Frankenstein - Mary Shelley

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FRAN

KENS
TEIN
Frankenstein or, The Modern Prometheus
Publicado originalmente em 1818, com edição definitiva datada de 1831.

© 2019 by Book One


Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998.
Nenhuma parte deste livro, sem autorização prévia por escrito da editora,
poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios
empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer
outros.

Este livro é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e incidentes


são fruto da imaginação da autora ou usados de modo ficcional, e qualquer
semelhança com pessoas reais, estejam elas vivas ou mortas, assim como
estabelecimentos comerciais, eventos ou locais é pura coincidência.

Tradução: Rafaela Caetano


Preparação: Sylvia Skallák
Revisão: Diogo Rufatto e Aline Graça
Capa: Felipe Guerrero
Projeto gráfico e diagramação: Renato Klisman
Arte: Francine Silva

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Angélica Ilacqua CRB-8/7057

S549f Shelley, Mary Wollstonecraft, 1797-1851


Frankenstein: ou o Prometeu moderno / Mary Shelley;
tradução de Rafaela Caetano. – São Paulo: Excelsior,
2019.
320 p., il.
ISBN: 978-65-80448-33-3
Título original: Frankenstein: or the Modern Prometheus
1. Ficção inglesa 2. Terror I. Título II. Caetano, Rafaela
19-2065 CDD 823
FRANKENSTEIN,

OU O PROMETEU MODERNO

Mary Shelley

TEXTO NA ÍNTEGRA DA EDIÇÃO DE 1831,


COM INTRODUÇÃO DA AUTORA

São Paulo
2019
INTRODUÇÃO

OS EDITORES DAS STANDARD NOVELS1 decidiram publicar Frankenstein em


uma de suas coleções, expressaram o desejo de que eu falasse sobre as
origens da história. Estou mais do que disposta a dizer, pois isso me
permite dar uma resposta geral à pergunta tantas vezes dirigida a mim:
“Como eu, na época uma jovem, posso ter pensado e desenvolvido uma
ideia tão hedionda?”. É verdade que sou muito avessa à ideia de falar
sobre mim no papel; mas, como minhas considerações aparecerão apenas
como apêndice de uma obra anterior, limitadas às questões de minha
condição como autora, mal posso me acusar de intromissão pessoal.
Não é surpreendente que, como filha de duas pessoas de distinta fama
literária, eu tenha pensado desde cedo em escrever. Quando pequena, eu
rabiscava; meu passatempo preferido naquela época, durante as horas de
recreação, era “escrever histórias”. Porém, eu tinha um prazer ainda maior
do que esse, que era fazer castelos no ar – o prazer de sonhar acordada –,
seguindo trilhas de pensamento cujo objetivo era formar uma sucessão de
incidentes imaginários. Meus sonhos eram ao mesmo tempo mais
fantásticos e agradáveis do que meus escritos. Nestes últimos, eu era
estritamente uma imitadora – mais repetia o que os outros já haviam feito
do que colocava no papel as sugestões de minha própria mente. O que
escrevia era destinado para, ao menos, um outro olhar – de meu
companheiro e amigo de infância; mas meus sonhos eram só meus; não os
contei para ninguém; eles eram meu refúgio quando estava aborrecida –
meu maior prazer quando estava livre.
Quando menina, vivi a maior parte do tempo no campo e passei um
período considerável na Escócia. Eu fazia visitas pontuais aos locais mais
pitorescos, mas minha residência costumeira ficava nas costas vazias e
sombrias ao norte de Tay, perto de Dundee. Chamo-as de vazias e sombrias
em retrospecção; na época, não pareciam assim aos meus olhos. Elas eram
o ninho da liberdade e a região agradável onde, despercebida, podia
comungar com as criaturas das minhas fantasias. Eu escrevia naqueles
tempos – mas em um estilo ordinário. Eu escrevia sob as árvores no
terreno de nossa casa, ou nas encostas ermas das montanhas vizinhas, e foi
lá que minhas verdadeiras composições – os voos arejados de minha
imaginação – nasceram e foram nutridas. Não me tornei a heroína dos
meus contos. A vida parecia banal do meu ponto de vista. Eu não
conseguia imaginar quais problemas românticos ou eventos maravilhosos
estariam em meu destino. No entanto, eu não estava confinada à minha
própria identidade e podia passar horas com criações muito mais
interessantes para mim naquela idade do que minhas próprias sensações.
Depois disso, minha vida se tornou muito mais movimentada, e a
realidade ocupou o lugar da ficção. Meu marido, no entanto, mostrou-se
ansioso desde o começo para que eu me provasse digna de minha linhagem
e me inscrevesse nas páginas da fama. Ele sempre me incitava a perseguir
uma reputação literária, com a qual eu ainda me importava, embora, desde
então, eu tenha me tornado infinitamente alheia a ela. Na época, ele
desejava que eu escrevesse, não tanto com a ideia de que eu produzisse
algo digno de atenção, mas pela possibilidade de ele mesmo julgar até que
ponto eu apresentava a promessa de resultados melhores no futuro. Ainda
assim, não fiz nada. As viagens e os cuidados com minha família me
ocupavam o tempo; e estudar, tanto em termos de leitura como no
aprimoramento de ideias ante a comunicação com sua mente muito mais
cultivada, era toda a atividade literária à qual dedicava minha atenção.
No verão de 1816, visitamos a Suíça e nos tornamos vizinhos de Lord
Byron. A princípio, passávamos horas agradáveis no lago ou
perambulando pela costa; e Lord Byron, que estava escrevendo o terceiro
canto de A peregrinação de Childe Harold, foi o único entre nós que
colocou seus pensamentos no papel. Estes, sucessivamente exibidos a nós
e vestidos com toda luz e harmonia da poesia, pareciam exprimir a
divindade das glórias do céu e da terra, cujas influências partilhamos com
ele.
Mas aquele se provou um verão úmido e pouco generoso; as chuvas
incessantes com frequência nos confinavam em casa por dias. Alguns
tomos sobre histórias de fantasmas, traduzidas do alemão para o francês,
caíram em nossas mãos. Havia a “História do amante inconstante”, que, ao
pensar que abraçava a noiva a quem prometera seus votos, se viu nos
braços do pálido fantasma da moça que tinha abandonado. Havia a história
do pecador fundador de sua raça, miseravelmente condenado a aplicar o
beijo da morte em todos os filhos mais novos de sua maldita casa quando
estes atingiam a idade predeterminada. Sua figura gigantesca e obscura,
vestida como o fantasma em Hamlet, com armadura completa e viseira
levantada, era vista à meia-noite, sob a luz da lua, em seu avançar lento
pela alameda escura. O contorno se perdia sob a sombra das muralhas do
castelo, mas, assim que o portão se abria, ouvia-se um passo, a porta da
câmara se abria e ele se aproximava do sofá onde estavam os jovens
florescentes, embalados em um sono saudável. Uma tristeza eterna lhe
pairava no rosto enquanto ele se inclinava e beijava a testa dos meninos,
que do momento em diante secavam como flores arrancadas do caule.
Nunca me deparei com tais histórias desde então, mas seus incidentes
ainda estão frescos em minha cabeça como se as tivesse lido ontem.
“Cada um de nós vai escrever uma história sobre fantasmas”, sugeriu
Lord Byron, e sua proposta foi aceita. Havia quatro de nós. O nobre autor
começou a produzir um conto, do qual um fragmento foi impresso ao final
de seu poema “Mazeppa”. Shelley era mais apto a incorporar ideias e
sentimentos no esplendor de imagens brilhantes e na música do verso mais
melodioso que adorna nossa linguagem, em contraposição à invenção do
mecanismo de uma trama. Ele deu início à sua história baseado em
experiências do passado. O pobre Polidori teve uma ideia horrível sobre
uma senhora com cabeça de caveira, uma punição por espiar através de um
buraco de fechadura – para ver o quê, não lembro –, o que era algo
chocante e errado, é claro; mas, quando ela foi reduzida a uma condição
pior do que a do famoso Tom de Coventry,2 ele não soube o que fazer com
ela e teve a obrigação de despachá-la para a tumba dos Capuletos, o único
lugar que lhe era cabível. Os ilustres poetas, aborrecidos com a
trivialidade da prosa, rapidamente renunciaram à desagradável tarefa.
Eu me ocupei em pensar numa história – uma história capaz de rivalizar
com aquelas que inspiraram a tarefa em questão. Uma que dialogasse com
os pavores misteriosos de nossa natureza e despertasse horror arrebatador,
que fizesse o leitor ficar com medo de olhar ao redor, coalhando seu
sangue e acelerando-lhe as batidas do coração. Se não cumprisse com esse
objetivo, minha história sobre fantasmas seria indigna de ser chamada
assim. Pensei e ponderei. Em vão. Senti aquela incapacidade vazia de
invenção que é a maior tristeza de um autor, quando um Nada monótono
responde às nossas invocações aflitas. “Já pensou em uma história?”, me
perguntavam toda manhã, e toda manhã era forçada a responder com uma
negativa agoniada.
Tudo precisa de um começo, como diria Sancho Pança; e esse começo
precisa ter conexão com uma referência preexistente. Os hindus dão ao
mundo um elefante para sustentá-lo, mas fazem o paquiderme se apoiar
em uma tartaruga. A criação, deve-se admitir humildemente, não consiste
em gerar a partir do vazio, mas do caos; os materiais devem, em primeiro
lugar, ser fornecidos: eles podem oferecer contorno a substâncias escuras e
disformes, mas não trazer à existência a própria substância. Em todas as
questões de descoberta e criação, mesmo as que pertencem à imaginação,
somos continuamente lembrados da história de Colombo e seu ovo.3 A
criação consiste no poder de aproveitar as capacidades de determinado
assunto e moldar as ideias que ele sugere.
Muitas e longas eram as conversas entre Lord Byron e Shelley, das quais
eu era ouvinte devota, embora quase silenciosa. Durante uma delas, houve
discussão sobre várias doutrinas filosóficas, dentre as quais a natureza do
princípio da vida e a possibilidade de ela ser descoberta e transmitida. Eles
falaram sobre os experimentos do Dr. Darwin (não me refiro ao que o
doutor realmente fez, ou disse que fez, mas, em concordância com meu
propósito, ao que se dizia que ele tinha feito), que conservou um pedaço de
aletria em um recipiente de vidro até que, por meios extraordinários, este
começou a se mexer com movimentos voluntários. Mas não era assim,
afinal, que se dava a vida. Talvez um cadáver pudesse ser reanimado; o
galvanismo dera sinal de tais hipóteses: talvez as partes componentes de
uma criatura pudessem ser fabricadas, reunidas e imbuídas de calor vital.
A noite mingou com a conversa, e até mesmo a hora das bruxas4 havia
passado quando nos retiramos para descansar. Quando coloquei minha
cabeça no travesseiro, não dormi, e nem se podia dizer que fiquei
pensando. Minha imaginação, espontânea, me possuiu e guiou, dando às
sucessivas imagens que se formavam em minha cabeça uma vivacidade
muito além dos limites usuais do devaneio. Vi – com os olhos fechados,
mas a visão mental aguçada – o rosto pálido de um estudante de artes
profanas ajoelhar-se ao lado da coisa que havia montado. Eu me deparei
com a imagem hedionda de um homem estendido que, graças a algum
motor potente, dava sinais de vida, movendo-se de um jeito inquietante e
meio vivo. Aquilo deve ter sido medonho, pois seria extremamente
assustador o efeito de qualquer tentativa humana de brincar com o
mecanismo estupendo do Criador do mundo. O êxito aterrorizaria o
próprio artista, que fugiria de sua obra horrenda, arrebatado pelo pavor.
Ele esperaria que, deixada por conta própria, a pequena centelha de vida
que ele transmitira se extinguisse; que aquela coisa, tendo recebido tão
imperfeita animação, se tornasse matéria morta; e ele poderia dormir na
crença de que o silêncio da sepultura calaria para sempre a existência
transitória do terrível cadáver considerado por ele o berço da vida. O
criador dorme, mas é despertado; ele abre os olhos; eis que a coisa
horrível está ao seu lado na cama, abrindo as cortinas e o fitando com
olhos amarelos e lacrimejantes, mas especulativos.
Aterrorizada, abri meus olhos. Aquela ideia se apossou de tal forma de
minha mente que um arrepio de pavor me perpassou, e desejei trocar a
imagem horrível da minha fantasia pela realidade ao redor. Eu ainda os
vejo; a mesma sala, o assoalho escuro, as persianas fechadas com o luar
infiltrado e a sensação de que o lago vítreo e os elevados Alpes brancos
estavam à distância. Não consegui me livrar tão facilmente de meu
espectro abominável; ele ainda me assombrava. Precisava pensar em outra
coisa. Recorri à minha história sobre fantasmas – minha cansativa e infeliz
história sobre fantasmas! Ah, se ao menos eu conseguisse inventar uma
trama que assustasse meu leitor do jeito que me assustei naquela noite!
A ideia que me invadiu foi alegre e rápida como a luz. “Encontrei! O
que me aterrorizou aterrorizará os outros; só preciso descrever o espectro
que me assombrou durante a noite.” No dia seguinte, anunciei que havia
pensado em uma história. Comecei o dia com as palavras: “Era uma noite
sombria de novembro”, fazendo apenas a transcrição dos horrores sinistros
do meu devaneio.
A princípio, pensei apenas em algumas páginas – um pequeno conto;
Shelley, porém, me pediu que desenvolvesse a ideia em maior extensão.
Certamente, eu não devia apenas a sugestão de um episódio ou rastro de
sentimento ao meu marido, mas, não fosse por seu incentivo, esta história
nunca teria assumido a forma com que foi apresentada para o mundo.
Desta declaração, devo excluir o prefácio. Até onde me lembro, ele foi
inteiramente escrito por Shelley.
E agora, mais uma vez, desejo que minha criação hedionda siga em
frente e prospere. Tenho uma afeição por ela, pois é fruto de dias felizes,
quando a morte e a tristeza eram apenas palavras que não encontravam eco
real em meu coração. Suas várias páginas relatam muitas caminhadas,
viagens e conversas, quando eu não estava sozinha e meu companheiro era
alguém que, neste mundo, nunca mais verei. Mas isto é algo pessoal; meus
leitores não têm nada a ver com tais associações.
Acrescentarei apenas uma palavra sobre as alterações que fiz: elas se
referem principalmente ao estilo. Não mudei nenhuma parte da história
nem apresentei novas ideias ou circunstâncias. Corrigi a linguagem onde
ela estava enfastiante a ponto de interferir no interesse da narrativa, e
essas mudanças ocorreram quase exclusivamente no início do primeiro
volume. Encontram-se inteiramente restritas às partes que são meras
adições à história, mantendo o núcleo e a substância da obra intocados.

