Eterno Marido, O - Fiodor Dostoievski
Eterno Marido, O - Fiodor Dostoievski
Eterno Marido, O - Fiodor Dostoievski
FIÓDOR MIKHÁILOVITCH DOSTOIÉVSKI nasceu em 1821, em Moscou, no hospital onde seu pai
trabalhava como médico. A mãe morreu de tuberculose em 1837, e Dostoiévski foi para São
Petersburgo com o irmão, para estudar engenharia. O pai morreu em 1839, após uma fase de
Seus primeiros passos na literatura foram duas peças teatrais, que ficaram inacabadas, e a tradução
do romance Eugénie Grandet, do escritor francês Honoré de Balzac (1844). Seu romance de estreia
foi Gente pobre (1846), escrito depois de abandonar a carreira militar. Seguiram-se o romance O
duplo (1846) e as novelas A senhoria (1847) e Noites brancas (1848), além do romance inacabado
Niétotchka Niezvánovna. Nessa época, Dostoiévski participava de um grupo clandestino chamado
Círculo de Petrachévski, no qual se liam e discutiam textos proibidos. Petrachévksi, mentor do
grupo, era adepto do socialista utópico francês Charles Fourier. Em 1849, vários membros do círculo
foram presos e condenados à morte, entre eles Dostoiévski. No último instante, porém, a pena foi
cancelada e convertida em quatro anos de trabalhos forçados na Sibéria e cinco de serviço militar
como soldado raso. No exílio, Dostoiévski conheceu sua primeira esposa, Maria Dmítrievna Issáieva,
e nessa mesma época sofreu os primeiros ataques de epilepsia. Em 1859, voltou para São Petersburgo
e, com o irmão, fundou a revista Vrêmia [Tempo], na qual publicou seu romance Humilhados e
ofendidos (1861). Em 1862, publicou Recordações da casa dos mortos, lembranças do tempo de
prisão disfarçadas de romance. Em 1862 e 1863, viajou por algumas cidades da Europa Ocidental,
onde perdeu muito dinheiro no jogo e conheceu uma amante. Em 1864, morreram sua esposa e seu
irmão, que, além da viúva, deixou quatro filhos e uma enorme dívida. Coube a Dostoiévski sustentar
a todos, além do enteado e outro irmão alcoólatra, circunstância que o deixou cada vez mais
endividado. Em 1864, publicou Memórias do subsolo e, em 1866, Crime e castigo. Seu romance
seguinte, O jogador, foi escrito às pressas para saldar dívidas. A fim de entregá-lo no prazo exigido
pelo editor, Dostoiévski contratou a estenógrafa Anna Grigórievna Snítkina, que tinha 24 anos, na
época, e com quem Dostoiévski se casou em 1867. Os dois partiram para morar em Dresden e em
Genebra, onde nasceu e, em seguida, morreu sua primeira filha. De volta a Dresden, nasceu sua
segunda filha. Em 1868, publicou o romance O idiota e, em 1872, Os demônios, que polemiza
diretamente com alguns setores do movimento revolucionário. Em 1873 e 1874, escreveu Diário de
um Escritor, uma série de artigos e contos publicados de modo seriado num periódico. Em 1875,
publicou o romance O adolescente e, em 1881, Os irmãos Karamázov foi publicado, ano em que
ortodoxa, que vinha de muitos anos, o levara, nessa altura da vida, a manter estreitas relações com
expoentes do clero ortodoxo, bem como com autoridades do governo e com a própria família do
tsar. Dostoiévski foi sepultado no mosteiro de Aleksandr Niévski, em São Petersburgo, e seu enterro
São Paulo) e os livros de contos O livro dos lobos (1994-2008), As palavras secretas (1998, prêmio
Jabuti e prêmio da Biblioteca Nacional), Contos de Pedro (2006). Suas traduções incluem obras
Ressurreição, e os prêmios
Biblioteca Nacional pela tradução de da Academia Brasileira de Letras e
Nota da edição
O ETERNO MARIDO
1. Veltchanínov
5. Liza
9. O fantasma
10. No cemitério
15. Quites
16. Análise
RUBENS FIGUEIREDO
tinha 48 anos e estava casado com a jovem Anna Grigórievna Snítkina havia
apenas dois anos. Em Dresden, sua esposa teve a segunda filha do casal — a
atração que os cassinos exerciam sobre ele quando estava fora da Rússia.
exasperado com o editor de Zariá. “Será que ele não entende como tudo
isso é insultuoso para mim? […] Só um bárin* se comporta assim com seu
lacaio.” Foi com palavras desse teor, repetidas muitas vezes, e ainda mais
virulentas, que ele extravasou seu rancor e seu orgulho ferido numa carta a
um amigo.
contundente e sistematizado.
enganado?
teatro.
diversas daquelas em que nasceram, nos países ricos da Europa, tais formas
artísticas se tornam instrumentos de abrangência e alcance redobrados. Por
durante a narrativa. Na verdade, essa era uma das feições peculiares com
Memórias do subsolo.
Pode-se dizer que O eterno marido se estrutura como uma série de
exacerbado até o caricato, até o grotesco. Trata-se da partícula russa -s, que
pode ser acrescida ao final de certas palavras, quando o falante deseja
VELTCHANÍNOV
esperado. Sua viagem para o sul da Rússia não tinha dado certo e não havia
ruim. Apenas três meses antes, a causa parecia ser a coisa mais simples do
mundo, quase incontestável; porém, de uma hora para outra, tudo mudou.
“Sim, no geral, tudo começou a mudar para pior!” — foi essa frase que
Veltchanínov passou a repetir toda hora, para si, com uma alegria
reclamava disso e pedia que viajasse para o campo. Só que ele não se
onde tinha se mudado pouco tempo antes, e também não deu certo; “nada
deu certo!”. Sua hipocondria aumentava a cada dia; mas já fazia tempo que
Era um homem que tinha vivido muito e com intensidade, já estava longe
de ser jovem, uns trinta e oito ou trinta e nove anos, e toda essa “velhice”
— como ele mesmo se expressava — havia chegado a ele “de forma quase
não na quantidade de anos, mas, por assim dizer, na sua qualidade, e que,
se suas enfermidades já haviam começado, eram antes interiores que
firme, de cabelo louro claro, espesso e sem nenhum fio grisalho na cabeça
desmazelo que ele havia adquirido. E mesmo até agora, era cheio da mais
ainda agora, alguém que olhasse para ele diria: “Que homem vigoroso, está
acometido pela hipocondria. Os olhos, grandes e azuis, uns dez anos antes,
também tinham muito de vitoriosos; eram olhos tão radiantes, tão alegres
com eles. Agora, à beira dos quarenta anos, o brilho e a simpatia quase se
que antes não existia: uma nuance de tristeza e de dor — uma espécie de
tristeza difusa, como que indefinida, mas forte. Essa tristeza transparecia em
especial quando ele ficava sozinho. E o estranho era que aquele homem
buliçoso, alegre e alheio a tudo, de apenas dois anos antes, que contava
distintos dos que antes eram habituais — por motivos inesperados, antes
impensáveis, por motivos “mais elevados” dos que existiam até então —,
Sim, ele chegou também a esse ponto; agora, ele se afligia por sabe-se lá
que motivos superiores, nos quais, antes, nem parava para pensar. Em
“motivos” de que (para sua surpresa) não conseguia rir, no íntimo — algo
que, até então, nunca havia acontecido… no íntimo, é claro; ah, sim, em
sociedade, era outra história! Ele sabia muito bem que bastava se
“motivos superiores”, e ele mesmo seria o primeiro a rir disso, sem admitir
nada, é claro. E, de fato, era assim mesmo, apesar de certa dose, até bem
que, na maior parte, não tinham mais nenhuma semelhança com aqueles
nas noites, em geral, é um fato comum entre pessoas “que pensam com
mais fatais; porém, é claro, tudo tem um limite — e se, enfim, esse paciente
Veltchanínov nem quis mais ouvir; mas, para ele, a doença ficou
absolutamente comprovada.
“Portanto, tudo isso não passa de uma doença, toda essa história de
mesmo, em tom sarcástico. Mas não tinha muita vontade de admitir nada
disso.
esquecido nesse intervalo, às vezes por completo. Pois bem, então, apesar
é que tudo que dizia respeito ao passado remoto, tudo que tinha
vivendo aquilo tudo outra vez? Alguns dos fatos lembrados estavam
esquecidos a tal ponto que lhe parecia nada menos que um milagre que
pudessem voltar à memória. No entanto, isso ainda não era tudo; pois,
entre pessoas que viveram de forma intensa, quem é que não tem lá suas
apenas dois anos antes, ele nem acreditaria se lhe contassem que ia chorar
causa disso, parou de ser recebido numa certa residência — ou como, por
exemplo, e nem fazia tanto tempo assim, tinha sido ofendido em público,
de forma taxativa, e não tinha exigido um duelo — ou como, certa vez, lhe
ele não encontrou o que responder. Lembrou-se até de duas ou três dívidas
que não pagara, ninharias, na verdade, mas dívidas de honra, e para pessoas
com quem ele deixara de ter relações amistosas e das quais até falava mal.
Por exemplo, de repente, “sem mais nem menos”, veio à sua memória a
feliz, que lhe trouxe fama e que, depois, foi repetido por outros. O fato era
que ele tinha esquecido aquilo a tal ponto que nem o sobrenome de família
uma clareza inconcebível. Lembrou com nitidez que o velhinho tinha saído
“sem mais nem menos”, de como o velhote chorava e cobria o rosto com
tinha esquecido aquilo. E era estranho: tudo lhe pareceu muito ridículo, na
ocasião; já agora era o contrário, e justamente os pormenores, justamente o
repente não tivesse surgido uma lembrança muito mais próxima, de certa
moça, gente modesta da cidade, que até nem lhe havia agradado e que, ele
admitia, até lhe dava certa vergonha, mas com quem, sem que ele mesmo
bebê juntos, sem nem sequer se despedir (na verdade, não teve tempo),
quando partiu de Petersburgo. Depois, ele procurou essa moça por um ano
puxava, atrás de si, dezenas de outras. Pouco a pouco, também sua vaidade
começou a sofrer.
razão. Havia momentos (raros, aliás) em que ele chegava, por vezes, a
tamanho alheamento que nem sentia vergonha de não ter uma carruagem
simplesmente cismar de fingir que não o reconhecia, então, juro, ele ainda
tinha empáfia suficiente para nem sequer franzir a testa. E era a sério, de
verdade, que não franzia a testa, não era só para manter as aparências.
Claro, era raro que isso acontecesse, não passavam de alguns minutos de
deixando para trás as antigas razões para se concentrar numa questão que
remorsos’. Dane-se, não adianta nada! Tudo isso são tiros de festim! Ora, é
como se eu não soubesse com certeza, e com certeza mais do que certa,
que, apesar de todas essas lágrimas de remorso e autocondenações, não há
que seja vantajoso, para mim, espalhar fofocas, como dizer que a mulher do
sem hesitar —, e a coisa vai ser pior ainda, mais prejudicial do que na
primeira vez, porque já vai ser a segunda vez, e não a primeira. Ora essa,
mamãe, em quem, há onze anos, dei um tiro e fiz perder a perna — ele que
venha, que na mesma hora vou desafiá-lo para um duelo e dar-lhe outra
perna de pau. Porque não iam ser tiros de festim — para o que é que eles
servem? E para que serve recordar, quando não sou capaz sequer de me
ainda que ele não pusesse ninguém numa perna de pau, só a ideia de que
embora para qualquer lugar sem olhar para trás, de qualquer maneira, de
repente, às cegas, nem que fosse para a Crimeia, por exemplo. Só que, em
geral, uma hora depois, ele já desprezava sua ideia e ria dela: “Já que
começaram, essas ideias nojentas não vão mais parar, nem lá no sul, por
mais que eu seja uma pessoa de alguma decência, e portanto não adianta
poeirento, tão abafado, nesta casa tudo é tão encardido; nessas repartições
em que eu jogo meu tempo fora, no meio de todas essas pessoas tão ativas
— que agitação de ratos, que confusão de feira de rua; em toda essa gente
que fica na cidade, em todos esses rostos que se veem de relance, da manhã
até a noite, está inscrito, de forma tão ingênua e franca, todo o seu amor-
próprio, toda a sua insolência inocente, toda a covardia de suas alminhas,
Tudo explícito, tudo às claras, nem acham necessário esconder nada, como
acontece por aí com nossas damas, nas casas de campo ou nas estações
* Trata-se do Bolchói Kámieni Teatr, construído em 1783 e demolido em 1886. Não confundir com o
porcaria, ele destroçava tudo, no entanto, até à última migalha — e toda vez
com tamanho apetite que parecia ter passado três dias sem comer. “Isso é
apetite. Mas, dessa vez, sentou-se à sua mesinha no estado de espírito mais
detestável do mundo, atirou o chapéu com raiva para qualquer lado, fincou
logo à primeira palavra, que ele, mesmo sabendo tão bem como ser gentil
Serviram a sopa, ele segurou a colher, mas de repente, antes que tivesse
tempo de pegar uma colherada, jogou o talher na mesa e por pouco não
pulou da cadeira. Uma ideia inesperada lhe veio num lampejo: naquele
atormentava fazia alguns dias seguidos, sem parar, e só Deus sabe como ela
o amarrava e só Deus sabe por que não queria soltá-lo; pois logo agora ele
incidente?”
verdade, ele não lembrava, mas parecia que eram duas semanas), ele
encontrou pela primeira vez, na rua, em algum lugar na esquina das ruas
Veltchanínov. Era óbvio que, algum dia, em algum lugar, já o tinha visto.
— não dá para se lembrar de todas!” Vinte passos adiante e ele já parecia ter
recordou tudo aquilo com clareza; recordou também que não entendeu
ponto que nem por uma vez associou nem contrapôs seu estado de espírito
detestável; teve até uma espécie de pesadelo à noite e, apesar de tudo, não
passou pela sua cabeça que todo o motivo daquela sua angústia nova e
memória por tanto tempo; mas, sem dúvida, seria até humilhante atribuir a
ele toda a sua perturbação, se essa ideia por acaso passasse pela sua cabeça.
que “se atreveu” a lhe estender a mão; talvez tenha até gritado, chamando-
o pelo nome. Isso, aliás, Veltchanínov não distinguiu com clareza, mas…
“quem é esse canalha, afinal, e por que não vem falar comigo de uma vez,
Smólni. Meia hora depois, ele já havia discutido e feito um escarcéu com
Esse foi o terceiro encontro. Depois, por cinco dias seguidos, não
horas, Veltchanínov se apanhava com certa surpresa: “Será que estou com
que me reconheceu, só que eu não o conheço. E para que essa gente anda
com crepe? De certo modo, não combina com ele… Acho que, se eu olhar
não quer, de jeito nenhum, voltar à memória, por mais que quebremos a
“Isso foi… isso foi há muito tempo… e isso foi não sei onde… Foi lá
no… lá no… Ora, foi ou não foi, azar, que vá tudo para o diabo!”,
“Portanto, existem motivos para eu ficar tão furioso… sem mais nem
No dia seguinte, irritou-se mais ainda, só que dessa vez lhe pareceu que
mesmo conselheiro de Estado que lhe era tão imprescindível, que ele
homem nem lhe estendeu a mão, e era óbvio que o evitava, não desejava
havia topado com ele em seu caminho, Veltchanínov caminhou a seu lado,
chapéu. Estava parado e olhava fixo para os dois; vinha atrás deles — isso
foi contratado por alguém e… e… e, juro, ele estava rindo de mim! Juro,
vou dar uma surra nele… Mas que pena que não ando com uma bengala!
