Tony Ferraz O Artifice
Tony Ferraz O Artifice
Tony Ferraz O Artifice
Sobre a obra:
A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o objetivo
de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples
teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura.
Sobre nós:
"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e
poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
O Artífice
O Artífice
Tony Ferraz
Para Elton.
Por trilhar comigo caminhos sem trilha
Índice
Abertura
Prólogo
Primeira Parte
Segunda Parte
Havia um lugar onde muitas pessoas viviam presas e famintas, essas penavam amontoadas
umas as outras e mal conseguiam fazer qualquer coisa, a fome as incomodava e de modo algum
conseguiam se libertar.
Do lado de fora havia um grande bolo de arroz do tamanho de milhares de homens, e esse
podia saciar a todos eles.
E tais pessoas possuíam grandes palitos de madeira de quatro a cinco metros cada um, e esses
alcançavam o bolo.
Mas essas pessoas viviam infelizes, pois os palitos eram grandes demais, e era impossível levá-
los à boca. Suportavam então sem alimento, a dor e o choro por todos os lados.
Havia então outro lugar, onde também muitas pessoas viviam presas e famintas, essas
penavam amontoadas umas as outras e mal conseguiam fazer qualquer coisa, a fome também as
incomodava e de modo algum conseguiam se libertar.
Do lado de fora também havia um grande bolo de arroz do tamanho de milhares de homens, e
esse podia saciar a todos eles
E tais pessoas possuíam também grandes palitos de quatro a cinco metros cada um, e esses
alcançavam o bolo.
E essas pessoas viviam felizes, pois os palitos eram grandes demais, mas ao invés de tentar
levá-los à própria boca, levavam à boca uns dos outros, alimentando a todos
Prólogo
O mestre soltou uma gargalhada divertida:
— Por que você quer saber isso? – perguntou ele, enquanto desligava o forno.
— Não sei, estamos conversando há uma hora e até agora não aprendi nada... Eu lido com
mortes todos os dias, é normal ter essa dúvida. – respondeu o detetive. – Já que você entende
dessas coisas, achei que deveria saber.
— Qual a sua pergunta exatamente?
— O que é o Céu e o Inferno?
O sorriso do velho fechou de uma só vez. Ele apertou os olhos e olhou bem para o detetive.
E o mestre continuou:
— Desculpe, mas estou decepcionado. Você é mesmo só mais um tolo inerte, uma vergonha
para os que trabalham com você, não um detetive. Eu devia deixá-lo aqui falando sozinho e ir
embora. Aliás, você é quem deveria ir embora, ficar quieto em um lugar que não estorve
ninguém com essa sua estupidez!
Nesse momento o detetive mordia os lábios, e sua raiva era tamanha que mal conseguia olhar
a face do velho.
— O que foi? Dói ouvir a verdade não é? – falou o sábio. – Mas em mim também doeu quando
percebi que você era esse idiota que você é. Um incompetente que não consegue solucionar um
simples assassinato. Não deveria ter te ajudado. Você não tem autocontrole algum, por isso o
assassino brinca com você, e vai continuar brincando. Por você ser essa lesma que você é, esse
ser desprezível. É esse o motivo do seu amigo estar morto agora. Ele confiou em você. A culpa é
sua! Da sua incapacidade!
Um ódio súbito percorreu o seu corpo, e já não suportando mais a raiva que sentia do velho,
sua mão partiu de encontro à faca, em cima da mesa. Enquanto ele a levantava, o mestre olhou
fortemente nos seus olhos e disse:
O detetive, num impulso repentino deteve o curso da arma, soltando-a, e percebendo que o
sábio arriscara sua vida para dar-lhe esta lição, abaixou a cabeça lentamente, coberto de
arrependimento e vergonha.
— Perdão, agora eu compreendo – disse o detetive, que mal podia pronunciar uma palavra,
abismado com o que quase fizera.
Em meio à multidão um homem caminhava a passos largos por entre o chão úmido. Ao que
parecia estava atrasado para algum encontro ou serviço, o que seria mais provável tendo em
vista o horário e a pasta negra que carregava. Vestia um terno marrom coberto por um sobretudo
de mesma cor que provavelmente era de grande valia para amenizar a brisa gelada que se
estendia por toda capital inglesa. As ruas estavam cheias de transeuntes, mas poucos usavam
guarda-chuva, a garoa começara a afinar desde o temporal da noite passada.
Era um homem alto, de bom porte, aparentava cerca de trinta anos e exibia um fraco sorriso
meio mascarado pela pressa com que caminhava em direção à banca. O homem comprou o seu
jornal e seguiu em direção ao ponto de táxi, quando foi interrompido por uma cigana sentada de
encosto a um dos edifícios antigos do centro.
— Senhor... Senhor!
— Eu? – perguntou espantado o homem
— É, o senhor. Quer ler a sorte?
— Estou meio apressado, fica pra outra vez...
— Mas, todos precisamos tomar cuidado com o futuro. Sabe, o que fazemos pode alterar
fortemente o nosso destino. Prometo que será rápido.
— Eu também estou sem dinheiro, quem sabe outro dia...
— Cobrarei só meia libra, estou com um pouco de fome. O senhor me ajuda e eu te ajudo.
O que acha?
— Já que insiste tanto...
“Eu ainda vou me arrepender disso”, pensou o homem enquanto caminhava em direção à
mulher.
A cigana olhou novamente no fundo dos olhos do homem, ele nunca havia visto um olhar
assim, era como se ela estivesse vendo no fundo de sua alma.
Hary el continuou fitando os olhos da mulher, eles nada lhe diziam, mas sabia que os seus
diziam alguma coisa para ela.
— Vê essa garoa Hary el? Ela cai há três dias por toda a cidade, mas cai há muito mais
tempo no seu coração. É quase a hora dela se mostrar, o sol está próximo, mas antes virá a
tempestade, a tempestade que chega é da cor dos seus olhos, se conseguir passar por ela a luz
virá, caso contrário, a noite te espera...
O homem não entendia, mas continuava a prestar atenção nas palavras da mulher, as frases
tinham um tom solene e o olhar dela fazia-o sentir calafrios por todo corpo.
— ... Eu vejo seu futuro – continuou a cigana –, o futuro que você faz, que você constrói. E
eu vejo os relâmpagos da chuva do seu futuro. Eu vejo o perigo da chuva que irá lhe buscar
depois do frio da manhã. Muitos já caminham na tempestade, e você por olhar a tempestade será
alvo dela. Eu vejo os anjos que buscam o céu durante a tempestade e vejo a tempestade
levando-os. Mas eu também vejo neblina no fim da chuva, uma neblina espessa que não me
mostra o final, não me deixa ver o “seu” final Hary el, e acima de tudo, não me deixa ver a face
da tempestade. Mas a neblina me conta algo mais importante, me diz que as respostas estão em
você, e isso é o principal você tem todas as respostas...
Hary el estava estarrecido, pouco entendia do que ela falava, mas suas palavras penetravam no
seu ser como nada que já tivesse ouvido.
— ... Na verdade você sempre teve não é Hary el? Desde criança você sempre tem as
respostas, agora uma pergunta maior vai afligir o seu espírito, uma pergunta que você julga já
estar respondida. Quem é você? Ahn Hary el, quem é você?
A cigana sorriu
— ... Sábios são os que buscam a sabedoria, loucos são os que já a encontraram...
O homem não compreendeu muita coisa, mas gravou as palavras da mulher, ele a fitou de
cima a baixo. Ela estava em silêncio e ele logo entendeu que a consulta já estava encerrada.
Abriu o casaco, tirou então os cinqüenta pence do bolso e pagou a cigana. Ela, por sua vez,
agradeceu.
A garoa continuava a cair e um táxi novo chegara, este ele não poderia perder, olhou então para
o motorista e fez sinal, o mesmo logo atendeu, encostando o carro ao meio-fio. Hary el seguiu em
direção ao carro, olhou novamente para trás para ver pela última vez o rosto da cigana, mas ela
já não estava mais lá.
— Bom, você tem que entender que não existe só esse caso, o pessoal anda ocupado, embora
esse fato seja grave a Inglaterra ainda tem muitos outros crimes pra serem investigados...
— Bobagem, eles andam muito influenciados pela imprensa. Ultimamente só caçam quem
está na mídia. Sabe como é, não se fazem mais policiais como antigamente...
— Dobre a esquerda.
— Ah, claro.
— Sou detetive.
— O chefe quer falar com você – disse Paul a Hary el que acabara de entrar na central.
— Maravilha! Todo mundo quer falar comigo hoje... – respondeu o detetive atirando o
sobretudo sobre sua escrivaninha.
— Ele parece de mau-humor... – continuou Paul.
— Sério? Cada vez eu me surpreendo mais com as novidades. O que ele quer?
— Pergunta pra ele. Acho que é sobre o tal cara das armadilhas. Acho que ele te quer no
caso...
— Como “te quer”? Parceiros, lembra? Na saúde e na doença, na alegria e na tristeza...
— Você é quem vai ficar bem triste se não ir logo pra sala dele. Todo mundo já percebeu
que você está atrasado.
— Eu tive uns probleminhas. Uma cigana maluca me parou na rua, e eu peguei um taxista
com complexo de cidadania...
Era o terceiro ano de trabalho naquela central desde que o detetive fora transferido de
Liverpool. Poucos eram os grandes casos que investigara desde então, no entanto, já obtivera
certa fama no meio pela captura do assassino de Lion Nasser, e mais importante que isso, por ter
desvendado no ano passado um crime que atormentara toda Londres, o caso ficara conhecido
como “As esmeraldas do Dr. Porter”. Esses fatos o fizeram ficar conhecido por sua grande
capacidade de dedução, inteligência e o mais marcante, sua capacidade de ironizar a morte.
— Eu quero você no caso! – disse o comissário, ao mesmo tempo em que batia fortemente a
mão contra a escrivaninha de sua sala.
— Calma chefe... Eu não posso, você me designou semana passada pra analisar o suicídio da
Sra. Norton. Eu e o Paul já estamos por demais atarefados...
— Esquece esse suicídio, eu mando a equipe do Alex investigar. Eu já disse, quero você
nesse caso, e nem pense em pensar em me contrariar... Tem um Serial Killer brincando de Lego
com armas mortais e me requisitaram dois detetives desse departamento. Você não vai ser o
único a investigar o caso.
— Bom, agora piorou, vou ter um bando de engraçadinhos se metendo no meu trabalho – o
detetive sorriu. – Mas o que você me pede chorando que eu não faço sorrindo?
— É bom mesmo, pegue os arquivos do caso com o Paul.
— Espero que você lembre disso na minha aposentadoria...
— Se você não andar logo ela vai sair mais cedo do que você imagina.
Paul era um grande amigo de Hary el, foi a primeira pessoa que conheceu em Londres, e sua
afinidade com o detetive foi logo motivo para ser destinado como seu parceiro.
Paul possuía trinta e dois anos e embora fosse bastante carismático, não era dotado de grande
beleza. Usava uns óculos de larga armação preta, o que contrastava de um jeito até um pouco
engraçado, com seus cabelos castanhos. Os dois haviam adquirido grande entrosamento durante
os casos que investigaram e suas ações quase sempre se complementavam.
— Os arquivos que me pediu – disse Paul, colocando uma enorme quantidade de papéis
sobre a mesa.
— Ainda não entendi porque tanto alvoroço, não temos nem certeza se foi o mesmo cara –
falou o detetive, enquanto olhava atentamente as manchetes de jornais e o relatório da perícia.
— Primeira morte: Uma semana atrás, J. M. Arnold, 23:00h de terça. Ao abrir a porta do
escritório disparou uma armadilha com 37 pequenas flechas envenenadas, a altura estava
calculada, não acertou nenhum ponto fatal. O assassino, ao que me parece, queria que a vítima
sofresse. Onze flechas atingiram a perna esquerda, amputando-a no nível do joelho. As linhas de
telefone estavam cortadas e o horário impediu que alguém ouvisse o pedido de socorro. O
veneno demorou a fazer efeito, morreu de hemorragia se arrastando no corredor do prédio. Foi
encontrado as 7:00 da manhã por um faxineiro que seguiu os rastros de sangue. Sem pistas, sem
impressões, sem inimigos.
— Qual a origem das flechas? – perguntou Hary el.
— Fabricação caseira, assim como todas as peças do dispositivo, ao que parece é um ótimo
artesão.
— E a segunda?
— Anteontem, Gabriel Collins no porão de sua casa. A armadilha possuía dois esguichos de
óleo diesel, uma espécie de lança-chamas fez o resto do serviço. Ele desesperado tentou correr
pra chuva, mas as portas estavam com tranca. O assassino teve um belo trabalho pra preparar a
casa. Morreu cremado. Na autópsia foram encontrados resíduos de um veneno similar ao
cianureto no estômago. O cara não perde tempo, mesmo que a armadilha falhasse a vítima não
ficaria viva.
— Local de envenenamento?
— Não se sabe, era domingo, ele passou o dia todo fora de casa, sem testemunhas. O mais
provável é que tenha sido ingerido com whisky, a vítima estava semi-alcoolizada na hora da
morte.
— E o retrato nos jornais?
— Já foi divulgado, mas até agora não apareceu ninguém que tenha visto nada. Fora isso
também não há pistas, tudo de fabricação caseira, sem resíduos, marcas, é impossível
estabelecer a origem dos equipamentos.
— Fatores comuns?
— Chuva, o fato dos dois serem homens e dos crimes serem realizados a noite. Há grande
semelhança nos equipamentos e um toque de crueldade. O cara é pirado.
O detetive ficou um tempo quieto olhando pensativo para o parceiro e, por fim, disse:
Os dois policiais passaram a manhã e a tarde inteira analisando o caso. Cada pormenor do
crime era estudado, assim como os relatórios dos médicos que fizeram as autópsias e o
depoimento dos que tinham contato com as vítimas. Quase no final do dia eles já estavam a par
de todos os detalhes e fatos ocorridos. Embora os dois já tivessem lido as matérias nos jornais e
acompanhado os acontecimentos dentro da polícia, sempre ficam fatos escondidos, que só são
descobertos por quem investiga minuciosamente o caso. Quanto mais pesquisava, mais se
desfazia na mente de Hary el a idéia de que eram crimes isolados, as particularidades eram
evidentes. Tratava-se de um assassino em série.
— Eu soube que Adam Johnson está trabalhando no caso – comentou Paul já olhando no
relógio.
— Ele está metido em tudo. Se duvidar ele está investigando até o misterioso
desaparecimento de apontadores na minha escrivaninha.
— Desculpe, eu usei quando fui assinalar uns trechos de uma reportagem... Eu soube que
você trabalhou junto com ele no caso de Lion Nasser.
— Não, eu não conheço ele.
— Ahn? Certo... Telefone pra você Hary , é o cara que você não conhece...
— Por que as coisas sempre pioram? – murmurou o detetive enquanto atendia o telefonema.
– Alô! Como vai Adam? O que, agora? Onde?
— Pega o casaco Paul, vamos fazer serão hoje – falou o detetive, enquanto batia o telefone
no gancho.
— O quê? – disse o parceiro, espantado.
— No caminho eu te explico.
Já anoitecia e a chuva que parara durante a tarde começava a cair bem fina sobre o retrovisor
do carro. Esse deslizava no asfalto úmido em meio ao raro barulho dos trovões que ressoavam de
quando em vez.
Depois de procurar um pouco Hary el logo achou a casa da vítima, estava cercada por cordões
de isolamento. Era uma casa antiga, do final do século XIX. Do lado de fora muitos policiais
impediam o olhar curioso da multidão. Por sorte, não havia ainda nenhum representante da
imprensa.
A casa era rodeada de muitas outras da mesma época, quase defronte havia um bar com uma
porta quadriculada de madeira e vidro. Este estava com o balcão quase deserto já que toda
massa móvel do local permanecia do lado de fora e com a atenção voltada para o crime.
O detetive encostou seu carro na guia ao lado do bar e seguiu com Paul em direção aos carros
da polícia.
— Afastem-se – disse Hary el, mostrando o distintivo e abrindo caminho em meio à
aglomeração.
— O que está fazendo? – perguntou o parceiro.
— Seguindo as luzes...
O detetive olhara espantado o grande numero de civis que rodeavam o local, na certa o corpo
já havia sido encontrado há algum tempo. Ao fundo via-se alguns homens de terno,
provavelmente agentes da sede central da Scotland Yard, e no meio da confusão cinco ou seis
policiais paisanos – constables - tentavam conter a massa.
Ao passar o cordão de isolamento um desses policiais o barrou.
— Hary el! Que bom te ver! – disse um homem de sobretudo preto que caminhava rumo aos
dois. – Deixe-o passar.
O policial imediatamente obedeceu ao homem de preto
O policial olhou para Adam e o mesmo fez um sinal com a cabeça autorizando a ordem.
Os dois então o seguiram até a porta.
Pelo que parecia havia poucos agentes dentro da casa, cerca de três. Estavam tirando algumas
fotos por conta própria.
Paul parara um pouco para conversar com o homem da câmera, queria obter o máximo de
informações possíveis.
A essa altura Paul já estava acabando sua coleta inicial de informações com o homem da
câmera. Parou então para olhar para seu parceiro, Hary el caminhava vagarosamente ao lado de
Adam, possivelmente rumo à cozinha. Adam Johnson era um homem muito estranho, pelo que
tinha percebido no início ele havia tido uma espécie de rixa com o detetive no passado.
Os dois até de alguma forma se pareciam, tanto um quanto outro exibiam certa ironia no falar
e eram dotados de grande inteligência, embora nesse quesito seu parceiro se destacasse. Paul
conhecia o detetive há tempo suficiente para saber que dificilmente alguém o superaria
intelectualmente. No entanto uma coisa parecia diferenciá-los. Johnson exibia certa covardia no
olhar que Paul nunca notara em Hary el, talvez este fosse o motivo que o fizera manter uma
espécie de antipatia por um homem que acabara de conhecer. Mesmo tentando Paul não
conseguia desassociar a figura de Johnson a um rato.
— Ali está – disse Adam, mostrando ao detetive o local onde estava o cadáver. – Preciso sair
agora, tenho outros dois casos pra averiguar antes da meia-noite.
— Até – disse Hary el, enquanto passava pela porta da cozinha pisando no sangue empoçado
pelo chão.
Johnson despediu-se rapidamente de todos, incluindo Paul, e partiu junto com boa parte dos
carros de polícia. Ainda havia cerca de cinco agentes no local e há pouco viera o reforço com
mais seis guardas-civis. O numero de curiosos do lado de fora só aumentava e os jornalistas já
davam sinais de presença através dos flashes que iluminavam constantemente a parte externa da
casa.
Hary el ficara intrigado com os caracteres no corpo da vítima, nunca havia visto nada
parecido, já ouvira relatos sobre crimes relacionados a seitas satânicas, os quais na grande
maioria das vezes eram diferenciados pela grafia de símbolos nos cadáveres, no entanto, os
métodos sempre seguiam uma espécie de ritual, fato comum em crimes psicóticos, o que ali não
se via.
— Chamem a perícia!
— Já estão a caminho – Disse Paul, enquanto retirava um tipo estranho de colar de dentro da
roupa da vítima.
— O que você está fazendo?
— Só examinando...
— Eu devia examinar seu distintivo! Você devia esperar os peritos, o que pensa que está
fazendo?
— Já disse, estou só olhando. Não é um colar estranho para um cara como esse? Meio
feminino...
Era um colar muito bonito, provavelmente de ouro puro. Em seu centro havia uma pedra de
formato oval, azul escura, como um camafeu com duas hastes douradas, compridas e finas. A
pedra central possuía cerca de dois a três centímetros. Hary el percebeu que a mesma ocultava
uma espécie de compartimento, mas resolveu ficar calado, seu amigo já estava por demais
entusiasmados.
— Sua mulher sabe desses seus dotes relojoeiros? – Disse o detetive, enquanto arrancava
brutalmente a peça da mão de seu parceiro.
— Calma aí, cara...
— Olha Paul, hoje eu tive um dia cheio, pra terminar um maluco sai inventando engenhocas
homicidas por toda Londres e desenhando gestalts com lâminas no corpo de pais de família ,
sinceramente, cara. Eu não quero acabar meu dia ouvindo um bando de engraçadinhos pseudo-
intelectuais me dizendo que “Não se deve tocar nas provas do crime” porque isso eu e você já
estamos cansados de saber...
— Ta bom, desculpa. Eu só...
— Eu sei, esquece isso. Vamos tomar um café.
Mesmo depois de tudo que acontecera Hary el não conseguira parar de pensar na cigana que
encontrara pela manhã. O que queria dizer tudo aquilo que ela lhe falara? “Sábios são os que
buscam a sabedoria, loucos são os que já a possuem”, aquela frase de uma forma engraçada
martelava na sua cabeça como algo muito importante, como se representasse alguma coisa.
Na folha estava estampado o retrato do colar que eles haviam encontrado na vítima
— Você desenha bem, onde aprendeu? – Continuou Paul, ainda tentando atrair a atenção do
detetive.
— A gente aprende muitas coisas trabalhando no departamento criminal...
— Modéstia não está inclusa... Por que está fazendo esse desenho?
— O colar, eu achei estranho. Não parece com nada que eu já tenha visto, aliás, tudo nesse
crime também não.
— Você não disse que conhecia o colar? Hindu...
— Aí é que está meu amigo, o colar provavelmente é indiano, século XVII, mas esse
símbolo de oito lados estampado na pedra não, é um símbolo chinês, você que é meio esotérico
devia saber o que significa.
— Baguá?
— Exato, uma combinação exemplar não? Embora a filosofia chinesa tenha em sua origem
uma grande influência indiana, não existe esse símbolo na tradição Hindu e nem um colar como
esse na China. Não faz muito sentido...
— O colar pode ser falso, provavelmente o ourives queria criar alguma coisa nova, baseada
no oriente, além disso, nós ainda não temos certeza que ele tem alguma ligação com o crime. O
que tem demais um homem gostar de jóias?
— Você mesmo disse, é feminino demais. Ao que parece é uma peça antiga. Não foi criada
recentemente, por isso não veio de nenhuma inspiração neo-oriental. Fora isso, também não é
um artigo que se carregue no bolso do paletó a qualquer hora.
— Acho que botaram erva demais no seu chá.
— Hum...
— É sério, Hary. Você está com mania de conspiração. Lembra semana retrasada? Você
achou que o derrame de óleo na Baía de Guanabara era estratégia do governo brasileiro pra
privatizar a Petrobrás. Você anda vendo TV demais...
— E você me enchendo demais, acaba logo o seu café.
— Não está mais aqui quem falou...
— Sabe qual é o seu problema Paul? Você não presta atenção em evidências. Tem fé
demais no que não vê e se recusa a enxergar o que está na sua frente.
— Exatamente o que meu psicólogo disse, se eu soubesse desses seus dotes não precisaria ter
pago três anos de terapia.
— É, e você não aprendeu, por isso sua mulher não te suporta.
— Ex-mulher. Você podia deixar esse seus comentários pra outra hora, né? Eu estou cansado
e preciso ir pra casa acabar de ler meu livro de auto-ajuda. Amanhã, na central, o chefe vai
querer o relatório e eu tenho que passar a noite inteira pensando numa boa história.- disse Paul,
dirigindo-se à porta do bar.
— Boa noite – respondeu o detetive.
— Quer uma carona?
— Não, vou a pé. Preciso arejar um pouco minhas idéias.
— Eu só disse que você estava vendo muita TV...
A garoa continuava a cair por toda Londres. As gotas de chuva sofriam o reflexo das lâmpadas
e tornavam as ruas e calçadas cada vez mais brilhantes, o vento soprava e levava o frio do outono
através dos becos. A mente de Hary el continuava a se lembrar da cigana e de tudo o que
acontecera naquele dia. Sentia como se algo muito importante estivesse começando, algo que
mudaria sua vida para sempre.
— Instinto de detetive.
— Ahn? – Disse o barman espantado
— Desculpe, eu estava distraído – tentou consertar Hary el
— Eu percebi – respondeu o barman –, eu dizia, senhor, que são duas libras...
— Ah claro, fique com o troco – falou o detetive, enquanto pagava seu chá e dirigia-se em
direção à porta. – O senhor viu alguma coisa? – lembrou-se de perguntar antes de deixar de vez o
estabelecimento
— Do crime? Não. O Sr. Morrison era um homem muito reservado, as poucas vezes em que
freqüentou o bar mal pronunciou duas palavras. A casa ficava sempre fechada, acho meio difícil
o senhor encontrar alguém por aqui que tenha visto algo.
— Mesmo assim obrigado, o chá estava ótimo. Do que era?
— Hortelã, o Sr. Morrison também gostava.
“Também gostava? Ele não disse que o homem havia freqüentado poucas vezes o bar? Como
poderia saber?”, pensou o detetive. “Não, acho que eu estou mesmo vendo muita TV...”
Hary el despediu-se do barman e seguiu rumo à sua casa. A noite já havia caído há algum
tempo e amanhã seria um longo dia.
O demônio de olhos cinza acordara mais uma vez com os trovões em meio à madrugada.
Tivera outro longo pesadelo com o sangue que derramara. Via suas vítimas suplicando
amedrontadas no fogo do inferno. Elas ardiam e suportavam a dor amaldiçoando aos gritos o seu
nome. Mesmo assim não sentia remorso algum. Ele lembrava do tempo em que seus olhos ainda
eram verdes, verdes da esperança que carregava no seu coração. Agora nada mais restava. Seu
coração não tinha mais aquela esperança e seus olhos eram cinza como o mais forte nublado do
céu. Tudo isso porque alcançara a verdade. Agora ele possuía o maior dos conhecimentos,
conhecimento esse que lutara muito para alcançar. Ele sabia que o caminho escravizava, mas a
verdade, essa dava a liberdade, e ele era liberto.
A tempestade do lado de fora lembrava-no que seu quadro estava apenas começando e os
relâmpagos que de quando em vez iluminavam o apartamento faziam-no ver o quanto ainda
faltava de tinta vermelha no céu.
Levantou-se e começou a pintar, pintar a face do terceiro anjo. As tintas eram passadas pouco
a pouco sobre a tela, com uma precisão sem igual. Era um grande artista. Ainda faltavam quatro
anjos. O cenário estava pronto há sete dias, mas só há três iniciara realmente o seu trabalho. Os
corpos já estavam desenhados e os rostos escolhidos, exceto o do anjo do centro, ele ainda não
decidira sua face. Olhava atentamente para sua obra e sentia que a inspiração estava próxima.
Logo a névoa que cobria a parte principal de sua obra desapareceria, e aí ele poderia realmente
achar o fim.
— Maldita insônia! – gritou o homem atirando longe seu pincel. – Preciso de inspiração!
Por que ela nunca vem quando preciso?!
“É essa maldita luz”, pensou. “Esses prédios do lado de fora, com essas lâmpadas... Não me
deixam mergulhar nas trevas” “Amanhã. Amanhã eu resolverei isso, não posso ficar frustrado
tanto tempo. Eu sei que a idéia está próxima, eu sinto o cheiro, eu a entrevejo na minha mente.
Não preciso ficar irritado, amanhã eu acharei o sétimo anjo.”
O homem pegou uma xícara de café do lado da mesinha de madeira, ainda estava quente. Ele
estava suado por causa do pesadelo. Como podia suar numa noite tão fria? Bebeu um pouco do
café e recolheu o pincel do carpete. Provavelmente não dormiria naquela noite. Só lhe restava
pintar. Se não houvesse mais o que pintar na sua obra-prima, pintaria outro quadro, um que
representasse seus sentimentos. Estava confuso desde que tudo isso começara. Sentia fortes dores
de cabeça alternadas com estados de êxtase inigualáveis. Embora suas idéias nunca estivessem
tão claras a confusão provinha do emaranhado de sensações que sua mente produzia.
Concentrou-se um pouco e fez uma espécie de auto-hipnose, havia dado certo nas ultimas vezes.
“Por que o vento sopra tão forte contra a janela?”, ponderava. “É como se quisesse me dizer
alguma coisa, mas eu não consigo escutar”
A dor de cabeça já passara, enquanto pincelava ouvia o zumbir do vento que insistente batia
nas paredes do lado de fora do prédio.
“Vou parar para escutá-lo”, disse consigo mesmo. “O vento e eu somos parte do todo, por
tanto ele e eu temos a mesma essência, se me tornar um só com o vento saberei o que ele sabe.”
O homem abandonou o que fazia e sentou-se em meio a uma almofada vermelha no centro da
sala, provavelmente a única área quente naquele piso gelado, cruzou as pernas e acendeu um
incenso.Respirou profundamente como muitas vezes já havia respirado e fechou os olhos.
