Frankenstein - Mary Shelley
Frankenstein - Mary Shelley
Frankenstein - Mary Shelley
KENS
TEIN
Frankenstein or, The Modern Prometheus
Publicado originalmente em 1818, com edição definitiva datada de 1831.
OU O PROMETEU MODERNO
Mary Shelley
São Paulo
2019
INTRODUÇÃO
M. W. S.
Londres, 15 de outubro de 1831
Como o tempo passa devagar aqui, cercado como eu estou pela geada e
a neve! Ainda assim, dei o segundo passo de minha empreitada. Aluguei
um navio e estou ocupado com a seleção dos marinheiros; aqueles com
quem já lidei parecem homens confiáveis, e certamente possuem uma
notável coragem.
Mas tenho um desejo que ainda não fui capaz de satisfazer, e a falta que
isso me faz se tornou pior do que nunca. Eu não tenho um amigo,
Margaret: quando irradio o entusiasmo do sucesso, não há ninguém para
partilhar minha alegria; se sou surpreendido pela decepção, não tenho
alguém para me apoiar em meu desânimo. Devo confiar meus pensamentos
ao papel, é verdade; mas trata-se de um meio ruim para comunicar os
sentimentos. Desejo a companhia de um homem apto a simpatizar comigo
– alguém cujos olhos respondam aos meus. Você pode me considerar um
romântico, minha querida irmã, mas sinto amargamente a falta de um
amigo. Não tenho ninguém por perto que seja gentil, corajoso e possuidor
de uma mente culta e capacitada, cujos gostos sejam iguais aos meus a
ponto de aprovar ou alterar meus planos. Como tal amigo seria capaz de
reparar as falhas de seu pobre irmão! Sou demasiado intenso nas
execuções e impaciente nas dificuldades. Mas para mim é mal ainda maior
ser autodidata: durante os primeiros catorze anos da minha vida, agi da
maneira que quis e não li nada além dos livros de viagens de nosso tio
Thomas. Nessa idade, familiarizei-me com os célebres poetas de nosso
país; mas foi somente quando não obtive mais benefícios de minha
convicção que percebi a necessidade de me familiarizar com outras
línguas além da minha própria. Hoje tenho 28 anos e me sinto, de fato,
mais iletrado do que muitos estudantes de 15 anos. É verdade que venho
pensando mais e que meus devaneios se tornaram mais amplos e
magníficos, mas eles precisam – como diriam os pintores – de harmonia, e
anseio muito por um amigo que tenha o bom senso de não me desprezar
como romântico, mas com afeto o suficiente para regular minha mente.
Bem, as reclamações são inúteis. É certo que não encontrarei um amigo
no vasto oceano, tampouco aqui em Arcangel, entre mercadores e
marinheiros. No entanto, apesar de desalinhados com a imundície da
natureza humana, certos sentimentos tomam parte nesses corações
ásperos. Meu imediato, por exemplo, é homem de grande coragem e
iniciativa, almeja loucamente a glória, ou, para usar as palavras mais
corretas, ambiciona o sucesso em sua carreira. Ele é um inglês de pouca
instrução que, em meio a preconceitos quanto à sua nacionalidade e
profissão, ainda consegue manter algumas das mais nobres qualidades
humanas. Eu o conheci a bordo de um baleeiro e, ao descobrir que estava
desempregado nessa cidade, rapidamente o chamei para me ajudar nesta
jornada.
O imediato é uma pessoa de disposição excelente, notável por sua
gentileza e disciplina ponderada. Tais contingências, somadas à sua
conhecida integridade e coragem, fizeram com que eu desejasse muito seu
envolvimento com minha empreitada. Como jovem que cresceu na solidão,
vivendo os melhores anos sob sua tutela gentil e feminina, tive meu
caráter refinado de tal forma que não consigo esconder um desagrado
intenso a respeito da costumeira brutalidade exercida a bordo. Nunca
achei que seria necessário e, quando ouvi falar sobre um marinheiro
conhecido tanto pela bondade de seu coração como pelo respeito e a
obediência que lhe era dedicada por seus homens, senti-me
particularmente sortudo pela oportunidade de contar com seus serviços.
Ouvi falar dele pela primeira vez de maneira romântica, por uma senhora
que lhe devia a felicidade de sua vida. Essa é, em resumo, a história do
homem: anos atrás, ele amou uma jovem russa de certa fortuna. Quando
conseguiu acumular uma quantia considerável de dinheiro em virtude de
prêmios, o pai da garota aceitou a união. Antes da cerimônia programada,
porém, ele viu uma única vez a moça, que estava em lágrimas e se atirou
aos seus pés implorando que fosse poupada, confessando ao mesmo tempo
que amava outro homem – um rapaz pobre, a quem seu pai jamais
permitiria seu enlace. Meu generoso amigo tranquilizou a suplicante e, ao
ser informado sobre o nome do rapaz, instantaneamente abandonou seus
planos. Ele já havia comprado uma fazenda com seu dinheiro, na qual
planejara passar o restante de sua vida; no entanto, deu tudo ao rival,
bem como o dinheiro remanescente para a compra de gado. Então, pediu
que o pai da jovem autorizasse o casamento entre os apaixonados. O
velho, porém, recusou o acordo, considerando-se ligado ao meu amigo por
laços de honra. Este, ao descobrir a inflexibilidade do pai, deixou o país e
voltou apenas quando soube que a ex-amada se casara de acordo com suas
predileções. “Que sujeito nobre!”, você deve estar exclamando. Sem
dúvida, mas também é absolutamente inculto. É silencioso como um turco
e apresenta certa indiferença bruta que, embora torne sua conduta ainda
mais surpreendente, diminui o interesse e a simpatia que, de outra forma,
ele poderia atrair.
No entanto, não pense que o fato de eu reclamar um pouco ou conceber
um consolo para minhas labutas significa que estou vacilando em minhas
resoluções. Elas são tão firmes quanto o destino, e minha viagem terá
início assim que o tempo permitir meu embarque. O inverno tem sido
terrivelmente severo, mas a primavera promete ser boa, sendo conhecida
por sua notável precocidade, assim, talvez eu possa partir antes do
planejado. Não farei nada de maneira precipitada: você me conhece o
suficiente para confiar em minha prudência e consideração sempre que a
segurança de outrem está sob meu cuidado.
Mal posso descrever as sensações ante a proximidade da viagem. É
impossível explicar o conceito do tremor, meio prazeroso e meio
amedrontador, com o qual me preparo para partir. Estou a caminho de
regiões inexploradas, para a “terra do nevoeiro e da neve”, mas não
matarei nenhum albatroz; portanto, não tema pela minha segurança, ou se
voltarei tão desgastado e lúgubre quanto o “Velho Marinheiro”.5 Você
sorrirá com minha alusão, mas devo confessar um segredo: sempre atribuí
meu apego, meu entusiasmo apaixonado pelos perigos misteriosos do
oceano, à produção do mais imaginativo dentre os poetas modernos. Há
algo em ação na minha alma que não entendo o que é. Sou praticamente
industrial – um trabalhador que executa suas tarefas com esforço e
perseverança –, mas, além disso, nutro amor e crença naquilo que é
maravilhoso e se entrelaça a todos os meus projetos, que me tira dos
caminhos triviais do homem e me leva ao mar revolto e às regiões nunca
visitadas, as quais estou prestes a explorar.
Mas voltemos às considerações mais queridas. Devo encontrá-la
novamente, depois de ter atravessado mares imensos e retornado pelo
cabo mais meridional da África ou da América? Não ouso esperar tanto
sucesso, mas não suporto imaginar o contrário desse cenário. Continue a
me escrever sempre que puder: posso receber suas cartas nos momentos
em que mais precisar de apoio para o meu espírito. Eu te amo ternamente.
Lembre-se de mim com carinho caso nunca mais receba notícias minhas.
13 de agosto de 17—
Meu afeto por meu convidado cresce a cada dia. Ele suscita minha
admiração e pena de um jeito surpreendente. Como posso ver uma
criatura tão nobre destruída pelo infortúnio sem sentir a dor mais
pungente? Ele é tão gentil e sábio; sua mente é muito culta, e, quando ele
fala, mesmo que suas palavras sejam selecionadas com a maior cautela,
fluem com rapidez e eloquência incomparáveis.
Ele agora está bastante recuperado de sua enfermidade; é visto com
frequência no convés, onde aparentemente procura pelo trenó que o
precedeu. Ainda que esteja infeliz, já não se ocupa mais com a própria
desventura, manifestando interesse nos planos dos demais. Ele sempre
conversa comigo sobre os meus, que expus sem reservas. Ele ouviu com
atenção todos os argumentos em favor de meu eventual sucesso e cada
detalhe das medidas que tenho tomado para garanti-lo. A simpatia
demonstrada por ele me levou a usar a linguagem do meu coração;
expressei com o ardor de minha alma como seria capaz de sacrificar
alegremente minha fortuna, existência e todas as esperanças em favor da
minha empreitada. A vida ou a morte de um homem eram apenas um
pequeno preço a ser pago pela aquisição e transmissão do conhecimento
que nos permitiria vencer as forças hostis à raça humana. Enquanto eu
falava, porém, uma sombra melancólica se espalhava pelo semblante do
meu ouvinte. A princípio, percebi que ele tentava reprimir suas emoções;
ele colocou as mãos diante dos olhos, fazendo minha voz tremer e falhar
quando as lágrimas escorreram rapidamente por entre seus dedos e um
gemido saiu de seu peito. Fiz uma pausa; por fim, ele falou com
dificuldade: “Homem infeliz! Você compartilha da minha loucura?
Também bebeu dessa poção inebriante? Ouça-me: me deixe revelar minha
história e você arrancará a taça de seus lábios!”
Você deve imaginar que tais palavras instigaram fortemente minha
curiosidade. Porém, o ímpeto do pesar que assolou o desconhecido afetou
suas debilitadas forças, sendo necessárias muitas horas de repouso e
conversas tranquilas para lhe restaurar a compostura.
Uma vez superada a violência de seus sentimentos, ele pareceu se
desprezar pelo arrebatamento emocional. O estranho reprimiu a tirania
obscura do desespero e me induziu novamente a falar sobre mim.
Perguntou-me sobre o meu passado. A história foi contada com rapidez,
mas provocou uma série de reflexões. Falei sobre meu desejo de encontrar
um amigo, alguém com uma íntima afinidade de que jamais desfrutei da
sorte de ter; e expressei minha convicção de que um homem não pode se
gabar de ser feliz se não usufruir de tal bênção.
“Concordo com você”, respondeu o estranho. “Somos criaturas
antiquadas e semiacabadas quando não há alguém melhor, mais sábio e
querido, como um amigo deve ser, para ajudar a aperfeiçoar nossa própria
natureza fraca e defeituosa. Já tive um amigo, a mais nobre das criaturas
humanas e, portanto, estou apto a julgar o que é amizade. Você tem
esperança e também o mundo à sua frente, logo, não há motivo para
desespero. Mas eu… eu perdi tudo e não posso recomeçar minha vida.”
Ao dizer isso, seu semblante exprimiu uma dor silenciosa que tocou meu
coração. Mas ele ficou em silêncio e se retirou para sua cabine.
Mesmo com o espírito destruído, ninguém consegue sentir mais
profundamente do que ele as belezas da natureza. O céu estrelado, o mar e
todas as vistas proporcionadas por essas regiões maravilhosas ainda
parecem ter o poder de elevar sua alma da terra. Este homem tem uma
dupla existência: sofre em detrimento do infortúnio e é oprimido pelas
decepções; no entanto, quando se recolhe dentro de si, age como um
espírito celestial, dotado de uma aura na qual nenhum pesar ou tolice são
capazes de penetrar.
Será que você sorri ante o meu entusiasmo sobre esse andarilho divino?
Não o faria se o visse. Você foi instruída e refinada pelos livros, à
distância do mundo, então é um tanto exigente. Contudo, isso apenas a
torna mais apta a apreciar os méritos extraordinários desse homem
maravilhoso.
Às vezes, me esforço para descobrir qual é a qualidade que o eleva tão
incomensuravelmente acima de qualquer outra pessoa que já conheci.
Acredito que seja um discernimento intuitivo, um poder de julgamento
rápido, mas que nunca falha. Uma imersão nas causas das coisas,
inigualável em clareza e precisão. Adicione a isso uma facilidade de
comunicação e uma voz cujas entonações variadas soam como música à
alma.
19 de agosto de 17—
SOU NATURAL DE GENEBRA e minha família é uma das mais distintas naquela
república. Meus ancestrais foram, ao longo de muitos anos, conselheiros e
altos servidores do Estado, e meu pai desempenhou várias funções
públicas com honra e boa reputação. Ele era respeitado por todos os que o
conheciam, tanto por sua integridade como pela atenção incansável
dedicada aos negócios públicos. Ele passou seus dias de juventude
perpetuamente ocupado com assuntos de seu país; assim, várias
circunstâncias impediram um casamento precoce, e foi somente no
declínio da vida que ele se tornou marido e pai de família.