Vou comprar uma bengala! Não vou deixar que fique por isso mesmo!
perturbado de todo, e a sério, e até um pouco fora de si. Nem ele mesmo
“e, portanto, que eu esteja pronto para fazer de uma mosca um elefante;
porém será que me traz algum alívio saber que tudo isso, talvez, seja só
cavalheiro, como antes, se esgueirou ligeiro, mas dessa vez não reparou em
mim, mas, ao contrário, sou eu que estou atrás dele, e a questão toda é
essa?”
vai voltar antes das duas ou três da madrugada, porque ficou na cidade
numa festa de aniversário”.** Aquilo já foi tão “ofensivo” que, em sua fúria
dirigir para lá, de fato; mas, no caminho, considerou que seria ir longe
caminhar. Para acalmar os nervos agitados, era preciso dormir bem à noite,
a todo custo, apesar da insônia; e, para pegar no sono, era preciso pelo
meia, pois o caminho não era muito curto e, de fato, estava muito cansado.
daquele “maldito litígio” — aquele seu apartamento não era tão ruim, no
geral, nem tão ultrajante como ele mesmo opinava. A entrada, de fato, era
em si, no segundo andar, era formado por dois cômodos amplos, claros e
altos, separados por uma antessala escura e, dessa forma, um dava para a
rua e o outro, para o pátio. Ao lado do cômodo cujas janelas davam para o
desordem; ele dormia, de fato, num dos cômodos maiores, aquele cujas
janelas davam para a rua. Sua cama era feita no sofá. Sua mobília era
decente, embora de segunda mão, e, além disso, havia até algumas peças
nada estava no lugar e até havia muita poeira em cima de tudo, desde que a
moça que trabalhava para ele, Pelagueia, tinha ido visitar os pais em
família conhecida dele, que havia partido para o exterior, e pôs sua casa em
contratar outra; não valia a pena contratar um lacaio por um prazo curto, e
ele também não gostava de lacaios. Dessa forma, ficou estabelecido que
quem viria arrumar sua casa toda manhã era Mavra, a irmã da zeladora,
com a qual ele deixava a chave quando saía e que, a rigor, não fazia
ele já não se importava mais com nada e até se sentia satisfeito de poder
ficar em casa totalmente sozinho. Mas tudo tem um limite — e seus nervos,
suportar toda aquela “imundície” e, quando voltava para casa, era quase
Mas dessa vez ele mal se deu ao trabalho de tirar a roupa, jogou-se na
sono, assim que a cabeça tocou no travesseiro; isso não acontecia havia já
quase um mês.
Dormiu direto cerca de três horas, mas com um sono inquieto; teve uns
torno de uma espécie de crime que ele parecia ter cometido e escondido,
mas do qual o acusavam, a uma só voz, pessoas que entravam em sua casa
modo que a porta já nem era mais fechada, ficava escancarada. Mas, enfim,
mas agora, sabe-se lá por quê, de repente também tinha entrado em sua
casa. O mais torturante de tudo era que Veltchanínov não sabia quem era
essa pessoa, tinha esquecido seu nome e não conseguia lembrar de jeito
nenhum; só sabia que, em alguma época, gostava muito dela. Parecia que
era dessa pessoa que todos que entravam esperavam a palavra mais
importante: a condenação ou a absolvição de Veltchanínov, e todos
cólera, esmurrou aquele homem, porque não queria falar, e sentiu com isso
Tomado pela ira, esmurrou o homem, duas, três vezes, e, numa espécie de
também um prazer infinito; ele já não contava mais seus golpes e batia sem
parar. Queria destruir tudo, tudo aquilo. De repente, algo aconteceu; todos
começaram a gritar de modo estranho e viraram para a porta, em
sonho. Ele abriu a porta e saiu para o corredor, chegou a olhar para a
repreendia, às vezes, por causa disso. Ele voltou para a antessala a fim de
gancho por dentro, teve preguiça de fechar com a chave. O relógio deu
O sonho o deixou tão agitado que ele não quis deitar de novo naquele
propósito, umas duas semanas antes, ele pendurou nas janelas aquelas
cortinas grossas de damasco, que não deixavam passar luz quando fechadas
sonho ainda estava atuante. O grave sofrimento por ter sido capaz de
— Mas, afinal, esse homem nem existe nem nunca existiu, é tudo um
convencido de que toda essa “história” com o tal crepe também pode ser
atrás dele, e não ele de mim! A partir disso, compus um poema, mas eu
desagradável, se bem que não tem nada de feio; se veste como todo
novo, fico falando dele!! E que diabo tenho eu a ver com o olhar dele? Será
nunca visto.
Ainda não havia tido tempo de abrir toda a janela, mas esgueirou-se
para a sua janela, mas era evidente que não tinha visto Veltchanínov e
vezes, só era trancada depois das três horas). “Ele está vindo para a minha
também na ponta dos pés, foi correndo para a antessala onde ficava a porta
trêmula, colocada bem de leve sobre o gancho que ele havia fechado pouco
antes, se pôs a escutar, com todo o esforço, o rumor dos passos que
Veltchanínov bateu tão forte que ele teve medo de que ouvissem. Não
perigo, ele gostava de levar sua audácia até uma espécie de exibicionismo —
do desconhecido.
Segurou a maçaneta, está puxando, está tentando abrir! Achou que minha
casa não estava trancada! Quer dizer, sabia que às vezes me esqueço de
mãos abanando?”
cara com o “monstro”. “Mas, afinal, diga lá, o que está fazendo aqui,
prezado senhor?”
crepe no chapéu.
** A rigor, o dia do santo onomástico, ou seja, o santo cujo nome foi escolhido para batizar uma
olhar. Num instante, seu rosto pareceu se desmanchar num sorriso muito
doce.
ele quase cantou com a voz mais meiga do mundo, e tão descabida,
— Sim, senhor… podemos admitir que sim… mas agora são três horas da
aqui, através da soleira, venha para a sala, meu senhor. Naturalmente, afinal
de contas, o senhor tinha a intenção de entrar no apartamento, não foi para
percebia que não era capaz de compreender. Sentia até vergonha: não havia
apoiou a palma das mãos nos joelhos e esperou, irritado, que o outro
pelo visto, sem entender que estava “obrigado” a começar a falar naquele
algo. Pode ser que estivesse apenas intimidado, sentindo algum mal-estar
— Até onde percebo, o senhor está até pasmo, acima de tudo, por eu ter
— Ah, o senhor viu! Bem, então, o senhor, é possível, agora sabe muito
mais do que eu sobre tudo isso! Mas, assim, só faço irritar o senhor… Veja,
aqui está o que aconteceu: cheguei faz umas três semanas, para tratar de
uma transferência para outra província e para outra função, num escalão
ou seja, a tal transferência, e na verdade, ainda que ela saia, não duvido que
eu mesmo esqueça que saiu e, neste meu estado de espírito, acabe não indo
embora da sua Petersburgo. Fico vagando para lá e para cá, como se tivesse
perdido meu objetivo, e parece até que me alegro de ter perdido… neste
se perturbou horrivelmente.
Dito isso, a visita, com forte emoção, estendeu os braços para os dois
embaixo a cabeça calva, e permaneceu assim por pelo menos uns dez
segundos.
um sorriso irônico e até provocador resvalou pelos seus lábios — mas foi só
estivera ligado fazia muito tempo e a qual, fazia muito tempo, tratara de
— Sou grato ao senhor pelo interesse, vejo e aprecio isso, apesar de…
— Apesar de?
preocupa com minha dor e até comigo com um interesse tão grande que
A visita cantava como se lesse uma partitura, mas, durante todo o tempo
pouco.
não o contrário!
desatou a rir bem alto. Pável Pávlovitch ficou parado, olhou com atenção,
lugar, o senhor pode ter esquecido e, afinal, nesse intervalo, eu tive até
— Varíola? Mas então, na realidade, teve mesmo varíola! E como foi que
o senhor…
continue, continue!
Por algum motivo, ele estava ficando cada vez mais alegre. A sensação
fuma?
deixa tremendamente…
— Mas o senhor mesmo, no entanto, olhe só, está numa agitação, será
Veltchanínov. — Continue!
sai vagando a esmo por ruas poeirentas sem destino certo, como se
caminhasse pela estepe, quase sem noção de si mesmo, e que, nessa falta de
momentos, a pessoa se lembra de tudo tão bem que sente uma enorme
recente, mas irrecuperável, e aí o coração começa a bater tão forte que não
mas não na amizade; pois neste instante a recompensa está sendo enorme,
meu senhor. E quanto à hora, juro, eu pensava que ainda não era meia-
própria tristeza e parece que se embriaga com ela. E já nem é mais tristeza e
outra pessoa!
que não mudou, só Deus sabe como; o senhor mudou foi de outro jeito!
— He-he — Pável Pávlovitch deu uma risadinha com malícia. — Que ideia
— Pois aqui está: antes, havia um Pável Pávlovitch tão sólido, respeitável,
um perfeito vaurien!*
Ele estava naquele grau de irritação em que as pessoas mais contidas, às
— Vaurien! O senhor acha? E não sou mais sabichão? Não sou sabichão?
— Pável Pávlovitch soltou uma risada, com prazer.
— Para o diabo com essa história de sabichão! Agora, quem sabe, talvez o
poltrona. — Afinal, de que adianta para nós? Afinal, agora, não estamos na
seus sentimentos que baixou a cabeça de novo, como antes, só que agora
repugnância e inquietação.
“E se tudo isso for só uma brincadeira?”, passou pela sua cabeça. “Mas
ano, meu senhor… igualzinho, sem tirar nem pôr, à peça A provinciana,
do sr. Turguêniev**…
com essa voz estridente e tão… tão diferente da sua voz. Para que isso?
nos brindou com sua amizade, exatamente como o senhor, e nesse caso
senhor…?
também! E foi então que nós encenamos a peça A provinciana num teatro
— Vou lá todo santo dia, já faz três semanas, meu senhor. Não me
recebem! Está doente, não pode receber ninguém! E, imagine, eu soube por
com risco de vida! Um amigo de seis anos! Ah, Aleksei Ivánovitch, digo e
testemunhas e parceiros, por assim dizer, tão somente para chorar, ou seja,
— Certo, muito bem, mas por hoje já é o bastante, não acha? — declarou
bruscamente Veltchanínov.
— Mas escute uma coisa: eu mesmo vou passar na sua casa, sem falta, e
então, espero que… Diga-me sem rodeios, fale com franqueza: o senhor
— Já notei, faz tempo, que o senhor parece que está quase num delírio —
Juro, sinto muita vergonha, porque, na minha falta de jeito… mas já estou
— Mas, ora essa, o senhor não me disse onde mora — se deu conta
escapulir?
* Francês: velhaco.
“daquela mulher”.
dor ficaram apenas abafadas, por um tempo, dentro dele, por força de uma
tudo que havia acontecido nove anos antes ressurgiu, de súbito, na sua
não exigisse sua presença por prazo tão longo; o verdadeiro motivo foi a
com certeza, se aventuraria a fazer qualquer coisa, sem hesitar, por mais
capricho daquela mulher. Nunca, nem antes nem depois, aconteceu com
Petersburgo, já se fazia a pergunta que sempre ficou sem resposta: será que
amava de fato aquela mulher, ou tudo não passara de uma “ilusão”? E não
foi, de forma nenhuma, por leviandade nem por efeito de alguma nova
paixão que acaso ele começasse a sentir, que aquela pergunta nasceu
dentro dele: nos primeiros dois meses em Petersburgo, ele viveu numa
e pudesse ver centenas de mulheres. De resto, sabia muito bem que, assim
que pusesse os pés de novo em T., cairia outra vez sob o encantamento
disso. Porém, passados cinco anos, já era com indignação que admitia
vergonha do seu ano em T.; não conseguia entender sequer como fora
corridos mais alguns anos, ele conseguiu se acalmar e tentou esquecer tudo
estava muito tranquilo com relação ao fato de ela ter morrido. “Será que eu
sua opinião, formada, aliás, já fazia bastante tempo, naqueles nove anos de
mais comuns, da “boa” sociedade de província e, “quem sabe, pode até ser
que eu tenha apenas criado toda essa fantasia em torno dela”. Entretanto,
de Bagaútov também esteve ligado a ela por alguns anos e, parece, também
porque também fora descartado, como “um sapato velho e surrado”. Quer
Todavia, ela dava a impressão de que nem tinha meios para seduzir e
escravizar: “no fundo, nem chegava a ser tão bonita; talvez até nem fosse
nada bonita”. Veltchanínov a conheceu já com vinte e oito anos. Seu rosto
olhos não eram bonitos: havia uma espécie de dureza excessiva em seu
olhar. Era muito magra. Sua formação intelectual era fraca; a inteligência
decidida e dominadora; com ela não podia de jeito nenhum haver uma
par disso, uma injustiça desmedida. Discutir com aquela senhora era
impossível: para ela, “dois vezes dois são quatro” não significava nada.
era como a “Nossa Senhora dos khlísti”,* que acredita, no grau mais
acreditava, também no grau mais elevado, em todas as suas ações. Era fiel
com uma sanha inacreditável — e ela mesma era devassa. Nenhum fato era
parecem ter nascido para isso, para serem esposas infiéis. Tais mulheres
assim como o sol não pode deixar de brilhar; porém ele não só jamais sabe
disso como nunca é capaz sequer de descobrir nada, por força das próprias
que o homem estava bastante mudado, mas sabia que não podia mesmo
Trussótski só podia ter sido tudo o que foi antes, enquanto a esposa estava
viva, mas agora ele era apenas a parte subtraída de um todo, de repente
solta, a esmo, ou seja, algo espantoso e que não se parecia com mais nada.
por exemplo, além disso, fosse um funcionário público, ele o seria apenas
ele tinha trinta e cinco anos e possuía algum patrimônio, que não era
muito valor a isso, aceitava como algo merecido, mas em sua casa sabia
sempre receber muito bem as visitas, e nisso Pável Pávlovitch era tão bem
treinado por ela que era capaz de exibir maneiras de nobreza quando
impossível distinguir sua inteligência. Pode ser que tivesse muitas boas
também gostava de contar alguma história; mas também, nesse caso, era
mantido sob vigilância: só lhe era permitido contar uma história muito
fora de casa e até a beber com os amigos; mas essa última tendência foi
poderia dizer que aquele marido vivia sob o jugo da esposa; Natália
Vassílievna parecia uma esposa perfeitamente dócil e talvez até ela mesma
estivesse convencida de que era assim, de fato. Pode ser que Pável
que o marido desconfiava, por pouco que fosse, de que ele tinha uma
com certa irritação: que o marido não sabia nada, nunca poderia saber, e
que “tudo o que está acontecendo não é da conta dele”. E eis mais um
detalhe relativo a ela: nunca zombava de Pável Pávlovitch e não achava, de
maneira nenhuma, que ele fosse ridículo nem muito feio, e até intercederia
acima de tudo, numa dama da sociedade; porém seu lar também lhe era
Pável Pávlovitch também; para surpresa de Veltchanínov, ele sabia ler bem
Dickens, alguma coisa das revistas russas e às vezes algo “sério”. Natália
como se fosse uma questão decidida e encerrada, sobre a qual não se podia
se mostrava indiferente, como algo de todo alheio a ela, ainda que talvez
com fervor.
ponto culminante e chegar quase à loucura. De uma hora para outra, ele foi
simplesmente expulso, se bem que tudo foi organizado de tal modo que ele
partiu sem ter a menor noção de que já havia sido descartado “como um
todo custo, por três ou quatro meses, para que, nove meses depois, fosse
seja, por não mais de três meses, do contrário ele nem iria, de jeito
exatos dois meses depois, recebeu uma carta de Natália Vassílievna em que
pedia para não voltar nunca mais, porque ela já estava amando outro;
oficialzinho. Com isso, o caso terminou para sempre. Mais tarde, de algum
modo, já passados alguns anos, ele soube que Bagaútov tinha aparecido
entre outros motivos, estava bem mais velha, na verdade, e por isso se
Veltchanínov ficou quase uma hora sentado na cama; por fim, se refez,
impressão especial. Aliás, ele sentia até certa vergonha da maneira como
havia tratado Pável Pávlovitch no dia anterior, e agora era preciso resolver
isso.
talvez, por outra razão qualquer, mas, no fundo, não sabia exatamente para
que ia estabelecer novas relações com aquele antigo marido, logo agora,
quando tudo entre ambos estava encerrado, de forma tão natural. Alguma
coisa o atraía; havia ali uma espécie de impressão especial, e era por causa
* Ou flagelantes. Antiga corrente religiosa russa, independente da Igreja oficial. Segundo sua crença,
Jesus, Nossa Senhora e o Espírito Santo podem se manifestar e encarnar nas pessoas.
