Tony Ferraz O Artifice

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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e
poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
O Artífice
O Artífice

Tony Ferraz
Para Elton.
Por trilhar comigo caminhos sem trilha
Índice

Abertura
Prólogo
Primeira Parte
Segunda Parte
Havia um lugar onde muitas pessoas viviam presas e famintas, essas penavam amontoadas
umas as outras e mal conseguiam fazer qualquer coisa, a fome as incomodava e de modo algum
conseguiam se libertar.

Do lado de fora havia um grande bolo de arroz do tamanho de milhares de homens, e esse
podia saciar a todos eles.

E tais pessoas possuíam grandes palitos de madeira de quatro a cinco metros cada um, e esses
alcançavam o bolo.

Mas essas pessoas viviam infelizes, pois os palitos eram grandes demais, e era impossível levá-
los à boca. Suportavam então sem alimento, a dor e o choro por todos os lados.

Havia então outro lugar, onde também muitas pessoas viviam presas e famintas, essas
penavam amontoadas umas as outras e mal conseguiam fazer qualquer coisa, a fome também as
incomodava e de modo algum conseguiam se libertar.

Do lado de fora também havia um grande bolo de arroz do tamanho de milhares de homens, e
esse podia saciar a todos eles

E tais pessoas possuíam também grandes palitos de quatro a cinco metros cada um, e esses
alcançavam o bolo.

E essas pessoas viviam felizes, pois os palitos eram grandes demais, mas ao invés de tentar
levá-los à própria boca, levavam à boca uns dos outros, alimentando a todos
Prólogo
O mestre soltou uma gargalhada divertida:

— Por que você quer saber isso? – perguntou ele, enquanto desligava o forno.
— Não sei, estamos conversando há uma hora e até agora não aprendi nada... Eu lido com
mortes todos os dias, é normal ter essa dúvida. – respondeu o detetive. – Já que você entende
dessas coisas, achei que deveria saber.
— Qual a sua pergunta exatamente?
— O que é o Céu e o Inferno?

O sorriso do velho fechou de uma só vez. Ele apertou os olhos e olhou bem para o detetive.

— É isso? É essa a sua pergunta? – disse o sábio.


— É...
— Realmente estou espantado... Pra mim é difícil de acreditar que um homem que parece ser
tão inteligente venha me importunar com uma pergunta tão infantil. Você não é inteligente, é um
menininho bobo que não consegue encontrar na natureza a solução pra suas questões. – O mestre
o olhava com desprezo. – Eu achava que pela sua fama você era um homem com um mínimo
sequer de sabedoria, mas vejo que me enganei. É só mais um estúpido.
— O que você está me dizendo? – perguntou atônito o detetive

E o mestre continuou:

— Desculpe, mas estou decepcionado. Você é mesmo só mais um tolo inerte, uma vergonha
para os que trabalham com você, não um detetive. Eu devia deixá-lo aqui falando sozinho e ir
embora. Aliás, você é quem deveria ir embora, ficar quieto em um lugar que não estorve
ninguém com essa sua estupidez!

Nesse momento o detetive mordia os lábios, e sua raiva era tamanha que mal conseguia olhar
a face do velho.

— O que foi? Dói ouvir a verdade não é? – falou o sábio. – Mas em mim também doeu quando
percebi que você era esse idiota que você é. Um incompetente que não consegue solucionar um
simples assassinato. Não deveria ter te ajudado. Você não tem autocontrole algum, por isso o
assassino brinca com você, e vai continuar brincando. Por você ser essa lesma que você é, esse
ser desprezível. É esse o motivo do seu amigo estar morto agora. Ele confiou em você. A culpa é
sua! Da sua incapacidade!

Um ódio súbito percorreu o seu corpo, e já não suportando mais a raiva que sentia do velho,
sua mão partiu de encontro à faca, em cima da mesa. Enquanto ele a levantava, o mestre olhou
fortemente nos seus olhos e disse:

— Isso, meu filho, é o Inferno!

O detetive, num impulso repentino deteve o curso da arma, soltando-a, e percebendo que o
sábio arriscara sua vida para dar-lhe esta lição, abaixou a cabeça lentamente, coberto de
arrependimento e vergonha.

— Perdão, agora eu compreendo – disse o detetive, que mal podia pronunciar uma palavra,
abismado com o que quase fizera.

O velho conhecedor do Zen sorriu e disse:

— Isso, meu filho, é o Céu!


Primeira Parte

“Não tenho medo do escuro, mas deixe as luzes acesas agora”


(Renato Russo – Tempo perdido)
Era uma manhã fria de outono em Londres. O vento soprava mansamente movimentando as
árvores e atirando contra as vidraças as gotas pesadas da chuva, a garoa se chocava devagar
contra os edifícios e o som produzido ecoava pelo ar. Era o terceiro dia de chuva consecutiva na
cidade. O frio obrigava grande parte da população a sair fortemente agasalhada e o céu, como
sempre, permanecia nublado enquanto a névoa se desfazia por entre os respingos d’água.

Em meio à multidão um homem caminhava a passos largos por entre o chão úmido. Ao que
parecia estava atrasado para algum encontro ou serviço, o que seria mais provável tendo em
vista o horário e a pasta negra que carregava. Vestia um terno marrom coberto por um sobretudo
de mesma cor que provavelmente era de grande valia para amenizar a brisa gelada que se
estendia por toda capital inglesa. As ruas estavam cheias de transeuntes, mas poucos usavam
guarda-chuva, a garoa começara a afinar desde o temporal da noite passada.
Era um homem alto, de bom porte, aparentava cerca de trinta anos e exibia um fraco sorriso
meio mascarado pela pressa com que caminhava em direção à banca. O homem comprou o seu
jornal e seguiu em direção ao ponto de táxi, quando foi interrompido por uma cigana sentada de
encosto a um dos edifícios antigos do centro.

— Senhor... Senhor!
— Eu? – perguntou espantado o homem
— É, o senhor. Quer ler a sorte?
— Estou meio apressado, fica pra outra vez...
— Mas, todos precisamos tomar cuidado com o futuro. Sabe, o que fazemos pode alterar
fortemente o nosso destino. Prometo que será rápido.
— Eu também estou sem dinheiro, quem sabe outro dia...

A cigana sorriu e olhou fixamente nos olhos do homem

— Cobrarei só meia libra, estou com um pouco de fome. O senhor me ajuda e eu te ajudo.
O que acha?
— Já que insiste tanto...

“Eu ainda vou me arrepender disso”, pensou o homem enquanto caminhava em direção à
mulher.

— Qual o seu nome? – perguntou a cigana.


— Pensei que você adivinhasse... – riu-se o homem.
— Eu vejo o futuro, seu nome está no passado. Dê-me sua mão esquerda.
— Eu também pensei que se lia a mão direita – continuou o homem ainda achando graça
daquela situação. Mesmo assim ele obedeceu, no fundo sentia que era algo importante.
— Mas você é canhoto – justificou a cigana.
— Como sabe?
— É meu trabalho adivinhar as coisas, agora, por favor, fique quieto preciso me concentrar.

A cigana olhou novamente no fundo dos olhos do homem, ele nunca havia visto um olhar
assim, era como se ela estivesse vendo no fundo de sua alma.

— E aí, vou ter uma vida longa?


— Um homem inteligente como você não devia brincar com essas coisas.
— Desculpe, estou mesmo apressado – falou o homem, ao mesmo tempo em que partia em
direção ao táxi.
— Espere Hary el! – gritou a cigana enquanto agarrava o braço do homem tentando contê-lo.
— Está bem... calma. Mas como você sabe o...
— Eu já te falei, é o meu trabalho, o universo esconde coisas muito maiores do que você
pensa. Aliás, você mesmo esconde coisas muito maiores do que você pensa.

Hary el continuou fitando os olhos da mulher, eles nada lhe diziam, mas sabia que os seus
diziam alguma coisa para ela.
— Vê essa garoa Hary el? Ela cai há três dias por toda a cidade, mas cai há muito mais
tempo no seu coração. É quase a hora dela se mostrar, o sol está próximo, mas antes virá a
tempestade, a tempestade que chega é da cor dos seus olhos, se conseguir passar por ela a luz
virá, caso contrário, a noite te espera...

O homem não entendia, mas continuava a prestar atenção nas palavras da mulher, as frases
tinham um tom solene e o olhar dela fazia-o sentir calafrios por todo corpo.

— ... Eu vejo seu futuro – continuou a cigana –, o futuro que você faz, que você constrói. E
eu vejo os relâmpagos da chuva do seu futuro. Eu vejo o perigo da chuva que irá lhe buscar
depois do frio da manhã. Muitos já caminham na tempestade, e você por olhar a tempestade será
alvo dela. Eu vejo os anjos que buscam o céu durante a tempestade e vejo a tempestade
levando-os. Mas eu também vejo neblina no fim da chuva, uma neblina espessa que não me
mostra o final, não me deixa ver o “seu” final Hary el, e acima de tudo, não me deixa ver a face
da tempestade. Mas a neblina me conta algo mais importante, me diz que as respostas estão em
você, e isso é o principal você tem todas as respostas...

Hary el estava estarrecido, pouco entendia do que ela falava, mas suas palavras penetravam no
seu ser como nada que já tivesse ouvido.

— ... Na verdade você sempre teve não é Hary el? Desde criança você sempre tem as
respostas, agora uma pergunta maior vai afligir o seu espírito, uma pergunta que você julga já
estar respondida. Quem é você? Ahn Hary el, quem é você?

A cigana sorriu

— ... Sábios são os que buscam a sabedoria, loucos são os que já a encontraram...

O homem não compreendeu muita coisa, mas gravou as palavras da mulher, ele a fitou de
cima a baixo. Ela estava em silêncio e ele logo entendeu que a consulta já estava encerrada.
Abriu o casaco, tirou então os cinqüenta pence do bolso e pagou a cigana. Ela, por sua vez,
agradeceu.
A garoa continuava a cair e um táxi novo chegara, este ele não poderia perder, olhou então para
o motorista e fez sinal, o mesmo logo atendeu, encostando o carro ao meio-fio. Hary el seguiu em
direção ao carro, olhou novamente para trás para ver pela última vez o rosto da cigana, mas ela
já não estava mais lá.

— Theobalds Road, por favor – disse o homem ao motorista


— Por qual caminho? – perguntou o taxista.
— O mais rápido a esta hora, já tive muitos contratempos...
— Sem problema... – disse o taxista, enquanto olhava interessado para o jornal de Hary el. –
Ainda não conseguiram pegá-lo, não é? – continuou
— Quem?
— O assassino, o da armadilha, essa é a segunda morte em duas semanas.
— É, pelas manchetes ainda não, mas a polícia anda trabalhando.
— Pelo visto os jornais mais que a polícia. Já é a segunda capa de jornal. A Scotland Yard se
gaba de ser o departamento mais eficiente do mundo e deixa esses malucos a solta.

O motorista parecia meio indignado

— Bom, você tem que entender que não existe só esse caso, o pessoal anda ocupado, embora
esse fato seja grave a Inglaterra ainda tem muitos outros crimes pra serem investigados...
— Bobagem, eles andam muito influenciados pela imprensa. Ultimamente só caçam quem
está na mídia. Sabe como é, não se fazem mais policiais como antigamente...
— Dobre a esquerda.
— Ah, claro.

Mesmo achando a conversa do taxista interessante o homem continuava com a cabeça no


centro da cidade, e na mulher que encontrara, sentia que aquele fato ficaria na sua mente por um
longo tempo. Embora não acreditasse muito em ciganos e pessoas que lêem o futuro Hary el
achava muito estranho o modo como as coisas ocorreram, o encontro era casual demais, ela
sabia seu nome, sabia que era canhoto.
“Bem, esse tipo de gente normalmente espiona as pessoas, vasculha no lixo, é provável que por
aí ela tenha descoberto meu nome”, pensou o homem. “Quanto ao fato de eu ser canhoto, ela me
viu pegando o jornal...”
No entanto alguma coisa não se encaixava, “E tudo aquilo que ela me falou? Tanto trabalho
por meia-libra?”

— Dobro nessa esquina ou na próxima? – perguntou o taxista.


— Na próxima...
— E aí, o senhor acha que vão pegar o cara?
— É provável, sempre pegam. E você?
— É como eu já te disse, com a mídia em cima pressionando eles vão ser obrigados a achar.
Hoje em dia a imprensa domina o mundo, influencia em tudo, até no governo. Um ministro
permanecer ou não no cargo depende da boa vontade dos paparazzi.
— É verdade...
— Parece que ele gosta da chuva não é? – disse o taxista.
— Quem?
— O assassino, ele mata durante a garoa...
— Tudo leva a crer que sim, mas ainda não é uma tendência confirmada. Pra dizer a
verdade não se sabe nem se é o mesmo cara.
— Mas o estilo não é igual?
— É parecido, mas muitas vezes as pessoas se aproveitam de um crime que já aconteceu
para fazerem um do mesmo tipo e culpar o primeiro assassino. Me entendeu?
— Mais ou menos. O que será que passa na cabeça de um cara desses?
— Boa pergunta... É ali na terceira travessa – falou o homem, enquanto se esforçava para ler
a matéria aos balanços do carro.
— É contra-mão?
— Não, mão dupla. Você acredita em destino? – disse Hary el, cortando a conversa.
— Um pouco... Por quê?
— Nada, esquece. Siga por aqui, é o segundo prédio do lado direito.
— Certo. Sabe o que eu acho? Você me perguntou sobre destino. Eu acho que pessoas como
esse assassino não tem destino traçado sabe, eles não nascem predestinados a serem esses
monstros que são, é tudo uma questão de decisão, decisão deles, livre-arbítrio... E a sociedade é a
maior culpada, não “pune” como deveria e a polícia não “prende” como deveria...

“Maravilha, entrei num carro pra ter lições de filosofia”, pensou.

— É, concordo. Pode encostar aqui, do lado desse edifício.


— Esse?
— É, esse mesmo. Quanto te devo, amigo?
— Quatro libras, senhor.
— Não precisa se preocupar, o departamento policial já tem muitos homens trabalhando no
caso – explicou o homem enquanto pagava o taxista e se retirava do carro. – Ele não vai ficar
livre.
— Obrigado – disse o taxista, agradecendo o pagamento. – Mas, como sabe?

— Sou detetive.
— O chefe quer falar com você – disse Paul a Hary el que acabara de entrar na central.
— Maravilha! Todo mundo quer falar comigo hoje... – respondeu o detetive atirando o
sobretudo sobre sua escrivaninha.
— Ele parece de mau-humor... – continuou Paul.
— Sério? Cada vez eu me surpreendo mais com as novidades. O que ele quer?
— Pergunta pra ele. Acho que é sobre o tal cara das armadilhas. Acho que ele te quer no
caso...
— Como “te quer”? Parceiros, lembra? Na saúde e na doença, na alegria e na tristeza...
— Você é quem vai ficar bem triste se não ir logo pra sala dele. Todo mundo já percebeu
que você está atrasado.
— Eu tive uns probleminhas. Uma cigana maluca me parou na rua, e eu peguei um taxista
com complexo de cidadania...

Era o terceiro ano de trabalho naquela central desde que o detetive fora transferido de
Liverpool. Poucos eram os grandes casos que investigara desde então, no entanto, já obtivera
certa fama no meio pela captura do assassino de Lion Nasser, e mais importante que isso, por ter
desvendado no ano passado um crime que atormentara toda Londres, o caso ficara conhecido
como “As esmeraldas do Dr. Porter”. Esses fatos o fizeram ficar conhecido por sua grande
capacidade de dedução, inteligência e o mais marcante, sua capacidade de ironizar a morte.

— Eu quero você no caso! – disse o comissário, ao mesmo tempo em que batia fortemente a
mão contra a escrivaninha de sua sala.
— Calma chefe... Eu não posso, você me designou semana passada pra analisar o suicídio da
Sra. Norton. Eu e o Paul já estamos por demais atarefados...
— Esquece esse suicídio, eu mando a equipe do Alex investigar. Eu já disse, quero você
nesse caso, e nem pense em pensar em me contrariar... Tem um Serial Killer brincando de Lego
com armas mortais e me requisitaram dois detetives desse departamento. Você não vai ser o
único a investigar o caso.
— Bom, agora piorou, vou ter um bando de engraçadinhos se metendo no meu trabalho – o
detetive sorriu. – Mas o que você me pede chorando que eu não faço sorrindo?
— É bom mesmo, pegue os arquivos do caso com o Paul.
— Espero que você lembre disso na minha aposentadoria...
— Se você não andar logo ela vai sair mais cedo do que você imagina.

Paul era um grande amigo de Hary el, foi a primeira pessoa que conheceu em Londres, e sua
afinidade com o detetive foi logo motivo para ser destinado como seu parceiro.
Paul possuía trinta e dois anos e embora fosse bastante carismático, não era dotado de grande
beleza. Usava uns óculos de larga armação preta, o que contrastava de um jeito até um pouco
engraçado, com seus cabelos castanhos. Os dois haviam adquirido grande entrosamento durante
os casos que investigaram e suas ações quase sempre se complementavam.

— Os arquivos que me pediu – disse Paul, colocando uma enorme quantidade de papéis
sobre a mesa.
— Ainda não entendi porque tanto alvoroço, não temos nem certeza se foi o mesmo cara –
falou o detetive, enquanto olhava atentamente as manchetes de jornais e o relatório da perícia.

“É, o taxista estava certo”, pensou

— Primeira morte: Uma semana atrás, J. M. Arnold, 23:00h de terça. Ao abrir a porta do
escritório disparou uma armadilha com 37 pequenas flechas envenenadas, a altura estava
calculada, não acertou nenhum ponto fatal. O assassino, ao que me parece, queria que a vítima
sofresse. Onze flechas atingiram a perna esquerda, amputando-a no nível do joelho. As linhas de
telefone estavam cortadas e o horário impediu que alguém ouvisse o pedido de socorro. O
veneno demorou a fazer efeito, morreu de hemorragia se arrastando no corredor do prédio. Foi
encontrado as 7:00 da manhã por um faxineiro que seguiu os rastros de sangue. Sem pistas, sem
impressões, sem inimigos.
— Qual a origem das flechas? – perguntou Hary el.
— Fabricação caseira, assim como todas as peças do dispositivo, ao que parece é um ótimo
artesão.
— E a segunda?
— Anteontem, Gabriel Collins no porão de sua casa. A armadilha possuía dois esguichos de
óleo diesel, uma espécie de lança-chamas fez o resto do serviço. Ele desesperado tentou correr
pra chuva, mas as portas estavam com tranca. O assassino teve um belo trabalho pra preparar a
casa. Morreu cremado. Na autópsia foram encontrados resíduos de um veneno similar ao
cianureto no estômago. O cara não perde tempo, mesmo que a armadilha falhasse a vítima não
ficaria viva.
— Local de envenenamento?
— Não se sabe, era domingo, ele passou o dia todo fora de casa, sem testemunhas. O mais
provável é que tenha sido ingerido com whisky, a vítima estava semi-alcoolizada na hora da
morte.
— E o retrato nos jornais?
— Já foi divulgado, mas até agora não apareceu ninguém que tenha visto nada. Fora isso
também não há pistas, tudo de fabricação caseira, sem resíduos, marcas, é impossível
estabelecer a origem dos equipamentos.
— Fatores comuns?
— Chuva, o fato dos dois serem homens e dos crimes serem realizados a noite. Há grande
semelhança nos equipamentos e um toque de crueldade. O cara é pirado.
O detetive ficou um tempo quieto olhando pensativo para o parceiro e, por fim, disse:

— Pirado e muito esperto. Qual a profissão das vítimas?


— Sem ligação, Arnold era executivo de uma multinacional e Collins comerciante de
bebidas.
— É possível saber se o whisky era da mesma marca que ele vendia?
— Esquece. Eles são peritos, não médiuns. O cara tava quase inteiramente carbonizado, e
Collins trabalhava com muitos tipos de bebida.
— Semelhanças psicológicas?
— Nenhuma. Arnold era o típico empresário intelectual e Collins fazia o gênero
“esquentadinho.”
— Deixe-me adivinhar, também não se conheciam.
— Já disse, sem ligação.
— Só mais uma coisa Paul, quem encontrou o Collins?
— O carteiro. Ele morreu próximo à porta de entrada. Provavelmente tentando quebrar o
vidro...

Os dois policiais passaram a manhã e a tarde inteira analisando o caso. Cada pormenor do
crime era estudado, assim como os relatórios dos médicos que fizeram as autópsias e o
depoimento dos que tinham contato com as vítimas. Quase no final do dia eles já estavam a par
de todos os detalhes e fatos ocorridos. Embora os dois já tivessem lido as matérias nos jornais e
acompanhado os acontecimentos dentro da polícia, sempre ficam fatos escondidos, que só são
descobertos por quem investiga minuciosamente o caso. Quanto mais pesquisava, mais se
desfazia na mente de Hary el a idéia de que eram crimes isolados, as particularidades eram
evidentes. Tratava-se de um assassino em série.

— Eu soube que Adam Johnson está trabalhando no caso – comentou Paul já olhando no
relógio.
— Ele está metido em tudo. Se duvidar ele está investigando até o misterioso
desaparecimento de apontadores na minha escrivaninha.
— Desculpe, eu usei quando fui assinalar uns trechos de uma reportagem... Eu soube que
você trabalhou junto com ele no caso de Lion Nasser.
— Não, eu não conheço ele.

O telefone tocou, Paul imediatamente atendeu

— Ahn? Certo... Telefone pra você Hary , é o cara que você não conhece...
— Por que as coisas sempre pioram? – murmurou o detetive enquanto atendia o telefonema.
– Alô! Como vai Adam? O que, agora? Onde?

Hary el pegou seu bloquinho e anotou alguma coisa

— Pega o casaco Paul, vamos fazer serão hoje – falou o detetive, enquanto batia o telefone
no gancho.
— O quê? – disse o parceiro, espantado.
— No caminho eu te explico.

Os detetives entraram no carro de Paul e seguiram rumo ao Bloomsbury, Hary el dirigia


apressadamente e o seu parceiro continuava sem entender nada.

— O que foi? – perguntou.


— Ele matou outro – respondeu o detetive.
— Quem, o maníaco?
— É, Johnson me ligou pra informar, o chefe contou a ele que nós estávamos no caso.

Já anoitecia e a chuva que parara durante a tarde começava a cair bem fina sobre o retrovisor
do carro. Esse deslizava no asfalto úmido em meio ao raro barulho dos trovões que ressoavam de
quando em vez.

Depois de procurar um pouco Hary el logo achou a casa da vítima, estava cercada por cordões
de isolamento. Era uma casa antiga, do final do século XIX. Do lado de fora muitos policiais
impediam o olhar curioso da multidão. Por sorte, não havia ainda nenhum representante da
imprensa.
A casa era rodeada de muitas outras da mesma época, quase defronte havia um bar com uma
porta quadriculada de madeira e vidro. Este estava com o balcão quase deserto já que toda
massa móvel do local permanecia do lado de fora e com a atenção voltada para o crime.

O detetive encostou seu carro na guia ao lado do bar e seguiu com Paul em direção aos carros
da polícia.
— Afastem-se – disse Hary el, mostrando o distintivo e abrindo caminho em meio à
aglomeração.
— O que está fazendo? – perguntou o parceiro.
— Seguindo as luzes...

O detetive olhara espantado o grande numero de civis que rodeavam o local, na certa o corpo
já havia sido encontrado há algum tempo. Ao fundo via-se alguns homens de terno,
provavelmente agentes da sede central da Scotland Yard, e no meio da confusão cinco ou seis
policiais paisanos – constables - tentavam conter a massa.
Ao passar o cordão de isolamento um desses policiais o barrou.

— Aonde vai? – perguntou.


— Ver o corpo! – disse Hary el, mostrando as credenciais.
— Desculpe senhor, mas recebi ordens dos agentes de não deixar passar mais ninguém... –
explicou o policial enquanto examinava com o olhar o distintivo.
— Como assim ordens? Que agente?

— Hary el! Que bom te ver! – disse um homem de sobretudo preto que caminhava rumo aos
dois. – Deixe-o passar.
O policial imediatamente obedeceu ao homem de preto

— Adam? – balbuciou espantado o detetive.


— Como está? – perguntou o homem ao mesmo tempo em que gesticulava alguma coisa aos
agentes que ainda estavam na casa. – Não te vejo desde o caso Nasser.
— É, desde o dia em que você roubou setenta por cento dos créditos e ganhou uma
promoção.
— Ainda me crucificando por causa disso? Você sabe que não foi bem assim, o comissário...
— Esquece isso – disse o detetive, já meio impaciente –, onde está o corpo?
— Lá dentro, me acompanhe.
— Tem certeza que é o mesmo assassino?
— Absoluta – confirmou o homem, guiando Hary el rumo à porta de entrada
— Hary ! – gritou Paul que ainda estava do lado de fora do cordão de isolamento
— Deixe-o entrar – disse o detetive ao policial, que continuava controlando a manifestação
civil.

O policial olhou para Adam e o mesmo fez um sinal com a cabeça autorizando a ordem.
Os dois então o seguiram até a porta.

— Como foi o crime? – perguntou o detetive.


— Como os outros, o cadáver está em frangalhos.
— Onde ele está?
— Na cozinha. Foi eletrocutado.

Pelo que parecia havia poucos agentes dentro da casa, cerca de três. Estavam tirando algumas
fotos por conta própria.

— Há quanto tempo o acharam?


— Cerca de uma hora, mas os policiais chegaram há uns vinte minutos.
— Quem está no comando?
— Eu – respondeu Adam, retirando um isqueiro do bolso do paletó.
— Fumar é prejudicial à saúde – disse Hary el, colocando as luvas de borracha
— Viver também – comentou o homem enquanto acendia um cigarro.

Paul parara um pouco para conversar com o homem da câmera, queria obter o máximo de
informações possíveis.

— Como foi? – perguntou Hary el.


— Tudo indica que foi ontem à noite, mas ainda não temos certeza. Parece que ele mexeu
na rede elétrica, sabotou o interruptor colocando uma espécie de condutor por sobre o botão. Um
sistema de travas ao lado do espelho fez com que duas estacas de aço fossem cravadas na mão
da vítima, impedindo assim qualquer tentativa de retirar os dedos do interruptor. No entanto
durante a contorção do choque ele conseguiu se libertar, mas já estava inconsciente. Perdeu
parte da mão. Acho que o assassino entrou depois, ele já estava morto estirado ao lado da pia. O
cara então pegou uma navalha ou coisa assim e abriu a camisa do homem, sem menor
hesitação o desgraçado rabiscou o corpo dele inteiro. O sangue está por quase toda cozinha –
disse Adam, enquanto encaminhava o detetive até a cena do crime.
— Qual o nome da vítima?
— É bem exótico, Morrison, Metatron Morrison. A família estava viajando, eles têm uma
casa em Edimburgo.

A essa altura Paul já estava acabando sua coleta inicial de informações com o homem da
câmera. Parou então para olhar para seu parceiro, Hary el caminhava vagarosamente ao lado de
Adam, possivelmente rumo à cozinha. Adam Johnson era um homem muito estranho, pelo que
tinha percebido no início ele havia tido uma espécie de rixa com o detetive no passado.
Os dois até de alguma forma se pareciam, tanto um quanto outro exibiam certa ironia no falar
e eram dotados de grande inteligência, embora nesse quesito seu parceiro se destacasse. Paul
conhecia o detetive há tempo suficiente para saber que dificilmente alguém o superaria
intelectualmente. No entanto uma coisa parecia diferenciá-los. Johnson exibia certa covardia no
olhar que Paul nunca notara em Hary el, talvez este fosse o motivo que o fizera manter uma
espécie de antipatia por um homem que acabara de conhecer. Mesmo tentando Paul não
conseguia desassociar a figura de Johnson a um rato.

— Ali está – disse Adam, mostrando ao detetive o local onde estava o cadáver. – Preciso sair
agora, tenho outros dois casos pra averiguar antes da meia-noite.
— Até – disse Hary el, enquanto passava pela porta da cozinha pisando no sangue empoçado
pelo chão.

Johnson despediu-se rapidamente de todos, incluindo Paul, e partiu junto com boa parte dos
carros de polícia. Ainda havia cerca de cinco agentes no local e há pouco viera o reforço com
mais seis guardas-civis. O numero de curiosos do lado de fora só aumentava e os jornalistas já
davam sinais de presença através dos flashes que iluminavam constantemente a parte externa da
casa.
Hary el ficara intrigado com os caracteres no corpo da vítima, nunca havia visto nada
parecido, já ouvira relatos sobre crimes relacionados a seitas satânicas, os quais na grande
maioria das vezes eram diferenciados pela grafia de símbolos nos cadáveres, no entanto, os
métodos sempre seguiam uma espécie de ritual, fato comum em crimes psicóticos, o que ali não
se via.

— Chamem a perícia!
— Já estão a caminho – Disse Paul, enquanto retirava um tipo estranho de colar de dentro da
roupa da vítima.
— O que você está fazendo?
— Só examinando...
— Eu devia examinar seu distintivo! Você devia esperar os peritos, o que pensa que está
fazendo?
— Já disse, estou só olhando. Não é um colar estranho para um cara como esse? Meio
feminino...

Era um colar muito bonito, provavelmente de ouro puro. Em seu centro havia uma pedra de
formato oval, azul escura, como um camafeu com duas hastes douradas, compridas e finas. A
pedra central possuía cerca de dois a três centímetros. Hary el percebeu que a mesma ocultava
uma espécie de compartimento, mas resolveu ficar calado, seu amigo já estava por demais
entusiasmados.

— Sua mulher sabe desses seus dotes relojoeiros? – Disse o detetive, enquanto arrancava
brutalmente a peça da mão de seu parceiro.
— Calma aí, cara...
— Olha Paul, hoje eu tive um dia cheio, pra terminar um maluco sai inventando engenhocas
homicidas por toda Londres e desenhando gestalts com lâminas no corpo de pais de família ,
sinceramente, cara. Eu não quero acabar meu dia ouvindo um bando de engraçadinhos pseudo-
intelectuais me dizendo que “Não se deve tocar nas provas do crime” porque isso eu e você já
estamos cansados de saber...
— Ta bom, desculpa. Eu só...
— Eu sei, esquece isso. Vamos tomar um café.

Mesmo depois de tudo que acontecera Hary el não conseguira parar de pensar na cigana que
encontrara pela manhã. O que queria dizer tudo aquilo que ela lhe falara? “Sábios são os que
buscam a sabedoria, loucos são os que já a possuem”, aquela frase de uma forma engraçada
martelava na sua cabeça como algo muito importante, como se representasse alguma coisa.

— Bobagem, eu que devo estar ficando louco.


— Ahn?- Disse Paul, enquanto erguia sua xícara para pedir mais café
— Nada, estava pensando em voz alta...
— Estranho esse caso de hoje... Faz tempo que não se via esse tipo de crime por aqui.-
comentou o parceiro enquanto recebia seu café das mãos do barman
— Você acha realmente que foi algum maníaco? – Perguntou o detetive.
— Bom, na minha opinião, pessoas que saem assassinando e cortando a pele de outras por aí
são maníacas. Fora aquele colar Egípcio que a gente encontrou. Com certeza aquilo tem alguma
ligação...
— Hindu – disse Hary el
— Ahn?
— O colar é Hindu. E foi “você” quem encontrou, aliás, quem encontrou e quem ficou
brincando de hélice com ele.
— Às vezes eu penso que você não tem senso de humor.
— Eu tenho, olha a minha cara de contente.
— Você sente prazer em ser irônico não é? – Disse Paul, já meio constrangido com a falta
de atenção de seu parceiro. – O que está fazendo?
— Desenhando – respondeu o detetive ao mesmo tempo em que acabava seus últimos
rabiscos em um bloquinho.
— Seu chá vai esfriar, deixe-me ver isso – falou Paul, tirando a folha de papel de seu
companheiro
— Você não tem educação?
— Bom, se eu não tenho você também não... – comentou o parceiro enquanto olhava
atentamente os traços do detetive.

Na folha estava estampado o retrato do colar que eles haviam encontrado na vítima

— Você desenha bem, onde aprendeu? – Continuou Paul, ainda tentando atrair a atenção do
detetive.
— A gente aprende muitas coisas trabalhando no departamento criminal...
— Modéstia não está inclusa... Por que está fazendo esse desenho?
— O colar, eu achei estranho. Não parece com nada que eu já tenha visto, aliás, tudo nesse
crime também não.
— Você não disse que conhecia o colar? Hindu...
— Aí é que está meu amigo, o colar provavelmente é indiano, século XVII, mas esse
símbolo de oito lados estampado na pedra não, é um símbolo chinês, você que é meio esotérico
devia saber o que significa.
— Baguá?
— Exato, uma combinação exemplar não? Embora a filosofia chinesa tenha em sua origem
uma grande influência indiana, não existe esse símbolo na tradição Hindu e nem um colar como
esse na China. Não faz muito sentido...
— O colar pode ser falso, provavelmente o ourives queria criar alguma coisa nova, baseada
no oriente, além disso, nós ainda não temos certeza que ele tem alguma ligação com o crime. O
que tem demais um homem gostar de jóias?
— Você mesmo disse, é feminino demais. Ao que parece é uma peça antiga. Não foi criada
recentemente, por isso não veio de nenhuma inspiração neo-oriental. Fora isso, também não é
um artigo que se carregue no bolso do paletó a qualquer hora.
— Acho que botaram erva demais no seu chá.
— Hum...
— É sério, Hary. Você está com mania de conspiração. Lembra semana retrasada? Você
achou que o derrame de óleo na Baía de Guanabara era estratégia do governo brasileiro pra
privatizar a Petrobrás. Você anda vendo TV demais...
— E você me enchendo demais, acaba logo o seu café.
— Não está mais aqui quem falou...
— Sabe qual é o seu problema Paul? Você não presta atenção em evidências. Tem fé
demais no que não vê e se recusa a enxergar o que está na sua frente.
— Exatamente o que meu psicólogo disse, se eu soubesse desses seus dotes não precisaria ter
pago três anos de terapia.
— É, e você não aprendeu, por isso sua mulher não te suporta.
— Ex-mulher. Você podia deixar esse seus comentários pra outra hora, né? Eu estou cansado
e preciso ir pra casa acabar de ler meu livro de auto-ajuda. Amanhã, na central, o chefe vai
querer o relatório e eu tenho que passar a noite inteira pensando numa boa história.- disse Paul,
dirigindo-se à porta do bar.
— Boa noite – respondeu o detetive.
— Quer uma carona?
— Não, vou a pé. Preciso arejar um pouco minhas idéias.
— Eu só disse que você estava vendo muita TV...

A garoa continuava a cair por toda Londres. As gotas de chuva sofriam o reflexo das lâmpadas
e tornavam as ruas e calçadas cada vez mais brilhantes, o vento soprava e levava o frio do outono
através dos becos. A mente de Hary el continuava a se lembrar da cigana e de tudo o que
acontecera naquele dia. Sentia como se algo muito importante estivesse começando, algo que
mudaria sua vida para sempre.

— Instinto de detetive.
— Ahn? – Disse o barman espantado
— Desculpe, eu estava distraído – tentou consertar Hary el
— Eu percebi – respondeu o barman –, eu dizia, senhor, que são duas libras...
— Ah claro, fique com o troco – falou o detetive, enquanto pagava seu chá e dirigia-se em
direção à porta. – O senhor viu alguma coisa? – lembrou-se de perguntar antes de deixar de vez o
estabelecimento
— Do crime? Não. O Sr. Morrison era um homem muito reservado, as poucas vezes em que
freqüentou o bar mal pronunciou duas palavras. A casa ficava sempre fechada, acho meio difícil
o senhor encontrar alguém por aqui que tenha visto algo.
— Mesmo assim obrigado, o chá estava ótimo. Do que era?
— Hortelã, o Sr. Morrison também gostava.

“Também gostava? Ele não disse que o homem havia freqüentado poucas vezes o bar? Como
poderia saber?”, pensou o detetive. “Não, acho que eu estou mesmo vendo muita TV...”
Hary el despediu-se do barman e seguiu rumo à sua casa. A noite já havia caído há algum
tempo e amanhã seria um longo dia.
O demônio de olhos cinza acordara mais uma vez com os trovões em meio à madrugada.
Tivera outro longo pesadelo com o sangue que derramara. Via suas vítimas suplicando
amedrontadas no fogo do inferno. Elas ardiam e suportavam a dor amaldiçoando aos gritos o seu
nome. Mesmo assim não sentia remorso algum. Ele lembrava do tempo em que seus olhos ainda
eram verdes, verdes da esperança que carregava no seu coração. Agora nada mais restava. Seu
coração não tinha mais aquela esperança e seus olhos eram cinza como o mais forte nublado do
céu. Tudo isso porque alcançara a verdade. Agora ele possuía o maior dos conhecimentos,
conhecimento esse que lutara muito para alcançar. Ele sabia que o caminho escravizava, mas a
verdade, essa dava a liberdade, e ele era liberto.

A tempestade do lado de fora lembrava-no que seu quadro estava apenas começando e os
relâmpagos que de quando em vez iluminavam o apartamento faziam-no ver o quanto ainda
faltava de tinta vermelha no céu.
Levantou-se e começou a pintar, pintar a face do terceiro anjo. As tintas eram passadas pouco
a pouco sobre a tela, com uma precisão sem igual. Era um grande artista. Ainda faltavam quatro
anjos. O cenário estava pronto há sete dias, mas só há três iniciara realmente o seu trabalho. Os
corpos já estavam desenhados e os rostos escolhidos, exceto o do anjo do centro, ele ainda não
decidira sua face. Olhava atentamente para sua obra e sentia que a inspiração estava próxima.
Logo a névoa que cobria a parte principal de sua obra desapareceria, e aí ele poderia realmente
achar o fim.

— Maldita insônia! – gritou o homem atirando longe seu pincel. – Preciso de inspiração!
Por que ela nunca vem quando preciso?!

“É essa maldita luz”, pensou. “Esses prédios do lado de fora, com essas lâmpadas... Não me
deixam mergulhar nas trevas” “Amanhã. Amanhã eu resolverei isso, não posso ficar frustrado
tanto tempo. Eu sei que a idéia está próxima, eu sinto o cheiro, eu a entrevejo na minha mente.
Não preciso ficar irritado, amanhã eu acharei o sétimo anjo.”

O homem pegou uma xícara de café do lado da mesinha de madeira, ainda estava quente. Ele
estava suado por causa do pesadelo. Como podia suar numa noite tão fria? Bebeu um pouco do
café e recolheu o pincel do carpete. Provavelmente não dormiria naquela noite. Só lhe restava
pintar. Se não houvesse mais o que pintar na sua obra-prima, pintaria outro quadro, um que
representasse seus sentimentos. Estava confuso desde que tudo isso começara. Sentia fortes dores
de cabeça alternadas com estados de êxtase inigualáveis. Embora suas idéias nunca estivessem
tão claras a confusão provinha do emaranhado de sensações que sua mente produzia.
Concentrou-se um pouco e fez uma espécie de auto-hipnose, havia dado certo nas ultimas vezes.

“Por que o vento sopra tão forte contra a janela?”, ponderava. “É como se quisesse me dizer
alguma coisa, mas eu não consigo escutar”
A dor de cabeça já passara, enquanto pincelava ouvia o zumbir do vento que insistente batia
nas paredes do lado de fora do prédio.
“Vou parar para escutá-lo”, disse consigo mesmo. “O vento e eu somos parte do todo, por
tanto ele e eu temos a mesma essência, se me tornar um só com o vento saberei o que ele sabe.”
O homem abandonou o que fazia e sentou-se em meio a uma almofada vermelha no centro da
sala, provavelmente a única área quente naquele piso gelado, cruzou as pernas e acendeu um
incenso.Respirou profundamente como muitas vezes já havia respirado e fechou os olhos.
Encostou a língua lentamente no céu da boca e pronunciou uma sílaba tão poderosa que fez
vibrar cada célula do seu corpo. Ele passou exatamente uma hora em estado de intenso
relaxamento, não pensava em nada, pois sabia que a mente suprema é a não-mente. Ele logo
atingiu o estado que necessitava, então acordou. Abriu lentamente os olhos e pouca luz que
entrava devagar por eles iluminava também o seu interior. Sua aparência agora era relaxada,
como se nada mais importasse e o tempo não existisse.

— Graças ao Tao que é meu escravo e também minha essência! – riu o homem. – Agora
compreendo.