Como as circunstâncias de seu casamento ilustram seu caráter, não
posso deixar de mencioná-las. Um de seus amigos mais íntimos era um
comerciante que, de uma situação próspera, foi levado por inúmeros
infortúnios à pobreza. Esse homem, cujo nome era Beaufort, tinha uma
disposição orgulhosa e inflexível. Não suportava viver na pobreza e no
esquecimento no mesmo país em que anteriormente fora distinguido por
sua posição e magnificência. Ao pagar suas dívidas da maneira mais
honrosa, ele se retirou com a filha para a cidade de Lucerna, onde viveu na
obscuridade e na miséria. Meu pai amava Beaufort com a mais verdadeira
amizade e ficou profundamente triste por sua partida em meio a
circunstâncias tão infelizes. Ele lamentou com amargor o falso orgulho
que levou seu amigo a uma conduta tão pouco digna do carinho que os
unia. Ele não perdeu tempo tentando procurá-lo com a esperança de
convencê-lo a começar de novo por meio de seu crédito e sua assistência.
Beaufort tomara medidas efetivas em busca de se esconder; e dez meses
se passaram até que meu pai descobrisse sua morada. Muito feliz com a
descoberta, ele correu até a casa, situada em uma rua sórdida próximo ao
rio Reuss. Mas quando ele entrou, apenas a execrabilidade e o desespero o
receberam. Beaufort economizara uma quantia muito pequena dos
destroços de sua fortuna, o suficiente para sustentá-lo por uns meses.
Nesse ínterim, ele esperava conseguir um emprego respeitável na casa de
algum comerciante. Como consequência, o período foi marcado pela
inércia; o ócio favoreceu a reflexão e tornou o pesar ainda mais enraizado
e irritante. O prolongamento da situação assumiu o controle de sua mente
a tal ponto que, ao fim de três meses, ele adoeceu, tornando-se incapaz de
qualquer esforço.
Sua filha o tratava com a maior ternura, mas observava com desespero
enquanto o pequeno cabedal deles diminuía com rapidez, sem qualquer
outra perspectiva de apoio. Caroline Beaufort, porém, era dotada de uma
mente incomum, e sua coragem se fortaleceu diante das adversidades. Ela
buscou trabalhos simples, como o de entrançar palha, e por vários meios
ganhava uma ninharia que lhes provia escassamente a sobrevivência.
Vários meses se passaram dessa maneira. O pai piorou, e o tempo
dedicado pela filha ao seu cuidado reduziu ainda mais os meios de
subsistência. No décimo mês, o pai morreu em seus braços, deixando-a
órfã e mendicante. Esse último golpe a venceu; ela estava ajoelhada e
chorando amargamente junto ao caixão de Beaufort quando meu pai entrou
na câmara. Ele surgiu como um espírito protetor para a pobre garota, que
se submeteu a seus cuidados. Após o enterro, ele a levou consigo para
Genebra e a colocou sob a proteção de pessoas de confiança. Dois anos
após esse episódio, Caroline se tornou sua esposa.
A diferença considerável de idade entre meus pais era uma
circunstância que parecia estreitar ainda mais seus laços de afeto. Meu pai
era detentor de grande senso de justiça, que lhe impunha a necessidade de
estimar verdadeiramente antes de amar com abundância. Talvez fosse
decorrência de algum amor frustrado da juventude, de uma descoberta
tardia de que alguém não era digno do amor que lhe dispensara, tornando-
o disposto a atribuir mais valor a quem já provara merecimento. Havia um
misto de gratidão e adoração nas demonstrações de seu apego à minha
mãe, que diferia totalmente do afeto pela idade, pois era inspirado pela
admiração às virtudes dela e pelo desejo de, em certo grau, recompensá-la
pelas tristezas que havia suportado. Isso conferia a ele um comportamento
de inexprimível graça com relação a ela. Tudo era feito para cultivar os
desejos e a conveniência de Caroline. Ele se esforçava para protegê-la, tal
qual um jardineiro resguarda uma flor exótica contra qualquer vento mais
violento, visando cercá-la de tudo o que pudesse suscitar emoções
agradáveis à sua mente suave e benevolente. Sua saúde, e até mesmo a
tranquilidade de seu até então determinado espírito, foi abalada pelo que
ela passou. Durante os dois anos que antecederam o casamento, meu pai
abandonou gradualmente todas as suas funções públicas, e, logo após a
união, ambos partiram em busca do clima agradável da Itália. A mudança
de cenário e o interesse na excursão por aquelas terras de maravilhas
serviram para restaurar a constituição enfraquecida da esposa.
Da Itália, eles visitaram a Alemanha e a França. Eu, o filho mais velho,
nasci em Nápoles e, quando criança, os acompanhava durante suas
caminhadas. Fui filho único por vários anos. Por mais apegados que
estivessem um ao outro, pareciam direcionar reservas inesgotáveis de
afeto, advindo de uma mina de amor, para concedê-lo a mim. As carícias
delicadas de minha mãe e o sorriso de prazer benevolente de meu pai ao
me observar são minhas primeiras lembranças. Eu era o brinquedo e o
ídolo deles, e algo ainda melhor – o filho, uma criatura inocente e indefesa
que o Céu lhes havia concedido para ser educado para o bem, e cujo
destino seria direcionado à alegria ou à infelicidade, a depender da
maneira com que me orientariam. Com profunda consciência do que
deviam à pessoa a quem tinham dado a vida, somada ao espírito carinhoso
que animava a ambos, pode-se imaginar que durante cada hora de minha
infância recebi lições de paciência, caridade e autocontrole, sendo guiado
por um cordão de seda que fazia tudo parecer agradável para mim.
Durante um bom tempo, fui a única preocupação deles. Minha mãe,
porém, desejava muito ter uma menina. Quando eu tinha cerca de cinco
anos, eles fizeram uma viagem para além das fronteiras italianas e
passaram uma semana às margens do lago de Como.7 A disposição
benevolente deles frequentemente os fazia adentrar os chalés dos pobres.
Para minha mãe, isso era mais do que um dever; era uma necessidade, uma
paixão – ante a lembrança de seu sofrimento e de como fora salva – que a
fazia agir como o anjo da guarda dos aflitos. Durante uma de suas
caminhadas, uma cabana pobre no recanto de um vale atraiu a atenção do
casal por seu aspecto desolado, reunindo à sua volta um grupo de crianças
maltrapilhas que eram o rosto da pobreza extrema. Um dia, quando meu
pai foi a Milão sozinho, minha mãe e eu visitamos essa morada, na qual
havia um camponês junto à esposa, abatidos pela dureza do trabalho
enquanto distribuíam uma refeição escassa a cinco crianças famintas.
Entre elas, uma em particular atraiu a atenção de minha mãe; era diferente
das demais. Ao passo que as outras crianças tinham olhos escuros e um
aspecto vulgar, essa era franzina e delicada. Seu cabelo era do tom
dourado mais vivo e, apesar da pobreza de suas roupas, parecia ostentar à
cabeça uma coroa de distinção. Sua sobrancelha era clara e ampla; os
olhos, azuis como um céu sem nuvens, enquanto os lábios e o rosto
expressavam tamanha doçura e sensibilidade que faziam-na parecer de
uma espécie distinta, um ser enviado pelo Céu, detendo um selo celestial
em todas as suas feições.
A camponesa, percebendo que a minha mãe fitava aquela garota
adorável com maravilhamento e admiração, contou rapidamente sua
história. Não era sua filha, mas de um nobre milanês. A mãe era alemã e
morrera ao dar à luz. A criança, então, fora confiada ao casal de
camponeses para que fosse amamentada. Na época, eles se encontravam
em melhor situação; recentemente casados, viviam apenas com o
primogênito recém-nascido. O pai da menina era um dentre os italianos
criados sob a memória das antigas glórias da Itália – um dos schiavi ognor
frementi que lutavam pela liberdade de seu país. Ele se tornara vítima de
sua fraqueza. Se havia morrido ou se continuava preso nas masmorras da
Áustria, não se sabia. Sua propriedade fora confiscada e sua filha tornou-
se uma órfã desprovida de recursos. Ela permaneceu com os pais adotivos,
florescendo na habitação precária como a mais bela rosa em um jardim de
folhas escuras.
Quando meu pai voltou de Milão, encontrou-a brincando comigo no
corredor de nosso palacete. Era uma criança mais bonita do que um
querubim, uma criatura de aparência iluminada cuja forma e cujos
movimentos eram mais leves do que o antílope das colinas. A presença foi
logo explicada. Com a permissão dele, minha mãe pediu aos guardiões
rústicos que lhe entregassem a guarda da menina. Eles eram apegados à
doce órfã; a presença dela era uma bênção para a família, mas seria injusto
mantê-la na pobreza quando a Providência lhe conferia uma proteção tão
poderosa. Eles consultaram o padre da aldeia, e como resultado Elizabeth
Lavenza passou a viver na casa dos meus pais. Mais do que irmã, ela se
tornou a bela e adorada companheira de todas as minhas ocupações e todos
os meus júbilos.
Todos amavam Elizabeth. O vínculo apaixonado e quase reverente com
o qual todos a contemplavam tornou-se, à medida que eu o compartilhava,
meu orgulho e alegria. Na noite anterior à sua vinda para minha casa,
minha mãe dissera divertidamente: “Tenho um belo presente para meu
Victor, e amanhã ele o terá”. No dia seguinte, quando ela me apresentou
Elizabeth como o presente prometido, eu, com seriedade infantil,
interpretei as palavras literalmente e considerei Elizabeth minha – minha
para proteger, amar e cuidar. Recebia como meus todos os elogios
concedidos a ela. Referíamo-nos um ao outro como primos. Nenhuma
palavra ou expressão dava conta do tipo de relação que ela me dedicava –
era mais que minha irmã, unicamente minha até a morte.
- À época em que foi escrito Frankenstein, a região que inclui o lago de
Como, hoje na Itália, pertencia aos austríacos. (N. E.)
CAPÍTULO II
Elizabeth Lavenza
Genebra, 18 de março de 17—
Clerval, que observava meu semblante enquanto eu lia essa carta, ficou
surpreso ao perceber o desespero que se instalou após a alegria com que, a
princípio, recebi as notícias de meus amigos. Atirei a carta sobre a mesa e
cobri o rosto com as mãos.
– Meu caro Frankenstein! – exclamou Henry ao perceber meu choro de
amargura. – Por que sempre fica consternado? Meu caro amigo, o que
aconteceu?
Fiz um gesto para que ele pegasse a carta enquanto circulava de um lado
para o outro da sala com uma agitação vigorosa. As lágrimas também
jorraram dos olhos de Clerval ao ler o relato do meu infortúnio.
– Não posso oferecer consolo a você, meu amigo – ele falou. – Seu
desastre é irreparável. O que pretende fazer?
– Partir agora mesmo para Genebra. Venha comigo, Henry, para alugar
os cavalos.
Durante nossa caminhada, Clerval se esforçou para expressar palavras
de consolo. Ele só podia expressar sua profunda solidariedade.
– Pobre William! – ele disse. – Criança querida, que agora dorme com
sua mãe angelical! Quem o viu brilhante e feliz em sua beleza pueril agora
deve lamentar sua perda prematura! Morrer tão calamitosamente, sentir o
aperto do assassino! Como alguém pode destruir uma inocência tão
radiante? Pobre menino! Temos apenas um consolo; enquanto seus amigos
choram e choram, ele está em repouso. A aflição acabou, e seus
sofrimentos se foram para sempre. A grama cobre seu corpo delicado, e
ele não sente dor. Ele não pode mais ser motivo de piedade; devemos
reservá-la para os miseráveis sobreviventes.
Clerval assim falou enquanto corríamos pelas ruas; suas palavras
ficaram marcadas em minha mente, e mais tarde me lembrei delas na
solidão. Quando os cavalos chegaram, entrei rapidamente em um cabriolé
e me despedi de meu amigo.
Minha jornada foi muito melancólica. A princípio, quis me apressar,
pois desejava consolar e simpatizar com meus amigos amados e tristes;
todavia, ao passo que me aproximava da minha cidade natal, diminuía meu
ritmo. Eu mal conseguia sustentar a multidão de sentimentos que se
amontoava em minha mente. Passei por cenários conhecidos de minha
juventude, mas que não via há quase seis anos. Como as coisas mudaram
durante esse período! Uma mudança repentina e desoladora ocorreu, mas
milhares de pequenas circunstâncias causaram gradualmente outras
alterações que, embora mais tranquilas, podem não ter sido menos
decisivas. O medo me dominou; não me atrevi a avançar, temendo mil
males sem nome que me fizeram tremer, embora eu fosse incapaz de
defini-los.
Passei dois dias em Lausanne acometido por esse angustiante estado de
espírito. Contemplei o lago: as águas eram plácidas, tudo ao redor estava
calmo, e as montanhas nevadas – os “palácios da natureza” – não estavam
alteradas. Aos poucos, a cena calma e celestial me restaurou e continuei
minha jornada em direção a Genebra.
A estrada corria ao lado do lago, que se estreitou quando me aproximei
da minha cidade natal. Contemplei a silhueta do Jura e o cume brilhante
do Mont Blanc. Chorei feito uma criança.