Encostou a língua lentamente no céu da boca e pronunciou uma sílaba tão poderosa que fez
vibrar cada célula do seu corpo. Ele passou exatamente uma hora em estado de intenso
relaxamento, não pensava em nada, pois sabia que a mente suprema é a não-mente. Ele logo
atingiu o estado que necessitava, então acordou. Abriu lentamente os olhos e pouca luz que
entrava devagar por eles iluminava também o seu interior. Sua aparência agora era relaxada,
como se nada mais importasse e o tempo não existisse.
— Graças ao Tao que é meu escravo e também minha essência! – riu o homem. – Agora
compreendo.
“Mas por que o vento não me mostrou o rosto na viagem?”, se questionava. “Não importa, já
sei o que preciso saber, sei que amanhã terei minhas respostas”
Ele levantou-se da postura de lótus e olhou para as nuvens que se abriam no céu. As estrelas
começavam a aparecer e a tempestade por sua vez dera uma trégua.
“Como é belo o que minha mente imagina”, refletia. “Pena que a maioria das pessoas só
consiga ver estrelas a noite. Mesmo assim elas têm sorte, não carregam o peso da sabedoria.”
O cheiro de eucalipto envolvia todo o ambiente, e pouco a pouco penetrava por entre a janela
o brilho azulado da lua. Ele ficou lá, durante um longo tempo, olhando pela janela e lembrando
das muitas coisas que já haviam acontecido e das muitas que ainda estavam para acontecer.
“Só agora entendo o que meu mestre dizia” pensava
“
— Antes de escalar o grande monte, eu olhava às vezes para a paisagem, as árvores eram
apenas árvores, e os lagos apenas lagos – dissera o mestre. – Já no meio da subida, eu também
parava às vezes para olhar a vista e ver o quanto já tinha escalado. As árvores eram mais que
árvores e os lagos mais que lagos. Agora que cheguei ao topo, as árvores são apenas árvores e os
lagos nada mais são que lagos, no entanto ainda falta o céu para subir.
— Não compreendo...
— Um dia compreenderás.
— Por que o Ch’an é tão complicado?
— Por que as coisas mais simples são as mais complexas.
— Mestre, o que é o Ch’an?
— O Ch’an é a luz da lua iluminando o Sol.
— Ainda não compreendo.
— O Ch’an é esterco seco.”
O homem voltou para o seu quarto e começou a pintar novamente, misturava devagar as tintas
tentando achar a tonalidade certa. Lá fora as correntes de ar arrastavam algumas latas pelo
asfalto fazendo um barulho intrigante, que se misturava às vezes com o dos poucos carros que
cortavam as ruas daquela quadra. Enquanto coloria o rosto na tela, o homem lembrava-se aos
poucos da sua infância na China e de uma história que ouvira certa vez, há muitos anos, de seu
antigo professor.
“
— Mestre, posso parar de estudar um pouco e sair para nadar? – disse o rapaz.
— Não fizeste isso ontem?
— Sim, mas sinto vontade.
— Mês passado você me pediu a mesma coisa e eu consenti, ficaste meia hora no rio.
Semana passada assim também foi e ficaste uma hora lá. Ontem tu me disseste que se eu te
deixasse ir estudaria com muito afinco no dia de hoje, ficaste duas horas no rio. Se hoje eu te
deixar ir de novo, tu nunca mais estudarás como deves estudar e sempre desejarás ficar mais
tempo fora daqui.
— Não, será a última vez – disse firmemente o rapaz.
— Na antiga China vivia em uma montanha profunda um famoso e sábio eremita de nome
Senrin. Esse homem era muito conhecido por seus poderes mágicos e sua generosidade.
“Certo dia, um velho amigo em viagem fora visitá-lo. Senrin por sua vez, feliz em recebê-lo
ofereceu-lhe um saboroso jantar e abrigo para noite. A madrugada era fria, mas o eremita
cuidou para que o hóspede dormisse confortavelmente.
“Na manhã seguinte, antes da partida do amigo, quis ofertar-lhe um presente. Tomou então
uma pedra do chão, e com o dedo, converteu-a em um bloco de ouro puro.
“O amigo claramente não ficara satisfeito; Senrin sem dizer uma palavra apontou o dedo para
uma rocha enorme, que também se transformou em ouro.
“O amigo, porém, para espanto do eremita, continuava sem sorrir.
“— Que queres então? – indagou Senrin.
“Respondeu-lhe o amigo
“— Corta esse dedo, eu o quero.
O homem acabou as pinceladas que faltavam e deitou-se na cama, por enquanto terminara
seu trabalho. Ele permaneceu ali por muito tempo, observando fixamente o teto, tentando
adormecer. O próximo dia traria consigo coisas que ele ainda não previra, mas ele já havia
decidido o que fazer. No próximo dia, mataria novamente.
O detetive chegara mais uma vez atrasado à central, não dormira bem aquela noite. Como de
costume Paul e quase todo o departamento já estavam lá.
— Você está na primeira página do Times meu amigo! – disse Paul, enquanto entregava um
jornal nas mãos de Hary el
— O que é isso?
— Adivinha.
— Sinceramente eu já estou com a cabeça cheia com esse negócio de adivinhar – falou o
detetive, ao mesmo tempo em que abria o jornal. – E, eu acho que... Não pode ser! – disse o
detetive, espantado
— Mas é... Parece que enfim a mídia te reconheceu.
— “Detetive Hary el Kitten comanda caça a assassino”? É hoje que o Adam compra uma
daqueles bonecos de vodu...
— Você não tem culpa. Ele já tinha saído quando os jornalistas chegaram. A foto ficou boa.
A gente saiu bem...
— Não foi meu melhor ângulo – disse Hary el, ironicamente. – O Chefe já chegou?
— Já. O relatório da perícia também já está pronto.
— Me arruma uma cópia.
— Já tem uma na sua mesa. Você vai se espantar com a listagem dos peritos.
Mesmo mantendo a alegria de sempre Paul parecia diferente aquela manhã, Hary el notava
que seu parceiro estava preocupado. De início achara que fosse alguma coisa relacionada à
repercussão que o caso estava causando. Mas logo descobriu de que se tratava.
Era a segunda vez em dois dias que o detetive dirigia com pressa para o Bloomsbury passando
dois sinais vermelhos, no entanto não garoava, embora a manhã ainda permanecesse fria e as
previsões anunciassem chuva no final da tarde.
— Qual o laudo inicial? – perguntou Hary el, com os olhos cravados no volante
— Foi aquilo mesmo que o Johnson falou, ele preparou a armadilha e entrou depois pra
garantir o serviço.
Os dois estacionaram o carro no mesmo lugar da noite passada e foram até a casa.
Paul e Hary el voltaram para o carro e partiram em direção ao departamento, era quase
horário de almoço e eles já começavam a sentir os sinais da fome.
— Estranho aquele médico, no início parecia meio nervoso – comentou o parceiro, que
agora dirigia.
— Não, normal. Ele havia sido abordado por dois homens atrás de um colar que ele nunca
viu, eu estranharia se ele estivesse calmo demais.
— Bom, você é quem sabe. Acha que ele vai te ligar.
— Acho que sim, esse pessoal sempre lembra de alguma coisa que ainda não tinha pensado.
— Vai contar pro chefe, do colar?
— Pra quê? Pra todo mundo saber que eu fico revirando provas do crime? Sou eu que estou
investigando o caso, ele não precisa constar no relatório.
— Mas assim não vai dar pra fazer uma auditoria pra apurar quem roubou.
— Melhor desse jeito, o cara se descuida. Encosta ali do lado que eu vou deixar esses papéis
na minha mesa. Depois a gente sai pra comer.
— Pra onde você quer ir?
— Faz dias que eu quero comer uma macarronada, me recomendaram um restaurante
italiano na Guilford Street que é muito bom.
— Você e a comida italiana... Se continuar se entupindo de carboidrato desse jeito vai virar
um elefante.
— Olha quem fala, você está três quilos acima do peso. Me espera próximo à esquina – falou
o detetive, batendo a porta do carro.
Hary el desceu e entrou no prédio, alguns policiais caminhavam até a porta de entrada,
provavelmente saíam para almoçar. As escadas também estavam cheias e ele encontrou certa
dificuldade de chegar a sua escrivaninha. Pegou sua carteira e deixou os relatórios em cima da
mesa de Paul. No meio do movimento percebeu que seu apontador estava novamente na
escrivaninha errada, consertou o problema e retirou um guarda-chuva da segunda gaveta, o
tempo começara a fechar novamente. O relógio marcava onze e quarenta.
— Onde você estava? Me fez gastar gasolina deixando o motor ligado – informou o parceiro,
impaciente dentro do veículo.
— Põe na conta – disse o detetive entrando rapidamente no carro. – O pessoal resolveu
almoçar em grupo.
— Pra onde eles vão?
— Não perguntei, eu sei que nós vamos pra Guilford Street.
— Hary el, eu não tenho grana pra almoçar todo dia em restaurante italiano...
— Se você não gastasse com cigarro economizaria um bom dinheiro.
— Que ia ser gasto com gasolina, tem idéia de quanto a gente já rodou só na última semana?
— Pisa no acelerador.
— Por que eu ainda te dou ouvidos? – perguntou Paul dobrando a esquina.
— Segue por ali e vira na Gray ’s inn Road.
— É perto?
— É. Você tem o telefone do Adam?
— Na agenda do distrito. Por quê?
— Acho que nós vamos precisar, o caso está esquentando.
— Eu percebi, ontem você interrogou alguém na casa do Morrison?
— Só o barman, fiz algumas perguntas. Ele me disse que o cara era muito reservado, poucos
amigos, o que complica bastante as coisas.
— Ele também não tinha parentes próximos, eu falei com alguns agentes na casa.
Certamente eles foram hoje no trabalho dele pegar mais alguns depoimentos.
— Onde ele trabalhava?
— Não leu no jornal? Ele era o presidente das Corporações Medison.
— Isso não é muito relevante, se o cargo da vítima importasse ou fosse algo relativo a
dinheiro ele não teria matado o Collins.
— Faz sentido. É aqui?
— Exatamente. Estacione ao lado da porta. Paul, posso te fazer uma pergunta?
— Claro.
— Foi você que pegou o meu apontador?
— Você bebe e fuma, se continuar nesse ritmo vai morrer antes dos quarenta – comentou o
detetive.
— Não sei se você sabe, mas um cálice de vinho por dia é antioxidante e faz bem a saúde –
respondeu Paul
— Refrigerante também fazia, há um século. Preciso de um favor seu.
— Qual?
— Eu quero que você estude cada característica e semelhança das vítimas, pega o relatório
atualizado com os legistas e procure algo em comum, alguma relação, ele não pode estar
matando aleatoriamente. Até hoje todos os Serial Killers que tenho notícia obedeciam alguma
seqüência lógica, tem que haver algum nexo nas mortes.
— Mesmo ele sendo maluco?
— Seja ele psicopata ou não, está matando por algum motivo. Sei lá, encontrou com eles
numa lanchonete ou coisa do tipo. Tenho certeza que se especularmos detalhadamente vamos
achar uma correlação. Eu vou fazer os interrogatórios e procurar as pistas. Não importa o que os
peritos digam, sempre há algum rastro...
— E quanto ao colar?
— Ainda não sei direito o que fazer, mas até amanhã já terei pensado em alguma coisa. Eu
quero que você faça uma pesquisa sobre os últimos assassinatos em série na Inglaterra, procure
algum caso parecido. Nem que nós tenhamos que varar as noites Paul, temos que pegar esse
cara.
— Assim que eu sair daqui vou à biblioteca, vasculhar os arquivos de jornais, é provável que
encontre alguma coisa lá.
— Vê se você consegue uma biografia das vítimas, a ligação pode estar no passado – intuiu o
detetive, simultaneamente recebendo os aperitivos do garçom.
— Na infância?
— É, ou algo do gênero, temos que estudar todas as possibilidades.
— Dá uma olhada no céu, os relâmpagos já começaram a cair. A previsão do tempo estava
anunciando chuva também pra essa noite.
— Precisamos correr, seguramente ele matará de novo.
O céu já escurecera em Londres. O homem observava pacientemente uma casa do May fair.
Ele sabia a exata hora em que a empregada sairia, e sabia também com exatidão cada passo que
ela daria antes de abandonar o domicílio. Durante muito tempo ele estudara aquele lugar,
conhecia cada entrada, cada elevação da grama, até os horários das poucas pessoas que lá
viviam lhe eram familiares. Uma garoa bem fina caía sobre sua capa de chuva, e a brisa gelada,
que trazia devagar as pequenas gotas, fazia-no sentir calafrios. Estava lá há mais de uma hora,
observando calmamente sob a chuva, esperando o momento certo em que poderia entrar. Seus
olhos irrequietos perseguiam pela janela a figura da moça, que andava de um lado para o outro,
apressada para sair. Só quando a moça deixasse de vez a casa poderia começar o que há muito
tencionara.
Em pé do outro lado da rua ele pôde logo ver quando ela preparou um drink e levou-o pela
porta da cozinha. Era por lá que iniciaria seus intentos. As gotículas que caíam sobre o seu
pescoço causavam uma sensação estranha, que lhe impedia de concentrar-se completamente na
moça. Os olhos cinza do homem aguardaram lá, por momentos que pareciam eras, até que ela
pegasse sua bolsa e finalmente decidisse esvaziar a casa. A moça saiu sem pressa pela porta da
frente, ele por sua vez, ocultou-se atrás da árvore que estava do seu lado, se ela visse seu rosto
colocaria tudo a perder.
“Ela está muito tranqüila hoje”, pensou. “Na certa ele vai demorar a chegar. Terei o tempo
que preciso”
O homem permaneceu parado, indiferente sob a sombra da árvore até que contassem dez
minutos da partida da mulher, então lançou outro olhar em direção ao portão de aço.
“É agora”, decidiu ele.
Não havia nenhum segurança no portão, na verdade toda a residência estava deserta. Nem
mesmo os cachorros que há semanas atrás rosnavam intensamente contra o aço defendiam-na
aquele dia. Tudo conspirava a seu favor, até mesmo a rua não apresentava sinal algum de seres
viventes.
Ele seguiu marcha até o portão e pulou-o, não podia arrombá-lo, pois deixaria marcas nas
grades e sua intenção é que parecesse o mais natural possível. O homem andou em passos largos
em meio à grama úmida até alcançar a parte de trás do casarão. Ele logo pôde visualizar a porta
dos fundos, que dava acesso à cozinha, e a imensa piscina que se mantinha cheia e límpida no
jardim, mesmo no outono. Por cima das águas havia uma bela ponte japonesa, o único caminho
até a outra metade da mansão, e, por conseguinte até o outro portão. Ele agachou-se na beirada
da ponte a abriu uma mochila, que trazia. Estava um pouco molhada, mas o seu interior estava
intacto. De dentro tirou a aparelhagem que levara dias para construir e instalou minuciosamente
no início e no meio da plataforma. As luvas de couro estavam meio escorregadias, mas tudo foi
relativamente fácil, o grande desafio ainda estaria por vir. A porta da cozinha, como de costume
estava aberta e em cima da pia um copo de bebida esperava o anfitrião, mas esse sofreria muito
para manter a hospitalidade. O homem abriu a sacola que carregava e tirou de dentro uma
garrafa com um líquido que já lhe era bem familiar: soda cáustica. Ele despejou um pouco mais
da metade do drink na pia e completou o resto com o conteúdo da garrafa, então fechou a porta e
saiu, sentando-se na grama debaixo da cobertura do telhado.
“A garoa está engrossando um pouco”, notou. O homem detestava guarda-chuvas, gostava de
sentir o soprar da brisa e a água escorrendo pela sua face. Ah, como era refrescante o frio da
noite!
Depois de alguns minutos de espera avistou a luz dos faróis de um carro preto que chegara ao
portão. O automóvel parou de frente a entrada e dele saiu um homem de mais ou menos
quarenta anos, que logo abriu o cadeado e estacionou no corredor ao lado da mansão. Ele estava
com pressa, não queria molhar muito seu terno. O recém chegado fechou as grades de aço e
entrou na casa. O outro homem ficou nos fundos aguardando, camuflado em meio à escuridão.
Ele deixou seu casaco e a pasta na chapeleira e afrouxou a gravata, sentou-se na poltrona
diante da tv e ali ficou por um bom tempo.
“Por que ele não vem até aqui?”, pensou a sombra olhando fixamente pela janela. “Não
importa, esperarei a madrugada inteira se for preciso”
Meia hora se passou e o homem finalmente decidiu levantar-se, caminhou vagarosamente até
a cozinha, o demônio do lado de fora o aguardava. Ele pegou o copo de Martine que estava sobre
a pia e sentou-se na mesinha de centro, abrindo um jornal. Ele estava voltado para a porta de trás
da casa e, freqüentemente, observava a janela.
O assassino abaixou-se como um raio, não poderia ser visto, não agora. Ele suava frio
desejando intensamente que o homem se concentrasse apenas no jornal. Sua perna tremia, não
de medo de ser apanhado, mas de que seu plano falhasse.
O suor gélido escorria lentamente pela sua face e o barulho da chuva acentuava ainda mais sua
preocupação. E se o homem resolvesse sair para pegar algo no carro? E se ele esquecera algo?
As duvidas apertavam fortemente seu coração. O homem do lado de dentro levantou-se e foi em
direção à vidraça. O assassino tremeu.
O homem olhou pelos vidros e acompanhou o movimento das árvores no jardim, o assassino
encolhido suplicava para que ele não abrisse a porta. Se ele apenas descesse a visão, tudo estaria
perdido. A sombra forçava as costas contra a parede gelada de tijolos na esperança de se
acalmar e os olhos do homem estavam cada vez mais próximos, ele sentia que seria descoberto.
Um forte frio na espinha percorria todo o seu corpo, era incontrolável. A sombra abraçou as
pernas na intenção de parar o tremor, sua agitação poderia atrair a atenção do homem.
Nesse exato momento o observador percebeu o movimento na grama.
Uma corrente de ar soprou tremulando as plantas e a grama do jardim, o homem logo achou
que o movimento que notara era obra do vento. Desistiu então de sair para verificar e sentou-se
na cadeira voltando à sua leitura. Ocasionalmente seus dedos tocavam o copo de Martine, e a
sombra do lado de fora ansiava impaciente para que ele o levasse a boca, o que ameaçava
algumas vezes, mas suas mãos logo traziam-no de volta à mesa.
“Justo hoje ele receia em experimentar a bebida!”, testemunhava espantado o indivíduo de
olhos cinza. “Anda, bebe!”.
Nesse instante o homem conduziu o drink devagar até o nível do queixo e ali o manteve
enquanto acabava de ler as ultimas linhas do jornal.
“Por que não toma?”, se perguntava impaciente a sombra do lado de fora, que já ia se
esgueirando e erguendo-se à beira da janela, quando finalmente o homem resolveu tomar o
primeiro gole, e em um só, toda bebida.
Do lado de fora ele pôde ver quando os lábios do homem começaram a arder e uma dor
terrível tomou seu corpo, o líquido começou a corroer todo tubo digestivo e atingiu o estômago
causando náuseas e gritos desesperados. Foi quando a sombra entrou na sala.
— Quem é você? – balbuciou aflito o homem.
— Eu sou a morte – disse a figura obscura na entrada da porta.
— Você é louco! O que quer aqui? – berrou com muita dificuldade o homem, pressionando a
garganta com as mãos.
— Sua alma – disse a sombra.
— Minha alma? Saia da minha casa!
— Receio que você não a possuirá por muito tempo – pronunciou calmamente a figura
enquanto levantava a cabeça.
O homem atirou-se contra a figura, com a lâmina levantada, mirando um golpe certeiro no
coração. A sombra esquivou-se para o lado, mas a arma arranhou seu peito, fazendo um corte
próximo ao ombro. O estranho, revidando o golpe, agarrou o pulso do homem que empunhava a
faca e torceu com muita determinação seu braço, forçando-o a deixá-la em suas mãos. Depois o
empurrou com força ao mesmo tempo em que esfaqueava seus dois braços. Ele caiu estarrecido
e sangrando no chão.
O vulto, em pé, olhava com muita indiferença a cena do homem caído. Ele fixou sua visão
dentro dos olhos da vítima, ela estava apavorada, nunca havia visto antes o olhar do demônio.
— Como podes ser tão estúpido? – perguntou a sombra, tranqüilamente.
— Como você entrou aqui? – disse o homem apavorado.
— Pelo seu coração – respondeu ele, aproximando-se devagar do corpo.
— Meu coração? Você não pode ser real!
— Real? – perguntou curioso o vulto – O que você sabe sobre realidade? Acha que isso aqui é
real? – disse ele colocando os dedos sobre o peito, bem encima do ferimento – “Isso”, é realidade
– falou o demônio, enquanto passava a mão sobre a ferida, depois de retirá-la, não havia mais
nada lá.
O homem estava muito amedrontado, mal conseguia articular uma palavra.
— O que quer aqui? – insistiu ele.
— Eu já lhe disse.
— Não, não pode ser. Por que eu?
— Isso não te diz respeito, a parte que te toca no problema vai ser logo resolvida.
— Olha, a gente pode negociar, eu tenho muito dinheiro sabe...
— Dinheiro? De que vale seu dinheiro meu amigo? Você sabe o que é a Mona Lisa?
— Sei... – balbuciou tremendo o homem, que nada entendia e, apavorado, esforçava-se em
procurar a resposta que o estranho queria. – É um quadro...
— Exatamente, um quadro. Um pedaço de papel e tinta. Sabe quanto vale a Mona Lisa?
— Não, mas deve ser muito...
— E é, não tem preço. Se você juntasse todo o dinheiro do mundo, nem assim a teria. – disse
o vulto. – Ora, se um pedaço de papel rabiscado não pode ser comprado, como queres comprar
uma vida?
— O homem no chão mordeu os lábios deteriorados.
— Eu vou te matar, mas antes vou te contar uma história que ouvi há muito tempo –
continuou. – Há vários anos havia um homem que possuía muitas riquezas, e posses e trabalhava
arduamente para mantê-las.
“Mesmo quando sua família e amigos lhe chamavam para sair ou se divertir, ele nunca
aceitava, ficava sempre sentado, trabalhando. Queria juntar muito mais dinheiro do que possuía,
aumentando cada vez mais seus milhões. Seu único objetivo era multiplicar seu patrimônio para
que pudesse ter uma velhice tranqüila e um dia finalmente descansar.
“Então certa vez, já escurecera e ele ainda estava no trabalho, analisando algumas contas,
quando de repente um anjo apareceu na sua frente. Ele nunca tinha visto um anjo antes, e ficou
muito espantado. O enviado do céu lhe disse que sua hora havia chegado e ele seria levado
naquela mesma noite. O homem então ficou desesperado, queria dar um último adeus a seus
filhos e sua mulher. Tantos lugares que sonhara em ir e nunca havia conhecido. Tantas coisas que
queria fazer. Ele precisava de mais tempo e implorou ao mensageiro.
“— Por favor, preciso de mais alguns dias... – disse ele. – Tenho que dizer a minha mulher que
eu a amo, tenho que abraçar meus filhos...
“Lamento – respondeu o anjo. – Eu preciso levar-te hoje...
“— Mas eu te pagarei bem – insistiu o homem. – Te darei dez milhões.
“— Teu dinheiro pra mim nada vale, é assim que tem que ser.
“— Eu dou tudo que eu tenho, cem milhões por um mês. Nunca fui acampar com minha
família, nunca viajei com meus amigos, nem abracei uma árvore ou prestei atenção à natureza,
tantas coisas há pra fazer...
“— Em nada posso te ajudar.
“— Uma semana então, é o mínimo que preciso.
“Mas o anjo se recusou.
“— Um dia, minhas riquezas por um só dia.
“Não – permaneceu decidido o enviado de Deus.
“— Uma hora então? – suplicava o avarento, caindo em prantos, porém o anjo continuava sem
aceitar. – Cinco minutos?
“Já desesperado o homem fez sua última oferta, e o anjo movido pela misericórdia aceitou.
Tudo que ele possuía por dez segundos a mais de vida.
“O homem pensou durante muito tempo o que faria no tempo que lhe restara, não poderia
mais visitar sua mãe, nem procurar sua família ou seus colegas, ensinar algo para sua filha, nem
mesmo ver o pôr do sol, o tempo que tinha não lhe permitia realizar coisa alguma do que
planejara. Ele refletiu até sua mente ferver, e por fim decidiu o que fazer.
“O homem então voltou a vida, estava de novo na sua escrivaninha e suas contas ainda
estavam sobre a mesa. Ele então apressado pegou uma caneta e um dos papéis de conta, e
escreveu algo em seu verso. Logo após isso expirou.
“Quando o encontraram no outro dia, debruçado sobre a mesa, alguns homens repararam no
bilhete que estava em sua mão. Aquilo que estava escrito ficou para sempre em suas mentes.
Dizia:
“Viva a vida, pois ela é muito preciosa, e a verdade é que cem milhões não valem nem um
minuto sobre a terra.”
A vítima no chão olhava aterrorizada para o demônio, não prestara muita atenção na história,
estava mais preocupada com sua vida.
— Você entendeu?
— Sim – confirmou o homem.
— Agora já posso matar-te.
O assassino seguiu até a porta que dava acesso ao resto da mansão e empunhou a faca de
cozinha.
— Não se aproxime! – gritou o homem caído soltando as ultimas forças.
— Ou o que?
— Eu quero minha vida!
— Mas a terá – riu a sombra. – Na verdade já comecei a dar a verdadeira vida a você.
Hary el saiu da cama, trocou de roupa e comeu alguns biscoitos que estavam no armário.
O silêncio pairava por toda a madrugada, mesmo no ponto de ônibus havia calmaria, apenas
um senhor de meia-idade que esperava em pé a chegada do transporte quebrava o ar desértico.
Devia possuir uns sessenta, setenta anos, no entanto estava bem conservado, exibindo até certo
vigor em sua postura, não abalada com o sereno do alvorecer.
Por coincidência os dois esperavam o mesmo ônibus, fato que o detetive somente notou na
hora do embarque. Hary el subiu a pequena escada na parte frontal do veículo e pagou ao
motorista a passagem. Como ele detestava os novos ônibus londrinos! Era muito melhor a época
em que eles mantinham cobradores e a saída na parte de trás da condução. A nova frota exibia
uma saída lateral, que não só ele, mas boa parte dos ingleses não conseguia se acostumar.
O detetive sentou-se no segundo andar, gostava de ter uma vista mais panorâmica das ruas. O
senhor o acompanhou.
— Você também não consegue gostar dessas melhorias nos veículos, não é? – disse o velho,
puxando conversa e praticamente adivinhando os pensamentos do detetive.
— Não – disse Hary el.–, nem entendo esses cortes de pessoal. É difícil se adaptar a um
ônibus sem cobrador, o ambiente fica meio frio...
— Concordo, e os cortes nem ajudam no preço das passagens...
— Pois é – sorriu o detetive. – O transporte público na Grã-Bretanha é o mais caro do
mundo. O senhor é daqui?
— Também – divertiu-se o velho. – Pode-se dizer que eu viajo muito. Por quê?
— Seu sotaque, você não têm um sotaque específico.
— Você também não, de onde é?
— Liverpool, mas já moro aqui há algum tempo.
— Liverpool... Boa cidade, boa música... Onde está indo?
— Trabalhar.
— As quatro e quarenta e cinco da madrugada? – espantou-se o velho.
— Pode-se dizer que eu trabalho muito – riu o detetive.
— Ah... Não é muito seguro andar a esse horário pelas ruas do centro, tem muitos assaltantes
e mendigos nas calçadas...
— Antigamente, quando eu vinha visitar não eram tantos. Tudo culpa do partido conservador
que cortou as verbas das casas de caridade e de assistência aos doentes mentais...
— Esse mundo vai de mal à pior, tem também aquele assassino, você tem acompanhado as
matérias nos jornais?
— Tenho, mas não tem perigo. Não está chovendo...
— As coisas nem sempre são como parecem. Quem sabe ele não está vagando por aí, só à
procura de alguém desprevenido...
— Não faz o gênero dele.
O velho soltou uma gargalhada muito divertida e apontou o dedo indicador lentamente para
cabeça, ao mesmo tempo em que levantava, era o seu ponto.
— Quem sabe ele não está vagando por “aqui”, só à procura de alguém desprevenido.
Ele ergueu-se e despediu-se rapidamente de Hary el, esse ficou ainda alguns minutos no ônibus
observando as calçadas até que o veículo alcançasse o ponto mais próximo da rua que Paul
indicara. Estranho aquele velho, ultimamente ele só encontrava pessoas estranhas.
Hary el desceu próximo a Grosvenor Street, de lá já podia ver a confusão de luzes e sons que a
mídia fazia.
Com licença – disse o detetive, empurrando um fotógrafo e atirando-o a uns dois metros de
distância.