M. W. S.
Londres, 15 de outubro de 1831

- Criada pelos editores Henry Colburn e Richard Bentley, a Standard


Novels foi uma série de publicações composta por 126 obras de autores
contemporâneos do século XIX, bastante popular entre o público de classe
média na Inglaterra. (N. T.)
- Personagem da lenda de Lady Godiva, uma aristocrata inglesa do
século XI desafiada a cavalgar nua pelas ruas de Coventry enquanto todos
os seus habitantes eram proibidos de olhá-la. Diz-se que Tom de
Conventry, curioso, ousou espiá-la e ficou cego. (N. T.)
- Metáfora atribuída ao explorador italiano Cristóvão Colombo. Diz-se
que, em um banquete, quando questionado sobre a capacidade de outro
navegador ter descoberto a América em seu lugar, Colombo propôs como
desafio que os presentes tentassem colocar um ovo em pé. Quando todos
fracassaram, o explorador quebrou uma das extremidades de seu ovo para
achatar a casca e o apoiou na mesa. Colombo, então, foi acusado de fazer
algo que qualquer um poderia ter feito, ao que concordou e acrescentou:
“Sim, mas ninguém o fez. É a mesma coisa com a descoberta da América;
todos poderiam tê-la encontrado antes, mas eu tive a ideia primeiro”.
Logo, a metáfora diz respeito às coisas que só percebemos hoje como
possíveis ou simples porque antes alguém teve o trabalho de torná-las
assim. (N. T.)
- Período da noite, geralmente entre três e quatro da manhã, em que dita
o folclore que as criaturas sobrenaturais se manifestam com maior
intensidade. (N. T.)
PREFÀCIO