– Queridas montanhas! Meu belo lago! Que boas-vindas ao seu
andarilho! Seus cumes são claros; o céu e o lago são azuis e plácidos. Isso
é um prognóstico de paz ou a zombaria de minha infelicidade?
Receio, meu amigo, que me torne entediante ao me debruçar sobre essas
circunstâncias preliminares, mas se trata de dias de relativa felicidade, e
penso a respeito deles com prazer. Meu país, meu país amado! Quem,
senão um nativo, pode descrever o prazer que senti ao contemplar suas
correntes, montanhas e, mais do que tudo, seu belo lago!
No entanto, quando me aproximei de casa, a dor e o medo novamente
me venceram. A noite também se fechou ao meu redor e, quando mal pude
ver as montanhas escuras, me senti ainda mais triste. A paisagem parecia
uma vasta e sombria visão do mal, e previ obscuramente que estava
destinado a me tornar o mais miserável dos seres humanos. Ai! Profetizei
a verdade, e falhei apenas em uma única circunstância: em toda a penúria
que imaginei e temi, não concebi a centésima parte da angústia que estava
destinado a suportar.
Estava totalmente escuro quando cheguei aos arredores de Genebra. Os
portões da cidade já estavam fechados e fui obrigado a passar a noite em
Secheron, uma vila a menos de três quilômetros de distância. O céu estava
sereno, e, como eu não conseguia descansar, resolvi visitar o local onde
meu pobre William fora abatido. Uma vez que eu não podia passar pela
cidade, fui obrigado a atravessar o lago em um barco a fim de chegar a
Plainpalais. Durante a curta viagem, vi os relâmpagos atingirem o cume de
Mont Blanc, delineando belas formas no céu. A tempestade parecia se
aproximar com agilidade. Ao desembarcar, subi uma ladeira baixa para
observar seu progresso. Ela avançou; os céus ficaram nublados e logo senti
a chuva cair devagar e em grandes pingos, mas sua violência aumentou
rapidamente.
Abandonei meu assento e segui em frente, embora a escuridão e a
tempestade aumentassem a cada minuto. Um trovão potente retumbou
sobre minha cabeça, ecoando no Salève, no Jura e nos Alpes da Saboia;
clarões vívidos de raios ofuscaram meus olhos, iluminando o lago e
fazendo-o parecer uma vasta extensão de fogo. Por um instante, tudo
pareceu escuridão sombria, até que os olhos se recuperaram do efeito da
luz. A tempestade, como sempre ocorre na Suíça, apareceu ao mesmo
tempo em inúmeras partes do céu. A mais violenta pairava com exatidão
ao norte da cidade, acima da parte do lago que liga o promontório de
Belrive à vila de Copêt. Uma tempestade iluminava o Jura com clarões
fracos; outra escurecia e, às vezes, revelava o Môle, uma montanha
pontiaguda a leste do lago.
Enquanto eu observava a tempestade, tão bonita e espantosa, seguia com
um passo apressado. Essa nobre guerra no céu elevou meu espírito; apertei
minhas mãos e exclamei em voz alta:
– William, querido anjo! Este é o seu funeral, seu hino fúnebre!
Ao proferir essas palavras, percebi na escuridão uma figura que se
esgueirava por trás de um grupo de árvores. Continuei imóvel, observando
com atenção: não podia estar errado. Um relâmpago iluminou a figura e
me mostrou claramente sua forma; a estatura gigantesca e a deformidade
de seu aspecto hediondo logo me revelaram que aquele era o desgraçado, o
imundo dæmon a quem eu dera vida. O que ele estava fazendo ali? Teria
sido ele – estremeci ante a ideia – o assassino do meu irmão? Assim que a
hipótese passou pela minha cabeça, fiquei convencido de sua verdade;
meus dentes rangeram e fui forçado a me apoiar em uma árvore. A figura
passou velozmente por mim, e eu a perdi na escuridão. Nenhum ser
humano poderia ter sido capaz de acabar com aquela criança. Ele era o
assassino! Eu não tinha dúvidas. A sua mera presença era uma
comprovação irrefutável do fato. Pensei em perseguir o diabo, mas teria
sido em vão; outro clarão o mostrou escalando as rochas na subida quase
perpendicular ao monte Salève, uma colina que circunda Plainpalais ao
sul. Ele logo alcançou o cume e desapareceu.
Permaneci imóvel. O trovão cessou, mas a chuva prosseguiu e o
ambiente foi tomado por uma escuridão impenetrável. Revivi em minha
mente as circunstâncias que até então quisera esquecer: todo o progresso
rumo à criação; a aparição da criatura que construí com as minhas próprias
mãos ao meu lado da cama; a sua partida. Fazia quase dois anos desde a
noite em que ele recebera a vida. Terá sido esse seu primeiro crime? Ai!
Eu lançara ao mundo um miserável depravado, cujo prazer residia na
carnificina e na desgraça.
Ninguém pode conceber a angústia que sofri ao longo do restante da
noite fria e úmida que passei ao ar livre. Não era capaz de sentir a
inconveniência do clima; minha imaginação estava ocupada com cenas de
maldade e desespero. Considerei aquele ser, a quem introduzi à
humanidade dotado de vontade própria e objetivos terríveis, à luz de meu
próprio espírito liberto do túmulo e forçado a destruir tudo o que me era
querido.
O dia amanheceu, e dirigi meus passos à cidade. Os portões estavam
abertos, e corri para a casa de meu pai. Meu primeiro pensamento foi
revelar o que eu sabia sobre o assassino e suscitar uma perseguição
instantânea. Contudo, desisti da ideia depois que refleti sobre a história
que precisaria contar. Um ser que eu mesmo havia formado e a quem havia
imbuído vida me encontrara à meia-noite entre os precipícios de uma
montanha inacessível. Lembrei-me também das febres emocionais que me
acometeram na época em que o construí, e que ampliariam o tom de
delírio a um relato tão improvável. Eu sabia muito bem que, se alguém me
dissesse tal coisa, eu mesmo consideraria a pessoa insana. Além disso,
ainda que conseguisse convencer meus familiares acerca de minha
história, sabia que a natureza estranha do animal frustraria qualquer
perseguição. Quem, afinal, poderia prender uma criatura capaz de escalar
os lados do monte Salève? Tais análises me fizeram optar pelo silêncio.
Eram cinco da manhã quando entrei na casa de meu pai. Orientei os
criados a não perturbarem a família e permaneci na biblioteca até a aurora.
Seis anos se passaram como um sonho – exceto por um traço indelével
–, e eu estava no mesmo lugar em que havia abraçado meu pai pela última
vez antes de partir para Ingolstadt. Querido e venerável pai! Ainda restava
ele para mim. Olhei o retrato de minha mãe sobre a lareira. Era de
temática histórica, pintado a desejo do meu pai, que representava Caroline
Beaufort em desespero enquanto se ajoelhava junto ao caixão de seu pai
morto. A roupa dela era rústica, e a bochecha, pálida, mas havia certo ar de
dignidade e beleza que dificilmente permitia o sentimento de piedade.
Abaixo da imagem havia uma miniatura da de William, e minhas lágrimas
escorreram quando a vislumbrei. Estava absorto quando Ernest entrou; ele
me ouviu chegar e se apressou em me receber, expressando um prazer
triste à minha vista.
– Bem-vindo, meu querido Victor – saudou ele. – Ah! Eu gostaria que
você tivesse vindo há três meses, pois teria nos encontrado felizes e
encantados. Você vem a nós agora para compartilhar uma tormenta que
nada é capaz de aliviar; ainda assim, espero que sua presença anime nosso
pai, que parece estar afundando sob suas aflições. Além disso, sua
persuasão induzirá a pobre Elizabeth a cessar suas autoacusações vãs e
atormentadoras. Pobre William! Ele era nosso amado e nosso orgulho!
Lágrimas desenfreadas caíram dos olhos de meu irmão, e uma sensação
de agonia mortal tomou conta do meu corpo. Antes, eu havia apenas
imaginado a angústia do meu lar desolado; a realidade veio a mim como
um novo desastre, e não menos terrível. Tentei acalmar Ernest
perguntando de forma mais minuciosa sobre meu pai e também sobre
minha prima.
– É ela quem mais precisa de conforto – contou Ernest. – Elizabeth se
culpou pela morte de nosso irmão, e isso a deixou profundamente infeliz.
Porém, agora que sabemos quem cometeu o crime…
– O assassino foi descoberto! Meu Deus! Como isso aconteceu? Quem
poderia tê-lo perseguido? É impossível, é mais fácil tentar ultrapassar os
ventos ou confinar um córrego da montanha a um canudo. Eu o vi; ele
estava livre ontem à noite!
– Não sei o que quer dizer – respondeu meu irmão com um ar admirado.
– Mas, para nós, a descoberta completa o sofrimento. Ninguém acreditou a
princípio, e mesmo agora Elizabeth não está convencida, apesar das
evidências. De fato, quem acreditaria que Justine Moritz, que era tão
amável e gostava de toda a nossa família, pudesse de repente dar cabo a
um crime tão horripilante e aterrador?
– Justine Moritz! Pobre garota! Ela é a acusada? Mas que injusto, todo o
mundo o sabe. Ninguém acredita nisso, não é, Ernest?
– Ninguém acreditava a princípio, mas muitas circunstâncias apontaram
para essa conclusão. Seu próprio comportamento tem sido confuso, o que
acrescenta às evidências um peso que, temo, não deixa esperanças de
dúvida. Mas ela será julgada hoje, e você poderá ouvir tudo.
Ele contou que, na manhã em que o assassinato do pobre William fora
descoberto, Justine havia ficado doente e confinada à sua cama por vários
dias. Durante esse intervalo, um dos empregados examinou as roupas
usadas na noite do assassinato e descobriu no bolso a miniatura de nossa
mãe, considerada a motivação do assassino. O criado mostrou-a
imediatamente a outro empregado que, sem dizer palavra a ninguém da
família, foi a um magistrado. Após o depoimento, Justine foi detida. Após
a acusação, a pobre menina confirmou a suspeita em grande parte por sua
extrema confusão de maneiras.
Tratava-se de uma história estranha, mas incapaz de abalar minha fé.
Respondi, então, de um jeito sério:
– Vocês todos estão enganados. Eu conheço o assassino. A boa e pobre
Justine é inocente.
Naquele instante, meu pai entrou. Avistei a infelicidade impregnada nas
profundezas de seu rosto, mas ele se esforçou para me receber com
alegria. Depois de termos trocado uma saudação pesarosa, ele teria
introduzido outro assunto além do desastre, não fosse a interferência de
Ernest, que exclamou:
– Meu Deus, papai! Victor diz que sabe quem foi o assassino do pobre
William.
– Nós também sabemos, infelizmente – respondeu meu pai. – De fato,
eu preferia ter permanecido ignorante à descoberta de tanta depravação e
ingratidão de uma pessoa a quem eu estimava muito.
– Meu querido pai, você está enganado. Justine é inocente.
– Se ela é, Deus proíba que seja punida injustamente. Ela será julgada
hoje, e torço, de verdade, para que seja absolvida.
Essas palavras me acalmaram. Eu estava plenamente convencido de que
Justine ou qualquer outro ser humano não tinham culpa do assassinato.
Não temia, portanto, que qualquer evidência circunstancial pudesse se
provar forte o suficiente para condená-la. Minha história não podia ser
anunciada em público; seu horror espantoso seria interpretado como
loucura pelas pessoas vulgares. Alguém poderia acreditar, a menos que
seus sentidos o convencessem, na existência do monumento vivo de
presunção e ignorância que eu havia libertado ao mundo?
Elizabeth, então, surgiu. O tempo a mudara desde a última vez em que
eu a vira; dera-lhe uma beleza que superava a graciosidade de seus anos
infantis. Havia a mesma franqueza e o mesmo vigor, mas aliadas a uma
expressão mais emotiva e intelectual. Ela me recebeu com enorme
carinho.
– Sua chegada, meu querido primo, me enche de esperança – disse ela. –
Talvez encontre meios de explicar a culpa da pobre Justine. Ai! Quem
estará seguro se ela for condenada? Confio na inocência dela com absoluta
certeza. Nossa desgraça é duplamente difícil; não apenas perdemos aquele
adorável garoto como também corremos o risco de ver essa pobre menina,
a quem honestamente amo, sofrer um destino ainda pior. Se ela for
condenada, nunca mais conhecerei a alegria. Mas ela não vai, tenho
certeza; então serei feliz de novo, mesmo após a triste morte do meu
pequeno William.
– Ela é inocente, minha Elizabeth – repliquei –, e isso será provado. Não
tema nada e deixe seu espírito ser animado com a garantia de sua
absolvição.
– Quão gentil e generoso você é! Todo o mundo acreditou em sua culpa,
e isso me deixou infeliz, porque sabia que era impossível. Ver os demais
tão convictos havia me deixado sem esperança e em desespero.
Ela chorou.
– Querida sobrinha – disse meu pai –, seque suas lágrimas. Se ela é
inocente, como você acredita, confie na justiça de nossas leis e na minha
atuação a fim de evitar a menor sombra de iniquidade.
