Helena, o Eterno Feminino

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 24

Nota explicativa e uma dedicatoria

Helena, realmente, sofreu muito em terra e no mar. Foi


a deusa-heroina-m mais celebrada e denegrida no mito grego.
Enquanto deusa min6ica, foi alvo certamente do culto sagrado reser-
vado as Grandes Maes. Com o sincretismo creto-micenico deu-se
inicio a seu itinenirio catartico. Ainda heroina em Homero, foi trata-
da com grande dignidade, tanto na Iliada quanto na Odisseia, mas a
partir de Esquilo e dos tragicos em geral transmutou-se em "mulher
de muitos homens" e "cadela traidora" ...
Este 6dio e vituperios contra a esposa de Menelau nao se-
riam reflexos da indignidade, da repressao e do desprezo com que
era vista (e sobretudo nao vista) a mulher grega? Foi a partir desta
pergunta que me pus, faz dois anos, a estudar Helena, mas sempre
em ~~ao da linha patrilinear feroz e desumana, imposta na Helade
pelos mdo-europeus, que para Ia emigraram desde o sec. XX a.C.
, . A pesquisa ja carninhava satisfatoriamente, quando tivemos
nouc1as
tera ' que JU ·1 .
gavamos fided1gnas, de um concurso de I'mgua e 1·1-
0 ltu,a grega. Interessamo-nos por ele e resolvemos modificar todo
Pano de
fie•ti . nosso estudo. Rapidamente se deu ao trabalho um novo
I O mtrod '
' uzmdo-lhe as tecnicas e ran~os de uma tese.
O concurso, todavia, ficou apenas em cochichos e deve es-

7
tar ainda em gesta~ao. Quando surgir, nascera como os de0se , .
.
ca e mentalmente desenvolv1do, · dar alguma P6lia
pronto para aJu
8, f1s1
-
ainda nao tenha paladio... CIUe

A culpa foi, sem duvida: de Diom~es,_e Atena, que jcllnais


tiveram simpatia alguma pela antlga deusa mm01ca e por quem a de-
fendesse. Para aliviar os sofrimentos de Helena, que, por certo, vinte
e nove seculos post Honawn, seria novamente discutida e critieacfa
por uma provecta e colenda banca examinadora, rasgamos a tese.
Voltamos a pesquisa inicial e ai esta o que se pode faz.er por
todas as helenas.
Mantivemos, de prop6sito, a documenta~ao extrafda dos es-
critores gregos em sua lingua rica e sonora. 0 leitor nao iniciado em
Homero (e e pena) nao tern ode que se queixar. Todos os texlos
estao traduzidos.
Fazemos votos que Helena e helenas se libertem dos barba-
ros e nao sejam raptadas por culpa de 2.eus, mancomunado com
Momo, Temis e Plutao, nem tampouco espezinhadas e amea~das
por algum truculento Diomedes.

Esta NOTA EXPLICATIV A ficaria incompleta se nao ex-


pressasse meus agradecimentos aos professores Dina Maria Machado
Andrea M~s _Ferreira~ S~rgio Sampaio Vieira. A Dina, pela dati-
lografia e reVISao da pnmeua minuta; ao Sergio, pelo trabalho in-
cansavel e faciencia ~~ditina em descobrir, na Biblioteca Nacio-
nal, textos unpossfve1s de Dem6stenes, Arist6teles et aliomm. ..
Incompletissima, se nao mencionasse a Dedicat ria.
6
~l Estee en~od, HeAlena, o etcmo feminino, e dedicado a Eduar-
do Nc son orrea e zevedo, pela competenci h bil"
.
trabalho mmuc10so . . _ final dos orioina ·a, onora 1dade
na rev1sao - e
· tadas . 18 e pe1as sugestoes
fe1tas e sempre aca , para que este hvro viesse : .
c,.o-u
.
perfie1·to. a 1uz menos un-

Rio de Janeiro, 6 de ~ode 1989.

Junito Branc1ao

8
si-
ue
1-----
.
IS
,-
e
a
lntrodu~ao

0 mito do rapto de Helena euniversalmente consabido. Mas


em regra, quando se fala da rainha de Esparta, o angulo investigado
e o de sua sedu~ao por Paris, dito tambem Alexandre, principe
troiano, filho de Priamo e Hecuba, reis de Ilion. ·
Bern mais amplo e profundo, contudo, foi o nosso escopo.
· Em se tratando de um trabalho em que cumpre examinar a personali-
dade de Helena sob seus multiplos aspectos na literatura grega, for-
~samente fomos levado a ampliar o c3P1P?~de visap. Helena percor-
I re o mito e o mito aparece come;> fu~ ~lllO da literatura
I
grega. Uma coisa se prende aoutra, 11uma' rela~ao de causa e efeito,
I.
e ambas sao expressas originalmente na lingua grega. Donde oh_a-
vennos citado textos gregos em profusao, e toda vez contraposto o
~ginal arespectiva tradu~ao, para proveito nao apenas dos que de-
se3am ocupar-se exclusivamente com o assunto, mas ainda dos que
se interessam tambem pelo aspecto lingiiistico.
Na presente abordagem iremos fracionar a anfora helenica
em tres por~oes, para reunir depois os fragmeritos e recompor O to-
do, fonnando o .,....1nwOiOn.
-:-i. ,

Como o nosso enfoque da consorte de Menelau esta vincu-


1ado a uma estrutura s6cio-religiosa opressora do elemento feminino,
julgamos imprescindfvel principiar com uma palavra sobre a :ulh
grega em geral, mas explorando-lhe o status, particulanne:te er
. acreditamos, se podera, compreender em
Atenas e Esparta. S6 assun,
que razao a filha de Tfndaro foi tao denegrida no mito e na liter:~
ra.

