Capítulo 1

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CAPÍTULO 1

V estida com o seu avental vermelho sobre uma blusa com folhos
e uma saia castanha lisa, Ceony pôs‑se em bicos de pés num
banco de três pernas e colou um quadrado de papel branco na pa‑
rede leste da sala dos Holloway, no ponto onde a parede se unia ao
teto. Aquela família celebrava a atribuição ao Sr. Holloway da Me‑
dalha por Serviço Militar Geral em África, e tinha apresentado um
requerimento para contratar o Dobrador local — o Mago Emery
Thane — para tratar da decoração para a festa.
Claro que Emery passara aquela «tarefa frívola» à sua aprendiza.
Ceony desceu do banco e recuou até ao centro da sala para ava‑
liar o seu trabalho. A maior parte da mobília da grande sala de vi‑
sitas já fora removida para dar lugar aos ornamentos altamente ela‑
borados. Até ao momento, Ceony já colara na parede 24 quadrados
de suporte e colocara grandes folhas de papel branco liso por toda
a sala, cortadas de acordo com as medidas que a Sra. Holloway lhe
enviara por telegrama.
Depois de verificar que os seus quadrados de suporte estavam
corretamente alinhados, disse:
— Afixem‑se.
Vinte e quatro grandes folhas de papel saltaram das suas molas
em espiral no chão como lebres a correr velozmente através de um

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Charlie N. Holmberg

campo, cada uma delas precipitando‑se para o quadrado de suporte


que lhe era destinado e unindo‑se a ele. As pesadas folhas ficaram
pendentes dos seus quadrados de suporte até que Ceony gritou:
— Achatem‑se! — e as folhas colaram‑se às paredes como papel
de parede, revestindo uniformemente a sala de branco. Menos as
escadas na parede do lado norte, obviamente.
A Sra. Holloway pedira motivos alusivos à selva, para refletir
a breve campanha do marido em África, por isso Ceony — depois
de consultar vários livros sobre o assunto — escrevera os feitiços
necessários nas costas das grandes folhas de papel e Dobrara de‑
vidamente os respetivos cantos. Agora, só tinha de testar os seus
desenhos.
— Retratem — ordenou, e, para seu alívio, todas as folhas escu‑
receram para tons de verde e castanho, colorindo‑se e transforman‑
do‑se como se fossem bonecas de papel. Faixas escuras de verde‑ca‑
muflado sombreavam as paredes e pontos luminosos verde‑hortelã
e amarelo‑esverdeados causavam a ilusão de feixes de luz perpas‑
sando irregularmente as copas frondosas das árvores onde se entre‑
teciam trepadeiras. Pinceladas de verde‑azeitona formavam zonas
cobertas de ervas compridas e selvagens por entre sombras em tons
de ocre e mogno, no solo irregular junto ao soalho, e o canto de um
mergulhão de pescoço vermelho distinguia‑se do roçagar longín‑
quo de asas de insetos. Pelo menos, a melhor recriação de Ceony
do canto de um mergulhão de pescoço vermelho. Na verdade, nun‑
ca ouvira nenhum, apenas adivinhara como seria o som com base
no piar de pássaros africanos bizarros que encontrara no jardim
zoológico.
Ceony deu a volta à sala com pequenos passos, interiorizando
aquela ilusão grandiosa, um mural vivo criado pela magia das suas
próprias mãos. A cada 30 segundos, um rato de orelhas compridas
saltitava entre duas árvores, e a cada 15 segundos as folhas e tre‑
padeiras agitavam‑se sob uma brisa suave. Apesar de não estar a
segurar papel, sentia o formigueiro do papel nos dedos. Aquele tipo
de feitiços nunca deixava de a maravilhar.
Deu um longo suspiro. Nada de erros — ainda bem. Se, neste
momento, ainda não conseguisse criar ilusões como aquela sem er‑
ros, nunca conseguiria realizá‑las quando, no mês seguinte, fosse

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Magia de Mestre

fazer o teste para maga. Tencionava fazer o teste uma semana de‑
pois do seu segundo aniversário como segunda aprendiza e meio
de Emery Thane.
Retrocedendo até à porta da frente, Ceony agachou‑se junto
ao seu grande saco de feitiços e tirou de lá um estojo de madeira
cheio de estrelas, que Langston, o primeiro aprendiz de Emery, a
ensinara a Dobrar há tanto tempo. As pequenas estrelas em forma
de almofada não eram maiores do que uma moeda, e todas tinham
sido Dobradas em papel cor de âmbar, embora o comerciante que
vendera o papel a Ceony tivesse classificado aquela cor como «vir‑
ga‑áurea». Ceony Dobrara dúzias daquelas estrelas em três dias, até
ter cãibras nos dedos e recear ficar com artrite precoce. Depois, afi‑
xara um pequeno papel em ziguezague, também cor de âmbar, à
parte de trás de cada estrela.
Deixou cair as estrelas no soalho escuro e encerado e ordenou:
— Flutuem.
As estrelas viraram‑se todas com o lado em ziguezague para
cima e subiram como bolas de sabão até ao teto. Ceony ordenou‑lhes:
— Brilhem — e as estrelas cintilaram com um suave fogo in‑
terior. Assim que os Holloway apagassem as luzes elétricas, a sala
adquiriria uma radiância misteriosa e algo romântica.
Ceony animou pequenas borboletas de papel que esvoaçariam
pela sala, assim como confetes triangulares que deixou no chão e
que se revolveriam em volta dos pés dos convidados, criando a ilu‑
são de um sopro de vento. Tinha até Dobrado e encantado guar‑
danapos de papel para o jantar que, quando os convidados os des‑
dobrassem, se tornariam azul‑turquesa e onde se leria «Parabéns,
Alton Holloway». Ponderara incluir uma ou outra ilusão de um
elefante ou de um leão retirados de histórias fantasmagóricas, mas
para isso teria de estar ali durante a festa para ler os feitiços. Além
disso, temia que alguns dos convidados mais idosos reagissem mal.
Há apenas alguns meses, lera um artigo no jornal acerca de uma
avó que tivera um ataque cardíaco depois de ver, num espelho, uma
ilusão de um comboio a aproximar‑se ao lado do teatro, um anún‑
cio imprudente à nova peça americana que aí estava em cena. A
festa ficaria certamente estragada se um convidado tentasse alvejar
um leão de papel.

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Enquanto Ceony libertava aves canoras com instruções para só


voarem junto ao teto, a Sra. Holloway desceu as escadas e deixou
escapar um grito de sobressalto que, felizmente, foi seguido por um
largo sorriso.
— Oh, é espantoso! Simplesmente magnífico! — gritou ela,
pressionando com as mãos as faces generosamente cobertas de
pó‑de‑arroz. — Vale cada centavo! E és só uma aprendiza.
— Espero fazer o teste para maga no próximo mês — disse Ce‑
ony, embora tivesse ficado radiante com o elogio.
A Sra. Holloway bateu as palmas duas vezes.
— Se precisares de recomendações, querida, eu dou‑tas. Oh,
como o Alton vai ficar espantado! — virou‑se para as escadas. —
Martha! Martha, deixe a lavagem da roupa por um instante e venha
cá ver!
Ceony agarrou no saco — agora muito mais leve — e retirou‑se
com uma vénia, antes que o entusiasmo da sua cliente se tornas‑
se incontrolável. As decorações não precisavam de manutenção,
e a Sra. Holloway pagara‑lhe previamente por cheque, alguns dias
antes. Não tinha dúvidas de que Emery a deixaria ficar com toda
a quantia — uma soma considerável —, embora fosse costume os
aprendizes trabalharem de graça, exceptuando uma bolsa mensal.
Enviaria a maior parte do dinheiro aos pais, que se tinham, final‑
mente, mudado do Bairro Mill para um apartamento em Poplar. A
sua mãe era a que mais detestava receber «caridade», mas Ceony
conseguia ser tão teimosa como ela.
Agachando‑se no passeio em frente da casa, Ceony tirou uma
folha de papel do saco e criou um pequeno planador de asas oblon‑
gas, no centro do qual escreveu a morada do cruzamento ao final
da rua. Dando‑lhe vida com a ordem «Respira», sussurrou‑lhe as
coordenadas e lançou‑o ao vento. O pequeno planador fez uma pi‑
rueta e partiu para sul.
Colocando o saco ao ombro, Ceony começou a descer a rua,
com a saia simples e castanha agitando‑se‑lhe em volta dos tor‑
nozelos e os saltos de 5 centímetros a ressoar contra o chão como
ferraduras em cascos de cavalo. Aquele era um subúrbio chique
de Londres, com muitos espaços verdes entre as casas, metade
das quais eram guardadas por esculturas elaboradas em pedra ou

