Thomas Mann - Os Buddenbrooks PDF
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Os Buddenbrook
PRIMEIRA PARTE
SEGUNDA PARTE
TERCEIRA PARTE
QUARTA PARTE
QUINTA PARTE
SEXTA PARTE
SÉTIMA PARTE
OITAVA PARTE
NONA PARTE
DÉCIMA PARTE
DÉCIMA PRIMEIRA PARTE
Posfácio —
Os Buddenbrook — Popular e subestimado,
Helmut Galle
Cronologia
Sugestões de leitura
PRIMEIRA PARTE
1.
O sr. Jean Jacques Hoffstede era o poeta da cidade. Com certeza trazia no bolso
alguns versos para festejar o dia. Não era muito mais moço que Johann
Buddenbrook pai, e, a não ser pela cor verde do casaco, vestia-se pela mesma
moda que o amigo. Mas era mais magro e mais ágil do que este, e tinha
pequenos olhos vivos, esverdeados e o nariz comprido e pontudo.
— Muito obrigado — disse ele, depois de ter apertado as mãos dos cavalheiros
e após alguns cumprimentos às senhoras (principalmente à consulesa, a quem
venerava em extremo), cumprimentos dos mais esquisitos, daqueles que a nova
geração simplesmente não conseguia mais fazer. Acompanhou-os de um sorriso
agradavelmente sereno e cortês. — Muito obrigado pelo amável convite, meus
prezados amigos. Encontramos estes dois rapazes — e apontaram para Tom e
Christian, ao seu lado, vestidos de blusas azuis, com cintas de couro — na
Königstrasse, quando voltavam das aulas. Magníficos, estes meninos… não é
verdade, senhora consulesa? Thomas tem um caráter sólido e sério; sem dúvida
deve tornar-se comerciante. Christian, este me parece um pouco cabeça de vento,
não acha? Um pouquinho incroyable… Mas não posso negar meu engouement.
A meu ver, ele vai se formar; tem inteligência e talento brilhante…
O sr. Buddenbrook serviu-se da sua caixa de rapé dourada.
— É um macaquinho, e nada mais! Você não quer que ele se transforme logo
num poeta, Hoffstede?
Ida fechou as cortinas. A sala foi subitamente inundada pela luz um tanto
trêmula, mas discreta e agradável, das velas do lustre e dos castiçais postos na
escrivaninha.
— Então, Christian — disse a consulesa, cujos cabelos reluziam num brilho
dourado —, o que aprendeu esta tarde? — Soubera que Christian tivera aulas de
primeiras letras e de canto.
Christian era um menino de sete anos e que já agora se parecia com o pai de
modo quase ridículo. Tinha os mesmos olhos pequenos, redondos e encovados, e
já se esboçava nele o mesmo nariz curvo e de forte saliência. Abaixo dos
pômulos, algumas linhas indicavam que a forma da fisionomia não conservaria
aquela redondeza infantil.
— A gente riu a valer — começou ele a tagarelar, passeando os olhos de um
rosto a outro. — Atenção, vou mostrar-lhes o que disse o sr. Stengel a Siegfried
Köstermann.
Inclinou-se para a frente, meneando a cabeça, e admoestou insistentemente um
interlocutor invisível:
— Por fora, meu bom rapaz, por fora você é polido e elegante: sim, senhor,
mas por dentro, meu bom rapaz, por dentro você é preto… — disse essas
palavras engolindo os erres e pronunciando “preto” como “p’eto”. Em seu rosto
manifestava-se a indignação causada pelo polimento e pela elegância de “fo’a”,
o que produziu um efeito de tão irresistível comicidade que todos desataram a
rir.
— Um macaquinho e nada mais! — repetiu o velho Buddenbrook, entre
risadas cascateantes. O sr. Hoffstede, porém, não cabia em si de admiração.
— Engraçado! — gritou. — Inimitável! Para quem conhece Marcellus Stengel!
É ele em carne e osso! Sim, senhor, é maravilhoso!
Thomas, que não tinha semelhante talento, ficava ao lado do irmão mais moço,
rindo-se de coração e sem inveja. Os seus dentes, pequenos e amarelados, não
eram nada bonitos. Mas tinha um nariz de talhe extraordinariamente fino. Os
olhos e a forma do rosto assemelhavam-se bastante aos do avô.
A maioria dos presentes acomodou-se nas cadeiras e no sofá. Conversava-se
com as crianças e falava-se sobre a casa e sobre o frio, que naquele ano chegara
cedo demais… O sr. Hoffstede, junto à escrivaninha, admirava um magnífico
tinteiro de porcelana de Sèvres, representando um cão de fila malhado de preto.
O dr. Grabow, homem da idade do cônsul, de rosto comprido, bondoso e brando,
provido de suíças escassas, olhava os bolos, os pães de passas e os diversos
saleirinhos cheios sobre a mesa. Tratava-se do “sal e pão”, presente habitual na
ocasião de mudanças, e que parentes e amigos da casa haviam enviado. Mas,
para evidenciar que as dádivas não provinham de origem baixa, o pão simples
fora substituído por um pão de mel, doce e pesado, enquanto o sal vinha em
pequenos saleiros de ouro maciço.
— Acho que vai haver trabalho para mim — disse o doutor, apontando para os
doces, numa advertência às crianças. E acenando com a cabeça, numa expressão
de aprovação, levantou um valioso galheteiro.
— É de Lebrecht Kröger — disse o velho Buddenbrook, sorrindo de
satisfação. — Sempre generoso, o meu querido parente. Eu não lhe dei um
presente como este quando construiu a sua casa de recreio, lá perto do portão da
Fortaleza. Mas ele foi sempre assim… presenteador, elegante, um cavalheiro à la
mode…
O ruído da campainha ressoara várias vezes pela casa. Chegou o pastor
Wunderlich, idoso, rechonchudo, de cabelo empoado, rosto branco, alegre e
contente, onde piscavam olhos animados, cor de cinza. Viúvo havia muitos anos,
incluía-se por si mesmo no grupo dos solteirões do tempo passado, solteirões do
tipo do corretor Grätjens, que o acompanhava. Este era um homem macilento
que costumava pôr diante do olho a mão fechada em forma de óculo como se
examinasse um quadro. Grätjens tinha o renome de ser grande conhecedor de
arte.
Vieram também o senador dr. Langhals, com a esposa, amigos da casa de há
muito tempo, e mais o negociante de vinhos Köppen, um gorducho de cara
bastante corada que parecia encaixada entre as ombreiras altas. Vinha com a
esposa, igualmente muito corpulenta…
Já passava das quatro e meia quando chegaram finalmente os Kröger, os velhos
e os moços, o cônsul Kröger e os seus filhos Jakob e Jürgen, que tinham a
mesma idade de Tom e Christian. Quase ao mesmo tempo entraram os pais da
consulesa Kröger, o sr. Oeverdieck, atacadista de madeiras, com a esposa; um
velho casal afetuoso que conservara o hábito de chamar-se, diante de todos, de
nomes carinhosos, como se ainda fossem noivos.
— Gente fina chega tarde — disse o cônsul Buddenbrook, beijando a mão da
sogra.
— Mas chegam em massa — acrescentou Johann Buddenbrook, incluindo toda
a família Kröger num vasto abraço. Deu ao velho Kröger um aperto de mão.
Lebrecht Kröger, o cavaleiro à la mode, era um tipo alto e distinto. Usava ainda
cabelos levemente empoados, mas vestia-se na última moda. No colete de
veludo brilhavam duas fileiras de botões de pedras preciosas. O seu filho Justus,
de suíças escassas e bigode torcido, parecia-se muito com o pai, tanto no físico
como na postura. Tinha os mesmos gestos elegantes e comedidos.
Não valia mais a pena sentar-se. Permaneciam de pé, conversando provisória e
despreocupadamente, à espera do essencial. E Johann Buddenbrook pai não
tardou em oferecer o braço à sra. Köppen, dizendo com a voz elevada:
— Então, como estamos todos com apetite, Mesdames et Messieurs…
Ida Jungmann e a empregada abriram os dois batentes da porta branca que
dava para a sala de jantar. Lentamente, num andar confiante, os convidados a
transpuseram. Na casa dos Buddenbrook podia-se contar com comida farta…
3.
A alegria geral chegara ao auge. O sr. Köppen sentia visível necessidade de abrir
alguns botões do colete, mas isso, infelizmente, era impossível, pois nem os
senhores de idade se atreviam a fazê-lo. Lebrecht Kröger mantinha-se ainda no
seu assento na mesma atitude ereta do início do jantar; o pastor Wunderlich
permanecia alvo e formal; o velho Buddenbrook, em verdade, recostava-se um
pouquinho, mas conservava ainda as mais cerimoniosas maneiras; apenas Justus
Kröger estava sensivelmente embriagado.
Mas onde estava o dr. Grabow? A consulesa levantou-se discretamente e saiu.
Verificara que, na outra ponta da mesa, as cadeiras de Ida, de Christian e do
doutor estavam desocupadas. Vinha do alpendre um gemido abafado. Deixou a
sala rapidamente, seguindo a empregada que acabava de servir manteiga, queijo
e frutas — e de fato, lá na meia obscuridade, sobre o banco redondo forrado que
cercava a coluna do centro, sentava-se, deitava-se ou acocorava-se o pequeno
Christian, gemendo lamentavelmente e baixinho.
— Ah, meu Deus, senhora consulesa — disse Ida, que se achava ao lado do
doutor —, Christian, o coitado sente-se tão mal!…
— Ai, mamãe, estou mal, mal como o diabo! — choramingou Christian
enquanto os seus olhos redondos e encovados passeavam irrequietos de cá para
lá. A expressão “como o diabo” não era senão o efeito do seu imenso desespero,
mas a consulesa replicou:
— Quando usamos palavras assim, o Bom Deus vem castigar-nos com coisas
ainda piores.
O dr. Grabow tomou o pulso do menino. O seu rosto bondoso parecia tornar-se
mais comprido e mais brando ainda.
— Uma pequena indigestão… nada de grave, senhora consulesa —
tranquilizou ele; e, continuando na sua fala profissional e pedante: — Seria
melhor levá-lo para a cama… Um purgantezinho e talvez uma xícara de chá de
macela para provocar transpiração. E um regime rigoroso; não é, senhora
consulesa? Repito: regime rigoroso. Um pedacinho de pombo, um pouquinho de
pão francês…
— Não quero pombo! — gritou Christian, fora de si. — Não quero comer,
nun… ca mais quero comer! Estou mal, mal como o diabo!
A exclamação parecia causar-lhe algum alívio, tal o fervor com que a proferia.
O dr. Grabow sorriu, um sorriso indulgente e quase melancólico. Ah, não havia
dúvida de que o rapaz voltaria a comer! Viverá como todo o mundo. Passará os
seus dias numa vida sedentária, assim como os seus pais, parentes e amigos, e
quatro vezes por dia consumirá aqueles pratos escolhidos e pesados. Pois seja
como Deus quiser. Ele, Friedrich Grabow, não era daqueles que iriam
revolucionar o estilo de vida dessas famílias de comerciantes sólidos, abastados
e contentes. Viria quando fosse chamado, recomendando um ou dois dias de
regime rigoroso — um pedacinho de pombo, um pouquinho de pão francês —,
sim, senhor, e afirmaria, em boa consciência, que, desta vez, a coisa tinha sido
sem importância. Apesar da sua pouca idade, frequentemente tomara a mão de
honestos cidadãos que, depois de terem comido o seu derradeiro pedaço de carne
defumada ou o último peru da sua vida, encomendavam a alma a Deus: alguns,
de repente, surpreendidos na sua cama antiga e solidamente construída. Uma
apoplexia, diziam então, uma paralisia, uma morte repentina e imprevista… Sim,
senhor, e ele mesmo, Friedrich Grabow, poderia citar as repetidas vezes em que
“a coisa tinha sido sem importância”, aquelas vezes em que nem mesmo fora
chamado, quando, depois do almoço, de volta ao escritório, se anunciava uma
estranha tonturazinha… Pois seja como Deus quiser! Ele mesmo, Friedrich
Grabow, não era daqueles que desdenham os perus recheados. Ainda hoje, o
presunto ao molho de cebolinhas… diabo, como estava delicioso!… e depois —
já quase sem fôlego — esse pudim de Pletten… macrones, framboesas e creme
de ovos, sim, senhor…
— Como lhe disse, senhora consulesa… regime rigoroso: um pedacinho de
pombo, um pouquinho de pão francês…
8.
Já era bem tarde, cerca de onze horas, quando os convidados, outra vez reunidos
na sala das Paisagens, começaram a retirar-se, quase todos ao mesmo tempo. A
consulesa, logo depois de ter recebido o beija-mão de todos os senhores, subiu
aos seus aposentos para informar-se do estado de Christian. Encarregou Ida da
inspeção das empregadas que removiam a baixela. A sra. Antoinette retirou-se
para o entressolho. Mas o cônsul acompanhou os convidados, pela escada,
através do pátio e do portão da casa, até a rua.
Um vento forte soprava a chuva obliquamente. Os velhos Kröger, abrigados
por espessas capas de peles, entraram depressa na sua carruagem majestosa, que
os esperava havia muito tempo. Diante da casa ardiam candeeiros de azeite,
alguns içados em altas varetas, outros suspensos em grossas correntes que
atravessavam a rua. A sua luz amarela tremia e cintilava. Por vezes se viam, nas
fachadas das casas, terraços avançados para a rua que, numa descida íngreme,
dava para o rio Trave. Em outras casas havia rampas ou bancos. Por entre a
calçada mal conservada brotava a grama. Do outro lado, a igreja de Santa Maria
estava inteiramente escondida na sombra, envolta pela escuridão e pela chuva.
— Merci — disse Lebrecht Kröger, apertando a mão do cônsul, que, junto da
carruagem, se despedia dele. — Merci, Jean; foi uma festa primorosa. — Depois
disso, a portinhola fechou-se ruidosamente, e a carruagem partiu sacolejando. O
pastor Wunderlich e o corretor Grätjens, por sua vez, afastavam-se com muitos
agradecimentos. O sr. Köppen, numa capa de cinco pelerines e cartola cinzenta
de abas largas, de braço com a esposa, disse na sua voz profunda:
— Boa noite, Buddenbrook! Entre, para não pegar um resfriado. E, escute,
muito obrigado! Comi como não fazia há muito tempo… e o meu tinto de quatro
marcos parece que convém a você, não é? Pois então, mais uma vez, boa noite!
O casal descia em direção do rio, com o cônsul Kröger e a sua família, ao
passo que o senador Langhals, o dr. Grabow e Jean Jacques Hoffstede tomavam
o caminho contrário.
O cônsul Buddenbrook, no seu traje de casimira leve, com as mãos enterradas
nos bolsos da calça clara, sentia o frio. Ficou por um instante a alguns metros do
portão da casa, ouvindo os passos que ainda ressoavam nas ruas vazias,
molhadas e fracamente iluminadas. Virando-se, deixou o olhar subir para a
fachada da sua casa cor de cinza e de cumeeira alta. Os seus olhos demoraram-se
na tabuleta esculpida em letras antiquadas, por cima do portão: “Dominus
providebit” — o Senhor providenciará. Abaixando um pouquinho a cabeça,
entrou em casa e fechou diligentemente o portão, que rangeu com um ruído
áspero. Cerrou a porta de guarda-vento e atravessou, a passos lentos, o pátio
ressoante. Perguntou à cozinheira, que descia pela escada com uma bandeja
cheia de copos:
— Onde está o patrão, Trina?
— Na sala de jantar, senhor cônsul.
O rosto da moça tingiu-se dum vermelho igual ao dos braços, porque, recém-
chegada do interior, intimidava-se facilmente.
O cônsul subiu. Ainda no alpendre, a sua mão fez um movimento para o bolso
do casaco onde estava o papel. Entrou na sala. A um canto queimavam ainda,
num candelabro, restos de vela, iluminando a mesa vazia. No ar pairava, com
perseverança, o cheiro azedo do molho de cebolinhas.
No fundo da sala, perto das janelas, Johann Buddenbrook, satisfeito, andava de
cá para lá com as mãos nas costas.
10.
— Pois então, Johann, meu filho, como vai essa força? — Estacou, estendendo
ao filho a mão alva, um pouco curta e fina, peculiar aos Buddenbrook. A sua
figura vigorosa, iluminada pela luz inquieta, que apenas salientava a peruca
empoada e o peitilho de rendas, destacava-se fracamente do vermelho-escuro das
cortinas. — Ainda não está cansado? Eu estava passeando por aqui, e escutando
o barulho do vento. Que tempo terrível! E o capitão Klodt, que está para chegar
de Riga…
— Ora, papai, com a ajuda de Deus tudo irá bem…
— Mas será que posso confiar nisso? Ah! sim. É verdade. Você está sempre em
ótimas relações com Deus Nosso Senhor…
Diante desse bom humor, o cônsul sentiu-se mais disposto.
— Pois é, para irmos direto ao assunto — começou ele —, eu não somente
queria dizer-lhe boa noite, papai, mas… O senhor não vai zangar-se, não? Não
quis importuná-lo com esta carta que chegou hoje à tarde, para não estragar a
noite alegre.
— Monsieur Gotthold… voilà! — O velho fingiu ficar completamente calmo
diante do papel azulado e lacrado que tomou da mão do filho. — “Ao sr. Jacques
Buddenbrook. Particular…” Um homem de conduite, o senhor seu meio-irmão,
Jean! Será que respondi àquela sua segunda carta? No entanto, escreve uma
terceira… — Enquanto o seu rosto corado se tornava mais e mais sombrio, abriu
a carta. Desdobrando o papel fino, virou-se para que a letra recebesse a luz do
candelabro. Com a costa da mão deu no papel uma pancadinha enérgica. Até a
caligrafia lhe parecia revelar certa arrenegação e rebelião, pois os caracteres
eram altos, verticais e decalcados com vigor, ao contrário da letra dos
Buddenbrook, pequena e leve, que corria obliquamente sobre o papel. Havia
muitas palavras sublinhadas por penadas rápidas e enfáticas.
O cônsul aproximou-se da parede onde se achavam as cadeiras. Mas não se
sentou, porque o pai estava em pé. Segurando, num gesto nervoso, um dos altos
espaldares, observava o velho que lia, de cabeça inclinada para o lado, com as
sobrancelhas franzidas. Seus lábios movimentavam-se levemente:
Meu pai:
Parece que espero sem motivo que a sua equidade seja bastante grande para avaliar a indignação que
senti quando a minha segunda carta, tão insistente, tratando do bem conhecido assunto, ficou sem
resposta, depois de ter recebido uma réplica (nem sequer falemos de que espécie) por ocasião da primeira.
Vejo-me, porém, compelido a declarar que a atitude com a qual o senhor aprofunda, pela sua teimosia, o
abismo que infelizmente se abriu entre nós é um pecado, do qual um dia, perante o juízo de Deus, o
senhor será inteiramente responsável. Há vários anos obedeci, mesmo contra a sua vontade, ao impulso
do meu coração, casando-me com aquela que é agora minha esposa, e ofendi o seu orgulho sem limites,
ao tomar conta duma loja. Naquela época foi bastante lastimável o modo como o senhor me abandonou
cruel e completamente. Mas a maneira como me trata agora brada aos céus, e se o senhor pensa que
permanecerei satisfeito e passivo diante desse silêncio, está redondamente enganado.
O preço da sua recém-adquirida casa na Mengstrasse foi de cem mil marcos. Sei, além disso, que seu
associado e filho do segundo casamento, Johann, mora nessa casa como locatário, e que ele, depois do
seu traspasse, receberá — sem mencionar a firma — também a casa, na qualidade de proprietário único.
Com minha meia-irmã de Frankfurt e com o marido dela, o senhor chegou a um arranjo do qual não me
cabe ocupar-me. Mas com respeito a mim, seu filho primogênito, o senhor exagera a sua ira pouco cristã,
até recusar-me, sem cerimônias, qualquer indenização pela minha parte na casa! Fiquei calado quando, na
ocasião do meu casamento e da minha instalação, o senhor, pagando-me cem mil marcos, fixou-me, no
seu testamento, de uma vez por todas, um legado de apenas outros cem mil marcos. Naquele tempo, eu
nem sequer estava suficientemente informado sobre a sua situação financeira. Agora, porém, conheço
melhor o caso. Não tenho nenhum motivo para considerar-me deserdado por princípio, e reclamo, neste
caso especial, uma indenização de trinta e três mil e trezentos e trinta e cinco marcos, isto é, uma terça
parte do preço da compra.
Não quero fazer conjecturas sobre as influências execráveis que motivaram esse tratamento que tive
de suportar até agora. Mas protesto contra este, com todo o meu senso de cristão e de comerciante, e pela
última vez anuncio-lhe solenemente que não mais o apreciarei como cristão, como pai e como
comerciante, caso o senhor não se resolva a respeitar as minhas pretensões.
Gotthold Buddenbrook
— Desculpe se não me agrada recitar outra vez esta ladainha a você! Voilà!
Com um gesto furioso, Johann Buddenbrook atirou o papel ao filho. O cônsul
pegou a carta quando esta adejava na altura de seus joelhos. Observava os passos
do pai com olhos tristes e desconcertados.
O velho apanhou o apagador comprido que estava encostado à parede, perto da
janela. Passou ao longo da mesa, num andar enérgico e irado, dirigindo-se ao
candelabro do canto oposto.
— Assez! estou lhe dizendo. N’en parlons plus, e basta! Vamos para a cama!
En avant! — Uma depois da outra, sem voltar, foram desaparecendo as chamas,
sob o pequeno funil de metal preso na ponta da vareta. Ardiam somente duas
velas quando o velho tornou a dirigir-se ao filho, que mal se podia distinguir na
escuridão do fundo da sala.
— Eh bien, por que você fica quieto assim? Que acha disso? Tem de dizer
qualquer coisa!
— Mas que posso dizer, meu pai? Estou desnorteado.
— Você fica facilmente desnorteado — observou Johann Buddenbrook num
sarcasmo raivoso, apesar de saber perfeitamente que não havia muita verdade
nessa afirmação, e que o seu filho e associado, muitas vezes, se mostrara
superior a ele na capacidade de aproveitar uma ocasião.
— Influências más e execráveis… — continuou o cônsul. — Eis a primeira
linha que acabo de decifrar! E o senhor não imagina o quanto isso me tortura?
Ele nos atira o reproche da falta de sentimento cristão!
— Será que você se deixa intimidar por essas garatujas miseráveis?
Johann Buddenbrook aproximou-se, cheio de raiva, arrastando atrás de si o
apagador.
— Falta de sentimento cristão! Ora vejam! Que gosto refinado, francamente, o
que se exprime nessa cobiça piedosa! Que gente são vocês, os moços! A cabeça
abarrotada de patranhas cristãs e fantásticas… e do tal idealismo! E nós, velhos,
somos os cruéis escarnecedores… E, ao lado disso, a Monarquia de Julho e os
ideais práticos! E essa gente prefere dizer ao velho pai as maiores asneiras em
vez de renunciar a alguns milhares de táleres!… E ele se digna a desdenhar-me
como comerciante! Pois bem, como comerciante, sei perfeitamente o que
significam faux-frais! Faux-frais! — repetiu, rolando ferozmente o “r”. —
Humilhando-me e transigindo em tudo, não faria desse patife exaltado um filho
mais obediente…
— Querido papai, que posso responder-lhe?… Não quero que ele tenha razão
naquelas coisas que escreve acerca das “influências”. Estou interessado como
sócio, e justamente por isso não devia aconselhá-lo a insistir no seu ponto de
vista, porém… Sou um cristão tão bom quanto Gotthold, porém…
— Porém! Você tem razão, deveras, de dizer “porém”, Jean! Como se
passaram as coisas na realidade? Naquele tempo, quando ele estava ardendo de
amor pela sua digna Mademoiselle Stüwing, quando me fazia uma cena depois
da outra, e quando, finalmente, apesar da minha rigorosa interdição, contratou
esta mésalliance, naquele tempo lhe escrevi: “Mon très cher fils, você vai se
casar com a sua loja, ponto final! Não o deserdo, não faço spectacle, mas a nossa
amizade acabou-se. Eis aqui cem mil marcos que lhe dou como dote, e lego-lhe
outros cem mil no meu testamento, mas isso chega para você. Basta, e nenhum
tostão a mais…”. Diante disso, ele se conservou silencioso. Que interessa a ele
que a gente faça negócios? Que você e a sua irmã recebam uma importância
muito maior? Se com uma parte da futura herança de vocês se comprou uma
casa…
— Papai, queira compreender o dilema em que me encontro! Por amor à
concórdia da família, eu devia aconselhar… mas… — O cônsul deu um suspiro
abafado, encostando-se na cadeira. Johann Buddenbrook apoiou-se na vareta do
apagador, espreitando atentamente através do lusco-fusco, inquieto, para
perscrutar a fisionomia do filho. Consumira-se a penúltima vela, apagando-se
por si mesma. Uma única ficara ainda bruxuleando, ao fundo. De vez em
quando, um vulto branco e alto, com um sorriso tranquilo, salientava-se na
tapeçaria, para logo desaparecer novamente. — Papai, esta disputa com Gotthold
me abate — disse o cônsul em voz baixa.
— Bobagens, Jean, deixe de sentimentalismo! Que é que o abate?
— Papai… hoje estávamos reunidos tão alegremente, festejando um dia
bonito; estávamos orgulhosos e contentes de ter realizado, de ter alcançado
alguma coisa… de termos elevado nossa firma, nossa família a uma altura em
que gozamos da mais alta estima e consideração… Mas, papai, esta contenda
amarga com o meu irmão, com o seu filho primogênito… Não devia haver uma
fenda secreta no edifício que erigimos com a ajuda benigna de Deus… Uma
família deve ser uma unidade, deve ser solidária entre si, papai, senão o Mal
entra em casa…
— Tolice, Jean, caraminholas! Um rapaz obstinado…
Fez-se uma pausa. A última chama diminuía mais e mais.
— Que é que você está fazendo, Jean? — perguntou Johann Buddenbrook. —
Não o vejo mais.
— Estou calculando — respondeu o cônsul de modo lacônico.
A vela chamejou um instante, e pôde-se ver como ele olhava firmemente a
chama que dançava diante dos seus olhos tão frios e tão atentos como não
tinham estado durante toda aquela noite. O seu corpo endireitou.
— Por um lado, o senhor dá trinta e três mil e trezentos e trinta e cinco marcos
a Gotthold e quinze mil ao pessoal de Frankfurt, isto é, um total de quarenta e
oito mil e trezentos e trinta e cinco marcos. Por outro lado, o senhor dá somente
vinte e cinco mil marcos aos de Frankfurt, o que significa, para a firma, uma
vantagem de vinte e três mil e trezentos e trinta e cinco marcos. Mas isso não é
tudo ainda. Supondo que o senhor pague a Gotthold uma indenização pela sua
parte na casa, o trato ficará violado. Nesse caso, o ajuste que o senhor fez com
ele, naquela ocasião, não foi definitivo, e ele poderá reclamar, depois da sua
morte, uma herança igual à minha e a da minha irmã. E então isso constituirá,
para a firma, um prejuízo de centenas de milhares de marcos, prejuízo que não se
pode calcular, e que eu, como futuro chefe da firma, não poderei aguentar…
Não, papai! — concluiu com um enérgico gesto da mão, endireitando-se ainda
mais. — Tenho de dar-lhe o conselho de não transigir!
— Pois é! Ponto final! N’en parlons plus! En avant! Vamos dormir!
A derradeira e pequena chama apagou-se sob o funil de metal. Numa escuridão
espessa, os dois atravessaram o alpendre. Lá fora, no patamar, deram-se um
aperto de mão.
— Boa noite, Jean. E, escute, courage! Esses desgostos são da vida… Até
amanhã, à hora do café.
O cônsul subiu pela escada ao seu apartamento, e o velho, guiando-se, às
apalpadelas, no corrimão, entrou no entressolho. Depois, o casarão antigo,
diligentemente fechado, caiu na escuridão e no silêncio. Descansavam orgulho,
esperança e preocupação, enquanto ali fora, nas ruas tranquilas, tamborilava a
chuva e assobiava o vento outonal em torno das esquinas e cumeeiras.
SEGUNDA PARTE
1.
Passaram-se dois anos e meio. Em meados de abril, e mais cedo do que nunca,
chegara a primavera. Ao mesmo tempo verificou-se um acontecimento que fazia
cantarolar de contente o velho Buddenbrook e causava grande alegria ao seu
filho.
Num domingo, de manhã, às nove horas, o cônsul estava sentado na varanda,
perto da janela, em frente duma grande escrivaninha parda, cuja tampa abaulada
se enrolava por meio de um mecanismo engenhoso. Tinha diante de si uma
volumosa pasta de couro, repleta de papéis. Retirara dela um caderno de capa
estampada e bordas douradas. Inclinado sobre ele, escrevia com zelo, na sua
letra que corria através das páginas, minúscula e fininha; escrevia atento,
interrompendo-se apenas para molhar a pena no pesado tinteiro de bronze…
As duas janelas estavam abertas. Do jardim, onde o sol brando inundava os
primeiros botões de flores, e onde algumas aves dialogavam atrevidamente,
entrava o ar primaveril, fresco e perfumado, e inflava levemente, de vez em
quando, as cortinas. Do outro lado da varanda, o sol reluzia sobre o linho branco
da mesa, por vezes salpicado de migalhas de pão, e dançava de xícara em xícara,
rebrilhando sobre o dourado das bordas.
Através da porta aberta, que dava para o quarto de dormir, ouvia-se a voz de
Johann Buddenbrook pai, trauteando para si uma velha melodia engraçada:
Um homem bom e modelar,
Um sujeito complacente:
Faz sopa, cuida do bebê
E tem cheiro de aguardente…
Estava sentado junto ao bercinho de cortinas de seda verde, perto da cama alta,
com dossel, onde se encontrava a consulesa. Movendo constantemente a mão, o
velho mantinha o berço em oscilação regular. Para maior facilidade do serviço, a
consulesa e o seu marido tinham se instalado, por algum tempo, no entressolho,
ao passo que Johann Buddenbrook e a sra. Antoinette habitavam o terceiro
quarto. Esta, com um avental por cima do vestido listrado, e uma touca de rendas
sobre os grossos cachos brancos, remexia nos linhos e nas flanelas, que se
amontoavam numa mesa dos fundos.
O cônsul Buddenbrook mal olhou para o quarto vizinho, tão ocupado estava
com o trabalho. O seu rosto revelava um sentimento de devoção séria e quase
sofredora. Tinha a boca levemente aberta, e, às vezes, um véu cobria-lhe os
olhos. Escrevia:
Hoje, 14 de abril de 1838, às seis horas da manhã, minha querida esposa Elisabeth — em solteira, Kröger
—, com a ajuda benevolente de Deus, deu à luz uma filhinha que, no batismo sagrado, há de receber o
nome de Klara. Sim, Nosso Senhor ajudou-a benignamente, se bem que, segundo a opinião do dr.
Grabow, o parto tenha começado um pouco cedo e, a princípio, nem tudo parecesse favorável, de maneira
que Bethsy teve de suportar grandes dores. Oh, Nosso Senhor Sabaoth, onde haverá outro Deus além de
ti, que nos ajudas em perigos e misérias, e nos ensinas a bem reconhecermos a tua vontade, para que te
respeitemos e nos mostremos fiéis aos teus desejos e mandamentos! Ah, Senhor, guia-nos e governa-nos,
a nós todos, enquanto vivermos na Terra…
Outra vez, bem moço ainda, fizera uma viagem a Bergen. Ali, Deus o salvara
do perigo de afogar-se.
Com a maré alta, quando chegaram os pescadores das regiões polares, tínhamos grande trabalho para
passar através das escunas, a fim de alcançarmos o nosso trapiche. Numa ocasião dessas estava eu na
borda da embarcação, fincando os pés contra as toleteiras e as costas contra uma escuna, no esforço de
empurrar o barco para a frente. Mas infelizmente aconteceu que se quebraram os toletes, feitos de
madeira de carvalho. Caí na água, de cabeça para baixo. Voltei uma vez à superfície, mas ninguém estava
bastante perto para me poder segurar. Na segunda vez, o barco passou por cima da minha cabeça. Havia
muita gente que teria gostado de me salvar, mas, primeiro, tiveram de afastar o barco para evitar que este
e a escuna se fechassem sobre mim. Todo o trabalho teria sido inútil, se não tivesse arrebentado naquele
momento o cabo duma escuna de pescador. Por este motivo a escuna desprendeu-se, de maneira que, pela
vontade de Deus, ganhei espaço. Na terceira vez, somente os meus cabelos chegaram à superfície, mas
como todos os homens da embarcação, uns aqui, outros acolá, estavam inclinados sobre a água, um
dentre eles, na proa do barco, logrou apanhar-me pelos cabelos, e eu peguei no seu braço. Ele próprio mal
podia manter-se firme, e por isso gritou e uivou com tamanha força que os outros o ouviram. Depressa
cingiram-lhe os quadris, segurando-o com toda a força, de modo que pudesse resistir. Eu, também,
continuava a me agarrar, apesar de ele me morder o braço, e, assim, finalmente, o homem me salvou…
Seguia-se uma oração muito comprida que o cônsul releu de olhos úmidos.
Num outro trecho dizia-se:
Eu poderia citar muita coisa, se quisesse revelar minhas paixões, porém…
Mas o cônsul passou rápido sobre isso, para começar a ler uma ou outra linha
que escrevera nos tempos do seu enlace e da sua primeira felicidade paternal.
Esse matrimônio, para falarmos francamente, não fora propriamente o que se
chama de um casamento de amor. O pai lhe dera uma palmada no ombro,
chamando-lhe a atenção para a filha do rico sr. Kröger, que poderia trazer um
dote considerável para a firma. E ele, de todo o coração, concordou, e daí em
diante passou a venerar a esposa como a companheira que Deus lhe confiara…
A história do segundo casamento do pai não tinha sido muito diferente.
Um homem bom e modelar,
Um sujeito complacente…
* A palavra alemã “Hirte” significa “pastor”. [Esta e as demais notas de rodapé são do tradutor.]
4.
Não era simples decrepitude aquilo que prostrava a velha sra. Antoinette
Buddenbrook, uns seis anos depois do dia em que a família fez a sua entrada no
casarão da Mengstrasse. Num dia frio de janeiro deitou-se na sua alta cama com
dossel, para não mais sair do quarto do entressolho. A idosa senhora conservava-
se vigorosa até o fim, exibindo os bandós encaracolados, grossos e brancos,
numa dignidade inquebrantável. Em companhia do marido e dos filhos,
comparecia a todos os banquetes de importância que se realizavam na cidade, e,
quanto à representação da família nas reuniões que os próprios Buddenbrook
promoviam, não ficava atrás da sua elegante nora. Mas um dia, de repente,
começou a manifestar-se uma enfermidade meio indefinível. A princípio não
passava de leve dor ilíaca contra a qual o dr. Grabow prescreveu um pouquinho
de pombo e pão francês. Mas desenvolveu-se uma cólica, complicada por
vômitos, causando, com rapidez incrível, um decaimento das forças. Surgiu um
estado de progressiva caducidade, que inspirava cuidados.
No patamar da escada, o dr. Grabow teve curta mas séria conversa com o
cônsul. Depois foi consultado mais um médico, homem rechonchudo, de barba
preta e olhos sombrios. Este entrava e saía seguidamente ao lado de Grabow, e as
suas visitas pareciam mudar a fisionomia da casa. A família andava na ponta dos
pés, cochichando palavras tristes. Proibia-se às carroças passarem pelo pátio.
Surgira na casa algo novo, estranho, extraordinário, um segredo que um lia nos
olhos do outro; irrompera nas vastas salas a ideia da morte, dominando-as
tacitamente.
Entretanto, não se podia descansar, porque chegavam visitas. A doença durava
catorze ou quinze dias, e já na primeira semana chegou de Hamburgo o velho
senador Duchamps, irmão da moribunda, em companhia da sua filha, ao passo
que alguns dias mais tarde vieram a irmã do cônsul e o seu marido, banqueiro de
Frankfurt. Todos eles permaneciam na casa dos Buddenbrook, e Ida não tinha
mãos a medir, mandando arranjar todos os quartos e preparando bons almoços
com caranguejos e vinhos do Porto, enquanto na cozinha se assava carne e se
faziam bolos…
No entressolho, Johann Buddenbrook estava sentado junto à cama da doente,
apertando a mão da sua velha Antoinette. Com as sobrancelhas alçadas e o lábio
inferior um pouco pendente, olhava diante de si, sem falar. O relógio de parede
fazia o seu sombrio tique-taque, avançando devagar. A doente tinha a respiração
tênue e opressa… Uma enfermeira, vestida de preto, ocupava-se com a
preparação de um caldo de carne que ainda queriam obrigar a doente a tomar. De
vez em quando, um membro da família entrava sem ruído, para sair logo depois.
O velho talvez estivesse recordando-se de como, havia quarenta e seis anos,
sentara-se junto ao leito de morte da primeira esposa. Talvez comparasse o
desespero que naquela ocasião se apossara dele à melancolia pensativa com que
observava agora, envelhecido, o rosto transformado, inexpressivo e
horrivelmente indiferente da velha senhora, dessa mulher que nunca lhe
proporcionara grande felicidade, nem grande dor, mas que vivera ao seu lado
durante muitos, longos anos com tato e prudência e que, naquele momento, se ia
embora vagarosamente.
O ancião não pensava muito. Dirigia apenas um olhar fixo para a sua vida e
para a vida em geral, meneando levemente a cabeça. E essa vida parecia-lhe de
repente tão distante e tão estranha; essa azáfama barulhenta de que ele mesmo
fora o centro, e que, insensivelmente, se afastara dele, soando agora de longe ao
seu ouvido admirado… Às vezes dizia consigo, a meia-voz: “Engraçado!…
Engraçado!”.
A sra. Buddenbrook exalou o seu último suspiro, subitamente e sem luta. O
velório foi feito na sala de jantar. Mas a atitude do velho não mudou, nem
mesmo quando os carregadores levantaram o caixão coberto de flores, para
saírem com ele a passos lerdos. Não chorava, mas conservava aquele menear da
cabeça, suave e admirado, e esse “Engraçado!”, proferido quase que num
sorriso, tornava-se sua locução predileta… Sem dúvida, Johann Buddenbrook
também estava às portas da morte.
Passou a ficar sentado no círculo da família, calado e ausente, e quando
segurava a pequena Klara no joelho, para, talvez, cantar-lhe uma das suas
canções humorísticas, por exemplo:
O ônibus vai por ali…
ou
O besouro na janela faz zum-zum…
O cônsul lastimava amargamente que o pai não tivesse podido assistir à entrada
do neto mais velho na firma. Esta teve lugar na Páscoa do mesmo ano.
Thomas tinha dezesseis anos quando terminou o curso no colégio. Crescera
muito nos últimos tempos, e desde a sua confirmação — ocasião em que o pastor
Kölling, em termos fortes, lhe recomendara que vivesse uma vida abstinente —
usava roupas de homem, que lhe davam a aparência de ainda mais alto. Uma
corrente de relógio, comprida e dourada, que o avô lhe legara, pendia-lhe do
pescoço. Havia nela um medalhão com o brasão da família, esse escudo
melancólico que mostrava uma planície confusamente esgrafiada, uma espécie
de pântano em cuja borda havia um salgueiro solitário e pobre. O anel de sinete
com a pedra verde, mais antigo ainda, e que provavelmente já fora usado pelo
abastado alfaiate de Rostock, passara, com a grande Bíblia, para o cônsul.
A semelhança com o avô desenvolvera-se em Thomas tão nitidamente quanto a
de Christian com o pai. Sobretudo o queixo redondo e enérgico e o nariz de talhe
fino e reto lembravam os do velho. Os cabelos repartidos no lado esquerdo
formavam duas entradas nas fontes, cujas veias se salientavam estranhamente.
Em comparação com o seu loiro-escuro, pareciam extraordinariamente claros e
descorados os cílios compridos e as sobrancelhas, uma das quais costumava
levantar-se mais do que a outra. Os gestos, a fala e o riso, que mostrava dentes
bastante defeituosos, eram serenos e sisudos. Encarava a sua profissão com zelo
e seriedade…
Foi um dia extremamente solene aquele em que o cônsul, depois da hora do
café, o levou consigo ao escritório, para apresentá-lo ao sr. Marcus, procurador
da firma, ao sr. Havermann, o caixa, assim como ao resto do pessoal. Havia
muito que já existia boa camaradagem entre eles. Mas, naquele dia, Thomas
sentou-se pela primeira vez na cadeira giratória, diante da sua escrivaninha,
carimbando, arquivando e copiando atentamente. E foi na tarde daquele mesmo
dia que o pai o conduziu também aos depósitos à margem do Trave, que tinham,
cada qual, o seu nome: “Tília”, “Carvalho”, “Leão” e “Baleia”. Ali, Thomas
também conhecia todos, mas agora era apresentado oficialmente na sua
qualidade de colaborador…
Thomas dedicava-se com toda a força ao trabalho, imitando a aplicação tenaz e
silenciosa do pai, que se esfalfava, cerrando os dentes e enchendo o seu diário
com muitas preces que imploravam a ajuda de Deus; pois tratava-se para ele de
recuperar as somas importantes que, por ocasião da morte do velho, perdera
aquele ídolo venerado que era a “firma”… Certa vez, altas horas da noite, o
cônsul teve com a esposa uma conversa bastante detalhada sobre a situação
financeira.
Eram onze e meia. As crianças e Ida dormiam lá fora nos quartos ao lado do
corredor, pois o segundo andar estava agora vazio, sendo usado somente de vez
em quando para hospedar visitas. A consulesa estava sentada no sofá amarelo, ao
lado do marido, que, fumando um charuto, passava os olhos pela seção
comercial do Observador da Cidade. Ela inclinava-se sobre um bordado de seda,
movimentando levemente os lábios, pois contava, com a agulha na mão, uma
fileira de pontos. Junto dela, na elegante mesinha de costura de arabescos
dourados, ardiam as seis velas dum castiçal. O lustre não estava aceso.
Johann Buddenbrook, que, pouco a pouco, se aproximava da casa dos quarenta
e cinco, envelhecera visivelmente nos últimos anos. Seus olhos pequenos e
redondos pareciam agora demasiado encovados; o nariz grande e curvo avançava
ainda mais acentuadamente, como as maçãs do rosto. Dava a impressão de que
uma esponja de pó de arroz lhe tivesse tocado de leve o cabelo loiro e
diligentemente alisado suas fontes. A consulesa, por sua vez, saía da casa dos
trinta, conservando no entanto a sua aparência, não precisamente bela, mas de
algum modo brilhante. Sua tez, de um branco pálido com sardas esporádicas,
nada perdera da delicadeza. O brilho das velas transluzia através do cabelo ruivo,
artisticamente penteado. Desviando um pouquinho para o lado os olhos azuis
muito claros, disse ela:
— Há uma coisa, meu caro, que você poderia tomar em consideração: talvez
seja oportuno contratar um mordomo… Eu me convenci disso. Quando penso na
casa dos meus pais…
O cônsul baixou lentamente o jornal sobre os joelhos e tirou o charuto da boca.
Entretanto, os seus olhos tornaram-se mais atentos, visto que se tratava de gastos
de dinheiro.
— Mas olhe, minha cara e adorada Bethsy — começou ele, prolongando a
alocução, para pôr em ordem as objeções. — Um mordomo? Depois da morte
dos meus saudosos pais conservamos em casa as três empregadas, além de Ida, e
me parece…
— Ah, Jean, a casa é tão grande, que fica até desagradável. Eu digo a Line:
“Olhe, Line, há muito tempo que você não tira o pó dos fundos da casa!”. Não
posso sobrecarregar o pessoal, pois já é bastante trabalho para as moças manter a
ordem e a limpeza na frente… Um mordomo seria tão cômodo para fazer essas
coisas… Deve ser possível encontrar um homem honesto do interior, que não
faça exigências exageradas… Mas antes que me esqueça, Jean: Louise
Möllendorpf quer despedir Anton; eu vi que ele sabe servir à mesa
corretamente…
— Para dizer a verdade — disse o cônsul, mexendo-se na cadeira com visível
mal-estar —, essa ideia nunca me ocorreu. Atualmente não frequentamos a
sociedade, nem fazemos reuniões…
— Não, mas frequentemente recebemos visitas. Eu não sou responsável por
isso, apesar de ter, como você sabe, Jean, muito prazer com a presença delas.
Digamos que apareça, por exemplo, um dos seus fregueses do estrangeiro; você
o convida para o jantar; ele ainda não reservou um quarto no hotel; claro que
passa a noite na nossa casa. Depois chega um missionário que pode ficar
conosco uns oito dias… Para a semana que vem esperamos a visita do pastor
Matthias, de Kannstatt… Em suma, os salários são tão insignificantes…
— Mas eles se acumulam, Bethsy! Temos de pagar quatro pessoas aqui na
casa, e você não se lembra dos inúmeros homens que estão a serviço da firma!
— Mas será que a gente não pode dar-se ao luxo de um mordomo? —
perguntou a consulesa com um sorriso, olhando para o marido e inclinando a
cabeça. — Quando penso em todo o pessoal na casa dos meus pais…
— Os seus pais, minha cara Bethsy! Mas não; devo perguntar-lhe se tem uma
ideia clara da nossa situação financeira…
— Não, Jean, em verdade não tenho suficientes conhecimentos dela…
— Pois bem, não é difícil informá-la a respeito — disse o cônsul. Acomodou-
se no sofá, cruzou as pernas, sugou o charuto e começou a sua exposição,
cerrando um pouquinho os olhos. Proferiu os algarismos com uma facilidade
extraordinária:
— Em poucas palavras: o meu saudoso pai tinha, antes do casamento da minha
irmã, mais ou menos novecentos mil marcos, sem contar, naturalmente, os
imóveis e o valor da firma. Deduzindo-se os oitenta mil do dote de Frankfurt e
os cem mil que se pagaram por ocasião da instalação de Gotthold, sobram
setecentos e vinte mil. Sobreveio a compra desta casa, que, apesar da entrada
pela venda da pequena casa na Alfstrasse, custou, inclusive os melhoramentos e
as necessárias aquisições, uns cem mil marcos redondos: ficam seiscentos e vinte
mil. Pagou-se uma indenização de vinte e cinco mil aos de Frankfurt: restam
quinhentos e noventa e cinco mil. E este teria sido o estado das coisas no tempo
da morte de papai, se todas essas despesas não tivessem sido contrabalançadas,
no decorrer dos anos, por um lucro da firma de mais ou menos duzentos mil
marcos. Assim o total dos haveres somava setecentos e noventa e cinco mil
marcos. Desde então fizeram-se ainda os pagamentos das heranças: cem mil
marcos a Gotthold e duzentos e sessenta e sete mil para Frankfurt; isso, e ainda
alguns mil marcos de legados menores que, segundo o testamento de papai,
foram pagos ao hospital do Espírito Santo, à Caixa de Socorro das Viúvas de
Comerciantes etc., dão um capital restante de cerca de quatrocentos e vinte mil
marcos, que, pelo seu dote, aumenta de mais cem mil. Esta é, em conta redonda,
sem considerar pequenas oscilações dos haveres, mais ou menos a nossa situação
financeira. Não somos tão extraordinariamente ricos, minha querida Bethsy, e,
com tudo isso, você tem de levar em conta que os negócios se tornaram menores
e que, no entanto, as despesas ficaram as mesmas, visto que o estilo da firma não
permite reduzir os gastos… Agora você está bem a par?
A consulesa fez um aceno de cabeça um tanto hesitante, olhando o bordado no
seu colo.
— Perfeitamente, Jean — disse ela, apesar de não ter compreendido a dedução
na sua totalidade e de não saber por que esses grandes algarismos a impediam de
contratar um criado.
O cônsul sugou o charuto até deixá-lo em brasa. Depois, exalando a fumaça
com a cabeça inclinada para trás, continuou:
— Talvez você esteja pensando que um dia, quando Deus chamar a si os seus
queridos pais, receberemos ainda uma fortuna considerável. E tem razão.
Porém… não convém fazer a esse respeito cálculos demasiado imprudentes. Eu
sei que o seu pai sofreu grandes prejuízos, e isso, como também se sabe, por
causa de Justus. Justus é um homem extraordinariamente agradável, mas os
negócios não são o seu forte e ele, além disso, sem culpa nenhuma, teve má
sorte. Com vários fregueses sofreu perdas extremamente pesadas. Em
consequência, o seu capital ficou reduzido, o que o obrigou a fazer empréstimos
por meio de transações bancárias bastante desfavoráveis. E o seu pai, diversas
vezes, teve de entrar com grandes importâncias para evitar uma catástrofe.
Coisas assim podem repetir-se, e receio que se repitam, pois — desculpe minha
franqueza, Bethsy! — aquela leviandade folgazã, tão simpática no seu pai, que
se retirou dos negócios, torna-se perigosa quando se manifesta no seu irmão que
é comerciante… Você me compreende?… Ele não é muito circunspecto; não
é?… É um pouco leviano e anda sempre com grandes ideias… De resto, os seus
pais não se privam de nada, fato que me regozija sinceramente, e vivem uma
vida principesca, o que aliás… corresponde à sua situação financeira…
A consulesa mostrou um sorriso indulgente. Sabia do preconceito que o marido
tinha contra as tendências da sua família para o luxo.
— Chega — continuou ele, colocando a ponta do charuto no cinzeiro. —
Quanto a mim, confio antes de tudo em que Deus me conserve a força para o
trabalho, para que, com a sua benigna ajuda, possa fazer voltar a fortuna da
firma à altura de outrora… Espero, Bethsy, que agora você esteja mais a par do
assunto…
— Completamente, Jean, completamente! — respondeu apressada a consulesa,
abandonando, de momento, a questão do mordomo. — Mas vamos para a cama,
não é? Já é muito tarde.
Passados alguns dias, quando o cônsul, na hora do almoço, voltou bem-
humorado do escritório, resolveram, contudo, contratar o Anton dos
Möllendorpf.
6.
Therese Weichbrodt era corcunda; tão corcunda que não era muito mais alta que
uma mesa. Tinha quarenta e um anos, mas, como nunca dera grande importância
às aparências, vestia-se como uma senhora de sessenta ou setenta anos. Nos
cachos grisalhos e estofados repousava uma touca com fitas verdes que lhe
caíam sobre os ombros estreitos e infantis. No miserável vestidinho preto jamais
se vira o mínimo enfeite… a não ser um grande broche oval com o retrato da
mãe de dona Therese, pintado sobre porcelana.
A pequena srta. Weichbrodt tinha olhos inteligentes e perspicazes, nariz
levemente curvo e lábios estreitos que sabia cerrar com muita decisão… De
resto, a sua figura diminuta e todos os seus gestos revelavam uma energia que,
apesar de parecer burlesca, inspirava respeito. E o seu modo de falar aumentava
grandemente o efeito. Falava com movimentos bruscos e rápidos do maxilar
inferior, meneando a cabeça, viva e acentuadamente, numa linguagem correta,
livre de qualquer expressão dialetal, clara e precisa. Tomava cuidado em não
engolir nenhuma consoante. Exagerava, porém, tanto o som das vogais que
pronunciava “menteigue” em vez de “manteiga”, e chamava de “Babby” aquele
ladrador obstinado que era o seu cachorrinho Bobby. Era impressionante, não há
dúvida, quando admoestava uma menina: “Não seja tão estôpida, minha filha!”,
dando com o indicador curvo duas breves pancadinhas na mesa. E quando
Mademoiselle Popinet, a professora de francês, botava açúcar demais no seu
café, a srta. Weichbrodt tinha um jeito todo especial de fitar o teto da sala,
tamborilando com a mão na toalha da mesa, e de dizer: “Eu, em seu lugar,
botaria o açocareiro inteiro!” — um jeito que fazia corar violentamente a
Mademoiselle Popinet.
Nos seus tempos de criança — Deus, como ela devia ter sido minúscula
quando criança! — Therese Weichbrodt chamava-se a si mesma de “Sesemi”, e
conservava essa variante de seu nome, permitindo às alunas mais aplicadas,
tanto internas como externas, dar-lhe esse tratamento. “Chame-me Sesemi,
minha filha”, disse logo no primeiro dia a Tony Buddenbrook, dando-lhe com
um estalido um beijo rápido na fronte. “Eu gosto de ouvir esse nome…” A sua
irmã mais velha, a sra. Kethelsen, chamava-se Nelly.
A sra. Kethelsen tinha quarenta e oito anos, aproximadamente, e a morte do
marido deixara-a na vida sem quaisquer recursos. Habitava um pequeno quarto
de sobrado na casa da irmã e participava das refeições em comum. Trajava-se
como Sesemi, mas, ao contrário desta, era extraordinariamente alta. Nos pulsos
descarnados usava umas manguinhas de lã. Não era professora e absolutamente
não sabia ser severa; era meiga e jovial. Quando uma discípula da srta.
Weichbrodt fazia uma travessura, Nelly rebentava num riso bonachão e cordial,
riso semelhante a um choro, até que Sesemi, dando uma pancada na mesa,
gritasse um “Nelly!” ríspido, que a fazia calar-se intimidada.
A sra. Kethelsen obedecia à irmã mais moça, deixando-se censurar por ela
como uma criança. Sesemi, de fato, menosprezava-a sinceramente. Therese
Weichbrodt era uma mulher culta, quase sábia, que tivera que passar por
pequenas lutas bem sérias para conservar a sua crença ingênua, a sua
religiosidade positiva e a confiança de que seria indenizada, no outro mundo,
pela sua vida cheia de dificuldades e sem brilho. A sra. Kethelsen, porém, era
ignorante, inocente e simplória. “A boa Nelly!”, dizia Sesemi. “Céus, é uma
criança. Nunca lhe ocorreu uma dúvida, nunca teve de travar um combate. Ela é
feliz…” Tais palavras exprimiam tanto desdém quanto inveja, e isso mostrava
em Sesemi certa fraqueza, se bem que perdoável.
O andar térreo da casinha de tijolos vermelhos, situada num ponto alto do
subúrbio e cercada por um jardim cuidadosamente arranjado, estava ocupado
pelas salas de ensino e pelo refeitório, ao passo que no sobrado e também no
sótão ficavam os dormitórios. As discípulas da srta. Weichbrodt não eram
numerosas, pois o internato aceitava somente meninas de mais idade, e o colégio
ministrava, também às alunas externas, apenas os cursos dos três últimos anos.
Além disso, Sesemi fazia questão de que só as filhas de famílias
indubitavelmente distintas frequentassem sua casa… Como vimos, Tony
Buddenbrook foi recebida com grande carinho. Therese fez, até, um “bispo” para
o jantar, um ponche doce e vermelho que se bebia frio, e que ela preparava
magistralmente… “Quer mais um pouquinho de bespo?”, perguntava ela,
sacudindo cordialmente a cabeça… E aquilo soava tão tentadoramente que
ninguém podia resistir.
A srta. Weichbrodt estava sentada sobre duas almofadas de sofá a uma das
extremidades da mesa. Presidia à refeição com firmeza e circunspecção.
Endireitando rijamente o corpinho torto, dava pancadinhas vigilantes na mesa.
Gritava “Nelly!” e “Bãbby!”, e humilhava Mademoiselle Popinet, com um único
olhar, quando esta ia apropriar-se de toda a geleia do filé de vitela frito. Tony
recebera um lugar entre duas outras pensionistas, Armgard von Schilling, filha
de um fazendeiro de Mecklemburgo, loira e robusta, e Gerda Arnoldsen, natural
de Amsterdam. Esta era uma figura estranha e elegante, com bastos cabelos
ruivo-escuros, olhos castanhos, pouco distantes entre si, e um belo rosto branco
que denotava certa altivez. Em frente dela, tagarelava a francesa que tinha um
tipo de negra e usava enormes brincos de ouro. Na outra ponta da mesa estava o
lugar de Miss Brown, inglesa macilenta, com um sorriso seco, e que também
morava na casa.
Graças ao “bispo” de Sesemi, fizeram logo amizade. Mademoiselle Popinet
contou que na noite passada tivera outra vez um pesadelo… Ah, quelle horreur!
Costumava então gritar “Socorro… ladrons!”, até todo mundo se levantar de um
pulo. Soube-se depois que Gerda Arnoldsen não tocava piano como as outras,
mas violino, e que o seu pai — a mãe não vivia mais — lhe prometera um
autêntico Stradivarius. Tony não tinha talento para a música, talento que faltava
à maioria dos Buddenbrook e a todos os Kröger. Nem sequer sabia identificar os
hinos que se cantavam na igreja de Santa Maria… E o órgão na Nieuwe Kerk de
Amsterdam tinha uma voz humana, de um som maravilhoso, ah, sim!…
Armgard von Schilling falou das vacas da sua fazenda.
Essa Armgard, desde o primeiro momento, impressionara profundamente a
Tony, e isso por ser a primeira aristocrata que conheceu. Que felicidade chamar-
se Von Schilling! Os seus próprios pais possuíam a mais bonita das antigas casas
da cidade, e os avós eram gente distinta, mas chamavam-se simplesmente
“Buddenbrook” e “Kröger”, o que era, sem dúvida, uma lástima. A neta do
elegante Lebrecht Kröger ardia de admiração pela nobreza de Armgard.
Clandestinamente pensava, às vezes, que esse “von” soberbo ficaria muito
melhor junto ao nome dela. Pois Armgard, Deus do céu, nem sequer sabia
valorizar a sua sorte; andava no mundo com a sua trança grossa, os olhos azuis e
bondosos e a arrastada fala provinciana, sem se importar com a sua nobreza; não
era nobre de maneira alguma, não insistia em sê-lo, e não tinha a mínima
distinção de atitudes. Mas na cabecinha de Tony arraigava-se a palavra “distinto”
com uma tenacidade incrível, e a menina empregava-a a respeito de Gerda
Arnoldsen com uma ênfase elogiosa.
Gerda era um pouco diferente e tinha algo de estranho e de exótico. Gostava,
não obstante a oposição de Sesemi, de pentear com certa extravagância o lindo
cabelo ruivo. Muitas meninas achavam que era uma “coisa boba” essa de tocar
violino, e é de observar que “coisa boba” significava uma forma muito áspera de
reprovação. Mas todas deviam concordar com Tony em que Gerda Arnoldsen era
menina distinta. Distinta na figura bem desenvolvida para a sua idade, nos
hábitos e nas coisas que possuía. Tudo era distinto: por exemplo, as peças de
toucador, peças de marfim que vinham de Paris, o que Tony sabia apreciar
especialmente, pois havia também na casa dos pais objetos que estes ou os avós
tinham trazido de Paris, e que lhes eram muito caros.
As três meninas juntaram-se logo numa união amigável. Frequentavam os
cursos do mesmo ano e habitavam coletivamente o maior dos dormitórios no
sobrado. Que horas divertidas e agradáveis aquelas em que se recolhiam às dez,
conversando ao despir-se, apenas a meia-voz, pois no quarto vizinho começava
Mademoiselle Popinet a sonhar com ladrões… Esta dormia em companhia da
pequena Eva Ewers, uma hamburguesa, cujo pai, amador e colecionador de
objetos de arte, se domiciliara em Munique.
As cortinas de listras pardas estavam corridas, e a lâmpada baixa, envolta em
fazenda vermelha, luzia sobre a mesa. Suave perfume de violetas e de roupa
limpa enchia o quarto, onde dominava em surdina uma atmosfera tranquila,
saturada de cansaço, despreocupação e sonhos.
— Céus — disse Armgard, sentada, meio despida, na beira da cama —, como
o dr. Neumann sabe falar! Entra na classe, senta-se à mesa e fala de Racine.
— Ele tem uma testa bonita, bem alta — observou Gerda, penteando o cabelo
à luz de dois castiçais que iluminavam o espelho entre as janelas.
— Tem, sim! — disse Armgard prontamente.
— E você, Armgard, começou a falar dele só para ouvir isso, você, que não
deixa de olhá-lo com esses olhos azuis, como se…
— Você gosta dele, não? — perguntou Tony. — Oh, não posso desatar meu
cordão, faça o favor, Gerda… muito obrigada. Então, você gosta dele, Armgard?
Vai se casar com ele; é um bom casamento: ele vai ser promovido a professor de
ginásio.
— Mas como vocês são cacetes. Não o amo nem um pouquinho. Com certeza
não me casarei com um professor, mas com um homem do campo…
— Um aristocrata? — Tony deixou cair a meia que tinha na mão, olhando o
rosto de Armgard pensativamente.
— Isso não sei ainda. Mas ele deve ter uma grande fazenda… Ah, como fico
contente pensando nisso! Imaginem: levantar-me às cinco da manhã, administrar
a casa… — Puxou o cobertor para cima e pôs-se a fitar o teto com o olhar
sonhador.
— Com a sua imaginação você vê quinhentas vacas — disse Gerda,
observando a amiga através do espelho.
Tony não estava pronta ainda, mas, mesmo assim, deixou-se cair sobre o
travesseiro. Cruzou as mãos embaixo da nuca e olhou, por sua vez, o teto com
olhos meditativos.
— Vou me casar com um comerciante, naturalmente — disse ela. — Ele deve
ter muito dinheiro para que a gente possa montar uma casa elegante. É o que
devo à minha família e à firma — acrescentou com convicção. — Sim, vocês
vão ver, é isso que vou fazer.
Gerda terminara o seu penteado de noite. Escovava os dentes brancos,
servindo-se do espelho de marfim.
— Eu, provavelmente, não me casarei — disse ela com certo esforço, porque o
pó dentifrício lhe entravava a língua. — Não vejo motivo para isso. Não tenho
vontade nenhuma. Vou voltar a Amsterdam para tocar duetos com papai, e mais
tarde vou viver com a minha irmã casada…
— Que pena! — gritou Tony vivamente. — Mas que pena, Gerda! Você devia
casar-se aqui e ficar sempre aqui… Escute, você poderia, por exemplo, casar-se
com um dos meus irmãos…
— Aquele que tem o nariz grande? — perguntou Gerda, bocejando com um
suspiro leve e indolente, enquanto cobria a boca com o espelho.
— Ou o outro, é indiferente… Santo Deus, que casa bonita vocês poderiam
montar! O Jakobs forneceria os móveis, o Jakobs que tem a casa de móveis na
Fischstrasse; ele tem um gosto distinto. E eu visitaria vocês todos os dias…
Mas nesse momento ouviu-se a voz de Mademoiselle Popinet.
— Ah! voyons, Mesdames! Às camas, s’il vous plaît! Hoje à noite não se
casarão mais!
Mas nos domingos e nas férias Tony voltava à Mengstrasse ou à casa dos avós.
Que sorte fazer bom tempo no domingo de Páscoa, porque assim se podia ir
buscar coelhos e ovos no imenso parque dos Kröger! Que veraneio bom aquele,
na praia, quando a gente se hospedava no Grande Hotel, comendo à table d’hôte,
tomando banhos e dando passeios num burrinho! Em alguns anos, quando o
cônsul realizava bons negócios, faziam viagens de maior extensão. Mas, antes de
tudo, que festa de Natal, com três distribuições de presentes nas casas dos pais,
dos avós e de Sesemi, onde, então, se bebia “bispo” até arrebentar… E, no
entanto, a noite de Natal em casa foi a mais linda, pois o cônsul fazia questão de
que a festa da natividade de Nosso Senhor fosse celebrada com solenidade,
brilho e alegria. A família estava festivamente reunida na sala das Paisagens; no
alpendre acotovelavam-se a criadagem e alguns pobres velhos, cujas mãos
azuladas de frio o cônsul apertava. De fora surgia então um canto a quatro vozes,
executado pelos meninos do coro da igreja de Santa Maria. Todos tinham o
coração palpitante de emoção. Depois, quando já penetrava pela fresta da alta
porta branca o perfume do pinheiro, recitava a consulesa lentamente o capítulo
da história do Natal da velha Bíblia da família, e enquanto a melodia que vinha
de fora se perdia no ar entoavam “Noite feliz…”, passando numa procissão
solene para a sala de jantar, a vasta sala com as estátuas brancas na tapeçaria. Ali
se erguia até o teto a árvore enfeitada com lírios brancos, cintilante,
resplandecente e exalando um suave aroma. A mesa com os presentes ocupava a
sala em toda a sua extensão, das janelas até a porta. E lá fora, na rua coberta de
neve gelada, tocavam os realejos dos velhos italianos, e na praça ressoava o
bulício da feira de Natal. Com exceção da pequena Klara, as crianças
participavam da ceia realizada no alpendre, onde se serviam carpas e perus
recheados em enormes quantidades…
Nesses anos, Tony Buddenbrook visitara duas fazendas mecklemburguesas.
Passou algumas semanas do verão em companhia da sua amiga Armgard na
propriedade do sr. Von Schilling, situada em frente de Travemünde, do outro
lado da baía. E fez outra viagem com a prima Thilda ao lugar onde o sr.
Bernhard Buddenbrook trabalhava como administrador. Essa fazenda chamava-
se “Desgraça” e não rendia nenhum tostão, mas servia de qualquer jeito para
veraneio.
Assim passavam os anos, e foi, afinal, uma juventude feliz a de Tony.
TERCEIRA PARTE
1.
Numa tarde de junho, pouco depois das cinco horas, a família estava sentada no
jardim, diante do portão da Fortaleza, onde acabava de tomar café. Os móveis do
pavilhão, trabalhados em madeira nodosa e simplesmente falquejados, tinham
sido tirados para fora. Pois o ar estava abafado e quente ali dentro, na sala caiada
de branco, com o alto espelho de parede em cuja moldura se viam desenhos de
pássaros em voo, e com as portas de dois batentes no fundo, portas envernizadas
que, em realidade, não eram verdadeiras, apenas possuíam trincos simulados.
O cônsul, sua esposa, Tony, Tom e Klotilde acomodaram-se num semicírculo
em torno da mesa redonda onde cintilava a louça já servida. Christian estava um
pouco afastado, estudando a segunda Catilinária de Cícero. Da sua expressão
transparecia um grande desgosto. O cônsul lia o Observador, fumando o seu
charuto. A consulesa abandonou o bordado de seda; sorrindo, olhava a pequena
Klara, que, com Ida, procurava violetas no gramado. Tony, com a cabeça apoiada
nas mãos, estava absorta na leitura dos Irmãos de Serapion, de E.T.A.
Hoffmann. Tom, suavemente, fazia-lhe cócegas na nuca com um cálamo, mas
Tony, por prudência, fingia ignorá-lo. Klothilde, com a sua aparência de
solteirona magrinha, num vestido de algodão pintado de flores, estava perto da
mesa. Lia uma novela que se chamava Cega, surda, muda e todavia feliz, e de
vez em quando juntava migalhas dos biscoitos que encontrava na toalha,
formando uma pilha que apanhava com as pontas dos dedos e devorava com
circunspecção.
O céu, onde boiavam imóveis algumas nuvens brancas, lentamente
empalidecia. O jardinzinho urbano, com os atalhos e canteiros simétricos,
desenhava-se ao sol da tarde, limpo e colorido. Às vezes pairava no ar o perfume
dos resedás que orlavam os canteiros.
— Olhe, Tom — disse o cônsul bem-humorado, retirando o charuto da boca
—, aquele negócio de centeio com Van Henkdom & Cia. parece que vai dar
certo.
— Quanto é que vão pagar? — perguntou Thomas com interesse, deixando de
incomodar Tony.
— Sessenta táleres pelos mil quilos… Nada mau, não é?
— Formidável! — Tom sabia que era um negócio excelente.
— Tony, a sua posição não está comme il faut — observou a mãe, ao que Tony,
sem levantar os olhos, tirou um cotovelo da mesa.
— Não faz mal — disse Tom. — Ela pode sentar-se como quiser, mas sempre
será Tony Buddenbrook. Thilda e ela são indiscutivelmente as belezas da
família.
Klothilde ficou pasmada.
— Cé… us, To… om! — disse ela, e era incrível como sabia arrastar essas
curtas sílabas. Tony suportou a ironia sem responder, pois Tom era superior a
ela; não havia remédio. Ele com certeza acharia uma réplica, para ouvir risadas
de aplauso. Assim, Tony limitou-se a dilatar um pouquinho as narinas,
encolhendo os ombros. Mas, quando a consulesa começou a falar do futuro baile
na casa do cônsul Huneus, deixando escapar alguma coisa sobre novos sapatos
de verniz, Tony, vivamente interessada, tirou o outro cotovelo da mesa.