Preparado s6cia e religiosamente o terreno, a pesquisa sobre


essa figura impressionante do mundo classico nao sera iniciada pela
IUada e pela Odisseia, conforme habitualmente se faz. Pretendemos
surpreender Helena na Grecia antes da Grecia, vale dizer, ao menos
a partir da passagem do Neolitico II (3000-2600 a.C.) para o Bronze
Antigo ou Heladico Antigo (2600-1950 a.C.). Foi por essa epoca,
tudo leva a crer, que os anat6lios, provenientes da .Asia Menor, ten-
do atingido o territ6rio da futura Helade e passado pelas Cfclades,
apossaram-se tambem de Creta. Na ilha de Minos os invasores de-
senvolveram uma requintada civiliza~ao, que tinha por fulcro os
chamados palacios, particulannente o de Cnossos. Ai nasceu a deusa
Helena, uma dentre varias outras hip6stases da Grande Mae, pois
que, sendo a cultura cretense prevalentemente agraria, dominava-a
uma divindade tutelar feminina, dispensadora da fertilidade do solo
e da fecundidade dos animais.

Do palacio de Cnossos passaremos diretamente para a litera-


tura, onde mito e arte se fundem, e acompanharemos a metamorfose
da deusa min6ica em herofua, tratada nos poemas homericos com ex-
trema simpatia. Mergulharemos em seguida nos tragicos e na come-
dia aristofanica, e veremos que, de heroina, a rainha de Esparta se
converteu em simples mulher, adultera e criminosa. Fecharemos a
pesquisa em literatura com duas tentativas malogradas que se fize-
ram para reabilitar a imagem da esposa do atrida Menelau e com a
"visita" que na outra vida o e{dolon da heroina recebeu do icono-
clasta que foi Luciano de Sam6sata, cetico e sofista.
E concluiremos, apos dezessete seculos de Helena, com ,0

vel" pela sangrenta Guerra de Troia, qual patiens ouis ini~::;


. quando entao teremos uma surpresa: a " responsa-
retomo ao mtto,

completou seu ur6boro e retomou, ao menos em parte, na quali d


. .

de imortal e de deusa espartana, a seu pedestal de gl6ria, na Ilha os


Bem-Aventurados.

10

t
.2 - - - - -
Um primeiro encontro com a
.mulher grega

Esimplesmente impossivel falar da mulher grega de maneira


generica, e isso porque, grosso modo, jamais existiu uma Grecia an-
tiga independente que fosse juridica, politica e socialmente consti-
tuida. Ironicamente, a patria do grego oriental Romero s6 veio a co-
nhecer a uniao, pelo menos no sentido de uniao politica, quando
caiu sob o dominio macedonio, iniciado em 323 a.C., com a vit6ria
lograda sobre os gregos por Antipater, general de Alexandre Magno.
Tai uniao se repetiria mais tarde, em definitivo na antigiiidade,
quando as legioes de Lucio Mumio Acaico, em 146 a.C., na rota da
expansao de Roma, liquidaram com o sonho grego de independencia
politica. A Grecia voltou a ser una, mas sob a egide da Republica
Romana.
Diga-se, a prop6sito, que a fragmenta~ao politica da Helade
nao foi algo de novo: desde a epoca aqueia, por volta do seculo XVI
a.C., os helenos ja se apresentavam politica, social e economicamen-
te como uma colcha de retalhos, preludiando o que onze centurias
depois viria a ser a Grecia classica: uma Grecia fracionada em cida-
des-estados, nao raro antagonicas e que dificilmente se congrega-
1
vam, ate mesmo para se defenderem do inimigo comum Basta abrir
1. BRANDA.O, Junito de S. Mitologia Grega, vol. I - Petr6polis, Vozes, 4! ed., 1986,
p. 69.

11
,.1_,,,. ( mposta segundo se ere, pelos fins do seculo IX a C )
a /11,UUU co ' · t c no
4-760 que traz o nnportan e a1.c11ogo das Naus
4-.{1 • • ,

canto n.d". , 49 da amplitude


' • - tral
dessa c1sao ances . , Para se
ter uma 1 eta
0 poeta lfrico Te6gnis d~ Megar~, que viveu na segunda ·
seculo VI a.C., ao suplicar auxibo ao deus Apolo lam
metade do da d. . - . . . , en-
tava essa perigosa mas consuma 1v1sao e nvalidade mterna entre
os helenos:

yap tywy£ 6f6o~x• afpa6C~v


7B , taopw~
xa~ 'EAA~vwv Aao,&6pov· aAACX au,
tAao~ ~µc~fp~v ~~voe fUAaaae n6A~v.
(Eleg. l, 780-782)

- De minha parte eu estrem~o diante do espetaculo da


loucura dos gregos e de suas divisoes, perdi~ao de um povo.
Tu ao menos, Febo, protege esta cidade que nos e propfcia.

Nao sendo possivel, destarte, ate mesmo por falta de docu-


men~ao, tra~ar genericamente um perftl abrangente da situa~ao
juridica e politico-social da mulher grega, focalizaremos sobretudo
Atenas e Esparta, pois destas se possuem informa~oes mais amplas e
seguras. Antes, porem, de chegar as cidades de Solon e de Licurgo,
faremos um breve exc~o com a mulher grega atraves das obras de
Homero, de Hesiodo e d0s Liricos.
Dada a estrutura niatrilinea{ da co)Jlunidade de Minos, con-
figurada religiosamente na Grande Mae, a mulher em Creta era de-
' ' .
tentora dos mesmos direitos que os hQmens.. Nao se pretende com •~-
to dizer que ela fosse c~a do casal na celula familiar, ou que t1-
vesse existid~ na patria de Ariadne uma ginecocracia, como susten-
tou Bacbofen . 0 que .se procura demonstrar e que a mulher creten-
se: ~onge de ficar·enclausurada no gineceu, participava de t ~
~tividades da polis. Os aqueus herdeiros de tao extraordinaria civt-
li'7~ ... - ' liberdade
~ao, sob certos aspectos, conservaram resquicios dessa
2' BACHOFEN, Johann Jakob. Das Mutterrecht. Frankfurt, Krais und Hoffinann,
1975,p.111-137.

