado, aproximou-se
dele.
411
acontecia. Como homem de muito bom coração que era,
raramente se irritava, mas, quando isso acontecia e quando
seu queixo tremia, como bem sabia o irmão mais velho, ele se
tornava perigoso. Aleksandr Vrónski sorriu jovial.
412
Da direita, trouxeram a esguia beldade Fru-Fru, que, como
que sobre molas, se movia sobre suas quartelas elásticas e
bastante alongadas. Não distante dali, retiravam o xairel
que cobria Gladiador, de orelhas pontudas. As formas
vigorosas, fascinantes, perfeitamente proporcionais do
garanhão, com a maravilhosa garupa e as quartelas
extraordinariamente curtas, quase unidas aos cascos,
atraíram de forma irresistível a atenção de Vrónski. Ele queria
aproximar-se da sua égua, mas, de novo, um conhecido o
deteve.
413
em seus movimentos, acercou-se da sua égua. Kord, para a
solenidade da corrida, vestira seu traje de gala: sobrecasaca
preta abotoada, colarinho engomado e alto, que escorava
suas bochechas, chapéu preto de copa redonda e botas de
montaria. Como sempre, estava calmo, imponente e, de pé ao
lado da égua, segurava-a pelas duas rédeas. Fru-Fru
continuava a tremer, como que febril. Seu olho cheio de fogo
mirava de esguelha para Vrónski, que se aproximava. Ele
correu o dedo por baixo da barrigueira. A égua fitou-o de
esguelha com mais força ainda, arreganhou os dentes e
contraiu a orelha. O inglês franziu os lábios, num sorriso que
expressava sua surpresa por alguém duvidar da sua
capacidade de selar um cavalo.
414
conheciam Kuzóvliev e sua peculiaridade, os nervos “fracos” e
uma vaidade terrível. Sabiam que ele temia tudo, temia montar
um cavalo impetuoso; porém, agora, exatamente por ser
assustador, por poderem os cavaleiros quebrar o pescoço e
junto a cada obstáculo haver um médico, uma ambulância com
uma cruz costurada e uma irmã de caridade, ele resolveu
competir. Seus olhares se cruzaram e Vrónski piscou o olho
para ele, com simpatia e aprovação. Só não viu o seu principal
concorrente, Makhotin, no Gladiador.
415
acelerando o passo, seguiu-o. A égua, nervosa, tentando
enganar seu cavaleiro, puxava as rédeas ora para um lado,
ora para o outro, e Vrónski tentava em vão tranquilizá- la com
a voz e com a mão.
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C A P Í T U L O XXV
417
Todos os olhos, todos os binóculos estavam voltados para o
aglomerado multicolorido dos cavaleiros no momento em que
se alinhavam.
418
Gladiador e Diana aproximaram-se juntos, quase no mesmo
momento: a um só tempo, transpuseram o riacho e saltaram
para o lado oposto; velozmente, como se voasse, Fru-Fru
lançou-se atrás deles, mas, no exato momento em que Vrónski
se sentiu no ar, viu, quase sob as patas da sua égua, Kuzóvliev,
que se debatia junto com Diana na outra margem do riacho.
(Kuzóvliev soltara as rédeas após o salto e a égua o
arremessara voando por cima da cabeça.) Esses pormenores,
Vrónski veio a saber mais tarde, agora apenas percebeu que,
bem embaixo dele, no local onde Fru-Fru iria pôr as patas,
podia estar a perna ou a cabeça de Diana. Mas Fru-Fru, como
uma gata ao cair, fez um esforço com as pernas e com as
costas, em pleno salto, esquivando-se da égua, e impeliu seu
corpo um pouco mais à frente.
419
sentia os olhos voltados para ele, de todos os lados, mas nada
via senão as orelhas e o pescoço da sua égua, a terra que
corria ao seu encontro, a garupa e as pernas brancas do
Gladiador, que meneavam numa cadência acelerada à sua
frente e se mantinham sempre e exatamente à mesma
distância. O Gladiador se alçou no ar, sem haver tocado em
nada, abanou a cauda curta e desapareceu do campo de visão
de Vrónski.
420
raciocinado que também poderia ultrapassá-lo por fora
quando Fru-Fru mudou de direção e tentou ultrapassá-lo
exatamente desse modo. As espáduas de Fru-Fru, que já
começavam a escurecer de suor, alcançaram a garupa de
Gladiador. Os dois correram lado a lado por algumas passadas.
Mas, antes do obstáculo de que se aproximavam, Vrónski, a fim
de evitar o lado em que a curva era mais aberta, começou a
forçar as rédeas e, rápido, exatamente no declive, ultrapassou
Makhotin. De passagem, viu o rosto do adversário salpicado de
lama. Teve até a impressão de que ele sorriu. Vrónski
ultrapassou Makhotin, mas o pressentia logo atrás, junto dele, e
ouvia sem cessar, bem às suas costas, o galope regular e a
respiração entrecortada, mas sem o menor sinal de cansaço,
das narinas do Gladiador.
421
uma reserva de forças igual àquela que pressentia restar no
Gladiador. Faltava um obstáculo, o mais difícil; se o
transpusesse na frente dos demais, chegaria em primeiro.
Aproximou-se a galope da banqueta irlandesa. Ainda de longe
e ao mesmo tempo que Fru-Fru, Vrónski avistou a banqueta e
ambos juntos, ele e a égua, tiveram uma dúvida momentânea.
Vrónski notou a indecisão nas orelhas do animal e levantou
o chicote, mas logo se deu conta de que sua dúvida era
infundada: a égua sabia o que era necessário. Ela acelerou e,
de modo cadenciado, exatamente como Vrónski imaginara,
lançou-se ao ar e, desprendida da terra, entregou-se à força da
inércia, que a transportou para longe, além do fosso; e,
exatamente no mesmo ritmo, sem esforço, sem mudar a ordem
das passadas, Fru-Fru prosseguiu o galope.
422
última reserva de energia; não só o pescoço e as espáduas
estavam encharcados, como a cernelha, a cabeça e as pontas
das orelhas estavam cobertas de gotas de suor e sua
respiração era curta e abrupta. Mas Vrónski sabia que essa
reserva daria de sobra para cobrir as duzentas braças que
restavam. Só por sentir-se mais próximo da terra e por uma
suavidade peculiar no movimento do animal, Vrónski soube que
sua égua aumentara muito a velocidade. Transpôs o fosso
como se não existisse. Voou sobre o obstáculo como um
pássaro; mas Vrónski, nesse exato momento, e para seu horror,
sentiu que ele, em descompasso com o impulso da égua, e sem
entender como, fez um movimento errado, imperdoável, ao
repor o peso do corpo sobre a sela. De repente, sua posição
mudou e ele entendeu que algo horrível ocorrera. Ainda não
conseguira se dar conta do que havia acontecido quando
irromperam, bem a seu lado, as
423
afastava rapidamente e Vrónski, cambaleante, estava de pé
sozinho sobre a terra enlameada e imóvel e, à sua frente,
arfando com dificuldade, jazia Fru-Fru que, de cabeça virada
para ele, o fitava com seu olhar magnífico. Ainda sem
entender de todo o que ocorrera, Vrónski puxou a égua pela
rédea. Ela se debateu outra vez, como um peixe, roçando
contra a terra as abas da sela, estendeu as pernas dianteiras
porém, no esforço de levantar a garupa, logo se retraiu e de
novo tombou de lado. Com o rosto desfigurado pelo horror,
pálido e com o maxilar inferior trêmulo, Vrónski chutou a
barriga do animal com o tacão da sua bota e de novo pôs-se
a puxar a rédea. Mas a égua não se mexia e, depois de soltar
um bufo pelo focinho enfiado contra a terra, apenas fitava o
dono com seu olhar que falava.
424
infelicidade mais penosa que existe, uma infelicidade
irremediável, cujo culpado era ele mesmo.
425
C A P Í T U L O XXVI
426
Tanto pior para você”, dizia em pensamento, como um
homem que, depois de tentar em vão apagar um incêndio,
se enfurece por seus esforços inúteis e diz: “Ora, que se dane!
Queime à vontade!”.
427
Aleksándrovitch quando lhe indagavam a respeito da saúde da
esposa. Aleksiei Aleksándrovitch não queria pensar nada a
respeito do comportamento e dos sentimentos de sua mulher
e, de fato, sobre isso ele nada pensava.
428
Naqueles oito anos de vida feliz com a esposa, quantas vezes,
ao olhar para esposas infiéis e maridos enganados, Aleksiei
Aleksándrovitch disse para si: “Como tolerar tal coisa? Como
não pôr um fim a essa situação repugnante?”. Mas agora,
quando a desgraça caíra sobre a sua cabeça, ele não só não
pensava num meio de pôr um fim àquela situação como não
queria nem saber do assunto, e não queria exatamente
porque era terrível demais, antinatural demais.
429
Essa manhã foi muito atarefada para Aleksiei Aleksándrovitch.
Na véspera, a condessa Lídia Ivánovna lhe enviara um folheto
de um famoso viajante que estivera na China e que se
encontrava em São Petersburgo, com uma carta pedindo que
recebesse o próprio viajante, homem extremamente
interessante e útil, por várias razões. À noite, Aleksiei
Aleksándrovitch não teve tempo de ler o folheto até o fim e
terminou a leitura pela manhã. Depois vieram os peticionários,
começaram os relatórios, os despachos, as nomeações, as
exonerações, a distribuição de gratificações, de pensões, de
vencimentos, a correspondência – o trabalho cotidiano, como o
chamava Aleksiei Aleksándrovitch, o qual lhe tomava tanto
tempo. Em seguida, vieram seus
430
apalpou seu fígado. Aleksiei Aleksándrovitch ignorava que
sua amiga Lídia Ivánovna, notando que a saúde de Aleksiei
Aleksándrovitch não andava bem nesse ano, pedira ao médico
que fosse examinar o doente. “Faça isso por mim”, disse a
condessa Lídia Ivánovna.
431
– Ainda bem que o senhor veio examiná-lo – disse Sliúdin. –
Ele não está bem e me parece… O que acha?
432
qual era preciso tratar de certos assuntos. Depois da sua
partida, foi preciso terminar os negócios de rotina com o seu
secretário e ainda sair para tratar de uma questão séria e
importante com uma pessoa eminente. Aleksiei Aleksándrovitch
mal tivera tempo de voltar às cinco horas, horário do seu jantar
e, depois de comer em companhia do secretário, convidou-o
para ir junto com ele até a datcha e depois às corridas.
433
C A P Í T U L O XXVII
434
médicos mandaram-me caminhar. Vou percorrer a pé uma
parte do caminho e imaginar que me encontro na estação de
águas.
435
Anna perguntou sobre a sua saúde e sobre seus afazeres,
tentou convencê-lo a repousar e a passar uma temporada ali,
com ela.
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segurava o filho pelo ombro e Serioja sentia um desconforto
tão torturante que Anna percebeu que o menino estava prestes
a chorar.
437
carroceria pequenina e muito alta. – Que elegância! Que
encanto! Ora, então iremos nós também.
438
C A P Í T U L O XXVIII
439
não se fez notar.
440
da voz fina do marido, que lhe parecia incessante, com a
entonação que tão bem conhecia.
“Sou uma mulher má, sou uma mulher perdida”, pensou, “mas
não gosto de mentir, não suporto mentiras, e o alimento dele
(do marido) é a mentira. Sabe de tudo, vê tudo; o que pode
sentir, se é capaz de conversar com tamanha calma? Se ele me
matasse, se matasse Vrónski, eu o respeitaria. Mas, não: tudo
de que precisa é a mentira e o decoro”, disse Anna a si mesma,
sem pensar no que exatamente queria do marido e em como
queria que ele fosse. Não compreendia que aquela singular
loquacidade que Aleksiei Aleksándrovitch manifestava nos
últimos tempos, e que tanto a irritava, era apenas uma
expressão do seu abalo interior e da sua inquietude. A exemplo
de uma criança que se machucou e, pulando, põe os músculos
em movimento para abafar a dor, era indispensável a Aleksiei
Aleksándrovitch a agitação intelectual para abafar os
pensamentos em torno da esposa, pensamentos que, em
presença de Anna e de Vrónski e ante a contínua repetição do
nome dele, exigiam sua atenção. E assim como para uma
criança é natural pular, para ele era também natural falar
bem e com inteligência. Disse:
441
homens. O esporte, a meu ver, tem uma grande importância e
nós, como sempre, vemos apenas o aspecto mais superficial.
442
Anna ficou calada e, sem baixar o binóculo, mirava um único
ponto. Nesse momento, um general de elevada posição
passava pela tribuna.
443
– Apostado!
O rosto dela estava pálido e tenso. Era óbvio que não via nada
e ninguém, senão um único homem. Sua mão apertava o leque
convulsivamente e ela não respirava. Ele a observou mais um
pouco e virou-se, às pressas, mirando outros rostos.
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A primeira queda, de Kuzóvliev no riacho, alvoroçou a todos
mas Aleksiei Aleksándrovitch viu claramente, no rosto pálido e
triunfante de Anna, que o cavaleiro que ela mirava não caíra.
Quando, logo depois que Makhotin e Vrónski transpuseram a
grande barreira, o oficial que os seguia tombou de cabeça e
perdeu os sentidos, e um sussurro de horror percorreu toda a
plateia, Aleksiei Aleksándrovitch viu que Anna nem sequer
notara o fato e teve dificuldade em compreender do que
falavam à sua volta. Ele, porém, a observava, de modo cada
vez mais constante e com grande persistência. Mesmo
completamente absorvida pelo espetáculo do galope de
Vrónski, Anna sentiu, de lado, fixa sobre si, a atenção dos
olhos frios do marido.
“Ah, tanto faz”, pareceu dizer a ele, e não mais se voltou para o
marido nem uma vez.
445
C A P Í T U L O XXIX
aproximara.
446
Sem responder ao marido, Anna ergueu o binóculo e mirou
para o local onde caíra Vrónski; mas ficava tão longe e estava
tão apinhado de gente que nada se podia distinguir. Baixou o
binóculo e fez menção de sair; mas, nesse momento, um
oficial aproximou-se a galope e comunicou algo ao imperador.
Anna debruçou- se para a frente, a fim de ouvir.
447
que sacudiam seu peito. Aleksiei Aleksándrovitch pôs-se diante
dela, para ocultá-la, dando-lhe tempo de se recuperar.
marido.
448
Calada, tomou assento na carruagem de Aleksiei
Aleksándrovitch e, calada, afastou-se da multidão de veículos.
Apesar de tudo o que via, Aleksiei Aleksándrovitch não se
permitia pensar na verdadeira situação da esposa. Via apenas
os sintomas exteriores. Viu que ela se comportou de forma
indecorosa e julgava seu dever apontá-lo. Mas era muito difícil
para ele dizer só isso e nada mais. Abriu a boca para dizer à
esposa que se comportara de forma indecorosa, mas, sem
querer, falou algo completamente diverso.
449
– Cuidado – disse ele, apontando para a janela aberta
voltada para o cocheiro. Ergueu-se um pouco e levantou o
vidro.
450
que estava dizendo, o medo que Anna sentia também o
contagiou. Viu aquele sorriso e um estranho equívoco se
apoderou dele.
451
solene de um defunto e essa expressão não se alterou durante
todo o trajeto até a datcha. Chegando lá, voltou para ela a
cabeça, ainda com a mesma fisionomia.
“Então ele virá!”, pensou Anna. “Como fiz bem em contar tudo
para ele.”
“Meu Deus, como está claro! É terrível, mas adoro ver o seu
rosto e adoro essa luz fantástica… O meu marido! Ah, sim…
Bem, graças a Deus, tudo com ele está acabado.”
452
C A P Í T U L O XXX
453
– Espero que as rosas logo retornem a esse belo rostinho –
e, para os Cherbátski, estabeleceram-se de imediato, e com
rigor, determinados rumos na vida, dos quais já não era
possível desviar-se. Os Cherbátski também travaram
conhecimento com a família de uma lady inglesa, com uma
condessa alemã e seu filho, ferido na última guerra, com um
sábio sueco e com M. Canut e sua irmã.
454
eram essas pessoas, quais as relações entre elas e como eram,
Kitty imaginava os caracteres mais admiráveis e perfeitos e
encontrava a confirmação disso em suas observações.
455
Mademoiselle Várienka não estava propriamente na primeira
juventude, parecia antes uma criatura sem juventude: podia-se
dar a ela dezenove ou trinta anos. Bem analisadas suas feições,
apesar da cor doentia do rosto, era antes bonita do que feia.
Também era bem constituída, não fosse uma excessiva secura
do corpo e a cabeça desproporcional em relação à estatura
mediana; mas não devia parecer atraente para os homens. Era
semelhante a uma flor bonita que, embora ainda cheia de
pétalas, já murchava, sem perfume. Além do mais, não podia
parecer atraente para os homens também porque lhe faltava
aquilo que havia de sobra em Kitty – um contido fogo de vida e
a consciência do que possuía de atraente.
456
As duas moças encontravam-se várias vezes por dia e, a cada
encontro, os olhos de Kitty diziam: “Quem é a senhorita? O que
é a senhorita? Será verdade que é essa criatura encantadora
que imagino? Mas, pelo amor de Deus, não pense”,
acrescentava seu olhar, “que eu pretenda forçá-la a me
conhecer.
457
soubera pela Kurliste[20] tratar-se de Nikolai Liévin e Mária
Nikoláievna, explicou a Kitty que homem maligno era esse
Liévin, e todos os seus sonhos a respeito daquelas duas
pessoas evaporaram. Menos pelo que a mãe lhe disse do que
por se tratar do irmão de Konstantin, de repente aquelas
pessoas pareceram, aos olhos de Kitty, desagradáveis ao
extremo. Aquele Liévin, com o seu hábito de torcer
bruscamente a cabeça, despertava nela, agora, um
incontrolável sentimento de repulsa.
458
C A P Í T U L O XXXI
459
– Puxa, que encantadora! – disse Kitty, olhando para
Várienka, no momento
460
– Ah, que desagradável! – disse a princesa. – Bem, e como
terminou tudo?
461
mesma foi a primeira a aproximar-se de Várienka e apresentar-
se.
Várienka ruborizou-se.
462
– Não, ela não é minha tia. Eu a chamo de maman, mas não
sou parente; fui criada por ela – respondeu Várienka e, de novo,
ruborizou-se.
Isso foi dito de forma tão natural, a expressão do seu rosto era
tão sincera e espontânea que a princesa entendeu por que
Kitty gostava tanto dessa Várienka.
463
– Há muito que eu também queria isso – disse ela.
464
C A P Í T U L O XXXII
465
o bem do próximo, como aparentava. Ninguém sabia qual a
sua religião – católica, protestante ou ortodoxa; só havia uma
coisa fora de dúvida: ela mantinha relações amistosas com
pessoas da mais alta posição em todas as igrejas e crenças.
466
noite e trouxe consigo um caderno de partituras. A princesa
convidou Mária Ievguiénievna, sua filha e o coronel.
467
“Se fosse eu”, pensou Kitty, “como me orgulharia! Como
ficaria contente, ao ver essa multidão sob as janelas! Mas
para ela não faz a menor diferença. Sua motivação é apenas o
desejo de não recusar o que lhe pedem e ser agradável à
maman. O que há nela? O que lhe dá essa força de manter-se
acima de tudo, serena e independente? Como eu gostaria de
saber isso e de aprender com ela”, pensava Kitty, enquanto
fitava aquele rosto calmo. A princesa pediu que cantasse mais
e Várienka entoou outra canção, com o mesmo esmero, com
a mesma clareza e perfeição, ereta ao lado do piano e
marcando nele o compasso, com sua mão magra e morena.
468
Quando terminou, todos lhe agradeceram de novo e foram
tomar chá. Kitty e Várienka saíram para o jardinzinho que
ficava ao lado da casa.
469
– Ah, não, é um homem muito bom e eu não sou infeliz; ao
contrário, sou muito feliz. Bem, não vamos cantar mais hoje? –
acrescentou, dirigindo-se para a casa.
– Nesse caso ele teria agido mal e eu não sofreria por causa
dele – respondeu Várienka, compreendendo nitidamente que já
não se tratava dela e sim de Kitty.
470
lembrando a expressão de seu rosto no último baile, no
intervalo da música.
– A vergonha, a humilhação.
471
surpresa curiosa.
472
Kitty notou que Várienka mal conseguia conter um sorriso ao
ouvi-los dizer que era preciso acompanhá-la.
473
C A P Í T U L O XXXIII
474
todas as amarguras humanas só pode vir do amor e da fé e
que, por compaixão a nós, não havia amarguras insignificantes
para Cristo, mas logo depois mudou de assunto. Kitty, porém,
em cada gesto daquela senhora, em cada palavra, em cada
expressão celestial, como dizia Kitty, e em particular em toda a
história da sua vida, que soubera por intermédio de Várienka,
em tudo Kitty depreendeu “o que era importante” e que até
então ignorava.
475
que era o mais importante, em vez de se contentar em
maravilhar-se com isso, Kitty entregou-se de imediato, e com
toda a sua alma, a essa nova vida que se desvendou diante
dela. Com base nos relatos de Várienka sobre o que faziam
madame Stahl e outras pessoas que nomeou, Kitty já traçara
para si o plano feliz de sua vida futura. A exemplo da sobrinha
da senhora Stahl, Aline, da qual muito lhe falara Várienka,
Kitty pretendia, onde quer que estivesse, ir ao encontro dos
infelizes para ajudá-los o quanto pudesse, distribuir o
Evangelho, ler o Evangelho para os doentes, os criminosos e os
moribundos. A ideia de ler o Evangelho para os criminosos,
como fazia Aline, cativava Kitty em especial. Mas tudo isso
eram pensamentos secretos, que ela não revelava nem à mãe
nem a Várienka.
476
falar e piscar os olhos. Mais tarde, porém, a princesa notou que
a filha, independentemente desse fascínio, passava por uma
séria transformação espiritual.
477
porque não respeitasse ou não amasse sua mãe, mas sim
porque era sua mãe. Ela se abriria antes com qualquer pessoa
do que com a mãe.
478
verdade. Ignorava a causa da mudança de atitude de Anna
Pavlovna em relação a ela, mas a adivinhava. Adivinhava, ali,
coisas que não podia dizer à mãe, e que não dizia a si
mesma. Era uma dessas coisas de que a pessoa sabe, mas que
não consegue dizer nem a si mesma; enganar-se é terrível e
vergonhoso demais.
479
que ela experimentava nessas ocasiões. Como tudo isso era
bom! Mas tudo isso se deu no início. Agora, poucos dias antes,
tudo se havia degenerado, de repente. Anna Pavlovna recebia
Kitty com amabilidade fingida e não cessava de observar Kitty
e o marido.
“Sim”, pensou Kitty, “havia em Anna Pavlovna algo que não era
natural, algo totalmente estranho à sua bondade, quando me
disse, irritada, dois dias atrás: ‘Veja só, ele fica sempre à sua
espera, não quer tomar café sem a sua presença, embora
esteja horrivelmente fraco’. Sim, e talvez ela não tenha
gostado quando eu dei ao marido um agasalho. Tudo isso era
muito natural, mas ele o recebeu de modo tão embaraçoso, me
agradeceu tão demoradamente que até eu me senti confusa. E
depois aquele retrato meu, que ele pintou tão bem. Mas o
principal foi aquele olhar, transtornado e enternecido! Sim,
sim, foi isso!”, repetiu Kitty consigo mesma. “Não, não pode
ser, não deve ser! Ele dá tanta pena!”, dizia para si mesma,
em seguida.
480
C A P Í T U L O XXXIV
sua família.
481
ciúme em relação a tudo o que pudesse arrastar a filha para
longe dele e o temor de que a jovem estivesse fora do alcance
da sua influência, em um domínio inacessível para o pai. Mas
essas notícias desagradáveis afogaram-se no mar de boa
disposição e de alegria que sempre havia no príncipe e que se
revigorara, em especial, na estação de águas de Carlsbad.
482
indecoroso e aberrante ao lado daqueles desoladores
cadáveres ambulantes, oriundos de todos os cantos da Europa.
483
– Bem, então ela é o segundo anjo – disse o príncipe,
sorrindo. – Kitty diz que o anjo número um é a mademoiselle
Várienka.
484
Kitty viu que o pai queria dizer um gracejo sobre Várienka, mas
não o conseguiu, de maneira alguma, porque havia gostado
dela.
485
Esse cavalheiro levantara o chapéu de palha acima dos ralos
cabelos crespos, pondo à mostra a testa alta, doentiamente
avermelhada por causa do chapéu.
486
– Eu queria ir, mas Várienka disse que Anna Pavlovna
mandara avisar que os senhores não iam sair.
487
chapéu e afastou-se com a filha.
488
– O príncipe Aleksandr Cherbátski – disse a madame Stahl,
erguendo para ele seus olhos celestiais, nos quais Kitty
percebeu um descontentamento. – Fico muito feliz em vê-lo.
Estou encantada com a filha do senhor.
489
– Esta é a nossa aristocracia, príncipe! – comentou, com
intuito zombeteiro, o coronel moscovita, que tinha mágoa da
senhora Stahl por não se interessar em
conhecê-lo.
490
Kitty calou-se, não porque nada tivesse a dizer; nem ao pai
queria revelar os seus pensamentos secretos. Contudo, por
estranho que pareça, apesar de estar pronta a não se submeter
à opinião do pai e a não lhe dar acesso ao seu santuário, Kitty
sentia que a imagem divina da senhora Stahl, que ela trazia na
alma fazia um mês inteiro, se havia perdido irremediavelmente,
como desaparece uma figura humana formada por um vestido
largado ao acaso, quando se percebe que nada mais é do que
uma roupa vazia. Restara apenas uma mulher de pernas curtas,
que não se punha de pé porque tinha o corpo mal constituído e
que atormentava a humilde Várienka por não a agasalhar
direito com a manta. E já nenhum esforço de imaginação
conseguiria restabelecer a madame Stahl que existia antes.
491
C A P Í T U L O XXXV
492
alemão comicamente ruim, garantindo que não fora a água
que havia curado Kitty e sim a sua excelente cozinha,
sobretudo a sopa de ameixa-preta. A princesa zombava do
marido por causa de seus hábitos russos, mas estava mais
animada e alegre do que em qualquer outro momento daquela
temporada na estação de águas. O coronel, como sempre,
sorria das brincadeiras do príncipe; mas no tocante à Europa,
que ele, a seu juízo, analisava com minúcia, tomava o partido
da princesa. A bondosa Mária Ievguiénievna rolava de rir de
qualquer coisa que o divertido príncipe falasse e Várienka,
coisa que Kitty jamais vira, sucumbia ao riso fraco mas
contagiante que as brincadeiras do príncipe lhe provocavam.
493
– Ora, a gente sai para caminhar e tudo corre muito bem,
até que passa por uma loja e, de lá, pedem que você compre:
“Erlaucht, Excellenz, Durchlaucht”.[26] Pois bem, quando gritam
Durchlaucht, eu já não resisto: são dez táleres a menos.
494
Acordamos sem a menor pressa, irritamo-nos com alguma
coisa, resmungamos, ficamos bem de novo, refletimos sobre
tudo, e nada de afobação.
495
– Maman queria visitar os Pietrov. A senhorita não vai estar
lá? – perguntou Kitty, testando Várienka.
– Digo tudo?
496
– E daí? E daí? – pressionou-a Kitty, olhando para Várienka
com ar sombrio.
497
– Falsidade, mas com que propósito? – indagou Várienka,
com voz suave.
Serei má, mas pelo menos não serei mentirosa, não serei falsa!
498
afeiçoei pela senhorita com naturalidade, mas a senhorita,
provavelmente, só pensa em me salvar, me ensinar!
“Ela ainda está aqui!”, pensou. “O que vou dizer a ela, meu
Deus? O que eu fiz, o que eu falei! Por que a ofendi? O que vou
fazer? O que vou dizer a ela?”, pensava Kitty e deteve-se à
porta.
499
– Várienka, desculpe, desculpe! – sussurrou Kitty,
aproximando-se. – Não lembro o que falei. Eu…
– Jamais casarei.
500
– Bem, então vou me casar só por isso. Veja bem, é uma
promessa, não esqueça! – disse Kitty.
1. Francês: “entendamo-nos”.
9. Inglês: “escarnecedor”.
501
11. Herói romântico que se suicida no romance Os
sofrimentos do jovem Werther, de Goethe.
PARTE III
502
CAPÍTULOI
503
que sabia fazer muito bem, sem fingir e sem mostrar
condescendência, e de todas essas conversas extraía
informações gerais em favor dos camponeses e também
provas de que ele de fato conhecia aquela gente. Tal atitude
em relação aos camponeses não agradava a Konstantin Liévin.
Para ele, o povo era apenas o principal parceiro no trabalho
comum e, apesar de todo o seu respeito e de uma afeição
fraterna pelo mujique, na certa absorvida, como dizia ele
mesmo, com o leite da camponesa que o amamentara,
Konstantin, na condição de parceiro de suas atividades
comuns, se em certas ocasiões ficava admirado com a força,
com a brandura, com a justiça daquelas pessoas, muitas vezes,
quando os trabalhos comuns exigiam outras virtudes, se
exasperava com os camponeses por sua leviandade, por seu
desleixo, por seu fraco pela bebida e pela mentira. Caso lhe
perguntassem se gostava dos camponeses, Konstantin Liévin
positivamente não saberia como responder. Gostava e não
gostava, assim como lhe ocorria em relação às pessoas em
geral. Naturalmente, como homem bom que era, gostava das
pessoas mais do que desgostava, e assim também com os
camponeses. Mas gostar ou não gostar dos camponeses como
se fossem algo à parte, isto ele não conseguia, não só por
viver com os camponeses, não só por todos os seus interesses
estarem associados aos camponeses, mas também porque,
como considerava a si mesmo parte dos camponeses, não via
em si e neles quaisquer qualidades e defeitos específicos e não
504
podia contrapor-se aos camponeses. Além disso, embora
vivesse havia muito tempo no mais estreito
505
contraposição. Ele nunca alterava sua opinião a respeito dos
camponeses e sua atitude de simpatia em relação a eles.
506
de gostos e de desejos bons, honrados e nobres, mas uma falta
de força vital, daquilo que chamam de coração, daquela
aspiração que obriga a pessoa a escolher, entre todos os
inumeráveis caminhos que se apresentam na vida, somente um
e desejar apenas esse. Quanto mais conhecia o irmão, mais
notava
507
modo sucinto e gracioso, as ideias que lhe ocorriam, e gostava
que houvesse alguém para ouvi-lo. Seu ouvinte mais habitual e
natural era o irmão. Por isso, apesar da naturalidade fraternal
de suas relações, Konstantin não se sentia à vontade para
deixá-lo sozinho. Serguei Ivánovitch adorava estirar-se sobre a
relva, ao sol, e ficar ali deitado, como que se aquecendo, e
tagarelar preguiçosamente.
508
C A P Í T U L O II
509
Konstantin Liévin, que precisava ir à lavoura e ao pasto,
ofereceu-se para levar o irmão – no cabriolé.
510
Os irmãos tinham de passar através da floresta para chegar
aos prados.
511
O orvalho matinal perdurava ainda por baixo da relva espessa
e Serguei Ivánovitch, a fim de não molhar os pés, pediu que o
transportassem no cabriolé até um arbusto de salgueiro junto
ao qual se pescavam percas. Por mais que lamentasse amassar
sua relva, Konstantin Liévin avançou sobre o prado. A relva alta
enlaçavase com suavidade em torno das rodas e das patas do
cavalo, largando suas sementes nos raios e nos cubos das
rodas.
512
– Bom, para mim, é melhor esperar até o dia de são Pedro.
Mas o senhor sempre ceifa mais cedo. Mas, se Deus quiser, a
relva será boa. O gado terá fartura.
513
C A P Í T U L O III
514
– Por que não pode fazer nada? Você fez uma tentativa e,
na sua opinião, não obteve sucesso, e resignou-se. Como pode
ter tão pouco amor-próprio?
515
achar sem importância que esse povo do campo, que você
ama, como afirma…
516
– É impossível, ao meu ver… Nas quatro mil verstas
quadradas do nosso distrito, com nossas inundações, nossas
nevascas, nosso trabalho sazonal, não vejo possibilidade de
oferecer assistência médica em toda parte. Além do mais, no
geral, não acredito na medicina.
– Talvez tudo isso esteja muito certo; mas por que eu devo
me empenhar na instalação de postos médicos dos quais nunca
vou me servir e de escolas para onde não vou enviar meus
filhos, para onde os camponeses também não querem enviar
seus filhos, e nem eu estou firmemente convencido de que
deveriam fazê- lo? – perguntou.
517
Calou-se por um tempo, pegou um caniço, atirou-o longe e,
sorrindo, voltou-se para o irmão.
518
irmão o demonstraria, mas sabia que, de modo indubitável e
perfeitamente lógico, assim lhe seria demonstrado, e já
aguardava tal demonstração.
– Quero dizer que não reconheço que seja uma coisa boa e
nem mesmo possível.
519
– Não entendo o que tem a filosofia a ver com o assunto –
respondeu Serguei Ivánovitch, num tom de voz que parecia não
reconhecer no irmão o direito de discutir sobre filosofia. E isso
irritou Liévin.
520
interesse pessoal. Queríamos nos livrar daquele jugo, que
oprimia a todos nós, a todas as pessoas de bem. Mas ser um
vogal, deliberar sobre quantas lixeiras são necessárias e como
instalar canos numa cidade onde eu não moro; ser jurado e
julgar um mujique que roubou um presunto e ouvir durante seis
horas todos os disparates que os defensores e os procuradores
despejam, e ouvir como o presidente do tribunal interrogou o
meu velhinho e desmiolado Aliochka: “O senhor reconhece,
senhor réu, a apropriação indébita do presunto?”, “Ahn!?”.
521
Konstantin Liévin falava como se a represa das suas palavras
se tivesse rompido. Serguei Ivánovitch sorriu.
522
– Creio – disse ele – que nenhuma ação pode ser duradoura,
se não tiver por base o interesse pessoal. É uma verdade geral,
filosófica – disse ele, repetindo com firmeza a palavra
filosófica, como se quisesse mostrar que, como todos, também
tinha o direito de falar de filosofia.
523
Konstantin ficou em silêncio. Sentia-se derrotado de todos os
lados, mas, ao mesmo tempo, sentia que aquilo que desejava
dizer não fora compreendido pelo irmão. Só não sabia por que
não fora compreendido: se ele não tinha sido capaz de se
expressar com clareza ou se o irmão não queria, ou não
conseguia, compreendê-lo. Mas não se aprofundou nesses
pensamentos e, sem retrucar ao irmão, pôs-se a refletir em um
assunto pessoal, completamente distinto.
524
C A P Í T U L O IV
Esse trabalho lhe agradou de tal modo que, várias vezes depois
disso, saiu a ceifar; ceifou um prado inteiro diante da casa e,
naquele ano, desde o início da primavera, traçara um plano –
ceifar um dia inteiro em companhia dos mujiques. Desde a
chegada do irmão, Liévin cismava, em dúvida: ceifar ou não
ceifar? Não ficava bem deixar o irmão sozinho um dia inteiro e
receava que o irmão fosse ridicularizá-lo. Mas, ao passar pelo
prado, lembrou-se do efeito que a ceifa produzira sobre ele e
quase decidiu que ia ceifar. Depois da irritante discussão
com o irmão, Liévin lembrou-se de novo desse intento.
525
Ao entardecer, Konstantin Liévin foi ao escritório, tomou as
providências relativas ao trabalho e mandou que, no dia
seguinte, chamassem os ceifeiros nas aldeias, para ceifar o
prado de Kalínov, o melhor e o mais vasto.
– Perfeitamente, senhor.
526
– Já experimentei. No início é penoso, depois você se
acostuma. Acho que não vou ficar para trás…
– Mas como você vai almoçar com eles? Não fica bem levar
até lá um vinho Lafite e um peru assado.
527
Moviam-se devagar pela desnivelada parte baixa do prado,
onde havia uma antiga represa. Liévin conhecia alguns deles.
Ali estava o velho Iermil, com uma camisa branca e muito
comprida, curvando-se ao brandir a gadanha; lá estava o
jovem e bom Vaska, ex-cocheiro de Liévin, que com um só
impulso alcançava toda uma fileira. Lá estava Tito, mujique
miúdo e magricelo, o preceptor de Liévin no que se referia a
ceifar. Sem se curvar, ele caminhava à frente de todos e
cortava sua larga fileira, como se brincasse com a gadanha.
528
– Vou me esforçar para não ficar para trás – respondeu,
tomando posição atrás de Tito e aguardando a hora de
começar.
– Está segura de mau jeito, o cabo está alto, olha como ele
tem de se curvar – disse um mujique.
529
Sentia que brandia a gadanha com as últimas forças e resolveu
pedir a Tito que parasse. Mas nesse momento o próprio Tito se
deteve e, depois de se abaixar, pegou um punhado de relva,
esfregou na gadanha e pôs-se a afiar a lâmina. Liévin aprumou
o corpo e, depois de respirar fundo, olhou para trás. Às suas
costas, vinha um mujique e, obviamente, também estava
cansado, porque parou no mesmo instante, sem alcançar
Liévin, e tratou de afiar a gadanha. Tito molhou sua gadanha e
também a da Liévin, e os dois foram em frente.
530
Só uma coisa envenenava sua satisfação: a sua fileira não
fora bem ceifada. “Vou mover menos o braço e mais o tronco”,
pensou, enquanto comparava a fileira cortada por Tito, como
que numa linha exata, com a sua fileira, desigual e tombada de
forma irregular.
Ele nada pensava, nada queria, exceto não ficar para trás em
relação aos mujiques e executar seu trabalho o melhor possível.
Ouvia apenas o tinir das gadanhas e apenas via à sua frente a
silhueta reta de Tito, que se adiantava, o arqueado semicírculo
da ceifa, a relva e a cabecinha das flores que tombavam, de
forma lenta e ondulante, rente à lâmina da sua gadanha e,
mais à frente, o fim
531
caía. Alguns mujiques foram apanhar os casacos e os vestiram;
outros, como Liévin, se limitaram a contrair os ombros com
alegria, sob o frescor agradável.
532
comida, seguiu até o seu cavalo, através das fileiras,
ligeiramente borrifadas de chuva, ao longo da vasta extensão
ceifada. Só então compreendeu que se enganara a respeito
do tempo e que a chuva molhava o seu feno.
533
CAPÍTULOV
534
trabalho; e ocorriam, de modo cada vez mais frequente, os
minutos de inconsciência, em que podia não pensar no que
fazia. A gadanha cortava sozinha. Eram minutos felizes.
Também eram felizes os minutos em que, ao chegarem ao rio,
no qual as fileiras iam mergulhar, o velho esfregava a gadanha
com um punhado de relva espessa e molhada, acariciava o aço
com a água fresca do rio, enchia uma caneca e oferecia a
Liévin.
535
terreno em que as azedinhas não tinham sido arrancadas. O
velho o fazia com facilidade. Quando surgia um outeiro,
ele alterava o movimento e, ora com a ponta, ora com a parte
posterior da gadanha, atacava o outeiro por todos os lados,
com golpes curtos. Ao fazê-lo, examinava e observava tudo o
que se revelava à sua frente, ora arrancava azedinhas e
comia, ou oferecia a Liévin, ora empurrava um ramo para o
lado com a ponta da gadanha, ora examinava um pequeno
ninho de codorniz, do qual a fêmea alçava voo, bem debaixo
da gadanha, ora apanhava uma serpente que aparecia no
536
imperceptíveis, trazendo nas mãozinhas trouxas com pão e
jarrinhas de kvás envoltas em trapos.
537
A tiurka estava tão saborosa que Liévin desistiu de ir jantar em
casa. Jantou com o velho e conversou sobre os assuntos
domésticos daquele homem, prestando seu mais vivo
interesse, e lhe comunicou todos os seus assuntos e todas as
circunstâncias que poderiam interessar ao velho. Sentia-se
mais próximo a ele do que ao irmão e, sem querer, sorria do
carinho que experimentava por aquele homem. Quando o velho
levantou-se outra vez, rezou e deitou-se ali mesmo, sob o
arbusto, depois de acomodar sob a cabeça um travesseiro de
relva, Liévin fez o mesmo e, apesar das moscas e dos insetos
pegajosos e tenazes que faziam cócegas no seu rosto e no
seu corpo suados, adormeceu imediatamente e só
538
quanto fora ceifado e quanto ainda seria necessário trabalhar
nesse dia.
– Ora essa, claro que vamos ceifar! Vamos lá, Tito! Mãos à
obra! Deixe para comer de noite. Vamos lá! – ouviram-se vozes
e, terminando de comer o pão, os ceifeiros retomaram o
trabalho.
539
– Vamos lá, vamos lá! – disse o velho, que acelerou o passo
atrás dele e o ultrapassou com facilidade. – Vou ceifar tudo! Se
cuida, gente!
540
estavam ao sol, enquanto embaixo, onde subia uma neblina, e
também no lado oposto, ceifavam sob uma sombra fresca e
orvalhada. O trabalho fervia.
Por mais fácil que fosse ceifar a relva molhada e fraca, era
árduo subir e descer pelos flancos íngremes da várzea. Mas,
para o velho, isso não era penoso. Sem parar de brandir a
gadanha, com seus passinhos miúdos e firmes e os pés
calçados em grandes alpercatas feitas de casca de tília, ele
avançava lentamente pela escarpa e, apesar de o corpo todo
sacudir-se e de a calça escorregar frouxa por baixo da camisa,
não perdia em seu caminho nem a mais ínfima relva, nem um
541
só cogumelo, sem parar de dizer gracejos a Liévin e aos
mujiques. Liévin o seguia e não raro pensava que iria cair,
inapelavelmente, ao subir com a gadanha um outeiro tão
íngreme que seria árduo galgar mesmo sem o peso da
gadanha; mas Liévin subia e fazia o que era preciso. Sentia que
alguma força exterior o movia.
542
C A P Í T U L O VI
543
Serguei Ivánovitch não podia suportar moscas, só abria a
janela do quarto à noite e mantinha a porta cuidadosamente
fechada.
– Muito bem, vá, vá, e logo em seguida irei falar com você –
disse Serguei Ivánovitch, balançando a cabeça e fitando o
irmão. – Vá depressa – acrescentou, sorrindo e, depois de
apanhar seus livros, preparou-se para sair. De repente, ele
mesmo sentiu-se alegre e não queria separar-se do irmão. –
Mas, e na hora da chuva, onde você ficou?
544
– Ah, sim, chegou uma carta para você – lembrou. – Kuzmá,
por favor, traga até aqui. E cuidado para não deixar a porta
aberta.
Viajaremos otimamente.
545
– É ótimo! Você nem imagina como esse regime é benéfico
contra toda sorte de tolices. Quero enriquecer a medicina com
um conceito novo: Arbeitscur.[4]
546
– Muito satisfeito. Ceifamos o prado inteiro. E o velho com
quem fiz amizade!
547
queria compreender. Temia apenas que o irmão lhe fizesse
alguma pergunta capaz de revelar que ele nada ouvia.
se.
– O que foi?
548
cabeça. – Esqueci-me dela.
– Melhorou muito.
549
C A P Í T U L O VII
550
Dolly lhe pedira para examinar a casa e mandar fazer os
reparos necessários. Stiepan Arcáditch, que, como todos os
maridos culpados, zelava muito pelo conforto da esposa,
vistoriou ele mesmo a habitação e tomou providências
quanto a tudo o que lhe pareceu necessário. A seu ver, era
preciso mudar o cretone de todos os móveis, instalar cortinas,
limpar bem o jardim, construir uma pontezinha junto ao tanque
e plantar flores; mas esqueceu muitas outras coisas
indispensáveis, cuja falta, mais tarde, atribulou Dária
Aleksándrovna.
551
agradável porque tinha a esperança de atrair para a sua aldeia
a irmã Kitty, que recebera a recomendação de tratar-se com
banhos e que deveria voltar do exterior em meados do verão.
Kitty, em resposta, escrevera da estação de águas que nada
lhe daria mais satisfação do que passar o verão com Dolly
em Ierguchovo, local repleto de recordações de infância para
ambas.
552
empregadas para esfregar o chão – todas estavam na colheita
das batatas. Sair de carruagem era impossível, porque o
único cavalo empacava e arrebentava o tirante. Não havia
onde tomar banho –
553
A situação parecia irremediável. Mas em casa dos Oblónski,
como em todas as casas de família, havia uma pessoa
discreta, mas importantíssima e extremamente útil: Matriona
Filimónovna. Ela tranquilizava a senhora, garantia que tudo se
arranjaria (este era o seu lema, e Matviei o tomara
emprestado) e ela mesma punha mãos à obra, sem se afobar e
sem se alarmar.
554
parte, as esperanças de Dária Aleksándrovna de uma vida
rural confortável, embora não de todo tranquila. Com seis
filhos, a vida não poderia ser tranquila para Dária
Aleksándrovna. Um adoecia, outro podia adoecer, outro carecia
de alguma coisa, outro mostrava indícios de mau caráter etc.
Muito raramente, ocorriam breves períodos de tranquilidade.
Mas tais preocupações e inquietudes eram, para Dária
555
um a seu modo, e que crianças assim eram raras – e sentia-se
feliz com elas e orgulhosa dos filhos.
556
C A P Í T U L O VIII
557
babados, pregaram os botõezinhos e arrumaram as fitas. O
vestido de Tânia, que a inglesa se incumbira de costurar, deu
muita dor de cabeça para Dária Aleksándrovna. A inglesa, ao
reformá-lo, fez as cavas fora do lugar, baixou muito a manga e
estragou completamente o vestido. Tânia ficou com os
ombros tão encolhidos que dava pena. Mas Matriona
Filimónovna teve a feliz ideia de acrescentar nesgas de pano e
fazer uma capinha para os ombros. A
558
encantos, não prejudicasse o efeito geral. E, depois de se
examinar no espelho pela última vez, ficou satisfeita consigo.
Estava bonita. Não tanto como, em tempos passados, desejava
estar bonita em um baile, mas bonita para o objetivo que agora
tinha em vista.
559
Gricha chorava, dizia que Nikólienka também assoviara e não
fora castigado, e que não estava chorando por ter ficado sem
a sobremesa – para ele, não tinha importância –, mas sim
porque tinham sido injustos com ele. Isso já era triste demais e
Dária Aleksándrovna resolveu perdoar Gricha, depois de
conversar com a inglesa, e foi ter com ela. Mas então, ao
passar pela sala, viu uma cena que encheu seu coração de
tamanha alegria que as lágrimas subiram aos seus olhos e ela
mesma perdoou o malfeitor.
560
risonhos com as mãos e sujaram, de doce e de lágrimas, seus
rostos radiantes.
561
Embora fosse trabalhoso tomar conta de todas as crianças e
impedir suas travessuras, embora também fosse difícil lembrar
e não confundir as pernas a que pertenciam todas aquelas
meias, calças e sapatinhos, e desamarrar, desabotoar para
depois voltar a amarrar os pequeninos cadarços e abotoar
todos os botõezinhos, Dária Aleksándrovna, que sempre
adorara banhar-se e julgava tal prática muito benéfica para as
crianças, jamais se deliciava tanto como nesses banhos, em
companhia de todos os filhos. Passar em revista todos
aqueles pezinhos roliços, puxar as meiazinhas sobre eles,
tomar nas mãos aqueles corpinhos desnudos, mergulhá-los e
ouvir os gritos esganiçados, ora de alegria,
562
cativando Dária Aleksándrovna com a sincera afeição que
demonstraram pelas crianças.
– Puxa!
563
conversar com elas, tão perfeitamente idênticos eram os seus
interesses. O mais agradável para Dária Aleksándrovna era ver
com clareza que todas aquelas mulheres admiravam, acima
de tudo, o fato de ela ter tantos filhos e de serem tão bonitos.
As camponesas até fizeram Dária Aleksándrovna rir e
melindraram a governanta inglesa, por ser o motivo de tais
risos, incompreensíveis para ela. Uma das jovens camponesas
fixou o olhar na inglesa, que se vestia por último, e quando
ela vestiu a terceira saia, a jovem não conseguiu reprimir um
comentário:
564
C A P Í T U L O IX
565
– Sim, ele contou que a senhora havia se mudado para cá
e achou que a senhora permitiria que eu lhe prestasse alguma
ajuda – respondeu Liévin que, ao dizê-lo, embaraçou-se de
repente e, após interromper a frase, continuou a caminhar em
silêncio ao lado da carruagem aberta, enquanto colhia brotos
de tílias e os mordiscava. Embaraçou-se por causa da
suposição de que Dária Aleksándrovna não gostaria de receber
ajuda de um homem estranho à família, em assuntos que
cumpriam ser resolvidos pelo marido. Dária Aleksándrovna, de
fato, não gostou dessa maneira de Stiepan Arcáditch impor a
estranhos assuntos da sua família. E logo compreendeu que
Liévin entendia isso. Justamente por causa dessa agudeza de
entendimento, dessa delicadeza, Dária Aleksándrovna estimava
Liévin.
566
– Tenha a bondade de sentar-se conosco, chegaremos um
pouco para o lado – convidou-o.
567
E, ao ver os seus movimentos ágeis, vigorosos, cautelosamente
solícitos e excessivamente medidos, a mãe acalmou-se e sorriu
com alegria e aprovação, enquanto olhava para ele.
568
E Liévin, apenas com o intuito de desviar o assunto da
conversa, expôs a Dária Aleksándrovna uma teoria da
produção de laticínios segundo a qual uma vaca nada mais é
do que uma máquina para transformar forragem em leite etc.
569
feno e a de farelo eram obscuros e duvidosos. E o mais
importante era que ela queria falar sobre Kitty…
570
CAPÍTULOX
571
antes sentia por Kitty transformou-se, em sua alma, num
sentimento de rancor, causado pela afronta.
– Quando?
572
– Muito bem, Dária Aleksándrovna, a senhora me perdoe –
disse Liévin, levantando-se. – Até logo! Até a vista, Dária
Aleksándrovna.
– Por favor, por favor, não vamos falar sobre isso – disse
ele, sentando-se e, ao mesmo tempo, sentindo que, em seu
coração, se agitava e se erguia uma esperança que lhe parecia
sepultada.
573
– Não, o coração fala, mas o senhor pense bem: os
senhores, homens, têm as atenções voltadas para uma jovem,
visitam a sua casa, aproximam-se dela, avaliam-na, aguardam
para decidir se a amam, e depois, quando estão convencidos
de que a amam, apresentam um pedido de casamento…
574
casamento a Kitty, ela estava exatamente nessa situação em
que não se tem condições de responder. Havia nela uma
indecisão. A seguinte indecisão: o senhor ou Vrónski. A ele, via
todos os dias; ao senhor, não via desde muito tempo. Vamos
supor que ela fosse mais velha; para mim, por exemplo, no
lugar de Kitty, não poderia haver nenhuma indecisão. Ele
sempre me pareceu repulsivo, e provou ser de fato assim.
575
– Como o senhor é curioso – disse Dária Aleksándrovna,
com um sorrisinho triste, apesar da agitação de Liévin. – Sim,
agora estou compreendendo tudo, e cada vez mais –
prosseguiu, pensativa. – Então o senhor não virá visitar-nos
quando Kitty estiver aqui?
576
“Mas para que ela fala em francês com os filhos?”, pensou.
“Como é artificial e falso! E as crianças percebem isso.
Aprender o francês e desaprender a sinceridade”, pensou
consigo mesmo, sem saber que Dária Aleksándrovna já pensara
e repensara a mesma coisa vinte vezes e no entanto, ainda que
em prejuízo da sinceridade, julgava indispensável educar seus
filhos desse modo.
Após o chá, ele saiu até a antessala para mandar trazer seus
cavalos e, quando voltou, encontrou Dária Aleksándrovna
transtornada, com o rosto desfeito e com lágrimas nos olhos.
No momento em que Liévin saíra, ocorrera algo que destruíra
de repente, para Dária Aleksándrovna, toda a felicidade e
todo o orgulho que havia sentido, nesse dia, em relação aos
filhos. Gricha e Tânia atracaram-se por causa de uma bolinha.
Dária Aleksándrovna, ao ouvir um grito no quarto das crianças,
correu e encontrou-os numa cena horrível. Tânia segurava
Gricha pelos cabelos e ele, com o rosto desfigurado pela
maldade, batia na irmã com os punhos cerrados, sem
escolher o alvo. Algo se rompeu no coração de Dária
Aleksándrovna, ao ver aquilo. Teve a impressão de que trevas
desciam sobre sua vida: compreendeu que aquelas crianças,
577
das quais tanto se orgulhava, não só não eram as mais
extraordinárias do mundo como eram até crianças más, mal-
educadas, com tendências rudes e violentas, crianças
perversas.
578
C A P Í T U L O XI
579
dividira o feno sem a sua permissão, pelo tom geral do mujique,
Liévin compreendeu que nessa partilha do feno havia algo
desonesto, e resolveu ir lá pessoalmente, verificar o caso.