“Mas por que o vento não me mostrou o rosto na viagem?”, se questionava. “Não importa, já
sei o que preciso saber, sei que amanhã terei minhas respostas”

Ele levantou-se da postura de lótus e olhou para as nuvens que se abriam no céu. As estrelas
começavam a aparecer e a tempestade por sua vez dera uma trégua.
“Como é belo o que minha mente imagina”, refletia. “Pena que a maioria das pessoas só
consiga ver estrelas a noite. Mesmo assim elas têm sorte, não carregam o peso da sabedoria.”

O cheiro de eucalipto envolvia todo o ambiente, e pouco a pouco penetrava por entre a janela
o brilho azulado da lua. Ele ficou lá, durante um longo tempo, olhando pela janela e lembrando
das muitas coisas que já haviam acontecido e das muitas que ainda estavam para acontecer.
“Só agora entendo o que meu mestre dizia” pensava


— Antes de escalar o grande monte, eu olhava às vezes para a paisagem, as árvores eram
apenas árvores, e os lagos apenas lagos – dissera o mestre. – Já no meio da subida, eu também
parava às vezes para olhar a vista e ver o quanto já tinha escalado. As árvores eram mais que
árvores e os lagos mais que lagos. Agora que cheguei ao topo, as árvores são apenas árvores e os
lagos nada mais são que lagos, no entanto ainda falta o céu para subir.
— Não compreendo...
— Um dia compreenderás.
— Por que o Ch’an é tão complicado?
— Por que as coisas mais simples são as mais complexas.
— Mestre, o que é o Ch’an?
— O Ch’an é a luz da lua iluminando o Sol.
— Ainda não compreendo.
— O Ch’an é esterco seco.”

O homem voltou para o seu quarto e começou a pintar novamente, misturava devagar as tintas
tentando achar a tonalidade certa. Lá fora as correntes de ar arrastavam algumas latas pelo
asfalto fazendo um barulho intrigante, que se misturava às vezes com o dos poucos carros que
cortavam as ruas daquela quadra. Enquanto coloria o rosto na tela, o homem lembrava-se aos
poucos da sua infância na China e de uma história que ouvira certa vez, há muitos anos, de seu
antigo professor.


— Mestre, posso parar de estudar um pouco e sair para nadar? – disse o rapaz.
— Não fizeste isso ontem?
— Sim, mas sinto vontade.
— Mês passado você me pediu a mesma coisa e eu consenti, ficaste meia hora no rio.
Semana passada assim também foi e ficaste uma hora lá. Ontem tu me disseste que se eu te
deixasse ir estudaria com muito afinco no dia de hoje, ficaste duas horas no rio. Se hoje eu te
deixar ir de novo, tu nunca mais estudarás como deves estudar e sempre desejarás ficar mais
tempo fora daqui.
— Não, será a última vez – disse firmemente o rapaz.

O velho riu e contou uma história

— Na antiga China vivia em uma montanha profunda um famoso e sábio eremita de nome
Senrin. Esse homem era muito conhecido por seus poderes mágicos e sua generosidade.
“Certo dia, um velho amigo em viagem fora visitá-lo. Senrin por sua vez, feliz em recebê-lo
ofereceu-lhe um saboroso jantar e abrigo para noite. A madrugada era fria, mas o eremita
cuidou para que o hóspede dormisse confortavelmente.
“Na manhã seguinte, antes da partida do amigo, quis ofertar-lhe um presente. Tomou então
uma pedra do chão, e com o dedo, converteu-a em um bloco de ouro puro.
“O amigo claramente não ficara satisfeito; Senrin sem dizer uma palavra apontou o dedo para
uma rocha enorme, que também se transformou em ouro.
“O amigo, porém, para espanto do eremita, continuava sem sorrir.
“— Que queres então? – indagou Senrin.
“Respondeu-lhe o amigo
“— Corta esse dedo, eu o quero.

O homem acabou as pinceladas que faltavam e deitou-se na cama, por enquanto terminara
seu trabalho. Ele permaneceu ali por muito tempo, observando fixamente o teto, tentando
adormecer. O próximo dia traria consigo coisas que ele ainda não previra, mas ele já havia
decidido o que fazer. No próximo dia, mataria novamente.
O detetive chegara mais uma vez atrasado à central, não dormira bem aquela noite. Como de
costume Paul e quase todo o departamento já estavam lá.

— Você está na primeira página do Times meu amigo! – disse Paul, enquanto entregava um
jornal nas mãos de Hary el
— O que é isso?
— Adivinha.
— Sinceramente eu já estou com a cabeça cheia com esse negócio de adivinhar – falou o
detetive, ao mesmo tempo em que abria o jornal. – E, eu acho que... Não pode ser! – disse o
detetive, espantado
— Mas é... Parece que enfim a mídia te reconheceu.
— “Detetive Hary el Kitten comanda caça a assassino”? É hoje que o Adam compra uma
daqueles bonecos de vodu...
— Você não tem culpa. Ele já tinha saído quando os jornalistas chegaram. A foto ficou boa.
A gente saiu bem...
— Não foi meu melhor ângulo – disse Hary el, ironicamente. – O Chefe já chegou?
— Já. O relatório da perícia também já está pronto.
— Me arruma uma cópia.
— Já tem uma na sua mesa. Você vai se espantar com a listagem dos peritos.

Mesmo mantendo a alegria de sempre Paul parecia diferente aquela manhã, Hary el notava
que seu parceiro estava preocupado. De início achara que fosse alguma coisa relacionada à
repercussão que o caso estava causando. Mas logo descobriu de que se tratava.

— Como assim sumiu?! – disse fortemente espantado o detetive.


— Sumindo, na verdade ninguém sabe. Ele não sumiu, simplesmente não consta na listagem
de materiais encontrados no corpo do Morrison, é como se nunca estivesse lá.
— Mas nós vimos o colar! Ele não pode ter desaparecido assim. Liga pro responsável da
perícia, ele tem que estar lá em algum lugar.
— Já liguei, cara. Eu já disse, não consta na listagem. Ele simplesmente evaporou.
— Isso é impossível Paul, nós ficamos no bar até chegada do pessoal que iria retirar o corpo,
mesmo que o colar tivesse caído alguém teria visto.
— Pode ter sido alguém da perícia...
— Não, eles ficaram muito pouco tempo do lado de dentro. Mesmo os que entraram para
fazer a análise da casa estavam supervisionados. Fora aquele guarda que me barrou, que
certamente ficou a noite toda de guarita na porta da frente.
— O colar ainda pode estar lá, os peritos vão fazer uma segunda vistoria, agora pela manhã.
— Mas eles não passaram a madrugada na casa?
— Segundo o relatório inicial cerca de duas horas, mas eles ainda têm muitas coisas para
analisar.
— Avisa pro comissário que a gente está indo pra casa do Morrison e depois desce com a
papelada, eu vou pro carro – articulou Hary el seguindo apressado em direção à porta.

Era a segunda vez em dois dias que o detetive dirigia com pressa para o Bloomsbury passando
dois sinais vermelhos, no entanto não garoava, embora a manhã ainda permanecesse fria e as
previsões anunciassem chuva no final da tarde.
— Qual o laudo inicial? – perguntou Hary el, com os olhos cravados no volante
— Foi aquilo mesmo que o Johnson falou, ele preparou a armadilha e entrou depois pra
garantir o serviço.

— Bom, o que os crimes mantêm em comum?


— Ainda a mesma coisa – disse o parceiro. – Ele ocorreu mais ou menos no mesmo horário
dos outros, lá pelas 22:00 horas, tem o fato da chuva também, caía uma garoa bem fina nesse
horário. E os três eram homens.
— Nada de novo?
— Nada, continuamos sem pistas. A não ser, é claro, o colar.
— Já identificaram os símbolos no cadáver do Morrison?
— Não, continuam sem tradução. Se você entrar a esquerda a gente chega lá em menos de
dois minutos.
— Paul, eu conheço esse bairro.
— Você está meio pensativo, está com alguma idéia em mente?
— Estou, mas antes preciso ir até a casa. Você continua fumando escondido?
— Que isso, cara? Eu parei há duas semanas... Por que diz isso?
— Tem um pouco de cinza no painel e o carro está com um cheiro suave de nicotina
misturado com odorizador de ambiente. Seu cinzeiro está limpo, ontem só tinha um pedaço de
papel nele, pra um cara preguiçoso como você se dar ao trabalho de limpar um cinzeiro com
quase nada dentro, só se for pra jogar fora os restos do cigarro.
— É, não dá pra mentir pra você – murmurou o parceiro enquanto avistava os cordões de
isolamento.
— Tem também o fato de que você sempre que fuma fazer essa cara de babaca satisfeito.
Pega o relatório.

Os dois estacionaram o carro no mesmo lugar da noite passada e foram até a casa.

— Desculpe senhor, as credenciais... – exigiu o guarda, parando os detetives.


— Nós já estivemos aqui ontem – lembrou-lhe Hary el
— Mesmo assim eu preciso ver as credenciais – insistiu o guarda.
— Ah... – murmurou o detetive, enquanto passava os dedos sobre a sobrancelha. – Pegue a
sua também Paul.
— Desculpe novamente, o senhor sabe como é... – disse o policial, averiguando pela segunda
vez os documentos.
— É, eu sei – confirmou Hary el meio irritado. – Quem está chefiando?
— É o Dr. Henry Nice, ele está lá dentro.
— Obrigado – agradeceu o detetive, atravessando em passo acelerado a faixa amarela.
— Assim você vai rasgar o cordão... – comentou o parceiro que passou em seguida.
— Essa era a intenção.

Ao fundo já se podia ver os médicos e especialistas trabalhando

— Quem é Henry Nice? – disse Hary el em voz alta.


— Eu – afirmou um homem de casaco branco que fazia algumas medições na cozinha.
— O senhor é o responsável aqui?
— Exatamente, e o senhor quem é?
— Hary el Kitten, departamento criminal.
— Perdoe-me senhor Kitten, mas eu pensava que o trabalho dos detetives terminara ontem...
— Pois não terminou, precisamos de informações a respeito de um colar.
— Colar?
— É, um colar dourado que foi encontrado no corpo da vítima.
— Não me informaram nada a respeito... – disse surpreso o médico.
— Aí é que está o problema – explicou Hary el.

Os três ficaram aproximadamente uma hora conversando

— Vê essas marcas de areia no piso? – perguntou o doutor.


— Sim.
— Ele entrou pela porta dos fundos e seguiu por aqui, a chuva embarrou um pouco a grama
do lado de fora da casa, provavelmente ele limpou os sapatos antes de entrar, mas mesmo assim
ficaram resíduos dos sapatos e pegadas por todo cômodo. O nosso assassino, aliás, tem um pé
bem grande. Um sapato europeu quarenta e seis.
— Dá pra saber o exato trajeto que ele fez?
— É possível, ele arrombou a porta com um tipo de pé de cabra e foi direto à caixa de luz
pra desligar a força, não foi difícil encontrar. Depois voltou para a cozinha e abriu o interruptor,
usou uma serra pra ligar alguns fios e puxou o condutor. Assim que acabou ele instalou aquele
aparelho com as estacas e saiu. Ficou de sentinela nos fundos até a vitima chegar. Depois que ela
estava morta ele voltou novamente pela porta de trás e com um estilete rabiscou cada parte da
pele do tórax com alguns sinais que ainda não deciframos.
— Como ele saiu?
— Novamente pelos fundos, não há uma testemunha.
— O que temos do cara?
— Conhecemos o sapato e a marca das ferramentas na fiação, se conseguirmos qualquer
uma dessas coisas poderemos fornecer uma identificação positiva. Exceto isso não temos mais
pista alguma. Vai ser muito difícil encontrá-lo.
— E o colar?
— É como já mencionei, não temos registro e nenhum dos meus homens viu nada. A
possibilidade de ele ter sido extraviado é muito grande, mas é bem improvável que algum de
vocês descubra quem o pegou. O que eu posso garantir é que não foi ninguém da minha equipe.
— Obrigado doutor – disse Hary el, entregando um cartão ao médico. – Se lembrar de mais
alguma coisa, por favor, me ligue.
— Certo – confirmou ele apertando a mão do detetive.

Paul e Hary el voltaram para o carro e partiram em direção ao departamento, era quase
horário de almoço e eles já começavam a sentir os sinais da fome.

— Estranho aquele médico, no início parecia meio nervoso – comentou o parceiro, que
agora dirigia.
— Não, normal. Ele havia sido abordado por dois homens atrás de um colar que ele nunca
viu, eu estranharia se ele estivesse calmo demais.
— Bom, você é quem sabe. Acha que ele vai te ligar.
— Acho que sim, esse pessoal sempre lembra de alguma coisa que ainda não tinha pensado.
— Vai contar pro chefe, do colar?
— Pra quê? Pra todo mundo saber que eu fico revirando provas do crime? Sou eu que estou
investigando o caso, ele não precisa constar no relatório.
— Mas assim não vai dar pra fazer uma auditoria pra apurar quem roubou.
— Melhor desse jeito, o cara se descuida. Encosta ali do lado que eu vou deixar esses papéis
na minha mesa. Depois a gente sai pra comer.
— Pra onde você quer ir?
— Faz dias que eu quero comer uma macarronada, me recomendaram um restaurante
italiano na Guilford Street que é muito bom.
— Você e a comida italiana... Se continuar se entupindo de carboidrato desse jeito vai virar
um elefante.
— Olha quem fala, você está três quilos acima do peso. Me espera próximo à esquina – falou
o detetive, batendo a porta do carro.

Hary el desceu e entrou no prédio, alguns policiais caminhavam até a porta de entrada,
provavelmente saíam para almoçar. As escadas também estavam cheias e ele encontrou certa
dificuldade de chegar a sua escrivaninha. Pegou sua carteira e deixou os relatórios em cima da
mesa de Paul. No meio do movimento percebeu que seu apontador estava novamente na
escrivaninha errada, consertou o problema e retirou um guarda-chuva da segunda gaveta, o
tempo começara a fechar novamente. O relógio marcava onze e quarenta.

— Onde você estava? Me fez gastar gasolina deixando o motor ligado – informou o parceiro,
impaciente dentro do veículo.
— Põe na conta – disse o detetive entrando rapidamente no carro. – O pessoal resolveu
almoçar em grupo.
— Pra onde eles vão?
— Não perguntei, eu sei que nós vamos pra Guilford Street.
— Hary el, eu não tenho grana pra almoçar todo dia em restaurante italiano...
— Se você não gastasse com cigarro economizaria um bom dinheiro.
— Que ia ser gasto com gasolina, tem idéia de quanto a gente já rodou só na última semana?
— Pisa no acelerador.
— Por que eu ainda te dou ouvidos? – perguntou Paul dobrando a esquina.
— Segue por ali e vira na Gray ’s inn Road.
— É perto?
— É. Você tem o telefone do Adam?
— Na agenda do distrito. Por quê?
— Acho que nós vamos precisar, o caso está esquentando.
— Eu percebi, ontem você interrogou alguém na casa do Morrison?
— Só o barman, fiz algumas perguntas. Ele me disse que o cara era muito reservado, poucos
amigos, o que complica bastante as coisas.
— Ele também não tinha parentes próximos, eu falei com alguns agentes na casa.
Certamente eles foram hoje no trabalho dele pegar mais alguns depoimentos.
— Onde ele trabalhava?
— Não leu no jornal? Ele era o presidente das Corporações Medison.
— Isso não é muito relevante, se o cargo da vítima importasse ou fosse algo relativo a
dinheiro ele não teria matado o Collins.
— Faz sentido. É aqui?
— Exatamente. Estacione ao lado da porta. Paul, posso te fazer uma pergunta?
— Claro.
— Foi você que pegou o meu apontador?

Começavam a cair os primeiros respingos d’água. Os detetives deixaram o carro com o


manobrista e entraram no restaurante. Hary el escolheu uma mesa próxima a janela e pediu ao
garçom uma garrafa de água mineral e os aperitivos, Paul por sua vez pediu um cálice de vinho.

— Você bebe e fuma, se continuar nesse ritmo vai morrer antes dos quarenta – comentou o
detetive.
— Não sei se você sabe, mas um cálice de vinho por dia é antioxidante e faz bem a saúde –
respondeu Paul
— Refrigerante também fazia, há um século. Preciso de um favor seu.
— Qual?
— Eu quero que você estude cada característica e semelhança das vítimas, pega o relatório
atualizado com os legistas e procure algo em comum, alguma relação, ele não pode estar
matando aleatoriamente. Até hoje todos os Serial Killers que tenho notícia obedeciam alguma
seqüência lógica, tem que haver algum nexo nas mortes.
— Mesmo ele sendo maluco?
— Seja ele psicopata ou não, está matando por algum motivo. Sei lá, encontrou com eles
numa lanchonete ou coisa do tipo. Tenho certeza que se especularmos detalhadamente vamos
achar uma correlação. Eu vou fazer os interrogatórios e procurar as pistas. Não importa o que os
peritos digam, sempre há algum rastro...
— E quanto ao colar?
— Ainda não sei direito o que fazer, mas até amanhã já terei pensado em alguma coisa. Eu
quero que você faça uma pesquisa sobre os últimos assassinatos em série na Inglaterra, procure
algum caso parecido. Nem que nós tenhamos que varar as noites Paul, temos que pegar esse
cara.
— Assim que eu sair daqui vou à biblioteca, vasculhar os arquivos de jornais, é provável que
encontre alguma coisa lá.
— Vê se você consegue uma biografia das vítimas, a ligação pode estar no passado – intuiu o
detetive, simultaneamente recebendo os aperitivos do garçom.
— Na infância?
— É, ou algo do gênero, temos que estudar todas as possibilidades.
— Dá uma olhada no céu, os relâmpagos já começaram a cair. A previsão do tempo estava
anunciando chuva também pra essa noite.
— Precisamos correr, seguramente ele matará de novo.
O céu já escurecera em Londres. O homem observava pacientemente uma casa do May fair.
Ele sabia a exata hora em que a empregada sairia, e sabia também com exatidão cada passo que
ela daria antes de abandonar o domicílio. Durante muito tempo ele estudara aquele lugar,
conhecia cada entrada, cada elevação da grama, até os horários das poucas pessoas que lá
viviam lhe eram familiares. Uma garoa bem fina caía sobre sua capa de chuva, e a brisa gelada,
que trazia devagar as pequenas gotas, fazia-no sentir calafrios. Estava lá há mais de uma hora,
observando calmamente sob a chuva, esperando o momento certo em que poderia entrar. Seus
olhos irrequietos perseguiam pela janela a figura da moça, que andava de um lado para o outro,
apressada para sair. Só quando a moça deixasse de vez a casa poderia começar o que há muito
tencionara.

Em pé do outro lado da rua ele pôde logo ver quando ela preparou um drink e levou-o pela
porta da cozinha. Era por lá que iniciaria seus intentos. As gotículas que caíam sobre o seu
pescoço causavam uma sensação estranha, que lhe impedia de concentrar-se completamente na
moça. Os olhos cinza do homem aguardaram lá, por momentos que pareciam eras, até que ela
pegasse sua bolsa e finalmente decidisse esvaziar a casa. A moça saiu sem pressa pela porta da
frente, ele por sua vez, ocultou-se atrás da árvore que estava do seu lado, se ela visse seu rosto
colocaria tudo a perder.
“Ela está muito tranqüila hoje”, pensou. “Na certa ele vai demorar a chegar. Terei o tempo
que preciso”

O homem permaneceu parado, indiferente sob a sombra da árvore até que contassem dez
minutos da partida da mulher, então lançou outro olhar em direção ao portão de aço.
“É agora”, decidiu ele.
Não havia nenhum segurança no portão, na verdade toda a residência estava deserta. Nem
mesmo os cachorros que há semanas atrás rosnavam intensamente contra o aço defendiam-na
aquele dia. Tudo conspirava a seu favor, até mesmo a rua não apresentava sinal algum de seres
viventes.
Ele seguiu marcha até o portão e pulou-o, não podia arrombá-lo, pois deixaria marcas nas
grades e sua intenção é que parecesse o mais natural possível. O homem andou em passos largos
em meio à grama úmida até alcançar a parte de trás do casarão. Ele logo pôde visualizar a porta
dos fundos, que dava acesso à cozinha, e a imensa piscina que se mantinha cheia e límpida no
jardim, mesmo no outono. Por cima das águas havia uma bela ponte japonesa, o único caminho
até a outra metade da mansão, e, por conseguinte até o outro portão. Ele agachou-se na beirada
da ponte a abriu uma mochila, que trazia. Estava um pouco molhada, mas o seu interior estava
intacto. De dentro tirou a aparelhagem que levara dias para construir e instalou minuciosamente
no início e no meio da plataforma. As luvas de couro estavam meio escorregadias, mas tudo foi
relativamente fácil, o grande desafio ainda estaria por vir. A porta da cozinha, como de costume
estava aberta e em cima da pia um copo de bebida esperava o anfitrião, mas esse sofreria muito
para manter a hospitalidade. O homem abriu a sacola que carregava e tirou de dentro uma
garrafa com um líquido que já lhe era bem familiar: soda cáustica. Ele despejou um pouco mais
da metade do drink na pia e completou o resto com o conteúdo da garrafa, então fechou a porta e
saiu, sentando-se na grama debaixo da cobertura do telhado.
“A garoa está engrossando um pouco”, notou. O homem detestava guarda-chuvas, gostava de
sentir o soprar da brisa e a água escorrendo pela sua face. Ah, como era refrescante o frio da
noite!
Depois de alguns minutos de espera avistou a luz dos faróis de um carro preto que chegara ao
portão. O automóvel parou de frente a entrada e dele saiu um homem de mais ou menos
quarenta anos, que logo abriu o cadeado e estacionou no corredor ao lado da mansão. Ele estava
com pressa, não queria molhar muito seu terno. O recém chegado fechou as grades de aço e
entrou na casa. O outro homem ficou nos fundos aguardando, camuflado em meio à escuridão.
Ele deixou seu casaco e a pasta na chapeleira e afrouxou a gravata, sentou-se na poltrona
diante da tv e ali ficou por um bom tempo.
“Por que ele não vem até aqui?”, pensou a sombra olhando fixamente pela janela. “Não
importa, esperarei a madrugada inteira se for preciso”

Meia hora se passou e o homem finalmente decidiu levantar-se, caminhou vagarosamente até
a cozinha, o demônio do lado de fora o aguardava. Ele pegou o copo de Martine que estava sobre
a pia e sentou-se na mesinha de centro, abrindo um jornal. Ele estava voltado para a porta de trás
da casa e, freqüentemente, observava a janela.

O assassino abaixou-se como um raio, não poderia ser visto, não agora. Ele suava frio
desejando intensamente que o homem se concentrasse apenas no jornal. Sua perna tremia, não
de medo de ser apanhado, mas de que seu plano falhasse.
O suor gélido escorria lentamente pela sua face e o barulho da chuva acentuava ainda mais sua
preocupação. E se o homem resolvesse sair para pegar algo no carro? E se ele esquecera algo?
As duvidas apertavam fortemente seu coração. O homem do lado de dentro levantou-se e foi em
direção à vidraça. O assassino tremeu.
O homem olhou pelos vidros e acompanhou o movimento das árvores no jardim, o assassino
encolhido suplicava para que ele não abrisse a porta. Se ele apenas descesse a visão, tudo estaria
perdido. A sombra forçava as costas contra a parede gelada de tijolos na esperança de se
acalmar e os olhos do homem estavam cada vez mais próximos, ele sentia que seria descoberto.
Um forte frio na espinha percorria todo o seu corpo, era incontrolável. A sombra abraçou as
pernas na intenção de parar o tremor, sua agitação poderia atrair a atenção do homem.
Nesse exato momento o observador percebeu o movimento na grama.

Uma corrente de ar soprou tremulando as plantas e a grama do jardim, o homem logo achou
que o movimento que notara era obra do vento. Desistiu então de sair para verificar e sentou-se
na cadeira voltando à sua leitura. Ocasionalmente seus dedos tocavam o copo de Martine, e a
sombra do lado de fora ansiava impaciente para que ele o levasse a boca, o que ameaçava
algumas vezes, mas suas mãos logo traziam-no de volta à mesa.
“Justo hoje ele receia em experimentar a bebida!”, testemunhava espantado o indivíduo de
olhos cinza. “Anda, bebe!”.
Nesse instante o homem conduziu o drink devagar até o nível do queixo e ali o manteve
enquanto acabava de ler as ultimas linhas do jornal.
“Por que não toma?”, se perguntava impaciente a sombra do lado de fora, que já ia se
esgueirando e erguendo-se à beira da janela, quando finalmente o homem resolveu tomar o
primeiro gole, e em um só, toda bebida.
Do lado de fora ele pôde ver quando os lábios do homem começaram a arder e uma dor
terrível tomou seu corpo, o líquido começou a corroer todo tubo digestivo e atingiu o estômago
causando náuseas e gritos desesperados. Foi quando a sombra entrou na sala.
— Quem é você? – balbuciou aflito o homem.
— Eu sou a morte – disse a figura obscura na entrada da porta.
— Você é louco! O que quer aqui? – berrou com muita dificuldade o homem, pressionando a
garganta com as mãos.
— Sua alma – disse a sombra.
— Minha alma? Saia da minha casa!
— Receio que você não a possuirá por muito tempo – pronunciou calmamente a figura
enquanto levantava a cabeça.

O homem abriu atormentado a gaveta de talheres e retirou uma faca de cozinha.

— Já disse pra deixar a minha casa! – gaguejou ele.


— O que vai fazer com isso? – riu o estranho.
— Farei o que for preciso! Saia! – gritou ele desesperado com as dores que sentia.
— Não – disse pausadamente o estranho, para que o homem pudesse entender bem.

O homem atirou-se contra a figura, com a lâmina levantada, mirando um golpe certeiro no
coração. A sombra esquivou-se para o lado, mas a arma arranhou seu peito, fazendo um corte
próximo ao ombro. O estranho, revidando o golpe, agarrou o pulso do homem que empunhava a
faca e torceu com muita determinação seu braço, forçando-o a deixá-la em suas mãos. Depois o
empurrou com força ao mesmo tempo em que esfaqueava seus dois braços. Ele caiu estarrecido
e sangrando no chão.
O vulto, em pé, olhava com muita indiferença a cena do homem caído. Ele fixou sua visão
dentro dos olhos da vítima, ela estava apavorada, nunca havia visto antes o olhar do demônio.
— Como podes ser tão estúpido? – perguntou a sombra, tranqüilamente.
— Como você entrou aqui? – disse o homem apavorado.
— Pelo seu coração – respondeu ele, aproximando-se devagar do corpo.
— Meu coração? Você não pode ser real!
— Real? – perguntou curioso o vulto – O que você sabe sobre realidade? Acha que isso aqui é
real? – disse ele colocando os dedos sobre o peito, bem encima do ferimento – “Isso”, é realidade
– falou o demônio, enquanto passava a mão sobre a ferida, depois de retirá-la, não havia mais
nada lá.
O homem estava muito amedrontado, mal conseguia articular uma palavra.
— O que quer aqui? – insistiu ele.
— Eu já lhe disse.
— Não, não pode ser. Por que eu?
— Isso não te diz respeito, a parte que te toca no problema vai ser logo resolvida.
— Olha, a gente pode negociar, eu tenho muito dinheiro sabe...
— Dinheiro? De que vale seu dinheiro meu amigo? Você sabe o que é a Mona Lisa?
— Sei... – balbuciou tremendo o homem, que nada entendia e, apavorado, esforçava-se em
procurar a resposta que o estranho queria. – É um quadro...
— Exatamente, um quadro. Um pedaço de papel e tinta. Sabe quanto vale a Mona Lisa?
— Não, mas deve ser muito...
— E é, não tem preço. Se você juntasse todo o dinheiro do mundo, nem assim a teria. – disse
o vulto. – Ora, se um pedaço de papel rabiscado não pode ser comprado, como queres comprar
uma vida?
— O homem no chão mordeu os lábios deteriorados.
— Eu vou te matar, mas antes vou te contar uma história que ouvi há muito tempo –
continuou. – Há vários anos havia um homem que possuía muitas riquezas, e posses e trabalhava
arduamente para mantê-las.
“Mesmo quando sua família e amigos lhe chamavam para sair ou se divertir, ele nunca
aceitava, ficava sempre sentado, trabalhando. Queria juntar muito mais dinheiro do que possuía,
aumentando cada vez mais seus milhões. Seu único objetivo era multiplicar seu patrimônio para
que pudesse ter uma velhice tranqüila e um dia finalmente descansar.
“Então certa vez, já escurecera e ele ainda estava no trabalho, analisando algumas contas,
quando de repente um anjo apareceu na sua frente. Ele nunca tinha visto um anjo antes, e ficou
muito espantado. O enviado do céu lhe disse que sua hora havia chegado e ele seria levado
naquela mesma noite. O homem então ficou desesperado, queria dar um último adeus a seus
filhos e sua mulher. Tantos lugares que sonhara em ir e nunca havia conhecido. Tantas coisas que
queria fazer. Ele precisava de mais tempo e implorou ao mensageiro.
“— Por favor, preciso de mais alguns dias... – disse ele. – Tenho que dizer a minha mulher que
eu a amo, tenho que abraçar meus filhos...
“Lamento – respondeu o anjo. – Eu preciso levar-te hoje...
“— Mas eu te pagarei bem – insistiu o homem. – Te darei dez milhões.
“— Teu dinheiro pra mim nada vale, é assim que tem que ser.
“— Eu dou tudo que eu tenho, cem milhões por um mês. Nunca fui acampar com minha
família, nunca viajei com meus amigos, nem abracei uma árvore ou prestei atenção à natureza,
tantas coisas há pra fazer...
“— Em nada posso te ajudar.
“— Uma semana então, é o mínimo que preciso.
“Mas o anjo se recusou.
“— Um dia, minhas riquezas por um só dia.
“Não – permaneceu decidido o enviado de Deus.
“— Uma hora então? – suplicava o avarento, caindo em prantos, porém o anjo continuava sem
aceitar. – Cinco minutos?
“Já desesperado o homem fez sua última oferta, e o anjo movido pela misericórdia aceitou.
Tudo que ele possuía por dez segundos a mais de vida.
“O homem pensou durante muito tempo o que faria no tempo que lhe restara, não poderia
mais visitar sua mãe, nem procurar sua família ou seus colegas, ensinar algo para sua filha, nem
mesmo ver o pôr do sol, o tempo que tinha não lhe permitia realizar coisa alguma do que
planejara. Ele refletiu até sua mente ferver, e por fim decidiu o que fazer.
“O homem então voltou a vida, estava de novo na sua escrivaninha e suas contas ainda
estavam sobre a mesa. Ele então apressado pegou uma caneta e um dos papéis de conta, e
escreveu algo em seu verso. Logo após isso expirou.
“Quando o encontraram no outro dia, debruçado sobre a mesa, alguns homens repararam no
bilhete que estava em sua mão. Aquilo que estava escrito ficou para sempre em suas mentes.
Dizia:
“Viva a vida, pois ela é muito preciosa, e a verdade é que cem milhões não valem nem um
minuto sobre a terra.”

A vítima no chão olhava aterrorizada para o demônio, não prestara muita atenção na história,
estava mais preocupada com sua vida.

— Você entendeu?
— Sim – confirmou o homem.
— Agora já posso matar-te.

O assassino seguiu até a porta que dava acesso ao resto da mansão e empunhou a faca de
cozinha.
— Não se aproxime! – gritou o homem caído soltando as ultimas forças.
— Ou o que?
— Eu quero minha vida!
— Mas a terá – riu a sombra. – Na verdade já comecei a dar a verdadeira vida a você.

O indivíduo banhado em sangue levantou-se, mal se agüentava sobre as pernas, torcera o


tornozelo na queda e já havia perdido uma quantidade considerável de sangue, seus braços
também estavam sem movimento.
— Aonde você vai? – perguntou a figura.
— Pro inferno você! – berrou com raiva o homem. Sua intenção era correr até a sala, mas a
sombra bloqueava completamente a entrada. Ele então correu quase rastejando pela porta dos
fundos em direção à piscina, sua única chance era chegar ao portão.
O assassino soltou um sorriso quando notou a decisão do homem, esse ainda olhou para trás e o
viu em meio à penumbra da cozinha, como um sentinela em frente à porta, acelerou o passo,
sabia que se o demônio alcançasse sua vida estaria perdida.
O homem já podia ver o portão, sua salvação estava próxima, mas ao pisar na ponte uma
mina estourou abaixo dos seus pés, derrubando-o e toda plataforma na água. Ele estava debilitado
demais para nadar, morreu rapidamente, afogado entre os escombros. O assassino ficou lá, de
braços cruzados, frente ao jardim, vendo a água da piscina tingir-se de vermelho. Antes de
deixar a casa reparou no exemplar de jornal sobre a mesa, leu a manchete de capa que dizia:
“Hary el Kitten inicia caça à psicopata”.

O assassino amassou o jornal e riu, havia encontrado o sétimo anjo.


O telefone tocou no apartamento do detetive acordando-o no meio de um ótimo sonho.
— Alô! – disse ele abrindo os olhos. – Paul? São quatro e meia da manhã, é melhor que seja
importante... Diz que é mentira... Eu tô com sono caramba! Sabe que horas eu fui dormir ontem?
— Não quero saber, pega alguma coisa pra anotar. É até bom que você acorde cedo, fica
mais difícil chegar atrasado no trabalho – comentou o parceiro do outro lado da linha.
— Você está no local?
— Eu e metade da polícia londrina, você têm que ver isso.
— Foi tão ruim assim?
— Você nem faz idéia, anota o endereço que eu vou te falar. Já pegou papel e caneta?
— Estou pegando – disse Hary el derrubando metade das quinquilharias do criado-mudo até
achar um bloquinho. – Certo, May fair... Me espera na entrada da casa.
— Não vai dar, está o maior corre-corre aqui, têm jornalistas por todos os lados, quase não
dá pra andar fora do cordão de isolamento.
— Quem era a vítima?
— Um empresário latino, Miguel Gonzáles. O casarão ocupa boa parte da quadra, não tem
como errar. Qualquer coisa é só seguir os flashes.
— Vou pegar um ônibus da linha noturna, no máximo até as cinco eu estou aí.
— Anda rápido, o Johnson também está a caminho.
— Eu estranharia se não estivesse – debochou o detetive.

Hary el saiu da cama, trocou de roupa e comeu alguns biscoitos que estavam no armário.

O silêncio pairava por toda a madrugada, mesmo no ponto de ônibus havia calmaria, apenas
um senhor de meia-idade que esperava em pé a chegada do transporte quebrava o ar desértico.
Devia possuir uns sessenta, setenta anos, no entanto estava bem conservado, exibindo até certo
vigor em sua postura, não abalada com o sereno do alvorecer.
Por coincidência os dois esperavam o mesmo ônibus, fato que o detetive somente notou na
hora do embarque. Hary el subiu a pequena escada na parte frontal do veículo e pagou ao
motorista a passagem. Como ele detestava os novos ônibus londrinos! Era muito melhor a época
em que eles mantinham cobradores e a saída na parte de trás da condução. A nova frota exibia
uma saída lateral, que não só ele, mas boa parte dos ingleses não conseguia se acostumar.
O detetive sentou-se no segundo andar, gostava de ter uma vista mais panorâmica das ruas. O
senhor o acompanhou.
— Você também não consegue gostar dessas melhorias nos veículos, não é? – disse o velho,
puxando conversa e praticamente adivinhando os pensamentos do detetive.
— Não – disse Hary el.–, nem entendo esses cortes de pessoal. É difícil se adaptar a um
ônibus sem cobrador, o ambiente fica meio frio...
— Concordo, e os cortes nem ajudam no preço das passagens...
— Pois é – sorriu o detetive. – O transporte público na Grã-Bretanha é o mais caro do
mundo. O senhor é daqui?
— Também – divertiu-se o velho. – Pode-se dizer que eu viajo muito. Por quê?
— Seu sotaque, você não têm um sotaque específico.
— Você também não, de onde é?
— Liverpool, mas já moro aqui há algum tempo.
— Liverpool... Boa cidade, boa música... Onde está indo?
— Trabalhar.
— As quatro e quarenta e cinco da madrugada? – espantou-se o velho.
— Pode-se dizer que eu trabalho muito – riu o detetive.
— Ah... Não é muito seguro andar a esse horário pelas ruas do centro, tem muitos assaltantes
e mendigos nas calçadas...
— Antigamente, quando eu vinha visitar não eram tantos. Tudo culpa do partido conservador
que cortou as verbas das casas de caridade e de assistência aos doentes mentais...
— Esse mundo vai de mal à pior, tem também aquele assassino, você tem acompanhado as
matérias nos jornais?
— Tenho, mas não tem perigo. Não está chovendo...
— As coisas nem sempre são como parecem. Quem sabe ele não está vagando por aí, só à
procura de alguém desprevenido...
— Não faz o gênero dele.

O velho soltou uma gargalhada muito divertida e apontou o dedo indicador lentamente para
cabeça, ao mesmo tempo em que levantava, era o seu ponto.

— Quem sabe ele não está vagando por “aqui”, só à procura de alguém desprevenido.

Ele ergueu-se e despediu-se rapidamente de Hary el, esse ficou ainda alguns minutos no ônibus
observando as calçadas até que o veículo alcançasse o ponto mais próximo da rua que Paul
indicara. Estranho aquele velho, ultimamente ele só encontrava pessoas estranhas.
Hary el desceu próximo a Grosvenor Street, de lá já podia ver a confusão de luzes e sons que a
mídia fazia.
Com licença – disse o detetive, empurrando um fotógrafo e atirando-o a uns dois metros de
distância.
— Mais cuidado! – gritou o fotógrafo, indignado com a atitude de Hary el.
— Perdoe-me, eu estou com pressa... – desculpou-se rapidamente o detetive que seguia
rumo à faixa de isolamento, e dessa vez armado com as credencias para evitar qualquer
contratempo. Medida que pouco adiantou, pois logo que foi reconhecido pelos jornalistas esses
voaram como morcegos de gravadores na sua frente.
— Detetive Kitten, como andam as investigações? O senhor já tem algum suspeito?
— Detetive Kitten, o que o senhor pensa das mortes? Foi realmente o mesmo maníaco?
— Senhor Kitten, nós temos informações que o senhor e o detetive Adam Johnson estão
trabalhando no mesmo caso. Vocês estão unindo forças ou o senhor o está auxiliando como no
caso Nasser?
— Nada a declarar – respondeu Hary el, já meio nervoso com o assédio. – Por favor, me
dêem licença.
— Detetive Kitten é verdade que o departamento de polícia ainda não tem nenhuma pista
desse lunático?
— Eu pedi para me dar licença – explicou Hary el, encarando o jornalista que estava na sua
frente.
— Você é contra a liberdade de imprensa? – perguntou o jornalista, sarcástico.
— Não. E você... é contra a liberdade policial? – disse ele, passando ligeiramente agressivo
por entre o paparazzi.

Dessa vez o guarda que cuidava do cordão amarelo não impediu a entrada. No entanto mesmo
depois da passagem de Hary el os repórteres mantiveram o ritmo frenético de perguntas, até
mesmo algumas pessoais que envolviam a transferência dele de Liverpool. Aos poucos
conseguiu distinguir a figura de Paul entre a enumerável quantidade de agentes que vistoriavam o
local, ele estava agachado à beira da piscina, ao seu lado alguns homens retiravam o corpo da
água, o mesmo estava com uma aparência lastimável. A área estava muito iluminada e fulgia
intensamente o brilho das lâmpadas e de alguns holofotes no jardim.
“Isso é um crime ou um show do Iron?” pensou Hary el, um pouco surpreso com a
desnecessidade de iluminação. Ele caminhou até o parceiro que logo notou sua presença.
— Hary , venha ver isso – disse Paul, apontando as cicatrizes no corpo da vítima.
— Facadas?
— É, ele deixou a arma no piso da copa, como da outra vez a mutilação também teve início
lá.
— Mas não vai ser possível identificá-lo, a arma era do Gonzáles, não?
— Era, como sabe?
— Eu deduzi, os ferimentos são de faca de cozinha.
— Os especialistas que já chegaram foram unânimes na idéia de que houve luta.
— É, mas ele morreu aqui, caso contrário não haveria necessidade de toda essa parafernália
na piscina. Veio fugindo em direção ao portão de saída e acionou a armadilha na plataforma que
estava sobre a água.
— Era uma ponte japonesa. Já pensou em trabalhar na perícia? Me pouparia trabalho na
coleta de informações.
— Por que tanta gente investigando? – perguntou o detetive, observando os homens à sua
volta.
— Ficaria espantado em saber o número de departamentos que estão se empenhando na
busca desse cara...
— Você comentou sobre uma luta, o assassino foi ferido?
— Tudo indica que sim, mas só teremos certeza com o exame de DNA dos resíduos
sanguíneos na arma.
— Onde ela está?
— Já colocaram no plástico, os peritos vão levar pra análise.
— Acompanhe-me até a cozinha, tenho que verificar umas coisas.
— Que coisas?
— Você vai saber se me acompanhar.

