Revista Entre Aspas Volume 2

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Janeiro/ 2012

ISSN 2179-1805 CONSELHO EDITORIAL E CIENTFICO Juiz Ricardo Augusto Schmitt Presidente Juiz Joselito Rodrigues de Miranda Jnior Juiz Marcelo Jos Santos Lagrota Felix Juiz Pablo Stolze Gagliano Jos Orlando Andrade Bitencourt Thais Fonseca Felippi CAPA, EDITORAO ELETRNICA E REVISO Assessoria de Comunicao do TJBA TIRAGEM 2000 exemplares 5a Av. do CAB, n 560, 1 Subsolo, Anexo do Tribunal de Justia CEP: 41.475-971 Salvador Bahia Tel: (71) 3372-1752 / Fax: (71) 3372-1751 www.tjba.jus.br/unicorp unicorp@tjba.jus.br

Entre Aspas: revista da Unicorp / Tribunal de Justia do Estado da Bahia ano.1, n.1, (abr.2011) Salvador: Universidade Corporativa do TJBA, 2011Semestral. ISSN: 2179-1805. 1. Direito peridicos. 2. Estudos interdisciplinares peridicos. I. Tribunal de Justia do Estado da Bahia. II. Universidade Corporativa do TJBA. CDD: 340.05 CDU: 34

PRESIDENTE Desa Telma Laura Silva Britto ASSESSOR ESPECIAL DA PRESIDNCIA II Juiz Ricardo Augusto Schmitt SECRETRIA-GERAL Maria Guadalupe de Viveiros Librio SECRETRIA DE COORDENAO PEDAGGICA DOS MAGISTRADOS Ceclia Cavalcante Reis Neri SECRETRIA DE COORDENAO PEDAGGICA DOS SERVIDORES JUDICIRIOS Carmem Silvia Bonfim dos Santos Rocha

Entre Aspas Volume 2. Boa leitura.

SUMRIO

As caractersticas e a efetividade da Lei de Arbitragem Carla Miranda Guimares Oliveira

13

A Era do Crdito e o superendividamento do consumidor Eduardo Antonio Andrade Amorim

42

A constitucionalidade do 3, do Art. 515 do Cdigo de Processo Civil: o princpio do duplo grau de jurisdio no absoluto Eliete Josefa Gerondoli Campista Brunow

62

A eficcia vinculante dos precedentes no Direito brasileiro e sua importncia para a atuao no Poder Judicirio Gabriela Silva Macedo

82

A litigncia de m-f e a execuo da multa esculpida no Art. 18 do CPC Gustavo Henrique Machado Nogueira Santos e Jamil Musse Neto

106

A natureza jurdica do pedgio Gustavo Teixeira Moris

130

Morosidade no Poder Judicirio: causas e solues Jeverson Luiz Quinteiro

150

Viso crtica sobre o Tribunal do Jri, numa abordagem sobre aspectos histricos, culturais, constitucionais, procedimentais e recursais Luciano Ribeiro Guimares Filho

155

Sociedade de consumo e publicidade: o processo coletivo como mecanismo de proteo ao consumidor nas relaes de consumo pela internet Maria Alessandra dos Santos Aquino

171

O Novo Cdigo Civil e os prazos de prescrio administrativa em caso de responsabilidade do Estado e de apossamento administrativo um estudo a partir da jurisprudncia do STF e do STJ Mrio Soares Caymmi Gomes

190

Limites da transmissibilidade da obrigao alimentar no novo Direito das Famlias Maurcio Albagli Oliveira

203

Gesto Pblica Participativa: desafios e perspectivas para um desenvolvimento local sustentado Monaliza Ferreira de Oliveira

218

A arte de julgar o desafio de recuperar o fundamento tico das decises judiciais Patrcia Cerqueira de Oliveira

226

A perda de uma chance civilmente reparvel Silvio Maia da Silva

237

A antecipao dos efeitos da tutela em face da Fazenda Pblica e as restries impostas sua concesso Tssio Lago Gonalves

259

ARTIGOS

AS CARACTERSTICAS E A EFETIVIDADE DA LEI DE ARBITRAGEM

Carla Miranda Guimares Oliveira


Assessora Jurdica do TJBA. Professora de Teoria Geral do Processo e Direito Processual Penal. Especialista em Direito do Estado. Ps-graduanda em Cincias Criminais. Doutoranda em Cincias Jurdicas e Sociais.

Resumo: Nos primrdios da sociedade romana, surgiu o instituto da arbitragem como forma de resolver conflitos oriundos da convivncia em comunidade, como funo pacificadora entre os litigantes. Inicialmente, gerado um conflito, os litigantes procuravam um rbitro neutro para intervir e dar uma sentena. Era a arbitragem facultativa, na qual o rbitro no exercia funo pblica. Aps surge a arbitragem obrigatria, as pessoas em litgio compareciam perante o pretor, anuindo o que viesse a ser decidido. Escolhiam um rbitro e este recebia do pretor o encargo de decidir a causa. Nos meados do sculo III d.C., o pretor chamou para si funo do rbitro, surgindo a jurisdio e o processo como instrumentos de pacificao social. No Brasil, foi instituda em lei no ano de 1996, entrando em vigor atravs da Lei n. 9.307, com a finalidade de suprir a demanda do judicirio. Uma das principais caractersticas que dispe a Lei de Arbitragem de somente se aplicar a soluo de litgios relativos a direitos patrimoniais disponveis, com anuncia das partes. Sendo que o rbitro escolhido poder ser qualquer pessoa capaz, independente e imparcial, desvinculado de qualquer das partes litigantes. Este ter a misso de proferir a sentena arbitral, resolvendo as pendncias judiciais ou extrajudiciais. O ato decisrio no fica sujeito a homologao ou recurso ao rgo jurisdicional, ocorrendo assim extino do litgio, sendo os litigantes obrigados a acatar tal deciso. Mas, tal deciso no tem carter coativo, de obrigar ao cumprimento da sentena, podendo ento a parte lesada buscar o cumprimento da sentena junto ao rgo jurisdicional. Ao dispensar a homologao, a lei conferiu fora executria sentena, equiparando-se sentena judicial transitada em julgado. Palavras-Chave: Arbitragem. Autonomia da vontade. Mtodo extrajudicial de soluo de conflito.

1. Introduo imperioso destacar que o papel realizado pelos procedimentos consensuais, fora da estrutura do Poder Judicirio possui uma funo de destaque no momento de solucionar as disputas existentes, principalmente quando essas disputas estiverem no mbito das relaes econmicas e da internacionalizao do capital, de tal forma que buscar respaldo no Judicirio torna-se inadequado. 13

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Dessa forma, os MESCs tm-se apresentado como a forma ideal de se buscar solucionar os conflitos existentes, especificamente nas questes em que as partes podem transigir livremente sem que haja a necessria interveno estatal (MENEZES; VILAS-BAS, 2008 apud BOMFIM; MENEZES, 2008, p. 2).

Porm, certo que diante de direitos patrimoniais disponveis as partes capazes podero com segurana e tranquilidade aplicar os Meios Especiais de Soluo dos Conflitos (MESCs), no mbito do direito do consumidor, dos contratos de uma forma geral e das questes trabalhistas podendo buscar sanar o problema mediante a utilizao dos MESCs. Sabendo-se que os institutos no so novos, importante lembrar do dito Imperial do Hangs Hsi, quando na China do sculo XII determinou que:
ordeno que todos aqueles que se dirigirem aos Tribunais sejam tratados sem nenhuma piedade, sem nenhuma considerao, de tal forma que se desgostem tanto da idia do Direito quanto se apavorem com as perspectivas de comparecerem perante um magistrado. Assim o desejo para evitar que os processos se multipliquem assombrosamente, o que ocorreria se inexistisse o temor de se ir aos Tribunais; o que ocorreria se os homens concebessem a falsa ideia de quem teriam sua disposio uma justia acessvel e gil; o que ocorreria se pensassem que os juzes so srios e competentes. Se essa falsa ideia se formar, os litgios ocorrero em nmero infinito e a metade da populao ser insuficiente para julgar os litgios da outra metade. Esse dito queria evitar que se transpusessem para os tribunais as responsabilidades que cada um dos chineses deve ter para com o prximo e para consigo mesmo. Buscar os tribunais somente quando no houvesse outra alternativa, sendo assim considerado como decadncia da cultura e da sociedade chinesa. Dessa forma, os institutos que analisaremos a seguir no so recentes, mas somente recentemente comeou-se a valorizar essa forma de entendimento, em parte pelo congestionamento existente, em parte por assumir o nosso papel na sociedade e deixarmos de ser meros expectadores e passarmos a colaborar com o resultado pretendido, passamos, assim, a ser atores principais em nossas vidas (MENEZES; VILAS-BAS, 2008 apud BOMFIM; MENEZES, 2008, p. 3).

As disputas, de incio, eram resolvidas pela fora, por meio de autotutela ou vingana privada, conforme assinala Jos Cretella Jnior:
no incio, os primitivos romanos, como inmeros outros povos fazem justia com as prprias mos, defendendo o direito pela fora. Dessa fase de vingana privada, que se dirige contra o autor do dano, passam os romanos por outras, at que, num alto estgio de progresso, o Estado

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toma a seu cargo a tarefa de resolver os litgios entre particulares (ALVIM, 2002 apud SOUZAS; TORRES, 2008, p. 76). Posteriormente, a autocomposio e a heterocomposio se destacaram como novos mecanismos de soluo de conflitos. Na autocomposio, as partes envolvidas procuravam resolver seus problemas amigavelmente dispensando a interveno de terceiro; na heterocomposio, j se presenciava a atuao de um terceiro imparcial auxiliando as partes a solucionar seus problemas (LIMA, 2003 apud SOUZAS; TORRES, 2008, p. 76).

Tem-se, assim, que a arbitragem, enquadra-se como meio alternativo de resoluo de conflitos que tenham por objeto direitos patrimoniais disponveis, em que as partes interessadas escolhem ou elegem rbitros que iro decidir as disputas existentes ou futuras, sendo mais uma opo de resoluo de controvrsias, alm da prestao judicial realizada pelo Poder Judicirio.
Todavia, no se trata do nico meio disponvel. Existem tambm os institutos da negociao, conciliao e mediao, dentre outros, com suas caractersticas prprias. Ressalte-se, entretanto, que o meio de soluo de controvrsias que mais se assemelha ao processo estatal a arbitragem (SOUZAS; TORRES, 2008, p. 77).

Isto posto, a Lei de Arbitragem n 9.307, de 23/09/1996, conhecida como Lei Marco Maciel foi criada especificamente para introduzir no sistema brasileiro o juzo arbitral. Tal norma jurdica j tem quase quinze anos de sua existncia, mas mesmo assim no foi amplamente difundida.
Porque s agora se aprofunda tecnicamente e se discute mais amplamente, nos grandes foros acadmicos jurdicos e empresariais do pas, a utilizao dos meios no-estatais de soluo de controvrsias, a efetiva aplicao de tais tcnicas ainda no alcanou o estgio de desenvolvimento merecido. Lamentvel, pois muitos conflitos que hoje se prolongam nas discusses entre parceiros comerciais, ou mesmo diante das barras dos tribunais, j poderiam ter encontrado soluo privada, confidencial e tecnicamente mais palpvel para ambos os lados em litgio (SANTOS, 2004 apud MENEZES; VILAS-BAS, 2008, p. 5).

Verifica-se, assim, que com a arbitragem os titulares de interesses em conflito, por ato voluntrio, nomeiam um terceiro, estranho ao litgio, conferindo-lhe poder para apresentar uma soluo para aquela lide, soluo esta que lhe ser imposta coativamente. Trata-se, pois, de um substitutivo da jurisdio, ou como dizia o notvel CARNELUTTI, um equivalente do processo civil (CARNELUTTI, 1997 apud CMARA, 2009).

2. Origem da arbitragem De acordo com Luis Fernando Guilherme, as origens da Arbitragem: 15

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remontam aos primrdios das civilizaes, quando ainda no existia um sistema judicirio institudo pelo Estado. Comenta-se que desde a antiguidade e a Idade Mdia, na esfera de um embrionrio Direito Internacional, j era utilizada como forma de evitar os conflitos blicos (GUILHERME, 2003 apud SOUZAS; TORRES, 2008, p. 75).

Acredita-se, porm, que o termo venha do grego porque a palavra rbitro j era utilizada na Grcia antiga, tanto que diversos pensadores fizeram meno a esta palavra, como Plato, Aristteles e Demstenes. Tem-se notcia da arbitragem desde os tempos mais remotos; data de 3.200 anos antes de Cristo (PARISE, 2008, p. 115). Sabe-se que,
durante o perodo romano, somente os romanos tinham acesso Justia. Cabia unicamente a eles a funo de magistrados. Eram excludos todos os demais membros da sociedade romana na poca, que por sua vez era dividida basicamente em romanos e peregrinos. Havia uma jurisdio na qual os romanos tinham acesso, e somente eles tinham acesso Justia, que julgavam conflitos entre eles. Com o crescimento da populao estrangeira, surgiu a necessidade de solucionar os conflitos tambm destes. Criou-se desta forma uma jurisdio paralela do Estado Romano, para que se conseguisse atingir a populao de peregrinos. Surgiu desta forma o que chamamos de Arbitragem Romana (PARISE, 2008, p. 115).

Sebastio Jos Roque traz a seguinte ideia da arbitragem em Roma:


com o desenvolvimento de Roma e o aumento da populao, o que fez Roma transformar-se no centro do mundo ocidental, houve necessidade de se criar para os habitantes de Roma, os peregrini, magistrados que pudessem coordenar aquela justia privada, a arbitragem. Foi ento criada a figura do pretor peregrino, uma verso do pretor urbano, como era chamado o juiz dos quirites ou patrcios. E assim a arbitragem foi reconhecida no direito romano (ROQUE, 1997 apud PARISE, 2008, p. 116).

J. Cretella Jnior ensina que o pretor :


pretores, encarregados da distribuio da justia. Primeiro, em nmero de um, o cargo de pretor se desdobra, depois, em dois: o pretor urbano, para as causas entre romanos, e o pretor peregrino, para as questes entre romanos e peregrinos (=estrangeiros) ou entre os prprios peregrinos (PARISE, 2008, p. 116).

Conforme Sebastio Jos Roque, o pretor no podia impor aos peregrinos e plebeus o Direito Romano, o jus civilis, isto por ser o direito muito formal e somente privativo aos patrcios. Desta forma, os plebeus podiam escolher o direito a ser-lhes aplicado, podendo valer-se at mesmo do jus civilis, direito exclusivo dos patrcios (ROQUE, 1997). 16

A REVISTA DA UNICORP Surgem desta forma muitas caractersticas da arbitragem que hoje se aplicam. Naquela poca os plebeus no tinham direito a um juiz remunerado do Estado, e assim as partes deveriam pagar o rbitro que no era pessoa ligada ao Estado, mas sim um particular. Observa-se uma das principais caractersticas da arbitragem que hoje se encontra na Lei n 9.037/96, a escolha dos juzes pelas prprias partes e a escolha do direito a ser aplicado.
arbitragem sucedeu a jurisdio pblica, isto porque a necessidade de verem solucionados os conflitos entre as partes era de primordial necessidade. Surgiu ento uma forma de manifestar a justia solucionando os conflitos dos peregrinos, e a esta soluo chamou-se arbitragem (PARISE, 2008, p. 116-117).

Naquela poca havia tambm tribos, ente elas a dos aqueus, que eram pastores e agricultores nmades, que viviam na Pennsula Balcnica, sem constituir-se em Estados. Estes formavam famlias sob o regime patriarcal, e quando havia algum conflito o mesmo era decidido sob a arbitragem do patriarca de cada famlia. Os gregos tinham tanta confiana na arbitragem que, embora uma causa j estivesse no tribunal de heliastas, esta poderia ser retirada e levada apreciao de rbitros privados (PARISE, 2008). Informa Teixeira e Andreatta:
em 445 a.C. o Tratado de Ncias, que objetivava findar um estado de beligerncia entre Atenas e Esparta, entre outras condies, estabelecia que os eventuais litgios entre os lacednios e seus aliados com os atenienses e seus aliados deveria ser submetido arbitragem (TEIXEIRA; ANDREATTA, 1997 apud PARISE, 2008, p. 118).

Pode-se comprovar, portanto, que a arbitragem no algo novo, e sim um instituto muito usado desde os tempos mais remotos da sociedade. Dela surgiu a jurisdio estatal e no o contrrio. De acordo com Mujalli, observa-se, a arbitragem em outras pocas.
O desenvolvimento da arbitragem na Idade Mdia ocorreu por cinco fatores fundamentais: a ausncia de leis ou a sua excessiva rigidez e incivilidade; falta de garantias jurisdicionais; uma variedade de ordenamentos; a fraqueza do Estado, e finalmente os conflitos existentes entre o Estado da poca e a Igreja. Na Frana, a arbitragem foi considerada como um instrumento ideal de reao do povo contra os abusos da justia do Rei. Verificou-se tambm a arbitragem no Direito italiano, da Blgica, Argentina, Estados Unidos e outros. (MUJALLI, 1997 apud PARISE, 2008, p. 118).

Destaca-se que a Arbitragem foi utilizada na soluo de relevantes questes histricas, tais como a deciso pelo Parlamento de Paris, envolvendo o Papa Inocncio IV e o Imperador Frederico II e o Tratado de Tordesilhas, por meio da Bula do Papa Alexandre VI. (SOUZAS; TORRES, 2008). 17

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O desenvolvimento do Processo Civil Romano contribuiu historicamente para o fenmeno da arbitragem em trs fases. Na primeira a chamada arbitragem facultativa , as prprias partes escolhiam o juiz ou o rbitro para sua causa. Com o fortalecimento do Estado, numa segunda fase os rbitros passaram a ser nomeados por este, tornando a arbitragem obrigatria. A ltima fase, denominada processo extraordinrio, caracteriza a passagem da justia privada para a justia pblica onde o pretor passa a conhecer do mrito dos conflitos e a proferir sentenas. Assim, o Estado comea a impor suas decises, fortalecendo a noo de jurisdio como monoplio do Estado (CINTRA, 1993 apud SOUZAS; TORRES, 2008, p. 77).

E acrescenta o autor que:


com o passar do tempo, o processo civil inclinou-se a encaminhar as partes conflitantes ao Poder Judicirio limitando cada vez mais o uso da arbitragem como opo do poder pblico para soluo de controvrsias, convencendo, assim, a sociedade acerca do Poder Judicirio como o meio ideal e mais seguro de resoluo de disputas. Contudo, diante das suas dificuldades em tratar de forma gil e satisfatria com as questes trazidas a sua anlise, aliada demanda crescente por uma prestao jurisdicional rpida e eficaz, ressurge a arbitragem com novos traos e razes distintas daquelas que, anteriormente, fizeram dela um instrumento de soluo de controvrsias interpessoais (SOUZAS; TORRES, 2008, p. 77).

3. Arbitragem do Brasil A arbitragem no ordenamento jurdico brasileiro j era prevista em nossa primeira Constituio Federal. Na Constituio de 1824, conhecida como Constituio Imperial, que dispunha no seu art. 160 sobre arbitragem: Artigo 160, nas causas cveis e nas penais civilmente intentadas, podero as partes nomear rbitros. Suas sentenas sero executadas sem recursos, se assim o convencionarem as mesmas partes (SOUZAS; TORRES, 2008, p. 78). Em 1850, o Cdigo Comercial estabelecia obrigatoriamente em seu artigo 294 o juzo arbitral nas causas entre os scios e as sociedades comerciais, em sua liquidao ou partilha (SOUZAS; TORRES, 2008). Segundo Luiz Fernando do Vale de Almeida Guilherme,
o regulamento 737, tambm de 1850, ainda vigente, o qual exigia o Juzo arbitral para a soluo das causas comerciais em seu artigo 411. Em 1866, a Lei n 1.350, de 14 de setembro, revogou os dispositivos que privilegiavam o uso da via arbitral, sem qualquer oposio poca, caindo o instituto em desuso.

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O Cdigo de Processo Civil de 1939 previa o juzo arbitral em seus artigos 1.031 a 1.046, porm no conseguiu viabilizar sua aplicao (mesmo sofrendo modificao em 1973), por manter a interveno obrigatria do Poder Judicirio em processo homologatrio deciso do rbitro. Em 1991, o Instituto Liberal de Pernambuco lanou a Operao Arbiter, iniciando a discusso de um novo anteprojeto que resultaria no PLS 78/92. Em nosso programa legislativo atual, com a promulgao da Lei n 9.307, de 23/09/1996 Lei de Arbitragem , e a confirmao de sua constitucionalidade em maio de 2001, a arbitragem comercial foi finalmente reinserida no ordenamento jurdico brasileiro (SOUZAS; TORRES, 2008, p. 78).

Faz- se necessrio acrescentar os ensinamentos a seguir:


no Brasil, o juzo arbitral bem mais antigo do que se imagina. Ele estava regulamentado desde as Ordenaes Manuelinas, Afonsinas e Filipinas, vigentes no perodo Colonial at 1822. V-se tambm desde o Decreto n 737, de 1850, o qual tornou obrigatria em determinados casos a arbitragem para a resoluo de litgio entre comerciantes. O cdigo de 1850, institudo pela Lei n 556, de 1850, estabeleceu o juzo arbitral para a soluo das questes advindas de contrato mercantil. Vemos ainda este discutido assunto, arbitragem, na Constituio de 1824, Lei 1.350, de 1866, regulamentada em 1867 Processo Arbitral Decreto 3.900, Constituio Federal de 1891 e outros (PARISE, 2008, p. 118).

Sebastio Jos Roque, que afirma que:


quando de nossa independncia, em 07.09.1822, que houve por parte de Portugal a resistncia em aceitar o Brasil como pas independente e soberano; houve ento um acordo entre D. Joo VI e D. Pedro I, decidindo entregar a questo arbitragem ao Rei da Inglaterra, decidindo este a favor do Brasil, tendo assim o reconhecimento deste e tambm pelos demais pases. Outro exemplo, no Brasil, foi com referncia ao territrio do Acre, que pertencia Bolvia, regio que foi aos poucos invadida por brasileiros at estes tomarem conta de todo o territrio. O problema foi submetido ao nncio apostlico (embaixador do Vaticano) no Brasil, decidindo este em nosso favor. Assim, pelo tratado de Petrpolis, em 1903, o Acre foi incorporado ao territrio brasileiro, tendo como advogado do Brasil junto ao juzo arbitral o Baro do Rio Branco (ROQUE, 1997 apud PARISE, 2008, p. 119).

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ENTRE ASPAS 3.1. Conceito e natureza O significado da palavra arbitragem derivado do latim arbiter, que significa juiz, jurado. A arbitragem um caminho alternativo ao Poder Judicirio de dissolver conflitos, em que as partes celebram em contrato ou atravs de um simples acordo que vo dispor do juzo arbitral para resolver controvrsia existente ou eventual ao invs de buscar o Judicirio.
A arbitragem tem como pano de fundo a Lei de Arbitragem, Lei n 9.307/ 96, porm tem como base estruturante o princpio da autonomia das partes. O Princpio da Autonomia da vontade das partes encontra-se consagrado em nosso ordenamento jurdico desde priscas eras, porm, com a evoluo dos diversos conceitos, inclusive o conceito de cidadania, esse princpio teve a sua importncia ampliada, no momento em que a idia de democracia assume contornos antes nunca imaginados. Agora se pensa no indivduo participando de forma ativa de todo o processo de responsabilidade sobre a vida e sua esfera jurdica. A idia de paternalismo est sendo deixada de lado, na medida em que nos tornamos mais capazes e responsveis pelos nossos atos. Trata-se de uma perspectiva histrica de amadurecimento do ser humano. Talvez estejamos saindo da adolescncia para ingressarmos em um universo no qual somos responsveis por ele (MENEZES; VILAS-BAS, 2008, p. 15).

De acordo com os ensinamentos de Carlos Alberto Carmona (1993), a arbitragem tratase de meio heterocompositivo de solues de controvrsias, distinta da mediao e da conciliao, por conta destas tratarem-se de meios autocompositivos de solues de litgios. Pode ser conceituada como um mecanismo privado de soluo de litgios, atravs do qual um terceiro, escolhido pelos litigantes, impe sua deciso, que dever ser cumprida pelas partes (SOUZAS; TORRES, 2008). Segundo Carreira Alvim, arbitragem a instituio pela qual as pessoas capazes de contratar confiam a rbitros, indicados ou no por eles, o julgamento de seus litgios relativos a direitos transigveis (ALVIM, 2002 apud SOUZAS; TORRES, 2008, p. 79).
Ao optar por este meio alternativo de soluo de litgios, os titulares dos interesses em conflito j demonstram uma predisposio a se conformarem com a deciso do rbitro, j que este foi escolhido pelos contendores, sendo algum de sua confiana. Assim, bastante provvel, sendo por isso razovel admitir, que a deciso proferida pelo rbitro efetivamente componha o conflito, fazendo com que este desaparea do mundo dos fatos, e no apenas tornando tal conflito juridicamente irrelevante. Por esta razo que, desde o incio, venho afirmando que a arbitragem instrumento essencial na busca da pacificao social (CMARA, 2009, p. 9).

Alguns princpios importantes norteiam a arbitragem tais como: autonomia da vontade; boa-f entre as partes; devido processo legal; imparcialidade do rbitro; livre convencimento do rbitro; motivao da sentena arbitral; autonomia da lei arbitral ou clusula compromissria; e a competncia. 20

A REVISTA DA UNICORP A Lei de Arbitragem deu uma nova roupagem arbitragem brasileira. Esse instituto no novo em nosso direito, pois desde o perodo colonial legalmente reconhecida no Brasil e vem sempre sendo includa em diversas legislaes nacionais (Constituies Nacionais de 1824, 1934, 1937, e, enfim, na vigente Constituio da Repblica Brasileira de 1988, alm da presena nos Cdigos Comercial, Civil e de Processo Civil). Verifica-se que, aspectos importantes como a simplicidade, objetividade, sigilo e rapidez do procedimento arbitral, se sobrepem complexidade, prolixidade, publicidade e, sobretudo, morosidade do processo judicial. A natureza jurdica da arbitragem tema bastante controverso, formando-se, nesse particular, trs correntes delimitadas por J. E. Carreira Alvim em sua obra Tratado Geral da Arbitragem:
I) privatista ou contratualista, tendo como precursor Chiovenda; II) publicista ou processualista, sendo Mortara o seu expoente, e III) conciliadora ou intermediria, liderada por Carnelutti (ALVIM, 2002 apud SOUZAS; TORRES, 2008).

A corrente contratualista preconiza que o rbitro s pode dispor sobre o contedo da esfera privada da sentena, ou, no dizer de Luis Fernando do Vale de Almeida Guilherme, apenas sobre o material lgico da sentena (SOUZAS; TORRES, 2008). A segunda corrente defende que a arbitragem possvel graas vontade da lei que autoriza o seu uso. Segundo o supracitado autor:
em outros termos, sobreleva o aspecto processual do contrato de compromisso, cujo principal efeito seria a derrogao das regras de competncia estatais, acentuando a identidade entre o laudo proferido pelo rbitro e a sentena emanada do juiz togado (GUILHERME, 2007 apud SOUZAS; TORRES, 2008, p. 80).

A terceira e ltima corrente concebe que, de um lado, a deciso do rbitro no uma sentena, pelo fato de no possuir executoriedade; de outro, o rbitro e o juiz atuam para a formao da deciso do conflito. A natureza jurdica da arbitragem parece ser, de acordo com o largo entendimento doutrinrio, eminentemente contratual, posto que este instituto pressupe o acordo de vontade das partes, constituindo, assim, um negcio jurdico bilateral (GUILHERME, 2007 apud SOUZAS; TORRES, 2008, p. 80). a corrente com a qual concordamos.

3.2. Arbitrabilidade Para descobrirmos quais litgios podem ser objeto da Lei de Arbitragem, necessrio analisar o art. 1, que determina que somente os direitos patrimoniais disponveis que podem ser objeto da arbitragem. Na conceituao de Clvis Bevilqua, temos que: 21

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assim, compreendem-se no patrimnio tanto os elementos ativos quanto aos passivos, isto , os direitos de ordem privada economicamente apreciveis e a dvidas. a atividade econmica de uma pessoa, sob o seu aspecto jurdico, ou a projeo econmica da personalidade civil (BEVILQUA, 1955 apud VILAS-BAS, 2008, p. 95).

No fazem parte do patrimnio as qualidades ou aptides de uma pessoa, como o seu conhecimento tcnico ou profissional (VILAS-BAS, 2008).
Isso significa dizer que o titular desses direitos podem alien-los do seu patrimnio mediante a realizao de um negcio jurdico, seja transferindo a outra pessoa ou ainda renunciando a ele. Quando os direitos puderem ser objeto de ato de disposio praticado pelo seu titular, estaremos diante de direitos disponveis. A contrrio sensu, os direitos indisponveis pertencem ao seu titular mesmo ele no querendo, como por exemplo o direito a alimentos. possvel deixar de exercer os direitos indisponveis, at mesmo por desconhecer que possui esse direito, mas ningum poder, de forma vlida, abrir mo dos seus direitos indisponveis (VILAS-BAS, 2008, p. 96).

Disponveis so assim classificados os direitos e os bens que as partes podem livremente alienar, ceder, onerar, transacionar, renunciar. Patrimoniais so os bens ou direitos que tenham valor econmico ou que podem ser avaliados economicamente. Por fim, no se pode admitir arbitragem quando a causa versar sobre o estado e a capacidade das pessoas. Assim, por exemplo, o divrcio consensual no poder ser concretizado seno em juzo ou por escritura pblica, sendo vedada a arbitragem (CMARA, 2009, p. 14).

3.3. Caractersticas da arbitragem A arbitragem pode-se caracterizar como mtodo de soluo extrajudicial de controvrsias tendo por base o princpio da autonomia da vontade das partes, j que, as partes escolhem livremente o rbitro que ir decidir sobre o seu conflito, e legitimam e transferem ao mesmo a autoridade para decidir.
Vale ressaltar que a soluo arbitrada s partes ser-lhes- imposta coativamente, tratando-se, assim, no dizer de Carnelutti, como um equivalente do processo civil. Isto porque na arbitragem as partes conflitantes, ao optarem por esse mtodo extrajudicial ou alternativo de soluo de controvrsias, j se predispem a uma sujeio com a deciso do rbitro, uma vez que este foi escolhido por aquelas, sendo depositrio, pois, de sua confiana. nesse sentido que a arbitragem considerada um instrumento essencial na busca da pacificao social (CARNELUTTI, 2005 apud SOUZAS; TORRES, 2008, p. 80-81).

A arbitragem de direito aquela em que somente as normas de direito positivo podem 22

A REVISTA DA UNICORP ser utilizadas para solucionar o conflito. J na arbitragem de equidade, rbitro pode decidir de acordo com seu entendimento de justia, considerando as circunstncias de cada caso (SOUZAS; TORRES, 2008). Na viso organizacional, a arbitragem pode ser ad hoc, na qual as partes impem as regras para a arbitragem, respeitando as limitaes estabelecidas em lei; assim, as partes dispem em contrato as regras a serem ressaltadas pelos rbitros para a soluo dos conflitos. Na arbitragem institucional, entende-se que esta fundamentada por instituies exclusivas, tais como tribunais e cortes de arbitragem legalmente constitudas e registradas como, por exemplo, a Corte Internacional de Arbitragem ou American Arbitration Associattion (AAA).

4. Da conveno de arbitragem e seus efeitos A arbitragem possui diversos efeitos e a lei cria maior compromisso e confiana entre as partes envolvidas no conflito Entre as partes, os efeitos jurdicos podem ser definidos primeiramente na excluso do Poder Judicirio para solucionar os conflitos e a submisso das partes sentena arbitral, que s podem recorrer ao Poder Judicirio no caso de nulidade ou extino do compromisso, apenas para rever questes formais.
Pelo art. 1 da Lei de Arbitragem, temos que: as pessoas capazes de contratar podero valer-se da arbitragem para dirimir litgios relativos a direitos patrimoniais disponveis. Sendo assim, preciso que essas pessoas materializem essa inteno e isso ocorre mediante a conveno arbitral. Sendo a conveno arbitral a materializao da vontade das partes de dirimir seus conflitos mediante a lei de arbitragem, essa conveno sem sombra de dvida o ponto principal, o aspecto mais importante da arbitragem. E ns a encontramos expressa no artigo 3 da Lei de Arbitragem, a Lei n 9.307/96, que reza que as partes interessadas podem submeter soluo de seus litgios ao juzo arbitral mediante conveno de arbitragem, assim entendida a clusula compromissria e o compromisso arbitral. O nosso ordenamento jurdico abriga um importante princpio, que o Princpio da Autonomia da Vontade, que se encontra consagrado na Lei de Arbitragem, onde as partes que podem exercer esse princpio, diante de direitos patrimoniais disponveis, podem fazer a opo de solucionar os conflitos atravs do Poder Judicirio ou mediante a Lei de Arbitragem (VILAS-BAS, 2008, p. 83).

Segundo a autora, no momento em que a escolha recaia sobre a Lei de Arbitragem, fazse necessrio celebrar a Conveno Arbitral, j que no existe a possibilidade de arbitragem compulsria em nosso ordenamento jurdico.
Desse conceito podemos, verificar as caractersticas da conveno de arbitragem percebendo que para que ela ocorra preciso ser necessaria-

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mente escrito e assinado pelas partes capazes e legitimadas para o referido ato, o objeto deve ser lcito e passvel de transacionar, j que versa sobre direitos patrimoniais disponveis. Ela tambm no pode ser genrica, devendo estar ligada a uma relao jurdica especfica. Apresenta ainda como caracterstica ser autnoma, pois apesar de estar ligada a uma relao jurdica especfica a sua validade jurdica requer requisitos legais especficos e ainda apresenta um objeto especfico. Sendo nulo o negcio jurdico a que est vinculada, no quer necessariamente que a conveno arbitral tambm seja considerada nula. Alm disso, acessria, j que necessrio estar subordinada a uma relao jurdica especfica (VILASBAS, 2008, p. 84).

H duas espcies de conveno de arbitragem: a clusula compromissria e o compromisso arbitral. A primeira necessariamente prvia ao litgio, enquanto o segundo surge aps o nascimento da lide. O artigo 4 da Lei de Arbitragem define a clusula compromissria como a conveno atravs da qual as partes em um contrato comprometem-se a submeter arbitragem os litgios que possam vir a surgir, relativamente a tal contrato (CMARA, 2009, p. 23). Assim que, segundo a doutrina, a clusula compromissria aquela mediante a qual as partes estipulam no contrato ou em ato consecutivo que as controvrsias oriundas do mesmo e ainda as futuras sero decididas por intermdio dos rbitros. No mesmo sentido se manifestou um notvel jurista, o qual se pronuncia perante o vigente sistema italiano da arbitragem, afirmando que a conveno que d origem arbitragem pode ser estipulada antes do surgimento de qualquer litgio, pois in ocasione della stipulazione di um contratto, Le parti possono convenire nello stesso contratto, o in atto separtao, Che Le controversie future eventualmente nascenti dal contratto medesimo siano decise da arbitri, in tal caso si parla di clausola compromissoria (PISANI, 1994 apud CMARA, 2009, p. 24). De igual forma, a doutrina brasileira assim define a clusula compromissria, como:
uma conveno celebrada entre os contratantes, atravs da qual fica estipulado que as divergncias que vierem a surgir entre eles a respeito de um dado negcio jurdico (normalmente acerca da execuo ou interpretao de um contrato) sero resolvidas por meio de arbitragem (CARMONA, 1993 apud CMARA, 2009, p. 24).

Tarcsio Arajo Kroetz, entende que:


a clusula compromissria um negcio jurdico que determina a subtrao da jurisdio estatal das controvrsias que possam originar entre os contratantes, estabelecendo a competncia da soluo de seus eventuais litgios para instncia arbitral. A celebrao desse contrato h que ser realizada em momento anterior ao surgimento da lide (KROETZ, 1997 apud CMARA, 2009, p. 24).

Segundo nos ensina Beat Walter Rechsteiner, temos que: 24

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quando se refere a uma lide futura, decorrente de determinada relao jurdica, entre duas partes, mormente de natureza contratual, a conveno de arbitragem [...] denominada clusula compromissria [...] ou, por vezes, tambm clusula arbitral [...]. Se, entretanto, a conveno de arbitragem estiver relacionada lide j existente, costuma-se falar em compromisso arbitral (RECHSTEINER, 1997 apud VILAS-BAS, 2008, p. 85).

Ou ainda conforme Celso Barbi Filho:


assim, se quiserem submeter a soluo de seu litgio arbitragem, as partes devem criar uma conveno de arbitragem, que ter inicialmente uma clusula compromissria (promessa) e, quando surgido o litgio, um compromisso arbitral (contrato definitivo). Ou ainda, independentemente de firmarem clusula compromissria, podem as partes celebrar compromisso arbitral quando surgido um conflito (BARBI FILHO 199- apud VILAS-BAS, 2008, p. 86).

Isso significa dizer que uma clusula compromissria inserida em um contrato no necessariamente ser utilizada, somente quando aparecer algum conflito referente quele contrato; por outro lado, sempre que nos depararmos com um compromisso arbitral porque as partes j se encontram em conflito. Quanto aos efeitos decorrentes, tm-se o efeito positivo e o negativo. Efeito positivo: a partir do momento em que foi instituda a Clusula Compromissria, deve-se seguir o rito da Lei de Arbitragem, sendo vedada outra possibilidade. Se eventualmente uma das partes, apesar de ter assumido a Clusula Compromissria para dirimir as questes controversas no referido contrato, ingressar no Poder Judicirio pleiteando que solucione o conflito apresentado, o juiz dever proferir sentena sem resoluo do mrito, baseado no art. 267, VII pela conveno de arbitragem, levando assim a que analisemos o efeito negativo da Clusula Compromissria, que : Efeito Negativo: denomina-se efeito negativo da clusula compromissria porque em razo de sua existncia em um negcio jurdico decorre de todo e qualquer problema oriundo desse contrato dever ser resolvido mediante a Lei de Arbitragem, sendo assim exclui de apreciao do Poder Judicirio (VILAS-BAS, 2008). A seguir, sero melhor dissecadas as duas espcies de conveno de arbitragem.

4.1. Clusula Compromissria e Compromisso Arbitral A Clusula Compromissria nasce no momento inicial do contrato principal, como medida de preveno dos interessados com a inteno de assegurar e garantir as partes de um eventual desentendimento futuro. Portanto, as partes prevendo divergncias futuras, remetem sua soluo a rbitros por elas indicados, que sero chamados para dirimir eventuais conflitos que surgirem.
A clusula compromissria deve ter forma escrita, podendo constar do

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ENTRE ASPAS
prprio contrato a que se refere ou de ato separado que a ele faa meno. De tal clusula pode constar a referncia s regras de alguma entidade especializada em arbitragem, ou a algum rgo arbitral institucional, caso em que a arbitragem dever ser instituda de acordo com tais regras. Alm disso, no se pode deixar de dizer que nos contratos de adeso a clusula compromissria s eficaz se houver sido instituda por iniciativa do aderente ou se este tiver com ela expressamente concordado (MORENO, 1990 apud CMARA, 2009, p. 25).

Exige-se nestes, ainda, que a clusula compromissria conste de documento anexo ao instrumento principal do contrato, ou que venha neste redigida em negrito, com assinatura ou visto especialmente para esta clusula (art. 4, 2, da Lei de Arbitragem).
Vale lembrar, porm, que no contrato de adeso, o aderente simplesmente se submete s clusulas impostas pelo proponente, o que leva a crer que, em muitos casos, o contrato s ser celebrado se o aderente assinar tambm o documento anexo que institui a clusula compromissria (ou d sua assinatura ou visto especialmente para a clusula compromissria constante, em negrito, do instrumento do contrato). Ser, assim, fundamental que o Judicirio coba abusos, assegurando que s se submeter arbitragem aquele que livremente optou por esta forma de soluo de seus conflitos. A clusula compromissria , em verdade, um contrato preliminar, ou seja, uma promessa de celebrar o contrato definitivo, que o compromisso arbitral (FIUZA, 1995 apud CMARA, 2009, p. 25).

Ainda, segundo Cmara, o descumprimento desta obrigao, com a recusa de qualquer das partes em celebrar o compromisso aps o surgimento de qualquer litgio entre os contratantes, gera para a outra parte o direito de obter em juzo a tutela jurisdicional especfica relativa quela obrigao. Como regra geral, a extino da clusula compromissria ir ocorrer no mesmo momento em que a relao jurdica que a originou se extinguir. Dessa forma, no est sujeita a nenhum prazo de validade.
Porm, quando nos depararmos com o distrato bilateral ou com a renncia, seja expressa ou tcita, ento teremos tambm a extino da clusula compromissria. Ainda podemos exemplificar como causas de extino da clusula compromissria a morte, a recusa ou a impossibilidade dos rbitros, desde que as partes tenham feito constar, de forma expressa, que no iriam aceitar nenhum substituto (VILAS-BAS, 2008, p. 106).

J o Compromisso Arbitral o acordo atravs do qual as partes submetem arbitragem de uma ou mais pessoas um litgio que pode ser judicial ou extrajudicial. Conforme art. 10 e seus incisos da Lei n 9.307/96 constar obrigatoriamente o nome, profisso, estado civil e domiclio das partes; o nome, profisso e domiclio do rbitro, ou dos rbitros, ou, se for o caso, a identificao da entidade qual as partes delegaram a indicao de rbitros; a matria que ser objeto da arbitragem e o lugar em que ser proferida a sentena arbitral. 26

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O compromisso arbitral , pois, um contrato de direito privado, cujo efeito a instaurao de um processo arbitral, no qual haver a heterocomposio do conflito de interesses que originou o compromisso. Pode ser celebrado em juzo (tanto nas hipteses em que as partes assim o decidam fazer no processo instaurado em razo da demanda de substituio de declarao de vontade art. 7 da Lei da Arbitragem, como nas hipteses em que as partes decidem optar pela arbitragem mesmo sem jamais ter sido pactuada a clusula compromissria). Nesta hiptese, fala-se em compromisso judicial (art. 9, 1), devendo o mesmo ser celebrado por termo nos autos (CMARA, 2009, p. 34).

H, ainda, uma segunda espcie de compromisso arbitral, o compromisso extrajudicial, o qual dever ser celebrado por escrito (forma escrita ad substantiam), podendo s-lo por instrumento pblico ou particular. Neste ltimo caso, exige-se ainda a assinatura de duas testemunhas (PISANI, 1994 apud CMARA, 2009, p. 35). O compromisso arbitral encontra-se expressamente definido no art. 9 da Lei de Arbitragem, verbis: Art. 9 O compromisso arbitral a conveno atravs da qual as partes submetem um litgio arbitragem, de uma ou mais pessoas, podendo ser judicial ou extrajudicial. Pela definio de Antnio Carlos Marcato, verificamos que: O compromisso arbitral ento o instrumento de que se valem os interessados para, de comum acordo, atriburem a terceiro (denominado rbitro) a soluo de pendncias entre eles existentes (MARCATO, 1997 apud VILAS-BAS, 2008, p. 107). J Pontes de Miranda assim se manifestava acerca do compromisso arbitral:
chama-se compromisso o contato pelo qual os figurantes se submetem, a respeito de direito, pretenso, ao ou exceo, sobre que controvrsias, deciso de rbitro. Entra na classe dos contratos que tm por fim a eliminao de incerteza jurdica (MIRANDA, 1955 apud VILAS-BAS, 2008, p. 107).

Ademais, em qualquer ocasio, podem as partes desfazer o compromisso, mesmo que j tenha sido proferida a sentena arbitral.
O artigo 12 da Lei de Arbitragem preceitua os casos em que ir ocorrer a extino do compromisso arbitral, apresentando-nos assim que, na hiptese de em que qualquer um dos rbitros apresentar a sua dispensa, antes de ser nomeado, e as partes tenham decretado a impossibilidade de substituio; ou ainda, na hiptese de falecimento de alguns deles ou ainda na impossibilidade de dar o seu voto, desde que as partes tambm tenham se manifestado de forma expressa a impossibilidade de substituio, ou na hiptese de ter transcorrido o prazo para apresentao da sentena arbitral firmado no compromisso arbitral desde que aps esse prazo a parte interessada notifique o rbitro, ou, se for o caso, o presidente do Tribunal arbitral, concedendo o prazo de dez dias para a prolao e a apresentao da sentena arbitral (VILAS-BAS, 2008, p. 113).

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ENTRE ASPAS A prpria Lei de Arbitragem em seu art. 12 disciplina trs situaes de extino do compromisso arbitral:
I escusando-se qualquer dos rbitros, antes de aceitar a nomeao, desde que as partes tenham declarado, expressamente, no aceitar substituto; II falecendo ou ficando impossibilitado de dar seu voto algum dos rbitros, desde que as partes declarem, expressamente, no aceitar substituto; e III tendo expirado o prazo a que se refere o art. 11, inciso III, desde que a parte interessada tenha notificado o rbitro, ou o presidente do tribunal arbitral, concedendo-lhe o prazo de dez dias para a prolao e apresentao da sentena arbitral (BRASIL, 1996).

Para Silvio Venosa (2006, p. 592), a renitncia das partes em aceitar substitutos dos rbitros pode pr a perder o sentido da arbitragem.
Da mesma forma que a clusula compromissria, o compromisso arbitral apresenta os efeitos positivo e negativo. O efeito positivo levar o pleito a se desenvolver perante a Arbitragem e, quando isso ocorre, necessariamente tem-se que afastar o Poder Judicirio que o efeito negativo apresentado. Sendo o compromisso arbitral classificado como um contrato, ele somente ir produzir efeitos entre aqueles que deram seu expresso consentimento; como regra geral, as partes no podem atingir a terceiros que no podero vir a sofrer com os efeitos do compromisso de arbitragem (VILAS-BAS, 2008, p. 112-113).

Por fim necessrio registrar o conceito de Compromisso Arbitral Judicial e extrajudicial:


o primeiro decorre de compromisso arbitral originrio do Poder Judicirio que pode ser resultante de duas situaes distintas. A primeira referese demanda iniciada com base no art. 7 da Lei de Arbitragem, quando em decorrncia de uma clusula compromissria vazia e uma das partes no assinando o compromisso arbitral faz-se necessrio recorrer ao Judicirio, conforme devidamente analisado no presente captulo. J na segunda situao, decorrente de j ter sido ajuizada uma ao judicial em seu transcorrer, as partes decidem, de comum acordo, optar pela Arbitragem, extinguindo assim o julgamento sem resoluo de mrito. Nesse caso o compromisso arbitral ser celebrado por termo nos autos perante o Poder Judicirio (VILAS-BAS, 2008, p. 108).

J o compromisso Arbitral Extrajudicial, nesse caso, sem a interveno do Poder Judicirio, as partes pactuam o compromisso arbitral. Dever ser por escrito particular com a assinatura de duas testemunhas, ou ainda pode ser por instrumento pblico (VILAS-BAS, 2008). 28

A REVISTA DA UNICORP 5. Dos rbitros O rbitro considerado um juiz de fato e de direito, funciona como o juiz no processo judicial, s que o faz em uma atividade no estatizada e a sentena que proferir no fica sujeita a recurso ou a homologao pelo Poder Judicirio. O Juiz Arbitral, Daniel Luiz Bueno Rodrigues Lima, a respeito deste art. comenta que:
ante a questo da investidura e sua relao com a condio de juiz de fato, podemos afirmar que inconcebvel esta a existncia da profisso de rbitro, pois que ningum rbitro. A pessoa pode estar rbitro quando da sua investidura em decorrncia da sua nomeao e esta condio somente se aplica durante o procedimento arbitral. Com relao validade da sentena arbitral, muito j se discutiu, inclusive sobre a constitucionalidade desta disposio da Lei de Arbitragem. Contudo hoje j se encontra pacificada na doutrina e na jurisprudncia a irrefutvel e inquestionvel validade da sentena arbitral, da sua irrecorribilidade, bem como da falta de necessidade de homologao pelo judicirio (LIMA, 2007, p. 2).

O rbitro nada mais que, pessoa natural, capaz, estranha a um conflito de interesses que verse sobre direitos patrimoniais disponveis, selecionadas pelas partes para resolv-lo. Destarte, o rbitro ser qualquer cidado neutro, imparcial e independente, que goze da confiana das partes. No se admite pessoa jurdica como rbitro.
O nmero de rbitros dever, portanto, ser necessariamente mpar. Sendo formado um colegiado de rbitros, estes devero eleger o que exercer a funo de presidente do colegiado. No havendo acordo quanto a quem seja o presidente, determina a lei deva exercer tal funo o mais idoso dos rbitros (art. 13, 4, da Lei da Arbitragem). importante que se faa a eleio do presidente do colegiado arbitral, uma vez que ser o voto deste que prevalecer nas hipteses em que no haja maioria entre os rbitros, conforme j se viu (CMARA, 2009, p. 49).

Nos termos do art. 14 da Lei da Arbitragem:


esto impedidos de funcionar como rbitros as pessoas que tenham, com as partes ou com o litgio que lhes for submetido, algumas das relaes que caracterizam os casos de impedimento ou suspeio de juzes, aplicando-lhes, no que couber, os mesmos deveres e responsabilidades, conforme previsto no Cdigo de Processo Civil (CMARA, 2009, p. 51).

A Lei de Arbitragem prestigia a autonomia da vontade, em razo deste princpio, qualquer pessoa fsica que tiver capacidade pode ser rbitro. Assim sendo, o rbitro deve reconhecer que o processo de arbitragem fundamenta-se tambm na autonomia das partes, devendo focalizar sua atuao nesta premissa. O cdigo de tica para os rbitros aplica conduta de todos os rbitros quer nomeados por rgos institucionais ou partcipes de procedimento ad hoc. A nomeao do rbitro s 29

ENTRE ASPAS ter validade se o mesmo estiver convencido de que pode cumprir sua tarefa com celeridade, imparcialidade, competncia, independncia, diligncia e discrio. Tambm no se deve olvidar, que alm das qualificaes necessrias a disponibilidade de tempo para satisfazer as expectativas razoveis das partes um aspecto fundamental. A nomeao e aceitao do rbitro o vincula ao processo at o fim. No entanto, sua renncia poder acarretar a finalizao desse procedimento e o incio de um novo, face nova designao de um novo rbitro. O art. 14 da referida lei, fala dos impedimentos do rbitro para o exerccio da sua funo:
esto impedidos de funcionar como rbitros as pessoas que tenham, com as partes ou com o litgio que lhes for submetido, algumas das relaes que caracterizam os casos de impedimento ou suspeio de juzes, aplicando-se-lhes, no que couber, os mesmos deveres e responsabilidades, conforme previsto no Cdigo de Processo Civil (BRASIL, 1996).

Afirma-se, porm, que o rbitro dever atuar com suma prudncia na relao com as partes e manter um comportamento justo e atencioso dentro e fora do processo.
Assim sendo, afirma a lei brasileira que se considera instaurada a arbitragem quando o rbitro aceita sua nomeao (ou, em se tratando de tribunal arbitral, quando todos os rbitros tiverem manifestado sua aceitao). Relembre-se aqui que a aceitao ato voluntrio, essencial para que o rbitro fique sujeito responsabilidade civil, conforme examinado anteriormente. A partir deste momento haver, portanto, processo arbitral. Pode ento o rbitro (ou o colegiado), entendendo haver necessidade de que as partes explicitem alguma questo referida na clusula compromissria ou no compromisso arbitral, elaborar em conjunto com as partes um adendo conveno de arbitragem, a ser firmado por todos, e que passar a integrar a referida conveno (art. 19, pargrafo nico). Quis a lei, com isto, tornar claro e preciso o objeto da arbitragem, evitando-se assim que o rbitro decida questo que no lhe tenha sido submetida pelos litigantes (CMARA, 2009, p. 70).

Tendo as partes, de comum acordo, escolhido quem ser o rbitro a que ser submetido seu conflito de interesses, no h como se admitir seja tal rbitro incompetente, uma vez que sua autoridade para julgar decorre da prpria vontade das partes.

5.1. Responsabilidade Penal e Civil Dispe o art. 17 da Lei de Arbitragem que o rbitro, enquanto no exerccio de suas funes, fica equiparado ao funcionrio pblico para os fins da legislao penal. Significa dizer que o rbitro pode cometer aqueles crimes que, em princpio, s poderiam ser cometidos por funcionrios pblicos, como a corrupo passiva. Alm disso, a norma aqui referida tem um outro alcance: permitir que o rbitro seja vtima daqueles delitos que s podem ser cometidos contra funcionrio pblico, como a corrupo ativa ou crime contra a honra 30

A REVISTA DA UNICORP qualificado por ser a vtima funcionrio pblico, o qual caluniado, difamado ou injuriado em razo de suas funes. Uma das formas de se tentar buscar uma soluo para o problema procurar subsdios no direito comparado. No direito italiano h norma expressa regendo a responsabilidade civil dos rbitros. o art. 813 do Codice di Procedura Civile, cuja redao a seguinte:
813. Accetazione e obblighi degli arbitri. Laccetazione degli arbitri deve essere data per iscrito e pu risultare dalla sottoscrizione del compromesso. Gli arbitri debbono pronunciare il lodo entro il termine stabilito dalle parti o dalla legge; in mancanza, nel caso di annullamento del lodo por questo motivo, sono tenuti al risarcimento dei danni. Sono egualmente tenuti al risarcimento dei danni se dopo laccettazione rinunciano allincarico senza giustificato motivo. Se le parti non hanno diversamente convenuto, larbitro che omette o ritarda di compiere un atto relativo alle sue funzioni, pu essere sostituito daccordo tra le parti o dal terzo a ci incaricato dal compromesso o dalla clausola compromissoria. In mancanza, decorso il termine di quindici giorni da apposita diffida comunicata per mezzo di lettera raccomandata allarbitro per ottenere latto, ciascuna delle parti pu proporre ricorso al presidente del tribunale nella cui circoscrizione la sede dellarbitrato. Il presidente, sentite le parti, provvede com ordinanza non impugnabile e, ove accerti lomissione o il ritardo, dichiara la decadenza dellarbitro e provvede alla sua sostituzione (CMARA, 2009, p. 57-58).

O direito espanhol anterior tambm regulamentou expressamente a responsabilidade civil dos rbitros, o que foi feito no art. 16 da Ley de arbitraje de 1998, cuja redao a seguinte:
Artculo 16. La aceptacin obliga a los rbitros y, en su caso, a la Corporacin o Asociacin, a cumplir fielmente su encargo, incurriendo, si no lo hicieren, en responsabilidad por los daos y perjuicios que causaren por dolo o culpa. En los arbitrajes encomendados a una Corporacin o Asociacin el perjudicado tendr accin direta contra la misma, con independencia de las acciones de resarcimiento que asistan a aqulla contra los rbitros (CMARA, 2009, p. 59).

Por fim, o direito argentino contm uma norma para regular a responsabilidade civil dos rbitros, o art. 745 do Codigo Procesal Civil y Comercial de la Nacin, que tem a seguinte redao: 745. Desempeo de los rbitros. La aceptacin de los rbitros dar derecho a las partes para compelerlos a que cumplan con su cometido, bajo pena de responder por daos y perjuicios. A doutrina daquele pas vizinho afirma que os rbitros no so obrigados a aceitar o encargo que lhes confiado, mas, uma vez aceita a nomeao, tornam-se sujeitos incidncia do artigo citado (PALACIO, 1993 apud CMARA, 2009). Algumas lies do direito comparado podem ser aplicadas ao direito brasileiro sem 31

ENTRE ASPAS temor. Assim, por exemplo, pode-se dizer que s haver responsabilidade civil do rbitro se este tiver aceito a nomeao. A recusa do rbitro no pode ser causa de responsabilizao, eis que esta sempre voluntria, no podendo ser imposta a ningum pelas partes, uma vez que a conveno de arbitragem, enquanto no houver a adeso do rbitro, produz efeitos exclusivamente entre os contratantes, em razo de sua prpria natureza negocial (AROCA, 1990 apud CMARA, 2009).

6. Do procedimento arbitral
No processo arbitral, alm do procedimento em contraditrio, instaurase uma relao processual entre as partes e o rbitro (ou Tribunal Arbitral). Esta relao processual diferente da que se estabelece no processo jurisdicional na medida em que o rbitro, por no ter poder de imprio, no se pe acima das partes (embora, assim como o Estado-juiz, delas seja eqidistante). Assim sendo, processo arbitral e processo jurisdicional se distiguem intrinsecamente, uma vez que possuem distintas relaes processuais, ainda que ambos possam ser muito semelhantes (ou seja, do ponto de vista do procedimento, que se realiza obrigatoriamente em contraditrio) (CMARA, 2009, p. 11-12).

No se faz presente na arbitragem a relao jurdica processual jurisdicional, qual seja, aquela que se estabelece entre as partes e o Estado-juiz. No h, portanto, como se admitir a natureza jurisdicional da arbitragem, embora no se possa negar o mnus pblico exercido pelo rbitro, em sua atividade privada, de busca da pacificao social.
Ao prever como princpios norteadores do procedimento arbitral o contraditrio e a isonomia, assegura a Lei de Arbitragem que se tenha aquilo que se costuma designar contraditrio justo e equilibrado, em que as partes vo ao procedimento em paridade de armas, evitando-se assim que a parte mais forte (qualquer que seja a origem desta supremacia: econmica, jurdica, poltica etc.) obtenha xito pelo fato de ser mais poderosa (CMARA, 2009, p. 78).

Existem trs caminhos para escolher qual o procedimento ser aplicado no processo arbitral: as partes definem o rito do procedimento na conveno de arbitragem; o procedimento ser definido pelo rgo arbitral institucional ou entidade especializada ou pelo rbitro ou tribunal arbitral, conforme indicao das partes na conveno arbitral; no havendo estipulao acerca do procedimento, caber ao rbitro ou colgio arbitral disciplin-lo. Reza o 2 do art. 21 que o procedimento arbitral obedecer ao sistema adotado na conveno escrita pelas partes, entretanto respeitando-se os preceitos da Carta Magna relativos igualdade entre as partes e aos princpios do contraditrio e do livre convencimento dos rbitros.
Dever o rbitro, diz o art. 21, 4, da Lei de Arbitragem, no incio do procedimento, tentar obter a conciliao das partes, com o que estar

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composto o litgio, devendo tal conciliao ser declarada pelo rbitro atravs de sentena arbitral (art. 21, 4 c/c art. 28 da Lei de Arbitragem). Trata-se de regra elogivel, uma vez que a instaurao da arbitragem prova de que as partes no guardam o esprito belicoso que se costuma ver nas partes do processo jurisdicional. Esta no-beligerncia das partes pode ser fator capaz de contribuir para a autocomposio do conflito, atravs da conciliao. O rbitro poder, assim, alcanar a pacificao do conflito de forma ainda mais efetiva do que se teria se a arbitragem se desenvolvesse regularmente, culminando com uma deciso por ele proferida. Admite-se, no processo arbitral, todos os meios de prova moralmente legtimos, assim os tpicos (como o depoimento pessoal das partes, a prova testemunhal e a pericial, mencionadas expressamente no art. 22 da Lei de Arbitragem) como os atpicos. Quanto produo de tais provas, devem ser seguidas as regras existentes no Cdigo de Processo Civil, j que a Lei da Arbitragem no regulou o procedimento probatrio (salvo em pequenos detalhes, referentes ao depoimento de partes e testemunhas, contido no art. 22, 1, da lei (CMARA, 2009, p. 82-83).

Outra questo que as partes podero acompanhar o procedimento arbitral, bem como postular por intermdio de advogado que as represente ou assista. mister colocar em relevo que competir ao rbitro, como em um procedimento judicial, no incio do procedimento arbitral, tentar a conciliao das partes com a finalidade de se chegar a um acordo. Observe-se tambm na legislao em tela para que o procedimento possa se realizar, o rbitro poder tomar depoimento das partes, ouvir testemunhas e determinar a realizao de percias ou outras provas que julgarem necessrias. Esses atos podero ser efetuados de ofcio ou a requerimento das partes. Nesse passo, no caso de no atendimento comunicao, sem justo motivo da parte, o rbitro levar em considerao a atitude quando da prolatao da sentena, sendo certo que a revelia da parte no impedir que seja proferida a sentena. No caso de testemunhas, poder o rbitro requerer autoridade judiciria competente para o caso que conduza a testemunha. Destarte, percebe-se que na eventualidade de necessidade de medidas coercitivas ou cautelares, o rbitro poder, tambm, solicit-los ao rgo do Poder Judicirio originariamente competente para julgar a causa. Tratando-se de medidas cautelares a Lei estabelece que as mesmas sejam propostas perante o Juzo Arbitral, havendo substituio de rbitro, caso previsto pelas partes, ficar a seu critrio repetir ou no provas j produzidas. O laudo do rbitro admitido como sentena entre as partes e seus sucessores, podendo j ser executada.
Questo interessante a de se saber se, havendo conveno de arbitragem e, ainda assim, umas das partes propuser a sua demanda, se deve considerar que as partes renunciaram soluo de seu conflito por via arbitral se, oferecida pelo ru a contestao, esta no alegar a exceo de conveno de arbitragem (GONNET, 1994 apud CMARA, 2009, p. 38).

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ENTRE ASPAS
A arbitragem uma manifestao de liberdade. Assim que, do mesmo modo que se garante a liberdade de sua instituio, deve-se garantir a liberdade de renncia ao previamente estatudo. Desta forma, deixando o demandado de alegar, em sua contestao, que haviam as partes celebrado uma conveno de arbitragem, de se entender que optaram pela soluo de seu conflito pela via jurisdicional, renunciando ao processo arbitral. Poder, ento, o Judicirio exercer, sem impedimentos, a funo jurisdicional (PASSOS, 1991; PIMENTEL, 1979 apud CMARA, 2009, p. 38).

No que se refere ao direito processual, a previso de uma demanda capaz de gerar uma sentena substitutiva da declarao de vontade necessria celebrao do compromisso arbitral coloca mais uma vez o direito brasileiro em posio de destaque diante das modernas exigncias de previso de formas diferenciadas de prestao da tutela jurisdicional, devendo ainda tal tutela ser prestada atravs de um procedimento extremamente concentrado e, por conseguinte, que se mostra consentneo com a necessidade de tutela jurisdicional efetiva e clere.

7. Da sentena arbitral O conceito que podemos utilizar para definir a sentena arbitral o que se assemelha ao conceito posto no art. 162 1 do Cdigo de Processo Civil, ou seja, sentena arbitral o ato pelo qual o rbitro pe termo ao processo, decidindo-lhe ou no o mrito. Acentua-se apenas que, com a sentena arbitral publicada, o rbitro encerra a sua funo restando extinta a relao processual arbitral. Segundo Almeida (2002), a sentena arbitral apresenta peculiaridades prprias. A primeira est relacionada com a regra geral, o prazo fixado de seis meses para que o rbitro profira a sentena arbitral. (art. 23). Vale destacar que prevalece sempre o princpio de imperatividade da vontade das partes, que estas podem estabelecer outro prazo. Sabemos que a fixao do prazo para a prolao da sentena extremamente importante, j que o seu descumprimento acarreta consequncias diversas tais como: poder o rbitro, caso no cumpra o prazo, responder por danos e perdas causados s partes decorrente do seu atraso; para as partes, o no cumprimento do prazo poder ocasionar a extino da arbitragem, acarretando-lhes vrios prejuzos. A deciso arbitral (rectius, laudo arbitral) dever ter a forma escrita, ainda que proferida oralmente em audincia (caso em que ser reduzida a termo) (CMARA, 2009, p. 103).
Tambm o direito comparado exige a forma escrita para o laudo arbitral, como se v no art. 32 da Ley de arbitraje espanhola de 1988 (el laudo deber dictarse por escrito), correspondente ao art. 37.3 da lei vigente; e no art. 823 do Codice di Procedura Civile italiano (il lodo deliberato a maggioranza di voti dagli arbitri riuniti in conferenza personale ed quindi redatto per iscritto) (CMARA, 2009, p. 104).

Os requisitos essenciais da sentena esto estabelecidos no art. 26 da Lei n 9.307/96 34

A REVISTA DA UNICORP para que seja considerada apta a produzir efeitos. Vale destacar que ausente tais requisitos, ou mesmo um deles, comina-lhe a nulidade como sano (art. 32, II).
Art. 26. So requisitos obrigatrios da sentena arbitral: I o relatrio, que conter os nomes das partes e um resumo do litgio; II os fundamentos da deciso, onde sero analisadas as questes de fato e de direito, mencionando-se, expressamente, se os rbitros julgaram por eqidade; III o dispositivo, em que os rbitros resolvero as questes que lhes forem submetidas e estabelecero o prazo para o cumprimento da deciso, se for o caso; e IV a data e o lugar em que foi proferida (BRASIL, 1996).

Os requisitos da sentena so os mesmos nos diferentes tipos de processo cvel, penal e trabalhista, isto , a sentena arbitral produz entre as partes e seus sucessores, os mesmos efeitos da sentena proferida pelos rgos do Poder Judicirio e, sendo condenatria, constitui ttulo executivo. Frederico Marques, a respeito dos requisitos da sentena diz:
o relatrio pea de grande valia e fundamental importncia. Atravs dele o juiz delimita o campo do petitum e a rea das controvrsias e questes que necessitar resolver. O juiz deve fazer o relatrio com clareza, preciso e sntese, muito embora seja minucioso no descrever o objeto da deciso e seus pontos controvertidos. J nos fundamentos da deciso em que o magistrado, examinando as questes de fato e de direito, constri as bases lgicas da parte decisria da sentena. Tratase de operao delicada e complexa, em que o juiz fixa premissas da deciso aps laborioso exame das alegaes relevantes que as partes formularam, bem como do enquadramento do litgio nas normas legais aplicveis. Encerrada a motivao, o juiz decide, o que faz na parte dispositiva (no qual devero dispor as questes que lhes foram submetidas, devidamente resolvidas, e o prazo para cumprimento da deciso) (MARQUES, 1999 - apud ALMEIDA, 2002, p. 131).

O rbitro poder tambm aplicar, supletivamente o contido no Cdigo de Processo Civil, artigos 16, 17 e 18, se ocorrer hiptese de litigncia de m-f.
A ausncia dos elementos essenciais do laudo arbitral, nos termos do disposto no art. 32, III, da Lei de Arbitragem, tem como conseqncia a nulidade do ato decisrio. Tal afirmativa, porm, no se afigura inteiramente correta. certo que relatrio e fundamentao da deciso podem ser considerados elementos essenciais validade do laudo arbitral, com sua ausncia implicando nulidade. A falta de dispositivo, porm, faz com que o laudo arbitral seja inexistente (SANTOS, 1996 apud CMARA, 2009, p. 114). A falta de indicao da data e do lugar em que proferida a deciso, que

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deveria gerar mera irregularidade do ato, tem como conseqncia a nulidade do mesmo, nulidade esta expressamente cominada no art. 32, III, da lei. Assim tambm deve-se entender a falta de assinatura do rbitro, embora este elemento essencial da deciso no esteja no caput do art. 26 da Lei de Arbitragem, mas em seu pargrafo nico (CMARA, 2009, p. 114-115).

Convm salientar, ademais, que a sentena arbitral ser assinada pelo rbitro ou por todos os rbitros. Caber ao presidente do tribunal arbitral, na hiptese de um ou alguns dos rbitros no poder ou no querer assinar a sentena, certificar tal fato. (art. 26, pargrafo nico). Afirma o art. 29 da lei de arbitragem, que: proferida a sentena arbitral, d-se por finda a arbitragem, devendo o rbitro, ou o presidente do tribunal arbitral, enviar cpia da deciso s partes, por via postal ou por outro meio qualquer de comunicao, mediante comprovao de recebimento, ou, ainda, entregando-a diretamente s partes, mediante recibo. O artigo 33 da referida lei prev a hiptese do ajuizamento de uma ao anulatria especfica para conseguir a anulao da sentena arbitral, caso esta esteja viciada por alguma das formas previstas nos oito incisos do artigo 32 (CRUZ, 2009).
Assim que o laudo dever conter uma resposta capaz de compor o conflito de interesses submetido ao processo arbitral, aplicando-se aqui o mesmo princpio da adstrio que regula as sentenas jurisdicionais. Por esta razo que, sob pena de nulidade, o laudo arbitral no pode ser ultra, extra ou citra petita. Em outras palavras, o laudo arbitral no pode decidir sobre questo estranha ao objeto da arbitragem (laudo extra petita), nem pode exceder os limites impostos pelas partes na delimitao deste objeto (laudo ultra petita), nem pode deixar de decidir questo submetida apreciao do rbitro ou do colgio de rbitros (laudo citra petita). A cominao de nulidade nestes casos provm do disposto no art. 32, IV e V, da Lei de Arbitragem, e pode-se afirmar tratar-se de nulidade absoluta. Alm de decidir o conflito, dever o laudo arbitral dispor acerca da responsabilidade pelo pagamento das custas e despesas com a arbitragem. Esta responsabilidade ser atribuda na forma prevista no compromisso arbitral (art. 11, V, da Lei de Arbitragem), mas no silncio deste caber ao rbitro (ou ao tribunal arbitral) fixar a responsabilidade, devendo ser empregado o princpio da causalidade, por analogia ao disposto no Cdigo de Processo Civil para o processo jurisdicional. Pode ainda o laudo conter condenao de alguma das partes por litigncia da m-f, aplicando-se neste caso o disposto nos arts. 16 a 18 do Cdigo de Processo Civil (CMARA, 2009, p. 119).

certo que mesmo no direito comparado encontram-se ordenamentos que optam, ainda hoje, por exigir a homologao da deciso do rbitro por um juzo para que a mesma possa produzir efeitos, como se tem, e.g., na Itlia, onde o art. 825 do Codice di Procedura Civile submete a exequibilidade da deciso arbitral a um decreto, atravs do qual a mesma declarada executiva (FAZZALARI, 1990 apud CMARA, 2009). De orientao oposta o direito espanhol, onde a homologao judicial da deciso 36

A REVISTA DA UNICORP proferida no processo arbitral jamais exigida (AROCA, 1990 apud CMARA, 2009). Destarte, no direito brasileiro, a sentena arbitral proferida por rbitro nomeado pelas partes, no cabe qualquer recurso, exceto no caso desta ferir algum dos dispositivos contidos na lei, ou se incidir sobre alguma das hipteses de nulidade includas na prpria lei.

7.1. Efeitos do laudo arbitral Dispe o art. 31 da Lei de Arbitragem que a sentena arbitral produz, entre as partes e seus sucessores, os mesmos efeitos da sentena proferida pelos rgos do Poder Judicirio e, sendo condenatria, constitui ttulo executivo (CMARA, 2009, p. 120). Ao afirmar que o laudo arbitral produz os mesmos efeitos da sentena jurisdicional, o art. 31 da Lei de Arbitragem est apenas imputando ao ato decisrio proferido no processo arbitral os mesmos feitos que imputa s sentenas jurisdicionais de idntico contedo.
Assim, e.g., tendo o laudo contedo meramente declaratrio da existncia ou inexistncia de uma relao jurdica, produzir-se- aqui tambm o efeito consistente na certeza jurdica de sua existncia ou inexistncia, no mais sendo lcito pr em dvida o que foi certificado. Da mesma forma, tendo contedo constitutivo o laudo arbitral (pense-se, por exemplo, num laudo que estabelea o valor do aluguel de um imvel, a vigorar a partir de determinada data), opera-se a modificao da situao jurdica, da mesma forma como se operaria se tal mudana proviesse de uma sentena jurisdicional. Por fim, estabeleceu expressamente a Lei de Arbitragem que, tendo contedo condenatrio, o laudo arbitral produz, assim como a sentena jurisdicional de idntico contedo, eficcia executiva (CMARA, 2009, p. 122-123).

Por fim, segundo Alexandre Cmara importante frisar que:


a execuo do laudo arbitral se desenvolver, necessariamente, perante o Poder Judicirio. Isto porque o rbitro no dotado do imperium necessrio realizao prtica do comando contido em sua deciso. Tal decorre do fato de que no processo executivo realizam-se atos de fora, com a invaso do patrimnio do executado e sua sujeio responsabilidade patrimonial. Tais atos de sub-rogao no podem ser praticados seno por aquele que detm o poder soberano, razo pela qual a execuo forada do laudo arbitral, da mesma forma que a atuao das medidas cautelares, se faz por ato judicial, sendo necessria a instaurao de um processo executivo que ter, pois, ndole jurisdicional. Este processo de execuo ser regido pelas disposies contidas nos arts. 461, 461-A e 475-I a 475-R do Cdigo de Processo Civil. Ser, porm, um processo executivo autnomo em relao ao processo arbitral que produziu o ttulo executivo, devendo ser o executado, logo no incio deste processo, citado, na forma do disposto no art. 475-N, pargrafo nico, do CPC (CMARA, 2009, p. 129).

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ENTRE ASPAS 8. Do reconhecimento e execuo de sentenas arbitrais estrangeiras A toda evidncia, o mais vasto campo de atuao da arbitragem ora tratado o dos contratos privados internacionais. Assim, o juzo arbitral pode ter sido acordado para atuar fora ou dentro do territrio nacional.
Um dos mais importantes fenmenos dentre os que so regidos pela Lei de Arbitragem a arbitragem internacional. Numa poca como a atual, de globalizao econmica e superao de fronteiras entre os diversos pases, h um nmero imenso de relaes jurdicas envolvendo sujeitos ligados a pases diferentes, relaes estas que geram, obviamente, conflitos de interesses. Tais litgios so, freqentemente, submetidos arbitragem. Por esta razo, mxime aps o ingresso do Brasil no Mercosul, o que certamente aumentar a incidncia deste tipo de situao por aqui, que o legislador se preocupou em regular a arbitragem internacional, no que diz respeito ao reconhecimento e execuo, pelo Judicirio brasileiro, de laudos arbitrais estrangeiros. Assim que, nos termos do art. 34 da Lei de Arbitragem, a sentena arbitral estrangeira ser reconhecida ou executada no Brasil de conformidade com os tratados internacionais com eficcia no ordenamento interno e, na sua ausncia, estritamente de acordo com os termos desta Lei. Logo a seguir, o pargrafo nico do mesmo artigo apresenta o conceito, adotado pelo ordenamento jurdico ptrio, de laudo arbitral estrangeiro, ao afirmar que considera-se sentena arbitral estrangeira a que tenha sido proferida fora do territrio nacional (1994 apud CMARA, 2009, p. 141-142).

Importante frisar que a sentena arbitral estrangeira depende exclusivamente da homologao do Superior Tribunal de Justia, para obter eficcia no Brasil, antes esse procedimento era feito pelo Supremo Tribunal Federal. Vale sublinhar, que so vrias as convenes e tratados fixados por nosso pas. Nesse sentido, temos o Decreto Legislativo n 90/95, em que aprovou o texto da Conveno Interamericana sobre a Arbitragem Convencional Internacional, de 30-1-1975, do Panam; o Decreto Legislativo n 93/95, que aprovou o texto da Conveno Interamericana sobre a Eficcia Extraterritorial das Sentenas e Laudos Arbitrais Estrangeiros, concludo na cidade de Montevidu; o Decreto n 1.476/95 que promulgou o Tratado relativo Cooperao Judiciria e ao reconhecimento e execuo de sentenas em matria civil, entre o Brasil e a Itlia e recentemente a Conveno de New York (CRUZ, 2009).
Tendo em vista a fora conferida sentena arbitral, na maioria dos ordenamentos jurdicos, para gerar efeitos similares aos da sentena judicial, obrigando as partes ao seu cumprimento, constitui-se no mecanismo mais interessante para todos aqueles que buscam uma alternativa ao Poder Judicirio, mas que precisam da segurana de uma sentena com fora executiva, como o caso dos conflitos ocorridos no comrcio internacional (LIMA, 2003 apud SOUZAS; TORRES, 2008, p. 77).

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A REVISTA DA UNICORP Por outro lado, o direito espanhol adota o mesmo critrio que o brasileiro, ao dispor que se entiende por laudo arbitral extranjero el que no haya sido pronunciado em Espaa (art. 46 da Ley de arbitraje de 2003, art. 56.2 da Ley de arbitraje de 1988). Nota-se, aqui, mais uma dentre tantas semelhanas verificadas ao longo deste estudo entre a Lei de Arbitragem brasileira e sua equivalente espanhola (CMARA, 2009, p. 142). Adaptaram-se s caractersticas do direito brasileiro regras j consagradas pelo uso e aplaudidas pela doutrina especializada em outros pases, como a Itlia, a Argentina e a Espanha (CMARA, 2009). A parte interessada requerer a homologao por escrito, obedecendo aos requisitos da petio inicial, de acordo com o art. 282 do Cdigo de Processo Civil. Nessa trilha de raciocnio, destaque-se que outros documentos teis para a homologao podem ser anexados a critrio da parte. O art. 38 da Lei de Arbitragem descreve as hipteses nas quais a homologao poder ser negada. De logo, preciso ressaltar, conforme o art. 39 que ser denegada a homologao do laudo se o Supremo Tribunal de Justia verificar que, conforme a lei brasileira, o objeto da lide no suscetvel de ser solucionado pela arbitragem ou tambm se ofender a ordem pblica nacional. Cumpre examinar que o pargrafo nico do art. 39 expressa, para dirimir quaisquer dvidas, que a efetivao da citao da parte residente ou domiciliada no Brasil, nos moldes da conveno da arbitragem ou da lei processual do pas onde se realizou a arbitragem, no uma ofensa ordem pblica nacional. Reza o art. 40 que o indeferimento da homologao por vcios formais no o pedido, de qualquer sorte uma vez sanados os defeitos aprontados. Acresa-se, por oportuno, que o processo homologatrio no pode adentrar o mrito, discutir a justia ou injustia, o acerto ou desacerto da deciso.

9. Consideraes finais A arbitragem um acordo de vontades, celebrado entre pessoas capazes que, preferindo no se submeter morosidade de um processo judicial, utiliza-se de rbitros para a soluo de suas controvrsias ou litgios, quando estas recarem sobre direitos patrimoniais disponveis, ou seja, aqueles que podem ser objeto de transao entre os interessados. Ao optar por este meio alternativo de soluo de litgios, os titulares dos interesses em conflito j demonstram uma predisposio a se conformarem com a deciso do rbitro, j que este foi escolhido pelos contendores, sendo algum de sua confiana. Com a crescente necessidade de se ter decises mais rpidas e precisas, temos que os MESCs se apresentam de tal forma que vm a atender ao anseio da sociedade brasileira. Isso significa dizer que em um mundo globalizado estamos precisando solucionar os problemas e conflitos existentes o mais rpido possvel, haja vista que quanto mais nos prolongamos nesse desenrolar mais problemas iro surgir. Essa viso faz com que a existncia dos mtodos de soluo extrajudicial encontre abrigo de forma definitiva, seja em nosso ordenamento jurdico, seja em nosso dia a dia. Assim esperamos que os MESCs sejam cada vez mais utilizados pelas pessoas, assumindo, assim, cada um o controle de suas vidas e de suas aes. Esse panorama comprova a concepo mundial da necessidade de disseminao e expanso dos mtodos extrajudiciais de solues de controvrsias. 39

ENTRE ASPAS
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A ERA DO CRDITO E O SUPERENDIVIDAMENTO DO CONSUMIDOR

Eduardo Antonio Andrade Amorim


Advogado. Graduado pela Universidade Catlica do Salvador. Ps-graduado em Direito do Estado pelo JusPodivm.

Resumo: O presente estudo tem como objetivo principal a anlise do superendividamento no direito brasileiro. Para tanto, ressalta-se, primeiro, a importncia que o crdito assumiu na atual sociedade de consumo, os efeitos positivos e negativos da expanso creditcia e a relao direta entre esse fenmeno e o endividamento dos consumidores. Em seguida, busca-se firmar o conceito, a classificao e noes gerais do superendividamento, relacionando-o como causa da expanso e da concesso irresponsvel de crdito, apontado os seus efeitos negativos, notadamente que fator de excluso social, ressaltando ainda a boa-f do consumidor e do fornecedor de crdito. Por fim, examina-se o superendividamento do consumidor no direito brasileiro, a sua tutela constitucional e infraconstitucional, luz do Cdigo de Defesa do Consumidor, analisando tambm o posicionamento jurisprudencial acerca da matria e destacando a necessidade de regulamentao do instituto no direito positivo, sugerindo diretrizes gerais que podero contribuir para o tratamento legislativo do tema. Palavras-Chave: Crdito. Endividamento. Superendividamento do consumidor. Tutela constitucional. Cdigo de Defesa do Consumidor.

1. A Era do Crdito e o endividamento O crdito indispensvel na sociedade de consumo, tornando-se elemento essencial das economias contemporneas. Nesse contexto, as instituies financeiras, ao prestarem os servios relativos ao crdito, assumem importante funo para o atendimento das necessidades dos consumidores, fato que ganha destaque na sociedade brasileira, onde o fornecimento creditcio mostra-se fundamental at mesmo para suprir as despesas comuns e cotidianas das pessoas. Em termos prticos, o professor Brunno Pandori Giancoli ressalta a importncia do crdito na atual sociedade:
O crdito o principal mecanismo scio-jurdico disponibilizado ao homem moderno para viabilizar seus sonhos, a exemplo da casa prpria; dos veculos automotores; alm dos bens de consumo tpicos da modernidade, como celulares e computadores.1

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A REVISTA DA UNICORP Assim, o crdito pode ser entendido como a disponibilizao imediata de uma soma em dinheiro, uma coisa ou um servio a uma pessoa que ser paga posteriormente de forma fracionada. J o crdito ao consumo a espcie de crdito em que uma instituio financeira fornece ao consumidor final os valores necessrios para a aquisio de bens de consumo e servios destinados s suas necessidades pessoais ou familiares em vista de uma contraprestao futura parcelada no tempo. Decerto que, pacfico na literatura especializada o reconhecimento dos efeitos positivos do crdito ao consumo, j que permite uma elevao do nvel de vida das pessoas e fomenta o desenvolvimento de todo o ciclo produtivo. Entretanto, como se ver adiante, o crdito pode causar consequncias negativas, notadamente quando concedido de forma irresponsvel, isto , quando as instituies financeiras, de modo incompatvel boa-f objetiva, fornecem crdito a pessoas que no possuem condies para quitar integralmente a dvida contrada, pois suportam juros e encargos impagveis. Nas ltimas dcadas, percebeu-se uma mudana dos objetos financiados pelos consumidores: antes, a utilizao do crdito destinava-se, na sua maior parte, ao consumo familiar mais tradicional, a casa prpria. Hoje, contudo, a utilizao do crdito visa o consumo de bens durveis, porm de vida til mais curta que os imveis, como os automveis, por exemplo, e, sobretudo, a satisfao de necessidades primrias para a maioria da populao, permitindo o acesso aquisio de bens e contratao de servios. Essa mudana dos objetos financiados, promovida tambm pelos novos padres de consumo, por muito, foi causada pelo acesso facilitado e democratizado ao crdito e pela dilatao dos prazos de pagamento, permitindo a utilizao creditcia em todos os setores do ciclo econmico por ampla camada da populao. A democratizao do crdito tem origem nos Estados Unidos, pas que primeiro deixou de entender o crdito como sinnimo de pobreza para encar-lo como instrumento necessrio para dinamizar a economia2. Sob este foco, as instituies financeiras passaram a expandir o seu mercado, buscando atingir tambm a populao no bancarizada, isto , passaram a promover o acesso da populao de baixa renda, historicamente excluda do sistema financeiro convencional, aos produtos e servios bancrios, de forma a viabilizar a incluso de milhes de novos consumidores bancrios. Para corroborar o quanto exposto, vale pontuar o entendimento doutrinrio:
O crdito aos consumidores vulgarizou-se na generalidade das economias de mercado mais desenvolvidas, passando a constituir, para muitas famlias, uma forma de gesto corrente do seu oramento. Ao longo do sculo XX, multiplicaram-se as formas de crdito, as instituies que o concedem, os produtos que podem ser por ele adquiridos e a regulao pblica que sobre ele incide.3

Na atual circunstncia, portanto, o crdito tornou-se uma mercadoria altamente disponvel e acessvel e, como tal, anunciada de forma agressiva pela indstria financeira4, transformando, inclusive, os salrios e as penses dos brasileiros em objetos penhorveis atravs do crdito consignado em folha de pagamento. O crdito assumiu tamanha relevncia na atual sociedade de consumo que a sua ausncia pode importar na impossibilidade do indivduo de honrar os seus compromissos bsicos do dia a dia, de sorte que muitas pessoas se endividam para pagar despesas correntes (como gua, luz, 43

ENTRE ASPAS telefone etc.) ou gastos com servios necessrios que no so providos satisfatoriamente pelo Estado (a exemplo de sade e educao). Dessa forma, o crdito pessoal, disponibilizado atravs de carto de crdito e cheque especial, que no exigem garantias reais, tornou-se ferramenta diria dos consumidores para cobrir os dbitos corriqueiros. Nesse cenrio, consumo e crdito caminham juntos, lado a lado, ou, nas palavras de Cludia Lima Marques, so duas faces de uma mesma moeda5. Resultante da conjugao desses dois elementos, o endividamento do consumidor de crdito surge como fenmeno comum nas sociedades capitalistas, sobre o que nos ensina a festejada professora gacha supra mencionada:
O endividamento um fato inerente vida em sociedade, ainda mais comum na atual sociedade de consumo. Para consumir produtos e servios, essenciais ou no, os consumidores esto quase todos constantemente se endividando. A nossa economia de mercado seria, pois, por natureza, uma economia do endividamento.6

Sobre o tema, enriquecedora tambm a noo delineada pelo doutrinador Geraldo de Faria Martins Costa, ora transcrita:
Na economia do endividamento, tudo se articula com o crdito. O crescimento econmico condicionado por ele. O endividamento dos lares funciona como meio de financiar a atividade econmica. Segundo a cultura do endividamento, viver a crdito um bom hbito de vida. Maneira de ascenso ao nvel de vida e conforto do mundo contemporneo, o crdito no um favor, mas um direito fcil. Direito fcil, mas perigoso. O consumidor endividado uma engrenagem essencial, mas frgil da economia fundada sobre o crdito.7

Conclui-se, portanto, que o endividamento fenmeno inerente s sociedades de massa, onde , por mais paradoxo que parea, elemento indispensvel atividade econmica. O crdito e o endividamento dos consumidores devem ser tratados conjuntamente, como causa e efeito do novo paradigma de sociedade de consumo. O endividamento pode decorrer ainda da falta de educao em gesto oramentria dos consumidores, da ocorrncia de acidentes da vida (como divrcio, desemprego ou doena crnica) que geram a reduo abrupta dos recursos. causado tambm pela postura dos credores que, visando lucros cada vez maiores, vilipendiam as normas tutelares do consumidor e fornecem crdito de forma irresponsvel, configurando verdadeiro abuso do direito de oferecer crdito, de modo a romper com as justas expectativas dos tomadores. Acrescente-se que, o crdito tem a funo de financiar o consumo, mas apenas o crdito bem concedido pode garantir aos indivduos maior acesso ao consumo com menores encargos, expandindo, assim, o seu poder aquisitivo, ensejando o aumento da produo e, por efeito, da gerao de empregos, permitindo o desenvolvimento econmico do pas. Todavia, o que se v uma inteira deformao da funo social do crdito no Brasil. Os lucros das instituies financeiras so elevadssimos e as taxas de juros so fixadas em percentuais desproporcionais. A funo social do crdito, que seria de promover o desenvolvimento econmico e equilibrado do pas e a servir aos interesses da coletividade (art. 192 da CF/88), como objetivo do Sistema Financeiro Nacional, no est sendo respeitada. 44

A REVISTA DA UNICORP Dessa forma, o endividamento dos consumidores de crdito acentuado, sobremaneira, de modo a evoluir para um fenmeno social crnico, conhecido como superendividamento, que assola muitas sociedades de consumo em massa.

2. O superendividamento do consumidor 2.1. Conceito e noes gerais O tema do superendividamento ou sobreendividamento ainda no foi tratado pela lei brasileira com a ateno que j mereceu em outros pases, motivo pelo qual vem despertando a preocupao e os cuidados da melhor doutrina ptria, a exemplo da professora Cludia Lima Marques, com o escopo de fornecer um tratamento adequado ao referido fenmeno social, jurdico e econmico. A anlise desse fenmeno demanda conhecimentos interdisciplinares, de natureza sociolgica, psicolgica, econmica e jurdica, de sorte que, escapando da sua anlise mais profunda, interessa para os fins colimados no presente estudo, as suas implicaes na esfera socioeconmica e os seus reflexos no Direito. O superendividamento indica o endividamento superior ao normal daquele possvel de ser suportado pelo oramento mensal dos consumidores. definido pela citada doutrinadora como a impossibilidade global do devedor-pessoa fsica, consumidor, leigo e de boa-f, de pagar todas suas dvidas atuais e futuras de consumo8. Diante desta definio, torna-se perceptvel que o tema ganha relevncia jurdica, no com a mera inadimplncia obrigacional eventual, mas sim na hiptese em que o devedor de boa-f est impossibilitado permanentemente de pagar o total de suas dvidas de consumo, ainda que estas se tornem exigveis no futuro. Percebe-se tambm que, o superendividado sempre um consumidor, em acepo mais restrita do que aquela fornecida pelo CDC, pois apenas admite-se a tutela pessoa fsica, excluindo, portanto, a pessoa jurdica. Trata-se de pessoa fsica que, de boa-f, contrata concesso de crdito, destinado aquisio de produtos ou servios para atender uma necessidade pessoal, e nunca profissional. Assim, o superendividamento no pode ser visto como um simples momento de inadimplncia obrigacional, e sim, como a impossibilidade permanente de uma pessoa suprir as suas necessidades bsicas, como alimentao, vesturio e moradia, que so materializadas atravs do crdito ao consumo. Esse prisma revela que, na relao obrigacional de crdito existem importantes aspectos da vida humana que, se desprezados, podem ameaar a prpria dignidade da pessoa. Por essa razo, nos ensina Brunno Pandori Giancoli:
Conseqentemente, a natureza do superendividamento tambm est ligada eficcia dos direitos fundamentais nas relaes privadas, ou seja, a vinculao dos particulares, ou das entidades privadas, ao direito fundamental de acesso ao crdito pelo consumidor.9

evidente que, a eficcia horizontal dos direitos fundamentais exige uma ponderao dos interesses envolvidos, de modo a no esvaziar e a equilibrar os valores conflitantes. No 45

ENTRE ASPAS fornecimento de crdito ao consumidor, a preservao da autonomia da vontade deve ser reduzida quando o superendividamento for causado pela aquisio, mediante o crdito contrado, de bens essenciais vida humana com dignidade. Nesse sentido, o superendividamento um instituto que permite, nas palavras de Brunno Pandori Giancoli, a correo da assimetria de uma ou diversas relaes jurdicas contradas pelo consumidor, em razo da existncia de um conjunto de dvidas estruturais ajustadas de boa-f, capazes de ameaar ou lesionar sua dignidade pessoal10. vlido consignar tambm que o sobreendividamento um fenmeno global, pois atinge a maioria das sociedades de consumo, e atinge tanto consumidores da classe mdia, principalmente aps a exploso da modalidade de crdito consignado, como dos segmentos sociais mais carentes, tanto trabalhadores como aposentados. Como causa, a doutrina aponta no apenas um, mas diversos fatores que contribuem para a ocorrncia do superendividamento, vejamos:
Na maioria dos casos, o superendividamento no se deve a uma nica causa, j que o devedor deve fazer frente a um conjunto de obrigaes derivadas de aquisio de bens e servios de primeira necessidade, crditos hipotecrios, carros mveis etc. e, inclusive, decorrentes do abuso e incorreto uso do carto de crdito. Somam-se, ainda, causas no econmicas, tais como falta de informao e educao dos consumidores, rupturas familiares, acidentes ou enfermidades crnicas etc.11

Independentemente da causa que gerou o superendividamento, o consumidor que atingir essa condio est fadado excluso social, vez que, apontam estudos sobre a matria, a socializao quase sempre afetada pelo sobreendividamento, importando em verdadeira reformatao das relaes sociais desses indivduos. Para ratificar o quanto consignado, valem destacar os ensinamentos doutrinrios:
No entanto, o que mais sobressai nestes indivduos o afastamento social por iniciativa dos prprios sobreendividados. Esse comportamento pode derivar de uma atitude consciente e deliberada, que resulta da constatao de que no tm condies monetrias para manter os antigos padres de lazer. Mas pode derivar tambm de um estado emocional favorvel ao isolamento e desmotivao pela vida em grupo. A vergonha e a insegurana que lhes comum, facto que se tornou notrio ao longo de vrias entrevistas, no conduz apenas construo de uma normalidade artificial, como foi referido. Pode gerar igualmente um distanciamento da vida familiar e colectiva, que os empurra para as fronteiras da excluso social.12

O superendividado tem a sua autoestima abalada, assim como a confiana na sua capacidade de reger a sua vida pessoal e familiar, o que agrava o seu modo de relacionamento social e afetivo. O isolamento, estados depressivos, os conflitos conjugais so reaes que afloram habitualmente e desestruturam a vida dos indivduos nessa condio. Inobstante o colapso financeiro acarretar o isolamento social do indivduo, pode resultar tambm na excluso total do superendividado do mercado de consumo, lhe impossibilitan46

A REVISTA DA UNICORP do de suprir as necessidades para viver dignamente, situao assemelhada sua morte civil. Dessa forma, em relao aos efeitos individuais, o instituto do superendividamento visa evitar a runa do consumidor, sob o aspecto econmico, social e moral; visa sua reincluso no mercado de consumo e no seio social de forma digna, de modo a lhe garantir uma existncia igualmente digna. J em relao aos efeitos globais, o sobreendividamento visa preservar o mercado em franco crescimento, haja vista que isto depende da sade financeira do consumidor e da sua manuteno no ciclo produtivo, o que, no contexto alhures delineado, s possvel atravs de uma tutela jurdica especfica destinada a prevenir e a curar as hipteses de endividamento crnico. De um modo geral, no direito comparado, a doutrina indica que a regulamentao jurdica do superendividamento costuma seguir dois modelos distintos: o sistema da Fresh Start, ou de uma nova oportunidade, apontado como o modelo americano, e o sistema da reeducao, mais prximo dos regimes europeus. O regime do fresh start entende o superendividamento como um risco associado ao desenvolvimento do mercado financeiro e, por essa razo, prega a socializao desse risco, limitando a responsabilidade do consumidor, e estabelecendo um procedimento reparatrio para o sobreendividamento. Nesse sistema, a insolvncia no considerada como algo moralmente negativo, mas como efeito de uma escolha equivocada do devedor. No modelo de reeducao, o devedor visto como um indivduo responsvel e decente, de sorte que se entende no ser justo a sociedade estimular o consumo de crdito e depois no se responsabilizar pelos efeitos negativos dessa prtica. Assim, criou-se a idia de que o superendividado se excedeu, extrapolou um comportamento social considerado normal, mas em parte foi vtima do contexto que est inserido, devendo, por isso, ser ajudado, reeducado, visto que o estgio crnico que alcanou no foi de todo intencional. Embora no direito positivo brasileiro ainda no exista uma regulamentao especfica acerca do sobreendividamento, a doutrina ptria busca nos ordenamentos jurdicos aliengenas solues para a preveno e tratamento deste fenmeno, despontando a soluo francesa como a mais aceita no Brasil13. Obviamente, o estudo comparado deve ser realizado, mas nenhuma soluo estrangeira poder funcionar adequadamente, vez que necessrio considerar as peculiaridades sociais e econmicas ptrias. De qualquer sorte, o tratamento normativo conferido ao superendividamento na Frana entende o inadimplemento do consumidor de crdito como um problema social, que ultrapassa o limite dos interesses individuais e, portanto, interessa sociedade. Nessa perspectiva, a tutela francesa ao consumidor visa garantir o uso racional e refletido do crdito e criar uma noo geral do endividamento crnico, assim como visa garantir a lealdade nas relaes de consumo, atravs de medidas como: a exigncia de contrato escrito e o seu fornecimento ao consumidor, prazo de reflexo e de arrependimento, regulamentao especfica da publicidade, dentre outras. Criaram-se ainda comisses de superendividamento, com natureza administrativa, que tm a finalidade de conciliar o superendividado com o conjunto dos seus credores14.