— Mais cuidado! – gritou o fotógrafo, indignado com a atitude de Hary el.
— Perdoe-me, eu estou com pressa... – desculpou-se rapidamente o detetive que seguia
rumo à faixa de isolamento, e dessa vez armado com as credencias para evitar qualquer
contratempo. Medida que pouco adiantou, pois logo que foi reconhecido pelos jornalistas esses
voaram como morcegos de gravadores na sua frente.
— Detetive Kitten, como andam as investigações? O senhor já tem algum suspeito?
— Detetive Kitten, o que o senhor pensa das mortes? Foi realmente o mesmo maníaco?
— Senhor Kitten, nós temos informações que o senhor e o detetive Adam Johnson estão
trabalhando no mesmo caso. Vocês estão unindo forças ou o senhor o está auxiliando como no
caso Nasser?
— Nada a declarar – respondeu Hary el, já meio nervoso com o assédio. – Por favor, me
dêem licença.
— Detetive Kitten é verdade que o departamento de polícia ainda não tem nenhuma pista
desse lunático?
— Eu pedi para me dar licença – explicou Hary el, encarando o jornalista que estava na sua
frente.
— Você é contra a liberdade de imprensa? – perguntou o jornalista, sarcástico.
— Não. E você... é contra a liberdade policial? – disse ele, passando ligeiramente agressivo
por entre o paparazzi.
Dessa vez o guarda que cuidava do cordão amarelo não impediu a entrada. No entanto mesmo
depois da passagem de Hary el os repórteres mantiveram o ritmo frenético de perguntas, até
mesmo algumas pessoais que envolviam a transferência dele de Liverpool. Aos poucos
conseguiu distinguir a figura de Paul entre a enumerável quantidade de agentes que vistoriavam o
local, ele estava agachado à beira da piscina, ao seu lado alguns homens retiravam o corpo da
água, o mesmo estava com uma aparência lastimável. A área estava muito iluminada e fulgia
intensamente o brilho das lâmpadas e de alguns holofotes no jardim.
“Isso é um crime ou um show do Iron?” pensou Hary el, um pouco surpreso com a
desnecessidade de iluminação. Ele caminhou até o parceiro que logo notou sua presença.
— Hary , venha ver isso – disse Paul, apontando as cicatrizes no corpo da vítima.
— Facadas?
— É, ele deixou a arma no piso da copa, como da outra vez a mutilação também teve início
lá.
— Mas não vai ser possível identificá-lo, a arma era do Gonzáles, não?
— Era, como sabe?
— Eu deduzi, os ferimentos são de faca de cozinha.
— Os especialistas que já chegaram foram unânimes na idéia de que houve luta.
— É, mas ele morreu aqui, caso contrário não haveria necessidade de toda essa parafernália
na piscina. Veio fugindo em direção ao portão de saída e acionou a armadilha na plataforma que
estava sobre a água.
— Era uma ponte japonesa. Já pensou em trabalhar na perícia? Me pouparia trabalho na
coleta de informações.
— Por que tanta gente investigando? – perguntou o detetive, observando os homens à sua
volta.
— Ficaria espantado em saber o número de departamentos que estão se empenhando na
busca desse cara...
— Você comentou sobre uma luta, o assassino foi ferido?
— Tudo indica que sim, mas só teremos certeza com o exame de DNA dos resíduos
sanguíneos na arma.
— Onde ela está?
— Já colocaram no plástico, os peritos vão levar pra análise.
— Acompanhe-me até a cozinha, tenho que verificar umas coisas.
— Que coisas?
— Você vai saber se me acompanhar.
— A porta não apresenta sinal de arrombamento – reparou Hary el, observando atentamente
a fechadura. – Ou ele conhecia os costumes da casa ou teve muita sorte.
— No que você apostaria? – questionou Paul.
— Na primeira hipótese, o dia foi muito bem escolhido. O local vazio, os portões também
não necessitavam de ferramentas...
— Um crime bem elaborado?
— O que você acha? Ele sabia exatamente onde armar o equipamento, como assustar o
Gonzáles... O que é esse copo estilhaçado no chão? Ele estava bebendo Martine?
— É o que parece... – disse Paul, aproximando os dedos do líquido que escorria no azulejo.
— Se eu fosse você não tocaria nisso.
— Por quê?
— Reparou nos lábios da vítima? Estavam totalmente deteriorados. O assassino misturou
alguma coisa na bebida.
— Ácido?
— Ou uma substância extremamente alcalina, pelo aspecto e odor parece soda caustica.
— Aí ele entrou?
— É, depois que a base começou a fazer efeito. Se houve mesmo um embate o Gonzáles se
assustou e pegou a faca para se defender, que depois de algum tempo foi parar nas mãos do
assassino. Ou ele mesmo a tirou da gaveta. Mencionando isso, também não há digitais?
— Nada, já verificaram na primeira vistoria. Provavelmente também nada de resquícios de
pele sob as unhas ou coisa do gênero.
— Quem sabe dessa vez? Não se esqueça que se houve luta a probabilidade desse tipo de
coisa é muito grande. Tem também a faca, ela apenas arranhando o agressor daria material
suficiente para verificação.
— Esqueci de mencionar uma coisa...
— O quê?
— Encontramos um bilhete do assassino sobre a mesa.
— Ah, e você se esqueceu de um detalhe tão banal? Paul, em que mundo você vive?!
— Desculpe, estava distraído. Ele está com aqueles detetives na porta da casa – indicou Paul,
apontando para um grupo de investigadores abaixados na entrada da mansão, provavelmente
legistas.
— Posso dar uma olhada? – perguntou Hary el, colocando as luvas de borracha e andando até
os agentes.
— Quem é você? – perguntou o homem que examinava minuciosamente o papel.
— Hary el Kitten, departamento criminal. E você?
— George Darian, chefe dos legistas. Parece uma metáfora – disse o homem, referindo-se
ao bilhete, no mesmo momento em que o entregava ao detetive.
— Escrito a mão... Parece que ele realmente não tem nenhum medo da polícia.
— Ou “ela” – indagou Paul, que estava ao lado observando a cena – Já pensou nessa
possibilidade?
— Já, mas agora tenho certeza que é “ele”. A caligrafia é muito masculina, repare a tensão
sobre o papel. Ele dispensou muita força na escrita, o outro lado da folha está marcado. Uma
mulher normalmente é muito mais delicada ao escrever. O que acha? – questionou o detetive,
claramente pedindo a aprovação do parceiro.
— A palavra “magnífico” me passou pela cabeça, mas espanhol não é um idioma que eu
domine – respondeu Paul, debochando.
— Você está cada dia mais engraçado, deveria montar um Talk Show. Ouvi dizer que estão
abrindo espaço para novos talentos na TV, deveria se candidatar...
— É você realmente anda vendo televisão demais. Chega de brincadeira. O que a
mensagem diz?
— É muito estranho: “Corre o rio em direção ao mar, e os peixes se aglomeram em
cardumes enquanto o vento movimenta as árvores. Estas barram seu curso, mas mesmo assim
ele atravessa por meio as folhagens. A verdade é que o vento não existe, e não se pode ver o
vento, mas ele está lá por que o sinto em minha face.” “Volta então o rio até a nascente, que em
nada é diferente do mar e sua dureza apenas revela o quanto é flexível sua essência. A verdade é
que embora o duro e o mole não existam, vão-se todos os dentes, mas a língua fica.” – o detetive
olhou para Paul – Confuso?
— Muito – respondeu ele.
— Parece meio esotérico – opinou um dos legistas.
— Realmente. Uma mente muito confusa – disse Paul.
— Ou muito clara – supôs Hary el – Você não trabalha com o doutor Henry Nice? –
perguntou o detetive observando a face de um dos legistas.
— Sim, sou assistente dele.
— Por que ele não veio?
— Viajou até uma cidade vizinha. Problemas pessoais... Pediu-me para ficar a par do caso,
ele volta antes do meio-dia.
— Ele sabe da morte?
— Liguei há alguns minutos antes de vir até aqui. Por quê?
— Curiosidade.
— Você disse que era Hary el Kitten, não?
— Exato.
— Coincidência estranha, o Dr. Nice me pediu pra entregar isso a você... – falou o homem,
entregando um papel ao detetive. – Você é amigo dele?
— Não, conheci na investigação. O que é isso?
— É um endereço, de um homem que entende de jóias antigas, um chinês. Ele é especialista
em peças desse tipo, ensina numa casa no So-ho. É mestre budista.
— Mestre budista?
— É, o doutor disse que se lembrou dele quando você descreveu um colar. O velho entende
desses assuntos esotéricos, talvez até ajude no bilhete. Semana passada eu o acompanhei até o
lugar onde ele ensina. Um cara muito estranho, é imigrante, um ex-monge.
— Qual o nome?
— Chizu, Cheung Chizu.
— Cheung Chizu... – pronunciou pausadamente o detetive, assistindo o movimentar rubro das
águas na piscina.
Os detetives bateram palmas durante algum tempo na frente da casa, até que um jovem saísse
para atendê-los. O domicílio, por fora, não apresentava nada de diferente ou uma fachada que
lembrasse uma morada voltada para atividades místicas. Pelo contrário, era uma casa
relativamente antiga nas cores marrom e branca.
— O rapaz disse “mestre Ch’an” – comentou Paul. –, no entanto, essa parte do nome não
consta nos arquivos
— Ch’an não é um nome, é uma das vertentes do budismo chinês, uma filosofia, equivalente
ao Zen no Japão – disse Hary el.
— Então ele é mestre nessa filosofia?
— É o que parece. Você trouxe as anotações?
— Estão na minha pasta.
No meio da conversa um senhor idoso abriu a porta, interrompendo os dois. O homem possuía
a cabeça raspada, o que podia ser percebido pela saliência dos seus fios já brancos, aliás, quase
todos. Olhos negros e puxados, e um humor estranho no sorriso, humor esse que podia ser notado
a metros de distância. Era impossível estabelecer-lhe a idade, pois tal análise nos orientais é
sempre muito imprecisa e embora aparentasse muitos, exibia um vigor de garoto. Trajava uma
toga cinza, bem vestida. No pescoço havia uma espécie de terço, com dezenas de contas de
madeira, e seus pés, descalços, contrastavam de maneira engraçada com a madeira escura do
piso.
— O que desejam? – perguntou solícito o velho, não escondendo a vontade que sentia de que
o diálogo fosse o mais breve possível.
— Somos do departamento de polícia, estamos investigando a série de assassinatos em
Londres – respondeu Hary el. – Você está a par do caso?
— Sim, mas não vejo como possa ajudá-los – disse o velho, soltando um sorriso.
— Bom, em um dos crimes encontramos um colar, colar esse que depois desapareceu e
tornou impossível seu estudo. Recebi informações do Sr. Nice que o senhor conhecia jóias antigas
e talvez pudesse nos auxiliar...
— Já parei de trabalhar com jóias há muito tempo Sr. Kitten – interrompeu o velho. – agora
me dedico exclusivamente à meditação e à prática do Ch’an.
— Como sabe meu nome? – perguntou o detetive, já meio espantado com o número de
pessoas que o adivinhavam ultimamente.
— O senhor é famoso – riu o velho. – Como já disse acompanho o caso...
— Então, tem como nos ajudar?
— Infelizmente não, já disse que parei de trabalhar com antiguidades...
— Mas essa é diferente, é um colar Hindu...
— Já vi muitos colares hindus...
— Mas com um Baguá chinês gravado no centro?
— Baguá? – o velho mestre não pode esconder o espanto – Isso é impossível, deve ser falso.
— Não, aparentava centenas de anos.
— Muitas coisas que aparentam ser, não são. Como a gota d’água que aparenta fraqueza,
mas perfura a mais dura das montanhas.
— Tenho certeza que era uma antiguidade. Era um colar dourado, com duas hastes finas e
uma pedra azul e oval no centro, lá estava gravado o símbolo.
— Digamos que o Satori é quando a luz penetra por entre o véu do corpo e o ser ganha
consciência da sua verdadeira essência. É como atingir permanentemente o estado da não-
mente.
— Isso está muito confuso – disse Hary el – Poderia só me traduzir o simbolismo das
palavras.
— Isso seria o mais fácil, mas você só compreende simbolismos. A tradução mais próxima
que sua mente pode captar é que mesmo que todas as forças conscientes tentem impedir o curso
do todo, ele corre como deve por entre os espaços que o universo abre, até alcançar a verdadeira
essência.
O detetive estava atônito, era a primeira vez que menosprezavam sua inteligência.
— Bom isso não me dá respostas e em nada ajuda na resolução do caso.
— Pelo contrário – disse o sábio – Isso, como em tudo, encerra todas as respostas. – agora
preciso ir, está na hora do meu chá, disse ele meio agressivo, dando a entender que terminara o
diálogo.
— Mas eu não compreendi, como posso entender o Ch’an e captar a mensagem que o papel
oculta.
— Não se pode entender o Ch’an, a mente é pequena demais pra conter o todo.
— O que devo fazer então para alcançar a compreensão? – perguntou o detetive,
desesperado com a atitude do velho de lhe deixar perturbado em meio à sala.
O velho olhou profundamente nos olhos de Hary el, estremecendo a sua alma e vendo o mais
profundo no seu coração. Ele só havia sentido um olhar assim uma vez, quando encontrara a
cigana há dias atrás numa rua do centro.
— Quando comer, apenas coma, quando andar, apenas ande, quando pensar, apenas pense.
— Continuo sem entender!
— Quando não entender – disse ele, fechando a porta. – apenas não entenda.
O mestre ficou na janela até que os detetives deixassem de vez a casa e entrassem no carro.
Logo após a partida dos dois, o jovem chinês adentrou a sala de meditação. O velho estava lá, de
olhos fixos na vidraça, observando a figura do carro se confundir com o horizonte.
Paul e Hary el voltaram para central e ficaram lá a tarde inteira, não chovera aquele dia, no
entanto, o nublado no céu se mantinha. Paul passou boa parte do período vespertino seguindo as
recomendações do parceiro, fazendo recortes de jornais. Selecionava matérias que falavam de
assassinatos em série e mortes graves nos últimos vinte anos, além de exemplares recentes dos
cadernos mais famosos, com todas as reportagens importantes daquele ano e do anterior.
Hary el fazia ligações para os agentes que cuidavam dos interrogatórios e acumulava grande
número de informações sobre o parentesco e dia-a-dia das vítimas, procurando alguma relação
entre elas, tarefa que se tornava cada vez mais penosa, devido à imensidão de diferenças que
encontrava.
— Aquele velho mexeu com sua mente não é? – perguntou Paul, reparando na expressão
pensativa do detetive.
— Ele é maluco – respondeu Hary el.
— Bom, hoje em dia... Quem não é?
— Tem razão... – divertiu-se o detetive, olhando o movimento giratório de sua caneta,
deslizando por sobre a escrivaninha. Ele lembrou-se de uma teoria que desenvolvera há algum
tempo sobre a insanidade: “Não existe pessoa alguma maluca, por que para existir teria que
haver alguém normal. E para haver alguém normal, teria que existir duas pessoas iguais no
universo, o que não há.” Era muito confuso, mas pelo menos era dele.
— Quem sabe nós somos os malucos e eles são os normais? – disse Paul, tentando complicar
ainda mais a conversa.
Hary el então se lembrou da frase da cigana: “Sábios são os que buscam a sabedoria, loucos
são os que já a encontraram”. Até que fazia algum sentido.
Os dois permaneceram lá até as dezoito horas, quando o telefone da mesinha do detetive tocou.
O detetive estranhara muito a atitude do parceiro, devia ser realmente algo estupendo, embora
Paul fosse dado a alardes repentinos, não se moveria da sua casa até o centro por qualquer
bobagem. A curiosidade lhe corroia a alma. Ele deitou-se na cama para aguardar a chegada das
notícias, estava com um pouco de sono. Programou o despertador para dez minutos antes da hora
que Paul apontara, teria tempo o suficiente para descansar e acordar antes dele chegar à porta.
Ele fechou os olhos e adormeceu, vendo as manchas no teto negro e sentindo o frio da
madrugada penetrando pela janela.
O detetive acordou com os raios de sol entrando brilhantes pela vidraça, os feixes de luz
embrenhavam-se por meio a abertura no vitrô e seguiam uma linha em diagonal até seu rosto na
cama. Estava uma manhã bonita, embora ainda muitas nuvens insistissem em fechar o tempo e o
clima gelado se mantivesse.
Ele levantou-se e andou até a copa. Preparou um chá de camomila com alguns biscoitos e
torradas que restavam no armário. Precisava fazer compras assim que restasse algum tempo.
Hary el tomou seu chá e esperou alguns minutos, sentado na cozinha, refletindo sobre as coisas
que aconteceram nos últimos dias, depois tomou um bom banho e trocou de roupa. Hoje
chegaria cedo ao trabalho.
“O despertador não tocou...” , pensou enquanto colocava o paletó. “O Paul também não veio.
Acho que ele bateu e eu não acordei...”
Mesmo se sentido um pouco culpado pela possibilidade de ter deixado seu amigo do lado de
fora, Hary el não estava demasiadamente aflito, já que o mais provável é que Paul houvesse
decidido de ultima hora não aparecer.
“Mas ele podia ter ligado pra avisar...” , raciocinou. “É quase certo que ele não veio, o som da
campainha está alto pra caramba, até se eu estivesse dopado acordaria, já o do telefone...”
O detetive fez a barba, que já estava ficando áspera, e saiu, trancando a porta do apartamento.
Ele caminhou alguns momentos pelas ruas que cortavam o centro londrino, observando os
mendigos que lá ficavam. Lembrou-se do velho que encontrara outra noite no ônibus e da curta
conversa que tivera com ele. Ao passar pela rua do ponto lembrou-se também da cigana na
calçada do velho prédio. Era a primeira vez que o notava desde aquele dia, mas como era de se
esperar, ela não estava mais lá.
“Muitos já caminham na tempestade, e você por olhar a tempestade será alvo dela”, dissera a
cigana. Eram palavras cheias de metáforas e ele não sabia se realmente faziam algum sentido,
ou se de nada serviam, a não ser é claro, para alimentar a mulher.
Ele pegou um jornal na mesma banca de sempre e seguiu dessa vez em direção ao ônibus que
parara ao lado da guia. Ainda era muito cedo e notavam-se as gotas de orvalho gelado nas folhas
verdes das árvores; não havia necessidade de um táxi.
As nuvens acabaram por esconder o sol, e ele como de costume subiu até o segundo andar do
veículo. Embora a manhã tivesse nascido há poucos minutos ele estava com relativa pressa,
pressa essa que era movida pela curiosidade quanto ao assunto que seu parceiro mencionara. Em
dez minutos estava na central.
“Por que tanta gente a esse horário?”, se perguntou,.vendo o grande número de policiais que se
movimentavam dentro do prédio, fato anormal àquela hora da matina. “Justo hoje que resolvo
chegar mais cedo todo mundo já está trabalhando...”
Os agentes corriam de um lado para o outro com grandes pilhas de papéis e o barulho
constante dos falatórios dava a sensação que algo de importante acontecera. Hary el permaneceu
de braços cruzados na porta vendo a agitação das pessoas e ouvindo o toque ininterrupto dos
telefones. Fosse o que fosse, ainda não saíra no jornal, pois a matéria de capa era sobre o início
de um escândalo no parlamento, e esta só era dividida com uma nota sobre as buscas ao
maníaco. Um dos detetives, que estava atarefado com algumas pastas, notou a presença de
Hary el na porta. Não era uma figura desconhecida, eles já haviam se cruzado poucas vezes
durante o expediente, na verdade, já haviam sido até apresentados, se bem que seu nome lhe
fugira. O homem possuía um sobretudo cinza, e ao que parecia, lembrava-se de Hary el.
— Detetive Kitten! – disse ele, andando rumo à porta. – O que está fazendo aqui?
— Vim trabalhar... – respondeu Hary el, claramente notando a expressão de espanto do
homem com as pastas.
— Mas hoje?
— É algum feriado? – sorriu o detetive. – Estou de folga?
— Não, mas... Desculpe, eu sinto muito...
O homem deu meia volta e saiu, com um semblante cabisbaixo
— Espere! – gritou Hary el. – Você não me respondeu...
Mas o homem permaneceu seguindo o seu caminho, e ele por sua vez subiu as escadas até o
segundo andar, tudo estava muito estranho.
Logo na chegada deu de cara com a mesma situação do primeiro piso, pessoas agitadas
andando de um lado para o outro. No meio da confusão ele agarrou um dos indivíduos que
passara, era Thomas.
Foi a última palavra que o rapaz dirigiu ao detetive, esse o empurrou atirando-o por sobre a
escrivaninha e seguiu para a sala do comissário. Ele quase arrombou a porta, mas só havia uma
secretária lá, sentada na mesa, organizando algumas folhas.
Ele andou durante um bom tempo sem rumo pelas ruas do Holborn, até parar em um bar que
costumava freqüentar com os amigos do distrito. Ele sentou-se no segundo banco do balcão e
pediu uma cerveja.
— Você não é de beber – disse o barman. – O que aconteceu?
— Não é da sua conta, me vê uma bem gelada e mistura com um pouco de whisky .
— Foi tão grave assim?
— Você nem imagina. Só me dê a cerveja, eu não estou a fim de conversa...
— Tudo bem...
Quando o barman chegou com a bebida, Hary el pôde notar a figura de Thomas entrando pela
porta. Ele sentou-se ao lado do detetive.
— Eu sei que você não está bem Hary , mas Paul era amigo de todos nós também...
— Você quer dizer que entende como me sinto? Ele me ligou ontem Thom, antes de sair,
disse que tinha algo importante pra me falar. Ele morreu no carro...
— E o que era?
— Não sei – explicou o detetive, dando o primeiro gole na cerveja e forçando seu estômago
a aceitá-la. – Como o estrangularam?
— Com uma corda, o cara estava no banco de trás, assim que ele entrou o assassino
enroscou a corda no pescoço e puxou até asfixiá-lo.
Thomas também era um bom amigo de Paul, mesmo sendo um rapaz de apenas vinte e dois
anos era bastante maduro. Exibia um corte de cabelo moderno que realçava bem o castanho
escuro de seus fios. Já tivera longos bate-papos com Hary el a respeito da sociedade, mulheres,
música e dezenas de coisas que ele nem se recordava. Fazia mais ou menos um ano que ele
trabalhava na central e já conquistara a simpatia de grande parte dos agentes. No entanto agora
o destino o colocara em uma situação inusitada e, embora tentasse esconder, também sentia
muito a perda do companheiro.
— Eu sinto que há mais alguma coisa, tem certeza que você me contou tudo? – interrogou o
detetive.
— Bom... Eu acho que você devia descansar um pouco antes de se envolver no caso.
— Você não me respondeu, não fuja da pergunta.
— Hary , eu acho que não é necessário.
— Fala logo!
— Foi o cara das armadilhas...
— O quê? Como sabe?
— Encontramos outro bilhete no carro, a caligrafia é igual...
— Você também mentiu sobre a morte, como foi?
— Não! Foi como eu te contei...
— E a parafernália? Equipamentos?
— Nada, só a corda, ele não usou nada.
— Têm certeza?
— Eu vi o corpo...
— Mas que motivo ele teria para matar o Paul?
— Não sei, ele também estava investigando...
— Se fosse assim era mais natural que eu morresse, meu nome é que consta como à frente
do caso.
— Quem sabe ele queria brincar com você... Sabe como é, ele é maluco.
— Já fizeram a autópsia?
— Já. O enterro vai ser depois de amanhã.
— Quem reconheceu?
— Um amigo dele da narcóticos.
— A ex dele já sabe?
— O comissário ficou de ligar. Por que você não fala com ele depois do almoço?
— Não sei, não estou muito bem. Tem muitas coisas passando pela minha cabeça.
— Se você continuar assim – disse Thomas, impedindo que ele levasse o copo mais uma vez
a boca. –, não vai conseguir nem voltar pra casa. Muito menos conversar com o chefe.
— Você devia se preocupar com a sua vida. Onde ele foi?
— Tinha uma reunião. Não é todo dia que matam um policial. Ele volta mais ou menos às
quatorze horas, é melhor que você fique sóbrio até lá.
— Por que isso foi acontecer? – gritou irado o detetive, batendo o copo contra a madeira do
balcão. O rapaz notou uma gota de lágrima que escorria pela face de Hary el, nunca antes o tinha
visto chorar.
— Essas coisas não têm explicação. Vem comigo, eu te acompanho até em casa.
Passadas algumas horas cansativas no seu apartamento o detetive decidiu seguir o conselho de
Thomas e saiu para conversar com o comissário. Era a segunda vez que pagava condução aquele
dia, e estava só com o café, já que sua cabeça permanecia confusa demais para almoçar. Ele
aguardou um pouco nos bancos do lado de fora da sala do chefe até que esse o pudesse receber.
— Por que não me acordou? – perguntou Hary el, olhando no fundo dos olhos do comissário e
não gostando nada do rumo que o diálogo tomara até então.
— Era cinco da manhã, ele era seu amigo... Achei natural que você estivesse descansado
antes de saber da notícia.
— E quando pretendia me contar?
— Hoje Hary el! O que acontece é que eu queria preparar você, não é todo dia que se perde
um amigo. Agora não importa mais, já tomei minha decisão. – comentou ele, referindo-se ao
início da conversa.
— Decisão, que decisão? Você não pode me afastar do caso!
— Eu já te disse, está ficando pessoal demais. Você não pode investigar nessas condições.
— Não pode me tirar! Eu dei duro estudando esses crimes, ninguém conhece os fatos melhor
do que eu!
— Você sabe qual é o procedimento padrão quanto ao envolvimento de policiais em casos
como esse...
— Paul era meu amigo!
— Eu sei, de todos nós. Isso é que te impede de continuar.
— Olha, chefe. Na ultima semana eu me dediquei dia e noite para analisar a personalidade
do assassino e a relação dos crimes. Paul descobriu algo, eu sinto que estou perto, me deixe mais
um pouco.
— Eu não posso te manter...
— Mais duas semanas... Se eu não encontrá-lo me afaste.
— Hary el, ainda acho que isso não vai te fazer bem...
— Eu preciso, eu sinto uma ânsia, uma coisa dentro de mim. Eu sei que sempre vou me
sentir culpado se não investigar. Entende?
— Entendo. Duas semanas e é só. Depois o caso vai ser repassado. Eu sou um idiota de estar
fazendo isso, os repórteres vão cair todos na minha cabeça, e na “sua” também.
— Eu sei. Obrigado comissário...
— De nada. Agora saia daqui. – ordenou ele. O detetive obedeceu abrindo a porta, mas antes
que ele abandonasse o recinto o comissário o parou. – Duas semanas, entendeu?
— Sim – respondeu.
Thomas riu e resolveu deixar algumas pilhas de papel em cima da mesa, mais tarde pagaria
um chá ao companheiro.
O detetive comeu alguma coisa aquela tarde e na saída foi para o bar com Thomas. O rapaz
como já havia previsto pagou um bom chá a Hary el, que não se sentia muito bem por causa da
bebida que tomara pela manhã. Não estava acostumado...
Era dez da noite quando ele voltou para casa e deitou-se no sofá observando a enorme janela,
só aí a tempestade começou a cair realmente na cidade. Ele chorou a noite toda, chorou como
nunca havia chorado antes, ouvindo o barulho ensurdecedor das gotas. As lágrimas lavavam seu
rosto tão intensamente quanto a chuva, que regava o asfalto e escorria em grande quantidade
pelos vidros. Ele pensou em Paul a madrugada inteira.
O temporal cobriu todo o anoitecer, fortalecendo-se aos poucos em meio à penumbra. O
demônio sabia o que aquelas águas significavam, e entendia que do mesmo modo que o sol nasce
após a escuridão, a luz que ele começara a produzir com a garoa logo viria a tona. Ele passou boa
parte daquela noite em claro, lembrando-se do homem que matara no dia anterior e pintando a
face do quarto anjo. Não queria dormir, provavelmente teria novos pesadelos. Será que aquele
que ele matara também apareceria neles?
“Pouco importa”, pensou “Ele faz parte do quadro, mesmo que não apareça”. E realmente
fazia, era por aquele que perdera a vida, que ele alcançaria o fim da sua obra, através dele viria
o sétimo dos anjos.