CAPÍTULO VIII
PASSEI O DIA SEGUINTE vagando pelo vale. Fiquei ao lado das fontes do
Arveiron, que se erguem em uma geleira que desce lentamente do cume
das colinas para barricar o vale. Os lados abruptos das vastas montanhas
estavam diante de mim e a muralha da geleira erguia-se ao redor, enquanto
pinheiros despedaçados se espalhavam à minha volta. O silêncio solene
desse salão nobre da natureza era interrompido apenas pelas ondas
violentas, a queda de um vasto fragmento, o trovão de uma avalanche ou
pelo estalo dos blocos de gelo nas montanhas que, por meio do trabalho
silencioso das leis imutáveis, sempre se estilhaçavam em partículas, como
meros brinquedos em suas mãos. Essas cenas sublimes e magníficas me
proporcionaram maior consolo do que eu era capaz de receber. Elas me
elevaram de toda a pequenez dos sentimentos; e, embora não tenham
eliminado minha dor, elas a subjugaram e a tranquilizaram. Em certo grau,
também, tais cenas desviaram minha mente dos pensamentos sobre os
quais ponderara no último mês. Eu me retirei para descansar à noite; meus
sonos, por assim dizer, ministravam uma assembleia das grandes formas
que eu contemplara durante o dia. Elas se reuniam ao meu redor; o topo
nevado da montanha, o pináculo cintilante, a floresta de pinheiros, a ravina
nua e a águia, que voava entre as nuvens – todas à minha volta inspirando
a minha paz.
Para onde eles haviam fugido quando acordei na manhã seguinte? Todas
as inspirações da alma foram embora com o sono, e a melancolia sombria
obscureceu todos os meus pensamentos. A chuva caía em torrentes, e
névoas grossas escondiam os cumes das montanhas, de modo que não se
podiam ver os rostos daqueles amigos poderosos. Mesmo assim, iria
penetrar no véu enevoado para procurá-los em seus retiros nublados. O que
eram a chuva e a tempestade para mim? Minha mula foi trazida até a porta
e resolvi subir ao cume de Montanvert. Lembrei-me do efeito que a
imagem da enorme geleira produzira em minha mente quando a vi pela
primeira vez. Ela me encheu de um êxtase sublime, que deu asas à alma e
lhe permitiu voar do mundo obscuro em busca de luz e alegria. A visão da
natureza impressionante e majestosa sempre teve o efeito de solenizar
minha mente e me fazer esquecer as inquietações passageiras da vida.
Decidi partir sem um guia, pois conhecia bem o caminho, e a presença de
outra pessoa destruiria a grandeza solitária da cena.
A subida é íngreme, mas o caminho é sinuoso, o que permite superar a
perpendicularidade da montanha. A cena é terrivelmente desoladora. Os
vestígios da avalanche de inverno podem ser percebidos em mil pontos,
onde há árvores quebradas e espalhadas pelo chão: algumas,
completamente destruídas; outras, curvadas e inclinadas sobre as rochas
salientes da montanha ou caídas sobre as demais árvores. Conforme
avanço, observo o caminho cortado por ravinas de neve, pelas quais pedras
rolam continuamente de cima. Uma delas é em especial perigosa, pois o
menor som, como falar em voz alta, produz uma concussão de ar
suficiente para causar destruição sobre a cabeça do falante. Os pinheiros já
não se mostram altos ou luxuriantes, mas sombrios, o que confere à cena
um ar de severidade. Olhei para o vale abaixo; vastas névoas se erguiam
dos rios que corriam por ele e se enrolavam em grinaldas espessas ao
redor das montanhas em oposição, cujos cumes se escondiam entre as
nuvens uniformes enquanto a chuva caía do céu escuro e aumentava a
impressão melancólica dos objetos ao meu redor. Ai! Por que os homens
se vangloriam de sensibilidades superiores àquelas de nosso estado bruto,
se isso apenas os torna seres mais necessitados? Se nossos impulsos se
restringissem a fome, sede e desejo, poderíamos ser quase livres; porém,
somos movidos por todo vento que sopra, bem como por palavras e cenas
do acaso.
DEITEI-ME SOBRE A MINHA PALHA, mas não consegui dormir. Refleti a respeito
das ocorrências do dia. O que mais me impressionou foram as maneiras
gentis dessas pessoas. Eu desejava me juntar a elas, mas não ousava. Eu
lembrava do tratamento recebido na noite anterior, em meio aos aldeões
bárbaros, e resolvi que, qualquer que fosse o curso de conduta que eu
julgasse oportuno seguir, permaneceria por ora quieto em meu casebre,
observando e tentando descobrir os motivos que guiavam suas ações.
Os moradores da choupana se levantaram antes do sol na manhã
seguinte. A moça arrumou a casa e preparou a comida, e o rapaz partiu
depois da primeira refeição.
O dia decorreu segundo a mesma rotina que o anterior. O jovem estava
constantemente ocupado ao ar livre, enquanto a garota assumia numerosas
ocupações dentro de casa. O velho, que logo percebi ser cego, empregava
suas horas de lazer em seu instrumento ou em contemplação. Nada excedia
o amor e o respeito que os moradores mais jovens devotavam ao venerável
companheiro. Eles dispensavam ao velho constantes atos de afeto e
atenção, sendo retribuídos com sorrisos benevolentes.
Eles não eram totalmente felizes. O jovem e sua companheira muitas
vezes se isolavam para chorar. Não via motivo para infelicidade, mas
fiquei profundamente afetado por isso. Se tais criaturas adoráveis eram
miseráveis, tornava-se menos estranho que eu, um ser imperfeito e
solitário, fosse infeliz. No entanto, por que esses seres gentis eram
infelizes? Eles possuíam uma casa encantadora (ao menos para os meus
olhos) e luxos, como o fogo para aquecê-los quando estavam com frio e
mantimentos deliciosos para quando sentiam fome. Eles também vestiam
roupas excelentes e, sobretudo, desfrutavam da companhia uns dos outros,
trocando dia após dia gestos de carinho e benignidade. O que suas
lágrimas implicavam? Elas expressavam mesmo dor? A princípio, não
consegui responder a essas questões; todavia, a atenção constante e o
tempo me explicaram muitas aparências que inicialmente foram
enigmáticas.
Um período considerável se passou até que eu descobrisse uma das
causas do desconforto dessa família amável: a pobreza, da qual sofriam
em um grau muito angustiante. Sua alimentação consistia inteiramente de
vegetais extraídos da horta, mais o leite de uma vaca, que produzia muito
pouco durante o inverno – época em que os donos mal conseguiam
comprar comida para sustentá-la. Acredito que muitas vezes eles sofreram
com as pontadas da fome, em particular os dois jovens; com frequência,
vi-os colocando comida no prato do velho sem reservar nada para si
próprios.
Essa demonstração de bondade me causou grande comoção. Eu estava
acostumado, durante a noite, a roubar parte de sua comida para me
alimentar; mas, quando descobri que, ao fazê-lo, eu infligia dor aos
moradores, abstive-me e passei a consumir frutas, castanhas e raízes que
colhia de um bosque vizinho.
Descobri também outro meio pelo qual podia ajudar no trabalho deles.
Percebi que os jovens passavam grande parte do dia coletando lenha para o
fogo da família. Assim, durante a noite, muitas vezes peguei suas
ferramentas – cujo manuseio descobri rapidamente – e trouxe à choupana
estoque suficiente para vários dias.
Lembro-me de que, na primeira vez que o fiz, a moça pareceu muito
espantada ao abrir a porta pela manhã e defrontar-se com uma enorme
pilha de madeira do lado externo. Ela pronunciou algumas palavras em
voz alta e o rapaz se juntou a ela, também expressando surpresa. Observei,
com prazer, que ele não foi à floresta naquele dia, mas aproveitou o tempo
consertando a choupana e cultivando o jardim.
Aos poucos, fiz uma descoberta ainda maior. Descobri que essas pessoas
tinham um método de comunicar suas experiências e sentimentos entre si
por meio de sons articulados. Percebi que as palavras proferidas incitavam
prazer, dor, sorrisos ou tristeza no íntimo e no semblante dos ouvintes. Era
de fato uma ciência divina, e eu desejava ardentemente me familiarizar
com ela. No entanto, fiquei perplexo em todas as tentativas que articulei à
procura de atingir esse fim. A pronúncia deles era rápida e, quando suas
palavras não tinham conexão aparente com objetos visíveis, eu não
conseguia descobrir pistas que pudessem desvendar o mistério de seus
significados.
Porém, mediante grande aplicação durante as várias transformações da
lua em que permaneci no casebre, descobri os nomes atribuídos a alguns
dos objetos mais familiares do dia a dia. Aprendi e passei a usar as
palavras fogo, leite, pão e madeira. Aprendi também os nomes dos
próprios moradores da choupana. O rapaz e sua companheira tinham
vários nomes, mas o velho, apenas um: pai. A garota se chamava irmã ou
Agatha; e o jovem Félix, irmão ou filho. Não consigo descrever o prazer
que senti ao aprender as ideias apropriadas para cada um desses sons, e
ante a habilidade de pronunciá-los. Distingui também várias outras
palavras, sem ainda poder entendê-las ou aplicá-las, como bom, querido e
infeliz.
Assim passei o inverno. As maneiras gentis e a beleza dos moradores da
choupana me tornaram muito afeiçoado a eles: quando estavam infelizes,
sentia-me deprimido; quando se alegravam, simpatizava com a felicidade
deles. Vi poucos seres humanos com eles; e, quando alguém diferente
entrava na choupana, suas maneiras duras e rudes só aumentavam minha
estima pelos modos superiores de meus amigos. O velho, como percebi,
esforçava-se frequentemente para incentivar os filhos, como às vezes eu
achava que ele os chamava, para que afastassem a melancolia. Ele falava
com uma entonação alegre, com uma expressão de bondade que conferia
prazer até para mim. Agatha ouvia com respeito, seus olhos às vezes
inundados por lágrimas que tentava limpar sem ser notada; mas eu
geralmente percebia que suas feições e seu tom assumiam maior grau de
contentamento depois de ouvir as exortações do pai. Não era assim com
Félix. Ele sempre foi o mais triste do grupo, e, mesmo para os meus
sentidos inexperientes, parecia sofrer com mais intensidade do que seus
familiares. Mas se sua face era a mais triste, sua voz era mais jocosa do
que a da irmã, especialmente quando ele se dirigia ao velho.
Posso mencionar infindáveis exemplos, que, embora simples, denotam
as disposições dessas amáveis pessoas. Em meio à pobreza e à
necessidade, Félix trouxe com prazer para sua irmã a primeira florzinha
branca que apareceu sob o chão nevado. De manhã, antes que ela se
levantasse, ele limpava a neve que atrapalhava o caminho da irmã até o
celeiro, tirava água do poço e trazia a madeira, que, para seu perpétuo
espanto, encontrava sempre reabastecida por uma mão invisível. Creio
que, durante o dia, ele trabalhava de quando em quando para um
fazendeiro vizinho, porque ao sair costumava retornar apenas na hora do
jantar, sem trazer madeira consigo. Outras vezes, ele cultivava o jardim,
mas, como havia pouco a se fazer na estação gelada, ele lia para Agatha e
para o velho.
O ato da leitura me intrigou profundamente no início; mas, aos poucos,
descobri que ele emitia no ato de ler os mesmos sons do ato de falar.
Supus, portanto, que ele encontrava no papel sinais decifráveis para falar,
e os quais eu também desejava intensamente entender. Mas como isso
seria possível quando eu sequer compreendia os sons representados pelos
sinais? Eu havia melhorado a olhos vistos na referida ciência, mas não o
suficiente para acompanhar qualquer tipo de conversa, embora tenha
aplicado a minha mente inteira a essa missão; afinal, percebi com
facilidade que, apesar de desejar sofregamente me revelar aos moradores
da choupana, eu não deveria pôr em prática qualquer tentativa antes de me
tornar mestre na língua deles. Tal conhecimento me tornaria apto a pedir
que relevassem a deformidade de minha figura, dado que também percebi
esse contraste perpetuamente trazido a meus olhos.
Eu admirava as formas perfeitas da família em questão – sua graça,
beleza e aparência delicada. E qual foi o terror que senti quando me vi
numa poça d’água! No começo, recuei, incapaz de acreditar que era
realmente eu a origem da imagem refletida no espelho. Quando me
convenci por completo de que eu era mesmo aquele monstro, fui tomado
pelas mais amargas sensações de desânimo e mortificação. Ai! Ainda não
conhecia por completo os efeitos fatais dessa desgraçada deformidade.
Quando o sol ficou mais quente e a luz do dia mais longa, a neve
desapareceu, revelando árvores nuas e terra. A partir desse momento, Félix
tornou-se mais ocupado, e os sinais de fome iminente desapareceram. A
comida deles, como descobri depois, era grosseira, mas saudável; e eles a
produziam em quantidade suficiente. Diversos tipos novos de plantas
surgiram no jardim, e esses sinais de conforto aumentavam todos os dias
acompanhando o avanço da estação.