580
resolveu-se que os mujiques ficariam com aquelas onze medas,
como o seu quinhão, estimando em cinquenta carradas cada
581
nem é feno, é chá! Eles colhem igualzinho aos patos quando
catam os grãos espalhados! – acrescentou, apontando para os
montes de feno que se avolumavam. – Do jantar para cá, já
levaram uma boa metade. É a última leva? – gritou para um
moço que estava de pé, na parte da frente de uma telega, e
sacudia as pontas das rédeas de cânhamo, ao passar por eles.
– Que rapagão!
– Já é casado?
582
estava de pé na carroça, recebia, arrumava e comprimia os
enormes fardos que sua jovem e bonita patroa lhe jogava
agilmente, a princípio em braçadas e depois com o forcado. A
jovem
583
C A P Í T U L O XII
584
gente que cantava desapareceu de vista e já não era mais
ouvida, um pesado sentimento de tristeza apoderou-se de
Liévin, por sua solidão, por sua ociosidade física, por sua
posição antagônica em relação a esse mundo.
585
ociosa, artificial e individualista que levava, naquela vida
trabalhadora, pura e de um encanto coletivo.
O velho que sentara a seu lado já fora para casa havia muito;
os camponeses se dispersaram. Os que viviam perto foram
para casa e os que moravam longe se reuniram para a ceia e
para pernoitar no prado. Liévin, sem que os camponeses
notassem sua presença, continuava deitado sobre o monte de
feno, a olhar, ouvir e pensar. Os camponeses que
permaneceram no prado quase não dormiram, ao longo da
curta noite de verão. A princípio, ouviam-se a alegre conversa
geral e gargalhadas, durante a ceia, depois novamente
canções e risos.
586
simples. Outros pensamentos e outras imagens se referiam à
vida que ele agora desejava viver. Percebia nitidamente a
simplicidade, a pureza, a legitimidade dessa vida e estava
convencido de que nela encontraria a satisfação, a
serenidade e a dignidade, cuja carência lhe era tão penosa.
Mas a terceira série de pensamentos girava em torno da
questão de como levar a efeito essa transição da vida antiga
para a vida nova. E aí nada se apresentava a ele de modo
claro. “Ter esposa? Ter trabalho e necessidade de trabalho?
Deixar Pokróvskoie? Comprar terras? Inscrever-me numa
comuna de camponeses? Casar
587
duas faixas brancas. Assim também se transformou,
imperceptivelmente, a minha maneira de ver a vida!”
588
Nesse instante, quando essa imagem já desaparecia, olhos
sinceros voltaram- se para Liévin. Ela o reconheceu e uma
alegria espantada iluminou o rosto da jovem.
Ela não olhou para fora outra vez. Já não se ouvia o barulho
das molas, mal se ouviam os guizos. Os latidos dos cães
indicavam que a carruagem havia atravessado a aldeia – e, em
redor, restaram apenas os campos vazios, as aldeias à frente e
ele mesmo, sozinho e alheio a tudo, que seguia solitário pela
grande estrada maltratada.
589
céu, nada mais havia semelhante a uma concha. Lá, nas alturas
inacessíveis, já se cumprira uma transformação misteriosa.
Não havia nem sinal da concha, mas havia um tapete liso,
formado por nuvens cada vez menores, que se alastrava por
toda a metade do céu. O firmamento se tornava azul,
brilhante e, com o mesmo carinho, porém do mesmo modo
inacessível, respondia ao seu olhar interrogador.
“Não”, disse a si mesmo, “por melhor que seja essa vida simples
e laboriosa, não posso recuperá-la. É a ela que eu amo”.
590
C A P Í T U L O XIII
591
qualquer manifestação de vida e, portanto, não se moveu nem
olhou para a mulher. Isso produziu em seu rosto a estranha
expressão de palidez de cadáver, que tanto impressionou Anna.
592
viver, pensar e interessar-se não apenas por seu dente. Foi
esse o sentimento que Aleksiei Aleksándrovitch experimentou.
A dor foi estranha e terrível, mas agora havia passado; sentia
que podia de novo viver e pensar não apenas na esposa.
593
franzidas. “Não sou o primeiro, nem serei o último.” E, sem falar
dos exemplos históricos, a começar por A bela Helena,[7] de
Menelau, reavivada na memória de todos, uma longa série de
casos contemporâneos de infidelidade cometida por esposas
da mais alta sociedade acudiu à imaginação de Aleksiei
Aleksándrovitch. “Dariálov, Poltávski, o príncipe Karibánov, o
conde Paskúdin, Dram… Sim, Dram também… Um homem tão
honesto, tão capaz… Semiónov,
594
de físico acanhado e por saber muito bem disso. Aleksiei
Aleksándrovitch não conseguia pensar sem horror numa
pistola apontada contra si e jamais, em toda a vida, fizera uso
de qualquer arma. Quando jovem, tal horror muitas vezes o
obrigava a pensar num duelo e em pôrse à prova numa
situação em que seria necessário arriscar sua vida. Desde que
alcançara o sucesso e uma posição sólida na sociedade,
esquecera havia muito esse sentimento; mas o sentido do
hábito acabou por vencer e o temor da sua própria covardia se
manifestou também agora com tamanha força que Aleksiei
Aleksándrovitch considerou demoradamente, e de todos os
ângulos, a respeito do duelo e afagou com o pensamento essa
questão, embora soubesse de antemão que em nenhuma
hipótese haveria de duelar.
595
fechando os olhos, “e que aconteça de eu o matar”, concluiu
para si Aleksiei Aleksándrovitch e sacudiu a cabeça para
afugentar esses pensamentos tolos. “Qual o sentido de
assassinar um homem a fim de determinar que relações se
vão estabelecer com uma esposa criminosa e um filho? Tal
como antes, eu ainda teria de resolver o que fazer com ela.
Porém o mais provável, e o que se daria sem dúvida, era eu ser
morto ou ferido. Eu, um homem inocente, a vítima, morto ou
ferido. É ainda mais absurdo. E isso não é tudo; um desafio
para um duelo seria, da minha parte, um ato desonesto. Acaso
não sei de antemão que meus amigos jamais permitirão que
eu me bata em duelo, jamais permitirão que a vida de um
homem público, indispensável à
596
Depois de considerar e rechaçar o duelo, Aleksiei
Aleksándrovitch voltou-se para o divórcio – uma outra saída,
escolhida por algumas das pessoas de quem ele se havia
lembrado. Passando em revista, na memória, todos os casos de
divórcio famosos (havia muitos, na mais alta sociedade, que
conhecia muito bem), Aleksiei Aleksándrovitch não encontrou
um sequer em que o objetivo do divórcio fosse o mesmo que
ele tinha em mira. Em todos esses casos, o marido cedeu ou
vendeu a esposa infiel, e a própria parte culpada, que não tinha
direito de contrair novo matrimônio, dava início a uma relação
fictícia, imaginariamente legitimada, com um novo cônjuge. No
seu caso, Aleksiei Aleksándrovitch percebia que era impossível
a obtenção de um divórcio conforme a lei, ou seja, um divórcio
em que apenas a mulher culpada fosse objeto de repúdio. Via
que as complexas condições de vida em que se achava não
admitiam a possibilidade das provas grosseiras, exigidas pela
lei, para deixar patente o crime da esposa; via que o conhecido
requinte dessa vida não permitia o emprego de tais provas,
ainda que elas existissem, e que o emprego de provas desse
tipo causaria mais danos a ele do que à mulher, perante a
opinião pública.
597
não seria alcançado por meio de um divórcio. Além do mais,
no caso de um divórcio, e até no caso de uma tentativa de
divórcio, era óbvio que a esposa rompia relações com o
marido e se unia ao seu amante. Mas na alma de Aleksiei
Aleksándrovitch, apesar da indiferença desdenhosa e
completa que agora, no seu entender, sentia pela esposa,
restava um sentimento por ela – a repulsa ante a possibilidade
de Anna unir-se a Vrónski sem nenhum obstáculo, de seu crime
ser, no fim, vantajoso para ela. Só esse pensamento o irritou de
tal modo que, apenas por imaginar tal coisa, Aleksiei
Aleksándrovitch pôs-se a gemer de uma dor interior,
levantou-se e mudou de lugar na carruagem e, por um longo
tempo depois disso, com as sobrancelhas franzidas, não parou
de embrulhar as pernas friorentas e ossudas sob a manta
felpuda.
598
voltou a embrulhar-se nervosamente na sua manta. “Eu não
posso ser infeliz, mas ela e ele não devem ser felizes.”
599
religião”, disse a si mesmo, “apenas mediante essa resolução,
não repudio a esposa criminosa, mas sim lhe ofereço a
possibilidade de reparar seu erro e até, por mais penoso que
seja para mim, consagro uma parte de minhas forças para a
sua reabilitação e a sua salvação”.
600
podia haver motivo algum para ele transtornar a própria vida e
sofrer, em razão de Anna ter sido uma esposa má e infiel.
“Sim, o tempo vai passar, o tempo, que a tudo acomoda, e as
relações voltarão a ser como antes”, disse para si, “ou seja, se
restabelecerão em uma tal medida que não sentirei os
transtornos no correr da vida. Ela tem de ser infeliz, mas eu
não sou culpado e por isso não posso ser infeliz”.
601
C A P Í T U L O XIV
602
Após considerar tudo atentamente, escrevo agora com o
objetivo de cumprir aquela promessa. Minha resolução é a
seguinte: quaisquer que tenham sido os atos da senhora, não
me considero no direito de romper os laços com que um Poder
Superior nos uniu. Uma família não pode ser arrasada por um
capricho, por um gesto arbitrário, nem mesmo por um crime
cometido por um dos cônjuges, e nossa vida deve seguir como
antes. Isso é imprescindível para mim, para a senhora e para
o nosso filho. Estou plenamente convencido de que a senhora
se arrependeu, e se arrepende, daquilo que deu motivo a esta
carta e de que a senhora vai colaborar comigo no sentido de
cortar, pela raiz, a causa de nossa discórdia e esquecer o
passado. Caso contrário, a senhora mesma pode imaginar o
que aguarda à senhora e ao seu filho. Espero conversar sobre
tudo isso com mais detalhes num contato pessoal. Como a
temporada de veraneio está chegando ao fim, peço à senhora
que venha a Petersburgo o quanto
A. Kariênin
603
P.S. Anexo a esta carta, segue o dinheiro que pode ser
necessário para as despesas da senhora.
604
aspecto da renda negra sobre a cabeça, dos cabelos negros e
da encantadora mão branca com o dedo anular recoberto de
anéis agiu sobre Aleksiei Aleksándrovitch de modo
insuportavelmente desafiador e insolente. Depois de
contemplar o retrato por um minuto, Aleksiei Aleksándrovitch
estremeceu de tal modo que os lábios tiritaram, emitiram o som
“brr”, e ele virou-se de costas. Depois de sentar às pressas na
poltrona, abriu o livro. Tentou ler, mas não conseguiu de modo
algum recuperar o interesse vivo e profundo de antes pelas
inscrições de Eugubium.
605
submergiu na leitura de um documento complexo, obtido por
ele, relacionado à complicação que o preocupava. A
complicação era a seguinte: a peculiaridade de Aleksiei
Aleksándrovitch como homem de governo, aquele atributo
característico e próprio a ele, e que todo funcionário de
destaque possui, aquele atributo que, junto com a sua ambição
tenaz, a discrição, a honestidade e a confiança em si mesmo,
impulsionou sua carreira, consistia no menosprezo pela
papelada burocrática, na redução da correspondência, no trato
o mais direto possível com as questões vivas, e na economia.
Ocorrera que, na célebre comissão de 2 de junho, foi abordada
a questão da irrigação dos campos na província de Zaráiski,
questão atinente ao ministério de Aleksiei Aleksándrovitch e um
exemplo clamoroso das despesas improdutivas e do trato
burocrático com os problemas. Aleksiei Aleksándrovitch sabia
que era uma questão justa. O caso da irrigação dos campos na
província de Zaráiski fora iniciado pelo antecessor do
antecessor de Aleksiei Aleksándrovitch. E, de fato, fora gasto e
ainda se consumia nesse caso muitíssimo dinheiro, de um modo
completamente improdutivo, e era óbvio que toda essa
questão não poderia dar em nada. Aleksiei Aleksándrovitch, ao
ocupar aquele cargo, logo se deu conta disso e quis incumbir-se
do assunto; mas, no início, quando se sentia ainda inseguro,
achou que o problema afetava demasiados interesses e seria
uma insensatez interferir; mais tarde, ocupado em outras
questões, simplesmente esqueceu o assunto. Este, como todos
os assuntos, seguiu seu caminho por conta própria, pela força
606
da inércia. (Muita gente vivia à custa daquele caso, sobretudo
uma família muito correta e musical: todas as filhas tocavam
instrumentos de cordas. Aleksiei Aleksándrovitch conhecia essa
família e era padrinho de casamento de uma das filhas mais
velhas.) A retomada dessa questão por um ministério hostil foi,
na opinião de Aleksiei Aleksándrovitch, uma iniciativa
desonesta porque em todos os ministérios havia casos que
ninguém levantava, em obediência a uma conhecida norma
ética do serviço público. Mas agora, como já haviam atirado
essa luva aos seus pés, ele a levantou corajosamente e
requereu a nomeação de uma comissão especial para
examinar e averiguar os trabalhos da comissão da irrigação
dos campos na província de Zaráiski; em compensação, ele já
não perdoava nada àqueles cavalheiros. Requereu ainda a
nomeação de outra comissão especial para examinar a
questão da organização das etnias não russas. Essa questão
fora por acaso levantada no comitê de 2 de junho e apoiada
com energia por Aleksiei Aleksándrovitch, uma vez que não se
podiam mais tolerar adiamentos em face da situação
deplorável das etnias não russas. No comitê, esse assunto
serviu de pretexto para uma disputa entre alguns ministérios.
Um ministério hostil a Aleksiei Aleksándrovitch demonstrou que
a situação dos não russos era extremamente próspera e que a
planejada
607
reordenação poderia arruinar sua prosperidade e que, se havia
algo de ruim, decorria unicamente do descumprimento, por
parte do ministério de Aleksiei Aleksándrovitch, das medidas
estabelecidas por lei. Agora Aleksiei Aleksándrovitch tencionava
requerer: em primeiro lugar, que se constituísse uma nova
comissão, encarregada de averiguar no local a situação dos
não russos; em segundo lugar, caso se comprovasse que a
situação dos não russos era de fato como se mostrava nos
dados oficiais que o comitê tinha em mãos, requereria a
nomeação de mais uma nova comissão científica a fim de
investigar as causas da situação desoladora dos não russos,
nos pontos de vista: a) político; b) administrativo; c) econômico;
d) etnográfico; e) material; f ) religioso; em terceiro lugar, que
fossem requeridas ao ministério adversário informações sobre
as medidas tomadas nos últimos dez anos por esse ministério
para prevenir aquelas condições desfavoráveis em que hoje se
encontravam os não russos; e, em quarto lugar, por fim, que se
exigisse do ministério uma explicação do motivo por que, como
se observava pelos ofícios enviados ao comitê, sob os números
17015 e 18308, nos dias 5 de dezembro de 1863 e 7 de junho de
1864, o dito ministério agiu de forma diretamente contrária ao
sentido da lei orgânica e fundamental, Tomo…, artigo 18, e nota
ao artigo 36. Uma coloração viva cobriu o rosto de Aleksiei
Aleksándrovitch, enquanto escrevia depressa, para si, um
resumo desses pensamentos. Depois de encher uma folha de
papel, levantou-se, fez soar a sineta e mandou um bilhete para
o chefe da repartição, em que pedia certas informações
608
necessárias. De pé, enquanto caminhava pelo gabinete, de
novo olhou de relance para o retrato, franziu as sobrancelhas e
sorriu com desprezo.
609
C A P Í T U L O XV
610
como pudera tomar a decisão de pronunciar aquelas
palavras estranhas e sórdidas e não conseguia imaginar o que
dali resultaria. Mas as palavras foram ditas e Aleksiei
Aleksándrovitch se afastou sem dizer nada. “Estive com
Vrónski e nada lhe contei. Porém, no instante em que saiu,
eu quis chamá-lo de volta e dizer tudo, mas desisti, pois
pareceria estranho eu não ter contado logo no primeiro
minuto. Por que eu queria, mas não lhe contei?” E, em
resposta, o rubor ardente da vergonha derramou-se em seu
rosto. Anna compreendeu que tinha vergonha. Sua situação,
que na noite da véspera lhe parecera clara, de súbito se
afigurou não só confusa como também sem saída.
611
nos olhos as pessoas com quem vivia. Não conseguia atrever-
se a chamar uma criada e menos ainda a descer e encontrar o
filho e a preceptora.
612
tinham para ela nenhum sentido. A ideia de buscar na religião o
socorro para os seus apuros era tão alheia a Anna como seria
pedir socorro ao próprio Aleksiei Aleksándrovitch, apesar de
jamais haver duvidado da religião, na qual fora educada. Anna
sabia de antemão que o socorro da religião só seria possível
sob a condição da renúncia daquilo que constituía para ela
todo o sentido da vida. Anna não só estava pesarosa, como
também começava a sentir um pavor diante de um novo
estado de espírito, que nunca experimentara. Sentia que em
sua alma tudo começava a duplicar-se, como às vezes se
duplicam os objetos para os olhos cansados. Às vezes, não
sabia o que temia e o que desejava. Não sabia se temia ou se
desejava o que existira antes ou o que iria existir, nem sabia
exatamente o que desejava.
613
– Comportou-se mal, parece – respondeu Ánuchka, sorrindo.
– Mal, como?
614
Vestiu-se depressa, desceu e entrou na sala, a passos resolutos,
onde a aguardavam, como de costume, o café, Serioja e a
preceptora. Serioja, todo de branco, estava de pé junto à mesa,
abaixo de um espelho e, com a cabeça e as costas curvadas,
com uma expressão de atenção concentrada que Anna bem
conhecia e que o deixava parecido com o pai, fazia algo com
as flores que havia trazido.
615
– Serioja – disse Anna, assim que a preceptora saiu da sala.
– Isso foi malfeito, mas você não fará mais isso, não é? Você
gosta de mim?
616
ela, como aquele céu, como aquela vegetação. E de novo sentiu
que sua
617
em seus pensamentos. “Não”, disse para si mesma. “Não
preciso de nada.” E, depois de rasgar a carta,
618
C A P Í T U L O XVI
619
dele. Anna retirou a carta e começou a ler pelo fim. “Tomei
providências para a sua vinda, atribuo importância ao
cumprimento do meu pedido” – leu ligeiro. Anna percorreu o
texto aos saltos, para a frente e para trás, até ler tudo, e mais
uma vez leu a carta inteira, do início ao fim. Quando
terminou, sentiu que estava com frio e que desabara sobre ela
uma desgraça terrível, como não podia imaginar.
“Tem razão! Tem razão!”, falou Anna. “Claro, ele sempre tem
razão, é cristão, generoso! Sim, que homem torpe, ignóbil! E
ninguém além de mim entende isso, nem jamais entenderá; e eu
não consigo explicar. Eles dizem: um homem religioso, virtuoso,
honesto, inteligente; mas não veem o que eu vi. Não sabem
como ele sufocou minha alma durante oito anos, sufocou tudo
o que em mim havia de vivo, não sabem que ele nem por uma
vez pensou em mim como uma mulher viva, que precisa amar.
Não sabem como ele, a cada passo, me ofendia e sentia-se
satisfeito consigo mesmo. Acaso não tentei, e tentei com todas
as forças, encontrar uma justificação para a minha vida? Acaso
não me esforcei para amá-lo, para amar meu filho, quando já
620
não era possível amar o marido? Mas o tempo passou e
compreendi que não posso mais me enganar, que sou uma
pessoa viva, que não sou culpada, que Deus me fez assim, com
necessidade de amar e de viver. E agora? Se ele me matasse,
se ele se matasse, eu suportaria tudo, eu perdoaria tudo, mas
não, ele…”
621
Ele sabe de tudo isso, sabe que não posso arrepender-me de
respirar, de amar; sabe que nada além de mentiras e de
enganos poderá vir dessa vida; mas ele precisa continuar a me
torturar. Eu o conheço, sei que ele, como um peixe na água,
nada e se delicia na mentira. Mas não, eu não vou dar a ele
esse prazer, vou rasgar a sua teia de mentiras, em que ele quer
me prender; aconteça o que acontecer. Qualquer coisa é melhor
do que a mentira e o engano!”
“Mas como? Meu Deus! Meu Deus! Terá havido algum dia uma
mulher tão infeliz como eu?…”
622
de uma mulher que deixou o marido e o filho para unir-se ao
amante; percebeu que, por mais que tentasse, ela não seria
mais forte do que si mesma. Jamais provaria a liberdade do
amor e havia
623
pode me dizer o que devo fazer. Irei à casa de Betsy; talvez
eu o encontre lá”, disse para si, totalmente esquecida de que
ainda na véspera, quando dissera a ele que não iria à casa da
princesa Tviérskaia, Vrónski respondera que por isso também
não iria lá. Anna caminhou até a mesa e escreveu um bilhete
para o marido: “Recebi a sua carta. A.”. Tocou a sineta e
entregou-o para o criado.
624
C A P Í T U L O XVII
625
dissera, na véspera, que não viria. Na certa, havia trazido um
bilhete sobre isso.
626
que veio ao seu encontro com um vestido branco que a
surpreendeu pela elegância, Anna sorriu para ela, como
sempre. A princesa Tviérskaia caminhava em companhia de
Tuchkiévitch e de uma fidalga a ela aparentada, que passava o
verão em casa da célebre princesa, para enorme felicidade de
seus pais, na província.
627
estranha à sua natureza, se tornara não só simples e natural
em sociedade, como até lhe dava prazer.
628
Anna sabia que Betsy estava a par de tudo, mas, ao ouvir como
lhe falava a respeito de Vrónski, sempre se convencia por um
minuto de que a princesa nada sabia.
Enquanto Betsy falava tudo isso, Anna percebeu, pelo seu olhar
inteligente e alegre, que ela compreendera em parte a sua
629
situação e que tramava alguma coisa. Estavam num pequeno
escritório.
630
senhora é uma autêntica heroína de romance e que, se ela
fosse homem, cometeria mil loucuras pela senhora. Striémov
responde que ela já faz isso, sendo quem é.
631
– Não, a senhora debocha – disse Anna, involuntariamente
contagiada pelo riso. – Mas eu jamais consegui entender. Não
entendo, nesse caso, o papel do marido.
632
falta de compreensão lhe cai bem. Agora, talvez ela não
compreenda de propósito – disse Betsy, com um sorriso sutil.
– Mas, seja como for, lhe cai bem. Como vê, a mesmíssima
coisa pode ser vista de modo trágico e tornar-se um tormento,
ou pode ser vista de modo natural e até alegre. Talvez a
senhora tenda a ver as coisas de modo demasiado trágico.
633
C A P Í T U L O XVIII
634
vestido as formas dos joelhos e da parte superior das pernas e,
sem querer, vinha à mente a pergunta a respeito de onde, em
que ponto das costas, nessa massa ondulante, terminaria de
fato o corpo pequeno e harmonioso, tão desnudo por cima e
tão escondido atrás e embaixo.
635
O jovem e imprevisto convidado que Safo trouxera e do qual se
esquecera era, no entanto, um convidado tão importante que,
apesar da sua juventude, as duas senhoras se levantaram para
recebê-lo.
636
olhar cansado e ao mesmo tempo ardente desses olhos
rodeados por um círculo estreito causava assombro por sua
total sinceridade. Ao fitar esses olhos, tinha-se a impressão de
conhecê-la completamente e de, a conhecendo, ser impossível
não se apaixonar. Ao ver Anna, todo o rosto de Lisa iluminou-
se de repente num sorriso de alegria.
637
– Talvez as pessoas que não pertencem à nossa sociedade
se sintam ainda mais entediadas; mas para nós, para mim
seguramente, não há alegria e sim um terrível, terrível tédio.
638
diante de Anna Kariênina, Striémov, inimigo de Aleksiei
Aleksándrovitch na
639
Como raramente se encontrava com Anna, nada podia dizer-lhe
senão banalidades, mas dizia essas banalidades – sobre
quando ela viajaria para Petersburgo e quanto a estimava a
condessa Lídia Ivánovna – com uma expressão que indicava
desejar, com toda a alma, ser amigo de Anna, demonstrar-lhe
seu respeito e até mais do que isso.
640
se do gesto terrível, para ela, em sua memória, quando
agarrara os cabelos com as duas mãos, Anna despediu-se e
saiu.
641
C A P Í T U L O XIX
642
cercados pela complexidade de suas próprias condições
pessoais. Assim parecia a Vrónski. E ele, não sem orgulho
interior, e não sem razão, pensava que qualquer outro teria,
muito tempo antes, se enredado em dívidas e sido obrigado a
agir de modo condenável, caso se encontrasse em
circunstâncias igualmente difíceis. Mas Vrónski sentia que
exatamente agora lhe era indispensável averiguar e esclarecer
sua situação, a fim de não se ver em apuros.
643
dinheiro (tinha em mãos a quantia), mas Veniévski e Iáchvin
insistiram
644
entre os irmãos. Quando o irmão mais velho, que tinha uma
montanha de dívidas, casou com a princesa Vária Tchirkova,
filha de um decembrista[12] e sem nenhum patrimônio, Aleksiei
cedeu ao irmão mais velho toda a sua renda oriunda da
propriedade do pai, apenas garantindo para si vinte e cinco mil
rublos por ano. Aleksiei disse ao irmão que esse dinheiro seria
o suficiente, enquanto não casasse, algo que provavelmente
jamais ocorreria. E o irmão, que comandava um dos regimentos
mais dispendiosos e que acabara de casar, não podia recusar
tal presente. A mãe, que possuía a sua fortuna particular, dava
a Aleksiei vinte mil rublos por ano, além dos outros vinte e
cinco mil, e Aleksiei gastava tudo. Nos últimos tempos, a mãe,
desgostosa com ele em razão do seu caso amoroso e da sua
partida de Moscou, havia parado de lhe enviar o dinheiro. Por
causa disso, Vrónski, que já se habituara a viver com
quarenta e cinco mil rublos e recebera nesse ano apenas vinte
e cinco mil, encontrava-se agora em apuros. Para sair de tais
apuros, não podia pedir dinheiro à mãe. A última carta da
mãe, recebida na véspera, o irritara especialmente por conter
insinuações de que ela estava pronta a ajudá-lo a alcançar o
êxito na sociedade e na carreira militar, mas não em uma vida
que escandalizava todas as pessoas de bem. O intuito da mãe
de suborná-lo ofendeu-o até o fundo da alma e deixou-o ainda
mais frio em relação a ela. Mas Vrónski não podia trair a
palavra generosa empenhada, embora sentisse agora, ao
prever confusamente algumas eventualidades em sua relação
com Kariênina, que a palavra generosa fora empenhada de
645
forma leviana e que ele, embora solteiro, poderia necessitar
de todos os cem mil rublos da sua renda. Mas era impossível
voltar atrás na sua palavra. Bastou lembrar-se da esposa do
irmão, lembrar como a meiga e
646
C A P Í T U L O XX
647
Estava definida de modo claro e preciso nas regras do seu
código, segundo as quais ele se orientava.
648
Mas nos últimos tempos haviam surgido, entre ele e Anna,
novas relações íntimas, que assustavam Vrónski pela incerteza
que traziam. Só na véspera Anna confessara que estava
grávida. E ele se deu conta de que essa notícia e aquilo que
Anna esperava dele exigiam algo que não estava plenamente
definido pelo código de regras que norteava sua vida. De fato,
foi apanhado de surpresa e, no primeiro minuto em que ela
explicou sua situação, o coração de Vrónski sugeriu que devia
exigir a sua separação do marido. Vrónski falou a Anna sobre
isso, mas agora, pensando melhor, via claramente que seria
preferível evitá-lo e, ao mesmo tempo que o dizia para si,
receava estar agindo mal.
649
amor. Seus primeiros passos na sociedade e no exército foram
auspiciosos, mas, dois anos antes, havia cometido um erro
crasso. No intuito de demonstrar sua independência e avançar
na carreira, havia recusado um posto que lhe fora oferecido, na
esperança de que tal recusa elevasse o seu merecimento; mas
verificou-se que tinha agido com ousadia excessiva, e Vrónski
foi relegado; de todo modo, uma vez estabelecida sua condição
de homem independente, Vrónski, agindo com extrema finura e
inteligência, procedia como se ninguém o irritasse, não se
considerava ofendido por pessoa alguma e desejava apenas
que o deixassem em paz, porque estava alegre. Mas na
realidade, desde o ano anterior, quando fora para Moscou,
deixara de sentir-se alegre. Percebia que a posição
independente de um homem que tudo podia, mas nada queria,
já começava a empalidecer, que muitos começavam a pensar
que ele não seria capaz de outra coisa senão ser um rapaz
correto e bom. Os rumores que se
650
de ambição, voltara dias antes da Ásia Central, depois de
receber duas promoções e uma condecoração, raramente
conferida a um general tão jovem.
651
C A P Í T U L O XXI
– Serpukhóvskoi chegou.
Uma vez que decidira estar feliz com o seu amor e sacrificara a
ele a sua ambição – ou, pelo menos, assumira esse papel –,
Vrónski já não podia invejar Serpukhóvskoi, nem se zangar com
652
ele por não ter vindo procurá-lo, em primeiro lugar, ao chegar
ao regimento. Serpukhóvskoi era um bom amigo e Vrónski
estava feliz por ele.
653
Fazia três anos que Vrónski não via Serpukhóvskoi. Ficara mais
forte, deixara crescer as suíças, mas era o mesmo homem
garboso de antes, que impressionava não tanto pela beleza
quanto pela ternura e pela altivez do rosto e da compleição.
Uma alteração que Vrónski percebeu foi a presença daquela
aura serena, constante, que se formava no rosto das pessoas
que haviam obtido sucesso e que estavam convictas de que
todos reconheciam esse sucesso. Vrónski conhecia essa aura e
imediatamente notou-a em Serpukhóvskoi.
654
– Cuide dele! – gritou o comandante para Iáchvin,
apontando para Vrónski, e desceu ao encontro dos soldados.
655
água da pia o pescoço vermelho coberto de pelos, Vrónski
esfregava o pescoço e a cabeça com as mãos. Quando
terminou de lavar-se, sentou-se ao lado de Serpukhóvskoi. Os
dois estavam sentados no mesmo sofá e, entre eles, teve início
uma conversa de muito interesse para ambos.
656
confesso.
657
– Ótimo… por um tempo. Mas não vai satisfazer-se com
isso. Não falo o mesmo do seu irmão. É um bom rapaz, assim
como o nosso anfitrião. Lá está ele!
– A quem?
658
nome, não tiveram essa proximidade com o sol, com a qual nós
nascemos. Podem ser comprados com dinheiro ou com afagos.
Para se sustentarem, precisam inventar uma tendência.
659
– De todo modo, falta a mim uma coisa importante para
isso – respondeu. – Falta o desejo de poder. Já tive, mas
passou.
660
– Você disse: que tudo continue como está. Eu compreendo
o que isso significa.
Agora, Vrónski queria ouvir até o fim e saber o que o amigo lhe
diria.
661
senti ao casar. De repente, minhas mãos se desembaraçaram.
Mas, se carregarmos esse fardeau sem o casamento, as mãos
estarão tão cheias que não será possível fazer nada. Veja o
Mazánkov, o Krúpov. Eles liquidaram suas carreiras por causa
de mulheres.
662
– Conversaremos depois, irei vê-lo em Petersburgo.
663
C A P Í T U L O XXII
664
Tinha prazer em sentir aquela ligeira dor na perna forte, tinha
prazer com a sensação muscular do movimento do peito ao
respirar. Mesmo o dia claro e frio de agosto, que afetava Anna
de modo tão desesperador, parecia a Vrónski estimulante,
revigorante, e refrescava seu rosto e seu pescoço, ainda
afogueados pela ducha. O cheiro de brilhantina dos seus
bigodes lhe parecia especialmente agradável naquele ar
fresco. Tudo o que via pela janela da carruagem, tudo naquele
ar frio e limpo, na luz pálida do pôr do sol, era tão fresco,
alegre e forte como ele mesmo: os telhados das casas, que
brilhavam sob os raios do sol poente, o contorno bem marcado
das cercas e das linhas angulosas das casas, as figuras dos
pedestres e das carruagens que de quando em quando
passavam por ele, o verdor imóvel das árvores e da relva, as
plantações de batata com sulcos escavados em linhas
regulares, as sombras oblíquas que tombavam das casas, das
árvores, dos arbustos e até dos sulcos da plantação de batata.
Tudo era bonito, como uma bela paisagem que pouco antes
tivessem terminado de pintar e recoberto de verniz.
665
a sineta, no intervalo entre as janelas, e imaginava Anna tal
como a vira pela última vez. “Quanto mais passa o tempo, mais
eu a amo. Aí está o jardim da datcha de Wrede. Onde está ela?
Onde?
666
– Eu, aborrecido? Mas como você veio para cá, e para onde
vai?
667
Mas Anna não ouviu suas palavras, lia os pensamentos de
Vrónski nas feições do seu rosto. Ela não podia saber que a
expressão do seu rosto se referia à primeira ideia que acudira a
Vrónski – que agora um duelo era inevitável. Jamais passara
pela cabeça de Anna a ideia de um duelo e portanto entendeu
de outra forma a momentânea expressão de severidade.
668
– Entendo, entendo – interrompeu Vrónski, depois de tomar
a carta, mas sem ler, e tentando tranquilizar Anna. – Tudo o que
eu queria, o que eu pedia, era que essa situação fosse rompida,
para eu consagrar minha vida à sua felicidade.
– Ah, para mim não faz diferença! – disse ela. Seus lábios
começaram a tremer. E Vrónski teve a impressão de que os
olhos de Anna, por trás do véu, o fitavam com uma estranha
maldade. – Estou dizendo que não se trata disso, que não posso
ter nenhuma dúvida a respeito; mas aí está o que ele me
escreveu.
669
qual, com a mesma expressão fria e orgulhosa que tinha agora
no rosto, depois de disparar para o ar, Vrónski se poria sob a
mira da arma do marido ofendido. E nesse instante, em sua
cabeça, irrompeu a ideia daquilo que Serpukhóvskoi acabara
de dizer e que ele mesmo havia pensado, de manhã cedo – que
o melhor era não se prender –, e sabia que não podia transmitir
essa ideia a Anna.
670
importância ao que ele dizia. Tinha a sensação de que o seu
destino estava decidido.
671
porque… orgulhosa de… orgulhosa… – Não terminou de dizer
do que estava orgulhosa. Lágrimas de vergonha e desespero
sufocaram sua voz.
672
C A P Í T U L O XXIII
673
desencadearia uma tempestade tremenda, obrigaria os
membros da comissão a gritar, a cortar as palavras uns aos
outros, e obrigaria o presidente a exigir a manutenção da
ordem. Quando o informe terminou, Aleksiei Aleksándrovitch
anunciou, com sua voz fina e baixa, que tinha a comunicar
algumas considerações acerca da organização das etnias não
russas. As atenções se voltaram para ele. Aleksiei
Aleksándrovitch pigarreou e, sem olhar para o seu adversário,
mas tendo escolhido, como sempre fazia ao pronunciar um
discurso, o rosto da primeira pessoa sentada à sua frente –
um velhinho miúdo e pacífico, que jamais defendia qualquer
ponto de vista na comissão –, passou a expor suas
considerações. Quando o assunto chegou à lei orgânica e
fundamental, o seu adversário levantou-se de um salto e
começou a protestar. Striémov, também membro da comissão
e também atingido em seu ponto fraco, passou a justificar- se
– e a reunião tornou-se um tumulto generalizado; mas
Aleksiei Aleksándrovitch triunfou e a sua proposta foi bem
recebida; nomearam-se três novas comissões e no dia seguinte,
num conhecido círculo de Petersburgo, só se falava daquela
reunião. O sucesso de Aleksiei Aleksándrovitch foi até maior
do que ele esperava.
674
notícia dos rumores que haviam chegado até ele sobre o que se
passara na comissão.
675
Percorreu a sala e, resoluta, foi ao encontro dele. Quando
entrou no escritório do marido, ele estava com o uniforme de
funcionário público, obviamente preparado para sair, sentado
a uma mesinha sobre a qual apoiava os cotovelos, e olhava
para a frente, desalentado. Anna o viu antes que ele a visse e
compreendeu que pensava nela.
676
Ao ver que Aleksiei Aleksándrovitch não tinha forças para
começar a falar, ela mesma tomou a iniciativa.
passou a falar com voz ríspida e aguda –, repito agora que não
tenho obrigação de saber disso. Eu o ignoro. Nem todas as
esposas são tão bondosas como a senhora para se apressarem
a transmitir aos maridos notícias tão agradáveis. – Enfatizou
em especial a palavra “agradáveis”. – Eu o ignoro enquanto a
sociedade não souber do caso, enquanto o meu nome não for
desonrado. E por isso previno a senhora de que nossas relações
devem permanecer tal como sempre foram e que, só no caso
de a senhora se comprometer, terei de tomar medidas para
defender minha honra.
677
– Mas nossas relações não podem permanecer como
sempre foram – começou a falar Anna, com voz tímida e
olhando para ele, assustada.
678
– Quero não encontrar aqui esse homem e que a senhora
se comporte de modo que nem a sociedade nem a criadagem
possam incriminá-la… quero que a senhora não o veja. Não é
muito, me parece. Em troca, a senhora desfrutará os direitos de
uma mulher honrada, sem ter de cumprir os seus deveres. Eis
tudo o que tenho a dizer à senhora. Agora, está na hora de eu ir
para o trabalho. Não virei almoçar em casa.
679
C A P Í T U L O XXIV
680
se o trabalho fosse feito apenas pelo próprio Liévin, ou por ele
junto com seus companheiros, gente solidária a ele. Mas agora
Liévin percebia claramente (e seu trabalho no livro sobre
agronomia, no qual o elemento principal da atividade
agrícola devia ser o trabalhador, o ajudou bastante, no caso) –
percebia agora claramente que a propriedade por ele gerida
não passava de uma luta brutal e tenaz entre ele e os
trabalhadores, em que, de um lado, o lado de Liévin, havia uma
constante e ferrenha aspiração de reformar tudo segundo um
modelo considerado melhor e, do outro lado, havia a ordem
natural das coisas. E percebia que, em face da maior força de
tensão do seu lado e da ausência de empenho, e até de
propósito, do lado oposto, o único resultado de tal luta seria
que a propriedade não traria satisfação a ninguém e as
ótimas ferramentas, o ótimo gado e a ótima terra se
estragariam de um modo totalmente infrutífero. Mais
importante ainda – a energia consagrada a essa empresa
não só se perdera inutilmente como também, agora, quando
o sentido da sua propriedade se desvelara aos seus olhos,
Liévin não podia deixar de se dar conta de que o objetivo da
sua energia era, em si mesmo, uma indignidade. Em que
consistia, em essência, essa luta? Liévin defendia cada
pequena moeda do seu patrimônio (e não podia deixar de fazê-
lo, porque bastava relaxar a energia para logo ficar sem
dinheiro para pagar aos trabalhadores), e eles por sua vez
lutavam apenas para trabalhar com calma e com satisfação,
ou seja, do modo como estavam habituados. Segundo os
681
interesses de Liévin, cada trabalhador devia trabalhar o mais
possível, além de não esquecer de empenhar-se em não
danificar as limpadoras de grão, os ancinhos puxados por
cavalos, as debulhadoras, e devia pensar bastante no que
estivesse fazendo; o trabalhador, por seu lado, queria trabalhar
da maneira mais agradável possível, com repouso e, acima de
tudo, despreocupado, distraído e sem ter de pensar. Nesse
verão, Liévin percebia isso a cada passo. Mandava ceifar trevo
para forragem, escolhendo as terras ruins, com relva e absinto
crescidos em
682
trigo, porque nenhum camponês queria trabalhar de vigia
noturno e, apesar de uma ordem expressa para não agirem
assim, os camponeses se alternaram numa guarda noturna e
Vanka, que havia trabalhado o dia inteiro, adormeceu,
arrependeu-se da sua falta e disse: “O patrão manda”. Três dos
melhores bezerros morreram porque os soltaram no campo de
trevo sem antes lhes terem dado de beber e depois não
quiseram de maneira alguma acreditar que os bezerros tinham
inchado por causa do trevo e, para se consolar, contavam
como um proprietário vizinho havia perdido cento e doze
cabeças de gado em três dias. Tudo isso ocorria não porque
alguém desejasse o mal para Liévin ou para a sua propriedade;
ao contrário, ele sabia que o estimavam, que o consideravam
um patrão simples (o que era um alto elogio); tudo isso ocorria
apenas porque desejavam trabalhar com alegria e
despreocupação, ao passo que os interesses de Liévin eram,
para eles, não só distantes e incompreensíveis como também
fatalmente contrários aos seus mais justos interesses. Já havia
muito tempo que Liévin se sentia descontente a respeito da
sua relação com a propriedade. Percebia que seu barco
fazia água, mas não encontrava e nem mesmo procurava as
fendas, talvez com o intuito de enganar a si mesmo. Mas agora
não podia mais se enganar. A propriedade que geria se
tornara não só sem interesse como também abominável, para
ele, e Liévin não conseguia mais dedicar-se a ela.
683
Vinha somar-se a isso a presença de Kitty, a trinta verstas dali,
a quem ele queria ver, mas não podia. Dária Aleksándrovna
Oblónskaia, quando estiveram juntos, convidara Liévin para
voltar lá: voltar a fim de renovar a proposta de casamento à
sua irmã, que, como ela dera a entender, agora o aceitaria.
O próprio Liévin, depois de ver Kitty Cherbátskaia,
compreendeu que seu amor não se extinguira; mas não podia
ir à casa dos Oblónski, sabendo que ela estava lá. O fato de
Liévin ter feito a proposta e ter sido rejeitado erguia entre ele e
ela uma barreira intransponível. “Não posso pedir-lhe que seja
minha esposa só porque ela não pôde ser esposa do homem
que ela desejava”, dizia para si. Pensar nisso o tornava frio e
hostil com relação a Kitty. “Não terei forças para falar com ela
sem
684
Dária Aleksándrovna enviou-lhe um bilhete, pedindo uma sela
de senhoras, para Kitty. “Disseram-me que o senhor possui uma
sela”, escreveu ela. “Espero que o senhor traga pessoalmente.”
Aquilo era mais do que ele podia suportar. Como uma mulher
inteligente, delicada, podia humilhar assim a própria irmã?
Liévin escreveu dez bilhetes, rasgou todos e mandou a sela sem
nenhuma resposta. Era impossível responder que iria, porque
não podia ir; responder que não podia ir porque algo o
impedia ou porque estava de partida seria pior ainda. Enviou
a sela sem nenhuma resposta, com a consciência de que fazia
algo vergonhoso, mas no dia seguinte, depois de transferir
para o administrador todas as obrigações da propriedade, que
agora lhe causava aversão, partiu rumo a um distrito distante,
para a casa de um amigo chamado Sviájski, em cujos arredores
havia ótimos pântanos para caçar narcejas, o qual lhe
escrevera pouco antes, pedindo que cumprisse a antiga
promessa de ir visitá-lo. Os pântanos de narcejas do distrito
de Suróvski já atraíam Liévin havia muito tempo, mas ele
sempre adiava a viagem, em razão dos afazeres da
propriedade. Agora estava contente de afastar-se da
vizinhança dos Cherbátski e, acima de tudo, da sua
propriedade, ainda mais para caçar, a atividade que melhor se
prestava para consolar todas as suas amarguras.
685
C A P Í T U L O XXV
686
banco e duas cadeiras. Na entrada, havia um pequeno guarda-
louça. As venezianas estavam fechadas, havia poucas moscas
e o ambiente era tão limpo que Liévin, com receio de Laska
sujar o chão, depois de ter corrido pela estrada e se banhado
em poças, apontou para ela um lugar num canto junto à porta.
Depois de examinar a sala, Liévin saiu para o pátio dos
fundos. A decente mocinha de galochas, balançando baldes
vazios numa canga, desceu ligeiro na sua frente a fim de pegar
água no poço.
687
– Foram arar as batatas. Também temos umas terrinhas. Ei,
Fedot, não solte esse cavalo capão, prenda no cepo e vamos
atrelar um outro.
688
do vizinho. Uma pequena parte da terra, a pior, ele alugava, e
umas quarenta diessiatinas de campo ele mesmo lavrava, com
a sua família e dois trabalhadores assalariados. O velho se
queixava dos negócios, que corriam mal. Mas Liévin
compreendeu que ele se queixava apenas por modéstia,
enquanto sua propriedade prosperava. Se as coisas andassem
mal, não teria comprado a terra a cento e cinco rublos, não
teria casado três filhos e um sobrinho, não teria reconstruído
sua casa duas vezes, depois de incêndios, e feito uma casa
melhor a cada obra. Apesar dos lamentos do velho, era
evidente que sentia um justo orgulho da sua abastança, dos
filhos, do sobrinho, das noras, dos cavalos, das vacas e em
especial do fato de toda aquela propriedade se manter em
boas condições. Pela conversa com o velho, Liévin soube que
ele não era contrário a inovações.
689
impossível. Nas terras do mujique, fazia-se aquilo e o velho não
se cansava de elogiar aquela forragem.
690
de pé, serviam. O filho jovem e saudável, com a boca cheia de
mingau, contava algo engraçado, todos riam e a mulher de
galochas, que vertia sopa de repolho numa tigela, ria com uma
alegria
especial.
691
C A P Í T U L O XXVI
692
assuntos do ziemstvo, era para ele uma pessoa extremamente
interessante.
693
vontade do que Sviájski… Não acreditava nem em Deus nem
no Diabo, mas se preocupava muito com a questão da
melhoria das condições de vida do clero e com a redução das
suas receitas, além disso se empenhava de modo especial para
que a igreja permanecesse em sua aldeia.
694
certeza, jamais fizera conscientemente algo mau e nem poderia
fazê-lo.
695
trabalhadores assalariados e tudo o mais que, Liévin sabia, era
de bom-tom considerar como algo muito rasteiro, mas que
agora lhe parecia o único assunto importante. “Talvez não
fosse o mais importante no tempo da servidão, nem seria
importante na Inglaterra. Em ambos os casos, as condições
estavam perfeitamente estabelecidas; mas entre nós, na
Rússia, agora, quando tudo se pôs em desordem e apenas se
esboça uma organização, a única questão importante é como
essas condições irão se configurar”, pensava Liévin.
696
loura e de baixa estatura, toda radiante, entre sorrisos e
covinhas. Liévin tentava alcançar, através dela, a solução do
enigma crucial que o seu marido representava para ele; mas
Liévin não tinha plena liberdade de pensamento, porque se
sentia terrivelmente embaraçado. O motivo de sentir-se assim
era ter a cunhada de Sviájski à sua frente, com um vestido, na
opinião de Liévin, escolhido especialmente para ele, com um
profundo decote em forma de trapézio sobre o peito branco; o
decote quadrangular, apesar de o peito ser muito branco, ou
especialmente por ser ela muito branca, privava Liévin da
sua liberdade de pensamento. Imaginava, na certa
erroneamente, que o decote fora cortado em sua homenagem,
não se julgava no direito de olhar para ele e tentava não
olhar; mas sentia-se culpado pelo simples fato de aquele
decote ter sido cortado. Liévin tinha a impressão de que
enganava alguém, de que tinha o dever de explicar alguma
coisa, mas era absolutamente impossível explicá-lo, e por
isso a todo instante se ruborizava, sentia-se inquieto e
embaraçado. Seu embaraço contagiou a bela cunhada. No
entanto, a anfitriã, pelo visto, não o percebeu e, de maneira
intencional, a envolvia na conversa.
697
para cuidar e possui o dom de se interessar por tudo. Ah, o
senhor não conheceu a nossa escola?
698
posição em que estava não podia pronunciar tal réplica, e
ouvia, não sem prazer, o cômico discurso do senhor de terras.
699
C A P Í T U L O XXVII
700
E o juiz de paz? Absolveu. Só quem os segura é o juiz da
comarca e o sargento-ajudante. Este os escorraça à moda
antiga. Se não fosse assim, seria melhor largar tudo! Correr
mundo afora!
701
Petróvitch, dirigindo-se de novo para o proprietário de bigode
grisalho.
702
– A questão, veja bem, reside em que todo progresso só
se realiza por meio da autoridade – disse, sem dúvida no
intuito de mostrar que não era alheio à instrução. – Veja as
reformas de Pedro, de Catarina, de Alexandre. Veja a história
da Europa. Mais ainda, o progresso na agricultura. Veja a
batata, que foi introduzida aqui à força. Veja o arado,
também, pois nem sempre araram a terra. Também foi
introduzido, talvez, nos tempos feudais, mas seguramente foi
introduzido à força. Agora, em nosso tempo, nós, senhores de
terra, sob o regime do trabalho servil, geríamos nossas
propriedades usando aperfeiçoamentos; máquinas de secar,
máquinas de limpar os grãos, o transporte de estrume em
carroças, diversos instrumentos, tudo nós introduzimos com
nossa autoridade e, no início, os mujiques se opuseram, mas
depois nos imitaram. Agora, com a servidão abolida,
retiraram de nós a nossa autoridade, e a nossa agricultura,
que se havia elevado a um alto nível, está fadada a decair ao
nível mais baixo, a uma condição primitiva. Assim, eu entendo…
703
– Com trabalhadores assalariados.
704
– Não acho – retrucou Sviájski, já com seriedade. – Só vejo
que não sabemos gerir nossas terras e que, ao contrário, o nível
da nossa agricultura no tempo do regime servil, em vez de
muito alto, era, isto sim, extremamente baixo. Não temos nem
máquinas, nem bons animais de tração, nem uma autêntica
administração, nem contar direito nós sabemos. Pergunte a um
senhor de terras. Ele nem sabe o que lhe é vantajoso e o que
lhe é desvantajoso.
705
– Não concordo em que seja necessário ou possível elevar
mais ainda o nível da agricultura – objetou Liévin. – Eu me
ocupo com isso, e tenho recursos, mas não posso fazer nada.
Não sei que benefício trazem os bancos. No meu caso, pelo
menos, todo dinheiro que gastei na agricultura só me trouxe
prejuízo: os animais, prejuízo; as máquinas, prejuízo.
706
constatara um prejuízo de mais de três mil rublos. Ela não se
lembrava de quanto, exatamente, mas parecia que o alemão
havia contabilizado até a quarta parte de um copeque.
707
encerrada, exatamente no ponto em que, para Liévin, ela
apenas começava.
708
– Como se poderiam encontrar condições novas? –
perguntou Sviájski, de novo se aproximando dos debatedores,
depois de comer uma coalhada e fumar um
709
– Pois sim: lançaremos nossos chapéus para o alto,
descobrimos o que a Europa tanto procura! Sei muito bem
disso tudo, mas, queira perdoar, o senhor acaso tem ideia do
que foi feito na Europa a respeito da organização dos
trabalhadores?
– Desculpe…
710
C A P Í T U L O XXVIII
711
balcão com gavetas subdivididas, por etiquetas douradas, em
diversos tipos de assunto.
– Muito bem, mas e daí? – Só que, daí, não havia nada. Era
apenas interessante que aquilo tivesse “ocorrido”. Sviájski não
explicou e não achou necessário explicar por que aquilo era
interessante.
712
– Sim, mas o que disse aquele senhor de terras exaltado me
interessou muito
– Uma fábrica…
713
– Mas como educar o povo?
714
criança desandou a gritar e aí levei para curar”. Perguntei como
a velha curava. “Ela pôs a criança no poleiro da galinha e
repetiu umas palavras.”
715
ajudar será por meio de uma organização econômica em que o
povo enriqueça, tenha mais lazer, e aí eles terão também
escolas.
716
multidão cujo nome é legião, queria guiar a opinião pública
com pensamentos alheios a si mesmo; aquele exasperado
senhor de terras, absolutamente correto em seus raciocínios,
extraídos da vida, mas errado na sua exasperação contra uma
classe inteira, e logo contra a melhor classe social da Rússia; a
própria insatisfação de Liévin com as suas atividades e a
confusa esperança de encontrar o remédio para tudo isso –
tudo confluía para um sentimento de inquietação interior e
para a espera de uma solução iminente.
