O Assassinato Do Comendador - Vol. 2 by Haruki Murakami
O Assassinato Do Comendador - Vol. 2 by Haruki Murakami
O Assassinato Do Comendador - Vol. 2 by Haruki Murakami
33. Eu gosto tanto das coisas que posso ver quanto das que não
posso
34. Falando nisso, faz tempo que eu não calibro os pneus
35. Era melhor ter deixado aquele lugar do jeito que estava
36. Não falar absolutamente nada sobre as regras do jogo
37. Em todas as coisas há um lado positivo
38. Ele nunca poderia ser um golfinho
39. Um recipiente camuflado, feito com um objetivo específico
40. Era impossível confundir aquele rosto
41. Só quando eu não olhava para trás
42. Se quebrar quando cai no chão, é um ovo
43. Aquilo não podia ter sido simplesmente um sonho
44. As características que fazem uma pessoa ser quem é
45. Algo está prestes a acontecer
46. Muros sólidos e imponentes deixam as pessoas incapazes
47. Hoje é sexta-feira, né?
48. Os espanhóis não sabiam navegar os mares revoltos da costa
da Irlanda
49. E um número igualmente grande de mortes
50. Para isso, será preciso fazer um sacrifício e passar por uma
provação
51. A hora é agora
52. Um homem usando uma touca cor de laranja
53. Talvez fosse um atiçador de lareira
54. Para sempre é muito tempo
55. Evidentemente contrário aos princípios mais básicos
56. Me parece que há várias lacunas para preencher
57. Algo que eu acabaria precisando fazer
58. Parece que estou ouvindo sobre os belos canais fluviais de
Marte
59. Até que a morte nos separou
60. Se fosse alguém com braços muito compridos
61. Preciso ser uma menina corajosa e esperta
62. Você acaba indo parar no meio de um labirinto
63. Mas não é o tipo de coisa que você está pensando
64. Uma forma de graça
Sobre o autor
Créditos
33.
Eu gosto tanto das coisas que posso ver
quanto das que não posso
Fui para o ateliê junto com Mariê. Shoko tirou da bolsa o mesmo livro
grosso da semana passada — pelo formato, acho que era o mesmo — e
logo se pôs a ler, recostada no sofá. Parecia muito absorta. Fiquei ainda
mais curioso para saber que tipo de livro seria, mas não perguntei.
Eu e Mariê ficamos frente a frente, separados por cerca de dois metros,
como no outro dia. A diferença é que, desta vez, eu tinha diante de mim o
cavalete com uma tela. Mas ainda não tinha pincel nem tinta nas mãos.
Meus olhos iam e vinham, de Mariê para a tela em branco. Refletia sobre
como poderia transportar sua imagem tridimensional para a tela. Aquilo
necessitava de um tipo de “narrativa”. Não bastava simplesmente olhar
para a pessoa e sair desenhando. Nada bom resultaria disso. Poderia acabar
tendo apenas uma semelhança razoável. Para um verdadeiro retrato, o
ponto de partida essencial era encontrar a narrativa que precisava ser
descrita.
Passei algum tempo estudando o rosto de Mariê, eu num banquinho, ela,
na cadeira da mesa de jantar. Ela fitava meus olhos de volta quase sem
piscar. Não chegava a ter uma expressão desafiadora, mas a determinação
de quem não vai recuar. Suas feições, delicadas como as de uma boneca,
podiam passar uma impressão enganosa, mas na realidade aquela era uma
menina de personalidade forte. Tinha a própria maneira de agir e não
hesitava. Quando traçava uma linha, não se dobrava facilmente.
Olhando bem, alguma coisa nos olhos de Mariê lembrava os de
Menshiki. Eu já tinha sentido isso antes, mas essa semelhança me
surpreendeu novamente. Era um brilho que eu gostaria de descrever como
“o instante congelado de uma chama”. Continha calor, mas ao mesmo
tempo era profundamente sereno. Parecia uma pedra preciosa com uma
fonte de luz própria em seu interior. Onde duas forças lutavam
fervorosamente, uma para sair e se expandir e outra para se ocultar e olhar
para dentro.
Porém, talvez eu só sentisse isso por ter ouvido a confissão de Menshiki
sobre como Mariê poderia ser sangue do seu sangue. Talvez eu estivesse
buscando inconscientemente uma ligação entre os dois.
Qualquer que fosse o caso, o fato é que a peculiaridade daquele brilho
no olhar era um dos elementos fundamentais de sua expressão, e eu
precisava transpô-lo para a tela, como algo que perfurava e abalava a
aparência equilibrada de suas feições. Mas eu ainda não conseguia
vislumbrar o contexto no qual deveria inserir esse brilho. Se eu falhasse,
aquele brilho poderia parecer apenas como uma pedra gélida. De onde
vinha, e para onde queria ir, o calor que brotava em seu interior? Era o que
eu precisava saber.
Depois de quinze minutos encarando alternadamente seu rosto e a tela,
eu desisti. Empurrei o cavalete para longe e respirei fundo várias vezes.
— Vamos conversar.
— Tá bom — disse ela. — Sobre o quê?
— Queria saber um pouco mais sobre você.
— O quê, por exemplo?
— Bem… Como é o seu pai?
Mariê curvou um pouco a boca.
— Eu não conheço bem meu pai.
— Vocês não costumam conversar?
— A gente nem se vê direito.
— Ele é muito ocupado com o trabalho?
— Não sei muita coisa sobre o trabalho dele — respondeu Mariê. —
Mas acho que ele não liga muito pra mim.
— Não liga?
— É, ele deixa tudo por conta da minha tia.
Eu não consegui dizer nada sobre isso.
— E da sua mãe, você se lembra? Se não me engano, você tinha seis
anos quando ela faleceu, não é?
— Da minha mãe eu só lembro alguns borrões.
— Que tipo de borrões?
— Minha mãe desapareceu da minha frente de repente. Eu era muito
pequena para entender o que significava morrer, então eu não sabia de
verdade o que tinha acontecido. Ela estava ali e de repente não estava
mais. Que nem uma fumaça escapando por alguma fresta.
Mariê se calou por algum tempo, depois continuou.
— Ela desapareceu rápido demais e eu não consegui entender a razão,
então não me lembro direito das coisas que aconteceram logo antes ou
depois da sua morte.
— Foi um período muito confuso pra você.
— Parece que tem uma parede bem alta separando o tempo em que a
minha mãe estava viva e o tempo depois que ela se foi. Não consigo ligar
os dois. — Ela ficou quieta por algum tempo, mordendo o lábio. —
Entende o que quero dizer?
— Acho que sim — respondi. — Eu te falei que minha irmã morreu aos
doze anos, né?
Mariê assentiu com a cabeça.
— Ela tinha um problema cardíaco de nascença. Fez uma cirurgia
grande, que era pra ter curado esse problema, mas por algum motivo ele
continuou. Era como se ela vivesse com uma bomba no corpo. Então a
minha família estava sempre mais ou menos preparada para o pior. Ou seja,
a morte dela não foi um ribombar em céu azul como a sua mãe ter falecido
com as picadas de vespa.
— “Ribombar”…?
— Ribombar em céu azul. Quando o dia está bonito mas cai um raio de
repente. Quer dizer, quando acontece uma coisa inesperada, sem aviso
prévio.
— “Ribombar em céu azul” — disse ela. — Como escreve isso?
— Eu não sei escrever os ideogramas de “ribombar”. Acho que nunca
escrevi. Se quiser saber, pode olhar no dicionário quando chegar em casa.
— “Ribombar em céu azul” — repetiu Mariê, mais uma vez, como se
estivesse guardando aquela expressão em uma gaveta mental.
— Enfim, nós já imaginávamos que isso pudesse acontecer. Mas,
quando minha irmã teve de fato um infarto e morreu no mesmo dia, não
adiantou nem um pouco estar preparado. Eu fiquei paralisado. E não só eu,
mas toda a minha família.
— Várias coisas dentro de você ficaram diferentes do que eram antes?
— Sim, mudaram completamente, dentro e fora de mim. O jeito que o
tempo passa ficou diferente. E, como você disse, é difícil conectar as coisas
antes de sua morte e depois.
Mariê encarou meu rosto por dez segundos inteiros. Então falou:
— Sua irmã era uma pessoa muito importante pra você, não era?
Eu concordei.
— Sim, ela era muito importante.
Mariê baixou a cabeça, compenetrada, depois a ergueu:
— Por causa das minhas memórias divididas desse jeito, eu não consigo
lembrar direito da minha mãe. O tipo de pessoa que era, seu rosto, o que
me dizia. E meu pai também não me conta muito sobre ela.
A única coisa que eu sabia sobre a mãe de Mariê era a descrição
extremamente detalhada que Menshiki fizera de seu último encontro
sexual. O sexo intenso que eles fizeram no sofá do seu escritório, no qual
talvez Mariê tenha sido concebida. Mas é claro que eu não podia falar
sobre isso.
— Você deve ter alguma memória dela, não? Vocês viveram juntas por
seis anos…
— Só um cheiro.
— O cheiro dela?
— Não, cheiro de chuva.
— De chuva?
— É, estava chovendo. Uma chuva tão forte que dava pra ouvir o
barulho das gotas acertando o chão. Mas minha mãe estava andando pela
rua sem guarda-chuva. E eu estava andando junto com ela, no meio da
chuva, de mãos dadas. Acho que era verão.
— Será que era uma tempestade de verão?
— Acho que sim, porque as ruas tinham aquele cheiro de quando a
chuva cai no asfalto quente de sol. É desse cheiro que eu lembro. A gente
estava num tipo de mirante, no alto da montanha. E minha mãe estava
cantando.
— Cantando o quê?
— Não me lembro da melodia. Só de algumas palavras. Era uma canção
que falava sobre como do lado de lá tinha uma enorme campina verde onde
o sol estava brilhando, mas do lado de cá a chuva caía sem parar. Você já
ouviu alguma música assim?
Eu não tinha qualquer registro da música.
— Não, acho que nunca ouvi.
Mariê encolheu de leve os ombros.
— Eu já perguntei pra muitas pessoas, mas ninguém conhece essa
música. Por que será? Será que eu mesma inventei na minha cabeça?
— Talvez sua mãe tenha improvisado a música na hora. Pra você.
Mariê ergueu os olhos para mim e sorriu.
— Nunca tinha pensado nessa possibilidade, mas seria muito legal!
Acho que foi a primeira vez que a vi sorrir. Era como se nuvens pesadas
se abrissem, um raio de sol escapasse por entre elas e iluminasse apenas
uma pequena área escolhida sobre a terra. Esse tipo de sorriso.
— Se você voltasse a esse lugar, será que ia conseguir reconhecer? Se
experimentasse ir nos mirantes dessa montanha?
— Pode ser — disse Mariê. —Não tenho tanta certeza, mas pode ser.
— Sabe, é muito bom você ter uma lembrança assim para guardar —
falei.
Mariê só assentiu com a cabeça.
Naquele dia eu nem toquei nos pincéis. Fiquei sentado com Mariê no
ateliê iluminado conversando sobre o que passava por nossas mentes.
Enquanto falávamos, observei cada expressão em seu rosto e cada um dos
seus gestos, e fui guardando-os no fundo da mente. Essas memórias dariam
corpo e matéria à pintura que eu queria fazer.
— Hoje você não desenhou nada — disse ela.
— Tem dias que são assim — respondi. — Algumas coisas roubam o
nosso tempo, outras nos dão tempo. Fazer do tempo nosso aliado é uma
parte importante do nosso trabalho.
Ela ficou apenas fitando meus olhos, sem dizer nada. Como quem
pressiona o rosto contra o vidro da janela e espia dentro de uma casa. Ela
estava pensando sobre o significado do tempo.
Caminhei devagar até a porta. Não fazia ideia de quem poderia estar
tocando a campainha. Eu teria escutado se algum carro tivesse parado
diante da casa. A mesa de jantar ficava nos fundos, mas mesmo assim eu
certamente escutaria o motor, os pneus ou os freios se algum carro se
aproximasse. Até mesmo os de um Toyota Prius que se orgulha de seu
motor híbrido hipersilencioso. E eu não escutara nada.
Ninguém subiria o longo caminho até a minha casa, depois de o sol se
pôr, sem um carro. As ruas eram muito escuras, praticamente sem
iluminação, e desertas. A casa estava isolada, sozinha no alto da montanha,
sem vizinhos por perto.
Por um momento, achei que pudesse ser o comendador. Mas isso não
fazia sentido. Ele não se daria ao trabalho de tocar a campainha, já que era
capaz de ir e vir quando quisesse.
Sem saber quem era, destranquei a porta do hall e a abri. Encontrei
Mariê Akikawa parada. Vestia a mesma roupa da manhã, mas agora com
uma fina jaqueta sobre o moletom. O tempo tinha esfriado bastante depois
do pôr do sol. Usava um boné de beisebol dos Cleveland Indians (por que
será que ela tinha um boné dos Cleveland?) e trazia uma lanterna nas mãos.
— Posso entrar? — perguntou, sem dizer boa-noite ou se desculpar por
aparecer subitamente.
— Pode, claro — respondi.
Não falei mais nada, pois as gavetas da minha mente ainda não estavam
fechando muito bem. O novelo continuava enfiado lá no fundo.
Levei-a até a copa.
— Eu estava jantando. Posso terminar de comer? — perguntei.
Ela concordou em silêncio, sem cerimônia, porque isso não faz sentido
para ela.
— Quer um chá?
Mais uma vez, ela concordou em silêncio. Então tirou a jaqueta e o boné
e ajeitou os cabelos. Pus água para ferver e coloquei folhas de chá verde
em um bule. Eu também queria tomar chá.
Com os cotovelos fincados na mesa, Mariê me observou como se fosse
um espetáculo incomum, enquanto eu comia o olho-de-boi marinado,
tomava a sopa de missô e comia arroz. Como alguém que, passeando pela
selva, se depara com uma jiboia devorando um filhote de texugo e se senta
em uma pedra próxima para assistir.
— Fui eu que fiz essa conserva de olho-de-boi — expliquei, quebrando
o silêncio —, porque assim ele dura bem mais.
Ela não teve nenhuma reação. Não dava nem para ter certeza se minhas
palavras tinham alcançado seus ouvidos.
— Immanuel Kant era um sujeito de hábitos regrados. Tão regrados que
as pessoas da sua cidade ajustavam os relógios de acordo com o horário em
que o viam passeando todos os dias — experimentei dizer.
Era uma declaração despropositada, é claro. Eu só queria saber de que
maneira Mariê Akikawa reagiria a uma fala sem sentido como aquela.
Porém, ela não reagiu. O silêncio só se intensificou. E Kant continuou,
taciturno e regrado, o seu caminho pelas ruas da cidade de Königsberg.
Dizem que suas últimas palavras foram “Isso está bom”. Há pessoas que
conseguem viver assim.
Eu terminei de comer e levei a louça para a pia. Depois adicionei a água
quente ao chá no bule e voltei para a copa com ele e dois copos de
cerâmica. Sentada à mesa, Mariê observava cada um dos meus gestos com
o olhar atento de um historiador verificando detalhes nas notas de rodapé
de um documento.
— Você não veio para cá de carro, né?
— Vim a pé — Mariê finalmente abriu a boca.
— Veio andando, sozinha, da sua casa até aqui?
— É.
Eu me calei e esperei que ela continuasse. Ela também ficou quieta, e o
silêncio durou bastante tempo. Mas ficar calado não é difícil para mim.
Tanto é que eu conseguia viver sozinho no alto de uma montanha.
— Tem uma passagem secreta — disse Mariê, depois de algum tempo.
— Vindo de carro é longe, mas por esse atalho é pertinho.
— Mas eu caminho bastante por aqui e nunca vi nenhum atalho.
— É que você não sabe procurar — disse a menina, seca. — Não dá pra
ver se estiver caminhando e olhando normalmente. Ele é bem escondido.
— Você que escondeu?
Ela fez que sim com a cabeça.
— Eu vivo aqui desde pequena. Todas essas montanhas eram meu
quintal, então conheço cada pedaço.
— Então essa passagem é muito bem escondida.
Ela fez que sim de novo.
— E foi por ela que você veio até aqui.
— Foi.
Soltei um suspiro.
— Você já jantou?
— Agora há pouco.
— O que comeu?
— Minha tia não é muito boa na cozinha.
Aquilo não respondia à minha pergunta, mas não insisti, era claro que
ela queria mudar de assunto. Provavelmente não queria relembrar o que
tinha acabado de comer.
— Sua tia sabe que você veio para cá?
Mariê manteve a boca bem cerrada e não respondeu. Então resolvi
responder eu mesmo.
— Claro que não. Nenhum adulto responsável deixaria uma menina de
treze anos vagar sozinha pelas montanhas depois de anoitecer. Não é?
Passamos mais algum tempo em silêncio.
— Ela nem sequer sabe que essa passagem existe?
Mariê balançou a cabeça algumas vezes. Sua tia não sabia sobre a
passagem.
— Ninguém mais sabe, fora você?
Mariê assentiu com a cabeça.
— Bom, seja como for — falei —, pela direção onde fica sua casa,
depois de sair do seu atalho você teve que passar por um bosque onde há
um velho santuário, não foi?
Ela concordou com a cabeça e acrescentou:
— Conheço esse santuário. E sei que outro dia veio um trator e revirou
aquela pilha de pedras que ficava atrás dele.
— Você estava vendo?
Mariê balançou a cabeça.
— Não vi a hora que reviraram tudo, porque estava na escola. Mas vi os
rastros. O chão estava coberto de marcas. Por que fizeram isso?
— É que aconteceram várias coisas.
— Que tipo de coisas?
— É uma história muito comprida pra explicar desde o começo — falei.
E não expliquei nada. Preferia não contar para ela que Menshiki estava
envolvido na história.
— Não deviam ter revirado aquele lugar desse jeito — disse Mariê, de
súbito.
— Por que você acha isso?
Ela deu de ombros.
— Era melhor ter deixado aquele lugar do jeito que estava. Como todo
mundo sempre fez.
— Como todo mundo fez?
— É, o santuário estava daquele jeito há muito tempo e ninguém tinha
tocado nele até agora.
Talvez essa menina tenha razão, pensei. Talvez a gente não devesse ter
se metido com aquele lugar. Talvez todo mundo até agora tenha agido
assim. Mas era tarde demais para dizer isso. Agora as pedras já tinham sido
movidas, o buraco, exposto, e o comendador, libertado.
— Por acaso foi você quem tirou as tábuas que estavam cobrindo aquele
buraco? Você ergueu a tampa, espiou lá dentro, depois fechou de volta e
recolocou as pedras que fazem peso em cima. Não foi?
Mariê ergueu a cabeça e me encarou. Como quem pergunta: como você
sabe disso?
— É que a posição das pedras em cima da tampa estava um pouquinho
diferente. Eu tenho uma memória visual muito boa. Percebo esse tipo de
diferença assim que bato os olhos.
— Puxa — comentou ela, surpresa.
— Mas, quando você abriu, o buraco estava vazio. Não tinha nada, só a
escuridão e o ar úmido. Não foi?
— Tinha uma escada.
— Você não entrou lá, entrou?!
Mariê balançou a cabeça com força. Como quem diz “imagina se eu
faria uma coisa dessas”.
— E então… — falei. — Você veio pra cá a essa hora da noite por
algum motivo? Ou é só uma visita social?
— Uma visita social?
— É, quer dizer, aconteceu de você estar na vizinhança e aproveitou pra
dar um oi.
Ela pensou um pouco sobre isso. Depois balançou de leve a cabeça.
— Não, não é uma “visita social”.
— Então que tipo de visita é? — perguntei. — Pessoalmente, fico feliz
que você venha me visitar, claro, mas se depois sua tia ou seu pai ficarem
sabendo, pode virar um mal-entendido complicado.
— Como assim, mal-entendido?
— Há toda sorte de mal-entendidos na sociedade — falei. — Inclusive
alguns que ultrapassam em muito nossa imaginação. Se isso acontecer,
talvez não deixem mais você posar para o quadro. Pra mim, isso seria
muito chato. Pra você também, não?
— Minha tia não vai descobrir — afirmou Mariê, enfática. — Quando
termino de jantar eu vou pro meu quarto, e depois disso ela não entra mais
lá. Temos esse acordo. Então ninguém repara se eu sair pela janela. Nunca
descobriram, até hoje.
— Você sempre andou pelas montanhas à noite?
Mariê fez que sim.
— Não tem medo de andar sozinha por aí no escuro?
— Tem coisas mais assustadoras que isso.
— Como o quê?
Mariê encolheu um pouco os ombros e não respondeu.
— Sua tia pode não ser um problema, mas e o seu pai?
— Ele ainda não voltou.
— Mesmo sendo domingo?
Mariê não respondeu. Ela sempre parecia querer evitar falar do pai.
— Enfim, não precisa se preocupar, professor, porque ninguém sabe que
eu saí. E, mesmo se descobrirem, nunca diria que vim pra cá.
— Tá, então não vou mais me preocupar — falei. — Mas por que você
veio até aqui esta noite?
— Porque tenho um assunto pra falar com você.
— Que assunto?
Mariê pegou o copo, tomou um gole do chá-verde bem quente e lançou
um olhar atento ao nosso redor. Como se verificasse que ninguém mais
estava ouvindo a conversa. É claro que não havia ninguém, fora nós. Isto é,
a não ser que o comendador tivesse voltado e nos escutasse de algum
canto. Mas, de qualquer jeito, ela não conseguiria vê-lo, a não ser que ele
estivesse corporificado.
— É sobre aquele seu amigo que veio aqui hoje de tarde — disse ela. —
O homem com o cabelo branco bonito. Como ele se chamava? Um nome
meio estranho.
— Menshiki.
— Isso, “Menshiki”.
— Ele não é meu amigo. É só uma pessoa que conheci há pouco tempo.
— Tanto faz — disse ela.
— O que tem o Menshiki?
Ela estreitou os olhos e me encarou. Então disse, baixando só um
pouquinho a voz:
— Eu acho que ele está escondendo alguma coisa. Em seu coração.
— Que tipo de coisa?
— Isso eu não sei. Mas acho que na verdade não foi uma coincidência
ele vir pra cá hoje. Tenho a impressão de que ele tinha algum motivo bem
específico pra vir.
— E qual poderia ser esse motivo? — perguntei, um tanto assustado
com a sua percepção afiada.
Ela me olhou fixamente.
— Isso eu não sei. Você também não sabe?
— Não, nem tenho ideia — menti. Rezando para que essa mentira não
fosse desmascarada num instante pelos olhos de Mariê Akikawa. Nunca fui
bom mentiroso. Sempre que tento inventar alguma história, fica na cara
que estou mentindo. Mas eu não podia contar a verdade.
— Mesmo?
— Mesmo — falei. — Eu nem imaginava que ele viria para cá hoje.
Mariê pareceu acreditar no que eu dizia. De fato, Menshiki não tinha
dito que viria e sua chegada fora bastante inesperada para mim. Sobre esta
parte eu não estava mentindo.
— Aquele homem tem uns olhos estranhos — disse ela.
— Estranhos, como?
— Parece que seus olhos têm sempre alguma intenção. Que nem o lobo
da Chapeuzinho Vermelho. Ele pode deitar na cama e fingir que é a avó,
mas é só olhar para os olhos dele pra perceber que é um lobo.
O lobo da Chapeuzinho Vermelho?
— Quer dizer então que você sentiu alguma coisa nociva no Menshiki?
— Nociva?
— Alguma coisa ruim, negativa.
— “Nocivo” — repetiu ela. E pareceu guardar aquela palavra em
alguma gaveta da mente. Junto com “ribombar em céu azul”.
— Não é bem isso — disse Mariê. — Não acho que ele tenha más
intenções. Mas acho que esse Menshiki, com seu belo cabelo branco, está
escondendo alguma coisa.
— Você sente isso?
Ela assentiu com a cabeça.
— Então achei melhor vir checar com você. Achei que talvez você
soubesse alguma coisa sobre ele.
— A sua tia também sentiu a mesma coisa? — perguntei,
desconversando.
Ela pendeu a cabeça para o lado, em dúvida.
— Não, minha tia não pensa desse jeito. Ela não tem muitos sentimentos
nocivos sobre outras pessoas. Além disso, ela ficou interessada no
Menshiki. Apesar de ser um pouco mais velho que ela, ele é bonito, bem-
vestido, parece ser rico, mora sozinho…
— Então sua tia gostou dele?
— Acho que sim. Ela estava muito animada enquanto conversava com
ele. Com uma expressão alegre e a voz um pouco diferente. Não era o seu
jeito de sempre. E acho que ele também deve ter percebido essas
diferenças.
Eu servi mais chá, sem comentar nada sobre o assunto, depois tomei um
gole do meu.
Mariê passou um tempo refletindo sozinha.
— Mas como será que Menshiki sabia que a gente vinha pra cá hoje?
Você falou pra ele, professor?
Escolhi as palavras com cuidado, para evitar outra mentira.
— Eu não acho que ele planejou se encontrar com sua tia aqui hoje.
Porque, quando ele viu que vocês estavam aqui, quis ir embora, e fui eu
que o convenci a ficar. Acho que ele veio pra cá por acaso, ela estava aqui
por acaso, e ao vê-la ele ficou interessado. Afinal, sua tia é uma mulher
bem atraente.
Mariê não pareceu totalmente convencida, mas também não insistiu no
assunto. Só passou um tempo com a testa franzida e os cotovelos na mesa.
— De qualquer maneira, no próximo domingo vocês vão visitar a casa
dele — falei.
Mariê concordou com a cabeça.