— Vocês falam e falam — queixou-se Christian —, e esta coisa é tão
horrivelmente difícil! Eu também queria ser comerciante!…
— Ora essa, você quer é outra coisa todos os dias — disse Tom.
Nesse instante, Anton atravessou o pátio, trazendo numa bandeja um cartão de
visita. Acompanharam-no com olhos curiosos.
— Grünlich, agente — leu o cônsul. — Vem de Hamburgo. Um homem
agradável, bem recomendado, filho de um pastor. Tenho negócios com ele. Há
uma coisa que… Anton, vá dizer a esse senhor — com a sua licença, Bethsy? —
que ele se dê o incômodo de passar para cá.
Aproximou-se através do jardim, a passos curtos, um homem de estatura
mediana, aparentando trinta e dois anos. Andava espichando a cabeça para a
frente e segurando na mesma mão o chapéu e a bengala. Vestia casaco com abas
compridas de fazenda de lã verdoenga. Sua fisionomia, abaixo dos escassos
cabelos loiro-claros, era rosada e sorridente. Ao lado do nariz havia uma verruga
bizarra. O homem tinha o queixo e o lábio superior rapados e usava, à moda
inglesa, longas suíças amarelecidas.
Já de longe fazia gestos obsequiosos com o grande chapéu cinzento-claro.
Quando se aproximou da família, estacou, depois de um último passo muito
comprido, e fez uma reverência diante de todos os presentes, descrevendo um
semicírculo com o tronco.
— Eu incomodo, estou irrompendo num ambiente familiar — disse ele em voz
branda e com reserva distinta. — Têm bons livros nas mãos, estão palestrando…
Tenho de pedir desculpas!
— Seja bem-vindo, meu caro sr. Grünlich! — disse o cônsul. Este e os filhos
levantaram-se e apertaram a mão do estranho. — Folgo muito em também poder
recebê-lo fora do escritório, no círculo da minha família. Posso apresentar-lhe o
sr. Grünlich, Bethsy, um prezado amigo da firma… Minha filha Antonie…
Minha sobrinha Klothilde… O senhor já conhece Thomas… Este é Christian, o
meu segundo filho, que frequenta o ginásio.
O sr. Grünlich, a cada um dos nomes, respondeu com uma mesura.
— Repito — continuou ele — que não tenciono fazer o papel de intruso… Vim
por causa de negócios, e se o senhor cônsul me fizer o obséquio de dar um
passeio comigo através do jardim…
A consulesa replicou:
— O senhor nos dá um grande prazer contentando-se algum tempo com a
nossa companhia, antes de falar de negócios com o meu marido. Sente-se, por
favor!
— Mil agradecimentos — disse o sr. Grünlich, comovido. Assentou-se depois
na borda da cadeira trazida por Thomas, endireitou a posição, segurando nos
joelhos o chapéu e a bengala; e, cofiando as suíças com a mão, deixou ouvir um
pigarro, um leve “a-hem”, que parecia dizer: “Muito bem, isto foi o prefácio. E
agora?”.
A consulesa iniciou a parte principal da conversa.
— O senhor mora em Hamburgo? — perguntou, inclinando a cabeça para o
lado. O bordado descansava-lhe no colo.
— Moro, sim, senhora consulesa — respondeu o sr. Grünlich com outra
mesura. — Estou domiciliado em Hamburgo, porém, muitas vezes, encontro-me
em viagem; estou sempre muito ocupado; os meus negócios são
extraordinariamente animados… a-hem-hem, pois é, não posso negá-lo.
A consulesa alçou as sobrancelhas e moveu a boca, como que para dizer: “Ah,
sim?”.
— Atividade incansável é para mim uma condição básica da vida —
acrescentou o sr. Grünlich, virando-se para o cônsul. Pigarregou novamente
quando se deu conta do olhar com que a srta. Antonie o fitava, aquele olhar frio
e examinador que as meninas empregam para analisar moços estranhos, e que
parece pronto a transformar-se imediatamente em desdém.
— Temos parentes em Hamburgo — observou Tony, só para dizer alguma
coisa.
— Os Duchamps — explicou o cônsul —, a família da minha saudosa mãe.
— Ah, estou perfeitamente informado — apressou-se o sr. Grünlich a
responder. — Tenho a honra de pertencer ao grupo de conhecidos dessa
excelentíssima família. Todos eles são pessoas magníficas, homens de coração e
de espírito, a-hem-hem… Com efeito, se houvesse em todas as famílias
mentalidade igual à dessa, o mundo andaria melhor. Ali se encontram crença em
Deus, caridade, religiosidade íntima, em poucas palavras, verdadeiro espírito
cristão, que é o meu ideal. E essa família, senhora consulesa, sabe conciliar tudo
isso com uma nobre mundanidade, uma distinção e uma elegância brilhantes,
qualidades que reputo encantadoras.
Tony pensou: “Donde conhece ele os meus pais? Diz exatamente o que eles
gostam de ouvir…”. Mas o cônsul aplaudiu:
— Esta combinação fica muito bem a um homem.
E a consulesa não pôde deixar de estender, com suave tinir do bracelete, a mão
ao estranho, virando cordialmente a palma para cima.
— O senhor fala como se lesse os meus pensamentos mais profundos.
A isso o sr. Grünlich fez uma reverência. Endireitando-se e cofiando as suíças,
pigarreou como que para dizer: “Pois bem, continuemos!”.
A consulesa falou sobre os dias de maio de 1842, tão terríveis para a cidade
natal do sr. Grünlich…
— Com efeito — observou o sr. Grünlich —, que grave desgraça, que aflição
lastimável, aquele incêndio! Um prejuízo de cento e trinta e cinco milhões, sim,
isso foi calculado com muita precisão. De resto, devo, da minha parte, muita
gratidão à Providência… pois pessoalmente não sofri nada. O fogo devastou
sobretudo as paróquias de São Pedro e de São Nicolau… Mas que jardim
delicioso — interrompeu a si mesmo, servindo-se, agradecido, de um dos
charutos do cônsul. — É excepcionalmente grande para um jardim de cidade. E
que abundância multicor de flores!… Santo Deus, confesso o meu fraco pelas
flores e pela natureza em geral! Aquelas dormideiras ali adornam de um modo
singular…
O sr. Grünlich elogiou o estilo distinto da casa; elogiou, num encômio geral,
toda a cidade; elogiou, também, o charuto do cônsul. Para cada um preparou
uma frase amável.
— Será que posso ousar perguntar o que está lendo, srta. Antonie? — começou
com um sorriso.
Por um motivo qualquer, Tony, de repente, cerrou as sobrancelhas. Respondeu
sem encarar o sr. Grünlich:
— Os Irmãos de Serapion, de Hoffmann.
— Com efeito, esse escritor produziu obras magníficas — observou Grünlich.
— Mas, desculpem-me, esqueci o nome do seu segundo filho, senhora
consulesa.
— Christian.
— Bonito nome! Eu gosto, permitam-me dizê-lo — o sr. Grünlich dirigiu-se
novamente ao dono da casa —, eu gosto de nomes que demonstram por si que o
seu portador é cristão. Na sua família, ao que saiba, transmite-se o nome de
Johann… quem não se lembraria com isso do discípulo predileto do Senhor?…
Eu, por exemplo, com a sua amável licença — continuou com eloquência —, eu
me chamo Bendix, como a maioria dos meus antepassados… e esse nome não é
senão uma contração dialetal de Benedito. E que lê o sr. Christian? Ah, Cícero!
Uma leitura difícil, as obras desse grande orador romano. Quousque tandem,
Catilina… a-hem-hem, pois é, ainda não esqueci de todo o meu latim.
O cônsul disse:
— Neste ponto, eu não estava de acordo com o meu saudoso pai. Tive sempre
muitas objeções contra esse incessante abarrotamento dos jovens cérebros com
as línguas grega e latina. Existem tantas coisas sérias e importantes que são
indispensáveis no preparo para a vida prática…
— Eu estava para dizer o mesmo, senhor cônsul — respondeu o sr. Grünlich,
apressadamente —, só que não cheguei a expressar esta minha opinião: trata-se
de uma leitura difícil, e, como esqueci de acrescentar, nem sempre
irrepreensível. Abstraindo do resto, lembro-me de alguns trechos destes
discursos, literalmente indecentes.
Fez-se uma pausa. Tony pensou: “Agora é a minha vez”, pois o olhar do sr.
Grünlich, subitamente, endireitando-se com um pequeno pulo na cadeira, fez um
gesto brusco, exagerado e, contudo, elegante, para o lado da consulesa, e
cochichou exaltadamente:
— Por favor, senhora consulesa, olhe só!… Por amor de Deus, senhorita —
interrompeu-se em voz alta, como se Tony devesse ouvir apenas estas palavras
—, suplico-lhe: fique ainda um momento nessa mesma posição… Observe —
continuou, cochichando de novo — como o sol ilumina o cabelo da senhorita sua
filha!… Nunca vi cabelo mais lindo… — disse ele. O entusiasmo tornou-o sério
de repente, e pronunciou essa frase ao acaso como se falasse a Deus ou ao seu
coração.
A consulesa sorriu satisfeita, e o cônsul observou:
— Não encha de ilusões a cabeça da garota!
Tony cerrou novamente as sobrancelhas sem dizer nada. Alguns minutos após,
o sr. Grünlich levantou-se.
— Mas não posso importunar por mais tempo, meu Deus, não posso, senhora
consulesa; não serei mais importuno. Vim por causa de negócios… mas quem
podia resistir… Agora chama-me o dever. Senhor cônsul, posso rogar-lhe o
obséquio…
— Acho que não preciso afirmar-lhe — disse a consulesa — quanto folgaria se
o senhor, durante a sua estada na cidade, se contentasse com a hospedagem da
nossa casa…
O sr. Grünlich, durante um momento, pareceu emudecido de gratidão.
— Fico-lhe grato de toda a minha alma, senhora consulesa — disse com
visível emoção. — Mas não devo abusar da sua amabilidade. Ocupo alguns
aposentos no hotel Cidade de Hamburgo…
“Alguns aposentos”, pensou a consulesa, e era justamente nisso que ela devia
pensar segundo as intenções do sr. Grünlich.
— De qualquer modo — concluiu ela cordialmente, estendendo-lhe, mais uma
vez, a mão —, faço votos para que esta não seja a última vez que nos vemos.
O sr. Grünlich beijou a mão da consulesa e esperou um instante para que
Antonie também lhe desse a sua, o que, porém, não sucedeu. Descreveu um
semicírculo com o tronco; recuou um passo, fez outra mesura e, atirando a
cabeça para trás, pôs com um gesto largo o chapéu cinzento. Depois foi-se
embora, acompanhado pelo cônsul…
— Um homem agradável! — repetiu este, reunindo-se novamente à família e
acomodando-se na cadeira.
— Eu o acho uma besta — tomou Tony a liberdade de observar, e isso com
certa ênfase.
— Tony! Meu Deus! Como pode dizer isso! — gritou a consulesa meio
irritada. — Um moço tão cristão!
— Um homem tão bem-educado e tão sociável! — completou o cônsul. —
Você não sabe o que diz…
Acontecia, de vez em quando, que os pais, por cortesia, trocavam assim o
ponto de vista. Tinham, dessa maneira, mais certeza da sua unidade.
Christian, enrugando o nariz grande, disse:
— Como ele sempre fala com importância!… “Estão palestrando…” A gente
não palestrava. E “as dormideiras adornam de um modo singular”! Às vezes, ele
finge falar consigo mesmo em voz alta: “Importuno… tenho de pedir
desculpas!… Nunca vi cabelo mais lindo…” — e Christian imitou o sr. Grünlich
com tanta perfeição que até o cônsul riu.
— Pois sim, ele se faz muito importante! — começou Tony novamente. — O
tempo todo só falou de si mesmo! Os negócios dele estão animados, ele gosta da
natureza, ele prefere tal e tal nome, ele se chama Bendix… Que nos importa
isso, digam-me?… Ele diz tudo isso só para impressionar! — gritou subitamente
com verdadeira raiva. — À senhora, mamãe, e ao senhor, papai, disse
unicamente o que gostam de ouvir, só para insinuar-se!
— Mas isso não é um defeito, Tony — disse o cônsul severamente. — Em
companhia de estranhos, cada um gosta de mostrar suas qualidades. Nós todos
nos esforçamos por falar com prudência e por agradar… Claro…
— Eu acho que ele é um homem bom — disse Klothilde branda e
arrastadamente, apesar de ser a única pessoa da qual o sr. Grünlich não se
ocupara de todo. Thomas absteve-se de qualquer juízo.
— Basta — concluiu o cônsul. — Ele é um homem cristão, valoroso, ativo e
muito culto, e você, Tony, uma moça de dezoito, quase dezenove anos, que ele
tratou com tanta cortesia galanteadora, você devia restringir essa mania de
criticar. Nós todos somos homens fracos, e você, desculpe, é, em verdade, a
última a ter o direito de atirar pedras… Tom, vamos trabalhar!
Tony murmurou consigo: “Suíças amareladas!”, franzindo as sobrancelhas
como já fizera muitas vezes.
2.
Tony, de volta de um passeio, encontrou, alguns dias mais tarde, o sr. Grünlich
na esquina da Mengstrasse com a Breite Strasse.
— Como fiquei sinceramente aflito, senhorita, por não tê-la achado em casa —
disse ele. — Tomei a liberdade de apresentar os meus cumprimentos à senhora
sua mãe, e lastimei que a senhorita não estivesse presente… Mas como estou
encantado por encontrá-la agora!
A srta. Buddenbrook estacou quando o sr. Grünlich começou a falar. Mas os
olhos, semicerrados, tornaram-se de repente escuros, e o seu olhar não subia
senão até o peito do sr. Grünlich. A boca mostrava aquele sorriso irônico e
totalmente desalmado que as moças usam para julgar e rejeitar um homem… Os
seus lábios movimentavam-se — que resposta daria? Ah! devia ser uma palavra
que, de uma vez por todas, repelissse, aniquilasse esse Bendix Grünlich… Mas
tinha de ser, também, hábil, espirituosa, demonstrativa, uma frase que, ao mesmo
tempo, o ferisse profundamente e lhe inspirasse respeito…
— Este prazer não é mútuo! — disse ela, fixando sempre o olhar no peito do
sr. Grünlich. Depois de ter disparado essa seta astutamente envenenada, deixou-o
onde estava e, atirando a cabeça para trás, foi para casa, corada de orgulho por
causa da sua presença de espírito e do seu sarcasmo. Ali soube que o sr. Grünlich
fora convidado para, no próximo domingo, participar dum assado de vitela…
E ele veio. Veio numa sobrecasaca elegante, se bem que um pouco fora de
moda, campanulada, com muitas dobras, e que lhe dava uma aparência séria e
respeitável. De resto, continuava rosado e sorridente, com o escasso cabelo
diligentemente penteado e as suíças frisadas e cheirosas. Comeu o ragu de
mariscos, a sopa Julienne, os linguados fritos, a vitela assada com couve-flor e
purê de batatas, o pudim de marasquino e o pão preto com queijo roquefort,
inventando para cada prato novos louvores que proferia com delicadeza.
Levantou, por exemplo, a colherinha, fitando uma das estátuas da tapeçaria, e
disse a si mesmo em voz alta: “Deus me perdoe, não me posso conter; já
consumi um pedaço grande, mas esse pudim é tão maravilhoso; devo pedir mais
um pedacinho à nossa bondosa anfitriã!”. E com isso piscou jovialmente um
olho à consulesa. Falou com o cônsul sobre os negócios e a política, emitindo
opiniões sólidas e valiosas; conversou com a consulesa acerca de teatro, reuniões
e vestidos; encontrou palavras amáveis para Tom, Christian, a pobre Klothilde, e
mesmo para a pequena Klara e para Ida… Tony permanecia taciturna, e ele, da
sua parte, não arriscava aproximar-se dela. Apenas, às vezes, com a cabeça
inclinada para o lado, lançava-lhe um olhar aflito e ao mesmo tempo
encorajador.
Quando o sr. Grünlich se despediu, nessa noite, consolidara-se a impressão que
a sua primeira visita causara. “Um homem perfeitamente educado!”, disse a
consulesa. “Um moço cristão e muito respeitável!”, disse o cônsul. Christian
sabia agora imitar ainda melhor os gestos e a fala de Grünlich, e Tony deu o boa-
noite de rosto sombrio, pois suspeitava vagamente que não veria pela última vez
esse senhor que conquistara com tão extraordinária rapidez os corações de seus
pais.
De fato, quando voltava, à tarde, de uma visita ou de uma festa de meninas,
encontrava o sr. Grünlich na sala das Paisagens, lendo para a consulesa o
Waverley, de Walter Scott, com uma pronúncia modelar, pois, explicava ele, as
viagens que fizera a serviço dos seus negócios animados tinham-no conduzido
também à Inglaterra. Tony acomodava-se então com outro livro em lugar um
pouco afastado, e logo o sr. Grünlich perguntava na sua voz branda: “Parece,
senhorita, que o livro que leio não lhe agrada?”. Ao que ela, atirando a cabeça
para trás, dava uma resposta mordaz e sarcástica, como por exemplo:
“Absolutamente!”.
Mas ele não se deixava perturbar. Começava a falar de seus pais,
prematuramente falecidos, narrando a vida do pai, que fora um pregador, um
pastor, um homem ao mesmo tempo sumamente cristão e altamente mundano…
E então, sem que Tony tivesse estado presente à sua visita de despedida, o sr.
Grünlich partiu para Hamburgo.
— Ida — disse ela à sra. Jungmann, que lhe fazia às vezes de confidente —,
Ida, o homem foi-se embora!
Mas Ida Jungmann respondeu:
— Você vai ver, filhinha…
Oito dias mais tarde sucedeu aquela cena na copa… Tony, descendo às nove
horas, admirava-se de encontrar o seu pai ainda na mesa de café, em companhia
da consulesa. Depois de ter recebido um beijo na fronte, sentou-se no seu lugar,
fresquinha, esfomeada e com olhos de sono. Tomou açúcar e manteiga e serviu-
se de queijo verde.
— Que bom, papai, encontrá-lo ainda em casa de manhã! — disse ela,
apanhando o ovo quente com o guardanapo e quebrando-o com a colherinha.
— Esperei hoje a nossa dorminhoca — disse o cônsul. Fumava o seu charuto e
dava com o jornal dobrado pancadinhas rítmicas na mesa. A consulesa, por sua
vez, terminava lentamente e com gestos graciosos a primeira refeição,
recostando-se depois no sofá.
— Thilda já aplica a sua atividade na cozinha — disse o cônsul
acentuadamente — e eu, também, já estaria trabalhando, se nós, a sua mãe e eu,
não tivéssemos de falar com a nossa filhinha de um assunto importante.
Tony, a boca cheia de pão, olhou a fisionomia do pai e depois a da mãe numa
expressão misturada de curiosidade e de espanto.
— Tome primeiro o seu café, minha filha — disse a consulesa, e quando Tony,
largando, apesar disso, a faca, gritou:
— Mas diga logo de que se trata, papai, por favor! — o cônsul, sem deixar de
brincar com o jornal, repetiu:
— Tome antes o seu café!
Enquanto Tony, calada e sem apetite, bebia o café e comia o ovo e o sanduíche
de queijo, começou a imaginar do que se tratava. A frescura matinal
desaparecera-lhe do rosto. Empalidecera um pouquinho e, rejeitando o mel, disse
logo, em voz baixa, que estava pronta…
— Minha querida filha — disse o cônsul depois de um momento de silêncio
—, a questão sobre que temos de falar surge desta carta. — E, em vez de bater
agora com o jornal na mesa, dava pancadinhas com um grande envelope
azulado. — Em breves palavras: o sr. Bendix Grünlich, que nós todos
conhecemos como homem valoroso e amável, escreve-me que, durante a sua
estada nesta cidade, afeiçoou-se profundamente pela nossa filha, e pede,
formalmente, a sua mão. E o que pensa a nossa filha a esse respeito?
Tony estava recostada na cadeira, com a cabeça caída, e rodava na mão direita
a argola de prata do guardanapo. Mas subitamente abriu os olhos, olhos que se
tornaram completamente escuros e se encheram de lágrimas. E com voz inquieta
exclamou:
— Que quer esse homem de mim?… Que lhe fiz eu?… — E rebentou em
choro.
O cônsul lançou um olhar à esposa e pôs-se a fitar, um tanto confuso, a sua
xícara vazia.
— Minha cara Tony — disse a consulesa com meiguice —, para que este
échauffement? Você pode ter toda a certeza — não é? — de que os seus pais só
têm em vista o que é bom para você e de que não podem aconselhá-la a
desdenhar essa posição que se ofereceu a você. Olhe, suponho que não tem ainda
sentimentos decididos acerca do sr. Grünlich, mas isto virá, garanto, isto virá
com o tempo… Uma menininha como você nunca sabe com toda a clareza o que
quer realmente… Na cabecinha há tanta confusão quanto no coração… Devemos
dar tempo ao coração e abrir a cabeça aos conselhos de pessoas experimentadas
que, sistematicamente, cuidam da nossa felicidade…
— Mas não o conheço nem um pouquinho… — proferiu Tony com desespero,
apertando contra os olhos o pequeno guardanapo de cambraia, manchado de ovo.
— Sei somente que tem suíças amareladas e faz negócios animados… — Seu
lábio superior, tremendo pelo choro, causava uma impressão indescritivelmente
comovedora.
O cônsul, com um movimento de repentina ternura, aproximou dela a cadeira.
Acariciou-lhe o cabelo com um sorriso.
— Minha pequena Tony — disse —, que pode você saber dele? Você é uma
criança, e olhe, não saberia mais a respeito dele se, em lugar de quatro semanas,
ele tivesse passado conosco umas cinquenta e duas… Você é uma menininha que
ainda não tem olhos para ver o mundo, e que deve ter confiança nos olhos de
outras pessoas que pensam somente no seu bem…
— Não compreendo isto… não compreendo isto… — soluçou Tony fora de si,
estreitando como uma gatinha a cabeça na mão afagadora. — Ele vem para cá…
diz coisas agradáveis a todo mundo… depois parte outra vez… e escreve que
quer… Não compreendo isto… Com que direito… Que lhe fiz eu?…
O cônsul sorriu novamente:
— Você já disse isso uma vez, Tony, e essa frase demonstra perfeitamente o
seu espírito infantil. Minha filhinha não deve pensar que eu queira persegui-la e
vexá-la… Todas essas coisas podem ser ponderadas tranquilamente, e devem sê-
lo, pois se trata de um assunto sério. É isso que responderei provisoriamente ao
sr. Grünlich, e assim nem rejeitarei nem aceitarei a sua solicitação… Há nisso
muita coisa para ser meditada… Pois bem… Está vendo? Estamos de acordo.
Agora papai vai trabalhar… Adeusinho, Bethsy…
— Até logo, Jean, meu bem…
A consulesa ficou sozinha com a filha.
— De qualquer jeito você devia tomar um pouco de mel, Tony — disse ela. —
A gente precisa comer bastante…
As lágrimas de Tony esgotavam-se pouco a pouco. Tinha a cabeça quente e
cheia de ideias… Céus! Que coisa! Soubera que um dia se tornaria esposa de um
comerciante, contratando um matrimônio bom e vantajoso, como correspondia à
dignidade da firma e da família… Mas agora, de repente e pela primeira vez, lhe
sucedia que alguém desejava verdadeira e seriamente casar-se com ela! Que
atitude devia tomar nesse instante? Para ela, Tony Buddenbrook, transformavam-
se numa realidade inesperada todas aquelas expressões graves e temíveis que até
então só encontrara nas suas leituras: o “consentimento”, a “sua mão”… “por
toda a vida”… Grande Deus, como as coisas mudaram de feição tão
bruscamente!
— E a senhora, mamãe? — disse ela. — A senhora também me aconselha a dar
o meu… consentimento? — Hesitou um segundo antes de pronunciar a palavra
“consentimento”, porque lhe parecia demasiado sonora e insólita. Mas
finalmente proferiu-a pela primeira vez na vida e com dignidade. Começava a
envergonhar-se um pouco da sua falta de sangue-frio. O casamento com o sr.
Grünlich não lhe parecia menos absurdo do que dez minutos antes, mas a
importância da sua posição vinha enchê-la de certo prazer.
A consulesa disse:
— Aconselhar, minha filha? Será que papai a aconselhou? Ele não a
desaconselhou, foi só isso. E seria imperdoável, da parte dele como da minha, se
o fizéssemos. A união que se oferece a você, minha querida Tony, é exatamente
o que se chama um bom partido… Você encontraria em Hamburgo uma posição
excelente e viveria uma vida confortável…
Tony permanecia imóvel. Surgiu, de repente, diante de seus olhos alguma coisa
de cortinas de seda como aquelas no salão dos avós… Será que a sra. Grünlich
tomaria chocolate de manhã? Não convinha perguntar.
— Como o seu pai já disse, você tem tempo para pensar — continuou a
consulesa. — Mas devemos preveni-la de que uma ocasião como esta de
encontrar a felicidade não aparece todos os dias e de que casamento é justamente
o que lhe prescrevem o dever e a determinação. Sim, minha filha, sobre isto
também tenho de chamar-lhe a atenção: o caminho que hoje se abriu para você é
o caminho prescrito pelo seu destino. Você bem sabe disso…
— Sei — disse Tony, pensativa. — Claro. — Tinha plena consciência das suas
obrigações diante da família e da firma, e orgulhava-se dessas obrigações. Ela,
Antonie Buddenbrook, que o carregador Matthiesen cumprimentava, tirando
respeitosamente a cartola surrada, ela, que, na qualidade de filha do cônsul
Buddenbrook, andava pela cidade como uma pequena rainha, estava
compenetrada da história de sua família. Já aquele mestre-alfaiate de Rostock
“vivera em ótimas condições”, e desde então as coisas tinham evoluído de modo
cada vez mais brilhante. Era o seu destino aumentar, da sua parte, o brilho da
família e da firma Johann Buddenbrook, contratando um casamento rico e
distinto… Tom, por sua vez, trabalhava no escritório para os mesmos fins…
Sim, essa espécie de casamento era sem dúvida o que se podia chamar de
acertado, mas justamente esse sr. Grünlich… Via-o diante de si, com as suíças
amareladas, com o rosto rosado e sorridente, com a verruga ao lado do nariz; via
os seus passos curtos e cria sentir o contato da lã da sua roupa e ouvir a sua voz
suave…
— Eu sabia — disse a consulesa — que a minha filha era capaz de ouvir
ponderações tranquilas… será que ela já tomou uma resolução?
— Deus me livre! — gritou Tony com ênfase e indignação. — Que tolice essa
de casar-me com Grünlich! O tempo todo fiz troça dele em termos sarcásticos…
Realmente não compreendo que ainda goste de mim! Ele devia ter um pouco de
amor-próprio…
Começou a gotejar pingos de mel sobre uma fatia de pão.
3.
Prezadíssima Demoiselle Buddenbrook: Quantos dias já se passaram desde que o abaixo assinado não
tornou a ver o rosto da mais encantadora criatura? Estas linhas demasiado breves devem dizer-lhe que as
suas feições jamais esmaeceram no coração dele, e que durante essas semanas cheias de receios e
saudades, o autor destas linhas lembrou-se incessantemente daquela deliciosa tarde no salão da casa de
seus pais, onde a senhorita deixou escapar uma promessa. É verdade que se tratava apenas de meia
promessa, mas, ainda assim, quanto me fez feliz! Desde então decorreram longas semanas durante as
quais a senhorita se retirou do mundo para recolher-se e para conhecer-se a si mesma. Depois de tanto
tempo, espero que tenha terminado o período da minha provação. O abaixo assinado toma a liberdade de
enviar-lhe, prezadíssima Demoiselle, com toda a estima e consideração, a pequena aliança inclusa, que
servirá de penhor da ternura imperecível que ele lhe reserva. Com os mais devotos cumprimentos, beijo-
lhe carinhosamente as mãos e subscrevo-me, servidor delicadíssimo de V. Sa., Grünlich
Meu querido papai: Santo Deus, como fiquei furiosa. Recebi de Grünlich a carta e a aliança, que seguem
junto, de modo que estou com dor de cabeça de tanta excitação. Não sei fazer nada melhor do que
devolver ambas as coisas por seu intermédio. Grünlich não quer compreender-me, e essa coisa que ele
chama tão poeticamente uma “promessa” simplesmente não existe. Por isso, rogo-lhe insistentemente que
lhe explique, sem cerimônia, que não estou disposta, hoje mil vezes menos do que nunca, a dar-lhe o meu
consentimento e que ele finalmente me deixe tranquila, porque assim só se torna ridículo. Ao senhor, o
melhor pai do mundo, posso confessar que me comprometi, por outra parte, com alguém que me ama e
que eu amo mais do que sei dizer. Oh, papai! poderia encher muitas páginas sobre ele; falo do sr. Morten
Schwarzkopf, que quer formar-se em medicina, e que solicitará a minha mão logo que se tiver diplomado.
Eu sei que é uso na família casar-se com um comerciante, mas Morten pertence à outra metade da gente
respeitável, que são os sábios. Não é rico, coisa que tem importância para o senhor e para mamãe, mas
devo dizer-lhe, meu querido papai: apesar de ser moça, sei que a vida ensina a muita gente que nem
sempre a riqueza traz felicidade. Com mil beijos, sou a sua filha obediente Antonie
P.S. — Acho que o ouro da aliança é de poucos quilates; e além disso é muito fina.
Minha querida Tony: Acuso o recebimento da sua carta. Quanto ao seu conteúdo, comunico-lhe que,
cumprindo com o meu dever, não deixei de informar, na devida forma, o sr. Gr. sobre a sua opinião a
respeito dos fatos. E o resultado foi tal que me abalou profundamente. Você é moça já feita e encontra-se
numa situação tão séria, que não tenho vergonha de mencionar-lhe as consequências que um
procedimento leviano de sua parte pode causar. O sr. Gr. explodiu desesperado com a notícia que lhe dei,
gritando que a amava tanto, e que se sentia tão incapaz de aguentar a sua perda que estava decidido a
suicidar-se, caso você perseverasse na sua resolução. Não podendo considerar como sério aquilo que me
escreve acerca da sua outra inclinação, peço-lhe que contenha a ira causada pela remessa da aliança, e
que reconsidere tudo, outra vez, seriamente. Segundo a minha convicção cristã, querida filha, é dever de
um ente humano respeitar os sentimentos de outrem, e não sabemos se você não será responsável perante
o Supremo Juiz pelo fato de um homem, cujos sentimentos desprezou teimosa e friamente, ter atentado
contra a própria vida. Mas quero recordar-lhe uma coisa que, verbalmente, muitas vezes lhe dei a
entender, e regozijo-me por ter ocasião de repeti-la por escrito. Pois, apesar de a comunicação verbal ter
um efeito mais vivo e mais direto, a linguagem escrita tem a vantagem de poder ser escolhida e apurada
com vagar, de ser fixada de uma vez por todas e de poder ser lida, sempre de novo, produzindo, nessa
forma maduramente ponderada e calculada pelo autor, efeitos duradouros.
Nós, minha filha, não nascemos para aquilo que, com olhos imprevidentes, consideramos nossa
pequena felicidade pessoal, pois não somos indivíduos livres nem independentes, que vivem por si sós,
mas sim elos de uma corrente. Não se poderia imaginar a nossa existência, tal como ela é, sem a lição
daqueles que nos precederam. Foram eles que nos indicaram o rumo a seguir, da mesma forma por que
eles mesmos tiveram de obedecer por sua vez, rigorosamente, sem olhar à direita nem à esquerda, a uma
tradição venerável e experimentada. Parece-me que o seu caminho, há longas semanas, se estende diante
de você, clara e visivelmente traçado. Não poderia ser minha filha, nem a neta de seu saudoso avô, nem
sequer um membro digno da nossa família, se, obcecada pela teimosia e pela leviandade, tencionasse
realmente seguir o seu próprio rumo desregrado. Rogo-lhe, minha querida Antonie, que pondere bem
estas coisas no seu espírito.
A sua mãe, Thomas, Christian, Klara e Klothilde (que passou algumas semanas com o pai na fazenda
da Desgraça), assim como Ida, enviam-lhe de todo o coração os seus melhores votos. Ansiamos por
abraçá-la muito breve.
Com afeição incondicional de Seu pai
11.
— Estou completamente de acordo com você, meu prezado amigo. Esta questão
é importante e deve ser liquidada. Em breves palavras: o dote tradicional das
moças da nossa família é de setenta mil marcos.
O sr. Grünlich lançou ao seu futuro sogro um olhar rápido e investigador de
negociante.
— Com efeito… — disse, e esse “com efeito” era exatamente tão comprido
quanto a suíça esquerda de cor amarelada que cofiava circunspectamente com os
dedos… Chegou à extremidade dela quando terminara o “com efeito”… — Meu
caro pai — continuou ele —, o senhor conhece a profunda reverência que tenho
às tradições e aos princípios veneráveis! Porém… essa bela virtude não
significaria, no presente caso, certo exagero?… Uma casa comercial
engrandece… Uma família floresce… Numa palavra, as condições tornam-se
outras e melhores…
— Meu prezado amigo — disse o cônsul —, você tem à sua frente um
comerciante condescendente! Meu Deus… nem sequer me deixou terminar, pois,
caso contrário, já saberia que estou decidido e disposto a ir ao seu encontro
conforme as circunstâncias, acrescentando, sem cerimônia, uns dez mil marcos
aos setenta mil.
— Quer dizer: oitenta mil… — disse o sr. Grünlich, e então fez um gesto que
parecia dizer: “Não é demais; vá lá que seja!”.
Ficou tudo assentado da maneira mais amigável, e o cônsul, quando se
levantou, fez tilintar, de tão contente, o grande molho de chaves que tinha no
bolso. Pois eram somente os oitenta mil que alcançavam a “importância
tradicional do dote”…
Isso feito, o sr. Grünlich despediu-se, para voltar a Hamburgo. Tony sentia
pouco os efeitos da sua nova situação. Ninguém a impedia de dançar nos bailes
dos Möllendorpf, dos Langhals e dos Kistenmaker, ou na casa dos pais, de
patinar no campo da Fortaleza ou nos prados do Trave, recebendo as
homenagens da rapaziada… Em meados de outubro, teve ocasião de assistir à
reunião que se realizava em casa dos Möllendorpf por causa do contrato de
casamento do filho mais velho com Julinha Hagenström.
— Tom — disse ela —, eu não vou. Acho isso uma vergonha! — Mas foi
apesar de tudo, e divertiu-se deliciosamente.
De resto, adquirira com as penadas que acrescentara à história da família a
licença de fazer, em companhia da consulesa, ou sozinha, compras de grande
estilo em todas as lojas da cidade e de providenciar o seu enxoval — um enxoval
distinto. Durante muitos dias ficavam sentadas na copa, junto à janela, duas
costureiras, embainhando, bordando monogramas e devorando uma porção de
sanduíches de queijo…
— Mamãe, o Lentföhr já mandou a roupa branca?
— Não, minha filha, mas chegaram estas duas dúzias de guardanapos para chá.
— Muito bem… mas ele tinha prometido mandar tudo até hoje de tarde. Meu
Deus, os lenços devem ser embainhados.
— Ida, Mademoiselle Bitterlich pergunta quais as rendas para as fronhas.
— Estão no roupeiro do alpendre, à direita, Toninha.
— Line!…
— Você poderia muito bem ir buscá-las sozinha, minha querida.
— Credo, dizer que, para me casar, tenho eu mesma de subir as escadas!
— Já pensou na fazenda para o vestido de noiva, Tony?
— Moirée antique, mamãe!… Não vou à igreja sem moirée antique!
Assim decorreram outubro e novembro. Em dezembro apareceu o sr. Grünlich
para passar as vésperas do Natal no círculo da família Buddenbrook, não
recusando também o convite para a festa em casa dos velhos Kröger. Sua
conduta em face da noiva era inspirada por aquela delicadeza que se podia
esperar dele. Nada de solenidade desnecessária. Nada que pudesse impedir a sua
vida social. Nada de carícias grosseiras! Um beijo discreto, dado na fronte, em
presença dos pais, selara o contrato de casamento… Às vezes Tony estranhava
um pouquinho que a atual felicidade de Grünlich não parecesse corresponder
àquele desespero que manifestara por ocasião da recusa. Apenas sucedia que a
contemplava com a fisionomia satisfeita de um proprietário… É verdade que, de
vez em quando, encontrando-se por acaso a sós com ela, se sentia disposto para
brincadeiras e gracejos. Então era capaz de fazer uma tentativa para atraí-la aos
seus joelhos, aproximando as suíças do seu rosto, e de perguntar-lhe numa voz
trêmula de alegria: “Então é verdade que a conquistei? Será que a apanhei
finalmente?…”. Ao que Tony respondia: “Meu Deus, você perde a medida!”,
libertando-se habilmente dele.
Logo depois da festa de Natal, o sr. Grünlich voltou para Hamburgo, pois seus
“negócios animados” exigiam inexoravelmente a sua presença. E os
Buddenbrook achavam-se, tacitamente, de acordo com ele sobre o fato de que
Tony, antes do contrato de casamento, tivera tempo bastante para conhecê-lo.
O problema da habitação foi solucionado por meio de cartas. Tony, que se
regozijava extraordinariamente com a ideia de viver numa grande cidade,
manifestava o desejo de morar no centro de Hamburgo, onde se encontrava,
também — na Spitalerstrasse —, o escritório do sr. Grünlich. Mas o noivo
conseguiu com a sua perseverança máscula a autorização para adquirir uma vila
nos arredores da cidade, em Eimsbüttel… um lugar romântico, afastado do
mundo, um ninho idílico e muito próprio para um jovem casal… procul negotiis,
não, senhor, não olvidara ainda todo o seu latim!
Assim passou dezembro, e em princípios do ano 46 realizou-se o casamento.
Houve uma suntuosa festa na véspera das bodas, a que esteve presente metade da
cidade. As amiguinhas de Tony — entre elas Armgard von Schilling, que viajara
para a cidade numa carruagem alta como uma torre — dançavam com os amigos
de Tom e Christian; entre eles Andreas Giesecke, filho do chefe dos bombeiros e
atualmente studiosus juris; e Stephan e Eduard Kistenmaker, da firma
Kistenmaker & Filhos. Dançavam na sala de jantar e no corredor, para esse fim
cobertos de talco… O cônsul Peter Döhlmann incumbiu-se de quebrar nos
azulejos do grande alpendre toda a louça de barro que encontrava, costume
tradicional nas vésperas de casamento.
A sra. Stuht da Glockengiesserstrasse teve outra oportunidade para frequentar a
mais alta sociedade, ajudando Ida e a costureira a vestir Tony no dia do
casamento. Disse que jamais vira uma noiva tão bonita. Apesar da sua gordura,
estava de joelhos, levantando os olhos cheios de admiração, para fixar os
raminhos de murta na moirée antique branca… Isso acontecia na copa. O sr.
Grünlich, numa casaca de abas compridas e num colete de seda, esperava diante
da porta. O rosto corado mostrava uma expressão séria e correta. Na verruga do
lado esquerdo do nariz via-se algum pó de arroz, e as suíças amareladas estavam
penteadas com todo o cuidado.
Em cima, no alpendre, onde o enlace devia realizar-se, estava reunida a família
— um número considerável de pessoas! Estavam ali os velhos Kröger, já um
pouco caducos, mas ainda assim figuras muito distintas. Compareceram o cônsul
Kröger e a sua esposa com os filhos Jürgen e Jakob, este último chegado de
Hamburgo, assim como a família Duchamps. Veio também Gotthold
Buddenbrook com a mulher — em solteira Stüwing — e as filhas Friederike,
Henriette e Pfiffi, que, infelizmente, jamais se casariam… Compareceu a linha
lateral de Mecklemburgo, representada pelo pai de Klothilde, o sr. Bernhard
Buddenbrook, que viera da fazenda da Desgraça e olhava com olhos arregalados
a casa sobremodo senhorial dos ricos parentes. Os tios de Frankfurt apenas
mandaram presentes, pois a viagem era complicada demais… No seu lugar
estavam presentes, como os únicos que não pertenciam à família, o dr. Grabow,
médico da casa, e Mademoiselle Sesemi Weichbrodt, a velha amiga, que tinha
por Tony uma afeição materna. Sesemi, num vestidinho preto, guarnecera a sua
touca de novas fitas verdes. “Seja feliz, minha boa menina!”, disse ela, quando
Tony apareceu no alpendre ao lado de Grünlich. E, espichando-se sobre as
pontas dos pés, deu-lhe na testa um beijo com um pequeno estalo… A família
estava satisfeita com a aparência da noiva: Tony tinha um aspecto bonito,
despreocupado e alegre, apesar de um tanto pálido pela curiosidade e pela ânsia
da viagem.
No alpendre, todo enfeitado de flores, erguia-se, à direita, um altar. O pastor
Kölling celebrou o ato e, com palavras vigorosas, exortou os noivos a serem
moderados. Tudo decorria segundo a ordem e o costume. Tony pronunciou um
“sim” ingênuo e bonachão, ao passo que o sr. Grünlich fez antes “a-hem-hem”
para preparar a garganta. Depois, comeram-se enormes quantidades de coisas
extraordinariamente boas…
Na sala de jantar, os convidados, com o pastor no meio, continuavam
devorando o almoço enquanto o cônsul e a esposa acompanhavam o jovem casal
até a saída da casa. Lá fora, o ar estava carregado de neve e cerração. A grande
carruagem de viagem, cheia de malas e valises, esperava diante do portão.
Tony, várias vezes, exprimiu a convicção de que, em breve, voltaria para visitar
os pais e que estes, por sua vez, não deveriam tardar com a sua visita a
Hamburgo. Depois subiu, confiantemente, na carruagem, deixando a consulesa
agasalhá-la cuidadosamente com o cobertor de peles quentes. O marido
acomodou-se também no seu lugar.
— Escute, Grünlich — disse o cônsul —, as novas rendas estão na pequena
valise, bem no fundo. Antes de chegar a Hamburgo, você as botará embaixo do
sobretudo, não é? Estes direitos alfandegários… acho que a gente deve evitá-los
o quanto possível. Adeusinho. Mais uma vez, adeus, minha querida Tony! Que
Deus a acompanhe!
— Será que vocês acharão boas acomodações em Arendsburg? — perguntou a
consulesa.
— Estão reservadas, mamãe, está tudo reservado! — respondeu o sr. Grünlich.
Anton, Line, Trina e Sofie despediram-se de “Madame Grünlich”…
Estavam por fechar a portinhola, quando Tony foi acometida de uma repentina
emoção. Não obstante as complicações que isto causava, desembaraçou-se outra
vez do cobertor e desceu desconsideradamente por cima dos joelhos de Grünlich,
que começou a resmungar. Abraçou o pai apaixonadamente.
— Adeus. Papai… Meu bom papai! — E depois cochichou bem baixinho: —
Está contente comigo?
O cônsul, sem falar, estreitou-a um instante nos braços. Depois, largando-a,
apertou-lhe as mãos numa ênfase comovida…
Com isso, tudo estava pronto. Fechou-se ruidosamente a portinhola; o cocheiro
deu um estalo com a língua; os cavalos puseram-se em marcha, tão rapidamente
que as vidraças vibraram, e a consulesa abanou com o lencinho de cambraia que
tremulava no vento até que o carro, descendo barulhentamente pela rua,
desapareceu no nevoeiro.
O cônsul ficara pensativo, ao lado da esposa, que, com um gesto gracioso, se
envolvia mais apertadamente na sua capa de peles.
— É assim que ela se vai, Bethsy.
— Sim, Jean, a primeira que vai embora… Você acha que será feliz com ele?
— Ah, Bethsy, ela está contente consigo mesma. Isso proporciona a mais
sólida felicidade que se possa alcançar na Terra.
Voltaram então aos seus convidados.
15.
30 de abril de 1846
Minha querida mamãe:
Mil agradecimentos pela sua carta, na qual me comunicou o contrato de casamento de Armgard von
Schilling com o sr. Von Maiboom de Pöppenrade. A própria Armgard me mandou também uma
participação (coisa muito elegante, com bordas douradas!) e juntou uma carta, em que fala do noivo em
termos encantados. Diz que é um homem belíssimo e de caráter distinto. Como ela deve estar feliz! Todos
estão casando: recebi outra participação de Eva Ewers, de Munique. Arranjou um gerente de cervejaria.
Mas agora tenho de perguntar-lhe uma coisa, minha querida mamãe: por que não se ouve ainda nada a
respeito de uma visita do casal Buddenbrook a esta cidade? Será que esperam um convite oficial de
Grünlich? Isso não valeria a pena, pois acho que ele nem pensa em tal coisa, e quando eu o lembro,
responde: “Claro, querida, mas o seu pai tem mais o que fazer”. Ou, acaso, acham que me incomodam?
Ah, não, de maneira alguma! Ou receiam causar-me nova nostalgia? Santo Deus, sou uma mulher
razoável; fiz as minhas experiências na vida e amadureci.
Acabo de tomar café em casa da sra. Käselau, que mora aqui perto. É gente simpática, e os nossos
vizinhos, à esquerda, que se chamam Gussmann (as casas ficam bastante afastadas uma da outra), são
pessoas agradáveis. Temos dois bons amigos, que também habitam a nossa zona: o dr. Klaassen (de quem
lhe falarei mais tarde) e o banqueiro Kesselmeyer, amigo íntimo de Grünlich. Não imagina quanto esse
velho senhor é engraçado! Tem suíças brancas, bem curtas, e os poucos cabelos grisalhos que lhe sobram
parecem penugem e tremulam à menor aragem. Faz com a cabeça movimentos tão curiosos como uma
ave e é bastante loquaz; por isso o chamam de “gralha”. Mas Grünlich proíbe-me de fazer isso, pois diz
que a gralha rouba, ao passo que o sr. Kesselmeyer é homem honesto. Ao andar, ele se inclina para a
frente, gesticulando com os braços. A penugem vai-lhe somente até a metade do crânio, e dali em diante a
nuca é totalmente vermelha e rugosa. É extremamente alegre! Às vezes me dá uma palmadinha na face,
dizendo: “Você é uma mulher boazinha; que sorte para Grünlich tê-la conseguido!”. Procura então um
pincenê (anda sempre com três no bolso, e os cordões compridos enredam-se constantemente no colete
branco!) e, metendo-o no nariz, que se encrespa totalmente, olha-me, de boca aberta, com um ar tão
divertido que lhe rio bem na cara. Mas não me leva a mal.
Grünlich anda muito ocupado. De manhã vai à cidade em nossa pequena charrete amarela, e muitas
vezes só volta bem tarde. De vez em quando fica sentado comigo, lendo o jornal.
Quando frequentamos alguma reunião, por exemplo em casa de Kesselmeyer ou do cônsul
Goudsticker no Alsterdamm ou do senador Bock na Rathausstrasse, temos de tomar uma carruagem de
aluguel. Várias vezes pedi a Grünlich que adquirisse uma carruagem, pois aqui, fora da cidade, a gente
precisa disso. Ele me fez também meia promessa, mas é estranho que não goste de frequentar a sociedade
em minha companhia, e fica visivelmente contrariado quando converso na cidade com outras pessoas.
Será ele ciumento?
Já lhe descrevi minuciosamente a nossa villa, que realmente é muito bonita, e alguns móveis
recentemente comprados embelezaram-na ainda mais. A senhora não teria nenhuma objeção a fazer à sala
que se encontra no sobrado: tudo guarnecido de seda marrom. A sala de jantar, que fica ao lado, tem
lindos painéis; as cadeiras custaram vinte e cinco marcos cada uma. Estou sentada no gabinete que nos
serve de sala de estar. Além disso, existe ainda uma peça para fumar e jogar. O salão, noutro lado do
corredor, que ocupa a outra metade do térreo, recebeu cortinas amarelas e ficou muito distinto. Em cima,
há quartos de dormir, de vestir e de banho, bem como as peças da criadagem. Para a carruagem amarela
temos um pequeno groom. Estou mais ou menos contente com as duas empregadas. Não sei se são
inteiramente de confiança, mas, graças a Deus, não preciso preocupar-me com ninharias! Em poucas
palavras: tudo está como convém ao nome de nossa família.
E agora vem uma coisa, minha querida mamãe, a mais importante, que reservei para o fim: há alguns
dias senti alguma coisa um pouco estranha — sabe? —, como se não estivesse de boa saúde, mas de
qualquer forma diferente. Um belo dia, expus os sintomas ao dr. Klaassen. Este é um homenzinho
pequeno com uma cabeça enorme, na qual põe um chapéu ainda maior de abas largas. Anda sempre com
uma bengala de bambu, de castão redondo, feito de um osso qualquer, e aperta essa bengala contra a
barba comprida que é quase verde, porque, durante muitos anos, a tingia de preto. Pois então, a senhora
deveria tê-lo visto! Não me deu nenhuma resposta. Mexeu nos óculos, piscando os olhinhos
avermelhados e acenando para mim com o nariz grosso como uma batata. E com isso riu-se às
escondidas, encarando-me de modo tão impertinente que eu não sabia o que fazer. Depois examinou-me e
disse que tudo estava muito prometedor, mas que eu devia beber alguma água mineral, porque talvez
estivesse um tanto anêmica. Oh, mamãe, conte a história com muito cuidado ao bom papai, para que a
anote no diário da família. Logo que me for possível, ouvirá mais alguma coisa a respeito!
Lembranças sinceras para papai, Christian, Klara, Thilda e Ida Jungmann. Escrevi, há pouco tempo, a
Thomas, para Amsterdam.
A sua filha obediente,
Antonie
Em 2 de agosto de 1846.
Meu querido Thomas:
Com muito prazer recebi as suas linhas sobre o tempo que passou em Amsterdam em companhia de
Christian. Devem ter sido uns dias alegres. Ainda não me chegaram notícias sobre a continuação da
viagem do seu irmão à Inglaterra, via Ostende, mas queira Deus que tudo tenha corrido normalmente.
Tomara que não seja ainda tarde para Christian, depois de ter abandonado a profissão científica, aprender
alguma coisa útil com o seu chefe, Mr. Richardson! Que a sua carreira comercial seja acompanhada pelo
sucesso e pela bênção de Deus! Mr. Richardson (Theadneedle Street) é, como você sabe, um bom
companheiro de negócios da minha firma. Folgo em ter colocado ambos os meus filhos em casas que
mantêm relações amigáveis comigo. Já agora você pode experimentar as vantagens que isso traz: sinto
grande satisfação pelo fato de o sr. Van der Kellen ter aumentado o seu salário, neste trimestre,
permitindo-lhe, além disso, fazer negócios por fora. Estou convencido de que você se mostrou e se
mostrará digno de tal generosidade, procedendo corretamente.
Com tudo isso, lastimo que a sua saúde não esteja perfeita. Aquilo que você me escreveu acerca do
nervosismo me lembra a minha própria mocidade, quando trabalhava em Antuérpia e me vi forçado a
fazer um tratamento em Ems. Se qualquer coisa semelhante for necessária na sua situação, meu filho,
disponho-me, naturalmente, a ajudá-lo ativa e espiritualmente, se bem que prefira evitar tais despesas
com nós outros, nestes tempos de inquietação política.
A sua mãe e eu, todavia, empreendemos, em meados de junho, uma viagem a Hamburgo para
visitarmos a sua irmã Tony. O seu marido não nos convidara, mas recebeu-nos com grande cordialidade,
dedicando os dias que passamos com eles tão exclusivamente à nossa companhia que chegou a
negligenciar os seus negócios e quase não me deixou tempo para fazer uma visita aos Duchamps, que
moram na cidade. Antonie encontrava-se no quinto mês de gravidez; o médico afirmou-me que tudo
correria de forma normal e satisfatória.
Queria ainda fazer menção a uma carta do sr. Van der Kellen pela qual soube, com muito prazer, que
gosta também de recebê-lo no círculo da sua família. Você chegou agora àquela idade, meu filho, em que
o homem começa a tirar os frutos da educação que os pais lhe proporcionaram. Que lhe sirva de conselho
o fato de que eu mesmo, na sua idade, tanto em Bergen quanto em Antuérpia, sempre me esforcei por ser
agradável e obsequiador às esposas dos meus patrões, procedimento esse que me foi sumamente
vantajoso. Além da honra e do prazer dessas relações amigáveis com a família do chefe, surge na patroa
uma intercessora proveitosa, caso ocorra a circunstância — indesejável, sim, mas possível — de um
descuido nos negócios ou algo que, de vez em quando, diminua a benevolência do chefe.
Quanto aos seus projetos comerciais que se referem ao futuro, meu filho, regozijo-me deles por causa
do vivo interesse que se exprime nisso, mas não posso inteiramente concordar com você. Você acha que a
venda dos produtos das cercanias da nossa cidade natal — trigo, colza, couros e peles, lã, óleo, tortas de
linhaça, ossos etc. — seja o negócio mais indicado e mais lucrativo nessa cidade. Por isso, além de
trabalhar como consignatário, você tenciona ocupar-se sobretudo com negócios deste ramo. Numa época
em que havia ainda muito pouca concorrência nessa especialidade de negócios — agora ela aumentou
grandemente — ventilei também essa ideia e fiz mesmo algumas experiências, conforme as ocasiões e o
tempo disponível. A minha viagem à Inglaterra tinha como finalidade principal a de ali procurar relações
para tais tentativas. Para esse fim subi até a Escócia, travando amizades úteis. Mas logo percebi o caráter
perigoso que tinham os negócios de exportação para esse país, deixando, por isso, de expandi-los no
futuro. Sempre me lembrava do lema que herdamos do nosso antepassado, o fundador da firma: “Meu
filho, dedique-se, de dia, com gosto aos negócios, mas faça-o de maneira que, de noite, possa dormir
tranquilamente!”.
Tenho a intenção de conservar esta divisa como sagrada até o fim da minha vida, apesar de que, às
vezes, se possa duvidar dela diante de pessoas que, sem tais princípios, parecem prosperar mais. Refiro-
me a Strunck & Hagenström, que progridem enormemente, ao passo que as nossas coisas andam com
demasiado vagar. Você sabe que a casa, desde a diminuição de capital causada pela morte do seu avô, não
mais se desenvolveu, e dirijo preces a Deus para que me deixe passar-lhe a firma pelo menos na sua
situação atual. No nosso procurador, o sr. Marcus, tenho felizmente um auxiliar versado e circunspecto.
Se ao menos a família da sua mãe quisesse administrar um pouco melhor o seu dinheiro!… A herança é
coisa muito importante para nós!
Ando fortemente sobrecarregado de trabalhos comerciais e de serviços públicos. Sou decano do
Grêmio dos Navegadores Noruegueses, e pouco a pouco fui sendo eleito representante classista no
Departamento Financeiro, na Junta Comercial, na Deputação de Revisões de Contas e no Pão-dos-Pobres
de Santana.
A sua mãe, Klara e Klothilde mandam-lhe um bom abraço. Além disso, vários senhores — os
senadores Möllendorpf e Oeverdieck, o cônsul Kistenmaker, o corretor Gosch, C. F. Köppen, bem como
do escritório o sr. Marcus e os capitães Kloot e Klötermann — enviam-lhe lembranças por meu
intermédio. Que Deus o abençoe, meu querido filho! Trabalhe, reze e economize!
Com todo o amor,
Seu pai
Em 8 de outubro de 1846
Meus queridos e venerados pais:
O abaixo assinado encontra-se na situação agradável de poder informá-los de que, há meia hora, sua
filha, minha queridíssima esposa Antonie, deu à luz uma criança. Conforme a vontade de Deus, é uma
filha, e não acho palavras para exprimir quanto me sinto feliz e emocionado. O estado da nossa querida
parturiente, assim como o da criança, é ótimo, e o dr. Klaassen mostrou-se absolutamente satisfeito com o
desenrolar dos fatos. A sra. Grossgeorgis, a parteira, disse também que tudo se passou sem a mínima
dificuldade. — A emoção obriga-me a largar a pena. Recomendo-me aos meus ilustríssimos pais com o
mais respeitoso carinho.
B. Grünlich
P.S. Se fosse um garoto, eu teria um nome muito bonito para ele. Mas, como não é, preferia chamá-la de
Meta, mas Gr. quer Erika.
Tony
2.
Um ano e dois meses mais tarde, num dia nevoento de janeiro de 1850, o sr. e a
sra. Grünlich, com a sua filhinha de três anos, estavam na sala de jantar,
revestida de madeira castanho-clara. Acomodados nas cadeiras que haviam
custado vinte e cinco marcos cada uma, tomavam o café da manhã.
As vidraças estavam quase opacas de tanta cerração. Atrás delas viam-se
vagamente árvores e arbustos despidos de folhas. Na lareira baixa de azulejos
verdes, que se encontrava num canto — ao lado da porta aberta que dava para a
sala de estar onde havia plantas ornamentais —, crepitava a brasa vermelha,
enchendo a peça dum calor suave e cheiroso. Do outro lado, cortinas de veludo
verde, entreabertas, permitiam a vista para o salão forrado de seda marrom e
para uma alta porta envidraçada, cujas frestas estavam cuidadosamente tapadas
com rolos de algodão. Atrás dela, um pequeno terraço perdia-se na cerração
alvacenta e impenetrável. À esquerda, uma terceira porta abria para o corredor.
O damasco branco, entrançado, que cobria a mesa redonda, estava atravessado
por um trilho debruado de verde. Havia na mesa louça de bordas douradas, tão
transparente que às vezes brilhava como madrepérola. Sussurrava um samovar.
Num cesto raso de prata fina, representando uma grande folha denteada e
levemente enrolada, encontravam-se pãezinhos e fatias de bolo. Sob uma redoma
de cristal, via-se uma pilha de bolinhas de manteiga estriadas, enquanto outra
cobria diversas espécies de queijo, amarelo, jaspeado e branco. Não faltava uma
garrafa de vinho tinto, colocada diante do dono da casa, pois o sr. Grünlich
preferia de manhã uma refeição quente.
Tinha as suíças recém-frisadas, e o rosto, a essa hora matutina, parecia mais
rosado do que nunca. Já completamente vestido, estava sentado com as costas
voltadas para o salão. Trajava roupa preta com calças claras, axadrezadas.
Comia, à moda inglesa, uma costeleta levemente assada. A esposa achava esse
costume, apesar de distinto, tão profundamente repugnante, que jamais pudera
decidir-se a renunciar à costumeira refeição de pão e ovos quentes.
Tony usava um chambre; era doida por essa roupa. Nada lhe parecia mais
distinto do que um négligé elegante, e, como em casa dos pais não pudera
entregar-se a essa paixão, abandonava-se a ela com ainda mais fervor depois de
casada. Possuía três dessas vestimentas delicadas e suaves em cuja fabricação se
pode revelar mais gosto, refinamento e fantasia do que num vestido de baile.
Naquele dia, Tony usava o chambre vermelho, cuja cor harmonizava
perfeitamente com o matiz da tapeçaria acima do revestimento de madeira. A
fazenda, pintada de grandes flores e mais macia do que algodão, estava toda
bordada com um chuvisco de minúsculas contas do mesmo colorido… De um
broche, à altura do pescoço, descia-lhe até a barra uma série de laços de veludo
vermelho.
O espesso cabelo loiro, igualmente enfeitado por uma fita de veludo vermelho,
estava ondulado por cima da testa. Apesar de Tony, como ela mesma sabia, já ter
alcançado o apogeu físico, a expressão infantil, ingênua e atrevida do lábio
superior um tanto saliente permanecera a mesma de sempre. As pálpebras dos
olhos azulados estavam coradas pela água fria. As mãos — aquelas mãos alvas,
um pouco curtas, de talhe fino, peculiares dos Buddenbrook — estavam, nos
pulsos delgados, carinhosamente cingidas pelos punhos de veludo das mangas.
Manejava a faca, a colher e a xícara com movimentos que, naquele dia, por
qualquer motivo, eram um pouco bruscos e precipitados.
Ao seu lado, numa cadeirinha de criança, alta como uma torre, achava-se a
pequena Erika, menina bem alimentada, de curtos cachos loiros; sua roupa de
espessa lã azul-clara, feita a tricô, dava-lhe um aspecto divertido pela falta de
forma. Com ambas as mãozinhas segurava uma grande xícara na qual todo o
rostinho desaparecia, e ao engolir o leite fazia, às vezes, ouvir pequenos suspiros
de arrebatamento.
Ao acabar, a sra. Grünlich tocou a campainha. Thinka, a criada, entrou no
corredor, para retirar a criança da cadeira de braços e carregá-la para o quarto de
cima.
— Pode dar com ela um passeio de carrinho, Thinka, um passeio de meia hora
— disse Tony. — Só meia hora, e vista-a com a malha quente, ouviu? Há muita
cerração. — Ficou então sozinha com o marido.
— Você está ficando ridículo — disse ela, depois de breve silêncio,
reiniciando, evidentemente, uma conversa interrompida. — Que objeções tem a
fazer? Diga. Eu não posso dedicar-me à criança o tempo todo!
— Você não tem amor à criança, Antonie.
— Amor à criança… qual nada! O que me falta é tempo! A casa requer muito.
Acordo pensando em vinte coisas a fazer durante o dia, e deito-me com quarenta
outras que ainda não estão feitas…
— Temos duas empregadas. E uma mulher tão moça…
— Duas empregadas. Muito bem. A Thinka tem de lavar a louça, engraxar os
sapatos, limpar a casa e servir à mesa. A cozinheira está mais do que ocupada.
Você come costeletas desde a madrugada… Considere bem as coisas, Grünlich:
Erika, de qualquer jeito, precisará, cedo ou tarde, de uma bonne ou de uma
governanta…
— Não está de acordo com a nossa situação contratar para ela, já agora, uma
ama-seca.
— A nossa situação! Céus, você está se tornando ridículo, de fato! Será que
somos mendigos? Será que estamos obrigados a privar-nos das coisas mais
necessárias? Ao que eu saiba, eu lhe trouxe um dote de oitenta mil marcos…
— Ah, aqueles seus oitenta mil!
— Pois bem! Você fala deles com desdém… Não precisava disso… Casou-se
comigo por amor… Muito bem. Mas será que ainda me ama? Você está
desatendendo às minhas justas pretensões. A criança não terá ama… Da
carruagem, que faz falta à gente como o pão do dia, nem se fala mais… Por que
você nos faz morar constantemente no campo se não está de acordo com a nossa
situação manter uma carruagem que nos possibilite frequentar decentemente a
sociedade? Por que não gosta que eu vá à cidade? Preferiria que me enterrasse
aqui de uma vez por todas e que não visse mais ninguém. Você é um
sorumbático, Grünlich!
O sr. Grünlich pôs vinho tinto no copo e, levantando a redoma de cristal,
passou para o queijo. Não deu resposta nenhuma.
— Será que ainda me ama? — repetiu Tony. — O seu silêncio é tão descortês
que posso perfeitamente tomar a liberdade de lembrar-lhe certa cena na sala das
Paisagens dos meus pais… Então você fez outro papel! Desde o primeiro dia,
ficou comigo só à noite, e isso apenas para ler o jornal. No início, pelo menos,
dava um pouquinho mais de atenção aos meus desejos. Mas há muito tempo isso
também acabou. Você não se importa comigo…
— E você? Você me arruína.
— Eu?… Eu o arruíno?…
— Sim. Arruína-me com a sua preguiça, com a sua mania de ter criadagem e
luxo…
— Ah! Não me censure pela boa educação que tive! Em casa dos meus pais
não precisava mover uma palha. Aqui tive dificuldades para acostumar-me a
dirigir uma casa, mas exijo que você não me negue os recursos mais simples.
Papai é um homem rico; ele não teve ideia de que, em tempo algum, eu pudesse
ter falta de empregados…
— Então espere pela terceira empregada até que essa riqueza nos seja útil.
— Será que você deseja a morte do meu pai?! Sabe que somos gente abastada,
e que não cheguei à sua casa com as mãos vazias…
O sr. Grünlich, apesar de estar mastigando, sorriu; um sorriso superior,
melancólico e silencioso, que perturbou Tony.
— Grünlich — disse ela com mais calma. — Você está sorrindo; fala da nossa
situação… Será que me engano a respeito dela? Você fez maus negócios? Ou
tem…
Nesse instante, alguém bateu à porta do corredor, com um leve tamborilar.
Entrou o sr. Kesselmeyer.
6.
Como amigo da casa, o sr. Kesselmeyer entrou na sala sem ser anunciado.
Estava sem chapéu nem sobretudo. Na porta, estacou. A sua aparência
correspondia inteiramente à descrição que Tony fizera dela numa carta à mãe. O
corpo rechonchudo não era gordo nem magro. Usava um casaco preto, já um
tanto brilhante, calças justas e curtas da mesma fazenda e um colete branco,
onde uma corrente de relógio comprida e fina cruzava dois ou três cordões de
pincenê. As suíças brancas e aparadas que lhe cobriam as faces, deixando livres
o queixo e os lábios, destacavam-se nitidamente do rosto vermelho. A boca
pequena, ágil e jovial continha apenas dois dentes na mandíbula inferior.
Enquanto o sr. Kesselmeyer ficava parado, confuso, ausente e pensativo com as
mãos enterradas nos bolsos verticais das calças, comprimia o lábio superior com
esses dois dentes caninos, amarelos e cônicos. A penugem preta e branca da
cabeça tremulava levemente, apesar de não se sentir a mínima corrente de ar.
Finalmente retirou as mãos dos bolsos. Abaixando-se, deixou pender o lábio
inferior e desembaraçou, a muito custo, um cordão de pincenê do emaranhado
geral que havia no seu peito. Depois, de um golpe, fincou o pincenê no nariz,
acompanhando o ato com a mais extravagante careta. Examinando o casal, fez:
— Haha.
Como usasse a interjeição muito amiúde, deve-se observar desde o início que
costumava produzi-la numa tonalidade metálica, fanhosa e arrastada, que
lembrava um gongo chinês, e ao fazê-lo deitava a cabeça para trás, encrespando
o nariz, gesticulando com as mãos e abrindo vastamente a boca. Em outras
ocasiões — abstraindo-se vários matizes — era capaz de proferi-la lacônica,
incidente e levemente, e nesse caso soava mais engraçada ainda, pois o “ah” que
emitia era muito nasal e comprimido. Naquele dia, porém, disse um “Haha”
rápido e alegre, que acompanhou por um meneio de cabeça, ligeiro e brusco,
manifestando uma disposição extraordinariamente risonha… E todavia, não era
indicado fiar-se nisso, porque constava que o banqueiro Kesselmeyer aparecia
tanto mais folgazão quanto mais ameaçador era o seu humor. Quando, saltando e
pulando, produzia milhares de “Hahas”, fincando o pincenê no nariz e deixando-
o cair imediatamente, abanando com os braços e fazendo o papel de quem não
cabe em si de tanta tolice, então havia certeza de que a maldade lhe corroía a
alma… O sr. Grünlich olhava-o de olhos semicerrados com manifesta
desconfiança.
— Já tão cedo? — perguntou.
— Sim, sim… — respondeu Kesselmeyer, agitando o ar com uma das
pequenas mãos vermelhas e rugosas, como se dissesse: “Paciência! haverá uma
surpresa!…”. — Tenho de falar com você! Falar com você, meu caro amigo,
sem demora! — A sua fala era sumamente ridícula. Revolvia cada palavra com a
língua, proferindo-as por fim com desmedido emprego de forças da pequena
boca ágil e desdentada. Rolava o “r” como se tivesse o paladar lubrificado. O
olhar do sr. Grünlich tornou-se mais desconfiado ainda.
— Venha cá, sr. Kesselmeyer — disse Tony. — Sente-se, por favor! O senhor
chega oportunamente… Preste atenção. O senhor será o juiz. Acabo de ter uma
desavença com Grünlich… Diga-me uma coisa: uma criança de três anos deve
ou não ter ama-seca? Então…
Mas o sr. Kesselmeyer nem parecia reparar nela. Acomodado numa cadeira,
cofiava com o dedo indicador as suíças aparadas, abrindo a minúscula boca o
mais que podia e encrespando o nariz. Desse cofiar resultava um ruído
enervante. Por cima do pincenê, Kesselmeyer fitou com uma fisionomia
indizivelmente alegre a mesa elegante, o cesto de prata e o rótulo da garrafa…
— Pois é — continuou Tony —, Grünlich diz que eu o arruíno!
Nesse instante, o sr. Kesselmeyer olhou-a… depois olhou o sr. Grünlich…
para, então, rebentar numa enorme risada.