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vedações de ferro forjado. Algumas estavam adornadas por orna‑


mentos feitos por Fundidores, como estacas de uma liga de ferro e
níquel que rodavam à passagem dos transeuntes e fechaduras de
portão em latão que se abriam sozinhas quando um visitante espe‑
rado se aproximava. O ano já ia suficientemente avançado para não
restarem quaisquer sinais do inverno, e as flores de maio rebenta‑
vam nos pequenos jardins por trás das vedações. Algumas tinham
até crescido em fendas, nos pontos de junção entre o passeio e o
empedrado da rua, com total desprezo pela organização reinan‑
te naquele bairro. Uma brisa desprendeu alguns fios de cabelo do
puxo francês que segurava a cabeleira cor de abóbora de Ceony. Ela
prendeu‑os por trás da orelha.
Poucos minutos depois de Ceony chegar à esquina da Holland
com a Addison, um buggy encostou ao passeio. Ceony baixou‑se
para espreitar pela janela sem vidros do lado do passageiro.
— Olá, Frank — disse ela. — Já não o apanho há algum tempo.
O homem de meia‑idade sorriu e inclinou o chapéu de coco
na direção dela, com o pequeno planador que ela Dobrara seguro
entre o dedo indicador e o médio.
— É sempre um prazer, menina Twill. Vai outra vez para
Beckenham?
— Sim, por favor, para a casa de campo — confirmou ela,
aproximando‑se da porta traseira. — Não é preciso levantar‑se —
acrescentou, quando Frank estendeu a mão para o trinco da porta
do lado do condutor para a ajudar a entrar. Ceony deslizou rapida‑
mente para o banco de trás e deu umas pancadinhas no banco à sua
frente para dar sinal de que estava pronta a seguir viagem. Frank
esperou um momento que o tráfego o permitisse, e depois entrou
na Addison Avenue.
Ceony encostou‑se ao banco de trás enquanto o buggy fazia a via‑
gem de 45 minutos de volta à casa de campo de Emery. Viu a cidade
passar do lado de fora da janela, com as casas a tornarem‑se gradu‑
almente mais juntas e mais pequenas e as ruas e passeios a encher‑se
de cada vez mais pessoas na labuta de mais um dia. Viu um padeiro a
arejar a sua pequena loja do fumo, rapazes a jogar ao berlinde numa
viela estreita e uma mãe a empurrar um carrinho de bebé, com um
rapazinho agarrado ao bolso da saia. Esta última visão lembrou a

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Ceony um dos primeiros feitiços que aprendera, um objeto de leitura


de sinas chamado «caixa da sorte». Nunca se esqueceria do que, um
dia, vira numa dessas caixas — uma imagem doce e abençoada de si
mesma no cimo de uma colina florida, com duas crianças, presumi‑
velmente suas. Nessa visão, o homem a seu lado era nada menos do
que o seu tutor. Naturalmente, havia um estigma associado à ideia de
um romance com o seu mentor, pelo que Ceony não confiara o seu
segredo relativo ao mago do papel senão à sua mãe, que só se encon‑
trara com o Mago Emery Thane uma vez.
A cidade acabou por ficar para trás, e Frank conduziu o buggy
pelo caminho de terra que lhe era tão familiar, em direção à casa
de campo, ladeado por árvores verdejantes. Ceony desviou o olhar
do rio que ficava para lá do caminho. Era um rio pequeno, mas
ainda conseguia pô‑la nervosa. Há 20 meses, Ceony receara que ela
e Emery tivessem de abandonar aquela pitoresca casinha de campo
por motivos de segurança, mas, com os seus inimigos mortos, pre‑
sos ou num estado de congelação permanente, já não havia perigo.
Era um alívio, quanto mais não fosse porque Ceony não consegui‑
ria certamente preparar‑se para o seu teste para maga se tivesse de
lutar pela vida a cada 90 dias.
Metendo a mão no porta‑moedas arrumado num canto do
saco, Ceony passou os dedos pela superfície redonda de um com‑
pacto de maquilhagem com espelho, tocando no nó celta gravado
na sua superfície. Não devia recordar o passado… as aventuras…
nem mesmo em pensamentos fantasiosos. O custo fora demasia‑
do elevado. Engoliu em seco, sentindo na boca o sabor amargo da
vergonha.
O buggy chegou à casa de campo que, da estrada, parecia uma
enorme mansão delapidada e infestada de poltergeists, onde nem
faltavam o vento e os corvos crocitantes. A «casa assombrada» era
a ilusão preferida de Emery para disfarçar a sua residência, mais
ainda do que o terreno abandonado ou o cemitério vacilante que
tentara em março último. Os protestos de Ceony tinham‑no feito
desfazer essa ilusão passadas duas semanas. Ou talvez tivesse sido a
arritmia cardíaca do leiteiro que acabara por convencê‑lo.
As ilusões estavam Dobradas na vedação, por isso os seus
feitiços desvaneceram‑se assim que Ceony entrou pelo portão,

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revelando a casa tal como era: de tijolos amarelos, com um alpen‑


dre pintado de castanho‑avermelhado por Ceony e Emery há duas
semanas. Um pequeno caminho de pedras ladeava um jardim de
narcisos de papel, e um estorninho de carne e osso estava agarrado
à hera que pendia sobre a janela do escritório, guinchando para o
pequeno cão de papel que farejava demasiado perto do seu ninho.
— Funcho! — chamou Ceony, e o cão de papel ergueu a cabeça
para a procurar com o seu focinho sem olhos. Ladrou duas vezes,
com um som murmurado, como o restolhar de papel, e saltitou
pelo caminho em direção a Ceony, deixando pegadas na terra por
entre as pedras. Há poucos meses quase não teria deixado marcas,
mas Ceony pusera‑lhe ossos de plástico em fevereiro. Tinha levado
meses de estudo para aprender como formar os ossos e as articula‑
ções para que se movessem com o Funcho, embora o feitiço de Po‑
liartesanato que os mantinha juntos fosse bastante fácil de dominar.
Fizera‑o em segredo, claro. Era melhor não falar acerca desse tipo
de estudos.
O cão saltou para os pés de Ceony e colocou‑lhe as patas da
frente sobre os sapatos, abanando loucamente de um lado para o
outro a cauda de papel reforçada com plástico. Ceony baixou‑se
para o coçar por baixo do queixo.
— Anda — disse, e o Funcho correu à sua frente até à porta de
entrada, onde esperou a abanar a cauda, com o nariz enfiado na
ombreira da porta. Quando Ceony abriu a porta, o Funcho correu
até ao fundo do corredor e voltou, mergulhando depois na atafu‑
lhada sala da frente, onde começou, de imediato, a roer um pedaço
do enchimento que saía da almofada mais puída do sofá.
Ceony foi primeiro ao escritório de Emery, uma divisão retan‑
gular cheia de prateleiras onde estavam colocadas resmas de pa‑
péis de várias espessuras, cores e tamanhos. A hera que tapava a
janela dava àquele quarto uma luz azul‑marinha‑escura, como se
a casa estivesse submersa no oceano. A secretária de Emery ficava
em frente da porta. Sobre ela, estavam espalhadas pilhas de papel,
um porta‑papéis de arame, cola e tesouras, livros meio lidos, uma
caneca com canetas e um frasco de tinta, embora espalhados pu‑
desse não ser a melhor palavra para descrever a cena. Cada item
encaixava‑se nos itens a seu lado como peças de um puzzle, e nada

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estava torto. Havia apenas um espaço exíguo para trabalhar, mas a


secretária, tal como tudo o resto naquela casa, parecia imaculada,
embora atulhada. Nos seus 21 anos de idade, Ceony nunca conhe‑
cera um acumulador de objetos tão arrumado. Naquele momento,
o escritório estava vazio.
Por trás da secretária, estava pendurado um quadro de cortiça
com moldura de madeira, no qual tanto Ceony como Emery pre‑
gavam encomendas de trabalho, receitas, telegramas e lembretes,
todos a espaços regulares uns dos outros, encaixando como tijolos.
Obra de Emery, obviamente. Ceony arrancou a encomenda de de‑
coração da Sra. Holloway da sua tacha de latão e deitou‑a no caixote
do lixo, não sem antes lhe ordenar:
— Rasga‑te.
O papel onde estava escrita a encomenda desfez‑se numa dúzia
de pedaços compridos, que caíram no caixote do lixo como flocos
de neve.
Depois de sair do escritório, Ceony fechou a porta por trás de si
para que o Funcho não o desarrumasse e passou pela cozinha e sala
de jantar, subindo depois as escadas que levavam ao segundo andar,
onde se situavam os quartos, a casa de banho e a biblioteca. O seu
quarto era a primeira porta à esquerda e, ao entrar, pousou o saco.
O quarto estava muito diferente do que era quando ela ali chega‑
ra, há dois anos. Mudara a cama para o canto mais distante da porta,
perto do roupeiro, e pusera a secretária junto à janela, já que era aí
que passava a maior parte do tempo em que estava no quarto, fosse a
Dobrar ou a escrever um trabalho ocasional, quando Emery tinha um
acesso de espírito académico. No inverno anterior, estando entediada,
tingira o soalho de cor de cereja escura, e as suas criações em papel
adornavam as paredes e o teto, tal como Emery decorara os lambris
da cozinha e da sala de jantar. Pequenas bailarinas de papel, vestidas
com tutus elaborados, pareciam dançar por uma parede abaixo, e da
outra pendiam várias correntes para feitiços, já feitas. A janela esta‑
va emoldurada por cravos de papel com pétalas em espiral, em cores
alternadas de vermelho e azul; a porta do armário estava rodeada de
grinaldas de papel franzido das mesmas cores. Ornamentos de papel
em forma de estrela, com doze ou dezoito pontas, estavam pendura‑
dos no teto por um cordel, variando do tamanho de meio punho ao