— É, pra ver o retrato que você pintou. Acho que minha tia está muito
animada pra ir lá. Para fazer uma visita a ele, quero dizer.
— Não a culpe por se animar. Morando nessas montanhas desertas, sem
ninguém ao redor, ela não deve ter tantas oportunidades de conhecer novos
homens como tinha na cidade.
Mariê apertou os lábios por um instante.
— Ela teve um namorado por muito tempo, sabe. Um namoro longo e
sério — disse ela, como se me contasse um enorme segredo. — Isso foi
antes de ela vir pra cá, quando trabalhava como secretária em Tóquio. Mas
muitas coisas aconteceram e no fim não deu certo, e ela ficou muito mal. E
minha mãe morreu e ela veio cuidar de mim. Quer dizer, é claro que não
foi ela mesma quem me contou isso, mas…
— E agora, ela está saindo com alguém?
— Acho que não.
— E você está meio preocupada que ela tenha certa expectativa em
relação ao Menshiki nesse sentido? Foi por isso que veio conversar comigo
hoje?
— Sabe, você acha que Menshiki está tentando seduzir minha tia?
— Seduzir?
— É, sem sentimentos sérios.
— Isso eu não tenho como saber — respondi. — Não conheço Menshiki
tão bem assim. Além disso, ele e sua tia se conheceram hoje, ainda não
aconteceu nada de fato. E esse tipo de questão fica entre o coração de duas
pessoas e vai mudando conforme as coisas acontecem. Tem vezes em que
um sentimento pequeno acaba crescendo muito, outras vezes é o contrário.
— Mas eu tenho tipo uma intuição — declarou Mariê.
Eu tive a impressão de que ela podia confiar nessa coisa tipo uma
intuição, mesmo sem nenhuma prova concreta. Isso também foi um tipo de
intuição da minha parte.
— E por isso você está preocupada que aconteça alguma coisa e sua tia
seja magoada mais uma vez.
Mariê assentiu discretamente.
— Minha tia não é uma pessoa desconfiada. E não está acostumada a se
magoar.
— Quando você fala assim, parece que você é quem cuida dela, e não o
contrário — falei.
— Em certo sentido — disse Mariê, séria.
— E você? Está acostumada a ser magoada?
— Não sei — disse ela. — Só que, pelo menos, eu não fico me
apaixonando.
— Mas um dia você vai.
— Mas agora, não. Até meus peitos crescerem um pouco mais.
— Pode acontecer mais rápido do que você imagina.
Mariê fez uma expressão desconfiada. Pelo visto, não acreditou em mim.
Nesse momento, uma pequena dúvida brotou no meu peito. Será que
Menshiki não estaria se aproximando de Shoko Akikawa para estabelecer
um vínculo com Mariê?
Menshiki me dissera que não dava para saber nada vendo-a somente
uma vez, por alguns minutos. Que ele precisava de mais tempo.
Shoko seria uma intermediária importante para que ele pudesse
continuar se encontrando com Mariê. Mas para tanto ele precisava, em
maior ou menor grau, tê-la em suas mãos. Isso provavelmente não era uma
tarefa difícil para um homem como Menshiki. Não dá para dizer que ele o
faria com um pé nas costas, mas não queria pensar que ele estava
escondendo uma intenção dessas. É possível que, como dissera o
comendador, ele precisasse ter sempre um plano. Mas ele não me parecia
um sujeito tão ardiloso assim.
— A casa do Menshiki é impressionante — contei a Mariê. — É bem
interessante… No mínimo, uma casa que vale a pena conhecer.
— Você já foi lá, professor?
— Uma vez só. Ele me convidou para jantar.
— Fica do outro lado do vale?
— Sim, quase em frente à minha.
— Dá pra ver daqui?
Eu fingi pensar um pouco.
— Dá, de longe.
— Eu queria ver…
Eu a levei até o terraço e apontei a mansão de Menshiki na montanha do
outro lado do vale. As luzes do jardim a destacavam no mar da noite como
um navio luxuoso. Ainda havia luzes acesas em alguns cômodos, todas
discretas e fracas.
— Aquela enorme casa branca? — perguntou Mariê, espantada, e me
fitou por um instante. Depois, sem dizer nada, voltou o olhar para a
mansão no horizonte. — Da minha casa também dá pra ver bem essa casa.
Mas de um ângulo um pouco diferente daqui. Eu sempre quis saber quem
morava num lugar desses.
— É, ela se destaca, com certeza — falei. — Bom, essa é a casa do
Menshiki.
Mariê passou muito tempo debruçada sobre o parapeito, olhando a casa.
Acima do seu telhado piscavam algumas estrelas. Não havia vento, e
nuvens pequenas e firmes pairavam no céu. Como nuvens de um cenário,
presas firmemente por pregos a uma paisagem pintada no compensado. Às
vezes Mariê movia a cabeça e seu cabelo preto e muito liso brilhava,
refletindo o luar.
— Menshiki vive sozinho naquela casa, mesmo? — disse Mariê,
voltando-se em minha direção.
— Vive. Sozinho naquela casa enorme.
— Não é casado?
— Ele disse que nunca se casou.
— Com o que ele trabalha?
— Não sei muito bem. Acho que algo relativo à informação, talvez TI.
Mas diz que agora não está trabalhando com nada específico. Ele vive do
dinheiro que ganhou ao vender sua empresa e da sua cota dos dividendos.
Isso é tudo o que eu sei.
— Ele não trabalha? — perguntou ela, de testa franzida.
— Foi o que ele me falou. Raramente sai de casa.
Quem sabe Menshiki não estava nos observando com seu binóculo de
alta precisão, enquanto conversávamos daquela maneira. O que ele
pensaria, ao nos ver lado a lado no terraço, àquela hora da noite?
— É melhor você voltar para casa logo — falei pra Mariê. — Já está
tarde.
— Deixando de lado o Menshiki… Eu estou feliz por você pintar meu
retrato, professor — confessou ela, em voz baixa. — Estou muito curiosa
pra ver como vai ficar.
— Espero que eu consiga fazer um bom quadro — respondi.
As palavras dela me comoveram. Quando falava de pintura, ela era
capaz de abrir surpreendentemente o coração.
Naquele dia, eu queria muito desenhar alguma coisa. Podia sentir essa
vontade crescendo dentro de mim, como a maré da tarde que vai subindo
pouco a pouco. Mas era muito cedo para começar o retrato de Mariê
Akikawa. Preferia esperar até domingo. Também não me animei a trazer O
homem do Subaru Forester branco de volta para o cavalete. Naquele
quadro estava latente, conforme Mariê comentara, alguma força perigosa.
Eu já tinha deixado uma tela nova, de trama média, preparada para o
retrato de Mariê. Sentei na banqueta diante dela e observei aquele vazio.
Mas a imagem que eu deveria pintar ali não aparecia. O vazio continuou
sendo só um vazio. O que eu podia desenhar? Depois de pensar por algum
tempo, a resposta surgiu em minha mente.
Eu me afastei da tela e peguei um grande caderno de rascunhos. Então
me sentei no chão do ateliê, apoiei as costas na parede e, de pernas
cruzadas, fui desenhando a câmara de pedra com um lápis. Usei um lápis
HB em vez do 2B que costumava usar. Era um esboço daquele misterioso
buraco que surgira sob o montículo de pedra no meio do bosque. Eu trouxe
de volta à mente a cena que acabara de ver e a desenhei com a maior
precisão possível. Tracei as paredes de pedra, construídas com uma
minúcia surpreendente. Desenhei o chão ao redor do buraco, onde as folhas
caídas e úmidas formavam belos padrões. O capim alto que crescia
escondendo o buraco, pisoteado e amassado pelas esteiras da escavadeira.
Enquanto desenhava, a sensação de ir me tornando um só com o buraco
no meio do bosque voltou a me invadir. Sem dúvida, o próprio buraco
desejava ser retratado. Com minúcia e precisão. Obedecendo ao seu desejo,
eu movia as mãos quase inconscientemente. O que eu sentia naquele
momento era a mais genuína alegria da criação. Não sei quanto tempo se
passou, mas quando percebi as linhas escuras do lápis cobriam toda a
superfície do papel.
Fui até a cozinha, tomei vários copos de água gelada, requentei o café e
voltei para o ateliê com uma caneca nas mãos. Apoiei o caderno com a
página aberta sobre o cavalete, sentei na banqueta e, a certa distância, fitei
aquele desenho. Ali estava recriado, de forma extremamente real e precisa,
o buraco redondo do bosque. Ele parecia, de fato, ter vida própria. Na
verdade, parecia ainda mais vivo do que o buraco de verdade. Desci da
banqueta, me aproximei para olhar o desenho, depois me afastei
novamente para ver de outro ângulo. E então me dei conta de que aquela
imagem lembrava o órgão sexual de uma mulher. O capim esmagado pelo
trator era igualzinho aos seus pelos pubianos.
Balancei a cabeça e não pude conter um sorriso constrangido. Era uma
interpretação muito classicamente freudiana. Imaginei algum crítico de arte
metido a besta falando sobre as implicações psicológicas: “A meu ver, este
buraco escuro aberto no chão, que traz à mente uma vagina solitária, deve
ser entendido funcionalmente como uma representação simbólica do desejo
e das memórias que brotam da esfera inconsciente do artista”, ou algo que
o valha. Que coisa idiota.
Porém, ainda assim, eu não conseguia desfazer essa conexão entre
aquele buraco misterioso no meio do bosque e uma vagina. Então, quando
o telefone tocou, pouco depois, só de ouvir o toque já suspeitei que era a
minha amante.
E era.
— Oi, consegui um tempo livre aqui, de repente… O que você acha de
eu passar aí agora?
Olhei o relógio.
— Pode vir. Podemos almoçar juntos.
— Compro alguma coisa simples no caminho — disse ela.
— Boa ideia. Estou trabalhando desde cedo e não preparei nada…
Ela desligou o telefone. Eu fui para o quarto, arrumei a cama, dobrei as
roupas largadas pelo chão e as guardei no armário. Lavei a louça do café da
manhã e arrumei a pia da cozinha. Depois fui para a sala, coloquei o disco
de sempre, O cavaleiro da rosa de Richard Strauss (com regência de Georg
Solti), para tocar na vitrola, sentei no sofá e fiquei lendo um livro enquanto
esperava minha amante chegar. Pensei, distraído, qual seria o livro que
Shoko Akikawa estava lendo. Que tipo de livro ela leria com tanto
entusiasmo?
Minha amante chegou ao meio-dia e quinze. Seu Mini vermelho parou
diante da casa e ela desceu carregando a sacola de papel de um mercado.
Embora continuasse chovendo silenciosamente, ela não tinha um guarda-
chuva. Vestia uma capa de chuva de plástico amarelo, o capuz sobre a
cabeça, e caminhou até a porta com passos rápidos. Eu abri a porta, peguei
a sacola de compras e a levei até a cozinha. Embaixo da capa de chuva,
usava um suéter de gola alta verde-claro, sob o qual se via a forma bonita
dos seus seios. Não eram tão grandes quanto os de Shoko Akikawa, mas
tinham um bom tamanho.
— Você estava trabalhando desde cedo?
— Estava — falei. — Mas não é nenhuma encomenda. Só fiquei com
vontade de desenhar alguma coisa, aí estava desenhando, tranquilamente, o
que me veio à mente.
— Para matar o tempo?
— É, acho que sim… — respondi.
— Está com fome?
— Não muita.
— Que bom — disse ela. — Então não quer deixar pra almoçar depois?
— Claro, pode ser — respondi.
Pouco antes das dez horas, ouvi o Toyota Prius se aproximar muito
silenciosamente, como de costume. Shoko Akikawa vestia um longo
casaco cinza escuro, de tecido espinha de peixe, uma saia cinza claro de lã
e meias-calças pretas com estampa. No pescoço, trazia uma echarpe
colorida Missoni. Um look elegante e urbano de final de outono. Mariê
usava uma jaqueta esportiva larga por cima de um moletom, jeans rasgados
e tênis All Star azul-marinho. Mais ou menos a mesma coisa que da última
vez. Não estava de boné. O ar estava gelado e o céu, coberto de nuvens
finas.
Trocamos alguns cumprimentos breves, depois Shoko se instalou no
sofá, tirou o livro grosso da bolsa e se concentrou na leitura. Eu e Mariê a
deixamos ali e fomos para o ateliê. Como sempre, eu me sentei na
banqueta de madeira e Mariê, na cadeira de encosto reto. Havia cerca de
dois metros entre nós. Ela tirou a jaqueta, a dobrou e a colocou no chão,
perto dos pés. Tirou também o moletom. Embaixo dele, vestia duas
camisetas sobrepostas, uma azul-marinho de mangas curtas sobre outra
cinza de mangas longas. Seus seios continuavam não tendo volume. Ela
ajeitou os cabelos lisos e pretos.
— Não está com frio? — perguntei. Havia no ateliê um velho aquecedor
a querosene, mas não estava aceso.
Mariê só balançou de leve a cabeça. Não estava com frio.
— Hoje vou começar a pintar na tela — falei. — Mas você não precisa
fazer nada. Basta ficar sentada aí. O resto é comigo.
— Não tem como eu não fazer nada — disse ela, olhando nos meus
olhos.
Eu fitei seu rosto, com as mãos ainda pousadas sobre os joelhos.
— O que quer dizer com isso?
— Ué, eu estou viva e respirando, e pensando várias coisas.
— Claro — respondi —, pode respirar à vontade e pensar à vontade. O
que eu quero dizer é que não será necessário que você faça nada especial.
Por mim, basta que fique aí, sendo você mesma.
Entretanto, Mariê só me encarou ainda mais fixamente. Como quem diz
que minha explicação era absolutamente insatisfatória.
— Mas eu quero fazer alguma coisa — disse ela.
— Que tipo de coisa?
— Alguma coisa que te ajude a pintar o quadro.
— Fico muito grato, mas como você poderia me ajudar?
— Mentalmente, é claro.
— Entendi — falei.
Mas não conseguia imaginar como, na prática, ela poderia me ajudar
mentalmente.
— Se for possível, eu gostaria de entrar na sua cabeça, professor —
disse ela. — Enquanto você pinta meu retrato. E me ver através dos seus
olhos. Fazendo isso, talvez eu me entenda um pouco melhor. E talvez você
também me entenda um pouco melhor.
— Eu adoraria isso — falei.
— Sério?
— Sim, claro.
— Mas, dependendo do caso, pode ser bem assustador.
— Se entender melhor?
Mariê concordou com a cabeça.
— É que, pra se conhecer melhor, é preciso puxar alguma outra coisa, de
outro lugar.
— Você quer dizer que não é possível compreender corretamente a si
mesmo sem acrescentar alguma outra coisa, um terceiro elemento?
— “Terceiro elemento”?
— É. Ou seja, pra entender claramente a relação entre A e B, você
precisa olhar de outro ponto de vista, um ponto de vista C. Fazer uma
triangulação — expliquei.
Mariê pensou um pouco e encolheu de leve os ombros.
— Pode ser.
— E, às vezes, essa terceira coisa que se acrescenta pode ser
assustadora. É isso que você quer dizer?
Ela concordou.
— Você costuma pensar sobre coisas assustadoras desse tipo?
Mariê não respondeu.
— Se eu conseguir te retratar direito — falei —, talvez você consiga ver,
com seus próprios olhos, como é sua imagem vista através dos meus olhos.
Se der certo, é claro.
— É por isso que nós precisamos das pinturas.
— Sim, por isso que nós precisamos das pinturas. Ou dos textos, e das
músicas, desse tipo de coisa.
Quando dá certo, falei para mim mesmo.
— Vamos começar — disse para Mariê. Então, enquanto olhava seu
rosto, preparei a tinta marrom que usaria para o rascunho. E escolhi o
primeiro pincel.
O trabalho prosseguiu devagar, mas sem contratempos. Fui traçando seu
torso sobre a tela. Era uma bela menina, mas sua beleza não era muito
necessária para a minha pintura. O que eu precisava era do que se escondia
por trás dela. Em outras palavras, aquilo que era subjacente a sua
personalidade. Eu precisava encontrar este algo e trazê-lo para a tela. Ele
não precisava ser belo. Em alguns casos, poderia até mesmo ser feio. Mas,
de qualquer maneira, para encontrá-lo, eu tinha que compreender
corretamente aquela menina. Não através das palavras ou da lógica, mas
compreendê-la como uma forma singular, um composto de luzes e
sombras.
Concentrando toda a minha atenção, fui sobrepondo cores e linhas na
tela. Às vezes fazia isso muito rápido, às vezes de forma lenta e cuidadosa.
Enquanto isso, Mariê permaneceu serena sentada sobre a cadeira, sem
mudar de expressão. Mas eu sabia que ela estava reunindo atentamente
toda a sua força de vontade. Eu podia sentir a força que se movia ali. Ela
dissera que não tinha como não fazer nada, e estava fazendo alguma coisa.
Provavelmente para me ajudar. Ocorria uma inconfundível troca, um fluxo
entre mim e aquela menina de treze anos.
Eu me lembrei de repente das mãos da minha irmã. No dia em que
entramos juntos na caverna na encosta do monte Fuji, ela ficou segurando a
minha mão na escuridão gelada. Seus dedos eram pequenos e quentes, mas
surpreendentemente fortes. Sem dúvida, uma troca vital estava
acontecendo entre nós dois. Cada um dava alguma coisa e, ao mesmo
tempo, recebia algo de volta. Era o tipo de troca que só pode acontecer em
momentos e lugares específicos, depois começa a minguar e desaparece.
Mas a memória permanece, uma memória é capaz de aquecer o tempo. E a
arte, quando dá certo, é capaz de dar forma a essa memória, e até de fixá-la
na história. Assim como Van Gogh tornou possível que aquele carteiro
desconhecido de uma pequena cidade vivesse até hoje, como parte da
memória coletiva.
Quando acordei, passava das dez. O que era raro para uma pessoa que
madruga como eu. Lavei o rosto, passei um café e comi a primeira refeição
do dia. Não sei por quê, mas estava morto de fome. Comi quase o dobro do
meu café da manhã habitual. Três torradas, dois ovos cozidos, uma salada
de tomate, além de duas canecas grandes cheias de café.
Depois de comer, fui dar uma olhada no ateliê, mas é claro que
Tomohiko Amada não estava mais lá. Encontrei apenas o ambiente estático
que aquele cômodo tinha durante as manhãs. Um cavalete, uma tela
apoiada sobre ele (o quadro de Mariê) e, à sua frente, a banqueta redonda
de madeira. Um pouco afastada do cavalete, a cadeira em que Mariê se
sentava para posar. Na parede ao lado, estava pendurado O assassinato do
comendador. O guizo continuava desaparecido. O céu sobre o vale estava
todo azul, o ar límpido e um pouco gelado. O canto agudo dos pássaros, se
preparando para o inverno, perfurava o ar.
Telefonei para a empresa de Masahiko Amada. Já era quase meio-dia,
mas sua voz soou um pouco sonolenta. Ecoava nela a preguiça das manhãs
de segunda-feira. Depois de cumprimentá-lo, perguntei casualmente sobre
o seu pai. Queria me certificar de que Tomohiko ainda não havia falecido e
que aquilo que eu presenciara na noite anterior não era seu fantasma. Caso
tivesse falecido no dia anterior, seu filho certamente já teria sido
informado.
— Seu pai está bem?
— Fui visitá-lo faz alguns dias. A cabeça já não tem mais jeito, mas
fisicamente acho que ele não está muito mal. Pelo menos, não parece ter
nada muito grave.
Então Tomohiko Amada ainda não morreu, pensei. O que vi ontem não
era um fantasma. Era uma personificação efêmera criada pela força de
vontade de uma pessoa viva.
— É uma pergunta meio estranha de fazer, mas não tinha nada diferente
com seu pai? — perguntei.
— Diferente?
— É.
— Por que você quer saber isso?
Eu dei a resposta que havia preparado de antemão:
— Pra falar a verdade, tive um sonho esquisito outro dia. Sonhei que seu
pai voltava pra esta casa, de madrugada, e eu o via por acaso. Foi um
sonho muito vívido, do tipo que a gente acorda num susto. Isso me deixou
pensando se tinha acontecido alguma coisa.
— Puxa… — comentou Masahiko, interessado. — Que curioso. E o que
meu pai estava fazendo de volta à casa no meio da noite?
— Estava sentado, imóvel, na banqueta do ateliê.
— Só isso?
— É, só isso, não estava fazendo mais nada.
— A banqueta que você diz é aquela redonda, de três pés?
— Isso.
Masahiko pensou um pouco sobre o assunto.
— Talvez a morte dele esteja se aproximando… — disse Masahiko, sem
emoção na voz. — Porque dizem que, no final da vida, a alma das pessoas
costuma visitar o lugar que foi mais importante pra elas. Acredito que para
o meu pai esse lugar seria aquele ateliê.
— Mas ele não tem mais memória, tem?
— Não, no sentido corrente ele não tem mais memória. Mas ainda deve
ter alma. É só que sua consciência não consegue mais acessá-la. Quer
dizer, as linhas se cortaram e a consciência não é mais acessada, só isso.
Com certeza a alma continua lá, no fundo. Talvez totalmente ilesa.
— Entendi.
— Você não ficou com medo?
— Do sonho?
— É, você disse que foi muito vívido…
— Não. Foi só uma sensação estranha. Como se o estivesse vendo de
verdade.
— Vai ver era ele mesmo — disse Masahiko.
Eu não disse nada sobre isso. Não poderia contar ao seu filho que
Tomohiko Amada provavelmente havia voltado àquela casa para ver
O assassinato do comendador (pensando bem, talvez tenha sido eu quem o
convidara para voltar. Se eu não tivesse desembrulhado aquele quadro,
talvez ele não retornasse). Se eu mencionasse esse fato, teria que explicar
tudo — sobre como eu havia descoberto o quadro no sótão e, não só isso, o
desembrulhado sem pedir permissão e o pendurado na parede do ateliê.
Talvez um dia eu tivesse que confessar tudo isso, mas ainda não queria ter
essa conversa.
— Ah, sim… — disse Masahiko. — No outro dia eu estava sem tempo e
não consegui te falar o que queria. Eu tinha dito que preciso conversar com
você sobre uma coisa, lembra?
— Lembro, sim.
— Pensei em ir até aí uma hora e conversar com calma, pode ser?
— Bom, esta casa na verdade é sua. Você pode vir quando quiser.
— Estou pensando em visitar meu pai em Izu-Kogen de novo, neste fim
de semana. Aí posso aproveitar e passar aí na volta, se não for ruim pra
você. Fica bem no caminho.
Respondi que, fora o fim da tarde de quarta e sexta-feira e as manhãs de
domingo, eu podia qualquer hora. Quarta e sexta eu dava aulas na escola
em Odawara, e aos domingos precisava pintar o retrato de Mariê.
Ele disse que provavelmente viria no sábado à tarde.
— De qualquer jeito, eu ligo antes.
Depois de desligar, fui para o ateliê e experimentei sentar na banqueta. A
banqueta na qual, na noite anterior, Tomohiko Amada estivera sentado.
Assim que me sentei, senti que aquela não era mais a minha banqueta. Não
havia dúvida de que aquele era um móvel que Tomohiko usara por muitos
anos para pintar. Pertencia a ele e continuaria, eternamente, a pertencer.
Para alguém desavisado, podia parecer apenas uma velha banqueta de três
pés, cheia de marcas, mas a vontade de Tomohiko estava impregnada nela.
Eu estava usando-a sem permissão por causa das circunstâncias.
Ainda sentado ali, fitei O assassinato do comendador na parede. Eu já
fizera isso incontáveis vezes. E aquela era uma obra que merecia ser
admirada repetidamente. Em outras palavras, era uma obra que abria
espaço para ser vista de diversas maneiras. Mas agora eu estava com
vontade de examiná-la por um ângulo distinto. Afinal, ela guardava
alguma coisa que Tomohiko Amada sentira necessidade de ver mais uma
vez, antes que sua vida chegasse ao fim.
Passei um longo tempo observando o quadro. Concentrado, contendo a
respiração, o fitei do mesmo local, do mesmo ângulo e com a mesma
postura em que, na noite anterior, o ikiryo, ou a projeção de Tomohiko
havia se sentado para observá-la. No entanto, por mais atentamente que eu
olhasse, não pude ver naquela superfície nada que eu não tivesse visto
antes.
Quando retornei à casa, o carro de Menshiki não estava mais lá. Ele deve
ter vindo buscá-lo, de táxi ou coisa assim, enquanto eu estava fora. Ou
enviou algum funcionário para fazer o serviço. Seja como for, agora
restava no pátio apenas o meu Corolla, empoeirado e solitário. Pensei que,
como Menshiki dissera, seria bom medir a pressão do ar nos pneus pelo
menos uma vez. Mas eu ainda não tinha comprado um medidor. Era
provável que acabasse nunca comprando.
Pensei em preparar o almoço, mas, quando parei diante da pia da
cozinha, percebi que meu apetite, tão abundante naquela manhã, havia
desaparecido por completo. Em vez disso, eu estava com muito sono.
Peguei um cobertor, deitei no sofá da sala e adormeci rapidamente. Tive
um sonho curto enquanto dormia. Um sonho muito vívido e realista. Mas
depois não consegui me lembrar de nada do que tinha sonhado. Só que
havia sido muito vívido e realista. Mais do que um sonho, parecia um
retalho de realidade que tinha ido parar no meio do meu sono por engano.
Quando acordei, ele se tornou um animal ágil e fugidio e desapareceu sem
deixar vestígios.
42.