5
LIZA
que fez numa vendinha junto à praça Pokrov logo apontaram para o hotel
cavalheiro Trussótski “se encontrava” agora ali no pátio, na ala dos fundos,
alagada e muito suja que levava ao segundo andar, onde ficavam aqueles
criança de sete ou oito anos que chorava; era um choro pesado, ouviam-se
gritos furiosos e como que abafados, numa espécie de falsete rouco, porém
tinha a forte intenção de que não a ouvissem chorar, só que fazia mais
corredor, que tinha duas portas de cada lado, Veltchanínov topou com
uma mulher muito gorda e robusta, despenteada, como quem está bem à
cravou o dedo na porta por trás da qual se ouvia o choro. O rosto gordo e
— Olhe só, ele ainda acha graça! — falou com voz grossa e baixa e seguiu
esperar, de maneira nenhuma… mas venha cá, venha cá! Olhe, aqui, no
cadeira.
agora estou mais decente. Mas por que o senhor se sentou no canto?
Venha para cá, na poltrona, junto à mesa pelo menos… Puxa, eu não
mesmo, avisei exatamente que viria aqui à sua casa neste horário, não foi?
— Achei que o senhor não viria; e quando acordei e pensei em tudo o que
metade, sem rolha e com um copo ao lado. Olhou de soslaio para o quarto
sossegado.
— Será possível que o senhor está bebendo a esta hora? — Veltchanínov
— Maus hábitos, assim, de repente, meu senhor. Juro, foi desde aquela
preocupe, Aleksei Ivánovitch, não estou embriagado e não vou ficar falando
bobagens como ontem, na casa do senhor, mas lhe digo com segurança:
tudo começou naquela data! Mas se, há meio ano, alguém me dissesse que,
hora, ali já tinha passado um tempo. O que eu quero explicar é isto, que
angústia mais forte. Na certa, é por causa da angústia que eu bebo. Aí, sou
ofender alguém. O senhor deve ter me achado muito estranho ontem, não
foi?
demais, o que admito de bom grado. Às vezes não me sinto nada bem, e
fazer aquilo? Eu não iria à casa do senhor por nada, se o senhor mesmo
não tivesse aberto a porta; eu teria ido embora ali mesmo. Faz uma
estava, mas depois talvez eu nunca mais passasse por lá outra vez. Apesar
reconhecer, e se ele der as costas para mim, nove anos não são
esqueci das horas. Tudo por causa daquilo (apontou para a garrafa) e
uma pessoa assim como é, porque, afinal, o senhor veio à minha casa
nada.
— Diga, Pável Pávlovitch, quer dizer que o senhor não está sozinho, não
sorrindo amigável.
— Sim, como não? Ah, meu Deus, de fato, como é que o senhor poderia
saber? Eu tenho cada uma! Foi já depois do senhor que Deus nos concedeu
essa bênção!
que sabe! Acho que foi exatamente um ano depois do senhor! Ou não,
fevereiro, março, abril, são oito meses e pouco, isso mesmo! E se o senhor
Liza; “ela está pedindo para não vir para cá”, pensou Veltchanínov. Enfim,
saíram.
mão. Era uma menina espigada, magrinha e muito bonita. Ergueu depressa
os olhos azuis para o visitante, com curiosidade, mas olhou ligeiro para ele,
com ar triste, e logo voltou a baixar os olhos. Em seu olhar, havia aquela
desconfiado, ficam espiando aquela visita nova, a quem nunca viram; mas
talvez houvesse também outro pensamento, que já não era infantil — assim
— Olhe, esse tiozinho conheceu a mamãe, era nosso amigo, não fique
não se mexia, segurava a mão de Liza na sua mão e encarava a criança com
o olhar fixo. Mas Liza estava muito preocupada com alguma coisa e,
esquecendo que sua mão estava na mão da visita, não desviava os olhos do
frase:
nossa alegria com essa dádiva de Deus! Para mim, a chegada dela
representava tudo, de tal modo que, se pela vontade de Deus minha serena
deu vazão a todo o seu sentimento! E veja como acabei de dizer ao senhor
uma simples febre e que nossos dois médicos não entendiam nada e que,
velhinho), ela sairia da cama em dois dias! E, veja só, apenas cinco horas
uma tia, a madrinha de Liza, e de que era preciso, sem falta, lhe fazer uma
visita…
De repente, Veltchanínov se levantou da cadeira, ainda sem soltar a
— Parece que não, meu senhor, mas… veja as circunstâncias em que nos
mãe, ficou duas semanas doente, histérica, meu senhor. Agora mesmo,
quando o senhor entrou, estava numa choradeira… está ouvindo, Liza, está
ouvindo? E quer saber por quê? Tudo porque eu saí e a deixei sozinha,
quer dizer, ela diz que eu não gosto mais dela tanto quanto gostava quando
a mãe estava viva… veja só de que ela está me acusando. Veja só que
fantasia se mete na cabeça de uma criança que ainda devia estar às voltas
com suas brincadeiras. Mas, também, aqui ela não tem com quem brincar.
— Totalmente sozinhos; a não ser por uma criada, que vem uma vez por
dia.
— De que outro modo poderia ser? Ontem saí e a deixei até trancada,
olhe, naquele quarto, e foi por isso que hoje tivemos essas lágrimas. Mas,
afinal, o que é que eu podia fazer, julgue o senhor mesmo: anteontem, ela
desceu sozinha, sem mim, e um menino jogou uma pedra na sua cabeça.
Ou então ela começa a chorar, corre para fora e pergunta para todo mundo
para onde eu fui. Ora, isso não tem graça, meu senhor. Mas eu também
não sou fácil: saio para voltar em uma hora e só volto no dia seguinte, de
dona da pensão abriu a porta para ela, chamou o serralheiro para abrir a
— Pronto, olhe só, de novo! De novo, e sem nenhum motivo! O que foi
que eu falei?
— Não vou fazer mais, não vou — repetiu Liza, apressada, com medo, as
pessoa de posses…
vez maior, como se dissesse explicitamente: “Não adianta falar, já sei tudo
o que o senhor vai dizer e sei também com que intenção está dizendo!” —
Escute, vou lhe fazer uma proposta: o senhor disse agora que vai ficar aqui
uma semana, talvez, quem sabe, até duas. Tenho uma casa, aqui, quer dizer,
senhor no seu processo. Agora eles estão fora, no campo. Eles têm uma
irmã, uma mãe, para mim. Têm oito filhos. Deixe que eu leve a Liza para a
casa deles… eu cuido disso, para não perder tempo. Vão recebê-la com
alegria durante todo esse tempo, vão lhe dar carinho como se fosse uma
seus olhos.
— Mas como assim deixar uma criança dessa maneira, e de uma hora para
a isso eu não tenho o que dizer, mas, mesmo assim, trata-se de uma casa
desconhecida, e ainda por cima da alta sociedade, onde eu não sei como
vão receber.
— Mas eu já lhe disse que, para eles, eu sou como uma pessoa da família
felicidade, basta uma palavra minha. Como se fosse minha filha… que o
diabo o carregue, afinal, o senhor sabe muito bem que está só jogando
menina, porque, afinal de contas, sem o pai, como é possível, não é? He-
vai renascer nessa casa, tem tudo para isso… Amanhã mesmo vou
— Fica em Liesnói.
— Mas olhe só para a roupa dela. Porque, numa casa tão fina, ainda mais
— O que tem a roupa dela? Está de luto. Por acaso poderia usar outra
roupa? É o modo de vestir mais decente que se pode imaginar! Só que era
depressa, se possível.
se o senhor me largar…
Mas não conseguiu dizer mais nada; Pável Pávlovitch agarrou-a pelo
braço, quase a puxou pelo pescoço, e com uma exasperação que já não
mais disfarçava, arrastou-a para o quarto pequeno. Lá, de novo, por alguns
teve vontade de ir até lá, mas Pável Pávlovitch veio a seu encontro e, com
dentro de uma bolsa pequena e bonita as roupas brancas de Liza que ela
havia trazido.
para Veltchanínov. — Por acaso o senhor é da família? É uma coisa boa que
está fazendo, paizinho: é uma criança meiga, o senhor vai livrar a menina
desta Sodoma.
me trata assim.*** Vai dizer que isto aqui não é uma Sodoma? Por acaso é
decente para uma criança que já tem noção das coisas ficar aqui vendo uma
— Sim, sim.
nos braços do pai, como tinha feito pouco antes, nem na hora da
despedida; era evidente que não queria sequer olhar para ele. O pai beijou-a
na cabecinha com decoro e fez um afago; com isso, ela torceu o labiozinho
e seu queixo tremeu, mas mesmo assim não levantou os olhos para o pai.
percebeu aquilo com clareza, embora tentasse, a todo custo, não olhar para
* Posteriormente, Petrográdskaia Storoná: região de São Petersburgo formada por várias ilhas.
entrecortada.
— É uma casa linda, Liza. Agora eles estão numa bonita casa de campo;
há muitas crianças lá, vão adorar você, são bons… Não fique zangada
— Liza, eu…
em tom imperativo.
vou levá-lo.
— Não gosta.
Virou-se para o outro lado, de novo, e olhou para baixo, com obstinação.
com uma pessoa que bebe. Disse que ele mesmo gostava dela e que ia
pouco antes, e não soltava; Liza não retirou a mão. Aliás, ela não se
mantinha calada o tempo todo; porém só dava respostas vagas, disse que
gostava mais do pai que da mãe, porque antigamente ele sempre gostava
mais dela e a mãe gostava menos; só que, quando a mãe morreu, ela a
sozinhas… e que, agora, ela gostava mais da mãe que de qualquer pessoa,
mais que do mundo inteiro, e que, a cada noite que passava, ela gostava
mais da mãe que de todo mundo. Mas a menina era mesmo orgulhosa: ao
calada; chegou a olhar com ódio para Veltchanínov, que a havia forçado a
sendo levada, agora, para uma casa desconhecida, onde nunca estivera,
fato de o pai ter permitido com tanta facilidade que ela fosse embora com
para ela, e lá, depois… Disso, porém, ou seja, do que viria depois, ele já não
tinha mais nenhuma dúvida; lá, suas esperanças eram fartas e radiosas. Só
uma coisa ele sabia com segurança: que nunca havia experimentado o que
estava sentindo agora e que aquilo havia de permanecer com ele por toda a
indestrutível. Seu plano principal se formou por si só: “Com esforço, vai ser
possível influenciar aquele patife”, devaneava. “Assim, ele vai deixar Liza
início, por um prazo curto, e ele vai partir sozinho; Liza vai ficar comigo;
isso é tudo, para que mais? E… e, é claro, também é o que ele mesmo
deseja; se não, para que faria a menina sofrer?” Enfim, chegaram. A casa de
menorezinhos, que, entre risos, guinchavam vindo atrás dos mais crescidos.
Ali, brincavam muito com ele por causa do tal processo. Porém, ao verem
atrás, o marido. Rindo e, antes de dizer mais nada, ela e o marido logo
Klávdia Petrovna era uma dama de uns trinta e sete anos, morena, cheia
antes, por muito pouco Klávdia Petrovna não se casou com Veltchanínov,
terminou numa amizade serena e radiosa. Nas relações dos dois, perdurou
para sempre uma espécie de calor, uma luz diferente que iluminava aquelas
imaculado e, para ele, era ainda mais precioso por ser, talvez, a única coisa
assim em seu passado. Naquela família, ele era simples, inocente, bondoso,
confessava tudo. Jurava muitas vezes aos Pogoriéltsev que viveria só mais
passaria a morar com eles e, então, não iriam mais se separar. No íntimo,
Explicou para eles com bastante minúcia tudo o que era necessário saber
sobre Liza; mas bastaria um pedido seu, sem nenhuma explicação especial.
perceberam. Ficaram bastante surpresos: fazia três semanas que não vinha
voltar no dia seguinte. Comentaram com ele que estava numa agitação
a esposa desse Trussótski. Foi ela que morreu, e Liza é sua filha… minha
filha!
alguma emoção.
assim aquela mulher, que, até então, Veltchanínov não havia tido coragem
escutar o relato.
— N-não, ele sabe… E é isso que me atormenta, que eu ainda não tenha
sabe, sabe, sim; percebi isso hoje e ontem. Mas eu tenho de descobrir até
que ponto exatamente ele sabe. É por isso que, agora, estou apressado.
Amanhã à tarde ele virá aqui. Aliás, o que me intriga é como ele pôde
descobrir… quer dizer, descobrir tudo! Sobre Bagaútov ele sabe tudo, disso
não há dúvida. Mas e sobre mim? A senhora sabe como as esposas, nesses
que o marido não vai acreditar nele, mas sim na esposa! Não balance a
eu estava a tal ponto convencido de que ele sabe de tudo, que cheguei a me
ontem. (Em outra hora contarei tudo para a senhora, em detalhes!) Ontem,
levado por um desejo malévolo irresistível, ele passou pela minha casa para
me dar a entender que sabia ser vítima de uma ofensa e que conhecia a
disfarce da embriaguez. Mas isso é muito natural da parte dele! Veio aqui
mesmo me desmascarei na frente dele! Para que foi que ele apareceu num
momento tão angustiado? Pois eu digo à senhora que ele chegou até a
respeitável, até onde é possível, mas também é bastante natural que tenha
mudar por completo meu modo de agir com ele: quero cercá-lo de
atenções. Vai ser até uma “boa ação” da minha parte. Porque, afinal, apesar
de tudo, sou mesmo culpado diante dele! Escute, veja, vou lhe contar mais
uma coisa: certa vez, em T., de uma hora para outra, eu precisei de quatro
mil rublos, e ele me deu, num minuto, sem nenhum documento, com uma
alegria sincera por poder me ser útil, e na hora eu até aceitei, até peguei da
amigo!
na verdade eu temo pelo senhor! Agora, claro, Liza é também minha filha,
só que, nisso tudo, ainda há tanta coisa a ser resolvida, tanta coisa! O mais
importante é que o senhor, agora, tome mais cuidado; o senhor tem de ser
olhavam para ela com ainda mais perplexidade do que antes. Liza ficou
o pai. Até o último minuto, Liza ficou calada e sem olhar para ele, mas de
olhar de súplica; queria lhe dizer alguma coisa. Veltchanínov logo a levou
ela, olhando para trás cada vez mais intimidada, puxou-o ainda mais para o
Ela se mantinha calada, sem tomar coragem; fitava imóvel os olhos dele
— Ele, ele! De noite, ele queria se enforcar numa corda! — disse a menina,
afobada e ofegante. — Eu mesma vi! Ele queria se enforcar ainda agora, ele
noite…
fôlego no meio dos soluços, pedia e suplicava, mas ele não conseguia
da criança atormentada, com um medo louco, que olhava para ele como
“Será possível, será possível que ela o ame tanto assim?”, pensava ele,
com ciúme e inveja, com impaciência febril, enquanto voltava para a cidade.
“Ainda há pouco, ela mesma disse que gostava mais da mãe… talvez ela
“Mas que história é aquela de ‘se enforcar’? Do que ela estava falando?
de forma definitiva!”