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Magia de Mestre

de um prato raso. Em volta da mesa‑de‑cabeceira viam‑se penas de


papel cortadas de revistas femininas, uma instalação de cavalos‑ma‑
rinhos animados e estrelas, em torno de uma jarra de flores verme‑
lhas de papel que Emery criara para o seu vigésimo aniversário. Um
perfil de Londres recortado em papel de um metro e vinte ocupava
todo o espaço da parede aos pés da cama, como um floco de neve
gigantesco — um presente que Emery fizera para ela há dois natais.
Nuvens de papel pairavam por cima da porta e havia pompons de
papel cor‑de‑rosa‑bebé pousados numa estante de duas prateleiras, na
qual Ceony guardava os seus cadernos.
Todos aqueles elementos decorativos tinham‑se acumulado ao
longo de um ano e 11 meses; só quando a irmã mais nova de Ceony
— Margo — lhe fizera uma visita, em abril, é que Ceony se aperce‑
bera de que criara uma espécie de país das maravilhas.
Na almofada, estava pousado um envelope enrugado. Afastando‑se
do saco, Ceony aproximou‑se dele e apalpou o conteúdo: os botões de
borracha que encomendara do catálogo Magos de Hoje. Enfiou o pe‑
queno pacote na última gaveta da secretária, onde estava escondido o
livro Cálculos Precisos da Invocação do Fogo, juntamente com outros
materiais que preferia manter fora de vista, e foi até ao quarto de Emery.
Bateu à porta, abriu‑a e encontrou a divisão vazia. Assim como
a biblioteca.
Ouviu uma pancada abafada no andar de cima.
— Outra vez a trabalhar nos grandes feitiços — murmurou para
si mesma, abrindo a porta que dava para as escadas que levavam ao
terceiro andar da casa, que compensava em altura o que lhe faltava em
comprimento e largura. Emery não trabalhava com muita frequência
nos seus «grandes feitiços» mas, quando o fazia, Ceony podia contar
com a sua ausência por períodos de 24 horas.
Ele acabara em março a sua arma de dois metros em forma de
elefante que disparava bolas de papel, a qual doara ao orfanato para
rapazes em Sheffield. Ceony perguntava‑se que ideia absurda teria
ele agora em mãos.
No canto mais afastado do terceiro piso, Jonto — o esqueleto
de papel que desempenhava as funções de mordomo de Emery —
estava pendurado por uma corda no teto, suspenso por cima de
uma confusão de tubos de papel, fita‑cola e papéis simetricamente

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Charlie N. Holmberg

cortados. Emery, envergando o seu novo casaco bordeaux, estava de


pé sobre um banco ao lado de Jonto, colando uma asa de morcego
de um metro e oitenta à coluna do esqueleto.
Ceony pestanejou, interiorizando a cena. Na verdade, não de‑
via estar surpreendida.
— Pensei que ainda me faltavam alguns anos até ver o anjo da
morte — disse ela, cruzando os braços por baixo do peito. — Ou
mesmo metade dele.
Emery, empoleirado no banco, deu uma risadinha e olhou por
cima do ombro, segurando com as duas mãos o papel grosso que
formaria a ponta da asa esquerda de Jonto. Ao fazê‑lo, o seu cabelo
negro dançou‑lhe perto do maxilar e os seus olhos de um verde
intenso brilharam como o sol da tarde.
Mesmo agora, Ceony ainda se perdia naqueles olhos.
— Ceony! — exclamou ele, retornando a atenção para o seu
projeto e acabando de construir a asa. — Só esperava que voltasses
daqui a uma hora!
— Os pedidos não eram tão complicados como temíamos —
disse Ceony, com um sorriso a aflorar‑lhe aos lábios. — Queres
explicar‑me porque estás a transformar o Jonto num dragão?
Emery desceu do banco e rodou os ombros.
— Hoje veio cá um vendedor ambulante.
— Um vendedor ambulante?
— A vender graxa para sapatos — disse ele. Esfregou a barba
por fazer por baixo do queixo. — A um preço razoável, devo dizer.
Ceony assentiu com a cabeça.
— E, por isso, o Jonto precisa de asas.
Ele sorriu.
— Não vinha cá um vendedor ambulante desde que me mudei
para aqui — explicou. Sacudiu pedacinhos de papel do casaco e
das calças e atravessou a divisão, passando pela segunda versão
do seu planador de papel gigante, já que Ceony perdera o primei‑
ro. — Parece que a fachada da casa já não é tão ameaçadora como
dantes. A culpa deve ser da popularidade de Joseph Conrad1. E,
1
Escritor britânico de origem polaca (1857‑1924), autor da conhecida obra O Coração
das Trevas, na qual mais tarde se baseou o filme Apocalipse Now, de Francis Ford Coppola
— N. da T.

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Magia de Mestre

como decidimos não manter o cemitério, pensei em encarregar o


Jonto, ou o «anjo da morte», como tão adequadamente o definiste,
de afugentar quem se aproxime.
Ceony riu‑se.
— Vais mantê‑lo lá fora? E se chover?
— Humm… — disse Emery, cofiando uma das suas longas pa‑
tilhas. — Terei de fazer as asas amovíveis. Mas acho que é uma op‑
ção viável.
Sorriu, mais com os olhos do que com a boca — o mais genuíno
dos sorrisos —, colocou as mãos nos ombros de Ceony e deu‑lhe
um beijo casto nos lábios.
— Ora bem — disse ele, voltando a prender a tal madeixa de
cabelo solta por trás da orelha de Ceony —, o que tenho de fazer
para te convencer a fazer empada de rim para o jantar?
— Empada de rim? — repetiu Ceony, com uma sobrancelha
erguida. — Temos, ao menos, rins?
— Desde esta manhã — respondeu ele.
Ceony tapou a boca com as mãos, fingindo‑se chocada.
— Não. Ele não foi fazer compras à mercearia sozinho, pois não?
— Tive de me encontrar com a direção da Praff. Para me nome‑
arem um aprendiz — disse ele, encolhendo os ombros. — O rapaz a
quem paguei para ir buscar as coisas fez um ótimo trabalho.
Ceony revirou os olhos, mas manteve o sorriso.
— Está bem, mas tenho de começar a fazê‑lo já. E lembra‑te de
que ainda não me fui embora.
Emery apertou‑lhe os ombros antes de a libertar.
— Eles gostam de fazer as coisas com antecedência. As forma‑
turas têm sido uma confusão desde que a Patrice saiu.
Ceony assentiu com a cabeça. A Mg. Aviosky demitira‑se da
Escola Tagis Praff para os Vocacionados para a Magia há um ano e
meio, depois de lhe ter sido oferecido um cargo no Departamento
da Educação do Gabinete dos Magos.
Pedindo licença, Ceony voltou ao primeiro andar, onde o Fun-
cho, ansioso, estava sentado junto à porta que dava para as escadas,
esperando autorização para subir. Os rins estavam embrulhados
em papel e enfiados na geleira da cozinha, coberta por um feitiço
de confetes frios. Ceony sacudiu pedaços de confetes redondos da

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Charlie N. Holmberg

embalagem e começou a trabalhar. Lavou os rins até a água sair


limpa e depois fritou‑os numa frigideira com folhas de louro, tomi‑
lho e cebola. Enquanto esperava que os rins ficassem prontos, picou
e esmagou tomates, mas teve de substituir a mostarda, que acabara,
por um pouco de vinagre.
Não tendo nada de urgente no seu plano de estudos, Ceony de‑
cidiu partir alguns ovos e fazer leite‑creme para a sobremesa; uma
das criadas da Sra. Holloway tinha mencionado que aquele doce
seria servido na festa e Ceony ficara com vontade de o comer. Bateu
as natas, as gemas de ovo e o açúcar até lhe doer o braço e depois
deitou o preparado em duas formas, que colocou no forno junto à
empada de rim.
Quando ambos os pratos estavam já cozinhados, Ceony reti‑
rou‑os do forno e pôs a mesa. Pôs‑se à escuta dos passos de Emery
e, não os ouvindo, abriu o armário onde guardava os livros de cozi‑
nha e da encadernação de um livro intitulado Cozinha Francesa ti‑
rou uma pequena caixa de fósforos, que continha alguns fósforos e
uma bola de fósforo. Segurando esses objetos sobre a palma da mão
esquerda, pegou numa colher de pau com a mão direita e disse:
— Material feito pela terra, o teu manuseador convoca‑te. Des‑
liga‑te de mim como eu me ligo através de ti, até ao dia de hoje.
Não era a primeira vez que Ceony cortava a sua ligação supos‑
tamente inquebrável ao papel, nem sequer a segunda. Pousou a co‑
lher, pressionou o peito com a mão e disse:
— Material feito pelo homem, eu convoco‑te. Liga‑te a mim
como eu me ligo a ti, até ao dia de hoje.
Finalmente, acendeu um fósforo e murmurou:
— Material feito pelo homem, o teu criador convoca‑te. Liga‑te
a mim como eu me ligo a ti para o resto dos meus anos, até ao dia
em que morra e me converta em terra.
Então, cerrou os dentes e pôs os dedos na chama. Para seu alí‑
vio, não se queimou, o que significava que conseguira ligar‑se ao
fogo. Os Pirotécnicos eram imunes ao fogo por eles criado — o que,
escusado será dizer, era uma vantagem apreciável daquela forma de
magia.
O fogo causava‑lhe formigueiros na pele, uma sensação surpre‑
endentemente agradável, até que o fósforo se apagou. Meteu a caixa