Se quebrar quando cai no chão, é um
ovo
Quando acordei, já era dia claro. Uma camada fina de nuvens cinza cobria
o céu, mesmo assim os raios benevolentes do sol se espalhavam sobre a
terra. Faltava pouco para as sete horas.
Lavei o rosto, preparei a cafeteira e fui ver como estavam as coisas na
sala. Masahiko dormia fundo no sofá, enrolado no cobertor. Não parecia
que ia acordar tão cedo. Sobre a mesa de canto estava a garrafa quase vazia
de Chivas Regal. Recolhi a garrafa e os copos sem perturbá-lo.
Eu tinha bebido bastante na noite anterior, mas não estava de ressaca.
Não sentia azia e tinha a cabeça leve como em qualquer manhã. Não sei
por quê, mas eu nunca tive uma ressaca na vida. Talvez isso seja do meu
metabolismo. Mesmo que eu beba muito, basta dormir uma noite para, ao
acordar, não sentir mais sinal do álcool. Eu podia tomar café e ir logo
trabalhar.
Fiz duas torradas, fritei dois ovos e escutei o noticiário e a previsão do
tempo no rádio enquanto comia. O preço das ações oscilava violentamente,
havia um escândalo no parlamento e um atentado terrorista no Oriente
Médio deixara inúmeros mortos e feridos. Como sempre, as notícias não
eram nada animadoras. Mas, ao mesmo tempo, nada daquilo tinha
consequências diretas na minha vida. Não passavam, por enquanto, de
acontecimentos distantes, afetando pessoas desconhecidas. Eu sentia muito
por elas, mas não havia nada que eu pudesse fazer. A previsão do tempo
anunciou um clima razoável. Nublado o dia todo, porém sem chuva. Não
seria um dia deslumbrante, mas também não seria muito feio.
Provavelmente. Mas os locutores, com a esperteza de quem trabalha na
mídia, nunca usavam termos incertos como “provavelmente”. Em vez
disso, usavam expressões convenientes como “probabilidade de
precipitação”, de forma que ninguém precisasse se responsabilizar pelas
declarações.
Quando o noticiário e a previsão do tempo chegaram ao fim, desliguei o
rádio e lavei a louça. Depois me sentei novamente à mesa e tomei uma
segunda xícara de café, pensando na vida. Esse é o momento em que as
pessoas costumam abrir o jornal do dia, mas eu não assinava nenhum
jornal, então só me restava pensar, enquanto tomava café e fitava o belo
salgueiro diante da janela.
Primeiro, pensei sobre a minha esposa, que (aparentemente) teria um
filho em breve. Depois me dei conta de que ela não era mais minha esposa.
Nada mais nos conectava. Nem obrigações civis, nem relações pessoais.
Para ela eu já devia ser um estranho, que não significava nada. Era muito
esquisito pensar isso. Até poucos meses antes nós comíamos juntos todas
as manhãs, usávamos as mesmas toalhas e sabonetes, mostrávamos nossos
corpos nus um ao outro e dividíamos a cama, mas agora éramos estranhos,
sem nenhum vínculo.
Pensando sobre isso, comecei a sentir que eu não significava nada nem
para mim mesmo. Pousei as duas mãos sobre a mesa e as observei por um
tempo. Eram minhas mãos, sem dúvida. A direita e a esquerda eram
praticamente idênticas, só que espelhadas. As mãos que eu usava para
pintar, para preparar comida e para comer, às vezes para acariciar uma
mulher. Mas, por algum motivo, não pareciam minhas. Nem o dorso, nem a
palma, nem as unhas, nem as digitais, tudo me parecia desconhecido, as
mãos de um estranho.
Desisti de encará-las. Desisti também de pensar sobre a mulher que
havia sido minha esposa. Saí da mesa, fui até o banheiro, tirei o pijama e
tomei uma ducha quente. Lavei bem os cabelos e fiz a barba diante do
espelho. E então, novamente, pensei sobre Yuzu, que esperava uma criança
— uma criança que não era minha. Não queria pensar sobre isso, mas não
podia evitar.
Ela estava grávida de sete meses. Sete meses atrás… seria a segunda
metade de abril. O que eu estava fazendo na segunda metade de abril? Foi
em meados de março que saí de casa e parti naquela longa viagem solitária.
Passei um longo tempo perambulando pela região de Tohoku e Hokkaido
no meu velho Peugeot 205. Quando cansei de viajar e voltei para Tóquio,
já estávamos em maio. No final de abril, fui de Hokkaido para Aomori,
atravessando de balsa o vasto espaço entre a cidade de Hakodate e a
península de Shimokita.
Peguei no fundo de uma gaveta o diário simples que mantivera durante a
viagem e tentei descobrir onde eu estava naquele período. Eu havia me
afastado da costa e estava viajando por dentro das montanhas de Aomori.
Apesar de já ser abril, ainda fazia muito frio e havia bastante neve nas
montanhas. Não sei bem por que resolvi me aventurar por essa região tão
gelada. Lembrei que havia passado vários dias hospedado em um pequeno
hotel quase deserto, próximo a um lago, não sei em que cidade. Era uma
velha construção de concreto, sem nenhum charme e com refeições muito
simples (apesar de não serem ruins), mas continuei lá porque as diárias
eram inacreditavelmente baratas. E havia também, em um canto do jardim,
uma banheira de águas termais ao ar livre que eu podia usar a qualquer
hora do dia ou da noite. O hotel acabara de retomar as atividades depois do
inverno, então acho que eu era praticamente o único hóspede.
Não sei por quê, mas as minhas memórias dessa viagem eram muito
vagas. No caderno que usava como diário, anotei apenas o nome das
cidades que visitei, onde me hospedei, o que comi, quantos quilômetros o
carro rodou, as despesas diárias, esse tipo de coisa. Registrava tudo isso
toscamente, sem método e sem comentários sobre meu estado emocional,
minhas impressões, nada do gênero. Talvez eu não tivesse nada para
escrever sobre isso. Então, não adiantava checar o diário, os dias
continuavam sendo praticamente indistintos. Os nomes também não me
ajudavam a lembrar das cidades. Muitos dias eu não havia sequer anotado
onde estava. Eram sempre as mesmas paisagens, as mesmas comidas, o
mesmo clima (só apareciam duas temperaturas: “frio” e “não tão frio”).
Tudo o que eu conseguia lembrar sobre a viagem era essa sensação
monótona de repetição.
As paisagens e cenas que eu retratara no meu pequeno caderno de
rascunhos eram capazes de refrescar um pouco melhor a memória (não
levei câmera, então não tenho nem uma única foto. Em vez disso, tenho
desenhos). Mas não digo que tenha desenhado muito durante essa viagem.
Só registrava o que estivesse à minha frente, para matar o tempo, com uma
esferográfica ou um lápis velho. Flores à beira da estrada, cachorros e
gatos, a silhueta das montanhas contra o céu, coisas assim. De vez em
quando, retratava também as pessoas ao meu redor. Mas nesses casos era
comum o modelo me pedir o desenho de presente, então acabei me
desfazendo de quase todos.
No dia 19 de abril, encontrei no rodapé do diário as palavras “noite
passada — sonho”, grifadas com força por um traço de lápis 2B.
Certamente tinha sido um sonho bem significativo, para eu ter anotado no
diário e até grifado daquela maneira, mas demorei certo tempo para
lembrar com o que havia sonhado. Até que tudo me voltou à memória, de
uma só vez.
Naquela noite, já próximo do amanhecer, eu tivera um sonho muito
vívido, e muito obsceno.
E tudo indica que, justo naquela época, Yuzu concebeu uma criança. É
claro que eu não saberia indicar precisamente a data da concepção, mas
creio que poderia assumir que foi naquele período.
Pensei que aquilo era semelhante à história de Menshiki. Porém, ele
realmente tivera relações com uma mulher de carne e osso, no sofá do seu
escritório. Isso não havia se passado em sonho. E, naquele mesmo período,
essa mulher engravidou. Logo depois, se casou com um homem rico e mais
velho, e em pouco tempo deu à luz Mariê Akikawa. Portanto, Menshiki
tinha algum fundamento para considerar a possibilidade de Mariê ser sua
filha. As chances talvez fossem ínfimas, mas não era impossível. Só que,
no meu caso, a noite de sexo entre mim e Yuzu não passava de um sonho.
Eu estava no meio das montanhas em Aomori, enquanto Yuzu estava
(provavelmente) em Tóquio. Assim, não havia maneira de ser eu o pai da
criança a quem Yuzu daria à luz. Pensando logicamente, tudo era evidente.
A possibilidade era zero absoluto. Caso eu pensasse logicamente.
Porém, aquele meu sonho era vívido demais para ser deixado de lado tão
facilmente, usando apenas a lógica. Além disso, a relação que tivemos em
sonho foi muito mais marcante do que qualquer transa que tivemos de
verdade ao longo dos seis anos de casados. O prazer que senti foi muito
maior. Naquele instante em que gozei sem parar, foi como se todos os
fusíveis da minha cabeça se fundissem ao mesmo tempo. As diversas
camadas da realidade se dissolveram e se misturaram na minha mente,
formando uma lama densa como o caos primordial do começo do mundo.
Eu sentia que aquele acontecimento tão intenso não podia ter sido
simplesmente um sonho. Ele tinha que estar conectado a algo. Tinha que
exercer alguma influência sobre o mundo real.
Depois que o Volvo sumiu de vista, olhei o relógio. Estava perto da hora
em que as Akikawa costumavam chegar. Voltei para a sala, ajeitei as
almofadas, abri bem as janelas para circular o ar estagnado do ambiente. O
céu ainda estava nublado e um pouco cinzento. Não havia vento.
Eu peguei O assassinato do comendador no quarto de dormir e o
pendurei de volta na parede do ateliê. Então me sentei na banqueta e
observei novamente aquela pintura. O peito do comendador continuava
jorrando sangue e, no canto inferior esquerdo, o Cara Comprida continuava
assistindo à cena com olhos brilhantes. Nada havia mudado.
Mas naquela manhã, enquanto eu olhava para o quadro, o rosto de Yuzu
não saía da minha cabeça. Pensei mais uma vez que aquilo não podia de
jeito nenhum ser um sonho. Eu devo ter visitado de verdade o seu quarto
naquela noite. Assim como Tomohiko Amada visitara o ateliê alguns dias
antes, eu transcendi de alguma maneira os limites físicos da realidade,
cheguei àquele apartamento em Hiroo, entrei no interior de Yuzu e lancei
ali sêmen de verdade. Quando desejam alguma coisa profundamente as
pessoas são capazes de torná-la realidade. Foi o que eu pensei. Por um
canal particular, é possível fazer com que a realidade seja irreal ou a
irrealidade, real. Se você desejar intensamente, do fundo da alma. Mas isso
não serve como prova de que as pessoas são livres. Talvez prove
justamente o fato contrário.
Se eu me encontrasse novamente com Yuzu, gostaria de perguntar se ela
também tivera um sonho erótico como aquele, na segunda metade de abril.
Se havia sonhado que, nas horas próximas do alvorecer, eu visitava o seu
quarto e, enquanto ela dormia (ou seja, enquanto não tinha livre controle
do seu corpo), eu a violava. Isto é, queria saber se aquele sonho tinha
acontecido apenas do meu lado, ou se fora um episódio de mão dupla.
Pessoalmente, eu gostaria de ter essa certeza. Porém, se ela tivesse sonhado
o mesmo que eu, talvez para ela eu tivesse sido uma presença
desagradável, um íncubo. E eu não queria pensar em mim mesmo como
uma criatura dessas — ou pensar que poderia me tornar uma criatura
dessas.
Eu sou livre? Esse questionamento não tinha sentido nenhum para mim.
O que eu mais precisava naquele momento era de uma realidade palpável.
Um chão firme no qual eu pudesse me apoiar. Não uma liberdade que me
permite violar minha própria esposa em sonho.
44.
As características que fazem uma pessoa
ser quem é
Mariê não falou naquela manhã. Sentada na cadeira, cumpriu seu papel de
modelo me fitando diretamente, com o olhar de quem observa uma
paisagem distante. A banqueta era um pouco mais alta do que a cadeira da
mesa de jantar, então ela erguia levemente o rosto para me encarar. Eu
também não puxei conversa. Não tinha nada para dizer, nem sentia muita
necessidade de dizer algo. Então apenas movia o pincel sobre a tela, em
silêncio.
Minha intenção era pintar a imagem de Mariê, claro, mas sentia que se
misturavam a ela a imagem de minha falecida irmã (Komi) e da minha
antiga esposa (Yuzu). Não fazia isso de propósito, elas só acabaram se
mesclando naturalmente. Quem sabe eu buscasse, no interior daquela
jovem, a imagem das mulheres que foram importantes para mim e que
perdi ao longo da vida. Não sei dizer se era uma atitude saudável, mas era a
única maneira que eu conseguia pintar naquele momento. Mentira, não só
naquele momento. Pensando bem, acho que eu sempre desenhara assim,
em maior ou menor grau. Tentando obter na pintura aquilo que eu desejava
e não podia ter na realidade. Incorporava símbolos pessoais e secretos por
trás dos desenhos, de forma que ninguém percebesse.
Seja como for, eu avançava com o retrato de Mariê quase sem hesitar. A
pintura seguia com segurança, passo a passo, rumo à sua compleição.
Assim como um rio que, mesmo forçado pelo terreno a fazer curvas, se
acumular e estagnar aqui e ali, segue sempre em frente, aumentando de
volume até chegar, invariavelmente, no oceano. Eu sentia esse movimento
no meu próprio corpo, como o correr do sangue em minhas veias.
— Posso vir aqui mais tarde — falou Mariê em voz baixa quando a
sessão estava terminando. A entonação era afirmativa, mas sem dúvida se
tratava de uma pergunta. Tudo bem se eu vier para cá mais tarde?, queria
saber ela.
— “Vir aqui”, você quer dizer, pela tal passagem secreta?
— É.
— Pode, mas que horas?
— Ainda não sei.
— Acho que não é bom você vir quando já estiver escuro. Não se sabe o
que tem nessas montanhas depois que o sol se põe — falei.
Muitas coisas esquisitas se escondiam na escuridão por perto daquela
casa. O comendador, o Cara Comprida, o homem do Subaru Forester
branco, o fantasma vivo de Tomohiko Amada… tinha de tudo. É provável
que tivesse até o tal íncubo, meu alter ego sexual. Na escuridão da noite,
até eu mesmo era capaz de me transformar em algo sinistro. Pensar nisso
me dava arrepios.
— Vou tentar vir enquanto ainda estiver claro — disse Mariê. — É que
preciso discutir um assunto com você, professor. A sós.
— Tudo bem, pode vir.
O sinal que indicava meio-dia tocou e encerrei o trabalho.
Como sempre, Shoko Akikawa estava lendo com grande concentração,
sentada no sofá. Pelo visto, faltava pouco para ela terminar aquele longo
livro de bolso. Ao nos ver ela tirou os óculos, fechou o livro com o
marcador na página e ergueu o rosto.
— O trabalho está progredindo bem. Creio que, se Mariê puder vir mais
uma ou duas vezes, já conseguirei terminar a obra — disse a ela. — Peço
desculpas por tomar seu tempo desta maneira.
Shoko deu um sorriso muito agradável.
— De modo algum. Por favor, não se preocupe. Mariê parece estar
gostando de posar como modelo, e eu também estou animada para ver
como vai ficar o quadro. Além disso, este sofá é um lugar perfeito para ler,
então não me canso nem um pouco enquanto espero. Para mim também é
uma boa oportunidade de sair de casa e mudar de ares.
Eu queria perguntar o que ela tinha achado da casa de Menshiki, aonde
ela e Mariê haviam ido no domingo anterior. Qual teria sido sua impressão
daquela mansão tão grandiosa? O que ela tinha achado de Menshiki?
Porém, senti que, a não ser que ela mencionasse o assunto, seria indelicado
perguntar.
Shoko estava vestida com esmero naquele dia, como eu já estava
acostumado. Certamente não era o que a maioria das pessoas vestiria em
uma manhã de domingo para visitar uma casa no próprio bairro: uma saia
ocre perfeitamente passada, uma blusa branca de seda fina com um grande
laço e, na lapela do blazer azul-petróleo, um broche de ouro enfeitado com
pedras. Pareciam ser diamantes de verdade. Achei um pouco estiloso
demais para alguém no volante de um Toyota Prius, mas é claro que aquilo
não era da minha conta. Além disso, é possível que os executivos de
marketing da Toyota tenham uma opinião totalmente diferente.
Mariê usava as mesmas roupas de sempre. A costumeira jaqueta
esportiva, jeans furados e uns tênis brancos ainda mais sujos do que os de
antes (já estavam quase se desfazendo no calcanhar).
Quando nos despedimos na entrada da casa, Mariê me fez um sinal com
os olhos, cuidando para que a tia não percebesse. Era uma mensagem
secreta entre nós dois: “até mais tarde”. Eu respondi com um breve sorriso.
Depois que o carro com Shoko e Mariê sumiu de vista, voltei à sala e
cochilei um pouco no sofá. Não almocei, estava sem fome. Dormi por
cerca de meia hora, um sono profundo e sem sonhos. Era um pouco
assustador não saber o que eu poderia fazer em sonho, e ainda mais
assustador não saber em que eu poderia me transformar em sonho.
Passei a tarde de domingo com um sentimento tão inconsistente quanto o
clima daquele dia. Foi um dia silencioso e sem vento, encoberto por
nuvens finas. Li um pouco, ouvi um pouco de música, cozinhei um pouco,
mas não conseguia me concentrar de verdade em nada que fizesse. Era uma
tarde daquelas em que tudo parece ficar pela metade. Conformado, enchi o
ofurô e passei muito tempo imerso. Experimentei listar os longos nomes
dos personagens de Os demônios, de Dostoiévski, um por um. Consegui
me recordar de sete, contando Kirillov. Não sei por quê, mas desde os
tempos de escola eu tenho esse talento para decorar os nomes dos
personagens de longos romances russos. Talvez fosse a hora de reler mais
uma vez Os demônios. Eu era livre, tinha muito tempo e nada para fazer. O
cenário perfeito para ler velhos romances russos intermináveis.
Depois disso, voltei a pensar sobre Yuzu. Com sete meses de gravidez, a
barriga já devia estar ficando grande. Tentei imaginá-la assim. O que será
que ela estava fazendo? Será que estava feliz? É claro que eu não tinha
como saber.
Talvez Masahiko Amada tivesse razão. Talvez eu devesse fazer alguma
coisa idiota para provar que era um homem livre, como um intelectual
russo do século XIX. Mas o quê, por exemplo? Por exemplo… passar uma
hora encerrado no fundo de um buraco escuro. Então de repente percebi.
Quem tinha feito isso era Menshiki. Talvez suas ações não fossem
exatamente loucas, mas eu não podia deixar de pensar que eram um pouco
excêntricas, para dizer o mínimo.
Mariê chegou pouco depois das quatro. A campainha tocou, eu abri a
porta e a encontrei ali. Ela entrou num movimento rápido e ágil,
esgueirando-se pela fresta que eu havia aberto. Como um fiapo de nuvem.
E então olhou ao redor, alerta.
— Não tem ninguém.
— Não, não tem — falei.
— Ontem tinha alguém aqui.
Era uma pergunta.
— Sim, ontem um amigo dormiu aqui — respondi.
— Era um homem.
— É, um homem. Mas como você sabe que tinha alguém?
— É que tinha um carro preto que eu não conhecia parado na frente da
sua casa. Um carro velho, quadrado que nem uma caixa.
Era a velha perua Volvo que Masahiko chamava de “a marmita sueca”.
O tipo de carro que parecia útil para carregar renas mortas.
— Então você veio ontem também?
Mariê assentiu em silêncio. Talvez, sempre que tinha um tempo livre,
pegava a tal “passagem secreta” e vinha espiar aquela casa. E aí aconteceu
de eu vir morar ali. Se fosse isso, será que ela tivera algum contato com
Tomohiko Amada, quando era ele o morador? Eu gostaria de perguntar a
ela sobre isso, alguma hora.
Levei Mariê até a sala e nos sentamos, ela no sofá e eu na poltrona.
Perguntei se ela queria tomar alguma coisa, ela disse que não.
— Foi um amigo dos tempos de faculdade que veio dormir aqui —
contei.
— Vocês são próximos?
— Acho que sim — falei. — Talvez seja a única pessoa que eu posso
chamar de amigo.
Éramos tão próximos que, mesmo ele tendo apresentado à minha esposa
um colega de quem ela se tornou amante, mesmo que tenha descoberto
esse relacionamento e não me contado, mesmo que tudo isso tenha
culminado no meu divórcio, nossa relação continuava inabalada. Acho que
eu não estava mentindo ao chamá-lo de amigo.
— Você tem algum amigo próximo? — perguntei a Mariê.
Ela não respondeu. Manteve a expressão de quem não ouviu nada, sem
mover nem uma sobrancelha. Talvez eu não devesse fazer esse tipo de
pergunta.
— Menshiki não é seu amigo próximo, professor — disse Mariê. Sua
entonação não indicava um ponto de interrogação, mas sem dúvida era
uma pergunta. Então Menshiki não é seu amigo próximo?, era o que ela
queria saber.
— Como eu já te falei outro dia, não conheço Menshiki o suficiente para
chamá-lo de amigo. Só o conheci quando me mudei para cá e ainda não faz
nem seis meses que estou aqui. É preciso certo tempo para que duas
pessoas se tornem boas amigas. Apesar de eu achar Menshiki um sujeito
bem interessante.
— Interessante.
— Como eu posso dizer… Tenho a impressão de que ele tem uma
pessoalidade um pouco diferente das pessoas em geral. Quer dizer, acho
que não é só um pouco, é bem diferente mesmo. Não é uma pessoa fácil de
entender.
— Pessoalidade.
— É, tipo, o jeito que faz uma pessoa ser quem é.
Mariê encarou meus olhos por algum tempo. Parecia estar escolhendo
com cuidado as palavras certas para dizer em seguida.
— Do terraço da casa dele dá pra ver muito bem a minha casa.
Eu esperei um segundo antes de responder.
— É verdade. Pelo relevo, a casa dele fica bem diante da sua. Mas não é
só a sua, de lá também dá pra ver muito bem esta casa aqui.
— Mas eu acho que ele observa a minha casa.
— Como assim, “observa”?
— Lá tinha um negócio parecido com um binóculo gigante. Estava
coberto pra ninguém ver, em cima de um tipo de tripé. Com aquilo, tenho
certeza que dá pra ver tudinho dentro da minha casa.
Então essa menina o descobriu, pensei. Ela é muito atenta e
observadora. Não deixa escapar nada importante.
— Ou seja, você acha que Menshiki usa aquele binóculo pra ficar
observando a sua casa?
Mariê concordou com um movimento breve de cabeça.
Eu respirei fundo e soltei o ar, antes de dizer:
— Mas isso é só uma suposição sua, né? Só porque Menshiki tem um
binóculo muito potente no terraço, isso não quer dizer que ele esteja
observando sua casa. Ele pode muito bem usá-lo para observar as estrelas e
a lua.
O olhar de Mariê não se abalou.
— Já faz algum tempo que eu tenho a sensação de que tem alguém me
observando. Mas não sabia quem nem de onde. Agora sei. Deve ser por
causa dele.
Respirei devagar mais uma vez. A suposição de Mariê estava correta. De
fato, Menshiki observava a casa da família Akikawa todos os dias, com seu
potente binóculo militar. Porém, até onde eu sabia, ele não estava espiando
com más intenções. Não que eu quisesse defender Menshiki, mas ele
simplesmente gostava de assistir àquela menina. De observar aquela bela
jovem de treze anos que talvez fosse sua filha. Com este propósito,
provavelmente com este único propósito, ele comprara aquela enorme
mansão do outro lado do vale, diametralmente oposta à casa dela. Para
tanto, teve que expulsar os moradores antigos à força. Mas eu não poderia
contar a Mariê, naquele momento, todos esses fatos.
— Caso o que você diz seja verdade — falei —, qual seria o propósito
de ele espionar sua casa com tanta dedicação?
— Não sei. Talvez esteja interessado na minha tia.
— Interessado na sua tia?
Ela encolheu de leve os ombros.
Pelo visto, nem ocorria a Mariê a possibilidade de ser ela mesma o alvo
daquela espionagem. Talvez ainda não existisse para aquela jovem a ideia
de que ela poderia ser objeto de interesse sexual dos homens. Isso me
surpreendeu, mas não quis refutar a sua suposição. Se era o que ela achava,
melhor deixar por isso mesmo.
— Eu acho que o sr. Menshiki está escondendo alguma coisa — disse
Mariê.
— Tipo o quê?
Ela não respondeu. Em vez disso, disse como quem conta um segredo de
estado:
— Minha tia já teve dois encontros com ele esta semana.
— Encontros?
— Acho que ela foi na casa dele.
— Sozinha?
— Ela saiu sozinha de carro depois do almoço e só voltou quando já
estava anoitecendo.
— Mas você não tem como confirmar que ela foi à casa do Menshiki,
tem?
— Não… mas eu sei.
— Como você sabe?
— Ela não costuma sair desse jeito — disse Mariê. — Sai às vezes, é
claro, pra ir fazer trabalho voluntário na biblioteca, fazer compras, coisa
assim. Mas pra isso ela não toma longos banhos, faz as unhas, passa
perfume, veste as melhores calcinhas…
— Você é muito observadora, hein? — falei, admirado. — Mas será que
é o Menshiki que ela tem encontrado? Não pode ser outro cara qualquer?