DE ACORDO COM O DR. DARWIN e determinados escritores fisiologistas da


Alemanha, o evento no qual esta ficção se baseia não é de ocorrência
impossível. Não se deve supor que eu tenha o mais remoto grau de crença
séria em tal imaginação; ainda assim, assumindo-a como base de uma obra
de fantasia, não creio que esteja meramente tecendo uma série de terrores
sobrenaturais. O evento de interesse desta história está isento das
desvantagens de um mero conto de espectros ou encantamentos. Ele foi
recomendado pela originalidade das situações que desenvolve; e, embora
seja impossível como evidência física, oferece à imaginação um ponto de
vista para um desdobramento mais compreensível e dominante das
paixões humanas do que qualquer outra relação ordinária de eventos reais
poderia produzir.
Assim, esforcei-me em busca de preservar a verdade sobre os princípios
básicos da natureza humana, ainda que não tenha me privado de inovar em
suas combinações. A Ilíada, poema trágico grego, Shakespeare em A
tempestade e Sonho de uma noite de verão e especialmente Milton em
Paraíso perdido conformam-se a essa regra; e o mais humilde romancista,
que busca dar ou receber diversão a partir de seus trabalhos, pode, sem
presunção, aplicar à ficção em prosa uma licença – ou melhor, uma regra –
cuja adoção culminou em várias combinações requintadas de sentimentos
humanos, nos mais altos exemplos da poesia.
A circunstância em que minha história se baseia foi sugerida em uma
conversa casual. Começou em parte como fonte de entretenimento, e parte
como expediente para exercitar recursos mentais inexplorados. À medida
que o trabalho prosseguiu, outros motivos se misturaram a esses. Não sou
em absoluto indiferente ao modo como as tendências morais existentes
nos sentimentos e nos personagens afetarão o leitor; contudo, minha
principal preocupação nesse aspecto tem se limitado a evitar efeitos
exasperantes dos romances atuais e a exibição da cordialidade do afeto
doméstico, além da excelência da virtude universal. As opiniões que
florescem naturalmente do caráter e da situação do herói não devem, em
hipótese alguma, ser concebidas como inerentes à minha própria
convicção; tampouco é possível inferir que as páginas a seguir sejam
prejudiciais a quaisquer doutrinas filosóficas.
É também assunto de interesse complementar para a autora que esta
história tenha começado na região majestosa onde a cena está
particularmente situada e num circuito social que não consegue evitar o
remorso. Passei o verão de 1816 nos arredores de Genebra. A estação
estava fria e chuvosa, e à noite nos amontoávamos em torno de uma
fogueira ardente. De vez em quando, divertíamo-nos com histórias alemãs
sobre fantasmas que por acaso caíam em nossas mãos. Os referidos contos
despertaram em nós um desejo brincalhão de imitação. Dois outros amigos
– ambos capazes de fornecer tramas muito mais aceitáveis ao público do
que qualquer produção minha – e eu concordamos que cada qual
escreveria uma história baseada em ocorrências sobrenaturais.
O clima, no entanto, tornou-se repentinamente sereno; assim, meus dois
amigos me deixaram em uma jornada pelos Alpes e perderam, nas cenas
magníficas que descreveram, as lembranças de suas visões
fantasmagóricas. A história a seguir é a única que foi concluída.

Marlow, setembro de 1817


CARTA I

À sra. Saville, na Inglaterra.


São Petersburgo, 11 de dezembro de 17—

Você ficará feliz ao saber que não houve desastres no início da


empreitada que você enxergava com tantos pressentimentos ruins. Cheguei
aqui ontem, e minha primeira tarefa foi assegurar minha querida irmã
acerca de meu bem-estar e crescente confiança no sucesso de meu
empreendimento.
Já estou bem ao norte de Londres, e conforme ando pelas ruas de São
Petersburgo, sinto uma brisa fria do Norte brincar no meu rosto,
reanimando minhas forças e me enchendo de prazer. Conhece a sensação?
Essa brisa, advinda da mesma região para a qual me dirijo, oferece uma
amostra do clima gelado. Inspirados por esse vento de promessa, meus
devaneios se tornaram mais inflamados e vívidos. Tento, em vão, me
persuadir de que o polo é uma área de gelo e desolação; ainda assim, ele
se apresenta à minha imaginação como uma região de beleza e deleite. Lá,
Margaret, o sol é sempre visível, com seu disco vasto resvalando o
horizonte e espalhando um esplendor perpétuo. Lá – e me permita, minha
irmã, que eu dê crédito aos navegantes anteriores – a neve e o gelo foram
banidos; ao navegar em um mar calmo, podemos ser soprados até uma
ilha que ultrapassa em beleza e maravilhas qualquer região já vista até
hoje no globo habitado. Seus resultados e suas características podem ser
inigualáveis, já que os fenômenos dos corpos celestes estão sem dúvida à
mostra nesses lugares ermos ainda não descobertos.
O que não esperar de um país de luz eterna? Posso descobrir lá o poder
maravilhoso que atrai a agulha da bússola e realizar milhares de
observações celestes que exigem tal viagem a fim de atribuir consistência
às suas aparentes excentricidades. Saciarei minha curiosidade ardente
com a visão de parte do mundo que nunca visitei, e poderei pisar numa
terra jamais tocada pelos pés do homem. São essas as minhas tentações,
suficientes para vencer todo medo do perigo ou da morte e me induzir à
laboriosa viagem com a alegria de uma criança quando embarca num
pequeno barco, com seus companheiros de férias, rumo a uma expedição
de descoberta até o rio de sua terra natal. Mas, supondo que todas essas
conjecturas sejam falsas, você não pode negar o benefício inestimável que
irei legar à humanidade, até à geração mais recente, ao revelar uma
passagem perto do polo para os países cuja travessia exige muitos meses;
ou, ao descobrir o segredo do ímã, algo que, se possível, só pode ser
realizado por um empreendimento como o meu.
Essas reflexões dissiparam a agitação com que comecei minha carta, e
sinto meu coração cintilar com um entusiasmo que me eleva ao céu; nada
contribui tanto para tranquilizar a mente como um objetivo firme – um
ponto em que a alma pode fixar seus olhos intelectuais. Esta expedição foi
o sonho favorito da minha infância. Li com regozijo os relatos das várias
viagens cujo objetivo era alcançar ao norte do oceano Pacífico através
dos mares que cercam o polo. Você deve se lembrar de que a biblioteca de
nosso querido tio Thomas era composta por histórias sobre as viagens
feitas para fins de descoberta. Minha educação foi negligenciada, mas
ainda assim eu gostava muito de ler. Os volumes em questão eram meu
estudo dia e noite, e minha familiaridade com eles aumentava meu pesar,
quando criança, ante a ordem de meu pai em seu leito de morte para que
meu tio me proibisse de embarcar em uma vida marítima.
Essas visões desapareceram quando folheei, pela primeira vez, os
poetas cujas efusões fascinaram minha alma e a elevaram ao céu. Também
me tornei poeta e, durante um ano, vivi no paraíso da minha própria
criação; imaginei que também poderia ter um nicho no templo em que
nomes como Homero e Shakespeare estão consagrados. Você está bem
familiarizada com meu fracasso e com a intensidade de minha decepção.
Todavia, na época herdei a fortuna de meu primo, e meus pensamentos se
voltaram para aquela inclinação do passado.
Seis anos se passaram desde que decidi realizar esta viagem. Lembro
até hoje da hora em que decidi me dedicar a esta grande aventura. Dei
início a ela ao submeter meu corpo a adversidades. Acompanhei os
pescadores de baleia em várias expedições ao mar do Norte;
voluntariamente passei frio, fome, sede e sono; muitas vezes trabalhei
mais do que os marinheiros comuns durante o dia e dediquei minhas noites
ao estudo da matemática, da teoria da medicina e dos ramos da ciência
física, áreas das quais um aventureiro naval pode tirar grandes vantagens
na prática. De fato, por duas vezes trabalhei como marinheiro em um
baleeiro da Groenlândia e conquistei a admiração de todos. Devo admitir
que fiquei um tanto orgulhoso quando o capitão me ofereceu o cargo de
imediato do navio, exortando minha permanência com a maior seriedade,
tamanha era sua estima por meus serviços.
E agora, querida Margaret, não mereço completar um grande
propósito? Eu poderia ter escolhido uma vida fácil e luxuosa, mas preferi
a glória às tentações que a riqueza colocou em meu caminho. Ah, que
alguma voz encorajadora responda afirmativamente à minha pergunta!
Minha coragem e minha resolução são firmes, mas minhas esperanças
oscilam e meus ânimos estão geralmente baixos. Estou prestes a
prosseguir numa viagem longa e difícil, cujas emergências exigirão toda a
minha força moral: sou obrigado não apenas a elevar o espírito dos
outros, mas também a sustentar o meu quando o deles falhar.
Este é o período mais favorável para viajar na Rússia. Eles deslizam
rapidamente sobre a neve em seus trenós; o transporte é encantador e, na
minha opinião, muito mais agradável do que uma diligência inglesa. O
frio não é excessivo se você estiver coberto por peles – uma vestimenta
que já adotei; afinal, há grande diferença entre circular por um convés e
permanecer sentado sem se mexer por horas, quando exercício algum é
capaz de impedir o congelamento do sangue nas veias. Não tenho a
ambição de perder a vida na estrada que liga São Petersburgo a Arcangel.
Partirei para Arcangel dentro de duas ou três semanas; minha intenção
é alugar um navio lá, o que pode ser feito facilmente mediante o
pagamento do seguro para o proprietário, e empregar quantos
marinheiros julgar necessário dentre os que estão acostumados a pescar
baleias. Não pretendo navegar até o mês de junho. Quando voltarei? Ah,
querida irmã, como posso responder a essa pergunta? Se eu for bem-
sucedido, muitos meses, talvez anos, passarão até nosso reencontro. Se eu
falhar, você me verá novamente em breve, ou nunca mais.
Adeus, minha querida e primorosa Margaret. Que os céus derramem
bênçãos sobre você e me protejam para que eu possa sempre reiterar
minha gratidão por todo o seu amor e toda a sua bondade.