2.2. Superendividamento ativo e passivo A doutrina classifica o superendividamento a partir das razes que lhe deram causa, destarte, pode ser ativo ou passivo. 47

ENTRE ASPAS Quando o consumidor, espontaneamente, abusa do crdito e o utiliza de forma excessiva, extrapolando as possibilidades do seu oramento, existe o superendividamento ativo. No caso do superendividamento passivo, a causa no o abuso do crdito ou a m gesto oramentria, mas um acidente da vida (desemprego, reduo de salrios, enfermidades crnicas, divrcio, acidentes, mortes etc.), o consumidor no contribui diretamente para o inadimplemento global de suas dvidas. Essa distino leva em conta a atitude do consumidor: no primeiro caso, voluntariamente endividado e, no segundo, levado ao estado de insolvncia por fatores externos sua vontade. Em termos prticos, tanto os acidentes da vida como o abuso de crdito podem gerar o endividamento crnico, levando o devedor impossibilidade global de arcar com suas dvidas atuais e futuras. Desse modo, tanto o superendividado passivo como o ativo so merecedores da tutela protetiva do consumidor, exigindo-se, em ambos os casos, de boa-f objetiva, afinal ambos esto expostos s mesmas prticas comerciais agressivas dos fornecedores de crdito e aos riscos decorrentes do fornecimento creditcio irresponsvel.

2.3. A boa-f do consumidor Como j destacado, a boa-f verdadeira regra de conduta que exige das partes um agir pautado em valores como honestidade, lealdade, cooperao e franqueza, de modo a equilibrar as relaes travadas, inclusive as de consumo. Consignado tambm que, a lei consumerista refere-se boa-f como princpio geral das relaes de consumo (art. 4, inciso III), e como clusula geral para os vnculos contratuais (art. 51, inciso IV). A boa-f do consumidor condio essencial para a caracterizao do superendividamento, que entendido como a impossibilidade global do consumidor, pessoa fsica, e de boa-f, de pagar todas suas dvidas atuais e futuras de consumo. Dessa forma, no sobreendividamento, a boa-f no vista apenas como um princpio, mas como uma condio comportamental do consumidor, sem a qual no h a incidncia do instituto. Sobre a investigao da boa-f do consumidor, vale transcrever a doutrina de Brunno Pandori Giancoli:
verdade, a noo de boa-f em matria de superendividamento implica que seja procurado em relao ao superendividado, atravs de dados da causa, o elemento intencional que evidencia seu conhecimento deste processo e sua vontade de solucionar o conjunto de suas dvidas cujo total excessivo, tendo-se em conta os recursos do devedor.15

Dessa forma, a boa-f do consumidor se materializa na sua iniciativa de quitar o total dos seus dbitos, dentro de sua possibilidade financeira. Todavia, ressalta o supracitado doutrinador, diante da vulnerabilidade do consumidor e da dificuldade de prova dos elementos de base que geram o estado de sobreendividamento, a sua boa-f presumida, cabendo prova em contrrio a cargo do credor.16 Vale frisar, por fim, que a existncia de numerosos dbitos, por si s, no cria prova desconstitutiva da boa-f do consumidor, haja vista que a hiptese de superendividamento j pressupe um amontoado de dvidas. 48

A REVISTA DA UNICORP 2.4. A boa-f do fornecedor de crdito So muito frequentes as condutas que envolvem o abuso de direito nas relaes de consumo, notadamente em matria contratual e s prticas comerciais, fato que justifica a positivao no ordenamento jurdico ptrio do princpio da boa-f. O abuso de direito se caracteriza no apenas pela inteno de causar dano, mas tambm no desvio de finalidade ou da funo social desse direito. A teoria do abuso de direito impe limites ticos ao exerccio dos direitos subjetivos. Tais limites so fixados com base tanto no princpio da boa-f objetiva, como nos bons costumes e a funo social dos direitos. No caso dos contratos de fornecimento creditcio, evidente que o fornecedor que concede crdito a quem no tem condies de adimplir o ajuste est abusando do direito de fornecer crdito, ainda que tal contrato satisfaa os requisitos formais de validade. O fornecedor deve condicionar seus emprstimos a uma prvia avaliao da capacidade de endividamento do tomador, de forma a somente celebrar contratos em limites compatveis com a natureza alimentar dos vencimentos deste. Ao adotar conduta diversa, opta por assumir os riscos do negcio, os quais no podem ser repassados ao consumidor. Sobre o tema, nos ensina a doutrina:
O financiamento concedido de forma temerria, tendo sido celebrado o pacto com consentimento irrefletido, sem contemplao por parte do fornecedor das reais condies daquele que pretende receber o crdito, praticamente induzindo a inadimplncia, sem dvida nenhuma viola o princpio da dignidade da pessoa humana. A proteo das legtimas expectativas dos consumidores, a garantia de cumprimento do que ele espera obter de uma dada relao contratual, nada mais do que a projeo do princpio fundamental da dignidade da pessoa humana no mbito obrigacional.17

Portanto, o abuso do direito de oferecer crdito, sem uma cuidadosa e responsvel anlise da capacidade financeira e de endividamento do tomador, incompatvel com a boaf objetiva e no pode contar com a chancela do Judicirio quando provocado para revisar as clusulas contratuais, principalmente quando as obrigaes contradas pelo consumidor se evidenciam desproporcionais ao seu prprio proveito, importando em lucro exorbitante para o credor. Dessa forma, deve o fornecedor de crdito, em nome da boa-f, na elaborao dos termos do contrato, considerar de forma razovel os interesses do consumidor. Se apenas concretiza no texto contratual interesses prprios, ento viola a liberdade contratual, a qual est limitada pelo princpio da boa-f. Nos contratos bancrios, includos os de financiamento, carto de crdito e emprstimo pessoal, a boa-f objetiva se instrumentaliza nos deveres impostos ao fornecedor de informar e cooperar com o parceiro contratual, evitando o superendividamento do consumidor. Destarte, o fornecedor est obrigado a informar, de modo claro, objetivo, verdadeiro e cognoscvel, ao consumidor os termos do ajuste a ser celebrado. Assim, no basta apenas disponibilizar a informao, preciso que o consumidor efetivamente entenda o que est sendo informado. Apenas dessa maneira o consumidor realizar o contrato de forma consciente, reduzindo, por efeito, os riscos de danos e de frustrao de expectativas. 49

ENTRE ASPAS Acerca do dever de informao nos contratos de crdito, valem destacar as lies de Helosa Carpena e Rosngela Lunardelli Cavallazzi:
evidente que a adeso ao contrato de crdito ao consumo, estabelecendo relao continuada, de durao muitas vezes prolongada, e envolvendo clculos e taxas freqentemente incompreensveis para o consumidor, impe maior carga de informao a ser prestada pelo fornecedor. Em razo desse fato, a doutrina francesa criou a figura do dever de aconselhamento, ou obrigao de conselho, que implica no dever de revelar ao consumidor os provveis problemas da operao de crdito a curto e a longo prazos, prevenindo-o e sugerindo solues possveis. Trata-se de personalizar a informao, cabendo ao fornecedor considerar no as caractersticas do homem-mdio, mas daquele consumidor determinado, transmitindo a ele, de forma simples e compreensvel, os riscos e as variveis que envolvem a operao de crdito ao consumo.18

Cabe frisar, ainda, que o descumprimento do dever de informar, ou mesmo o seu cumprimento insatisfatrio, acarreta a nulidade do negcio firmado, alm da responsabilidade por perdas e danos. J o dever de cooperar implica na adaptao do contrato firmado em face de mudana das circunstncias sobre o qual foi celebrado. Assim, diante de uma grave crise econmica ou do desemprego do consumidor, por exemplo, impe-se ao fornecedor uma renegociao da dvida objeto do contrato, reescalonando, planejando, dividindo ou reduzindo os dbitos a pagar, ou, at mesmo, perdoar os juros, as taxas ou o principal, a depender das possibilidades do devedor, sempre preservando a este um mnimo existencial. Implica tambm o dever de cooperao no ajuste de um prazo de reflexo e de arrependimento para os contratos de crdito ao consumo, de modo a se evitar a contratao irrefletida.

3. O superendividamento no Brasil 3.1. A tutela constitucional do consumidor na hiptese de superendividamento A ausncia de legislao especfica no impede a proteo e defesa dos consumidores na hiptese de superendividamento no Brasil, uma vez que a prpria Constituio Federal e o Cdigo de Defesa do Consumidor contm normas gerais que permitem o incio dessa tutela. Como cedio, o eixo que informa todo o arcabouo jurdico brasileiro promoo do bem estar do homem, a partir de garantias das condies mnimas da sua prpria dignidade, que inclui, alm da proteo dos direitos fundamentais, condies materiais e espirituais bsicas de existncia. A dignidade do ser humano desponta como valor supremo do ordenamento jurdico brasileiro, da erigindo o princpio da dignidade da pessoa humana como o mais relevante da nossa ordem jurdica, devendo por isso condicionar a interpretao e aplicao de todo o direito positivo, seja pblico ou privado. Destarte, a premissa maior de proteo e defesa do consumidor na hiptese de superendividamento a sua prpria dignidade, pois os efeitos decorrentes dessa condio, 50

A REVISTA DA UNICORP antes tratados, so incompatveis com o respeito dignidade. Isto porque, o crdito permite a satisfao de necessidades primrias para a maioria da populao brasileira, revelando que na relao obrigacional de crdito existem importantes aspectos da vida humana que, se desprezados, podem ameaar a prpria dignidade da pessoa. O superendividamento no pode ser visto como um simples momento de inadimplncia obrigacional, e sim como o estado de impossibilidade do indivduo suprir suas necessidades vitais bsicas que so materializadas atravs do crdito ao consumo. Nesse contexto, o princpio da dignidade da pessoa humana garante ao consumidor superendividado a manuteno de um ncleo bsico de consumo que lhe permita um acesso mnimo ao crdito de consumo para poder suprir as suas necessidades essenciais e, assim, poder viver dignamente. Acrescentem-se os ensinamentos do professor Brunno Pandori Giancoli:
Importante notar, que a violao desse ncleo essencial bsico de consumo gera, na maioria dos contratos de crdito, a degradao da condio de pessoa, justamente porque interfere diretamente na autonomia da vontade do consumidor, reduzindo-o condio de mero objeto da pretenso contratual.19

Portanto, a invocao do princpio da dignidade da pessoa humana legitima a tutela do superendividado, at mesmo como forma de evitar a excluso social do consumidor nessa condio, como tratado em passagem anterior. Ademais, outra premissa constitucional que enseja a tutela ao superendividado o prprio princpio da defesa do consumidor elencado no art. 170, V, da Constituio Federal de 1988 como Princpio Geral da Atividade Econmica. O superendividamento, ainda, enquadra-se perfeitamente nos valores de solidariedade constitucional, responsabilizando o fornecedor de crdito pelas repercusses que a sua atividade provoca no meio social.

3.2. O superendividamento e o Cdigo de Defesa do Consumidor Ao estabelecer os objetivos da Poltica Nacional de Consumo (art. 4 do CDC), o legislador brasileiro visou atender as necessidades dos consumidores, o respeito sua dignidade, sade e segurana, a proteo de seus interesses econmicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparncia e harmonia das relaes consumeristas. Dvidas no pairam que o referido programa assegura a dignidade da pessoa humana nas relaes de consumo, de sorte que, inobstante a proteo constitucional, o legislador ordinrio buscou expurgar qualquer situao incompatvel com o respeito dignidade. Nesse cenrio, o CDC elenca diversos princpios e normas que incidem em amplo leque de situaes, de modo a potencializar a proteo e defesa do consumidor, abrangendo, inclusive, a hiptese do superendividamento. Ressalte-se que, a tutela atual concedida pelo sistema jurdico ptrio ao superendividado, no exclui a necessidade de uma regulao especfica para a matria, introduzindo novos direitos e deveres para os atores das relaes entre fornecedor e consumidor20. Sendo assim, vejamos as normas insertas na lei consumerista que conferem uma proteo inicial ao superendividado. O art. 6, IV, do CDC estabelece como direito bsico do consumidor a proteo contra 51

ENTRE ASPAS a publicidade enganosa e abusiva, mtodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra prticas e clusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e servios. Dessa forma, resta justificada a tutela do superendividado em face da oferta fcil e irresponsvel de crdito, assim como contra a publicidade enganosa e abusiva, a ensejar a responsabilizao do fornecedor. O referido artigo elenca ainda como direito bsico do consumidor a modificao das clusulas contratuais que estabeleam prestaes desproporcionais ou sua reviso em razo de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas (art. 6, V). Assim, a lei consumerista mitigou o princpio da obrigatoriedade dos contratos, de modo a promover o equilbrio contratual, evidenciando verdadeira prevalncia do princpio da defesa do consumidor em relao autonomia da vontade. Outrossim, vlido destacar que, o art. 6, V, do CDC autoriza a reviso contratual em virtude de causas contemporneas ou posteriores celebrao do pacto, desde que presentes no ajuste clusulas abusivas ou prestaes desproporcionais, ou ainda em razo de fatos supervenientes que o torne excessivamente oneroso, como a hiptese do superendividamento. Como forma de proteo contratual, a Lei n 8.078/90 invalida os contratos celebrados sem o conhecimento prvio pelo consumidor do seu contedo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreenso de seu sentido e alcance (art. 46). Igualmente, o referido diploma estabelece um prazo de reflexo e o direito de arrependimento sempre que a contratao de fornecimento de produtos e servios ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domiclio (art. 49). Em relao s clusulas abusivas, o CDC reconhece nulas de pleno direito, entre outras, as clusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e servios que estabeleam obrigaes consideradas inquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou seja, incompatveis com a boa-f ou a equidade (art. 51, IV). Destarte, os arts. 6, V, e 51, IV, ambos do CDC, admitem a interveno judicial no contedo do contrato para equilibrar as prestaes pactuadas, promovendo verdadeira justia social no caso concreto. A Lei n 8.078/90, em seu art. 52, trata especificamente dos contratos de outorga de crdito ou concesso de financiamento, impondo ao fornecedor o dever de informar ao consumidor, prvia e adequadamente, sobre: preo do produto ou servio em moeda corrente nacional; montante dos juros de mora e da taxa efetiva anual de juros; acrscimos legalmente previstos; nmero e periodicidade das prestaes; soma total a pagar, com e sem financiamento. Diante dos dispositivos legais apontados, mostra-se possvel um incio de proteo e defesa do consumidor superendividado, atravs da exigncia de cumprimento pelo fornecedor de crdito de cada um dos deveres legais. Cabe consignar, por derradeiro, que alm das hipteses autorizadoras da reviso dos contratos creditcios que estabelecem prestaes desproporcionais ou que em razo de fatos supervenientes que os tornem excessivamente onerosos, existe ainda a hiptese de reviso relativa ao superendividamento do consumidor. Vale lembrar que, neste caso, apenas o superendividado (isto , aquele consumidor que necessita restaurar dignamente a sua capacidade de crdito para manter sua existncia social mnima) possui legitimidade para propor essa hiptese de reviso de contrato. Evidentemente, o pleito revisional em face do superendividamento dever ter por objeto a totalidade das dvidas do consumidor, e no apenas um ou outro dbito pontual. Acerca da matria, leciona o sempre lembrado Brunno Pandori Giancoli: 52

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Trata-se, em verdade, de uma hiptese de reviso concursal, na qual os interesses dos credores no sero ignorados, mas so tratados de maneira subsidiria, justamente para proteger aquele que se encontra em situao de fraqueza beira da indignidade. O fenmeno concursal garante aos fornecedores um tratamento paritrio de seus crditos e a coibio da m-f presumida do superendividado. Todavia, vlido lembrar que a paridade no tratamento no impede a classificao dos crditos, da mesma forma que feita na falncia e recuperao de crdito do empresrio. Porm, a falta de diploma que discipline a matria do superendividamento no Brasil impede a classificao desta classificao nas aes revisionais em geral, cabendo ao juiz a aplicao referencial dos dispositivos da lei 11.101/05 na hiptese de superendividamento.21

Dessa forma, deferido o pleito revisional do superendividado, o Poder Judicirio, alm de modificar as bases do negcio firmado, elaborar um plano de recuperao22, isto , efetuar um programa de pagamento das dvidas do consumidor, tendo em vista a sua capacidade financeira e a manuteno de recursos necessrios para suprir as suas despesas mensais correntes, de modo a possibilitar a sua permanncia, ou o seu retorno, no mercado de consumo, respeitando, obviamente, os direitos creditcios dos fornecedores envolvidos.

3.3. Exame da jurisprudncia ptria Apesar da falta de regulamentao especfica do superendividamento no direito positivo, o Poder Judicirio , reiteradamente, provocado para dizer o direito aplicado ao caso concreto, especialmente em hipteses que versam sobre reviso de financiamentos e outras modalidades de crdito ao consumo, como contratos de carto de crdito e emprstimo consignado em folha de pagamento. Quanto aplicao do instituto do superendividamento como forma de reviso dos contratos de crdito ao consumo, nos moldes acima delineados, ou seja, englobando o total das dvidas do consumidor, ainda no existem decises pretorianas reiteradas nesse sentido. Existe sim, jurisprudncia consolidada no sentido de permitir a reviso do contrato de crdito que estabelece prestaes desproporcionais ao consumidor ou que em razo de fatos supervenientes que os tornem excessivamente onerosos a este. A atuao dos Tribunais ptrios, de um modo geral, ainda no sentido de prevenir o superendividamento, e no de trat-lo. Vale dizer, os pretrios, em sua maioria, ainda no realizam um plano de recuperao do consumidor, isto , um programa de pagamento do conjunto das suas dvidas, de modo a possibilitar a sua permanncia, ou o seu retorno, no mercado de consumo. Quanto utilizao do conceito de superendividamento nos julgados, destacam-se as decises proferidas nos mbitos dos Tribunais de Justia do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro, vejamos:
Apelao civil. Relao de consumo. Descontos de prestaes de financiamento bancrio diretamente da conta salrio da consumidora. Prtica

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ENTRE ASPAS
abusiva. Vulnerabilidade do consumidor. Onerosidade excessiva. Inteligncia da aplicao conjunta dos arts. 4, I, 51, IV e 1 III CDC. Desconto autorizado pelo consumidor em contrato de refinanciamento. Vontade viciada do mais frgil. Leso. Aplicao conjunta do art. 157 NCC. Falta de alternativa do consumidor. Superendividamento. Patologia freqente da moderna sociedade massificada de consumo e de crdito. Agresso dignidade se os descontos incidem sobre os parcos vencimentos da autora retirando-lhe a possibilidade de deliberar sobre quais os dbitos de sua vida privada so mais relevantes. Frmula coativa de cobrana que fere a legalidade. Analogia com a situao prevista no inc. IV do art. 649 CPC que probe a penhora de salrios e vencimentos. Nulidade na forma do art. 42 CDC. Danos morais. Invaso da privacidade econmico-financeira da autora. Sentena que afasta a possibilidade de tal cobrana sob pena de multa, a negativao do nome da autora em cadastros restritivos onde houve ilegtima incluso e fixa danos morais, que se confirma. (TJRJ, APCV n 0000596-29.2005.8.19.0058, Quinta Cmara Cvel, relatora Des. CRISTINA TEREZA GAULIA, julgado em 25/04/2006) grifos. AGRAVO DE INSTRUMENTO. SERVIDOR PBLICO ESTADUAL. DESCONTO EM FOLHA DE PAGAMENTO. LIMITAO. SUPERENDIVIDAMENTO. PRESERVAO DO MNIMO EXISTENCIAL. Pedido formulado por servidor estadual de cancelamento dos descontos em folha de pagamento das parcelas relativas a emprstimos intermediados por associao de classe. Reviso da posio do relator, diante do novo entendimento jurisprudencial majoritrio do 2 Grupo Cvel, reconhecendo a validade da clusula de autorizao dos descontos direto em folha de pagamento, mas limitando a sua eficcia ao percentual mximo de 30% sobre os vencimentos brutos do servidor, aplicando analogicamente a legislao estadual acerca do tema. Preservao do mnimo existencial, evitando que o superendividamento coloque em risco a subsistncia do servidor e de sua famlia, ferindo o princpio da dignidade da pessoa humana. Doutrina e jurisprudncia. PROVERAM PARCIALMENTE O RECURSO POR MAIORIA. DECISO MODIFICADA. (TJRS, AgI n 70019038611, Terceira Cmara Cvel, relator Paulo de Tarso Vieira Sanseverino, Julgado em 31/05/2007, DJ dia 18/06/2007) grifos.

Vale ressaltar, por fim, o projeto-piloto denominado Tratamento das situaes de superendividamento do consumidor23, realizado pelo Poder Judicirio do Rio Grande do Sul, que tem por meta a reinsero social do consumidor superendividado, atravs da conciliao extra ou processual, obtida em audincias de renegociao com a totalidade dos seus credores. Tais audincias so presididas por Juzes de Direito que formulam a renegociao com cada credor, a partir das condies especficas do superendividado, preservando o seu mnimo vital. 54

A REVISTA DA UNICORP 3.4. Da necessidade de regulamentao da matria Diante da necessidade de materializao do princpio da dignidade da pessoa humana, assim como da necessidade da preservao de valor mnimo capaz de assegurar a vida digna do indivduo e da sua famlia suficiente manuteno das despesas mensais correntes; tendo em vista tambm que o Estado deve promover a defesa do consumidor, a qual princpio da ordem econmica, limitando livre iniciativa, inclusive nos contratos e nos servios de natureza bancria, financeira, de crdito e securitria frente a consumidores. Considerando-se ainda, a larga expanso do acesso ao crdito e o consequente aumento do nmero de endividamento crnico de consumidores, urge a necessidade da regulamentao do superendividamento, fenmeno social, jurdico e econmico, pelo direito positivo brasileiro. Embora a CF/88 e o CDC, atravs de alguns de seus princpios e normas, j autorizem um incio de proteo do consumidor superendividado, a doutrina clama pelo tratamento legal da matria, como j foi feito em outros ordenamentos, conferindo maior segurana jurdica tanto aos consumidores como aos fornecedores de crdito, que flutuam em meio de decises nem sempre uniformes sobre a matria. Como a pessoa fsica no pode pedir falncia no Brasil, a sugesto legislativa ora apresentada vem propor diretrizes gerais que nortearo o tratamento preventivo e curativo do superendividamento, permitindo a recuperao financeira do consumidor e a sua manuteno, ou o seu retorno, no mercado de consumo. Assim, a presente sugesto funciona como complemento s disposies do CDC e s demais normas que regulam os direitos do consumidor, incidindo apenas nas hipteses de superendividamento dos consumidores pessoas fsicas de boa-f, decorrente de contratos de consumo. O tratamento legal conferido ao superendividamento deve ser informado pelos princpios da dignidade da pessoa humana, da vulnerabilidade do consumidor, da boa-f, da funo social do crdito e do contrato de consumo, da informalidade, da celeridade e economia processual. Deve tambm consagrar os seguintes direitos ao consumidor: de receber informaes e aconselhamento em relao ao crdito pretendido; de receber uma oferta escrita contendo todos os termos essenciais do negcio a ser realizado, de modo a permitir a reflexo do tomador sobre a necessidade do crdito e a comparao com outras ofertas no mercado. Deve prev ainda o direito do consumidor ao arrependimento pelo contrato de crdito celebrado, em perodo fixado, possibilitando-lhe desistir do pacto firmado sem qualquer nus; a proteo contra o marketing ostensivo e contra toda publicidade abusiva e enganosa, em especial aquela que, de alguma forma, mascare os riscos e os nus da contratao do crdito; a proteo contra a concesso creditcia irresponsvel; ter facilitada a renegociao do conjunto de suas dvidas, preservado o seu mnimo existencial. A proposta legislativa deve estabelecer polticas pblicas de preveno e tratamento do superendividamento, de educao para o consumo de crdito consciente, educao financeira e de gesto do oramento familiar, alm de criar um procedimento adequado tutela jurisdicional do superendividado, com vistas elaborao de um plano de reestruturao financeira, incluindo uma forma de pagamento dos dbitos e a ordem de preferncia dos credores. Ao fornecedor ainda deve ser imposto um dever de cooperao no curso do procedimento de restabelecimento financeiro do consumidor, onde os credores devero colaborar no levantamento da exata obrigao contrada pelo devedor, prestando informaes completas e apresentando os meios de prova que lhe forem pedidos. O dever de cooperar implica tambm 55

ENTRE ASPAS na adaptao do contrato firmado em face de mudana das circunstncias sobre o qual foi celebrado, adequando-o s novas condies do consumidor superendividado. Dessa forma, a proposta acima consignada, somada s outras existentes na literatura jurdica, revela a contribuio doutrinria para a regulamentao do superendividamento no direito positivo ptrio, no sentido de apontar fatores determinantes para a preveno e tratamento desse fenmeno que aflige muitos lares brasileiros.

4. Concluso Diante da anlise realizada no presente trabalho, verificou-se que o crdito assumiu importante papel na atual sociedade de consumo, de sorte que a sua ausncia pode impossibilitar o indivduo de honrar os seus compromissos bsicos do dia a dia, vez que muitas pessoas se endividam para pagar despesas mensais correntes. Dessa forma, o endividamento gerado pela expanso e concesso irresponsvel de crdito fenmeno inerente s sociedades de massa. O crdito e o endividamento dos consumidores, portanto, devem ser tratados conjuntamente, como causa e efeito do novo modelo de sociedade de consumo. Destarte, o superendividamento um fenmeno global, e enseja a preocupao universal em sociedades de consumo, principalmente pela utilizao do crdito pelo consumidor para fazer frente as suas despesas primrias de sobrevivncia. Ademais, restou consignado que o superendividamento o estado de impossibilidade do consumidor pessoa fsica e de boa-f de pagar o conjunto de suas dvidas atuais e futuras de consumo, configura, pois, o endividamento superior ao normal daquele possvel de ser suportado pelo oramento mensal dos consumidores. Nesse passo, a boa-f do consumidor condio essencial para a caracterizao do superendividamento, devendo ser vista como uma condio comportamental do consumidor, sem a qual no h a incidncia do instituto. A boa-f do consumidor se materializa na sua iniciativa de quitar o total dos seus dbitos, dentro de sua possibilidade financeira. Em relao aos efeitos individuais, o superendividamento visa evitar a runa do consumidor, sob o aspecto econmico, social e moral; visa sua reincluso no mercado de consumo e no seio social de forma digna, de modo a lhe garantir uma existncia igualmente digna. J em relao aos efeitos globais, visa preservar o mercado em desenvolvimento, vez que isto depende da sade financeira do consumidor e da sua manuteno no ciclo produtivo, o que s possvel atravs de uma tutela jurdica especfica destinada a prevenir e a curar as hipteses de endividamento crnico, regulao esta que no existe no Brasil. A ausncia de tratamento legal no inviabiliza o incio dessa tutela, pois a Constituio Federal de 1988 consagrou o princpio da dignidade da pessoa humana como vetor de interpretao e aplicao de todo o sistema jurdico ptrio, exigindo do operador do Direito, seja qual for o ramo, at mesmo privado, o compromisso com a promoo do bem estar do homem, a partir de garantias das condies mnimas da sua sobrevivncia digna. Acrescentem-se ainda o princpio da proteo do consumidor consagrado na Constituio Federal de 1988, tanto como direito fundamental, como princpio da ordem econmica, somadas as normas protetivas insertas no CDC instrumentalizam a tutela constitucional do consumidor na hiptese de superendividamento. Nesse contexto, os tribunais ptrios reconhecem o direito de reviso do contrato de crdito que estabelece prestaes desproporcionais ao consumidor ou que em razo de fatos 56

A REVISTA DA UNICORP supervenientes que os tornem excessivamente onerosos a este. Contudo, o entendimento jurisprudencial, na sua maioria, ainda no sentido de prevenir o endividamento crnico, e no de cur-lo. Os pretrios ainda no aplicam o instituto do superendividamento como hiptese de reviso contratual, de modo a evitar a morte civil do consumidor. Frise-se que os intensos apelos da doutrina em prol de um tratamento legal especfico para o superendividamento no Brasil ainda no foram suficientes para sensibilizar o legislador ordinrio da necessidade de regulamentao da matria no direito positivo. Destarte, considerando que os fatos sociais ao adquirirem determinado valor dentro de uma comunidade devem ser refletidos nas legislaes, sendo que o superendividamento do consumidor j adquiriu essa importncia social, o legislador ordinrio tem por obrigao estar sensvel a esta realidade inerente s sociedades de consumo, regulamentando a matria no ordenamento jurdico ptrio. Por outro lado, devem os Tribunais se posicionar mais ativamente diante da hiptese de superendividamento, sobretudo em vista do seu tratamento, utilizando, para tanto, os ensinamentos doutrinrios e os exemplos importados do direito comparado, no que couber realidade brasileira. Assim, deve exigir do fornecedor, com respaldo na atual legislao vigente, o dever de cooperar, de aconselhar, de informar, de conceder o crdito de forma responsvel e de facilitar a renegociao do conjunto das dvidas do superendividado, preservado o seu mnimo existencial. O superendividamento, portanto, o instrumento capaz de retirar o consumidor nesse estado da margem da sociedade e recoloc-lo no mercado de consumo, de modo a conseguir prover as suas necessidades vitais bsicas, preservando a sua dignidade e, obviamente, respeitando os direitos creditcios dos fornecedores envolvidos.

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Notas ______________________________________________________________________________ 1. GIANCOLI, Brunno Pandori. O superendividamento do consumidor como hiptese de reviso dos contratos de crdito. Porto Alegre: Editora Verbo Jurdico, 2008, p. 09. 2. Os Estados Unidos so o pas onde o endividamento das famlias assume valores mais elevados. Foi a que, no princpio do sculo, nasceu o crdito ao consumo, e onde primeiro perdeu as suas conotaes moralmente negativas. (GIANCOLI, Brunno Pandori. O superendividamento do consumidor como hiptese de reviso dos contratos de crdito. Porto Alegre: Editora Verbo Jurdico, 2008, p. 150) 3. FRADE, Catarina; MAGALHES, Sara. Sobreendividamento, a outra face do crdito. In: MARQUES, Cludia Lima; CAVALLAZZI, Rosngela Lunardelli (Coord). Direitos do Consumidor Endividado: Superendividamento e crdito. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 23. 4. A oferta de crdito fcil e rpido to imensa e ostensiva que o consumidor precisa travar trs diferentes batalhas: uma contra si mesmo e seu desejo de ter, outra contra a avalanche virtual da publicidade via televiso, internet, telefone etc., e uma terceira contra o ataque fsico, quando, caminhando pelo centro da cidade, incessantemente abordado por homens e mulheres de panfleto em punho. (CONSALTER, Rafaela. Novas tendncias da atuao da Defensoria pblica na defesa do consumidor necessitado. In: MARQUES, Cludia Lima; CAVALLAZZI, Rosngela Lunardelli (Coord). Direitos do Consumidor Endividado: Superendividamento e crdito. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 357-358) 5. MARQUES, Cludia Lima. Sugestes para uma lei sobre o tratamento do superendividamento de pessoas fsicas em contratos de crdito ao consumo: proposies com base em pesquisa emprica de 100 casos no Rio Grande do Sul. In: MARQUES, Cludia Lima; CAVALLAZZI, Rosngela Lunardelli (Coord). Direitos do Consumidor Endividado: Superendividamento e crdito. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 256. 6. Ibdem, loc. cit. 7. COSTA, Geraldo de Faria Martins. O direito do consumidor e a tcnica do prazo de reflexo. Revista de Direito do Consumidor, v. 43. So Paulo: Revista dos Tribunais, jul.-set., 2002, p. 259-260. 8. MARQUES, Cludia Lima. Sugestes para uma lei sobre o tratamento do superendividamento de pessoas fsicas em contratos de crdito ao consumo: proposies com base em pesquisa emprica de 100 casos no Rio Grande do Sul. In: MARQUES, Cludia Lima; CAVALLAZZI; Rosngela Lunardelli (Coord). Direitos do Consumidor Endividado: Superendividamento e crdito. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 256. 9. GIANCOLI, Brunno Pandori. O superendividamento do consumidor como hiptese de reviso dos contratos de crdito. Porto Alegre: Editora Verbo Jurdico, 2008, p. 122.

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ENTRE ASPAS
10. GIANCOLI, Brunno Pandori. O superendividamento do consumidor como hiptese de reviso dos contratos de crdito. Porto Alegre: Editora Verbo Jurdico, 2008, p. 123. 11. BATTELLO, Silvio Javier. A (in)justia dos endividados brasileiros: uma anlise evolutiva. In: MARQUES, Cludia Lima; CAVALLAZZI, Rosngela Lunardelli (Coord). Direitos do Consumidor Endividado: Superendividamento e crdito. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 226. 12. FRADE, Catarina; MAGALHES, Sara. Sobreendividamento, a outra face do crdito. In: MARQUES, Cludia Lima; CAVALLAZZI, Rosngela Lunardelli (Coord). Direitos do Consumidor Endividado: Superendividamento e crdito. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 30. 13. Entre os pases da civil Law, a soluo francesa a que tem despertado mais interesse na doutrina brasileira, mas as lies do direito comparado, em especial do Canad e da Alemanha, podem tambm ser teis para os pases emergentes e para o Brasil, se quisermos elaborar uma legislao especial sobre o tema. (MARQUES, Cludia Lima. Sugestes para uma lei sobre o tratamento do superendividamento de pessoas fsicas em contratos de crdito ao consumo: proposies com base em pesquisa emprica de 100 casos no Rio Grande do Sul. In: MARQUES, Cludia Lima. CAVALLAZZI; Rosngela Lunardelli (Coord). Direitos do Consumidor Endividado: Superendividamento e crdito. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 263) 14. Aceito o pedido formulado pelo devedor, compete Comisso conciliar as partes, a fim de elaborar um plano convencional de reescalonamento das dvidas que seja subscrito pelo superendividado e pelos seus credores. O plano pode conter diversas medidas como o deferimento do vencimento, o reescalonamento e o perdo das dvidas, a reduo ou a supresso dos juros, a criao, reforo ou substituio da garantia. A estas disposies pode ainda crescer a exigncia ao devedor de aes destinadas a facilitar ou garantir o pagamento das dvidas, bem como a sua absteno de quaisquer atos que possam contribuir para o agravamento do seu estado de insolvncia. (GIANCOLI, Brunno Pandori. O superendividamento do consumidor como hiptese de reviso dos contratos de crdito. Porto Alegre: Editora Verbo Jurdico, 2008, p. 142) 15. GIANCOLI, Brunno Pandori. O superendividamento do consumidor como hiptese de reviso dos contratos de crdito. Porto Alegre: Editora Verbo Jurdico, 2008, p. 102. 16. Ibdem, p. 102-103. 17. CARPENA, Helosa; CAVALLAZZI, Rosngela Lunardelli. Superendividamento: proposta para um estudo emprico e perspectiva de regulao. In: MARQUES, Cludia Lima; CAVALLAZZI, Rosngela Lunardelli (Coord). Direitos do Consumidor Endividado: Superendividamento e crdito. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 338. 18. CARPENA, Helosa; CAVALLAZZI, Rosngela Lunardelli. Superendividamento: proposta para um estudo emprico e perspectiva de regulao. In: MARQUES, Cludia Lima; CAVALLAZZI, Rosngela Lunardelli (Coord). Direitos do Consumidor Endividado: Superendividamento e crdito. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 335-336. 19. GIANCOLI, Brunno Pandori. O superendividamento do consumidor como hiptese de reviso dos contratos de crdito. Porto Alegre: Editora Verbo Jurdico, 2008, p. 110. 20. O Cdigo de Defesa do Consumidor, atravs de algumas de suas normas, j autoriza, porm, um incio de proteo do consumidor superendividado, at que sejam trazidas ao nosso ordenamento jurdico normas especficas sobre o tema. Destaquem-se, em especial, as normas dos arts. 6, IV; 43; 46; 49; 51, IV; 52 e 54, todos do CDC. (OLIBONI, Marcella Lopes de Carvalho Pessanha. O superendividamento do consumidor brasileiro e o papel da defensoria pblica: criao da comisso de defesa do consumidor superendividado. In: MARQUES, Cludia Lima; CAVALLAZZI, Rosngela Lunardelli (Coord). Direitos do Consumidor Endividado: Superendividamento e crdito. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 348-349) 21. GIANCOLI, Brunno Pandori. O superendividamento do consumidor como hiptese de reviso dos contratos de crdito. Porto Alegre: Editora Verbo Jurdico, 2008, p. 161. 22. Sobre o tema, leciona o professor Brunno Pandori Giancoli: Nesse sentido, o plano de pagamento do

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superendividado, descrito e detalhado em sentena, no ser apenas um conjunto de aes de curto prazo para aliviar a situao pessoal do consumidor, mas sim, um planejamento de reestruturao sustentvel de sua capacidade de consumo. (Ibdem, loc. cit.) 23. Tal projeto, pioneiro no pas, espelhado no modelo francs, o qual permite que o superendividado procure o Poder Judicirio para intermediar a negociao coletiva das dvidas com os credores.

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A CONSTITUCIONALIDADE DO 3, DO ART. 515, DO CDIGO DE PROCESSO CIVIL: O PRINCPIO DO DUPLO GRAU DE JURISDIO NO ABSOLUTO

Eliete Josefa Gerondoli Campista Brunow


Assessora de Juiz. Graduada em Direito pela UNESULBAHIA Faculdades Integradas do Extremo Sul da Bahia Eunpolis-BA. Ps-graduada em Direito Processual Civil pela Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais PUC-MG.

Resumo: Este trabalho foi desenvolvido em torno do 3, do art. 515, do CPC e do princpio do duplo grau de jurisdio, tendo como objetivo analisar a constitucionalidade do citado artigo, dada a polmica acerca da supresso de um grau de jurisdio, uma vez que se tornou possvel ao tribunal ad quem adentrar no mrito da causa, nos casos de extino do processo sem julgamento de mrito, se a causa versar questo exclusivamente de direito e estiver em condies de imediato julgamento. Fez parte da pesquisa uma breve explanao sobre princpios, especialmente o do duplo grau de jurisdio, assim como procurou informar sobre a impugnao das decises judiciais, em especial o recurso, em uma de suas espcies, a apelao, e, seus efeitos. Foi realizado estudo sobre o princpio da non reformatio in pejus e se houve a sua violao ante a alegada ampliao do efeito devolutivo da apelao nos casos de aplicao do 3, do art. 515, do CPC, sem requerimento do apelante, bem assim se tal aplicao se constituiu em um dever ou em uma faculdade do Julgador. Os resultados revelaram que no houve violao do princpio da non reformatio in pejus, como tambm no houve violao do princpio do duplo grau de jurisdio, sendo, portanto o 3, do art. 515, do Cdigo de Processo Civil constitucional, tornando possvel o cumprimento da garantia da celeridade processual, atendendo assim aos anseios sociais. Palavras-Chave: Princpio do duplo grau de jurisdio. Celeridade processual. Efeito devolutivo da apelao. Princpio da non reformatio in pejus.

1. Introduo Com a nova redao do art. 515, 3, do CPC, foi permitido ao Tribunal adentrar no mrito da causa, nos casos de extino do processo sem julgamento de mrito, se a causa versar questo exclusivamente de direito e estiver em condies de imediato julgamento. O artigo em comento vem sendo objeto de vrias discusses, principalmente no que se refere violao do duplo grau de jurisdio, incluindo ainda questes relativas a ampliao do efeito devolutivo do recurso e a violao da reformatio in pejus. 62

A REVISTA DA UNICORP O principio do duplo grau de jurisdio prev a possibilidade de reviso, por via de recurso, das causas j julgadas pelo Juiz de primeiro grau. Tal princpio funda-se no inconformismo comum do ser humano, somado a sua finalidade de preveno que obriga o primeiro grau a proferir sentenas com mais zelo. Visa tambm corrigir decises maculadas de erros, injustia e m-f, e, ainda, possui funo uniformizadora da jurisprudncia. Discute-se tambm se com a redao do 3 do art. 515, do CPC houve a ampliao do efeito devolutivo do recurso e com isso a consequente violao do principio da reformatio in pejus. De acordo com a antiga redao do citado artigo, era vedado ao juzo ad quem adentrar no mrito da causa quando este julgava provido o recurso em sentena terminativa, vez que devolvia os autos ao juzo a quo, sendo, portanto, limitada a devolutividade do recurso de apelao. Percebe-se tambm que o citado artigo tambm carecedor de uma anlise interpretativa das expresses questo exclusivamente de direito e condies de imediato julgamento, bem como se a sua aplicao um dever ou uma faculdade do julgador. Diante disso, para a correta compreenso do instituto necessrio em primeiro lugar a realizao de um estudo sobre o princpio do duplo grau de jurisdio diante da atual sistemtica processual, a qual preza pela celeridade processual com a devida observncia do devido processo legal e ampla defesa, bem assim se o 3, do art. 515, do CPC, ampliou o efeito devolutivo do recurso de apelao possibilitando a existncia da possvel violao do princpio da non reformatio in pejus. Deste modo, o estudo proposto objetiva auxiliar os operadores jurdicos, oferecendo um melhor entendimento sobre o tema, uma vez que de suma importncia analisar questes que possam atentar contra a segurana jurdica, no presente caso, a constitucionalidade do 3, do art. 515, do CPC.

2. Princpios do Direito Processual Civil Como em todos os outros ramos do direito, o Direito Processual est vinculado Constituio, a qual fixa os princpios que serviro de base para normatizar a legislao infraconstitucional. Nesse nterim, correto afirmar que sobretudo nos princpios constitucionais que se embasam todas as disciplinas processuais, encontrando na Carta da Repblica a estrutura comum que permite a elaborao de uma teoria geral do processo. (CINTRA; GRINOVER, DINARMARCO, 2005, p. 53) Nelson Nery Jnior, citando a obra clssica de Von Blow, revela que os princpios do direito processual foram divididos em princpios informativos e princpios fundamentais, onde os primeiros so considerados axiomas, pois prescindem de demonstrao, no possuindo nenhum contedo ideolgico, constituindo-se princpios universais e praticamente incontrovertidos, ao passo que os segundos, tambm chamados de gerais so aqueles princpios sobre os quais o sistema jurdico pode fazer opo, considerando aspectos polticos e ideolgicos. Por essa razo, admitem que em contrrio se oponham outros, de contedo diverso, dependendo do alvedrio do sistema que os est adotando (Nery Jnior, 2010, p.50). Ana Cndido Menezes Marcato divide os princpios em gerais e constitucionais, sendo que o primeiro deles, em verdade, no se trata de princpios, mas de normas ideais, regras tcnicas que traduzem uma esperana de melhoria no aparelhamento processual, gerando um encaminhamento correto das solues processuais (2006, p. 12). 63

ENTRE ASPAS J os princpios constitucionais se dividem em duas espcies, os chamados princpios poltico-constitucionais, indicadores das opes polticas e os princpios jurdico-constitucionais, os quais se constituem naqueles informativos de toda a ordem jurdica do pas, com inequvoca supremacia sobre quaisquer outros pelo fato de terem sido erigidos ao status constitucional por fora de processo de evoluo histria e poltica (MARCATO, 2006, p. 17-18). Afirma, igualmente, que tais princpios jurdico-constitucionais so dotados de eficcia imperativa consubstanciada nas correspondentes garantias e que, citando Dinamarco, informa que por isso que geralmente os dispositivos constitucionais reveladores dos grandes princpios so encarados como garantias, a ponto de ser usual o uso indiferente dos vocbulos princpio e garantia para designar a mesma idia (DINAMARCO apud MARCATO, 2006, p. 19). Dentre os princpios do processo civil presentes na Constituio da Repblica e que bem por isso foram erigidos ao status constitucional podemos citar, s a ttulo de exemplificao, o do devido processo legal e da durao razovel do processo, tambm chamado de celeridade processual. A partir daqui, para o nosso estudo, nos interessa ento saber se o princpio do duplo grau de jurisdio faz parte dos princpios constitucionais e se representa uma garantia constitucional. Para analisar essa questo, passaremos a tratar do referido princpio.

3. Princpio do duplo grau de jurisdio No Brasil, segundo relato de Ana Cndido Menezes Marcato, mesmo aps a sua independncia, o pais era regido pelas leis portuguesas. Todavia, de forma independente daquelas do colonizador iniciou a criao do seu prprio direito processual civil (MARCATO, 2006, p. 21). Nesse sentido, esse o seu relato sobre a evoluo do duplo grau em nosso sistema ptrio:
A Constituio Federal de 1824, por meio de seu artigo 158, elevou a nvel constitucional o direito de recorrer, sendo a nica Constituio Brasileira a garantir, de forma irrestrita, este direito. As que sobrevieram apenas regravam algumas espcies de recursos. (...) No perodo republicano promulgou-se a Constituio de 1891, permitindo que cada Estado regulasse o prprio sistema processual civil. (...) A Constituio de 1934 devolveu Unio a competncia legislativa em matria processual (art. 5, inc. XIX), sendo ento promulgado, em 18 de setembro de 1939, o Cdigo de Processo Civil. (...) aqui o cumprimento do duplo grau de jurisdio era realizado por meio dos recursos de apelao e agravo. (...) Hodiernamente, no se encontra, quer na Constituio Federal de 1988, quer no Cdigo de Processo Civil de 1973, previso expressa da existncia do princpio do duplo grau de jurisdio. Podemos, entretanto, subsumi-lo por meio das normas constitucionais e processuais.

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A REVISTA DA UNICORP Como se v no relato supra, houve um perodo em que a previso do princpio do duplo grau em nosso pas era contemplado de modo expresso na Constituio (1824), o qual fora removido das Constituies vindouras que estabeleciam to-somente a existncia de Tribunais, com competncia recursal. A concretizao do duplo grau em nosso ordenamento previsto em legislao infraconstitucional, ou seja, no Cdigo de Processo Civil de 1939, que instituiu o recurso de apelao. Em relao ao conceito de duplo grau de jurisdio este pode ser extrado dos ensinamentos de diversos doutrinadores e de forma variada. Para Flvio Cheim Jorge tal princpio relaciona-se diretamente com as razes justificadoras da existncia dos recursos nos sistemas processuais, a exemplo do inconformismo humano sobre as decises a ele desfavorveis e a real possibilidade de decises errneas, uma vez que so proferidas por seres humanos. Completa dizendo que se trata de um princpio consagrado e enraizado na generalidade dos ordenamentos jurdicos. (CHEIM, 2010, p.211). A sua vez, Joaquim Henrique Gatto aduz que o princpio do duplo grau constitui-se na possibilidade de reapreciar o mrito da causa por meio do reexame da deciso final de instncia original, abrangendo tanto as questes de fato como as de direito, por rgo jurisdicional diverso, sendo este de hierarquia superior ou no (GATTO, 2010, p. 20). Nas palavras de Ana Cndido Menezes Marcato, em que pese a nomenclatura de princpio do duplo grau de jurisdio, trata-se na verdade de duplicidade de exame sobre o mrito por dois rgos do Poder Judicirio distintos, ou seja, corresponde ao desmembramento da competncia, em dois rgos jurisdicionais distintos, duas instncias distintas, pertencentes ou no a hierarquias diversas (MARCATO, 2006, p. 25). Nesse mesmo sentido, Dinamarco Cintra Grinover, citado por Rodrigo Barioni, afirma que a jurisdio to una e indivisvel quanto o prprio poder soberano, uma vez que no comporta divises, pois falar em diversas jurisdies num mesmo Estado significa afirmar a existncia, a, de uma pluralidade de soberanias, o que no faria sentido (GRINOVER apud BARIONI, 2008, p.47). Quanto hierarquia do rgo revisor a questo no pacfica, uma vez que alguns doutrinadores entendem que basta que o reexame da matria seja feito por rgo de jurisdio diferente daquele que prolatou a deciso, no necessariamente superior, apesar de o ser na maioria das vezes. Para o princpio em questo, sua melhor denominao seria de duplo exame sobre o mrito. Comungando desse pensamento Marinoni e Arenhart afirmam que com o fito de minimizar a demora nos procedimentos, entende-se que a sentena impugnada pode ser revista pelo mesmo juiz que proferiu a deciso impugnada como nos casos dos embargos infringentes previsto na Lei de Execuo Fiscal como por juzes do mesmo grau de jurisdio daquele que prolatou a sentena, hiptese, por exemplo, de recurso para as Turmas Recursais (MARINONI, 2010, p. 497). Em sentido contrrio, Flvio Cheim Jorge entende que o simples reexame da causa no permite concluir pela existncia do duplo grau de jurisdio, sendo imprescindvel que a segunda anlise seja feita por um rgo de hierarquia superior (CHEIM, 2010, p.212). Merece destaque a distino apresentada no estudo feito por Aline Aparecida de Paula, no qual refere-se a distino entre duplo grau e duplo exame. A garantia do direito ao recurso satisfeita com a simples reviso da matria impugnada, ao contrrio do duplo grau, o qual, por sua vez, necessita de reviso por rgo diverso daquele que prolatou a sentena (DE PAULA, 2007, n 19, p. 25-59). 65

ENTRE ASPAS Finalmente, conceituando o duplo grau, veja-se o que relata Mrcio Schiefler Fontes:
A esta altura j est claro o horizonte observado. Duplo grau de jurisdio o princpio jurdico-processual pelo qual o sistema processual de um pas admite conhecimento e deciso de todos os aspectos da mesma causa por dois rgos jurisdicionais distintos, consecutivamente, o segundo hierarquicamente superior ao primeiro. Recurso, instituto de mbito mais restrito, o ato voluntrio pelo qual a parte vencida manifesta desejo de que a causa seja reapreciada, no todo ou parcialmente, pelo mesmo rgo julgador ou por rgo diverso a depender da espcie de recurso (FONTES, 2007, v.14 n.20).

A partir desse momento, o que interessa saber ento se esse duplo exame sobre o mrito constitui ou no uma garantia constitucional.

3.1. Princpio do duplo grau de jurisdio garantia constitucional? A Constituio Federal de 1988 em seu art. 5, Inciso LV assegura que aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral so assegurados o contraditrio e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. Nesse dizer, a Constituio Federal no est assegurando, como assevera parte da doutrina, que toda e qualquer demanda deve ser revisionada. Nesse particular, Luiz Guilherme Marinoni alega que tal assertiva no est a afirmar que o princpio do duplo grau est inserto na garantia constitucional da ampla defesa, mas sim que o recurso no pode ser suprimido quando inerente ampla defesa, bem como tambm no est a afirmar que a previso do recurso indispensvel para que seja assegurada a ampla defesa em todo e qualquer caso (MARINONI e ARENHART, 2010, p.504). Completa sua afirmao dizendo que:
o legislador infraconstitucional no est obrigado a estabelecer, para toda e qualquer causa, uma dupla reviso em relao ao mrito, principalmente porque a prpria Constituio Federal, em seu art. 5, LXXVIII, garante a todos o direito tutela jurisdicional tempestiva, direito este que no pode deixar de ser levado em considerao quando se pensa em garantir a segurana da parte atravs da instituio da dupla reviso (MARINONI e ARENHART, 2010, p.507).

Em verdade, ao contrrio da Constituio do Imprio de 1824, que previa expressamente o princpio do duplo grau de jurisdio como uma garantia absoluta, a atual Constituio apenas menciona a existncia de Tribunais com competncia recursal. Desse modo, correto dizer que o princpio do duplo grau de jurisdio um princpio implcito no revestido de carter absoluto. Nas palavras de Nelson Nery Jnior no havendo garantia constitucional do duplo grau, mas mera previso, o legislador infraconstitucional pode limitar o direito de recurso, e acrescenta tambm que o duplo grau de jurisdio, como garantia constitucional absoluta, 66

A REVISTA DA UNICORP existe no mbito do direito processual penal, mas no no direito processual civil ou do trabalho (NERY JR., 2010, p. 285 e 288). Como se v, em se tratando ento de mera previso constitucional, tal princpio pode sofrer restries, eliminando recursos em determinados casos, at porque, considerando a sua posio de princpio e no de garantia, pode existir a colidncia com outros princpios que se ponham como contraponto. Por outro lado, h doutrinadores que defendem que o princpio em questo garantido constitucionalmente, pois tem relao de dependncia ou continncia com o devido processo legal, que por sua vez expressamente previsto na atual Constituio (art. 5, LIV). Esse o pensamento externado por Ana Cndida Menezes Marcato, a qual, tomando as lies de Cndido Rangel Dinamarco afirma que as garantias tpicas e atpicas contidas na frmula due processo of Law oferecem aos litigantes direito ao processo justo e quo, com oportunidades reais e equilibradas; certamente o princpio do duplo grau est albergado nessa frmula (MARCATO, 2006, p. 28). Flvio Cheim Jorge afirma que o art. 5, LV, da Constituio Federal, ao garantir o devido processo legal e a ampla defesa e fazer referncia expressa aos recursos, no permite sustentar que haveria uma previso expressa do duplo grau de jurisdio.(CHEIM, 2010, p. 213). De outro canto, Elpdio Donizetti, embora entenda que o princpio do duplo grau esteja implicitamente previsto na Constituio Federal, discorda sobre a sua garantia absoluta, aduzindo que embora se trate de princpio nsito ao sistema constitucional (...) a sua aplicao no ilimitada, tanto que a prpria Constituio estabelece hipteses de competncia originria dos tribunais superiores (DONIZETTI, 2007). De mais a mais, o STF j decidiu no sentido de que o duplo grau de jurisdio no corolrio do devido processo legal, nem consubstancia garantia constitucional. (BRASIL, STF, RHC 79785-7-RJ, Rel. Ministro Seplveda Pertence, 1998). O tema foi bastante discutido no RHC 79785-7-RJ, relatado pelo Ministro Seplveda Pertence, onde este reconhece o duplo grau como princpio geral do processo, inclusive levando em conta o Pacto de San Jos da Costa Rica. Relata o Ministro que a incorporao ao direito brasileiro da Conveno Americana de Direitos Humanos (CADH), a qual inclusive consagra o princpio do duplo grau na esfera processual penal, no alterou a legislao ptria e que o termo recurso no tem sentido de impugnao de sentenas e sim de remdio judicial. Tambm ressalta que os juristas que persistem na dignidade constitucional e aceitam ao mesmo tempo que a lei ordinria possa editar excees ao duplo grau no se coaduna com a tese de que se cuidaria de regra compreendida no mbito da garantia fundamental do due processo of law. Nesse diapaso, ainda que posteriormente no RE 349.703-1/RJ, o STF externou o carter especial do Pacto de San Jos da Costa Rica, reservando lugar especfico no ordenamento jurdico brasileiro, (BRASIL, 2009), em nada modificou a posio do duplo grau de jurisdio no processo civil, vez que o referido Pacto se refere expressamente ao direito de recorrer da sentena a juiz ou tribunal superior, em relao ao processo penal. Enfim, o duplo grau de jurisdio um princpio geral do processo e no tem tratamento constitucional, de modo que o legislador infraconstitucional no est obrigado a estabelecer que todo e qualquer caso seja submetido a uma dupla reviso. Destarte, importante ressaltar que, ainda que se filie a ideia que a existncia do duplo grau exigncia do due processo of Law no se pode olvidar que sua aplicao deve ser moderada pelos ordenamentos, de modo a buscar uma justia efetiva, rpida e segura. 67

ENTRE ASPAS 4. A impugnao das decises judiciais o recurso de apelao O ordenamento jurdico dispe de mecanismos que proporcionam inmeros meios para impugnao das decises. Segundo a classificao de Didier Jr. e Da Cunha compe esse sistema os recursos, as aes autnomas de impugnao e sucedneos recursais, que (2009, p. 28/29). Com relao ao recurso, seu conceito definido pela doutrina, no o fazendo o Cdigo de Processo Civil. Utilizando da conceituao feita por Barbosa Moreira no sentido de ser o recurso um remdio voluntrio idneo a ensejar, dentro do mesmo processo, a reforma, a invalidao, o esclarecimento ou a integrao de deciso judicial que se impugna, Ovidio A. Batista da Silva e Fbio Luiz Gomes informam como vantagem dessa condio de remdio voluntrio, posto disposio dos interessados, a livre provocao do reexame da deciso judicial impugnada e a circunstncia de corresponder o recurso a um expediente tcnico a ter lugar na mesma relao processual. (DA SILVA; GOMES, 2006, p. 309). Trata-se, por conseguinte, de uma forma de renovar o exerccio do direito de ao em uma fase seguinte do procedimento, chamada de procedimento recursal a qual se estende at a apreciao do recurso (CHEIM, 2009, p. 28). um remdio voluntrio, imanente de um ato de vontade. Sua caracterstica principal (do recurso) permitir o reexame da matria anteriormente decidida, buscando-se a reforma, a anulao, o esclarecimento ou a integrao do julgado. Explica Elpidio Donizetti que se busca a reforma de uma deciso quando nesta se praticou uma injustia, uma m apreciao de prova e do direito aplicado, ou seja, o erro ao julgar (error in judicando). J a anulao se pleiteia quando h vcio formal na prpria deciso, erro de procedimento (error in procedendo). Por fim, se pede o esclarecimento quando a deciso obscura, contraditria ou omissa (2007, p. 428). O recurso o principal meio utilizado para a impugnao das decises judiciais e o Estatuto Processual relaciona em seu art. 496, os seguintes recursos: apelao, agravo, embargos infringentes, embargos de declarao, recurso ordinrio, recurso especial, recurso extraordinrio; embargos de divergncia em recurso especial e em recurso extraordinrio. Dentre esses, no resta dvida que a apelao o recurso mais amplo e genrico previsto em nosso ordenamento jurdico. Anteriormente ao sistema processual vigente, no CPC de 1939, o recurso da apelao s era cabvel contra sentenas definitivas, e, ainda assim, nos casos em que o valor da causa fosse igual ou inferior a duas vezes o salrio mnimo vigente, s era permitido embargos de nulidade ou infringentes do julgado, para o prprio juiz que julgou a causa. Posteriormente, no diploma atual, ampliou-se a incidncia do recurso, de modo que passou a ser permitido o recurso contra sentenas tambm terminativas, qualquer que fosse o valor da sua causa. (SANTOS, 2003, p.110). O recurso da apelao est previsto no art. 513, do Cdigo de Processo Civil e tem cabimento sempre que algum desejar impugnar uma sentena, esta considerada aquela que pe termo ao processo (art. 162, 1, CPC), haja ou no deciso de mrito. A apelao considerada o recurso por excelncia, dada a amplitude de seu efeito devolutivo. o recurso mais genrico previsto no CPC e considerado por isso o recurso padro, uma vez que sua disciplina tambm se aplica aos demais recursos, quando cabvel. Segundo Elpdio Donizetti recurso comum porque atende ao anseio do duplo grau de jurisdio. Basta que a parte seja sucumbente para a lei facultar-lhe a interposio da apelao, 68

A REVISTA DA UNICORP cujo objeto so as questes e provas suscitadas e debatidas no curso do processo (DONIZETTI, 2007, p. 465). A apelao tem devolutividade ampla, o que por sua vez tambm dilata o objeto de impugnao. Marinoni afirma que a apelao permite a impugnao de qualquer vcio encontrado na sentena, seja vcio de forma (error in procedendo), seja vcio de julgamento (error in judicando) (2010, p. 531). Percebe-se que sua fundamentao livre, isto , o recorrente est livre para, nas razes do seu recurso deduzir qualquer tipo de crtica em relao deciso, independendo de qualquer requisito especfico para o seu cabimento, basta apenas a existncia de uma sentena.

4.1. Dos efeitos do recurso de apelao A interposio de um recurso gera consequncias naturais em determinado processo. Essas consequncias a doutrina d o nome de efeitos do recurso. No Estatuto Processual Civil a regra que os recursos sejam recebidos nos efeitos devolutivo e suspensivo. O efeito suspensivo, geralmente associado suspenso da execuo da sentena, ou seja, impede a eficcia imediata da deciso. Ademais, adverte Moacir Amaral Santos que efeito suspensivo aquele que impede a eficcia do ato decisrio desde o momento da interposio do recurso e at que este seja decidido e que esse efeito desponta desde a prolao do ato decisrio, sempre que este seja impugnvel por meio de recurso que produza tal efeito (2003, p. 100). Alguns autores preferem nominar o efeito suspensivo como efeito obstativo, pois mesmo antes de interposto o recurso, a deciso, pelo simples fato de estar-lhe sujeita, ato ainda ineficaz, e a interposio apenas prolonga semelhante ineficcia, que cessaria se no se interpusesse o recurso (DIDIER JR e DA CUNHA, 2009, p. 81). De relao ao efeito devolutivo, se faz necessrio primeiramente identificar o princpio dispositivo, do qual esse derivado, bem como se faz necessrio tambm identificar o princpio inquisitrio, do qual nasce o efeito translativo, tema essencial para a concluso deste trabalho. O princpio dispositivo abrange a necessidade de provocao do interessado para obter a tutela jurisdicional, ou seja, preciso que haja iniciativa das partes. Em relao aos recursos, salvo a remessa necessria, que faz com que a matria seja imediatamente submetida apreciao do Tribunal, se atribui, nica e exclusivamente, vontade das partes a possibilidade de reexame da matria (CHEIM, 2009, p. 245). Apoiando-se na obra de Misael Montenegro Filho, do princpio dispositivo impe-se que a certeza de que o processo deve ser formado a partir (e na dependncia) da iniciativa da parte, como regra, no podendo o magistrado deferir ao autor bem da vida ou resposta jurisdicional alm ou fora do que foi pleiteado na petio inicial (2007, p. 84). Enfim, trata-se de um direito disposio da parte, que dele se valer ou no, dependendo unicamente de sua vontade. Todavia, no se pode dizer que o princpio dispositivo aplicado sem restries. Nesse sentido adverte Apligliano que assim como o prprio direito das partes pode sofrer restries quanto a sua disponibilidade, o princpio dispositivo tambm admite temperamentos, em virtude da importncia de determinadas situaes e questes inseridas no mbito de uma relao processual (2007, p. 181). 69

ENTRE ASPAS Em sentido contrrio, posiciona-se o princpio inquisitrio, no qual permitido ao julgador conhecer de questes ainda que no suscitadas pelas partes. Ocorre em situaes excepcionais, porm autorizado pelo sistema processual, ocasies estas que no se pode falar em julgamento extra, ultra ou infra petita. Essas situaes so justificveis quando se trata de matrias que se sobrepem vontade particular das partes, ou seja, desde que se refiram a matria de interesse pblico, como o caso das questes de ordem pblica, previstas no art. 267, 3, do CPC, alm de outras mais. Como dito alhures, do princpio dispositivo decorre o efeito devolutivo do recurso. o que se passa a externar. O efeito devolutivo consiste na transferncia ao Tribunal ad quem todo o exame da matria impugnada. Teve origem no direito romano onde o poder de julgar era monoplio do soberano que o delegava a rgos inferiores, mas que apesar dessa delegao o imperador, em segundo ou terceiro grau, poderia sempre examinar os recursos interpostos (BARIONI, 2008, p. 34). Esse contedo do recurso, ou seja, o reexame da matria o efeito peculiar de todos os recursos, o qual, nas palavras de Cheim se atribui o nome de devolutivo, ou seja, na obteno de um novo exame de determinada matria, exsurge que dele necessariamente advm o efeito peculiar e natural de fazer com que a matria decidida seja reexaminada. (2009, p. 269). O objeto do recurso , portanto, o reexame de determinada matria. A devoluo dessa matria pode ser total ou parcial, limitando assim o exame da matria, fenmeno que consagra o princpio do tantum devolutum quantum appellatum, chamado tambm de efeito devolutivo em extenso. De outro canto, fica o tribunal livre para apreciar os fundamentos do pedido, ainda que no referidos nas razes do recurso interposto, este conhecido como efeito devolutivo em profundidade. Resta falar sobre o efeito translativo. Refere-se o efeito translativo na possibilidade de o rgo ad quem, em certos casos, desconsiderar o princpio dispositivo do qual deriva o efeito devolutivo e conhecer de matria que esteja fora do mbito das razes e contrarrazes de recurso. Trata-se de uma exceo autorizada pelo ordenamento jurdico, no caracterizando desta forma julgamento extra, ultra ou infra petita. Grande parte da doutrina entende que o efeito translativo advm do efeito devolutivo, estando ligada a sua profundidade j referida acima, assumindo no caso uma feio especial, na medida em que se proporciona ao prprio Magistrado uma ampla cognio exauriente. Esse o entendimento de Cheim Jorge, para quem a interposio do recurso faz com que sejam levadas a conhecimento do rgo julgador todas as questes de ordem pblica ou mesmo aquelas a respeito das quais o juiz pode se pronunciar de ofcio, tais como honorrios advocatcios, juros legais, etc (2009, p. 276). Dessa mesma forma, Didier Jr. e Da cunha lecionam que a profundidade do efeito devolutivo que determina as questes que devem ser examinadas pelo rgo ad quem melhor dizendo, o efeito translativo a profundidade do efeito devolutivo (2009, p. 85-86). Nesse mesmo patamar, Edward Carlyle Silva, o qual nomina a chamada profundidade como dimenso vertical do efeito devolutivo, observa que
todas as questes suscitadas e discutidas no 1 grau podem ser utilizadas pelo Tribunal para reexaminar o pedido formulado no recurso. (...) alm delas, as questes de ordem pblica que o juiz poderia ter conhecido de ofcio mas no o fez tambm so devolvidas (transferidas) ao tribunal,

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mesmo que no tenham sido alegadas por quaisquer das partes. Isto porque tais matrias podem ser examinadas em qualquer grau de jurisdio, independentemente de provocao da parte beneficiada. Por esse motivo, mesmo que no tenham sido mencionadas no 1 grau, o Tribunal poder examin-las ex officio, por fora da dimenso vertical ou profundidade do efeito devolutivo (2008, 341/342).

Defendendo a tese que as matrias que o tribunal pode conhecer de ofcio no se submete ao efeito devolutivo posicionam-se os doutrinadores Luiz Guilherme Marinoni e Srgio Cruz Arenhart :
o efeito translativo ligado a matria que compete ao Judicirio conhecer em qualquer tempo ou grau de jurisdio, ainda que sem expressa manifestao das partes (...) Tais temas, ento, no se submetem ao efeito devolutivo, e podem ser conhecidos pelo Tribunal sempre (...) bastando que tenha sido interposto recurso sobre alguma deciso da causa, e que esse recurso chegue a exame do juizo ad quem (2010, p. 528)

Ento, nessas hipteses em que pode o tribunal apreciar questo que esteja fora dos limites impostos pelo recurso, estar-se- diante de uma manifestao do efeito translativo do recurso, decorrente do princpio inquisitrio e no do efeito translativo como subttulo do efeito devolutivo, eis que esse ltimo restringe-se, como asseverou o Ministro Czar Peluso, aos limites da parcela impugnada do contedo decisrio da sentena.

4.2. Princpio da non reformatio in pejus Como j foi dito, a apelao devolve ao juzo ad quem o conhecimento da matria impugnada, o qual ficar limitado ao objeto da apelao (tantum devolutum quantum appellatum), impedindo desta forma que seja a deciso reformada para pior. A reforma para pior, ao tempo das Ordenaes Filipinas, era perfeitamente cabvel, porque havia na poca a comunho da apelao, ou seja, uma das partes apelando, para a outra tambm servia o recurso, de modo que a deciso do juzo ad quem poderia ser para melhor ou pior. Foi assim at a Proclamao da Repblica, quando ento os Cdigos estaduais passaram a disciplinar a matria, mantendo a tradio, proibindo ou nada dispondo sobre o tema. (AMARAL, 2003, p. 116). Hodiernamente, no h norma expressa que vede a reforma para pior. Todavia, a doutrina brasileira considera rara a possibilidade da reformatio in pejus. que, segundo a grande maioria dos processualistas brasileiros a proibio da reformatio in pejus est ligada mais precisamente na conjugao do princpio dispositivo, da sucumbncia como requisito de admissibilidade e, finalmente, do efeito devolutivo do recurso (BARIONI, 2008, p. 57). No se pode olvidar que o instituto em anlise no aplicvel nos casos em que houve apelao de ambas as partes, ou seja, sucumbncia recproca. Nesse diapaso, certo que o acolhimento de um dos recursos vir em prejuzo da outra parte tambm recorrente (MARINONI e ARENHART, 2010, p. 517). 71

ENTRE ASPAS Do mesmo modo, excepcionado est a vedao da reformatio in pejus para matrias que compete ao juiz conhecer de ofcio, em qualquer tempo e qualquer grau de jurisdio, ou seja, questes de ordem pblica. No h nesse caso se falar em violao ao princpio da non reformatio in pejus uma vez que est previsto expressamente no Cdigo de Processo Civil, especificamente no art. 267, 3, que as matrias ali previstas sero conhecidas de ofcio, independentemente do requerimento de qualquer das partes. dizer, esse princpio no de aplicao absoluta e em hipteses tais, o interesse do Estado transpassa o interesse das partes em litgio, podendo a instncia recursal se referir a temas que no foram articulados pelo recorrente na manifestao de combate do pronunciamento judicial (MONTENEGRO FILHO, 2007, p. 31).

5. Reformas processuais o princpio da celeridade processual como princpio das recentes reformas Com o objetivo de dar mais celeridade ao processo, o Direito Processual Civil brasileiro tem sofrido diversas alteraes normativas no tempo. Alm do mais, a promulgao da Constituio Federal de 1988 atingiu fortemente o sistema processual brasileiro, de modo que aguou o anseio s reformas na busca da efetividade processual, quando assegurou no seu art. 5, LXXVIII a razovel durao do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitao (BRASIL, 2009, p. 10/11). Com a introduo desse artigo, a celeridade processual tornou-se um princpio abarcado constitucionalmente, forando desta maneira que o sistema processual se adequasse para tornar possvel o cumprimento de tal garantia. Essa efetividade processual est diretamente ligada ao direito de acesso justia, o qual inclui a obteno de resultados justos em tempo razovel, de modo que uma justia tardia ou permeada de injustias de qualquer ordem, em virtude das mazelas do processo no garante esse acesso, ou seja, no basta abrir a porta do judicirio, mas tambm prestar jurisdio eficiente, efetiva e justa, mediante um processo sem dilaes ou formalismo excessivos (GATTO, 2010. p. 111). Em funo dessa sanha (o esprito de reforma), deu incio, em 1992, a reforma do cdigo de processo civil, centrado na ideia de atender aos clamores doutrinrios de um correto acesso justia, introduzindo no sistema processual diversas leis direcionadas a atacar os pontos de estrangulamento do sistema, buscando assim simplificar e agilizar o procedimento, evitar ou minimizar os males do decurso do tempo de espera pela tutela jurisdicional, aprimorar a qualidade dos julgamentos e dar efetividade tutela jurisdicional (DINAMARCO apud MARCATO, 2006, p. 135/136). Segundo Theodoro Jnior, todas as reformas introduzidas no sistema processual tiveram um s principal objetivo: acelerar a prestao jurisdicional, tornando-a mais econmica, mais desburocratizada, mais flexvel e mais efetiva no alcance de resultados prticos para os jurisdicionados (THEDORO JR., 2010, p.25). Depois disso, com o objetivo de aprimorar a recente reforma, foram introduzidas outras trs leis, as quais so conhecidas como a reforma da reforma, quais sejam: Lei n 10.352/2001, Lei n 10.358/2001 e Lei n 10.444/2002. Com a lei n 10.352/2001, que deu origem ao tema desse trabalho, foi introduzido o 3, no 72

A REVISTA DA UNICORP Art. 515, do CPC, o qual possibilitou ao rgo recursal, ao julgar apelao em face de sentena terminativa, julgar desde logo o mrito, desde que a causa esteja madura para julgamento.

5.1. A inovao prevista no art. 515, 3, do Cdigo de Processo Civil Requisitos Com o advento da Lei n 10.352/01 foi includo no art.515, do CPC, o seu 3, o qual permite que o tribunal julgue o pedido, ainda que o juzo de primeiro grau tenha decidido pela extino do processo sem esse julgamento:
Art. 515. A apelao devolver ao tribunal o conhecimento da matria impugnada. (...) 3 Nos casos de extino do processo sem julgamento do mrito (art. 267), o tribunal pode julgar desde logo a lide, se a causa versar questo exclusivamente de direito e estiver em condies de imediato julgamento (BRASIL, 2001).

Referida norma nasceu para adequar o sistema processual com o princpio da celeridade processual, esculpido na Constituio Federal, propiciando, na medida em que no determina o retorno dos autos primeira instncia, uma justia mais clere e efetiva. Interessante que tal previso j constava nas Ordenaes Filipinas, na qual, em regra, determinava o imediato julgamento do mrito da causa no caso de reforma da sentena terminativa, afastando a devoluo dos autos ao juiz de primeiro grau para novo julgamento (GATTO, 2010, p. 122). sua semelhana, como se v na redao do citado dispositivo ( 3, art. 515, do CPC), para julgar desde logo a lide, a causa deve versar sobre questo exclusivamente de direito e estar em condies de imediato julgamento, ou seja, devem inexistir questes fticas a demandar a produo de provas, o que alguns autores costumam nominar de teoria da causa madura (SILVA, 2008, p.364). Quando se fala em questo exclusivamente de direito a norma est a dizer que para ser julgada desde logo a causa, esta j deve ter sido instruda, em primeiro grau, com todas as garantias do devido processo legal e no haver mais necessidade de instruo probatria, ou seja, questo exclusivamente de direito sinnimo de processo j suficientemente instrudo para o julgamento de mrito (MARCATO, 2006, p. 78 e 80). Alis, em que pese a redao do artigo em comento, basta que se faa a interpretao da norma em consonncia com o art. 330, I, do CPC, o qual permite que o juiz conhea diretamente do pedido, proferindo sentena quando a questo de mrito for unicamente de direito, ou, sendo de direito e de fato, no houver necessidade de produzir prova em audincia (BRASIL, 1972). Nessa linha de entendimento, Edward Carlyle Silva vai mais alm quando cita que as questes de fato no-controvertidas, ou seja, que no foram objeto de impugnao pela parte contrria quela que formulou a alegao, tambm torna possvel a aplicao da teoria da causa madura, bem assim, aquelas questes envolvendo fatos notrios, podendo o tribunal julgar o mrito mesmo que no se esteja falando de questo exclusivamente de direito (SILVA, 2008, p.364). De outra banda, merece ateno a polmica a respeito da obrigatoriedade ou no da aplicao do 3, do art. 515, pelo juzo ad quem, quando no h requerimento expresso do apelante. 73

ENTRE ASPAS De um lado situam-se aqueles que entendem que uma vez que o apelante ao interpor recurso contra sentena terminativa no fixou no seu pedido a apreciao do mrito da causa no aceitvel que o tribunal venha a decidir questo que a parte recorrente no incluiu na devoluo recursal. Esta a posio de Humberto Theodoro Jnior, para o qual o pedido para julgar o mrito faz parte da extenso do efeito devolutivo, terreno em que prevalece a vontade da parte:
a) o novo 3 do art. 515 do CPC no criou simples faculdade para o Tribunal, que tem o dever de enfrentar o mrito da causa, quando configurados os requisitos legais para tanto; b) o julgamento do mrito, no entanto, dever ser pleiteado pelo recorrente, para que se torne objeto da devoluo recursal operada pela apelao ao tribunal ad quem. O tema pertence extenso da devoluo e no sua profundidade (THEODORO JR., 2010, p. 599).

Na mesma esteira, Flvio Cheim Jorge defende a aplicao do citado 3 em consonncia com o disposto no caput do art. 515, onde fixada a mxima tantum devolutum quantum appellatum:
o pedido do apelante para que o tribunal julgue o mrito da causa requisito intransponvel para que seja aplicado o novo 3 do art. 515, sob pena de violao do art. 2 do CPC, aplicado analogicamente aos recursos. A incidncia do princpio dispositivo, e, consequentemente do efeito devolutivo, neste caso plena e obrigatria (CHEIN JORGE, 2010, p.289).

Por seu turno, Ricardo Barioni alega que apesar de alguns autores sustentarem a necessidade do requerimento pela parte em nome do princpio do tantum devolutum quantum appellatum, esse entendimento no deve prosperar, eis que:
o recurso de apelao dirige-se contra a parte dispositiva da sentena. Quando o rgo a quo aprecia uma preliminar e decreta a extino do processo sem apreciao do mrito, verifica-se a existncia de impedimento para que julgue as questes de mrito (...). A matria impugnada a que se refere o caput do art. 515 do CPC cinge-se ao ponto efetivamente decidido na sentena, ou seja, o pronunciamento que decretou a extino do processo sem julgamento do mrito (BARIONI, 2008, p. 170/171).

Para Marcato o processo no instrumento destinado a realizar exclusivamente a vontade dos particulares, mas antes de tudo, deve atender aos anseios sociais e permitir apenas a reforma da sentena terminativa com o retorno dos autos a primeira instncia seria desvirtuar a razo de ser desse dispositivo, qual seja, a efetividade e a economia processual: vejam-se os seus dois argumentos:
o primeiro o de que a aplicao do 3 do art. 515, por parte do tribunal, quando presentes os requisitos, um dever; o segundo que a determina-

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o contida neste pargrafo aplicvel desde a entrada em vigor da lei e, portanto, conhecida de todo operador de direito. Por isso, o autor que apelar da sentena terminativa o far com a conscincia de que, estando a causa madura para julgamento, o tribunal dever conhecer do mrito; as regras do jogo so claras, no se podendo alegar infrao ao devido processo legal (MARCATO, 2006, p. 83).

Outro argumento defendido sustentando a necessidade do pedido do apelante a possibilidade de haver reformatio in pejus no eventual julgamento do mrito em desfavor do apelante, uma vez que desrespeita o princpio tantum devolutum quantum appellatum. Sobre essa alegao importante a anlise da possvel ampliao do efeito devolutivo do recurso e possvel violao do princpio da non reformatio in pejus, em captulo prprio.

5.2. Art. 515, 3, do CPC Da ampliao do efeito devolutivo do recurso e o princpio da non reformatio in pejus Discute-se se com a redao do 3 do art. 515, do CPC houve a ampliao do efeito devolutivo do recurso e com isso a consequente violao do principio da non reformatio in pejus. que a antiga redao do citado artigo vedava ao juzo ad quem adentrar no mrito da causa quando este julgava provido o recurso em sentena terminativa, vez que devolvia os autos ao juizo a quo, sendo, portanto, limitada a devolutividade do recurso de apelao. No artigo em comento no h que se falar em ampliao do efeito devolutivo. dizer, ele no regido pelo princpio dispositivo, mas sim pelo princpio inquisitrio. Desse modo, o efeito que dele decorre no o devolutivo, o efeito translativo. Quando ocorre esse efeito, todas as questes ainda que no suscitadas em sede recursal so transladadas ao Tribunal. o mesmo fenmeno que ocorre com as questes de ordem pblica, nas quais no necessria a expressa manifestao de vontade do recorrente. Assim sendo, no caso do art. 515, 3, do CPC, presentes os requisitos legais, dever o Tribunal julgar o mrito independentemente de provocao das partes, pois se trata de um poder-dever do Juiz, donde lhe imposto a apreciao de todas as questes, ainda que no suscitadas, no havendo neste caso a proibio da reformatio in pejus. Nesse sentido, veja-se a argumentao de Gervsio Lopes Jr., citado por Fredie Didier Jr e Leonardo Jos Carneiro da Cunha:
(...) Deveras, se esquecemos qualquer suposta relao do julgamento per saltum com o efeito devolutivo do recurso, conseguimos entender tal atividade como simples decorrncia do princpio do impulso oficial, que, para ser exercitado, independe da vontade e do requerimento das partes. Alm disso, colocamos os princpios dispositivo e da vedao da reforma para pior nos devidos lugares, permitindo ao tribunal julgar por salto de instncia de forma contrria, inclusive, aos interesses da parte recorrente. Assim que o requerimento da parte no exigido para o salto julgamental, que tem como pressupostos, apenas, a interposio e o conhecimento de um recurso; o seu provimento ou a anulao da sentena e a maturidade da causa (2009, p. 109).

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ENTRE ASPAS Acrescente-se ainda que para Elpidio Donizetti no h como comparar a deciso de mrito do tribunal com uma deciso de mrito que no existia no processo, no podendo dessa maneira se falar em reformatio in pejus, uma vez que com a cassao da sentena pelo Tribunal, todas as questes discutidas nos autos devem ser apreciadas, o que pode resultar em resoluo de mrito em favor ou em prejuzo do autor (DONIZETTI, 2007, p. 434). E de bom tom citar ainda a posio defendida por Ricardo de Carvalho Apligriano, para quem a proibio da reformatio in pejus no absoluta, pois poder sofrer restries sempre que o prprio princpio dispositivo sofrer excees. Do mesmo modo, tambm no absoluta a vontade das partes no processo civil, eis que podero surgir diversas questes a serem analisadas no segundo grau, independentemente de terem sido objeto da sentena, sendo possvel piora da situao do recorrente (APLIGRIANO, 2007, p. 140). Enfim, constata-se que a norma contida no 3 do art. 515, do CPC, no ampliou o efeito devolutivo do recurso, mesmo porque no presente caso no vige tal efeito e sim o efeito translativo do qual no decorre a proibio da reformatio in pejus. De mais a mais, o tribunal estar julgando pela primeira vez o mrito e por isso no pode haver reforma para pior de algo que no existiu.

6. A constitucionalidade do art. 515, 3, do CPC luz do princpio do duplo grau de jurisdio Como j amplamente debatido nos captulos anteriores, o princpio do duplo grau de jurisdio no tem garantia constitucional. Ainda que haja divergncia sobre a sua posio dentro do ordenamento jurdico, ora classificando-o como princpio constitucional implcito, ora como princpio geral do processo e sem tratamento constitucional, em ambos os posicionamentos a doutrina majoritria admite no ter este garantia absoluta. Como se trata de um princpio e no de regra, o duplo grau de jurisdio est sujeito ao sopesamento de sua aplicao diante de outros valores constitucionais presentes em outros princpios que sejam mais importantes no caso concreto: vejam-se algumas citaes contidas na obra de Ana Cndido Marcato em relao ao citado princpio:
o duplo grau, por vezes, ir ceder lugar necessidade de enfatizar os princpios da celeridade, da racionalidade, da otimizao e da eficincia da atividade jurisdicional (...) a concretizao dos princpios fica a cargo do legislador, incumbido de exprimir a vontade geral. (...) tendo em vista que o legislador o responsvel por essa concretizao, tambm ser, por via de conseqncia, o responsvel pelo regramento das excees aplicveis ao princpio, por meio de leis (MARCATO, 2006, p. 155).

A previso contida no 3, do art.515, do CPC uma das formas de exceo ao duplo grau de jurisdio estabelecida pela legislao infraconstitucional, perfeitamente possvel j que tal princpio no se reveste de garantia constitucional. Nesse sentido, Alexandre Freitas Cmara expe:
ter-se-, aqui, uma supresso de instncia, excepcionando-se a incidncia do princpio do duplo grau de jurisdio. de bom alvitre, contudo,

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recordar que o duplo grau no uma garantia constitucional, tendo duas bases na legislao ordinria. Sendo assim, perfeitamente possvel prpria lei ordinria afast-lo, como o fez no caso que ora se examina (2008, p.83).

Esse tambm o pensamento de Fredie Didier Jr. e Leonardo Jos Carneiro da Cunha, para os quais no havendo a garantia constitucional torna-se possvel as excees ao princpio, podendo ento a legislao infraconstitucional restringir ou at mesmo eliminar recursos em determinados casos especficos, sem contar que, em se tratando de princpio, o duplo grau poder ser contraposto com outro princpio, de modo que haja limites de aplicao recproca (Didier Jr e Da cunha, 2009, p. 26). Firme na idia de que permitido ao legislador infraconstitucional restringir o acesso ao duplo grau de jurisdio em hipteses especiais como o aperfeioamento da prestao jurisdicional encontra-se Rodrigo Barioni (2008, p. 52), para quem, cumpre ao ordenamento jurdico ampliar ou limitar a aplicabilidade do duplo grau de jurisdio, de acordo com as necessidades sociais. (...) A tarefa de ajustar os limites de atuao do duplo grau de jurisdio, encontra-se fora da esfera dispositiva das partes. Por fim, cumpre destacar que no tendo o princpio do duplo grau de jurisdio sede constitucional, e bem por isso, pode sofrer excees, o legislador est autorizado a limitar a sua incidncia na legislao ordinria, como o fez no 3, do CPC, o que no resulta na sua inconstitucionalidade.

7. Concluso O direito processual brasileiro formado por princpios especficos, com suas caractersticas prprias, mas tambm devem obedincia aos princpios constitucionais, os quais precedem a legislao infraconstitucional. Os princpios, assim como as regras, so uma espcie do gnero norma. Todavia, enquanto as regras que se conflitam entre si enfrentam a questo de validade, deixando de ser aplicada no caso concreto, os princpios a sua vez podem coexistir, prevalecendo o de maior peso. O direito processual composto por princpios constitucionais e por aqueles fixados pela legislao ordinria. Os princpios presentes na Constituio da Repblica so encarados como garantias constitucionais, ao passo que os demais se submetem ao sopesamento de valores e interesses. Existe um conjunto de normas de direito processual que se encontram presentes na Constituio Federal, tambm conhecido como direito constitucional processual, elencadas entre essas a garantia do devido processo legal e da durao razovel do processo. Por outro lado, o princpio do duplo grau de jurisdio no foi contemplado pela nossa atual Constituio, como fez a Constituio de 1824, expressamente. Apenas menciona a existncia de Tribunais com competncia recursal. Tambm no se configura o duplo grau como corolrio do devido processo legal diante da previso contida no art. 5, LV, da Constituio Federal, a qual assegura o contraditrio e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. A norma in casu est a dizer que a ampla defesa dever ser exercida com todos os meios 77

ENTRE ASPAS de defesa e remdios judiciais que lhe so prprios, mas no est a garantir que a ampla defesa para ser exercida na sua plenitude dever indispensavelmente ter previso de recurso. De outro lado, a legislao ordinria, no caso o Cdigo de Processo Civil que prev o duplo grau de jurisdio por intermdio dos recursos. Assim sendo, foroso reconhecer que o duplo grau de jurisdio um princpio geral do processo e, bem por isso, pode sofrer excees, vez que no est compreendido no mbito das garantias constitucionais. O duplo grau de jurisdio, cuja nomenclatura ideal seria duplo grau de instncia (caso se entenda pela necessidade de reexame por rgo jurisdicional diverso) ou duplo exame do mrito (que a garantia do direito ao recurso e consequente reviso da matria) consiste na possibilidade de reapreciao do mrito da causa anteriormente decidida, o qual feita por intermdio das impugnaes das decises judiciais, pelo qual o principal meio utilizado o recurso. Dentre os recursos a apelao o meio mais abrangente e por isso considerada o recurso por excelncia, dada a amplitude do seu efeito devolutivo, atendendo assim ao anseio do duplo grau. Sua interposio gera efeitos, quais sejam devolutivo e suspensivo, em regra. Este ltimo impede a eficcia do ato decisrio enquanto o primeiro peculiar a todos os recursos e consiste na transferncia ao tribunal ad quem de todo o exame da matria impugnada. O efeito devolutivo decorre do princpio dispositivo, e bem por isso, depende de provocao do interessado que se valer ou no do direito ao recurso, que poder delimitar qual captulo da deciso ir devolver ao tribunal para reapreciao. Esse fenmeno conhecido como efeito devolutivo em extenso (ou horizontal) e por meio dele que se consagrou o princpio do tantum devolutum quantum appellatum, que consiste na impossibilidade de se reformar a deciso em prejuzo do apelante, ou seja trata-se da vedao da reformatio in pejus. Todavia, uma vez interposto o recurso, o tribunal est livre para apreciar todos os fundamentos do pedido. o que se convencionou chamar de efeito devolutivo em profundidade (ou vertical). Porm, determinadas matrias podem ser conhecidas ainda que fora do mbito das razes e contrarrazes do recurso e sero conhecidas de ofcio, independentemente do requerimento de qualquer das partes. Nessas hipteses estar-se- diante de uma manifestao do efeito translativo do recurso, decorrente do princpio inquisitrio. Nestes casos em que o interesse do Estado transpassa o interesse das partes em litgio no h que se falar em violao ao princpio da non reformatio in pejus, at porque a proibio da reforma para pior no absoluta e pode sofrer restries pelo ordenamento jurdico. Questo bastante debatida pela doutrina deu-se com o nascedouro da Lei n 10.352/01, a qual incluiu no art. 515, do CPC o 3, pelo qual se permitiu ao tribunal adentrar no mrito da causa, nos casos de extino do processo sem julgamento de mrito, se a causa versar questo exclusivamente de direito e estiver em condies de imediato julgamento. A celeuma refere-se principalmente a possvel violao do princpio do duplo grau de jurisdio, bem como a ampliao do efeito devolutivo do recurso e a violao da reformatio in pejus. O referido art. 515, 3, do CPC determina desde logo o julgamento do mrito pelo Tribunal ad quem nos casos de extino do processo sem julgamento do mrito pelo juzo a quo, desde que se trate de questo exclusivamente de direito e estiver em condies de imediato julgamento, assim entendida como aquela j devidamente instruda com todas as garantias do devido processo legal, na qual inexiste questes fticas a demandar a produo de provas. 78

A REVISTA DA UNICORP O instituto em questo provocou polmica em relao sua aplicabilidade ex officio pelo tribunal, uma vez que na hiptese de tal pedido (anlise do mrito) no haver sido includo na devoluo recursal e ocorrendo eventualmente a reforma para pior, restaria violado o princpio da non reformatio in pejus. Tal dvida no deve prosperar. Em que pese entendimento em contrrio, o artigo em comento tem a misso de promover a celeridade processual, de maneira justa e efetiva, sem dilaes desnecessrias, de modo que a vontade exclusiva dos particulares conflita com a razo de ser desse dispositivo. De mais a mais, a determinao contida no citado pargrafo conhecida de todo operador de direito, o qual tem conscincia de que estando a causa madura para julgamento, o tribunal conhecer do mrito. Sendo assim, despicienda a necessidade de requerimento do apelante para a aplicao do referido artigo pelo Julgador, pois no se trata de uma faculdade, mas sim de um poderdever do Juiz, o qual, presentes os requisitos legais do art. 515, 3, do CPC, dever julgar o mrito independentemente de provocao das partes. dizer, tal disposio no regida pelo princpio dispositivo, do qual decorre o efeito devolutivo. sim, regido pelo princpio inquisitrio, do qual decorre o efeito translativo, impondo-se a apreciao de todas as questes, ainda que no suscitadas, no se aplicando, portanto, a proibio da reformatio in pejus, at porque o mrito estar sendo julgado pela primeira vez e bem por isso no poder haver reforma para pior de algo que no existiu. Tambm no deve prosperar a discusso em torno do art. 515, 3, do CPC, se constituir ou no em ofensa ao princpio do duplo grau de jurisdio. Ainda que haja divergncia sobre a posio que ostenta o princpio do duplo grau de jurisdio dentro da Constituio Federal, seja de princpio constitucional explcito ou implcito, ou ainda de princpio geral do processo, majoritrio o entendimento de que este princpio no goza de garantia constitucional. que no se tratando de garantia constitucional e tendo sua base na legislao ordinria o prprio legislador infraconstitucional pode limitar a sua aplicabilidade de acordo com as necessidades sociais, como o fez no caso no 3, do art. 515, do CPC. Ora, tratando-se de um princpio e no de regra, sua aplicao dever ser sopesada com princpios outros que com ele venha a conflitar. Certo que, em relao ao 3, do art. 515, do CPC, o legislador infraconstitucional optou por sacrificar o princpio do duplo grau de jurisdio em detrimento do princpio da celeridade processual, que possui status constitucional (durao razovel do processo) e tambm corolrio do devido processo legal, princpio esse que vem orientando todas as atuais reformas processuais em busca de uma justia mais clere, efetiva e justa. Conclui-se, portanto que o 3, do art. 515, do Cdigo de Processo Civil constitucional e atende aos anseios sociais por uma prestao jurisdicional mais clere e efetiva, sem se descuidar da segurana jurdica, que se alcana com a observncia do devido processo legal.

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A EFICCIA VINCULANTE DOS PRECEDENTES NO DIREITO BRASILEIRO E SUA IMPORTNCIA PARA A ATUAO DO PODER JUDICIRIO

Gabriela Silva Macedo


Advogada. Graduada em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Direito Processual Civil pelo JusPodivm.

Resumo: Este artigo dedica-se ao estudo da evoluo do precedente judicial no direito brasileiro e seus efeitos para a atuao do Poder Judicirio. O precedente a deciso judicial construda no caso concreto, cuja norma jurdica geral pode servir de diretriz para o julgamento de casos anlogos. No direito brasileiro, possvel verificar um gradual reconhecimento pelo prprio legislador da fora do precedente judicial. Em relao sua eficcia persuasiva, destaca-se a possibilidade de julgamento super-antecipado das causas repetitivas; em relao ao efeito de impedir a apreciao de recursos e dispensar as remessas necessrias, cita-se como principal exemplo a ampliao dos poderes dos relatores de recursos interpostos junto aos tribunais, permitindo-lhe negar seguimento aquele que contrariar smula ou jurisprudncia dominante do tribunal, do STF ou do STJ. Por fim, destacam-se as inmeras alteraes legislativas e jurisprudncias que atribuem eficcia extra-processual s demandas, ultrapassando os interesses subjetivos nele deduzidos e gerando, sobretudo, a objetivao dos recursos extraordinrios. O Direito Brasileiro, portanto, no permaneceu imune influncia da teoria do precedente, pois em um sistema que depara-se com a realidade inafastvel de que a lei interpretada de diversos modos e com a rpida multiplicao de demandas, no h outra alternativa para se preservar a igualdade, a segurana jurdica e proporcionar uma atuao mais efetiva do Poder Judicirio. Palavras-Chave: Precedente judicial. Fora persuasiva. Efeito vinculante. Evoluo legislativa. Poder Judicirio. Efetividade. Segurana jurdica.