Mariê estreitou os olhos, me encarou, depois balançou um pouco a
cabeça. Como quem diz: eu não sou tão idiota assim. Por diversos
motivos, o homem que sua tia estava vendo não poderia ser outro que não
Menshiki. E Mariê, é claro, não era nenhuma idiota.
— Então sua tia tem ido à casa de Menshiki e os dois ficam lá sozinhos.
Mariê concordou.
— E eles… como posso dizer? Eles estão bem íntimos?
Mariê assentiu mais uma vez com a cabeça e enrubesceu bem de leve.
— É, acho que estão bem íntimos.
— Mas durante a tarde você tem aula, não tem? Como você sabe de tudo
disso, se não fica em casa?
— Eu sei. Dá pra perceber esse tipo de coisa pela cara de uma mulher.
Bom, eu não percebi, pensei. Yuzu teve relações sexuais com outro
homem por muito tempo, enquanto vivia comigo, e eu não percebi. Apesar
de, pensando agora, parecer bem fácil deduzir isso. Como eu não me dei
conta de algo que até uma menina de treze anos conseguia perceber?
— As coisas caminharam muito rápido entre eles, né? — comentei.
— A minha tia não é nada boba, é uma pessoa capaz de pensar com
calma sobre as coisas, mas tem uma parte do coração dela que é um pouco
fraca. E esse Menshiki, eu acho que ele tem uma força maior do que as
pessoas normais. Ele é muito mais forte do que a minha tia.
Talvez ela estivesse certa. De fato, Menshiki dispunha de um tipo de
força peculiar. Quando ele desejava algo e direcionava todas as suas ações
para obtê-lo, a maioria das pessoas normais era incapaz de resistir aos seus
esforços. Para ele, conquistar o corpo de uma mulher talvez fosse facílimo.
— E você está preocupada que Menshiki esteja usando sua tia com
algum outro objetivo?
Mariê arrumou o cabelo preto e liso, expondo uma orelha pequena e
branca. Era uma bela orelha. Então assentiu com a cabeça.
— Mas não é fácil conter uma relação entre um homem e uma mulher,
depois que começa — falei.
Nem um pouco fácil, disse a mim mesmo. Essas coisas são como aqueles
carros de madeira nos festivais hindus que saem atropelando tudo pela
frente, fazendo inúmeras vítimas.
— É por isso que eu quis vir conversar com você, professor — disse ela,
fitando diretamente meus olhos.
Das duas obras que eu estava fazendo ao mesmo tempo, a primeira a ficar
pronta foi O buraco no meio do bosque. Terminei no começo da tarde de
sexta-feira. Quadros são uma coisa curiosa: quando se aproximam da
finalização adquirem vontade própria, um ponto de vista, uma voz. Avisam
ao artista quando estão prontos (pelo menos é o que eu sinto). Para um
espectador — caso haja alguém por perto — não deve ser possível
identificar a diferença entre uma pintura em andamento e uma pintura
finalizada, porque a linha que separa o incompleto e o completo não
costuma ser visível. Mas o artista sabe. Consegue ouvir a obra dizer: não
precisa mexer mais. Basta manter os ouvidos atentos para escutar sua voz.
Com O buraco no meio do bosque foi assim. Em dado momento o
quadro ficou pronto e não aceitou mais o toque dos meus pincéis. Como
uma mulher satisfeita depois do sexo. Tirei a tela do cavalete e a apoiei no
chão, contra a parede. Depois também me sentei no chão e passei muito
tempo olhando aquela pintura do buraco com a tampa entreaberta.
Por que será que resolvi de repente pintar aquela obra? Não conseguia
apontar precisamente nem o sentido nem o propósito disso. Uma hora,
simplesmente me deu vontade de retratar aquele buraco. Era tudo que eu
podia dizer. Às vezes isso acontece. Quando alguma coisa — uma
paisagem, um objeto, uma pessoa — agarra meu coração, pego o pincel e
me ponho a desenhá-la sobre a tela, sem sentido nem propósito. Só por
intuição, pura e simplesmente.
Quer dizer, não é bem isso. Não foi um mero impulso. É que alguma
coisa desejava que eu pintasse aquele quadro. Muito intensamente. Foi
esse desejo que me pôs em movimento, me fez começar a pintar e, como se
estivesse às minhas costas e movesse minhas mãos, me fez terminar a obra
em tão pouco tempo. Quem sabe o próprio buraco era dotado de vontade
própria, queria por algum motivo ter sua imagem pintada, e havia me
usado para isso. Assim como Menshiki havia me convencido a pintar seu
retrato com (imagino) algum propósito.
Olhando de forma imparcial e objetiva, a pintura não estava ruim. Não
sei dizer se poderia ser chamada de obra de arte (e, não que eu queira me
justificar, mas criar uma obra de arte não fora meu objetivo). Mas,
tecnicamente, não havia muito que criticar. A composição era perfeita e
tudo estava reproduzido com muito realismo — os raios do sol que
penetravam por entre as árvores, as cores das folhas caídas no chão. Além
disso, apesar de ser muito detalhado, havia algo de simbólico naquele
quadro, que criava um ar de mistério.
Depois de observar a pintura por bastante tempo, senti muito
intensamente que nela se escondia o prenúncio de uma ação. À primeira
vista, parecia ser apenas uma pintura figurativa de paisagem retratando,
como dizia o título, um buraco no meio do bosque. Não, mais do que uma
mera pintura de paisagem, seria mais correto dizer que era uma reprodução
fiel. Eu empregara todas as habilidades desenvolvidas ao longo dos anos
em que, bem ou mal, tive a pintura como profissão para recriar a cena com
a maior precisão possível. Mais do que desenhar, eu fizera um registro
daquela paisagem.
No entanto, havia ali esse prenúncio. Algo estava prestes a acontecer
dentro daquela paisagem — esse pressentimento emanava claramente da
pintura. Era o momento exato do início de algo. E foi então que me dei
conta. Era justamente esse prenúncio, essa premonição, que eu havia
tentado pintar, ou que fui instado a pintar.
Endireitei a coluna, sentado no chão, e fitei a pintura com novos olhos.
O que estava prestes a acontecer? Será que algo ou alguém sairia
daquele círculo escuro e entreaberto? Ou, ao contrário, será que alguém
desceria para o seu interior? Passei muito tempo olhando, concentrado,
para o quadro, mas não consegui conjecturar qual era a “ação” prestes a
surgir na tela. Apenas pressentia, intensamente, que algum movimento
aconteceria ali.
E por quê, com que propósito, aquele buraco desejara que eu o
desenhasse? Será que queria me ensinar alguma coisa? Ou me dar algum
tipo de aviso? Aquilo parecia uma charada. Eram muitos enigmas e
nenhuma resposta. Tive vontade de mostrar o quadro a Mariê e perguntar
sua opinião. Talvez ela fosse capaz de enxergar ali alguma coisa que
escapava aos meus olhos.
Entrei em casa, tirei a jaqueta de couro e logo telefonei para Shoko. Ela
atendeu no terceiro toque.
— Alguma novidade? — perguntei.
— Não, continuo sem notícias — respondeu Shoko, a voz de quem não
consegue manter o ritmo regular da respiração.
— Já contatou a polícia?
— Ainda não. Não sei bem por quê, mas achei que seria melhor esperar
um pouco antes de falar com eles. Fico sentindo que ela pode aparecer a
qualquer momento…
Eu descrevi a ela a miniatura de pinguim que encontramos no fundo do
buraco. Não falei nada sobre ter encontrado esse objeto, só perguntei se
Mariê costumava carregar um pingente assim.
— Mariê usava um enfeite preso ao celular. E realmente era um
pinguim… Sim, era um pinguim. Tenho certeza. Um bonequinho de
plástico. Acho que foi brinde em uma loja de donuts, mas por algum
motivo ela dava muito valor a ele. Como se desse sorte.
— E ela carrega sempre o celular, não é?
— Sim. Está quase sempre desligado, mas ela o leva consigo para todos
os lugares. Não costuma atender, mas às vezes liga para casa, quando
precisa de alguma coisa — disse Shoko. Passaram-se alguns segundos. —
Por acaso você achou essa miniatura em algum lugar?
Eu me atrapalhei para responder. Se eu dissesse a verdade, teria que
explicar para ela tudo sobre aquele buraco no meio do bosque. E, caso a
polícia acabasse envolvida no assunto, teria que explicar a mesma coisa —
de forma ainda mais convincente — para eles também. Sabendo que um
pertence de Mariê fora encontrado ali, eles examinariam o buraco e talvez
fizessem uma busca no bosque. Também nos interrogariam querendo saber
tudo o que acontecera, e era possível que acabassem revirando o passado
de Menshiki. Eu não conseguia imaginar que tudo isso tivesse alguma
utilidade. Menshiki tinha razão, as coisas só ficariam mais complicadas.
— Estava caído no meu ateliê — falei. Não gosto de mentir, mas eu não
poderia dizer a verdade. — Encontrei quando estava varrendo e pensei que
talvez fosse da Mariê.
— É, deve ser dela. Com certeza — disse Shoko. — E agora, o que será
que eu faço? Será que é melhor falar com a polícia, mesmo?
— Você conseguiu falar com o seu irmão, quer dizer, com o pai de
Mariê?
— Não, ainda não consegui — hesitou Shoko. — Eu não sei onde ele
está. Ele nem sempre volta para casa, sabe…
A situação parecia ser complexa, mas não era hora de perder tempo
discutindo essas questões. Eu lhe disse apenas que achava que seria melhor
falar com a polícia. Já passava da meia-noite, estávamos em um novo dia, e
não podíamos descartar a possibilidade de algum acidente. Ela respondeu
que faria isso agora mesmo.
— A propósito, o celular de Mariê continua não tocando?
— Sim, tentei ligar várias vezes, mas não toca. Deve estar desligado…
Ou então a bateria acabou, uma das duas coisas.
— Mariê saiu hoje de manhã dizendo que ia para a escola e desde então
você não teve notícias dela. É isso, certo?
— Sim, isso mesmo — respondeu a tia.
— Sendo assim, ela ainda deve estar vestindo o uniforme da escola.
— Sim, deve estar de uniforme. Blazer azul-marinho, blusa branca,
colete azul-marinho de lã, saia xadrez até o joelho, meias brancas e sapatos
pretos de enfiar. E uma bolsa impermeável no ombro com o logo e o nome
da escola. Ela não está usando o sobretudo.
— Você acha que ela levou também a sacola com o material de desenho?
— Isso costuma ficar no armário da escola, porque ela usa na aula de
artes de lá. Às sextas-feiras ela leva esse material direto da escola para o
seu curso de desenho, não leva de casa.
Era assim que Mariê sempre estava nas minhas aulas. Blazer azul-
marinho, camisa branca, saia de xadrez tartã, e a bolsa de lona branca com
o material de desenho. Eu tinha uma lembrança clara dessa imagem.
— Ela não levou nada além disso?
— Não, só isso. Então não deve ter ido muito longe…
— Se tiver qualquer novidade, me avise, por favor. Pode telefonar a
qualquer hora, sem cerimônia — falei.
Shoko disse que ligaria.
E desliguei o telefone.
Acordei pouco depois das cinco da manhã, ainda estava escuro. Vesti um
cardigã por cima do pijama e fui ver como estavam as coisas na sala.
Menshiki dormia no sofá. O fogo da lareira tinha apagado, mas deve ter
ficado aceso até pouco antes, pois o cômodo ainda estava quente. A pilha
de lenha que deixei separada tinha diminuído bastante. Menshiki estava
deitado de lado sob o cobertor e respirava muito silenciosamente, nem
sequer ressonava. Até dormindo aquele homem tinha boas maneiras. O
próprio ar da sala parecia se conter, discreto, para não perturbar seu sono.
Eu o deixei ali e fui à cozinha fazer café. Também preparei uma torrada.
Então me sentei em uma cadeira da copa e, mordiscando a torrada com
manteiga e tomando café, abri o livro que estava lendo. Era sobre a
“Invencível Armada” espanhola e a batalha violenta entre a rainha
Elizabeth e Filipe II, que lançou à sorte o destino das duas nações. Não sei
muito bem por que resolvi ler, naquele momento, sobre uma guerra nos
mares da Grã-Bretanha na segunda metade do século XVI, mas depois que
comecei o livro achei muito interessante e continuei com mais entusiasmo
do que imaginava. Era um velho exemplar que encontrei na estante de
Tomohiko Amada.
A versão mais conhecida dos fatos é que a Invencível Armada espanhola
foi dizimada pela frota naval da Inglaterra, numa derrota que mudou o
rumo da história por ter cometido erros estratégicos. Mas, na realidade, a
maior parte das baixas sofridas pelo Exército espanhol não foram resultado
de enfrentamentos diretos (ambas as partes dispararam incontáveis tiros de
canhão, mas quase não acertaram seus oponentes), e sim de naufrágios.
Acostumados às águas plácidas do Mediterrâneo, os espanhóis não sabiam
navegar os mares revoltos da costa da Irlanda. Assim, muitos de seus
navios se chocaram contra os recifes e afundaram.
O céu do leste foi clareando devagar enquanto, sentado à mesa,
acompanhei o lamentável destino da Marinha espanhola e tomei duas
xícaras de café. Era a manhã de sábado.
Alguém irá ligar para os jovens senhores hoje de manhã e fazer um
convite. E os senhores não podem recusar.
Repeti mentalmente o que o comendador me dissera e olhei para o
telefone. Ele permanecia mudo. Mas provavelmente alguém ligaria. O
comendador não costumava mentir. Tudo o que eu podia fazer era ser
paciente e esperar o toque.
Pensei em Mariê Akikawa. Quis ligar para Shoko e perguntar se tinha
notícias, mas era cedo demais. Melhor esperar pelo menos até umas sete
horas. Além disso, Shoko sabia que eu estava preocupado e certamente me
avisaria se Mariê fosse encontrada. Se não havia falado nada,
provavelmente é porque não havia nada a dizer. Então continuei ali,
sentado à mesa, lendo sobre a Invencível Armada. Quando cansava de ler,
fitava o telefone. Ele continuava em silêncio.
Liguei para Shoko pouco depois das sete. Ela atendeu num instante,
como se estivesse diante do aparelho, esperando que tocasse.
— Mariê ainda não deu notícias. Não sabemos onde ela está — disse,
logo de saída. Ela parecia ter dormido muito pouco (ou nada). O cansaço
transparecia em sua voz.
— A polícia já está trabalhando? — perguntei.
— Sim, ontem mesmo dois policiais vieram aqui me fazer algumas
perguntas. Entreguei uma foto dela, expliquei como estava vestida…
Também contei que ela não é do tipo de menina que foge de casa ou que
sai para passear à noite. Eles repassaram as informações para outras
delegacias e imagino que tenham começado uma busca. Só que, por
enquanto, pedi que não fosse divulgado.
— Mas nada até agora, né?
— É… Estão se dedicando bastante ao caso, mas ainda não encontraram
nenhuma pista.
Eu lhe disse algumas palavras de consolo e pedi que me avisasse assim
que tivesse alguma novidade. Ela prometeu que o faria.
Para chegar até onde Tomohiko estava internado, saímos da estrada Izu
Skyline e seguimos por uma longa estrada cheia de curvas, através das
montanhas. Passamos por um bairro com novas casas de veraneio, por
cafés estilosos, pousadas construídas com chalés de madeira, lojas
vendendo verduras direto do produtor, um pequeno museu para turistas.
Com a mão sobre a alça da porta, na qual me agarrava a cada curva, eu
pensava sobre o homem do Subaru. Alguma coisa impedia a compleição de
seu retrato. É provável que eu estivesse deixando escapar algum elemento
indispensável para terminar aquela obra. Como se tivesse perdido uma
peça-chave de um quebra-cabeça. Era a primeira vez que algo assim me
acontecia. Geralmente, quando eu me propunha a pintar o retrato de
alguém, reunia de antemão todas as peças necessárias. Mas, no caso
daquele homem, não tive essa oportunidade. Era provável que ele mesmo
estivesse impedindo que eu o fizesse. Por algum motivo, ele não desejava
ser gravado em uma pintura. Ou melhor, se recusava a isso.
A certa altura, o Volvo saiu da estrada e cruzou um grande portão de
ferro, totalmente aberto. Era uma entrada muito fácil de perder, com uma
placa muito discreta. Provavelmente, aquela instituição não sentia
necessidade de alardear sua existência. Ao lado do portão havia uma
guarita com um guarda uniformizado, ao qual Masahiko informou o
próprio nome e o nome do paciente que iria visitar. O segurança fez uma
ligação e checou o nome do residente. Seguimos adiante e entramos em um
bosque denso, onde as árvores altas e de folhagem perene criavam uma
sombra gelada. Depois de algum tempo subindo a ladeira de asfalto
impecável, chegamos a um pátio para desembarque, em forma de rotatória,
com um canteiro de flores no centro. O canteiro tinha o formato de uma
pequena colina, com flores de cores vibrantes no centro e couves
ornamentais ao redor. Tudo era impecavelmente mantido.
Masahiko parou o carro no estacionamento para visitantes, do lado
oposto da rotatória. Havia outros dois veículos estacionados, uma minivan
branca da Honda e um Audi Sedan azul-escuro, ambos novíssimos e
reluzentes. Estacionado entre eles, o Volvo parecia um velho burro de
carga. Mas Masahiko não parecia se incomodar nem um pouco com isso
(era muito mais importante poder escutar os cassetes do Bananarama). Do
estacionamento dava para ver, lá embaixo, o oceano Pacífico. A superfície
da água tinha um brilho intenso, banhada pelo sol do começo de inverno.
Alguns barcos pesqueiros circulavam. Olhando para o alto-mar, via-se uma
pequena ilha com relevos e, para além dela, a península Manazuru. Os
ponteiros do relógio indicavam uma hora e quarenta e cinco minutos.
Saímos do carro e caminhamos até a entrada do edifício. Parecia ser uma
construção relativamente recente. Passava uma impressão geral de asseio e
elegância, mas era um prédio de concreto sem muita personalidade.
Considerando-o esteticamente, eu diria que o arquiteto responsável pelo
projeto não devia dispor de muita criatividade. Ou, quem sabe, foi o cliente
que pediu um projeto muito conservador e simples, considerando a função
do edifício. Era uma construção de três andares, quase perfeitamente
quadrada, formada apenas por linhas retas. Uma só régua deve ter bastado
para desenhá-la. O térreo era cheio de janelas, num esforço de ser o mais
iluminado possível. Havia também um grande terraço que se projetava na
diagonal, com espreguiçadeiras. Mas já estávamos no outono, então, por
mais agradável e ensolarado que estivesse o dia, ninguém tinha se animado
a tomar banho de sol. Na cantina, cercada por paredes de vidro do chão ao
teto, havia algumas pessoas. Cinco ou seis, todas de idade avançada. Duas
usavam cadeiras de rodas. Não dava para saber o que estavam fazendo.
Acho que assistiam à grande televisão presa à parede. Com certeza não
estavam dando cambalhotas.
Masahiko entrou pela porta principal do lobby e começou a conversar
com a moça sentada na recepção. Era uma jovem bonita, de cabelos pretos,
olhos redondos e um ar muito gentil. Vestia um uniforme com blazer azul-
marinho e tinha uma plaquinha de identificação presa ao peito. Os dois
pareciam se conhecer e falavam com naturalidade. Um pouco afastado,
esperei que terminassem. No lobby havia um grande vaso com um arranjo
profissional e luxuoso de flores frescas. Quando terminaram a conversa,
Masahiko escreveu seu nome na lista de visitantes sobre o balcão, checou o
relógio e registrou o horário de entrada. Então se afastou da recepção e
veio em minha direção.
— Parece que o estado geral do meu pai é estável — disse ele, as duas
mãos nos bolsos da calça. — Ele estava tossindo muito desde cedo, com
dificuldade para respirar, e eles ficaram preocupados, pois poderia
progredir para uma pneumonia. Mas parece que a tosse acalmou há pouco
e agora ele está dormindo profundamente. Vamos ver como ele está.
— Você não se importa se eu for junto?
— Imagina — disse Masahiko. — Venha vê-lo. Você não veio até aqui
pra isso?
Entrei no elevador junto com ele e subimos até o terceiro andar. Como
eu imaginava, o corredor em que saímos também era simples e de estilo
conservador. A decoração era extremamente discreta. Apenas algumas
pinturas a óleo pontuavam as longas paredes brancas, como que por
formalidade. Eram todas paisagens costeiras. Pareciam ser de uma série de
um mesmo artista retratando trechos da mesma costa de ângulos distintos.
Não eram obras de grande qualidade, mas o artista usara fartamente a tinta,
sem economias, então achei que tinham valor por opor certa resistência ao
minimalismo irrefreado do prédio. O piso era recoberto por um linóleo
brilhante, sobre o qual as solas de borracha dos meus sapatos faziam um
barulho estridente. Uma senhorinha de cabelos brancos, em uma cadeira de
rodas empurrada por um enfermeiro, veio pelo corredor em nossa direção.
Ela olhava para a frente, os olhos arregalados, e não desviou o olhar nem
por um segundo, mesmo ao cruzar conosco. Como se um sinal
importantíssimo flutuasse no ar à sua frente e ela estivesse determinada a
não perdê-lo de vista.
Tomohiko ficava em um espaçoso quarto individual, no final do
corredor. Havia uma plaquinha na porta para o nome do paciente, mas
estava em branco, provavelmente para proteger sua privacidade. Afinal,
Tomohiko Amada era um homem famoso. O quarto era do tamanho de
uma pequena suíte de hotel e, além da cama, tinha um conjunto básico de
mobília de sala de estar. Sob a cama, estava dobrada uma cadeira de rodas.
Uma grande janela voltada para o sudeste se abria para o Pacífico. Era uma
vista desobstruída, impressionante. Em um hotel, a diária daquele quarto
seria caríssima só pela vista. Não havia quadros nas paredes, apenas um
espelho e um relógio redondo. Sobre a mesa, um vaso médio, com um
arranjo de flores roxas. Não havia nenhum cheiro no ar do quarto. Nem o
cheiro de um idoso doente, nem de remédios, nem de flores, nem das
cortinas queimadas pelo sol, nada. Essa absoluta ausência de odores foi o
que mais me marcou naquele quarto. Cheguei a pensar que havia algo
errado com meu olfato. Como era possível apagar desse jeito qualquer
odor?
Sobre a cama, bem próxima à janela, Tomohiko Amada dormia um sono
profundo, totalmente alheio à paisagem excepcional ao seu lado. Estava
deitado de barriga para cima, o rosto voltado para o teto e os dois olhos
bem cerrados. Longas sobrancelhas encobriam, como dosséis naturais, suas
pálpebras idosas. A testa era marcada por rugas profundas. Estava coberto
até o pescoço, e, de longe, era difícil dizer se estava respirando ou não. Se
estivesse, devia ser uma respiração curta e delicada.
Vi imediatamente que aquele velho era a pessoa misteriosa que visitara o
ateliê de madrugada, algum tempo antes. Naquela ocasião, eu o vira apenas
por alguns instantes, sob a luz instável da lua, mas, pelo formato da cabeça
e o comprimento dos cabelos, não havia dúvida de que se tratava de
Tomohiko Amada. Não fiquei surpreso ao descobrir isso. Era evidente
desde o começo.
— Ele está dormindo profundamente mesmo — disse Masahiko,
voltando-se para mim. — O jeito é esperar que acorde sozinho. Se é que
vai acordar…
— De qualquer jeito, fico feliz que ele esteja melhor — falei, e olhei
para o relógio na parede. Eram cinco para as duas. De repente, lembrei de
Menshiki. Será que ele havia ligado para Shoko Akikawa? Será que
acontecera alguma coisa? Mas, naquele momento, eu precisava me
concentrar em Tomohiko Amada.
Eu e Masahiko nos sentamos frente a frente nas poltronas e, tomando
cafés em lata comprados em uma máquina do corredor, esperamos
Tomohiko despertar. Nesse meio-tempo, Masahiko falou sobre Yuzu.
Estava tudo correndo bem com a gravidez. A data prevista para o parto era
na primeira metade de janeiro. O seu belo namorado também aguardava a
chegada da criança com ansiedade.
— O problema, quer dizer, problema do ponto de vista dele, é que ela
não tem nenhuma intenção de se casar — disse Masahiko.
— Eles não vão se casar? — Eu demorei para assimilar o que ele estava
dizendo. — Yuzu vai ser mãe solteira, é isso?
— Ela pretende ter a criança. Mas não quer se casar, nem morar junto
com ele, nem compartilhar os direitos de paternidade. Pelo que entendi, é
isso. Então ele está muito confuso. O plano dele era oficializar a relação
assim que o divórcio de vocês estivesse finalizado, mas ela não quis…
Eu pensei um pouco. Mas, quanto mais pensava, mais confuso ficava.
— Eu não entendo… A Yuzu sempre disse que não queria filhos.
Sempre que eu falava de a gente tentar, ela só dizia que era cedo demais.
Por que agora ela quer tanto essa criança?
— Talvez não estivesse nos planos dela, mas depois que ficou grávida
teve muita vontade de ter o filho. Esse tipo de coisa acontece com as
mulheres.
— Mas vai ser difícil pra Yuzu criar sozinha um filho… Capaz de ela ter
que largar o emprego. Por que será que ela não quer casar com o cara? A
criança é dele, não é?
— Ele também não sabe por quê. Achava que as coisas estavam indo
muito bem entre eles, estava muito feliz de se tornar pai. Agora ele está
muito confuso. Até me perguntou sobre isso, mas eu também não tenho
ideia.
— Você não perguntou pra Yuzu? — indaguei.