Os dois andaram um pouco e entraram na casa.

— A porta não apresenta sinal de arrombamento – reparou Hary el, observando atentamente
a fechadura. – Ou ele conhecia os costumes da casa ou teve muita sorte.
— No que você apostaria? – questionou Paul.
— Na primeira hipótese, o dia foi muito bem escolhido. O local vazio, os portões também
não necessitavam de ferramentas...
— Um crime bem elaborado?
— O que você acha? Ele sabia exatamente onde armar o equipamento, como assustar o
Gonzáles... O que é esse copo estilhaçado no chão? Ele estava bebendo Martine?
— É o que parece... – disse Paul, aproximando os dedos do líquido que escorria no azulejo.
— Se eu fosse você não tocaria nisso.
— Por quê?
— Reparou nos lábios da vítima? Estavam totalmente deteriorados. O assassino misturou
alguma coisa na bebida.
— Ácido?
— Ou uma substância extremamente alcalina, pelo aspecto e odor parece soda caustica.
— Aí ele entrou?
— É, depois que a base começou a fazer efeito. Se houve mesmo um embate o Gonzáles se
assustou e pegou a faca para se defender, que depois de algum tempo foi parar nas mãos do
assassino. Ou ele mesmo a tirou da gaveta. Mencionando isso, também não há digitais?
— Nada, já verificaram na primeira vistoria. Provavelmente também nada de resquícios de
pele sob as unhas ou coisa do gênero.
— Quem sabe dessa vez? Não se esqueça que se houve luta a probabilidade desse tipo de
coisa é muito grande. Tem também a faca, ela apenas arranhando o agressor daria material
suficiente para verificação.
— Esqueci de mencionar uma coisa...
— O quê?
— Encontramos um bilhete do assassino sobre a mesa.
— Ah, e você se esqueceu de um detalhe tão banal? Paul, em que mundo você vive?!
— Desculpe, estava distraído. Ele está com aqueles detetives na porta da casa – indicou Paul,
apontando para um grupo de investigadores abaixados na entrada da mansão, provavelmente
legistas.

— Posso dar uma olhada? – perguntou Hary el, colocando as luvas de borracha e andando até
os agentes.
— Quem é você? – perguntou o homem que examinava minuciosamente o papel.
— Hary el Kitten, departamento criminal. E você?
— George Darian, chefe dos legistas. Parece uma metáfora – disse o homem, referindo-se
ao bilhete, no mesmo momento em que o entregava ao detetive.
— Escrito a mão... Parece que ele realmente não tem nenhum medo da polícia.
— Ou “ela” – indagou Paul, que estava ao lado observando a cena – Já pensou nessa
possibilidade?
— Já, mas agora tenho certeza que é “ele”. A caligrafia é muito masculina, repare a tensão
sobre o papel. Ele dispensou muita força na escrita, o outro lado da folha está marcado. Uma
mulher normalmente é muito mais delicada ao escrever. O que acha? – questionou o detetive,
claramente pedindo a aprovação do parceiro.
— A palavra “magnífico” me passou pela cabeça, mas espanhol não é um idioma que eu
domine – respondeu Paul, debochando.
— Você está cada dia mais engraçado, deveria montar um Talk Show. Ouvi dizer que estão
abrindo espaço para novos talentos na TV, deveria se candidatar...
— É você realmente anda vendo televisão demais. Chega de brincadeira. O que a
mensagem diz?
— É muito estranho: “Corre o rio em direção ao mar, e os peixes se aglomeram em
cardumes enquanto o vento movimenta as árvores. Estas barram seu curso, mas mesmo assim
ele atravessa por meio as folhagens. A verdade é que o vento não existe, e não se pode ver o
vento, mas ele está lá por que o sinto em minha face.” “Volta então o rio até a nascente, que em
nada é diferente do mar e sua dureza apenas revela o quanto é flexível sua essência. A verdade é
que embora o duro e o mole não existam, vão-se todos os dentes, mas a língua fica.” – o detetive
olhou para Paul – Confuso?
— Muito – respondeu ele.
— Parece meio esotérico – opinou um dos legistas.
— Realmente. Uma mente muito confusa – disse Paul.
— Ou muito clara – supôs Hary el – Você não trabalha com o doutor Henry Nice? –
perguntou o detetive observando a face de um dos legistas.
— Sim, sou assistente dele.
— Por que ele não veio?
— Viajou até uma cidade vizinha. Problemas pessoais... Pediu-me para ficar a par do caso,
ele volta antes do meio-dia.
— Ele sabe da morte?
— Liguei há alguns minutos antes de vir até aqui. Por quê?
— Curiosidade.
— Você disse que era Hary el Kitten, não?
— Exato.
— Coincidência estranha, o Dr. Nice me pediu pra entregar isso a você... – falou o homem,
entregando um papel ao detetive. – Você é amigo dele?
— Não, conheci na investigação. O que é isso?
— É um endereço, de um homem que entende de jóias antigas, um chinês. Ele é especialista
em peças desse tipo, ensina numa casa no So-ho. É mestre budista.
— Mestre budista?
— É, o doutor disse que se lembrou dele quando você descreveu um colar. O velho entende
desses assuntos esotéricos, talvez até ajude no bilhete. Semana passada eu o acompanhei até o
lugar onde ele ensina. Um cara muito estranho, é imigrante, um ex-monge.
— Qual o nome?
— Chizu, Cheung Chizu.
— Cheung Chizu... – pronunciou pausadamente o detetive, assistindo o movimentar rubro das
águas na piscina.
Os detetives bateram palmas durante algum tempo na frente da casa, até que um jovem saísse
para atendê-los. O domicílio, por fora, não apresentava nada de diferente ou uma fachada que
lembrasse uma morada voltada para atividades místicas. Pelo contrário, era uma casa
relativamente antiga nas cores marrom e branca.

— O que querem? – perguntou o jovem.


— O senhor Cheung Chizu está? – disse Hary el.
— O mestre Ch’an está em meditação, por favor, voltem outra hora.
— Somos da polícia, precisamos falar com ele...
— Por favor, voltem outra hora...
— Desculpe, realmente precisamos conversar com ele, podemos aguardar?

O jovem era provavelmente descendente de asiáticos, fez uma expressão de


descontentamento com a insistência do detetive, como quem dissesse a si mesmo: “O que esses
homens querem aqui?”, mas permitiu a entrada dos dois. Ele encaminhou-os até uma ante-sala
com uma divisória de madeira e papel. O interior da casa era todo baseado na arquitetura
oriental, a predominância dos tons de vermelho, marrom e dourado era evidente, assemelhando-
a a um mini-templo. Algumas estátuas, símbolos e dragões decoravam o local e em aroma suave
de incenso impregnava todo ambiente.
Os detetives sentaram-se em um banco da ante-sala, claramente destinado à espera do mestre.

— O rapaz disse “mestre Ch’an” – comentou Paul. –, no entanto, essa parte do nome não
consta nos arquivos
— Ch’an não é um nome, é uma das vertentes do budismo chinês, uma filosofia, equivalente
ao Zen no Japão – disse Hary el.
— Então ele é mestre nessa filosofia?
— É o que parece. Você trouxe as anotações?
— Estão na minha pasta.

No meio da conversa um senhor idoso abriu a porta, interrompendo os dois. O homem possuía
a cabeça raspada, o que podia ser percebido pela saliência dos seus fios já brancos, aliás, quase
todos. Olhos negros e puxados, e um humor estranho no sorriso, humor esse que podia ser notado
a metros de distância. Era impossível estabelecer-lhe a idade, pois tal análise nos orientais é
sempre muito imprecisa e embora aparentasse muitos, exibia um vigor de garoto. Trajava uma
toga cinza, bem vestida. No pescoço havia uma espécie de terço, com dezenas de contas de
madeira, e seus pés, descalços, contrastavam de maneira engraçada com a madeira escura do
piso.

— O que desejam? – perguntou solícito o velho, não escondendo a vontade que sentia de que
o diálogo fosse o mais breve possível.
— Somos do departamento de polícia, estamos investigando a série de assassinatos em
Londres – respondeu Hary el. – Você está a par do caso?
— Sim, mas não vejo como possa ajudá-los – disse o velho, soltando um sorriso.
— Bom, em um dos crimes encontramos um colar, colar esse que depois desapareceu e
tornou impossível seu estudo. Recebi informações do Sr. Nice que o senhor conhecia jóias antigas
e talvez pudesse nos auxiliar...
— Já parei de trabalhar com jóias há muito tempo Sr. Kitten – interrompeu o velho. – agora
me dedico exclusivamente à meditação e à prática do Ch’an.
— Como sabe meu nome? – perguntou o detetive, já meio espantado com o número de
pessoas que o adivinhavam ultimamente.
— O senhor é famoso – riu o velho. – Como já disse acompanho o caso...
— Então, tem como nos ajudar?
— Infelizmente não, já disse que parei de trabalhar com antiguidades...
— Mas essa é diferente, é um colar Hindu...
— Já vi muitos colares hindus...
— Mas com um Baguá chinês gravado no centro?
— Baguá? – o velho mestre não pode esconder o espanto – Isso é impossível, deve ser falso.
— Não, aparentava centenas de anos.
— Muitas coisas que aparentam ser, não são. Como a gota d’água que aparenta fraqueza,
mas perfura a mais dura das montanhas.
— Tenho certeza que era uma antiguidade. Era um colar dourado, com duas hastes finas e
uma pedra azul e oval no centro, lá estava gravado o símbolo.

O velho ficou branco

— Em nada posso te ajudar, tal peça não pode existir


— Mas eu o vi.
— Hora de procurar um psiquiatra – debochou o velho, dando uma risada e se dirigindo a
porta, claramente encerrando a conversa.
— Espere! – gritou o detetive – Há também um bilhete, o assassino deixou na casa da vítima.
— Bilhete?
— É, achamos que o senhor pode nos dar alguns esclarecimentos – comentou Hary el,
entregando uma cópia do escrito ao sábio.
— “Corre o rio em direção ao mar, e os peixes se aglomeram em cardumes enquanto o
vento movimenta as árvores. Estas barram seu curso, mas mesmo assim ele atravessa por meio
as folhagens. A verdade é que o vento não existe, e não se pode ver o vento, mas ele está lá por
que o sinto em minha face.” “Volta então o rio até a nascente, que em nada é diferente do mar e
sua dureza apenas revela o quanto é flexível sua essência. A verdade é que embora o duro e o
mole não existam, vão-se todos os dentes, mas a língua fica.”
— Pode nos dizer o que significa?
— É um texto escrito em Ch’an, não pode ser explicado.
— Como não pode ser explicado?
— O Ch’an fala a um lugar onde a mente não alcança, onde o todo é tão supremo que a
razão se afoga em meio à imensidão e se cega perante a luz, aí, somente o coração pode guiar.
— Mas deve haver alguma explicação lógica, você já disse que é um texto na linguagem
budista.
— Você é muito lógico, a lógica não penetra no Tao. Eu posso te explicar o que cada coisa
representa, mas seria rebaixar as palavras a um nível onde a mente toca, isso as desmereceria e
não mostraria o significado sublime e exato.
— Mesmo assim, explique...
— Onde achou isso?
— Já disse, na casa da vítima, o assassino escreveu.
— O assassino? Isso é impossível!
— Por quê?
— São palavras de um iluminado, de um ser que atingiu o Satori. Uma alma que tenha
manifestado o estado de Buddi não pode matar.
— Mas matou.
— Talvez não sejam palavras dele, o texto apresenta claramente características de um
estado de libertação, mas pode ser falso também, como o colar que você achou.
— Eu já disse que o colar era original!
— Eu pensei que o especialista fosse eu. Não sei se o senhor percebe, mas estou
racionalizando o irracionalizável somente para conseguir lhe explicar o que quer saber. Se você
estivesse liberto entenderia mais claramente esta situação.
— O senhor está falando, mas até agora não me disse o significado do texto. Eu preciso de
pistas. O que é esse “Satori”, esse tal estado de iluminação?
— Não pode ser explicado.
— Como não?

O velho riu novamente

— Digamos que o Satori é quando a luz penetra por entre o véu do corpo e o ser ganha
consciência da sua verdadeira essência. É como atingir permanentemente o estado da não-
mente.
— Isso está muito confuso – disse Hary el – Poderia só me traduzir o simbolismo das
palavras.
— Isso seria o mais fácil, mas você só compreende simbolismos. A tradução mais próxima
que sua mente pode captar é que mesmo que todas as forças conscientes tentem impedir o curso
do todo, ele corre como deve por entre os espaços que o universo abre, até alcançar a verdadeira
essência.

O detetive estava atônito, era a primeira vez que menosprezavam sua inteligência.
— Bom isso não me dá respostas e em nada ajuda na resolução do caso.
— Pelo contrário – disse o sábio – Isso, como em tudo, encerra todas as respostas. – agora
preciso ir, está na hora do meu chá, disse ele meio agressivo, dando a entender que terminara o
diálogo.
— Mas eu não compreendi, como posso entender o Ch’an e captar a mensagem que o papel
oculta.
— Não se pode entender o Ch’an, a mente é pequena demais pra conter o todo.
— O que devo fazer então para alcançar a compreensão? – perguntou o detetive,
desesperado com a atitude do velho de lhe deixar perturbado em meio à sala.

O velho olhou profundamente nos olhos de Hary el, estremecendo a sua alma e vendo o mais
profundo no seu coração. Ele só havia sentido um olhar assim uma vez, quando encontrara a
cigana há dias atrás numa rua do centro.

— Quando comer, apenas coma, quando andar, apenas ande, quando pensar, apenas pense.
— Continuo sem entender!
— Quando não entender – disse ele, fechando a porta. – apenas não entenda.
O mestre ficou na janela até que os detetives deixassem de vez a casa e entrassem no carro.
Logo após a partida dos dois, o jovem chinês adentrou a sala de meditação. O velho estava lá, de
olhos fixos na vidraça, observando a figura do carro se confundir com o horizonte.

— Que fazes mestre? – perguntou o discípulo, estranhando a atitude do sábio.


— Os peixes se juntam em cardumes e seguem contra a correnteza, sem saber de onde o rio
vem, nem para onde ele vai.
— Por que eles se juntam?
— Quando as águas são profundas e o caminho longo, só a união dá esperança.
— E eles terão sucesso?
O velho soltou um sorriso.
— Depende mais da decisão dos peixes, do que do curso do rio.

Paul e Hary el voltaram para central e ficaram lá a tarde inteira, não chovera aquele dia, no
entanto, o nublado no céu se mantinha. Paul passou boa parte do período vespertino seguindo as
recomendações do parceiro, fazendo recortes de jornais. Selecionava matérias que falavam de
assassinatos em série e mortes graves nos últimos vinte anos, além de exemplares recentes dos
cadernos mais famosos, com todas as reportagens importantes daquele ano e do anterior.
Hary el fazia ligações para os agentes que cuidavam dos interrogatórios e acumulava grande
número de informações sobre o parentesco e dia-a-dia das vítimas, procurando alguma relação
entre elas, tarefa que se tornava cada vez mais penosa, devido à imensidão de diferenças que
encontrava.

— Aquele velho mexeu com sua mente não é? – perguntou Paul, reparando na expressão
pensativa do detetive.
— Ele é maluco – respondeu Hary el.
— Bom, hoje em dia... Quem não é?
— Tem razão... – divertiu-se o detetive, olhando o movimento giratório de sua caneta,
deslizando por sobre a escrivaninha. Ele lembrou-se de uma teoria que desenvolvera há algum
tempo sobre a insanidade: “Não existe pessoa alguma maluca, por que para existir teria que
haver alguém normal. E para haver alguém normal, teria que existir duas pessoas iguais no
universo, o que não há.” Era muito confuso, mas pelo menos era dele.
— Quem sabe nós somos os malucos e eles são os normais? – disse Paul, tentando complicar
ainda mais a conversa.

Hary el então se lembrou da frase da cigana: “Sábios são os que buscam a sabedoria, loucos
são os que já a encontraram”. Até que fazia algum sentido.
Os dois permaneceram lá até as dezoito horas, quando o telefone da mesinha do detetive tocou.

— Alô – disse ele, rapidamente tirando o fone do gancho.


— Alô, senhor Kitten? Aqui é Henry Nice, nos encontramos na averiguação da casa de M.
Morrison.
— Eu sei, lembro de você.
— Meu assistente lhe entregou o endereço que pedi?
— Entregou.
— É de um amigo meu, especialista nesses assuntos. Logo que ouvi do colar lembrei de
procurá-lo, suspeitei de cara que era algo relativo ao ocultismo.
— Eu sei, fui até a casa dele hoje. Ele é meio excêntrico... – disse o detetive.
— Ele foi rude com você? Desculpe, tem o gênio um pouco forte...
— Não, tudo bem. Mas ele não pôde me ajudar muito, estava ocupado.
— Se há alguém que pode ajudá-lo é ele. O rapaz que mandei até a cena do crime de hoje
me contou do bilhete. Mestre Chizu conhece todos os ramos de esoterismo, é bem provável que
seja de grande auxílio na caça ao maníaco.
— Mas parece que ele não está muito disposto a colaborar...
— Como já disse, ele tem o gênio um pouco forte, mas é uma ótima pessoa, a melhor que
conheço. Certamente se insistir, ele colaborará.
— Farei o possível – falou o detetive –, mas acho que será mais proveitoso continuar as
investigações do modo tradicional.
— Bom, faça o que quiser...
— O senhor já preparou um laudo sobre a morte de Miguel Gonzáles?
— Não tive tempo, ainda não averigüei a casa, no entanto meu assistente já tem um relatório
pronto.
— Poderia me enviar via fax?
— Sem problema, daqui a alguns minutos eu mando, tenho que organizar a ordem das
páginas.
— Muito obrigado.
— De nada, tenha uma boa noite senhor Kitten.
— Para o senhor também – desejou Hary el, desligando o telefone. Paul, por sua vez, estava
atento na conversa. Eles esperaram a chegada do fax e depois abandonaram o departamento,
Paul deu uma carona ao detetive até sua casa e ficou com uma cópia do relatório, que logo jogou
encima da imensa pilha de jornais no banco de trás. Teria trabalho a noite inteira. Hary el
também não estava livre, chegou em casa e sentou-se na mesa da cozinha para ler o semilaudo.
Era onze da noite, quando o telefone tocou na casa do detetive. O céu que já estava banhado
em trevas e recebia os primeiros clarões da lua, essa surgia brilhante por entre as nuvens. Paul
estava ligando meio afobado, Hary el não entendeu direito o que ele queria dizer e logo pediu
para se acalmar.

— O que foi? – disse ele – Mantenha a calma...


— Eu encontrei Hary !
— Encontrou o que?
— Não posso falar por telefone, venha correndo até aqui!
— Vou demorar um pouco, talvez não pegue a linha diurna...
— Esquece então, eu vou até aí.
— É tão sério assim? Você parece meio fora de condições de dirigir...
— Fora de condições vai ficar você quando ver o que eu descobri.
— E o que foi?
— Vai saber quando eu chegar aí. Me espera, antes de meia-noite e meia estou batendo na
sua porta.
— Tem certeza que não quer me contar? É sobre o crime?
— Me espera! – disse Paul desligando o telefone.

O detetive estranhara muito a atitude do parceiro, devia ser realmente algo estupendo, embora
Paul fosse dado a alardes repentinos, não se moveria da sua casa até o centro por qualquer
bobagem. A curiosidade lhe corroia a alma. Ele deitou-se na cama para aguardar a chegada das
notícias, estava com um pouco de sono. Programou o despertador para dez minutos antes da hora
que Paul apontara, teria tempo o suficiente para descansar e acordar antes dele chegar à porta.
Ele fechou os olhos e adormeceu, vendo as manchas no teto negro e sentindo o frio da
madrugada penetrando pela janela.
O detetive acordou com os raios de sol entrando brilhantes pela vidraça, os feixes de luz
embrenhavam-se por meio a abertura no vitrô e seguiam uma linha em diagonal até seu rosto na
cama. Estava uma manhã bonita, embora ainda muitas nuvens insistissem em fechar o tempo e o
clima gelado se mantivesse.
Ele levantou-se e andou até a copa. Preparou um chá de camomila com alguns biscoitos e
torradas que restavam no armário. Precisava fazer compras assim que restasse algum tempo.
Hary el tomou seu chá e esperou alguns minutos, sentado na cozinha, refletindo sobre as coisas
que aconteceram nos últimos dias, depois tomou um bom banho e trocou de roupa. Hoje
chegaria cedo ao trabalho.
“O despertador não tocou...” , pensou enquanto colocava o paletó. “O Paul também não veio.
Acho que ele bateu e eu não acordei...”
Mesmo se sentido um pouco culpado pela possibilidade de ter deixado seu amigo do lado de
fora, Hary el não estava demasiadamente aflito, já que o mais provável é que Paul houvesse
decidido de ultima hora não aparecer.
“Mas ele podia ter ligado pra avisar...” , raciocinou. “É quase certo que ele não veio, o som da
campainha está alto pra caramba, até se eu estivesse dopado acordaria, já o do telefone...”
O detetive fez a barba, que já estava ficando áspera, e saiu, trancando a porta do apartamento.
Ele caminhou alguns momentos pelas ruas que cortavam o centro londrino, observando os
mendigos que lá ficavam. Lembrou-se do velho que encontrara outra noite no ônibus e da curta
conversa que tivera com ele. Ao passar pela rua do ponto lembrou-se também da cigana na
calçada do velho prédio. Era a primeira vez que o notava desde aquele dia, mas como era de se
esperar, ela não estava mais lá.
“Muitos já caminham na tempestade, e você por olhar a tempestade será alvo dela”, dissera a
cigana. Eram palavras cheias de metáforas e ele não sabia se realmente faziam algum sentido,
ou se de nada serviam, a não ser é claro, para alimentar a mulher.
Ele pegou um jornal na mesma banca de sempre e seguiu dessa vez em direção ao ônibus que
parara ao lado da guia. Ainda era muito cedo e notavam-se as gotas de orvalho gelado nas folhas
verdes das árvores; não havia necessidade de um táxi.
As nuvens acabaram por esconder o sol, e ele como de costume subiu até o segundo andar do
veículo. Embora a manhã tivesse nascido há poucos minutos ele estava com relativa pressa,
pressa essa que era movida pela curiosidade quanto ao assunto que seu parceiro mencionara. Em
dez minutos estava na central.
“Por que tanta gente a esse horário?”, se perguntou,.vendo o grande número de policiais que se
movimentavam dentro do prédio, fato anormal àquela hora da matina. “Justo hoje que resolvo
chegar mais cedo todo mundo já está trabalhando...”
Os agentes corriam de um lado para o outro com grandes pilhas de papéis e o barulho
constante dos falatórios dava a sensação que algo de importante acontecera. Hary el permaneceu
de braços cruzados na porta vendo a agitação das pessoas e ouvindo o toque ininterrupto dos
telefones. Fosse o que fosse, ainda não saíra no jornal, pois a matéria de capa era sobre o início
de um escândalo no parlamento, e esta só era dividida com uma nota sobre as buscas ao
maníaco. Um dos detetives, que estava atarefado com algumas pastas, notou a presença de
Hary el na porta. Não era uma figura desconhecida, eles já haviam se cruzado poucas vezes
durante o expediente, na verdade, já haviam sido até apresentados, se bem que seu nome lhe
fugira. O homem possuía um sobretudo cinza, e ao que parecia, lembrava-se de Hary el.
— Detetive Kitten! – disse ele, andando rumo à porta. – O que está fazendo aqui?
— Vim trabalhar... – respondeu Hary el, claramente notando a expressão de espanto do
homem com as pastas.
— Mas hoje?
— É algum feriado? – sorriu o detetive. – Estou de folga?
— Não, mas... Desculpe, eu sinto muito...
O homem deu meia volta e saiu, com um semblante cabisbaixo
— Espere! – gritou Hary el. – Você não me respondeu...
Mas o homem permaneceu seguindo o seu caminho, e ele por sua vez subiu as escadas até o
segundo andar, tudo estava muito estranho.

Logo na chegada deu de cara com a mesma situação do primeiro piso, pessoas agitadas
andando de um lado para o outro. No meio da confusão ele agarrou um dos indivíduos que
passara, era Thomas.

— O que está acontecendo aqui? – inquiriu o detetive, já cansado daquilo tudo.


— Hary el?
— É, o que é isso? – disse o detetive, ainda segurando a manga da camisa do rapaz.
— O que está fazendo aqui?
— É a segunda vez que me perguntam isso hoje. Por que todo esse alarde? O Paul já
chegou?
— Você ainda não sabe? – balbuciou o rapaz, na mais profunda esperança que a resposta
fosse sim.
— Sei de que? Onde está o Paul?
O rapaz olhou tremendo para os olhos do detetive, sua alma gelou, era a coisa mais difícil que
fizera em toda a sua vida.
— Hary ... – disse ele – Paul está morto.
Segunda Parte
O céu nublou completamente, e num instante não havia mais céu, nem chuva, nem pessoas
andando de um lado para o outro, nem mesmo o som dos relâmpagos que há pouco começaram
a cair. Somente a batida do coração do detetive existia, e nele um aperto profundo no peito, tão
fundo que alcançava o ponto mais longínquo e oculto da sua alma. A dor era estupenda,
esmagava devagar todo seu interior comprimindo aos poucos o coração e subia com força tal
pela garganta que a sensação que ele tinha é que seu íntimo explodira. A dor provocou um nó na
laringe que o impediu de dizer qualquer coisa, por mais que tentasse articular uma frase ou
pergunta, engasgava com a pressão do sofrimento que descia violentamente pelo tubo digestivo.
— O que foi Hary el? – perguntou aflito o rapaz, notando o choque que o ouvinte tomara. Mas
ele nada disse, não estava mais lá para ouvir ou responder. Quase um minuto se passou até que o
detetive pudesse balbuciar a primeira frase:
— Como foi?
— Hoje de manhã, o encontraram morto no carro. Assassinato...
— Quem foi? – indagou com raiva o detetive.
— Não se sabe, não há pistas. Foi estrangulado.
— Estrangulado?
— Acho que você não está bem... – comentou o rapaz, enquanto segurava Hary el,
mantendo-o de pé. – É melhor você sentar...
— Me larga! – gritou ele, se desvencilhando das mãos de Thomas.
— Calma, você não podia fazer nada...
— Quem é você pra saber o que eu podia fazer ou não?! Me solta! Onde está o comissário?
— Na sala dele, ele queria te poupar...
— Me poupar? Era obrigação dele me chamar, me avisar...
— Espere! – disse o rapaz, segurando o detetive pela manga do sobretudo. – Você não está
bem, não está em condições de falar com ele agora. Precisa se acalmar...
— Me larga caramba! Eu sei se estou em condições ou não!
— Hary , eu...

Foi a última palavra que o rapaz dirigiu ao detetive, esse o empurrou atirando-o por sobre a
escrivaninha e seguiu para a sala do comissário. Ele quase arrombou a porta, mas só havia uma
secretária lá, sentada na mesa, organizando algumas folhas.

— Onde está o comissário?


— O chefe saiu há poucos minutos. Por quê?
— Por nada – disse ele, dando meia volta e descendo desgovernado as escadas.

Ele andou durante um bom tempo sem rumo pelas ruas do Holborn, até parar em um bar que
costumava freqüentar com os amigos do distrito. Ele sentou-se no segundo banco do balcão e
pediu uma cerveja.
— Você não é de beber – disse o barman. – O que aconteceu?
— Não é da sua conta, me vê uma bem gelada e mistura com um pouco de whisky .
— Foi tão grave assim?
— Você nem imagina. Só me dê a cerveja, eu não estou a fim de conversa...
— Tudo bem...

Quando o barman chegou com a bebida, Hary el pôde notar a figura de Thomas entrando pela
porta. Ele sentou-se ao lado do detetive.
— Eu sei que você não está bem Hary , mas Paul era amigo de todos nós também...
— Você quer dizer que entende como me sinto? Ele me ligou ontem Thom, antes de sair,
disse que tinha algo importante pra me falar. Ele morreu no carro...
— E o que era?
— Não sei – explicou o detetive, dando o primeiro gole na cerveja e forçando seu estômago
a aceitá-la. – Como o estrangularam?
— Com uma corda, o cara estava no banco de trás, assim que ele entrou o assassino
enroscou a corda no pescoço e puxou até asfixiá-lo.

Thomas também era um bom amigo de Paul, mesmo sendo um rapaz de apenas vinte e dois
anos era bastante maduro. Exibia um corte de cabelo moderno que realçava bem o castanho
escuro de seus fios. Já tivera longos bate-papos com Hary el a respeito da sociedade, mulheres,
música e dezenas de coisas que ele nem se recordava. Fazia mais ou menos um ano que ele
trabalhava na central e já conquistara a simpatia de grande parte dos agentes. No entanto agora
o destino o colocara em uma situação inusitada e, embora tentasse esconder, também sentia
muito a perda do companheiro.

— Eu sinto que há mais alguma coisa, tem certeza que você me contou tudo? – interrogou o
detetive.
— Bom... Eu acho que você devia descansar um pouco antes de se envolver no caso.
— Você não me respondeu, não fuja da pergunta.
— Hary , eu acho que não é necessário.
— Fala logo!
— Foi o cara das armadilhas...
— O quê? Como sabe?
— Encontramos outro bilhete no carro, a caligrafia é igual...
— Você também mentiu sobre a morte, como foi?
— Não! Foi como eu te contei...
— E a parafernália? Equipamentos?
— Nada, só a corda, ele não usou nada.
— Têm certeza?
— Eu vi o corpo...
— Mas que motivo ele teria para matar o Paul?
— Não sei, ele também estava investigando...
— Se fosse assim era mais natural que eu morresse, meu nome é que consta como à frente
do caso.
— Quem sabe ele queria brincar com você... Sabe como é, ele é maluco.
— Já fizeram a autópsia?
— Já. O enterro vai ser depois de amanhã.
— Quem reconheceu?
— Um amigo dele da narcóticos.
— A ex dele já sabe?
— O comissário ficou de ligar. Por que você não fala com ele depois do almoço?
— Não sei, não estou muito bem. Tem muitas coisas passando pela minha cabeça.
— Se você continuar assim – disse Thomas, impedindo que ele levasse o copo mais uma vez
a boca. –, não vai conseguir nem voltar pra casa. Muito menos conversar com o chefe.
— Você devia se preocupar com a sua vida. Onde ele foi?
— Tinha uma reunião. Não é todo dia que matam um policial. Ele volta mais ou menos às
quatorze horas, é melhor que você fique sóbrio até lá.
— Por que isso foi acontecer? – gritou irado o detetive, batendo o copo contra a madeira do
balcão. O rapaz notou uma gota de lágrima que escorria pela face de Hary el, nunca antes o tinha
visto chorar.
— Essas coisas não têm explicação. Vem comigo, eu te acompanho até em casa.

Passadas algumas horas cansativas no seu apartamento o detetive decidiu seguir o conselho de
Thomas e saiu para conversar com o comissário. Era a segunda vez que pagava condução aquele
dia, e estava só com o café, já que sua cabeça permanecia confusa demais para almoçar. Ele
aguardou um pouco nos bancos do lado de fora da sala do chefe até que esse o pudesse receber.

— Por que não me acordou? – perguntou Hary el, olhando no fundo dos olhos do comissário e
não gostando nada do rumo que o diálogo tomara até então.
— Era cinco da manhã, ele era seu amigo... Achei natural que você estivesse descansado
antes de saber da notícia.
— E quando pretendia me contar?
— Hoje Hary el! O que acontece é que eu queria preparar você, não é todo dia que se perde
um amigo. Agora não importa mais, já tomei minha decisão. – comentou ele, referindo-se ao
início da conversa.
— Decisão, que decisão? Você não pode me afastar do caso!
— Eu já te disse, está ficando pessoal demais. Você não pode investigar nessas condições.
— Não pode me tirar! Eu dei duro estudando esses crimes, ninguém conhece os fatos melhor
do que eu!
— Você sabe qual é o procedimento padrão quanto ao envolvimento de policiais em casos
como esse...
— Paul era meu amigo!
— Eu sei, de todos nós. Isso é que te impede de continuar.
— Olha, chefe. Na ultima semana eu me dediquei dia e noite para analisar a personalidade
do assassino e a relação dos crimes. Paul descobriu algo, eu sinto que estou perto, me deixe mais
um pouco.
— Eu não posso te manter...
— Mais duas semanas... Se eu não encontrá-lo me afaste.
— Hary el, ainda acho que isso não vai te fazer bem...
— Eu preciso, eu sinto uma ânsia, uma coisa dentro de mim. Eu sei que sempre vou me
sentir culpado se não investigar. Entende?
— Entendo. Duas semanas e é só. Depois o caso vai ser repassado. Eu sou um idiota de estar
fazendo isso, os repórteres vão cair todos na minha cabeça, e na “sua” também.
— Eu sei. Obrigado comissário...
— De nada. Agora saia daqui. – ordenou ele. O detetive obedeceu abrindo a porta, mas antes
que ele abandonasse o recinto o comissário o parou. – Duas semanas, entendeu?
— Sim – respondeu.

Hary el fechou a porta e viu a figura de Thom observando sua saída.

— Continuo no caso! – gritou o detetive.

Thomas riu e resolveu deixar algumas pilhas de papel em cima da mesa, mais tarde pagaria
um chá ao companheiro.

— Ele aceitou mesmo? – perguntou o rapaz.


— Tinha que aceitar, eu não poderia abandonar os crimes assim. Você conseguiu o laudo
que te pedi ontem?
— Sobre a análise de sangue na faca?
— É, contatou os legistas que estiveram na casa do Gonzáles?
— Sim, mas o exame de DNA só constatou uma amostra sangüínea.
— Isso significa que ao contrário do que se pensava o assassino não foi ferido. Parece que a
perícia errou na conclusão.
— Ou talvez não...
— Por que diz isso?
— Sei lá, aprendi com você a sempre dizer isso.
— E aprendeu bem. Primeira regra de uma boa averiguação...
— Nada é o que parece...
— Você está melhorando. Quem sabe te designem pra um caso importante daqui a algum
tempo...
— É provável... Mais alguma coisa?
— Quero que você descubra se os médicos continuam com a mesma idéia sobre a morte de
Miguel Gonzáles. Ah, Thom, vê se você consegue descobrir exatamente no que Paul estava
trabalhando ontem.
— Ele não estava com você?
— Estava, mas dividi as tarefas. Era alguma coisa relacionada às matérias de jornal.
— Certo.

O detetive comeu alguma coisa aquela tarde e na saída foi para o bar com Thomas. O rapaz
como já havia previsto pagou um bom chá a Hary el, que não se sentia muito bem por causa da
bebida que tomara pela manhã. Não estava acostumado...
Era dez da noite quando ele voltou para casa e deitou-se no sofá observando a enorme janela,
só aí a tempestade começou a cair realmente na cidade. Ele chorou a noite toda, chorou como
nunca havia chorado antes, ouvindo o barulho ensurdecedor das gotas. As lágrimas lavavam seu
rosto tão intensamente quanto a chuva, que regava o asfalto e escorria em grande quantidade
pelos vidros. Ele pensou em Paul a madrugada inteira.
O temporal cobriu todo o anoitecer, fortalecendo-se aos poucos em meio à penumbra. O
demônio sabia o que aquelas águas significavam, e entendia que do mesmo modo que o sol nasce
após a escuridão, a luz que ele começara a produzir com a garoa logo viria a tona. Ele passou boa
parte daquela noite em claro, lembrando-se do homem que matara no dia anterior e pintando a
face do quarto anjo. Não queria dormir, provavelmente teria novos pesadelos. Será que aquele
que ele matara também apareceria neles?
“Pouco importa”, pensou “Ele faz parte do quadro, mesmo que não apareça”. E realmente
fazia, era por aquele que perdera a vida, que ele alcançaria o fim da sua obra, através dele viria
o sétimo dos anjos.
O quarto dos retratos foi pintado de uma maneira diferente, não com desprezo, pois esse era
um sentimento que não coincidia com sua visão das coisas, mas com alguma coisa que ele não
conseguia definir, era como se aquele que ele pintava lhe tivesse causado alguma emoção,
algum prazer, o que realmente não fazia sentido, pois ele nem o conhecia e na verdade o próprio
fato nada representava já que no absoluto vida e morte são conceitos relativos. Lembrar do fato
de que a morte é uma ilusão e que o nascimento não representa o início da existência nem a
morte um acréscimo a ela lhe reorganizou as idéias abaladas por um momento. Ele então não
rejeitou o sentimento que sentia, pois sabia que tudo que é rejeitado volve um dia para o ponto de
partida, mas esta sensação simplesmente desapareceu, coberta pelas idéias que clareavam a sua
mente. Ele então se recordou de uma passagem de sua infância, quando observava admirado a
atitude de seu mestre:

“— Mestre, Tokuan-Tzu era seu amigo, conversaste muito com ele e viveste muitos anos em
sua companhia. Agora ele está morto, e o senhor, que para meu espanto, não chorou quando ele
caiu do cavalo e espirou, agora canta de alegria?
“— Que querias que eu fizesse? – perguntou o sábio. – Assim como tu, me espantei quando vi a
queda e, reconheço que alguma coisa em mim entrou em pesar. No entanto refletindo um pouco
acerca do começo lembrei que as macieiras quando nascem já foram um dia maçãs e as maçãs
macieiras. Mesmo as maçãs que nascem e caem hoje, serão macieiras e outras maçãs algum
dia. Sendo assim nunca deixam de ser macieiras nem maçãs, simplesmente seguem seu curso
rumo ao Tao. Meu amigo está agora deitado e em paz no chão, coberto de algumas folhagens. Se
me debruçasse e chorasse sobre o corpo significaria que não entendo nada de maçãs...
“— Não vais lhe fazer um funeral?
“— Inútil, pois o céu e a terra serão seu duplo ataúde, o Sol e a Lua, seus discos de jade, as
estrelas e a Estrela do Norte, suas pérolas, todos os seres seu cortejo. Não está perfeito, que mais
quereis?
“— Mas, nem mesmo vai enterrá-lo? Vai deixá-lo aí e continuar viagem?
“— Sim, por quê?
“— Temo que os corvos e os milhafres o devorem...
“— Em cima ele pode ser devorado pelos corvos e pelos milhafres, em baixo, pelas toupeiras
e formigas. Como é parcial teu julgamento de livrá-lo dos primeiros para entregá-lo aos
últimos... – riu o velho. Ele percebendo que o discípulo continuava meio receoso, continuou. –
Vida e morte são ilusões, na verdade Tokuan-Tzu nunca nasceu e nunca morreu, nunca
conversou comigo ou foi meu amigo, nem mesmo está agora deitado nessa grama. Tudo está na
mente. Entendeste?
“— Entendi – disse sorrindo o rapaz.
“— Então tu não entendeste... A culpa é minha que não consegui passar corretamente o
ensinamento... Uma coisa só pode ser compreendida realmente se não for entendida, assim
como o Tao só pode ser alcançado por quem não o procura.
“— Não entendi – disse confuso o rapaz.
“— Agora tu compreendeste!

O demônio sorriu, achando graça da lembrança, e acabou de pincelar as tintas, o retrato estava
perfeito, cada detalhe da expressão era revelado. Ele fazia tudo aquilo somente recordando-se da
imagem que tinha na mente, não só do físico da vítima, mas também da sua alma. Ele a
repassava para a tela com suprema minúcia. Lá fora o Sol nascia lentamente esgueirando-se
entre os prédios e disputando acirradamente contra as nuvens um lugar no céu. A madrugada já
terminara e ele também. Ao mesmo tempo em que o azul escuro se desfazia na abóbada celeste
ele cobria com um manto negro sua tela. Ele teria muito que fazer aquele dia. O assassino
guardou seus pincéis no armário do quarto e saiu pela porta da sala.
Faltavam ainda três anjos.
Era onze da manhã quando Thomas resolveu cumprimentar pela primeira vez Hary el na
central, e logo chegou com uma bomba. O rapaz deu bom dia e pegou um exemplar de jornal
que estava separado na mesinha ao lado.