Seu irmão afetuoso,


R. Walton.
CARTA II

À sra. Saville, Inglaterra


Arcangel, 28 de março de 17—

Como o tempo passa devagar aqui, cercado como eu estou pela geada e
a neve! Ainda assim, dei o segundo passo de minha empreitada. Aluguei
um navio e estou ocupado com a seleção dos marinheiros; aqueles com
quem já lidei parecem homens confiáveis, e certamente possuem uma
notável coragem.
Mas tenho um desejo que ainda não fui capaz de satisfazer, e a falta que
isso me faz se tornou pior do que nunca. Eu não tenho um amigo,
Margaret: quando irradio o entusiasmo do sucesso, não há ninguém para
partilhar minha alegria; se sou surpreendido pela decepção, não tenho
alguém para me apoiar em meu desânimo. Devo confiar meus pensamentos
ao papel, é verdade; mas trata-se de um meio ruim para comunicar os
sentimentos. Desejo a companhia de um homem apto a simpatizar comigo
– alguém cujos olhos respondam aos meus. Você pode me considerar um
romântico, minha querida irmã, mas sinto amargamente a falta de um
amigo. Não tenho ninguém por perto que seja gentil, corajoso e possuidor
de uma mente culta e capacitada, cujos gostos sejam iguais aos meus a
ponto de aprovar ou alterar meus planos. Como tal amigo seria capaz de
reparar as falhas de seu pobre irmão! Sou demasiado intenso nas
execuções e impaciente nas dificuldades. Mas para mim é mal ainda maior
ser autodidata: durante os primeiros catorze anos da minha vida, agi da
maneira que quis e não li nada além dos livros de viagens de nosso tio
Thomas. Nessa idade, familiarizei-me com os célebres poetas de nosso
país; mas foi somente quando não obtive mais benefícios de minha
convicção que percebi a necessidade de me familiarizar com outras
línguas além da minha própria. Hoje tenho 28 anos e me sinto, de fato,
mais iletrado do que muitos estudantes de 15 anos. É verdade que venho
pensando mais e que meus devaneios se tornaram mais amplos e
magníficos, mas eles precisam – como diriam os pintores – de harmonia, e
anseio muito por um amigo que tenha o bom senso de não me desprezar
como romântico, mas com afeto o suficiente para regular minha mente.
Bem, as reclamações são inúteis. É certo que não encontrarei um amigo
no vasto oceano, tampouco aqui em Arcangel, entre mercadores e
marinheiros. No entanto, apesar de desalinhados com a imundície da
natureza humana, certos sentimentos tomam parte nesses corações
ásperos. Meu imediato, por exemplo, é homem de grande coragem e
iniciativa, almeja loucamente a glória, ou, para usar as palavras mais
corretas, ambiciona o sucesso em sua carreira. Ele é um inglês de pouca
instrução que, em meio a preconceitos quanto à sua nacionalidade e
profissão, ainda consegue manter algumas das mais nobres qualidades
humanas. Eu o conheci a bordo de um baleeiro e, ao descobrir que estava
desempregado nessa cidade, rapidamente o chamei para me ajudar nesta
jornada.
O imediato é uma pessoa de disposição excelente, notável por sua
gentileza e disciplina ponderada. Tais contingências, somadas à sua
conhecida integridade e coragem, fizeram com que eu desejasse muito seu
envolvimento com minha empreitada. Como jovem que cresceu na solidão,
vivendo os melhores anos sob sua tutela gentil e feminina, tive meu
caráter refinado de tal forma que não consigo esconder um desagrado
intenso a respeito da costumeira brutalidade exercida a bordo. Nunca
achei que seria necessário e, quando ouvi falar sobre um marinheiro
conhecido tanto pela bondade de seu coração como pelo respeito e a
obediência que lhe era dedicada por seus homens, senti-me
particularmente sortudo pela oportunidade de contar com seus serviços.
Ouvi falar dele pela primeira vez de maneira romântica, por uma senhora
que lhe devia a felicidade de sua vida. Essa é, em resumo, a história do
homem: anos atrás, ele amou uma jovem russa de certa fortuna. Quando
conseguiu acumular uma quantia considerável de dinheiro em virtude de
prêmios, o pai da garota aceitou a união. Antes da cerimônia programada,
porém, ele viu uma única vez a moça, que estava em lágrimas e se atirou
aos seus pés implorando que fosse poupada, confessando ao mesmo tempo
que amava outro homem – um rapaz pobre, a quem seu pai jamais
permitiria seu enlace. Meu generoso amigo tranquilizou a suplicante e, ao
ser informado sobre o nome do rapaz, instantaneamente abandonou seus
planos. Ele já havia comprado uma fazenda com seu dinheiro, na qual
planejara passar o restante de sua vida; no entanto, deu tudo ao rival,
bem como o dinheiro remanescente para a compra de gado. Então, pediu
que o pai da jovem autorizasse o casamento entre os apaixonados. O
velho, porém, recusou o acordo, considerando-se ligado ao meu amigo por
laços de honra. Este, ao descobrir a inflexibilidade do pai, deixou o país e
voltou apenas quando soube que a ex-amada se casara de acordo com suas
predileções. “Que sujeito nobre!”, você deve estar exclamando. Sem
dúvida, mas também é absolutamente inculto. É silencioso como um turco
e apresenta certa indiferença bruta que, embora torne sua conduta ainda
mais surpreendente, diminui o interesse e a simpatia que, de outra forma,
ele poderia atrair.
No entanto, não pense que o fato de eu reclamar um pouco ou conceber
um consolo para minhas labutas significa que estou vacilando em minhas
resoluções. Elas são tão firmes quanto o destino, e minha viagem terá
início assim que o tempo permitir meu embarque. O inverno tem sido
terrivelmente severo, mas a primavera promete ser boa, sendo conhecida
por sua notável precocidade, assim, talvez eu possa partir antes do
planejado. Não farei nada de maneira precipitada: você me conhece o
suficiente para confiar em minha prudência e consideração sempre que a
segurança de outrem está sob meu cuidado.
Mal posso descrever as sensações ante a proximidade da viagem. É
impossível explicar o conceito do tremor, meio prazeroso e meio
amedrontador, com o qual me preparo para partir. Estou a caminho de
regiões inexploradas, para a “terra do nevoeiro e da neve”, mas não
matarei nenhum albatroz; portanto, não tema pela minha segurança, ou se
voltarei tão desgastado e lúgubre quanto o “Velho Marinheiro”.5 Você
sorrirá com minha alusão, mas devo confessar um segredo: sempre atribuí
meu apego, meu entusiasmo apaixonado pelos perigos misteriosos do
oceano, à produção do mais imaginativo dentre os poetas modernos. Há
algo em ação na minha alma que não entendo o que é. Sou praticamente
industrial – um trabalhador que executa suas tarefas com esforço e
perseverança –, mas, além disso, nutro amor e crença naquilo que é
maravilhoso e se entrelaça a todos os meus projetos, que me tira dos
caminhos triviais do homem e me leva ao mar revolto e às regiões nunca
visitadas, as quais estou prestes a explorar.
Mas voltemos às considerações mais queridas. Devo encontrá-la
novamente, depois de ter atravessado mares imensos e retornado pelo
cabo mais meridional da África ou da América? Não ouso esperar tanto
sucesso, mas não suporto imaginar o contrário desse cenário. Continue a
me escrever sempre que puder: posso receber suas cartas nos momentos
em que mais precisar de apoio para o meu espírito. Eu te amo ternamente.
Lembre-se de mim com carinho caso nunca mais receba notícias minhas.