717
seus costumes, como nas terras do velho mujique, na
estrada. A insatisfação geral, sua e nossa, com a gestão da
propriedade demonstra que os culpados somos nós ou os
trabalhadores. Há muito tempo impomos a nossa maneira, a
maneira europeia, sem levar em conta as peculiaridades da
força de trabalho. Tentemos reconhecê-la não como uma força
de trabalho ideal, mas sim como o mujique russo, com seus
instintos, e de acordo com isso organizemos a nossa
propriedade rural. Imagine”, eu deveria ter dito a ele, “que a
propriedade do senhor fosse gerida como a do velho
mujique, que o senhor tivesse encontrado um meio de
interessar os trabalhadores pelo êxito do trabalho e tivesse
encontrado o grau médio de aperfeiçoamentos que eles
conseguem aceitar, e então o senhor, sem esgotar o solo,
ganharia em dobro, em triplo, ao contrário do que ocorria
antes. Divida meio a meio, entregue metade à força de
trabalho; a diferença que ficará para o senhor será maior, e a
força de trabalho também ganhará mais. Porém, para fazer
isso, é preciso reduzir o nível da produção e interessar os
trabalhadores pelo êxito do negócio. Como fazer isso é uma
questão de pormenor, mas não há dúvida de que é possível”.
718
bem cedo. Além disso, a cunhada com o vestido decotado
produzira nele um sentimento semelhante à vergonha e ao
arrependimento por alguma conduta absolutamente
condenável. O mais importante é que precisava partir sem
demora: não podia perder tempo, a fim de apresentar aos
mujiques seu novo projeto antes da semeadura de inverno,
para já semearem segundo as novas bases. Liévin resolveu
transformar radicalmente a forma antiga de gerir a
propriedade.
719
C A P Í T U L O XXIX
720
Quando começou a conversar com os mujiques sobre isso e
lhes fez a proposta de arrendar as terras em condições novas,
Liévin também esbarrou em uma dificuldade decisiva: eles
ficavam de tal modo ocupados com o trabalho ao longo do
dia que não tinham tempo de ponderar nas vantagens e
desvantagens da empresa.
721
agricultura ou usar novos implementos agrícolas. Eles
concordavam em que o arado novo lavrava melhor, em que o
escarificador trabalhava mais depressa, mas encontravam mil
razões para não poderem utilizar nem um nem outro e,
embora Liévin estivesse convencido de que era preciso baixar o
nível da produção, lamentava ter de renunciar a
aperfeiçoamentos cuja vantagem era tão flagrante. Mas,
apesar de todas essas dificuldades, ele alcançou seu objetivo e,
no outono, o seu sistema estava em andamento, ou pelo menos
assim lhe parecia.
722
funcionava à maneira antiga, mas aqueles três setores eram
o início de uma nova organização e ocupavam Liévin
inteiramente.
723
que parecia, propositalmente deturpado, as condições sob as
quais a terra lhe fora cedida.
724
mais iria à casa dos Oblónski. Ele se comportara da mesma
forma com os Sviájski, ao partir sem despedir-se. Mas
também nunca mais iria à casa deles. Agora, para Liévin, isso
era indiferente. A questão da nova organização da sua
propriedade o entusiasmava como nada antes em toda a sua
vida. Atirou-se à leitura dos livros que Sviájski lhe dera e, depois
de encomendar obras que não possuía, leu livros de economia
política e de tendência socialista sobre esse tema e, como já
esperava, nada encontrou a respeito da experiência que
empreendia. Nos livros de economia política, em Mill, por
exemplo, que Liévin estudara no início com grande ardor,
esperando a todo minuto encontrar a solução dos problemas
que o absorviam, encontrou leis extraídas da situação da
agricultura europeia; mas não compreendia de maneira
alguma por que tais leis, inaplicáveis à Rússia, tinham de ser
universais. O mesmo via nos livros socialistas: ou eram belas
fantasias, conquanto inaplicáveis, pelas quais se entusiasmara
quando estudante, ou eram reformas, aprimoramentos das
condições em que a Europa estava organizada, condições com
as quais a agricultura na Rússia nada tinha em comum. A
economia política dizia que as leis pelas quais a riqueza da
Europa se desenvolvera e se desenvolvia eram leis universais e
evidentes. A doutrina socialista dizia que o desenvolvimento por
tais leis levava à perdição. E nem uma nem outra lhe davam
uma resposta, nem sequer a mais vaga sugestão daquilo que
725
Liévin, todos os mujiques russos e os proprietários deviam fazer
com seus milhões de braços e de diessiatinas de terras, a fim
de se tornarem mais proveitosos para o bem-estar geral.
726
não fossem ocupadas, e considerava que tais métodos não
eram, em absoluto, tão ruins como se costumava pensar. E
Liévin queria demonstrar isso teoricamente,
727
C A P Í T U L O XXX
728
Na manhã do dia 30 de setembro, o sol apareceu e, na
esperança de o tempo firmar, Liévin começou, de forma
resoluta, os preparativos para a viagem.
729
obviamente aprovava o plano de Liévin e propôs, ele mesmo,
ingressar no regime de parceria na comercialização do gado.
Sim, esse objetivo é algo por que vale a pena trabalhar. E o fato
de ter sido eu, Kóstia Liévin… o mesmo que foi a um baile de
gravata preta, o mesmo que a Cherbátskaia rejeitou e que
julgava a si mesmo tão insignificante e digno de pena, isso não
prova coisa alguma. Estou convencido de que Franklin se sentia
igualmente insignificante e inseguro quando recordava tudo o
que se passava consigo. Isso não significa nada. E certamente
ele também tinha a sua Agáfia Mikháilovna, à qual confiava
seus planos”.
730
Com tais pensamentos, Liévin chegou a sua casa quando já
estava escuro. O administrador, que fora ao encontro do
comerciante, já havia voltado,
731
tinham assuntos a tratar com ele, Liévin foi para o escritório e
sentou-se resolvido a trabalhar. Laska estava deitada embaixo
da mesa; Agáfia Mikháilovna estava sentada em seu lugar,
costurando uma meia.
732
discutia e discordava das explicações dela. Mas dessa vez
Agáfia Mikháilovna compreendeu de um modo muito diferente
o que Liévin dissera.
733
ruído das agulhas de Agáfia Mikháilovna e, ao lembrar aquilo
que não queria lembrar, franzia de novo as sobrancelhas.
734
C A P Í T U L O XXXI
735
irmão Nikolai tivesse parecido antes, com sua magreza e seu
aspecto doentio, agora havia emagrecido mais ainda e
definhado ainda mais. Era um esqueleto coberto de pele.
– Aqui estou, vim para a sua casa – disse Nikolai com voz
surda, sem desviar os olhos, nem por um segundo, do rosto do
irmão. – Há muito tempo que eu pretendia vir, mas estava
sempre me sentindo mal. Agora melhorei bastante – disse,
esfregando a barba com a grande palma das mãos magras.
736
sua estatura, os movimentos, como de hábito, eram ligeiros e
impetuosos. Liévin o conduziu ao
seu escritório.
737
aborrecimentos. Não podia contar que mandara Mária
Nikoláievna embora porque fazia o chá fraco e, acima de tudo,
porque o tratava como a um doente. – Além do mais, agora
quero mudar completamente a minha vida. Claro, fiz bobagens,
como todos, mas a riqueza é a última coisa que importa e eu
não me arrependo. Basta que haja saúde e, graças a Deus,
minha saúde está recuperada.
738
sua falta de naturalidade tornavam-no ainda mais artificial.
Tinha vontade de chorar pelo irmão querido, que ia morrer, mas
era obrigado a ouvir e a dar continuidade à conversa sobre
como ele levaria a vida.
739
não só o ignorava, não só jamais pensara no assunto, como
não era capaz de pensar e nem mesmo se atrevia a isso.
“Eu trabalho, desejo fazer uma coisa, mas esqueci que tudo
termina, que existe a morte.”
740
Bogdánitch conseguia deter a borbulhante e exuberante
consciência da alegria de viver. “E agora, esse peito vazio,
curvado… e eu, que não sei o que será de mim, nem para que
vou viver…”
– Uh! Uh! Ah, Diabos! Por que essa agitação? Por que você
não dorme? – exclamou a voz do irmão.
suor, tem?
“Pois bem, ele vai morrer, sim, vai morrer na primavera, mas
como ajudá-lo?
O que posso dizer a ele? O que sei sobre isso? Até esqueci que
isso existe.”
741
C A P Í T U L O XXXII
742
No terceiro dia, Nikolai induziu o irmão a falar de novo sobre
seus planos e
743
evidência. Talvez seja uma utopia. Mas vamos admitir que se
possa fazer tabula rasa de todo o passado: não há
propriedade, não há família, e então vamos organizar o
trabalho. Mas você não tem nada…
744
– Não quer organizar nada; simplesmente, tal como fez
durante toda a vida, quer mostrar-se original, demonstrar que
você não explora simplesmente os mujiques, mas que tem uma
ideia.
745
– Apesar de tudo, não se lembre de mim com rancor, Kóstia!
– E sua voz tremeu.
746
Liévin dizia o que de fato pensava, nos últimos tempos. Em
tudo, via apenas a morte ou o avanço rumo à morte. Mas o
projeto que empreendera o interessava ainda mais. Era preciso,
de algum modo, viver sua vida, enquanto a morte não vinha.
Para ele, a escuridão recobria tudo; mas, graças precisamente
a essa escuridão, Liévin sentia que o único fio condutor através
das trevas era o seu projeto e ele se agarrava e se aferrava a
isso com suas últimas forças.
PARTE IV
747
CAPÍTULOI
748
Em meados do inverno, Vrónski passou uma semana muito
enfadonha. Foi designado para acompanhar um príncipe
estrangeiro em visita a Petersburgo e teve de mostrar-lhe os
lugares notáveis da capital. Vrónski tinha um aspecto
imponente, além disso possuía a arte de portar-se de forma
digna e respeitável e estava habituado a tratar com tais
pessoas; por isso foi designado para acompanhar o príncipe.
Mas a obrigação lhe pareceu muito penosa. O príncipe não
queria deixar de ver nada do que, mais tarde, lhe perguntariam
em sua terra a respeito da Rússia; por sua vez, queria também
desfrutar, o mais possível, os divertimentos dos russos. Vrónski
viu-se obrigado a guiá-lo em ambos os sentidos. Pela manhã,
iam observar os pontos notáveis; à noite, tomavam parte dos
divertimentos nacionais. O príncipe gozava de uma saúde
incomum, mesmo entre os príncipes; graças à ginástica e a
bons cuidados com o corpo, chegara a possuir tamanha
energia que, apesar do excesso com que se entregava aos
divertimentos, mantinha o frescor, como um grande e lustroso
pepino verde holandês. O príncipe viajava muito e achava que
uma das principais vantagens da rapidez das atuais vias de
comunicação consistia em tornar acessíveis os divertimentos
das várias nações. Esteve na Espanha e lá participou de
serenatas, travou relações com uma espanhola que tocava
bandolim. Na Suíça, matou uma camurça. Na Inglaterra,
galopou de casaca vermelha por cima de sebes e, em razão
de uma aposta, matou duzentos faisões. Na Turquia, esteve
749
num harém, na Índia, montou num elefante, e agora, na Rússia,
queria degustar todos os
750
tempo todo a necessidade de não afrouxar, nem por um
segundo, o tom de severo respeito oficial, para não se ofender.
O príncipe tratava de maneira desdenhosa aquelas mesmas
pessoas que, para surpresa de Vrónski, faziam das tripas
coração a fim lhe oferecer os divertimentos russos. Mais de
uma vez, seus juízos sobre as mulheres russas, que ele desejava
estudar, deixaram Vrónski vermelho de indignação. O motivo
que tornava o príncipe especialmente irritante para Vrónski era
o fato de ver nele, a contragosto, uma imagem de si mesmo. E
o que via nesse espelho não lisonjeava sua vaidade. Era um
homem muito tolo, muito cheio de si, muito saudável, muito
asseado, e nada mais. Era um gentleman – é verdade, e
Vrónski não podia negá-lo. Com os superiores, portava-se de
modo correto e sem adulação; ao tratar com seus pares,
mostrava desembaraço e simplicidade; com os subalternos,
era desdenhosamente benévolo. O próprio Vrónski era assim e
considerava isso um grande mérito; mas, com relação ao
príncipe, estava em posição subalterna e a benevolência
desdenhosa que o príncipe lhe dirigia o indignava.
751
C A P Í T U L O II
infeliz. Não posso sair, mas não posso ficar mais tempo sem ver
o senhor. Venha à noite. Às sete horas, Aleksiei Aleksándrovitch
irá a um conselho e lá ficará até às dez”. Depois de refletir por
um minuto sobre a estranheza do fato de Anna convidá-lo
explicitamente para ir visitá-la, apesar da exigência do
marido de não o receber em sua casa, Vrónski decidiu ir.
752
era tão apavorante?” Lembrou-se vivamente do mujique, mais
uma vez, e das incompreensíveis palavras francesas que ele
pronunciou, e o horror, com um toque frio, percorreu suas
costas.
753
Aleksándrovitch, depois de mastigar de boca vazia, ergueu a
mão na direção do chapéu e seguiu adiante. Vrónski viu como
ele, sem olhar para trás, sentou-se na carruagem, recebeu pela
janela um binóculo e a manta, e desapareceu. Vrónski entrou na
antessala. Suas sobrancelhas estavam franzidas e os olhos
cintilavam com um brilho maligno e orgulhoso.
754
– Não! – gritou ela ao vê-lo e, ao primeiro som de sua voz,
as lágrimas tomaram seus olhos. – Não, se isto continuar assim,
vai acontecer alguma coisa, e muito, muito em breve!
755
C A P Í T U L O III
– Ele foi, voltou e saiu de novo, não sei para onde. Mas não
importa. Não falemos disso. Onde você esteve? Com o príncipe
o tempo todo?
756
– Já larguei essa vida há muito tempo – respondeu,
surpreso com a mudança de expressão no rosto de Anna e
tentando penetrar no seu significado. – Reconheço – disse, com
um sorriso que deixou à mostra seus dentes brancos e cerrados
– que, nessa semana, eu me senti como que diante de um
espelho, ao presenciar essa vida, e não foi nada agradável
para mim.
– Hoje pela manhã Lisa veio me ver: elas já não têm medo
de me visitar, apesar da condessa Lídia Ivánovna –
acrescentou Anna. – E me contou a respeito da noitada de
orgia de vocês. Que repugnante!
– Eu queria dizer…
757
– Anna! Você está me ofendendo. Acaso não acredita em
mim? Acaso não lhe disse que não tenho pensamentos que não
revele a você?
758
falava da atriz, havia uma expressão cruel que deformava suas
feições. Vrónski a fitava como um homem observa uma flor
murcha, que ele mesmo colheu, e na qual mal reconhece a
beleza que o levou a arrancá-la da terra e arruiná-la. E, apesar
de sentir que, quando seu amor tinha sido mais forte, ele
poderia, se o desejasse com firmeza, ter extirpado esse amor
do coração, agora quando, como naquele instante, lhe parecia
não sentir amor por Anna, sabia que seus laços com ela não
podiam ser rompidos.
759
– É uma cultura completamente estranha, a dessas pessoas.
Parece que ele é culto só para ter o direito de desprezar a
cultura, como desprezam tudo, exceto os prazeres animais.
760
– Mas e então? Onde encontrou Aleksiei Aleksándrovitch?
– ressoou de súbito a voz de Anna, artificial e estridente.
761
compreende, nada sente. Poderia um homem com algum
sentimento morar na mesma casa com a sua esposa
criminosa? Poderia sequer falar com ela? Tratá-la por “você”?
Vrónski prosseguiu.
762
O brilho zombeteiro apagou-se dos olhos dela, mas um outro
sorriso – a consciência de algo que ele ignorava e uma tristeza
serena – alterou a expressão anterior de Anna.
763
disso, sei com certeza. Vou morrer, e fico muito feliz de morrer
e, assim, libertar a mim e a vocês.
– Não, é verdade.
764
Mas Anna não admitia ser interrompida. O que dizia era
importante demais para ela.
765
mudança. Anna sentiu dentro de si o movimento de uma vida
nova.
766
C A P Í T U L O IV
767
trabalho que, nos últimos tempos, ele andava num estado de
extrema irritação. Passou a noite inteira sem dormir e sua
cólera, que aumentava numa espécie de progressão colossal,
alcançou pela manhã seu ponto máximo. Vestiu-se às pressas
e, como se levasse na mão uma taça cheia de cólera e temesse
derramá-la, com receio de, junto com a cólera, perder a energia
necessária para a conversa que travaria com a esposa, entrou
nos aposentos de Anna assim que soube que ela já havia
levantado.
768
depois de empurrar com rudeza a mão de Anna, apoderou-se
ligeiro de uma pasta na qual sabia que ela guardava seus
documentos mais necessários. Anna quis arrancar-lhe a pasta,
mas ele empurrou a esposa para trás.
769
– A senhora chama de crueldade o fato de o marido
conceder liberdade à esposa e lhe dar o abrigo de um nome
honrado, sob a condição apenas de observar a decência. Isso é
crueldade?
Anna baixou a cabeça. Ela não só não disse o que tinha dito no
dia anterior ao amante – que ele era o seu marido e que o
marido era supérfluo – como nem pensou tal coisa. Anna sentia
toda a justeza das palavras do marido e limitou-se a
770
– Para que digo isso? Para quê? – prosseguiu ele, com a
mesma cólera. – Para que a senhora saiba que, como não
cumpriu a minha vontade no tocante à observação da
decência, tomarei medidas para que esta situação tenha um
fim.
771
Baixou a cabeça e ficou em silêncio. Ele também se manteve
calado por algum tempo e depois passou a falar com voz fria,
já menos estridente, acentuando a pronúncia de palavras
escolhidas, que não tinham nenhuma importância especial.
– Sim, perdi também o amor por meu filho porque a ele está
associada a minha repugnância pela senhora. Mesmo assim, eu
o levarei. Adeus!
772
E quis sair, mas agora ela o reteve.
773
CAPÍTULOV
774
– Então o senhor faça-me o obséquio de lhe entregar o meu
cartão – disse Aleksiei Aleksándrovitch, com dignidade, se
dando conta de que era necessário não se manter incógnito.
775
Era um homem pequeno, atarracado, calvo, de barba preta e
arruivada, sobrancelhas claras e longas e testa pronunciada.
Estava vestido como um noivo no casamento, da gravata e da
correntinha dupla do relógio até os sapatos de verniz. Tinha um
rosto inteligente, de camponês, mas a roupa era afetada e de
mau gosto.
776
Mas se o senhor desejar uma comprovação…
777
– O senhor deseja minha assistência para a efetivação do
divórcio?
778
E, ante o meneio afirmativo da cabeça de Aleksiei
Aleksándrovitch, ele prosseguiu, só de quando em quando
dirigindo um ligeiro olhar de passagem pelo rosto de Aleksiei
Aleksándrovitch, onde havia manchas vermelhas.
779
– Resta-nos o seguinte: adultério de um dos cônjuges e
identificação da parte culpada por concordância mútua e, na
ausência de tal concordância, identificação unilateral da culpa.
Devo dizer que este último caso raramente se verifica, na
prática – explicou o advogado e, dirigindo um olhar de
passagem para Aleksiei Aleksándrovitch, calou-se, como um
vendedor de pistolas que, depois de descrever as vantagens
de duas armas, espera a escolha do comprador. Mas Aleksiei
Aleksándrovitch se manteve em silêncio e, por isso, o advogado
prosseguiu: – O mais comum, simples e racional, a meu ver, é o
adultério reconhecido por concordância mútua. Eu não me
permitiria expressar-me de tal modo, ao falar com um homem
de pouca instrução – disse o advogado –, mas suponho que
entre nós isto esteja claro.
780
Agora Aleksiei Aleksándrovitch compreendeu inteiramente. Mas
tinha escrúpulos religiosos que tolhiam a execução de tais
medidas.
781
Enquanto voltava, capturou mais uma traça, sem ninguém
perceber. “Meus estofados de repes estarão uma beleza, no
verão!”, pensou, franzindo o rosto.
782
parou de agarrar traças, decidindo por fim que, no inverno
seguinte, teria de forrar os móveis com veludo, como no
escritório de Sigônin.
783
C A P Í T U L O VI
784
solução e não podem ter solução nem mesmo em séculos,
ganharam soluções claras e incontestáveis. E a resolução foi
favorável ao parecer de Aleksiei Aleksándrovitch. Mas Striémov,
785
que haviam acreditado na comissão de revisão dirigida por
Aleksiei Aleksándrovitch, que apresentara os relatórios, e
disseram que os relatórios dessa comissão eram um disparate
e não passavam de papel rabiscado. Aleksiei Aleksándrovitch,
partidário daqueles que viam um perigo nessa atitude
revolucionária com relação aos documentos, continuou a
apoiar os dados elaborados pela comissão de revisão. Em
consequência, nas altas esferas e até na sociedade, tudo se
embaralhava e, apesar de a questão interessar extremamente
a todos, ninguém conseguia entender se de fato os povos não
russos viviam na miséria ou prosperavam. Por conta disso e, em
parte, por conta do desprezo que caíra sobre ele em razão da
infidelidade da esposa, a situação de Aleksiei Aleksándrovitch
tornou-se bastante precária. E, nessa situação, Aleksiei
Aleksándrovitch tomou uma decisão importante. Para surpresa
da comissão, ele comunicou que pediria autorização para ir em
pessoa ao local a fim de averiguar o problema. Obtida a
autorização, Aleksiei Aleksándrovitch dirigiu-se às províncias
distantes.
786
cavalos de posta quando todos sabem que em toda parte há
agora estradas de ferro?
787
mulher de chapéu de veludo e duas cabeças de criança, e
sorria e acenava com a mão para o cunhado. A senhora
sorria com um sorriso gentil e também acenou com a mão para
Aleksiei Aleksándrovitch. Era Dolly, com os filhos.
– Ora, mas que pecado não nos avisar! Faz tempo que
chegou? Ontem mesmo estive no Dussot e vi “Kariênin” no
quadro de hóspedes, mas nem me passou pela cabeça que era
você! – disse Stiepan Arcáditch, enfiando a cabeça na janela da
carruagem. – Se eu soubesse, teria entrado. Como estou
contente de ver você! – exclamou, batendo com os pés um no
outro para sacudir deles a neve. – Que pecado não nos
comunicar a sua vinda! – repetiu.
– Vamos falar com a minha esposa, ela quer muito ver você.
788
– O que há, Aleksiei Aleksándrovitch, por que o senhor nos
evita dessa maneira? – perguntou Dolly, sorrindo.
Arcáditch o deteve.
789
Aleksiei Aleksándrovitch disse alguma coisa que Dolly não
conseguiu distinguir em meio ao barulho das carruagens que
passavam.
790
C A P Í T U L O VII
791
formidável, mas simples, e vinhos apropriados: isso quanto à
comida e à bebida. Quanto aos convidados, viriam Kitty e
Liévin e, para que isso não chamasse a atenção, viriam
também o cunhado e o jovem Cherbátski, e la pièce de
résistance dos convidados: Serguei Kóznichev e Aleksiei
Aleksándrovitch. Serguei Ivánovitch era filósofo e moscovita e
Aleksiei Aleksándrovitch, petersburguês e homem de ação;
também fora convidado o excêntrico e entusiasta Piestsov,
liberal, tagarela, musicista, historiador e um simpaticíssimo
jovem de cinquenta anos, que seria o molho ou a guarnição
para Kóznichev e Kariênin. Iria provocá-los e instigá-los.
792
Essa era uma das coisas desagradáveis. A outra circunstância
um pouco desagradável era que o novo chefe, como todos os
chefes novos, já gozava da reputação de um homem terrível,
que acordava às seis horas da manhã, trabalhava como um
cavalo e exigia que os subordinados trabalhassem da mesma
forma. Além disso, o novo chefe também gozava da reputação
de ser um urso na maneira de tratar as pessoas e, segundo os
boatos, era totalmente contrário à orientação adotada pelo
chefe anterior e, até então, acatada pelo próprio Stiepan
Arcáditch. No dia anterior, Stiepan Arcáditch comparecera ao
serviço de uniforme e o novo chefe se mostrou muito amável e
conversou com Oblónski como se fosse um velho conhecido;
por isso Stiepan Arcáditch considerava sua obrigação fazer-lhe
uma visita de sobrecasaca. A ideia de que o novo chefe poderia
não receber isso muito bem era a segunda circunstância
desagradável. Mas Stiepan Arcáditch sentia instintivamente
que tudo se arranjaria de forma esplêndida. “São todos gente,
também, são homens e pecadores, como nós: para que se
irritar e brigar?”, pensava, ao entrar no hotel.
793
– Perfeitamente, senhor – respondeu Vassíli, sorrindo. – Há
muito o senhor não nos dá a honra.
794
– Sim, conheço suas ideias sobre a organização dos
trabalhadores.
795
que vai morrer qualquer dia desses e não vai restar nada, tudo
se torna insignificante! Eu considero muito importantes as
796
– Ora, que cabeça a minha! Por isto estou aqui… Venha hoje
sem falta à minha casa para jantar. O seu irmão virá, e também
Kariênin, o meu cunhado.
– Ora, é claro.
797
C A P Í T U L O VIII
798
bem como ela, conduzir as delegações e lhes dar a orientação
correta. Feito isso, Aleksiei Aleksándrovitch escreveu a carta
para o advogado. Sem a menor hesitação, lhe transmitiu a
resolução de que devia agir como julgasse melhor. E anexou à
carta três bilhetes de Vrónski para Anna, encontrados na pasta
que ele tomara à força.
– Veja, olhe só, você está mentindo, ele está em seu quarto,
sim! – retrucou a voz de Stiepan Arcáditch ao lacaio, que não o
deixava passar e, despindo o casaco no caminho, Oblónski
799
entrou no quarto. – Ora, estou muito contente de encontrar
você! Eu tinha esperança de… – começou Stiepan Arcáditch,
alegremente.
800
Mas Aleksiei Aleksándrovitch nem teve tempo de concluir sua
frase quando Stiepan Arcáditch reagiu de um modo muito
diferente do que ele esperava.
– É isso mesmo.
801
– Por favor, eu compreendo – interrompeu Stiepan
Arcáditch. – Mas, é claro… Só uma coisa: não é preciso afobar-
se. Não é preciso, não é preciso afobar-se!
– Não sei. Por isso não fui à casa do senhor. Creio que
nossas relações precisam modificar-se.
802
respeito sincero – disse Stiepan Arcáditch, apertando-lhe a
mão. – Mesmo se as suas piores suposições forem corretas, eu
não pretendo e jamais pretenderei julgar nem um lado nem o
outro e não vejo por que nossas relações devam se modificar.
Mas agora, faça isto, vá conversar com a minha esposa.
– Não, por que você não viria? Pelo menos hoje, para
jantar? Minha mulher conta com você. Por favor, venha. E, o
mais importante, fale com ela. É uma mulher admirável. Pelo
amor de Deus, eu lhe imploro, de joelhos!
803
– Como não, ontem ele esteve na nossa repartição. Parece
conhecer esplendidamente o serviço e ser muito ativo.
804
– Acredite, me alegra muito, e espero que não se arrependa
– respondeu Stiepan Arcáditch, sorrindo.
805
C A P Í T U L O IX
806
vestido de gala cinzento e de seda, obviamente preocupada
com os filhos, que teriam de jantar sozinhos no quarto das
crianças, e com o marido, que ainda não chegara, não sabia
sem ele integrar devidamente todo aquele grupo. Todos
estavam sentados como as filhas de um pope quando fazem
uma visita (como dizia o velho príncipe), obviamente perplexos,
sem entender por que estavam ali, espremendo as palavras à
força, para não ficarem calados. O bondoso Turóvtsin,
obviamente, sentia-se deslocado, e o sorriso dos lábios grossos,
com que recebeu Stiepan Arcáditch, parecia dizer: “Puxa, meu
amigo, você me trouxe para o meio desses crânios! Vamos
tomar uma bebida e vamos ao Château des Fleurs, isso sim é
mais do meu estilo”. O velho príncipe estava sentado sem falar
nada, olhando de esguelha para Kariênin, com seus olhinhos
cintilantes, e Stiepan Arcáditch compreendeu que ele já havia
inventado algum dito espirituoso para aplicar àquele homem
de Estado que, como um esturjão, era servido aos convidados.
Kitty olhava para a porta, reunindo forças para não se
ruborizar à chegada de Konstantin Liévin. O jovem
807
ao comparecer em tal sociedade, se desincumbia de uma
obrigação penosa. Era ele o principal culpado pelo frio que
gelara todos os convidados, até a chegada de Stiepan
Arcáditch.
– Não me atrasei?
808
– E por acaso você consegue chegar na hora? – exclamou
Stiepan Arcáditch, tomando-o pelo braço.
809
verdade o que Dária Aleksándrovna disse? Por que não haveria
de ser verdade?”, pensava Liévin.
810
– A senhora não me viu, mas eu vi a senhora – disse Liévin,
com um radiante sorriso de felicidade. – Vi a senhora quando
viajava da estrada de ferro para Ierguchovo.
811
igual número de tipos de queijo, alguns com pazinhas de prata
e outros sem pazinhas, caviares, arenques,
812
eu e meu irmão nos portamos pior do que todos. Mas os
senhores, cavalheiros casados, sobretudo o senhor, Stiepan
Arcáditch, procedem de forma inteiramente patriótica; quantos
filhos tem? – perguntou para o anfitrião, com um sorriso
carinhoso, e estendendo para ele um minúsculo cálice.
Liévin sorriu.
813
reverência para as senhoras que, em companhia da anfitriã,
seguiam na direção da mesa de antepastos.
814
– O condutor, ao contrário do que diz o provérbio, quis
expulsar-me dali por causa da minha roupa; mas então
comecei a me expressar num estilo elevado e… o senhor
também – disse, voltando-se para Kariênin, cujo nome
esquecera –, a princípio, por causa da minha peliça curta,
também quis me expulsar, mas depois intercedeu em meu
favor, pelo que sou muito grato.
815
Com absoluta discrição, sem sequer olhar para eles, e como se
na verdade não houvesse outros assentos vagos, Stiepan
Arcáditch acomodou Liévin e Kitty lado a lado.
816
CAPÍTULOX
817
– Parece-me que a influência está sempre ao lado do saber
autêntico – disse Aleksiei Aleksándrovitch, levantando
ligeiramente as sobrancelhas.
818
claros para conceder às ciências clássicas uma vantagem sobre
as ciências reais.
819
tão rápida e categórica, se do lado do saber clássico não
existisse essa vantagem a que o senhor agora se referiu: a
influência moral e, disons le mot,[7] antiniilista.
– Sem dúvida.
820
propósito. O governo, é óbvio, administra segundo
considerações de ordem geral, mantendo-se indiferente às
influências que as medidas tomadas possam produzir. Por
exemplo, era de esperar que a questão da educação das
mulheres fosse considerada nociva, mas o governo abre cursos
e universidades para as mulheres.
821
– Sem dúvida.
822
– Só acho estranho que as mulheres procurem novos
deveres – disse Serguei Ivánovitch –, quando vemos,
infelizmente, que os homens em geral fogem deles.
– Sim, mas o que será das meninas que não têm família? –
perguntou Stiepan Arcáditch, lembrando-se de Tchibíssova, a
qual ele tinha sempre em mente, solidarizando-se com Piestsov
e lhe dando apoio.
823
– Se analisar direitinho a história dessa menina, o senhor
descobrirá que ela abandonou a família, a sua própria ou a de
uma irmã, onde ela poderia desempenhar o papel adequado a
uma mulher – disse Dária Aleksándrovna, com irritação,
interferindo na conversa de forma inesperada, na certa
adivinhando que menina Stiepan Arcáditch tinha em mente.
824
C A P Í T U L O XI
825
A princípio, ante a pergunta de Kitty sobre como pudera vê-la
numa carruagem no ano anterior, Liévin contou que voltava da
ceifa caminhando pela estrada e encontrou-a.
826
– Mas não é verdade! E o senhor precisa parar de julgá-lo
assim! – disse Kitty.
827
C A P Í T U L O XII
828
inesperado, Turóvtsin falou, voltando-se para Aleksiei
Aleksándrovitch:
829
Aleksiei Aleksándrovitch, com a expressão de indiferença que
lhe davam as
830
– Suponho que o seu marido tenha informado à senhora as
causas por que considero necessário modificar as minhas
anteriores relações com Anna Arcádievna – disse, sem a fitar
nos olhos, enquanto, com desprazer, lançava um olhar para
Cherbátski, que cruzava a sala.
831
– Não, não, não pode ser! Não, pelo amor de Deus, o senhor
está enganado! – disse Dolly, tocando com as mãos nas
têmporas e fechando os olhos.
832
respeito de tudo que chego a odiar o meu filho e às vezes não
acredito que seja meu filho. Estou muito infeliz.
833
– Eu pensei, Dária Aleksándrovna, e pensei muito – disse
Aleksiei Aleksándrovitch. Manchas vermelhas surgiram em seu
rosto e os olhos turvos fitaram-na de frente. Dária
Aleksándrovna agora sentia pena dele, com toda a sua
alma. – Fiz exatamente isso, logo depois que fui informado,
por ela mesma, da minha desonra; deixei tudo como era
antes. Ofereci a possibilidade de ela reparar seu erro,
esforceime para salvá-la. De que adiantou? Ela não cumpriu
nem a mais simples das exigências: observar a decência –
disse, inflamando-se. – É possível salvar uma pessoa que não
deseja perder-se; mas se a natureza inteira está a tal ponto
degradada e pervertida que a própria perdição parece a ela ser
a salvação, o que se há de fazer?
834
– Não, espere! O senhor não pode levá-la à desgraça.
Espere, vou contar ao senhor a meu respeito. Casei-me e o meu
marido me enganava; no ódio, no ciúme, eu quis largar tudo,
quis mesmo… Mas pensei melhor; e quem me ajudou? Anna me
salvou. E aqui estou, viva. Os filhos crescem, meu marido
está de volta à família e sente sua culpa, se torna mais casto,
melhor, e eu vou vivendo… Eu perdoei e o senhor deve perdoar!
835
sobre si mesmo, Aleksiei Aleksándrovitch despediu-se tranquilo
e se retirou.
836
C A P Í T U L O XIII
837
pôde deixar de virar- se. Ela estava na porta, com Cherbátski, e
olhava para ele.
838
então todos os argumentos desapareciam, como se fossem
desnecessários; e às vezes experimentava o oposto:
expressava, afinal, aquilo de que ele mesmo gostava e
inventava argumentos em sua defesa e, se calhasse de
expressar-se bem e com sinceridade, de repente o adversário
concordava e parava de discutir. Eis o que Liévin queria dizer.
839
Liévin concordava com a opinião de Dária Aleksándrovna, de
que a jovem que não se casa encontra na sua família
ocupações próprias a uma mulher.
– Ah! Sim! – disse ele. – Sim, sim, sim, a senhora tem razão, a
senhora tem razão!
840
“Como poderei ficar sozinho, sem ela?”, pensou Liévin, com
pavor, e pegou o giz.
Ela olhou para ele com ar sério, depois apoiou na mão a testa
franzida e começou a ler. De vez em quando, dirigia os olhos
para Liévin, interrogava-o com o olhar: “Será o que estou
pensando?”.
palavra nunca.
841
– Significa a palavra nunca – respondeu. – Mas não é
verdade!
– Só naquele momento?
842
Kitty olhou para ele com um sorriso indelével.
Na conversa entre eles, tudo fora dito; fora dito que ela o
amava, que diria ao pai e à mãe que, no dia seguinte, Liévin
viria visitá-los pela manhã.
843
C A P Í T U L O XIV
– Nããão! – respondeu.
844
– Como estou contente por o senhor ter novamente
encontrado Kitty, é preciso dar valor às velhas amizades.
845
“Uma jovem simpática” eram palavras tão simples, vulgares,
tão incompatíveis com o seu sentimento.
– Bem, mas pelo menos posso dizer que estou muito feliz
com isso.
846
(também estava ali) disse algo igualmente belo e nobre. Liévin
escutava e percebia claramente que nem as verbas, nem as
tubulações, nem nada daquilo existia, que eles não estavam
nem um pouco irritados, que eram pessoas muito bondosas e
simpáticas e que, entre eles, tudo se passava de modo bom
e gentil. Não causavam embaraços uns aos outros e todos se
sentiam satisfeitos. O admirável para Liévin era que, nesse dia,
ele conseguia enxergar através daquelas pessoas e, por
pequenos sinais, antes despercebidos, chegava a conhecer a
alma de cada um deles e via claramente que eram todos
bondosos. Sobretudo ao próprio Liévin, nesse dia, todos
estimavam de uma forma extraordinária. Isso era bem visível
pelo modo como falavam com ele, como o fitavam com
carinho, com afeição, mesmo aqueles que não o conheciam.
847
casamento, ocorreu-lhe que não havia ninguém melhor do que
a esposa e a cunhada de Sviájski para ouvi-lo falar da sua
felicidade, e ficou muito contente de ir ao encontro delas.
848
Iégor, a quem antes Liévin não notara, revelou- se um homem
muito inteligente, correto e, o mais importante, bondoso.
849
E Liévin viu que Iégor se encontrava também num estado de
exaltação e tencionava expressar todos os seus sentimentos
íntimos.
850
sobrancelhas franzidas e expectorava. “Coitado, um infeliz!”,
pensou Liévin, e lágrimas subiram aos seus olhos, de amor e
de pena por aquele homem. Quis ir falar com ele, consolá-
lo; mas, ao lembrar que estava só de camisa, pensou melhor e
sentou-se de novo diante do postigo, para banhar-se com o ar
frio e contemplar a forma da cruz, deslumbrante e silenciosa,
mas para ele repleta de significado, e a estrela amarela e
brilhante que se erguia. Depois das seis horas, ouviu-se o rumor
dos enceradores de chão, começaram a tocar as campainhas
que chamavam o serviço de quarto e Liévin, que começava a
sentir frio, fechou o postigo da janela, lavou- se, vestiu-se e
saiu para a rua.
851
C A P Í T U L O XV
852
que restava, observando continuamente o relógio e olhando
para os lados.
853
Tentando não ofender os outros cocheiros e prometendo
contratar seus serviços mais tarde, Liévin tomou um deles e
mandou tocar para a casa dos Cherbátski. O cocheiro parecia
encantador, com a gola branca da camisa, que se mostrava
por baixo do cafetã, retesada em torno do pescoço roliço,
vermelho e robusto. O trenó desse cocheiro era alto,
confortável, e nunca mais Liévin viajou num trenó semelhante, e
o cavalo era bom e pelejava para correr, mas não saía do lugar.
O cocheiro conhecia a casa dos Cherbátski e, com uma
reverência toda especial por aquele passageiro, depois de girar
o braço e gritar “prrru”, freou bruscamente diante do portão. O
porteiro dos Cherbátski, seguramente, sabia de tudo.
– Acordaram?
854
O lacaio, embora jovem e um dândi, como são os novos lacaios,
era um homem muito bondoso e correto, e também
compreendia tudo.
encontro de Liévin.
855
Ela fez tudo o que pôde – correu ao encontro dele e rendeu-se
inteira, tímida, exultante. Ele abraçou-a e apertou os lábios
contra a sua boca, que procurava o beijo dele. Também ficara
acordada a noite inteira e a manhã toda, à espera dele. A mãe
e o pai haviam concordado sem nenhuma objeção e ficaram
felizes com a felicidade da filha. Ela o esperava. Queria ser a
primeira a lhe anunciar a felicidade, sua e dele. Preparara-se
para encontrá-lo sozinha e se alegrava com essa ideia, se
acanhava, se envergonhava, e ela mesma não sabia o que ia
fazer. Ouviu os passos e a voz dele e se pôs à espera atrás da
porta, enquanto mademoiselle Linon saía. Mademoiselle Linon
saiu. Sem pensar, sem indagar a si mesma como nem o quê,
veio ao encontro dele e fez o que fez.
856
Sem soltar a mão de Liévin, ela entrou na sala de visitas. Ao vê-
los, a princesa respirou mais depressa, logo desatou a chorar e
logo desatou a rir e, com passos tão vigorosos que Liévin até se
espantou, correu ao seu encontro e, depois de segurar a
cabeça de Liévin entre as mãos, beijou-o e molhou com
lágrimas as faces dele.
– Está bem, não vou falar! – disse ele. – Estou muito, muito…
fe… Ah! Que tolo sou eu…
857
viu como Kitty beijava, carinhosa e demoradamente, sua mão
carnuda.
858
C A P Í T U L O XVI
859
“Terá mesmo de haver um enxoval e tudo o mais?”, pensou
Liévin, com horror. “Mas, afinal, poderá o enxoval, a bênção e
tudo o mais estragar a minha felicidade? Não há nada que
possa fazer isso!” Lançou um olhar para Kitty e notou que a
ideia do enxoval não a ofendera nem um pouco. “Pois então, é
necessário”, pensou.
860
– E eu? – perguntou ela. – Mesmo quando… – Deteve-se e de
novo prosseguiu, fitando-o resoluta com seus olhos sinceros –,
mesmo quando eu rechacei minha própria felicidade. Sempre
amei só ao senhor, mas fui levada por um arrebatamento.
Preciso falar… O senhor pode esquecer isso?
Era uma das coisas que decidira contar a ela. Decidira contar,
desde os primeiros dias, duas coisas – que não era tão puro
como ela e também que não acreditava em Deus. Era doloroso,
mas julgava que devia contar as duas coisas.
– Sim, sim.
861
dar os parabéns. Depois vieram parentes e teve início aquele
ditoso tumulto, do qual Liévin não emergiu senão um dia após
o casamento. Sentia-se o tempo todo desconcertado,
incomodado, mas a tensão da felicidade aumentava sem
cessar. Sentia o tempo todo que se exigia dele muita coisa que
ignorava e fazia tudo o que lhe diziam, e tudo isso lhe trazia
felicidade. Pensava que o seu casamento nada teria de
parecido com os outros, que as circunstâncias habituais de um
casamento estragariam sua felicidade especial; mas acabou
por fazer o mesmo que os outros e sua felicidade, com isso,
apenas aumentava e se tornava cada vez mais especial, e não
tinha nem teria nada de semelhante às outras.
862
Era extraordinário não só que todos o estimassem, mas
também que todos os que antes eram antipáticos, frios,
indiferentes se mostrassem maravilhados com ele, cedessem a
todas as suas vontades, tratassem com carinho e delicadeza o
seu sentimento e partilhassem a sua convicção de que era o
homem mais feliz do mundo porque sua noiva era o máximo
da perfeição. O mesmo sentia Kitty. Quando a condessa
Nordston se permitiu insinuar que teria desejado um noivo
melhor, Kitty inflamou-se a tal ponto e demonstrou de modo
tão convincente que não podia haver no mundo ninguém
melhor do que Liévin, que a condessa Nordston teve de admiti-
lo e, em presença de Kitty, nunca deixava de sorrir,
maravilhada, quando encontrava Liévin.
863
Não foi sem uma luta interior que Liévin lhe entregou seu diário.
Sabia que entre ela e ele não podia e não devia haver segredos,
por isso resolvera que era preciso; mas ele não se deu conta de
como aquilo poderia agir sobre ela, não se pôs no lugar de
Kitty. Só quando, nessa noite, foi à casa deles antes de ir ao
teatro, entrou no quarto de Kitty e viu choroso o rosto
encantador e tristonho, infeliz por causa do desgosto
irreparável causado por ele, compreendeu o abismo que
separava o seu passado infame da pureza de pomba de Kitty, e
horrorizou-se com o que havia feito.
abalou, apenas lhe deu um novo matiz. Kitty lhe perdoara; mas,
daí em diante, ele se considerava ainda mais indigno dela,
864
curvava-se moralmente ainda mais diante dela e dava um valor
ainda mais alto à sua felicidade imerecida.
865
C A P Í T U L O XVII
866
Aleksiei Aleksándrovitch pegou os telegramas e rompeu o lacre.
O primeiro dava notícia da nomeação de Striémov exatamente
para o cargo que Kariênin almejava. Aleksiei Aleksándrovitch
jogou fora a mensagem e, ruborizado, levantou-se e pôs-se a
caminhar pelo quarto. “Quos vult perdere dementat”,[10] disse
ele, subentendendo na palavra quos as pessoas que haviam
contribuído para tal nomeação. Não se aborrecia por não ter
recebido aquele cargo, por ter sido flagrantemente posto à
margem; mas o desgostava, e lhe causava surpresa, não
perceberem que o tagarela e frasista Striémov era a pessoa
menos habilitada para o cargo. Como não percebiam que
punham a perder o seu próprio prestige com essa nomeação!
“Não há mentira de que ela não seja capaz. Deve estar perto de
dar à luz.
867
Talvez esteja com uma doença de gravidez. Mas qual é o
propósito deles? Legitimar a criança, comprometer-me e
impedir o divórcio”, pensou. “Mas diz algo como: estou
morrendo…” Releu o telegrama; e de repente o sentido direto do
que estava dito na mensagem o atingiu. “E se for verdade?”,
disse consigo. “E se for verdade que, no instante da agonia e à
beira da morte, ela se arrependeu sinceramente e eu, tomando
isso por mentira, me recusasse a voltar? Seria não só cruel, e
todos me condenariam, como também seria uma tolice de
minha parte.”
868
não conseguia afastar a conjetura de que a morte da esposa
resolveria de um só golpe todos os apuros da sua situação. Os
padeiros, as lojas fechadas, os cocheiros da noite, os zeladores
que varriam as calçadas apareciam diante de seus olhos e
ele observava tudo, tentando abafar no pensamento aquilo que
o aguardava e aquilo que ele não tinha coragem de desejar e,
no entanto, desejava. Chegou ao portão da sua casa. Uma
sege de aluguel e uma carruagem com um cocheiro
adormecido estavam na entrada. Ao chegar à entrada,
Aleksiei Aleksándrovitch pareceu extrair uma decisão do canto
mais remoto do cérebro e aferrou-se a ela. Seu sentido era: “Se
for mentira, um desprezo sereno, e ir embora. Se for verdade,
manter a compostura”.
– E a saúde?
869
– Muito mal – respondeu. – Ontem, houve um conselho de
médicos e agora um médico está aqui.
870
cadeira baixa, estava Vrónski e, com o rosto coberto pelas
mãos, chorava. Levantou-se de um salto ao som da voz do
médico, afastou as mãos do rosto e viu Aleksiei
Aleksándrovitch. Ao ver o marido, ele se perturbou de tal forma
que sentou outra vez, encolheu a cabeça entre os ombros,
como se quisesse sumir; mas fez um esforço, levantou-se e
disse:
871
– Pois o Aleksiei, eu me refiro a Aleksiei Aleksándrovitch
(que destino estranho e terrível, haver dois Aleksiei, não é
verdade?), o Aleksiei não me rejeitaria. Eu esqueceria, ele
perdoaria… Mas por que ele não vem? Ele é bom,
ele nem mesmo sabe como é bom. Ah, meu Deus, que tristeza!
Dê-me água, rápido, rápido! Ah, vai ser ruim para ela, para a
minha menina! Pois bem, deem a ela uma ama de leite. Muito
bem, eu concordo, assim é até melhor. Ele virá, vai ser penoso,
para ele, ver a menina. Levem-na.
872
– Não, não – começou a falar –, eu não tenho medo dele,
tenho medo da morte. Aleksiei, venha aqui. Tenho pressa
porque tenho pouco tempo, só me resta viver mais um pouco,
logo começará a febre e não terei mais compreensão de nada.
Agora, compreendo, compreendo tudo, e vejo tudo.
873
vou a Roma, há um deserto lá, então eu não serei um peso para
ninguém, levarei apenas o Serioja e a menina… Não, você não
pode perdoar! Eu sei, isso não se pode perdoar! Não, não, vá
embora, você é bom demais! – segurava a mão dele com a sua
mão ardente e, com a outra, o repelia.
e, nessa altura, alcançou tal ponto que ele parou de lutar contra
ela; de repente, sentiu que aquilo que ele considerava uma
perturbação de espírito era, ao contrário, um estado de
beatitude que, de súbito, lhe proporcionava uma felicidade
nova, que nunca experimentara. Não achava que os
mandamentos cristãos, que por toda a vida ele quisera seguir,
lhe ordenavam perdoar e amar todos os seus inimigos; mas um
alegre sentimento de amor e de perdão dirigido aos inimigos
enchia sua alma. Ficou de joelhos e, depois de deitar a cabeça
na dobra do braço de Anna, que o queimava como uma chama
através da blusa, desatou a soluçar como uma criança. Ela
abraçou sua cabeça calva, moveu-se para perto dele e, com
uma altivez desafiadora, levantou os olhos.
874
O médico afastou os braços dela, deitou-a cuidadosamente
sobre o travesseiro e cobriu-a até os ombros. Anna deitou-se
de costas docilmente e olhava para a frente com um olhar
brilhante.
875
parede. – Meu Deus, Meu Deus! Quando isto terá fim? Dê-me
morfina. Doutor! Dê- me morfina. Meu Deus, meu Deus!
876
que seja para o senhor, acredite, para mim é ainda mais
terrível!
877
Havia-se levantado e soluços interrompiam suas palavras.
Vrónski levantou-se também e, numa posição curvada, sem se
aprumar, fitou-o de esguelha. Não entendia os sentimentos de
Aleksiei Aleksándrovitch. Mas sentia que era algo muito elevado
e até inacessível para ele, na sua maneira de ver a vida.
878
C A P Í T U L O XVIII
879
desprezava injustamente, constituía apenas uma pequena
parte do seu infortúnio. Sentia-se agora indescritivelmente
infeliz porque a sua paixão por Anna, que havia arrefecido, lhe
parecia, nos últimos tempos, agora que sabia que a perdera
para sempre, ter ficado mais forte do que nunca. Por ocasião
da doença de Anna, ele viera a compreendê-la inteiramente,
conheceu sua alma e lhe pareceu que, até então, nunca a
havia amado tanto. E agora, quando a conhecia, e quando a
amava como se devia amar, fora humilhado diante dela e a
perdera para sempre, deixando de si para ela apenas uma
lembrança vergonhosa. O mais horrível de tudo foi a sua
posição ridícula, vergonhosa, quando Aleksiei Aleksándrovitch
baixou-lhe as mãos com que cobria o rosto envergonhado.
Estava parado na saída da casa de Kariênin, como que
desnorteado, e não sabia o que fazer.
880
posição de Aleksiei Aleksándrovitch, agachado no chão, junto à
cama.
881
“Dormir! Dormir!”, repetiu para si mesmo. Mas, de olhos
fechados, viu com ainda maior nitidez o rosto de Anna tal como
estava naquela tarde, para ele inesquecível, anterior à corrida.
– Isso não existe mais e não voltará, e ela quer apagar tudo
da memória. Só que eu não posso viver sem isso. Como
poderemos nos reconciliar, como poderemos nos reconciliar? –
disse em voz alta e, de modo inconsciente, passou a repetir
aquelas palavras. A repetição das palavras freava o surgimento
de novas imagens e recordações que, ele sentia, fervilhavam
em sua cabeça. Mas a repetição das palavras freou a
imaginação só por um breve tempo. De novo, um após o outro,
em uma velocidade extraordinária, começaram a surgir no
pensamento os seus minutos mais felizes e, junto com eles, a
recente humilhação. “Descubra o rosto”, disse a voz de Anna.
Ele afastou as mãos e sentiu a expressão envergonhada e tola
do seu rosto.
882
com um tiro?”, repetiu consigo mesmo e, depois de abrir os
olhos, viu com surpresa ao lado da cabeça o bordado da
almofada feito por Vária, a esposa do irmão. Tocou na franja
da almofada e experimentou lembrar-se de Vária, tal como a
vira na última vez. Mas pensar em qualquer coisa alheia era
torturante. “Não, eu preciso dormir!” Puxou a almofada e
apertou contra ela a cabeça, mas foi preciso fazer um esforço
para manter os olhos fechados. Ergueu-se de um salto e ficou
sentado. “Para mim, está acabado”, disse consigo. “Tenho de
pensar no que fazer. O que restou?” Seu pensamento,
rapidamente, passou a vida em revista, deixando de fora o seu
amor por Anna.
883
câmara carregada e se pôs a refletir. Por uns dois minutos, de
cabeça baixa e com uma expressão de intenso esforço de
pensamento, permaneceu com o revólver nas mãos, imóvel, e
pensou. “É claro”, disse a si mesmo, como se a cadeia de um
pensamento lógico, contínuo e cristalino o tivesse conduzido a
uma conclusão incontestável. Na verdade, esse “é claro”, tão
persuasivo para ele, era a mera consequência da repetição do
mesmo círculo de recordações e de imagens, que ele já
percorrera dez vezes na última hora. Eram as mesmas
recordações de uma felicidade perdida para sempre, as
mesmas imagens do absurdo de toda a sua vida, dali para a
frente, a mesma consciência da sua humilhação. Até a
sucessão dessas imagens e sentimentos era a mesma.
884
e, ao ver sangue na pele de tigre e na sua mão, compreendeu
que havia atirado contra si mesmo.
885
C A P Í T U L O XIX
886
sobretudo depois que tivera notícia do seu gesto desesperado.