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Magia de Mestre

de fósforos no bolso do avental. Precisaria da bola de fósforo para


quebrar a sua ligação ao fogo, quando terminasse de a utilizar.
Abrindo a porta do forno, Ceony criou uma faísca com o co‑
mando «Ergue‑te» e depois fez brotar uma pequena chama da pon‑
ta do indicador com a ordem «Inflama‑te».
A magia do fogo era a última magia com materiais que Ceony
testara sozinha, pois qualquer descuido poderia feri‑la ou incen‑
diar a casa. Tentara o seu primeiro feitiço com os pés metidos em
água, na banheira. Felizmente, só ficara com uma grande bolha.
Agora, limitava‑se a feitiços pequenos, de principiante.
Usou aquela pequena chama para caramelizar a superfície do
leite‑creme. Ouvindo os passos de Emery nas escadas, apagou‑a
com um sopro em vez de lhe ordenar «Cessa».
— Cheira maravilhosamente — disse Emery, entrando na sala
de jantar. — Ah, distraí‑me. Devia ter posto a mesa — acrescentou,
ao ver que ela acabara de o fazer.
— Precisava de alguma coisa para fazer enquanto o jantar alou‑
rava — disse Ceony, pegando numa toalha e levando a empada de
rim para a mesa.
Emery afagou‑lhe o pescoço com a parte de trás dos dedos,
causando‑lhe arrepios pelas costas abaixo.
— Obrigado — disse ele.
Ela sorriu, sentindo as faces ruborizarem‑se‑lhe ligeiramente.
Emery puxou‑lhe a cadeira e ela sentou‑se, tirando o avental com
um puxão e pendurando‑o nas costas da cadeira.
Distraidamente, Ceony meteu a mão no bolso e passou os de‑
dos pela caixa de fósforos. Teria de restaurar a ligação com o papel
assim que acabassem de jantar. Com certeza Emery não lhe faria
um teste surpresa a meio da refeição, especialmente depois de ela
ter tratado da festa dos Holloway por ele.
Espetou um pedaço de empada de rim com o garfo. De certa
forma, aquela magia — a quebra do vínculo — parecia‑lhe uma
traição.
Era provável que o homem com quem aprendera a fazê‑la con‑
cordasse com ela, se ainda estivesse vivo.

21
CAPÍTULO 2

D epois do jantar, Emery lavou a louça e Ceony correu para o seu


quarto, no andar de cima, com o fósforo na mão, para quebrar
a ligação ao fogo. Voltou a ligar‑se ao papel afagando o corpo sem
pelos do Funcho, e depois pegou nos botões de borracha e exami‑
nou‑os. Queria usá‑los para criar umas almofadinhas fortes para
as patas do Funcho. Tinham aproximadamente o tamanho correto,
por isso esperava não ter de manipular muito o material. Dificil‑
mente poderia pedir a ajuda de Emery para essa tarefa.
Deteve‑se, com a borracha na mão. Teria realmente tempo para
fazer aquilo?
Depois de, há quase dois anos, ter aprendido os segredos da
quebra de vínculos em casa da Mg. Aviosky — um segredo que
apenas ela conhecia —, Ceony acordara numa cama de hospital. O
seu corpo, que fora aberto como um peru de Natal, estava intacto,
tendo sido curado por um Excisor. O mago que lhe salvara a vida
tinha autorização legal para trabalhar com aquele material, mas a
ideia de alguém usar magia do sangue nela era horripilante, espe‑
cialmente naquela altura, logo após ter visto um Excisor assassinar
a sua grande amiga.
Tinha acordado como Iluminadora — maga do vidro —, de‑
pois de alterar o material a que estava ligada para salvar a vida.

22
Magia de Mestre

Após ter voltado a ligar‑se ao papel, obrigara‑se a esquecer, durante


dois meses, a bizarra magia de Grath.
Mas a sua mente não conseguia esquecer nada. Lembrava‑se
de tudo, até ao mais ínfimo pormenor: do seu primeiro teste de
escrita no quinto ano, da receita da empada de rim e até das fivelas
dos sapatos que a Mg. Aviosky usava quando a conhecera, a 18 de
setembro de 1901.
Lembrava‑se de como o corpo da Mg. Aviosky estivera sus‑
penso das vigas de sua casa, dos seus pulsos inchados e da cabeça
pendendo para um lado. Lembrava‑se de cada pedacinho de vidro
que se lhe cravara na pele — ainda agora os sentia a cortá‑la e estre‑
meceu, esfregando os braços em pele de galinha. E lembrava‑se tão
bem do olhar aterrorizado nos olhos da sua amiga Delilah que, se
soubesse desenhar, poderia retratá‑lo de olhos vendados.
Por isso, sabia exatamente como Grath Cobalt quebrara e reata‑
ra as suas ligações para se tornar Excisor.
No hospital, falara a Emery da sua nova capacidade — chegara
mesmo a prová‑la —, mas sem entrar em pormenores. Ele nunca lhos
pedira. O pouco que ele sabia acerca da sua capacidade de trocar de
material não lhe agradara. O que era compreensível — Ceony tinha
conseguido algo que era quase equivalente a libertar‑se da gravidade.
Não partilhara com ele o seu desejo de explorar outros tipos de magia,
sobretudo com o caráter precário da recente relação entre os dois.
Inicialmente, ela tencionara nunca mais testar os seus novos e
indesejados conhecimentos, e permitia que ele pensasse que ainda
mantinha esse propósito. Embora não esperasse que ele a julgasse,
não conseguia suportar a ideia de o desapontar.
Por isso, mantivera o segredo.
A princípio, autoimpusera‑se regras estritas: nada de estudos de
outros materiais até que a sua formação como Dobradora estivesse
terminada, assim como todos os seus outros deveres como aprendi‑
za. Só quebrara essa regra meia dúzia de vezes, para realizar feitiços
demasiado tentadores e interessantes para serem ignorados, como
enfeitiçar balas ou alterar a sua imagem no reflexo de um espelho.
Mas agora, faltando apenas um mês para o seu teste para maga,
poderia mesmo dispensar o tempo necessário para fixar borracha
nas patas do seu cão de papel?

23
Charlie N. Holmberg

Fechou os dedos em volta dos botões de borracha. Uma parte


dela sabia que estava preparada. Sabia moldar e animar criaturas
feitas de dúzias de pedaços de papel. Sabia criar as mais abstrusas
ilusões de papel, construir cinquenta e quatro correntes de papel
diferentes e fazer vibrar o papel com tal intensidade que o fazia
explodir. Era provável que já estivesse em condições de ensinar, ela
própria, uma aprendiza!
Mas, ainda assim… Ceony não sabia em que consistiria o teste,
nem como este seria realizado. Emery alegava não poder revelar
quaisquer pormenores acerca do processo de exame. Essa era uma
razão suficiente para Ceony saber que devia estudar ainda mais.
Estudar Dobragem, estudar cada ângulo possível da magia do papel.
Quaisquer artigos ou ensaios que ainda não conhecesse, embora
pudesse já conhecer o seu conteúdo.
Com um suspiro, pousou os botões de borracha. Ainda tinha
os tempos livres. Poderia dedicá‑los a aperfeiçoar o Funcho.
Levantando os olhos, Ceony espreitou pela janela do seu quar‑
to, que ficava meio escondida pelos ramos de um amieiro. Uma luz
cor‑de‑rosa‑brilhante realçava as folhas da árvore e, mais além, o
céu estava cor de alfazema.
Puxando para trás a madeixa de cabelo solta, Ceony foi até à
biblioteca, que tinha uma janela maior e desobstruída. A vista era
linda.
Ceony nunca apreciara o pôr do sol até se tornar aprendiza de
Dobradora. A sua casa no Bairro Mill estava rodeada de edifícios
altos, que tapavam o horizonte e grande parte do céu. Na Tagis Pra‑
ff, embora tivesse um quarto no sexto piso da torre dos estudantes,
sempre estivera demasiado concentrada nas suas infindáveis pilhas
de trabalhos de casa para prestar atenção à paleta de cores do pôr
do sol.
Naquela casa de campo, onde a cidade acabava e o campo co‑
meçava e não havia pessoas ou edifícios que lhe tapassem a vista,
Ceony descobrira o fascínio dos pores do sol .
Naquela noite, várias nuvens espessas filtravam o sol, servindo
de tela à sua luz decrescente. Nos pontos mais próximos do globo
dourado que descia para lá das colinas, tingiam‑se de um brilho cor
de pêssego que, nas zonas mais distantes, se transformava em cor