— O que foi? – perguntou o detetive, estranhando a expressão de seu amigo, que claramente
lhe mostrava que tinha algo a dizer.
— Lembra do terceiro assassinato? – indagou Thom, testando o estado de espírito de Hary el.
— Metatron Morrison, morreu eletrocutado. Foi o cara com quem achamos o colar. Por quê?
— Os ideogramas no corpo... – disse baixinho o rapaz.
— O quê? Identificaram?
— Não – riu o rapaz. – Bom, na verdade mais ou menos... Eu ainda não acredito nisso... só
tem louco nesse mundo...
— Ahn?
— Dá uma olhada. – aconselhou Thomas, jogando o jornal na mesa do detetive, este
observou algum tempo a matéria e depois deu uma gargalhada.
— Isso só pode ser uma piada: “Grande crítico francês identifica obra de arte em
assassinato”. É impressão minha ou esse cara tá tentando dizer que o assassino fez uma pintura no
corpo do Morrison?
— Mais que isso... Ele mencionou a palavra “gênio”. Na opinião dele o assassino é um cara
de grande talento...
— Essa é boa, todos esse dias tentando entender a simbologia no cadáver e na verdade o
maníaco é um Renoir complexado... O crítico é esse aqui da foto? Com essa pose estranha?
— É.
— Parece que além de doido ele é meio “afetado”. Ele acha mesmo que foi um trabalho
artístico? – retorquiu o detetive, ainda meio abismado com a matéria.
— Acho que sim, ele reconheceu como eu já disse, uma “genialidade” no cara. E como os
peritos também concordam quanto a isso, já que são eles que analisaram todas as geringonças
que ele fabricou, fica uma coisa meio evidente... Ele até ganhou um apelido na mídia: “O
Artífice”
— O Artífice? Não deixa de ser... Eu preciso de um favor seu – informou ele, mudando de
assunto e coçando o couro cabeludo.
— Qual?
— Quero que você me acompanhe até a casa daquele velho que eu te falei...
— O tal mestre budista?
— É. Acho que ele sabe mais do que diz.
— Você não tinha se recusado a insistir nessa história?
— Quando falei com Henry Nice parecia a coisa certa a fazer, mas estou intrigado... Andei
pensando muito em tudo isso, acho que procurá-lo novamente vai ser mais eficiente que ficar de
mãos atadas.
— Você é quem sabe. Na hora do almoço nós vamos, faltam só alguns minutos...
— Eu ia verificar algumas coisas antes, mas tudo bem...
— No que você está pensando? – perguntou Thomas, bastante curioso.
— Esquece, vamos na hora do almoço. Metrô ou ônibus?
— Metrô, mas você paga a diferença nas transições de zona...
— É só uma estação. Eu refleti bastante... Preciso da ajuda desse cara.
— E se ele não quiser cooperar?
— Eu faço ele cooperar. Assim que acabar o que você está fazendo me espera na estação.
— Certo.

Os dois, como combinado, se encontraram na estação Holborn e partiram até a casa do sábio.
Eles passaram boa parte da viagem conversando sobre os novos fatos que apareciam na busca do
maníaco e sobre um caso que Thomas estava investigando. Surgiu também o assunto do enterro
de Paul, que seria no dia seguinte, mas eles ainda não se sentiam muito bem para falar
detalhadamente sobre isso. Ao que parecia o comissário estava cuidando de tudo e a ex-mulher
dele chegaria naquele mesmo dia. Eles desceram próximo à Oxford Street e em alguns minutos
estavam na frente do domicílio.

Hary el acompanhado de Thomas, assim como no outro dia bateu muito tempo na frente da
casa, mas ninguém apareceu. Ficaram cerca de meia hora lá, no entanto, ela estava vazia.
Depois de alguns minutos, quando já estavam quase desistindo, um vizinho que chegara com
algumas compras parou e ficou intrigado com a insistência dos dois.

— Estão procurando o dono da casa? – disse ele.


— É, você o conhece? – perguntou Hary el, meio ansioso por informações.
— Mestre Chizu? Claro! Ele não está, se mudou...
— Se mudou? – espantou-se o detetive. – Quando?
— Ontem, foi pra casa dele no interior. Você não viu a placa? – indagou o vizinho, apontando
o indicador para uma placa bem escondida entre os arbustos.
— “Vende-se”? Ele está vendendo a casa?
— Pois é. Ele fica muito pouco tempo aqui, prefere locais mais calmos...
— Você tem o endereço dessa casa no interior?
— Tenho. Algumas vezes quando precisava da ajuda dele ia até lá para meditar e fazer Tai-
Chi...
— Poderia me passar?
— Claro. Você é amigo dele?
— Não, sou policial.
— Policial? O que quer com ele?
— Estou investigando o caso das armadilhas, acho que ele pode me ajudar.
— Ah, o Artífice?
— É – disse Hary el, controlando-se para não dar risada.
— Quer entrar?
— Claro, se não for incômodo...

Eles passaram um bom tempo na casa do homem, o estilo de arquitetura parecia muito com o
da casa vizinha, no entanto a decoração só apresentava leves vestígios de incenso e coisas do
gênero. O homem demorou um pouco para achar o endereço, mas eles não conversaram muito,
os detetives estavam com pressa. Thomas não deixou de notar que mesmo Hary el mantendo sua
costumeira ironia estava ainda abalado com a morte do parceiro, resolveu não falar nada, a sua
mente também estava confusa. Quando deixaram a casa o relógio marcava uma e meia da
tarde.

— Você acha mesmo necessário encontrar esse cara? – inquiriu Thomas, descendo as
escadas do lado de fora da residência.
— Por enquanto é o único que pode me ajudar, mesmo que ele esteja no fim do mundo eu
vou atrás dele. – respondeu o detetive.
— É... você parece decidido. Vai procurá-lo quando?
— Hoje, aliás, daqui a pouco. Volto antes do enterro do Paul amanhã. Quero que você
continue tentando descobrir no que ele estava trabalhando. Você está muito ocupado esses dias?
— Hary , Paul era meu amigo também. Terei o maior prazer em investigar.
— Boa sorte... – desejou o detetive, caminhando na direção contrária a de Thomas.
— A estação é por aqui. Aonde você vai?
— Arrumar um carro. Te vejo amanhã...
— Boa sorte pra você também... O que eu digo pro chefe?
— Diz a verdade. Eu ainda tenho treze dias...

O tempo fechava novamente, anunciando que os dias de chuva estavam ainda longe de
acabar.
Hary el conseguiu um carro emprestado com um antigo amigo da faculdade que morava nas
redondezas, pelas informações que tinha chegaria mais ou menos em quatro horas na casa do
velho sábio. Ele prometeu que voltaria antes de amanhecer o dia seguinte, pois o amigo
precisaria do veículo para alguma coisa que não entendera direito, e nem fizera questão para não
parecer indelicado. Esses fatos o faziam refletir maduramente na idéia de comprar um meio de
transporte, estava gastando demais com condução e sempre que precisava se locomover com
urgência algo o atrapalhava.
Ele estava muito pensativo esses dias, com a cabeça cheia, preocupando-se com muitas coisas
ao mesmo tempo. O ar do campo lhe faria bem, e uma viagem, mesmo curta, esfriaria seus
ânimos um pouco abalados desde que tudo isso começara.

A rota pela estrada durou um pouco mais do que o detetive esperara, mas dentro do previsto.
Era cinco e meia da tarde quando ele avistou a pequenina fazenda em meio ao matagal da
rodovia. Foi um percurso agradável, acompanhado do cheiro da terra molhada e dos brilhos de
sol que se manifestavam com mais intensidade à medida que ele se afastava da cidade. Quando
estacionou na entrada do sítio havia pouquíssimas nuvens no céu, coisa que muito lhe espantou
levando em consideração o estado de Londres, castigada as ultimas duas semanas pela água.
Passando o portão de madeira que indicava a entrada da fazenda havia uma pequena estrada
que seria mais bem definida pela palavra “trilha”, que levava a uma casa bem simples,
provavelmente a única em alguns quilômetros. A trilha era de terra e chão batido e passava fina
por entre a grama plana. Esta conduzia à casa já mencionada, de madeira e tijolos numa mistura
engraçada de cores azul e marrom. Quanto mais se aproximava do casebre mais notava a
influência oriental, manifestada não na origem das partes e objetos em volta e dentro da casa,
pois eram ingleses, mas na disposição dos mesmos no ambiente. As janelas estavam abertas e
ele logo notou ao fundo um rapaz carregando baldes d’água em direção ao domicílio. Era aquele
mesmo oriental do outro dia.

Os olhos apertados do rapaz notaram a presença do detetive, ele os manteve fixos


movimentando a pupila de um lado ao outro, como se estivesse analisando-o. O rapaz abaixou os
baldes e virou o rosto na direção de Hary el, provavelmente para fitá-lo melhor, assim ficou
durante um bom tempo, até que tivesse certeza que era o mesmo homem que vira há poucos
dias.

— Boa tarde – disse o rapaz


— Boa tarde – respondeu o detetive.
— Você está procurando o mestre?
— Sim, ele está?
— Lá dentro. Ele costuma vir para o interior para relaxar. O que quer com ele?
— A mesma coisa que da outra vez – explicou o detetive, num tom firme.
— Ele já não disse que não tinha como ajudar?
— Eu sou insistente. Qual o seu nome?
— Não importa, você está aqui para falar com ele, não comigo.
— Eu posso entrar?
— Eu não posso te impedir. Não sou o dono da casa... – mencionou o jovem oriental, guiando
o visitante pela porta.

O velho estava sentado em uma almofada vermelha no centro de uma sala ampla, bem ao
fundo da casa. Havia um altar dourado, muito bonito, com dragões, baguás e símbolos que ele
não conhecia. Somente aquela sala diferenciava o casebre de uma fazenda normal. O mestre
estava de costas para a porta, como numa atitude de indiferença com o mundo, mas antes que o
jovem dissesse qualquer coisa ele parou o que fazia e disse em um tom extremamente calmo:

— Boa tarde, detetive Kitten...


— Boa tarde – respondeu Hary el, meio sem graça, mas decidido a arrancar as respostas que
queria.
— O que faz aqui? – disse o velho, levantando, ainda de costas.
— Quero ajuda.
— Muita gente quer... O problema é que buscam ajuda como quem procura
desesperadamente os óculos que está usando – informou o sábio, virando-se na direção do
detetive e abrindo os olhos. – Então eles apalpam e reviram móveis, caixas e olham atrás das
camas como se cegos estivessem e, não o acham, por que além de acreditarem não enxergar
bem sem eles, nunca vão procurar nos próprios olhos.
— Desculpe, mas eu não tenho tempo pra linguagens simbólicas. Poderíamos conversar?

O velho fez um sinal para o rapaz, que imediatamente deixou a sala. Cheung Chizu
encaminhou Hary el até uma cozinha perto da entrada. No centro dela havia uma grande mesa
de madeira, grossa e escura, onde eles se sentaram.
O rapaz fervia a água e ervas para um chá na parte de trás. A luminosidade era baixa e as
paredes pouco claras, no entanto alguns feixes de luz, amarelados do sol, penetravam pelas
aberturas na madeira do teto, era a única fonte de claridade no aposento.

— O que exatamente quer de mim? – perguntou o velho.


— Quero que me auxilie na caça ao maníaco.
— Como pode caçar uma coisa que não conhece?
— Se conhecesse não precisaria caçar...
— Pelo contrário, se conhecesse é que caçarias eternamente...
— Olha, já estamos entrando em metáforas de novo, eu só quero uma resposta.
— Não.
— O quê?
— Não. Você queria uma resposta, essa é a minha. Não vou ajudá-lo.
— Como não? Você não entende? Tem um louco matando pessoas inocentes por aí, como
você se recusa?
— Não é problema meu – disse o sábio.
— Não é problema seu! Olha pra mim, eu viajei quatro horas até aqui atrás de você, não vou
sair enquanto não me disser que vai cooperar!
— Então o senhor ficará aqui eternamente.
— Você não se preocupa com as vítimas?
— Vitimas? – perguntou o velho – A morte e a vida são estados de não permanência, teria
muito mais motivos para ajudá-lo por me pedir do que por pessoas estarem morrendo...
— Isso não soa muito bondoso para um mestre budista – disse o detetive, em um tom meio
agressivo.
— E não é. Não é bom nem mal, como o próprio universo.
— Você é muito confuso, mas não vim aqui para tentar entendê-lo, e sim ao assassino.
— Aí é que está o problema detetive Kitten, no “entender o assassino”. Você já começou em
uma batalha perdida, se esse homem é como você descreve, nunca vai conseguir vencê-lo, por
que ele é liberto e é guiado pelo Tao. Podes lutar como quiseres, tentar entender como quiseres,
mas nunca vais dominá-lo, porque ele tem a força do grande todo.
— Eu não quero saber nada sobre isso. Eu quero encontrá-lo.
— Como já lhe disse, você o procura como alguém que procura os próprios óculos. Enquanto
você tentar entendê-lo, nunca o compreenderá, você tem que ser o Tao para entrar em sua
essência.
— Não entendo o que você diz...
— Esse é o primeiro passo, mas eu não vou guiá-lo, esta é uma batalha muito mais sua do
que minha...
— Então você reconhece que é problema seu também?
— Eu reconheço que se tudo acontece como você diz, seu ser não faz a mínima idéia de
onde está se metendo. Agora chega de conversa – disse o velho, levantando-se para pegar o chá.
– Jante aqui comigo, e depois volte de onde veio.
— Eu não vou embora assim!
— No tempo de Chuang-Tzu, o rei de Tch’ou conservava preciosamente, no templo de seus
ancestrais, a carapaça de uma tartaruga transcendente, sacrificada para servir à adivinhação.
Naquele tempo ela já contava três mil anos. Diga-me: Se tivessem dado a essa tartaruga o direito
de escolha, ela teria preferido morrer para que honrassem sua carapaça ou teria preferido viver
arrastando sua cauda na lama dos pântanos?
— Ela teria preferido viver arrastando sua cauda na lama dos pântanos – respondeu ele.
O ancião, em pé, olhou profundamente no âmago do coração de Hary el, e assim como da
outra vez, estremeceu a sua alma.

— Então – disse ele pausadamente. – , retorne de onde vieste; eu também prefiro arrastar
minha cauda na lama dos pântanos.

O detetive levantou-se, claramente irado e saiu da mesa. Os dois chineses observavam a


atitude com um ar de indiferença. Ele saiu pela porta da cozinha amaldiçoando a viagem que
fizera, a casa, e até mesmo a luz do sol. Ele seguiu rapidamente pelas portas até o corredor que
dava acesso à saída, acompanhando com o olhar toda mobília da casa, passando por todos as
salas e paredes. De repente seu corpo gelou e seu olhar cravou-se fixo em um objeto em cima
de um altar, não podia acreditar no que estava vendo, ficou alguns segundos o observando,
tentando acreditar que não estava louco, mas era real. Ele vira o colar.
Não toque nisso! – ordenou o sábio, segurando o braço do detetive e lhe impedindo o curso até
o colar. – É um objeto sagrado!
— Você! – disse com raiva Hary el, agarrando o velho pela gola – Você sabe de tudo, foi
você!
— Não é o que você pensa – disse calmamente Cheung Chizu.
— Não é o que eu penso!? Quem é você? O que isso está fazendo aqui?
— Sugiro que você se acalme...
— Acalmar-me? – perguntou ele, apertando os dentes e ainda mais a toga do velho. – O que
é isso? Meu parceiro está “morto”, e você tem as respostas. Eu quero ouvi-las “agora”!
— Desculpe... eu não sabia...
— Não sabia? Pelo contrário, você sabe de tudo. Fala!
— Acho – comentou ainda calmo o velho – Que tenho algumas coisas pra esclarecer, me
acompanhe.

O mestre desvencilhou-se das mãos de Hary el com uma naturalidade impressionante, e o


detetive não pôde impedir a ação, mesmo colocando extrema força não pôde conter o velho. Ele
o acompanhou de novo à cozinha e o rapaz, que ainda lá estava, serviu o chá quente. Hary el
estava muito impaciente, mas o ancião logo começou a falar.

— Este colar que você viu, data de um tempo que as coisas do mundo não pareciam em
nada com as de agora e que os filhos do céu governavam a terra – disse ele. – Não é uma peça
do século XVII, como você provavelmente pensa, mas de um tempo onde a terra ainda não
possuía separações e a China e a Índia era uma só raça e um só coração.
— O que ele faz com você? – perguntou ávido o visitante.
É, meu. Herdei das gerações que me antecederam, que herdaram de outras gerações. Como já
disse é um objeto sagrado da “grande religião”, no seu centro, exatamente dentro daquele
compartimento onde está grafado o baguá, está guardado o maior segredo do budismo e a
resposta para todos os mistérios do universo.
— O que ele fazia na cena do crime?
— Não era ele.
— O quê? Eu sei o que vi...
— Era outro colar, da mesma espécie. Quando me tornei mestre, o recebi de meu pai, que
manteve a linhagem das gerações. Embora eles pareçam ter poucos séculos possuem tantos anos
que qualquer cálculo seria mera quimera.
— Que seja outro então! O que ele fazia na cena do crime?
— Não sei...
— Como não sabe. Ele é seu!
— Não é mais. Há muitos anos não o vejo. Pensei que não mais existia, demorei muito
tempo para acreditar que se tratava do mesmo colar.
— O que aconteceu?
— Ele foi roubado – respondeu o velho, tomando o primeiro gole de chá.
— Essa é boa. Sabia que é a primeira coisa que os criminosos dizem quando lhe perguntam
sobre um objeto que é deles?
— Eu não minto.
— Você mentiu sobre o colar. Disse que não sabia nada sobre ele.
— Eu disse a verdade, nada sei. Mesmo o conhecendo não posso ajudá-lo, é difícil pra
mim... entender que ele ainda exista.
— Eu já disse que vi! – elevou a voz exaltada o detetive.
— Nem tudo que você vê é real. Na verdade a própria realidade é uma ilusão.
— Pare com essas bobagens! Quem roubou?
— Não sei.
— Ah – riu sarcasticamente Hary el, se sentido enganado. – Não sabe...
— Há muitos anos eu vivia na china, em uma província chamada Honan. Treinava diversos
garotos ocidentais para serem meus discípulos em Kung-Fu e na arte do Tao. Eu guardava os dois
colares como relíquias gêmeas que são em uma sala escondida. Naquela época fazia pouco
tempo que abandonara o mosteiro e me dedicava unicamente ao ensino do Ch’an e a meu
aprimoramento pessoal...
“Certa vez ocorreram muitos problemas na comunidade e eu resolvi deixar a China.
Embarquei em um navio para o Ocidente, com todos os meus discípulos, que eram ainda garotos.
Passamos muitos dias viajando, amontoados com os outros tripulantes que migravam para um
“mundo melhor”. Depois de semanas de viagem o navio ancorou no porto da Inglaterra.
Decidimos ficar aqui, e eles gostaram demais do local.
“Era ainda o segundo dia que passávamos na Grã-bretanha, ficamos em uma pensão. Quando
veio a madrugada, policiais invadiram o lugar em busca de imigrantes ilegais Chineses. Muitos
foram presos e alguns de meus discípulos fugiram.
“Assim que a manhã nasceu, me vi em um beco deserto, em uma rua que não conhecia, com
pessoas que não falavam a minha língua e com garotos que eu tinha por missão instruir. Eu
levava o colar dentro de uma das malas, esperando me estabelecer para guardá-los em um local
seguro. Depois de semanas procurando abrigo, consegui emprego em uma joalheria e arrumei
uma casa para mim e para os garotos. No entanto quando abri pela primeira vez a mala em que
havia guardado os colares um deles não estava mais lá.

— Havia sido roubado? – perguntou o detetive. – Por quem?


— Já disse que não sei. Provavelmente algum dos garotos que fugiram, eram os únicos que
sabiam onde ele estava.
— O Morrison era seu discípulo.
— Não, nunca o conheci.
— Então você lembra de todos. Deve haver algum que seja mais suspeito.
— Sr. Kitten, eu nem sei se eles ainda estão nesse mundo. O senhor está mais ilógico do que
parece para um detetive...
— Você disse que eram todos ocidentais...
— A maioria.
— E a família?
— Eram órfãos, eu cuidei da maioria deles desde criança.
— Onde estão agora?
— Não sei – respondeu. – Em algum lugar do mundo, estão seguindo seus caminhos e
ensinando e praticando o Ch’an. Quanto àqueles que fugiram, não tenho a menor idéia de onde
estejam.
— Quanto tempo faz isso?
— Vinte anos.
— O senhor tem que me ajudar... Preciso encontrar o assassino. Se acharmos ele, você terá
de volta o seu colar...
— O colar é só um símbolo, não preciso dele...
— Droga! Ajude-me!
— O que você quer de mim?
— Quero o que volte comigo para Londres e me auxilie na investigação.

O velho olhou para o rapaz que desligava o fogo em que a água fervia, ficou alguns segundos
observando-o, como se pensasse em muitas coisas ao mesmo tempo e enxergasse algo que
ninguém mais enxergava.

— Está bem. Vou contigo até Londres. Mas nem por isso acho que é uma boa decisão. –
disse ele.
— Muito obrigado... – agradeceu Hary el. – Ah – lembrou-se ele –, tem também este bilhete,
encontraram junto ao cadáver do meu amigo.

O velho pegou o papel que o braço do detetive estendera e leu atentamente.

— “O Céu e a Terra anunciam a chegada dos novos ventos. E eles não podem ser parados
por ninguém ou coisa alguma. Eles zumbem e batem contra a grama e contra as árvores, mas
também não estacionam, o Tao os guia por todas as dificuldades e por todos os caminhos rumo à
sua alma. Os ventos usam agora a força da tempestade para que o Sol possa nascer mais tarde,
atraído pela chuva. Quando o sol aparecer no horizonte a grande obra estará completa e, quando
ele morrer, o todo terá alcançado a sua suprema glória. A verdade que agora se mostra é que um
peixe não é nada sozinho, mas ele corre feliz pelos lagos sem se preocupar com comida ou com
a hora da ração, mas se o põem em um aquário, fica manhoso, nadando diferente e passando o
dia todo esperando sua comida. Repete-se a verdade que a realidade não existe, e que por isso eu
não sei se sou agora um homem que sonha ser uma borboleta, ou uma borboleta que sonha ser
um homem.”

Ele ficou um tempo calado e por fim disse:


— Este texto é como o outro, diz quase a mesma coisa. Mas como já mencionei o Ch’an não
pode ser explicado. Acontece que este texto foi feito em uma linguagem um pouco mais
complexa que o que me mostraste outro dia, justamente por isso, mais simples de uma pessoa
como você entender. Eu já falei que não posso repassar a essência exata, mesmo assim quer
ouvir?
— Quero.
— O que você pode compreender é que o curso das coisas não pode ser interrompido, e tudo
será o que tem que ser. O “sol” representa o objetivo dele, que está sendo alcançado pela
“tempestade”, a morte de seu companheiro e das outras pessoas. Ele acaba fazendo uma alusão
a um texto taoísta de Chuang-Tzu, sobre a não existência da realidade. Acho estranho que um
homem como esse possa matar, parece um iluminado, é difícil entender que uma alma que
compreenda o todo perca seu tempo retirando a vida de outras.
— Há alguma pista?
— Mais do que você imagina. Mas não posso repassá-las. Dizendo mais uma vez, você está
em desvantagem se ele atingiu o “satori”. Não vai conseguir nada que ele não deseje se
continuar não-liberto.
— E como posso ser liberto?
— Não desejando ser.
— Não entendo!
— Esse é o primeiro passo. Quando não tentares mais entender, estarás mais próximo do que
imaginas. Agora se não conseguires se libertar, ele vencerá.
— Eu não acredito nisso.
— Às vezes eu também não, a iluminação dele pode ser falsa. Vou pensar um pouco sobre o
fato de ele cometer assassinatos.
— Posso fazer mais uma pergunta?
— Já está fazendo...
— Como um ser perfeito da sua religião pode sair matando por aí.
— Na verdade o fato de ele matar é o que menos importa. Já disse que vida e morte são
ilusões. O que confunde é ele se preocupar com isso.
— Você é louco.
— Isso é ser sábio...

Os dois passaram boa parte da tarde conversando. Embora o detetive estranhasse a história que
o antigo monge contara, sentia que ele falara a verdade. Eles jantaram, e o sol estava quase se
pondo quando saíram para lavar suas tigelas em um córrego que passava ao lado da casa.

— Por que aqui faz sol? – perguntou Hary el, esperando a resolução da incógnita que o
atormentara na viagem.
— Por que aqui não precisa chover... – respondeu o velho.

Chegando então à beira do riacho, abaixaram-se e começaram a lavar. Ficaram lá


conversando sobre muitas coisas, enquanto o sol se punha no horizonte. Em meio à conversa
avistaram um escorpião que estava se afogando nas águas. Cheung Chizu imediatamente largou
sua tigela e socorreu o animal, colocando-o a salvo de volta à margem. No processo ele foi
picado. Voltou então para terminar de lavar sua tigela, e quando deu por si, o escorpião caíra
novamente no rio. O velho salvou o escorpião e novamente foi picado. E assim ocorreu uma
terceira vez, e sucessivamente, quando o escorpião caia e debatia-se no rio, o velho vinha salvá-
lo e era picado.
A certa altura o detetive então perguntou:

— Por que você insiste em salvar o escorpião, quando você sabe que sua natureza é agir com
agressividade, picando-o?
“Porque – replicou o velho. –, agir com compaixão é minha natureza.”
Era de noite quando Hary el e o mestre resolveram voltar para a cidade. Como Cheung Chizu
havia colocado a casa à venda, ficou decidido em livre consenso entre eles que ele ficaria no
apartamento do detetive até que tudo estivesse terminado.
A brisa fresca do ocaso mexia as plantas e a grama, enquanto o sábio, em seu quarto,
preparava a mala para a estadia em Londres. Ele conversou um bom tempo a sós com o rapaz,
que ficaria na casa. Hary el não pode escutar do que a conversa se tratava, mas sentia que era
algo importante, pois passaram muitos minutos em diálogo.
A madrugada já estava quase dominante no céu, quando o detetive decidiu preparar o carro.
Ele ligou a ignição e chamou o velho, que ainda estava na frente da porta de entrada, segurando a
mala, com o rapaz. Mesmo estando um pouco longe, Hary el conseguiu ver o momento em que
este entregou o colar ao jovem.

— Por que isso? – perguntou o rapaz, recebendo a jóia das mãos do sábio.
— Já estás em idade de entender as coisas. És um homem – disse ele. –, quero que fiques
com ele.
— Como assim? – falou o jovem, espantado.
— Quero que permaneças aqui e cuide da casa. O colar agora é teu, tens tudo que precisas,
sinto que a verdadeira sabedoria já começa a aflorar em ti. Não necessitas mais de mim...
— Mestre, quando voltarás?
— Sempre que pensares em mim, voltarei.
— Não estou pronto... – disse o rapaz, quase implorando, e entendendo o que o velho falara.
— Sim, estás, eu não posso mais te guiar. O colar é a resposta, dentro dele há tudo que
precisas para se tornar um grande mestre. O segredo do Tao.
— Quem me mostrará a luz?
— Já devias saber que ela está dentro de ti...
— Não tenho em que me apoiar – suplicou o rapaz.
— Então tu ficarás em pé por si só. Quando não há apoio, a verdadeira firmeza se revela.
— Acho que não conseguirei me manter até ser firme o suficiente...
— Mas também não sucumbirás. Se vacilares, agarre-te no colar.
— Não sou digno dele.
— Ele é tu mesmo. Ninguém melhor que tu para possuí-lo.

Uma lágrima fina, em forma de gota, escorreu lentamente pela face do rapaz. O sábio soltou
um sorriso coberto de ternura. Eles sabiam que já havia acabado.
— O que um homem deve entender para compreender inteiramente o Ch’an? – perguntou
pela última vez o velho, testando as habilidades do jovem, e ao mesmo tempo se despedindo.
— Que biscoitos doces estão na mente. E um biscoito quebrado, não está em lugar nenhum. –
respondeu o rapaz, emocionado.
— Estás preparado. – disse o velho seguindo a trilha até o carro. Nas suas costas deixava o
discípulo e sua casa. Doía muito compreender as coisas.

Ele entrou no carro e esse partiu em meio à escuridão. O jovem ficou lá, na porta, por um
bom tempo, olhando o horizonte. Antes de entrar ele abriu vagarosamente o camafeu do colar,
estava vazio. Então ele entendeu o segredo do universo.

Trovões e raios dominavam todo o céu no caminho. Chovia fortemente nos arredores da
cidade, como nunca nos últimos dias. Talvez fosse a chuva mais forte em anos. As gotas desciam
pesadas em meio à escuridão, iluminadas somente pelas lâmpadas amareladas em volta do
asfalto. Este as refletia como um espelho úmido e levemente embaçado com o azul escuro e
acinzentado do céu. O barulho da tempestade era quase ensurdecedor, e o vento era frio,
arrepiando cada ínfimo pelo do corpo do detetive. A chuva atrasara um pouco a viagem, e
quando finalmente se aproximaram do apartamento de Hary el, a madrugada já estava no meio.
As ruas estavam alagadas, e as águas escorriam como pequenos córregos pelo solo,
impossibilitando a passagem em diversas áreas. O carro pegou uns poucos atalhos pelas ruelas de
Londres até algumas quadras antes da casa do detetive. Algo que ele não entendera muito bem
bloqueara o acesso pela rua principal, e o retorno por outros trajetos era impossível. Eles tiveram
que deixar o carro lá mesmo, cerca de três quarteirões do destino. Como o temporal se
acentuara, deixaram o carro encostado ao meio fio de uma esquina próxima a um beco. Saíram
meio apressados, pois, desprevenidos, nenhum deles trouxera guarda-chuva.

— Tem certeza que quer ir já? – disse Hary el, parado em baixo do telhado de uma loja que
desconhecia, e um pouco preocupado com a saúde do mestre. E se ele pegasse uma pneumonia?
— Tenho. Seu apartamento está próximo?
— Umas três quadras.
— Então vamos – disse ele de bom humor e esgueirando-se nas águas.

A estrada estava lamacenta e eles tiveram mais dificuldade do que esperavam para passar as
quadras. A chuva caía cada vez mais pesada e as vias estavam desertas. Então, chegando a uma
curva, depois de um pouco caminhar, encontraram uma bela garota vestida com roupas curtas
de couro e passando um pouco de frio, a qual era incapaz de cruzar a intercessão. Provavelmente
era uma prostituta, e assim que a viu, o velho caminhou em sua direção.

— Venha, menina. – disse o velho de imediato e erguendo-a em seus braços, ele a carregou
e atravessou facilmente o lamaçal.
Hary el olhara admirado a ação do companheiro de viagem, espantado com a força do corpo
do ancião. Ele também cruzou o caminho não dizendo uma palavra.
O mestre deu uma espécie de manto que carregava para a jovem, visando aquecê-la, e
continuou a andar com o detetive. Os dois estavam extremamente molhados

Hary el não falara nada durante todo o resto do percurso e o mestre nada entendia, e assim
continuou até a chegada ao apartamento, quando subiram as escadas, sacudindo as roupas, e ele
abriu devagar a porta.

— O que foi? – perguntou Cheung Chizu, notando a expressão calada do homem.


— Nada – debochou o detetive. – Só acho estranho que um homem puro como você tenha se
aproximado daquele jeito da garota...

O sábio olhou bem para ele, e por fim disse:

— “Eu deixei a menina na travessia. Você ainda a carrega?”


Não era a primeira noite que o demônio passava a observar sob as gotas. Os relógios contavam
oito da noite, de um dia antes do enterro de Paul, quando ele decidiu entrar no clube. A moça já
havia saído algumas horas atrás, quando as nuvens começaram a distribuir os primeiros raios.
Desde então ele ficara lá, parado, esperando o momento certo de agir. Somente o zelador e
alguns funcionários ainda permaneciam no local, provavelmente aguardando o técnico que
consertaria a fiação que queimara já há uma semana.
O assassino colocou o crachá que fizera sobre a capa de chuva e caminhou em direção à
guarita. A brisa que começava a se estabelecer refrescava um pouco sua face suada. O zelador o
barrou próximo a porta.

— O que quer? – perguntou o vigilante, notando a figura que se aproximava.


— Sou o técnico, vocês requisitaram algum conserto?
— Sim, já era hora! – comentou feliz o zelador.
— Desculpe o atraso, com essas descargas elétricas a todo o momento tem muito trabalho...
— Eu sei... É por aqui – disse ele, levantando a banguela, que dava à entrada certo ar de
pedágio, e permitindo a passagem ao homem.

O zelador guiou o homem até a parte de dentro do clube, onde ficava a rede elétrica. Ele
olhava muitas vezes para os óculos do visitante, que cobriam olhos cinza e cristalinos, e falava
muitas coisas a respeito dos problemas com lâmpadas e com toda a aparelhagem. O assassino
não contava com a extroversão do vigia, que já prestara atenção demais na sua pessoa, se
continuasse assim muito tempo seu plano corria o risco de falhar. Ele fez o possível para
esconder o rosto e não olhar diretamente para o zelador, mas este buscava a sua face numa
descontração surpreendente.

— Aqui é a caixa de força? – perguntou o homem, tentando cortar a conversa e começar


logo o que viera fazer.
— Exato, são duas redes, que têm conexão com essas duas caixas – disse o zelador. – O
problema está na caixa da esquerda, que controla o aquecedor das piscinas e os geradores.
— Piscinas? Nesse frio?
— Na verdade elas não estão sendo utilizadas, as poucas pessoas que freqüentavam as
térmicas pararam de utilizar desde que o problema começou.
— Mas vocês têm gerador próprio? – indagou a figura, ocultando-se discretamente sob o
boné.
— Sim, mas, é claro, tem ligação com a distribuidora de energia. O curto afetou toda rede.
— Foi um raio?
— É o que todo mundo diz, mas eu acho que foi sabotagem. Em dez anos que eu trabalho
aqui isso nunca aconteceu. Deve ter sido algum desses moleques mexendo nas fiações da rua...
— E essa outra caixa, a da direita...? – perguntou o demônio, chegando ao ponto que queria.
— Essas regulam a sauna a vapor e as duchas. Alem de uma parte dos escritórios no andar
de cima.
— Ah... – riu ele. – Obrigado. Agora pode deixar que eu me viro...
— Certo, vou voltar logo pra entrada que daqui a pouco os últimos carros vão sair...

O homem despediu-se do zelador e começou a analisar as caixas. Ele abriu a maleta que trazia
e foi em direção à sauna. De dentro tirou o equipamento e começou a instalação. Precisava
trabalhar o mais rápido possível, antes que o vigia voltasse. Ele fez a ligação dos fios e encaixou
os componentes elétricos. Levou menos de meia hora para acabar a primeira parte do serviço
dentro da sauna, e então voltou para o conserto da caixa da esquerda, já que conhecia muito bem
o problema em poucos minutos estava pronto. Depois decidiu arrumar o que faltava na caixa
direita, mas antes que pudesse encerrar, o zelador o interrompeu repentinamente.

— O que está fazendo?! – gritou o vigia.

O assassino gelou.

— Arrumando a rede de força, o lado direito também foi afetado... – disse ele, tentando
explicar-se, e temendo que fosse descoberto.
— Mas que eu saiba era só o conserto da fiação da piscina.
— A sauna não está bem. É meu trabalho verificar tudo antes de ir embora... – desculpou-se.
— Se você diz...

O homem ficou satisfeito em não precisar matar o vigia. Ele havia cometido um erro de
cálculos, pelo que conhecia do local seria o dia de outro zelador assumir a portaria. Depois de
alguns poucos momentos de conversa, sempre se cuidando para não ser muito visualizado,
descobriu que ocorrera um imprevisto e eles se viram obrigados a trocar de turno, forçando um
deles a ceder a folga.
O assassino terminou o que faltava na frente do vigia, distraindo-o com outras coisas e saiu
driblando sua curiosidade pela porta dos fundos. Ele esperou algum tempo do lado de fora, até
que o mesmo trancasse o andar inferior, assim ele teria certeza que não notariam o que fizera até
a hora certa.
Deixou o clube as dez da noite, algumas horas depois Cheung Chizu chegaria com Hary el em
meio à tempestade.
Quando o detetive acordou pela manhã, o mestre já havia levantado há muito tempo. Ele
fizera um chá com algumas ervas aromáticas, o qual impregnou a casa inteira com um odor
sublime. Ao abrir os olhos, acordado pela fragrância da infusão, Hary el pôde ver o velho
movimentando-se lentamente como um animal, numa seqüência impressionantemente bela.

— Isso é Tai-Chi? – perguntou o detetive, ainda deitado, observando o fluxo dos braços e
pernas do mestre. Parecia um estado de meditação.
— Sim. É bom fazer ao nascer do sol. – respondeu o velho.
— É uma arte marcial, não?
— É um caminho de vida...
— Mas não parece muito feroz... – comentou Hary el.
— Ainda é o principio de que “parecer não é ser”. Desejas ferocidade? Tu a obterás pela
doçura. Desejas rigidez? Conseguirás pela flexibilidade. Queres força? Estimula-a pela fraqueza.
— Não entendo.
— Pratica a flexibilidade e te tornarás rígido. – falou o mestre, movimentando-se
lentamente. – Exercita-te na fraqueza e virás a ser forte. Se observares com atenção a conduta
das pessoas, preverás o teu futuro, infelicidade ou felicidade. O violento vence o que é menos
violento que ele, mas quando se defronta com alguém semelhante, precisa endurecer-se, e aí
corre o risco de fratura; como a superioridade do meigo está nele próprio, ele possui poder sem
limites.
— O que você quer dizer?
— Quero dizer que adotar a afirmação é também adotar a negação, e adotar a negação é
também adotar a afirmação. Por isso o sábio nada diz e não toma opinião alguma, pois sua
posição é o próprio todo.
— Como alguém que não faz nada pode fazer alguma coisa? – perguntou o detetive, que
entendera mais ou menos, debochando.

O velho acabou o último movimento, em direção ao Sol, e virou-se para Hary el.

— Todo mundo percebe a utilidade do útil, mas ninguém percebe a utilidade do inútil – disse
ele.
— Você é louco mesmo. Como uma coisa inútil pode ter alguma utilidade, se o próprio nome
diz, “inútil”? – riu o detetive, duvidando da sanidade do velho.
— Um homem uma vez atravessou a colina Chang. Ele percebeu uma árvore
surpreendentemente grande. Para você fazer uma idéia, sua sombra podia cobrir mil carroças
com quatro cavalos.
“Espantado, ele se perguntou que árvore era aquela, e para que poderia servir. Olhando-a de
baixo, seus pequenos ramos curvos e torcidos não podiam ser transformados em cumeeira e em
vigos. Olhando-a do alto, seu grande tronco, nodoso e rachado, não podia servir para fabricar
ataúdes. Aquele que lambesse suas folhas ficaria com a boca ulcerada e cheia de abscessos. Só
de sentí-la ficar-se-ia tonto e embriagado por três dias. Ele então concluiu:
“Esta árvore é inútil e, por essa razão, conseguiu atingir tal porte. Ah, o homem divino por sua
vez, também não passa de madeira inútil!”
— Entendi. O inútil consegue se conservar...
— Mais ou menos. Estou te mostrando o caminho da sabedoria. O esvaziamento do “eu”. –
disse o velho.
— Esvaziamento do eu?
— Para você entender o assassino tem que se assemelhar a ele.
— E como ele é?
— Ele é como o vazio.
— E como o vazio pode ser alguma coisa? – perguntou ele já confuso com toda aquela
história.
— Á que horas é o enterro do seu parceiro? – perguntou o velho.
— Às oito, por quê?
— Nada, já está na hora de você se arrumar, não?
— Você não vai?
— Vou, levante-se e tome um chá...

Hary el saiu da cama, lavou o rosto e foi pra mesa, Cheung Chizu, do seu quarto gritou alguma
coisa para ele.

— Você me perguntou sobre o vazio... Imagine uma barca quadrada que atravessa um rio –
disse o velho. –; se outra barca vazia, que se encontra à deriva, vem chocar-se contra ela, os
marinheiros, sendo homens de espírito mesquinho, não se irritarão.
“Mas, se houver um homem na barca, eles gritarão para que a recolha. Se o homem não os
ouvir, gritarão uma segunda vez; se continuar a não entender, eles o crivarão de injúrias. Em
resumo, se estiver vazia, a barca não excitará a cólera; ela só a provocará quando estiver
ocupada. Dessa forma quem poderá fazer mal a quem tiver se esvaziado do seu eu?
— E o assassino se esvaziou?
— Provavelmente... – gritou o velho, do quarto.