Masahiko fez uma cara de desagrado.
— Pra falar a verdade, estou tentando não me envolver muito com essa
história. Eu gosto da Yuzu, o sujeito é meu colega de trabalho… E eu e
você somos velhos amigos. É uma posição muito ruim. Quanto mais eu me
envolvo, mais perdido fico.
Eu continuei quieto.
— Além do mais, eu nunca me preocupei com vocês dois, sempre achei
que estava tudo bem… — disse ele, aflito.
— Você já falou isso antes.
— Posso estar me repetindo, mas é verdade.
Depois disso ficamos em silêncio por algum tempo, fitando o relógio na
parede ou o mar que se estendia além da janela. Na cama, Tomohiko
Amada ainda dormia profundamente, sem mover um músculo. Estava tão
imóvel que cheguei a me perguntar se continuava vivo. Mas, como só eu
estava preocupado, supus que aquilo fosse normal.
Olhando Tomohiko adormecido, tentei imaginar como ele teria sido
quando jovem, nos tempos em que estudou em Viena. Não era fácil, claro.
Diante de mim estava um velho de cabelos brancos, coberto de rugas, se
aproximando devagar, porém definitivamente, de seu fim. Todos que vêm
ao mundo como seres humanos estão fadados à visita da morte, sem
exceção. No caso dele, este momento estava próximo.
— E você, não pretende falar com a Yuzu? — me perguntou Masahiko.
Eu balancei a cabeça.
— No momento, não.
— Eu acho que seria bom vocês conversarem pelo menos uma vez sobre
todas as coisas. Sentar e falar francamente, sabe?
— Nós já nos divorciamos por meio de um advogado. Foi Yuzu quem
quis isso. E em breve ela vai ter um filho de outro homem. Se ela quer
casar com ele ou não, é inteiramente problema dela. Sobre que coisas a
gente devia conversar francamente?
— Você não quer saber o que está acontecendo com ela?
Eu fiz que não com a cabeça.
— Não quero saber nada além do necessário. Tudo isso foi difícil pra
mim também, me machucou.
— Claro — disse Masahiko.
Mas, para falar a verdade, às vezes nem eu mesmo sabia dizer se estava
magoado ou não. Não conseguia avaliar se eu tinha esse direito. Se bem
que, quando uma coisa machuca, as pessoas ficam magoadas, tendo direito
ou não.
— Eu trabalho com esse cara — continuou Masahiko. — Ele é um
sujeito sério, razoavelmente competente, e boa pessoa.
— E, além de tudo, é bonito.
— Sim, muito bonito. Faz muito sucesso com as mulheres, chega a dar
inveja. Mas ele tem uma tendência que sempre deixou a gente intrigado.
Eu não disse nada, esperei que ele continuasse.
— As mulheres com quem ele se relaciona, não dá pra entender. Ele
poderia sair com quem quisesse, mas sempre se apaixona por umas
mulheres muito sem sentido. Não a Yuzu! Acho que ela é a primeira
mulher decente que ele namora. Antes dela, todas eram terríveis, não sei
por quê.
Relembrando, ele balançou de leve a cabeça.
— Há alguns anos, ele chegou quase a se casar. Já tinham reservado o
salão, os convites estavam impressos, a lua de mel, planejada. Em Fiji ou
algo assim. Ele já tinha pedido férias e até comprado as passagens. E a
noiva, nossa, era feia demais. Quando ele me apresentou eu levei um susto,
de tão sem graça que era. Claro que não dá pra julgar uma pessoa só pela
aparência, mas pelo que vi, a personalidade dela também não era lá grande
coisa. Mas, sabe Deus por quê, ele estava perdido de amores. Não
combinavam nem um pouco… Ninguém tinha coragem de dizer nada, mas
todo mundo pensou a mesma coisa. E aí, logo antes da festa, ela desistiu de
tudo. Do nada. Foi ela quem o largou. Não sei se foi sorte ou azar, mas
ficou todo mundo chocado.
— Ela deu alguma explicação?
— Não sei… Fiquei com muita pena dele, nem consegui perguntar. Mas
desconfio de que nem ele saiba o motivo. Ela só não quis mais casar com
ele e foi embora. Deve ter tido alguma razão…
— Tá, e qual é seu ponto com essa história? — perguntei.
— O meu ponto — disse Masahiko — é que talvez você e a Yuzu ainda
tenham uma chance. Se você quiser, é claro.
— Mas a Yuzu vai ter um filho desse cara.
— É, isso pode ser um problema, realmente.
Depois disso, nós voltamos a ficar calados.
Tomohiko Amada abriu os olhos pouco antes das três horas. Seu corpo
começou a se agitar um pouco, e ele respirou fundo. Deu para ver o
cobertor subindo e descendo na altura do peito. Masahiko se levantou, foi
até a cama e olhou, de cima, o rosto do pai. Tomohiko abriu os olhos
lentamente. Os fios brancos e longos de suas sobrancelhas se agitaram.
Masahiko pegou um bule na mesa de cabeceira e umedeceu os lábios do
pai, enxugando o excesso com uma gaze. Ao ver que o pai queria mais
água, ele repetiu o processo várias vezes. Eram gestos habituais de quem
sempre faz isso. A cada gole de água, o pomo de adão do velho subia e
descia. Esse movimento me convenceu, finalmente, de que ele ainda estava
vivo.
— Pai — disse Masahiko, apontando em minha direção. — Esse sujeito
aqui é quem está cuidando da casa de Odawara. Ele também é pintor, está
trabalhando no seu ateliê. É meu amigo dos tempos de faculdade. É meio
devagar e deixou escapar uma esposa incrível, mas como pintor não é de
todo mal.
Não sei o quanto o seu pai compreendeu dessas palavras. Seja como for,
seu olhar acompanhou o dedo esticado do filho e ele voltou lentamente o
rosto em minha direção. Os olhos pareciam estar me vendo, mas sua
expressão não se alterou. Provavelmente estava enxergando algo, mas sem
significado algum para ele. Ao mesmo tempo, senti que, no fundo daqueles
globos oculares recobertos por um fino véu, se escondia uma lucidez
espantosa. Talvez estivesse cuidadosamente guardada, com algum
propósito. Tive essa impressão.
— Não acho que ele entende o que a gente fala. Mas a recomendação do
médico foi falar com naturalidade, como se estivesse entendendo tudo. Por
que não tem como saber o que ele compreende ou não. Então eu falo
assim, normalmente. Bom, e eu também prefiro assim. Fala alguma coisa,
você também. Pode falar do mesmo jeito de sempre.
— Muito prazer — falei, e disse meu nome. — Estou morando na casa
do senhor, em Odawara.
Tomohiko Amada parecia estar fitando meu rosto, mas não vi mudança
alguma na sua expressão. Masahiko virou para mim e fez um gesto como
quem diz “continue falando, pode ser qualquer coisa”.
— Eu pinto quadros a óleo. Passei muito tempo trabalhando só com
retratos, mas agora larguei esse trabalho e pinto o que quiser. Só que às
vezes ainda recebo encomendas de retratos. Talvez eu me interesse mesmo
pelo rosto humano. Conheço o Masahiko desde os tempos da faculdade de
artes.
Tomohiko continuava olhando em minha direção, os olhos ainda
recobertos por um fino véu, como uma leve cortina de renda separando a
vida e a morte. Cada vez mais e mais camadas encobririam o outro lado,
até cair, por fim, o último pano.
— Sua casa é maravilhosa — continuei. — O trabalho flui muito bem lá.
Espero que o senhor não se incomode, mas também tomei a liberdade de
ouvir os seus discos, pois Masahiko disse que eu podia. É uma coleção
admirável. Eu tenho escutado muitas óperas. Ah, e outro dia subi para dar
uma olhada no sótão.
Com essas palavras, tive a impressão de ver seus olhos brilharem pela
primeira vez. Foi uma centelha brevíssima, visível apenas a um observador
muito atento. Mas eu o fitava com atenção e esse brilho não me escapou. A
palavra “sótão” havia despertado alguma coisa em sua memória.
— Descobri que há uma coruja morando lá — continuei. — Eu andava
escutando um barulho estranho no meio da noite, parecia um bicho
entrando e saindo do sótão, então subi durante o dia para ver se não eram
ratos. E encontrei uma coruja pousada em uma viga, descansando. Um
pássaro belíssimo. É que a grade de uma das aberturas de ventilação se
rasgou, então a coruja consegue entrar e sair à vontade. Para uma coruja, o
sótão é um lugar perfeito para descansar.
Seus olhos continuavam firmes no meu rosto, como se aguardassem
mais informações.
— Corujas não fazem mal algum — interviu Masahiko. — Até dizem
que dá sorte ter uma em casa.
— Era um belo pássaro. E, além disso, achei o sótão um lugar bem
interessante — acrescentei.
Tomohiko Amada continuava imóvel sobre a cama, me fitando. Sua
respiração parecia ter voltado a ficar curta. Os olhos continuavam
encobertos por um filme, mas o brilho misterioso que se ocultava no fundo
deles ficou mais nítido.
Eu queria falar mais sobre o sótão, mas sentado ao lado de Masahiko
não podia mencionar certo objeto que tinha encontrado lá. Masahiko
naturalmente ia querer saber do que eu estava falando. Assim, eu e
Tomohiko Amada ficamos nos encarando com o assunto em suspenso, um
perscrutando a face do outro.
Escolhi as palavras com cuidado.
— Além de ser um bom esconderijo para corujas, aquele sótão também
me pareceu um lugar excelente para quadros. Quero dizer, para armazenar
quadros. Parece ideal principalmente para guardar pinturas nihon-ga, que
desbotam com facilidade. Não é úmido como um porão, a circulação de ar
é boa, mas não é preciso se preocupar com a luz do sol, pois não há janelas.
Há o risco de entrar água caso chova forte, claro. Então, para conservar
uma obra por bastante tempo, seria necessário embrulhá-la muito bem.
— Falando nisso, eu nunca entrei no sótão… — disse Masahiko. — Não
gosto de lugares muito empoeirados.
Não desviei o olhar do rosto de Tomohiko. Ele também não desviou seu
olhar do meu. Eu senti que, no interior de sua mente, ele tentava compor
algum pensamento. Coruja, sótão, quadros guardados… Ele tentava
conectar o sentido desses vocábulos familiares e construir um todo
coerente. No seu estado, isso não era tarefa fácil. Nem um pouco. Devia ser
como tentar escapar de um elaborado labirinto com os olhos vendados.
Mas ele sentia que era importante conseguir conectá-los. Importantíssimo.
Eu assisti, quieto, a esse seu esforço enorme e solitário.
Pensei se deveria falar sobre o santuário no bosque e o estranho buraco
atrás dele. Sobre a série de acontecimentos que nos levou a abri-lo e como
ele era. Mas pensei melhor e desisti. Achei melhor não tratar de muitos
assuntos de uma vez. Com certeza, lidar com uma só questão já era
desafiador o bastante para a pouca consciência de que ele dispunha. O
pouco que lhe restava era sustentado por um fio muito frágil.
— Não quer mais um pouco de água? — perguntou Masahiko, pegando
o copo. Mas ele não esboçou reação. Parecia que as palavras do filho não
haviam nem chegado aos seus ouvidos. Masahiko se aproximou e repetiu a
pergunta, mas, vendo que ele não reagia, desistiu. Seu pai já não o
enxergava.
— Puxa, parece que ele se interessou por você — disse Masahiko,
admirado. — Está te olhando com tanta atenção! Fazia muito tempo que
ele não se interessava tanto por alguém, ou alguma coisa.
Eu continuei calado, olhando para Tomohiko Amada.
— Que curioso! Quando eu falo, ele nem olha na minha direção… Mas
está te encarando direto, desde aquela hora.
Eu não pude deixar de notar na voz de Masahiko um tom de inveja. Ele
queria que o pai o enxergasse. Talvez desejasse isso todo o tempo, desde
criança.
— Talvez eu tenha cheiro de tinta — falei —, e esse cheiro acendeu sua
memória…
— Tem razão, pode ser isso. Pensando bem, eu não mexo com tinta de
verdade há muito tempo.
Já não havia mais aquele eco pesado na sua voz. Ele voltara a ser o
Masahiko Amada tranquilo de sempre. Nesse momento, o seu celular
começou a vibrar sobre a mesa.
Ele virou o rosto num susto.
— Xi, esqueci totalmente de desligar. É proibido usar celular dentro dos
quartos. Vou sair para atender e já venho. Tudo bem se eu te deixar sozinho
um pouco?
— Claro.
Masahiko pegou o telefone, checou o nome de quem estava ligando e foi
em direção à porta. Antes de sair, se voltou para mim:
— Talvez demore um pouco. Enquanto eu não estiver, fale com ele,
sobre o que quiser.
Masahiko saiu do quarto falando baixinho ao telefone e fechou a porta
sem fazer ruído.
Assim, ficamos eu e Tomohiko Amada. Ele continuava fitando
intensamente o meu rosto. Devia estar tentando entender quem eu era.
Sentindo-me um pouco sufocado, levantei da poltrona, contornei o pé da
cama e me aproximei da janela voltada para o sudoeste. Encostei o rosto no
vidro amplo e fitei a imensidão do Pacífico. A linha do horizonte parecia
subir e se empurrar contra o céu. Corri os olhos de uma extremidade à
outra dessa linha perfeitamente reta. Mãos humanas jamais poderiam traçar
uma linha tão longa e bela, por maior que fosse sua régua. Abaixo dela,
pulsavam infinitas vidas. No mundo há um número incontável de vidas. E
um número igualmente grande de mortes.
De repente, senti uma presença e olhei para trás. Eu e Tomohiko Amada
não estávamos sozinhos.
— Sim. Os senhores não estão sozinhos — disse o comendador.
50.
Para isso, será preciso fazer um
sacrifício e passar por uma provação
Eu estava envolto em uma escuridão tão densa, tão absoluta, que parecia
dotada de vontade própria. Nenhum raio de luz conseguiria penetrá-la. Eu
me sentia andando pelas regiões mais profundas do mar, onde nenhuma
claridade chega. A luz amarelada da lanterna em minhas mãos era a única
conexão, incerta, entre mim e o mundo. A trilha descia num ângulo
constante e era cilíndrica, como um tubo perfurado num leito de rocha. O
chão era duro e liso. A altura do teto me obrigava a caminhar sempre
encurvado para não bater a cabeça. O ar subterrâneo era um pouco gelado e
completamente inodoro. A total ausência de odores chegava a ser estranha.
Vai ver, até mesmo o ar daquele lugar tinha uma composição diferente do
mundo exterior.
Eu não conseguia estimar quanto tempo a bateria da minha lanterna iria
durar. Por enquanto sua luz estava forte e estável. Mas, se ela acabasse (e
em algum momento certamente acabaria), eu me veria largado, sozinho,
em meio à mais absoluta escuridão. E, se o Cara Comprida falava a
verdade, em algum lugar daquela escuridão se escondiam perigosas
criaturas chamadas DUPLAS METÁFORAS.
A mão que segurava a lanterna suava de nervoso. Meu coração batia
com um som surdo e rascante, como o eco perturbador de tambores no
fundo da selva. “É melhor você levar uma lâmpada”, foram as palavras do
Cara Comprida, “pois há trechos muito escuros.” Isso queria dizer que nem
tudo naquele subterrâneo era tão escuro. Eu torci para que o caminho
clareasse logo. E também para que o teto ficasse um pouco mais alto.
Lugares apertados e escuros sempre me deixaram aflito. Se eu passasse
muito tempo naquela situação, começaria a sentir dificuldade para respirar.
Tentei não pensar na escuridão nem no tamanho do túnel. Para isso,
precisava focar em outras coisas. Pensei em uma torrada com queijo
quente. Nem eu sei dizer por que pensei justo nisso, mas o fato é que,
naquele momento, a imagem de uma torrada com queijo surgiu na minha
mente. Um pão quadrado, servido em um prato branco e simples. Tostado
na medida certa, com o queijo bem derretido. Era uma imagem tão vívida
que eu parecia poder tocá-la. E, ao seu lado, uma xícara fumegante de café.
Café puro, negríssimo, como uma madrugada sem lua nem estrelas.
Lembrei, saudoso, da mesa do café da manhã. A janela aberta dando para o
grande salgueiro do lado de fora. O canto dos passarinhos pousados
audaciosamente, como acrobatas, sobre seus galhos flexíveis. Tudo isso
estava, agora, imensuravelmente longe de mim.
Em seguida, pensei sobre a ópera O cavaleiro da rosa. Enquanto tomava
o café e comia a torrada com queijo eu escutaria essa música, no disco de
vinil preto como azeviche, feito pela Decca Records no Reino Unido.
Coloco o disco pesado sobre a vitrola e pouso a agulha com cuidado. A
Filarmônica de Viena, sob condução de Georg Solti. Uma melodia elegante
e intricada. “Eu seria capaz de descrever, com a música, até uma vassoura”,
declarou Richard Strauss, no seu auge. Quer dizer, será que era uma
vassoura? Talvez não fosse. Talvez fosse um guarda-chuva, ou um atiçador
de lareira. Não importa. De qualquer maneira, como é que alguém
conseguiria descrever uma vassoura com música? Será que ele seria capaz
de descrever também uma torrada com queijo, ou um pé calejado, ou a
diferença entre uma metáfora e um símile?
Richard Strauss também regeu a Filarmônica de Viena no pré-guerra
(não sei se foi antes ou depois do Anschluss). O programa foi uma sinfonia
de Beethoven, a sétima. Uma obra resoluta, discreta, feita com esmero.
Espremida entre sua irmã mais velha alegre e livre (a sexta) e a bela e
tímida irmã mais nova (a oitava). Neste dia, o jovem Tomohiko Amada
estava na plateia. Ao seu lado, uma linda jovem. Era provável que ele a
amasse.
Eu imaginei a cidade de Viena na época. As valsas vienenses, os bolos
Sachertorte dulcíssimos, as bandeiras vermelhas e pretas com a suástica
flamulando nos telhados.
Na escuridão, meus pensamentos se conectavam infinitamente, se
estendendo em uma direção sem sentido. Ou, quem sabe, seria mais correto
dizer que se estendiam sem direção. Mas eu não conseguia controlar a
maneira como progrediam. Meus pensamentos estavam fora do meu
alcance. Não é fácil conter as próprias ideias no escuro absoluto. Elas se
tornam árvores e seus galhos crescem livremente na escuridão (uma
metáfora). E, seja como for, eu precisava continuar pensando em alguma
coisa, para me preservar. Qualquer coisa, não importava o quê. Se não
fizesse isso, ia hiperventilar de nervoso.
Enquanto pensava essas coisas desconexas, continuei descendo pela
trilha interminável. Ela não fazia nenhuma curva, não tinha bifurcações,
era uma perfeita linha reta. Por mais que eu caminhasse, nada mudava —
nem a altura do teto, nem o grau da escuridão, nem a sensação do ar, nem a
inclinação do chão. Eu já estava perdendo a noção das horas, mas depois
de caminhar tanto tempo, sempre descendo, devia estar bem fundo no
subterrâneo. Porém, essa profundidade não passava de ilusão. Afinal, não
era possível sair do terceiro andar de um edifício diretamente para o fundo
da terra. A própria escuridão também devia ser fictícia. Tudo o que havia
ali devia ser apenas um CONCEITO, ou uma METÁFORA. Foi o que tentei dizer
a mim mesmo. Apesar disso, a escuridão que me envolvia era
absolutamente verdadeira, tão verdadeira quanto a profundidade que me
esmagava.
Quando meu pescoço e minhas costas já estavam doendo de tanto andar
encurvado, comecei finalmente a vislumbrar uma leve claridade à frente. A
trilha começou a ficar mais sinuosa, e, a cada curva, o entorno ficava um
pouco mais claro e eu conseguia enxergar um pouco melhor onde estava.
Como céu da madrugada que vai clareando pouco a pouco. Desliguei a
lanterna para poupar a pilha.
Ficou um pouco mais claro, mas ainda não havia nenhum odor ou ruído.
Em um momento o caminho apertado e escuro acabou e eu me vi, de
súbito, em um espaço aberto. Olhei para cima e não enxerguei o céu.
Parecia haver, lá longe, no alto, uma espécie de teto de cor branca leitosa,
mas não dava para ter certeza. Uma luz pálida e estranha banhava tudo,
como se o mundo fosse iluminado por um enxame de insetos luminosos.
Respirei aliviado por não estar mais no escuro e por poder andar ereto.
Fora do túnel, o chão era de pedra e acidentado. Não havia mais uma
trilha evidente, apenas uma planície deserta coberta de pedras, que se
estendia a perder de vista. A longa descida chegara ao fim, e o terreno à
frente subia suavemente. Sem saber aonde ia, apenas segui adiante,
caminhando com cuidado. Olhei para o relógio, mas seus ponteiros já não
tinham sentido algum. Logo compreendi que não significavam nada. As
outras coisas que eu levava comigo também não tinham mais propósito
prático. O chaveiro, a carteira e a habilitação, alguns trocados, um lenço.
Isso era tudo o que eu tinha. Nenhuma dessas coisas poderia me socorrer
naquele momento.
Conforme eu caminhava a inclinação do terreno foi se acentuando, até
que eu estava literalmente escalando uma encosta, usando as mãos e os
pés. Subi sem descanso, ofegante, pensando que ao chegar ao topo talvez
conseguisse ver onde estava. Ainda não havia som nenhum. Eu só escutava
o ruído dos meus próprios pés e mãos, e mesmo isso não parecia de
verdade, tinha um quê de artificial. Não vi nenhuma árvore ou grama,
nenhum pássaro voando. Nem sequer o vento soprava. Eu era a única coisa
em movimento. Todo o resto estava imóvel e mudo, como se o tempo
tivesse congelado.
Finalmente alcancei o topo e, como esperava, pude olhar do alto a
paisagem onde estava. Porém uma espécie de névoa esbranquiçada cobria
tudo e não permitia que eu enxergasse ao longe. Descobri apenas que
estava em uma planície estéril, sem nenhum sinal de vida até onde meus
olhos alcançavam. Aquele deserto acidentado, repleto de rochas, se
estendia em todas as direções. E não se via o céu. O teto leitoso (ou algo
que parecia ser um teto) cobria tudo. Me senti como um astronauta fazendo
um pouso de emergência em um planeta desconhecido e inabitado. Talvez
eu devesse ser grato por haver ali um pouco de luz e uma atmosfera
respirável?
Fiquei imóvel, prestando atenção, e tive a impressão de escutar um som
indistinto. No começo pensei que fosse minha imaginação, ou que o som
viesse de dentro de mim mesmo, um zumbido no meu próprio ouvido, mas
aos poucos fui percebendo que era um som real. O tipo de ruído contínuo
produzido por fenômenos naturais. Parecia ser o som de um rio. Talvez
fosse o rio que o Cara Comprida havia mencionado. Banhado pela luz
pálida, resolvi seguir na direção de onde vinha esse barulho de água, e
desci com cuidado pela encosta irregular.
Com o som de água corrente, percebi que estava terrivelmente sedento.
Pensando bem, fazia muito tempo que eu estava caminhando sem beber
nada. Isso nem tinha me ocorrido até aquele momento, talvez por causa da
ansiedade. Mas agora, ouvindo o rio, sentia uma sede quase insuportável.
No entanto, será que a água daquele rio — se é que era esta a origem do
barulho — era potável? Talvez fosse lamacenta e turva, tivesse alguma
substância tóxica ou microrganismos nocivos. Ou, quem sabe, era uma
água puramente metafórica, impossível de apanhar com as mãos. De
qualquer maneira, só me restava ir até lá.
Conforme eu avançava, o som de água foi ficando mais alto e mais
distinto. Era o barulho de um rio volumoso serpenteando por entre as
pedras. No entanto, eu ainda não conseguia vê-lo. Segui na direção de onde
acreditava que ele estaria, e pouco a pouco o terreno de ambos os lados foi
se erguendo, até que eu estava entre duas paredes de pedra. Tinham mais
de dez metros de altura. Agora havia uma trilha definida, apertada entre os
dois barrancos. Eu não conseguia ver para onde ela estava me levando,
pois fazia curvas e reviravoltas. Não era uma trilha feita por mãos
humanas. Parecia ser uma fenda aberta na rocha pela própria natureza. E,
ao que tudo indicava, no final dela corria um rio.
Segui em frente por aquele caminho entre dois despenhadeiros. Como
antes, nenhuma planta ou relva crescia ali. Não encontrei nada dotado de
vida. Via apenas aquela sequência infinita de rochas silenciosas. Era um
mundo monocromático e estéril, como uma pintura de paisagem cujo
pintor tivesse se desinteressado e desistido de adicionar cores. Nem os
meus passos faziam muito barulho, como se as rochas ao meu redor
tragassem todos os sons.
O caminho, que era quase todo plano, aos poucos começou a subir.
Caminhei ladeira acima por bastante tempo até chegar ao cume, onde as
rochas formavam uma crista estreita. Debruçado lá em cima, finalmente
pude ver o rio. Ali, o som da água era muito mais nítido.
Não parecia ser muito grande, devia ter uns cinco ou seis metros de
largura, coisa assim. Mas a correnteza parecia ser bem forte. Era difícil
estimar sua profundidade. A julgar pelas pequenas ondas que se formavam
sem padrão, a superfície das rochas sob a água devia ser irregular. O rio
cortava em linha reta a vasta planície rochosa. Cruzei a crista de pedra e
desci a escarpa íngreme do outro lado, rumo à margem.