— A senhora o arruína? — gritou ele. — Arru… A senhora? Então é a senhora
que o arruína? Ah, meu Deus! Santo Deus! Imagine-se! Mas isto é formidável! É
engraçadíssimo, deveras! — Depois disso entregou-se a uma onda de “Hahas”
muito diferenciados.
O sr. Grünlich, visivelmente nervoso, mexia-se na cadeira. Ora metia o
indicador comprido entre o pescoço e o colarinho, ora fazia deslizar por entre as
mãos as suíças amarelecidas.
— Kesselmeyer! — disse ele. — Sossegue, por favor! Perdeu o juízo? Pare
com esse riso! Quer tomar um copo de vinho? Quer um charuto? Mas de que se
ri?
— De que estou rindo?… Sim, dê-me um copo de vinho e um charuto… De
que estou rindo? Então você acha que a senhora sua esposa o arruína?
— Ela tende demais para o luxo — disse Grünlich, agastado.
Tony não contestou de maneira alguma. Recostada tranquilamente, com as
mãos no colo, sobre os laços de veludo do chambre, disse, avançando
atrevidamente o lábio superior:
— Pois bem… Sou assim. É natural. Herdei isso de mamãe. Todos os Kröger
têm inclinação para o luxo.
Com a mesma calma teria declarado que era leviana, irascível ou vingativa. O
seu senso de família, fortemente desenvolvido, como que a tornava alheia às
ideias de vontade própria e de autonomia, a ponto de ela constatar e confessar,
com uma estoicidade quase fatalista, os traços do seu caráter… sem fazer
diferenças entre eles, nem esforços para corrigi-los. Sem o notar, era da opinião
de que todos eles, quaisquer que fossem, significavam um legado, uma tradição
da família, sendo por isso veneráveis e merecedores, em todo o caso, de serem
tratados com respeito.
O sr. Grünlich terminara a refeição, e o cheiro dos dois charutos misturava-se
com o vapor quente da lareira.
— Está bom o charuto, Kesselmeyer? — perguntou o dono da casa… — Tome
mais um. Vou lhe dar mais um copo de vinho… Então quer falar comigo? Coisa
urgente? Importante? Não acha que está muito quente aqui? Irei à cidade com
você… Aliás, a sala de fumar está mais fresquinha… — Mas em resposta a
todos esses esforços o sr. Kesselmeyer fez apenas um gesto negativo com a mão,
como para dizer: “Isso de nada adianta, meu caro!”.
Finalmente levantaram-se, e enquanto Tony ficava na sala de jantar, para vigiar
a empregada que tirava a mesa, Grünlich conduziu o companheiro de negócios
através da sala de estar. Torcendo pensativamente entre os dedos as pontas das
suíças, precedia-o de cabeça baixa. Atrás dele, o sr. Kesselmeyer desapareceu na
sala de fumar, remando com os braços.
Passaram-se uns dez minutos. Tony fora, por um instante, ao salão para passar
pessoalmente o espanador pelo tampo brilhante da pequena escrivaninha de
nogueira e as pernas curvas da mesa. Depois, lentamente, dirigiu-se, através da
sala de jantar, para a sala de estar. Andava com calma e com evidente dignidade.
Era visível que a sra. Grünlich não perdera nada da confiança que a srta.
Buddenbrook tivera em si própria. Empertigava-se muito, apertando o queixo
um pouquinho contra o peito, e olhava as coisas de cima. Numa das mãos tinha o
cesto de chaves, gracioso e envernizado, enquanto metia a outra levemente no
bolso do chambre vermelho-escuro. Assim deixava-se embalar pelas dobras
compridas e moles, ao passo que a expressão ingênua e inconsciente da boca
traía toda essa dignidade, que não passava de uma criancice infinitamente
inocente e fútil.
Movimentava-se de cá para lá, na sala de estar, manejando o pequeno regador
de latão, para molhar a terra preta das plantas ornamentais. Gostava muito das
suas palmeiras, que contribuíam magnificamente para a distinção do aposento.
Apalpou cuidadosamente o rebento novo dos grossos caules redondos,
examinando com ternura os leques majestosamente desatados e podando às
vezes, com a tesoura, uma ponta amarela… Subitamente espreitou. A conversa
na sala de fumar, que já havia alguns minutos assumira forma animada, tornou-
se agora tão alta que pôde entender cada palavra, não obstante a porta reforçada
e a pesada cortina.
— Mas não berre tanto! Contenha-se pelo amor de Deus! — ouviu gritar o sr.
Grünlich, cuja voz branda, não suportando o esforço exagerado, se esganiçou
com um guincho… — Tome mais um charuto — acrescentou numa meiguice
desesperada.
— Com o maior prazer, muito obrigado — disse o banqueiro. Surgiu uma
pausa durante a qual, provavelmente, o sr. Kesselmeyer se serviu. Depois disse:
— Em poucas palavras: você quer ou não quer? Qual dos dois?
— Kesselmeyer, prorrogue mais uma vez!
— Como? Haha, não, não, meu caro! De maneira alguma! Nem se pode falar
disso…
— Por que não? Que é que você tem? Pelo amor de Deus, seja sensato! Já que
esperou tanto tempo…
— Nem um dia mais, meu caro! Pois então, digamos mais oito dias, mas nem
uma hora mais! Será que a gente ainda pode confiar em…
— Nada de nomes, Kesselmeyer!
— Nada de nomes… muito bem! Será que a gente ainda pode confiar no seu
mui estimável senhor so…
— Nada de referências, tampouco… Santo Deus, não seja tolo!
— Muito bem, nada de referências! Será que se pode ainda ter confiança em
certa firma de cujo destino depende inteiramente o seu crédito? Quanto perdeu
ela naquela falência em Bremen? Cinquenta mil? Setenta mil? Cem mil? Mais
ainda? Todo mundo sabe que estava envolvida, fortemente envolvida… E tudo
isso é palpite… Ontem era a firma… muito bem, nada de nomes! Ontem a tal
firma era boa e, sem o saber, protegia você contra quaisquer apuros… Hoje ela
anda fraca e B. Grünlich anda mais fraco ainda, fraquíssimo até… isto é claro,
não é? Você não o sente? Você é o primeiro que se deve ressentir dessas
oscilações… Como é que o tratam? Como o consideram? Será que Bock &
Goudstikker estão ainda extraordinariamente confiantes e obsequiosos? E como
se comporta o Banco de Crédito?
— Prorroga.
— Haha? Você está mentindo. Eu sei perfeitamente que já ontem ele lhe deu
um pontapé! Um pontapé suma, sumamente animador! Imagine-se! Mas não se
envergonhe. É natural que esteja interessado em fazer-me acreditar que os outros
continuam tranquilos e sossegados… Nã-ão, meu caro amigo! Escreva ao
cônsul! Esperarei uma semana.
— Que tal um pagamento por conta, Kesselmeyer?
— Pagamento por conta? Qual nada! Pagamentos por conta cobram-se, para
nos dar a convicção passageira da solvência de alguém. Será que tenho
necessidade de fazer experiências a tal respeito? Sei maravilhosamente bem
como anda a sua solvência! Hahaha… Acho muito, muito divertida essa ideia do
pagamento por conta…
— Mas modere a voz, Kesselmeyer! E deixe de soltar a cada instante essas
malditas risadas! A minha situação é tão séria… pois bem, confesso que é séria.
Mas tenho uma porção de negócios pendentes… Tudo pode virar para bem.
Escute! Que acha disso: você prorroga, e eu lhe assino uma letra de vinte por
cento…
— Nada disso… acho absolutamente ridículo, meu amigo! Nã-ão! Gosto de
vender a tempo! Você me ofereceu oito por cento, e eu prorroguei. Você me
ofereceu doze por cento, e eu prorroguei sempre. Agora, você poderia oferecer-
me dezesseis por cento, e eu não pensaria em prorrogação; nem sequer pensaria
nisso, meu caro amigo!… Desde que os Irmãos Westfahl, em Bremen, estão
quebrados, cada um procura, no momento, liquidar os negócios que tem com a
tal firma e garantir-se por todos os lados… Como já lhe disse, gosto muito das
vendas no momento oportuno. Fiquei com as suas assinaturas enquanto não
havia dúvidas sobre se Johann Buddenbrook estava solvente… Entrementes,
podia acrescentar ao capital os juros atrasados e aumentar-lhe os juros! Mas a
gente só fica com uma coisa enquanto está subindo ou pelo menos está
solidamente fundada… Mas, quando começa a baixar, então vende-se… quer
dizer que exijo o meu capital…
— Kesselmeyer, você é um sem-vergonha!
— Haha? Acho sumamente divertida, esta de sem-vergonha! Que é que você
quer? De qualquer jeito, você tem de dirigir-se ao sogro! O Banco de Crédito
está fulo, e você, além disso, não é o que se chama de imaculado…
— Não, Kesselmeyer… suplico-lhe: escute-me um instante tranquilamente!
Sim, para falar com franqueza: confesso-lhe sem rodeios que a minha situação é
séria. Você e o Banco de Crédito não são os únicos… Há letras que me foram
apresentadas… Parece que todo mundo se conjurou…
— Claro! Nestas circunstâncias… Mas então vai de uma vez…
— Não, Kesselmeyer, escute. Faça o favor de tomar mais um charuto…
— Não terminei nem a metade deste! Deixe-me em paz com os seus charutos!
Pague…
— Kesselmeyer, não me deixe cair agora… Você é meu amigo; você esteve
sentado à minha mesa…
— Será que você não esteve à minha, meu caro?
— Pois não… mas não me negue agora o seu crédito, Kesselmeyer…
— Crédito? Ainda por cima crédito? Você está maluco? Mais um
empréstimo…
— Sim, Kesselmeyer, rogo-lhe instantemente… Só muito pouco, uma
ninharia! Preciso somente pagar algumas prestações por aqui e por ali, para
novamente encontrar respeito e paciência… Mantenha-me, e você fará um alto
negócio! Como lhe disse, há uma porção de coisas pendentes… Tudo vai virar
para bem… Você sabe que sou ativo e esperto…
— Pois bem, você é um janota e um imbecil, meu caro amigo! Talvez você
tenha a extrema bondade de dizer-me que recursos quer ainda descobrir? Acha
que em qualquer parte do vasto mundo existe um banco que lhe passe pelo
guichê um só vintém? Ou que encontrará mais um sogro? Ah, não! Esta sua
cartada principal já foi jogada, não é? Coisas assim não fará pela segunda vez!
Todos os meus respeitos! Não, realmente, meus sinceros cumprimentos…
— Mas, com todos os diabos, fale mais baixo…
— Você é um janota! Ativo e esperto… sim, mas sempre só em benefício de
outros! Não conhece nenhum escrúpulo, e todavia nunca tirou vantagens disso.
Faz patifarias e, caloteando, obteve capitais, só para pagar-me dezesseis por
cento em vez de doze. Arrojou ao mar toda a sua honestidade, sem ter disso o
mínimo lucro. Tem uma consciência de cachorro, e com tudo isso fica um
infeliz, um pateta, um pobre bobalhão! Há gente assim; são extraordinariamente
divertidos! Mas por que tem tanto medo de dirigir-se definitivamente ao tal
senhor, para liquidar toda essa história? Será porque não se sente perfeitamente
bem com isso? Porque naquela época, há quatro anos, alguma coisa não estava
em ordem? Receia que certas coisas…
— Bem, Kesselmeyer, escreverei. Mas se ele se recusar? Se não me der a mão?
— Oh!… Haha! Então vamos abrir uma pequena falência, uma falenciazinha
altamente divertida, meu caro! Isso não me preocupa, de modo nenhum! Eu,
pessoalmente, já me arranjei mais ou menos pelos juros que você conseguiu aqui
e ali… e na massa falida estarei privilegiado, meu prezado amigo! E você vai
ver: não ficarei logrado. Conheço as entradas e saídas da sua casa, ilustre! Já
estou de antemão com o inventário no bolso… Haha! tomarei providências para
que não se extravie nenhum cestinho de prata para pão, nenhum chambre de
seda…
— Kesselmeyer, você esteve sentado à minha mesa…
— Deixe-me em paz com a sua mesa! Daqui a oito dias venho buscar a sua
resposta. Irei a pé para o centro. Um pouco de movimento vai me fazer muito
bem. Bom dia, meu caro! Desejo-lhe um dia bem alegre…
Pareceu a Tony que o sr. Kesselmeyer se levantara: sim, fora-se embora. Ouviu
do corredor os seus peculiares passos arrastados e, em fantasia, viu-o remar com
os braços.
Quando Grünlich entrou na sala de estar, Tony estava ali, com o regador de
latão na mão, e olhou-o nos olhos.
— Por que fica assim… por que me olha?… — disse ele mostrando os dentes.
Descreveu com as mãos vagas curvas no ar, cambaleando com o tronco. Seu
rosto corado não possuía a capacidade de empalidecer totalmente. Estava
vermelho como a cara de quem tem escarlatina.
7.
O cônsul Johann Buddenbrook chegou à vila às duas horas da tarde. Numa capa
de viagem cor de cinza, entrou no salão dos Grünlich, para abraçar a filha com
certa intensidade dolorosa. Estava pálido e parecia envelhecido. Os pequeninos
olhos lhe ficavam no fundo das órbitas. O nariz salientava-se, grande e
acentuado, por entre as faces descaídas, enquanto os lábios pareciam ter se
tornado mais delgados. A barba, que recentemente não mais usava em duas tiras
onduladas, lhe subia pelo pescoço por baixo do queixo e das mandíbulas, à
metade coberta pelo alto colarinho engomado e pelo largo plastron. Esta barba e
também o cabelo estavam totalmente grisalhos.
O cônsul passara por dias difíceis e cansativos. Thomas adoecera de
hemorragia pulmonar; o pai soubera da desgraça por uma carta do sr. Van der
Kellen. Deixando os negócios na mão do seu circunspecto procurador, viajara
para Amsterdam a toda pressa e pelo caminho mais curto. Manifestara-se que,
apesar de a enfermidade do filho não encerrar perigo imediato, uma estância
climática do sul, na França meridional, era altamente aconselhável. E como
calhasse que para o filho do patrão também se projetava uma viagem de recreio,
os dois moços foram juntos para Pau, logo que Thomas se achou em condições
de viajar.
Apenas de volta a casa, o cônsul fora ferido por aquele golpe que, durante um
momento, abalara a sua firma até os fundamentos: aquela falência de Bremen
pela qual perdera oitenta mil marcos de uma vez… Por quê? As letras sacadas
sobre os Irmãos Westfahl e a seguir descontadas recaíram sobre a firma, depois
de os compradores terem suspendido os pagamentos. Não que a garantia tivesse
fraquejado: a firma mostrara do que era capaz; mostrara o que podia fazer
imediatamente, sem hesitações, nem embaraços. Mas isso não impedira que o
cônsul tivesse de experimentar toda a repentina frieza, reserva e desconfiança
que tais reveses e tamanhos enfraquecimentos de capital de giro costumam
provocar por parte dos bancos, dos “amigos” e das firmas estrangeiras…
Pois bem, erguera-se, enfrentando tudo isso; tranquilizara, arranjara, reagira…
Nesse instante, porém, no meio dos telegramas, das cartas e dos cálculos
irrompera mais isto sobre ele: Grünlich, B. Grünlich, marido da filha, estava
insolvente e, numa longa carta confusa e infinitamente lamentável, pedira,
suplicando e gemendo, uma ajuda de cem até cento e vinte mil marcos! O
cônsul, depois de comunicar o fato à esposa em termos lacônicos, superficiais e
moderados, respondera friamente, sem assumir obrigações, que solicitava uma
entrevista com o sr. Grünlich, na casa deste, e em presença do banqueiro
Kesselmeyer. Feito isso, partira.
Tony recebeu-o no salão. Gostava imensamente de receber visitas nesta sala
forrada de seda marrom, e como, sem perceber as coisas claramente, tivesse um
sentimento intenso e solene da importância da sua situação atual, não fez,
naquele dia, uma exceção com o pai. Aparentava saúde e tinha aspecto bonito e
sério, no seu vestido cinzento-claro, enfeitado de rendas no peito e nos pulsos,
com mangas amplas e crinolina muito vasta, conforme a última moda. Um
pequeno broche de brilhantes fechava a gola.
— Bom dia, papai! Finalmente, apareceu outra vez! Como está mamãe? Tem
boas notícias de Tom? Mas tire a capa e sente-se, por favor, querido papai! Não
quer arrumar-se um pouco? Mandei preparar para o senhor os aposentos de
visitas no primeiro andar… Grünlich também está fazendo a toalete…
— Deixe-o, minha filha; vou esperá-lo aqui embaixo. Você sabe que vim para
ter uma conversa com o seu marido… uma conversa muito, muito séria, minha
querida Tony. O sr. Kesselmeyer já chegou?
— Sim, papai, está na sala de estar, olhando o álbum…
— Onde está Erika?
— Em cima, com Thinka, na sala das crianças; ela vai bem. Está banhando a
boneca… Naturalmente sem água… uma boneca de cera… só finge banhá-la,
sabe?
— Claro. — O cônsul deu um suspiro e continuou: — Não creio, minha
querida filha, que você esteja informada acerca da situação… da situação do seu
marido…
Acomodara-se numa das poltronas que cercavam a grande mesa, ao passo que
Tony estava sentada aos seus pés num assento em forma de três coxins de seda,
amontoados um em cima do outro. Os dedos da mão direita do cônsul brincavam
suavemente com os brilhantes no pescoço da filha.
— Não, papai — respondeu Tony —, devo confessar-lhe que não sei de nada.
Meu Deus, sou uma tola, sabe? não tenho ideia nenhuma! Há alguns dias fiquei
escutando um pouquinho quando Kesselmeyer falou com Grünlich… No fim
tive a impressão de que o sr. Kesselmeyer estava brincando outra vez… Sempre
fala de um jeito tão ridículo! Uma ou duas vezes entendi o seu nome…
— Entendeu o meu nome? Em que sentido?
— Não, do sentido não sei nada, papai! Desde aquele dia, Grünlich esteve
rabugento… insuportável mesmo; isso posso dizer! Até ontem… Ontem esteve
de humor brando e perguntou-me umas dez ou doze vezes se o amava, se eu
queria intervir a seu favor junto ao senhor, caso ele tivesse alguma coisa a
solicitar-lhe…
— Ah…
— Sim… e me comunicou que lhe escrevera e que o senhor ia chegar… Foi
bom ter vindo! Esta coisa é pavorosa… Grünlich preparou a mesa verde, a de
jogar… Há nela uma porção de papéis e de lápis. É ali que mais tarde terá uma
palestra com ele e com Kesselmeyer…
— Escute, minha cara filha — disse o cônsul, acariciando-lhe o cabelo… —
Agora tenho de perguntar-lhe uma coisa séria. Diga-me… é verdade que você
ama o seu marido de todo o coração?
— Mas claro, papai — respondeu Tony com a mesma fisionomia infantilmente
hipócrita que produzira outrora quando lhe perguntavam: “Tony, promete que
nunca mais molestará a vendedora de bonecas?”. O cônsul permaneceu calado
durante um momento.
— Será que você o ama tanto — insistiu ele — que não poderia viver sem
ele… de maneira alguma, hein? Nem sequer se, pela vontade de Deus, se
modificasse a sua situação, e se não mais fosse capaz de cercá-la de todas essas
coisas?
E a mão do cônsul descreveu um movimento rápido, abrangendo os móveis e
as cortinas da sala, o relógio de mesa, dourado, que se achava na prateleira sob o
grande espelho, e finalmente o seu vestido.
— Mas claro, papai — repetiu Tony naquele tom consolador que assumia
quase sempre, quando se falava seriamente com ela. O seu olhar, passando ao
lado do pai, fitava a janela atrás da qual descia, sem ruído, um véu fino e denso
de garoa. Os seus olhos estavam cheios daquela expressão que as crianças
costumam mostrar quando alguém, durante a leitura de contos de fadas, comete a
falta de tato de intercalar observações generalizadas sobre moral e deveres…
uma expressão misturada de acanhamento e impaciência, de piedade e
aborrecimento.
Durante um minuto, o cônsul contemplou-a sem falar, cerrando pensativamente
os olhos. Estava ele satisfeito com a resposta? Ele ponderara tudo maduramente
em casa e na viagem…
É compreensível que a primeira e a mais sincera resolução de Johann
Buddenbrook tenha sido a de evitar quanto possível um auxílio ao genro,
qualquer que fosse a importância. Mas, quando se lembrava com que insistência
recomendara — para usarmos um eufemismo — esse casamento, e quando se
recordava do olhar com que a filha, depois da festa do enlace, se despedira dele,
perguntando: “Está contente comigo?”, devia confessar uma culpa bastante
deprimente, contraída para com a filha, e dizer a si mesmo que esse problema
tinha de ser decidido unicamente conforme a vontade dela. Sabia bem que ela
não concordara com essa união por motivos de amor, mas contava com a
possibilidade de que esses quatro anos, o hábito e o nascimento da criança
pudessem ter alterado muita coisa; era possível que Tony, agora, se sentisse
ligada, de corpo e alma, ao marido, refutando qualquer ideia de separação com
boas razões cristãs e mundanas. Nesse caso, ponderava o cônsul, deveria
condescender em gastar qualquer importância em dinheiro. Era verdade que o
dever de cristã e a dignidade de mulher exigiam que Tony acompanhasse o
marido, incondicionalmente, também para a desgraça; mas, se realmente ela
manifestasse essa decisão, o cônsul não se sentia autorizado para, no futuro,
deixá-la carecer, inocentemente, de todas as belezas e comodidades da vida, às
quais estava acostumada desde criança… Sentia-se, então, obrigado a impedir
uma catástrofe, sustentando B. Grünlich a qualquer preço. Em poucas palavras: o
resultado das suas ponderações fora o desejo de levar consigo a filha junto com a
criança, deixando o sr. Grünlich seguir o seu caminho. Que Deus não quisesse
essa solução extrema! Em todo caso recapitulava o artigo do código civil que,
em caso de incapacidade do marido de alimentar a esposa e os filhos, permitia o
divórcio. Antes de tudo, porém, devia investigar as opiniões da filha…
— Vejo — disse ele, continuando a acariciar-lhe ternamente o cabelo —, vejo,
minha querida filha, que você está inspirada por princípios bons e dignos de
louvor. Porém… não posso acreditar que esteja encarando as coisas como,
infelizmente, devem ser encaradas: isto é, como fatos reais. Não lhe perguntei o
que faria, nesse ou naquele caso, eventualmente, mas sim o que fará agora, hoje,
imediatamente. Não sei o quanto você sabe ou imagina das circunstâncias… e
tenho, portanto, o triste dever de dizer-lhe que o seu marido se vê obrigado a
suspender os pagamentos que, comercialmente, não é mais capaz de cumprir…
acho que você me compreende…
— Grünlich está na bancarrota? — perguntou Tony baixinho, soerguendo-se
dos coxins e apanhando a mão do cônsul num gesto rápido.
— Sim, minha filha — disse ele com seriedade. — Não suspeitava disso?
— Nunca tive suspeitas determinadas… — gaguejou ela. — Mas então
Kesselmeyer não estava brincando? — prosseguiu, cravando os olhos no tapete
marrom, diante de si. — Oh, meu Deus — proferiu bruscamente, recaindo sobre
o assento. Somente nesse instante deu-se de fato conta de tudo quanto encerrava
a palavra “bancarrota”, de tudo quanto, já como criança, provara de sentimentos
vagos e pavorosos a tal respeito… “Bancarrota”… era coisa mais horripilante do
que a morte, significava tumulto, derrocada, ruína, ignomínia, vergonha,
desespero e miséria… — Ele está na bancarrota! — repetiu. Estava tão abatida e
deprimida por essa palavra fatal que não pensava em socorro, nem naquele que
podia vir por parte do pai.
Este a olhou de sobrancelhas alçadas, com os olhos pequeninos e encovados,
que pareciam tristes e cansados, revelando, todavia, uma tensão extraordinária.
— Pergunto-lhe então — disse suavemente —, minha querida Tony, se você
está disposta a acompanhar o seu marido até a pobreza? — Logo em seguida,
confessando a si mesmo que, instintivamente, escolhera a palavra “pobreza”
como meio de intimidação, acrescentou: — Ele pode reerguer-se pelo trabalho…
— Mas claro, papai — respondeu Tony. Mas isso não impediu que rebentasse
em lágrimas. Abafou o soluço no lencinho de cambraia, orlado de rendas, e que
trazia iniciais A.G. Conservara inteiramente o seu choro de criança: chorava sem
cerimônia, nem afetação. Enquanto isso o lábio superior causava uma impressão
indescritivelmente comovedora.
O pai continuou a examiná-la com os olhos.
— É sério isso, minha filha? — perguntou, tão desnorteado quanto ela.
— Não devo eu?… — soluçou ela. — Eu devo, não é…
— Absolutamente não! — respondeu ele vivamente; mas na consciência da sua
culpabilidade corrigiu-se logo: — Não a obrigaria incondicionalmente a isso,
minha cara Tony. Suposto que os seus sentimentos não a ligassem com o seu
marido de um modo inquebrantável…
Olhou-o com os olhos banhados em lágrimas, sem compreender.
— Por quê, papai?…
O cônsul, esquivando-se um pouco, achou uma escapatória.
— Minha boa filha, você pode acreditar-me que sentiria muito expô-la a todas
as circunstâncias iníquas e penosas que a desgraça do seu marido, assim como a
liquidação da firma e da sua casa, acarretarão imediatamente… Desejo ampará-
la contra esses agravos do início, levando você e a nossa pequena Erika, por
enquanto, para a nossa casa. Acho que você me será grata por isso…
Por um instante, Tony ficou calada, enxugando as lágrimas. Soprou no lenço
meticulosamente, antes de comprimi-lo contra os olhos para evitar inflamação.
Depois perguntou num tom decidido, sem levantar a voz:
— Papai, será que Grünlich tem culpa? Ele cai na desgraça por leviandade e
improbidade?
— Muito provavelmente!… — disse o cônsul. — Quer dizer… não… não sei,
minha filha. Já lhe disse que a explicação com ele e com o seu banqueiro está
ainda por se fazer…
Tony pareceu nem sequer prestar atenção a essa resposta. Inclinada sobre os
três coxins de seda, fincou o cotovelo no joelho e o queixo na mão, fitando a
sala, de cabeça profundamente abaixada, e com um olhar sonhador.
— Ah, papai — disse baixinho, quase sem mover os lábios —, não teria sido
melhor se, naquele tempo…
O cônsul não lhe podia ver o rosto, que mostrava aquela expressão que pairava
sobre ele em muitas tardes de verão quando, em Travemünde, se encostava à
janela do pequeno quarto… Um dos seus braços repousava sobre os joelhos do
pai, enquanto a mão estava pendente, lassa e sem apoio. E até essa mão revelava
um abandono infinitamente melancólico e terno, uma saudade cheia de
recordações e de doçura, que vagava ao longe.
— Melhor…? — perguntou o cônsul Buddenbrook. — Se não tivesse
acontecido o quê, minha filha?
De todo o coração estava ele disposto para confessar que teria sido melhor não
contrair esse casamento, mas Tony disse apenas com um suspiro:
— Ah, nada!
Era visível que os pensamentos a arrastavam, e que estava bem distante, tendo
quase esquecido a “bancarrota”. O cônsul viu-se obrigado a pronunciar o que
teria preferido confirmar apenas:
— Acho que adivinho os seus pensamentos, minha querida Tony — disse ele
—, e eu também, por minha vez, não hesito em confessar-lhe que me arrependo
desse passo que, há quatro anos, me pareceu acertado e útil… que me arrependo
dele sinceramente. Não creio ter culpa perante Deus. Creio ter cumprido o meu
dever, ao esforçar-me por criar para você uma existência digna da sua origem…
O céu resolveu de outra maneira… mas você não acreditará que o seu pai,
naquela época, tivesse leviana e desconsideradamente arriscado a sua felicidade.
Grünlich travou relações comigo, munido das melhores recomendações: filho de
pastor, homem cristão e de boa sociedade… Mais tarde pedi informações
comerciais que soavam absolutamente favoráveis. Examinei a situação… Tudo
isso está escuro, muito escuro, e fica para ser esclarecido. Mas você não me
acusa, não é…
— Não, papai! Como pode dizer tal coisa! Olhe, não se preocupe, papai,
coitadinho… Está pálido; não quer que eu vá buscar-lhe algumas gotas
estomacais? — Cingindo-lhe o pescoço com os braços, beijou-o em ambas as
faces.
— Agradeço-lhe — disse ele. — Está bem… deixe; muito obrigado! Pois bem,
passei por dias cansativos… que se pode fazer? Tive muitos desgostos. São
provações que Deus nos manda. Mas isso não impede que não possa sentir-me
sem culpa para com você, filhinha. Agora tudo depende da pergunta que já lhe
fiz, mas que ainda não me respondeu com a necessária clareza. Fale francamente
comigo, Tony: você aprendeu a amar o seu marido nesses anos de matrimônio?
Tony chorou novamente e, cobrindo os olhos com ambas as mãos que
seguravam o lencinho de cambraia, proferiu por entre soluços:
— Oh… por que pergunta, papai? Nunca o amei… ele sempre me foi
repelente… Não sabe disso?
Seria difícil dizer o que se passou na fisionomia de Johann Buddenbrook. Os
seus olhos tinham uma expressão assustada e triste, e todavia cerrou os lábios, de
modo que se formaram rugas nas comissuras e nas bochechas, assim como
costumava acontecer quando fechava um negócio vantajoso.
— Quatro anos… — disse baixinho.
De repente, estancaram-se as lágrimas de Tony. Com o lenço úmido na mão,
empertigou-se sobre o assento, para dizer furiosamente:
— Quatro anos… Ah, sim! Às vezes, de noite, ficava sentado comigo e lia o
jornal, nesses quatro anos!…
— Deus lhe fez presente duma filha… — disse o cônsul, comovido.
— Sim, papai… e quero muito bem a Erika… apesar de Grünlich dizer que
não tenho amor à criança… Nunca me separaria dela, isso lhe digo… mas
Grünlich, não! E agora, além do resto, ainda essa bancarrota! Oh, papai, se o
senhor quisesse levar-nos para casa, a mim e a Erika… com todo o prazer!
Agora sabe tudo!
Outra vez o cônsul cerrou os lábios. Estava extremamente contente. Todavia, o
ponto principal tinha ainda de ser aclarado. Mas considerando a decisão
manifestada por Tony, não se arriscou muito:
— Com tudo isso, minha filha — disse ele —, você parece esquecer totalmente
que uma ajuda seria possível… isto é, por meu intermédio. O seu pai já lhe fez a
confissão de que não se sente absolutamente livre de culpa para com você e no
caso… no caso de você esperar dele… de confiar nisso… ele viria em socorro,
evitando a falência, e pagando, por bem ou por mal, as dívidas do seu marido, a
fim de salvar a firma…
Olhou-a atentamente, e a sua expressão encheu-o de satisfação; exprimia
desapontamento.
— De quanto se trata? — perguntou Tony.
— Isso não vem ao caso, minha filha… De uma importância muito, muito
grande! — E o cônsul Buddenbrook acenou várias vezes com a cabeça, como se
o esforço de pensar nessa importância a sacudisse lentamente. — Com tudo isso
— prosseguiu —, não lhe posso ocultar que a minha firma, além deste caso,
sofreu prejuízos, e que a retirada desta importância significaria para ela um
enfraquecimento de que dificilmente… dificilmente se poderia restabelecer. Não
lhe digo isso para…
Não terminou a frase. Tony levantara-se dum pulo; dera até alguns passos para
trás e, ainda com o úmido lencinho de rendas na mão, gritou:
— Muito bem! Chega! Nunca!
Tinha uma aparência quase heroica. A palavra “firma” caíra como um raio.
Muito provavelmente produziu efeito mais decisivo ainda do que a antipatia
contra o sr. Grünlich.
— O senhor não fará isso, papai! — continuou, totalmente fora de si. — Será
que também quer ir à bancarrota? Chega! Nunca!
Nesse instante abriu-se, um pouco hesitantemente, a porta do corredor. Entrou
o sr. Grünlich.
Johann Buddenbrook levantou-se com um gesto que expressava: “Liquidado!”.
8.
O sr. Grünlich estava com o rosto manchado de vermelho, mas trajava com o
maior esmero. Vestia sobrecasaca preta, larga e distinta, e calças cor de ervilha,
tudo no mesmo estilo daquelas primeiras visitas na Mengstrasse. Estacou numa
atitude lassa e dirigindo o olhar para o chão, disse em voz branda e débil:
— Pai…
O cônsul fez uma mesura fria, endireitando, depois, o plastron com alguns
gestos enérgicos.
— Agradeço-lhe por ter vindo — acrescentou o sr. Grünlich.
— Era o meu dever, meu amigo — retrucou o cônsul. — Apenas receio que
esta seja a única coisa que eu possa fazer no seu caso.
Depois de um olhar rápido que o genro lhe lançou, afrouxou mais a sua atitude.
— Ouvi — continuou o cônsul — que o seu banqueiro, o sr. Kesselmeyer, está
à nossa espera… Qual é o lugar que você determinou para a entrevista? Estou às
suas ordens…
— Tenha a bondade de acompanhar-me — murmurou o sr. Grünlich.
O cônsul Buddenbrook beijou a fronte da filha, dizendo:
— Vá encontrar a sua filhinha, Antonie!
Depois, em companhia de Grünlich, que ora o precedia, ora ficava atrás dele,
abrindo-lhe os reposteiros, caminhou através da sala de jantar para a de estar.
Quando o sr. Kesselmeyer, que estava junto à janela, se virou, ergueu-se a
penugem preta e branca da sua cabeça, para, outra vez, recair suavemente sobre
o crânio.
— O sr. Kesselmeyer, banqueiro… o sr. cônsul Buddenbrook, atacadista, meu
sogro… — disse o sr. Grünlich com seriedade e modéstia. O rosto do cônsul
permanecia imóvel. O sr. Kesselmeyer inclinou-se de braços pendentes, metendo
os dois dentes caninos, amarelos, sobre o lábio superior e dizendo:
— Seu criado, senhor cônsul! Estou com a mais viva satisfação de ter este
prazer!
— Tenha a bondade de desculpar a demora, Kesselmeyer — disse o sr.
Grünlich. Mostrava-se cheio de polidez para um e outro.
— Poderíamos ir ao caso? — observou o cônsul, deixando vagar os olhos à
procura de alguma coisa… O dono da casa apressou-se em responder:
— Façam-me o favor, senhores…
Enquanto passavam para o gabinete de fumar, disse o sr. Kesselmeyer
jovialmente:
— Teve uma viagem agradável, senhor cônsul? Ah, sim, com chuva? Pois é;
esta estação não presta; é feia e suja! Se, pelo menos, houvesse algum frio e um
pouco de neve! Mas nada disso: só chuva e lama! É sumamente, sumamente
desgostoso…
“Que homem estranho”, pensou o cônsul.
No centro da pequena peça com tapeçarias escuras, salpicadas de flores,
achava-se uma mesa bastante grande, retangular e forrada de verde. Lá fora, a
chuva aumentara. A escuridão era tão grande que o sr. Grünlich acendeu logo as
três velas que estavam sobre a mesa em castiçais de prata. No pano verde
encontravam-se cartas comerciais, azuladas, timbradas com o nome da firma, e
documentos gastos pelo uso, com rasgões em toda parte, cobertos de algarismos
e de assinaturas. Além disso, via-se um livro-caixa volumoso e uma combinação
de tinteiro e areeiro de metal, onde se eriçava uma porção de lápis e penas de
ganso bem aparadas.
O sr. Grünlich fez as honras da casa com aqueles gestos silenciosos, discretos e
reservados que se usam para cumprimentar a assistência de um enterro.
— Faça-me o favor de tomar a poltrona, meu caro pai — disse suavemente. —
Sr. Kesselmeyer, teria a amabilidade de sentar-se aqui?
Finalmente estabeleceu-se a ordem. O banqueiro ficou em frente ao dono da
casa, enquanto o cônsul, na poltrona, presidia do lado mais comprido da mesa.
As costas da poltrona tocavam a porta do corredor.
O sr. Kesselmeyer, abaixando-se, o beiço inferior pendente, desenredou, do
colete, um pincenê. Ao fincá-lo sobre o nariz, franziu-o e abriu a boca. Depois
disso, cofiou as suíças raspadas, o que produziu um ruído irritante. Apoiou as
mãos nos joelhos e, acenando em direção à papelada, observou lacônica e
alegremente:
— Haha! Aí está toda a salada mista!
— Os senhores me dão licença de me pôr a par do estado das coisas — disse o
cônsul, apanhando o caixa. Subitamente, porém, o sr. Grünlich estendeu ambas
as mãos por cima da mesa num movimento protetor — as mãos compridas,
marcadas por altas veias azuladas, que tremiam visivelmente. Gritou em voz
comovida:
— Um momento! Mais um momento, pai! Oh, permita-me fazer,
preliminarmente, uma observação introdutória! Mas claro, o senhor vai ficar a
par, e nada escapará ao seu olhar… Mas acredite-me: vai ficar a par da situação
de um infeliz, não de um culpado! Considere-me um homem, pai, que sem
descanso reagiu contra o destino, mas que foi prostrado por ele! Neste sentido…
— Hei de ver, meu amigo, hei de ver! — disse o cônsul com evidente
impaciência, e o sr. Grünlich retirou as mãos para deixar curso livre ao destino.
Passaram-se demorados e terríveis minutos de silêncio. À luz irrequieta das
velas, os três cavalheiros estavam sentados, uns perto dos outros, encerrados
entre paredes escuras. Não se ouvia nenhum movimento a não ser o ruído do
papel com o qual lidava o cônsul. Além disso, somente o barulho da chuva que
caía lá fora.
O sr. Kesselmeyer, de polegares enfiados nas cavas do colete, tamborilava com
os outros dedos sobre os ombros, enquanto o seu olhar passava de um ao outro
com indizível alegria. O sr. Grünlich estava sentado sem encostar-se, com as
mãos na mesa; cravara melancolicamente os olhos no chão diante de si,
deixando, de vez em quando, deslizar um tímido olhar lateral para o sogro. O
cônsul, folheando o livro, acompanhava colunas de algarismos com a unha do
indicador; comparava datas e lançava, a lápis, as suas cifras pequenas e ilegíveis
sobre o papel. O seu rosto fatigado expressava o pavor causado pela situação de
que se estava “pondo a par”… Finalmente pôs a mão esquerda sobre o braço do
sr. Grünlich e disse visivelmente abalado:
— Coitado de você!
— Pai… — proferiu o sr. Grünlich com dificuldade. Duas grandes lágrimas
desceram pelas faces do homem lamentável, perdendo-se nas suíças amareladas.
O sr. Kesselmeyer acompanhou com o máximo interesse o caminho dessas duas
gotas; levantou-se até um pouquinho, e, inclinando-se para frente, fitou de boca
aberta a cara do seu vis-à-vis. O cônsul Buddenbrook estava violentamente
comovido. Enternecido pela desgraça que o ferira a ele próprio, sentiu como a
compaixão o arrastava. Mas conseguiu rapidamente dominar os sentimentos.
— Como foi possível isso — disse ele com desconsolado menear da cabeça…
— Nestes poucos anos!
— É brinquedo! — respondeu, bem-humorado, o sr. Kesselmeyer. — Em
quatro anos a gente pode ir água abaixo lindamente! Quando se considera que
saltos alegres os Irmãos Westfahl em Bremen davam ainda há pouco tempo…
O cônsul fixou nele os olhos semicerrados, sem vê-lo, nem ouvi-lo. De modo
nenhum dera expressão aos verdadeiros pensamentos sobre os quais cismava…
Por quê, perguntava a si mesmo, desconfiado e contudo sem compreender, por
que acontecia tudo isso, justamente agora? Dois ou três anos atrás, B. Grünlich
já poderia ter se achado na mesma situação de hoje; isto se via à primeira vista.
Mas dispusera de créditos inesgotáveis; recebera capitais de parte dos bancos;
repetidamente, casas sólidas como as do senador Bock e do cônsul Goudstikker
lhe tinham dado assinaturas para as suas empresas e as suas letras haviam
circulado como dinheiro. Por que justamente agora, agora mesmo — e o chefe
da firma Johann Buddenbrook sabia perfeitamente o que queria dizer com este
“agora” —, por que se produziu agora este colapso por toda parte, este
retraimento total de qualquer confiança, que se realizou como que por
combinação, e este assalto geral a B. Grünlich, com o abandono de toda
consideração e mesmo de todas as formas de cortesia? O cônsul teria sido
ingênuo demais se ignorasse que a reputação da sua própria casa, depois do
contrato de casamento entre Grünlich e a filha, tinha de ser proveitosa também
para o genro. Mas dependia o crédito deste tão exclusiva, tão visível e tão
absolutamente do da firma Johann Buddenbrook? O próprio Grünlich não fora
nada? E as informações que o cônsul pedira, os livros que verificara? Seja como
for, a sua resolução de não tocar nesse caso nem com a ponta do dedo era mais
firme do que nunca. Veriam todos que se tinham enganado nas suas previsões!
Evidentemente, B. Grünlich soubera criar a opinião de que estava solidário com
Johann Buddenbrook. De uma vez por todas era preciso obviar esse engano que
parecia ter se propagado assustadoramente! E esse Kesselmeyer, também, teria
de ficar admirado! Esse palhaço possuiria uma consciência? Era manifesta a
maneira vergonhosa como unicamente especulara com a suposição de que
Johann Buddenbrook não abandonaria o marido da filha; assim continuara dando
créditos a Grünlich, quebrado havia muito, mas fizera-o assinar juros cada vez
mais atrozes…
— Tanto faz! — disse o cônsul laconicamente. — Vamos ao caso. Se estou
aqui para dar o meu parecer de comerciante, lastimo dever pronunciar que esta
situação é, sim, a de um homem infeliz, mas também altamente culpado.
— Pai… — gaguejou o sr. Grünlich.
— Este termo me soa mal aos ouvidos! — disse o cônsul breve e duramente.
— Os créditos do senhor — prosseguiu, virando-se passageiramente para o
banqueiro — com o sr. Grünlich importam em sessenta mil marcos…
— Com os juros atrasados, e com aqueles que foram acrescentados ao capital,
sessenta e oito mil e setecentos e cinquenta e cinco marcos e quinze xelins —
respondeu satisfeito o sr. Kesselmeyer.
— Muito bem… E o senhor absolutamente não estaria disposto a ter mais
alguma paciência?
O sr. Kesselmeyer simplesmente rebentou em riso. Riu-se de boca aberta, num
riso explosivo, sem o mínimo desprezo, até com certa bonomia. Encarou o
cônsul como que a convidá-lo para acompanhar a gargalhada.
Turvaram-se os olhos pequeninos e encovados de Johann Buddenbrook,
orlando-se de repente de bordas vermelhas que se estendiam até as maçãs.
Perguntara apenas pro forma e sabia muito bem que uma prorrogação de um só
credor teria alterado a situação apenas insignificantemente. Mas o modo como
esse homem a rejeitou humilhou-o e exasperou-o ao extremo. Com um único
movimento da mão, afastou de si tudo quanto havia à sua frente e, bruscamente
atirando o lápis sobre a mesa, disse:
— Então declaro que, daqui em diante, não tenho vontade alguma de ocupar-
me com esse caso.
— Haha! — gritou o sr. Kesselmeyer, abanando com as mãos no ar… — Eis
uma palavra de homem; eis o que se chama linguagem digna. O senhor cônsul
arranjará o caso duma maneira muito simples. Sem grande palavreado! Sem
cerimônias!
Johann Buddenbrook nem sequer o olhou.
— Não tenho remédio para você, meu amigo — dirigiu-se ele tranquilamente
para o sr. Grünlich. — As coisas têm de prosseguir no caminho pelo qual
entraram… Não estou no caso de detê-las. Cobre ânimo e procure em Deus força
e consolo. Devo considerar esta entrevista como terminada.
De um modo surpreendente, a fisionomia do sr. Kesselmeyer assumiu uma
expressão séria, o que lhe dava aparência bem estranha. Depois, fez um aceno
animador em direção a Grünlich. Este quedava-se imóvel, e apenas torcia sobre a
mesa as mãos ossudas, com tanta violência que os dedos estalavam levemente.
— Pai… senhor cônsul… — disse em voz trêmula. — O senhor não… não
poderá desejar a minha ruína, a minha miséria! Preste-me atenção! Trata-se, no
total, de um déficit de cento e vinte mil… O senhor pode salvar-me! É um
homem rico! Considere a importância como quiser… como ajuste definitivo,
como herança da sua filha, como empréstimo a juros… Trabalharei… O senhor
sabe que sou ativo e esperto…
— Disse a minha derradeira palavra — replicou o cônsul.
— Com licença… O senhor não pode? — perguntou o sr. Kesselmeyer,
olhando-o, de nariz franzido, através do pincenê. — Se posso tomar a liberdade
de fazer com que o senhor cônsul reconsidere… temos justamente aqui uma
excelente ocasião para demonstrar a força da firma Johann Buddenbrook…
— O senhor faria bem deixando só comigo o cuidado da reputação da minha
casa. Para evidenciar minha solvência não preciso atirar o meu dinheiro ao
atoleiro mais próximo…
— Ora, ora! “Atoleiro”, haha, é sumamente divertido! Mas não acha o senhor
cônsul que a falência do senhor seu genro… faria… hum… lançaria também
uma luz falsa e desfavorável sobre a sua própria situação?
— Nada posso fazer senão recomendar-lhe mais uma vez deixar comigo o
cuidado do meu nome comercial — disse o cônsul.
Desnorteado, o sr. Grünlich olhou o rosto do banqueiro. Recomeçou outra vez:
— Pai… imploro-lhe: pense bem no que está fazendo! Será que se trata só de
mim? Ah, eu… pouco importa que eu pereça! Mas a sua filha, a minha mulher,
aquela que amo tanto, e que conquistei numa luta tão dura… e a nossa filhinha, a
criança inocente de nós dois… ela também cairia na miséria! Não, meu pai, eu
não suportaria isso! Suicidar-me-ia. Sim, matar-me-ia com as minhas próprias
mãos… Acredite-me! E que o senhor, então, se absolva de qualquer culpa!
Pálido, o coração palpitante, Johann Buddenbrook se reclinou contra a
poltrona. Pela segunda vez chegou até ele a tempestade de sentimentos que se
desencadeava nesse homem e cuja manifestação tinha o aspecto de absoluta
sinceridade; como naquele tempo em que comunicara ao sr. Grünlich a carta que
a filha mandara de Travemünde, teve de ouvir essa mesma ameaça horrível e
outra vez estremeceu, por causa da reverência absoluta que a sua geração tinha
aos sentimentos humanos, reverência que sempre divergia do seu sóbrio e
prático sentido de negócios. Mas esse ataque não durou mais de um segundo.
“Cento e vinte mil marcos…”, repetiu no seu íntimo, para depois dizer tranquila
e firmemente:
— Antonie é minha filha. Saberei impedir que ela sofra inocentemente.
— Que quer o senhor dizer com isso? — perguntou Grünlich, pasmado.
— Ficará sabendo — disse o cônsul. — Por enquanto, não tenho nada a
acrescentar às minhas palavras. — Com isso levantou-se, empurrando
energicamente a cadeira, e virou-se para a porta.
O sr. Grünlich permanecia sentado, mudo, ereto, fora de si, e a boca
movimentava-se convulsivamente, sem que palavra alguma conseguisse
desprender-se dela. A alegria do sr. Kesselmeyer, porém, voltou em
consequência desse movimento conclusivo e definitivo do cônsul… cresceu,
ultrapassando todos os limites e tornando-se formidável! O pincenê caiu-lhe do
nariz, que subiu por entre os olhos, enquanto a boca minúscula, onde os dois
dentes caninos se erguiam solitariamente, ameaçava rasgar-se. As mãozinhas
vermelhas remaram no ar; a penugem vibrou, e o rosto totalmente contraído,
desfeito pelo bom humor exagerado, orlado pelas suíças brancas e rapadas,
assumiu a cor do cinábrio.
— Haha! — gritou em voz esganiçada. — Acho isto sumamente… sumamente
divertido! Mas o senhor deveria refletir bem, cônsul Buddenbrook, antes de
botar no lixo um exemplar tão mimoso, tão escolhido de genrozinho! Jamais
existirá no vasto universo de Deus outro sujeito de tanta atividade e esperteza!
Haha! Há quatro anos, quando, pela primeira vez, estávamos com a faca sobre a
garganta… quando a corda nos cingia o pescoço, aquele estratagema de que
lançamos mão, proclamando de repente, na Bolsa, o contrato de casamento com
Mademoiselle Buddenbrook, ainda antes de ele ser realmente fechado… Todos
os meus respeitos! Sim, senhor, que coisa notável!
— Kesselmeyer! — berrou o sr. Grünlich, fazendo gestos convulsivos com as
mãos, como quem se defende contra um fantasma. Correu para um canto da
peça, onde se assentou numa cadeira, escondendo o rosto nas mãos e abaixando-
se tanto que as extremidades das suíças lhe repousavam nas coxas. Algumas
vezes até alçava os joelhos.
— Como foi que fizemos isso? — continuou o sr. Kesselmeyer. — Como
conseguimos apanhar a filhinha e os oitenta mil marcos? Oh-oh, isto se arranja!
Se a gente possui atividade e um vintém de esperteza arranja-se tudo! Ao senhor
papai, que nos salvou, apresentamos livros muito bonitos, livros limpinhos onde
tudo estava em perfeita ordem… só que não completamente de acordo com a
triste realidade… Pois, nessa triste realidade, três quartos do dote já eram
dívidas!
O cônsul quedou-se na porta pálido como a morte, com a maçaneta na mão.
Arrepios lhe desciam pelas costas. Parecia-lhe que, nesse pequeno gabinete sob a
luz irrequieta, ele estava sozinho com um vigarista e um macaco louco de
maldade.
— Tenho apenas desdém pelas suas palavras, senhor — proferiu ele com pouca
segurança. — Tenho tanto mais desdém pelas suas calúnias ensandecidas quanto
tocam também a mim mesmo… a mim, que não sou daqueles que desgraçam
levianamente a sua filha. Pedi, sobre o meu genro, informações dignas de
confiança… e o resto foi vontade de Deus!
Virou-se. Não quis ouvir mais nada. Abriu a porta. Mas seguiu-o o berro do sr.
Kesselmeyer:
— Haha? Informações? De quem? De Bock? De Goudstikker? De Petersen?
De Massmann & Timm? Todos eram credores! Todos estavam grandemente
interessados! Como todos estavam felizes por serem garantidos pelo casamento!
O cônsul fechou a porta com estrondo.
9.
Dora, a cozinheira sobre cuja honestidade Tony tinha certas dúvidas, estava na
sala de jantar.
— Vá pedir à sra. Grünlich que desça — ordenou o cônsul. — Prepare-se,
minha filha — disse este, quando Tony apareceu. — Apronte-se a toda pressa e
faça que Erika também esteja logo pronta para a viagem… Iremos para a cidade,
de carruagem… Pernoitaremos no hotel e amanhã viajaremos para casa.
— Sim, papai — disse Tony. Estava com o rosto corado, espavorido e
desconcertado. Fez gestos desnecessários e apressados para endireitar a cintura,
sem saber como começar os preparos e sem poder acreditar na completa
realidade dessa aventura.
— Que devo levar, papai? — perguntou com medo e emoção… — Tudo?
Todos os vestidos? Uma ou duas malas? É verdade mesmo que Grünlich está na
bancarrota? Santo Deus! Mas será que então poderei levar as minhas joias?
Papai, as empregadas têm de ser despedidas? Não posso mais pagá-las… Hoje
ou amanhã, Grünlich devia dar-me a mesada…
— Deixe isso, minha filha. Estas coisas serão arranjadas depois. Leve somente
o mais necessário… uma mala… uma pequena! Vão mandar-lhe o que lhe
pertence. Mas depressa, ouviu? Temos…
Nesse instante abriram-se as cortinas: o sr. Grünlich entrou no salão. A passos
rápidos, com os braços abertos e a cabeça inclinada para o lado, na atitude de
quem quer dizer: “Aqui estou! Mate-me se quiser!”, correu ao encontro da
esposa e, perto dela, deixou-se cair de joelhos. O seu aspecto era de causar dó.
As suíças amareladas estavam desgrenhadas, a sobrecasaca amarrotada, o
plastron desfeito e o colarinho aberto. Na testa notavam-se pequenas gotas.
— Antonie! — disse ele. — Olhe-me, veja como estou… Você tem um
coração, um coração sensível? Escute-me… você está vendo na sua frente um
homem que está aniquilado, arruinado, se… sim, um homem que morrerá se
você desdenhar o seu amor! Aqui estou ajoelhado… Será que você tem alma
para dizer-me: “Abomino-o… Vou abandoná-lo…”.
Tony chorou. A mesma cena de outrora na sala das Paisagens. Outra vez viu o
rosto desfigurado pelo medo e os olhos súplices que se cravaram nela; e
novamente percebeu com pasmo e emoção que esse medo e essa suplicação
eram sinceros e livres de hipocrisia.
— Levante-se, Grünlich — disse ela entre soluços. — Por favor, levante-se! —
E fez um esforço para alçá-lo pelos ombros. — Não o abomino! Como pode
dizer tal coisa! — Sem saber o que mais poderia dizer, dirigiu-se para o pai,
completamente desnorteada. O cônsul, apanhando a mão dela, fez uma mesura
diante do genro e foi com ela para a porta do corredor.
— Você vai embora? — gritou o sr. Grünlich, erguendo-se de um pulo. — Já
lhe expliquei — disse o cônsul — que não posso admitir que minha filha seja
entregue à desgraça, sem ter a mínima culpa. E acrescento que você também não
pode fazer isso. Não, senhor, você desmerece a posse de minha filha. E seja
grato ao seu Criador por ter conservado tão puro e tão ignorante o coração dessa
jovem que se separa de você sem abominação! Adeus!
Nesse momento, porém, o sr. Grünlich perdeu a cabeça. Teria podido falar de
uma separação de pouca duração, de uma volta e de uma vida nova, salvando,
talvez, assim a herança. Mas chegara ao fim do raciocínio, da atividade e da
esperteza. Teria podido apanhar o grande prato de bronze, inquebrável, que se
encontrava na prateleira do espelho. Mas apanhou o vaso fino, pintado de flores,
que se achava ao lado, arremessando-o ao chão, de modo que se quebrou em
milhares de cacos…
— Ah! muito bem! — gritou. — Vá-se embora! Acha que vou chorar por
causa de você, sua tola? Ah, não, a senhora está enganada! Casei-me com você
unicamente por causa do seu dinheiro, mas como absolutamente não bastou,
suma-se de casa! Estou farto de você… farto… farto!
Sem falar, Johann Buddenbrook conduziu a filha para fora. Ele mesmo, porém,
voltou mais uma vez. Aproximando-se de Grünlich, que, mãos nas costas, ficava
junto à janela, cravando o olhar na chuva, tocou-lhe suavemente o ombro e disse
baixinho, em tom de admoestação:
— Cobre ânimo! Reze!
10.
Sucedeu numa triste noite de maio que tio Gotthold — o cônsul Gotthold
Buddenbrook —, naquele tempo com sessenta anos, foi acometido por uma crise
cardíaca e teve uma morte penosa nos braços da esposa, antiga Demoiselle
Stüwing.
O filho da infeliz sra. Josephine, durante toda a vida, recebera fraco quinhão
em comparação com os irmãos mais moços e mais poderosos, filhos da sra.
Antoinette. Mas havia muito se conformara com esse seu destino, e nos últimos
anos, principalmente desde que o sobrinho lhe outorgara o consulado dos Países
Baixos, chupara sem o mínimo rancor as pastilhas pulmonares de uma lata.
Quem, porém, conservava e guardava a velha discórdia familiar em forma de
animosidade geral e indeterminada eram as senhoras da sua família; menos a
esposa bondosa e pouco esperta do que as três filhas, que não podiam olhar nem
a consulesa nem Antonie nem Thomas sem terem nos olhos setas venenosas…
Nas tradicionais reuniões da família nas quintas-feiras, às quatro horas,
encontravam-se no casarão da Mengstrasse, para ali almoçarem e passarem a
tarde. Por vezes apareciam também o cônsul Kröger ou Sesemi Weichbrodt com
a irmã inepta. Era nessas ocasiões que as sras. Buddenbrook da Breite Strasse
falavam com irrestrita preferência sobre o findo matrimônio de Tony, para
motivarem algumas palavras sonoras da sra. Grünlich, que acompanhavam com
olhadelas irônicas… Ou talvez fizessem observações gerais sobre a vaidade
indigna de tingir os cabelos, ou pedissem, com interesse exagerado, informações
sobre Jakob Kröger, sobrinho da consulesa; a Klothilde, coitadinha, simplória e
paciente, único membro da família que realmente se devia sentir inferior a elas,
davam-lhe a provar a amargura duma zombaria em absoluto tão inocente quanto
aquela de Tom e de Tony, que a moça faminta e indigente aceitava todos os dias
com a mesma amabilidade lerda e pasmada. Zombavam da severidade de Klara;
descobriram rapidamente que o entendimento entre Thomas e Christian não era
perfeito e que, em geral, graças a Deus, não era necessário respeitar este último,
pois não passava de um palhaço, um joão-ninguém. Quanto ao próprio Thomas,
que, absolutamente, não tinha fraquezas encontradiças e tratava as primas, por
sua vez, com uma impassibilidade indulgente que indicava: “Compreendo-as e
tenho compaixão de vocês…”, encaravam-no com reverência levemente
envenenada. Da pequena Erika, porém, embora rosada e bem cuidada, devia-se
dizer que estava assustadoramente atrasada no seu desenvolvimento físico. E
nessas ocasiões Pfiffi, agitando-se a cada palavra e molhando as comissuras dos
lábios, apontava desnecessariamente para a semelhança pavorosa que a criança
tinha com o caloteiro Grünlich…
Agora, porém, em companhia da mãe, chorando, cercavam o leito de morte do
pai, e, apesar de terem a impressão de que até essa morte era causada pelos
parentes da Mengstrasse, mandaram ali um mensageiro.
A altas horas da noite, ressoou pelo alpendre a campainha do portão, e como
Christian, voltando tarde para casa, se sentisse enfermo, Thomas foi sozinho,
através da chuva primaveril.
Chegou a tempo de ver os derradeiros estremecimentos convulsivos do velho.
Depois, de mãos juntas, quedou-se durante muito tempo na câmara ardente,
olhando o corpo rechonchudo que se delineava por baixo das cobertas e o rosto
morto, de feições um tanto moles e suíças brancas…
“Não teve boa vida, tio Gotthold”, pensou Thomas. “Aprendeu tarde a fazer
concessões e a tomar considerações… Mas é preciso… Se eu fosse como você
há muitos anos que seria casado com uma loja… Guardar os dehors!… Será que
almejou mais do que recebeu? Embora você fosse teimoso e pensasse que essa
teimosia era algo de idealista, o seu espírito possuía muito pouco impulso, pouca
fantasia e pouco daquele idealismo que nos capacita a guardar, cultivar,
defender, dar honra, poder e brilho a algum valor abstrato, como sejam um nome
antigo ou uma tabuleta de firma; e isso com um tácito entusiasmo que é mais
doce, torna mais feliz e satisfaz mais do que um amor clandestino. Você careceu
do senso de poesia, embora fosse bastante corajoso para amar e casar-se contra a
ordem do pai. Também não tinha ambição, tio Gotthold. É verdade que o nome
antigo é apenas um nome burguês, e que a gente cuida dele, aumentando a
prosperidade de uma casa de cereais ou fazendo a própria pessoa honrada,
querida e poderosa, num pedacinho do mundo… Acaso pensou: ‘Vou me casar
com a Stüwing que amo, e não me preocupo com as considerações práticas, pois
estas são mesquinhas e dignas de filisteus’? Oh, nós também viajamos bastante e
temos suficiente cultura para reconhecermos perfeitamente que, vistos de fora e
de cima, os limites traçados para a nossa ambição são apenas estreitos e
miseráveis. Mas neste mundo nada passa de uma parábola, tio Gotthold! Não
sabia que podemos ser grandes também numa cidade pequena? Que se pode ser
César num medíocre centro comercial do mar Báltico? Para isso, sim, precisa-se
de um pouco de fantasia e idealismo… e essas qualidades você não possuía,
fosse qual fosse o seu pensar a respeito da sua pessoa.”
Thomas Buddenbrook virou-se. Foi para a janela e, de mãos nas costas, com
um sorriso sobre o rosto inteligente, olhou a fachada ogival da Prefeitura,
fracamente iluminada e envolta em chuva.
Como era natural, o cargo e o título de cônsul real dos Países Baixos, que
Thomas, já por ocasião da morte do pai, teria podido arrogar-se, passaram agora
para ele, o que causava desmedido orgulho a Tony Grünlich. Novamente via-se
na cumeeira do casarão da Mengstrasse, por baixo do Dominus providebit, o
escudo côncavo com leões, brasão e coroa.
Logo depois de ter despachado esse assunto, já em junho do mesmo ano, o
jovem cônsul fez uma viagem a Amsterdam, viagem de negócios, que não sabia
quanto tempo exigiria.
5.
“Ora!”, pensava Tony Grünlich. “Qual o Satanás que a quereria devorar?” Mas
não dizia nada: agarrava-se ao pudim e ficava a cismar sobre se, um dia, ela seria
tão feia quanto as irmãs Gerhardt.
Não era feliz; aborrecia-se, e estava com raiva dos pastores e missionários,
cujas visitas depois da morte do cônsul tinham aumentado. Segundo a opinião de
Tony, esses cavalheiros mandavam demasiadamente em casa e recebiam mais
dinheiro do que convinha. O último assunto era da alçada de Thomas; mas ele
ficava calado a esse respeito, ao passo que a sua irmã por vezes murmurava
coisas sobre certa gente que devora as casas das viúvas, recitando orações sem
fim.
Tinha um ódio encarniçado a esses senhores de preto. Na situação de mulher
amadurecida, que conhecia a vida e não era mais uma tola, não se via em
condições de acreditar na santidade incondicional deles. “Meu Deus, mãe”, dizia
ela, “não se deve falar mal do próximo… Muito bem! Mas não posso deixar de
dizer-lhe uma coisa, e ficaria muito admirada se a vida não lhe tivesse ensinado
que nem todos que usam casaco preto e andam clamando ‘Deus, meu Senhor!’
são totalmente imaculados!”
Jamais se esclareceu o que pensava Thomas a respeito dessas verdades que a
irmã proferia com enorme ênfase. Christian, porém, não tinha opinião nenhuma;
limitava-se a observar, de nariz franzido, esses cavalheiros, para depois imitá-los
no clube ou em família…
Inegavelmente, mais do que os outros, Tony ficava exposta aos hóspedes
eclesiásticos. Um dia chegara à casa um missionário de nome Jonathan que
estivera na Síria e na Arábia, homem de olhos grandes, cheios de repreensão, e
cujas bochechas pendiam tristemente. E aconteceu deveras que esse senhor se
plantou diante dela para solicitar-lhe com aflição e severidade a solução deste
problema: se os seus cachos frisados eram compatíveis com a verdadeira
humildade cristã… Ah! Ele não contara com a eloquência mordaz e sarcástica de
Tony Grünlich. Ela se calou durante alguns momentos, e via-se como o seu
cérebro trabalhava. E então veio a resposta: “Rogo-lhe a fineza, prezado senhor
pastor, de ocupar-se dos seus próprios cabelos!”. E com isso saiu
majestosamente, alçando um pouco os ombros, atirando a cabeça para trás e
procurando, apesar disso, apertar o queixo contra o peito… O tal pastor Jonathan
possuía muito pouco cabelo; podia-se até chamar de nu o seu crânio!
Uma vez, porém, coube-lhe um triunfo ainda maior. Chegara o pastor
Trieschke de Berlim, o Trieschke Chorão, que granjeara esse apelido por
rebentar em choro todos os domingos em apropriado trecho do seu sermão.
Trieschke Chorão tinha o rosto pálido, olhos vermelhos e verdadeiras
mandíbulas de cavalo. Na casa dos Buddenbrook, durante oito ou dez dias, ou
comia ao desafio com a pobre Klothilde ou ministrava serviços religiosos. Nessa
ocasião enamorou-se de Tony… não da sua alma imortal, nada disso, mas, sim,
do lábio superior, dos olhos bonitos, do cabelo espesso e do corpo fresco! E esse
homem de Deus, que, em Berlim, tinha mulher e uma porção de filhos, atreveu-
se a mandar o criado Anton depositar uma carta no quarto da sra. Grünlich, no
segundo andar, carta esta eficientemente misturada de extratos da Bíblia e de
certa ternura singularmente pegajosa… Tony a achou ao deitar-se. Leu-a e, em
passos enérgicos, desceu para o entressolho, ao quarto da consulesa. Ali, à luz
das velas, recitou à mãe a carta do pároco, em voz alta e sem o mínimo
acanhamento. Daí em diante, Trieschke Chorão tornou-se intolerável na
Mengstrasse.
— Todos são assim! — disse a sra. Grünlich. — Ah, sim! Todos eles! Grande
Deus; antigamente fui uma tola, uma bobalhona: mas, mamãe, a vida destruiu a
confiança que eu tinha nos homens. Na maioria são patifes… sim, infelizmente é
verdade. Esse Grünlich! — E o nome soou como um toquezinho de clarim que
ela deixou vibrar pelo ar, de ombros levemente erguidos e com os olhos dirigidos
para cima.
Sievert Tiburtius era homem baixinho, mas esbelto, de cabeça grande, e usava
suíças loiras, finas, compridas e bem repartidas, cujas extremidades, para maior
comodidade, deitava às vezes aos dois lados, sobre os ombros. O crânio redondo
estava coberto por inúmeros anéis de cabelo, minúsculos e lanosos. Tinha
orelhas grandes, extremamente despegadas, muito enroladas nas bordas, e na
parte superior tão pontudas quanto as de uma raposa. O nariz colava-se ao seu
rosto como um pequeno botão chato; as maçãs eram salientes, e os olhos
cinzentos, em geral firmemente cerrados e piscos de modo meio estúpido, eram
em certos momentos capazes de dilatar-se surpreendentemente, tornando-se cada
vez maiores, arregalando-se e quase que saltando das órbitas…
Eis o pastor Tiburtius, natural de Riga. Oficiara durante alguns anos na
Alemanha Central, e naquela época, regressando à terra pátria, onde lhe coubera
um posto de pastor, passou pela cidade. Munido com a recomendação de um
colega que, em outros tempos, também comera na Mengstrasse sopa mock-turtle
e presunto com molho de cebolinhas, fez uma visita à consulesa. Convidado para
hospedar-se na casa durante a sua estada, que devia ser de alguns dias, ocupou o
vasto quarto dos hóspedes no primeiro andar, ao lado do corredor.
Mas demorou-se mais do que esperara. Passaram-se oito dias, e ainda não
visitara este ou aquele monumento, a Dança dos Mortos e o relógio dos
apóstolos na igreja de Santa Maria, a Associação dos Navegantes ou os olhos
móveis do sol, na catedral. Passaram-se dez dias e, repetidas vezes, falou da
partida, mas, à primeira palavra que o solicitou a ficar, adiou-a novamente.
Era homem melhor do que os srs. Jonathan e Trieschke Chorão.
Absolutamente não lhe importavam os cachos frisados de Antonie, e não lhe
escrevia carta alguma. Maior atenção dedicava porém a Klara, a sua irmã mais
moça e mais séria. Na presença desta, quando ela falava, vinha ou ia, podia
acontecer que os olhos de Tiburtius se dilatassem surpreendentemente, tornando-
se cada vez maiores, arregalando-se e quase saltando das órbitas… Passou
grande parte do dia junto dela, mantendo palestras religiosas ou profanas ou
recitando-lhe poemas… na sua voz alta, esganiçada e na pronúncia
engraçadamente saltitante da sua pátria báltica.
Logo no primeiro dia dissera: “Misericórdia! Senhora consulesa! Que tesouro,
que bênção de Deus possui na sua filha Klara! É deveras uma criatura
magnífica!”.
