Plutarco Da Malicia de Herodoto
Plutarco Da Malicia de Herodoto
Plutarco Da Malicia de Herodoto
Prefácio
O problema é que, aos olhos de Plutarco, esse estilo gracioso não visava tão-somente a
proporcionar prazer e, sim, a ludibriar, pois era usado por Heródoto como disfarce para
escamotear um propósito de difamação e calúnia. Portanto, esse estilo tão admirado seria, de
fato, um recurso desonesto.
Pois é justamente esse o alvo do texto de Plutarco: mostrar que a prestigiada beleza da
expressão de Heródoto é um expediente usado com segundas intenções e está a serviço da
maledicência. Essa denúncia está formulada logo na abertura do proêmio:
A muita gente, Alexandre, também o estilo de Heródoto — simples, fácil e que discorre
Segundo Plutarco, Heródoto compõe o estilo com vistas a promover a apáte, o ludíbrio, e
o público não se dá conta de que está sendo ludibriado porque se deixa envolver pelo ethos, pelo
caráter do escritor, configurado pela linguagem. Por meio de um estilo simples e fluente,
Heródoto passaria ao leitor/ouvinte a imagem de um historiador franco e sincero quando, na
verdade, suas palavras e torneios de frases são “dolosos” e “tortuosos” (863E). Esse ethos
bonachão que transparece no texto de Heródoto é falso; o verdadeiro é um ethos perverso, mau,
kakón.
Tendo em mente um leitor desavisado, Plutarco aproxima a experiência de leitura do
texto de Heródoto à apanha de rosas: estas ocultam, sob a aparência delicada e suave, espinhos
que ferem os distraídos; do mesmo modo as frases doces e polidas de Heródoto exigem cuidado,
pois são roupagens de calúnia e maledicência.
Em sua avaliação, Heródoto seria “mau-caráter” porque é disfarçadamente maldoso na
elaboração de suas Histórias, posando de bom-moço. O problema está no disfarce, no
fingimento, no pretender aparentar ser o que não se é de fato. O objetivo de Plutarco, então, é
desmascarar Heródoto, revelando as marcas textuais de sua kakoétheia, de sua “malícia”, de sua
“malignidade”, ou — por que não dizer?— de seu mau-caratismo, termo muito bem usado por
Maria Aparecida de Oliveira Silva em seu estudo.
E como o verdadeiro ethos de Heródoto estaria oculto sob essa encantadora roupagem
estilística, a tarefa de Plutarco — apontar as pegadas (ikhne) de um relato mau-caráter (855B)
—se apresenta como um trabalho árduo, comparável ao do caçador que, para agarrar a presa,
segue as pegadas deixadas por ela. Plutarco tem consciência de que a linguagem também é um
campo que se deixa impregnar de pegadas, de marcas de intencionalidade. Por isso acredita que
poderá rastrear o verdadeiro ethos de Heródoto em meio a tantos ocultamentos.
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mentiu (ἔψευσται), não é nossa matéria. Já as calúnias que ele proferiu (κατέψευσται), apenas
essas estamos examinando.” (870A-B)
O desenvolvimento da obra segue um plano definido: primeiro listar quais são as marcas
que identificam um historiador mau-caráter e, depois, aplicar essa lista ao texto de Heródoto,
identificando nele as marcas correspondentes a cada tipo (855A-B). Segundo o estudo de Maria
Aparecida, essas marcas somam nove e, em linhas gerais, são as seguintes: (i) opção pelo uso de
palavras e expressões constrangedoras; (ii) uso de rodeios visando à inclusão de relato
desnecessário de um infortúnio ou de uma ação descabida; (iii) omissão de falas e ações honestas
e relevantes; (iv) opção pela versão mais desfavorável de um fato; (v) depreciação de ações
louváveis por meio da atribuição de causa insignificante; (vi) redução da grandeza dos feitos
atribuindo-os ao acaso; (vii) dissimulação de calúnias em meio a elogios; (viii) dissimulação de
censuras em meio a elogios, e (ix) anteposição de elogio à censura para conferir credibilidade
aos dois.
Maria Aparecida de Oliveira Silva chama a atenção para o fato de serem nove as marcas,
o que, a seu ver, nada tem de fortuito:
Embora sustente a existência de mais elementos que constituam uma narrativa
maliciosa, Plutarco, curiosamente, encerra sua argumentação na nona marca, fato que
nos remete aos nove livros de Heródoto de Halicarnasso e demonstra o cuidado de
nosso autor na construção de seu discurso, ainda que não utilize argumentos
irrefutáveis e manipule as citações.
Essas nove marcas e as aplicações que Plutarco faz de cada uma ao texto de Heródoto são
exaustivamente examinadas por Maria Aparecida. Seu estudo mostra que Plutarco, no intuito de
encontrar exemplos dessas marcas em Heródoto, também é tendencioso e, muitas vezes, ostenta
a mesma má-intenção, kakoétheia, que ele inflige a Heródoto. Pois Plutarco distorce fatos,
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