12
que era apanagio da mulher.
Na llfada e na Odisseia, onde a cultura creto-micenica tern
a presen~a garantida, existe uma pequena, mas encantadora galeria
de .inatizados e apaixonantes retratos femininos. A ternura e a agonia
de Andromaca, esposa e mae, sfmbolo do autentico amor conjugal; a
amabilidade, a d~ura, a personalidade e a paixao recatada de
Nausfcaa; a finneza e a respeitabilidade inspiradas pela rainha Are-
te; a afei~ao e o devotamento da velha ama Euricleia; e, por fim, a
paciencia, a astucia e a fidelidade inabalavel de Penelope desfilam
diante de nossos olhos suscitando admira~ao, encantamento e uma
grande simpatia. E necessario, todavia, nao nos deixarmos seduzir
pela magia dos versos homericos. Tais debuxos isolados, se hem que
heran~ de velha tradi~ao, nos dois poemas supracitados e no mito,
contrastam com a violencia e a arbitrariedade masculinas. Agamem-
non atrai mentirosamente ate Aulis sua mulher Clitemnestra, a quern
se ligara atraves de um crime hediondo, e sacrifica a pr6pria filha
Ifigenia, para fazer cessar uma calmaria que ele mesmo provocara.
Ulisses, impiedosamente, inicia a lapida~ao de Hecuba, a alquebrada
rainha de Troia, depois de arrancar-lhe dos bra~os a filha Polfxena e
faze-la imolar sobre o tumulo de Aquiles. Na Odisseia, numa cena
impressionante, em que Penelope tenta com muita determin~ao
convencer os pretendentes a permitirem que o "mendigo" Ulisses
experimente o arco de Ulisses, o jovem Telemaco cassa a palavra a
pr6pria mae e lhe ordena recolher-se a seus aposentos e tratar de
afazeres femininos !

>.u.x• £L' o~xov ~ouaa ~a a•au~~, cpya


) ? ., - - , - ,,

~6µ.c.C:t:,
>
~a~6v ~•~Aax4~~v ~£, xa~ aµ,c.n6Xoc.a~
C , '

~fA£U£
,,
Epyov £noCx£a~a~· ~dtov o•avop&OOL µ£-
~~0£C.
n;a._, µ4kc.o~a o•iµoC· ~OU yap xpa~o,
[1/ > ' >,
. LEO~' £V~ O .. Xf•

13
(Od. XXI, 3S0-354)
_ Recolhe-te a teus aposentos e cuida dos afazeres
_ que te
sao Pt6prios
do tear e da roca, e ordena as escravas que va.0 para •
o trabalho ·
Do arco hao de ocupar-se todos os homens, sobretudo
,.. .
que govemo esta casa. Ela, atomta, retomou a seu quarto.eu,
Com Hesiodo, por volta do seculo vm a.C., fenecem a be-
leza de Nausfoaa, a temura de Andromaca e a fidelidade de Penelo-
pe.
O poeta e rude campones de Ascra e duro e severo com a
mulher, cujo modelo para ele e a terrivel Pandora, responsavel pelas
j, mazelas que atonnentam os mortais. Talvez nao se deva objetiva-
mente tachar Hesfodo de mis6gino, mas nao se lhe pode negar um
excesso de precau¢o, de impaciencia e de cuidado com esse mal
tiio IJelo, esse flagelo medonho, mas imprescindivel ao homem...
(Teog. 585).

Vejamos mais de perto a impertinencia do vate da Beocia


para com a mulher:

A,~.,.a'
v~
p E'1tr, u.£. ''} ~EU~£
-
KaAOV
'
KaKOV
'
av~
:, t
a-
,

[a-&o~o,
, I )I ,1 :, ' ' ,t f ,,
ctayay•, EV~a ncp akAOL Eoav 3£01. ~v a~
\-&pw1tOI, t
x6aµ~ ~yaAAOµlv~v yAauxwn1,60~ ~pp1,µoff4-

~auµa 6• ~x• ~3ava'tou~ 't£ ~£00~ ~v~~ov,


-
{!Pll~;-
,

' .. > , >


F· ~vapw,iou<;,
, ,&pw1tOI.
E.,v.
> .t.
w~ e 1.vov 66A.ov cx1.1tuv, aµt1xavov av -

14
(Teog. 585-592)

- E quando, em vez de um bem, (Zeus) criou este mal


tao belo,
conduziu-a (Pandora) para onde estavam os demais deuses e
homens,
magnificamente ataviada pela deusa de olhos g~s, filha
de um deus poderoso.
Maravilharam-se mortais e imortais a vista desse ardil
profundo e sem safda, destinado aos homens. Dela se
· originou
a es~ie maldita das mulheres, flagelo terrlvel instalado
entre os homens mortais •••

Sua desconfian~a em rela~ao as descendentes de Pandora


desdobra-se na vigilancia sobre a prodigalidade e a fidelidade femi-
ninas
c,o~ 6&'\ ' ,,
yuvaLK~ n&noL&&, nfnoLi' y& f.!l
~1i~a1,

(Trab. 375)

- quern confia em mulher esta confiando em ladroes.


E mais seguro, por isso mesmo, ter apenas um filho:
garan-
te-se o sucessor e diminuem-se consideravelmente as despesas ...
(Trab. 376-377).
No tocante ao matrimonio, o mais sensato para o homem e
contraf-lo aos trinta anos com uma jovem de dezesseis, que resida
vizinhan~as e que seja virgem, a fim de impor-lhe s6lidas dire-
trizes (Trab. 695-700). Mesmo assim, e preciso precau~ao para nao

15
r
atrair as cbacotas dos vizinhos, que. por certo conhecem bem O corn-
portamento da eleita: _
, ' ., '
•&v~a µ4A' aµ,L~ L6wv, µ~ YEC~OGL Xdp-
@ci-rcx r,4iµ!~
(Trab. 701)
I
I

- examina tudo, cuidadosamente, para nao desposares 08


escmnios de teus vizinhos ...

0 homem prudente une-se a uma mulher comprada, uma es-


I

h crava, que se pode enxotar a qualquer momento e nao a uma legiti-


I
ma esposa (Trab. 405-406), que possui direitos vagos, porem incon-
testaveis.
A Idade Lfrica (seculo VII a.C.) permitiu que em algumas
partes da-Helade a muiber voltasse a ser o centro das aten~oes, posi-
tiva ou negativamente, ao menos na "poesia". Com efeito, em re-
la~o a mulher, os poetas lfricos (citar-se-ao apenas os principais e
levar-se-a em consid~ao o pouco que de muitos nos chegou) po-
dem repartir-se em tres grandes grupos: os que nao se preocupam em
demasia com ela, ficando-lhe mais ou menos indiferentes, como Tir-
3
teu; S6lon, Focflides , Baquflides e Pindaro; um segundo grupo,
com- Te6gnis de Megara, que Jhe faz uma que ..t?Utm referencia;
Semonides ou Simonides de Amorgo e . ~-de Efesoque a ~
tigaram com critica ferina, confonne se vera mais abaixo; e, por fun,
um terceiro grupo, onde se contam os que a exaltaram ate os astros,
como Alceu, Anacreonte e sobretudo Safo, a grande feminista da
ilha de Lesbos.