“O senhor tem razão”, respondera a consulesa. Mas ele repetiu tão amiúde essa
apreciação, que ela deixou vagar sobre ele os olhos azul-claros, para examiná-lo
discretamente, induzindo-o a falar um pouco mais detalhadamente da sua
origem, situação e futuro. Resultou que descendia de uma família de
comerciantes e que a mãe estava com Deus. Não tinha irmãos, e o velho pai
vivia em Riga como abastado capitalista cujos recursos, um dia, pertenceriam ao
próprio pastor Tiburtius. De resto, a sua posição lhe garantia renda suficiente.
Klara Buddenbrook tinha, naquele tempo, dezenove anos. O cabelo escuro, liso
e repartido, os olhos severos e todavia sonhadores, o nariz levemente curvo, a
boca cerrada com uma energia um tanto exagerada e a figura alta e delgada, tudo
fazia dela uma moça de beleza austera e singular. Em casa entendia-se melhor
com a pobre prima Klothilde, igualmente piedosa, cujo pai morrera
recentemente, e que andava com a ideia de “instalar-se” num futuro próximo,
isto é, de hospedar-se numa pensão com os móveis e o pouco dinheiro que
herdara… É verdade que Klara não possuía nada da humildade lerda, paciente e
faminta de Thilda. No trato da criadagem e até dos irmãos e da mãe era-lhe
peculiar um tom meio arrogante; a sua voz de contralto, que apenas sabia baixar
com decisão, mas nunca levantava interrogativamente, tinha caráter imperioso e
muitas vezes assumia tonalidades lacônicas, duras, intolerantes e altivas:
principalmente nos dias em que Klara sofria dor de cabeça.
Antes de a morte do cônsul enlutar a família, participara com dignidade
inabordável das reuniões na casa paterna e nas famílias da mesma categoria… A
consulesa, ao observá-la, não podia dissimular, apesar do dote considerável e das
capacidades caseiras de Klara, que seria difícil casar essa filha. Nenhum dos
comerciantes joviais, céticos, bebedores de vinho tinto, que a cercavam, era
imaginável ao lado da moça séria e pia. Por isso, os delicados passos iniciais do
pastor Tiburtius encontraram uma condescendência amável por parte da
consulesa, vivamente emocionada pela ideia desse casamento.
E o caso desenvolveu-se de fato com grande precisão. Numa tarde de julho,
quente e clara, a família deu um passeio. A consulesa, Antonie, Christian, Klara,
Thilda, Erika Grünlich com Ida e, no meio deles, o pastor Tiburtius saíram do
portão da Fortaleza, a fim de comerem morangos, coalhada e creme de frutas
numa estalagem rústica, em mesas sem toalha e ao ar livre. Depois da pequena
refeição, passeavam pelo grande pomar que se estendia até o rio, na sombra das
muitas árvores frutíferas, por entre groselheiras e framboeseiras, e pelos campos
de batatas e espargos.
Sievert Tiburtius e Klara Buddenbrook ficaram um pouquinho atrás. Ele, muito
mais baixo do que ela, as suíças repartidas sobre os ombros, tirara o chapéu de
palha, preto e de abas largas. De vez em quando enxugava a testa com o lenço.
De olhos arregalados, manteve com Klara uma demorada e suave conversa,
durante a qual ambos estacaram uma vez, para Klara proferir o “sim” em voz
séria e calma.
Depois da volta, quando a consulesa, um pouco cansada, com o corpo quente,
se acomodara sozinha na sala das Paisagens (lá fora havia a tranquilidade
pensativa da tarde dominical), o pastor Tiburtius sentou-se ao seu lado, no brilho
do crepúsculo de verão. Começou com ela também uma conversa demorada e
suave, no fim da qual a consulesa disse:
— Chega, caro senhor pastor… A sua proposta corresponde aos meus desejos
maternais, e o senhor, por sua vez, não fez má escolha; posso afirmar-lhe…
Quem teria pensado que sua entrada e estada na nossa casa seriam tão
milagrosamente abençoadas! Hoje ainda não direi a minha palavra decisiva, pois
convém que eu escreva antes ao meu filho, o cônsul, que, como sabe, atualmente
se acha no estrangeiro. Amanhã, o senhor viajará, de boa saúde, para Riga, a fim
de entrar na sua nova função, e nós tencionamos passar algumas semanas na
praia… Em breve, receberá notícias minhas, e queira o Senhor que, felizes, nos
tornemos a encontrar.
7.
E com isso piscou um olho a Tom e Gerda, passando a língua pelo lábio
superior. Por reverência à história, não omitiu a influência que tivera sobre os
destinos da família certa pessoa cujo nome não gostava de pronunciar…
Quinta-feira, às quatro horas, chegaram os convidados de costume: veio Justus
Kröger com a esposa fraca; o casal vivia em graves divergências, porque ela
mandava dinheiro, mesmo para a América, para o filho Jacob, depravado e
deserdado… dinheiro que economizava da mesada, de modo que o casal comia
quase unicamente pirão; não havia remédio. Vieram as primas Buddenbrook da
Breite Strasse, cujo amor à verdade as obrigava a constatar que Erika Grünlich
outra vez não aumentara de peso, e que se tornara mais parecida ainda com o
pai, aquele caloteiro, e que a noiva do cônsul usava um penteado bastante
escandaloso… E veio também Sesemi Weichbrodt; erguendo-se nas pontas dos
pés, para beijar a testa de Gerda com um leve estalido, disse comovida:
— Seja feliz, minha boa menina!
À mesa, o sr. Arnoldsen proferiu um dos seus brindes espirituosos e cheios de
fantasia, e mais tarde, à hora do café, tocou violino como um cigano, com a
mesma habilidade, paixão e selvageria. E Gerda também foi buscar seu
Stradivarius, do qual nunca se separava. Com doce cantilena interveio nas
passagens do pai, e os dois tocaram duetos imponentes, na sala das Paisagens, no
mesmo lugar onde outrora o avô soprara na flauta as suas melodiazinhas
delicadas.
— Sublime! — disse Tony, que se recostava à poltrona. — Grande Deus, como
acho isso sublime! — Com seriedade, vagar e importância continuou ela a
expressar os seus sentimentos vivos e sinceros… — Não! sabem? A vida é
assim… Esses talentos não acontecem a qualquer um! A mim, o céu os recusou,
embora muitas vezes, à noite, eu lhe tenha implorado… Eu sou uma tolinha, uma
bobalhona… Pois sim, Gerda, pode acreditar-me… Eu sou mais velha e conheci
a vida… Você devia ajoelhar-se todos os dias diante do seu Criador, para
agradecer-lhe ser uma criatura tão prendosa.
— … prendada — corrigiu Gerda e, rindo, mostrou os bonitos dentes brancos.
Mais tarde reuniu-se toda a família para deliberar sobre as necessidades do
futuro mais próximo, acompanhando-se o conselho com um pouco de geleia de
vinho. Decidiram que, no fim do mês ou em princípios de setembro, Sievert
Tiburtius e também os Arnoldsen voltariam para as suas pátrias. Logo depois do
Natal, o enlace de Klara devia ser celebrado suntuosamente no alpendre, ao
passo que o casamento em Amsterdam, ao qual também a consulesa tencionava
assistir — se Deus quiser! —, tinha de ser adiado para o começo do ano
seguinte. De nada valeu a oposição de Thomas.
— Por favor! — disse a consulesa, pousando a mão sobre o seu braço… —
Sievert tem o prévenir!
O pastor e a sua noiva renunciaram a uma viagem de núpcias. Gerda e Thomas
puseram-se de acordo sobre a rota para Florença através da Itália setentrional.
Ausentar-se-iam durante uns dois meses; entrementes, Antonie, com o sr.
Jakobs, da casa de móveis na Fischstrasse, aprontaria a bonita casinha na Breite
Strasse, propriedade de um solteiro que se mudara para Hamburgo; o cônsul já
estava negociando a compra. Ah, Tony faria tudo a contento!
— Vocês terão um lar distinto! — disse ela, e ninguém duvidava disso.
Christian, porém, de pernas delgadas e tortas e de nariz enorme, andava de cá
para lá através dessa sala, onde dois casais de noivos seguravam as mãos um do
outro, e onde de nada se falava senão do enlace, enxoval e viagens de núpcias.
Sentia uma tortura, uma indeterminada tortura na perna esquerda, e olhava para
todo mundo com os olhinhos redondos e encovados. Finalmente, na pronúncia
de Marcellus Stengel, disse para a pobre prima Klothilde, que, no meio dessa
felicidade, se quedava envelhecida, taciturna, magrinha e, mesmo depois das
refeições, com fome:
— Pois então, Thilda, vamos casar-nos também… Quer dizer, cada um por si!
9.
Uns sete meses mais tarde, o cônsul Buddenbrook e a esposa voltaram da Itália.
Na Breite Strasse estendia-se a neve de março, quando, às cinco da tarde, o carro
de aluguel parou diante da fachada da sua casa, simples e pintada a óleo. Um
grupo de crianças e burgueses adultos estacou, para ver descerem os recém-
chegados. Cheia de orgulho dos preparativos que fizera, a sra. Antonie Grünlich
postara-se no vão do portão, e atrás dela estavam, igualmente prontas para a
recepção, as duas empregadas que escolhera com perícia para a cunhada; duas
moças de gorros brancos, braços nus e grossas saias listradas.
Apressadamente, corada pelo trabalho e pela alegria, Tony desceu correndo os
degraus baixos. Gerda e Thomas, vestidos de mantos de peles, saíram da
carruagem coberta de malas. Por entre abraços, Tony arrastou-os para a
entrada…
— Finalmente! Estão de volta, felizardos; como viajaram longe! “Viram a
casa? Em colunas altas repousa o telhado…”* Gerda, você ficou ainda mais
bonita; venha cá, deixe-me beijá-la… Não, na boca também! Assim! Bom dia,
velho Tom, você ganha também um beijo. Marcus disse que aqui tudo foi muito
bem. Mamãe espera vocês na Mengstrasse, mas antes descansem um
pouquinho… Querem beber algum chá? Ou tomar um banho? Está tudo pronto.
Não terão de que se queixar. Jakobs esforçou-se muito, e eu fiz também o que
pude…
Foram juntos para o vestíbulo, enquanto as empregadas e o cocheiro
carregavam a bagagem. Tony observou:
— Vocês não usarão muito as acomodações do térreo, por enquanto… por
enquanto — repetiu ela, passando a ponta da língua pelo lábio superior. — Esta é
bem bonita — e abriu uma porta ao lado do guarda-vento. — Há hera diante das
janelas… móveis de madeira simples… carvalho… Lá para trás, noutro lado do
corredor, há outro quarto, maior. Aí, à direita, ficam a cozinha e a despensa…
Mas vamos para cima; ah, sim, quero mostrar-lhes tudo!
Sobre a larga passadeira vermelho-escura, subiram pela escada ampla. Em
cima, atrás de uma porta envidraçada do patamar, havia um corredor estreito. Ali
se encontrava a sala de jantar, com pesada mesa redonda, onde fervia o samovar;
diante das tapeçarias vermelho-escuras, adamascadas, achavam-se cadeiras de
nogueira esculpida com assentos de vime e um aparador maciço. Ao lado
encontrava-se uma sala de estar acolhedora, forrada de fazenda cinzenta e
separada apenas por uma cortina de um salão estreito, de poltronas listradas de
verde e com um balcão. Uma quarta parte do andar era ocupada por uma grande
sala de três janelas.
Depois, entraram no quarto de dormir. Achava-se ao lado direito do corredor e
tinha cortinas floreadas e enormes camas de mogno. Tony foi para a pequena
porta filigranada que se achava nos fundos. Apertando o trinco, abriu a vista para
uma escada de caracol cujas espirais conduziam ao subsolo: para o banheiro e os
quartos das criadas.
— É bonito isto! Quero ficar aqui — disse Gerda, e com um suspiro de alívio
deixou-se cair numa das poltronas ao lado das camas.
O cônsul inclinou-se sobre ela e beijou-lhe a testa.
— Está cansada? É verdade que eu, também, gostaria de preparar-me um
pouquinho…
— Eu vou cuidar da água para o chá — disse a sra. Grünlich. — Espero-os na
sala de jantar… — E para lá foi.
Quando Thomas chegou, o chá estava pronto e fumegava nas xícaras de
Meissen.
— Aqui estou — disse ele. — Gerda quer descansar mais meia hora. Está com
dor de cabeça. Depois iremos à Mengstrasse… Então, todos vão bem, minha
querida Tony? A mãe, Erika, Christian? Mas agora — prosseguiu ele com um
gesto muito amável — os nossos melhores agradecimentos, também em nome de
Gerda, por todo esse trabalho que você teve, minha boa irmã! Como fez tudo
isso tão bonito! Nada falta, senão algumas palmeiras para o balcão da minha
mulher e alguns bons quadros a óleo que vou procurar… Mas agora fale! Como
vai, e como passou o tempo todo?
Aproximou uma cadeira para a irmã e, enquanto falavam, tomou lentamente o
seu chá e comeu um biscoito.
— Ora, Tom — respondeu ela. — Que posso fazer? A minha vida está
terminada…
— Tolice, Tony! Você com a sua vida… Mas parece que se aborrece
bastante…
— Sim, Tom, aborreço-me imensamente. Às vezes até choro de tédio. A
ocupação com esta casa me deu prazer, e imagina como estou feliz pela volta de
vocês… Mas não gosto de ficar em casa, sabe? Que Deus me castigue se for
pecado! Tenho trinta anos agora, mas isso não é idade para travar amizade íntima
com a derradeira Himmelsbürger ou as srtas. Gerhardt ou algum dos cavalheiros
de preto de mamãe, daqueles que devoram as casas das viúvas… Não acredito
neles, Tom: são lobos com peles de ovelha, hipócritas, raça de víboras! Nós
todos somos seres humanos fracos, com corações de pecadores, e quando eles
me olham desdenhosamente, a mim, pobre moça profana, então lhes rio na cara.
Sempre fui de opinião que todos os homens são iguais, e que não se precisa de
intermediários entre nós e Nosso Senhor. Você conhece também os meus
princípios políticos. Quero que o cidadão e o Estado…
— Então sente-se um pouco solitária? — perguntou Thomas, para
reencaminhá-la. — Mas escute. Você tem Erika, não é?
— É verdade, Tom, e amo a minha filha de todo o coração, apesar de certo
indivíduo ter alegado que não tenho amor à criança… Mas olhe… vou lhe falar
francamente, pois sou mulher sincera: não faço das tripas coração, e não gosto
de palavreado…
— O que é muito simpático em você, Tony.
— Em poucas palavras: a coisa triste é que a criança me lembra demais o
Grünlich… As Buddenbrook da Breite Strasse dizem também que é tão parecida
com ele… E quando a vejo diante de mim tenho constantemente de pensar:
“Você é uma mulher velha com uma filha grande, e a sua vida está terminada.
Viveu durante alguns anos, mas agora poderá fazer setenta ou oitenta anos, e
sempre ficará sentada por aqui, para ouvir recitar Lea Gerhardt”. Essa ideia é tão
triste para mim, Tom; estrangula-me a garganta. Pois sinto-me ainda tão moça,
sabe? E estou com saudades de sair outra vez para viver… E além disso, não
somente em casa mas também em toda a cidade, ando com certo embaraço; não
pense que eu seja cega, que não veja a minha situação. Não sou mais uma tola e
tenho olhos na cabeça. Sou mulher divorciada, e me fazem senti-lo, não há
dúvida. Pode acreditar-me que me pesa sobre o coração ter, embora sem culpa,
maculado o nosso nome. Você pode fazer tudo quanto quiser, ganhar dinheiro e
tornar-se o homem mais poderoso da cidade, mas essa gente continuará dizendo:
“Ora… a irmã dele é uma mulher divorciada”. Julinha Hagenström Möllendorpf
não me cumprimenta… Pois bem, é uma idiota! Mas assim acontece com todas
as famílias… E contudo, Tom, não posso abandonar a esperança de que tudo isso
seja reparável! Sou ainda moça… Será que não sou bastante bonita? Mamãe não
me pode dar grande coisa de dote, mas trata-se, em todo o caso, de uma
importância aceitável. E se me casasse outra vez? Francamente, Tom, eis o meu
mais vivo desejo! Então tudo ficaria de novo em ordem, e a mancha estaria
apagada… Grande Deus, se eu pudesse arranjar um partido digno do nosso
nome, para arrumar-me novamente! Você acha que isto será completamente
impossível?
— Qual nada, Tony! De maneira nenhuma! Nunca deixei de contar com isso.
Mas antes de tudo parece-me necessário que você saia um pouquinho daqui, para
cobrar ânimo e mudar de ambiente…
— É justamente isso! — disse ela com fervor. — Agora tenho de contar-lhe
uma história.
Muito satisfeito pela proposta que fizera, Thomas reclinou-se para trás. Já
estava no segundo cigarro. O crepúsculo avançava.
— Olhe, durante a sua ausência quase que teria aceito um emprego, como
dama de companhia em Liverpool! Será que você o teria achado escandaloso?
Mas, de qualquer jeito, um pouco duvidoso? Pois bem, talvez tenha sido indigno.
Mas eu tinha o desejo ardente de sair daqui… Em poucas palavras, a coisa
fracassou. Mandei a minha fotografia à missis, e ela teve de renunciar aos meus
serviços, porque eu era bonita demais; havia um filho adulto na casa. “A senhora
é bonita demais”, escreveu… ah, ah, nunca me diverti tanto!
Os dois riram-se de todo o coração.
— Mas agora tenho outro projeto — continuou Tony. — Recebi um convite;
um convite para Munique, vindo de Eva Ewers… aliás, ela se chama agora Eva
Niederpaur, e o marido é gerente duma cervejaria. Pois é, ela me pediu que a
visitasse, e tenciono corresponder, daqui em breve, a esse convite. É verdade que
Erika não poderia viajar comigo. Eu a mandaria para o internato de Sesemi
Weichbrodt. Ali estará em boas mãos. Você teria objeções?
— Nenhuma. Em todo caso, é preciso que você se encontre outra vez num
outro ambiente.
— É claro — disse ela com gratidão. — Mas falemos de você, Tom! Falo de
mim o tempo todo; sou uma mulher egoísta! Conte você agora! Céus, como deve
estar feliz!
— Sim, Tony! — disse ele enfaticamente. Fez-se uma pausa. Exalando a
fumaça por cima da mesa, prosseguiu: — Primeiro estou muito contente por ser
casado e por ter me instalado numa casa própria. Você me conhece: não tinha
jeito para a vida de rapaz. Esse estado de solteiro tem um ressaibo de isolamento
e vadiação… e como sabe, tenho certas ambições. Nem comercialmente, nem
(seja dito em tom de gracejo!) politicamente considero a minha carreira como
terminada… Mas a confiança inteira do mundo ganha-se somente quando somos
dono de casa e pai de família. E, todavia, foi por um triz! Sou um pouco difícil
de contentar, Tony. Durante muito tempo achei impossível encontrar neste
mundo a mulher que me convinha. Mas o aspecto de Gerda foi decisivo. Vi logo
que ela era a única; justamente ela… embora eu saiba que muita gente na cidade
fica zangada comigo por causa do meu gosto. Ela é dessas criaturas
maravilhosas de que, com certeza, há poucas na Terra. É muito diferente de
você, Tony; isso sim. Você tem um caráter mais simples; também é mais
natural… A senhora minha irmã tem mais temperamento — continuou ele,
passando de repente para um tom mais leve. — De resto, Gerda também não
carece de temperamento, e isso fica mais que provado pela maneira como toca
violino; mas, às vezes, ela pode ser um tanto fria… Em poucas palavras: não se
pode medi-la com medidas vulgares. É uma natureza de artista; uma criatura
singular, misteriosa e encantadora.
— Sim — disse Tony, que ouviu o irmão séria e atentamente. Sem se
lembrarem da lâmpada, tinham sido surpreendidos pela noite.
Nesse momento abriu-se a porta do corredor, e, envolto pelo crepúsculo,
apareceu diante dos dois um vulto alto, num chambre de linho muito branco,
largo e ondeante. O basto cabelo ruivo orlava o rosto alvo, e nos cantos dos
olhos castanhos, pouco distantes entre si, havia sombras azuladas.
Era Gerda, mãe de futuros Buddenbrook.
Nesse ponto o cônsul, outra vez, teve de interromper a refeição, para, rindo,
reclinar-se no sofá.
— Ela é impagável, mamãe! Quando quer dissimular é incomparável! Adoro-a
porque é simplesmente incapaz de fingir, nem a uma distância de mil milhas…
— Sim, Tom — disse a consulesa —, ela é uma boa criatura que merece toda a
felicidade.
Depois terminou a leitura da carta.
2.
Em fins de abril, a sra. Grünlich voltou à casa paterna. Outra vez estava acabado
um pedaço da vida e recomeçava a existência antiga; outra vez tinha ela de
assistir às orações e ouvir declamar Lea Gerhardt nas Noites de Jerusalém. E
contudo achava-se visivelmente num humor alegre e cheio de esperança.
Quando o cônsul, seu irmão, foi buscá-la à estação (ela chegara de Büchen) e,
pelo portão de Holstein, atravessou a cidade com ela, não pôde deixar de fazer-
lhe o cumprimento de que — depois de Klothilde — ela era ainda a maior beleza
da família. A isso Tony respondeu:
— Céus, Tom, como o odeio! Zombar desse jeito de uma velhota…
Todavia era assim: a sra. Grünlich conservava-se admiravelmente, e
considerando o basto cabelo loiro-acinzentado, enrolado aos lados da cabeça,
penteado para trás por cima das pequenas orelhas e, em cima, reunido por largo
pente de tartaruga, considerando a expressão meiga que permanecia nos olhos
azulados, o lábio superior bonito, o oval delicado e as cores finas do rosto, não
se lhe teriam dado trinta, mas sim vinte e três anos. Usava brincos de ouro,
pendentes e altamente elegantes, que, em forma um pouco diferente, já tinham
sido usados pela avó. Um casaquinho solto de leve seda escura com lapelas de
cetim e baixas dragonas de rendas dava ao busto uma suavidade encantadora…
Estava ela de muito bom humor, conforme verificamos, e nas quintas-feiras,
quando vinham para o almoço os cônsules Buddenbrook, as senhoras da Breite
Strasse, os cônsules Kröger, Klothilde e Sesemi Weichbrodt com Erika, dava as
mais plásticas descrições de Munique, da cerveja, dos pratos regionais, do pintor
que quisera retratá-la e das carruagens da corte que lhe haviam causado a maior
impressão. De passagem mencionava também o sr. Permaneder; e, quando Pfiffi
Buddenbrook fazia esta ou aquela observação, dizendo que a viagem decerto
fora bastante agradável, mas que evidentemente nada de prático resultara dela, a
sra. Grünlich, com indizível dignidade, fingia não ouvi-la, deitando a cabeça
para trás e procurando, apesar disso, apertar o queixo sobre o peito…
Adquirira também o costume de correr para o patamar da escada, para ver
quem vinha, cada vez que a campainha da porta de guarda-vento ressoava pelo
vestíbulo… Que significava isso?… Só o sabia Ida Jungmann, governanta e
confidente de Tony há muito tempo, que de quando em quando lhe dizia coisas
como esta: “Toninha, minha filha, você vai ver que ele virá! Ele não será
pateta…”.
A família manifestava-se grata pela alegria da viajante; o ambiente da casa
precisava urgentemente de certa animação; isso pelo motivo de que as relações
entre o chefe da firma e o irmão mais moço não tinham melhorado no decorrer
do tempo, mas, pelo contrário, piorado tragicamente. A consulesa, sua mãe,
acompanhava com aflição essa marcha das coisas e não tinha mãos a medir para
servir de mediadora entre os dois… Christian recebera com um silêncio distraído
as suas admoestações para frequentar o escritório com mais regularidade, e sem
oposição, com uma confusão séria, irrequieta e meditativa, sujeitara-se às do
irmão, para, então, durante poucos dias, dedicar-se com maior fervor à
correspondência inglesa. Aumentava, porém, no irmão mais velho, um desprezo
agastado pelo mais moço; e esse sentimento não diminuíra pelo fato de Christian
receber as censuras ocasionais sem reação, de olhos que vagavam
pensativamente.
A atividade cansativa e o estado de nervos de Thomas não lhe permitiam ouvir
com resignação e compaixão as comunicações detalhadas de Christian a respeito
dos sintomas variáveis das suas doenças. Diante da mãe e da irmã chamava-as
com indignação de “resultados insípidos de uma auto-observação nojenta”.
A tortura, aquela tortura indeterminada na perna esquerda de
Christian, cedera havia algum tempo a diversos remédios externos; mas as
dificuldades de engolir voltaram amiúde durante as refeições, e recentemente
sobreviera uma falta passageira de respiração, um mal asmático, que Christian,
durante muitas semanas, tomara por tísica, e cuja natureza e efeitos se esforçava
por comunicar à família em descrições minuciosas e de nariz franzido.
Consultou-se o dr. Grabow, que verificou que o coração e os pulmões
trabalhavam com muito vigor, mas que a falta ocasional de fôlego se reduzia a
certa preguiça de determinados músculos. Para facilitar a respiração, ordenou
primeiro o uso de um leque e depois um pó verdoengo que se devia acender, a
fim de aspirar a fumaça. Do leque servia-se Christian até no escritório; a uma
censura do chefe respondera que em Valparaíso cada empregado possuía um
leque, por causa do calor. “Johnny Thunderstorm… Deus do céu!” Mas certo
dia, também no escritório, depois de se ter mexido séria e inquietantemente
sobre a cadeira, tirou o pó do bolso e produziu um fumeiro tão forte e
malcheiroso que alguns funcionários começaram a tossir violentamente e o sr.
Marcus empalideceu… Naquela ocasião houve uma explosão em público, um
escândalo, uma discussão terrível, que teria causado o rompimento imediato, não
o tivesse a consulesa mais uma vez disfarçado, reconciliando-os com motivos
razoáveis e dando às coisas um aspecto mais favorável…
Mas isso não era tudo. A vida que Christian vivia fora de casa, sobretudo em
companhia do advogado dr. Giesecke, seu antigo condiscípulo, era observada
com desgosto pelo cônsul. Não era hipócrita nem desmancha-prazeres, e
lembrava-se perfeitamente dos pecados da sua própria mocidade. Conhecia a sua
cidade paterna, onde os burgueses, respeitabilíssimos nos seus negócios,
arvoravam fisionomias inimitavelmente honestas, ao andarem com as suas
bengalas pelas ruas. Sabia bem que essa cidade portuária e comercial
absolutamente não era um abrigo da moralidade imaculada. Não era somente
com vinhos e pratos pesados que os cidadãos se indenizavam pelos dias passados
na cadeira do escritório… Mas essas indenizações eram cobertas por um manto
espesso de probidade sólida, e nesse sentido o cônsul Buddenbrook, com a sua
lei básica de “guardar os dehors”, mostrava-se compenetrado pela filosofia dos
seus concidadãos. O advogado Giesecke pertencia à casta dos “sábios” que se
adaptavam confortavelmente ao estilo de vida dos “comerciantes”; fazia também
parte dos “pândegos” notórios, o que se descobria à primeira vista. Mas, como os
outros estroinas comodistas, era capaz de dar-se aparências decentes, de evitar
escândalos e de conservar a reputação de solidez inatacável aos seus princípios
políticos e profissionais. Acabava de tornar-se público que fizera contrato de
casamento com uma srta. Huneus. Casando, alcançaria, portanto, um lugar na
alta sociedade e um dote considerável. Com um interesse energicamente
acentuado, exercia atividades nos assuntos urbanos, e diziam que ambicionava
uma função na Prefeitura e talvez, em última perspectiva, o trono do velho
burgomestre dr. Oeverdieck.
O seu amigo Christian Buddenbrook, porém, o mesmo que outrora caminhara,
de passos decididos, para Mademoiselle Meyer-de-la-Grange e, entregando-lhe
um ramalhete de flores, dissera: “Ah, senhorita, representou maravilhosamente!”
— Christian, por causa do seu caráter e dos longos anos de peregrinação,
desenvolvera-se em pândego duma espécie demasiado ingênua e despreocupada;
em assuntos do coração, tanto quanto em outros, pouco se inclinava a conter os
seus sentimentos, mantendo a discrição e guardando a dignidade. A cidade
inteira divertia-se com a sua ligação amorosa com uma comparsa do Teatro de
Verão, e a sra. Stuht, da Glockengiesserstrasse, aquela mesma que frequentava a
alta sociedade, contava, a quem quisesse ouvi-la, que “Christian” mais uma vez
fora visto com “essa do Tivoli” em plena rua e à luz do dia.
Isso também não lhe levavam a mal… Eram de um ceticismo demasiado
sincero para manifestar séria indignação moralista. Christian Buddenbrook e, por
exemplo, o cônsul Peter Döhlmann, a quem a sua firma totalmente decaída
induzia a proceder do mesmo modo leviano, eram apreciados como distrações e
realmente indispensáveis nas reuniões de cavalheiros. Mas não os tomavam a
sério; eles não contavam em assuntos de importância; era característico que em
toda a cidade, no clube, na Bolsa, no porto, só se falava deles pelo nome:
“Christian” e “Peter”. Pessoas malévolas, como os Hagenström, tinham plena
liberdade de não se rirem das histórias e dos chistes de Christian, mas sim do
próprio homem que os contava.
Este não pensava nisso, ou, segundo o seu hábito, abandonava tais
pensamentos depois de um instante de meditação desassossegada. Mas o cônsul,
seu irmão, sabia; sabia que Christian oferecia um ponto vulnerável aos
adversários da família… e já existiam pontos vulneráveis demais. O parentesco
com os Oeverdieck era afastado e seria totalmente sem valor depois da morte do
burgomestre. Os Kröger já não representavam papel saliente; viviam retraídos e
tinham dissabores amargos com um dos filhos… A mésalliance do saudoso tio
Gotthold permanecia sempre coisa desagradável… A irmã do cônsul era uma
mulher divorciada, embora não se precisasse abandonar a esperança de um
segundo casamento… E o irmão seria um homem ridículo cujas palhaçadas
serviam para encher as horas de ócio de cavalheiros ativos que as recebiam com
gargalhadas bonachonas ou desdenhosas; um homem que, além disso, fazia
dívidas e, no fim do trimestre, quando estava sem dinheiro, mandava,
notoriamente, o dr. Giesecke pagar-lhe as despesas… Um homem que
representava uma desonra direta para a firma.
O menosprezo hostil com que Thomas tratava o irmão, e que este suportava
com indiferença, evidenciava-se em todas as pequenas mesquinharias que apenas
se manifestam entre membros da mesma família, dependentes um do outro.
Quando, por exemplo, a conversa girava em torno da história dos Buddenbrook,
Christian podia ser acometido por um humor que, aliás, não se ajustava muito
bem a ele: falava então com seriedade, amor e admiração da cidade paterna e dos
antepassados. Nesse caso, o cônsul, com uma observação glacial, terminava logo
a conversa. Não a aguentava. Desprezava tanto o irmão que não lhe permitia
amar o que ele mesmo amava. Teria preferido que Christian falasse dessas coisas
no dialeto de Marcellus Stengel. Thomas lera um livro, uma obra histórica
qualquer que o impressionara fortemente, e que elogiava em palavras
comovidas. Christian, cérebro sem impulso próprio, sozinho, nunca teria
descoberto essa obra; sendo, porém, fácil de impressionar e acessível a cada
influência, leu-a igualmente e, preparado dessa maneira, achou-a maravilhosa;
deu aos seus sentimentos a expressão mais minuciosa possível — e, a partir
desse dia, o livro era para Thomas assunto liquidado. Falava dele com
indiferença e frieza. Fazia como se mal o tivesse lido. Abandonava-o à
admiração exclusiva do irmão…
3.
Uma forte cerração pairava sobre a cidade. Todavia o sr. Longuet, dono das
carruagens de aluguel na Johannisstrasse, que, às oito horas, pessoalmente
apareceu com um char-à-bancs coberto, mas aberto dos lados, tranquilizou:
“Daqui a meia hora sairá o sol”. E assim podiam ficar sossegados.
A consulesa, Antonie, o sr. Permaneder, Erika e Ida Jungmann juntos tinham
tomado o café da manhã, e reuniram-se agora, um após outro, no vasto pátio
para esperar a chegada de Gerda e Tom. A sra. Grünlich, em vestido bege com
uma gravata de cetim por baixo do queixo, tinha, apesar do sono reduzido,
aparência excelente. Pareciam terminadas as hesitações e dúvidas, pois a
fisionomia era calma, segura e quase solene, quando, conversando com o
hóspede, abotoava as luvas elegantes… Reencontrara aquela disposição que
conhecia perfeitamente dos tempos antigos. Tinha o sentimento da própria
importância e da significação da decisão que tomaria; estava consciente de que,
outra vez, chegara um dia que a obrigava a influir com uma resolução grave nos
destinos da família; e tudo isso lhe enchia o coração e o fazia palpitar mais
depressa. De noite, no sonho, ela vira nos documentos familiares o lugar onde
tencionava anotar o fato do segundo noivado… fato que apagaria aquela mancha
negra contida nessas folhas. E agora empolgava-a a expectativa do momento em
que Thomas apareceria, para saudá-la com um aceno sério…
O consul e a esposa chegaram um pouco atrasados, pois a jovem consulesa
Buddenbrook não estava habituada a terminar a toalete muito cedo. Thomas
tinha aspecto são e alegre, no seu casaco marrom-claro, axadrezado, cujas
lapelas deixavam ver a borda do colete de verão. Os seus olhos sorriam ao
observar a fisionomia inimitavelmente digna de Tony. Mas Gerda, cuja beleza
um tanto mórbida e misteriosa formava estranho contraste com a saúde bonita da
cunhada, absolutamente não estava com humor dominical e excursionista. Via-se
que não dormira bastante. O lilás vivo, cor principal do vestido que harmonizava
singularmente com o ruivo-escuro do basto cabelo, deixava-lhe aparecer mais
alva, mais pálida ainda a tez. Nos cantos dos olhos castanhos, pouco distantes
entre si, estendiam-se sombras azuladas, mais profundas e mais acentuadas do
que habitualmente… Num gesto frio ofereceu à sogra a testa para beijar; ao sr.
Permaneder estendeu a mão com expressão bastante irônica, e quando a sra.
Grünlich, espantada pela sua aparência, gritou: “Gerda, meu Deus, você está
linda hoje!…”, respondeu apenas por um sorriso reservado.
Gerda tinha profunda antipatia contra essa espécie de empresa: principalmente
no verão, e ainda mais num domingo. As cortinas da sua casa ficavam quase
sempre cerradas; as peças permaneciam numa luz de crepúsculo; e ela mesma,
que só raras vezes saía, tinha medo do sol, da poeira, dos pequenos-burgueses
endomingados, do cheiro de café, cerveja e fumo… Mais do que qualquer outra
coisa abominava calor e o dérangement.
— Meu caro amigo — dissera ocasionalmente a Thomas, quando haviam
combinado a excursão a Schwartau e ao bosque do Riessebusch, na intenção de
mostrar ao hóspede de Munique um pouco dos arredores da velha cidade… —,
você sabe: assim como Deus me criou, dependo de tranquilidade e da rotina
cotidiana… No meu caso, não estamos feitos para divertimentos e variações.
Vocês me dispensam, não é?
Gerda não se teria casado com Thomas se não tivesse tido certeza de que,
geralmente, em tais assuntos, ele estava de acordo com ela.
— Ora, meu Deus; você tem razão, Gerda; claro que tem razão. Na maioria das
vezes a gente só presume divertir-se com essas distrações… Mas participamos
delas porque não queremos aparecer como originais diante dos outros e de nós
mesmos. Cada um tem essa vaidade; você não a tem? Caso contrário, facilmente
tomaríamos ares de desgraça e solidão e perderíamos o respeito dos demais. E
mais uma coisa, minha querida… Temos motivo para cortejar um pouco esse sr.
Permaneder. Não duvido de que você esteja a par da situação. Prepara-se
qualquer coisa, e seria uma pena, uma verdadeira lástima se não se realizasse…
— Não compreendo, meu caro amigo, em que sentido a minha presença… mas
tanto faz! Como você desejar, vá lá. Suportemos esse divertimento.
— Ficar-lhe-ei sinceramente grato…
E agora saíam para a rua… O sol já começava a penetrar a neblina da manhã.
O badalar dos sinos de Santa Maria anunciava o domingo e o ar estava cheio do
canto dos pássaros. O cocheiro tirou o chapéu, e a consulesa, com aquela
jovialidade patriarcal que às vezes causava certo embaraço a Thomas, acenou-
lhe com um “Bom dia, meu velho!” sumamente cordial.
— Subamos então, meus amigos! É verdade que chegou a hora do sermão
matinal, mas hoje os nossos corações louvarão a Nosso Senhor ao ar livre que
Ele nos deu; não é, sr. Permaneder?
— Está bem, senhora consulesa.
E, um depois do outro, galgaram para o interior da carruagem pelos dois
degraus e através da estreita portinhola traseira. A carruagem tinha capacidade
para mais de dez pessoas. Acomodaram-se nos coxins, que (sem dúvida em
homenagem ao sr. Permaneder) estavam listrados de azul e branco.* Depois
fechou-se a portinhola; o sr. Longuet deu um estalo com a língua, proferindo
vários gritos de incitamento, e os baios musculosos puseram-se em movimento.
O veículo desceu a Mengstrasse e, ladeando o Trave, passou pelo portão de
Holstein, para entrar na estrada de Schwartau…
Campos, pradarias, grupos de árvores, granjas… Na neblina sempre mais alta,
mais fina e mais azul, a família procurava as calhandras, cujas vozes se faziam
ouvir. Thomas, fumando cigarros, prestava atenção ao trigo que passava por eles;
explicou as espécies ao sr. Permaneder. O negociante de lúpulo estava de humor
realmente juvenil. Botara o chapéu verde com a barba de cabrito montês um
pouquinho para o lado. Sobre a palma da mão larga e branca equilibrou a
bengala com o enorme castão de chifre; esforçou-se até por fazê-lo também com
o lábio inferior, e, embora o artifício fracassasse constantemente, obteve
aplausos barulhentos, antes de tudo, por parte da pequena Erika. Várias vezes o
sr. Permaneder repetiu:
— Não serão os Alpes, mas a gente vai subir um bocado. Vai ser formidável;
não é, dona Antonie?
Depois, com muito temperamento, começou a contar histórias de excursões
alpinistas que fizera, carregando consigo mochila e pau ferrado. A consulesa
retribuiu-as com vários “Imagine!” cheios de admiração. Por motivos
indeterminados, ele lastimou em palavras comovidas a ausência de Christian, de
quem lhe disseram que era um rapaz muito divertido.
— De vez em quando — respondeu o cônsul. — Mas é verdade que em
ocasiões como esta ele é incomparável… Vamos comer caranguejos, sr.
Permaneder, caranguejos e camarões do mar Báltico. O senhor já os provou
algumas vezes na casa de minha mãe, mas o meu amigo Dieckmann, dono do
restaurante Riesebusch, sempre os tem de excelente qualidade. E os pães de mel
da região, os famosos pães de mel! Não se fala deles nas margens do Isar? Ora, o
senhor vai ver.
Duas ou três vezes, a sra. Grünlich mandou parar o carro, para colher papoulas
e centáureas à beira da estrada. Então, o sr. Permaneder afirmava sempre com
verdadeiro furor que devia ajudá-la; mas, como receasse um pouquinho as
descidas e subidas, desistiu finalmente.
Erika entusiasmava-se a cada gralha que esvoaçava. Ida Jungmann, como
sempre, mesmo nos dias mais ensolarados, numa capa de chuva comprida e
aberta, e com um guarda-chuva na mão, tinha a mentalidade de uma autêntica
governanta: não somente fingia acompanhar os sentimentos infantis, mas sentia-
os tal qual a criança. Assim entoava a sua risada despreocupada e um tanto
relinchona, de modo que Gerda, que não a vira encanecer no meio da família,
repetidas vezes a fitava com olhares frios e admirados…
Achavam-se no território de Oldenburgo. Apareceram bosques e faias; a
carruagem passou por um povoado, atravessando a pequena praça com o poço;
reentrando na estrada, rolou por cima da ponte sobre o rio Ai, para finalmente
chegar à hospedaria Riesebusch, uma casa de um só andar. Estava situada ao
lado de um largo plano de relvados, atalhos arenosos e canteiros rústicos, além
do qual o mato se erguia numa subida em anfiteatro. Os diversos degraus
estavam ligados por escadas toscas, formadas por altas raízes de árvores e
rochedos salientes. Nos “patamares”, por entre as árvores, havia mesas, bancos e
cadeiras, pintados de branco.
Os Buddenbrook de modo algum eram os primeiros fregueses. Empregadas
roliças e até um garçom de casaca sebenta caminhavam apressados pelo largo,
carregando frios, limonadas, leite e cerveja para as mesas, onde, embora em
vastos intervalos, já se haviam instalado algumas famílias com crianças.
O estalajadeiro, sr. Dieckmann, de gorrinho bordado de amarelo e em mangas
de camisa, aproximou-se pessoalmente da portinhola para ajudar a freguesia na
descida. Enquanto Longuet se afastava para desatrelar os cavalos, disse a
consulesa:
— Primeiro vamos dar um passeio, e depois, meu amigo, queríamos almoçar,
daqui a uma hora, mais ou menos. Mande pôr a mesa ali em frente… mas que
não seja alto demais; acho bom o segundo degrau…
— Faça um esforçozinho, Dieckmann — acrescentou o cônsul. — Temos um
hóspede exigente…
O sr. Permaneder protestou:
— Qual nada! Um chope e um pedaço de queijo…
Mas o sr. Dieckmann, não lhe entendendo o dialeto, começou com grande
eloquência:
— Vou servir-lhe tudo que tenho, senhor cônsul… Caranguejos, camarões,
frios sortidos, diversos queijos, enguia defumada, salmão defumado, esturjão
defumado…
— Muito bem, Dieckmann, você arranjará tudo como convém… E traga uns
seis copos de leite e uma caneca de chope; se não me engano, sr. Permaneder?
— Um chope, seis leites… Leite doce, soro de manteiga, coalhada… Que
prefere, senhor cônsul?
— Um pouco de cada um, Dieckmann, leite doce e soro. Daqui a uma hora,
então!
E com isso atravessaram o lago.
— O nosso primeiro dever, sr. Permaneder, é visitar a fonte — disse Thomas.
— A “fonte” quer dizer a do Ai, o pequeno rio de Schwartau. Nos remotos
tempos medievais, a nossa cidade, antes de sucumbir a um incêndio,
provavelmente estava também situada no Ai. Acho que naquela época as
construções não eram muito duráveis, e depois tudo foi reconstruído nas
margens do Trave. Aliás, tenho lembranças dolorosas do nome do rio. Quando
perguntavam: “Como se chama o rio de Schwartau?”, por causa da dor, sem
querer, a gente gritava: “Ai!”… Ora — interrompeu-se ele subitamente, a uns
dez passos da ladeira. — Tomaram-nos a dianteira. — Eram os Möllendorpf e os
Hagenström.
De fato, lá em cima, no terceiro degrau do terraço silvestre, estavam sentados
os principais membros dessas duas famílias vantajosamente ligadas, comendo e
conversando animados em duas mesas reunidas. Presidia o velho senador
Möllendorpf, um cavalheiro pálido, de suíças brancas, finas e pontudas, que
sofria de diabetes. A esposa, descendente dos Langhals, manejou o lorgnon de
haste comprida; andava ainda de cabelos desgrenhados. August, o filho, estava
também presente, um moço loiro de aparência abastada; era marido de Julinha
Hagenström. Esta, baixinha e viva, de grandes olhos negros e brilhantes, com
brincos quase do mesmo tamanho nos lóbulos, encontrava-se entre seus irmãos,
Hermann e Moritz. O cônsul Hermann Hagenström começava a engordar muito,
pois vivia em grande estilo, e diziam que, logo de manhã, iniciava as refeições
com patê de foie gras. Tinha barba ruiva e aparada, e o nariz achatado — nariz
da mãe — cobria-lhe o lábio superior. O dr. Moritz, de peito chato e tez
amarelada, mostrava na palestra animada os dentes pontiagudos e defeituosos.
Ambos os irmãos estavam acompanhados pelas esposas; pois também o
jurisconsulto era casado havia vários anos com uma tal Puttforken, de
Hamburgo, moça de cabelos cor de manteiga e feições sobremodo carentes de
paixão, feições anglicizadas, porém extraordinariamente belas e regulares. A
reputação de beletrista de que gozava o dr. Hagenström não teria suportado um
casamento com uma moça feia. Finalmente, havia ainda a filhinha de Hermann
Hagenström e o filhinho de Moritz, crianças vestidas de branco, que, para bem
dizer, já agora estavam noivos, pois a fortuna das famílias Huneus-Hagenström
não devia ser dispersada… Todos estavam comendo presunto com ovos.
As duas famílias apenas se contentaram em cumprimentar os Buddenbrook,
quando estes, subindo, passaram a pouca distância delas. A consulesa inclinou a
cabeça um pouco distraída e quase que admirada. Thomas levantou o chapéu de
leve, enquanto movimentava os lábios como para dizer qualquer coisa amável e
fria. Gerda deu um cumprimento formal e distante. O sr. Permaneder, porém,
inspirado pela subida, abanou ingenuamente com o chapéu verde e gritou em
voz alta e alegre: “Muito bom dia para todos!”. Ao que a senadora Möllendorpf
empunhou o lorgnon…
Tony, por sua vez, alçando um pouco os ombros, inclinou a cabeça para trás e
procurou, apesar disso, apertar o queixo contra o peito. Cumprimentou, por
assim dizer, de uma altura inalcançável, e o seu olhar passou exatamente por
cima do chapéu elegante, de aba larga, de Julinha Möllendorpf… Foi nesse
minuto que a sua decisão se tornou definitiva e inabalável…
— Graças a Deus, mil vezes graças a Deus, Tom, que a gente só almoça daqui
a uma hora! Não gostaria que essa Julinha me vigiasse quando como, sabe…
Você viu como ela cumprimentou? Quase que não o fez. E, segundo a minha
modesta opinião, o chapéu dela era de péssimo gosto…
— Ora, quanto ao chapéu… E o seu cumprimento acho que não foi muito mais
cordial, minha querida. De resto, não se irrite. Irritação causa rugas.
— Irritar-me, Tom? Nunca! Se esse pessoal pensa que são eles que mandam,
acho-os ridículos e mais nada. Qual é a diferença entre essa Julinha e mim, se
posso perguntar? Que ela arranjou como marido, não um filou, mas somente um
pateta, como diria Ida; e se, uma vez na vida, ela se encontrasse na minha
situação, veríamos se arranjaria um segundo…
— O que quer dizer que você, por sua vez, achará um?
— Um pateta, Thomas?
— Muito melhor do que um filou.
— Não há necessidade de que seja um ou outro. Mas disso não se fala.
— Pois é. Além disso, atrasamo-nos. O sr. Permaneder sobe com vontade…
O umbroso atalho do bosque tornou-se plano, e não levou muito tempo até
chegarem à “fonte”, um lugar bonito e romanesco, com uma ponte de madeira
sobre um pequeno precipício; havia ali declives alcantilados e árvores a
cavaleiro com as raízes no ar. Com um copo de prata dobradiço que a consulesa
levara, tiraram água da pequena bacia de pedra que se achava logo abaixo do
ponto de origem. Regalaram-se com o líquido fresco, ferruginoso. Nessa
ocasião, o sr. Permaneder foi acometido por um acesso de galanteria, que o fez
insistir em que a sra. Grünlich lhe oferecesse um copo. Cheio de gratidão,
repetiu várias vezes: “Puxa, como é gentil!”. Obsequioso e atento, conversou não
somente com a consulesa e Thomas, mas também com Gerda e Tony e mesmo
com a pequena Erika… A própria Gerda, que até então apenas sofrera pelo calor
inclemente e caminhara numa espécie de nervosismo mudo e entorpecido,
começou a voltar à vida. Depois do retorno, feito com maior rapidez, quando
chegaram à hospedaria e se instalaram no segundo andar do terraço, numa mesa
abundante de comidas, foi ela quem lastimou em termos amáveis que a partida
do sr. Permaneder fosse iminente: agora que se conheciam um pouco melhor,
haveria cada vez menos mal-entendidos por causa do dialeto… Até se pôs a jurar
que a sua amiga e cunhada Tony duas ou três vezes se expressava com perfeição
no dialeto bávaro…
O sr. Permaneder deixou de dar qualquer resposta afirmativa com respeito à
palavra “partida”. Preferiu dedicar-se às guloseimas de que a mesa exuberava, e
que, além do Danúbio, não se encontravam todos os dias.
Consumiram com vagar as boas coisas. Mais do que de todas elas, gostava a
pequena Erika dos guardanapos de papel de seda, que lhe pareciam
incomparavelmente mais belos do que os grandes de linho que havia na casa;
com licença do garçom embolsou alguns como lembrança. Depois da refeição, o
sr. Permaneder bebeu a sua cerveja, acompanhando-a com alguns charutos
pretos, enquanto o cônsul fumava os seus cigarros. Desse modo, a família e o
hóspede ficaram ainda reunidos por algum tempo, conversando. Era interessante
que ninguém mais se lembrasse da partida do sr. Permaneder; nem sequer se
falou do futuro. Trocaram, pelo contrário, recordações; trataram dos
acontecimentos políticos dos últimos anos. O sr. Permaneder torceu-se de tanto
rir com algumas anedotas do ano de 1848, que a consulesa ouvira do falecido
esposo. Depois, ele mesmo contou coisas da revolução em Munique e de Lola
Montez,** pela qual a sra. Grünlich tinha desmedido interesse. Feito isso, pouco
a pouco decorrera a primeira hora do meio-dia. Erika, corada e carregada de
margaridas e outras flores dos prados, voltou de um passeio de investigação que
fizera com Ida, e lembrou-lhes os pães de mel que ainda estavam por comprar.
Por isso puseram-se em marcha para dar a volta pela aldeia… mas, antes, a
consulesa, como anfitriã do dia, pagara a conta com uma moeda de ouro bastante
grande.
Diante da estalagem deram ordem para que a carruagem estivesse pronta daí a
uma hora, pois queriam descansar ainda um pouco na cidade, antes do jantar.
Caminharam então em direção às baixas casas do povoado, lentamente, pois o
sol queimava a poeira.
Depois da ponte sobre o Ai, formaram-se por si mesmos, sem cerimônias,
diversos grupos, numa ordem de marcha que se conservou durante o passeio: à
frente, por causa dos seus passos compridos, andava Mademoiselle Jungmann,
ao lado de Erika, que incansavelmente saltitava e caçava borboletas; seguiam-se
a consulesa, Gerda e Thomas, e no fim, a certa distância, a sra. Grünlich com o
sr. Permaneder. Na dianteira, havia barulho: a menina gritava de júbilo, que Ida
acompanhava com o seu peculiar relincho profundo e bondoso. No centro, todos
permaneciam calados, pois Gerda, por causa da poeira, recaíra naquele desalento
nervoso; e a velha consulesa tanto como o filho estavam absortos nos seus
pensamentos. Da retaguarda, também, não se ouvia nada… mas esse silêncio era
apenas aparente, porque Tony e o hóspede da Baviera mantinham uma conversa
abafada e íntima… De que falavam eles? Do sr. Grünlich…
O sr. Permaneder fizera a observação acertada de que Erika era uma criança
simpática e querida, a qual, todavia, não era absolutamente parecida com a mãe.
A isso Tony respondera: “É o retrato do pai, e pode-se dizer que não é um
defeito, pois por fora Grünlich era um gentleman… isso não se discute. Tinha,
por exemplo, suíças cor de ouro; coisa original que nunca mais vi na minha
vida…”.
E ele se informou mais uma vez sobre a história do seu casamento, embora, já
em Munique, na casa dos Niederpaur, ela a tivesse contado com bastante
minuciosidade. Insistentemente, com um piscar ansioso e compassivo, o sr.
Permaneder perguntou por todos os detalhes da bancarrota…
— Ele era um sujeito mau, sr. Permaneder; caso contrário, papai nunca me
teria afastado dele, pode acreditar. Nesta terra, nem todos os homens têm bom
coração; isso a vida me ensinou, sabe? embora eu seja demasiado moça para
quem há dez anos já é viúva ou coisa semelhante. Grünlich não prestava, e o seu
banqueiro Kesselmeyer, que além disso era brincalhão como um cachorrinho, era
pior ainda. Não quero dizer que a mim mesma me considere um anjo e livre de
toda a culpa… Não me entenda mal! Grünlich me negligenciava, e quando, às
vezes, ficava comigo, lia o jornal; enganou-me e deixou-me constantemente em
Eimsbüttel, porque no centro eu teria percebido a sujeira em que se achava…
Mas também não passo duma mulher fraca que tem seus defeitos; e, decerto,
nem sempre procedi direitinho. Por exemplo, eu dava ao meu marido motivos de
preocupação e queixa pela minha leviandade e prodigalidade e pela mania que
tinha de comprar chambres novos… Mas posso acrescentar uma coisa; tenho
uma desculpa: eu era muito criança quando me casei, uma ingênua, uma tolinha.
O senhor acreditaria, por exemplo, que bem pouco tempo antes do meu
casamento eu nem sequer sabia que, quatro anos atrás, as leis da Liga a respeito
das universidades e da imprensa tinham sido renovadas? Aliás, que leis
vergonhosas! Pois bem, sr. Permaneder, é realmente muito triste que a gente viva
só uma vez, que não se possa recomeçar a vida. Faríamos muitas coisas com
mais jeito…
Ela se calou, fitando o caminho com atenção. Com certa habilidade, dera ao sr.
Permaneder uma oportunidade de replicar, pois não estava afastado demais o
argumento de que, embora fosse impossível iniciar uma vida inteiramente nova,
não se excluía a possibilidade de outro casamento mais próspero. Mas ele deixou
passar a ocasião, limitando-se a censurar o sr. Grünlich com palavras violentas
que faziam eriçar-se a mosca por cima do pequeno queixo redondo:
— Que malandro sem-vergonha! Se esse biltre estivesse aqui levaria uma
surra.
— Puxa, sr. Permaneder! Não, deixe isso! Devemos perdoar e esquecer; a mim
a vingança, diz o Senhor… Pergunte a mamãe… Deus me livre; não sei onde
está Grünlich, nem como passou na vida; mas desejo-lhe coisas boas, embora
talvez não as mereça…
Chegaram ao povoado. Achavam-se diante da casinha onde ficava a padaria.
Quase inconscientemente estacaram e, sem o notarem, viram, de olhos sérios e
ausentes, como Erika, Ida, a consulesa, Thomas e Gerda desapareciam,
inclinados, através da porta ridiculamente baixa da loja: tão absortos estavam na
conversa, apesar de, por enquanto, só terem falado de coisas supérfluas e
insípidas.
A seu lado erguia-se uma cerca, ao longo da qual se estendia um canteiro
comprido e estreito de resedás. Fervorosamente, a sra. Grünlich, de cabeça
quente e abaixada, sulcava a fofa terra preta com a ponta da sombrinha. O sr.
Permaneder, cujo chapeuzinho verde com a barba de cabrito montês deslizara
sobre a testa, quedava-se perto dela, ajudando-a, de quando em quando, por meio
da bengala, no trabalho de lavrar o alegrete. Ele também baixava a cabeça, mas
os olhinhos túmidos, azul-claros, que se haviam tornado brilhantes e até um
pouco molhados, fitavam-na de baixo, numa mistura de lealdade, angústia e
tensão; e com a mesma expressão pendiam-lhe sobre a boca as franjas do bigode.
— E depois de tudo isso — disse ele — a senhora, com certeza, tem um medo
terrível do matrimônio e não quer fazer outra experiência. Não é, dona Tony?
“Como ele é desajeitado!”, pensou ela. “Será que lhe devo confirmar?” E
respondeu:
— Pois é, meu caro sr. Permaneder; confesso-lhe francamente que seria difícil
para mim dar mais uma vez a alguém o meu consentimento por toda a vida; pois
aprendi, sabe, que é uma resolução terrivelmente grave… Seria necessário que
eu estivesse com a firme convicção de tratar-se de um homem valoroso, decente,
que tenha um coração realmente bom…
A isso, ele tomou a liberdade de perguntar se ela o considerava como tal, ao
que ela respondeu:
— Sim, sr. Permaneder; assim o considero.
E seguiram mais umas poucas palavras, pronunciadas em voz baixa, contendo
o contrato do casamento, e que davam ao sr. Permaneder a licença de falar, em
casa, com a consulesa e Thomas…
Quando os outros membros do grupo, carregados com vários sacos de pão de
mel, reapareceram, o cônsul, discretamente, deixou vagar os olhos para o lado
dos dois, pois ambos estavam fortemente embaraçados; o sr. Permaneder sem a
mínima tentativa de escondê-lo, e Tony sob a máscara de uma dignidade quase
majestosa.
Apressaram-se a alcançar o carro, porque o céu se nublara e caíam já as
primeiras gotas.
Como Tony supusera, Thomas, logo após a chegada do sr. Permaneder, pedira
informações detalhadas sobre a situação financeira do hóspede. Resultara que X.
Noppe & Cia., embora de envergadura restrita, era uma firma de absoluta
solidez, a qual pela colaboração com a Cervejaria S. A., cujo gerente era o sr.
Niederpaur, conseguia lucros consideráveis. Junto com os dezessete mil táleres
de Tony, a cota-parte do sr. Permaneder seria suficiente para uma vida em bom
estilo burguês. A consulesa estava a par disso. Numa conversa detalhada entre
ela, o sr. Permaneder, Antonie e Thomas, que teve lugar na sala das Paisagens,
logo à noite do dia do noivado, arranjaram-se, sem obstáculos, todas as questões
pendentes; também com respeito à pequena Erika, que, a pedido de Tony e de
acordo com o noivo comovido, devia igualmente mudar-se para Munique.
Dois dias após, partiu o negociante de lúpulo (“caso contrário, Noppe ficaria
zangado”), mas já em julho a sra. Grünlich reencontrou-se com ele em Munique:
acompanhava Tom e Gerda para um veraneio de quatro ou cinco semanas na
estância balneária de Kreuth, enquanto a consulesa, com Erika e Jungmann,
permaneciam no Báltico. Em Munique, ambos os casais tinham, de resto,
ocasião de ver a casa na Kaufinger Strasse — bem perto da dos Niederpaur —
que o sr. Permaneder estava a ponto de comprar, e cuja maior parte tencionava
alugar; casa velha, estranha, de escada estreita que, logo de entrada, dava em
linha reta, sem patamar nem virada, para o primeiro andar, de onde se devia
passar por um corredor para alcançar os cômodos da frente…
Em meados de agosto, Tony voltou para casa, a fim de, nas próximas semanas,
dedicar-se ao enxoval. Decerto havia ainda muita coisa dos tempos do primeiro
matrimônio, mas outras tinham de ser substituídas por compras novas; e um dia
veio de Hamburgo um verdadeiro chambre… guarnecido, é verdade, de laçadas
de fazenda simples, em vez do veludo de outrora.
Quando já ia bastante avançado o outono, o sr. Permaneder chegou novamente
à Mengstrasse. Não queriam mais adiar a coisa…
As solenidades do enlace decorreram exatamente conforme as expectativas e
os desejos de Tony: não se fez muito caso dele. “Deixemos a pompa”, dissera o
cônsul. “Você está casada outra vez. É simplesmente como se nunca tivesse
deixado de sê-lo.” Haviam-se enviado só poucas participações do noivado; mas
Tony tomara cuidado para que Julinha Hagenström Möllendorpf recebesse uma.
Não se fez viagem de núpcias, porque o sr. Permaneder abominava tal
“esfalfamento”; e Tony, que acabava de voltar do veraneio, já achava bastante
longa a viagem para Munique. O enlace, desta vez na igreja de Santa Maria, em
vez de no alpendre, realizou-se no mais íntimo círculo da família. Com
dignidade, Tony exibiu desta vez flores de laranjeiras, e não de murtas, e o pastor
Kölling, com voz um pouco mais fraca do que na outra vez, pregou ainda com
expressões fortes sobre a moderação.
Christian veio de Hamburgo, em roupas muito elegantes. Parecia um pouco
cansado, mas bastante alegre, e contou que o seu negócio com Burmeester era
“piramidal”. Declarou que Klothilde e ele próprio só casariam “lá em cima, isto
é, cada um por si!”… e chegou muito tarde à igreja, porque visitara o clube. Tio
Justus, comovido, mostrou-se generoso como sempre, presenteando os recém-
casados com uma bandeja extraordinariamente linda, de prata pesada… Ele e a
mulher quase sofriam fome em casa, pois a mãe indulgente ainda pagava com a
mesada as dívidas de Jakob, há muito deserdado e enxotado, e que, como
diziam, estava em Paris… As primas Buddenbrook da Breite Strasse
observaram: “Tomara que desta vez a coisa dure!”. Só era desagradável que
todos duvidassem da sinceridade dessa esperança… Sesemi Weichbrodt, porém,
ergueu-se sobre as pontas dos pés, para beijar a fronte da pupila, atual sra.
Permaneder, com um beijo que deu um leve estalo. Ainda uma vez disse com as
vogais mais carinhosas:
— Seja feliz, minha boa menina!
De manhã, às oito horas, Thomas Buddenbrook saía da cama. Descia então para
o andar térreo, pela escada em caracol. Depois de ter tomado banho, vestia
novamente o chambre. Era a essa hora que o cônsul começava a ocupar-se dos
assuntos públicos. Aparecia então no quarto de banho o barbeiro Wenzel,
membro da Assembleia, homem de mãos vermelhas e rosto inteligente. Trazia os
seus utensílios e um pote de água quente. Enquanto o cônsul, de cabeça
reclinada, se acomodava na grande poltrona e o sr. Wenzel fazia espuma,
iniciava-se quase sempre uma conversa, que, começando com o sono da noite e
o tempo, passava logo para os acontecimentos do grande mundo, para depois
tratar de temas intimamente urbanos e terminar com questões estritamente
comerciais e familiares… Tudo isso demorava o processo, pois sempre que o
cônsul falava o sr. Wenzel tinha de afastar-lhe a navalha do rosto.
— Dormiu bem, senhor cônsul?
— Obrigado, Wenzel. Faz bom tempo hoje?
— Geada e um pouco de nevoeiro, senhor cônsul. Perto da igreja de São Tiago,
a garotada fez uma pista para deslizar, de dez metros de comprimento, de modo
que quase caí quando vim do burgomestre. Que o diabo os leve…
— Já leu os jornais?
— O Observador e as Notícias de Hamburgo. Estão cheios das bombas de
Orsini…* Horroroso. No caminho para o Opéra… Que sujeitos, aqueles…
— Ora, acho que é coisa sem importância. Não tem nada que ver com o povo,
e o único resultado é que se duplicarão a polícia e a pressão sobre a imprensa e
tudo o mais. Napoleão está alerta… Sim, há uma eterna inquietação, não se pode
negá-lo; pois ele depende sempre de novas empresas para manter-se. Mas tenho
todo o respeito por ele, apesar de tudo. Com essas tradições, pelo menos não
pode ser um pateta, como diria Mademoiselle Jungmann, e essa coisa do preço
do pão reduzido realmente impressionou. Não há dúvida, ele faz muita coisa em
benefício do povo…
— Sim. O sr. Kistenmaker há pouco me expressou a mesma opinião.
— Stephan? Falamos ontem a respeito.
— E Frederico Guilherme da Prússia vai mal, senhor cônsul; não se recobrará
mais. Já dizem que o príncipe se tornará regente definitivo…
— Oh, será interessante. Esse Guilherme já demonstrou que é homem liberal.
Com certeza, não encara a Constituição com aquele nojo clandestino do irmão…
Afinal de contas, é somente a mágoa que corrói esse pobre rei… Há novidades
de Copenhague?
— Nada, senhor cônsul. Eles não querem. A Liga bem pode declarar que o
governo unido de Holstein e Lauenburgo é anticonstitucional… Eles
simplesmente não consentem em aboli-lo…
— Pois é, Wenzel, é incrível. Verdadeiramente, eles provocam a intervenção
do Congresso da Liga, e se este fosse um pouco mais ativo… Malditos
dinamarqueses! Lembro-me perfeitamente de que já nos tempos de menino
sentia raiva deles… Não se ria, Wenzel. Cuidado com esse lugar gretado aí na
minha pele… E agora o caso da nossa linha direta para Hamburgo! Quantas lutas
diplomáticas custou ela, e custará mais ainda, antes de o pessoal de Copenhague
dar a concessão…
— Sim, senhor cônsul, e infelizmente a Sociedade Ferroviária Altona-Kiel e,
no fundo, o Holstein inteiro são contra nós. É o que o burgomestre dr.
Oeverdieck acaba de dizer-me. Estou com receio pelo desenvolvimento de
Kiel…
— Claro, Wenzel. Uma comunicação assim nova entre o mar do Norte e o
Báltico!… E você vai ver: a Sociedade Altona-Kiel não cessará de intrigar. Essa
gente é capaz de construir outra estrada só para nos fazer concorrência; pelo
leste de Holstein, de Neumünster a Neustadt. Sim, não acho impossível! Mas
não nos devemos deixar intimidar. Precisamos duma linha direta para
Hamburgo.
— O senhor cônsul se empenha muito nesse assunto.
— Hum… faço o possível, tudo quanto está ao meu pequeno alcance… Tenho
interesse pela nossa política ferroviária; um interesse tradicional na minha
família, pois meu pai, desde 1851, estava na diretoria da Viação Férrea de
Büchen. É provavelmente por esse motivo que eu, com meus trinta e dois anos,
fui eleito para o mesmo cargo; os meus méritos ainda não são muito
consideráveis…
— Não diga isso, senhor cônsul. Depois do discurso que, naquela ocasião, fez
na Assembleia…
— Sim, causei, talvez, certa impressão, e boa vontade não me falta. Só posso
ser grato ao meu pai, avô e bisavô, que me aplainaram o caminho. Grande parte
da confiança e do prestígio que eles granjearam na cidade é transferida, sem
mais nem menos, para mim. Caso contrário, não poderia exercer tal atividade…
Por exemplo, meu pai: quanta coisa fez ele, depois de 1848 e no começo deste
decênio, para reformar o nosso serviço de correios! Lembre-se, Wenzel, de como
admoestou a Assembleia, para que incorporasse as diligências de Hamburgo no
sistema postal. E anno 1850, no Senado, que naquela época era de uma lentidão
incrível, ele agitou como sempre novas moções pela adesão à União Aduaneira
Austro-Prussiana… Se, hoje em dia, temos cartas a tarifas baratas, e se existem
impressos cintados, selos, caixas de correio e as linhas telegráficas para Berlim e
Travemünde, não é ele o último a quem o devemos. Não tivesse ele, com alguns
outros, continuamente insistido junto ao Senado, a gente teria eternamente ficado
atrás do serviço postal da Dinamarca e de Thurn-Taxis. Sim, e agora ouvem-me,
quando, em tais assuntos, dou a minha opinião…
— Deveras, senhor cônsul; com isso, o senhor fala a verdade. E quanto à
estrada para Hamburgo: não faz bem três dias que o burgomestre dr. Oeverdieck
me disse: “Quando estivermos em condições de adquirir em Hamburgo um
terreno apropriado para a estação, mandaremos o cônsul Buddenbrook; ele serve
melhor para negociações assim do que uma porção de advogados”… Foi o que
me disse…
— Bem; sinto-me muito lisonjeado, Wenzel. Mas bote mais espuma por cima
do queixo. Tem de limpar um pouco melhor aí… Pois é, numa palavra,
precisamos ser ativos! Não digo nada contra Oeverdieck, mas é homem idoso, e
se eu fosse burgomestre acho que tudo andaria um pouco mais depressa. Faltam-
me palavras para dizer quanto me satisfaz o fato de terem começado os
preparativos da iluminação a gás que finalmente fará desaparecer essas
desgraçadas lâmpadas a óleo com as suas correntes. Posso afirmar que, de certo
modo, influenciei nesse sucesso… Ah, quanta coisa resta ainda por fazer! Olhe,
Wenzel, os tempos mudam, e nós temos muitas obrigações para com a era
moderna. Quando penso na minha juventude… Você conhece melhor do que eu
o aspecto que a cidade tinha naquela época. As ruas sem calçadas; por entre os
ladrilhos, grama de mais de um pé de altura; e as casas com sacadas, rampas e
bancos… Os nossos edifícios medievais estavam desfigurados por anexos novos,
e tudo esmigalhava-se, pois, embora o indivíduo tivesse dinheiro e ninguém
passasse fome, o Estado não possuía nada. Todo mundo deixava correr o marfim,
como diria o meu cunhado Permaneder, e nem se pensava em consertos. Aquelas
gerações de outrora eram comodistas e felizes. E o amigo íntimo de meu avô
(lembra-se do bom Jean Jacques Hoffstede?) andava de cá para lá, traduzindo
pequenas poesias francesas indecentes… Mas as coisas não podiam continuar
assim; mudou-se muito, e ainda há mais por mudar… Você sabe que já não
temos trinta e sete mil habitantes, mas sim mais de cinquenta mil, e o caráter da
cidade altera-se. Existem construções novas, e os bairros estendem-se; fizemos
boas estradas e podemos restaurar os monumentos dos grandes tempos. Mas,
afinal, tudo isso não passa de aparência. Grande parte do essencial está ainda por
realizar, caro Wenzel; e com isso cheguei outra vez ao ceterum censeo do meu
saudoso pai: a União Aduaneira, Wenzel, temos de entrar na União Aduaneira;
sobre esse assunto nem sequer devia haver dúvida. E vocês todos devem ajudar-
me quando eu lutar para esse fim… Pode acreditar: eu, como comerciante, sei
mais dessas coisas do que os nossos diplomatas, e o medo de perdermos algo da
nossa liberdade e independência é realmente ridículo nesse caso. O interior, os
dois Mecklemburgos e o Schleswig-Holstein abrir-se-iam para nós, e isso seria
tanto mais desejável quanto já não dominamos por completo o tráfego para o
norte… Chega… A toalha, faça o favor, Wenzel — terminou o cônsul. Depois
trocaram mais algumas palavras sobre o preço atual do centeio, que estava a
cinquenta e cinco táleres e ameaçava ainda baixar terrivelmente. Às vezes
acrescentava-se uma observação sobre qualquer acontecimento familiar que
sucedera na cidade, e por fim o sr. Wenzel desaparecia, através do subsolo, a fim
de esvaziar sobre a calçada da rua a bacia polida. O cônsul, por sua vez, subia
pela escada em caracol para o quarto, onde dava um beijo na testa de Gerda, que
nesse ínterim já acordara. Isso feito, terminava a toalete matinal.