Às sete da manhã eles saíram rumo ao cemitério. Não haviam feito velório para Paul, pela
impossibilidade se seus familiares chegarem a tempo, e o estado do cadáver valorizava muito
essa decisão, pois embora sua morte tenha sido relativamente simples, o estrangulamento fizera
com que não fosse uma visão agradável o caixão aberto numa cerimônia fúnebre. De mais a
mais, o comissário fora quem cuidara de tudo, e mesmo que Hary el pensasse em discordar,
provavelmente sua opinião não seria relevantemente ouvida.
Às oito e trinta e cinco o táxi estacionou a frente dos muros do campo santo. O detetive vestia
um terno negro, com gravata de seda e óculos escuros. Mesmo o dia estando nublado e frio,
fizera questão de usar, não queria que pessoa alguma visse lágrimas em seu rosto. O cemitério
estava coberto por folhas secas, caídas das árvores ainda no início do outono e, as plantas negras
e retorcidas, davam um ar extremamente melancólico àquela manhã de céu cinza.
O velho trajava uma roupa discreta, que não se assemelhava com os demais convidados, e
diferenciava-se principalmente pelo terço entalhado em madeira no pescoço, que embora não
fosse um acessório comum, permanecia pouco chamativo.

Poucos minutos após chegar, Hary el visualizou o cortejo, vindo ao fundo. Ele abraçou a viúva,
que trajava um vestido preto, com um véu que lhe cobria o olhar, e os irmãos do parceiro, que
disfarçavam as lágrimas, mas não a tristeza daquele momento. Thomas também estava lá e logo
cumprimentou o detetive e seu acompanhante, ficando ao seu lado quase toda a cerimônia.
Todos exibiam olhares abatidos, exceto uma menininha que o detetive não conhecia, ela
permanecia parada em frente ao túmulo, ouvindo atentamente a oração. Cheung Chizu também
não se deixara influenciar pelo clima do local, mantendo um olhar de indiferença; inicialmente
Hary el deduziu que era porque não conhecia Paul o suficiente para sentir alguma tristeza com
sua morte, mas depois de alguma analise ele conseguiu notar em seus olhos uma espécie de
segurança, que flamejava ardentemente, como se compreendesse o que ninguém mais
compreendia. Talvez fosse este o motivo de sua abstinência.
Já no meio do sepultamento, quando a brisa fria movimentava as últimas folhas secas dos
galhos, um homem apareceu no cemitério.

Trajava um terno negro, coberto de uma capa de mesma cor e óculos escuros. Ele
aproximou-se devagar da cerimônia e agachou-se de frente a uma cova sob a sombra de uma
grande árvore. De quando em vez ele lançava olhares na direção do funeral, mas a distância e a
dificuldade que se tinha de ver seus olhos impediam qualquer possibilidade de se saber
exatamente para onde olhava.

— Quem é? – perguntou Hary el, a Thom que estava ao seu lado.


— Você não conhece? – indagou o rapaz, espantado com a desinformação do amigo, e
observando a figura do homem.
— Não, deveria conhecer?
— Lucifer Krieg.
— Lucifer Krieg... – disse pausadamente Hary el. – O nome não me é estranho...

O olhar do detetive cruzou com o de Lucifer, eles se encaram por algum tempo, até que o
homem soltasse um sorriso irônico e levantasse, deixando uma rosa vermelha sob o túmulo.

— É um pintor famoso, está fazendo uma exposição por toda Europa, chegou há cerca de
um mês em Londres. – esclareceu Thomas. – Você não ouviu falar? A imprensa fez o maior
estardalhaço...
— Acho que ouvi. O que será que ele quer aqui?
— Como você quer que eu saiba? – riu o rapaz. – Acho que está visitando um parente, sei lá...
— Você não acha que ele está olhando demais para cá?
— O cemitério é um lugar público, está tendo um sepultamento, é normal... Você está muito
paranóico...
— É verdade...

Hary el passou um bom tempo fitando o homem antes que este abandonasse o local, alguma
coisa nele o impressionara, ainda não sabia bem o que era, ou por que estava intrigado, mas não
parecia uma sensação normal. A palavra medo lhe passou pela cabeça, mas como ele poderia
sentir medo de alguém que não conhecia, e na verdade, mal ouvira falar? Esse fato logo seria
esclarecido.

O padre acabava as ultimas preces em latim, acompanhadas da reza dos amigos de Paul e
alguns mais próximos do distrito, que compareciam em peso, honrando o convite do comissário.
Antes que Lucifer deixasse o cemitério, os olhos do velho o notaram ao longe. De início ele não
pôde acreditar no que vira, mas logo se convenceu. O detetive observou a expressão de espanto
nos olhos de Cheung Chizu,e ficara admirado pelo fato de o mestre, que constantemente exibia
tamanha indiferença, agora se abalar apenas por visualizar um indivíduo deixando um solo
fúnebre.

— O que foi? – questionou Hary el, notando a expressão do velho.


— Não sei... Sinto algo estranho naquela pessoa.

O homem abaixou devagar os óculos e sorriu, olhando dentro da alma do sábio, que o
reconheceu. Ele era um demônio.
Lucifer, numa ação repentina, cobriu novamente os olhos cinza e saiu pelo portão. O mestre
ficou observando-o, sentindo calafrios que o olhar lhe impusera, até que após algum tempo
recuperasse a tranqüilidade.
— O que foi? – perguntou Hary el, que não compreendera nada do ocorrido.
— Você ainda vai saber – respondeu o velho, virando vagarosamente o rosto e espirando
ruidosamente uma grande quantidade de ar.

Lucifer entrou em um carro negro, estacionado na calçada, ao lado do muro, e seguiu na


direção do centro. O detetive permaneceu olhando o sábio, tentando entender o que ele
entendera, mas era uma ação inútil.
— O que você viu? – questionou Hary el, deduzindo obviamente que o mestre tivera uma
visão.
— Um homem saindo do cemitério – disse o velho, solícito, mas dando as costas e indo até
um ponto mais próximo do túmulo, já era a hora de deixar as flores.
— Não... – comentou o detetive. –, não falo dessa visão...
— De que visão você fala então? – indagou o velho, ainda de costas.
— Falo da visão espiritual...
— Ah, essa! – sorriu o velho. – Com essa eu vi um homem saindo do cemitério.

Cheung Chizu jogou uma rosa branca no sepulcro, Hary el uma vermelha. Depois se
despediram e deixaram o lugar. O detetive não queria ver a cobertura de terra.
Antes de abandonar o cemitério, o velho lançou um olhar até a sepultura que o demônio
visitara, conseguiu ler o que estava escrito, mas não deixou que Hary el reparasse nela. O detetive
não poderia ver o que estava grafado, não agora. Teria que caminhar por si só. Ele também
decidiu não falar nada sobre Lucifer, as coisas teriam que vir a seu momento.
“Descanse em paz”, foi a última frase que disse naquele local.
O detetive deixou o mestre em casa, e foi direto à central. Mesmo a maioria dos policiais
estando em descanso ele ainda teria muito que fazer. Só trabalhando quando todos relaxavam
poderia descobrir o que ninguém ainda conseguira: A identidade do assassino
Thomas também voltaria para o prédio, haviam combinado de analisar alguns relatórios
juntos, e um tempo com a mente ocupada faria bem aos dois. Hary el tinha devolvido ainda pela
manhã o carro para seu amigo e estava novamente a pé, dependendo da boa vontade do trânsito
londrino.

— O que é isso? – perguntou o detetive a Thomas, já cansado de toda vez que alguém lhe
mostrava um papel ficar espantado.
— O relatório que me pediu... – justificou o rapaz, que ficou meio que paralisado com a
reação de Hary el. – Já que não quer... – disse ele, levando embora o documento.
— Dá isso aqui! – falou o detetive, arrancando o laudo das mãos do rapaz. – Você está
ficando muito palhaço...
— Pra você ver no que a convivência contigo me transformou...

Hary el ficou um tempo quieto, observando página a página os papéis.

— Pra que isso? – indagou Thom, questionando-se sobre o motivo do trabalho que tivera.
— Queria informações detalhadas sobre a mina na casa do Gonzáles.
— Isso eu já sabia, mas o que “especificamente”?
— Pólvora...
— Eu já imaginava, não se acha em qualquer lugar...
— Na verdade se acha sim... É outra coisa. Eu imaginei que ele não deixaria rastros, embora
compra de pólvora seja algo relativamente comum ele conseguiria outro método pra obtê-la...
— O que quer dizer?
— Que ele fez boa parte de pólvora assim como os equipamentos.
— Como fez?
— No relatório consta que não é pólvora comum, é uma mistura da tradicional com uma
espécie caseira.
— E o que ele usou para fazê-la?
— Adubo pra coqueiro...
— O quê?
— É verdade, duas partes de carvão, uma de enxofre e uma de nitrato de potássio, mais
conhecido como adubo...
— É isso que diz aí?
— Não, mas eu deduzi pelas informações.
— Deduziu? Cara às vezes você me dá medo...
— Pra você ver o que insônia e Discovery Channel fazem com uma pessoa...

O detetive virou mais algumas páginas e disse:

— Quero que você faça uma lista de compras desses materiais que eu vou indicar e depois
verifique em todas as lojas possíveis de produtos agrícolas.
— Tem mais coisa que o adubo?

Hary el sorriu:

— Você não sabe o que fertilizante, algodão e óleo diesel podem fazer...
Antes de sair Thomas fez mais uma pergunta:
— Se esse cara fez uma pólvora caseira para cobrir rastros, por que ele deixaria algum em
uma loja de fertilizantes?
— Não sei, é sempre bom investigar. Pelo menos ficaremos sabendo com que tipo de
inteligência estamos lidando...
— É só isso?
— Não, eu também estou precisando saber o preço do adubo, minha samambaia tá quase
virando um cacto...

Naquele dia a imprensa envolveu-se mais que os demais no caso do Artífice, deram durante
toda a tarde informativos sobre o enterro de Paul, embora não o tenham filmado, a pedido da
família. Algumas manchetes e reportagens tratavam também das ultimas mortes e do fim que
levaram os cadáveres e a situação dos familiares. Essas ações só serviam para aumentar ainda
mais o temor da população e o sentimento de indignação quanto o trabalho da polícia, que do seu
lado, empenhava-se com mais da metade dos departamentos na busca ao maníaco. Ninguém
sabia ao certo como a informação da morte do parceiro de Hary el veio à tona, certamente não
da polícia, pois esta já estava atarefada demais contendo as reações às mortes habituais. A fama
de Hary el também crescera, aliás, aquele foi o dia em que mais vezes suas imagens apareceram
na tv, nem mesmo o caso das Esmeraldas do Dr. Porter, no ano passado, tivera tamanha
repercussão.
O assédio dos jornalistas ficou ainda mais claro, no final do dia, quando a garoa começou a
cair fina nas ruas. Hary el deixava a central em busca de um ônibus quando uma enxurrada de
repórteres o barrou. Decerto ficaram o dia todo à espreita, na frente do distrito, enviando
imagens ao vivo pra todo o país. Levou muito tempo nas entrevistas, já que não conseguiu se
desvencilhar, sendo obrigado a responder algumas perguntas a respeito de Adam Johnson, que
também estava investigando. Como sempre, a imprensa tentava forçá-lo a dizer algo que o
comprometesse perante Johnson, fato que serviria de estopim para furos como: “Briga interna
entre agentes prejudica caçada a assassino”. Mesmo detestando Adam, o detetive conteve-se
para responder o mais gentilmente possível, sua fama de avesso às câmeras já era por demais
forte. Era oito da noite quando ele finalmente conseguiu se livrar dos flashes, sob a promessa
pressionada de uma entrevista coletiva em outro dia. Claro, não foi estabelecida uma data, pois o
comissário poderia não concordar e, na verdade, o próprio Hary el não gostava nem um pouco da
idéia.

Depois de enfiar-se às pressas em um táxi conseguiu chegar em meia-hora no seu


apartamento.
“Se eu continuar a gastar toda essa grana com táxi no final do mês não vai sobrar nem pra pão
e água...” , pensou. O detetive subiu as escadas e abriu a porta, lá fora as gotas ainda estavam
finas. O velho estava sentado na frente da televisão, comendo uma espécie estranha de pipoca e
vidrado em um programa estilo “Mundo Animal”.

— O que está fazendo? – perguntou Hary el, achando graça da situação.


— Assistindo esse programa. Tv a cabo é a melhor coisa do Ocidente... – riu o velho.
— Pensei que budistas não tivessem apego... – comentou o detetive.
— Televisão é distração... Vi uma reportagem sua hoje: “O departamento está se esforçando
o máximo possível, a população não deve se alarmar...”
— Você não acha que goza demais da minha cara pra quem pretende me ensinar alguma
coisa?
— Primeiro você precisa aprender a não ser bobo...

O detetive sentou-se no sofá, pois sua poltrona favorita estava em baixo de um mestre do
Ch’an. O programa que estava passando era da Discovery, e até que era bastante interessante.
Hary el chegou bem na cena em que uma raposa corria acirradamente atrás de um coelho na
neve. O animal tentava despistar a raposa, pulando entre as folhagens, mas seus esforços, ao que
parecia, não obtinham sucesso. Ele ajeitou-se no sofá e acabou se distraindo, a perseguição era
de certa forma emocionante. Eles ficaram alguns minutos observando, o coelho saltava entre as
folhas congeladas e a raposa em seu encalço. Algumas vezes eles se enfiavam totalmente na
neve e a câmera não conseguia captá-los. A certa altura, Cheung Chizu olhou para o
companheiro de entretenimento e disse:

— Uma fábula antiga diz que o coelho vence...


— Não acredito – disse Hary el enquanto fixava atentamente os olhos na cena e pegava um
pouco daquela espécie estranha de pipoca.
— Por quê? – questionou o mestre
— A raposa é mais rápida... – respondeu sem desviar o olhar dos animais.
— Mas o coelho vai enganá-la... – informou o velho, comendo uma pipoca.
— Por quê? – perguntou Hary el intrigado

O sábio olhou fixamente para o detetive e disse:

— “Por que a raposa corre pelo almoço, o coelho pela vida.”


Hary el levantou-se e foi para a cozinha. O apartamento do detetive era bastante amplo, quase
sem paredes e com aposentos grandes, apenas um mini-bar servia de divisória da sala para a
copa, e no mesmo não havia mais do que alguns licores e taças para as visitas e umas poucas
latas de refrigerante. Em cima do fogão repousava uma chaleira com um chá quente que
provavelmente o mestre acabara de fazer. Era tudo que ele queria, passaria a noite inteira
verificando a papelada que os legistas haviam enviado, pelo menos beberia um bom chá. Ele
colocou o líquido na xícara e sentou-se na mesinha da sala para começar o trabalho. O chá
estava ótimo.
— Do que é? – perguntou o detetive, sentado na mesinha, desconhecendo o sabor da erva.
— Nem queira saber... – sorriu o velho, trocando de canal. A raposa tinha perdido.

Ele também estava preocupado com o que Paul estava investigando antes de sua morte, não
conseguia achar a resposta. Permaneceu boa parte da noite revirando os relatórios e refletindo
sobre tudo, no entanto a curiosidade quanto a que o ex-parceiro se ocupava não lhe saía da
cabeça.
— Parece que você acertou – falou o detetive, vendo o resultado do documentário.
— Acertar ou errar tanto faz. Verdade e mentira são ilusões – disse o velho.
— Você sempre com essas coisas sem sentido...
— E você sempre preocupado. No que está pensando?
— Achei que você também pudesse adivinhar...
— E posso, mas achei mais fácil perguntar. Os homens se preocupam demais.
— É porque têm muita coisa pra fazer... – explicou Hary el, sem tirar os olhos dos papéis. –
Não ficam sem fazer nada, só rezando como certos mestres por aí...
— Exatamente, por isso passam a vida inteira estressados e morrem antes dos quarenta. O
sábio nada faz, por isso ele consegue fazer perfeitamente, ele fica parado, não-agindo e deixando
o Tao executar por ele. O sábio pode falhar, mas o Tao nunca falha.
— O que é o “Tao” afinal?
— Só posso dizer o que ele não é. O que ele é sinônimo de nada.
— É realmente... Você é doido.
— Sabe qual é a dificuldade das pessoas e seus problemas? Pensam demais neles e
procuram as soluções nos lugares errados. A solução de um problema só pode estar em um
lugar: Onde está o problema.

O detetive teve um lampejo, uma idéia, por um instante tudo estava claro.
— O que você disse? – perguntou ele ao sábio.
— Que se o problema está em você, a solução também...
— Não, não foi isso que você disse, repita... – falou ele, levantando da mesa.
— Que a solução está sempre onde está o problema...
— Isso! – gritou feliz o detetive, dando um beijo no rosto do sábio e pegando sua capa de
chuva.
— Aonde você vai?
— Resolver o meu problema – gritou ele saindo pela porta e descendo velozmente as
escadas.
Hary el ficou alguns minutos frente ao cordão de isolamento que restringia a porta marrom
escura de um apartamento. Visualizava atentamente as marcas na fechadura, provavelmente
fruto do arrombamento dos policiais dias antes. Há muito não visitara aquele local, e agora para
fazê-lo precisaria de um mandato, mas ele não podia esperar. Deixou os olhos sobre o contraste
do amarelo da faixa com o marrom da madeira por um longo tempo, até que decidisse
finalmente entrar. Ele afastou-se um pouco se preparando para arrombá-la novamente, mas
antes se lembrou que poderia estar aberta. Dito e feito, ao colocar a mão na maçaneta percebeu
que a entrada estava apenas encostada. Abriu vagarosamente a porta, provocando um rangido
alto e contínuo. O apartamento de Paul estava quase como sempre.
Havia algumas almofadas e revistas jogadas pela sala e umas poucas calças em cima do sofá,
uma desarrumação completa digna de um solteiro. Na mesinha ao lado de uma poltrona
permanecia um cinzeiro, denunciando que o parceiro mesmo sob todas as advertências não
parara de fumar. Certo ele, de que adiantaria privá-lo daquele prazer se não poderia aproveitar a
vida de qualquer maneira? O detetive andou quase uma hora pelo apartamento, olhando os
exemplares de algumas revistas no chão, umas informativas, com matérias interessantes, outras
em quais somente as figuras importavam. Ele lembrou muita coisa aquele dia: A primeira vez
que vira Paul, o primeiro caso que investigaram juntos, algumas saídas para noitadas e até a
primeira vez que tivera que ligar pra mulher dele, dizendo que o pobre “tivera um problema
intestinal e não voltaria para casa aquele dia”, tudo balela, saíram juntos e o parceiro bebera
tanto que nem um barril de carvalho conteria tal quantidade de whisky. Ah, como Paul gostava
de whisky ! E ele detestava, argumentava que não tinha gosto de nada, mas o parceiro
permanecia firme em suas raízes escocesas. Em cima da mesinha, embaixo de umas poucas
camisas, havia o que Hary el viera procurar: As matérias que Paul investigara. Ele tinha quase
certeza, como uma coisa extremamente intuitiva, que aquilo lhe revelaria alguma coisa, talvez
por isso hesitara um pouco antes de seguir para a mesa. No entanto num impulso repentino,
afastou as roupas de cima dos jornais e começou a examinar as anotações do parceiro. Lá
ficavam umas tantas folhas rabiscadas com desenhos estúpidos, como círculos, luas, triângulos e
quadrados, provavelmente obras de um descarregamento de tensão. Nos jornais, matérias de
várias épocas e até de anos bem anteriores. Em uma delas, datada de alguns meses, havia uma
reportagem sobre a loja de bebidas de Gabriel Collins. Ela era de cerca de dez meses antes do
assassinato, no título o nome do Collins aparecia como um micro-empresário inovador, e a parte
“Gabriel” estava circulada com uma caneta vermelha, anotação de Paul. Em outros jornais
encontrou matérias sobre outras vítimas, como o aumento do preço das ações das corporações
Medison, empresa presidida por Metatron Morrison, todas datadas de alguns meses, no máximo
de um ano, com partes dos nomes circulados. Hary el não demorou muito tempo para entender.
Paul havia encontrado a ligação das vítimas.
Às dez da noite daquele dia, na frente do clube, o demônio esperava sob a chuva a última
pessoa sair. Ele sabia que a moça ficaria lá até tarde e já havia preparado no outro dia tudo que
necessitava para que o plano saísse perfeito. Ele trajava um terno negro, coberto por uma capa
de mesma cor, que lhe dava um certo ar de requinte. Como da outra vez ele aguardou até que
ficassem apenas os empregados e a moça, depois se dirigiu até a porta de entrada, do lado oposto
a guarita, por onde entrara na outra noite. Como já era previsto o segurança não o barrou,
provavelmente pela sua boa aparência. Ele penetrou devagar pelos corredores onde os garçons
já recolhiam as taças de cima das mesas e o barman fechava a portinhola de madeira onde
ficavam as bebidas. Na mesa de sinuca, para espanto do homem, ainda duas pessoas jogavam
com vigor, mas felizmente não prestaram atenção na sua presença. Caminhou lentamente pelos
corredores, extremamente belos, observando o teto magistral do início do século, até alcançar a
área dos vestiários, onde ficava a sauna.
Como esperava, a moça estava lá, tinha acabado de entrar. Ela passava boa parte das tardes no
clube, jogando, bebendo um pouco e se divertindo, mas sempre antes de deixar o local relaxava
naquele lugar. O homem entrou a passos curtos, sem ser notado, e andou em direção à moça, ela
estava somente de toalha, deitada sobre a madeira da sala. Devia possuir uns vinte e seis, vinte e
cinco anos, talvez menos. Ele aproximou-se devagar, ela estava de olhos fechados, não podia
notá-lo. Ele retirou a capa e deixou-a do lado de fora, abrindo a porta lentamente e entrando na
sauna, a moça quieta, estava completamente distraída.

— Olá – disse o homem, assustando a moça, que saltou da posição em que estava com
taquicardia.
— Quem é você? – gritou a mulher, afobada, recuperando-se do susto.
— Desculpe, não pretendia assustá-la... – disse o estranho.
— Certo... Mas quem é você? Achei que não tinha mais ninguém nesse horário...
— Eu não sou ninguém...
— Você está me assustando, entrando de terno na sauna e ainda sorrateiramente. Não
parece que trabalha aqui...
— E não trabalho.
— Então você é sócio do clube? Nunca te vi por aqui...
— Talvez porque eu nunca estivesse.

O demônio suava muito, detestava o calor.

— O que quer a essa hora da noite aqui? – perguntou a moça, enxugando o rosto e os longos
cabelos molhados.
— Você – disse o demônio, olhando nos olhos da mulher.
— Desculpe – disse ela espantada. –, não estou interessada...
— Não – riu o homem. – Você não entendeu, eu quero a sua alma.

A mulher começara a compreender.


— Olha, seja o que for – disse ela. –, acho que não é o momento para conversarmos...
— Pelo contrário é o momento certo... – falou ele, olhando novamente nos olhos, ela sentiu
muito medo. O olhar era com se a invadisse, como uma lança afiada que buscava o mais fundo
no seu coração.
— Olha, eu vou gritar...
— Ninguém vai te ouvir – sorriu o demônio.
Ele levantou-se e foi na direção da mulher, esta gritou aterrorizada, num tom tão alto que até
paralisou um pouco o homem.
— Cale-se, você vai morrer. Pelo menos morra calada! – disse ele.
Ela começou a tremer, mesmo no calor, um medo profundo tomou conta de seu interior. O
assassino permanecia tranqüilo, talvez fosse esta naturalidade que dava mais pânico a moça. Ele
continuou caminhando em sua direção, passo a passo, como a morte. A mulher pensou em
reagir, mesmo ele sendo muito maior do que ela, mas o olhar a paralisara, sentia-se como um
rato entorpecido ante o olhar hipnótico da naja. Não entendia direito o que estava acontecendo,
tudo tinha sido muito rápido, será que ele realmente tinha a intenção de matá-la?
— Quem é você? – gaguejou ela, entendendo a gravidade da situação.
— Eu sou uma alucinação – disse o homem.
— Como entrou no clube?
— Pela sua mente.
A mulher não parava de fazer perguntas, e o estranho as respondia, sempre curta e
confusamente. Na certa ele era louco, ela precisava fugir. A moça olhava para a porta
procurando uma chance de deixar a sauna.
— Você ainda acha que vai escapar, não é? – indagou ironicamente o demônio. – Você não
pode contra mim, não pode escapar da força das coisas
— O que você está dizendo? O que quer?
— Insiste em não aceitar? Eu quero a sua alma.
— Me deixe em paz!
Ele não parecia armado, mas colocava um temor profundo no coração da vítima. O homem
parou no meio do percurso até a moça, e recitou uma espécie de Poema:
— O Tao luminoso parece obscuro.
“Avançar é como recuar.
“O estrangeiro parece familiar.
“Elevação parece rebaixamento.
“A virtude suprema parece vazia.
“A maior pureza parece infâmia.
“A generosidade parece avareza.
“A virtude mais sólida parece perversidade.
“A integridade parece desonestidade.
“A virtude perfeita parece imperfeita.

“Grande quadrado sem ângulos.


“Grande vaso inacabado.
“Grande melodia silenciosa.
“Grande imagem sem contorno.

“O Tao está oculto e não tem nome.


“No entanto, sua Virtude tudo sustenta e realiza.”

— Qual é o seu problema?! – gritou a moça, chorando.


— Meu? O problema é seu. Falta-te inspiração. Não chore, já vai acabar.

O homem virou-se de costas para a mulher e saiu da sauna, fechando a porta. Ela pôde ver
pelo quadrado de vidro um pouco embaçado, que ficava na parte de cima da porta, a figura
seguir até a caixa de luz. A moça correu para abrir a entrada, mas como intuía estava trancada.
Como poderia estar trancada se a porta não tinha trancas? A mulher bateu na porta com todas as
forças, bateu por muito tempo, ela podia ver a figura do outro lado, olhando-a, mas não distinguia
a sua face. Será que ele queria só amedrontá-la?
— Abra a porta! – gritou a moça.
— Não – riu o vulto embaçado, era tudo que ela via dele.
— Me solta, me deixa sair!
— Logo sairás. Tu és como uma garrafa de água salgada jogada no mar, logo arrancarei a
rolha.
— Me solta!
— Quer que eu te solte? – gargalhou o vulto. – Vou te contar uma história, depois verei o que
fazer. Preste atenção:
“Uma vez um homem viajara pelo campo a caminho de casa. Peregrinara já há algum
tempo, quando de repente deparou-se com um tigre. Sem pensar e com muito medo ele correu,
e o tigre em seu encalço. O animal era muito rápido e ele não podia despistá-lo. Aproximando-se
de um precipício, tomou em suas mãos as raízes de uma vinha selvagem que estava exposta à
beira do penhasco, se segurou e dependurou-se precipitadamente abaixo do abismo, o medo o
dominava e fazia tudo sem pensar. Quando deu por si, o tigre farejava acima, e tremendo, o
homem olhou para baixo e viu no fundo do desfiladeiro, outro tigre a espreitá-lo. Apenas a vinha
o sustinha. Olhou para os animais. Estes pareciam famintos e o esperariam até quando fosse. Mas
ao olhar para a planta viu, dois ratos, um negro e outro branco roendo aos poucos sua raiz. Foi
quando seus olhos perceberam um lindo e apetitoso morango vicejando perto, nunca havia visto
fruta mais suculenta. Segurando-se então na vinha com uma mão, ergueu a outra, apanhou o
morango, e levando-o a boca o comeu. “Que delícia!, disse ele”

A mulher não entendera a parábola, mas tentando mostrar que estava atenta, perguntou:
— Mas, e os tigres?
— Esqueça os tigres, coma o morango!

O homem colocou as mãos sobre uma espécie de chave na caixa de força, a moça não
conseguiu ver muito bem, pois o lado de fora estava cada vez menos nítido.
— Quando nos fechamos em um lugar, tudo que está fora no começo não nos parece claro –
disse o homem, notando a aflição da mulher e fixando seus olhos cinza na sua imagem. – Vou te
fazer uma pergunta, se acertar te deixo viver.
Uma expressão de felicidade brotou no rosto da moça, havia uma esperança.
— Há muito tempo – disse ele –, um homem colocou um ganso no interior de uma garrafa.
O animal cresceu tanto, que de lá não pode mais sair. Como poderá o homem retirá-lo da
garrafa sem quebrá-la e nem ferir o animal?
Ela pensou muito, pensou com muita aflição e como nunca antes pensara na vida, mas não
encontrou a resposta. Uma angustia profunda tomou seu coração, apertando e apertando,
comprimindo-o e o deixando cada vez menor, com uma dor inigualável. Nunca doera tanto dizer
uma simples frase, e ela expiava aquela dor, suportando-a asfixiada, como num purgatório. Num
esforço torturante ela balbuciou:
— Não sei.
O assassino sorriu, abaixando a tal chave que segurava. A mulher entrou em pânico, mas já
sentira tamanho medo que o estado que ela exprimia assemelhava-se a uma aceitação, ela
gritava e batia na porta, mas sua face já perdera a esperança. Um gás estranho começou a
permear o ambiente da sauna, enchendo cada espaço vazio e infiltrando-se nos pulmões da
mulher. Saía de uma espécie de cano no canto do aposento, ela pensou em tentar tapá-lo ou
destruí-lo, mas estava quase sem forças, como se dopada estivesse. Só lhe restava gritar, gritar o
mais alto possível, talvez alguém a socorresse. Ela ficava cada vez mais tonta, debatendo-se
contra a saída, mas esta não cedia, machucando seus punhos e cotovelos a cada golpe. O homem
a olhava, com uma indiferença assustadora a nuvem subir e as mãos da moça cheias de sangue,
ela o temia. Por um segundo pensou em parar de lutar contra a porta, era mais seguro lá dentro,
longe do demônio. O gás cobriu toda a atmosfera, já era impossível respirar. O vidro embaçava
cada vez mais, e aos pouco ela perdia a consciência. Em um momento ela não podia mais ver o
que estava lá fora, não havia mais ar. Ela tentou respirar, tentou sugar alguma coisa, mas tudo
que entrava pela sua traquéia era o gás. Atirou-se no chão moribunda, contorcendo-se
bruscamente como louca, desejando oxigênio mais que qualquer coisa no mundo. Aspirava
como uma neurótica, sugando e sugando, numa agonia sem fim, mas não era saciada.
Assim que a mulher parou de se mexer, o demônio virou as costas e deixou o lugar.
Como assim encontrou? – disse Thomas, espantado, abaixando-se na escrivaninha do detetive
para ver melhor o jornal.
— Está aqui – falou risonho Hary el, explicando a correlação que Paul encontrara e
apontando constantemente com a caneta. –, nestes círculos: “Gabriel” Collins, “Metatron”
Morrison, “Miguel” Gonzáles. Todos contêm nomes de anjo e apareceram nos jornais nos
últimos doze meses!
— Ta certo, eu entendi. Realmente faz sentido, mas e o Arnold?
— J. M. Arnold? Foi o primeiro assassinato, ele aparece aqui nessa reportagem do ano
passado. O assassino segue a ordem das datas.
— E o nome?
— Sabe qual era o primeiro nome dele?
— Sei lá... John?
— Jeliel. Royal Straight Flush! Hary el Kitten ganha o jogo...
— Então agora você conhece a seqüência lógica. Dá pra saber quem é o grupo de risco?
— Mais que isso... Paul deixou anotados os prováveis próximos a serem assassinados. Não sei
direito que sistema ele usou, mas deve ter eliminado os nomes repetidos, ou coisa do gênero.
Sobram ainda três “anjos”: Lauviah Giane, uma mulher de vinte e quatro anos que aparece
constantemente na coluna social, a primeira vez foi há quatro meses...
— Sei quem é – disse Thomas, interrompendo. – O pai dela tem várias adegas de vinho por
toda cidade, a família é bem famosa e a moça é uma gata... E o nome de anjo?
— “Lauviah” é um anjo.
— O Collins também não mexia com bebidas?
— Sim, mas os outros não. Não estabelece tendência. Continuando... tem também esse cara
aqui – apontou Hary el no jornal.
— “Samuel” Watson... Quem é?
— Um micro-empresário, tem uma imobiliária. Parece que recebeu alguns protestos de
clientes insatisfeitos. Sabe como o povo adora escândalos...
— Parece que ele corre um perigo maior do que a desmoralização da empresa... O que
pretende fazer?
— Avisá-los e ficar de guarda. Quando o assassino tentar dar o bote, nós o pegamos.
— Acha que vai dar certo? – perguntou o rapaz, ansioso por um sim.
— Se não achasse não tentaria – disse o detetive, colocando os pés sobre a mesinha.
— E o terceiro?
— Você vai cair de costas – preveniu Hary el, mostrando a página um de um jornal ao rapaz.
— Lucifer Krieg? – indagou Thomas, levando um choque. – Não pode ser...
— É o que consta nas anotações de Paul. Bom, talvez o assassino não o considere um anjo...

Nesse momento um homem adentrou pela porta da central, o detetive imediatamente virou
uma pasta por cima dos jornais, ocultando-os. O homem era Adam Johnson, que logo caminhou
até os dois.

— Boa tarde! – disse Johnson, cumprimentando os detetives.


— Boa tarde – responderam uníssonos.

Hary el estranhou a presença do colega de profissão àquela hora, o almoço mal havia
terminado. Adam parecia meio apressado, como se tivesse deixado o carro ligado do lado de
fora, lançava alguns olhares sobre a pasta, como se desconfiasse de algo.
— O que está fazendo aqui? – perguntou o detetive, olhando para Johnson.
— Estava passando, vim acompanhá-lo até o assassinato.
— Assassinato?
— Ele matou outro, ontem à noite. Encontraram o cadáver agora há pouco, quando abriram
as portas de um clube no Mary lebone. Uma mulher.
— Lauviah Giane... – pronunciou o detetive.
— Como sabe!? – questionou extremamente espantado Johnson.
Thomas olhou para o amigo, numa mistura de alegria por ele realmente estar certo, e pesar
pela morte de mais uma vítima.
— Chutei – exclamou o detetive, levantando-se e colocando o sobretudo. A tarde estava
muito fria.
— Ah, claro... – sorriu Johnson, acendendo um cigarro.
— Você não vai fumando esse troço, não é?
— Eu paro se você me disser quem te avisou do crime.
— Foi o Paul – disse sorrindo Hary el, saindo pela porta da central e descendo as escadas,
deixando Adam e o rapaz para trás.

— Ele está doido? – perguntou Johnson, dirigindo-se a Thomas.


— O pior é que não – respondeu o rapaz.
— Mesmo assim ele vai ter que agüentar o cheiro da nicotina – disse ele, seguindo em busca
do detetive.

Em meia hora estacionaram o carro de fronte ao clube. Por sorte dessa vez não havia um
único jornalista no local, a polícia cuidara para que a chegada dos investigadores e peritos se
desse o mais discretamente possível, sem alarde, ou cordões de isolamento do lado de fora, não
agüentavam mais a pressão da mídia. Hary el ficou sabendo por Adam que a discrição fora
também pedida pela presidência do clube, a diretoria não enaltecia nem um pouco a idéia de um
escândalo envolvendo suas dependências, o que arranharia, e muito, a imagem da associação.
Claro, tendo em vista o local do ocorrido e a situação atual da imprensa, era quase certo que uma
simples nota sobre o assunto daria estopim a um escarcéu de questões sensacionalistas, de uma
onda tal, que provavelmente atingiria cada um dos ilustres membros da alta sociedade que
freqüentavam assiduamente a cena do crime. Óbvio é que, nenhum deles se sentiria muito bem
de dar o ar da graça nas telas de tv por conseqüência de um fato desses. Motivo à parte, ficou
decidido entre os funcionários uma espécie de lei de sigilo, que por enquanto também era válida
aos não-civis temerosos dos repórteres.
Thom não acompanhara os detetives, além do caso não estar sob sua responsabilidade ele teria
algumas centenas de coisas para fazer aquele dia. Segundo Johnson, o corpo fora descoberto às
quatorze horas, por um funcionário que seguia para ala das piscinas, Adam falara um bom tempo
no celular com esse homem, fazendo um semi-interrogatório.

— É por aqui – indicou Johnson, fechando a porta do carro e seguindo pela lateral do lugar.
— O que o funcionário te disse? – indagou Hary el, acompanhando Adam.
Nada que eu já não soubesse. Teremos tempo para o interrogatório mais tarde. Mas é melhor
nos apressarmos, os legistas vão chegar em alguns minutos e vai ficar mais difícil inspecionar o
lugar.
— Quem já está aí?
— Alguns homens meus, uns poucos policiais e dois inspetores da sede da New Scotland
Yard
— Quem os avisou?
— E precisa alguém avisar? – questionou Johnson, apagando o cigarro que já incomodara
muito o detetive, e adentrando a associação. Havia um homem na porta controlando a entrada,
provavelmente trabalhava no clube.
— Desculpe – disse ele. – Estamos fechados...
— Adam Johnson, casos especiais – disse Johnson, mostrando o distintivo.

O homem abriu passagem e um segundo que estava observando de dentro a chegada dos
detetives guiou-os até a cena do crime. Hary el logo notou que era o funcionário com que Adam
falara ao telefone.

— Foi aqui – esclareceu o funcionário, apontando a porta da sauna. O detetive percebeu que
Johnson estava enganado, já havia dois legistas no local, demarcando a área do corpo com giz.
— Tem idéia de quem tenha sido? – perguntou Hary el, observando os peritos.
— Não – respondeu o homem. – É estranho, ninguém que freqüenta esse clube seria capaz
disso...
— Nada de anormal...? – tentou outra vez o detetive.
— Não... A moça costumava sempre tomar sauna no início da noite. Antigamente quando as
piscinas ainda estavam em funcionamento ela passava boa parte do tempo por aqui.
— Você a conhecia bem?
— Só de vista – disse o funcionário. – Abria o portão pra ela de vez em quando, dava boa
noite, essa coisas, mas nunca conversamos.
— Sabe de alguma discussão dela com alguém?
— Não, nada. Já disse que não a conhecia... – falou ele meio nervoso com as perguntas.
— Se foi mesmo o nosso Serial Killer, não há motivo pra você fazer perguntas de ordem
pessoal – cochichou Adam, bem baixo para o detetive.
— Pessoas preocupadas em não serem incriminadas logo arranjam alguém para culpar –
respondeu ele no mesmo tom. – Aí se lembram melhor dos fatos. Se ele continuar pensando do
jeito que está logo vai indicar algum suspeito real.

— Era costume então ela utilizar a sauna... Quem sabia disso? – perguntou Hary el.
— Quase todos que trabalham aqui no período noturno. Os sócios também... – respondeu o
funcionário.
— O que aconteceu com as piscinas?
— Um problema elétrico, mas já foi resolvido.
O detetive foi até a caixa de força e observou algumas coisas. A rede havia sido alterada,
dando funcionamento a um aparelho na sauna, o que expelia o gás.
— Alguém estranho freqüentou essa ala, ou o clube nos últimos dias?
— Agora que você disse... – falou o homem. – O técnico que consertou o problema da fiação
anteontem andou mexendo aqui.
— Nessa caixa?
— É, eu até achei estranho... A caixa da piscina é a outra, mas ele me disse que essa
também estava com problemas.
— Quanto tempo ele passou aqui?
— Um pouco mais de uma hora...
— Você estava observando?
— Não, eu também tinha que cuidar da portaria...

Hary el pegou a descrição do técnico detalhadamente, depois encaminhou o homem ao


departamento criminal para fazer o retrato falado. Não adiantou muito, o funcionário não
recordava muito bem da face do suspeito, na verdade lembrava-se de uma forma extremamente
vaga. Ele conseguiu também o nome da empresa que ficara responsável pelo conserto, mas lá,
como ele já supunha, ninguém sabia nada a respeito e ainda não haviam enviado nenhum
empregado para resolver o problema. As pistas ficavam cada vez mais etéreas, nem mesmo a
relação de nomes dos funcionários e sócios apresentou algo relevante. O detetive ainda tinha uma
esperança de encontrar impressões, restos de pele e coisas do gênero, mas nenhum vestígio do
assassino apareceu. Até o funcionamento do aparelho que levou a mulher à morte era estanho, o
equipamento era bem complexo para ser instalado em apenas uma hora. E ainda mais uma
questão o abatia: Como ele fora acionado? Certamente de forma manual, pelo que indicava, mas
ninguém se lembrava de nada de diferente, ou uma pessoa anormal na noite do crime. Johnson
mandara parte de seus agentes interrogar todos os que estavam presentes na noite, e conseguiu
um relatório inicial extremamente completo, com várias folhas de dados sobre o dia em que tudo
acontecera, no entanto, nada que relatasse um possível assassino ou alguma pista do mesmo.
Assim se passaram dois dias, dias extremamente corridos, nos quais a força policial se esforçou
acirradamente para conter as informações do crime de modo que elas não vazassem. A falta de
pistas chegou a tal ponto, que ele desistiu de procurar indícios no clube. Restava ainda um
caminho: A lista de Paul. Ele tinha que avisar os próximos a serem mortos do perigo que eles
corriam. Acompanhado de Thom, Hary el discou durante os dois dias para Samuel Watson e
Lucifer Krieg, mas nenhum deles atendia ao telefone, provavelmente estavam muito ocupados.
Na imobiliária de Watson as informações que recebia eram sempre que o mesmo havia saído
pra uma reunião em outras filiais , já na casa de Krieg, a secretária eletrônica já não guardava
mais recado algum, tal a quantidade de mensagens que ele recebera.