Simonides, OU Semonides, consoante Augusto Magne


4
eUill
. . . 0~
3. bem ver~de que Focfiides de Mileto, que viveu oa segunda meta~e _do t;!iber,
a.C., autor de_ elegias gn6micas, deixou um fragmento em que tam~m satirU& to
?UIS elegia 6 uma imita<;ao 6bvia dos c6lebres iambos de Sim6nides sobre assun
1dentico. _
4 A fia de ver elll
gra lir11.r.ovC6'1, por t~1.1ovC611, 6 .de fato atestada, confo~e se po T ubneti,
orus Bcrgk, Poetae E_legiaci et lambographi Lipsiae In sedibus B.G. e
MCMXIV, p. 734. ' '

16
-
dos grandes iamb6grafos do lirismo grego. Nascido na ilha de Sa-
mos, possivelmente na primeira metade do seculo VII a.C., viveu em
Amorgo. Dele nos chegaram, alem de fragmentos menores, dois de
maior extensao: um deles ocupa-se dos males da humanidade; e 0
outro, com 118 iambos, e uma contundente satira contra as mulhe-
res.
O poema nos aponta dez tipos diferentes de mulheres, todas
indesejaveis, com exce~ao do ultimo: a suja descende da porca; a
mulher astuta e velhaca procede da raposa; a ma e questionadora, da
cadela; a indolente e pregui~osa, da terra; a voluvel e instavel, do
mar; a gulosa, sensual e pronta para qualquer trabalho, da jumenta;
a perversa e revoltante, da doninha; a ociosa e bem arrumada, da
egua; a feia, a magricela e malevola, da macaca; e por fim a honesta
e desejavel provem da abelha.
Quanto ao homem, atribui-se sua cria~ao, nos prim6rdios,
ao ser inteligente, sem concurso de mulher... (Sat. Muth. 1-93).
Nao ha duvida de que a Satira contra as Mulheres, de
Simonides de Amorgo, e, no mfnimo, um breviario de misoginia.
Hiponax de Efeso (fins do seculo VIl a.C.), criador do iam-
bo escazonte ou coliambo, foi outro que se notabilizou pelo despre-
zo votado as descendentes de Pandora. Esse arquimis6gino chegou
mesmo a exceder a Simonides, quando de sua pena saiu o que talvez
seja a mais virulenta invectiva disparada contra as mulheres em toda
a literatura grega:

, C > ,,
~u• ~µipa~ yuva~x6, £~a~v ~6~a~a~,
c, - ) -
o~av xaxflp~ ~£&v~xu~av.

(Frag. 29 Bergk)

- Ha dois momentos em que a mulher nos proporciona um


prazer supremo:
'no dia do casamento e quando a levamos a sepultura.

Se, infelizmente, do grande poeta Alceo, da ilha de Lesbos,


e de Anacreonte, da cidade de Teos, na Asia Menor, ovate do amor,

17
do vinho e da natureza, s6 nos chegaram parcos fragmento e .
de se larnentar o pouqu{ssimo que se possui eta maior m~to cia!'
gregas, Si110,
-& P<>etisas

Mitilene era a capital da ensolarada ilha de Lesbos


Egeu, sob domfuio dos e6lios desde o seculo XIl a.C. Faust~sono
dependentes, presun~osos e amigos. do vinho e do prazer, essess, e6-
m-
lios transfonnaram sua ilha num "territ6rio livre", em algo muito di-
ferente do que se passava no restante da Helade.
0 contacto permanente com o Egito, onde a mulher sabida-
mente gozava de alta considera~ao, trouxe para os habitantes de
Lesbos o runor ao luxo, a vida social e intelectual e, em conseqiien-
cia, uma grande liberdade nos costumes .

h Tai vida de prazeres demandava riqueza, e os e6lios iam
busca-la
5
no intenso comercio com o Oriente e em particular com o
Egito • lndubitavelmente essa convivencia com o mundo oriental e
sobretudo com o pa{s dos fara6s muito cooperou para esse surpreen-
dente e inusitado modus uiuendi da mulher grega de Mitilene.
Pois bem, a representante maior desse sensualismo e desse
momento grego de libera~ao feminina foi exatamente Safo.
Seria inutil insistir em determinados aspectos da vida publi-
ca e i'ntima da grande poetisa (refiro-me particularmente ao homos-
sexualismo); e isso porque, se por um lado a vida de Safo e mal co-
nhecida e esta envolta num emaranhado de lendas, por outro lado a
,f maior das lfricas foi muito denegrida pela comedia grega do seculo
V a.C. e por poetas posteriores. Basta ler a carta 15 das Her6ides de
i
t

'
. restou de Al-
5. TModore Reinach e Aim6 Puech, em sua excelente ed1~ao do que nos esse ponto:
ceu e Safo (Alcee et Sapho. Paris, Belles Letres, 1960, p. 4), deixam t,,~~ ~Iaroont cherch6
"Epris d'une vie de plaisir, ils avaient besoin d'etre riches. Les Myul n1ens our du Jucrc
fortune jusqu'au dela de l'Hellespont, jusqu'a la bouche de l'H~bre. Leur Eoliens, dit
et de l'aventure les a conduits frequemment en Egypte. Us furent le! seu!: :pot de Nau-
H6rodote (2, 178), qui profi~rent des avantages conced6s par Amasis 8 1 . dade
0 de oquezas
cratis". ("Entregues a uma vida de prazeres, os mitileneus tinham necessi r lucro el
e foram busd-las para a16m do Helespo · nto, at6 a foz do Hebro. Seu am<> 80 Her6doto
.
aventura os levou muitas vezes ao Egito, e foram os unicos e61!os, · forma-n
10
05
sto de Niiucra·
(2, 178), que lucraram com as vantagens concedidas por A~1s ao entrepc>
tis." Tradu~ao nossa).