Essas pequenas conversas matutinas com o ágil barbeiro formavam a abertura
dos dias mais movimentados e laboriosos, inteiramente cheios de pensamentos,
conferências, afazeres, escritas, cálculos e caminhadas… Graças às viagens que
fizera, e aos conhecimentos e interesses que tinha, Thomas Buddenbrook, no seu
ambiente, era o indivíduo menos contagiado pela estreiteza burguesa; sem
dúvida, era o primeiro a sentir a restrição e pequenez da esfera em que vivia.
Mas lá fora, na sua pátria em sentido mais extenso, depois do progresso da vida
pública, trazido pelos anos da revolução, seguira-se um período de
afrouxamento, estagnação e reação, período demasiado pobre para dar ocupação
a um espírito vivo. E assim o cônsul tinha bastante inteligência para fazer da
sentença sobre a importância simplesmente simbólica de toda atividade humana
a sua verdade predileta. Por isso punha a serviço do pequeno organismo
municipal, em cuja região o seu nome pertencia aos primeiros, tudo quanto
possuía de vontade, capacidade, entusiasmo e brio, dedicando as mesmas
qualidades ao serviço do nome e da tabuleta da firma que herdara… E era
suficientemente espirituoso para sorrir a respeito da ambição de alcançar
grandeza e poder num ambiente restrito para, ao mesmo tempo, levá-la a sério.
Mal acabava, servido por Anton, de tomar o café da manhã na sala de jantar,
vestia-se para sair e ia ao escritório da Mengstrasse. Ali não permanecia mais de
uma hora. Escrevia duas ou três cartas urgentes; ordenava isto ou aquilo, dando,
por assim dizer, um pequeno impulso à engrenagem da firma, para depois
abandonar o controle da marcha ao olhar circunspecto do sr. Marcus.
Mostrava-se e falava nas sessões e reuniões; demorava-se na Bolsa, sob as
arcadas ogivais do Mercado; inspecionava o porto e os depósitos; na qualidade
de dono de navios negociava com os capitães… E, apenas interrompidos por
uma refeição rápida em companhia da velha consulesa, pelo almoço tomado com
Gerda e por meia hora de sesta no divã, acompanhada pela leitura do jornal e um
charuto, seguia-se uma multidão de trabalhos que se prolongavam até a noite,
ora referentes aos seus próprios negócios, ora a assuntos alfandegários, de
impostos, construções, viação férrea, correios ou de caridade pública. Punha-se
também a par de matérias que, no fundo, lhe eram alheias e normalmente
competiam aos “sábios”; principalmente em questões financeiras demonstrava
talento brilhante…
Acautelava-se em não negligenciar a vida social! A sua pontualidade a esse
respeito, decerto, deixava a desejar. Constantemente aparecia somente no último
segundo, quando já o esperavam havia mais de meia hora a esposa, em vestido
de gala, e a carruagem em frente do portão. Gritando: “Perdão, Gerda! Os
negócios…”, punha a toda a pressa a casaca. Mas, quando chegava ao banquete,
baile ou sarau, sabia demonstrar vivo interesse e exibir-se como causeur
amável… Quanto à apresentação, ele e a esposa não ficavam atrás das outras
casas ricas. A cozinha e a adega tinham a reputação de “piramidais”; ele mesmo
era apreciado como anfitrião cortês, atencioso e ponderado; a graça dos brindes
que fazia era superior ao nível dos demais. Todavia, costumava passar noites
tranquilas em companhia de Gerda, fumando, escutando-a tocar violino ou lendo
livros com ela, prosadores alemães, franceses ou russos que ela escolhia…
Era assim que Thomas Buddenbrook trabalhava, forçando o sucesso; pois o
seu prestígio na cidade crescia. A firma passava por anos excelentes, apesar das
diminuições do capital causadas pelo estabelecimento de Christian e pelo
segundo casamento de Tony. Contudo, havia muitas coisas que, em certos
momentos, lhe paralisavam o ânimo, enfraquecendo-lhe a elasticidade do
espírito e sombreando-lhe o bom humor.
Havia Christian em Hamburgo, cujo associado, o sr. Burmeester, na primavera
desse ano, 1858, subitamente sucumbira a uma apoplexia. Os herdeiros haviam
retirado da firma o capital do falecido, e o cônsul, com insistência,
desaconselhara o irmão de continuá-la com os próprios recursos, pois sabia
como seria difícil manter com meios, repentina e fortemente reduzidos, um
negócio iniciado em maior estilo. Mas Christian teimava em conservar a sua
independência; tomou a si o ativo e o passivo de H. C. F. Burmeester & Cia… e
acontecimentos desagradáveis eram de recear.
Havia, além disso, em Riga, a irmã do cônsul, Klara Buddenbrook. Que o seu
matrimônio com o pastor Tiburtius tivesse ficado sem a bênção de filhos não era
tão triste, pois Klara nunca os desejara e, sem dúvida, possuía escassos talentos
maternais. Mas, segundo as cartas que ela e o marido escreviam, a sua saúde era
demasiado instável, e as dores cerebrais de que já sofrera quando menina
manifestavam-se, periodicamente e em forma quase insuportável, nos tempos
recentes.
Esse fato causava inquietação. E uma terceira preocupação consistia em que no
próprio lar também ainda não havia a certeza da perpetuação do nome da
família. Gerda tratava essa questão com indiferença soberana, que se aproximava
de uma recusa enfastiada. Thomas disfarçava a sua mágoa. A velha consulesa,
porém, interessou-se pelo caso e consultou o velho Grabow.
— Doutor, cá entre nós: deve-se fazer alguma coisa finalmente. A montanha de
Kreuth e o mar em Travemünde ou Glucksburgo parece que não deram
resultado. Que acha o senhor? — E Grabow, vendo que a sua receita favorita
“Regime rigoroso; um pedacinho de pombo, um pouquinho de pão francês…”
nesse caso, provavelmente, não seria bastante enérgica, receitou banhos em
Pyrmont e Schlagenbad.
Três motivos de cuidados. E Tony?… Coitada de Tony!
* Felice Orsini, terrorista italiano, praticou em 14 de janeiro de 1858 um atentado contra Napoleão III.
8.
Tony escrevia:
E quando digo “almôndegas”, ela não me compreende, pois aqui se diz “croquetes”; e quando ela diz
“brócolis”, acho que não se encontrará com facilidade um ser cristão que saiba que isso significa couve-
flor; e quando digo “bergamotas”, ela grita “quê?”, até que eu diga “tangerinas”, pois assim se chamam
aqui; e aquele “quê?” quer dizer: “Que deseja a senhora?”. E esta já é a segunda, pois tomei a liberdade
de despedir a primeira, que se chamava Kathi, porque se tornava impertinente, ou pelo menos tive essa
impressão; pode ser que me tenha enganado, como verifiquei posteriormente, pois aqui a gente não sabe
com certeza se uma pessoa fala grosseira ou amavelmente. A atual, que se chama Babette, tem, aliás, um
exterior bastante agradável; é de um tipo muito meridional, como há muitas por aqui, de cabelos pretos e
dentes que poderiam causar-me inveja. Ela faz o que se pede e, conforme as instruções que lhe dou, já
sabe preparar alguns dos pratos da nossa terra; ontem, por exemplo, fez agrião com corintos. Mas isso
causou-me graves aborrecimentos, porque Permaneder ficou tão zangado por causa dessa verdura
(embora retirasse os corintos com o garfo), que não falou comigo durante toda a tarde e não deixou de
resmungar. Posso afirmar, mamãe, que a vida nem sempre é fácil.
Não eram somente os “croquetes” e o agrião que lhe amarguravam a vida…
Logo na lua de mel, ferira-a um golpe; algo de imprevisto, inimaginável e
incompreensível irrompera sobre ela, um acontecimento que lhe roubara toda a
alegria, e do qual não soubera consolar-se. Tratava-se do seguinte:
Somente quando o casal Permaneder, já havia algumas semanas, vivia em
Munique, o cônsul conseguira tornar líquido o dote da irmã, fixado pelo
testamento do pai. Eram cinquenta e um mil marcos cujo valor em florins
chegara perfeitamente às mãos do sr. Permaneder. Este os investira de modo
seguro e lucrativo. Mas o que, depois dessas transações, sem hesitação nem
vergonha, dissera à esposa, foi isto: “Toniquita”, chamava-a Toniquita, “para
mim chega. A gente tem o que precisa. Estafei-me o tempo todo, e agora quero
descansar; sacramento! Alugamos o térreo e o segundo andar, e ficamos aqui
com um belo apartamento. E a gente pode comer um bom assado de porco e não
tem necessidade de instalar-se com tanta distinção e de andar toda
empoleirada… E à noite vou à cervejaria tomar o meu chope. Eu não sou fino e
não gosto de amontoar dinheiro. Quero o meu sossego! Amanhã faço o ponto
final e daqui em diante viverei como capitalista”.
“Permaneder!”, gritara ela, e fora a primeira vez que usara aquela peculiar
tonalidade gutural com que costumava pronunciar o nome do sr. Grünlich. Mas
ele apenas respondera: “Ora bolas! Deixe-me em paz!”. E com isso se iniciara
uma desavença de tal modo séria e violenta que devia abalar para sempre a
felicidade de um matrimônio tão recente… Ele saíra vencedor. A resistência
apaixonada de Tony quebrara-se contra a inclinação do marido para o sossego;
por fim, o sr. Permaneder liquidara o capital investido no negócio de lúpulo, de
maneira que, daí em diante, o sr. Noppe, por sua vez, podia riscar de azul a
“Cia.” no cartão de visitas… E, igual à maioria dos amigos que, de noite,
jogavam cartas com ele e bebiam os costumeiros três litros à mesa especial da
cervejaria, o marido de Tony limitava as atividades em aumentar os aluguéis, na
sua função de senhorio, e em cortar, modesta e tranquilamente, os cupons das
suas apólices.
À consulesa simplesmente se comunicara o fato consumado. Mas nas cartas
que a sra. Permaneder escrevera ao irmão a respeito do acontecimento, transluzia
a mágoa que sentia… Coitada de Tony! Os seus piores receios haviam sido
amplamente superados. Soubera de antemão que o sr. Permaneder nada possuía
da “atividade” que o primeiro marido manifestara em demasia; mas não
imaginara que ele aniquilaria assim por completo as expectativas que Tony,
ainda na véspera do noivado, nutrira diante de Ida Jungmann; jamais supusera
que ele, tão redondamente, ignoraria as obrigações que tomara ao desposar uma
Buddenbrook…
Tony tinha de conformar-se com isso, e em casa a família percebia pelas suas
cartas como ela se resignava. Com o marido e com Erika, que ia à escola,
passava uma vida bastante monótona; cuidava da casa; mantinha relações
amigáveis com as pessoas que tinham alugado o térreo e o segundo andar, bem
como com os Niederpaur da Marienplatz; de vez em quando escrevia sobre
representações no Teatro da Corte que vira em companhia da sua amiga Eva,
pois o sr. Permaneder não gostava dessas coisas, e evidenciara-se que, apesar de
passar mais de quarenta anos na sua querida Munique, nunca dedicara um olhar
ao interior da Pinacoteca.
Decorriam os dias… Mas Tony perdera o verdadeiro prazer na sua nova vida,
desde que o sr. Permaneder se aposentara logo após ter recebido o dote. Faltava a
esperança. Nunca, nas cartas para casa, ela teria de relatar uma vitória, um
progresso. Até o fim dos seus dias, a vida ficaria inalteravelmente assim como
era, despreocupada, mas reduzida e muito pouco “distinta”. Isso pesava sobre
ela. E as suas cartas demonstravam nitidamente que essa mentalidade pouco
animada lhe dificultava a assimilação ao ambiente sulino. Às coisas de menos
importância, decerto, acostumava-se com mais facilidade. Aprendeu a chegar a
um entendimento com as criadas e os fornecedores, a dizer “croquetes” em lugar
de “almôndegas” e a não mais servir sucos de frutas ao marido, depois que este
os chamara de “porcaria nojenta”. Mas, em geral, Tony permanecia uma
forasteira na sua nova pátria. A ideia de que, aí, o fato de ser uma Buddenbrook
não significava nada de notável, representava para ela uma incessante
humilhação. Contava numa carta que um pedreiro qualquer, de caneca na mão e
um rabanete na outra, a abordara na rua, perguntando: “Escute, vizinha, tem
horas?”. E, não obstante a forma gracejante, era sensível um forte matiz de
agastamento, e os leitores podiam ter certeza de que inclinara a cabeça para trás
e não se dignara a dar ao homem nem uma resposta, nem sequer um olhar… De
resto, não era somente essa falta de cerimônia e esse pouco sentido de distância
que lhe eram alheios e antipáticos: embora não penetrasse profundamente no
ambiente e na vida da cidade, havia o ar de metrópole, cheia de artistas e de
burgueses que nada faziam, ar um tanto desmoralizado que muitas vezes não
estava disposta a respirar com humor.
Decorriam os dias… E por fim parecia que a felicidade ia chegar, aquela
felicidade que, na Breite Strasse e na Mengstrasse, se esperava debalde: logo
após o dia do Ano-Novo de 1859 tornou-se certeza a esperança de que Tony fosse
mãe pela segunda vez.
Nesses dias, a alegria, por assim dizer, tremia através das suas cartas, cheias de
locuções humorísticas, infantis e notáveis como não tinham estado havia muito
tempo. Fora dos veraneios que, aliás, mais e mais se limitavam à praia do
Báltico, a consulesa já não gostava de viagens; assim, lastimou ter de ficar
distante da filha nessa época, assegurando-lhe apenas por escrito a assistência
divina. Tom e Gerda, porém, avisaram a sua chegada na ocasião do batismo, e
Tony andava entusiasmada por projetos de uma recepção distinta… Coitada de
Tony! Essa recepção devia realizar-se de forma imensamente triste, e esse
batismo que ela imaginara como uma festinha encantadora com flores, doces e
chocolates não devia realizar-se… A criança, uma menina, só entrou na vida
para, um quarto de hora mais tarde, não mais pertencer a ela, quarto de hora
cheio de esforços inúteis do médico para manter em movimento o pequeno
organismo incapaz…
Quando o cônsul Buddenbrook e a esposa chegaram a Munique, a própria
Tony ainda não estava fora de perigo. O parto fora muito mais difícil do que o
primeiro, e durante alguns dias o estômago, que já antes, pela sua fraqueza
nervosa, a fizera sofrer, recusava aceitar qualquer alimento. Todavia, sarou, e os
Buddenbrook puderam partir tranquilizados a esse respeito. Por outro lado, a
visita lhes inspirou certos receios, pois se evidenciara abertamente, e sobretudo
não escapara à observação do cônsul, que nem sequer a aflição fora capaz de
aproximar os cônjuges entre si.
Não havia dúvida sobre o bom coração do sr. Permaneder… Ficara
sinceramente abalado. Ao aspecto da criança inânime, grandes lágrimas lhe
haviam brotado dos olhinhos túmidos, correndo sobre as bochechas inchadas até
o bigode em franja. Repetidas vezes proferira, suspirando gravemente: “É uma
cruz; lhe digo: uma verdadeira cruz!”. Mas segundo a opinião de Tony, o seu
sossego não havia sido prejudicado durante muito tempo, e as sessões noturnas
na cervejaria logo o tinham consolado. Continuava a “deixar correr o marfim”
com aquele fatalismo comodista, bonachão, um tanto rabugento e embotado que
se exprimia no seu “É uma cruz…”.
Desde então, as cartas de Tony não mais perderam o tom de desespero e
mesmo de acusação… “Ah, mamãe”, escrevia, “quanta coisa cai sobre mim!
Primeiro Grünlich e a bancarrota, e depois Permaneder como ‘capitalista’ e
finalmente a criança morta. Como mereci tanta desgraça?”
Quando o cônsul lia essas exteriorizações não podia reprimir um sorriso, pois,
através de toda a dor que essas linhas continham, sentia um matiz de orgulho
quase engraçado; sabia que Tony Buddenbrook, como sra. Grünlich tanto como
sra. Permaneder, continuara uma criança, e que passava por todos os
acontecimentos da sua vida adulta com olhos incrédulos, mas também com a
seriedade e, antes de tudo, a capacidade de resistência peculiares a uma criança.
Ela não compreendia como merecera a desgraça; pois, embora zombasse da
grande piedade da mãe, estava, ela mesma, cheia da crença fervorosa de que
existem nesta Terra merecimentos e equidade… Pobre Tony! A morte da
segunda filha não era nem o derradeiro, nem o mais duro golpe dos que iam feri-
la…
Quando o ano de 1859 chegava ao fim, aconteceu algo horroroso.
9.
Era por fins de novembro, num dia frio de outono; o céu vaporoso quase
prometia neve; o sol, de quando em quando, penetrava a cerração ondulante.
Naquele dia, pela cidade portuária, o noroeste agudo uivava com pérfido sibilo
em torno das esquinas das igrejas maciças, e a pneumonia comprava-se barato.
Pelo meio-dia, o cônsul Thomas Buddenbrook entrou na copa, onde, à mesa,
encontrou a mãe, de óculos sobre o nariz, inclinada por cima de um papel.
— Tom — disse ela, olhando-o e escondendo o papel com ambas as mãos,
como se hesitasse em mostrá-lo. — Não se assuste… Algo de desagradável…
Não compreendo… É de Berlim… Deve ter acontecido alguma coisa…
— Por favor! — disse Tom laconicamente. Mudou de cor, e durante um
momento salientaram-se os músculos nas fontes. Cerrou então os dentes. Com
um gesto extremamente decidido estendeu a mão, como para dizer: “Depressa,
por favor; deixe-me ver o desagradável sem cerimônias!”.
De pé, leu as linhas escritas sobre o papel, alçando uma das sobrancelhas claras
e cofiando com os dedos a ponta comprida do bigode. Era um telegrama que
dizia: “Não se assustem. Venho imediatamente com Erika. Acabou-se tudo. Sua
desgraçada Antonie”.
— Imediatamente… imediatamente — disse ele irritado, olhando a consulesa
com rápido meneio da cabeça. — Que quer dizer imediatamente?
— É uma dessas locuções, Tom, e não significa nada. Ela quer dizer “pelo
próximo trem” ou qualquer coisa assim…
— É de Berlim? Que faz ela em Berlim? Como foi a Berlim?
— Não sei, Tom; ainda não compreendo nada. O despacho chegou há dez
minutos. Mas alguma coisa deve ter acontecido, e devemos ver o que é. Deus
fará que tudo seja para o bem. Sente-se, meu filho, e coma.
Ele se acomodou e, mecanicamente, verteu cerveja pórter no alto e grosso
copo.
— Acabou-se tudo… — repetiu. — E essa coisa de “Antonie”… Criancices!
Depois comeu e bebeu sem falar.
Após algum tempo, a consulesa atreveu-se a observar:
— Será, Tom, que é alguma coisa com Permaneder?
Ele, sem levantar os olhos, apenas encolheu os ombros.
Quando se ia, com a mão na maçaneta, disse:
— Pois é, mamãe; temos de esperar por ela. Presumo que não quererá assaltá-
la a altas horas da noite e que chegará amanhã no decorrer do dia. Por favor,
mande avisar-me…
Logo depois da refeição, Tony se recolhera para o quarto, pois a consulesa lhe
confirmara a suspeita de que Thomas sabia da sua chegada… E ela não parecia
ter grande ansiedade pelo encontro com o irmão.
Às seis da tarde chegou o cônsul. Foi à sala das Paisagens, onde manteve
demorada palestra com a mãe.
— E em que estado ela está? — perguntou. — Como se comporta?
— Ah, Tom, estou com receio de que seja irreconciliável… Meu Deus, ela está
tão irritada… E além do mais, aquela palavra… Se eu ao menos soubesse a
palavra que ele disse…
— Vou falar com ela.
— Muito bem, Tom. Mas bata suavemente à porta, que ela não leve um susto!
E fique calmo, sim? Os nervos dela estão desequilibrados… Quase não comeu…
É o estômago, ouviu? Vá falar com ela calmamente.
A passos rápidos, com a sua costumeira pressa, saltando os degraus de dois em
dois, Thomas subiu a escada para o segundo andar. De ar meditabundo, torcia a
ponta do bigode. Mas, enquanto batia à porta, se lhe aclarou o rosto, pois estava
decidido a tratar o caso o mais humoristicamente possível.
Uma voz sofredora disse “Entre!”. Thomas abriu a porta e encontrou a sra.
Permaneder completamente vestida e deitada sobre a cama, cujas cortinas
estavam descerradas. Tinha uma almofada sob as costas, e ao lado, no criado-
mudo, achava-se um frasquinho de gotas estomacais. Virando-se um pouco,
Tony apoiou a cabeça sobre a mão e olhou-o com um sorriso amuado. Tom fez
uma mesura profunda, descrevendo um gesto solene com as mãos abertas.
— Minha senhora… A que devemos a honra de ver a habitante da capital
residencial…
— Dê-me um beijo, Tom — disse ela, enquanto se erguia, para oferecer-lhe a
face. Depois, deixou-se novamente cair sobre a almofada. — Boa tarde, meu
velho! Você não mudou nada, como vejo; ainda é como era em Munique!
— Ora, minha querida, com as venezianas fechadas não pode formar uma
opinião a esse respeito. E de qualquer modo não convém que me roube esse
cumprimento, que naturalmente deve ser feito a você…
Segurando-lhe a mão, aproximou uma cadeira e sentou-se a seu lado.
— Como já disse muitas vezes: você e Klothilde…
— Arre, Tom! Como vai Thilda?
— Muito bem, claro! Madame Krauseminz cuida dela e faz que não passe
fome. Isto, porém, não impede que Thilda, nas quintas-feiras, coma a valer,
como se quisesse abastecer-se para a próxima semana…
Tony riu tão sinceramente como não fazia havia muito tempo. Mas depois, com
um suspiro, cortou o riso, para perguntar:
— Como vão os negócios?
— Hum… A gente anda remando. Devemos estar contentes…
— Oh, graças a Deus, que pelo menos aqui tudo vai como deve! Ah,
absolutamente não estou disposta a tagarelar alegremente…
— Que pena! Acho que, quand même, a gente deveria conservar o bom humor.
— Não, isto terminou, Tom… Você sabe de tudo?
— Você sabe de tudo… — repetiu ele, largando-lhe a mão, enquanto,
bruscamente, punha a cadeira um pouco para trás. — Santo Deus! Como soa
isso! “Tudo!” Quanta coisa encerra esse “tudo”! “Deixei ali minh’alma e toda a
minha dor…”* Não é? Ora, sem gracejos…
Ela ficou calada. Roçou-o com um olhar profundamente admirado e
mortificado.
— Pois sim, eu esperava essa fisionomia — disse Thomas —, pois sem ela
você não estaria aqui. Mas, minha boa Tony, permita-me levar a coisa na
brincadeira, assim como você a leva demasiado a sério. Você vai ver que a gente
se completará vantajosamente…
— Demasiado a sério, Thomas, demasiado…
— Sim! Grande Deus, não representemos uma tragédia! Falemos com alguma
modéstia, em lugar desse “Acabou-se tudo” e “Sua desgraçada Antonie”!
Compreenda-me bem, Tony; você sabe perfeitamente que sou o primeiro a
regozijar-me de todo o coração pela sua vinda. Há muito desejava que nos
visitasse uma vez, sem o seu marido, para que nos pudéssemos reunir novamente
en famille. Mas que venha agora e venha deste jeito, perdão, é uma asneira,
minha querida! Sim… Deixe-me terminar! Permaneder comportou-se de modo
sumamente inconveniente, não se discute e hei de dar-lhe a compreender a
minha opinião; prometo-lhe…
Ela o interrompeu, empertigando-se e deitando a mão sobre o peito:
— Como ele se comportou, eu mesma já lhe dei a compreender, e digo-lhe que
não me limitei a “dar a compreender”. Outras explicações com esse indivíduo
são totalmente supérfluas, segundo o meu sentido de tato! — Com isso, deixou-
se cair novamente e olhou o teto, severa e impassível.
Ele se inclinou como sob o peso dessas palavras, enquanto, sorrindo, olhava
para os joelhos.
— Bem, então não lhe escreverei uma carta grosseira; exatamente como você
quiser. Afinal de contas, o assunto é seu, e basta absolutamente que você sozinha
o chame à razão. Sendo a mulher dele, é a pessoa indicada para isso.
Examinando bem o caso, não se lhe podem negar circunstâncias atenuantes. Um
amigo estava de aniversário. Permaneder voltou para casa com um ânimo
festivo, um pouco bem-humorado demais, e incorreu numa pequena
escorregadela, num desairezinho inconveniente…
— Thomas — disse ela. — Não o compreendo. Não compreendo o tom em
que fala. Você… um homem com os seus princípios… Mas você não o viu na
ocasião! Como a agarrou na sua embriaguez, a cara que tinha…
— Posso imaginar que foi bastante cômica. Mas é justamente isso, Tony: você
não considera o caso pelo lado cômico, e é naturalmente o seu estômago que tem
culpa disso. Apanhou o seu marido num momento de fraqueza; viu-o numa
situação ridícula… Mas esse fato não a deveria revoltar tão terrivelmente; pelo
contrário, deveria diverti-la um pouquinho e aproximar vocês um do outro como
entes humanos… Vou lhe dizer uma coisa: claro que você não podia aprovar a
conduta dele, sem mais aquela, sorridente e calada. Partir foi uma demonstração;
talvez uma demonstração fogosa demais; um castigo um pouco severo talvez
(pois não quero ver a aflição dele, neste momento), mas, em todo caso, um
castigo justo. Rogo-lhe apenas que olhe as coisas com menos indignação e um
pouco mais do ponto de vista político… Falemos cá entre nós, não é? Tenho de
explicar-lhe afinal que, num matrimônio, absolutamente não é indiferente em
que lado se encontra… a supremacia moral… Compreenda-me bem, Tony! O
seu marido mostrou o seu fraco; não há dúvida. Comprometeu-se e ridicularizou-
se um pouquinho… fez-se tanto mais ridículo porque o seu crime é tão inocente,
tão pouco sério… Em breves palavras: a dignidade dele já não está acima de
toda prova. Decididamente você tem a seu favor certa superioridade, e se souber
aproveitá-la habilmente a sua boa sorte será garantida. Suposto que, daqui a…
digamos quinze dias… oh, por favor, exijo que fique conosco pelo menos quinze
dias! Suposto, então, que daqui a duas semanas você volte para Munique,
veria…
— Não voltarei para Munique, Thomas.
— Perdão… — perguntou ele, de rosto crispado, levando a mão em concha à
orelha e inclinando-se para a frente.
Tony estava deitada de costas, com a cabeça enterrada no travesseiro, de modo
que o queixo parecia avançar com certo rigor.
— Nunca! — disse ela; isso feito, respirou demorada e ruidosamente e
pigarreou: um pigarro seco, lento e acentuado que começava a ser nela um
hábito nervoso, provavelmente por causa da enfermidade estomacal… Fez-se
uma pausa.
— Tony — disse ele de súbito, levantando-se, enquanto energicamente deixava
cair a mão sobre o espaldar da poltrona Empire —, não me faça escândalo!
Um olhar de esguelha mostrou a Tony que ele estava pálido; os músculos nas
fontes trabalhavam. Ela sentia que já não podia conservar a sua atitude.
Começou também a exaltar-se, e para esconder o medo que tinha do irmão
tornou-se ruidosa e irada. Erguendo-se de golpe, deixou resvalar os pés pela
beira da cama, e de faces ardentes, sobrancelhas cerradas e gestos rápidos da
cabeça e das mãos, pôs-se a falar:
— Escândalo, Thomas?! Será que você se atreve a mandar-me não fazer
escândalo quando fui insultada, quando um homem simplesmente me cuspiu na
cara?! Será que isso é digno de um irmão? Pois bem, você tem de permitir-me
essa pergunta! Consideração e tato são coisas bonitas; não se discute! Mas há
limites na vida, Tom… e eu conheço a vida tão bem como você! Há limites onde
o receio do escândalo começa a dizer-lhe essas coisas, eu, que sou apenas uma
ingênua e uma tolinha… Sim, eis o que sou, e compreendo perfeitamente por
que Permaneder nunca me amou, pois sou velha, talvez feia, quem sabe, e
Babette, com certeza, é mais bonita. Mas isso não o dispensava da consideração
que devia à minha origem, à minha educação e aos meus sentimentos! Você não
viu de que modo ele esqueceu essa consideração, e quem não assistiu àqueles
acontecimentos não sabe de nada, pois não é possível contar quão repugnante ele
se mostrou… E você não ouviu a palavra que me gritou a mim, sua irmã, quando
peguei as minhas coisas e saí do quarto, para dormir no sofá da sala de estar…
Sim, senhor! Nessa ocasião, tive de ouvir da boca dele uma palavra… uma
palavra… uma palavra! Quero que você saiba, Thomas: foi essa palavra que
realmente me obrigou a arranjar a minha bagagem durante toda a noite, a
despertar Erika de madrugada e a vir-me embora, pois não podia ficar junto de
um homem em cuja casa tinha de esperar por tais palavras. Já lhe disse que
nunca voltarei para junto de um homem assim… Caso contrário, eu me
degradaria e não poderia ter respeito por mim mesma e não teria em que me
apoiar na vida!
— E teria finalmente a bondade de comunicar-me essa maldita palavra? Sim
ou não?
— Nunca, Thomas! Nunca a repetirei com os meus lábios! Sei o que devo a
mim e a esta casa…
— Então não vale a pena falar com você!
— Pode ser; e eu queria que não se falasse mais a respeito…
— Que quer fazer? Quer divorciar-se?
— Quero, Tom. Estou firmemente decidida a isso. Eis a maneira de proceder
que devo a mim mesma, à minha filha e a vocês todos.
— Bem! Tudo isso não passa de bobagens — disse ele tranquilamente.
Virando-se sobre os calcanhares, afastou-se dela, como se assim tudo estivesse
liquidado. — Para a gente se divorciar precisa de duas pessoas, minha filha; e a
ideia de que Permaneder consentiria nisso com muito prazer, sem mais nada,
essa ideia é simplesmente divertida…
— Oh, deixe isso comigo — respondeu Tony, sem se intimidar. — Você acha
que ele se oporá, por causa dos meus dezessete mil táleres; mas Grünlich
também não queria, e nós o forçamos. Há meios para isso, e vou falar com o dr.
Giesecke, que é amigo de Christian, e este há de me ajudar… Decerto, naquela
vez foi outra coisa; sei o que você quer dizer. Então havia “incapacidade do
marido para alimentar a família”; pois é! Você está vendo que entendo muito
bem dessas coisas; e, deveras, você se comporta como se fosse a primeira vez
que me divorcio! Mas tudo isso é indiferente, Tom. Talvez não possa ser, talvez
seja impossível… pode ser que você tenha razão. Mas nada alteraria as minhas
resoluções. Nesse caso, ele pode ficar com os cobres; existem coisas mais
importantes na vida! Mas nunca mais voltará a me ver!
Com isso pigarreou outra vez. Saíra da cama; acomodara-se na poltrona,
fincando um cotovelo no braço lateral e enterrando o queixo com tanta força na
mão, que quatro dedos em garra seguravam o lábio inferior. Assim, virando o
busto para o lado, Tony fitou fixamente através da janela, com os olhos excitados
e avermelhados.
O cônsul andava de cá para lá pelo quarto. Suspirou, meneou a cabeça e
encolheu os ombros. Por fim, estacou diante dela, de mãos torcidas.
— Você é uma criança grande, Tony! — disse, súplice e desanimado. — Cada
palavra que diz é uma autêntica criancice! Rogo-lhe a fineza de fazer um esforço
para, durante um só instante, considerar as coisas à maneira de pessoa adulta!
Será que não percebe que se comporta como se tivesse passado por algo grave e
sério, como se o seu marido a tivesse enganado cruelmente, como se, diante do
mundo inteiro, a tivesse humilhado? Mas lembre-se apenas de que nada
aconteceu! Que ninguém no vasto mundo sabe alguma coisa do acontecimento
estúpido que se passou na escada da Kaufinger Strasse! Que absolutamente você
não prejudica a sua nem a nossa dignidade quando, com toda a calma, e talvez
com uma fisionomia um pouco irônica, volta para junto de Permaneder… Pelo
contrário, diminui a nossa dignidade unicamente se não o fizer; pois só assim
daria importância a essa bagatela, só assim causaria um escândalo.
Largando o queixo rapidamente, Tony o encarou.
— Cale-se, Thomas! Agora é a minha vez! Agora você tem de me ouvir!
Como? Será que, na vida, apenas é vergonhoso e escandaloso aquilo que se torna
público e do que se fala? Ah, não! Muito pior é o escândalo clandestino que
silenciosamente nos corrói e devora o respeito que temos por nós mesmos! Será
que nós, os Buddenbrook, somos pessoas que só por fora querem ser, como se
diz aqui, “piramidais”, enquanto, dentro destas quatro paredes, engolimos toda
espécie de humilhações? Tom, a sua conduta me estranha! Imagine como papai
se comportaria hoje, e julgue o caso como ele o faria! Não, senhor, em toda parte
deve reinar limpidez e franqueza… Em qualquer instante, você pode mostrar os
seus livros comerciais a todo mundo e pode dizer: “Olhem aí…”. E não deve ser
diferente com nenhum de nós. Eu sei como Deus me fez. Não tenho medo
nenhum! Deixe Julinha Möllendorpf passar por mim sem me cumprimentar! E
deixe Pfiffi Buddenbrook chegar aqui, nas quintas-feiras, e agitar-se de malícia;
deixe-a dizer: “Pois é, infelizmente já é a segunda vez, mas sempre, claro, a
culpa foi só dos homens!”. Sinto-me indizivelmente superior a todas essas
coisas, Thomas! Sei que fiz o que achei correto. Mas engolir ofensas, por medo
de Julinha Möllendorpf e de Pfiffi Buddenbrook, deixar-me insultar no dialeto de
cervejeiros incultos… perseverar, por causa delas, numa cidade onde eu teria de
acostumar-me a tais palavras e a cenas como a da escada, onde deveria
totalmente renunciar a mim, à minha origem e educação, a tudo quanto tenho em
mim, só para parecer feliz e satisfeita: eis o que chamo indigno, eis o que é
escandaloso; sim, senhor!
Deteve-se. Novamente fincou o queixo sobre a mão, cravando os olhos
exaltados nas vidraças. Thomas quedou-se diante dela, o peso do corpo sobre
uma das pernas, com as mãos nos bolsos, e deixou pousar o olhar sobre a irmã,
sem vê-la. Cheio de pensamentos, sacudiu vagarosamente a cabeça.
— Tony — disse ele —, não me pode enganar. Eu já sabia disso antes, mas
pelas últimas palavras você se descobriu. Não se trata do marido. Trata-se da
cidade. Não se trata dessa bobagem da escada. Trata-se do todo em geral. Você
não se pôde aclimatar. Seja sincera.
— Tem razão, Thomas! — gritou ela. Até levantou-se de um pulo e, com a
mão estendida, apontou-lhe direto ao rosto. Estava corada. Em atitude belicosa,
estacou, apanhando a cadeira com uma mão e gesticulando com a outra; fez um
discurso apaixonado e vibrante que brotava dela com força irresistível. O cônsul
a fitou com pasmo profundo. Mal ela se dava tempo para respirar e já manavam
e borbulhavam novas palavras. Sim, Tony achou palavras; expressou tudo
quanto, durante esses anos, se acumulara nela de desgosto: a coisa saía-lhe um
pouco desordenada e confusa, mas conseguiu expressá-la. Foi uma explosão,
uma erupção cheia de franqueza desesperada… Houve nesse momento uma
descarga contra a qual não existiam argumentos, algo de elementar sobre o que
não se podia discutir…
— Você tem razão, Thomas! Pode repeti-lo! Ah, asseguro-lhe solenemente que
já não sou uma tola e sei o que devo esperar da vida. Já não estou estupefata ao
perceber que neste mundo nem tudo se passa de maneira limpinha. Encontrei
sujeitos como Trieschke Chorão e fui casada com Grünlich e aqui na cidade
conheço os nossos pândegos. Não sou nenhuma ingênua de aldeia, digo-lhe, e
aquela coisa com Babette, por si só, considerada à parte, não me teria
afugentado; pode acreditar! Mas o caso é, Thomas, que esse fato encheu a
medida… Não se precisava de muito para isso, pois, no fundo, a medida já
estava cheia… cheia havia muito, muito tempo! Um nada teria sido suficiente
para fazê-la transbordar, e agora aquilo! Ainda por cima a certeza de que nem
sequer nesse ponto eu podia ter confiança em Permaneder! Foi o que coroou a
obra! Aquela cena ultrapassou os limites! Foi ela que, de um golpe, amadureceu
de vez a minha resolução de ir-me embora de Munique, e essa resolução, há
muito, muito tempo, já estava amadurecendo, Tom; não posso viver ali! Santo
Deus e todos os anjos; não posso! Você não sabe, Tom, quanto eu era infeliz.
Quando vocês vieram visitar-nos, nada deixei transparecer; ah, não, sou mulher
delicada que não importuna outras pessoas com as suas queixas; não exibo o
meu coração todos os dias e sempre me inclinava para o retraimento. Mas sofri,
Tom, sofri, com tudo o que tenho em mim, e, por assim dizer, com toda a minha
personalidade. Como uma planta, para servir-me desta imagem, como uma flor
que se transplantou em terra estranha… Embora você ache imprópria esta
comparação, pois sou uma mulher quase feia… Mas não existe terra mais
estranha para mim, e prefiro ir para a Turquia! Oh, jamais deveríamos sair daqui!
Deveríamos permanecer na nossa baía marítima e viver à nossa maneira! De vez
em quando, vocês zombavam de minha predileção pela nobreza… pois sim,
durante esses anos, muitas vezes, fiquei pensando em algumas palavras que, há
muito tempo, alguém, uma pessoa inteligente, me disse: “Você simpatiza com os
aristocratas…”; foi assim que disse. “Vou lhe explicar por quê: porque você
mesma é uma aristocrata! Seu pai é um grande senhor, e você é uma princesa.
Um abismo a separa de nós outros que não pertencemos ao círculo das famílias
governantes…” Sim. Tom, sentimo-nos nobres; temos um sentimento de
distância e não deveríamos procurar viver em lugar algum onde nada sabem de
nós e não são capazes de nos apreciar, pois receberemos apenas humilhações, e
eles nos acharão ridiculamente altivos. Sim, senhor… todo mundo me achou
ridiculamente altiva. Ninguém me falava nada, mas sentia-o a cada hora, e foi
também por isso que sofri. Ah! num país onde comem torta com faca, onde os
príncipes falam um alemão errado e onde todos se admiram, como de um ato
amoroso, quando um cavalheiro levanta do chão o leque de uma dama, num país
assim é fácil parecer altiva. Não, entre pessoas sem dignidade, moral, ambição,
distinção e rigor, entre pessoas desleixadas, descorteses, desordenadas, entre
pessoas que ao mesmo tempo são preguiçosas e levianas, estúpidas e
superficiais… entre tais pessoas não me posso aclimatar e nunca poderia fazê-lo,
na condição de sua irmã! Eva Ewers conseguiu… muito bem! Mas uma Ewers
ainda não é uma Buddenbrook, e além disso ela tem um marido que presta para
alguma coisa na vida. Mas que sorte tive eu? Pense a esse respeito, Thomas!
Comece desde o início e lembre-se de tudo! Saindo daqui, desta casa, de um
lugar onde ela vale alguma coisa, onde a gente é ativa e tem objetivos, cheguei
ali, para junto de Permaneder, que se aposentou com o meu dote… Ah, isto foi
típico, foi realmente característico, mas não houve mais nada de agradável nesse
procedimento. E depois? Espera-se uma criança. Como fiquei alegre! Ela me
teria indenizado de todo o resto! Que acontece? Ela morre. Está morta. Não foi
culpa de Permaneder; Deus me livre, não! Fez o que pôde e até não foi à taverna
durante dois ou três dias; sim, senhor! Mas o fato faz parte do todo, Thomas.
Pode imaginar que não aumentou a minha felicidade. Aguentei firme e não
resmunguei. Andava pela cidade, sozinha e incompreendida, com a reputação de
ser altiva, e dizia a mim mesma: “Você lhe deu o seu consentimento por toda a
vida. Ele é um pouco rude e indolente e desapontou as suas esperanças; mas só
quer o seu bem e tem bom coração”. E depois tive de passar por aquilo e de vê-
lo naquele momento repugnante. Foi então que aprendi: é assim que ele me
compreende, e assim sabe respeitar-me tanto que chega a gritar atrás de mim
uma palavra, uma palavra que nem um dos seus estivadores atiraria a um
cachorro! Nesse momento vi que nada me prendia e que ficar teria sido uma
vergonha. E aqui, quando, a partir da estação, passei pela Holsteinstrasse,
encontrei o carregador Nielsen, que tirou a cartola profundamente, retribuí o
cumprimento: absolutamente não de modo altivo, mas assim como papai
cumprimentava essa gente… assim… abanando com a mão… Aqui estou. Pode
atrelar duas dúzias dos seus cavalos de carroça, Tom: não me arrastará para
Munique outra vez. E amanhã encontrar-me-ei com Giesecke!
Foi esse o discurso de Tony. Depois, meio exausta, deixou-se recair na cadeira,
enterrando o queixo na mão e fitando as vidraças.
Totalmente assustado, tolhido e quase abalado, o cônsul quedava-se diante
dela, sem falar. Então respirou profundamente. Levantou os braços até a altura
dos ombros, para deixá-los cair sobre as coxas.
— Bem, nesse caso não se pode fazer nada! — disse baixinho.
Silenciosamente virou-se nos calcanhares e dirigiu-se para a porta.
Ela o acompanhou com os olhos; tinha a mesma expressão com que o recebera:
sofredora e amuada.
— Tom — perguntou —, está zangado comigo?
Segurando a maçaneta oval numa das mãos, ele fez com a outra um gesto
cansado de negação.
— Ah, não! De modo algum!
Tony, com a cabeça sobre o ombro, estendeu-lhe a mão.
— Venha cá, Tom… A sua irmã não tem uma vida muito boa. Tudo cai em
cima dela… E neste instante talvez ela não tenha ninguém para apoiá-la…
Ele voltou e lhe apanhou a mão, ligeiramente, um tanto indiferente e fatigado,
sem olhá-la.
De súbito, o lábio superior de Tony começou a tremer…
— Daqui em diante você terá de trabalhar sozinho — disse-lhe. — Christian
nunca vai endireitar, e eu cheguei ao fim… não posso fazer mais nada… acabou-
se… sim, senhor: vocês terão de dar o pão da caridade à mulher inútil que sou.
Nunca eu teria pensado que fracassaria tão completamente no meu esforço de
ajudá-lo um pouquinho, Tom! Agora você tem de se arranjar sozinho, para que
nós, os Buddenbrook, defendamos o nosso lugar… E Deus esteja com você!
Duas lágrimas, lágrimas de criança, grossas e claras, lhe correram sobre as
faces cuja pele já começava a perder a frescura da mocidade.
Uma cadeira vaga no Senado deve ser reocupada em quatro semanas; assim o
exige a Constituição. Três semanas decorreram desde o passamento de James
Möllendorpf; e agora chegou o dia da eleição, um dia de degelo em fins de
fevereiro.
Na Breite Strasse, diante da Prefeitura com a fachada em filigrana de tijolos
vitrificados, com as torres pontiagudas que se eriçam contra o céu alvacento,
com a escadaria coberta que repousa sobre colunas avançadas e com as arcadas
pontudas que abrem a vista para a praça do Mercado e o chafariz… diante da
Prefeitura acotovelava-se o povo à uma hora da tarde. Sem cansar, a massa ali se
deixa ficar, na neve da rua, suja e aquosa, que derrete por completo sob os seus
pés; encaram-se um ao outro, olham para a frente outra vez e espicham os
pescoços. Pois ali, atrás desse portão, na sala do Conselho, com as catorze
poltronas dispostas em semicírculo, o grêmio de eleitores, formado por membros
do Senado e da Assembleia, se acha ainda a essa hora à espera das propostas das
câmaras eleitorais…
A coisa demora. Parece que os debates nas câmaras não querem chegar a um
acordo, que a luta é dura, e que até esse momento ainda não foi proposta
unanimemente a mesma pessoa ao grêmio reunido na sala do Conselho, pois
nesse caso o burgomestre logo a declararia eleita… Coisa estranha! Ninguém
sabe de onde vêm os boatos, onde e como nascem, mas através do portão eles
saem para a rua e espalham-se por toda parte. O sr. Kaspersen, o mais velho dos
contínuos, e que sempre se intitula “funcionário do Estado”, talvez esteja ali
dentro e, de boca cerrada e olhos desviados, por um simples movimento das
comissuras, transmita para fora tudo quanto chega a perceber. Nesse instante
dizem que as propostas acabam de ser entregues na sala de sessões, e que cada
uma das três câmaras propôs um candidato diferente: Hagenström,
Buddenbrook, Kistenmaker! Queira Deus que pelo menos a eleição geral, com o
escrutínio secreto por meio de cédulas, produza uma maioria nítida! Quem não
calça galochas quentes começa a levantar as pernas e a pisar o chão, pois os pés
doem de tanto frio.
Há pessoas de todas as classes do povo, ali reunidas para aguardarem o
resultado. Veem-se marujos de peito descoberto e tatuado, as mãos nos largos e
profundos bolsos das calças; carregadores de trigo, nas suas blusas e calções de
linho preto lustroso, e com fisionomia de incomparável probidade; carroceiros
que desceram das pilhas de sacos de centeio para, de chicote na mão, esperarem
pelo nome do novo senador; empregadas de xale, avental e grossa saia listrada, o
bonezinho branco na nuca e um grande cesto com as asas sobre o braço nu;
peixeiras e verdureiras com os enormes chapéus de palha; até algumas
jardineiras bonitas, de toucas holandesas, saias curtas e longas mangas brancas
com muitas pregas que parecem brotar do corpinho em cores variegadas… E por
entre eles há burgueses, lojistas das casas da proximidade, que saíram sem
chapéu, para trocarem opiniões; jovens comerciantes bem trajados, filhos que
passam três ou quatro anos de aprendizagem no escritório do pai ou de um
amigo deste; colegiais com bolsas ou pacotes de livros…
Atrás de dois estivadores de barbas duras de marujo, que mascam fumo,
postou-se uma senhora. Com grande excitação vira a cabeça de cá para lá, a fim
de enxergar a Prefeitura por entre os ombros dos dois homenzarrões robustos.
Usa uma espécie de capa de gala, comprida e forrada de peles castanhas, que se
fecha por dentro com ambas as mãos; o rosto está totalmente coberto por espesso
véu pardo. Nervosamente, as galochinhas espezinham a neve derretida…
— Aposto que outra vez não será o seu famoso Kurz — diz um dos operários
ao outro.
— Não, compadre, não precisa me dizer isso; eles só estão votando entre o
Hagenström, o Kistenmaker e o Buddenbrook.
— É, e agora não se sabe qual dos três vai ganhar.
— Olhe só! Como você é sabido!
— Quer saber de uma coisa? Acho que vão eleger o Hagenström.
— Imagine, sabichão… Então é o Hagenström que vai ser senador? — E com
isso escarra o fumo diante dos seus pés, porque a tropelia não lhe permite cuspir
ao longe. Enquanto com ambas as mãos puxa as calças para a cintura, prossegue:
— Esse Hagenström é um comilão e nada mais; e nem pode respirar pelo nariz,
de tão gordo… Não, senhor, como mais uma vez não será o meu amigo Kurz,
vou torcer pelo Buddenbrook. É um sujeito ativo…
— É você que diz… Mas o Hagenström é muito mais rico…
— Isso não importa. Ninguém quer saber disso.
— Mas o Buddenbrook anda muito almofadinha, com os seus punhos e a
gravata de seda e o bigode comprido… Você já viu como anda? Pula sempre que
nem um passarinho…
— Ora, grande burro, disso não se fala.
— Dizem que ele tem uma irmã que não se deu com dois maridos…
A senhora da capa de gala estremece…
— É, há coisas assim. Mas a gente não sabe nada delas, e que tem o cônsul
com isso?
“Pois sim!”, pensa a senhora velada, torcendo as mãos por baixo da capa…
“Pois sim! Graças a Deus!”
— E além disso — acrescenta o homem que toma o partido de Buddenbrook
— o burgomestre Oeverdieck foi padrinho do filho dele. Vou lhe dizer: isso é
importante…
“Não é?”, pensa a senhora. “Sim, graças a Deus! O golpe produziu efeito!…”
Ela se sobressalta. Divulga-se um novo boato, que corre em marcha de zigue-
zague para as últimas fileiras e chega-lhe aos ouvidos. O escrutínio geral não
trouxe a decisão, Eduard Kistenmaker, que recebeu o menor número de votos,
está eliminado. A luta entre Hagenström e Buddenbrook continua. Um burguês
de fisionomia grave observa que, no caso da igualdade de votos, será necessário
eleger cinco árbitros que decidirão por maioria.
De repente grita uma voz, de junto ao portão:
— Heine Seehas está eleito!
Heine Seehas é um indivíduo constantemente embriagado que anda vendendo
pão com um carrinho! Toda a gente ri às gargalhadas, espichando-se na ponta
dos pés para ver o inventor da pilhéria. A senhora velada também é acometida
por um riso nervoso que, por um momento, lhe sacode os ombros. Depois disso,
porém, com um gesto que exprime “Será que convém gracejar nesta hora?”,
recolhe-se com visível impaciência e lança novamente olhares apaixonados em
direção à Prefeitura. Mas no mesmo instante abaixa as mãos, de modo que se
descerra a capa de gala, e, de ombros caídos, ali se deixa ficar, lassa,
aniquilada…
Hagenström! A notícia chegou ninguém sabe de onde. Chegou como que
brotada do solo ou caída do céu, e está em toda parte. Não há oposição! Tudo
está resolvido! Hagenström! Pois então, é ele o eleito. Não vale mais a pena
esperar. A senhora velada devia ter aguardado isso. Na vida, sempre é assim.
Agora pode simplesmente ir para casa. Ela sente um nó na garganta…
Mas esse estado de coisas durou apenas um segundo, quando um repentino
choque, um brusco movimento passa pela multidão; um empurrão que se
transmite da frente para trás reclinando as primeiras filas contra as posteriores.
Ao mesmo tempo, alguma coisa vermelha resplandece no portão… São as
casacas vermelhas dos dois contínuos, Kaspersen e Uhlefeldt. Estes, em trajes de
gala, de tricórnio, calças brancas de montaria, botas amarelas e espada, aparecem
lado a lado e abrem caminho através da massa que cede.
Andam com o destino: sérios, mudos, fechados, sem olhar à esquerda nem à
direita, de olhos baixados… E, com decisão inexorável, escolhem a direção que
o resultado da eleição lhes indicou. Não tomam o rumo da Sandstrasse, mas
dobram pela direita, para descer a Breite Strasse!
A senhora velada não pode crer nos próprios olhos. Mas a multidão que a cerca
tem a mesma impressão. Seguem na direção dos contínuos, dizendo entre si:
“Qual nada! Não é Hagenström; é Buddenbrook”. E já saem do largo portão,
conversando animadamente, alguns cavalheiros e, virando-se para a direita,
descem rapidamente pela Breite Strasse, a fim de serem os primeiros
congratulantes.
Então a senhora apanha a capa de gala e afasta-se a correr. Corre como uma
dama não costuma correr. Desarranja-se o véu, deixando ver o rosto exaltado,
mas isto lhe é indiferente. E, embora uma das galochas forradas de peles, na
neve pegajosa, constantemente esteja em perigo de extraviar-se, estorvando-a de
modo pérfido, ela passa por todos. É a primeira a chegar à casa, na esquina da
Bäckergrubestrasse. Bate na campainha da porta guarda-vento; à criada que abre,
ela grita:
— Eles vêm vindo, Katharina, já vêm vindo!
Sobe pela escada, voando, e atira-se para a sala de estar. Ali, o irmão, que de
fato está um pouco pálido, larga o jornal e faz um gesto com a mão, como para
acalmá-la… Ela o abraça e repete:
— Eles vêm vindo, Tom! Eles vêm vindo!
Foi na primavera do ano de 1868 que a sra. Permaneder, às dez horas da noite,
compareceu ao primeiro andar da casa do irmão. O senador Buddenbrook
achava-se sozinho na sala de estar equipada com móveis forrados de repes cor de
azeitona. Acomodara-se diante da mesa redonda do centro, à luz do grande lustre
a gás que pendia do teto. O Jornal do Comércio de Berlim estava aberto diante
dele, e o senador inclinava-se levemente por cima da mesa, o cigarro entre os
dedos indicador e médio da mão esquerda. Lia com um pincenê de ouro sobre o
nariz, pois nos últimos tempos precisava de óculos durante o trabalho. Ouviu os
passos da irmã, que atravessava a sala de jantar, e, tirando o pincenê dos olhos,
relanceou um olhar atento para as trevas, até que Tony surgiu por entre os
cortinados e no halo da luz.
— Ah, é você. Boa noite. Já voltou de Pöppenrade? Como vão os seus amigos?
— Boa noite, Tom! Obrigada. Armgard está bem… Você está tão solitário
aqui!
— Sim, a sua visita era muito desejada. Hoje à noite tive de jantar sozinho
como o papa, pois Mademoiselle Jungmann não conta como sociedade porque a
todo instante se levanta de um pulo para ver como vai Hanno… Gerda está no
cassino. Há um concerto de violino no Tamayo. Christian veio buscá-la…
— Que gentil, diria mamãe… É verdade, Tom, eu observei que recentemente
Gerda e Christian se entendem muito bem.
— Eu também. Desde que Christian mora sempre na cidade, ela começa a
gostar dele. Escuta-o mesmo com atenção quando descreve as suas moléstias…
Meu Deus, ele a diverte. Há pouco que Gerda me disse: “Ele não é burguês,
Thomas! É ainda menos burguês do que você!”.
— Burguês? Burguês, Tom? Ora, tenho a impressão de que em todo o vasto
mundo não existe melhor burguês do que você…
— Olha: não é tão literalmente que se deve entendê-lo! Fique à vontade, minha
filha! Você está com aspecto magnífico. O ar do campo lhe fez bem?
— Muito — respondeu ela, enquanto punha de lado a mantilha e o chapéu com
fitas de seda lilás. Em atitude majestosa, sentou-se numa poltrona. — O
estômago e o sono noturno, tudo melhorou nesse pouco tempo. O leite fresco e
os salames e presuntos… Assim, a gente prospera como o gado e o trigo. E esse
mel em favo, Tom! Sempre o considerei um dos melhores alimentos! É um
produto natural. Com ele sabe-se o que se consome! Pois é, foi realmente muito
amável da parte de Armgard, que se lembrou da nossa antiga amizade de
pensionato e me convidou. E o sr. Von Maiboom também foi de uma
condescendência… Insistiram tanto comigo que ficasse mais algumas semanas,
mas você sabe: Erika tem dificuldades em arranjar-se sem mim, e principalmente
agora, que nasceu a pequena Elisabeth…
— À propos, e a criança?
— Linda, Tom! Graças a Deus, está bastante desenvolvida para os seus quatro
meses, embora Friederike, Henriette e Pfiffi achassem que não ia viver…
— E Weinschenk? Como se sente na sua função de pai? Propriamente, só o
vejo às quintas-feiras…
— Oh, ele não mudou. Olhe: é um homem tão decente e esforçado e, sob certo
ponto de vista, o tipo ideal do marido, pois despreza as tavernas; do escritório
volta diretamente para casa e passa as horas de ócio conosco. Mas o caso é…
Tom, cá entre nós, podemos falar francamente… Ele exige de Erika que esteja
sempre alegre, que fale e graceje constantemente, pois diz que, quando chega em
casa, cansado e deprimido, deseja que a esposa o divirta de maneira leve e jovial,
que o distraia e anime; diz que as mulheres foram feitas para isso…
— Idiota! — murmurou o senador.
— Como?… Ora, o mal é que Erika tende um pouquinho para a melancolia,
Tom; deve tê-la herdado de mim. De vez em quando, é séria e taciturna e
pensativa; e, então, Weinschenk a censura e fica furioso; usa palavras que,
francamente, nem sempre são muito delicadas. Sente-se com demasiada
frequência que, no fundo, não é de boa família e que, infelizmente, não recebeu
o que se chama uma educação distinta. Pois é, confesso-lhe com toda a
franqueza: poucos dias antes da minha partida para Pöppenrade, acontece que
atirou ao chão a tampa da terrina, porque a sopa estava salgada…
— Encantador!
— Não, pelo contrário. Mas não o julguemos por isso. Meu Deus, nós todos
temos os nossos defeitos, e um homem tão ativo, sólido e trabalhador… Deus
me livre! Não, Tom, a casca é áspera, mas a fruta é suave, e essas coisas não são
o pior que existe na vida. Posso dizer que acabo de deixar uma situação muito
mais triste. Armgard chorava amargamente quando estava a sós comigo…
— Não diga… O sr. Von Maiboom?
— Sim, Tom; e foi disso que quis falar com você. Estamos aqui sentados a
tagarelar, mas em realidade vim hoje à noite para assunto muito sério e
importante.
— Mas então? Que é que há com o sr. Von Maiboom?
— Ralf von Maiboom é um homem amável, Thomas, mas também um estroina
leviano, um doidivanas. Joga em Rostock, joga em Travemünde, e deve os olhos
da cara. Não se poderia acreditar quando se vive durante algumas semanas em
Pöppenrade! O solar é tão distinto; tudo ao redor prospera, e não há falta de leite,
ovos e presunto. Numa fazenda assim, realmente é impossível perceber o
verdadeiro estado das coisas… Com poucas palavras: em verdade, ele está
lamentavelmente embrulhado, Tom, o que Armgard me confessou por entre
soluços comoventes.
— Triste, bem triste.
— Você tem razão. Mas o caso é que se manifestou que os Maiboom não me
convidaram por motivos completamente faltos de interesse pessoal.
— Por quê?
— Vou explicar-lhe. O sr. Von Maiboom precisa de dinheiro; precisa
imediatamente de uma importância elevada. E, como conhecesse a velha
amizade que existe entre a mulher e mim, e soubesse que sou sua irmã, nos seus
apuros se valeu de Armgard, que, por sua vez, se valeu de mim… Compreende?
O senador passou a ponta dos dedos da mão direita pela risca do cabelo.
Carranqueou um pouquinho.
— Acho que sim — disse ele. — O seu caso sério e importante me parece ter
em mira um adiantamento sobre a colheita de Pöppenrade, se não me engano?
Mas com isso tenho a impressão de que vocês, você e os seus amigos, não se
dirigiram ao homem conveniente. Primeiro, nunca fiz negócios com o sr. Von
Maiboom, e este método de estabelecer relações comerciais seria bastante
singular. Segundo, nós, o bisavô, o avô, papai e eu, de vez em quando temos
pago adiantado aos camponeses, suposto que estes oferecessem certas garantias,
já por causa das suas personalidades, já por outras circunstâncias… Mas pelo
jeito como há dois minutos você caracterizou a personalidade e a situação do sr.
Von Maiboom, não se pode falar de tais garantias neste caso…
— Você está enganado, Tom. Deixei-o terminar, mas está enganado. Aqui não
se pode tratar de um adiantamento qualquer. Maiboom precisa de trinta e cinco
mil marcos.
— Com os diabos!
— Trinta e cinco mil marcos que vencerão daqui a duas semanas. Está com a
corda no pescoço e, para falar com clareza: ele tem de vender agora,
imediatamente.
— Oh, coitado dele! — E o senador, brincando com o pincenê sobre a toalha
da mesa, meneou a cabeça. — Mas me parece que este caso é muito pouco
vulgar na nossa região — acrescentou. — Ouvi dizer que negócios assim se
faziam principalmente no Hesse, onde grande parte dos camponeses se encontra
na mão dos judeus… Deus sabe quem será o usurário que há de apanhar o pobre
sr. Von Maiboom…
— Judeus? Usurários? — gritou a sra. Permaneder bastante espantada… —
Mas se fala de você, Tom, de você!
Subitamente, Thomas Buddenbrook atirou o pincenê sobre a mesa, com tal
violência que deslizou um bom pedaço em cima do jornal. De golpe, o senador
virou-se inteiramente para a irmã.
— De… mim? — perguntaram os seus lábios, sem emitir nenhum som. Depois
disse em voz alta: — Vá dormir, Tony. Parece-me que você está muito cansada.
— Sim, Tom. Assim falava Ida Jungmann conosco, à noite, quando a gente
mal começava a divertir-se. Mas posso afirmar-lhe que nunca na vida estive mais
acordada e ágil do que agora, que a altas horas da noite venho ter com você para
transmitir-lhe a proposta de Armgard… quer dizer, indiretamente, a de Ralf von
Maiboom…
— Ora, não levo a mal essa proposta porque a atribuo à sua ingenuidade e ao
desnorteamento dos Maiboom.
— Desnorteamento? Ingenuidade? Não o compreendo, Tom. Infelizmente
estou longe disso. Oferece-se uma ocasião para você fazer uma ação beneficente
e ao mesmo tempo o melhor negócio da sua vida…
— Bolas, minha querida! Você só diz asneiras! — gritou o senador, reclinando-
se impaciente. — Perdão, mas a sua inocência é capaz de exasperar a gente!
Então não se dá conta de que me aconselha uma coisa sumamente indigna,
manejos pouco limpos? Será que devo pescar em águas turvas? Explorar
brutalmente um homem? Aproveitar-me dos apuros desse fazendeiro sem defesa,
para esfolá-lo? Forçá-lo a ceder-me, pela metade do preço, a colheita de um ano,
a fim de que possa embolsar um lucro de agiota?
— Ah, é assim que você considera o negócio — disse a sra. Permaneder,
intimidada e meditativa. E prosseguiu com nova vitalidade: — Mas não há
necessidade, Tom, absolutamente não há necessidade de ver as coisas por esse
lado! Forçá-lo? Mas é ele quem se chega a você! Precisa do dinheiro e quer
liquidar o assunto por vias amigáveis, sem escândalo, em particular… Por isso
desenterrou a relação conosco, e por isso me convidaram!
— Bem, ele se engana a meu respeito e acerca do caráter da minha firma.
Tenho as minhas tradições. Esta espécie de negócios não foi feita por nós no
decorrer de cem anos, e não tenciono começar tais manobras.
— Claro, Tom, você tem as suas tradições, e elas merecem toda a reverência!
Decerto, papai não se teria metido nisso. Deus me livre! Quem afirmou o
contrário? Mas, por mais estúpida que eu seja, sei que você é um homem
diferente do pai; ao encarregar-se dos negócios, deu-lhes outro ritmo, e desde
então fez muita coisa que ele não teria feito. Você é moço e tem um cérebro
empreendedor. Mas estou sempre com receio de que nos últimos tempos se haja
apavorado com este ou aquele malogro… e se agora você já não trabalha com o
bom sucesso de outrora, é que, por pura prudência e escrupulosidade medrosa,
deixa escapar ocasiões para golpes proveitosos…
— Ah, pare com isso, minha filha! Você me irrita! — respondeu o senador em
voz áspera, enquanto se mexia na cadeira. — Por favor, falemos de outra coisa!
— Pois é, você está irritado, Thomas, vejo bem. Desde o início estava, e
justamente por isso continuei a falar, a fim de provar-lhe que não há razão para
sentir-se ofendido. Mas, quando pergunto a mim mesma por que você está
irritado, só posso dizer-me que, no fundo, tem certa inclinação para ocupar-se
com esse negócio. Pois, embora seja uma mulher estúpida, sei, pela minha
própria experiência e pelo que observei em outras pessoas, que nesta vida só nos
exasperamos e irritamos quando não nos sentimos inteiramente seguros na nossa
resistência, e no nosso íntimo tendemos a transigir.
— Quanta sutileza! — disse o senador, mordendo a ponta do cigarro. Depois
permaneceu calado.
— Sutileza? Ah, não, esta é a mais simples experiência que a vida me ensinou.
Mas não falemos mais nisso, Tom. Não quero insistir. Como poderia eu
persuadi-lo a fazer tal coisa?! Não passo de uma tola… É pena… Pois então,
tanto faz! A coisa me interessou muito. Por um lado, eu estava assustada e aflita
com respeito aos Maiboom, e pelo outro alegrava-me por causa de você. Pensei
comigo mesma: “Há algum tempo que o Tom anda tão macambúzio!
Antigamente, ele se queixava, e agora nem sequer se queixa. Perdeu dinheiro
aqui e ali; os tempos são ruins, e isso justamente agora que a minha própria
situação acaba de melhorar pela bondade de Deus e que me sinto feliz”. E então
pensei: “Eis o que ele precisa: um bom golpe, uma presa valiosa”. Com isso
poderá tirar desforra de muitas derrotas e mostrar a toda a gente que, por
enquanto, a firma Johann Buddenbrook não foi completamente abandonada pela
boa sorte. E se você tivesse consentido na coisa, eu teria ficado muito orgulhosa
por ter servido de intermediária, pois sabe que sempre foi meu ideal e meu
desejo prestar serviços ao nosso nome… Chega… Com isso, a questão me
parece liquidada… Mas o que me irrita é o pensamento de que, apesar disso e
em todo o caso, o Maiboom terá de vender a colheita no pé; e sabe, Tom, quando
ele procurar um comprador nesta cidade… com certeza achará um… e será
Hermann Hagenström, aquele filou!
— Ah, sim, parece duvidoso que ele se recuse a fazer o negócio — disse o
senador com amargura; e a sra. Permaneder repetiu três vezes a réplica:
— Está vendo? Está vendo? Está vendo?
De repente, Thomas Buddenbrook começou a menear a cabeça, dando uma
risada contrariada.
— Quanta bobagem… Com bruto aparato de seriedade, pelo menos da sua
parte, tratamos aqui um assunto de todo indeterminado, uma coisa que está no
ar! Ao que saiba, nem sequer lhe perguntei de que realmente se trata, o que o sr.
Von Maiboom tem para vender… Não conheço Pöppenrade…
— Oh, claro que você devia fazer uma viagem para lá! — disse Tony com
zelo. — Daqui para Rostock não é longe, e Pöppenrade se acha bem perto dali.