Seu irmão afetuoso,


Robert Walton

- Referência ao poema “A Balada do Velho Marinheiro”, do poeta inglês


Samuel Taylor Coleridge. (N. T.)
CARTA III

À sra. Saville, Inglaterra


07 de julho de 17—

Minha querida irmã,


Escrevo algumas linhas às pressas para informar que estou seguro e
bem adiantado em minha viagem. Esta carta chegará à Inglaterra por
meio de um comerciante em viagem de volta que parte de Arcangel; ele é
mais afortunado do que eu, que talvez não veja minha terra natal por
muitos anos. Estou, no entanto, de bom humor: meus homens são ousados
e aparentemente firmes de propósito; nem mesmo as camadas flutuantes
de gelo que passam continuamente por nós, indicando os perigos da
região para a qual estamos avançando, parecem consterná-los. Já
alcançamos uma latitude muito alta; mas é o auge do verão e, embora ele
não seja tão quente como na Inglaterra, os vendavais do sul, que nos
sopram com agilidade em direção às costas que desejo ardentemente
alcançar, trazem certo grau inesperado e revigorante de calor.
Até agora, não ocorreu nenhum incidente digno de relato. Um ou dois
vendavais severos e vazamentos são ocorrências sobre que os navegadores
experientes mal se lembram de tomar nota, e ficarei muito contente se
nada de pior acontecer conosco durante a viagem.
Adieu, minha querida Margaret. Esteja certa de que, para o meu bem e
o seu, não desafiarei o perigo. Serei calmo, perseverante e prudente.
O sucesso há de coroar o meu empreendimento. Por que não iria? Até
agora, tracei um caminho seguro pelos mares sem trilhas: as próprias
estrelas são testemunhas e testemunhos de meu triunfo. Por que não
continuar avançando pelas águas indomadas e, ainda assim, obedientes?
O que pode parar o coração determinado e a vontade resoluta de um
homem?
Meu coração cheio assim se derrama, involuntariamente. Mas eu
preciso terminar. Deus abençoe minha amada irmã!
R. W.
CARTA IV

À sra. Saville, Inglaterra


05 de agosto de 17—

Um estranho incidente ocorreu e não posso deixar de abordá-lo,


embora seja provável que você me veja antes que esses papéis cheguem ao
seu poder.
Na última segunda-feira, 31 de julho, quase ficamos presos pelo gelo
que cercou o navio, mal permitindo sua flutuação. Nossa circunstância era
um tanto perigosa, especialmente porque pairava sobre nós uma névoa
muito densa. Diante da situação, ficamos à espera de mudanças na
atmosfera e no clima.
Por volta das duas horas, a névoa se dissipou e vimos, estendidas por
todas as direções, planícies de gelo vastas e irregulares que pareciam
infinitas. Alguns de meus camaradas resmungaram, e minha própria mente
começou a ficar vigilante com pensamentos sôfregos, quando de repente
uma imagem estranha nos atraiu a atenção e desviou o interesse acerca de
nossa própria situação. Percebemos uma carruagem baixa, presa em um
trenó e puxada por cães, passando rumo ao norte a uma distância de uns
oitocentos metros: um ser de formato humano e aparente estatura
gigantesca estava sentado no trenó, guiando os cães. Observamos o rápido
avanço do viajante com telescópios até ele sumir na superfície irregular
do gelo.
A aparição nos deixou abismados. Pensávamos estar a centenas de
quilômetros de qualquer terra, mas a cena nos mostrou que, na realidade,
não estávamos tão distantes quanto imaginávamos. Em razão do gelo,
porém, era impossível seguir a trilha, que observamos com aguçada
atenção.
Cerca de duas horas após a referida ocorrência, escutamos o
movimento do mar sob o navio; antes do anoitecer, o gelo se quebrou e
libertou a embarcação. No entanto, ficamos ancorados até o dia seguinte,
temendo encontrar no escuro aquelas grandes massas soltas que flutuam
quando o gelo se quebra. Aproveitei o tempo para descansar por algumas
horas.
Ao amanhecer, entretanto, sob os primeiros raios de sol, subi ao convés
e encontrei todos os marinheiros em um só lado do navio; pareciam
conversar com alguém ao mar. Tratava-se, na verdade, de um trenó como
aquele que tínhamos visto antes. Durante a noite, ele flutuou em nossa
direção sobre um grande bloco de gelo. Apenas um cachorro sobrevivera,
mas havia também um ser humano ali, a quem os marinheiros tentavam
persuadir que entrasse no navio. Ele não parecia ser, como o outro
viajante, um habitante selvagem de uma ilha desconhecida. Era, na
verdade, europeu. Quando apareci no convés, o imediato disse: “Aqui está
nosso capitão, e ele não permitirá que você morra em mar aberto”.
Ao dar por minha presença, o estranho falou em inglês, embora com
sotaque estrangeiro: “Antes de eu embarcar em seu navio”, ele disse,
“você faria a gentileza de me informar para onde está indo?”.
Creio que possa imaginar meu espanto ao ouvir essa pergunta de um
homem à beira da destruição, e a quem eu deveria imaginar que a minha
embarcação seria um recurso que ele não trocaria nem pelas riquezas
mais preciosas da Terra. Respondi, no entanto, que estávamos em uma
viagem de descoberta em direção ao Polo Norte.
Ao ouvi-lo, ele pareceu satisfeito e consentiu em embarcar. Meu bom
Deus! Margaret, se você tivesse visto aquele homem, que impunha
condições para sua salvação, sua surpresa teria sido infinita. Seus
membros estavam quase congelados, e seu corpo terrivelmente emaciado
pela fadiga e pelo sofrimento. Nunca vi um homem em uma condição tão
deplorável. Tentamos carregá-lo para dentro da cabine, mas, assim que
ele saiu do ar fresco, desmaiou. Nós o trouxemos de volta ao convés e o
reanimamos com conhaque, forçando-o a engolir uma pequena
quantidade. Assim que ele recobrou sinais de vida, nós o enrolamos em
cobertores e o posicionamos perto da chaminé do fogão. Ele se recuperou
devagar e tomou um pouco de sopa, o que o deixou maravilhosamente
revigorado.
Dois dias se passaram até que estivesse apto a falar, e muitas vezes temi
que seus sofrimentos o tivessem privado da razão. Quando ele se
recuperou um pouco mais, levei-o para minha cabine à procura de cuidar
dele o tanto quanto minhas ocupações permitissem. Nunca vi criatura mais
interessante; seus olhos geralmente expressam selvageria e até loucura,
mas há momentos em que, se alguém realiza um ato de bondade para com
ele ou lhe presta o mais insignificante dos favores, todo o seu rosto se
ilumina, por assim dizer, emitindo uma benevolência e doçura que jamais
vi igual. Na maior parte do tempo, no entanto, ele se mostra melancólico e
desesperado; às vezes, range os dentes, como se impaciente com o peso
dos problemas que o oprimem.
Quando meu convidado melhorou mais um pouco, tive muito problema
para afastá-lo dos homens, que desejavam lhe fazer mil perguntas. Eu não
podia permitir que ele fosse atormentado pela curiosidade ociosa da
tripulação, já que exibia um estado físico e mental cuja reabilitação
exigia total repouso. Mas, certa vez, o imediato perguntou por que ele
havia percorrido tamanha distância no gelo em um veículo tão estranho.
Seu semblante assumiu instantaneamente um aspecto da mais profunda
escuridão, e ele respondeu: “Para procurar alguém que fugiu de mim.”
“E o homem que você perseguia viajava da mesma maneira?”
“Sim.”
“Então creio que o tenhamos visto. No dia anterior ao de seu resgate,
vimos alguns cães no gelo puxando um trenó com um homem.”
Isso despertou a atenção do desconhecido, que lançou uma porção de
perguntas sobre a rota que o dæmon,6 como ele o chamava, seguira. Um
pouco depois, quando estava sozinho comigo, ele comentou: “Sem dúvida
suscitei sua curiosidade, bem como a dessas boas pessoas; mas você é
educado demais para fazer perguntas”.
“Com certeza. Seria muito impertinente e desumano da minha parte
incomodá-lo com inquirições.”
“E, mesmo assim, você me resgatou de uma situação inusitada e
perigosa; sua bondade me devolveu à vida.”
Mais tarde, ele perguntou se eu achava que o rompimento do gelo
destruíra o outro trenó. Respondi que não era possível ter algum grau de
certeza, dado que o gelo havia se partido apenas por volta da meia-noite,
e o viajante poderia ter alcançado um local seguro antes desse horário,
mas eu não tinha como determiná-lo.
A partir de então, um novo espírito animou o corpo decaído do
desconhecido. Ele manifestou a maior disposição de ficar no convés à
procura do trenó desaparecido, mas o convenci a permanecer na cabine
por ainda estar fraco demais para enfrentar a crueza da atmosfera.
Prometi que colocaria alguém para vigiar em seu lugar, e que ele seria
instantaneamente avisado se qualquer objeto novo aparecesse à vista.
Eis o diário acerca dessa esquisita ocasião até o presente momento. O
estranho melhorou gradualmente de saúde, mas se põe muito quieto e
parece desconfortável quando alguém, à parte de mim, entra na cabine. No
entanto, seus modos são tão conciliadores e gentis que todos os
marinheiros se interessam por ele, a despeito do contato escasso. Da
minha parte, começo a amá-lo como a um irmão, e seu sofrimento
constante e profundo me enche de simpatia e compaixão. Ele deve ter sido
uma criatura nobre em seus melhores dias para ainda sustentar na ruína
tamanho apelo e amabilidade.
Eu mencionei em uma de minhas cartas, minha querida Margaret, que
não encontraria nenhum amigo no vasto oceano; no entanto, encontrei um
homem que, antes de ter o espírito rompido pelo infortúnio, teria gostado
de considerar meu irmão de coração.
Devo dar prosseguimento a meu diário acerca do estranho em
intervalos, caso tenha novos incidentes a registrar.