18

L
6
ovfdio, jntitulada De Safo, a Fion para se ter uma ideia de quanto a
"cantora das rosas", sete seculos mais tarde, ainda era mitizada e
cliscutida, como ainda o e ate hoje !
o que de positivo se sabe eque ela viveu no seculo VII a.C.
e fundou em Mitilene o que ela pr6pria denominou Residencia das
Discfpulas das Musas (e havia outras "residencias", rivais, como as
de Gorgo e Andromeda), uma especie de confraria dedicada h Mu-
sas e a deusa Afrodite. Sob ~ao da poetisa, aquilo a que essa
verdadeira universidade feminina aspirava era o culto do belo con-
jugado acultura. Tecnicamente, a Residencia poderia ser comparada
a um conservat6rio de musica e de arte: la se ensinavam a dan~a co-
letiva, a musica instrumental, o canto, a poesia e o culto do ffsico. A
vida comunitaria era ritmada por uma serie de festas, cerimonias re-
ligiosas e banquetes.
Mas a educa~ao mitileneia nao era apenas artistica e social:
o fisico era tambem muito valorizado. Sem serem espartarias, as jo-
vens de Lesbos dedicavam-se com afinco aos esportes atleticos,
quando nao para conservarem a beleza do corpo, a gra~a e os encan- ·
tos femininos.
E se, na realidade, a Helade foi um clube de Jwmens, Safo e
outras idealistas destemidas romperam violentamente com a tradi~ao
repressiva e transformaram Mitilene num clube de mu/heres! Para
um "pais" como a Grecia~ em que a mulher, semi-analfabeta, passa-
va o tempo no gineceu ocupando-se do tear e da roca, a Residencia
das Disdpulas das Musas foi uma iniciativa corajosa e arrojada.
Com isto, no entanto, a poetisa, a mulher, por sua i,ulependencia
e cultura, tomou-se alvo facil das chicotadas machistas e conserva-
doras dos poetas da comedia atica.
U 6, _Faon era um her6i de Lesbos. Pobre, velho e feio, exercia a profissao de barqueiro.
m dia atravessou Afrodite, disf~ada de ancia, e nada lhe cobrou. A deusa, para recom-
pensa-lo, presenteou-o com um frasco de um balsamo maravilhoso, que rejuvenesceu o
velho barqueiro, transformando-o num homem belfssimo, por quern se apaixonaram todas
: mulheres da ilha. Safo, por nao ter sido correspondida em seu amor ardente, l~ou-se
~n~, saltando do fatfdico penhasco de Uucade. Num dfstico famoso, Ovfdio nos
nutiu O calor dessa paixao. Ei-lo na magnffica tradu~ao do Prof. Walter Vergna:
• Uror, ut, indomitis ignem exercentibus Euris
F,-:~- '
· "'""-> accensis messibus ardet ager.(Her. 15, 9- JO)
1nflamo-me como o campo feraz que arde com as colheitas em chamas,
chama que mais e mais se avoluma insujlada pe/o Euro indomito.

19
Como preito a audacia e a paixao da poetisa de Le -
transcrevemos dois de seus celebres fragmentos, em que Eros sbos,
- d , como
epr6prio na Lirica, abrasa todos os 6rgaos o corpo humano:
1 -
'Epo~ 6~u~t µ•~ Aua1-t1iAT)~ 66vc1.,
) >'
TAUX6fft.XpOV u"axuvoV
,, op•c~ov,
.,
''A~t1.• ao\ 6'&µc~cv µcv a•~xtc~o
,pov~Co6~v, &K"i. 6' 'Av6poµl6av n6n)~.
(Liv. 5, Frag. 97-8)

- Eros novamente arranca-me os membros e me atormenta.


Eros amargo e doce, monstro invencfvel, 6 .A.tis:
tu, farta de mim, tu te foste, voaste para Andromeda.

, ' xaµ
aAAa ..
' µ£v YAwaaa FfcxyE A
u - - 'A~1t~OV
6'av~~xa
,
XPWI. • nup .,.
vna6cop6µ
>, <l'KE:V t
onxa~£00L 6'ou6'ev ,,
op~µµ' ,
t E:1t I, ppdµ-
(3 e 1.01. 0 'CXXOUCXI. •

20
~aLoav ~lPt~, XAwpo~lpa noca, 6t
fµµ~, ~t&v~x~v o'oxCyw ~n~6cu~v
cpaCvoµ' u -

(Liv. 1, Frag. 2)

_ Parece-me semelhante aos deuses


aquele que, sentado a tua frente,
ouve tua voz suave e teu sorriso inebriante:
um sorriso que enlouqueceu meu cora~ao...
Quando furtivan1ente te olho,
minha voz se me prende na garganta.
A Ifugua se me entorpece e um fogo ligeiro
escoa-me subitamente sob a pele ...
Com os olhos nada mais vejo, um estampido
tapa-me os ouvidos. Escorre-me o suor...
Um tremor invade meu corpo e empalide<;o
mais que a grama seca e percebo bem perto
7
de mim as trevas da morte ...

0 poeta latino Caio Valerio Catulo (87-54 a.C.), ardendo


em paixao por Cl6dia, a quern chamava pelo epfteto de Leshia, fez
deste poema de Safo uma imita~ao tao bela, que valeria .a pena
transcreve-la: .
Ille mi par esse deo uidetur,
Ille, sifas est, superdre diuos,
Qui sedens aduersus identidem te
Spectat et audit
Dulce ridentem, misero quod omnis
Eripit sensus mihi; nam simu/, te,
Leshia, aspexi, nihil est super mi
Vocis in ore,
Lingua sed torpet, tenuis sub artus
Flamma demanat, sonitu suopte
Tintinant au.res, gemina teguntur
Lumina nocte.
Otium Catulle, tibi molestum est;

da 7• Os fragmentos cuja tradu~ao estampamos fazem parte da cuidadosa edi~ao elabora•


por Th&>dore Reinac e Aim6 Puech, j~ citada por n6s.