Fiquei um pouco mais tranquilo ao chegar diante do rio, que corria
rapidamente da direita para a esquerda. No mínimo, era uma grande
quantidade de água se movendo de verdade. Ela vinha de algum lugar e ia
em direção a outro, acompanhando o relevo. Naquele mundo imóvel, onde
nem sequer havia vento, a água do rio se mexia e seu ruído ecoava ao meu
redor. Então aquele lugar não era completamente desprovido de
movimento. Saber disso me deu certo alívio.
Assim que cheguei à margem, a primeira coisa que fiz foi me agachar e
recolher com as mãos um pouco de água. Estava agradavelmente fria,
como a de um rio formado pelo degelo. Era cristalina e parecia limpa, mas
claro que eu não tinha como saber só pelo aspecto se era segura para beber.
Ela poderia conter alguma substância letal e invisível aos olhos. Poderia
estar contaminada por microrganismos perigosos.
Cheirei a água em minhas mãos. Não tinha cheiro algum (se é que meu
olfato estava funcionando). Então a levei à boca. Também não tinha gosto
(se é que meu paladar estava funcionando). Bebi toda a água num ímpeto.
Não me importavam as consequências, eu estava sedento demais para me
conter. Mesmo ao bebê-la, não senti gosto nem cheiro. Mas, fosse real ou
fictícia, felizmente ela matou minha sede.
Enchi as mãos de água várias vezes e bebi sofregamente, até não
aguentar mais. Pelo visto, eu estava com mais sede do que pensava. Mas
beber uma água totalmente inodora e sem gosto é, na prática, uma sensação
bem esquisita. Normalmente, ao matar a sede com grandes goles de água
gelada, temos a sensação de que ela é saborosa. Todo o nosso corpo a
absorve avidamente. Todas as células se regozijam, todos os músculos
recuperam a vivacidade. Mas na água daquele rio as qualidades que
provocam essa sensação não existiam. A sede apenas desaparecia. Um
fenômeno meramente físico.
Seja como for, bebi até ficar saciado, então me levantei e olhei
novamente ao redor. Segundo o que o Cara Comprida dissera, devia haver
um ancoradouro em algum lugar na margem do rio. Se eu conseguisse
chegar até ele, um barco me levaria até o outro lado. E, uma vez no lado
oposto, eu conseguiria (talvez) descobrir alguma coisa sobre o paradeiro de
Mariê Akikawa. Mas não enxerguei nada próximo de um barco, nem para
cima nem para baixo do rio. Eu precisava dar um jeito de encontrá-lo. Seria
perigoso demais tentar atravessar o rio sozinho. “É gelado, rápido e
profundo. Não é possível atravessá-lo sem um barco”, dissera o Cara
Comprida. Mas para que lado eu deveria ir para chegar ao barco? Rio
acima, ou rio abaixo? Eu tinha que escolher uma das opções.
Nesse momento, lembrei que o nome de Menshiki era Wataru. Ao me
entregar seu cartão ele acrescentara: “Como no verbo que se usa em
‘atravessar um rio’. Não sei por que me deram esse nome”. Naquele dia,
ele dissera também que era canhoto e que, quando precisava escolher entre
seguir pela esquerda ou pela direita, escolhia sempre a esquerda. Fora uma
declaração repentina, sem relação alguma com o contexto. Na hora, achei
estranho que dissesse isso assim, do nada. Acho que foi justamente por isso
que guardei tão claramente suas palavras.
Talvez tenha sido apenas um comentário sem grande significado. Talvez
fosse apenas uma coincidência. Mas, de acordo com o Cara Comprida, o
mundo onde eu estava era formado pela correlação entre os fenômenos e a
linguagem. Eu devia tratar com muita atenção qualquer coincidência,
qualquer sinal que conseguisse identificar. Parado diante do rio, decidi
seguir para o lado esquerdo. Obedecendo à recomendação inconsciente do
incolor Menshiki, eu acompanharia a correnteza daquele rio sem cheiro
nem sabor, e talvez assim encontrasse mais alguma pista. Talvez não
encontrasse nada.
Caminhando ao lado do rio, me perguntei se alguma criatura habitava
suas águas. Eu não podia afirmar com certeza, mas provavelmente não.
Não havia nenhum sinal de vida lá dentro. Além disso, que tipo de criatura
conseguiria viver numa água completamente insípida e inodora? E aquele
rio parecia estar absolutamente focado em sua própria identidade. “Eu sou
um rio”, declarava ele, “eu corro sem cessar.” Tinha a aparência de um rio,
sem dúvida, mas era somente esse estado de ser. Nenhum graveto ou folha
flutuava na sua superfície. Era apenas um grande volume de água se
movendo sobre a terra.
Tudo ao redor continuava encoberto por uma bruma difusa e macia
como algodão. Ela me envolvia enquanto eu andava e era como me mover
em meio a uma cortina de renda branca. Depois de algum tempo, comecei
a sentir no estômago o volume da água que eu acabara de beber. Não era
uma sensação particularmente desagradável ou preocupante, mas também
não era gostosa ou auspiciosa. Era uma sensação neutra, difícil de precisar.
E, ao mesmo tempo, eu tinha a estranha impressão de que, ao ingerir
aquela água, minha constituição se transformara e agora eu era uma pessoa
diferente de antes. Seria possível que, ao beber daquela água, meu corpo
tivesse se adaptado fisicamente àquele mundo?
Porém, não sei por quê, essa situação não me parecia crítica. Pensei,
otimista, que não devia ser nada grave. Eu não tinha nenhum motivo
concreto para esse otimismo, mas achei que até ali as coisas tinham
caminhado bem, de um jeito ou de outro. Eu conseguira chegar ao fim do
túnel escuro e apertado. Conseguira atravessar, sem mapa nem compasso, o
deserto cheio de pedras e encontrar o rio. Matara a sede com a sua água.
Não havia me deparado com nenhuma das tais DUPLAS METÁFORAS que
espreitavam na escuridão. Talvez fosse apenas sorte. Ou talvez estivesse
predeterminado que as coisas aconteceriam dessa maneira. Seja como for,
se elas seguissem nesse ritmo, daria tudo certo. Foi o que pensei. Ou pelo
menos foi o que me esforcei para pensar.
Finalmente, algo começou a se delinear lá longe, em meio à névoa. Não
era uma forma natural, mas de linhas retas, artificiais. Chegando mais
perto, percebi que se tratava de um ancoradouro. Um pequeno píer de
madeira se projetava para dentro do rio. Tomei a decisão certa ao vir para a
esquerda, pensei. Ou quem sabe, neste mundo relacional, as coisas iam
todas tomando forma de acordo com as minhas ações. Seja como for, a
sugestão inconsciente de Menshiki me ajudara a chegar até ali.
Através da bruma, vi que havia um homem em pé no ancoradouro. Era
um homem alto. Depois de ver o comendador e o Cara Comprida, tão
diminutos, ele me pareceu um gigante. Estava na extremidade do píer,
encostado em um tipo de máquina escura. Imóvel, como se estivesse
perdido em pensamentos. As águas agitadas do rio lavavam o chão do cais
e chegavam perto de seus pés, espumando. Era a primeira pessoa, ou algo
na forma de uma pessoa, que eu encontrava naquele mundo. Eu me
aproximei devagar, com cautela.
— Olá!
Arrisquei um cumprimento através da névoa, antes mesmo de conseguir
vê-lo claramente. Mas não houve resposta. O homem continuou parado,
apenas ajustou muito sutilmente sua posição. Sua silhueta escura se moveu
de leve em meio à bruma. Talvez não tivesse me escutado. Talvez o ruído
da água tivesse encoberto minha voz. Ou quem sabe o ar daquela terra não
transportava bem o som.
— Olá! — repeti, já mais próximo, falando mais alto do que antes. Mas
ele continuou calado. O único som era o barulho incessante do rio. Vai ver
aquele homem não falava a minha língua.
— Eu escutei. E entendo o que você diz — disse ele, como se lesse meus
pensamentos. Tinha uma voz grave e profunda que combinava com sua
estatura e falava sem entonação nem sentimento. Assim como as águas do
rio não tinham cheiro nem gosto algum.
54.
Para sempre é muito tempo
O homem alto parado à minha frente não tinha face. Não é que ele não
tivesse cabeça. Em cima do pescoço havia uma cabeça, normalmente. Mas
nessa cabeça não havia rosto. Onde o rosto deveria estar, havia apenas um
vazio. Era uma espécie de fumaça pálida, de cor branca leitosa. A sua voz
saía desse vazio, como o vento do fundo de uma caverna.
Ele vestia um casaco impermeável escuro muito comprido, que chegava
quase até seus pés. Sob a barra apareciam botas. Os botões do casaco
estavam fechados até o pescoço. O homem parecia preparado para
enfrentar uma tempestade.
Eu fiquei ali parado, sem dizer nada. Nenhuma palavra saía da minha
boca. A certa distância, ele me lembrara do homem do Subaru Forester
branco e também a figura de Tomohiko Amada no meu ateliê, de
madrugada. Ou ainda o jovem que, no quadro de Tomohiko, atravessa com
sua espada o comendador. Os três eram homens altos, mas, ao me
aproximar, percebi que não era nenhum deles. Era apenas um homem sem
face. Ele usava um chapéu preto de abas largas, enterrado na cabeça, cuja
sombra encobria metade do vazio leitoso.
— Eu escutei. E entendo o que você diz — repetiu ele. Seus lábios não
se moveram, é claro. Pois ele não tinha lábios.
— É daqui que sai o barco? — perguntei.
— Sim — disse o homem sem face. — É daqui que ele sai. Este é o
único local onde se pode atravessar o rio.
— Eu preciso ir para o outro lado deste rio.
— Não há quem não precise.
— Muitas pessoas vêm para cá?
O homem não respondeu. Minha pergunta foi tragada para dentro do
vazio e seguiu-se um silêncio interminável.
— O que tem na outra margem? — perguntei. Por causa da neblina que
cobria o rio, eu não conseguia enxergar.
O homem sem face me encarou de dentro do vazio, antes de responder:
— O que há na outra margem é diferente para cada pessoa. Depende do
que cada um está buscando.
— Eu estou tentando descobrir o paradeiro de uma menina chamada
Mariê Akikawa.
— É o que você busca na margem oposta, então?
— É o que eu busco na margem oposta. Foi para isso que vim até aqui.
— E, diga, como foi que você conseguiu encontrar a entrada?
— Num quarto de um asilo para idosos em Izu-Kogen eu assassinei,
com uma faca de peixe, uma IDEA na forma de um comendador. Fiz isso
com sua permissão. E assim invoquei o Cara Comprida e abri o caminho
para o subterrâneo.
O homem sem face passou algum tempo sem dizer nada, o rosto vazio
voltado em minha direção. Eu não conseguia avaliar se minhas palavras
tinham sentido para ele.
— E saiu sangue?
— Saiu, muito sangue.
— E era sangue de verdade?
— Parecia ser.
— Olhe suas mãos.
Olhei para minhas mãos. Já não havia nenhum resquício de sangue
nelas. Talvez ele tivesse sido lavado nas águas do rio, quando parei para
beber. Apesar de ser tanto.
— Bom, tudo bem. Posso te levar de barco para o outro lado do rio —
disse o homem sem face. — Mas há uma única condição.
Esperei que me dissesse.
— Você deve me pagar o preço justo. Essa é a regra.
— E se eu não puder lhe pagar esse preço, não consigo chegar à outra
margem?
— Isso mesmo. Nesse caso, só lhe restaria viver para sempre do lado de
cá. As águas desse rio são geladas e profundas, a correnteza é forte. E para
sempre é um tempo muito longo. Isso não é só uma maneira de dizer, eu
lhe asseguro.
— Mas eu não tenho comigo nada que sirva como pagamento.
— Mostre-me tudo o que tem nos bolsos — disse o homem sem face,
num tom calmo.
Tirei todo o conteúdo dos bolsos do casaco e da calça. A carteira com
quase vinte mil ienes em notas, um cartão de crédito e um cartão do banco,
a habilitação de motorista e um cupom de desconto de um posto de
gasolina. Um chaveiro com três chaves, um lenço verde-claro, uma caneta
esferográfica descartável. De resto, umas cinco ou seis moedas soltas. Isso
era tudo. Além da lanterna, é claro.
O homem sem face balançou a cabeça.
— Sinto muito, mas nada disso paga pela travessia. O dinheiro não
significa nada aqui. Você não tem mais nada?
Aquilo era tudo. Tinha também um relógio no pulso da mão esquerda,
mas ali o tempo não tinha valor nenhum.
— Se eu tivesse papel, poderia fazer seu retrato. Fora estas coisas, tudo
o que possuo é a capacidade de desenhar.
O homem sem rosto riu. Ou, pelo menos, acho que ele riu. Uma espécie
de eco alegre soou ao longe, das profundezas do vazio.
— Eu não tenho rosto, para começo de conversa. Como retratar alguém
sem rosto? Como você desenharia o nada?
— Sou profissional — respondi. — Não preciso de rosto para fazer um
retrato.
Eu não estava certo de que seria capaz de retratar um homem sem face.
Mas certamente valia a pena tentar.
— Gostaria de ver como seria esse retrato — disse o homem sem face.
— Mas, infelizmente, aqui não há papel.
Olhei para o chão. Talvez eu pudesse desenhar na terra, com um graveto.
Mas o chão ao nosso redor era de pedra dura. Balancei a cabeça.
— Isso é realmente tudo o que você traz consigo?
Examinei mais uma vez todos os bolsos, com atenção. Nos bolsos do
meu casaco de couro não havia mais nada. Estavam totalmente vazios. Mas
percebi que, no canto de um bolso da calça, restava alguma coisa muito
pequena. Era o minúsculo pinguim de plástico, preso a um fiozinho, que
Menshiki encontrou no fundo do buraco e me entregou. O pinguim que
Mariê Akikawa usava preso ao celular como um amuleto e que, por algum
motivo, estava caído lá.
— Mostre-me o que tem na mão — disse o homem sem face.
Eu abri a mão e exibi sobre a palma o pequeno pinguim.
O homem sem face fixou nele os olhos do seu vazio.
— Isto serve — declarou ele. — Posso aceitar isso como pagamento.
Será que eu podia entregá-lo àquele homem? Era difícil decidir. Afinal,
aquilo era um amuleto precioso para Mariê. Não era meu. Eu podia tomar
essa liberdade e dá-lo a outra pessoa? Será que aconteceria algo de ruim a
Mariê, se eu o fizesse?
Porém, eu não tinha escolha. Se não entregasse o pinguim ao homem
sem face, não poderia atravessar o rio, e, sem atravessar o rio,
provavelmente não descobriria onde estava Mariê. A morte do comendador
teria sido em vão.
— Certo, pagarei pela travessia com isto — falei. — Leve-me para o
outro lado, por favor.
O homem sem face assentiu.
— Quem sabe um dia você venha a pintar o meu retrato. Se conseguir
fazê-lo, devolverei este pinguim.
Deixei o píer para trás e resolvi descer ao longo do curso do rio. Assim,
poderia beber água se sentisse sede. Quando me virei para olhar, depois de
caminhar um pouco, a neblina branca já encobrira o píer e era como se
nunca houvesse existido.
Conforme eu acompanhava seu curso, o rio foi ficando cada vez mais
largo, e a correnteza visivelmente mais suave. Agora, já nem se ouvia mais
o som das águas. Pensei que teria sido muito melhor atravessar ali, onde a
correnteza era fraca, do que naquele trecho tão indócil. Ainda que a
distância aqui fosse maior, a travessia seria muito mais fácil. Mas talvez
aquele mundo tivesse as próprias regras e lógica. Quem sabe, este trecho
aparentemente tranquilo escondia muito mais perigos do que aquele outro.
Chequei o bolso, por via das dúvidas, mas o pinguim realmente não
estava mais lá. Fiquei um pouco apreensivo por ter perdido (provavelmente
para sempre) aquele amuleto. Talvez eu tivesse feito a escolha errada. Mas
qual opção eu tinha, exceto entregá-lo ao homem? Torci para que, mesmo
distante de seu amuleto, Mariê estivesse bem. Agora, tudo que eu podia
fazer era torcer.
Eu andava ao longo do rio, pisando com cuidado e segurando a lanterna
que eu pegara da cabeceira de Tomohiko Amada. Não a acendi. Ali não
estava muito claro, mas também não estava tão escuro que eu precisasse de
uma luz. Eu conseguia ver com clareza onde estava pisando, e também
enxergava uns cinco ou seis metros adiante sem dificuldade. O rio corria ao
meu lado direito, calmo e silencioso. Só conseguia ver a margem oposta de
vez em quando, bem difusa.
Conforme eu prosseguia, uma trilha foi tomando forma à minha frente.
Não era um caminho demarcado, mas algo que cumpria essa função.
Passava a impressão de que várias pessoas já haviam caminhado por ali
antes. E esse caminho foi se afastando, pouco a pouco, da margem do rio.
A certa altura eu parei, indeciso. Será que devia continuar acompanhando o
rio? Ou será que devia seguir por aquilo que parecia ser uma trilha e me
afastar dele?
Pensei por algum tempo e escolhi me afastar do rio e seguir o caminho.
Sentia que ele me guiaria a algum lugar. Basta você agir e as correlações
surgirão, de acordo com seus movimentos, dissera o barqueiro sem face.
Aquela trilha devia ser uma dessas correlações. Decidi obedecer a essa
(possível) sugestão natural.
Conforme a trilha se afastava do rio, ela começou a ficar íngreme e
subir. Quando me dei conta, já não escutava o som da água. Continuei
caminhando num ritmo constante pela ladeira suave, quase uma linha reta.
A bruma já havia se dissipado, mas a luz continuava tênue e opaca, e era
impossível enxergar o que havia mais adiante. Eu andava em meio a essa
fraca claridade, respirando num ritmo regular e pisando com atenção.
Há quanto tempo eu estava andando? Eu perdera completamente a noção
do tempo. A de direção, também. Inclusive porque, enquanto caminhava,
pensei sem parar em alguma coisa. Havia muitos assuntos sobre os quais
eu precisava refletir, mas na prática só conseguia ter pensamentos
terrivelmente entrecortados. Tentava pensar sobre algo e logo me vinha à
mente outro assunto. O novo pensamento engolia de uma só vez o anterior,
como um peixe grande engolindo um pequeno. Assim, minhas reflexões se
afastavam cada vez mais do ponto original, até que eu acabava sem saber o
que estava pensando agora nem o que é que queria pensar no começo.
Essa confusão mental me deixou tão desatento que quase me choquei de
frente com aquilo. Mas, por acaso, bem nessa hora, eu tropecei, quase caí,
recobrei por pouco o equilíbrio e então ergui o rosto para olhar adiante.
Voltei a mim num susto ao perceber que uma enorme massa escura se
erguia, ameaçadora, à minha frente. Engoli em seco e perdi a fala. Por um
segundo, não entendi o que estava acontecendo. O que era aquilo? Levei
algum tempo para compreender que se tratava de uma floresta. Naquela
terra onde eu não vira uma única grama, nem uma única folha de árvore,
surgiu de repente uma floresta enorme. Era natural que eu me espantasse.
Mas, sem dúvida, era uma floresta. As árvores se entrelaçavam de
maneira tão cerrada que seu interior era escuro. Mais do que uma floresta,
eu diria que era um “mar de árvores”. Fiquei parado diante dela escutando
com atenção, mas não ouvi nenhum barulho. Nem o vento agitando as
folhas, nem cantos de pássaros. Meus ouvidos não captavam nada. Era uma
total ausência de som.
Senti um medo instintivo de entrar naquela selva. O emaranhado de
galhos era denso demais, a escuridão além deles, profunda demais. Eu não
conseguia estimar o seu tamanho nem até onde a trilha continuaria.
Também era possível que a trilha se dividisse e eu me visse preso em um
labirinto. Se eu me perdesse lá dentro, seria dificílimo escapar. No entanto,
eu não tinha escolha senão seguir floresta adentro. A trilha que eu viera
seguindo desaparecia para o seu interior (como um trilho de trem engolido
por um túnel) e eu não podia voltar para o rio depois de ter chegado tão
longe. Eu nem sequer tinha certeza de que, se retornasse, o rio ainda estaria
lá. Precisava seguir adiante.
Tomei coragem e avancei para o meio das árvores. Eu não sabia dizer,
pela luz, se era alvorada, meio-dia ou entardecer. O que eu sabia era que,
por mais tempo que se passasse, a meia-luz não dava mostras de mudar.
Talvez, naquele mundo, nem o próprio tempo existisse, e a luminosidade
continuasse igual eternamente, sem que a manhã ou a noite jamais
chegassem.
O interior da floresta era tão escuro quanto eu imaginava. Os galhos se
entrecruzavam acima da minha cabeça, em inúmeras camadas, mas não
acendi a lanterna. Aos poucos meus olhos se acostumaram o suficiente
para que eu enxergasse onde eu pisava, e eu não queria desperdiçar a pilha.
Tentei ao máximo apenas seguir em frente pela trilha escura sem pensar em
nada, pois sentia que, se começasse a pensar, iria parar em um lugar ainda
mais negro. A trilha seguia sempre num leve aclive. O único som que eu
escutava era dos meus próprios passos. Mas era um som baixo e discreto,
como se uma parte dele se perdesse no caminho até meus ouvidos. Torci
para não ficar com sede novamente. Com certeza eu já estava muito longe
do rio. Não poderia voltar para beber água.
Quanto tempo será que eu caminhei? A floresta era interminável e a
paisagem continuava sempre igual, por mais que eu andasse. Eu só ouvia o
som dos meus passos, e o ar continuava completamente inodoro. Os galhos
entrelaçados formavam uma parede de cada lado do caminho estreito,
bloqueando toda a visão. Será que alguma criatura viva se escondia
naquela selva? Acho que não. Pelo que eu podia ver, não havia pássaros
nem insetos.
Apesar disso, durante todo o tempo tive a desagradável sensação de estar
sendo observado por alguma coisa. De que olhos atentos me observavam
de dentro da escuridão, fixos em cada movimento, por entre frestas na
espessa parede de galhos. Minha pele queimava sob esses olhares afiados,
como raios de sol concentrados por uma lente. Eles estavam esperando
para ver o que eu iria fazer. Aquele era seu território e eu era um intruso
solitário. Porém, eu não vi de fato nenhum desses olhos. Talvez fosse
apenas impressão. O medo e a desconfiança são capazes de criar na
escuridão muitos olhos fantásticos.
Por outro lado, Mariê podia sentir vivamente, na carne, o olhar de
Menshiki. Mesmo vindo do outro lado do vale, através do binóculo. Ela
percebeu que alguém a observava todos os dias. E estava certa. Não havia
nada de fantástico naquele olhar.
Ainda assim, preferi pensar que aqueles olhares que se debruçavam
sobre mim eram completamente imaginários, não existiam de fato. Não
havia nenhum olho no meio dos galhos, era apenas uma ilusão criada pela
minha mente medrosa. Eu tinha que pensar assim. O importante agora era
chegar ao fim daquela floresta (seja lá qual fosse o seu tamanho) e escapar
de dentro dela. Levando comigo uma mente tão sã quanto possível.
Por sorte, a trilha não fez nenhuma bifurcação, então não precisei tomar
decisões sobre qual rumo tomar nem me vi preso em um labirinto
incompreensível. Também não me deparei com galhos espinhosos que me
impedissem de avançar. Tudo o que eu precisava fazer, felizmente, era
seguir a mesma trilha, sempre em frente.
Quanto será que eu caminhei naquela trilha? Creio que tenha sido muito
tempo (ainda que, naquele lugar, o tempo não tivesse significado algum).
Apesar disso, quase não fiquei cansado. Eu devia estar agitado demais,
tenso demais para me cansar. Quando, apesar disso, minhas pernas
começaram a ficar pesadas, tive a impressão de ver ao longe uma pequena
claridade. Uma luz amarelada como a de vaga-lumes. Mas não eram vaga-
lumes. Era um único ponto e não piscava. Pelo jeito, parecia ser uma luz
artificial, fixa em algum lugar. E, conforme eu caminhava, ela ia ficando
maior e mais clara. Não havia dúvida. Eu estava me aproximando de
alguma coisa.
Não havia como saber se era algo bom ou ruim. Aquilo me salvaria ou
me faria mal? Em qualquer caso, eu não tinha opção. Para bem ou para
mal, o jeito era ver com meus próprios olhos do que se tratava. Se eu não
quisesse fazer isso, não devia ter me metido naquela situação. Continuei,
passo a passo, em direção à luz.
Até que, de súbito, a floresta chegou ao fim. As paredes de árvores ao
meu lado desapareceram e, quando percebi, estava em uma clareira aberta.
Eu conseguira sair da mata. A clareira era perfeitamente plana, em forma
de meia-lua. À sua frente se erguia um despenhadeiro e, na parede desse
despenhadeiro, vi a abertura negra de uma caverna. A luz que eu buscava
escapava do seu interior.
Às minhas costas se espalhava um imenso oceano de árvores, à minha
frente se erguia um barranco altíssimo (e completamente impossível de
escalar), com a entrada de uma caverna. Eu olhei novamente para cima e
ao redor. Não havia nenhum outro caminho, nenhuma outra ação a tomar
senão entrar naquela caverna. Antes de fazê-lo, respirei fundo várias vezes
e tentei clarear a mente. Conforme eu seguia em frente, as correlações
surgiam. Foi o que o homem sem face disse. Eu estava conseguindo
escapar pela fresta entre o ser e o não ser. O jeito era acreditar no que ele
dissera e me entregar.