13 de agosto de 17—

Meu afeto por meu convidado cresce a cada dia. Ele suscita minha
admiração e pena de um jeito surpreendente. Como posso ver uma
criatura tão nobre destruída pelo infortúnio sem sentir a dor mais
pungente? Ele é tão gentil e sábio; sua mente é muito culta, e, quando ele
fala, mesmo que suas palavras sejam selecionadas com a maior cautela,
fluem com rapidez e eloquência incomparáveis.
Ele agora está bastante recuperado de sua enfermidade; é visto com
frequência no convés, onde aparentemente procura pelo trenó que o
precedeu. Ainda que esteja infeliz, já não se ocupa mais com a própria
desventura, manifestando interesse nos planos dos demais. Ele sempre
conversa comigo sobre os meus, que expus sem reservas. Ele ouviu com
atenção todos os argumentos em favor de meu eventual sucesso e cada
detalhe das medidas que tenho tomado para garanti-lo. A simpatia
demonstrada por ele me levou a usar a linguagem do meu coração;
expressei com o ardor de minha alma como seria capaz de sacrificar
alegremente minha fortuna, existência e todas as esperanças em favor da
minha empreitada. A vida ou a morte de um homem eram apenas um
pequeno preço a ser pago pela aquisição e transmissão do conhecimento
que nos permitiria vencer as forças hostis à raça humana. Enquanto eu
falava, porém, uma sombra melancólica se espalhava pelo semblante do
meu ouvinte. A princípio, percebi que ele tentava reprimir suas emoções;
ele colocou as mãos diante dos olhos, fazendo minha voz tremer e falhar
quando as lágrimas escorreram rapidamente por entre seus dedos e um
gemido saiu de seu peito. Fiz uma pausa; por fim, ele falou com
dificuldade: “Homem infeliz! Você compartilha da minha loucura?
Também bebeu dessa poção inebriante? Ouça-me: me deixe revelar minha
história e você arrancará a taça de seus lábios!”
Você deve imaginar que tais palavras instigaram fortemente minha
curiosidade. Porém, o ímpeto do pesar que assolou o desconhecido afetou
suas debilitadas forças, sendo necessárias muitas horas de repouso e
conversas tranquilas para lhe restaurar a compostura.
Uma vez superada a violência de seus sentimentos, ele pareceu se
desprezar pelo arrebatamento emocional. O estranho reprimiu a tirania
obscura do desespero e me induziu novamente a falar sobre mim.
Perguntou-me sobre o meu passado. A história foi contada com rapidez,
mas provocou uma série de reflexões. Falei sobre meu desejo de encontrar
um amigo, alguém com uma íntima afinidade de que jamais desfrutei da
sorte de ter; e expressei minha convicção de que um homem não pode se
gabar de ser feliz se não usufruir de tal bênção.
“Concordo com você”, respondeu o estranho. “Somos criaturas
antiquadas e semiacabadas quando não há alguém melhor, mais sábio e
querido, como um amigo deve ser, para ajudar a aperfeiçoar nossa própria
natureza fraca e defeituosa. Já tive um amigo, a mais nobre das criaturas
humanas e, portanto, estou apto a julgar o que é amizade. Você tem
esperança e também o mundo à sua frente, logo, não há motivo para
desespero. Mas eu… eu perdi tudo e não posso recomeçar minha vida.”
Ao dizer isso, seu semblante exprimiu uma dor silenciosa que tocou meu
coração. Mas ele ficou em silêncio e se retirou para sua cabine.
Mesmo com o espírito destruído, ninguém consegue sentir mais
profundamente do que ele as belezas da natureza. O céu estrelado, o mar e
todas as vistas proporcionadas por essas regiões maravilhosas ainda
parecem ter o poder de elevar sua alma da terra. Este homem tem uma
dupla existência: sofre em detrimento do infortúnio e é oprimido pelas
decepções; no entanto, quando se recolhe dentro de si, age como um
espírito celestial, dotado de uma aura na qual nenhum pesar ou tolice são
capazes de penetrar.
Será que você sorri ante o meu entusiasmo sobre esse andarilho divino?
Não o faria se o visse. Você foi instruída e refinada pelos livros, à
distância do mundo, então é um tanto exigente. Contudo, isso apenas a
torna mais apta a apreciar os méritos extraordinários desse homem
maravilhoso.
Às vezes, me esforço para descobrir qual é a qualidade que o eleva tão
incomensuravelmente acima de qualquer outra pessoa que já conheci.
Acredito que seja um discernimento intuitivo, um poder de julgamento
rápido, mas que nunca falha. Uma imersão nas causas das coisas,
inigualável em clareza e precisão. Adicione a isso uma facilidade de
comunicação e uma voz cujas entonações variadas soam como música à
alma.