Que tem ele para vender? Pöppenrade é uma grande fazenda. Sei positivamente
que produz mais de mil sacos de trigo… Mas não conheço os detalhes exatos. E
quanto a centeio, aveia e cevada? Serão quinhentos sacos de cada um? Ou serão
mais, ou talvez menos? Não sei. Tudo ali cresce às maravilhas; isso posso dizer.
Mas não disponho de algarismos para servi-lo, Tom; sou uma tolinha. Claro que
você devia informar-se pessoalmente…
Fez-se uma pausa.
— Pois então não vale a pena perdermos duas palavras a esse respeito — disse
o senador de modo lacônico e firme. Apanhou o pincenê e meteu-o no bolso do
colete. Abotoando o casaco, ergueu-se e começou a andar de cá para lá na sala, a
passos rápidos, vigorosos e desembaraçados, que excluíam propositadamente
qualquer sinal de reflexão.
Depois estacou diante da mesa, e, inclinando-se sobre ela na direção da irmã,
enquanto batia na madeira com a ponta do dedo indicador levemente curvo,
disse:
— Vou contar uma história, Tony querida, para lhe explicar a minha atitude
neste caso. Conheço o faible que você tem pela nobreza em geral e pela
aristocracia mecklemburguesa em especial, e por isso peço-lhe paciência quando
na minha história um desses cavalheiros receber um lembrete… Você sabe que
há entre eles este ou aquele que não trata os comerciantes com grande
consideração, embora a necessidade que um tem do outro seja recíproca. Mas
eles acentuam demais a superioridade do produtor sobre o intermediário,
superioridade que aliás até certo ponto não se pode negar; em breves palavras:
não consideram o comerciante de maneira diferente do judeu ambulante a quem
vendemos roupas usadas, na certeza de sermos logrados. Tenho a opinião
lisonjeira de que, na maioria dos casos, não dei a esses cavalheiros a impressão
de ser explorador moralmente medíocre, e encontrei regateiros muito mais
tenazes do que eu mesmo. Mas com um deles precisei lançar mão da seguinte
pequena manobra, para, socialmente, avançar um pouco… Foi o proprietário de
Gross-Poggendorf. Sem dúvida você já ouviu falar nele; há vários anos fizemos
muitos negócios: o conde de Strelitz, fidalgo soberbo, com um pedaço de vidro
quebrado no olho… Nunca pude compreender por que não se cortava… Botas de
canos envernizados e um chicote de cabo dourado. Tinha um jeito de olhar de
cima, com a boca meio aberta e os olhos semicerrados, como se se achasse a
uma altura inconcebível… À primeira visita que lhe fiz, mostrou-se imponente.
Depois de uma correspondência inicial, fui ter com ele, e, anunciado pelo
mordomo, entrei no gabinete de trabalho. O conde de Strelitz está sentado à
escrivaninha. Retribui à minha mesura, levantando-se um pouquinho da cadeira;
após ter escrito a última linha de uma carta, dirige-se a mim, e, fingindo não me
ver, começa as negociações a respeito da sua mercadoria. Recosto-me contra a
mesa do sofá, cruzando braços e pernas, e acho o caso divertido. Durante uns
cinco minutos fico de pé. Depois de outros cinco minutos, sento-me sobre a
mesa e deixo uma perna balançar no ar. A nossa palestra prossegue e, decorrido
um quarto de hora, ele diz, com um gesto condescendente: “Mas o senhor não
queria acomodar-se numa cadeira?”. “Como?”, respondi. “Ah, não é necessário.
Há muito que estou sentado.”
— Realmente? Você lhe disse isso? — gritou a sra. Permaneder, encantada. E
quase esqueceu tudo quanto precedera a anedota; esta a absorvia por completo.
— Havia muito que você estava sentado! Essa é formidável!
— Pois sim; e asseguro-lhe que o conde, desde aquele momento, mudou
inteiramente a sua conduta; apertava-me a mão quando vinha, e obrigava-me a
sentar… De fato, em seguida travamos amizade. Mas por que lhe contei essa
história? Para perguntar-lhe: será que eu teria o ânimo, o direito, a segurança
interior, para ministrar a mesma lição ao sr. Von Maiboom, se este, ao negociar
comigo acerca do preço total da colheita, se esquece de… oferecer-me uma
cadeira?
A sra. Permaneder não respondeu.
— Bem — disse ela finalmente. — Pode ser que você tenha razão, Tom, e,
como já disse, não quero insistir. Você deve saber o que tem a fazer ou deixar de
fazer; e, com isso, ponto final. Queria só que acreditasse que procedi com boa
intenção… Basta! Boa noite, Tom!… Mas não, espere. Antes tenho de dar um
beijo em Hanno e cumprimentar a boa Ida… Depois, vou dar mais uma olhadela
por aí…
E, com essas palavras, saiu.
3.
Subiu a escada até o segundo andar e, deixando a “galeria” à direita, passou pela
balaustrada branca e dourada. Atravessou uma antessala, cuja porta para o
corredor estava aberta, e de onde outra saída, à esquerda, dava para o gabinete de
vestir do senador. Depois baixou com precaução o trinco da porta da frente e
entrou.
Era uma peça extremamente espaçosa, de janelas encobertas por cortinas
floreadas, arranjadas em pregas. As paredes estavam um tanto nuas. Além de
uma gravura muito grande, emoldurada de preto, que pendia por cima da cama
da srta. Jungmann e representava Giacomo Meyerbeer, cercado por figuras das
suas óperas, havia apenas algumas cromolitografias inglesas, fixadas sobre papel
claro por meio de alfinetes, e que mostravam crianças de cabelos amarelos em
vestidinhos de nenê vermelhos. Ida Jungmann, sentada no meio do quarto, à
grande mesa desdobrável, estava cerzindo as meiazinhas de Hanno. A leal
prussiana encontrava-se agora no início dos cinquenta; embora tivesse começado
a encanecer muito cedo, o topete liso ainda não se tornara branco, mas
perseverara em determinado estado grisalho. O corpo ereto era ainda tão
vigoroso e ossudo, e os olhos castanhos permaneciam tão claros, ágeis e
incansáveis quanto há vinte anos.
— Boa noite, Ida, minha boa alma! — disse a sra. Permaneder em voz abafada
mas alegre, pois a pequena anedota do irmão lhe inspirara ótimo humor. —
Como vai, velho móvel da casa?
— Ora, ora, Toninha… Móvel da casa, minha filha? Como chega aqui assim
tão tarde?
— Falei com meu irmão… sobre negócios que não permitiam demora…
Infelizmente, a coisa fracassou… Ele dorme? — perguntou, apontando com o
queixo para a pequena cama que, com a cabeceira envolta de verde, se achava
junto à parede lateral esquerda, bem perto da alta porta que dava para o quarto
do senador Buddenbrook e da esposa…
— Psiu! — fez Ida. — Sim, está dormindo.
A sra. Permaneder, na ponta dos pés, aproximou-se da cama, e soerguendo
suavemente o cortinado olhou, inclinada, o rosto do sobrinho.
O pequeno Johann Buddenbrook estava de costas, mas o rostinho orlado pelo
longo cabelo castanho-claro se voltava para o quarto. Com leve ruído, a
respiração do menino tocava o travesseiro. Uma das mãos, cujos dedos mal
saíam das mangas demasiado compridas e largas da camisola, descansava sobre
o peito, e a outra, ao lado, sobre a colcha. Os dedos torcidos, às vezes, tremiam
ligeiramente. Nos lábios semiabertos também se via um movimento apenas
perceptível, como se procurasse formar palavras. De espaço a espaço passava
por todo esse pequeno rosto, de baixo para cima, qualquer coisa dolorosa, que,
começando por um estremecimento do queixo, se propagava pela região bucal e
fazia vibrar as narinas tenras, enquanto os músculos da testa delgada se punham
em movimento… As compridas pestanas não eram capazes de esconder as
sombras azuladas que pairavam sobre as comissuras dos olhos.
— Está sonhando — disse a sra. Permaneder, comovida. Então, curvando-se
sobre a criança, beijou-lhe cautelosamente as faces aquecidas pelo sono. Após
ter recomposto o cortinado com muita precaução, foi outra vez à mesa, onde Ida,
à luz amarela da lâmpada, esticou outra meia por cima da bola de cerzir,
examinou o buraco e começou a consertá-lo.
— Cerzindo, Ida? Engraçado, quase não a vejo fazer outra coisa!
— Pois é, Toninha… É incrível como o garoto rasga a roupa desde que vai à
escola!
— Mas é uma criança tão mansinha e quieta!
— É, sim… mas de qualquer jeito…
— Ele gosta de ir à escola?
— Não, Toninha! Teria preferido continuar aprendendo comigo. E eu, também,
teria desejado que o fizesse, sabe, minha filha? Pois os professores não o
conhecem como eu, desde pequeno, e não sabem como proceder com ele, para
que aprenda… Muitas vezes tem dificuldade para prestar atenção, e cansa
rapidamente…
— Coitadinho! Já apanhou alguma sova?
— Mas não! Boje kochhanne!…* Como poderiam ser assim tão cruéis!
Quando o garoto lhes olha na cara…
— Como se portou, quando foi à escola pela primeira vez? Chorou?
— Claro! Chora facilmente… Não alto, mas assim baixinho, para si mesmo…
E então segurou o senhor seu irmão pelo casaco, suplicando sempre que ficasse
com ele…
— Ah, foi o meu irmão que o levou? Sim, é um momento penoso, Ida; pode
acreditar. Ah, lembro-me como se fosse ontem! Berrei… Asseguro-lhe que uivei
como um cão acorrentado; sofri que foi um horror. E por quê? Porque em casa
tinha vivido vida tão boa, tal qual Hanno. Todas as crianças de famílias distintas
choravam; desde logo o percebi; ao passo que as outras não se importavam;
olhavam-nos de olhos arregalados e riam-se estupidamente… Céus! que tem ele,
Ida?…
Fez um gesto abrupto com a mão e, sobressaltada, dirigiu-se para a cama, de
onde viera um grito, interrompendo-lhes a conversa; um grito apavorado que no
próximo instante se repetiu com uma expressão mais vexada, mais assustada
ainda e depois ressoou três, quatro, cinco vezes seguidas… “Oh! oh! oh!”, um
protesto que o horror fez demasiado alto, indignado e desesperado, e que parecia
ter em mira qualquer coisa abominável que se mostrava ou acontecia… Um
momento após o pequeno Johann achava-se de pé sobre a cama, e, enquanto
gaguejava palavras incompreensíveis, os olhos de um castanho dourado singular
estavam largamente abertos e cravavam o olhar num mundo totalmente distante,
sem nada perceberem da realidade…
— Não é nada — disse Ida. — Apenas o tal pavor. Ah, às vezes é muito pior.
— Com toda a tranquilidade largou o trabalho e foi para junto de Hanno com os
seus peculiares passos compridos e pesados. Falando-lhe numa voz profunda e
tranquilizadora, deitou-o novamente e cobriu-o com o cobertor.
— Ah, sim, pavor… — repetiu a sra. Permaneder. — Está ele acordado agora?
Mas Hanno absolutamente não estava acordado, se bem que os olhos
permanecessem esbugalhados e hirtos e os lábios continuassem a mover-se…
— Como? Sossegue… Vamos, pequeno, deixemos de tagarelar… Que foi que
você disse? — perguntou-lhe Ida; Antonie também se aproximou, para ouvir o
murmurar e tartamudear irrequieto.
— Quando… fui… ao meu jardim… — disse Hanno, sonolento — para os
canteiros… regar…
— Recita poemas que aprendeu — explicou Ida Jungmann, meneando a
cabeça. — Muito bem… Chega… Durma, Hanno!
— Um corcunda… encontrei… pôs-se a espirrar… — prosseguiu o menino,
dando um suspiro. Mas de repente a sua fisionomia se alterou; os olhos
fecharam-se pela metade, e, mexendo a cabeça sobre o travesseiro, continuou em
voz baixa e dorida:
Plangem os hinos,
Dobram os sinos,
A criança se lamenta,
Que Deus ajude o pobre doente!
E com essas palavras soluçou do fundo do coração; lágrimas lhe brotaram por
entre as pestanas, correndo lentamente sobre as faces. E foi isso que o despertou.
Abraçou Ida; olhou em torno de si com os olhos úmidos; satisfeito, murmurou
alguma coisa como “tia Tony” e, endireitando-se um pouquinho, pôs-se de novo
a dormir com toda a tranquilidade.
— Estranho! — disse a sra. Permaneder, quando Ida voltara a acomodar-se à
mesa. — Que poemas foram esses, Ida?
— São do seu livro de leitura — respondeu Mademoiselle Jungmann —, e
embaixo está impresso: Cornucópia do menino…** Parecem bem singulares…
Ele teve de aprendê-los por estes dias, e falou muito sobre aquele do corcunda.
Conhece?… É medonho. Esse corcunda aparece em qualquer lugar, quebrando a
panela, comendo o mingau, roubando a lenha, parando a roda de fiar e rindo-se
da gente… E então, no fim, pede ainda que o incluamos na nossa prece! Pois é, o
garoto está doido por esse poema. Todos os dias, ele anda cismando a respeito.
Sabe o que me disse? Duas ou três vezes repetiu: “Não é, Ida? O corcunda não
faz isso por maldade; não faz por maldade!… É por tristeza que faz, e depois
fica mais triste ainda… Quando rezamos por ele, não precisa mais fazer tudo
isso”. E ainda hoje, quando a mamãe veio dizer-lhe boa-noite, antes de ir ao
concerto, Hanno lhe perguntou se devia rezar também pelo corcunda…
— E o fez?
— Em voz alta não, mas provavelmente em segredo… Sobre o outro poema,
que se chama “Relógio da alma”, não disse nada; apenas chorou. Desata a chorar
facilmente… e então, durante muito tempo, não consegue parar…
— Mas que há nisso de tão triste?
— Sei lá… Na recitação, ele nunca conseguiu passar do começo, daquele
trecho que até no sono o fez soluçar… E também chorou por causa do carroceiro
que já às três horas se levanta da cama de palha…
A sra. Permaneder riu-se, comovida, mas depois fez uma cara séria.
— Vou lhe dizer, Ida: não é bom, acho que não é bom que tudo o aflija tanto. O
carroceiro levanta-se às três horas… Pois então, meu Deus, para isso é que é
carroceiro! A criança, isto já percebi, tende a olhar tudo com olhos
impressionáveis e a preocupar-se com qualquer coisa… Isso deve definhá-la;
pode acreditar. Deveríamos falar seriamente com Grabow… Mas o caso é
justamente este — prosseguiu, cruzando os braços. De cabeça inclinada para o
lado, batia melancolicamente no chão com a ponta do pé. — Grabow está
ficando velho, e além disso, por mais bondoso que seja esse homem leal e
íntegro… não tenho em grande conta as suas qualidades de médico. Deus me
perdoe se me engano. Por exemplo, no caso da inquietude de Hanno, com os
seus sobressaltos noturnos e os seus acessos de medo, provocados pelos
sonhos… Grabow sabe disso, e tudo o que faz é dizer-nos do que se trata,
chamando a coisa pelo nome latino: pavor nocturnus… Muito bem, isto é
instrutivo, é claro… Não, Ida, é um homem simpático, um bom amigo da casa,
não se discute; mas não é sumidade. Homens de grande personalidade têm outro
aspecto e já na mocidade mostram o que se esconde neles. Grabow assistiu à era
de 1848; era moço então. Mas você acha que ele se tenha exaltado uma só vez…
por causa da liberdade e da justiça e da queda de privilégios e arbitrariedades? É
um sábio, mas estou convencida de que as incríveis leis que então vigoravam
para as universidades e a imprensa o deixavam absolutamente frio. O seu
comportamento nunca teve nada de aloucado; jamais passou dos limites…
Andava sempre com aquela cara branda e comprida, e agora receita pombo e pão
francês, e quando um caso se torna sério recorre a uma colherinha de sumo de
alteia… Boa noite, Ida… Ah, não; acho que existem médicos bem diferentes!
Que pena que não encontrei Gerda… Muito obrigada, há ainda luz no
corredor… Boa noite.
Quando, de passagem, a sra. Permaneder abriu a porta da sala de jantar, a fim
de gritar um “boa noite” ao irmão que ainda se achava na de estar, viu que toda a
sequência de salas estava iluminada. Thomas, mãos nas costas, andava de cá
para lá.
Quer fosse esquecimento, quer intenção por parte do senador, pouco faltava para
que não se lembrasse de um fato que agora se anunciava no mundo inteiro; a sra.
Permaneder, que, fiel e dedicadamente, estudava os documentos familiares, o
havia descoberto: a crônica da família considerava o dia 7 de julho de 1786 como
o da fundação da firma, e estava iminente o centenário dessa data.
Thomas quase pareceu desagradavelmente impressionado quando Tony, em
voz comovida, o avisou da data importante. A melhora do seu humor não havia
sido durável. Com demasiada presteza voltara a mostrar-se taciturno, mais
taciturno talvez do que antes. Acontecia-lhe no meio do trabalho sair do
escritório, para, presa de desassossego, andar sozinho de um lado para outro
através do jardim, estacando, por vezes, como que retido, estorvado, e cobrindo
por entre suspiros os olhos com a mão. Não dizia nada; não se abria a
ninguém… Com quem poderia falar? O sr. Marcus, pela primeira vez na vida, se
irritara — que aspecto estupendo! — ao receber do associado a lacônica
comunicação do negócio de Pöppenrade: escusara-se de qualquer
responsabilidade e participação. A irmã, certa quinta-feira, na rua, à hora da
despedida, aludira à colheita; e fora no momento desse breve aperto de mão que
Thomas revelara os seus sentimentos pelas palavras nervosas e sufocadas: “Ah,
Tony, eu queria já ter vendido!”. Depois se havia virado; cortara bruscamente a
conversa, deixando Antonie pasma e abalada… Esse repentino aperto de mão
tivera algo de uma explosão de desespero; as palavras cochichadas tinham
manifestado tanto medo mal contido… Mas quando Tony, na próxima ocasião,
procurara voltar ao assunto, o senador se envolvera num silêncio extremamente
reservado; envergonhara-se da fraqueza que durante um instante o fizera
desleixado, e parecia cheio de indignação pela sua incapacidade de responder
diante de si próprio por essa empresa…
Ao saber a nova que Tony descobrira, disse ele em voz lerda e mal-humorada:
— Ah, minha querida, eu gostaria que isso passasse despercebido!
— Despercebido, Thomas? Impossível! Nem pense nisso! Acha que poderá
dissimular este fato? Acha que a cidade inteira se esquecerá da importância deste
dia?
— Não digo que será possível, digo que eu preferia que deixássemos passar
despercebida a data. É bonito homenagear o passado para quem olha
confiadamente o presente e o futuro… É agradável lembrarmo-nos dos
antepassados, quando sabemos que estamos de acordo com eles e temos certeza
de que o nosso procedimento sempre foi de seu agrado… Se o centenário
chegasse em tempo mais oportuno… Em breves palavras: estou pouco disposto a
festejar…
— Não deve falar deste modo, Tom! A sua verdadeira opinião não é essa, e
você sabe perfeitamente que seria uma vergonha, repito, uma vergonha se o
centenário da firma Johann Buddenbrook decorresse sem cerimônias, sem
solenidades! De momento, está um pouco nervoso, e eu sei por quê… se bem
que, no fundo, não haja motivo para isso… Mas, quando vier o dia, estará tão
alegre e comovido como nós todos!
Tony tinha razão: não se podia passar esse dia em silêncio. Pouco após, surgiu
no Observador uma nota preparatória que prometia para o próprio dia da festa
uma descrição detalhada da história da velha e conceituada casa comercial. E
esse aviso nem sequer teria sido necessário para chamar a atenção da digna
associação dos comerciantes. Mas, quanto à família, Justus Kröger foi o primeiro
a mencionar, numa quinta-feira, o acontecimento iminente. Depois da
sobremesa, a sra. Permaneder se encarregou de expor a venerável pasta de couro
com os documentos da família e tomou o cuidado para que, num prelúdio dos
festejos, todos se ocupassem com as datas que se conheciam da vida do saudoso
Johann Buddenbrook, trisavô de Hanno e fundador da firma. Leu, com seriedade
religiosa, que ele tivera a escarlatina e a varíola, caíra do terceiro andar sobre
uma estufa e fora acometido de uma febre violenta. Nada lhe bastava: começou
com os tempos antigos do século XVI, até o primeiro Buddenbrook de quem
havia memória, aquele que tinha sido conselheiro municipal em Grabau, e o
mestre-alfaiate de Rostock, que “vivera em ótimas condições” — o que estava
sublinhado — e gerara extraordinária quantidade de crianças vivas ou mortas…
“Que homem magnífico!”, gritou Tony, e pôs-se a ler as velhas cartas,
amarelecidas e meio rasgadas, assim como brindes de festas antigas…
— Ah, este Bach, minha prezadíssima senhora, este Sebastian Bach! — grita o
sr. Edmund Pfühl, organista da igreja de Santa Maria, medindo o salão a passos
muito exaltados, enquanto Gerda, sorrindo, está sentada diante do piano de
cauda, apoiando a cabeça na mão. Hanno, metido numa poltrona, escuta-os
atentamente, cingindo com os braços um dos joelhos. — Claro… é como diz a
senhora… foi por intermédio dele que o elemento harmônico venceu o
contrapontístico… Ele criou a harmonia moderna; não se discute! Mas por que
meios? Será preciso dizer-lhe por que meios? Pela evolução progressiva do estilo
contrapontístico; a senhora o sabe tão bem como eu! Então, qual foi o princípio
impulsionador dessa evolução? A harmonia? Ah, não! Nada disso! Mas sim a
teoria do contraponto, prezadíssima senhora! A teoria do contraponto! Que
resultado, pergunto eu, teriam produzido as experiências absolutas da harmonia?
Estou prevenindo… Enquanto minha voz me obedece, previno contra as meras
experiências harmônicas!
Em tais palestras, o sr. Pfühl desenvolvia grande fervor que deixava correr
livremente, pois nesse salão sentia-se em casa. Às quartas-feiras, de tarde,
aparecia no limiar a sua figura alta, robusta, de espáduas um tanto erguidas, num
fraque cor de café, cujas abas lhe cobriam os joelhos. À espera da parceira abria
com carinho o piano de cauda Bechstein; após ter posto em ordem sobre a
estante esculpida a parte do violino, preludiava, durante um momento, animada e
artisticamente, enquanto a cabeça, satisfeita, se inclinava sobre o ombro.
A estupenda abundância de cabelos, aquela multidão perturbadora de pequenos
anéis rijos, arruivados e grisalhos, dava a essa cabeça o aspecto de extraordinária
grossura e peso; ela descansava, contudo, livremente sobre o longo pescoço, que,
munido de um grande nó na garganta, saía do colarinho virado. O bigode
espesso, mal penteado, da mesma cor do cabelo, avançava mais do que o nariz
pequeno e curto… Quando tocava, os olhos redondos, castanhos e brilhantes,
com túmidos sacos lacrimais, pareciam, sonhadores, ver através das coisas,
pousando ao longe, além das aparências reais… Este rosto não era importante;
pelo menos não manifestava o cunho de inteligência viva e forte. Em geral, as
pálpebras estavam baixadas a meio, e o queixo raspado muitas vezes pendia
frouxo e inerte, sem que, todavia, os lábios se descerrassem; essa atitude dava à
boca certa expressão de languidez, retraimento, tolice e dedicação, tal qual a
mostra a fisionomia de quem dorme suavemente…
Havia aliás um contraste estranho entre essa moleza do seu exterior e o rigor e
gravidade do seu caráter. Edmund Pfühl era organista de vasto renome, e a
reputação da sua sabedoria contrapontística não encontrava limites nas muralhas
da cidade paterna. O livrinho sobre os Gêneros da música sacra, que editara,
fora recomendado por dois ou três conservatórios para estudos especializados; as
suas fugas e arranjos de corais tocavam-se aqui e ali, sempre que um órgão
ressoava em louvor de Deus. Essas composições, bem como as fantasias com
que, aos domingos, regalava o auditório da igreja de Santa Maria, eram
inatacáveis, imaculadas, cheias da dignidade inexorável, imponente, lógica e
moralista do Estilo Rigoroso. A sua natureza parecia alheia a toda beleza terrena,
e o que expressava não empolgava os sentimentos puramente humanos do leigo.
Manifestava-se nelas, triunfando, vitoriosamente, a técnica que se tornara
religião ascética, o domínio das regras, elevado à mais absoluta sublimação e
transformado em finalidade última. Edmund Pfühl fazia pouco caso das obras
agradáveis; não se pode negar que falava sem amor da melodia meramente
bonita. Mas, embora pareça inexplicável, não era homem árido nem endurecido.
“Palestrina!”, pregava ele, com fisionomia categórica e temível. Mas logo após,
quando fazia retumbar no instrumento uma série de artifícios arcaicos, o seu
rosto se tornava puro enlevo, brandura e fervor; o olhar fixava-se numa distância
sagrada, como se visse realmente a obra da derradeira necessidade dos
acontecimentos… um olhar de músico que parece vago e vazio, porque enxerga
um reino de lógica mais profunda, pura, serena e incondicional do que aquela
dos nossos pensamentos e ideias linguisticamente exprimíveis.
As mãos eram moles e grandes, aparentemente sem ossos e cobertas de
sardas… e a voz que cumprimentava Gerda Buddenbrook, quando, descerrando
as cortinas, vinha entrando da sala de estar, soava branda e cava: “Seu servidor,
minha senhora!”. Era como se falasse com o esôfago.
Enquanto se soergue da poltrona e lhe estende a mão direita, de cabeça
reverentemente inclinada, a esquerda já faz ressoar as quintas; Gerda apanha
então o Stradivarius para, rapidamente, com gestos certeiros, afinar as cordas.
— O concerto em sol menor de Bach, sr. Pfühl. Tenho a impressão de que todo
o adágio esteve bastante ruim na outra vez…
E o organista se põe a preludiar. Mas mal produz a primeira série de acordes
acontece, como de costume, que, lenta e cautelosamente, se abre a porta do
corredor: o pequeno Johann, com precaução silenciosa, infiltra-se em direção a
uma poltrona. Acomoda-se ali, cingindo os joelhos com ambos os braços, e
permanece quieto, a escutar tanto os sons quanto as palavras que se proferem.
— Então, Hanno, quer saborear um pouco de música? — pergunta Gerda,
numa pausa. Os olhos sombrios, pouco distantes entre si, resvalam sobre o
menino, com aquele brilho úmido que a música provocou neles…
Então, Hanno se levanta; com uma mesura muda estende a mão ao sr. Pfühl,
que acaricia branda e afetuosamente o cabelo castanho-claro de Hanno,
amoldado com doçura e graça em torno da testa e das fontes.
— Fique escutando, meu filho! — diz o organista com ênfase bondosa. A
criança contempla, um tanto acanhada, o grande pomo de adão do organista, que,
ao falar, sobe e desce. Depois, Hanno volta às pressas e sem ruído para o seu
lugar como se não pudesse mais esperar a continuação da música e das palestras.
Executa-se um movimento de Haydn, algumas páginas de Mozart e uma sonata
de Beethoven. Feito isso, porém, enquanto Gerda, o violino por baixo do braço,
busca outras músicas, acontece algo de surpreendente: o sr. Pfühl, Edmund
Pfühl, organista de Santa Maria, tocando um intermezzo livre, desliza pouco a
pouco para um estilo muito estranho; enquanto isso, resplandece uma espécie de
felicidade envergonhada no seu olhar distante… Sob os seus dedos surge,
desabrochando e florescendo, uma rosa a tecer e cantar. Baixinho, primeiro, e
fugidio como um sonho, mais claro depois, e cada vez mais vigoroso, salienta-
se, em contraponto artístico, um motivo de marcha arcaicamente grandiosa,
expressão de esquisita magnificência… Clímax, trama, transição… E com o
desenredo entoa-se, em fortíssimo, a melodia do violino. Desfila a abertura dos
Mestres cantores.
Gerda Buddenbrook era uma fanática da música moderna. Encontrara, porém,
no sr. Pfühl uma resistência tão feroz e encarniçada que, no início, desesperara
de ganhá-lo a seu favor.
No dia em que, pela primeira vez, lhe colocara sobre a estante a partitura de
Tristão e Isolda, pedindo-lhe que a tocasse, o organista, depois de uns vinte e
cinco compassos, se levantara abruptamente; correra de cá para lá, entre o piano
e o terraço, mostrando todos os indícios de sumo desgosto.
— Isto não toco, minha senhora; permaneço o seu servidor respeitoso, mas isto
não toco! Isto não é música… Pode acreditar! Sempre me lisonjeei de entender
algo de música! Mas isto é o caos! Isto é demagogia, blasfêmia e loucura! É uma
névoa perfumada onde transluzem relâmpagos! Eis o fim de qualquer moral na
arte! Não toco! — E com essas palavras atirou-se outra vez sobre a poltrona,
para produzir mais uns vinte e cinco compassos, enquanto o pomo lhe descia e
subia. Tocara por entre soluços e acessos de tosse seca, e finalmente fechara o
instrumento com o grito:
— Arre! Não, por Deus Nosso Senhor! Isto é demais! Desculpe, prezadíssima
senhora; vou falar com franqueza… A senhora me paga; há anos que me
recompensa pelos meus serviços… e eu sou um homem que se encontra em uma
situação humilde. Mas vou demitir-me do meu cargo; renunciarei a ele se a
senhora me obrigar a executar essas perversidades! E a criança! Aí está a criança
na sua cadeira! Entrou nas pontas dos pés para escutar música! Será que a
senhora lhe quer envenenar por completo o espírito?
Mas, por mais terrivelmente que ele se conduzisse — devagar, passo a passo,
por meio de hábito e de persuasão —, Gerda conseguira atraí-lo para o seu lado.
— Pfühl — dissera ela —, seja justo e considere o caso com calma. O senhor
se sente perturbado pela maneira insólita com que ele usa as harmonias… Em
comparação com isto, o senhor acha Beethoven puro, claro e natural. Mas
lembre-se de como Beethoven desconcertou os seus contemporâneos, educados
pelo método antigo… E o próprio Bach, meu Deus; censuravam-no pela falta de
clareza e eufonia! O senhor fala de moral… mas que entende com o termo
“moral” na arte? Se não me engano, ela é contrária a qualquer hedonismo, não é?
Pois então, é esta oposição que o senhor encontra aqui. Tanto quanto em Bach.
Mais grandiosa, consciente e aprofundada do que em Bach. Acredite, Pfühl, esta
música é menos alheia à sua natureza do que supõe!
— Fantasmagorias e sofismas… com a sua licença! — murmura o sr. Pfühl.
Mas ela tinha razão: no fundo, esta música lhe era menos alheia do que ele
pensara no começo. Com o Tristão, isso sim, nunca se reconciliou totalmente, se
bem que afinal, correspondendo ao rogo de Gerda, lhe transcrevesse com muita
destreza o Canto do amor para violino e pianoforte. Certos trechos dos Mestres
cantores haviam sido os primeiros a receber esta ou aquela palavra elogiosa da
parte do organista… E então, crescendo irresistivelmente, começou a erguer-se
nele o amor a essa arte. Não o revelava; quase se assustava consigo mesmo,
dissimulava-o com resmungos. Mas a sua parceira, uma vez que Pfühl fizera
justiça aos velhos mestres, já não precisava insistir com ele para que complicasse
os seus acordes. Então, mostrando no olhar aquela expressão de felicidade
pudica e quase aborrecida, conduzia-a para o reino onde vivem e se movem os
Leitmotive. Depois do concerto, por vezes, começavam a discutir as relações
desse estilo de arte com o Estilo Rigoroso; um dia, o sr. Pfühl declarou que,
embora o tema não o tocasse particularmente, se via obrigado a acrescentar ao
seu livro sobre a música sacra um complemento acerca da “aplicação das
tonalidades antigas da música sacra e folclórica de Richard Wagner”.
Hanno permanecia absolutamente quieto, juntando as mãozinhas em torno do
joelho. Conforme o seu hábito, esfregava a língua num dente molar, o que lhe
torcia um pouquinho a boca. Observava a mãe e o sr. Pfühl de olhos fixos e
arregalados. Escutava-lhes as execuções e palestras, e assim aconteceu que, já
nos primeiros passos que deu no caminho da vida, percebeu que a música era
assunto extraordinariamente sério, importante e profundo. Entendia apenas uma
ou outra palavra do que se falava, e a música geralmente ultrapassava de muito a
sua compreensão infantil. Apesar disso voltava sempre de novo e, sem se
aborrecer, permanecia horas e horas imóvel no seu lugar: crença, amor e
reverência levavam-no a essa atitude.
Hanno tinha somente sete anos quando começou a fazer experiências, para, por
iniciativa própria, imitar sobre o piano certas combinações de sons que o haviam
impressionado. A mãe observava-o sorrindo; corrigia-lhe os acordes procurados
com um zelo silencioso e ensinava-lhe a razão por que justamente tal e tal tom
não podiam faltar para que resultasse determinada harmonia. E o ouvido da
criança confirmava as instruções da mãe.
Após ter lhe deixado certa liberdade durante algum tempo, Gerda
Buddenbrook resolveu que o filho teria aulas de piano.
— Acho que ele não tem natureza de solista — disse ao sr. Pfühl —, e no
fundo estou contente com isso, pois esse trabalho tem o seu lado mau. Não falo
do fato de que o solista depende do acompanhamento, embora, às vezes, essa
dependência se torne bastante sensível, e se eu não tivesse o senhor… Mas, fora
disso, existe sempre o perigo de que a gente se perca num virtuosismo mais ou
menos perfeito… Olhe, eu também provei isso. Confesso-lhe francamente que,
para o solista, a música, no fundo, só começa quando alcançou um grau de
técnica muito elevado. Para ele, devido à concentração esforçada na primeira
voz, no seu fraseado e na criação do tom, a polifonia manifesta-se apenas como
algo de vago e generalizado. Isto facilmente causa, em talentos medíocres, o
definhamento do senso harmônico e da capacidade de reter harmonias na
memória; essas faltas corrigem-se dificilmente mais tarde. Amo o meu violino e
fui bem longe com ele, mas, no fundo, aprecio mais o piano… Digo apenas isto:
o domínio do piano, que é um meio de resumir as mais múltiplas e ricas figuras
de sons, um meio insuperável da reprodução musical, significa para mim uma
relação mais íntima, clara e extensa com a música… Escute, Pfühl, eu queria
logo confiar-lhe o ensino dele. Faça-me o favor! Sei perfeitamente que na cidade
existem mais duas ou três pessoas (ao que saiba, do sexo feminino), mas estas
não passam de professoras de piano… O senhor me compreende… Tem tão
pouca importância o ser adestrado para um instrumento; o que importa é
entender algo de música, não é? Tenho confiança no senhor. Leva a coisa mais a
sério. E o senhor vai ver que será bem-sucedido com ele. Hanno tem as mãos
dos Buddenbrook… Todos eles são capazes de alcançar nonas e décimas… Mas
eles nunca ligaram para isso — terminou Gerda, rindo.
O sr. Pfühl declarou-se disposto a tomar a si as aulas de piano.
Desde então, vinha também nas tardes das segundas-feiras, para ocupar-se do
pequeno Johann, enquanto Gerda ficava sentada na sala de estar. Não seguia no
ensino o método comum, pois sentia que o zelo mudo e apaixonado da criança
merecia mais do que a simples instrução de como se toca um pouquinho de
piano. Apenas haviam ambos superado os problemas primordiais e elementares,
e já o organista começou a teorizar de forma fácil e compreensível e a deixar que
o aluno percebesse os fundamentos da harmonia. E Hanno compreendia; via
apenas confirmado o que, realmente, sempre soubera.
O sr. Pfühl, o quanto possível, correspondia ao ímpeto ansioso da criança. Com
acariciante cuidado esforçava-se por aligeirar o peso de chumbo com que a
matéria carrega os pés da fantasia e do talento. Não insistia com demasiado rigor
na agilidade dos dedos durante os exercícios das escalas; pelo menos, esta não
era para Pfühl a finalidade desses exercícios. O que almejava, e facilmente
alcançou, era antes a compreensão clara, extensa e profunda de todas as espécies
de tonalidades, a familiaridade íntima e superior com as suas coerências e
associações; resultava disso, depois de pouco tempo, aquele entendimento rápido
das múltiplas possibilidades de combinação, aquela consciência intuitiva do
domínio do teclado que seduz a fantasiar e a improvisar… Com sensibilidade
comovente, o organista entrava nas necessidades espirituais desse pequeno aluno
exigente devido às coisas que ouvia. Hanno tendia para o estilo elevado. E o sr.
Pfühl não lhe aviltava a devoção e solenidade de alma pela execução de
cançonetas banais. Deixava-o tocar hinos religiosos e não admitia que um acorde
brotasse do outro sem lhe indicar a lógica dessa sucessão.
Do outro lado dos cortinados, bordando ou lendo, Gerda acompanhava a
marcha das lições.
— O senhor supera todas as minhas expectativas — disse ela, ocasionalmente,
ao organista. — Mas não acha que exagera? Não procede de modo
extraordinário demais? O seu método me parece eminentemente criador… Às
vezes, Hanno, de fato, começa a fazer tentativas para fantasiar. Mas se ele não
merece este método, se não tem bastante talento para ele, não aprenderá nada…
— Ele o merece — disse o sr. Pfühl. — De vez em quando lhe observo os
olhos… Há tanta coisa neles. Mas a boca permanece cerrada. Mais tarde, quando
a vida talvez lhe cerrar cada vez mais a boca, ele precisará de uma possibilidade
para falar…
Ela o olhou, a esse músico robusto de peruca ruiva, de olhos empapuçados,
bigode hirsuto e grande pomo de adão, e então lhe estendeu a mão, dizendo:
— Fico-lhe muito grata, Pfühl. O senhor quer o bem do meu filho e nem se
pode imaginar quanta coisa faz por ele.
A gratidão que Hanno sentia para com esse professor, a devoção com que se
subordinava à sua direção, não tinha igual. O menino, apesar de todas as suas
aulas particulares, cismava na escola, sombrio e sem esperanças de êxito, sobre a
tabuada; mas, sentado ao piano, compreendia-o e se apropriava dessas instruções
assim como o fazemos apenas com coisas que sempre nos pertenceram.
Edmundo Pfühl, no seu fraque marrom, parecia-lhe um grande anjo que todas as
segundas-feiras o tomava nos braços para conduzi-lo para longe de toda miséria
cotidiana, ao reino sonoro duma seriedade branda, doce e consoladora…
Às vezes, as aulas tinham lugar na casa do sr. Pfühl, espaçosa e velha casa de
alta cumeeira com muitos corredores e recantos fresquinhos, e que o organista
habitava sozinho com uma velha governanta. Às vezes também, nos domingos,
quando o sr. Pfühl tocava órgão na igreja de Santa Maria, o pequeno
Buddenbrook assistia junto com ele ao serviço religioso. Era outra coisa que
ficar sentado lá embaixo, na nave, com as outras pessoas. Muito acima dos
paroquianos, até muito acima do próprio pastor Pringsheim no púlpito, os dois se
achavam no meio do estrondo das poderosas massas de sons que eles
desencadeavam e dominavam em comum; pois, com fervor e orgulho feliz,
Hanno, de quando em quando, recebia a licença de ajudar o professor no manejo
dos registros. Terminado o canto do coro, o sr. Pfühl, um a um, retirava os dedos
do teclado, deixando apenas a tônica baixa se perder solenemente no ar…
Depois de uma pausa artisticamente significativa, começava a ressoar, sob o
dossel do púlpito, a voz modulada do pastor Pringsheim. E então não eram raras
as ocasiões em que o sr. Pfühl se punha simplesmente a zombar do sermão e a
rir-se do linguajar estilizado do pastor Pringsheim, das suas vogais compridas,
carregadas ou energicamente acentuadas, dos seus suspiros e da brusca mudança
de trevas para enlevo que o seu rosto aparentava. Então Hanno também ria,
baixinho, altamente divertido, pois, sem se olharem um ao outro, e sem o
dizerem com palavras, os dois lá em cima eram de opinião de que essa prédica
não passava de um palavrório insosso e que o verdadeiro serviço de Deus era
aquilo que o pastor e os paroquianos tomavam por um acréscimo, destinado a
aumentar a devoção: a música.
Sim, a pouca compreensão que ele encontrava na nave, ali embaixo, entre esses
senadores, cônsules e burgueses, e nas suas famílias, causava constante aflição
ao sr. Pfühl. Era justamente por isso que gostava de ter ao seu lado o pequeno
discípulo a quem, pelo menos em voz baixa, podia chamar a atenção para o fato
de que a peça que acabava de tocar havia sido algo extraordinariamente difícil. O
organista se excedia nos mais esquisitos artifícios técnicos. Elaborara uma
“imitação invertida”, compondo uma melodia que, lida a partir do começo ou do
fim, era igual, e baseara nela toda uma fuga que se podia tocar “a passo de
caranguejo”. No dia da estreia da peça, após ter acabado, pôs, com visível
desapontamento, as mãos no colo.
— Ali embaixo ninguém reparou nisso — disse ele com um meneio
desesperado da cabeça.
E depois, enquanto o pastor Pringsheim pregava, cochichou:
— Foi uma “imitação a passo de caranguejo”, Johann. Você ainda não sabe o
que quer dizer isso… É a imitação de um tema de trás para diante, da última nota
até a primeira… coisa bastante complicada. Mais tarde vai aprender o que
significa a imitação no Estilo Rigoroso… Nunca o importunarei com o passo de
caranguejo; não o obrigarei a executá-lo… Não é necessário que a gente saiba
executá-lo. Mas não dê crédito aos que acham estas coisas sem valor musical. O
passo de caranguejo se encontra nos grandes compositores de todos os tempos.
Só quem é tíbio e medíocre tem bastante arrogância para não fazer caso de tais
exercícios. O que nos convém é a humildade; tome nota disso, Johann!
No dia 15 de abril de 1869, seu oitavo aniversário, Hanno, acompanhado pela
mãe, apresentou à família reunida uma pequena fantasia da sua autoria; um
motivo simples que, ao descobri-lo, achara interessante desenvolver. O sr. Pfühl,
a quem o tinha confiado, naturalmente fizera várias objeções.
— Que final dramático é este, Johann? Não está de acordo com o resto! No
princípio, tudo anda direitinho, mas como é que, de repente, você se desvia de si
maior para o acorde da quarta e sexta, na posição com terça diminuta? É isso o
que eu queria saber! E ainda por cima o toca em trêmulo! Onde pegou essas
coisas? De onde lhe veio isso? Já sei! Você ouviu que toquei para a senhora sua
mãe certas coisas… Altere o final, meu filho, então sairá uma coisinha bastante
correta.
Mas Hanno ligara a máxima importância justamente a esse acorde diminuído e
a esse final, e a mãe divertira-se tanto com isso que assim ficara. Ela pegara o
violino, tocara a primeira voz; então Hanno havia repetido o motivo, enquanto
ela variava até o fim o soprano em cadências de brevíssimas. O efeito fora
magnífico. Radiante, Hanno a havia abraçado, e foi nessa forma que, no dia 15 de
abril, executaram a peça para a família.
A consulesa, Antonie, Christian, Klothilde, o cônsul Kröger com a esposa, o
casal Weinschenk, assim como as primas Buddenbrook da Breite Strasse e a srta.
Weichbrodt, tinham almoçado às quatro horas na casa do senador, em
homenagem ao aniversário de Hanno; agora estavam no salão, olhando atentos
ora a criança sentada ao piano, na sua roupa de marujo, ora a figura exótica e
elegante de Gerda, que começava por evoluir uma cantilena magnífica sobre a
corda de sol, para, depois, com infalível virtuosidade, desencadear uma onda de
cadências esplêndidas e escumantes. O arame de prata no cabo do arco
relampejava à luz do lustre a gás.
Hanno, pálido de excitação, quase não pudera comer. Mas agora, totalmente
enlevado, esquecia tudo quanto o cercava. Tão grande era a devoção que
dedicava à sua obra, ainda que dentro de dois minutos estivesse terminada. Esta
pequena criação tinha mais caráter harmônico do que rítmico; parecia estranho o
contraste entre os recursos musicais, primitivos, rudimentares e infantis, e a
maneira imponente, apaixonada e quase refinada com que esses recursos tinham
sido acentuados e salientados. Com um movimento lânguido da cabeça
inclinada, Hanno pôs em relevo todos os tons condutores; sentado bem na borda
da cadeira, procurou dar valor sensível a cada acorde novo, aproveitando-se dos
pedais forte e piano. De fato, o efeito produzido pelo pequeno Hanno — efeito
que, talvez, se limitasse a ele próprio — era menos de natureza sentimental do
que de natureza sensível. Um truque harmônico qualquer, bem simples por si só,
elevava-se a uma importância preciosa e enigmática mediante acentuação
ponderosa e retardativa. Certo acorde, determinada harmonia nova, esta ou
aquela entrada ganhavam eficiência surpreendente, empolgante, por meio duma
entonação inesperadamente surdinada. Hanno tocava esses trechos alçando as
sobrancelhas e executando um movimento do tronco, como se quisesse esvoaçar
e adejar… Então veio o final, o adorado final de Hanno, coroando o todo no seu
êxtase primitivo. Suavemente, envolvido pelas cadências perolinas e flutuantes
do violino, tremulou em pianíssimo o acorde em mi menor… Cresceu,
aumentou, reforçou-se lenta, muito lentamente; no forte, Hanno acrescentou o dó
bemol, dissonante, que conduzia à tonalidade básica. E enquanto o Stradivarius,
cantando e ondeando, sussurrava em torno desse dó bemol, o menino, com toda
a força que tinha, graduou a dissonância até o fortíssimo. Retardou a solução;
não a comunicou nem a si próprio nem ao auditório. Como seria ela, essa
solução, essa queda encantadora e desembaraçada para si maior? Felicidade sem
igual, satisfação de excessiva doçura! A paz! A bem-aventurança! O céu! Ainda
não… ainda não! Mais um instante de dilação, de demora, de tensão, que se
devia tornar insuportável para, depois, causar um deleite tanto mais delicioso…
Mais um último, um derradeiro gozo dessa saudade tormentosa e impulsora,
desse arranco de vontade, extremo e convulsivo, que, contudo, ainda não se via
realizado e redimido; pois Hanno sabia: a felicidade só dura um momento… O
tronco ergueu-se vagarosamente; os olhos tornaram-se muito grandes; tremeram
os lábios cerrados; aspirou o ar pelo nariz, sob estremecimentos que o
sacudiram… E então não pôde mais reter o deleite, que veio e se apoderou dele;
Hanno já não reagia contra ele. Afrouxaram-lhe os músculos; fatigada e vencida,
a cabeça se inclinou sobre o ombro; fecharam-se os olhos, e um sorriso
melancólico, quase dorido, expressando inefável encantamento, lhe brincou em
torno da boca. Enquanto isso, acompanhado pelas cadências do violino,
cochichando, sussurrando, tecendo e ondeando em volta, aquele seu trêmulo,
reforçado por notas graves, sustentado pelos pedais, resvalou para si maior, onde
rapidamente cresceu até o fortíssimo, para, depois, sem ressonância, terminar
abruptamente num breve bramido…
Era impossível que o efeito exercido sobre Hanno por esta música se
estendesse também aos ouvintes. A sra. Permaneder, por exemplo, não entendeu
patavina de toda essa magnificência. Mas viu perfeitamente o sorriso da criança,
o movimento do tronco, a inclinação feliz da pequena cabeça que ela amava com
tanta ternura… e esse aspecto lhe havia comovido o âmago da bondade
facilmente empolgada.
— Como toca este garoto! Como toca a criança! — gritou ela, enquanto corria
para junto dele, quase chorando. Abraçou-o… — Gerda, Tom! Ele se tornará um
Mozart, um Meyerbeer, um… — Na falta de um terceiro nome de igual
importância que lhe ocorresse no momento, limitou-se a cobrir de beijos o
sobrinho, que, mãos no colo, se quedava na cadeira, esgotado, de olhos ausentes.
— Chega, Tony, chega! — disse o senador, baixinho. — Pelo amor de Deus,
que ideias você lhe mete na cabeça?
7.
A sra. Permaneder passava pela Breite Strasse. Caminhava com muita pressa.
Havia na sua atitude algo de desmoronamento; ombros e cabeça indicavam
apenas fugidiamente a dignidade majestosa que, na rua, costumava envolver-lhe
a figura. Vexada, perseguida e apressada, Antonie parecia ter recolhido
precipitadamente um pouco dessa dignidade, assim como um rei derrotado reúne
os restos das suas tropas para, com elas, iniciar a fuga…
Ai dela! Não tinha bom aspecto. Tremia, agora, o lábio superior, esse lábio
superior um pouco saliente e convexo que antigamente contribuíra para
embelezar-lhe o rosto; o modelo dilatava-lhe os olhos, que, com um piscar
exaltado, olhavam para a frente, como se corressem a toda a pressa… O
penteado, visivelmente desgrenhado, saía do chapéu. O rosto mostrava aquele
colorido de um amarelo pálido que assumia quando o estômago a molestava.
Sim, nesse tempo o seu estômago não andava bem. A família inteira podia, às
quintas-feiras, constatar a piora. Por mais que evitasse esse recife, a palestra
naufragava sempre no processo de Hugo Weinschenk; a própria sra. Permaneder
a conduzia para isso com força irresistível. Então começava a perguntar, a
solicitar, grandemente excitada, uma resposta de Deus e de todo mundo, sobre
como o promotor Moritz Hagenström podia dormir tranquilamente de noite! Não
compreendia; ela jamais o conseguiria… E a cada palavra crescia a sua irritação.
“Muito obrigada, não como nada”, dizia, afastando tudo de si; alçava os ombros,
inclinava a cabeça para trás e retirava-se, solitária, para as alturas da sua
indignação; nada tomava senão cerveja, a fria cerveja bávara, que nos tempos do
seu segundo matrimônio se acostumara a beber; derramava-a sobre o estômago
vazio, cujos nervos estavam em plena revolta, e que se vingava cruelmente. Pois,
pelo fim da refeição, ela precisava levantar-se, para, apoiada em Ida Jungmann
ou Riquinha Severin, descer ao jardim ou ao pátio, onde tinha as mais terríveis
náuseas. O estômago desembaraçava-se do seu conteúdo e continuava, depois, a
contrair-se penosamente, perseverando durante minutos nesse estado convulsivo.
Incapaz de vomitar mais alguma coisa, a pobre Tony sofria durante muito
tempo…
Foi às três da tarde, aproximadamente, num dia de janeiro, de vento e chuva. A
sra. Permaneder dobrou pela esquina da Fischergrubestrasse e desceu correndo
pelo declive. Estacou diante da casa do irmão. Bateu apressadamente na porta do
corredor. Entrou no escritório. Deixou correr o olhar por cima das escrivaninhas
até o lugar do senador ao lado da janela, acompanhando-o com um movimento
de cabeça tão súplice que Thomas Buddenbrook logo largou a pena e lhe foi ao
encontro.
— Então? — perguntou, alçando um sobrolho.
— Um momento, Thomas… Algo de urgente… que não permite demora…
Ele lhe abriu a porta forrada que dava para o escritório particular; tendo ambos
entrado, cerrou-a atrás de si e encarou a irmã com um olhar interrogador.
— Tom — disse ela em voz incerta, torcendo as mãos dentro do regalo de
peles —, você deve dá-lo… fornecê-lo provisoriamente… por favor, pague a
caução… Nós não temos o dinheiro necessário… De onde teríamos, neste
momento, vinte e cinco mil marcos?… Receberá tudo de volta, inteirinho…
daqui a… muito breve… Compreende… Aconteceu que… Em poucas palavras:
o processo chegou a tal ponto que Hagenström requereu ou a prisão imediata ou
uma caução de vinte e cinco mil marcos. Weinschenk lhe dá a palavra de honra
de que permanecerá na cidade…
— Será que realmente as coisas foram tão longe? — disse o senador,
meneando a cabeça.
— Sim. Eis o que eles conseguiram, esses patifes, esses miseráveis! — Com
um soluço de raiva impotente, a sra. Permaneder deixou-se cair sobre a poltrona
revestida de oleado. — E eles vão obter mais ainda, Tom; irão até o fim…
— Tony — disse ele, sentando-se em frente à secretária de acaju; cruzou as
pernas e apoiou a cabeça sobre a mão… — Fale com franqueza: você ainda
acredita na inocência dele?
Após alguns soluços, Tony respondeu baixinho, desesperada:
— Ah, não, Tom… Como poderia? Justamente eu, que tive de passar por tanta
coisa triste! Desde o princípio não pude acreditar nele, se bem que me esforçasse
de todo o coração. Sabe? A vida nos dificulta tanto a crença na inocência de uma
pessoa… Ah, não; há muito tempo, as incertezas a respeito da boa consciência
de Hugo me atormentam. E a própria Erika… começou a duvidar dele…
Confessou-me chorando… Foi a sua conduta em casa que lhe causou dúvidas.
Claro que nos calávamos… Mas as suas maneiras se tornavam cada vez mais
ásperas… e no entanto exigia sempre que Erika se mostrasse alegre e o distraísse
dos seus cuidados. Quebrava a louça quando ela estava séria. Você não sabe
como eram aquelas noites em que ele, até altas horas, se encerrava com os autos
do processo… e quando a gente batia na porta ouvia-se como ele se levantava de
um pulo, gritando: “Quem está aí? Que é que há?”.
Os irmãos ficaram sem falar.
— Mas que ele seja culpado! Que tenha cometido um crime! — recomeçou a
sra. Permaneder, e a essas palavras elevou a voz. — Não trabalhou para o seu
próprio bolso, mas sim para a companhia. E além disso… Santo Deus! Existem
considerações que se devem tomar em conta nesta vida; não é, Tom? De uma vez
por todas, pelo casamento ele entrou na nossa família… pertence a nós… Pelo
amor de Deus, não se pode trancafiar um de nós!
Ele encolheu os ombros.
— Você encolhe os ombros, Tom… Então está disposto a tolerá-lo, a resignar-
se a que essa canalha se atreva a coroar a sua obra? É necessário fazer alguma
coisa! Ele não deve ser condenado! Você é a mão direita do burgomestre… Meu
Deus, será que o Senado não o pode anistiar desde já? Vou lhe dizer… agora
mesmo, antes de chegar aqui, estive a ponto de ir falar com Kremer; quis
implorar-lhe com todas as minhas forças que interviesse, que desse um jeito no
caso… Ele é chefe da polícia…
— Mas, minha filha, que tolice!
— Tolice, Tom?… E Erika? E a criança? — disse ela, estendendo-lhe, num
gesto veemente, o regalo, onde enfiara ambas as mãos. Depois emudeceu por um
instante, deixando cair os braços; alargou-se a sua boca; o queixo, encrespando-
se, se pôs a tremer; enquanto duas grossas lágrimas brotavam de sob as
pálpebras abaixadas, acrescentou em voz apenas perceptível: — E eu…
— Ah, Tony, courage! — disse o senador; comovido e abalado pelo desamparo
da irmã, aproximou-se dela para, consolando-a, passar-lhe a mão pelo cabelo. —
Ainda não chegou a tanto. Por enquanto, ele não está condenado. Pode ser que
tudo acabe bem. Vou, primeiro, pagar a caução; claro que não digo “Não” a
isso… e Breslauer é um sujeito muito astuto…
Chorando, ela sacudiu a cabeça.
— Não, Tom; nada acabará bem; não acredito. Eles vão condená-lo e prendê-
lo. Então virá uma época dura para Erika, para a criança e para mim. O seu dote
não existe mais; foi empregado no enxoval, na mobília e nos quadros… E, na
venda, a gente mal recebe uma quarta parte do valor… E sempre gastamos o
ordenado de Weinschenk… Ele não fez economias. Vamos outra vez mudar-nos
para a casa de mamãe, se ela consentir… até que novamente ele se encontre em
liberdade… E então a coisa se tornará quase pior, pois o que será dele e de nós?
Deveremos, simplesmente, sentar-nos sobre as pedras — disse soluçando.
— Sobre as pedras?
— Sim. É uma locução… simbólica… Ah, não; não acabará bem. Foi demais o
que se abateu sobre mim… Não sei como mereci isto… mas não tenho mais
esperanças. Agora, Erika terá a mesma sorte que eu tive com Grünlich e
Permaneder… Mas desta vez você pode ver, pode julgar de perto como estas
coisas se passam, como elas vêm se aproximando, como irrompem sobre a
gente! Será que temos culpa disso? Tom, diga-me: será que alguém tem culpa
disso? — repetiu, acenando-lhe, numa interrogação desconsolada, os grandes
olhos cheios de lágrimas. — Tudo quanto empreendi fracassou e transformou-se
em desgraça… E Deus sabe que tive intenções tão boas! Sempre desejava
fervorosamente chegar a ser alguma coisa na vida, colher alguma honra… Agora
desmorona também isto. Termina assim… É o final…
Reclinada contra o braço do irmão, que este, para acalmá-la, lhe pusera em
volta do ombro, Tony chorou sobre a sua vida malograda, cujas derradeiras
esperanças se extinguiam agora.
Uma semana após, o sr. Hugo Weinschenk, gerente, foi condenado a três anos
e meio de prisão, sendo imediatamente encarcerado.
Na sessão em que se pronunciaram os discursos da acusação e da defesa, a
afluência foi enorme. O advogado Breslauer de Berlim discursou como nunca se
ouvira falar pessoa alguma. Durante semanas inteiras, o corretor Siegismund
Gosch andava pela cidade, sibilando de entusiasmo por causa dessa ironia, desse
páthos, dessa emoção. Christian Buddenbrook, que também estivera presente,
colocou-se no clube atrás de uma mesa, pôs diante de si um pacote de jornais,
representando os autos do processo, e forneceu uma imitação perfeita do
causídico. Aliás, declarou ele em casa, era a jurisprudência a profissão ideal;
sim, teria sido uma profissão para ele… Até o dr. Moritz Hagenström, o
promotor público, como se sabe, um conhecido beletrista, disse em particular
que o discurso de Breslauer lhe causara verdadeiro prazer. Mas o talento do
famoso advogado não impediria que os jurisconsultos da cidade lhe dessem
palmadinhas no ombro e lhe explicassem com toda a cordialidade que não se
deixavam lograr…
Depois, terminadas as vendas que o desaparecimento do gerente tornara
necessárias, começou-se a esquecer Hugo Weinschenk na cidade. Mas as primas
Buddenbrook da Breite Strasse declaravam, às quintas-feiras, à mesa familiar,
que logo ao primeiro aspecto desse homem lhe haviam lido nos olhos que com
ele nem tudo andava certo, que seu caráter estava cheio de manchas e que ele
terminaria mal. Considerações que agora lastimavam não terem desprezado
foram o motivo do silêncio por elas guardado a respeito dessa triste antevisão.
NONA PARTE
1.
Atrás dos dois cavalheiros, o velho dr. Grabow e o jovem dr. Langhals, membro
da família Langhals, e que, havia um ano, exercia a profissão na cidade, o
senador Buddenbrook passou do quarto da consulesa para a copa e fechou a
porta.
— Com licença, meus senhores… por um instante — disse ele conduzindo-os
escada acima, através do corredor e do alpendre, até a sala das Paisagens, onde
já se acendeu o fogo por causa do tempo outonal, úmido e frio. — Os senhores
compreenderão a minha curiosidade… Sentem-se, por favor! Se for possível,
tranquilizem-me!
— Por minha vida, meu caro senador! — respondeu o dr. Grabow; enterrando
o queixo no plastrom, recostou-se comodamente na poltrona e fincou com ambas
as mãos a aba do chapéu contra o estômago. O dr. Langhals, cavalheiro baixote,
trigueiro, de barba pontuda, cabelos eretos, belos olhos e fisionomia vaidosa,
fitava as mãos muito pequenas, cobertas de pelos pretos; colocara a cartola sobre
o tapete… — Por enquanto — prosseguiu Grabow — não há o mínimo motivo
para sérias preocupações. Ora essa! Uma paciente da resistência relativamente
grande da nossa venerada senhora consulesa… À minha fé! Eu, com as minhas
experiências de conselheiro médico, conheço esta resistência. Verdadeiramente
admirável para os seus anos… posso afirmar-lhe…
— É justamente isso: os seus anos… — disse o senador inquieto, torcendo a
ponta comprida do bigode.
— Claro que não digo que a sua querida mãe poderá dar um passeio amanhã
— continuou o dr. Grabow com voz suave. — Mas, por certo, o senhor também
não esperava isso da nossa paciente; não é, senhor senador? Não se pode negar
que o catarro, nestas últimas vinte e quatro horas, tomou um rumo desagradável.
Não gostei nada daquele calafrio de ontem à noite, e hoje temos realmente
algumas pontadas no lado e certa braquipneia. Há também um pouco de febre…
ah, é insignificante, contudo é febre. Em breves palavras, meu caro senador: a
gente deve resignar-se com a realidade danada de que os pulmões estão
afetados…
— Então é inflamação dos pulmões? — perguntou o senador, olhando de um
médico para o outro…
— Sim. Pneumonia — disse o dr. Langhals com uma mesura séria e correta.
— É verdade, uma pequena pneumonia do lado direito — respondeu o médico
da casa —; teremos de localizá-la com todo o cuidado…
— Ora, nesse caso haverá de fato motivos para graves preocupações? — O
senador, quedando-se imóvel, fitou os olhos no rosto do interlocutor.
— Preocupações? Oh… devemos, como já disse, esforçar-nos por limitar a
doença; é preciso mitigar a tosse e combater a febre… Bem, quinina vai fazer o
seu serviço… E mais alguma coisa, meu caro senador… Não se assuste com
sintomas isolados, não é? Se, por acaso, a falta de respiração aumentar; se,
talvez, de noite, houver algum delírio ou, amanhã, sobrevier um pouco de
expectoração… sabe, essa expectoração vermelho-escura, misturada com
sangue… Tudo isso é absolutamente lógico; nada de inesperado; é normal. Faça-
me também o favor de preparar nesse sentido a nossa querida e venerada sra.
Permaneder, que, com tanta dedicação, se encarrega da doente… À propos, como
vai ela? Esqueci totalmente de perguntar como o seu estômago passou nos
últimos dias…
— Como de costume. Não sei nada de novo. É natural que a preocupação do
seu mal-estar atualmente seja secundária…
— Claro. Aliás… ocorre-me uma ideia. A senhora sua irmã precisa de repouso,
principalmente de noite, e Mademoiselle Severin sozinha não será suficiente…
Que acha de contratar uma enfermeira, caro senador? Temos aquelas nossas boas
irmãs cinzentas católicas que o senhor sempre apoia com tanta benevolência… A
madre folgará em lhe poder ser útil.
— Pensa então que é necessário?
— Estou ventilando a ideia. É tão agradável… Essas irmãs são impagáveis.
Com a experiência e circunspecção que têm, exercem um efeito tão calmante
sobre os doentes… Pois então, para repeti-lo: não se precipite, meu caro
senador! De resto, vamos ver… vamos ver… Hoje à noite visitaremos a paciente
mais uma vez…
— Sem falta — disse o dr. Langhals, tomando da cartola e levantando-se ao
mesmo tempo que o colega mais velho. Mas o senador permanecia sentado;
ainda não terminara; tinha mais uma pergunta em mente, queria fazer outra
prova…
— Meus senhores — disse ele —, mais uma palavra… O meu irmão Christian
é nervoso; em poucas palavras: ele não aguenta muito… Os senhores me
aconselham a dar-lhe a notícia da doença? Devo, talvez, dar-lhe a entender
que… regresse…
— O seu irmão Christian não se encontra na cidade?
— Não, em Hamburgo. Provisoriamente. A negócios, ao que eu saiba…
O dr. Grabow relanceou um olhar para o colega. Então, rindo, sacudiu a mão
do senador e disse:
— Deixemo-lo tranquilamente com os seus negócios! Que adianta assustá-lo
inutilmente? Se houver qualquer alteração no estado da doente, que torne
desejável a presença dele… digamos, para tranquilizar a paciente e melhorar-lhe
o humor… teremos ainda bastante tempo… bastante tempo…
Na volta pelo alpendre e o corredor, os cavalheiros estacaram ainda alguns
instantes sobre o patamar, para falar de outras coisas, da política, dos abalos e
revolvimentos causados pela guerra apenas terminada…
— E agora hão de vir bons tempos; não acha, senhor senador? Haverá dinheiro
no país… Animação em toda parte…
O senador não concordou senão parcialmente. Confirmou que o começo da
guerra fizera grandemente evoluir o tráfico de cereais, vindos da Rússia;
mencionou as grandes proporções que, naquele tempo, havia assumido a
importação portuária, destinada a fornecimentos militares. Mas o lucro se
distribuíra de modo sumamente desigual…
Foram-se os médicos. O senador Buddenbrook virou-se, para voltar outra vez
ao quarto da doente. Meditou sobre o que dissera Grabow… Havia nisso muita
coisa escondida… Percebia-se como ele evitara uma declaração decidida. A
única expressão clara havia sido “inflamação dos pulmões”, e essa expressão não
se tornava mais consoladora pelo fato de o dr. Langhals a ter traduzido para a
linguagem científica. Pneumonia, na idade da consulesa… Já a circunstância de
serem dois médicos que iam e vinham dava ao caso um aspecto inquietante.
Grabow arranjara isto de leve, quase imperceptivelmente. Tencionava aposentar-
se mais dia, menos dia, dissera, e, como o jovem Langhals tivesse vocação para
herdar-lhe a clientela, ele, Grabow, sentia prazer em consultá-lo e iniciá-lo aos
poucos…
Quando o senador entrou no quarto de dormir meio escuro, a sua fisionomia
parecia alegre e a atitude enérgica. Tomara de tal maneira o costume de esconder
a preocupação e o cansaço sob a expressão de superioridade segura que, ao abrir
a porta, esta máscara lhe resvalou sobre o rosto quase automaticamente, em
consequência de brevíssima reação da vontade.
A sra. Permaneder estava sentada ao lado da cama de dossel, cujas cortinas se
achavam descerradas. Segurava a mão da mãe. A consulesa, apoiada em
almofadas, virou a cabeça para o filho, fitando-o com um ar investigador nos
olhos azuis. Foi um olhar cheio de calma contida e de intensidade persistente e
irresistível; vindo um tanto de lado, tinha quase algo de espreitante. Além da
palidez da pele, que, nas faces, deixava aparecer algumas manchas de rubor
febril, esse rosto absolutamente não exibia fadiga nem fraqueza. A velha senhora
mostrava-se alerta, mais alerta mesmo do que as pessoas que a cercavam, pois,
afinal de contas, era ela quem, propriamente, estava mais interessada.
Desconfiava dessa doença, e não tinha vontade de fechar os olhos e deixar
correrrem as coisas…
— Que disseram eles, Thomas? — perguntou, com voz tão decidida e animada
que imediatamente provocou violento acesso de tosse. Procurou retê-la de lábios
cerrados; todavia, não conseguiu impedir a expressão que a obrigou a apertar
com uma palma o lado direito.
— Eles disseram… — respondeu o senador, acariciando-lhe a mão. Esperou
até que o ataque passasse… — Eles disseram que, daqui a alguns dias, a nossa
boa mamãe estará restabelecida. Que ainda não pode se levantar, sabe? É porque
essa tosse idiota afetou um pouquinho os pulmões… Não se trata diretamente de
uma inflamação… — ajuntou ele ao ver que o olhar da mãe se tornara mais
insistente ainda — embora esta também não signifique o fim de tudo; ah, não;
existe coisa pior! Bem, o pulmão acha-se um tanto irritado, dizem os dois, e
provavelmente têm razão… Onde está Severin?
— Foi à farmácia — disse a sra. Permaneder.
— Estão vendo: foi à farmácia, outra vez, e você, Tony, tem uma cara de quem
vai adormecer a cada instante. Não; assim a coisa não pode continuar. Embora
seja só para alguns dias… precisamos de uma enfermeira. Vocês não acham
também? Esperem; vou logo mandar perguntar à madre das irmãs cinzentas se
têm alguém disponível…
— Thomas — disse a consulesa, agora em voz suave para não desencadear
novo acesso de tosse —, você pode acreditar-me, causa escândalo com a
constante proteção que devota às irmãs católicas, em oposição às pretas
protestantes. Obteve vantagens evidentes para aquelas, e não faz nada por estas.