21
Otio exu/,tas nimiumque gestis.
Otium et reges prius et beatas
Perdidit urbes. (Cat. Poem. 51)
_ Parece semelhante a um deus, ou se possivel,
superar os deuses, este que sentado junto a ti
contempla e ouve, enquanto sorris docemente,
o que me faz perder o senso, pobre de mim;
pois quando te vejo, Leshia, fico transtomado
com as palavras na boca, a lingua se entorpece,
sutilmente sob os membros alastram-se faiscas,
vibram-me os ouvidos em zumbidos a luz dos olhos e co-
berta pela noite.
0 6cio, Catulo, te e funesto,
tu te inflamas com o 6cio e te agitas demais.
0 6cio fez perder
reis e cidades outrora felizes.
2.1. A Mulher desce mais um degrau
Lesbos, no entanto, foi apenas um corte, um hiato, um oasis
neste vasto deserto de repressao masculina. Voltemos a realidade,
reco~ando por Atenas.
Na trilogfa de Esquilo, Orestia, Agamemnon e assassinado
pela esposa Clitemnestra. Orestes, por ordem de Apolo, vinga o pai,
matando a pr6pria mae. Apolo e Atena, como "advogados e juizes"
do matricida, nao descansam enquanto nao o veem livre das Erinias
e absolvido pelo Are6pago. Em ultima instancia, a Orestia sintetiza
a luta entre o matriarcado e o patriarcado. O primeiro, agonizante, e
representado pelas divindades matemas do mundo subterraneo, as
e
Erinias; o segundo, dominador, espelhado em Atena, nascida sem
mae, da cab~a de Zeus, e em Apolo, legalista e patriarcal, propug-
nador maximo da religiao da p6lis8 •
Respondendo ao corifeu das Erinias, que acusa Orestes de
as~as~inar a mae e renegar o sangue matemo, Apolo e muito claro e
ObJetlvo em rela~ao amulher: 9
8, A prop6sito da maldi~ao familiar em que esta envolvida toda a ra~a dos atridas, is«>
teS) fiZe·
~. da progenie de Atreu (Tieste, Egisto, Agamemnon, Menelau e seus descend~tr6palis,
mos um longo comentario emnossaMito/.ogia Grega, Vol. I, Cap. V, P· 67 • 95 •
Vozes, 4!! ed., 1988. .
9· . . . G o, Trogidia e
trilog1a de Esqutlo, Oristia, foi por n6s analisada em Teatro re~
Comedia, Petr6polis, Vozes, 4!! ed., 1986, p. 20-35.

22
AIIOAAQN-
KaL' ~OU"fO- A~~w, X(ll," µuv ~_fl' w~
' opaw~
, - £pw•
> -

oux ,, ea~1, µ,,~~P


' xeu~µ~vou ~fxvou
"foxeu,, ~pofo~ " 6£' xuµa~o, vcoax6pou•
~,x~£1, 6'o ap~wv,
'
o•ancp tt.v~ tt.v~
&OW0£V cpvo~, 01.01. µ~
); :,
3£6~.
Tcxµ~p1,ov 6£ -
' "t"ouol 001, 6cCtw A6you•
1t<X~YlP µe:v avyt.vo1."f'avcu µfl"t"p6~· 1tl.Aa,
µ4p~u~ ~ap£0"f~, •a~,>OAUµ1tCou .. 6~,
oio•cv ax6"fo1,a1, v~ouo~ ~£3paµµt.v~.
, 'c )/ ,, , ..
UAA'o1.ov cpvo, ou~1,~ av ~lx01, ~£6~.

(Eum. 657-666)

APOLO - Vou te responder e venis se nao tenho razao.


Nao e a mae querr gera aquele que e chamado seu
filho:
ela apenas alimenta o genne nela semeado.
Gera quern semeia. Ela, como uma cstranha,
salvaguarda
o rebento, se um deus nao vem a prejudica-lo.
Dar-te-ei uma prova de que pode haver pai
semmae.
Aqui temos, perto de n6s, a esse respeito, uma
testemunha:
a filha de Zeus OUmpico, a qual nao foi fonnada
num regac;o matemo.
Deusa alguma seria capaz de gerar ta1 filha ...

Corn esse tipo de argumenta~ao "irrefutavel" e esse discur-


so "falocratico", faltava apenas a autoritaria decisao da augusta Pa-
.~as 1:tena, a.que nasceu sern mae, para que se vencessern as Erfuias,
1st0 e, para que se chegasse a pr6pria derrocada do rnatriarcado:

23
A8.

(Eum. 734-740)

ATEJl,jA - E a mim que cabe a ultima palavra:


juntarei meu sufragio aos que sao a favor de
Orestes.
Nao tive mae que me desse a luz. Minha simpatia
vai para o varao, pelo menos ate o casamento.
Sou inteiramente pelo pai. Nao levarei em conta
a morte de uma mulher que matou o consorte,
guardiiio de seu lar ...

Nao e diffcil concluir-se que a mulher grega estava em


"boas .~os": reinava Djl Helade o legalista Apolo, chamado por
~ -a4-ip1,o~ tt1'\YT)-r~, , o exegeta nacional e em
Atenas, impera~a a virge~ Palas Atena, a de olhos g~os, criada
sem mae e nasc1da das memnges de Zeus ...
Pois hem, na cidade de Pericles, a menina ja vinha a _
. , 1 0 "d al .
do como indeseJave . 1 e sena que o Casal tivesse logo o mun _
· assim
nino. Estaria · reso1v1"da a ques""o
•;;: da sucessao e da hum me
alem de assegurada a co?~w · "dade dO culto ~~ar. eran~,
· · Em se casando,
a JO.vem passava a partic1par do culto familiar do marido· e .
,. filhc
ainda era acompanhada de um dote ... Ter um uruco • ,p1or
_ var;;~
' . -.v, pa-
ra sucessor e herdeiro, eis o grande deseJo e conselho de Hesfoe1o
(Trab. 376-378). Platao e mais generoso:

24
(Leis, 11, 930 c-d)

- O numero de filhos considerado suficiente, segundo a lei,


seria de wn casal.