Tinha piedade do filho, ainda mais do que antes, e agora se
recriminava por se interessar muito pouco por ele. Quanto à
recém-nascida, porém, experimentava um sentimento
especial, não só de piedade, mas também de carinho. A
princípio, por um mero sentimento de compaixão, ocupou-se
daquela menina fraca e recém-nascida, que não era sua
filha, ficara abandonada durante a doença da mãe e
provavelmente teria morrido se ele não houvesse cuidado dela
– e ele mesmo não notou como a amava. Várias vezes por dia,
caminhava até o quarto das crianças e lá se demorava tanto
que a ama de leite e a babá, no início tímidas diante dele, se
habituaram à sua presença. Às vezes, durante meia hora,
contemplava calado o rostinho enrugado, penugento e
vermelho-açafrão da criança que dormia e acompanhava os
movimentos da testa franzida e das mãozinhas rechonchudas,
de dedos dobrados, que com as palmas viradas para cima
esfregavam os olhinhos e o intercílio.
887
assim. Sentia que, além da boa força espiritual que guiava
sua alma, existia uma outra, igual ou ainda maior, uma força
imperiosa que guiava a sua vida, e ele sentia que essa força
não lhe traria a serenidade resignada que almejava. Sentia
que todos o olhavam com uma surpresa
888
– A princesa Ielisavieta Fiódorovna Tviérskaia – respondeu
o lacaio com um sorriso, assim pareceu a Aleksiei
Aleksándrovitch.
889
– O médico disse que não é nada perigoso e prescreveu
banhos, senhor.
– Miss Edward diz que talvez a ama de leite não tenha leite
– disse ele.
890
– Penso o mesmo, Aleksiei Aleksándrovitch.
891
Quando o bebê, que enfim se calara, foi colocado no berço
fundo e a babá se afastou, depois de ajeitar o travesseiro,
Aleksiei Aleksándrovitch levantou-se e, pisando com dificuldade
na ponta dos pés, aproximou-se da criança. Por um minuto,
ficou em silêncio e fitou o bebê com o mesmo rosto desolado;
mas de repente irrompeu em seu rosto um sorriso, que fez
mexer seu cabelo e a pele na testa, e em seguida ele saiu do
quarto sem fazer barulho.
– Não é pelo meu marido, é por mim que não quero. Não
fale mais disso! – retrucou a voz agitada de Anna.
892
– Sim, mas a senhora não pode deixar de querer despedir-
se do homem que tentou matar-se por causa da senhora…
893
admirável! – disse, de um modo afetuoso e significativo, como
se conferisse a ele uma condecoração de magnanimidade por
sua conduta com a esposa.
894
contar tudo, por mais difícil que fosse, para ela. – Eu respondi
que não podia recebê-lo.
– emendou Betsy.
895
– Bem, adeus, minha querida – disse Betsy, levantando-se.
Beijou Anna e saiu.
896
C A P Í T U L O XX
Além do mais…
897
– Nunca mais falaremos desse assunto – acrescentou Anna,
mais calma.
898
– Por que você não me permitiu amamentar, quando eu
implorei isso? De um jeito ou de outro (Aleksiei
Aleksándrovitch entendeu o que significava esse “de um jeito
ou de outro”), ela é uma criança e a estão matando. – Tocou
a campainha e mandou trazer a menina. – Eu pedi para
amamentar, não permitiram e agora me recriminam.
899
relações com Vrónski, mas, se todos achassem que isso era
impossível, ele estaria pronto a admitir tal relação, contanto
que não trouxesse vergonha às crianças, que ele não se visse
privado delas e que a sua situação não se alterasse. Por mais
que fosse ruim, ainda seria melhor do que o divórcio, no qual
Anna se veria numa situação irremediável e infamante e ele
mesmo seria privado de tudo o que amava. Porém sentia-se
impotente; sabia de antemão que todos estavam contra ele,
não admitiriam que fizesse aquilo que agora lhe parecia
muito natural e correto e o obrigariam a fazer algo ruim, mas
que lhes parecia necessário.
900
C A P Í T U L O XXI
901
– Fico muito contente de que a senhora pense assim –
respondeu Stiepan Arcáditch, balançando a cabeça com uma
expressão séria e de sofrida compaixão.
902
que convinha ao estado de espírito de Anna. Perguntou sobre
sua saúde e como havia passado a manhã.
903
E Stiepan Arcáditch sorriu. Ninguém na posição de Stiepan
Arcáditch, tendo de lidar com tamanho desespero, se permitiria
sorrir (o sorriso pareceria brutal), mas, além de uma ternura
quase feminina, havia em seu sorriso tanta bondade que, em
vez de ofender, aliviava e tranquilizava. Seu sorriso e suas
palavras serenas e tranquilizadoras produziram um efeito
emoliente e calmante, como óleo de amêndoas. E Anna logo
sentiu isso.
904
com o seu sorriso amendoado. – Começarei do princípio: você
casou com um homem vinte anos mais velho do que você.
Casou sem amor, ou sem conhecer o amor. Isso foi um erro,
admitamos.
905
– Não desejo nada, nada… só que tudo termine.
– Mas ele vê isso, e sabe. Acaso você pensa que pesa menos
para ele do que para você? Você se atormenta, ele se
atormenta, e o que pode resultar daí?
906
C A P Í T U L O XXII
907
– Espero que você acredite no meu amor pela minha irmã e
na sinceridade da minha afeição e do meu respeito por você –
disse, ruborizando-se.
908
começar uma vida nova. Não me arrependo e jamais me
arrependerei do que fiz; mas desejo apenas o seu bem, o bem
da sua alma, e agora vejo que não alcancei isso. Digame a
senhora mesma o que lhe dará a felicidade verdadeira e paz
à sua alma. Entrego-me de todo à sua vontade e ao seu
sentimento de justiça.
se.
909
– Receio que ela mesma não compreenda sua própria
situação. Ela não é uma juíza – disse Stiepan Arcáditch,
dominando-se. – Ela está esmagada, literalmente esmagada,
pela sua generosidade. Se ela ler essa carta, não terá forças de
dizer nada, vai apenas abaixar a cabeça ainda mais.
910
sentindo sua fraqueza e submetendo-se a ela, estava
predisposto a acreditar naquilo que Stiepan Arcáditch dissesse.
– Ela nunca se manifestará sobre o assunto. Mas uma coisa é
possível, uma coisa ela pode desejar – prosseguiu Stiepan
Arcáditch. – Isto: o fim da relação e de todas as lembranças a
ela
911
havia ponderado milhares de vezes. E tudo aquilo lhe
parecia não só nem um pouco simples como também
completamente impossível. O divórcio, cujos pormenores já
conhecia, agora lhe parecia impossível porque o sentimento de
dignidade e o respeito pela religião não lhe permitiam assumir
a culpa de um adultério fictício e menos ainda admitir que a
esposa, perdoada e amada por ele, se visse desprotegida e
desonrada. O divórcio se revelava impossível também por
outras razões, ainda mais sérias.
912
caminho do bem e precipitá-la na perdição. Uma vez
divorciada, ele sabia que Anna se casaria com Vrónski, e essa
união seria ilícita e criminosa porque a esposa, segundo o
espírito da lei da Igreja, não pode casar-se enquanto o marido
estiver vivo. “Ela se unirá a ele e, após um ou dois anos, ele a
abandonará, ou ela dará início a uma nova união”, pensava
Aleksiei Aleksándrovitch. “E eu, tendo concordado com um
divórcio ilícito, serei o culpado pela perdição de Anna.”
Ponderou tudo isso centenas de vezes e se convenceu de que o
divórcio não só não era nada simples, como dizia o seu
cunhado, como
913
– Você está abalado, eu entendo. Mas se ponderar bem…
914
Quando saiu do escritório do cunhado, Stiepan Arcáditch
sentia-se comovido, mas isso não o impedia de estar satisfeito
por haver resolvido com êxito aquela questão, pois estava
convicto de que Aleksiei Aleksándrovitch não faltaria com a
sua palavra. A essa satisfação, veio somar-se ainda o
pensamento de que, quando aquela questão estivesse
encerrada, ele faria à esposa e aos conhecidos mais próximos a
seguinte pergunta: “Qual a diferença entre mim e o imperador?
O imperador faz um divórcio e ninguém se beneficia por isso,
enquanto eu faço um divórcio e três pessoas se beneficiam…
Ou então: qual a semelhança entre mim e o imperador?
Quando… Pensando bem, vou imaginar algo melhor”, disse
consigo, sorrindo.
915
C A P Í T U L O XXIII
– Não estou delirando; por favor, cuide para que não corra
o boato de que atirei de propósito contra mim mesmo.
916
– Não farei isso, é certo, mas teria sido melhor… E sorriu,
tristonho.
917
proposta, sem a menor hesitação. Mas, quanto mais próxima a
hora da partida, mais penoso se tornava o seu sacrifício àquilo
que julgava ser o seu dever.
918
Anna se havia preparado para aquele encontro, pensara no que
lhe diria, mas não conseguiu dizer nada daquilo: a paixão de
Vrónski dominou-a. Ela quis acalmá-lo, acalmar-se, mas já era
tarde. O sentimento de Vrónski contagiou Anna. Seus lábios
tremiam tanto que, por longo tempo, nada conseguiu falar.
919
– Sim, estou muito fraca – respondeu, sorrindo. E os lábios
recomeçaram a tremer.
– Stiva diz que ele concordou com tudo, mas não posso
aceitar a generosidade dele – disse Anna, pensativa, olhando o
rosto de Vrónski como se não o visse. – Não quero o divórcio,
agora para mim não faz diferença. Só não sei o que ele decidiu
sobre o Serioja.
– Ah, por que não morri, teria sido melhor! – exclamou Anna
e, sem soluçar, lágrimas correram pelas duas faces; mas ela
tentou sorrir para não amargurá-lo.
920
Antes, Vrónski considerava impossível e infame recusar o posto
lisonjeiro e perigoso para o qual fora indicado, em Tachkent.
Mas agora, sem refletir sequer por um minuto, ele o recusou e,
ao perceber que os superiores desaprovavam o seu gesto,
imediatamente pediu o seu desligamento do exército.
PARTE V
921
CAPÍTULOI
922
não tinha sequer planos e objetivos para a sua vida futura;
deixava a decisão para os outros, sabendo que tudo havia de
ser excelente. Seu irmão Serguei Ivánovitch, Stiepan Arcáditch
e a princesa o orientavam naquilo que cumpria fazer. Ele
sempre estava perfeitamente de acordo com tudo o que lhe
propunham. O irmão pegou dinheiro emprestado para ele, a
princesa recomendou partir de Moscou após o casamento.
Stiepan Arcáditch recomendou viajar para o exterior. Liévin
concordava com tudo. “Façam como quiserem, se isso lhes
traz alegria. Eu estou feliz e a minha felicidade não pode
aumentar nem diminuir por causa do que vocês fizerem”,
pensava. Quando transmitiu a Kitty o conselho de Stiepan
Arcáditch de viajar para o exterior, ficou muito surpreso ao
ver que ela não concordava e que tinha algumas aspirações
bem precisas acerca da sua vida futura. Kitty sabia que Liévin
desenvolvia um trabalho no campo, que ele adorava. Ela,
como Liévin percebia, não só não compreendia esse trabalho
como não queria compreender. Isso, porém, não a impedia de
considerar tal trabalho da maior importância. E, por isso, sabia
que o lar deles seria no campo e, em vez de viajar para o
exterior, onde não iria morar, Kitty desejava ir para onde teria a
sua casa. Tal intenção expressa de um modo bem preciso
surpreendeu Liévin. Mas, já que para ele tudo era indiferente,
pediu de imediato a Stiepan Arcáditch, como se essa fosse a
sua obrigação, que partisse para o campo e lá cuidasse de
tudo como só ele sabia fazer, com o bom gosto que tinha de
sobra.
923
– Mas, escute – disse, um dia, Stiepan Arcáditch, ao voltar
do campo onde havia cuidado de tudo para a chegada dos
recém-casados. – Você tem o certificado
– Ai, ai, ai! – exclamou Liévin. – Creio que já faz uns dez anos
que não jejuo, não comungo nem me confesso. Nem pensei
nisso.
924
Não se sentia em condições de fazer nem uma coisa nem outra.
Porém, por mais que indagasse ao amigo se não haveria
algum jeito de receber o certificado sem jejuar, Stiepan
Arcáditch declarava ser impossível.
925
Por ocasião das cerimônias, ora ele se punha a ouvir as preces,
tentando atribuir-lhes um significado que não estivesse em
choque com as suas opiniões, ora, percebendo que não
conseguia entender e que devia condená-las, tentava não
ouvir as orações, ocupava-se com os próprios pensamentos,
com as observações e as recordações que vagueavam em sua
cabeça com extraordinária vivacidade, durante essa
permanência ociosa na igreja.
926
nem deter sua atenção na leitura. “É surpreendente como a
mão dela é expressiva”, pensou, lembrando como na véspera
estavam ambos sentados a uma mesa de canto. Nada
tinham do que falar, como quase sempre, nesse período, e ela,
depois de colocar a mão sobre a mesa, pôs-se a abrir e fechar
os dedos, e ela mesma riu enquanto observava o seu
movimento. Liévin lembrou como beijou essa mão e depois
examinou os traços convergentes na palma rosada. “De novo
sopidoai”, pensou Liévin, fazendo o sinal da cruz, curvando-se
e olhando o movimento flexível das costas do diácono, que se
curvavam. “Depois ela pegou minha mão e observou as linhas:
‘Você tem uma excelente mão’, disse ela.” E Liévin olhou para a
sua mão e para a mão curta do diácono. “Sim, agora falta
pouco para terminar”, pensou. “Não, parece que recomeçou”,
pensou, quando voltou a escutar as preces. “Não, vai
terminar; pronto, ele já está se curvando até o chão. Isso
sempre acontece quando está no fim.”
927
do púlpito. Chegou aos degraus e, após virar para a direita,
avistou o sacerdote. O velho sacerdote, com barba rala e
semigrisalha, de olhos bondosos e cansados, estava postado
junto ao facistol e folheava o missal. Depois de cumprimentar
Liévin com uma ligeira reverência, passou imediatamente a ler
as orações com a voz de costume. Encerrada a leitura, curvou-
se até o chão e voltou o rosto para Liévin.
928
– Meu principal pecado é a dúvida. Duvido de tudo e, na
maioria das vezes, estou em dúvida.
929
– Não compreendo nada – respondeu Liévin, ruborizando-
se, sentindo que suas palavras eram tolas, e que não poderiam
deixar de ser tolas, naquelas circunstâncias.
930
pai, não desejará para seus filhos apenas a riqueza, o luxo, a
honra; desejará, para eles, a salvação, a iluminação da alma
com a luz da verdade. Não é assim? O que responderá o
senhor, quando a criancinha inocente lhe perguntar: “Papai!
Quem criou tudo o que me encanta neste mundo: a terra, a
água, o sol, as estrelas, a grama?”. Acaso o senhor responderá:
“Não sei”? O senhor não pode deixar de saber, quando Deus
Nosso Senhor, por sua grande misericórdia, já o revelou para
o senhor. Ou então se o seu filhinho lhe perguntar: “O que me
espera na vida após a morte?”. O que lhe responderá, se o
senhor nada sabe? Como poderá responder a ele? Vai
encaminhá-lo para os atrativos do mundo e do diabo? Isso é
errado! – disse e se deteve, com a cabeça inclinada para o lado,
fitando Liévin com olhos bondosos e dóceis.
931
De volta para casa, nesse dia, Liévin experimentou um
sentimento de alegria por aquela situação incômoda haver
chegado ao fim, e sem que ele fosse obrigado a mentir. Além
disso, restou-lhe a vaga lembrança de que as palavras ditas
pelo bondoso e afável sacerdote não eram absolutamente tão
tolas como lhe haviam parecido de início, e que ali havia algo
que era preciso esclarecer.
932
C A P Í T U L O II
933
– Não, eu não sou inimigo. Sou amigo da divisão do
trabalho. Pessoas que não fazem nada devem fazer pessoas,
enquanto as demais devem contribuir para a instrução e a
felicidade delas. Eis o que penso. Para confundir esses dois
ofícios, há uma multidão de amadores, a cujo número não
pertenço.
– Já estou apaixonado.
– Como assim?
934
– Aí está a verdade – disse Serguei Ivánovitch. – Daqui em
diante, renuncie à caça ao urso: a esposa não vai deixar!
Liévin sorriu. A ideia de que a esposa não o deixaria lhe era tão
agradável que estava pronto a abdicar para sempre do prazer
de ver um urso.
935
– Puxa, eu juro – disse Liévin, sorrindo – que não consigo
encontrar na minha alma esse sentimento de pesar quanto à
minha liberdade!
936
pensamentos dela, ou seja, não ter nenhuma liberdade – isto é
a felicidade!”
937
criada, enquanto arrumava pilhas de vestidos de várias cores,
espalhados nas costas das cadeiras e no chão.
938
cometeu um engano. Pense melhor. Você não pode me amar…
Se… é melhor você contar – disse, sem olhar para ela. – Eu serei
um infeliz. Que os outros falem o que quiserem; qualquer coisa
é melhor do que a infelicidade… É melhor agora, enquanto
ainda há tempo…
Mas o rosto de Liévin dava tanta pena que ela conteve sua
irritação e, depois de apanhar uns vestidos nas costas da
cadeira, veio sentar-se mais perto dele.
939
pergunta de Liévin, explicara suas razões para amá-lo. Dissera
que o amava porque o compreendia inteiramente, sabia do
que ele gostava e tudo de que ele gostava era bom. E isso
pareceu a Liévin absolutamente claro. Quando a princesa
entrou, os dois estavam sentados juntos sobre a arca,
separavam os vestidos e discutiam porque Kitty queria dar a
Duniacha o vestido marrom que ela usara no momento em que
Liévin lhe fez a proposta de casamento, enquanto ele insistia
em não dar a ninguém esse vestido e presentear Duniacha
com o vestido azul.
Depois que soube por que ele viera, a princesa zangou-se, meio
séria, meio irônica, e despachou-o para casa a fim de vestir-se
e para não atrapalhar Kitty enquanto fazia o seu penteado,
pois Charles chegaria a qualquer momento.
– Ela ficou sem comer nada durante todos esses dias, está
feia e você ainda vem entristecê-la com as suas tolices – disse.
– Vá embora, vá embora, meu caro.
940
carruagem, com a noiva. Depois, era preciso mandar uma
carruagem buscar o padrinho e chamar de volta a outra, que
ia levar Serguei Ivánovitch… No geral, havia muitas questões
941
C A P Í T U L O III
942
se aquietava e todos voltavam os olhos para lá, na esperança
de ver entrar a noiva e o noivo. Mas a porta já se abrira mais de
dez vezes e era ou um convidado atrasado, ou convidados que
se haviam reunido ao círculo dos convidados do lado direito, ou
uma espectadora que enganara ou comovera o oficial de
polícia e vinha se unir à multidão, do lado esquerdo.
943
frequente até a porta lateral, à espera do noivo. Por fim, uma
das senhoras, depois de olhar para o relógio, disse: “Mas
isto é estranho!” – e todos os convidados se inquietaram e
passaram a expressar em voz alta sua surpresa e seu
descontentamento. Um dos padrinhos foi tentar saber o que
havia ocorrido. Nessa altura, Kitty, já pronta havia muito
tempo, de vestido branco, véu longo e uma coroa de flores de
laranjeira, aguardava de pé, na sala da casa dos Cherbátski,
em companhia da madrinha de casamento e da irmã Lvova, e
olhava para a janela, esperando em vão já havia mais de
meia hora que o seu padrinho viesse avisar a chegada do
noivo à igreja.
944
tiverem levado as bagagens para a estação de trem? – gritou
em desespero.
945
desfazer as malas. Na igreja, aguardavam o noivo, mas ele,
como uma fera trancada numa jaula, caminhava pelo quarto,
espiava no corredor e, com horror e desespero, lhe vinha à
lembrança o que dissera para Kitty e o que ela poderia estar
pensando, agora.
com a camisa.
946
C A P Í T U L O IV
Todos diziam que ela ficara mais feia naqueles últimos dias e
que, ao casar-se, estava longe de exibir a beleza de costume;
mas Liévin não achava isso. Olhava para o penteado alto de
Kitty, com um longo véu azul e flores brancas, para a gola
alta e pregueada, que ocultava os lados de um modo
particularmente virginal e deixava descoberta a frente do seu
pescoço alongado, olhava para o talhe assombrosamente fino,
e lhe parecia que ela estava mais bonita do que nunca – não
porque aquelas flores, aquele véu, aquele vestido copiado de
Paris acrescentassem algo à sua beleza, mas sim porque,
apesar dessa estudada suntuosidade dos trajes, a expressão
do seu rosto meigo, do seu olhar, dos seus lábios, era aquela
expressão de autenticidade inocente, tão peculiar a Kitty.
947
– Eu já estava pensando que você queria fugir – disse, e
sorriu para Liévin.
948
depois de lhe dirigir um olhar rápido e perplexo, voltou- se
para a noiva.
– Não está com frio? Está pálida. Pare aí, abaixe a cabeça!
– pediu Lvova, a irmã de Kitty, e, arqueando os belos braços
roliços, ajeitou as flores sobre a cabeça da noiva, com um
sorriso.
949
Por longo tempo, Liévin não foi capaz de entender o que
queriam dele. Por longo tempo, o corrigiam e quiseram até
desistir – porque ele sempre segurava com essa mão e não com
aquela, ou segurava aquela mão e não essa – até que afinal
compreendeu que era preciso, com a sua mão direita, e sem
mudar de posição, segurar a mão direita da noiva. Quando,
enfim, tomou a mão da noiva
950
era o mesmo que dera a confissão a Liévin. Com olhar cansado
e tristonho, fitou o noivo e a noiva, suspirou e, pondo a mão
direita para fora da casula, abençoou com ela o noivo e
também, mas com um cuidadoso toque de carinho, pousou os
dedos cruzados sobre a cabeça abaixada de Kitty. Em seguida,
entregou a eles as duas velas e, depois de apanhar o
incensório, afastou- se lentamente.
951
– A-ben-ço-ai, Se-nhor! – lentamente, os sons solenes
vibraram, agitando ondas de ar.
serenamente.
952
Quando o diácono terminou a litania, o sacerdote voltou-se
para os noivos, com um livro:
953
em sua alma e que, no decorrer de todas aquelas seis semanas,
lhe trouxera alegria e tormento. Em sua alma, naquele dia em
que, com seu vestido marrom, ela se aproximou de Liévin na
sala da casa na rua Arbat e, em silêncio, entregou-se a ele
– em sua alma, nesse dia e nessa hora, efetivou-se um
rompimento completo com a sua vida anterior e teve início
uma vida totalmente distinta, nova, uma vida totalmente
desconhecida para ela, enquanto na realidade a vida antiga
prosseguia. Aquelas seis semanas foram as mais venturosas e
as mais torturantes para Kitty. Toda a sua vida, todos os
desejos e esperanças estavam concentrados só nesse homem,
para ela ainda incompreensível, ao qual a unia um sentimento
ainda mais incompreensível do que o próprio homem, um
sentimento que ora a
954
conseguia sequer imaginá-la com clareza. Tudo era expectativa
– medo e alegria, ante o novo e o desconhecido. E agora, de
súbito, a expectativa, o desconhecimento, o remorso pela
renúncia à vida anterior – tudo ia terminar, e teria início o novo.
Esse novo não podia deixar de ser assustador, pois era
desconhecido; porém, assustador ou não, ele já se cumprira em
sua alma seis semanas antes; agora, apenas recebera a
consagração daquilo que, desde muito tempo, já se consumara
em sua alma.
955
Dolly, Tchírikov e Stiepan Arcáditch adiantaram-se para ajudá-
los. Isso causou perplexidade, sussurros e sorrisos, mas a
expressão solene e comovida no rosto dos noivos não se
alterou; ao contrário, enquanto se atrapalhavam com as mãos,
olhavam ainda mais sérios e mais solenes do que antes, e o
sorriso com que Stiepan Arcáditch veio sussurrar que, agora,
cada um devia enfiar no dedo o seu anel extinguiu-se em seus
lábios, sem que ele o quisesse. Sentia que qualquer sorriso os
deixaria ofendidos.
Liévin sentia, cada vez mais, que todas as suas ideias sobre o
casamento, os seus sonhos sobre como havia de organizar sua
vida – tudo isso era uma infantilidade e que aquilo que, até
então, ele não havia compreendido, agora compreendia ainda
menos, embora estivesse acontecendo a ele; em seu peito,
erguia-se, cada vez mais alto, um estremecimento, e lágrimas
rebeldes vieram aos seus olhos.
956
CAPÍTULOV
957
– Dizem que quem é padrinho de casamento mais de dez
vezes não se casa; eu quis ser padrinho, agora, pela décima vez
para me pôr a salvo, mas a vaga já estava ocupada – disse o
conde Siniávin à bela princesa Tchárskaia, que tinha pretensões
quanto a ele.
vergonha.
958
– O irmão do senhor pode se orgulhar. Ela é um prodígio de
tão graciosa. Acho que o senhor está com inveja, não está?
– Que pena que ela tenha ficado tão mais feia – disse a
condessa Nordston para Lvova. – Mesmo assim, ele não vale
nem um dedo de Kitty. Não é verdade?
– Não, eu gosto muito dele. Não por ser o meu futuro beau-
frère – replicou Lvova. – E como ele se comporta bem! E é muito
difícil portar-se bem numa situação dessa, não se tornar
ridículo. E ele não está ridículo, não está tenso, é evidente que
está comovido.
959
– Pois eu pisei no tapete propositalmente antes de Vassíli. E
a senhora, Dolly? Dolly estava ao lado delas, ouviu, mas não
respondeu. Estava emocionada.
960
as palavras dos homens indiferentes, que diziam gracejos ou
comentários despropositados.
– É o coro de Tchudovo?
– É o do sínodo.
961
Assim falavam no meio da multidão das espectadoras que
haviam conseguido penetrar pela porta da igreja.
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C A P Í T U L O VI
963
Rezavam “concedei-lhes que os frutos do ventre sejam castos e
que eles se alegrem ante a visão de seus filhos e filhas”.
Mencionava-se que Deus criara a mulher de uma costela de
Adão “e por esse motivo o homem há de se separar do pai e
da mãe e unir-se à esposa, e serão os dois uma só carne”, e
que “isto é um
964
misturado com água, na taça rasa, e ainda maior foi a alegria
quando o sacerdote, depois de levantar a casula e segurar a
mão de ambos na sua mão, conduziu-os em redor do facistol,
sob as rajadas da voz do baixo, que disparava “Isaías,
rejubilai”.
965
para fora da igreja. Não acreditava, não conseguia acreditar
que era verdade. Só quando os seus olhares surpresos e tímidos
se encontraram, acreditou nisso, porque sentia que eles já eram
um só.
966
C A P Í T U L O VII
967
esfregou a testa suada e os cabelos que deixara crescer até a
metade das orelhas,
– Goleníchev!
– Vrónski!
968
patente de Vrónski. Por isso, ao encontrar Goleníchev,
Vrónski demonstrou aquela reação fria e orgulhosa, com que
sabia atingir as pessoas e cujo sentido era: “O senhor pode
gostar ou não gostar do meu modo de viver, mas para mim
isso não faz a menor diferença: o senhor tem de me
respeitar, se quiser me conhecer”. O próprio Goleníchev se
mostrara desdenhosamente indiferente ao tom de Vrónski. Esse
novo encontro, pelo visto,
969
– Ah! – exclamou Vrónski, com simpatia. – Vamos entrar.
970
Na realidade, aqueles que, na opinião de Vrónski,
compreendiam “da maneira correta” não compreendiam coisa
alguma do assunto e se portavam, no geral, como fazem
pessoas bem-educadas com relação a todas as questões
complicadas e insolúveis que cercam a vida, por todos os
lados – portavam-se com decoro, evitando alusões e perguntas
desagradáveis. Davam a impressão de compreender
plenamente a importância e o significado da situação, de
compreendê-la e até de aprová-la, mas julgavam inoportuno e
excessivo explicar
tudo isso.
971
simplesmente de Aleksiei e dizer que os dois iam mudar-se para
uma nova casa alugada, ali chamada de palazzo. Essa atitude
natural e franca a respeito de sua situação agradou a
Goleníchev. Vendo a maneira bondosa, alegre e resoluta de
Anna, e conhecendo tanto Aleksiei Aleksándrovitch quanto
Vrónski, Goleníchev teve a impressão de que compreendia Anna
inteiramente. Pareceu-lhe compreender aquilo que ela mesma
não compreendia, em absoluto: mais precisamente, como,
depois de causar a infelicidade do marido, depois de
abandonar a ele e ao filho e de pôr a perder o próprio bom
nome, ela podia sentir-se alegre, resoluta e feliz.
Pelo seu olhar, Vrónski compreendeu que ela não sabia que tipo
de relações ele pretendia manter com Goleníchev e que receava
não se haver comportado como ele desejava.
972
– Não, não muito – respondeu.
973
A princípio, Vrónski sentiu-se um pouco embaraçado por não
conhecer a primeira parte de Os dois princípios, a que o autor
se referia como a algo muito conhecido. Mas depois, quando
Goleníchev passou a expor seus pensamentos e Vrónski pôde
acompanhá-los, mesmo sem conhecer Os dois princípios,
escutou-o com certo interesse, pois Goleníchev falava bem.
Mas o surpreendia e o desgostava a emoção exasperada com
que Goleníchev falava sobre o tema a que se dedicava.
Quanto mais falava, mais seus olhos se inflamavam, mais
precipitadamente refutava contestações imaginárias e mais
alarmadas e ofendidas se mostravam suas feições. Ao lembrar
que Goleníchev tinha sido um menino magro, vivaz, nobre e de
boa índole, sempre o primeiro aluno da escola, Vrónski não
conseguia de forma alguma entender o motivo daquela
irritação e não a aprovava. Desagradava-lhe sobretudo o fato
de Goleníchev, homem da boa sociedade, se pôr em pé de
igualdade com uns reles escrevinhadores, irritar-se e aborrecer-
se com eles. Valeria a pena? Isso desagradou a Vrónski, mas,
apesar disso, percebia que Goleníchev era infeliz e sentiu
pena dele. A infelicidade, a quase loucura, se faziam visíveis
naquele rosto volúvel e bastante bonito, enquanto ele, sem
sequer notar a entrada de Anna, continuava a explanar suas
ideias com precipitação e fervor.
974
rápido movimento da mão bonita, deteve-se ao seu lado,
Vrónski, com um sentimento de alívio, desviou sua atenção do
olhar de Goleníchev, fixamente concentrado nele, e encarou
com um amor renovado sua amiga encantadora, cheia de
vida e de alegria. Goleníchev, com dificuldade, recuperou o
controle de si mesmo e a princípio se mostrou tristonho e
soturno, mas Anna, que manifestava uma disposição afetuosa
com todos (assim ela estava, nessa época), logo o reanimou
com a sua atitude natural e alegre. Depois de experimentar
diversos temas, Anna conduziu a conversa para a pintura, sobre
a qual ele discorria muito bem, e ela o escutou com atenção. A
pé, chegaram à casa alugada e a examinaram.
975
– Tem muito talento – disse Anna, com um sorriso alegre. –
Eu não sou um bom juiz, é claro! Mas juízes abalizados dizem o
mesmo.
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C A P Í T U L O VIII
977
inevitavelmente, a infelicidade daquele homem”, pensou, “mas
não quero tirar proveito dessa infelicidade; eu também sofro, e
vou sofrer: estou me privando daquilo que mais prezava no
mundo – o meu bom nome e o meu filho. Fiz um mal e por isso
não quero a felicidade, não quero o divórcio e vou sofrer por
causa da vergonha e da separação do meu filho”. No entanto,
por mais sinceramente que Anna quisesse sofrer, não sofria.
Não existia vergonha alguma. Com o tato que ambos tinham
de sobra, e evitando as senhoras russas no estrangeiro, eles
nunca se viam numa situação falsa e, em toda parte,
encontravam pessoas que fingiam compreender plenamente a
posição de ambos, e compreendêla até muito melhor do que
eles mesmos. A separação do filho, que ela amava – nem
sequer isso a atormentava nos primeiros tempos. A menina, o
seu bebê, era tão meiga e cativara Anna a tal ponto, pois era
tudo o que lhe restara, que ela raramente se lembrava do filho.
978
Sua aparência, que se havia alterado ao adotar trajes civis, era
para Anna tão atraente como se fosse uma recém-casada
apaixonada. Em tudo o que ele dizia, pensava e queria, Anna
encontrava algo especialmente nobre e elevado. Sua
admiração por ele, não raro, assustava a própria Anna:
procurava e não conseguia encontrar em Vrónski nada que
não fosse belo. Não se atrevia a lhe mostrar que tinha
consciência da sua inferioridade em relação a ele. Tinha a
impressão de que Vrónski, ciente disso, poderia deixar de
amá-la mais depressa; e agora não havia nada que ela mais
temesse do que perder o amor de Vrónski, embora não tivesse
nenhum motivo para tal temor. No entanto não podia deixar
de ser agradecida por sua atitude em relação a ela, nem podia
deixar de mostrar como dava valor a isso. Vrónski, que na
opinião de Anna tinha uma vocação tão evidente para a
carreira dos assuntos de Estado, onde havia de exercer um
papel de relevo, sacrificara sua ambição por causa dela, sem
jamais dar sinal do menor pesar. Ainda mais do que antes,
Vrónski se mostrava amorosamente respeitoso com Anna, e a
preocupação de que ela nunca se sentisse desconfortável com
a sua situação não o abandonava nem por um minuto. Ele, um
homem tão viril, não só jamais contradizia Anna como
também não tinha vontade própria e parecia dedicar-se
exclusivamente a adivinhar os desejos dela. E Anna não podia
deixar de apreciar isso, embora essa mesma tensão da sua
atenção em torno dela, essa atmosfera de cuidado em que ele
a envolvia, às vezes lhe fosse um peso.
979
Vrónski, por sua vez, apesar da plena realização daquilo que
tanto havia desejado, não era inteiramente feliz. Logo se deu
conta de que a realização de seus desejos lhe proporcionava
apenas um grão de areia da montanha de felicidade que
havia esperado. Tal realização revelara a ele o eterno engano
cometido pelas pessoas que imaginam alcançar a felicidade
por meio da realização dos desejos. Nos primeiros tempos,
logo depois de se unir a Anna e adotar trajes civis, sentiu todo
o encanto da liberdade em geral, que antes não conhecia, e
também da liberdade do amor, e ficou satisfeito, mas não por
muito tempo. Logo sentiu que em sua alma se erguiam os
desejos de desejos: o tédio. Malgrado seu, passou a aferrar-se a
qualquer capricho efêmero, que acatava como um desejo e
como um propósito. Era preciso ocupar-se com alguma coisa
durante dezesseis horas por dia, pois no estrangeiro viviam em
total liberdade, fora do círculo da vida em sociedade que, em
Petersburgo, ocupava seu tempo. Nos prazeres da vida de
solteiro, que antes da viagem para o exterior mantinham
Vrónski ocupado, não podia nem pensar, pois uma tentativa
dessa natureza, um
980
fora visto, não tinha para Vrónski, russo e inteligente, a
inexplicável importância que os ingleses sabem atribuir a tais
assuntos. E, assim como um animal faminto agarra qualquer
objeto que apareça à sua frente, na esperança de encontrar
nele algum alimento, Vrónski se agarrava de um modo
totalmente inconsciente ora à política, ora a livros novos, ora
a pinturas.
981
que aquilo que pintava ficasse muito parecido com o gênero de
arte que pretendia imitar.
982
C A P Í T U L O IX
983
– Aqui vamos vivendo sem saber de mais nada – disse
Vrónski certa vez para Goleníchev, que viera visitá-lo de manhã.
– Você viu o quadro de Mikháilov? – perguntou, entregando-lhe
o jornal russo que recebera pouco antes, naquela manhã, e
apontando a matéria sobre o pintor russo que morava naquela
mesma cidade e que havia terminado uma pintura sobre a
qual circulavam rumores desde muito tempo e que já fora
comprada de antemão. Na matéria, havia censuras dirigidas
ao governo e à Academia por deixarem um artista notável
sem nenhum estímulo e nenhuma ajuda.
984
exatamente o rosto que não se pode escolher para a arte, e
depois…
985
leite e por isso a cercava de atenções e de carinhos especiais,
não só a ela como também ao seu filho pequeno.
986
intelectual ele tinha pela frente. Mas entre nós, agora, ele
mergulha direto na literatura da negação, assimila muito
depressa todo o extrato da ciência da negação e está pronto.
Mais ainda: uns vinte anos atrás, ele encontraria nessa
literatura indícios de luta contra as autoridades, contra pontos
de vista que vigoram há séculos, e dessa luta deduziria que
ainda existia alguma outra coisa; mas agora ele mergulha
diretamente nessas obras que nem se dignam a discutir os
antigos conceitos e dizem logo de saída: não existe nada,
evolution, seleção, luta pela existência, e é tudo. Eu, em meu
artigo…
– Vamos visitá-lo!
987
ao encontro deles e lhes disse que Mikháilov permitia a entrada
em seu ateliê, mas que no momento estava fora, ali mesmo no
bairro, a dois passos de casa, mandaram a mulher levar seus
cartões de visita ao pintor, pedindo permissão para ver seus
quadros.
988
CAPÍTULOX
989
esposa e, de sobrancelhas franzidas, sem olhar para ela,
perguntou à filha mais velha onde estava o papel que lhes
dera. O papel com o desenho descartado foi encontrado, mas
estava sujo e manchado de estearina. Mesmo assim, pegou o
desenho, levou-o consigo, colocou sobre a sua mesa e, depois
de se afastar um pouco, estreitando os olhos, pôs-se a
examiná-lo. De repente, sorriu e abanou os braços com alegria.
990
ainda mais a figura inteira, com toda a sua força veemente,
tal como surgira para ele, de súbito, por efeito da mancha de
estearina. Arrematava com esmero a figura quando lhe
trouxeram os cartões de visita.
– Já vou, já vou!
991
no quadro o deixava agitado até o fundo da alma. Sempre
atribuía a seus críticos uma compreensão profunda e maior do
que aquela que ele mesmo tinha e deles sempre esperava algo
que ele mesmo não via em seu quadro. E, não raro, tinha a
impressão de encontrar isso na opinião dos espectadores.
992
– Tenham a bondade – disse ele, tentando manter um ar
indiferente e, ao entrar no vestíbulo, tirou uma chave do bolso e
abriu a porta.
993
C A P Í T U L O XI
994
o charlatão alemão e o idiota inglês prérafaelita, e vieram à
minha casa só para completar o roteiro”, pensou. Conhecia
muito bem a maneira como os diletantes (quanto mais
inteligentes, piores) observavam o ateliê dos pintores
contemporâneos com o único propósito de ter o direito de
dizer que a arte decaíra e que, quanto mais viam os novos,
mais constatavam como os grandes mestres antigos
permaneciam inimitáveis. Ele esperava tudo isso, via tudo isso
em seus rostos, na negligência indiferente com que
conversavam entre si, com que observavam os manequins e os
bustos, e no modo como passeavam à vontade, enquanto
esperavam que ele descobrisse o quadro. Porém, apesar disso,
enquanto Mikháilov revirava os seus esboços, levantava as
cortinas e retirava os lençóis, sentia uma forte emoção, ainda
mais porque, apesar de no seu entender todos os russos nobres
e ricos serem, por força, canalhas e idiotas, ele havia
simpatizado com Vrónski e sobretudo com Anna.
995
Naqueles poucos segundos em que os visitantes observavam o
quadro em silêncio, Mikháilov também o observou, e o fez com
um olhar indiferente e desinteressado. Durante esses poucos
segundos, estava convencido de antemão que um juízo
elevado e justo seria proferido por eles, exatamente os
visitantes que ele tanto desprezava, um minuto antes. Havia
esquecido tudo o que até então pensara sobre o seu quadro,
ao longo daqueles três anos em que o pintava; havia esquecido
todo o mérito do quadro, que para ele era inquestionável – via
o quadro pelo olhar indiferente, desinteressado e novo dos
visitantes e, nele, nada enxergava de bom. Via, no primeiro
plano, o rosto irritado de Pilatos e o rosto sereno de Cristo e, no
segundo plano, as figuras dos súditos de Pilatos e o rosto de
João, atento ao que se passava. Cada rosto, que à custa de
tamanha pesquisa e de tantos erros e reparos desenvolvera o
seu caráter próprio, cada rosto, que lhe trouxera tamanho
tormento e alegria, todos esses rostos, que tantas vezes foram
deslocados em benefício do conjunto, todos os matizes de cor e
de tonalidade, alcançados por Mikháilov com tamanha
dificuldade – tudo isso junto, agora, à luz dos olhos deles, lhe
parecia uma vulgaridade mil vezes repetida. O seu rosto
preferido, o do Cristo, no centro do quadro, que lhe causara
tanta emoção quando se revelara, perdeu toda a graça ao
observar o quadro pelos olhos dos visitantes. Via uma bem
desenhada (e nem tão bem assim – percebia agora
nitidamente uma porção de defeitos) repetição dos
intermináveis Cristos de Ticiano, Rafael, Rubens, e dos mesmos
996
soldados e do mesmo Pilatos. Tudo era vulgar, pobre e velho,
e até mal desenhado – desigual e fraco. Eles estariam cobertos
de razão, se pronunciassem expressões fingidas e educadas em
presença do artista, sentissem pena dele e rissem às suas
costas, quando estivessem a sós.
997
O rosto sempre vivaz de Mikháilov começou a brilhar, de
repente: os olhos cintilaram. Quis dizer alguma coisa, mas não
conseguiu falar, por causa da emoção, e fingiu pigarrear. Por
mais reduzida que considerasse a capacidade de apreciação
artística de Goleníchev, por mais insignificante que fosse aquele
comentário justo sobre a fidelidade da expressão do rosto de
Pilatos como um burocrata, por mais ofensiva que lhe pudesse
parecer a manifestação de uma observação tão insignificante
como essa, enquanto se deixavam de lado coisas muito mais
importantes, Mikháilov ficou maravilhado com tal comentário.
Ele próprio pensava o mesmo que dissera Goleníchev, sobre a
figura de Pilatos. O fato de aquela reflexão ser uma entre
milhões de outras que, como Mikháilov sabia muito bem, seriam
igualmente acertadas, não diminuía em nada, para ele, a
importância do comentário. Encheuse de afeição por
Goleníchev por conta desse comentário e, de um estado de
desânimo, passou de súbito para a euforia.
998
tolices que é tão fácil dizer quando se fala sobre arte. Pareceu a
Mikháilov que também neles o quadro produzira uma boa
impressão. Aproximou-se.
999
disse para Goleníchev e aludindo, com isso, a uma conversa
ocorrida entre ambos, em que Vrónski comentou sua falta de
esperança de alcançar aquela técnica.
1000
elogiá-lo. Em tudo o que pintara e pintava, percebia falhas que
cortavam seus olhos, fruto do descuido com que removera as
camadas que recobriam as figuras, falhas que agora ele não
podia corrigir sem estragar a obra inteira. E, em quase todas as
figuras e rostos, via restos das camadas não inteiramente
removidas, que prejudicavam o quadro.
1001
– Se procurasse, encontraria outros temas. Mas a questão é
que a arte não tolera discussões e argumentos. E quanto ao
quadro de Ivánov, para os crentes e para os ateus, surge a
pergunta: isto é Deus ou não é Deus? E a unidade de impressão
se destrói.
1002
C A P Í T U L O XII
1003
apoiada sobre as mãos, e contemplava a água com olhos
azuis e pensativos. Sobre o que pensava?
1004
O pé de Cristo em esboço, porém, não estava bom. Mikháilov
pegou a paleta e pôs-se a trabalhar. Enquanto corrigia o pé,
olhava a todo instante para a figura de João, no segundo
plano, que os visitantes não haviam notado, mas que, ele
sabia, era o máximo da perfeição. Depois de terminar o pé,
quis ocupar-se dessa figura, mas sentiu-se agitado demais
para isso. Do mesmo modo, não conseguia trabalhar quando
sentia frio, quando estava fatigado demais ou quando percebia
tudo bem demais. Na transição da frieza para o entusiasmo,
havia um só degrau em que era possível trabalhar. E nesse dia
ele estava agitado demais. Quis cobrir o quadro, mas se
deteve e, segurando o lençol na mão, sorrindo satisfeito,
contemplou demoradamente a figura de João. Por fim, como
se lamentasse interromper, soltou o lençol e, cansado, mas feliz,
foi para casa.
1005
instrução – infortúnio generalizado entre os nossos artistas
russos. Porém o quadro dos meninos gravara-se na sua
memória e a todo instante voltavam a falar dele.
1006
C A P Í T U L O XIII
1007
e às suas ideias, e além disso sentia que os elogios e estímulos
deviam ser recíprocos.
1008
a conhecê-lo mais de perto. E todos ficaram contentes quando
terminaram as sessões de pintura, em suas mãos restou o belo
retrato, e Mikháilov parou de vir à casa deles.
mas Vrónski não via essa diferença. Logo depois que o quadro
de Mikháilov ficou pronto, Vrónski parou de pintar o seu retrato
de Anna, decidindo que agora já era supérfluo. Quanto ao seu
quadro da vida medieval, continuou a pintá-lo. E ele mesmo,
assim como Goleníchev e sobretudo Anna, achava que estava
1009
muito bom, porque estava muito mais parecido com pinturas
famosas do que o quadro de Mikháilov.
1010
Mas, se a Goleníchev isso exasperava e atormentava, Vrónski
não conseguia iludir-se, atormentar-se e muito menos
exasperar-se. Com o caráter decidido que lhe era peculiar,
sem nada explicar ou justificar, parou de dedicar-se à pintura.
1011
C A P Í T U L O XIV
1012
mesmas ninharias insignificantes que ele tanto desprezara, mas
que agora, malgrado seu, adquiriam uma importância
extraordinária e incontestável. E Liévin percebia que a
organização de todas essas ninharias não era, em absoluto, tão
fácil como antes lhe parecera. Embora julgasse ter ideias
muito precisas sobre a vida em família, Liévin, como todos os
homens, não pôde deixar de imaginar que a vida em família
seria formada apenas pelas delícias do amor, que não
deveriam ser perturbadas por preocupações corriqueiras nem
tolhidas por nenhum obstáculo. No seu entender, cabia a ele
fazer o seu trabalho e depois repousar na felicidade do amor. À
esposa, cabia apenas ser amada. Mas Liévin, como todos os
homens, esquecia que ela também tinha de trabalhar. E
admirou- se como ela, a poética e encantadora Kitty, pôde não
só nas primeiras semanas, mas já nos primeiros dias da vida
em família, dedicar seus pensamentos, suas atenções e
cuidados às toalhas de mesa, aos móveis, aos colchões para
os visitantes, à bandeja, ao cozinheiro, ao almoço etc. Antes,
ainda quando noivo, Liévin ficara impressionado com a
firmeza com que ela recusara a viagem para o exterior e
resolvera partir para o campo, como se já soubesse o que era
preciso fazer e pudesse ainda pensar em outros assuntos que
não o seu amor. Isso o ofendeu, na ocasião, e agora as
preocupações e os afazeres corriqueiros de Kitty o ofendiam.
Mas percebia que, para ela, aquilo era indispensável. E, como a
amava, mesmo sem entender seus motivos, mesmo achando
graça daquelas preocupações, Liévin não podia deixar de
1013
deleitar-se com tudo isso. Achava graça no modo como ela
dispunha os móveis, trazidos de Moscou, como arrumava
de um modo novo o quarto de ambos, como pendurava as
cortinas, como distribuía
1014
gastar quanto dinheiro quisesse e encomendar o doce que
quisesse.
1015
quis passar por um caminho mais curto e se perdeu. Enquanto
vinha para casa, pensava só nela, no amor de Kitty, na sua
própria felicidade e, quanto mais se aproximava, mais se
inflamava em sua ternura pela esposa. Entrou correndo no
quarto com esse mesmo sentimento, e mais forte ainda do que
quando entrara na casa dos Cherbátski para lhe propor
casamento. E, de repente, deparou com uma expressão
soturna, como nunca vira em Kitty. Quis beijá-la, e ela o
rechaçou.
1016
sensação parecida com a de um homem que de repente recebe
uma pancada pelas costas, volta-se com raiva e com desejo de
vingança, para enfrentar o culpado, mas verifica que ele
próprio se machucou por descuido, que não há contra quem
ter raiva e que é preciso suportar a dor e amenizá-la.
Nunca mais voltou a sentir isso com a mesma força, mas, nessa
primeira vez, demorou muito tempo para se recuperar. Um
sentimento espontâneo exigia que ele se justificasse,
demonstrasse a Kitty a culpa que cabia a ela; mas
demonstrar sua culpa significava irritá-la ainda mais e
aumentar o rompimento que era a causa de todo o desgosto.
Um sentimento rotineiro o impelia a eximir-se da culpa e
transferi-la para Kitty; outro sentimento, mais forte, o impelia a
aplainar o rompimento o mais depressa possível e não deixar
que aumentasse. Era torturante ter de suportar uma acusação
tão injusta, mas seria ainda pior justificar-se e fazer Kitty sofrer.
Como um homem que, em estado de sonolência, sofre uma dor,
ele queria arrancar, extirpar de si o ponto dolorido, mas,
quando voltou a si, percebeu que o ponto dolorido era ele
mesmo. Só lhe restava
1017
um modo bastante frequente, e pelos motivos mais
inesperados e insignificantes. Muitas vezes, os conflitos se
produziam porque nenhum dos dois ainda sabia o que era
importante para o outro e, durante aquela primeira fase, os
dois em geral estavam de mau humor. Quando um estava bem
e o outro estava mal, a paz não era perturbada, mas quando
calhava de ambos estarem de mau humor, os conflitos se
produziam por motivos tão incompreensíveis e insignificantes
que, mais tarde, eles mesmos não conseguiam lembrar-se
sobre o que haviam discutido. É verdade que quando os dois
estavam de bom humor a sua alegria de viver duplicava. Mas,
apesar disso, os primeiros tempos de casados foram difíceis
para eles.
1018
Só no terceiro mês de casamento, após o regresso de Moscou,
aonde tinham ido passar um mês, sua vida tornou-se mais
estável.
1019
C A P Í T U L O XV
1020
escritos e ler o que fora redigido, Liévin constatou com
satisfação que valia a pena dedicar-se àquela obra. Tratava-se
de uma obra nova e útil. Entre as ideias anteriores, muitas lhe
pareceram excessivas e extremadas, mas muitas lacunas se
tornaram claras para ele, quando repassou toda a questão em
sua memória. Escrevia agora um capítulo novo sobre as causas
da situação desfavorável da agricultura na Rússia.
Demonstrava que a pobreza da Rússia decorria não só da
injusta distribuição da propriedade agrária e de uma diretriz
equivocada, como também contribuíra para isso, nos últimos
tempos, o enxerto anômalo de uma civilização estrangeira na
Rússia, em especial as vias de comunicação, as estradas de
ferro, que acarretaram a centralização nas cidades, o
incremento do luxo e,
1021
vias de comunicação correspondentes e que, em nosso
injusto usufruto da terra, as estradas de ferro, concebidas não
por uma necessidade econômica, mas sim política, eram
prematuras e, em lugar de auxiliarem a agricultura, como
delas se esperava, deixaram a agricultura para trás e
provocaram o desenvolvimento da indústria e do crédito,
estagnaram a agricultura, e que por isso, assim como o
desenvolvimento unilateral e prematuro de um órgão no
corpo de um animal representaria um estorvo para o seu
desenvolvimento geral, o mesmo representavam, para o
desenvolvimento geral da riqueza na Rússia, o crédito, as vias
de comunicação e o fortalecimento das atividades fabris, sem
dúvida necessários na Europa, onde se mostravam oportunos,
enquanto em nosso país só causavam dano, ao deixar de lado
a questão importante e premente da organização da
agricultura.
1022
de olhar seu rosto; será que sente que estou olhando para ele?
Quero que ele se volte… Quero, já!” E arregalou os olhos, no
intuito de reforçar assim o efeito do olhar.
sorriso de felicidade.
1023
– Não, me diga, o que era? – perguntou Liévin, sentando-se
ao lado de Kitty e observando os movimentos circulares da
tesoura pequenina.
1024
que surgiram com a vinda de Kitty. Liévin sorria dos próprios
pensamentos e balançava a cabeça em desaprovação a eles;
um sentimento semelhante ao arrependimento o torturava.
Havia algo vergonhoso, afeminado, capouliano,[7] como ele o
chamava, na sua vida atual. “Não é bom viver assim”,
pensava. “Daqui a pouco, vai fazer três meses, e não fiz quase
nada. Hoje, quase pela primeira vez, eu me dediquei ao
trabalho com seriedade, e o que aconteceu? Mal comecei,
pus de lado. Mesmo os meus afazeres de costume, até isso
eu quase abandonei. Quanto à propriedade, quase não
caminho pelas minhas terras, nem saio de carruagem. Às
vezes, tenho pena de deixar Kitty sozinha, outras vezes vejo
que ela está entediada. E eu que pensava que a vida antes do
casamento não era nada, não contava, e que a vida verdadeira
só começaria depois do casamento. Pois daqui a pouco vai
fazer três meses e eu nunca passei meu tempo de modo tão
ocioso e inútil. Não, assim não é possível, é preciso começar.