O quarto dos retratos foi pintado de uma maneira diferente, não com desprezo, pois esse era
um sentimento que não coincidia com sua visão das coisas, mas com alguma coisa que ele não
conseguia definir, era como se aquele que ele pintava lhe tivesse causado alguma emoção,
algum prazer, o que realmente não fazia sentido, pois ele nem o conhecia e na verdade o próprio
fato nada representava já que no absoluto vida e morte são conceitos relativos. Lembrar do fato
de que a morte é uma ilusão e que o nascimento não representa o início da existência nem a
morte um acréscimo a ela lhe reorganizou as idéias abaladas por um momento. Ele então não
rejeitou o sentimento que sentia, pois sabia que tudo que é rejeitado volve um dia para o ponto de
partida, mas esta sensação simplesmente desapareceu, coberta pelas idéias que clareavam a sua
mente. Ele então se recordou de uma passagem de sua infância, quando observava admirado a
atitude de seu mestre:
“— Mestre, Tokuan-Tzu era seu amigo, conversaste muito com ele e viveste muitos anos em
sua companhia. Agora ele está morto, e o senhor, que para meu espanto, não chorou quando ele
caiu do cavalo e espirou, agora canta de alegria?
“— Que querias que eu fizesse? – perguntou o sábio. – Assim como tu, me espantei quando vi a
queda e, reconheço que alguma coisa em mim entrou em pesar. No entanto refletindo um pouco
acerca do começo lembrei que as macieiras quando nascem já foram um dia maçãs e as maçãs
macieiras. Mesmo as maçãs que nascem e caem hoje, serão macieiras e outras maçãs algum
dia. Sendo assim nunca deixam de ser macieiras nem maçãs, simplesmente seguem seu curso
rumo ao Tao. Meu amigo está agora deitado e em paz no chão, coberto de algumas folhagens. Se
me debruçasse e chorasse sobre o corpo significaria que não entendo nada de maçãs...
“— Não vais lhe fazer um funeral?
“— Inútil, pois o céu e a terra serão seu duplo ataúde, o Sol e a Lua, seus discos de jade, as
estrelas e a Estrela do Norte, suas pérolas, todos os seres seu cortejo. Não está perfeito, que mais
quereis?
“— Mas, nem mesmo vai enterrá-lo? Vai deixá-lo aí e continuar viagem?
“— Sim, por quê?
“— Temo que os corvos e os milhafres o devorem...
“— Em cima ele pode ser devorado pelos corvos e pelos milhafres, em baixo, pelas toupeiras
e formigas. Como é parcial teu julgamento de livrá-lo dos primeiros para entregá-lo aos
últimos... – riu o velho. Ele percebendo que o discípulo continuava meio receoso, continuou. –
Vida e morte são ilusões, na verdade Tokuan-Tzu nunca nasceu e nunca morreu, nunca
conversou comigo ou foi meu amigo, nem mesmo está agora deitado nessa grama. Tudo está na
mente. Entendeste?
“— Entendi – disse sorrindo o rapaz.
“— Então tu não entendeste... A culpa é minha que não consegui passar corretamente o
ensinamento... Uma coisa só pode ser compreendida realmente se não for entendida, assim
como o Tao só pode ser alcançado por quem não o procura.
“— Não entendi – disse confuso o rapaz.
“— Agora tu compreendeste!
O demônio sorriu, achando graça da lembrança, e acabou de pincelar as tintas, o retrato estava
perfeito, cada detalhe da expressão era revelado. Ele fazia tudo aquilo somente recordando-se da
imagem que tinha na mente, não só do físico da vítima, mas também da sua alma. Ele a
repassava para a tela com suprema minúcia. Lá fora o Sol nascia lentamente esgueirando-se
entre os prédios e disputando acirradamente contra as nuvens um lugar no céu. A madrugada já
terminara e ele também. Ao mesmo tempo em que o azul escuro se desfazia na abóbada celeste
ele cobria com um manto negro sua tela. Ele teria muito que fazer aquele dia. O assassino
guardou seus pincéis no armário do quarto e saiu pela porta da sala.
Faltavam ainda três anjos.
Era onze da manhã quando Thomas resolveu cumprimentar pela primeira vez Hary el na
central, e logo chegou com uma bomba. O rapaz deu bom dia e pegou um exemplar de jornal
que estava separado na mesinha ao lado.
— O que foi? – perguntou o detetive, estranhando a expressão de seu amigo, que claramente
lhe mostrava que tinha algo a dizer.
— Lembra do terceiro assassinato? – indagou Thom, testando o estado de espírito de Hary el.
— Metatron Morrison, morreu eletrocutado. Foi o cara com quem achamos o colar. Por quê?
— Os ideogramas no corpo... – disse baixinho o rapaz.
— O quê? Identificaram?
— Não – riu o rapaz. – Bom, na verdade mais ou menos... Eu ainda não acredito nisso... só
tem louco nesse mundo...
— Ahn?
— Dá uma olhada. – aconselhou Thomas, jogando o jornal na mesa do detetive, este
observou algum tempo a matéria e depois deu uma gargalhada.
— Isso só pode ser uma piada: “Grande crítico francês identifica obra de arte em
assassinato”. É impressão minha ou esse cara tá tentando dizer que o assassino fez uma pintura no
corpo do Morrison?
— Mais que isso... Ele mencionou a palavra “gênio”. Na opinião dele o assassino é um cara
de grande talento...
— Essa é boa, todos esse dias tentando entender a simbologia no cadáver e na verdade o
maníaco é um Renoir complexado... O crítico é esse aqui da foto? Com essa pose estranha?
— É.
— Parece que além de doido ele é meio “afetado”. Ele acha mesmo que foi um trabalho
artístico? – retorquiu o detetive, ainda meio abismado com a matéria.
— Acho que sim, ele reconheceu como eu já disse, uma “genialidade” no cara. E como os
peritos também concordam quanto a isso, já que são eles que analisaram todas as geringonças
que ele fabricou, fica uma coisa meio evidente... Ele até ganhou um apelido na mídia: “O
Artífice”
— O Artífice? Não deixa de ser... Eu preciso de um favor seu – informou ele, mudando de
assunto e coçando o couro cabeludo.
— Qual?
— Quero que você me acompanhe até a casa daquele velho que eu te falei...
— O tal mestre budista?
— É. Acho que ele sabe mais do que diz.
— Você não tinha se recusado a insistir nessa história?
— Quando falei com Henry Nice parecia a coisa certa a fazer, mas estou intrigado... Andei
pensando muito em tudo isso, acho que procurá-lo novamente vai ser mais eficiente que ficar de
mãos atadas.
— Você é quem sabe. Na hora do almoço nós vamos, faltam só alguns minutos...
— Eu ia verificar algumas coisas antes, mas tudo bem...
— No que você está pensando? – perguntou Thomas, bastante curioso.
— Esquece, vamos na hora do almoço. Metrô ou ônibus?
— Metrô, mas você paga a diferença nas transições de zona...
— É só uma estação. Eu refleti bastante... Preciso da ajuda desse cara.
— E se ele não quiser cooperar?
— Eu faço ele cooperar. Assim que acabar o que você está fazendo me espera na estação.
— Certo.
Os dois, como combinado, se encontraram na estação Holborn e partiram até a casa do sábio.
Eles passaram boa parte da viagem conversando sobre os novos fatos que apareciam na busca do
maníaco e sobre um caso que Thomas estava investigando. Surgiu também o assunto do enterro
de Paul, que seria no dia seguinte, mas eles ainda não se sentiam muito bem para falar
detalhadamente sobre isso. Ao que parecia o comissário estava cuidando de tudo e a ex-mulher
dele chegaria naquele mesmo dia. Eles desceram próximo à Oxford Street e em alguns minutos
estavam na frente do domicílio.
Hary el acompanhado de Thomas, assim como no outro dia bateu muito tempo na frente da
casa, mas ninguém apareceu. Ficaram cerca de meia hora lá, no entanto, ela estava vazia.
Depois de alguns minutos, quando já estavam quase desistindo, um vizinho que chegara com
algumas compras parou e ficou intrigado com a insistência dos dois.
Eles passaram um bom tempo na casa do homem, o estilo de arquitetura parecia muito com o
da casa vizinha, no entanto a decoração só apresentava leves vestígios de incenso e coisas do
gênero. O homem demorou um pouco para achar o endereço, mas eles não conversaram muito,
os detetives estavam com pressa. Thomas não deixou de notar que mesmo Hary el mantendo sua
costumeira ironia estava ainda abalado com a morte do parceiro, resolveu não falar nada, a sua
mente também estava confusa. Quando deixaram a casa o relógio marcava uma e meia da
tarde.
— Você acha mesmo necessário encontrar esse cara? – inquiriu Thomas, descendo as
escadas do lado de fora da residência.
— Por enquanto é o único que pode me ajudar, mesmo que ele esteja no fim do mundo eu
vou atrás dele. – respondeu o detetive.
— É... você parece decidido. Vai procurá-lo quando?
— Hoje, aliás, daqui a pouco. Volto antes do enterro do Paul amanhã. Quero que você
continue tentando descobrir no que ele estava trabalhando. Você está muito ocupado esses dias?
— Hary , Paul era meu amigo também. Terei o maior prazer em investigar.
— Boa sorte... – desejou o detetive, caminhando na direção contrária a de Thomas.
— A estação é por aqui. Aonde você vai?
— Arrumar um carro. Te vejo amanhã...
— Boa sorte pra você também... O que eu digo pro chefe?
— Diz a verdade. Eu ainda tenho treze dias...
O tempo fechava novamente, anunciando que os dias de chuva estavam ainda longe de
acabar.
Hary el conseguiu um carro emprestado com um antigo amigo da faculdade que morava nas
redondezas, pelas informações que tinha chegaria mais ou menos em quatro horas na casa do
velho sábio. Ele prometeu que voltaria antes de amanhecer o dia seguinte, pois o amigo
precisaria do veículo para alguma coisa que não entendera direito, e nem fizera questão para não
parecer indelicado. Esses fatos o faziam refletir maduramente na idéia de comprar um meio de
transporte, estava gastando demais com condução e sempre que precisava se locomover com
urgência algo o atrapalhava.
Ele estava muito pensativo esses dias, com a cabeça cheia, preocupando-se com muitas coisas
ao mesmo tempo. O ar do campo lhe faria bem, e uma viagem, mesmo curta, esfriaria seus
ânimos um pouco abalados desde que tudo isso começara.
A rota pela estrada durou um pouco mais do que o detetive esperara, mas dentro do previsto.
Era cinco e meia da tarde quando ele avistou a pequenina fazenda em meio ao matagal da
rodovia. Foi um percurso agradável, acompanhado do cheiro da terra molhada e dos brilhos de
sol que se manifestavam com mais intensidade à medida que ele se afastava da cidade. Quando
estacionou na entrada do sítio havia pouquíssimas nuvens no céu, coisa que muito lhe espantou
levando em consideração o estado de Londres, castigada as ultimas duas semanas pela água.
Passando o portão de madeira que indicava a entrada da fazenda havia uma pequena estrada
que seria mais bem definida pela palavra “trilha”, que levava a uma casa bem simples,
provavelmente a única em alguns quilômetros. A trilha era de terra e chão batido e passava fina
por entre a grama plana. Esta conduzia à casa já mencionada, de madeira e tijolos numa mistura
engraçada de cores azul e marrom. Quanto mais se aproximava do casebre mais notava a
influência oriental, manifestada não na origem das partes e objetos em volta e dentro da casa,
pois eram ingleses, mas na disposição dos mesmos no ambiente. As janelas estavam abertas e
ele logo notou ao fundo um rapaz carregando baldes d’água em direção ao domicílio. Era aquele
mesmo oriental do outro dia.
O velho estava sentado em uma almofada vermelha no centro de uma sala ampla, bem ao
fundo da casa. Havia um altar dourado, muito bonito, com dragões, baguás e símbolos que ele
não conhecia. Somente aquela sala diferenciava o casebre de uma fazenda normal. O mestre
estava de costas para a porta, como numa atitude de indiferença com o mundo, mas antes que o
jovem dissesse qualquer coisa ele parou o que fazia e disse em um tom extremamente calmo:
O velho fez um sinal para o rapaz, que imediatamente deixou a sala. Cheung Chizu
encaminhou Hary el até uma cozinha perto da entrada. No centro dela havia uma grande mesa
de madeira, grossa e escura, onde eles se sentaram.
O rapaz fervia a água e ervas para um chá na parte de trás. A luminosidade era baixa e as
paredes pouco claras, no entanto alguns feixes de luz, amarelados do sol, penetravam pelas
aberturas na madeira do teto, era a única fonte de claridade no aposento.
— Então – disse ele pausadamente. – , retorne de onde vieste; eu também prefiro arrastar
minha cauda na lama dos pântanos.
— Este colar que você viu, data de um tempo que as coisas do mundo não pareciam em
nada com as de agora e que os filhos do céu governavam a terra – disse ele. – Não é uma peça
do século XVII, como você provavelmente pensa, mas de um tempo onde a terra ainda não
possuía separações e a China e a Índia era uma só raça e um só coração.
— O que ele faz com você? – perguntou ávido o visitante.
É, meu. Herdei das gerações que me antecederam, que herdaram de outras gerações. Como já
disse é um objeto sagrado da “grande religião”, no seu centro, exatamente dentro daquele
compartimento onde está grafado o baguá, está guardado o maior segredo do budismo e a
resposta para todos os mistérios do universo.
— O que ele fazia na cena do crime?
— Não era ele.
— O quê? Eu sei o que vi...
— Era outro colar, da mesma espécie. Quando me tornei mestre, o recebi de meu pai, que
manteve a linhagem das gerações. Embora eles pareçam ter poucos séculos possuem tantos anos
que qualquer cálculo seria mera quimera.
— Que seja outro então! O que ele fazia na cena do crime?
— Não sei...
— Como não sabe. Ele é seu!
— Não é mais. Há muitos anos não o vejo. Pensei que não mais existia, demorei muito
tempo para acreditar que se tratava do mesmo colar.
— O que aconteceu?
— Ele foi roubado – respondeu o velho, tomando o primeiro gole de chá.
— Essa é boa. Sabia que é a primeira coisa que os criminosos dizem quando lhe perguntam
sobre um objeto que é deles?
— Eu não minto.
— Você mentiu sobre o colar. Disse que não sabia nada sobre ele.
— Eu disse a verdade, nada sei. Mesmo o conhecendo não posso ajudá-lo, é difícil pra
mim... entender que ele ainda exista.
— Eu já disse que vi! – elevou a voz exaltada o detetive.
— Nem tudo que você vê é real. Na verdade a própria realidade é uma ilusão.
— Pare com essas bobagens! Quem roubou?
— Não sei.
— Ah – riu sarcasticamente Hary el, se sentido enganado. – Não sabe...
— Há muitos anos eu vivia na china, em uma província chamada Honan. Treinava diversos
garotos ocidentais para serem meus discípulos em Kung-Fu e na arte do Tao. Eu guardava os dois
colares como relíquias gêmeas que são em uma sala escondida. Naquela época fazia pouco
tempo que abandonara o mosteiro e me dedicava unicamente ao ensino do Ch’an e a meu
aprimoramento pessoal...
“Certa vez ocorreram muitos problemas na comunidade e eu resolvi deixar a China.
Embarquei em um navio para o Ocidente, com todos os meus discípulos, que eram ainda garotos.
Passamos muitos dias viajando, amontoados com os outros tripulantes que migravam para um
“mundo melhor”. Depois de semanas de viagem o navio ancorou no porto da Inglaterra.
Decidimos ficar aqui, e eles gostaram demais do local.
“Era ainda o segundo dia que passávamos na Grã-bretanha, ficamos em uma pensão. Quando
veio a madrugada, policiais invadiram o lugar em busca de imigrantes ilegais Chineses. Muitos
foram presos e alguns de meus discípulos fugiram.
“Assim que a manhã nasceu, me vi em um beco deserto, em uma rua que não conhecia, com
pessoas que não falavam a minha língua e com garotos que eu tinha por missão instruir. Eu
levava o colar dentro de uma das malas, esperando me estabelecer para guardá-los em um local
seguro. Depois de semanas procurando abrigo, consegui emprego em uma joalheria e arrumei
uma casa para mim e para os garotos. No entanto quando abri pela primeira vez a mala em que
havia guardado os colares um deles não estava mais lá.
O velho olhou para o rapaz que desligava o fogo em que a água fervia, ficou alguns segundos
observando-o, como se pensasse em muitas coisas ao mesmo tempo e enxergasse algo que
ninguém mais enxergava.
— Está bem. Vou contigo até Londres. Mas nem por isso acho que é uma boa decisão. –
disse ele.
— Muito obrigado... – agradeceu Hary el. – Ah – lembrou-se ele –, tem também este bilhete,
encontraram junto ao cadáver do meu amigo.
— “O Céu e a Terra anunciam a chegada dos novos ventos. E eles não podem ser parados
por ninguém ou coisa alguma. Eles zumbem e batem contra a grama e contra as árvores, mas
também não estacionam, o Tao os guia por todas as dificuldades e por todos os caminhos rumo à
sua alma. Os ventos usam agora a força da tempestade para que o Sol possa nascer mais tarde,
atraído pela chuva. Quando o sol aparecer no horizonte a grande obra estará completa e, quando
ele morrer, o todo terá alcançado a sua suprema glória. A verdade que agora se mostra é que um
peixe não é nada sozinho, mas ele corre feliz pelos lagos sem se preocupar com comida ou com
a hora da ração, mas se o põem em um aquário, fica manhoso, nadando diferente e passando o
dia todo esperando sua comida. Repete-se a verdade que a realidade não existe, e que por isso eu
não sei se sou agora um homem que sonha ser uma borboleta, ou uma borboleta que sonha ser
um homem.”
Os dois passaram boa parte da tarde conversando. Embora o detetive estranhasse a história que
o antigo monge contara, sentia que ele falara a verdade. Eles jantaram, e o sol estava quase se
pondo quando saíram para lavar suas tigelas em um córrego que passava ao lado da casa.
— Por que aqui faz sol? – perguntou Hary el, esperando a resolução da incógnita que o
atormentara na viagem.
— Por que aqui não precisa chover... – respondeu o velho.
— Por que você insiste em salvar o escorpião, quando você sabe que sua natureza é agir com
agressividade, picando-o?
“Porque – replicou o velho. –, agir com compaixão é minha natureza.”
Era de noite quando Hary el e o mestre resolveram voltar para a cidade. Como Cheung Chizu
havia colocado a casa à venda, ficou decidido em livre consenso entre eles que ele ficaria no
apartamento do detetive até que tudo estivesse terminado.
A brisa fresca do ocaso mexia as plantas e a grama, enquanto o sábio, em seu quarto,
preparava a mala para a estadia em Londres. Ele conversou um bom tempo a sós com o rapaz,
que ficaria na casa. Hary el não pode escutar do que a conversa se tratava, mas sentia que era
algo importante, pois passaram muitos minutos em diálogo.
A madrugada já estava quase dominante no céu, quando o detetive decidiu preparar o carro.
Ele ligou a ignição e chamou o velho, que ainda estava na frente da porta de entrada, segurando a
mala, com o rapaz. Mesmo estando um pouco longe, Hary el conseguiu ver o momento em que
este entregou o colar ao jovem.
— Por que isso? – perguntou o rapaz, recebendo a jóia das mãos do sábio.
— Já estás em idade de entender as coisas. És um homem – disse ele. –, quero que fiques
com ele.
— Como assim? – falou o jovem, espantado.
— Quero que permaneças aqui e cuide da casa. O colar agora é teu, tens tudo que precisas,
sinto que a verdadeira sabedoria já começa a aflorar em ti. Não necessitas mais de mim...
— Mestre, quando voltarás?
— Sempre que pensares em mim, voltarei.
— Não estou pronto... – disse o rapaz, quase implorando, e entendendo o que o velho falara.
— Sim, estás, eu não posso mais te guiar. O colar é a resposta, dentro dele há tudo que
precisas para se tornar um grande mestre. O segredo do Tao.
— Quem me mostrará a luz?
— Já devias saber que ela está dentro de ti...
— Não tenho em que me apoiar – suplicou o rapaz.
— Então tu ficarás em pé por si só. Quando não há apoio, a verdadeira firmeza se revela.
— Acho que não conseguirei me manter até ser firme o suficiente...
— Mas também não sucumbirás. Se vacilares, agarre-te no colar.
— Não sou digno dele.
— Ele é tu mesmo. Ninguém melhor que tu para possuí-lo.
Uma lágrima fina, em forma de gota, escorreu lentamente pela face do rapaz. O sábio soltou
um sorriso coberto de ternura. Eles sabiam que já havia acabado.
— O que um homem deve entender para compreender inteiramente o Ch’an? – perguntou
pela última vez o velho, testando as habilidades do jovem, e ao mesmo tempo se despedindo.
— Que biscoitos doces estão na mente. E um biscoito quebrado, não está em lugar nenhum. –
respondeu o rapaz, emocionado.
— Estás preparado. – disse o velho seguindo a trilha até o carro. Nas suas costas deixava o
discípulo e sua casa. Doía muito compreender as coisas.
Ele entrou no carro e esse partiu em meio à escuridão. O jovem ficou lá, na porta, por um
bom tempo, olhando o horizonte. Antes de entrar ele abriu vagarosamente o camafeu do colar,
estava vazio. Então ele entendeu o segredo do universo.
Trovões e raios dominavam todo o céu no caminho. Chovia fortemente nos arredores da
cidade, como nunca nos últimos dias. Talvez fosse a chuva mais forte em anos. As gotas desciam
pesadas em meio à escuridão, iluminadas somente pelas lâmpadas amareladas em volta do
asfalto. Este as refletia como um espelho úmido e levemente embaçado com o azul escuro e
acinzentado do céu. O barulho da tempestade era quase ensurdecedor, e o vento era frio,
arrepiando cada ínfimo pelo do corpo do detetive. A chuva atrasara um pouco a viagem, e
quando finalmente se aproximaram do apartamento de Hary el, a madrugada já estava no meio.
As ruas estavam alagadas, e as águas escorriam como pequenos córregos pelo solo,
impossibilitando a passagem em diversas áreas. O carro pegou uns poucos atalhos pelas ruelas de
Londres até algumas quadras antes da casa do detetive. Algo que ele não entendera muito bem
bloqueara o acesso pela rua principal, e o retorno por outros trajetos era impossível. Eles tiveram
que deixar o carro lá mesmo, cerca de três quarteirões do destino. Como o temporal se
acentuara, deixaram o carro encostado ao meio fio de uma esquina próxima a um beco. Saíram
meio apressados, pois, desprevenidos, nenhum deles trouxera guarda-chuva.
— Tem certeza que quer ir já? – disse Hary el, parado em baixo do telhado de uma loja que
desconhecia, e um pouco preocupado com a saúde do mestre. E se ele pegasse uma pneumonia?
— Tenho. Seu apartamento está próximo?
— Umas três quadras.
— Então vamos – disse ele de bom humor e esgueirando-se nas águas.
A estrada estava lamacenta e eles tiveram mais dificuldade do que esperavam para passar as
quadras. A chuva caía cada vez mais pesada e as vias estavam desertas. Então, chegando a uma
curva, depois de um pouco caminhar, encontraram uma bela garota vestida com roupas curtas
de couro e passando um pouco de frio, a qual era incapaz de cruzar a intercessão. Provavelmente
era uma prostituta, e assim que a viu, o velho caminhou em sua direção.
— Venha, menina. – disse o velho de imediato e erguendo-a em seus braços, ele a carregou
e atravessou facilmente o lamaçal.
Hary el olhara admirado a ação do companheiro de viagem, espantado com a força do corpo
do ancião. Ele também cruzou o caminho não dizendo uma palavra.
O mestre deu uma espécie de manto que carregava para a jovem, visando aquecê-la, e
continuou a andar com o detetive. Os dois estavam extremamente molhados
Hary el não falara nada durante todo o resto do percurso e o mestre nada entendia, e assim
continuou até a chegada ao apartamento, quando subiram as escadas, sacudindo as roupas, e ele
abriu devagar a porta.
O zelador guiou o homem até a parte de dentro do clube, onde ficava a rede elétrica. Ele
olhava muitas vezes para os óculos do visitante, que cobriam olhos cinza e cristalinos, e falava
muitas coisas a respeito dos problemas com lâmpadas e com toda a aparelhagem. O assassino
não contava com a extroversão do vigia, que já prestara atenção demais na sua pessoa, se
continuasse assim muito tempo seu plano corria o risco de falhar. Ele fez o possível para
esconder o rosto e não olhar diretamente para o zelador, mas este buscava a sua face numa
descontração surpreendente.
O homem despediu-se do zelador e começou a analisar as caixas. Ele abriu a maleta que trazia
e foi em direção à sauna. De dentro tirou o equipamento e começou a instalação. Precisava
trabalhar o mais rápido possível, antes que o vigia voltasse. Ele fez a ligação dos fios e encaixou
os componentes elétricos. Levou menos de meia hora para acabar a primeira parte do serviço
dentro da sauna, e então voltou para o conserto da caixa da esquerda, já que conhecia muito bem
o problema em poucos minutos estava pronto. Depois decidiu arrumar o que faltava na caixa
direita, mas antes que pudesse encerrar, o zelador o interrompeu repentinamente.
O assassino gelou.
— Arrumando a rede de força, o lado direito também foi afetado... – disse ele, tentando
explicar-se, e temendo que fosse descoberto.
— Mas que eu saiba era só o conserto da fiação da piscina.
— A sauna não está bem. É meu trabalho verificar tudo antes de ir embora... – desculpou-se.
— Se você diz...
O homem ficou satisfeito em não precisar matar o vigia. Ele havia cometido um erro de
cálculos, pelo que conhecia do local seria o dia de outro zelador assumir a portaria. Depois de
alguns poucos momentos de conversa, sempre se cuidando para não ser muito visualizado,
descobriu que ocorrera um imprevisto e eles se viram obrigados a trocar de turno, forçando um
deles a ceder a folga.
O assassino terminou o que faltava na frente do vigia, distraindo-o com outras coisas e saiu
driblando sua curiosidade pela porta dos fundos. Ele esperou algum tempo do lado de fora, até
que o mesmo trancasse o andar inferior, assim ele teria certeza que não notariam o que fizera até
a hora certa.
Deixou o clube as dez da noite, algumas horas depois Cheung Chizu chegaria com Hary el em
meio à tempestade.
Quando o detetive acordou pela manhã, o mestre já havia levantado há muito tempo. Ele
fizera um chá com algumas ervas aromáticas, o qual impregnou a casa inteira com um odor
sublime. Ao abrir os olhos, acordado pela fragrância da infusão, Hary el pôde ver o velho
movimentando-se lentamente como um animal, numa seqüência impressionantemente bela.
— Isso é Tai-Chi? – perguntou o detetive, ainda deitado, observando o fluxo dos braços e
pernas do mestre. Parecia um estado de meditação.
— Sim. É bom fazer ao nascer do sol. – respondeu o velho.
— É uma arte marcial, não?
— É um caminho de vida...
— Mas não parece muito feroz... – comentou Hary el.
— Ainda é o principio de que “parecer não é ser”. Desejas ferocidade? Tu a obterás pela
doçura. Desejas rigidez? Conseguirás pela flexibilidade. Queres força? Estimula-a pela fraqueza.
— Não entendo.
— Pratica a flexibilidade e te tornarás rígido. – falou o mestre, movimentando-se
lentamente. – Exercita-te na fraqueza e virás a ser forte. Se observares com atenção a conduta
das pessoas, preverás o teu futuro, infelicidade ou felicidade. O violento vence o que é menos
violento que ele, mas quando se defronta com alguém semelhante, precisa endurecer-se, e aí
corre o risco de fratura; como a superioridade do meigo está nele próprio, ele possui poder sem
limites.
— O que você quer dizer?
— Quero dizer que adotar a afirmação é também adotar a negação, e adotar a negação é
também adotar a afirmação. Por isso o sábio nada diz e não toma opinião alguma, pois sua
posição é o próprio todo.
— Como alguém que não faz nada pode fazer alguma coisa? – perguntou o detetive, que
entendera mais ou menos, debochando.
O velho acabou o último movimento, em direção ao Sol, e virou-se para Hary el.
— Todo mundo percebe a utilidade do útil, mas ninguém percebe a utilidade do inútil – disse
ele.
— Você é louco mesmo. Como uma coisa inútil pode ter alguma utilidade, se o próprio nome
diz, “inútil”? – riu o detetive, duvidando da sanidade do velho.
— Um homem uma vez atravessou a colina Chang. Ele percebeu uma árvore
surpreendentemente grande. Para você fazer uma idéia, sua sombra podia cobrir mil carroças
com quatro cavalos.
“Espantado, ele se perguntou que árvore era aquela, e para que poderia servir. Olhando-a de
baixo, seus pequenos ramos curvos e torcidos não podiam ser transformados em cumeeira e em
vigos. Olhando-a do alto, seu grande tronco, nodoso e rachado, não podia servir para fabricar
ataúdes. Aquele que lambesse suas folhas ficaria com a boca ulcerada e cheia de abscessos. Só
de sentí-la ficar-se-ia tonto e embriagado por três dias. Ele então concluiu:
“Esta árvore é inútil e, por essa razão, conseguiu atingir tal porte. Ah, o homem divino por sua
vez, também não passa de madeira inútil!”