7
casa de Trussótski, mas logo mudou de ideia: “Não, é melhor que ele
malditos processos.”
Trabalhou nos processos de maneira febril; porém, dessa vez, sentiu que
estava muito distraído e que, nesse dia, não estava em condições de cuidar
engraçada passou por sua cabeça, pela primeira vez: a ideia de que, na
verdade, afinal, quem sabe, era apenas ele mesmo que estava atrapalhando
fugir dele. Veltchanínov riu com alegria de sua hipótese. “Se essa ideia
cada vez mais distraído e mais impaciente: por fim, se fez pensativo; e, por
mais que seu pensamento inquieto se aferrasse a muitas coisas, no final das
que o deixou extremamente surpreso, e depois com raiva, e depois até com
melancolia; por fim, começou a ter medo. “Só Deus sabe, só Deus sabe
como isso vai acabar!”, repetia, ora vagando pelo quarto, ora se estirando
no sofá, e sempre olhando para o relógio. Por fim, já perto das nove horas,
esperto, não poderia ter escolhido uma hora melhor do que esta para me
passar para trás, de tão desnorteado que estou agora”, pensou, de repente,
e, com certo descaso, jogou o chapéu com a fita de crepe na outra cadeira.
como quem presta contas, que tinha levado Liza, que ela fora recebida com
carinho, que aquilo seria proveitoso para ela e, pouco a pouco, de maneira
pessoas gentis eram seus amigos havia muito tempo, que Pogoriéltsev era
especialmente repulsivo.
— E por que é que eu não devo ser mau, como todos os outros? — gritou
acontecido.
— E o que foi?
feições de um defunto!
admirado, embora, ao que parecia, não havia por que se admirar tanto
assim.
— Ele mesmo! O amigo constante de seis anos! Ontem mesmo, nem era
meio-dia quando morreu, e eu não soube! Pode ter sido no mesmo minuto
em que passei por lá para perguntar sobre sua saúde. O enterro será
isso me deixaram entrar. Como é que ele pôde fazer uma coisa dessas
— Mas por que o senhor está zangado com ele? — desatou a rir
— Mas é com pena dele que estou falando isso; um amigo precioso; é isso
Veltchanínov.
servi alguma coisa para o senhor lá em T., um ano inteiro, meu senhor,
todo santo dia… Mande trazer uma garrafinha, minha garganta está seca.
— Com todo o prazer; o senhor já devia ter dito há muito tempo. O que
deseja?
— Não diga o que eu desejo, mas o que nós desejamos; vamos beber os
dois juntos, não é melhor assim? — com uma provocação, mas, ao mesmo
tempo, com uma ansiedade estranha, Pável Pávlovitch fitou-o nos olhos.
— Champanhe?
poeta:
“Ora essa, seu porco, era melhor que se explicasse logo de uma vez, eu
alegre com a morte de quem o ofendeu tanto; então, por que o senhor está
com raiva?
— Mas alegre como? Por que alegria?
— Mas o senhor, eu creio, o viu vivo por cinco anos, todos os dias, e teve
insolência.
escondido atrás do canto de uma parede, até com uma espécie de alegria,
porque enfim tinham feito a pergunta que esperava havia tanto tempo. —
seu rosto raivoso, até então apenas contraído numa careta pérfida.
— Ora essa, acha que era possível que eu soubesse? Acha mesmo que eu
sabia? Oh, raça dos nossos Júpiteres! Para vocês, um ser humano é igual a
aqui! Engula isto, vamos! — E, num ataque de fúria, bateu com o punho
cerrado sobre a mesa, mas logo ele mesmo se assustou com seu soco e
empalideceu, envergonhado.
— Escute aqui, Pável Pávlovitch, o senhor há de convir que, para mim, não
faz a menor diferença se o senhor sabia ou não sabia. Se não sabia, de todo
modo, isso depõe a seu favor, se bem que… aliás, eu não compreendo por
que maravilha! Não quero mais nada da senhora, minha querida, não
precisa. Já desarrolhou? Honra e glória à senhora, doce criatura! Muito
com atrevimento.
pouco verdade que “não faz a menor diferença”, como o senhor teve a
se eu levantasse e fosse embora neste exato minuto, sem lhe explicar nada.
— Muito bem, vamos lá! — E Pável Pávlovitch serviu a bebida nos copos.
— Eu não vou beber com este brinde. — E Veltchanínov baixou seu copo
na mesa.
Vassílievna.
ela? — e logo Pável Pávlovitch se ergueu de um pulo, mais uma vez, como
— Quanto a isso, não digo nada; mas o senhor há de convir que podia
entendimento mútuo.
— Repito ao senhor, mais uma vez, que para mim não faz a menor
diferença. — “Será que eu não devia botar esse sujeito para fora de uma vez,
junto com sua garrafa?”, pensou furioso, e ficou ainda mais vermelho.
— Não dê importância para isso, senhor! — exclamou Pável Pávlovitch,
como que para encorajá-lo, e serviu mais um copo para si. — Daqui a
pouco vou lhe explicar como eu soube de “tudo”, e assim vou satisfazer
está como tudo aconteceu, escute só, meu senhor. A tuberculose, como o
senhor mesmo sabe, queridíssimo amigo — ele se mostrava cada vez mais
estar morrendo sem nem sequer desconfiar que, no dia seguinte, estará
morto. Garanto ao senhor que, apenas cinco horas antes de morrer, Natália
Vassílievna fazia planos de ir, dali a duas semanas, à casa de sua tia, a umas
costume, ou, melhor dizendo, esta mania, comum a muitas damas e talvez
ano, por data e por tipo. Que grande consolo isso pode trazer eu não sei,
meu senhor; mas deve ser para ter recordações agradáveis. Cinco horas
antes do fim, quando estava resolvendo visitar a tia nos feriados, Natália
herdado da avó. Muito bem, pois foi nessa mesma caixinha que tudo foi
revelado, ou seja, tudo mesmo, sem nenhuma exceção, separado por dia e
por ano, todos os vinte anos. E como Stiepan Mikháilovitch tinha uma
uma revista, revelou-se que suas obras naquele escrínio beiravam uma
centena de itens; é bem verdade, meu senhor, que foram escritas durante
acha?
— Que perguntinha?
caixinha.
senhor.
senhor?
desse modo ele apenas se emporcalha mais ainda, mas sim, ao contrário,
— He-he, sim, talvez eu não seja um homem decente, não é, meu senhor?
— De novo, isso é da sua conta… mas, a propósito, depois de tudo isso,
Talvez até, quem sabe, para comprar uma garrafinha com ele e bebermos
os dois juntos.
embora daqui!
o senhor também ter me enchido a paciência, ainda não chega, não, porque
— Pável Pávlovitch, o senhor hoje pode ou não pode sumir daqui e ir para
o diabo?
senhor disse que não queria beber justamente comigo; só que eu quero
que justamente o senhor beba comigo!
Ele já não fazia mais caretas, não dava mais risadinhas. De novo, todo ele
desconcertado.
— Ei, vamos beber, Aleksei Ivánovitch, ei, não recuse! — prosseguia Pável
Pávlovitch, segurando seu braço com força e fitando seu rosto com ar
— Sim, pode ser — balbuciou o outro. — Mas, puxa… esta bebida é uma
porcaria…
— Sobrou para dois copos certinho; é uma porcaria mesmo, meu senhor,
agarrou a testa com a mão e ficou nessa posição por alguns momentos.
— Não grite, não grite, para que gritar? — Pável Pávlovitch abanou a mão
no ar, afobado. — Não quero fazer o senhor de bobo, não quero fazer o
senhor de bobo! Será que o senhor não sabe o que o senhor agora… olhe
— Aí está o que o senhor é para mim, agora! E agora, sim, eu vou para
todos os diabos!
sem falta, à casa dos Pogoriéltsev, para conhecer e agradecer… sem falta…
— Sem falta, sem falta, como eu poderia não compreender isso, meu
senhor sabe o que Liza foi para mim, foi e é? Foi e é! — gritou de repente,
quase num delírio. — Mas… He! Isso é para depois, meu senhor; tudo virá
depois… e agora… já não basta mais, para mim, ter bebido com o senhor,
do senhor!
Aleksei Ivánovitch ficou mudo por alguns instantes, como que atingido
por uma porretada na testa. Mas, de repente, ele se inclinou para Pável
Pávlovitch, que batia no seu ombro, e beijou-o nos lábios, de onde vinha
um forte cheiro de bebida. Aliás, não teve muita certeza de que o havia
beijado, de fato.
seguinte, meu senhor, eu pensei, naquela ocasião: “Será possível que aquele
também? Se aquele lá, eu pensei, se ele também, depois de tudo isso, afinal,
E saiu correndo com seu chapéu. Veltchanínov, mais uma vez, ficou
Pável Pávlovitch.
* Referência ao antigo costume russo (e também de outros povos) de homens beijarem-se na boca,
parecendo uma pessoa que acorda de manhã e lembra, o tempo todo, que
na véspera levou uma bofetada. “Hum… ele entende até demais do que se
frente. Seu coração bateu mais forte ao pensar que, naquele mesmo dia, dali
a pouco, em duas horas mais ou menos, veria de novo a sua Liza. “Eh,
nem se discute!”, decidiu com fervor. “Agora, é nisso que estão toda a
recordações!… E, até hoje, para que foi que eu vivi? Desordem e tristeza…
pensamentos.
“Ele está usando Liza para me atormentar, isso está claro! E também
atormenta Liza. Aí está, é assim que ele vai me atingir, por tudo… sem
já é meio-dia!”
vez mais. Pável Pávlovitch não aparecia. Por fim, aquela ideia, que se agitava
nele havia muito tempo, de que o outro não ia vir mesmo, e de propósito,
sem ele?”.
Enfim, não aguentou mais e, à uma hora da tarde em ponto, foi a galope
Veltchanínov, mais tarde, quando relatou sua conversa com ela para
Pável Pávlovitch. Segundo suas palavras, “não fosse pela menininha, já teria
me livrado dele há muito tempo. Ele já tinha sido expulso do hotel por se
noite, ele trouxe uma mocinha da rua, quando aqui estava uma criança que
já tem noção das coisas! Gritou: ‘Esta aqui será sua mãe, se eu quiser!’. Pois
acredite que a própria mocinha, mesmo sendo quem era, cuspiu na cara
dele! E ele também gritava: ‘Você não é minha filha, mas uma bastarda’”.
— Eu mesma ouvi. Mesmo para um bêbado, que parece não ter mais
sentimento nenhum, isso não são modos de falar com uma criança; apesar
menina chora muito, eu vejo, ela sofre! Faz uns dias, aqui no nosso pátio,
ver e ele tinha se enforcado. Contaram que torrou todo o dinheiro na farra,
no corredor, espiava por trás dos outros, olhava espantada para o tal
imagina?… Ela tremia toda, estava toda preta e, assim que eu a trouxe para
começou a ficar doente. Ele soube, chegou, beliscou a menina toda, porque
ele não é tanto de bater, mas belisca muito, e depois bebeu um bocado, e
veio falar com a menina para fazer medo nela: “Eu também vou me
enforcar, e vou me enforcar por sua causa; olhe, com esta corda aqui, vou
aguenta, grita, enlaça o homem com os bracinhos: “Não vou fazer mais,
contou muitas outras coisas; houve uma ocasião, por exemplo, em que, se
não fosse Mária Sissóievna, Liza teria se jogado pela janela. Veltchanínov
Pávlovitch não tivesse, ele mesmo, posto a cabeça um pouco para fora e
acenado para ele com um sorriso. Pelo visto, ficou felicíssimo por ter
— Estou pagando uma dívida. Não grite, não grite, estou pagando uma
Stiepan Mikháilovitch.
— Tudo isso é um absurdo, o senhor está bêbado, está louco! — berrou
com mais força ainda Veltchanínov, que por um instante pareceu perplexo.
“Tanto faz, do jeito que ele está, também não posso levá-lo comigo!”,
— Tenho receio pelo senhor — disse ela. — O senhor deve romper todas
Veltchanínov, exaltado. — Acha que vou ter medo dele? E como posso
Enquanto isso, Liza estava de cama, doente; à noite, teve febre e agora
vergonha de estar aqui e de ter sido abandonada desse jeito pelo pai; para
— Mas como assim abandonada? Por que a senhora acha que foi
abandonada?
— O simples fato de o pai ter deixado a menina vir para cá, uma casa
— Sim, mas fui eu mesmo que a peguei, e peguei à força; não acho…
— Ah, meu Deus, mas é Liza, uma criança, quem acha isso! Para mim, era
fervorosas de Veltchanínov de que, no dia seguinte, sem falta, traria seu pai.
todos logo com as primeiras palavras, dizendo que tinham feito mal em
não chamá-lo mais cedo. Quando lhe explicaram que a menina só havia
adoecido no fim da tarde anterior, ele, de início, não acreditou. “Tudo vai
mais cedo possível. Veltchanínov queria a todo custo passar a noite ali, mas
a própria Klávdia Petrovna o convenceu, mais uma vez, a “tentar trazer aqui
aquele monstro”.
voltar, talvez, ao raiar do dia. “Muito bem, então virei ao raiar do dia”,
Porém, qual não foi sua surpresa quando, antes mesmo de entrar em casa,
mais vinho e até deu, ele mesmo, uma notinha azul* para pagar.
* Cinco rublos.
9
O FANTASMA
copo, ainda com chá, estavam bem junto dele, sobre a mesa. Seu rosto
estava só de colete.
completamente…
não?
Ivánovitch, não grite, não grite! Que eu morra, que eu me jogue agora
mesmo, assim bêbado, no rio Nievá, que diferença isso faria para o
que está dizendo — respondeu, com ar severo. — Estou sempre pronto para
tomar satisfações com o senhor; até ficaria contente se fosse logo… Eu até
cheguei a ir… Mas, antes de tudo, saiba que vou tomar providências: hoje
manhã vou levar o senhor, e iremos juntos até lá. Não vou largar o senhor!
ofegante, para o sofá largo e macio, em frente ao sofá em que ele mesmo
— Em qualquer lugar, mas nesse sofá! Tome, aqui está seu lençol, o
hóspede.
— Termine de beber seu copo e deite — ordenou, outra vez; sentia que
não podia deixar de dar ordens. — Foi o senhor mesmo que mandou
trazerem a bebida?
— Ainda bem que o senhor já sabia, mas é preciso que o senhor saiba de
mais uma coisa. Vou explicar mais uma vez que, agora, tomei algumas
providências: não vou mais tolerar suas caretas, não vou mais tolerar os
isso mais uma vez, porém asseguro ao senhor que tomou um caminho
falso! Fale com franqueza, aja com franqueza e lhe dou minha palavra de
do senhor! Repito: darei minha palavra de honra de que estou pronto para
pelo quarto.
— Não, Aleksei Ivánovitch, não cuspa, meu senhor, pois estou muito
interessado e vim aqui exatamente para verificar… Minha língua não está
dizendo coisa com coisa, mas o senhor vai me perdoar. Acontece que foi
sobre o tipo “predador” e sobre o tipo “manso” que eu li, certa vez, numa
o senhor bebeu ontem comigo, mas que jamais acompanharia seu caixão
até a sepultura, como o senhor fez, só o diabo sabe por quais aspirações
ouvi-lo —, que se imagina só Deus sabe o quê, que faz o balanço contábil
outros e, quando vê, descobre que consumiu com isso todo o seu tempo!
uma pessoa. Além do mais, o que é que um funcionário que goza de boa
— Sim, senhor, também existe esse transtorno, se bem que hoje em dia,
Semion Petróvitch Livtsov, ele nos fez uma visita em T., quando o senhor
estava lá; pois bem, o irmão dele é jovem, também se considera mais um
destacava com brilho por diversos méritos, meu senhor. Certa vez, ele
Livtsov fez amizade, até sincera, com Golubienko, fez as pazes por
completo, mas pouco a pouco… ele mesmo pediu para ser o padrinho de
casamento, segurou a coroa* e, depois da cerimônia, quando foram para a
vergonha, meu senhor! Mas não foi só isso! O principal é que, depois de
dar a facada, ele se atirou na direção das pessoas em redor: “Ah, o que foi
que eu fiz! Ah, o que foi que eu fiz!”. E lágrimas correm, ele treme todo, se
pendura no pescoço de todos, até das damas: “Ah, o que foi que eu fiz! Ah,
o que foi que eu fiz agora!”. He-he-he! É de matar de rir, meu senhor. Pois
senhor.