O velho, apoiando-se no filho, caminhava diariamente ao meio-dia
quando não chovia – descobri ser esse o nome do movimento dos céus
derramando suas águas. Isso acontecia com frequência; porém, um vento
forte secava a terra sem demora, e a estação ficava muito mais agradável
do que antes.
Meu modo de vida no casebre era estável. Durante a manhã,
acompanhava os movimentos dos moradores da choupana. Enquanto eles
se dispersavam em várias tarefas, eu dormia. O restante do dia era
dedicado à observação de meus amigos. Quando se retiravam a fim de
descansar, se havia lua ou se a noite estava estrelada, eu ia para a floresta e
pegava minha própria comida e combustível para a choupana. Ao retornar,
conforme muitas vezes era necessário, limpava a neve do caminho deles e
realizava os trabalhos que vi serem feitos por Félix. Mais tarde, descobri
que essas tarefas executadas por uma mão invisível os surpreendiam
profusamente; e uma ou duas vezes os ouvi, em ocasiões tais, proferindo
as palavras bom espírito e maravilhoso. Não entendia, entretanto, o
significado dos termos.
Meus pensamentos haviam se tornado mais ativos, e eu desejava
descobrir os motivos e sentimentos por trás dessas criaturas adoráveis.
Fiquei curioso em saber por que Félix parecia tão desventurado, e Agatha,
tão abatida. Pensei (miserável tolo!) que poderia ser capaz de restaurar a
felicidade dessas pessoas merecedoras. Quando eu dormia, ou estava
ausente, as formas do venerável pai cego, da gentil Agatha e do excelente
Félix voavam à minha frente. Eu os via como seres superiores que seriam
árbitros de meu futuro destino. Imaginava milhares de modos de me
apresentar e como seria a recepção de sua parte. Presumi que sentiriam
nojo, até que, com meu comportamento gentil e palavras conciliadoras,
seria bem acolhido e, então, amado.
Esses pensamentos me emocionaram e me instigaram a conferir uma
paixão renovada com relação ao domínio da arte da linguagem. Meus
órgãos eram rudes, mas flexíveis; e, embora minha voz fosse muito
diferente da música suave de seus tons, ainda assim pronunciava as
palavras que entendia com relativa facilidade. Era como a história do
burro e do cachorrinho:12 o burro tinha intenções afetuosas a despeito de
suas maneiras rudes, e merecia um tratamento melhor do que golpes e
execração.
As chuvas agradáveis e o calor vivaz da primavera alteraram muito o
aspecto da terra. Homens, que antes dessa mudança pareciam estar
escondidos em cavernas, se dispersaram e se engajaram em várias artes de
cultivo. Os pássaros adotaram notas mais alegres em seu canto, e as folhas
brotavam nas árvores. Oh, terra feliz! Para os deuses, moradia adequada
que, há pouco tempo, era obscura, úmida e insalubre. Meu ânimo foi
elevado pela aparência encantadora da natureza; o passado foi apagado da
minha memória, o presente estava sereno e o futuro seria composto por
raios cintilantes de esperança e alegria.
- Referência à fábula “O Burro e o Cachorrinho”, do escritor grego
Esopo. Nessa história, o burro é punido por almejar a mesma vida do
cachorrinho, que, segundo ele, vive de maneira mais confortável. Ao fim,
o burro se dá conta do quão improdutivo é tentar levar uma vida que não é
a sua. (N. T.)
CAPÍTULO XIII
AGUM TEMPO PASSOU até que eu aprendesse a história de meus amigos. Foi
algo que não pôde deixar de me impressionar profundamente, dadas as
circunstâncias interessantes e surpreendentes em que seus eventos se
desenrolaram para alguém tão inexperiente quanto eu.
O nome do velho era De Lacey. Ele era descendente de uma boa família
da França, onde viveu por muitos anos em abundância, respeitado por seus
superiores e amado por seus pares. Seu filho fora instruído no serviço
militar do país, e Agatha convivera com damas da mais alta distinção.
Meses antes da minha chegada, eles moravam em uma cidade grande e
luxuosa chamada Paris, cercados por amigos e por todo o gozo que a
virtude, o refinamento do intelecto ou o gosto, acompanhado por uma
fortuna moderada, podiam pagar.
O pai de Safie foi a causa da ruína deles. Ele era um comerciante turco
que habitara Paris por muitos anos quando, por motivos que não consegui
descobrir, se tornou nocivo para o governo. Ele foi detido e lançado na
prisão no mesmo dia em que Safie chegou de Constantinopla para se juntar
a ele. O pai da garota foi julgado e condenado à morte. A injustiça de sua
sentença foi muito flagrante; toda Paris ficou indignada, e julgou-se que
sua religião e riqueza, em vez do crime alegado contra ele, tinham sido a
verdadeira causa de seu veredicto.
Félix esteve presente no julgamento por acidente; seu horror e sua
indignação foram incontroláveis quando ouviu a decisão do tribunal.
Naquele momento, ele fez um voto solene de libertá-lo e, em seguida,
procurou os meios. Depois de muitas tentativas infrutíferas de obter
acesso à prisão, ele encontrou uma janela com grade de ferro em uma
parte desprotegida do edifício que iluminava a masmorra do infeliz
mouro. Este, carregado de correntes, aguardava em desespero a execução
da sentença barbárica. Félix visitou o local à noite e informou-o de seus
planos. O turco, maravilhado e encantado, esforçou-se para instigar o zelo
de seu libertador com promessas de recompensas e riqueza. Félix rejeitou
suas ofertas com desprezo; todavia, quando viu a adorável Safie, que fora
autorizada a visitar o pai e expressava sua gratidão por meio de gestos, o
jovem não pôde deixar de reconhecer em sua mente que o cativo possuía
um tesouro que recompensaria totalmente sua labuta e o perigo.
O turco sem demora percebeu a impressão que sua filha havia causado
no coração de Félix e procurou, em nome de seus interesses, assegurá-lo
de que teria a mão da filha em casamento assim que ele fosse levado a um
local seguro. Félix era delicado demais para aceitar a oferta, mas pensou
na hipótese como a consumação de sua felicidade.
Nos dias que se seguiram, enquanto os preparativos avançavam em prol
da fuga do comerciante, o zelo de Félix foi aquecido por várias cartas que
recebeu dessa adorável garota, que encontrou meios de expressar seus
pensamentos na linguagem do amante com a ajuda de um velho servo do
pai que entendia francês. Ela agradecia nos termos mais ardentes pelos
serviços pretendidos para com seu pai e, ao mesmo tempo, deplorava
gentilmente seu destino.
Tenho cópias dessas cartas. Durante minha residência no casebre,
encontrei meios de obter instrumentos de escrita; e elas estavam sempre
nas mãos de Félix ou Agatha. Antes de partir, eu te darei essas cartas, que
provarão a autenticidade da minha história; todavia, como agora o sol já
está declinado, terei tempo de repetir apenas a essência delas para você.
Safie relatou que sua mãe era árabe cristã, apreendida e escravizada
pelos turcos. Pela sua beleza, conquistou o coração do pai de Safie, que se
casou com ela. A jovem falou em termos augustos e entusiasmados sobre
sua mãe, que, nascida em liberdade, desprezava a escravidão a que fora
reduzida. Ela instruiu a filha nos princípios de sua religião e a ensinou a
aspirar uma independência de espírito e um intelecto superior proibidos às
seguidoras de Maomé. Essa senhora morreu, mas suas lições continuaram
indelevelmente impressas na mente de Safie, que se enojou ante a
perspectiva de voltar para a Ásia e ser confinada às paredes de um harém,
autorizada apenas a ocupar-se com divertimentos infantis e inadequados
ao temperamento de sua alma, agora acostumada a grandes ideias e à
virtude. O pensamento de se casar com um cristão e permanecer em um
país onde as mulheres podiam desempenhar uma posição na sociedade lhe
era encantador.
O dia da execução do turco foi marcado, mas, na noite anterior a essa
data, ele deixou a prisão e, antes que amanhecesse, já estava muitos
quilômetros distante de Paris. Félix havia adquirido passaportes em nome
de seu pai, irmã e de si próprio. Ele comunicou seu plano ao primeiro, que
se prontificou a ajudar, deixando sua casa sob o pretexto de uma viagem e
se escondendo com a filha em uma parte obscura de Paris.
Félix conduziu os fugitivos pela França até Lyon e atravessou o Mont
Cenis em direção a Leghorn, onde o comerciante decidiu esperar uma
oportunidade favorável de passar para os domínios turcos.
Safie resolveu ficar com o pai até o momento da partida, e o turco
renovou sua promessa de que ela deveria unir-se ao seu libertador. Félix
permaneceu com eles na expectativa desse evento. Nesse meio-tempo, ele
desfrutou da sociedade árabe, que demonstrava por ele o carinho mais
simples e terno. Eles conversavam entre si por meio de um intérprete e, às
vezes, por gestos; e Safie cantava para ele as árias divinas de seu país
natal.
O turco permitiu essa intimidade entre os jovens e encorajou suas
esperanças enquanto, em seu coração, formava outros planos. Ele
detestava a ideia de que sua filha se unisse a um cristão; porém, temia o
ressentimento de Félix caso expressasse seu desagrado, pois sabia que
ainda estava sob o poder de seu libertador e podia ser entregue ao Estado
italiano, onde se encontravam. Ele elaborou mil planos para prolongar a
farsa até que pudesse, em segredo, levar a filha consigo ao partir. Seus
planos foram facilitados pelas notícias que chegaram de Paris.
O governo da França ficou muito enfurecido com a fuga de sua vítima e
não poupou esforços para detectar e punir seu libertador. A trama de Félix
foi rapidamente descoberta e De Lacey e Agatha foram submetidos à
prisão. As notícias chegaram a Félix e o despertaram de seu sonho de
prazer. Seu pai cego e idoso e a irmã gentil jaziam em uma masmorra
barulhenta enquanto ele desfrutava do ar livre e da sociedade daquela a
quem amava. Essa ideia foi uma tortura para ele. Félix rapidamente
combinou com os turcos que, se o homem encontrasse uma oportunidade
favorável de fuga antes que Félix pudesse retornar à Itália, Safie deveria
permanecer à sua espera num convento em Leghorn. Então, deixando sua
adorável árabe, ele se apressou rumo a Paris e entregou-se às autoridades,
na esperança de libertar De Lacey e Agatha.
Ele não teve sucesso. A família permaneceu confinada por cinco meses
antes do julgamento, que resultou na privação de sua fortuna e na
condenação a um exílio perpétuo de seu país natal.
Eles encontraram um asilo miserável numa choupana na Alemanha,
onde eu os descobri. Félix logo soube que o turco traiçoeiro, por quem ele
e sua família enfrentaram uma opressão tão desconhecida, descobriu que
seu libertador fora reduzido à ruína. Com isso, o turco tornou-se um
traidor de bom sentimento e honra, deixando a Itália com a filha e
enviando ofensivamente a Félix uma ninharia de dinheiro a fim de ajudá-
lo, como ele disse, em algum plano de manutenção futura.
Tais foram os eventos que acometeram o coração de Félix e o tornaram,
aos meus olhos, o mais soturno de sua família. Ele poderia ter suportado a
pobreza e não se penitenciava pela desgraça como prêmio por sua virtude.
Contudo, a ingratidão do turco e a perda de sua amada Safie eram
infortúnios muito mais amargos e irreparáveis. O reencontro com a árabe,
no entanto, impregnava uma nova vida à sua alma.
Quando as notícias sobre a ruína de Félix chegaram a Leghorn, o
comerciante mandou que a filha não pensasse mais em seu amante e se
preparasse para retornar ao seu país natal. A natureza generosa de Safie
ficou indignada com esse comando; ela tentou protestar, mas o pai se
enfureceu enquanto reiterava sua ordem tirânica.
Dias depois, o turco entrou nos aposentos da filha e lhe disse
apressadamente que tinha motivos para acreditar que sua residência em
Leghorn fora revelada, o que o levaria a ser entregue sem demora ao
governo francês. Por conseguinte, ele contratou uma embarcação que o
levaria a Constantinopla dentro de poucas horas, pretendendo deixar a
filha sob os cuidados de um servo de confiança para que, mais tarde, ela o
seguisse com grande parte de sua fortuna, que ainda não havia chegado a
Leghorn.
Quando sozinha, Safie traçou em sua mente um plano de fuga. A ideia
de residir na Turquia lhe era repugnante; sua religião e seus sentimentos
eram igualmente adversos a tal perspectiva. Em razão de determinadas
cartas do pai terem caído em suas mãos, ela soube do exílio de seu amante
e descobriu o nome do local onde ele residia. Hesitando um pouco, mas
por fim tomando a decisão, Safie pegou algumas joias e uma quantia em
dinheiro, deixou a Itália na companhia de uma criada – uma nativa de
Leghorn que entendia a língua da Turquia – e partiu para a Alemanha.
Ela chegou em segurança a uma cidade a cerca de cento e dez
quilômetros da choupana de De Lacey, quando sua criada ficou seriamente
doente. Safie cuidou dela com o carinho mais dedicado, mas a pobre
menina morreu e a árabe ficou sozinha, sem familiaridade com a língua do
país e totalmente ignorante acerca dos costumes do mundo. Ela caiu, no
entanto, em boas mãos. A italiana mencionara o nome do local para o qual
seguiam e, depois de sua morte, a mulher da casa em que se hospedaram
providenciou para que Safie chegasse em segurança à choupana de seu
amado.