Claro, ela não tem culpa. Não há o que censurar nela. Eu é que
deveria ser mais firme, fazer valer a minha independência
masculina. Ou então, deste modo, eu mesmo vou acabar me
acostumando e levarei Kitty a se habituar, também… Claro,
ela não tem culpa”, disse para si.
1025
a Liévin a ideia de que Kitty não tinha culpa (não podia ser
culpada de nada), mas a culpa estava na educação que a
esposa recebera, excessivamente superficial e frouxa (“aquele
idiota do Tchárski: ela, eu sei, queria detê-lo, mas não soube
como”). “Sim, afora os interesses domésticos (isto ela tem),
afora a sua toalete e a broderie anglaise, Kitty não tem
interesses sérios. Nenhum interesse pelo meu trabalho, pela
propriedade, pelos mujiques, nem pela música, para a qual
tem bastante aptidão, nem pela leitura. Ela não faz nada e
sente-se perfeitamente satisfeita.” Liévin, no fundo,
condenava isso e ainda não compreendia que sua esposa se
preparava para o período de atividade que, para ela, teria
início quando se tornasse, ao mesmo tempo, esposa do
marido e senhora da casa, e iria dar à luz, amamentar e
educar os filhos. Liévin não pensava que ela intuitivamente
sabia disso e, preparando-se para aquele trabalho terrível, não
se censurava pelos minutos de despreocupação e de
felicidade amorosa que agora desfrutava, enquanto construía
alegremente o seu ninho futuro.
1026
C A P Í T U L O XVI
1027
era a segunda carta de Mária Nikoláievna. Na primeira,
escrevera que o irmão a mandara embora sem que ela tivesse
culpa alguma e, com ingenuidade comovente, acrescentava
que, embora estivesse de novo na miséria, nada pedia, nada
queria, mas que apenas a atormentava o pensamento de que
Nikolai Dmítrievitch estaria perdido sem ela, por causa da
debilidade de sua saúde, e pedia que o irmão cuidasse dele.
Dessa vez, escrevia outra coisa. Havia reencontrado Nikolai
Dmítrievitch, unira-se de novo a ele, em Moscou, e partiram
ambos para uma cidade de província onde ele recebera um
cargo no serviço público. Mas lá ele desentendeu-se com o
chefe e tomou o caminho de volta para Moscou, porém na
estrada adoeceu tanto que talvez não pudesse levantar-se
outra vez – escrevia ela. “É sempre do senhor que ele se lembra,
e não há mais dinheiro.”
– Leia isto aqui, Dolly escreve sobre você – Kitty fez menção
de sorrir, mas, de repente, se conteve ao notar que a expressão
do rosto do marido se havia alterado.
1028
– Amanhã.
– Para quê? Por isso mesmo, pelo mesmo motivo que você.
“Num momento tão grave para mim, ela só pensa que vai ficar
entediada, sozinha”, pensou Liévin. E aquele pretexto numa
questão de tamanha gravidade deixou-o encolerizado.
– Pois eu lhe digo que, se você for, irei também com você, e
irei sem falta – replicou ela, com precipitação e furiosa. – Por
que é impossível? Por que você diz que é impossível?
1029
– Porque significa ir só Deus sabe aonde, só Deus sabe por
que estradas e por que hotéis. Você vai me deixar constrangido
– disse Liévin, tentando manter o sangue-frio.
1030
– Então para quê você se casou? Poderia ficar livre. Para
quê, se você está arrependido? – retrucou Kitty, que se levantou
com um movimento brusco e correu para a sala.
1031
ela tivesse contato com a mulher que vivia com o irmão, e
Liévin pensava com horror em todas as desavenças acaloradas
que teriam pela frente. A simples ideia de que a sua esposa, a
sua Kitty, estaria em um mesmo cômodo com uma prostituta o
fazia estremecer de repulsa e horror.
1032
C A P Í T U L O XVII
1033
Como sempre, aconteceu que, após a pergunta sobre que faixa
de preço os interessava, não havia nenhum quarto bom
disponível: um quarto bom estava ocupado por um fiscal da
estrada de ferro, o outro por um advogado de Moscou, um
terceiro pela princesa Astáfieva, que viera do campo. Restava
um quarto sujo, junto ao qual havia um outro, que prometeram
liberar ao anoitecer. Liévin conduziu a esposa para o quarto
designado para eles, irritado com Kitty porque havia
acontecido aquilo que temia, ou seja, que logo no momento da
chegada, quando seu coração se agitava de ansiedade ao
pensar em como estaria o irmão, era obrigado a se preocupar
com ela, em vez de correr logo ao encontro do irmão.
1034
– Vou sair, vou para a cozinha – falou. – Ele vai ficar
contente. Ele soube, conhece a sua senhora e se lembra dela,
do estrangeiro.
1035
– Bem, então entrem – disse Kitty, dirigindo-se a Mária
Nikoláievna, que se
1036
desse corpo estava pousada por cima da colcha e, enorme
como um ancinho, tinha o pulso inconcebivelmente preso a um
fuso comprido, fino e reto, do início até a metade. A cabeça
jazia de lado sobre o travesseiro. Liévin podia ver os cabelos
ralos e suados nas têmporas, a testa contraída e como que
transparente.
1037
– Sim… não – respondeu Liévin, confundindo-se com as
palavras. – Por que não me mandou notícias antes, ou seja,
ainda na época do meu casamento? Procurei saber de você por
toda parte.
Era preciso falar para evitar o silêncio e ele não sabia o que
dizer, ainda mais porque o irmão nada respondia, limitava-se a
olhar, sem desviar os olhos e, pelo visto, pesava o significado
de cada palavra. Liévin informou ao irmão que sua esposa o
acompanhara. Nikolai manifestou prazer, mas disse temer
assustá-la
1038
Liévin nada respondeu. Quando saiu para o corredor, deteve-
se. Dissera que ia buscar a esposa, mas agora, ao se dar conta
do sentimento que experimentava, decidiu que, ao contrário,
tentaria convencê-la a não visitar o doente. “Para que haveria
ela de se atormentar como eu?”, pensou.
Apenas me leve até lá, por favor, leve-me e depois saia – disse.
– Compreenda que, para mim, ver você e não ver a ele é muito
mais penoso. Lá eu poderei, quem sabe, ser útil a você e
também a ele. Por favor, deixe! – suplicou ao marido, como se a
felicidade de sua vida dependesse disso.
1039
entrou no quarto do doente e, depois de se virar sem pressa,
fechou a porta sem fazer ruído. Rápida e com passos
silenciosos, aproximou-se do leito do enfermo e, dando a volta
de modo que ele não precisasse virar a cabeça, tomou na sua
mão fresca e jovem o esqueleto da mão enorme do doente,
apertou-a e, com aquela vivacidade tranquila, tão própria às
mulheres, que demonstra compaixão sem ofender, começou a
falar com ele.
1040
– Receio que o senhor, aqui, não esteja de todo confortável
– disse Kitty, desviando-se do olhar fixo de Nikolai e correndo
os olhos pelo quarto. – Será preciso pedir um outro quarto ao
hotel – disse para o marido – e depois cuidar para que os
nossos quartos fiquem mais próximos.
1041
C A P Í T U L O XVIII
1042
doente lhe dava pena. E, em sua alma de mulher, a
comiseração não despertava em absoluto aquele sentimento
de horror e de repugnância que despertava em seu marido,
mas sim uma necessidade de agir, de conhecer todos os
detalhes da situação de Nikolai e ajudá-lo. E como não havia
em Kitty a menor dúvida de que devia ajudá-lo, também não
tinha dúvida de que isso era possível, e imediatamente pôs
mãos à obra. Os mesmos pormenores que ao marido, só de
pensar, causavam horror, atraíram de imediato a atenção de
Kitty. Ela mandou chamar o médico, mandou ir à farmácia,
obrigou a criada que a acompanhara e Mária Nikoláievna a
varrer, a limpar a poeira e a lavar, enquanto ela mesma
1043
parecesse indiferente em relação a isso, o doente não se
zangava, apenas ficava envergonhado e, no geral, parecia
interessar-se pelo que ela fazia por ele. Quando voltou do
médico, que a esposa o mandara procurar, Liévin abriu a
porta do quarto e surpreendeu o doente no momento em que,
por ordem de Kitty, trocavam suas roupas de baixo. O
arcabouço alongado e branco das costas estava nu, com as
imensas espáduas salientes, as costelas e as vértebras
protuberantes, e Mária Nikoláievna e o criado se atrapalhavam
com a manga da camisa e não conseguiam enfiar por ali o
braço comprido e pendente. Kitty, que veio depressa fechar a
porta às costas de Liévin, não olhava para aquele lado; mas
o doente começou a gemer e ela rapidamente caminhou na
direção dele.
1044
Quando voltou com o frasco, Liévin já encontrou o doente
acomodado e tudo à sua volta completamente modificado. O
cheiro desagradável se transformara num cheiro de vinagre
balsâmico, graças aos perfumes que, de lábios franzidos e
com as bochechas cor-de-rosa infladas, Kitty borrifava através
de um tubinho. Não se notava poeira em parte alguma, junto
à cama havia um tapete. Sobre a mesa, dispostos com esmero,
estavam os frascos, uma garrafa, a roupa de baixo
dobrada e o trabalho de broderie anglaise de Kitty. Na outra
mesa, junto à cama do doente, havia uma bebida, uma vela e
uns pozinhos. O próprio doente, bem lavado e penteado, jazia
sobre lençóis limpos, em travesseiros altos e levantados, numa
camisa limpa com a gola branca em volta do pescoço
estranhamente fino
1045
palavras: “a sua Kátia”, mas pelo olhar que dirigiu para ela,
Liévin compreendeu que a elogiava. E mandou vir Kátia, como
ele a chamava.
Como foi horroroso, para Liévin, tomar nos braços aquele corpo
terrível, tocar por baixo da colcha nos lugares que ele preferia
ignorar, porém, cedendo à influência de Kitty, assumiu no
rosto a expressão decidida que sua esposa bem conhecia e,
depois de estender os braços, agarrou-o, mas, apesar da sua
1046
força, ficou impressionado com o peso estranho dos membros
macilentos. Enquanto movia o doente, sentindo por trás do
próprio pescoço aquele braço enorme e descarnado, Kitty,
rapidamente e sem fazer ruído, virou o travesseiro, amaciou-o
com um tapinha, acomodou a cabeça do doente e ajeitou seus
cabelos ralos, que de novo se haviam grudado às têmporas.
1047
C A P Í T U L O XIX
1048
também partilhavam essa maneira de ver com milhões de
outras pessoas. A prova de que elas sabiam com segurança o
que era a morte consistia em que ambas, sem hesitar um só
minuto, sabiam como deviam lidar com os moribundos e não os
temiam. Liévin e os outros, embora pudessem falar muito sobre
a morte, obviamente não o sabiam, pois temiam a morte e
ignoravam completamente o que era preciso fazer quando as
pessoas morriam. Se Liévin estivesse agora sozinho com o
irmão Nikolai, teria ficado olhando para ele com horror e, com
um horror ainda maior, esperaria, incapaz de fazer qualquer
coisa.
Além disso, não sabia o que dizer, como olhar, como caminhar.
Falar de outros assuntos lhe parecia ofensivo, era impossível;
falar sobre a morte, sobre coisas soturnas, também era
impossível. Calar-se também era impossível. “Se eu olhar, ele
vai pensar que eu o estou examinando, que tenho medo; se eu
não olhar, vai achar que estou pensando em outras coisas. Se
eu caminhar na ponta dos pés, ele vai ficar aborrecido; pisar
firme é constrangedor.” A própria Kitty, pelo visto, não pensava
e não tinha tempo de pensar em si; pensava nele, porque sabia
alguma coisa, e tudo corria bem. Ela lhe falava de si, contava
como foi o seu casamento, e sorria, tinha pena, fazia-lhe
carinhos, falava de casos de cura e tudo corria bem; portanto,
ela sabia. A prova de que a atividade de Kitty e de Agáfia
Mikháilovna não era instintiva, animal, impensada, residia em
que, além dos cuidados físicos, do alívio do sofrimento, tanto
1049
Agáfia Mikháilovna quanto Kitty desejavam para o moribundo
ainda outra coisa, mais importante do que os cuidados
físicos, e que não tinha nenhuma relação com as condições
físicas em geral. Agáfia Mikháilovna, ao falar sobre um velho
que morrera, disse: “Bem, graças a Deus ele comungou e
recebeu a extrema-unção, Deus conceda a todos morrerem
assim”. Kátia, da mesma forma, além de todos os afazeres em
torno da roupa branca, das escaras, das beberagens, desde o
primeiro dia, ainda encontrava tempo de falar ao doente sobre
a necessidade de comungar e de receber a extrema-unção.
1050
mostra que todo o seu passado não foi um desperdício, mas
uma preparação para esses instantes.
1051
Kitty, olhando para o marido com o canto dos olhos, por trás
dos cabelos. – Tudo pode acontecer – acrescentou, com aquela
expressão peculiar, um pouco astuta, que sempre surgia em
seu rosto quando falava sobre religião.
1052
ruborizadas de prazer, enrolou umas trancinhas na nuca e
prendeu-as. – Não – prosseguiu –, ela não sabia… Eu, por sorte,
aprendi muita coisa em Soden.
– Pior.
1053
C A P Í T U L O XX
1054
salientes e o peito oco e estertorante, que já não podiam conter
dentro de si aquela vida que o doente pedia. Durante o
sacramento, Liévin também rezou e fez o que ele, um incrédulo,
já fizera mil vezes. Disse, dirigindo-se a Deus: “Se existis, fazei
este homem curar-se (afinal, isso já se repetiu muitas vezes) e
salvareis a ele e a mim”.
– É espantoso.
1055
todas as esperanças, nas pessoas que o cercavam e também
nele mesmo. A realidade do sofrimento as destruiu em Liévin,
em Kitty e no próprio doente, sem deixar nenhuma dúvida e até
nenhuma lembrança das esperanças anteriores.
1056
Os dois correram para o quarto. Soerguido, o doente estava
sentado sobre a cama, apoiado na mão, as costas compridas
curvadas e a cabeça muito baixa.
1057
Liévin deitou o irmão sobre as costas, sentou-se ao seu lado e,
sem respirar, mirou o seu rosto. O moribundo estava deitado de
olhos fechados, mas, na testa, de vez em quando se agitavam
uns músculos, como num homem que pensa de modo intenso e
profundo. Liévin, involuntariamente, pensava junto com ele a
respeito do que ocorria naquele momento com o irmão, mas,
apesar do esforço do pensamento para acompanhar os seus
passos, Liévin via pela expressão do seu rosto sereno e severo e
pelo movimento dos músculos acima das sobrancelhas que,
para o moribundo, se tornava cada vez mais claro aquilo
mesmo que, para Liévin, ficava cada vez mais obscuro.
1058
muito tempo. Não conseguia mais pensar na questão da
morte propriamente dita e, sem querer, lhe acudiam
pensamentos sobre o que precisava fazer agora, naquele
1059
quis sair na ponta dos pés, mas, de novo, o doente mexeu-se e
falou:
– Não saia.
1060
vão e Liévin percebia que mesmo ela estava física e
moralmente esgotada, embora não o admitisse. Aquele
sentimento da morte, despertado em todos pela sua despedida
da vida naquela noite em que chamara o irmão, fora destruído.
Todos sabiam que ele morreria em breve e inevitavelmente, que
já estava meio morto. Todos só
1061
– Não, nem um pouco! – respondeu Nikolai, com irritação. –
Escreva-lhe para que me mande um médico.
1062
desejos. Toda a vida de Nikolai convergia para um único
sentimento, o sofrimento e também o desejo de livrar-se disso.
1063
O médico explicou que a doença advinha do cansaço, da
agitação, e recomendou-lhe paz de espírito.
– Doendo onde?
– Tudo.
1064
– Deste jeito – explicou ela, repuxando as pregas do seu
vestido de lã. De fato, Liévin notara que, durante todo esse dia,
o doente agarrava a si mesmo, como se quisesse arrancar
alguma coisa.
1065
no silêncio, ouviram-se com nitidez, vindo do fundo do peito,
sons distintamente agudos:
1066
C A P Í T U L O XXI
1067
incompreensível, em que agora sentia encontrar-se. Não
conseguia, agora, conciliar o seu recente perdão, a sua
comoção, o seu amor pela esposa enferma e pela filha de um
estranho, com o que agora ocorria, ou seja, com o fato de que,
como uma recompensa por tudo isso, ele agora se encontrava
sozinho, desonrado, escarnecido, sem ninguém que precisasse
dele, e desprezado por todos.
1068
Sua Excelência sua esposa, tenha a bondade de me informar
o endereço.
1069
das pessoas era esconder delas as suas feridas e, de forma
inconsciente, vinha tentando fazer isso havia dois dias, mas
agora já se sentia sem forças de levar adiante essa luta
desigual.
1070
morrido pouco depois do casamento de Aleksiei
Aleksándrovitch.
1071
quem podia discutir com franqueza as atividades de outras
pessoas e ações do alto escalão do governo; mas as relações
com essas pessoas restringiam-se a um campo rotineiro e
habitual, delimitado com rigor, do qual era impossível se
afastar. Havia um colega de universidade do qual mais tarde
ele se aproximou e com quem poderia conversar sobre um
desgosto pessoal; mas esse colega era curador de ensino numa
circunscrição distante. Entre as pessoas que moravam em
Petersburgo, as mais próximas e mais disponíveis eram o seu
secretário e o seu médico.
1072
um acordo tácito segundo o qual os dois estavam sempre
sobrecarregados de trabalho e precisavam apressar- se.
1073
C A P Í T U L O XXII
1074
amarelo, que já não era bonito, ficou ainda menos bonito; mas
Aleksiei Aleksándrovitch sentiu que a condessa tinha pena dele
e estava a ponto de chorar. E lhe veio uma comoção: agarrou
sua mão roliça e pôs- se a beijá-la.
1075
– Estou fraco. Estou aniquilado. Não previ nada e, agora,
nada compreendo.
1076
consegui suportar a maneira como o meu filho me olhava. Ele
não me perguntou o que significa tudo isso, mas queria
perguntar, e eu não consegui suportar esse olhar. Ele sentiu
medo de olhar para mim, mas isso não é tudo…
1077
há de ser engrandecido. E o senhor não pode ser grato a mim. É
preciso agradecer a Ele e pedir ajuda a Ele. Só Nele
encontraremos a paz, o consolo, a salvação e o amor –
concluiu e, depois de erguer os olhos para o céu, começou a
rezar, como Aleksiei Aleksándrovitch deduziu do seu silêncio.
1078
– Agora, vou pôr mãos à obra – disse ela, com um sorriso,
após um breve silêncio, enquanto enxugava do rosto as
lágrimas restantes. – Vou conversar com
1079
interpretação da doutrina cristã que se difundia em
Petersburgo nos últimos tempos. Para Aleksiei Aleksándrovitch,
foi fácil persuadir-se. Assim como Lídia Ivánovna e as demais
pessoas que compartilhavam tais opiniões, Aleksiei
Aleksándrovitch era de todo carente de profundidade de
imaginação, essa faculdade do espírito graças à qual as
representações evocadas pela imaginação afiguram-se tão
reais que exigem um tratamento equivalente ao das demais
representações e ao da própria realidade. Ele não via nada de
impossível ou de incongruente na ideia de que a morte, que
existia para os incrédulos, não existisse para ele, e que, como
dispunha de uma fé plena, de cuja medida ele mesmo era o juiz,
já não havia pecados em sua alma e já desfrutava aqui, na
terra, a salvação completa.
1080
outros, que ele se aferrava à sua salvação fictícia como se
fosse a salvação propriamente dita.
1081
C A P Í T U L O XXIII
1082
complexos que mantinha na corte e na sociedade mundana.
Porém, após o infortúnio que acometera Kariênin, desde que
ela o tomou sob a sua proteção especial, desde que passou
a se incumbir da casa de Kariênin, zelando pelo seu bem-estar,
a condessa se deu conta de que todos os demais amores não
eram verdadeiros e que, agora, estava sinceramente
apaixonada só por Kariênin. O sentimento que então
experimentava em relação a ele parecia-lhe mais forte do que
todos os sentimentos anteriores. Ao analisar seu sentimento e
ao compará-lo com os anteriores, via claramente que não se
teria apaixonado por Komissárov se ele não tivesse salvado
a vida do imperador,[9] não se teria apaixonado por Ristitch-
Kudjítski se não existisse a questão eslava,[10] mas que, no
caso de Kariênin, ela o amava por ele mesmo, por sua alma
elevada e incompreendida, pelo som fino e, para ela,
encantador de sua voz, com a sua entonação arrastada, ela
o amava pelo seu olhar cansado, pelo seu caráter e por suas
mãos brancas e macias, de veias salientes. Ela não só se
regozijava de ter encontrado Kariênin como procurava em seu
rosto sinais da impressão que estava produzindo sobre ele.
1083
agitação quando ele entrava, não conseguia conter o sorriso de
admiração quando ele lhe dizia coisas gentis.
1084
– Quem trouxe?
– Um mensageiro do hotel.
Anna
1085
Tudo na carta irritou a condessa Lídia Ivánovna: o conteúdo, a
alusão à generosidade e sobretudo o tom, que lhe pareceu
atrevido.
1086
C A P Í T U L O XXIV
1087
da porta do salão, ao lado de um dos membros influentes do
Conselho de Estado, e vestia o uniforme da corte, com a nova
fita vermelha atravessada sobre o ombro. – Está feliz e
satisfeito, radiante como uma moedinha de cobre –
acrescentou, no momento em que se detinha para apertar a
mão de um camareiro atlético e garboso.
1088
– C’est um homme qui n’a pas…[13] – quis começar o
camareiro, mas se deteve, abrindo caminho e curvando-se
para uma pessoa da família imperial, que passava.
1089
Mas Aleksiei Aleksándrovitch não se dava conta disso e, ao
contrário, afastado da participação direta das atividades do
governo, via agora com mais clareza do que antes as
deficiências e os erros na ação dos outros e considerava seu
dever indicar os meios de corrigi-los. Logo após a separação da
esposa, ele começou a escrever um relatório sobre um novo
processo judicial, o primeiro de uma inumerável série de
relatórios, dos quais ninguém tinha nenhuma necessidade e
que ele estava fadado a escrever, sobre todas as esferas da
administração pública.
1090
interrompeu sua explanação quando o membro do Conselho
aproveitou a passagem de uma pessoa da família imperial
para escapar.
1091
– Muito obrigado – respondeu Aleksiei Aleksándrovitch. –
Que dia lindo está hoje – acrescentou, enfatizando, da sua
maneira habitual, a palavra “lindo”.
1092
não só de simpatia em relação a ele, mas também de amor, em
meio ao mar de hostilidade e de escárnio que o rodeava.
1093
que era sua obrigação preocupar-se com a educação do filho
que ficara em suas mãos. Como nunca antes se interessara por
questões de educação, Aleksiei Aleksándrovitch consagrou
certo tempo ao estudo teórico da matéria. E, após ler alguns
livros de antropologia, pedagogia e didática, Aleksiei
Aleksándrovitch elaborou para si um plano de educação e,
contratando o melhor preceptor de Petersburgo para
supervisioná-lo, pôs mãos à obra. E dedicava-se
constantemente a esse assunto.
1094
A condessa Lídia Ivánovna fitou-o com enlevo, e lágrimas de
admiração, ante a grandeza da alma de Kariênin, romperam
em seus olhos.
1095
C A P Í T U L O XXV
1096
– Eu, ao contrário, vejo que todos são maus. Porém seria
isso justo?
1097
A condessa Lídia Ivánovna cobriu o rosto com as mãos e ficou
em silêncio.
Rezava.
Prezada senhora,
1098
Condessa Lídia
1099
um outro homem queimavam o seu coração com a vergonha e
com o remorso.
casamento.
1100
C A P Í T U L O XXVI
1101
Desde então, Serioja, que o encontrara ainda outra vez na
entrada, passou a interessar-se pelo funcionário.
– É um livro?
1102
tiracolo e, piscando o olho, apontou com a cabeça para o
preceptor.
1103
exceto Serioja, que o olhava sempre e exclusivamente de baixo
para cima.
– E então, faz muito tempo que a sua filha não vem? A filha
do porteiro era dançarina de balé.
– E mais acima?
1104
– E acima da Andriei?
– Não sei.
Acreditava não ter culpa por não haver aprendido a lição; por
mais que se esforçasse, não conseguia aprender: enquanto o
professor lhe explicava, ele acreditava e parecia compreender,
mas, tão logo se via sozinho, não conseguia de maneira alguma
lembrar nem compreender que a expressão “subitamente”, tão
curtinha e conhecida, era um advérbio de modo. Mesmo
assim teve pena de causar um desgosto ao professor e quis
consolá-lo.
1105
Escolheu um momento em que o professor olhava para o livro,
em silêncio.
1106
C A P Í T U L O XXVII
1107
pela vereda, esperando que fosse a mãe. A mulher não chegou
até eles, esquivou-se para algum recanto. Serioja sentia, hoje
mais forte do que nunca, um acesso de amor pela mãe e agora,
perdido em devaneios, à espera do pai, retalhava toda a
beirada da mesa com o canivete, enquanto mirava à sua
frente, com olhos radiantes, e pensava nela.
1108
valor não é a recompensa, mas sim o trabalho. E eu gostaria
que você compreendesse isso. Pois se você for
1109
A lição consistia em aprender de cor alguns versículos do
Evangelho e repetir o início do Velho Testamento. Os versículos
do Evangelho, Serioja sabia muito bem, mas no momento em
que os recitava, viu de relance o osso da testa do pai, que fazia
uma curva tão abrupta na altura das frontes que ele se
confundiu e trocou o fim de um versículo pelo início de outro,
que tinha uma palavra igual. Para Aleksiei Aleksándrovitch, era
óbvio que o filho não entendia o que estava falando, e isso o
deixou irritado.
1110
mas agora esquecera completamente, sobretudo porque
Enoque era o seu personagem predileto em todo o Velho
Testamento e o rapto de Enoque vivo para o céu se prendia, em
sua cabeça, a toda uma longa série de pensamentos, aos quais
ele agora se entregava, enquanto fitava com olhos fixos o
relógio de correntinha do pai e um botão abotoado só até a
metade, no seu colete.
morrer e, sobretudo, que ele mesmo morreria. Para ele, isso era
absolutamente impossível e incompreensível. Mas lhe diziam
que todos iam morrer; ele perguntava às pessoas em quem
acreditava e mesmo elas o confirmavam; a babá também o
dizia, embora a contragosto. Mas Enoque não morrera,
portanto nem todos morrem. “E por que não pode qualquer
outra pessoa ser digna de Deus e ser arrebatada viva para o
céu?”, pensava Serioja. Os maus, ou seja, aqueles de quem
Serioja não gostava, esses podiam morrer, mas todos os bons
podiam ser como Enoque.
– Enoque, Enós.
1111
um cristão – disse o pai, levantando-se –, o que há de interessar
a você? Estou insatisfeito com você, e Piotr Ignátitch (era o
principal professor) está insatisfeito com você… Tenho de
castigá-lo.
1112
O pai castigou Serioja, proibindo-o de encontrar Nádienka, a
sobrinha de Lídia Ivánovna; mas tal castigo redundou numa
felicidade para Serioja. Vassíli Lúkitch estava de bom humor e
lhe mostrou como fazer cata-ventos. A tarde inteira se passou,
para Serioja, em meio a esse trabalho e aos devaneios de
como montar um cata-vento capaz de fazê-lo girar também:
agarrar-se com as mãos nas pás de vento, ou amarrar-se – e
girar. Serioja não pensou na mãe a tarde inteira, mas, depois
de se acomodar na cama, de repente lembrou-se dela e rezou
com suas próprias palavras para que no dia seguinte, no seu
aniversário, a mãe parasse de se esconder e viesse ao seu
encontro.
– Não.
– Brinquedos?
1113
– Sem a vela, fica ainda mais visível para mim aquilo que eu
vejo e aquilo por que eu rezei. Puxa, quase contei o meu
segredo! – disse Serioja, rindo alegre.
XXVIII
1114
mulher, e pediu ao irmão que comunicasse isso à mãe e à
cunhada.
1115
de todo e qualquer progresso), a opinião da sociedade se
modificara e ainda não fora decidido se ele e Anna seriam ou
não recebidos na sociedade. “Claro”, pensava Vrónski, “a
sociedade da corte não a receberá, mas as pessoas próximas
podem e devem entender isso da maneira adequada”.
1116
Vrónski notou que o entusiasmo de Betsy diminuiu quando
soube que o divórcio ainda não se concretizara.
– Vão atirar pedras contra mim, eu sei – disse ela –, mas irei
visitar Anna; sim, eu irei, sem falta. Vão ficar aqui pouco
tempo?
De fato, nesse mesmo dia, foi visitar Anna; mas seu tom já não
era, nem de longe, o mesmo de antes. Obviamente, orgulhava-
se de sua coragem e desejava que Anna desse valor ao desvelo
de sua amizade. Ficou não mais de dez minutos, conversou a
respeito das novidades mundanas e, ao sair, disse:
novamente.
1117
Parecia-lhe que ela não jogaria pedras e, com naturalidade e
firmeza, viria ao encontro de Anna e a receberia em sua casa.
1118
silêncio, compreendendo que a decisão da cunhada era
irrevogável.
1119
de dedo machucado, que ele sempre, como que de propósito,
esbarra em toda parte com esse mesmo dedo.
1120
C A P Í T U L O XXIX
1121
necessárias. Mas a babá já não estava na casa de Aleksiei
Aleksándrovitch. Em meio a tais hesitações e entre esforços
para localizar a babá, passaram-se dois dias.
1122
sofrimento; sabia que, devido ao tom frio de Vrónski ante
qualquer referência ao assunto, ela acabaria por tomar ódio
dele. E Anna temia isso mais do que tudo no mundo e,
portanto, escondia de Vrónski tudo o que dizia respeito ao filho.
1123
sem levantar o véu, diria que viera da parte do padrinho de
Serioja para cumprimentá-lo e que fora incumbida de pôr os
brinquedos junto à cama do filho. Anna preparou tudo, menos
as palavras que diria ao filho. Por mais que pensasse, não
conseguia imaginar o que diria.
1124
Depois de notar a perturbação da desconhecida, o próprio
Kapitónitch foi ao seu encontro, deixou-a passar pela porta e
perguntou o que desejava.
1125
– O preceptor está lá, talvez ainda esteja despido. Eu vou
avisá-lo.
1126
– Serioja! – murmurou Anna, aproximando-se sem fazer
barulho.
1127
Sorrindo sonolento, sempre de olhos fechados, ele se agarrou
ao encosto da cama, com as mãozinhas roliças, por trás dos
ombros de Anna, deixou-se cair na direção dela, cobrindo-a
com o hálito e com o calor sonolento e meigo que só existe
nas crianças, e começou a esfregar-se com o rosto no seu
pescoço e nos seus ombros.
1128
um breve silêncio e, sem soltar as mãos dele, sentou-se ao lado
da cama do filho, numa cadeira sobre a qual a roupa do
menino já estava preparada.
– Não tomo banho com água fria, papai não deixa. Mas e o
Vassíli Lúkitch, você não o viu? Ele vai vir aqui. Ei, você sentou
em cima da minha roupa! – e Serioja soltou uma gargalhada.
1129
C A P Í T U L O XXX
1130
compreendiam que o encontro dos cônjuges era impossível e
que era preciso evitá-lo. Korniei, o camareiro, entrou na guarita
do porteiro, perguntou quem a deixara entrar e como o fizera e,
ao saber que Kapitónitch a havia recebido e conduzido até o
andar de cima, repreendeu o velho. O porteiro mantinha-se
tenazmente calado, mas, quando Korniei lhe disse que teria de
expulsá-lo de casa por causa disso, Kapitónitch deu um salto
em sua direção e, sacudindo as mãos diante do rosto de
Korniei, exclamou:
1131
Quando a babá entrou no quarto do menino, Serioja contava
à mãe como ele e Nádienka haviam caído, quando rolaram
juntos pela encosta e deram três cambalhotas. Anna ouvia o
som da sua voz, via o seu rosto e os movimentos de suas
feições, apalpava sua mão, mas não entendia o que ele falava.
Tinha de sair, tinha de deixá-lo – só pensava e sentia isso. Ouviu
os passos de Vassíli Lúkitch, que se aproximara da porta e
tossira, ouviu também os passos da babá que se aproximava;
mas ficou sentada, como que petrificada, sem forças sequer
para começar a falar, quanto mais para levantar-se.
– Não moro aqui, moro com a minha filha, mas vim dar os
parabéns, Anna Arkádievna, meu anjo!
1132
– Mamãe! Ela vem me ver muitas vezes e quando vem… –
começou, mas se
1133
Serioja quis fazer uma pergunta que esclareceria sua dúvida,
mas não se atreveu: via que a mãe sofria e sentiu pena dela.
Apertou-se contra ela em silêncio e disse, num sussurro:
1134
Aleksiei Aleksándrovitch caminhava ao encontro dela. Ao vê-la,
deteve-se e fez uma reverência com a cabeça.
1135
C A P Í T U L O XXXI
– Depois.
1136
se fossem as nadadeiras de um peixe, o que fazia farfalhar as
pregas engomadas da saiazinha bordada. Era impossível não
sorrir, não beijar a menina, era impossível não lhe oferecer um
dedo para ela agarrar, enquanto guinchava e sacudia o corpo
todo; era impossível não lhe oferecer o lábio, que ela, à
maneira de um beijo, tomava em sua boquinha. E Anna fez
tudo isso, tomou-a nas mãos, fez a menina dar saltinhos no
ar, beijou a bochechinha fresca e os braços desnudos; porém,
ante a imagem dessa criança, percebeu com ainda maior
clareza que o sentimento que experimentava por ela nem era
amor, em comparação com o que sentia por Serioja. Tudo
nessa menina era meigo, mas por algum motivo tudo isso não
arrebatava seu coração. No primeiro filho, embora de um
homem a quem não amava, foram depositadas todas as forças
do amor que permaneciam insatisfeitas; já a menina nascera
nas condições mais penosas e nela não fora depositada nem a
centésima parte dos desvelos dirigidos ao primogênito. Além
disso, na menina, tudo ainda era esperança, enquanto que
Serioja já era quase um homem, e um homem querido; nele, já
lutavam pensamentos, sentimentos;
1137
Devolveu a menina à ama de leite, deixou-a sair e abriu o
medalhão em que estava um retrato de Serioja, quando tinha
quase a mesma idade da menina. Levantou-se e, após tirar o
chapéu, pegou sobre a mesinha o álbum em que estavam
cartões fotográficos do filho, em diversas idades. Queria
comparar os cartões e começou a retirá-los do álbum. Retirou-
os todos. Restou só um, o último, a melhor fotografia. Serioja
estava de camisa branca, sentado a cavalo numa cadeira,
com os olhos franzidos e um sorriso na boca. Era a sua
expressão mais peculiar, a melhor de todas. Com as
pequeninas mãos hábeis, que agora se movimentavam de
modo especialmente tenso, Anna enfiou várias vezes os dedos
brancos e finos por trás do canto da foto, mas a foto escapava
e ela não conseguia puxá-la. Não havia nenhuma espátula
sobre a mesa e Anna, após retirar a foto que estava ao
lado (era uma foto de Vrónski, tirada em Roma, de chapéu
redondo e de cabelos compridos), usou-a para empurrar para
cima a foto do filho. “Sim, aqui está ele!” – disse Anna, ao
lançar os olhos para a foto de Vrónski, e de repente lembrou
quem era a causa do seu atual infortúnio. Não se lembrara dele
nem uma vez, durante toda a manhã. Mas agora, de repente,
ao reconhecer o rosto másculo, nobre, tão conhecido e tão
querido dela, Anna sentiu um inesperado ímpeto de amor por
ele.
1138
de recriminação, esquecendo-se de que ela mesma escondia de
Vrónski tudo o que dizia respeito ao filho. Anna mandou que o
chamassem imediatamente; com o coração agitado, enquanto
imaginava as palavras com que lhe diria tudo e também as
expressões de amor com que Vrónski a consolaria, Anna o
esperava. O enviado voltou com a resposta de que ele estava
com uma visita, mas logo viria, e mandou perguntar a Anna se
não poderia receber também o príncipe Iáchvin, que chegara a
Petersburgo. “Não virá sozinho, e não me vê desde o almoço de
ontem”, pensou, “não virá sozinho, mas sim com Iáchvin, para
que eu não possa dizer-lhe tudo”. E de súbito lhe acudiu um
pensamento estranho: será que ele não a amava mais?
1139
chamando a criada e foi ao toucador. Ao se trocar, esmerou-se
em sua toalete mais do que nos últimos dias, como se Vrónski,
depois de ter deixado de a amar, pudesse apaixonar-se de
novo, por ela usar o vestido e o penteado que lhe caíam melhor.
Quando saiu para a sala de estar, não foi ele, mas sim Iáchvin
quem a recebeu com um olhar. Vrónski estava examinando as
fotografias do filho que Anna esquecera sobre a mesa e não se
apressou a voltar os olhos para ela.
1140
Após conversar por algum tempo e notar que Vrónski havia
dirigido um olhar para o relógio, Iáchvin perguntou a Anna se
ainda iria demorar-se em Petersburgo e, pondo ereto seu
torso imenso, estendeu o braço para pegar o quepe.
1141
pensamentos algo para falar, com o intuito de retê-lo.
1142
C A P Í T U L O XXXII
1143
dar um recado para Anna. A princesa Betsy pedia desculpas
por não vir despedir-se; estava adoentada, mas pedia a Anna
que fosse visitá-la entre seis e meia e nove horas. Vrónski olhou
de relance para Anna ante a menção a esse horário
específico, que denotava haverem sido tomadas providências a
fim de ela não se encontrar com ninguém; mas Anna pareceu
não perceber.
– E eu também.
1144
pensava mesmo em ir ao espetáculo da soprano Patti numa
noite de assinatura, onde estaria presente toda a sociedade?
Vrónski fitou-a com ar sério, mas Anna respondeu-lhe com
aquele olhar desafiador, não exatamente exultante, e
tampouco desesperado, cujo sentido ele não conseguia
entender. Após o jantar, Anna mostrou-se agressivamente
alegre: parecia tentar seduzir ora Tuchkiévitch, ora Iáchvin.
Quando se levantaram da mesa de jantar e Tuchkiévitch saiu
para providenciar o camarote, Iáchvin retirou-se para fumar e
Vrónski desceu com ele para o seu quarto. Após algum tempo
ali, subiu às pressas. Anna já trajava um vestido de tom claro,
feito de seda e de veludo, com o decote muito aberto, que
mandara confeccionar em Paris, e uma renda branca e cara na
cabeça, que emoldurava seu rosto e exibia sua beleza radiante
de um modo especialmente favorável.
1145
– É exatamente o que estou dizendo – insistiu Anna,
evitando intencionalmente compreender a ironia do tom de voz
de Vrónski e puxando para cima, com toda a calma, o
comprido cano da luva perfumada.
1146
relance, e que ele não compreendeu –, se você não tiver
mudado. Por que não olha para mim?
Olhou para ela. Viu toda a beleza do seu rosto e da sua roupa,
que sempre lhe caía tão bem. Mas agora eram justamente a
beleza e a elegância dela que o irritavam.
1147
C A P Í T U L O XXXIII
Não podia dizer isso a Anna. “Mas como pode ela não
compreender tal coisa, e o que pretende fazer?”, dizia consigo.
Percebia que, ao mesmo tempo que o seu respeito por Anna
diminuía, a sua consciência da beleza dela aumentava.
1148
– Acho que vou comprar – respondeu Vrónski.
1149
esposa estarão lá e minha mãe também, na certa.[16] Quer
dizer que toda São Petersburgo estará lá. Agora ela entrou,
tirou o casaco de peles e se expôs diante da sociedade.
Tuchkiévitch, Iáchvin, a princesa Varvara…” – imaginava ele. –
“E quanto a mim? Será que estou com medo, ou deixei a
proteção de Anna ao encargo de Tuchkiévitch? De qualquer
ponto de vista, uma tolice, uma tolice… E por que ela me
deixa numa tal situação?” – disse ele, brandindo a mão.
1150
não era preciso pegar o número, bastava chamar “Fiódor”
quando viesse buscar o casaco. No corredor bem iluminado,
não havia ninguém exceto um camaroteiro e dois lacaios, com
casacos de peles nos braços,
1151
ajudava a entregar os presentes e ajeitava sua gravata branca.
Vrónski entrou pelo corredor central da plateia e, após se deter,
começou a olhar em redor. Nesse dia, ele prestou menos
atenção do que nunca ao ambiente conhecido e habitual, ao
palco, àquele clamor, a todo aquele conhecido,
desinteressante e variegado rebanho de espectadores, no
teatro superlotado.
1152
Aleksándrovitch. Para sua felicidade, nessa noite Aleksiei
Aleksándrovitch não estava no teatro.
1153
o fulgor discretamente excitado em seus olhos e todo o seu
rosto lhe trouxeram à memória, com perfeição, o modo como
ele a vira no baile, em Moscou. Mas agora aquela beleza o
afetava de maneira completamente distinta. Em seus
sentimentos por Anna, agora, nada havia de misterioso e por
isso sua beleza, embora o atraísse com mais força do que
antes, ao mesmo tempo o ofendia. Ela não olhava na sua
direção, mas Vrónski sentia que já o tinha visto.
1154
enquanto tentava acalmar a esposa. Quando a esposa saiu,
o marido ainda se demorou bastante, procurando com os
olhos o olhar de Anna, pelo visto com o intuito de
cumprimentá-la. Mas Anna, parecendo propositadamente não
o notar, lhe dava as costas e falava algo a Iáchvin, que
inclinava para ela a cabeça de cabelos raspados. Kartássov
saiu sem se curvar em cumprimento e o camarote ficou vazio.
1155
com esperança de obter alguma explicação, foi ao camarote
do irmão. Escolhendo intencionalmente a passagem na plateia
situada no lado oposto ao camarote de Anna, ele, ao sair,
topou com o antigo comandante do seu regimento, que
conversava com dois conhecidos. Vrónski ouviu pronunciarem o
nome Kariênin e notou como o comandante do regimento se
apressou em chamar Vrónski em voz alta, depois de lançar um
olhar significativo para seus interlocutores.
1156
– Como, não lhe disseram?
1157
– Maman, eu pedi à senhora que não me falasse a respeito
disso – respondeu, franzindo as sobrancelhas.
1158
– Como o príncipe Iáchvin – disse Anna, sorrindo –, que
acha que Patti canta alto demais. Obrigada – disse, após
pegar na mão pequena, envolta numa luva comprida, o
programa que Vrónski apanhara do chão, e de repente,
nesse instante, o rosto bonito de Anna estremeceu. Ela se
levantou e foi para o fundo do camarote.
para você…
1159
Ela disse que era uma desonra sentar-se a meu lado.
PARTE IV
1160
CAPÍTULOI
1161
Na casa de Liévin, que ficara vazia durante muito tempo, agora
havia tanta
1162
Apressou-se em falar com a mãe para que o olhar dela não
fosse notado. Após o jantar, Serguei Ivánovitch sentou- se
com sua xícara de café junto à janela na sala de estar e,
enquanto prosseguia a conversa iniciada com o irmão, olhava
de vez em quando para a porta pela qual
1163
Ao chegar afoita até Serguei Ivánovitch, com os olhos
reluzentes, tão semelhantes aos belos olhos do pai, entregou-
lhe o seu chapéu e deu a entender que queria vesti-lo ela
mesma, enquanto abrandava sua ousadia com um sorriso
tímido e meigo.
1164
animado – tudo denotava que nela se passava algo fora do
comum. Kitty sabia o que era e a observava com atenção.
Chamara Várienka, agora, só para abençoá-la mentalmente
pelo acontecimento importante que, no
– Na varanda.
1165
C A P Í T U L O II
1166
outras coisas e, sem se interessar pela framboesa, falava de
outros assuntos, mas olhava de esguelha para o braseiro.
“Como eles vão adorar lamber isto, junto com o chá!”, pensou,
tendo em mente os seus filhos, ao recordar como ela mesma,
quando criança, se admirava de ver que os adultos não
comiam a melhor parte: a espuma.
1167
– Bem, eu, por exemplo, no ano passado, comprei para a
nossa Matriona Semiónovna não exatamente uma popelina,
mas algo do gênero – disse a princesa.
1168
– Vejam só que grande mestra casamenteira! – exclamou
Dolly. – Como ela os manobrou com cuidado e habilidade…
1169
– Não fique tão agitada. Não é nada bom para você se
agitar – advertiu a mãe.
1170
– Como a senhora descreveu bem, mamãe! É exatamente
por meio de olhares e de sorrisos – confirmou Dolly.
1171
inquietar o seu marido. O fato de Vrónski ter feito a corte a
você? Isso acontece com todas as moças.
1172
pensar – repetiu, atenta ao som dos conhecidos passos de seu
marido na escada da varanda.
1173
princesa se ressentia disso. Mas, apesar de amar e respeitar
muito a princesa, Liévin não conseguia chamá-la desse modo
sem profanar seus sentimentos por sua falecida mãe.
1174
– A senhora não precisa me consolar, patroa. Basta olhar
para a senhora ao lado dele para eu ficar alegre – disse, e essa
familiaridade ligeiramente rude ao se referir a Liévin comoveu
Kitty.
1175
C A P Í T U L O III
1176
– Não, estou muito feliz de ter a chance de ficar sozinha
com você e, por melhor que eu me sinta em companhia delas,
confesso que tenho saudades de nossas noites de inverno a
dois.
– Do doce em calda?
1177
Mas, desde então, eu o tenho observado com as mulheres: é
amável, gosta de algumas, mas percebe-se que, para ele, são
apenas pessoas, e não mulheres.
1178
– Mas não tanto como o falecido Nikolai… Vocês dois se
afeiçoaram um pelo outro – concluiu Liévin. – Por que não falar
dele? – acrescentou. – Às vezes, eu me censuro: o que se
esquece, acaba. Ah, que homem assustador e fascinante… Sim,
mas do que estávamos falando mesmo? – perguntou Liévin,
após um breve silêncio.
1179
insinceridade provinha do amor pelo irmão, de um sentimento
de escrúpulo por ser demasiado feliz e, sobretudo, do seu
irreprimível desejo de ser melhor – Kitty amava isso no marido,
e por tal motivo havia sorrido.
1180
– Não, eu sinto, sobretudo agora, e você é a culpada – disse
Liévin, depois de apertar o braço dela –, eu sinto que isso não
importa. Eu me dedico por alto, apenas. Se eu pudesse amar
todas essas atividades como amo você… Em vez disso,
ultimamente, trabalho como se fosse uma lição de casa que
sou obrigado a fazer.
1181
– Creio que sim, e que não. É que eu desejo muito isso.
Espere aí. – Kitty se curvou e colheu, na margem do caminho,
uma margarida silvestre. – Vamos, conte uma a uma: vai pedi-
la em casamento, não vai pedir – disse, entregando- lhe a flor.
– Nem um pouco.
1182
C A P Í T U L O IV
1183
disse, e se afastou sozinho da orla da floresta, onde estavam
caminhando sobre a relva sedosa e rasteira, entre bétulas
antigas e esparsas, e seguiu rumo ao centro da floresta, onde
os troncos dos álamos cinzentos se destacavam entre os
troncos brancos das bétulas e onde as densas aveleiras
formavam manchas escuras. Afastando-se uns quarenta
passos e rumando para um arbusto de evônimo em plena
floração, com suas espigas vermelho-rosadas, Serguei
Ivánovitch, ciente de que não o viam, parou. À sua volta,
havia um completo silêncio. Apenas, acima das bétulas ao pé
das quais ele se encontrava, moscas zumbiam sem cessar,
como um enxame de abelhas, e chegavam de quando em
quando vozes de crianças. De repente, não longe da orla da
floresta, ressoou a voz de contralto de Várienka, que chamava
Gricha, e um sorriso alegre irrompeu no rosto de Serguei
Ivánovitch. Ao se dar conta desse sorriso, Serguei Ivánovitch
balançou a cabeça em desaprovação ao estado em que se
encontrava e, após pegar um charuto, quis acendê-lo para
fumar. Durante um longo tempo, não conseguiu riscar o fósforo
contra o tronco de uma bétula. A delicada película da casca
branca aderia ao fósforo e abafava o fogo. Por fim, um dos
fósforos acendeu e a fumaça aromática do charuto, que
oscilava como uma ampla toalha, estendeu-se nitidamente
para a frente e para o alto, acima do arbusto e abaixo dos
ramos pendentes de uma bétula. Enquanto acompanhava
com os olhos a faixa de fumaça, Serguei Ivánovitch avançava
a passos silenciosos, refletindo na sua situação.
1184
“Por que não?”, pensou ele. “Se fosse um arroubo de momento
ou uma paixão,
1185
Outro ponto: não só se mantinha afastada da vida
mundana como também, ao que tudo indicava, tinha aversão à
sociedade, enquanto ao mesmo tempo conhecia a sociedade e
tinha todas as maneiras das mulheres de boa sociedade, sem
as quais, para Serguei Ivánovitch, era impensável uma
amiga para toda a vida. Terceiro ponto: era religiosa, e não da
maneira irrefletida como uma criança pode ser religiosa e
bondosa, como acontecia com Kitty, por exemplo; em vez
disso, sua vida tinha por base convicções religiosas. Até em
detalhes sem importância, Serguei Ivánovitch encontrava nela
tudo o que desejaria de uma esposa: era pobre e sozinha,
portanto não traria consigo um bando de parentes e a
influência deles para a casa do marido, como ele via acontecer
no caso de Kitty, e em tudo seria devedora do marido, o que ele
também sempre desejara para a sua futura vida em família. E
essa jovem, que reunia todas essas qualidades, o amava. Ele
era modesto, mas não podia deixar de perceber. E ele a
amava. Um ponto negativo era a idade dele. Mas sua
linhagem era longeva e ele não tinha nem um fio de
cabelo grisalho, ninguém lhe dava quarenta anos e ele se
lembrava de Várienka ter dito que só na Rússia as pessoas se
julgavam velhas aos cinquenta anos, enquanto na França um
homem de cinquenta anos é considerado dans la force de
l’age e um de quarenta, un jeune homme.[3] Mas o que
importava a idade, quando ele se sentia com o espírito tão
jovem como vinte anos antes? Acaso não era a juventude
esse sentimento que ele experimentava agora, quando, ao
1186
sair de novo pelo outro lado na orla da floresta, viu, na luz
brilhante dos raios oblíquos do sol, a figura graciosa de
Várienka que, de vestido amarelo e com o cestinho, passava
à frente de um velho tronco de bétula a passos ligeiros, e
quando essa impressão causada pelo aspecto de Várienka,
com sua beleza que o surpreendeu, se fundiu ao aspecto do
campo de aveia amarelecido pelos raios oblíquos que o
banhavam e, além do campo, ao aspecto da velha floresta
distante, pontilhada de
1187
CAPÍTULOV
1188
flexível era atravessado por uma folha de relva seca,
embaixo da qual ele havia nascido. Várienka levantou-se,
quando Macha colheu o cogumelo, quebrando-o em duas
partes brancas. – Isto me lembra a minha infância –
acrescentou, enquanto se afastava das crianças e caminhava
ao lado de Serguei Ivánovitch.
1189
Passaram-se mais alguns minutos, os dois se afastaram ainda
mais das crianças e estavam completamente sós. O coração
de Várienka batia tanto que ela ouvia as pancadas e sentia
que ruborizava, empalidecia e ruborizava outra vez. Ser a
esposa de um homem como Kóznichev, depois da posição que
ocupara ao lado da senhora Stahl, parecia a ela o máximo de
felicidade. Além disso, estava quase convencida de que se
apaixonara por ele. E tudo se havia de decidir agora. Ela sentia
medo. Medo de ele falar e medo também de ele não falar.
1190
que deveria ser dito não o seria, e a emoção de ambos, que a
essa altura chegara ao máximo, começou a amainar.
1191
– Não pega – disse Kitty, com um sorriso e com um modo
de falar que lembrava o pai, como Liévin percebia muitas
vezes, e com prazer.
1192
C A P Í T U L O VI
1193
– Sim, e o papai nos deixou sozinhos mesmo. Não o vimos
mais – confirmou Kitty. – E quem disse que somos recém-
casados? Já somos até velhos casados.
– É sobre o jantar.
1194
– Ah, que ótimo – disse Dolly. – Vá você dar as ordens
enquanto eu vou tomar a lição de Gricha. Senão ele não estuda
mais nada, hoje.
1195
– Não, irei eu, Dolly, você fique aí – disse Liévin. – Faremos
tudo da maneira devida, conforme está no livro. Quando o
Stiva chegar e nós formos caçar, aí deixarei as lições de lado.
– disse Kitty.