19 de agosto de 17—

Ontem o estranho me disse: “Você pode facilmente perceber, capitão


Walton, que sofri desventuras grandes e sem precedentes. Havia decidido
que a lembrança desses males deveria morrer comigo, mas você me
convenceu a mudar minha determinação. Você busca conhecimento e
sabedoria, como eu busquei uma vez, e espero ardentemente que a
satisfação de seus desejos não se torne uma serpente a picá-lo, como
aconteceu comigo. Não sei se o relato sobre os meus infortúnios será útil a
você; todavia, quando vejo que está seguindo o mesmo caminho que eu,
expondo-se aos mesmos perigos que me tornaram o que sou hoje, imagino
que você possa tirar uma moral adequada de minha história: uma que o
direcione caso seja bem-sucedido em seu propósito, ou que o console em
caso de falhas. Prepare-se para ouvir o relato de ocorrências que,
normalmente, seriam consideradas fantásticas. Se estivéssemos em outro
ambiente, mais calmo, temeria encontrar sua descrença, talvez até mesmo
sua zombaria. Mas muitas coisas parecem possíveis nessas regiões
selvagens e misteriosas, e provocariam o riso daqueles que não estão
familiarizados com os poderes sempre variados da natureza. Minha
história, porém, transmite a verdade na cadeia de eventos pela qual é
composta”.
Você pode facilmente imaginar que fiquei muito satisfeito com tal
declaração; no entanto, não podia tolerar que ele renovasse seu pesar
com um recital de suas desventuras. Senti a maior vontade de ouvir a
narrativa prometida, em parte por curiosidade e em parte por um forte
desejo de melhorar seu destino, se fazê-lo estivesse ao meu alcance.
Expressei esses sentimentos em minha resposta.
“Agradeço”, respondeu ele, “por sua simpatia, mas é inútil; meu
destino está quase completo. Espero apenas por um evento, e depois
descansarei em paz. Entendo seu sentimento”, continuou ele, percebendo
que eu desejava interrompê-lo, “mas você está enganado, meu amigo, se
assim me permitir chamá-lo; nada pode alterar meu destino: escute minha
história e perceberá quão irrevogavelmente ele está selado”.
Ele me disse, então, que começaria sua narrativa no dia seguinte,
quando eu estivesse desocupado. A promessa me arrancou os mais
calorosos agradecimentos. Resolvi que todas as noites, quando não
estivesse imperativamente ocupado com meus deveres, iria registrar seu
relato feito durante o dia com a maior fidelidade às suas palavras. Se
estivesse muito atribulado, ao menos tomaria notas. Sem dúvida, esse
manuscrito lhe proporcionará o maior prazer: mas para mim, que o
conheço e ouço de seus próprios lábios, com que interesse e simpatia devo
lê-lo no futuro! Mesmo agora, quando dou início à tarefa, sua voz sonora
preenche os meus ouvidos e seus olhos brilhantes me envolvem com toda a
sua doçura melancólica. Vejo sua mão fina erguida em entusiasmo,
enquanto os traços de seu rosto lhe irradiam a alma. A história dele deve
ser estranha e angustiante; terrível a tempestade que envolveu o galante
navio em seu curso e o destruiu – ei-la!
- Palavra de origem grega que pode significar divindade ou demônio.
(N. T.)
CAPÍTULO I

SOU NATURAL DE GENEBRA e minha família é uma das mais distintas naquela
república. Meus ancestrais foram, ao longo de muitos anos, conselheiros e
altos servidores do Estado, e meu pai desempenhou várias funções
públicas com honra e boa reputação. Ele era respeitado por todos os que o
conheciam, tanto por sua integridade como pela atenção incansável
dedicada aos negócios públicos. Ele passou seus dias de juventude
perpetuamente ocupado com assuntos de seu país; assim, várias
circunstâncias impediram um casamento precoce, e foi somente no
declínio da vida que ele se tornou marido e pai de família.
Como as circunstâncias de seu casamento ilustram seu caráter, não
posso deixar de mencioná-las. Um de seus amigos mais íntimos era um
comerciante que, de uma situação próspera, foi levado por inúmeros
infortúnios à pobreza. Esse homem, cujo nome era Beaufort, tinha uma
disposição orgulhosa e inflexível. Não suportava viver na pobreza e no
esquecimento no mesmo país em que anteriormente fora distinguido por
sua posição e magnificência. Ao pagar suas dívidas da maneira mais
honrosa, ele se retirou com a filha para a cidade de Lucerna, onde viveu na
obscuridade e na miséria. Meu pai amava Beaufort com a mais verdadeira
amizade e ficou profundamente triste por sua partida em meio a
circunstâncias tão infelizes. Ele lamentou com amargor o falso orgulho
que levou seu amigo a uma conduta tão pouco digna do carinho que os
unia. Ele não perdeu tempo tentando procurá-lo com a esperança de
convencê-lo a começar de novo por meio de seu crédito e sua assistência.
Beaufort tomara medidas efetivas em busca de se esconder; e dez meses
se passaram até que meu pai descobrisse sua morada. Muito feliz com a
descoberta, ele correu até a casa, situada em uma rua sórdida próximo ao
rio Reuss. Mas quando ele entrou, apenas a execrabilidade e o desespero o
receberam. Beaufort economizara uma quantia muito pequena dos
destroços de sua fortuna, o suficiente para sustentá-lo por uns meses.
Nesse ínterim, ele esperava conseguir um emprego respeitável na casa de
algum comerciante. Como consequência, o período foi marcado pela
inércia; o ócio favoreceu a reflexão e tornou o pesar ainda mais enraizado
e irritante. O prolongamento da situação assumiu o controle de sua mente
a tal ponto que, ao fim de três meses, ele adoeceu, tornando-se incapaz de
qualquer esforço.
Sua filha o tratava com a maior ternura, mas observava com desespero
enquanto o pequeno cabedal deles diminuía com rapidez, sem qualquer
outra perspectiva de apoio. Caroline Beaufort, porém, era dotada de uma
mente incomum, e sua coragem se fortaleceu diante das adversidades. Ela
buscou trabalhos simples, como o de entrançar palha, e por vários meios
ganhava uma ninharia que lhes provia escassamente a sobrevivência.
Vários meses se passaram dessa maneira. O pai piorou, e o tempo
dedicado pela filha ao seu cuidado reduziu ainda mais os meios de
subsistência. No décimo mês, o pai morreu em seus braços, deixando-a
órfã e mendicante. Esse último golpe a venceu; ela estava ajoelhada e
chorando amargamente junto ao caixão de Beaufort quando meu pai entrou
na câmara. Ele surgiu como um espírito protetor para a pobre garota, que
se submeteu a seus cuidados. Após o enterro, ele a levou consigo para
Genebra e a colocou sob a proteção de pessoas de confiança. Dois anos
após esse episódio, Caroline se tornou sua esposa.
A diferença considerável de idade entre meus pais era uma
circunstância que parecia estreitar ainda mais seus laços de afeto. Meu pai
era detentor de grande senso de justiça, que lhe impunha a necessidade de
estimar verdadeiramente antes de amar com abundância. Talvez fosse
decorrência de algum amor frustrado da juventude, de uma descoberta
tardia de que alguém não era digno do amor que lhe dispensara, tornando-
o disposto a atribuir mais valor a quem já provara merecimento. Havia um
misto de gratidão e adoração nas demonstrações de seu apego à minha
mãe, que diferia totalmente do afeto pela idade, pois era inspirado pela
admiração às virtudes dela e pelo desejo de, em certo grau, recompensá-la
pelas tristezas que havia suportado. Isso conferia a ele um comportamento
de inexprimível graça com relação a ela. Tudo era feito para cultivar os
desejos e a conveniência de Caroline. Ele se esforçava para protegê-la, tal
qual um jardineiro resguarda uma flor exótica contra qualquer vento mais
violento, visando cercá-la de tudo o que pudesse suscitar emoções
agradáveis à sua mente suave e benevolente. Sua saúde, e até mesmo a
tranquilidade de seu até então determinado espírito, foi abalada pelo que
ela passou. Durante os dois anos que antecederam o casamento, meu pai
abandonou gradualmente todas as suas funções públicas, e, logo após a
união, ambos partiram em busca do clima agradável da Itália. A mudança
de cenário e o interesse na excursão por aquelas terras de maravilhas
serviram para restaurar a constituição enfraquecida da esposa.
Da Itália, eles visitaram a Alemanha e a França. Eu, o filho mais velho,
nasci em Nápoles e, quando criança, os acompanhava durante suas
caminhadas. Fui filho único por vários anos. Por mais apegados que
estivessem um ao outro, pareciam direcionar reservas inesgotáveis de
afeto, advindo de uma mina de amor, para concedê-lo a mim. As carícias
delicadas de minha mãe e o sorriso de prazer benevolente de meu pai ao
me observar são minhas primeiras lembranças. Eu era o brinquedo e o
ídolo deles, e algo ainda melhor – o filho, uma criatura inocente e indefesa
que o Céu lhes havia concedido para ser educado para o bem, e cujo
destino seria direcionado à alegria ou à infelicidade, a depender da
maneira com que me orientariam. Com profunda consciência do que
deviam à pessoa a quem tinham dado a vida, somada ao espírito carinhoso
que animava a ambos, pode-se imaginar que durante cada hora de minha
infância recebi lições de paciência, caridade e autocontrole, sendo guiado
por um cordão de seda que fazia tudo parecer agradável para mim.
Durante um bom tempo, fui a única preocupação deles. Minha mãe,
porém, desejava muito ter uma menina. Quando eu tinha cerca de cinco
anos, eles fizeram uma viagem para além das fronteiras italianas e
passaram uma semana às margens do lago de Como.7 A disposição
benevolente deles frequentemente os fazia adentrar os chalés dos pobres.
Para minha mãe, isso era mais do que um dever; era uma necessidade, uma
paixão – ante a lembrança de seu sofrimento e de como fora salva – que a
fazia agir como o anjo da guarda dos aflitos. Durante uma de suas
caminhadas, uma cabana pobre no recanto de um vale atraiu a atenção do
casal por seu aspecto desolado, reunindo à sua volta um grupo de crianças
maltrapilhas que eram o rosto da pobreza extrema. Um dia, quando meu
pai foi a Milão sozinho, minha mãe e eu visitamos essa morada, na qual
havia um camponês junto à esposa, abatidos pela dureza do trabalho
enquanto distribuíam uma refeição escassa a cinco crianças famintas.
Entre elas, uma em particular atraiu a atenção de minha mãe; era diferente
das demais. Ao passo que as outras crianças tinham olhos escuros e um
aspecto vulgar, essa era franzina e delicada. Seu cabelo era do tom
dourado mais vivo e, apesar da pobreza de suas roupas, parecia ostentar à
cabeça uma coroa de distinção. Sua sobrancelha era clara e ampla; os
olhos, azuis como um céu sem nuvens, enquanto os lábios e o rosto
expressavam tamanha doçura e sensibilidade que faziam-na parecer de
uma espécie distinta, um ser enviado pelo Céu, detendo um selo celestial
em todas as suas feições.
A camponesa, percebendo que a minha mãe fitava aquela garota
adorável com maravilhamento e admiração, contou rapidamente sua
história. Não era sua filha, mas de um nobre milanês. A mãe era alemã e
morrera ao dar à luz. A criança, então, fora confiada ao casal de
camponeses para que fosse amamentada. Na época, eles se encontravam
em melhor situação; recentemente casados, viviam apenas com o
primogênito recém-nascido. O pai da menina era um dentre os italianos
criados sob a memória das antigas glórias da Itália – um dos schiavi ognor
frementi que lutavam pela liberdade de seu país. Ele se tornara vítima de
sua fraqueza. Se havia morrido ou se continuava preso nas masmorras da
Áustria, não se sabia. Sua propriedade fora confiscada e sua filha tornou-
se uma órfã desprovida de recursos. Ela permaneceu com os pais adotivos,
florescendo na habitação precária como a mais bela rosa em um jardim de
folhas escuras.
Quando meu pai voltou de Milão, encontrou-a brincando comigo no
corredor de nosso palacete. Era uma criança mais bonita do que um
querubim, uma criatura de aparência iluminada cuja forma e cujos
movimentos eram mais leves do que o antílope das colinas. A presença foi
logo explicada. Com a permissão dele, minha mãe pediu aos guardiões
rústicos que lhe entregassem a guarda da menina. Eles eram apegados à
doce órfã; a presença dela era uma bênção para a família, mas seria injusto
mantê-la na pobreza quando a Providência lhe conferia uma proteção tão
poderosa. Eles consultaram o padre da aldeia, e como resultado Elizabeth
Lavenza passou a viver na casa dos meus pais. Mais do que irmã, ela se
tornou a bela e adorada companheira de todas as minhas ocupações e todos
os meus júbilos.
Todos amavam Elizabeth. O vínculo apaixonado e quase reverente com
o qual todos a contemplavam tornou-se, à medida que eu o compartilhava,
meu orgulho e alegria. Na noite anterior à sua vinda para minha casa,
minha mãe dissera divertidamente: “Tenho um belo presente para meu
Victor, e amanhã ele o terá”. No dia seguinte, quando ela me apresentou
Elizabeth como o presente prometido, eu, com seriedade infantil,
interpretei as palavras literalmente e considerei Elizabeth minha – minha
para proteger, amar e cuidar. Recebia como meus todos os elogios
concedidos a ela. Referíamo-nos um ao outro como primos. Nenhuma
palavra ou expressão dava conta do tipo de relação que ela me dedicava –
era mais que minha irmã, unicamente minha até a morte.
- À época em que foi escrito Frankenstein, a região que inclui o lago de
Como, hoje na Itália, pertencia aos austríacos. (N. E.)
CAPÍTULO II