Entrei cautelosamente na caverna. E então percebi. Eu já havia entrado
naquela caverna antes. Conhecia aquele cenário. Aquele ar também. As
memórias voltaram de repente: era o buraco de vento do monte Fuji, a
caverna onde meu tio me levou junto com Komichi quando éramos
crianças, nas férias de verão. Onde Komichi desapareceu para dentro de
um túnel lateral e demorou muito tempo para voltar. E eu fui tomado pela
ansiedade, pensando que minha irmã tinha sumido de vez. Que tinha sido
tragada, para sempre, por um labirinto escuro no subterrâneo.
Para sempre é um tempo muito longo, dissera o homem sem face.
Avancei devagar pela caverna, na direção da luz amarela. Fazendo o
mínimo possível de ruído ao caminhar e tentando conter meu coração
acelerado. Quando a parede de pedra fez uma curva, pude ver a origem da
luz. Era uma velha lamparina. Com moldura de ferro, do tipo usado pelos
mineradores de carvão de antigamente, chamado de “kantera”. Estava
pendurada em um prego grosso na parede de pedra e no seu interior ardia
uma grande vela.
A palavra “kantera” me lembrou alguma coisa. Tinha a ver com o nome
do grupo de resistência estudantil que se opunha aos nazistas em Viena, do
qual se supõe que Tomohiko Amada participara. Vários pontos estavam se
ligando.
Vi que, embaixo da lanterna, havia uma mulher. Eu não tinha percebido
antes, pois ela era muito pequena. Não devia ter mais de sessenta
centímetros de altura. Seus cabelos negros estavam presos no alto da
cabeça em um belo penteado, e ela vestia um traje branco de outras épocas,
muito refinado. Se tratava, também, de um personagem saído do quadro O
assassinato do comendador. Era a bela jovem que testemunhava, com os
olhos apavorados e a mão sobre a boca, a morte do comendador. Nos
personagens de Don Giovanni, a ópera de Mozart, era Donna Anna, a filha
do comendador assassinado.
A sua sombra, projetada pela luz da lanterna na parede de pedra, se
agitava.
— Eu estava esperando o senhor — disse a pequena Donna Anna.
55.
Evidentemente contrário aos princípios
mais básicos
Muitas coisas não faziam sentido, mas naquele momento o que mais me
intrigava era por que nenhuma luz estava entrando no buraco. Alguém
devia tê-lo coberto completamente com alguma coisa. Mas quem faria
isso? E para quê?
E se alguém (seja lá quem) tivesse empilhado em cima da abertura
várias pedras gigantes e lacrado o buraco, do jeito como nós o
encontramos? Rezei para que não fosse isso. Se fosse, minha chance de
sair de lá era nula.
De repente me ocorreu uma ideia. Acendi a lanterna e iluminei o relógio
de pulso. Ele indicava quatro horas e trinta e dois minutos. O ponteiro dos
segundos se movia normalmente. Parece que o tempo estava mesmo
passando. No mínimo, eu estava em um mundo no qual o tempo existia e
se movia em uma direção determinada.
Mas o que é o tempo, afinal?, perguntei a mim mesmo. Nós o medimos
com os ponteiros dos relógios, à nossa conveniência. Mas será que isso é
apropriado? Será que o tempo realmente passa de forma tão regular, em
uma direção linear? Será que não estamos pensando de forma equivocada
sobre tudo isso, cometendo um erro grandioso?
Apaguei mais uma vez a lanterna e soltei um suspiro no escuro absoluto
que se restaurou. Melhor parar de pensar sobre o tempo. Melhor não pensar
sobre o espaço também. Remoer essas questões não me levaria a lugar
algum, só ao desgaste emocional. Eu precisava pensar em alguma coisa
mais concreta, do tipo de coisa que se pode ver com os olhos e tocar com
as mãos.
Por isso, pensei na Yuzu. Ela também faz parte das coisas que se pode
ver com os olhos e tocar com as mãos (para quem tiver essa oportunidade,
claro). E agora ela está grávida. Em janeiro do ano que vem, essa criança
— filha de um pai que não sou eu — vai nascer. Longe de mim, esses fatos
que não me diziam respeito seguiam seu curso. Uma vida sem relação com
a minha estava prestes a surgir neste mundo. E Yuzu não esperava nada de
mim nesse sentido. Então por que será que ela não queria se casar com o
pai da criança? Eu não sabia o motivo. Se seu plano era ser uma mãe
solteira, ela precisaria deixar o escritório de arquitetura onde trabalhava.
Era uma empresa pequena e certamente não teria condições de oferecer
uma longa licença-maternidade para uma nova mãe.
Mas não me ocorria uma explicação convincente. Fiquei ali no escuro,
desnorteado. A escuridão amplificava o sentimento de impotência.
Se eu conseguir sair deste buraco, vou tomar coragem e me encontrar
com a Yuzu, pensei. O fato de ela arranjar um amante e me largar de
repente me magoou, é claro. Também senti certa raiva (apesar de ter
demorado bastante tempo para admitir que a raiva fazia parte do que eu
estava sentindo). Mas eu não podia viver para sempre com esses
sentimentos. Precisava me encontrar com a Yuzu para conversarmos
direito, frente a frente, pelo menos uma vez. Para perguntar diretamente o
que ela estava pensando e o que buscava. Decidi fazer isso antes que fosse
tarde demais. Essa decisão fez com que eu me sentisse um pouco mais
leve. Se ela quisesse ser minha amiga, tudo bem. Talvez isso não fosse
totalmente impossível. Se pelo menos eu conseguisse sair dali e voltar à
superfície, talvez nós conseguíssemos encontrar um caminho.
Depois disso, eu adormeci. Eu sentia cada vez mais o frio, pois havia
deixado minha jaqueta de couro para trás antes de entrar no túnel (qual
destino será que aguardava a minha jaqueta?). Estava apenas com uma
camiseta de manga curta e um suéter fino, em frangalhos depois de ser
arrastado por todo o túnel. E agora eu tinha saído da Terra das Metáforas
para o mundo real. Ou seja, para um mundo onde existiam tempo e
temperatura reais. Entretanto, o sono foi mais forte que o frio. Adormeci
sem perceber, do jeito que estava — sentado no chão duro e recostado na
parede de pedra. Foi um sono puro, sem sonhos nem enganos. Um sono
solitário, muito além do alcance de qualquer pessoa, como o ouro espanhol
mergulhado nas profundezas do mar irlandês.
Acordei às duas e cinquenta. Tudo estava tão escuro que por um instante
achei que ainda estivesse no buraco, mas logo percebi que não. A
escuridão absoluta do fundo do buraco era de outra natureza, diferente do
escuro da noite na superfície. Acima da terra, por mais escuro que esteja,
há sempre um vestígio de luz. É diferente da escuridão em que toda a luz é
anulada. Eram duas horas e cinquenta da madrugada, acontecia de o sol
estar do outro lado do planeta. Só isso.
Acendi o abajur na cabeceira, saí da cama, fui até a cozinha e bebi vários
copos de água. Estava tudo quieto. Quieto demais. Mesmo escutando com
atenção, não consegui ouvir qualquer som. Não ventava. Os insetos não
cantavam mais, pois já era inverno. Não ouvi nenhum pássaro noturno.
Também não ouvi o guizo. Pensando bem, foi bem neste horário que ouvi
pela primeira vez o som do guizo. É o horário em que coisas
extraordinárias acontecem com mais facilidade.
Eu não conseguiria voltar a dormir. O sono havia me abandonado. Vesti
um suéter por cima do pijama e fui para o ateliê. Percebi que não havia
entrado lá nenhuma vez desde que voltara para casa, e queria saber o que
tinha acontecido com as obras. Principalmente O assassinato do
comendador. Masahiko Amada estivera naquela casa durante a minha
ausência, segundo Menshiki. Talvez ele tivesse entrado no ateliê e visto o
quadro. Ele perceberia que era uma obra de seu pai assim que batesse os
olhos. Mas eu tinha deixado o quadro coberto, por via das dúvidas. Tinha
achado melhor tirá-lo da parede e cobri-lo com um tecido branco. Se
continuasse assim, significava que Masahiko provavelmente não o vira.
Entrei no ateliê e acendi o interruptor na parede. O interior do ateliê
também estava completamente quieto. Não havia ninguém, é claro. Nem o
comendador, nem Tomohiko Amada. Eu estava sozinho ali.
O assassinato do comendador continuava apoiado no chão e coberto
pelo tecido. Não vi nenhum indício de que houvessem mexido nele. Era
impossível ter certeza, claro, mas algo nele me dizia que não havia sido
tocado. Puxei o tecido e ali estava. Exatamente igual à última vez que eu o
vira. O comendador estava lá. Don Giovanni, seu assassino, estava lá. Ao
seu lado, o servo Leporello engolia em seco. A bela Donna Anna, em
choque, cobria a boca com a mão. E, no canto inferior esquerdo, estava o
estranho Cara Comprida, espichando a cabeça para fora de um buraco
quadrado no chão.
Na verdade, parte de mim tinha ficado apreensiva, pensando se as
minhas ações não teriam alterado alguma coisa no quadro. Por exemplo, o
alçapão do qual saía o Cara Comprida poderia ter se fechado, excluindo
esse personagem da pintura. O comendador poderia estar sendo
assassinado com uma faca de peixe em vez de uma espada. Mas o
examinei muito minuciosamente e não encontrei nenhuma diferença. O
Cara Comprida continuava segurando o alçapão, a cabeça de formato
esquisito para fora da terra, e olhando ao redor com olhos arregalados.
Uma espada longa e afiada atravessava o coração do comendador, que
jorrava sangue. O quadro continuava tendo a composição perfeita de
sempre. Eu o admirei por mais algum tempo, depois voltei a cobri-lo.
Em seguida, me voltei para as duas obras nas quais eu estava
trabalhando. Estavam lado a lado, cada uma sobre um cavalete. Um quadro
horizontal, O buraco no meio do bosque, e outro vertical, O retrato de
Mariê Akikawa. Comparei as duas, atentamente. Ambas continuavam
iguais desde a última vez em que eu as vira. Não havia nada de novo. Uma
já estava pronta, a outra esperava os retoques finais.
Então virei o quadro O homem do Subaru Forester branco, que estava
apoiado com a tela na parede, e me sentei no chão para analisá-lo
novamente. De dentro da massa de tinta de várias cores, o homem do
Subaru Forester branco me encarou. Sua figura não estava desenhada
concretamente, mas eu conseguia enxergá-la com clareza. Escondido atrás
das grossas camadas de tinta aplicadas com espátula, ele me encarava com
seus olhos penetrantes como os de um pássaro noturno. Seu rosto era
absolutamente inexpressivo. E ele não queria que eu terminasse a pintura
— que eu deixasse sua figura mais evidente. Não queria ser arrastado para
fora do escuro e forçado a se expor à luz.
Mesmo assim, um dia eu iria traçar claramente sua imagem. Iria arrancá-
lo daquela escuridão, por mais que ele resistisse. Talvez naquele momento
ainda não fosse capaz, mas era algo que eu acabaria precisando fazer.
Olhei mais uma vez para O retrato de Mariê Akikawa. Eu já havia
chegado ao estágio em que não precisava mais dela como modelo. Agora
faltavam apenas alguns ajustes técnicos e a pintura estaria pronta. Aquela
poderia se tornar uma das minhas melhores obras. No mínimo, eu
conseguiria captar o frescor daquela bela menina de treze anos. Eu estava
confiante disso. Mas era provável que eu nunca a terminasse. Talvez, para
proteger alguma coisa em Mariê, eu precisasse deixar aquela obra
inacabada. Eu sabia disso.
Depois de desligar, fui para a sala, deitei no sofá e fiquei olhando para o
teto e pensando sobre ela. Reparei que, apesar de vê-la com tanta
frequência, nunca tinha me ocorrido a ideia de pintar seu retrato. Por que
nunca tive esse impulso? Por outro lado, fiz vários esboços, em um
pequeno caderno, usando um lápis 2B, praticamente desenhos de um só
traço. A maioria eram desenhos dela nua, em poses sensuais. Até com as
pernas bem abertas, exibindo a vulva. Também a desenhei transando. Eram
todos rascunhos simples, mas bem realistas. E absolutamente depravados.
Ela gostava muito desses esboços.
— Você é muito bom nesse tipo de desenho indecente. Faz num instante,
como se não fosse nada demais, mas são muito sexy.
— É só brincadeira — eu falei.
Eu fazia um esboço atrás do outro, depois arrancava as páginas e jogava
fora. Se eu os deixasse no caderno, alguém poderia ver. Mas talvez devesse
ter guardado pelo menos um, discretamente. Como uma prova, para mim
mesmo, de que ela realmente existira.
Depois, voltei a pegar o telefone e tentei mais uma vez falar com Shoko.
Mas, como antes, ninguém atendeu. Só caía na caixa postal. Desisti e me
sentei no sofá da sala. Além desses telefonemas, eu não tinha mais o que
fazer. Fazia tempo que eu não pintava e senti certa vontade de ir para o
ateliê, mas não me ocorria nenhuma ideia para um novo quadro.
Coloquei na vitrola The River, do Bruce Springsteen. Deitei no sofá,
fechei os olhos e fiquei ouvindo. Ouvi o lado A do disco 1, depois virei e
ouvi o lado B. Realmente, The River é um álbum feito para escutar assim.
Quando acaba “Independence Day”, do lado A, você pega o disco com as
duas mãos, muda de lado e pousa a agulha com cuidado sobre o começo do
lado B. “Hungry Heart” começa a tocar. De que vale esse álbum se você
não puder fazer isso? Na minha opinião, The River não deve ser escutado
em CD, de uma vez só. A mesma coisa acontece com Rubber Soul e Pet
Sounds. Grandes obras da música exigem um ritual apropriado. Uma
postura apropriada.
Seja como for, a performance da E Street Band nesse álbum é
impecável. A banda apoia o cantor, que inspira a banda. Por algum tempo,
consegui esquecer todos os problemas da realidade e apenas ouvir, com
toda a atenção, cada música.
Quando terminei o primeiro disco e ergui a agulha, pensei que talvez
devesse ligar para Menshiki. Não nos falávamos desde que ele me
socorrera no buraco, no dia anterior. Mas, não sei por quê, não me animei a
pegar o telefone. Isso me acontecia às vezes com Menshiki. Ele era uma
pessoa muito interessante, no geral, mas de vez em quando era cansativo
me encontrar ou conversar com ele. A distância era muito grande. E
naquele momento, por algum motivo, eu não queria ouvir a sua voz.
No fim, acabei não ligando, deixei para depois. O dia tinha acabado de
começar. Coloquei na vitrola o disco 2 de The River, mas, quando estava
deitado no sofá, ouvindo “Cadillac Ranch” (“All gonna meet down at the
Cadillac Ranch”), o telefone tocou. Levantei a agulha, fui até a copa e
atendi. Pensei que poderia ser Menshiki, mas era Shoko.
— Por acaso foi você quem telefonou, durante a manhã? — perguntou
ela, de saída.
Eu disse que sim, tinha ligado várias vezes.
— Soube pelo Menshiki que Mariê voltou para casa, então liguei para
saber como ela estava.
— Sim, Mariê voltou ontem, sã e salva. Ontem de tarde. Liguei algumas
vezes para sua casa para lhe avisar, mas parece que você não estava. Então
falei com Menshiki. Você esteve ausente?
— Sim, tive que ir a um lugar meio longe, resolver umas pendências
inadiáveis. Voltei ontem no final da tarde. Gostaria de ter ligado antes, mas
não tinha telefone onde eu estava, e eu não tenho celular — falei. Não era
uma mentira completa.
— Mariê voltou para casa ontem no começo da tarde, sozinha. Estava
coberta de lama, mas graças a Deus sem nenhum ferimento grave.
— Onde ela esteve durante todo esse tempo?
— Eu ainda não sei — disse Shoko, quase num cochicho, como se
tivesse medo de a ligação estar grampeada. — Mariê não me diz o que
aconteceu. Como nós havíamos feito um pedido de busca para a polícia,
eles vieram aqui em casa e fizeram várias perguntas, mas ela não
respondeu absolutamente nada. Ficou muda. Então eles desistiram e
disseram que vão voltar depois, quando ela estiver mais tranquila, para
saber o que houve. Porque agora ela está de volta em casa e sabem que está
segura, pelo menos. Ela também não responde às minhas perguntas, nem às
do pai. Você sabe como essa menina é teimosa.
— E estava coberta de lama?
— Sim, o corpo todo. Seu uniforme estava rasgado e ela tinha arranhões
nas pernas e braços, mas nada que chegasse a precisar de cuidados
médicos.
Era exatamente igual ao meu caso. Suja de terra, com a roupa rasgada.
Será que ela também passou por um túnel apertado para voltar a este
mundo, como eu?
— E ela não fala nada? — perguntei.
— É, desde que voltou ainda não falou nem uma palavra. Não fez
nenhum som, na verdade. Parece que roubaram a língua dela.
— Será que ela sofreu um choque muito grande, que a deixou muda?
— Não, não acho que seja isso. Acho que só decidiu não falar e está
calada de propósito. É a minha impressão. Isso já aconteceu outras vezes,
quando ela fica muito brava, por exemplo. Ela é assim. Quando decide
fazer alguma coisa vai até o fim, haja o que houver.
— Você acha que aconteceu alguma coisa ilegal? — perguntei. — Será
que ela foi sequestrada, ficou presa, algo assim?
— Eu não sei bem… Mas, como ela não quer falar, a polícia ficou de
voltar para interrogá-la depois — respondeu Shoko. — E… se você não se
importa, eu gostaria de lhe pedir um favor.
— O quê?
— Você poderia se encontrar com Mariê e conversar com ela, só vocês
dois? Eu acho que em alguns assuntos ela se abre mais com você. Então é
possível que para você ela diga algo…
Segurando o telefone na mão direita, pensei sobre isso. Não tinha ideia
do que eu devia contar a Mariê se estivéssemos sozinhos, nem como
poderia falar. Eu tinha meus próprios enigmas, e ela (certamente) tinha os
dela. Juntando um enigma com outro, será que encontraríamos alguma
resposta? De qualquer maneira, é claro que eu não poderia me recusar a vê-
la. Tínhamos alguns assuntos para tratar.
— Tudo bem. Posso conversar com ela — respondi. — Onde você
gostaria que fosse?
— Nós podemos ir à sua casa, como de costume. Acho que assim seria
melhor. Se não for incomodar, é claro.
— Certo, está bem — falei. — Eu não tenho nenhum compromisso.
Podem vir quando for mais conveniente para vocês.
— Pode ser agora mesmo? Hoje seria bom, porque ela não foi à escola.
Quer dizer, se ela concordar em ir comigo.
— Por favor, diga a Mariê que ela não precisa falar nada. Que eu tenho
algumas coisas para contar a ela — falei.
— Está bem. Vou repassar sua mensagem precisamente. Desculpe o
incômodo — disse a bela mulher, e desligou com delicadeza o telefone.
Enquanto Mariê não chegava, fiquei olhando de novo o seu retrato, quase
pronto. Eu conseguia visualizar claramente como ele ficaria se eu o
terminasse. Mas eu não o terminaria. Embora fosse uma pena. Ainda não
sabia explicar exatamente por que não poderia seguir até o fim daquela
pintura. Não havia uma argumentação lógica. Eu apenas sentia que tinha
de ser assim. Com o tempo, eu provavelmente descobriria o porquê. O fato
é que eu estava lidando com alguma coisa muito perigosa. Tinha que agir
com cautela.
Depois disso saí para o terraço, sentei em uma cadeira e fitei, distraído, a
mansão de Menshiki do outro lado do vale. O belo e incolor Menshiki, dos
cabelos brancos. “Só conversamos um minuto na porta de casa, mas parece
um sujeito interessante”, dissera Masahiko. “É um sujeito muito
interessante”, fora minha resposta, contida. Muito, muito, muito
interessante, é o que eu diria agora.
Pouco antes das três, o conhecido Toyota Prius azul subiu a ladeira e
estacionou diante da casa, no mesmo lugar de sempre. O motor desligou, a
porta do motorista se abriu e Shoko desceu. Ela saiu do carro mantendo os
joelhos juntos e girando o corpo, em um movimento elegante. Um pouco
depois, Mariê desceu pela porta do passageiro, com gestos lentos e
pesados, deixando claro seu aborrecimento. As nuvens que cobriam o céu
durante a manhã haviam sido varridas para longe, e agora o céu límpido e
azul de começo de inverno se expandia. O vento um pouco gelado que
soprava das montanhas despenteou os cabelos sedosos das duas mulheres.
Mariê afastou, irritada, os fios que caíram em sua testa.
Mariê estava de saia, um fato raro. Era uma saia de lã azul-marinho, até
o joelho. Por baixo, usava meias-calças de um azul opaco. Vestia também
um suéter de caxemira com gola em V sobre uma blusa branca. O suéter
era vinho escuro. Calçava mocassins castanhos. Vestida assim, parecia uma
típica menina saudável e bonita, bem-criada em uma família refinada. Seu
lado excêntrico desaparecia. Só seu peito continuava sendo completamente
plano.
Shoko Akikawa vestia uma calça cinza claro de corte reto, sapatos
pretos de salto baixo, muito bem engraxados, e um cardigã branco e longo,
com um cinto marcando a cintura. Mesmo sob o cardigã, o volume de seus
seios bem formados era evidente. Ela trazia na mão um tipo de carteira de
verniz preto. As mulheres sempre carregam consigo alguma coisa desse
tipo. Não consigo imaginar o que levam dentro. Mariê não carregava nada.
Sem bolsos para enfiar as mãos, parecia não saber o que fazer com elas.
Tia e sobrinha eram tão diferentes, em idade e em estágio de maturidade,
mas ambas eram belas mulheres. Observei as duas por entre as cortinas da
janela. Quando apareciam assim, lado a lado, o mundo ganhava um pouco
mais de cor. Como quando o Natal e o Ano-Novo chegam, um perto do
outro.
A campainha soou e eu abri a porta. Shoko Akikawa me cumprimentou
educadamente. Convidei-as a entrar. Mariê mantinha a boca cerrada em
uma linha reta, como se tivesse sido costurada. Era uma menina muito
determinada. Quando decidia alguma coisa, não voltava atrás.
Acompanhei as duas até a sala, como de costume. Shoko começou um
longo pedido de desculpas, dizendo que sentia muito por terem me causado
tantos inconvenientes, mas a interrompi. Não tínhamos tempo a perder com
essas formalidades.
— Se você não se importa, poderia nos deixar sozinhos por um tempo?
— pedi, sem rodeios. — Acho que seria melhor assim. Venha buscá-la
daqui a duas horas, por favor. Pode ser?
— Sim, é claro — disse a jovem tia, titubeando um pouco. — Se Mariê
concordar, por mim não há problema.
Mariê assentiu com a cabeça, muito discretamente. Ela concordava.
Shoko checou seu pequeno relógio de pulso prateado.
— Então voltarei por volta das cinco horas. Até lá, estarei esperando em
casa, podem telefonar se for preciso.
Eu disse que o faria se necessário.
Shoko parecia preocupada. Ficou mais um tempo parada ali, sem dizer
nada, agarrada à carteira de verniz. Depois respirou fundo, como quem
toma uma decisão, abriu um sorriso simpático e seguiu em direção à porta.
Deu a partida no Prius (eu não escutei, mas deve ter dado) e desapareceu
ladeira abaixo. Então sobramos na casa apenas eu e Mariê Akikawa.
A menina estava sentada no sofá, os lábios fortemente cerrados, o olhar
fixo nos próprios joelhos, unidos e cobertos pela meia. A blusa de pregas
estava muito bem passada.
O silêncio absoluto continuou por algum tempo. Então eu disse:
— Olha, você não precisa falar nada, pode ficar calada se quiser. Então
não precisa ficar tão tensa. Eu vou falar e você pode só ouvir. Tá bom?
Mariê ergueu a cabeça e me encarou, mas não disse nada. Não
concordou nem negou com a cabeça. Ficou só me encarando, sem qualquer
emoção no rosto. Olhar para ele era como olhar para uma lua grande e
branca de inverno. Talvez Mariê tivesse, temporariamente, obrigado seu
coração a ficar como a lua — uma massa dura de rocha, flutuando no céu.
— Antes de tudo, queria que você me ajudasse com uma coisa — falei.
— Você pode vir comigo até o ateliê?
Eu me levantei e fui para o ateliê, e pouco depois ela também se
levantou e me seguiu. Estava gelado lá dentro. A primeira coisa que fiz foi
acender o aquecedor a querosene. Abri as cortinas e vi o sol claro da tarde
banhando a face das montanhas. O retrato de Mariê estava sobre o
cavalete, praticamente pronto. Mariê olhou para ele por um segundo e
desviou o olhar, como se tivesse visto algo proibido. Eu me agachei, tirei o
tecido que cobria o quadro O assassinato do comendador e o pendurei na
parede. Então pedi que Mariê se sentasse na banqueta e o olhasse de frente.
— Eu já te mostrei esse quadro antes, né?
Mariê concordou com um movimento curto da cabeça.
— O título dele é O assassinato do comendador. Pelo menos, era o que
estava escrito na etiqueta do embrulho, quando o encontrei. É uma obra de
Tomohiko Amada. Não sei quando ele a pintou, mas a qualidade é
extraordinária. A composição é maravilhosa e a técnica, perfeita. Os
personagens, em particular, são muito reais e convincentes.