— Tudo isso é porque, no final, meu senhor, ele meteu a faca — Pável
Pávlovitch deu uma risadinha. — Afinal, é evidente que ele não é um tipo,
que não era a sua, como se algo tivesse estourado dentro dele. — Vá para o
di-a-bo com sua imundície dos infernos, o senhor mesmo é uma imundície
cada palavra.
a tremer:
o senhor, é a mim?
Mas Veltchanínov já havia se recuperado.
hipótese.
— Está bem, que seja — mais uma vez, Veltchanínov calou-se um pouco.
chão.
entanto se aproximou da mesa e tratou de beber até o fim seu último copo,
que ele havia servido já fazia tempo. Talvez, antes disso, já tivesse bebido
muito, pois agora sua mão tremia e derramou parte da bebida no chão, na
camisa e no colete, mas mesmo assim ele bebeu tudo, até o fim, como se
— Mas será que não seria melhor… eu não pernoitar aqui? — falou de
na mão.
mesmo tempo, ele sentia que essa mesma perturbação, por algum motivo,
mas ele teve a impressão de que Pável Pávlovitch não estava deitado, tinha
— Ali, naquele quarto, na porta, parece que vi uma sombra, meu senhor.
silêncio.
através da saleta da entrada, para o outro quarto, cuja porta ficava sempre
aberta. Lá não havia cortinas na janela, apenas um estore, e por isso estava
muito claro.
— Uma vez acho que vi, meu senhor — respondeu Pável Pávlovitch, com
um silêncio.
havia passado mais ou menos uma hora quando ele, mais uma vez, se virou
frente, algo branco, que ainda não o havia alcançado, mas já estava no meio
inteiro.
Não veio resposta, mas já não havia a menor dúvida de que alguém
estava ali.
— É o senhor, Pável Pávlovitch? — repetiu mais alto, e até tão alto que,
aquela figura branca, e que mal dava para distinguir, estava chegando mais
perto. Foi então que ocorreu uma coisa estranha: de repente, algo estourou
dentro dele, exatamente como pouco antes, e Veltchanínov desatou a
berrar com a mesma voz louca e absurda, quase sufocando a cada palavra:
capaz de me meter medo, eu vou virar para a parede, cobrir a cabeça e não
vou me virar de novo a noite toda, nenhuma vez, só para lhe mostrar a
importância que estou dando, ainda que o senhor fique aí parado até de
não podia saber, mas o coração batia, batia, batia… Passaram, pelo menos,
uns bons cinco minutos; e de repente, a dois passos dele, soou a voz fraca,
vela…
embriaguei tanto…
parede, e assim ficou a noite toda, sem se virar nem uma vez. Será que,
dessa forma, queria cumprir sua promessa e lhe mostrar desprezo? Nem ele
afinal, se transformou quase num delírio, e ele passou muito tempo sem
cama vazia e desfeita, pois ele mesmo já havia escapulido ao nascer do dia.
— Eu já sabia! — Veltchanínov deu um tapa na testa.
NO CEMITÉRIO
garantia que Liza havia sorrido para ele e que até lhe estendera a mãozinha
tempo da doença. Dez dias depois de mudar-se para a casa de campo, ela
morreu.
temer por ele. Passou a maior parte daqueles dias na casa dos Pogoriéltsev.
por horas inteiras num canto qualquer e, pelo visto, não pensava em nada;
Klávdia Petrovna chegava perto para entretê-lo, mas ele pouco respondia,
impressão” sobre ele. O que mais o distraía eram as crianças; com elas,
da cadeira e ia, na ponta dos pés, espiar a enferma. Às vezes, lhe parecia
que Liza o reconhecia. Esperanças de cura ele não tinha nenhuma, como
No entanto, por duas vezes naqueles dias ele entrou, de repente, numa
Trussótski, onde quer que ele estivesse: “No caso de acontecer uma
desgraça, não vai ser possível nem enterrar Liza, sem ele”. Veltchanínov
avisou que ele mesmo iria localizá-lo por meio da polícia. Veltchanínov,
Enfim, Liza morreu numa bela tarde de verão, junto com o pôr do sol, e
avisou que agora iria trazer o “assassino”. Sem ouvir os conselhos de deixar
que andara por Petersburgo. Naqueles dias, às vezes, ele tinha a impressão
de que, se levasse o pai até a moribunda Liza, ela voltaria a si, ao ouvir sua
adiantava mais perguntar por ele ali: “Há três dias que não dorme no seu
quarto nem tem ficado aqui”, relatou Mária Sissóievna. “Quando por acaso
aparece, está embriagado, não fica nem uma hora e vai embora de novo, se
aproveitaram para xingar o homem, claro, por não ter ido mais visitá-las.
hora, porque ele agora não sai mais da casa de Machka Prostakova, ele tem
dinheiro que não acaba mais, e essa Machka não é Prostakova nada, mas
sim Prokhvostova, e já foi até parar no hospital, uma vez, e era só ela, a
Kátia, querer, que a tal Machka ia ser banida para a Sibéria, bastava dizer
pagando a quem fosse devido para cobrir a ausência da moça, e saiu com
sabia exatamente o que fazer com ele agora; iria matá-lo por sabe-se lá que
necessidade de sua ajuda para o enterro? Na primeira vez, não deu certo:
dois dias antes e que certo tesoureiro tinha “quebrado a cabeça de Pável
Pávlovitch com um banquinho”. De fato, por muito tempo ele não foi
aquele estabelecimento por duas damas; uma delas vinha de braço dado
Pávlovitch com sabe-se lá que horrores. Entre outras coisas, gritava que ele
ponto, Veltchanínov agarrou-o pelo ombro com fúria e, sem que ele
mesmo soubesse para quê, começou a sacudi-lo com as duas mãos, a tal
olhava para seu carrasco. Provavelmente sem saber o que mais fazer com
ele, Veltchanínov abaixou-o com força e o pôs sentado num pequeno pilar
na calçada.
amparado por uma das damas. Por fim, caiu em si e, de repente, seu rosto
pareceu murchar.
Pávlovitch ergueu com esforço a trêmula mão direita para fazer o sinal da
agarrou-se à sua dama e, escorando-se nela, seguiu seu caminho como que
fora de si, como se Veltchanínov nem estivesse ali. Mas este, de novo, o
— Será que você, seu demônio embriagado, não entendeu que sem você
língua enrolada.
piscava. Uma espécie de delírio, feito do rancor mais atroz, retorcia todo o
seu rosto.
expressão chula impublicável. — Pois é para lá que eu quero que você vá! —
falso e quase caiu. As damas o seguraram mais uma vez e logo correram,
aos gritos, quase arrastando Pável Pávlovitch atrás de si. Veltchanínov não
os seguiu.
todo o decoro. Agradecia muito a sua excelência Klávdia Petrovna por seu
modo vago, mencionava que uma doença grave não permitia que ele fosse
pessoalmente enterrar a filha infeliz, que ele amava com ternura, e portanto
Caso ainda sobrasse algo daquela quantia, ele pedia, da maneira mais
não pôde explicar mais nada; a julgar por algumas de suas palavras, parecia
dinheiro foi usado para encomendar missas pelo repouso eterno da alma da
entretanto, o advogado tinha uma notícia para lhe dar: a questão do litígio
não tinha conseguido reconhecê-lo e havia morrido sem saber como ele a
diante dele numa luz tão alegre, de repente se apagou na escuridão eterna.
parar — Liza sentir de modo ininterrupto, todo dia, toda hora e a vida toda,
o amor que ele tinha por ela. “Ninguém, pessoa nenhuma, pode ter na vida
sombria. “Se existem outros propósitos, nenhum pode ser mais sagrado do
e caduco que sou, eu poderia criar para a vida uma criatura pura e bela e,
por tudo.”
impressionou tanto, e ele sentiu tanta pena daquele pobre dedo, que pela
primeira vez lhe veio à cabeça a ideia de ir, na mesma hora, atrás de Pável
Pávlovitch e matá-lo — até então, ele “estava como que inconsciente”. Teria
refletia sobre tudo aquilo sem cessar e de mil maneiras. “E o senhor sabe o
Trussótski e sentiu que essa exclamação já não era uma de suas palhaçadas
e que, na verdade, ali existia amor. “Como é que esse monstro pôde ser tão
cruel com uma criança a quem amava tanto, será possível?” No entanto, ele
sempre deixava logo de lado essa pergunta e como que se esquivava dela;
havia algo terrível naquela pergunta, para ele, algo insuportável e… sem
solução.
Certo dia, sem que ele mesmo se desse conta, Veltchanínov foi parar no
grama verde e viçosa, perto, numa roseira silvestre, uma abelha zumbia; as
metade das pétalas caídas. Pela primeira vez depois de muito tempo, uma
inundou sua alma. “Foi Liza que mandou isso para mim, é ela que está
junto à janela, era Pável Pávlovitch e que ele também o estava vendo e
Pávlovitch sorriu, tímido, mas já não era o sorriso bêbado de antes; ele nem
estava bêbado.
continuou a andar.
— Por que não ganharia, meu senhor? — de repente, Pável Pávlovitch fez
uma careta.
— Que alegria?
— Como é?
— Depois da dor, vem a alegria, meu senhor, na vida é sempre assim; eu,
Aleksei Ivánovitch, gostaria muito, meu senhor… mas… não sei, talvez o
senhor agora esteja com pressa, porque está com um aspecto, meu
senhor…
instante.
continuou calado.
— Nesse caso, fica para mais tarde, meu senhor, se ainda nos
encontrarmos…
as palavras, sem olhar para ele e sem se deter. Ficaram mais um minuto em
Topar com “aquele homem” era algo acima de suas forças. Ao deitar para
cemitério?”.
outros era algo penoso demais, ainda que viesse dos Pogoriéltsev. Porém se
mostravam tão preocupados com ele que era indispensável ir até lá. De
aquele homem, algum dia, voltaria à sua casa, e ficou tão perplexo que
olhava para ele sem saber o que dizer. Mas o próprio Pável Pávlovitch
recordou com clareza aquela visita. Olhava para ele com inquietação e
repugnância.
— O senhor está admirado? — começou Pável Pávlovitch, que adivinhou o
transparecia que estava ainda mais intimidado que no dia anterior. Sua
que apareceu de repente, não se sabe para quê, a camisa branca — tudo
deixei surpreso com minha chegada, meu senhor… sinto muito. Porém,
também se deve conservar… algo superior, não acha, meu senhor? Ou seja,
estou indo, agora, me encontrar com minha noiva, meu senhor. Eles
acompanhe…
— Até a casa deles, ou seja, à casa de campo, meu senhor. Desculpe, estou
falando como se estivesse febril e talvez soe confuso; mas tenho tanto
— É apenas meu desejo desmedido e não mais do que isso, meu senhor —
Estado que, um mês antes, ele tanto havia procurado, sem conseguir
falar com ele, depois do senhor. Faz uns vinte anos, nós dois até
ideia. Foi só agora que a ideia me veio, de supetão, uma semana atrás.
— Mas claro, por que não seria respeitável, meu senhor? — Pável
— Não, sem dúvida, eu não quis dizer… Mas, pelo que percebi, quando
estive lá…
— Mas como pode ser, se faz apenas três meses que o senhor enviuvou?
— Mas, afinal de contas, o casamento não vai ser agora, meu senhor; o
minha falecida esposa, sabe como eu vivia, conhece minha reputação e, por
fim, sabe que tenho uma boa condição, e agora, veja, estou ganhando uma
mais, o senhor mesmo vai ver, hoje. Em primeiro lugar, homens de negócio
senhor. Porém, veja só, afora o salário e outras coisas, gratificações, abonos,
nada, meu senhor, ou seja, nada que constitua um capital fixo. Vivem bem,
morrer agora, vai deixar apenas uma pensão minguada. E são oito filhas
sapatos para cada uma delas, imagine a despesa! Das oito filhas, cinco já
estão em idade de casar, a mais velha tem vinte e quatro anos (que moça
mais adorável, o senhor mesmo vai se admirar!), e a sexta tem quinze anos,
ainda estuda no liceu. Pois bem, para as cinco mais velhas, é preciso
encontrar noivos, o que deve ser feito o mais depressa possível, e portanto,
que tenho um patrimônio sólido. Pois aí está, isto é tudo, meu senhor.
— Quinze anos agora; daqui a nove meses, já vai ter dezesseis, dezesseis
anos e três meses, e então por que não, meu senhor? Como, neste
momento, tudo isso não fica bem, por enquanto não se comenta nada, só
— Sim, está decidido, tudo está decidido, meu senhor. Acredite, está
acertado.
— E ela sabe?
— Quer dizer, por uma questão de decência, eles fazem de conta que não
há nada e não comentam; mas como ela pode não saber? — Pável
— Mas para que eu vou lá? Aliás — acrescentou, às pressas —, não irei em
— Aleksei Ivánovitch…
só!
distração criado pela tagarelice de Pável Pávlovitch sobre a noiva. Pelo visto,
bastaria só mais um minuto para que ele o enxotasse pela porta afora. Por
um pouquinho antes de julgar, meu senhor! Vejo que o senhor talvez tenha
desatinado a ponto de não entender isso, meu senhor. E o favor que estou
mesmo vou embora daqui depois de amanhã, por completo, para sempre,
meu senhor; ou seja, será como se não tivesse acontecido nada. Este dia
será só um incidente. Vim à casa do senhor e fundamentei minha esperança
seu coração, meu senhor… Enfim, vejamos, está claro o que estou dizendo
desmedida.
“O que será que ele está querendo? Que sujeito estranho!”, pensava
Veltchanínov.
conselheiro.
— Por exemplo?
agiria, bem entendido, caso estivesse com uma fita de crepe? Minha ideia
lisonjeira.
— Como preferir. — “No entanto, ele não confia em mim, que bom”,
pensou Veltchanínov.
aguardava.
— Contratei a carruagem para mim, meu senhor, mas estava quase seguro
— Mas, ora essa, não há de ser o senhor, Aleksei Ivánovitch, não há de ser
súbito, teve a impressão de que ele mesmo era tão minúsculo, tão
seduzia era um pensamento tão pequeno, tão sórdido… e então lhe veio de
seu coração.
— Aleksei Ivánovitch, o senhor entende de joias?
— Que joias?
— Entendo.
que não sei o que comprar, meu senhor. Um conjunto completo, ou seja,
— Puxa!
foi a que Pável Pávlovitch queria, mas sim a que Veltchanínov indicou.
cento e setenta e cinco rublos pela pulseira, baixou para cento e cinquenta,
cobrassem esse preço, tamanha era sua vontade de pagar mais caro.
— Não faz mal essa minha pressa de dar presentes — desabafou, exaltado,
quando retomaram o caminho. — Afinal, eles não são da alta sociedade, são
um sorriso, por causa dos quinze anos; pois foi isso mesmo o que mexeu
com a minha cabeça, exatamente o fato de que ela vai ao liceu, com a
bolsinha que encheu meus pensamentos! Eu, no fundo, sou pela inocência,
que nisso, meu senhor. Ela e a amiguinha, num canto, dão suas risadinhas,
e como riem, meu Deus! E do que riem, meu senhor? Todo esse riso é
todo, feito um novelo… Entende, isso tem um cheiro de maçã fresca, meu
“Será que ele é mesmo assim?”, pensou, já com verdadeiro rancor. “Será
que não há algum ardil no fato de ter me convidado? Será que ele está
que Pável Pávlovitch tinha dito sobre seus recursos: “Parece que vivem
de Veltchanínov), nesse aspecto, é uma pessoa que vale ouro. E como não?