O desamor dos parceiros, a. facil e consuetudinaria satis-


fa~o do instinto sexual fora do lar (e veremos mais abaixo por que),
o egoismo, a avareza e o desejo de assegurar nas maos de poucos o
patrimonio familiar fizeram que os casamentos gregos, decididamen-
te, nao fossem prolificos. Na Helade s6 os deuses tiveram muitos fi-
lhosi Apenas no caso da chamada epiclera, isto e, fl-
Iha £ 1t CXA T} po~ (herdeira uni.ca que se casa com parente pr6xi-
mo, com o objetivo de preservar o patrimonio familiar), obrigava-se
o marl.do a ter conjun~ao carnal com a mulher t:res vezes por mes,
nos tennos das leis de Solon (Plutarco, Solon, 20). Alias, Plutarco
laborou em equivoco ao afinnar em seu dialogo 'Epw't1.x6,;;
que tal disposi~ao objetivava revigorar e tonificar o casamento com
esses sinais de temura:

.ov •£
t6AwVa µap~upcr y&yovtvaL ~WV
yaµLxwv tµntLP 6 .a.ov voµ<>&~~T}v, xckto, -
- ,
aav~a
.

- tAa~~ov,,) I ~PLt;;
µT}' :,,
,.
'

'
xa~a
-
.'

,,
µT}Va
-
~v-
T.!
µc.n xk~aL4t&LV, oux T)60VT)~ tvtxa 6~xo~
&; , Cl C , ._ ' ,,
~&v, «Ak'w<1'1£P «L XOA£L' vL« xpovou
aKovoa,;; ,
' avavtovv.aL- . , .
~po~ aAk~ka,, ou~w~
"
apa
.., C
,
' ~ouX6µcvov avavcoua&aL -
A ,
'
~ov y4µov .,tx
L. :,
.wv &x4a~o~£ auAAtyoµ~vwv tYXAT}µ~~wv tv
·~ ~OL«V'9} fLAOfpoa~vn·
(Er6t. 169 A-B)

25
_ S6lon foi indubitavelmente um legislador muito ate
que conceme ao casamento. Prescreveu aos marid nto no
procurassem a mulher pelo menos tres vezes por ~s que
lo, nao em vista do prazer, mas ~r motivos outros· ~e-
como as na~oes renov~ de quando em quando
08
sun b'a
que entre s1 contraem, 1gualmente o legislador dese. tados
o casamento fosse de alguma forma revigorado comJou que
· al de temura, apesar d as mu'tuas acusa~oes
sm - acumuladasesse
no dia a dia.

O que realmente pretendia o legislador era apressar O nas-


cimento de um filho varao, que perpetuasse a heran~a familiar.
A causa da infecundidade muitas vezes involuntaria das es-
posas atenienses esta hem expressa em dois versos de Menandro,
poeta comico do seculo IV a.C.: 10

(Frag. 656 K)
- Nada mais desgrac;ado que um pai,
exceto outro pai com maior mimero de filhos.

Para evitar familias numerosas e problemas com filhos ilegi-


timos, praticavam-se muito em Atenas a exposi~ao11 e o aborto, ge-
nericamente tidos como legais.
0 escnipulo religioso, estribado por certo no temor do cas-
tigo divino, impedia que se praticasse o infanticidio. Conjurava-se a
. . expondo-se o recem-nasc1"do, pnnc1p
hipocns1a, . . aimente se dopodsexo.a
feminino. Ab~donada em regra num vaso de argila, que lhe en

· trafdos da segutl
. ~O. Os frag~entos d~ Menandro que ora citamos_ foram todos ex ondon, Harvard
ed1~ao de Francis G. Alhnson, Menander - The Principal Fragments. L
University Press, 1951. . ri·
11. A exposi~ao real, hist6rica, ora referida, nada tern aver com a exrsi~io ,n(nca,
l I Cap.. V, P·
tual e de cardter inicidtico, de que tratamos em nossa Mitologia Grega, 0 • '
89sq., Petr6polis, Vozes, 1986.

26
rvir de twnulo, a crian~a ficava amerce da sorte. E poderia ser re-
se Ibida, 0 que acontecia com freqiiencia, se bonita e robusta. A mae
coteril (a esterilidade era sempre da mulher!), para nao ser abando-
pelo marido, simulava uma gravidez, escolhia uma crian~a ex-
posta, um menino, e o apresentava ~omo o ta~ sonhado herdeiro.
Havia quern recolhesse os ~m-nasc1dos, memnos ou meninas, pa-
ra faze-los escravos ou vende-los. Muitas vezes, as meninas, se be-
las e sadias, eram destinadas aprostitui~ao.
O mesmo receio hip6crita, que·nao aceitava religiosamente a
morte de um recem-nascido, mas que tolerava a morte pelo abando-
00, talvez pudesse explicar-se, conforme lembra P. Roussel, por um
expediente s6cio-religioso: "De maneira geral, o infanticfdio e mui-
tas vezes considerado como um ato mais ou menos indiferente, uma
vez que a crian~ ainda nao participa da vida do grupo social. Desde
que nao se tenha agregado ao mesmo por determinados ritos e nao
tenha recebido um nome - o que lhe confere um come~ de persona-
lidade - o recem-nascido nao possui existencia real. Seu desapareci-
mento nao provoca, por isso mesmo, o que denominariamos senti-
mentos naturais" .12
Ja o aborto nunca foi proibido por lei. Esta intervem apenas
para salvaguardar os direitos do pai do nascituro: uma esposa ou es-
crava jamais poderia provocar o aborto sem consentimento expresso
do marido ou senhor. A consciencia religiosa, porem, as vezes, fala
ma.is alto que a lei. Por isso iresmo, Arist6teles prescrevia o aborto
em fun~ao do numero exagerado de filhos "antes que o embriao ti-
vesse recebido vida e sensibilidade:"

' ), '
up~v a~aa~a~v crrcvfaaa~ xa~ Cw,,v,
)

-
c~xot~oaa~ 6t~-- ' ,,
aµ~MIIO~V
(Pol. 1, 14, 10).