— Talvez ele não esteja dormindo lá – disse Thomas, referindo-se a Lucifer. – Com essa
série de exposições o mais provável é que ele passe as noites no ateliê.
— Ateliê? – perguntou o detetive.
— É, um galpão, onde foi feita boa parte das mostras dos quadros. Ele fica várias horas lá,
talvez até durma.
— Onde fica?
— É perto daqui, fui lá mês passado com uma amiga. São obras impressionantes.
— Não gosto muito de arte-moderna... Que horas são?
— Quinze para as seis – informou Thomas, olhando no relógio.
— Está quase anoitecendo, será que ele está lá nesse horário?
— Provavelmente, daqui a duas horas vai haver uma nova exposição. Quer uma carona?
— Você está de carro?
— Meu pai está de viagem, está ficando uns dias por aqui...
— Fizeram as pazes?
— Sempre fazemos... O clima lá em casa tá ótimo, calmo, fora é claro os vizinhos gritando
quinze pra meia noite...
— Verdade?
— É sério. E aí, vai querer a carona?
— E o seu serão?
— Você não devia acreditar em tudo que eu digo. Eu também quero te acompanhar, quanto
mais ajuda melhor, não?
— Quase sempre é assim – disse o detetive.
O galpão em que ocorria a exposição estava lotado, muitas luzes brancas iluminavam o lado
de dentro e diversas pessoas passeavam pela enorme porta de entrada, algumas até faziam fila
para a entrega do convite. A maioria das obras, pelo que os dois podiam ver do lado de fora,
ainda estava coberta com panos brancos. Não eram só pinturas, mas também algumas
esculturas, provavelmente de arte-contemporânea. Garçons passavam com bandejas,
preparando o bufê que aconteceria na abertura ao público. Hary el ficou espantado com
tremenda pompa, era um dia especial daquela mostra, grandes personalidades da Inglaterra
compareciam em peso, para o que, segundo Thomas, era o último dia de exibição na Grã-
Bretanha. As revistas haviam espalhado notícias que Lucifer deixaria Londres ainda naquela
semana, isso tranqüilizou um pouco o detetive, já que o assassino teria menos tempo para
planejar a morte de Krieg, no entanto, por outro lado, ele teria que se apressar para proteger o
pintor.
Nenhum dos detetives trazia convite, fato que dificultou e muito a entrada no galpão, mas logo
após a mostra das credenciais conseguiram acesso rápido. Alguns figurões da alta sociedade
londrina, que estavam impacientes na fila, xingaram um pouco os seguranças que controlavam a
entrada, pelo fato deles permitirem a passagem dos dois na frente dos que já estavam há alguns
minutos aguardando. Certamente que Hary el e seu amigo teriam muito tempo para falar com
Lucifer, pois embora ele provavelmente se mantivesse atarefado com a organização do evento,
era um momento extremamente propício, pois faltava ainda uma hora e meia pra abertura das
obras.
Um dos homens que atendia na parte de dentro do galpão, e que constantemente dava algumas
ordens aos seguranças, atendeu o detetive. Ele hesitou um pouco na decisão de importunar Krieg,
mas por pressão de Thomas deixou a entrada com a promessa de que iria avisar o artista. Hary el
e Thom ficaram do lado de dentro, próximo às obras, observando, meio que discretamente, as
que estavam sem cobertura.
— Bonitas, não? – perguntou o rapaz, apontando para uma escultura branca, abstrata,
entalhada em um material brilhante, como uma cerâmica. Era uma peça extremamente bela,
formada de cruzamentos e do enroscar da própria peça nela mesma.
— Confusa, mas bonita... – respondeu o detetive.
— Deve valer umas seis mil libras...

— Quinze mil... – disse uma voz estranha e suave, atrás dos dois
— Como sabe? – indagou Thomas, sem olhar para trás.
— É quanto eu cobro por ela...
Thomas virou rapidamente seu olhar para as costas, uma figura estranha, de negro, estava
atrás dele, em pé, com um sorriso obscuro na face. Era um homem alto, de porte refinado.
Estava trajando um sobretudo escuro, extremamente comprido, como uma capa, que descia
numa vestimenta perfeita até os calcanhares. A figura olhou nos olhos do rapaz, e ele logo o
reconheceu: Era Lucifer Krieg.

— Boa noite... – disse o artista, estendendo a mão a Hary el, que acabara de virar e estava
meio paralisado com a aproximação sorrateira de Lucifer. O homem inclinou um pouco a
cabeça na diagonal, para baixo, como numa saudação, numa tentativa de desentorpecer o
detetive.
Hary el também balançou a cabeça, e apertou a mão de Krieg.
— Boa noite – disse o detetive. – Sou Hary el Kitten, esse é Thomas Gates do departamento
criminal...
— Sei quem o senhor é... Nos vimos no cemitério, há três dias.
— Realmente... – confirmou Hary el. – O que o senhor fazia lá? – disse ele, atropelando.
— Resolvia alguns assuntos particulares. Mas creio que isso não é relevante. Por que me
procurou? – interrompeu Lucifer, cortando, parecia com pressa, mas ao mesmo tempo,
estranhamente calmo.
— É sobre o caso do Artífice...
— Artífice... – pronunciou, sílaba a sílaba. – Ah, o caso das armadilhas. Não entendo como
posso ajudá-los...
— Na verdade é quanto à busca...
— Acho que compreendo... Li que ele também é um artista, vocês querem alguém que os
ajude a entender o modo com que ele age? Bom, se for isso – disse Krieg, pacientemente –,
perdem seu tempo comigo. Mente de artistas são sempre muito confusas...
— Não é isso. É algo mais sério – falou Hary el.
— Mais sério? Acompanhe-me... – pronunciou pausadamente Lucifer, guiando-os até uma
porta, em uma das divisórias brancas da parede do galpão. Logo que começaram a adentrar
notaram que no outro lado havia uma espécie de quarto-escritório, com móveis aparentemente
muito leves e modernos, dois sofás de veludo e ferro, e uma mesinha de madeira, na qual
repousavam algumas anotações. A iluminação era escassa, mas confortável, mantida somente
por duas lâmpadas amarelas, ao nível dos olhos, uma em cada canto do aposento. Os detetives
sentaram-se em um dos sofás e Lucifer no outro. – Explique-se melhor... – continuou o homem.
— Você está à par do caso?
— Não tanto quanto você, mas ando acompanhando as informações constantemente nos
jornais...
— Vou ser direto. O que ocorre é o seguinte: Há cerca de algumas semanas um homem
chamado Jeliel Arnold foi encontrado morto em seu escritório. Uma armadilha previamente
preparada no local disparou dezenas de flechas envenenadas sobre seu corpo, parte de uma
perna foi amputada com os impactos. Ele não morreu instantaneamente: agonizou durante
minutos no prédio vazio antes de perecer em um corredor... – Lucifer permanecia atento a cada
palavra, ouvindo com uma curiosidade inocultável, no entanto, seu semblante exprimia ao
mesmo tempo um certo desdém, irônico, inexprimível, como se o que buscasse nas frases do
detetive não fosse um relato da história, como se esse relato nada importasse, mas sim, conhecer
intimamente o locutor. Thomas observava a face do artista, e via como ela fitava Hary el, notava
o modo o qual, em certas horas, a expressão de Lucifer se assemelhava a de um adulto, que ouve
devagar a narração de uma criança sobre um dia de aula, ou algum fato cotidiano. Era como se
o que ele falava fosse alguma besteira, algo inútil e óbvio, mas mesmo assim o homem se
mantinha ouvindo, tentando entender a criança, seus sentimentos, suas aspirações, rindo-se
internamente delas, como o velho que ri das bobagens que fez na infância. Houve um momento
em que o rapaz percebeu algo ainda mais intrigante no olhar do homem, era um olhar quieto,
internamente vazio, mas ao mesmo tempo lotado de energia. De certo modo parecia que Lucifer
não pensava em nada enquanto ouvia, mas seu cérebro demonstrava atividade constante, era
exatamente assim, uma sensação de paradoxo, de coisas que se contradizem que tomava
Thomas, o arrebatando por uma confusão de idéias causadas apenas pela análise de um olhar.
— Até essa parte eu já tinha conhecimento – comentou o homem, dando a entender que
estava com pressa, após ouvir atentamente a história do detetive e interrompendo-o na parte em
que falava de Miguel Gonzáles. – Mas ainda não entendo bem o motivo disto tudo...
— Deixe-me continuar... Há alguns dias outra pessoa foi morta, uma mulher. Foi
envenenada numa espécie de câmara de gás improvisada numa sauna. Como você já deve ter
percebido, o nosso homem é bastante astuto, um psicopata.
— Certo – sorriu Lucifer. – Mas vejo que a clareza não é um de seus atributos. O senhor
disse que ia ser direto, mas até agora não mencionou o que quer comigo.
— Talvez, porque precisasse lhe explicar bem a situação. Meu parceiro também foi
assassinado, mas antes de morrer ele encontrou algo muito importante, uma coisa que me fez vir
até você: A ligação das vítimas.
— Como assim? – perguntou o homem, levantando-se e indo até uma espécie de mini-bar,
no qual havia alguns cálices e uma garrafa de vidro com o gargalo muito comprido.
— O assassino segue uma espécie de lista guiada pelo aparecimento do nome das vítimas nos
jornais, é uma relação de ordem cronológica, do primeiro a aparecer, até o último.
— E...? – disse ele, colocando o líquido da garrafa em um cálice.
— E que o senhor é uma delas...

Lucifer movimentou os olhos na direção dos detetives, que estavam nas suas costas e, por um
momento parou de encher o cálice, como se estivesse assimilando as informações que recebera.
— Querem vinho? – indagou o homem, pegando mais duas taças. Os dois ficaram meio que
espantados, mas fizeram sinal afirmativo para não parecerem indelicados. – Eu sou uma delas?
O senhor é realmente muito confuso Sr. Kitten...
— Segundo a correlação que meu parceiro Paul encontrou, você será um dos próximos a
serem assassinados...
— Certo... “correlação”... E em que ela se baseia? – indagou o homem, caminhando na
direção dos dois com os cálices.
— Nos nomes...
— Nomes?
— Todos os homicídios foram contra pessoas que tiveram seus nomes divulgados nos jornais,
todos nomes de anjo... Miguel, Gabriel, Jeliel...
— Claro, e por que meu nome é Lucifer eu vou ser o próximo a morrer... – riu o artista,
entregando as taças nas mãos de Hary el e Thom. – Me desculpe Sr. Kitten, mas é muito difícil
pra mim, acreditar em tamanho disparate...
— Não peço que o senhor acredite, mas tem que nos deixar colocar homens para garantir a
sua segurança...
— Para garantir minha segurança, ou para ficarem na espreita para capturarem o maníaco?
– disse ele sentando. – Detetive... Eu sou uma pessoa extremamente exposta na mídia, o que
aconteceria se eu saísse por aí cercado de seguranças e policiais, aos poucos todos iriam falar:
“Lucifer Krieg está com medo de algo...” “As gangues do submundo londrino querem matá-lo
porque descobriram que na verdade ele é o Batman...” Tem idéia dos boatos que poderiam
surgir?
— E os boatos são mais importantes que sua vida? – questionou Hary el que ainda não bebera
um só gole do vinho, enquanto Thomas já estava quase partindo para a exigência de uma nova
taça.
— Já falei que não acredito nessa bobagem... Você não tem elementos concretos para
afirmar que eu vou ser morto. Por que alguém iria me matar? Por quê?
— Bom – disse o detetive, olhando Thom degustar a bebida, gole a gole. Ele devia estar
sentindo um prazer incrível. –, ainda não temos essa resposta, mas é quase certo que o senhor
será uma das próximas vítimas...
— “Quase certo”? Desculpe, mas infelizmente eu sou um homem público. Qualquer coisa,
por mais ínfima que seja, que sai na imprensa, interfere na minha imagem. Uma simples fofoca
sem fundamento, em algumas semanas vira um escândalo sem precedentes. Eu não posso
arriscar a minha carreira por um “quase certo”!
— Mas sua vida você pode arriscar?
— Não repetirei minha opinião sobre isso...
— Bom, mas permita-me esclarecer que não será uma coisa evidente, aliás, nem eu quero
isso, será mais eficiente para a operação se tudo for mantido em sigilo.
— Mesmo assim eu dispenso a sua proteção.
— Sr. Krieg, tem pessoas morrendo lá fora...
— Estou ciente do meu dever cívico detetive Kitten, mas não quero ser mártir de uma causa
incerta. Estou no meio de uma grande série de exposições das minhas obras, não ficarei mais que
essa semana na Inglaterra. Não é muito tempo, estou quase sempre cercado de repórteres,
exceto à noite, e em algumas raras horas do dia, dificilmente alguém me atacaria nesse meio
tempo. Admitindo, é claro, essa hipótese absurda que o senhor me traz...
— Mas é justamente à noite que ele age...

Lucifer olhou com aquele mesmo olhar, olhar esse com que agora Hary el já se acostumara,
ainda era profundo e causava uma sensação estranha, mas desde que encontrara a cigana, dias
atrás, não era mais novidade.

— Tenho muitas coisas a fazer, vamos abrir ao público dentro de alguns minutos... – falou o
artista.
— Está bem então, mas fique com o meu cartão, caso mude de idéia. – tentou pela última
vez, entregando o cartão a Lucifer e levantando-se junto com ele e Thomas.
— Você nem vai tocar no vinho? – disse ele, olhando nos olhos de Kitten.
— Não estou com sede...

Hary el notou que uma espécie de manto comprido cobria um quadro dentro da sala, era um
manto diferente dos que ocultavam as obras do lado de fora. Servia de auxilio a decoração
diferenciada do ambiente, e não pura e somente para cobrir a tela. Devia ser um trabalho muito
importante.

— O que é? – perguntou o detetive, indicando o quadro coberto, e se aproximando.


— Uma de minhas obras primas, por favor, não toque.

Nesse momento um outro homem adentrou a sala, disse alguma coisa como: “Os convidados
já chegaram”. O artista pediu licença pra ausentar-se alguns instantes e saiu do escritório. Hary el
e Thom ficaram sozinhos lá dentro. O detetive aproveitou para dirigir-se novamente à tela.
Aproximou-se e levantou o pano.
Lentamente a imagem do quadro foi se mostrando, parte a parte, enquanto o manto subia.
Hary el e Thom paralisaram os olhos perante a pintura. Era uma figura impressionante, repleta
de cores opacas, mas que por si só davam vida à tela. Aos poucos a imagem foi assumindo um
contorno visível e distinguiu-se uma asa; nesse momento o tecido levantou-se mais rapidamente e
os dois puderam ver claramente o quadro, reconhecendo seu conteúdo: Era uma fênix
— O que você está fazendo? – gritou a voz de Lucifer, penetrando no ambiente e fazendo
com que o manto descesse novamente e cobrisse o pássaro de fogo. – Receio que nem com um
mandato isso seria aceitável! – disse ele, em tom irritado.
— Desculpe-me, mas era necessário...
— Necessário o que? – falou, interrompendo a frase do detetive pela metade. – Acho que os
senhores já ficaram tempo demais em meu ateliê, por favor, retirem-se.
— Deixe-me explicar... – continuou Hary el.
— Não há explicação para tamanha falta de educação. Isso é abuso de autoridade meu
senhor. – o tom de Lucifer ficava cada vez mais baixo, lento e sério. – Queira retirar-se...
— Realmente eu peço desculpas...
— Não há desculpas, retire-se!
— Não havia intenção de invadir sua privacidade...
— Saia daqui! – disse, frio
— Eu...
— Sr. Kitten, não repetirei novamente...

Thomas e Hary el resolveram não dar mais delongas e deixaram a sala o mais rápido possível,
sem ao menos tentar uma despedida mais cortês. Foram guiados por um dos empregados do
artista até a saída. Alguns dos que estavam na fila, anteriormente, toparam com eles na vazante.
A mostra havia começado um pouco antes do previsto.

— Por que fez aquilo? – perguntou Thomas, não entendendo a atitude indelicada do detetive
ante o artista.
— Não sei bem, eu precisava, não pude me controlar – respondeu.
— Como assim?
— Tem alguma coisa nele, Thom, algo estranho, ele sabe de alguma coisa...
— Você está ficando realmente paranóico. Eu sei que quase sempre você está certo e tudo...
no caso do velho, sobre as investigações do Paul também... mas isso já é demais! Como ele sabe
de algo, você não viu a indiferença do cara?
— Isso, é precisamente “isso”. Eu sei que você também percebeu algo de diferente, algo
estranho. Você não viu como ele estava calmo, como ele não se importou com o risco que ele
poderia estar correndo?
— Ele é famoso Hary ! Gente famosa é meio doida, isso não é razão para você me fazer
passar tamanha vergonha!
— Talvez eu realmente tenha me excedido, mas ele está escondendo alguma coisa. Tenho
certeza!
— Olha, eu não sou ninguém para criticar sua intuição. Sempre fui seu fã, desde o primeiro
caso de repercussão que você investigou. O jeito com o qual você solucionou aqueles homicídios
ano passado foi genial, nunca deixou nenhum caso pra trás... Eu não preciso ficar te elogiando,
você sabe que é bom, mas esse negócio da morte do Paul pode ter mexido com a sua cabeça,
não parecia você lá...
— Ele tem alguma coisa! Eu sei! Sempre fui mais pelo raciocínio que pela intuição, mas eu
sinto algo nele, ele é muito calmo, muito frio, como se nada importasse, como se o mundo caísse
na frente dele e ele continuasse sem alterar um milímetro no jeito de andar...
— Você também é assim, sempre foi muito frio, tem estômago, mas está afetado... Talvez
tivesse sido melhor o chefe ter te mantido fora dessa...
— Olha bem pra mim! – disse o detetive, agarrando o rapaz pela camisa e olhando nos seus
olhos. – Eu sei o que estou fazendo, não sou criança! Quando quis pegar esse caso era porque
sabia que poderia resolver, tinha certeza. Não foi por vingança ou qualquer besteira do tipo.
Lucifer não é um cara normal...
— Eu ainda não estou entendendo onde você quer chegar...
— Eu acho que ele sabe porque o cara está matando... Ele é uma possível vítima, tem que
saber!
— Tá, tudo bem... – disse Thomas, colocando a mão na nuca. – E o que você pretende fazer?
— Ainda não sei, mas até amanhã pensarei em alguma coisa. Agora preciso ir pra casa, to
morto de cansaço...

Thomas mordeu os lábios.


— Antes, eu quero que você me esclareça um negócio: Se você acha que o Krieg sabe de
alguma coisa porque é uma possível vítima, por que o Paul não sabia?
— Pergunta mais que obvia! O Paul não tinha nome de anjo, ele não morreu por causa da
lista.
— Então morreu por quê?
— Por causa de alguém que o assassino queria atrair...
— Alguém que o assassino queria atrair? Quem?
— “Hary el” Kitten.
O detetive chegou cansado em casa naquela noite. Jogou o sobretudo úmido por cima da
mesinha e sentou-se na poltrona. O velho ainda estava acordado, embora costumasse dormir
muito cedo. Ele permanecia parado, com as pernas cruzadas sobre a almofada que trouxera da
casa no campo, exatamente como quando Hary el saíra pela manhã. Será que ele havia ficado
todo esse tempo naquela mesma posição? Ao lado dele um dos incensos já se apagara há muito,
no entanto a fragrância continuava permeando todo o ambiente. O detetive não se importava
com o cheiro, era até agradável, e mesmo que não fosse, já estaria acostumado a sentí-lo todos
os dias devido ao constante hábito do mestre de acendê-lo todos os dias. Hary el estirou-se no
acento e começou a observar Cheung Chizu, que de costas para ele, continuava em transe.
— Como foi? – disse o mestre, mansamente, sem abrir os olhos.
— Como foi o quê? – indagou o detetive.
— Sua visita a Lucifer...
— Como sabe que fui visitá-lo?
— Palpite... – esclareceu o velho, subindo as pálpebras.
— Boa... Quer dizer, estranha... É um homem um pouco misterioso.
— Todos nós somos. Você o avisou do risco que ele corria?
— Sim, mas ele não acreditou muito. E você, já fez a lista que pedi?
— São nomes demais, já estou um pouco velho para lembrar de todos.
— Mas é necessário, se eu souber como se chamavam seus discípulos será mais fácil
localizar o assassino entre eles.
— O que te leva a crer que o assassino é um de meus discípulos?
— Quem mais poderia?
— A pessoa que roubou o colar pode ter se desfeito dele...
— Mas temos que começar por algum lugar, não?
— Algum lugar é lugar nenhum – riu o velho. – Você está cansado, por que não dorme?
— Tenho que pensar em algumas coisas.
— Vocês ocidentais são muito confusos, depois vocês reclamam que não conseguem
compreender o Ch’an...
— O que quer dizer?
— Quando um homem que segue o Ch’an está com fome ele come, quando está com sede
ele bebe, quando quer andar apenas anda, e quando quer dormir, apenas dorme. Agora, vocês,
fazem todas as coisas ao mesmo tempo, se distanciando cada vez mais da simplicidade, da
verdadeira essência das coisas. Quando querem andar ficam pensando, quando querem escutar,
preocupam-se em ver, quando querem conhecer, preocupam-se em entender. Como você quer
escutar alguma coisa se preocupando com o que ela aparenta? Como você quer descansar se se
concentra mais em pensar? Sendo assim, você meu amigo, perde o sentido real das coisas, sua
essência. Escuta enganado pela orelha, vê, enganado pelos olhos, pensa, enganado pelo cérebro.
Quem faz vinte coisas ao mesmo tempo, não faz nenhuma.
— E quem faz nenhuma? – debochou o detetive.
— Quem faz nenhuma, faz vinte ao mesmo tempo.

O velho levantou-se e colocou o seu terço de madeira novamente no pescoço.


— Quer encontrar o assassino? – continuou o velho. – Procure-o onde você ainda não
procurou, no lugar mais próximo possível de você, o lugar onde estão todas as respostas.
— O que você quer me dizer?
— Que você tem que se esvaziar de você mesmo, tem que deixar seu cérebro vazio, para
que as respostas possam permeá-lo. Se não fizer isso, você será derrotado.
— Você fala tanto em vazio... O que é o seu vazio? Como ele pode me responder? – indagou
Hary el, ansioso por obter a solução do que para ele era um grande enigma.
— O vazio é o que não é alguma coisa, mas você está racionalizando, não pense, sinta.
— Sentir?
— A perfeição vem da ausência dela, a obtenção real de uma característica só pode ser
obtida pelo seu oposto. Está confuso demais porque você está pensando, o pensamento é o que
conduz ao erro, você só pensa em algo quando não consegue solucioná-lo, solucione primeiro.
— Isso é demais para minha mente.
— Pare de usar a mente então.
— Não entendo... não entendo o vazio.
— É porque você tenta entender. Como quer entender o vazio se sua mente está cheia? O
esvaziamento conduz ao preenchimento. Esqueça os pés, eis a adaptação perfeita dos sapatos.
— Explique o que você quer dizer.
— Não posso te explicar, mas posso te conduzir à sua própria explicação.
— Então me conduza.
— Apenas ouça esta parábola: “Ki Siao-Tzu adestrava um galo de briga para o rei de
Tcheou. Dez dias após o início do adestramento o rei pergunta:
“— O galo já está pronto para a briga?
“O outro responde:
“— Ainda não, ele é vaidoso e arrogante
“Dez dias se passam e o rei repete sua pergunta e o outro lhe diz:
“— Ainda não, ele reage a cada sombra e a cada ruído.
“Dez dias mais tarde o rei insiste na pergunta.
“— Nada ainda – responde o outro. – Ele ainda tem um olhar muito irritado e um ar de triunfo.
“Finalmente decorridos outros dez dias, como se a pergunta repetisse, Ki siao tzu declara”:
“— Ele está quase pronto! Quando os outros galos cantam isso não o incomoda em nada.
Quando se olha para ele parece que se vê um galo de madeira. Sua força interior, Te, é perfeita.
“Os outros galos não ousavam se aproximar dele, pelo contrário, desviavam-se e iam
embora.”

O mestre virou as costas e foi para seu quarto. Hary el dessa vez não tentara entender, apenas
sentira as palavras, então pela primeira vez ele compreendeu o que a história ocultava.
Chovia muito naquela tarde em Londres, o céu estava nublado desde a madrugada anterior e
os respingos haviam começado a cair ao raiar do dia. A circulação nas ruas era muito pequena,
já que grande parte da população havia decidido permanecer em casa ou presa nos respectivos
trabalhos quando a tempestade começara a engrossar. O transporte urbano através de ônibus
também estava comprometido, pois muitas linhas haviam parado de funcionar devido ao grande
fluxo de água em algumas ruas da capital. Na verdade as ruelas estavam desertas e, mesmo no
centro, a situação não era dessemelhante, com a diferença de uns poucos transeuntes que
corriam de um lado para o outro protegidos por capas e pequenos guarda-chuvas.
Sob a insistência da tormenta, algumas previsões continuavam anunciando o enfraquecimento
da chuva no final do dia, no entanto para Hary el e algumas centenas de ingleses, isso pouco
importava, teriam afazeres até bem depois do pôr do sol.

— Essa chuva não pára, não é? – disse Thomas, sentando-se na escrivaninha ao lado do
detetive.
— Eu gosto do som da água – respondeu Hary el. – Parece que vai ficar assim por um bom
tempo...
— Maravilha... – a expressão do rapaz caiu. – Quando não resolvo fazer serão por conta
própria, a natureza me obriga.
— Se dê por satisfeito, na Grã Bretanha o dia dura muito pouco. Meia-noite os bares já estão
fechando... Em outros países quando uma pessoa diz que vai ficar até tarde trabalhando, isso quer
dizer depois da uma da manhã...
— Em compensação, essas pessoas não têm que acordar três e meia da matina pra ver um
cadáver em decomposição.
— Que revolta... O que você tinha que fazer mais tarde?
— O que te leva a crer que eu teria alguma coisa pra fazer?
— Thom...
— Tá, combinei de levar a Jenny ao cinema.
— Acredite em mim, mesmo que você saísse daqui agora, não haveria condições com o
tempo assim... – falou o detetive, pegando uma espécie de laudo das mãos de Thomas.
— Mas haveria a opção: “Vídeo cassete e pipoca”.
— O que é isso? – disse Hary el, calmamente, referindo-se aos papéis.
— É aquela pesquisa que você me pediu, sobre as lojas de produtos agrícolas... – o rapaz
esparramou-se na cadeira.
— E?
— Nada. A maioria delas não faz registro de varejo, e as que possuem não se enquadram na
lista de materiais que você me deu.
— Ele pode ter comprado em lojas diferentes...
— Isso quer dizer que...?
— Que o cara é muito inteligente e nós mais uma vez não temos pista nenhuma.
— Tem que haver alguma coisa, Hary . O que você vai fazer agora?
— Esperar, já sabemos onde ele vai atacar. Quando tentar, nós agarramos.
— Mas o Lucifer não te proibiu de colocar homens atrás dele?
— Esquece o Lucifer por enquanto. Vamos cuidar do Watson.
— Já conseguiu falar com ele?
— Não, mas hoje nós temos muito tempo pra tentar... Em quantas lojas você pesquisou a
lista?
— Em todas de Londres e dos arredores, esquece isso, não tem como... – disse Thomas
contando o dinheiro da carteira. – Você já contou para o chefe sobre os anjos?
— Não. Ele colocaria todos os agentes do departamento atrás do caso, isso estragaria tudo...
— Eu ainda acho que você deveria contar.
— Eu sei o que estou fazendo.
— Tá certo, mas, você corre perigo pelo que me disse, seu nome saiu nos jornais, você pode
ser um dos próximos, ou “o próximo”. – Thom acentuou bem a última palavra, estava
preocupado com o amigo. Não era uma brincadeira, Paul já havia morrido, se Hary el também
se fosse, não suportaria.
— Não, ele segue a ordem: Primeiro Watson, depois Lucifer e aí sim “eu”.
— Tem certeza?
— Não tenho certeza nem de mim mesmo... Mas a ordem nas manchetes era essa, se ele
seguiu a ordem até aqui, não teria porque mudá-la.
— E depois de você?
— Não há mais ninguém. Pelo menos por enquanto. Eu pedi para que um amigo fizesse a
relação dos próximos nomes, ainda não surgiu nenhum.
— E se surgir?
— Vou pegar ele antes.

Hary el percebeu que o rapaz, embora eufórico, não estava se sentindo bem. O início de uma
olheira era claro, e uma vez ou outra, sua voz misturava-se com uma tosse tênue.

— Você está bem Thom? – indagou o detetive.


— Por que pergunta?
— Você está um pouco pálido...
— É, acordei indisposto hoje, suando. Quase não consegui me alimentar de manhã.
— Já sabe o que é?
— Eu achava que era febre, mas meu corpo está frio. Deve ter sido alguma virose...
— Pode ser esse nublado constante – refletiu o detetive. –, você precisa pegar um pouco de
sol.
— Eu já estou melhorando. Até amanhã vou estar novo em folha.
— Pega minha agenda nessa gaveta da esquerda – disse o detetive, apontando pra um dos
compartimentos da mesa ao lado.
— Vai fazer uma ligação?- indagou Thom, cumprindo a ordem.
— Não, Sherlock, uma tatuagem... – falou Hary el, sorrindo da dedução.
— Eu quis perguntar pra quem você vai ligar.
— Vou tentar com o Samuel novamente. Você deixou algum recado nas outras vezes em
que ligou?
— Deixei com uma atendente e com uma secretária, mas elas não puderam garantir que
avisariam, tudo estava meio corrido. E se ele estiver de novo em reunião?
— Nós somos a policia, temos prioridade – comentou ele, discando os números. – Estou
cansado de ter nosso trabalho obstruído por coisas como essa.

O relógio da central marcava três da tarde quando o detetive resolveu ligar pela primeira vez
para Samuel Watson, no entanto, como sempre, o telefone estava ocupado em todas as tentativas.
“Isso está muito estranho, não pode ser tão difícil falar com uma pessoa”, pensou Hary el,
observando os clarões dos relâmpagos que caíam gradativamente mais fortes do céu. Pelo som
que ouvia, as descargas estavam muito próximas, causando até mesmo um curto black-out, de
menos de um segundo nos arredores.

— Atenderam! – disse o detetive, tapando o fone.


— Tem certeza que você ligou pra o número certo? – perguntou o rapaz, desacreditando.
— Alô – disse ele, tirando as mãos do fone. – Imobiliária Watson?
— Sim – disse a atendente. – Quem gostaria?
— É Hary el Kitten, do departamento de investigação criminal, eu gostaria de falar com o Sr.
Samuel Watson.
— O Sr. Watson não está.
— Desculpe, mas não é a primeira vez que eu ligo, é um caso policial de extrema urgência.
— Já atendi algumas ligações da polícia essa semana. O Sr. Watson está ciente delas, no
entanto no momento ele está viajando.
— Viajando? Para onde?
— Infelizmente eu não sei, mas é a trabalho. Provavelmente amanhã ele estará de volta.
— Amanhã?
— É, bem cedo. Ele deixou um aviso que retornaria antes do almoço e até pediu uma
reserva num restaurante do centro.
— Bom, por favor, eu gostaria de deixar um recado. Avise-o que o detetive Kitten vai visitá-
lo amanhã às... Que horário seria mais propício?
— Lá pelas seis da tarde, é quando o movimento é menor. O senhor possui alguma
intimação?
— Não, tenho apenas alguns assuntos a tratar com ele. É preciso marcar uma hora?
— Creio que não seja necessário. O avisarei pela manhã.
— Obrigado.
— De nada – disse a atendente.

Hary el desligou o telefone e anotou algumas coisas num papel.


— E aí? – perguntou Thomas, de olho no telefone.
— Ele está de viagem, volta amanhã. – respondeu o detetive. – Eu deixei recado.
— Eu também deixei várias vezes, mas ele não respondeu. Pra onde o cara foi?
— A atendente não disse, mas provavelmente está em Dover.
— Como sabe?
— Ela mencionou que a viagem é a trabalho. Ele está enfrentando um processo judicial lá,
deve ter ido organizar a defesa.
— E aí, o que você vai fazer?
— Só resta esperar, informei a moça que atendeu que vou até lá amanhã, às dezoito horas.
— Se está tudo resolvido, por que essa fisionomia chateada? – disse Thomas, bocejando.
— O fato de ele estar de viagem atrapalha muito as coisas. Temos que resolver isso o mais
rápido possível, o tempo está correndo.
— E se você ligasse novamente e pedisse algum número de contato?
— Não adiantaria, mesmo que a secretária me fornecesse, esse assunto precisa ser tratado
pessoalmente. Eu não posso ligar pro cara e dizer: “Você vai morrer em poucos dias”.
— Seria “altamente” indelicado – sorriu Thomas.
— Que se dane a educação, minha preocupação é a reação do Watson. As poucas
informações que nós conseguimos sobre ele não são suficientes para se ter uma idéia da
personalidade.
— E?
— E que continuamos na mesma até amanhã. Temos pelo menos que ir adiantando as partes
que podem ser adiantadas. Vou fazer uma requisição de alguns homens pro comissário, os que
ficarão encarregados de proteger o Watson.
— Ele não vai liberar pessoal pra você sem uma boa explicação. O que você vai dizer?
— Se não restar outra alternativa, a verdade. Claro que não vou dar informações muito
detalhadas, se ele avisar os outros departamentos o Johnson e uns quinhentos outros detetives vão
colar no nosso pé.
— Nosso não, “seu”. Eu não estou designado pra esse caso.
— Obrigado pelo apoio Thom...
— Disponha – ironizou o rapaz, pegando seu casaco que estava já há um dia sobre a mesa de
Hary el. – Eu vou te fazer pela última vez essa pergunta: Você acha mesmo que esse seu plano da
emboscada vai dar certo?
— As chances de falhar são muito pequenas. Mesmo que não consigamos capturá-lo,
obteremos pelo menos uma identificação positiva, o que não ocorreu das últimas vezes, nas quais
não houve testemunhas.
— Mas e o Samuel? Ele pode sair ferido.
— Por isso estou requisitando os homens. Se não tentarmos, outros vão morrer, ninguém sabe
até quando.
— Mas e o plano de apoio? Lembra? Sempre que o assassino mata, ele tem um plano de
apoio que impede que a vítima saia viva, como o veneno no whisky antes da armadilha do fogo,
etc...
— Eu já pensei nisso, por esse motivo temos que conseguir os policiais o mais rápido
possível, antes que ele comece a matar novamente.
— Conte comigo no que precisar – informou Thomas, levantando-se e indo até a porta.
— Aonde você vai?
— Beber alguma coisa, estou com um pouco de frio.
O demônio olhou por muito tempo a lua daquela noite depois que o céu se abrira. Era a lua
mais bela que vira em anos, desde que deixara o local de sua infância para viver entre os lobos.
Ele permanecia novamente em seu apartamento, buscando inspiração para acabar a sua obra,
estava quase no fim. Assim que a lua se pusesse no céu, e o sol compartilhasse novamente os
seus raios com os que deles desfrutam para viver, as tintas de seu quadro escorreriam até a terra,
criando um novo destino para os anjos ainda vivos. Aquele era o último dia antes da grande
chuva.
“O céu está mais cinza do que o de costume”, pensou. “Ele quer indicar alguma coisa. Talvez
que meu plano não sairá como o previsto... Mas como pode ser assim se o fiz em união com o
Tao?”. O homem fechou os olhos por alguns segundos, de frente para a enorme janela de vidro:
“A peça chave se unirá hoje com o todo... Se ela se mantiver nele, meu plano corre grande risco,
mas se a ilusão da individualidade superar o vazio dentro dela, a vitória do meu Tao será
iminente.”
Nesse momento o homem parou de pensar, e entregou-se a não-mente, ajoelhando-se frente
à vidraça. Antes de se abster da consciência, teve uma recordação de muito tempo atrás, quando
ainda vivia nas montanhas.

“— Mestre, pra onde iremos agora? – perguntou o jovem.


— Vamos para além das colinas, fui convocado pelo líder da comunidade. – respondeu o
velho, continuando a caminhada de um dia pelo grande rio.
— E o que ele quer contigo?
— Obrigar-me a enganar os que confiam em mim.
— E vais aceitar? – perguntou surpreso o discípulo, parando para observar os peixes que
nadavam contra a correnteza.
— Farei o que deve ser feito – disse o velho, sem mais palavras, fazendo um sinal com a
mão para que o jovem continuasse a andar.
— Mas, e Tokuan-Tzu, o que faria?
— Tokuan-Tzu já não pode mais opinar como antes.
— Contarás ao líder que ele está morto?
— Contarei só a verdade que for necessária. Por que tantas perguntas a respeito disso?
— É que não entendi o objetivo da nossa viagem. Por que deixamos os cavalos na última
província?
— Porque a missão deles já está terminada e a nossa continua. Pare de fazer perguntas!

Nesse momento o jovem observou uma barca que atravessava o rio. Ela levava algumas
pessoas de uma margem a outra, para que pudessem seguir viagem até a cidade mais próxima,
quando de repente, esbarraram em um cardume de peixes na beira do rio, dezenas deles
morreram. O jovem ficara intrigado. Sabia que os donos da barca dependiam do transporte para
sobreviver, e que provavelmente não haviam visto os peixes. As pessoas que eram levadas,
também não tinham conhecimento dos peixes, e precisavam chegar ao outro lado. E os peixes,
por sua vez, estavam entretidos, comendo as algas das margens, sem notar que a embarcação se
aproximava. Uma grande confusão tomou sua cabeça quando viu os animais boiando, e não
encontrando a resposta, questionou o sábio.

— Mestre, de quem é a culpa? – disse ele indicando o ocorrido.


Mas o velho permaneceu sem dar uma palavra.
— Eu sei – continuou o discípulo. – , que me disseste para não fazer mais perguntas, mas me
responda apenas mais esta, e prometo que ficarei quieto até chegarmos no nosso destino.
O velho sorriu e olhou devagar para o jovem:
— A culpa “é sua”.