1. Introduo O precedente a deciso judicial construda no caso concreto, cuja ratio decidendi pode servir de diretriz para o julgamento de casos anlogos. A ratio decidendi so os fundamentos que sustentam a deciso, a tese jurdica adotada naquele caso, norma geral exposta na fundamentao do julgado1. O precedente existe em todos os ordenamentos jurdicos, alterando-se apenas a fora que lhe atribuda em cada um deles. A origem do direito brasileiro remonta tradio romano-germnica da civil law, que tem como primazia o direito posto e as leis escritas. De acordo com esse sistema, a segurana jurdica seria alcanada por meio da estrita aplicao da lei pelos juzes, que no podiam interpretar ou criar o direito. 82

A REVISTA DA UNICORP De outro lado, o sistema da common law informado pela teoria do stare decisis, segundo a qual o precedente dotado de eficcia vinculante tal eficcia apresentava-se como o nico instrumento capaz de garantir a segurana jurdica e a previsibilidade do Direito2. Essa concepo, de que existem dois sistemas dicotmicos em termos absolutos, contudo, encontra-se superada atualmente3. Embora os sistemas da civil law e da common law tenham surgido em circunstncias polticas e culturais completamente distintas e, por isso, possuam tradies jurdicas diferentes e institutos prprios , o contato entre esses dois sistemas vem se estreitando cada vez mais4. Uma das mais importantes aproximaes entre eles refere-se atribuio, cada vez maior, de autoridade ao precedente judicial, nos pases filiados tradio da civil law5. Partindo-se dessas premissas, este artigo prope uma anlise acerca da evoluo da fora vinculante dos precedentes no Direito Brasileiro e sua importncia para a atuao do Poder Judicirio. Antes, contudo, far-se- uma rpida incurso pelas razes por que o legislador vem se deixando influenciar pela importao da tradio anglo-saxnica, a privilegiar a aplicao de determinados institutos da common law ao sistema ptrio, emprestando uma relevncia cada vez maior jurisprudncia. Aps a promulgao da Constituio Federal de 1988, os cidados tomaram mais conscincia dos direitos de que so titulares, o que resultou em um significativo aumento de litgios individuais e coletivos; cada vez mais a sociedade aflui aos tribunais para obter a satisfao de pretenses que, h pelo menos duas dcadas, no se pensava serem tutelveis (por ex.: no mbito dos direitos do consumidor)6. Sucede que, as estruturas judicirias no acompanharam com a mesma presteza o aumento desenfreado do nmero de processos, tornando-se necessrio adaptar o sistema a essa nova realidade. Por essa primeira e talvez a mais forte razo, a teoria dos precedentes ganhou fora por ser mecanismo apto a ensejar a celeridade processual7. Ademais, o Direito brasileiro marcado por um alto grau de instabilidade, seja no plano legal em razo, por exemplo, das medidas provisrias e das inmeras constituies promulgadas ao longo de sua curta existncia como pas independente , seja no plano jurisprudencial, porque a sorte dos litigantes fica muito ao sabor das frequentes mudanas das composies dos tribunais e das mudanas de entendimento decorrentes disso8. Como a constante reformulao de regras e a aplicao da lei de formas distintas geram instabilidade, prejudicando muito a confiabilidade no sistema, a adoo de uma teoria dos precedentes poderia contribuir bastante para conferir estabilidade ao direito. A atual situao do judicirio brasileiro, caracterizada, dentre tantos outros problemas, pelo crescimento desmedido do nmero de processos repetitivos, pelo estmulo ao litgio9 e pelo alto grau de instabilidade coloca na ordem do dia discusses acerca de quais medidas podem ser tomadas para evitar que esse quadro inviabilize o prprio acesso justia, como j tem acontecido. A curto prazo, a adoo de uma teoria do precedente parece ser a melhor soluo para minimizar a grave crise provocada pela justia intempestiva10, razo por que essa tem sido a tendncia das ltimas reformas legislativas do sistema processual brasileiro11.

2. Noes importantes acerca da aplicao do precedente A correta aplicao prtica do precedente judicial, contudo, pressupe a utilizao de tcnicas de confronto, interpretao e aplicao (distinguish) e de tcnicas de superao (overruling e overriding), as quais merecem algumas consideraes. 83

ENTRE ASPAS Antes de aplicar o precedente, o magistrado deve verificar se o caso concreto se aproxima do caso paradigma, confrontando os elementos objetivos de ambas as aes. Como, via de regra, no h identidade absoluta entre elas, a tese jurdica exposta na fundamentao do julgado anterior dever ser interpretada para verificar se ela se aplica adequadamente aos fatos concretos do novo caso. Haver distinguish12 se o caso concreto for distinto do paradigma, o que pode ocorrer por dois motivos: i) quando no h semelhana entre os fatos que deram suporte ao paradigma e aqueles objeto do caso concreto; ii) apesar da semelhana, a corte vinculada se defrontar diante de situaes que claramente a corte vinculante no queria abranger quando fixou a regra13. Portanto, somente se, aps o confronto entre os casos, o magistrado verificar que a hiptese em julgamento se amolda a hiptese normativa do precedente seja porque h perfeita identidade entre elas, seja porque, apesar de haver alguma distino, a tese jurdica anterior merece interpretao extensiva , ele poder aplicar o entendimento consagrado no precedente judicial. Adotar postura distinta, implicar na equivocada aplicao da teoria do precedente judicial, razo por que de extrema importncia a compreenso das tcnicas de confronto, interpretao e aplicao dos precedentes.

3. Efeito persuasivo do precedente e sua evoluo nos tribunais superiores No ordenamento jurdico brasileiro, possvel verificar um gradual reconhecimento pelo prprio legislador da fora persuasiva do precedente, como fator de orientao para a resoluo de casos futuros. As smulas da jurisprudncia predominante do Supremo Tribunal Federal foram uma das primeiras manifestaes do reconhecimento dos precedentes no direito brasileiro. No ano de 1964, elas ingressaram no ordenamento, por meio de emenda ao regimento interno do Supremo Tribunal Federal, com os seguintes objetivos: i) criar um sistema oficial de referncias dos precedentes judiciais, mediante a citao de um nmero convencional; ii) distinguir a jurisprudncia firme daquela que ainda se encontrava em fase de sedimentao; iii) atribuir a jurisprudncia efeitos processuais para que os processos repetitivos fossem decididos com mais celeridade; iv) evitar um quadro de loteria judiciria, de modo que, dentro de um mesmo contexto histrico e cultural, os casos iguais tivessem as mesmas solues14. Os efeitos jurdicos processuais oriundos das smulas no eram propriamente vinculantes, pois se restringiam a conferir aos relatores duas faculdades basicamente, o no recebimento de recursos ou o seu indeferimento monocrtico quando em confronto com a jurisprudncia nela compreendida , no vinculando os demais rgos do judicirio, tampouco a administrao pblica15. Dessa forma, as smulas tinham mais uma fora persuasiva no julgamento de casos idnticos ou, melhor dizendo, uma obrigatoriedade indireta16. O prprio regulamento interno previa o procedimento pelo qual elas poderiam ser modificadas, o que lhes atribua capacidade de adaptao s mutaes sociais e econmicas do pas, de modo a extrair dos textos constitucionais e legais a norma que no momento atenda aos reclamos axiolgicos da sociedade17. Posteriormente, o Cdigo de Processo Civil de 1973 introduziu, no ordenamento jurdico brasileiro, o incidente de uniformizao da jurisprudncia (art. 476 a 479, CPC), cuja finalidade a de provocar o prvio pronunciamento do tribunal de segundo grau sobre a interpretao de determinada norma jurdica. Nesse passo, reconhecida a divergncia a seu 84

A REVISTA DA UNICORP respeito, a maioria absoluta dos membros que integram o tribunal declara a interpretao a ser observada, a qual se torna objeto de smula. O incidente pode ser suscitado por membro da turma julgadora ou por uma das partes18 e tem natureza preventiva, voltada manuteno da unidade da jurisprudncia interna do tribunal19. Inovando nessa matria, a Lei n 10.352, de dezembro de 2001, introduziu o 1 redao do art. 555 do Cdigo de Processo Civil, estabelecendo que, se ocorrer relevante questo de direito, que faa conveniente prevenir ou compor divergncia entre as cmaras ou turmas do tribunal, poder o relator propor seja o recurso julgado pelo rgo colegiado que o regimento indicar. O recurso somente ser julgado por tal rgo, se ele reconhecer a existncia de interesse pblico20. O advento do instituto tratado no 1 do art. 555 do Cdigo de Processo Civil gerou distintas reaes na doutrina. JOS ROGRIO CRUZ E TUCCI entende que essa novidade revela o patente desconhecimento da realidade dos tribunais regionais brasileiros quanto a disposio dos seus integrantes em unificar os precedentes judiciais. Afirma tambm que, enquanto o incidente de uniformizao de que trata o art. 476 conduz pacificao do entendimento sobre a tese jurdica que integra a competncia material de determinado rgo pois o julgamento se d em duas fases subsequentes, uma delas voltada apenas fixao da tese jurdica pelo rgo especial , o novo mecanismo preocupa-se apenas com a soluo de um caso isolado21. CANDIDO RANGEL DINAMARCO, por sua vez, v com otimismo o novo instituto22. Atenta a pouca aplicabilidade prtica dessas tcnicas junto aos tribunais de justia regionais e estaduais, a comisso de elaborao do novo cdigo de processo civil prope, no projeto de Lei n 166/2010, a extino do instituto de uniformizao de jurisprudncia. Outro importante exemplo do reconhecimento pelo legislador da eficcia persuasiva do precedente a possibilidade de julgamento super-antecipado das causas repetitivas. O novel art. 285-A, cuja redao foi includa pela Lei n 11.277/2006, estabeleceu nova hiptese de improcedncia prima facie, autorizando o juiz a julgar improcedente o pedido quando a matria for unicamente de direito e j houver precedentes sobre o tema naquele mesmo juzo. Nesse caso, a fundamentao da sentena desborda os limites do processo no qual foi proferida para influenciar o resultado de demandas distintas. O art. 285-A pode ainda ser aplicado conjuntamente com os arts. 518, 1 e 557, 1-A do Cdigo de Processo Civil. Nesse passo, se na sentena de improcedncia padro23 foi aplicada smula ou jurisprudncia dominante dos tribunais superiores, o juiz poder, alm de julgar logo a inicial, negar seguimento apelao do autor que vier a ser interposta daquela deciso super-antecipada ou, caso o magistrado no negue seguimento ao recurso, remetendo-o ao tribunal, o relator poder, de logo, faz-lo , reduzindo significativamente as chances da ao prosseguir nas instncias superiores. O Cdigo de Processo Civil, no art. 546, cuja redao foi acrescentada pela Lei n 8.950/ 94, prev ainda outra medida que tem por finalidade a uniformizao dos julgados dos tribunais superiores, atribuindo mais fora persuasiva aos precedentes so os embargos de divergncia. Trata-se de espcie de recurso cabvel do julgamento proferido por uma turma, no mbito do Superior Tribunal de Justia e do Supremo Tribunal Federal, quando esse julgado24 divergir de deciso atual j proferida por outro rgo do mesmo tribunal25-26. A Constituio Federal de 1988 tambm reconheceu a fora persuasiva da jurisprudncia, estabelecendo que o recurso especial ser cabvel, dentre outras hipteses, quando houver divergncia de interpretao atual entre o acrdo recorrido e um precedente de outro tribunal, inclusive do prprio Superior Tribunal de Justia (art. 105, III, c, CF). Esse mais um 85

ENTRE ASPAS instrumento que visa dar fora a teoria do precedente e cuja importncia ressaltada por contribuir tambm para que a aludida corte concretize sua funo de unificar a interpretao da lei federal em todo pas27. Por fim, registre-se que o projeto de lei n 166/2010, do Novo Cdigo de Processo Civil, sugere a criao de uma nova hiptese de embargos de declarao. Se for aprovado, os embargos passaro a ser cabveis, no mbito dos recursos especial e extraordinrio, tambm quando a deciso divergir do julgamento proferido por outra turma, pela seo ou pelo rgo especial. mais uma medida que atende ao esprito das ltimas reformas do sistema processual civil brasileiro.

4. Efeito obstativo dos precedentes reviso de decises Atualmente, o sistema recursal brasileiro padece de mal grave e de difcil soluo28. Compatibilizar a busca por decises mais perfeitas com o direito a uma prestao jurisdicional clere no meta fcil e tem ocupado a ateno do legislador nos ltimos anos. Na busca do ponto de equilbrio entre esses interesses colidentes, so constantes as inovaes legislativas que atribuem aos precedentes judiciais, em especial aqueles proferidos pelos tribunais superiores, o efeito de impedir a apreciao de recursos e de dispensar as remessas necessrias. So os chamados precedentes obstativos da reviso de decises29.

4.1. O julgamento monocrtico pelo relator (arts. 557, caput e 1-A, 527, I e 544, 3, CPC) Uma das primeiras atuaes do legislador ptrio no sentido de atribuir aos precedentes judiciais efeito obstativo da impugnao de decises ocorreu com a edio da Lei n 8.038, de maio de 1990, que, em seu art. 38, atribuiu poderes ao relator dos recursos ajuizados perante o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justia para negar seguimento aqueles que contrariassem a jurisprudncia desses mesmos tribunais. Em seguida, o legislador ptrio editou a Lei n 9.756/98, que deu nova redao ao 3 do art. 544 e ao art. 557 do Cdigo de Processo Civil. Os referidos dispositivos legais ampliaram os poderes dos relatores de recursos interpostos junto aos demais tribunais, permitindo-lhes negar seguimento a recurso que contrariar no apenas smula do tribunal do qual faz parte, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior, mas tambm jurisprudncia dominante no sumulada desses tribunais. Autorizaram-lhes ainda a prover, desde logo, o prprio recurso, caso a deciso impugnada tenha contrariado smula ou jurisprudncia dominante do Supremo Tribunal Federal ou de Tribunal Superior.

4.2. A smula de tribunal superior e jurisprudncia do plenrio do STF impeditivas de reexame necessrio (art. 475, 3, CPC) Em 2001, foi editada a Lei n 10.352/01 que inseriu no sistema a smula de tribunal superior e jurisprudncia do plenrio do Supremo Tribunal Federal impeditivas de reexame necessrio, conforme dispe o 3 do art. 475 do Cdigo de Processo Civil: 86

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Art. 475. Est sujeita ao duplo grau de jurisdio, no produzindo efeito seno depois de confirmada pelo tribunal, a sentena: [...] 3 Tambm no se aplica o disposto neste artigo quando a sentena estiver fundada em jurisprudncia do plenrio do STF ou em Smula deste tribunal ou do tribunal superior competente.

A necessidade de imprimir celeridade ao sistema e reduzir o nmero de processos no judicirio justificou a atuao do legislador no sentido de imprimir tese jurdica exposta na fundamentao de alguns julgados o efeito de influir at em processos nos quais os interesses da prpria Fazenda Pblica, objeto de maior proteo pela legislao processual, estejam em jogo. Trata-se de mais uma medida que prioriza a soluo da chamada crise do judicirio, inclusive dos Tribunais Superiores, ainda que, sob certo ponto de vista, sacrificando interesses do Estado. Registre-se que o enunciado da smula n. 253 do Superior Tribunal de Justia estendeu ao relator do reexame necessrio a prerrogativa prevista pelo 2 do art. 557 do Cdigo de Processo Civil, facultando-lhe tambm a reformar, desde logo, a deciso objeto do reexame quando ela destoar da jurisprudncia dominante. Esse entendimento atende tanto ao objetivo de proporcionar maior efetividade e brevidade prestao jurisdicional, quanto aos interesses materiais da Fazenda Pblica.

4.3. A smula impeditiva de recurso (art. 518, 1, CPC) Para manter a unidade e coerncia sistemtica com o dispositivo legal que autoriza ao juiz dispensar a remessa necessria, quando a sentena estiver em conformidade com smula dos tribunais superiores, foi introduzido pela Lei n 11.276/2006 o 1 do art. 518 ao Cdigo de Processo Civil. Este dispositivo conferiu tambm aos juzes de primeira instncia os poderes j atribudos aos relatores dos recursos, autorizando-lhes a no processar o recurso de apelao quando a sentena estiver em conformidade com smula do Superior Tribunal de Justia ou do Supremo Tribunal Federal. a chamada smula impeditiva de recurso. A aludida norma conferiu ao juiz competncia para julgar, pela segunda vez, o mrito da apelao. Quando verifica se a sentena foi proferida em conformidade com smula dos tribunais superiores e nega seguimento ao recurso, o magistrado o faz por razes de mrito; ele, na verdade, nega provimento ao recurso30. Isso ressalta ainda mais a importncia das decises dos tribunais superiores, principalmente as do STF e do STJ, porque devem ser proferidas com a viso exata de seu contedo de mrito e com a dimenso correta de sua eficcia temporal: sero paradigmas.31 Trata-se de regra que atende ao princpio da economia processual, pois impede o gasto intil de tempo com a remessa dos autos ao tribunal nos casos em que o improvimento da apelao ser certo, irremedivel, pois fundado em posicionamento consolidado dos tribunais superiores. Analisadas algumas das alteraes realizadas na legislao processual cvel nos ltimos anos, cujo objetivo foi a diminuio do tempo de litispendncia e do nmero de processo em tramitao nas instncias excepcionais, por meio da atribuio de efeitos obstativos aos recursos, resta evidenciar o resultado prtico desse esforo legislativo. Os dados obtidos junto ao Supremo Tribunal Federal demonstram que os resultados 87

ENTRE ASPAS prticos das alteraes empreendidas pela Lei n 9.756/98 que atribui poderes aos relatores dos recursos para frear os processos ainda nas instncias ordinrias no foram, de logo, to satisfatrios. Isso porque, antes da entrada em vigor da lei, em 1998, foram distribudos 20.595 recursos extraordinrios, tendo havido 18.205 julgamentos; em 1999, diante da nova disciplina, foram distribudos 22.280 recursos extraordinrios, tendo havido 19.730 julgamentos; e, em 2000, foram 29.196 recursos extraordinrios distribudos e 28.898 julgamentos32. Todavia, nos ltimos anos, os resultados se tornaram mais satisfatrios, diante das novas medidas adotadas para reduzir o nmero de processos em trmite nas instncias superiores. Em 2008, o total de recursos extraordinrios distribudos no Supremo Tribunal Federal j foi para 21.531 e o nmero de julgamentos foi de 45.136 e, em 2009, foi reduzido para apenas 8.348. Esses resultados demonstram que a atribuio de eficcia, em grau cada vez maior, ao precedente, ao que parece, est comeando a desafogar as instncias superiores, atuando, por conseguinte, como um importante instrumento de aprimoramento na prestao da tutela jurisdicional. O tempo ainda h de responder se essas medidas atendero tambm a outras demandas do judicirio brasileiro. Atenta aos resultados prticos da atribuio de efeitos obstativos aos recursos, a comisso responsvel pela elaborao do novo Cdigo de Processo Civil incluiu, no projeto de lei n 166/2010, a previso de uma sucumbncia recursal, nas hipteses de recursos manifestamente infundados, como aqueles que contrariem teses firmadas em smulas dos tribunais superiores, teses fixadas em deciso de mrito de recursos com repercusso geral, recursos repetitivos ou incidente de resoluo de demandas repetitivas, bem como jurisprudncia dominante dos tribunais superiores, ainda no sumuladas33. Trata-se de mais um instrumento que imprime fora aos precedentes judiciais como meio de reduzir o nmero de processos nas instncias superiores e solucionar a crise do judicirio brasileiro; resta acompanhar se os magistrados brasileiros vo saber aproveit-lo.

5. A evoluo do efeito vinculante e sua importncia para a atuao do Poder Judicirio O direito brasileiro j apresenta significativas manifestaes da aplicao da teoria do precedente vinculante, cuja anlise torna mais claros os contornos que o instituto ganhou no nosso ordenamento.

5.1. Controle concentrado de constitucionalidade: a transcendncia dos motivos determinantes O instituto do efeito vinculante foi introduzido no Brasil por meio da emenda constitucional n 03/93, que atribuiu s decises proferidas em sede de ao declaratria de constitucionalidade, eficcia contra todos (erga omnes) e efeito vinculante junto aos demais rgos do Judicirio e da Administrao Pblica. Posteriormente, a Lei n 9.868/99 estendeu o efeito vinculante tambm ao direta de inconstitucionalidade, o que foi confirmado, por fim, pela emenda constitucional n 45/04 que deu nova redao ao 2 do art. 102 da Constituio Federal. preciso analisar, contudo, qual o objeto do efeito vinculante, isto , se ele restringe-se ao dispositivo da deciso na qual examinada a inconstitucionalidade de determinada lei ou 88

A REVISTA DA UNICORP ato normativo, ou se transcende a deciso em sentido estrito, alcanando os seus fundamentos determinantes. A Corte constitucional alem sempre se posicionou no sentido de que o efeito vinculante atinge tambm os fundamentos determinantes da deciso (trangende Grnde), os quais devem ser observados por todos os tribunais no julgamento de casos futuros deciso. O efeito vinculante transcende a parte dispositiva (Urteilstenor; Entscheidungsformel), o caso da norma objeto do controle de constitucionalidade, de modo que seus fundamentos determinantes, a ratio decidendi subjacente ao julgado, vinculam tambm o controle de constitucionalidade de normas semelhantes34. No ordenamento jurdico brasileiro, no h previso expressa na mesma linha do direito alemo, mas predominante a posio doutrinria e a jurisprudencial tem caminhado no mesmo sentido que estende o efeito vinculante regra de direito extrada dos motivos determinantes da deciso proferida em sede de controle concentrado de constitucionalidade35. Sob esse prisma, os destinatrios do efeito vinculante devem observar a prpria regra de direito que se extrai dos fundamentos determinantes da deciso, no podendo reproduzir em substncia o ato declarado inconstitucional, manter outros atos de contedo semelhante e adotar via interpretativa diversa daquela acolhida pelo Supremo Tribunal Federal36. Nada obstante a coerncia desse entendimento, o Supremo Tribunal Federal vinha entendendo que o efeito vinculante no alcanava os motivos determinantes da deciso, conforme afirma o MINISTRO MOREIRA ALVES, em julgado paradigmtico, proferido na ao declaratria de constitucionalidade ADC n. 1/DF e publicado no Dirio de Justia da Unio de 16 de junho de 1995. Em seu voto, contudo, apresentou um paradoxo, pois, ao mesmo tempo em que se sustentou a restrio do efeito vinculante parte dispositiva da deciso, afirmou que ela alcana os atos normativos de igual contedo daquele que deu origem a ao, mas que no foram seu objeto. A contradio evidente: se a deciso se estende aos demais atos normativos de igual contedo, o efeito vinculante logicamente transcende a parte dispositiva da deciso, cuja nica atribuio a de expressar o resultado decisrio da deciso, definindo se aquela determinada lei ou ato normativo questionado inconstitucional37. Mais recentemente, o Supremo Tribunal Federal passou a reconhecer explicitamente a extenso do efeito vinculante aos motivos determinantes da deciso proferida em sede de controle abstrato de constitucionalidade. A ttulo exemplificativo, cita-se a ao declaratria de inconstitucionalidade n. 1.66238, na qual foi declarada a inconstitucionalidade dos itens III e XIII da Instruo Normativa n. 11/ 97, aprovada pelo rgo Especial do Superior Tribunal do Trabalho, sob o fundamento de que a preterio do direito de preferncia a nica hiptese prevista constitucionalmente que autoriza o sequestro de rendas pblicas. Reconhecendo o efeito vinculante da aludida ratio decidendi, o Supremo Tribunal Federal julgou procedente a reclamao n. 1.98739, para cassar ato da juza do TRT da 10 Regio que determinou o sequestro de recursos pblicos para pagamento de precatrios vencidos40. Essa viso do fenmeno da transcendncia dos motivos determinantes da deciso proferida em sede de controle concentrado de constitucionalidade acompanha uma tendncia do direito brasileiro que evolui no sentido de atribuir cada vez mais autoridade aos precedentes judiciais e esta deciso nada mais do que um precedente judicial cuja ratio decidendi obrigatoriamente aplicada aos atos normativos semelhantes41. Revela-se aqui mais uma manifestao do que se poderia denominar de stare decisis brasileiro42. 89

ENTRE ASPAS 5.2. Precedentes oriundos do pleno do STF: uma consequncia da objetivao do controle difuso de constitucionalidade Tradicionalmente, se atribua a declarao de inconstitucionalidade da lei proferida pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de controle difuso, efeitos apenas entre as partes e restritos ao caso concreto. Cabia ao Senado Federal ampliar esses efeitos, suspendendo a execuo da lei declarada inconstitucional, nos termos do art. 52, inciso X, da Constituio Federal. Recentemente, contudo, tem sido proposta uma releitura dos institutos do controle difuso de constitucionalidade43. Quando o controle de constitucionalidade incidental foi concebido no Brasil, em 1934, existia uma concepo acerca da diviso de poderes que exigia a participao do Senado Federal para que as decises proferidas no caso concreto produzissem efeitos para todos; entendia-se que, se no fosse assim, o judicirio estaria invadindo a esfera de competncia do legislativo44. O Supremo Tribunal Federal sustentava que a suspenso da execuo da lei declarada inconstitucional era uma faculdade do Senado, que, embora no fosse obrigado a expedir o ato de suspenso, tambm no poderia restringir ou ampliar a extenso do julgado por ele proferido45. Com a introduo do controle concentrado de normas no ordenamento jurdico brasileiro, o controle difuso perdeu parte de sua importncia, o que foi acentuado com o advento da Constituio Federal de 1988 que ampliou significativamente a legitimao para propositura da ao direta de inconstitucionalidade. O novo texto constitucional, em seu art. 103, autorizou que, praticamente, todas as controvrsias constitucionais relevantes fossem submetidas diretamente apreciao do Supremo Tribunal Federal, por meio do controle concentrado de normas46, operando uma mudana substancial no modelo de controle de constitucionalidade at ento vigente no Brasil. O sistema que atribui ao Senado a funo de suspender a execuo da lei ou ato normativo declarado inconstitucional no se mostrou apto a gerar segurana para o direito brasileiro47. Por exemplo, esse instituto mostrou-se inadequado para assegurar efeito vinculante das decises do Supremo Tribunal Federal que no declaram a inconstitucionalidade de uma lei, limitando-se a fixar a orientao constitucionalmente adequada ou correta. Nessas hipteses, em que adotada uma interpretao conforme a Constituio ou declarada uma inconstitucionalidade parcial sem reduo de texto, a suspenso da execuo da lei ou ato normativo pelo Senado revela-se intil, porque no h dispositivo a ser afastado, mas tosomente um de seus significados48. O Supremo Tribunal Federal, ento, passou a imprimir cada vez mais eficcia declarao de inconstitucionalidade proferida em sede de controle difuso, transformando o recurso extraordinrio que o instrumento tpico dessa espcie de controle tambm em instrumento de controle abstrato49. Embora, normalmente, o controle difuso de constitucionalidade das leis ou atos normativos esteja relacionado ao controle concreto de constitucionalidade, eles so coisas distintas50. A propsito, imprescindvel esclarecer esses conceitos. Quanto ao critrio subjetivo, o controle judicial de constitucionalidade poder ser difuso ou concentrado. O primeiro aquele que pode ser realizado por qualquer juiz ou tribunal, observadas as regras de competncia; o segundo est concentrado em um ou mais de um (embora em nmero limitado) rgo cuja competncia para realizao do controle originria. Sob o critrio formal, por sua vez, o controle poder ser realizado pela via incidental ou pela via principal. Chama-se de controle incidental (ou concreto) aquele realizado luz das peculiaridades do caso 90

A REVISTA DA UNICORP concreto, como questo prejudicial e premissa lgica do pedido principal; j no controle pela via principal (abstrato), a anlise da constitucionalidade feita em tese e ser o objeto principal da causa51. Em regra, o controle abstrato feito de forma concentrada pelo Supremo Tribunal Federal, por meio das ADIN, ADC e ADPF; e o controle concreto de forma difusa. No h, contudo, nenhum bice a que o controle de constitucionalidade difuso seja realizado de forma abstrata nesse caso, a anlise da constitucionalidade ser feita em tese, mas por qualquer rgo judicial. Como no controle difuso no h pedido acerca da declarao de inconstitucionalidade, a deciso no ficar acobertada pela coisa julgada material e ser eficaz entre as partes. Mas, o tribunal ficar vinculado a adotar o mesmo posicionamento em outras situaes semelhantes52. Transforma-se, assim, o caso em precedente judicial vinculante, cuja fundamentao na qual se aprecia a inconstitucionalidade da lei transcende para vincular a deciso a ser proferida em outros casos. Quando a anlise da constitucionalidade da lei feita em abstrato, por meio do recurso extraordinrio, ocorre a chamada objetivao do controle difuso de constitucionalidade53. Em diversas manifestaes, a legislao tambm passou a consolidar frmulas que retiraram do instituto da suspenso da execuo da lei pelo Senado Federal significado substancial, tornando o controle difuso de constitucionalidade mais abstrato. O primeiro exemplo foi a dispensa dos rgos constitucionais de outras cortes de submeter a declarao de inconstitucionalidade ao plenrio ou ao rgo especial, quando j houver manifestao do Supremo Tribunal Federal sobre o tema54. Essa orientao conferiu uma eficcia mais ampla de certa forma at vinculante fundamentao do julgado proferido pelo Plenrio do Supremo, no controle difuso de constitucionalidade, e foi, em seguida, consagrado no art. 481 do Cdigo de Processo Civil (Lei n 9.756/98). A Lei n 8.038, de 1990, concedeu ao relator a faculdade de negar seguimento a recurso que contrariasse smula do STF ou do STJ, prerrogativa que fora ampliada pela Lei n. 9.756/98, que autorizou ao relator a dar provimento ao recurso se a deciso recorrida estivesse em manifesto confronto com smula ou com a jurisprudncia dominante (art. 557, 1-A, CPC). Mais uma vez, o legislador ampliou os efeitos das decises proferidas pelo Supremo, at mesmo em sede de controle difuso de constitucionalidade, hiptese cuja ampliao de efeitos estaria submetida interveno do Senado. A Lei n 9.868/99 introduziu o 3 ao art. 482 do Cdigo de Processo Civil e estabeleceu que o relator poder admitir a manifestao de outros rgos e entidades no procedimento do controle difuso de constitucionalidade, considerando a relevncia da matria e a representatividade dos postulantes. Trata-se da figura do amicus curiae palavra cuja raiz etimolgica reportar-se a amigo da corte , que atua com o objetivo de auxiliar o tribunal. Por fim, a emenda constitucional n. 45 incluiu o art. 103-A na Constituio Federal de 1988, criando a chamada smula vinculante, que poder ser editada aps reiteradas decises do Supremo Tribunal Federal sobre matria constitucional. A smula vinculante, ao contrrio do que ocorre no processo objetivo, decorre de decises tomadas em casos concretos, no modelo incidental, no qual tambm existe, no raras vezes, reclamo por soluo geral.55 Essas smulas, contudo, acabaro por dotar de efeito vinculante o entendimento adotado pela Corte Suprema, em sede de controle difuso de constitucionalidade56. Esse panorama marca uma evoluo do sistema de controle de constitucionalidade brasileiro que passa praticamente a equiparar os efeitos das decises proferidas em sede de controle difuso e concentrado de constitucionalidade, possibilitando-se a discusso sobre o cabimento da reclamao constitucional para abranger tambm as hipteses de desobedincia 91

ENTRE ASPAS s decises tomadas pelo pleno do Superior Tribunal de Justia em controle difuso de constitucionalidade57. Adotando posicionamento contrrio objetivao do controle difuso, LENIO STRECK e MARCELO ANDRADE CATTONI DE OLIVEIRA sustentam que o modelo de participao democrtica nesse procedimento depende tambm da atribuio constitucional deixada ao Senado Federal. Excluir a atuao do Senado ou restringir o seu papel a dar publicidade ao entendimento do Supremo Tribunal Federal significaria reduzir as suas atribuies de uma secretaria de divulgao intra-legistativa das decises do Supremo. Isso terminaria por retirar do processo de controle difuso qualquer possibilidade de chancela dos representantes do povo deste referido processo, o que no parece ser sequer sugerido pela Constituio da Repblica de 198858. O caso paradigmtico sobre o tema da ampliao dos efeitos da deciso proferida em sede de controle difuso de constitucionalidade, independentemente da interveno do Senado, a reclamao constitucional n 4335, no bojo da qual est sendo discutida a utilizao desse instrumento para impor a vinculao vertical das decises proferidas em sede de controle difuso de constitucionalidade. No caso analisado, o Juiz de Direito da Vara de Execues da Comarca de Rio Branco, no Estado do Acre, denegou a concesso do benefcio da progresso de regime, nos casos de crimes hediondos, no obstante o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do habeas corpus n 82.959, tenha reconhecido incidentalmente (por seis votos a cinco) a inconstitucionalidade do art. 2, pargrafo primeiro, da Lei n 8.072/90, que veda a progresso de regime de cumprimento de pena nessa espcie de crimes. Em seu voto, o Ministro relator GILMAR FERREIRA MENDES entendeu que a recusa do Juiz de Direito da Vara de Execues da Comarca de Rio Branco, no Estado do Acre, em conceder o benefcio da progresso de regime, nos casos de crimes hediondos, desrespeita a eficcia erga omnes que deve ser atribuda deciso proferida pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC n 82.959. Nesse passo, sustenta ter havido uma mutao constitucional no art. 52, inciso X, da Constituio Federal, na medida em que o papel do Senado Federal no controle difuso de constitucionalidade teria se restringido apenas a dar publicidade s decises proferida pelo Supremo Tribunal Federal59. Caso o aludido voto seja confirmado pelos ministros que ainda no se manifestaram, estar-se- com o caminho aberto para o cabimento de reclamao contra qualquer deciso que contrarie interpretao do Tribunal, provocando imediata reinterpretao de vrios institutos constitucionais60. Com isso, o controle difuso de constitucionalidade ser definitivamente objetivado, estabelecendo-se mais uma hiptese de vinculao dos precedentes do Supremo Tribunal Federal.

5.3. A smula vinculante (art. 103-A, CF) A emenda constitucional n 45, de 30 de dezembro de 2004, visando emprestar ainda mais fora aos precedentes judiciais, introduziu no ordenamento jurdico brasileiro a chamada smula vinculante do Supremo Tribunal Federal, que foi concebida como mecanismo de acelerao dos julgamentos, em decorrncia do bice a demandas fulcradas em teses jurdicas j pacificadas na jurisprudncia dominante61. A inovao jurdica est prevista no art. 103 da Constituio Federal. A caracterstica mais importante dessa inovao consiste exatamente no seu efeito vinculante em relao aos demais rgos do Poder Judicirio e Administrao Pblica. Isso 92

A REVISTA DA UNICORP porque, como a administrao atualmente a principal litigante do pas, sua vinculao aos precedentes judiciais poderia reduzir significativamente o nmero de demandas em curso62. Isso torna a smula vinculante uma das solues mais promissoras para o problema da crise do Judicirio. Resta saber se o Poder Pblico vai aplicar voluntariamente o entendimento sumulado; caso contrrio, haver um sem nmero de reclamaes, o que tornar o processamento delas moroso e a aplicao do efeito vinculante, por conseguinte, invivel63. Para ser efetiva, a smula vinculante necessita de instrumentos sancionatrios que busquem coibir condutas discrepantes com seus enunciados. Nesse passo, o art. 103, 3, da Constituio Federal prev que, se no estiver em conformidade com o texto da smula, o ato administrativo ser anulado e a deciso judicial cassada pelo prprio Supremo Tribunal Federal, por meio da reclamao constitucional. Este, contudo, no o nico instrumento processual cabvel, podendo o particular se valer tambm de qualquer outro meio de impugnao. No caso de ato ou omisso da Administrao Pblica, o uso da reclamao s ser admitido aps o esgotamento das vias administrativas. Dessa forma, busca-se contornar um novo congestionamento do Supremo Tribunal Federal, por conta de inmeras reclamaes constitucionais ajuizadas em razo de descumprimento de smula vinculante64. O descumprimento da smula vinculante tambm poder gerar a responsabilizao pessoal do agente administrativo. Conforme prev expressamente o art. 9 da Lei n 11.417/ 2006, se a reclamao fundada em violao de enunciado de smula vinculante for acolhida pelo Supremo Tribunal Federal, o agente administrativo responsvel dever, a partir desse momento, adotar a orientao do tribunal a outros casos semelhantes que vier a apreciar, sob pena de ser pessoalmente responsabilizado nas esferas cvel, penal e administrativa65. Trata-se de uma espcie de efeito transcendente da fundamentao do julgado proferido em sede de reclamao constitucional, mais um exemplo de indiscutibilidade de questes incidentais, nesse caso, na seara administrativa. Para que o enunciado de uma smula vinculante seja editado, devem ser atendidos alguns pressupostos objetivos: i) decises reiteradas sobre matria constitucional; ii) controvrsia atual entre rgos judicirios ou entre a administrao pblica; iii) discusses sobre a validade, a interpretao e a eficcia de normas determinadas; iv) grave insegurana jurdica e relevante multiplicao de processos sobre questo idntica66. O qurum para aprovao, cancelamento e reviso da smula de dois teros dos membros do Supremo Tribunal Federal e seu procedimento est regulamentado nas resolues n 381/2008 e n 388/2008 do STF. A adoo da smula vinculante mais um passo para a interseco dos dois sistemas, o common law e o civil law, o que, para o Brasil, abeberando-se da experincia de outros pases sem preconceitos, pode ser de grande valia.67 Mas, embora seja certo que ela trar enormes benefcios, certo tambm que ela no ser e definitivamente no est sendo a soluo milagrosa para a crise do Judicirio brasileiro.

5.4. A smula dos tribunais e sua eficcia vinculante em relao aos prprios tribunais Por disposio regimental, os enunciados das smulas so vinculantes em relao ao prprio tribunal que as emitiu, pois, apesar de ser dividido em rgos fracionais e ser composto por diversos julgadores, o tribunal deve ser considerado apenas um rgo. Sob essa perspec93

ENTRE ASPAS tiva, os juzes e rgos fracionrios devem seguir o entendimento do tribunal como um todo, consubstanciado na smula de sua jurisprudncia. Nesse sentido, cita-se os arts. 21, 268 e 102, caput e 469, do Regimento do Supremo Tribunal Federal e os arts. 3470 e 12471 do Regimento do Superior Tribunal de Justia.

5.5. A repercusso geral e a objetivao do recurso extraordinrio (art. 543-A, 5 e art. 543-B, CPC) A emenda constitucional n 45/2004 acrescentou o 3 ao art. 102 da Constituio Federal, introduzindo no direito brasileiro mais um requisito de admissibilidade do recurso extraordinrio, consubstanciado na exigncia de que o recorrente demonstre a relevncia da questo constitucional veiculada no recurso extraordinrio, sob o prisma econmico, poltico, social ou jurdico, a fim de ensejar o conhecimento do recurso pelo Supremo Tribunal Federal, em virtude do superior interesse da preservao do direito objetivo72. Seguindo a tendncia apontada nos ltimos tpicos deste trabalho, no sentido de atribuir efeitos vinculativos aos precedentes judiciais oriundos do Supremo Tribunal Federal, a Lei n 11.418/2006 introduziu o 5 ao art. 543-A do Cdigo de Processo Civil, estabelecendo que, negada a existncia da repercusso geral, a deciso valer para todos os recursos sobre matria idntica, que sero indeferidos liminarmente, salvo no caso de reviso da tese. Embora o exame da repercusso geral seja atribuio exclusiva do plenrio do Supremo Tribunal Federal73, nessas hipteses, admite-se que o prprio presidente do tribunal de origem, o relator ou rgo fracionrio do Supremo Tribunal Federal negue seguimento ao recurso, por ausncia de repercusso geral. O legislador estabeleceu aqui mais uma hiptese em que o pronunciamento do plenrio do Supremo Tribunal Federal no caso, sobre a repercusso geral de determinada questo vincula os demais rgos do tribunal, dispensando que a questo seja submetida a nova apreciao do plenrio, em recurso extraordinrio cuja amplitude da repercusso j tenha sido examinada74. O controle de constitucionalidade realizado nesses casos concretos produz eficcia pan-processual, ultrapassando os interesses subjetivos nele deduzidos e se tornando um instrumento de objetivao do recurso extraordinrio75. Tambm nessa linha, o art. 543-B do Cdigo de Processo Civil76, cuja redao foi igualmente acrescentada pela Lei n 11.418/06, instituiu outra hiptese de vinculao aos precedentes do Supremo Tribunal Federal, no que concerne ao exame da repercusso geral. Trata-se do incidente de anlise da repercusso geral por amostragem, nos moldes do que j existia para o julgamento do recurso extraordinrio proveniente de Juizado Especial Federal (art. 321, 5, RISTF). Com base nesse dispositivo, quando houver uma multiplicidade de recursos extraordinrios com fundamento em idntica controvrsia, o presidente ou vice-presidente do tribunal de origem poder selecionar alguns recursos representativos de uma determinada questo constitucional (da controvrsia), sobrestando o processamento dos demais at que o Supremo Tribunal Federal julgue definitivamente os recursos selecionados. Contra a deciso na qual imposta a suspenso do processamento de determinado recurso cabe agravo de instrumento, nos termos do art. 544 do Cdigo de Processo Civil, demonstrando-se que aquele recurso no se insere no rol de recursos com fundamento em idntica controvrsia selecionados pelo rgo a quo77. 94

A REVISTA DA UNICORP Se for negada a existncia da repercusso geral, todos os recursos que no subiram sero reputados como no conhecidos. Trata-se de tpica hiptese de julgamento por amostragem. Por outro lado, reconhecida a existncia da repercusso geral e julgado o mrito do recurso extraordinrio, os Tribunais podero retratar-se, se o recurso representativo da controvrsia foi provido, ou declar-lo prejudicado, se no o foi. Se no houver retratao, o Supremo Tribunal Federal poder reformar, liminarmente, o acrdo contrrio a sua orientao. A tese jurdica definida nos recursos selecionados, portanto, produzir efeitos para alm do processo, vinculando outras demandas78. Tendo em vista o efeito vinculante da deciso proferida no procedimento de anlise da repercusso geral, a interveno dos interessados os chamados amicus curiae se torna indispensvel como garantia do devido processo legal e do contraditrio79. Como a deciso proferida no recurso indicativo da controvrsia produzir efeitos em relao a todos outros recursos que ficaram sobrestados no tribunal de origem, nada mais razovel que permitir a interveno desse auxiliar do juzo, que pluraliza o debate dos principais temas de direito constitucional80. Nesse sentido, o art. 543-A, 6, do Cdigo de Processo Civil prev que o relator poder admitir, na anlise da repercusso geral, a manifestao de terceiros, subscrita por procurador habilitado. O incidente de anlise da repercusso geral por amostragem um procedimento de carter objetivo e de significativo interesse pblico, pois os motivos determinantes da deciso nele proferida vincularo o julgamento de diversos outros recursos, refletindo sobre os interesses de inmeras pessoas81. Resta clara, portanto, a objetivao desses recursos extraordinrios representativos da controvrsia e a vinculao vertical dos demais rgos judiciais interpretao realizada pela Corte Constitucional.82

5.6. Julgamento dos recursos especiais repetitivos (art. 543-C, CPC) semelhana do incidente de anlise da repercusso geral por amostragem, a Lei n 11.672/2008 introduziu no ordenamento jurdico brasileiro a tcnica de julgamento de recursos especiais repetitivos. De acordo com ela, quando houver multiplicidade de recursos especiais com fundamento na mesma questo de direito, o tribunal de origem selecionar um ou mais recursos e os encaminhar ao Superior Tribunal de Justia, sobrestando os demais recursos at o pronunciamento definitivo da corte superior83 (art. 543-C, caput e 1, CPC). Conforme dispe o art. 543-C, 7 e 8 do Cdigo de Processo Civil, uma vez conhecidos e providos os recursos especiais selecionados, o tribunal de origem poder: i) manter a deciso recorrida, hiptese na qual o recurso dever ter sua admissibilidade examinada, sendo, em seguida, encaminhado ao tribunal superior; ii) realizar o juzo de retratao para seguir o entendimento do Superior Tribunal de Justia84. Por outro lado, caso o acrdo recorrido coincida com a orientao do Superior Tribunal de Justia, os recursos sobrestados tero seguimento denegado. Nesse caso, a norma jurdica geral exposta na fundamentao do acrdo vincular o julgamento dos recursos sobrestados. A tcnica de julgamento dos recursos repetitivos, contudo, no tem sido eficaz na prtica, pois, na hiptese de provimento do recurso especial julgado por amostragem, os tribunais de origem tm mantido seus acrdos, no exercendo o juzo de retratao para seguir o entendimento do Superior Tribunal de Justia. Assim o fazem, sem demonstrar a razo por que a ratio decidendi exposta na fundamentao do julgado proferido por amostragem no se 95

ENTRE ASPAS aplica ao caso concreto, ou seja, sem realizar qualquer distino entre o recurso julgado por amostragem e o caso concreto (distinguish) e tambm sem demonstrar a superao do precedente (overruling ou overriding)85. Diante dessa situao, o Superior Tribunal de Justia tem determinado o retorno dos autos aos tribunais de origem, para que eles reconsiderem seus acrdos adotando o posicionamento fixado no julgamento dos recursos por amostragem ou, caso resolvam mantlos, demonstrem as razes pelas quais aquela ratio decidendi no se aplica ao caso concreto. De fato, no se deve admitir que o Tribunal de origem profira outra deciso na qual simplesmente confirma a tese jurdica j rejeitada pelo tribunal superior, sem apresentar qualquer justificativa para tanto. Essa postura viola no s o dever de fundamentar todas as decises judiciais (art. 93, IX, CF), como tambm retira a autoridade do Superior Tribunal de Justia86. Atenta a essa realidade, a comisso responsvel pela elaborao do projeto de lei n 166/2010, do Novo Cdigo de Processo Civil, props a criao de instituto denominado incidente de resoluo de demandas repetitivas, prevendo o cabimento de reclamao para o tribunal competente caso a ratio decidendi fixada no caso paradigma no seja aplicada pelo tribunal de origem87. O aludido incidente ser cabvel quando houver controvrsia com potencial de gerar relevante multiplicao de processos fundados em idntica questo de direito e de causar grave insegurana jurdica, decorrente do risco de coexistncia de decises conflitantes88. Admitido o incidente, ser suspenso o processamento dos processos pendentes em primeiro e segundo grau de jurisdio89. A tese jurdica fixada na fundamentao do julgado proferido no bojo do incidente dever ser aplicada a todos os processos que versem sobre a mesma questo de direito90, vinculando a soluo a ser dada a essas demandas. A proposta do projeto de lei n 166/2010 apenas confirma uma tendncia legislativo-reformista do pas no sentido de emprestar cada vez mais efeitos vinculativos aos precedentes judiciais como forma de viabilizar uma prestao jurdica mais clere e efetiva. Resta saber se os rgos do judicirio e a administrao pblica vo reagir bem a essas inovaes legislativas.

6. Concluso 1. O precedente a deciso judicial construda no caso concreto, cuja norma jurdica geral (ratio decidendi) pode servir de diretriz para o julgamento de casos anlogos. Antes de aplicar o precedente, o magistrado deve verificar se o caso concreto se aproxima do caso paradigma, confrontando os elementos objetivos de ambas as aes. Haver distinguish se eles forem distintos, seja porque no h semelhana entre os fatos que deram suporte ao paradigma e aqueles objeto do caso concreto, seja porque, apesar da semelhana, alguma peculiaridade no caso analisado afasta a aplicao do precedente. 2. Os precedentes persuasivos so aqueles que possuem apenas fora moral sobre os demais juzos e tribunais, no impondo obrigatria obedincia e podendo ser constantemente revistos por iniciativa tanto dos rgos jurisdicionais, quanto das partes. No ordenamento jurdico brasileiro, possvel verificar um gradual reconhecimento pelo prprio legislador da fora persuasiva do precedente. 3. Os precedentes obstativos da reviso de decises judiciais so aqueles que produzem o efeito de impedir a apreciao de recursos e dispensar as remessas necessrias. Muitas foram as alteraes legislativas que atriburam tais efeitos aos precedentes judiciais. O princi96

A REVISTA DA UNICORP pal exemplo foi a ampliao dos poderes dos relatores de recursos interpostos junto aos tribunais, permitindo-lhe negar seguimento a recurso que contrariar smula ou jurisprudncia dominante do tribunal do qual fazem parte, do STF ou do STJ. 4. Em 2001, foi editada a Lei n 10.352/01 que inseriu no sistema a smula de tribunal superior e jurisprudncia do plenrio do Supremo Tribunal Federal impeditivas de reexame necessrio, conforme dispe o 3 do art. 475 do CPC. A Lei n 11.276/2006 introduziu no ordenamento jurdico brasileiro a chamada smula impeditiva de recurso (art. 518, 1, CPC), conferindo tambm aos juzes de primeira instncia os poderes j atribudos aos relatores dos recursos e autorizando-lhes a no processar o recurso de apelao quando a sentena estiver em conformidade com smula do Superior Tribunal de Justia ou do Supremo Tribunal Federal. 5. O precedente dotado de autoridade vinculante (binding autority) quando produz o efeito de vincular os julgados que, em situaes anlogas, lhe forem supervenientes. Nesses casos, a norma jurdica geral estabelecida na fundamentao de determinados julgados (a ratio decidendi) que tem o condo de vincular decises posteriores, obrigando os rgos jurisdicionais a adotarem aquela mesma tese jurdica na fundamentao dos seus julgados. 6. predominante a posio doutrinria e jurisprudencial que estende o efeito vinculante da deciso proferida em sede de controle concentrado de constitucionalidade regra de direito extrada de seus motivos determinantes. Ademais, o Supremo Tribunal Federal tem atribudo cada vez mais eficcia declarao de inconstitucionalidade proferida em sede de controle difuso, transformando o recurso extraordinrio em instrumento de controle abstrato. A emenda constitucional n. 45/2004, visando emprestar ainda mais fora aos precedentes judiciais, introduziu no ordenamento jurdico brasileiro a chamada smula vinculante do Supremo Tribunal Federal. 7. A Lei n 11.418/2006 introduziu o 5 ao art. 543-A do CPC, estabelecendo que, negada a existncia da repercusso geral, a deciso valer para todos os recursos sobre matria idntica, que sero indeferidos liminarmente, salvo no caso de reviso da tese. Na mesma linha, o art. 543-B do CPC instituiu o incidente de anlise da repercusso geral por amostragem. A Lei n 11.672/2008 introduziu no ordenamento jurdico brasileiro a tcnica de julgamento de recursos especiais repetitivos. Tratam-se de procedimentos de carter objetivo e de significativo interesse pblico e que acompanham uma tendncia do direito brasileiro que evolui no sentido de atribuir cada vez mais autoridade aos precedentes judiciais como forma de tornar mais efetiva a atuao do Poder Judicirio.

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NERY JNIOR., Nelson. Cdigo de Processo Civil Comentado e legislao extravagante. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. ____________________ Boa-f Objetiva e Segurana Jurdica Eficcia da Deciso Judicial que Altera Jurisprudncia Anterior do Mesmo Tribunal Superior. In: NERY JNIOR, Nelson; CARRAZZA, Roque Antnio; FERRAZ JR, Trcio Sampaio (org.). Efeito ex nunc e as decises do STJ. Barueri: Manole, 2009. PIMENTEL, Bernardo. Dos recursos constitucionais: Recursos Ordinrios, Extraordinrio e Especial. Braslia: Braslia jurdica, 2007. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti, Comentrios ao Cdigo de Processo Civil. Tomo II: arts. 46 a 153. Rio de Janeiro: Forense, 1997. SILVA, Celso de Albuquerque. Do efeito vinculante: Sua legitimao e aplicao. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. SOUZA, Marcelo Alves. Do precedente judicial smula vinculante. Curitiba: Juru Editora, 2007. TUCCI, Jos Rogrio Cruz e. Precedente Judicial como fonte do Direito. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, Recurso Extraordinrio e Ao Rescisria. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

Notas ______________________________________________________________________________ 1. DIDIER JR. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil. Salvador: Jus Podivm, 2010. p. 381. v. 2. 2. [...] a segurana e a previsibilidade so valores almejados por ambos os sistemas. Mas, sups-se no civil law que tais valores seriam realizados por meio da lei e de sua estrita aplicao pelos juzes, enquanto que, no common law, por nunca ter existido dvida de que os juzes interpretam a lei e, por isso, podem proferir decises diferentes, enxergou-se na fora vinculante dos precedentes o instrumento capaz de garantir a segurana e a previsibilidade de que a sociedade precisa para desenvolver-se. (MARINONI, Luiz Guilherme. Aproximao crtica entre as jurisdies de civil Law e de common law e a necessidade de respeito aos precedentes no Brasil. Revista Brasileira de Direito Processual RBDPro. Ano 15. n. 59. jul./set. 2007. p. 36). 3. SOUZA, Marcelo Alves. Do precedente judicial smula vinculante. Curitiba: Juru Editora, 2007. p. 310-312. 4. Guilherme Marinoni esclarece que o civil law surgiu no contexto da revoluo francesa, quando a lei seria indispensvel para a realizao da igualdade e da liberdade. Nesse passo, entendeu-se que, se os juzes pudessem produzir decises destoantes da lei, os propsitos revolucionrios estariam perdidos, de modo que manter o juiz preso a lei era sinnimo de segurana jurdica (MARINONI, Luiz Guilherme. Aproximao crtica entre as jurisdies de civil Law e de common law e a necessidade de respeito aos precedentes no Brasil. Revista Brasileira de Direito Processual RBDPro. Ano 15. n. 59. jul./set. 2007. p. 36). Marcelo Alves Dias explica que a organizao do sistema judicial ingls precede ao renascimento do direito romano na Europa, bem assim que os grandes juristas desse sistema tiveram a sua formao nos foros e no nas Universidades, razo por que o Direito anglo-americano um Direito dos Tribunais, enquanto a civil law um Direito das Universidades (SOUZA, Marcelo Alves. Do precedente judicial smula vinculante. Curitiba: Juru Editora, 2007. p. 308-309). 5. Fredie Didier Jr., Paula Sarno Braga e Rafael Oliveira esclarecem que, embora a teoria dos precedentes tenha

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se desenvolvido mais nos pases de origem anglo-saxnico, o precedente uma realidade inerente a qualquer sistema jurdico, quer vinculado famlia do civil law, quer vinculado famlia do comum law. A diferena na verdade est no grau de autoridade que ele possui. (DIDIER JR, Fredie. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil. Salvador: Jus Podivm, 2010. p. 385. v. 2.). 6. TUCCI, Jos Rogrio Cruz e. Precedente Judicial como fonte do Direito. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 280. 7. Para o bem do jurisdicionado e da prpria administrao da justia, o processo deve encerrar-se no menor lapso de tempo possvel. um objetivo a ser perseguido tanto com a adoo de institutos que impeam situaes meramente protelatrias como tambm com a utilizao de mecanismos ou critrios que poupem tempo e energia na soluo dos casos. A tendenza alluniformit della giurisprudenza, como falam os italianos, pela praticidade que existe na imitao ou reproduo de critrios, frmulas ou princpios j antes trabalhados e enunciados um timo mecanismo para alcanar esse desiderato. (SOUZA, Marcelo Alves. Do precedente judicial smula vinculante. Curitiba: Juru Editora, 2007. p. 302-303). 8. Ibid., p. 298 9. A assistncia judiciria gratuita, a gratuidade para litigar nos juizados especiais e outras medidas que, a princpio, buscaram efetivar o direito material de acesso a justia geraram uma verdadeira alucinao pela demanda. Vive-se um perodo no Brasil em que todo o sistema estimula o sujeito a litigar. 10. TUCCI, Jos Rogrio Cruz e. Precedente Judicial como fonte do Direito. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 281. 11. A importncia dos precedentes judiciais na elaborao e desenvolvimento do direito tem crescido sobremaneira nas ltimas dcadas no sistema jurdico ptrio. Paulatinamente, parte da doutrina nacional j tem caminhado para o reconhecimento da jurisprudncia como uma verdadeira fonte formal do nosso sistema legal. A legislatura tambm tem caminhado na direo do fortalecimento da jurisprudncia (...). (SILVA, Celso de Albuquerque. Do efeito vinculante: sua legitimao e aplicao. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2005. p. 141). 12. Fala-se em distinguishing (ou distinguish) quando houver distino entre o caso concreto (em julgamento) e o paradigma, seja porque no h coincidncia entre os fatos fundamentais discutidos e aqueles que serviram de base ratio decidendi (tese jurdica) constante no precedente, seja porque a despeito de existir uma aproximao entre eles, alguma peculiaridade no caso em julgamento afasta a aplicao do precedente. (DIDIER JR, Fredie. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil. Salvador: Jus Podivm, 2010. p. 393. v. 2.). 13. SILVA, op. cit., p. 248. 14. LEITE, Glauco Salomo. Smula vinculante e jurisdio constitucional brasileira. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 50. 15. A impositividade das smulas, no entanto, limita-se sua autoridade moral e persuasiva, ante os fundamentos que lhes so subjacentes e a estatura do rgo que as edita. No gozam, por si s, de autonomia normativa. Sua contribuio uniformidade e estabilidade da jurisprudncia de fato, no de direito. (LEAL, Roger Stiefelmann. O efeito vinculante na jurisdio constitucional. So Paulo: Saraiva, 2006. p. 134.) 16. LEITE, op. cit., p. 53. 17. TUCCI, Jos Rogrio Cruz e. Precedente Judicial como fonte do Direito. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 283. 18. Juvncio Vasconcelos Viana sustenta que o assistente tambm pode provocar o incidente. A expresso parte (pargrafo nico, art. 476, CPC) quer referir-se parte recursal e no somente quele que figure como parte stricto sensu no processo. Alerta ainda o autor que o requerimento da parte para instaurao do incidente no vinculante. (Uma nova uniformizao de jurisprudncia: comentrios ao 1 do art. 555 do CPC. Revista Dialtica de Direito Processual. n. 10. jan. 2004. p. 41). 19. Ibid., p. 39. 20. Nada mais adequado, destarte, que permitir tambm no mbito dos tribunais de segundo grau o uso desta faculdade,

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com manifesto proveito ao superior interesse dos jurisdicionados na estabilidade jurdica que uma jurisprudncia uniformizada propicia (Trecho da exposio de motivos do projeto da Cmara dos Deputados n. 3.473/00). 21. TUCCI, op. cit., p. 264. 22. Esse dispositivo integra a escalada pela valorizao da jurisprudncia no direito brasileiro (infra, n. 126), na medida em que visa a criar precedentes a serem acatados em futuros julgamentos colegiados ou monocrticos (DINAMARCO, Cndido Rangel. A reforma da reforma. So Paulo: Malheiros, 2002. p. 136-137). 23. Alexandre Freitas Cmara afirma que, com base no art. 285-A do CPC, o juiz fica autorizado a simplesmente reproduzir a sentena de improcedncia anteriormente proferida. Ter-se-a, ento, em casos assim, uma espcie de sentena de improcedncia padro, que ser reproduzida sempre que causas idnticas sejam submetidas ao mesmo juzo, dispensada a citao do demandado. (Lies de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 342. v. 1). 24. J est pacificado nos tribunais superiores o entendimento de que no cabvel embargos de divergncia de deciso monocrtica do relator, mas apenas de acrdo proferido por alguma das turmas do tribunal (EREsp 208.162/RS, rel. Min. Joo Otvio de Noronha, j. 24.03.2004, D.J. 19.04.2004). 25. Conforme se observa do enunciado da smula n. 315 do STJ, a jurisprudncia no admite a interposio de embargos de divergncia se o recurso especial no for conhecido (Dispe o enunciado da smula que no cabem embargos de divergncia no mbito do agravo de instrumento que no admite recurso especial). 26. A divergncia, para que se possam interpor os embargos, h de ser atual, conforme determinam os enunciados das smulas n. 168 e n. 247 do STJ e n. 598 do STF. Alm disso, no se presta a justificar embargos de divergncia o dissdio com acrdo de turma ou seo que no mais tenha competncia para a matria neles versada. (enunciado da smula 158 do STJ). 27. O Superior Tribunal de Justia foi concebido para um escopo especial: orientar a aplicao da lei federal e unificarlhe a interpretao, em todo o Brasil. Se assim ocorre, necessrio que sua jurisprudncia seja observada, para se manter firme e coerente. Assim sempre ocorreu em relao ao Supremo Tribunal Federal, de quem o STJ sucessor, nesse mister. Em verdade, o Poder Judicirio mantm sagrado compromisso com a justia e a segurana. Se deixarmos que nossa jurisprudncia varie ao sabor das convices pessoais, estaremos prestando um desservio a nossas instituies. (REsp n. 228.432-RS, corte especial, rel. Min. Humberto Gomes Barros, D.J.U. de 18-03-2002). 28. MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Srgio Cruz. Manual do processo de conhecimento. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 569. 29. DIDIER JR., Fredie. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil. Salvador: Jus Podivm, 2010. p. 390. v. 2. 30. DIDIER JR., Fredie. CUNHA, Leonardo Jos Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. Salvador: Podivm, 2008. p. 130. v. 3. 31. NERY JNIOR, Nelson. Boa-f Objetiva e Segurana Jurdica Eficcia da Deciso Judicial que Altera Jurisprudncia Anterior do Mesmo Tribunal Superior. In: NERY JNIOR, Nelson; CARRAZZA, Roque Antnio; FERRAZ JR, Trcio Sampaio (org.). Efeito ex nunc e as decises do STJ. Barueri: Manole, 2009. p. 80. 32. Esses dados estatsticos foram obtidos em consulta a pgina eletrnica mantida pelo Supremo Tribunal Federal. Disponvel em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=estatistica&pagina=pesquisaClasse>. Acesso em: 28 mai. 2010. 33. No atual Cdigo de Processo Civil, somente existe previso para aplicao de multa no caso de agravo e no de recurso manifestamente inadmissvel ou infundado, interposto contra a deciso do relator que inadmitiu ou deu provimento a recurso (art. 557, 3, CPC). Note, inclusive, que a previso do diploma atual no exemplifica as hipteses de inadmissibilidade, como prope o anteprojeto do novo cdigo de processo civil, dando ainda mais autoridade aos precedentes judiciais. 34. A doutrina constitucional alem h muito vinha desenvolvendo esforos para ampliar os limites objetivos e subjetivos da coisa julgada no mbito da jurisdio estatal (Staatsgerichtsbarkeit). (...) A convico de que

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a fora de lei significava apenas que a deciso produziria efeitos semelhantes aos de uma lei (gesetzhnlich) (mas no poderia ser considerada ela prpria como uma lei em sentido formal e material), parece ter levado a doutrina a desenvolver instituto processual destinado a dotar as decises da Corte Constitucional de qualidades outras no contidas nos conceitos de coisa julgada e de fora de lei. (MENDES, Gilmar Ferreira. O efeito vinculante das decises do Supremo Tribunal Federal nos processos de controle abstrato de normas. Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 43, jul. 2000. Disponvel em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=108>. Acesso em: 24 mai. 2010.) 35. Adotando esse entendimento, posiciona-se Roger Stiefelmann Leal (O efeito vinculante na jurisdio constitucional. So Paulo: Saraiva, 2006. p. 150), Glauco Salomo Leite (Smula vinculante e jurisdio constitucional brasileira. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 157), Marcelo Alves Dias de Souza (Do precedente judicial smula vinculante. Curitiba: Juru Editora, 2007. p. 221). Em sentido contrrio, posiciona-se Oswald Luiz Palu (Controle de Constitucionalidade: conceitos, sistemas e efeitos. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 229). 36. LEAL, Roger Stiefelmann. O efeito vinculante na jurisdio constitucional. So Paulo: Saraiva, 2006. p. 150. 37. LEITE, Glauco Salomo. Smula vinculante e jurisdio constitucional brasileira. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 159. 38. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ao Declaratria de Inconstitucionalidade n. 1.662/SP, Requerente: Governador do Estado de So Paulo. Requerido: Tribunal Superior do Trabalho. Relator: Min. Maurcio Correia. Disponvel em: <www.stf.gov.br>. Acesso em 25 mai. 2010. 39. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamao Constitucional n. 1987/DF, Reclamante: Governador do Distrito Federal. Reclamado: Presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 10 Regio. Relator: Min. Maurcio Correia. Disponvel em: <www.stf.gov.br>. Acesso em 25 mai. 2010. 40. Tambm nesse sentido, o teor do voto proferido pelo Relator Ministro Celso de Mello na reclamao 2986 MC/SE (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamao Constitucional n. 2986/SE, Reclamante: Estado de Sergipe. Reclamada: Juza da 5 Vara do Trabalho da Seo Judiciria de Aracaju. Relator: Min. Celso de Mello. Disponvel em: <www.stf.gov.br>. Acesso em 25 mai. 2010.) 41. Abriu-se assim, a passos largos, o caminho de adoo, no Brasil, do precedente judicial com fora vinculante em situaes nas quais se encontram em jogo importantes quaestiones iuris, de inequvoco peso poltico. (TUCCI, Jos Rogrio Cruz e. Precedente Judicial como fonte do Direito. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p.271) 42. SOUZA, Marcelo Alves. Do precedente judicial smula vinculante. Curitiba: Juru Editora, 2007. p. 223. 43. A bem da verdade, juntamente com o momento de ampliao do objeto do recurso extraordinrio, est sendo reapreciado o papel e o mvel da reclamao constitucional, especialmente no que respeita a manuteno das decises tomadas em controle difuso de constitucionalidade, sendo prescindvel a aplicao do procedimento previsto no art. 52, X, da CF/88. (ARAJO, Jos Henrique Mouta. A verticalizao das decises do STF como instrumento de diminuico do tempo do processo: uma reengenharia necessria. Disponvel em <http://conpedi.org/manaus/anais_salvador.htm.>. Acesso em: 10 jun. 2010.) 44. MENDES, Gilmar Ferreira. COELHO, Inocncio Mrtires. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. So Paulo: Saraiva, 2008. p. 1086. 45. MENDES, Gilmar Ferreira. Voto proferido na reclamao constitucional n. 4335. Reclamante: Defensoria Pblica da Unio, Reclamado: juiz de direito da Vara de Execues penais da Comarca de Rio Branco (Processos n. 00102017345-9, 00105012072-8, 00105017431-3, 00104000312-5, 00105015656-2, 001050132475, 00102007288-1, 00106003977-0, 00105014278-0 e 00105007298-7). Relator: Min. Gilmar Ferreira Mendes. Encontrvel em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 10 jun. 2010. 46. Tal fato fortalece a impresso de que, com a introduo desse sistema de controle abstrato de normas, com ampla legitimao e, particularmente, a outorga do direito de propositura a diferentes rgos da sociedade, pretendeu o constituinte reforar o controle abstrato de normas no ordenamento jurdico brasileiro como peculiar instrumento de correo do sistema geral incidente. O monoplio de ao outorgado ao Procurador-Geral da Repblica no sistema de 1967/69 no provocou uma alterao profunda no modelo incidente ou difuso. (Ibid.)

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47. Note-se que o sistema que admite decises contrastantes estimula a litigiosidade e incentiva a propositura de aes, pouco importando se o interesse da parte a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da lei. Ou seja, a ausncia de previsibilidade como conseqncia da falta de vinculao aos precedentes, conspira contra a racionalidade da distribuio da justia e contra a efetividade da jurisdio. (MARINONI, Luiz Guilherme. Aproximao crtica entre as jurisdies de civil Law e de common law e a necessidade de respeito aos precedentes no Brasil. Revista Brasileira de Direito Processual RBDPro. Ano 15. n. 59. jul./set. 2007. p. 47.) 48. MENDES, op. cit. 49. DIDIER JR., Fredie. CUNHA, Leonardo Jos Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. Salvador: Jus Podivm, 2008. p. 324. v. 3. 50. Ibid., p. 324. 51. LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. So Paulo: Saraiva, 2009. p. 176. 52. DIDIER JR., CUNHA, op. cit., p. 324. 53. Essa denominao atribuda por Fredie Didier Jnior e Leonardo Carneiro da Cunha (Ibid., p. 324). Pedro Lenza chama esse fenmeno de Teoria da transcendncia dos motivos determinantes da sentena no controle difuso ou de abstrativizao do controle difuso (Direito Constitucional Esquematizado. So Paulo: Saraiva, 2009. p. 185). 54. MENDES, Gilmar Ferreira. Voto proferido na reclamao constitucional n. 4335. Reclamante: Defensoria Pblica da Unio, Reclamado: juiz de direito da Vara de Execues penais da Comarca de Rio Branco (Processos n. 00102017345-9, 00105012072-8, 00105017431-3, 00104000312-5, 00105015656-2, 00105013247-5, 00102007288-1, 00106003977-0, 00105014278-0 e 00105007298-7). Relator: Min. Gilmar Ferreira Mendes. Encontrvel em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 10 jun. 2010. 55. MENDES, Gilmar Ferreira. COELHO, Inocncio Mrtires. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. So Paulo: Saraiva, 2008. p. 1091. 56. Outra situao decorre de adoo de smula vinculante (art. 103-A da CF, introduzido pela EC n. 45/ 2004), na qual se afirma que determinada conduta, dada prtica ou uma interpretao inconstitucional. Nesse caso, a smula acabar por dotar a declarao de inconstitucionalidade proferida em sede incidental de efeito vinculante. (Ibid., p. 1091). 57. Segundo Luiz Guilherme Marinoni, os procedimentos para a declarao de inconstitucionalidade, junto ao pleno do Supremo Tribunal Federal, so praticamente idnticos, no havendo razes para distinguir os seus efeitos, sobretudo porque, no controle difuso, a deciso tomada aps a questo tramitar em todas as instncias (MARINONI, Luiz Guilherme. Aproximao crtica entre as jurisdies de civil Law e de common law e a necessidade de respeito aos precedentes no Brasil. Revista Brasileira de Direito Processual RBDPro. Ano 15. n. 59. jul./set. 2007. p. 48-50). 58. STRECK, Lenio Luiz; OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de et al. A nova perspectiva do Supremo Tribunal Federal sobre o controle difuso: mutao constitucional e limites da legitimidade da jurisdio constitucional. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1498, 8 ago. 2007. Disponvel em: <http://jus2.uol.com.br/ doutrina/texto.asp?id=10253>. Acesso em: 26 mai. 2010. 59. Registre-se que o ministro Eros Roberto Grau tambm j se manifestou nesse sentido, conforme informaes obtidas na pgina virtual de acompanhamento processual da reclamao constitucional n. 4335. Encontrvel em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2381551 >. Acesso em: 07 jul. 2010. 60. ARAJO, Jos Henrique Mouta. A verticalizao das decises do STF como instrumento de diminuico do tempo do processo: uma reengenharia necessria. Disponvel em <http://conpedi.org/manaus/anais_salvador.htm.>. Acesso em: 10 jun. 2010. 61. TUCCI, Jos Rogrio Cruz e. Precedente Judicial como fonte do Direito. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 281.

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62. LEITE, Glauco Salomo. Smula vinculante e jurisdio constitucional brasileira. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 175. 63. SOUZA, Marcelo Alves. Do precedente judicial smula vinculante. Curitiba: Juru Editora, 2007. p. 277. 64. Ibid., p. 184. O autor entende que foi feliz o legislador ao ampliar os meios de impugnao aos atos contrrios s smulas vinculantes, retirando do Supremo Tribunal Federal a responsabilidade exclusiva pelo sucesso de tais smulas. 65. Glauco Salomo Leite sustenta a responsabilizao pessoal do magistrado por meio do direito de regresso do Estado, com base no art. 37, pargrafo 6 da CF, bem assim como, na esfera administrativa, por meio de representao contra ele junto ao Conselho Nacional de Justia, que poder lhe aplicar as sanes previstas na Lei Orgnica da Magistratura Nacional (Ibid., p. 195). 66. Marcelo Alves Dias de Souza observa que, na prtica, a prpria multiplicao de processos, se resulta em decises divergentes, j gera inevitavelmente insegurana jurdica. (SOUZA, Marcelo Alves. Do precedente judicial smula vinculante. Curitiba: Juru Editora, 2007. p. 268.) 67. SOUZA, op. cit., p. 263. 68. Art. 21 (...) 2 Poder ainda o Relator, em caso de manifesta divergncia com a Smula, prover, desde logo, o recurso extraordinrio. 69. Art. 102. A jurisprudncia assentada pelo Tribunal ser compendiada na Smula do Supremo Tribunal Federal. (...) 4 A citao da Smula, pelo nmero correspondente, dispensar, perante o Tribunal, a referncia a outros julgados no mesmo sentido. 70. Art. 34. So atribuies do relator: (...) XVIII negar seguimento a pedido ou recurso manifestamente intempestivo, incabvel, improcedente, contrrio a smula do Tribunal, ou quando for evidente a incompetncia deste. 71. Art. 124. A citao da smula pelo nmero correspondente dispensar, perante o Tribunal, a referncia a outros julgados no mesmo sentido. 72. SOUZA, Bernardo Pimentel. Dos recursos constitucionais: Recursos Ordinrios, Extraordinrio e Especial. Braslia: Braslia jurdica, 2007. p. 108. 73. O 3 do art. 102 da Constituio Federal dispe ser de competncia exclusiva do Supremo Tribunal Federal a manifestao acerca da existncia, ou no, de repercusso geral. Assim, ao contrrio dos demais requisitos de admissibilidade recursal, a anlise da repercusso geral cabe apenas Suprema Corte, mais precisamente, ao seu plenrio. A denegao da repercusso geral depende da recusa de, no mnimo, oito dos onze membros do Supremo Tribunal Federal. 74. O 2 do art. 543-B estabelece que, decidindo o STF no sentido da inexistncia de repercusso geral, os recursos, cuja tramitao ficou suspensa, considerar-se-o automaticamente no admitidos. V-se, assim, que a deciso do STF tem carter absolutamente vinculante, quando inadmissibilidade do recurso em razo da ausncia de repercusso geral. Dever o rgo a quo, assim, ater-se ao que tiver deliberado o STF a respeito. (WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, Recurso Extraordinrio e Ao Rescisria. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 305-306.) 75. Essa possibilidade de ampliao da deciso do RE para casos similares pode ser indicada como claro instrumento de objetivao do recurso extraordinrio, tendo em vista que o recurso tende a controlar a ordem constitucional objetiva e no somente o caso concreto que est em julgamento. Portanto, nessa reengenharia, est sendo remodelado o papel do recurso extraordinrio como instrumento de controle da ordem constitucional objetiva . (ARAJO, Jos Henrique Mouta. A verticalizao das decises do STF como instrumento de diminuico do tempo do processo: uma reengenharia necessria. Disponvel em <http://conpedi.org/manaus/anais_salvador.htm.>. Acesso em: 10 jun. 2010). 76. Art. 543-B. (...) 2 Negada a existncia de repercusso geral, os recursos sobrestados considerar-se-o automaticamente no admitidos. 3 Julgado o mrito do recurso extraordinrio, os recursos sobrestados sero apreciados pelos Tribunais, Turmas de Uniformizao ou Turmas Recursais, que podero declar-los prejudicados ou retratar-se. 4 Mantida a deciso e admitido o recurso, poder o Supremo Tribunal Federal, nos termos do Regimento Interno, cassar ou reformar, liminarmente, o acrdo contrrio orientao firmada. 77. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, Recurso Extraordinrio e Ao Rescisria. So Paulo:

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Revista dos Tribunais, 2008. p. 304. No mesmo sentido: no h como descartar a possibilidade de erro na deciso presidencial ou vice presidencial proferida na origem, em razo da aplicao de precedente jurisprudencial incompatvel com o caso concreto, j que nem sempre os paradigmas so aplicados com acerto. (SOUZA, Bernardo Pimentel. Dos recursos constitucionais: Recursos Ordinrios, Extraordinrio e Especial. Braslia: Braslia jurdica, 2007. p. 116.) 78. (...) 2 Negada a existncia de repercusso geral, os recursos sobrestados considerar-se-o automaticamente no admitidos. (Includo pela Lei n. 11.418, de 2006). 3 Julgado o mrito do recurso extraordinrio, os recursos sobrestados sero apreciados pelos Tribunais, Turmas de Uniformizao ou Turmas Recursais, que podero declar-los prejudicados ou retratar-se. 79. DIDIER JR, Fredie. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil. Salvador: Jus Podivm, 2010. p. 318. v. 2. 80. CUNHA JR., Dirley da. A interveno de terceiros no processo de controle abstrato de constitucionalidade a interveno do particular, do co-legitimado e do amicus curiae na ADIN, ADC e ADPF. DIDIER JR., Fredie. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (org). Aspectos polmicos e atuais sobre os terceiros no processo civil e assuntos afins. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 166-167. 81. DIDIER JR, BRAGA, OLIVEIRA, op. cit., p. 320. 82. ARAJO, Jos Henrique Mouta. A verticalizao das decises do STF como instrumento de diminuico do tempo do processo: uma reengenharia necessria. Disponvel em <http://conpedi.org/manaus/anais_salvador.htm.>. Acesso em: 10 jun. 2010. 83. Assim como ocorre no incidente de anlise da repercusso geral, cabvel o recurso de agravo de instrumento previsto no art. 544 do Cdigo de Processo Civil contra a deciso na qual imposta a suspenso do processamento de determinado recurso, desde que seja demonstrada a distino entre os recursos paradigmas escolhidos para serem julgados e o recurso cujo processamento foi sobrestado. (WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, Recurso Extraordinrio e Ao Rescisria. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 308.) 84. Embora o art. 543-C do CPC no estabelea de modo explcito a possibilidade do tribunal de origem se retratar, seu 8 reporta-se a hiptese de ser mantida a deciso divergente pelo tribunal de origem, o que sugere que o tribunal local pode, ou no, manter a deciso recorrida, aps o julgamento dos recursos representativos da controvrsia. (Ibid., p. 309). 85. DIDIER JR., Fredie. CUNHA, Leonardo Carneiro da. Editorial n. 95. Encontrvel em: <http:// www.frediedidier.com.br/main/noticias/detalhe.jsp?CId=410>. Acesso em: 10 jun. 2010. 86. Ibid. 87. Art. 906 do projeto de lei 166/2010: No observada a tese adotada pela deciso proferida no incidente, caber reclamao para o tribunal competente. 88. Art. 895 do projeto de lei n. 166/2010. admissvel o incidente de demandas repetitivas sempre que identificada controvrsia com potencial de gerar relevante multiplicao de processos fundados em idntica questo de direito e de causar grave insegurana jurdica, decorrente do risco de coexistncia de decises conflitantes. 1 O pedido de instaurao do incidente ser dirigido ao Presidente do Tribunal: I pelo juiz ou relator, por ofcio; II pelas partes, pelo Ministrio Pblico ou pela Defensoria Pblica, por petio. 2 O ofcio ou a petio a que se refere o 1 ser instrudo com os documentos necessrios demonstrao da necessidade de instaurao do incidente. 3 Se no for o requerente, o Ministrio Pblico intervir obrigatoriamente no incidente e poder assumir sua titularidade em caso de desistncia ou de abandono. 89. Art. 899 do projeto de lei 166/2010. Admitido o incidente, o presidente do tribunal determinar, na prpria sesso, a suspenso dos processos pendentes, em primeiro e segundo graus de jurisdio. Pargrafo nico. Durante a suspenso podero ser concedidas medidas de urgncia no juzo de origem. 90. Art. 903 do anteprojeto do NCPC. Julgado o incidente, a tese jurdica ser aplicada a todos os processos que versem sobre idntica questo de direito.

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A LITIGNCIA DE M-F E A EXECUO DA MULTA ESCULPIDA NO ART 18 DO CPC

Gustavo Henrique Machado Nogueira Santos


Assessor de Juiz. Especialista em Direito Processual Civil.

Jamil Musse Neto


Advogado. Especialista em Direito Civil e Processual Civil.

Resumo: Estudo realizado acerca do instituto processual da litigncia de m-f, analisando sua complexa constituio principiolgica e doutrinria, alm se seus dispositivos normativos presentes no Cdigo de Processo Civil Brasileiro. Este trabalho examina a aplicao prtica das normas analisadas, sob o manto dos conceitos que compem o tema em apreo, evidenciando a sua importncia relativa ao bom uso dos direitos processuais e da mquina judiciria. A metodologia empregada foi a pesquisa bibliogrfica. Palavras-Chave: Direito Processual Civil Litigncia de m-f Boa-f M-f Teoria do abuso de direito Sanes.

1. Introduo No mbito do direito processual, comum se encontrar processos que tem seu fim postergado ao mximo por causa da atuao de um de seus plos, pois, por vezes, mais vantajoso custe-lo do que satisfazer a pretenso da parte contrria. Constitui a litigncia de m-f, um abuso de direito processual com o fito de se obter fins ilcitos e/ou retardar-impedir a concretizao do direito cabvel parte lesada. O que se pretende neste trabalho, demonstrar as peculiaridades nas aplicaes das sanes arbitradas pelos magistrados, bem como as peculiaridades na execuo da multa do art. 18 do Cdigo de Processo Civil.

2. Litigncia de m-f: conceito e hipteses A Insigne escritora Maria Helena Diniz, em sua obra Dicionrio Jurdico, fornece o seguinte conceito:
litigncia de m-f. Direito processual Civil. Diz-se ato de deduzir pretenso ou defesa contra texto expresso em lei ou fato incontroverso;

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alterar a verdade dos fatos; usar do processo para conseguir objetivo ilegal; opor resistncia injustificada ao andamento do processo; proceder de modo temerrio em qualquer incidente ou ato do processo, provocar incidentes manifestamente infundados e interpor recurso manifestamente protelatrio1.

No nosso entender, a litigncia de m-f todo e qualquer ato processual doloso de qualquer das partes (latu sensu) que tenha por escopo prejudicar o correto desenrolar do processo, desobedecendo ao princpio da lealdade processual, (artigo 14, II do CPC) lesando outrem ou a prestao da tutela jurisdicional.

2.1. Quem pode ser litigante de m-f O artigo 14 do Cdigo de Processo Civil estabelece os deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participem do processo. Fazendo-se uma interpretao sistemtica percebe-se que segundo o artigo 14, todos queles que possuam qualquer tipo de participao no processo, seja na qualidade de advogado, autor, ru, serventurio, perito, membro do Ministrio Pblico ou magistrado, devem obedincia ao dever de lealdade. o que entende Mrcio Louzada Carpena:
o diploma processual brasileiro, neste diapaso, foi extremamente feliz ao incluir expressamente a responsabilidade de terceiros no processo. A partir da redao do art. 14 do Cdigo de Processo Civil, introduzida pela Lei n 10.358/01, verifica-se que o dever de lealdade no s daquele que pleiteia no processo (autor) como daquele a quem pedido algo (ru), mas tambm de terceiros, pessoas estranhas lide que, por qualquer razo, acabam participando do feito, isto , advogados, procuradores, membros do Ministrio Pblico, magistrados, oficiais de justia, testemunhas, peritos, intrpretes, escrives, auxiliares da justia, autoridades co-autoras (em caso de mandado de segurana), entre outros.i

O dever de lealdade apontado como princpio norteador do dever ser comportamental das partes em juzo, serve de lastro para as condutas previstas no artigo 17 do Cdigo de Processo Civil. Para Anne Joyce Angher, O dever de lealdade processual, tambm considerado princpio, impe aos participantes do processo o dever de proceder com moralidade e probidade.2 S a subsuno de uma das sete condutas presentes no artigo citado pode enquadrar a atuao do litigante como sendo de m-f. Desta feita, embora o dever de lealdade presente no artigo 14 deva ser observado por todos que tenham qualquer tipo de participao no processo, a litigncia de m-f somente pode ser imputada queles que praticam os atos previstos no artigo 17, ou seja, aqueles citados no artigo 16, tambm do Cdigo de Processo Civil3. 107

ENTRE ASPAS 2.2. Hipteses de Litigncia de m-f art. 17 do cdigo de processo civil O artigo 17 do Cdigo de Processo Civil enumera sete hipteses de litigncia de m-f. Tal rol enseja polmica doutrinria quanto a sua natureza, vale dizer, se ou no taxativo. Tais condutas no podem ser confundidas com tipos tal qual verificamos no Cdigo Penal, posto que no prescindem de subsuno precisa para serem verificados no plano ftico. As condutas descritas nos sete incisos so abertas, dando margem a uma interpretao que permita sua aplicao a um nmero vasto de condutas desleais. certo que o CPC estabeleceu critrios objetivos para a apurao da m-f ou da fraude processual, prevendo taxativamente, as condutas, convertidas em hipteses que caracterizam o ato ilcito.4 O que possvel a existncia de meno litigncia de m-f em casos especficos, mas de acordo com o rol do artigo 17. o que concorda Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery:
A taxatividade relativa s hipteses caracterizadoras da litigncia de mf, mas no incidncia restrita do instituto, porque o preceito da norma comentada deve ser aplicado nos processos regulados por leis extravagantes, como por exemplo a ao popular (CF 5, LXXIII), na ACP (LACP 18), na ao coletiva (CDC 81, par. n., 87 93 ss.), no MS, nas aes de falncia etc.5 As hipteses de litigncia da m-f so taxativamente elencadas pelo artigo 17 do CPC, que traz em seus incisos conceitos jurdicos indeterminados a serem interpretados pelo juiz em cada caso concreto para a subsuno do fato norma.6

Neste diapaso se proceder ao trato pontual das hipteses previstas no Cdigo de Processo Civil.

2.2.1. Deduo de pretenso ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso A atual redao do inciso I do artigo 17 foi dada pela Lei n 6.771/80. A aplicabilidade desta norma no se restringe ao momento da iniciao da ao ou da apresentao da defesa, mas a qualquer ato processual. o que entende Anne Joyce Angher, ao dizer que, Os termos pretenso e defesa no se restringem petio inicial e contestao, podendo, a falta de fundamento de fato ou de direito, ocorrer em qualquer ato processual em que a parte formule pedido ou deduza defesa com erro inescusvel.7 Uma interpretao equivocada, por parte do advogado, de texto normativo no pode, necessariamente, ser tida como erro inescusvel, posto que no h inteno maliciosa. O que ocorre a verificao de um mal preparo do profissional, e no a m-f8. Como fora dito acima a pretenso contra texto expresso em lei ou a sua interpretao equivocada (naquele caso h m-f e neste no h) imputado ao advogado, pois cabe a ele 108

A REVISTA DA UNICORP tal funo, j que a parte no conhece o direito. Desta forma mesmo a falha sendo do profissional do direito, cabe parte a responsabilizao pelo fato imputado como sendo de m-f, pois aquele atua em nome deste, no sendo descartada a possibilidade de ao, autnoma, regressiva contra o advogado. Vale ressaltar que o Cdigo de Processo Civil fala expressamente que a responsabilidade processual cabe s partes do processo. Contrariar texto expresso em lei no significa dar-lhe interpretao contrria doutrina ou jurisprudncia, desde que seja plausvel. Para que ocorra o que est expresso no Artigo 17, I basta que o prprio texto legal no permita equvocos, ou seja, que daquela norma no se possa extrair mais do que ela prpria oferece9.

2.2.2. Alterar a verdade dos fatos A litigncia de m-f s pode ser caracterizada se verificado o dolo, ou seja, a inteno malfica no seio do processo. Assim, bvio est, como j fora mencionado antes que o agir culposo (sem inteno), no enseja verificao, no plano ftico, deste instituto. O dever de dizer a verdade e o dever de no mentir no so distinguidos pelo direito brasileiro, como afirma Ana Lcia Lucker Meirelles de Oliveira: direito brasileiro no h distino, como no direito alemo, entre o dever de dizer a verdade e o dever de no omitir (Vollstndigkeitspflicht) ambos esto abarcados no inciso I do art. 14 e, acrescentamos, na vedao do inciso II do art. 17 do Cdigo de Processo Civil.10
Desde logo, importante compreender, de forma mais clara possvel, que estar o litigante a alterar a verdade quanto alegar fatos inexistentes, negar fatos existentes, der verso falsa para os fatos verdadeiros ou, ainda, omitir fatos importantes para o bom julgamento da causa.11

Entretanto, essa omisso ilcita no pode se confundir com a postura de quem no deduz todos os elementos pertinentes questo sobre o fundamento de que, agindo de forma diversa, estaria favorecendo a parte contrria. O que diferencia uma omisso da outra a importncia do que foi suprimido para o deslinde da causa.
Mas preciso que se verifique se com a omisso de fatos a parte estar, em ltima anlise, faltando com a verdade e, portanto, agindo de m-f, por infringncia ao dever de completude. O que existe, na realidade, uma certa liberdade na escolha de fatos a serem alegados. Os fatos relevantes no devem ser omitidos de forma a comprometer a verdade emergente do conjunto probatrio.12

certo, tambm, que a verdade fator preponderante para a prestao da tutela jurisdicional, devendo ser apresentada pelos litigantes.
Assim, se nessa busca necessria pelo descobrimento da verdade dos fatos feita pelo juiz ainda possvel ocorrer um comportamento inidneo

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ENTRE ASPAS
das partes, afetando a cognio de circunstncias, certamente que prejuzo provocar a tutela jurisdicional, podendo at mesmo produzir efeitos nefastos contra a devida probidade do prprio julgamento, por onde se conclui qual seja a importncia da verdade para o processo.13

Ressalte-se que a omisso deve ser intencional, o desconhecimento de fatos relevantes para a resoluo da questo no enseja caracterizao da litigncia de m-f por ausncia de dolo.

2.2.3. Usar do processo para conseguir objetivo ilegal A utilizao do processo como meio para alcanar objetivo ilegal outra forma de litigncia de m-f (inciso III) pois revela falta de lealdade com a parte contrria e com a prpria justia (art.14, II).14 um tanto quanto bvio afirmar que quem litiga de forma ilegal est agindo de m-f, dessa forma, no poderia deixar de haver tal previso legal. O processo simulado e o processo fraudulento so duas maneiras de fazer uso do Poder Judicirio de forma ilegal. A primeira modalidade se destina a praticar ato simulado para prejudicar outrem, enquanto que a segunda intenta alcanar, por intermdio da via jurisdicional, fim ilcito, ou seja, legalmente proibido. No se pode confundir a previso contida no inciso I com a do inciso III. No primeiro caso a parte utiliza argumentao que fundamente sua defesa ou pedido de forma contrria a texto expresso em lei, mas no necessariamente busca alcanar objeto ilcito atravs do processo, salvo, a prpria m-f processual. No inciso III a m-f se caracteriza justamente pela inteno de se atingir objetivo ilcito. Outra distino a ser feita reside na anlise a se realizar entre o inciso III do art. 17 e o art. 129, ambos do CPC. O artigo 129 diz o seguinte:
Art. 129. Convencendo-se, pelas circunstncias da causa, de que autor e ru se serviram do processo para praticar ato simulado ou conseguir fim proibido por lei, o juiz proferir sentena que obste aos objetivos das partes.

No artigo supracitado o legislador impe ao magistrado o dever de obstar a inteno de quem lana mo do processo para praticar ato simulado ou conseguir fim proibido por lei. A distino est no fato de que a verificao pelo magistrado do artigo 129 no afasta uma eventual condenao por litigncia de m-f.
Por isso que, diante da demonstrao de elementos capazes de indicar que o fim colimado ao processo poder resultar de um objetivo ilegal, deve ser ele obstado pela manifestao jurisdicional (indeferindo-o ou julgando-o improcedente, conforme o caso), acompanhada da respectiva atribuio da litigncia de m-f, com a conseqente punio.15

No caso do artigo 17, inciso III, assim como tambm no inciso I o litigante de m-f necessariamente ser sucumbente no processo. 110

A REVISTA DA UNICORP 2.2.4. Oposio de resistncia injustificada ao andamento do processo Retardar o devido andamento do processo , na realidade dos Foros, algo muito comum. Verdadeiro mal que deve ser extirpado, sob pena de vermos a prestao da tutela jurisdicional se tornar, em muitos casos, ineficaz.
Opor resistncia injustificada ao andamento do processo corresponde, no linguajar forense, chicana, certamente o mais comum dos expedientes de improbidade processual porque, para a sua realizao, desnecessrio qualquer talento, qualquer esforo de raciocnio.16

Ocorre que h casos onde o autor pode ter o interesse maldoso na procrastinao do processo, como no caso de uma ao de cancelamento de protesto de ttulos, onde sabe o autor ser o protesto devido, mas ele intenta tal ao para evitar que o ttulo de crdito protestado seja cobrado em ao de execuo. H neste caso latente interesse na lentido para a finalizao do feito. Outro exemplo seria o executado que apresenta embargos execuo17-18, apenas para retardar o processo de execuo.

2.2.5. Proceder de modo temerrio em qualquer incidente ou ato do processo Trata-se de um tipo aberto, justamente pelo fato de no se poder conceituar precisamente o que vem a ser o adjetivo temerrio. No conceito de Pontes de Miranda, temeridade
[...] a palavra usada na terminologia jurdica luso-brasileira para designar o que se pratica com imprudncia, arrojo, ousadia, audaciosidade. [...] A temeridade pode ser de ato fsico ou meramente verbal, consistir em provocao ou revide demasiado imprudente, ou violento, ou arrojamento reprovvel.19

Para Candido Rangel Dinamarco litigncia temerria [...] consiste em comportar-se de modo doloso ou mediante uma imprudncia ou incoerncia de proposies que repugne ao senso comum.20 Fica evidente, precipuamente no conceito acima exposto, a dificuldade de se identificar o que um comportamento temerrio, seja no mbito dos fatos ou do direito, sendo necessrio que o magistrado atribua, no caso concreto, uma definio. Como fora dito anteriormente, a m-f possui como requisito de existncia o dolo, a vontade de lesar ou prejudicar outrem. Neste diapaso surge uma dvida a respeito da aplicabilidade do tipo conduta temerria previsto no inciso V do artigo 17 do Cdigo de Processo Civil.21 Carnelutti afirma, no que concorda Dinamarco, que a conduta temerria aquela derivada do dolo ou culpa grave (La nozionne della temerit sdoppia, secundo la comune opinione, in quella del dolo e della colpa grave).22 Pelo conceito de m-f, no podemos concordar com a idia de se aplicar a sano presente no art. 18 do Cdigo de Processo Civil a quem age com culpa grave. 111

ENTRE ASPAS A m-f requer, como requisito de existncia, o dolo, e por isso, o instituto processual litigncia de m-f prescinde de uma conduta dolosa para que possa ser verificado e aplicado.23 O agir culposo pode ensejar responsabilidade para seu autor, mas no atravs da subsuno dos artigos 17 e 18 do Cdigo de Processo Civil. Assim perfeitamente cabvel tentar responsabilizar aquele que age temerariamente com culpa, seja ela grave ou no, em ao autnoma. Por se tratar de uma conduta sancionvel no se pode fazer interpretao extensiva. O Estado no pode punir sem expressa previso legal prvia. Assim, por mais que seja coerente a idia de se ampliar a aplicabilidade do inciso V do artigo 17, tendo em vista suas funes precpuas, que so a de proteger a prestao da tutela jurisdicional pelo Estado e o litigante de boa-f, no se pode concordar com esta ampliao interpretativa do instituto processual em anlise. Assim sendo se esta fosse a vontade do legislador caberia uma reforma no instituto processual em anlise para que sua aplicabilidade seja mais ampla, posto que, a litigncia de m-f, como est prevista atualmente, s pode ser aplicada em caso de condutas dolosas. O dever de lealdade, inscrito no art. 14, exige o atuar de boa-f pelas partes do processo. O fato de agir com culpa, mesmo que grave, no quer dizer que se agiu com m-f. Faz-se aqui a mesma interpretao do inciso II do artigo 17, quando anteriormente dito que h a necessidade de ser intencional a alterao dos fatos levados ao processo. o que concorda Jos dos Santos Bedaque ao ensinar que:
tambm a alterao intencional da matria ftica, como descrio de situaes no ocorridas fora do processo ou verificadas de forma diversa, implica exposio dos fatos em desconformidade com a verdade, configurando quebra de dever processual (art. 14, I) e, consequentemente, litigncia de m-f, como disposto no inciso II do artigo em exame. (grifos nossos)24

Anne Joyce Angher tambm entende que a culpa grave pode ensejar a aplicao do dispositivo normativo em apreo.
O proceder de modo temerrio, de que trata o inciso V do art. 17, pode ocorrer em qualquer ato ou incidente processual e revela uma atitude dolosa ou culposamente grave da parte, que age com abuso, atrevimento, audcia ou ousadia, tendo cincia da falta de razo.25

A afirmao da autora supra mencionada, data vnia, contraditria, pois fala da necessidade de se ter cincia da falta de razo. Ora, se a parte age ciente de que sua pretenso desarrazoada ela no age com culpa, independente da gravidade que se possa atribuir a tal conduta (culpa grave, leve,...). Mesmo no estando acompanhado da doutrina majoritria, afirmamos o entendimento de que apenas a conduta dolosa pode ensejar a caracterizao da litigncia de m-f. o que entende a jurisprudncia:
o art. 17 do Cdigo de Processo Civil, ao definir os contornos da litigncia de m-f que justificam a aplicao da multa pressupe o dolo da parte no entravamento do trmite processual, manifestado por conduta in-

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tencionalmente maliciosa e temerria, inobservado o dever de proceder com lealdade. (STJ 6. T. Resp. 269.409 Rel. Vicente Leal j. 17/ 10/2000).