24
Magia de Mestre

de salmão e violeta, até se encontrar com o azul cada vez mais es‑
curo do céu noturno. As nuvens pareciam criaturas etéreas, peixes
celestiais que nadavam na vastidão azul, seguindo o sol até ao outro
lado do mundo.
Uma mão pousou‑lhe no ombro, junto à nuca, interrompendo
a sua contemplação do mural para lá do vidro.
— Que inacreditavelmente romântico — disse Emery, e um
canto da sua boca inclinou‑se para cima, quase o suficiente para
fazer uma covinha. À luz que vinha da janela, os seus olhos adqui‑
riam um tom mais verde‑azeitona. Tinha os dedos frios da água de
lavar a louça.
— É como nos romances — concordou Ceony, recuando para
se aninhar no braço dele e encostando o seu corpo ao dele. — Pen‑
sei o mesmo. Estava com esperança de que pudéssemos recriar uma
cena de Jane Eyre.
— Admito que não conheço esse livro.
— É bastante bom — disse ela. — É triste, mas acaba bem.
Emery virou‑se para ela e ergueu a mão, tocando‑lhe no maxilar.
— O que interessa é que acabe bem — disse. Passou‑lhe o po‑
legar pela face e estudou‑a por um momento, com os seus olhos de
pedras preciosas a percorrerem‑lhe a boca, as maçãs do rosto, os
olhos. Ceony adorava que ele a olhasse assim. Fazia‑a sentir‑se…
presente.
Pôs‑se em bicos de pés e Emery ocupou o espaço que restava
entre eles, tocando nos lábios dela com os seus.
Apesar da sua excelente memória, Ceony não se lembrava de
quantas vezes já beijara Emery Thane desde aquele dia, há quase
dois anos, do lado de fora da estação de comboios. Muitas vezes,
e, ainda assim, o toque da boca dele ainda a enchia de um deleite
infantil, ainda fazia o sangue correr‑lhe mais depressa.
Talvez depressa demais.
Os seus dedos dançaram pelo pescoço dele acima, tocando‑lhe
nos lóbulos das orelhas, passando‑lhe pelas patilhas e pela barba de
um dia que confinava com elas. Os cheiros dele — a açúcar masca‑
vado, papel e carvão — encheram‑lhe os pulmões quando fez uma
pausa para inspirar fundo. Depois, beijou‑o como uma senhora
nunca deveria beijar um homem com quem não estivesse casada.

25
Charlie N. Holmberg

A ponta da língua dele passou‑lhe pelo lábio inferior, mas ele


não manteria aquilo por muito tempo. Por vezes, Ceony desejava
que ele se esquecesse de que ela era uma senhora. Não havia dúvida
de que nunca se esquecia de que era um cavalheiro, por muito que
Ceony tentasse aliciar o seu lado carnal.
As suas costas encontraram uma estante. Enrolou uma ma‑
deixa de cabelo de Emery no dedo mindinho, encorajando‑o a ir
mais longe. Resultou por um momento, apenas por um segundo, e
depois o beijo começou a abrandar, enquanto Emery se continha,
como sempre. Beijos daqueles podiam levar a outras coisas, espe‑
cialmente numa casa em que a única interrupção possível viria de
um cão de papel. Mas Emery — o nobre Emery — não faria outras
coisas com Ceony fora dos laços do matrimónio, e não casaria
com ela enquanto fosse sua «aprendiza». Ele próprio o dissera,
duas vezes.
Mais uma razão para ela fazer o teste para maga o mais depres‑
sa possível.
Separaram‑se, e os seus hálitos misturaram‑se na curta distân‑
cia entre os dois.
Ceony abriu os olhos.
— Sim, tal como nos romances — sussurrou.
Emery riu‑se e beijou‑lhe a testa.
— Esses livros que andas a ler… tenho dúvidas sobre o seu bom
gosto, menina Twill.
Ela endireitou‑lhe a gola do casaco bordeaux.
— Eu leio o que me apetecer, Sr. Thane.
— Tenho uma sugestão — disse ele com um sorriso irónico,
afastando‑se e deitando mais um olhar ao pôr do sol, que adquiri‑
ra, entretanto, um tom mais róseo. — Tenho uma dissertação acer‑
ca dos conceitos fundamentais da Dobragem do século xviii, que
trouxe da biblioteca. É maravilhosamente insípido e tem todos os
substantivos em letra maiúscula. Acho que vais gostar.
Ceony franziu o sobrolho.
— Queres que eu estude técnicas primitivas de Dobragem?
— Só as quase primitivas — disse ele, com um sorriso a pai‑
rar‑lhe nos lábios. — Nunca é demais voltar às bases, mesmo quan‑
do pensamos que já as conhecemos.

26
Magia de Mestre

— Eu já as conheço.
— Tens a certeza?
Ceony fez uma pausa.
— Isto é uma pista para o meu teste?
Emery enfiou as mãos nos bolsos das calças.
— Não me é permitido dar‑te quaisquer pistas, Ceony. Não
correria o risco de pôr em perigo a tua aprovação.
O seu tom tornou‑se um pouco mais sério na última frase.
Aproximando‑se da mesa colocada contra a parede oeste, deu umas
palmadinhas num livro usado tão grosso como o pulso de Ceony.
Ela deixou descair os ombros. Tinha a certeza de que aquele volu‑
me não lhe seria útil no teste.
Mas não tinha mais vontade do que Emery de diminuir as suas
probabilidades de passar. Suspirando — mais alto do que o necessá‑
rio —, Ceony pegou no pesado livro com as duas mãos e ergueu‑o
até à anca.
O telégrafo sobre a mesa começou a funcionar.
Emery ergueu uma sobrancelha. Ceony ficou muito quieta e es‑
cutou atentamente, traduzindo mentalmente o código Morse. Uma
questão interessante. Acei…
— Estuda com afinco — disse Emery, pousando‑lhe uma mão
nas costas. Empurrou‑a na direção do corredor.
— Mas e quanto a…
Os olhos dele cintilaram.
— É segredo, minha querida — e, com isto, fechou a porta da
biblioteca.
Ceony franziu o sobrolho e depois encostou o ouvido à porta
de madeira, tentando distinguir o som do telégrafo. Passados dois
segundos, Emery deu uma pancada na porta. Durante aquele tem‑
po juntos, já aprendera todas as táticas de Ceony para escutar às
portas.
Carrancuda, Ceony retirou‑se para o seu quarto e abriu a dis‑
sertação, sacudindo o pó que se soltou da capa grossa.
«Capítulo 1: A Meia Dobra».
Ia ser uma longa noite.

27
Charlie N. Holmberg

Depois do pôr do sol, as nuvens tornaram‑se mais carregadas, en‑


cobrindo as estrelas. Quando Ceony apagou o candeeiro para dor‑
mir, a chuva já começara a cair. Primeiro foi uma chuva miudinha,
depois um forte aguaceiro. O vento forte acordou‑a, assobiando
pelos beirais e arrancando pedaços das ilusões de papel das paredes
e da vedação. Não havia tratamento à prova de água que pudesse
salvar os feitiços de uma tempestade daquelas.
A noite tornou‑se mais fria e a chuva transformou‑se em granizo,
que batia no telhado e na janela como um milhar de mensagens de telé‑
grafo. Cobrindo a cabeça com a almofada, Ceony voltou a adormecer…
A chuva rodeava‑a no quarto, caindo de um teto que desapa‑
recera, batendo violentamente na mobília e descolando o papel das
paredes. Ceony estava de pé, no meio do quarto, envergando uma
saia preta e uma camisa branca com uma écharpe cinzenta à volta
do pescoço — o seu uniforme de estudante na Escola Tagis Praff
para os Vocacionados para a Magia. Estava sobre um ralo no chão,
mas algo estava a entupi‑lo. A água da chuva formava uma poça aos
seus pés, e ela batia repetidamente com o pé no ralo, tentando fazer
com que a água se escoasse.
Mas o ralo continuava entupido.
Ceony virou‑se, mas não conseguiu encontrar a porta do quar‑
to. A mobília também tinha desaparecido, deixando‑a cercada ape‑
nas de madeira e água da chuva. As gotas aumentaram de tamanho,
caindo agora como longas agulhas de tapeçaria, batendo‑lhe na
pele e pingando‑lhe do uniforme para o lago cada vez maior que
se agitava em volta das suas pernas. A água fria subiu‑lhe até aos
joelhos, e depois até às coxas.
O coração de Ceony apertou‑se‑lhe. Tentou freneticamente
avançar pela água escura, em busca de alguma coisa para cima da
qual pudesse subir, mas não encontrou nada. Não havia secretária,
nem cama, nem sequer um escadote ou um banco. Não havia por‑
tas em lado nenhum. Até o parapeito da janela tinha desaparecido
na tempestade inclemente.
— Socorro! — gritou, mas a sua voz não conseguia sobrepor‑se
ao barulho da chuva, que a fustigava cada vez mais, espetando‑a
como lascas de vidro. A água subiu‑lhe até às ancas, e depois até ao
umbigo.