“— Já lhe expliquei os meus motivos – disse o sábio, dirigindo-se ao líder após uma grande
jornada pelas montanhas.
— E não me convenceste – afirmou o homem, sentando em uma rica cadeira.
— Bom, então não tenho mais o que fazer. Não acatarei o que me ordenas.
— Como não acatarás? – disse espantado o homem, olhando bem para o velho. – Recebi
informações dos moradores de Honan que tu insistes em não colocar estátuas dos nossos deuses
no templo, mesmo tendo tu a fama de um grande mestre, isso é uma insanidade.
— Não deixarei que tais estátuas cruzem o portão de nosso templo. Tal coisa é um desacato à
filosofia do Tao. Mera infantilidade desnecessária, que só causará mais confusão nas mentes dos
que procuram a paz.
— Você quer dizer que não se pode achar a paz em nossos deuses? Se assim for tu
blasfemais!
— Blasfêmia é a insistência dos que querem destruir uma filosofia. Nem mesmo um
imperador poderia infiltrar em um templo de minha responsabilidade ídolos injustificáveis.
— Injustificável é tua atitude. Um imperador poderia qualquer coisa. Mas isso não vem ao
caso. O que acontece é que todos os templos Taoístas sobre minha jurisdição possuem estátuas de
nossos deuses, isso de tempos imemoráveis, e no teu não será diferente. A tradição deve ser
seguida. Bem que me falaram da tua fama quando te convoquei. Não foi você , mestre, que
decidiu retirar as estátuas de Buda dos altares da cidade? Acaso tu não és também mestre
budista?
— Budismo e Taoísmo andam lado a lado. A idéia sobre as estátuas foi minha, e o objetivo
dela é o mesmo que me faz recusar tuas estátuas agora: As mentes já estão perturbadas demais
para novos deuses. Quanto à tradição, nosso templo se mantém sem estátuas desde a sua
construção.
— Bem agora vejo que realmente és louco. Provavelmente confundiram sua insanidade
com o estado de iluminação, por isso te chamam sábio.
— Minha iluminação pouco importa, demorarás um pouco ainda até entender o que deves
entender, mas por agora, libere meu templo da sua decisão.
— A decisão não é só minha, são de moradores de sua província.
— Esses moradores que dizes são minoria. Não foi decisão de nosso governo que os líderes
não se meteriam em assuntos religiosos? Mesmo os assuntos políticos não passam agora por
avaliação superior?
— Não venha advogar comigo. O poder da província é meu, e foi me dado pelos habitantes.
— Teu poder pra mim é nada. O papel que carregas é apenas ilusão, e a única verdade que
há, é a verdade que tudo criou, e só a ela, pertence o direito sobre o templo. Portanto, será o que
tem que ser. Mas deixo dito, que não abrirei as portas do nosso templo para os teus deuses.
— Pensavas que eras um santo, mas és um tolo.
— Santos? Que são santos, se não criminosos?
— Além de ousares injuriar nossos deuses, ainda insulta os santos?
— Disse Chuang-Tzu: No tempo do soberano Ho-sin, os homens ficavam em suas casas sem
saber o que fazer. Fora, caminhavam sem saber para onde ir. Quando se alimentavam, ficavam
contentes, depois dando tapinhas no ventre saíam para passear, isso era tudo que o povo sabia
fazer. Quando os santos chegaram, subjugaram os homens pelo ritual e pela música, a fim de
apaziguarem todos os corações sob o céu. Foi então que o povo encaminhou-se para paixão de
saber e começou a lutar pelo interesse material, sem que se pudesse pôr um paradeiro nesses
males: esse foi o crime dos santos.
— Agora chega! Comparas os santos aos criminosos?
— Eu não, Chuang-Tzu o faz. Queres contestá-lo?
— Usas as palavras dos sábios como bem queres. Tu és astuto, mas sei a comparação que
fizeste, não a esquecerei.
— Então a guarde bem. Pois não gozam os criminosos das mesmas qualidades dos santos?
Adivinhar onde está escondida uma grande soma em dinheiro, eis o saber, chegar em primeiro
lugar ao local, eis a coragem, retirar-se por último, eis a justiça, julgar se a tentativa era possível
ou não, eis a prudência, partilhar do saque eqüitativamente, eis a bondade. Só são dignos de
serem ladrões aqueles que possuem as cinco qualidades!
— Abusaste de minha paciência, velho! Serás expulso de Honan e de Cantai!
— Que assim seja, meu templo é teu para preencheres com teus ídolos, mas o vazio do meu
coração assim continuará para sempre.
— Realmente o templo é meu. E tu irás embora, e levarás contigo teus discípulos, para que
eles não voltem a atiçar o povo com sandices. Partirás antes do pôr do sol, com uma escolta, para
pegares quem e o que tens que pegar na província.
— Pois bem. Que seja o que tem que ser.”

O demônio abriu os olhos e foi em direção à sua tela, precisava começar a preparar o quadro
para a grande tempestade que viria amanhã.
Às dez da noite Hary el subiu as escadas do prédio para o seu apartamento. O vento zumbia
forte do lado de fora, levando boa parte das nuvens para longe, e trazendo outras de lugares
distantes. Fora quase impossível fechar a porta de entrada do edifício, tal a corrente de ar que se
infiltrara para dentro do prédio. Essa arrastara até mesmo algumas folhas secas da rua contra o
tapete do hall. Como sempre, não havia um porteiro no local, mesmo pagando uma fortuna de
condomínio ainda tinha ele mesmo que abrir a porta contra o vento frio, e carregar a pilha de
papéis que trouxera do trabalho pelas escadas.
O detetive bateu na porta com o pé, pois suas mãos estavam ocupadas demais para puxar
novamente outra chave. O velho demorou um pouco para abrir, provavelmente estava
meditando, comendo, rezando, ou vendo algum outro programa na tv a cabo. A tranca deu duas
voltas antes que a porta se escancarasse.

— Por que a demora? – disse o detetive, entrando apressado e desabando o amontoado de


papéis contra a mesinha.
— Estava urinando... – explicou o velho, achando graça do modo atrapalhado com o qual o
detetive adentrara a casa.
— Monges usam o banheiro? – debochou Hary el, percebendo que errara sua previsão e
recolhendo algumas das folhas que caíram da mesinha.
— Bom, primeiramente, boa noite.
— Boa noite... Desculpe a descortesia. E quanto ao banheiro?
— Não sou castrado... – sorriu o velho. – Por que todos estes papéis?
— Burocracia. É sobre uma requisição de policiais que eu fiz, além de alguns arquivos do
caso.
— E as flores? – perguntou, referindo-se a algumas rosas na mão do detetive.
— Amanhã vou visitar Paul no cemitério, já devia ter voltado lá...

Cheung Chizu fez uma expressão pensativa.

— Você já falou com Samuel Watson?


— Todas as vezes que liguei não consegui...
— E por que você não foi até lá? – questionou o mestre, sentando-se em uma almofada que
estava em cima do carpete.
— Não adiantaria ele está de viagem. Mas eu conheço o prédio em que ele trabalha, ano
passado houve um homicídio no edifício ao lado. Pra que essa almofada aí? Além de deixar a
casa com cheiro de incenso, ainda espalha essas coisas pelo apartamento? E se eu trouxesse uma
mulher pra cá?
— Você está tenso, por conseqüência sua casa também. Esse cheiro relaxa o ambiente e a
almofada é pra meditação que vou começar daqui a pouco.
— E por que duas?
— Por que você vai meditar comigo... – sorriu o velho indo até o fogão da cozinha para
acender o incenso.
— Eu? – surpreendeu-se o detetive.
— É necessário por vários motivos: – gritou o velho do outro cômodo. – Pra começar, como
eu já disse, você está tenso, e uma mente perturbada não consegue organizar coisa alguma. Em
segundo lugar, com as idéias em ordem é provável que você compreenda melhor a pessoa que
quer compreender. E pra terminar, se você não se libertar de sua individualidade antes que o sol
nasça, não estará preparado para inverter o curso das águas.
— A que águas você se refere? Por que insiste em falar em símbolos?
— Porque às vezes só imagens conseguem passar a essência que as palavras ocultariam –
falou ele, entrando novamente na sala, com duas varetas que espalhavam um odor que Hary el
nunca antes sentira.
— E se eu não quiser meditar?
— Sofra as conseqüências...

O sábio sentou-se novamente em uma das almofadas e cruzou as pernas, uma por dentro da
outra, numa demonstração de flexibilidade incrível para um homem que aparentava tantos anos.
Ele colocou as varetas em uma espécie de pequeno vaso branco, onde cairiam as cinzas, e pediu
para que Hary el se sentasse na outra almofada, o detetive obedeceu prontamente. Cheung Chizu
esticou o dedo até o interruptor na parede e apagou as luzes, deixando o aposento iluminado
apenas pela luz fraca vinda da rua, e de uma lâmpada acesa em um dos quartos do apartamento.

— Relaxe o corpo – disse o velho. –, e mantenha a coluna reta. Respire profundamente, e


descanse as palmas das mãos em seu colo, a esquerda sobre a direita.
— Em que isso vai ajudar? – falou o detetive, fazendo como fora pedido, mas um pouco
receoso do que aconteceria.
— Quando você relaxa e esvazia sua mente, as respostas a permeiam. Feche os olhos.
— Por que tenho que fechá-los?
— “Porque com os olhos abertos, você vê o que se passa a sua volta, com os olhos fechados,
você vê o que se passa dentro de si mesmo.”
— E agora? – perguntou o detetive.
— Tente não pensar em nada, deixar a mente imóvel. Coloque a língua no céu da boca e
apenas retenha a atenção na sua respiração, sinta a sua respiração, o ar entrando e saindo dos
pulmões, devagar, profundamente...

Hary el concentrou-se e fez exatamente o que o mestre mandara. No início fora um pouco
desconfortável, pois uma sensação leve de dor na junção das pernas impedira um relaxamento
mais intenso, no entanto, com o passar do tempo, sua mente foi se esquecendo da perna e
concentrando-se nele mesmo, à medida que respirava, cada vez com mais profundidade, até
atingir um estado de paz que nunca antes sentira, fundo nele mesmo, uma quietude interior
inigualável. Em um momento ele era uno com todas as coisas, no outro ele era vazio de tudo,
como se não desejasse coisa alguma, sem pensamentos, sem desejo algum, sem aspiração.
Simplesmente um não-ser calmo e eterno, límpido e plácido. Exatamente nesse instante, uma
sensação chamou sua atenção de volta ao corpo, uma força quente e estranha percorreu sua
coluna vertebral, subindo até o alto da cabeça e se espalhando por tudo a sua volta. Foi quando ele
ouviu o mestre dizer alguma coisa, pronunciar um som vibrante, que organizou a sensação que o
apanhara. Assim que escutou, o seu interior entrou também em vibração até chegar em um
ponto indescritível por palavras, onde o que restou era apenas um “não-existir”.

— Acorde – disse o velho, suavemente, enquanto estalava os dedos seguidamente de frente


para o detetive.
— Ahn? – disse Hary el, um pouco confuso, enquanto recuperava a percepção de seu corpo.
— Abra os olhos devagar – continuou o mestre.

O detetive levantou suas pálpebras, tomado por um bem estar incrível, e olhou bem para o
velho.
— O que é isto? – perguntou ele, referindo-se a tudo que ocorrera.
— Essa é a paz do Tao, a essência do não-ser. Você vislumbrou o Nirvana com o corpo. É
nesse estado que você deve manter sua mente amanhã, você deve se sustentar na força dessa paz
que você sente, nessa força que ao mesmo tempo é sua e também não é.
— Por que amanhã?
— Porque amanhã o seu Tao será testado.
— E quem o testará? – perguntou o detetive, ainda desfrutando da sensação magnífica de
acordar.
— A força das coisas o testará, Hary el. Você precisa dormir agora, para estar descansado
para a temporal que eu vejo se formar.
— Se você vê o temporal, por que não me alerta? Não me diz onde ele se encontra?
— Por que ele está em um lugar que meus olhos alcançam, mas você não poderá vê-lo pelos
seus, não poderá enxergá-lo de olhos abertos.

O detetive levantou-se lentamente e foi em direção ao seu quarto, antes de deixar a sala o
mestre o chamou:
— Guarde bem isso que eu vou falar agora, pois encerra a resolução do seu mistério, e do
mistério de muitos como você: “Um homem perde seu machado, ele desconfia do filho do
vizinho e começa a observá-lo. Seu andar era de um ladrão de machado, a expressão de seu
rosto era de um ladrão de machado, seu modo de falar correspondia perfeitamente ao de um
ladrão de machado. Todos os seus movimentos e todo o seu ser exprimiam claramente um
ladrão de machado.
“Ora, ocorre que o homem que havia perdido o machado, ao cavar por acaso a terra do vale,
topou com esse instrumento de trabalho.
“No dia seguinte ele observava novamente o filho do vizinho. Todos os seus movimentos e todo
o seu ser deixaram de ser o de um ladrão de machado.”
O relógio marcava seis da tarde naquele dia. Um frio intenso arrebatava a cidade inteira, em
cada viela, cada rua, cada casa e cada ser, se espalhando devagar com o vento. O céu estava
encoberto desde a manhã por nuvens espessas e escuras, que não só o nublavam, escondendo o
sol, mas também cobriam de luz cinza toda a atmosfera gélida da capital.
O escuro das nuvens indicava que em pouco tempo uma forte chuva cairia, e o clima só se
diferenciava do inverno pela ausência de neve nas calçadas.
Hary el havia saído mais cedo do trabalho aquele dia, combinara com Thomas de encontrá-lo
em seu apartamento em meia-hora para irem juntos à imobiliária Watson, o que o rapaz hesitara
bastante em concordar, pois não estava se sentindo muito bem.
O detetive parou com o táxi perto da comprida grade de ferro e desceu, rumo à entrada do
lugar. O vento soprava cada vez mais forte, arrancando das árvores algumas folhas secas, e
jogando-as contra a grama, ainda úmida do sereno da madrugada. Ao sair do carro, um arrepio
forte do frio lhe subiu pela espinha, volvendo lentamente até o pescoço. Mesmo estando muito
bem agasalhado, e em roupas escuras, o clima lhe fazia de vítima sem o menor receio.
O cemitério estava muito quieto naquela tarde, coberto de galhos secos e escuros, e os únicos
movimentos que se via eram o da brisa, e do velho coveiro que caminhava com uma pá até ao
que provavelmente era onde morava. Assim que atravessou o portão, Hary el pôde ver a
sepultura de Paul ao fundo, cheia de flores amarelas em volta, como gira-sóis. Andou até lá,
carregando as flores que trazia, com o desejo íntimo que pudesse resolver tudo que estava
engasgado em sua garganta ainda naquela oportunidade.
O detetive ajoelhou-se na frente da cova e vagarosamente repousou o buquê sobre ela.
Abaixou a cabeça, como se conversasse intimamente consigo mesmo, e uma lágrima escorreu
pelo canto de seus olhos. Hary el ficou muito tempo lá, calado, pensando em tudo, como se
contasse para Paul tudo que sentia, toda a indignação que antes lhe destruía o peito, e como fizera
para sufocá-la durante esses dias. Sem palavras, contou para ele tudo que ocorrera depois do dia
em que ele fora enterrado, e sobre sua experiência da noite passada, do sentimento de paz que
sentiu, e se perguntava intimamente, se agora era isso que o amigo sentia. Então, ele rezou. Não
costumava rezar, na verdade, nem mesmo lembrava a última vez que o fizera, provavelmente
ainda era uma criança, mas foi o que ele fez. Não pediu nada, não agradeceu nada, não se
lembrava como fazia, simplesmente recitou uma oração, que veio do mais profundo no seu ser,
de um lugar tão escuro e interno, que era penas gelo, e fazia qualquer frio parecer um sopro
insignificante.
O detetive despediu-se de seu amigo e levantou-se. Já ia indo embora, quando o vento zumbiu
mais forte na direção do sul. Lá estava o túmulo que Krieg visitara no outro dia, deserto,
submerso nas folhas secas. Ele sentira curiosidade desde a outra vez sobre o que levara o artista
ao cemitério, e, como se guiado por alguma coisa, Hary el foi atraído até o sepulcro, andando a
passos curtos, sem pressa. Abaixou-se, como fizera no túmulo de Paul, e olhou a lápide. Era uma
cova muito antiga, abandonada, o mármore branco estava até mesmo meio amarelado. Não se
podia ler a inscrição, estava afundada em terra e galhos. Foi quando ele limpou a pedra, retirando
o pó. Nela dizia:
“Lucifer Krieg - 1930 a 1939”.
Um violento frior ascendeu dos pés a cabeça do detetive, como uma mistura de temor e
espanto que fluía gélida pelos poros. A sensação que tinha, era a de que não havia mais chão,
nada em que se apoiar, e que sua alma repousava apenas no mais frágil sopro. Ele releu a
inscrição da lápide, com agonia, mas seus olhos viram exatamente a mesma coisa, foi quando
sua mente, ainda atordoada pelo choque, recomeçou a organizar as possibilidades. Era provável
que fosse algum parente de Krieg, com o mesmo nome, um tio ou coisa do gênero, era
impossível que fosse ele, lá dizia “mil novecentos e trinta”. Lucifer não aparentava mais do que
trinta anos! Nesse instante uma enxurrada de dúvidas e alternativas permeou seu cérebro,
obrigando-o a chamar o velho coveiro que estava indo até alguns túmulos do lado leste.
O velho tinha cerca de uns sessenta e tantos anos, no entanto ainda estava forte, e
provavelmente cuidava sozinho de todos os jazigos. Ele ainda trazia a mesma pá que carregara
na chegada de Hary el, e vestia um amontoado de trapos que possivelmente lhe protegiam da
temperatura. Uma barba branca lhe dava certo ar de sabedoria, o que contrastava de um modo
interessante com seu jeito humilde e de olhar abatido.

— Boa tarde – disse o velho, cravando a pá na grama úmida.


— Boa tarde... – respondeu o detetive, ainda espantado com o que encontrara.
— O senhor deseja alguma coisa?
— Você trabalha aqui há muito tempo? – perguntou Hary el, ainda agachado, virando a
cabeça para o coveiro.
— Quase toda a minha vida. Herdei o trabalho do meu pai. Por que o senhor pergunta?
— Conhece essa sepultura?

O velho olhou para a cova como se estivesse recordando de algo que não queria mais lembrar,
de um modo tão triste que até mesmo Hary el pôde sentir.

— Conheço, é do menino dos Krieg – disse o velho, pronunciando bem devagar, mas como
se quisesse colocar para fora algo engasgado.
— “Menino dos Krieg”? Você conhece a família?
— Não.. Quer dizer, conhecia. Há muito tempo. Eu brincava com ele, sabe? Antes do
acidente.
— Acidente?
— É, quando eles morreram. Eu era criança como ele.
— Então essa lápide é de um menino?
— É, do Lucifer. Ele era meu amigo, um garoto muito legal, não como os outros, não se
importava com a profissão do meu pai, gostava daqui. Ele também tinha poucos amigos...

O velho falava com um tom estranho, infantil. A impressão nítida que Hary el teve, é que ele
estava louco, não tanto pelo que ele falava, era o modo, uma amargura inocente escondida nas
palavras.

— Quando foi isso? – disse Hary el, forçando os olhos.


— Está escrito aí: mil novecentos e quarenta, trinta e nove, eu acho. Foi triste depois que ele
morreu, ninguém falava sobre isso, entende?
— Morreu? Como?

O velho fez expressão pensativa.

— O pai do garoto era um empresário rico, mas viajava muito, e a mãe dele sempre ia
junto. Então ele ficava sozinho, vinha aqui pra gente brincar às vezes. Eu também era muito
sozinho...

Aos poucos o detetive sentia reforçada a impressão de que o velho havia ficado caduco,
percebeu que as idéias estavam um pouco embaralhadas, como se ao mesmo tempo quisesse
contar tudo que sentia, e resistisse ao sentimento da lembrança. Desde o início da conversa, era
como se o velho houvesse feito uma regressão, como se fosse realmente um garoto quem
contava a história, e mesmo o olhar, era como o de uma criança triste.

— Certo, mas como foi a morte? – perguntou ele, conduzindo, e notando que o velho fugia de
forma inconsciente desse assunto.
— Um dia ele insistiu muito pro pai dele levar ele junto, sabe como funciona? Quando a
gente é criança e pede, a gente pede bastante, insiste mesmo... Ele insistiu tanto que o pai aceitou.
Era pra um lugar longe, por isso ele queria ir, não queria ficar mais sozinho, sabe? Era de avião,
eu lembro, todos nós naquela época sonhávamos em andar em um avião. Nós queríamos voar...
— E o acidente?
— Então, ele foi no avião. Um dia antes ele passou aqui e me deu um presente, era um
saquinho de bolinhas de gude. Eu não tinha nada pra dar em troca, então eu dei uma flor, das que
tinha na casa do meu pai, uma rosa vermelha. Ele gostava de uma menina, e diziam que rosas
vermelhas trazem sorte no amor, não sei se ele falou com ela antes de ir, mas eu lembro dela no
dia do enterro, das lágrimas nos olhos dela, sabe? Ele entrou no avião então, ia ficar pouco tempo
fora, mas a gente demorou muito pra se despedir, do lado de fora, eu, ele, a menina e o Met, que
era o único amigo nosso. Não lembro mais o nome dela... Faz muito tempo...
— Sinto por você. Queria lembrar?
— Muito...
— E quanto ao avião? Caiu?
— É caiu, longe. – disse, descendo os olhos. – Minha mãe disse que tinha sido na Ásia, eu não
sabia onde era a Ásia, mas queria saber, entende? Falaram que tinha sido bem na China, nenhum
de nós conhecia a China também... Morreram, eles morreram todos, o pai, a mãe, e ele.
Enterraram todos nesse cemitério, menos o menino, não acharam, sabe? Caiu na água... Já tinha
sido muito demorado achar os dois, não conseguiram encontrar. Aí fizeram um “enterro
simbólico”, eu também nunca tinha visto um enterro simbólico, queria ver meu amigo, mas
minha mãe dizia que era melhor assim... Minha mãe sempre tinha razão.

A cada frase a dor do velho era mais nítida, camuflada no tom natural da conversa, e como
quem tenta não senti-la, falava cada vez mais rapidamente.

— E aí, o que aconteceu? – perguntou o detetive, tentando entender.


— E aí fizeram o tal enterro, sabe? Meu pai enterrou... Eu lembro que tinha poucas pessoas,
muito poucas mesmo. Era eu e minha mãe, e o Met e a menina, eles estavam com os pais. A
gente perguntava bastante pro nossos pais sobre a China, sempre, mas eles nunca respondiam
direito, depois veio a guerra, sabe? Não se falava mais da China, pelo menos não com as
crianças. A gente só sabia que era uma aliada. Meu pai morreu na guerra, com uma bomba, as
bombas destruíam tudo, morria muita gente. Era só morte. Por isso eu quis ser como meu pai,
pra cuidar dos mortos como ele cuidava...
— E a família do Lucifer?
— Não, ele não tinha família. Era só eles, e o avião se espatifou, não sobrou nada, nada...
Ninguém veio pro enterro, nada de parentes, não havia. Aí eles fecharam a casa, entende? Antes
das bombas caírem.
— Eles quem?
— O governo, eu acho, quem cuidava. Demoliram depois. Era uma casa muito bonita...
— Você quer dizer que ele não tinha parentes?
— É, certeza. O Lucifer comentava, não tinha avô, nem avó, nem nada.
— Tios?
— Nada. A gente achava isso muito triste. Depois a gente também aprendeu o que era ser
sozinho.
— E o que fizeram com a casa?
— A última vez que eu lembro ter ouvido falar nela, tinha virado um galpão. Construíram
depois, junto com a cidade. Eles refizeram boa parte da cidade, sabe? Estava tudo destruído...

Hary el achou a história muito estranha. Como o menino não possuía parentes? E o Lucifer que
ele conhecia? De certa forma as perguntas que ele fazia não eram só para matar a curiosidade
sobre o túmulo, mas ganharam outro objetivo, o de saciar sua curiosidade repentina sobre a
origem da mágoa do coveiro, talvez fosse a guerra, tantas pessoas enlouqueciam com a guerra...

— Você estava aqui no enterro daquele detetive? – perguntou Hary el, apontando o túmulo de
Paul.
— Claro, eu mesmo enterrei. Lembro de você... Você também estava lá.
— Você lembra de um homem que chegou no meio do funeral? Roupas negras, óculos
escuros... Ele abaixou-se aqui e deixou uma rosa.
— Não, desse eu não lembro. Ficou muito tempo?
— Um pouco...
— Estranho, normalmente eu sou atento para quem entra no cemitério. É minha profissão,
sabe?
— Você acha possível o seu amigo ter sobrevivido?

O velho olhou o para as árvores, que balançavam a cada sopro do vento.

— A gente sonhava com isso... Ficava brincando que ele não tinha morrido e estava com a
gente. A menina teve uma visão uma vez, um pouco antes de a gente parar de se ver. A minha
mãe disse que ela tinha ficado louca e me proibiu de ver ela, mas ela me contou tudo que ela viu.
Ela disse que viu o espírito dele, e eu acredito. Já vi espíritos por aqui.
— E o dele?
— O dele não. Mas vi o do meu pai, que morreu com a bomba. A gente detestava as
bombas, mas no final, foi uma bomba que terminou com a guerra.

O detetive olhou novamente nos olhos do ancião.

— E o outro amigo?
— O Met? A família dele foi embora... Logo quando começaram a dizer que iam invadir a
cidade, todo mundo dizia, mas ele não queria ir, queria ficar esperando o Lucifer voltar. Sabe, o
Lucifer prometeu que ia trazer um presente bem bonito pra ele dar pra mãe dele, uma jóia. Ele
adorava dar presentes...
— Você sabe pra onde o Met foi?
— Ninguém sabia exatamente, a menina disse que tinha sido pra Escócia, não sei em que
lugar. Mas já estava no meio da confusão, a gente quase não se falava mais... Ninguém se
falava...
— Você lembra o sobrenome dele?
— Não...

Hary el agradeceu e colocou as mãos nos bolsos indo em direção à saída, caminhando, mas
antes de chegar parou no meio do caminho, como se tivesse esquecido alguma coisa. Ficou
alguns segundos assim, e depois virou para o velho.

— Você está com frio? – perguntou o detetive.


— Um pouco...

Hary el tirou seu sobretudo e entregou pra o velho, com certeza ainda esfriaria bem mais com
o chegar da noite, depois atravessou o portão para pegar um táxi, Thomas devia estar já há muito
tempo esperando.

— Moço! – gritou o coveiro, do outro lado, antes que ele entrasse no carro.
— Sim? – respondeu, no mesmo tom.
— No dia... No dia em que a menina viu o Lucifer, era um dia bem parecido com esse.
Como o dia em que eu vi o meu pai, assim, com essa cor de céu. Tome cuidado...
— Não acredito em fantasmas...
— “Mas devia. Eles nunca são o que parecem.”
Enquanto o carro andava, Hary el ficou pensando na história que o coveiro contara. Cada vez
se convencia mais que não se tratava da mesma pessoa, aliás, isso era óbvio. Se fosse o mesmo
Lucifer, o pintor deveria possuir cerca de setenta anos, e nenhuma pessoa em sã consciência lhe
daria mais do que uns trinta e dois. Havia ainda diversos fatores que não se encaixavam nesse
quebra cabeças, e isso o levava a bolar possibilidades cada vez mais claras. Era aceitável que
fossem duas pessoas de mesmo nome, coisa não rara em todos os lugares do mundo. Talvez
Lucifer tivesse descoberto o túmulo, e se penalizasse pela história do garoto. Ou ainda uma outra
ainda mais admissível: Já que pelo que o coveiro disse, o garoto não possuía parentes, era bem
provável que Krieg tivesse adotado esse nome artisticamente, em homenagem ao menino que
morreu. A única pedra que ainda era um mistério, era como o pintor o havia descoberto, já que
não se tratava de nenhum herói nacional ou de alguma biografia que se achasse em bibliotecas.
Mais ou menos quando arquitetava esse pensamento, a chuva começou a cair do lado de fora do
carro, forte, como nunca antes vira. O vento a jogava com força sobre o pára-brisa, de um modo
tal, que mal se podia ver a rua. O barulho dos trovões era ensurdecedor, e quase não era possível
pensar. Foi quando o táxi chegou perto da esquina de Hary el, e ele pediu ao motorista que
encostasse o carro de fronte ao prédio. Estava começando a inundar as ruas próximas, como no
dia em que chegara com o mestre do interior. Ele pagou o taxista e saiu rumo à calçada. Em
menos de dois minutos de chuva já havia uma forte torrente d’água escorrendo pelas laterais da
rua descendo até os bairros mais baixos. A iluminação era cada vez mais fraca, provavelmente o
sol já estava se pondo atrás das nuvens escuras, e as poucas vezes em que a claridade se tornava
maior era nos instantes em que os raios caíam ao longe no céu.
Ele cobriu-se com o terno, colocando o rosto debaixo da gola do paletó e correu até a porta do
prédio, que era coberta, evitando assim a incidência das gotas mais pesadas. Era o segundo dia
seguido que lamentava imensamente não morar em um prédio com porteiro, já que teve que
passar quase um minuto na tempestade, procurando as chaves da entrada do condomínio.
“Na próxima reunião do edifício vou votar a favor...” , pensou, lembrando-se que na última
assembléia tinha votado pela contratação de dois faxineiros em lugar de um porteiro.
Ele abriu o portão de ferro e seguiu até as escadas, o prédio também não tinha elevador, mas
se ele ficasse pensando em tudo que não tinha iria ficar ocupado por no mínimo uns dez anos.
Duas lâmpadas das escadarias estavam queimadas, dificultando a visão e fazendo com que ele
subisse bem devagar, receoso de pisar em falso em algum degrau. A porta do apartamento
estava apenas encostada, com a luz acesa. Nunca desde que o mestre chegara, ela ficara
destrancada, e agora estava semi-aberta, com um contorno de luz iluminando um dos cantos do
andar. Hary el achou estranho a forma como encontrara o apartamento, principalmente quando
ouviu alguns ruídos estranhos vindos de dentro, como gemidos de dor. Ele abriu a porta bem
lentamente, provocando um rangido alto e contínuo.
Aos poucos a escuridão do corredor foi se desfazendo e ele pôde ver o que havia do lado de
dentro. Um cheiro nauseabundo se infiltrou pela suas narinas assim que pisou na casa, não era o
aroma costumeiro de chá, que tantas vezes sentira nos últimos dias, mas algo que lembrava um
odor de hospital, com uma essência de fundo que se assemelhava muito ao cheiro de vômito.
Ele colocou os pés vagarosamente sobre o carpete, e caminhou, seguindo o som dos soluços e
contorções. Vinha do seu quarto. Devagar ele foi se aproximando, tentando imaginar o que
ocorrera, a curiosidade se misturava de forma estranha com o medo, fazendo-o chegar cada vez
mais perto. Ele ouvia os rangidos e a voz do mestre que dizia alguma coisa como: “Se acalme”.
Hary el caminhou até chegar à beirada da porta do quarto e depois parou, como se já soubesse
o que encontraria. Ficou lá estático, escutando, com receio de se movimentar um milímetro
sequer. Então, num impulso, ele adentrou o quarto, e um cheiro ainda mais forte tomou sua
garganta, juntando-se com força tal à imagem que encontrara do lado de dentro, que a primeira
coisa que passou pela sua mente era que se tratava de uma alucinação.

Thomas estava estirado na cama, com o rosto inchado, tendo contorções violentas. A face do
rapaz estava branca, com uma tonalidade azulada que se assemelhava muito à asfixia. Ele suava
como um porco, provavelmente sentindo náuseas terríveis. Do lado, havia uma bacia cheia de
vômito, que quase se esparramava a cada tranco que o corpo do rapaz dava contra a cama,
como se tivesse convulsões.

— O que está acontecendo aqui? – perguntou Hary el, ao velho, que estava sentado em um
banco, do lado direito de Thomas.
— Espere – respondeu o velho.

O detetive correu até o rapaz, que se contorcia numa agitação surpreendente, e colocou os
dedos na sua face pálida.

— Está gelada! Ele está suando frio. – disse. – O que aconteceu aqui?
— Ele veio te procurar – respondeu o mestre. – Depois de alguns minutos começou a ter
espasmos.
— Vou chamar um médico!
— Não! Não dá mais tempo, se ele for removido vai morrer.
— Ele vai morrer se continuar assim.
— Sinta o cheiro.
— O que quer dizer?
— É o cheiro da morte. Você está sentindo esse cheiro de sangue podre? Eu sei uma maneira
de salvá-lo, mas ele não pode ser removido, não agora. Morreria a caminho do hospital.
— Mas o que vamos fazer? O que é isso? – o detetive olhou fixamente pra o rosto do rapaz,
escutando os gritos com uma dor profunda. Ele reparou nas gotas de suor escorrendo pelo azul da
face. – Envenenamento?
— É. Por uma erva muito rara. Seus médicos não achariam antídoto nenhum que surtisse
efeito. Vá até a cozinha e pegue a água que está fervendo.
— O quê?
— Vá rápido, ele não pode esperar.

O detetive correu até a copa e pegou a panela que estava no fogo. Quando voltou, viu o mestre
apertando um ponto nas costas dos pés do rapaz, um pouco acima do final dos ossos dos dedos.

— O que você está fazendo?


— Tentando salvar o seu amigo.
— Apertando os pés dele?
— Eu sou o único de nós dois que sabe o que ele tem. Deixe-me fazer meu trabalho, sem
falar, caso contrário, ele vai morrer.

De minuto em minuto, o rapaz vomitava, gritando como se tivesse sido atravessado por uma
espada. Hary el nunca tinha visto nada assim, não era realmente um envenenamento comum,
eram sintomas misturados, uma violenta dor abdominal, exaustão, face pálida e fria, coberta de
suor. Ele gritava que a boca estava ardendo, constantemente.
O velho pegou um pote com ervas que havia na sua mochila, e despejou na água fervente,
misturando com a mão. Depois respirou a fumaça que saia da panela, como quem analisasse se
a medida estava certa:

— Ele tem que tomar isso, se os vômitos pararem é um sinal de melhora, se não for assim...
— Se não for assim?
— Ele vai morrer, o corpo vai secar como uma árvore velha.

O detetive olhou para o rapaz, tomando o líquido , sentiu uma pena enorme.

— Onde ele foi envenenado? – perguntou Hary el.


— Não sei onde, mas não faz pouco tempo. Isso é coisa de alguns dias. A erva demora a
fazer efeito. Não é hora de você pensar nisso agora.
— É hora sim! Onde ele pode ter sido envenenado? Você disse que é uma erva rara, onde
ele pode ter entrado em contato com ela?

O rapaz não conseguia tomar direito a infusão, sua boca doía muito. Hary el não conseguia
olhar.

— Na China – disse o velho. –, ela só cresce na China. É muito mais incomum do que você
imagina, é quase lendária. Chamam de “a flor da morte”.
— Então como ele pode ter sido intoxicado por ela? Se for tão rara assim, é óbvio que foi um
envenenamento proposital. Quem além de você conhece essa erva?
— Já disse que não é hora de procurar culpados, mas de salvar o seu amigo.
— Não vou deixar que matem todos que eu conheço! – gritou Hary el, coberto de revolta. –
Ninguém mais vai morrer! Eu quero saber quem foi que o envenenou! Quem foi?
— Não há como saber...
— Você disse que faz alguns dias... Quantos dias?
— Uns dois, mas isso é muito variável. Você está fora de controle.
— Eu estou fora de controle? – gritou irado.- É a segunda vez que tentam tirar a vida de um
amigo meu. Por quê? Por quê?
— Se acalme...

Ele segurou nos pulsos do mestre.

— Eu vou perguntar mais uma vez: Como ele pode ter sido envenenado?
— Já disse que eu não sei. Mas a erva não pode ser servida com infusão, como esse antídoto.
Ela tem que ser misturada a uma bebida, uma bebida alcoólica.

Um flash repentino iluminou a mente do detetive. Por um instante, tudo estava claro. Assim
que ouviu, diversas imagens foram passando na sua cabeça, como um filme, enquanto repetia
pra si mesmo: “Bebida alcoólica”, “Bebida alcoólica”, “Bebida alcoólica”.

“— Você está bem Thom? – indagou o detetive.


“— Por que pergunta?
“—Você está um pouco pálido...
“— É, acordei indisposto hoje, suando. Quase não consegui me alimentar de manhã.
“— Já sabe o que é?
“— Eu achava que era febre, mas meu corpo está frio. Deve ter sido alguma virose...

“— Querem vinho? – disse Lucifer, pegando mais duas taças.


“—Você nem vai tocar no vinho? – disse ele, olhando nos olhos de Kitten.
“— Não estou com sede...

“— Sábios são os que buscam a sabedoria, loucos sãos os que já a encontraram...

“— Quem é?
“— Você não conhece?
“— Não, deveria conhecer?

“— Não acredito em fantasmas...


“— Mas devia. Eles nunca são o que parecem.
“A menina teve uma visão uma vez.
“A menina teve uma visão uma vez.
“Teve uma visão.
“Uma visão.
“Uma visão.

— Krieg!
— O quê? – perguntou o velho, notando o estado de êxtase em que o detetive permanecia.
— Lucifer Krieg. Você não entende? Ele não é a próxima vítima, é o assassino!
— O que quer dizer? – disse o velho, olhando espantado para o detetive, como se tivesse
medo da descoberta de Hary el.
— Foi ele. Ele envenenou o vinho. Ele matou o Paul e os outros...
— Com o ódio que você está sentindo, não vai conseguir raciocinar claramente. As coisas
nem sempre são o que parecem...
— Chega com esse papo! – esbravejou, jogando o braço do mestre longe.. – O que você
quer me dizer?
— Que você está se afastando da calma, está inundado em ira, está se afastando do Tao.
— Eu quero que o Tao se ferre! Eu vou até o galpão! – disse Hary el, levantando-se.
— O que pretende fazer?
— Esclarecer as coisas... Não tenho tempo pra ficar discutindo com você. Está claro agora.
Só não compreendo a ligação com o túmulo... Mas ele é um lunático.
— Hary el...
— O quê?
— Só, tome cuidado...

O detetive segurou nas mãos de Thomas e olhou no fundo dos seus olhos, como se quisesse
guardar um pedaço dele na mente.

— Você vai ficar bom... – desejou o detetive.


— Hary... – soluçou Thomas, que fazia um esforço imenso para falar. – Você acha que foi o
Krieg? É isso?
— Eu sei que foi ele, Thom. As coisas estão se encaixando...
— Mas, por quê?
— Eu não sei, mas eu vou descobrir.

O rapaz tossiu, ele tossia constantemente:

— Ouça o que o mestre disse... Não se precipite.

Hary el fez um sinal com a cabeça. Depois saiu pela porta do quarto e foi até a sala pegar um
sobretudo e as chaves do carro de Thomas que estavam sobre a mesa. Ele estava coberto de
fúria. Lá fora já havia escurecido, e a tempestade era mais forte que qualquer um dos outros
dias. Antes que ele saísse, o mestre foi até a sala e olhou para ele. O detetive estava fora de si.

— Quais as chances dele sobreviver? – perguntou Hary el, confuso.


— Muito poucas...

Ele bateu a porta e desceu desgovernado as escadas. Na rua, somente o azulado dos raios
iluminava o asfalto negro. Do lado de dentro, o mestre rezava para que a alma de Hary el fosse
mais forte que os raios.
O detetive pegou o carro e saiu descontrolado através das ruas de Londres. Não havia quase
ninguém nas calçadas, a chuva estava fortíssima e o carro mal conseguiu deixar a rua, tal a força
da correnteza que atravessava o asfalto. Ele passava em alta velocidade, atirando duchas d’água
contra tudo em volta. O veículo ia cada vez mais rápido, evitando as avenidas mais
movimentadas, onde o trânsito estaria lerdo. Na velocidade ele escondia seus pensamentos
quanto à situação de Thomas, esvaziando a cabeça a cada forte pisada no acelerador. Havia
poucos automóveis fora das pistas principais, e os poucos que ele encontrava no caminho eram
ultrapassados sem o menor receio. O detetive sabia exatamente para onde ia, iria encontrar o
artista e arrancar dele as respostas. Ao mesmo tempo em que corria, o novelo de idéias na sua
mente ia se desfazendo, nó a nó. Agora ele entendia a sensação que sentia toda a vez que via
Lucifer. Compreendia também o possível motivo dele estar lá no dia do enterro de Paul, além de
diversos outros acontecimentos que antes passaram despercebidos. Como o fato daquele crítico
ter visto uma obra de arte escondida nos retalhos do corpo de Metatron Morrison.

Ele encostou o carro na guia da rua, de frente para o galpão. Os holofotes de cima do depósito
estavam apagados, assim como as lâmpadas do lado de dentro. Estava tudo escuro, em silêncio,
como se alguma coisa lá dentro estivesse apenas esperando-o. A chuva ainda caía forte, mas o
telhado de aço do lugar cobria parte do local em que Hary el estacionara. Ele pegou uma lanterna
que Thomas sempre deixava de reserva no porta-luvas e saiu, rumo à entrada.
A construção era toda feita em metal e o portão de acesso ao lado de dentro era enorme. Ele
gritou durante alguns minutos do lado de fora, mas não obteve resposta. Como já era possível de
se prever, o portão estava trancado. O detetive tentou forçá-lo com as duas mãos, mas não se
movia de modo algum. Depois resolveu contornar o prédio pelo lado esquerdo, à procura de
alguma porta de serviço ou coisa do gênero. Ficou um bom tempo passando a lanterna pelas
enormes paredes da edificação, mas não encontrou nada, nenhuma abertura ou entrada. Assim
que atravessou a parte de trás do lugar o vento começou a lançar uma quantidade enorme de
gotas de chuva contra o seu casaco. Mesmo estando protegido da tempestade, debaixo da beirada
do telhado, ele não podia permanecer seco, tal a força do temporal. Continuou andando, na
esperança de achar alguma coisa, até que quase no final da parede do lado direito, em um dos
desníveis da construção, encontrou uma porta.
Era uma porta de madeira, presa somente com uma corrente e cadeado, possivelmente a
única do lugar. Estava escuro e ele não podia ver direito se havia alguma coisa em volta. Hary el
passou a lanterna em busca de uma placa ou algo do tipo, mas também não conseguiu enxergar
nada que fosse relevante. Ele aproximou-se da corrente tentou puxá-la, para ver se estava
realmente presa.
O barulho da água batendo no telhado de metal soava cada vez mais intenso, juntando-se ao
som dos trancos que Hary el dava contra as correntes. O cadeado estava fechado, assim como a
outra entrada. Ele gritou novamente e bateu na porta, mas ninguém atendeu. Contrariando as
evidências, Hary el continuava achando que Lucifer se escondia lá dentro, precisava entrar para
confirmar. Mesmo que ele não estivesse, seguiria depois até o apartamento do artista, ou até o
fim do mundo se fosse necessário. Passou por sua cabeça o fato de não possuir um mandato, mas
ele não poderia esperar, Thomas estava morrendo, Krieg à solta. As providências burocráticas
demorariam pelo menos até a metade do dia seguinte, e mesmo com toda a pressão sobre o caso
do artífice, não haveria como ser de outro modo. Ele precisava pegá-lo àquela noite.
O detetive olhou para as dobradiças, estavam deterioradas e enferrujadas pelo tempo. Num
único golpe de corpo, ele jogou-se com tudo contra a madeira da porta, abrindo-a pelo lado
contrário ao cadeado. A porta voou longe, tendo o movimento barrado apenas pelo repuxar da
corrente, que impediu a queda. Hary el atravessou a abertura, embrenhando-se devagar na
escuridão.