Porém, entre elas, havia muitas amigas das casas de campo vizinhas. A casa
diversas — contava com um grande jardim; só que esse jardim servia a mais
três ou quatro casas, por vários lados, e portanto era um jardim comum, o
Experiente e perspicaz naqueles assuntos, seu olhar logo distinguiu até algo
especial: pela recepção excessivamente amistosa dos pais, por certo aspecto
especial das mocinhas e por sua aparência (se bem que, na realidade, fosse
um dia festivo), lhe veio a desconfiança de que Pável Pávlovitch tinha sido
muito ardiloso, de que havia incutido ali, sem dizer nada de forma direta, é
entediado com sua vida de solteiro, “um homem da boa sociedade”, de boa
porque ganhou uma herança”. Pelo visto, a Mlle. Zakhliebínina mais velha,
bastante afinada com esse tom. Ela sobressaía, entre as irmãs, por seus
“vê-la”. O olhar delas, e até certas palavrinhas que escaparam por acidente
estranho que uma jovem assim tenha ficado solteira”, não pôde deixar de
pensar Veltchanínov, “ainda que não tenha dote e que, não demora muito,
vá ficar bem gorda, por enquanto ainda existem muitos admiradores para
ela…” Todas as outras irmãs também não eram nada feias, e entre as
começou a divertir Veltchanínov; de resto, ele tinha ido até lá com algumas
zombava de si mesmo. Por fim, ela apareceu, e não deixou de causar efeito,
Nádia, ele concluiu que ela também o detestava. Notou também que Pável
Pávlovitch não percebia isso absolutamente, ou não queria perceber. Era
que Pável Pávlovitch, de fato, a vira pela primeira vez com a bolsinha nas
impressão desagradável. Assim que viu a noiva entrar, Pável Pávlovitch logo
Fedossiéievna o estojo com a pulseira, que ela não queria pegar e, vermelha
alto:
levantar-se de um pulo, como impelida por molas. Uma das irmãs chegou
perto para ver e Nádia entregou o estojo para ela, ainda fechado, como que
para mostrar que ela mesma não queria ver. Retiraram a pulseira do estojo
e ela foi passando por todas, de mão em mão; porém todas olhavam em
Veltchanínov o acudiu.
tinha sido usada várias vezes. Porém, naquele momento, a própria natureza
veio aliar-se à sua arte: sentia-se animado, sentia que algo o atraía; sentia
fato, logo se ouviu uma risada, pouco a pouco, outras pessoas também
como um amigo de infância e, dessa forma, numa clara alusão à sua idade,
francamente perplexo. Ele tinha noção dos expedientes que seu amigo
até, enfim, cair numa melancolia, o que se expressava com clareza em sua
fisionomia inquieta.
feriado, ele tinha já preparado alguns papéis que trouxera do trabalho para
se engana!
senhor. — Os olhinhos de Nádia brilharam. — Só que não vai ser agora, mas
todo mundo toca piano e canta; mas só vale a pena ouvir a Kátia.
dirigiu a ela e pediu que tocasse. Pelo visto, agradou a todos o fato de
repente, sem que ela mesma esperasse, também ficou toda vermelha e, de
súbito, sentiu uma vergonha terrível, pois ela, já tão crescida, já com vinte e
quatro anos e tão gorda, tinha ficado vermelha como uma menininha — e
tudo isso estava estampado em seu rosto quando sentou para tocar. Tocou
algo de Haydn com precisão, porém sem expressão; mas estava acanhada.
Quando terminou, Veltchanínov tratou de fazer elogios tremendos a ela, a
pelo visto, achou tão agradável e escutou com tanta gratidão e felicidade os
elogios, a ela e a Haydn, que Veltchanínov não pôde deixar de olhar para
que havia muito tempo queria dormir, também não se conteve e saiu para
todas as mocinhas se tornou ainda mais amistosa. Ele notou que, das casas
Cada um deles logo pulou para junto de sua menina e era evidente que
tinham vindo por causa delas; o terceiro “jovem”, rapaz de vinte anos,
pessoa que tinha saído e um de cada vez tinha de inventar uma frase e dizer
para ela. O primeiro tinha de dizer uma frase com a palavra “devagar”, o
segundo, com a palavra “se”, e assim por diante. Desse modo, a pessoa
provérbio.
mesmo tempo.
Olhe, está vendo aquela árvore gorda com um banquinho em volta? Lá,
a princesa, o rapaz, o que você quiser; cada um aparece quando quer e fala
o que vier à cabeça, na hora, e disso tudo acaba saindo alguma coisa.
— Ah, não, é enjoado demais! No início, até que é engraçado, mas no fim
sempre fica uma coisa sem pé nem cabeça, porque ninguém sabe como
terminar direito; mas quem sabe com o senhor fique mais divertido? Nós
estamos vendo que ele estava só querendo se gabar. Estou muito contente
Mária Nikítichna.
confidencial, sussurrou para Veltchanínov uma das amiguinhas, que ele, até
então, mal havia notado e com a qual não trocara nenhuma palavra. — No
— Ah, que bom que o senhor veio, senão tudo seria muito maçante — lhe
disse, em tom simpático, outra das amiguinhas, que ele até então nem
havia notado e que apareceu só Deus sabe de onde, uma ruivinha com
examiná-lo em mais detalhes, e ria, pulava, dava gritos agudos e, por uma
ou duas vezes, até segurou sua mão; ela estava tremendamente feliz, mas
pretextos, atraíram Pável Pávlovitch para outro lado; mas ele escapou e
Veltchanínov não tinha vindo absolutamente por sua causa e que estava
muito mais interessado em Nádia; porém o rosto dela estava tão meigo e
amável quanto antes. Parecia feliz só por estar também ao lado dele e por
ouvir o que o novo visitante dizia; coitadinha, ela mesma não sabia como
— Ah, a Kátia! Será que pode existir uma alma melhor que a dela? É o
Enfim, chegou a hora do jantar, cinco da tarde, e também ficou claro que
estranho que ninguém foi capaz de dizer seu nome. Além dos vinhos de
duas Zakhliebínin do meio, a uma só voz. — Ele disse que nós somos “uma
mina de meninas”…
— Ah, ele também faz trocadilhos! Muito bem, e qual foi o trocadilho que
ele fez? — indagou o velho, com voz grave, dirigindo-se a Pável Pávlovitch
— Mas foi esse que ele fez, que nós somos “uma mina de meninas”.
— S-s-sim! Claro! — o velho continuava sem entender e, com ar ainda
— Ah, papai, puxa, o senhor não está entendendo! Olhe, mina e depois
bem… da próxima vez, ele vai se sair melhor! — E o velho riu, com alegria.
— alfinetou Mária Nikítichna, bem alto. — Ah, meu Deus, ele se engasgou
vinho, que ele havia tomado a fim de esconder seu embaraço, mas Mária
Nikítichna insistia e jurava para todo mundo que era “uma espinha de
peixe, eu mesma vi, uma pessoa pode morrer por causa disso”.
todos de que tinha apenas engasgado com vinho e que a tosse ia passar
logo, até que adivinharam, afinal, que tudo aquilo era só uma travessura de
Mária Nikítichna.
logo desatou a rir de um jeito que era raro acontecer com ela, o que
também produziu seu efeito. Depois do jantar, todos saíram para a varanda
enquanto contemplava o jardim com satisfação. — Mas bem que podia cair
ao sair.
— Não, aqui, não, me perdoe, mas aqui eu não vou admitir, meu
— Para onde o senhor foi? Onde é que o senhor está? Já está tudo pronto!
— Então por que ele não disse logo? Como o senhor é cheio de
lhe deem um lenço. Mas por que será que ele vive resfriado? — acrescentou
Pável Pávlovitch atrás dela, que, pelo visto, não entendeu e, um minuto
depois, quando Pável Pávlovitch andava a trote atrás de todos e cada vez
misericordioso”.
Depois de Mária Nikítichna, foi a vez do jovem de cabelo desgrenhado e
óculos azuis. Dele, exigiram ainda mais medidas de precaução: teve de ficar
sombrio cumpriu seu dever com desdém e parecia até sentir certa
adivinhar nada, foi passando de um para outro, ouviu duas vezes o que lhe
cara para a cerca e, para que não se virasse para olhar, postaram a ruivinha
atrás dele. Pável Pávlovitch, já mais animado e quase alegre outra vez, tinha
vigiava vinte passos atrás, mais perto do grupo, junto à casinha de jardim,
também piscavam para ela; era evidente que todas esperavam alguma coisa,
até com certa inquietação; algo tinha sido armado. De repente, da casinha
— Fale baixo, não grite! Ele que fique lá parado olhando para a cerca,
acontecido Deus sabe o quê. Por fim, todas chegaram ao outro lado do
laguinho, na extremidade oposta do jardim. Quando Veltchanínov também
chegou lá, viu que Katierina Fedossiéievna discutia asperamente com todas
— Bem, está certo, não vou contar para a mamãe, mas eu vou embora,
porque isso é muito feio. Como é que o coitado vai se sentir, lá na cerca?
tarde. Dois terços desse tempo, com certeza, ele ficou parado diante da
pela manga.
— Agora, desta vez, foi o senhor; aqui, a causa desta vez é o senhor!… —
meia hora, ele estava quase alegre, outra vez. Para todas as brincadeiras em
ou uma das irmãs Zakhliebínin. Porém, para sua surpresa maior ainda,
Veltchanínov notou que Pável Pávlovitch quase nunca se atrevia a falar com
Nádia, embora circulasse o tempo todo a seu lado ou perto dela; aceitava
escada e subiu para o mezanino, já sabendo que ali havia um cantinho atrás
da cômoda onde ele queria se esconder. Mas a ruivinha voou atrás dele,
subiu sorrateira, na ponta dos pés, até a porta e trancou-a com o ferrolho.
ninguém procurava por ele, Pável Pávlovitch espiou pela janelinha. Não
havia ninguém. Ele não se atrevia a gritar, para não incomodar os pais; a
poderia abrir a porta para ele, mas ela, depois que voltou a seu quarto e
também. Desse modo, ele ficou ali cerca de uma hora. Por fim, as mocinhas
— Pável Pávlovitch, por que o senhor não vem com a gente? Ah, como lá
o papel do “mocinho”.
— Pável Pávlovitch, por que o senhor não vem? Para nós, isso nos deixa
hora do chá.
Pávlovitch.
— Como alguém pode ter vontade de ficar sozinho, quando todos estão
Nádia uma explicação das palavras que ela dissera, mais cedo, quando falou
que “estava contente com sua vinda, por uma circunstância”. A explicação
medo — de que o senhor não é tão amigo de Pável Pávlovitch quanto ele
favor da maior importância; tome aqui esta pulseira medonha que ele me
deu há pouco. — Ela tirou a joia do bolso. — Vou pedir ao senhor, com
mais vou falar com ele, por nada neste mundo, e pelo resto da vida. Aliás, o
senhor pode dizer isso para ele em meu nome e acrescentar também que é
melhor que, daqui em diante, não se atreva mais a trazer presentes. Quanto
ao resto, já cuidei para que ele venha a saber por meio de outras pessoas. O
erguendo as mãos.
desmanchou num piscar de olhos e por pouco ela não começou a chorar.
Veltchanínov deu uma risada. — Não é por nada… eu até ficaria muito
contente… mas eu também tenho minhas contas para acertar com ele…
— Eu sabia que o senhor não é amigo dele e que ele estava mentindo! —
Nádia o interrompeu depressa e com fervor. — Nunca vou casar com ele,
saiba disso! Nunca! Nem entendo como foi que ele se atreveu a… Só que o
senhor tem de entregar para ele sua pulseira nojenta, senão o que será de
mim? Eu quero, a todo custo, a todo custo mesmo, que hoje, ainda neste
dia, ele receba a pulseira de volta e engula essa desfeita. E se ele for fazer
Mas não teve tempo de terminar; Nádia, com toda a força, puxou-o pela
para ele, e quando o rapaz escapuliu de novo para trás do seu arbusto,
Nádia continuou a andar pela trilha, para um lado e para outro, como que
fora de si, os olhos faiscantes, as palmas das mãos juntas, à frente do peito.
— O senhor nem vai acreditar como ele é bobo! — Ela parou de repente
pense só!
escolhe, isso eu não entendo, todos dizem que ele é um “futuro motor”,
— Ah, como senhor é gentil, ah, como o senhor é bom! — De repente, ela
se alegrou, ao lhe entregar a joia. — Por causa disso, vou cantar a noite toda
para o senhor, pois eu canto muito bem, fique sabendo, mais cedo eu
menti, quando disse que não gosto de música. Ah, quem dera se o senhor
pudesse vir mais uma vezinha só, como eu ficaria contente, eu contaria
tudo, tudo, tudo para o senhor, e até mais ainda, porque o senhor é tão
E, de fato, quando voltaram para casa, na hora do chá, Nádia cantou para
ele duas romanças com uma voz ainda muito mal treinada, apenas
aos pais, diante da mesa de chá, sobre a qual já fervia o grande samovar da
dali a dois dias ele iria partir e só retornaria depois de nove meses. Pável
apareceu. Nádia, de propósito, não respondeu a uma pergunta que ele fez
diretamente a ela, mas isso não deixou Pável Pávlovitch constrangido nem
sua atitude, mostrava que aquele era seu lugar e que não abriria mão dele
para ninguém.
chá.
desconhecida:
Cantava dirigindo-se apenas para Nádia, que estava junto a seu cotovelo e
mais perto dele que os demais. Fazia muito tempo que ele não tinha mais
voz, porém, pelo que havia sobrado, era evidente que não havia sido ruim.
Veltchanínov tinha ouvido aquela romança pela primeira vez havia uns
vinte anos, quando ainda era estudante, cantada pelo próprio Glinka, na
cantar de Glinka; mas agora, desde a primeira nota, desde o primeiro verso,
mas é forte…
transtornado, ele deu um pulo para a frente, estava tão fora de si que
agarrou a mão de Nádia e puxou-a para longe de Veltchanínov, postou-se
cavalheiro era bem capaz de tomar a decisão de fazer algo ainda dez vezes
perplexidade geral, levou-o para a varanda e até desceu com ele e deu
frenético —, não lembra que exigiu de mim, naquele dia, que eu contasse
tudo para o senhor, tudo, com toda a sinceridade, meu senhor? “Até a
última palavra…”, não lembra, meu senhor? Pois bem, chegou a hora de
Zakhliebínina, pesarosa.
nada disse.
olhavam para ele com ar feroz. A própria Nádia lançou para ele um olhar
tão rancoroso que Pável Pávlovitch chegou a torcer a cara, mas não se
rendeu.
mãe de família.
Pávlovitch; quase não dava para ouvir uma vozinha, que dizia, mais baixo
* Hipocorístico de Nadiejda.
Ele podia até estar pensando na ruivinha, entretanto já fazia tempo que a
que pareceu passar de forma tão divertida, a angústia quase não o largou.
Antes de cantar a romança, ele nem sabia onde se enfiar; talvez por isso
muito mal…
cara fechada.
começou, com uma irritação interior, ainda reprimida —, e aqui está ela,
esta palavra: com toda a franqueza, considero que quaisquer relações entre
nós estão terminadas, a tal ponto que nem temos sobre o que conversar;
escutou bem? Não há nada a dizer; por isso, acho que o melhor era o
acertar? Ora! Será que é essa a tal “última palavra” que o senhor, há pouco,
prometeu… me revelar?
— Não temos mais conta nenhuma para acertar, nós… há muito tempo
— Não vá mais lá, meu senhor — quase sussurrou ele, com voz de súplica,
e de repente se levantou.