Asseguro-lhe que o pastor Pringsheim, há pouco, se queixou a mim em palavras
inequívocas…
— É? Isto não lhe trará proveito nenhum. Estou convencido de que as irmãs
cinzentas são mais leais, abnegadas e dedicadas do que as irmãs pretas. Essas
protestantes, não gosto delas. Todas querem é casar-se na primeira ocasião… Em
poucas palavras: são mundanas, egoístas e ordinárias… As católicas têm menos
interesses terrenos; sim, não há dúvida, vivem mais perto do céu. E, justamente
porque me devem gratidão, acho que são preferíveis. Quanta coisa não fez por
nós a irmã Leandra quando Hanno estava com as convulsões da dentição! Espero
que ela esteja livre…
E a irmã Leandra veio. Sem falar, depôs a bolsinha, a mantilha e a touca
cinzenta que usava por cima da branca. Enquanto o rosário que lhe pendia da
cinta fazia um leve ruído de castanholas, pôs-se a trabalhar com palavras e
gestos brandos e amáveis. De dia e de noite, cuidava da enferma mimada e nem
sempre paciente. Só de vez em quando, muda e quase envergonhada por causa
da fraqueza humana a que sucumbia, retirava-se para ser substituída por outra
freira. Dormia algumas horas em casa e voltava.
A consulesa exigia serviços ininterruptos em torno da sua cama. Quanto mais
piorava o seu estado, tanto mais dirigia todo o seu pensar, todo o seu interesse
para a doença, que observava com medo e com um ódio ingênuo e manifesto.
Ela, a antiga mundana, com o seu tácito, natural e durável amor à boa vida e à
vida em geral, enchera os últimos anos com religiosidade e beneficência… Por
quê? Talvez não somente em homenagem ao falecido esposo, mas também por
instinto inconsciente de reconciliar a sua forte vitalidade com o céu e dar a este,
sem embargo do apego tenaz que a prendia à vida, um motivo para que, um dia,
lhe concedesse uma morte branda. Mas ela não podia morrer suavemente. As
muitas provações por que passara não lhe haviam dobrado o corpo; os olhos
tinham se conservado claros. Gostava de consumir boas refeições e de vestir-se
com distinção e opulência; gostava de fechar os olhos às coisas desagradáveis
que existiam ou aconteciam em redor, de dissimulá-las e participar, satisfeita, da
alta autoridade que o filho mais velho granjeara em toda parte. Essa doença, essa
pneumonia, assaltara-lhe o corpo vigoroso, sem que quaisquer preparos
psíquicos lhe tivessem facilitado a obra destrutiva… aquele trabalho solapador
do sofrimento que lenta e dolorosamente nos aliena da própria vida ou pelo
menos às condições sob as quais a temos recebido, despertando em nós o doce
anelo de um fim, de outras condições ou da paz… Não, a velha consulesa sentia
bem que, não obstante o estilo cristão de vida que observava nos últimos anos,
no fundo não estava pronta para morrer. Se esta fosse a sua derradeira doença, a
enfermidade por si só, na hora extrema e a toda a pressa, teria de quebrar-lhe a
resistência, por meio de tormentos físicos, causando o abandono de si própria; e
este pensamento inspirava-lhe medo.
Ela rezava muito. Mas, quando estava consciente, controlava mais ainda o seu
estado, tomando-se o pulso a si mesma, medindo a febre e combatendo a tosse…
Porém o pulso andava mal; a febre, após ter baixado um pouquinho, subira
muito, arremessando-a de calafrios para delírios fogosos; aumentava a tosse,
ligada com dores internas e produzindo expectorações sangrentas: a falta de ar
causava-lhe pavor. E tudo isso resultava do fato de que agora já não estava
afetado apenas um lobo do pulmão direito, mas sim todo o lado; se os sinais não
enganavam, podia-se até observar no lado esquerdo traços daquele processo que
o dr. Langhals, olhando as unhas, chamava “hepatização”, enquanto o dr.
Grabow preferia não emitir opiniões a esse respeito… Sem cessar, a febre
consumia a doente. O estômago começou a falhar. Em marcha irresistível, com
uma lentidão tenaz, progredia a decadência das forças.
A consulesa vigiava esse progresso; quando podia, ingeria com fervor os
alimentos concentrados que lhe ofereciam; com maior diligência do que as
próprias enfermeiras, observava o horário dos remédios; tudo isso a absorvia de
tal maneira que quase falava só com os médicos; pelo menos era só nas
conversas com estes que manifestava sincero interesse. No início, admitiram-se
visitas: amigas, membros da Noite de Jerusalém, velhas senhoras da sociedade e
esposas dos pastores; a consulesa recebia-as com apatia ou cordialidade
distraída, para logo despedi-las. Os parentes sentiam penosamente a indiferença
que encontravam por parte da velha senhora; parecia uma espécie de
menosprezo, que dizia: “Vocês não me podem ajudar”. Mesmo ao pequeno
Hanno, a quem deixaram entrar num momento de leve melhora, acariciou apenas
fugidiamente a face, e virou-se em seguida. Era como se quisesse dizer:
“Escutem, vocês todos são muito simpáticos, mas eu… eu terei, talvez, de
morrer!”. Aos dois médicos, porém, tratou-os com calor vivo e interessado, para,
detalhadamente, conferenciar com eles…
Certo dia, apareceram as velhas sras. Gerhardt, descendentes do poeta Paul
Gerhardt. Chegaram com as suas mantilhas, os chapéus em forma de pratos e os
sacos com que levavam provisões aos pobres que visitavam. Não era possível
proibir-lhes ver a amiga doente. Deixaram-nas a sós com ela, e unicamente Deus
sabe o que falaram enquanto se achavam sentadas ao lado da cama. Mas, quando
se foram, os seus olhos e as feições se tinham tornado mais claros, mais brandos
e mais beatamente enlevados do que antes; e, no quarto, a consulesa estava
deitada com os mesmos olhos e a mesma expressão, bem quietinha, bem pacata,
mais pacata do que nunca; o fôlego era escasso e suave; visivelmente, decaía de
fraqueza em fraqueza. A sra. Permaneder, que murmurara um palavrão atrás das
sras. Gerhardt, mandou imediatamente chamar os médicos. Mal surgiram os dois
cavalheiros no vão da porta, produziu-se uma alteração completa e estupenda no
estado da consulesa. Ela acordou; movimentou-se; quase se endireitou. O
aspecto desses dois homens, desses clínicos apenas informados do acontecido,
restituiu-a, de golpe, à terra. Estendeu-lhes as mãos, ambas as mãos, e começou
a falar:
— Sejam bem-vindos, meus senhores! Sucedeu que hoje no decorrer do dia…
Mas chegou o dia em que não se pudera mais disfarçar a pneumonia dupla.
— Sim, caro senador — dissera o dr. Grabow, apertando as mãos de Thomas
Buddenbrook. — Não conseguimos evitá-lo. Agora temos uma inflamação de
ambos os pulmões, e estas coisas são sempre perigosas. O senhor sabe-o tão bem
como eu; não preciso passar-lhe agulhas por alfinetes… Quer o paciente tenha
vinte ou setenta anos, de qualquer jeito é preciso levar isto a sério. Caso o
senhor, hoje, me perguntasse outra vez se era indicado escrever ao seu irmão
Christian ou, talvez, mandar-lhe um pequeno telegrama, eu não o
desaconselharia; hesitaria em desviá-lo desta intenção… À propos, como vai ele?
Um homem divertido; sempre gostei muito dele… Pelo amor de Deus, não tire
das minhas palavras consequências exageradas, caro senador! Não que haja
perigo imediato… ora, que estupidez a minha usar esta palavra! Mas nestas
circunstâncias, sabe, sempre se devem tomar em conta acasos imprevistos,
embora longínquos… É verdade que estamos extraordinariamente satisfeitos
com a senhora sua mãe na qualidade de paciente; ela nos ajuda de modo valioso,
não nos deixa em branco… Não, palavra de honra, como paciente é insuperável!
E por isso esperemos, caro senhor senador, esperemos! Devemos sempre esperar
por um resultado favorável!
Mas chega o momento a partir do qual a esperança dos parentes tem algo de
artificial e fingido. Com o doente já se realizou uma alteração; há na sua conduta
alguma coisa alheia àquela pessoa que ele representava na vida. Saem-lhe da
boca certas palavras esquisitas a que não sabemos responder; palavras que
parecem cortar-lhe o regresso, criando-lhe obrigações para com a morte. Embora
ele seja o ente mais querido que tenhamos no mundo, já não podemos querer,
depois de tudo isso, que se levante e se ponha a caminhar. Se o fizesse,
espalharia horror em volta de si, como quem ressuscitasse do túmulo…
Mostravam-se medonhos sinais de começos de decomposição, enquanto os
órgãos, que uma vontade obstinada mantinha em movimento, continuavam a
trabalhar. Haviam decorrido várias semanas desde que a consulesa se acamara,
vítima de um catarro. Pelo atrito tinham-se formado no corpo chagas que não
mais se fecharam e apresentavam aspecto horrível. Ela já não dormia; primeiro,
porque a dor, a tosse e a falta de respiração a impediam, e depois porque ela
própria se rebelava contra o sono, fazendo todo o possível para não perder os
sentidos. Só por instantes a consciência sucumbia à febre; mas mesmo em estado
consciente a consulesa falava com pessoas havia muito falecidas. Certa tarde, ao
crepúsculo, disse de repente em voz alta, um tanto medrosa, mas cheia de fervor:
— Sim, meu querido Jean, já vou!
E essa resposta veio tão de imediato que, depois, todos pensaram ouvir a voz
do saudoso cônsul que chamara a esposa.
Chegou Christian; veio de Hamburgo, onde, segundo disse, estivera a
negócios. Demorou-se pouco tempo no quarto da doente; deixando-o, passou a
mão pela testa, fez correr os olhos e exclamou:
— Mas é horrível… é horrível… Agora não posso mais.
Apareceu também o pastor Pringsheim. Roçou um olhar frio pela irmã Leandra
e rezou, em voz modulada, ao pé da consulesa.
Então houve aquela breve melhora, o lampejo de vida: diminuição da febre,
volta enganadora das forças, bonança das dores, algumas manifestações
esperançosas e claras que faziam brotar lágrimas dos olhos dos parentes…
— Vocês vão ver: não a perderemos; ela se salvará, apesar de tudo! — disse
Thomas Buddenbrook. — No Natal, ela ficará conosco, e não permitiremos que
se excite tanto como de costume…
Mas, já na noite seguinte, pouco após Gerda e o marido se terem recolhido,
receberam um chamado para a Mengstrasse, por parte da sra. Permaneder: a
doente lutava com a morte. O vento abatia-se sobre a chuva gélida que caía,
empurrando-a, num forte tamborilar, contra as vidraças.
Quando o senador e a esposa entraram no quarto, iluminado pelas velas de dois
castiçais, os médicos já se achavam presentes. Buscara-se também Christian no
seu aposento; estava sentado em qualquer parte, com as costas viradas para a
cama de dossel; profundamente inclinado, tinha a fronte entre as mãos.
Esperava-se o irmão da paciente, o cônsul Justus Kröger, a quem igualmente
haviam mandado chamar. A sra. Permaneder e Erika Weinschenk mantinham-se,
entre soluços abafados, ao lado da cama. A irmã Leandra e Mademoiselle
Severin nada mais tinham a fazer e olhavam, aflitas, o rosto da agonizante.
A consulesa, apoiada em várias almofadas, encontrava-se de costas. As mãos,
essas belas mãos, entremeadas por veias de um azul pálido, e que agora
pareciam tão magras, definhadas por completo, acariciavam a colcha, incessante
e apressadamente, numa precipitação trêmula. A cabeça, coberta por uma touca
branca, virava-se sem interrupção, em horripilante ritmo pendular. A boca, cujos
lábios pareciam ser puxados para dentro, abria-se e fechava-se bruscamente, a
cada uma das penosas tentativas de respiração. Os olhos encovados vagavam em
busca de socorro, para, de quando em vez, fitarem com expressão comovente de
inveja uma das pessoas presentes que estavam vestidas e podiam respirar, que
pertenciam à vida e que nada mais sabiam senão fazer o sacrifício amoroso de
manter o olhar cravado neste quadro. E a noite avançava sem que houvesse
qualquer alteração.
— Quanto tempo pode durar este estado? — perguntou Thomas Buddenbrook,
baixinho; puxou o velho doutor para os fundos do quarto, enquanto o dr.
Langhals dava uma injeção à doente. A sra. Permaneder, de lenço na boca,
aproximou-se também.
— Absolutamente não se pode dizer, caro senador — respondeu o médico. —
É possível que a senhora sua mãe daqui a cinco minutos se ache redimida, ou
que viva ainda durante horas… Não posso prever… Trata-se da chamada fluxão
sufocativa… de um edema…
— Sei o que é — disse a sra. Permaneder, anuindo para dentro do lenço,
enquanto as lágrimas lhe corriam sobre as faces. — É frequente nas
pneumonias… As vesículas pulmonares enchem-se de um líquido aquoso e no
último caso a gente não pode mais respirar… Ah, sim, eu sei…
As mãos postas diante de si, o senador olhou para a cama de dossel.
— Como ela tem de sofrer terrivelmente! — cochichou.
— Não! — disse o dr. Grabow, igualmente baixinho, mas com enorme
autoridade, franzindo o rosto bondoso e comprido em rugas decididas… — Estas
aparências enganam; pode acreditar, meu caro amigo; isto engana; a consciência
está muito perturbada… Pela maior parte trata-se de movimentos reflexos…
Pode acreditar…
E Thomas respondeu:
— Queira Deus!
Mas qualquer criança teria podido ler nos olhos da consulesa que estava
totalmente dona da sua consciência e sentia tudo…
Acomodaram-se novamente nos lugares… O cônsul Kröger, chegado também,
quedava-se junto à cama, de olhos vermelhos, dobrado sobre o castão da
bengala.
Haviam aumentado os movimentos da doente. Uma inquietação pavorosa,
indizível angústia e miséria, um sentimento de inelutável abandono e desamparo
parecia encher, da cabeça até os pés, esse corpo entregue à morte. Os olhos,
esses pobres olhos súplices, queixosos e investigadores, por vezes se fechavam
na ocasião dos movimentos estertóricos da cabeça, assumindo uma expressão
vidrada; por outras alargavam-se de tal maneira que as pequenas veias das
órbitas se salientavam num vermelho sangrento. E não sucedeu um desmaio!
Pouco depois das três horas, Christian se levantou.
— Agora não posso mais! — exclamou ele.
Apoiando-se nos móveis que encontrou no caminho, saiu pela porta,
manquejando. Erika Weinschenk e Mademoiselle Severin tinham começado a
cochilar, provavelmente sob a influência dos monótonos sons doridos que a
doente proferia. Dormiam nas cadeiras, e o sono lhes rosava as faces.
Pelas quatro horas, a situação piorava cada vez mais. Apoiaram a paciente;
enxugaram-lhe a testa suada. A respiração ameaçou falhar por completo, e os
pavores aumentaram.
— Alguma coisa para dormir… — suplicou ela. — Um remédio…
Mas não pensavam em dar-lhe algo para dormir. De súbito, a consulesa voltou
a responder a perguntas que os outros não ouviam, assim como já fizera uma
vez.
— Sim, Jean, daqui a pouco… — E logo após: — É certo, minha querida
Klara, já vou…
E outra vez começou a luta… Era isto ainda uma luta contra a morte? Não;
agora lutava contra a vida, pelo prêmio da morte.
— Quero muito… — arfou — … não posso… Alguma coisa para dormir…
Meus senhores, por misericórdia! Alguma coisa para dormir!
Esse “por misericórdia” fez a sra. Permaneder rebentar em choro violento;
Thomas deu um leve gemido, apertando, durante momentos, a cabeça com
ambas as mãos. Mas os médicos conheciam o seu dever. Era preciso, a todo
custo, conservar, o maior tempo possível, esta vida para os parentes; um
anestésico faria que a doente, logo, sem resistência, entregasse o espírito a Deus;
os médicos não existiam para causar a morte, mas sim para, de qualquer
maneira, manter a vida. Em favor disso falavam, aliás, certos argumentos
religiosos e moralistas que eles haviam aprendido na universidade, se bem que
no momento não os tivessem presentes… Pelo contrário, empregaram vários
remédios para revigorar o coração, e causaram diversos vômitos para obter um
alívio momentâneo.
Às cinco horas, a luta não se podia tornar mais horrível. A consulesa,
convulsivamente ereta, de olhos arregalados, batia com os braços em torno de si,
como em busca de um ponto de apoio ou de mãos que se lhe estendessem. Sem
cessar, respondia a gritos que vinham para ela, pelo ar, de todos os lados, gritos
que só ela ouvia e que pareciam cada vez mais numerosos e insistentes. Era
como se não somente o falecido cônjuge e a filha, mas também os pais, os
sogros e muitos outros parentes que a tinham precedido na morte estivessem
presentes em qualquer parte. Mencionava muitos nomes, e ninguém no quarto
teria podido dizer qual o morto a quem ela se dirigia.
— Sim! — gritou, voltando-se para diferentes direções… — Agora vou…
Já… Só um instante… Não posso… Um remédio, senhores…
Às cinco e meia houve um momento de calma. Então, de súbito, passou um
tremor pelas feições envelhecidas, dilaceradas pelo sofrimento, uma alegria
brusca e espavorida, uma ternura profunda, arrepiada e angustiosa. Rápido como
um raio, ela abriu os braços. E então, com a expressão de obediência
incondicional e de docilidade e devoção sem limites, cheia de medo e amor,
gritou em voz alta, tão de súbito, tão automática e imediatamente que todos
sentiram: não houve sequer um instante entre aquilo que ouvira e a resposta que
deu; gritou:
— Aqui estou! — E faleceu.
Todos se tinham sobressaltado. Que fora isso? Quem havia chamado para que
ela obedecesse sem hesitar?
Alguém descerrou a cortina e apagou as velas, enquanto o dr. Grabow, de rosto
brando, fechava os olhos da morta.
Estavam todos friorentos na pálida madrugada outonal que agora iluminava o
aposento. A irmã Leandra revestiu com um pano o espelho do toucador.
2.
Ao chegar o outono, o dr. Langhals disse com trejeitos femininos nos seus belos
olhos:
— Os nervos, senhor senador… São unicamente os nervos que têm a culpa de
tudo isso. E às vezes a circulação do sangue deixa também um pouco a desejar.
Posso permitir-me um conselho? O senhor devia tirar mais um descanso este
ano. Esses poucos domingos na praia naturalmente não conseguiram muito
efeito… Estamos em fins de setembro. O balneário de Travemünde ainda se acha
aberto. Vá para lá, senhor senador, e fique um pouquinho na praia. Quinze dias
ou três semanas já servem para consertar alguma coisa…
E Thomas Buddenbrook disse amém. Quando os seus ficaram sabendo dessa
decisão, Christian ofereceu-se para acompanhá-lo.
— Vou também, Thomas — decretou ele simplesmente. — Acho que você não
tem objeções. — E, embora o senador tivesse uma porção de objeções, disse
outra vez amém.
Agora, mais do que nunca, Christian era dono do seu tempo. Por causa da
saúde incerta, vira-se forçado a abandonar a sua última atividade comercial, a
agência de champanhe e conhaque. O fantasma do homem que, no crepúsculo,
se achava sentado no sofá e acenava para ele felizmente não voltara mais. Mas a
periódica “tortura” no lado esquerdo tornara-se ainda pior, se possível;
acompanhava-a de perto grande número de outras moléstias que Christian, a toda
hora, observava e descrevia meticulosamente. Como nos tempos passados,
acontecia-lhe amiúde, durante as refeições, que os músculos de deglutição
falhavam; então ficava com o bocado na garganta e deixava vagar os olhinhos
redondos e encovados. Como nos tempos passados, sofria com frequência de
uma indeterminada e invencível sensação de medo: receava que a língua, o
esôfago, as extremidades e até o cérebro pudessem de repente ser acometidos
por uma paralisia. É verdade que essa paralisia não veio a ser realidade; mas não
era o medo dela ainda pior? Contava detalhadamente como, um dia, ao fazer chá,
pusera o fósforo ardente sobre a garrafa de álcool e não sobre o fogareiro; desse
jeito, faltara pouco para que não somente ele mas também os outros habitantes
da casa e talvez os vizinhos perecessem de morte horrível… Isso já ia longe.
Mas, com especial minuciosidade, insistência e esforço para se fazer
compreendido, Christian descrevia uma anomalia medonha que nos últimos
tempos verificara em si próprio: em certos dias, isto é, sob certas condições,
climáticas e psíquicas, não podia ver uma janela aberta sem ser acometido pelo
impulso nada justificado de saltar para fora… instinto feroz e mal domável,
espécie de travessura insensata e desesperada! Num domingo, quando a família
jantava na Fischergrubestrasse, relatou como, empregando todas as forças
morais, tivera de rastejar para a janela aberta e fechá-la… A essa altura todos
gritaram alto, e ninguém quis ouvir mais.
Ele constatava os fenômenos dessa espécie com certa satisfação horripilante.
Coisa que, porém, não observava nem verificava, e de que não se dava conta, era
a estranha falta de tato que, com os anos, se lhe tornava cada vez mais peculiar.
Não somente contava no círculo da família anedotas que, quando muito,
convinha narrar no clube, mas existiam também sintomas evidentes de que o seu
senso de vergonha física estava diminuído. No intuito de demonstrar à sua
cunhada Gerda a durabilidade das meias inglesas e, ao mesmo tempo, o seu
recente emagrecimento, era capaz de alçar diante dela a calça axadrezada e larga
até muito acima do joelho… “Olhe só como fiquei magro… Não será isto
estranho e incompreensível?”, dizia ele aflito, enquanto, de nariz encrespado,
exibia a perna ossuda e curva, coberta por ceroulas brancas, sob as quais,
melancolicamente, se delineava o joelho macilento…
Como dissemos, abandonara qualquer atividade comercial. Mas ainda assim
procurava encher as horas do dia que não passava no clube. Gostava de salientar
que, apesar de todos os obstáculos, nunca deixara de trabalhar. Aprofundava os
seus conhecimentos de línguas. Por motivos científicos, sem finalidade prática,
começara recentemente a aprender o chinês, aplicando nisso, durante quinze
dias, muita energia. Agora, ocupava-se com o “completamento” de um
dicionário inglês-alemão que lhe parecia insuficiente. Como, porém, de qualquer
jeito precisasse de uma pequena mudança de ar, e como fosse desejável que o
senador tivesse alguma companhia, essa ocupação não o podia amarrar à
cidade…
Os dois irmãos viajavam para a praia; viajavam, enquanto a chuva tamborilava
sobre o toldo da carruagem. Rodavam pela estrada que era um verdadeiro lago, e
quase não falavam palavra nenhuma. Christian deixava correr os olhos, como se
espreitasse algo de suspeito. Thomas, friorento, estava envolto no sobretudo;
tinha olhos inflamados e cansados; as pontas esticadas e rijas do bigode
ultrapassavam as faces alvacentas. À tarde chegaram ao parque do balneário; as
rodas rangiam sobre o saibro encharcado. No terraço envidraçado do edifício
central achava-se o velho corretor Siegismund Gosch, bebendo grogue de rum.
Levantou-se, sibilando por entre os dentes. Acomodando-se ao seu lado,
enquanto os criados carregavam as malas para cima, eles também tomaram
bebidas quentes.
O sr. Gosch era igualmente veranista, assim como algumas poucas pessoas,
uma família inglesa, uma solteirona holandesa e um solteiro de Hamburgo. Este,
provavelmente, estava dormindo a sesta, antes de jantar. Reinava o mais
profundo silêncio, só interrompido pelo murmúrio da chuva. Que durmam! O sr.
Gosch não dormia de dia. Ficava contente quando, de noite, conseguia algumas
horas de inconsciência. Não se sentia bem; precisava dessa tardia mudança de
clima por causa do tremor, do tremor que lhe agitava os membros… Com os
diabos! Mal podia segurar o copo de grogue. E, coisa mais infame ainda, só
raramente era capaz de escrever, de modo que a tradução das obras completas de
Lope de Vega avançava num ritmo lamentável. Estava muito mal disposto, e nas
blasfêmias já não encontrava o verdadeiro prazer. “Que se enforquem!”, disse
ele, usando a sua locução predileta; repetia-a constantemente, muitas vezes sem
o mínimo nexo.
E o senador? Como ia ele? Quanto tempo pensava demorar-se no lugar?
— Ah, o dr. Langhals mandou-me para cá por causa dos nervos — respondeu
Thomas Buddenbrook. — Claro que obedeci, apesar deste tempo horrível. Que é
que não se faz por medo do médico! E, realmente, sinto-me bastante mal.
Ficaremos até que eu vá um pouco melhor.
— Sim; aliás, a minha saúde também está meio ruim — disse Christian, cheio
de inveja e aborrecimento, porque Thomas só falava de si próprio. Aprontava-se
para contar as histórias do vulto do sofá, da garrafa de álcool e da janela aberta,
quando o irmão se levantou para inspecionar os quartos.
A chuva não diminuía. Roía a terra e dançava, em gotas saltitantes, sobre o
mar, que, arrepiado pelo sudoeste, recuava da praia. Tudo envolto num véu
cinzento. Os vapores passavam como sombras ou navios-fantasmas,
desaparecendo no horizonte apagado.
Os hóspedes estranhos só se encontravam durante as refeições. De capa
impermeável e galochas, o senador dava passeios em companhia do corretor
Gosch, enquanto Christian, na confeitaria, bebia ponche sueco com a caixeira.
Duas ou três vezes, de tarde, quando se tinha a impressão de que o sol queria
sair, apareciam, à hora da table d’hôte, alguns conhecidos da cidade que
gostavam de distrair-se longe da sua família: o senador dr. Giesecke, amigo de
Christian, e o cônsul Peter Döhlmann, que tinha mau aspecto, porque estragava a
saúde pelo uso excessivo de sulfato de magnésio. Então, os cavalheiros nos seus
sobretudos se acomodavam sob o toldo da confeitaria, defronte ao auditório onde
já não havia concertos; tomavam o seu café e digeriam os cinco pratos da
refeição, olhando o parque balneário outonal e palestrando entre si…
Falavam sobre os acontecimentos da cidade: a última enchente que invadira
muitos porões, e durante a qual, na cidade baixa, o povo andara de canoa; o
incêndio que devastara um armazém do porto; a eleição no Senado… Alfred
Lauritzen, da firma Stürmann & Lauritzen, secos e molhados, a varejo e por
atacado, havia sido eleito, na semana passada. O senador Buddenbrook não
estava de acordo com isso. Disse que ele mesmo não dera o seu voto ao sr.
Lauritzen; nada disso! Lauritzen era, sem dúvida, homem honesto e ótimo
comerciante; mas não passava de classe média, da boa classe média, e o seu pai
pescara ainda arenques do barril e os embrulhara para as empregadas com as
próprias mãos… E agora se achava no Senado o dono de um varejo. O velho
Johann Buddenbrook, avô do senador, brigara com o filho primogênito, porque
este se casara com uma loja; assim se pensava naquela época sobre essas coisas.
— Mas o nível anda baixando, sim, senhor, o nível social do Senado torna-se
cada vez mais baixo; o Senado está se democratizando, meu caro Giesecke, e
isso não é nada bom. Capacidade comercial por si só não basta; acho que não
deveríamos deixar de exigir um pouco mais. Alfred Lauritzen com os seus
grandes pés e cara de barqueiro… vê-lo no Senado ofende-me… Ofende não sei
o que no meu íntimo. É contrário a todo senso de estilo; em poucas palavras: é
mau gosto.
Mas o senador Giesecke ficou um tanto melindrado. Afinal de contas, ele
mesmo só era filho de chefe de bombeiros… Não: honra ao mérito. Para isso
tinha uma república.
— Aliás, você não deveria fumar tantos cigarros, Buddenbrook. Assim não
aproveita o ar da praia.
— Sim, agora vou acabar com eles — disse Thomas Buddenbrook; jogou fora
a ponta do cigarro e fechou os olhos.
A conversa deslizava indolentemente, enquanto a chuva toldava a vista do mar.
Tratou-se do último escândalo da cidade, uma falsificação de letras promissórias,
cometida pelo atacadista Kassbaum, de P. Philipp Kassbaum & Cia., que agora
se achava trancafiado. Absolutamente não se irritaram; chamaram de asneira o
feito de Kassbaum; riram-se e encolheram os ombros. O senador Giesecke
relatou que o atacadista conservara o seu bom humor. Exigiria logo que
colocassem um espelho na sua nova moradia, na cadeia.
— Ficarei aqui não somente durante anos, mas sim durante anos inteiros —
dissera ele. — Por isso preciso de um espelho. — Como Christian Buddenbrook
e Andreas Giesecke, ele tinha sido aluno do saudoso Marcellus Stengel.
Sem pestanejar, os cavalheiros, outra vez, riram um riso rápido e nasal…
Siegismund Gosch pediu grogue de rum, com uma acentuação que expressava:
que adianta a mísera vida? O cônsul Döhlmann fez honra de uma garrafa de
aguardente, e Christian Buddenbrook, de novo, estava com o seu ponche sueco,
que o senador Giesecke encomendara para si e o amigo. Depois de pouco tempo,
Thomas Buddenbrook voltou a fumar.
E sempre naquele mesmo tom lerdo, desdenhoso, cético e negligente, sem
interesse e com o cérebro pesado pela comida, pelas bebidas e pela chuva, falou-
se em negócios, nos negócios de cada um dos presentes. Mas esse assunto
também não chegou a animá-los.
— Ah, não há muito prazer nisso — disse Thomas Buddenbrook, de coração
sufocado, enquanto, desgostoso, reclinava a cabeça por sobre o espaldar.
— Bem, e você, Döhlmann? — perguntou o senador Giesecke, bocejando… —
Você se entregou por completo à aguardente, não é?
— A chaminé não fuma sem fogo — replicou o cônsul. — De vez em quando
dou uma olhadela no escritório. O careca tem pouco cabelo para pentear.
— E todos os negócios importantes ficam de qualquer jeito nas mãos de
Strunck & Hagenström — observou o corretor Gosch, aflito. Apoiava os
cotovelos longe de si na mesa, enquanto a cabeça maliciosa de ancião
descansava sobre as mãos.
— Não se pode feder como uma estrumeira — disse o cônsul Döhlmann, numa
pronúncia propositadamente ordinária. O cinismo desesperado chegou a
desalentar cada um dos presentes. — Bem, e você, Buddenbrook? Trabalha
ainda em alguma coisa?
— Não — respondeu Christian —, já não posso mais. — E sem transição,
apercebendo-se da melancolia do ambiente e sentindo a necessidade de
aprofundá-la, pôs-se a falar de Valparaíso, do escritório de Johnny
Thunderstorm. Puxando o chapéu sobre a testa começou: — Ora, com este calor!
Deus do céu! Trabalhar! No, Sir, como vê, não trabalhamos, Sir! — E a essas
palavras Johnny Thunderstorm costumava soprar a fumaça na cara do chefe.
Deus do céu! Mímica e gestos expressavam perfeitamente uma malandragem ao
mesmo tempo impertinente e bonachona. O irmão permanecia imóvel.
O sr. Gosch procurou erguer o copo até a boca. Sibilando, recolocou-o sobre a
mesa. Deu uma pancada no braço renitente. Depois alçou de golpe a taça para os
lábios estreitos. Derramou grande parte e engoliu furiosamente o resto.
— Ah, Gosch, você sempre com esse tremor! — disse Döhlmann. — Você
devia fazer como eu… Esse maldito sulfato de magnésio! Estouro quando não o
tomo todos os dias; cheguei a esse ponto. E quando o tomo estouro ainda mais.
Você sabe como se sente alguém que nunca, nunca pode dar cabo do almoço…
Quero dizer, quando o tem no estômago? — E contou alguns detalhes
repugnantes do seu estado físico. Christian Buddenbrook ouviu-os com interesse
e horror, franzindo o nariz, e retribuiu-os com uma breve mas impressionante
descrição da sua “tortura”.
A chuva recrudescera de novo. Caía, densa e vertical, enchendo, incessante, o
silêncio do parque com o seu marulhar monótono e desesperador.
— Ah, sim, a vida não vale nada — disse o senador Giesecke, que bebera
muito.
— Já não gosto de viver — admitiu Christian.
— Que se enforquem! — exclamou o sr. Gosch.
— Aí vem Fiken Dahlbeck — disse o senador Giesecke. A proprietária do
estábulo passou por eles com um balde de leite na mão. Sorriu para os
cavalheiros. Era uma quarentona corpulenta e atrevida.
O senador Giesecke olhou-a com olhos sensuais.
— Que tetas! — gritou. A isso, o cônsul Döhlmann acrescentou uma piada
sobremodo obscena, que os fez mais uma vez rirem aquela risada breve,
desdenhosa e nasal.
Então chamaram o garçom.
— Acabo de terminar a garrafa, Schröder — disse Döhlmann. — É melhor
pagar. Isso também nos acontece às vezes… E você, Christian? Acho que
Giesecke paga a sua despesa.
Mas nesse instante o senador Buddenbrook se reanimou. Permanecera sentado,
envolto no sobretudo, mãos no colo e cigarro na boca, sem dar sinal de interesse.
Empertigando-se de súbito, perguntou asperamente:
— Não tem dinheiro, Christian? Então dê-me licença de emprestar-lhe essa
bagatela.
Abriram os guarda-chuvas e saíram do toldo, para dar um pequeno passeio…
… De quando em quando, a sra. Permaneder vinha visitar o irmão. Passeavam
então em direção à pedra das Gaivotas ou ao Templo Marítimo, onde Tony
Buddenbrook, por motivos desconhecidos, sempre se perdia num indeterminado
entusiasmo revolucionário. Repetidas vezes insistia sobre a liberdade e igualdade
de todos os seres humanos, condenando simplesmente quaisquer categorias
sociais; proferia palavras duras contra privilégios e arbitrariedades e exigia
expressamente que se desse honra ao mérito. Depois disso punha-se a falar da
vida. Conversava bem e distraía o irmão o melhor possível. Desde que andava
por este mundo, essa criatura feliz jamais precisara engolir coisa alguma nem
conformar-se com ela sem falar. A nenhuma lisonja nem ofensa que a vida lhe
dirigia se havia calado. Tudo quanto lhe acontecia, todas as alegrias e todas as
mágoas, desembaraçava-se delas numa onda de palavras banais e infantilmente
imponentes que bastavam de sobejo à sua necessidade de comunicação. Não
tinha estômago muito forte, mas o coração era leve e livre — ela mesma não
sabia quanto. Não a devorava nada que não houvesse achado expressão, não a
sobrecarregava nenhuma experiência dissimulada. E por isso ela não sofria com
o seu passado. Sabia que tivera destino agitado e áspero, mas tudo isso não
deixava nela sinais de peso e cansaço; no fundo, Tony nem sequer acreditava
nessas coisas. Mas, como parecessem fatos unanimemente reconhecidos,
aproveitava-se delas, gabando-se e falando a esse respeito com uma fisionomia
bastante grave… Punha-se a ralhar; evocava com indignação sincera os nomes
das pessoas que a tinham prejudicado na vida, a ela e à família Buddenbrook;
com o tempo, o número se tornara considerável. “Trieschke Chorão!”, gritou
num desses passeios, “Grünlich! Permaneder! Tiburtius! Weinschenk! Os
Hagenström! O promotor público! Severin! Quantos filous, Thomas! Mas Deus
há de castigá-los um dia! Disso não duvido!”
Quando chegaram ao Templo Marítimo já caía o crepúsculo, pois o outono
estava por findar. Achavam-se numa das câmaras que se abriam para a baía.
Pairava ali um cheiro de madeira como nos vestiários de um estabelecimento
balneário. Epígrafes, iniciais, corações e versos cobriam as paredes toscas. Lado
a lado, os irmãos fitavam, por sobre o declive verde e úmido e a tira estreita de
areia pedregosa, dirigindo o olhar ao mar turvo e agitado…
— Vastas ondas… — disse Thomas Buddenbrook. — Como elas se
aproximam e se esmagam, se aproximam e se esmagam, uma após outra, sem
fim, sem objetivo, monótonas e doidas. E todavia produzem um efeito calmante
e consolador, como tudo quanto é simples e necessário. Aprendi a amar cada vez
mais o oceano… Pode ser que outrora eu preferisse a montanha, pelo único
motivo de ela estar tão distante. Agora não queria mais viajar para lá. Acho que
ali experimentaria apenas medo e vergonha. Ela era por demais arbitrária,
irregular, múltipla… Não há dúvida de que me sentiria demasiado inferior. Que
espécie de homens são esses que têm predileção pela monotonia do mar? Parece-
me que são aqueles que lançaram olhares excessivamente longos e profundos na
confusão do mundo interno para poderem exigir do externo outra coisa a não ser,
pelo menos, simplicidade… É apenas um detalhe se, na montanha, a gente faz
subidas audaciosas, enquanto na praia descansa tranquilamente na areia. Mas eu
conheço o olhar com que se presta homenagem a ambos. Olhos confiados,
impávidos e felizes, cheios de ânimo empreendedor, firmeza e vitalidade, vagam
de cume em cume; porém, na vastidão do mar, cujas ondas flutuam com esse
fatalismo místico e atordoador, repousa sonhando um olhar velado, desalentado e
consciente que, em qualquer parte e época, mergulhou demasiado fundo em
tristes perturbações… Saúde e enfermidade, eis a diferença. Trepamos
audazmente na maravilhosa multiplicidade das alturas denteadas, eretas e
alcantiladas, para experimentarmos a nossa força vital, na qual nada ainda se
gastou. Mas repousamos sobre a vasta simplicidade das coisas exteriores quando
estamos cansados pela confusão das íntimas.
A sra. Permaneder permaneceu muda, intimidada e chocada, assim como
emudecem pessoas inocentes quando, na sociedade, de súbito, se pronuncia algo
de sério e valioso. “Destas coisas não se fala!”, pensou ela, enquanto fixava os
olhos na distância para não encontrar os do irmão. E silenciosamente, pedindo-
lhe perdão por sentir vergonha dele, deu-lhe o braço.
7.
A sra. Permaneder subia pela escada principal. A mão esquerda colhia a parte da
frente do vestido, enquanto a direita apertava contra a face o grande regalo
marrom. Ela caía e tropeçava com as faces coradas, e no lábio superior, um tanto
saliente, achavam-se gotinhas de suor. Embora ninguém lhe fosse ao encontro,
cochichava sem cessar, durante a corrida apressada. De quando em quando, uma
palavra repentina se desprendia do murmúrio, palavra a que o medo dava força e
tom… “Não é nada…”, dizia ela. “Não tem importância… Deus Nosso Senhor
não permitirá… Ele sabe o que faz; acredito firmemente… Com certeza, não há
perigo… Ah, meu Deus, vou rezar todos os dias…” De tanto medo, ela
simplesmente falava tolices. Num único arremesso, correu até o segundo andar e
através do corredor…
A porta da antessala achava-se aberta. Ali, Antonie encontrou a cunhada.
O belo rosto de Gerda Buddenbrook estava totalmente desfigurado pelo asco e
pelo horror. Arregalava os olhos castanhos, pouco distantes entre si e cercados
de sombras azuladas, numa expressão pisca de repugnância irada e confusa.
Quando viu a sra. Permaneder, fez-lhe um rápido sinal com o braço estendido.
Abraçou-a escondendo a cabeça no ombro de Tony.
— Gerda, Gerda! Que é que há? — gritou a sra. Permaneder. — Que
aconteceu? Que significa isto? Dizem que ele caiu. Desmaiou? Como vai ele?
Deus não pode querer o pior… Por misericórdia, fale…
Mas não recebeu resposta imediata. Sentiu apenas como todo o corpo de Gerda
se dilatava num arrepio. Então ouviu um cochicho junto ao ombro.
— Esse aspecto que ele tinha… — compreendeu Tony — quando o trouxeram!
Durante a vida inteira não aguentou um corpúsculo de pó no seu corpo… É uma
vileza, uma infâmia que o fim venha desta maneira!
Ruídos abafados chegaram até elas. Abrira-se a porta do gabinete de vestir. Ida
Jungmann achava-se no vão, de avental branco, com uma bacia nas mãos. Tinha
os olhos avermelhados. Viu a sra. Permaneder e, de cabeça baixa, recuou um
pouco, para deixá-la passar. Tremia-lhe o queixo rugoso.
As altas cortinas floreadas movimentaram-se na corrente de ar, quando Tony,
seguida pela cunhada, entrou no quarto. Um cheiro de ácido carbônico, éter e
outros remédios veio-lhes ao encontro. Na larga cama de mogno, por baixo da
colcha vermelha, Thomas Buddenbrook achava-se de costas, despido, numa
camisola bordada. Os olhos meio abertos estavam vidrados e revirados. Os
lábios, sob o bigode desgrenhado, mexiam-se, gaguejando. Sons inarticulados,
de quando em vez, lhe saíam da garganta. O jovem dr. Langhals inclinava-se
sobre ele. Retirou-lhe do rosto uma atadura ensanguentada e mergulhou uma
outra numa tigelinha que se encontrava sobre o criado-mudo. Depois auscultou o
peito do paciente e tomou-lhe o pulso… Ao lado da cama, sobre a caixa de roupa
suja, estava sentado o pequeno Johann, torcendo o nó de marujo. Com
fisionomia cismadora, escutava os sons que o pai, atrás dele, proferia. Numa
cadeira, achavam-se as vestes enlameadas do senador.
A sra. Permaneder acocorou-se ao lado da cama. Apanhou a mão de Thomas,
que estava fria e pesada. Cravou-lhe os olhos no rosto… Começou a
compreender que Deus Nosso Senhor, quer soubesse, quer não, o que fazia, em
todo o caso tencionava “o pior”.
— Tom! — chorou ela. — Não me reconhece? Como está? Será que nos quer
abandonar? Você não nos vai deixar! Ah, não pode ser!
Nada sucedeu que se parecesse com uma resposta. Implorando socorro, ela
ergueu os olhos para o dr. Langhals. Este permaneceu imóvel, com os belos
olhos baixos. Na fisionomia, com certa satisfação para consigo mesmo,
expressava a vontade de Deus…
Ida Jungmann voltou para ajudar onde houvesse alguma coisa que ajudar. O
velho dr. Grabow apareceu pessoalmente, com o seu rosto comprido e brando.
Apertou a mão de todos os presentes; olhou o enfermo, meneando a cabeça, e fez
exatamente o que já fizera o dr. Langhals… A notícia espalhara-se na cidade
com a rapidez de um raio. A campainha da porta de guarda-vento tocava sem
cessar. As perguntas pelo estado do senador chegavam até o quarto. Não havia
alteração, não havia… Todos recebiam a mesma resposta.
Os dois médicos insistiram em que era necessário contratar uma enfermeira
para o serviço noturno. Mandaram buscar a irmã Leandra. Ela veio. Quando
entrou, não havia no seu rosto nem um traço de surpresa ou de susto. Também
esta vez depôs tranquilamente a touca, a mantilha e a bolsinha de couro, e com
movimentos suaves e bondosos começou a trabalhar.
Horas a fio, o pequeno Johann se achava sentado na caixa de roupa suja,
olhando tudo e ouvindo aqueles sons inarticulados. Estava na hora da sua aula
particular de aritmética, mas ele compreendia que se passavam acontecimentos
diante dos quais os ternos surrados tinham de emudecer. Foi só rápida e
ironicamente que se lembrou das suas lições… Às vezes, quando a sra.
Permaneder se aproximava dele, para abraçá-lo, o menino derramava lágrimas.
Mas em geral cismava, de olhos piscos e secos, com expressão desgostosa,
respirando em ritmo desregrado, como se esperasse aquele odor estranho e
todavia tão conhecido…
Pelas quatro horas, a sra. Permaneder tomou uma resolução. Chamou o dr.
Langhals para a peça vizinha. Cruzou os braços e inclinou a cabeça para trás,
procurando, apesar disso, apertar o queixo contra o peito.
— Senhor doutor — disse ela —, há uma coisa que está no poder do senhor, e
peço-lhe que o faça! Diga-me a verdade! Sou uma mulher endurecida pelo
destino… Aprendi a suportar a verdade; pode acreditar! Será que meu irmão
viverá ainda amanhã? Fale com toda a franqueza!
E o dr. Langhals desviou os belos olhos, fitando as unhas e falando da
impotência humana, assim como da impossibilidade de dizer com certeza se o
irmão da sra. Permaneder sobreviveria à noite ou se pereceria no próximo
instante…
— Então sei o que devo fazer — replicou ela. Saiu e mandou buscar o pastor
Pringsheim.
Este veio, trajando paramentos menores, sem gola de rendas, mas com batina
comprida. Roçou pela irmã Leandra um olhar frio e acomodou-se ao lado da
cama numa cadeira que lhe ofereceram. Exortou o doente a que o reconhecesse e
lhe desse ouvidos. Mas, como esse esforço fracassasse, dirigiu-se diretamente a
Deus, falando com ele num linguajar estilizado, com voz modulada, em sons ora
sombrios, ora bruscamente elevados, enquanto na fisionomia se alternavam
fanatismo lúgubre e doce enlevo… Rolava o “r” no palato de modo
singularmente gorduroso e hábil. O pequeno Johann tinha a nítida impressão de
que o pastor acabava de consumir café e pãezinhos com manteiga.
Disse o pregador que ele e os parentes ali reunidos já não suplicavam pela vida
desse ente querido, pois viam que a sagrada vontade do Senhor era de chamá-lo
a si. Rogavam-lhe apenas a mercê de uma morte suave… Feito isso, recitou com
acentuação impressionante duas orações próprias para tal ocasião. Levantou-se.
Apertou as mãos de Gerda Buddenbrook e da sra. Permaneder. Estreitando a
cabeça do pequeno Johann entre ambas as mãos, fitou-lhe durante um minuto as
pestanas abaixadas, trêmulo de melancolia e fervor. Cumprimentou a sra.
Jungmann; lançou outro olhar frio sobre a irmã Leandra e executou uma saída
correta.
O dr. Langhals fora para casa por alguns instantes. Ao voltar encontrou tudo
como deixara. Após rápida conversa com a enfermeira, despediu-se novamente.
Também o dr. Grabow veio mais uma vez ver o doente; de rosto brando,
verificou se tudo se achava em ordem, a movimentar os lábios e produzir sons
inarticulados. Caiu o crepúsculo. Lá fora, houve um arrebol invernal que, através
da janela, iluminava suavemente as vestes enlameadas que se achavam dispostas
numa cadeira.
Às cinco horas, a sra. Permaneder se deixou arrastar a um ato de imprudência.
Estava sentada ao lado da cama, diante da cunhada. De repente, usando da sua
voz gutural, começou a rezar um salmo, em voz muito alta e de mãos
entrelaçadas…
— Ó Deus — disse ela —, terminai o seu sofrimento. Sede clemente e dai a
este… — Mas a oração lhe brotava com tal ímpeto do fundo do coração que ela
se ocupava apenas com a palavra que estava pronunciando, sem ponderar que
não sabia o fim da estrofe e esta teria de ficar truncada, lamentavelmente, depois
do terceiro verso. Foi o que sucedeu. Cortou a oração com voz elevada e
substituiu o final com redobrada dignidade da atitude. Todos os presentes
esperavam a continuação e se contraíam de embaraço. O pequeno Johann
pigarreou com tal força que pareceu um soluço. E nada se ouviu no silêncio a
não ser o estertor de Thomas Buddenbrook agonizante.
Todos se sentiram aliviados quando a criada anunciou que se servia alguma
comida no aposento vizinho. Mas mal começavam, no quarto de Gerda, a
consumir um pouco de sopa, a irmã Leandra apareceu na porta, fazendo-lhes um
suave sinal.
O senador morrera. Após ter dado dois ou três leves soluços, emudeceu e
deixou de movimentar os lábios. Foi a única alteração que se passou com ele; já
antes, os olhos estavam mortos.
O dr. Langhals, que chegou alguns minutos mais tarde, colocou no peito do
cadáver o estetoscópio preto; auscultou-o durante muito tempo e disse depois de
consciencioso exame:
— Sim, está acabado.
E, com o dedo anular da mão direita pálida e meiga, a irmã Leandra
cuidadosamente fechou as pálpebras do falecido.
Neste momento, a sra. Permaneder, ao lado da cama, caiu de joelhos.
Apertando o rosto contra a colcha, chorou em voz alta. Entregou-se inteiramente,
sem a mínima surdina, a uma dessas refrescantes explosões sentimentais de que
dispunha a sua natureza feliz… Com o rosto molhado por completo, mas
revigorada, serenada e voltada ao equilíbrio psíquico, reergueu-se, sendo logo
capaz de lembrar-se das participações de óbito que se deviam imprimir sem
demora e com a máxima pressa — imensa quantidade de participações de feitio
distinto…
Christian entrou em cena. Recebera no clube a notícia da queda do senador e
saíra imediatamente. Mas o medo de algum aspecto pavoroso fizera com que
desse um demorado passeio para fora do portão da Fortaleza, de modo que
ninguém pudera encontrá-lo. Agora, contudo, compareceu e soube já no
vestíbulo que o irmão falecera.
— Mas não é possível! — disse ele, enquanto, manquejando, de olhos vagos,
subia pela escada.
Achava-se então, entre a irmã e a cunhada, diante do leito de morte. Ali estava,
com o crânio calvo, as faces cavas, o bigode pendente e o enorme nariz
corcovado; mantinha-se sobre as pernas tortas, um pouco dobradas nos joelhos,
numa atitude que se assemelhava com um ponto de interrogação; os pequenos
olhos encovados fitavam o rosto do irmão, que parecia tão taciturno, frio,
reservado e perfeito, tão inacessível a qualquer juízo humano… As comissuras
da boca de Thomas estavam repuxadas para baixo numa expressão quase
desdenhosa. Ali jazia ele, a quem Christian lançara em rosto que não choraria na
ocasião da morte do irmão; morrera, morrera simplesmente, sem dizer uma só
palavra; retraíra-se a um silêncio distinto e intacto, abandonando o outro à sua
vergonha, como tantas vezes em tempos de vida! Agira ele bem ou mal ao opor
apenas frio menosprezo às moléstias de Christian, ao vulto do sofá, à garrafa de
álcool e à janela aberta? Esse problema liquidou-se por si mesmo, tornara-se
absurdo pelo fato de que a morte, teimosa, imprevisível e parcial, honrara e
justificara só a ele, ao outro, aceitando-o e abrigando-o; fora somente ao irmão
que ela fizera digno de homenagens, proporcionando-lhe imperiosamente o
interesse e o respeito gerais, ao passo que rejeitava a Christian, e apenas
prosseguiria a ridicularizá-lo por cinquenta ninharias e chicanas com que
nenhum outro se importava. Jamais Thomas Buddenbrook impressionara mais o
irmão do que nessa hora. É o êxito que vale. Unicamente a morte é capaz de
inspirar aos demais a reverência diante dos nossos sofrimentos; por ela, os mais
desprezíveis males fazem-se veneráveis. “Deram-lhe razão; curvo-me”, pensou
Christian. Com um gesto rápido e desajeitado, ajoelhou-se para beijar a mão fria
que repousava sobre a colcha. Depois deu um passo para trás e pôs-se a andar
pelo quarto, de olhos vagos.
Chegaram outras visitas: os velhos Kröger, as primas Buddenbrook da Breite
Strasse e o velho sr. Marcus. Veio também a pobre Klothilde; magra e grisalha,
colocou-se ao lado da cama, entrelaçando, de rosto impassível, as mãos
revestidas com luvas de fio de Escócia.
— Vocês não devem pensar, Gerda e Tony — disse ela em voz incrivelmente
lastimosa e arrastada —, que tenho um coração frio porque não choro. Não tenho
mais lágrimas… — E, vendo-a ali tão ressequida e empoeirada, ninguém
duvidava de que falava a verdade…
Finalmente, todos cederam o campo a uma mulher antipática e velha, cuja boca
desdentada não cessava de mastigar. Viera para lavar e vestir o cadáver, com o
auxílio da irmã Leandra.
Acontece que nos lembramos desta ou daquela pessoa; pensamos em como ela
tem passado ultimamente. E de chofre recordamo-nos de que não mais anda
pelas ruas, que a sua voz já não soa no concerto geral das vozes, que esta pessoa
simplesmente desapareceu do cenário e se acha por baixo da terra, em qualquer
parte do cemitério diante do portão da Fortaleza.
A consulesa Buddenbrook, em solteira Stüwing, viúva de tio Gotthold,
morrera. Também ela, que outrora havia sido motivo de tão violenta discórdia
familiar, fora embelezada com a coroa expiatória e conciliadora da morte. As
três filhas, Friederike, Henriette e Pfiffi, sentiam-se agora autorizadas para opor
aos pêsames dos parentes uma fisionomia escandalizada, como se dissessem:
“Estão vendo? Foram as perseguições de vocês que a mataram!…”. Isso, se bem
que a consulesa tivesse morrido velhíssima…
A sra. Kethelsen igualmente encontrara a paz. Durante os últimos anos havia
sido torturada pela gota nos pés. Mas finara-se, meiga, simplória e apegada à sua
crença infantil, invejada pela irmã culta que ainda, de vez em quando, tinha de
combater tentações racionalistas da sua alma. Sesemi, embora cada vez menor e
corcunda, estava presa a esta terra malfeita por uma constituição mais durável.
O cônsul Peter Döhlmann falecera. Gastara toda a fortuna em almoços, até
finalmente sucumbir ao sulfato de magnésio. Deixou à filha uma renda de
duzentos marcos anuais, esperando que a reverência geral diante do nome de
Döhlmann a aposentasse no convento de São João.
Justus Kröger morrera também, e esta perda era séria. Pois, daí em diante,
ninguém mais impedia a esposa indulgente de vender os restos da prataria, para
mandar dinheiro ao filho depravado, Jakob, que, em qualquer parte do vasto
mundo, vivia a sua vida airada…
Quem procurasse Christian Buddenbrook na cidade perdia o seu tempo. Já não
morava dentro dos seus muros. Menos de um ano após a morte do senador
mudara-se para Hamburgo. Ali, esposara diante de Deus e dos homens a uma
dama com que, havia muito, estava ligado por laços estreitos, a srta. Aline
Puvogel. Não existia ninguém para impedi-lo. Decerto, o sr. Stephan
Kistenmaker lhe administrava a herança materna, conforme o cargo que o
testamento do velho amigo lhe tinha confiado. Metade dos juros dessa herança,
isto é, da parte que já não estava gasta de antemão, sempre ia para Hamburgo.
De resto, Christian era dono das suas resoluções… Logo que se espalhou a
notícia do casamento, a sra. Permaneder dirigiu uma carta comprida e
extremamente hostil à sra. Aline Buddenbrook em Hamburgo, começando com o
“Madame!” e contendo, em palavras cuidadosamente envenenadas, a declaração
de que Antonie não tencionava reconhecer como parentes nem a destinatária
nem os filhos dela.
O sr. Kistenmaker era testamentário, administrador da fortuna dos
Buddenbrook e tutor do pequeno Johann. Respeitava grandemente esses cargos,
que lhe proporcionavam um trabalho de alta importância. Davam-lhe o direito de
afirmar, na Bolsa, que andava a extenuar-se, e de cofiar os cabelos, com todos os
sinais de surmenage… E não se esqueça que, em recompensa das suas
atividades, ele recebia, com absoluta pontualidade, dois por cento das rendas.
Aliás, não tinha muita sorte nos negócios, e Gerda Buddenbrook achava logo
motivos para estar pouco satisfeita.
Era preciso realizar a liquidação da firma, que devia desaparecer dentro de um
ano. Assim o senador o decretara no testamento. A sra. Permaneder mostrava-se
profundamente comovida com isso. “E Johann, o pequeno Johann, Hanno?”,
perguntava ela… O fato de o irmão ter passado por cima do filho e único
herdeiro, de não ter querido manter para Hanno a vida da firma, a afligia e
desapontava muito. Chorava amiúde, porque era necessário retirar a venerável
tabuleta da firma, essa joia sagrada pela tradição de quatro gerações, e porque
era preciso encerrar a sua história, não obstante a existência de um sucessor
legal. Mas então se consolava com a ideia de que o fim da firma não era idêntico
ao da família; o sobrinho teria de iniciar uma obra nova e original, para cumprir
a sua nobre tarefa, que consistia em conservar o brilho, a fama do nome paterno
e dar à família nova prosperidade. Não podia ser em vão que ele se parecia tanto
com o bisavô…
Começou então a liquidação dos negócios, dirigida pelo sr. Kistenmaker e o
velho sr. Marcus. Tomou isso um rumo extraordinariamente lamentável. O prazo
estabelecido era curto. Eles queriam observá-lo com exatidão literal. O tempo
urgia. Os assuntos pendentes foram despachados de modo precipitado e nocivo.
Uma venda imprudente e desfavorável seguia a outra. O depósito e os armazéns
não se converteram em dinheiro senão com grande prejuízo. E o que não
estragava o zelo excessivo do sr. Kistenmaker conseguia-o a morosidade do
velho sr. Marcus. Diziam na cidade que, no inverno, antes de sair, com muito
cuidado, aquecia na estufa não somente o sobretudo e o chapéu, mas também a
bengala. Se, por acaso, se oferecesse uma boa ocasião para fazer um negócio,
com certeza a deixaria escapar… Em poucas palavras: as perdas se acumulavam.
Teoricamente, Thomas Buddenbrook deixara uma fortuna de seiscentos e
cinquenta mil marcos; um ano após a abertura do testamento, manifestou-se que
não se podia, nem de longe, contar com essa importância…
Corriam pela cidade boatos indeterminados e exagerados a respeito da
liquidação pouco propícia, boatos que foram alimentados pela notícia de que
Gerda Buddenbrook tencionava vender a grande casa. Contavam-se enormidades
sobre os apuros que a obrigavam a tanto, sobre a diminuição perigosa da fortuna
dos Buddenbrook. Pouco a pouco, o ambiente da cidade mudou de tal maneira,
que a viúva do senador sentiu a alteração na sua própria casa, primeiro
surpreendida e com estranheza, depois com indignação crescente… Um dia,
relatou à cunhada que vários artífices e fornecedores insistiram de modo pouco
decente no pagamento de contas vultosas. Ao ouvir isso, a sra. Permaneder ficou
durante muito tempo pasmada, para então rebentar numa risada horrorosa…
Gerda Buddenbrook estava tão melindrada que até manifestava uma espécie de
decisão quase firme de deixar a cidade, em companhia do pequeno Johann, no
intuito de mudar-se para Amsterdam, onde tocaria duetos com o idoso pai. Mas
esse projeto causou tamanha tempestade de espanto por parte da sra. Permaneder
que a senadora, por ora, teve de abandoná-lo.
Como era de esperar, os protestos de Antonie concerniam também à venda da
casa construída pelo irmão. Ela lamentava intensamente a má impressão que isso
poderia provocar, queixando-se da nova perda de prestígio que a família sofreria.
Mas não podia negar que teria sido pouco prático habitar mais tempo ainda a
espaçosa e esplêndida casa, capricho dispendioso de Thomas Buddenbrook, e
que Gerda tinha razão quando desejava morar numa pequena e cômoda vila,
diante do portão da Fortaleza, em plena natureza…
Um dia sublime amanheceu para o corretor Siegismund Gosch. Glorificou-lhe
a velhice um acontecimento capaz de lhe tirar durante algumas horas o tremor
dos membros. Sucedeu que lhe foi dado ver-se no salão de Gerda Buddenbrook,
sentado numa poltrona, frente a ela, negociando o preço da grande casa. O
cabelo níveo lhe caía sobre a testa. Com o queixo avançado de modo diabólico,
fitava nela os olhos e conseguia ter a perfeita aparência de um corcunda. Falava
com voz sibilante sobre assuntos friamente comerciais; nada lhe traía a comoção
da alma. Estava disposto a ficar com a casa. Estendendo a mão, com pérfido
sorriso, ofereceu oitenta e cinco mil marcos. Era um preço aceitável, pois certo
prejuízo parecia inevitável nessa venda. Devia-se, porém, ouvir a opinião do sr.
Kistenmaker. Gerda viu-se obrigada a despedir o sr. Gosch sem fechar o
negócio. Evidenciou-se que o sr. Kistenmaker não tinha vontade de permitir
qualquer violação dos seus direitos. Desprezou a oferta do sr. Gosch; riu-se dela
e jurou que obteriam muito mais. Continuou assegurando-o até que, para chegar
a um fim, foi necessário ceder a casa, por setenta e cinco mil marcos, a um
solteirão velhote que, de volta de viagens extensas, tencionava instalar-se na
cidade…
O sr. Kistenmaker tratou também da compra da nova casa, vila pequena e
agradável, um tanto cara talvez, mas situada numa alameda de castanheiros
velhos, diante do portão da Fortaleza, e cercada por jardim e pomar bonitos,
correspondendo inteiramente aos desejos de Gerda Buddenbrook… No outono
de 1876, a senadora começou a habitá-la em companhia do filho e da criadagem, e
com uma parte dos móveis. O resto, sob os lamentos da sra. Permaneder, teve de
ser abandonado, passando para a posse do velho solteirão.
Houve mais alterações ainda! Mademoiselle Jungmann, Ida Jungmann, a
serviço dos Buddenbrook há mais de quarenta anos, deixou a família, a fim de
voltar para a sua terra prussiana, onde passaria o fim da vida com os parentes.
Para dizer a verdade, fora despedida pela senadora. Quando a geração passada se
emancipara dela, essa boa alma encontrara imediatamente o pequeno Johann, a
quem podia mimar e educar, ler contos de Grimm e narrar a história do tio que
morreu de soluço. Mas agora o pequeno Johann, realmente, já não era pequeno;
tinha quinze anos, e era um rapaz a quem, apesar do seu físico delicado, ela não
podia ser útil… E a relação entre ela e a mãe havia muito se tornara bastante
tensa. Dona Ida jamais tinha sido capaz de considerar essa mulher, que entrara
na família muito mais tarde do que ela própria, uma autêntica Buddenbrook.
Além disso, com o decorrer dos anos, começara a ostentar a arrogância de velhas
empregadas, usurpando direitos exagerados. Causava escândalo por dar
demasiado valor à sua própria pessoa ou por ofender os direitos de Gerda na
administração da casa… A situação chegara a ser insustentável. Houve cenas
violentas, e, embora a sra. Permaneder se empenhasse por ela com o mesmo
fervor com que falara a favor das casas e dos móveis, a velha Ida Jungmann foi
despedida.
Chorou amargamente quando chegou a hora em que teve de dizer adeus ao
pequeno Johann. Este a abraçou. Depois juntou as mãos nas costas. Apoiou-se
numa perna, enquanto balançava a outra sobre a ponta do pé; acompanhou com
os olhos a velha ama, que se ia. Era o mesmo olhar meditativo e dirigido para a
própria alma que os olhos de brilho dourado, orlados de sombras azuladas,
tinham empregado diante do cadáver da avó, da morte do pai, da liquidação da
grande casa e em face de outras experiências de caráter menos exterior… A
despedida da velha empregada, segundo a opinião do menino, enfileirava-se
logicamente na série dos outros sintomas da dissolução, do fim, do remate e da
decomposição a que assistira. Já não estranhava essas coisas; era esquisito que
jamais as houvesse estranhado. Às vezes erguia a cabeça com o cabelo castanho
e ondulado, e com os lábios sempre um tanto desfigurados, abrindo
sensivelmente as narinas delicadas; então tinha-se a impressão de que, na
atmosfera e no ambiente que o cercavam, ele farejava aquele aroma
singularmente conhecido que, no esquife da avó, todos os perfumes de flores
tinham sido incapazes de sobrepujar…
Sempre que a sra. Permaneder visitava a cunhada, atraía o sobrinho para si, a
fim de falar-lhe do passado e daquele porvir que os Buddenbrook esperavam,
além da vontade de Deus, sobretudo dele, do pequeno Johann. Quanto mais
sombrio se mostrava o presente, tanto menos ela se saciava com descrições da
vida distinta na casa dos pais e avós e de como o bisavô de Hanno viajava numa
carruagem de duas parelhas… Certo dia, Antonie sofreu um violento ataque de
convulsões estomacais pelo simples fato de Friederike, Henriette e Pfiffi
Buddenbrook alegarem, uníssonas, que os Hagenström eram a nata da
sociedade…
A respeito de Christian chegavam notícias desoladoras. Evidentemente, o
casamento não tivera influência favorável sobre a sua saúde. Sinistras manias e
alucinações tinham se repetido em medida crescente. Por ordem da esposa e de
um médico passara para um sanatório. Não gostava de estar ali; escrevia cartas
queixosas aos seus, manifestando o forte desejo de se ver libertado daquele
estabelecimento, onde, segundo parecia, o tratavam com muito rigor. Mas não o
largavam, e provavelmente era melhor assim. Em todo o caso, essa situação
facilitava à esposa prosseguir, sem considerações e obstáculos, na sua vida
independente de outrora, gozando ao mesmo tempo das vantagens ideais e
materiais que devia ao casamento.
2.
Havia uma porção de estrofes, e o aluno Kassbaum leu-as do seu livro. Não era
preciso constranger-se por causa do sr. Modersohn. E o barulho tornava-se cada
vez mais forte. Todos os pés se achavam em movimento, esfregando-se no
assoalho poeirento. O galo cantava, o porco grunhia, as ervilhas voavam. O
desenfreamento embriagava os vinte e cinco. Os instintos desordenados dos seus
dezesseis ou dezessete anos acordavam. Erguiam-se folhas com os mais
obscenos desenhos a lápis, que passavam pela classe, provocando risadas
cobiçosas…
De repente, emudeceram todos. O aluno que recitava interrompeu a si mesmo.
O próprio sr. Modersohn endireitou-se, para escutar. Acontecia algo de ameno:
sons finos e puros saíam do fundo da sala, ressoando, doces, delicados e ternos,
através do súbito silêncio. Era uma caixa de música que alguém trouxera, e que
tocava “O meu coração te pertence”…, em plena aula de inglês. Mas, justamente
no momento em que terminou a graciosa melodia, sucedeu uma coisa horrível…
irrompendo por sobre todos os presentes, com força cruel, inesperada,
desmedida e paralisante.
Sem que ninguém tivesse batido, abriu-se, de um só golpe, vastamente a porta.
Entrou qualquer coisa comprida e monstruosa, proferindo um resmungo
sombrio. Com um único passo achou-se na frente dos bancos… Era o “Bom
Deus”.
O sr. Modersohn ficou pálido como cinza. Arrastou a poltrona do estrado e
limpou-a com o lenço. Os alunos tinham saltado em pé como um só homem.
Apertaram os braços contra o lado; puseram-se nas pontas dos pés; inclinaram as
cabeças e, de tanta devoção fervorosa, mordiam as línguas. Reinava um silêncio
profundo. Alguém deu um suspiro, arrancado com esforço. Depois, novamente,
não se ouviu nada.
Durante algum tempo, o diretor Wulicke passou em revista as colunas em
continência. Ergueu os braços com os punhos sujos em forma de funil e baixou-
os, de dedos espalmados, como para atacar um teclado a toda a força.
— Sentem-se — disse ele com a voz profunda de contrabaixo. Os alunos
deixaram-se cair sobre os assentos. O sr. Modersohn, de mãos trêmulas,
aproximou a cadeira de braços. O diretor acomodou-se ao lado da cátedra.
— Faça-me o favor de continuar — disse ele; e essas palavras soaram tão
terrivelmente, como se tivesse dito: “Vamos ver, e mal haja aquele que…”.
Era claro o motivo por que o diretor aparecera. O sr. Modersohn devia dar-lhe
uma prova da sua arte de ensinar; devia mostrar o que o sétimo ano do curso
comercial aprendera durante seis ou sete aulas. A existência e o futuro do sr.
Modersohn estavam em jogo. O candidato oferecia um aspecto lamentável
quando, novamente no estrado, pediu a alguém que recitasse, outra vez, o poema
“The Monkey”. Se, até então, apenas alunos haviam sido arguidos e criticados, o
mesmo sucedia agora ao professor… Ai, ambas as partes andavam mal! O
diretor surgira num assalto imprevisto e ninguém, com exceção de dois ou três,
estava preparado. Era impossível ao sr. Modersohn examinar durante a aula
inteira somente a Adolf Todtenhaupt, que sabia tudo. Em presença do diretor, os
alunos já não podiam ter os livros abertos durante a recitação do “The Monkey”,
de modo que esta saiu pessimamente. E, quando chegou a vez da leitura de
Ivanhoe, o jovem conde de Mölln foi quase o único que soube traduzir, porque
tinha interesse particular no romance. Os demais tropeçavam, tossindo e
desamparados, por entre os vocábulos. Hanno Buddenbrook também foi
interrogado e não conseguiu traduzir uma só linha. O diretor Wulicke proferiu
um som parecido com o de um rabecão quando se toca a corda mais baixa. O sr.