Ele moveu a lanterna para todos os lados, tinha entrado numa pequena ante-sala que dava
acesso ao lugar onde ocorrera a exposição. Ele caminhou devagar, iluminando o local móvel a
móvel. Havia algumas caixas no canto das paredes. Colocou a luz sobre elas, mas estavam
vazias. O detetive foi em direção à entrada para a parte maior do galpão. Do local que estava
ainda não conseguia enxergar coisa alguma além da porta. Ele levantou a lanterna e colocou os
pés lentamente no piso do lado de dentro. Para seu espanto, estava vazio. Não havia nada no
galpão, nem quadros, nem esculturas, nem coisa alguma. Como se tudo tivesse sido retirado. Ele
moveu o foco de luz pelas paredes brancas e pelo chão, caminhando por todas as partes do lugar,
mas não encontrou absolutamente nada, apenas uma vastidão vazia sobre o piso. Num desses
momentos a claridade da lanterna iluminou uma porta, a mesma pela qual entrara no outro dia
acompanhado de Thomas. Ela estava aberta.
“Lucifer”, disse o detetive, colocando o foco sobre a abertura. Mas tudo continuou em silêncio.
Ele infiltrou-se com cuidado pela passagem. No quarto ainda estavam os mesmos móveis da
outra vez, a mesinha de madeira e os dois sofás. Para alívio de Hary el não mudara nada,
continuava exatamente como antes. Possivelmente o pintor ainda estava na cidade. Embora o
aposento se apresentasse no mesmo estado, o quadro havia sido substituído. No lugar dele havia
outro, alguns centímetros maior, coberto por uma toalha marrom. O detetive pôs o círculo de luz
contra o pano e o puxou lentamente.
A tela que se mostrava aos poucos revelava um céu de nuvens escuras, tão negras quanto
fumaça. Voando contra ela, em meio aos ventos, havia sete anjos. Cada um deles com o rosto de
um dos mortos pelo Artífice, exceto o do centro, estava sem rosto, com um borrão de cores no
lugar da face. Um arrepio, como medo, percorreu o seu corpo assim que visualizou o quadro, era
uma cena macabra. Ao mesmo tempo em que a frigidez do arrepio lhe consumia, uma claridade
libertava suas idéias, agora tudo era óbvio: Lucifer era o assassino. Ele possuía a prova.
O corpo de Hary el tremia, enquanto passava os olhos por cada uma das figuras, observando os
traços, quando de repente fixou-se numa delas, no rosto de um dos anjos, nesse instante um súbito
clarão veio a sua mente, como se lembrasse de algo que esquecera.
“Samuel”, disse ele.
A porta do apartamento de Hary el estava aberta, ele esquecera de trancar na saída. O mestre
estava no quarto com Thomas, que havia ficado inconsciente por causa da infusão. O único
barulho que se ouvia na casa era o da tempestade, que atirava violentamente o granizo contra a
janela.
O demônio esperara dentro do prédio desde a saída de Hary el, observando a porta, quieto,
fazendo-se um só com a sombra, somente aguardando o momento em que entraria para
arrancar as ultimas pedras do seu caminho. O detetive saíra sem o ver, com uma cólera
impressionante. Tudo corria como o planejado. Ele deixou os olhos sobre o entreaberto da porta,
e o vento a movimentou devagar, sem rangidos, como se permitisse a passagem do assassino.
“Nenhum presente é de graça, normalmente eles compram seu futuro”, sorriu o demônio,
atravessando a porta e caminhando na direção do quarto de Hary el. Ele puxou um punhal de
haste dourada com algumas inscrições vermelhas de dentro do sobretudo e marchou
silenciosamente pelo corredor.

— Quem está aí? – disse o velho, do quarto, notando uma presença na casa.
O assassino inverteu a empunhadura da faca, colocando a ponta da lâmina escondida contra o
seu antebraço.
— Quem está aí? – insistiu ele.
O homem continuou calado, caminhando.

— Quem está aí?

O demônio virou-se e parou na frente da porta


— A morte – disse ele.

O velho olhou para a figura parada na entrada, trajando um longo sobretudo negro, até a altura
dos calcanhares. Os olhos do assassino o encararam, como se desafiassem sua alma.

— O que você quer? – perguntou o mestre, fitando-o.


— Você sabe o que eu quero – respondeu.
— E quem te dá o direito de tê-lo?
— Ninguém. Assim como não há nada que me impeça. Não tenho tempo de discutir com
você, só quero o que vim buscar.
— Não posso te dar o que não me pertence. Não é só a minha vida que está em risco, e acho
que não é só ela que você quer...
— Não. Quero a sua e desse que está com você. E quero agora!
— Lucifer... Eu tenho que protegê-lo, ele está nas minhas mãos.
— Protegê-lo? Por que você protege uma ilusão? Ele não está nas suas mãos, está nas
minhas, tanto quanto o outro que seguiu pra me encontrar.
— Você quer a liberdade, mas mantém o ódio...
— Ódio? – riu o demônio. – Não há ódio nenhum. Eu não quero a liberdade, eu já a tenho.
Tanto faz para mim, arrancar a sua garganta, ou te deixar vivo, mas eu quero que seja do
primeiro modo.
— O que quer dizer?
— Que não há porquês... Você já deveria saber. Mas você não me contou, me manteve
nesse ciclo, acreditando na verdade quando não havia verdades, buscando um caminho que não
existia.
— Justamente por não haver caminho ele existe. Não te mostrei, porque não se pode dar a
direção de algo que não existe, você tinha que descobrir por si só. Mas já que você conhece a
verdade, por que tudo isso?
— Por quê? Não há porquês... Tudo isso: eu, você, eles, o mundo, a vida e a morte são sonhos
estúpidos, alucinações da mente. Por que você se importa com eles?
— Por que a partir do momento que a mente acredita, tudo isso existe.
— Você que é acordado sonha mais do que os que dormem...
— Você se acha livre, querendo fazer do universo seu escravo. Você não está livre, Lucifer.
Está preso nessa vontade de que o seu plano não falhe. O que você quer? Provar pra você mesmo
que você domina as forças da natureza? Que forças, se elas não existem? Quer mostrar pra todos
que você é mais poderoso do que àquele em que você acreditava. O que te dá tanta certeza que
ele não existe? As escrituras? As escrituras são tão falsas quanto esse seu universo infantil.
— Assim que tudo correr como o curso do meu Tao, tudo estará acabado. Aí não terei mais
o que fazer, mas até lá, essa luz negra vai me guiar.
— Você então não quer ser escravo de uma ilusão, para ser escravo dessa luz negra. Ela
também é falsa. Você acha que conhece a verdade, mas está preso, preso nos seu desejo e preso
na sua idéia deturpada do Tao, preso nesse seu ego que não cessou de existir.
— Idéia deturpada de Tao? O que você sabe da minha mente? Eu posso te esmagar sem usar
as mãos, posso atravessar o Ganges sem tocar os pés na água!
— Tolo – sorriu o velho. – , se você quisesse atravessar o Ganges sem tocar os pés na água,
bastava construir uma barcaça... Tua visão do caminho é embaçada, você não consegue ver
além da ilusão, está preso nela, preso na liberdade.
— O que quer dizer?
— “Que só é livre o pássaro que entra na gaiola se quiser.” Você é escravo da sua
iluminação, não é capaz de se libertar da liberdade. Justamente por você compreender as coisas,
você não compreende coisa alguma.
— Cale-se!
— Viu, esse ódio? Você está sentindo ódio. Onde está a sua superioridade, a sua
compreensão que não te mantém impassível perante as minhas palavras?
— Eu posso me manter impassível se quiser. Você não. Você se preocupa com eles, com o
mundo, com as coisas transitórias.
— Liberdade não é crueldade, mas despreocupação. Eu posso ser indiferente se quiser, e
você? Você pode cessar de matar?
— Posso... – sorriu o demônio
— Então cesse!
— Eu cesso se quiser. E eu não quero. Você que se acha tão passivo em relação ao mundo,
agora tenta me manipular?

Thomas contorceu-se na cama, parando bruscamente.

— O que houve? – disse o velho, colocando os dedos rapidamente no pescoço do rapaz.


— Ele está morto. O veneno o matou.
— O quê? É impossível, eu dei o antídoto... – ele olhou no fundo dos olhos de Lucifer. – O que
você fez? Você sabe qual é a pena para quem usa da força do universo para matar?
— Eu não usei força alguma. Conheço as leis, que na verdade são tão ilusórias quanto todo o
resto. Eu não tirei a vida dele. “Você” tirou.
— A “Flor da Morte”... – o mestre moveu o olhar, como se desenvolvesse uma idéia. – Era
outra erva similar...
— Realmente. Você é mais esperto do que eu acreditava.
— Você sabia que eu iria tentar curá-lo... O antídoto o matou...
— O antídoto não. “Você.”

O velho cravou os olhos nos do assassino, absorvendo o que ele dissera, era frio nas palavras.
Cheung-Chizu retirou os dedos devagar do cadáver, depois sorriu.

— Eu não. “Você” – disse o mestre. – Você achou mesmo que isso iria fazer com que eu me
sentisse culpado? Agora eu descubro como você ainda é uma criança. Continuo com a mesma
convicção. Já você, matou um homem à toa.
— Eu o libertei. O salvei da maldição.
— Não, você o impediu de sair por si só. Você não o salvou. Ele vai continuar voltando, preso
ao Grande Ciclo, até que descubra por si só o caminho. Quanto a mim, nada do que você faça
abala o meu vazio. Já o seu ainda é cheio, cheio pela idéia de estar liberto.
— Você não sabe nada de mim.
— Eu sei quem você é. Você ainda é a mesma criança confusa que eu achei no avião.
Escondendo-se atrás desse orgulho, por achar uma coisa que não existe. Roubando um colar para
pagar uma promessa que era sua. Você abandonou a prisão, e ficou preso na estrada..
— Você continua falando, e eu continuo calmo, porque tuas palavras não importam pra
mim.
— Essa sua liberdade é apenas covardia.
— Covardia suprema é coragem profunda.
— Pois bem, veremos se você realmente atingiu o satori – falou ele, parando na frente do
assassino. – Eu vou te fazer uma pergunta, se você responder corretamente, minha vida é sua.
Caso contrário você somente provará que ainda não é um iluminado, e deixará essa casa, e a
vida de todos ligados a ela.
— Caso eu não responda o kung-an, deixarei mais que essa casa, deixarei a mente de todos
vocês. Mas caso eu responda, essa casa será minha e a vida dos que estão abaixo da tempestade
também, e eu não deixarei o meu quadro, até que toda a tinta dele se transforme em sangue.
— Falta apenas um, não?
— Mas depois dele a obra continuará sem mim. Se meu Tao for tão obscuro que não se torne
capaz de responder, você provará que eu vivo numa ilusão maior do que a que eu fujo. Mas se eu
vencer, será sinal que não existe nada, somente a mente, e eu serei senhor da mente, e senhor do
mundo.
— Por que você quer ser senhor de algo que não pode comandar? Como você quer
comandar o que não existe?
— Apenas pergunte.

Dois relâmpagos consecutivos iluminaram a escuridão do céu.

— Em cima de um alto mastro de um monastério – disse o mestre. – havia uma bandeira.


Um pássaro a olhava. Ele estava lá há muito tempo, sem se mover, apenas observando.
“Certa hora, de repente, outro pássaro que fazia seu vôo sobre o lugar, curioso pela situação,
parou para questioná-lo:
“— Que fazes amigo? – perguntou o recém chegado.
“— Estou olhando a bandeira tremular. – respondeu o outro pássaro enquanto continuava a
fitar a flâmula.
“O pássaro que perguntara riu-se e disse:
“— Não é a bandeira que tremula, é o vento no qual repousamos todos os dias nossas asas que
tremula.
“— Não obviamente é a flâmula que se move – retrucou o outro
“O segundo pássaro insistiu:
“— Não vês que é o vento que faz a bandeira tremular?
“— E tu? Não vês que é a flâmula que se mexe? – respondeu o primeiro
“— É o vento!
“— É a bandeira!
“Nisso chega o pássaro mais sábio, e ouvindo toda a discussão, declara:
“— Nem o vento nem a bandeira, é a “mente” que se move.
O velho encarou os olhos do demônio, e continuou:
— Agora eu te pergunto: na verdade onde está a bandeira?

Lucifer fez uma expressão de espanto, revelando a confusão que a enigma lhe provocara. Ele
conhecia esse kung-an e não era assim que ele era contado, e nem essa a pergunta.

— Responda o kung-an! – ordenou o velho.

Lucifer movimentou os olhos.


— Responda o kung-an! – insistiu o mestre. O demônio continuava sem reação. – Responda o
kung-an! Agora!

Krieg inclinou a cabeça e apertou os olhos, forçando as sobrancelhas.

— Qual é a resposta? – continuou o velho. – Dê a resposta! Responda o kung-an!


— A bandeira está no mastro, mas também não está.

Um risco de sangue jorrou por todo o quarto, cobrindo de vermelho a cena. Num único golpe,
Lucifer desferiu a faca contra a garganta do velho, num corte seco e horizontal, no qual moveu
apenas o braço e a lâmina oculta por detrás do pulso, rasgando o pomo-de-adão da vítima e
levando-a ao chão de joelhos, numa queda brusca. O movimento foi barrado apenas quando o
rosto do velho, ensangüentado, foi de encontro ao piso gélido, produzindo um som abafado, quase
inaudível, que apenas o demônio reconheceu.
Todos estavam mortos. Lucifer limpou o punhal e saiu pela porta. Ainda não estava terminado.
O carro que Hary el dirigia em alta velocidade girou no meio da avenida e estacionou de frente
ao prédio de Samuel Watson. O edifício era alto e antigo, dividido em duas partes, com algumas
lojas na parte térrea, e uma ampla entrada de vidro para os moradores do condomínio, que
possibilitava uma vista completa do hall. Em uma das lojas havia um grande cinema, e a calçada
estava bastante movimentada, com diversas pessoas caminhando de um lado para o outro, indo e
saindo da sessão e outras agitadas na fila. Assim que deixou o veículo, o detetive notou uma
aglomeração do lado de dentro do prédio, algo como uma briga. Havia uma quantidade grande
de pessoas cercando os elevadores, mas não conseguiu definir bem o que ocorrera, pois o vidro
estava um pouco longe, e o reflexo das lâmpadas impedia uma visão mais clara.
Ele caminhou até lá, atravessando a fila, mas teve o percurso barrado por uma mulher,
aparentemente uma prostituta.

— E aí gatão? Quer se divertir? – disse a mulher, colocando os dedos contra o peito de


Hary el.
— Por favor, não posso perder tempo – respondeu ele, ainda tentando entender o que ocorria
no prédio.
— Você quer ir pra lá? – perguntou ela, notando a aflição do detetive e indicando na direção
do tumulto.. – Não está muito agradável... O que um bonitão de olhos verdes como você quer ver
num lugar como aquele?
— Pessoas vivas – respondeu ele, desvencilhando-se da mulher e dirigindo-se
obstinadamente a caminho da entrada. Enquanto virava as costas, ainda pode ouvir algo como
“Vai ser difícil”.

Na frente da porta de vidro havia um homem alto, certamente um segurança, controlando o


acesso ao local. Assim que Hary el tentou atravessá-la, ele o interrompeu.

— Desculpe, senhor, mas, o senhor mora aqui? – perguntou o homem de terno.


— Não... – respondeu o detetive.
— Então me desculpe, mas já está difícil conter os que estão aqui dentro. O senhor não
poderá entrar...
— Olhe, eu estou com pressa, você é a segunda pessoa que me barra...
— Senhor, estamos tentando colocar para fora as pessoas que já estão aqui. Pediram para
esvaziar o prédio.
— Pediram? Por quê?
— O senhor não viu ali? – perguntou o segurança, indicando para dois carros de polícia
estacionados na esquina, estavam com as sirenes apagadas.
— O que houve? Assassinato?
— Acidente, eu acho. Senhor, por favor, libere a passagem.
— Eu vou entrar – disse Hary el, puxando as credenciais.
— Mas eu recebi ordens...
— E está recebendo outras – disse ele, introduzindo-se no lugar e andando até a multidão.

Cerca de umas quarenta pessoas contornavam a faixa de isolamento que os guardas-civis


colocaram. Alguns deles falavam incessantemente em rádios, certamente contatando a central.
Num primeiro momento, o detetive não pode perceber o que ocorrera, o círculo estava muito
fechado e ele demorou um pouco para afastar parte dos indivíduos, que curiosos, moviam-se de
um lado para o outro, procurando o melhor ângulo.
A cena que se apresentou quando ele finalmente chegou à beirada da faixa, era de um homem
ensangüentado, atirado de bruços no chão. Um dos elevadores estava com a porta escancarada,
como se a tivessem arrombado, mas o elevador não se encontrava lá. Provavelmente haviam
retirado o corpo de dentro. Alguns policiais com a camisa do resgate circulavam pelo local,
ajudando os civis a controlar a massa.

— Deixe-me passar – disse Hary el, mostrando o distintivo a um dos policiais.


— Até que enfim um dos detetives chegou. Disseram para não tocarmos em nada até que os
agentes chegassem... – falou o policial.
— O que houve?
— Não sei direito – comentou. – O elevador caiu. Há alguns peritos lá em cima, verificando
os cabos. Parece que eles foram cortados. Algum tipo de bomba estourou.
— A bomba rompeu os cabos?
— É o que os peritos estão investigando. Pelas informações que já chegaram, não era bem
uma bomba, mas um aparelho preso aos fios.
— Quanto tempo faz?
— Uma hora, mais ou menos. A vítima está morta. Ela estava irreconhecível, mas um dos
porteiros identificou a camisa...
— Samuel Watson...
— Como sabe?
— Não importa. Quem mais está vindo pra cá?
— Não sei, pensei que você soubesse... Parece que inspetores da sede da Scotland Yard e o
pessoal do Adam Johnson. Espere um pouco – disse ele, olhando bem para a face do detetive. –
Eu acho que estou reconhecendo você... É Hary el Kitten, não?
— Sou.
— Pode ser obra do Artífice?
— É o que vamos descobrir. O que mais encontraram? – perguntou Hary el, impaciente e
continuando a agir sem esconder a raiva que sentia. Precisava parar Lucifer, mas chegara tarde
de mais. Samuel estava morto.
— Achamos um pedaço de papel com ele. Nada de documentos, como já disse, o porteiro
foi quem forneceu a identificação.
— Pedaço de papel?
— É como um bilhete. Já colocamos no plástico, mas um dos peritos anotou o que dizia. O
senhor quer uma cópia?
— O mais rápido possível...

O policial saiu e falou alguma coisa no rádio, depois pegou uma caneta e começou a anotar
algo em um papel. Hary el permanecia confuso, com dezenas de coisas passando pela sua
cabeça ao mesmo tempo. Era como se o assassino soubesse tudo que ele faria, cada passo que
ele daria, como se fosse tudo planejado, todas as ações previstas. Ele era mais que inteligente,
era quase sobre-humano. Não adiantava o que ele fizesse, Lucifer estava sempre um passo à
frente, sempre preparado. Por um momento o detetive se sentiu como um boneco, incapaz,
vítima de um controle que ele não compreendia. Todas as coisas: O Galpão, vazio, esperando-o;
o veneno na bebida de Thomas, como se ele soubesse que apenas o rapaz beberia; a morte de
Paul, e até mesmo a de Watson enquanto ele revirava o galpão. Tudo arquitetado, minucioso,
preciso. Por que ele o deixara vivo, por que até então?

— Aqui está – disse o policial. – Eis o que dizia.


— Obrigado – agradeceu Hary el. – Quem achou o bilhete?
— Um dos peritos. Só eles e o resgate tocaram no corpo.
— Continue mantendo o corpo protegido. É importante saber se foi realmente a queda que o
matou.

O detetive passou os olhos sobre o papel.

— “A cascavel sai a passeio, e o rato vai procurá-la no ninho, mexendo em seus ovos, sem
saber que um deles pode chocar, e comê-lo vivo. A cascavel sai a passeio, e o rato vai atrás,
como se hipnotizado estivesse, procurando uma mordida, mas só acha ovos jogados. O rato fica
como bobo, de lá pra cá, à procura da morte. Mas a morte o espera, na toca da serpente,
escorrendo devagar pelas mandíbulas.” Na toca da serpente... Na toca... No galpão!
— O que foi? – perguntou o policial.
— Ele voltou para o galpão!
— O que o senhor quer dizer?
— Quando Adam Johnson chegar, diga que eu estive aqui e que é para ele me encontrar no
depósito onde ocorrem as exposições de Lucifer Krieg.
— Krieg, o pintor? O que o senhor quer lá há essa hora? A mostra já terminou...
— Só diga para ele me encontrar lá... – disse Hary el, indo embora apressado.
— Os quadros nem são tão legais – gritou o policial. – São todos macabros...
— Diga para ele me encontrar lá...

O detetive entrou no carro e deixou o lugar, na esperança de que mesmo que seu destino já
estivesse traçado, algo dentro dele pudesse mudar as coisas.
Nunca antes na vida ele pressionara tão fortemente o acelerador, o carro corria, ultrapassando
todos os limites possíveis de velocidade, cada vez mais rápido, como os pensamentos na cabeça
do detetive. Sua mente rebatia as palavras e frases, uma a uma, repetindo constantemente: “A
morte o espera na toca da serpente”, “A morte o espera na toca da serpente”. Ele compreendia
agora que Lucifer guiara todos os seus movimentos desde o início, até mesmo agora, ele fazia
exatamente o que o artista esperava, indo procurá-lo. Mas não podia ser de outra maneira, era
previsível, mas necessário. Ele era realmente como o rato que o bilhete descrevera, correndo
como bobo para todos os lados, à procura de uma agonia maior que a que ele sentia. Mas Hary el
não deixaria que essa agonia o tomasse, que o controle de Lucifer fosse maior que sua própria
força, maior que sua inteligência, maior do que tudo que ele já conhecia sobre as coisas.
Desabafava sua indignação quanto a tudo, queimando os pneus nas raras partes secas do asfalto,
jogando o veículo contra as gotas de chuva, atirando granizo para todos os lados. Agora seria a
hora em que tudo se decidiria, que o vencedor surgiria no meio da tempestade. Muitos já haviam
morrido, mais até dos que os que foram pintados. Eram inocentes demais para que passasse
daquela noite em branco. O sangue borbulhava por respostas, ansiando, sedento. Ele precisava
descobrir o porquê, o porquê de tantas vidas retiradas, tanta tortura. Se falhasse, a sorte já estava
lançada, ele seria o próximo, o último dos anjos. Ou quem sabe o primeiro? O início de uma nova
série de crimes. Como ele poderia saber ao certo quantos já haviam sido mortos? Será realmente
que Lucifer começara com Jeliel Arnold? Quem sabe em outros lugares, outras cidades, outros
países? Quantos, quantos homens e mulheres já haviam perdido suas vidas? Não, não poderia
estender-se por mais tempo, ali seria tudo decidido.

Parte das luzes do depósito estavam acesas. Hary el guiava como um louco, com os olhos fixos
no galpão ao longe, querendo chegar o mais depressa possível. A avenida de acesso estava muito
escorregadia, sem carros. Para todos os lados que olhava, não via pessoa alguma, somente um
vazio de vida, uma ausência escura de tudo. Ele abandonou o carro na frente do lugar e
embrenhou-se na chuva, gritando no tom mais alto que conseguia o nome do artista. Ele
caminhava, encharcado pela tempestade, berrando enquanto andava pela grama, observando a
entrada ao fundo, como um desafio, como quem avisasse aos que estivessem do lado de dentro,
que ele estava próximo. O som ecoava pelo vazio do lugar, indo e voltando, repetindo
continuamente: “Lucifer!”, “Lucifer!”.

A porta lateral ainda estava tombada. Lá dentro, apenas a escuridão se via.


Ele caminhou lentamente, adentrando a porta. No fundo, o único som era o dos relâmpagos,
que caíam cada vez mais fortes, e o barulho da chuva, a mais violenta já antes vista.
Ele ainda trazia a lanterna de Thomas, iluminando parte da ante-sala. Assim que entrou,
percebeu que não seria mais necessário usá-la. Um dos holofotes na sala de exposições estava
ligado, juntando sua luz, ao brilho azul do céu, vindo dos vitrôs. Ele ficou algum tempo na
penumbra, observando as partes claras do lugar. Exceto pela pouca iluminação, estava
exatamente como o deixara, permanecia quieto e nebuloso.
“Lucifer”, disse ele, atravessando a divisória dos aposentos. Mas não houve resposta alguma.
Ele repetiu mais algumas vezes, incessante, aguardado uma resposta. Num desses momentos, ele
ouviu uma voz dizer: “Entre”, ela vinha da escuridão.

— Quem está aí? – perguntou o detetive, olhando para a parte sombria do recinto.
Novamente, somente o silêncio permanecia. – Quem está aí? Lucifer?

— O que você procura? – disse a voz vinda da sombra, fazendo-se ouvir. Hary el assustou-se,
foi muito repentino. A figura de Krieg foi se iluminando devagar, a partir do momento que
andava na direção do visitante. Lucifer estava alguns metros acima, numa espécie de segundo
andar, um mezanino. O detetive foi até a escada. – Não ouse subir! – continuou Krieg. – Você
está invadindo um lugar que não lhe pertence. O que quer?
— Você sabe o que eu quero – falou Hary el, em tom raivoso. – Eu sei das mortes. A
pergunta é: O que “você” quer?

O demônio sorriu calmamente:

— Eu quero a sua alma – disse ele.


— Minha alma? Que tipo de pessoa você é? – Indagou Hary el, tentando olhar nos olhos do
assassino, mas ele ainda estava um pouco encoberto pela sombra. – Lucifer Krieg, você está
preso pelo assassinato em série de sete pessoas nesta cidade!
— Preso? – gargalhou. – Você nem mesmo tem um mandado, detetive. Você não pode me
prender, não possui provas.
— Eu vi o quadro!
— Que quadro? – O demônio mostrou uma tela enrolada, presa por uma fita negra. – Esse
quadro? Essa é sua prova? Você é um tolo...
— O que quer dizer?
— Como você sabe que vai sair vivo daqui? Você não sabe nada! Está desarmado, porque a
sua lei estúpida diz que não se deve usar armas. Eu tenho uma pistola. E você o que tem? Tem
uma coisa boba que você acha que é coragem, quando é só um medo, modificado pelo ódio. É
“ódio” que você sente, e é pelo ódio que nós vamos acabar o nosso quadro. Você chega aqui com
um distintivo e acha que eu vou obedecer a sua ordem ridícula. Sua vida está nas minhas mãos,
sempre esteve, desde o início! – Nesse momento, o assassino apontou a arma para Hary el.
— Você vai me matar? – disse ele em cólera. – Quantos você já matou? Hein, quantos?
Existem homens vindo para cá nesse momento, você não pode tirar minha vida.
— “Não posso”? – riu. – Eu posso o que eu quiser, poderia ter te matado na hora que eu
quisesse. Sua lei não se aplica a mim, coisa nenhuma que você domine pode me controlar. Já
pelo contrário, eu te controlo, o curso do meu Tao te controla, assim como a todas as criaturas
vivas. O que você veio buscar? Respostas? Porquês? Você é um idiota, não aprendeu nada com o
velho? Não existe coisa alguma dessas que você procura. São todas belos sonhos de verão. Mas
agora é outono Hary el, o “meu” outono, e o inverno está mais próximo do que você imagina.
— Você é louco!
— Louco... O que você sabe sobre loucura? Cada vez mais eu percebo como você ainda é
cego. Você acha que eu estou aqui? Acha realmente que há uma arma nesse momento apontada
pra você? Você é um idiota. É tudo uma alucinação, a sua vida é uma alucinação. – Hary el
moveu-se na direção da escada. – Não se mexa! Em qual esperança você se agarra? Na de que
pode me vencer? Me vencer com esses seus pensamentos? Com a sua inteligência? Suas ações
são imperfeitas, por mais que você arquitete planos, desenvolva esquemas, sua mente somente o
atrapalha, somente engana os seus sentidos, camufla a sua perfeição. Por que você acha que está
aqui? Por que você desvendou o meu plano? Encontrou o assassino? Você é ridículo... Você está
aqui porque “eu” quero, porque “eu” te fiz vir. Por mais que você tentasse, nunca iria me
encontrar, nunca saberia coisa alguma. É sempre sem rastro, sempre perfeito. Não a sua
perfeição ridícula, mas a perfeição verdadeira, a que vem, não dá continuidade de idéias, mas da
força do coração. Eu te guiei até aqui, eu te dei as pistas, eu te indiquei como chegar. Você e sua
policia são meros baralhos na mão do destino.
— Então o colar...
— Hum... – sorriu o demônio. – Eu te mandei até o mestre. Eu te mandei em todos os
lugares, desde o início.
— Mas por que essas pessoas? – disse o detetive, tentando entender. Por mais que se
esforçasse, não entrava na sua cabeça que tudo acontecia apenas por simples capricho.
— Porque eu quis. Precisava matar pessoas, escolhi que fosse assim...
— A morte é pouco pra você!
— Viu? Você também sente vontade de matar, não sente? Por que não mata? Por causa
desse seu medo bobo de Deus? Quem é Deus? Você o conhece? Já o viu, já ouviu suas palavras?
Deus também é uma ilusão, uma ilusão que você cria, uma ilusão que serve apenas para buscar
força quando a dor aparece.
— Mas ela ajuda contra a dor.
— A dor? A dor vem do desejo de não sentir dor. Você sonha com um amanhã melhor, com
uma vida melhor, inconformado, esperando que as coisas mudem, mas elas não mudam, aí
nasce a dor. A dor nasce quando você quer que ela cesse, quando você sente desejo, quando
você anseia algo. – o assassino deu um o passo, e seus olhos se iluminaram. Ele focalizava a alma
do detetive. – Mesmo quando você, mesmo quando você consegue o que você quer, não vem
alegria, vem medo, medo de perder o que você tem. E então, o homem vive na maldição
constante, que o põe entre a dor e o medo, uma maldição eterna, que não cessa até que cesse a
individualidade, que cesse o desejo, que o homem encontre a paz.
— E você encontra a paz matando pessoas?
— Você não entendeu ainda, não é? – riu novamente. Cada vez ele achava mais graça da
confusão que causava. – Matar, ou não matar, tanto faz. Não tenho desejos, também não tenho
“eu”, não tenho individualidade. Eu, você, o galpão, a cidade, o mundo somos um só. Quando eu
mato, todos vocês matam, a morte que eu causo é de responsabilidade de vocês, tanto quanto é
minha. Nós reagimos entre nós, eu com vocês, vocês comigo. Somos todos uma coisa só, e coisa
nenhuma ao mesmo tempo.
— Eu não sou responsável pela sua loucura! Você é um assassino e deve ser tratado como
um assassino! Eu nunca matei ninguém!
— Será? Será que realmente ninguém morreu por sua culpa? – disse ele, sorrindo, friamente,
como se tivesse controle total de todas as coisas. – A linha do que você acha que é, e do seu eu
verdadeiro é muito tênue, e também é muito imprecisa. Quem te garante que você não poderia
matar? Você não se conhece, não sabe do que é capaz. Antes de chegar ao fim do nosso quadro,
você vai descobrir o que o seu eu é capaz de fazer, e o quanto ele é responsável.
— O que você quer dizer?

Lucifer desceu devagar as escadas, com a pistola apontada para a cabeça do visitante. Ele
estava muito calmo, já Hary el demonstrava o ódio a cada respiração.

— Eu quero dizer que você é o culpado, é tão culpado quanto eu.


— Como assim?
— Paul, eu matei Paul para obrigar você a me encontrar.
— Aprendi com o mestre que a culpa está na mente de quem vê... – disse o detetive,
confuso.
— Não é que você está ficando esperto? Mas vamos ver se você realmente acredita nisso, se
essa verdade mantém realmente a sua mente calma contra as minhas palavras. Porque não foi
só Paul que morreu...
— Ele e mais seis pessoas – falou, encarando o demônio.
— Não, oito. O velho e Thomas também estão mortos. Matei-os enquanto você me
procurava na casa de Samuel. O sangue manchou todo o seu piso... Desculpe a descortesia...

Kitten abriu os olhos, arregalando-os. Não podia compreender aquilo, queria não ter ouvido,
queria realmente acreditar que era uma alucinação. Por um momento tudo era negro e nada
mais importava, se sairia vivo ou não, se Krieg fosse apanhado ou não. Era como um som
inaudível de tristeza, vazia, um pesar imenso, tão grande que mal podia se sustentar de pé.
Lucifer olhou novamente para ele, e continuou:

— O que foi? Isso foi demais pra você? Pra sua força? Você é patético...
— Seu desgraçado! – disse Hary el, avançando contra o assassino. Nesse momento o
demônio bateu com força a arma contra o rosto do detetive, e desferiu com a outra mão, que
segurava o rolo do quadro, um golpe na garganta que o atirou ao chão.
— Você é tão estúpido quanto os outros! Você não consegue se manter frio, impassível.
Você já perdeu. Não importa o que você faça, acabaremos o nosso quadro hoje. E ele será
batizado com o odor doce de sangue – debochou.

Hary el estava caído, ele levantou a cabeça e começou a olhar em volta. Tinha que haver
alguma armadilha. Todos os anjos haviam sido pegos por armadilhas, com ele não poderia ser
diferente.

— Sua alma já é minha – continuou Krieg. – Quando seus amigos chegarem, o último anjo
já estará pintado, e o meu trabalho já estará terminado.
— O colar... – balbuciou o detetive, caído. – Por que o colar?
— Por que o céu é azul e não amarelo? Por que a noite é negra e o dia claro?
— Não, não é isso... Tem alguma coisa a mais, eu sei... Você era discípulo de Chuang-Chizu.
Por que roubou o colar?
— Não te devo explicações. Mas digamos que eu era tolo e queria muito compreender a
verdade.
— E agora você não é tolo? O que quer compreender matando?
— Nada, não quero compreender nada, já sei o caminho.
— Mas você ainda faz coisas – disse Kitten. –, não deixa o Tao seguir por ele mesmo, você o
guia para um caminho escuro, você manipula a verdade, criando uma mentira.
— Você me diz essas coisas porque quer se salvar. Sabe qual é a verdade? – indagou, ereto. –
A verdade é que você não faz idéia do que fala, só joga palavras ao acaso. Você não apreendeu
nada...
— Pelo contrário, aprendi tanto quanto você. Posso não estar liberto, mas sei que você
também não está. Você tem desejos, tem o desejo de manipular o Tao. Então você não é
perfeito, é escravo da sua vontade.
— Então, assim que tudo isso acabar eu serei liberto, porque satisfarei o meu único desejo.
— Pensei que você tinha dito que a satisfação dos desejos também não traz a paz. Você está
se contradizendo... – disse ele, prestando atenção na arma. Somente esperando o momento em
que o assassino se distraísse. Se não conseguisse tomá-la, provavelmente cairia na armadilha.
— Posso estar me contradizendo, mas depois que meu plano for concluído apagarei minha
individualidade, então não terei mais vontades.
— Ouvi uma vez de Chuang-Chizu que o desejo gera um ciclo vicioso... Como você quer
chegar à ausência de desejos se insiste em manter um?
— Veremos então, depois que acabar! – disse Lucifer, pela primeira vez alterando o tom
calmo. Hary el se arrastava devagar, chegando mais perto.
— Você está exaltado? Pensei que alguém que atingiu o satori não tivesse crises de raiva...
— Eu não estou tendo crises de raiva!
— Está sim, eu estou vendo nos seus olhos, você está pensando...
— Veremos no final. O destino te mostrará o vencedor!
Nesse momento um barulho de sirenes cortou o som da chuva. Carros chegavam. O assassino
virou-se na direção do ruído, espantado, desviando o olhar e deixando o caminho livre para o
detetive, que desferiu um forte chute contra a arma, fazendo-a voar longe, girando, até
precipitar-se em sua direção. Lucifer soltou uma espécie de sorriso, um sorriso estranho, que
Hary el não percebeu, como se soubesse o que se seguiria.

O som dos veículos estacionando cobriu a atmosfera. Kitten avançou na arma caída,
segurando-a. O assassino correu, fugindo, percebendo que não daria tempo de lutar por ela, o
outro estava perto demais. Ele correu em direção à porta de saída, o mais rápido que podia, sem
olhar para trás. Hary el empunhou a pistola e apontou-a para o demônio, ele estava afogado em
ira.

— Pare! – ordenou Hary el, mas Krieg continuava a correr. – Pare!

Os trovões caíram ainda mais fortes e a luz dos raios iluminou a porta.

— Eu disse pra parar! – insistiu. – Pare!

Lucifer continuou.

— Pare!

Três tiros saíram da arma, atingindo Krieg nas costas, de uma só vez, ele tombou para frente,
deslizando no ar, até chegar ao chão. Caiu devagar, com as mãos esticadas na direção da saída.
Antes de atingir o solo, ainda um quarto tiro foi contra a sua cabeça. O sangue se espalhou por
todo o galpão, criando uma poça ao redor do corpo, que se contorceu por alguns segundos, até,
por fim, parar. O estrondo ainda ecoou por muito tempo pelas paredes do lugar e pelo coração do
homem. O detetive olhou para suas mãos, a pistola ainda estava quente. Ele havia matado.
Lucifer estava morto.

Tudo ficou claro assim que olhou para o cadáver. Qualquer outra pessoa entenderia que
estava acabado, mas ele não. Só agora as palavras de Lucifer faziam sentido, então ele sentiu
medo de si mesmo. O detetive aproximou-se devagar, mal podia andar. O artista estava jogado
de bruços, e o sangue escorria ininterrupto. Ele parou agachado ao lado do corpo e o virou. O
demônio sorria, sorria de uma forma macabra, diabólica. Não respirava mais. Tinha sido muito
rápido, ele havia gritado, pedido que ele parasse. As mãos de Hary el estavam sujas, imundas no
vermelho que escoava. Ele olhava para o corpo e sentia náuseas.
Os agentes de Adam Johnson entram de uma só vez, traziam homens das forças especiais,
também armados. Johnson estava acompanhado do guarda que Kitten encontrara no prédio de
Samuel Watson. Todos correram na direção do detetive. A cena que se apresentou era a de
Hary el agachado, em meio ao galpão vazio, segurando uma pistola e pegando uma espécie de
rolo. Ele estava sangrando. Johnson e os policiais pararam atrás do detetive, estava como em
êxtase, abrindo a tela devagar.

No quadro a tela que se mostrava aos poucos revelava um céu de nuvens escuras, tão negras
quanto fumaça. Voando contra ela, em meio aos ventos, havia sete anjos. Cada um deles com o
rosto de um dos mortos pelo Artífice. No centro, a face da figura já estava pintada, era o rosto de
Lucifer Krieg. O detetive passou os olhos devagar por toda a pintura, trêmulo. Em baixo, no canto
direito, havia uma mancha de tinta vermelha, como algo escrito, uma assinatura. Ele desceu os
olhos lentamente, hesitando, com medo do que encontraria, e a leu. Dizia:
“Hary el”.
Escrito, ilustrado, editado por:
Tony Ferraz© (2001)
Índice

Abertura
Prólogo
Primeira Parte
Segunda Parte

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