1196
– comentou, com um sorriso sutil. – Um, agitado, que só vive
em sociedade, como um peixe na água; o outro, o nosso Kóstia,
ativo, rápido, atencioso com todos, mas, assim que está em
sociedade, ou se torna apático ou se debate de forma
incoerente, como um peixe sobre a terra.
– Is, ea, id, eius, eius, eius [4] – gritou Gricha, ao saltos, pela
alameda.
1197
– E vem mais alguém. O papai, com certeza! – gritou Liévin,
que se deteve na entrada da alameda. – Kitty, não desça pela
escada íngreme, dê a volta.
1198
aproximou da varanda, no térreo, onde se reunira toda a
animada multidão dos adultos e das crianças, e viu que
Vássienka Vieslóvski beijava a mão de Kitty com um carinho
especial e com ares de galanteio.
“Afinal, ela não acredita no amor do marido. Então por que está
tão contente?
1199
Olhou para a princesa, que lhe parecia tão gentil um minuto
antes, e não gostou da maneira como ela cumprimentou o tal
Vássienka, com suas fitinhas, como se estivesse em sua própria
casa.
1200
pensou Liévin. “Mas, aqui, o trabalho nada tem de festivo, não
pode esperar, e sem ele não há como viver.”
1201
C A P Í T U L O VII
– Não, Stiva não bebe… Kóstia, espere aí, o que tem você? –
quis saber Kitty, apressando-se atrás dele, mas Liévin,
impiedosamente, sem esperar por ela, saiu a passos largos
rumo à sala de jantar e prontamente se integrou à animada
conversa entre Vássienka Vieslóvski e Stiepan Arcáditch.
1202
– Se eu me cansei? Nunca me senti cansado. Que tal ficar a
noite inteira sem dormir? Vamos passear.
– Ah, conte por favor, o senhor esteve com ela? Como está?
– perguntou Dária Aleksándrovna.
1203
conversa misteriosa, notava no rosto da esposa a expressão de
um sentimento
1204
– Sim – respondeu ela, ainda mais ruborizada, levantou-se e
aproximou-se do marido.
– Sim, irei – respondeu, com uma voz que até para ele soou
artificial.
1205
Enquanto isso, Vássienka, que nem de longe suspeitava do mal-
estar causado por sua presença, levantou-se da mesa após
Kitty e, observando-a com um olhar sorridente e carinhoso,
caminhou atrás dela.
1206
– Em nossa casa, não é costume.
Aos olhos de Liévin, ela era culpada por consentir tais relações,
e mais culpada ainda por demonstrar, de maneira tão
estabanada, que não apreciava isso.
1207
Pôs-se de pé diante dela e, com olhos que brilhavam de
maneira terrível, embaixo das sobrancelhas carregadas,
apertou as mãos fortes contra o peito, como se mobilizasse
todas as suas energias para se conter. A expressão do seu
rosto seria severa e até cruel, se ao mesmo tempo não
exprimisse o sofrimento que o abalava. As maçãs do rosto
tremiam e a voz soava entrecortada.
1208
– Ah! – exclamou ele, agarrando a cabeça entre as mãos. –
Não devia falar assim!… Quer dizer que se você estivesse
atraente…
1209
tão especialmente felizes, e de repente essa porcaria… Não é
porcaria, por que eu praguejo contra ele? Não tenho nada a
ver com ele. Mas por que a minha, a sua felicidade…?
1210
– Então, para compensar, vou mantê-lo em nossa casa
durante todo o verão e vou me derramar em gentilezas com ele
– disse Liévin, beijando a mão de Kitty.
1211
C A P Í T U L O VIII
1212
esfarrapadas e um casaco curto. Na cabeça, trazia um
chapéu muito surrado, mas a espingarda de sistema novo era
uma beleza, e a bolsa de caçador e a cartucheira, embora
gastas, eram da melhor qualidade.
1213
precisava receber de novo a confirmação de que ela não
estava zangada por ele passar dois dias fora de casa e
também pedir que lhe mandasse um bilhete, sem falta, no dia
seguinte pela manhã, por intermédio de um empregado a
cavalo, mesmo que ela escrevesse só duas palavras, só para
que Liévin pudesse saber que ela estava sã e salva.
1214
– Permita que eu faça mais uma modificação. Acrescentar
só três degrauzinhos. Vai encaixar direitinho. Ficará muito mais
cômodo.
– Mas onde vai dar essa sua escada com mais três
degraus?
1215
teimoso e persuasivo.
– Queira perdoar. Pois ela vai vir de baixo. Vai subindo, vai
subindo, e chega lá.
1216
um homem estranho? Será que Oblónski não ia acertar um tiro
nele, por engano? – também isso lhe passava pela cabeça.
1217
Ou porque sua natureza era simpática a Liévin, ou porque
Liévin procurava expiar o pecado da véspera, vendo tudo de
bom que havia nele, o fato
1218
C A P Í T U L O IX
1219
– Liévin, por favor! Que lugar excelente! – começou a pedir
Vássienka Vieslóvski, e Liévin não pôde negar-se.
1220
desajeitadamente, com a espingarda e um abibe nas mãos. –
Que belo tiro, eu dei! Não é verdade? Muito bem, e ainda
vamos demorar para chegar ao local melhor?
1221
ceifado. Cabia a Vieslóvski caçar essa narceja. Krak encontrou-
a de novo, ficou em posição, Vieslóvski matou- a e voltou
para as carruagens.
1222
medida da distância, começaram a ferir seus ouvidos, em
desordem, mas com nitidez. Ouviu os passos de Stiepan
Arcáditch e pensou que fossem o tropel distante de um cavalo,
ouviu o som quebradiço que se desprendeu das raízes em que
pisou, na orla do morrote, e pensou que fosse o esvoaçar de
uma narceja. Ouviu também, perto e atrás de si, umas
palmadinhas sobre a água, ruído a que não conseguiu dar uma
explicação.
– Pegue!
Laska fez voar, não uma narceja, mas sim uma galinhola. Liévin
levantou a espingarda, mas, no instante em que fez pontaria,
aquele mesmo ruído de palmadinhas sobre a água soou mais
forte, aproximou-se, fundiu-se à voz de Vieslóvski que, num tom
alto e estranho, gritou algo na sua direção. Liévin viu que
apontava a espingarda para trás da galinhola, mesmo assim
atirou.
1223
que o senhor veio? – disse a ele, em tom seco e, depois de
chamar o cocheiro com um grito, pôs-se a puxar os cavalos
para fora da lama.
1224
– Bem, agora nossas calamidades terminaram; agora tudo
caminhará bem. Só que, por causa do meu erro, estou obrigado
a sentar na boleia. Não é verdade? Hem? Não, não, eu sou um
Automedonte.[9] Vejam como vou conduzi-los! – replicou, sem
soltar as rédeas, quando Liévin lhe pediu que desse o lugar ao
cocheiro. – Não, eu tenho de expiar minha culpa e adoro ficar
na boleia. – E tocou adiante os cavalos.
1225
CAPÍTULOX
1226
amieiros e vai até o moinho. Lá embaixo, vejam, onde está
alagado. É o melhor lugar. Certa vez, matei dezessete
galinholas ali. Vamos nos separar com os dois cães,
seguiremos em direções diferentes e nos encontraremos lá, no
moinho.
1227
– Não, eu não quero atrapalhar o senhor, nem pense em
mim.
1228
Liévin não foi tão feliz: estava perto demais quando atirou na
primeira galinhola e errou; mirou quando ela já começava a
alçar voo, mas, nesse instante, voou uma outra, quase junto ao
seu pé, distraiu-o e ele errou mais um tiro.
1229
preguiçosamente e, como que com perplexidade ou com
censura, voltava os olhos para os caçadores. Os tiros se
sucediam. A fumaça da pólvora pairava em torno dos
caçadores e, na grande e espaçosa rede de caçador, só havia
três galinholas, miudinhas e leves. Uma delas foi morta por
Vieslóvski e uma outra, por ambos. Enquanto isso, do outro
lado do pântano, ouviam-se os disparos de Stiepan Arcáditch,
não frequentes, mas, assim parecia a Liévin, conscientes e,
após quase todos eles, se ouvia: “Krak, Krak, pega!”.
1230
– Ei, caçadores! – gritou um dos mujiques que estavam
sentados numa telega desatrelada. – Venham almoçar conosco!
Tomar vinho!
Liévin virou-se.
1231
do pântano a duras penas e caminhava ao encontro dos
mujiques.
1232
esquerda, cheia de água, pesava e soltava estalidos de sucção;
o suor rolava em gotas pelo rosto sujo de resíduos de pólvora;
na boca, havia um amargor, no nariz, um cheiro de pólvora e
ferrugem, nos ouvidos, o grasnar incessante das galinholas; ele
não podia sequer tocar nos canos da espingarda, tão quentes
estavam; o coração batia acelerado e curto; as mãos tremiam
de agitação, os pés cansados tropeçavam e se arrastavam a
custo pelos morrotes e pelo charco; mas ele seguia em frente e
atirava. Enfim, após um vergonhoso erro de pontaria, jogou a
espingarda e o chapéu por terra.
1233
Tinha apenas cinco peças de caça na rede de caçador quando
saiu do pântano, rumo aos amieiros, onde deveria unir-se a
Stiepan Arcáditch.
– Nada mau.
1234
C A P Í T U L O XI
1235
Embora já tivesse anoitecido, nenhum dos caçadores queria
dormir.
1236
monopólio do comércio de bebidas, consegue seu dinheiro de
um jeito que faz o seu lucro merecer o desprezo de todos, mas
eles fazem pouco-caso desse desprezo e, mais tarde, com a
ajuda daquilo que ganharam desonestamente, pagam o
resgate do antigo desprezo.
1237
– Não, isso é outra questão; estou disposto a admitir que
são úteis. Mas qualquer lucro que não corresponda a um
trabalho investido é desonesto.
– Não sei.
1238
– Pois bem, vou lhe dizer uma coisa: o que você ganha com
o seu trabalho na propriedade é, digamos, cinco mil rublos e o
mujique nosso anfitrião, por mais que trabalhe, não consegue
ganhar mais do que cinquenta rublos, algo exatamente tão
desonesto quanto acontece no meu caso, por ganhar mais que
o chefe da repartição, e também no caso de Maltus, que ganha
mais que o chefe da estação de trem. Ao contrário, vejo da
parte da sociedade uma atitude hostil, sem qualquer
justificativa, com relação a essas pessoas, e me parece que
aqui há inveja…
– Sim, você sente, mas nem por isso entrega a ele a sua
propriedade – disse Stiepan Arcáditch, como se quisesse
provocar Liévin.
1239
e outro estavam casados com duas irmãs, houvesse surgido,
entre ambos, uma rivalidade a respeito de quem havia
organizado melhor sua vida e, agora, essa hostilidade se
manifestava na conversa, que começava a adquirir um matiz
pessoal.
entregá-la.
1240
– Não, você me perdoe; isso é um paradoxo.
1241
– Bem, irei sozinho – resolveu Vieslóvski, levantando-se com
animação e calçando-se. – Até a vista, cavalheiros. Se estiver
divertido, mandarei chamá-los. Os senhores me
proporcionaram uma caçada e eu não vou esquecê-los.
1242
– Ora, afinal, por que não vamos até lá? – sugeriu Stiepan
Arcáditch, pelo visto cansado de pensamentos tensos. – Não
vamos mesmo dormir. É isso mesmo, vamos até lá!
– Por quê?
1243
ser independente, ele tem seus interesses viris. O homem deve
ser viril – disse Oblónski, enquanto abria a porta.
1244
Liévin ficou longo tempo sem adormecer. Ouviu como seus
cavalos mastigavam o feno, depois como o anfitrião se juntou
ao filho mais velho e foram com os cavalos para o pasto;
depois, ouviu como o soldado se deitava para dormir no outro
lado do telheiro, junto com o sobrinho, o filho caçula do
anfitrião; ouviu como o garoto, com voz fininha, comunicava
ao tio suas impressões acerca dos cães que, para o menino,
pareciam aterradores e enormes; depois, ouviu que o garoto
perguntou a quem os cães iriam caçar e o soldado lhe disse,
com voz rouca e sonolenta, que no dia seguinte os caçadores
iriam para o pântano, iriam disparar com as espingardas, e
depois, para livrar-se das perguntas do garoto, disse: “Durma,
Váska, durma, senão vai ver só”. E logo ele mesmo se pôs a
roncar e tudo silenciou; só se ouviam o relinchar dos cavalos e
os grasnidos das galinholas. “Será mesmo só de forma
negativa?”, repetiu, consigo. “Mas e daí?
1245
conversando, claramente iluminados pelo luar. Stiepan
Arcáditch disse algo sobre o frescor de uma jovem, comparou-a
a uma noz pequena e tenra que acabou de ser retirada da
casca, e Vieslóvski, rindo com a sua gargalhada contagiante,
repetiu algumas palavras ditas, provavelmente, por algum
mujique: “Trate logo de namorar a sua!”. Liévin, em meio ao
sono, conseguiu falar:
1246
C A P Í T U L O XII
1247
Pisando cuidadosamente com os pés descalços que
começavam a arder com o calor, a velha conduziu Liévin e
baixou, para ele, a cerca da eira coberta.
1248
vapores que se erguiam, ora mais espessos, ora mais ralos, de
tal maneira que os espargânios e os arbustos de salgueiros,
como ilhotas, oscilavam nesse vapor. Na margem do pântano e
da estrada, meninos e mujiques, que haviam pernoitado no
pasto vigiando os animais, estavam deitados no solo e, sob a
aurora, dormiam todos enrolados em seus cafetãs. Perto deles,
vagavam três cavalos com peias nas pernas. Um dos cavalos
tilintava correntes. Laska andava ao lado do seu dono,
pedindo a ele para ir na frente e olhando para os lados.
Quando passaram pelos mujiques adormecidos e venceram o
primeiro charco, Liévin verificou as espoletas da arma e soltou
a cadela. Um dos cavalos, pardo, bem nutrido e de uns três
anos, ao ver a cadela, afastou-se bruscamente e, com o rabo
levantado, resfolegou. Os outros cavalos também se
assustaram e, chapinhando na água as patas presas com
peias e produzindo um ruído semelhante a um estalo quando
desprendiam os cascos da argila espessa, saíram do pântano
aos saltos. Laska deteve-se, olhou para os cavalos com ar de
zombaria e, depois, para Liévin, de modo interrogativo. Liévin
1249
Assim que adentrou no pântano, em meio aos conhecidos
aromas das raízes, da relva do brejo, do lodo ferruginoso, e em
meio ao aroma desconhecido de excremento de cavalo, Laska
logo sentiu, disseminado por toda parte, um cheiro de
pássaro, daquele mesmo pássaro aromático que, mais do que
qualquer outro, a deixava agitada. Aqui e ali, pelo musgo e
entre as bardanas do brejo, esse cheiro era muito forte, mas
era impossível determinar para que lado ele aumentava ou
diminuía. A fim de encontrar uma direção, era preciso ir
adiante, a favor do vento. Sem sentir o movimento de suas
patas, num galope tão tenso que poderia deter-se a qualquer
salto, caso surgisse uma necessidade, Laska saiu a galopar
para a direita, desviando-se da brisa do amanhecer que
soprava do leste, e voltou-se contra o vento. Ao farejar o ar
com as narinas muito abertas, Laska logo percebeu que não se
tratava apenas de vestígios, mas sim do próprio pássaro que
estava ali mesmo, na sua frente, e não só um, mas muitos.
Laska reduziu a velocidade da corrida. Eles estavam ali, mas
em que local, exatamente, ela não podia ainda determinar. A
fim de encontrar esse local, já começara a fazer uma curva,
quando a voz repentina do seu dono a distraiu. “Laska! Aqui!” –
disse Liévin, indicando a ela uma outra direção. Laska parou,
indagando ao dono se não seria melhor levar adiante o que
havia começado. Mas Liévin repetiu a ordem, com voz
zangada, apontando para um morrote alagado, onde não
podia haver coisa alguma. Laska obedeceu, fingindo procurar,
só para satisfazer a vontade do seu dono, vasculhou o
1250
morrote e voltou ao mesmo lugar de antes, onde
imediatamente sentiu o cheiro. Agora, sem que ele a
atrapalhasse, Laska sabia o que fazer e, sem olhar onde
pisava, tropeçando com irritação nos morrotes altos e caindo
na água, mas logo em seguida retomando o domínio das
pernas fortes e flexíveis, deu início à curva que havia de
esclarecer tudo. O cheiro dos pássaros se fazia sentir cada vez
mais forte, cada vez mais preciso, e de repente ficou claro
para Laska que um deles estava ali mesmo, atrás daquele
morrote, cinco passos à sua frente, e ela se deteve, o corpo
inteiro imóvel. Como tinha pernas baixas, Laska nada podia
ver à sua frente, mas sabia, pelo faro, que o pássaro estava
a não mais que cinco passos. Ficou ali, sentindo cada vez mais
o seu cheiro e se deliciando com a expectativa. A cauda rija
estava esticada e só tremia bem na pontinha. A boca estava
ligeiramente aberta, as orelhas, soerguidas. Uma orelha
estava dobrada para trás, por causa da corrida, e Laska
respirava com cuidado, mas ofegante, e olhava em volta com
mais cuidado ainda, antes com os olhos do que com a cabeça,
em busca do seu dono. Ele, com o rosto conhecido de Laska,
mas com olhos sempre terríveis, caminhava aos tropeções
pelos morrotes e, assim pareceu a Laska, numa lentidão
extraordinária. Pareceu a Laska que Liévin caminhava
devagar, mas ele corria.
1251
Ao notar aquela posição especial de Laska, em que ela se
estreitava inteira em direção ao solo, como se arrastasse atrás
de si as patas de trás, e abria ligeiramente a boca, Liévin
compreendeu que a cadela topara com narcejas e, depois de
pedir a Deus que ele tivesse sucesso, sobretudo no primeiro
pássaro, aproximou-se. Ao chegar lá, valendo-se da sua altura,
pôs-se a observar com atenção à frente e avistou com os olhos
o que Laska via com o nariz. Numa vereda entre os morrotes,
via-se uma narceja sozinha. Com a cabeça virada, a narceja
escutava com atenção. Depois de alisar as asas e acomodá-las
de novo junto ao corpo, o pássaro, com um meneio para o lado,
desapareceu atrás de um recanto.
nem onde elas estão nem o que são.” Mas Liévin lhe deu um
empurrão com o joelho e disse, num sussurro nervoso: “Pegue,
Lássotchka! Pegue!”.
“Bem, se ele quer mesmo isso, vou fazer, mas agora já não
posso responder por mim mesma”, refletiu e, saiu em disparada
para a frente, entre os morrotes. Já não farejava coisa
alguma, agora, e apenas via e ouvia, sem nada
compreender.
1252
A dez passos do local anterior, uma narceja levantou voo, com
o grasnido encorpado e com o estridente bater de asas peculiar
das narcejas. Após o tiro, com um baque surdo, o pássaro
tombou com o peito branco sobre um charco alagado. Outra
narceja não se fez esperar e voou às costas de Liévin, sem que
Laska a espantasse.
1253
e um menino descalço já tocava os cavalos na direção de um
velho que se levantara, saíra de baixo do
1254
C A P Í T U L O XIII
1255
e você, por favor, se a caçada estiver boa, não se apresse,
fique mais um dia.”
1256
– Mas que apetite! – exclamou Stiepan Arcáditch, rindo e
apontando para Vássienka Vieslóvski. – Não sofro de nenhuma
falta de apetite, mas isso é fantástico…
1257
perguntaram se ele era casado e, ao saberem que não era, lhe
disseram: “Não vá se meter com a mulher dos outros, melhor é
pedir uma em casamento e se meter só com a sua”. Vieslóvski
achava essas palavras especialmente divertidas.
1258
C A P Í T U L O XIV
1259
sentada junto ao samovar. – Que pena que as senhoras estejam
privadas desses prazeres!
1260
que haveria de ocorrer e, em consequência, toda a discussão
sobre os preparativos, como se fosse uma coisa corriqueira que
acontece a qualquer um, lhe pareciam revoltantes e
humilhantes.
– Mas se é assim…
– Não se pode falar com Kitty sobre isso! O que você quer?
Que eu a deixe assustada? Ainda nesta primavera, Natalie
Golítsina morreu por causa de problemas no parto.
1261
A princesa começou a falar, mas Liévin não a escutava. Embora
a conversa com a princesa o desgostasse, a causa das suas
feições sombrias não era essa conversa, mas sim o que ele viu
perto do samovar.
1262
reverência e retomou de novo a sua conversa, rindo de alguma
coisa.
1263
marido, com ar de culpa, quando ele passou, com passos
resolutos. Essa expressão de culpa vinha confirmar todas as
suas suspeitas.
– Não se incomode.
1264
– Eu… eu quero dizer que é impossível viver deste modo, que
isto é um suplício… – conseguiu falar Kitty.
1265
humilhante, horrível? – perguntou Liévin, parado diante dela, na
mesma posição em que ficara naquela noite, com os punhos
cerrados contra o peito.
1266
C A P Í T U L O XV
1267
– Mas você está aborrecido com alguma coisa? Por que
veio aqui? – perguntou Dolly. – O que aconteceu lá embaixo?
1268
– O quê? Você enlouqueceu? – exclamou Dolly, com horror.
– O que deu em você, Kóstia? Controle-se! – disse ela, rindo. –
Muito bem, agora pode ir ao encontro de Fanny – disse para
Macha. – Bem, mas se é isso o que quer, vou falar com o Stiva.
Ele o levará embora. Podemos alegar que você espera visitas.
Ele não combina mesmo com a nossa casa.
Vieslóvski.
1269
– Bem, então atrele a carroça, mas depressa. Onde está o
hóspede?
Era sem dúvida um bom rapaz e Liévin teve pena dele e sentiu
vergonha de si mesmo, como seu anfitrião, quando percebeu
uma timidez no olhar de Vássienka.
1270
– Eu queria… – fez menção de calar-se, mas, de repente,
ao lembrar-se de Kitty e de tudo o que tinha havido, fitou-o
nos olhos com firmeza e disse: – Mandei atrelar os cavalos para
o senhor.
1271
ao meio o pedaço de pau e, com cuidado, apanhou no ar a
extremidade que caiu.
Mas o lugar onde o bicho mordera Liévin ainda doía, pelo visto,
pois de novo ele empalideceu, quando Stiepan Arcáditch quis
explicar o motivo e, rapidamente, Liévin o interrompeu:
1272
partir, enquanto para mim e para a minha esposa a presença
dele é desagradável.
1273
padecido, Liévin, em resposta a sua própria pergunta sobre
como agiria se aquilo acontecesse outra vez, respondeu que
faria exatamente o mesmo.
1274
C A P Í T U L O XVI
1275
Dária Aleksándrovna em um dia. Justamente agora, quando
havia necessidade de cavalos também para a princesa e para a
parteira, que iam viajar, aquilo representava um transtorno
para Liévin, mas, por um dever de hospitalidade, ele não podia
permitir que Dária Aleksándrovna alugasse cavalos de fora e,
além disso, sabia que os vinte rublos que haviam cobrado a ela
por tal viagem eram muito importantes para a cunhada; e as
finanças de Dária Aleksándrovna, que estavam em péssima
situação, afetavam Liévin como se fosse um problema seu.
1276
fundo sobre toda a sua vida, como nunca fizera, e sob os mais
diferentes aspectos.
1277
suplícios de dar à luz. “Dar à luz não é nada, mas a gravidez,
isso sim é que um suplício”, refletiu, recordando a sua última
gravidez e a morte daquele último filho. E recordou a conversa
que tivera com uma jovem camponesa, na estação de muda de
cavalos. Quando perguntou se tinha filhos, a bela jovem
respondeu:
1278
“Depois, as doenças das crianças, aquele eterno pavor; depois,
a educação, os maus instintos (lembrou-se do crime da
pequenina Macha, nos pés de framboesa), os estudos, o latim –
tudo isso, tão difícil e tão incompreensível. E, acima de tudo, a
morte desses filhos.” E de novo, em sua imaginação, surgiu a
cruel lembrança, sempre opressiva para o seu coração
materno, da morte do último menino, uma criança de peito que
morrera de difteria, e o seu enterro, a indiferença geral diante
daquele caixãozinho miúdo e cor-de-rosa, e o seu próprio
coração despedaçado, a sua dor solitária, diante da testinha
pálida com os cabelos crespos nas temporazinhas, diante da
boquinha aberta e espantada, que viu dentro do caixão, no
instante em que o cobriram com a tampinha cor-de-rosa, que
tinha uma cruz bordada em galões.
“E tudo isso para quê? No que vai dar, tudo isso? Vai dar em
que eu, sem ter
casa de Liévin, nem sei como iríamos viver. Claro, Kóstia e Kitty
são tão delicados que nem notamos nada; mas isso não pode
1279
continuar. Quando tiverem filhos, não poderão nos ajudar;
mesmo agora, isso já é um constrangimento para eles. Como
o papai, que não ficou com quase nada para si, poderá nos
ajudar? O fato é que, sozinha, não posso criar meus filhos, só
com a ajuda dos outros, e com humilhação. Bem, vamos
supor o melhor: meus filhos não vão mais morrer e eu, de um
jeito ou de outro, vou conseguir educá-los. Na melhor das
hipóteses, pelo menos não serão patifes. Eis tudo o que posso
desejar. Quanto tormento, quanto trabalho, para conseguir só
isso… Uma vida inteira arruinada!” Lembrou-se de novo do
que tinha dito a camponesa recém-casada e, de novo, achou
repugnante lembrar-se disso; mas não pôde deixar de
reconhecer que havia, naquelas palavras, uma fração de uma
verdade brutal.
1280
a vida”, continuou a pensar, após deixar as camponesas para
trás, e já a caminho da montanha, de novo a trote, no balanço
agradável das molas macias da velha carruagem, “e eu,
como quem sai de uma prisão, ao deixar para trás um mundo
que me aniquila de preocupações, só agora abro os olhos, por
um instante. Todas vivem: essas camponesas, minha irmã
Natalie, Várienka, Anna, a quem estou indo visitar, todas,
menos eu”.
“E atacam Anna. Por quê? Por acaso sou melhor do que ela?
Pelo menos, tenho um marido a quem amo. Não do modo como
eu gostaria de amar, mas eu o amo, enquanto Anna não amava
o seu marido. De que ela é culpada? Ela quer viver. Deus
introduziu isso em nossa alma. É muito provável que eu agisse
da mesma forma. E até agora não sei se fiz bem ao lhe dar
ouvidos naquela horrível ocasião, em que ela veio ter comigo,
em Moscou. Eu devia ter abandonado meu marido e
recomeçado a minha vida. Eu poderia amar e ser amada, de
verdade. Por acaso minha situação está melhor, agora? Na
época, eu ainda podia agradar alguém, ainda me restava certa
beleza”, continuou a pensar Dária Aleksándrovna, e sentiu
vontade de se ver no espelho. Tinha um espelho de viagem,
dentro da bolsinha, e quis apanhá-lo; mas, depois de olhar para
as costas do cocheiro e do escriturário que se sacudiam, ela
percebeu que teria vergonha se um deles virasse para trás, e
não se atreveu a pegar o espelho.
1281
Porém, mesmo sem olhar para o espelho, pensou que ainda não
era tarde e lembrou-se de Serguei Ivánovitch, que se mostrava
especialmente afetuoso com
1282
C A P Í T U L O XVII
– Vamos, anda!
1283
– Escute, eles estão em casa, meu bom amigo? – perguntou
Dária Aleksándrovna de maneira vaga, sem saber como
perguntar a respeito de Anna, nem mesmo a um mujique.
1284
– Então é isso, pegue à esquerda e daí vai sair lá – disse o
mujique, obviamente insatisfeito em separar-se dos viajantes,
pois queria conversar.
1285
Aleksándrovna, à imagem de uma jovem leviana e coquete, o
que, na sua opinião, não condizia com a posição de Anna; mas,
quando a viu mais de perto, logo se reconciliou com o fato de
ela andar a cavalo. Apesar da elegância, tudo era tão simples,
sereno e digno, na postura, na roupa e nos movimentos de
Anna, que nada poderia ser mais natural.
1286
– Pensei que era você, mas não me atrevi a acreditar! Que
alegria! Você não pode imaginar a minha alegria! – disse Anna,
ora estreitando seu rosto ao de Dolly e beijando-o, ora se
afastando e fitando-a com um sorriso. – Que alegria, veja
Aleksiei! – disse ela, voltando-se para Vrónski, que descera do
cavalo e caminhava ao encontro delas.
1287
expressão no rosto de Dolly e ficou embaraçada, ruborizou-se,
soltou a amazona e nela tropeçou.
1288
e que ela, então, surpreendeu no rosto de Anna. Tudo, em seu
rosto: a precisão das covinhas nas faces e no queixo, o feitio
dos lábios, o sorriso que parecia voar em redor do rosto, o
brilho dos olhos, a graça e a agilidade dos movimentos, a
plenitude dos sons da voz e até a maneira zangada e, ao
mesmo tempo, carinhosa como respondeu a Vieslóvski, que lhe
pedira permissão para montar no seu cavalo inglês, a fim de
ensiná-lo a galopar com a pata direita à frente – tudo era
singularmente encantador; e, pelo visto, ela mesma o sabia e se
regozijava com isso.
1289
Todos os mujiques se haviam posto de pé, na telega, e
observavam curiosos e
– Hoje não vai ter sono! – disse o velho, depois de olhar para
o sol com o canto
1290
C A P Í T U L O XVIII
1291
razão, agora isso não lhe parecia conveniente. – Olhe, deixemos
isso para mais tarde. O que são todas essas construções? –
perguntou, no intuito de mudar de assunto, e apontou para os
telhados verdes e vermelhos que se avistavam por trás do
verdor das sebes de acácias e de lilases. – Parece uma
cidadezinha.
que fosse.
1292
Anna, desviando o olhar do rosto da amiga e semicerrando os
olhos (um hábito novo, que Dolly não conhecia na amiga), pôs-
se a refletir, no intuito de compreender plenamente o
significado daquelas palavras. E, pelo visto, após compreendê-
las como quis, fitou Dolly.
1293
do homem amado, só a elas reveladas. – Olhe, está vendo
aquela construção grande? É o novo hospital. Creio que vai
custar mais de cem mil rublos. É a sua dada,[30] agora. E sabe
como isso começou? Os seus mujiques pediram que lhes
cedesse um prado, por um preço baixo, eu suponho, e ele
recusou e eu o acusei de avareza. Claro, não foi só por isso,
mas por tudo: ele começou a construir esse hospital, entende,
para mostrar que não é avarento. C’est une petitesse,[31]
você pode pensar, se quiser; mas eu o amo ainda mais por
causa disso. E agora já se pode ver a nossa casa. É a mesma
casa dos seus avós, e ele não alterou nada, por fora.
1294
cob.[32] O meu preferido. Tragam-no aqui e me deem açúcar.
Onde está o conde?
1295
bolsa da carruagem e porque sabia que o seu rosto devia estar
muito empoeirado.
1296
– Sim, mas estamos tão bem acomodados… – respondeu
Dolly, embaraçada.
1297
C A P Í T U L O XIX
1298
que totalizava mais de quinze rublos, além do acabamento e da
mão de obra, e esses quinze rublos provinham de suas
economias. Porém, agora, diante da criada de quarto, sentiu-se
não propriamente envergonhada, mas sim desconfortável.
1299
Dolly ficou contente quando Anna entrou e, com a sua chegada,
interrompeu a tagarelice de Ánuchka.
1300
Mas Anna compreendeu.
1301
se ouvia a sua conversa num francês estranho, a única maneira
de se entenderem mutuamente.
1302
contratado uma inglesa tão antipática e tão pouco respeitável.
Além disso, por algumas palavras apenas, Dária Aleksándrovna
prontamente compreendeu que Anna, a ama de leite, a babá e
a criança não se davam bem entre si, e que aquela visita da
mãe era algo fora do comum. Anna quis pegar um brinquedo
para a criança, mas não conseguiu encontrá-lo.
1303
ne vous ferai grâce de rien.[38] Preciso contar tudo. Sim,
preciso lhe apresentar um resumo da sociedade que você
encontrará em nossa casa – começou Anna. – Vamos começar
pelas senhoras. A princesa Varvara. Você a conhece, e eu
conheço a sua opinião e a de Stiva a respeito dela. Stiva diz
que o único propósito da vida da princesa é provar sua
superioridade em relação à tia Katierina Pávlovna; tudo isso é
verdade; mas ela é bondosa e eu lhe sou muito grata. Em São
Petersburgo, houve um momento, para mim, em que foi
imprescindível un chaperon.[39] Depois, ela apareceu aqui. Mas,
creia, é bondosa. Tornou muito mais leve a minha situação.
Vejo que você não compreende todo o tormento da minha
situação… lá, em Petersburgo – acrescentou. – Aqui, estou
perfeitamente serena e feliz. Bem, deixemos isso para mais
tarde. É preciso seguir a lista. Depois vem Sviájski: é o decano
eleito da nobreza do distrito, homem muito distinto, mas que
está precisando obter alguma coisa de Aleksiei. Veja bem,
com a sua fortuna e agora que nos instalamos no campo,
Aleksiei pode vir a exercer uma grande influência. Depois, vem
Tuchkiévitch, você o viu, estava sempre com a Betsy. Agora o
mandaram embora e veio para a nossa casa. Como diz
Aleksiei, ele é uma dessas pessoas que são muito agradáveis,
se as tomarmos por aquilo que pretendem aparentar, et puis,
il est comme il faut,[40] como diz a princesa Varvara. Depois,
temos o Vieslóvski… esse, você conhece. Um menino muito
amável – disse, e um sorriso maroto franziu seus lábios. – E o
que foi essa história absurda com o Liévin?
1304
Vieslóvski contou a Vrónski e nós não acreditamos. Il est très
gentil et naïf [41] – disse, de novo, com o mesmo sorriso. – Os
homens precisam de distração e Aleksiei precisa de uma
plateia, por isso tenho apreço por toda essa sociedade. Isso é
necessário, para que nossa casa fique alegre e animada e para
que Aleksiei não comece a desejar nenhuma novidade. Depois,
vem o administrador, um alemão, homem muito bom e que
conhece o seu trabalho. Aleksiei o tem em alta conta. Depois, o
médico, homem jovem, não propriamente um niilista, mas, você
sabe, ele come com a faca… mas é um médico excelente.
Depois, vem o arquiteto… Une petite cour.[42]
1305
C A P Í T U L O XX
1306
Mamónovna, e Lisa Neptúnova… Ninguém falou nada, não foi?
E, no fim, todos os receberam. E depois, c’est un interior si joli, si
comme il faut. Tout à fait à l’anglaise. On se reunit le matin au
breakfast et puis on se sepaire.[43] Cada um faz o que deseja,
até o jantar. O jantar é às sete horas. Stiva fez muito bem em
enviar você. Ele precisa do apoio deles. Sabe, por intermédio da
mãe e do irmão, ele pode conseguir tudo. Depois, eles fazem
muitas coisas boas. Ele não lhe contou sobre o hospital? Ce
sera admirable,[44] tudo vem de Paris.
1307
Assim ficou resolvido. Vieslóvski e Tuchkiévitch seguiram para a
cabine de banhos, prometeram preparar o bote e ficar lá, à
espera deles.
1308
vontade de Dolly, Vrónski, ali, em sua casa, impunha-se a ela
ainda mais do que antes e Dolly não conseguia sentir-se à
vontade em sua companhia. Experimentava, com ele, um
sentimento semelhante ao que experimentara com a criada de
quarto, por causa da sua blusinha. Assim como diante da
criada ela não sentira propriamente vergonha, mas sim um
desconforto por causa dos remendos, também diante de
Vrónski sentia-se não propriamente envergonhada, mas sim
desconfortável, por causa de si mesma.
1309
alegrava-se sinceramente com os elogios de Dária
Aleksándrovna.
1310
As senhoras abriram as sombrinhas na vereda lateral. Enquanto
passava por algumas curvas e saía por uma cancela, Dária
Aleksándrovna via à sua frente, numa elevação, a construção
grande e vermelha, de feitio complicado, e já quase pronta. O
telhado de ferro, que ainda não fora pintado, brilhava
ofuscante sob o sol forte. Junto à construção já encerrada,
erguia-se uma outra, rodeada de andaimes, e operários de
avental, em cima dos estrados, colocavam os tijolos em
posição, recobriam com a argamassa retirada de baldes e
depois aplanavam com espátulas.
1311
– Eu disse que era preciso levantar as fundações – disse
Anna.
1312
– Por aqui, vamos nessa direção. Não se aproximem da
janela – disse Anna, verificando se a tinta havia secado. –
Aleksiei, a tinta já secou – acrescentou.
– disse Sviájski.
1313
cadeira de rodas encomendada pouco antes, para os
convalescentes. – Veja só. – Sentou-se na cadeira e pôs-se a
movimentá-la. – A pessoa não consegue andar, suas pernas
ainda estão fracas ou doentes, mas precisa tomar ar e então se
desloca, roda…
1314
C A P Í T U L O XXI
Viu pelo rosto de Vrónski que ele queria alguma coisa dela. Não
se enganara. Assim que atravessaram a cancela e entraram de
novo no jardim, ele olhou na direção para onde seguia Anna e,
convencido de que ela não podia ouvi-los ou vê- los, começou:
1315
Quando se viu sozinha com Vrónski, de repente, teve medo: os
olhos risonhos e a expressão severa do rosto assustaram-na.
1316
Interpretei a senhora corretamente? – perguntou, voltando-se
para ela.
1317
– Sim, mas aqui, desde então, uma vez que nem Anna… nem
o senhor sentem falta da sociedade…
1318
francês – e estamos unidos para toda a vida. Estamos ligados
pelos laços do amor, os mais sagrados que existem, para nós.
Temos um bebê, podemos ter mais filhos. Mas a lei e as nossas
circunstâncias são de tal ordem que surgem milhares de
complicações, as quais ela agora, enquanto repousa a alma
após todos os sofrimentos e provações, não vê e não quer
ver. Isso é compreensível. Mas eu não posso deixar de ver.
Minha filha, pela lei, não é minha filha, mas sim de Kariênin. Eu
não quero essa mentira!
1319
sem dúvida nenhuma, eu não trocaria a minha atividade pela
deles. Trabalho aqui, levo minha vida aqui, e estou feliz,
satisfeito, e nós não precisamos de mais nada para
1320
– Sim, isso me conduz ao propósito da minha conversa –
respondeu ele, acalmando-se com esforço. – Anna pode, isso
depende dela… Até para apresentar ao imperador um pedido
de adoção, é preciso o divórcio. E isso depende de Anna. O
marido concordaria com o divórcio, o esposo da senhora já
havia arranjado tudo, naquela ocasião. E agora, eu sei, ele não
o recusaria. Bastaria escrever para ele. Naquela ocasião, ele
respondeu de forma direta que, se Anna manifestasse tal
desejo, ele não recusaria. Claro – disse, em tom sombrio –,
trata-se de uma dessas crueldades farisaicas de que apenas
são capazes as pessoas sem coração. Ele sabe quanto
tormento custa a Anna qualquer lembrança dele e, mesmo a
conhecendo, exige dela uma carta. Entendo como é torturante
para Anna. Mas as razões são tão importantes que é preciso
passer pardessus toutes ces finesses de sentiment. Il y va du
bonheur et de l’existence d’Anne et de ses enfants.[49] Não
falo de mim, embora me seja penoso, muito penoso. Aí está,
princesa, agarro-me
1321
– Use sua influência sobre ela, faça-a escrever. Não quero e
quase não consigo falar com Anna sobre isso.
– Muito bem, vou falar. Mas por que ela mesma não pensou
nisso? – perguntou Dária Aleksándrovna, lembrando-se de
repente, por algum motivo, do novo e estranho costume de
semicerrar os olhos que notara em Anna. E lembrou que ela
semicerrava os olhos exatamente quando a conversa tratava
de aspectos íntimos da sua vida. “É como se ela semicerrasse
os olhos em face da sua vida, para não ver tudo”, refletiu Dolly.
– Por mim e por Anna, falarei sem falta com ela a respeito do
assunto – declarou Dária Aleksándrovna, em resposta à
expressão de gratidão de Vrónski.
1322
C A P Í T U L O XXII
Dolly foi para o seu quarto e sentiu vontade de rir. Não tinha
roupa para trocar porque já havia usado o seu melhor vestido;
porém, a fim de marcar de alguma forma seus preparativos
para o jantar, pediu à criada de quarto que limpasse o seu
vestido, trocou os punhos e o lacinho e vestiu uma renda sobre
a cabeça.
– Eis tudo o que posso fazer – disse sorrindo para Anna, que
veio ao seu encontro, com o seu terceiro vestido, de novo
extremamente simples.
1323
Antes do jantar, não tiveram tempo de falar sobre nada. Ao
entrar na sala de refeições, já encontraram lá a princesa
Varvara e os homens de sobrecasacas pretas. O arquiteto
estava de fraque. Vrónski apresentou à visitante o médico e o
administrador. O arquiteto, ele já lhe apresentara no hospital.
1324
da letra naquilo que todo anfitrião digno desejava dar a
entender aos seus hóspedes, ou seja, que tudo aquilo que se
revelava tão bem organizado em sua casa não custara para
ele, o anfitrião, o menor trabalho e se formara por si mesmo.
Mas Dária Aleksándrovna sabia que nem a papa do desjejum
das crianças se fazia por si mesma e que, portanto, para se
alcançar uma organização tão complexa e deslumbrante, era
preciso que alguém aplicasse uma atenção redobrada. E, pela
expressão de Aleksiei Kirílovitch, pelo modo como observava a
mesa, como fazia sinais com a cabeça para o mordomo e
como propôs a Dária Aleksándrovna a opção entre a
botvínia[50] e a sopa, ela compreendeu que tudo se cumpria e
se mantinha em ordem graças aos cuidados do próprio
anfitrião. Ao que parecia, tudo aquilo dependia tão pouco de
Anna quanto de Vieslóvski. Ela, Sviájski, a princesa e Vieslóvski
eram hóspedes por igual, que desfrutavam com alegria aquilo
que fora preparado para eles.
1325
A conversa voltou-se para o passeio que Tuchkiévitch e
Vieslóvski deram sozinhos, num bote, e Tuchkiévitch pôs-se a
relatar as últimas corridas no Iate Clube de Petersburgo. Mas
Anna, que aguardava uma interrupção, prontamente dirigiu-se
ao arquiteto a fim de retirá-lo do seu silêncio.
1326
– Você já viu alguma vez as máquinas de ceifar? – voltou-se
ela para Dária Aleksándrovna. – Nós tínhamos ido vê-las,
quando encontramos você. Eu mesma nunca tinha visto.
1327
ausrechnen, Erlaucht.[53] – O alemão já fazia menção de enfiar
a mão no bolso, onde tinha um lápis e uma caderneta, na qual
calculava tudo, mas, ao se dar conta de que estava diante da
mesa de jantar e ao perceber o olhar frio de Vrónski, mudou de
ideia. – Zu compliziert, macht zu viel Klopt[54] – concluiu.
– Esplêndido!
1328
– Que pena! – disse Anna e, depois de assim ter prestado
um tributo de cortesia às pessoas da esfera doméstica, voltou-
se para os seus.
1329
Vrónski, nesse caso, procedia de forma totalmente diversa de
Liévin. Pelo visto, não atribuía nenhuma importância à
tagarelice de Vieslóvski e, ao contrário, incentivava aqueles
gracejos.
1330
–, mas provavelmente nunca viu essas máquinas que critica. E,
se viu e experimentou, foi alguma máquina russa, feita sem
cuidado, e não uma estrangeira. Que opiniões se podem formar
desse modo?
1331
honra que me foi feita, graças aqui ao nosso Nikolai Ivánitch
(apontou para Sviájski), ao me indicarem para o cargo de juiz
de paz honorário. Tenho para mim que exercer as funções no
conselho e julgar um processo de um mujique sobre cavalos são
coisas tão importantes quanto tudo o mais que eu possa
fazer. E considerarei uma honra se me elegerem vogal. Só desse
modo eu posso retribuir as vantagens que desfruto como
senhor de terras. Infelizmente, os grandes senhores de terras
não entendem a importância que deveriam ter no Estado.
1332
meses e já é membro, me parece, de cinco ou seis instituições
públicas: curador, juiz, vogal, jurado e alguma coisa dos
cavalos. Du train que cela va,[59] todo o seu tempo será
consumido nisso. E eu receio que, quando tais atividades se
multiplicam dessa maneira, não passem de mera formalidade.
O senhor é membro de que instituições, Nikolai Ivánitch? –
voltou-se para Sviájski. – Parece- me que são mais de vinte,
não?
1333
Depois do jantar, sentaram-se na varanda. Em seguida, foram
jogar lawn tennis. Os jogadores, divididos em dois grupos,
distribuíram-se numa quadra de croqué cuidadosamente
aplanada e batida, com uma rede estendida no meio do
campo, presa em colunazinhas douradas. Dária Aleksándrovna
chegou a tentar jogar, mas demorou muito tempo para
conseguir compreender o jogo e, quando compreendeu, estava
tão cansada que foi sentar-se ao lado da princesa Varvara e
limitou-se a ver os jogadores. O seu parceiro, Tuchkiévitch,
também desistiu; mas os demais continuaram a jogar por
longo tempo. Sviájski e Vrónski jogavam muito bem e com
seriedade. Acompanhavam com olhar vigilante a bola atirada
em sua direção, corriam agilmente para ela, sem se apressar e
sem se atrasar, aguardavam que quicasse e, com um golpe
certeiro e exato da raquete, devolviam a bola por cima da
rede. Vieslóvski jogava pior do que os outros.
1334
Durante o jogo, Dária Aleksándrovna não se sentiu alegre. Não
lhe agradava
Até lhe desagradou pensar que Anna viria ao seu quarto dali a
pouco. Tinha vontade de ficar só com seus pensamentos.
1335
C A P Í T U L O XXIII
1336
culpado? Acaso poderia ter sido de outro modo? Pois bem, o
que você pensa? Seria possível não ser você esposa de Stiva?
Dolly sorriu.
1337
sozinha, e isso vai acontecer… Tudo indica que isso vai repetir-
se, que ele vai passar metade do tempo longe de casa – disse
Anna, levantando-se e vindo sentar-se perto de Dolly.
1338
– Disse que está sofrendo por você e por si mesmo. Talvez
você vá dizer que isso é egoísmo, mas que egoísmo legítimo e
nobre! Ele deseja, em primeiro lugar, legitimar a filha e ser o seu
marido, ter direito sobre você.
– Que esposa, que escrava pode ser tão escrava quanto eu,
na minha situação?
1339
pode ser! – exclamou Dolly, de olhos arregalados. Para ela,
tratava-se de uma dessas descobertas cujos efeitos e cujas
conclusões eram tão vastos que, num primeiro momento, só se
sentia que era impossível compreender tudo, mas que era
necessário refletir muito, muito mesmo, sobre o assunto.
1340
– Para você, para outras – disse Anna, como que
adivinhando o pensamento dela –, ainda pode haver uma
dúvida; mas para mim… Compreenda, não sou uma esposa; ele
me ama enquanto me amar. E como vou manter o seu amor?
Com isto?
1341
– Você acha que isso não é correto? Mas é preciso
ponderar – prosseguiu. – Você esquece a minha posição.
Como posso querer filhos? Não me refiro às dores, não as
receio. Mas pense bem: quem serão os meus filhos? Crianças
infelizes, que levarão o nome de um estranho. Pelo próprio
nascimento, eles se verão obrigados a envergonhar-se da
mãe, do pai, do seu nascimento.
1342
– Não, eu não sei, isso não é correto – disse ela, apenas,
com uma expressão de repulsa no rosto.
1343
C A P Í T U L O XXIV
1344
compreender. É horrível demais! Eu tento não encarar
absolutamente nada.
1345
– Significa que eu, embora o odeie, me reconheço culpada
perante ele, e que o considero generoso, e que eu me humilho
ao ponto de escrever para ele… Pois
1346
assunto. Assim, não me censure, não me julgue por nada.
Você não pode, com a sua pureza, compreender tudo o que
eu sofro.
1347
amiga. Mas na sua fisionomia, ao mesmo tempo agitada e
contida, e que dissimulava algo, Vrónski nada encontrou além
da beleza que, embora para ele já fosse habitual, ainda
assim o cativava, e também a consciência da própria beleza
e o desejo de que ela agisse sobre ele. Vrónski não queria
perguntar sobre o que haviam conversado, mas tinha
esperança de que ela mesma lhe contasse algo. Porém Anna
disse apenas:
Ela, que interpretou esse olhar num outro sentido, sorriu para
ele.
1348
Foi desagradável, para Dária Aleksándrovna, a despedida da
princesa Varvara e dos homens. Passado um dia, ela e os
senhores da casa sentiam nitidamente que não tinham
afinidade entre si e que era melhor não se encontrarem. Só
Anna estava triste. Sabia que agora, com a partida de Dolly,
já ninguém faria reviver em sua alma os sentimentos que
haviam despertado durante aquele encontro. Perturbar esses
sentimentos lhe era doloroso, mas, mesmo assim, Anna
sabia que era a melhor parte da sua alma e que essa parte da
sua alma começava a ser rapidamente encoberta na vida que
agora levava.
1349
– Os cavalos, nem se fala. E a comida é boa. Mas achei tudo
meio triste, Dária Aleksándrovna, e a senhora não achou? –
perguntou, virando para ela seu rosto bonito e simpático.
– Temos de chegar.
1350
C A P Í T U L O XXV
1351
A construção do hospital também interessava a Anna. Não só
ajudava como também organizava e inventava muita coisa.
Mas, apesar de tudo, a sua principal preocupação era consigo
mesma – a que ponto era estimada por Vrónski, a que ponto
podia substituir tudo o que ele havia abandonado. Vrónski
apreciava esse desejo, que se tornara o único propósito da vida
de Anna, de não só lhe agradar, mas também de o servir,
porém, ao mesmo tempo, sentia-se oprimido pelas redes do
amor com que ela se empenhava em prendê-lo. Quanto mais
passava o tempo, mais frequentemente Vrónski se via preso
por essas redes, mais vontade sentia, não de sair de dentro
delas, mas sim de provar que não tolhiam sua liberdade. Não
fosse o desejo, cada vez mais forte, de ser livre e de não
provocar uma cena toda vez que precisava ir à cidade para
uma reunião política ou para uma corrida, Vrónski estaria
perfeitamente satisfeito com a sua vida. O papel que escolhera,
o de um abastado senhor de terras, classe que devia constituir
o núcleo da aristocracia russa, não só era inteiramente do seu
agrado como agora, após viver desse modo meio ano, lhe
proporcionava uma satisfação sempre crescente. E seus
negócios, que o ocupavam e o absorviam cada vez mais,
andavam de
1352
Suíça e muitas outras coisas, Vrónski estava convencido de que
não dissipava sua fortuna, mas sim a aumentava.
1353
Essas eleições atraíam a atenção pública em razão de muitas
circunstâncias e, também, em razão das pessoas que dela
participavam. Falava-se muito sobre o assunto e todos se
preparavam para isso. Habitantes de Moscou, de São
Petersburgo e residentes no exterior, que jamais haviam
presenciado uma eleição, viajavam para lá.
1354
Anna.
“Se ela quer adotar este tom, tanto melhor”, pensou ele.
“Senão, seria a mesma história de sempre.”
1355
C A P Í T U L O XXVI
Liévin ainda estava indeciso, mas Kitty, que notava como ele se
aborrecia em Moscou e o aconselhava a ir, encomendou um
uniforme de fidalgo, sem ele saber, ao preço de oitenta rublos.
E esses oitenta rublos, pagos pelo uniforme, foram o principal
motivo que induziu Liévin a viajar. Partiu para Káchin.
1356
homem obsequiosíssimo, não podia entregar o talão porque
era preciso ter a assinatura do presidente, e este, que não
delegara suas funções a ninguém, estava nas sessões da
assembleia. Todas essas diligências, as idas e vindas de um
lugar para o outro, as conversas com pessoas muito cordiais e
bondosas que compreendiam perfeitamente a situação
desagradável do requerente, mas não podiam atendê-lo
1357
interessava que seu processo não chegasse a bom termo. Pelo
visto, ninguém o sabia; nem o advogado. Se Liévin pudesse
compreender, da mesma forma que compreendia por que só
era possível chegar ao guichê da estação ferroviária entrando
numa fila, não seria tão humilhante e aborrecido; porém, no
caso dos obstáculos que encontrava para o andamento do
processo, ninguém conseguia explicar para que eles existiam.