A interpretao da doutrina ao afirmar que a culpa grave tambm enseja a sano pela litigncia de m-f nos simptica, posto que alarga a aplicao da sano por litigncia por m-f, tendo em vista que este instituto visa melhorar a prestao da tutela jurisdicional. Entretanto, vale reafirmar, mesmo sendo louvvel a inteno de ampliar a aplicabilidade do instituto da litigncia de m-f, no se pode concordar com tal atitude por no haver amparo legal. Por fim, vale trazer exemplos de comportamento processual temerrio, citados por Fabio Milman:
so exemplos de procedimento temerrio: o ajuizamento de vrias aes cautelares, com o mesmo objetivo, at lograr xito no provimento liminar, configurando litispendncia; a proposio de novas aes com modificao da autoridade e da via processual adequada buscando distinta deciso de outra anterior que se encontra aguardando exame em grude jurisdio superior; a distribuio de novo mandado de segurana com pedido liminar idntico ao requerido em outra ao mandamental pendente de apreciao do juiz de Vara diversa; a repetio do mesmo processo, em face de deciso de igual natureza, de recurso j declarado incabvel pelo Tribunal.

Pelos exemplos supracitados fica ainda mais evidente a intencionalidade exercida na prtica dos atos processuais.

2.2.6. Provocao de incidentes manifestamente infundados A partir do estudo das normas anteriores j se mostrou evidente que para um mesmo caso concreto pode haver a subsuno de mais de uma conduta prevista no art. 17. A norma em apreo um dos maiores exemplos disso.
O tipo ora investigado probe requerimentos protelatrios e impe aos litigantes a lealdade do processo remetendo, via de consequncia, aos deveres previstos nos incisos II, III, e IV do art. 14 representando, como acima afirmado, mero desdobramento dos atos repelidos pelos incisos IV e V do prprio art. 17.

O inciso VI do artigo 17 fala que litiga de m-f quem provoca incidentes manifestamente infundados. Para o entendimento e aplicao deste dispositivo normativo deve-se entender a palavra incidente de maneira ampla, no se restringindo aos incidentes estritamente ditos, vale dizer, impugnao ao valor da causa, excees entre outros26. Aqui se deve entender que qualquer ato processual efetuado sem fundamentao, com o objetivo de obter efeito diverso do que o incidente naturalmente poderia produzir, pode ser enquadrado na conduta descrita pelo inciso VI, do art. 17. 113

ENTRE ASPAS Ou seja, impugnar o valor da causa apenas para retardar o prosseguimento do feito, sabendo-se que no h valor a ser corrigido, caracteriza a litigncia de m-f pela subsuno do dispositivo normativo em apreo. Tal incidente deve ser indeferido pelo juiz, de ofcio ou a requerimento da parte, to logo se revele infundado (art. 130 do CPC).27 O indeferimento pelo juiz no afasta a possibilidade de se sancionar por litigncia de m-f quem provocou o incidente infundado, posto que a conduta indeferida j provocou leso, ou seja, retardou o natural andamento do feito. A norma em estudo possui relao com outras do Cdigo de Processo Civil, o caso dos artigos 22; 31; e 557, 2.28 Caso similar, porm mais especfico, o do art. 740, pargrafo nico do Cdigo de Processo Civil. Esta norma impe multa no superior a 20% sobre o valor executado para aquele que prope embargos execuo manifestamente protelatrio. Trata-se de situao onde a parte prope incidente infundado, ou seja, situao em que poderia aplicar o art. 17, VI. Diante desta situao, criada com o advento da Lei n 11.382/2006, indaga-se, cabe a aplicao cumulada das duas normas? Todos os dispositivos normativos citados sancionam condutas que representam a provocao de incidentes infundados, entretanto, quando a conduta de m-f poder se subsumir a norma especfica diversa das elencadas no artigo 17, cabe ao magistrado faz-lo, por conta da maior especificidade de uma em relao a outra. o que entende Anne Joyce:
nesses e em diversos outros casos, o Cdigo de Processo Civil prev condutas dos litigantes que podem ser enquadradas nas hipteses de litigncia de m-f do art. 17, mas preferiu o legislador prescrever sanes especficas. Os incisos do art. 17 somente devem ser utilizados para fundamentar a litigncia de m-f para os casos no expressamente previstos em dispositivos esparsos, eis que havendo previso de condutas especficas pode no haver a necessidade de uma avaliao interpretativa de conceito vago pelo juiz.

Faz-se valer assim o princpio da especialidade, que determina a aplicao de norma mais especfica em detrimento da mais genrica, ou seja, s se aplica as disposies normativas contidas no artigo 17, quando no houver outra mais especfica.

2.2.7 Interposio de recurso com intuito manifestamente protelatrio Esta a ltima disposio do art. 17. Possui ntida correlao com a norma anteriormente comentada e com o inciso IV do artigo 14 do Cdigo de Processo Civil. Atualmente essa , sem dvida, a hiptese de litigncia de m-f em que mais se encontra condenaes na jurisprudncia.29 Nelson Nery Junior e Rosa Maria Andrade Nery ensinam que o recurso infundado quando o 114

A REVISTA DA UNICORP
[...] recorrente tiver a inteno deliberada de retardar o trnsito em julgado da deciso, por esprito procrastinatrio. tambm manifestamente infundado quando destitudo de fundamentao razovel ou apresentado sem as imprescindveis razes do inconformismo. O recurso , ainda, manifestamente infundado quando interposto sob fundamento contrrio a texto expresso de lei ou a princpio sedimentado da doutrina e jurisprudncia.

Vale informar que para que seja caracterizada a interposio de recurso protelatrio deve-se verificar o dolo por parte de quem o intentou. A impercia do patrono que interps o recurso no enseja a subsuno da norma em anlise. Antes da alterao dada pela Lei n 9.668/98 a interposio de recurso manifestamente infundado recaia sobre o inciso VI do artigo 17, por se considerar o recurso como sendo, lato sensu, um incidente infundado.
Existem muitas reas de superposio entre as hipteses descritas nos diversos incisos do art. 17 do Cdigo de Processo Civil, sendo difcil identificar casos que se acomodem apensa em uma delas. Entre todas h em comum a finalidade de evitar e punir a deslealdade engendrada mediante dolo, coluses ou expedientes destinados a distorcer o conhecimento do juiz ou prejudicar a tempestividade da tutela jurisdicional.30

Assim como na maioria das condutas previstas no art. 17 do Cdigo de Processo Civil esta tambm possui certa vagueza quanto a sua interpretao. O sentido de manifestamente protelatrio no unssono. Deparamo-nos aqui, mais uma vez, com um conceito vago, que ser determinado no caso concreto segundo a prudente interpretao do juiz.31
Sem dvida alguma, a anlise da ocorrncia ou no do abuso difcil e passvel de subjetividade. Mas a jurisprudncia, principalmente dos Tribunais Superiores, dever contribuir de forma decisiva para a fixao de critrios e formas de apurao. Um dos critrios, por exemplo, poder ser a ausncia de fundamentao idnea.32

Entretanto, fica evidente que somente em cada caso concreto poder se afirmar sobre a ocorrncia ou no do abuso do direito de recorrer, pois devido a subjetividade da conduta fica difcil se fixar critrios objetivos. A tentativa, dos Tribunais, de se verificar a existncia de critrios e formas de apurao da ocorrncia do abuso do direito de recorrer no sinnimo da existncia de critrios objetivos e aplicveis irrestritamente. Assim deve o magistrado, em cada caso concreto, verificar a subsuno ou no da norma em estudo.

3. Sanes pela litigncia de m-f O acesso ao Poder Judicirio, o devido processo legal, o contraditrio e a ampla defesa so direitos constitucionalmente previstos em nosso pas. 115

ENTRE ASPAS A funo jurisdicional, exercida com exclusividade pelo Estado, possui gigantesca importncia em qualquer sociedade, pois possui como um dos principais escopos a tutela da paz social. Para a consecuo da tutela jurisdicional, o Estado outorga ao magistrado poderes para a sua efetivao. O magistrado possui dois tipos de poder, vale dizer, poderes de polcia e poderes jurisdicionais.
Por poderes jurisdicionais entendem-se os exercidos pelo juiz na sua funo jurisdicional, como sujeito da relao processual, dentre os quais destacamos os poderes ordinatrios ou instrumentais, relacionados com o desenvolvimento do processo.33

O conceito de poder de polcia, mais utilizado no mbito do Direito Administrativo, a atribuio [...] a que dispe a Administrao Pblica para condicionar o uso, o gozo e a disposio da propriedade e restringir o exerccio da liberdade dos administrados no interesse pblico ou social.34 Trazendo este conceito para a esfera do Direito Processual, poder-se-ia dizer que o poder de polcia conferido ao magistrado seria o de fiscalizar e garantir a efetividade dos trabalhos desenvolvidos pelo Poder Judicirio, com o objetivo de assegurar a efetivao da tutela jurisdicional. Neste sentido Anne Joyce Angher aduz que:
j os poderes de polcia so exercidos pelo juiz no como sujeito da relao processual, mas como autoridade judiciria, com a finalidade de assegurar a ordem dos trabalhos forenses, evitando-se atos que comprometam a ordem e o decoro necessrios ao regular andamento do processo.35

O poder de polcia exercido pelos magistrados encontra lastro legal, por exemplo, no art. 125 do Cdigo de Processo Civil, que informa as competncias para se dirigir o processo, dentre elas a de velar pela rpida soluo do litgio e de prevenir ou reprimir atos que atentem contra a dignidade da justia. Como o objetivo maior assegurar a consecuo do interesse pblico, mais precisamente a prestao da tutela jurisdicional como o objetivo de promover a paz social, diz-se que no se trata, meramente, de um poder, mas de um poder-dever, j que no pode o agente pblico (magistrado) dispor de direitos que no so seus, que pertencem coletividade. Assim, a condenao por litigncia de m-f no uma faculdade conferida ao juiz, mas um poder-dever de coibir os atos que infringem os deveres processuais e constituem abuso de direito de ao ou defesa.36 Desta feita entende-se que alm do poder-dever conferido ao magistrado de assegurar a correta prestao da tutela jurisdicional, pode a parte exigir providncias neste sentido.

3.1. Da multa e da indenizao Para toda ao h uma reao. Esta frase indica bem a ideia da sano pela litigncia de m-f. Aquele que litiga maliciosamente deve ser sancionado para que no volte a agir de forma contrria lei. 116

A REVISTA DA UNICORP Alm do carter sancionador, a multa e a indenizao previstas no artigo 18 do Cdigo de Processo Civil possuem o condo de compensar a parte lesada pela conduta que a prejudicou. A demora na prestao da tutela jurisdicional causada pela m-f de um dos litigantes pode ensejar danos de ordem material (lucros cessantes, danos emergentes) e de ordem moral, pois maculou o direito, da parte prejudicada, de se ter um processo clere e pautado pela probidade e lealdade. Nisso concorda Ana Lcia Lucker Meirelles de Oliveira:
[...] se o juiz afere a conduta mproba e a parte prejudicada no alega prejuzos materiais, a indenizao s devida pelos danos morais, pois o litigante foi atingido no seu direito de ter um processo pautado pela probidade, e ainda, a indenizao tem carter nitidamente sancionador [...].37

A Lei n. 9.668/98 alterou o artigo 18 do Cdigo de Processo Civil, limitando, a priori, a indenizao pela litigncia de m-f em 20% (vinte por cento) sobre o valor da causa, mais multa no excedente em 1% (um por cento), tambm sobre o mesmo valor. A indenizao deve ser fixada de pronto pelo magistrado, salvo hiptese em que o litigante prejudicado demonstre ter sofrido prejuzos superiores ao patamar de 20% (vinte por cento) em relao ao valor atribudo causa, hiptese em que a indenizao ser aferida em liquidao por arbitramento. Sobre esta questo Srgio Bermudes ensina que:
na redao primitiva, o 2 j consentia que o juiz fixasse o valor da indenizao. Na atual, o pargrafo limita a competncia do juiz para estipular, de imediato, o montante da indenizao, a 20% do valor da causa, que deve ser monetariamente atualizado. Se entender que a indenizao deve exceder desse limite, ainda que pudesse quantific-la, o juiz remeter a estipulao liquidao por arbitramento, como tambm proceder desse modo, se lhe faltarem elementos de identificao do valor.38

O legislador pretendeu dar maior objetividade sano por litigncia de m-f, tendo em vista que o magistrado pode aplicar, desde logo, o percentual de at 20% previsto no 2 do art. 18, sem a necessidade de informar o porqu, cabendo a parte interessada alegar que sofreu prejuzos que superem tal percentual e requerer a correspondente indenizao, que ser apurada via liquidao. o que explica Celso Hiroshi Iocohama:
tais noes e numa interpretao especialmente da aplicao do princpio do dispositivo para o caso em tela, possvel concluir que a sistemtica legal inovou com a adoo da regra geral pela provocao da parte interessada para a determinao da indenizao, possibilitando ainda a fixao de ofcio pelo magistrado, desde que no excedendo o percentual de 20%.39

No tocante a liquidao por arbitramento, a sua positivao foi alterada pela Lei n 11.232/2005, que revogou os artigos 603 a 611 do Cdigo de Processo Civil e inseriu, entre outros, os artigos 475-A a 475-H. 117

ENTRE ASPAS
O artigo 475-C trata dos casos em que se far a liquidao por arbitramento, repetindo o revogado texto do artigo 606, do Cdigo de Processo Civil. Os artigos 475-E, 475-F e 475-G tratam da liquidao por artigos, no havendo qualquer alterao na sistemtica outrora prevista nos artigos 608 a 610, revogados pela Lei n 11.232, de 2005. 40

Desta feita as alteraes promovidas pela mencionada Lei no tiveram tanto efeito no que tange o instituto do arbitramento, precipuamente no que fala o 2 do artigo 18 do Cdigo de Processo Civil. Neste diapaso ensina Anne Joyce Angher:
De fato, havendo necessidade de produo de provas tem cabimento a liquidao por artigos, conforme art. 608 do CPC. No admitir essa forma de liquidao das perdas e danos significa cercear o direito da parte prejudicada de ser integralmente ressarcida.41

Vale lembrar que o artigo 608 citado acima foi revogado, possuindo como equivalente o art. 475-E. A ponderao feita pela citada autora pertinente. Se o legislador conferiu ao magistrado a possibilidade de, verificando a pertinncia, deixar de arbitrar indenizao em 20% (vinte por cento) sobre o valor da causa, por ser inferior ao dano sofrido pela parte vtima da litigncia de m-f, cabe a esta provar, caso entenda diferente, em sede de liquidao, o quantum do seu prejuzo. com o que concorda Fbio Milman:
sendo insuficiente a reparao no teto mximo legal e sendo tambm impossvel a pronta demonstrao da origem dos danos e/ou de seu valor, apurar-se- o montante final indenizatrio em sede de liquidao de sentena que poder ocorrer no somente pela via do arbitramento, forme expressa na parte final do 2 do art. 18, como tambm, eventualmente, por artigos, quando fatos outros tiverem que ser provados.42

Da o porqu de no se restringir a liquidao modalidade arbitramento, sendo aceitvel, tambm, por artigos. Grande crtica que feita ao art. 18 do Cdigo de Processo Civil diz respeito base de clculo para se chegar ao valor da indenizao e multa, ou seja, o valor da causa. Muitas causas tem seu valor atribudo apenas pro-forma, pois no possuem contedo econmico, quer seja ele mediato ou imediato, o exemplo de algumas aes de Direito de Famlia. Assim a sano pela litigncia de m-f perde o seu potencial punitivo e reparador. Nestes casos cabe parte lesada requerer indenizao em montante superior ao de 20% (vinte por cento) justificando seu pedido com base no art. 16 do CPC, que estabelece que responde por perdas e danos aquele que litiga com m-f. Desta feita, cabe, aps analisar o pedido, que dever ser fundamentado, indicar o procedimento da liquidao por arbitramento ou por artigos, a depender do caso concreto, para que se apure o valor indenizatrio condizente com o dano sofrido. 118

A REVISTA DA UNICORP Nada obsta, tambm, que a parte lesada faa uso de ao autnoma para pleitear a reparao das perdas e danos sofridos no decorrer do processo por quem foi vtima de litigncia de m-f. Na realidade, pelo art. 18 deve ser indenizado todo o prejuzo efetivamente sofrido pela parte, entendido este em sentido amplo, ou seja, compreendendo as perdas e danos referidas no art. 16 do CPC.43 Jos Carlos Barbosa Moreira lembra que:
o dano pode ter sido sofrido por algum litisconsorte do infrator, ou por assistente (v.g., na hiptese de conluio entre as partes principais, que usam do processo com o intuito de conseguir objetivo ilegal, nos termos do art. 17, IV). O litigante de m-f indenizar parte prejudicada..,, eis como se deve ler o art. 18, caput; e o mesmo vale, mutatis mutandis, com referncia clusula final do respectivo 1 (... para lesar a parte contrria).44

Esta temtica controversa na doutrina. A amplitude do que vem a ser a expresso perdas e danos constante no art. 16 e a palavra prejuzo no caput do art. 17, ambos do Cdigo de Processo Civil, gera divergncias. Rui Stoco, por exemplo, entende no ser possvel a reparao por dano moral, no caso em estudo, s aceitando a reparao por dano material. Explica o citado autor:
impe-se tambm obtemperar que o abuso de direito que se converte, genericamente, em ilcito e, no campo do Direito Processual, em m-f processual, prevista nos artigos 14, 16 a 18 do CPC, s comporta reparao por dano material. Essa limitao resta clara e evidente quando o art. 16 menciona perdas e danos e o art. 18 fala em prejuzos que esta sofreu.45

Respeitando a opinio do ilustre doutrinador citado, no podemos concordar com tal afirmativa, pois seria o mesmo que retirar o carter sancionador da indenizao. Explica-se. A litigncia de m-f deve ser reprimida pelo Poder Judicirio, pois atrapalha sua atuao como fomentador da paz social e lesa a parte que busca o judicirio para ver seu direito garantido, desta maneira, independente de haver danos de ordem material ou no, cabe ao magistrado, de ofcio ou a requerimento, sancionar o litigante de m-f, pois, como fora dito, trata-se de um poder-dever do magistrado e de um direito subjetivo da parte lesada. Neste sentido explica Fbio Milman:
em que consiste a condenao e quais os seus exatos parmetros? De que ordem os prejuzos indenizveis? Sem dvida, aqueles de ordem material e moral que, diante da redao do 2 do art. 18 em tela, ou so fixados pelo juiz, ou devero resultar demonstrados no prprio processo de conhecimento ou apurados, especificamente, em posterior ao de liquidao. Uma palavra quanto ao dano moral e a litigncia de m-f: o dano moral sempre presumido para aquele que, sua frente, encontrar adversrio a

119

ENTRE ASPAS
litigar de m-f. Estar em juzo estar sob impacto emocional, diante de incertezas, temores alargada insatisfao, no tempo, de direito que entende ser credor (tanto para ver consagrado o pedido, ou a tese de defesa)46

Destarte, no resta dvidas quanto ao fato de que a indenizao prevista no 2 do art. 18 tambm pode ser decorrente de dano moral processual pela vtima do mprobo litigator. Ademais, alm de responder pelas perdas e danos, o litigante de m-f responde tambm pela multa prevista no caput do art. 18, mais honorrios advocatcios e todas as despesas efetuadas pelo litigante de boa-f. Tendo em vista que o art. 18 do Cdigo de Processo Civil visa reparar o dano sofrido e sancionar quem o cometeu, devem ser aplicadas, concomitantemente, a multa de 1% (um por cento) e a indenizao de 20% (vinte por cento).
Tivesse a previso carter meramente punitivo, a responsabilizao do agente de m-f ficaria limitada multa de 1% (um por cento); tivesse a previso carter meramente reparatrio, ento a ausncia de danos indenizveis tornaria incua a aplicao da regra do art. 18, mesmo no que dissesse respeito multa. Assim, admitindo o carter misto da disciplina legal, sempre haver de recair sobre o faltoso, cumulativamente, a multa de 1% e mais a reparao que, na falta de prova de sua efetiva ocorrncia material, obedecer ao limite genrico trazido no 2 do art. 18, quanto mais no seja para a indenizao dos danos morais.47

Estas sanes independem do fato de o litigante de m-f ser vitorioso ou no.48 Caso o litigante de m-f seja sucumbente, responder duplamente pelos honorrios advocatcios, o que ensina Rui Stoco:
[...] impe-se esclarecer, responder por dupla verba honorria e despesas. As primeiras decorrentes da perda da ao (princpio da sucumbncia) e as segundas pela indigna atuao em juzo (princpio da reparabilidade e punibilidade), de modo que apenas a honorria e despesas acrescidas ou aumentadas em razo do retardamento ou da maior dificuldade em se conduzir a causa, independente do seu resultado, que sero devidas e quantificadas.49

Assim no h bis in idem no pagamento duplo dos honorrios advocatcios, pois a razo de existir de cada um independente. Caso haja mais de um litigante de m-f (p.ex. litisconsortes) estes sero condenados na proporo de sua atuao malvola, como bem explica o 1 do artigo 18 do Cdigo de Processo Civil, sobre o qual no pairam dvidas, tendo em vista sua redao clara e precisa. No que concorda Anne Joyce Angher:
havendo condenao solidria entre os litigantes de m-f a parte prejudicada pode exigir de um dos devedores o contedo integral da indenizao (arts. 275 e 942, 2 parte do CC). O devedor que satisfizer a dvida, por sua vez ter o direito de exigir dos demais sua cota parte, nos mesmo autos.50

120

A REVISTA DA UNICORP A responsabilidade dos litigantes de m-f solidria, ou seja, havendo mais de um litigante de m-f num mesmo processo, cada um ser condenando na medida de sua participao, mas a parte lesada poder exigir de qualquer deles, cabendo a quem pagar regredir contra os demais para que respondam por suas parcelas de responsabilidade. A solidariedade independe do fato de os litigantes de m-f terem agido coligados ou individualmente. Qualquer deles pode responder pelo valor integral da sano, ficando, como mencionado, reservado o direito de regresso nos prprios autos da ao onde foram condenados. Outro ponto importante o da aplicao das sanes. Esta, conforme art. 18 do Cdigo de Processo Civil, pode ser requerida pela parte prejudicada ou imposta ex offico pelo magistrado. pacfica a ideia de que a parte lesada pode pleitear a condenao do improbus litigator nos mesmos autos em que se deu o fato processual lesivo, posto que o 2 do artigo 18 afirma que a indenizao ser desde logo fixada pelo juiz. Neste sentido corroboram Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery:
Vislumbrando a prtica de ato caracterizador da litigncia de m-f, dever o juiz dar a oportunidade ao litigante inocente para que se manifeste a respeito, ao mesmo tempo em que dever ser ouvido o improbus litigator para que se defenda (CF 5. LV) A condenao independe de pedido da parte e deve ser imposta pelo juiz, depois de colhidos os elementos de fato e de direito fornecidos pelas partes (prejuzos sofridos, extenso do dano, etc).51

Entretanto, nada obsta que seja pleiteada as perdas e danos decorrentes da litigncia de m-f em ao autnoma, desde que no tenha sido apreciado a questo na ao em que se deu o fato doloso.52 O juzo competente para se ajuizar a ao autnoma o mesmo onde ocorreu o dano processual, tendo em vista a proximidade deste com a ao em que se deu o ato de m-f ensejador do dano.53 Outra razo o fato de o art. 108 do Cdigo de Processo Civil prev, no art. 108, que a ao acessria processada no mesmo juzo competente para julgar a ao principal. Importante fixar que na ao autnoma se pode pleitear a indenizao por perdas e danos, conforme art. 16 do CPC, no podendo se aplicar o artigo 18 do mesmo diploma legal. Fica evidente que em ao autnoma no poderia, por exemplo, o magistrado aplicar, conforme pargrafo 2 do artigo 18, a sano pela m-f processual de ofcio.
Na realidade, no h vedao busca do pleno ressarcimento dos prejuzos decorrentes de m-f processual por ao autnoma. Mas, para tanto, a litigncia de m-f no pode ter sido objeto de discusso e deciso no processo em que foi efetivada, ou seja, no pode haver coisa julgada material a respeito.54

Situao que tambm enseja alguma dvida, diz respeito ao momento da aplicao da sano ao improbus litigator, posto que no h previso legal quanto a isso. Desta feita no estaria incorreta a aplicao da sano assim que o ato malicioso ocorresse, via deciso interlocutria, como tambm em deciso terminativa do processo. 121

ENTRE ASPAS Neste sentido ensina Arruda Alvim:


[...] sanes impostas s partes devero ser objeto de uma deciso interlocutria, que as imponha, ou podero constar da sentena, porquanto a lei se refere a m-f e o comportamento da parte h de ter sido havido, por deciso, como sendo de m-f. A circunstncia de ser a sentena, normalmente, a sede da definio do litigante, como estando de mf, no impede que, v.g., numa interlocutria o juiz assim defina o litigante, nesse incidente.55

Independente do expediente processual utilizado pelo magistrado para se fazer a condenao pela m-f processual, este deve apresentar suas razes de forma esmiuada.
A condenao por litigncia de m-f no est isenta da obedincia ao preceituado no art. 93, inciso IX, da Constituio Federal de 1988, no sentido de que todas as decises do Poder Judicirio devem ser fundamentadas.56

Tais razes podero servir de lastro para se fazer uso do juzo de 2 instncia, atravs da via recursal, seja ela o agravo ou a apelao. Por se tratar de uma modalidade do poder de polcia conferido ao magistrado, o que justifica sua condenao ex officio, a litigncia de m-f no prescinde de ser dado direito de defesa, sendo necessrio apenas o seu convencimento de que a parte no age em conformidade com o dever de lealdade e a fundamentao de sua deciso. Isso no quer dizer que est se podando o princpio da ampla defesa e do contraditrio, posto que a via recursal supre a necessidade de se atender aos citados recursos. Trata-se de uma atribuio de natureza administrativa onde o magistrado preza, tambm, pela boa prestao da tutela jurisdicional pelo Estado. Destarte tal qual a revogao de um alvar (de funcionamento de estabelecimento comercial, p.ex.) pela administrao pblica, a bem do interesse pblico, no prescinde de prvia oportunizao de defesa. Em suma o litigante de m-f pode ser condenado de ofcio pelo juzo independente de ter-lhe sido concedido o direito de defesa. Entretanto, caso a condenao tenha sido requerida pela parte lesada entendemos que deve ser concedido o momento para a defesa, anterior condenao, caso ocorra.

3.2. Da execuo das sanes Em regra a execuo das sanes por litigncia da m-f so feitas, quando proferidas durante a fase de conhecimento do processo, obedecendo as normas que disciplinam a execuo de ttulos judiciais. Entretanto, como se deve proceder a execuo das sanes decorrentes de litigncia mproba ocorrida em processo (ttulo extrajudicial) ou fase de execuo (ttulo judicial)? O art. 3557 do CPC no se mostrava suficiente para apresentar resposta segura indagao anteriormente apresentada. A resposta veio na recente alterao implementada no Cdigo de Processo Civil, mais precisamente atravs do advento da Lei n. 11. 382/2006. Foi introduzido o art. 739-B que trata 122

A REVISTA DA UNICORP especificamente da execuo das sanes por litigncia de m-f quando esta ocorrer durante o processo ou fase de execuo. Esta execuo se dar por meio de uma ao de execuo incidente, autuada em apenso execuo principal, onde se deu a litigncia mproba. Apurado o valor da obrigao do infrator, a parte credora poder promover a sua execuo nos autos do processo executivo em curso, segundo as normas da execuo dos ttulos judiciais58. No conceito trazido pelo professor Costa Machado, o art. 739-B
[...] prev a cobrana de multas e indenizaes por meio de ao de execuo incidente, em apenso aos autos do processo executivo, com base em ttulo executivo tambm diferenciado representado pelo reconhecimento incidental, pelo juiz da execuo, de que houve prtica de alguns casos de litigncia de m-f previstos pelo art. 17 (geradores de multa e indenizao, conforme o art. 18), de ato atentatrio dignidade da justia, previstos pelo art. 600 (geradores de multa conforme o art. 601) ou da prtica de embargos protelatrios prevista nos arts. 739, III, e 740, pargrafo nico.59

Do exposto acima, v-se, desde logo, que o mbito de aplicao do art. 739-B mais amplo do que se pode perceber atravs de uma rpida leitura de seu texto. Deve-se, para um melhor entendimento da norma em estudo, fazer uma interpretao sistemtica e teleolgica, sob pena de restringir a sua aplicao, conferindo-lhe errnea anlise. Praticamente toda a recente reforma processual (para no dizer toda) teve como princpio norteador o art. 5, LXXVIII da Constituio Federal. Ou seja, o princpio da celeridade deve incidir sobre a atuao do art. 739-B60. Desta forma devemos entender a expresso multa, contida na norma em estudo, como suficientemente ampla ao ponto de abarcar todas as multas previstas no Cdigo de Processo Civil.
Depois de firmarmos nossa posio acerca da abrangncia ampla do art. 739-B, finalizamos nosso comentrio sobre o dispositivo com a anlise do mbito da expresso multa. Se no h embaraos em relao localizao da indenizao por m-f, pois o prprio 739-B faz referncia aos art.s 17 e 18 do CPC, no que tange s demais multas judiciais, espalhadas ao longo da legislao processual, na nossa viso, todas esto alcanadas pelo art. 739-B, citando-se por exemplo, no Cdigo de Processo Civil, as hipteses dos arts. 30, 161, 196, 233, 461 e 740 pargrafo nico.61

Para que seja exercido o direito contido na presente norma, necessria apenas a existncia de requerimento da parte interessada. A partir da se dar o incio do processo incidental. No sendo o pedido lquido ser desde logo iniciada a liquidao, seja por artigos ou por arbitramento como visto acima, com o que concorda Cassio Scarpinella Bueno:
o pedido, que a lei, dar ensejo formao de novos autos, que ficaro em apenso aos autos da execuo. Um tal pedido dever apresentar o quantum perseguido pelo interessado ou, se for o caso, ensejar a intimao da parte contrria para o incio da liquidao por arbitramento (arts. 475-

123

ENTRE ASPAS
C e 475-D) ou por artigos (arts. 475-E e 475-F), consoante se faam presentes os pressupostos de uma e de outra.62

Outro ponto de grande relevncia em torno desta inovao processual gira em torno da possibilidade de ocorrer eventual compensao entre os crditos presentes na execuo ordinria e os crditos de eventual sano sofrida pelo exequente.
No se deve pensar que a novidade venha a ter menor aplicao prtica porque, em geral, o executado quem apenado como litigante de m-f ou por ter praticado ato atentatrio dignidade da justia. que, por qualquer razo, podem existir dbitos do exeqente em favor do executado, o que bastante para a aplicao da regra, com vistas a uma maior celeridade na prestao jurisdicional derivada deste verdadeiro acerto de contas, o que tipifica, como tal, a compensao (CC, art. 368). imaginar a situao do executado que, sancionado na execuo, venha a ter seus embargos julgados procedentes, com a condenao do exeqente em custas e honorrios advocatcios. No h porque recusar que, com relao a estes valores possa haver a compensao autorizada pelo dispositivo previsto no art. 739-B.63

Ainda no tocante compensao e a execuo referida no artigo in comento (segunda parte) Cassio Scarpinella Bueno64 ensina que, ela pode se operar quando a sano se der tambm no processo de conhecimento, processo cautelar, processo monitrio. A razo a mesma exposta no incio do presente tpico, buscar a celeridade processual, alm da economia, evitando que seja necessria a interposio de nova ao para se cobrar esses crditos. Por fim, registre-se que a norma do art. 739-B possui grande relevncia dentro da sistemtica proposta pela reforma processual, que visa, importante ressaltar, conceder ao processo civil maior celeridade, efetividade e economia, obedecendo ao disposto no art. 5, LXXVIII da Constituio Federal.

9. Concluso O presente trabalho objetivou estudar os aspectos relacionados s sanes do instituto da litigncia de m-f, previstos nos arts. 16 a 18 do CPC, com o intuito de dirimir dvidas decorrentes de sua complexidade e, por vezes, confusa regulamentao legislativa. A aplicao das sanes pertinentes tem o condo de inibir o mau uso dos direitos processuais e da mquina judiciria. Trata-se de uma maneira de proteger dois bens jurdicos distintos: a boa prestao da tutela jurisdicional pelo Estado e o direito das partes, a um processo clere e justo. Da o porqu de poder o magistrado aplicar suas sanes de ofcio. de grande importncia que ocorra a aproximao entre a teoria (sistema normativo da litigncia de m-f) e a prtica (aplicao das normas pelos magistrados e respeito, pelas partes, aos deveres contidos no art. 14). Diante de todo o exposto resta demonstrada a importncia do instituto da litigncia de m-f, explicando, assim, a razo pelo estudo e pesquisa acerca do mesmo. 124

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Notas ______________________________________________________________________________ i. CARPENA, Mrcio Louzada. Da (Des) lealdade no processo civil. AMARAL, Guilherme Rizzo (coord.). Vises crticas do processo civil brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 37. 1. DINIZ, op. cit., p. 168. 2. ANGHER, op. cit.. p. 43. 3. Art. 16. Responde por perdas e danos aquele que pleitear de m-f como autor, ru ou interveniente. 4. STOCO, op. cit., p. 92. 5. NERY JUNIOR; NERY, op. cit. p. 302. 6. ANGHER, op. cit., p. 203. 7. ANGHER, op. cit., p. 118. 8. O artigo 17 do Cdigo de Processo Civil, ao definir os contornos da litigncia da m-f que justificam a aplicao da multa pressupe o dolo da parte no entravamento do trmite processual, manifestado por conduta intencionalmente maliciosa e temerria, inobservando o dever de proceder lealdade (STJ 6 T. REsp. 269.409 Rel. Vicente Leal J. 17.10.2000). 9. No caracteriza a m-f a litigncia s porque a parte emprestou a determinado dispositivo de lei ou a certo

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julgado a interpretao diversa da que neles efetivamente contida ou desafeioada ao entendimento que d o juzo (STJ, 1 T., REsp. n 21.185 6/SP, Rel. Min. Csar Rocha, v.u.). 10. OLIVEIRA, op. cit. p.125. 11. MILMAN, op. cit. p.137. 12. ANGHER, op. cit., p. 126. 13. IOCOHAMA, op. cit. p.182. 14. BEDAQUE, op. cit., p.93 15. IOCOHAMA op. cit. p.184. 16. MILMAN, op. cit. P. 142. 17. Caracteriza litigncia de m-f aquele que ingressa com embargos de terceiro vespera da praa com a inteno de frustar a execuo ou retardar o andamento de execuo (2 TACSP 6. C. Ap. 289.111 Rel. Norival Oliva j. 24.04.1991). Litigncia de m-f. Oposio de embargos execuo com carter infringente do julgado. Incidente manifestamente infundado. Indenizao que pode ser imposta de ofcio. Artigos 17, VI, e 18 do Cdigo de Processo Civil. Recurso no provido. Caracteriza a m-f processual a utilizao da via dos embargos a execuo com carter infringente do julgado, para rediscutir a causa decidida em trnsito em julgado. Com a edio da Lei n 8.952/94, que deu nova redao ao Cdigo de Processo Civil, a imposio da indenizao no depende de promoo da parte contrria prejudicada com essa conduta (TJSP 9 C. Dir. Privado Ap. 19.303-4 Rel. Ruiter Oliva j. 01.04.1997). 18. Neste sentido o legislador infraconstitucional inovou recentemente, com o advento da Lei n 11.382/2006, que alterou, entre outros, o art. 740, pargrafo nico do CPC. Trata-se de situao especfica em que o magistrado pode condenar o embargante ao pagamento de multa no percentual de 20% (vinte por cento) sobre o valor executado, por opor resistncia injustificada ao andamento do processo de execuo. 19. MIRANDA apud ANGHER, op. cit., p. 136 e 137. 20. DINAMARCO, Cndido Rangel. Instituies de direito processual civil. v.2. 2. ed. So Paulo: Malheiros, 2004. P. 263. 21. Execuo. Litigncia de m-f imputada exequente. Preenchimento unilateral de claros existentes no contrato celebrado. Irrelevncia. Sem a prova do comportamento maldoso da parte e, ainda, da existncia efetiva do dano no se configura a litigncia de m-f. Inexistncia de contrariedade ao art. 17, incisos II e III, do CPC. Recurso Especial no reconhecido (STJ 4. T. Resp. 220.162. Rel. Barros Monteiro j. 06.02.2001). 22. CARNELUTTI apud OLIVEIRA, op. cit., p. 60. 23. O art. 17, do Cdigo de Processo Civil, ao definir os contornos da litigncia de m-f que justificam a aplicao da multa pressupe o dolo da parte no entravamento do trmite processual, manifestado por conduta intencionalmente maliciosa e temerria, inobservado o dever de proceder com lealdade (STJ 6. T. Resp. 269.409. Rel. Vicente Leal j. 17.10.2000) 24. BEDAQUE, op. cit., p. 91. 25. ANGHER, op. cit., p. 137. 26. Se em execuo contra a Fazenda Pblica, esta se afasta dos termos claros e precisos do acrdo exequendo, modificando-os e criando incidentes infundados, responde como litigante de m-f (RT 514/17 e RJTJSP 42/143). 27. ANGHER, op. cit., p. 140. 28. Art. 22. O ru que, por no arguir na sua resposta fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor, dilatar o julgamento da lide, ser condenado nas custas a partir do saneamento do processo e perder, ainda que vencedor na causa, o direito a haver do vencido honorrios advocatcios. Art. 31. As despesas dos atos manifestamente protelatrios, impertinentes ou suprfluos sero pagas pela parte que os tiver promovido ou praticado, quando impugnados pela outra. Art. 557. O relator negar seguimento a recurso manifestamente inadmissvel, improcedente, prejudicado

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ou em confronto com smula ou com jurisprudncia dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior. 2o Quando manifestamente inadmissvel ou infundado o agravo, o tribunal condenar o agravante a pagar ao agravado multa entre um e dez por cento do valor corrigido da causa, ficando a interposio de qualquer outro recurso condicionada ao depsito do respectivo valor. 29. ANGHER, op. cit., p. 146. 30. DINAMARCO, op. cit. p. 264. 31. ANGHER, op. cit., p.147. 32. THEODORO JUNIOR, Humberto. Boa-f e processo Princpios ticos na represso litigncia de m-f. MARINONI, Luiz Guilherme (coord.). Estudos de direito processual. So Paulo: Revista dos Tribunais. 2005. p. 652. 33. ANGHER, op. cit., p. 153. 34. GASPARINI, Digenes. Direito Administrativo. 9 ed., ver. e atual. So Paulo: Saraiva, 2004. p.123. 35. ANGHER, op. cit., p. 153. 36. ANGHER, op. cit., p. 155. 37. OLIVEIRA, op. cit. p. 80. 38. BERMUDES Apud ANGHER, op. cit., p. 162. 39. IOCOHAMA, op. cit., p. 228. 40. BOTELHO, Marcos Csar. Comentrios s alteraes da Lei n 11.232/2005. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 923, 12 jan. 2006. Disponvel em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7828>. Acesso em: 26 set. 2006. 41. ANGHER, op. cit., p. 163. 42. MILMAN, op. cit., p. 228. 43. ANGHER, op. cit., p. 166. 44. MOREIRA Apud ANGHER, op. cit., p.164. 45. STOCO, op. cit., p. 149. 46. MILMAN, op. cit., p. 223. 47. Idem, ibdem. p. 224 e 225. 48. O vencedor de m-f tambm pode ser condenado em honorrios advocatcios, por aplicao do art. 18. (JTARS 83/239 in THEOTONIO NEGRO, CPC e legislao processual em vigor, 30. ed. So Paulo: Saraiva, 1999, p. 116, nota 2 ao art. 18). 49. STOCO, op. cit., p. 98. 50. ANGHER, op. cit., p. 173. 51. NERY JUNIOR, Nelson; Nery, Rosa Maria de Andrade. Cdigo de processo civil comentado e legislao extravagante. 9 ed., rev., amp. e atual. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 187. 52. A condenao do litigante de m-f deve ser imposta no mesmo processo de acordo com o CPC 18 (RTJ 110/ 1127). Todavia, o litigante inocente prejudicado poder ajuizar ao para pleitear indenizao do litigante de m-f (RJTJSP 92/142; RT 544/76). In NERY JUNIOR; NERY. op. cit. p. 188. 53. No caso de o litigante inocente pretender ajuizar ao autnoma para pleitear perdas e danos ocorridas no processo por ato do litigante de m-f, o juzo competente para julgar a ao indenizatria o mesmo onde ocorreu o dano processual (CPC 108) (RT 603/52). No mesmo sentido: ATARJ 24/168. in NERY JUNIOR; NERY. op. cit. p. 188. 54. ANGHER, op. cit., p. 176. 55. ALVIM Apud, ANGHER, op. cit., p. 56. FELKER, Reginald. Litigncia de m-f e conduta processual inconveniente. So Paulo, LTr, 2007. p. 76. 57. Art. 35 As sanes impostas s partes em consequncia de m-f sero contadas como custas e revertero em benefcio da parte contrria; as impostas aos serventurios pertencero ao Estado.

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58. THEODORO JNIOR. Humberto. A reforma da execuo do ttulo extrajudicial. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 198. 59. MACHADO, Costa. Cdigo de processo civil interpretado. Barueri-S: Manole 2007. p. 1066. 60. Este o entendimento de Cssio Scarpinella Bueno ao dizer que: Pela nova regra, novidade trazida pela Lei n 11.382/2006, no seu intuito de racionalizar a prtica dos mais variados atos processuais, em perfeita aplicao do comando do art. 5, LXXVIII, da CF [...]. in BUENO, Cssio Scarpinela. A nova etapa da reforma do cdigo de processo civil. Comentrios sistemticos Lei n 11.382, de 6 de dezembro de 2006. V. 3. So Paulo: Saraiva, 2007. p. 284. 61. NEVES, Daniel Amorim Assumpo, et al. Reforma do CPC 2. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 549 e 550. 62. BUENO, op. cit. p. 285. 63. Idem, ibdem. p. 285 e 286. 64. Idem, ibdem. p. 286.

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A NATUREZA JURDICA DO PEDGIO

Gustavo Teixeira Moris


Advogado. Procurador do Municpio de Dias D'Avila. Ps-graduado em Direito Tributrio pela PUC-SP. Especialista em Licitaes e Contratos.

Resumo: Natureza jurdica do pedgio. Investigao acerca do papel do pedgio no direito positivo brasileiro, sua finalidade, seu regime jurdico e seus critrios definidores. Conceitos de taxa, preo pblico, servio pblico e tarifa. Estudo da legislao infraconstitucional e constitucional acerca da taxa pela efetiva utilizao do servio pblico. Investigao histrica do pedgio no direito aliengena e no direito brasileiro. O pedgio no atual sistema constitucional. Limitaes ao poder de tributar. As taxas sobre a tica do concessionrio do servio pblico. Relao entre o concessionrio do servio pblico e o poder concedente. Relao entre o poder concedente e o usurio do servio pblico. Relao entre o concessionrio do servio e seu usurio. Palavras-Chave: Pedgio. Tributo. Taxa. Preo Pblico. Tarifa. Constituio. Limitaes ao poder de tributar. Natureza jurdica.

1. Introduo Para tratar do tema, inicialmente se faz necessrio uma consulta a dois diplomas normativos que tratam panoramicamente da matria, ao juzo do autor. O primeiro, a Constituio Federal, e o segundo o Cdigo Tributrio Nacional. A Constituio Federal1 deu tratamento especfico as taxas, no que recepcionou os dispositivos do Cdigo Tributrio Nacional2 que por sua vez tratou das taxas nos seguintes artigos:
Art. 5 Os tributos so impostos, taxas e contribuies de melhoria. Art. 77. As taxas cobradas pela Unio, pelos Estados, pelo Distrito Federal ou pelos Municpios, no mbito de suas respectivas atribuies, tm como fato gerador o exerccio regular do poder de polcia, ou a utilizao, efetiva ou potencial, de servio pblico especfico e divisvel, prestado ao contribuinte ou posto sua disposio. Art. 79. Os servios pblicos a que se refere o artigo 77 consideram-se: I utilizados pelo contribuinte: a) efetivamente, quando por ele usufrudos a qualquer ttulo; b) potencialmente, quando, sendo de utilizao compulsria, sejam postos

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sua disposio mediante atividade administrativa em efetivo funcionamento; II especficos, quando possam ser destacados em unidades autnomas de interveno, de unidade, ou de necessidades pblicas; III divisveis, quando suscetveis de utilizao, separadamente, por parte de cada um dos seus usurios.

No presente trabalho nos ocuparemos de decompor de forma analtica as principais caractersticas das taxas de servio, quando esses so efetivamente utilizados pelo contribuinte, impondo assim, um corte na matria, que alm de farta particularmente polmica. O objetivo deste estudo demonstrar as principais diferenas entre as taxas e os preos pblicos, entre as taxas e as tarifas, e concluir que os pedgios tambm so espcies de taxa cobrada pela efetiva utilizao do servio pblico, conceituando-o, classificando-o e atribuindo-lhe uma natureza jurdica. Para atingir o objetivo proposto, ser preciso conceituar taxa, preo pblico, tarifa e servio pblico. Bem como analisar as relaes travadas nas concesses de servios pblicos entre poder concedente, concessionria e usurio do servio. Necessrio tambm ser um breve esboo histrico do pedgio, no direito aliengena e no direito brasileiro.

2. As taxas Para o Jurista Bernardo Ribeiro de Moraes a taxa seria:


Uma espcie de tributo, que se distingue das demais pela existncia, de duas causas jurdicas: em funo do exerccio regular do poder de polcia; e pela utilizao, efetiva ou potencial, de servios pblicos especficos e divisveis, prestados ao contribuinte ou postos sua disposio (o destino da arrecadao da taxa no mais elemento caracterizador deste tributo). (MORAES, 2007, p. 32). (...) como espcie tributria, a taxa devida em razo da soberania financeira do Estado, independentemente da vontade do contribuinte ou qualquer condio (a no ser quando estabelecida na prpria lei). (MORAES, 2007, p.41).

Nesse particular complementado por Ramon Valdes Costa: as taxas como todos os tributos so sempre obrigatrias, em virtude da deciso unilateral do Estado. (COSTA, 1970, p.313). Assim, podemos concluir que as taxas so compulsrias, pois so criadas (seu critrio material, critrio espacial, sujeito ativo, sujeito passivo, base de clculo e alquota ou ainda cobrada com valor fixo) pela vontade unilateral do Estado, e podem ser institudas sempre pelo Estado e por ele cobrada ou por quem lhe faa as vezes, sempre que houver um servio pblico de sua titularidade,3 especfico e divisvel efetivamente utilizado pelo contribuinte.4 Nesse aspecto vale ressaltar que o contribuinte poder, a depender do caso, utilizar ou no o servio. Se optar em no utilizar, no haver a existncia do fato gerador da obrigao tributria e como consequncia a cobrana da taxa no existir. Mas, se de forma contrria, optar em utilizar o servio, ser sujeito passivo da obrigao tributria, tal qual e na forma em que tiver sido estabelecida em lei.5 131

ENTRE ASPAS 3. Os preos pblicos Diferentemente da taxa, o preo pblico demanda a manifestao de vontade do particular para a estipulao do quantum a ser pago ao Estado ou pelo Estado. Sem essa necessria manifestao, no se poder chegar a um valor. No preo pblico a vontade do particular concorre de forma decisiva no estabelecimento do quanto pagar, ou ainda do quanto receber (caracterstica inexistente na taxa, que vista sob a tica do particular, ser sempre o quantum a pagar). Os preos pblicos no nascem da lei, e sim do acordo de vontade entre as partes. Eles existem nas obras pblicas, na compras pblicas, na contratao de empresas privadas para a prestao de servios gerais, nas alienaes onerosas feitas pelo poder pblico ao particular, e em outras circunstncias que dependam de um ajuste entre administrao e particular para o surgimento do preo. Na obra pblica, a administrao contrata particular para a sua execuo, mediante ajuste de preo a ser feito atravs de processo licitatrio, geralmente adjudicando o objeto a empresa que oferecer o menor preo. O mesmo ocorre na contratao de empresa para prestao de servios gerais. J nas alienaes onerosas feitas pelo poder pblico ao particular os objetos so adjudicados ao particular que oferecer o maior preo para a obteno dos bens. Em todos os casos mencionados acima, a manifestao de vontade na formao do contrato (o preo um dos elementos informadores do contrato) imprescindvel para a existncia deste tipo de obrigao. Em ltima anlise, no pode existir preo pblico sem a necessria manifestao de vontade do particular, pois o mesmo tem natureza contratual, ou seja, no so compulsrios, pois sua existncia est condicionada ao necessrio acordo de vontade das partes, o que o distingue definitivamente da taxa, que como j vimos so institudas independentemente desta manifestao. Pode-se afirmar que a expresso preo pblico quase uma contradio em termos eis que preo instituto relacionado contratao privada. Ento, nessa esteira, qual a significao de preo pblico? Seria todo valor fixado por um acordo de vontade entre no mnimo duas partes, e que uma delas seja o Poder Pblico. Assim tm-se como exemplo de preos pblicos: os preos fixados para construo de uma obra onde o contratante o Poder Pblico e o contratado um particular; os preos fixados em um contrato de locao, onde o locador o Poder Pblico e o locatrio um particular; os preos fixados para a entrega de um dado bem, onde o comprador o Poder Pblico e o vendedor o particular, entre outros exemplos que veremos adiante.

4. Servios pblicos O Ministro Moreira Alves, no X Simpsio de Direito Tributrio, lanando sistemtico olhar sobre os servios procurou identificar trs espcies: Os servios propriamente estatais, prestados mediante soberania estatal e remunerados mediante o estabelecimento de taxa. Esta categoria abrangeria os servios judicirios e de emisso de passaporte. Os servios essenciais ao interesse pblico, cuja prestao estaria relacionada a um interesse da coletividade. Ocorreria nos casos de fornecimento de gua e coleta de lixo. A sua remunerao tambm dar-se-ia por meio da taxa, tendo em vista o vnculo existente entre o servio e o interesse supraindividual. 132

A REVISTA DA UNICORP Por fim, haveria os servios no essenciais, cuja fruio ficaria a critrio do usurio. Esses servios poderiam ser delegados e seriam remunerados por preo pblico. Exemplos destes servios seriam os telefnicos e de energia eltrica. A par da brilhante sistematizao ter jogado forte luz sobre o tema, a sistematizao incorre em alguns problemas que so: 1) de ordem prtica ao distinguir servios de fornecimento de gua e servio de energia eltrica, ambos essenciais ao mundo atual e ambos possveis de delegao; 2) quanto de ordem jurdica: eleger a compulsoriedade da utilizao do servio como critrio para caracteriz-lo. Nesse sentido nos leciona o professor Maral:
O problema fundamental no reside na espontaneidade (ou no) do consumo do servio, mas na sua submisso ao regime de direito pblico. Servios pblicos podem, respeitados os parmetros constitucionais, ser objeto de disciplina legal impondo sua compulsoriedade. Mas isso no inerente ao conceito de servio pblico. H servios que no so compulsrios nem por isso deixam de ser pblicos. Enfim, a compulsoriedade da fruio somente admissvel nas hipteses de regime de direito pblico, mas no da essncia do conceito de servio pblico.(JUSTEN FILHO, 2003, p. 344).

O professor Geraldo Ataliba reconhecia que a Constituio Federal impunha a taxa como instrumento adequado a promover a remunerao de servios pblicos especficos e divisveis, prestados, apontando que sua delegao no importaria na alterao da natureza do seu regime jurdico. (ATALIBA, 1999, p. 140). Assim, juridicamente, poderamos compreender os servios pblicos como todos os servios de titularidade do Estado, cuja prestao passvel de concesses ou permisso, sempre atravs de licitao.
CF. Art. 175. Incumbe ao Poder Pblico, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concesso ou permisso, sempre atravs de licitao, a prestao de servios pblicos.6

A necessidade de licitao d a essncia pblica ao servio, pois por ser servio pblico que o processo licitatrio se impe, pois, a contrario sensu, se o servio no fosse pblico, no necessitaria de licitao para sua explorao, eis que estaria a disposio do mercado para sua livre explorao, imperaria o princpio da livre concorrncia. Em outras palavras, a Administrao Pblica no pode fazer concesso de servios que no sejam pblicos, os servios privados esto fora deste controle estatal. possvel indagar-se agora, quais ento seriam os servios pblicos? A pergunta deve seguir a dinmica imposta pela evoluo das instituies, das necessidades humanas, e da legislao. Juridicamente, e de forma esttica, poderamos dizer que todos os servios que possam ser extrados das competncias e atribuies estabelecidas nos artigos 21 e 23 da CF poderiam em tese ser considerados servios pblicos, nem todos especficos e divisveis. Exemplos indiscutveis so os servios de emisso de moeda, servios de telecomunicao e radiodifuso, servios de correios, servios de instalao de energia eltrica, servios de organizao e manuteno do poder judicirio, dentre outros. 133

ENTRE ASPAS Por fim, registre-se que se o servio pblico, seja ele qual for, o fato de ser concedido para explorao privada, no lhe retira tal natureza nem modifica seu regime jurdico. Nesses casos no se modifica a titularidade do servio, a titularidade do servio continua a pertencer ao Estado, o que se concede ou se permite a prestao de tais servios. Assim, indaga-se: Se a Administrao Pblica ao prestar dado servio pblico especfico e divisvel pode instituir determinada taxa, sujeita ao regime jurdico tributrio, limitada pelas garantias constitucionais em favor do contribuinte, como poderia fazer a concesso do referido servio ao particular, outorgando-lhe a sua prestao7 e conferindo-lhe ainda a prerrogativa de ser (o particular) remunerado por outro instrumento/meio que no seja uma taxa? Ao outorgar a prestao do servio pblico, necessrio tambm que seja transferido ao particular o seu regime jurdico na sua totalidade, que, por conseguinte, determinar a sua remunerao mediante o estabelecimento de taxa. Por fim, para que no reste dvida sobre a tese exposta, vale repisar que a compulsoriedade da utilizao do servio em nada tem a ver com a vinculao da taxa na sua cobrana. No porque a utilizao compulsria que a remunerao se deve dar por taxa, e sim porque o servio pblico, que deve ter satisfeita sua remunerao por taxa; e essa sim, ao ser estabelecida, ser compulsria como todo tributo.

5. A tarifa A CF8 ao tratar das tarifas as aborda nas seguintes passagens:


Art. 43. 2 Os incentivos regionais compreendero, alm de outros, na forma da lei: I igualdade de tarifas, fretes, seguros e outros itens de custos e preos de responsabilidade do Poder Pblico; Art. 150. Sem prejuzo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, vedado Unio, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municpios: 3 As vedaes do inciso VI, "a", e do pargrafo anterior no se aplicam ao patrimnio, renda e aos servios, relacionados com explorao de atividades econmicas regidas pelas normas aplicveis a empreendimentos privados, ou em que haja contraprestao ou pagamento de preos ou tarifas pelo usurio, nem exonera o promitente comprador da obrigao de pagar imposto relativamente ao bem imvel. Art. 175. Pargrafo nico. A lei dispor sobre: III - poltica tarifria;

Atente-se para a regra de imunidade prevista no art.150, VI, a da CF, que probe a instituio de impostos sobre o patrimnio, a renda ou servios uns dos outros. Segundo o professor Paulo de Barros Carvalho, a norma imunizante colabora com a norma de competncia tributria, sendo destinada ao legislador ordinrio para determinar a atribuio dos entes da federao. Dessa forma, do mesmo modo que a Constituio atribui a um ente a competncia para instituio de determinado produto, explicita determinadas hipteses de no incidncia. (CARVALHO, 2003, p.168-169). Se assim, a norma constante do 3, do artigo 150 da CF tambm conformaria o plexo 134

A REVISTA DA UNICORP de competncia tributria dos referidos entes federados, e logo, ao dizer que as vedaes previstas no inciso VI, a do pargrafo anterior no se estenderiam a servios relacionados com explorao de atividades econmicas regidas pelas normas aplicveis a empreendimentos privados, ou em que haja contraprestao ou pagamento de preos ou tarifas pelo usurio, o legislador constitucional indicou que: caso determinado servio seja prestado pelo Poder Pblico, mas possua caractersticas relacionadas com explorao de atividade econmica e sejam regidas pelas normas aplicveis a empreendimentos privados, ou9 haja contraprestao ou pagamento de preo, a imunidade do servio prestado no subsistir, a imunidade da renda obtida com a prestao do servio tambm no subsistir, e a imunidade do patrimnio de alguma forma afetado prestao do servio, tambm no subsistir. Nesses casos estar-se-ia diante de um servio prestado pelo Poder Pblico, mas que no seria servio pblico. A imunidade s abrange os servios uns dos outros (pblicos por natureza). A prestao de outros servios (regidos pelas regras de direito privado) seria passvel de tributao nos termos no 3. caso tpico de servio privado prestado pelo Poder Pblico. O fato do Poder Pblico prestar tal servio no os transmuda de privados para pblicos, nesse caso se tem o inverso das concesses de servios pblicos, aqui os servios privados so prestados pelo Poder Pblico, continuando a serem privados. Mas o pargrafo 3 foi mais alm, adicionou hiptese acima com a conjuno OU, trazendo tambm a possibilidade de tributao quando haja a cobrana de tarifa pelo Poder Pblico ao usurio do servio. Aqui estar-se-ia diante de servios pblicos prestados pelo Poder Pblico e exigindo-se tarifa como contraprestao pelo usurio do servio. O caso diferente da primeira hiptese antiimunizante. Na primeira hiptese, o servio privado (regido pela regras aplicveis aos empreendimentos privados) prestado pelo Poder Pblico com a exigncia de preo ou contraprestao do consumidor do servio. Na segunda hiptese, o servio pblico, prestado por terceiro, mediante concesso ou permisso, onde se exige tarifa do usurio do servio pblico.10 Em ltima anlise, as hipteses antiimunizantes possuem natureza jurdica distintas, buscam atingir situaes jurdicas distintas. A primeira, visa atingir os servios privados prestados pelo Poder Pblico e a segunda, os servios pblicos prestados por terceiros, em que haja cobrana de tarifa do usurio do servio pblico. Caso o servio pblico seja prestado pelo Poder Pblico, a imunidade subsistir, no sendo possvel a instituio de impostos pelo servio pblico prestado, nem no patrimnio afetado tal prestao. Os tomadores de ambos os servios possuem natureza jurdica diferenciada, justamente pelos servios serem diferenciados. O tomador do servio privado conhecido como consumidor e o tomador do servio pblico conhecido como usurio. Consumidor e usurio so categorias distintas sujeitas a regimes jurdicos distintos. A prpria Constituio Federal11 ao referir-se ao usurio do servio pblico foi enftica em seus artigos 175 e 37. A Carta Constitucional tratou dos direitos dos usurios acertadamente, no artigo 175, quando prescreveu sobre os servios pblicos. J no tocante ao tomador do servio sujeito as regras dos empreendimentos privados, a Constituio guardou-lhes outras garantias. Tratando dos direitos dos consumidores, quando prescreveu sobre a ordem econmica, fundada na livre iniciativa, servios privados, portanto.12 Fixadas essas premissas, possvel afirmar que o servio pblico efetivamente prestado ao usurio pode ser remunerado por taxa conforme prev a Constituio e o Cdigo Tributrio Nacional; Por consequncia, a exao cobrada pelo poder pblico ao usurio do servio 135

ENTRE ASPAS dever ser uma taxa, que poder ser fixada de forma uniforme com base de clculo fixa, e sendo assim, dever constar de uma tabela tarifada, cujo nome dado ser tarifa. Nessa linha, a tarifa s pode ser exigida do usurio do servio pblico, pois o consumidor do servio privado sujeita-se ao pagamento de preo, e a fixao da tarifa deve seguir as regras para a fixao de sua classe tributria que a taxa. Assim, poder-se-ia dizer que as tarifas so cobradas todas as vezes que se est diante de um servio pblico concedido.

6. Pedgio 6.1. Um breve histrico sobre a evoluo do pedgio no mundo Uma estratgia milenar de fazer fortuna. (SAVARIS, 2008, p.1678-2933). A cobrana pela passagem ou utilizao de vias pblicas ou privadas, terrestres ou fluviais, gravando o exerccio da liberdade de circulao, direito irrenuncivel do ser humano, (artigo 150, inciso V da Constituio de 1988), foi desde cedo percebida como uma fonte inesgotvel de recursos. Escritos antigos como a obra Arthasastra, elaborada na ndia por Kautilya (321. a.c), j registravam sua prtica. Tambm se relata a cobrana pela utilizao de vias que ligavam a Sria Babilnia, h mais de 4 mil anos. (MACHADO, 2002, p.79). A expanso do Imprio Romano leva a necessidade de construo de milhares de quilometros de estradas; bem verdade que a custa de muita mo de obra escrava, no entanto o financiamento constitua uma sensvel questo, que inicialmente era viabilizada pelos proprietrios das terras por onde as estradas passavam, mas devido a enorme extenso das estradas, eram reclamados mais recursos para sua construo.13 Na idade mdia, duques, marqueses e independentes, detinham o comitatus, isto , um conjunto das prerrogativas que seus antepassados tinham exercido em nome do rei. Esses Poderes eram de origem judicial, militar e econmica, exercido em nome dos condes, dentre os poderes econmicos encontrava-se a cobrana, em proveito do conde, do pedgio. (FOURQUINI, 1987, p.47-48). J no sculo XI, quando j se fortalecia o poder real, os pedgios eram cobrados por alcaides que mantinham poderes policiais sobre um territrio determinado. Desta forma os pedgios se multiplicam, a partir de 1050. A ttulo ilustrativo verifique-se a declarao de um Castelo do sculo XI:
Reconheo ter prendido a mercadores de Langres que passavam pelo meu domnio. Arrebatei-lhes as mercadorias e guardei-as at o dia em o Bispo de Lagres e o abade de Cluni virem procurar-me para exigir reparaes. Guardei para mim uma parte do que eu tomara e restitui o resto. Esses mercadores, a fim de obterem (a totalidade do que lhes tinha sido roubado) e de poderem para o futuro atravessar minhas terras sem inquietao, consentiram em pagar-me uma quantia certa a guisa de tributo... Resolvi ento impor a todos os que atravessavam o meu territrio, por negcio ou peregrinao, um imposto chamado pedgio (FORQUINI. 1987, P. 92).

A partir do Sculo XV o pedgio deixa progressivamente de ser cobrado sem causa, sem 136

A REVISTA DA UNICORP contrapartida, para ter sua legalidade controlada pelo poder real, fiscalizando os valores das tarifas em cumprimento da obrigao da manuteno da obra. Em 1464, Luis XI inicia a policie des pages, e com a criao dos correios e pelo dito de 1964, impe-se a manuteno das vias pela cidade, por senhores e ordens religiosas, que arrecadam o pedgio em nome do rei. (SAVARIS,2008, p.207). Em 1724, por determinao do rei Luis XV uma comisso criada com a funo de pesquisar a cobrana de pedgio na Frana. Na poca foram identificados mais de 5.688 pedgios de todas as ordens. Em 1789, e posteriormente, em 1790, so suprimidos todos os direitos de pedgio sem indenizao. Assim, perto de um sculo aps a abolio dos privilgios feudais, num momento da noite de 04 de agosto de 1789, o pedgio desaparece, de direito e de fato, como mtodo de cobertura de custos de manuteno das estradas e dos canais. Por razes distintas, mas seguramente dentre elas o desenvolvimento das ferrovias, a cobrana de pedgio cessa em todo o ocidente a partir da primeira metade do sculo XIX. (SAVARIS, 2008, p.210). O desenvolvimento do setor automobilstico na segunda metade do sculo XIX, volta a acenar pela construo de rodovias mediante a cobrana de pedgios. (SAVARIS, 2008, p.210). Segundo Aliomar Baleeiro, pouco antes da segunda Guerra Mundial, o pedgio estava fadado reabilitao. E de fato com a construo da estrada Milano-Laghi, a Itlia viu-se dotada de vrias rodovias financiadas sob o regime de concesso, mediante cobrana de pedgio. (BALEEIRO, 1991, p. 333). No incio dos anos 50, a Frana empreendeu um amplo programa ambiental de construo de auto-estradas para recuperar seu atraso em relao a Alemanha e aos Pases do Norte. Em 1952, encaminhado um projeto de lei das autoestradas, que dispe que sua utilizao era em princpio gratuita, mas que, em casos excepcionais, sua construo e sua explorao, poderiam ser concedidas para a coletividade pblica. (DERYCKE,Apud. SAVARIS, 2008, p.210). Foi a Lei n 55.435/1995 que autorizou a cobrana de pedgio em rodovias, com o que se iniciou sua arrecadao nas modernas autoroutes. (MEIRELLES, 1971, p.35). O escoro histrico acima delimitado permite entender o pedgio como uma restrio (legtima) a livre circulao de pessoas e bens, traduzida na exigncia de pagamento pela passagem ou utilizao de determinada via.

6.2. O pedgio no direito positivo brasileiro A primeira via de rodagem do Brasil, a estrada Unio e Indstria, foi concedida por fora do decreto do governo imperial de n 1.301/1852. (VASQUEZ, 1997, p.23). Ainda em 1848, a Lei n 451 da provncia de Minas Gerais, j havia autorizado a contratao de investidor privado para a construo e explorao da ponte sobre o rio So Francisco. O artigo 4 da lei em questo definia a importncia que poderia ser exigida dos usurios, valendo a sua transcrio:
Art. 4. Aos emprezarios fica concedido o privilegio de arrecadar na sobredita ponte pelo espao de 40 anos as taxas seguintes: &1 de cada pessoa a p, vinte ris; & 2 de cada pessoa a cavalo, ou por cada animal carregado, cento

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ENTRE ASPAS
e sessenta ris; & 3 de cada animal vacum, cavallar ou muar, tocados, cento e vinte ris; & 4 de cada um carro, comprehendendo os animais que o tirarem at o numero de dez, oitocentos ris.(MACHADO, 2002, p.80).

Observa-se a, que a cobrana do pedgio necessitava de autorizao legislativa inclusive quanto a definio da sua regra matriz, tendo como sujeito ativo os emprezarios, o sujeito passivo as pessoas a p, ou acompanhada de cavalo, animal carregado, animal a vacum, ou de carro; como critrio material, a passagem pela ponte nos termos em que indicado e a base de clculo tarifada segundo indicado, 20 ris, 160 ris, 800 ris. Em 1946, a Constituio contempla a possibilidade de cobrana de pedgio, dispondo em seu artigo 27 que:
Art. 27. vedado Unio, aos Estados, ao Distrito Federal ao aos Municpios estabelecer limitaes ao trfego de pessoas de qualquer natureza por meio de tributos interestaduais ou intermunicipais, ressalvada a cobrana de taxas, inclusive pedgio, destinadas exclusivamente indenizao das despesas de construo, conservao e melhoramento das estradas.14

No estado de So Paulo, a Lei n 13 de 1947(SAVARIS, 2008, p.15) instituiu em seu artigo 25 a taxa de rodgio, destinada exclusivamente a indenizao das despesas de construo, conservao e melhoramento das estradas da rede rodoviria estadual e ainda estabeleceu em seu artigo 26 que a lei ordinria fixar as estradas em que incidir a taxa e fixar seu valor. O regulamento de Lei n 43 fixou que nenhum veculo poderia transitar na via Anchieta, nos trechos 30 e 50, sem o pagamento da taxa de pedgio. Em 1950, a Lei n 784 criou a taxa de pedgio e autorizou sua cobrana dos usurios de estradas pavimentadas. Na seqncia a Lei 2.481/53 disps que a taxa de pedgio criada pela Lei n 784 seria cobrada em todas as estradas pavimentadas a concreto, asfalto ou paraleleppedos.(SAVARIS, 2008, p. 15). Por meio da Lei n 1.260/51 (SAVARIS, 2008, p. 16), o Poder Executivo paulista foi autorizado a cobrar taxa de pedgio dos usurios da Via Anhanguera, nos trechos So PauloJundia e Jundia-Campinas. Um detalhe importantssimo, o pedgio seria cobrado nos termos da tabela anexa a referida lei (art.1) e os valores seriam arrecadados pelo DER (Departamento de Estradas e Rodagens). At o final de 1960, o pedgio j era cobrado em outros Estados como Bahia (estrada Itabuna-Ilhus) e Rio Grande do Sul (estrada Porto Alegre-So Leopoldo). Em 1967, a Constituio continuou a prever a cobrana de pedgio nos seguintes termos:
Art. 20. vedado a Unio, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municpios: II estabelecer limitao ao trfego, no territrio nacional, de pessoas ou mercadorias por meio de tributos interestaduais e intermunicipais, exceto ao pedgio para atender ao custo de vias de transporte.15

Segundo publicao do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BIRD):


Os pedgios rodovirios no Brasil tiveram trs fases distintas. Antes da Constituio de 1988, eram exigidos desde 1969, nas rodovias federais de

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A REVISTA DA UNICORP
pista dupla, inclusive na ponte Rio-Niteri e, desde 1947, nas autoestradas de So Paulo. Nesta fase, estes pedgios eram operados pelos prprios governos e a maioria era deficitria. A segunda fase se refere desativao dos pedgios federais, logo aps a promulgao da Constituio de 1988, com a instituio do selo pedgio na rea federal, na tentativa frustrada de generalizar a cobrana de pedgio. O selo pedgio foi extinto em 1990 e a antiga forma de cobrana de pedgio no foi restabelecida. A terceira e atual fase caracterizada pela intensificao do pedgio, com adoo do regime de concesses iniciativa privada, a partir de 1996, por meio da Lei n 9.277, que permitiu a delegao de rodovias federais a Estados e Municpios, mediante convnio com a Unio e implantao de novos pedgios por concesses privadas. (FIRMINO, in. SAVARIS, 2008, p.215).

A Constituio Federal de 1988 volta a contemplar expressamente a possibilidade de cobrana do pedgio nas vias conservadas pelo Poder Pblico (art. 150, V). Numa simples comparao do texto constitucional de 1988 com os textos constitucionais anteriores, possvel identificar que a incidncia do pedgio, em 1988, no se prende a fundamentao jurdica especfica de 1946, onde o produto da sua arrecadao se destinava exclusivamente a indenizao das despesas de construo, conservao e melhoramento de estradas. Em 1967, o pedgio foi criado para atender ao custo de vias de transporte, e agora em 1988, no h no texto constitucional qualquer norma que determine a destinao da receita, nem tampouco o fundamento (jurdico) pelo qual pode ser exigido, o que h um pressuposto ftico para instituio do pedgio (prvia manuteno de via pblica pelo Poder Pblico). Pode-se at afirmar que a cobrana de pedgio nos termos da Constituio Federal de 1988 serve para realizar outros valores que no especificamente o desenvolvimento das vias rodovirias. Como o pedgio constitui limitao liberdade de circulao, direito constitucional fundamental, sua instituio, pela lei restritiva dever buscar a promoo de outros valores de dignidade constitucional, como a promoo da erradicao da pobreza, a busca por um ambiente ecologicamente equilibrado e at mesmo propiciar o uso racional do meio de transporte. Contudo por no ser objeto do presente estudo os breves apontamentos ficam consignados para reflexo do leitor.

6.3. Concluses acerca da natureza jurdica do pedgio O conceito de pedgio est invariavelmente ligado a obrigao de pagamento pela passagem por determinado caminho. Reconhecendo no direito de passagem a essncia do pedgio, Bernardo Ribeiro de Moraes registra que, na Idade Mdia bastava a simples passagem pelos caminhos ou reas predeterminadas, seja a p (pedgio), a cavalo, atravs de barco (barcagem) ou de veculo (rodgio), para ser devido o pedgio. (MORAES,1995,p.337). Etimologicamente, pedgio, do latim ps, pedis significa o direito de pr o p (DERYCK,1997.p.10), ou onde se pe o p (MEIRELLES, 1971, p.34), da a preferncia de Aliomar Baleeiro pelo termo rodgio, para traduzir a imposio pela circulao em vias pblicas mediante veculos.(BALEEIRO, 1991, p.333). 139

ENTRE ASPAS Sacha Calmon refere que o pedgio, historicamente, pago pelo uso de estradas, o preo que se paga para passar. (COELHO, 2002, p.427). Para Hector Villegas, pedgio significa a prestao pecuniria que se exige por circular por uma via de comunicao terrestre ou hidrogrfica (caminho, ponte, autopista, tnel). (VILLEGAS, 2002, p.200). No conceito de Celso Antnio Bandeira de Mello, inclui-se mesmo, a finalidade do pedgio, que compreende, a seu ver:
A designao atribuda a uma cobrana passvel de ser exigida dos usurios de via pblica, a fim de acobertar despesas na construo, remunerar o trabalho a implicados ou relativos a sua permanente conservao, bem como servios complementares disponibilizados a quem deles se utilize. (MELLO, 2002, p.11).

J para Pinto Ferreira: O pedgio a importncia em dinheiro que a Unio, o Estado, ou o Municpio cobram dos particulares pela utilizao de estradas pblicas, para atender exclusivamente a indenizaes de despesas com a sua construo e melhoramento. (FERREIRA, 1992, p.321). Se considerarmos que a construo, manuteno e conservao das vias pblicas, estradas, vias de acesso, rodovias e ruas so de competncia do Poder Pblico respectivo, Unio para as estradas federais, Estados para as estradas estaduais e Municpios para as ruas municipais podemos concluir que esta atividade constitui tpico servio pblico. E como servio pblico pode ser objeto de imposio de taxa, se for especfico, divisvel e efetivamente gozado pelo contribuinte. No caso da utilizao das estradas, dvidas no restam acerca da divisibilidade e especificidade do servio. tpico servio que passvel de ser destacado em unidades autnomas de prestao (manuteno de determinada rodovia, trecho ou parte de determinada via) e servio passvel de ser utilizado de forma divisvel (quantidades de vezes de sua utilizao, dias de utilizao, semanas de utilizao16, quilometros rodados17). A divisibilidade do servio constitui-se em um desdobramento da especificidade do servio, se o servio especfico tambm se poder identificar os sujeitos passivos do servio. (PEREIRA FILHO, 2007, p.66). E por fim a efetiva utilizao auferida no momento que o usurio ingressa na rodovia ou dela pretende sair. Assim sendo estamos diante de um servio pblico, especfico e divisvel, que quando efetivamente frudo pelo contribuinte, pode18 ensejar a cobrana de taxa. A taxa especificamente designada para esse tipo de servio pblico foi denominada pedgio.19 No resta dvida que a cobrana deve se dar mediante a instituio de uma taxa. Todas as caractersticas de servio pblico esto presentes, so servios de titularidade do Estado, que podem ser especficos e divisveis e frudos pelo usurio, de modo que no existe outra forma do Poder Pblico exigir tal exao no sistema constitucional vigente que no seja mediante a imposio de um tributo, cuja a espcie taxa, e cujo o nome pedgio. No foi sem razo que a Constituio Federal de 1988 reservou no artigo 150, V, a possibilidade de se estabelecer a limitao ao trfego de pessoas ou bens mediante a cobrana de pedgio. A primeira parte do inciso probe a Unio, Estados, Distrito Federal e Municpios de instituir qualquer tributo tendente a restringir a circulao de pessoas e bens, exceto o pedgio. Prova contundente de que o pedgio tributo sua expressa excluso do rol das limitaes ao poder de tributar. Se fosse preo pblico como querem alguns autores a ressalva seria desneces140

A REVISTA DA UNICORP sria, j que como preo pblico pertenceria a outra classe, distinta, portanto, dos tributos. Para alguns autores, a ressalva cobrana do pedgio no mbito das limitaes ao poder de tributar no se fazia necessria, uma vez que pedgio era preo pblico, e no taxa. No foi a tese que prevaleceu, tendo a Constituio Federal de 1988 excludo expressamente das limitaes ao poder de tributar a possibilidade de instituio do pedgio, o que mais um elemento a indicar que se est diante de um tributo. A evoluo histrica no direito comparado e no Brasil tambm no deixa dvida de que o pedgio era uma taxa exigida pelo poder soberano do Estado, ou em nome do poder soberano deste, e tinha sua imposio condicionada a aprovao de uma lei. Foi assim em Roma com a criao do administrador de estradas (curatores viarum), que tinha a atribuio de impor contribuio, denominada pedgio. Foi assim tambm na idade mdia com os duques, marqueses e condes, vassalos diretos do rei, que detendo o comitatus (espcie de privilgio real) cobravam em nome do rei o pedgio, passando pelos alcaides reais no sculo XI, que detinham o poder policial sobre o reino, fazendo a cobrana do pedgio; Chegando ao sculo XV na Frana com a Police des pages no governo de Luis XI, impondo o pedgio atravs do dito de 19.06.1964, at o sculo XVII na Inglaterra, com a instituio do pedgio por meio do Highways Act 1663.(SAVARIS, 2008, p. 9). Na Frana, a imposio do pedgio se deu tambm atravs da Lei n 55.435/1995, que autorizou a cobrana de pedgios nas rodovias.(SAVARIS, 2008, p. 12). Na provncia de Minas Gerais com a Lei n 451/184820 (SAVARIS. 2008, p. 14) fora autorizada a explorao de vias mediante a imposio de pedgio e os valores a serem cobrados a ttulo de pedgio foram fixados pela prpria lei. No Brasil, a primeira via pedagiada, a estrada Unio e Indstria fora concedida a Mariano Procopio Ferreira Lage, que autorizava a sua explorao e fixava as tarifas que poderiam ser cobradas. No Estado de So Paulo, em 1947, a Lei n 13 instituiu a cobrana de pedgio e em seu artigo 26 estabeleceu que a lei ordinria determinasse as estradas que incidiriam a taxa de pedgio e fixaria o valor desta, no que foi seguido pela Lei n 784/1950 e pela Lei n 1.260/1951 (SAVARIS, 2008, p. 15), sendo, no plano federal, regulamentada a cobrana de pedgio pela edio do decreto-lei n 791(SAVARIS, 2008, p.16), que autorizava o Governo Federal a cobrar o pedgio dos usurios de vias pblicas em 1969. Como se pode ver, tanto do ponto de vista histrico, consultando o direito comparado, quanto a evoluo do pedgio do direito positivo Brasileiro, o pedgio sempre foi visto como uma prerrogativa inerente ao jus imperium do Estado. No sendo diferente na Constituio Federal de 1988, que ao ressalvar o pedgio das limitaes ao poder de tributar, reafirmou possuir o pedgio a natureza jurdica de taxa, pertencente a classe dos tributos.

7. A questo das concesses de exploraes dos servios pblicos concessionrios O artigo 175 da Constituio Federal de 1988 estabelece que incumbe ao Poder Pblico, na forma da lei, diretamente ou sob o regime de concesso ou permisso, sempre atravs de licitao, a prestao de servios pblicos. Os servios pblicos ali referidos so indiscutivelmente os mesmos servios referidos no artigo 145, II da Constituio; que, por sua vez, constituem o suporte ftico (prestao de servio especfico e divisvel, efetivamente prestados ao contribuinte) para a instituio da taxa. Assim, primeiro vale consignar que a norma tratada no artigo 175 da Constituio 141

ENTRE ASPAS Federal norma de eficcia limitada, ou seja, para que os servios pblicos possam ser concedidos a terceiros, necessria a existncia de lei autorizando a concesso e regulamentando sua forma. A norma tem sua plena eficcia condicionada a existncia de lei infraconstitucional, regulamentando a forma e condies da concesso do servio pblico. Segundo, impende afirmar que a concesso do servio pblico, feita a terceiro pelo Poder Pblico, no pode alterar o regime jurdico de tal instituto. O que se concede a prestao do servio a terceiro, jamais a titularidade do servio, que mantem inclume sua titularidade, que permanece com o Poder Pblico. Por sua vez, a concesso da prestao do servio pblico implica na transferncia ao terceiro (concessionrio), do regime jurdico pblico do servio, inclusive a forma de cobrana do usurio do servio. Assim, se a administrao prestar o servio de forma direta, poder cobrar taxa, ao transferir a prestao do servio pblico a terceiro (concessionrio), este tambm s poder cobrar do usurio do servio a mesma exao, qual seja a taxa. Isso porque no pode o Poder Pblico transferir, na concesso, prerrogativa que no detm. Se o Poder Pblico quiser se remunerar ao prestar o servio pblico dever instituir uma espcie tributria chamada taxa, caso contrrio dever prest-lo de forma gratuita.21 Do mesmo modo, se, na forma da lei, opta em conceder o servio pblico a concessionrio deve respeitar os direitos e as garantias constitucionais em favor do contribuinte. O servio pblico objetiva a satisfao de uma utilidade pblica.
A eventual contraprestao pecuniria que o usurio do servio for obrigado a desembolsar no pode ter natureza de preo, pois esta figura nitidamente decorrente de relaes de disponibilidade e liberdade estipulativa, o que no ocorre no servio pblico que por determinao constitucional, uma das entidades fora do mercado. (GRECO, 1982, p.54).

Permitir que o concessionrio exija do usurio um preo pblico, implica em conceder ao concessionrio um poder que nem mesmo a Administrao Pblica possui! Na concesso, caso a administrao pretenda transferir ao concessionrio a capacidade tributria ativa que possui, dever, preservando a sua competncia tributria, que imprescritvel e irrenuncivel, faz-lo mediante a prvia existncia de lei, que fixe o quantum, a ttulo de taxa, que poder ser cobrado pelo concessionrio. O concessionrio, ao exercer a capacidade tributria ativa, poder ou no ficar com o produto da sua arrecadao. Mas sempre dever fazer em nome do poder concedente e a ttulo de tributo. A concesso no pode ser vista como forma de burlar os direitos e garantias constitucionais assegurados ao contribuinte, usurio do servio pblico. Nesse sentido, vale a transcrio abaixo:
O sujeito passivo dever pagar a taxa porque o ente competente para tributar previu, em lei, que dever ser exigido o tributo daquele que tiver o servio pblico, especfico e divisvel colocado a sua disposio, ou daquele que o tiver utilizado, independentemente de quem tiver prestado, se a Administrao Pblica, ou o terceiro. (PEREIRA FILHO, 2007, p.66).

A relao jurdica entre a concessionria e o usurio do servio pblico dever ter a 142

A REVISTA DA UNICORP seguinte natureza: ter por objeto o pagamento de uma tarifa, tipo de taxa, pertencente a classe dos tributos, que dever necessariamente ter a sua regra matriz disposta em lei, cujo o sujeito ativo da exao ser a concessionria.

7.1. As relaes existentes entre poder concedente e concessionria e entre eles e o usurio do servio pblico nas concesses As Leis n 8.987/1995 e n 9.074/1995 trataram de regulamentar as concesses dos servios pblicos no ordenamento jurdico brasileiro. A primeira dispe sobre o regime das concesses e permisses da prestao de servios pblicos previstos no artigo 175 da Constituio Federal e a segunda trata das normas para outorga e prorrogaes das concesses e permisses de servios pblicos. Antes de tratar de alguns importantes dispositivos das leis acima mencionadas preciso registrar que em toda concesso de servio pblico trs figuras surgem: O poder concedente titular do servio pblico, o concessionrio prestador do servio pblico e o usurio tomador do servio pblico. A concesso por expressa disposio constitucional deve se dar sempre por meio de licitao, e nesse quesito, a Lei n 8.987/95, em seu artigo 15, estabelece sete critrios a serem considerados no julgamento da licitao, sendo os mais importantes: I O menor valor da tarifa do servio pblico; II a maior oferta, no caso de pagamento pelo concessionrio ao poder concedente e III a melhor proposta tcnica, com preo fixado no edital.22 Fixados estes critrios, podemos ter as seguintes relaes entre poder concedente e a concessionria do servio pblico: a) O poder exige da concessionria um preo pela concesso do servio pblico. b) O poder concedente paga a concessionria um preo para que ela preste um servio pblico, que o Estado, por alguma razo, no pode prestar diretamente ou julga mais conveniente que a concessionria o faa. c) O poder concedente transfere a prestao do servio pblico concessionria com base na menor tarifa do servio a ser prestado.

7.1.1. O poder concedente exige da concessionria um preo pela concesso do servio pblico Para isso o poder concedente ir manejar o critrio estabelecido no item II, adjudicando o servio pblico concessionria que lhe oferecer a melhor oferta para ter o direito de prestar o servio pblico em nome do poder concedente. Nesse caso a relao jurdica estabelecida entre poder concedente e concessionria do servio pblico ter por objeto o pagamento de um preo pblico da concessionria ao poder concedente. Observe que o vinculo travado entre poder concedente e concessionria tem ntida natureza contratual, da que o preo pago ao poder concedente pela concessionria tem natureza de preo pblico. O preo pblico formado pela juno de vontades entre duas partes, de um lado, o poder concedente, e do outro a concessionria do servio pblico. A manifestao de vontade da concessionria indispensvel para a formao do preo, alis ela que oferece, segundo seus critrios e segundo regras fixadas pelo poder concedente no edital, a oferta que julgar apropriada a seus interesses. 143

ENTRE ASPAS 7.1.2. O poder concedente paga a concessionria um preo para que ela preste um servio pblico, que o Estado, por alguma razo, no pode prestar diretamente ou julga mais conveniente que a concessionria o faa Para isso o poder concedente ir manejar o critrio estabelecido no item III, adjudicando o servio pblico a concessionria que apresentar a melhor proposta tcnica para prestar o servio pblico em nome do poder concedente, recebendo, em contrapartida pela prestao do servio, um preo pblico pago diretamente pelo poder concedente, cujo valor j fora previamente fixado no edital de licitao. Nesse caso, a relao jurdica estabelecida entre poder concedente e concessionria do servio pblico ter por objeto o pagamento de um preo pblico pelo poder concedente a concessionria do servio pblico. O exemplo exatamente o inverso do anterior. Observe que o vinculo travado entre poder concedente e concessionria tem de novo ntida natureza contratual, da que o preo pago pelo poder concedente a concessionria preo pblico. O preo pblico novamente formado pela juno de vontades entre duas partes; de um lado o poder concedente, e do outro, a concessionria do servio pblico. A manifestao de vontade da concessionria indispensvel para a formao contrato, aderindo com sua proposta tcnica a oferta feita pelo poder concedente segundo seus critrios e segundo regras fixadas pelo poder concedente no edital. Poder, inclusive, no participar da licitao se julgar que o preo fixado no edital pelo poder concedente encontra-se em descompasso com os valores que julgar adequado. Nos dois casos acima a problemtica das concesses se desenrola da seguinte forma, com relao ao usurio do servio: No primeiro caso, o poder concedente dever estabelecer critrios para que o concessionrio se remunere pela efetiva prestao do servio pblico, assim, dever previamente a confeco do edital de licitao, sancionar uma lei (poder ser a mesma que autorize a concesso de dado servio) que preveja a instituio de uma taxa a ser paga pelo usurio do servio (contribuinte), estabelecendo no seu critrio pessoal o sujeito ativo da taxa como sendo o concessionrio do servio pblico. O valor desta taxa dever ser fixada, ou tarifado em um anexo ao edital, e servir juntamente com o prazo da concesso do servio pblico e demais critrios estabelecidos no edital, para que a concessionria possa apresentar sua maior oferta. A relao travada entre a concessionria e o usurio do servio pblico assume natureza tributria. A concessionria ao adquirir a concesso de dado servio pblico passa a participar da regra matriz tributria da exao na condio de sujeito ativo, que por sua vez tem no usurio do servio pblico o seu sujeito passivo. tpico caso de parafiscalidade. No segundo caso, surgem duas alternativas ao poder concedente, ou faz a concesso, oferecendo um preo concessionria do servio sem nada exigir do usurio, caso em que o servio prestado pela concessionria sem nus algum para o usurio, tem-se a os servios pblicos gratuitos. Ou, de outro modo, para fazer contrapartida ao preo pago pelo poder concedente concessionria, o Estado institui taxa para se abastecer pela prestao de dado servio pblico concedido. Nesse caso, a relao jurdica tributria pode se dar diretamente entre poder concedente e usurio; a regra matriz prever o poder concedente como sujeito ativo e o usurio como sujeito passivo, muito embora o servio seja prestado por concessionria. O recolhimento da taxa darse- diretamente pelo poder concedente e eventuais dficits entre o preo pago concessionria e o montante arrecadado do usurio (contribuinte) pela utilizao do servio sero arcados pelo poder concedente como uma espcie de subsdio ao servio, podendo ainda o poder concedente 144

A REVISTA DA UNICORP indicar a concessionria como sujeito ativo da regra matriz da taxa, incumbindo o dever de repassar aos cofres pblicos do poder concedente o montante arrecadado do usurio.

7.1.3. O poder concedente transfere a prestao do servio pblico a concessionria com base na menor tarifa do servio a ser prestado Nesse caso, o poder concedente dever utilizar-se do critrio estabelecido no item I deste captulo, combinado com o artigo 9 da Lei n 8.987/95. Nesse momento, a aproximao da questo deve se dar pelo cientista do direito com certa cautela, pois uma leitura apressada poderia conduzir ao entendimento de que o valor da tarifa seria fixado pelo concessionrio em sua proposta, um erro. O professor Maral nos ensina que:
Em primeiro lugar, deve ter-se em vista que a competncia para a fixao da tarifa do Estado, sendo invivel sua delegao a particular. Portanto o artigo 9 no prev que a tarifa seja fixada pelo particular, por meio da proposta vencedora. Dispe, isto sim, que ser ela estabelecida tendo em vista o valor constante da proposta vencedora. (JUSTEN FILHO, 2003, 366).

Nesse caso a relao travada entre o poder concedente e a concessionria do servio pblico poder no ter o preo pblico como um dos elementos do contrato que os unir, que somente estabelecer obrigaes para ambos os lados. O edital sim, dever previamente fixar um valor de tarifa, cuja sua regra matriz dever previamente ser fixada por lei, estabelecendo todos os critrios que a compe. Nesse caso a concessionria poder apresentar um valor menor do que o estabelecido no edital, nunca maior, atendendo a outros critrios como prazo de explorao do servio pblico e demais fontes de receitas acessrias, alternativas e complementares. Essas receitas acessrias no constituem tributos e so na verdade provenientes do desempenho de atividade extritamente privada que pode ser, a depender de previso do edital, contempladas para que o concessionrio possa desempenhar de forma acoplada ao desempenho do servio pblico. Tm-se como exemplo o direito do concessionrio de transporte pblico oferecer venda de revistas aos usurios do servio. No caso sob exame no se tem qualquer relao de preo pblico entre poder o concedente e a concessionria, existindo somente uma relao tributria entre poder concedente, atravs da concessionria e o usurio do servio. A lei que permitir a concesso que dever previamente fixar a regra matriz da taxa a ser cobrada do usurio, sendo denominada na concesso de tarifa, pois previamente fixada em tabela anexa ao edital da concesso.23

8. Concluses Aps a fixao das premissas acima expostas, aps a investigao constitucional do sistema tributrio e suas limitaes, bem como aprofundado estudo da legislao infraconstitucional e 145

ENTRE ASPAS escoro histrico possvel concluir que: As taxas podem ser cobradas pelos servios pblicos especficos e divisveis frudos efetivamente pelo usurio. A manuteno das rodovias so atribuies primordiais do Poder Pblico e como tal podem ser caracterizadas como prestaes pblicas direcionadas ao administrado, sendo, portanto, servios pblicos. Tais servios so divisveis e especficos, cuja utilizao individualizada do usurio pode materialmente ser mensurada. Que tais servios podem, portanto, ensejar a instituio de um tributo denominado taxa. Que a concesso do servio pblico no transmuda sua natureza, continuando a ser pblico, todavia prestado por terceiro e que, portanto, a transferncia da prestao do servio no tem a finalidade de alterar ou modificar a natureza jurdica de tais servios. Que a relao existente entre prestador do servio pblico e usurio deve respeitar os direitos e garantias constitucionais assegurados ao usurio do servio pblico e ao contribuinte. Sendo possvel indicar ser a tarifa o nome de uma exao cobrada do usurio do servio pblico pertencente espcie das taxas, que por sua vez est contida na classe dos tributos. Sendo certo portanto, em ltima anlise, correto afirmar que as tarifas cobradas pelos concessionrios de servios pblicos possuem natureza jurdica de tributos sujeitando-se a todas as prerrogativas e limitaes impostas pela Constituio Federal.

Referncias ________________________________________________________________________ ATALIBA. Geraldo. Hiptese de Incidncia Tributria. 5ed. 1999. Malheiros. BALEEIRO. Aliomar. Direito Tributrio Brasileiro. 10ed. 1991. Forense. BRASIL. Cdigo Tributrio Nacional. Disponvel em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/ L5172.htm>. BRASIL. Constituio Federal de 1988. Disponvel em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ Constituicao.htm>. BRASIL Constituio Federal de 1946. Disponvel em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ Constitui%C3%A7ao46.htm>. BRASIL Constituio Federal de 1976. Disponvel em <http:// http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ Constituicao/Constitui%C3%A7ao67.htm>. CARVALHO. Paulo de Barros. Curso de Direito Tributrio. So Paulo. Saraiva. 2003. CARVALHO. Paulo de Barros. Direito Tributrio, linguagem e mtodo. 3ed. So Paulo. Noeses. 2009 COELHO. Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributrio Brasileiro. 6ed. 2002.Forense.

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Notas ______________________________________________________________________________ 1. Art. 145. A Unio, os Estados, o Distrito Federal e os Municpios podero instituir os seguintes tributos: II taxas, em razo do exerccio do poder de polcia ou pela utilizao, efetiva ou potencial, de servios pblicos especficos e divisveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposio; 2 As taxas no podero ter base de clculo prpria de impostos. Art. 150. Sem prejuzo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, vedado Unio, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municpios: III cobrar tributos: V estabelecer limitaes ao trfego de pessoas ou bens, por meio de tributos interestaduais ou intermunicipais, ressalvada a cobrana de pedgio pela utilizao de vias conservadas pelo Poder Pblico; 2. BRASIL. Cdigo Tributrio Nacional. Disponvel em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/ L5172.htm>. 3. Lembremos que podem haver servios prestados por particulares, mas tal particularidade no retira do Estado a titularidade do servio. Nesses casos a prestao do servio que concedida a terceiros, permanecendo o Estado com a titularidade do servio. 4. No devemos confundir a compulsoriedade da exao com a compulsoriedade da utilizao do servio. A compulsoriedade do tributo atributo que pertine a sua criao, independe de manifestao de vontade do contribuinte, para que exista a hiptese de incidncia. 5. Os servios postos a disposio embora possam ensejar a cobrana de taxa no sero tratados neste artigo.