— Entendi. O inútil consegue se conservar...
— Mais ou menos. Estou te mostrando o caminho da sabedoria. O esvaziamento do “eu”. –
disse o velho.
— Esvaziamento do eu?
— Para você entender o assassino tem que se assemelhar a ele.
— E como ele é?
— Ele é como o vazio.
— E como o vazio pode ser alguma coisa? – perguntou ele já confuso com toda aquela
história.
— Á que horas é o enterro do seu parceiro? – perguntou o velho.
— Às oito, por quê?
— Nada, já está na hora de você se arrumar, não?
— Você não vai?
— Vou, levante-se e tome um chá...
Hary el saiu da cama, lavou o rosto e foi pra mesa, Cheung Chizu, do seu quarto gritou alguma
coisa para ele.
— Você me perguntou sobre o vazio... Imagine uma barca quadrada que atravessa um rio –
disse o velho. –; se outra barca vazia, que se encontra à deriva, vem chocar-se contra ela, os
marinheiros, sendo homens de espírito mesquinho, não se irritarão.
“Mas, se houver um homem na barca, eles gritarão para que a recolha. Se o homem não os
ouvir, gritarão uma segunda vez; se continuar a não entender, eles o crivarão de injúrias. Em
resumo, se estiver vazia, a barca não excitará a cólera; ela só a provocará quando estiver
ocupada. Dessa forma quem poderá fazer mal a quem tiver se esvaziado do seu eu?
— E o assassino se esvaziou?
— Provavelmente... – gritou o velho, do quarto.
Às sete da manhã eles saíram rumo ao cemitério. Não haviam feito velório para Paul, pela
impossibilidade se seus familiares chegarem a tempo, e o estado do cadáver valorizava muito
essa decisão, pois embora sua morte tenha sido relativamente simples, o estrangulamento fizera
com que não fosse uma visão agradável o caixão aberto numa cerimônia fúnebre. De mais a
mais, o comissário fora quem cuidara de tudo, e mesmo que Hary el pensasse em discordar,
provavelmente sua opinião não seria relevantemente ouvida.
Às oito e trinta e cinco o táxi estacionou a frente dos muros do campo santo. O detetive vestia
um terno negro, com gravata de seda e óculos escuros. Mesmo o dia estando nublado e frio,
fizera questão de usar, não queria que pessoa alguma visse lágrimas em seu rosto. O cemitério
estava coberto por folhas secas, caídas das árvores ainda no início do outono e, as plantas negras
e retorcidas, davam um ar extremamente melancólico àquela manhã de céu cinza.
O velho trajava uma roupa discreta, que não se assemelhava com os demais convidados, e
diferenciava-se principalmente pelo terço entalhado em madeira no pescoço, que embora não
fosse um acessório comum, permanecia pouco chamativo.
Poucos minutos após chegar, Hary el visualizou o cortejo, vindo ao fundo. Ele abraçou a viúva,
que trajava um vestido preto, com um véu que lhe cobria o olhar, e os irmãos do parceiro, que
disfarçavam as lágrimas, mas não a tristeza daquele momento. Thomas também estava lá e logo
cumprimentou o detetive e seu acompanhante, ficando ao seu lado quase toda a cerimônia.
Todos exibiam olhares abatidos, exceto uma menininha que o detetive não conhecia, ela
permanecia parada em frente ao túmulo, ouvindo atentamente a oração. Cheung Chizu também
não se deixara influenciar pelo clima do local, mantendo um olhar de indiferença; inicialmente
Hary el deduziu que era porque não conhecia Paul o suficiente para sentir alguma tristeza com
sua morte, mas depois de alguma analise ele conseguiu notar em seus olhos uma espécie de
segurança, que flamejava ardentemente, como se compreendesse o que ninguém mais
compreendia. Talvez fosse este o motivo de sua abstinência.
Já no meio do sepultamento, quando a brisa fria movimentava as últimas folhas secas dos
galhos, um homem apareceu no cemitério.
Trajava um terno negro, coberto de uma capa de mesma cor e óculos escuros. Ele
aproximou-se devagar da cerimônia e agachou-se de frente a uma cova sob a sombra de uma
grande árvore. De quando em vez ele lançava olhares na direção do funeral, mas a distância e a
dificuldade que se tinha de ver seus olhos impediam qualquer possibilidade de se saber
exatamente para onde olhava.
O olhar do detetive cruzou com o de Lucifer, eles se encaram por algum tempo, até que o
homem soltasse um sorriso irônico e levantasse, deixando uma rosa vermelha sob o túmulo.
— É um pintor famoso, está fazendo uma exposição por toda Europa, chegou há cerca de
um mês em Londres. – esclareceu Thomas. – Você não ouviu falar? A imprensa fez o maior
estardalhaço...
— Acho que ouvi. O que será que ele quer aqui?
— Como você quer que eu saiba? – riu o rapaz. – Acho que está visitando um parente, sei lá...
— Você não acha que ele está olhando demais para cá?
— O cemitério é um lugar público, está tendo um sepultamento, é normal... Você está muito
paranóico...
— É verdade...
Hary el passou um bom tempo fitando o homem antes que este abandonasse o local, alguma
coisa nele o impressionara, ainda não sabia bem o que era, ou por que estava intrigado, mas não
parecia uma sensação normal. A palavra medo lhe passou pela cabeça, mas como ele poderia
sentir medo de alguém que não conhecia, e na verdade, mal ouvira falar? Esse fato logo seria
esclarecido.
O padre acabava as ultimas preces em latim, acompanhadas da reza dos amigos de Paul e
alguns mais próximos do distrito, que compareciam em peso, honrando o convite do comissário.
Antes que Lucifer deixasse o cemitério, os olhos do velho o notaram ao longe. De início ele não
pôde acreditar no que vira, mas logo se convenceu. O detetive observou a expressão de espanto
nos olhos de Cheung Chizu,e ficara admirado pelo fato de o mestre, que constantemente exibia
tamanha indiferença, agora se abalar apenas por visualizar um indivíduo deixando um solo
fúnebre.
O homem abaixou devagar os óculos e sorriu, olhando dentro da alma do sábio, que o
reconheceu. Ele era um demônio.
Lucifer, numa ação repentina, cobriu novamente os olhos cinza e saiu pelo portão. O mestre
ficou observando-o, sentindo calafrios que o olhar lhe impusera, até que após algum tempo
recuperasse a tranqüilidade.
— O que foi? – perguntou Hary el, que não compreendera nada do ocorrido.
— Você ainda vai saber – respondeu o velho, virando vagarosamente o rosto e espirando
ruidosamente uma grande quantidade de ar.
Cheung Chizu jogou uma rosa branca no sepulcro, Hary el uma vermelha. Depois se
despediram e deixaram o lugar. O detetive não queria ver a cobertura de terra.
Antes de abandonar o cemitério, o velho lançou um olhar até a sepultura que o demônio
visitara, conseguiu ler o que estava escrito, mas não deixou que Hary el reparasse nela. O detetive
não poderia ver o que estava grafado, não agora. Teria que caminhar por si só. Ele também
decidiu não falar nada sobre Lucifer, as coisas teriam que vir a seu momento.
“Descanse em paz”, foi a última frase que disse naquele local.
O detetive deixou o mestre em casa, e foi direto à central. Mesmo a maioria dos policiais
estando em descanso ele ainda teria muito que fazer. Só trabalhando quando todos relaxavam
poderia descobrir o que ninguém ainda conseguira: A identidade do assassino
Thomas também voltaria para o prédio, haviam combinado de analisar alguns relatórios
juntos, e um tempo com a mente ocupada faria bem aos dois. Hary el tinha devolvido ainda pela
manhã o carro para seu amigo e estava novamente a pé, dependendo da boa vontade do trânsito
londrino.
— O que é isso? – perguntou o detetive a Thomas, já cansado de toda vez que alguém lhe
mostrava um papel ficar espantado.
— O relatório que me pediu... – justificou o rapaz, que ficou meio que paralisado com a
reação de Hary el. – Já que não quer... – disse ele, levando embora o documento.
— Dá isso aqui! – falou o detetive, arrancando o laudo das mãos do rapaz. – Você está
ficando muito palhaço...
— Pra você ver no que a convivência contigo me transformou...
— Pra que isso? – indagou Thom, questionando-se sobre o motivo do trabalho que tivera.
— Queria informações detalhadas sobre a mina na casa do Gonzáles.
— Isso eu já sabia, mas o que “especificamente”?
— Pólvora...
— Eu já imaginava, não se acha em qualquer lugar...
— Na verdade se acha sim... É outra coisa. Eu imaginei que ele não deixaria rastros, embora
compra de pólvora seja algo relativamente comum ele conseguiria outro método pra obtê-la...
— O que quer dizer?
— Que ele fez boa parte de pólvora assim como os equipamentos.
— Como fez?
— No relatório consta que não é pólvora comum, é uma mistura da tradicional com uma
espécie caseira.
— E o que ele usou para fazê-la?
— Adubo pra coqueiro...
— O quê?
— É verdade, duas partes de carvão, uma de enxofre e uma de nitrato de potássio, mais
conhecido como adubo...
— É isso que diz aí?
— Não, mas eu deduzi pelas informações.
— Deduziu? Cara às vezes você me dá medo...
— Pra você ver o que insônia e Discovery Channel fazem com uma pessoa...
— Quero que você faça uma lista de compras desses materiais que eu vou indicar e depois
verifique em todas as lojas possíveis de produtos agrícolas.
— Tem mais coisa que o adubo?
Hary el sorriu:
— Você não sabe o que fertilizante, algodão e óleo diesel podem fazer...
Antes de sair Thomas fez mais uma pergunta:
— Se esse cara fez uma pólvora caseira para cobrir rastros, por que ele deixaria algum em
uma loja de fertilizantes?
— Não sei, é sempre bom investigar. Pelo menos ficaremos sabendo com que tipo de
inteligência estamos lidando...
— É só isso?
— Não, eu também estou precisando saber o preço do adubo, minha samambaia tá quase
virando um cacto...
Naquele dia a imprensa envolveu-se mais que os demais no caso do Artífice, deram durante
toda a tarde informativos sobre o enterro de Paul, embora não o tenham filmado, a pedido da
família. Algumas manchetes e reportagens tratavam também das ultimas mortes e do fim que
levaram os cadáveres e a situação dos familiares. Essas ações só serviam para aumentar ainda
mais o temor da população e o sentimento de indignação quanto o trabalho da polícia, que do seu
lado, empenhava-se com mais da metade dos departamentos na busca ao maníaco. Ninguém
sabia ao certo como a informação da morte do parceiro de Hary el veio à tona, certamente não
da polícia, pois esta já estava atarefada demais contendo as reações às mortes habituais. A fama
de Hary el também crescera, aliás, aquele foi o dia em que mais vezes suas imagens apareceram
na tv, nem mesmo o caso das Esmeraldas do Dr. Porter, no ano passado, tivera tamanha
repercussão.
O assédio dos jornalistas ficou ainda mais claro, no final do dia, quando a garoa começou a
cair fina nas ruas. Hary el deixava a central em busca de um ônibus quando uma enxurrada de
repórteres o barrou. Decerto ficaram o dia todo à espreita, na frente do distrito, enviando
imagens ao vivo pra todo o país. Levou muito tempo nas entrevistas, já que não conseguiu se
desvencilhar, sendo obrigado a responder algumas perguntas a respeito de Adam Johnson, que
também estava investigando. Como sempre, a imprensa tentava forçá-lo a dizer algo que o
comprometesse perante Johnson, fato que serviria de estopim para furos como: “Briga interna
entre agentes prejudica caçada a assassino”. Mesmo detestando Adam, o detetive conteve-se
para responder o mais gentilmente possível, sua fama de avesso às câmeras já era por demais
forte. Era oito da noite quando ele finalmente conseguiu se livrar dos flashes, sob a promessa
pressionada de uma entrevista coletiva em outro dia. Claro, não foi estabelecida uma data, pois o
comissário poderia não concordar e, na verdade, o próprio Hary el não gostava nem um pouco da
idéia.
O detetive sentou-se no sofá, pois sua poltrona favorita estava em baixo de um mestre do
Ch’an. O programa que estava passando era da Discovery, e até que era bastante interessante.
Hary el chegou bem na cena em que uma raposa corria acirradamente atrás de um coelho na
neve. O animal tentava despistar a raposa, pulando entre as folhagens, mas seus esforços, ao que
parecia, não obtinham sucesso. Ele ajeitou-se no sofá e acabou se distraindo, a perseguição era
de certa forma emocionante. Eles ficaram alguns minutos observando, o coelho saltava entre as
folhas congeladas e a raposa em seu encalço. Algumas vezes eles se enfiavam totalmente na
neve e a câmera não conseguia captá-los. A certa altura, Cheung Chizu olhou para o
companheiro de entretenimento e disse:
Ele também estava preocupado com o que Paul estava investigando antes de sua morte, não
conseguia achar a resposta. Permaneceu boa parte da noite revirando os relatórios e refletindo
sobre tudo, no entanto a curiosidade quanto a que o ex-parceiro se ocupava não lhe saía da
cabeça.
— Parece que você acertou – falou o detetive, vendo o resultado do documentário.
— Acertar ou errar tanto faz. Verdade e mentira são ilusões – disse o velho.
— Você sempre com essas coisas sem sentido...
— E você sempre preocupado. No que está pensando?
— Achei que você também pudesse adivinhar...
— E posso, mas achei mais fácil perguntar. Os homens se preocupam demais.
— É porque têm muita coisa pra fazer... – explicou Hary el, sem tirar os olhos dos papéis. –
Não ficam sem fazer nada, só rezando como certos mestres por aí...
— Exatamente, por isso passam a vida inteira estressados e morrem antes dos quarenta. O
sábio nada faz, por isso ele consegue fazer perfeitamente, ele fica parado, não-agindo e deixando
o Tao executar por ele. O sábio pode falhar, mas o Tao nunca falha.
— O que é o “Tao” afinal?
— Só posso dizer o que ele não é. O que ele é sinônimo de nada.
— É realmente... Você é doido.
— Sabe qual é a dificuldade das pessoas e seus problemas? Pensam demais neles e
procuram as soluções nos lugares errados. A solução de um problema só pode estar em um
lugar: Onde está o problema.
O detetive teve um lampejo, uma idéia, por um instante tudo estava claro.
— O que você disse? – perguntou ele ao sábio.
— Que se o problema está em você, a solução também...
— Não, não foi isso que você disse, repita... – falou ele, levantando da mesa.
— Que a solução está sempre onde está o problema...
— Isso! – gritou feliz o detetive, dando um beijo no rosto do sábio e pegando sua capa de
chuva.
— Aonde você vai?
— Resolver o meu problema – gritou ele saindo pela porta e descendo velozmente as
escadas.
Hary el ficou alguns minutos frente ao cordão de isolamento que restringia a porta marrom
escura de um apartamento. Visualizava atentamente as marcas na fechadura, provavelmente
fruto do arrombamento dos policiais dias antes. Há muito não visitara aquele local, e agora para
fazê-lo precisaria de um mandato, mas ele não podia esperar. Deixou os olhos sobre o contraste
do amarelo da faixa com o marrom da madeira por um longo tempo, até que decidisse
finalmente entrar. Ele afastou-se um pouco se preparando para arrombá-la novamente, mas
antes se lembrou que poderia estar aberta. Dito e feito, ao colocar a mão na maçaneta percebeu
que a entrada estava apenas encostada. Abriu vagarosamente a porta, provocando um rangido
alto e contínuo. O apartamento de Paul estava quase como sempre.
Havia algumas almofadas e revistas jogadas pela sala e umas poucas calças em cima do sofá,
uma desarrumação completa digna de um solteiro. Na mesinha ao lado de uma poltrona
permanecia um cinzeiro, denunciando que o parceiro mesmo sob todas as advertências não
parara de fumar. Certo ele, de que adiantaria privá-lo daquele prazer se não poderia aproveitar a
vida de qualquer maneira? O detetive andou quase uma hora pelo apartamento, olhando os
exemplares de algumas revistas no chão, umas informativas, com matérias interessantes, outras
em quais somente as figuras importavam. Ele lembrou muita coisa aquele dia: A primeira vez
que vira Paul, o primeiro caso que investigaram juntos, algumas saídas para noitadas e até a
primeira vez que tivera que ligar pra mulher dele, dizendo que o pobre “tivera um problema
intestinal e não voltaria para casa aquele dia”, tudo balela, saíram juntos e o parceiro bebera
tanto que nem um barril de carvalho conteria tal quantidade de whisky. Ah, como Paul gostava
de whisky ! E ele detestava, argumentava que não tinha gosto de nada, mas o parceiro
permanecia firme em suas raízes escocesas. Em cima da mesinha, embaixo de umas poucas
camisas, havia o que Hary el viera procurar: As matérias que Paul investigara. Ele tinha quase
certeza, como uma coisa extremamente intuitiva, que aquilo lhe revelaria alguma coisa, talvez
por isso hesitara um pouco antes de seguir para a mesa. No entanto num impulso repentino,
afastou as roupas de cima dos jornais e começou a examinar as anotações do parceiro. Lá
ficavam umas tantas folhas rabiscadas com desenhos estúpidos, como círculos, luas, triângulos e
quadrados, provavelmente obras de um descarregamento de tensão. Nos jornais, matérias de
várias épocas e até de anos bem anteriores. Em uma delas, datada de alguns meses, havia uma
reportagem sobre a loja de bebidas de Gabriel Collins. Ela era de cerca de dez meses antes do
assassinato, no título o nome do Collins aparecia como um micro-empresário inovador, e a parte
“Gabriel” estava circulada com uma caneta vermelha, anotação de Paul. Em outros jornais
encontrou matérias sobre outras vítimas, como o aumento do preço das ações das corporações
Medison, empresa presidida por Metatron Morrison, todas datadas de alguns meses, no máximo
de um ano, com partes dos nomes circulados. Hary el não demorou muito tempo para entender.
Paul havia encontrado a ligação das vítimas.
Às dez da noite daquele dia, na frente do clube, o demônio esperava sob a chuva a última
pessoa sair. Ele sabia que a moça ficaria lá até tarde e já havia preparado no outro dia tudo que
necessitava para que o plano saísse perfeito. Ele trajava um terno negro, coberto por uma capa
de mesma cor, que lhe dava um certo ar de requinte. Como da outra vez ele aguardou até que
ficassem apenas os empregados e a moça, depois se dirigiu até a porta de entrada, do lado oposto
a guarita, por onde entrara na outra noite. Como já era previsto o segurança não o barrou,
provavelmente pela sua boa aparência. Ele penetrou devagar pelos corredores onde os garçons
já recolhiam as taças de cima das mesas e o barman fechava a portinhola de madeira onde
ficavam as bebidas. Na mesa de sinuca, para espanto do homem, ainda duas pessoas jogavam
com vigor, mas felizmente não prestaram atenção na sua presença. Caminhou lentamente pelos
corredores, extremamente belos, observando o teto magistral do início do século, até alcançar a
área dos vestiários, onde ficava a sauna.
Como esperava, a moça estava lá, tinha acabado de entrar. Ela passava boa parte das tardes no
clube, jogando, bebendo um pouco e se divertindo, mas sempre antes de deixar o local relaxava
naquele lugar. O homem entrou a passos curtos, sem ser notado, e andou em direção à moça, ela
estava somente de toalha, deitada sobre a madeira da sala. Devia possuir uns vinte e seis, vinte e
cinco anos, talvez menos. Ele aproximou-se devagar, ela estava de olhos fechados, não podia
notá-lo. Ele retirou a capa e deixou-a do lado de fora, abrindo a porta lentamente e entrando na
sauna, a moça quieta, estava completamente distraída.
— Olá – disse o homem, assustando a moça, que saltou da posição em que estava com
taquicardia.
— Quem é você? – gritou a mulher, afobada, recuperando-se do susto.
— Desculpe, não pretendia assustá-la... – disse o estranho.
— Certo... Mas quem é você? Achei que não tinha mais ninguém nesse horário...
— Eu não sou ninguém...
— Você está me assustando, entrando de terno na sauna e ainda sorrateiramente. Não
parece que trabalha aqui...
— E não trabalho.
— Então você é sócio do clube? Nunca te vi por aqui...
— Talvez porque eu nunca estivesse.
— O que quer a essa hora da noite aqui? – perguntou a moça, enxugando o rosto e os longos
cabelos molhados.
— Você – disse o demônio, olhando nos olhos da mulher.
— Desculpe – disse ela espantada. –, não estou interessada...
— Não – riu o homem. – Você não entendeu, eu quero a sua alma.
O homem virou-se de costas para a mulher e saiu da sauna, fechando a porta. Ela pôde ver
pelo quadrado de vidro um pouco embaçado, que ficava na parte de cima da porta, a figura
seguir até a caixa de luz. A moça correu para abrir a entrada, mas como intuía estava trancada.
Como poderia estar trancada se a porta não tinha trancas? A mulher bateu na porta com todas as
forças, bateu por muito tempo, ela podia ver a figura do outro lado, olhando-a, mas não distinguia
a sua face. Será que ele queria só amedrontá-la?
— Abra a porta! – gritou a moça.
— Não – riu o vulto embaçado, era tudo que ela via dele.
— Me solta, me deixa sair!
— Logo sairás. Tu és como uma garrafa de água salgada jogada no mar, logo arrancarei a
rolha.
— Me solta!
— Quer que eu te solte? – gargalhou o vulto. – Vou te contar uma história, depois verei o que
fazer. Preste atenção:
“Uma vez um homem viajara pelo campo a caminho de casa. Peregrinara já há algum
tempo, quando de repente deparou-se com um tigre. Sem pensar e com muito medo ele correu,
e o tigre em seu encalço. O animal era muito rápido e ele não podia despistá-lo. Aproximando-se
de um precipício, tomou em suas mãos as raízes de uma vinha selvagem que estava exposta à
beira do penhasco, se segurou e dependurou-se precipitadamente abaixo do abismo, o medo o
dominava e fazia tudo sem pensar. Quando deu por si, o tigre farejava acima, e tremendo, o
homem olhou para baixo e viu no fundo do desfiladeiro, outro tigre a espreitá-lo. Apenas a vinha
o sustinha. Olhou para os animais. Estes pareciam famintos e o esperariam até quando fosse. Mas
ao olhar para a planta viu, dois ratos, um negro e outro branco roendo aos poucos sua raiz. Foi
quando seus olhos perceberam um lindo e apetitoso morango vicejando perto, nunca havia visto
fruta mais suculenta. Segurando-se então na vinha com uma mão, ergueu a outra, apanhou o
morango, e levando-o a boca o comeu. “Que delícia!, disse ele”
A mulher não entendera a parábola, mas tentando mostrar que estava atenta, perguntou:
— Mas, e os tigres?
— Esqueça os tigres, coma o morango!
O homem colocou as mãos sobre uma espécie de chave na caixa de força, a moça não
conseguiu ver muito bem, pois o lado de fora estava cada vez menos nítido.
— Quando nos fechamos em um lugar, tudo que está fora no começo não nos parece claro –
disse o homem, notando a aflição da mulher e fixando seus olhos cinza na sua imagem. – Vou te
fazer uma pergunta, se acertar te deixo viver.
Uma expressão de felicidade brotou no rosto da moça, havia uma esperança.
— Há muito tempo – disse ele –, um homem colocou um ganso no interior de uma garrafa.
O animal cresceu tanto, que de lá não pode mais sair. Como poderá o homem retirá-lo da
garrafa sem quebrá-la e nem ferir o animal?
Ela pensou muito, pensou com muita aflição e como nunca antes pensara na vida, mas não
encontrou a resposta. Uma angustia profunda tomou seu coração, apertando e apertando,
comprimindo-o e o deixando cada vez menor, com uma dor inigualável. Nunca doera tanto dizer
uma simples frase, e ela expiava aquela dor, suportando-a asfixiada, como num purgatório. Num
esforço torturante ela balbuciou:
— Não sei.
O assassino sorriu, abaixando a tal chave que segurava. A mulher entrou em pânico, mas já
sentira tamanho medo que o estado que ela exprimia assemelhava-se a uma aceitação, ela
gritava e batia na porta, mas sua face já perdera a esperança. Um gás estranho começou a
permear o ambiente da sauna, enchendo cada espaço vazio e infiltrando-se nos pulmões da
mulher. Saía de uma espécie de cano no canto do aposento, ela pensou em tentar tapá-lo ou
destruí-lo, mas estava quase sem forças, como se dopada estivesse. Só lhe restava gritar, gritar o
mais alto possível, talvez alguém a socorresse. Ela ficava cada vez mais tonta, debatendo-se
contra a saída, mas esta não cedia, machucando seus punhos e cotovelos a cada golpe. O homem
a olhava, com uma indiferença assustadora a nuvem subir e as mãos da moça cheias de sangue,
ela o temia. Por um segundo pensou em parar de lutar contra a porta, era mais seguro lá dentro,
longe do demônio. O gás cobriu toda a atmosfera, já era impossível respirar. O vidro embaçava
cada vez mais, e aos pouco ela perdia a consciência. Em um momento ela não podia mais ver o
que estava lá fora, não havia mais ar. Ela tentou respirar, tentou sugar alguma coisa, mas tudo
que entrava pela sua traquéia era o gás. Atirou-se no chão moribunda, contorcendo-se
bruscamente como louca, desejando oxigênio mais que qualquer coisa no mundo. Aspirava
como uma neurótica, sugando e sugando, numa agonia sem fim, mas não era saciada.
Assim que a mulher parou de se mexer, o demônio virou as costas e deixou o lugar.
Como assim encontrou? – disse Thomas, espantado, abaixando-se na escrivaninha do detetive
para ver melhor o jornal.
— Está aqui – falou risonho Hary el, explicando a correlação que Paul encontrara e
apontando constantemente com a caneta. –, nestes círculos: “Gabriel” Collins, “Metatron”
Morrison, “Miguel” Gonzáles. Todos contêm nomes de anjo e apareceram nos jornais nos
últimos doze meses!
— Ta certo, eu entendi. Realmente faz sentido, mas e o Arnold?
— J. M. Arnold? Foi o primeiro assassinato, ele aparece aqui nessa reportagem do ano
passado. O assassino segue a ordem das datas.
— E o nome?
— Sabe qual era o primeiro nome dele?
— Sei lá... John?
— Jeliel. Royal Straight Flush! Hary el Kitten ganha o jogo...
— Então agora você conhece a seqüência lógica. Dá pra saber quem é o grupo de risco?
— Mais que isso... Paul deixou anotados os prováveis próximos a serem assassinados. Não sei
direito que sistema ele usou, mas deve ter eliminado os nomes repetidos, ou coisa do gênero.
Sobram ainda três “anjos”: Lauviah Giane, uma mulher de vinte e quatro anos que aparece
constantemente na coluna social, a primeira vez foi há quatro meses...
— Sei quem é – disse Thomas, interrompendo. – O pai dela tem várias adegas de vinho por
toda cidade, a família é bem famosa e a moça é uma gata... E o nome de anjo?
— “Lauviah” é um anjo.
— O Collins também não mexia com bebidas?
— Sim, mas os outros não. Não estabelece tendência. Continuando... tem também esse cara
aqui – apontou Hary el no jornal.
— “Samuel” Watson... Quem é?
— Um micro-empresário, tem uma imobiliária. Parece que recebeu alguns protestos de
clientes insatisfeitos. Sabe como o povo adora escândalos...
— Parece que ele corre um perigo maior do que a desmoralização da empresa... O que
pretende fazer?
— Avisá-los e ficar de guarda. Quando o assassino tentar dar o bote, nós o pegamos.
— Acha que vai dar certo? – perguntou o rapaz, ansioso por um sim.
— Se não achasse não tentaria – disse o detetive, colocando os pés sobre a mesinha.
— E o terceiro?
— Você vai cair de costas – preveniu Hary el, mostrando a página um de um jornal ao rapaz.
— Lucifer Krieg? – indagou Thomas, levando um choque. – Não pode ser...
— É o que consta nas anotações de Paul. Bom, talvez o assassino não o considere um anjo...
Nesse momento um homem adentrou pela porta da central, o detetive imediatamente virou
uma pasta por cima dos jornais, ocultando-os. O homem era Adam Johnson, que logo caminhou
até os dois.
Hary el estranhou a presença do colega de profissão àquela hora, o almoço mal havia
terminado. Adam parecia meio apressado, como se tivesse deixado o carro ligado do lado de
fora, lançava alguns olhares sobre a pasta, como se desconfiasse de algo.
— O que está fazendo aqui? – perguntou o detetive, olhando para Johnson.