CAPÍTULO XV
‒CIADOR AMALDIÇOADO! Por que sobrevivi? Por que, naquele nstante, não
apaguei a centelha de existência que você tão arbitrariamente me
concedeu? Não sei, o desespero ainda não havia se apossado de mim; meus
sentimentos eram de raiva e vingança. Eu poderia ter destruído a choupana
e seus habitantes com prazer, saciando-me com seus gritos e desastre.
Quando a noite chegou, saí do meu retiro e vaguei pela floresta; agora
não mais contido pelo medo da descoberta, exprimia minha angústia em
uivos assustadores. Eu era como um animal selvagem que havia se
libertado de uma armadilha, destruindo os objetos que me obstruíam e
atravessando a floresta de maneira veloz. Ah, que noite desgraçada passei!
As estrelas frias brilhavam em zombaria e as árvores nuas agitavam seus
galhos acima de mim. De vez em quando, a doce voz de um pássaro
irrompia em meio à quietude universal. Tudo, exceto eu, estava em
repouso ou deleite. Como o arquidemônio, sentia o inferno dentro de mim;
e, sem alguém que simpatizasse com minha situação, queria despedaçar as
árvores, espalhando o caos e a destruição ao redor para então me sentar e
contemplar a ruína.
Mas essa era uma sensação luxuosa a qual não podia suportar. Fiquei
fatigado com o excesso de esforço corporal e afundei na grama úmida com
a impotência doentia do desespero. Não havia entre as miríades de homens
alguém que pudesse se apiedar ou me ajudar. E ainda devia ser bom para
meus inimigos? Não: a partir daquele momento, declarei guerra eterna
contra a espécie e, sobretudo, contra aquele que me formou e me relegou a
essa infelicidade abominável.
O sol nasceu, ouvi as vozes dos homens e soube que seria impossível
retornar ao meu retiro durante o dia. Assim, me escondi em uma densa
vegetação rasteira, decidido a dedicar as horas conseguintes à reflexão
sobre minha situação.
O sol agradável e o ar puro do dia restauraram um pouco a minha
tranquilidade; quando pensei no acontecimento da choupana, não pude
deixar de acreditar que fora muito apressado em minhas conclusões. Eu
certamente tinha agido de forma imprudente. Era evidente que minha
conversa havia predisposto o pai ao meu favor, e eu agira como tolo na
exposição de minha pessoa para o horror de seus filhos.
Eu deveria ter me familiarizado com o velho De Lacey e, aos poucos,
me revelado para o restante de sua família, quando os jovens estivessem
mais preparados para a abordagem. Mas não acreditava que meus erros
fossem irrecuperáveis. Depois de muita consideração, resolvi voltar à
choupana, procurar o velho e reconquistar sua simpatia.
Esses pensamentos me acalmaram e, à tarde, afundei em um sono
profundo. Porém a febre em meu sangue não me permitiu ser visitado por
sonhos pacíficos. A cena horrível do dia anterior se repetia diante dos
meus olhos; as mulheres fugiam enquanto o enfurecido Félix me arrancava
dos pés de seu pai. Acordei exausto e, ao descobrir que já era noite, saí do
meu esconderijo em busca de comida.
Quando minha fome se apaziguou, dirigi meus passos rumo ao
conhecido caminho da choupana. Tudo estava em paz. Entrei em minha
casa e fiquei em expectativa silenciosa à espera da família. Uma hora se
passou, o sol subiu alto no céu, mas os habitantes da choupana não
apareceram. Tremi violentamente, receando uma desgraça terrível. O
interior da casa estava escuro e não se ouvia qualquer movimento. Não
poderia descrever a agonia de tal suspense.
Depois de certo tempo, dois camponeses passaram por ali. Eles pararam
diante da choupana e começaram a conversar, gesticulando de maneira
violenta. Não conseguia entender o que eles diziam, pois falavam a língua
do país, diferente da que eu havia aprendido. Logo depois, no entanto,
Félix se aproximou com outro homem. Fiquei surpreso, pois sabia que ele
não havia saído da choupana naquela manhã e esperava ansiosamente
descobrir, em sua fala, o que significava a presença incomum daquelas
pessoas.
– Devo lembrá-lo – disse seu companheiro – que você será obrigado a
pagar três meses de aluguel e perderá a produção do seu jardim. Não
desejo tirar vantagem injusta e imploro, portanto, que você pense por
alguns dias antes de tomar sua decisão.
– Isto é totalmente inútil – respondeu Félix. – Nunca mais poderemos
habitar sua casa. A vida do meu pai corre grande perigo devido à terrível
circunstância que relatei. Minha esposa e minha irmã nunca mais
esquecerão o horror daquela cena. Peço-lhe para não argumentar mais
comigo. Pegue sua posse de volta e me deixe sair rapidamente deste lugar.
Félix tremia violentamente enquanto falava. Ele e seu companheiro
entraram na cabana, onde permaneceram por alguns minutos antes de
partirem. Nunca mais vi ninguém da família De Lacey.
Continuei o resto do dia em meu casebre em estado de desespero
absoluto e estúpido. Meus protetores haviam partido e quebrado o único
elo que me prendia ao mundo. Pela primeira vez, os sentimentos de
vingança e ódio encheram meu peito e não me esforcei para controlá-los;
na verdade, inclinei meus pensamentos em direção ao dano e à morte. No
entanto, quando pensei nos meus amigos, na voz suave de De Lacey, nos
olhos gentis de Agatha e na beleza requintada da árabe, esses pensamentos
desapareceram e um jorro de lágrimas me acalmou. Contudo, quando me
dei conta de que eles haviam me desprezado e abandonado, fui possuído
pela ira. Incapaz de ferir um ser humano, voltei minha fúria a objetos
inanimados. À medida que a noite avançou, coloquei uma variedade de
combustíveis ao redor da casa; e, depois de ter destruído todo vestígio de
cultivo no jardim, esperei com impaciência até que a lua descesse, com o
intuito de principiar minhas operações.
Horas se passaram e um vento feroz surgiu da floresta, rapidamente
dispersando as nuvens que pairavam no céu: a ventania cresceu como uma
avalanche poderosa e produziu uma espécie de insanidade em meu ânimo,
o que rompeu todos os limites da razão e reflexão. Acendi o galho seco de
uma árvore e dancei em fúria ao redor da choupana, com os olhos ainda
fixos no horizonte, cuja borda quase tocava a lua. Uma parte do astro ainda
se escondia quando ergui minha tocha, e, com um grito, atirei-a na palha,
na urze e nos arbustos que eu havia juntado. O vento abanou o fogo e a
cabana foi envolvida com agilidade pelas chamas que a lambiam com
línguas bifurcadas e destruidoras.
Tão logo me convenci de que nada sobraria da habitação, saí do local e
procurei refúgio na floresta.
E então, com o mundo diante de mim, para onde deveria rumar? Resolvi
me distanciar do cenário dos meus infortúnios. Porém, para alguém odiado
e desprezado, todo país seria igualmente horrível. Por fim, a lembrança de
sua existência atravessou minha mente. Eu havia aprendido com seus
papéis que você era meu pai, meu criador; e a quem eu poderia dirigir-me
de maneira mais adequada senão àquele que me deu a vida? Dentre as
lições que Félix ofereceu a Safie, a geografia não havia sido omitida:
aprendi por meio dela as posições relativas dos diferentes países da Terra.
Você mencionou Genebra como o nome de sua cidade natal, de modo que
decidi seguir para lá.
Mas como poderia me orientar? Eu sabia que precisava viajar na direção
sudoeste para chegar ao meu destino; mas o sol era meu único guia. Eu
não sabia os nomes das cidades pelas quais passaria nem poderia pedir
informações a um único ser humano, mas não me desesperei. Somente de
você poderia esperar socorro, embora não sentisse nada senão ódio por seu
ser. Criador insensível e sem coração! Você me dotou de percepções e
paixões para depois me lançar ao mundo como um objeto de desprezo e
horror para a humanidade. No entanto, apenas de você poderia reivindicar
piedade e reparação, e de você decidi buscar a justiça que em vão tentava
obter de qualquer outro ser que usava a forma humana.
Minhas viagens foram longas, e os sofrimentos, intensos. O outono já
estava avançado quando abandonei o distrito onde residi durante tanto
tempo. Viajei apenas à noite, com medo de encontrar um rosto humano. A
natureza decaiu em volta, e o sol já não tinha calor. A chuva e a neve
caíam ao meu redor, poderosos rios se congelavam e a superfície da terra
era dura, fria e nua, privando-me de abrigo. Ah, quantas vezes amaldiçoei
meu ser! A brandura da minha natureza se esvaíra, e tudo dentro de mim
se transformou em fel e amargura. Quanto mais eu me aproximava de sua
morada, mais intensamente sentia o espírito de vingança incendiar meu
coração. A neve caiu e as águas foram endurecidas, mas não descansei.
Determinados incidentes de quando em quando me orientavam, e obtive
acesso a um mapa do país. Contudo, muitas vezes eu me afastava do meu
caminho. A agonia sentimental não me permitia trégua, e não havia nada
apto a apaziguar meu estado de fúria e infelicidade exacerbada. Houve, em
contrapartida, um episódio na minha chegada aos confins da Suíça, na
época em que o sol recuperava seu calor e o tom verde retornava à terra,
reforçando minha amargura e o horror das minhas emoções.
Eu geralmente descansava durante o dia e viajava apenas à noite,
protegido da visão do homem. Entretanto, certa manhã, ao descobrir uma
mata densa ao longo de meu caminho, arrisquei continuar minha jornada
após o nascer do sol. O dia, um dos primeiros da primavera, me animou
pela beleza do seu sol e pela fragrância do ar. Fui acometido por emoções
de brandura e prazer, há muito consideradas mortas, que reviviam dentro
de mim. Surpreso pela volta de tais sensações e ignorando minha solidão e
deformidade, me atrevi a ser feliz. Lágrimas suaves caíram outra vez em
minhas bochechas, e levantei meus olhos úmidos com gratidão pelo sol
abençoado que me oferecia tanta alegria.
Continuei a serpentear por entre os caminhos da floresta até chegar ao
seu limite, ladeado por um rio profundo e rápido no qual muitas árvores
curvavam seus galhos e exibiam o frescor da estação. Aqui parei, sem
saber exatamente qual caminho seguir, quando ouvi o som de vozes que
me fizeram buscar refúgio à sombra de um cipreste. Mal havia me
escondido quando uma jovem correu em direção ao local onde eu estava,
rindo como se fugisse de alguém por brincadeira. Ela continuou seu curso
ao longo das vertentes do rio, quando de repente escorregou e caiu nas
águas. Corri do meu esconderijo e, lutando com dificuldade contra a força
da corrente, salvei a garota e a arrastei para as margens. Ela estava
desmaiada, de modo que recorri a todos os meios em meu alcance para lhe
restaurar seus sentidos. Neste momento, fui bruscamente interrompido por
um homem de aspecto rústico, provavelmente a pessoa de quem ela fugia
de brincadeira. Ao me ver, ele disparou em minha direção e, arrancando a
garota dos meus braços, correu para as partes mais profundas da mata. Eu
o segui rapidamente, sem saber o porquê. Quando o homem me avistou,
apontou uma arma para o meu corpo e atirou. Caí ferido enquanto meu
agressor, com grande rapidez, fugia pela mata.
Esse foi o prêmio por minha benevolência! Eu salvara um ser humano
da destruição e, como recompensa, agora me contorcia sob a dor miserável
de uma ferida que despedaçava a carne e os ossos. Os sentimentos de
bondade e gentileza que eu havia sentido momentos antes deram lugar à
raiva infernal e ao ranger dos dentes. Inflamado pela dor, prometi ódio
eterno e vingança contra toda a humanidade. A agonia de minha ferida,
porém, me venceu; minha pulsação parou e eu desmaiei.
Durante semanas, conduzi uma vida desgraçada na floresta na tentativa
de recuperar-me do ferimento. A bala entrara no meu ombro e eu não sabia
se ela havia permanecido lá ou ido para outro lugar; de qualquer forma, eu
não tinha meios para removê-la. Meus sofrimentos foram intensificados
também pelo sentimento opressivo de injustiça e ingratidão por trás
daquela ferida. Dia após dia, eu renovava meus votos de vingança – uma
vingança profunda e mortal capaz de compensar os ultrajes e as angústias
dos quais eu era vítima.
Semanas depois, minha ferida sarou e continuei a jornada. As
dificuldades que sofri já não eram mais aliviadas pelo sol reluzente ou
pela brisa suave da primavera. Toda a alegria era apenas uma zombaria
que insultava meu estado desolado e me fazia sentir de maneira ainda mais
dolorosa por não ter sido concebido para desfrutar do prazer.
Mas o fim das minhas labutas se aproximava e, dentro de dois meses,
alcancei os arredores de Genebra.