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6. BRASIL. Constituio Federal de 1988. Disponvel em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ Constituicao.htm>. 7. Na concesso ou permisso o que se concede a prestao do servio pblico ao particular, a titularidade do servio pblico permanece inclume em poder da Administrao Pblica. 8. BRASIL. Constituio Federal de 1988. Disponvel em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ Constituicao.htm>. 9. A conjuno ou na orao indicaria alternativa ou o servio privado prestado ou ainda prestado com exigncia de contraprestao ou pagamento de preo. 10. Ousamos em dizer que o tomador de dado servio privado, ainda quando prestado pelo Poder Pblico deve ser considerado o consumidor do servio. J, quando o servio prestado pblico ainda que prestado por terceiro o tomador deve ser considerado como usurio do servio. 11. Art. 175. Incumbe ao Poder Pblico, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concesso ou permisso, sempre atravs de licitao, a prestao de servios pblicos. Pargrafo nico. A lei dispor sobre: I o regime das empresas concessionrias e permissionrias de servios pblicos, o carter especial de seu contrato e de sua prorrogao, bem como as condies de caducidade, fiscalizao e resciso da concesso ou permisso; II os direitos dos usurios; III poltica tarifria; IV a obrigao de manter servio adequado. Art. 37. A administrao pblica direta e indireta de qualquer dos Poderes da Unio, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municpios obedecer aos princpios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficincia e, tambm, ao seguinte: 3 A lei disciplinar as formas de participao do usurio na administrao pblica direta e indireta, regulando especialmente: I as reclamaes relativas prestao dos servios pblicos em geral, asseguradas a manuteno de servios de atendimento ao usurio e a avaliao peridica, externa e interna, da qualidade dos servios; 12. Art. 170. A ordem econmica, fundada na valorizao do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existncia digna, conforme os ditames da justia social, observados os seguintes princpios: V defesa do consumidor; 13. criado a figura do administrador de estradas que tinha atribuio de impor contribuies destinadas a construo e manuteno de novas estradas. 14. BRASIL Constituio Federal de 1946. Disponvel em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ Constitui%C3%A7ao46.htm>. 15. BRASIL Constituio Federal de 1976. Disponvel em <http:// http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ Constituicao/Constitui%C3%A7ao67.htm>. 16. Sistema Slovnio. 17. Sistema Italiano. 18. Lembre-se que a imposio do pedgio uma faculdade do legislador, ficando ao seu critrio, obedecendo ideologia poltica predominante em dado perodo histrico. 19. Os escoros histricos do sentido ao nome utilizado pelo legislador constituinte de 1988. Exao sempre relacionada ao direito de passagem. 20. Art. 4. Aos emprezarios fica concedido o privilegio de arrecadar na sobredita ponte pelo espao de 40 anos as taxas seguintes: &1 de cada pessoa a p, vinte ris; & 2 de cada pessoa a cavalo, ou por cada animal carregado, cento e sessenta ris; & 3 de cada animal vacum, cavallar ou muar, tocados, cento e vinte ris; & 4 de cada um carro, comprehendendo os animais que o tirarem at o numero de dez, oitocentos ris. 21. Um exemplo clssico de servio pblico gratuito a educao bsica dos 04 aos 17 anos por expressa imposio constitucional, Artigo 208, inciso I. 22. Os demais critrios constituem combinaes entre dois ou mais critrios listados no presente artigo. 23. Nesse sentido vale transcrever o artigo 2 da Lei n 9.074/95: Art. 2 vedado Unio, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municpios executarem obras e servios pblicos por meio de concesso e permisso

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de servio pblico, sem lei que lhes autorize e fixe os termos, dispensada a lei autorizativa nos casos de saneamento bsico e limpeza urbana e nos j referidos na Constituio Federal, nas Constituies Estaduais e nas Leis Orgnicas do Distrito Federal e Municpios, observado, em qualquer caso, os termos da Lei n 8.987, de 1995.

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MOROSIDADE NO PODER JUDICIRIO: CAUSAS E SOLUES

Jeverson Luiz Quinteiro


Juiz de Direito. Professor da Fundao Getlio Vargas, FGV Direito Rio.

Resumo: Este artigo tem por escopo indicar quais as reais e principais causas da morosidade no Poder Judicirio, bem como apontar as solues. Palavras-Chave: Morosidade. Causas. Solues. Gesto. Desenho estrutural. Organizao. Gestes centralizadoras. Metas. Planejamentos ttico e operacional. Padro. Controle. CNJ. Sumrio: 1. Introduo. 2. Onde h maior morosidade? 3. Causas da morosidade. 4. Solues. 5. Concluses.

1. Introduo O Poder Judicirio tem a pecha de moroso e necessrio que busquemos uma soluo definitiva para tal mal. inconcebvel que um processo demore cinco, dez ou at vinte anos para que tenha uma soluo! Algumas medidas esto sendo adotadas, a exemplo do que vemos com a PEC dos Recursos, apresentada pelo Ministro Cezar Peluso, a qual prope alterao na Constituio Federal com vistas a antecipar o momento do trnsito em julgado da deciso, de modo que, logo aps o pronunciamento dos Tribunais de Segunda Instncia (Tribunais de Justia e Tribunais Regionais Federais), a deciso possa ser submetida execuo. Malgrado a PEC dos Recursos apresente-se como uma soluo, tal medida no representa a soluo definitiva e total do problema da morosidade no Poder Judicirio, como veremos no seguimento. Penso que o ponto de partida para a soluo do problema em comento reside na definio do local onde h maior morosidade no Judicirio. Em que instncia a morosidade maior?

2. Onde h maior morosidade? evidente que a maior morosidade na prestao jurisdicional se encontra na primeira instncia, pois onde est a maior concentrao de processos judiciais; de atribuies e de complexidades procedimentais. Como na primeira instncia existe a fase instrutria, onde a dilao probatria permite a produo de provas periciais, testemunhais, etc., logo, por bvio, a durao do processo tende a ser obrigatoriamente maior que nas instncias superiores, onde 150

A REVISTA DA UNICORP tal fase no existe. Alm disso, nas entrncias superiores o volume de trabalho bem menor, tendo em linha de estima que nem todos os processos sentenciados em primeira instncia so objeto de recurso. Basta uma simples conta para se concluir que o grande gargalo est na primeira instncia. Imaginemos uma Vara Cvel de feitos gerais com 5.000 (cinco mil) processos em que o magistrado impulsione 1.000 (um mil) processos todos os meses e o cartrio lhe alimente, todos os meses, com mais 1.000 (um mil) processos, sem que nenhum processo se repita no mesmo ms. Ora, nessa situao hipottica e utpica, o magistrado conseguiria impulsionar todos os processos dessa Vara a cada cinco meses. Se considerarmos que um processo judicial cvel de rito ordinrio, em que o Escrivo impulsione o feito por certido (atos ordinatrios), tem quatro fases1 e se, hipottica e utopicamente, considerarmos que todas as fases acontecem em no mximo trinta dias, logo chegaremos concluso que um processo distribudo hoje gastar no mnimo 20 (vinte) meses para ser sentenciado, ou seja, quase dois anos. Ora, se em condies utpicas o processo j levaria quase dois anos para ser sentenciado, imaginem em condies reais. importante salientar que, seguindo o raciocnio acima, podemos seguramente asseverar que quanto maior o nmero de processos a cargo de um juiz, mais lenta ser a prestao jurisdicional. Com efeito, por todos estes assentes motivos, foroso ilacionar que o gargalo do Poder Judicirio se encontra na primeira instncia.

3. Causas da morosidade As causas so inmeras. Muitos doutrinadores tm apontado causas e solues interessantes. No entanto, vejo que eles tm se olvidado da maior causa, a saber: a falta de know how em gesto. Por falta de conhecimento e preparo na cincia da administrao acabamos tendo no Judicirio gestes centralizadoras; autocrticas; com m alocao de recursos e direo2; definio de metas ineficazes, ausncia de controle, desenho estrutural inapropriado, etc., o que gera improdutividade e desmotivao, dentre outras coisas. Desmotivamos nossa equipe, sendo crescente a insatisfao tanto de magistrados, quanto de servidores, os quais so obrigados a dar vazo a uma gama incomensurvel de tarefas sem que sejam alocados os recursos humanos, estruturais, etc., necessrios a execuo da herclea misso. No fazemos acompanhamento do crescimento das Varas Judiciais com vistas a adotarmos aes corretivas, antes que esta Vara fique inviabilizada pela quantidade excessiva de processos judiciais. inconcebvel que o maior setor produtivo do Judicirio seja o menos favorecido em termos de recursos humanos, estruturais, etc.! No existe um sistema de premiao ou outros mecanismos motivacionais capazes de fazer com que todos trabalhem com entusiasmo e qualidade, com vistas a satisfazer nossos clientes externos e internos. Somente agora os Tribunais comearam a realizar planejamento estratgico, porm no produziram ainda os planejamentos ttico e operacional, sem os quais o planejamento estratgico no eficaz. No existe padro no Poder Judicirio. No temos padro nos documentos, nas rotinas, etc. Nos falta, ainda, controle sobre os produtos (entrega, custo e qualidade) e sobre as pessoas (moral e segurana). Sem controle e sem padro no h gesto. Por serem, de regra, os magistrados e servidores amadores na rea de gesto, acabamos sofrendo todas as mazelas que a morosidade impe. 151

ENTRE ASPAS 4. Solues Em primeiro lugar devemos com urgncia mudar o desenho estrutural dos Tribunais, migrando de funcional para divisional. Tal mudana tornaria a administrao mais clere e descentralizada. A estrutura funcional diz respeito reunio de tarefas de conformidade com a funo organizacional, como, por exemplo, operaes, recursos humanos, etc. Representa um agrupamento que tem por supedneo a similitude das tarefas, habilidades, uso de recursos e conhecimento necessrios ao desempenho de cada uma das funes. Essa forma de estrutura gera uma viso muito focada nos objetivos de cada rea funcional e no nos objetivos gerais da organizao; torna difcil a coordenao e a comunicao entre departamentos funcionais e, ainda, torna lenta a resposta s mudanas externas em decorrncia da centralizao da tomada de deciso. comum nos Tribunais essa forma de estrutura organizacional e, em decorrncia disto, a atuao das reas funcionais dos Tribunais muito focada em seus prprios objetivos e, ainda, sem coordenao entre elas torna ineficiente, lenta e mais dispendiosa a mquina administrativa dos Tribunais. Penso que esse tipo de estrutura no a melhor forma e o Judicirio deve migrar seu desenho estrutural para a forma divisional, pois est focada no resultado. A estrutura divisional organizada em funo dos resultados, diferentemente da estrutura funcional que organizada de acordo com os recursos necessrios para que a organizao produza bens ou servios. Na estrutura divisional todos os recursos necessrios para produzir um produto ou servir um cliente, tais como: produo, logstica, etc., encontram-se em cada diviso. Essa forma de estrutura d autonomia s divises, sem retirar dos administradores de topo o planejamento, coordenao e controle da organizao como um todo. As divises so controladas e avaliadas centralmente com base no seu desempenho. No modelo estrutural atual as decises administrativas e os recursos financeiros, materiais, etc., esto todos centralizados nos Tribunais e no h autonomia alguma para as Comarcas, logo, por corolrio, o maior setor produtivo do Poder Judicirio fica desprovido dos recursos e da autonomia decisria necessrias para que sejam dadas respostas rpidas e eficientes aos problemas. imperioso destacar nesse permeio que a estrutura deve se ajustar, dentre outros, ao tamanho da organizao. O Judicirio cresceu, no entanto, malgrado isto, no promoveu a adequao de sua estrutura, permanecendo na forma mais simples de estrutura organizacional (estrutura funcional). Na medida em que uma organizao cresce, ela pode passar de uma estrutura simples para uma estrutura mais complexa, do tipo divisional, por exemplo. O resultado mais bvio do aumento do tamanho a maior delegao e descentralizao, visto que impossvel controlar grandes organizaes a partir do topo3. Como asseverado alhures, acredito que essa forma estrutural seja a melhor para o Judicirio, porque a sociedade cobra de ns melhor desempenho e resultados. Outra soluo que proponho o aumento do tempo da administrao dos Tribunais, pois impossvel conseguir algum resultado positivo administrando um Tribunal com prazo to exguo, a saber: dois anos. A definio de metas pelo CNJ representou um avano, no entanto, data venia, quer me parecer que as metas definidas pelo CNJ so ineficazes, tendo em linha de estima que para que 152

A REVISTA DA UNICORP a meta seja eficaz necessrio que, dentre outras, ela seja desafiadora, especfica, realista (possvel) e consensada. As metas do Judicirio so genricas e no foram consensadas com os destinatrios delas. Algum poderia pensar, mas como o CNJ poderia consensar metas com todos os juzes do pas? Bastaria que o CNJ definisse consensualmente as metas para os Tribunais e no para os magistrados e, ento, cada Tribunal definiria com cada magistrado a sua meta e o que seria necessrio (recursos humanos, materiais, etc.) para o atingimento individual da mesma. A meta definida pelo CNJ, em muitos casos, impossvel de ser atingida, haja vista que existem Varas que variam de 5.000 a 140.000 processos, sendo, portanto, humanamente impossvel cumprir as metas impostas. No bastasse isto, ainda no existe controle no Poder Judicirio. Existem controles sobre produtos e sobre pessoas. Sobre produtos o controle se divide em: entrega; custo e qualidade. Sobre as pessoas o controle se divide em: segurana e moral. No Judicirio no exercemos controle sobre o que entregue (quantidade e tempo); sobre a qualidade do que entregue ou produzido, nem tampouco sobre o custo de produo. Em relao s pessoas no controlamos a segurana das pessoas, nem dos clientes internos, nem tampouco dos clientes externos. No controlamos tambm a moral da equipe. Note-se que quando menciono ausncia de controle de entrega, no me refiro ao controle estatstico da quantidade que produzida, mas ao controle no sentido de garantir que as metas definidas sejam atingidas. De nada adianta o CNJ definir metas se no houver uma checagem peridica com vistas a assegurar que a meta seja alcanada, com adoo de aes corretivas que garantam o resultado almejado. oportuno destacar a ausncia de controle sobre o moral da equipe. Como no Judicirio, de regra, no h controle sobre o moral da equipe, encontramos muitos juzes e servidores desmotivados. Isso gera tremendo prejuzo na produo e tambm financeiro, pois gera absentesmo e turn over (rotatividade). A soluo neste caso criar itens de controle para todos os produtos e pessoas e incorporar no Judicirio a cultura da checagem, com vistas adoo de aes corretivas, conforme estabelece o mtodo de controle chamado PDCA. Sugiro como uma das muitas formas de motivar que seja criado no Judicirio um Plano de Cargos, Carreiras e Salrios atrelado ao atingimento e superao de metas de produtividade com qualidade. Outra soluo para nosso problema de gesto seria capacitar juzes e contratar servidores com know how em gesto para exercer a funo de direo, com vistas a uma melhor coordenao dos setores e atividades. Por derradeiro, necessitamos urgentemente de padronizao no Poder Judicirio. Padronizao em todos os sentidos, de documentos a rotinas.

5. Concluses O Poder Judicirio necessita de uma urgente e completa mudana de paradigma. Vejo o CNJ como a mola propulsora dessas to almejadas mudanas. No podemos esperar mais! A mudana deve ser rpida e pontual. Como visto somente uma radical mudana do modelo de gesto que utilizamos poder gerar a satisfao e celeridade que todos esperamos desse Poder que representa o equilbrio e sustentculo do Estado Democrtico de Direito O Judicirio tem que ser melhor e, acredito, ser o melhor. 153

ENTRE ASPAS
Notas ______________________________________________________________________________ 1. 1. Recebimento inicial. 2. Designao de audincia preliminar. 3. Audincia preliminar e saneador. 4. Audincia de instruo e julgamento. 5. Sentena. 2. Liderana 3. SOBRAL, Filipe; PECI, Alketa. Administrao: teoria e prtica no contexto brasileiro. So Paulo: Pearson Prentice Hall, 2008, p. 193.

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VISO CRTICA SOBRE O TRIBUNAL DO JRI, NUMA ABORDAGEM SOBRE ASPECTOS HISTRICOS, CULTURAIS, CONSTITUCIONAIS, PROCEDIMENTAIS E RECURSAIS

Luciano Ribeiro Guimares Filho


Juiz de Direito do Estado da Bahia. Especialista em Grandes Transformaes do Processo pela UNAMA/LFG. Especialista em Direito Processual Civil e Penal pela UNIDERP/LFG.

Resumo: o Tribunal do Jri, no ordenamento ptrio, possui previso constitucional, relacionando-se ao Direito Processual Penal. Todavia, apesar da defesa de doutrinadores e trabalhadores do direito, tal instituio apresenta, tanto no tocante ao procedimento, como na fase recursal, impropriedades tcnicas, que exigem modificaes visando o respeito aos princpios processuais da economia e celeridade, na medida em que necessria, por exemplo, a extino de procedimentos e recursos absolutamente desnecessrios e sem relevncia. Cabe ressaltar, ainda, que os julgados emanados pelos jurados apresentam impropriedades tcnicas, atingindo, no raras vezes, concluses e veredictos injustos, sobretudo por no possurem obrigatoriedade de fundamentao das decises, diferentemente dos magistrados togados. Nos moldes atuais do Tribunal do Jri, resta comprometida a realizao da justia, alm da contribuio para a to combatida morosidade do Poder Judicirio. Neste contexto, ser utilizado nesta obra o mtodo dedutivo de pesquisa, partindo-se de conceitos gerais sobre a matria para, posteriormente, concluir-se sobre a problemtica objeto da anlise do estudo, objetivando-se a produo de respostas convincentes para o problema apresentado, partindo-se da reflexo feita no estudo, com a anlise de aspectos pontuais, como a eliminao de parte desnecessria, repetitiva ou pouco produtiva do rito procedimental e, ainda, a eliminao de alguns recursos ligados matria e, at mesmo, a possibilidade de extino do Tribunal do Jri, com a adoo de um procedimento mais clere e tcnico. Ao final, analisados argumentos doutrinrios e artigos cientficos favorveis e contrrios instituio, apresenta-se uma concluso sobre a manuteno ou extino do Tribunal do Jri. Palavras-Chave: Tribunal. Jri. Argumentos. Contrrios. Favorveis.

1. Introduo O Tribunal do Jri, Instituto ligado ao Direito Processual Penal e com previso em sede constitucional, em que pese seja defendido por inmeros doutrinadores e trabalhadores do direito, comporta em sua estrutura, seja procedimental ou recursal, imperfeies e pontos 155

ENTRE ASPAS questionveis no que diz respeito tcnica dos julgados, ao moroso procedimento que atualmente seguido e, ainda, alguns recursos absolutamente desnecessrios e que, de certa forma, contribuem para injustias e para que os processos submetidos ao Tribunal do Jri nos passem a impresso de que jamais chegaro ao seu trmino, fato que promove a sensao de impunidade. O trabalho ser norteado pela anlise de questes controvertidas sobre o mencionado Instituto, analisando-se seus reflexos no veredicto final, bem como no andamento dos feitos que so submetidos a julgamento popular, com seus reflexos no sentimento de efetividade da justia e, principalmente, o respeito tcnica processual, celeridade e economia processuais, questes estas que se insurgem contra a combalida morosidade do Poder Judicirio, destacando-se, todavia, que possveis modificaes analisadas e propostas no podem, em hiptese alguma, abandonar a deferncia ao devido processo legal e ampla defesa, conciliando, desta forma, eficcia com garantismo. Objetiva-se com o presente estudo, portanto, a explicitao e o alcance de possveis solues para os principais pontos controvertidos sobre o Tribunal do Jri, visando a soluo dos problemas brevemente expostos e que sero delineados com maior nfase no desenvolvimento deste trabalho.

2. O Tribunal do Jri 2.1. Breve histrico do Tribunal do Jri seu surgimento no plano internacional e nacional No possui a presente obra a pretenso de se fazer uma narrao detalhada sobre o histrico e a evoluo do Jri no mundo e, em particular, no Brasil. Entretanto, apenas para que o leitor melhor se situe nesse contexto evolutivo, far-se-, de forma bastante resumida, um escoro sobre o Jri no mundo e em nossa legislao. Tem-se notcia da utilizao e nomeao de jurados desde a Roma Antiga (judices jurati)1, bem como narrada a existncia, na Grcia antiga, da Instituio dos diskatas2. Porm, nos moldes modernos, o Jri tem seu surgimento no ano de 1215, na Inglaterra, espalhando-se na Europa aps a revoluo francesa, como forma de reao ao absolutismo monrquico3, estampando, desta forma, o carter poltico do Tribunal Popular quando do seu surgimento. No Brasil, estudos apontam que coube ao Senado do Rio de Janeiro, em 04 de fevereiro de 1822, a iniciativa da criao do Tribunal do Jri, quando foi sugerida a implantao ao Prncipe regente D. Pedro que, ao aceit-la, criou os Juzes de Fato, que teriam competncia, inicialmente, para julgar crimes de imprensa. Com a promulgao da Constituio do Imprio (25 de maro de 1824), o Tribunal do Jri adquire status constitucional, possuindo competncia para o julgamento de todas as infraes penais e, ainda, de fatos cveis4. Com a evoluo legislativa, o Jri, em constituies anteriores de 1988, apesar de sua supresso na Constituio de 1937, teve paulatinamente sua competncia diminuda, amoldando-se quela atualmente prevista. Porm, desde as Constituies de 1946, 1967 e 1969 que o Jri tem sua soberania intocada5, culminando com a promulgao da Constituio Federal de 1988, com previso art. 5, inciso XXXVIII, no Ttulo II Dos Direitos e Garantias Fundamentais, Captulo I Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, possuindo, ainda, a garantia de ser clusula ptrea (art. 60 4 da CF/88). 156

A REVISTA DA UNICORP No demais a transcrio do caput do mencionado artigo 5, bem como o seu inciso XXXVIII, ambos da Constituio Federal de 19886:
Art. 5. Todos so iguais perante a lei, sem distino de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no pas a inviolabilidade do direito vida, liberdade, igualdade, segurana e propriedade, nos termos seguintes: .... XXXVIII reconhecida a instituio do jri, com a organizao que lhe der a lei, assegurados: a) a plenitude de defesa; b) o sigilo das votaes; c) a soberania dos veredictos; d) a competncia para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida;.

2.2. A controvrsia existente em relao convenincia da manuteno do Tribunal do Jri no ordenamento jurdico ptrio Observada a competncia estampada na Carta Poltica, competir ao Tribunal do Jri o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, quais sejam, o homicdio, o infanticdio, o aborto em suas diversas formas e a instigao ao suicdio. Destaque-se que tais crimes sero julgados pelo Tribunal do Jri tanto em sua forma consumada quanto na tentada. Desta forma, deparamonos com uma categoria de crimes que fogem regra geral de julgamento por parte de juzes de direito ou juzes federais. Nestes julgamentos, o bem jurdico tutelado a vida, nico bem, nas palavras de Aramis Nassif7, irrecupervel e irreparvel, seja por qualquer das vises que se permita ter a humanidade: religiosa, filosfica, antropolgica, etc.. Extrai-se da o conceito de que, na viso do legislador, somente a sociedade, atravs dos seus cidados comuns, pode julgar os delitos que ela, por seus indivduos, pode cometer, de acordo com o entendimento de que crimes contra a vida podem ser praticados por qualquer pessoa e, desta forma, os cidados, com suas diferentes personalidades, ao formarem o Conselho de Sentena, podem avaliar as circunstncias atravs dos fatos, formando, assim, uma mdia social da viso do povo sobre o comportamento e conduta do acusado que inspiraram a violncia do ato. Por tais fatos, retira-se dos juzes togados a competncia para julgar os crimes dolosos contra a vida. Percebe-se, portanto, de forma cristalina, a opo do legislador em dar tratamento diverso e especial a esses crimes, fazendo com que pessoas acusadas do cometimento de tais delitos, em que pese suas gravidades, sejam julgadas por seus semelhantes, produzindo em alguns casos, conforme veremos, defesas apelativas, aliceradas basicamente em cunho emocional, desprovidas de maiores apegos melhor tcnica jurdica. E exatamente pela existncia de problemas tcnicos, subsiste atualmente grande celeuma em relao necessidade de reforma e, at mesmo, da convenincia da manuteno do Tribunal do Jri no ordenamento jurdico ptrio. notria a necessidade de reforma processual penal, fato acompanhado com expecta157

ENTRE ASPAS tiva no somente por juristas, mas, seguramente, por toda a sociedade que, atenta e vigilante, acompanha o desenrolar dos fatos, pois, evidncia, o rito procedimental e recursal do Tribunal do Jri deve ser adequado, conforme veremos, a imperativos constitucionais e processuais, tais como a necessidade de fundamentao nos julgados, com previso no art. 93, IX da CF, bem como a economia e a celeridade, que so princpios processuais. Ademais, prova maior da necessidade de mudanas relativas ao Tribunal do Jri, o grande nmeros de Projetos de Lei, em trmite no Congresso Nacional, sugerindo as mais variadas modificaes em relao ao Tribunal Popular. A controvrsia existente to acentuada que alguns acreditam at mesmo, e de uma forma mais rgida, que a melhor soluo seria a extino do Tribunal do Jri. Porm, de acordo com o artigo 60, 4, IV da Constituio Federal, "no ser objeto de deliberao a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais"8. Percebe-se, como j dito, que o Jri se encontra elencado dentre tais direitos e, portanto, somente atravs de nova constituinte seria possvel a retirada do Jri do nosso ordenamento jurdico, fato que, convenhamos, dentro do nosso cenrio poltico e legislativo, se no apresenta uma hiptese de fcil ocorrncia. O legislador constituinte originrio, ao limitar o poder de reforma do constituinte derivado, entendeu que ao Tribunal do Jri deveria ser dada uma posio que lhe garantisse a limitao da possibilidade de sua extino ao arbtrio do poder reformador e, assim sendo, a princpio, estaria, enquanto vigente o atual texto, inviabilizada a possibilidade de eliminao do Tribunal do Jri do nosso sistema jurdico. E certamente por tais motivos, no se observa, nos diversos Projetos de Lei em trmite no Congresso Nacional, que algum deles proponha a extino do Tribunal do Jri, muito pelo contrrio, a maioria das proposies versam to somente sobre modificaes no rito existente.

2.3. Argumentos favorveis ao tribunal do jri Sero analisados e criticados neste subttulo, em seus aspectos sociais, polticos, culturais e jurdicos, os argumentos doutrinrios daqueles que se posicionam favoravelmente Instituio do Tribunal do Jri.

2.3.1. Feio poltica e garantia individual do cidado (liberdade e soberania dos povos) Conforme destacado, analisando-se a polmica sobre os pontos favorveis, contrapondo-se aos pontos frgeis do Tribunal do Jri, vale o destaque, para os defensores da Instituio que, alm de ente jurdico na essncia, importa que se reconhea a sua feio poltica, alm do evidente destaque como direito e garantia individual do cidado. Para Rui Barbosa, grande defensor do Jri, este possui forte teor de independncia de um povo, ligando-se, portanto, noo de liberdade e, at mesmo, de soberania dos povos, acrescentando que: Razo tinha, portanto, o baro Beyts em dizer, h sessenta e seis anos, na constituinte belga: Todos os povos, mal lhes cabe a fortuna de reconquistarem a liberdade, apressam-se em assegurar a posse do julgamento por jurados.9. Para mais adiante acrescentar: Essa instituio, acrescentava Siys a verdadeira garantia da liberdade individual, em todos os pases do mundo que aspiram a ser livres..10 158

A REVISTA DA UNICORP Finalizando, para que dvidas no restem acerca do posicionamento do citado jurista baiano em relao ao Jri, destaca-se a passagem em que cita MANDUCA, para afirmar: o jri de origem moderna: nasce com a verdadeira liberdade. Sua apario foi conseqncia natural da volta dos povos vida livre. uma instituio, que surge e morre com a liberdade..11 Como podemos perceber, de acordo com o pensamento de Rui Barbosa e dos autores por ele citados, a instituio do Tribunal do Jri estaria umbilicalmente ligada noo de liberdade e de soberania dos povos. Segundo sua lio, a importncia do Jri seria tamanha que a sua retirada de um ordenamento jurdico representaria, por consequncia, e notadamente em caso extremo, a morte da prpria liberdade de um povo. Para ele, o Tribunal do Jri representaria muito mais que uma instituio jurdica, mas uma criao poltica de suprema importncia no governo constitucional.

2.3.2. Ampliao da competncia Existem proposies, tanto doutrinrias como legislativas, de ampliao da competncia do Tribunal do Jri, como, por exemplo, se observa no PL 02192/9112, manifestando igual posicionamento o magistrado baiano Marcos Bandeira13, quando assevera:
Desta forma, entendemos nessa apertada sntese, que a instituio do Tribunal do Jri deve ser no apenas preservada, mas aprimorada luz dos princpios constitucionais, no sentido de se adequar s exigncias atuais, podendo, inclusive, ampliar sua competncia para julgar outros delitos alm daqueles contra a vida, a fim de que continue a exercer soberanamente o seu excelso desiderato de realizao da justia humana, no mbito de um Estado Democrtico de Direito.

Como se v, no somente existem propostas legislativas, como tambm juristas se posicionam de maneira favorvel ampliao da competncia do Tribunal do Jri. Entretanto, neste particular, ousa-se de logo discordar do magistrado baiano, haja vista que no seria admissvel nem tolervel a ampliao da competncia para julgar uma Instituio to combalida e que gera tanta controvrsia. Efetivamente, neste tocante, no se vislumbra onde estaria o ganho para o mundo jurdico e para a sociedade como um todo, com a ampliao da competncia do Jri. Ademais, em que pese sua possibilidade atravs de Lei Ordinria, uma vez que a CF apenas fixa a competncia mnima do Jri, apresentar-se-ia tal hiptese absolutamente absurda em um momento em que a prpria existncia do Jri questionada por muitos. Ampliar a competncia de um Tribunal que tem a possibilidade de julgar sem o apego a normas tcnicas e sem a necessidade de fundamentar suas decises retirar cada vez mais do Poder Judicirio, composto de membros preparados, a competncia para a arte de julgar, adicionando-se ao fato de que a ampliao da competncia do Jri, invariavelmente causar insegurana jurdica.

2.3.3. Julgamentos atravs do bom senso Acrescem, ainda, os ardorosos defensores e adeptos do Jri, a severidade do juiz togado, que, acostumado aos julgamentos dirios, torna-se insensvel medida que o tempo passa, apegan159

ENTRE ASPAS do-se ao formalismo legal, sem a preocupao de interpretar a lei de maneira mais humana, mas to somente jurdica, como mero tcnico do Direito. O Conselho de Sentena, por outro lado, sendo soberano em suas decises, no fica aprisionado aos critrios rgidos. Segundo os defensores, esse desconhecimento da tcnica por parte dos jurados induz a uma apreciao do caso meramente pelo bom senso, que muitas vezes se dilui em meio ao rigor terico e legalista do magistrado. Argumentam os defensores, ainda, apesar da crtica ao fato das decises do Jri no serem motivadas, que o simples fato de no fundamentar a deciso, muitas vezes, um fator positivo, na medida em que os jurados, sem o apego terico e tcnico, valoram mais os fatos e, por consequncia, fazem efetivamente justia, objetivo que muitas decises tcnicas dos juzes togados no conseguem alcanar. Alm disso, aduz a corrente defensiva que a deciso proferida por vrias pessoas est menos sujeita a erros do que aquela prolatada por um s Juiz. Neste contexto, de acordo com os defensores do Jri, a participao popular e a efetiva interveno da sociedade, fazem com que o sistema penal, muitas vezes insensvel dinmica social e aos seus reclames, se aproxime do momento social a que deva corresponder, possibilitando assim que os julgamentos no somente externem a vontade da lei, mas, sobretudo, que promovam o sentimento de justia na sociedade. Vale o destaque do entendimento manifestado por Aramis Nassif14, quando aduz:
Nesse momento, no h que se falar em especialidade tcnica, cuja ausncia na cultura dos jurados abriga, injustificadamente, tantas crticas instituio. Ao contrrio, dispensa-se qualquer conhecimento da cincia jurdica ao jurado. Importa que seja idneo e escolhido entre os membros da comunidade. Revela que, distante do conhecimento tcnico-jurdico, possa ele ser o auferidor das emoes ou qualquer razo subjetiva que impulsionou o homicida para, distante do conceito homem-ao, fatotipo, justificar ou censurar a conduta ofensiva vida.

Concluem, portanto, aqueles que defendem o Jri, que os defeitos desta Instituio no podem ser tomados como justificativa plausvel para sua extino, uma vez que seus benefcios seriam mais numerosos, impondo, em verdade, a busca pelo seu aperfeioamento, adequando-se realidade de nossa sociedade.

2.4. Argumentos contrrios ao Tribunal do Jri Como j vimos no transcorrer do presente artigo, existe a corrente defensiva do Tribunal do Jri, onde acima foram dispostos alguns dos seus argumentos. A partir de agora, passase anlise crtica de argumentos contrrios Instituio, tambm em seus variados aspectos.

2.4.1. Falta de tcnica e preparo por parte dos jurados Inicialmente, vale o comento sobre aquela que, talvez, seja a mais recorrente crtica ao Tribunal do Jri, qual seja, a falta de tcnica, de fundamentao das decises e o despreparo dos jurados para o exerccio do seu mister. 160

A REVISTA DA UNICORP De acordo com tal posicionamento, no mais subsiste razo para a manuteno do Tribunal do Jri, ante a inexistncia dos motivos que o originaram e, assim sendo, contando a sociedade com um Poder Judicirio provido de inmeras garantias, posicionando-se, portanto, de forma independente e autnoma no resguardo da interferncia dos outros Poderes, no resta explicao para a manuteno da figura do jurado, na medida em que o julgamento por pessoas despreparadas acarreta o desgaste de garantias que o julgamento tcnico, proferido pelo magistrado, acautela. Obviamente no se trata de idolatria figura do juiz togado, porm preciso que se compreenda tal questo a partir de um mnimo de seriedade cientfica, fundamental para o desempenho do ato de julgar. De uma forma evidente, o problema fica facilmente detectvel quando se verifica que a liberdade de convencimento imotivado do jurado to ampla que permite o julgamento a partir de elementos que no esto no processo, o que, juridicamente, um absurdo. Cria-se, portanto, a insegurana e o descrdito de decises estapafrdias, fruto da falta de motivao e de veredictos incoerentes. Observa-se razo em tal crtica, na medida em que, evidncia, carece o Conselho de Sentena de conhecimento legal e terico mnimo para a realizao das diversas anlises de aspectos materiais e processuais aplicveis ao caso concreto, adicionando-se exigncia de razovel poder de valorao da prova. Com prvia e adequada preparao para julgar, alm do conhecimento geral que se presume possua, tem o magistrado, de forma extreme de dvidas, maior aptido para produzir julgados mais prximos do conceito de justia. Reivindica-se do juiz, atualmente, especializao, conhecimento e domnio da matria e, nesse tocante, confiar a lei os julgamentos de crimes graves e de grande repercusso a pessoas que no possuem conhecimentos tcnicos suficientes , no mnimo, um contrassenso. Verifica-se, ainda, ante a complexidade do procedimento do Tribunal do Jri, que a existncia de um julgador leigo, na prtica, culmina com um maior ndice de decises injustas, principalmente porque, conforme j mencionado, desprovidas de motivao e, no raras vezes, de fundamento. O julgamento eminentemente tcnico evitaria a falta de motivao das decises, resultando em maior ndice de acertos e, por consequncia, em um nmero menor de interposio de recursos, haja vista que, como no nenhuma novidade, em razo da sobrecarga de trabalho, nossos Tribunais no so capazes de dar cabo, em prazos razoveis, aos processos que lhe so apresentados, protelando ainda mais a angstia experimentada pelas partes envolvidas no processo, uma vez que este no consegue chegar ao seu final. Acerca, ainda, da falta de fundamentao dos julgados e do desapego dos jurados prova constante dos autos, vale a citao de LUIZA NAGIB ELUF, quando discorre a mencionada autora sobre um crime onde a prova dos autos, de forma bastante convincente, apontava para o cometimento do crime de homicdio qualificado. Porm, de forma totalmente diversa, os jurados, demonstrando falta de tcnica, e amparados na soberania dos seus veredictos, vieram a absolver a acusada por duas vezes. Observemos o trecho da sua obra15:
Assim, tudo conspirou a favor de Zulmira e ela pde voltar para casa, embora, talvez, a verso correta fosse a de homicdio qualificado. O Jri, algumas vezes, no se abala com a argumentao jurdica e absolve simplesmente porque quer.

Ora, no se pode tolerar que julgamentos de crimes to graves, com grande repercusso social na maioria dos casos, sejam decididos simplesmente por uma questo de vontade dos jurados. Onde restaria caracterizada a justia de tais julgados? E o respeito vtima e aos seus 161

ENTRE ASPAS familiares? E a to importante preservao da pacificao social? So estes questionamentos que a corrente defensiva do Tribunal do Jri no consegue responder. Ainda sobre o aspecto do preparo para julgar, no se pode negar que o juiz togado possui uma srie de garantias constitucionais (art. 95 da CF/88), que o colocam, ao menos no plano terico, livre de presses e ingerncias, diferentemente do leigo. No se pode duvidar que tanto vtimas, acusados e suas respectivas famlias podem exercer forte influncia na deciso dos jurados.

2.4.2. Poder da seduo nos discursos Outro aspecto muito censurado pelos crticos do Jri o poder da seduo no discurso, facilmente verificado em quase todas as Sesses deste Tribunal. Alguns chegam ao ponto de comparar a Sesso de julgamento com um grande teatro, onde as melhores atuaes convencero os jurados que, nesse caso, funcionam quase que completamente como verdadeiros espectadores de uma encenao. De forma notria, o Plenrio do Jri d vazo a atuaes teatrais, que, se por um lado no possuem guarida em julgamentos tcnicos proferidos por juzes togados, por outro, de maneira diametralmente oposta, encontram perfeito acondicionamento no Tribunal do Jri, onde, em sua Sesso, tanto a acusao como a defesa dividem a tcnica com as atuaes cnicas, conduzindo, por consequncia, os jurados emoo, paixo, simulao, ao sentimentalismo e, porque no dizer, culminando com o risco iminente de veredictos injustos e incongruentes com as provas constantes dos autos (verdade dos jurados, no dos autos), passando a justia, portanto, a ser refm do talento individual dos profissionais, e estes, da maneira que melhor lhes convier, aproveitar-se-o do fato de no ser o Direito uma cincia exata. Neste sentido, vale a transcrio do entendimento de Gabriel Chalita16, quando leciona:
Nenhuma dvida parece perdurar a respeito do papel decisivo e fundamental que exerce a explorao da seduo nos debates de um tribunal do jri, tanto por parte da defesa quanto por parte da acusao. Nenhuma dvida parece perdurar, tambm, acerca do fato de os advogados utilizarem conscientemente essa ferramenta, s vezes, o que de lamentar, com inteno declarada ou subjacente de conduzir para o lado incorreto a deciso do jri.

Para mais adiante concluir17:


No adianta, em suma, o conhecimento afunilado das tcnicas e dos jarges jurdicos. De nada vale a cultura puramente jurdica ou o amplo conhecimento do Direito Penal e Processual Penal, ou ainda o domnio sobre as legislaes extravagantes. preciso mais: o poder da palavra, o toque impondervel e intangvel da seduo.

De fato, verifica-se na maioria das Sesses, ante a perplexidade em que se v envolto o jurado pela complexidade das questes, que os argumentos valem menos por sua robustez jurdica do que pela forma teatral com que so expostos. As partes se valem de linguagem rebuscada numa clara inteno de impressionar os jurados. Prepondera a atuao. Prevalece a experincia do profissional e a impresso que este passa aos julgadores. 162

A REVISTA DA UNICORP 2.4.3. Influncia da imprensa no nimo dos jurados Outro aspecto que muito se critica em relao ao Tribunal do Jri a influncia exercida pela mdia e imprensa em geral no nimo dos jurados. Em determinadas ocasies, acompanhamos verdadeiras execraes e prejulgamentos realizados pela imprensa, o que, alm de extremamente perigoso, de forma invarivel pode conduzir a grandes erros judicirios, eis que, com tais condutas, extirpa-se a possibilidade de busca pela verdade, com reflexo direto nos veredictos dos jurados que, ao acompanharem os noticirios, chegam Sesso do Tribunal do Jri com suas convices j firmadas, no se atendo s exposies de partes tcnicas, bem como prova constante nos autos. inegvel que alguns componentes no Tribunal do Jri so muito tpicos desta Instituio, tais como o excesso de emotividade e os fatos narrados de forma teatral, que, em diversas ocasies passam ao largo das provas colacionadas aos autos, aliados presso da opinio pblica, afetando, portanto, sobremaneira, a atuao do jurado na Sesso de julgamento, a tal ponto que, sobretudo nos casos de grande repercusso, seu veredicto j se encontra elaborado antes mesmo do sorteio de seu nome para compor o Conselho de Sentena, a despeito do que ele possa ouvir ou ver durante a sesso. Diferentemente do magistrado, o jurado, que um leigo, repentinamente se v lanado a um ofcio que desconhece e para o qual no foi preparado, imerso em um universo estranho, cuja linguagem no lhe familiar, sendo conduzido, muitas vezes, a julgar pelo que anteriormente conhecia do caso atravs dos meios de comunicao. Desta forma, pode a mdia, de forma antecipada, absolver ou condenar um ru, ante a sua demonstrada capacidade de convencer e formar a opinio pblica e, reflexamente, a dos jurados. bem verdade, todavia, e no h como negar, que o magistrado, como ser social que e deve ser, tambm alcanado pelas informaes da imprensa, porm, pessoa esclarecida e tecnicamente preparada para ater-se somente prova dos autos, da qual sabe no poder fugir, ao contrrio dos jurados. Assim mesmo, preciso admitir que o livre convencimento do juiz tambm pode sofrer influncias externas ao processo em relao a um determinado evento criminoso, pois a repercusso, as verses e opinies que lhe so apresentadas exteriormente podem, efetivamente, influenciar as suas decises, uma vez no haver como isolar os juzes da vida em sociedade para garantir sua iseno. Porm, inegvel que, em que pese a verdade de que as sentenas prolatadas por juzes togados esto suscetveis a erros e, tambm, a injustias, o preparo tcnico do magistrado faz com que tais erros ocorram em menor escala que no Tribunal do Jri, onde o despreparo tcnico e o desapego prova dos autos, aliado desnecessidade de fundamentao das decises, contribuem para o acentuado grau de equvocos e, com toda certeza, para o cometimento de injustias.

2.4.4. Morosidade no rito procedimental Para finalizar alguns pontos criticveis da instituio do Tribunal do Jri, no h como deixar de falar da acentuada morosidade que se observa no rito bifsico adotado no Jri. Trao sobressalente do rito adotado no Jri brasileiro a diviso dos poderes conferidos ao magistrado e aos jurados. Aps a quase sempre demorada fase de instruo processual, com a pronncia do acusado e sua submisso ao Tribunal do Jri, cabe aos jurados, privativamente, decidir sobre materialidade e autoria, bem assim sobre causas excludentes de ilicitude, 163

ENTRE ASPAS de culpabilidade e de aumento ou diminuio de pena. Ao juiz togado caber somente ajustar o soberano veredicto dos jurados aos termos da lei e fixar, se for o caso, a pena do condenado. A toda evidncia, este um procedimento, sem dvidas, extremamente moroso, sem contar com a possibilidade de interposio de recursos no decorrer do procedimento, antes que se chegue ao julgamento pelo Conselho de Sentena. Verifica-se, portanto, ante todos os motivos aqui expostos nas crticas sobre o Tribunal do Jri, porque muitos pases j o eliminaram dos seus ordenamentos jurdicos, uma vez que discrepa da exigncia social de celeridade nos procedimentos judiciais, onde se deve ter em vista a entrega sociedade de uma rpida e segura resposta aos seus reclamos de justia.

2.5. Importantes modificaes legislativas e outras aqui sugeridas Com toda a celeuma apresentada acerca da instituio do Tribunal do Jri, no faltam atualmente propostas doutrinrias e legislativas para modificaes do Jri e, at mesmo, a anlise de uma forma de sua retirada do nosso ordenamento jurdico, cabendo o destaque da falta de pretenso do presente estudo para analisar pormenorizadamente os Projetos de Lei apresentados, mas, sim, apenas as mais importantes modificaes, bem como as propostas que so doutrinariamente discutidas e as necessidades observadas na prtica jurdica.

2.5.1. Diminuio das atribuies dos jurados Se certo que o Jri Popular uma forma democrtica de julgamento, igualmente correta a assertiva de que as dificuldades que apresenta so numerosas, alm de seu custo ser muito mais alto do que o do julgamento de um processo por um juiz de carreira. Por exemplo, seria muito mais fcil que os jurados apenas decidissem se o ru culpado ou inocente, ficando as demais questes jurdicas a cargo do magistrado. A parte tcnica da sentena no pode e no deve ser avaliada por leigos. Desta forma, os quesitos formulados aos jurados ficariam reduzidos questo da autoria delitiva, ficando sob a atribuio do juiz togado a anlise das demais circunstncias do crime, bem como as caractersticas pessoais do seu autor e outros fatores essencialmente tcnicos.

2.5.2. Extino do Tribunal do Jri Falando-se em propostas legislativas acerca do Tribunal do Jri, cabe um especial destaque, apenas como fato curioso, de que, no ano de 1965, o ento deputado do PTB, Eurico de Oliveira, apresentou o PL n 2830/1965 visando extinguir o Jri Popular18, sendo posteriormente arquivado. Doutrinariamente ainda se observam algumas ideias para supresso do Jri, at mesmo sem a necessidade de nova constituinte, conforme sugere Marcelo Colombelli Mezzomo19, quando vislumbra a possibilidade de extino do Tribunal do Jri atravs do poder constituinte derivado, sob o argumento de que a soberania popular, estampada no pargrafo nico do art. 1 da CF/88, possui tal faculdade. Assim sendo, argumenta o mencionado autor que, se a soberania popular pode o mais, que seria renegar toda uma ordem constitucional, como foi feito com a promulgao da Constituio Federal de 1988, pode o menos, ou seja, alterar um dispositivo 164

A REVISTA DA UNICORP atravs de plebiscito para suprimir um direito fundamental, sobrepondo-se limitao estampada no art. 60, 4 da CF/88, se fosse essa uma deciso oriunda da vontade da maioria. Exposto o ponto de vista supra, em que pese o seu valor, ao menos pelo carter resolutivo a que se prope, no se pode admitir, mesmo que atravs de plebiscito, onde previamente a populao viesse a aprovar a supresso do Jri, que uma clusula ptrea, um direito fundamental do cidado, seja extirpado da vigente Constituio Federal, eis que, sob o manto de legalidade, correramos o risco de que, aberto o caminho, outros direitos e garantias fundamentais fossem suprimidos dos cidados brasileiros, o que, evidncia, discrepa dos princpios insculpidos em nossa Carta Magna.

2.5.3. Possibilidade de realizao da Sesso sem a presena do acusado Com a edio da Lei n 11.689/2008, faz-se desnecessrio o adiamento da Sesso do Jri ante a ausncia do ru solto que, em liberdade, poder exercer a faculdade do no comparecimento Sesso, como decorrncia lgica do direito ao silncio que constitucionalmente lhe assegurado. Parece-nos absolutamente acertada a referida modificao. Se, de acordo com a Constituio Federal de 1988, todo acusado possui direito ao silncio, se pode ele comparecer ao Jri e permanecer em silncio, no haveria razo de ser para a exigncia do seu comparecimento, fato que, ademais, pode trazer maior celeridade ao procedimento, uma vez que, nestes casos, a ausncia do acusado no ensejar adiamento da Sesso.

2.5.4. Supresso do Protesto por Novo Jri A supresso do recurso denominado Protesto por Novo Jri havia se transformado em ponto de consenso na comunidade Jurdica e, nesse sentido, andou bem a Lei n 11.689/2008 que, em seu art. 4, revogou o Captulo IV do Ttulo II do Livro III, que contm os artigos 607 e 608 do CPC, que tratavam exatamente do citado recurso processual penal. Tal hiptese recursal, de fato, no mais se justificava e gerava consequncias negativas e indesejveis, como, por exemplo, a prtica reiterada de magistrados em dosar a pena em patamar inferior a 20 anos para no dar ensejo a tal possibilidade recursal. Ademais, a morosidade e lentido da justia brasileira, de to evidentes, passaram a ser caractersticas quase que indissociveis dos processos em trmite. Ora, se o Poder Judicirio no apresenta capacidade de julgar os feitos de forma satisfatria em relao ao tempo, o que dizer de um processo que, sem motivo justificvel, tem que ser julgado por duas vezes com a adoo de um rito lento em sua essncia? Sem dvidas, a retirada do Protesto por Novo Jri da legislao processual medida digna de aplausos.

2.5.5. Eliminao do Recurso em Sentido Estrito e da Pronncia O fim do Recurso em Sentido Estrito nas hipteses de impronncia foi outra importante modificao trazida pela Lei n 11.689/2008, que, embora discreta, certamente vai ofertar maior celeridade e simplificao na parte recursal. Por outro lado, poderia o supramencionado Projeto avanar ainda mais, com a eliminao 165

ENTRE ASPAS definitiva da pronncia, sugerindo-se que em seu lugar o magistrado apenas proferisse mero despacho saneador. Desta forma, alm de maior simplicidade, poderia ser eliminada a possibilidade de que a pronncia pudesse influir no nimo dos jurados, como muitas vezes ocorre na prtica, pelas referncias a ela feitas em plenrio tanto pela defesa e, principalmente, pelo Ministrio Pblico.

2.5.6. Eliminao do Libelo-Crime Acusatrio Todavia, modificao muito mais importante apresentada pela Lei n 11.689/2008 foi a eliminao do libelo-crime acusatrio, reivindicao mais antiga e de quase absoluto consenso, onde os autos, aps o trnsito em julgado da deciso de pronncia, devem, de logo, ser remetidos ao Tribunal do Jri, ganhando o feito, com esta modificao, celeridade e eficincia. Com esta eliminao, o juiz presidente do Tribunal do Jri, aps recebimento do processo para julgamento, intimar as partes para que, no prazo de cinco dias, apresentem, caso queiram, rol de testemunhas e, se necessrio, requerimento de diligncias que entendam pertinentes. Ademais, a oportunidade para produo de provas continua garantida, conforme acima mencionado, na fase de preparao do processo para julgamento em plenrio. Vislumbra-se, ainda, o fato de que o prazo que dispunha o Ministrio Pblico para oferecimento do libelo, por ser, in casu, imprprio, aumentava ainda mais o lapso para a realizao da Sesso de julgamento do ru, apresentando-se como mais uma contribuio para a excessiva morosidade do procedimento.

2.5.7. Eliminao do Recurso de Ofcio em caso de absolvio sumria Outra questo a ser analisada a possibilidade de eliminao do recurso de ofcio em caso de absolvio sumria, passando-se apenas possibilidade de interposio do recurso de apelao em tal caso. No que pertine modificao ora sugerida, a extino do citado recurso vislumbra a desnecessidade de sua interposio pelo prprio magistrado prolator da sentena, uma vez que, evidncia, cabe s partes o controle e o inconformismo com o teor da deciso, afinal de contas, no se concebe que, tendo em vista a existncia de preparados membros do Ministrio Pblico ou, at mesmo, de eventual assistente de acusao, que uma errnea ou contestvel deciso de absolvio sumria passe despercebida aos seus atentos olhos. No h dvida, portanto, que, extirpado, nesse caso, o recurso de ofcio na legislao processual penal, o processo atingir seu termo e resoluo em lapso temporal muito menor, acrescendo-se, ainda, o fato da sensvel reduo de recursos que desnecessariamente chegam instncia superior, fator que em muito contribui para a to combatida morosidade do Poder Judicirio e, assim sendo, recursos realmente importantes e necessrios podem ser analisados com maior celeridade pelos Tribunais.

2.5.8. Opo por parte do acusado Por fim, cabe o destaque de uma proposta doutrinria segundo a qual caberia ao acusado a possibilidade de optar entre ser julgado por seus pares, atravs do Tribunal do Jri ou, se 166

A REVISTA DA UNICORP assim desejar, ser julgado por um juiz togado. Essa seria uma espcie de soluo hbrida, onde o Jri no seria extirpado, porm, como afirmado, teria o ru a possibilidade de escolha em ser julgado por um magistrado. Tal argumento foi analisado por Miguel Bruno20, quando redigiu:
Nesse altiplano argumentativo, cabe destacar um artigo publicado recentemente na revista Consulex, onde um Promotor de Justia de Braslia, Diaulas Costa Ribeiro, escreve a respeito, e dentre alguns comentrios, pudemos observar uma idia interessante, vez que mantm sob os auspcios da prpria sociedade o julgamento de seus pares, entretanto amparando-se no fato de que o Tribunal do Jri um direito e uma garantia. Seria ento possvel conceder ao ru o direito de escolher entre ser julgado por um Conselho de Sentena, ou ento, para que no se constitua uma obrigao, optar por ter o seu futuro decidido por um juiz togado.

No h dvida de que tal argumento possui o seu valor, mas se apresenta de difcil aplicabilidade, pois ainda assim a proposta esbarraria no impedimento constitucional da clusula ptrea, sem contar com o fato de que poderia causar grande imbrglio administrao da justia, ante a separao de ritos para o julgamento de crimes da mesma espcie.

3. Concluso Vimos no presente estudo, atravs da metodologia e objetivos j mencionados, que o Tribunal do Jri hoje uma instituio poltico-jurdica que gera grande controvrsia sobre a sua importncia e, principalmente, sobre a sua prpria existncia. Diversos argumentos favorveis e contrrios manuteno do Jri no nosso ordenamento foram aqui analisados. Tendo em vista os fatos explanados no estudo, percebe-se que o Jri, quando do seu surgimento, era realmente uma Instituio matriz de justia, o que justificava sua criao e razo de ser, na medida em que impedia julgamentos repletos de irregularidades, haja vista a carga poltica das decises que, poca, eram tomadas. Hoje, diante da evoluo processual que acompanhamos, bem como pela afirmao dos direitos individuais no mbito processual, particularmente no que toca ao modelo de julgamento pelo magistrado, no mais se justifica o Jri Popular, pois se analisarmos o Instituto de uma forma acurada, hoje passou a dar margem e espao exatamente quilo que atacava quando do seu nascimento. Os feitos, sejam eles mais ou menos complexos, que desguam no Poder Judicirio, resultado direto da atual estrutura da sociedade, combinado com a natural evoluo jurdica, exigem fundamentao e motivao nos julgados e decises, acarretando ao Jri, por consequncia, uma imagem de Instituio obsoleta e desnecessria, apta reproduo de nulidades e grandes injustias. O Jri no mais possui justificativa de existncia. Pelo contrrio, moroso e contraproducente e, sob esse aspecto, atinge e viola dispositivos constitucionais e princpios processuais, como a fundamentao dos julgados (art. 93, IX da Constituio Federal de 1988) e a celeridade e economia processuais. Ademais, no tocante economia e celeridade processuais, vale o destaque de que a extino do Tribunal do Jri teria como consequncia lgica a eliminao do sistema bifsico 167

ENTRE ASPAS para julgamento dos crimes dolosos contra a vida, contribuindo sobremaneira para o regular andamento dos feitos, atendendo aos reclames sociais de agilidade na prestao jurisdicional, aliada economia relativa aos custos, em um momento em que os gastos pblicos precisam e devem ser reduzidos. Porm, resguardado pelo status de clusula ptrea, no h como falar em extino do Tribunal do Jri sem que se entenda pela necessidade de nova ordem constituinte, de instituio de poder constituinte originrio. Para uma maior garantia da ordem jurdica imperativo que esforos sejam olvidados para que a extino do Jri se verifique em total respeito ordem constitucional, pois, como j visto, seria grande o perigo no somente cincia jurdica, mas, sobretudo, aos direitos e garantias fundamentais, que a supresso de um destes direitos se desse de forma diversa. Por outro lado, se certo que se no vislumbra, em curto ou mdio prazo, a instalao de nova constituinte e, ainda, considerando que esta no deve surgir apenas para que o Jri seja extinto, o que, convenhamos, seria absurdo, no podemos perder a oportunidade para, com o surgimento de uma nova ordem constituinte, com poderes originrios, incluir a extino do Tribunal do Jri como absoluta necessidade.

Referncias ________________________________________________________________________ BANDEIRA, Marcos Antonio Santos. O Tribunal do Jri numa Perspectiva Constitucional. Dirio do Poder Judicirio do Estado da Bahia. 10 e 11 de setembro de 2005. p. 3. BARBOSA, Rui. Obras Completas de Rui Barbosa, Vol. XXIII, 1896, Tomo III O Jri e a Independncia da Magistratura. Edio Ministrio da Educao e Cultura. Fundao Casa de Rui Barbosa. Rio de Janeiro, 1976. BRASIL. Constituio (1988). Constituio da Repblica Federativa do Brasil. Braslia. Senado, 1988. BRASIL. Projeto de Lei n 02192/91, de 07 de novembro de 1991. Disponvel em: http://senado.gov.br/sf/ atividade/Materia/detalhes.asp?p_cod_mate=20742. Acesso em 14/02/2010. BRUNO, Miguel. O tribunal do jri: uma necessidade para a sociedade. Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 41, maio 2000. Disponvel em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1069. Acesso em 14/02/2010. CARVALHO, Fernanda Moura de. As mudanas no tribunal do jri: algumas consideraes sobre o Projeto de Lei n 4.203/01. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1401, 3 maio 2007. Disponvel em: http://jus2.uol.com.br/ doutrina/texto.asp?id=9837. Acesso em 14/02/2010. CHALITA, Gabriel. A Seduo no Discurso O Poder da Linguagem nos Tribunais de Jri. 4 Edio. So Paulo: Ed. Saraiva, 2007. ELUF, Luiza Nagib. A Paixo no Banco dos Rus: casos passionais clebres: de Pontes Visgueiro a Pimenta Neves. 2 Edio. So Paulo: Ed. Saraiva, 2003. GOMES, Luiz Flvio. Novo procedimento do jri. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1366, 29 mar. 2007.

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A REVISTA DA UNICORP
MARREY, Adriano et al. Teoria e Prtica do Jri. 7 Edio. Ed. RT. 2000. MEZZOMO, Marcelo Colombelli. Tribunal do Jri: vamos acabar com essa idia!. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 62, fev. 2003. Disponvel em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3690. Acesso em 14/02/2010. NASSIF, Aramis. Reforma do Tribunal do Jri, Revista Consulex, Ano III, n. 33, Setembro/1999, pginas 46/49. RAMALHO TERCEIRO, Ceclio da Fonseca Vieira. Escoro histrico do Tribunal do Jri e suas perspectivas para o futuro frente reforma do Cdigo de Processo Penal. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 65, maio 2003. Disponvel em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4040. Acesso em 14/02/2010. REZENDE, Reinaldo Oscar de Freitas Mundim Lobo. Da evoluo da instituio do jri no tempo, sua atual estrutura e novas propostas de mudanas. Projeto de Lei n 4.203/2001. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 706, 11 de junho de 2005. Disponvel em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6865. Acesso em 14/02/2010.

Notas ______________________________________________________________________________ 1. CHALITA, Gabriel. A Seduo no Discurso O Poder da Linguagem nos Tribunais de Jri. 4 Edio. So Paulo: Ed. Saraiva, 2007, p. 151. 2. RAMALHO TERCEIRO, Ceclio da Fonseca Vieira. Escoro histrico do Tribunal do Jri e suas perspectivas para o futuro frente reforma do Cdigo de Processo Penal. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 65, maio 2003. Disponvel em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4040. Acesso em 14/02/2010. 3. ELUF, Luiza Nagib. A Paixo no Banco dos Rus: casos passionais clebres: de Pontes Visgueiro a Pimenta Neves. 2 Edio. So Paulo: Ed. Saraiva, 2003, p. 120. 4. ELUF, Luiza Nagib. A Paixo no Banco dos Rus: casos passionais clebres: de Pontes Visgueiro a Pimenta Neves. 2 Edio. So Paulo: Ed. Saraiva, 2003, p. 120, 121. 5. ELUF, Luiza Nagib. A Paixo no Banco dos Rus: casos passionais clebres: de Pontes Visgueiro a Pimenta Neves. 2 Edio. So Paulo: Ed. Saraiva, 2003, p. 121. 6. BRASIL. Constituio (1988). Constituio da Repblica Federativa do Brasil. Braslia. Senado, 1988. 7. NASSIF, Aramis. Reforma do Tribunal do Jri. Revista Consulex, Ano III, n. 33, p. 47, Setembro/1999. 8. BRASIL. Constituio (1988). Constituio da Repblica Federativa do Brasil. Braslia. Senado, 1988. 9. BARBOSA, Rui. Obras Completas de Rui Barbosa, Vol. XXIII, 1896, Tomo III O Jri e a Independncia da Magistratura. Edio Ministrio da Educao e Cultura. Fundao Casa de Rui Barbosa. Rio de Janeiro, 1976. p. 157. 10. BARBOSA, Rui. Obras Completas de Rui Barbosa, Vol. XXIII, 1896, Tomo III O Jri e a Independncia da Magistratura. Edio Ministrio da Educao e Cultura. Fundao Casa de Rui Barbosa. Rio de Janeiro, 1976. p.157. 11. BARBOSA, Rui. Obras Completas de Rui Barbosa, Vol. XXIII, 1896, Tomo III O Jri e a Independncia da Magistratura. Edio Ministrio da Educao e Cultura. Fundao Casa de Rui Barbosa. Rio de Janeiro, 1976. p.157. 12. BRASIL. Projeto de Lei no 02192/91, de 07 de novembro de 1991. Disponvel em: http://senado.gov.br/ sf/atividade/Materia/detalhes.asp?p_cod_mate=20742. Acesso em 14/02/2010. 13. BANDEIRA, Marcos Antonio Santos. O Tribunal do Jri numa Perspectiva Constitucional. Dirio do Poder Judicirio do Estado da Bahia, Salvador/BA, p. 3, 10 e 11 de setembro de 2005. 14. NASSIF, Aramis. Reforma do Tribunal do Jri. Revista Consulex, Ano III, n. 33, p. 48, Setembro/1999. 15. ELUF, Luiza Nagib. A Paixo no Banco dos Rus: casos passionais clebres: de Pontes Visgueiro a Pimenta Neves. 2 Edio. So Paulo: Ed. Saraiva, 2003, p. 38. (grifo nosso).

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ENTRE ASPAS
16. CHALITA, Gabriel. A Seduo no Discurso O Poder da Linguagem nos Tribunais de Jri. 4 Edio. So Paulo: Ed. Saraiva, 2007, p. 159. 17. CHALITA, Gabriel. A Seduo no Discurso O Poder da Linguagem nos Tribunais de Jri. 4 Edio. So Paulo: Ed. Saraiva, 2007, p. 160. 18. REZENDE, Reinaldo Oscar de Freitas Mundim Lobo. Da evoluo da instituio do jri no tempo, sua atual estrutura e novas propostas de mudanas. Projeto de Lei n 4.203/2001. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 706, 11 de junho de 2005. Disponvel em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6865. Acesso em 14/02/2010. 19. MEZZOMO, Marcelo Colombelli. Tribunal do Jri: vamos acabar com essa idia!. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 62, fev. 2003. 20. BRUNO, Miguel. O tribunal do jri: uma necessidade para a sociedade. Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 41, maio 2000.

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SOCIEDADE DO CONSUMO E PUBLICIDADE: O PROCESSO COLETIVO COMO MECANISMO DE PROTEO AO CONSUMIDOR NAS RELAES DE CONSUMO PELA INTERNET

Maria Alessandra dos Santos Aquino


Assessora de Juiz. Graduada em Direito pela Faculdade Independente do Nordeste FAINOR. Graduada em Histria e Especialista em Histria Social do Trabalho pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia UESB. Especialista em Direito Processual pela Universidade AnhangueraUNIDERP.

Resumo: O presente artigo tem como objetivo discutir a importncia do processo coletivo como mecanismo de defesa dos direitos difusos dos consumidores nas relaes de consumo no ambiente virtual, especificamente no que diz respeito proteo contra a publicidade enganosa e abusiva (inc. IV, do art. 6. do Cdigo de Defesa do Consumidor). Palavras-Chave: Sociedade do consumo. Publicidade na internet. Direitos difusos. Processo coletivo.

1. Sociedade do consumo, publicidade e internet Profundas alteraes marcaram o capitalismo, o mercado de consumo, as relaes sociais e o Direito ao longo do sculo XX e nesse incio do sculo XXI. As modificaes so numerosas e envolvem relaes de trabalho, processos de produo, reconfiguraes geogrficas e geopolticas, planejamento do Estado, novos hbitos de consumo, comunicao digital, relaes sociais virtuais, comrcio eletrnico e o nascimento de novos ramos da cincia jurdica. Nas ltimas dcadas do sculo XX, as questes centrais que envolvem essas alteraes so: a globalizao econmica e cultural; a reestruturao do processo produtivo do fordismo/taylorismo para a produo flexvel toyotista que se apia em novas formas e novas tcnicas de organizao da produo, permitindo acelerao do ritmo de produo e inovao do produto, mudando os padres de consumo e explorao de ncleos especficos de consumo; novas tecnologias, sobretudo as informacionais, a ciberntica, a microeletrnica, a robtica; mudana de plo do capital produtivo para o capital financeiro; esfacelamento e/ou aglutinamento de setores produtivos; surgimento de novos setores de trabalho que at ento no eram categorizados como sendo lucrativos e/ou forte concentrao de empregos, crescimento do setor de servios. Nesse contexto, para Gilles Lipovetsky (2007, p. 12-13) essas mudanas fizeram com 171

ENTRE ASPAS que no capitalismo contemporneo as estratgias das empresas no mais estejam focalizadas no produto, e sim para o mercado e no consumidor. Segundo esse autor o novo perfil econmico marcado pela centralidade do consumidor:
Em relao ao primeiro plo a hora a da busca sistemtica de uma criao de valor muito elevada para os detentores do capital. No que se refere ao segundo, o imperativo mercantilizar todas as experincias em todo lugar, a toda hora e em qualquer idade, diversificar a oferta adaptando-se s expectativas dos compradores, reduzir os ciclos de vida dos produtos pela rapidez das inovaes, segmentar os mercados, favorecer o crdito ao consumo, fidelizar o cliente por prticas comerciais diferenciadas. [...] A nova economiamundo no se define apenas pela soberania da lgica financeira: tambm inseparvel da expanso de uma economia do comprador (LIPOVETSKY, 2007, p. 13-14).

Essa centralidade comeou a ser definida a partir da dcada de 80: o consumidor tornou-se a pea primordial da engrenagem da economia neoliberal, como aquele que tem o poder aquisitivo para proporcionar o crescimento do mercado e, ao mesmo tempo, modelo de sujeito para o consumo, transformando-se, por extenso, em modelo obrigatrio para as relaes sociais. Em linhas gerais essas transformaes impuseram uma nova forma de reproduo da vida, baseada em uma sociedade de consumidores, no s de produtos e servios em si, mas tambm no consumo de smbolos, estilos de vida e experincias. Para Gilles Lipovetsky (2007, p. 14) isso
corresponde a uma profunda revoluo do comportamento e do imaginrio do consumo [...] de um consumidor sujeito a coeres sociais da posio, passou-se a um hiperconsumidor1 espreita de experincias emocionais e de maior bem-estar, de qualidade de vida e de sade, de marcas e de autenticidade, de imediatismo e de comunicao.

Corroborando este pensamento, para Don Slater (2002) pode-se falar at mesmo na constituio de uma cultura do consumo, que no se estabele em relao a necessidades e objetos, mas tambm como foco da vida social. Gilles Lipovetsky (2007, p. 19) defende que formou-se a civilizao da felicidade paradoxal, que de um lado exalta os referenciais do maior bem-estar, da harmonia e do equilbrio; do outro, ela se apresenta como um sistema hipertrfico e incontrolado [...] e que v coabitar a opulncia com a amplificao das desigualdades e do subconsumo. Nesse novo modelo de sociedade, para Don Slater (2002, p. 22), as pessoas no so vistas como classes ou gneros que consomem, e sim como consumidores que, por acaso, esto organizados em classes e gneros. Esclarecendo essa idia ele afirma que,
a noo eminentemente moderna de sujeito social enquanto indivduo que cria e define a si mesmo est intimamente ligada autocriao por meio do consumo: em parte atravs do uso de bens e servios que nos formulamos enquanto identidades sociais e exibimos essas identidades. O que

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A REVISTA DA UNICORP
torna o consumo o campo privilegiado da autonomia, do significado, da subjetividade, da privacidade e da liberdade. Por outro lado, todos esses significados relacionados identidade social e ao consumo passaram a ser cruciais para a competio econmica e a organizao racional, passaram a ser os objetos da ao estratgica das instituies dominantes. O senso de autonomia e identidade oferecidos pelo consumo so constantemente ameaados. Por isso a controvrsia constante e constitutiva para determinar se o consumo uma esfera de manipulao ou de liberdade, se o consumidor soberano ou sdito, ativo ou passivo, criativo ou determinado, e assim por diante. (SLATER, 2002, p. 39)

Essa reflexo extremante importante no contexto atual das relaes do consumo, porque nos impulsiona a indagar, at que ponto de fato o consumidor livre, autnomo, soberano nas suas escolhas? em resposta a essa questo que, por exemplo, se reconhece a vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo, que na atualidade, se estende tambm a um novo espao de consumo, complexo e dinmico, o ciberespao2. Assim, pensar o consumo no apenas pensar em necessidades, produtos e servios, mas pensar como so classificadas as necessidades, quem as define e como os sujeitos superam suas necessidades a partir das relaes com produtos e servios. Para Don Slater (2002, p. 102-103) selecionamos, fabricamos, possumos e transformamos os objetos de acordo com metas, objetivos, desejos e necessidades postulados pelos sujeitos humanos e essa subjetividade que se manifesta na recriao do mundo dos objetos de acordo com as necessidades, que evoluem no tempo, por isso o consumo um processo usado pelos seres humanos para se reapropriarem de sua cultura e desenvolverem-se enquanto sujeitos sociais. As mudanas conduzem a uma suposta soberania do indivduo como consumidor, no mais como sujeito das relaes humanas, mas como sujeito que trava suas relaes essenciais com produtos e servios. Com efeito, na prtica, essa soberania se traduz apenas opo dada ao consumidor de julgar a inadequao, inconsistncia ou imperfeio de uma mercadoria mal escolhida (BAUMAN, 2008, p. 31), insatisfao que se converte em substituio dos produtos e servios por outros mais adequados ou aperfeioados. Nesse sentido, para compreender o que acontece com a sociedade do consumo preciso desqualificar o discurso ideolgico contemporneo que, de acordo com Francisco Fonseca (2007, p. 236) sustenta que o consumidor teria se tornado mais exigente, e que, em razo disso, as empresas, isto , o capital, foram obrigadas a se adaptarem a tais exigncias. Essa iluso trata-se, pois, de estratgia para manipular o consumidor a interiorizar formas de consumo que induzem a necessidades sempre insaciveis e, ao mesmo tempo, para que o indivduo procure constantemente objetos/mercadorias/produtos que realizem seus desejos e satisfaam suas necessidades sempre renovadas. Produzir e lanar no mercado de consumo no so suficientes para as organizaes comerciais, em sntese, preciso
criar valor por meio da produo de sentidos presentes nas esferas culturais da sociedade que garante a eficcia das aes do marketing e os lucros das organizaes. O marketing contemporneo se distancia cada vez mais de seu objeto de ao a mercadoria como valor de uso , concentrando-se no valor de signo, por meio da manipulao do consumo (SILVA, 2007, p. 155-156).

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ENTRE ASPAS Sob tal ptica, a sociedade do consumo monta sua base na eterna no satisfao dos indivduos e, paralelamente, na depreciao e desvalorizao dos produtos e servios de consumo. Isso ajuda a manter a circulao de mercadorias e estimula o consumismo, uma vez que os indivduos nunca se sentiro plenamente satisfeitos diante do volume de novidades de bens e servios, sistematicamente colocados no mercado. Gilles Lipovetsky (2007, p. 44) observa que desejamos as novidades mercantis por si mesmas, em razo dos benefcios subjetivos, funcionais e emocionais que proporcionam. Trata-se, como lembra Gilberto Dupas (2001, p. 53), de uma sociedade em que as novas tecnologias geram produtos de consumo novos para que as
ondas de entusiasmo, apoiadas e lanadas por todos os meios de comunicao, propagam-se instantaneamente. O telefone celular e a internet, smbolos da interconectividade, passam a ser condio de felicidade. O homem volta a ser rei exibindo a sua intimidade com a mercadoria ou identificando-se com os novos cones, os heris da mdia eletrnica transformados eles mesmos em mercadoria ou identificados com marcas globais. Essa relao atinge momentos de excitao fervorosa, de transe religioso e de submisso, como o observar encantado do brilho intenso e das propriedades mgicas de um celular ou de um heri da TV.

Dessa forma, a publicidade antes era uma comunicao construda em torno do produto e de seus usos, benefcios, qualidades. Na contemporaneidade, ela se fundamenta na transmisso de valores, na explorao do lado sensvel e emocional do consumidor, prometendo estilos de vida, visibilidade social, conforto, prazer, sade, a otimizao da felicidade. Com efeito, segundo Newto De Lucca (2008, p. 53),
a utilizao de produtos e servios passou a decorrer muito mais da influncia sedutora dos comerciais de televiso, do status conferido pela grifes, da publicidade envolvente e irresistvel que transporta as pessoas a uma espcie de reino da fantasia, do que das necessidades fundamentais do indivduo e de sua famlia, como deveria ser.

Zygmunt Bauman (2008, p. 22) vai mais longe. De acordo com sua anlise, na sociedade do consumo a subjetividade do sujeito est diretamente relacionada sua capacidade de se tornar uma mercadoria vendvel, ou seja, nela os indivduos tornam-se mercadorias e tornarse uma mercadoria desejvel e desejada a matria de que so feitos os sonhos e os contos de fadas. O que corresponderia prpria busca da felicidade na contemporaneidade. O mesmo autor destaca que a caracterstica mais proeminente da sociedade de consumidores ainda que cuidadosamente disfarada e encoberta a transformao dos consumidores em mercadorias (BAUMAN, 2008, p. 20) (grifo no original). Essa anlise bem mais perturbadora que o encantamento pelas inovaes do mercado em relao aos bens de consumo. Identifica uma excepcional e poderosa estrutura de poder que estimula o suprfluo, o desnecessrio, o consumismo, a iluso da felicidade pelo consumo. A sociedade do consumo tem remodelado os indivduos para, tambm, se auto-promoverem como mercadoria, a satisfazerem necessidades fictcias forjadas pelo prprio mercado, sobretudo com a ajuda das tecnologias da informao, especialmente a internet. 174

A REVISTA DA UNICORP O efeito disso tudo, perfeitamente observvel no Brasil e muito bem anotado por Newton De Lucca (2008, p. 53-54) que
enquanto os consumidores de alto poder aquisitivo tm sua disposio a mais variada gama de opes, das quais evidentemente nem se podem dar conta, havendo inevitvel desperdcio em razo do excesso, a populao carente se v inconscientemente impelida a consumir bens que esto muito acima de suas reais condies financeiras. Os sentimentos de frustrao, de inconformismo e de revolta, oriundos das notrias dificuldades ou mesmo da completa impossibilidade de aquisio desses bens, para uso prprio ou dos membros de sua famlia, tm gerado a crescente exploso de violncia social, principalmente nos grandes centros urbanos, nos quais uma desigualdade gritante e perversa, aliada superpopulao de tais cidades, atua como poderoso fator estimulante da criminalidade.

Diante disso, pode-se afirmar que h algo mais que precisa ser diagnosticado, antes de se promover a defesa do consumidor em seu amplo sentido, porque de nada vai adiantar criar leis que protegem o consumidor, provocar a interferncia dos poderes estatais nas relaes de consumo, se no se pensar em reorganizar esse modelo de sociedade que tem como princpio o viver para o consumo, viver para o suprfluo e para a mercantilizao do ser. preciso modificar os padres de consumo e o que se consome, questionar a quem de fato interessa esse modelo de sociedade. Deixamos aqui, ainda, mais um enxerto para reflexo:
3. do plural Humberto Gessinger3 Corrida pra vender cigarro cigarro pra vender remdio remdio pra curar a tosse tossir, cuspir, jogar pra fora corrida pra vender os carros pneu, cerveja e gasolina cabea pra usar bon e professar a f de quem patrocina. Eles querem te vender eles querem te comprar querem te matar (de rir) querem te fazer chorar quem so eles? quem eles pensam que so? Corrida contra o relgio silicone contra a gravidade dedo no gatilho, velocidade quem mente antes diz a verdade

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ENTRE ASPAS
satisfao garantida obsolescncia programada eles ganham a corrida antes mesmo da largada. Eles querem te vender eles querem te comprar querem te matar a sede eles querem te sedar quem so eles? quem eles pensam que so? Vender...comprar... vedar os olhos jogar a rede...contra a parede querem te deixar com sede no querem te deixar pensar quem so eles? quem eles pensam que so?

As idias desses autores contribuem para nossa anlise no sentido de demonstrar a complexidade de se travar um debate em torno dos interesses e direitos dos consumidores diante da estrutura social em evidncia, especialmente, no que diz respeito s relaes de consumo no espao virtual. Hoje, a internet mudou o conceito de espao e tempo. Como meio de comunicao interliga de forma instantnea e simultnea milhes de usurios no mundo inteiro, permitindo acesso inesgotvel de informaes. Desponta, ento, como responsvel pelo nascimento e crescente expanso do mercado virtual, sendo o comrcio eletrnico tendncia da nova economia mundial, com empresas virtuais, extenses virtuais de empresas reais, que investem pesadamente em publicidade, utilizando-se da rede mundial de computadores como instrumento potencial de produo e circulao de bens e servios. Segundo Pierre Lvy (1996, p. 39),
o ciberespao abre de fato um mercado novo, s que se trata menos de uma onda de consumo por vir que da emergncia de um espao de transao qualitativamente diferente, no qual os papis respectivos dos consumidores, dos produtores e dos intermedirios se transformam profundamente.

Nesse sentido, uma considerao importante que devemos fazer que no se pode deixar de elogiar as diretrizes que o Cdigo de Defesa do Consumidor traz em seu bojo, que pela via do reconhecimento do direito fundamental do consumidor proteo nas relaes de consumo, independentemente de diferenas culturais, econmicas, polticas, sociais, protege o consumidor das astuciosas estratgias de controle, submisso e conformao na sociedade do consumo.

2. O CDC e a proteo contra a publicidade enganosa e abusiva no ciberespao No Brasil, somente com a Constituio democrtica de 1988, a defesa do consumidor tornou-se imperativo de ordem pblica e de interesse social, e passou a ser direito fundamen176

A REVISTA DA UNICORP tal, previsto no art. 5., inciso XXXII: o Estado promover, na forma da lei, a defesa do consumidor, bem como, tornou-se princpio da ordem econmica, inscrito no art. 170, inciso V: A ordem econmica, fundada na valorizao do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existncia digna, conforme os ditames da justia social, observados os seguintes princpios: ... V defesa do consumidor. A Constituinte inserindo a defesa do consumidor como princpio constitucional criou norma vinculante, princpio estruturador da ordem jurdica e todas as regras do ordenamento devem buscar a concretizao dessa garantia fundamental. Por ser de ordem pblica e preceito constitucional, a proteo jurdica do consumidor deve atender aos fundamentos e objetivos da Repblica brasileira, no sentido de garantir a dignidade da pessoa humana, a cidadania, construir uma sociedade livre, justa e solidria, reduzir as desigualdades scio-econmicas, sem, no entanto, perder de vista o desenvolvimento econmico e assegurar a livre iniciativa. Embora seja princpio fundamental da Repblica brasileira a livre iniciativa (art. 1, inc. IV; art. 170, caput) e princpio da ordem econmica a livre concorrncia (art. 170, inc. IV), para Pedro Ivo Andrade (2007, p. 21) o consumidor aos poucos acabou dominado pelos grandes grupos econmicos, de modo que por trs de uma obnubilada relao de igualdade, oculta-se uma ntida desigualdade ftica, e em razo disso no se pode deixar o cidado ao arbtrio de prticas comerciais abusivas e s estratgias de publicidade, impondo-se ao Estado no s o reconhecimento no plano constitucional da proteo ao consumidor, mas, sobretudo, o dever de garantir a sua concretizao. Nesse sentido, a Constituio imps a criao de lei especial para regular as relaes de consumo, o Cdigo de Defesa do Consumidor Lei n. 8078, publicada em 12/09/1990. nela, que se encontram as disposies sobre a identificao dos sujeitos e os objetos da relao de consumo, os princpios orientadores da relao jurdica estabelecida entre os sujeitos, os direitos e deveres dos consumidores e fornecedores, a poltica nacional de relao de consumo, os princpios e diretrizes gerais da tutela judicial em relao s prticas comerciais e proteo contratual. Ela aparece como instrumento para se chegar ao equilbrio das relaes de consumo, sobretudo, diante da vulnerabilidade ftica, tcnica, jurdica, informacional e psicolgica (BESSA, 2007, p. 35-42) do consumidor. O diploma protetivo dos direitos do consumidor, em seu art. 6., inciso IV, prev expressamente a proteo contra publicidade enganosa e abusiva, mtodos comerciais coercitivos ou desleais [...], bem como expressamente probe toda publicidade enganosa ou abusiva (caput, art. 37). O Cdigo de Defesa do Consumidor, em seu art. 37, conceitua que:
1. enganosa qualquer modalidade de informao ou comunicao de carter publicitrio, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omisso, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, caractersticas, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preo e quaisquer outros dados sobre produtos e servios. 2. abusiva, dentre outros, a publicidade discriminatria de qualquer natureza, a que incite a violncia, explore o medo ou a superstio, se aproveite da deficincia de julgamento e experincia da criana, desrespeite valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa sua sade ou segurana.

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ENTRE ASPAS As formas de publicidade tm se aprimorado cada vez mais. Pode-se presenciar que a tecnologia digital tem possibilitado a ampliao da comunicao, agora Comunicao Digital4 que, por sua vez, tem desenvolvido novas formas de aproximao de consumidores a produtos e servios. Para Roberto Stfani Correa (2003, p.89/90),
um fenmeno da multimdia que representa o marketing ou pode ser considerado o novo marketing, mas comunicar digitalmente no basta adaptar os conceitos de marketing aplicados aos formatos da propaganda, necessita-se do conhecimento cientfico e computacional da multimdia, da psicologia aplicada ao consumidor moderno, da semitica computacional, da propaganda digital, enfim tm-se que reestruturar a comunicao de uma forma global, pensando na velocidade da informao, na tecnologia, na necessidade de autoatualizao e at de uma nova organizao social, a cybercultura.

A revoluo informacional por meio virtual proporciona a aquisio de produtos e servios atravs da rede, mas, alm de se pensar a publicidade, impe reflexo sobre algumas questes nas relaes de consumo no ambiente virtual, exemplos: os contratos eletrnicos, a oferta e a publicidade eletrnica, a proteo dos direitos de propriedade na web, o problema de validade do documento eletrnico original e copiado; a transferncia eletrnica de dados, a proteo ao consumidor, a insuficincia legislativa sobre o assunto (LISBOA, 2007, p. 208-209). O estabelecimento do comrcio pela internet possibilitou que negcios jurdicos, dos mais diversos pudessem ser realizados e, nesse aspecto, destacamos que nasceram desafios para a cincia jurdica: entender essas novas relaes de consumo virtuais e suas implicaes no mundo ftico; verificar a invalidade dos contratos eletrnicos; como provar os negcios virtuais e a admissibilidade da prova eletrnica no processo judicial, mas, especialmente, levantou questionamentos sobre verossimilhana ou inverossimilhana das informaes que chegam ao consumidor pela rede virtual. No caso especfico do estudo aqui proposto, destaca-se que no mbito do ciberespao, as inovaes nas relaes de consumo a partir do uso das tecnologias de informao e comunicao, como a internet, expuseram o consumidor vulnerabilidade informacional, que est vinculada a euforia publicitria, estimulao dos desejos, exaltao da felicidade consumidora, frenesi provocado pelas estratgias de marketing que submetem os consumidores a informaes manipuladas, controladas e, muitas vezes, at desnecessrias, com o intuito de obrigar ao consumo. Esse tipo de exposio leva tambm vulnerabilidade psquica do consumidor, em razo do alto potencial de induo e massificao do consumo pelos meios de comunicao, conforme j analisamos em nossas primeiras incurses sobre o tema. Segundo Jos Jlio Chiavenato (2004, p. 66-67),
enquanto est plugado nas mensagens que o iludem e induzem s sensaes virtuais, um paciente; ao desligar o computador o voltar para o mudo real das sensaes, um agente. Ento passa a consumir e compensar as suas frustraes, que, no processo globalizador, fortalece o sistema. Quanto mais entrar para o mundo virtual, melhor consumidor ser no mundo real: o mundo consumista que o abastece de meios de se transformar em conceito indefinido, em no-humano, e gozar o virtualismo que o compensa da alienao interior.

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A REVISTA DA UNICORP No ambiente virtual, as possibilidades de ferramentas para desenvolvimento do marketing das empresas vem se ampliando. As publicidades mais usuais so: pginas web, e-mailmarketing segmentados para todo o Brasil; banners publicitrios; janelas pop-up; pesquisas de opinio pblica; cadastramento em mecanismos de busca; wallpaper personalizados com a marca de sua empresa; newsletter (CHIAVENATO, 2004, p. 93). Nessa perspectiva, nas relaes de consumo virtuais o consumidor no est afastado de publicidades enganosas e abusivas j to comuns no mercado tradicional no virtual. Esse novo espao exigiu tambm essas novas estratgias e formas de publicidade, que por si s, algumas delas, j constituem prticas enganosas e abusivas, trazendo danos materiais e morais aos consumidores. Para Jean Carlos Dias (2004, p. 131) essas novas formas de publicidade so capazes de manter o consumidor em erro quanto aos elementos essenciais dos produtos ou servios e atravs da informao falsa e qualquer outro meio podero configurar a publicidade enganosa e/ou abusiva. Nesse sentido, tomando como referncia Letcia Canut (2007, p. 168-169), destacamos algumas dessas novas formas de publicidade que desafiam a tutela protetiva ao consumidor: os banners, os spams, os pops ups, os metatags, o cybersquatting. So ferramentas que promovem produtos e servios atravs de variados tipos de mensagens, constituindo-se em estratgias abusivas em decorrncia das consequncias que trazem ao consumidor porque chegam a ele de forma no solicitada, principalmente por redirecionamento involuntrio. Mesmo considerando que a internet possibilita ao consumidor maior acesso a informaes sobre produtos e fornecedores, lhe dando mais chances de acertos em suas escolhas e negcios, preciso levar em considerao que a tendncia atual da rede se orienta no sentido da criao dos grandes grupos que estabelecem aliana que acabam por guiar o navegante por caminhos sinalizados segundo convenincias prdeterminadas (DE LUCCA, 2008, p. 447). Alm disso, Pierre Lvy aponta que no espao virtual, o consumidor no apenas se torna coprodutor da informao que consume, mas tambm produtor cooperativo dos mundos virtuais nos quais evolui, bem como agente de visibilidade do mercado para os que exploram os vestgios de seus atos no ciberespao (1996, p. 40). Seguindo esse raciocnio, rica Loureno de Lima Ferreira aponta que os internautas no se localizam principalmente por seus nomes, posio social, localizao geogrfica, seno a partir de centros ou sites de interesses mtuos, uma comunicao recproca, interativa e ininterrupta (2007, p. 148). A ampliao, tanto no sentido da virtualizao do mercado como dos mecanismos tecnolgicos desenvolvidos e apropriados pelo mercado para publicidade, nos leva a acreditar que o consumidor est cada vez mais sujeito a estratgias criativas de interatividade, comunicao e publicidade que aumentam a possibilidade de riscos e leses pelo alcance mais ampliado em relao aos consumidores.

3. Processo coletivo: mecanismos de proteo ao consumidor no ciberespao Na atualidade, a anlise de conflitos de interesse social mais amplo tem chegado ao judicirio e exigido atividade jurisdicional bem mais atenta realidade social vigente, o caso dos conflitos de massa envolvendo a publicidade enganosa e abusiva pela internet. Mudanas que implicam, inclusive, tratamento diferenciado da tcnica processual, com a mxima aproxima179

ENTRE ASPAS o do direito processual aos mecanismos de tutela dos direitos coletivos em sentido amplo. Nesse sentido, sobrelevam as crticas tcnica processual individualista e conforme destaca Ada Pellegrini Grinover (s/d),
a interpretao rigorosa da tcnica processual, no processo individual, tem dado margem a que um nmero demasiado de processos no atinja a sentena de mrito, em virtude de questes processuais [...] As normas que regem o processo coletivo, ao contrrio, devem ser sempre interpretadas de forma aberta e flexvel h disposio expressa nesse sentido no Anteprojeto de Cdigo Brasileiro de Processos Coletivos e o juiz encontrar nelas sustentculo para uma postura menos rgida e formalista.

No mesmo sentido, Cndido Rangel Dinamarco (1996, apud MAGGIO, 2007, p. 128) esclarece que,
presencia-se ao que sugestivamente Kazuo Watanabe denominou molecularizao da tutela jurisdicional. Ao tradicional trato dos conflitos isoladamente, como tomos de uma realidade muito mais ampla, acostase agora o exerccio da jurisdio em face das molculas em que os tomos se aglutinam. O estilo de vida contemporneo, solidrio por excelncia e por imposio das necessidades e aspiraes comuns na sociedade de massa deste fim de sculo, impe o trato coletivo de interesses que somam e se confundem, quase que destacando-se dos indivduos a que tradicionalmente se reportavam com exclusividade. o direito de massa, resultante dessa nova realidade social, e que por sua vez impe rumos ao processo civil, o qual tambm se vai ento modelando como um processo civil de massa.

Destaca-se aqui, ainda corroborando com a crtica da tcnica processual, as palavras de Marcelo Paulo Maggio (2007, p. 130):
idias ligadas tradio processual no servem para a correta proteo e interpretao de questes ligadas aos interesses difusos, devendo os operadores do direito, nesses casos, enxergarem de forma malevel, flexvel, os mecanismos processuais existentes, somente negando a apreciao s pretenses e defesas afirmadas, nas hipteses retratadas na lei; [...]. As peculiaridades afetas s espcies de interesses coletivos em sentido amplo fazem com que um tratamento especial seja preciso, sempre buscando releituras necessrias ao avano dos institutos processuais, vez que, da eficaz tutela de tais interesses, torna-se possvel propiciar que o desenvolvimento ocorra de forma sustentada, assegurando a todos uma sadia qualidade de vida, tanto para os presentes, como para as geraes vindouras.

A excurso pelas idias desses autores foi necessria, porque observados os desafios impostos pelo comrcio eletrnico e a ampla exposio do consumidor no mercado virtual, 180

A REVISTA DA UNICORP principalmente em relao publicidade enganosa e abusiva, e, levando-se em considerao a velocidade das mudanas no ciberespao, refora-se a necessidade de adequao e flexibilizao dos mecanismos de defesa em prol da parte mais frgil na relao de consumo, o consumidor. No Brasil, outras crticas reportam ausncia de legislao especfica sobre as relaes de consumo no ciberespao. Diante disso, a legislao consumerista, com suas normas inovadoras, especialmente no diz respeito ao processo coletivo, tem sido aplicada para solucionar os litgios oriundos das relaes de consumo no espao virtual. Para Newton De Lucca (2008, p. 454-456) as regras do CDC podem ser plenamente aplicadas s relaes de consumo virtuais, embora no sejam suficientes, haja vista que no espao virtual ocorrem situaes totalmente novas para o Direito do Consumidor. No caso dos direitos coletivos dos consumidores, conforme dispe o CDC, no art. 81, pargrafo nico, incisos I, II, e III, ela poder ser exercida em juzo individualmente ou a ttulo coletivo quando se tratar de:
I interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste Cdigo, os transindividuais, de natureza indivisvel, de que sejam titulares pessoas indeterminveis e ligadas por circunstncias de fato; II interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste Cdigo, os transindividuais de natureza indivisvel de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrria por uma relao jurdica base; III interesses ou direitos individuais homogneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.

bom que se lembre que no Brasil a tutela coletiva no comea a partir do CDC. Conforme enfatiza Geisa de Assis Rodrigues (2006, p. 78), no que diz respeito tutela coletiva,
antes mesmo de termos a legislao do consumo sistematizada, tenha havido a regulamentao da tutela coletiva desses direitos com a edio da Lei 7.347/85. Muito embora tenha a lei natureza eminentemente processual, a mesma ensejou a tutela coletiva dos direitos dos consumidores que j estavam consolidados na legislao naquela oportunidade. Portanto, a nova disciplina do Direito do Consumidor no Brasil j nasceu sob o signo do coletivo, sob o reconhecimento de que uma tutela eminentemente individual no ser nunca suficiente e efetiva.

Para Gregrio Assagra de Almeida (2003, p. 582),


com o advento do CDC, passou a existir em nosso Ordenamento Jurdico, um microssistema integrado, decorrente da completa interao entre o CDC (art. 90) e a LACP (art. 21), diplomas esses fundamentais para a tutela jurisdicional coletiva comum. Assim, como regra interpretativa, o operador do direito deve valer-se desses dois sistemas (CDC+LACP) para resolver qualquer problema pertinente aplicabilidade do direito processual coletivo comum.

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ENTRE ASPAS No s isso. O CDC e a Lei de Ao Civil Pblica, juntos, formam e potencializam o denominado microssistema processual coletivo. o nascimento de um novo ramo do direito, o direito processual coletivo, consubstanciado na aplicao prtica das normas sobre processos coletivos e na evoluo doutrinria sobre o tema, que levaram idia e elaborao de Anteprojeto do Cdigo Brasileiro de Processos Coletivos5. Assim, tm-se que na tutela jurisdicional dos direitos coletivos em sentido amplo aparecem como marcos: o Cdigo de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), a Lei de Ao Civil Pblica (7.347/85), a Lei de Ao Popular (4.717/65), o Estatuto da Criana e do Adolescente (Lei 8.069/90), o Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003), a Lei de Abuso do Poder Econmico (8.884/94), entre outros, constituindo a idia de microssistema, como esclarece Rodrigo Mazzei (2009, apud DONIZETTI, 2010, p. 29):
[...] o microssistema coletivo tem sua formao marcada pela reunio intercomunicante de vrios diplomas, diferenciando-se da maioria dos microssistemas que, em regra, tem formao enraizada em apenas uma norma especial, recebendo, por tal situao, razovel influncia de normas gerais. [...] a concepo do microssistema jurdico coletivo deve ser ampla, a fim de que o mesmo seja composto no apenas do Cdigo de Defesa do Consumidor e da Lei da Ao Civil Pblica, mas de todos os corpos legislativos inerentes ao direito coletivo, razo pela qual diploma que compe o microssistema apto a nutrir carncia regulativa das demais normas, pois, unidas, formam sistema especialssimo. (grifos do original)

Em mais de uma oportunidade j mencionamos que o contexto atual dos mercados globais e das prticas publicitrias cada vez mais arrojadas, traz repercusses perante os interesses dos consumidores em sentido amplo, posto que, conforme a anlise de Leonardo Roscoe Bessa (2007, p. 30-31), na sociedade do consumo,
surgem, diariamente, novas tcnicas e procedimentos abusivos de venda de produtos e servios. As publicidades, a cada dia, informam menos e, em proporo inversa, se utilizam de mtodos sofisticados de marketing, o que resulta em alto potencial de induo a erro do destinatrio da mensagem e, at mesmo, na criao da necessidade de compra de bens e servios absolutamente suprfluos. [...] O avano da tecnologia conduz ao oferecimento de servios e bens cada vez mais complexos, gerando um dficit informacional e, consequentemente, dificuldade de uma escolha madura e consciente do consumidor. Na rea da informtica, o rpido progresso da tecnologia permite um absoluto controle dos dados pessoais do consumidor, possibilitando, em ofensa ao valor privacidade, traas a rotina, hbitos e gostos do cliente.