— O quê? Então era só isso que o senhor queria dizer? — Veltchanínov
até lá com o senhor; depois… tudo que aconteceu lá… Foi tão mesquinho,
não adianta me justificar! Não irei mais lá e garanto ao senhor que não
— Desculpe, Aleksei Ivánovitch, mas o senhor sabe que sem isso eu não
tanta graça, elas se fazem de importantes, e pronto, meu senhor! Chega até
a ser belo. E depois… depois, o senhor sabe: vou me tornar escravo dela;
ela vai conhecer o respeito, a sociedade… ela vai se reeducar por completo,
meu senhor.
— O senhor, agorinha mesmo, estava dizendo que resolvi ser feliz, não é,
casamento, eu não vou aguentar, de jeito nenhum… sem uma nova fé; vou
— Mas por que está me contando isso? — Veltchanínov quase bufou com
uma risada. De resto, tudo aquilo lhe parecia uma barbaridade. — Mas,
mostrou confuso.
— Experimentar o quê?
— O efeito, meu senhor… Eu, veja só, Aleksei Ivánovitch, faz apenas uma
semana que… estou indo lá, meu senhor (ele se mostrava cada vez mais
não eu”… Ideia idiota, meu senhor, eu mesmo percebo, agora; supérflua.
Mas minha vontade era grande demais, por causa do meu caráter
até o estupor.
— Sei, mas e daí? — perguntou.
Ivánovitch; nunca mais farei isso, meu senhor; isso nunca mais vai
acontecer.
comentou, irritado.
— Para mim, é triste ouvir isso, Aleksei Ivánovitch, e eu, acredite, tenho
olhos.
— Ora, eu sei, é claro… mas não é nesse sentido que estou falando… eu
sua indiscrição.
adversário.
algo acontecesse, ou que algo passasse dos limites, ainda mais provocado
por ele mesmo.
senhor, porque não tive, durante toda a vida, outro ano como aquele. (Os
melhores pensamentos, meu senhor. “As grandes ideias nascem não tanto
senhor mesmo que disse, talvez tenha esquecido, mas eu lembro, meu
para que o senhor se agarra assim a uma pessoa doente, nervosa, à beira da
agora que o senhor não só não me ama como me odeia, e com todas suas
forças, e que o senhor está mentindo, sem que o senhor mesmo saiba
tente agora alguma coisa!”. O senhor me fez um desafio! Pode ser que nem
o senhor mesmo soubesse, mas foi assim, porque o senhor sentia tudo
isso… E, sem ódio, é impossível fazer tal desafio; portanto, o senhor me
odiava! — Ele andava muito depressa pela sala, esbravejando, e o que mais
pendurou num homem doente e nervoso para… arrancar dele sei lá que
palavra fantasiosa, num delírio! Nós… mas nós somos pessoas de mundos
dois estamos nos dois lados desta sepultura, só que o meu lado pesa mais
do que o seu, meu senhor… — sussurrou como que num delírio, sem parar
a si. A sineta tocou com tanta força que parecia que alguém tinha jurado
Veltchanínov, desconcertado.
— Mas para mim é que não pode ser — sussurrou Pável Pávlovitch,
SÁCHENKA E NÁDIENKA*
Na sala, entrou um rapaz muito jovem, uns dezenove anos, talvez até um
pouco menos — de tão jovial que parecia seu rosto bonito, confiante e
empinado. Não estava malvestido, pelo menos tudo lhe caía bem; estatura
e curvado para baixo; não fosse isso, seria uma beleza perfeita. Ele entrou
com ar de importância.
“oportunidade”, dessa forma dando a entender que não poderia haver, para
importante —, suponho que eu não posso ter nada para tratar com o
senhor.
— Não senhor.
Nádia.
precisa se retirar.
vindo de lá. Muito bem, sr. Trussótski — virou-se para Pável Pávlovitch, que
minha proposta?
— Nem sei com quem estou falando, meu senhor — acrescentou Pável
Pávlovitch. — Acho até que não temos razão nenhuma para continuar.
Dito isso, ele achou necessário sentar-se também.
não pode dizer, como acabou de dizer, que não sabe com quem está
falando; e também não pode pensar que não há motivo para continuarmos
nossa conversa: ainda que seja por mim, a questão diz respeito a Nadiejda
Tudo isso ele filtrou devagar entre os dentes, como um esnobe, quase
mesmo, por exemplo, quando deu sua pulseira de presente, gostaria muito
dignidade —, ainda assim, não acho que os motivos propostos pelo senhor,
uma discussão sobre eles. Vejo que toda essa questão é infantil e vazia;
tom. — De pouco adianta que seja expulso de lá, que lhe mostrem a língua;
ele, ainda por cima, quer nos denunciar ao velho, amanhã! Por acaso o
senhor, homem obstinado, não está dando, desse modo, a prova de que
que, por causa da barbárie social, detêm um poder sobre ela? Pois parece
que ela já deu ao senhor mostras suficientes de que o despreza; afinal, não
lhe devolveram o presente indecoroso que o senhor deu hoje para ela, a sua
Pávlovitch, este estojo. Eu não queria trazer, mas ela pediu… tome aqui…
é pena…
Pávlovitch.
— Por que o senhor não havia entregado até agora? — indagou o jovem,
— Estranho.
— O quê-ê-ê?
que Pável Pávlovitch dirigia a ele, enquanto ria de Lóbov, teria entendido
discussão sobre outras razões, nas quais eu não quero tocar, eu apenas
ele fique admirado ao ver um rival como o senhor, uma pessoa, talvez, de
grandes méritos, mas ainda tão jovem que não pode ser levado a sério
como rival… e, por isso, tem razão de pedir ao senhor que ponha um fim
nessa questão.
— Mas que pai aceitaria dar a filha em casamento ao senhor, ainda que,
de ser responsável por si mesmo, e o senhor quer ainda por cima assumir a
criança, como o senhor! Ora, isso também não tem nada de nobre, o
rapaz. — Como é que eu achei, o tempo todo, que era Vassíli Petróvitch?
resto, tudo isso é bobagem, e a questão é que aqui não só não existe
entregarei nas mãos dela uma nota promissória no valor de cem mil rublos
vou ficar com a corda no pescoço! Dessa forma, tudo está assegurado e
começar.
— Aposto que quem inventou tudo isso foi aquele… como se chama…
— Do que esse cavalheiro está rindo? O senhor adivinhou: foi uma ideia
uma pausa. — Faz muito tempo que tudo isso deixou de me causar
por causa de uma vida longa e absurda e, em segundo lugar, por conta de
não sou mesmo nenhum futuro milionário, como o senhor teve a bondade
de se exprimir (e de onde o senhor foi tirar uma ideia dessas?). Eu sou este
meu futuro. Não serei nem herói nem benfeitor de nada, mas vou garantir
a vida da minha esposa e a minha. Claro, agora não possuo nada, e eu até
— Como assim?
sozinho aos oito anos, o velho me levou para sua casa e depois me pôs no
Agora, é claro, já faz tempo que eu me livrei de sua tutela, pois queria
ganhar minha própria vida e só depender de mim mesmo.
— Ah, agora tudo está explicado: uma amizade desde a infância! E, então,
ocasião, eu trabalhava na estrada de ferro, por dez rublos, mas tudo isso é
temporário.
— E aí?
mezanino. Mas ela resistiu com heroísmo. No entanto, todo o insucesso foi
porque ele já estava com as garras afiadas contra mim, pois eu tinha
ele que suas maneiras não me agradavam, mas o problema principal foi por
eu fiz foi lhe dizer que ele era um retardado. Larguei todos eles e agora
era o próprio velho… estou dizendo a vocês, ele é bom; mas, mesmo
assim, não desistimos. Naturalmente, vinte e cinco rublos não bastam, mas
mil, de saída; se não, vou ser advogado. Hoje, estão precisando de gente…
Nossa! Que trovoada, vai vir uma tempestade, ainda bem que cheguei
— Ah, mas dá para pular a cerca! Não notaram a ruivinha? — ele riu. —
Nikítichna é uma serpente!… Por que está com o rosto contraído? Tem
delicadeza.
— Sim…
quase rindo. — Vou formular a pergunta mais uma vez, para seu melhor
levantou, com ar exasperado e acerbo. — E, além disso, mais uma vez, peço
no ar, num gesto de ameaça. — Não se engane nos cálculos! Será que o
senhor sabe o que um erro de cálculo como esse pode acarretar? E também
previno o senhor que, quando voltar para cá, daqui a nove meses, depois
desistir, pior para o senhor; está vendo até que ponto o senhor vai levar
nem deixa ninguém comer. Mas, por uma questão de humanidade, repito:
pense bem, nem que seja uma vez na vida, faça um esforço para refletir a
fundo.
— Peço ao senhor que me poupe de suas lições de moral — gritou Pável
amanhã, mas se… Ah, mais uma vez essa trovoada! Até logo, muito prazer
*** Trata-se do conto “Para a idade infantil” (1863), do escritor humorístico russo Saltikov-Schedrin
(1826-89). Vários pontos dessa narrativa coincidem com O eterno marido, como o nome e a idade
da heroína, que são idênticos aos de Nádia, conforme apontou o crítico soviético G. M. Fridlender,
em suas notas na edição das Obras reunidas de Dostoiévski em 15 volumes (Leningrado: Naúka,
1980, v. 8.)
15
QUITES
— O senhor viu só? O senhor viu só? — Pável Pávlovitch deu um pulo na
— Muito bem, senhor, mas o senhor… então, foi por pena de mim que
tomar parte…
— Entenda, eu não faria isso por nada; já são tantos aborrecimentos sem
Agora, o senhor mesmo está vendo que o importante na história não sou
obrigá-lo a baixar a crista, isto sim! Amanhã mesmo irei lá e ele vai baixar
aquela crista. Vamos dar umas boas baforadas e varrer esse mau cheiro do
— De nada, meu senhor, falei por falar, meu senhor. Na última vez, o
de deitar-se.
Toda a estranha tensão daquele seu dia, sem falar do forte distúrbio de
saúde dos últimos tempos, pareceu explodir de repente e ele, como uma
criança, tombou prostrado. Mas a dor, no entanto, era mais forte e venceu
jazia a seu lado, no chão mesmo. Veltchanínov olhou para ele com ar
porque já não tinha forças para deitar-se, ele gemia e pensava em sua dor.
Estava com medo daquela dor no peito, e não era sem motivo. Os
intervalos de um ou dois anos. Ele sabia que era por causa do fígado. No
costelas inferiores, ou mais acima, uma pressão ainda surda, sem força, mas
que incomodava. Durante dez horas seguidas, a dor aumentava sem parar
sofrido, fazia um ano, quando a dor afinal amainou, depois de dez horas,
ele se sentiu tão debilitado que, estirado na cama, mal conseguia mover a
sopa, como se fosse uma criança de peito. A dor aparecia por força de
Agora, ainda faltava muito para amanhecer, ele não queria chamar o
médico à noite; além de tudo, não gostava do médico. Por fim, não se
quase corria pelos dois quartos. A garrafa que tinha bebido inteira, também
que Pável Pávlovitch não estava conseguindo recuperar a noção das coisas;
com Piotr Kuzmitch e com Polossúkhin, por causa do fígado, meu senhor.
punha compressas quentes… Pode até levar à morte, meu senhor! Eu vou
nada.
Mas Pável Pávlovitch, sabe Deus por quê, estava quase fora de si, como se
fosse uma questão de salvar o próprio filho. Não obedeceu e, com toda a
três xícaras de chá fraco, tomadas de uma vez só, “mas não apenas quente,
e sim escaldante, meu senhor!”. E foi quase correndo chamar Mavra, sem
esperar permissão, junto com ela acendeu o fogo na cozinha, que sempre
compressa.
forma de fazer compressas, meu senhor, vai demorar muito tempo para
próprios olhos e com minhas próprias mãos, meu senhor. Isso pode até
levar à morte. Beba o chá, engula… não importa que queime um pouco; a
Mavra estava morta de sono, mas Pável Pávlovitch não lhe dava sossego;
Pável Pávlovitch, e correu, alegre, para pegar mais um prato e mais um chá.
— Temos de eliminar essa dor! Temos de fazer essa dor recuar! — repetia
sem parar.
Em meia hora, a dor perdera toda a força, mas o enfermo estava a tal
ponto exaurido que, por mais que Pável Pávlovitch suplicasse, não deixou
tudo… obrigado.
apagar a vela, e quase sem respirar, para não fazer barulho, estendeu-se no
sofá.
rapidamente, como uma vela que se apaga; mais tarde, ele se lembrou
daquilo com clareza. Porém, durante todo o seu sono, até o minuto em que
despertou, sonhou que não estava dormindo e que parecia não conseguir
dormir de jeito nenhum, apesar de toda a sua fraqueza. Por fim, sonhou
ter plena consciência de que tudo era apenas um delírio, e não a realidade.
Todas as visões eram conhecidas; o seu quarto parecia estar cheio de gente
apoiava os cotovelos sobre a mesa e não queria falar; só que agora ele
assim? Será que já era o Pável Pávlovitch da outra vez, como agora
também?”, pensou Veltchanínov. Mas, depois de olhar melhor para o rosto
do homem calado, convenceu-se de que era outra pessoa. “Por que está
que no outro sonho; elas o ameaçavam com as mãos e, por alguma razão
que ele não conseguia atinar, berravam com ele com toda a força. “Mas,
ficar deitado!” No entanto, os gritos, as pessoas, seus gestos e tudo era tão
presente, tão real, que às vezes lhe vinha a dúvida: “Será que isto é mesmo
um delírio? O que querem de mim essas pessoas, meu Deus! Porém, se não
é um delírio, como é possível que tais gritos, até agora, não tenham
acordado Pável Pávlovitch? Pois ele está dormindo aqui no sofá, não está?”.
Por fim, de repente, algo aconteceu de novo, agora como antes, no outro
dava para ouvir como seus passos reverberavam com força nos degraus e
dúvida de que tudo aquilo não era delírio, mas sim a verdade, Veltchanínov
se pôs na ponta dos pés a fim de ver mais depressa, por trás das cabeças
das pessoas, o que estavam trazendo. Seu coração batia, batia, batia, e de
campainha. E, mais uma vez, o som foi tão claro, tão real, quase palpável,
acordou.
Mas não abalou a correr para a porta, como na outra vez. Que
pensamento, naquele instante —, isso não se sabe, mas foi como se alguém
estendidos para a frente, como que para se proteger e evitar uma agressão,
atirou-se direto para o lugar onde Pável Pávlovitch estava dormindo. Seus
braços logo esbarraram de encontro a outros braços, estendidos por cima
escuridão não era completa, porque do outro quarto, onde não havia
hora, ele entendeu que tinha segurado uma faca ou uma navalha de barbear
e a apertava com força na mão… Nesse instante, algo caiu no chão com
Veltchanínov talvez fosse três vezes mais forte do que Pável Pávlovitch,
mas a luta entre eles se prolongou por uns bons três minutos. Enfim,
conseguiu curvá-lo até o chão e torceu seus braços para trás, porém, por
alguma razão, lhe veio a vontade de amarrar seus braços. Tateando com a
com a força extraordinária que aquilo exigiu. Durante aqueles três minutos,
que escorria. A seus pés, sobre o tapete, estava caída uma navalha aberta;
sangue; mas o sangue não era dele e sim da mão cortada de Veltchanínov.
poltrona, por causa dos braços amarrados nas costas, tinha o rosto
Veltchanínov pôs água no copo e lhe deu de beber nas próprias mãos.