Era noite quando cheguei e me escondi entre os campos que cercavam a
cidade a fim de meditar sobre a melhor maneira de me dirigir a você.
Sentia-me oprimido pelo cansaço e pela fome, e infeliz em demasia para
apreciar as brisas gentis da noite ou a perspectiva do pôr do sol além das
montanhas estupendas do Jura.
Naquele momento, um sono leve me aliviou da dor da reflexão, e
acordei com o barulho de uma criança linda que adentrava a área onde me
escondera com toda a esportividade da infância. De repente, enquanto a
olhava, me ocorreu que a pequena criatura não tinha preconceitos e era
jovem demais para se assustar com o horror da deformidade. Se, portanto,
eu pudesse pegá-lo e educá-lo como meu companheiro e amigo, não
ficaria tão desolado no mundo.
Instigado por esse impulso, agarrei o garoto quando ele passou por perto
e o aproximei de mim. Assim que viu minha forma, ele colocou as mãos
diante dos olhos e soltou um grito estridente. Afastei suas mãos do rosto e
disse:
– Criança, o que significa isso? Não pretendo machucá-lo. Ouça-me.
Ele lutou violentamente.
– Deixe-me ir! – gritou. – Monstro! Feio! Você quer me comer e me
despedaçar. Você é um ogro! Deixe-me ir, ou direi tudo ao meu pai.
– Rapaz, você nunca mais verá seu pai. Você deve vir comigo.
– Monstro horrível! Solte-me! Meu pai é importante! Ele é o sr.
Frankenstein e vai punir você. Não ouse me levar!
– Frankenstein! Então você pertence ao meu inimigo: aquele a quem
jurei eterna vingança. Você será minha primeira vítima.
A criança se debatia e me enchia de insultos que levavam desespero ao
meu coração. Segurei sua garganta para silenciá-lo e, momentos depois,
ele caiu morto aos meus pés.
Olhei para a minha vítima e meu coração se encheu de júbilo e triunfo
infernal. Batendo palmas, exclamei:
– Eu também posso criar desolação. Meu inimigo não é invulnerável;
esta morte trará desespero a ele, e mil outras tribulações o atormentarão e
o destruirão.
Quando fixei meus olhos na criança, vi algo brilhando em seu peito. Era
o retrato de uma mulher adorável. Apesar da minha malignidade, aquilo
me suavizou e me atraiu. Por alguns momentos, admirei prazerosamente
seus olhos escuros, cílios grandes e lábios adoráveis. Todavia minha raiva
retornou, à lembrança de que eu estaria para sempre privado dos deleites
que essas belas criaturas podiam proporcionar, e que aquela cuja aparência
eu contemplava não exibiria, em relação a mim, tal benignidade divina,
mas reações de desgosto e afronta.
Você se admira que tais pensamentos pudessem culminar em acessos de
fúria? O que me surpreende é não ter, no momento, deixado de exalar as
sensações em exclamações e dado vazão ao desejo de atacar a humanidade
e perecer na tentativa de destruí-la.
Dominado por esses sentimentos, deixei o local onde cometera o
assassinato e, procurando um esconderijo mais isolado, entrei em um
celeiro que parecia vazio. Uma mulher estava dormindo na palha. Ela era
jovem; não tão bonita quanto a mulher do retrato que carregava, mas seu
aspecto agradável provinha do frescor da juventude. Aqui, pensei comigo,
estava uma pessoa cujo sorriso jocoso era concedido a todos, exceto a
mim. Então, me inclinei sobre ela e sussurrei:
– Acorde, belíssima. Seu amante está próximo; aquele que daria a vida
para obter sua atenção afetuosa. Minha amada, acorde!
A garota se mexeu e um calafrio de terror me perpassou. Deveria ela de
fato acordar, me ver, me amaldiçoar e denunciar o assassinato? Essa seria
por certo sua reação caso seus olhos se abrissem e ela me vislumbrasse.
Então, uma ideia insana agitou o demônio dentro de mim: não eu, mas ela
deveria sofrer. Eu havia cometido o assassinato porque era privado de tudo
o que ela poderia me dar. O crime tinha origem nela. Portanto, a punição
deveria cair sobre ela! Graças às lições de Félix e às leis perversas do
homem, eu aprendera a causar ruína. Inclinei-me sobre ela e coloquei o
retrato em uma das dobras de seu vestido. Ela se moveu novamente e eu
fugi.
Durante dias visitei o local onde essas cenas tomaram parte; às vezes,
desejando vê-lo, outras vezes, decidido a abandonar o mundo e suas
desventuras para sempre. Por fim, vaguei em direção a essas montanhas e
percorri seus imensos recantos, consumido por uma paixão cálida que só
você poderia satisfazer. Nós não podemos nos separar até você prometer
que cumprirá o meu clamor. Estou sozinho e infeliz; o ser humano não se
associará a mim, mas um ser tão deformado e horrível quanto eu não se
negaria a tal. Minha companheira deve ser da mesma espécie e ter os
mesmos defeitos. Você precisa criar esse ser.
CAPÍTULO XVII
E onde será que ele está hoje? Essa pessoa gentil e amável estará
perdida para sempre? Terá perecido sua mente, tão repleta de ideias e de
conjecturações fantasiosas e magníficas que formavam um mundo cuja
existência dependia da vida de seu criador? Agora ele existe apenas na
minha memória? Não, certamente, não. Sua forma tão divinamente forjada
e radiante de beleza pode ter decaído, mas seu espírito ainda visita e
consola seu amigo infeliz.
Perdoe essa torrente de aflição. Essas palavras ineficazes são apenas um
pequeno tributo ao valor inestimável de Henry, mas elas acalmam meu
coração, que transborda com a angústia criada por sua lembrança.
Prosseguirei com a minha história.
Depois de Colônia, descemos às planícies da Holanda e resolvemos
adiar o restante da viagem, pois o vento era adverso, e a corrente do rio,
suave em demasia para nos auxiliar.
Nossa jornada aqui não despertou o interesse paisagístico. Chegamos
em poucos dias a Roterdã, de onde seguimos pelo mar rumo à Inglaterra.
Foi em uma manhã clara, nos últimos dias de dezembro, que vislumbrei
pela primeira vez os penhascos brancos da Grã-Bretanha. As margens do
Tâmisa apresentavam uma paisagem inédita: eram planas, mas férteis, e
quase todas as cidades eram marcadas pela lembrança de alguma história.
Vimos o forte de Tilbury e lembramos da Armada Espanhola; nos
deparamos também com Gravesend, Woolwich e Greenwich, lugares dos
quais eu já ouvira falar quando em meu próprio país.
Por fim, deparamo-nos com os numerosos campanários de Londres, a
gigante Catedral de Saint-Paul e a célebre Torre da história inglesa.
- Tradução livre de trecho do poema “Linhas escritas algumas milhas
acima da Abadia de Tintern”, de William Wordsworth (1770-1850). (N. T.)
CAPÍTULO XIX
Elizabeth Lavenza
Genebra, 18 de maio de 17—
MINHA SITUAÇÃO ATUAL era aquela em que todo pensamento voluntário era
engolido e perdido. Fui apressado pela fúria. Somente a vingança me dava
força e compostura, o que moldou meus sentimentos e me permitiu ser
calculista e calmo em períodos em que, de outra forma, teria sido levado
ao delírio ou à morte.
A primeira decisão foi abandonar Genebra para sempre; meu país, que
me era querido quando eu era feliz e amado, agora, na adversidade,
tornara-se odioso. Abasteci-me com uma soma em dinheiro, juntamente a
algumas joias que pertenceram à minha mãe, e parti.
E assim começaram minhas peregrinações, que só deverão cessar com a
morte. Atravessei vasta porção da Terra e suportei todas as dificuldades
que os viajantes, nos desertos e países bárbaros, costumam enfrentar. Vivi
muito mal; muitas vezes, estendi meus membros defasados na planície
arenosa e pedi, em oração, pela morte. Mas a vingança me manteve vivo;
não ousei morrer para deixar o meu adversário no mundo.
Quando saí de Genebra, minha primeira tarefa foi obter uma pista a
partir da qual eu talvez poderia traçar os passos do meu inimigo diabólico.
Mas o plano era irregular e vaguei muitas horas pelos limites da cidade
sem saber qual caminho seguir. Ante a aproximação da noite, vi-me na
entrada do cemitério onde William, Elizabeth e meu pai repousavam.
Entrei e me aproximei da tumba que marcava suas sepulturas. Tudo estava
em silêncio, exceto pelas folhas das árvores, suavemente agitadas pelo
vento. A noite estava quase escura e a cena teria sido solene até mesmo
para um observador desinteressado. Os espíritos dos que partiam pareciam
voar e projetar uma sombra que era sentida, mas não vista, ao redor da
cabeça do enlutado.
O pesar profundo que o momento provocou-me, a princípio,
rapidamente deu lugar à raiva e ao desespero. Eles estavam mortos, e eu
vivia; o assassino deles também estava vivo e, para destruí-lo, eu
precisava arrastar meu corpo cansado pelo mundo. Ajoelhei-me na grama,
beijei a terra e, com os lábios trêmulos, exclamei:
– Pela terra sagrada em que me ajoelho, pelas sombras que vagam perto
de mim, pelo luto perpétuo e imenso que sinto, juro, e por você, ó Noite, e
os espíritos que lhe presidem: irei perseguir o dæmon que causou esse
infortúnio até que um de nós pereça em conflito mortal. Para esse fim,
preservarei minha vida; para executar essa cara vingança, contemplarei
novamente o sol e pisarei na pastagem verde da terra, que de outro modo
desapareceria dos meus olhos para sempre. E eu os chamo, espíritos dos
mortos, e a vocês, ministros errantes da vingança, para me ajudar e
conduzir o meu trabalho. Que o monstro amaldiçoado e infernal sorva
profundamente da agonia e sinta o desespero que me atormenta.
Eu começara minha adulação com tamanhos solenidade e espanto que
quase fui assegurado de que as sombras dos meus amigos assassinados
podiam ouvir e aprovar minha devoção. Mas a fúria me possuía quando
concluí, e a raiva sufocou minha expressão.
Fui respondido em meio à quietude da noite por uma risada alta e
diabólica. Ela soou aos meus ouvidos de modo longo e pesado; as
montanhas a ecoaram, e senti como se todo o inferno me cercasse de
zombaria e risadas. Naquele momento eu deveria ter sido tomado pelo
frenesi e destruído minha existência desgraçada, mas minha promessa fora
ouvida e eu estava destinado à vingança. O riso morreu quando uma voz
conhecida e abominável, aparentemente perto do meu ouvido, dirigiu-se a
mim em um sussurro audível:
– Estou satisfeito, desventurado maldito! Você decidiu viver, e estou
satisfeito.
Corri para o ponto de origem do som, mas o diabo escapou do meu
alcance. De repente, o amplo círculo da lua surgiu e iluminou sua forma
horrenda e distorcida enquanto ele fugia em meio a uma velocidade
mortal.
Eu o persegui, e por muitos meses essa tem sido minha tarefa. Guiado
por uma pequena pista, segui pelos meandros do Ródano, mas em vão.
Cheguei ao Mediterrâneo e, por um estranho acaso, vislumbrei o demônio
caminhar à noite e se esconder em uma embarcação com destino ao mar
Negro. Comprei uma passagem no mesmo navio, contudo ele conseguiu
escapar de alguma maneira.
Entre as terras selvagens da Tartária e da Rússia, embora ele ainda me
escapasse, nunca perdi sua trilha. Às vezes, os camponeses, assustados
com a horrível aparição, informavam-me acerca de seu caminho; outras
vezes ele próprio, que temia minha aflição e morte caso perdesse seu
rastro, deixava uma marca a fim de me guiar. A neve descia sobre minha
cabeça e eu enxergava suas pegadas enormes na planície branca. Para
você, que mal começou a vida, a quem a inquietação é algo novo e a
agonia é desconhecida, como pode entender o que senti e ainda sinto? O
frio, a fome e o cansaço eram as menores dores que eu estava destinado a
suportar; fui amaldiçoado por um demônio e carreguei comigo o meu
próprio inferno. Ainda assim, um espírito do bem seguiu e dirigiu meus
passos. Quando mais precisei, ele me livrou de dificuldades aparentemente
intransponíveis. Às vezes, quando a natureza, vencida pela fome, afundava
sob a exaustão, uma refeição era preparada para mim no deserto, que me
restaurava e animava. O alimento era, na verdade, grosseiro, como aquele
que os camponeses do país comiam, mas não duvido que tenha sido
colocado pelos espíritos que eu invocara para me ajudar. Muitas vezes,
quando tudo estava seco, sem nuvens e eu desidratado pela sede, uma leve
nuvem cobria o céu e derramava as poucas gotas que me reviviam para,
então, desaparecer.
Eu seguia, quando possível, o curso dos rios. Entretanto, em geral o
dæmon os evitava, pois era onde a população do país mais se reunia. Em
outros lugares, os seres humanos raramente eram vistos; e eu em geral
subsistia com animais selvagens que cruzavam meu caminho. Eu trazia
dinheiro comigo e ganhava a amizade dos aldeões ao distribuí-lo, bem
como lhes dava parte da minha caça quando era agraciado com fogo e
utensílios para cozinhar.