O quadro colocado por esse autor substancialmente correto, demonstra alguns pontos negativos do mercado de consumo clssico e os aspectos intimamente ligados vulnerabilidade do consumidor, tambm so encontrados no ciberespao, o que justifica que as normas de proteo e defesa do consumidor sejam de ordem pblica e interesse social (art. 1 do CDC). 182

A REVISTA DA UNICORP Ademais, preciso levar em considerao outros problemas que envolvem as relaes de consumo virtuais:
embora as contrataes via internet tenham se tornado uma constante na vida em sociedade, no se pode afirmar que todas as transaes efetivadas dentro do ciberespao so consideradas seguras e confiveis, pois nas relaes entre as pessoas, no raras vezes ocorrem conflitos no que tange s discusses que giram em torno dos contratos, mais especificamente sobre as clusulas neles embutidas, capacidades dos agentes, valor probatrio do documento eletrnico, foro de competncia para as discusses e legislao aplicvel (BOIAGO JNIOR, 2009, p. 79).

So questes desafiadoras para o Direito do presente e do futuro face inconfundvel exposio do consumidor. J se falando, inclusive, em um novo ramo do direito, o Direito Digital6. Da a urgncia em se pensar a proteo do consumidor sob a tica da defesa dos direitos coletivos, especialmente, dos interesses metaindividuais e se discutir a tutela desses direitos a partir do mecanismo do processo coletivo, pois a publicidade na internet rpida e o alcance mais amplo em relao a qualquer outra mdia. Patrcia Peck Pinheiro (2010, p. 319), traz reflexo interessante sobre o carter da publicidade virtual:
[...] o objetivo da publicidade e seu limite no apenas a seduo do comprador: uma vez e imediatamente aps o momento em que for seduzido, pode ele adquirir o produto com simples toques no mouse. [...] Esse tnue limite entre o momento em que termina o anncio e aquele em que comea a transao comercial tira o sono dos publicitrios e traz uma questo jurdica: de quem sero as responsabilidades no caso de propaganda enganosa? (grifo nosso)

Alm disso, como j nos referimos anteriormente, a publicidade na internet muito mais invasiva, os meios utilizados desde os banners, links, e-mails, newsletter, as pginas web podem causar prejuzos aos consumidores, que alm de em sua maioria, possurem limitaes em conhecer e dominar o uso das ferramentas tecnolgicas, ainda ficam expostos s estratgias e ferramentas publicitrias virtuais. Nesse sentido, segundo Gregrio Assagra de Almeida (2003, p. 138), o direito processual coletivo confere
em vrias oportunidades, dignidade constitucional aos direitos e interesses coletivos em sentido amplo, ao mesmo tempo em que assegura o acesso incondicionado e ilimitado justia, de sorte que a garantia constitucional no mais se restringe tutela dos direitos individuais (art. 5., XXXV, da CF).

Assim, entendendo como apropriado ao estudo em anlise, a tutela voltada para defesa dos interesses metaindividuais, extramos das lies de Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr. (2007, p. 74) que 183

ENTRE ASPAS
reputam-se direitos difusos (art. 81, par. n., I do CDC) aqueles transindividuais (metaindividuais, supraindividuais, pertencentes a uma coletividade), de natureza indivisvel (s podem ser considerados como um todo), e cujos titulares sejam pessoas indeterminadas (ou seja, indeterminabilidade dos sujeitos, no havendo individuao) ligadas por circunstncias de fato, no existindo um vnculo comum de natureza jurdica.

Pela conjugao dos critrios apontados por esses autores, os interesses difusos caracterizam-se por:
1 possui abrangente conflituosidade; 2 ostenta como sujeito toda a coletividade; 3 neles h ausncia de vnculo associativo; 4 pelo alcance da cadeia abstrata de pessoas; so inominados; 5 so metaindividuais; recaem sobre bens materiais, corpreos etc. A tutela jurisdicional dos interesses difusos visa assegurar que todos os membros do grupo social gozem dos bens essenciais para a boa qualidade de vida da populao (FERANNES, 2005, p. 139).

A diferena entre os direitos difusos em relao aos direitos coletivos e individuais justamente pensar que a principal caracterstica dos direitos difusos seu alcance mais amplo. Assim, se percebe que a precria garantia de direitos sociais e econmicos um dos elementos que faz com que as pessoas recorram ao judicirio, como alternativa para alcanarem seus direitos. Busca-se a efetivao do acesso a justia e no plano constitucional a garantia dos direitos fundamentais. Nesse sentido, o judicirio exerce uma funo de extrema relevncia na sociedade do consumo e sua atividade deve ser pensada de forma a se tornar o mais prximo possvel de seus jurisdicionados e que possa, efetivamente, contribuir para resolver o problema da falta de democratizao dos direitos de terceira gerao, especialmente, os direitos dos consumidores. Por outro lado, nota-se que o judicirio no tem dado conta da demanda protetiva reivindicada, quer seja pela deficincia de estruturas fsicas e a precariedade do sistema humano, quer seja pelas opinies divergentes de seus julgadores, quer seja pelos embates de interesses polticos e econmicos que flagrantemente so expostos a conhecimento pblico. Nesse sentido, Elpdio Donizetti (2010, p. 8) defende que
a eficaz tutela dos direitos coletivos importa, inevitavelmente, na reduo da quantidade de aes ajuizadas individualmente e, por conseqncia, do nmero de processos nos tribunais com a mesma matria a ser decidida. Economizam-se gastos inerentes prestao jurisdicional, evitam-se julgamento contraditrios (notadamente mais comuns no caso de mltiplas aes individuais) e contribui-se, assim, para o melhor funcionamento e para a harmonia do sistema jurdico.

Mesmo considerando que apenas uma pequena parcela de consumidores procura o judicirio para reivindicar a tutela protetiva, ainda assim o resultado pouco efetivo para estes, bem como pouca repercusso h para aqueles consumidores que no buscam seus direitos 184

A REVISTA DA UNICORP (no exercem ou no tem conhecimento de seus direitos) ou mesmo para aqueles que so excludos do mercado de consumo clssico e virtual. Tambm observvel que em sentido amplo no h eficcia em relao aos fornecedores, que continuam abusando do poder econmico, submetendo os consumidores a clusulas abusivas, a produtos que pem em risco a sade e segurana, a insuficincia de informaes sobre servios e produtos colocados no mercado, publicidade enganosa e abusiva entre outros. Recorremos, mais uma vez, cognio de Gregrio Assagra de Almeida (2003, p. 144):
somente haver a transformao da realidade social com a real implementao do Estado Democrtico de Direito, quando for possvel a proteo e a efetivao dos direitos primaciais da sociedade, como os relacionados ao meio ambiente, ao patrimnio pblico, ao consumidor, etc. Para tanto, o direito processual coletivo fundamental, at porque por seu intermdio que poder ocorrer a proteo objetiva desses direitos e garantias constitucionais fundamentais e a efetivao, no plano concreto, dos direitos coletivos violados com a transformao da realidade social. (grifos do autor)

Nesse sentido, a tutela coletiva poder estabelecer nova dimenso proteo dos interesses dos consumidores. O momento atual revela a necessidade de se pensar uma sociedade mais equilibrada, com a efetiva proteo dos interesses e direitos metaindividuais. Nesse sentido, interessante abordagem feita por Francesco Galgano (203, p. XIV) ao apontar que,
algo de novo est surgindo no debate sobre a proteo do consumidor: alguma coisa que eleve a um ponto mais alto os termos do debate. O terreno originrio da discusso era aquele da defesa negativa do consumidor: no produzir (produtos nocivos), como e, no interesse do consumidor, no produzir (produtos defeituosos ou que pem em perigo o consumidor) ou no distribuir (propaganda enganosa, mensagens publicitrias lesivas da liberdade ou da dignidade do consumidor, clusulas abusivas das condies gerais dos contratos) e assim por diante. Ora, comea-se a discutir em termos de defesa positiva do consumidor: a ele, consumidor, se reivindica legitimao para ser interlocutor sobre que coisa produzir, sobre quais necessidades satisfazer, sobre como satisfaz-las, sobre as prioridades na sua satisfao (grifo nosso).

Assim, tornar a relao de consumo harmnica e garantir os interesses e direitos metaindividuais dos consumidores no espao virtual no se trata de um projeto simples e rpido. No entanto, no se pode mais adiar a promoo de mecanismos mais eficazes para alcanar esses objetivos no Brasil haja vista que o ciberespao uma realidade dinmica e adota estratgias de publicidade cada vez mais eficazes no processo de submisso e seduo do consumidor, conforme demonstramos no incio. A par de todas essas circunstncias e dos conceitos jurdicos abordados, preciso levar em considerao que a relao jurdica de consumo reside em um contexto social que se afigura numa sociedade complexa. Diante disso, no basta inscrever uma legislao que proteja o consumidor no mercado de consumo ou condicion-los resposta do judicirio, preciso 185

ENTRE ASPAS estimular os indivduos a repensarem seus padres de consumo, preciso incentivar comportamentos que busquem o respeito, a cooperao e a responsabilidade na proteo de interesses coletivos e vivncia da cidadania.

4. Consideraes finais Sendo a proteo ao consumidor uma poltica do Estado Democrtico de Direito estabelecida em favor deste, toda e qualquer relao de consumo encontra-se sob a gide da proteo constitucional. No entanto, bastante comum ver os interesses e direitos dos consumidores desrespeitados, principalmente, diante das novas estratgias de consumo promovidas no ciberespao. Assim, procurou-se, ao longo do texto, discutir a vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo virtual, especialmente, no que diz respeito s estratgias dos fornecedores que expem os consumidores propaganda abusiva e enganosa. Nesse sentido, tornou-se imperioso lanar crticas ao capitalismo globalizado e sociedade do consumo, cujas bases se constituram a partir de um modelo pautado no jogo de interesses do capital. No obstante a legislao brasileira dispor de rgidas regras para proteo das relaes ao consumo apontou-se que isso no reprime atos desconformes de fornecedores, e que o consumidor tem dificuldade de conseguir a tutela estatal adequada de seus interesses, pela dificuldade de organizao de polticas do Estado e pela dificuldade de acesso justia. Dessa forma, acredita-se que a contribuio deste trabalho no sentido de trazer essa reflexo para o debate jurdico e apontar o processo coletivo como possibilidade de garantir maior eficcia na proteo dos direitos difusos dos consumidores, chegando, assim, a alcanar o prprio esprito da Constituio Federal.

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Notas ______________________________________________________________________________ 1. Segundo Gilles Lipovetsky o hiperconsumidor aquele que busca o bem estar material como forma de realizao do ser, como forma de alcanar a felicidade. 2. Utilizamos aqui o conceito de ciberespao de Pierre Lvy (1999, p. 92), ou seja, como o espao de comunicao aberto pela interconexo mundial dos computadores e das memrias dos computadores. Para saber mais, remetemos o leitor obra consultada. 3. Humberto Gessinger vocalista, baixista e guitarrista brasileiro, integrante da banda Engenheiros do Hawaii. 4. Para Rodrigo Stfani Correa, Comunicao Digital antes de tudo, a possibilidade da conexo do indivduo com um universo infinito de oportunidades e de informaes, uma espcie de democracia do conhecimento e da informao, detentora de um atributo irrepreensvel tempo real, ou tudo ao mesmo tempo agora (CORREA, 2003, p. 88). 5. Sobre o tema remetemos o leitor s obras consultadas de Gregrio Assagra de Almeida, Paulo Henrique dos Santos Lucon, Elpdio Donizetti, Incio Carvalho Neto, Ada Pellegrini Grinover. 6. Para Patrcia Peck Pinheiro (2010, p. 76) o Direito Digital tem por base o princpio de que toda relao de protocolo hipertexto-multimdia, por ao humana ou por mquina, gera direitos, deveres, obrigaes e responsabilidades. Logo, seja aplicando as leis atuais, seja recorrendo ao mecanismo da analogia, dos costumes e dos princpios gerais do direito, o Direito Digital tem o dever de regulamentar essas relaes e intermediar os conflitos gerados por elas.

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O NOVO CDIGO CIVIL E OS PRAZOS DE PRESCRIO ADMINISTRATIVA EM CASO DE RESPONSABILIDADE DO ESTADO E DE APOSSAMENTO ADMINISTRATIVO UM ESTUDO A PARTIR DA JURISPRUDNCIA DO STF E DO STJ

Mrio Soares Caymmi Gomes


Juiz de Direito do Estado da Bahia. Ps-Graduado em Direito Tributrio pela PUC-SP (2005). Ps-Graduado em Direito Civil e Processual Civil pela Universidade Estcio de S-RJ (2003). Mestre em Lingustica pela Universidade Federal da Bahia (2009).

Resumo: O presente artigo visa analisar dois aspectos polmicos a respeito da responsabilidade do Estado. O primeiro deles diz respeito alterao da jurisprudncia do STJ, que vem considerando que se aplica aos casos de aes de reparao por danos civis dos particulares contra o Estado o prazo de trs anos, introduzido pelo atual Cdigo Civil de 2003, em seu artigo 206, 3, inciso V, e no mais o Decreto n 20.910/32. De igual maneira, discutiremos aqui a polmica a res-peito da influncia do novo Cdigo Civil nas questes relativas ao perodo necessrio para que se d o apossamento administrativo, com discusso da jurisprudncia do STF sobre o assunto. Palavras-Chave: responsabilidade do estado, apossamento administrativo, prescrio, prazo. Abstract: The present article aims to analyse two polemical aspects in the field of the responsibility of the State. The first of them has to do with the change in the jurisprudence of the STJ (Superior Court of Justice of Brazil) that now considers that the time of prescription of the legal suits on liability of the State is of three years, according to the new Civil Code of 2003, article 206, 3, V, not being of validity anymore on this matter the Federal Decree 20.910/32. We shall also discuss, secondly, about the influence of the new Civil Code on the matters of the timing in which operates the expropriation in favour of the State, in the cases that are not anticipated by prior indemnification, with discussion about the jurisprudence of the Supreme Court of Brazil. Key words: liability of the State, prescription, time, expropriation. Sumrio: 1. Introduo 2. A prescrio no direito administrativo 3. Situando o primeiro problema: a responsabilidade do Estado e o prazo do particular para demandar a reparao antes do Cdigo Civil de 2003 4. A jurisprudncia do STJ e o artigo 206, 3, V do CC/2003 5. Crtica nova jurisprudncia do STJ 6. O prazo de prescrio nas aes de apossamento administrativo 7. Ressalva de direito intertemporal 8. Concluses. 190

A REVISTA DA UNICORP 1. Introduo O presente artigo visar a discusso de temas palpitantes a respeito do gnero prescrio em direito administrativo, especificamente no que pertine reparao de ato ilcito atribudo ao Estado e, tambm, nos casos de apossamento administrativo. O primeiro tema polmico tendo em vista que o STJ, em decises muito recentes, vem considerando que deve ser aplicada nessas aes reparatrias o prazo de 3 anos, previsto no artigo 206, 3, inciso V do atual Cdigo Civil, e no mais o Decreto n 20.910/32 que, em seu artigo 1, previa o lapso de cinco anos, e nem o artigo 1-C da Lei n 9.494/97. De igual modo, existe uma polmica, ainda no resolvida, a respeito da influncia do novo Cdigo Civil no que tange ao tempo da prescrio no caso de apossamento administrativo. Tendo tudo isso em vista, analisaremos os argumentos doutrinrios e jurisprudncia do STF e STJ, promovendo uma crtica sempre baseada em parmetros dogmticos da hermenutica que privilegia os princpios constitucionais, tambm chamada por alguns de neoconstitucionalismo1.

2. A prescrio no direito administrativo A prescrio um instituto que se dissemina em todos os ramos do direito e diz respeito a um de seus fundamentos ltimos, que visa garantir a paz social, por meio do estabelecimento de um limite temporal para que o detentor de um direito violado possa exercer o devido direito de ao contra quem o transgride. No outra a posio de Slvio Rodrigues (1993, p. 254), ao sustentar que mister que as relaes jurdicas se consolidem no tempo. H um interesse social em que situaes de fato que o tempo consagrou adquiram juridicidade, para que sobre a comunidade no paire, indefinidamente, a ameaa de desequilbrio representada pela demanda". Antonio Winter de Carvalho (2010), aps analisar o instituto nos ramos do direito civil, administrativo e constitucional chega concluso de que ele est presente em todos eles e que, por isso, seria peculiar prpria noo de direito, que prev como regra a prescritibilidade e a imprescritibilidade como exceo , exatamente por causa da necessidade de estabilizarem as relaes jurdicas, punindo-se o titular de situao jurdica que no lhe deu efetivadade em certa baliza temporal razovel, fixada por lei. Consideramos que o fundamento jurdico ltimo da prescrio encontra guarida no captulo constitucional dos direitos fundamentais, especificamente no artigo 5, inciso XXXVI que determina a garantia do ato jurdico perfeito e do direito adquirido. Esse assento constitucional do instituto da prescrio tambm destacado por Maral Justen Filho (2009, p. 1097) que o vincula idia mesmo do Estado de Direito e o seu correlato princpio da segurana, como elementos cruciais para que se conclua pela consolidao das situaes de fato no tempo.
A existncia do Estado envolve a eliminao da insegurana e da incerteza. O Estado instrumento coletivo para assegurar a realizao de projetos futuros, individuais e coletivos. A ordem jurdica proporciona a segurana jurdica, no sentido de assegurar que as decises fundamentais sejam previsveis. [] O Estado de Direito obedece s normas jurdicas

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ENTRE ASPAS
e isso significa a eliminao de solues no conformes ou no previstas pelo direito. Logo, os particulares podem organizar a vida presente e futura, tendo conscincia de que o Estado no adotar condutas vedadas ou no previstas pelo ordenamento jurdico.

No RE 226.855 o voto do Min. Seplveda Pertence deixa claro que a discusso sobre o ato jurdico perfeito e, por tabela, da prescrio que gera essa consolidao, norma de assento constitucional, que no se regula meramente pela Lei de Introduo ao Cdigo Civil (Decreto-Lei n 4.657/42) mas que uma garantia constitucional voltada primacialmente quando no exclusivamente como sustentam muitos contra o legislador ordinrio. Assim sendo, o instituto da prescrio surge como uma soluo tpica da esfera jurdica que tem o intuito de limitar o poder subjetivo processual das pessoas jurdicas ou naturais detentoras de certo direito violado.

3. Situando o primeiro problema: a responsabilidade do Estado e o prazo do particular para demandar a reparao antes do Cdigo Civil de 2003 A atual Carta Poltica Brasileira consagrou, em seu artigo 37, 6, a teoria da responsabilidade objetiva do Estado, garantindo aos particulares o direito de exigir reparao de atos ilcitos praticados pela Administrao Direta e Indireta, alm das pessoas jurdicas de direito privado prestadoras de servios pblicos. A doutrina de direito administrativo se inclinava, aps a edio do texto constitucional, a considerar vigente o Decreto n 20.910/32, que fora recepcionado com o status de lei ordinria e que, atendendo exigncia posta pelo texto, estabelecia o prazo prescricional quinquenal para as demandas contra o Estado pela prtica de ato ilcito. O artigo 1 da norma fora assim redigido:
as dvidas passivas da Unio, dos Estados e dos Municpios, bem assim todo e qualquer direito ou ao contra a Fazenda Federal, Estadual ou Municipal, seja qual for a sua natureza, prescrevem em cinco anos contados da data do ato ou fato do qual se originarem.

A MP 2.180-35/01 alterou o artigo 1-C da Lei n 9.494/97 para declarar que prescrever em cinco anos o direito de obter indenizao dos danos causados por agentes de pessoas jurdicas de direito pblico e de pessoas jurdicas de direito privado prestadoras de servios pblicos o que, na prtica, no trouxe alterao substancial ao tema em questo. Com base nesse suporte legal, a doutrina abalizada de Celso Antnio Bandeira de Mello (2009, p. 1041), por exemplo, advertia que a jurisprudncia unnime dos tribunais ptrios consideravam ser de 5 anos o prazo de prescrio do particular contra o Poder Pblico, contado este a partir do conhecimento, pelo administrado, do resultado lesivo sua esfera patrimonial ou moral. Essa lio, segundo adverte o autor, seria vlida para as aes de cunho pessoal, sendo outro o prazo no caso das aes reais que, no advento do antigo Cdigo Civil de 1916 era o de 20 anos, do usucapio extraordinrio, soluo essa que, inclusive, foi consolidada pela edio da smula de jurisprudncia do STJ de nmero 119, que rezava: a ao de desapropriao indireta prescreve em 20 anos. 192

A REVISTA DA UNICORP Com o advento do novo Cdigo Civil de 2003 comeou a haver discusses acerca do prazo aplicvel indenizao do particular lesado por ao ou omisso atribuda ao Estado, em especial levando-se em conta o artigo 206, 3, inciso V, que estabeleceu o lapso de 3 anos de prescrio para a pretenso de reparao civil. Haveria ele revogado tacitamente o Decreto n 20.910/32 e o disposto no artigo 1-C da Lei n 9.494/97? E em relao s aes que visam indenizao de apossamento administrativo? Estariam elas sujeitas a quais prazos? sobre esses problemas que passaremos a tecer algumas consideraes.

4. A jurisprudncia do STJ e o artigo 206, 3, V do CC/2003 O STJ, at muito pouco tempo, era unnime em afirmar a aplicao do Decreto n 20.910/ 32 e do prazo quinquenal nas aes de reparao por responsabilidade do Estado. Veja-se, a ttulo de exemplo, Acrdo da lavra do Min. Herman Benjamin, publicado no DJe de 02/03/2011, no Agravo Regimental do Recurso Especial 1197876:
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. MORTE DE DETENTO EM PRESDIO. AO DE INDENIZAO POR DANO MORAL. IRM DA VTIMA. LEGITIMIDADE ATIVA. PRAZO PRESCRICIONAL. ART. 1 DO DECRETO 20.910/1932. 1. Irmos so partes legtimas ad causam para pleitear indenizao por danos morais em razo do falecimento de outro irmo. Precedentes do STJ. 2. O prazo prescricional de Ao de Indenizao contra a Fazenda Pblica de cinco anos, nos termos do art. 1 do Decreto 20.910/1932, norma que regula a prescrio de "todo e qualquer direito ou ao contra a Fazenda Federal, Estadual ou Municipal, seja qual for a sua natureza". (grifo nosso)

Essa unanimidade se modificou entre as Turmas da Corte Especial quando algumas Turmas da Corte Superior passaram a entender que o prazo do Decreto 20.910/32 teria sido revogado pelo Novo Cdigo Civil, que estabelece o lapso de 3 anos para que se ajuzem demandas de reparao civil (artigo 206, 3, V). Veja-se, a seguir, um exemplo desse novo entendimento, adotado pelo mesmo Ministro Herman Benjamin, relator do Acrdo paradigma anterior, no Recurso Especial 1217933, publicado no DJe de 25/04/2011:
ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. PRESCRIO. DECRETO 20.910/1932. ADVENTO DO CDIGO CIVIL DE 2002. REDUO DO PRAZO PRESCRICIONAL PARA TRS ANOS. 1. O legislador estatuiu a prescrio qinqenal em benefcio do Fisco e, com manifesto objetivo de favorecer ainda mais os entes pblicos, estipulou que, no caso de eventual existncia de prazo prescricional menor a incidir em situaes especficas, o de cinco anos seria afastado nesse particular. Inteligncia do art. 10 do Decreto 20.910/1932.

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2. O prazo prescricional de trs anos relativo pretenso de reparao civil - art. 206, 3, V, do Cdigo Civil de 2002 - prevalece sobre o qinqnio previsto no art. 1 do Decreto 20.910/32. (grifo nosso)

O relator desse aresto invocou a doutrina para inovar o entendimento da corte. Para tanto, referiu-se a obra de Leonardo Jos Carneiro da Cunha (2008, p. 85), que assim se posiciona:
Significa que a prescrio das pretenses formuladas contra a Fazenda Pblica quinquenal, ressalvados os casos em que a lei estabelea prazos menores. Na verdade, os prazos prescricionais inferiores a 5 (cinco) anos beneficiam a Fazenda Pblica. [...] O que se percebe, em verdade, um ntido objetivo de beneficiar a Fazenda Pblica. A legislao especial conferiu-lhe um prazo diferenciado de prescrio em seu favor. Enquanto a legislao geral (Cdigo Civil de 1916) estabelecia um prazo de prescrio de 20 (vinte) anos, a legislao especfica (Decreto n 20.910/32) previa um prazo de prescrio prprio de 5 (cinco) anos para as pretenses contra a Fazenda Pblica. Nesse intuito de benefici-la, o prprio Decreto n 20.910/32, em seu art. 10, dispe que os prazos menores devem favorec-la. A legislao geral atual (Cdigo Civil de 2002) passou a prever um prazo de prescrio de 3 (trs) anos para as pretenses de reparao civil. Ora, se a finalidade das normas contidas no ordenamento jurdico conferir um prazo menor Fazenda Pblica, no h razo para o prazo geral aplicvel a todos, indistintamente - ser inferior quele outorgado s pessoas jurdicas de direito pblico. A estas deve ser aplicado, ao menos, o mesmo prazo, e no um superior, at mesmo em observncia ao disposto no art. 10 do Decreto n 20.910/32.

Tambm foi mencionado no julgamento a posio de Jos dos Santos Carvalho Filho (2007, p. 498-499), tambm a seguir transcrito, na parte essencial compreenso do tema:
Cumpre nessa matria recorrer interpretao normativo-sistemtica. Se a ordem jurdica sempre privilegiou a Fazenda Pblica, estabelecendo prazo menor de prescrio da pretenso de terceiros contra ela, prazo esse fixado em cinco anos pelo Decreto 20.910/32, raia ao absurdo admitir a manuteno desse mesmo prazo quando a lei civil, que outrora apontava prazo bem superior quele, reduz significativamente o perodo prescricional, no caso para trs anos (pretenso reparao civil). Desse modo, se verdade, de um lado, que no se pode admitir prazo inferior a trs anos para a prescrio da pretenso reparao civil contra a Fazenda, em virtude de inexistncia de lei especial em tal direo, no menos verdadeiro, de outro, que tal prazo no pode ser superior, pena de total inverso do sistema lgico-normativo; no mnimo, de aplicar-se o novo prazo fixado agora pelo Cdigo Civil. Interpretao lgica no admite a aplicao, na hiptese, das regras de direito intertemporal sobre lei espe-

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cial e lei geral, em que aquela prevalece a despeito do advento desta. A prescrio da citada pretenso de terceiros contra as pessoas pblicas e as de direito privado prestadoras de servios pblicos passou de quinquenal para trienal.

Outro que junta-se a essas vozes Flvio Arajo Willeman (2005, p. 6263) para quem necessrio fazer-se uma interpretao histrica do ordenamento jurdico e, tendo isso em vista, considera que o fato dos artigos 177, 178, 10, VI do CC de 1916 e do Decreto 20.910/32 terem estabelecido um prazo mais curto para a prescrio das demandas reparatrias contra o Estado prova cabal de que quando os dispositivos legais acima mencionados foram promulgados, apresentavam a ntida misso de trazer um tratamento diferenciado para a Fazenda Pblica em relao regra prevista no artigo 177 do CC de 1916 [].

5. Crtica nova jurisprudncia do STJ e s doutrinas que a fundamentam Antes de mais nada, consideramos importante que se destaque que a interpretao da legislao infraconstitucional tem de ser feita sempre com vistas Carta Maior, que, segundo J.J. Gomes Canotilho (1996) a norma fundante do ordenamento, no conhecendo estatuto superior e disso derivando as suas atribuies de autoprimazia e fonte primria de produo jurdica. Barroso (1998), por sua vez, destaca o princpio da supremacia da Constituio como elemento que no apenas funda o controle de constitucionalidade das leis mas que, ao mesmo tempo, exige do intrprete que esteja sempre atento aos mandamentos constitucionais como baliza ou limite do ato exegtico geral. Como ltimo argumento a essa discusso, devemos salientar a importncia de tratar a interpretao das leis com base na anlise dos princpios constitucionais, levada a cabo como imperativo do neoconstitucionalismo, que impe ao intrprete a tese da supremacia da Constituio e dos valores constitucionais no ato de cognio, como operao necessria para a sua eficcia (MENDES e BRANCO, 2011). por isso que antes de tratarmos o tema da prescrio tratamos de encontrar-lhe o fundamento constitucional que o respalda e, de igual maneira, ao analisar a jurisprudncia acima destacada e a doutrina que lhe fundamenta procuramos, de igual sorte, verificar se os ensinamentos ali colhidos encontram ressonncia no pilar maior do ordenamento brasileiro. E lamentamos considerar que isso no ocorre. Em primeiro lugar, e recorrendo mesma pesquisa histrica, invocada por todos os doutrinadores citados como elemento hermenutico decisivo para a construo de sua concluso normativa, que d pela revogao do disposito legal que prev a prescrio quinquenal do Estado, gostaramos de fazer uma crtica expresso responsabilidade civil do Estado, que tem curso frequente em livros sobre a matria e, ainda, na jurisprudncia ptria. Isso porqu nos parece passar desapercebido que responsabilidade civil uma coisa muito diferente de responsabilidade do Estado e, se num estgio anterior do pensamento jurdico, essas noes podem ter se misturado, hoje com a independncia clara dos ramos do direito privado e do direito administrativo, essa confuso no mais se justifica. O direito civil o ramo mais representativo das conquistas burguesas em detrimento do regime monrquico. Foi em torno dele que se gestou o primeiro cdigo sistemtico da histria, em cujas linhas tratou-se de assegurar a regulao das relaes de direito privado, ento 195

ENTRE ASPAS concebidas, com o iderio da Revoluo Francesa, como expresso mais viva e soberana da liberdade dos cidados. Tambm foi em torno desse movimento histrico que se desenvolveu a idia do constitucionalismo, ou seja, do limite ao poder monrquico que, mais tarde, gerou a teoria da tripartio do poder estatal, iniciada por Locke e reelaborada por Montesquieu. Assim sendo, consideramos que o direito civil, por tradio histrica, acabou sendo vinculado s conquistas burguesas contra a monarquia e, com isso, passou a ser referido genericamente como referncia-sntese que demonstrava, por meio dela, a luta da burgesia contra o poder desptico do manarca, bem como o estabelecimento de um ncleo de garantias individuais que importavam, at ento, num non facere. Nessa poca histrica, prevalecia a tese da irresponsabilidade do Estado, mais conhecida pela assertiva de que o rei no pode errar (the king can do no wrong). Foi a jurisprudncia do Conselho de Estado Francs e a doutrina que modificaram este quadro, lanando as bases de uma teoria geral de responsabilidade do Estado, que se valeu, em linhas gerais, da teoria da responsabilidade civil do Cdigo Napolenico. Foi assim que nasceu a expresso responsabilidade civil do Estado que, originariamente, buscava destacar o fato de que o Estado, antes irresponsvel, agora devia prestar contas de sua atuao, reparando os danos causados pela faute du service, ou seja, a falha do servio pblico prestado. O termo civil, na expresso responsabilidade civil do Estado, portanto, expressa o fato de que o Estado passa a ser responsvel pelos atos que causem lesos aos particulares, assim como no campo do direito privado o particular obrigado a reparar os excessos que a ao fundada na garantia legal de sua autonomia privada venha causar a terceiros. A responsabilidade do Estado hoje tem foros de autonomia do direito privado, e a expresso s pode incluir o elemento civil se for vista sob a perspectiva histrica qual nos referimos anteriormente. Se tratarmos o assunto no momento presente, falar de responsabilidade civil do Estado to equivocado quanto tratar de uma responsabilidade civil do direito do consumidor ou de uma responsabilidade civil do direito ambiental e assim por diante. Cada ramo do direito reformulou a teoria da responsabilidade civil e agregou-lhe peculiaridades prprias, tornando-as independentes do direito privado, de modo que errado dizer que os textos que regulam o direito privado regulariam todas as formas de responsabildidade existentes em todos os ramos do direito. Tanto isso verdade que no estado atual do direito administrativo no faltam autores que buscam uma nova denominao para a teoria da responsabilidade estatal, como Celso Antnio Bandeira de Mello (2009), cunhou a expresso responsabilidade extrapatrimonial do Estado por comportamentos administrativos. Por essa razo que no consideramos que o direito civil possa ser invocado como fundamento de responsabilidade estatal a no ser em casos especiais, em que haja omisso legislativa e sempre que houver compatibilidade entre ele e o direito administrativo, que possui contornos prprios. Essas lies histricas parece que foram olvidadas no tratamento do tema, assim como no verificamos nos fundamentos dos Acrdos a necessria aferio da importncia do primado dos princpios constitucionais. Ora, devemos frisar que na deciso do RESP 1217933, Relator o Ministro Herman Benjamin o argumento-chave para deslindar a questo diz respeito a [] um ntido objetivo de beneficiar a Fazenda Pblica. [] Ora, se a finalidade das normas contidas no ordenamento 196

A REVISTA DA UNICORP jurdico conferir um prazo menor Fazenda Pblica, no h razo para o prazo geral aplicvel a todos, indistintamente ser inferior quele outorgado s pessoas jurdicas de direito pblico. Carvalho Filho (2007, p. 499), por seu turno, ressalva que se a ordem jurdica sempre privilegiou a Fazenda Pblica, estabelecendo prazo menor de prescrio da pretenso de terceiros contra ela []. Ora, promover o ato interpretativo com base em alegao de tradio, em detrimento dos pilares principiolgicos, nos parece um argumento por demais desprovido de convencimento, j que no consegue promover uma atitude voltada para a legitimao dos parmetros maiores da Constituio Federal. O tema da prescrio importantssimo no ramo do direito administrativo, j que atravs dele que se garante um dos valores fundamentais da prpria existncia do direito, que a segurana jurdica, como j destacamos linhas atrs. Por isso no cabvel que, mngua de veiculao de um diploma legislativo especfico, que altere o lapso precricional no mbito administrativo, e com base em alegaes que tentam justificar uma suposta reiterao legislativa, que reduz o prazo prescricional em benefcio do Estado, isso seja suficiente para manipular-se o ato interpretativo para privilegiar o interesse estatal, aqui confundido com o interesse meramente pecunirio visto que, limitando-se o direito de ao do cidado estar-se-ia, a um s tempo, tambm evitando-se uma possvel futura condenao do Estado. Tambm no nos convencem argumentos como o de PADARATZ (2011), que o fundam numa suposta supremacia do interesse pblico, um termo que, despido de qualquer esclarecimento semntico que esclarea qual o seu sentido, parece funcionar como um verdadeiro curinga em obras de direito administrativo que no observam a tica neoconstitucional, como se a supremacia do pblico, em relao prescrio de direito administrativo, quisesse expressar o mesmo que o prazo de prescrio administrativa TEM QUE SER maior do que o do direito privado, o que, com todo respeito, no encontra eco em nenhuma evidncia legal ou principiolgica da Constituio. Consideramos que uma suposta sujeio dos prazos de direito administrativo em matria de prescrio das aes de reparao de ilcito ao Cdigo Civil acaba por negar a independncia entre esses ramos do direito e por isso que no vislumbramos nenhuma perplexidade ou incoerncia no sistema jurdico ptrio se este estabelece um prazo maior de prescrio para o campo do direito pblico em relao ao direito privado. A contrario sensu estar-se-ia a manejar o instituto da analogia de maneira indevida, promovendo uma interferncia indevida na seara administrativa com base em uma alegao insustentvel de isonomia, que implicaria em ofensa ao princpio da legalidade, que exige lei especfica a reger as relaes entre a Administrao e os particulares. por essa razo que o uso de alguns expedientes hermenuticos, como a analogia, devem ser manejados cum granum salis sob pena de ofenderem premissas principiolgicas constitucionais. Por isso mesmo que o STF j editou a Smula 339 que, em casos de interpretao de legislao remuneratria, destaca que no cabe ao Poder Judicirio, que no tem funo legislativa, aumentar vencimentos de servidores pblicos sob fundamento de isonomia. De igual modo, diramos, a falta de uma lei especfica, alterando a disciplina da prescrio administrativa em relao responsabilidade do Estado impede que se avente, por mera isonomia, o novo prazo previsto no Cdigo Civil, sob pena de restar fulminado o princpio da legalidade. Por outro lado, no podemos deixar de observar que, tratando-se tanto do Cdigo Civil como o Decreto n 20.910/32 de leis ordinrias, esses textos, de acordo com a teoria dos princpios de Dworking (1991), no podem ter vigncia simultnea sobre o mesmo assunto j que 197

ENTRE ASPAS para esse tipo de coliso normativa s pode ser resolvido pela regra do tudo ou nada (all or nothing) onde a lei mais nova derrogaria, total ou parcialmente, a mais antiga. Assim, deve-se meditar a interpretao dos sentidos e dos campos de aplicao dessas leis para que se conclua, ou no, pelo conflito de leis no tempo. No caso concreto, consideramos que esse conflito normativo no real, mas apenas aparente, se aplicarmos o princpio hermenutico da especialidade. Ora, se existem duas leis, uma versando especificamente sobre as relaes de direito civil e outra especificamente sobre a tutela do particular contra o Poder Pblico, ento comezinha regra de interpretao que no h conflito algum j que essas leis visam a produo de efeitos em campos distintos da realidade. Foi esse, alias, o elemento crucial da argumentao que levou o Min. Hamilton Carvalhido a negar, nos Embargos de Divergncia 1081855, a tese da revogao do Decreto n 20.910/32, ao assentar no seu voto, publicado no DJe de 01/02/2011:
No obstante, de se preservar o entendimento desta Corte Superior de Justia consolidado pela prescrio quinquenal ainda na vigncia do Cdigo Civil de 1916, eis que o Cdigo Civil disciplina o prazo prescricional para a pretenso de reparao civil, tratando-se, contudo, de diploma legislativo destinado a regular as relaes entre particulares, no tendo invocao nas relaes do Estado com o particular. Demais disso, de se ter em conta que historicamente previu-se o prazo prescricional quinquenal para as pretenses deduzidas contra a Fazenda Pblica.

Essa tese tambm defendida por Maral Justen Filho (2009, p. 1114) para quem
O dispositivo [do artigo 206, 3, V do Cdigo Civil] no se aplica no mbito das relaes entre Administrao Pblica e particulares porque, tal como acima apontado, o prazo para a prescrio das aes de titularidade da Fazenda Pblica deve ser idntico quele estabelecido para as aes em face da prpria Administrao. [] Logo e como se reconhece que a prescrio das aes do particular prescrevem em cinco anos [], idntico tratamento deve ser reservado s aes de titularidade da Administrao Pblica.

Exceo deve ser feita aos integrantes da administrao indireta que desempenhem atividade econmica que no esteja configurada como servio pblico pois nesse caso eles so regulados pelas leis da ordem civil, mandamento esse extrado do prprio texto constitucional, que lhes probe tratamento diferenciado em relao s demais empresas privadas (vide artigo 173, 1, inciso II da CF/88) de modo que a, por previso expressa na Carta Poltica, caberia a aplicao da prescrio civil.

6. O prazo de prescrio nas aes de apossamento administrativo Como destacamos no incio do artigo, existe uma diferena entre o prazo de prescrio das aes pessoais contra o Estado, onde seria aplicvel o Decreto n 20.910/32, e aquele das 198

A REVISTA DA UNICORP aes reais, dentre as quais se incluem as aes da chamada desapropriao indireta o que, alis, um equvoco terminolgico. que se o termo desapropriao implica, de acordo com a CF/88, artigo 5, inciso XXIV, a justa e prvia indenizao em dinheiro, ento falar-se de desapropriao indireta, onde o Estado invade propriedade alheia sem justo ttulo e sem promover nenhuma reparao, algo absolutamente imprprio. por essa razo que preferimos nos referir a essa hiptese como apossamento administrativo. Pois bem. De acordo com a jurisprudncia pacfica do STF, antes da entrada em vigor do novo Cdigo Civil, s aes reais no se aplica a prescrio quinquenal (vide Recursos Extraordinrios nos 47.584, 56.705, 57.966, 64.809 e 73.683, entre outros). Isso porqu, caso contrrio, estar-se-ia prevendo uma espcie de usucapio em favor do Estado de tempo brevssimo, o que tornaria tal instituto em conflito com os princpios constitucionais do direito propriedade e da razoabilidade. O STF teve oportunidade de reafirmar esse entendimento quando o Governo Federal editou a MP 2.027-40/2000, que previu a reduo do prazo da prescrio aquisitiva em favor do Estado para apenas 5 anos. Na ocasio do deferimento de liminar na Ao Declaratria de Inconstitucionalidade 2260 o Relator, Min. Moreira Alves, deixou assentado no Acrdo que:
De h muito, a jurisprudncia desta Corte afirmou que a ao de desapropriao indireta tem carter real e no pessoal, traduzindo-se numa verdadeira expropriao s avessas, tendo o direito indenizao que da nasce o mesmo fundamento da garantia constitucional da justa indenizao nos casos de desapropriao regular. - No tendo o dispositivo ora impugnado sequer criado uma modalidade de usucapio por ato ilcito com o prazo de cinco anos para, atravs dele, transcorrido esse prazo, atribuir o direito de propriedade ao Poder Pblico sobre a coisa de que ele se apossou administrativamente, relevante o fundamento jurdico da presente argio de inconstitucionalidade no sentido de que a prescrio extintiva, ora criada, da ao de indenizao por desapropriao indireta fere a garantia constitucional da justa e prvia indenizao, a qual se aplica tanto desapropriao direta como indireta. (publicado no DJ 02/08/2002, p. 56)

Aqui, ao contrrio do prazo de reparao por ilcito, estamos frente a uma verdadeira e autntica lacuna legislativa que no deixa outra soluo ao intrprete a no ser usar do expediente analgico para verificar no sistema se existe disciplina similar em alguma lei, que possa ser de fonte de normas administrativas. E consideramos no haver dvida de que a disciplina a respeito na lei civil a nica que poderia ser aproveitada para esse fim. O prazo para que se d o apossamento administrativo foi deliberado pelo Superior Tribunal de Justia, que resolveu a questo, nos mesmos passos da Corte Suprema, com a edio da Smula 119 que reza: a ao de desapropriao indireta prescreve em 20 (vinte) anos. Esse era o prazo do antigo artigo 550 do Cdigo Civil de 1916, que o previa para o usucapio extraordinrio, em que a parte, para fazer-lhe jus, no dispunha de justo ttulo e nem de boa-f. O atual Cdigo, por sua vez, reduziu esse prazo para 15 anos no artigo 1.238, e da mesma forma que o anterior no exige nem prova documental e nem boa-f. No pargrafo nico o prazo 199

ENTRE ASPAS reduzido a 10 anos se o possuidor houve estabelecido no imvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou servios de carter produtivo. Consideramos que a smula 119 do STJ est derrogada pelo advento do novo Cdigo, j que a mesma se baseava, para fixar o prazo de prescrio em 20 anos, diretamente na legislao civil, alterados os prazos de prescrio aquisitiva, j no mais vigora o verbete referido. Respeitada a lgica interpretativa que inspirou a smula antes referida, de se prever que o prazo de apossamento administrativo passar a ser de 15 anos, nos casos em que o Estado tome para si propriedade alheia sem, no entanto, agregar-lhe obra pblica ou benfeitoria. Exemplo disso podemos verificar, por exemplo, no caso das terras includas em parques nacionais ou, ainda, em terras inseridas em projeto de construo de lago artificial para fins de produo de energia onde o Estado, ao apossar-se delas, no o faz com o fito de edificar ou promover-lhes transformao. J nos casos em que o apossamento resulte em realizao de obra de qualquer natureza, consideramos que, nesse caso preciso, o prazo de prescrio aquisitiva ser o do pargrafo nico do artigo 1.238 do CC/2003, visto que essa se caracteriza como obras ou servios de carter produtivo, que a lei civil entende como justificadores da mitigao do prazo. Essa tambm a concluso a que chega Maral Justen Filho (2009, p. 1.117) ao aduzir que em princpio, o apossamento administrativo de um bem imvel privado por parte do Estado poder ser reconduzido disciplina do artigo 1.238, parg. nico, do Cdigo Civil, sempre que o imvel houver sido efetivamente aplicado satisfao de necessidades coletivas. Assim sendo, apesar de ainda no ter havido manifestao conclusiva do STJ a respeito do tema, consideramos inegvel que o texto da smula 119 deve ser reformulado, para incluir como prazos de prescrio, no caso de apossamento administrativo, os lapsos de 15 e 10 anos, a depender de se o Estado elaborou, ou no, obras no local referido, com relevncia para a satisfao de necessidades coletivas.

7. Ressalva de direito intertemporal importante salientar, no entanto, que os prazos antes indicados sofrem alterao, com acrscimo de dois anos, tendo em vista o disposto no artigo 2.029 do atual Cdigo Civil, que expressamente ressalva: At dois anos aps a entrada em vigor deste Cdigo, os prazos estabelecidos no pargrafo nico do art. 1.238 e no pargrafo nico do art. 1.242 sero acrescidos de dois anos, qualquer que seja o tempo transcorrido na vigncia do anterior. Assim, se o apossamento administrativo ocorreu entre os anos de 2003 e 2004, o lapso prescricional para a aquisio pelo Estado ser de 17 e 12 anos, respectivamente, em relao usucapio extraordinria ou ordinria. Outra regra de direito intertemporal que no pode ser olvidada na aplicao da Lei Civil no campo do apossamento administrativo diz respeito ao disposto no artigo 2.028: sero os da lei anterior os prazos, quando reduzidos por este Cdigo, e se, na data de sua entrada em vigor, j houver transcorrido mais da metade do tempo estabelecido na lei revogada. Sendo assim, uma vez que houve a reduo dos prazos relativos ao usucapio no novo diploma, os prazos continuaro sendo do Cdigo Civil antigo caso tenham fludo em poro maior que a metade dos lapsos anteriormente fixado. Caso contrrio, sero os da lei nova que valero. 200

A REVISTA DA UNICORP 8. Concluses O objetivo deste artigo foi chamar a ateno da comunidade jurdica para a importncia de se meditar a influncia do novo Cdigo Civil de 2002 em relao aos prazos de prescrio administrativa, especificamente no que tange responsabilidade do Estado e, ainda, ao apossamento administrativo. O artigo buscou destacar no tratamento da matria uma tica neoconstitucional, invocando em suas passagens os princpios albergados na Carta Maior como elementos fundantes de uma hermenutica voltada primazia da Constituio Federal. Em seguida verificamos a recente mudana que vem sendo produzida, no ano em curso, na jurisprudncia do STJ no que diz respeito ao prazo prescricional das aes de reparao contra o Estado, que teria deixado de ser de 5 anos, segundo o art. 1 do Decreto 20.910/32, posto que revogado pelo novo Cdigo Civil, artigo 206, 5. Verificamos que vrios argumentos levam contradio dessa tese: o fato de que no existe uma responsabildade civil do Estado, e que esse termo, hoje, no revela a independncia dos ramos do direito administrativo em relao ao direito privado. Vimos, ainda, que o pensamento de uma responsabilidade civil do Estado est atrelado tradio histrica que vincula o direito civil Revoluo Francesa que, por sua vez, trouxe consigo a limitao do poder monrquico e lanou as bases para uma futura teoria da responsabilizao do Estado. Por fim, conclumos que, se assim, no existe superposio entre a lei civil e o Decreto n 20.910/ 32 de modo que, de fato, o conflito normativo se dirimiria pela invocao da lei da especialidade. No que diz respeito ao apossamento administrativo, conclumos que nessa seara existe, de fato, uma lacuna legislativa que autoriza, de fato, a aplicao analgica do estatuto civil e, ainda, observamos que a Smula 119 do STJ foi revogada pelos novos prazos introduzidos por esse novo diploma. Por fim, findamos por verificar que, mantidos os mesmos critrios que levaram a Corte Superior de Justia edio do referido verbete, os novos prazos para que se d o apossamento administrativo so de 15 anos e de 10 anos, esse ltimo no caso do Poder Pblico haver feito modificaes e benfeitorias no local que estejam conforme o interesse pblico. Advertncia deve ser feita a respeito do clculo desses, caso o ato tenha sido praticado na fase de transio entre a vigncia do Cdigo antigo e do novo, para que estejam adequados s normas de direito intertemporal previstas nos artigos 2.028 e 2.029 do CC/2002.

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ENTRE ASPAS
CUNHA, Jos Carneiro da. A Fazenda Pblica em Juzo. 6 ed. So Paulo: Dialtica, 2008. DUARTE, cio Oto Ramos; POZZOLO, Susanna. Neoconstitucionalismo e positivismo jurdico as faces da teoria do Direito em tempos de interpretao moral da Constituio. So Paulo: Landy, 2006. DWORKING, Ronald. Taking rights seriously. London: Duckworth, 1991. JUSTEN FILHO, Maral. Curso de Direito Administrativo. 4 ed. So Paulo: Saraiva, 2009. MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 26 ed. So Paulo: Malheiros, 2009. MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional, 6 ed., So Paulo: Saraiva, 2011. PADARATZ, Cludia. Repensando a prescrio quinquenal contra a Fazenda Pblica sob a tica do interese pblico. Disponvel em: <http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/ pgm/usu_doc/repensandofazenda.doc> . Acesso em 24 jun. 2011. RODRIGUES, Slvio. Direito Civil. V. I Parte Geral. 23 ed., So Paulo: Saraiva, 1993.

Notas ______________________________________________________________________________ 1. Sobre o tema, vide como referncia a obra de Duarte e Pozzolo (2006).

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LIMITES DA TRANSMISSIBILIDADE DA OBRIGAO ALIMENTAR NO NOVO DIREITO DAS FAMLIAS

Maurcio Albagli Oliveira


Juiz de Direito do Estado da Bahia. Ps-graduado em Direito Civil pela Escola de Magistrados da Bahia EMAB e pelo Curso JusPodivm.

Resumo: O estudo da transmissibilidade da obrigao alimentar se afigura intricado e complexo ante a escassez de coerncia e inteligibilidade dos sucessivos diplomas legais que regulamentaram a questo. A obrigao alimentar compreende tudo o que necessrio manuteno do beneficirio, a exemplo de alimentao, educao, habitao, vesturio e sade. Revela diversas caractersticas peculiares que a destacam como prestao sui generis, com forte carter publicstico, e entre estas especificidades se inclui sua transmissibilidade causa mortis em sistema distinto das obrigaes em geral. No regime do Cdigo Civil de 1916, era assente o entendimento de que a obrigao alimentar no poderia ser transmitida aos sucessores do alimentando, ante a clareza da norma inserta naquele diploma. Dispositivo confuso da Lei do Divrcio, de 1977, modificou este panorama, fazendo surgir diversas correntes que se antagonizaram na interpretao de novo regramento norteador da transmissibilidade da obrigao de prestar alimentos. No Cdigo Civil em vigor, estabeleceu-se a transmissibilidade da obrigao alimentcia como regra no processo sucessrio, observando-se, contudo, a regra geral que impede a transmisso das dvidas alm das foras da herana e o antecedente estabelecimento da obrigao em relao abertura da sucesso. Palavras-Chave: Alimentos. Obrigao alimentar. Transmissibilidade.

1. Introduo Objetiva-se neste trabalho a anlise do alcance da transmissibilidade causa mortis da obrigao alimentar na perspectiva do Direito das Famlias contemporneo, apresentando-se, antes disto, caractersticas peculiares do instituto e a disciplina da matria nas sistemticas delineadas pelo Cdigo Civil de 1916 e a Lei do Divrcio. So expostos, para melhor compreenso da matria, o conceito, a abrangncia e especificidades da prestao alimentcia. Em seguida, analisada a (in)transmissibilidade da obrigao sob a gide do Cdigo Civil/1916, da Lei Divorcista e da nova codificao, trazendose colao diversos pronunciamentos doutrinrios e judiciais, nem sempre coesos, que denotam a complexidade da matria e a dificuldade de sua elucidao. 203

ENTRE ASPAS 2. Caractersticas da obrigao alimentar Apoiado na lio de Clvis Bevilqua, Caio Mrio da Silva Pereira (2006, p. 495) anotava que, compreendido em sentido amplo, o direito a alimentos abrange, alm da acepo fisiolgica, a tudo mais necessrio manuteno individual: sustento, habitao, vesturio, tratamento. Trata-se do instrumento que serve a consagrar o mais visvel e expressivo direito do ser humano, que o direito de sobreviver, o direito vida, tanto assim que os antigos assemelhavam a recusa de alimentos ao homicdio: necare videtur qui alimonia denegat (Ibidem, p. 495). Em Roma, eram tidos como officium pietatis, expresso que indica caridade (RODRIGUES, 1999, p. 367), consubstanciando o dever de socorro, devoir de secour no Direito Francs. Nas ordenaes Filipinas (Livro I, Ttulo LXXXVIII, 15) preceituava-se que:
Se alguns rfos forem filhos de tais pessoas, que no devam ser dadas por soldadas, o Juiz lhe ordenar o que lhes necessrio for para seu mantimento, vestido e calado, e tudo mais em cada um ano. E mandar ensinar a ler e escrever aqueles, que forem para isso, at a idade de doze anos.

Integra a prestao alimentcia consoante a preleo de Maria Helena Diniz (2006, p. 549) tudo aquilo que imprescindvel vida da pessoa como alimentao, vesturio, habitao, tratamento mdico, transporte, diverses, e, se a pessoa alimentada for menor de idade, ainda verbas para sua instruo e educao, consoante a norma do art. 1.701, do Cdigo Civil, in fine. Lembra ainda a ilustre civilista a norma do art. 872, do estatuto civil, que impe s pessoas obrigadas penso alimentcia o pagamento das despesas do funeral do alimentrio. Yussef Cahali (1998, p. 15-16) reporta-se expresso de Pontes de Miranda, para quem os alimentos representavam o necessrio subsistncia animal, e assinala que os alimentos abrangem tudo aquilo que necessrio conservao do ser humano com vida. Soma a esta definio a idia de obrigao que imposta a algum, em funo de uma causa jurdica, de prest-los a quem deles necessite. Adiante, agora j ancorado nos ensinamentos de Estevam de Almeida, salienta o jurista que os alimentos so as prestaes devidas, feitas para que quem as recebe possa subsistir, isto , manter sua existncia, realizar o direito vida, tanto fsica (sustento do corpo) como intelectual e moral (cultivo e educao do esprito, do ser racional). (Ibidem, p. 35-37). Da que o termo alimentos tem conotao sobremodo mais ampla do que seu significado na linguagem coloquial, englobando no s a alimentao, mas tambm o vesturio, a habitao, o tratamento mdico, bem como o quantum destinado educao. H quem se sirva da norma do art. 1.920, do Cdigo Civil, que disciplina o legado de alimentos, para encontrar a amplitude da prestao alimentcia decorrente do Direito de Famlia. Consoante a reportada regra, o legado de alimentos abrange o sustento, a cura, o vesturio e a casa, alm da educao do beneficirio, se ele for menor (BOECKEL, 2007, p. 30-31). Modernamente, a obrigao alimentar reveste-se de carter publicstico, no se fundando exclusivamente sobre um interesse egostico-patrimonial prprio do alimentando, mas sobre um interesse de natureza superior veramente interest rei publicae razo por que o seu inadimplemento enseja a severa medida de priso do devedor (CAHALY, 1998, p. 35-37). Trata-se de um direito patrimonial sui generis, uma vez que configurada uma relao de dbito-crdito (FACHIN, 2005, p. 36), mas com contornos acentuadamente publicsticos, dos mais relevantes na rbita do Direito Privado. 204

A REVISTA DA UNICORP Os alimentos caracterizam-se como direito personalssimo, inalienvel, impenhorvel e no transacionvel, sendo sua pretenso imprescritvel. Tm ainda como caractersticas a atualidade (cristalizada na mxima in preterito non vivitur), a incompensabilidade, irrepetibilidade e a inexistncia de solidariedade, com temperamentos dados pelo Direito de Famlia moderno. pertinente acentuar, para melhor compreenso das questes ventiladas neste trabalho, que, conformando-se como direito personalssimo, o direito aos alimentos no pode ser transferido aos herdeiros do alimentando, ou a qualquer outra pessoa, em decorrncia de negcio ou fato jurdico. O Tribunal de Justia do Estado do Paran tomou em relevo esta qualidade da obrigao alimentar, ao decidir que: Alimentos Filho alimentando que se aproxima da maioridade e independncia econmica Me que pretende sejam os alimentos revertidos a si Carter personalssimo dos alimentos Improcedncia do pedido.1 Neste mesmo sentido posicionou-se o Tribunal de Justia do Rio Grande do Sul:
Alimentos. Exonerao. Filha maior e casada. Transferncia do direito para a genitora. (...) Sendo a alimentanda casada e maior, no necessitando dos alimentos, imperiosa a exonerao. Descabe transmitir os alimentos para sua me, mesmo sendo ela idosa, enferma e carente de recursos, pois o direito percepo dos alimentos intransmissvel e ningum pode pleitear, em nome prprio, direito alheio (art. 6, CPC).2

Assim, ante as caractersticas peculiares do instituto, marcadas pelo interesse pblico, a titularidade do direito a alimentos que toca quele posto em estado de miserabilidade - no suscetvel de transferncia ou transao por qualquer fato ou negcio jurdico, como a cesso, permanecendo estvel a fixao de sua titularidade independentemente da vontade dos sujeitos da relao obrigacional. Os alimentos, no mbito do direito de famlia, podem ser exigidos: pelos ascendentes e descendentes (pais, filhos, avs, bisavs, etc.); b) pelos irmos; c) pelos cnjuges e conviventes.

2.1. Dever e obrigao alimentar Na lio de Nelson Rosenvald (2004, p. 14) o dever jurdico importa na necessidade de observncia de determinado comportamento, em virtude de imposio do ordenamento jurdico. Recai sobre toda a coletividade, indistintamente, como, por exemplo, o dever jurdico de no cometer homicdio. J a obrigao stricto sensu um dever jurdico especfico e individualizado, incidindo sobre pessoas determinadas ou determinveis que estipulam relaes jurdicas consubstanciadas em prestaes de dar, fazer ou no fazer (Ibidem, p. 14). O dever de sustento atrela-se ao poder familiar, nova nomenclatura do ptrio poder, elevado a cnone constitucional (CF, art. 229), tornando-se o dever de amparo nas relaes familiares, deste modo, dogma de expresso constitucional. Maria Helena Diniz (2006, p. 552-553) explica que a obrigao alimentar recproca, dependendo da possibilidade do devedor, e s exigvel se o credor potencial estiver necessitado, ao passo que os deveres familiares so unilaterais, no tendo carter de reciprocidade. Aponta ainda a insigne civilista os seguintes traos distintivos entre os dois institutos: 205

ENTRE ASPAS (a) a obrigao alimentar pode perdurar por toda a vida e at ser transmitida causa mortis (Cdigo Civil, art. 1.700), e o dever de sustento cessa, em regra, ipso iure, com a maioridade dos filhos; (b) a obrigao alimentcia subordina-se necessidade do alimentando e capacidade econmica do alimentante, enquanto o dever alimentar prescinde da necessidade do filho menor no emancipado, medindo-se na proporo dos haveres do pai e da me. Yussef Said Cahali (1998, p. 684-685) apresenta as seguintes distines entre os dois institutos: (a) o dever de sustento diz respeito ao filho menor, e vincula-se ao poder familiar; (b) o dever de sustento unilateral e se exaure na relao paterno-filial, de modo que, na constncia da sociedade conjugal, consubstancia, mais propriamente, uma obrigao de fazer do que uma obrigao de dar; (c) como dever inarredvel dos genitores, o direito natural dos filhos de serem pelos mesmos sustentados prescinde dos pressupostos do art. 1.694, do Cdigo Civil (art. 399, do Cdigo revogado); e (d) a obrigao alimentar entre os parentes no se vincula ao poder familiar, no encontrando limitao temporal, sujeitando-se, entretanto, s balizas do art. 1.694, do Cdigo Civil. A nova codificao civil estabelece que para a manuteno dos filhos, os cnjuges separados judicialmente contribuiro na proporo de seus recursos (art. 1.703), norma que tambm consubstancia o dever do sustento que toca aos pais com relao aos filhos, projetado para o fim do relacionamento marital, inexistindo reciprocidade na espcie, de modo que os ex-cnjuges ou companheiros so responsveis, em conjunto e na proporo de suas condies financeiras, pelo sustento dos filhos comuns, independentemente da apurao, que era possvel se fazer, do culpado pelo fim da sociedade conjugal. Assim, o dever de sustento no se torna insubsistente em virtude da precariedade da condio econmica do genitor. Ademais, na vigncia do poder familiar, presumida a necessidade do alimentando, tratando-se, contudo de presuno relativa (juris tantum), que pode, portanto, ser elidida, se comprovado pelo alimentante que o filho tem condies de assegurar o prprio sustento, como na hiptese do alimentando possuir bens herdados ou adquiridos por doao.

3. (In)Transmissibilidade da obrigao alimentcia no Cdigo Civil de 1916 e na Lei do Divrcio 3.1. A transmissibilidade da obrigao alimentar sob a gide Cdigo Civil de 1916 Na vigncia do Cdigo Civil de 1916, reinava absoluto o entendimento segundo o qual a obrigao alimentcia, derivada do Direito de Famlia, era intransmissvel por sucesso mortis causa, ativa e passivamente, consequncia de seu carter personalssimo. Outro quadro no seria vivel ante a clareza do dispositivo veiculado no art. 402 daquele diploma: A obrigao de prestar alimentos no se transmite aos herdeiros do devedor. Assim, no era dado ao credor da penso alimentcia acionar os herdeiros do alimentante objetivando a continuidade do pensionamento. Todavia, as prestaes vencidas at a dada do falecimento do alimentante integravam normalmente o passivo do esplio do alimentante, como crdito constitudos, sendo deste modo transmitidas aos herdeiros, at as foras da herana, tudo em conformidade com a norma do artigo 1.587, daquele diploma.3 De outra parte, falecido o credor da penso alimentcia, no era possvel aos herdeiros deste postular do devedor o prosseguimento do pensionamento, cabendo-lhe to somente agir invocando direito prprio, no se tratando, portanto, de direito sucessrio. 206

A REVISTA DA UNICORP Nesta linha, no havia transmisso da obrigao alimentar, mas to s das parcelas vencidas ainda em vida do alimentante e no adimplidas, que constituam naturalmente o passivo do esplio.

3.2. A conturbadora norma do art. 23, da Lei do Divrcio A Lei do Divrcio (Lei n 6.515, de 26/12/1977) inovou a sistemtica da intransmissibilidade da obrigao alimentar regrada no Cdigo de 1916, ao estabelecer, no seu art. 23, que A obrigao de prestar alimentos transmite-se aos herdeiros do devedor, na forma do art. 1.796 do Cdigo Civil.4 Adveio no cenrio jurdico, assim, um regramento legal de obscuro alcance, daqueles que mais problemas trazem no cenrio jurdico do que solues, tendo ensejado tormentosas discusses doutrinrias que, muito embora encetadas h dcadas, no foram aplacadas. Formaram-se quatro correntes na interpretao da referida norma. A primeira delas, na qual se inclua Caio Mrio da Silva Pereira, negava o contedo inovador do preceito, de modo que a transmissibilidade da obrigao alimentcia somente se referia s prestaes do pensionamento vencidas at o dia da morte do alimentante (apud CAHALI, 1999, p. 74-76). Filiou-se a esta linha de pensamento o Superior Tribunal de Justia, quando assentou que:
Alimentos. Ao julgada procedente. Morte do alimentante. I A obrigao de prestar alimentos transmite-se aos herdeiros do devedor, respondendo a herana pelo pagamento das dvidas do falecido. Lei n 6. 515, de 1977, art. 23, e Cdigo Civil, art. 1796. Aplicao. II A condio de alimentante personalssima e no se transmite aos herdeiros; todavia, isso no afasta a responsabilidade dos herdeiros pelo pagamento dos dbitos alimentares verificados at a data do bito. III Falecido o alimentante aps a sentena que o condenou a pagar prestao alimentar, deve o recurso de apelao ter prosseguimento, apreciando-se o meritum causae. IV Recurso especial conhecido e provido.5

A dificuldade de assimilao deste entendimento residia na circunstncia de que sua adoo implicava o esvaziamento total do comando do art. 20, da Lei do Divrcio, ficando tal dispositivo sem qualquer serventia na rbita do direito positivo, visto que a transmisso das prestaes vencidas at a data do falecimento do de cujus j era prevista na regra geral do art. 1.796, do Cdigo Civil/1916. Em sentido oposto figurava a corrente capitaneada por Srgio Gischkow Pereira, que preconizava que o postulado da transmissibilidade da obrigao alimentar no tinha campo de incidncia restrito aos casos de fim da sociedade conjugal, muito embora inserida a norma na Lei do Divrcio, mas sim a quaisquer alimentos decorrentes do direito de famlia. Enfatizava o insigne jurista, de forma contundente, que:
(...) em face do sistema do art. 402 do CC, no se apreendia o que h de justo e simples na assertiva de no se poder sobrepor, ao direito de

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ENTRE ASPAS
alimentos, o direito sucessrio. As situaes inquas da resultantes no eram sequer ponderadas. Mas os fatos sociais pressionavam o legislador. Quis este coibir quadros de flagrante injustia, um exemplo: A vem pensionando B, sendo B pessoa idosa e invlida que, para sua sobrevivncia, depende da penso de A. Resultado: B fica na absoluta misria, em que pese a monumental quantidade de bens distribudos entre os herdeiros de A, que talvez deles no necessitassem. Dir-se-ia: mas o parentesco de B com os herdeiros de A no possibilitaria viesse a exigir alimentos destes? A resposta pode ser negativa, bastando fossem A e B irmos; nessa hiptese, os filhos de A seriam sobrinhos de B, ou seja, parentes colaterais em 3 grau de B, grau de parentesco que j no faculta a postulao alimentcia. A soluo veio com o art. 23 da Lei n 6.515/77. Foi revogado o art. 402 do CC. A regra passou a ser a intransmissibilidade. (apud CAHALI, 1998, p. 72).

Seguindo esta linha de raciocnio, traz-se colao o seguinte julgado:


Conquanto o art. 50 da Lei n 6.515/77 no tenha revogado expressamente o art. 402 do CC, parece que o comando do art. 23 da Lei do Divrcio incompatvel com a regra insculpida no art. 402, incidindo, pois, o princpio geral do art. 2, 1, da Lei de Introduo ao CC. A inovao do art. 23 no pode ser simplesmente desprezada e, tampouco, aplicada apenas aos casos de alimentos entre ex-cnjuges, porquanto o captulo IV da Lei do Divrcio introduziu normas atinentes tambm aos alimentos de qualquer natureza, como se infere dos arts. 20 e 22.6

Uma terceira corrente acenou no sentido de que a regra do art. 23 da Lei do Divrcio somente se aplicava aos casos de penso alimentcia fixada com base no art. 19, do mesmo estatuto7, vale dizer, quando a prestao era estabelecida em procedimento litigioso em que se reconhecia a culpa do cnjuge alimentante pelo fim do casamento, quando ento a verba alimentar assumiria caractersticas de indenizao. Alinhou-se a este ponto de vista Mrio Moacyr Porto, que teve azo de assinalar:
Se a prestao alimentar no resultar da omisso reprovvel do dever de mtua assistncia que a lei impe aos cnjuges (art. 231, III, CC), a dvida mesmo de natureza alimentar (separao judicial por mtuo consentimento; divrcio concedido de acordo com as hipteses previstas nos 1 e 2, do art. 5, c/c art. 26, da Lei 6.515); se, ao contrrio, a penso foi fixada para ressarcir prejuzo que um dos cnjuges sofreu em conseqncia da dissoluo prematura e culposa da sociedade conjugal ou do prprio casamento (separao judicial litigiosa; divrcio-sano, art. 5, caput); o crdito o ressarcimento de um dano. A dvida de natureza alimentar no se transmite (art. 402, CC). O dbito que representa uma indenizao, a ser cumprida sob a forma de uma penso alimentar, se transmite como dvida da sucesso (art. 23). O art. 402 est certo e continua intocado. O art. 23 tambm no est errado (apud CAHALI, 1998, p. 79) .

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A REVISTA DA UNICORP Noutro enfoque, Orlando Gomes (1994, p. 424) pregava que em se tratando de lei especial (art. 23 da Lei do Divrcio), que, na parte dos alimentos, regula um dos efeitos da separao judicial, a estes se limita, continuando em vigor o art. 402 do CC [...]. Seguindo a mesma trilha do insigne jurista baiano, Slvio Rodrigues (1999, p. 367) pontuou que, como o legislador de 1977 inseriu o preceito em tela no captulo sobre a extino da sociedade conjugal, tal dispositivo somente se aplicava ao caso de alimentos fixados no desquite, e se limita aos alimentos devidos por um cnjuge a outro. Isto porque salientava Maria Berenice Dias (2005, p. 453) diante da existncia de dever alimentar autnomo entre os parentes consanguneos, a transmisso do encargo geraria desequilbrio na diviso da herana, visto que o alimentando receberia seu quinho em valor superior ao dos co-herdeiros, j que beneficiado pela prestao alimentcia. Este entendimento predominou nos Tribunais, que se estribaram no argumento de que o legislador divorcista se inspirou no direito francs, que somente prev a transmisso dos alimentos devidos entre os cnjuges (PEREIRA, S., 2006, p. 262). Contudo, bice aceitao deste entendimento era visualizado tendo em conta que outros regramentos da Lei do Divrcio, como os dos arts. 20, 21 e 22, aplicavam-se no s aos cnjuges separandos ou divorciandos como tambm aos filhos do casal.8 Portanto, parte dos estudiosos admitia a coexistncia entre o art. 402, do Cdigo Civil/ 1916, e o art. 23, da Lei do Divrcio (GAMA, 2005, p. 341).9 Ampliando este cipoal de manifestao doutrinria, a referida corrente subdividia-se entre aqueles que aceitavam a transmissibilidade da obrigao alimentar apenas em relao ao ex-cnjuge, e outro grupo de juristas que reconhecia a incidncia do instituto tambm no que concerne ao direito a alimentos aos filhos do casal. Yussef Cahali (1998, p. 84-85) reportava-se, ainda, manifestao doutrinria e jurisprudencial no sentido de que a transmissibilidade da obrigao alimentar somente se opera nos casos em que o beneficirio da penso no herdeiro do alimentante.

4. A regulamentao da matria no novo Cdigo Civil O novel diploma civil mudou o panorama verificado sob a vigncia da Lei do Divrcio, visto que previu, no seu art. 1.700, a transmissibilidade da obrigao para todos os casos de alimentos em sede do Direito de Famlia, no mais a restringindo, portanto, aos casos de prestao alimentcia entre ex-cnjuges e filhos. Preceitua a citada norma: A obrigao de prestar alimentos transmite-se aos herdeiros do devedor, na forma do art. 1.694. A interpretao acerca do alcance de tal regramento ainda mais intrigante e dificultosa do que aquele inserido no art. 23, da Lei do Divrcio, pelo que ensejar ainda outros longos debates e posies antagnicas na Doutrina.10 A norma abranda, assim, o carter personalssimo da obrigao alimentar, que agora se torna genericamente transmissvel aos herdeiros do devedor, sejam eles legtimos ou beneficirios por ato de ltima vontade. O pagamento da prestao alimentcia poder ser concretizado pelos herdeiros do devedor utilizando-se, por exemplo, de rendas dos bens partilhados ou de aplicaes financeiras, sendo certo que, se forem aqueles alienados para tal fim, o patrimnio poder ser dissipado, inviabilizando o pensionamento. 209

ENTRE ASPAS Abordando a questo da transmissibilidade da obrigao alimentar j na vigncia do novo estatuto civil, o Tribunal de Justia do Estado do Rio Grande do Sul assim se pronunciou:
ALIMENTOS. RESPONSABILIDADE DO ESPLIO. TRANSMISSIBILIDADE DA OBRIGAO. Configurados os pressupostos necessidade-possibilidade, cabvel a estipulao dos alimentos. Isso nos remete ao tema da transmissibilidade da obrigao alimentar, agora tornada inquestionvel pelo artigo 1.700 do Cdigo Civil. E no se diga que a transmisso se restringe apenas s parcelas eventualmente vencidas, deixando de abranger as vincendas. que, em primeiro lugar, esse dispositivo legal refere-se a obrigao e no a dvidas, o que, por si s, deve bastar. H mais, porm. que interpret-lo como abrangendo apenas eventuais parcelas inadimplidas at o ensejo da morte do devedor de alimentos tornar a regra inteiramente vazia, pelo simples fato de que o artigo 1.997 do CC j torna o Esplio responsvel pelo pagamento das dvidas do falecido, no havendo, portanto, necessidade de que a mesma disposio constasse em local diverso. Por isso, e no podendo entenderse que a lei contm palavras inteis, evidente que o art. 1.700 determina a transmisso da obrigao, abrangendo parcelas que se venam inclusive aps o bito do devedor, como no caso. LIMITE DA OBRIGAO. certo que o apelante, como filho que do autor da herana, tambm seu herdeiro, em igualdade de condies com os demais descendentes. Logo, mais cedo ou mais tarde lhe sero atribudos bens na partilha que se realizar no inventrio recm-iniciado. Nesse contexto, os alimentos subsistiro apenas enquanto no se consumar a partilha, pois, a partir desse momento desaparecer, sem dvida, a necessidade do alimentado. PROVERAM. UNNIME.11

Numa interpretao literal da norma ter-se-ia que a transmissibilidade somente se aplica em relao aos herdeiros, excetuando-se, portanto, os legatrios (Cdigo Civil, art. 1.912 e seguintes). Constata-se, todavia, que se tem no caso mais um deslize dos responsveis pela redao do Cdigo (GOMES, R., 2006, p. 217), que se omitiram em inserir na regra as figuras do esplio e dos legatrios, sendo certo que no poderiam os herdeiros suceder o de cujus antes que o esplio o fizesse, nos termos da regra do art. 43, e 982-945, do Cdigo de Processo Civil. Em outro julgado no qual o tema foi enfocado, o Superior Tribunal de Justia decidiu que:
DIREITO CIVIL. OBRIGAO. PRESTAO. ALIMENTOS. TRANSMISSO. HERDEIROS. ART. 1.700 DO NOVO CDIGO CIVIL. 1 O esplio tem a obrigao de prestar alimentos quele a quem o de cujus devia, mesmo vencidos aps a sua morte. Enquanto no encerrado o inventrio e pagas as quotas devidas aos sucessores, o autor da ao de alimentos e presumvel herdeiro no pode ficar sem condies de subsistncia no decorrer do processo. Exegese do art. 1.700 do novo Cdigo Civil. 2 Recurso especial conhecido mas improvido.12

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A REVISTA DA UNICORP Srgio Gischkow Pereira (2006, p. 267) traa uma resenha das opinies acerca da matria, para ento concluir que a nova regra, assim como o comando do art. 23 da Lei do Divrcio, aplica-se a todos os casos de alimentos no direito de famlia.
Yussef Said Cahali aceita que, em face do atual Cdigo Civil, outra no pode ser a soluo. Belmiro Pedro Welter, Silvio de Salvo Venosa, Maria Helena Diniz, tm igual compreenso. Foroso, contudo, admitir que a resistncia continua existindo: a) Regina Beatriz Tavares da Silva diz que a transmisso deve ser restrita ao companheiro e ao cnjuge, dependendo, quanto ao ltimo, de seu direito herana; b) Zeno Veloso quer que a doutrina e os tribunais restrinjam a exegese do art. 1.700 e tem por inadmissvel que os filhos do falecido sejam obrigados a pensionar um tio; c) Nelcy Pereira Lesa informa que o IBDFAM quer nova redao para o art. 1.700, a fim de que s abranja alimentos decorrentes do casamento ou da unio estvel; d) Washington Epaminondas Medeiros Barra defende uma interpretao o mais restritiva possvel ao art. 1.700, pois v nele violao de elementares princpios gerais de direito, estando maculado pela eiva de inconstitucionalidade.

Conclui-se, assim, que longe de aclarar a questo atinente transmissibilidade da obrigao alimentar, sepultando de vez a discusso gerada pela norma do art. 23 da Lei do Divrcio, o Cdigo Civil de 2002 reavivou a polmica, novamente a ensejar rduo trabalho da Doutrina e dos Tribunais no desiderato de elucidao da questo, cuja pacificao, a toda evidncia, no se revela de fcil concretizao.

4.1. A remisso norma do art. 1.694 do NCC e seu alcance No bastasse a celeuma relativa ao alcance do preceito acerca da transmissibilidade da obrigao alimentar, o art. 1.700 do Novo Cdigo Civil alimenta ainda outras incertezas ao reportar-se norma do art. 1.694 daquele diploma, que tem os seguintes contornos:
Art. 1.694. Podem os parentes, os cnjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatvel com a sua condio social, inclusive para atender s necessidades de sua educao. 1o Os alimentos devem ser fixados na proporo das necessidades do reclamante e dos recursos da pessoa obrigada. 2o Os alimentos sero apenas os indispensveis subsistncia, quando a situao de necessidade resultar de culpa de quem os pleiteia.

Comentando este regramento, Guilherme Calmon Nogueira da Gama (2005, p. 344) articula a seguinte soluo para o caso de variao dos elementos do binmio necessidadepossibilidade, posteriormente ao falecimento do alimentante:
Assim, ao remeter a transmisso da obrigao de prestar alimentos ao art. 1.694, do prprio texto codificado, o art. 1.700 permite que sejam revistos os

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ENTRE ASPAS
alimentos notadamente no que toca ao binmio necessidade possibilidade, j que o credor dos alimentos pode ser tambm um sucessor do falecido e, desse modo, receber bens do acervo hereditrio que lhe permita receber rendimentos que atendam s suas necessidades inclusive com observncia da sua condio social. Assim, a remisso ao art. 1.694, do novo Cdigo Civil, deve ser interpretada no sentido da viabilidade de se rever o quantum da prestao alimentar para fins de reduo ou exonerao dos alimentos, caso o credor de alimentos receba, por testamento ou ex vi legis, algum benefcio sucessrio, na condio de herdeiro (legtimo ou testamentrio) ou legatrio.

Analisando a questo sob outro ngulo, Rui Ribeiro de Magalhes (apud OLIVEIRA, 2005, p. 284). entende que, como a norma qual faz remisso o art. 1.700 do NCC enumera os parentes, os cnjuges ou companheiros, somente em benefcio destes pode ser transmitida a obrigao alimentar. E conclui seu raciocnio, solucionando da seguinte forma o caso de um devedor de alimentos casado em segundas npcias ou mantendo unio estvel:
O credor de alimentos somente poderia reclamar do herdeiro o valor das prestaes vencidas por ocasio da morte do credor, at as foras da herana, pois no h como obrigar o herdeiro a alimentar uma pessoa que no guarda com ele qualquer vnculo de consanginidade. O art. 1.694 do Cdigo Civil estabelece a obrigao alimentar entre parentes, os cnjuges e os conviventes, e nestas hipteses no se enquadra o herdeiro do devedor.

Acompanhando este entendimento, Euclides de Oliveira (2005, p. 284) cita algumas situaes, as quais tacha de absurdas, em que, ampliando-se o alcance do art. 1.700, do Codex, o herdeiro do devedor de alimentos passaria a pensionar um estranho ou um parente com o qual no estava originariamente obrigado: o irmo do falecido, que passaria a receber penso do seu sobrinho; o cnjuge sobrevivente sendo pensionado pelos enteados; a viva do alimentrio pagando penso ex-esposa deste. Examinando a legislao anterior ao Cdigo Civil/2002, Bertoldo Mateus de Oliveira Filho (1999, p. 33) apontava interessante caso em que o posterior casamento do devedor implica a obrigao de prestar alimentos pelo novo cnjuge quele do anterior matrimnio, se cabvel a transferncia do encargo e inexistentes herdeiros na linha descendente ou ascendente (art. 1.611, caput, CC) reportando-se ao Cdigo Civil de 1.916, hiptese extensiva aos colaterais at o quarto grau, ao Municpio, ao Distrito Federal e Unio. Ainda em consonncia com o regramento do art. 1.694, do Cdigo Civil, transmitida a obrigao alimentar, deve ser averiguada, aps a partilha, a situao financeira dos herdeiros sucessores da obrigao, sem perder de vista as foras da herana, como tambm as novas condies do alimentando, sobretudo se houver participado da diviso do acervo hereditrio.

4.2. Limites transmisso da obrigao Ao contrrio do que dispunha a Lei do Divrcio (art. 23), o Cdigo Civil em vigor no fez meno que a transmissibilidade da obrigao alimentar estaria restrita s foras da herana. 212

A REVISTA DA UNICORP O preceito do estatuto divorcista continha uma remisso ao art. 1.796, do Cdigo Civil/ 1916, que estabelecia que A herana responde pelo pagamento das dvidas do falecido; mas, feita a partilha, s respondem os herdeiros, cada qual em proporo da parte, que na herana lhe coube.13 Contudo, o correspondente deste dispositivo no novel estatuto (art. 1.997)14 no foi reportado no art. 1.700, do diploma, o que permitiria a interpretao segundo a qual a obrigao alimentar transmitida ao herdeiro sem limites no quinho hereditrio angariado. Todavia, mesmo ante a tal omisso h de se concluir que, no caso da transmisso da obrigao alimentar, no pode ser excepcionado o postulado conforme o qual a obrigao somente se transmite ao herdeiro at os limites do crdito sucessrio, visto que a interpretao em sentido contrrio resultaria em vulnerao a um dos mais elementares princpios do Direito das Sucesses, como tambm ao princpio constitucional que probe o confisco da propriedade alheia.15

4.3. Transmisso somente da obrigao ou tambm do dever alimentar? Yussef Said Cahali (1998, p. 103) sustenta que a norma do art. 1.700, do Cdigo Civil, somente se aplica nos casos em que os alimentos j tenham sido estabelecidos, por deciso judicial ou acordo, por ocasio da morte do alimentrio, ou quando muito se a ao de alimentos j existia no momento do bito, de maneira que no ocorre a transmisso do dever legal a alimentos, na sua potencialidade, e no na sua atualidade. Assentindo com tal opinio, sem no antes ressaltar a forte amplitude que empresta norma do art. 1.700, do CC, Srgio Gischkow Pereira (2006, p. 271) assevera que o que se transmite a obrigao e no o dever jurdico, de modo que deve existir a obrigao alimentcia pr-constituda mediante sentena, condenatria ou homologatria de transao, ou pelo menos por meio de acordo extrajudicial, inclusive no escrito, evidenciado pelo costumeiro e regular pagamento de alimentos. Acrescenta o jurista que a propositura de ao de alimentos contra o esplio ou os herdeiros parece uma demasia, um excesso no confortado pelo sistema legal. Euclides de Oliveira (2005, p. 288) posiciona-se em sentido diverso, argumentando que:
Temos que a obrigao pode subsistir independentemente de deciso judicial, porque decorrente do dever legal de assistncia previsto no art. 1.694, do Cdigo Civil, entre parentes, cnjuges e companheiros. Pode dar-se que a pessoa obrigada j venha cumprindo a prestao alimentar por vontade prpria, como no caso de assistncia regular entre cnjuges. Sobrevindo a morte do devedor, por certo que a obrigao antes assumida transmite-se por igual aos herdeiros, desde que haja suficiente patrimnio e rendas da herana. Com maior razo haver de admitir-se a transmisso da obrigao que, por algum motivo, no estivesse sendo cumprida anteriormente, desde que fosse exigvel.

A razo parece estar com os dois primeiros juristas citados, visto que, se assim no fosse, a quase totalidade dos herdeiros menores poderiam receber seu quinho hereditrio e, cumulativamente, acionar o esplio ou os demais sucessores deles exigindo penso alimentcia, baseando-se no dever de sustento que tocava ao de cujus (Cdigo Civil, art. 1.566, III). 213

ENTRE ASPAS Numa outra hiptese, seria possvel a uma viva, anos depois de encerrado o inventrio, exigir alimentos dos sucessores de seu falecido marido, invocando o dever de assistncia mtua inerente ao casamento. O Superior Tribunal de Justia tambm se posicionou no sentido da transmisso exclusivamente da obrigao alimentar, e no de genrico dever de sustento. Confira-se:
CIVIL. ALIMENTOS. ESPLIO. A transmissibilidade da obrigao de prestar alimentos, prevista no art. 23 da Lei n.515, de 1977, restrita s penses devidas em razo da separao ou divrcio judicial, cujo direito j estava constitudo data do bito do alimentante; no autoriza ao nova, em face do esplio, fora desse contexto. Recurso Especial no conhecido.16

Mais recentemente a Corte ratificou este entendimento, assentando que Inexistindo condenao prvia do autor da herana, no h por que falar em transmisso do dever jurdico de prestar alimentos, em razo do seu carter personalssimo e, portanto, intransmissvel.17 Assim, h de prevalecer o entendimento segundo o qual a obrigao alimentar somente se transmite aos herdeiros do devedor se constituda, por acordo ou decisrio judicial, at a data do falecimento do alimentante. Inexistindo tal obrigao por ocasio do falecimento do autor da herana, e sendo o pretenso alimentando vivo ou viva do de cujus, toca ao mesmo os direitos meao e sucesso, conforme o caso (CC, art. 1829), e, ainda, o direito real de habitao (CC, art. 1.831).

4.4. Direito intertemporal O art.1.787 do Novo Cdigo Civil, repetio do art. 1.577, do diploma revogado, prescreve que: Regula a sucesso e a legitimao para suceder a lei vigente ao tempo da abertura daquela. Frente dico deste regramento legal, so aplicveis as normas do direito sucessrio vigentes na data da abertura da sucesso. Nos casos de abertura da sucesso anteriores ao Novo Cdigo Civil (Lei n 10.406, de 10/01/2002), que entrou em vigor um ano aps sua publicao, ocorrida em 11/01/2002, a soluo deve ser buscada orienta Yussef Said Cahali (1998, p. 104) atravs do confronto do art. 402 do atual Cdigo Civil e art. 23 da Lei 6.515/77, com todas as suas dificuldades.

5. Concluses Ante todo o exposto extraem-se sinteticamente as concluses a seguir enumeradas. 1) No mbito do Direito de Famlia, a prestao alimentcia configura um direito patrimonial sui generis, com caractersticas marcadamente publicsticas, compreendendo tudo aquilo que necessrio realizao do direito vida digna, nos aspectos moral e material, como alimentao, vesturio, habitao e educao. 2) O dever de alimentos atrela-se ao poder familiar, caracteriza-se pela unilateralidade e inexistncia de reciprocidade, e cessa, em regra, com a maioridade do alimentando. J a obrigao alimentar subordina-se s balizas do binmio necessidade-possibilidade, podendo perdurar por toda a vida e ser transmitida causa mortis. 214

A REVISTA DA UNICORP 3) A obrigao alimentar somente se transmite aos herdeiros do devedor se constituda, por acordo ou decisrio judicial, at a data do falecimento do alimentante. Inexistindo tal obrigao por ocasio do falecimento do autor da herana, e sendo o pretenso alimentando herdeiro ou vivo do de cujus, toca-lhe, conforme os casos, os direitos sucesso, meao ou o direito real de habitao, mas no prestao alimentcia.

Referncias ________________________________________________________________________ AZAMBUJA, Maria Regina Fay de. Alimentos no novo Cdigo Civil: trs aspectos polmicos. In: LEITE, Eduardo de Oliveira. Grandes temas da atualidade, v. 5: alimentos no novo Cdigo Civil: aspectos polmicos. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 171-192. BOECKEL, Fabrcio Dani de. Tutela jurisdicional do direito a alimentos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. CAHALI, Yussef Said. Dos Alimentos. 3. ed. rev. ampl. e atual.. So Paulo: RT, 1998. DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famlias. 2. ed. rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. DINIZ, Maria Helena. Direito civil brasileiro. 26. ed. rev. e atual. So Paulo: Saraiva, 2006. 5. v. 682 p. FACHIN, Rosana Amara Girardi. Dever alimentar para um novo direito de famlia. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da et al. Comentrios ao Cdigo Civil brasileiro. Coord. Arruda Alvim e Thereza Alvim. Rio de Janeiro: Forense, 2005. GOMES, Orlando. Direito de Famlia. 7a. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994. GOMES, Renata Raupp. A intransmissibilidade da obrigao alimentar (?). In: LEITE, Eduardo de Oliveira, Grandes temas da atualidade, v. 5: alimentos no novo Cdigo Civil: aspectos polmicos. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 171-192. OLIVEIRA, Euclides de. Alimentos: transmisso da obrigao aos herdeiros. In: CAHALI, Francisco Jos; PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Alimentos no Cdigo Civil: aspectos civil, constitucional, processual e penal. So Paulo: Saraiva, 2005. p. 277-293. OLIVEIRA FILHO, Bertoldo Mateus de. Alimentos e investigao de paternidade. 3. ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. PEREIRA, Caio Mrio da Silva Pereira. Instituies de Direito de Civil: Direito de Famlia. 16. ed. rev. e atual. por Tnia da Silva Pereira. Rio de Janeiro: Forense, 2006. v. V. PEREIRA, Srgio Gischkow. A transmissibilidade da obrigao alimentar. In: LEITE, Eduardo de Oliveira, Grandes temas da atualidade, v. 5: alimentos no novo Cdigo Civil: aspectos polmicos. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 259-272.

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ENTRE ASPAS
RODRIGUES, Silvio. Direito civil: direito de famlia. 24. ed. So Paulo: Saraiva, 1999. v. 6. 416 p. ROSENVALD, Nelson. Direito das obrigaes. 3. ed. rev. e atual. de acordo com o novo Cdigo Civil. Rio de Janeiro: Impetus, 2004. 324 p.

Notas ______________________________________________________________________________ 1. Acrdo 836/86, da 2a Cmara Cvel. Relator: Desembargador Negi Calixto, j. 10/12/1986. In: CAHALI, 1999, p. 54-55. 2. Apelao Cvel n 599229291, da 7a Cmara Cvel. 3. Art. 1.587. O herdeiro no responde por encargos superiores s foras da herana; incumbe-lhe, porm, a prova do excesso, salvo se houver inventrio que a escuse, demonstrando o valor dos bens herdados. Norma de idntico teor encontrada no art. 1792 do Cdigo Civil/2002. 4. O art. 1796 reportado, por sua vez, dispunha: Art. 1796. A herana responde pelo pagamento das dvidas do falecido; mas, feita a partilha, s respondem os herdeiros, cada qual em proporo da parte, que na herana lhes coube. 5. Recurso Especial n 64.112/SC, 3a Turma, Relator: Ministro Antnio de Pdua Ribeiro. Braslia, DF, 16 de maio de 2002, votao unnime, DJU 17/06/2002, p. 254. Seguindo esta Trilha, o Tribunal de Justia do Estado de Minas Gerais decidiu que: Alimentos. Intransmissibilidade. Ilegitimidade passiva do esplio. Recurso desprovido. Devido ao carter personalssimo dos alimentos, a sua obrigao no transmitida aos herdeiros do devedor. Art. 402 do Cdigo Civil. Sentena confirmada (Acrdo n 000.255.888-0-0/00, da 8a Cmara Cvel, Relator: Desembargador Srgio Braga. Braslia, DF, 05 de agosto de 2002, DJMG 17/09/2002). 6. BRASIL. 2 Tribunal de Alada Cvel do Estado de So Paulo, Relator: Paulo Hungria, j. 10/04/1996, in RT 729/233. 7. O dispositivo estava assim redigido: Art. 19. O cnjuge responsvel pela separao judicial prestar ao outro, se dela necessitar, a penso que o juiz fixar. 8. Eis o teor dos dispositivos: Art. 20. Para manuteno dos filhos, os cnjuges, separados judicialmente, contribuiro na proporo de seus recursos. 1. Se o cnjuge credor preferir, o juiz poder determinar que a penso consista no usufruto de determinados bens do cnjuge devedor. 2. Aplica-se, tambm, o disposto no pargrafo anterior, se o cnjuge credor justificar a possibilidade do no recebimento regular da penso. Art. 22. Salvo deciso judicial, as prestaes alimentcias, de qualquer natureza, sero corrigidas monetariamente na forma dos ndices, de atualizao das Obrigaes Reajustveis do Tesouro Nacional - ORTN. 9. Renata Raupp Gomes (2006, p. 213) assinala que Raros eram os juristas que faziam a defesa da revogao do art. 402 pelo art. 23, aplicando-se a transmissibilidade de toda e qualquer obrigao alimentar aos sucessores do devedor falecido. 10. O Anteprojeto do Cdigo Civil, de 1972, repetia a norma do Cdigo de 1916. A redao do dispositivo foi modificada no Senado Federal, pela Emenda 322 (Cf. OLIVEIRA, 2005, p. 280). 11. Apelao Cvel n 70007905524, da 7a Cmara Cvel, Relator: Desembargador Luiz Felipe Brasil Santos. Porto Alegre, RS, 19 de fevereiro de 2004. 12. REsp n 219.199/PB (1999/0052547-7), da 4a Turma, 2a Seo, Relator: Ministro Ruy Rosado de Aguiar, DJ 10/12/2003. 13. O art. 1.587, do Cdigo revogado, por sua vez estatua que O herdeiro no responde por encargos superiores s foras da herana.

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14. Art. 1.997. A herana responde pelo pagamento das dvidas do falecido; mas, feita a partilha, s respondem os herdeiros, cada qual em proporo da parte que na herana lhe coube. O Cdigo prescreve ainda que O herdeiro no responde por encargos superiores s foras da herana; incube-lhe, porm, a prova do excesso, salvo se houve inventrio que a escuse, demonstrando o valor dos bens herdados (art. 1.792). 15. Comungam deste entendimento Francisco Jos Cahali, Slvio de Salvo Venosa, Maria Helena Diniz e Yussef Said Cahali (Cf. OLIVEIRA, 2005, p. 284-289). A reboque desta concluso tem-se que, se o sucessor do alimentante renunciar herana, no possvel que a obrigao alimentar ao mesmo se transmita. 16. 3a Turma, Recurso Especial n 232901/RJ, Relator: Ministro Ari Pargendler, j. 07/12/1999, DJ 01/08/ 2000, p. 269. No sentido contrrio, o Tribunal de Justia do Estado do Rio Grande do Sul assinalou que no se pode negar co-herdeira o direito de buscar os alimentos contra o esplio, at porque impedida de usufruir os bens que lhe tocaro na herana, e que a obrigao alimentar poder vir a ser constituda mesmo aps o bito, em ao contra o esplio (Apelao Cvel n 70005297676, 6a Cmara Cvel, Relator Des. Srgio Fernando de Vasconcelos Chaves, j. 12/03/2002. In AZAMBUJA, 2006, p. 184). 17. 3a Turma, AgRg no REsp 981180/RS, Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, j. 07/12/20010, DJe 15/12/2010, RIOBDF, vol. 64, p. 145.