— Estava passando, vim acompanhá-lo até o assassinato.
— Assassinato?
— Ele matou outro, ontem à noite. Encontraram o cadáver agora há pouco, quando abriram
as portas de um clube no Mary lebone. Uma mulher.
— Lauviah Giane... – pronunciou o detetive.
— Como sabe!? – questionou extremamente espantado Johnson.
Thomas olhou para o amigo, numa mistura de alegria por ele realmente estar certo, e pesar
pela morte de mais uma vítima.
— Chutei – exclamou o detetive, levantando-se e colocando o sobretudo. A tarde estava
muito fria.
— Ah, claro... – sorriu Johnson, acendendo um cigarro.
— Você não vai fumando esse troço, não é?
— Eu paro se você me disser quem te avisou do crime.
— Foi o Paul – disse sorrindo Hary el, saindo pela porta da central e descendo as escadas,
deixando Adam e o rapaz para trás.
Em meia hora estacionaram o carro de fronte ao clube. Por sorte dessa vez não havia um
único jornalista no local, a polícia cuidara para que a chegada dos investigadores e peritos se
desse o mais discretamente possível, sem alarde, ou cordões de isolamento do lado de fora, não
agüentavam mais a pressão da mídia. Hary el ficou sabendo por Adam que a discrição fora
também pedida pela presidência do clube, a diretoria não enaltecia nem um pouco a idéia de um
escândalo envolvendo suas dependências, o que arranharia, e muito, a imagem da associação.
Claro, tendo em vista o local do ocorrido e a situação atual da imprensa, era quase certo que uma
simples nota sobre o assunto daria estopim a um escarcéu de questões sensacionalistas, de uma
onda tal, que provavelmente atingiria cada um dos ilustres membros da alta sociedade que
freqüentavam assiduamente a cena do crime. Óbvio é que, nenhum deles se sentiria muito bem
de dar o ar da graça nas telas de tv por conseqüência de um fato desses. Motivo à parte, ficou
decidido entre os funcionários uma espécie de lei de sigilo, que por enquanto também era válida
aos não-civis temerosos dos repórteres.
Thom não acompanhara os detetives, além do caso não estar sob sua responsabilidade ele teria
algumas centenas de coisas para fazer aquele dia. Segundo Johnson, o corpo fora descoberto às
quatorze horas, por um funcionário que seguia para ala das piscinas, Adam falara um bom tempo
no celular com esse homem, fazendo um semi-interrogatório.
— É por aqui – indicou Johnson, fechando a porta do carro e seguindo pela lateral do lugar.
— O que o funcionário te disse? – indagou Hary el, acompanhando Adam.
Nada que eu já não soubesse. Teremos tempo para o interrogatório mais tarde. Mas é melhor
nos apressarmos, os legistas vão chegar em alguns minutos e vai ficar mais difícil inspecionar o
lugar.
— Quem já está aí?
— Alguns homens meus, uns poucos policiais e dois inspetores da sede da New Scotland
Yard
— Quem os avisou?
— E precisa alguém avisar? – questionou Johnson, apagando o cigarro que já incomodara
muito o detetive, e adentrando a associação. Havia um homem na porta controlando a entrada,
provavelmente trabalhava no clube.
— Desculpe – disse ele. – Estamos fechados...
— Adam Johnson, casos especiais – disse Johnson, mostrando o distintivo.
O homem abriu passagem e um segundo que estava observando de dentro a chegada dos
detetives guiou-os até a cena do crime. Hary el logo notou que era o funcionário com que Adam
falara ao telefone.
— Foi aqui – esclareceu o funcionário, apontando a porta da sauna. O detetive percebeu que
Johnson estava enganado, já havia dois legistas no local, demarcando a área do corpo com giz.
— Tem idéia de quem tenha sido? – perguntou Hary el, observando os peritos.
— Não – respondeu o homem. – É estranho, ninguém que freqüenta esse clube seria capaz
disso...
— Nada de anormal...? – tentou outra vez o detetive.
— Não... A moça costumava sempre tomar sauna no início da noite. Antigamente quando as
piscinas ainda estavam em funcionamento ela passava boa parte do tempo por aqui.
— Você a conhecia bem?
— Só de vista – disse o funcionário. – Abria o portão pra ela de vez em quando, dava boa
noite, essa coisas, mas nunca conversamos.
— Sabe de alguma discussão dela com alguém?
— Não, nada. Já disse que não a conhecia... – falou ele meio nervoso com as perguntas.
— Se foi mesmo o nosso Serial Killer, não há motivo pra você fazer perguntas de ordem
pessoal – cochichou Adam, bem baixo para o detetive.
— Pessoas preocupadas em não serem incriminadas logo arranjam alguém para culpar –
respondeu ele no mesmo tom. – Aí se lembram melhor dos fatos. Se ele continuar pensando do
jeito que está logo vai indicar algum suspeito real.
— Era costume então ela utilizar a sauna... Quem sabia disso? – perguntou Hary el.
— Quase todos que trabalham aqui no período noturno. Os sócios também... – respondeu o
funcionário.
— O que aconteceu com as piscinas?
— Um problema elétrico, mas já foi resolvido.
O detetive foi até a caixa de força e observou algumas coisas. A rede havia sido alterada,
dando funcionamento a um aparelho na sauna, o que expelia o gás.
— Alguém estranho freqüentou essa ala, ou o clube nos últimos dias?
— Agora que você disse... – falou o homem. – O técnico que consertou o problema da fiação
anteontem andou mexendo aqui.
— Nessa caixa?
— É, eu até achei estranho... A caixa da piscina é a outra, mas ele me disse que essa
também estava com problemas.
— Quanto tempo ele passou aqui?
— Um pouco mais de uma hora...
— Você estava observando?
— Não, eu também tinha que cuidar da portaria...
— Talvez ele não esteja dormindo lá – disse Thomas, referindo-se a Lucifer. – Com essa
série de exposições o mais provável é que ele passe as noites no ateliê.
— Ateliê? – perguntou o detetive.
— É, um galpão, onde foi feita boa parte das mostras dos quadros. Ele fica várias horas lá,
talvez até durma.
— Onde fica?
— É perto daqui, fui lá mês passado com uma amiga. São obras impressionantes.
— Não gosto muito de arte-moderna... Que horas são?
— Quinze para as seis – informou Thomas, olhando no relógio.
— Está quase anoitecendo, será que ele está lá nesse horário?
— Provavelmente, daqui a duas horas vai haver uma nova exposição. Quer uma carona?
— Você está de carro?
— Meu pai está de viagem, está ficando uns dias por aqui...
— Fizeram as pazes?
— Sempre fazemos... O clima lá em casa tá ótimo, calmo, fora é claro os vizinhos gritando
quinze pra meia noite...
— Verdade?
— É sério. E aí, vai querer a carona?
— E o seu serão?
— Você não devia acreditar em tudo que eu digo. Eu também quero te acompanhar, quanto
mais ajuda melhor, não?
— Quase sempre é assim – disse o detetive.
O galpão em que ocorria a exposição estava lotado, muitas luzes brancas iluminavam o lado
de dentro e diversas pessoas passeavam pela enorme porta de entrada, algumas até faziam fila
para a entrega do convite. A maioria das obras, pelo que os dois podiam ver do lado de fora,
ainda estava coberta com panos brancos. Não eram só pinturas, mas também algumas
esculturas, provavelmente de arte-contemporânea. Garçons passavam com bandejas,
preparando o bufê que aconteceria na abertura ao público. Hary el ficou espantado com
tremenda pompa, era um dia especial daquela mostra, grandes personalidades da Inglaterra
compareciam em peso, para o que, segundo Thomas, era o último dia de exibição na Grã-
Bretanha. As revistas haviam espalhado notícias que Lucifer deixaria Londres ainda naquela
semana, isso tranqüilizou um pouco o detetive, já que o assassino teria menos tempo para
planejar a morte de Krieg, no entanto, por outro lado, ele teria que se apressar para proteger o
pintor.
Nenhum dos detetives trazia convite, fato que dificultou e muito a entrada no galpão, mas logo
após a mostra das credenciais conseguiram acesso rápido. Alguns figurões da alta sociedade
londrina, que estavam impacientes na fila, xingaram um pouco os seguranças que controlavam a
entrada, pelo fato deles permitirem a passagem dos dois na frente dos que já estavam há alguns
minutos aguardando. Certamente que Hary el e seu amigo teriam muito tempo para falar com
Lucifer, pois embora ele provavelmente se mantivesse atarefado com a organização do evento,
era um momento extremamente propício, pois faltava ainda uma hora e meia pra abertura das
obras.
Um dos homens que atendia na parte de dentro do galpão, e que constantemente dava algumas
ordens aos seguranças, atendeu o detetive. Ele hesitou um pouco na decisão de importunar Krieg,
mas por pressão de Thomas deixou a entrada com a promessa de que iria avisar o artista. Hary el
e Thom ficaram do lado de dentro, próximo às obras, observando, meio que discretamente, as
que estavam sem cobertura.
— Bonitas, não? – perguntou o rapaz, apontando para uma escultura branca, abstrata,
entalhada em um material brilhante, como uma cerâmica. Era uma peça extremamente bela,
formada de cruzamentos e do enroscar da própria peça nela mesma.
— Confusa, mas bonita... – respondeu o detetive.
— Deve valer umas seis mil libras...
— Quinze mil... – disse uma voz estranha e suave, atrás dos dois
— Como sabe? – indagou Thomas, sem olhar para trás.
— É quanto eu cobro por ela...
Thomas virou rapidamente seu olhar para as costas, uma figura estranha, de negro, estava
atrás dele, em pé, com um sorriso obscuro na face. Era um homem alto, de porte refinado.
Estava trajando um sobretudo escuro, extremamente comprido, como uma capa, que descia
numa vestimenta perfeita até os calcanhares. A figura olhou nos olhos do rapaz, e ele logo o
reconheceu: Era Lucifer Krieg.
— Boa noite... – disse o artista, estendendo a mão a Hary el, que acabara de virar e estava
meio paralisado com a aproximação sorrateira de Lucifer. O homem inclinou um pouco a
cabeça na diagonal, para baixo, como numa saudação, numa tentativa de desentorpecer o
detetive.
Hary el também balançou a cabeça, e apertou a mão de Krieg.
— Boa noite – disse o detetive. – Sou Hary el Kitten, esse é Thomas Gates do departamento
criminal...
— Sei quem o senhor é... Nos vimos no cemitério, há três dias.
— Realmente... – confirmou Hary el. – O que o senhor fazia lá? – disse ele, atropelando.
— Resolvia alguns assuntos particulares. Mas creio que isso não é relevante. Por que me
procurou? – interrompeu Lucifer, cortando, parecia com pressa, mas ao mesmo tempo,
estranhamente calmo.
— É sobre o caso do Artífice...
— Artífice... – pronunciou, sílaba a sílaba. – Ah, o caso das armadilhas. Não entendo como
posso ajudá-los...
— Na verdade é quanto à busca...
— Acho que compreendo... Li que ele também é um artista, vocês querem alguém que os
ajude a entender o modo com que ele age? Bom, se for isso – disse Krieg, pacientemente –,
perdem seu tempo comigo. Mente de artistas são sempre muito confusas...
— Não é isso. É algo mais sério – falou Hary el.
— Mais sério? Acompanhe-me... – pronunciou pausadamente Lucifer, guiando-os até uma
porta, em uma das divisórias brancas da parede do galpão. Logo que começaram a adentrar
notaram que no outro lado havia uma espécie de quarto-escritório, com móveis aparentemente
muito leves e modernos, dois sofás de veludo e ferro, e uma mesinha de madeira, na qual
repousavam algumas anotações. A iluminação era escassa, mas confortável, mantida somente
por duas lâmpadas amarelas, ao nível dos olhos, uma em cada canto do aposento. Os detetives
sentaram-se em um dos sofás e Lucifer no outro. – Explique-se melhor... – continuou o homem.
— Você está à par do caso?
— Não tanto quanto você, mas ando acompanhando as informações constantemente nos
jornais...
— Vou ser direto. O que ocorre é o seguinte: Há cerca de algumas semanas um homem
chamado Jeliel Arnold foi encontrado morto em seu escritório. Uma armadilha previamente
preparada no local disparou dezenas de flechas envenenadas sobre seu corpo, parte de uma
perna foi amputada com os impactos. Ele não morreu instantaneamente: agonizou durante
minutos no prédio vazio antes de perecer em um corredor... – Lucifer permanecia atento a cada
palavra, ouvindo com uma curiosidade inocultável, no entanto, seu semblante exprimia ao
mesmo tempo um certo desdém, irônico, inexprimível, como se o que buscasse nas frases do
detetive não fosse um relato da história, como se esse relato nada importasse, mas sim, conhecer
intimamente o locutor. Thomas observava a face do artista, e via como ela fitava Hary el, notava
o modo o qual, em certas horas, a expressão de Lucifer se assemelhava a de um adulto, que ouve
devagar a narração de uma criança sobre um dia de aula, ou algum fato cotidiano. Era como se
o que ele falava fosse alguma besteira, algo inútil e óbvio, mas mesmo assim o homem se
mantinha ouvindo, tentando entender a criança, seus sentimentos, suas aspirações, rindo-se
internamente delas, como o velho que ri das bobagens que fez na infância. Houve um momento
em que o rapaz percebeu algo ainda mais intrigante no olhar do homem, era um olhar quieto,
internamente vazio, mas ao mesmo tempo lotado de energia. De certo modo parecia que Lucifer
não pensava em nada enquanto ouvia, mas seu cérebro demonstrava atividade constante, era
exatamente assim, uma sensação de paradoxo, de coisas que se contradizem que tomava
Thomas, o arrebatando por uma confusão de idéias causadas apenas pela análise de um olhar.
— Até essa parte eu já tinha conhecimento – comentou o homem, dando a entender que
estava com pressa, após ouvir atentamente a história do detetive e interrompendo-o na parte em
que falava de Miguel Gonzáles. – Mas ainda não entendo bem o motivo disto tudo...
— Deixe-me continuar... Há alguns dias outra pessoa foi morta, uma mulher. Foi
envenenada numa espécie de câmara de gás improvisada numa sauna. Como você já deve ter
percebido, o nosso homem é bastante astuto, um psicopata.
— Certo – sorriu Lucifer. – Mas vejo que a clareza não é um de seus atributos. O senhor
disse que ia ser direto, mas até agora não mencionou o que quer comigo.
— Talvez, porque precisasse lhe explicar bem a situação. Meu parceiro também foi
assassinado, mas antes de morrer ele encontrou algo muito importante, uma coisa que me fez vir
até você: A ligação das vítimas.
— Como assim? – perguntou o homem, levantando-se e indo até uma espécie de mini-bar,
no qual havia alguns cálices e uma garrafa de vidro com o gargalo muito comprido.
— O assassino segue uma espécie de lista guiada pelo aparecimento do nome das vítimas nos
jornais, é uma relação de ordem cronológica, do primeiro a aparecer, até o último.
— E...? – disse ele, colocando o líquido da garrafa em um cálice.
— E que o senhor é uma delas...
Lucifer movimentou os olhos na direção dos detetives, que estavam nas suas costas e, por um
momento parou de encher o cálice, como se estivesse assimilando as informações que recebera.
— Querem vinho? – indagou o homem, pegando mais duas taças. Os dois ficaram meio que
espantados, mas fizeram sinal afirmativo para não parecerem indelicados. – Eu sou uma delas?
O senhor é realmente muito confuso Sr. Kitten...
— Segundo a correlação que meu parceiro Paul encontrou, você será um dos próximos a
serem assassinados...
— Certo... “correlação”... E em que ela se baseia? – indagou o homem, caminhando na
direção dos dois com os cálices.
— Nos nomes...
— Nomes?
— Todos os homicídios foram contra pessoas que tiveram seus nomes divulgados nos jornais,
todos nomes de anjo... Miguel, Gabriel, Jeliel...
— Claro, e por que meu nome é Lucifer eu vou ser o próximo a morrer... – riu o artista,
entregando as taças nas mãos de Hary el e Thom. – Me desculpe Sr. Kitten, mas é muito difícil
pra mim, acreditar em tamanho disparate...
— Não peço que o senhor acredite, mas tem que nos deixar colocar homens para garantir a
sua segurança...
— Para garantir minha segurança, ou para ficarem na espreita para capturarem o maníaco?
– disse ele sentando. – Detetive... Eu sou uma pessoa extremamente exposta na mídia, o que
aconteceria se eu saísse por aí cercado de seguranças e policiais, aos poucos todos iriam falar:
“Lucifer Krieg está com medo de algo...” “As gangues do submundo londrino querem matá-lo
porque descobriram que na verdade ele é o Batman...” Tem idéia dos boatos que poderiam
surgir?
— E os boatos são mais importantes que sua vida? – questionou Hary el que ainda não bebera
um só gole do vinho, enquanto Thomas já estava quase partindo para a exigência de uma nova
taça.
— Já falei que não acredito nessa bobagem... Você não tem elementos concretos para
afirmar que eu vou ser morto. Por que alguém iria me matar? Por quê?
— Bom – disse o detetive, olhando Thom degustar a bebida, gole a gole. Ele devia estar
sentindo um prazer incrível. –, ainda não temos essa resposta, mas é quase certo que o senhor
será uma das próximas vítimas...
— “Quase certo”? Desculpe, mas infelizmente eu sou um homem público. Qualquer coisa,
por mais ínfima que seja, que sai na imprensa, interfere na minha imagem. Uma simples fofoca
sem fundamento, em algumas semanas vira um escândalo sem precedentes. Eu não posso
arriscar a minha carreira por um “quase certo”!
— Mas sua vida você pode arriscar?
— Não repetirei minha opinião sobre isso...
— Bom, mas permita-me esclarecer que não será uma coisa evidente, aliás, nem eu quero
isso, será mais eficiente para a operação se tudo for mantido em sigilo.
— Mesmo assim eu dispenso a sua proteção.
— Sr. Krieg, tem pessoas morrendo lá fora...
— Estou ciente do meu dever cívico detetive Kitten, mas não quero ser mártir de uma causa
incerta. Estou no meio de uma grande série de exposições das minhas obras, não ficarei mais que
essa semana na Inglaterra. Não é muito tempo, estou quase sempre cercado de repórteres,
exceto à noite, e em algumas raras horas do dia, dificilmente alguém me atacaria nesse meio
tempo. Admitindo, é claro, essa hipótese absurda que o senhor me traz...
— Mas é justamente à noite que ele age...
Lucifer olhou com aquele mesmo olhar, olhar esse com que agora Hary el já se acostumara,
ainda era profundo e causava uma sensação estranha, mas desde que encontrara a cigana, dias
atrás, não era mais novidade.
— Tenho muitas coisas a fazer, vamos abrir ao público dentro de alguns minutos... – falou o
artista.
— Está bem então, mas fique com o meu cartão, caso mude de idéia. – tentou pela última
vez, entregando o cartão a Lucifer e levantando-se junto com ele e Thomas.
— Você nem vai tocar no vinho? – disse ele, olhando nos olhos de Kitten.
— Não estou com sede...
Hary el notou que uma espécie de manto comprido cobria um quadro dentro da sala, era um
manto diferente dos que ocultavam as obras do lado de fora. Servia de auxilio a decoração
diferenciada do ambiente, e não pura e somente para cobrir a tela. Devia ser um trabalho muito
importante.
Nesse momento um outro homem adentrou a sala, disse alguma coisa como: “Os convidados
já chegaram”. O artista pediu licença pra ausentar-se alguns instantes e saiu do escritório. Hary el
e Thom ficaram sozinhos lá dentro. O detetive aproveitou para dirigir-se novamente à tela.
Aproximou-se e levantou o pano.
Lentamente a imagem do quadro foi se mostrando, parte a parte, enquanto o manto subia.
Hary el e Thom paralisaram os olhos perante a pintura. Era uma figura impressionante, repleta
de cores opacas, mas que por si só davam vida à tela. Aos poucos a imagem foi assumindo um
contorno visível e distinguiu-se uma asa; nesse momento o tecido levantou-se mais rapidamente e
os dois puderam ver claramente o quadro, reconhecendo seu conteúdo: Era uma fênix
— O que você está fazendo? – gritou a voz de Lucifer, penetrando no ambiente e fazendo
com que o manto descesse novamente e cobrisse o pássaro de fogo. – Receio que nem com um
mandato isso seria aceitável! – disse ele, em tom irritado.
— Desculpe-me, mas era necessário...
— Necessário o que? – falou, interrompendo a frase do detetive pela metade. – Acho que os
senhores já ficaram tempo demais em meu ateliê, por favor, retirem-se.
— Deixe-me explicar... – continuou Hary el.
— Não há explicação para tamanha falta de educação. Isso é abuso de autoridade meu
senhor. – o tom de Lucifer ficava cada vez mais baixo, lento e sério. – Queira retirar-se...
— Realmente eu peço desculpas...
— Não há desculpas, retire-se!
— Não havia intenção de invadir sua privacidade...
— Saia daqui! – disse, frio
— Eu...
— Sr. Kitten, não repetirei novamente...
Thomas e Hary el resolveram não dar mais delongas e deixaram a sala o mais rápido possível,
sem ao menos tentar uma despedida mais cortês. Foram guiados por um dos empregados do
artista até a saída. Alguns dos que estavam na fila, anteriormente, toparam com eles na vazante.
A mostra havia começado um pouco antes do previsto.
— Por que fez aquilo? – perguntou Thomas, não entendendo a atitude indelicada do detetive
ante o artista.
— Não sei bem, eu precisava, não pude me controlar – respondeu.
— Como assim?
— Tem alguma coisa nele, Thom, algo estranho, ele sabe de alguma coisa...
— Você está ficando realmente paranóico. Eu sei que quase sempre você está certo e tudo...
no caso do velho, sobre as investigações do Paul também... mas isso já é demais! Como ele sabe
de algo, você não viu a indiferença do cara?
— Isso, é precisamente “isso”. Eu sei que você também percebeu algo de diferente, algo
estranho. Você não viu como ele estava calmo, como ele não se importou com o risco que ele
poderia estar correndo?
— Ele é famoso Hary ! Gente famosa é meio doida, isso não é razão para você me fazer
passar tamanha vergonha!
— Talvez eu realmente tenha me excedido, mas ele está escondendo alguma coisa. Tenho
certeza!
— Olha, eu não sou ninguém para criticar sua intuição. Sempre fui seu fã, desde o primeiro
caso de repercussão que você investigou. O jeito com o qual você solucionou aqueles homicídios
ano passado foi genial, nunca deixou nenhum caso pra trás... Eu não preciso ficar te elogiando,
você sabe que é bom, mas esse negócio da morte do Paul pode ter mexido com a sua cabeça,
não parecia você lá...
— Ele tem alguma coisa! Eu sei! Sempre fui mais pelo raciocínio que pela intuição, mas eu
sinto algo nele, ele é muito calmo, muito frio, como se nada importasse, como se o mundo caísse
na frente dele e ele continuasse sem alterar um milímetro no jeito de andar...
— Você também é assim, sempre foi muito frio, tem estômago, mas está afetado... Talvez
tivesse sido melhor o chefe ter te mantido fora dessa...
— Olha bem pra mim! – disse o detetive, agarrando o rapaz pela camisa e olhando nos seus
olhos. – Eu sei o que estou fazendo, não sou criança! Quando quis pegar esse caso era porque
sabia que poderia resolver, tinha certeza. Não foi por vingança ou qualquer besteira do tipo.
Lucifer não é um cara normal...
— Eu ainda não estou entendendo onde você quer chegar...
— Eu acho que ele sabe porque o cara está matando... Ele é uma possível vítima, tem que
saber!
— Tá, tudo bem... – disse Thomas, colocando a mão na nuca. – E o que você pretende fazer?
— Ainda não sei, mas até amanhã pensarei em alguma coisa. Agora preciso ir pra casa, to
morto de cansaço...
O mestre virou as costas e foi para seu quarto. Hary el dessa vez não tentara entender, apenas
sentira as palavras, então pela primeira vez ele compreendeu o que a história ocultava.
Chovia muito naquela tarde em Londres, o céu estava nublado desde a madrugada anterior e
os respingos haviam começado a cair ao raiar do dia. A circulação nas ruas era muito pequena,
já que grande parte da população havia decidido permanecer em casa ou presa nos respectivos
trabalhos quando a tempestade começara a engrossar. O transporte urbano através de ônibus
também estava comprometido, pois muitas linhas haviam parado de funcionar devido ao grande
fluxo de água em algumas ruas da capital. Na verdade as ruelas estavam desertas e, mesmo no
centro, a situação não era dessemelhante, com a diferença de uns poucos transeuntes que
corriam de um lado para o outro protegidos por capas e pequenos guarda-chuvas.
Sob a insistência da tormenta, algumas previsões continuavam anunciando o enfraquecimento
da chuva no final do dia, no entanto para Hary el e algumas centenas de ingleses, isso pouco
importava, teriam afazeres até bem depois do pôr do sol.
— Essa chuva não pára, não é? – disse Thomas, sentando-se na escrivaninha ao lado do
detetive.
— Eu gosto do som da água – respondeu Hary el. – Parece que vai ficar assim por um bom
tempo...
— Maravilha... – a expressão do rapaz caiu. – Quando não resolvo fazer serão por conta
própria, a natureza me obriga.
— Se dê por satisfeito, na Grã Bretanha o dia dura muito pouco. Meia-noite os bares já estão
fechando... Em outros países quando uma pessoa diz que vai ficar até tarde trabalhando, isso quer
dizer depois da uma da manhã...
— Em compensação, essas pessoas não têm que acordar três e meia da matina pra ver um
cadáver em decomposição.
— Que revolta... O que você tinha que fazer mais tarde?
— O que te leva a crer que eu teria alguma coisa pra fazer?
— Thom...
— Tá, combinei de levar a Jenny ao cinema.
— Acredite em mim, mesmo que você saísse daqui agora, não haveria condições com o
tempo assim... – falou o detetive, pegando uma espécie de laudo das mãos de Thomas.
— Mas haveria a opção: “Vídeo cassete e pipoca”.
— O que é isso? – disse Hary el, calmamente, referindo-se aos papéis.
— É aquela pesquisa que você me pediu, sobre as lojas de produtos agrícolas... – o rapaz
esparramou-se na cadeira.
— E?
— Nada. A maioria delas não faz registro de varejo, e as que possuem não se enquadram na
lista de materiais que você me deu.
— Ele pode ter comprado em lojas diferentes...
— Isso quer dizer que...?
— Que o cara é muito inteligente e nós mais uma vez não temos pista nenhuma.
— Tem que haver alguma coisa, Hary . O que você vai fazer agora?
— Esperar, já sabemos onde ele vai atacar. Quando tentar, nós agarramos.
— Mas o Lucifer não te proibiu de colocar homens atrás dele?
— Esquece o Lucifer por enquanto. Vamos cuidar do Watson.
— Já conseguiu falar com ele?
— Não, mas hoje nós temos muito tempo pra tentar... Em quantas lojas você pesquisou a
lista?
— Em todas de Londres e dos arredores, esquece isso, não tem como... – disse Thomas
contando o dinheiro da carteira. – Você já contou para o chefe sobre os anjos?
— Não. Ele colocaria todos os agentes do departamento atrás do caso, isso estragaria tudo...
— Eu ainda acho que você deveria contar.
— Eu sei o que estou fazendo.
— Tá certo, mas, você corre perigo pelo que me disse, seu nome saiu nos jornais, você pode
ser um dos próximos, ou “o próximo”. – Thom acentuou bem a última palavra, estava
preocupado com o amigo. Não era uma brincadeira, Paul já havia morrido, se Hary el também
se fosse, não suportaria.
— Não, ele segue a ordem: Primeiro Watson, depois Lucifer e aí sim “eu”.
— Tem certeza?
— Não tenho certeza nem de mim mesmo... Mas a ordem nas manchetes era essa, se ele
seguiu a ordem até aqui, não teria porque mudá-la.
— E depois de você?
— Não há mais ninguém. Pelo menos por enquanto. Eu pedi para que um amigo fizesse a
relação dos próximos nomes, ainda não surgiu nenhum.
— E se surgir?
— Vou pegar ele antes.
Hary el percebeu que o rapaz, embora eufórico, não estava se sentindo bem. O início de uma
olheira era claro, e uma vez ou outra, sua voz misturava-se com uma tosse tênue.
O relógio da central marcava três da tarde quando o detetive resolveu ligar pela primeira vez
para Samuel Watson, no entanto, como sempre, o telefone estava ocupado em todas as tentativas.
“Isso está muito estranho, não pode ser tão difícil falar com uma pessoa”, pensou Hary el,
observando os clarões dos relâmpagos que caíam gradativamente mais fortes do céu. Pelo som
que ouvia, as descargas estavam muito próximas, causando até mesmo um curto black-out, de
menos de um segundo nos arredores.