28
Magia de Mestre

Ceony não sabia nadar. Tentou flutuar, tentou empurrar a zona


pélvica na direção do céu, como Emery lhe dissera para fazer da
única vez que tentara ensiná‑la, mas só conseguiu afundar‑se.
A sua cabeça ficou submersa. Ela agitou‑se, empurrando o chão
com os pés para voltar à tona.
Ao chegar à superfície, ouviu alguém gritar:
— Ceony!
Virou‑se para o lado de onde vinha a voz, esbracejando na água,
tentando desesperadamente manter o ar dentro dos pulmões. E ali
estava ela. Delilah. Sentada sobre uma estante que flutuava de lado,
estendendo‑lhe a mão. Na outra mão, tinha o espelho compacto
que oferecera a Ceony no seu vigésimo aniversário, apertando o seu
nó celta estilizado contra a palma da mão.
— Nada! — gritou Delilah.
— Não sei! — gritou Ceony. Entrou‑lhe água na boca e tossiu.
Procurou o soalho com os dedos dos pés, mas tinha desaparecido.
Tudo desaparecera, exceto a água e a chuva. Estava a afogar‑se num
oceano infindável, sem terra à vista.
Delilah estendeu mais a mão.
— Depressa! — gritou.
Ceony dava aos pés e às mãos, tentando alcançar os dedos de
Delilah uma e outra vez. À terceira tentativa, agarrou o pulso de
Delilah.
Mas Delilah franziu o sobrolho. Os seus olhos castanhos revi‑
raram‑se e Ceony viu com horror o braço de Delilah separar‑se‑lhe
do corpo num corte irregular, espirrando sangue para a água. Ce‑
ony gritou ao ver o resto do corpo da amiga desfazer‑se como um
manequim partido, até o único vestígio tangível dela ser uma man‑
cha escarlate sobre uma estante que se afundava…
Ceony arquejou e sentou‑se na cama, fazendo a almofada cair
ao chão. Pestanejou várias vezes, interiorizando os contornos do
quarto seco e ouvindo o tamborilar da chuva na janela. O granizo
parara.
Passando as costas da mão pela testa, Ceony inspirou fundo,
ouvindo a sua pulsação repercutir‑se‑lhe nos ouvidos. O sangue fa‑
zia o pescoço latejar‑lhe.
Sangue.

29
Charlie N. Holmberg

Atirou as cobertas para trás, procurando alguma coisa, qual‑


quer coisa, debaixo delas. Escrutinou o quarto, que estava vazio sal‑
vo pelo Funcho, que dormia na cadeira da secretária.
Inspirou fundo mais uma vez, e outra ainda, mas a sua pulsação
continuava acelerada. Levantou‑se, foi até ao outro lado do quarto e
voltou, passando as mãos pela trança meia desfeita.
Há meses que não tinha um pesadelo daqueles. Detestava quan‑
do eram tão… reais.
As lágrimas ameaçavam encher‑lhe os olhos, por isso Ceony
olhou para o teto e pestanejou rapidamente, afastando‑as.
Não conseguira ir ao funeral de Delilah, pois estava inconscien‑
te numa cama de hospital, mas Clemson, o aprendiz de Pirotécnico
que conhecera na visita à fábrica, contara‑lhe mais tarde que tinha
chovido nesse dia.
Uma luz brilhou do lado de fora da janela, seguida de um tro‑
vão quase tão ruidoso como o bater do seu coração. Ceony olhou
para a cama desfeita e depois para o Funcho.
Engoliu em seco e pôs‑se de pé. Esperou. Fixou o olhar.
Pegou na almofada e foi até à porta com passos leves, abrindo‑a
numa fresta. Espreitou o corredor escuro. A luz pálida de uma vela
brilhava por baixo da porta mais distante, à direita. Emery nunca
investira em candeeiros enfeitiçados.
Mordendo o lábio inferior, Ceony aproximou‑se da luz. Com‑
pôs a camisa de dormir e bateu à porta, com tanta suavidade quan‑
to os seus dedos trémulos permitiam. Não queria acordá‑lo se ele
já estivesse…
— Sim? — disse a voz dele, através da porta. Que horas seriam,
para ele ainda estar acordado?
Ceony abriu a porta. Emery estava deitado na cama, coberto até
à anca, lendo, mas estendeu a mão e pousou o livro na mesa‑de‑ca‑
beceira. A vela só tinha mais um centímetro para arder. Ela chegara
mesmo a tempo.
Os olhos dele encontraram os dela, e a testa dele franziu‑se.
— Estás bem, Ceony?
Ela corou, sentindo‑se como uma criança.
— Eu… peço desculpa. Eu só… posso dormir aqui no chão?
A expressão dele não se alterou. Sentou‑se.

30
Magia de Mestre

— Estás doente? — perguntou, pronto para se pôr de pé.


— Eu só… não consigo dormir bem. Outra vez — admitiu ela.
— Não farei barulho. Eu só… não quero dormir sozinha esta noite.
Por favor?
Ele pressionou os lábios um contra o outro. Sabia dos pesadelos
dela. Tinham sido terríveis, depois da morte de Delilah. Depois do
seu… assassínio. Ceony dormira de luz acesa durante três semanas.
Agora, eram pouco frequentes, mas, quando ocorriam, Ceony so‑
nhava com a vingança.
Emery fez‑lhe um sinal para se aproximar, e Ceony entrou no
quarto.
— Peço desculpa, eu…
— Ceony — disse ele, brandamente —, não peças desculpa.
Puxou as cobertas para trás e chegou‑se para o lado, fazendo
espaço para ela.
Ceony hesitou — nunca dormira na cama de Emery —, mas
ansiava por companhia. Ansiava por ele. Uma corrente de papel
que não viu nem sentiu puxou‑a para ele, e o feitiço para a desfazer
era o único que ela não sabia.
Pousou a sua almofada ao lado da dele e subiu para o colchão.
Emery apagou a vela com o polegar e deitou‑se de lado, envolvendo
a cintura de Ceony com um braço e apertando‑a contra o peito.
Tão quente. Ceony descontraiu‑se naquele abraço, ouvindo
os batimentos cardíacos de Emery, que lhe eram tão familiares,
assim como a sua respiração suave. Fez a sua respiração coincidir
com a dele.
Gradualmente, as imagens do seu pesadelo desvanece‑
ram‑se‑lhe da mente, e Ceony caiu num sono seguro e sem sonhos.

31
CAPÍTULO 3

C eony acordou com o ombro direito dorido e o ouvido direito


tapado, ainda com o lado direito do rosto enterrado na almo‑
fada. Pestanejou sob a forte luz do sol que entrava pela janela sem
persianas, em frente da cama. Parecia ser por volta das 7:30, talvez
oito. Levou um momento a perceber que a mesa‑de‑cabeceira ata‑
fulhada e a janela não eram as do seu quarto. Os lençóis eram, sem
dúvida, os de Emery.
Sentou‑se, permitindo que o sangue lhe irrigasse novamente o ou‑
vido, e analisou a cama. Estava vazia e feita de um dos lados. Esfregou
os olhos e puxou o atilho que lhe segurava a trança quase desfeita,
passando os dedos pelas madeixas longas e onduladas do seu cabelo.
O seu peito ruborizou‑se um pouco, mais em temperatura do
que em cor. Não estava tão embaraçada como talvez devesse estar…
afinal, ela pedira para ficar no chão. Não que se tivesse importado
com o convite. Se estivesse noutro estado de espírito, talvez tivesse
tirado partido dele.
Sorriu, imaginando a cara que a Mg. Aviosky faria se alguma
vez viesse a saber do que se passara na noite anterior. A Iluminado‑
ra ficaria furiosa.
Claro que a Mg. Aviosky sabia da relação especial que existia
entre eles. Pelo menos, Ceony tinha quase a certeza de que ela sabia.

32
Magia de Mestre

Confessara os seus sentimentos por Emery à sua antiga mentora,


mas nada mais. Ainda assim, a forma como os olhos da Mg. Avio‑
sky se estreitavam quando via Ceony e Emery juntos, e aquele dis‑
tinto som gutural que ela fazia, diziam a Ceony que a Iluminadora
adivinhava mais do que isso. Esperava que mais ninguém o perce‑
besse… pelo menos por enquanto.
Nesse momento, a porta abriu‑se e Emery entrou de costas,
trazendo nas mãos um pequeno tabuleiro de madeira. O Funcho
corria‑lhe por entre os pés e ladrava, farejando à volta da cama e
abanando a cauda. O colchão era demasiado alto para ele poder
saltar lá para cima.
Emery, já vestido, pousou o tabuleiro na cama. Sobre ele esta‑
vam duas torradas com manteiga e um ovo cozido.
— Oh, Emery, não precisavas de fazer isto — disse Ceony.
Emery encolheu os ombros.
— Se calhar, não precisava — respondeu. Sentou‑se no canto
oposto da cama, na ponta do colchão, como que para não desequi‑
librar o tabuleiro. — Sentes‑te bem?
— Humm — disse ela, com a boca cheia de torrada. Engoliu e
acrescentou: — Obrigada.
Ele limitou‑se a sorrir. O Funcho, desistindo do lado da cama
onde estava Ceony, precipitou‑se para os pés de Emery e começou
a puxar‑lhe uma perna das calças.
— Emery — disse Ceony, fazendo uma pausa no pequeno‑al‑
moço —, acerca de que era aquele telegrama de ontem?
— Hum? — perguntou ele, sacudindo o Funcho. Por um mo‑
mento, Ceony pensou em equipar o cão de papel com dentes mais
fortes, de plástico, ou talvez de aço. Era provável que esta última
opção lhe pesasse demais na cabeça. E para que precisaria Ceony de
um cão com dentes de aço?
— Acho que agora já podes saber — disse Emery, puxando o
cabelo para trás com os dedos. — É que não serei eu a fazer‑te o
teste para maga.
A mão de Ceony imobilizou‑se sobre o tabuleiro do peque‑
no‑almoço. Processou aquela informação.
— Desculpa?
— Não vou ser eu a iniciar o teu teste — repetiu ele.