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GESTO PBLICA PARTICIPATIVA: DESAFIOS E PERSPECTIVAS PARA UM DESENVOLVIMENTO LOCAL SUSTENTADO

Monaliza Ferreira de Oliveira


Tcnica Judiciria TJBA. Graduada em Cincias Econmicas UEFS. Ps-Graduada em Gesto Pblica FTC.

Resumo: O presente artigo busca perceber a interferncia da gesto pblica participativa, no desafio de um desenvolvimento local sustentado. Para tal primeiramente foi analisado como esta nova forma de gesto e de desenvolvimento, procura dar destaque ao social e as pessoas, com o intuito de perceber suas necessidades de forma mais completa, gerando uma maior satisfao dos diversos setores sociais e econmicos. Segundo Chiavenato, 2006 a defesa da coisa pblica vem sendo realizada nas democracias modernas em dois nveis distintos: o nvel poltico e o administrativo. No nvel poltico, temos as instituies fundamentais da democracia, atravs das quais se defendem no apenas os direitos individuais e sociais dos cidados, mas tambm os direitos pblicos a participao igualitria na coisa pblica. Neste sentido se v a importncia deste estudo, que tem como objetivo verificar a dependncia que a sociedade tem, de cada cidado, na busca de um desenvolvimento igualitrio. O artigo esta subdividido em introduo, desenvolvimento, composto por quatro itens, o primeiro: Evoluo da Gesto Pblica, o segundo: Gesto Pblica Participativa, o terceiro: Poder Local e o quarto: Desenvolvimento Local sustentado e as consideraes finais. Palavras-Chave: Gesto Pblica, Poder Local e Desenvolvimento.

1. Introduo A gesto pblica participativa vem sendo abordada como uma via, para o desafio de um desenvolvimento local sustentado. Desta forma faz-se necessrio neste primeiro momento, uma anlise conceitual no tocante a estes dois temas, gesto pblica e desenvolvimento. O desenvolvimento sustentvel um desenvolvimento que leva em considerao no somente o valor PIB e sim uma srie de fatores, como educao, sade, emprego, renda, um desenvolvimento que no seja cclico, com altos e baixos, que sustente ao longo do tempo, gerando equidade na repartio da riqueza. A gesto pblica participativa surge com o modelo gerencial de administrao pblica. Segundo Chiavenato, 2006, a gesto pblica gerencial emerge na segunda metade do sculo XX, como resposta, de um lado, expanso das funes econmicas e sociais do Estado, e, de outro, ao desenvolvimento tecnolgico e a globalizao da economia mundial. Percebe-se claramente, que os modelos anteriores ao gerencial, o patrimonialista e o burocrata, deixaram 218

A REVISTA DA UNICORP lacunas que deveriam ser preenchidas por uma nova forma de administrar a coisa pblica, de forma descentralizada e permevel a maior participao dos agentes privados e da sociedade civil organizada. Nota-se que o processo de desenvolvimento nos pases perifricos possui bases frgeis, ou seja, crescimento do produto e, ao mesmo tempo, concentrao da renda, o que acarretava na misria das populaes rurais e do seu efeito depressor sobre a base dos salrios urbanos. Neste sentido seria necessrio que o desenvolvimento alcanasse a maior parte das esferas da sociedade. Desta forma a gesto pblica participativa busca democratizar, de forma concreta, os recursos pblicos, para que assim consiga impulsionar este processo, no qual ele pea fundamental. Destarte a abordagem terica, ter fundamento na administrao pblica e na economia do desenvolvimento. A metodologia utilizada ser o procedimento histrico e o indutivo. A pesquisa ser descritiva e Bibliogrfica.

2. Evoluo da Gesto Pblica Chiavenato 2006 traz em sua obra um ordenamento terico de como se deu a evoluo da gesto pblica, a primeira a ser comentada pelo autor, foi administrao pblica patrimonialista, em que o aparelho do estado funciona como uma extenso do poder soberano, e seus auxiliares, os servidores, possuem o status de nobreza real. Os cargos so considerados prebendas. A res pblica no diferenciada da res principis. Em conseqncia, a corrupo e o nepotismo so inerentes a este tipo de administrao. Quando o capitalismo e a democracia se tornam dominantes, o mercado e a sociedade civil passam a se distinguir do Estado. Neste novo momento histrico, a administrao patrimonialista torna-se uma excrescncia inaceitvel. Fica claro que este sistema no se adequaria a uma sociedade que agora, neste novo contexto histrico, pode emergir socialmente, no aceitaria uma forma de gerir em que apenas a aristocracia teria acesso ao poder e aos benefcios pblicos. Tal forma de gerir, como sita o autor deixa brechas para falhas na aplicao dos recursos beneficiando uma minoria. Assim na segunda metade do sculo XIX, na poca do Estado Liberal, surge o modelo de administrao pblica burocrtica, como forma de combater a corrupo, e o nepotismo patrimonialista. Constituem princpios orientadores deste modelo, a profissionalizao, a idia de carreira, a hierarquia funcional, a impessoalidade, o formalismo, em sntese, o poder racional-legal. (Chiavenato 2006). Contudo este modelo no foi capaz de suprir de forma eficiente todas as demandas, pois ao ficar preso na legalidade e no controle dos abusos acabou por se tornar um peso na administrao pblica, que perde, de certa forma, seu fundamento de servir ao pblico. A administrao pblica burocrtica clssica foi adotada porque era uma alternativa muito superior administrao patrimonialista do Estado. Entretanto o pressuposto de eficincia em que se baseava no se revelou real. No momento em que o pequeno Estado liberal do sculo XIX deu definitivamente lugar ao grande Estado social e econmico do sculo XX, verificou-se que no garantia nem rapidez, nem boa qualidade nem custo baixo para os servios prestados ao pblico. Na verdade, a administrao burocrtica lenta, cara, auto-referida, pouco ou nada, orientada para o atendimento das demandas dos cidados. (Bresser Pereira, 1996). Como pode ser visto a administrao pblica burocrtica no se adequou ao dinamismo das relaes sociais e econmicas que hora se apresentaram. O que gerou a necessidade 219

ENTRE ASPAS latente de uma nova forma de gerir mais rpida, barata e eficiente. A burocracia ao invs de controlar os vcios da administrao pblica estava retardando o seu andamento, gerando um efeito perverso, pois qualquer atividade do ente pblico dependia, de papeis e processos longos e trabalhosos, que s oneravam mais o Estado. Segundo Chiavenato 2006 a reforma do aparelho do Estado tornou-se imperativa nos anos 1990 por uma segunda razo. No apenas ela se constituiu em uma resposta a crise generalizada do Estado, mas tambm esta sendo caracterizada como uma forma de defender o Estado enquanto res pblica, coisa pblica, patrimnio que sendo pblico, de todos e para todos. A defesa da coisa pblica vem sendo realizada nas democracias modernas em dois nveis distintos: o nvel poltico e o administrativo. No nvel poltico, temos as instituies fundamentais da democracia, atravs das quais se defendem no apenas os direitos individuais e sociais dos cidados, mas tambm os direitos pblicos a participao igualitria na coisa pblica. A gesto pblica gerencial emerge na segunda metade do sculo XX, como resposta, de um lado, expanso das funes econmicas e sociais do Estado, e, de outro, ao desenvolvimento tecnolgico e a globalizao da economia mundial. Percebe-se claramente, que os modelos anteriores ao gerencial, o patrimonialista e o burocrata, deixaram lacunas que deveriam ser preenchidas por uma nova forma de administrar a coisa pblica, de forma descentralizada e permevel a maior participao dos agentes privados e a sociedade civil organizada. Contudo no se pode deixar notar que todas estas formas de gesto, foram importantes na construo do modelo de gesto pblica que temos hoje. A administrao gerencial carrega traos burocrticos, como por exemplo, concurso pblico, ento se verifica que a cada reforma, a nova gesto formada no parte de uma tabula rasa, aproveitam-se as coisas boas e aperfeioam-se as coisas ruins.

Embora as polticas pblicas sejam de competncia do Estado, no so decises impositivas e injunes do governo para a sociedade, mas envolvem relaes de reciprocidade e antagonismo entre essas duas esferas. Portanto, mesmo considerando-se a primazia do Estado pela conduo das polticas pblicas, a participao ativa da sociedade civil nos processos de definio e controle da sua execuo fundamental para a consolidao da sua dimenso efetivamente pblica. (Wanderley, Raichelis, 1999, pg. 01)

O modelo gerencial mais dinmico e participativo, ele percebe que o ente pblico no pode realizar tudo sozinho, que pode com a ajuda dos seus colaboradores formarem uma rede capaz de gerenciar a administrao pblica de maneira mais eficaz. Este modelo percebe que a primazia do poder pblico, em gerir os recursos pblicos, deve dar lugar a um espao de discusso e dilogo entre os agentes participantes desse processo.

3. Gesto Pblica Participativa A gesto pblica participativa destaca a necessidade de todos participarem da gesto dos recursos que so de todos. A coisa pblica no vista mais como se no tivesse dono, 220

A REVISTA DA UNICORP existe assim busca de uma democracia inclusiva. Os cidados passam a se reconhecer como parte do processo de escolha e satisfao de demandas.
A distino entre sociedade de iguais ou de desiguais no menos clssica do que a distino entre a esfera privada e esfera pblica. (Bobbio, 2004, pg. 16).

Segundo Dowbor (2008), o Estado centralizado que temos constitui, portanto, uma sobrevivncia de outra poca, quando no nvel local no existia a capacidade de ao organizada. A realidade mudou. Com poucas excees, os municpios mais distantes tm hoje acesso a internet, esto conectados e fazem, portanto, parte de um tecido interativo de gesto integrada em construo. Administradores, engenheiros, economistas, assistentes sociais encontram-se em praticamente todas as regies. O absurdo de querer administrar tudo de cima torna-se cada vez mais patente. As instncias superiores podem e precisam de ajuda, mas a iniciativa e o ordenamento das aes tm de ser eminentemente locais. O crescimento notrio da populao mundial, e principalmente a urbanizao das cidades, fez com que esta nova realidade fosse conhecida e contemplada, pelos seus participantes, ou seja, os cidados esto interferindo e cobrando mais participao na gesto pblica. Neste sentido de suma importncia que exista por parte do cidado uma reflexo da sua realidade, para que assim ele possa dirimir suas necessidades como tambm saber lutar por elas, o que fundamental. A participao da comunidade implica uma transformao da cultura administrativa e um processo sistemtico e trabalhoso. Em outros termos, a capacidade de descentralizao se desenvolve progressivamente, e as existncias devem corresponder capacidade real da execuo. (Dowbor, 2008). Neste sentido ocorre que diversas iniciativas precisam ser tomadas para viabilizar a participao da comunidade. No Brasil, por exemplo, existe uma serie de caractersticas que prejudicam este processo, primeiro por uma questo notria, que o desenvolvimento fragmentado, que possui regies riqussimas e outras dentro do fosso econmico e social. Outro fator a poltica de moradia, como no Brasil o dficit habitacional imenso, os bairros e cidades no enrazam moradores, que devido falta de moradia fixa, esto sempre mudando, o que acarreta na falta de compromisso com aquele bairro ou cidade, como no se trata de algo permanente, os moradores preferem se mudar a mudar a realidade local. Esta realidade forma um circulo vicioso que precisa ser rompido com uma poltica seria de habitao. Segundo Dowbor (2008), um instrumento chave dessa participao o planejamento descentralizado: propostas ordenadas e submetidas comunidade significam a possibilidade de os indivduos se pronunciarem antes das decises serem tomadas, em vez de se limitarem a protestar diante de fatos consumados. Fica claro que o planejamento fundamental na organizao da participao popular, na gesto dos recursos pblicos. preciso que o Estado, como poder maior viabilize essa integrao, organizando quanto forma e execuo deste processo, buscando apoio sociedade organizada nesta fundamentao. Com o planejamento fica mais visvel quais as aes necessrias com esta nova forma de gerir, quantificar os custos e implantar medidas que dem sustentao ao processo, tais como: estudos locais, incentivo as entidades comunitrias, formando uma rede local forte e capaz de decidir com coerncia. A forma de gesto participativa mais difundida no Brasil o oramento participativo, 221

ENTRE ASPAS diversos municpios esto adotando esta medida como uma forma de tornar a populao mais prxima da administrao pblica. Geralmente so feitos reunies bairro a bairro, na busca de, atravs da maioria, escolher quais as demandas primordiais naquele momento, j que o principio bsico da economia deixa claro que as demandas so ilimitadas, entretanto os recursos limitados. Neste sentido se faz necessria escolha das prioridades, e quando este processo feito de maneira negociada, por mais que acarrete mais tempo, acaba por ser mais eficaz e mais eficiente, pois, ir beneficiar o maior nmero de cidados.

4. Poder Local A questo do Poder Local segundo Dowbor (2008) est rapidamente emergindo para se tornar uma das questes fundamentais da nossa organizao como sociedade, o poder local est no centro do conjunto de transformaes que envolvem a descentralizao, a desburocratizao e a participao.
Estamos acostumados a que a interveno do cidado sobre a transformao social se d por meio de dois eixos fundamentais: o eixo poltico partidrio e, em menor escala, o eixo sindical trabalhista. (Dowbor, 2008, pg. 28)

A participao fundamental da sociedade como um todo, nas escolhas de como ser gerido, de que forma ser aplicado o recurso pblico se d atravs do voto, ou seja, a manifestao indireta da democracia. Os sincantos tambm de certa forma atuam como fora, na luta por melhorias de suas classes, mas isso de forma restrita. Assim o poder local surge como uma fora que emana de todos, que no age indiretamente e sim de forma direta e concreta, com intuito de beneficiar a maioria. Desta forma verifica-se que a partir do poder local que as demandas podem ser supridas. Uma sociedade organizada capaz de buscar novas realidades, de maneira mais eficiente, pois, conhece o que de fato necessrio na conquista de um desenvolvimento igualitrio, em que todos participem do processo, e que traga uma continuidade no processo, passando de gerao para gerao. Friedmann (1996), afirma a compreenso de que alm da regulao empresarial e da regulao governamental, existe um processo de regulao crescente na base da sociedade, a partir do local onde as pessoas vivem na linha do que chamou de participatory governance. Um desenvolvimento alternativo centrado nas pessoas e no seu ambiente, mais do que na produo e nos lucros. Da mesma forma que o paradigma dominante aborda a questo do crescimento econmico na perspectiva da empresa, que o fundamento da economia neoclssica. Um desenvolvimento alternativo, baseado como deve ser, no espao de vida da sociedade civil, aborda a questo da melhoria das condies de vida e das vivncias na perspectiva do domiclio. A perspectiva do local domiciliar faz com que os cidados se tornem parte do poder, e no vejam este como algo estanque, distante da sua realidade. Destarte com evoluo deste processo se forma uma sociedade livre capaz de decidir por si s, no dependo diretamente de polticos e nem de politicagem, o que se pode chamar de democracia plena. Estes objetivos chegam ao conceito de articulao da regulao local com o poder do Estado. Apesar de apontar para uma poltica localmente enraizada, um desenvolvimento alter222

A REVISTA DA UNICORP nativo requer um Estado forte para implementar as suas polticas. Um Estado forte, no entanto, no precisa ser pesado no topo, com uma burocracia arrogante e enrijecedora. Ser bem mais benfico um Estado gil e que responde e presta conta aos seus cidados. um Estado que se apia amplamente numa democracia inclusiva na qual, os poderes para administrar os problemas sero idealmente manejados localmente, restitudos s unidades locais de governana e ao prprio povo, organizado nas suas prprias comunidades. Friedmann (1996)
O Poder Local, como sistema organizado de consensos da sociedade civil num espao limitado, implica, portanto, alteraes nos sistema de organizao da informao, reforo da capacidade administrativa e um amplo trabalho de formao tanto na comunidade como na prpria mquina administrativa. Trata-se, portanto, de um esforo do municpio em si mesmo. (Dowbor, 2008, pg. 79)

A organizao da sociedade, como foi analisada at agora, o ponto de partida para a conquista do desenvolvimento local. Esta deve ser um instrumento na conquista das demandas de maneira concreta. Fazendo valer a fora que tem a organizao comunitria, ao no bairro, municpio, no espao local, espao em que vivemos.

5. Desenvolvimento Local sustentado As constantes discusses a cerca do que seria desenvolvimento sustentado, leva a entender a relevncia deste tema. No passado no muito distante, o desenvolvimento se confundia com o crescimento do PIB de um pas, Estado ou Cidade. Contudo o que se percebia era que o aumento da riqueza, no significava mudana na realidade social da maioria. Ou seja, apesar do grande volume financeiro, o crescimento no significava melhora e ou diminuio dos indicares sociais negativos, os benefcios do crescimento s eram percebidos por uma minoria. Furtado 2000, afirma que, a Teoria do desenvolvimento busca explicar, usando a macroeconomia, as causas e os mecanismos do aumento contnuos da produtividade do fator trabalho e suas repercusses na organizao da produo e na forma como se distribui e utiliza o produto social. Segundo o autor o primeiro passo ao se estudar tal teoria fazer uma anlise emprica do espao, do processo de crescimento propriamente dito, modelos ou esquemas simplificados dos sistemas econmicos existentes, baseados em relaes estveis entre variveis quantificveis e consideradas relevantes. O segundo ponto, para Furtado (2000), se trata da anlise histrica, que abrange um estudo crtico, em confronto com a realidade dada, das categorias bsicas definidas pela anlise abstrata. Pode-se inferir desta forma que de suma importncia verificao da eficcia explicativa desse modelo em confronto com uma realidade histrica. A partir desta verificao que se podero indicar as limitaes decorrentes do nvel de abstrao em que foi elaborado o modelo e sugerir as modificaes a ser introduzidas para validar tal preceito. O desenvolvimento local nada mais do que a autonomia de um municpio que atravs de polticas pblicas consigam reorganizar e maximizar as potencialidades econmicas, alm de fomentar o crescimento e a reduo das endemias sociais, que so a verdadeiro entrave para que o desenvolvimento econmico ocorra de fato. Segundo Amaro (1993) o Desenvolvimento Local um processo de transformao, 223

ENTRE ASPAS mudana que recusa a conservao de antigas prticas, que fazem com que a riqueza produzida seja concentrada na mo de poucos. Para o autor o Desenvolvimento Local se foca na comunidade, ou seja, parte da referncia de onde se quer desenvolver. O local enquanto resultado de uma construo de identidades um conjunto de interesses que se identifica e assume onde so possveis aes de solidariedade concretas. O local, para Roque Amaro, se constri com o projeto e planejamento. Parte da existncia de necessidades no satisfeitas a que se procura responder a partir das capacidades locais, buscando apoio e amparo externamente tambm, claro. Como se pode notar o desenvolvimento local, um processo que focaliza aes locais, com o intuito de melhorar o coletivo, atravs da participao de todos. Neste sentido alcanar uma fonte de riqueza que seja autossustentada. A comunidade se torna autossuficiente no precisando de intermedirios para sua sustentao, ou seja, cria-se mecanismo para que a sociedade se organize a ponto de criar oportunidades de dinamismo tanto econmico quanto social. O que ocorria, muitas vezes, e ainda ocorre que estas comunidades ficam dependentes, em sua maioria de rgos pblicos federais que passam os recursos a municpios falidos e/ ou Estado, que garantem a maioria dos empregos, ou seja, a renda do municpio depende de repasses, o que leva ao empobrecimento da cidade como um todo, pois no h gerao de emprego e renda. Existe uma falta de dinamismo econmico, que acarreta numa falta de criao de empregos, desta forma as pessoas tornam-se dependentes do municpio para sua sobrevivncia. O municpio no tem condio de se sustentar sozinho, os repasses possibilitam a sobrevivncia da populao; por outro lado, a perpetuao deste sistema, pela prpria estrutura institucional desenvolvida, perpetua a situao. Isto claro se pensarmos no bsico, emprego e renda, entretanto o desenvolvimento de fato se vale de diversos outros itens para garantir um desenvolvimento concreto, como: sade, educao, cultura. MILANDO (2005) acentua o Desenvolvimento Local como um processo e no um fim em si mesmo. Trata-se de um sistema contnuo por parte dos residentes organizados de uma localidade no sentido de identificar problemas e aspiraes, criar e formular estratgias para abord-los, implementar esses planos e avaliar os resultados, numa lgica de participao, onde a mudana e a renovao so o mago, o xito dessa comunidade. Conclui-se que a localidade seria capaz de sempre estar produzindo benefcios comunidade. Uma sociedade organizada capaz de gerir seus recursos e fortalecer sua integridade scioeconmica. Tornando-o desenvolvimento autossustentado e no formado por picos e declnios, e principalmente com diversos vetores de crescimento que sempre se renovam. Tal desenvolvimento seria percebido inclusive pelas geraes futuras, gerando um ciclo virtuoso, capaz de fomentar e fortalecer, tanto a parte econmica quanto a parte social da comunidade.

6. Consideraes finais A gesto pblica participativa sem dvida um desafio, no momento em que se percebe que a maioria do pas est longe de alcanar os objetivos da administrao pblica gerencial, que prima pela descentralizao do poder. Em nvel de Brasil ainda existe, como noticiado diariamente, grande influncia do sistema patrimonialista, que faz com que o privado se aproprie do pblico, em que aquele que tenha um cargo pblico, seja efetivo ou temporrio, muitas vezes, no saiba diferenciar o seu papel naquela funo pblica, confundindo-a com sua vida 224

A REVISTA DA UNICORP privada. Assim ocorrem os desvios, as fraudes, o nepotismo, e os constantes escndalos de corrupo que vemos e no nos deixam esquecer que temos um longo caminho a percorrer nesta conquista. No se pode esquecer tambm que houve avanos. Em nvel Federal a Administrao Pblica est frente na busca pela forma da gesto gerencial. Neste sentido, apesar dos desvios, o pas est tentando encontrar a descentralizao do poder, tomando a gesto participativa como uma perspectiva de mudana na busca do desenvolvimento. Grandes projetos habitacionais esto em prtica, o que resolveria a lacuna da falta de identidade cidado e espao. Tomando como anlise o que se foi discutido at agora se v que a gesto pblica participativa capaz de transformar a realidade de um bairro, distrito ou municpio, tornandose uma ponte indispensvel nesta busca. Contudo para tal se faz necessrio construir uma infraestrutura slida, que faa este instrumento permanecer e realmente fazer a diferena. Investimentos em educao comunitria e integrao popular sero uma das diretrizes primordiais neste processo; outro ponto a fidelizao do homem no seu espao, que far com que as pessoas se preocupem em mudar a realidade de onde vivem, no s por si mesmas como tambm por toda a sociedade e suas geraes futuras, que com certeza dependero de um espao participativo, em que todos tenham voz e conquistem um local melhor de viver.

Referncias ________________________________________________________________________ AMARO, R. As Novas Oportunidades de Desenvolvimento Local ,in A Rede para o Desenvolvimento Local, n. 8 Faro:IN LOCO 1993. BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos, Revista do Servio Pblico, Luiz Carlos Bresser Pereira, Braslia 1996. BOBBIO, Norberto. 1987. Estado, governo, sociedade para uma teoria geral da Poltica. Rio de Janeiro, Paz e Terra. CHIAVENATO, Idalberto. Administrao Geral e Pblica Serie concursos, ed. Campos, So Paulo, 2006. DOWBOR, Ladislau. O que Poder Local. Ed. Brasiliense. SP 2008. FURTADO, Celso. Teoria e Poltica do Desenvolvimento Econmico. Ed. Paz e Terra, So Paulo, 2000. FURTADO, Celso 1920, Pequena introduo ao desenvolvimento, Enfoque interdisciplinar, Celso Furtado, SP- Editora nacional 1981; FRIEDMANN, J. Empowerment Uma Poltica de Desenvolvimento Alternativo. Oeiras: Celta Editora 1996. MILANDO, J. Cooperao sem Desenvolvimento. Coleo Estudos e Investigao, ed. 39. Lisboa: ICS 2005. SACHIS, Ignacy 1923, Espaos, Tempos e Estratgias do Desenvolvimento - Ignacy Sachis: Traduo: [de Luiz Leite de Vasconcelos e Eneida Araujo]. So Paulo : Vtice, 1986. WANDERLEY, RAICHELIS, Luiz Eduardo W. Wanderley e Raquel Raichelis. Desafios de uma gesto pblica democrtica na integrao regional, 1999.

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A ARTE DE JULGAR O DESAFIO DE RECUPERAR O FUNDAMENTO TICO DAS DECISES JUDICIAIS

Patrcia Cerqueira de Oliveira


Juza de Direito do Estado da Bahia. Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Universidade Estcio de S. Especialista em Direito, Justia e Sociedade pela FABAC. Mestranda em Poder Judicirio Fundao Getlio Vargas, FGV Direito Rio.

Resumo: O objetivo precpuo do trabalho a anlise do ato de julgar, a partir de sistemas ticos, mais especificamente os dois sistemas bsicos de tica, quais sejam a tica do dever, tendo Kant como precursor, e a tica utilitarista de Jeremy Bentham. Compreender as razes que levam os magistrados a tomar determinadas decises consiste em finalidade curial desta reflexo, porquanto o processo decisrio vai alm da aplicao exegtica da lei, sobretudo quando so submetidas ao Judicirio questes afetas aos direitos humanos. Nessa esteira, buscar-se- analisar os padres ticos que norteiam a atividade magistral, haja vista o clamor social em torno das decises judiciais e seus fundamentos. Destarte, para embasar a discusso o estudo prope debates em torno da tica, moral e da justia, numa tentativa de penetrar no ntimo da conduta do julgador. Palavras-Chave: Deciso judicial. Fundamentos. tica.

1. Introduo Identificar ou explicar o fundamento da deciso judicial algo que tem sido muito estudado pela doutrina, numa tentativa de compreender as razes que levam esse ou aquele Juiz a tomarem determinadas decises, em determinados casos, ora, inclusive, divergindo do posicionamento adotado pelo mesmo julgador em precedentes semelhantes. Essa reflexo no se restringe ao aspecto da curiosidade quanto conduta judicial, mas a uma pretenso legtima de penetrar no universo mais ntimo do julgador, tentando encontrar alguma explicao cientfica para a deciso, sobretudo quando esta no reflete, exclusivamente, a aplicao da letra da lei, at porque, em ocasies no raras, o caso concreto no foi contemplado pelo ordenamento positivado, ou ambos os litigantes encontram argumentos legais para sustentarem suas pretenses em conflito. Ento, se vrios aspectos do modelo legal podem dar suporte a ambos os lados das disputas que vm Corte, a qualidade dessas decises no pode ser confivel a priori. A concepo do Juiz como boca da lei restou ultrapassada, porque o positivismo no foi eficiente para acompanhar o dinamismo das mudanas sociais, polticas e econmicas. 226

A REVISTA DA UNICORP Assim, muitas vezes, a lei existente no contm previso especfica para determinados fatos, embora isso no autorize o julgador a deixar de julgar por ausncia de norma legal; ou a lei existente parece insuficiente, ou injusta, diante de um determinado caso concreto. Da, surgem vrias indagaes direcionadas ao ato de julgar, no sentido de ao voltada para fazer justia, cujo conceito per si comporta vrias colocaes e supera os domnios do amparo legal, sobretudo em tempos em que o Poder Judicirio est sendo constantemente provocado a decidir questes complexas, afetas a polticas pblicas, a direitos humanos, biotica, crises financeiras, ou mesmo a apreciar atos legislativos pela via do controle de constitucionalidade, o que exige do julgador algo alm do conhecimento da letra fria da lei. Chame-se a isso de judicializao da poltica, ou de ativismo judicial, pois vrias so as alcunhas doutrinrias ao movimento do Poder Judicirio em tempos que tais, importante fazer uma breve anlise do desafio lanado para o Magistrado, com novas bases para o ato de julgar, reservando, ento, para o julgador a responsabilidade de recuperar os fundamentos ticos do Direito, como norte para todas as suas decises. Nesse diapaso, o objetivo desse ensaio fazer uma reflexo sobre o ato de julgar, com ateno especial para a fundamentao das decises judiciais, a partir do problema de que o positivismo no foi suficiente para atender a essa necessidade de fundament-las. Procurar-se-, ento, no seio de sistemas bsicos de tica, a saber a tica do dever, de Kant, e a tica utilitarista, de Jeremy Bentham, refletir sobre a relevncia da tica como nova base para fundamentao de decises judiciais.

2. Do ato de julgar Conceituar justia uma tarefa difcil. Uma anlise lgica da noo de justia parece constituir um verdadeiro desafio. Perelman (1990) pondera que cada um defender uma concepo de justia que lhe d razo e coloque o seu adversrio numa m posio, o que revela a natureza flexvel do ideal de justia. Afirma que
O bom juiz o que se serve do arsenal jurdico para fazer reinar a justia. E na medida em que os juzes tiverem sido bem sucedidos nesta tarefa que os Tribunais superiores e comuns sero respeitados. O juiz no pode contentar-se com aplicar a lei conforme a vontade do legislador: deve servir-se da lei para fundamentar as suas decises, mas estas devem ser, antes de tudo equitativas. O juiz no est a servio do poder que o nomeou, est a servio da justia. O Supremo Tribunal de Justia no o polcia do legislativo, a conscincia jurdica que deve velar por que o direito seja justo. Nesta concepo, o juiz no se limita a aplicar a lei, mas serve-se dela para escorar o seu sentimento de equidade, que escutar antes de tudo quando a lei obscura ou incompleta. Mas esse sentimento que deveria gui-lo no exerccio das suas funes judiciais, de onde vem ele, como precis-lo, como conceber em funo desse sentimento de equidade o que uma regra justa? (PERELMAN, 1990, p.73) Grifei.

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ENTRE ASPAS Note-se que a concepo contraria o positivismo, porque incomoda o juiz a no sucumbir aplicao exclusiva da lei. Antes, dever ouvir seu senso de justia para escutar quando a lei incompleta ou obscura, a fim de rejeitar aquilo que no parea justo. O desafio da modernidade identificar, a partir de padres ticos, de onde vem esse sentimento que dever guiar o Juiz no exerccio de suas funes, na busca do justo em suas decises. Ento sugere o autor que se abandone a concepo jurdica de justia, em troca de outra que se imponha ao direito e possa reg-lo. Atienza (2001) indaga o que pode a teoria, ou melhor, a filosofia, fazer para contribuir com a prtica judicial e responde que pode fazer contribuir para aclarar as coisas, os conceitos, e a sugerir tambm cursos para a ao. Nesse diapaso, prossegue desenvolvendo dez teses, ou teorias, para a prtica judicial, em que o ponto de partida estabelecer a diferena entre tomar uma deciso e decisionismo:
Minha primeira tese bem simples que julgar implica sempre decidir, mas necessrio distinguir entre tomar uma deciso e faz-lo de forma decisionista. O Juiz um julgador, mas no deve ser um decisionista. (ATIENZA, 2001, p.10 traduzi).1

O que Atienza chama de decisionismo a deciso fulcrada em um ato de vontade sem limites racionais do julgador. Noutras palavras seria dizer que aquele ato em que o Juiz decide sem julgar, que, por sua vez, tambm no determinismo, ou seja, aquela hiptese em que o Juiz julga sem decidir, quando mais se aproxima do juiz positivista. Para Atienza (2001), julgar decidir com base em trs parmetros fundamentais: a O poder do juiz limitado por alternativas de ao previamente definidas; b A escolha das alternativas segue regras previamente estabelecidas; c A deciso precisa ser motivada, como forma de controle pblico e legitimao. pertinente aqui abrir um rpido parntese para lembrar que fundamentar a deciso no se restringe a explic-la, que seria a segunda teoria do referido autor, entre as dez teorias sugeridas por ele. Decidir no mero silogismo, porque o silogismo serve apenas para explicar a deciso, ento o que se reclama hoje a justificao das decises, ou seja, que se demonstre as causas, ou razes, pelas quais aquela deciso pode ser considerada como algo aceitvel (ATIENZA, 2001, p.12).2 Haver sempre necessidade de fundamentao da escolha feita pelo Magistrado, a fim de motivar a deciso e combater o arbtrio, podendo o julgador recorrer aos princpios, equidade, mas, e antes de tudo, tica. Atienza (2001) prossegue construindo dez teorias sobre a deciso judicial, cujo conhecimento fundamental a todo operador do Direito nos tempos modernos, mas no objetivo desse trabalho dissec-las, embora venham a ser referidas ao longo do texto.

3. Dos fundamentos da deciso judicial J no se discute que o positivismo no suficiente para responder, ou fundamentar, todos os casos expostos apreciao judicial, devido impossibilidade do legislador, cujo exerccio antecede ao do Juiz, antever todas as condutas possveis. Outrossim, resta sedimentado que preciso fundamentar, ou mostrar as razes porque 228

A REVISTA DA UNICORP a deciso deve ser considerada aceitvel. Ento, o que sugerem os autores que serviram de base para esse ensaio que o julgador deve buscar esses fundamentos na tica, ou na moral. Dworkin (2010) refere-se a hipteses em que os Juzes podem ter o dever moral de ignorar a lei quando esta for muito injusta ou, talvez, quando for muito insensata, e de usar seu poder poltico para impedir a injustia ou uma grande ineficincia. Sugere, assim, que nesse estgio da anlise jurdica, as autoridades judiciais esto diante de uma questo poltica e, consequentemente, uma questo moral, que no implica necessariamente em uma questo sobre o modo como a moral figura na identificao do direito, mas sim de uma questo sobre quando, se que alguma vez, a moral exige que os Juzes atuem de modo independente da lei, ou mesmo que a contrariem. Adentra-se, aqui, numa seara em que a fundamentao da deciso judicial buscar em outras fontes o teor de sua motivao, para o que exsurge a tica como alternativa por excelncia. Segundo Boff (2009), a tica parte da filosofia. Considera concepes de fundo acerca da vida, do universo, do ser humano e de seu destino, estatui princpios e valores que orientam pessoas e sociedades, enquanto moral seria parte da vida concreta. Para Russ (1999), tica mais terica do que a moral. A tica se esfora por desconstruir as regras de conduta que formam a moral, os juzos de bem e de mal que se renem no seio da moral. Note-se que os conceitos so bastante abstratos, mas no so vagos. A tica transcende a moral, tem uma dimenso mais terica, por sua vontade de retornar fonte. Agora, dentro do contexto de fundamentao da deciso judicial, falar-se- em tica aplicada, na qual se ir buscar a razo maior do julgamento, combatendo o que Russ (1999) chamou de vazio tico. Nesse ensaio sero considerados dois sistemas bsicos para fundamentar a deciso judicial, alm da perspectiva positivista, suprindo o vazio tico verificado outrora: a tica do dever de Immanuel Kant, e a tica utilitarista, de Jeremy Bentham, que teve em Singer (2002) a consagrao do utilitarismo at as ltimas consequncias.

3.1. A tica do dever Immanuel Kant Para Immanuel Kant, toda ao deve ser praticada em conformidade com aquela mxima pela qual seja possvel pretender que, ao mesmo tempo, ela se torne uma lei universal, ou seja, o ser humano deve agir como se a sua ao pudesse se tornar um contedo universal. Da so extrados alguns aspectos da tica kantiana: a Universalidade da conduta tica porque todo e qualquer ser humano racional deve agir como se fosse uma lei natural, inquestionvel, vlida para todos em todo tempo e lugar; b Dignidade dos seres humanos como pessoa logo, os seres humanos devem ser tratados como fim da ao e jamais como meio ou como instrumento para nossos interesses. A dignidade no negocivel. No se podem fazer concesses quando se trata da dignidade das pessoas; c Vontade legisladora livre ou autnoma a vontade que age por dever institui um reino humano de seres morais porque racionais, separa o reino natural das causas do reino humano dos fins. Aqui, a concepo de que s livre quem age com a razo e no quem age por desejo, porque a razo liberta e o desejo aprisiona; 229

ENTRE ASPAS d O imperativo categrico diz para sermos ticos cumprindo o dever de agir tica e moralmente, em qualquer situao. Singer (2002) consignou que, apesar de ser um cristo dos mais devotos, Kant zombava de tudo que lhe cheirasse a obedincia ao cdigo moral por seus prprios mritos, ou seja, ele no pactuava da compreenso tradicional de que a religio oferecia uma razo para fazer o que certo, no sentido de que, quem fizesse o que a religio rotulava de certo receberia uma eternidade de bem-aventurana, enquanto os demais queimariam no fogo reservado aos pecadores. Singer (2002) apresenta crtica ao pensamento kantiano:
Contudo, o prprio Kant percebeu que, sem uma justificao racional, essa concepo comum da tica seria uma mera iluso do crebro. (...) Tomada como uma concepo da tica em seu conjunto, essa noo kantiana da tica deve ser rejeitada. Isso no significa, porm, que nunca devemos fazer o que nos parece certo simplesmente porque nos parece certo, sem outras razes que justifiquem os nossos atos. A esta altura, precisamos apelar para a distino estabelecida por Hare entre pensamento intuitivo e pensamento crtico. Quando me distancio de minhas decises ticas cotidianas e pergunto por que devo agir eticamente, meu dever seria procurar razes no sentido mais amplo e no permitir que preconceitos kantianos me impeam de examinar as razes de interesse pessoal para levar uma vida pautada pela tica. (...) Nas situaes cotidianas, assumirei, simplesmente, que fazer o que certo faz parte dos meus interesses e, assim que tiver decidido o que certo, vou seguir em frente e fazer o que acho que deve ser feito, sem perguntar por novas razes que me levem a faz-lo. Deliberar sobre as razes fundamentais para fazer o que certo, em cada caso, complicaria a minha vida de uma maneira impossvel: seria, tambm, desaconselhvel, pois em situaes especficas eu poderia ser por demais influenciado por desejos e inclinaes muito fortes, mas temporrios, e com isso poderia tomar decises das quais viria mais tarde a me arrepender. (SINGER, 2002, p.343)

Ora, a natureza humana to diversa que causa estranheza qualquer idia de generalizao de condutas, carter, convices que possam ser aplicadas a todos os seres humanos, sem aqui adentrar nos chamados psicopatas, ou outros seres que apresentem tipos psiquitricos especiais, argumento que por si s seria bastante para contrariar a afirmao de que benevolncia, solidariedade, sentimentos de culpa, ou noes do que seja certo, tico e moral por seus prprios mritos estejam presentes em todos e sejam iguais em todos os seres humanos.

3.2. O utilitarismo de Bentham O utilitarismo de Jeremy Bentham, assim como o teleologismo de Rudolf von Ihering, a experincia prtica de Oliver Wendell Holmes, a livre investigao cientfica de Franois Geny, ao lado da jurisprudncia de interesses e da jurisprudncia sociolgica dos Estados Unidos 230

A REVISTA DA UNICORP surgiram em oposio s idias gerais sustentadas pelo legalismo exegtico, quando se percebeu que nunca, em hiptese alguma, a lei seria suficiente para prever todos os fatos da vida, conforme o avesso da mxima de Recasns Siches: uma lei indeformvel somente existe em uma sociedade imvel (SICHES apud DINIZ, 1992, p.52). Se considerar-se que a sociedade humana guarda consigo o dinamismo cada vez mais galopante, extenuado pelas conquistas extraordinrias da tcnica, sem querer, aqui, reduzir tudo globalizao e velocidade de socializao das informaes atravs da rede mundial, a frase de Siches vir confirmar que no existiria lei indeformvel, o que demanda postura ativa e atenta do julgador, quando confrontado com as mais diversas situaes e conflitos cotidianos. Jeremy Bentham vem criticar o uso do mtodo dedutivo na aplicao e interpretao jurdicas, justamente por causa daquela percebida falta de legitimao a priori, ou seja, porque no admitia que, a partir de princpios abstratos e previses legais concebidas aprioristicamente, fosse possvel extrair ilimitadamente, por meio da deduo, ou de inferncias lgicas, certas conseqncias. A impresso que essa postura minimizaria o fato, o ato e a atuao do julgador, reduzindo-os a mero silogismo que nem sempre teria o condo de alcanar todas as nuances do caso concreto, sobretudo em situaes complexas, mas no s nelas. Bentham propunha interpretar a norma sob o ponto de vista dos efeitos reais por ela produzidos quando aplicadas, e o critrio por ele sugerido para qualificar aqueles efeitos era o critrio objetivo da utilidade. O pensamento de Bentham seguia a lgica de que bom o que causa prazer, e mau o que causa dor. Nessa linha, sob o prisma social, bom e justo o que tende a aumentar a felicidade de todos ou do maior nmero de pessoas possveis. Em outras palavras, o utilitarismo defendia o lema da maior felicidade (ou maior prazer) para o maior nmero de pessoas, em combate dor e ao sofrimento. Em outras palavras, o princpio da utilidade elaborado por Bentham pode ser traduzido como o princpio segundo o qual toda ao, qualquer que seja, deve ser aprovada ou rejeitada em funo de sua tendncia de aumentar ou reduzir o bem-estar das partes por ela afetadas, logo esse princpio est voltado para o bem-estar geral. O utilitarismo pressupe um fundamento reto: ao moral voltada para a felicidade geral. Um sacrifcio menor pode conter uma compensao maior (ex.: matar uma pessoa para preservar a vida de 100 pessoas ou sacrificar em parte uma vida, para, com isso, garantir a sobrevivncia de outra); tudo com base na felicidade ou bem-estar geral pode-se sacrificar muita coisa.

4. Sob a inspirao de Peter Singer a tica na ribalta Singer (2002) confessou-se adepto do utilitarismo, mas fez retoques ao que chamou de utilitarismo clssico, e, a partir de sua postura utilitarista, examinou, dentre outros, temas como tirar a vida de seres humanos, de animais, de embries e do feto, cujas idias fundamentam decises judiciais e opinies de conceituadas comisses de ticas que se organizaram para discutir temas dessa natureza, servindo de inspirao para muitos debates. Transitou entre discusses que despertam os mais ntimos sentimentos no homem. Uma rpida leitura de suas idias permite observar que antes da autoridade da lei, ou da legitimidade daquele que a aplica, est o fundamento tico dos argumentos para essa ou aquela concepo. 231

ENTRE ASPAS Singer, como tantos outros que criticaram Kant, defende que se no houvesse uma justificao racional, aquela concepo comum de tica seria uma mera iluso do crebro (SINGER, 2002, p.343). Na viso de Kant, a conscincia moral do indivduo s encontra valor moral quando o dever for praticado por seus prprios mritos; aquilo que se considera certo, honroso, correto, digno o porque , pelo mrito da honra, da dignidade, da verdade etc, independentemente de que haja uma justificao racional para a conduta. A seguir o respeito ao que certo, porque se concebe universalmente como certo, o indivduo poderia ter que respeitar algo, ainda que ele, pessoalmente, no considere certo. Da que Singer (2002) indaga se teremos alguma obrigao moral de obedecer a lei quando ela protege e sanciona coisas que consideramos profundamente erradas? Nessa esteira de raciocnio, indagar-se-ia se a conscincia do cidado deve sucumbir conscincia do legislador. Se assim fosse, para que todo ser humano seria dotado de raciocnio? Esse raciocnio permite que cada ser humano dotado de razo possa avaliar o que certo e o que errado, sejam mximas universais ou no, podendo at mesmo contextualiz-las. Henry Thoreau e Robert Paul Wolff, citados por Singer (2002), resolvem esse conflito entre o cidado e a sociedade, a favor do cidado, uma vez que, dotado de razo, dever agir conforme sua conscincia e no conforme o que a lei determina. Ocorre que no to simples como parece, porque os autores no teriam a inteno de estimular o descumprimento da lei. O que h que ser exaltado a forma como o cidado age. Singer (2002) prope uma reflexo prvia sobre o contedo da lei, a fim de que, pela razo, seja possvel observar se o que a lei prev certo, ou se seria possvel contrari-la. Noutras palavras, afirma que preciso refletir sobre o que a lei probe, para saber se seria possvel, ou no, justificadamente de forma racional, desobedec-la, quando afirma:
A lei e a tica so coisas distintas. Por outro lado, isso no significa que a lei no tenha um peso moral. No significa que qualquer ao que teria sido certa, se fosse legal, deva ser certa ainda que seja, de fato, ilegal. O fato de uma ao ser ilegal pode ter importncia tica, bem como legal. Se ela realmente importante do ponto de vista tico, j uma outra questo. (SINGER, 2002, p.311 grifo no original).

O conhecimento das idias de Singer (2002) pode socorrer o Magistrado diante de assuntos polmicos que so submetidos ao Poder Judicirio, mormente quando inexistente norma jurdica sobre o assunto, ou aquela prevista j no se mostre suficiente para enquadramento da questo no mundo contemporneo. Singer (2002) sugere um utilitarismo extremado, quando ele mesmo pondera que sua forma de pensar uma forma de utilitarismo, mas dele difere:
Difere do utilitarismo clssico pelo fato de melhores conseqncias ser compreendido como o significado de algo que, examinadas todas as alternativas, favorece os interesses dos que so afetados, e no como algo que simplesmente aumenta o prazer e diminui o sofrimento. (SINGER, 2002, p.22)

o prprio autor quem esclarece na obra mencionada que suas idias no mostram que o utilitarismo pode ser inferido do aspecto universal da tica, pois existem outros ideais ticos 232

A REVISTA DA UNICORP como os direitos individuais, o carter sagrado da vida, a justia e a pureza que so universais no devido sentido e, pelo menos em algumas verses, incompatveis com o utilitarismo. Antes suas idias mostram que possvel chegar com rapidez a uma postura inicialmente utilitria to logo se aplique o aspecto universal da tica a uma tomada de decises simples e pr-etica. No seio dessas reflexes, ponderou, por exemplo, que uma srie de argumentos contra o aborto, na verdade so argumentos contra as leis que probem o aborto, e sinaliza que a deciso quanto realizao do aborto deve ser antes tica do que legal. Para ilustrar, exemplifica que uma mulher pode defender a legalizao do aborto porque entende que o fato de ser criminalizado leva realizao de abortos clandestinamente, em clnicas de condies precrias, que expem a risco as vidas das mulheres, mas ela mesma no praticaria aborto. O exemplo demonstraria que a deciso antes tica do que legal. Afirma, com sabedoria, que os que se apiam no crescimento dos chamados abortos de fundo de quintal, para defender a descriminalizao da conduta, podem ser confrontados com alternativas para exigir o cumprimento da lei pelas clnicas clandestinas, bem como sugerir medidas que tornem mais fcil aceitar a gravidez que chegou de forma indesejada, tendo em vista que so respostas perfeitamente racionais, mas no resistem ao juzo tico inicial sobre o aborto. Noutro sentido, uma mulher pode engravidar em decorrncia de estupro, e optar por no interromper a gestao, embora estivesse amparada pela autorizao legal nesse caso. A hiptese refora que a discusso tica e no meramente legal. Ser contra as leis que probem o aborto no o mesmo que ser contra o ponto de vista que entende o aborto como um erro. Assim, no um argumento sobre a tica do aborto, e no conseguer preencher o debate tico sobre o aborto. Para os utilitaristas, o aborto seria autorizado, ou encontraria respaldo tico, desde que no causasse dor ou sofrimento ao feto, seja a gravidez decorrente de estupro ou no, seja o feto anencfalo, invivel ou no. Ainda nessas hipteses, em que uma corrente de doutrinadores tem defendido a liberao da prtica do aborto, alguns tm-se esquecido de que, na possibilidade de qualquer sofrimento quele feto, no seria eticamente tolerado. Evitar o sofrimento da me, no autoriza provocar sofrimento ao organismo intrauterino, compreenda-se que h vida ou no. Note-se que, nessa senda, a discusso sobre a existncia de vida, ou a viabilidade do feto restam reduzidas. J no interessante para o debate saber a partir de quando h vida aps a fecundao, o que concede mais autoridade aos argumentos. Singer (2002) sentencia que
Parece estranho admitir que no podemos matar o beb prematuro, mas que podemos matar o feto mais desenvolvido. A localizao de um ser dentro ou fora do tero no deveria configurar tanta diferena quanto ao erro que consiste em mat-lo. (SINGER, 2002, p.149)

Ele tambm evidencia como o argumento que remete viabilidade falho. Parte do episdio em que a Corte Suprema dos Estados Unidos sustentou que as leis que probem o aborto com base na viabilidade no so inconstitucionais, porque os juzes que subscreveram a deciso no indicaram por que a capacidade de existir fora do tero deve fazer tanta diferena para o interesse do Estado em proteger a vida humana faltou o fundamento da argumentao que extrapola os limites jurdicos, sobretudo se considerarmos que o que era invivel h vinte anos atrs, poder no ser invivel vinte anos frente. 233

ENTRE ASPAS Ademais, h a questo do contexto, porque hoje, um feto de seis meses, logo prematuro de trs meses, pode sobreviver fora do tero graas aos avanos da medicina. Ento seria o diagnstico da inviabilidade falho? E se acrescentar-se a esse debate a possibilidade de uma situao de inviabilidade por falta de suporte tcnico em Nova Guin caracterizar um feto vivel em Nova York? Logo, se aquela gestante tiver condies de ir at Nova York, o mesmo feto restar vivel e o argumento (para os que assim concebem) da aceitao do aborto do invivel cairia por terra. Essa apenas uma sntese apertada (e, aqui, cabe a redundncia para enfatizar a reduo que foi feita de toda uma obra cuja leitura deveria ser obrigatria no s no campo jurdico) do que Singer (2002) declinou na obra multicitada, no com a pretenso de encerrar o debate sobre a tica das decises judiciais, mas para inici-lo.

5. Concluso Revendo o que foi escrito at aqui, relendo o material que serviu de fundamentao terica para essas reflexes, e lembrando os debates em torno da tica, da moral e da justia, possvel perceber que, dos temas ditos mais simples, aos mais polmicos, a sociedade moderna est a carecer de uma justificao maior para muitas decises. Tendo em vista que a sociedade que constri o direito e faz surgir a norma jurdica, essa fundamentao tica deveria anteceder a norma e refletir-se nela. Todavia, se assim no o for, competir ao julgador esse mister. Parece que o quanto consignado at aqui traz argumentos suficientes para, ao menos, causar alguma inquietao quanto ao cabimento ou no de uma prtica como o aborto, mas, guardadas as devidas propores tambm lanaria um novo olhar sobre a eutansia, a utilizao de (exrcitos) de embries que esto congelados nos laboratrios, a diversidade, que numa traduo simples significaria a aceitao dos casais homoafetivo e os efeitos deles decorrentes, fora do ambiente exclusivamente tcnico-jurdico, no qual a sensao de carncia de fundamentos slidos para tantas indagaes. Se certo que restou enfraquecida a escola positivista e que a lei no seria suficiente por si mesma nos dias atuais para socorrer o julgador, diante da velocidade com que as mudanas sociais acontecem e se diversificam os fatos que precisam ser disciplinados, tambm certo que em momento algum o contra-ponto ao positivismo poderia sugerir o juridicismo exacerbado de outrora, imbudo das percepes pessoais do julgador e de suas convices, religio ou grupo social, e desaguar no chamado decisionismo referido por Atienza, e tambm no desejado. O Poder Judicirio tem um grande poder concentrado no ato de julgar, de decidir conflitos, de dizer sobre patrimnio, liberdade e vida humana, e seu protagonismo precisa ser exercido com autoridade, que s se justifica pela iseno, pela imparcialidade, mas, sobretudo, pelo que se chamou de juzo tico, que preenche aquele vazio mencionado por Russ (1999) e d um novo contorno ao direito e sua aplicao nos tempos atuais. Dentro da proposta de reflexo contida nesse trabalho, guisa de concluses, vlido lembrar do que Dworkin (2010) chamou de pragmatismo jurdico, segundo o qual, para decidir os casos que se lhe apresentam, os Juzes devem recorrer a um estilo consequencialista e voltado para o futuro e sentencia o autor:
Eles devem tomar qualquer deciso que seja melhor para o futuro da comu-

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nidade sem levar em considerao as prticas do passado enquanto tais. (...) Ela pode ser uma concepo do utilitarismo dos atos, que sustenta que cada deciso poltica individual deve pretender maximizar a expectativa de bem-estar mdio de uma populao especfica no contexto de alguma concepo especfica de bem-estar: por exemplo, a felicidade ou a satisfao dos desejos. Ou pode ser uma concepo desvinculada de bem-estar, que defina as melhores conseqncias em termos de eficincia econmica ou maximizao da riqueza, por exemplo. (DWORKIN, 2010, p.32)

Imbudos desse sentimento, parece evidente que muitas vezes, em busca das melhores consequncias futuras, o simples argumento dedutivo no ser bastante para o ato de julgar e o Juiz ter que recorrer a argumentos jurdicos mais complexos e sofisticados, ou at mesmo aos fins de direito, alcanando at o senso moral, como prescreve a oitava tese de Atienza (2001). A partir daqui, e certos do recurso ao fundamento tico (rectius:moral), o que se tem que encontrar qual o tipo de moral cabe encontrar nas decises judiciais, ao que ele responde que uma moral objetivista, interna ao Direito. Por derradeiro, como disse Atienza (2001) em sua dcima teoria, nem sempre possvel dar satisfao a todas as exigncias que so enunciadas, porque ser racionalista em Direito reconhecer os limites da razo. Logo, nem sempre ser possvel encontrar uma soluo eticamente aceitvel com base no Direito positivo e nas regras formais de justia. Problemas jurdicos desse tipo remetem para situaes-limite que podem ser chamadas de casos trgicos esto sempre abertos para juzos de equidade. E diga-se mais, confessando completa suspeio por adeso ao refinamento das idias de Atienza (2001), preciso reconhecer que na aplicao do Direito no se tem necessidade apenas de razo, de leis, ou de tica, porque na aplicao do Direito h tambm espao para os sentimentos e as paixes, alm de uma dose de generosidade e compaixo que pode ser esperada do julgador em casos que lidam com emoes e vidas humanas.

Referncias ________________________________________________________________________ ATIENZA, Manuel. Cuestiones judiciales. 1 Ed. Mxico: Distribuciones Fontamara, 2001. BOFF, Leonardo. tica e moral: A busca dos fundamentos. 5.ed. Petrpolis, RJ: Vozes, 2009. DINIZ, Maria Helena. Compndio de Introduo cincia do Direito. 4 ed. So Paulo: Saraiva, 1992. DWORKIN, Ronald. A justia da toga. Traduo: Jefferson Luiz Camargo. Rev. De traduo: Fernando Santos. So Paulo: Martins Fontes, 2010. PERELMAN, Cham. tica e direito.Traduo: Joo C. S. Duarte. Lisboa: Instituto Piaget. Coleo Direito e Direitos do Homem, 1990. RUSS, Jacqueline. Pensamento tico contemporneo. Traduo de Constana Marcondes Cesar. So Paulo: Paulus, 1999 Coleo filosofia em questo.

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ENTRE ASPAS
SINGER, Peter. tica prtica. Traduo de Jefferson Luiz Camargo. 3 Ed. So Paulo: Martins Fontes, 2002. Coleo biblioteca universal.

Notas ______________________________________________________________________________ 1. O texto na lngua original : Mi primera tesis y bien simple es que juzgar implica siempre decidir, pero es necesario distinguir entre tomar una decisin y hacerlo en una forma decisionista. El juez es un decisor, pero no debe ser un decisionista.(ATIENZA, 2001, p.10). O autor deixa clara a diferena entre deciso e decisionismo, e demonstra que o poder do juiz, em especial no Estado de Direito, um poder limitado e controlado. O decisionismo se caracteriza por uma tendncia a ignorar os limites ou pensar que so fictcios. O juiz decisionista, para o autor, aquele que cr que julgar uma questo de vontade e no de razo. 2. Na lngua original, tem-se: Explicar una decisin significa mostrar las causas, las raznes, que permiten ver una decisin como un efecto de esas causas. Justificar una decisin, por el contrario, significa mostrar las razones que permiten considerar la decisin como algo aceptable. Em los dos casos se trata de dar razones, pero la naturaleza de las mismas es bien distinta: por ejemplo, cabe perfectamente que podamos explicar una decisin que, sin embargo, nos parece injustificable; y los jueces los jueces Del Estado de Derecho tienen, em general, la obligacin de justificar pero no de explicar sus decisiones. A justificao da deciso coincide com sua fundamentao; uma ferramenta para legitimao e controle das decises judiciais.

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A PERDA DE UMA CHANCE CIVILMENTE REPARVEL

Silvio Maia da Silva


Assessor. Graduado em Direito pela Universidade Catlica de Pernambuco. Ps-graduado em Direito Civil e Direito Processual Civil pela Escola de Magistrados da Bahia EMAB.

Resumo: A responsabilidade civil um tema em permanente evoluo e a perda de uma chance uma nova vertente do pensamento jurdico. O presente artigo busca a compreenso do que vem a ser a Responsabilidade Civil pela Perda de uma Chance, na sua concepo clssica, a partir da observao do pensamento doutrinrio e jurisprudencial, fazendo-se uma abordagem, ao final, da questo da quantificao do dano. O referido tema, apesar de bem explorado em excelentes trabalhos doutrinrios, se apresenta em desenvolvimento, sobretudo no campo de atuao do Poder Judicirio. A responsabilidade civil pela perda de uma chance objetiva reparar o dano provocado pelo desaparecimento da probabilidade de um evento favorvel. Palavras-Chave: Responsabilidade civil. Teoria da perda de uma chance.

1. Introduo A Responsabilidade Civil um tema instigante e de interesse geral. As regras de conduta esto presentes em todos os aspectos sociais desde o convvio entre vizinhos, no ambiente de trabalho, nas relaes comerciais e de consumo. Uma pessoa que assuma a direo de uma companhia industrial, por exemplo, pode, no primeiro momento, no perceber as inmeras possibilidades de responder civilmente, perante a prpria companhia, seus acionistas, consumidores e a sociedade de um modo geral, inclusive pelos danos decorrentes do risco da atividade econmica. Na administrao pblica no diferente, diante das inmeras possibilidades de responsabilizao do gestor pblico. Todos os que exercem alguma atividade, mesmo os que tm um histrico de vida cuidadoso, diante de um descuido momentneo, podem, em uma frao de segundos, praticar um ato ilcito e danoso a outrem. Assim, a responsabilidade civil um tema que est relacionado vida em sociedade, ao cuidado que se deve ter quanto aos deveres e obrigaes perante outrem. Ela pode estar relacionada ao exerccio da liberdade ou atribuio que o indivduo tem para a prtica de determinados atos, dos mais simples aos mais complexos, como prestar um servio, defender uma causa, dirigir um veculo ou comandar uma aeronave. Quaisquer dessas atividades, se no exercidas adequadamente, podem ter consequncias negativas e causar dano. Esses atos podem, tambm, acarretar uma espcie de dano que, muitas vezes, pode at 237

ENTRE ASPAS passar despercebido pelo seu causador no momento do evento e que consiste em um obstculo a uma oportunidade de se obter um lucro ou em se afastar um prejuzo previsvel, conhecido como Perda de uma Chance.

2. Origem da Dogmtica A teoria da perda de uma chance surgiu na Frana. Atribui-se o seu nascimento a uma deciso do ano de 1889, ocasio em que a Corte de Cassao Francesa, decidiu pela condenao de um funcionrio ministerial que impossibilitou o xito de demanda proposta por um cidado (GONDIM, 2010, p. 48). Savi (2009, p. 7, grifo do autor) menciona que em 1940 a responsabilidade civil por perda de uma chance foi objeto de estudo na Itlia pelo professor Giovanni Pacchioni, autor de clssica obra intitulada Diritto Civile Italiano, na qual discorre sobre a possibilidade de reparao decorrente de perda de chance em casos como o de um jquei que, tendo sido contratado pelo proprietrio de um cavalo de corrida, no chegou a tempo de participar da competio; dos Correios que no entregaram a tempo um quadro que deveria participar de uma exposio, alm do caso do advogado que deixou transcorrer o prazo sem a interposio do recurso de apelao, privando o seu cliente da possibilidade de obter a reforma de uma deciso desfavorvel. Apesar da origem francesa, foi na Itlia que ocorreu uma profunda discusso sobre o tema, o que por certo contribuiu para o avano e difuso da teoria entre ns. No Brasil, a Responsabilidade Civil pela perda de uma chance um tema que tem despertado a ateno de autores. Os mais tradicionais, nos Livros sobre Responsabilidade Civil, tm se referido ao assunto sem dar maior destaque, tratando-no quando abordam a responsabilidade civil do advogado. No entanto, Srgio Cavalieri Filho, no Programa de Responsabilidade Civil (Atlas, 2010, p. 77) e Fernando de Noronha, em Direito das Obrigaes (Saraiva, 2010), discorrem sobre a matria de modo mais abrangente. A literatura nacional, embora no vasta, dispe de obras especficas, nas quais o tema estudado em profundidade. Coube a Srgio Novais Dias, o pioneirismo na abordagem da Perda de uma Chance, sob a tica da responsabilidade civil do advogado (Responsabilidade Civil do Advogado: Perda de uma Chance. LTr, 1999). Deve-se, no entanto, a Rafael Peteffi da Silva (Responsabilidade Civil pela Perda de Uma Chance. Atlas, 2009), Srgio Savi (Responsabilidade Civil por Perda de Uma Chance, Atlas, 2009) e Glenda Gonalves Gondim, esta ltima em dissertao apresentada no ano de 2010 ao Programa de Ps-Graduao em Direito, da Universidade Federal do Paran (A Reparao Civil na Teoria da Perda de Uma Chance) uma anlise aprofundada sobre o tema. A jurisprudncia tem tambm contribudo para a compreenso da responsabilidade civil por perda de uma chance, sobretudo a partir dos julgamentos proferidos na ltima dcada. Antes da adoo da teoria em estudo predominava a ideia do tudo ou nada na apreciao de situaes de dano decorrente de perda de chance, isto , ou se admitia o nexo causal entre a conduta culposa e o dano como resultado final para ensejar a reparao ou nada seria reparado (GONDIM, 2010, p. 50), fazendo com que a aplicao do direito muitas vezes se distanciasse de um conceito adequado de justia. O Tribunal de Justia de So Paulo, em julgado do ano de 1936, decidiu que a simples possibilidade de ser reformada uma deciso mediante interposio de recurso, no preparado no 238

A REVISTA DA UNICORP prazo pelo advogado, no autoriza a ao de reparao de dano contra o profissional. Ao comentar o referido acrdo, Aguiar Dias discordou da deciso, uma vez que, para ele, o ato culposo do advogado era evidente, bem como o prejuzo causado ao cliente. No entanto, concluiu o autor que, como a prova do prejuzo seria praticamente impossvel de ser demonstrada, no seria possvel estabelecer uma condenao (AGUIAR DIAS, 1995, p. 296 apud SAVI, 2009, p. 39). No sentido oposto, o Tribunal de Justia do Estado do Rio de Janeiro, deu provimento Apelao Cvel n 2002.001.05527 para julgar procedente uma ao indenizatria promovida contra quatro advogados, pelo mesmo motivo do caso mencionado no pargrafo anterior (falta de interposio de recurso de apelao) e condenou os apelados a ressarcir apelante pelos valores que esta despendeu nos processos em que atuaram, condenando-os ainda devoluo do que receberam a ttulo de honorrios advocatcios. Essa deciso foi posteriormente confirmada pelo Superior Tribunal de Justia, em acrdo proferido no Recurso Especial n 596.613-RJ, publicado em 02.08.2004, cuja ementa reproduzida por Venosa e na qual se afirma que a omisso, sem o consentimento prvio do constituinte, quanto interposio de qualquer recurso ordinrio que se impunha necessrio para a defesa dos interesses do patrocinado, configura-se desdia de todos os outorgados (VENOSA, 2008, p. 261). Por sua vez, a 4 Turma Cvel, do Tribunal de Justia do Estado do Mato Grosso do Sul, em deciso proferida em 18.04.2006, no Processo n 2005.013760-1, negou provimento a recurso interposto por dois advogados que haviam sido contratados pelas apeladas para, em nome destas, ajuizar ao de cobrana contra o referido Estado, visando o recebimento de encargos financeiros decorrentes do atraso no pagamento de salrios. A ao, ajuizada no ano de 1994, foi extinta sem exame do mrito porque no foi atendido um despacho que determinou a emenda da petio inicial. Extinto o processo, os referidos advogados providenciaram o ajuizamento de novo processo, que tambm foi extinto, mas, desta vez, por ter sido declarado prescrito o direito de ao. Em ao promovida contra os advogados, foram estes condenados a indenizar as ex-clientes em valores idnticos aos que estas aufeririam nas demandas em que os referidos profissionais atuaram em favor de ambas, caso tivesses sido exitosas. No primeiro litgio, v-se que no foi imputada qualquer responsabilidade ao advogado que perdeu o prazo do recurso, enquanto que nos demais casos os advogados foram condenados reparao integral do dano, isto , ao valor idntico ao que s demandantes aufeririam, caso os recursos tivessem sido interpostos e julgados totalmente providos. Nas decises condenatrias antes mencionadas no se percebe qualquer anlise das possibilidades de sucesso dos recursos que no foram interpostos, de sorte que o xito total pareceu presumido, mesmo diante de sentenas desfavorveis aos interesses das vtimas.

3. Desenvolvimento da Dogmtica A Perda da Chance como um Dano Autnomo Com a evoluo da teoria da responsabilidade civil pela perda de uma chance, que permite a aplicao de estudos e mtodos para a aferio de uma probabilidade, em que possvel predeterminar, com uma aproximao mais que tolervel, o valor de um dano que inicialmente parecia entregue prpria sorte possvel se chegar a um valor dotado de certa autonomia em relao ao resultado definitivo (SAVI, 2009, p. 3), afastando-se, portanto a dicotomia anteriormente existente do tudo ou nada. 239

ENTRE ASPAS Embora, a perda de uma chance, traduo literal da expresso perte dune chance, tenha origem francesa, coube a Adriano De Cupis e a Maurizio Bocchiola a fixao das bases para uma melhor compreenso dessa teoria, ao entend-la como um dano emergente independente do resultado final e que ocorre no momento em que perdida uma oportunidade de se obter um lucro ou de se evitar uma perda (SAVI, 2009, p. 10). Para Cavalieri Filho, a perda da uma chance se caracteriza quando, em virtude da conduta de outrem, desaparece a probabilidade de um evento que possibilitaria um benefcio futuro para a vtima, como progredir na carreira artstica ou militar, arrumar um melhor emprego, deixar de recorrer de uma sentena desfavorvel pela falha do advogado, e assim por diante. Em uma sntese, a teoria da perda da uma chance repousa em dois pilares: na certeza da perda de uma oportunidade e na probabilidade frustrada de um resultado favorvel vtima (PEREIRA, 1992, p. 42, apud CAVALIERI FILHO, 2010, p. 77). Na teoria da responsabilidade civil pela perda de uma chance o bem juridicamente tutelado a prpria perda de uma chance, isto , a perda de probabilidade de um resultado final almejado e no o prprio resultado em si, sobre o qual haver dvida se seria totalmente alcanado, sendo certo, contudo, que a vtima teria uma possibilidade, uma expectativa benfica. Por isso, uma das consequncias da adoo dessa teoria a de que a quantificao do dano pela perda da uma chance ter sempre um valor inferior ao resultado final. A perda de uma chance, apesar de relacionar-se a frustrao de um evento futuro, categoria de dano emergente e no de lucro cessante, como pode aparentar, sendo entendida pela doutrina como um dano especfico e autnomo, no qual a perda o que deve ser reparado, independente do resultado final (GONDIM, 2010, p. 64). Na aferio da responsabilidade pela perda de uma chance, haver necessidade da constatao de uma conduta culposa ou inadequada do agente, como o descumprimento de um dever primrio, que cria um obstculo a um processo em curso que resultaria em uma probabilidade sria de xito da vtima, encarada como um interesse jurdico tutelado. Em resumo, pode-se afirmar que a reparao por perda de uma chance deriva da eliminao injusta de uma real probabilidade de se obter um ganho futuro ou de se evitar um dano. Existem no esporte dois exemplos recentes de perda da uma chance por atletas brasileiros, um deles bastante citado em artigos cientficos, como forma de facilitar a compreenso do conceito de perda da uma chance. No primeiro caso, a Atleta Fabiana Murer, nas Olimpadas de 2004, depois de iniciar a competio de forma bem sucedida, perdeu as suas possibilidades de xito no salto em altura ao no conseguir encontrar a vara que seria utilizado no salto seguinte. A falta desse equipamento indispensvel, que no estava ao alcance da saltadora por suposta culpa da organizao da prova, fez com que a atleta perdesse a chance de pelo menos auferir um bom resultado na competio, alm de desperdiar todo o investimento realizado na fase de preparao. O outro caso o do corredor Vanderlei Cordeiro de Lima, a respeito do qual se far uma breve abordagem nas consideraes finais, assim comentado por Gondim (2010, p. 1):
Nos jogos olmpicos do ano de 2004, na cidade de Atenas, na Grcia, a prova da maratona foi marcada por um acontecimento que surpreendeu aqueles que acompanhavam a sua realizao. Nos ltimos quilmetros a serem percorridos, o maratonista brasileiro, Vanderlei Cordeiro de Lima, que liderava a competio, foi segurado por um homem que invadiu a pista. Pessoas que acompanhavam a prova e

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policiais auxiliaram a imediata retirada do invasor. O maratonista que estava em primeiro lugar, com uma diferena de, aproximadamente, trinta segundos para com os outros competidores, ao retornar prova, demorou alguns segundos para retomar o ritmo de corrida e terminou a competio em terceiro lugar, premiado com medalha de bronze. As manchetes dos jornais no Brasil divulgaram o ocorrido ora como a obteno da medalha do bronze e ora como a perda da medalha de ouro. A dvida que se instaurou era se o competidor teria ganho a medalha de ouro se no tivesse ocorrido o incidente. No possvel responder com absoluta certeza essa questo, pois a vitria dependia de fatores alheios e, em virtude da conduta do invasor, no ocorreu. Essa indagao apresenta um problema jurdico sobre a existncia de responsabilidade civil do invasor e quais seriam as conseqncias em caso positivo.

Na anlise de Gondim (2010, p. 48) no episdio relatado esto presentes pressupostos da responsabilidade civil (conduta culposa, dano e nexo causal entre ambos), no qual a conduta culposa encontraria fundamentos na invaso da pista, bem como por ter o invasor segurado o maratonista, mas as maiores indagaes aparecem no que diz respeito ao dano, uma vez que o atleta terminou a maratona na terceira colocao e no h como comprovar, efetivamente, se ausente a invaso da pista teria o corredor permanecido em primeiro lugar e ganho a medalha de ouro.

4. A Perda da Chance e o Lucro Cessante Por estar relacionada a uma ideia de futuro, a perda de chance, na sua acepo clssica, tem relao com o lucro cessante, que modalidade de dano material definido no art. 402 do Cdigo Civil. Para Carlos Roberto Gonalves (2009, p. 344), o advrbio razoavelmente contido no dispositivo legal (aquilo que o credor razoavelmente deixou de lucrar) no significa que se pagar aquilo que for razovel (ideia quantitativa) e sim que se pagar se se puder, razoavelmente, admitir, baseado em provas, que houve lucro cessante (idia que se prende existncia mesma do prejuzo), pois a indenizao no se pautar pelo razovel e sim pelo provado. Buscando estabelecer as dessemelhanas entre perda da uma chance e lucro cessante, um critrio que pode ser utilizado o da certeza dos danos, uma vez que se deve determinar como lucro cessante somente o caso em que se verifica a perda de uma possibilidade favorvel, que pertencia a um determinado sujeito com uma probabilidade que representa a certeza; nas hipteses de perda de uma chance, por outro lado, o acontecimento do resultado til , por definio, de demonstrao do impossvel (BOCCHIOLA, 1976, p. 74 apud SAVI, 2009, p. 17). No caso de lucro cessante, a vtima dever fazer prova no somente do lucro cessante, mas dos pressupostos e requisitos necessrios para a verificao deste lucro. J nas hipteses de perda de uma chance, estaremos sempre no campo do desconhecido, pois, em tais casos, o dano final , por definio, de demonstrao impossvel, mesmo sob o aspecto dos pressupostos de natureza constitutiva (SAVI, 2009, p. 17). Ao estabelecer a diferena entre uma coisa e outra, Chaves afirma que o lucro cessante espcie de dano patrimonial que consiste na perda certa e incontroversa de um bem jurdico que iria se incorporar ao patrimnio do titular, enquanto que a perda da uma chance uma 241

ENTRE ASPAS probabilidade suficiente e mnima de obteno de um benefcio, caso no tivesse sido subtrada uma oportunidade Ainda segundo Chaves, a perda de uma chance pode estar correlacionada a um dano no afervel patrimonialmente, diversamente dos lucros cessantes, cuja certeza da frustrao de uma vantagem patrimonial futura deflui da leitura do comando 403 do Codex (A Teoria da Perda de uma Chance Aplicada ao Direito de Famlia, p. 4). Em uma sntese, na fixao do lucro cessante busca-se um valor igual ao que viria a ser o resultado final evidenciado em provas. J na perda de uma chance isso no vivel, embora se possa chegar a um valor prximo ao do resultado final, mas inferior a este. Por isso que Savi oferece a lio de que possvel estabelecer algumas diferenas entre os dois conceitos. A primeira delas seria quanto natureza dos interesses violados. A perda de uma chance decorre de uma violao a um mero interesse de fato, enquanto o lucro cessante deriva de uma leso a um interesse subjetivo (SAVI, 2009, p. 15). Na lio de Cavalieri Filho (2010, p. 75), lucro cessante a conseqncia futura de um fato j ocorrido e que consiste na perda do ganho espervel, na frustrao da expectativa de lucro, na diminuio potencial do patrimnio da vtima, como ocorre na cessao dos rendimentos que algum j vinha obtendo da sua profisso, como tambm da frustrao daquilo que era razoavelmente esperado.

5. A Perda da Chance Como Dano Certo A doutrina nacional no diverge em admitir que a chance integra o patrimnio da vtima no momento em que perdida. Savi sustenta que o grande mrito de De Cupis est em reconhecer o valor patrimonial da chance e em enquadr-la como uma espcie de dano emergente. Para Savi, as lies de De Culpis so um divisor de guas para a admissibilidade da teoria no Direito Italiano, destacando o seguinte trecho da obra do referido autor (DE CUPIS, 1976, p. 264 apud SAVI, 2009, p. 11):
A vitria absolutamente incerta, mas a possibilidade de vitria, que o credor pretendeu garantir, j existe, talvez em reduzidas propores, no momento em que se verifica o fato em funo do qual ela excluda: de modo que se est em presena no de um lucro cessante em razo da impedida futura vitria, mas de um dano emergente em razo da atual possibilidade de vitria que restou frustrada.

Assim, mesmo que a oportunidade esteja ligada a uma ordem cronolgica de acontecimentos, o dano ocorre no momento em que ela perdida, tratando-se, consequentemente de um dano autnomo e diferente da vantagem final almejada. Para Bocchiola nesses casos, no se concede a indenizao pela vantagem perdida, mas sim pela perda da possibilidade de conseguir esta vantagem, isto , faz-se a distino entre o resultado perdido e a uma chance de consegui-lo. Segundo o referido autor, perdida a chance, o dano , portanto, certo (BOCCHIOLA, 1976, p. 84, apud SAVI, 2009, p. 18). Ao abordar essa questo e depois de assegurar a certeza do dano no momento em que ocorre a perda da oportunidade, Gondim (2010, p. 65) afirma que o contedo dessa reparao depende de um resultado final e por isso que no pode ser considerado como um dano totalmente autnomo. Segundo a referida autora: 242

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Exemplificativamente o cavalo que no inicia a corrida hpica porque o seu transportador atrasa o transporte e assim, no chega em tempo. O prmio perdido incerto e por isso no ser reparvel, mas antes do incio da corrida j era possvel prever quantas chances tinha o animal de provavelmente alcanar uma boa colocao. Mesmo que o prmio final seja incerto porque, ante a no entrega em tempo do animal, no ser possvel saber qual seria o resultado final, existe a chance, avaliada pela probabilidade do cavalo ganhar a corrida ou conseguir boa classificao. essa chance que fundamenta a teoria desse estudo e para ser reparvel, ela deve apresentar as caractersticas e requisitos de um dano, ou seja, resultar da leso a um interesse jurdico, com existncia certa e devidamente comprovada. O requisito da chance analisado no atravs do resultado final que se realizaria, o qual incerto, mas das chances que o ofendido possua em obter a vantagem. Deste modo, quando se perde uma chance concreta, existe uma certeza que embasa a sua reparao de que seria provvel alcanar o resultado final.

Para Gondim (2010, p. 69/70), a perda de uma chance est ligada existncia de uma ordem lgica de acontecimentos que foi interrompida e caso no o fosse, resultaria em uma vantagem ou evitaria a ocorrncia de um dano, a sua reparao pode ser aplicada em diversos campos do direito, desde que adaptada aos referidos pressupostos, atravs de uma interpretao diferenciada, a propsito do que cita como exemplo a deciso do Tribunal de Justia do Rio Grande do Sul na Apelao Cvel n 700225179458, cujo voto do relator extraiu o seguinte trecho:
(...) 10. O dever de indenizar com fundamento na perda de uma chance requer que o autor comprove que, caso inexistente a ao ou omisso do ru, teria efetivamente obtido o bem da vida almejado. O que ocorre, efetivamente, que, para se falar em responsabilizao por perda de uma chance, preciso que esteja em curso uma situao que propicie uma oportunidade de, no futuro, uma pessoa auferir algum benefcio, e que tal processo seja interrompido por um determinado fato antijurdico que inviabiliza a oportunidade. 11. Os elementos que caracterizam a perda de uma chance so (a) a conduta do agente; (b) um resultado que se perdeu, podendo ser caracterizado como o dano; e (c) o nexo causal entre a conduta e a chance que se perdeu (assim, essa teoria no dispensa o nexo de causalidade, mas o analisa sob uma perspectiva diferente). 12. O nexo causal dever existir entre o fato interruptivo do processo e o suposto dano e assim ser caracterizado se for suficiente para demonstrar a interrupo do processo que estava em curso, por um fato ilcito, e que poderia levar ao resultado pretendido.

Para Rafael Peteffi (2009, P. 232), alm da chance perdida ter todas as condies para ser considerada como um dano quantificvel e amplamente provado, tambm no se encontra dificuldade para demonstrar o nexo de causalidade certo e direto entre a conduta do ru e a perda da chance. 243

ENTRE ASPAS A reparao pela perda de uma chance situa-se, como j visto, no terreno da probabilidade. Para a sua admisso, a possibilidade perdida h de ser sria e real. No dizer de SAVI (2009, p. 4) na maioria dos casos, a chance somente ser considerada sria e real quando a probabilidade de obteno da vantagem esperada foi superior a 50%. Essa linha de orientao foi adota em recente deciso do Tribunal de Justia do Mato Grosso do Sul, objeto do Recurso Especial n 1.184.128-MS (2010/0038999-0), no qual foi estabelecida indenizao igual 50% daquela que seria devida a ttulo de dano moral, levandose em considerao as chances de sobrevivncia da vtima. O caso se referia a uma ocorrncia em que um mdico de pronto-socorro que recusou a internao de um paciente que apresentava um quadro de sade grave, que foi encaminhado para tratamento ambulatorial em posto de sade, de sorte que a no internao no ProntoSocorro, onde o paciente teria maiores possibilidades de sobrevivncia, resultou na frustrao da disponibilidade dos melhores cuidados que estavam ao alcance do hospital e que poderiam importar em resultado favorvel ao paciente. O critrio de aferio da seriedade da chance a partir da superao do percentual de 50% possui logicismo incontestvel, uma vez que a possibilidade entre 50 e 100% estaria em uma zona de maior probabilidade de se consumar e uma possibilidade inferior a 50% estaria em uma faixa de maior probabilidade no acontecer. Esse critrio, apesar ser defendido por boa parte da doutrina nacional e estrangeira, tem sido evitado por alguns doutrinadores como um divisor de guas entre a chance reparvel e a hipottica, em face da dificuldade de estabelecerse um percentual exato da oportunidade. Para John Makdisi, a reparao dever ser quantificada de acordo com a probabilidade de causalidade provada. Se existem 80% de probabilidade de que a conduta do ru tenha causado o dano experimentado pela vtima, o dano ser quantificado em 80%, valendo o mesmo raciocnio se o dano for de 40%, por exemplo (MAKDISI, 1989, p.1065, apud Peteffi, 2009, p. 51). Tambm divergindo do referido padro, Peteffi (2009, p. 61) afirma que, se uma falha mdica apresenta 30% de chances de ter causado dano, o mdico responsvel no seria condenado a repar-lo e, por conta disso, no teria razes jurdicas para mudar a sua conduta, retirando da responsabilidade civil a sua funo pedaggica, pensamento esse que parece ter sido adotado por Gondim (2010, p. 79), que afirma que o mais importante comprovar a existncia da probabilidade de uma vantagem resultante do procedimento de eventos que se desencadearia at a ocorrncia de uma conduta.

6. Crticas Autonomia da Perda da Chance A ideia em torno da autonomia do dano da perda de chance encontra argumentos contrrios, inclusive de autores que defendem a causalidade parcial (na qual necessrio avaliar o grau de conduta do causador do dano), para os quais as perdas das chances seriam apenas um meio de quantificar o liame causal entre a ao e o dano final. Segundo Peteffi (2009, 51), toda a argumentao dos autores que no consideram as chances perdidas como nova modalidade de dano tem como cerne a indissociabilidade deste com o dano final, de sorte que as chances perdidas no subsistem de forma separada do prejuzo, representado pela perda definitiva da vantagem esperada. O referido autor fornece o exemplo do cliente que contrata um advogado para realizar 244

A REVISTA DA UNICORP uma sustentao oral em recurso de apelao e que se esquece de comparecer sesso de julgamento e, mesmo assim, o cliente tem xito no resultado. Outro exemplo, seria o do mdico que no efetua um procedimento recomendado, retirando 40% das chances de vida do paciente, mas este no sofre qualquer seqela (PETEFFI, 2009, p. 51). Nos dois casos verificou-se a perda da chance, mas o vtima no experimentou qualquer prejuzo por causa desse fato. Para os defensores da causalidade parcial, a necessidade da vtima de esperar at o final do processo aleatrio mesmo que a perda das chances j tenha sido constatada em momento anterior para saber se poder intentar a ao de reparao macula a autonomia das chances perdidas (2009, p. 52). No entanto, as crticas autonomia do dano s ganham maior relevo na segunda modalidade de perda de chance, isto , nos casos em que o processo aleatrio chega ao seu final e o dano verificado, como ocorre na seara mdica. Em razo disso, para esses casos, Peteffi (2009, p. 246) conclui que a teoria da perda de chance deveria se constituir em uma opo subsidiria, utilizada somente aps esgotar as possibilidades da utilizao ortodoxa do nexo causal.

7. Classificao Adotada no Brasil Apesar de o presente voltar-se ao estudo da teoria da perda da chance na sua modalidade clssica, quando um processo que estava em curso interrompido com a perda de uma vantagem esperada, impe-se, ainda que superficialmente, uma abordagem sobre a classificao adotada pelos autores brasileiros, a partir da doutrina de Fernando de Noronha (NORONHA, 2010, p. 699). Diante da possibilidade da aplicao de perda de uma chance de forma variada, Noronha estabeleceu uma classificao que recebeu elogios da doutrina e que, para Peteffi, (2009, p. 107) foi concebia de forma indita e que, apesar de fundamentada em opinies de outros autores, no se filia a nenhum deles. A proposta que tem sido adotada pelos autores nacionais, apresenta uma diviso em duas modalidades bsicas, a saber: "frustrao da chance de obter uma vantagem futura e frustrao da chance de evitar um dano que aconteceu, sendo que esta ltima categoria comporta uma subdiviso em perda da chance de evitar que outrem sofra um prejuzo e a perda de uma chance por falta de informao. Para Noronha (2010, p. 700), se os danos em causa fossem exclusivamente patrimoniais, seria possvel dizer que na primeira submodalidade (frustrao de uma vantagem futura) a perda de chance se traduziria num lucro cessante, enquanto na segunda (frustrao de dano futuro) ela se caracterizaria um dano emergente. A primeira modalidade de responsabilidade civil pela perda de uma chance, como j visto, consiste na ocorrncia de um ato ilcito que interrompe o processo aleatrio em curso e impede que a vtima alcance uma vantagem futura, sem que se saiba, ao certo, se a vtima conseguiria o resultado final, caso no interrompido os acontecimentos. A segunda modalidade de perda da chance, que aquela que diz respeito a um ato que poderia evitar um prejuzo que aconteceu. Um exemplo dessa modalidade verificou-se na demanda objeto da deciso judicial mencionada no captulo n 5, proferida pelo Tribunal de Justia do Estado do Rio Grande do Sul, objeto de recente julgamento pelo Superior Tribunal de Justia, no Recurso Especial n 1.184.128-MS (2010/0038999-0). No referido episdio, o paciente, que veio a bito, perdeu a possibilidade de um trata245

ENTRE ASPAS mento mais apropriado ao no ser atendido em unidade de pronto-socorro, embora encaminhado para um posto de sade. O Tribunal de Justia do Mato Grosso do Sul adotou a teoria da perda da uma chance e fixou uma reparao pelas chances perdidas equivalente a 50% da indenizao que seria devida a ttulo de dano moral. Da ementa do acrdo se extrai os seguintes itens:
2. Se o paciente procura a emergncia do hospital para ser atendido pelo mdico plantonista e este lhe presta socorro, no h o que se cogitar se este era ou no assalariado, estando de alguma forma vinculado ao nosocmio, este responder pelos danos que seu profissional causar. 3. Houve erro do mdico plantonista, na modalidade culposa, em virtude da sua negligncia por omisso de providncias aptas em tese a impedir a produo do dano. 4. Ao encaminhar o paciente para tratamento ambulatorial em um posto de sade, o mdico plantonista ceifou a chance de um diagnstico mais seguro e um tratamento emergencial mais contundente, residindo a o nexo de causalidade em aplicao da teoria da perda dune chance. 5. Adotando-se a teoria da perda de uma chance, no cabe a indenizao por danos materiais, uma vez que no se tem a certeza de que efetivamente o resultado esperado ocorreria. 6. H de se ressaltar que a indenizao fundada na aplicao da perda de duma chance dever situar-se no limite percentual de chances perdidas, o que se pondera caso a caso, Desta forma, a indenizao, pelo dano moral h que ser fixada em 200 (duzentos) salrios mnimos, os quais, tomando-se por base o valor vigente, equivalem a R$ 83.000,00, j ponderando a reduo do quantum em 50%, em virtude das chances de sobrevivncia da vtima.

Nesse caso, sequer foi possvel conhecer o mal acometido ao paciente ou a origem da infeco generalizada que o levou falncia mltipla de rgos e ao consequente bito, o que significa dizer que no se sabia, ao certo, se a internao no pronto-socorro traria a sobrevivncia da vtima. Todavia sabia-se que, ao ser negada a internao em local mais apropriado para o tipo de situao, dotado de profissionais com variadas especialidades mdicas, como so as unidades de pronto-socorro, negou-se ao paciente, de modo irremedivel, uma chance de ter o seu quadro clnico avaliado com maior rigor e de receber um tratamento adequado e imediato, o que poderia lhe conferir chance de sobrevida. A peculiaridade desse caso que, ao negar provimento ao Recurso Especial, a corte especial limitou-se a admitir a responsabilidade objetiva, dispensando a demonstrao de culpa do hospital relativamente a atos lesivos decorrentes da culpa de mdico integrante do seu corpo clnico, em face do art. 14 do Cdigo de Defesa do Consumidor, abstendo-se da discusso em torno da aplicao da teoria da perda de uma chance, por exigir o revolvimento do conjunto ftico-probatrio da causa. No entanto, ao discorrer sobre a atuao do mdico, o Superior Tribunal de Justia considerou que o acrdo recorrido revela a existncia de nexo causal entre a conduta do mdico e o dano, concluindo que ocorreu erro do mdico plantonista, na modalidade culposa, em virtude de sua negligncia por omisso de providncias aptas em tese a impedir a produ246

A REVISTA DA UNICORP o do dano. Assim, embora tenha negado a aplicao da teoria da perda da chance, essa teoria pareceu subtendida na referida afirmao, que admite que o atendimento mdico, caso realizado, poderia ter evitado o dano, bem como quanto a forma de quantificao do dano. Na hiptese de dano por erro mdico, Noronha (2005, p. 43) sustenta a necessidade de ser analisada situao de causalidade, se concorrente ou alternada, utilizando como exemplo a hiptese do paciente que teve o seu estado de sade agravado, podendo ter contribudo para esse agravamento a deficincia do tratamento e a evoluo endgena da doena. Se a piora do quadro clnico ocorreu das duas causas, tem-se a causalidade concorrente e se o agravamento decorreu apenas de uma delas, a causalidade ser alternativa. Nesta, os dois fatos aconteceram, mas apenas um deu causa ao agravamento do estado de sade do paciente, no se sabendo qual delas. Ainda segundo o autor, sendo possvel estabelecer a causa do agravamento dentre as duas possveis, haver responsabilidade do mdico se for constatado que a causa est relacionada deficincia do tratamento, no se falando em responsabilidade e, consequentemente, em perda da chance, se o contrrio ocorrer. Todavia, se no existir prova que permita selecionar um dos dois fatores, sendo ambos possveis causa do dano, no seria razovel que o lesado ficasse sem reparao alguma. Neste caso, se a dvida que fica subsistindo apenas porque existe uma outra causa possvel, ter que ficar a cargo do indigitado responsvel o nus da prova capaz de destruir a presuno de causao que milita contra ele (NORONHA, 2005, p. 43). Para Peteffi (2009, p. 109), se existir uma presuno de causalidade contra o ru, a nica soluo vivel a proposta por Genevive Viney, ou seja, a reparao integral do dano final. Do contrrio, no h como encontrar os fundamentos para a existncia de causalidade em relao ao dano final (engendrada por meio de uma presuno ou de causalidade concorrente) e a necessidade de se indenizar um prejuzo distinto. Portanto, para o mencionado autor, se o caso apresenta presuno da causalidade em relao ao dano final, no faz sentido a reparao do dano com base na teoria da perda da chance. Nesse ponto, parece haver uma divergncia entre os doutrinadores, uma vez que, para Noronha, o dano teria que ser quantificado de acordo com a probabilidade imputvel ao ru enquanto Peteffi caminha na direo reparao integral. Essa divergncia parece tambm existir entre as instncias julgadoras da demanda que resultou no Recurso Especial n 402.182-RS. O caso dizia respeito a erro cometido por perito (digitao equivocada de casa decimal em clculo trabalhista), a propsito do qual o advogado do reclamante deixou transcorrer o prazo concedido para a sua manifestao, perdendo a chance de corrigir o erro do perito, que resultou em dano ao reclamante. Ao reduzir a condenao do advogado para um tero, o rgo de segundo grau considerou que a responsabilidade tambm decorria da conduta do juiz e do contador, entendimento esse que no foi confirmado pelo Superior Tribunal de Justia, que decidiu pela condenao do advogado reparao integral do dano, reformando o acrdo do Tribunal de Justia do Rio Grande do Sul. Por fim, Peteffi (2009. p. 238) sustenta que a causalidade alternada ou a causalidade concorrente no apresentam os fundamentos mais adequados para respaldar uma tranqila aplicao sistemtica em relao aos casos de responsabilidade pela perda da chance, nos quais o processo aleatrio em que se encontrava a vtima foi at o seu final. Aduz que a modalidade de causalidade concorrente que se estabelece com o fato do responsvel (deficincia no tratamento) e caso fortuito ou de fora maior (evoluo da prpria doena) reprovada pela doutrina internacional, que considera o caso fortuito e a fora maior 247

ENTRE ASPAS como excludentes do vnculo causal e no como dirimentes da causalidade. No entanto, o referido autor menciona a existncia de recentes decises de tribunais ptrios em sentido contrrio. J a ltima modalidade de perda de chance decorre da falta ou da inadequada informao. Ela se verifica quando algum sofre dano por no ter tomado a melhor deciso, que estaria ao seu alcance se outra pessoa tivesse cumprido o dever, que incidia sobre ela, de informar ou aconselhar (NORONHA, 2005, p. 44). Para o autor (2005, p. 45), a responsabilidade por perda de chance s surge nas hipteses em que fosse evitvel o ato que causou o dano. Segundo ele, o dever de informar surge nas mais diversas situaes, em especial no mbito de relaes resultantes de negcios jurdicos, mas tambm fora delas. Um exemplo desse dano fornecido por Dias (1999, p. 36) segundo o qual:
H um caso de um advogado que aconselhou seu cliente a no comparecer em audincia trabalhista onde deveria apresentar defesa, porque a notificao fora entregue ao porteiro na sede da empresa, pois pensava o advogado que a notificao s seria vlida se entregue ao representante legal da empresa... Esse erro grosseiro de informao causou enorme dano ao seu cliente, que foi considerado revel e aplicada a pena de confisso quanto matria de fato, sendo condenado em quantia vultosssima, conquanto existissem inmeros documentos comprovadores do pagamento de vrias parcelas pleiteadas, que deixaram de ser apresentados, alm de vrias outras parcelas que, segundo aquele empregador, estavam baseados em alegaes falsas, as quais ficaram sem contestao.

Nos casos de responsabilidade mdica, ensina Gondim (2010, p. 114) que o defeito de informao pode embasar a totalidade de um dano quando o paciente, se bem informado, no se submeteria a determinada interveno cirrgica. Isto porque a adequada informao matria decorrente da boa-f e na relao mdico-paciente, ela necessria para fundamentar o consentimento esclarecido, ou seja, para que a escolha do tratamento seja realizada de forma totalmente consciente das possveis conseqncias e resultados que podero advir. Uma diferena entre a perda da chance decorrente da violao do dever de informar e a perda da chance de evitar um prejuzo que a primeira est ligada a um fato do prprio lesado, dependendo de uma atitude que este toma com base em uma inadequada ou inexistente informao, enquanto que a ltima est para alm dele (NORONHA, 2005, p. 45).

8. Quantificao do Dano Um critrio que pode ser adotado para a quantificao do dano decorrente da perda de chance que o valor do dano dever, em maior ou menor intensidade, se relacionar vantagem perdida. Peteffi (2009, p. 142) lembra que a responsabilidade pela perda de uma chance somente utilizada porque a vtima est impossibilitada de provar o nexo causal entre a conduta do agente e a perda definitiva da vantagem esperada e cita o seguinte exemplo:
O empresrio no logra provar que o seu negcio no se realizou pela falha de seu contador, assim como o cliente no consegue provar o nexo

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causal entre a ao ou a omisso do seu advogado e a improcedncia da demanda. Resta para a vtima, portanto, a reparao pela perda de uma chance, j que poder provar o nexo causal entre a conduta do agente e as chances perdidas.