1358
fundos formados pelas contribuições dos nobres, os liceus
feminino, masculino e militar, a instrução pública segundo as
novas disposições e por fim o ziemstvo –, o decano da nobreza
da província Sniétkov era um nobre ao estilo antigo, que
consumira uma vasta fortuna, um homem bondoso, honrado à
sua maneira, mas que não compreendia em nada as exigências
dos novos tempos. Sempre e em todos os casos, tomava o
partido da nobreza, era francamente contrário à difusão da
instrução popular e, ao ziemstvo, que deveria ter uma
importância enorme, ele atribuía um caráter de casta. Era
preciso substituí-lo por um homem jovem, moderno, prático,
completamente novo, e conduzir o processo de modo a extrair,
de todos os direitos concedidos à nobreza, não como se fosse
para a nobreza, mas sim para um elemento do ziemstvo, todas
as vantagens de autonomia
1359
A assembleia foi aberta pelo governador, que proferiu um
discurso para os nobres e pediu que elegessem os funcionários
públicos, não por simpatia, mas pelos méritos e para o bem da
pátria, e disse esperar que a honrada nobreza de Káchin, a
exemplo das eleições anteriores, cumprisse o seu dever como
algo sagrado e correspondesse à elevada confiança do
monarca.
1360
que, como explicou Serguei Ivánovitch, não tinham nenhuma
importância, e Liévin, ocupado com suas peregrinações em
busca de solução para os seus negócios, não acompanhou os
debates. No quarto dia, em torno da mesa do decano da
província, procedeu-se à conferência dos fundos provinciais. E
ali, pela primeira vez, verificou-se um choque entre o partido
novo e o velho. A comissão encarregada de aferir as contas
comunicou à assembleia que os fundos estavam perfeitamente
íntegros. O decano da nobreza levantou-se, agradeceu aos
nobres por sua confiança e derramou algumas lágrimas. Os
nobres aplaudiram-no com alarde e apertaram sua mão.
1361
do partido contrário objetou a Serguei Ivánovitch. Em seguida,
falou Sviájski e de novo o cavalheiro venenoso. Os debates
prosseguiram longamente e não deram em nada. Liévin
admirou-se de discutirem tão demoradamente a respeito do
assunto, sobretudo porque, quando perguntou a Serguei
Ivánovitch se supunha que os fundos tinham sido
desperdiçados, ele respondeu:
1362
C A P Í T U L O XXVII
1363
pretas e folhas de louro bordadas, emblema do Ministério da
Justiça. Aos jovens, pertenciam os uniformes de cortesão que
aqui e ali enfeitavam a multidão.
1364
debruado, aproximou-se, em seu uniforme de camareiro da
corte.
1365
distrito, o de Sviájski, não propuser sua candidatura, Sniétkov
vai candidatar-se à votação. Eles irão até votar nele e, de
propósito, conseguir mais votos, de modo a confundir os
cálculos do partido adversário, mas, quando apresentarem o
nosso candidato, votarão nele.
1366
C A P Í T U L O XXVIII
1367
Nisso, de súbito, algumas vozes começaram a falar e o fidalgo
de alta estatura e de anel exasperava-se cada vez mais e
gritava cada vez mais alto. Mas era impossível decifrar o que
dizia.
1368
o decano da nobreza; para derrubar o decano da nobreza,
era preciso obter a maioria dos votos; para obter a maioria
dos votos, era preciso dar a Fliérov o direito de voto; para
reconhecer esse direito de Fliérov, era preciso esclarecer o
sentido do artigo da lei.
1369
– Por favor, Konstantin Dmítritch – disse ele –, o irmão do
senhor o procura.
1370
– Cento e vinte e seis, a favor! Noventa e oito, contra! –
proclamou a voz do secretário, que não conseguia pronunciar a
letra R. Em seguida, ouviu-se uma gargalhada: um botão e
duas nozes foram encontrados na urna. O fidalgo fora aceito e
o partido novo vencera.
Mas o partido velho não se dava por vencido. Liévin soube que
pediram a Sniétkov que apresentasse sua candidatura e viu
como uma multidão de nobres cercava o decano da nobreza
da província, que dizia algo. Liévin chegou mais perto. Em
resposta aos nobres, Sniétkov falava sobre a confiança da
nobreza, sobre sua afeição a ele, à qual não fazia jus,
porquanto todo o seu mérito consistia na fidelidade à nobreza,
a que consagrara doze anos de trabalho. Repetiu algumas
vezes as palavras: “Servi com todas as minhas forças, do lado
da fé e da verdade, estimo muito e agradeço”, e de repente
silenciou, por causa das lágrimas que o sufocavam, e saiu da
sala. Viessem tais lágrimas da consciência de uma injustiça
cometida contra ele, ou da sua afeição pela nobreza ou da
tensão da situação em que se achava, sentindo-se cercado
de inimigos, o fato é que a emoção contagiou a maioria dos
nobres, que se comoveram, e Liévin sentiu afeição por Sniétkov.
1371
mas não conseguia, por causa da emoção. A expressão do
seu rosto e toda a sua figura, enquanto caminhava às pressas,
de uniforme, com suas medalhas e uma calça branca com
galões bordados, lembraram a Liévin um animal caçado que
percebe que sua situação é péssima. A expressão no rosto do
decano da nobreza comoveu a Liévin em especial porque,
justamente no dia anterior, fora à sua casa tratar da questão
da tutela e vira-o em todo o seu esplendor de homem bondoso
e dedicado à família. A casa ampla, com a antiga mobília da
família; os criados velhos, um tanto sujos, que não se vestiam
de maneira afetada, mas eram respeitosos, obviamente servos
antigos, que não mudaram de senhor; a esposa gorda,
simpática, de touquinha com rendas e um xale turco, que
fazia carinhos numa neta bonitinha, filha da sua filha; o
filho mais jovem, estudante da sexta série, que chegara do liceu
e, ao cumprimentar o pai, beijou sua mão grande; as palavras e
os gestos afetuosos e imponentes do senhor da casa – tudo
isso despertara em Liévin, no dia anterior, um espontâneo
respeito e uma simpatia. Esse velho, agora, lhe pareceu
comovente e digno de pena, e Liévin sentiu vontade de lhe dizer
algo agradável.
1372
E o decano da nobreza esquivou-se por uma porta lateral.
1373
C A P Í T U L O XXIX
1374
da marinha, mastigava com os lábios e viera sentar-se a seu
lado, só Liévin não tinha ali interesse nem propósito.
1375
– Mas, com licença! Eles se apoiam no artigo da lei –
argumentaram num outro grupo –, a esposa deve estar
registrada na condição de nobre.
Tenham confiança.
1376
que tinha de ser assim. – E o senhor, como veio parar aqui, em
nossa província? – perguntou. – Veio tomar parte do nosso
coup d’état?[65] – disse com firmeza, mas pronunciando mal as
palavras francesas. – A Rússia inteira se reuniu aqui: até os
camareiros da corte, só faltam os ministros. – Apontou para a
figura imponente de Stiepan Arcáditch, de calça branca e
uniforme de camareiro da corte, que passava ao lado de um
general.
1377
cavalheiro venenoso, que falava atrás da mesa do decano da
província.
1378
– Então, para que o senhor faz isso? Se é prejuízo certo?
1379
vezes com semelhantes cálculos de lucro. – E ele fará fortuna.
Enquanto o senhor e eu daremos graças a Deus se
conseguirmos conservar a nossa e deixá-la para os filhos.
1380
terra que puder alugar. Por pior que seja a terra, ele vai lavrar
tudo. Também sem lucro. Puro prejuízo.
– De certo modo.
– Desabafamos um pouco.
1381
C A P Í T U L O XXX
Dessa vez, foi impossível evitar Vrónski. Ele estava de pé, com
Stiepan Arcáditch e Serguei Ivánovitch, e olhava direto para
Liévin, que se aproximava.
1382
– A questão é exatamente esta, não fez uma coisa nem
outra – disse Vrónski.
1383
– Ah, sim – disse Vrónski, distraído.
1384
E contou como um mujique roubou farinha do moleiro e,
quando o moleiro lhe disse isso, o mujique abriu um processo
por calúnia. Tudo era absurdo e tolo e, enquanto falava, o
próprio Liévin se dava conta disso.
E se dispersaram.
– Pois bem, você diz que tudo isso é bobagem, mas, quando
começa a se meter, cria logo confusão.
1385
O decano da nobreza da província, apesar de sentir no ar que
lhe preparavam um ardil, e apesar de nem todos terem
proposto a sua candidatura, resolveu candidatar-se, mesmo
assim. Tudo estava em silêncio no salão, o secretário anunciou,
em alto e bom som, que se candidatava ao cargo de decano da
nobreza
1386
depositavam a bolinha, fez uma careta. Nem teve chance de
aplicar sua argúcia.
1387
para o salão onde se sentia tão mal, foi dar uma volta pelas
tribunas.
1388
Houve um silêncio de morte e ouviu-se uma voz débil, de velho:
– Renuncio!
1389
Estavam votando a candidatura de Nieviedóvski, que antes a
recusara com tanta firmeza.
1390
Quando Nieviedóvski saiu do salão, a multidão cercou-o e
seguiu-o em êxtase, como no primeiro dia seguira o
governador que dera início às eleições, e como antes também
havia seguido Sniétkov, quando ele fora eleito.
1391
C A P Í T U L O XXXI
1392
senhor amalucado casado com Kitty Cherbátski e que à propos
de bottes[67] lhe falara com ódio raivoso uma porção de tolices
incoerentes, todos os fidalgos com quem travara contato se
fizeram seus adeptos. Via claramente, e outros o reconheciam,
que muito havia contribuído para o sucesso de Nieviedóvski.
E agora, à mesa em sua casa, enquanto festejava a eleição de
Nieviedóvski, ele provava uma agradável sensação de triunfo
pela vitória do seu escolhido. As eleições em si o atraíram a tal
ponto que, se viesse a casar-se no futuro triênio, ele mesmo
cogitaria em candidatar-se – assim como, após ter ganhado
uma aposta devido à vitória de um jóquei, resolvera que ele
mesmo iria correr.
1393
Sviájski suportava o seu fracasso com bom humor. Para ele,
nem era um fracasso, como disse com a taça na mão,
dirigindo-se a Nieviedóvski: seria impossível encontrar um
representante melhor da nova tendência que a nobreza devia
seguir. E por isso todos os homens honestos, como disse
Sviájski, apoiaram o triunfo daquele dia e celebravam a sua
vitória.
1394
feliz e que se refreava com rédea curta a fim de não dar vazão
a um júbilo incompatível com o novo ambiente liberal onde
todos se encontravam.
1395
No fim do jantar, a alegria tornou-se ainda maior. O
governador pediu a Vrónski que fosse ao concerto em benefício
dos irmãos,[70] organizado por sua esposa, que desejava
conhecê-lo.
1396
O conteúdo era exatamente o que ele esperava, mas a forma
era inesperada e lhe pareceu particularmente desagradável.
“Annie está muito doente, o médico disse que pode ser
pneumonia. Sozinha, eu vou perder a cabeça. A princesa
Varvara não é uma ajuda, e sim um transtorno. Eu esperava ter
você após três dias, ontem, e agora escrevo para saber onde
está e o que é feito de você. Eu queria ir pessoalmente, mas
mudei de ideia, sabendo que seria um incômodo para você.
Mande alguma resposta, para que eu saiba o que fazer”.
1397
C A P Í T U L O XXXII
1398
morfina à noite, ela conseguia abafar os pensamentos terríveis
sobre o que aconteceria caso ele a deixasse de amar. Na
verdade, havia ainda um meio: não o segurar – ela não
queria, para tanto, nada além do amor de Vrónski –, mas sim
estreitar suas relações com ele, estabelecer uma situação em
que ele não a abandonasse. Esse meio era o divórcio e o
casamento. E Anna passou a desejá-lo e resolveu concordar,
na próxima vez em que Vrónski ou Stiva viessem falar com ela
a respeito do assunto.
1399
carta dele e arrependeu-se da sua. Esperava com horror a
repetição daquele olhar severo que Vrónski lançara sobre ela,
ao partir, sobretudo quando soubesse que a criança não
1400
lembrou-se dele, lembrou-se de que ele estaria ali, inteiro,
com suas mãos, seus olhos. Anna ouviu de longe a sua voz.
E, esquecida de tudo, correu alegre ao seu encontro.
1401
A noite transcorreu alegre e feliz, na companhia da princesa
Varvara, que se queixou a Vrónski de que Anna, sem ele,
tomava morfina.
1402
– Não, você duvida. Está descontente, eu vejo.
– A obrigação de ir a um concerto…
– Você bem sabe que esse é o meu único desejo. Mas para
isso…
1403
– Você fala como se estivesse me ameaçando. E no
entanto o que mais desejo é não me separar de você – disse
Vrónski, sorrindo.
PARTE VII
1404
CAPÍTULOI
1405
era que, ali, o marido não era como ela o amava e não se
portava como quando estava no campo.
1406
Na verdade, o que podia ele fazer? Não gostava de jogar
cartas. Não frequentava o clube. Divertir-se com homens do
tipo de Oblónski, Kitty já sabia,
1407
eram diversas, ou porque ambos se tornaram mais cuidadosos
e prudentes a esse respeito, em Moscou não havia entre eles
discussões por causa de ciúmes, aquilo que tanto temiam ao
mudar-se para a cidade.
1408
Kitty lhe disse algumas palavras, até sorriu tranquila ao seu
gracejo sobre as eleições, que Vrónski chamou de “nosso
parlamento”. (Era preciso sorrir, para mostrar que ela
compreendera o gracejo.) Mas Kitty logo se voltou para a
princesa Mária Boríssovna e nenhuma vez dirigiu o olhar para
Vrónski, até que ele se levantou para despedir-se; então o
olhou, mas, era evidente, apenas porque seria uma
descortesia não olhar para um homem no momento em que ele
se
Kitty sentiu-se grata ao pai por não lhe dizer nada a respeito
do encontro com Vrónski; mas, pelo carinho especial que o pai
lhe demonstrou após a visita e durante o passeio de costume,
Kitty percebeu que ele ficara satisfeito com ela. E ela mesma
ficara satisfeita consigo. Não esperava, de forma alguma,
encontrar em si essa força para reter em algum ponto no fundo
da alma todas as recordações dos antigos sentimentos por
Vrónski e não só mostrar-se, mas estar de todo indiferente e
tranquila em relação a ele.
1409
ele não lhe fazia perguntas e limitava-se a fitá-la, com as
sobrancelhas franzidas.
1410
C A P Í T U L O II
– Sei; não era dele o artigo que você elogiou tanto? Muito
bem, e depois? – perguntou Kitty.
– Nada disso, vá; eles vão tocar essas peças novas… Isso
lhe interessava tanto.
1411
– Vista a sobrecasaca para ir direto à casa da condessa
Bohl.
1412
– Kóstia, sabe que só me restam cinquenta rublos?
1413
sido muito melhor ficar no campo! Desse jeito, eu atormento
todos vocês e desperdiçamos o seu dinheiro…
– Não é nada, não é nada. Desde que casei, nem uma vez
eu me disse que as coisas poderiam estar melhores do que
estão.
1414
insustentável? Está com dívidas de todos os lados e não tem
dinheiro nenhum. Ontem conversamos com a mamãe e com
Arsiêni (assim ela chamava o marido da irmã, Lvov) e
decidimos mandar que você e ele fossem pressionar o Stiva.
Isso é positivamente insustentável. Com o papai, é impossível
falar sobre esse assunto… Mas se você e ele…
1415
contratar coches de aluguel e que, mesmo com os seus cavalos,
era preciso usar ainda os serviços dos coches de aluguel.
– Perfeitamente, senhor.
1416
com o sábio de Petersburgo, estudioso da sociologia, e como
falaria com ele sobre o seu livro.
1417
segunda nota, apesar de tudo, saiu com mais facilidade. E
agora já fazia muito tempo que as notas que ele trocava não
despertavam tais pensamentos, e voavam como passarinhos.
Se o trabalho investido na obtenção do dinheiro correspondia
de fato à satisfação proporcionada por aquilo que ele
comprava, essa era uma questão que ele perdera de vista,
fazia já muito tempo. Os cálculos econômicos que visavam à
definição de um determinado preço abaixo do qual não se
poderia vender um determinado cereal também foram
esquecidos. O centeio, cujo preço ele havia defendido por tanto
tempo, era agora vendido por cinquenta copeques a quarta,
um valor mais baixo
1418
C A P Í T U L O III
1419
estar. – Ouvi a campainha e pensei: não pode ser, tão pontual
assim… Mas, e então, o que diz dos montenegrinos?
1420
meio e encontrar, nessa dependência, as leis do
desenvolvimento.
1421
que era sua vocação povoar enormes vastidões desabitadas no
oriente.
1422
concordar com os economistas e ter uma teoria própria e nova
sobre o salário, a qual expôs a Liévin.
1423
Piotr Ivánitch fomos convocados. Prometi falar sobre suas
obras de zoologia. Venha conosco, vai ser muito interessante.
1424
sobre o assunto e tinha uma opinião formada a respeito; tomou
parte da conversa, que continuou pela rua, enquanto
– A biografia.
1425
leitura, pensava também na conversa de pouco antes. Agora,
estava claro para ele que, embora as ideias de Miétrov
tivessem talvez relevância, as suas próprias ideias também
tinham; essas ideias só poderiam esclarecer-se mutuamente e
levar a algum resultado depois que cada um deles tivesse
trabalhado em separado, no caminho que escolhera, e não
haveria proveito algum em promover o contato de tais ideias.
Decidido a recusar o convite de Miétrov, Liévin aproximou-se
dele no fim da reunião. Miétrov apresentou-o ao diretor, com
quem conversava sobre as notícias políticas. Miétrov relatava
ao diretor o mesmo que já relatara a Liévin e Liévin fez as
mesmas observações que já fizera pela manhã, mas, para
variar, formulou também opiniões novas, que lhe vieram à
cabeça ali mesmo. Em seguida, recomeçou a conversa sobre a
questão universitária. Como já ouvira tudo aquilo, Liévin
apressou-se em dizer a Miétrov que lamentava não poder
desfrutar o seu convite, fez um cumprimento com a cabeça e
saiu, rumo à casa de Lvov.
1426
C A P Í T U L O IV
1427
Seu rosto belo, fino e ainda jovem, ao qual os cabelos
cacheados, lustrosos e cor de prata davam um aspecto ainda
mais aristocrático, reluziu com um sorriso, quando reconheceu
Liévin.
1428
– Ah, como não? Sinto agora como a minha educação foi
ruim. Por causa da educação dos meus filhos, tive até de
refrescar muita coisa na memória e agora, pura e
simplesmente, tenho de estudar. Pois não basta ter professores,
é preciso haver um observador, assim como, na sua
propriedade, é preciso que haja os trabalhadores e um capataz.
Olhe o que estou lendo – mostrou a gramática de Busláiev, que
estava no leitoril –, é o que exigem de Micha, e é muito difícil…
Veja só, explique-me o senhor isto aqui. Ele diz…
1429
– Se eles forem melhores do que eu, está ótimo. É tudo o
que eu desejo. O senhor ainda não sabe – começou ele – todo o
trabalho que se tem com filhos como os meus, que ficaram com
os estudos negligenciados por causa dessa vida que se leva no
exterior.
1430
encontrar-se com alguém, no trabalho, ao passo que a esposa
precisava ir ao concerto e a uma sessão pública do comitê do
Sudeste,[2] e portanto havia muito o que resolver e ponderar.
1431
– Não, o exagero não é bom para nada – disse Natalie,
serena, enquanto colocava a espátula do marido na posição
correta, sobre a mesa.
1432
cachorro, ansiosa para que terminassem a conversa. – Vamos
logo.
1433
CAPÍTULOV
1434
da possibilidade de formar qualquer opinião determinada.
Toda vez que começava e parecia tomar forma a expressão
de um sentimento musical, logo se desfazia em fragmentos
de novos inícios de frases musicais e, de outras vezes, se
desfazia pura e simplesmente em caprichos do compositor,
sons desconexos, mas extremamente complicados. Porém,
mesmo os fragmentos dessas frases musicais, por vezes
bonitos, soavam desagradáveis, porque eram de todo
inesperados e nada os preparava. A alegria, a tristeza, o
desespero, a ternura e o triunfo acudiam sem qualquer
justificativa, como os sentimentos de um louco. E tais
sentimentos, como os de um louco, desapareciam de forma
inesperada.
1435
escultural, digamos assim, e que riqueza de matizes, naquela
passagem onde até sentimos a proximidade de Cordélia, onde
a mulher, das ewig Weibliche,[4] entra em luta contra o destino.
Não é verdade?
1436
das imagens poéticas que se insurgem em torno da figura do
poeta, num pedestal.
1437
C A P Í T U L O VI
1438
Liévin respondeu e repetiu a pergunta a respeito da morte
repentina de Apráksina.
– Sim, fui.
1439
– Não, mas eu prometi ir lá buscar minha belle-souer –
respondeu Liévin. Veio um silêncio. A mãe e uma filha
entreolharam-se de novo.
1440
Porém, devido provavelmente à fadiga da atenção, que
começou a sentir quando falava sobre o processo, Liévin
cometeu um erro e, mais tarde, lembrou-se várias vezes desse
erro, com irritação. Ao falar sobre a condenação iminente de
um estrangeiro que estava sendo julgado na Rússia e sobre
como seria injusto condená-lo à deportação, Liévin repetiu o
que ouvira, na véspera, numa conversa com um conhecido.
1441
C A P Í T U L O VII
1442
ontem, pôs o seu nome na lista dos que viriam. O príncipe
Stiepan Arcáditch ainda não chegou.
1443
– Vai bem; as três vão jantar lá em casa.
1444
Liévin levantou-se e foi com ele até uma grande mesa, repleta
de vários tipos de vodca e dos mais diversos petiscos. Era de
esperar que, entre duas dezenas de petiscos, fosse possível
escolher algo do seu agrado, mas Stiepan Arcáditch fez
questão de algo especial e um dos criados de libré que
estavam ali postados trouxe prontamente o que foi pedido. Eles
beberam um cálice e voltaram para a mesa.
1445
Arcáditch ergueu o copo e, com o olhar voltado para a
extremidade oposta da mesa, na direção de um homem calvo
e de bigode ruivo, fez-lhe um cumprimento com a cabeça,
sorrindo.
1446
– Sim, parti naquele mesmo dia. Estávamos agora mesmo
conversando sobre o cavalo do senhor. Dou-lhe os meus
parabéns – disse Liévin. – É muito rápido.
1447
espontaneidade que Liévin se sentiu inteiramente reconciliado
com
ele.
1448
C A P Í T U L O VIII
1449
perguntou o príncipe, e Liévin percebeu pelo seu rosto que ele
tencionava contar algo divertido.
1450
entraram na sombria sala de leitura, onde, sob os lampiões
com quebra-luzes, estava sentado um jovem de rosto severo,
que apanhava uma revista depois da outra, e um general calvo,
imerso na leitura. Entraram também na sala que o príncipe
chamava de intelectual. Nesse aposento, três senhores
conversavam com ardor sobre as últimas notícias políticas.
1451
– Este é um amigo sincero e, certamente, o meu melhor
amigo – disse para Vrónski. – Você, para mim, também se
tornou ainda mais próximo e mais estimado. E eu quero e eu sei
que vocês devem tornar-se amigos e íntimos, porque são
ambos ótimas pessoas.
1452
– O que foi, o jogo vai mal?
1453
– A nenhum lugar em especial. Prometi a Sviájski ir à
Associação Agrícola.
1454
C A P Í T U L O IX
1455
– Estamos negociando o divórcio com o marido. E ele
concorda; mas há algumas complicações com relação ao filho
e esse processo, que já deveria estar encerrado há muito, já se
arrasta há três meses. Assim que houver o divórcio, ela se
casará com Vrónski. Como é tolo o velho costume de dar voltas
e gritar “Rejubila, Isaías”, em que ninguém acredita e que
impede a felicidade das pessoas! – acrescentou Stiepán
Arcáditch. – Pois é, mas, quando isso acontecer, a situação
deles estará normalizada, como a minha, como a sua.
1456
– Mas ela tem uma filha; sem dúvida, isso já a mantém
ocupada, não é? – perguntou Liévin.
1457
assim, com arrogância, com dinheiro, ela mesma leciona russo
aos garotos, para poderem entrar no liceu, e trouxe a mocinha
para trabalhar em sua casa. Mas você mesmo verá.
– Onde estão?
– No escritório.
1458
de Anna, pintado na Itália por Mikháilov. No momento em que
Stiepan Arcáditch passou para trás da treliça e uma voz
masculina, após ter falado algo, silenciou, Liévin observou o
retrato, sob a iluminação brilhante que a moldura ressaltava, e
não conseguiu desviar-se dele. Chegou a esquecer onde estava
e, sem escutar o que diziam, não baixava os olhos do retrato
admirável. Não era um quadro, mas uma fascinante mulher
viva, de cabelos negros e anelados, ombros e braços
desnudos, e um meio sorriso pensativo nos lábios margeados
por uma penugem tênue, que o fitava de modo afetuoso e
triunfante, com olhos que o perturbavam. O único motivo de
não estar viva era ser mais bela do que é possível, para uma
mulher viva.
1459
CAPÍTULOX
1460
fumava, puxou para si uma cigarreira feita de casco de
tartaruga e pegou uma cigarrilha.
1461
– Ela esteve aqui comigo ontem, está muito irritada com o
liceu, por causa de Gricha. O professor de latim parece que não
foi justo com ele.
1462
– Estou rindo – explicou Anna – como rimos quando vemos
um retrato muito parecido conosco. O que o senhor disse
caracteriza com perfeição a arte francesa atual, a pintura e até
a literatura: Zola, Daudet. Mas talvez seja sempre assim, os
artistas elaboram suas conceptions a partir de figuras
inventadas e convencionais e, depois de fazer todas as
combinaisons,[10] as figuras inventadas cansam e eles passam
a imaginar figuras mais naturais, mais fidedignas.
1463
– E então, ela se saiu bem na prova? – perguntou Stiepan
Arcáditch.
1464
E olhou de novo para Liévin. O sorriso de Anna, o seu olhar,
tudo lhe dizia que ela dirigia aquelas palavras apenas a ele,
com apreço pela sua opinião e, ao mesmo tempo, ciente de
antemão de que os dois se compreendiam um ao outro.
1465
– Conforme o ataque. Mas os senhores não gostariam de
tomar chá? – Levantou-se e tomou na mão um caderno
encapado em marroquim.
1466
Anna, no momento em que, de braço dado com o irmão,
caminhava na direção das portas altas, e sentiu por ela uma
ternura e uma piedade que a ele mesmo surpreendeu.
1467
estranho desvio do pensamento, a justificava e ao mesmo
tempo sentia pena dela, e temia que Vrónski não a
compreendesse plenamente. Às onze horas, quando Stiepan
Arcáditch levantou-se para ir embora (Vorkúiev já se fora
mais cedo), Liévin tinha a impressão de que havia acabado de
chegar. Com pesar, levantou-se também.
1468
C A P Í T U L O XI
1469
não havia mais de onde tirar dinheiro. A outra carta era da
irmã. Ela o censurava por não ter ainda resolvido o seu
processo.
“Pois bem, se não pagam mais que isso, vamos vender por
cinco rublos e meio”, resolveu Liévin com presteza, e com um
desembaraço incomum, a questão que, antes, lhe teria
parecido tão difícil. “É espantoso como, aqui, estou sempre
atarefado”, pensou ao ler a segunda carta. Sentiu-se culpado
perante a irmã por não ter feito, até então, o que ela lhe
pedira. “Hoje, mais uma vez, não fui ao tribunal, mas hoje eu
não teria mesmo tempo.” E, após decidir que faria aquilo sem
falta no dia seguinte, foi ter com a esposa. No caminho,
Liévin repassou rapidamente na memória todo o dia decorrido.
Todos os acontecimentos do dia foram conversas: conversas
que ouvira e de que participara. Todas as conversas trataram
de assuntos que, se estivesse sozinho e no campo, jamais
ocupariam sua atenção, mas que ali se mostravam muito
interessantes. E todas as conversas foram boas; só em duas
ocasiões as coisas não correram de todo bem. Primeiro, o que
ele dissera sobre jogar o peixe na água e, depois, a presença
de algo errado na piedade terna que sentira por Anna.
1470
todas se entediaram, as irmãs se foram e Kitty ficou sozinha.
1471
Os olhos de Kitty abriram-se de um modo especial e reluziram à
menção do nome de Anna, mas, com um esforço sobre si
mesma, ela ocultou sua comoção e enganou-o.
– Você, sem dúvida, não vai zangar-se por eu ter ido. Stiva
me pediu, e Dolly o desejava – prosseguiu Liévin.
1472
Durante longo tempo, Liévin não conseguiu acalmar a esposa.
Por fim, acalmou-a, mas só depois de reconhecer que o
sentimento de piedade, somado à bebida, o havia confundido e
que ele não resistira à influência ardilosa de Anna, e só
depois de prometer que iria evitá-la. O que admitiu com mais
sinceridade foi que, vivendo tanto tempo em Moscou, onde
nada tinha a fazer senão conversar, comer e beber, ele acabara
aturdido. Os dois continuaram a conversar até as três da
madrugada. Só às três horas se reconciliaram o bastante para
conseguirem dormir.
1473
C A P Í T U L O XII
1474
acordo. Mas para que provar-me isso? Ele quer provar-me
que seu amor por mim não deve tolher a sua liberdade. Mas eu
não preciso de provas, preciso de amor. Ele deveria
compreender todo o peso da minha vida, aqui, em Moscou.
Acaso eu vivo? Não estou vivendo, mas esperando uma
solução, que é sempre, sempre adiada. Mais uma vez, não tive
resposta!
1475
querer discutir, mas, sem querer, ela mesma se punha em
posição de combate.
1476
um minuto de silêncio, inclinando-se para ela, e abriu a mão, na
esperança de que Anna colocasse ali a sua.
Ela ficou feliz com esse convite à ternura. Mas uma estranha
força maligna não permitiu que Anna cedesse à sua própria
propensão, como se as regras do combate não permitissem
que ela se rendesse.
– Claro, você quis ficar e ficou. Você faz tudo o que quer.
Mas para quê me diz isso? Para quê? – perguntou, cada vez
mais exaltada. – Acaso alguém contesta os seus direitos? Mas
você quer ter razão, pois então fique com ela.
1477
– Mas do que está falando? – perguntou Vrónski,
horrorizado, diante da expressão do desespero de Anna,
inclinando-se de novo para ela, tomando-lhe a mão e beijando-
a. – Por quê? Por acaso eu procuro distrações fora de casa? Por
acaso não evito a companhia de mulheres?
– Mas, diga, o que devo fazer para que você fique calma?
Estou disposto a fazer tudo para que você seja feliz – pediu,
comovido com o desespero de Anna. – Não há nada que eu
não faça para livrá-la da mágoa que sente agora, Anna!
1478
também que, ao lado do amor que os unia, se estabelecera
entre ambos um maligno espírito de luta, que ela não
conseguia expulsar do coração de Vrónski e menos ainda do
seu próprio.
1479
C A P Í T U L O XIII
1480
– Não é nada – respondeu ela, saindo de trás do tabique,
com a vela na mão. – Não me senti muito bem – disse, com um
sorriso particularmente meigo e expressivo.
1481
A vela estava acesa de novo. Kitty estava sentada na cama e
segurava, na mão, o tricô em que vinha trabalhando nos
últimos dias.
1482
estava mais visível ainda. Sorrindo, ela o fitava; mas, de
repente, suas sobrancelhas estremeceram, ela ergueu a cabeça
e, caminhando ligeiro na sua direção, tomou-lhe a mão e
apertou-se inteira a Liévin, envolvendoo na sua respiração
cálida. Sofria e parecia queixar-se dele pelo seu sofrimento. E
Liévin, no primeiro minuto, e por hábito, teve a impressão de
que era o culpado. Mas, no olhar de Kitty, havia uma ternura
que dizia que ela não só não o recriminava, como até amava
esse mesmo sofrimento. “Se não sou eu, de quem é a culpa?” –
Liévin não pôde deixar de pensar, à procura de um culpado
para aqueles sofrimentos, a fim de castigá-lo; mas não havia
um culpado. Ela sofria, queixava-se e triunfava por meio
daqueles sofrimentos, alegrava-se por eles, e os amava. Liévin
se deu conta de que, na alma da esposa, algo maravilhoso
acontecia, mas o que era? Ele não conseguia entender. Estava
acima do seu entendimento.
No momento em que Liévin saía por uma porta, ouviu que, pela
outra, entrava uma criada. Ele se deteve na porta e escutou
1483
como Kitty dava ordens detalhadas para a criada e como ela
mesma a ajudava a mudar a posição da cama.
1484
ele se deu conta de que não só todas as suas dúvidas como
também a impossibilidade de crer por meio da razão, que
conhecia por experiência própria, em nada o impediam de
voltar-se para Deus. Tudo isso, agora, como cinzas, foi varrido
de sua alma. A quem poderia voltar-se senão Àquele em cujas
mãos ele sentia estar, como estavam também a sua alma e o
seu amor?
1485
sair pelo portão. Depois de saltar para o trenó e sentar-se ao
lado de Kuzmá, mandou tocar para a casa do médico.
1486
C A P Í T U L O XIV
1487
Na farmácia, com a mesma indiferença com que o criado
limpava os vidros, um farmacêutico magricelo lacrava
cápsulas cheias de um pó, para um cocheiro que aguardava,
e recusou-se a lhe dar ópio. Tentando não se afobar e não se
irritar, Liévin tratou de convencê-lo, mencionando o nome do
médico e da parteira e explicando para que precisava do
ópio. Em alemão, o farmacêutico pediu um conselho,
perguntou se devia ou não fornecer o ópio e, após receber a
autorização que veio de trás de um tabique, apanhou um
frasquinho, um funil, verteu lentamente de um frasco grande
para o pequeno, colou um rótulo, começou a lacrar, apesar
dos apelos de Liévin para que não o fizesse, e quis também
embrulhar o vidro. Mas isso Liévin já não podia suportar; com
decisão, arrancou-o das mãos dele e correu para fora, através
das grandes portas de vidro. O médico ainda não havia
acordado e o criado, agora ocupado em estender um tapete,
recusou-se a acordá-lo. Liévin, sem pressa, pegou uma nota
de dez rublos e, pronunciando lentamente as palavras, mas
sem perder tempo, lhe deu a nota e explicou que Piotr
Dmítritch (como agora, aos olhos de Liévin, parecia grande e
importante aquele Piotr Dmítritch, antes tão insignificante!)
prometera ajudar a qualquer hora, que ele com toda a certeza
não ficaria aborrecido e que, portanto, devia acordá-lo
imediatamente.
1488
Através da porta, Liévin ouviu como o médico tossia,
caminhava, se lavava e falava algo. Passaram uns três minutos;
Liévin tinha a impressão de que se passara mais de uma hora.
Não conseguiu mais esperar.
– Num minuto…
– Já vou.
1489
da esposa, interrompendo o relato, a todo momento, com
apelos para que o médico viesse logo com ele.
1490
O médico começou a tomar o café. Os dois ficaram em silêncio.
– Em meia hora.
– Palavra de honra?
1491
terminaria, a julgar pelo que havia apurado sobre como aquilo
normalmente se desenrolava, Liévin, em sua imaginação,
preparou-se para sofrer e reter o coração nas mãos, durante
umas cinco horas, e isso lhe pareceu possível. Mas, quando
voltou da casa do médico e viu de novo o sofrimento da
esposa, pôs- se a repetir de forma cada vez mais constante
“Meu Deus, perdoe, ajude”, pôs-se
Mas, após essa hora, passou-se outra hora, duas, três, as cinco
horas que ele estabelecera para si como prazo máximo de sua
resistência, e a situação ainda era a mesma; e Liévin
continuava a suportar, pois não havia nada mais a fazer senão
suportar, pensando a cada minuto que havia alcançado o
último limite de resistência e que seu coração, logo em seguida,
rebentaria de compaixão.
1492
em que ele segurara sua mão suada, que ora comprimia com
força incomum a mão dele, ora a rechaçava – lhe pareciam
horas, outras vezes as horas lhe pareciam minutos.
Espantou-se quando Lizavieta Pietróvna lhe pediu, por trás do
biombo, que acendesse uma vela e se deu conta de que já
eram cinco horas da tarde. Se lhe dissessem que eram apenas
dez da manhã, não ficaria menos espantado.
Onde estivera durante todo esse tempo, ele não saberia dizer,
assim como ignorava o que havia acontecido. Via o afogueado
rosto de Kitty, ora perplexo e agoniado, ora sorridente e
tranquilizador. Via também a princesa, que mordia os lábios,
vermelha, tensa, com madeixas de cabelo grisalho que se
haviam desprendido e as lágrimas que ela engolia com esforço,
via Dolly e o médico, que fumava uns cigarros grossos, e
Lizavieta Pietróvna, com o rosto firme, decidido e
tranquilizador, via o velho príncipe, que passeava pela sala
com o rosto franzido. Mas como eles entravam e saíam, onde
ficavam, ele não sabia. A princesa ficava ora no quarto com o
médico, ora no escritório, onde de repente apareceu uma
mesa posta; ora ela não estava lá, mas sim Dolly. Mais tarde,
Liévin compreendeu que o mandavam ir de um lado para o
outro. Certa vez, o mandaram deslocar a mesa e um sofá. Ele
o fez, com zelo, pensando que era necessário para Kitty, mas
logo depois soube que assim havia preparado um lugar para
ele mesmo dormir. Mais tarde, mandaram-no ir ao escritório
perguntar algo ao médico. O médico respondeu e, em seguida,
1493
passou a falar sobre a desordem que reinava na Duma.Depois,
mandaram-no ir ao quarto ajudar a princesa a pegar um
ícone com adornos de prata banhada a ouro e, com o auxílio da
velha criada de quarto da princesa, Liévin subiu numa estante,
mas quebrou um lampião e a criada da princesa acalmou-o,
sobre a esposa e sobre o lampião, e ele trouxe o ícone e o
colocou na cabeceira de Kitty, enfiando-o cuidadosamente
por trás do travesseiro. Mas onde, quando e para que tudo
isso se passou, ele ignorava. Também não entendia por que a
princesa segurava sua mão e, fitando-o
1494
de modo igualmente inconcebível a uma altura que nunca
antes conhecera e onde a razão já não conseguia alcançá- la.
1495
dizia: “Meu Deus, perdoe e ajude”. E, quanto mais o tempo
passava, mais fortes se tornavam os dois estados de ânimo:
quanto mais calmo e mais esquecido da esposa ficava Liévin,
na ausência dela, tanto mais angustiantes se tornavam,
quando em presença de Kitty, os sofrimentos da esposa e o
sentimento de nada poder fazer para ajudá-la.
dela.
1496
C A P Í T U L O XV
1497
de Kitty, com mechas de cabelo coladas pelo suor, voltava-se
para Liévin e procurava o seu olhar. As mãos erguidas pediam
as suas mãos. Após agarrar as mãos frias de Liévin em suas
mãos suadas, Kitty pôs-se a apertá-las contra o rosto.
– Não é nada, não é nada, está tudo bem! – dizia Dolly, que
veio no seu encalço.
1498
dela, só desejava o fim daqueles terríveis tormentos.
– Acabou.
1499
De súbito, Liévin sentiu-se instantaneamente transportado,
daquele mundo remoto, misterioso e terrível onde vivera as
últimas vinte e duas horas, para o mundo costumeiro de antes,
mas que agora resplandecia com uma luz nova de felicidade,
tão brilhante que ele não conseguia suportar. Todas as cordas
esticadas se soltaram. Soluços e lágrimas de alegria, que ele
não previra de forma alguma, ergueram-se com tal força
dentro dele e sacudiram todo o seu corpo a tal ponto que
Liévin, por longo tempo, não conseguiu falar.
1500
as vozes que falavam, em surdina, ali no quarto. Era o grito
corajoso, insolente, intransigente, de uma nova criatura
1501
C A P Í T U L O XVI
1502
– Está bem, virei logo – respondeu Liévin e, sem se deter,
seguiu para o quarto de Kitty.
1503
vamos protegê-lo – e Lizavieta Pietróvna colocou aquela coisa
vermelha e trêmula sobre a cama, desenrolou e, de novo,
enrolou o bebê;
1504
Kitty, sem desviar os olhos do bebê, olhava de esguelha na
mesma direção.
1505
– Olhe agora – disse Kitty, virando o bebê para o pai, de
modo que pudesse vêlo. A carinha, com ar de velho, de repente
enrugou-se ainda mais e o bebê soltou um espirro.
1506
C A P Í T U L O XVII
1507
muito melhor e lançou-se ao ataque, de início a partir de
Moscou, por intermédio das tias, dos tios, de amigos, e mais
tarde, na primavera, quando o assunto estava maduro, foi
pessoalmente para Petersburgo. Era um desses cargos
cômodos, passíveis de peculato, cujos ordenados, para todos
os efeitos, vão de mil a cinquenta mil rublos por ano e que são,
hoje, muito mais numerosos do que eram, então; tratava-se de
um cargo de membro da comissão conjunta da agência de
crédito mútuo e de balanço da estrada de ferro do Sul e de
instituições bancárias. Tal cargo, como todos os cargos dessa
ordem, exigia conhecimentos e currículos tão vastos que era
difícil
1508
contra o governo. Stiepan Arcáditch circulava nos círculos de
Moscou onde aquela expressão fora criada, era considerado
ali um homem honéésto e portanto, mais do que os outros,
tinha direito àquele cargo.
O cargo rendia entre sete e dez mil rublos por ano e Oblónski
podia ocupar tal função sem se demitir de seu outro cargo no
serviço público. Dependia de dois ministros, de uma certa
senhora e de dois judeus; e, embora já estivessem convencidas,
todas essas pessoas tinham de ser procuradas pessoalmente
por Stiepan Arcáditch, em Petersburgo. Além disso, Stiepan
Arcáditch prometera à sua irmã Anna obter de Kariênin uma
resposta definitiva quanto ao divórcio. E, após rogar e obter de
Dolly cinquenta rublos, ele partiu para Petersburgo.
1509
– Sim, mas eu estabeleço um outro princípio, que abarca o
princípio da liberdade – disse Aleksiei Aleksándrovitch,
enfatizando a palavra “abarca” e recolocando o pincenez a fim
de ler de novo, para o seu ouvinte, a passagem onde aquilo
estava dito.
1510
uma palavrinha sobre como eu gostaria de ocupar o cargo que
vagou para membro da comissão conjunta da agência de
crédito mútuo e de balanço das estradas de ferro do Sul.
– Sem dúvida, posso falar com ele; mas para que você
deseja, especificamente, ocupar esse cargo?
1511
– Eu creio, e escrevi sobre isso um relatório, que em nossa
época esses ordenados enormes constituem sinais da
assiete[15] econômica errônea do nosso governo.
1512
maneira honéésta de conduzir os negócios – disse Stiepan
Arcáditch, com o acento.
1513
Viesse o desconforto do fato de ele, o príncipe Oblónski, um
descendente de Riúrik, esperar duas horas na sala de espera
de um judeu, ou então de, pela primeira vez na vida, não
seguir o exemplo dos antepassados e buscar um cargo no
serviço público, mas sim aventurar-se a um novo campo de
atividades, o fato é que se sentia muito desconfortável.
Naquelas duas horas de espera, em casa de Bolgárinov,
enquanto caminhava com ímpeto para um lado e para o outro
na sala de espera, enquanto alisava as suíças, travava
conversa com os demais pretendentes e tentava inventar um
trocadilho, que mais tarde diria ao contar como havia
esperado pela ajuda de um judeu, Stiepan Arcáditch
empenhava-se com afinco em esconder dos demais, e até de si
mesmo, o sentimento que experimentava.
1514
C A P Í T U L O XVIII
1515
– Quer me parecer – retrucou Aleksiei Aleksándrovitch, com
voz mais fina, quase estridente – que Anna Arcádievna tem
tudo o que ela mesma quis.
1516
– Peço sua licença para não crer nisso – objetou, com
brandura, Stiepan Arcáditch. – A situação é torturante para ela
e não traz proveito a ninguém. Ela o mereceu, dirá você. Pois
ela sabe disso e não lhe pede nada; diz, com toda a franqueza,
que não se atreve a pedir nada. Mas eu, e todos os parentes,
todos os que a amamos, pedimos, suplicamos a você. De que
serve o seu sofrimento?
1517
– Pois ela confia tudo à sua generosidade. Só pede, e
implora, uma coisa: retire-a da situação intolerável em que se
encontra. Já não pede o filho. Aleksiei Aleksándrovitch, você é
um homem bom. Ponha-se na posição dela, por um momento.
A questão do divórcio, para ela, na sua situação, é uma
questão de vida ou morte. Se você não tivesse prometido antes,
ela se resignaria com a situação, viveria no campo. Mas você
prometeu, ela lhe escreveu e mudou-se para Moscou. E eis que
já faz seis meses que está morando em Moscou, onde cada
encontro social é uma faca em seu coração, e todo dia ela
espera uma decisão.
1518
– Na medida em que for possível cumprir o prometido. Vous
professez d’etre un libre penseur.[17] Mas eu, um homem
religioso, não posso proceder de forma contrária à lei cristã,
num assunto de tamanha importância.
1519
Aleksiei Aleksándrovitch lhe deu sua mão, refletiu um pouco e
falou:
1520
C A P Í T U L O XIX
– Serguei Aleksiéitch!
1521
tratamento sensato e os banhos de mar, no verão,
restabeleceram sua saúde e agora, por recomendação do
médico, mandei-o para a escola. De fato, a influência dos
colegas produziu um efeito benéfico sobre ele, está em perfeita
saúde e tem bom aproveitamento na escola.
1522
– E então, como andam as coisas? – perguntou, no intuito
de travar conversa, mas sem saber o que dizer.
Passara um ano desde que Serioja vira a mãe pela última vez.
Desde então, nunca mais ouvira falar a seu respeito. E, nesse
mesmo ano, ele foi enviado à escola, conheceu os colegas e
criou afeição por eles. Os sonhos e as recordações a respeito
da mãe, que após a sua despedida o deixaram doente, agora
já não ocupavam seu pensamento. Quando surgiam, ele os
rechaçava com rigor, julgando-os vergonhosos e próprios de
meninas apenas, mas não de um menino e de um estudante.
Sabia que entre o pai e a mãe havia um desentendimento
que os separara, sabia que coubera a ele ficar com o pai e
tentava habituar-se a essa ideia.
1523
que julgava tão humilhantes, Serioja empenhava-se em não
olhar para esse tio, que viera perturbar a sua tranquilidade, e
em não pensar no que ele trazia à memória.
1524
– E você se lembra da sua mãe? – perguntou de repente.
1525
C A P Í T U L O XX
1526
– e também uma outra família, ilegítima, também com
filhos. Embora a
1527
Em especial, a visão predominante em Petersburgo acerca das
questões pecuniárias produzia um efeito tranquilizador em
Stiepan Arcáditch. Bartniánski, que gastava pelo menos
cinquenta mil rublos, a julgar pelo train[20] que levava, lhe
falara no dia anterior, a respeito do assunto, palavras notáveis.
1528
E Stiepan Arcáditch constatou que aquilo era verdade, não só
nas palavras, mas de fato. Jivákhov tinha dívidas de trezentos
mil e não possuía um copeque
1529
nem acredita, em duas semanas, já vestia um roupão, parei de
trocar de roupa para o jantar. E nada de pensar em mocinhas!
Virei um velho, sem tirar nem pôr. Só restava salvar minha
alma.
1530
acrescentou. – Desde o dia em que todos se lançaram contra
ela, todos esses que são cem mil vezes piores do que ela, eu
passei a pensar que ela agiu de maneira esplêndida. Não posso
perdoar a Vrónski o fato de ele não me haver informado
quando ela esteve em Petersburgo. Eu teria ido visitá-la e
teria andado com ela por toda parte. Faça-me
– Ela fez aquilo que todas fazem e escondem, exceto eu; ela
não quis enganar e agiu muito bem. E portou-se ainda melhor,
porque largou aquele seu cunhado meio doido. O senhor me
perdoe. Todos dizem que ele é inteligente, muito inteligente, e
só eu digo que é meio doido. Agora que ele se ligou à Lídia
Ivánovna e ao Landau, todos dizem que está meio doido e, por
mais que me dê prazer discordar de todos, dessa vez não
posso.
1531
Ontem estive na casa dele para tratar da questão da minha
irmã e pedi uma resposta definitiva. Ele não me deu a resposta,
disse que ia refletir, e hoje de manhã, em vez da resposta,
recebi um convite para ir à casa da condessa Lídia Ivánovna,
hoje à noite.
1532
– Isso mesmo, adotou-o. Agora, ele já não é mais Landau
e sim conde Bezzúbov. Mas a questão não é essa, e sim que
Lídia… veja, eu gosto muito dela, mas não tem a cabeça no
lugar. Lídia, é claro, agarrou-se a esse Landau e, sem o seu
parecer, nem ela nem Aleksiei Aleksándrovitch resolvem coisa
alguma, e por isso o destino da irmã do senhor está nas mãos
desse Landau, ou melhor, do conde Bezzúbov.
1533
C A P Í T U L O XXI
1534
pousavam na gola do casaco, estava de pé na outra
extremidade, observando os quadros na parede. Após
cumprimentar a dona da casa e Aleksiei Aleksándrovitch,
Stiepan Arcáditch involuntariamente voltou os olhos outra vez
para o desconhecido.
1535
separação foi terrível, para ela. Foi um grande golpe que
sofreu!
– Sim, vai partir rumo a Paris. Ontem ele ouviu uma voz –
disse a condessa Lídia Ivánovna, fitando Stiepan Arcáditch.
1536
– A mudança não está na situação exterior – disse com
severidade a condessa Lídia Ivánovna, ao mesmo tempo que,
com um olhar afetuoso, acompanhava Aleksiei Aleksándrovitch,
que se levantou e se aproximou de Landau. – O seu coração se
transformou, ele ganhou um coração novo e eu receio que o
senhor não tenha ponderado plenamente na mudança que nele
ocorreu.
“Acho melhor pedir que ela fale com os dois, talvez”, pensou
Stiepan Arcáditch.
1537
– Ah, naturalmente, condessa – disse. – Mas creio que essas
mudanças são coisas tão íntimas que ninguém, nem mesmo a
pessoa mais próxima, gosta de comentar.
1538
criado entrou com uma carta. Lídia Ivánovna leu depressa o
bilhete e, após pedir desculpas, escreveu a resposta com uma
rapidez extraordinária, entregou-a e voltou para a mesa. –
Notei – prosseguiu a frase interrompida – que os moscovitas,
sobretudo os homens, são pessoas muitíssimo indiferentes à
religião.
1539
– Não, acho que ainda não será agora – disse Lídia
Ivánovna, que nesse meiotempo observava os movimentos do
francês.
1540
Pardon – acrescentou, olhando de novo para o criado, que
entrou com outro bilhete. Leu até o fim e respondeu: – Amanhã,
na casa da grande princesa, diga-lhe isso… Para o crente, o
pecado não existe – prosseguiu a conversa.
1541
– Somos salvos por Cristo, que sofreu por nós. Somos salvos
pela fé – reforçou Aleksiei Aleksándrovitch, confirmando, com
um olhar, as palavras dela.
1542
sobre si. “Não, pelo visto é melhor não pedir nada hoje”,
pensou, “o que importa, agora, é ir embora daqui, sem piorar a
minha situação”.
1543
C A P Í T U L O XXII
1544
de forma incontrolável, no que vinha a ser o início de um
bocejo. Alisou as suíças para encobrir o bocejo e reanimou-se.
Mas em seguida sentiu que adormecera e estava mesmo a
ponto de ressonar. Despertou no instante em que a voz da
condessa Lídia Ivánovna disse: “Ele está dormindo”.
1545
tomar cuidado, mas esbarrou na mesa e, em seguida, colocou a
mão na mão do francês. Stiepan Arcáditch também se
levantou e, arregalando os olhos para despertar, no caso de
ainda estar dormindo, olhava ora para um, ora para outro.
Tudo aquilo era real. Stiepan Arcáditch sentia que sua cabeça
ficava cada vez pior.
1546
De volta para a casa de Piotr Oblónski, onde estava hospedado
em São Petersburgo, Stiepan Arcáditch encontrou um bilhete de
Betsy. Ela dizia que desejava muito concluir a conversa iniciada
antes e lhe pedia que a procurasse no dia seguinte. Mal
terminara de ler o bilhete, e franzir o rosto diante de tais
palavras, ouviu no andar de baixo passos brutos de pessoas
que carregavam algo pesado.
1547
C A P Í T U L O XXIII
1548
bem de Anna, a qual, em vez de aliviar tal situação, a tornava
ainda mais penosa. Nem ela nem ele declaravam o motivo de
sua irritação, mas cada um achava que o outro estava errado
e, a qualquer pretexto, tentavam provar isso mutuamente.
1549
compreendia tão pouco que se permitira exortá-lo a casar-se
com a princesa Sorókina.