33
Charlie N. Holmberg

Ceony foi tomada pelo desconforto, como se tivesse um barco a


inclinar‑se para trás e para a frente dentro do peito. Pôs o tabuleiro
de lado e chegou‑se mais para a frente na cama.
— Mas… estás a brincar? O manual dos aprendizes diz clara‑
mente, no prefácio, que será o mentor do aprendiz a fazer‑lhe o
teste para mago.
— Pois diz — confirmou Emery, agora com uma expressão
mais suave, mas sem um tom irónico. Levantou‑se da cama e foi até
ao roupeiro, tirando o seu casaco índigo do cabide e vestindo‑o. —
É uma coisa que já tenho na cabeça há alguns meses… e certamente
também já passou pela tua.
Deteve‑se novamente aos pés da cama e observou‑a, sorrindo
com os olhos. Contudo, tinha os lábios ligeiramente franzidos.
— Receio que alguém que suspeite da nossa relação pense que
a tua avaliação não seja imparcial.
Tentando esconder o seu aborrecimento, Ceony assentiu com
a cabeça.
— Pensei nisso, uma ou duas vezes. Mas não contei…
— Às vezes, querida, não é preciso dizer as coisas em voz alta —
interrompeu Emery. — Organizei as coisas de maneira diferente. És
uma Dobradora muitíssimo talentosa, Ceony. Quase tanto como eu
próprio — acrescentou, com um sorriso pomposo. — Detestaria que
alguém pusesse em dúvida as tuas capacidades, agora ou no futuro.
Ceony sentiu‑se um pouco desanimada — não conseguia evi‑
tá‑lo. Sem Emery como seu examinador, tinha de enfrentar mais
um fator desconhecido naquele processo. Agora sabia ainda menos
o que esperar do que quando acordara. E se não passasse no exame
à primeira teria de esperar mais seis meses. Se chumbasse três ve‑
zes, o seu nome seria riscado dos registos para sempre, sem apelo
nem agravo. Qualquer tentativa subsequente de praticar magia le‑
varia à sua prisão.
E se não passasse?
Inspirou fundo.
— Muito bem. Confio na tua decisão. Posso saber quem me vai
fazer o teste no teu lugar?
— Ah, sim — disse Emery, batendo as palmas. — Recebi a sua
confirmação naquele telegrama. Tu, Ceony Twill, farás o teu teste

34
Magia de Mestre

para maga com o Mago Pritwin Bailey. Na verdade, ficarás em casa


dele e do aprendiz dele durante algumas semanas antes do teste,
como manda a tradição.
Os lábios de Ceony entreabriram‑se e, passado um momento,
perguntou:
— Algumas semanas?
— Duas ou três.
— O Mago Bailey? — perguntou, enrolando uma madeixa de
cabelo no dedo indicador. Não conhecia o nome, mas…
Fez uma pausa, escrutinando a memória. Havia alguma coisa
naquele nome…
Por um momento, Ceony viu‑se de volta aos corredores da
Academia Granger, a escola secundária onde tanto ela como Emery
tinham andado. A recordação não era sua, mas dele: era algo que ti‑
nha visto quando, há dois anos, viajara pelo coração dele numa ten‑
tativa de o salvar de uma horrenda Excisora chamada Lira que, por
acaso, também era a ex‑mulher de Emery. Lembrava‑se de Emery e
outros dois rapazes a implicarem com um desengonçado aspirante
a Dobrador. Um Dobrador chamado Prit.
— O Prit? — perguntou. — O rapaz que intimidaste na escola?
Emery coçou a nuca.
— «Intimidar» parece tão juvenil…
— Mas é ele, não é? — insistiu Ceony. — O Pritwin Bailey? Afi‑
nal, sempre conseguiu tornar‑se Dobrador?
Emery assentiu com a cabeça.
— Na verdade, acabámos a Praff juntos. Mas sim, é ele.
Ceony descontraiu‑se um pouco.
— Então, agora dão‑se bem?
O mago deu uma sonora gargalhada.
— Oh, céus, não. Tirando este telegrama, não falamos desde a
Praff. A verdade é que ele me detesta.
Os olhos de Ceony arregalaram‑se.
— E vais mandar‑me fazer o teste com ele?
Emery sorriu.
— Claro, daqui a alguns dias. Que melhor forma poderia haver
de provar que não foste favorecida do que colocar as tuas aspirações
profissionais nas mãos do Pritwin Bailey?

35
Charlie N. Holmberg

Ceony olhou‑o demoradamente.


— Estou a ser mandada para o inferno, não estou?
— Atenção à linguagem, querida.
Ceony pressionou a testa com a palma da mão.
— Tenho de estudar mais do que pensava. Estou condenada ao
fracasso. Tenho… tenho de me ir vestir.
Levantou‑se da cama e dirigiu‑se rapidamente ao corredor, ain‑
da com a palma da mão pressionada contra a testa, e com o Funcho
atrás dos calcanhares.
— Não tocaste no teu ovo!
Mas Ceony tinha assuntos muito mais prementes em que pen‑
sar do que o pequeno‑almoço.

C eony leu mais oito capítulos da dissertação sobre Dobragem que


Emery lhe dera, beliscando‑se de vez em quando para manter
a mente alerta e a atenção concentrada enquanto lia os parágra‑
fos longos e entediantes acerca de feitiços que já conhecia. Mesmo
assim, recusou‑se a saltar qualquer parte e estudou os diagramas
como se nunca tivesse ouvido falar de uma Dobra completa. Pelo
menos, o estilo artístico em que a dissertação estava ilustrada era
novo para ela.
Mais tarde, atribuiu a si própria um exercício de animação
complexa, escolhendo um animal que nunca criara: um peru. Com
algumas imagens como referência, Dobrou cuidadosamente as pe‑
nas da cauda e amassou papel para formar um corpo esférico. Usou
três folhas quadradas para o pescoço, mais uma para a cabeça e
cortou e moldou o bico e as peles com esmero. Levou a maior parte
do dia a criar e animar a ave. No dia seguinte, Dobrou um peru
maior usando mais papel, entreligando cuidadosamente cada peça
para garantir a mobilidade. Passados dois dias a trabalhar naquilo,
temeu que as marcas das tábuas do soalho em que se ajoelhara du‑
rante horas lhe ficassem permanentemente impressas nos joelhos.
Consciente da importância daquele exame, Emery pareceu não
se importar de não a incomodar, mas não deixou de aparecer de
tempos a tempos para lhe dar conselhos, convencê‑la a fazer um

36
Magia de Mestre

intervalo ou, oh, talvez a cozinhar qualquer coisa. Aqueles pedidos


velados faziam Ceony sorrir.
No entanto, no final da semana, Ceony estava completamente
farta de dissertações e animações, por isso retirou‑se para o seu
quarto para estudar Filtragem, a manipulação mágica da borracha.
Transformou os botões de borracha em almofadinhas para as
patas do Funcho, embora tivesse de deitar fora os dois primeiros por
os ter cortado mal, e depois usou feitiços de fixação para as colar às
pontas das patas do Funcho. Assim, as patas não se gastariam tanto
e, se ele pisasse uma poça com pouca água, as patas não se lhe trans‑
formariam em chumaços ensopados. Depois de analisar o seu traba‑
lho acabado por um momento, acenou com a cabeça para si mesma,
satisfeita por as patas do Funcho poderem passar por um mero tra‑
balho de artesanato — nada que despertasse a atenção de um mago.
Exausta por tanta magia, Ceony foi deitar‑se cedo nessa noite
de sexta‑feira, mas acordou poucos minutos depois da meia‑noite.
Não por causa de um pesadelo, graças a Deus, mas pelo ténue clicar
que se ouvia através da parede, suficientemente alto e familiar para
lhe interromper os sonhos.
Ergueu a cabeça da almofada, sustendo a respiração para ter
a certeza de que ouvira bem. O barulho continuava: clique clique
clique, clique, clique. Era o telégrafo.
Sentou‑se na cama, com cuidado para não acordar o Funcho,
que, naquela noite, dormia sobre o seu colchão, enrolado junto aos
seus pés. Esfregou os olhos e pôs os pés nus no chão. Quem estaria
a enviar um telegrama àquela hora tão tardia? O tempo estava bom;
porque não mandarem, em vez disso, um pássaro de papel? Seria
Prit tão avesso como Emery às horas normais de descanso? Seria
uma mensagem para cancelar o combinado? Ceony não se impor‑
taria se assim fosse.
Saiu do quarto. As frinchas em volta da porta de Emery esta‑
vam escuras, por isso foi pé ante pé até à biblioteca e abriu a porta.
O telégrafo trabalhava sem cessar no seu lugar sobre a mesa.
Parou antes de Ceony dar dois passos dentro da sala escura, deixan‑
do‑a sozinha num silêncio sinistro.
Ceony estendeu a mão para o interruptor da luz elétrica e acen‑
deu‑a. As lâmpadas pendentes do teto da biblioteca tremeluziram

37
Charlie N. Holmberg

por um momento, e depois a sua luz extinguiu‑se, voltando a mer‑


gulhar a biblioteca na escuridão. Pestanejando para afastar as man‑
chas purpúreas que lhe tinham invadido os olhos, Ceony voltou
a ligar e a desligar o interruptor, mas em vão. Teria a energia sido
cortada outra vez? Estando tão afastada da grande cidade, a casa de
Emery tinha circuitos elétricos pouco fiáveis.
Atravessou a sala sem fazer barulho, evitando as tábuas do so‑
alho que, por hábito, sabia que rangiam. Chegou junto da mesa e
tentou acender o candeeiro, mas também este se manteve apagado.
Acendeu a vela a seu lado e pegou no telegrama enrolado. Por um
momento, a breve mensagem pareceu‑lhe ininteligível. Analisou as
palavras, mas não conseguia fixá‑las na cabeça. Tentou novamente,
mais devagar.

prendi fugiu a caminho de portsmouth quando ia ser


executado stop achei que devias saber stop alfred stop

Os dedos com que segurava a folha de papel ficaram‑lhe dor‑


mentes. Aquele papel não lhe causava um formigueiro nos dedos,
como seria de esperar. Parecia morto, inerte. Pesado.
Alfred. Não via o Mago Hughes desde a sua provação com Gra‑
th, que pusera, finalmente, fim ao seu envolvimento com os Assun‑
tos Criminais, ou, pelo menos, assim pensara.
Os olhos de Ceony fixaram‑se na primeira palavra do telegra‑
ma. Prendi. Saraj Prendi. O cão de guarda de Grath. O Excisor que
tentara matá‑la duas vezes, só porque a sua morte lhe convinha. O
homem que ameaçara as vidas dos seus familiares e do seu amor.
E, agora, estava à solta.