Da, o autor apresenta uma regra bsica, que consiste na evidncia de que a reparao da chance perdida sempre dever ser inferior ao valor da vantagem esperada e definitivamente no consumada. Ele utiliza como exemplo a deciso da Corte de Cassao francesa que cassou um acrdo da Corte de Apelao de Rennes, que havia ordenado a integral reparao do dano representado pela morte do paciente, mesmo aps constatar que se tratava de um caso de perda de chance, tendo em vista a ausncia de nexo causal entre a conduta do ru e a morte do paciente (PETEFFI, 2009, p. 143). Nesse passo, a deciso proferida pelo Tribunal de Justia do Mato Grosso do Sul comentada no captulo anterior seguiu o mesmo critrio do autor, uma vez que, diante da certeza de que foi negada ao paciente a oportunidade de tratamento adequado (embora sendo invivel conhecer, com exatido, as possibilidades de sobrevida e de se estabelecer uma relao direta entre o ato ilcito e o bito do paciente) optou-se pelo arbitramento de indenizao igual a 50% da que seria devida a ttulo de dano moral. A perda da uma chance, por lidar com uma probabilidade, sempre deixar um grau de incerteza em relao o alcance do resultado final e, portanto, isto se refletir na convico de que a reparao correspondente nunca alcanar o valor do referido resultado. A circunstncia de o processo aleatrio no haver chegado ao seu final poder proporcionar incerteza acerca do valor do prprio resultado final, o que poder ser esclarecido pelos meios normais de prova. Todavia, uma vez quantificado o valor final e efetuada a estimava a probabilidade da chance perdida, os principais parmetros para a fixao da reparao estaro estabelecidos, porque a quantificao do dano deve refletir a porcentagem das chances perdidas (PETEFFI, 2009, p. 145). Assim, outra regra que se pode estabelecer que quanto maior for a probabilidade de xito perdido, maior ser o valor da reparao. Esse critrio decorre da prpria lgica da teoria, uma vez que, se a baixa probabilidade do acontecimento futuro causa da negativa do direito reparao, uma probabilidade elevada dever ter uma valorao maior, ideia que melhor se ajusta aos casos em que ocorre a teoria da perda da uma chance na sua concepo clssica. Na mesma linha de pensamento, Noronha (2005, p. 30) afirma que o valor da reparao do dano certo da perda da chance ficar dependente do grau de probabilidade que havia de ser alada a vantagem que era esperada, ou inversamente, do grau de probabilidade de o prejuzo ser evitado. Apesar da aparente simplicidade dos critrios, a fixao do dano causado por perda de chance pode resultar controvertida. Srgio Novais Dias (2009, p. 15), por exemplo, entende que a aplicao da teoria em relao atividade do advogado poder conduzir a um resultado injusto, porque o valor da reparao pode se aproximar do resultado discutido no processo. Como j visto antes, o valor do dano decorrente de perda de chance sempre inferior ao do resultado final, de sorte que no se poderia agir de outro modo na quantificao do dano causado pelo exerccio da atividade do advogado. Alis, na estimativa do dano final pela perda de uma oportunidade processual, em que se discuta a existncia de um crdito, por exemplo, no basta verificar a viabilidade do direito discutido em Juzo, mas tambm as reais possibilidades da parte auferir o ganho, uma vez que nem sempre os litigantes conseguem transformar 249

ENTRE ASPAS vitrias processuais em xito efetivo, em razo de questes relacionadas solvibilidade do devedor. Assim, alm de se saber se a vtima teria chances srias em relao ao direito de crdito, necessrio se faz saber se o recebimento desse crdito seria vivel, em razo da capacidade do devedor em solv-lo. Ainda no campo da atuao do advogado, Srgio Novais Dias (1999, p. 52) defende que, mesmo quando um advogado deixa de interpor um recurso de xito improvvel, haveria dano moral se o cliente (a vtima) tivesse o propsito legtimo e no protelatrio de ver a sua causa reexaminada. Nesse caso, no haveria dano material por falta do nexo de causalidade entre a ao e o dano, isto , no se falaria em perda de chance porque a probabilidade do resultado do recurso, caso interposto, estaria mais para o insucesso que para o xito da pretenso da vtima, de sorte que as suas chances seriam hipotticas. Um caso que pode contribuir para o tema ora enfocado, mencionado por Savi (2009, p. 50), foi objeto de julgamento pelo Tribunal de Justia do Estado do Rio Grande do Sul (nos Embargos Infringentes n 598164077) e que consistiu na perda de chance de participao em concurso pblico imputvel organizao do evento que, em primeira instncia, foi condenada reparao correspondente a 5 vezes o valor do vencimento do cargo pblico pretendido, condenao essa que foi elevada para o dobro no julgamento da segunda instncia. O estabelecimento da relao entre o valor da reparao da perda da chance e o dano final pode no ser to simples em situaes como essa, porque o vencimento que a vtima deixou de auferir no constitui exatamente um ganho, e sim uma contraprestao de um trabalho que seria executado ao longo de um ms e que se traduz em nus que a vtima no exerceu. Por outro lado, no se sabe, ao certo, se a mesma vtima, para exercer esse novo trabalho, teria que abrir mo de outra atividade remunerada, de sorte que o dano final poderia ser apenas uma diferena de um e outro salrio. A referida reparao, que pareceu razovel, foi fixada a ttulo de dano moral (porque assim foi deduzido o pedido). No entanto, o critrio adotado (relao direta entre a reparao e os valores no aferidos pela vtima) se revela mais compatvel com a reparao do dano material causado pela perda da chance, fenmeno que Savi (2009, p. 51) interpreta como sendo a utilizao da chance como agregador do dano moral. Outro caso bastante peculiar e que contribui para uma reflexo sobre a fixao do dano em relao perda da uma chance tramitou em uma das pioneiras varas especializadas em Direito derivado de relao de consumo comarca de Salvador-BA (1 Vara Especializada de Defesa do Consumidor). Esse caso desempenhou um papel didtico importante, posto que tem sido mencionado em diversos trabalhos doutrinrios e em decises de Tribunais, inclusive do prprio Superior Tribunal de Justia, transformando-se em uma espcie de marco na referida corte especial. Trata-se do caso conhecido como Show do Milho, que ainda pode contribuir para a compreenso da fixao do valor da indenizao. A demanda foi julgada pelo Superior Tribunal de Justia em 8 de novembro de 2005 (Recurso Especial n 788.459-BA), que teve como relator o ex-ministro Fernando Gonalves. O fato consistiu em um concurso em programa de televiso no qual uma pessoa foi admitida a responder perguntas sobre temas gerais e que, ao chegar a penltima pergunta, j havia acumulado uma premiao no valor de R$ 500.000,00. Nessa fase do concurso ela passaria a ser desafiada com a pergunta final (a chamada pergunta do milho) e, segundo as regras do programa, se houvesse erro na resposta, receberia apenas a quantia de R$ 300,00 e, caso acertasse a ltima pergunta, receberia o prmio mximo. Ocorre que a ltima questo foi concebida de forma a no permitir uma resposta correta. 250

A REVISTA DA UNICORP A indagao final era precidida de afirmao segundo a qual a Constituio Federal reconhece direitos dos ndios sobre o territrio brasileiro em um dos seguintes percentuais: 22%, 2%, 4% e 10%. Deveria, ento, a candidata efetuar escolha de uma das opes antes mencionadas, s que todas estavam erradas, o que importa dizer que a questo eliminava de forma irremedivel qualquer possibilidade de resposta certa e, consequentemente, a uma chance de se auferir o prmio objeto das regras estabelecidas pela direo do programa de televiso. Na primeira instncia, a ao foi julgada procedente e fixada a indenizao no valor de R$ 500.000,00, correspondente ao prmio mximo, deciso essa que foi confirmada pelo Tribunal de Justia do Estado da Bahia, em acrdo que, por sua vez, foi reformado pela deciso do Superior Tribunal de Justia antes mencionada, de sorte que as instncias ordinrias concederam vtima o resultado final almejado. Ao proferir o seu voto, o Relator do Recurso Especial transcreveu alguns trechos da deciso de segundo grau que, por sua vez, contm a transcrio de trechos da deciso de primeira instncia, dos quais so reproduzidos os seguintes:
A Constituio reconhece direitos aos ndios de quanto do territrio brasileiro? Resposta: 1 - 22% 2 - 02% 3 - 04% 4 - 10% (resposta correta) Ora, como bem afirma a ilustre Juza a quo na sentena recorrida "A pergunta, bvio, no deixa a menor dvida de que refere-se a um percentual de terras que seria reconhecido pela Constituio Federal como de direito pertencente aos ndios. Assim sendo, no tem cabimento a irresignao da recorrente quanto a ter a a quo concludo no sentido de ser a pergunta "irrespondvel", afirmando tratar-se de pergunta complexa que demanda raciocnio veloz do candidato, porque na Constituio Federal no h consignao de percentual relativo percentagem de terras reservadas aos ndios [...]. Como bem salienta a Magistrada na deciso: [...] a pergunta foi mal formulada, deixando a entender que a resposta correta estaria na Constituio Federal, quando em verdade fora retirada da Enciclopdia Barsa. E isso no se trata de uma "pegadinha", mas de uma atitude de m-f, qui, para como diz a prpria acionada, manter a emoo do programa onde ningum at hoje ganhou o prmio mximo. [...] No que pertine condenao em perdas e danos, bem analisada a questo na irretocvel sentena, com fundamento no art. 1059 do Cdigo Civil, vigente poca do ajuizamento da demanda.

A ementa do acrdo do Superior Tribunal de Justia tem o seguinte teor:


RECURSO ESPECIAL. INDENIZAO. IMPROPRIEDADE DE PERGUNTA FORMULADA EM PROGRAMA DE TELEVISO. PERDA DA OPORTUNIDADE.

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ENTRE ASPAS
1. O questionamento, em programa de perguntas e respostas, pela televiso, sem viabilidade lgica, uma vez que a Constituio Federal no indica percentual relativo s terras reservadas aos ndios, acarreta, como decidido pelas instncias ordinrias, a impossibilidade da prestao por culpa do devedor, impondo o dever de ressarcir o participante pelo que razoavelmente haja deixado de lucrar, pela perda da oportunidade. 2. Recurso conhecido e, em parte, provido.

No seu voto, argumentou o relator:


Na espcie dos autos, no h, dentro de um juzo de probabilidade, como se afirmar categoricamente ainda que a recorrida tenha, at o momento em que surpreendida com uma pergunta no dizer do acrdo sem resposta, obtido desempenho brilhante no decorrer do concurso que, caso fosse o questionamento final do programa formulado dentro de parmetros regulares, considerando o curso normal dos eventos, seria razovel esperar que ela lograsse responder corretamente "pergunta do milho". Isto porque h uma srie de outros fatores em jogo, dentre os quais merecem destaque a dificuldade progressiva do programa (refletida no fato notrio que houve diversos participantes os quais erraram a derradeira pergunta ou deixaram de respond-la) e a enorme carga emocional que inevitavelmente pesa ante as circunstncias da indagao final (h de se lembrar que, caso o participante optasse por respond-la, receberia, na hiptese, de erro, apenas R$ 300,00 (trezentos reais). Destarte, no h como concluir, mesmo na esfera da probabilidade, que o normal andamento dos fatos conduziria ao acerto da questo. Falta, assim, pressuposto essencial condenao da recorrente no pagamento da integralidade do valor que ganharia a recorrida caso obtivesse xito na pergunta final, qual seja, a certeza ou a probabilidade objetiva do acrscimo patrimonial apto a qualificar o lucro cessante. No obstante, de se ter em conta que a recorrida, ao se deparar com questo mal formulada, que no comportava resposta efetivamente correta, justamente no momento em que poderia sagrar-se milionria, foi alvo de conduta ensejadora de evidente dano. Resta, em conseqncia, evidente a perda de oportunidade pela recorrida [...] Quanto ao valor do ressarcimento, a exemplo do que sucede nas indenizaes por dano moral, tenho que ao Tribunal permitido analisar com desenvoltura e liberdade o tema, adequando-o aos parmetros jurdicos utilizados, para no permitir o enriquecimento sem causa de uma parte ou o dano exagerado de outra. A quantia sugerida pela recorrente (R$ 125.000,00 cento e vinte e cinco mil reais) equivalente a um quarto do valor em comento, por ser uma probabilidade matemtica" de acerto de uma questo de mltipla escolha com quatro itens) reflete as reais possibilidades de xito da recorrida. Ante o exposto, conheo do recurso especial e lhe dou parcial provimento para reduzir a indenizao a R$ 125.000,00 (cento e vinte e cinco mil reais).

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A REVISTA DA UNICORP Ao discorrer sobre a deciso do Superior Tribunal de Justia, Savi (2009, p. 80) considerou que a questo foi bem apreciada na instncia especial, uma vez que no seria possvel afirmar que a autora acertaria uma nova pergunta que viesse a ser formulada, de sorte que no seria possvel a condenao do ru ao pagamento da integralidade do valor objeto do concurso. No sentir do referido autor, deciso da corte especial quase impecvel e, sem dvida, merecedora de aplausos, pela forma tcnica que foi elaborada, de acordo com os critrios, limites e forma de aplicao da teoria defendidos pelo autor. Todavia, Savi (2009, p. 80) faz um reparo deciso ora comentada em razo do percentual de probabilidade admitido, uma vez que, para o autor referido, a chance perdida, para ser considerada sria e passvel de reparao, necessitaria superar a 50% e no caso concreto as chances admitidas como perdidas acabaram limitadas ao percentual de 25%.

9. Concluso O presente trabalho objetiva a compreenso da perda de uma chance na sua concepo clssica, que aquela que ocorre quando um indivduo, por ato injurdico de outrem, frustrado de obter uma vantagem ou resultado favorvel provvel. Essa teoria se amolda com maior tranquilidade a essa concepo, porque aqui estamos diante de uma possibilidade que poder ser averiguada com um grau de quase certeza, embora no se saiba ao certo se o resultado desejado seria alcanado, porque o processo aleatrio em curso no chegou ao seu final. Aqui se utilizou algumas vezes a expresso perda de uma oportunidade como sinnima de perda da uma chance, embora deva ser admitido que a ltima expresso revela-se mais adequada porque a palavra chance, apesar ser de uso mais comum, parece se ajustar, com maior preciso, terminologia jurdica. Chance e oportunidade tm significados parecidos, mas a chance representa algo mais que a oportunidade. Ao se recorrer ao exemplo de uma corrida de 100 metros rasos, da qual participem recordistas mundiais dessa prova esportiva (como o caso do corredor jamaicano Usain Bolt, que, nos ltimos anos, impressionou a todos com o seu elevado desempenho nessa modalidade de competio) e outros atletas com desempenho inferior, poder ser verificado que aqueles com chance de vencer a competio, dentro de um cenrio de normalidade, sero os atletas com desempenho superior, como o caso do desportista referido. Neste exemplo, poder ser dito que todos os atletas inscritos na prova tero a mesma oportunidade, porque todos estaro submetidos s mesmas regras e condies para a competio, mas no poder ser dito que todos tero a mesma chance de venc-la. Assim, o vocbulo chance mais se aproxima da ideia de possibilidade real e se encontra incorporado linguagem utilizada no meio jurdico. Aqui tambm so oferecidas observaes sobre dois pontos abordados nos captulos anteriores, o primeiro deles sobre um aspecto peculiar do episdio que envolveu o maratonista brasileiro Vanderlei Cordeiro de Lima, que resultou na perda da chance pela obteno da medalha de ouro nos jogos olmpicos do ano de 2004, realizados na cidade de Atenas, na Grcia, mas que criou para o atleta outra oportunidade, que foi a de conquistar a medalhada Pierre de Coubertin, honraria concedida em raras ocasies e que, at os dias atuais, no foi conquistada por outro atleta brasileiro, sendo certo, contudo, que esse outro resultado obtido 253

ENTRE ASPAS pelo atleta brasileiro tambm decorreu da sua reao em continuar na disputa, alm de conclula com entusiasmo. O fato verificado com o maratonista, alm de um exemplo clssico de perda da uma chance, , tambm, um exemplo de como um mesmo fato pode, a um s tempo, proporcionar a perda e o surgimento de uma oportunidade, causando dvida sobre a possibilidade de reparao do dano pela perda de uma chance, uma vez que as duas oportunidades esto ligadas ao mesmo fato, a um s tempo danoso e auspicioso. possvel que a aceitao da honraria pelo atleta brasileiro venha a ser encarada como uma espcie de ressarcimento por parte da organizao do evento, embora as medalhas perdida e obtida tenham significados diferentes. No entanto, o entendimento acerca da compensao de chance poder no ser aceito em casos como o do advogado que, ao deixar de ingressar com uma ao trabalhista, proporciona, em um primeiro momento, o dano da prescrio do direito do reclamante, mas se esse cliente vier posteriormente a ser contrato pela segunda vez pelo ex-empregador, sabendo-se que esse empregador assim no agiria caso tivesse ocorrido o ajuizamento da reclamao, poder ser dito que, ainda que involuntariamente, a omisso do advogado evitou que fosse criado um obstculo recontratao. Aqui, mesmo se admitindo como mais importante a oportunidade do emprego que o ajuizamento da ao trabalhista, no razovel vislumbrar possibilidade de compensao das chances. Tal fenmeno, em outras circunstncias, poder ser levado em considerao por ocasio da quantificao do dano. A vida poder oferecer casos em que essa peculiaridade poder ocorrer. No campo poltico, por exemplo, no so poucos os casos em que o mesmo ato que cerceou a carreira de uma pessoa, em um primeiro instante, pode servir como propulsor de uma posterior trajetria de xito. A segunda observao diz respeito quantificao do dano no episdio conhecido como o Show do Milho, que revelou um rigor exato entre a probabilidade perdida e a quantificao do dano, mas que, no entanto, se afastou do ngulo mais coerente para o estabelecimento da probabilidade que interessa teoria da responsabilidade pela perda de uma chance. Essa constatao deriva da circunstncia de que o concurso debatido em juzo tinha por base o conhecimento e, ao estabelecer relao direta entre o dano e a quantidade de alternativas, a deciso da corte especial colocou a vtima no mesmo p de igualdade de uma pessoa sem qualquer conhecimento, com se estivesse diante de um jogo em que apenas o fator sorte fosse determinante do seu resultado. Pode-se afirmar que o critrio adotado na deciso induz ao raciocnio de que, se fossem 10 as possibilidades da vtima, a reparao corresponderia a um dcimo do valor final, o que proporcionaria dvida acerca do requisito da seriedade da possibilidade, de sorte que a argumentao utilizada poderia servir para negar o direito da vtima, uma vez que, se a pergunta do milho tivesse sido formulada corretamente, ela apresentaria uma probabilidade maior para erro (75%), o que, para parte da doutrina, importaria no no reconhecimento do direito a indenizao com base na teoria da perda da chance. Como o concurso consistia em teste de conhecimento, evidente as probabilidades seriam mais adequadamente aferidas se vistas sob essa perspectiva, o que poderia levar a outro resultado, talvez prximo ao que chegou s instncias ordinrias. Afinal, a vtima j havia obtido xito nas fases anteriores do concurso e isso poderia resultar em expectativa favorvel de alcance do xito total, apesar de se concordar aqui que a ltima pergunta viesse a ser a mais difcil. 254

A REVISTA DA UNICORP Por outro lado, ao apreciar o caso, o Superior Tribunal de Justia considerou que no havia, dentro de um juzo de probabilidade, como se afirmar categoricamente, ainda que a recorrida tivesse um desempenho brilhante, que ela responderia corretamente "pergunta do milho, premissa esta que guarda certa incoerncia com a teoria da perda de uma chance, porque, para a configurao da responsabilidade civil, nesses casos, no existe a necessidade da certeza do alcance da vantagem final. Ao contrrio, o que se espera constatao de uma probabilidade sria e no hipottica de se auferir um ganho previsvel, cuja reparao no ser idntica a do resultado esperado, sendo esta uma das caractersticas da teoria clssica da perda de chance. Alm disso, se o desempenho da vtima tivesse sido brilhante, como se admite na argumentao, talvez fosse vivel o estabelecimento de juzo de probabilidade, embora isso possa no ter sido possvel na estreita via do recurso especial. De qualquer sorte, a deciso tem o mrito de, no sendo vivel aferir as chances sob a tica ora apresentada, haver encontrado outro caminho, quantificando o dano em uma verdade estatstica. Constatou-se no presente artigo que a reparao por perda de chance pode ser extrapatrimonial ou material, o que traz como consequncia a possibilidade de acumulao de ambas, quando o ato lesivo se apresentar com essa duplicidade de efeito. Apesar do tema ainda no ter sido debatido pela maioria dos tribunais, a ponto de se constatar a existncia de jurisprudncia nacional, possvel afirmar que as decises judiciais em torno da perda de chance (negando ou efetivando a sua aplicao) tm desempenhado um papel importante para a evoluo da teoria no Brasil, j no so to raras e, se o tema perda de uma chance no estivesse to relacionado questo probatria, certamente haveria uma quantidade maior de manifestaes do Superior Tribunal de Justia sobre ele. Uma das contribuies judiciais foi a admisso da chance em percentual no superior a 50%. Embora se reconhea que seja mais tranquila a aplicao da teoria da perda da chance quando a sua probabilidade igual ou superior a 50%, esse padro rgido no tem aceitao doutrinria unnime, de sorte que o posicionamento do Poder Judicirio (pelo menos em uma deciso, mencionada anteriormente) pode ter estabelecido um novo paradigma a ser seguido, acompanhando uma tendncia doutrinria de desapego a ao crdito rgido de reconhecimento da seriedade da chance somente quando igual ou superior a 50%. Por fim, a perda da chance em que um dano ocorreu, porque um processo malfico no foi interrompido por quem poderia det-lo ou atenuar as suas consequncias, mereceria um aprofundamento maior, sobretudo em relao aos casos verificados na prtica da advocacia e da medicina, o que no comporta no presente artigo, que, no entanto, no deixou o tema passar despercebido. Nesses casos, a aplicao da teoria da perda da chance poder ter que percorrer caminhos tortuosos e nem sempre se apresentar plausvel. Situaes em que no possvel determinar o que teria causado dano ao paciente (se o tratamento inadequado ou a evoluo da doena, sabendo-se que as duas circunstncias, isoladamente, poderiam proporcionar o mesmo resultado desfavorvel, sem que se soubesse qual delas foi a que determinou o dano) conduzem, em tese, adoo da causalidade concorrente. Todavia, na prtica, tudo depender da casustica e a idia de coexistncia ou concorrncia de causalidade poder se apresentar falsa em determinados casos por resultar de uma malsucedida investigao dos fatos. Mesmo admitida como vivel essa possibilidade, a mitigao da responsabilidade culposa em face coexistncia do caso fortuito controvertida e um tanto distanciada do tema aqui enfocado. A aplicao da teoria da perda de chance parece mais ajustar-se nos casos mdicos nos 255

ENTRE ASPAS quais possvel conhecer a probabilidade de xito de um tratamento adequado que deixou de ser ministrado. Sabe-se que em medicina, a conduta adequada nem sempre garantia de eficcia do tratamento e essa circunstncia confere um grau de dificuldade em estabelecer percentuais de xito de determinados casos. No entanto, isso parece vivel na grande maioria das ocorrncias de sade. Assim, se existe um tratamento que poderia evitar um dano, mas essa conduta, que somente eficaz em 50% dos casos com a mesma caracterstica, no foi ministrada no momento oportuno, a adoo da perda da chance parece til para soluo da controvrsia, porque a ter-se-ia um parmetro adequado para o estabelecimento da responsabilidade civil e para a quantificao da reparao do dano. Nesse caso, uma possibilidade de cura mesmo que inferior a 50% seria suficientemente para o estabelecimento da responsabilidade civil, de sorte que o parmetro adotado por parte da doutrina para a configurao da seriedade da chance perdida (igual ou superior a 50%) no parece adequado a esses casos e poderia prestigiar o descaso profissional. Ao contrrio, a teoria da perda de uma chance deve contribuir para a evoluo da responsabilidade civil, sobretudo quanto ao nexo de causalidade, afastando a ideia contida na frmula tudo ou nada. Atualmente, j se fala em responsabilidade civil pela mera criao de riscos, que ocorre quando a vtima exposta a uma situao que resulte em probabilidade de causar dano futuro, cientificamente demonstrada, situao essa que difere dos casos de perda de chance, nos quais uma probabilidade de ganho futuro frustrada ou uma oportunidade de ser evitar um dano perdida. Na criao do risco no acontece nem uma coisa nem outra e sim uma situao diferente, que consiste na possibilidade sria e tormentosa que se abate sobre uma pessoa em sofrer um dano quase certo. Isso ocorre, por exemplo, nos casos de exposio de pessoas a sustncias potencialmente causadoras de doenas letais que, a partir de ento passam a conviver com um mal em potencial, tendo que se amoldarem a essa nova realidade, a ponto de terem que modificar hbitos e adotar cuidados especiais, inclusive tratamento mdicos que visem minorar os efeitos de uma possvel doena grave, como ocorre com os indivduos excessivamente expostos radiao. No seria plausvel aguardar a evoluo dos fatos para, somente depois de consumado o dano, viesse a ser estabelecido o nexo de causalidade, de sorte que, uma vez criado o risco (o que na maioria das vezes j acarreta o dano moral por si s) a responsabilidade civil passa a incidir de imediato, sobretudo em relao s chamadas consequncias marginais do risco, como as despesas com tratamento mdico para minorar ou eliminar o prprio risco. A adoo da teoria da perda da chance tem carter pedaggico e preventivo em relao ao dano, sobretudo nas reas em que incide com maior frequncia, como no campo de atuao dos advogados e mdicos, contribuindo para uma conduta tica mais cuidadosa dos profissionais dessas reas, da repercutindo para as demais atividades humanas. A perda de uma chance, embora ligada a um acontecimento futuro, constitui atualmente um conceito que tem bases slidas na doutrina e que se afirma na jurisprudncia como uma categoria autnoma de dano e que enseja reparao civil. Ela est em harmonia com o ordenamento jurdico, sobretudo com a clusula geral contida no art. 927, do Cdigo Civil Brasileiro, e com o princpio da reparao integral do dano adotado no art. 402, do mesmo Cdigo.

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A REVISTA DA UNICORP
Referncias ________________________________________________________________________ VENOSA, SLVIO DE SALVO. Direito Civil: Responsabilidade Civil. So Paulo: Atlas, 2008, v. 4. SAVI, SRGIO. Responsabilidade Civil por Perda de Uma Chance. 2. ed. So Paulo: Atlas, 2009. SILVA, RAFAEL PETEFFI DA. Responsabilidade Civil pela Perda de Uma Chance. 2 ed. So Paulo: Atlas, 2009. GONALVES, CARLOS ROBERTO. Direito Civil Brasileiro. 4. ed. So Paulo: Saraiva, 2009, v. 4. CAVALIERI FILHO, SRGIO. Programa de Responsabilidade Civil. 9. ed. So Paulo: Atlas, 2010. GONDIM, GLENDA GONALVES. Reparao Civil na Teoria da Perda de Uma Chance. UFPR. Curitiba: 2010. Disponvel em: <http://dspace.c3sl.ufpr.br/dspace/handle/1884/23451>. Acesso em 27 set 2010. DIAS, SERGIO NOVAIS. Responsabilidade Civil do Advogado: Perda de uma Chance. 1. ed. So Paulo: LTr, 1999. FARIA, CRISTIANO CHAVES DE. A teoria da perda de uma chance aplicada ao Direito de Famlia: Utilizar com Moderao. Ibdfam. Disponvel em: <http://www.ibdfam.org.br/?congressos&evento=6&anais>. Acesso em: 27 set 2010. NORONHA, FERNANDO. Direitos das Obrigaes. 3. ed. So Paulo: Saraiva. 2010. NORONHA, FERNANDO. Responsabilidade por Perdas de Chances. Revista de Direito Privado. So Paulo: RT, 2005, p. 28-46, v. 23. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIA. Recurso Especial n. 788.459. 4. Turma. Relator: Ministro Fernando Gonalves. Publicado em 13 mar 2006. Disponvel em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/ doc.jsp?livre=788459&&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=5>. Acesso em: 27 set 2010. ________. Recurso Especial n. 1.184.128. 3. Turma. Relator: Ministro SIDNEI BENETI. Publicado em 01 de julho de 2010. Disponvel em: <https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/ita.asp?registro=201000389990&dt_publicacao=01/ 07/2010>. Acesso em: 27 set 2010. ________. Recurso Especial n 596.613-RJ, publicado em 02.08.2004, 4. Turma, Relator: Ministro Cesar Asfor Rocha. Disponvel em: <https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/ita.asp?registro=200301771026&dt_publicacao=02/ 08/2004>. Acesso em: 27 set 2010. ________. Recurso Especial n 402.182-RS, publicado em 12.06.2006, 3. Turma, Relator: Ministro Humberto Gomes de Barros. Disponvel em: <https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/ita.asp?registro=200101989390&dt _publicacao=12/06/2006>. Acesso em: 03 out 2010. TRIBUNAL DE JUSTIA DO RIO DE JANEIRO, Apelao Cvel n 2002.001.05527, 17 Cmara Cvel. Relator Des. Bernardo Moreira Garcez Neto, julgado em 02/05/2002. Disponvel em: <http://www.tjrj.jus.br/scripts/ weblink.mgw?MGWLPN=DIGITAL1A&LAB=ONxWEBPGM=WEBPCNU88&PORTAL=1&N=200200105527&protproc =1>. Acesso em: 27 set 2010.

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ENTRE ASPAS
TRIBUNAL DE JUSTIA DO MATO GROSSO DO SUL, Apelao Cvel n 2005.013760-1 Relator Des. Paschoal Carmello Leandro. Disponvel em: <http://www.tjms.jus.br/cposg/pcpoSelecaoProcesso2Grau.jsp? _&tpClasse=J&cbPesquisa=NUMPROC&dePesquisa=20050137601>. Acesso em: 27 set 2010.

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A ANTECIPAO DOS EFEITOS DA TUTELA EM FACE DA FAZENDA PBLICA E AS RESTRIES IMPOSTAS SUA CONCESSO

Tssio Lago Gonalves


Tcnico Judicirio. Graduado em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Ps-Graduando em Direito Processual Civil pela Fundao Faculdade de Direito da Bahia.

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo analisar a antecipao dos efeitos da tutela em face da Fazenda Pblica. Este um tema que causa grandes desentendimentos entre os estudiosos do direito, principalmente no que tange aos limites e restries para a sua concesso. Para melhor compreenso do assunto, necessria uma anlise tcnica sobre o instituto da tutela antecipada, partindo-se de uma reviso da doutrina sobre a sua conceituao, especificidades, caractersticas e pressupostos. Sedimentado o entendimento acerca de tais elementos, ser analisada apuradamente a antecipao dos efeitos da tutela em face da Fazenda Pblica, buscando realizar uma sistematizao das prerrogativas da Fazenda Pblica que se impem como restrio concesso da tutela antecipada, falando tambm das leis que disciplinam a matria em apreo, e das restries legais impostas referida concesso. Por fim, se buscar explicar a forma correta de lidar com tal instituto, aplicando-se o princpio da proporcionalidade. Palavras-Chave: Antecipao dos efeitos da tutela. Fazenda Pblica. Restries concesso. Princpio da Proporcionalidade.

1. Introduo O presente trabalho tem por objeto a anlise da antecipao dos efeitos da tutela em face da Fazenda Pblica. Este um tema que ainda causa grandes debates entre os estudiosos do direito, principalmente no que tange aos limites e restries sua concesso. O estudo da tutela antecipada, prevista no art. 273 do Cdigo de Processo Civil, se revela de vital importncia, na busca de uma prestao jurisdicional clere, possibilitando ao Juiz, desde que presente os pressupostos legais, deferir antecipadamente ao autor os efeitos do provimento de mrito que s seriam deferidos ao final do julgamento. Necessrio se faz sistematiz-la, buscando explicitar suas principais caractersticas e pressupostos, para ento adentrar no campo da antecipao dos efeitos da tutela em face da Fazenda Pblica. A polmica, no caso, se instaura quando da tutela antecipada em face do Poder Pblico, que possui prerrogativas que buscam limitar a sua concesso. 259

ENTRE ASPAS Falar-se- dos principais bices sua concesso contra o Poder Pblico, principalmente depois do advento da Lei n 9.494/97, que imps restries que so encaradas como absolutas por boa parte dos intrpretes do direito. Este tema mostra-se como de grande relevncia, na medida em que ultrapassa o campo terico e ganha contornos prticos, buscando no s a compreenso geral do instituto, mas tambm a sua aplicao no caso concreto. Ao final, sero expostas as concluses do presente trabalho.

2. A tutela antecipada 2.1. Noes gerais A tutela jurisdicional prestada pelo estado-juiz pode ser definitiva ou provisria. A tutela definitiva aquela obtida atravs de cognio exauriente, ou seja, atravs de uma profunda anlise do objeto do processo, observando-se o devido processo legal, o contraditrio e a ampla defesa, podendo produzir resultados imutveis, consubstanciando a coisa julgada material. Entretanto, a entrega da tutela definitiva demanda considervel lapso temporal. O decurso do tempo um fenmeno inexorvel. A marcha do tempo peremptria e nada consegue escapar-lhe. O seu transcurso pode produzir os mais diversos efeitos: pode ter o condo de conferir estabilidade s relaes jurdicas, bem como pode influir para que haja o perecimento do direito material objeto da lide. Para abrandar os males do tempo sobre o processo, acelerando os efeitos desse e buscando a efetividade da tutela jurisdicional, foram criadas as tutelas provisrias, que se subdividem em tutela antecipada e tutela cautelar. A tutela provisria, que tem como espcies a tutela cautelar e a tutela antecipada, aquela fundada em cognio sumria, perfunctria, em que o juiz da causa faz apenas uma anlise superficial sobre o objeto do processo. Ela uma tutela temporria, tendo sua eficcia limitada no tempo, e precria, pois pode ser revogada ou modificada a qualquer tempo, em razo de ser pautada numa cognio perfunctria. Assim, o instituto da tutela antecipada nasceu da necessidade de uma prestao jurisdicional mais clere do Estado, uma vez que a tutela definitiva, por exigir uma cognio exauriente, necessita de um conjunto de atos que propiciem uma verdade material suficiente para a soluo da lide, demandando um lapso temporal considervel. Sua previso no sistema processual brasileiro se encontra no art. 273 do Cdigo de Processo Civil, que reverbera:
Art. 273. O juiz poder, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequvoca, se convena da verossimilhana da alegao e:

2.2. Conceito A tutela antecipada a entrega provisria da prestao jurisdicional, atravs da certificao ou da efetivao do direito material discutido. Atravs dela, antecipa-se a eficcia da deciso final, possuindo, portanto, carter satisfativo. 260

A REVISTA DA UNICORP , portanto, um provimento provisrio que assegura de logo ao demandante da prestao jurisdicional a prestao do direito material objeto da lide, que normalmente s ocorreria depois de apreciada toda controvrsia e proferida a sentena. Neste sentido, bem assinala Nelson Nery Jnior (1995, p. 53):
(...) tutela antecipatria dos efeitos da sentena de mrito providncia que tem natureza jurdica de execuo lato sensu, com o objetivo de entregar ao autor, total ou parcialmente, a prpria pretenso deduzida em juzo ou seus efeitos. tutela satisfativa no plano dos fatos, j que realiza o direito, dando ao requerente o bem da vida por ele pretendido com ao de conhecimento. Com a instituio da tutela antecipatria dos efeitos da sentena de mrito no direito brasileiro, de forma ampla, no h mais razo para que seja utilizado o expediente, impropriamente denominada cautelares satisfativas, que constitui em si um contradctio in terminis, pois as cautelares no satisfazem; se a medida satisfativa porque, ipso facto, no cautelar.

Dessa forma, a tutela antecipada tem o objetivo de entregar ao autor, total ou parcialmente, a pretenso deduzida em juzo, antecipando os efeitos da tutela jurisdicional pretendida antes do julgamento final da lide, diminuindo, assim, os efeitos malficos do tempo no processo. , portanto, uma tutela satisfativa, pois d ao requerente o bem da vida almejado, realizando o direito reivindicado.

2.3. Pressupostos para a concesso da tutela antecipatria 2.3.1. Pressupostos genricos 2.3.1.1. O requerimento da parte Segundo o art. 273 do CPC, a antecipao da tutela pode ser concedida pelo Juiz, desde que, havendo requerimento da parte, o mesmo se convena da verossimilhana das alegaes, atravs da existncia de prova inequvoca, devendo ainda haver a existncia de fundado receio de dano irreparvel ou de difcil reparao ou que fique caracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto propsito protelatrio do ru. Assim, necessrio para a concesso da antecipao dos efeitos da tutela o requerimento da parte. Dessa forma, no pode o juiz antecipar a tutela de ofcio. Tal requerimento poder vir contido na exordial, quando houver fundado receio de dano irreparvel ou de difcil reparao, podendo tambm ser requerido no curso do processo, neste caso, havendo qualquer das hipteses dos incisos I e II do art. 273 do Cdigo de Processo Civil.

2.3.1.2. A existncia de prova inequvoca A prova inequvoca qualquer meio de prova (e no apenas a prova documental) capaz de influir positivamente no convencimento do rgo julgador. a prova suficiente para convencer o juiz acerca da verossimilhana do alegado pelo autor. 261

ENTRE ASPAS Dessa forma, considera-se prova inequvoca aquela que, diante dos fatos expostos, seja suficiente para a formao do juzo de probabilidade, sendo capaz de antecipar a medida buscada. Tal prova inequvoca aquela prova robusta, suficiente para a formao do juzo de probabilidade pelo magistrado, e no a prova revestida de certeza absoluta, nem a que conduz a melhor verdade possvel, pois se assim fosse no se estaria concedendo a tutela pretendida, e sim, julgando antecipadamente o mrito da causa, o que so possvel atravs de uma cognio exauriente. A prova inequvoca no prova irrefutvel, pois assim conduziria a uma tutela satisfativa definitiva, fundada em cognio exauriente, e no provisria, que fundada em cognio sumria. Interpretar a prova inequvoca no sentido de prova capaz de induzir a certeza sobre os fatos alegados esvaziaria por completo o contedo das tutelas antecipadas, as quais s poderiam ser deferidas, dessa forma, aps toda a instruo processual, fundando-se numa cognio profunda. (DIDIER JR; OLIVEIRA; BRAGA, 2007, p. 538). Seguindo esta linha de raciocnio, Jos Roberto Bedaque (1997, p. 236) entende que a prova inequvoca no aquela suficiente para o acolhimento do pedido, o que autoriza o julgamento antecipado. Neste sentido, ensinam Fredie Didier Jr., Paula Sarno Braga e Rafael Oliveira (2007, p. 540):
trata-se, enfim, de um pressuposto objetivo de concesso da tutela antecipada: o magistrado dever demonstrar que h nos autos prova produzida, com tais caractersticas, que justifique a concluso pela verossimilhana das alegaes. Significa dizer, ainda, que a mera alegao do demandante, no acompanhada de prova, no permite a concesso da medida, por mais verossmil que seja.

2.3.1.3. A verossimilhana das alegaes A verossimilhana o grau de convico do rgo julgador acerca das alegaes feitas pelas partes. Portanto, um juzo de probabilidade feito pelo magistrado, que se ampara na prova inequvoca que serviu como fundamento para a convico quanto probabilidade das alegaes. Dessa forma, o juzo de verossimilhana aquele que permite chegar a uma verdade provvel sobre os fatos, a um elevado grau de de probabilidade da verso apresentada pelo autor (BEDAQUE, 2003, p. 336). Salienta-se que a verossimilhana no se refere apenas a matria de fato, referindo-se tambm a subsuno dos fatos norma invocada. Ademais, a prova inequvoca no conduz necessariamente a um juzo de verossimilhana e ao acolhimento do pedido. E o juzo de verossimilhana no decorre necessariamente da prova inequvoca, podendo advir, por exemplo, de fatos incontroversos, notrios, ou decorrentes de coisa julgada anterior (DIDIER JR; OLIVEIRA; BRAGA, 2007, p. 541).

2.3.1.4. A reversibilidade dos efeitos do provimento O 2 do art. 273 do Cdigo de Processo Civil estabeleceu mais um pressuposto a ser 262

A REVISTA DA UNICORP cumprido por quem requeira a antecipao dos efeitos da tutela. Dispe o referido artigo:
Art. 273. O juiz poder, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequvoca, se convena da verossimilhana da alegao e: [...] 2o No se conceder a antecipao da tutela quando houver perigo de irreversibilidade do provimento antecipado. (grifo nosso)

Dessa forma, a lei exige que os efeitos da tutela sejam reversveis, devendo ser demonstrado ao juiz que a medida possvel de reverso, ou seja, que possvel retornar ao status quo ante acaso se constate, no curso do processo, que a mesma deva ser alterada ou revogada. (CARNEIRO, 2004, p. 79). Nesta linha de entendimento, ensina Teori Albino Zavascki (1999, p. 97):
No particular, o dispositivo observa estritamente o princpio da salvaguarda do ncleo essencial: antecipar irreversivelmente seria antecipar a prpria vitria definitiva do autor, sem assegurar ao ru o exerccio do seu direito fundamental de se defender, exerccio esse que, ante a irreversibilidade da situao de fato, tornar-se-ia absolutamente, intil, como intil seria, nestes casos, o prosseguimento do prprio processo.

Este tambm o magistrio de Humberto Theodoro Jnior (1999, p. 345):


Evoluiu-se ento, em todo o direito europeu, para o rumo de conceber a tutela provisria tanto para conservar como para regular a situao jurdica material das partes. Somente no se permitia a liberdade de interferir no relacionamento substancial litigioso, nos casos de emergncia, quando a regulao provisria da lide fosse de tal modo a impedir a reverso no julgamento definitivo do mrito, caso se tornasse necessrio julgar a causa, afinal, de modo diverso.

Entretanto, em certos casos, tal pressuposto para a concesso da antecipao dos efeitos da tutela deve ser afastado, sendo permitida a satisfao irreversvel da tutela antecipada, sob pena de perecimento do direito. Em hipteses em que o dano seja irreversvel, deve-se aplicar o princpio da proporcionalidade no sentido de dar primazia a efetividade da tutela e conceder-se a medida. Assim, se o deferimento da tutela antecipada produz efeitos irreversveis para o requerido, o seu indeferimento tambm implica consequncias irreversveis para o requerente. Nesses casos, em razo da urgncia e da evidncia do direito do requerente, imprescindvel a concesso da tutela antecipatria, entregando-lhe, de imediato, o bem da vida almejado, resguardando-se o direito fundamental efetividade da jurisdio. (DIDIER JR; OLIVEIRA; BRAGA, 2007, p. 543/544). Portanto, deve-se dar primazia a antecipao da tutela, em prejuzo da segurana jurdica da parte adversria, que dever suportar a irreversibilidade e contentar-se, quando possvel, com uma reparao pelo equivalente em pecnia. Isso porque cabe ao juiz ponderar os valores 263

ENTRE ASPAS em jogo, com base no princpio da proporcionalidade, dando proteo quele que tenha maior importncia no caso concreto. (DIDIER JR; OLIVEIRA; BRAGA, 2007, p. 544).

2.3.2. Pressupostos especficos 2.3.2.1. Fundado receio de dano irreparvel ou de difcil reparao Preenchidos os pressupostos gerais, deve o magistrado verificar a existncia de ao menos um dos pressupostos especficos. O primeiro deles o fundado receio de dano irreparvel ou de difcil reparao, em decorrncia da demora do processo, tambm chamado de periculum in mora ou perigo da demora. Tal pressuposto est previsto no art. 273, I do CPC:
Art. 273. O juiz poder, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequvoca, se convena da verossimilhana da alegao e: I haja fundado receio de dano irreparvel ou de difcil reparao (grifos nossos)

Considera-se dano irreparvel aquele cujos efeitos so irreversveis. J o dano de difcil reparao aquele que provavelmente no ser revertido, seja porque as condies financeiras do ru autorizam supor que no ser restabelecido ou compensado, seja porque, por sua prpria natureza, complexa a sua quantificao ou individualizao precisa. (DIDIER JR; OLIVEIRA; BRAGA, 2007, p. 546). O risco de dano irreparvel ou de difcil reparao que enseja a antecipao dos efeitos da tutela o risco concreto, certo, e no o hipottico, decorrente apenas de temor subjetivo da parte, devendo, portanto, ser demonstrado e provado. Alm disso, deve ser um risco atual, que se apresenta na iminncia de ocorrer, e no um perigo passado, que resultaria na impossibilidade de antecipao. Por ltimo, deve ser um risco grave, com aptido para fazer perecer ou prejudicar o direito afirmado pela parte. Dessa forma, o deferimento da tutela antecipada prevista no art. 273, I do CPC somente se justifica quando se torna imprescindvel para evitar a ocorrncia de dano irreparvel ou de difcil reparao em razo da demora do processo. Insta salientar que no possvel o deferimento da medida em razo de possvel vantagem que poderia advir da entrega da prestao jurisdicional, sendo o propsito do referido inciso a necessidade, e no a utilidade que o efeito possa vir a trazer ao autor. Assim, apenas a demora no processo no motivo justificvel para a concesso da antecipao dos efeitos da tutela. Por ltimo, cabe afirmar que o receio que justifica a tutela antecipada nem sempre se refere a um dano, podendo tambm dizer respeito a um ato ilcito, ou seja, contrrio ao direito, a depender do tipo de tutela que se quer antecipar. A tutela ressarcitria pressupe um dano j consumado. Na tutela inibitria, busca-se evitar a ocorrncia de um ato contrrio ao direito ou impedir sua continuao. Na tutela reintegratria, busca a remoo de um ilcito j praticado, visando impedir sua repetio, restabelecendo o status quo ante. A antecipao, nesses casos, possvel com fulcro no art. 461, 3 do CPC e art. 84, 3 do CDC, que tem como requisito o receio de ineficcia do provimento final. (DIDIER JR; OLIVEIRA; BRAGA, 2007, p. 547). 264

A REVISTA DA UNICORP 2.3.2.2. Abuso do direito de defesa ou manifesto protelatrio do ru O ato abusivo ou protelatrio aquele que consiste em um empecilho ao andamento do processo, que implicar no comprometimento da lisura e da celeridade do processo. Assim, o ato abusivo que no impede e nem retarda os atos processuais subsequentes no legitima a medida antecipatria. (ZAVASCKI, 1999, p. 78). O referido instituto est previsto no art. 273, II do Cdigo de Processo Civil, que assim dispe:
Art. 273. O juiz poder, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequvoca, se convena da verossimilhana da alegao e: [...] II fique caracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto propsito protelatrio do ru.

Segundo Cndido Dinamarco, Calmon de Passos e Carreira Alvin, a palavra defesa na expresso abuso do direito de defesa est relacionada contestao, ou seja, as razes dedutveis pelo ru contra a pretenso do autor, razes estas que se encontram na pea contestatria. O abuso do direito de defesa abrange os atos protelatrios praticados dentro do processo, em sede de defesa. Seria a prtica de atos indevidos, desnecessrios e impertinentes no curso de processo. J o manifesto propsito qualquer outro ato no relacionado contestao que tenha por objetivo o retardamento do processo. Assim, protelatrio tudo que retarda, sem razo atendvel, o andamento do processo. E esse instituto se torna manifesto quando dele no poder resultar proveito processual lcito para o interessado em sua prtica. (PASSOS, 1995, p. 18).

3. A antecipao dos efeitos da tutela em face da Fazenda Pblica 3.1. Consideraes iniciais Aps tecer consideraes preliminares sobre o instituto da tutela antecipada, falando de suas principais especificidades e caractersticas, deve-se agora ingressar no estudo da antecipao dos efeitos da tutela em face da Fazenda Pblica. A expresso Fazenda Pblica, no sentido tcnico processual, refere-se s pessoas jurdicas de Direito Pblico quando esto em Juzo, enquanto partes do processo. Nessas pessoas jurdicas de direito pblico, esto compreendidos a Unio, os Estados, os Municpios, o Distrito Federal, as autarquias e as fundaes pblicas. Leonardo Jos Carneiro da Cunha bem define o tema em apreo (2007, p. 32):
A expresso Fazenda Pblica identifica-se tradicionalmente como a rea da Administrao Pblica que trata da gesto das finanas, bem como da fixao e implementao de polticas econmicas. Em outras palavras, Fazenda Pblica expresso que se relaciona com as finanas estatais,

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ENTRE ASPAS
estando imbricada com o termo errio, representando o aspecto financeiro do ente pblico. No por acaso a utilizao da terminologia Ministrio da Fazenda ou Secretaria da Fazenda, para designar, respectivamente, o rgo despersonalizado da Unio ou do Estado responsvel pela poltica econmica desenvolvida pelo governo. O uso frequente do termo Fazenda Pblica fez com que se passasse a adot-lo num sentido mais lato, traduzindo a ideia do Estado em juzo; em Direito Processual, a expresso Fazenda Pblica contm o significado de Estado em Juzo. Da porque, quando se alude Fazenda Pblica, a expresso apresenta-se como sinnimo de Estado em juzo, ou, ainda, da pessoa de direito pblico em juzo.

A atuao dos entes dotados de personalidade jurdica de direito pblico deve sempre ser pautada no interesse pblico, aplicando-se, por consequncia, o principio da supremacia do interesse pblico sobre o particular. Em razo da aplicao do referido princpio, a Fazenda Pblica goza de algumas prerrogativas que no so reconhecidas aos particulares. E graas a essas prerrogativas, por muito tempo se discutiu sobre a aplicabilidade ou no da tutela antecipada em face da Fazenda Pblica. Assentadas tais premissas, mister se faz realizar uma sistematizao das prerrogativas da Fazenda Pblica que se impem como restrio concesso da tutela antecipada, falando tambm das leis que disciplinam a matria em apreo e das restries legais impostas referida concesso.

3.2. Prerrogativas da Fazenda Pblica A Fazenda Pblica goza de algumas prerrogativas em razo do princpio da supremacia do interesse pblico frente ao privado. Como exemplo dessas prerrogativas no mbito processual, pode-se citar: o juzo privativo; os prazos mais dilatados em seu favor, conforme arts. 188 e 277 do Cdigo de Processo Civil; o pagamento de despesas judiciais, que segundo o art. 27 do CPC, as despesas dos atos processuais efetuados a requerimento da Fazenda Pblica sero pagas ao final pelo vencido; a dispensa do preparo dos recursos, segundo o art. 511 do CPC; o procedimento prprio para a execuo de crditos em favor da Fazenda Pblica, regulado pela Lei de Execues Fiscais Lei n 6.830/80; a possibilidade de medida liminar na ao de arresto sem justificao prvia, prevista no art. 816, I, do Cdigo de Processo Civil. Entretanto, existem algumas prerrogativas prprias da Fazenda Pblica que so apontadas como bices admisso da antecipao dos efeitos da tutela em face da mesma. Essas prerrogativas so o reexame necessrio ou o duplo grau obrigatrio de sentenas proferidas contra a Fazenda Pblica, previsto no art. 475, II, do CPC; o procedimento prprio para execuo das condenaes da Fazenda Pblica em pagamento de quantia certa, com previso no art. 100 da CF/88 e no art. 730 do CPC, consistente no regime de pagamentos em dinheiro pela via dos precatrios; o advento das Leis n 8.437/1992 e n 9.494/1997, que estabeleceu um limite legal antecipao de tutela em face do Poder Pblico. Para um melhor esclarecimento acerca de cada um desses temas, necessrio se faz abordar em tpico prprio para um entendimento adequado. 266

A REVISTA DA UNICORP 3.3. O bice do reexame necessrio Um dos obstculos que se coloca como impeditivo aceitao da tutela antecipada em face da Fazenda Pblica o que diz respeito eficcia da deciso, pois a sentena final contra o Poder Pblico s poderia produzir efeitos depois de confirmada pelo Tribunal atravs da remessa necessria, em funo do disposto no art. 475, inciso II do Cdigo de Processo Civil, que assim dispe:
Art. 475. Est sujeita ao duplo grau de jurisdio, no produzindo efeito seno depois de confirmada pelo tribunal, a sentena: I proferida contra a Unio, o Estado, o Distrito Federal, o Municpio, e as respectivas autarquias e fundaes de direito pblico; II que julgar procedentes, no todo ou em parte, os embargos execuo de dvida ativa da Fazenda Pblica (art. 585, VI). 1o Nos casos previstos neste artigo, o juiz ordenar a remessa dos autos ao tribunal, haja ou no apelao; no o fazendo, dever o presidente do tribunal avoc-los. (grifos nossos)

Dessa forma, se a sentena s poderia produzir efeitos depois de confirmada, pois sujeita ao duplo grau de jurisdio, no poderia uma deciso antecipatria, meramente interlocutria, produzir efeitos imediatamente. (DIDIER JR; OLIVEIRA; BRAGA, 2007, p. 580). Entretanto, tal argumento no pode prevalecer como impedimento a concesso da tutela antecipada, em virtude de o art. 475 se referir expressamente s sentenas, sendo que a tutela antecipada concedida por meio de deciso interlocutria. Tambm no se pode admitir que a possibilidade de submisso ao duplo grau obrigatrio impea a antecipao dos efeitos do provimento jurisdicional, sob o risco de haver o perecimento dos direitos. Ademais, a tutela antecipada no novidade no ordenamento jurdico, j havendo previso da mesma em alguns procedimentos especiais, sempre se admitindo em face da Fazenda Pblica em situaes como possessrias, mandado de segurana, etc, sem que fosse levantado qualquer bice a respeito, no havendo tambm nenhuma restrio prevista no art. 273 do Cdigo de Processo Civil. (DIDIER JR; OLIVEIRA; BRAGA, 2007, p. 584). Sobre o tema em comento, importante trazer a concluso feita por Cssio Scarpinella Bueno (2001, p. 194):
o art. 475 no seria bice, porque o caracterstico da tutela antecipada , justamente, antecipar a eficcia de alguma deciso jurisdicional que, de outra forma, no surtiria efeito algum. Fosse verdadeiro o argumento do art. 475 e nenhuma sentena sujeita a recurso de apelao com efeito suspensivo a regra poderia ter seus efeitos antecipveis. E, c entre ns, nunca ningum duvidou do contrrio. Alis, justamente porque determinado ato no tem jurisdicional no tem efeito imediato que tem lugar a tutela antecipada. Nunca o contrrio.

3.4. A antecipao dos efeitos da tutela e a questo do precatrio Outro obstculo ao instituto da antecipao dos efeitos da tutela em face da Fazenda 267

ENTRE ASPAS Pblica est nas condenaes de pagar quantia certa, em virtude de que s poderia ocorrer atravs dos precatrios requisitrios de pagamentos, previstos no art. 100 da Constituio Federal de 1988, que assim dispe:
Art. 100: Os pagamentos devidos pelas Fazendas Pblicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de sentena judiciria, far-se-o exclusivamente na ordem cronolgica de apresentao dos precatrios e conta dos crditos respectivos, proibida a designao de casos ou de pessoas nas dotaes oramentrias e nos crditos adicionais abertos para este fim.

Inicialmente, insta salientar que o problema dos precatrios s diz respeito s demandas condenatrias a uma prestao de pagar quantia. Em relao s demais prestaes (entregar coisa, fazer e no fazer), no h qualquer diferena no formalismo processual, e, portanto, no subsiste o bice dos precatrios nos referidos casos. Ademais, nas demandas meramente declaratrias e nas constitutivas, os efeitos podem ser plenamente antecipados. (DIDIER JR; OLIVEIRA; BRAGA, 2007, p. 583). Cabe ressaltar tambm que h dvidas pecunirias que no se submetem ao regime dos precatrios, como as obrigaes definidas em leis como de pequeno valor que a Fazenda Pblica deva fazer em virtude de sentena judicial transitada em julgado, consoante art. 100, 3 da CF/88; os crditos provenientes de sentena de mandado de segurana, relacionados a parcelas vencidas aps o ajuizamento da ao; dvidas contratuais ou j previstas no oramento, como as dvidas salariais. O precatrio a frmula por meio da qual o Poder Judicirio solicita ao Poder Executivo que tome precaues oramentrias a fim de realizar o pagamento de uma execuo de ordem judicial. Como o artigo alhures mencionado se refere sentena judiciria, h quem entenda que invivel a antecipao de tutela em face da Fazenda Pblica nas obrigaes de pagar quantia certa, por no haver meno deciso interlocutria no artigo supracitado. Parcela da doutrina tambm defende que no h a sujeio da deciso interlocutria ao regime de precatrios, por no ser mencionada no art. 100 da CF/88. Entretanto, em que pese a divergncia entre os doutrinadores, o melhor entendimento est numa terceira opinio, segundo a qual a antecipao dos efeitos da tutela consistiria justamente na iniciao das delongas para a expedio do precatrio, cujo procedimento findaria com o depsito judicial da quantia, que somente poderia ser levantado em caso de procedncia definitiva da demanda. (DIDIER JR; OLIVEIRA; BRAGA, 2007, p. 582). Dessa forma, acatar a deciso que antecipa a tutela como instrumento hbil a instruir o requisitrio de precatrio concilia adequadamente a ordenao das despesas pblicas e a efetividade buscada pelo art. 273 do CPC. Neste sentido, so as lies de Cssio Scarpinella Bueno (1997, p. 70/71):
A antecipao, neste caso, poderia significar o incio, desde logo, quantificao do bem perseguido pelo autor da ao, instrumentando-se a execuo provisria, como regra, at a expedio de precatrio e seu depsito no exerccio seguinte ou no outro, dependendo da poca de sua apresentao (CF, art. 100, pargrafo 1), mantendo a depositado o valor at julgamento final da ao. Na hiptese de se verificar, in concreto,

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possibilidade de reversibilidade da concretizao do pagamento do valor constante do precatrio pelo particular como, por exemplo, o desconto em folha; como prev o art. 46 da Lei n 8.112/91 -, no haveria qualquer bice concretizao, em definitivo, da antecipao de tutela naquelas aes contra o Poder Pblico.

Por ltimo, saliente-se ainda que tal entendimento deve ser sopesado no caso concreto, devendo-se aplicar o postulado da proporcionalidade quando a situao o exigir, conforme adiante se mostrar em tpico prprio.

4. As limitaes antecipao dos efeitos da tutela pelas leis infraconstitucionais 4.1. Breve histrico A tentativa de se limitar a efetividade dos provimentos jurisdicionais proferidos contra a Fazenda Pblica no um fato recente. De forma geral, o instituto da tutela antecipada prevista, no art. 273 do Cdigo de Processo Civil, no faz nenhuma referncia em relao sua restrio em face do Poder Pblico. A despeito disso, mostra-se importante, neste ponto, fazer um breve relato histrico sobre o surgimento das normas restritivas em relao aos mecanismos de urgncia manejados em face da Fazenda Pblica. Inicialmente, as vedaes existentes para a concesso da antecipao dos efeitos da tutela em face do Poder Pblico estavam previstas na Lei n 4.348/1964, que contextualizava sobre as normas processuais relacionadas ao mandado de segurana. A referida lei, em seu art. 5, vedava a concesso de liminar, nos casos em que previa a reclassificao ou equiparao de servidores pblicos, ou a concesso de aumento ou extenso de vantagens. J o art. 7 atribua efeito suspensivo ao recurso ex officio. Transcreve-se aqui o referido diploma legal:
Art. 5: No ser concedida a medida liminar de mandados de segurana impetrados visando reclassificao ou equiparao de servidores pblicos, ou concesso de aumento ou extenso de vantagens. Pargrafo nico: Os mandados de segurana a que se refere este artigo sero executados depois de transitada em julgado a respectiva sentena. Art. 7: O recurso voluntrio ou ex officio, interposto da deciso concessiva de mandado de segurana que importe outorga ou adio de vencimento ou ainda reclassificao funcional ter efeito suspensivo.

J em 1966, o legislador editou a Lei n 5.021/1966, vedando a liminar em mandado de segurana para efeito de pagamento de vencimentos e vantagens pecunirias a servidor pblico. Reverbera o art. 1, 4 da referida lei:
Art. 1: O pagamento de vencimentos e vantagens pecunirias asseguradas, em sentena concessiva de mandado de segurana, a servidor pblico federal, da administrao direta ou autrquica, e a servidor pblico esta-

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ENTRE ASPAS
dual e municipal, somente ser efetuado relativamente s prestaes que se vencerem a contar da data do ajuizamento da inicial. [...] 4: No se conceder liminar para efeito de pagamento de vencimentos e vantagens pecunirias.

Ressalta-se, desde j, que as referidas leis foram revogadas pela Lei n 12.016/2009 (nova lei do mandado de segurana), entretanto, as proibies da concesso de medidas liminares em mandados de segurana continuam previstas no art. 7, 2 e 5 da referida lei, que reverbera, ispis litteris:
Art. 7o Ao despachar a inicial, o juiz ordenar: [...] 2o No ser concedida medida liminar que tenha por objeto a compensao de crditos tributrios, a entrega de mercadorias e bens provenientes do exterior, a reclassificao ou equiparao de servidores pblicos e a concesso de aumento ou a extenso de vantagens ou pagamento de qualquer natureza. [...] 5o As vedaes relacionadas com a concesso de liminares previstas neste artigo se estendem tutela antecipada a que se referem os arts. 273 e 461 da Lei n 5.869, de 11 de janeiro de 1973 Cdigo de Processo Civil.

Portanto, antes mesmo da nova lei do mandado de segurana, j havia restries concesso de medida liminar. Dessa forma, com as restries impostas pela Lei n 4.348/1964 e pela Lei n 5.021/1966, os jurisdicionados passaram a se valer das aes cautelares, com pedidos liminares contra a Fazenda Pblica. Em consequncia de tal fato, foi editada a Lei n 8.437/1992, que estendeu a proibio das liminares em mandado de segurana s aes cautelares contra o Poder Pblico. Dispe o art. 1, 3 e 4 da referida lei:
Art. 1: No ser cabvel medida liminar contra atos do Poder Pblico, no procedimento cautelar ou em quaisquer outras aes de natureza cautelar ou preventiva, toda vez que providncia semelhante no puder ser concedida em aes de mandado de segurana, em virtude de vedao legal. 1 No ser cabvel, no juzo de primeiro grau, medida cautelar inominada ou a sua liminar, quando impugnado ato de autoridade sujeita, na via de mandado de segurana, competncia originria de tribunal. 2 O disposto no pargrafo anterior no se aplica aos processos de ao popular e de ao civil pblica. 3 No ser cabvel medida liminar que esgote, no todo ou em qualquer parte, o objeto da ao. 4 Nos casos em que cabvel medida liminar, sem prejuzo da comunicao ao dirigente do rgo ou entidade, o respectivo representante judicial dela ser imediatamente intimado.

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5o No ser cabvel medida liminar que defira compensao de crditos tributrios ou previdencirios. Art. 3: O recurso voluntrio ou ex officio, interposto contra sentena em processo cautelar, proferida contra pessoa jurdica de direito pblico ou seus agentes, que importe em outorga ou adio de vencimentos ou de reclassificao funcional ter efeito suspensivo. Art. 4: Compete ao presidente do tribunal, ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso, suspender, em despacho fundamentado, a execuo da liminar nas aes movidas contra o Poder Pblico ou seus agentes, a requerimento do Ministrio Pblico ou da pessoa jurdica de direito pblico interessada, em caso de manifesto interesse pblico ou de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave leso ordem, sade, segurana e economia pblicas.

Com a reforma do CPC e a criao do art. 273, que disciplinou a antecipao dos efeitos da tutela, houve grande preocupao acerca do enorme nmero de tutelas antecipadas em face da Fazenda Pblica. Dessa forma, o Poder Executivo editou a Medida Provisria n 1.570/1997, a qual foi convertida na Lei n 9.494/1997. A referida lei estendeu as restries existentes da concesso de medida liminar tutela antecipada, conforme se depreende de seu art. 1:
Art. 1 Aplica-se tutela antecipada prevista nos arts. 273 e 461 do Cdigo de Processo Civil o disposto nos arts. 5 e seu pargrafo nico e 7 da Lei n 4.348, de 26 de junho de 1964, no art. 1 e seu 4 da Lei n 5.021, de 9 de junho de 1966, e nos arts. 1, 3 e 4 da Lei n 8.437, de 30 de junho de 1992.

O referido artigo foi motivo da Ao Direta de Constitucionalidade n 4 ajuizada perante o Supremo Tribunal Federal, de relatoria do Ministro Sydney Sanches, em razo de estarem sendo deferidas, poca, tutelas antecipadas em desfavor do ente pblico sem a devida observncia do art. 1 da Lei n 9.494/1997, fazendo que houvesse onerao sobre a Fazenda Pblica e provocando repercusses indesejveis sobre o errio Em 11 de fevereiro de 1998, o STF deferiu em parte o pedido para suspender, at o final do julgamento da ao, a prolao de qualquer deciso sobre a tutela antecipada contra o Poder Pblico que verse sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade do art. 1 da Lei n 9.494/1997, suspendendo ainda os efeitos futuros das decises antecipatrias. Somente em 01 de outubro de 2008 a deciso final da ADC n 4 foi proferida pelo Plenrio do Supremo Tribunal Federal, julgando procedente a ao declaratria, nos termos do voto do Relator.

4.2. O cabimento da tutela antecipada em face do Poder Pblico e as restries impostas concesso da tutela antecipada pelo art. 1 da Lei n 9.494/1997 O art. 1 da Lei n 9.494/97 foi declarado totalmente constitucional pelo Supremo Tribunal Federal, esclarecendo de vez a ideia de que a tutela antecipada em desfavor da Fazenda 271

ENTRE ASPAS Pblica possvel, nos casos em que no se refiram ao artigo supracitado. Isso porque a referida lei apenas restringe a aplicao do instituto da tutela antecipada. Ao determinar hipteses em que a antecipao dos efeitos da tutela contra o Poder Pblico no pode ser deferida, acabou por reconhecer, a contrario sensu, o cabimento da antecipao de tutela nas hipteses que no foram previstas no texto legal. Seguindo este entendimento, traz-se baila as lies de Cssio Scarpinella Bueno (1997, p. 79):
(...) ao estender ao instituto da tutela antecipada as mesmas restries constantes do ordenamento jurdico brasileiro a respeito da liminar em mandado de segurana, bem como da tutela cautelar, reconheceu este ato do Executivo, para todos os fins, o cabimento deste novo instituto contra a Fazenda Pblica, superando, com tal iniciativa, todos aqueles bices legais referidos na doutrina quando da edio da Lei n 8.952/94 (...). Fosse descabida a antecipao de tutela contra a Fazenda Pblica, por alguma razo relacionada sua prpria natureza ou em funo do sistema processual e, certamente, no haveria preocupao em disciplinar ou restringir sua incidncia nas aes movidas em face do Poder Pblico.

Dessa forma, foi vedada a concesso de tutela antecipada nas hipteses de reclassificao ou equiparao de servidores pblicos, concesso de aumento ou extenso de vantagens pecunirias, outorgas ou acrscimo de vencimentos, pagamento de vencimentos e vantagens pecunirias a servidor pblico, quando uma providncia semelhante no puder ser concedida por meio de mandado de segurana, e quando a medida liminar no esgote no todo ou em parte o objeto da ao, desde que o objeto da mesma diga respeito a qualquer das matrias acima referidas (FERREIRA, 2003, p. 368). Portanto, verificados os requisitos que autorizam a concesso da tutela antecipada, previstos no art. 273 do Cdigo de Processo Civil, nada impede a concesso em face do poder pblico, desde que seja respeitado o art. 1 da Lei n 9.494/97. A Lei n 9.494/97 determinou que fossem aplicados ao instituto da tutela antecipada os arts. 5, pargrafo nico, e art. 7 da Lei n 4.348/64, os arts. 1 e 4 da Lei n 5.021/66, e os arts. 1, 3 e 4 da Lei n 8.437/92. Conforme dito anteriormente, a Lei n 4.348/64 e a Lei n 5.021/66 foram revogadas pela Lei n 12.016/2009 (nova lei do mandado de segurana), entretanto, as proibies da concesso de medidas liminares (e, por consequncia, da tutela antecipada por fora do art. 1 da Lei n 9.494/97) em mandados de segurana continuam previstas no art. 7, 2 e 5 da referida lei, vedando antecipao dos efeitos da tutela nas hipteses de reclassificao ou equiparao de servidores pblicos e concesso de aumento ou a extenso de vantagens ou pagamento de qualquer natureza. Acrescentou ainda a restrio referente compensao de crditos tributrios e entrega de mercadorias e bens provenientes do exterior. Entretanto, tal vedao apontada pela doutrina como inconstitucional. Neste sentido, o entendimento de Adriano Custdio Bezerra:
a inconstitucionalidade da vedao flagrante, tendo em vista que muitas vezes as mercadorias e bens provenientes do exterior so perecveis, e, por isso, causaria maiores prejuzos ao impetrante, se tivesse que aguar-

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dar o provimento final para ver liberado suas mercadorias ou bens. Considerando ainda que a reteno das mercadorias ocorre em Zonas Alfandegrias Primrias (Portos e Aeroportos), onde as tarifas de armazenagem so elevadssimas e podem, inclusive, dependendo do tempo de reteno dos bens, acarretar a inviabilidade da importao, pois o importador pode no ter mais condies de resgatar as mercadorias nas Zonas Alfandegrias. E com isso, percebe-se que a reteno de mercadorias nas Zonas Aduaneiras, como forma de forar o contribuinte a recolher o tributo afronta at mesmo o princpio do no confisco esculpido no art. 150, inciso IV, da Constituio Federal, pois a Unio, os Estados, os Municpios e o Distrito Federal no podero usar o tributo como forma de confisco. Esse entendimento j era disciplinado pelas Smulas 323 e 547 do Egrgio Supremo Tribunal Federal, determinando que ilcita a apreenso de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos, inviabilizando o exerccio das atividades profissionais, afrontando, assim, o art. 170, caput, da Constituio Federal.

Em relao ao art. 1 da Lei n 8.437/92, no ser cabvel medida liminar antecipatria contra atos do Poder Pblico, toda vez que providncia semelhante no puder ser concedida em aes de mandado de segurana, em virtude de vedao legal, aplicando, dessa forma, as restries antecipao de tutela do mandado de segurana. Segundo o 1 do art. 1 da referida lei, no ser cabvel a tutela antecipada e sua liminar quando a competncia for de competncia originria do Tribunal. Em relao ao referido tema, leciona Cssio Scarpinella (1997, p. 89):
A regra jurdica s pode encerrar critrio de competncia funcional, em nada inibindo a concesso de qualquer medida contra a Fazenda Pblica, sob pena, pelas mesmas razes expostas ao longo deste trabalho, de no poder prevalecer por violar, em cada caso concreto, o amplo acesso justia.

Dessa forma, tal restrio viola frontalmente o amplo acesso justia, podendo ser afastada no caso concreto. De acordo com o 2 do art. 1 da Lei n 8.437/92, a limitao constante do 1 no se aplica aos processos de Ao Civil Pblica e Ao Popular, podendo ser concedida a tutela antecipada nessas aes, observando-se apenas os requisitos inerentes a toda tutela antecipada, em consonncia com o art. 273 do Cdigo de Processo Civil. Em relao ao 3 do art. 1 da lei em comento, o mesmo estabelece que no ser cabvel medida liminar que esgote no todo ou em parte o objeto da ao. Entretanto, a tutela antecipada, conforme explanao em tpico anterior, uma tutela de urgncia, provisria, sumria e satisfativa, na qual os efeitos do provimento final so antecipados. Na referida tutela, no h soluo do litgio, pois ocorre apenas uma cognio perfunctria. Assim, a tutela antecipada no tem o condo de esgotar o objeto da ao, pois a mesma no diz respeito ao objeto da demanda, antecipando apenas os efeitos de um provvel direito para garantir a efetividade da tutela jurisdicional. 273

ENTRE ASPAS Dessa forma, a tutela antecipada, ainda que antecipe todos os efeitos da tutela pretendida, no torna o provimento final descartvel, pois somente a sentena ir resolver a lide de forma definitiva, pois pautada em cognio exauriente. Importante trazer tona o entendimento de Leonardo Jos Carneiro da Cunha (2007, p. 227):
a regra aplicvel s medidas cautelares, no teria muito sentido quanto s tutelas antecipadas, j que so, em essncia, satisfativas. Parece, contudo, que a aplicao de tal vedao tutela antecipada refora, apenas, o que j est contido no 2 do art. 273 do CPC, ou seja, no se permite a antecipao dos efeitos da tutela quando houver risco de irreversibilidade.

Neste sentido, traz-se a colao julgado do Superior Tribunal de Justia:


sob outro enforque, sobreleva notar, a regra geral a de que a liminar no esgote o objeto da ao, obstculo que se supera na valorao dos interesses em jogo devendo preponderarem os direitos fundamentais da pessoa humana e o instransponvel direito de acesso justia. A idia de efetividade, autoexecutoriedade e mandamentalidade nsita aos provimentos de urgncia, cuja situao acautelada reclama satisfatividade imediata, conduzem concluso da incompatibilidade com os meios que revelem postergao da efetivao da tutela deferida, como si ser o recebimento de apelao com efeito suspensivo e, a fortiori, submisso da execuo das mencionadas tutelas ao regime de precatrio. (STJ Resp n. 834.678/ PR. Min. Rel. Luiz Fux, julgado em 26/07/2007)

A restrio do art. 3 da Lei n 8.437/92 diz respeito ao recurso ex officio, j tratado em tpico prprio, no qual se concluiu pela no aplicao do art. 475 do CPC tutela antecipada, pois o mesmo somente se aplica s sentenas de mrito. J o art. 4 da lei em apreo estabelece a possibilidade de suspenso da execuo provisria da tutela, se tiver sido proferida contra o Poder Pblico ou seus agentes, a requerimento do Ministrio Pblico ou da pessoa jurdica de direito pblico interessada, em caso de manifesto interesse pblico ou de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave leso ordem, sade, segurana e economia pblicas.

5. A mitigao aos limites impostos a antecipao dos efeitos da tutela em face da Fazenda Pblica e o princpio da proporcionalidade 5.1. Consideraes iniciais Traados os principais limites legais concesso da antecipao dos efeitos da tutela em face da Fazenda Pblica, importante agora ressaltar que tais limitaes no se revestem de carter absoluto. Neste ponto, relevante trazer ao tema lio de Luiz Guilherme Marinoni (2002, p. 11):
dizer que no h um direito tutela antecipatria contra a Fazenda Pblica em caso de fundado receio de dano o mesmo que afirmar que o direito

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do cidado pode ser lesado quando a Fazenda for r (...). Por outro lado, no admitir antecipatria fundada em abuso de direito contra a Fazenda significa aceitar que ela pode abusar de seu direito de defesa e que o autor da demanda contra a mesma seja obrigado a suportar, alm da conta, o tempo de demora do processo.

Assim, a utilizao da antecipao dos efeitos da tutela deve ter em vista a garantia de uma prestao jurisdicional clere, justa e segura, visando assegurar o princpio do acesso justia e da efetividade da jurisdio. A despeito da fora vinculante derivada do julgamento da ADC n 4, no se pode descartar a realizao de avaliao das circunstncias concretas para se verificar a possibilidade de afastamento das restries contidas pela Lei n 9.494/97. Neste ponto, plenamente defensvel o entendimento de que o Magistrado pode deixar de aplicar a norma declarada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal, desde que o fundamento no seja o da inconstitucionalidade da norma, como a situao de sua no aplicao no caso concreto, em vista das peculiaridades inerentes ao mesmo, no se privando, portanto, do comando da norma declarada constitucional.

5.2. A mitigao indireta A jurisprudncia ptria, de uma maneira geral, admite o instituto da tutela antecipada em face da Fazenda Pblica, desde que no incorra nas vedaes impostas pelo art. 1 da Lei n 9.494/97. Assim entende o Superior Tribunal de Justia:
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. ART. 535, II, DO CPC. OMISSO. INEXISTNCIA. CUSTEIO DE TRATAMENTO MDICO. MOLSTIA GRAVE. BLOQUEIO DE VALORES EM CONTAS PBLICAS. POSSIBILIDADE. ART. 461, CAPUT E 5 DO CPC. (...) 4. Submeter os provimentos deferidos em antecipao dos efeitos da tutela ao regime de precatrios seria o mesmo que negar a possibilidade de tutela antecipada contra a Fazenda Pblica, quando o prprio Pretrio Excelso j decidiu que no se probe a antecipao de modo geral, mas apenas para resguardar as excees do art. 1 da Lei n 9.494/97. 5. O disposto no caput do artigo 100 da CF/88 no se aplica aos pagamentos de obrigaes definidas em lei como de pequeno valor, de modo que, ainda que se tratasse de sentena de mrito transitada em julgado, no haveria submisso do pagamento ao regime de precatrios. 6. Em casos como o dos autos, em que a efetivao da tutela concedida est relacionada preservao da sade do indivduo, a ponderao das normas constitucionais deve privilegiar a proteo do bem maior que a vida. 7. Precedentes de ambas as Turmas que compem a Primeira Seo. 8. Recurso especial improvido. (STJ Resp 853880/RS. Rel. Min. Castro Meira, SEGUNDA TURMA, julgado em 19/09/2006, DJ 28/09/ 2006) (grifos nossos)

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ENTRE ASPAS Apesar deste entendimento, os Tribunais Superiores vem mitigando indiretamente a restrio do art. 1 da referida lei, com consequncias financeiras indiretas ao errio pblico. Dessa forma, no incide diretamente na restrio da Lei n 9.494/97 e na deciso proferida pelo Supremo Tribunal Federal, apesar de que, na prtica, h um aumento dos gastos do poder pblico. Como exemplo de tal fato, cita-se a situao em que o jurisdicionado pleiteou a tutela antecipada para que fosse nomeado em um concurso de professor. O pedido de nomeao no afronta diretamente a deciso do ADC n 4 proferida pelo STF, sendo admissvel a hiptese em apreo. Entretanto, quando o indivduo for nomeado e comear a exercer suas funes, ter que receber a remunerao pertinente, onerando os cofres pblicos, constituindo tal onerao um efeito secundrio da deciso. Neste sentido, entende o STF:
SERVIDOR PBLICO. Cargo. Concurso pblico. Candidato aprovado. Nomeao e posse. Antecipao dos efeitos da tutela para esse fim. Admissibilidade. Pagamento conseqente de vencimentos. Irrelevncia. Efeito secundrio da deciso. Inaplicabilidade do acrdo da ADC n 4. Reclamao indeferida liminarmente. Agravo improvido. Precedentes. No ofende a autoridade do acrdo proferido na ADC n 4, a deciso que, a ttulo de antecipao de tutela, assegura a candidato aprovado em concurso a nomeao e posse em cargo pblico. (STF Rcl 5983 AgR, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 03/12/2008, DJe-025 DIVULG 05-02-2009 PUBLIC 06-02-2009)

O Supremo Tribunal Federal tambm editou a Smula n 729, afirmando que a deciso da ADC n 4 no se aplica antecipao de tutela nas aes de natureza previdenciria. Como exemplo, transcreve-se ementa de julgamento neste sentido:
INCONSTITUCIONALIDADE. Ao direta. Tutela antecipada contra a Fazenda Pblica. Art. 1 da Lei n 9.494/97. Constitucionalidade reconhecida em medida cautelar. ADC n 4. Inaplicabilidade. Antecipao de tutela em causa de natureza previdenciria. Reclamao julgada improcedente. Agravo improvido. Aplicao da smula 729. A deciso do ADC n 4 no se aplica antecipao de tutela em causa de natureza previdenciria. (STF Rcl 2446 AgR, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 03/02/2005, DJ 05-08-2005)

O fundamento de tal deciso do STF a de que, qualquer que seja a razo jurdica especfica, a correo de proventos de aposentados e pensionistas no se confunde com reclassificao ou equiparao, aumento ou extenso de vantagens, nem pagamentos de vencimentos e vantagens pecunirias, tpicas da condio de servidores pblicos. Assim, a deciso que antecipa verbas de natureza previdenciria no tem por pressuposto a invalidez jurdico-constitucional do art. 1 da Lei n 9.494/97. Tambm h uma mitigao indireta e inaplicvel a incidncia da restrio constante da deciso da ADC n 4 nas decises em que a verba no constitua subsdio, salrio nem vantagens pecunirias. Colaciona-se o seguinte julgado neste sentido: 276

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MAGISTRATURA. Magistrado. Aposentado. Frias no gozadas. Pagamento em pecnia. Indenizao. Tutela antecipada contra a Fazenda Pblica. Verba que no constitui subsdio, vencimento, salrio nem vantagem pecuniria. Ofensa liminar deferida na ADC n 4. No ocorrncia. Situao no compreendida pelo art. 1 da lei n 9.494/97. Reclamao julgada improcedente. Agravo improvido. Precedentes. No ofende a deciso liminar proferida na ADC n 4, a antecipao de tutela que implica ordem de pagamento de verba de carter indenizatrio. (STF Rcl 5174 AgR, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 27/ 11/2008, DJe-025 DIVULG 05-02-2009 PUBLIC 06-02-2009)

O fundamento de tal deciso que a natureza indenizatria das verbas que no so salariais, nem constituem vantagens, subtrai a hiptese do mbito de incidncia do julgamento da ADC n 4. Tambm entendeu o Superior Tribunal de Justia que a reintegrao de servidor pblico no cargo atravs de tutela antecipada no ofende o art. 1 da Lei n 9.494/97, conforme se depreende do seguinte julgado:
PROCESSUAL CIVIL. MILITAR. REINTEGRAO. ANTECIPAO DE TUTELA. POSSIBILIDADE. SITUAO NO INCLUDA NO ART. 1 DA LEI N. 9.494/1997. 1. O disposto nos arts. 1 e 2 B da Lei n 9.494/1997 deve ser interpretado de forma restritiva, motivo pelo qual permitida a concesso de tutela antecipatria para reintegrao de militar ao servio ativo e realizao de tratamento de sade, na medida em que no se pretende reclassificao ou equiparao de servidor pblico, ou concesso de aumento ou extenso de vantagens. Precedentes. (...) (STJ AgRg no Resp 1120170/RS. Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 03/11/2009)

Dessa forma, percebe-se que o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justia vm interpretando restritivamente o art. 1 da Lei n 9.494/97, permitindo a mitigao indireta do referido artigo mediante a onerao dos cofres pblicos nos casos supracitados.

5.3. A incidncia do princpio da proporcionalidade das limitaes impostas tutela antecipada contra a Fazenda Pblica O princpio da proporcionalidade surge como um princpio geral do direito. A proporcionalidade permite a soluo de conflitos normativos na perspectiva de defesa de direitos fundamentais. Ela complementa o modelo de regras e princpios. Assim como outros princpios instrumentais, a proporcionalidade permite ao hermeneuta resolver um confronto de valores fundamentais com a atividade de ponderao de bens, equilibrando os interesses em jogo. Com isso, ela viabiliza maximizar a concretizao de direitos fundamentais e a tutela da dignidade humana. Segundo Alexy, as teorias dos direitos fundamentais podem ser formuladas, em vez de como teorias dos princpios, como teorias dos valores ou como teorias gerais dos direitos fundamentais. 277

ENTRE ASPAS Portanto, por meio de um sopesamento entre os interesses conflitantes, se verificar qual dos princpios ou interesses ter maior peso no caso concreto. No caso em apreo, de um lado est o instituto da tutela antecipada, previsto no art. 273 do Cdigo de Processo Civil, que garante a entrega da prestao jurisdicional antes do prazo regular. Do outro, est a Fazenda Pblica, com muitas prerrogativas, bem revestidos de indisponibilidade e com leis que limitam especificamente a concesso da tutela em determinados casos (art. 1 da Lei n 9.494/97). A Fazenda Pblica, conforme j foi dito, o Estado em Juzo, que protegida com o fim de se garantir o interesse pblico. Entretanto, do outro lado, est o indivduo, o jurisdicionado, destinatrio das finalidades do Estado, que possui como garantia maior a proteo dignidade da pessoa humana, de assento constitucional. Importante, desde j, esclarecer que o sopesamento somente pode ser feito diante das peculiaridades existentes no caso concreto. Quando h o conflito entre a proteo do interesse publico em referncia a Fazenda Pblica, e a dignidade da pessoa humana, deve-se ter em mente que as aes do Estado no podem ultrapassar os limites da defesa dos bens inerentes vida. Dessa forma, havendo o risco de perecimento do direito, e quando este direito estiver ligado intrinsecamente dignidade da pessoa humana, no podem as prerrogativas da Fazenda Pblica e as restries legais antecipao de tutela, inclusive o art. 1 da Lei n 9.494/97, se sobreporem pessoa humana, no caso concreto. A proteo aos cidados, por fora do art. 5, XXXV da Constituio Federal, deve ser efetivada com presteza, pois decorre do prprio Estado Democrtico de Direito. O postulado da proporcionalidade deve orientar as aes dos rgos estatais por meio dos agentes pblicos. Se ocorrer a violao de um direito do cidado, vinculado dignidade da pessoa humana, ou que mesmo indiretamente importe em violao, o princpio da proporcionalidade dever nortear o intrprete para a concesso da tutela. Assim, o derradeiro escopo do interesse pblico que os atos pblicos tenham como destinatrio principal a proteo da dignidade humana. Dessa forma, segundo o princpio da proporcionalidade, deve-se ponderar os valores em jogo, e em razo dessa ponderao, conceder a antecipao. Com base em tal princpio, tenta-se empreender rapidez e segurana, visando a proteo de um bem jurdico maior que se encontra ameaado. Salienta que no se busca aqui a concesso da tutela apenas afastando-se os bices legislativos. Preservam-se, no caso, todos os demais requisitos da tutela antecipada elencados no art. 273 do Cdigo de Processo Civil. O que acontece no a supresso do obstculo, mas apenas a sua relativizao no caso concreto, diante da urgncia da situao e obedecidos os requisitos inerentes a toda tutela antecipada, com vistas a evitar o perecimento do direito. O art. 1 da Lei n 9.494/97, que veda a antecipao de tutela contra a Fazenda Pblica em determinados casos, no pode ter a abrangncia de proibir toda medida antecipatria, em qualquer caso que se encontre, pois, apesar de haver a restrio da lei, o juiz poder conceder a antecipao, sob pena de frustrao do prprio direito, a depender do caso concreto. Segundo o Superior Tribunal de Justia, a deciso do STF na ADC n 4 deve ser interpretada com temperamentos, pois o entendimento da vedao da tutela antecipada em desfavor do Poder Pblico no deve ter cabimento em situaes excepcionalssimas. Para corroborar com o defendido, cita-se o entendimento do Ministro Garcia Vieira do Superior Tribunal de Justia: 278

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Lei n 9.494/97 (artigo 1) deve ser interpretada de forma restritiva, no cabendo sua aplicao em hiptese especialssima, na qual resta caracterizado o estado de necessidade e a exigncia de preservao da vida humana, sendo de se impor a antecipao da tutela, no caso, para garantir ao apelado o tratamento necessrio sua sobrevivncia. Deciso consonante com precedentes jurisprudenciais do STJ (STJ - REsp 275.649/SP, Rel. Min. Garcia Vieira, DJU de 17/09/2001).

Para Jos Roberto dos Santos Bedaque (2003, p.89), a garantia da tutela jurisdicional de todo cidado. Sendo assim, possvel a tutela antecipada contra o Poder Pblico nas situaes em que estiverem presentes os requisitos do art. 273 do Cdigo de Processo Civil, pois a proteo nica, no se justificando as restries infraconstitucionais, como exemplo da Lei n 9.494/97. Por sua vez, o Tribunal Regional Federal da 4 Regio tem entendido possvel a concesso de antecipao dos efeitos da tutela em face da Fazenda Pblica, em se tratando de temas de direitos fundamentais e previdencirios:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. TUTELA ANTECIPADA. REQUISITOS. FAZENDA PBLICA. 1) Com relao s alegaes de que h vedaes legais contra a concesso de tutela antecipada contra a Fazenda Pblica, em decises judiciais que esgotem, no todo ou em parte, o objeto das aes, o art. 2 da Lei n 8.437/92 refere-se apenas s aes de mandado de segurana coletivo e ao civil pblica, no sendo aplicvel presente ao. Com relao vedao da concesso da tutela contra a Fazenda Pblica, o entendimento do STF e do STJ no sentido de que est ressalvada da proibio contida na Lei n 9494/97 as questes de cunho previdencirio e de garantia de direitos fundamentais. 2) Com relao aos requisitos para antecipao da tutela, os quais, segundo a agravante, no estariam cumpridos, tambm sem razo. A tutela foi deferida aps anlise dos documentos juntadas com a petio inicial, onde o magistrado pde analisar detidamente as provas existentes nos autos, o que j invivel neste agravo pela carncia de elementos trazidos a exame pela agravante. (TRF4, AGRAVO DE INSTRUMENTO, 2005.04.01.046616-0, Terceira Turma, Relator Vnia Hack de Almeida, D.E. 29/08/2007) (grifos nossos)

Dessa forma, no convive em harmonia uma interpretao literal da lei em detrimento de uma anlise sistemtica do conjunto de normas. Em um Estado de Direito, o que se busca uma harmonia do complexo jurdico visando resguardar os direitos fundamentais. No caso em tela, o interesse pblico protegido por meio das prerrogativas da Fazenda Pblica deve ser mitigado em prol da defesa da dignidade da pessoa humana, mesmo nas hipteses em que haja restrio legal quanto possibilidade de antecipao dos efeitos da tutela, utilizando-se o postulado da proporcionalidade com vistas a sopesar e ponderar ditos valores. Portanto, na hiptese de coliso entre dispositivos constitucionais, deve prevalecer a interpretao favorvel aos direitos fundamentais. Ademais, plenamente defensvel o entendimento de que o juiz pode deixar de aplicar a norma do art. 1 da Lei n 9.494/97 declarada constitucional pelo STF, desde que o fundamen279

ENTRE ASPAS to no seja o da inconstitucionalidade da norma, como o caso da sua no aplicao no caso concreto, tendo em vista as peculiaridades inerentes ao mesmo. Nesse diapaso, as normas que limitam a antecipao dos efeitos da tutela em face da Fazenda Pblica, embora sejam consideradas constitucionais, no devem ser aplicadas, necessariamente, em todos os casos. Isso porque, havendo o conflito de valores juridicamente relevantes, como a prestao jurisdicional adequada e efetiva, a segurana jurdica, o interesse pblico e os direitos fundamentais, essa aferio somente pode ser feita no caso concreto, e no em abstrato, em consonncia com as peculiaridades de cada caso submetido apreciao do Poder Judicirio. Assim, possvel o afastamento das limitaes da lei acima citada, desde que as especificidades do caso concreto autorizem tal afastamento, sobretudo quando houver malferio de direito fundamental ligado dignidade da pessoa humana. Por consequncia, a observncia do postulado da proporcionalidade imprescindvel quando da antecipao dos efeitos da tutela contra a Fazenda Pblica, devendo-se observar qual dentre os valores jurdicos colidentes no caso concreto deve ser protegido, no sendo possvel aceitar que os direitos fundamentais sejam malferidos pela simples dico legal em sentido contrrio, o que representa um bice ao livre acesso ordem jurdica justa. Vale aqui transcrever as lies de Carlos Augusto de Assis (2001, p. 192):
quanto a elas, e tendo por objetivo no frustrar o direito adequada tutela jurisdicional (corolrio do devido processo legal), duas solues nos parecem possveis: reput-las inconstitucionais, deixando ao magistrado, em cada caso, o poder de aplicar ou no a antecipao de tutela de acordo com o art. 273, tendo em vista o critrio da proporcionalidade acima formulado; ou, ento, verificar em cada caso concreto se elas importam indevido cerceamento do direito ao devido processo legal, para s depois aplic-las ou no. Do ponto de vista prtico, ambas conduzem ao mesmo resultado, qual seja: o de que a antecipao contra a Fazenda Pblica possvel mesmo em situaes teoricamente vedadas pela Lei n 9.494 de 1997, verificadas as peculiaridades de cada caso.

Portanto, apesar de haver restries antecipao de tutela em face da Fazenda Pblica, todas elas podem ser afastadas de acordo com as peculiaridades do caso concreto, aplicando-se, para tanto, o princpio da proporcionalidade.

6. Concluso Diante do exposto no decorrer do presente trabalho, foi possvel dirimir algumas dvidas atinentes antecipao dos efeitos da tutela em face da Fazenda Pblica. Conquanto j se tenha, em cada captulo do presente estudo, extrado as concluses que o mesmo trouxe, cumpre abord-las de forma sistemtica, para que se possa atingir o objetivo da pesquisa, atendendo s pretenses deduzidas no seu desenvolvimento. Na primeira parte do trabalho, tratou-se da tutela antecipada. Falou-se, inicialmente, que a mesma consiste na entrega provisria da prestao jurisdicional, atravs da certificao ou da efetivao do direito material discutido. Atravs dela, antecipa-se a eficcia da deciso final, possuindo, portanto, carter satisfativo. 280

A REVISTA DA UNICORP Apontou-se, em seguida, os pressupostos da mesma, tratando de cada um deles, quais sejam, o requerimento da parte, a existncia de prova inequvoca, a verossimilhana das alegaes, a reversibilidade do provimento, o fundado receio de dano irreparvel ou de difcil reparao, ou o abuso de direito de defesa ou manifesto protelatrio do ru. Aps, passou-se ao estudo propriamente dito da antecipao dos efeitos da tutela em face da Fazenda Pblica. Conforme foi estudado, a Fazenda Pblica o Estado em Juzo. Foi dito tambm que as prerrogativas que o Estado possui em Juzo decorrncia da supremacia do interesse pblico sobre o particular. Falou-se sobre o bice do reexame necessrio, estabelecendo como concluso que o mesmo no se aplica a situao em tela em virtude de o art. 475 do CPC se referir expressamente a sentenas, no tratando de decises interlocutrias. Sobre o obstculo referente a questo do precatrio, chegou-se concluso de que a deciso que antecipa os efeitos da tutela daria incio s delongas para a expedio do precatrio, cujo procedimento findaria com o depsito judicial da quantia, que somente poderia ser levantado em caso de procedncia definitiva da demanda. Em seguida, adentrou-se no estudo das leis que limitaram a antecipao de tutela em face do Poder Pblico em relao a determinadas matrias. Falou-se inicialmente das Leis n 4.384/64 e n 5.021/66, que foram revogadas pela lei n 12.016/2009 (nova lei do mandado de segurana), entretanto, as proibies da concesso de medidas liminares em mandados de segurana continuam previstas, e as mesmas se aplicam tutela antecipada. Em seguida, tratou-se da Lei n 8.437/1992, que estendeu a proibio das liminares em mandado de segurana s aes cautelares contra o Poder Pblico. Posteriormente, foi criada a lei 9.494/97, que estendeu as restries da concesso de medida liminar em todas as leis ditas anteriormente tutela antecipada. Tal lei foi objeto da Ao Direta de Constitucionalidade n. 4, que em 2008 foi julgada procedente. Aps, ingressou-se no estudo do art. 1 da Lei n 9.494/97, que, em sntese, vedou a concesso de tutela antecipada nas hipteses de reclassificao ou equiparao de servidores pblicos, concesso de aumento ou extenso de vantagens pecunirias, outorgas ou acrscimo de vencimentos, pagamento de vencimentos e vantagens pecunirias a servidor pblico, quando uma providncia semelhante no puder ser concedida por meio de mandado de segurana, e quando a medida liminar no esgote no todo ou em parte o objeto da ao, desde que o objeto da mesma diga respeito a quaisquer das matrias acima referidas. Numa interpretao contrario sensu, chegou-se concluso de que a tutela antecipada estava autorizada em todos os demais casos no mencionados pela lei. Ressaltou-se a ocorrncia da mitigao indireta do art. 1 da Lei n 9.494/97, sendo que o STF editou a Smula n 729, estabelecendo que no se aplica a restrio do referido artigo s verbas previdencirias, ocorrendo tambm outras hipteses de mitigao indireta. Por fim, tratou-se do princpio da proporcionalidade, concluindo-se que diante do caso concreto, plenamente possvel a incidncia do referido princpio para afastar quaisquer restries tutela antecipada em face da Fazenda Pblica, pois o Magistrado pode deixar de aplicar a norma declarada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal, desde que o fundamento no seja o da inconstitucionalidade da norma, como a situao de sua no aplicao no caso concreto, em vista das peculiaridades inerentes ao mesmo, devendo-se preservar sempre os direitos fundamentais. 281

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