1550
constituíra o pretexto para elas, Anna, enfim, alcançou a
origem da conversa. Durante longo tempo, não conseguiu
acreditar que a discórdia tivesse começado com uma
conversa tão inofensiva, tão alheia ao coração de ambos. E, de
fato, tinha sido assim. Tudo começou porque Vrónski zombou
dos liceus para mulheres, julgando-os desnecessários, enquanto
Anna os defendia. Ele referiu-se de maneira desrespeitosa à
educação das mulheres, em geral, e disse que Hanna, a inglesa
que Anna tomara sob sua proteção, não tinha nenhuma
necessidade de adquirir conhecimentos sobre física.
1551
A crueldade com que ele destruía o mundo que ela construíra
para si, com tanto trabalho, a fim de poder suportar sua vida
penosa, a injustiça com que Vrónski a acusava de fingimento,
de falta de naturalidade, a revoltaram.
Na noite anterior, quando Vrónski veio ter com Anna, eles não
se referiram à discussão que ocorrera, mas ambos sentiam que
a chama da discussão ainda ardia, não se apagara.
Vrónski passara o dia inteiro fora de casa e Anna ficou tão só,
sentiu-se tão desgostosa por ter discutido com ele que desejou
esquecer tudo, perdoar e reconciliar-se, quis pôr a culpa em si e
justificar Vrónski.
“Eu sei o que ele quis dizer; quis dizer: não é natural você amar
o filho de um estranho e não ter amor pela própria filha. O que
sabe ele sobre o amor aos filhos, sobre o meu amor por
Serioja, que eu sacrifiquei em favor do amor por ele? Mas e
1552
esse desejo de me fazer sofrer? Não, ele ama outra mulher, não
pode ser outra coisa.”
1553
C A P Í T U L O XXIV
1554
contraste entre o tom de culpa, usado por Anna, e o tom de
segurança, de Vrónski; e ela sentiu, por um momento, que
crescia o desejo de brigar; porém, após fazer um esforço sobre
si mesma, Anna venceu esse desejo e recebeu Vrónski com a
mesma alegria de antes.
Quando ele veio ter com ela, Anna lhe contou, em parte
repetindo palavras que havia preparado de antemão, como
passara o dia e os seus planos para a partida.
1555
– Num costume de natation[30] vermelho, uma velha
horrorosa. E então, quando partiremos?
partir?
1556
– Não, de jeito nenhum! O documento que me obriga a ir
até lá, uma procuração, e também o dinheiro não estarão
prontos amanhã – respondeu.
– O quê?
1557
– Por que é que você, que se vangloria da sua franqueza,
não diz a verdade?
1558
– Mas o que eu não quero é secundário. Eu quero amor, mas
não existe amor. Talvez esteja tudo acabado!
“Ele ama outra mulher, isso ficou ainda mais claro”, disse
consigo, ao entrar no seu quarto. “Quero amor, mas não existe
amor. Talvez tudo esteja acabado”, repetiu as palavras que
dissera, “e é preciso que acabe”.
1559
simplesmente ficasse sozinha no campo – e sobre o que Vrónski
estaria fazendo, agora, sozinho, em seu quarto, se tinha sido
essa a discussão definitiva ou ainda seria possível uma
reconciliação, e sobre o que falariam a respeito dela todos os
seus antigos conhecidos de São Petersburgo, e como Aleksiei
Aleksándrovitch encararia a questão, e ainda muitos outros
pensamentos sobre o que havia de acontecer, agora, depois do
rompimento, lhe acudiram à mente, mas Anna não se
entregava a tais pensamentos com toda a sua alma. Havia em
sua alma um pensamento obscuro, e só ele a interessava,
porém Anna não conseguia identificá-lo. Ao lembrar-se de novo
de Aleksiei Aleksándrovitch, lembrou-se também da ocasião em
que ficara doente, após o parto, e do sentimento que, na
época, não a deixava. “Por que não morri?”, lembrou-se de suas
próprias palavras e sentimentos naquela ocasião. E, de repente,
compreendeu o que havia em sua alma. Sim, era essa a ideia
que solucionava tudo. “Sim, morrer!…”
1560
Passos que se aproximavam, os passos de Vrónski, desviaram
sua atenção.
1561
ouvir, na voz dele, o som de lágrimas e de sentir, na mão, o seu
toque líquido.
1562
C A P Í T U L O XXV
1563
Vrónski comia sua bisteca, quando Anna entrou na sala de
jantar.
1564
– Por que não me mostrou? Como pode haver segredos
entre mim e Stiva? Vrónski chamou de volta o criado de quarto
e mandou trazer o telegrama.
– Sobre o divórcio?
– Sim, mas ele escreve: ainda não foi possível arranjar nada.
Prometeu uma resposta definitiva dentro de alguns dias. Aqui
está, leia.
1565
– Não – retrucou Anna, que se irritou porque, com aquela
brusca mudança de assunto, ele mostrava, de maneira óbvia
demais, ter percebido como ela estava irritada. – Por que você
acha que essa notícia me interessa tanto que é preciso até
escondê-la? Já disse que não quero pensar nesse assunto e eu
gostaria que você tivesse por ele tão pouco interesse quanto eu
tenho.
– Você sabe para que: para você e para os filhos que virão –
respondeu.
1566
A questão da possibilidade de ter filhos já fora discutida,
muito tempo antes, e a irritava. O desejo de Vrónski de ter
filhos significava, na visão de Anna, que ele não tinha apreço
pela sua beleza.
“Sim, agora ele parou de fingir e está bem visível o ódio frio que
tem por mim”, pensou Anna, sem ouvir nenhuma das palavras
de Vrónski, mas fitando, com pavor, aquele juiz frio e cruel que
a mirava com escárnio nos olhos.
1567
pela fisionomia de Vrónski, compreendeu claramente que, para
ele, eram repugnantes a sua mão, o seu
1568
carícias que ele esbanjou e esbanjará com outras mulheres!”,
pensou.
– Se é assim, é preciso…
– Bem, vamos ver; creio que não vou receber tudo, mas
tenho de receber pelo menos a metade. E vocês, quando vão
partir? – perguntou Iáchvin, que olhou para Vrónski com os
olhos semicerrados e, obviamente, já adivinhara que havia
ocorrido uma briga.
1569
– Depois de amanhã, ao que tudo indica – respondeu
Vrónski.
1570
Ao encontrar o olhar de Vrónski, o rosto de Anna assumiu, de
repente, uma expressão fria e severa, como se lhe dissesse:
“Não esqueci. Nada mudou”.
Antes de sair de casa, Vrónski foi ter com ela. Anna quis fingir
que procurava algo na mesa porém, envergonhada do
fingimento, fitou-o no rosto com um olhar frio.
1571
“De nada sou culpado, em relação a ela”, pensou Vrónski. “Se
ela quer castigar-se, tant pis pour elle.”[33] Porém, ao sair, teve
a impressão de que Anna dizia algo e, de repente, seu coração
estremeceu de compaixão.
“Se é nada, então tant pis”, pensou, de novo frio, deu as costas
e saiu. Ao sair, entreviu no espelho o rosto de Anna, pálido, com
os lábios trêmulos. Quis parar e dizer-lhe uma palavra de
consolo, mas as pernas o levaram para fora do quarto, antes
que conseguisse imaginar o que dizer. Passou o dia inteiro fora
de casa e, quando voltou, tarde da noite, a criada lhe disse
que Anna Arcádievna tinha dor de cabeça e pedira que ele
não fosse ao seu quarto.
1572
C A P Í T U L O XXVI
1573
vezes as esperanças, para mais tarde retomá-las de novo?”,
disse consigo, logo depois.
1574
Agora, tudo estava claro: partir ou não para Vozdvijénskoie,
obter ou não o divórcio do marido – tudo era supérfluo. Só uma
coisa se fazia necessária: castigá- lo.
1575
apagara. “Não, qualquer coisa, contanto que eu viva! Afinal, eu
o amo. E ele me ama! Isto já aconteceu antes e vai passar”,
disse consigo, enquanto sentia escorrerem, pelas faces,
lágrimas de alegria pelo seu retorno à vida. E, para salvar-se do
seu pavor, Anna seguiu às pressas para o quarto de Vrónski.
1576
menor atenção a ela e fazia algo horrível com o ferro,
justamente em cima dela. Anna acordava com um suor frio.
1577
como pudera se rebaixar ao ponto de passar mais um dia
inteiro com Vrónski, na casa dele. Foi ao encontro de Vrónski,
em seu quarto, para lhe comunicar a sua resolução.
1578
ideia, sentou-se de novo e, com os dentes cerrados, franziu as
sobrancelhas.
1579
C A P Í T U L O XXVII
1580
Anna, agora, tinha medo de ficar sozinha, saiu do quarto atrás
do criado e foi para o quarto da criança.
“Mas como, não é isso, não é ele! Onde estão os seus olhos
azuis, o seu sorriso meigo e acanhado?”, foi o seu primeiro
pensamento, quando viu sua filhinha rosada, roliça, de cabelos
negros e cacheados, em lugar de Serioja, que ela, na confusão
de seus pensamentos, esperava encontrar no quarto da
criança. Sentada
1581
minutos… Porém, e se ele não vier? Não, isso é impossível. Não
posso deixar que me veja com os olhos chorosos. Vou me
lavar. Sim, sim, será que eu me penteei?”, perguntou-se. E não
conseguiu lembrar. Apalpou a cabeça, com a mão. “Sim,
estou penteada, mas não me lembro de forma alguma quando
me penteei.” Chegou a não acreditar na própria mão e
aproximou-se do espelho de um aparador, a fim de verificar se
estava penteada, de fato. Estava penteada e não conseguia
lembrar quando fizera isso. “Quem é?”, pensou, olhando no
espelho para um rosto inflamado, com olhos que brilhavam de
modo estranho e fitavam-na, assustados. “Ora, sou eu”,
compreendeu de repente e, ao examinar-se inteira, sentiu, de
súbito, os beijos dele e, com um tremor, contraiu os ombros.
Em seguida, ergueu a mão até os lábios e a beijou.
“Quinze minutos para ir, quinze para voltar. Ele já está saindo,
daqui a pouco vai chegar.” Pegou o relógio e conferiu. “Mas
como pôde ele ir embora e me deixar em tal situação? Como
pode ele viver sem se reconciliar comigo?” Aproximou-se da
1582
janela e pôs-se a olhar para a rua. Pelo tempo, Vrónski já podia
estar de volta. Mas o cálculo talvez estivesse errado e Anna
pôs-se, de novo, a lembrar o momento em que ele havia saído e
a calcular os minutos.
encontro.
1583
Após mandar que enviassem o telegrama, ela foi trocar de
roupa. Já vestida e de chapéu, fitou de novo os olhos da
tranquila Ánuchka, que havia engordado. Via- se uma
evidente compaixão, naqueles pequeninos olhos cinzentos e
bondosos.
1584
C A P Í T U L O XXVIII
1585
Será vergonhoso, doloroso, mas contarei tudo. Ela gosta de
mim e vou seguir os seus conselhos. Não vou submeter-me a
ele; não permitirei que ele me dê lições. Filíppov, doces. Dizem
que eles mandam a massa para São Petersburgo. A água de
Moscou é tão boa. E também as fontes de Mitíchenski, e as
tortas.” E Anna lembrou como, muito, muito tempo antes,
quando ainda tinha dezessete
1586
por isso, sem dúvida, sou eu que estou errada. E por acaso
quero estar certa? Eu não aguento!”, exclamou, e teve vontade
de chorar. Mas logo se pôs a pensar do que poderiam estar
rindo tanto aquelas duas mocinhas, na rua. “Na certa, do
amor. Elas não sabem como isso é triste, como é baixo… O
bulevar, as crianças. Três meninos correm, estão brincando de
cavalinho. Serioja! Vou perder tudo e não o terei de volta. Sim,
vou perder tudo, se ele não voltar. Talvez ele tenha chegado
atrasado para pegar o trem e agora já esteja em casa, de
volta. E você quer humilhar-se de novo!”, disse para si mesma.
“Não, irei à casa de Dolly e lhe contarei sem rodeios: sou uma
desgraçada, eu o mereço, a culpa é minha, mas mesmo assim
sou uma desgraçada, ajude-me. Estes cavalos, esta
carruagem, como tenho nojo de mim mesma por estar nesta
carruagem, tudo é dele; mas não verei mais nada disso.”
1587
Enquanto isso, entre as irmãs, havia uma conversa sobre
nutrição de bebês.
1588
verdade. Sei que, na minha situação, não posso ser recebida
por nenhuma mulher decente. Sei que, desde o primeiro
minuto, sacrifiquei tudo por ele! E aí está a minha recompensa!
Ah, como eu o odeio! E para que vim aqui? Eu me sinto ainda
pior, ainda mais triste.” Ouviu as vozes das irmãs que
conversavam no outro quarto. “E o que vou dizer para Dolly,
agora? Oferecer um consolo a Kitty, porque sou uma
desgraçada, submeter-me à sua proteção? Não, e nem Dolly
vai compreender nada. Aliás, não tenho nada para dizer a ela.
O interessante seria apenas ver Kitty e lhe mostrar como eu
desprezo tudo e todos, como agora para mim tudo é
indiferente.”
1589
– Oh, que tolice! Ela está amamentando e tem tido
problemas, e eu estava lhe dando uns conselhos… Ela terá
muito prazer. Vai vir logo – disse Dolly, confusa, por não saber
mentir. – Aí está ela.
Ao saber que Anna havia chegado, Kitty não quis sair ao seu
encontro; mas Dolly a convenceu. Depois de tomar coragem,
Kitty saiu e, ruborizada, aproximou-se e lhe estendeu a mão.
1590
– Sim, tive muito prazer em ver a senhora – disse Anna, com
um sorriso. – Tenho ouvido muito falar da senhora, de toda
parte, até do seu marido. Ele esteve em minha casa e gostei
muito dele – acrescentou, com evidente má intenção. – Onde
está ele?
1591
C A P Í T U L O XXIX
1592
seu marido… se eu quisesse. E eu até quis. Ali está um homem
satisfeito consigo mesmo”, pensou, ao ver um fidalgo corado,
gordo, que vinha ao seu encontro, após ter confundido Anna
com uma conhecida e haver levantado o chapéu lustroso acima
da cabeça calva e lustrosa, mas que depois se deu conta de
estar enganado. “Ele pensou que me conhecia. Mas ele me
conhece tão pouco quanto qualquer outra pessoa no mundo. Eu
mesma não me conheço. Conheço os meus apetites, como
dizem os franceses. Veja como eles querem aquele sorvete
imundo. Isso eles sabem, com toda a certeza”, pensou,
enquanto olhava para dois meninos, parados diante de um
sorveteiro, que baixara da cabeça uma bacia e enxugava o
rosto suado com a ponta de um pano. “Todos nós queremos o
que é doce, gostoso. Se não há balas, então um sorvete
imundo. E Kitty também: se não tem Vrónski, fica então com
Liévin. E ela me inveja. E me odeia. E nós todas nos odiamos
mutuamente. Eu a Kitty, Kitty a mim. Aí está a verdade. Tiútkin,
coiffeur. Je me fais coiffer par Tiútkin…[35] Vou lhe contar isso
quando ele chegar”, pensou Anna, e sorriu. Mas, no mesmo
instante, lembrou-se de que agora não tinha mais ninguém a
quem contar coisas divertidas. “E não há mesmo nada
divertido, alegre. Tudo é sórdido. Tocam os sinos para as
vésperas, e veja com que esmero aquele comerciante se benze!
Parece que tem medo de deixar cair alguma coisa. Para que
essas igrejas, esses sinos, essa falsidade? Só para esconder que
nós todos nos odiamos mutuamente, como esses cocheiros de
praça, que se xingam com tanta raiva.
1593
Iáchvin diz: o outro quer me deixar sem a camisa, e eu quero o
mesmo para ele. Aí está a verdade!”
1594
conversava tranquilamente com a mãe e com Sorókina e se
regozijava com os sofrimentos dela. “Sim, é preciso partir
depressa”, disse consigo, ainda sem saber para onde ir. Queria,
o mais depressa possível, afastar-se dos sentimentos que
experimentava nessa casa horrorosa. A criadagem, as paredes,
os objetos da casa – tudo despertava nela repugnância e
rancor e a oprimia como um fardo.
1595
– Não preciso de você, Piotr.
– E quanto à passagem?
1596
C A P Í T U L O XXX
“Sim, o que era aquilo que eu pensei por último e que era tão
bom?”, tentou lembrar. Tiútkin, coiffeur? Não, não era isso. Ah,
sim, foi o que Iáchvin disse: a luta pela existência e o ódio são
as únicas coisas que unem as pessoas. Não, vocês não têm
motivo para passear”, voltou-se em pensamento para um
grupo que, era evidente, saía para divertir-se fora da cidade,
numa carruagem puxada por quatro cavalos. “E o cão que
estão levando também não vai servir de nada. Vocês não vão
escapar de si mesmos.” Após olhar na direção para a qual
Piotr se voltava, Anna avistou um operário quase desmaiado
de tão bêbado, com a cabeça tombada, e que um guarda
conduzia para algum lugar. “Aquele ali achou um caminho
mais rápido”, pensou. “Nem eu nem o conde Vrónski
encontramos esse prazer, embora esperássemos muita
coisa.” E, pela primeira vez, Anna dirigiu para as suas
relações com Vrónski, assunto em que antes evitava pensar,
aquela luz muito clara, sob a qual enxergava tudo, agora. “O
que ele procurava, em mim? Não era tanto o amor, mas sim a
satisfação da vaidade.” Anna lembrou-se das palavras de
1597
Vrónski, da expressão do seu rosto, que fazia lembrar um dócil
cão perdigueiro, nos primeiros tempos das suas relações. E
agora tudo o confirmava. “Sim, havia nele o júbilo do triunfo da
sua vaidade. Claro, havia também amor, mas a parte maior
cabia ao orgulho da vitória. Ele se vangloriava de mim. Agora,
isso passou. Não há nada de que se orgulhar. Só há de que se
envergonhar. Tomou de mim tudo o que podia e, agora, já não
precisa mais de mim. Sou um peso para ele, que tenta apenas
não ser desrespeitoso comigo.
1598
entregue a mim, mais e mais. Ao passo que ele quer afastar-
se cada vez mais de
1599
tem fim, e todos se odeiam uns aos outros. Bem, digamos que
eu fosse imaginar, agora, aquilo que desejo para ser feliz. E
então? Conseguirei o divórcio, Aleksiei Aleksándrovitch me
entregará Serioja e casarei com Vrónski.” Ao lembrar-se de
Aleksiei Aleksándrovitch, Anna viu-o, na imaginação, à sua
frente, com uma nitidez incomum, como se estivesse presente,
com seus olhos meigos, mortiços, apagados, com as veias
azuladas nas mãos brancas, com o seu tom de voz e o estalido
dos dedos, e ao recordar o sentimento que existia entre eles e
que também era chamado de amor, Anna estremeceu de
repugnância. “Pois bem, conseguirei o divórcio e serei a esposa
de Vrónski. Será que, então, Kitty vai parar de me olhar do jeito
como me olhou, hoje? Não. Serioja vai deixar de perguntar
ou de pensar a respeito dos meus dois maridos? E conseguirei
criar um sentimento novo, entre mim e Vrónski? Se não existe
mais nenhuma felicidade, pelo menos será possível que não
haja esse suplício? Não e não!”, respondeu a si mesma, sem a
menor hesitação. “É impossível! A vida nos leva para direções
diferentes, eu faço a infelicidade dele e ele, a minha, e é
impossível modificar tanto a mim como a ele. Todas as
tentativas foram feitas, a rosca do parafuso já está gasta. Ali
está, uma mendiga com um bebê. Ela pensa que é digna de
pena. Acaso não somos todos nós largados neste mundo só
para odiarmos uns aos outros e, portanto, para
atormentarmos a nós mesmos e aos outros? Lá vão uns alunos
do liceu, riem. E o Serioja?”, lembrou. “Também pensei que o
amava e me comovi, sob o efeito da minha ternura. Mas vivi
1600
sem ele, troquei-o por um outro amor e não lamentei essa
troca, enquanto me contentei com esse amor.” E lembrou-se,
com repugnância, daquilo que chamou de “esse amor”. E a
clareza com que via, agora, a sua vida e a de todos lhe deu
uma satisfação. “Assim somos eu, e o Piotr, e o cocheiro
Fiódor, e aquele comerciante ali, e toda essa gente que mora lá,
às margens do Volga, para onde esses cartazes nos convidam
a ir, e em toda parte, e sempre”, pensou, quando já se
aproximava do prédio baixo da
1601
agoniado, que palpitava de maneira terrível. Sentada no divã
em forma de estrela à espera do trem, enquanto olhava com
repugnância para as pessoas que entravam e saíam (todos
eram asquerosos, para ela), Anna ora pensava em como
chegaria à estação, em como escreveria um bilhete para
Vrónski e naquilo que lhe escreveria, ora pensava em como ele
estaria se lamuriando com a mãe, por causa da sua situação
(sem compreender o sofrimento de Anna), em como ela
entraria de repente e naquilo que lhe havia de dizer. Ora Anna
pensava em como a vida ainda poderia ser feliz, em como ela
amava e odiava Vrónski atormentadamente, e em como seu
coração batia de forma assustadora.
1602
C A P Í T U L O XXXI
1603
emaranhados, passou ao lado dessa janela, curvando-se na
direção das rodas do vagão. “Há algo familiar nesse mujique
medonho”, pensou Anna. E, ao
1604
alegrar, que aqueles risos a irritavam até causar dor, e ela teve
vontade de tapar os ouvidos para não escutar mais nada. Por
fim, ressoou a terceira campainha, irrompeu um apito, o
ganido da caldeira, as correntes deram um tranco para a frente
e o marido fez o sinal da cruz. “Seria interessante perguntar o
que ele pretende, com isso”, pensou Anna, após olhar com
raiva para o homem. Desviando da mulher seu olhar, Anna
mirou através da janela para as pessoas, que pareciam deslizar
para trás, enquanto observavam o trem, paradas, na
plataforma. Sacudindo a intervalos regulares nas junções dos
trilhos, o vagão em que estava Anna rolou ao lado da
plataforma, ao lado de um muro de pedra, de um sinal de
trem, de outros vagões; as rodas, de modo mais suave e mais
lubrificado, passaram a ressoar com um leve retinir nos trilhos,
a janela reluziu na clara luz do sol do anoitecer e uma brisa
brincava com a cortina. Anna esqueceu- se de seus
companheiros de vagão e, no balanço suave do trem,
inspirando o ar fresco, pôs-se de novo a pensar.
1605
– Por isso a razão foi dada ao homem, para evitar aquilo
que o perturba – disse em francês a mulher, visivelmente
satisfeita com a sua frase, e fazendo um trejeito com o rosto.
“Sim, estou muito perturbada e é para evitar isso que nos foi
dada a razão; portanto, é preciso evitar. Por que não apagar a
luz, quando não há mais o que ver, quando é degradante
olhar para tudo isso? Mas como? Para que o condutor passou
correndo pelo estribo, por que estão gritando os jovens,
naquele vagão? Para que falam, para que riem? Tudo é
falsidade, tudo é mentira, tudo é engano, tudo é maldade!…”
1606
Quando o trem parou na estação, Anna saiu na multidão dos
demais passageiros e, desviando-se deles como se fossem
leprosos, deteve-se na plataforma e tentou lembrar para que
fora até ali e o que tencionava fazer. Tudo aquilo que antes lhe
parecia possível, agora se mostrava muito difícil de
compreender, sobretudo na ruidosa multidão daquelas pessoas
repulsivas, que não a deixavam em paz. Ora os carregadores
acorriam em sua direção e ofereciam seus serviços; ora os
rapazes, que batiam com os tacões das botas nas tábuas da
plataforma e conversavam em voz muito alta, voltavam os
olhos para ela; ora transeuntes desviavam-se para não
esbarrar em Anna. Ao lembrar que queria seguir viagem no
trem caso não chegasse nenhuma resposta, Anna deteve um
carregador e perguntou se não havia ali um cocheiro com um
bilhete do conde Vrónski.
1607
“Lamento muito que o bilhete não me tenha alcançado antes.
Estarei em casa às dez horas”, escreveu Vrónski, numa
caligrafia descuidada.
1608
calaram-se ao vê-la, quando Anna passou. Acelerou o passo e
desviou-se delas, rumo à beirada da plataforma. Vinha
chegando um trem de carga. A plataforma começou a trepidar
e Anna teve a impressão de que estava de novo no trem.
1609
repente, as trevas que encobriam tudo para Anna se romperam
e a vida, por um momento, apresentou-se com todas as
radiantes alegrias passadas. Mas ela não tirava os olhos das
rodas do segundo vagão, que se aproximava. E no exato
instante em que o ponto intermediário entre as rodas dianteiras
e traseiras passava à sua frente, Anna livrou-se da bolsa
vermelha e, encolhendo a cabeça entre os ombros, caiu
embaixo do vagão apoiada nas mãos e, com um movimento
ágil, como que se preparando para erguer-se logo depois,
ajoelhou-se. E, nesse exato instante, horrorizou-se com o que
fazia. “Onde estou? O que estou fazendo? Para quê?” Quis
levantar-se, jogar-se para trás; mas algo enorme, inexorável,
empurrou sua cabeça e arrastou-a pelas costas. “Deus, perdoe-
me tudo!”, disse, percebendo que era impossível lutar. Um
pequeno mujique trabalhava num ferro, enquanto falava
alguma coisa. E a luz da vela, sob a qual ela havia lido um livro
repleto de aflições, ilusões, desgraças e maldades, inflamou-se
e ficou mais clara do que nunca, iluminou para ela tudo aquilo
que,
PARTE VIII
1610
CAPÍTULOI
1611
atenção ferrenha, na expectativa das primeiras impressões que
seu livro produziria na sociedade e na imprensa.
1612
O autor era um jornalista muito jovem e muito doente, bastante
dese volto como escritor, mas muito pouco instruído e tímido
nas relações pessoais.
1613
“Será que eu o ofendi de algum modo?”, perguntou-se Serguei
Ivánovitch.
1614
então apenas ardia em fogo brando, na sociedade, e Serguei
Ivánovitch, que antes fora um dos poucos a levantar a questão,
entregou-se a ela inteiramente.
1615
partidários. Via que muito daquilo era leviano e ridículo; mas
encarava e reconhecia como inquestionável todo aquele
crescente entusiasmo, que unia todas as classes da sociedade
em uma só, e com o qual era impossível não se solidarizar. O
massacre dos irmãos eslavos, adeptos da mesma religião que
os russos, despertava a solidariedade com os que sofriam e
também a indignação contra os opressores. O heroísmo dos
sérvios e dos montenegrinos, que combatiam pela grande
causa, engendrara em todo o povo o desejo de ajudar seus
irmãos, já não apenas com palavras, mas com ações.
1616
Ia para descansar duas semanas, e justamente no santuário
do povo, no âmago da zona rural, para deliciar-se com a visão
daquele soerguimento do espírito popular, do qual ele e todos
os habitantes das cidades e da capital estavam totalmente
convencidos. Katavássov, que havia muito queria cumprir a
promessa feita a Liévin de passar uma temporada em sua
casa, viajaria com ele.
1617
C A P Í T U L O II
1618
– Mais de oitocentos. Se contarmos aqueles que não
partiram diretamente de Moscou, já são mais de mil – disse
Serguei Ivánovitch.
– Mais, princesa.
1619
– O senhor conhece o conde Vrónski, aquele famoso… vai
partir neste trem – disse a princesa, com um sorriso de triunfo,
cheio de significação, quando ele a encontrou de novo e lhe
entregou o bilhete.
1620
Bravo! E Serguei Ivánitch! O senhor bem que poderia falar,
também, o senhor sabe, algumas palavras de incentivo; o
senhor faz isso tão bem – acrescentou, com um cauteloso
sorriso de afeição e de respeito, enquanto puxava Serguei
Ivánovitch, de leve, pelo braço.
– Para onde?
1621
A princesa, sem responder, fitou Kóznichev. Mas o fato de
Serguei Ivánitch e a princesa parecerem querer livrar-se de
Stiepan Arcáditch não o perturbava em nada. Sorrindo, ele
olhava ora para uma pena no chapéu da princesa, ora para os
lados, como se alguma coisa lhe viesse à memória. Ao ver uma
senhora que passava com uma caixa de donativos, chamou-a
e doou uma nota de cinco rublos.
1622
seja agradável encontrá-lo. Digam o que disserem, comove-me
o destino desse homem. Converse um pouco com ele, durante a
viagem – disse a princesa.
1623
Na plataforma, ressoou o hino Deus salve o tsar e depois, os
gritos: “Hurra!” e “Jívio!”. Um dos voluntários, alto e muito
jovem, de peito côncavo, curvava-se em reverências que
chamavam especialmente a atenção, enquanto agitava um
chapéu de feltro e um buquê de flores, acima da cabeça. Atrás
dele, viam-se dois oficiais e um homem já de certa idade, de
barba grande e com um gorro sebento, que também se
curvavam em reverências.
1624
C A P Í T U L O III
1625
eles. O jovem de peito encovado falava mais alto que todos.
Estava visivelmente embriagado e contava um caso que havia
acontecido na sua escola. Diante dele, estava sentado um
oficial que já não era jovem e vestia um dólmã militar do
uniforme da guarda austríaca.
1626
aposentado e o heroico espírito de sacrifício do comerciante, e
nada falava sobre si. Quando Katavássov lhe perguntou o que
o persuadira a ir para a Sérvia, respondeu com modéstia:
Dá pena.
1627
voluntários: ao ficar a sós com ele, Katavássov dirigiu-lhe a
palavra.
1628
derrotados em todas as frentes. E assim, sem que um nem
outro revelasse sua opinião, os dois se separaram.
1629
C A P Í T U L O IV
1630
Recolhemos tudo o que ele pudesse usar para se matar;
morávamos no térreo, mas é impossível prever certas coisas.
Pois, o senhor sabe, ele já havia tentado se matar com um tiro,
por causa dela – disse a condessa, e as sobrancelhas da velha
se contraíram a essa lembrança. – Sim, ela acabou como
devia acabar uma mulher dessa laia. Até a morte que escolheu
foi baixa, infame.
1631
Prostration complète,[7] disse o médico. Depois, teve início
quase um furor de loucura. Ah, o que posso dizer! – exclamou a
condessa, abanando a mão. – Que época terrível! Não, digam
o que disserem, era uma mulher má. Pois que espécie de
paixão desesperada é essa? E tudo para provar algo muito
especial. Pois aí está o que ela conseguiu provar. Matou a si
mesma e a duas pessoas excelentes: o marido e o meu filho
infeliz.
morte dela foi a morte de uma mulher vil, sem religião. Deus me
perdoe, mas não posso deixar de odiar a sua memória, quando
vejo a perdição do meu filho.
1632
– Foi Deus que nos socorreu com essa guerra dos sérvios.
Sou uma pessoa velha, nada entendo do assunto, mas foi Deus
que mandou isso para o meu filho. Claro, para mim, como mãe,
é assustador; ainda mais quando, segundo dizem, ce n’est pas
trés bien vu à Petersbourg.[8] Mas, o que fazer? Só isso
conseguiu levantá-lo. Iáchvin, um colega dele, perdeu tudo no
jogo e resolveu ir para a Sérvia. Veio visitá-lo e o convenceu.
Agora, isso o mantém ocupado. O senhor, por favor, converse
com ele, quero distraí-lo. Está tão triste. E por desgraça, ainda
por cima, está com dor de dente. Mas vai gostar muito de ver o
senhor. Por favor, converse com ele, está caminhando daquele
lado.
1633
CAPÍTULOV
1634
de Vrónski. – O senhor não precisa de uma carta de
recomendação para Rístitch, ou para Milan?[9]
sofrimento.
1635
torturante e ininterrupta dor de dente, que o impedia até de
falar com a expressão que queria.
1636
pendida para trás, a cabeça incólume, com as tranças pesadas
e os cabelos crespos, nas têmporas e no rosto encantador, que,
com a boca rosada entreaberta, se congelara numa expressão
estranha, dolorosa nos lábios e aterradora nos olhos, que
permaneciam abertos, como se estivesse pronunciando as
palavras daquela frase terrível – ele iria se arrepender –, dita
por ela, na última discussão.
1637
E, após conversarem ainda sobre a proclamação de Milan
como rei e sobre as enormes consequências que isso podia
trazer, os dois separaram-se e foram para seus vagões, ao
segundo toque da campainha.
1638
C A P Í T U L O VI
– Mas que pena o senhor não nos ter avisado – disse ela,
estendendo a mão para Serguei Ivánovitch e lhe oferecendo a
testa para beijar.
1639
– Kóstia vai ficar muito contente. Ele foi à granja. Já está na
hora de voltar.
1640
– Não, papai, ele é muito gentil, e Kóstia gosta muito dele –
respondeu Kitty sorrindo, como se lhe pedisse algo, ao notar
uma expressão zombeteira no rosto do pai.
1641
– Mas assim não pode, mãezinha – disse Agáfia
Mikháilovna, presente quase sempre no quarto da criança. – É
preciso arrumá-lo direito. Bilu, bilu! – cantarolava para ele, sem
dar atenção à mãe.
aquietaram.
1642
mãozinha de palma avermelhada, com que ele fazia
movimentos circulares.
1643
C A P Í T U L O VII
1644
pena que Kóstia não esteja em casa. Na certa, foi de novo ao
apiário. Embora seja triste que fique tanto tempo lá, mesmo
assim estou contente. Isso o distrai.
1645
debater com ele”, refletiu Kitty, e logo passou a pensar onde
seria mais conveniente alojar Katavássov para dormir –
separado ou junto com Serguei Ivánovitch. E aí lhe veio, de
repente, um pensamento que a fez estremecer de inquietação,
e até alarmou Mítia, que por isso fitou a mãe com severidade.
“A lavadeira, ao que parece, ainda não mandou de volta as
roupas lavadas e todas as roupas de cama para hóspedes
foram para lavar. Se eu não tomar providências, Agáfia
Mikháilovna dará para Serguei Ivánovitch roupas de cama
usadas.” E, só de pensar nisso, o sangue afluiu ao rosto de
Kitty.
1646
resolveu divorciar-se, negar, mas no fim concordou em vender
uma parte da sua propriedade. Mais tarde, Kitty não podia
deixar de sorrir de ternura, ao lembrar-se do constrangimento
do seu marido, de suas repetidas e desajeitadas menções ao
“Mas como pode ser ele um incrédulo? Com o seu coração, com
esse temor de causar desgosto a quem quer que seja, até a
uma criança! Tudo é para os outros, nada para si. Serguei
Ivánovitch pensa, simplesmente, que é obrigação de Kóstia
ser o seu administrador. A irmã também. Agora, Dolly e os
filhos estão sob a sua tutela. E todos esses mujiques, que o
procuram todos os dias, como se ele fosse obrigado a servi-
los.”
1647
C A P Í T U L O VIII
1648
Além disso, sentia confusamente que o que chamava de suas
convicções era não apenas ignorância, mas também um tipo
de pensamento com o qual seria impossível alcançar o
conhecimento de que ele tinha necessidade.
1649
Nisso tudo, o que o deixava mais assombrado e transtornado
era que a maior parte das pessoas do seu meio e da sua idade,
após terem substituído, como ele, suas crenças antigas pelas
mesmas convicções novas que ele tinha agora, não
enxergavam nisso nenhum mal e viviam perfeitamente
satisfeitas e tranquilas. Por isso, além do problema principal,
outros problemas também atormentavam Liévin: será que
aquelas pessoas eram sinceras? Não estariam fingindo? Ou
será que compreendiam de outra forma, de algum modo mais
claro do que ele, as respostas que a ciência oferecia para os
problemas que o preocupavam? E Liévin estudava com afinco
as opiniões dessas pessoas e também os livros que
expunham tais respostas.
1650
pressupunham não haver nada além dessas concepções e, sem
nada explicar, limitavam-se a negar os problemas, sem cuja
solução Liévin sentia não ser capaz de viver, e tentavam
resolver problemas inteiramente distintos, que não podiam
interessá-lo, como por exemplo a evolução dos organismos,
a explicação mecânica do espírito etc.
1651
C A P Í T U L O IX
1652
permutadas, sem levar em conta, na vida, algo mais importante
do que a razão.
1653
ambas as igrejas, infalíveis em sua essência, se negavam
mutuamente, Liévin desiludiu-se com a doutrina de Khomiakóv
sobre a Igreja e esse edifício desfez-se em pó, a exemplo das
construções da filosofia.
“É impossível viver sem saber o que sou e para que estou aqui”,
disse Liévin consigo.
1654
Era preciso livrar-se dessa força. E tal libertação estava nas
mãos de cada um.
1655
CAPÍTULOX
Quando Liévin pensava no que ele era e em para que vivia, não
encontrava resposta e entrava em desespero; mas quando
parava de se indagar a respeito, parecia saber o que ele era e
para que vivia, porque agia e vivia com rigor e determinação;
nos últimos tempos, vivia até com mais rigor e com mais
determinação do que antes.
1656
afazeres só o ocupavam porque lhe parecia que ele devia
fazer o que fazia – e que não podia agir de outra forma.
1657
almoçar, quando se tinha vontade de comer; e para tanto,
assim como era necessário preparar o almoço, era também
necessário gerir a máquina doméstica em Pokróvskoie de
modo que as terras fossem rentáveis. Assim como era
necessário pagar as dívidas, era também indubitavelmente
necessário conservar as terras do seu patrimônio em condições
tais que o seu filho, ao herdá-las, fosse grato ao pai, como
Liévin se sentira grato ao avô, por tudo o que ele havia
construído e plantado. E, para tanto, era preciso não alugar sua
terra e sim geri-la pessoalmente, cuidar do gado, adubar os
campos, plantar florestas.
1658
Porém, além de saber com segurança o que precisava fazer,
Liévin também sabia como era preciso fazer tudo isso e sabia
distinguir, entre duas coisas, qual a mais importante.
Para Piotr, que pagava a um agiota dez por cento ao mês, era
necessário dar dinheiro emprestado, para que pudesse remir
sua dívida; mas era impossível baixar o valor ou conceder
prazos maiores, no caso dos tributos que os mujiques maus
pagadores deviam ao proprietário da terra. Era impossível não
repreender o administrador, se uma pequena várzea não tinha
sido capinada e o capim se estragava sem nenhum proveito;
mas não se podia ceifar oitenta diessiatinas de terra, onde
estava plantada uma floresta ainda jovem. Era impossível
perdoar a um trabalhador que partia para casa na temporada
de trabalho porque seu pai estava morrendo, por mais pena
1659
que Liévin sentisse dele, e era necessário descontá-lo pelos
dispendiosos meses de ociosidade; mas era impossível não dar
mesadas aos velhos que não podiam mais ser úteis.
1660
temia o suicídio, mas ao mesmo tempo ia traçando com
firmeza o seu singular e bem demarcado caminho na vida.
1661
C A P Í T U L O XI
1662
de mais trabalho, o entusiasmo popular coletivo também o
contagiava.
1663
com um som sibilante sob o telhado e, com as asas palpitantes,
iam pousar sobre o vão do portão, ora para os camponeses
que se agitavam atarefados na eira sombria, poeirenta, e
pensava estranhas ideias.
“Para que se faz tudo isso?”, pensou. “Para que estou aqui e os
obrigo a trabalhar? Para que todos eles se esforçam e tentam
mostrar para mim o seu zelo? Para que se esfalfa essa velha
Matriona, minha conhecida? (Eu a curei, quando, num incêndio,
uma viga tombou sobre ela)”, pensou, enquanto olhava para
uma camponesa magra, que, puxando grãos com um ancinho,
pisava atentamente, com os pés descalços, pretos e
queimados, no chão duro e desnivelado da eira. “Na época, ela
recuperou a saúde; mas, se não for hoje ou amanhã, daqui a
uns dez anos vão enterrá-la e nada restará, nem dela nem
dessa mulher graciosa, de saia vermelha, que com gestos tão
ágeis e delicados bate nas espigas para soltar a palha.
Também a ela vão enterrar, e também aquele cavalo malhado,
de narinas infladas, que se desloca como se estivesse em cima
de uma roda empenada. A ele também vão enterrar, e o Fiódor,
que alimenta a debulhadora, com sua barba encaracolada,
cheia de restos de palha, e com a camisa rasgada no ombro
branco, a ele também vão enterrar. Mas ele desfaz os feixes, dá
uma ordem, grita para a mulher e, com um movimento rápido,
aperta a correia no volante. E, aí está o mais o importante, não
só a eles, mas também a mim vão enterrar, e não vai restar
nada. Para quê?”
1664
Liévin pensava assim e, ao mesmo tempo, olhava para o
relógio, a fim de calcular quanto debulhavam em uma hora.
Precisava saber para, com base nisso, determinar a tarefa do
dia.
1665
cedido as terras para serem usadas num regime de trabalho
cooperativo. Agora a terra estava arrendada a um zelador.
1666
– Ora, todo mundo sabe, do jeito justo, como Deus manda.
Acontece que as pessoas são diferentes. Veja o senhor, por
exemplo, o senhor também não ofende a gente…
1667
C A P Í T U L O XII
1668
entendidas, pus em dúvida o seu acerto? Achei que eram tolas,
obscuras, imprecisas?
“Fiódor diz que Kirílov, o zelador, vive para a pança. Isso faz
sentido e é razoável. Nós todos, como criaturas razoáveis, não
podemos viver de outra maneira, senão para a pança. E de
repente Fiódor vem dizer que viver para a pança é mau e que é
preciso viver para a verdade, para Deus, e basta uma palavra
para eu o compreender! E eu e um milhão de pessoas, que
viveram séculos atrás e que vivem agora, mujiques, pobres de
espírito e sábios, que pensaram e escreveram sobre isso e que,
com sua linguagem obscura, diziam a mesma coisa, todos nós
estamos de acordo neste único ponto: para que é preciso viver
e o que é bom. Eu, junto com todas as demais pessoas, tenho
um só conhecimento seguro, indubitável e claro, e ele não pode
ser explicado pela razão, está fora da razão, não tem nenhuma
causa e não pode ter nenhuma consequência.
1669
“Mas eu o conheço, e todo mundo o conhece.
1670
de capim, para que o inseto passasse para ela. “O que me
traz esta alegria? O que foi que descobri?
1671
clara e evidente a respeito da morte, que lhe acudira ao ver o
seu querido irmão enfermo e sem esperanças.
Mas não fez nem uma coisa nem outra e continuou a viver, a
pensar, a sentir e até, nessa mesma ocasião, veio a casar-se,
experimentou muita alegria e sentia- se feliz, quando não
pensava sobre o sentido da sua vida.
Agora, estava claro para Liévin que ele só podia viver graças às
crenças nas quais fora educado.
1672
existiria nenhuma das coisas que constituem as principais
alegrias da minha vida.” E, mesmo fazendo um esforço
supremo de imaginação, não era capaz de visualizar a
criatura bestial que ele haveria de ser caso não soubesse para
que vivia.
1673
“E não só o orgulho do intelecto, mas a tolice do intelecto. E
sobretudo a má- fé, exatamente a má-fé do intelecto. Ou
melhor, a vigarice do intelecto”, repetiu.
1674
C A P Í T U L O XIII
1675
isso, não precisamos pensar nada, já está pronto; queremos
inventar algo novo e só nosso. Então tivemos a ideia de colocar
framboesas na xícara e cozinhá-las na chama da vela e de
esguichar o leite direto dentro da boca uns dos outros. Isso é
divertido, é novo, e não há nada pior do que beber numa
xícara”.
1676
Ou sem noção do que é o bem, sem uma explicação para o mal
moral.
“Sim, o que sei, não sei mediante a razão, mas me foi dado, foi
revelado para
1677
“A Igreja? A Igreja!”, repetiu Liévin, que se virou sobre o outro
lado do corpo e, apoiado no cotovelo, passou a olhar ao longe,
para um rebanho que descia para o rio, na margem oposta.
“Mas não sei nada, nada, e não posso saber, exceto aquilo que
foi dito para mim e também para todos.”
1678
vida do espírito, a única que vale a pena viver e a única a que
damos valor.
1679
C A P Í T U L O XIV
1680
diferente. Parecia-lhe que, agora, a sua relação com todas as
pessoas já seria outra.
1681
poderia transformar-se de imediato, em contato com a
realidade.
– Mas quem é?
1682
E uma dessas discussões, da qual Katavássov obviamente
pensara ter saído vencedor, foi a primeira coisa que veio à
memória de Liévin, ao reconhecê-lo.
1683
– Nada de especial. Como sempre, dedico-me aos afazeres
agrícolas – respondeu Liévin. – E você, vai ficar aqui por
bastante tempo? Há muito que o esperávamos.
1684
E bastaram essas palavras para que a relação, não hostil, mas
fria, que Liévin tanto queria evitar, se estabelecesse outra vez
entre os irmãos.
Após seguir por uma trilha estreita e chegar a uma clareira que
não fora capinada, coberta, de um lado, por densas e radiantes
1685
margaridas, no meio das quais cresciam altos arbustos verde-
escuros de heléboro, Liévin instalou seus convidados numa
densa e fresca sombra de álamos jovens, num banco e nuns
tocos de árvore, intencionalmente colocados ali para acomodar
os visitantes do apiário que tivessem receio das abelhas,
enquanto ele mesmo seguia para uma cabana, a fim de trazer
pão, pepino e mel fresco, para as crianças e também para os
adultos.
1686
direção, rumo a uma tília florida, na mata, e depois voltavam
para a colmeia, sem nenhuma carga na ida e carregadas na
volta.
1687
tranquilidade física e obrigavam-no a encolher-se para evitá-
las, assim também as preocupações que o assaltaram desde o
momento em que sentou na telega o privavam da liberdade de
espírito; mas isso durou apenas enquanto esteve no meio dos
outros. Assim como, apesar das abelhas, a força corporal
permanecia intacta em Liévin, também permanecia intacta a
força espiritual de que ele acabara de tomar consciência.
1688
C A P Í T U L O XV
1689
faca, apanhar a abelha que se contorcia desamparada e
enegrecida de mel, e agora tentava desprendê-la da faca e
passá- la para uma encorpada folhinha de álamo.
1690
inevitavelmente à guerra. De outro lado, à luz tanto da ciência
quanto do pensamento sadio, nas questões de Estado, e em
especial na questão da guerra, os cidadãos devem renunciar à
sua vontade pessoal.
– disse Katavássov.
1691
que você não iria indagar se havia ou não uma declaração de
guerra contra esses homens, mas se atiraria contra eles e
defenderia a vítima.
– Sim, mataria.
1692
além de mim há pessoas que só se interessam pela Rússia e
não pelos irmãos eslavos. Veja por exemplo o Konstantin.
1693
Ivánovitch, categórico, e lançou um olhar para o velho que
cuidava do apiário.
1694
Elas trazem suas poucas moedas ou partem, elas mesmas, e
dizem de forma direta o que pensam. E o que isso significa?
– Pois eu lhe digo que não são centenas e não são pessoas
de pouco juízo, mas sim os melhores representantes do povo! –
retrucou Serguei Ivánitch, com tamanha irritação que parecia
defender o último centavo de sua fortuna. – E os donativos?
Nisso, o povo inteiro exprime, de forma direta, a sua vontade.
1695
C A P Í T U L O XVI
1696
Liévin quis responder, mas o velho príncipe interrompeu-o.
1697
a guerra irá para uma legião especial, na linha de frente, uma
legião de
1698
– Mas não se trata só de sacrificar-se e sim, também, de
matar turcos – disse Liévin, com timidez. – O povo se sacrifica e
está pronto a sacrificar-se pela sua alma, mas não em prol de
uma matança – acrescentou, associando involuntariamente
essa conversa ao tema dos pensamentos que tanto o
preocupavam.
– Ora, juro por Deus, não tenho a mínima ideia do que seja!
– disse Katavássov, com uma sonora risada.
1699
Liévin ruborizou-se de irritação, não por ter sido derrotado, mas
sim por não conseguir conter-se e ter começado a discutir.
1700
expressado seu pensamento na lenda sobre a convocação dos
varegues:[14] “Reinai e governai por nós. Com alegria,
prometemos completa obediência. Tomamos a nosso encargo
todo trabalho, toda humilhação, todo sacrifício; mas não
julgaremos nem decidiremos”. E agora, segundo as palavras
de Serguei Ivánitch, o povo renunciava a esse direito,
adquirido por um preço tão alto.
1701
C A P Í T U L O XVII
1702
– E Katierina Aleksándrovna? – perguntou Liévin para
Agáfia Mikháilovna, que viera ao encontro deles, no vestíbulo,
com xales e mantas.
– E o Mítia?
1703
repente, tudo se incendiou, a terra inteira ardeu e a abóbada
celeste pareceu romper-se sobre a sua cabeça. Após abrir os
olhos ofuscados, Liévin, através da espessa cortina de chuva
que agora o separava de Kolok, viu com horror, antes de tudo,
que a copa verde de um conhecido carvalho, no centro do
bosque, mudava de posição. “Será que se partiu?”, mal teve
tempo de pensar, quando, com um movimento cada vez mais
rápido, a copa do carvalho se ocultou atrás de outras árvores
e Liévin ouviu um estrondo, quando a árvore imensa tombou
sobre as demais.
– Meu Deus! Meu Deus, faça com que não tenha caído sobre
eles! – exclamou.
1704
Estavam na outra extremidade do bosque, sob uma velha tília,
e chamavam Liévin. Dois vultos de vestidos escuros (antes,
eram claros) estavam de pé, curvados por cima de alguma
coisa. Eram Kitty e a babá. A chuva já estava parando e o céu
começava a clarear, quando Liévin se aproximou correndo. A
parte de baixo do vestido da babá estava seca, mas o de Kitty
ficara encharcado, de ponta a ponta, e se colava inteiro ao seu
corpo. Embora já não chovesse, as duas continuavam na
mesma posição de antes, quando se desencadeara a
tempestade. Ambas estavam de pé, curvadas sobre um
carrinho, com uma sombrinha verde.
1705
Reuniram as fraldas molhadas; a babá apanhou o bebê e
carregou-o. Liévin caminhou ao lado da esposa, arrependido de
sua irritação, e apertava a mão dela, às escondidas da babá.
1706
C A P Í T U L O XVIII
1707
Só Kitty não pôde escutar até o fim – chamaram-na para dar
banho em Mítia.
1708
estava ligado àqueles pensamentos, e encontrou na alma esse
sentimento ainda mais forte e mais determinado do que antes.
Agora, com Liévin, não acontecia como nos momentos de
serenidade que ele antes forjava, quando era preciso
restabelecer toda a cadeia de pensamentos para encontrar o
sentimento. Agora, ao contrário, o sentimento de alegria e de
serenidade era mais vivo do que antes e o pensamento vinha
atrás do sentimento.
1709
Parecia-lhe que tinha a resposta para essa pergunta; mas mal
tivera tempo de formular a questão para si mesmo, quando
entrou no quarto da criança.
1710
Retiraram o bebê da banheira, derramaram a água,
envolveram-no em um lençol, enxugaram-no e, depois de a
criança soltar um grito estridente, entregaram-na à mãe.
1711
– Você ficou muito assustado? – perguntou. – Eu também,
mas agora que já passou, sinto mais medo ainda. Verei o que
houve com o carvalho. Mas que gentil é o Katavássov! E, no
todo, que dia agradável tivemos. E você se dá tão bem com
Serguei Ivánovitch, quando você quer… Agora, vá ter com ele.
Depois do banho, aqui sempre fica muito quente e fumacento…
1712
C A P Í T U L O XIX
1713
reconhecimento, eu, querendo ou não, mais do que unir-me, sou
unido às demais pessoas numa comunidade de crentes, que é
chamada de Igreja. Mas e os judeus, os muçulmanos, os
confucionistas, os budistas: o que dizer deles?”, refez a mesma
pergunta, que lhe parecia perigosa.
1714
“E será que os astrônomos poderiam compreender e calcular
alguma coisa, se levassem em conta todos os complexos e
variados movimentos da Terra? Todas as suas conclusões
admiráveis sobre as distâncias, o peso, os movimentos e as
revoluções dos corpos celestes se basearam, apenas, no
movimento visível dos astros em redor da Terra imóvel, o
mesmo movimento que agora está à minha frente e que foi
exatamente o mesmo para milhões de pessoas, nos séculos
passados, que sempre foi e será o mesmo, e no qual sempre se
pode confiar. E assim como as conclusões dos astrônomos
poderiam ser ociosas e precárias, se não se baseassem em
observações do céu visível, em relação a um só meridiano e a
um só horizonte, também seriam ociosas e precárias as minhas
conclusões, se não se baseassem naquele entendimento do
bem, que sempre foi e será o mesmo para todos, que me foi
revelado pelo cristianismo e no qual sempre se pode confiar,
no fundo da alma. Quanto à questão das outras crenças e de
sua relação com a divindade, não tenho o direito nem a
possibilidade de decidir.”
1715
luz do relâmpago, Kitty viu todo o seu rosto e, ao reconhecer
que Liévin estava calmo e contente, sorriu para ele.
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continuará a existir um muro entre as coisas mais sagradas da
minha alma e as outras pessoas, mesmo a
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