Nesse momento o jovem observou uma barca que atravessava o rio. Ela levava algumas
pessoas de uma margem a outra, para que pudessem seguir viagem até a cidade mais próxima,
quando de repente, esbarraram em um cardume de peixes na beira do rio, dezenas deles
morreram. O jovem ficara intrigado. Sabia que os donos da barca dependiam do transporte para
sobreviver, e que provavelmente não haviam visto os peixes. As pessoas que eram levadas,
também não tinham conhecimento dos peixes, e precisavam chegar ao outro lado. E os peixes,
por sua vez, estavam entretidos, comendo as algas das margens, sem notar que a embarcação se
aproximava. Uma grande confusão tomou sua cabeça quando viu os animais boiando, e não
encontrando a resposta, questionou o sábio.
“— Já lhe expliquei os meus motivos – disse o sábio, dirigindo-se ao líder após uma grande
jornada pelas montanhas.
— E não me convenceste – afirmou o homem, sentando em uma rica cadeira.
— Bom, então não tenho mais o que fazer. Não acatarei o que me ordenas.
— Como não acatarás? – disse espantado o homem, olhando bem para o velho. – Recebi
informações dos moradores de Honan que tu insistes em não colocar estátuas dos nossos deuses
no templo, mesmo tendo tu a fama de um grande mestre, isso é uma insanidade.
— Não deixarei que tais estátuas cruzem o portão de nosso templo. Tal coisa é um desacato à
filosofia do Tao. Mera infantilidade desnecessária, que só causará mais confusão nas mentes dos
que procuram a paz.
— Você quer dizer que não se pode achar a paz em nossos deuses? Se assim for tu
blasfemais!
— Blasfêmia é a insistência dos que querem destruir uma filosofia. Nem mesmo um
imperador poderia infiltrar em um templo de minha responsabilidade ídolos injustificáveis.
— Injustificável é tua atitude. Um imperador poderia qualquer coisa. Mas isso não vem ao
caso. O que acontece é que todos os templos Taoístas sobre minha jurisdição possuem estátuas de
nossos deuses, isso de tempos imemoráveis, e no teu não será diferente. A tradição deve ser
seguida. Bem que me falaram da tua fama quando te convoquei. Não foi você , mestre, que
decidiu retirar as estátuas de Buda dos altares da cidade? Acaso tu não és também mestre
budista?
— Budismo e Taoísmo andam lado a lado. A idéia sobre as estátuas foi minha, e o objetivo
dela é o mesmo que me faz recusar tuas estátuas agora: As mentes já estão perturbadas demais
para novos deuses. Quanto à tradição, nosso templo se mantém sem estátuas desde a sua
construção.
— Bem agora vejo que realmente és louco. Provavelmente confundiram sua insanidade
com o estado de iluminação, por isso te chamam sábio.
— Minha iluminação pouco importa, demorarás um pouco ainda até entender o que deves
entender, mas por agora, libere meu templo da sua decisão.
— A decisão não é só minha, são de moradores de sua província.
— Esses moradores que dizes são minoria. Não foi decisão de nosso governo que os líderes
não se meteriam em assuntos religiosos? Mesmo os assuntos políticos não passam agora por
avaliação superior?
— Não venha advogar comigo. O poder da província é meu, e foi me dado pelos habitantes.
— Teu poder pra mim é nada. O papel que carregas é apenas ilusão, e a única verdade que
há, é a verdade que tudo criou, e só a ela, pertence o direito sobre o templo. Portanto, será o que
tem que ser. Mas deixo dito, que não abrirei as portas do nosso templo para os teus deuses.
— Pensavas que eras um santo, mas és um tolo.
— Santos? Que são santos, se não criminosos?
— Além de ousares injuriar nossos deuses, ainda insulta os santos?
— Disse Chuang-Tzu: No tempo do soberano Ho-sin, os homens ficavam em suas casas sem
saber o que fazer. Fora, caminhavam sem saber para onde ir. Quando se alimentavam, ficavam
contentes, depois dando tapinhas no ventre saíam para passear, isso era tudo que o povo sabia
fazer. Quando os santos chegaram, subjugaram os homens pelo ritual e pela música, a fim de
apaziguarem todos os corações sob o céu. Foi então que o povo encaminhou-se para paixão de
saber e começou a lutar pelo interesse material, sem que se pudesse pôr um paradeiro nesses
males: esse foi o crime dos santos.
— Agora chega! Comparas os santos aos criminosos?
— Eu não, Chuang-Tzu o faz. Queres contestá-lo?
— Usas as palavras dos sábios como bem queres. Tu és astuto, mas sei a comparação que
fizeste, não a esquecerei.
— Então a guarde bem. Pois não gozam os criminosos das mesmas qualidades dos santos?
Adivinhar onde está escondida uma grande soma em dinheiro, eis o saber, chegar em primeiro
lugar ao local, eis a coragem, retirar-se por último, eis a justiça, julgar se a tentativa era possível
ou não, eis a prudência, partilhar do saque eqüitativamente, eis a bondade. Só são dignos de
serem ladrões aqueles que possuem as cinco qualidades!
— Abusaste de minha paciência, velho! Serás expulso de Honan e de Cantai!
— Que assim seja, meu templo é teu para preencheres com teus ídolos, mas o vazio do meu
coração assim continuará para sempre.
— Realmente o templo é meu. E tu irás embora, e levarás contigo teus discípulos, para que
eles não voltem a atiçar o povo com sandices. Partirás antes do pôr do sol, com uma escolta, para
pegares quem e o que tens que pegar na província.
— Pois bem. Que seja o que tem que ser.”
O demônio abriu os olhos e foi em direção à sua tela, precisava começar a preparar o quadro
para a grande tempestade que viria amanhã.
Às dez da noite Hary el subiu as escadas do prédio para o seu apartamento. O vento zumbia
forte do lado de fora, levando boa parte das nuvens para longe, e trazendo outras de lugares
distantes. Fora quase impossível fechar a porta de entrada do edifício, tal a corrente de ar que se
infiltrara para dentro do prédio. Essa arrastara até mesmo algumas folhas secas da rua contra o
tapete do hall. Como sempre, não havia um porteiro no local, mesmo pagando uma fortuna de
condomínio ainda tinha ele mesmo que abrir a porta contra o vento frio, e carregar a pilha de
papéis que trouxera do trabalho pelas escadas.
O detetive bateu na porta com o pé, pois suas mãos estavam ocupadas demais para puxar
novamente outra chave. O velho demorou um pouco para abrir, provavelmente estava
meditando, comendo, rezando, ou vendo algum outro programa na tv a cabo. A tranca deu duas
voltas antes que a porta se escancarasse.
O sábio sentou-se novamente em uma das almofadas e cruzou as pernas, uma por dentro da
outra, numa demonstração de flexibilidade incrível para um homem que aparentava tantos anos.
Ele colocou as varetas em uma espécie de pequeno vaso branco, onde cairiam as cinzas, e pediu
para que Hary el se sentasse na outra almofada, o detetive obedeceu prontamente. Cheung Chizu
esticou o dedo até o interruptor na parede e apagou as luzes, deixando o aposento iluminado
apenas pela luz fraca vinda da rua, e de uma lâmpada acesa em um dos quartos do apartamento.
Hary el concentrou-se e fez exatamente o que o mestre mandara. No início fora um pouco
desconfortável, pois uma sensação leve de dor na junção das pernas impedira um relaxamento
mais intenso, no entanto, com o passar do tempo, sua mente foi se esquecendo da perna e
concentrando-se nele mesmo, à medida que respirava, cada vez com mais profundidade, até
atingir um estado de paz que nunca antes sentira, fundo nele mesmo, uma quietude interior
inigualável. Em um momento ele era uno com todas as coisas, no outro ele era vazio de tudo,
como se não desejasse coisa alguma, sem pensamentos, sem desejo algum, sem aspiração.
Simplesmente um não-ser calmo e eterno, límpido e plácido. Exatamente nesse instante, uma
sensação chamou sua atenção de volta ao corpo, uma força quente e estranha percorreu sua
coluna vertebral, subindo até o alto da cabeça e se espalhando por tudo a sua volta. Foi quando ele
ouviu o mestre dizer alguma coisa, pronunciar um som vibrante, que organizou a sensação que o
apanhara. Assim que escutou, o seu interior entrou também em vibração até chegar em um
ponto indescritível por palavras, onde o que restou era apenas um “não-existir”.
O detetive levantou suas pálpebras, tomado por um bem estar incrível, e olhou bem para o
velho.
— O que é isto? – perguntou ele, referindo-se a tudo que ocorrera.
— Essa é a paz do Tao, a essência do não-ser. Você vislumbrou o Nirvana com o corpo. É
nesse estado que você deve manter sua mente amanhã, você deve se sustentar na força dessa paz
que você sente, nessa força que ao mesmo tempo é sua e também não é.
— Por que amanhã?
— Porque amanhã o seu Tao será testado.
— E quem o testará? – perguntou o detetive, ainda desfrutando da sensação magnífica de
acordar.
— A força das coisas o testará, Hary el. Você precisa dormir agora, para estar descansado
para a temporal que eu vejo se formar.
— Se você vê o temporal, por que não me alerta? Não me diz onde ele se encontra?
— Por que ele está em um lugar que meus olhos alcançam, mas você não poderá vê-lo pelos
seus, não poderá enxergá-lo de olhos abertos.
O detetive levantou-se lentamente e foi em direção ao seu quarto, antes de deixar a sala o
mestre o chamou:
— Guarde bem isso que eu vou falar agora, pois encerra a resolução do seu mistério, e do
mistério de muitos como você: “Um homem perde seu machado, ele desconfia do filho do
vizinho e começa a observá-lo. Seu andar era de um ladrão de machado, a expressão de seu
rosto era de um ladrão de machado, seu modo de falar correspondia perfeitamente ao de um
ladrão de machado. Todos os seus movimentos e todo o seu ser exprimiam claramente um
ladrão de machado.
“Ora, ocorre que o homem que havia perdido o machado, ao cavar por acaso a terra do vale,
topou com esse instrumento de trabalho.
“No dia seguinte ele observava novamente o filho do vizinho. Todos os seus movimentos e todo
o seu ser deixaram de ser o de um ladrão de machado.”
O relógio marcava seis da tarde naquele dia. Um frio intenso arrebatava a cidade inteira, em
cada viela, cada rua, cada casa e cada ser, se espalhando devagar com o vento. O céu estava
encoberto desde a manhã por nuvens espessas e escuras, que não só o nublavam, escondendo o
sol, mas também cobriam de luz cinza toda a atmosfera gélida da capital.
O escuro das nuvens indicava que em pouco tempo uma forte chuva cairia, e o clima só se
diferenciava do inverno pela ausência de neve nas calçadas.
Hary el havia saído mais cedo do trabalho aquele dia, combinara com Thomas de encontrá-lo
em seu apartamento em meia-hora para irem juntos à imobiliária Watson, o que o rapaz hesitara
bastante em concordar, pois não estava se sentindo muito bem.
O detetive parou com o táxi perto da comprida grade de ferro e desceu, rumo à entrada do
lugar. O vento soprava cada vez mais forte, arrancando das árvores algumas folhas secas, e
jogando-as contra a grama, ainda úmida do sereno da madrugada. Ao sair do carro, um arrepio
forte do frio lhe subiu pela espinha, volvendo lentamente até o pescoço. Mesmo estando muito
bem agasalhado, e em roupas escuras, o clima lhe fazia de vítima sem o menor receio.
O cemitério estava muito quieto naquela tarde, coberto de galhos secos e escuros, e os únicos
movimentos que se via eram o da brisa, e do velho coveiro que caminhava com uma pá até ao
que provavelmente era onde morava. Assim que atravessou o portão, Hary el pôde ver a
sepultura de Paul ao fundo, cheia de flores amarelas em volta, como gira-sóis. Andou até lá,
carregando as flores que trazia, com o desejo íntimo que pudesse resolver tudo que estava
engasgado em sua garganta ainda naquela oportunidade.
O detetive ajoelhou-se na frente da cova e vagarosamente repousou o buquê sobre ela.
Abaixou a cabeça, como se conversasse intimamente consigo mesmo, e uma lágrima escorreu
pelo canto de seus olhos. Hary el ficou muito tempo lá, calado, pensando em tudo, como se
contasse para Paul tudo que sentia, toda a indignação que antes lhe destruía o peito, e como fizera
para sufocá-la durante esses dias. Sem palavras, contou para ele tudo que ocorrera depois do dia
em que ele fora enterrado, e sobre sua experiência da noite passada, do sentimento de paz que
sentiu, e se perguntava intimamente, se agora era isso que o amigo sentia. Então, ele rezou. Não
costumava rezar, na verdade, nem mesmo lembrava a última vez que o fizera, provavelmente
ainda era uma criança, mas foi o que ele fez. Não pediu nada, não agradeceu nada, não se
lembrava como fazia, simplesmente recitou uma oração, que veio do mais profundo no seu ser,
de um lugar tão escuro e interno, que era penas gelo, e fazia qualquer frio parecer um sopro
insignificante.
O detetive despediu-se de seu amigo e levantou-se. Já ia indo embora, quando o vento zumbiu
mais forte na direção do sul. Lá estava o túmulo que Krieg visitara no outro dia, deserto,
submerso nas folhas secas. Ele sentira curiosidade desde a outra vez sobre o que levara o artista
ao cemitério, e, como se guiado por alguma coisa, Hary el foi atraído até o sepulcro, andando a
passos curtos, sem pressa. Abaixou-se, como fizera no túmulo de Paul, e olhou a lápide. Era uma
cova muito antiga, abandonada, o mármore branco estava até mesmo meio amarelado. Não se
podia ler a inscrição, estava afundada em terra e galhos. Foi quando ele limpou a pedra, retirando
o pó. Nela dizia:
“Lucifer Krieg - 1930 a 1939”.
Um violento frior ascendeu dos pés a cabeça do detetive, como uma mistura de temor e
espanto que fluía gélida pelos poros. A sensação que tinha, era a de que não havia mais chão,
nada em que se apoiar, e que sua alma repousava apenas no mais frágil sopro. Ele releu a
inscrição da lápide, com agonia, mas seus olhos viram exatamente a mesma coisa, foi quando
sua mente, ainda atordoada pelo choque, recomeçou a organizar as possibilidades. Era provável
que fosse algum parente de Krieg, com o mesmo nome, um tio ou coisa do gênero, era
impossível que fosse ele, lá dizia “mil novecentos e trinta”. Lucifer não aparentava mais do que
trinta anos! Nesse instante uma enxurrada de dúvidas e alternativas permeou seu cérebro,
obrigando-o a chamar o velho coveiro que estava indo até alguns túmulos do lado leste.
O velho tinha cerca de uns sessenta e tantos anos, no entanto ainda estava forte, e
provavelmente cuidava sozinho de todos os jazigos. Ele ainda trazia a mesma pá que carregara
na chegada de Hary el, e vestia um amontoado de trapos que possivelmente lhe protegiam da
temperatura. Uma barba branca lhe dava certo ar de sabedoria, o que contrastava de um modo
interessante com seu jeito humilde e de olhar abatido.
O velho olhou para a cova como se estivesse recordando de algo que não queria mais lembrar,
de um modo tão triste que até mesmo Hary el pôde sentir.
— Conheço, é do menino dos Krieg – disse o velho, pronunciando bem devagar, mas como
se quisesse colocar para fora algo engasgado.
— “Menino dos Krieg”? Você conhece a família?
— Não.. Quer dizer, conhecia. Há muito tempo. Eu brincava com ele, sabe? Antes do
acidente.
— Acidente?
— É, quando eles morreram. Eu era criança como ele.
— Então essa lápide é de um menino?
— É, do Lucifer. Ele era meu amigo, um garoto muito legal, não como os outros, não se
importava com a profissão do meu pai, gostava daqui. Ele também tinha poucos amigos...
O velho falava com um tom estranho, infantil. A impressão nítida que Hary el teve, é que ele
estava louco, não tanto pelo que ele falava, era o modo, uma amargura inocente escondida nas
palavras.
— O pai do garoto era um empresário rico, mas viajava muito, e a mãe dele sempre ia
junto. Então ele ficava sozinho, vinha aqui pra gente brincar às vezes. Eu também era muito
sozinho...
Aos poucos o detetive sentia reforçada a impressão de que o velho havia ficado caduco,
percebeu que as idéias estavam um pouco embaralhadas, como se ao mesmo tempo quisesse
contar tudo que sentia, e resistisse ao sentimento da lembrança. Desde o início da conversa, era
como se o velho houvesse feito uma regressão, como se fosse realmente um garoto quem
contava a história, e mesmo o olhar, era como o de uma criança triste.
— Certo, mas como foi a morte? – perguntou ele, conduzindo, e notando que o velho fugia de
forma inconsciente desse assunto.
— Um dia ele insistiu muito pro pai dele levar ele junto, sabe como funciona? Quando a
gente é criança e pede, a gente pede bastante, insiste mesmo... Ele insistiu tanto que o pai aceitou.
Era pra um lugar longe, por isso ele queria ir, não queria ficar mais sozinho, sabe? Era de avião,
eu lembro, todos nós naquela época sonhávamos em andar em um avião. Nós queríamos voar...
— E o acidente?
— Então, ele foi no avião. Um dia antes ele passou aqui e me deu um presente, era um
saquinho de bolinhas de gude. Eu não tinha nada pra dar em troca, então eu dei uma flor, das que
tinha na casa do meu pai, uma rosa vermelha. Ele gostava de uma menina, e diziam que rosas
vermelhas trazem sorte no amor, não sei se ele falou com ela antes de ir, mas eu lembro dela no
dia do enterro, das lágrimas nos olhos dela, sabe? Ele entrou no avião então, ia ficar pouco tempo
fora, mas a gente demorou muito pra se despedir, do lado de fora, eu, ele, a menina e o Met, que
era o único amigo nosso. Não lembro mais o nome dela... Faz muito tempo...
— Sinto por você. Queria lembrar?
— Muito...
— E quanto ao avião? Caiu?
— É caiu, longe. – disse, descendo os olhos. – Minha mãe disse que tinha sido na Ásia, eu não
sabia onde era a Ásia, mas queria saber, entende? Falaram que tinha sido bem na China, nenhum
de nós conhecia a China também... Morreram, eles morreram todos, o pai, a mãe, e ele.
Enterraram todos nesse cemitério, menos o menino, não acharam, sabe? Caiu na água... Já tinha
sido muito demorado achar os dois, não conseguiram encontrar. Aí fizeram um “enterro
simbólico”, eu também nunca tinha visto um enterro simbólico, queria ver meu amigo, mas
minha mãe dizia que era melhor assim... Minha mãe sempre tinha razão.
A cada frase a dor do velho era mais nítida, camuflada no tom natural da conversa, e como
quem tenta não senti-la, falava cada vez mais rapidamente.
Hary el achou a história muito estranha. Como o menino não possuía parentes? E o Lucifer que
ele conhecia? De certa forma as perguntas que ele fazia não eram só para matar a curiosidade
sobre o túmulo, mas ganharam outro objetivo, o de saciar sua curiosidade repentina sobre a
origem da mágoa do coveiro, talvez fosse a guerra, tantas pessoas enlouqueciam com a guerra...
— Você estava aqui no enterro daquele detetive? – perguntou Hary el, apontando o túmulo de
Paul.
— Claro, eu mesmo enterrei. Lembro de você... Você também estava lá.
— Você lembra de um homem que chegou no meio do funeral? Roupas negras, óculos
escuros... Ele abaixou-se aqui e deixou uma rosa.
— Não, desse eu não lembro. Ficou muito tempo?
— Um pouco...
— Estranho, normalmente eu sou atento para quem entra no cemitério. É minha profissão,
sabe?
— Você acha possível o seu amigo ter sobrevivido?
— A gente sonhava com isso... Ficava brincando que ele não tinha morrido e estava com a
gente. A menina teve uma visão uma vez, um pouco antes de a gente parar de se ver. A minha
mãe disse que ela tinha ficado louca e me proibiu de ver ela, mas ela me contou tudo que ela viu.
Ela disse que viu o espírito dele, e eu acredito. Já vi espíritos por aqui.
— E o dele?
— O dele não. Mas vi o do meu pai, que morreu com a bomba. A gente detestava as
bombas, mas no final, foi uma bomba que terminou com a guerra.
— E o outro amigo?
— O Met? A família dele foi embora... Logo quando começaram a dizer que iam invadir a
cidade, todo mundo dizia, mas ele não queria ir, queria ficar esperando o Lucifer voltar. Sabe, o
Lucifer prometeu que ia trazer um presente bem bonito pra ele dar pra mãe dele, uma jóia. Ele
adorava dar presentes...
— Você sabe pra onde o Met foi?
— Ninguém sabia exatamente, a menina disse que tinha sido pra Escócia, não sei em que
lugar. Mas já estava no meio da confusão, a gente quase não se falava mais... Ninguém se
falava...
— Você lembra o sobrenome dele?
— Não...
Hary el agradeceu e colocou as mãos nos bolsos indo em direção à saída, caminhando, mas
antes de chegar parou no meio do caminho, como se tivesse esquecido alguma coisa. Ficou
alguns segundos assim, e depois virou para o velho.
Hary el tirou seu sobretudo e entregou pra o velho, com certeza ainda esfriaria bem mais com
o chegar da noite, depois atravessou o portão para pegar um táxi, Thomas devia estar já há muito
tempo esperando.
— Moço! – gritou o coveiro, do outro lado, antes que ele entrasse no carro.
— Sim? – respondeu, no mesmo tom.
— No dia... No dia em que a menina viu o Lucifer, era um dia bem parecido com esse.
Como o dia em que eu vi o meu pai, assim, com essa cor de céu. Tome cuidado...
— Não acredito em fantasmas...
— “Mas devia. Eles nunca são o que parecem.”
Enquanto o carro andava, Hary el ficou pensando na história que o coveiro contara. Cada vez
se convencia mais que não se tratava da mesma pessoa, aliás, isso era óbvio. Se fosse o mesmo
Lucifer, o pintor deveria possuir cerca de setenta anos, e nenhuma pessoa em sã consciência lhe
daria mais do que uns trinta e dois. Havia ainda diversos fatores que não se encaixavam nesse
quebra cabeças, e isso o levava a bolar possibilidades cada vez mais claras. Era aceitável que
fossem duas pessoas de mesmo nome, coisa não rara em todos os lugares do mundo. Talvez
Lucifer tivesse descoberto o túmulo, e se penalizasse pela história do garoto. Ou ainda uma outra
ainda mais admissível: Já que pelo que o coveiro disse, o garoto não possuía parentes, era bem
provável que Krieg tivesse adotado esse nome artisticamente, em homenagem ao menino que
morreu. A única pedra que ainda era um mistério, era como o pintor o havia descoberto, já que
não se tratava de nenhum herói nacional ou de alguma biografia que se achasse em bibliotecas.
Mais ou menos quando arquitetava esse pensamento, a chuva começou a cair do lado de fora do
carro, forte, como nunca antes vira. O vento a jogava com força sobre o pára-brisa, de um modo
tal, que mal se podia ver a rua. O barulho dos trovões era ensurdecedor, e quase não era possível
pensar. Foi quando o táxi chegou perto da esquina de Hary el, e ele pediu ao motorista que
encostasse o carro de fronte ao prédio. Estava começando a inundar as ruas próximas, como no
dia em que chegara com o mestre do interior. Ele pagou o taxista e saiu rumo à calçada. Em
menos de dois minutos de chuva já havia uma forte torrente d’água escorrendo pelas laterais da
rua descendo até os bairros mais baixos. A iluminação era cada vez mais fraca, provavelmente o
sol já estava se pondo atrás das nuvens escuras, e as poucas vezes em que a claridade se tornava
maior era nos instantes em que os raios caíam ao longe no céu.
Ele cobriu-se com o terno, colocando o rosto debaixo da gola do paletó e correu até a porta do
prédio, que era coberta, evitando assim a incidência das gotas mais pesadas. Era o segundo dia
seguido que lamentava imensamente não morar em um prédio com porteiro, já que teve que
passar quase um minuto na tempestade, procurando as chaves da entrada do condomínio.
“Na próxima reunião do edifício vou votar a favor...” , pensou, lembrando-se que na última
assembléia tinha votado pela contratação de dois faxineiros em lugar de um porteiro.
Ele abriu o portão de ferro e seguiu até as escadas, o prédio também não tinha elevador, mas
se ele ficasse pensando em tudo que não tinha iria ficar ocupado por no mínimo uns dez anos.
Duas lâmpadas das escadarias estavam queimadas, dificultando a visão e fazendo com que ele
subisse bem devagar, receoso de pisar em falso em algum degrau. A porta do apartamento
estava apenas encostada, com a luz acesa. Nunca desde que o mestre chegara, ela ficara
destrancada, e agora estava semi-aberta, com um contorno de luz iluminando um dos cantos do
andar. Hary el achou estranho a forma como encontrara o apartamento, principalmente quando
ouviu alguns ruídos estranhos vindos de dentro, como gemidos de dor. Ele abriu a porta bem
lentamente, provocando um rangido alto e contínuo.
Aos poucos a escuridão do corredor foi se desfazendo e ele pôde ver o que havia do lado de
dentro. Um cheiro nauseabundo se infiltrou pela suas narinas assim que pisou na casa, não era o
aroma costumeiro de chá, que tantas vezes sentira nos últimos dias, mas algo que lembrava um
odor de hospital, com uma essência de fundo que se assemelhava muito ao cheiro de vômito.
Ele colocou os pés vagarosamente sobre o carpete, e caminhou, seguindo o som dos soluços e
contorções. Vinha do seu quarto. Devagar ele foi se aproximando, tentando imaginar o que
ocorrera, a curiosidade se misturava de forma estranha com o medo, fazendo-o chegar cada vez
mais perto. Ele ouvia os rangidos e a voz do mestre que dizia alguma coisa como: “Se acalme”.
Hary el caminhou até chegar à beirada da porta do quarto e depois parou, como se já soubesse
o que encontraria. Ficou lá estático, escutando, com receio de se movimentar um milímetro
sequer. Então, num impulso, ele adentrou o quarto, e um cheiro ainda mais forte tomou sua
garganta, juntando-se com força tal à imagem que encontrara do lado de dentro, que a primeira
coisa que passou pela sua mente era que se tratava de uma alucinação.
Thomas estava estirado na cama, com o rosto inchado, tendo contorções violentas. A face do
rapaz estava branca, com uma tonalidade azulada que se assemelhava muito à asfixia. Ele suava
como um porco, provavelmente sentindo náuseas terríveis. Do lado, havia uma bacia cheia de
vômito, que quase se esparramava a cada tranco que o corpo do rapaz dava contra a cama,
como se tivesse convulsões.
— O que está acontecendo aqui? – perguntou Hary el, ao velho, que estava sentado em um
banco, do lado direito de Thomas.
— Espere – respondeu o velho.
O detetive correu até o rapaz, que se contorcia numa agitação surpreendente, e colocou os
dedos na sua face pálida.
— Está gelada! Ele está suando frio. – disse. – O que aconteceu aqui?
— Ele veio te procurar – respondeu o mestre. – Depois de alguns minutos começou a ter
espasmos.
— Vou chamar um médico!
— Não! Não dá mais tempo, se ele for removido vai morrer.
— Ele vai morrer se continuar assim.
— Sinta o cheiro.
— O que quer dizer?
— É o cheiro da morte. Você está sentindo esse cheiro de sangue podre? Eu sei uma maneira
de salvá-lo, mas ele não pode ser removido, não agora. Morreria a caminho do hospital.
— Mas o que vamos fazer? O que é isso? – o detetive olhou fixamente pra o rosto do rapaz,
escutando os gritos com uma dor profunda. Ele reparou nas gotas de suor escorrendo pelo azul da
face. – Envenenamento?
— É. Por uma erva muito rara. Seus médicos não achariam antídoto nenhum que surtisse
efeito. Vá até a cozinha e pegue a água que está fervendo.
— O quê?
— Vá rápido, ele não pode esperar.
O detetive correu até a copa e pegou a panela que estava no fogo. Quando voltou, viu o mestre
apertando um ponto nas costas dos pés do rapaz, um pouco acima do final dos ossos dos dedos.
De minuto em minuto, o rapaz vomitava, gritando como se tivesse sido atravessado por uma
espada. Hary el nunca tinha visto nada assim, não era realmente um envenenamento comum,
eram sintomas misturados, uma violenta dor abdominal, exaustão, face pálida e fria, coberta de
suor. Ele gritava que a boca estava ardendo, constantemente.