A essa altura, fiz uma pausa para que aquelas informações se
organizassem na mente de Mariê. Depois continuei:
— No entanto, essa obra esteve escondida até agora no sótão desta casa,
embrulhada com cuidado para que ninguém visse. Deve ter ficado ali por
vários anos, juntando poeira. Só que eu o descobri por acaso e o trouxe
para cá. Talvez eu e você sejamos as únicas pessoas que viram este quadro
além de Tomohiko. Sua tia também o viu no primeiro dia em que vocês
vieram aqui, mas não se interessou nem um pouco, não sei por quê. Eu não
sei a razão pela qual Tomohiko Amada decidiu guardar este quadro no
sótão. Por que esconder desse jeito uma pintura tão excepcional, que seria
considerada uma de suas obras-primas?
Mariê não disse nada, só continuou séria, sentada na banqueta, os olhos
cravados no quadro.
— Quando encontrei esse quadro, várias coisas começaram a acontecer,
como se tivessem dado um sinal. Várias coisas estranhas. Primeiro, esse
homem chamado Menshiki fez questão de se aproximar de mim. Menshiki,
que mora do outro lado do vale. Você já foi à casa dele, não foi?
Mariê assentiu rapidamente.
— Depois, nós abrimos aquele estranho buraco atrás do santuário, no
bosque. Ouvi um guizo tocando no meio da noite e, seguindo seu som,
descobri o buraco. Quer dizer, o som do guizo parecia vir debaixo de uma
pilha de pedras enormes. Era impossível movê-las com as mãos, eram
grandes demais, pesadas demais. Então Menshiki contratou uma equipe
profissional, que removeu as pedras com um trator. Eu não entendi por que
ele estava disposto a fazer tudo isso. Até hoje não entendo. Mas o fato é
que ele dedicou muito dinheiro e esforço para mover toda a pilha de pedras
e, embaixo dela, apareceu aquele buraco. Um buraco redondo de cerca de
dois metros de diâmetro, com paredes de pedra muito bem-acabadas. Não
se sabe quem fez essa câmara de pedra, nem para quê, é um mistério. Você
também conhece esse buraco. Não é?
Mariê concordou.
— E aí, de dentro do buraco, saiu o comendador. Esse aqui, que aparece
no quadro.
Eu apontei a figura do comendador no quadro. Mariê o encarou com
atenção, mas não mudou de expressão.
— Tinha exatamente essa cara e usava a mesma roupa. Mas tinha só
sessenta centímetros de altura. Era muito compacto. E falava de um jeito
um pouco esquisito. Parece que eu era o único que conseguia vê-lo, não sei
por quê. Ele me disse que era uma IDEA e que estava preso naquele buraco.
Ou seja, eu e Menshiki o libertamos quando abrimos o buraco. Você sabe o
que é uma IDEA?
Ela fez que não com a cabeça.
— Uma IDEA é, basicamente, um conceito. Mas nem todos os conceitos
são IDEAS. Por exemplo, o amor pode não ser, em si, uma IDEA. Porém, são
IDEAS que possibilitam que o amor exista. Bom, mas se a gente entrar nesse
assunto não vai acabar nunca. E, para ser sincero, eu também não sei as
definições exatas. O ponto é que uma IDEA é um conceito, e um conceito
não tem forma física. É puramente abstrato. Mas, assim, seria invisível aos
olhos humanos. Então, para aparecer na minha frente, essa IDEA pegou
temporariamente a forma do comendador desse quadro. Um empréstimo,
digamos. Até aqui você entendeu?
— Entendi, no geral — disse Mariê, pela primeira vez. — Até porque eu
conheci essa pessoa.
— Conheceu? — exclamei, surpreso, me voltando para olhá-la.
Perdi a fala por um instante. E então me recordei do que o comendador
dissera no asilo em Izu-Kogen. Inclusive, estive com ela agora mesmo. Até
conversamos um pouco.
— Quer dizer que você conheceu o comendador?
Mariê assentiu com a cabeça.
— Onde, quando?
— Na casa do Menshiki — disse ela.
— O que foi que ele te falou?
Mariê voltou a fechar a boca, bem apertada. Tomei aquilo como um
sinal de que ela não pretendia dizer mais nada naquele momento e não fiz
mais perguntas.
— Vários outros personagens saíram deste quadro — falei. — Tá vendo
o barbudo da cara esquisita, no canto esquerdo? Esse aqui.
Eu apontei o Cara Comprida.
— Eu chamo esse personagem de “Cara Comprida”. É um sujeito meio
grotesco. Ele também era compacto, tinha uns setenta centímetros de
altura, e também parecia ter saído do quadro. Surgiu de dentro de um
buraco no chão, erguendo o alçapão do mesmo jeito que está fazendo aí, e
me levou para o subterrâneo. Quer dizer, eu tive que usar de certa violência
para obrigá-lo a me levar.
Mariê olhou longamente para o Cara Comprida, mas não disse nada.
Continuei:
— Então, cruzei esse mundo subterrâneo a pé. Subi e desci morros,
atravessei um rio muito agitado, até que encontrei uma bela jovem. Esta
aqui. Eu a chamo de Donna Anna, como a personagem na ópera de Mozart,
Don Giovanni. Ela também era bem pequena. E me guiou até um túnel,
que saía de uma parede no fundo de uma caverna. Depois, junto com
minha falecida irmã, ela me encorajou e me ajudou a atravessar todo esse
túnel. Sem a ajuda delas, talvez eu tivesse ficado preso naquele reino
subterrâneo, sem conseguir ir até o fim. E pode ser que (isso não passa de
uma suposição minha) Donna Anna seja a namorada que Tomohiko Amada
teve quando estudou em Viena, ainda jovem. Ela foi executada, há uns
setenta anos, como criminosa política.
Mariê olhava Donna Anna no quadro. Seu olhar continuava desprovido
de qualquer sentimento, como a lua branca de inverno.
Ou, quem sabe, Donna Anna era a mãe de Mariê que morreu picada por
vespas. Talvez estivesse lá para proteger a filha. Mas não mencionei essa
hipótese, é claro.
— E também tem esse homem aqui — falei.
Então peguei o quadro que estava no chão, apoiado de costas na parede,
e o virei para que ela pudesse ver a tela. Era meu quadro inacabado, O
homem do Subaru Forester branco. À primeira vista, era apenas uma tela
coberta de três cores de tinta. Mas, atrás dessas camadas espessas, estava
desenhada a imagem do homem do Subaru Forester. Eu conseguia vê-lo.
Para as outras pessoas, era invisível.
— Você já viu esse quadro antes, não viu?
Mariê assentiu com firmeza, sem dizer nada.
— Você disse que ele já estava pronto, que eu devia deixá-lo assim.
Mariê concordou novamente.
— Eu chamo a pessoa que está desenhada aqui, ou que eu ia desenhar
aqui, de “homem do Subaru Forester branco”. Eu o encontrei em uma
pequena cidade costeira na província de Miyagi. Duas vezes. Foram dois
encontros misteriosos, que me pareceram significativos. Eu não sei nada
sobre ele. Nem seu nome. Mas, uma hora, senti que precisava pintar seu
retrato. Foi um sentimento muito forte. Então fui desenhando de memória,
mas não consegui de jeito nenhum terminar. Aí ele ficou assim, coberto de
tinta.
Os lábios de Mariê continuavam fechados em uma linha reta.
Ela balançou a cabeça.
— Acho esse homem muito assustador — disse ela.
— Esse homem? — repeti, e acompanhei seu olhar. Mariê estava
olhando minha pintura, O homem do Subaru Forester branco.
— Você está falando deste quadro? D’O homem do Subaru Forester
branco?
Mariê assentiu com a cabeça. Apesar do medo, seu olhar parecia preso
ao quadro.
— Então você consegue vê-lo?
Mariê concordou.
— Dá pra ver que ele está por trás da tinta. Está parado lá no fundo, me
observando. De boné preto.
Eu virei o quadro para a parede novamente.
— Então você é capaz de enxergar o homem do Subaru Forester neste
quadro. A maioria das pessoas não seria — falei. — Mas acho melhor você
não olhar mais para ele. Acho que é algo que você não precisa ver, ainda.
Mariê assentiu, como se achasse a mesma coisa.
— Eu não tenho certeza se o homem do Subaru Forester realmente
existe neste mundo ou não. Talvez alguém, ou alguma coisa, tenha apenas
emprestado sua figura, temporariamente. Assim como a IDEA pegou
emprestada a figura do comendador. Também pode ser que eu esteja apenas
vendo uma projeção de mim mesmo. Mas, na escuridão absoluta, isso não
era apenas uma projeção. Era algo vivo, que se movia, palpável. As
pessoas de lá chamavam isso de “DUPLA METÁFORA”. Pretendo terminar
esse quadro algum dia, mas agora ainda é cedo. Ainda é perigoso demais.
Há coisas neste mundo que não devem ser trazidas à luz levianamente. Mas
talvez…
Mariê estava me olhando, calada. Eu não consegui terminar a frase.
— Seja como for, com a ajuda de várias pessoas eu consegui atravessar
esse reino subterrâneo, passar por um túnel apertado e absolutamente
escuro, e voltar aqui para o mundo real. E em paralelo, praticamente ao
mesmo tempo, você também foi libertada de algum lugar e voltou para
casa. Eu não acho que tenha sido só coincidência. Você ficou desaparecida
por quase quatro dias, desde sexta. Fiquei desaparecido por três dias, desde
sábado. E nós dois retornamos na terça. Certamente há alguma conexão
entre essas duas coisas. E coube ao comendador a função de conectá-las.
Mas agora ele não está mais neste mundo. Já cumpriu sua função e partiu.
Sobramos apenas eu e você para fechar esse círculo. Você acredita no que
estou dizendo?
Mariê fez que sim.
— Era isso que eu queria te contar hoje. Foi por isso que pedi para
conversar com você a sós.
Mariê continuava me encarando.
— Achei que ninguém mais entenderia se eu falasse a verdade.
Provavelmente achariam que eu fiquei maluco, só isso. Afinal, é uma
história absurda, sem pé nem cabeça. Mas imaginei que você
compreenderia. Além disso, não dá pra contar toda essa história sem
mostrar este quadro, O assassinato do comendador. Não faria sentido. E eu
não queria mostrar pra outras pessoas além de você.
Mariê continuava só me olhando, em silêncio. Mas senti que a vida
voltava, pouco a pouco, ao seu olhar.
— Tomohiko Amada despejou neste quadro toda a sua força. Ele o
impregnou com sentimentos muito profundos. Pintou como quem dá o
próprio sangue, como quem corta a própria carne. É o tipo de obra que só
se faz uma vez na vida. Ele a pintou para si mesmo e também para pessoas
que já não estavam mais neste mundo, como um réquiem. Uma obra para
purificar todo o sangue que foi derramado.
— Um réquiem?
— Uma obra para apaziguar as almas, para acalmá-las, curar as feridas.
Por isso que as críticas e a admiração da sociedade, assim como as
recompensas financeiras, não importavam para ele. Pelo contrário, deviam
ser evitadas. Para ele, bastava saber que essa pintura fora criada e que
existia em algum lugar do mundo. Mesmo que estivesse embrulhada,
escondida em um sótão, que nunca fosse vista por mais ninguém. E eu
quero respeitar esse seu sentimento.
O silêncio profundo continuou.
— Você sempre brincou bastante por aqui, usando aquela passagem
secreta, não é?
Mariê Akikawa concordou.
— Chegou a encontrar Tomohiko Amada alguma vez?
— Eu o vi, mas nunca conversei com ele. Só ficava olhando de longe,
escondida, enquanto ele pintava. Afinal, eu estava invadindo o terreno
dele…
Eu concordei. Conseguia imaginar perfeitamente a cena. Escondida à
sombra dos arbustos, Mariê espia o interior do ateliê. Sentado sobre a
banqueta, concentrado, Tomohiko Amada manuseia os pincéis. Nem passa
pela sua cabeça que pode estar sendo observado.
— Você falou que queria minha ajuda — disse Mariê.
— É, falei. Queria que você me ajudasse a fazer uma coisa — falei. —
Quero embrulhar bem esses dois quadros e guardá-los no sótão, pra
ninguém mais ver. O assassinato do comendador e O homem do Subaru
Forester branco. Porque acho que não precisamos mais deles. E, se der,
queria que você me ajudasse a fazer isso.
Mariê assentiu, calada. A verdade é que eu não queria fazer isso sozinho.
Eu não precisava apenas de alguém para me ajudar, mas de uma
testemunha, um espectador. Alguém de poucas palavras, que pudesse
guardar junto comigo o segredo.
Fui até a cozinha e trouxe estilete e barbante. Eu e Mariê empacotamos
com cuidado O assassinato do comendador. Cobrimos com o papel washi
original, prendemos com barbante, depois envolvemos tudo no tecido de
algodão branco e demos mais algumas voltas de barbante. Amarramos bem
firme, para não se soltar sem querer. O homem do Subaru Forester branco
ainda não estava completamente seco, então me limitei a cobri-lo. Em
seguida, levamos os dois quadros para o armário do quarto de hóspedes.
Usando uma escada, abri o alçapão (pensando bem, era bem parecido com
o alçapão do Cara Comprida) e entrei no sótão. O ar estava gelado, mas era
um frescor agradável. Lá embaixo, Mariê ergueu os quadros, que eu peguei
e apoiei na parede.
Nesse momento, percebi de repente que não estava sozinho naquele
sótão. Senti mais uma presença. Engoli em seco. Tem alguém aqui comigo.
Mas era só uma coruja. Provavelmente a mesma que eu vira na primeira
vez em que subi ao sótão. O pássaro noturno descansava na mesma viga de
antes, na mesma posição. E, assim como da outra vez, não se incomodou
com minha aproximação.
— Ei, vem cá — sussurrei para Mariê lá embaixo. — Quero te mostrar
uma coisa incrível. Sobe sem fazer barulho.
Mariê subiu na escada e apareceu na abertura, curiosa. Eu a ajudei com
as duas mãos. O chão do sótão estava coberto por uma fina camada de
poeira branca, que certamente sujaria sua nova saia de lã, mas ela não
pareceu incomodada. Sentei no chão e apontei para a viga onde a coruja
estava pousada. Mariê se ajoelhou ao meu lado e observou o pássaro,
fascinada. Era belíssimo. Parecia um gato com asas.
— Essa coruja mora aqui faz tempo — falei, baixinho. — De noite ela
sai para caçar no bosque e, quando chega a manhã, volta para dormir. Entra
e sai por ali.
Mostrei a abertura de ventilação com a tela rasgada. Mariê assentiu com
a cabeça. Eu podia ouvir sua respiração curta e quieta.
Nós dois ficamos imóveis, calados, fitando a coruja. Sem se incomodar
com nossa presença, ela descansava discretamente. Nós compartilhávamos,
num acordo tácito, o espaço daquela casa. Um vivia durante o dia, outro
durante a noite, e assim nós dividíamos por igual o território da
consciência.
A pequena mão de Mariê apertou a minha. Ela apoiou a cabeça no meu
ombro. Eu retribuí de leve o aperto em sua mão. Eu e Komi passamos
muito tempo assim, juntos. Éramos irmãos muito próximos e sempre
expressamos nossos sentimentos com naturalidade. Até que a morte nos
separou.
Senti a tensão abandonar o corpo de Mariê. Alguma coisa enrijecida no
seu interior começava, pouco a pouco, a se desfazer. Afaguei sua cabeça,
pousada no meu ombro. Seu cabelo era liso e macio. Ao tocar sua face,
percebi que ela estava chorando. Lágrimas quentes como sangue
transbordando do coração. Continuei assim, com o braço ao seu redor. Ela
precisava deixar as lágrimas correrem, mas não conseguia chorar direito.
Há muito tempo, talvez. Em silêncio, eu e a coruja olhávamos por ela.
Os raios do sol da tarde penetravam pela tela rasgada da abertura. Ao
nosso redor havia apenas o silêncio e a poeira branca. Um silêncio e uma
poeira que pareciam vir de tempos imemoriais. Não se ouvia o vento. A
coruja sobre a viga guardava, calada, a sabedoria da mata. Uma sabedoria
que também era transmitida desde tempos muito longínquos.
Mariê Akikawa chorou por muito tempo, sem fazer ruído. Só o leve
tremor do seu corpo indicava que ela ainda estava chorando. Continuei
afagando seus cabelos com delicadeza. Como se subíssemos a correnteza
do tempo, rio acima.
60.
Se fosse alguém com braços muito
compridos
Vários anos depois que voltei para a minha esposa e retomamos a vida a
dois, um grande terremoto atingiu toda a região leste do Japão, no dia 11 de
março. Sentado diante da televisão, vi as cidades costeiras das províncias
de Iwate e Miyagi serem destruídas uma após a outra. Era a região por
onde, certa feita, eu viajara sem rumo definido, dirigindo meu velho
Peugeot 205. E alguma dessas cidades devia ser aquela onde encontrei o
homem do Subaru Forester branco. Mas na tela eu via apenas ruínas,
construções derrubadas e quase completamente desfeitas pelo monstro
gigantesco do tsunami. Não identifiquei nada que as conectasse àquela
cidade por onde passei. E, como eu não me lembrava de seu nome, não
tinha nem como saber quão atingida ela fora pela catástrofe, ou como
estava agora.
Passei vários dias apenas olhando a tela da televisão, sem palavras, sem
poder fazer nada. Não conseguia sair da frente dela. Ansiava por encontrar
naquelas imagens qualquer cena, qualquer coisa, que se conectasse às
minhas memórias. Sentia que, se não o fizesse, algo precioso que estava
guardado dentro de mim seria carregado para longe, desapareceria sem
deixar rastros. Tive vontade de pegar o carro imediatamente e ir para lá.
Ver, com meus próprios olhos, o que é que restava. Mas eu jamais poderia
fazer isso, é claro. As estradas centrais foram despedaçadas, isolando as
cidades e vilas. Os recursos básicos — energia, gás, água — estavam
completamente destruídos. E mais ao sul, em Fukushima (perto de onde eu
deixara meu finado Peugeot), vários reatores nucleares estavam em estado
de meltdown. Não havia a menor condição de me aproximar de lá.
Eu não estava feliz quando viajei por esses lugares, de maneira
nenhuma. Sentia uma solidão extrema e carregava comigo uma tristeza
incompreensível. Eu estava perdido, em vários sentidos. Ainda assim,
segui viajando por entre aquelas pessoas desconhecidas, percorrendo suas
atividades cotidianas. E talvez isso tenha sido muito mais significativo para
mim do que eu achei na época. Durante essa viagem, de maneira quase
sempre inconsciente, abandonei muitas coisas e apanhei muitas outras. Eu
me tornei uma pessoa um pouco diferente depois de ter cruzado todos esses
lugares.
Pensei no quadro O homem do Subaru Forester branco, que eu havia
escondido no sótão da casa em Odawara. Será que aquele homem — fosse
ele uma pessoa real, ou qualquer outra coisa — continuava vivendo
naquela cidade? E aquela mulher magra com quem eu passara uma noite
estranha, será que ainda estava lá? Será que os dois conseguiram escapar
com vida do terremoto e do tsunami? Como estariam o motel e o
restaurante daquela cidade?
Às cinco horas da tarde, eu ia buscar minha filha na creche. Isso era
parte da minha rotina (minha esposa já voltara a trabalhar no escritório de
arquitetura). A creche ficava a uns dez minutos da nossa casa, a passos de
adulto. Na volta, levando minha filha pela mão, eu caminhava devagar. Se
não estivesse chovendo, sentávamos em um banco num pequeno parque no
caminho, para descansar e observar os cachorros da vizinhança em seus
passeios. Minha filha gostaria de ter um cachorrinho pequeno, mas nosso
prédio não permitia animais domésticos. Então, ela tinha que se contentar
em ver os cães do parquinho. Às vezes a deixavam brincar com algum,
pequeno e manso.
O nome de nossa filha era Muro. Foi Yuzu quem escolheu. Ela viu esse
nome em um sonho, pouco antes da data prevista para o parto. Estava
sozinha em uma grande sala de tatames, que se abria para um vasto e
bonito jardim. Na sala havia uma mesa baixa para escrever, de estilo
tradicional, sobre a qual estava uma folha de papel branco. Na folha, havia
apenas um caractere, 室 (lê-se murô), primorosamente grafado em
nanquim preto. Yuzu não sabia quem o escrevera, mas era uma caligrafia
belíssima. Foi esse seu sonho. Quando acordou, a cena ainda estava clara
em sua memória. Então decidiu que o nome da criança que iria nascer
deveria ser Muro. Eu não me opus, é claro. Quem daria à luz a criança era
ela. Pensei de repente que talvez tivesse sido Tomohiko Amada quem
escreveu esse caractere. Mas foi só uma ideia que me ocorreu. No fim das
contas, aquilo era apenas um sonho.
O fato de o bebê ser uma menina me alegrou. Por ter passado a infância
junto a minha irmã, Komi, a ideia de ter uma menininha por perto era
reconfortante. Também fiquei feliz por ela chegar ao mundo já tendo um
nome definido. Nomes são, afinal, muito importantes.
Quando chegávamos em casa, Muro assistia ao noticiário comigo. Eu
tentava evitar que ela visse as cenas em que o tsunami invadia as cidades.
Achei que eram impactantes demais para uma criança pequena. Então
cobria seus olhos com as mãos quando apareciam essas imagens.
— Por quê, papai? — perguntou Muro.
— É melhor você não ver. É cedo demais pra você.
— Mas é de verdade, né?
— É, sim. É uma coisa que aconteceu de verdade, longe daqui. Mas
você não precisa ver todas as coisas que acontecem, só porque são verdade.
Muro passou um tempo pensando sozinha sobre o que eu tinha dito, mas
não entendeu direito, é claro. Ela não conseguia compreender eventos
como tsunamis ou terremotos, nem o que significava a morte. Mesmo
assim, eu cobria bem os seus olhos para que não visse essas cenas.
Compreender algo e ver algo são duas coisas diferentes.
Uma hora eu vi de relance, no canto da tela, o homem do Subaru
Forester branco. Ou então achei que tinha visto. A câmera mostrava um
grande navio pesqueiro que fora carregado para o topo de um morro,
distante da costa. E, ao lado dele, estava aquele homem. Como um
cuidador de elefante ao lado de um animal que já não pode cumprir sua
função. A imagem logo foi substituída por outra, então não tenho certeza
se realmente era o homem do Subaru Forester branco. Mas aquela figura
alta, de casaco de couro preto e boné preto com o logo da Yonex, parecia
muito com ele.
Depois disso, o homem não apareceu mais. Eu o vi por apenas um
segundo, e logo cortaram para outro ângulo.
Além de assistir às notícias sobre o terremoto, eu continuava pintando os
meus retratos “comerciais” para pagar as contas. Movia os pincéis sobre a
tela quase automaticamente, sem pensar em nada. Essa era a vida que eu
queria. E era isso o que as pessoas queriam de mim. Esse trabalho também
me garantia uma renda certa, o que também era algo de que eu precisava.
Eu tinha uma família para sustentar.
Eu continuo sem saber de quem Muro é filha. Uma análise de seu DNA
provavelmente responderia a essa questão, mas não tenho desejo de saber o
resultado de um exame desses. Pode ser que algo aconteça e eu descubra,
eventualmente. A verdade sobre quem é o seu pai pode vir à luz algum dia.
Mas qual o significado dessa “verdade”? Legalmente, Muro é minha filha,
e sinto por ela um amor profundo. Adoro o tempo que passamos juntos.
Para mim, não importa quem é ou deixa de ser seu pai biológico. Esse é um
detalhe insignificante, que não mudaria coisa alguma.
Quando eu viajava por Tohoku, perambulando de cidade em cidade, tive
em sonho uma relação com Yuzu enquanto ela dormia. Eu me infiltrei nos
seus sonhos e o resultado foi que ela concebeu uma criança e, pouco mais
de nove meses depois, deu à luz. Isso é o que eu gosto de pensar (ainda que
de forma totalmente discreta, só comigo mesmo). Sou o pai dessa menina,
como IDEA, ou quem sabe como METÁFORA. Assim como o comendador
apareceu na minha casa, assim como Donna Anna me guiou pela
escuridão, eu engravidei Yuzu, em um outro mundo.
Mas não farei como Menshiki. Ele construiu toda a sua vida equilibrada
entre a possibilidade de Mariê ser sua filha e a possibilidade de ela não ser.
Colocou as duas possibilidades em uma balança e tentava ler, na oscilação
sutil e infinita entre elas, o sentido da própria existência. No meu caso, não
havia necessidade de tramar um plano tão elaborado (e não muito natural,
para dizer o mínimo). Porque, por sorte, tenho a capacidade de acreditar.
Porque, mesmo lançado nos lugares mais estreitos e apertados, nas terras
mais selvagens e desoladas, eu acredito, sinceramente, que algo irá me
guiar. Foi isso o que aprendi ao viver tantas experiências incomuns
enquanto morava naquela casa no alto da montanha, nos arredores de
Odawara.
O assassinato do comendador se perdeu para sempre em um incêndio na
madrugada, mas essa obra extraordinária continua existindo dentro de
mim. Consigo ver o comendador, Donna Anna e o Cara Comprida diante
dos meus olhos, vividamente. São tão claros e concretos que sinto que eu
poderia estender a mão e tocá-los. Ao pensar neles, sou preenchido por um
sentimento muito tranquilo, como se eu observasse as gotas de chuva
caindo na superfície de uma represa. Dentro de mim, essa chuva nunca
para.
Provavelmente viverei o resto de minha vida na companhia deles. E
Muro, a minha pequena filha, é o presente que eles me deram. É uma
forma de graça. Não posso deixar de sentir isso.
— O comendador existiu de verdade — falei para Muro, que dormia
fundo ao meu lado. — É melhor você acreditar.
Ivan Jiménez/ Tusquets Editores