Pável Pávlovitch curvou-se para a água com sofreguidão; depois de uns três
Veltchanínov, à sua frente, com o copo na mão, mas não disse nada e
voltou a beber até o fim. Depois, suspirou fundo. Veltchanínov pegou seu
travesseiro, apanhou sua roupa e foi para o outro quarto, depois de trancar
Sua dor tinha passado por completo, mas ele sentiu de novo uma
fizera pouco antes e que só Deus sabe de onde tinha vindo. Tentou refletir
tinha sido forte demais. Os olhos se cerravam, às vezes até por uns dez
pensar, sôfrego e febril. Só uma coisa ele concluiu com clareza: que Pável
Pávlovitch queria, de fato, matá-lo com a navalha, mas que, quinze minutos
antes, talvez nem ele mesmo soubesse disso. Talvez, ao anoitecer, seus
da minha navalha, que até ontem à noite ele nunca tinha visto”, lhe passou
pela cabeça.
foi para o quarto de Pável Pávlovitch. Quando abriu a porta, não conseguiu
entender por que havia trancado Pável Pávlovitch e por que não tinha
deixado que ele fosse embora. Para sua surpresa, o prisioneiro já estava
mãos. Seu olhar angustiado, com ar afoito, dizia: “Não comece a falar; não
às suas costas.
pulseira, enfiou-o no bolso e saiu pela escada. Veltchanínov foi até a porta
para fechá-la com a chave e deteve-se ali. O olhar de ambos se cruzou pela
ANÁLISE
diluiu por completo. Era o que lhe parecia. Aquilo já vinha se prolongando
havia cinco semanas. Ele ergueu a mão, olhou para a toalha encharcada de
durante toda aquela manhã, pela primeira vez em três semanas, quase não
não sabem se vão esfaquear alguém ou não, quando seguram uma faca na
não só matam a pessoa a facadas como ainda cortam sua cabeça ‘pela raiz’,
Não conseguiu ficar em casa e saiu pela rua, na convicção de que, agora,
era necessário fazer alguma coisa ou de que, agora, a todo custo, era
seu pensamento para o médico e para o fato de que era necessário fazer um
mais duas vezes naquele dia: uma vez, com um homem completamente
com prazer, conversou com o garçom e com seu vizinho de mesa e ainda
se repetir, ele também não pensava; estava seguro de que a doença havia
tamanha debilidade, ele acordou, meia hora depois, pulou da cama e, com
quase nunca ia. “Aqui, ontem, ele esquentou os pratos”, pensou. Trancou a
lembrou que, meia hora antes, ao passar pelo quarto do zelador, tinha
necessário deitar-se já, do contrário, no dia seguinte, ele não ia prestar para
nada. Por alguma razão, o dia seguinte se apresentava a ele como um dia
“Se for mesmo verdade que ele se levantou para me matar por acaso”,
pensava e pensava Veltchanínov, o tempo todo, “então, será que essa ideia
já não havia passado pela sua cabeça antes, pelo menos uma vez, ainda que
assassino. Em resumo: “Pável Pávlovitch queria matar, mas não sabia que
“Não foi para procurar um emprego nem para encontrar Bagaútov que ele
veio para cá, embora tenha, de fato, procurado um emprego, tenha batido à
porta da casa de Bagaútov e tenha ficado furioso quando ele morreu; Pável
de poeira. Ele veio para cá por minha causa, e veio com Liza…”
sim, esperava aquilo, e que foi exatamente a partir do instante em que o viu
aí que eu comecei a esperar alguma coisa… mas, claro, não era isso, claro,
“Mas, quem sabe, quem sabe, será que não é verdade tudo aquilo”,
para mim ontem, sobre seu amor por mim, na hora em que seu queixo
apaixonar pelo amante de sua esposa, na qual, durante vinte anos, ele não
tinha a menor ideia! Ontem, ele não pode ter mentido! Mas será que ele
as contas’? Sim, ele amava com maldade, e esse é o amor mais forte…
“Pode ser, e pode muito bem ser que, em T., eu tenha produzido nele
restante, eles mesmos completam, tudo multiplicado por mil, e chegam até
a isso que ele dá o mais alto valor! Talvez tenham sido exatamente os
vez: ‘Será possível que aquele também? Se aquele lá também, ele também,
“Humm! Ele veio aqui para ‘me abraçar e chorar’, como ele mesmo se
exprimiu, da maneira mais torpe, ou seja, ele veio para me degolar, mas
achava que vinha para ‘me abraçar e chorar’… E ainda trouxe a Liza. Pois
chifres, ele mesmo fez os chifres na testa!) Era por isso que ele chegava aqui
embriagado, para poder falar tudo, ainda que com suas encenações; sem
estar embriagado, ele não ia conseguir… E ele adorava tanto fazer aquelas
cenas, ah, como adorava! Ah, como ficou contente quando me obrigou a
degolar? No fim, é claro, viu que o melhor eram as duas coisas juntas. A
decisão mais natural! Sim, senhor, a natureza não ama os monstros e ela os
Pável Pávlovitch! Para o monstro, a natureza não é mãe carinhosa, mas sim
madrasta. A natureza cria monstros, mas não para ter pena, e sim para dar
cabo deles… e com razão. Hoje em dia, abraços e lágrimas de perdão não
saem barato nem para pessoas decentes, quanto mais para gente como eu e
Uma noiva! Só num Quasímodo como ele poderia germinar a ideia de uma
Zakhliebínina! Mas a culpa não é sua, Pável Pávlovitch, você não tem culpa:
você é um monstro, portanto tudo que é seu tem de ser monstruoso, até
de que o sonho não era sonho, mas realidade. Levou-me até lá pelo
arbustos, bem perto da inocência. Sim! Afinal, esse ‘eterno marido’ devia,
tinha mesmo a obrigação de, algum dia, se castigar por tudo, de forma
definitiva, e foi para se castigar que ele pegou a navalha… na verdade, não
tinha a intenção, mesmo assim, pegou! ‘Mesmo assim, ele meteu a faca,
resto, será que ele já trazia algum pensamento desse tipo, quando me
fato, alguma coisa naquela noite em que ele se levantou da cama e ficou
parado no meio do quarto? Humm. Não, na ocasião, ele ficou parado ali
viu que eu estava com medo dele, não me respondeu nada durante dez
talvez aí, de fato, pela primeira vez, tenha passado pela sua cabeça alguma
talvez não acontecesse nada. Será? Será? Pois ele já vinha me evitando
desde antes, fazia duas semanas que não vinha à minha casa; pois estava se
quentes!”
homem do mundo), naquele mesmo dia, por vontade própria, iria terminar
com tudo aquilo, iria ao encontro de Pável Pávlovitch… Para quê? Por
quê?… Quanto a isso, ele nada sabia e, com repulsa, tampouco queria
saber; apenas sabia que, por alguma razão, a todo custo, iria até lá.
convicção absurda, mas irresistível. “Para que esse cretino iria se enforcar?”,
—, será possível que eu vou me arrastar até lá para “abraçar e chorar”? Será
que, em tamanha infâmia, ainda faz falta mais essa sordidez absurda?
pessoas honradas e decentes. Assim que saiu à rua, topou de repente com
— Puxa, que diabo, ora essa, o senhor tem cada ideia ridícula! Não se
levá-lo até o trem, ele partiu. Nossa, como bebe, nem lhe conto!
Esvaziamos três garrafas, nós dois e o Predpossílov… mas como ele bebe,
como ele bebe! No vagão, ficou cantando, lembrou-se do senhor, fez um
Trancaram a Nádia, ela está no sótão. Gritos, lágrimas, mas nós não vamos
nos render! Mas como ele bebe, nem lhe conto como ele bebe! E o senhor
como vou dizer?… E não parava de falar do senhor, só dizia que não tinha
— Ah, então ele falou com o senhor nesses termos, a meu respeito?
— Ora, ora, não fique irritado. Ser cidadão é melhor do que ser da alta
sociedade. Eu acho que, hoje em dia, na Rússia, não se sabe mais o que se
— Ele? Quem? Ah, sim! Por que será que repetia sempre: “tem cinquenta
anos, o Veltchanínov, mas gastou tudo que tinha”? Por que dizia “mas
gastou tudo” em vez de “e gastou tudo”? Ele ria e repetia mil vezes. Entrou
— Filha.
— Cortei.
— Não há de ser nada, vai passar. Quer saber? O diabo que o carregue,
ainda bem que ele foi embora, mas eu aposto que lá, para onde ele foi, ele
vai casar num instante… não acha?
o senhor tem cinquenta anos, então ele, com certeza, tem uns sessenta;
aqui, é preciso usar a lógica, meu caro! Sabe, antes, faz muito tempo, fui
esperamos a aurora… Muito bem, então até logo; que bom ter topado
com o senhor aqui, nem precisei entrar; não vou entrar, não convide, não
tenho tempo!
mandou entregar uma carta para o senhor! Aqui está a carta. Por que o
seu nome.
Dentro do envelope, não havia nem uma palavra de Pável Pávlovitch, mas
outra carta. Veltchanínov reconheceu a letra. Era uma carta antiga, num
papel amarelado pelo tempo, com a tinta desbotada, escrita uns dez anos
antes, para ele, em Petersburgo, dois meses depois de ter partido de T. Mas
a carta não chegou até ele; em seu lugar, tinha recebido outra; isso ficou
encontrar uma forma de lhe entregar o futuro filho, garantia que dali em
diante eles tinham outras obrigações, que agora a amizade deles estava
propósito era sempre o mesmo: que ele a liberasse de seu amor. Ela até
permitia que ele fosse a T. dali a um ano, para ver a criança. Só Deus sabe
por que ela mudou de ideia e mandou outra carta, em lugar daquela.
em que encontrou a carta e a leu, pela primeira vez, diante do pequeno baú
“Na certa, também ficou pálido como um defunto”, pensou, quando, por
acaso, viu o próprio rosto no espelho, “na certa, leu, fechou os olhos e de
três vezes!”
O ETERNO MARIDO
por meio daquele amigo, contava conseguir um encontro com certa mulher
isso, é claro, foi notado por todos. Porém pouco depois ele reapareceu,
lugar distante, ausente por força de problemas familiares que não eram
dúvida, uma causa pequena, mas muito importante para ele; em primeiro
apaziguado; agora, sabia com certeza que não ia dissipar aquele seu último
dinheiro “que nem um idiota”, como havia dilapidado suas duas primeiras
fortunas, e sabia que era o suficiente para a vida toda. “Por mais que o
saborosa que agora vou comer e, portanto, estou preparado para tudo.”
dominou por completo e provocou nele uma reviravolta até mesmo física,
sem falar do aspecto moral: agora, de fato, ele parecia outra pessoa, em
acumular em torno dos olhos e na testa estavam quase lisas; até a cor do
rosto mudou — ficou mais branco, mais rosado. Nesse momento, estava
seu pensamento brotou uma ideia doce: na estação seguinte, havia uma
bifurcação e uma estrada de ferro nova seguia para a direita. “Se, só por um
da direita, talvez seja possível, duas estações adiante, visitar uma dama que
local ermo, no campo, agradável para mim, mas muito maçante para ela;
menos interessante do que seria em Odessa, ainda mais porque Odessa não
vai fugir…” Mas ele ainda continuava a hesitar, sem tomar uma decisão
excessivo para uma turista, vinha quase arrastando atrás de si, puxado pelas
duas mãos, um oficial dos ulanos, jovem e bonito, que tentava se soltar. O
indicava, uma parenta mais velha, não o largava, na certa por medo de que
tomar o trem a tempo, para seguir viagem. Houve uma discussão, o oficial
ficou mais ofendido ainda com o que lhe pareceu, não se sabe por quê, um
ultraje moral.
comerciante olhou para os dois, com desdém, e falou, numa voz arrastada
e cantada:
— Sua prostituta, sua prostituta, olha só como bateu o rabo nessa cadeira!
cadeiras.
vestia sem bom gosto, mas com luxo, e de maneiras um pouco ridículas —
marido, que “sumiu do vagão de repente e se meteu não sei onde, e tudo
isso é culpa dele, porque, sempre que eu preciso, ele se mete não sei onde e
desaparece…”.
assombro era tamanho que, por algum tempo, pareceu não compreender
o seu horror: sua culpa, Mítienka e que aquele “mossiô”, como a dama,
sabe-se lá por que motivo, chamou Veltchanínov, “foi para nós o anjo da
guarda e o salvador, e o senhor… sempre vai embora e some, quando
dama surpresa, depois de, com o braço direito, num gesto protetor e
do nome Lípotchka.*
Pávlovitch.
Pável Pávlovitch.
Quando é preciso, o senhor não aparece, mas onde não é preciso, lá está o
senhor…
— Onde não é preciso, lá, onde não é preciso… onde não é preciso… —
ecoou o ulano.
Lípotchka estava quase sufocando de comoção; ela mesma sabia que não
conseguia se controlar.
estava se animando.
Mas, com Mítienka, já não havia mais o que fazer. Aliás, tudo acabou de
trabalhava, iam passar dois meses em sua propriedade rural, que não ficava
horror o que teria acontecido, se ele não… etc. etc. Numa palavra, “como
um anjo da guarda”.
Pável Pávlovitch logo viria correndo, outra vez, para falar com ele, antes da
mais próximo, sentou-se e sentou-o também a seu lado. Também ele ficou
— Então, será que o senhor — e deu mais uma palmada em seu ombro —,
será mesmo que o senhor, por um minuto sequer, foi capaz de pensar a
sério que eu posso, de fato, visitar sua casa, e ainda por cima ficar
— Então o senhor… não vai! — gritou, sem esconder em nada sua alegria.
resto, ele mesmo não entendia por que estava achando tanta graça; no
— Será, então… será que o senhor está falando a sério, meu senhor? — E,
ao dizer isso, Pável Pávlovitch chegou a dar um pequeno pulo, onde estava
— Sim, já disse que não vou… Puxa, mas o senhor é mesmo esquisito!
— Então, o que eu vou… se for assim, meu senhor, o que vou dizer,
coisa assim.
— Não vai acreditar, meu senhor — respondeu Pável Pávlovitch, com voz
arrastada e patética.
— E o senhor vai levar uma coça? — Veltchanínov riu muito. — Mas estou
vendo, meu pobre amigo, que o senhor treme de medo de sua linda
esposa, não é?
Veltchanínov se negasse a ir, isso, está claro, era bom, mas que ele se
referisse à esposa com tanta familiaridade, isso já era bem ruim. Pável
segundo sinal; ao longe, ouviu-se a vozinha fina que vinha do vagão, aflita,
parte de Veltchanínov — sem dúvida, mais uma garantia de que não iria à
casa dele.
— Ah, esse, meu senhor, sabe, ele é nosso parente distante, ou melhor,
meu parente, meu senhor, filho de uma prima, já falecida, meu senhor,
senhor…
“Ora essa, muito bem, está tudo certo; a situação está completa!”,
pensou Veltchanínov.
remexer outra vez e quis ir embora, mas Veltchanínov agarrou-o com força
— Não quer que eu vá agora até sua esposa e conte que o senhor quis me
— Sim, eu juro ao senhor que não irei! Corra, senão vai ser uma desgraça!
Pável Pávlovitch não tomou sua mão, chegou até a recuar a sua.
palma da mão esquerda, na qual ficara, bem nítida, a funda cicatriz do corte
empalidecidos.
poste.
que podia; o trem já começava a andar, mas ele, de algum modo, ainda
conseguiu se agarrar à porta e dar uma espécie de pulo para dentro de seu
retomou sua viagem, depois de esperar um novo trem, que ia pelo mesmo
por isso!
* Hipocorístico do nome Olimpiada. Também, forma carinhosa de se referir à árvore chamada lipa,
tília.
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou
em vigor no Brasil em 2009.
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TÍTULO ORIGINAL
Вечный муж
PREPARAÇÃO
Leny Cordeiro
REVISÃO
Márcia Moura
Fernando Nuno
ISBN 978-85-545-1228-6
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O jogador
Dostoiévski, Fiódor
9788554510329
232 páginas