38
CAPÍTULO 4

A s luzes elétricas acenderam‑se, criando manchas na visão de


Ceony e esborratando temporariamente o nome Prendi no pa‑
pel que tinha nas mãos.
A vela tremeluziu. As dobradiças da porta rangeram.
— Ceony? — perguntou Emery, com um bocejo. — O que estás
a… telegrama?
Ceony não respondeu. Os seus pensamentos giravam em
volta da casa da sua família e do rio que engolira totalmente um
buggy e o respetivo motorista, quase levando também consigo
Emery e Ceony. Depois, voltaram‑se para leste, para Dartford,
onde se encontravam as paredes recém‑reconstruídas da fábrica
de papel.
A mão de Emery tocou‑lhe no ombro. Estendendo‑lhe o tele‑
grama, Ceony virou‑se e afastou‑se, percorrendo, sem dar por isso,
a distância entre o telégrafo e o seu quarto. Acendeu a luz. O Fun-
cho moveu‑se. Ceony atravessou o quarto até à sua secretária e ti‑
rou de lá uma folha quadrada de papel branco e um lápis. Escreveu
furiosamente palavras desalinhadas. Estava a começar a segunda
frase quando a voz suave de Emery perguntou:
— O que estás a fazer?
— A avisar a minha família.

39
Charlie N. Holmberg

— Ele não sabe onde eles vivem agora, Ceony — disse, tão doce‑
mente como uma brisa de verão. Entrou lentamente no quarto, com
passos tão leves como os de um veado no solo da floresta. — E o Alfred
dará prioridade à segurança deles. Provavelmente, já tratou disso.
Ceony abanou a cabeça.
A mão do mago de papel encontrou novamente o seu ombro,
cingindo‑o gentilmente com os dedos.
— Lamento muito — sussurrou.
Ceony bateu com o lápis contra o tampo da mesa, partindo‑lhe
o bico. Virou‑se para Emery e sentiu lágrimas a arder‑lhe nos can‑
tos dos olhos.
— Porque não o executaram ainda? — questionou, com a per‑
gunta a queimar‑lhe a língua. — Já passaram dois anos. Com todas
as pessoas a quem ele fez mal…
Emery envolveu‑lhe o rosto com as duas mãos, passando‑lhe
um polegar por baixo de um dos olhos para limpar uma lágrima.
— Perderam o Grath e a Lira. O Saraj era o único meio de obterem
informações do submundo.
— Não interessa!
— Não estou a discordar de ti — disse ele, numa voz ténue.
Pressionou a testa contra a dela.
Ceony baixou os olhos e afastou‑se daquele toque, mas depois
encostou‑se ao ombro dele. Os braços dele rodearam‑na, e o seu
calor reconfortou‑a um pouco.
— E se ele ainda andar atrás deles… de nós? — sussurrou.
— Não irá longe. Deixemos isso para o Gabinete. Eles tratam
do assunto.
— Se deixássemos tudo para o Gabinete, estaríamos os dois
mortos.
Ele afagou‑lhe o cabelo.
— Seja como for, a principal preocupação do Saraj será fugir. Já
não tem qualquer motivo para te perseguir, e duvido que se dê ao
trabalho de me vir atormentar. Irá em direção à costa, na esperança
de atravessar o canal. Se o Alfred teve tempo de nos avisar, pode‑
mos partir do princípio de que já tem homens a seguir o Saraj.
Ceony expirou longamente, tentando aconchegar‑se nas palavras
tranquilizadoras de Emery como num cobertor quente. Acalmou‑se

40
Magia de Mestre

um pouco, relaxou, mas ainda havia uma réstia de preocupação a


perturbar‑lhe o ritmo cardíaco. Nada do que Saraj fazia era direto ou
previsível. E se a sua família ainda fosse um alvo para ele?
A voz de Grath insinuou‑se‑lhe na mente, e ouviu‑o repetir os
nomes da sua mãe e do seu pai. Estremeceu.
Pelo menos, Emery não estaria envolvido naquela confusão. Já
não trabalhava com os Assuntos Criminais desde a prisão de Saraj.
Com a sua ex‑mulher fora de cena de vez, Emery já não tinha moti‑
vo para se envolver com Excisores, e o Gabinete aceitara esse facto.
Ceony permaneceu nos braços de Emery mais um momento,
antes de recuar. Emery beijou‑a levemente.
— Posso tentar saber mais amanhã de manhã, se isso te aju‑
dar — sugeriu ele. — A melhor coisa que podemos fazer agora é
descansar.
— E disfarçar a casa…
— A casa está disfarçada — Emery conseguiu esboçar um sor‑
riso. — Estás segura, Ceony, e eles também. Garanto‑to.
Ceony assentiu com a cabeça. Emery demorou‑se ainda um
momento, e depois pressionou‑lhe os lábios contra a testa e reti‑
rou‑se sem mais uma palavra. Ela podia ficar com ele novamente
nessa noite. Que a decência fosse para o diabo. Ainda assim, deci‑
diu não lho pedir. Claro que confiava em Emery, e não queria que
ele pensasse o contrário. Mas como podia ele saber realmente para
onde iria Saraj Prendi e o que faria?
O Funcho ergueu a cabeça e deu um latido surdo. Suspirando,
Ceony pegou na mensagem meia escrita e amachucou‑a nas mãos,
atirando‑a, depois, para o cesto dos papéis com a ordem «Rasga‑te».
Apagou a luz e meteu‑se na cama, fazendo sinal ao cão de papel
para se deitar junto à sua cabeça. Sim, a melhor coisa que podia
fazer agora era dormir.
Não dormiu bem.

— Oh, bolas! — gritou Ceony na tarde seguinte, ao ver fumo acre


a sair da porta do forno. Agitou um pano da louça no ar, numa
tentativa vã de afastar o fumo. Tossindo, abriu a porta do forno. O

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Charlie N. Holmberg

fumo atingiu‑a e queimou‑lhe os olhos, mas Ceony estendeu a mão


através dele e tirou uma carne carbonizada, negra até ao seu âmago.
Ainda a tossir, colocou o prato fumegante sobre o fogão e recuou
até à porta das traseiras, abrindo‑a de rompante e saboreando o ar
limpo de final de primavera. Rolos de fumo pairavam sobre a sua
cabeça, dissipando‑se no ar livre. O cheiro permanecia por entre os
armários.
Encostando‑se à ombreira da porta, Ceony inspirou fundo
várias vezes, esperando aclarar a mente e acalmar os nervos. Não
queimava carne desde os 11 anos. Pelo menos, Emery não estava
em casa para testemunhar a catástrofe; fora a Dartford nessa manhã
para avaliar uma nova linha de produtos de papel concebida espe‑
cialmente para Dobradores, e era provável que só voltasse depois
do jantar.
Ceony deixou‑se escorregar pela ombreira da porta até estar
agachada. O Funcho lambeu‑lhe o joelho com a sua língua seca de
papel, mas, ao ver que ela não reagia, saltou para o exterior, per‑
seguindo o fumo e patinhando o relvado com as suas novas patas
de borracha. Davam‑lhe mais ímpeto às passadas, permitindo‑lhe
correr um pouco mais depressa, aproximando‑se mais da velocida‑
de de um cão de carne e osso.
Ceony esfregou a cana do nariz no ponto onde a cartilagem se
lhe unia à testa. Estivera no andar de cima a rever feitiços escritos
— magia do papel feita com lápis ou caneta —, ao mesmo tempo
que redigia a lista de compras da semana seguinte, até que a carne
queimada se fizera notar através do fedor a comida estragada. Ten‑
do‑se comprometido consigo própria, nessa manhã, a manter‑se
ocupada, quase não se concedera tempo para usar a casa de banho
e esquecera‑se completamente da carne, que preparara horas antes
do jantar, só para ter alguma coisa que fazer. Agora, agachada na‑
quela atmosfera carregada de fumo, as suas preocupações voltaram
a dominá‑la.
Emery levara o telegrama, mas isso não importava. As letras
de imprensa que continha já estavam inscritas na sua memória. Sa‑
raj estava à solta no mundo e, embora Ceony preferisse acreditar
que ele fugiria de Inglaterra e não se aproximaria mais deles, não
confiava que as coisas se fossem passar desse modo. Havia algo de

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