O velho pegou um pote com ervas que havia na sua mochila, e despejou na água fervente,
misturando com a mão. Depois respirou a fumaça que saia da panela, como quem analisasse se
a medida estava certa:
— Ele tem que tomar isso, se os vômitos pararem é um sinal de melhora, se não for assim...
— Se não for assim?
— Ele vai morrer, o corpo vai secar como uma árvore velha.
O detetive olhou para o rapaz, tomando o líquido , sentiu uma pena enorme.
O rapaz não conseguia tomar direito a infusão, sua boca doía muito. Hary el não conseguia
olhar.
— Na China – disse o velho. –, ela só cresce na China. É muito mais incomum do que você
imagina, é quase lendária. Chamam de “a flor da morte”.
— Então como ele pode ter sido intoxicado por ela? Se for tão rara assim, é óbvio que foi um
envenenamento proposital. Quem além de você conhece essa erva?
— Já disse que não é hora de procurar culpados, mas de salvar o seu amigo.
— Não vou deixar que matem todos que eu conheço! – gritou Hary el, coberto de revolta. –
Ninguém mais vai morrer! Eu quero saber quem foi que o envenenou! Quem foi?
— Não há como saber...
— Você disse que faz alguns dias... Quantos dias?
— Uns dois, mas isso é muito variável. Você está fora de controle.
— Eu estou fora de controle? – gritou irado.- É a segunda vez que tentam tirar a vida de um
amigo meu. Por quê? Por quê?
— Se acalme...
— Eu vou perguntar mais uma vez: Como ele pode ter sido envenenado?
— Já disse que eu não sei. Mas a erva não pode ser servida com infusão, como esse antídoto.
Ela tem que ser misturada a uma bebida, uma bebida alcoólica.
Um flash repentino iluminou a mente do detetive. Por um instante, tudo estava claro. Assim
que ouviu, diversas imagens foram passando na sua cabeça, como um filme, enquanto repetia
pra si mesmo: “Bebida alcoólica”, “Bebida alcoólica”, “Bebida alcoólica”.
“— Quem é?
“— Você não conhece?
“— Não, deveria conhecer?
— Krieg!
— O quê? – perguntou o velho, notando o estado de êxtase em que o detetive permanecia.
— Lucifer Krieg. Você não entende? Ele não é a próxima vítima, é o assassino!
— O que quer dizer? – disse o velho, olhando espantado para o detetive, como se tivesse
medo da descoberta de Hary el.
— Foi ele. Ele envenenou o vinho. Ele matou o Paul e os outros...
— Com o ódio que você está sentindo, não vai conseguir raciocinar claramente. As coisas
nem sempre são o que parecem...
— Chega com esse papo! – esbravejou, jogando o braço do mestre longe.. – O que você
quer me dizer?
— Que você está se afastando da calma, está inundado em ira, está se afastando do Tao.
— Eu quero que o Tao se ferre! Eu vou até o galpão! – disse Hary el, levantando-se.
— O que pretende fazer?
— Esclarecer as coisas... Não tenho tempo pra ficar discutindo com você. Está claro agora.
Só não compreendo a ligação com o túmulo... Mas ele é um lunático.
— Hary el...
— O quê?
— Só, tome cuidado...
O detetive segurou nas mãos de Thomas e olhou no fundo dos seus olhos, como se quisesse
guardar um pedaço dele na mente.
Hary el fez um sinal com a cabeça. Depois saiu pela porta do quarto e foi até a sala pegar um
sobretudo e as chaves do carro de Thomas que estavam sobre a mesa. Ele estava coberto de
fúria. Lá fora já havia escurecido, e a tempestade era mais forte que qualquer um dos outros
dias. Antes que ele saísse, o mestre foi até a sala e olhou para ele. O detetive estava fora de si.
Ele bateu a porta e desceu desgovernado as escadas. Na rua, somente o azulado dos raios
iluminava o asfalto negro. Do lado de dentro, o mestre rezava para que a alma de Hary el fosse
mais forte que os raios.
O detetive pegou o carro e saiu descontrolado através das ruas de Londres. Não havia quase
ninguém nas calçadas, a chuva estava fortíssima e o carro mal conseguiu deixar a rua, tal a força
da correnteza que atravessava o asfalto. Ele passava em alta velocidade, atirando duchas d’água
contra tudo em volta. O veículo ia cada vez mais rápido, evitando as avenidas mais
movimentadas, onde o trânsito estaria lerdo. Na velocidade ele escondia seus pensamentos
quanto à situação de Thomas, esvaziando a cabeça a cada forte pisada no acelerador. Havia
poucos automóveis fora das pistas principais, e os poucos que ele encontrava no caminho eram
ultrapassados sem o menor receio. O detetive sabia exatamente para onde ia, iria encontrar o
artista e arrancar dele as respostas. Ao mesmo tempo em que corria, o novelo de idéias na sua
mente ia se desfazendo, nó a nó. Agora ele entendia a sensação que sentia toda a vez que via
Lucifer. Compreendia também o possível motivo dele estar lá no dia do enterro de Paul, além de
diversos outros acontecimentos que antes passaram despercebidos. Como o fato daquele crítico
ter visto uma obra de arte escondida nos retalhos do corpo de Metatron Morrison.
Ele encostou o carro na guia da rua, de frente para o galpão. Os holofotes de cima do depósito
estavam apagados, assim como as lâmpadas do lado de dentro. Estava tudo escuro, em silêncio,
como se alguma coisa lá dentro estivesse apenas esperando-o. A chuva ainda caía forte, mas o
telhado de aço do lugar cobria parte do local em que Hary el estacionara. Ele pegou uma lanterna
que Thomas sempre deixava de reserva no porta-luvas e saiu, rumo à entrada.
A construção era toda feita em metal e o portão de acesso ao lado de dentro era enorme. Ele
gritou durante alguns minutos do lado de fora, mas não obteve resposta. Como já era possível de
se prever, o portão estava trancado. O detetive tentou forçá-lo com as duas mãos, mas não se
movia de modo algum. Depois resolveu contornar o prédio pelo lado esquerdo, à procura de
alguma porta de serviço ou coisa do gênero. Ficou um bom tempo passando a lanterna pelas
enormes paredes da edificação, mas não encontrou nada, nenhuma abertura ou entrada. Assim
que atravessou a parte de trás do lugar o vento começou a lançar uma quantidade enorme de
gotas de chuva contra o seu casaco. Mesmo estando protegido da tempestade, debaixo da beirada
do telhado, ele não podia permanecer seco, tal a força do temporal. Continuou andando, na
esperança de achar alguma coisa, até que quase no final da parede do lado direito, em um dos
desníveis da construção, encontrou uma porta.
Era uma porta de madeira, presa somente com uma corrente e cadeado, possivelmente a
única do lugar. Estava escuro e ele não podia ver direito se havia alguma coisa em volta. Hary el
passou a lanterna em busca de uma placa ou algo do tipo, mas também não conseguiu enxergar
nada que fosse relevante. Ele aproximou-se da corrente tentou puxá-la, para ver se estava
realmente presa.
O barulho da água batendo no telhado de metal soava cada vez mais intenso, juntando-se ao
som dos trancos que Hary el dava contra as correntes. O cadeado estava fechado, assim como a
outra entrada. Ele gritou novamente e bateu na porta, mas ninguém atendeu. Contrariando as
evidências, Hary el continuava achando que Lucifer se escondia lá dentro, precisava entrar para
confirmar. Mesmo que ele não estivesse, seguiria depois até o apartamento do artista, ou até o
fim do mundo se fosse necessário. Passou por sua cabeça o fato de não possuir um mandato, mas
ele não poderia esperar, Thomas estava morrendo, Krieg à solta. As providências burocráticas
demorariam pelo menos até a metade do dia seguinte, e mesmo com toda a pressão sobre o caso
do artífice, não haveria como ser de outro modo. Ele precisava pegá-lo àquela noite.
O detetive olhou para as dobradiças, estavam deterioradas e enferrujadas pelo tempo. Num
único golpe de corpo, ele jogou-se com tudo contra a madeira da porta, abrindo-a pelo lado
contrário ao cadeado. A porta voou longe, tendo o movimento barrado apenas pelo repuxar da
corrente, que impediu a queda. Hary el atravessou a abertura, embrenhando-se devagar na
escuridão.
Ele moveu a lanterna para todos os lados, tinha entrado numa pequena ante-sala que dava
acesso ao lugar onde ocorrera a exposição. Ele caminhou devagar, iluminando o local móvel a
móvel. Havia algumas caixas no canto das paredes. Colocou a luz sobre elas, mas estavam
vazias. O detetive foi em direção à entrada para a parte maior do galpão. Do local que estava
ainda não conseguia enxergar coisa alguma além da porta. Ele levantou a lanterna e colocou os
pés lentamente no piso do lado de dentro. Para seu espanto, estava vazio. Não havia nada no
galpão, nem quadros, nem esculturas, nem coisa alguma. Como se tudo tivesse sido retirado. Ele
moveu o foco de luz pelas paredes brancas e pelo chão, caminhando por todas as partes do lugar,
mas não encontrou absolutamente nada, apenas uma vastidão vazia sobre o piso. Num desses
momentos a claridade da lanterna iluminou uma porta, a mesma pela qual entrara no outro dia
acompanhado de Thomas. Ela estava aberta.
“Lucifer”, disse o detetive, colocando o foco sobre a abertura. Mas tudo continuou em silêncio.
Ele infiltrou-se com cuidado pela passagem. No quarto ainda estavam os mesmos móveis da
outra vez, a mesinha de madeira e os dois sofás. Para alívio de Hary el não mudara nada,
continuava exatamente como antes. Possivelmente o pintor ainda estava na cidade. Embora o
aposento se apresentasse no mesmo estado, o quadro havia sido substituído. No lugar dele havia
outro, alguns centímetros maior, coberto por uma toalha marrom. O detetive pôs o círculo de luz
contra o pano e o puxou lentamente.
A tela que se mostrava aos poucos revelava um céu de nuvens escuras, tão negras quanto
fumaça. Voando contra ela, em meio aos ventos, havia sete anjos. Cada um deles com o rosto de
um dos mortos pelo Artífice, exceto o do centro, estava sem rosto, com um borrão de cores no
lugar da face. Um arrepio, como medo, percorreu o seu corpo assim que visualizou o quadro, era
uma cena macabra. Ao mesmo tempo em que a frigidez do arrepio lhe consumia, uma claridade
libertava suas idéias, agora tudo era óbvio: Lucifer era o assassino. Ele possuía a prova.
O corpo de Hary el tremia, enquanto passava os olhos por cada uma das figuras, observando os
traços, quando de repente fixou-se numa delas, no rosto de um dos anjos, nesse instante um súbito
clarão veio a sua mente, como se lembrasse de algo que esquecera.
“Samuel”, disse ele.
A porta do apartamento de Hary el estava aberta, ele esquecera de trancar na saída. O mestre
estava no quarto com Thomas, que havia ficado inconsciente por causa da infusão. O único
barulho que se ouvia na casa era o da tempestade, que atirava violentamente o granizo contra a
janela.
O demônio esperara dentro do prédio desde a saída de Hary el, observando a porta, quieto,
fazendo-se um só com a sombra, somente aguardando o momento em que entraria para
arrancar as ultimas pedras do seu caminho. O detetive saíra sem o ver, com uma cólera
impressionante. Tudo corria como o planejado. Ele deixou os olhos sobre o entreaberto da porta,
e o vento a movimentou devagar, sem rangidos, como se permitisse a passagem do assassino.
“Nenhum presente é de graça, normalmente eles compram seu futuro”, sorriu o demônio,
atravessando a porta e caminhando na direção do quarto de Hary el. Ele puxou um punhal de
haste dourada com algumas inscrições vermelhas de dentro do sobretudo e marchou
silenciosamente pelo corredor.
— Quem está aí? – disse o velho, do quarto, notando uma presença na casa.
O assassino inverteu a empunhadura da faca, colocando a ponta da lâmina escondida contra o
seu antebraço.
— Quem está aí? – insistiu ele.
O homem continuou calado, caminhando.
O velho olhou para a figura parada na entrada, trajando um longo sobretudo negro, até a altura
dos calcanhares. Os olhos do assassino o encararam, como se desafiassem sua alma.
O velho cravou os olhos nos do assassino, absorvendo o que ele dissera, era frio nas palavras.
Cheung-Chizu retirou os dedos devagar do cadáver, depois sorriu.
— Eu não. “Você” – disse o mestre. – Você achou mesmo que isso iria fazer com que eu me
sentisse culpado? Agora eu descubro como você ainda é uma criança. Continuo com a mesma
convicção. Já você, matou um homem à toa.
— Eu o libertei. O salvei da maldição.
— Não, você o impediu de sair por si só. Você não o salvou. Ele vai continuar voltando, preso
ao Grande Ciclo, até que descubra por si só o caminho. Quanto a mim, nada do que você faça
abala o meu vazio. Já o seu ainda é cheio, cheio pela idéia de estar liberto.
— Você não sabe nada de mim.
— Eu sei quem você é. Você ainda é a mesma criança confusa que eu achei no avião.
Escondendo-se atrás desse orgulho, por achar uma coisa que não existe. Roubando um colar para
pagar uma promessa que era sua. Você abandonou a prisão, e ficou preso na estrada..
— Você continua falando, e eu continuo calmo, porque tuas palavras não importam pra
mim.
— Essa sua liberdade é apenas covardia.
— Covardia suprema é coragem profunda.
— Pois bem, veremos se você realmente atingiu o satori – falou ele, parando na frente do
assassino. – Eu vou te fazer uma pergunta, se você responder corretamente, minha vida é sua.
Caso contrário você somente provará que ainda não é um iluminado, e deixará essa casa, e a
vida de todos ligados a ela.
— Caso eu não responda o kung-an, deixarei mais que essa casa, deixarei a mente de todos
vocês. Mas caso eu responda, essa casa será minha e a vida dos que estão abaixo da tempestade
também, e eu não deixarei o meu quadro, até que toda a tinta dele se transforme em sangue.
— Falta apenas um, não?
— Mas depois dele a obra continuará sem mim. Se meu Tao for tão obscuro que não se torne
capaz de responder, você provará que eu vivo numa ilusão maior do que a que eu fujo. Mas se eu
vencer, será sinal que não existe nada, somente a mente, e eu serei senhor da mente, e senhor do
mundo.
— Por que você quer ser senhor de algo que não pode comandar? Como você quer
comandar o que não existe?
— Apenas pergunte.
Lucifer fez uma expressão de espanto, revelando a confusão que a enigma lhe provocara. Ele
conhecia esse kung-an e não era assim que ele era contado, e nem essa a pergunta.
Um risco de sangue jorrou por todo o quarto, cobrindo de vermelho a cena. Num único golpe,
Lucifer desferiu a faca contra a garganta do velho, num corte seco e horizontal, no qual moveu
apenas o braço e a lâmina oculta por detrás do pulso, rasgando o pomo-de-adão da vítima e
levando-a ao chão de joelhos, numa queda brusca. O movimento foi barrado apenas quando o
rosto do velho, ensangüentado, foi de encontro ao piso gélido, produzindo um som abafado, quase
inaudível, que apenas o demônio reconheceu.
Todos estavam mortos. Lucifer limpou o punhal e saiu pela porta. Ainda não estava terminado.
O carro que Hary el dirigia em alta velocidade girou no meio da avenida e estacionou de frente
ao prédio de Samuel Watson. O edifício era alto e antigo, dividido em duas partes, com algumas
lojas na parte térrea, e uma ampla entrada de vidro para os moradores do condomínio, que
possibilitava uma vista completa do hall. Em uma das lojas havia um grande cinema, e a calçada
estava bastante movimentada, com diversas pessoas caminhando de um lado para o outro, indo e
saindo da sessão e outras agitadas na fila. Assim que deixou o veículo, o detetive notou uma
aglomeração do lado de dentro do prédio, algo como uma briga. Havia uma quantidade grande
de pessoas cercando os elevadores, mas não conseguiu definir bem o que ocorrera, pois o vidro
estava um pouco longe, e o reflexo das lâmpadas impedia uma visão mais clara.
Ele caminhou até lá, atravessando a fila, mas teve o percurso barrado por uma mulher,
aparentemente uma prostituta.
O policial saiu e falou alguma coisa no rádio, depois pegou uma caneta e começou a anotar
algo em um papel. Hary el permanecia confuso, com dezenas de coisas passando pela sua
cabeça ao mesmo tempo. Era como se o assassino soubesse tudo que ele faria, cada passo que
ele daria, como se fosse tudo planejado, todas as ações previstas. Ele era mais que inteligente,
era quase sobre-humano. Não adiantava o que ele fizesse, Lucifer estava sempre um passo à
frente, sempre preparado. Por um momento o detetive se sentiu como um boneco, incapaz,
vítima de um controle que ele não compreendia. Todas as coisas: O Galpão, vazio, esperando-o;
o veneno na bebida de Thomas, como se ele soubesse que apenas o rapaz beberia; a morte de
Paul, e até mesmo a de Watson enquanto ele revirava o galpão. Tudo arquitetado, minucioso,
preciso. Por que ele o deixara vivo, por que até então?
— “A cascavel sai a passeio, e o rato vai procurá-la no ninho, mexendo em seus ovos, sem
saber que um deles pode chocar, e comê-lo vivo. A cascavel sai a passeio, e o rato vai atrás,
como se hipnotizado estivesse, procurando uma mordida, mas só acha ovos jogados. O rato fica
como bobo, de lá pra cá, à procura da morte. Mas a morte o espera, na toca da serpente,
escorrendo devagar pelas mandíbulas.” Na toca da serpente... Na toca... No galpão!
— O que foi? – perguntou o policial.
— Ele voltou para o galpão!
— O que o senhor quer dizer?
— Quando Adam Johnson chegar, diga que eu estive aqui e que é para ele me encontrar no
depósito onde ocorrem as exposições de Lucifer Krieg.
— Krieg, o pintor? O que o senhor quer lá há essa hora? A mostra já terminou...
— Só diga para ele me encontrar lá... – disse Hary el, indo embora apressado.
— Os quadros nem são tão legais – gritou o policial. – São todos macabros...
— Diga para ele me encontrar lá...
O detetive entrou no carro e deixou o lugar, na esperança de que mesmo que seu destino já
estivesse traçado, algo dentro dele pudesse mudar as coisas.
Nunca antes na vida ele pressionara tão fortemente o acelerador, o carro corria, ultrapassando
todos os limites possíveis de velocidade, cada vez mais rápido, como os pensamentos na cabeça
do detetive. Sua mente rebatia as palavras e frases, uma a uma, repetindo constantemente: “A
morte o espera na toca da serpente”, “A morte o espera na toca da serpente”. Ele compreendia
agora que Lucifer guiara todos os seus movimentos desde o início, até mesmo agora, ele fazia
exatamente o que o artista esperava, indo procurá-lo. Mas não podia ser de outra maneira, era
previsível, mas necessário. Ele era realmente como o rato que o bilhete descrevera, correndo
como bobo para todos os lados, à procura de uma agonia maior que a que ele sentia. Mas Hary el
não deixaria que essa agonia o tomasse, que o controle de Lucifer fosse maior que sua própria
força, maior que sua inteligência, maior do que tudo que ele já conhecia sobre as coisas.
Desabafava sua indignação quanto a tudo, queimando os pneus nas raras partes secas do asfalto,
jogando o veículo contra as gotas de chuva, atirando granizo para todos os lados. Agora seria a
hora em que tudo se decidiria, que o vencedor surgiria no meio da tempestade. Muitos já haviam
morrido, mais até dos que os que foram pintados. Eram inocentes demais para que passasse
daquela noite em branco. O sangue borbulhava por respostas, ansiando, sedento. Ele precisava
descobrir o porquê, o porquê de tantas vidas retiradas, tanta tortura. Se falhasse, a sorte já estava
lançada, ele seria o próximo, o último dos anjos. Ou quem sabe o primeiro? O início de uma nova
série de crimes. Como ele poderia saber ao certo quantos já haviam sido mortos? Será realmente
que Lucifer começara com Jeliel Arnold? Quem sabe em outros lugares, outras cidades, outros
países? Quantos, quantos homens e mulheres já haviam perdido suas vidas? Não, não poderia
estender-se por mais tempo, ali seria tudo decidido.
Parte das luzes do depósito estavam acesas. Hary el guiava como um louco, com os olhos fixos
no galpão ao longe, querendo chegar o mais depressa possível. A avenida de acesso estava muito
escorregadia, sem carros. Para todos os lados que olhava, não via pessoa alguma, somente um
vazio de vida, uma ausência escura de tudo. Ele abandonou o carro na frente do lugar e
embrenhou-se na chuva, gritando no tom mais alto que conseguia o nome do artista. Ele
caminhava, encharcado pela tempestade, berrando enquanto andava pela grama, observando a
entrada ao fundo, como um desafio, como quem avisasse aos que estivessem do lado de dentro,
que ele estava próximo. O som ecoava pelo vazio do lugar, indo e voltando, repetindo
continuamente: “Lucifer!”, “Lucifer!”.
— Quem está aí? – perguntou o detetive, olhando para a parte sombria do recinto.
Novamente, somente o silêncio permanecia. – Quem está aí? Lucifer?
— O que você procura? – disse a voz vinda da sombra, fazendo-se ouvir. Hary el assustou-se,
foi muito repentino. A figura de Krieg foi se iluminando devagar, a partir do momento que
andava na direção do visitante. Lucifer estava alguns metros acima, numa espécie de segundo
andar, um mezanino. O detetive foi até a escada. – Não ouse subir! – continuou Krieg. – Você
está invadindo um lugar que não lhe pertence. O que quer?
— Você sabe o que eu quero – falou Hary el, em tom raivoso. – Eu sei das mortes. A
pergunta é: O que “você” quer?
Lucifer desceu devagar as escadas, com a pistola apontada para a cabeça do visitante. Ele
estava muito calmo, já Hary el demonstrava o ódio a cada respiração.
Kitten abriu os olhos, arregalando-os. Não podia compreender aquilo, queria não ter ouvido,
queria realmente acreditar que era uma alucinação. Por um momento tudo era negro e nada
mais importava, se sairia vivo ou não, se Krieg fosse apanhado ou não. Era como um som
inaudível de tristeza, vazia, um pesar imenso, tão grande que mal podia se sustentar de pé.
Lucifer olhou novamente para ele, e continuou:
— O que foi? Isso foi demais pra você? Pra sua força? Você é patético...
— Seu desgraçado! – disse Hary el, avançando contra o assassino. Nesse momento o
demônio bateu com força a arma contra o rosto do detetive, e desferiu com a outra mão, que
segurava o rolo do quadro, um golpe na garganta que o atirou ao chão.
— Você é tão estúpido quanto os outros! Você não consegue se manter frio, impassível.
Você já perdeu. Não importa o que você faça, acabaremos o nosso quadro hoje. E ele será
batizado com o odor doce de sangue – debochou.
Hary el estava caído, ele levantou a cabeça e começou a olhar em volta. Tinha que haver
alguma armadilha. Todos os anjos haviam sido pegos por armadilhas, com ele não poderia ser
diferente.
— Sua alma já é minha – continuou Krieg. – Quando seus amigos chegarem, o último anjo
já estará pintado, e o meu trabalho já estará terminado.
— O colar... – balbuciou o detetive, caído. – Por que o colar?
— Por que o céu é azul e não amarelo? Por que a noite é negra e o dia claro?
— Não, não é isso... Tem alguma coisa a mais, eu sei... Você era discípulo de Chuang-Chizu.
Por que roubou o colar?
— Não te devo explicações. Mas digamos que eu era tolo e queria muito compreender a
verdade.
— E agora você não é tolo? O que quer compreender matando?
— Nada, não quero compreender nada, já sei o caminho.
— Mas você ainda faz coisas – disse Kitten. –, não deixa o Tao seguir por ele mesmo, você o
guia para um caminho escuro, você manipula a verdade, criando uma mentira.
— Você me diz essas coisas porque quer se salvar. Sabe qual é a verdade? – indagou, ereto. –
A verdade é que você não faz idéia do que fala, só joga palavras ao acaso. Você não apreendeu
nada...
— Pelo contrário, aprendi tanto quanto você. Posso não estar liberto, mas sei que você
também não está. Você tem desejos, tem o desejo de manipular o Tao. Então você não é
perfeito, é escravo da sua vontade.
— Então, assim que tudo isso acabar eu serei liberto, porque satisfarei o meu único desejo.
— Pensei que você tinha dito que a satisfação dos desejos também não traz a paz. Você está
se contradizendo... – disse ele, prestando atenção na arma. Somente esperando o momento em
que o assassino se distraísse. Se não conseguisse tomá-la, provavelmente cairia na armadilha.
— Posso estar me contradizendo, mas depois que meu plano for concluído apagarei minha
individualidade, então não terei mais vontades.
— Ouvi uma vez de Chuang-Chizu que o desejo gera um ciclo vicioso... Como você quer
chegar à ausência de desejos se insiste em manter um?
— Veremos então, depois que acabar! – disse Lucifer, pela primeira vez alterando o tom
calmo. Hary el se arrastava devagar, chegando mais perto.
— Você está exaltado? Pensei que alguém que atingiu o satori não tivesse crises de raiva...
— Eu não estou tendo crises de raiva!
— Está sim, eu estou vendo nos seus olhos, você está pensando...
— Veremos no final. O destino te mostrará o vencedor!
Nesse momento um barulho de sirenes cortou o som da chuva. Carros chegavam. O assassino
virou-se na direção do ruído, espantado, desviando o olhar e deixando o caminho livre para o
detetive, que desferiu um forte chute contra a arma, fazendo-a voar longe, girando, até
precipitar-se em sua direção. Lucifer soltou uma espécie de sorriso, um sorriso estranho, que
Hary el não percebeu, como se soubesse o que se seguiria.
O som dos veículos estacionando cobriu a atmosfera. Kitten avançou na arma caída,
segurando-a. O assassino correu, fugindo, percebendo que não daria tempo de lutar por ela, o
outro estava perto demais. Ele correu em direção à porta de saída, o mais rápido que podia, sem
olhar para trás. Hary el empunhou a pistola e apontou-a para o demônio, ele estava afogado em
ira.
Os trovões caíram ainda mais fortes e a luz dos raios iluminou a porta.
Lucifer continuou.
— Pare!
Três tiros saíram da arma, atingindo Krieg nas costas, de uma só vez, ele tombou para frente,
deslizando no ar, até chegar ao chão. Caiu devagar, com as mãos esticadas na direção da saída.
Antes de atingir o solo, ainda um quarto tiro foi contra a sua cabeça. O sangue se espalhou por
todo o galpão, criando uma poça ao redor do corpo, que se contorceu por alguns segundos, até,
por fim, parar. O estrondo ainda ecoou por muito tempo pelas paredes do lugar e pelo coração do
homem. O detetive olhou para suas mãos, a pistola ainda estava quente. Ele havia matado.
Lucifer estava morto.
Tudo ficou claro assim que olhou para o cadáver. Qualquer outra pessoa entenderia que
estava acabado, mas ele não. Só agora as palavras de Lucifer faziam sentido, então ele sentiu
medo de si mesmo. O detetive aproximou-se devagar, mal podia andar. O artista estava jogado
de bruços, e o sangue escorria ininterrupto. Ele parou agachado ao lado do corpo e o virou. O
demônio sorria, sorria de uma forma macabra, diabólica. Não respirava mais. Tinha sido muito
rápido, ele havia gritado, pedido que ele parasse. As mãos de Hary el estavam sujas, imundas no
vermelho que escoava. Ele olhava para o corpo e sentia náuseas.
Os agentes de Adam Johnson entram de uma só vez, traziam homens das forças especiais,
também armados. Johnson estava acompanhado do guarda que Kitten encontrara no prédio de
Samuel Watson. Todos correram na direção do detetive. A cena que se apresentou era a de
Hary el agachado, em meio ao galpão vazio, segurando uma pistola e pegando uma espécie de
rolo. Ele estava sangrando. Johnson e os policiais pararam atrás do detetive, estava como em
êxtase, abrindo a tela devagar.
No quadro a tela que se mostrava aos poucos revelava um céu de nuvens escuras, tão negras
quanto fumaça. Voando contra ela, em meio aos ventos, havia sete anjos. Cada um deles com o
rosto de um dos mortos pelo Artífice. No centro, a face da figura já estava pintada, era o rosto de
Lucifer Krieg. O detetive passou os olhos devagar por toda a pintura, trêmulo. Em baixo, no canto
direito, havia uma mancha de tinta vermelha, como algo escrito, uma assinatura. Ele desceu os
olhos lentamente, hesitando, com medo do que encontraria, e a leu. Dizia:
“Hary el”.
Escrito, ilustrado, editado por:
Tony Ferraz© (2001)
Índice
Abertura
Prólogo
Primeira Parte
Segunda Parte