- convem provocar o aborto antes que o embriao tenha sen-


sibilidade e vida.
l2. MIREAUX Emile. La vie quotidienne au temps <IHomire. Hachette, 1954 , P·
218sq. '

27
r " O "desastre familiar" grego, particularmente em Atenas
com O seu cortejo de tanto desamor, exposi~o de recem-nascidos'
infanticfdio disf~do, pratica do aborto e redu~iio dnistica do mi~
I a
mero de filhos (devida sobretudo ao egofsmo, tradicional avareza
, grega e A propria estrutura s6cio-economica reinante na p6lis) teria
tido por motivo primeiro, a nosso ver, a profunda indiferen~a ou ate
a
mesmo o desprezo que se votava mulher, ressalvadas as ex~oes,
e claro, porque as havia.
Tudo co~va pelo modus secular e tradicional que presi-
dia ao eolace matrimonial. 0 casamento era sempre do homem: tra-
tava-se de uma escolha feita pelo homem, da qual nao participava a
mulher, porquanto esta, em Atenas, nao tinha direitos, nem politicos
nem juridicos. Confinada no gineceu, a jovem aprendia o manejo da
roca e do tear. E talvez lhe fossem transmitidos, pela mae, por algu-
ma parenta mais velha, ou mais comumente por uma das escravas,
alguns rudimentos de leitura, calculo e musica. E era s6. No gine-
ceu, aguardava o principe realmente "encantado", com plena ciencia
do conselho do poeta didatico Naumaquio, citado por Estobeu (Con-
selhos Conjugais, 12):
Toma por marido aquele que teus pais desejam

Em Atenas, todo e qualquer casamento entre um cidadao e

b
1,, ,
UJD.l filha de cidadao era precedido por um acordo, denomina-
do t r,ul)a etimologicamente "ato de dar em garantia". Con-
sistia essencialmente na promessa, pelo pai da noiva, de dar um ~ote
• ao pretendente que escolhesse, e na aceita~o do dote pelo candida-
to, que assumia o compromisso de casar-se. Obviamente, dependen-
do do dote, poderia haver mais de um pretendente ...
Fos~m os noivos de menor idade, facultava-se aos pais ce-
l ~ m a £ yyii110 l..;. Nao raro o acerto se fazia quando os fi-
lhos ainda nem haviam completado cinco anos ...
sua comedia A mulher de cabelos cortados (894-89~),
de que s6 restam fragmentos, Menandro nos deixou um pequeno dia-
lfgo _que traduz com mUita propriedade o processo da
E. YlVT'IOI. c; :

28
JIA1.'A!KOt - , ,
iau~~v yv~aCwv naC6wv CK'ap6~~ a°rt 0C-
~wµ1, •

noAEl'2N - Aaµ~4vw
nATAIIOt - xa~ ~poLxa .pCa .~Aav.a
' xaAw, ~66t
DO.AEl10N - •al

(Frag. 720 K)

PATECO - Dou-te minha filha, para que ela de luz filhos


leg{timos.
P6LEMON - Eu a recebo.
PATECO - Ofere~o um dote de tres talentos.
P6LEMON - Recebo-o igualmente com prazer.

De dezoito a vinte anos para o noivo e de quinze a dezesseis


para a noiva era a idade tradicionalmente legal para o casamento,
que tinha por finalidade produzir filhos legitimos. Um pai sempre
esperava que o filho o amparasse na velhice, o sepultasse ·segundo
os ritos e continuasse o culto familiar, indispensavel a paz da alma
na outra vida.
Ao que tudo indica, os jovens atenienses se casavam por
conveniencia religiosa e social, e nao por gosto. Em Atenas a
pressao da opiniao publica sendo muito grande, o celibaiario era al-
vo de remoques e menosprezo. ·
Freqiientemente livravam-se do "doce himeneu" aqueles cu-
jo irmao mais velho fosse casado e tivesse filhos. Decididamente, 0
amor nio era uma iguaria que entrasse no banquete nupcial •·· Mais
uma vez o poeta Menandro nos coloca no centro do probl~ma. Em
dois fragmentos ele sintetiza .o desencanto com a institui~ao a que
presidia a deusa Hera:

29
~o yvvarx'\'xcLV -
ttvaC TE naC6wv, Dctp-
~i"ea,v,
~u~ipu µtpCµvu~ nbXA«, ,tPtL
(Frag. 649 K)

- ter mulher e ser pai de filhos, Pmmenon,


e arrastar muitas preocupa~oes na vida
.lt.6. -
~o yaµc,v, e&v
.. t,!
TI}V a~,,vt~av axo~~,
) ... ., '\.

'
xuxov , €a~1.v,
µcv > UAX'uvayxa~ov
> > -
xux6 v
(Frag. 651 K)

- casamento, quando se olha de frente a verdade,


e uma desgra~a. mas uma desgra~a necessaria.

Prosseguindo estas digressoes sobre o casamento, e antes de t~


penetrar mun lar ateniense, vejamos em resumo o pouco que se sabe
sobre as cerimonias que cercavam a contrata~o do matrimonio e a
~ a o das bodas. Acompanhando uma jovem ateniense em sua
mudan~ de status, poderemos talvez avaliar as novas e as
·responsabilidades que lhe eram reservadas, hem como as bumi- ~--
l h ~ que haveria de enfrentar. Ao que parece, as coisas eram um
tanto c~mpli~das nas famflias ricas e nas de classe m6dia. Ao aco~-
do, a E: YY VT} 0 I. (; , deveria ou poderia seguir-se logo depo~
0
ycfµo , a uniao, o casamento. Contrafam-se nupcias com mais
freqiiencia na lua cheia, no invemo isto e no gamelion, s6tim0 mes
do ano ateniense, correspondente a Jane~, consagrado a Hera, ~u-
sa dos_ amorcs legftimos. Na vespera das bodas, a famflia da no1va
oferec1a sacriffcios aos deuses protetores do casamento: Zeus~ Hera,
AJ?<>lo e Artemis. Ap6s consagrar a essas divindades OS objCtOS e
brinquedos de que se cercara em sua infancia, a jovem preparava-se
0
para. ~anho ritual e Catartico com a agua que lhe era trazida,
proc~sao solene, da fonte ·de Calfrroe nas imedia~s da Acr6p<> ·
No dta segumte
~=
· '
oferecia-se o banquete nupcial, na rest·c1enc1a da

30
I
I

Você também pode gostar

pFad - Phonifier reborn

Pfad - The Proxy pFad of © 2024 Garber Painting. All rights reserved.

Note: This service is not intended for secure transactions such as banking, social media, email, or purchasing. Use at your own risk. We assume no liability whatsoever for broken pages.


Alternative Proxies:

Alternative Proxy

pFad Proxy

pFad v3 Proxy

pFad v4 Proxy