Modersohn torceu as mãozinhas desajeitadas, manchadas de tinta, enquanto,
gemendo, repetia:
— E nas outras lições tudo andava muito bem! Tudo andava às mil maravilhas
nas outras lições!
Quando a campainha tocou, ele ainda repetia essas palavras, dirigindo-se, no
seu desespero, ora aos alunos, ora ao diretor. Mas o “Bom Deus” mantinha-se
ereto na sua terribilidade, os braços cruzados por sobre a poltrona e olhando a
classe com um frio meneio de cabeça… E depois pediu o diário da classe; todos
aqueles cujas produções haviam sido insuficientes ou nulas levaram uma
repreensão por causa da preguiça; eram seis ou sete alunos ao mesmo tempo. O
sr. Modersohn não podia levar repreensão, mas o seu destino era pior do que o
de todos os outros; quedava-se perto do diretor, pálido, abatido e aniquilado.
Hanno Buddenbrook, porém, achava-se entre os alunos castigados…
— Eu vou lhes estragar a carreira, a vocês todos — acrescentou o diretor
Wulicke. E com essas palavras desapareceu.
A campainha tocou. Estava terminada a aula. E dizer que tomara esse rumo!
Sim, assim era a vida. Quando a gente mais se amedronta tudo anda bem, como
por ironia; mas, quando ninguém aguarda nada de mau, chega a desgraça. A
promoção de Hanno, por ocasião da Páscoa, era definitivamente impossível. O
menino levantou-se e saiu da sala, de olhos cansados, esfregando a língua no
dente molar enfermo.
Kai foi para junto do amigo e desceu com ele ao pátio, no meio dos
companheiros excitados que discutiam os extraordinários acontecimentos.
Relanceou um olhar preocupado e carinhoso para o rosto de Hanno e disse:
— Desculpe, Hanno, por ter traduzido, em vez de levar também uma
repreensão! É tão infame…
— Mas, na outra aula, eu disse também o significado de “patula Jovis arbore,
glandes”… — respondeu Hanno. — Que se pode fazer, Kai? Não falemos mais
nisso! Não há remédio.
— Sim, acho também que não há… Então, o “Bom Deus” quer estragar-lhe a
carreira. Você terá de conformar-se, Hanno, se for esta a inescrutável vontade
“Dele”… A carreira, que palavra simpática! A carreira do sr. Modersohn acabou-
se também. Ele nunca chegará a ser professor efetivo, esse coitado! Pois é, há
professores efetivos e há professores auxiliares, sabe? mas professores, só, não
há… É uma dessas coisas que não se compreendem facilmente, porque só
existem para pessoas muito adultas e para quem amadureceu na vida. Uma
inteligência singela deverá pensar que um sujeito ou é professor ou não é. Eu
queria colocar-me diante do “Bom Deus” ou do sr. Marotzke, para lhes explicar
isto. Que aconteceria então? Eles o considerariam uma ofensa e me esmagariam
por falta de respeito, ainda que eu tenha manifestado uma apreciação muito mais
alta da sua profissão do que eles mesmos são capazes de possuir… Sim, senhor;
mas vamos deixá-los em paz! Todos são rinocerontes.
Passeavam pelo pátio. Hanno escutava com agrado as sabedorias que Kai
proferia para fazê-lo esquecer o castigo.
— Olhe: eis aqui uma porta, a porta do pátio. Está aberta, e lá fora é a rua. E se
saíssemos e déssemos um pequeno passeio na calçada? É recreio; temos ainda
seis minutos, e poderíamos voltar pontualmente. Mas é impossível.
Compreende? Eis aqui a porta; está aberta; não há grade, nada, nenhum
obstáculo. Estamos na soleira. E todavia é impossível. O simples pensamento de
sair por um único segundo é impossível… Bem, vamos prescindir disso! Mas
examinemos um outro exemplo. Seria absolutamente errado se disséssemos que
agora são aproximadamente onze e meia. Não, agora é a vez da aula de
geografia; eis o que é! Ora, pergunto a todo mundo: Será isto uma vida? Tudo
está desfigurado… Santo Deus, tomara que o estabelecimento nos permitisse
escapar do seu carinhoso abraço!
— Sim, e o que virá então? Ah, não, Kai, deixe disso! Então as coisas não
seriam melhores. Que poderei fazer? Pelo menos a gente se acha abrigada aqui.
Desde que o meu pai morreu, o sr. Stephan Kistenmaker e o pastor Pringsheim
encarregaram-se de perguntar-me todos os dias sobre o que eu quero ser. Não
sei. Não lhes posso dar resposta nenhuma. Não quero ser nada. Tenho medo de
tudo isso…
— Como pode falar com esse desalento! Você com a sua música…
— Que é que há na minha música, Kai? Não quero nada nela. Será que devo
viajar pelo mundo e tocar? Primeiro, eles não me dariam licença, e segundo, eu
nunca terei bastante classe para isso. Não sei quase nada. Sei apenas fantasiar
um pouco, quando estou sozinho. E, além disso, acho que uma vida feita de
viagens deve ser horrível… Com você o caso é diferente. Você tem mais
coragem. Está aqui na escola e ri de tudo e possui alguma coisa que opor-lhes.
Quer escrever; quer contar aos homens algo de belo e interessante. Bem, isso é
alguma coisa. E com certeza chegará a ser famoso. Você é tão hábil. Qual é o
motivo? Você é mais alegre. De vez em quando, nas aulas, nós nos encaramos
um ao outro, como ainda há pouco, com o sr. Mantelsack, quando o Petersen,
como se fosse o único que tivesse fraudado, levou a repreensão. Nós pensamos o
mesmo, mas você faz um trejeito e é orgulhoso… Eu não posso agir como você.
Fico tão cansado. Queria dormir e não saber de nada. Eu queria morrer, Kai!…
Não, não há nada em mim. Não sou capaz de querer alguma coisa. Não tenho
sequer o desejo de tornar-me famoso. Tenho medo disso, como se aí houvesse
alguma coisa que não fosse direita! De mim não pode surgir nada de bom;
convença-se! Há alguns dias, depois da lição de crisma, o pastor Pringsheim
disse para alguém que se devia abrir mão de mim: que eu descendia de uma
família em decadência…
— Ele disse isso? — perguntou Kai com intenso interesse…
— Sim. Alude ao meu tio Christian, que se acha em Hamburgo, num
hospício… Sem dúvida ele tem razão. Que abram mão de mim! Eu lhes ficaria
muito grato! Ando com tantas preocupações, e tudo me é tão difícil. Suponha
que eu me corte o dedo, que me fira em qualquer parte… uma ferida que no
corpo de qualquer outro estaria boa em oito dias comigo leva quatro semanas.
Não se quer fechar; inflama-se; torna-se perigosa e me causa sofrimentos
loucos… O sr. Brecht disseme, há pouco, que os meus dentes eram um caso
sério, quase todos estão minados e gastos; daqueles que já me arrancou nem se
fala. É assim que ando agora. E com que mastigarei aos trinta ou quarenta anos?
Não tenho nenhuma esperança…
— Bem — disse Kai, acelerando o passo —, agora me fale um pouco do seu
piano. É que quero escrever uma coisa maravilhosa, sabe? Uma maravilha!
Talvez vá começar logo na aula de desenho. Você vai tocar hoje de tarde?
Hanno permaneceu calado durante uns instantes. Subira-lhe no olhar algo de
embaciado, confuso e caloroso.
— Sim, acho que vou tocar, embora não deva. Eu deveria estudar as minhas
sonatas e exercícios e então parar. Mas acho que vou tocar. Não posso deixar de
fazê-lo, ainda que, com isso, tudo fique pior.
— Pior?
Hanno não respondeu.
— Eu sei o que você sente quando toca — disse Kai. Depois, ambos
permaneceram calados.
Achavam-se numa idade esquisita. Kai enrubescera fortemente: olhou o chão,
sem abaixar a cabeça. Hanno tinha o rosto pálido. Estava muito sério e dirigiu
para o lado os olhos velados.
Então o sr. Schlemiel tocou a campainha. Subiram.
Veio a aula de geografia e, com ela, o exame escrito; exame muito importante
sobre o território Hesse-Nassau. Entrou um homem de barba ruiva e cara
descorada, vestindo fraque pardo. Nas mãos, cujos poros se encontravam
vastamente abertos, não crescia nem um pelo. Esse homem era o “Professor
Chistoso”, o dr. Mühsam. De vez em quando sofria de hemorragias pulmonares.
Falava constantemente em tom de ironia, porque se considerava tão espirituoso
quanto doente. Em casa possuía uma espécie de arquivo de Heine, coleção de
documentos e objetos que tinham relação com o irreverente e enfermo poeta.
Agora, o dr. Mühsam fixou no quadro-negro as fronteiras de Hesse-Nassau.
Feito isso, pediu, com um sorriso, ao mesmo tempo melancólico e sarcástico,
que os senhores alunos anotassem nos cadernos tudo quanto o país oferecia de
interessante. Com isso parecia querer zombar tanto dos alunos como do território
de Hesse-Nassau. Contudo, era um exame muito importante e de que todo
mundo tinha medo.
Hanno Buddenbrook não sabia nada de Hesse-Nassau, ou muito pouco, pelo
menos quase nada. Quis dar uma olhadela para o caderno de Adolf Todtenhaupt,
mas “Heinrich Heine”, que apesar da sua ironia superior e sofredora vigiava
cada movimento com a máxima atenção, reparou logo nele e disse:
— Sr. Buddenbrook, sinto vontade de mandá-lo fechar o caderno; mas receio
que com isso o senhor saia lucrando. Prossiga.
Essa observação continha duas piadas. Primeiro: o dr. Mühsam tratou Hanno
de “senhor”, e segundo: a palavra “lucrar”. Hanno Buddenbrook, porém,
continuou a modorrar por sobre o caderno e finalmente entregou uma folha
quase vazia. Saiu outra vez em companhia de Kai.
Por aquele dia não havia mais dificuldades. Feliz daquele que tivesse escapado
e cuja consciência não se achasse agravada por uma repreensão. Podia
acomodar-se e desenhar, livre e animado, na sala clara do sr. Drägemüller…
A sala de desenho era espaçosa e cheia de luz. Cópias em gesso de estátuas
antigas viam-se nas prateleiras que se estendiam ao longo das paredes. Numa
grande estante, havia uma porção de cubos de madeira e móveis em miniatura
que serviam também de modelos. O sr. Drägemüller era homem rechonchudo, de
barba redonda e aparada, e que usava peruca castanha, lisa e barata,
traiçoeiramente despregada na nuca. Possuía duas perucas, uma de cabelos mais
compridos e outra mais curta. Depois de fazer aparar a barba, colocava a mais
curta… Tinha aliás peculiaridades engraçadas. Em vez de “lápis” dizia “estilo”.
Além disso, espalhava por toda parte um cheiro de óleo ou álcool. Havia quem
dissesse que o sr. Drägemüller bebia petróleo. Eram para ele momentos
supremos, quando, em lugar de algum professor ausente, podia ensinar outra
matéria que não fosse desenho. Então conferenciava sobre a política de
Bismarck, acompanhando o discurso com impressionantes movimentos espirais
desde o nariz até o ombro. Falava do socialismo com ódio e pavor… “Temos de
amparar-nos mutuamente”, costumava dizer aos maus alunos, segurando-os pelo
braço. “O socialismo se acha anteportas!” Mexia-se com agilidade convulsiva.
Gostava de acomodar-se ao lado de um aluno, espalhando violento cheiro de
álcool e dando-lhe, com o anel-sinete, pancadinhas na testa. Abruptamente,
proferia palavras avulsas: “Perspectiva”… “Sombra projetada!”… “Estilo!”…
“Socialismo!”… “Amparo mútuo!”… Dito isso, ia-se embora.
Durante essa hora, Kai concebeu um novo trabalho literário, enquanto Hanno
se distraía com a representação imaginária de uma abertura de orquestra. Depois
terminou a aula. Foram buscar os seus objetos. A saída pelo portão do pátio
estava franqueada. Podiam ir para casa.
Hanno e Kai tinham o mesmo caminho. Com os livros sob o braço, andaram
juntos até a pequena vila vermelha, no subúrbio distante. O jovem conde de
Mölln tinha ainda que transpor sozinho uma longa caminhada até a morada
paterna. Nem sequer usava sobretudo.
A cerração que reinara de manhã tornara-se neve, caindo em grandes flocos
macios e transformando-se em lama. Diante do portão da casa dos Buddenbrook,
os amigos se separaram. Mas, quando Hanno já tinha atravessado a metade do
jardim, Kai voltou mais uma vez, para pousar-lhe o braço em volta do pescoço.
— Não desanime… É melhor que não toque hoje! — disse baixinho. Com isso,
a sua figura esbelta e negligenciada desapareceu no nevoeiro.
Hanno deixou os livros sobre a bandeja que o urso, no corredor, lhe estendia.
Foi à sala de estar para ver a mãe. Sentada no sofá, ela lia uma brochura amarela.
Enquanto o filho passava pelo tapete, dirigiu para ele os olhos castanhos, pouco
distantes entre si, em cujas comissuras havia sombras azuladas. Quando Hanno
se achou na sua frente, Gerda tomou-lhe a cabeça entre as mãos, para beijá-lo na
testa.
Ele subiu ao quarto, onde Clementine lhe preparara um pequeno almoço.
Lavou-se e comeu. Ao terminar, retirou da escrivaninha um maço daqueles
pequenos e acres cigarros russos que para ele também já não tinham segredos.
Pôs-se a fumar. Depois sentou-se ao harmônio e tocou alguma coisa de Bach,
algo de bem difícil, rigoroso e fugato. Finalmente, entrelaçou as mãos por trás da
cabeça e olhou através da janela, para a neve que caía dançando em profundo
silêncio. Afora ela, não havia mais nada que ver. Por baixo da janela já não
existia aquele jardim gracioso de outrora, onde o chafariz murmurava. A vista
lhe estava cortada pelo muro cinzento da vila vizinha.
Comeu-se às quatro horas. Havia só Gerda Buddenbrook, o pequeno Johann e
Clementine. Mais tarde, Hanno fez, no salão, os preparos para a música. Esperou
a mãe no piano de cauda. Tocaram a sonata opus 24 de Beethoven. No adágio, o
violino cantou como um anjo, mas Gerda, pouco satisfeita apesar disso, tirou o
instrumento do queixo. Examinou-o com mau humor e disse que estava mal
afinado. Não tocou mais e subiu para descansar.
Hanno permaneceu no salão. Foi à porta envidraçada que dava para o terraço
estreito. Durante alguns minutos olhou o jardim encharcado. Mas, de chofre, deu
um passo para trás. Num movimento brusco cobriu a porta com a cortina
amarela. Aproximou-se do piano, visivelmente comovido. Alguns instantes ficou
ali, de pé. O seu olhar, imóvel e vago, dirigia-se para determinado ponto, e
depois, lentamente, se tornou mais escuro, velando-se e confundindo-se… O
menino sentou-se e começou uma das suas fantasias.
Era um motivo muito simples que Hanno tocava para si próprio, um nada,
fragmento de melodia inexistente, figura de um compasso e meio. Da primeira
vez o fez ressoar nas oitavas baixas, como voz isolada, com uma força que
ninguém teria esperado dele. Era como se trombetas, imperiosa e unissonamente,
o anunciassem como matéria primordial e ponto de partida de todos os
acontecimentos iminentes. Nesse instante não podia ainda prever o que tudo isso
significaria. Mas, quando Hanno o repetiu, nos agudos, com um colorido de sons
que se parecia com prata baça, tornou-se evidente que, na sua essência, esse
motivo consistia em uma única resolução, queda nostálgica e dorida de uma
tonalidade para outra… Nada era senão uma invenção pobre, de curto alcance;
recebia, porém, valor estranho, misterioso e importante pela decisão preciosa e
solene com que o menino a criava e produzia. E agora se iniciaram cadências
animadas, incessante vaivém de síncopes, dilaceradas por gritos, procurando e
vagando, como se uma alma se inquietasse com coisas que aprendera, e que,
todavia, não queriam emudecer nela, mas se repetiam em harmonias sempre
novas e esperançosas, perguntando e queixando-se, amortecendo e anelando. E
as síncopes tornaram-se cada vez mais violentas, fugindo sem norte das terças
que as perseguiam. Os gritos de medo, porém, que se inseriam, reuniram-se,
encarnaram-se, tornaram-se melodia. Veio o momento em que chegaram a
dominar, vigorosa e humildemente, qual o canto de uma orquestra de
instrumentos de sopro, realçado, suplicante e fervoroso. Emudecera, vencido,
aquele elemento instável que se atirara para a frente, flutuando, divagando e
escapando. Em ritmo simples e imutável ressoou o hino compungido da oração
infantil… Terminou com um final de música sacra. Seguiu-se uma fermata, e
depois o silêncio. Eis que, de repente, muito baixinho, numa tonalidade ainda de
prata baça, voltou o primeiro motivo, aquela invenção pobre, figura tola ou
enigmática, queda suave e dorida de uma tonalidade para outra. Fez-se então
enorme tumulto e pressa exaltada; preponderavam acentos que se assemelhavam
a fanfarras, expressando energia feroz. Que acontecia? Que se preparava? Soava
aquilo como se cornetas chamassem para a partida. Houve então algo de um
recolhimento, uma concentração; encadearam-se ritmos mais firmes; iniciou-se
uma composição nova, improvisação atrevida, espécie de canção de caçadores,
arrojada e tormentosa. Mas não era alegre; estava cheia, no seu íntimo, da
arrogância causada pelo desespero. Os sinais que se entremeavam eram como
berros de pavor. E sempre de novo, entre os demais sons, ouvia-se, em
harmonias caricaturadas e esquisitas, o motivo, aquele primeiro e enigmático
motivo, angustioso, fátuo e doce… Então começou irresistível alternação de
ocorrências cujo sentido e natureza não se podiam decifrar, sequência de
aventuras sonoras, rítmicas e harmônicas que Hanno não dominava, mas que
assumiam forma sob os dedos agitados, e que ele experimentava sem as
conhecer anteriormente… Estava sentado, inclinando-se algum tanto por sobre o
teclado, com os lábios descerrados, o olhar distante e profundo; o cabelo
castanho, em ondulações macias, cobria-lhe as fontes. Que acontecia? Que era
aquilo que se passava com ele? Porventura ali se superavam obstáculos terríveis,
se matavam dragões, se galgavam penedos, se venciam rios a nado e se
atravessavam chamas? E, ora em forma de gargalhada estridente, ora qual
promessa incompreensível e ditosa, entremeava-se o primeiro motivo, criação
frívola, aquela queda de uma tonalidade para outra… Sim! Era como se esse
motivo o instigasse a esforços impetuosos e sempre novos. Seguiram-no
arremessos de oitavas furiosas que acabavam em gritos. Depois, principiou um
crescendo, clímax lento e irremovível, impulso ascendente da cromática, cheio
de nostalgia selvagem e insuperável, e que se via bruscamente interrompido por
repentinos pianíssimos, assustadores e incitantes, dando a impressão de que o
chão lhe deslizava sob os pés, mergulhando-o num mar de cobiça… Uma vez, os
primeiros acordes daquela oração compungida e súplice procuraram tornar-se
audíveis, mas logo a vaga das cacofonias impetuosas irrompeu contra ela,
conglomerando-se, rolando para a frente, retrocedendo, subindo, submergindo-se
e lutando de novo, em busca de um inefável objetivo, que tinha de chegar,
forçosamente, agora mesmo, nesse instante, alcançado esse apogeu medonho
onde a avidez torturante se tornava insuportável… E ele chegou; já não foi
possível retardá-lo; as convulsões do desejo não se deixavam mais prolongar.
Veio como se se rasgasse uma cortina, se abrissem portões, se descerrassem
espinhais e desmoronassem muralhas de chamas… Surgiu a resposta, o
desfecho, a realização perfeita; numa exultação encantada, tudo se desenredou;
resultou uma harmonia que, em um ritardando doce e cheio de saudade, logo se
transformou numa outra… Era o motivo, o primeiro motivo que ressoava! E o
que então se iniciava era uma festa, um triunfo, orgia desenfreada desse mesmo
grupo de sons que se ostentava com todo e qualquer matiz de tonalidades,
brotando através de todas as oitavas, chorando, morrendo em trêmulos
convulsivos, cantando, rejubilando-se e soluçando, e que, enfeitado com toda a
pompa do equipamento orquestral, se pavoneava vitoriosamente, por entre
estrondos e tinidos, escumando no brilho de pérolas… No culto fanático desse
nada, desse fragmento de melodia, curta e infantil invenção harmônica de um
compasso e meio, havia algo de brutal e embotado e, ao mesmo tempo, de
ascético e religioso, alguma coisa de crença e abandono de si próprio…
Manifestou-se certa viciosidade, no exagero e na insaciabilidade com que o
menino gozava e explorava sua invenção; um desespero cínico, desejo de
volúpia tanto quanto de ocaso, mostrou-se na cobiça com que sugava dela a
derradeira doçura, até o esgotamento, até o nojo e o tédio; então, finalmente,
fruto do cansaço depois de tamanhos excessos, pôs-se a murmurar um
prolongado e suave arpeggio em menor, subindo um tom, dissolvendo-se em
maior e agonizando em melancolia hesitante.
Durante um momento ainda, Hanno permaneceu imóvel, o queixo sobre o
peito, mãos no colo. Depois levantou-se e fechou o piano. Estava muito pálido.
Os seus joelhos não tinham força nenhuma. Ardiam-lhe os olhos. Foi para a sala
vizinha, onde se estendeu sobre o divã. Ficou assim muito tempo, sem se mexer.
Mais tarde jantaram. Então, jogou uma partida de xadrez com a mãe; não
houve vencedor. Mas, passada a meia-noite, Hanno, no seu quarto, ainda se
achava sentado diante do harmônio, à luz de uma vela. Como já não pudesse
fazer ruído, tocou apenas em imaginação. E, todavia, tencionava erguer-se às
cinco e meia da madrugada, para fazer as lições mais importantes.
Foi esse um dia na vida do pequeno Johann.
3.
— Não está certo, Gerda, não está certo! — disse a velha srta. Weichbrodt pela
centésima vez, em voz aflita e cheia de censura. Naquela noite, ela ocupava um
lugar no sofá, na sala de estar da sua antiga discípula. Em torno da mesa central
redonda, Gerda Buddenbrook, a sra. Permaneder, sua filha Erika, a pobre
Klothilde e as três primas Buddenbrook da Breite Strasse formavam um círculo.
As fitas verdes da touca caíam sobre os ombros infantis de Sesemi, que tinha de
erguer um deles muito alto, para poder gesticular com o braço por cima da mesa.
Tão minúscula se tornara ela, no decorrer de setenta e cinco anos!
— Não está certo, Gerda. Eu lhe digo que não acho isso bem-feito! — repetiu
ela, trêmula e zelosa. — Encontro-me à beira do túmulo; só me resta um breve
prazo, e você me quer… Você nos quer deixar; quer separar-se de nós, para
sempre… mudar-se… Se se tratasse apenas de uma viagem, de uma visita a
Amsterdam… Mas para sempre! — Sacudiu a cabeça de pássaro velho com os
olhos castanhos, inteligentes e tristes. — É verdade que você perdeu muita
coisa…
— Não, ela perdeu tudo! — disse a sra. Permaneder. — Não devemos ser
egoístas, Therese. Gerda quer ir embora, e ela irá; não há remédio. Ela veio com
Thomas, há vinte e um anos; e nós todos lhe quisemos bem, embora sempre lhe
tivéssemos sido antipáticos… Sim, Gerda! é assim; não o negue! Mas Thomas já
não existe, e… ninguém existe mais. Que somos nós para ela? Nada. A sua
partida nos causa dor; mas vá com Deus, Gerda; agradeço-lhe não ter viajado
antes, quando Thomas morreu…
Era depois do jantar, numa noite de outono. O pequeno Johann — Justus
Johann Kaspar —, bem munido com as bênçãos do pastor Pringsheim,
repousava, havia seis meses, lá fora, à beira do bosque, sob a cruz de pedra lioz e
o escudo da família. Diante da casa murmurava a chuva nas árvores meio
desfolhadas da alameda. Por vezes, rajadas de vento a empurravam contra as
vidraças. Todas as oito senhoras estavam vestidas de preto.
Era uma pequena reunião familiar, por causa da despedida, despedida de Gerda
Buddenbrook, que estava a ponto de deixar a cidade e voltar para Amsterdam, a
fim de tocar duos com o velho pai, como fazia antigamente. Já não a retinha
obrigação nenhuma. A sra. Permaneder nada mais podia opor a essa resolução.
Conformava-se com ela, ainda que, no íntimo, a tornasse profundamente infeliz.
Se a viúva do senador tivesse permanecido na cidade, se tivesse continuado a
manter o seu lugar e posição na sociedade e a deixar a fortuna onde estava, ter-
se-ia conservado um pouco de prestígio para o nome da família… Seja como for,
Antonie estava disposta a erguer a cabeça enquanto vivesse e homens a
olhassem. O seu avô viajara numa carruagem de duas parelhas…
Não obstante a vida agitada que jazia atrás dela, e apesar da fraqueza do seu
estômago, Tony não traía os cinquenta anos. A tez se tornara um tanto veludosa e
baça, e no lábio superior — o bonito lábio superior de Tony Buddenbrook — o
buço crescia mais copiosamente. Mas no topete liso, por baixo da touquinha de
luto, não se via um único fio branco.
A sua prima, a pobre Klothilde, suportava com indiferença e brandura a partida
de Gerda, assim como se devem suportar todas as vicissitudes deste mundo.
Havia pouco, durante o jantar, silenciosa e valentemente, fizera honra aos pratos,
e agora estava ali sentada, cinzenta e magrinha como sempre, arrastando
palavras amáveis.
Erika Weinschenk, que, então, tinha trinta e um anos, igualmente não era quem
se exaltasse por causa da despedida da tia. Passara por experiências mais duras e
cedo adotara uma natureza resignada. Nos seus olhos azuis e cansados — olhos
do sr. Grünlich — lia-se a conformidade com uma vida fracassada; e a voz
impassível, um tanto queixosa, às vezes manifestava o mesmo sentimento.
As fisionomias das três primas Buddenbrook, filhas de tio Gotthold, estavam,
como de costume, cheias de melindre e crítica. Friederike e Henriette, as irmãs
mais velhas, haviam se tornado, no decurso dos anos, cada vez mais macilentas e
agressivas, enquanto Pfiffi, a caçula, de cinquenta e três anos, parecia por demais
baixinha e corpulenta…
A velha consulesa Kröger, viúva de tio Justus, também tinha sido convidada.
Mas achava-se indisposta e, possivelmente, não possuía vestido apresentável;
não se sabia.
Falavam da viagem de Gerda, do trem que tomaria e da venda da vila e dos
imóveis, de que o corretor Gosch se encarregara. Pois Gerda não levaria nada
consigo, e iria como viera.
Depois, a sra. Permaneder pôs-se a falar sobre a vida, considerando-a do seu
lado mais importante e fazendo observações acerca do passado e do futuro,
embora a respeito do futuro nada se pudesse dizer.
— Sim! Quanto a mim, quando eu estiver morta, Erika pode também mudar-se
— disse ela. — Mas eu não aguento nenhum outro lugar. E, enquanto eu viver,
vamos amparar-nos mutuamente, nós, as poucas pessoas que sobram… Uma vez
por semana, vocês virão jantar comigo… E então leremos os documentos da
família… — Apontou para a pasta que se achava na mesa, diante dela. — Sim,
Gerda; eu ficarei com eles. Muito obrigada! Está combinado… Ouviu, Thilda?…
Se bem que, agora, você pudesse convidar-nos tão bem como eu; pois, no fundo,
não anda pior do que nós. Pois é; assim é a vida. A gente se afadiga, faz esforços
e luta… E você ficou sentada, aguardando tudo com paciência… E, todavia,
você é um camelo, Thilda; não me leve a mal…
— Mas Tony! — disse Klothilde com um sorriso.
— Lastimo não me poder despedir de Christian — disse Gerda, e assim a
conversa chegou a ocupar-se dele. Havia pouca esperança de que, um dia, ele
saísse do hospício onde se encontrava encerrado. Decerto, o seu caso não era tão
sério que ele não pudesse movimentar-se em liberdade. Mas a esposa gostava
por demais da situação atual; como a sra. Permaneder afirmava, estava em
conluio com o médico, de modo que Christian, provavelmente, terminaria os
dias no sanatório.
A isso se fez uma pausa. Baixinho, hesitantemente, a palestra voltou aos
acontecimentos recentes. Quando se mencionou o nome do pequeno Johann,
originou-se novo silêncio na sala. Ouvia-se apenas o murmúrio mais forte da
chuva, diante da casa.
Uma espécie de segredo pesado pairava sobre a derradeira doença de Hanno,
que se passara de modo extremamente terrível. Não se olhavam entre si,
enquanto falavam dela, em voz abafada, com alusões e meias palavras. Então
relembraram aquele último episódio… a visita desse condezinho esfarrapado
que, quase com violência, abrira caminho para o quarto do doente… Hanno
havia sorrido ao ouvir-lhe a voz, embora, além dele, já não reconhecesse
ninguém. Sem cessar, Kai lhe beijara ambas as mãos.
— Beijou-lhe as mãos? — perguntaram as primas Buddenbrook.
— Sim. Muitas vezes.
Todas ficaram algum tempo meditando a esse respeito.
De súbito, a sra. Permaneder rebentou em pranto.
— Amei-o tanto… — soluçou ela. — Vocês não têm ideia de quanto o amei…
Mais do que vocês todas… Sim, Gerda, desculpe-me; você é a mãe… Ah, ele foi
um anjo…
— Agora é que ele é um anjo — corrigiu Sesemi.
— Hanno, pequeno Hanno — prosseguiu a sra. Permaneder, e as lágrimas
corriam-lhe sobre a pele veludosa e baça das faces… — Tom, papai, o avô, e
todos os outros! Para onde foram eles? Nunca mais os veremos. Ai, tudo é tão
duro e tão triste!
— Havemos de reencontrá-los — disse Friederike Buddenbrook, enquanto
juntava as mãos firmemente no colo. Baixou os olhos, furando o ar com o nariz.
— Pois é. Assim dizem… Ah, Friederike, existem horas em que isto não
consola, valha-me Deus! Horas em que a gente duvida da justiça, da bondade…
de tudo. A vida, sabem, quebra muita coisa em nós e destrói muitas crenças…
Um reencontro… Oxalá seja verdade…
Nesse momento, porém, Sesemi Weichbrodt levantou-se junto à mesa tão alto
quanto pôde. Pôs-se nas pontas dos pés; esticou o pescoço; deu palmadinhas na
tábua. A touca tremia-lhe sobre a cabeça.
— É verdade! — disse ela com todo o vigor de que dispunha, fitando as
demais com olhar desafiador.
Erguia-se ali, vencedora na boa luta que durante toda a vida travara contra as
dúvidas da sua razão professoral; erguia-se, corcunda, minúscula e trêmula de
convicção, pequena profetisa, vingadora e entusiasta.
POSFÁCIO
Os Buddenbrook — Popular e subestimado
Helmut Galle1
Em 1897, o editor Samuel Fischer escreveu uma carta ao jovem escritor — até
então quase incógnito — na qual se declarou prestes a publicar um volume de
novelas e o encorajou a enviar “uma obra de prosa maior, talvez um romance,
mesmo que não seja muito extenso”.3 Mann aceitou com prazer, particularmente
porque tinha concebido havia alguns meses uma “novela de rapaz”
(Knabennovelle), que considerou passível de ser desdobrada para um formato
maior; esta iria ser a parte final do romance sobre Hanno, o último rebento da
dinastia Buddenbrook. Mann tinha certeza de que o material do romance só
podia ser a história da sua própria família, uma estirpe de comerciantes de
Lübeck, cidade cuja riqueza remontava à Idade Média, quando surgiu como
capital da Liga Hanseática, uma rede de mercadores que se estendeu de Londres
a Novgorod. Muito cedo Mann também já devia ter decidido o tema principal de
seu livro, porque o primeiro título, comunicado numa carta, era Abwärts
[Decaindo]. Ainda que o material autobiográfico e a memória familiar
garantissem, de certa maneira, a trama e o tema, o jovem teve grande respeito
pela extensão de um romance, que exigiu uma composição mais complexa e um
pano de fundo mais denso do que uma novela. Sentindo a necessidade de apoiar
seu trabalho em uma base de dados maior, buscou ampliar seus conhecimentos
através de pesquisas abrangentes tanto sobre as biografias dos seus parentes
quanto sobre a cidade natal e os assuntos do comércio. Entre os documentos
usados, encontra-se uma crônica da família Mann anotada inicialmente numa
Bíblia hereditária a partir de 1644. As anotações e os documentos cobrem 250
anos, terminando com o testamento e a morte de seu pai, o senador Thomas
Johann Heinrich Mann, no ano de 1891.
Durante o trabalho no texto, esse material foi concentrado em uma trama de
quatro décadas (1835-77) e em quatro gerações: o paulatino declínio econômico da
casa Buddenbrook, começando no seu auge e terminando com a morte prematura
do último herdeiro. A história da família Mann se convertera, nas mãos do autor,
numa narrativa realista e, ao mesmo tempo, simbólica, de dimensões épicas —
que ele mesmo chamou, anos depois, de “um pedaço da história da alma da
burguesia europeia”.4 O tamanho do manuscrito concluído assustou, de fato, seu
editor, que sugeriu cortar mais que a metade do texto, levando em consideração
questões comerciais e a capacidade reduzida dos leitores em tempos modernos
— a literatura do final do século XIX foi marcada, com efeito, por formas mais
breves. Samuel Fischer temia que o romance de mil páginas distribuídas em dois
volumes e escrito por um autor praticamente desconhecido fosse um fracasso nas
livrarias, tanto mais porque o livro de novelas tinha vendido apenas 403
exemplares de uma tiragem de 2 mil. É notável que Thomas Mann tenha tido a
coragem e a autoconfiança de desafiar o grande Samuel Fischer, naquele
momento um homem experimentado e exitoso, cuja empresa editava, desde a
fundação recente em 1886, tudo que era vanguarda europeia: de Ibsen, Tolstói e
Zola a Schnitzler, Hauptmann e Hofmannsthal. Recusando-se vigorosamente a
fazer qualquer corte, Mann conseguiu, no final, impor-se contra as objeções do
parecerista Moritz Heimann, que se queixava de que “o sócio-histórico, na sua
essência não poético, apesar de receber o espaço legítimo numa obra como a
presente […], era às vezes tratado demasiadamente como natureza-morta, ou
seja: era descrito”.5 Heimann contestava não somente o narrador que se estendia
desnecessariamente em detalhes, como também as deficiências na assimilação
desses elementos na prosa literária, o que resultava num estilo semelhante ao da
escrita historiográfica. Voltaremos a essa crítica adiante.
As descrições minuciosas, evidentes já nas primeiras páginas, em que o
narrador se detém nos detalhes do traje de cada um dos personagens, poderiam
ser consideradas um tributo atrasado ao naturalismo que dominava as décadas
que precederam a redação do romance. De fato, Os Buddenbrook, designado
pelo próprio autor como “talvez o primeiro e único romance naturalista da
Alemanha”,6 figura como obra de transição entre o realismo do século XIX e as
revoluções da literatura moderna. Já o gênero da saga familiar e o uso do nome
como título evocam associações com o ciclo Les Rougon-Macquart, de Émile
Zola; Thomas Mann, porém, negou ter conhecimento da obra do francês quando
escrevia seu romance — o que é difícil de crer diante da importância de Zola na
época. Mais provável é que Mann — então ainda “apolítico” — quisesse evitar
que sua imagem pública fosse associada ao homem cuja obra estava sendo
ofuscada, naquele momento, pelo comprometimento político com a denúncia do
antissemitismo no processo Dreyfus. O que Mann admitiu, no entanto, foi a
impressão que um outro romance de família de linhagem francesa, o Renée
Mauperin, dos Irmãos Goncourt, tinha exercido sobre ele. A “elegância e
clareza” dos capítulos curtos, que ele admirava, lhe pareceram uma estrutura
viável para seu romance extenso.7 Outros modelos que o autor indicou
posteriormente foram os noruegueses Alexander Kielland e Jonas Lie, famosos
na segunda metade do século XIX por seus romances ambientados no comércio
de cidades nórdicas. Enquanto certos paralelos entre personagens da novela En
Malstrøm (1884), de Lie, foram comprovados pela crítica,8 outras referências
sugeridas por Mann como Ibsen, Fontane e Tolstói parecem ser motivadas pelo
desejo de marcar um nível literário no qual ele quis se inscrever, conforme
sustenta Thomas Sprecher.9 Os nomes têm em comum a pertinência a uma ampla
corrente europeia de literatura realista e suas transformações naturalistas das
últimas décadas.
O determinismo biológico que prevalece sobre o destino dos indivíduos e da
família, conduzindo-os a uma decadência incontornável, também pode ser visto
como elemento dessa herança naturalista, assim como as já mencionadas
descrições e o uso de diversas línguas e dialetos nos diálogos, que, contudo, não
se reduzem a meros signos do real de um ambiente sócio-histórico. Assim, a
mistura do baixo alemão10 com o francês nas primeiras frases caracteriza o
espírito do patriarca Johann Buddenbrook — no original “M. Johann
Buddenbrook”, ou seja, “Monsieur”, em consonância com sua preferência pela
cultura e língua francesas — um espírito manifestado ainda no traje, no
“rabicho” empoado e em sua aversão à religião. Os detalhes evocam, além de
uma aparência física, uma pessoa típica de certa época, região e camada
burguesa. No livro inteiro, as nuances no uso dos diferentes dialetos e dos
registros do alto alemão localizam os personagens e as situações num mapa
altamente diferenciado de distinções sociais, geracionais, individuais e
temperamentais, revelando suas pretensões vazias, hipocrisias e tolices. O
conjunto das partes descritivas converte os membros da família Buddenbrook,
seus domésticos, trabalhadores, concorrentes e demais personagens em
representantes de uma época histórica da Alemanha, e o livro, no primeiro
panorama literário da sociedade alemã — uma lacuna evidente do realismo
poético das décadas anteriores, no contraste com a literatura inglesa e francesa.
Ao mesmo tempo, os detalhes descritivos se juntam para formar uma rede
simbólica que vai além da representação fiel de superfícies visuais, própria ao
naturalismo, e participam de um tecido que garante a unidade da composição
épica.
Outros componentes desse tecido, muitas vezes relacionados às descrições, são
os leitmotiven. Mann nunca escondeu a admiração que nutria pelo compositor
Wagner e a força embriagante da sua música adquire um papel explícito na parte
final do romance, em que Hanno se entrega completamente ao Lohengrin, “com
seus encantos e consagrações, com os seus secretos arrepios e estremecimentos,
com os seus soluços repentinos e íntimos e com toda a sua embriaguez extática e
insaciável […]”.11 É a música de Tristão e Isolda à qual Pfühl se recusa
inicialmente por causa de sua “perversidade”, mas depois se deixa seduzir por
Gerda e tanto ele quanto ela e, finalmente, Hanno tocam harmonias inauditas
inspiradas nessa ópera que é a mais avançada do compositor. Semelhanças e
alusões à tetralogia O anel do Nibelungo há várias: o motivo principal do
declínio de uma dinastia, o começo da trama com a celebração da nova casa, os
adversários com traços sinistros — a família dos concorrentes vitoriosos se
chama “Hagenström” (e Hagen é o expoente das forças “escuras” no Anel) e,
talvez, até a intrepidez do pequeno Kai deva remeter a Siegfried, como comenta
Heftrich.12 Para Thomas Mann, a paradoxal ordem da produção,
cronologicamente inversa, do final para o começo, também podia ser equiparada
com o Anel: a morte de Siegfried e a de Hanno Buddenbrook correspondem aos
núcleos iniciais para o desenvolvimento dos épicos. Mas o autor fez questão,
sobretudo, de aplicar à narrativa a técnica composicional de Wagner, o leitmotiv.
Isso nem era uma novidade absoluta: o motivo recorrente é um recurso estilístico
específico desde a Antiguidade (o epíteto de Homero) e o leitmotiv no sentido
mais estrito — a repetição de uma certa palavra ou de um sintagma — encontra-
se também em Ibsen, Kielland e outros autores da época.13 Para Mann, porém,
esse recurso — junto com a ironia — iria ser o elemento distintivo que ele
cultivaria em toda sua obra. O apetite constante da pobre Klothilde, o estalido
dos beijos da Sesemi Weichbrodt e os achaques de Christian, além de hilários,
são elementos que criam unidade por meio do estilo numa obra imensa em que a
ação em si e os personagens são, no fundo, contingentes e incoerentes. Motivos
menos periféricos e mais significativos no romance são o próprio casarão, a
crônica familiar, o saldo da empresa e recorrentes traços físicos (os dentes) nos
quais se manifesta o declínio. Posteriormente, o autor veio a considerar o
manuseio do leitmotiv no primeiro romance ainda um pouco mecânico,
comparado com o restante de sua obra a partir de Tonio Kröger, mas mesmo se
esse for o caso, os leitmotiven em Os Buddenbrook cumprem perfeitamente sua
função e contribuem para o prazer estético do leitor.
Aos dezenove anos, Thomas Mann havia lido O nascimento da tragédia, obra
na qual Nietzsche ainda professava a crença na capacidade do seu amigo Wagner
de restituir a atitude trágica dos gregos mediante a música dionisíaca do
Gesamtkunstwerk. Wagner e Nietzsche — e pela intermediação de Nietzsche,
Schopenhauer — continuariam a ser estrelas norteadoras de seu pensamento e
suas preferências estéticas por toda vida. Em Os Buddenbrook é antes
Schopenhauer que transparece, com sua visão pessimista da eterna vontade cega
que move o mundo e o ser humano, causando sofrimento. No capítulo 5 da
décima parte, Thomas Buddenbrook, decepcionado pela esposa fria, vivencia
quase uma epifania na leitura da “segunda parte de um célebre sistema
metafísico”, que pode ser reconhecido facilmente como a obra principal de
Schopenhauer.14 Não é apenas Thomas Buddenbrook que encontra consolo na
ideia de continuação da vida além da existência individual, pois o leitor também
consegue compensar afetivamente o desenlace infeliz do destino da família
Buddenbrook, a angustiante internação de Christian e as mortes repugnantes,
primeiro de Thomas e depois do seu filho, porque os acontecimentos se
vinculam a uma filosofia influente e real fora do mundo do romance, que dá
respaldo a uma interpretação positiva do desenvolvimento aparentemente
negativo. O mesmo acontece com a sensibilidade musical de Hanno, que
corresponde àquela decadência que Nietzsche, em seus anos mais maduros,
percebeu na obra de Wagner. Porque o outro lado da doença e da falta de
vontade vital é o vasto mundo de sensações refinadas que lhe abre a música —
uma música cujo poder o leitor podia e pode experimentar em qualquer
momento na sua realidade. De acordo com alguns críticos, a sequência das
gerações, na sua vida intelectual, corresponde ao modelo das etapas da
consciência de Schopenhauer: ingenuidade (Johann), religiosidade (Jean),
filosofia (Thomas) e arte (Hanno).15 Mas a veia realista do autor prevalece
também neste aspecto: a epifania filosófica e a embriaguez lírica ocupam lugares
destacados, prazerosos, mas eles não têm a última palavra. Os protagonistas
morrem em condições pouco edificantes e nada sóbrias, e o que resta são as
mulheres com seus diálogos patéticos.
Nesse sentido, Os Buddenbrook permanece mais fiel a Schopenhauer e a
Wagner do que ao Nietzsche tardio que propagou uma saída da decadência
civilizatória da burguesia. Personagens que encarnam essa visão não são nem os
Buddenbrook nem os vitoriosos Hagenström, que, apesar da sua atual
prosperidade, somente repetem o ciclo eterno de ascensão e queda das famílias.
Quem se aproxima da ideia do novo homem, livre de considerações éticas e
obrigações sociais, é talvez o pequeno Kai, uma figura secundária que é a mais
próxima de Hanno e ao mesmo tempo seu oposto. Pela criatividade e a
capacidade de superar a esfera da sua origem, ele pode inclusive ser visto como
mais uma máscara do autor, cuja experiência autobiográfica se espelha também
em Thomas e Christian, mas sobretudo em Hanno.
ECONOMIA E FAMÍLIA
Seria difícil resumir a ação do romance. Uma síntese se reduziria à mera ideia do
declínio ou se perderia nas contingências de vidas pouco significativas e atos
pouco espetaculares. O empenho do realismo em apresentar o mundo
contemporâneo de forma verista tem um preço: os personagens se tornam tão
triviais e chatos como seus modelos. Nenhum dos protagonistas se destaca por
um caráter excepcional ou uma subjetividade mais do que banal e medíocre.
Mesmo Tony, a figura que talvez atraia a simpatia dos leitores mais do que
qualquer outra, tem qualidades pouco virtuosas: ela é presunçosa, ingênua, até
meio parva, e as zombarias que ela faz com as pessoas à margem da sociedade
de Lübeck são criticadas pelo narrador, ainda que em tom meio irônico.
Se o romance conquistou um público grande e constante, isso não se deve ao
interesse provocado pela fábula, mas pelas propriedades do discurso. Trata-se do
fenômeno que já pode ser observado em Flaubert: quanto menos chamativa a
trama, tanto mais elaborado o estilo. Sobre a “destilação da vida burguesa em Os
Buddenbrook”, escreve Franco Moretti:
Ressurgindo a cada página conforme a técnica do leitmotiv, os enchimentos de Mann perdem até o último
vestígio de função narrativa para se tornarem simplesmente… estilo. Tudo decai e morre ali (tal como em
Wagner), mas as expressões do leitmotiv permanecem, tornando Lübeck e sua gente discretamente
inolvidáveis. Assim como no álbum de família dos Buddenbrooks, no qual “se conferia respeitosa
significância até aos eventos mais modestos”. Palavras que sintetizam primorosamente a seriedade com
que o burguês enxergava sua existência cotidiana […].26
No ano de 1906, Thomas Mann publicou um ensaio chamado “Bilse und ich”
[Bilse e eu], primeiramente num jornal de Munique e depois como livro, que
chegou a quatro tiragens até 1910. Nesse texto, o autor desenvolve reflexões
extensas sobre sua estética e reage a acusações que surgiram durante um
processo realizado em 1905 na sua cidade natal. Nesse processo, um advogado
acusou seu próprio primo de calúnia por ter escrito um romance cujo
protagonista, alcoólatra e adúltero, supostamente apresentava semelhanças com
ele próprio, o advogado.46 No tribunal, o romance de Mann foi mencionado
várias vezes tanto pelo acusado quanto pelo arguidor. O primeiro queria que
Mann desse um parecer de que o romance seria uma ficção ao mesmo título que
Os Buddenbrook e, por isso, não poderia difamar uma pessoa real. O segundo
chamou Os Buddenbrook um “romance Bilse” (Bilse-Roman, ou seja, um roman
à clef publicado com intenções difamatórias). Esclareça-se que Fritz Oswald
Bilse foi um oficial prussiano que publicou em 1903 um romance satírico sobre
uma guarnição provinciana. O livro virou best-seller e provocou a denúncia de
alguns oficiais que se consideravam difamados. Bilse foi condenado a seis meses
de prisão.
Em síntese, Mann ficou alarmado pelo fato de Os Buddenbrook haver sido
relacionado, no processo em Lübeck, com um caso escandaloso e um tipo de
literatura que ele considerava de segunda categoria. Ele temia por sua reputação
pública e pela avaliação dos seus livros. Por isso, o ensaio “Bilse und ich”
empreende uma argumentação que reclama o direito de usar modelos reais em
vez de inventar os personagens. Grandes autores como Goethe e Turguêniev,
Mann ponderou, teriam criado seus protagonistas a partir de arquétipos vivos e
não seria “acaso se alguém, procurando por poetas fortes e indubitavelmente
puros no passado que, em vez de ‘inventar’ livremente, preferem se apoiar em
algo dado, preferencialmente, na realidade, encontrasse justamente os grandes e
maiores nomes; e que, pelo contrário, não seriam os nomes mais caros que se
noticiariam quando fosse pesquisada a história da literatura escrita pelos grandes
‘inventores’”.47 Inventar, de acordo com o autor, não seria a maior realização do
romancista, mas sim o ato de dotar os personagens de ânimo (“Beseelung”), o
“aprofundamento subjetivo da cópia de uma realidade”.48 Nesse sentido, seus
personagens teriam mais semelhança com o próprio autor do que com seus
arquétipos e, por isso, a distorção satírica se dirigia, em primeiro lugar, contra o
autor. Dessa maneira, Mann consegue rebater as denúncias e, acima disso,
construir uma imagem de mártir. Porque “observar” é “paixão, martírio,
heroísmo”.49
O ensaio não era uma manobra fútil. Na sua cidade natal houve várias pessoas,
incluindo um tio e uma tia, que se sentiram traídas pela representação do
romance. Em Lübeck circulavam listas que, supostamente, ofereciam a chave
para decifrar uns trinta ou mais nomes do romance.50 Ainda que o nome da
cidade não conste em nenhuma página, ela era reconhecível nas descrições e,
pelos dados biográficos do autor, então já públicos, era mais ou menos claro que
a família Buddenbrook e a família Mann compartilhavam inúmeros traços. Por
outro lado, a grande maioria dessas pessoas era desconhecida fora de Lübeck e,
se alguém se lembra delas hoje, é porque serviram de modelo para os
personagens. É compreensível que o tio que se reconhecia em Christian
Buddenbrook ficasse pouco entusiasmado; provavelmente, ele sofreu o escárnio
dos seus conhecidos. Se tivesse processado seu sobrinho, um juiz teria que
ponderar a liberdade da arte contra os direitos individuais da pessoa. Não foi o
que aconteceu, mas pode-se supor que os personagens do romance permitiram
que seus modelos fossem reconhecidos facilmente, o que talvez tenha causado
um certo prejuízo à reputação destes, fossem os retratos fiéis ou exagerados.
Contudo, o livro não foi publicado com a intenção de difamar alguém. Um
verdadeiro roman à clef é escrito e publicado com o intuito de comunicar
informações sobre “pessoas e acontecimentos reais que, por meio de
procedimentos de encriptação específicos, ficam escondidos e reconhecíveis ao
mesmo tempo”.51 Thomas Mann, evidentemente, não queria comunicar algo
sobre seus familiares. Eles lhe serviram de material para representar uma família
burguesa de forma concreta, exemplar e simbólica. O problema que surgiu nesse
caso (e em vários outros posteriores) era que o autor fez questão dos detalhes
observados nitidamente na realidade e incorporados na ficção mediante
expressões linguísticas muito eficientes.
Já foi observado que ele se utilizou extensamente de pesquisas, documentos e
memórias familiares para compor o romance. Ao contrário do que pediria a
praxe literária, ele não submeteu todos os fragmentos reais a uma transformação
para assimilá-los. Por consequência, o mundo ficcional é invadido por
referências pouco ou nada camufladas a objetos, lugares e momentos históricos.
Quem vivia em Lübeck devia reconhecer os lugares, pessoas e processos, quem
vivia na Alemanha, percebeu pelo menos um grau muito alto de realidade
contemporânea no mundo d’Os Buddenbrook. Lembramos da filosofia de
Schopenhauer e da música de Wagner, que exercem um papel muito significativo
para a história. Não se trata de uma filosofia ou uma música inventada. De fato,
o leitor precisa dessas referências para compreender o que acontece com os
protagonistas Thomas e Hanno. É verdade que o narrador é extremamente hábil,
descrevendo e analisando aquilo que acontece na recepção das obras pelos
sujeitos fictícios. Mas o romance depende, até certo ponto, da existência real
dessas obras e o leitor que nunca ouviu o Tristan e tampouco sabe da existência
de O mundo como vontade e representação não pode aproveitar muito do
potencial da leitura.
O que acontece na narração — e nesse ponto as afirmações do ensaio de 1906
devem ser respeitadas — é uma subjetivação da experiência, para a qual o autor
recorreu à memória e à imaginação. Assim, os personagens, sobretudo Hanno e
Thomas, são providos de sensações e pensamentos que, embora não sejam
“inventados”, ainda são produções intelectuais de Mann. A maestria do jovem
autor, porém, consiste não só em “dar alma” aos personagens mediante sua
própria subjetividade. Ela deve ser vista igualmente na capacidade de amalgamar
aquela extensa camada de elementos reais, até então inusitada, com uma
crescente carga de reflexão e sensibilidade, e, por fim, mas não menos
importante, integrar tudo numa composição épica que se expande sobre quatro
gerações e mil páginas sem perder a atenção do leitor.
1 Helmut Galle é livre-docente em Literatura Alemã e professor de língua e literatura alemã na Universidade de São Paulo.
2 Caro comenta isso numa carta de 14 de outubro de 1941, traduzida no livro de Karl-Joseph Kuschel et al., Terra Mátria: A família de
Thomas Mann e o Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. O original da carta encontra-se em fac-símile na revista
Contingentia, v. 2, pp. 70-3, 2 maio 2007.
3 Thomas Mann, Große kommentierte Frankfurter Ausgabe. Vol 1.2 Buddenbrooks. Verfall einer Familie. Kommentar von Eckhard
Heftrich und Stephan Stachorski unter Mitarbeit von Herbert Lehnert. Frankfurt: Fischer, 2002, p. 10. (Daqui por diante, GKFA 1.2)
4 Thomas Mann, Gesammelte Werke. Bd. 11: Reden und Aufsätze 3. Frankfurt: Fischer, 1974, p. 383. (Daqui por diante, GW 11)
5 GKFA 1.2, p. 683.
6 Thomas Mann, Gesammelte Werke in 13 Bänden. Bd. 12: Betrachtungen eines Unpolitischen. Frankfurt: Fischer, 1974, p. 89. (Daqui
por diante, GW 12)
7 GKFA 1.2, p. 13.
8 GKFA 1.2, pp. 30, 269.
9 Thomas Sprecher, “Strategien der Ruhmesverwaltung. Skizzen zu Thesen”. In: ANSEL, M.; FRIEDRICH, H.-E.; LAUER, G.
(Orgs.). Die Erfindung des Schriftstellers Thomas Mann. Berlim; Nova York: Walter de Gruyter, 2009, p. 38.
10 Diante da falta de dialetos do português, Herbert Caro se viu obrigado a não transpor esse aspecto onipresente no romance: Mann
utiliza o baixo alemão, o dialeto da própria cidade de Lübeck, da Bavária, da Prússia Oriental, além do francês, do inglês e até do
polonês numa transcrição fonética distorcida (VI, 4: “Meiboschekochane” = “Mój Boze Kochanie”: “meu Deus, amor”). No caso das
frases iniciais, o tradutor tentou compensar o problema pela expressão antiquada “com a breca”, que pode também destacar que o
falante pertence a uma época desvanecida. Sobre os dialetos e sua função para a caracterização de estatuto social, geração e
individualidade, ver Ernest M. Wolf, “Scheidung und Mischung: Sprache und Gesellschaft in Thomas Manns Buddenbrooks”. Orbis
Litterarum, v. 38, 1983, pp. 235-53.
Na carta mencionada de Herbert Caro a Thomas Mann, de 14 de outubro de 1941, Caro fala do problema de traduzir o dialeto,
particularmente no caso do bávaro Permaneder. Numa carta anterior ele já teria pedido informações sobre o procedimento de outros
tradutores, particularmente em línguas românicas. “Nesse ínterim”, ele escreve, “eu acredito ter chegado a um resultado satisfatório por
meio do uso da cor local do português.” (apud Karl-Joseph Kuschel, op. cit., p. 280)
11 Ver, nesta edição, p. 634.
12 GKFA 1.2, p. 363.
13 Marx, Leonie “Thomas Mann und die skandinavischen Literaturen”. In: KOOPMANN, H. (Org.). Thomas-Mann-Handbuch.
Frankfurt Fisher, 2005, p. 184.
14 Ver, nesta edição, p. 590.
15 Fotis Jannidis, “‘Unser moderner Dichter’ — Thomas Manns Buddenbrooks. Verfall einer Familie (1901)”. In: LUSERKE-JAQUI,
M. (Org.). Deutschsprachige Romane der klassischen Moderne. Berlim; Nova York: Walter de Gruyter, 2008, p. 56.
16 Klaus R. Scherpe, “100 Jahre Weltanschauung, was noch? Thomas Manns ‘Buddenbrooks’ noch einmal gelesen”. Weimarer
Beitrräge, v. 49, n. 4, 2003, p. 583.
17 Anna Kinder, Geldströme: Ökonomie im Romanwerk Thomas Manns. Berlim: Walter de Gruyter, 2013, p. 18.
18 Franco Moretti lembra que Weber ficou impressionado com a descrição do romance. Ver: Franco Moretti, O burguês: Entre história
e literatura. Trad. de A. Morales. São Paulo: Três Estrelas, 2014, p. 25.
19 Anna Kinder, op. cit., p. 30.
20 Jochen Vogt apud ibid., p. 38.
21 Peter von Matt, “Der Chef in der Krise”. In: Sinnstifter 2005. Ausgewählte Texte. Edition Stifterverband, 2005, p. 22. Disponível
em: <www.stifterverband.info/publikationen_und_podcasts/edition_stifterverband/sinnstifter/sinnstifter_2005.pdf>. Acesso em: 3 fev.
2016.
22 GKFA 1.2, p. 157.
23 Ver, nesta edição, p. 420.
24 Numa carta a Marcel Reich-Ranicki (Viola Roggenkamp, “‘Tom, ich bin eine Gans’ Tony Buddenbrook — die Entwertung vitaler
Weiblichkeit”. In: GUTJAHR, O. (Org.). Buddenbrooks von und nach Thomas Mann: Generation und Geld in John von Düffels
Bühnenfassung und Stephan Kimmigs Inszenierung am Thalia-Theater Hamburg. Würzburg: Königshausen und Neumann, 2006, p.
128). Sobre motivos tendencialmente antissemitas na obra de Thomas Mann, ver, sobretudo, Yahya A. Elsaghe, Die imaginäre Nation:
Thomas Mann und das “Deutsche”. München: W. Fink, 2000 e, do mesmo autor, “Lübeck versus Berlin in Thomas Manns
Buddenbrooks”. Monatshefte, v. 106, n. 1, 2014, pp. 17-36.
25 Nacim Ghanbari, Das Haus: Eine deutsche Literaturgeschichte 1850-1926. Berlim: Walter de Gruyter, 2011, p. 72.
26 Franco Moretti, op. cit., p. 85.
27 Ibid., p. 75 e ss.
28 Ver, nesta edição, p. 187.
29 Helmut Koopmann, “Humor und Ironie”. In: KOOPMANN , H. (Org.). Thomas-Mann-Handbuch. Frankfurt: Fischer, 2005, p. 836.
30 Apud Koopmann, ibid., p. 842.
31 Ver, nesta edição, p. 621.
32 Ver, nesta edição, p. 11.
33 GKFA 1.2, p. 230.
34 Infelizmente, essa correspondência não pode ser percebida na tradução. No original, Tony fala “Was ist das. Was — ist das […]” e a
exclamação da sra. Weichbrodt responde: “Es ist so!” (GKFA 1.1, pp. 9 e 837). Na tradução de Caro: “Que significa isto? Que
significa isto? […]” e “É verdade!”. Aqui se perde a repetição das palavras e, por consequência, o leitmotiv que abre e fecha o
romance.
35 Ver, nesta edição, p. 85.
36 Ver, nesta edição, p. 679.
37 Klaus Scherpe, op. cit., p. 570.
38 Moritz Bassler, Deutsche Erzählprosa 1850-1950: Eine Geschichte literarischer Verfahren. Berlim: Erich Schmidt Verlag, 2015, p.
149.
39 Matthias Bauer, Romantheorie und Erzählforschung: Eine Einführung. 2. ed. Stuttgart: Metzler, 2005, p. 75.
40 Fotis Jannidis, op. cit., p. 63 e ss.
41 Existem duas acepções de “Klassische Moderne”: uma abrange todas as obras já consagradas da época entre 1890 e 1933 (cf.
Matttias Luserke-Jaqui (Org.). Deutschsprachige Romane der klassischen Moderne. Berlim; Nova York: Walter de Gruyter, 2008,
p.V.). A outra se refere aos autores mais “conservadores” (H. Hesse, Th. Mann, S. Zweig) em contraposição à ”modernidade enfática”
de F. Kafka, A. Döblin, C. Einstein e G. Benn (cf. Moritz Bassler, op. cit.).
42 Sabina Becker, “Zwischen Klassizität und Moderne Die Romanpoetik Thomas Manns”. In: ANSEL, M.; FRIEDRICH, H.-E.;
LAUER, G. (Orgs.). Die Erfindung des Schriftstellers Thomas Mann. Berlim; Nova York: Walter de Gruyter, 2009, p. 116.
43 Fotis Jannidis, op. cit., p. 72.
44 Ibid., p. 57.
45 Ibid., p. 72.
46 Michael Ansel, “Buddenbrooks, Bilse und Biller. Thomas Mann, der Schlüsselroman und die Kunstfreiheit”. Palestra de 2 de
fevereiro de 2007 na Evangelische Akademie Tutzing, 2007, p. 3. Disponível em: <web.ev-akademie-tutzing.de/cms/get_it.php?
ID=604>. Acesso em: 3 fev. 2016.
47 GKFA 14.1, p. 98 e ss.
48 Ibid., p. 101.
49 Ibid., p. 106.
50 Peter de Mendelssohn, Der Zauberer. Frankfurt: S. Fischer, 1996, pp. 730-2.
51 Klaus Kanzog, “Schlüsselliteratur”. In: MÜLLER, J.-D. (Org.). Reallexikon der deutschen Literaturwissenschaft. Berlim; Nova
York: Walter de Gruyter, 2003, p. 380.
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CRONOLOGIA
6 DE JUNHO DE 1875
Paul Thomas Mann, segundo filho de Thomas Johann Heinrich Mann e sua esposa, Julia, em solteira Da
Silva-Bruhns, nasce em Lübeck. Os irmãos são: Luiz Heinrich (1871), Julia (1877), Carla (1881), Viktor (1890)
1889
Entra no Gymnasium Katharineum
1893
Termina o ginásio e muda-se para Munique
Coordena o jornal escolar Der Frühlingssturm [A tempestade primaveril]
1894
Estágio na instituição Süddeutsche Feuerversicherungsbank Decaída, a primeira novela
1894-5
Aluno ouvinte na Technische Hochschule de Munique. Frequenta aulas de história da arte, história da
literatura e economia nacional
1895-8
Temporadas na Itália, em Roma e Palestrina, com Heinrich Mann
1897
Começa a escrever Os Buddenbrook
1898
Primeiro volume de novelas, O pequeno sr. Friedmann
1898-9
Redator na revista satírica Simplicissimus
1901
Publica Os Buddenbrook: Decadência de uma família em dois volumes
1903
Tristão, segunda coletânea de novelas, entre as quais “Tonio Kröger”
3 DE OUTUBRO DE 1904
Noivado com Katia Pringsheim, nascida em 24 de julho de 1883
11 DE FEVEREIRO DE 1905
Casamento em Munique
9 DE NOVEMBRO DE 1905
Nasce a filha Erika Julia Hedwig
1906
Fiorenza, peça em três atos Bilse und ich [Bilse e eu]
18 DE NOVEMBRO DE 1906
Nasce o filho Klaus Heinrich Thomas
1907
Versuch über das Theater [Ensaio sobre o teatro]
1909
Sua alteza real
27 DE MARÇO DE 1909
Nasce o filho Angelus Gottfried Thomas (Golo)
7 DE JUNHO DE 1910
Nasce a filha Monika
1912
A morte em Veneza. Começa a trabalhar em A montanha mágica
JANEIRO DE 1914
Compra uma casa em Munique, situada na Poschingerstrasse, 1
1915
Friedrich und die grosse Koalition [Frederico e a grande coalizão]
1918
Betrachtungen eines Unpolitischen [Considerações de um apolítico]
24 DE ABRIL DE 1918
Nasce a filha Elisabeth Veronika
1919
Um homem e seu cão
21 DE ABRIL DE 1919
Nasce o filho Michael Thomas
1922
Goethe e Tolstói e Von deutscher Republik [Sobre a república alemã]
1924
A montanha mágica
1926
Unordnung und frühes Leid [Desordem e primeiro sofrimento]. Início da redação da tetralogia José e seus
irmãos
Lübeck als geistige Lebensform [Lübeck como modo de vida espiritual]
10 DE DEZEMBRO DE 1929
Recebe o prêmio Nobel de literatura
1930
Mário e o mágico
Deutsche Ansprache: Ein Appell an die Vernunft [Elocução alemã: Um apelo à razão]
1932
Goethe como representante da era burguesa
Discursos no primeiro centenário da morte de Goethe
1933
Sofrimento e grandeza de Richard Wagner
José e seus irmãos: As histórias de Jacó
11 DE FEVEREIRO DE 1933
Parte para a Holanda. Início do exílio
OUTONO DE 1933
Estabelece-se em Küsnacht, no cantão suíço de Zurique
1934
José e seus irmãos: O jovem José
MAIO-JUNHO DE 1934
Primeira viagem aos Estados Unidos
1936
Perde a cidadania alemã e torna-se cidadão da antiga Tchecoslováquia José e seus irmãos: José no Egito
1938
Bruder Hitler [Irmão Hitler]
SETEMBRO DE 1938
Muda-se para os Estados Unidos. Trabalha como professor de humanidades na Universidade de Princeton
1939
Carlota em Weimar
1940
As cabeças trocadas
ABRIL DE 1941
Passa a viver na Califórnia, em Pacific Palisades
1942
Deutsche Hörer! 25 Radiosendungen nach Deutschland [Ouvintes alemães! 25 transmissões radiofônicas
para a Alemanha]
1943
José e seus irmãos: José, o Provedor
23 DE JUNHO DE 1944
Torna-se cidadão americano
1945
Deutschland und die Deutschen [Alemanha e os alemães]
Deutsche Hörer! 55 Radiosendungen nach Deutschland [Ouvintes alemães! 55 transmissões radiofônicas
para a Alemanha]
Dostoiévski, com moderação
1947
Doutor Fausto
ABRIL-SETEMBRO DE 1947
Primeira viagem à Europa depois da guerra
1949
A gênese do Doutor Fausto: Romance sobre um romance
21 DE ABRIL DE 1949
Morte do irmão Viktor
MAIO-AGOSTO DE 1949
Segunda viagem à Europa e primeira visita à Alemanha do pós-guerra. Faz conferências em Frankfurt am
Main e em Weimar sobre os duzentos anos do nascimento de Goethe
21 DE MAIO DE 1949
Suicídio do filho Klaus
1950
Meine Zeit [Meu tempo]
12 DE MARÇO DE 1950
Morte do irmão Heinrich
1951
O eleito
JUNHO DE 1952
Retorna à Europa
DEZEMBRO DE 1952
Muda-se definitivamente para a Suíça e se instala em Erlenbach, próximo a Zurique
1953
A enganada
1954
Confissões do impostor Felix Krull
ABRIL DE 1954
Passa a viver em Kilchberg, Suíça, na Alte Landstrasse, 39
1955
Versuch über Schiller [Ensaio sobre Schiller]
8 E 14 DE MAIO DE 1955
Palestras sobre Schiller em Stuttgart e em Weimar
12 DE AGOSTO DE 1955
Thomas Mann falece
SUGESTÕES DE LEITURA
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Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico
da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor
no Brasil em 2009.
TÍTULO ORIGINAL
Buddenbrooks: Verfall einer Familie
O texto desta edição foi estabelecido a partir da edição Große kommentierte Frankfurter Ausgabe,
publicada pela S. Fischer Verlag em 2002 (vol. 1.1)
CAPA E PROJETO GRÁFICO
Raul Loureiro
CRÉDITO DA FOTO
Retrato do autor, c. 1900.
Hulton/Getty Images
PREPARAÇÃO
Ana Cecília Agua de Melo
REVISÃO
Huendel Viana
Thaís Totino Richter
ISBN 978-85-438-0541-2
Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ S.A.
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