Minha vida, como se seguiu, fora realmente odiosa, e era apenas durante
o sono que eu podia me regozijar. Oh, sono abençoado! Muitas vezes,
quando me sentia completamente atribulado, deitava-me para descansar ao
passo que meus sonhos me embalavam até o êxtase. Os espíritos que me
protegiam haviam proporcionado esses momentos, ou melhor, horas de
júbilo, a fim de que eu pudesse reter forças para completar minha
peregrinação. Privado desses momentos, eu teria afundado sob minhas
dificuldades. Durante o dia, era sustentado e inspirado pela esperança da
noite, pois durante o sono via meus amigos, minha esposa e meu país
amado. Encontrava também o semblante benevolente de meu pai, os tons
prateados da voz de minha Elizabeth e Clerval desfrutando de saúde e
juventude. Com frequência, quando cansado de uma marcha cansativa, eu
me convencia de que estava sonhando até a noite chegar, em que poderia
desfrutar da visão dos meus queridos amigos. Que carinho agonizante eu
sentia por eles! Como me apeguei às suas formas queridas, pois às vezes
eles assombravam até minhas horas de vigília e me convenciam de que
permaneciam vivos! Em tais momentos, a vingança que queimava em meu
coração se esvanecia, e eu continuava meu caminho rumo à destruição do
demônio como se fosse um dever ordenado pelos céus, mais como o
impulso mecânico de algum poder acerca do qual eu não tinha consciência
do que pelo desejo fervoroso da minha alma.
Não sei determinar quais eram os sentimentos daquele a quem
perseguia. Às vezes, de fato, ele deixava mensagens nas cascas das
árvores, ou na superfície da pedra, que me guiavam e instigavam minha
fúria. “Meu reinado ainda não acabou”, dizia uma de suas inscrições.
“Você vive e meu poder está completo. Siga-me. Busco o eterno gelo do
norte, onde sentirá a atribulação do frio e a geada, com relação aos quais
sou impassível. Perto desse lugar você encontrará, se não seguir muito
tarde, uma lebre morta. Coma e se revigore. Vamos, inimigo: ainda temos
que lutar por nossas vidas. Você deve subsistir a muitas e penosas horas
até que esse período chegue.”
Diabo zombeteiro! Novamente, juro vingança; novamente o condeno,
demônio miserável, à tortura e à morte. Nunca desistirei de minha busca
até que um de nós pereça, e então, com que êxtase me juntarei à minha
Elizabeth e aos meus amigos que partiram e, mesmo agora, preparam para
mim a recompensa pelo meu trabalho tedioso e peregrinação horrível!
Enquanto eu continuava minha jornada para o norte, a neve se tornava
mais espessa e o frio aumentava em um grau quase severo demais para
suportar. Os camponeses se trancavam em suas choupanas, e apenas os
mais resistentes se aventuravam a capturar os animais que a fome forçara
a sair de seus esconderijos à procura de presas. Os rios estavam cobertos
de gelo e nenhum peixe podia ser pescado; dessa maneira, fui privado do
meu principal artigo de consumo.
As minhas dificuldades aumentavam o triunfo do meu inimigo. Uma de
suas inscrições dizia: “Prepare-se! Seus esforços apenas começaram.
Enrole-se em peles e se abasteça com comida, pois em breve iniciaremos
uma jornada em que seus sofrimentos satisfarão meu ódio perpétuo.”
Minha coragem e perseverança foram revigoradas por tais palavras de
escárnio. Resolvido a não falhar em meu propósito e convocando o Céu
para me apoiar, continuei com fervor inabalável a travessia de desertos
imensos até que o oceano surgiu à distância e formou o limite máximo do
horizonte. Ah, que diferença dos mares azuis do sul! Coberto de gelo, só
podia ser distinguido da terra por sua insurgência e protuberâncias
distintas. Os gregos choraram de alegria ao contemplar o Mediterrâneo das
colinas asiáticas e saudaram com êxtase o término de seus esforços. Não
chorei, mas me ajoelhei e, com o coração pesado, agradeci ao espírito-guia
por me conduzir em segurança ao lugar onde eu esperava, apesar da
chacota do meu adversário, encontrá-lo e lutar contra ele.
Algumas semanas antes do período em questão, eu arranjara um trenó e
alguns cachorros e, assim, atravessava a neve com velocidade
inconcebível. Não sei se o demônio possuía as mesmas vantagens, no
entanto, descobri que, se antes perdia terreno diariamente na busca, agora
ganhava. Tanto que, quando avistei o oceano pela primeira vez, ele estava
com apenas um dia de vantagem. Esperava, portanto, interceptá-lo antes
que ele chegasse às margens. Com a coragem renovada, segui em frente e,
em dois dias, alcancei uma aldeia desventurada à beira-mar. Perguntei aos
habitantes sobre o demônio e obtive informações precisas: contaram que
um monstro gigantesco chegara na noite anterior, munido de um revólver
e muitas pistolas, e posto em fuga os habitantes apavorados de uma cabana
solitária em virtude de sua aparência terrível. Ele levara o estoque de
comida do inverno e, depositando-o em um trenó que confiscara com um
grande número de cães treinados, partiu na mesma noite, para a alegria dos
aldeões horrorizados. Ele seguiu sua jornada através do mar em uma
direção que não levava a terra alguma; conjeturaram que ele deveria ser
rapidamente liquidado pela quebra do gelo ou congelado pelas geadas
infinitas.
Ao ouvir essas informações, sofri um acesso temporário de desespero.
Ele havia me escapado. Eu precisava iniciar uma viagem destrutiva e
quase interminável pelas montanhas gélidas do oceano em meio a um frio
que poucos habitantes aguentariam por muito tempo, e que eu, natural de
um clima ameno e ensolarado, não esperava sobreviver. No entanto, ante a
ideia de que o demônio viveria e triunfaria, minha raiva e vingança
retornaram e, como uma maré poderosa, dominaram todos os outros
sentimentos. Depois de um leve descanso, durante o qual os espíritos dos
mortos pairavam ao redor e me instigavam à retaliação, preparei-me para
a jornada.
Troquei meu trenó por um mais adequado às adversidades do oceano
gelado e, após adquirir estoque abundante de provisões, parti da terra.
Não posso imaginar quantos dias se passaram desde então; só sei que
enfrentei tamanha adversidade que nada além do sentimento perpétuo da
retribuição justa, que queimava em meu coração, poderia ter me permitido
suportar. Montanhas de gelo imensas e acidentadas barravam minha
passagem e, muitas vezes, ouvi o trovão do mar, que ameaçava minha
destruição. Mas novamente a geada vinha e tornava seguro os caminhos do
mar.
Pela quantidade de provisão que consumi, suponho que tenha passado
três semanas na referida travessia. Sua prolongação contínua oprimia meu
coração, e muitas vezes enxugava lágrimas amargas de desânimo e pesar
dos meus olhos. De fato, o desespero quase garantira sua presa, e eu logo
teria sucumbido a esse infortúnio. Certa vez, depois de os pobres animais
que me transportavam terem, com incrível esforço, atingido o cume de
uma montanha de gelo íngreme – o que levou um deles à morte pela
exaustão –, vislumbrei a extensão diante de mim com angústia, mas de
repente meu olhar percebeu um pontinho escuro sobre a planície escura.
Esforcei-me em prol de descobrir de que poderia se tratar e soltei um grito
selvagem de êxtase ao distinguir um trenó e as proporções distorcidas de
uma forma bem conhecida. Ah, que onda ardente de esperança revisitou
meu coração! Lágrimas quentes encheram meus olhos, as quais
rapidamente enxuguei para que não interceptassem a visão que eu tinha do
dæmon. Ainda assim, minha visão foi obscurecida pelas gotas ardentes,
até que, dando vazão às emoções que me oprimiam, chorei em voz alta.
O momento, porém, não permitia demora. Desatrelei o cão morto, dei
aos demais uma porção abundante de comida e, depois de uma hora de
descanso absolutamente necessária e amargamente penosa para mim,
continuei meu caminho. O trenó continuava visível. Não o perdia de vista,
exceto nos momentos em que, por um curto período, uma pedra de gelo o
ocultava. De fato, eu ganhava proximidade com rapidez e, ao cabo de
quase dois dias de viagem, avistei meu inimigo a menos de um quilômetro
de distância, o que fez meu coração saltar do peito.
Mas então, quando parecia quase ao alcance do meu adversário, minhas
esperanças foram subitamente extintas e perdi seu rastro, como jamais
havia acontecido. Ouvi o barulho do mar sob o gelo. O ruído de seu
progresso, à medida que as águas rolavam e cresciam abaixo, tornou-se a
cada momento mais ameaçador e terrível. Prossegui, mas em vão. O vento
surgiu, o mar rugiu e, como no poderoso choque de um terremoto, ele se
partiu e estalou com um som tremendo e avassalador. A obra estava
consumada: em poucos minutos, um mar tumultuoso atingiu a mim e ao
meu inimigo, e fiquei à deriva em um pedaço de gelo que não parava de
diminuir, preparando-me para uma morte horrível.
Foram horas tenebrosas. Vários dos meus cães morreram, e eu mesmo
estava prestes a afundar sob o acúmulo de angústia quando enxerguei sua
embarcação ancorada, o que me ofereceu esperanças de socorro e vida. Eu
não fazia ideia de que havia navios se aventurando tão ao norte, e fiquei
espantado com a visão. Destruí sem demora parte do meu trenó em busca
de criar remos e, com fadiga infinita, movi minha balsa de gelo na direção
de sua embarcação. Minha intenção, caso você rumasse para o sul, era me
confiar de novo aos mares em vez de abandonar meu objetivo. Eu esperava
induzi-lo a me conceder um barco com o qual eu pudesse perseguir meu
rival. Mas sua direção era o norte. Você me levou a bordo quando meu
vigor estava esgotado, e em breve eu teria sucumbido em minhas
dificuldades multiplicadas a uma morte que ainda temo, pois minha tarefa
não está cumprida.
Ah! Poderá meu espírito orientador conduzir-me ao dæmon e permitir o
descanso que tanto almejo, ou devo morrer para que ele viva? Se isso
acontecer, jure para mim, Walton, que ele não irá escapar; que você o
procurará e satisfará minha vingança em sua morte. É ousadia pedir-lhe
que realize minha peregrinação e suporte as dificuldades pelas quais
passei? Claro que sim. Eu não seria tão egoísta. No entanto, se eu morrer e
ele aparecer, permita que os ministros da vingança o conduzam e jure que
ele não viverá – jure que ele não triunfará sobre minhas desgraças
acumuladas e sobreviverá para aumentar sua lista de crimes obscuros. Ele
é eloquente e persuasivo; suas palavras já tiveram poder sobre meu
coração, mas não confie nele. Sua alma é tão infernal quanto sua forma,
repleta de perfídia e malícia demoníaca. Não o ouça. Invoque os nomes de
William, Justine, Clerval, Elizabeth, meu pai e o miserável Victor, e enfie
sua espada no coração dele. Estarei por perto para guiar o aço.
WALTON, em continuação.
26 de agosto de 17—
2 de setembro de 17—
Minha amada irmã,
Escrevo para você cercado de perigos e ignorante quanto à
possibilidade de ver novamente a querida Inglaterra e os amigos mais
queridos que a habitam. Estou cercado por montanhas de gelo que não
admitem escapatória e ameaçam a todo momento esmagar meu navio. Os
bravos companheiros, a quem persuadi a se tornarem meus tripulantes,
vêm a mim em busca de ajuda, mas não há nada que eu possa fazer. Há
algo terrivelmente apavorante em nossa situação, mas minha coragem e
esperança não me abandonam. No entanto, é terrível refletir que a vida de
todos esses homens esteja em perigo por minha causa. Se perdermo-nos,
meus planos loucos serão a causa.
E qual será o seu estado de espírito, Margaret? Você não ouvirá falar
da minha destruição e aguardará ansiosamente o meu retorno. Anos se
passarão e você terá crises de desespero, ainda torturada pela esperança.
Ah, minha amada irmã, a perspectiva de seu coração despedaçado é mais
terrível para mim do que a própria morte. Mas você tem um marido e
filhos adoráveis, você pode ser feliz. Que os Céus te abençoem e me
ouçam!
Meu infeliz hóspede me olha com a mais terna compaixão. Ele se
esforça para me encher de esperança, e fala como se a vida fosse um bem
que ele valorizasse. Ele me lembra das tantas vezes que as mesmas
dificuldades acometeram outros navegadores que passaram por este mar
e, a despeito do próprio desânimo, tenta me animar. Até mesmo os
marinheiros sentem o poder de sua eloquência: quando ele fala, o
desespero deles some. Ele desperta as energias da tripulação que,
enquanto ouve sua voz, acredita que essas vastas montanhas de gelo sejam
apenas pequeninos montes de toupeira que desaparecerão diante das
resoluções do homem. Tais sentimentos, no entanto, são transitórios; cada
dia de expectativa os enche de medo, e quase temo que um motim se
origine desse desespero.
5 de setembro de 17—
7 de setembro de 17—