FOMOS CRIADOS JUNTOS; nossa diferença de idade não chegava a um ano.


Não é preciso dizer que éramos estranhos a qualquer espécie de desunião
ou disputa. A harmonia era a alma de nossa companhia, e a diversidade e o
contraste que subsistiam em nossas personalidades nos aproximavam
mais. Elizabeth tinha uma disposição mais calma e concentrada; já eu,
com todo o meu ardor, tornei-me mais intenso e profundamente
apaixonado pela busca do conhecimento. Ela ocupou-se das criações
etéreas dos poetas. Ela encontrou amplas possibilidades de admiração e
prazer nos cenários majestosos e maravilhosos que cercavam nossa casa
suíça – as formas sublimes das montanhas, as mudanças das estações, as
tempestades, a calmaria, o silêncio do inverno e a vida agitada dos verões
alpinos. Ao passo que minha companheira contemplava com um espírito
sério e satisfeito a aparência magnífica das coisas, eu me deliciava em
investigar as causas. Para mim, o mundo era um segredo que eu aspirava
desvendar. A curiosidade, a pesquisa em prol da apreensão das leis ocultas
da natureza, e a alegria, semelhante à do arrebatamento, estão entre as
primeiras sensações de que me lembro.
Quando nasceu o segundo filho, sete anos mais novo do que eu, meus
pais desistiram completamente da vida errante e se estabeleceram em seu
país natal. Possuíamos uma casa em Genebra e uma casa de campo em
Belrive, à margem leste do lago e à distância de pouco mais de cinco
quilômetros da cidade. Residíamos principalmente nesta última, e a vida
de meus pais transcorreu em considerável reclusão. Era típico do meu
temperamento evitar multidões e me apegar fervorosamente a poucas
pessoas. Logo, tornei-me indiferente aos meus colegas de classe em geral,
criando forte amizade com apenas um deles. Henry Clerval era filho de um
comerciante de Genebra. Era um garoto de talento e imaginação
singulares, que amava aventuras, atividades que exigiam esforço e até o
perigo por si só. Era também leitor ávido de livros de cavalaria e romance.
Clerval compunha canções heroicas e escrevia muitas histórias sobre
encantamentos e aventuras de cavaleiros. Ele tentou nos fazer encenar
peças teatrais e participar de bailes de máscaras, nos quais os personagens
eram inspirados nos heróis de Roncesvalles, da Távola Redonda do Rei
Arthur, e nos cavaleiros que derramaram seu sangue à procura de resgatar
o Santo Sepulcro das mãos dos infiéis.
É improvável que algum ser humano tenha tido infância mais feliz do
que a minha. Meus pais dispunham do espírito da bondade e da
indulgência, e sentíamos que eles não governavam nosso destino com
tirania, de acordo com seus caprichos, mas sim eram agentes e criadores
de todos os prazeres de que desfrutávamos. Quando me misturei a outras
famílias, percebi com bastante distinção o quanto minha sorte era peculiar,
e a gratidão ajudou no desenvolvimento do amor filial.
Às vezes, meu temperamento era violento, e minhas paixões,
veementes; todavia, eles não se direcionavam a vontades imaturas, e sim
rumo ao desejo ardente de aprender. Esse anseio, no entanto, não era
indiscriminado; confesso que a estrutura das línguas, o código dos
governos e a política de vários Estados não exerciam atração sobre mim.
Eu desejava aprender sobre os segredos do céu e da terra; e se o que me
ocupava era a substância exterior das coisas ou o espírito interno da
natureza somado à alma misteriosa do homem, minhas investigações ainda
se dirigiam ao metafísico, ou, em seu sentido mais elevado, aos segredos
físicos do mundo.
Enquanto isso, Clerval se ocupava, por assim dizer, das relações morais
das coisas; seus temas eram o palco agitado da vida, as virtudes dos heróis
e as ações dos homens. Logo, era seu sonho e sua esperança aproximar o
próprio nome daqueles eternizados na História como os benfeitores
galantes e aventureiros de nossa espécie. A alma santa de Elizabeth, por
sua vez, brilhava tal qual uma lâmpada de santuário em nossa pacífica
casa. A simpatia dela era contagiante; seu sorriso, sua voz suave e a
doçura em seus olhos celestiais estavam sempre lá para nos abençoar e
entusiasmar. Ela era o espírito vivo do amor que nos apaziguava e atraía.
Se eu ficava emburrado em meu escritório, rude devido ao ardor da minha
natureza, ela estava lá para me impelir à imagem de sua própria gentileza.
E o que seria de Clerval – poderia o mal enraizar-se em seu espírito nobre?
–, embora ele possa não ter sido perfeitamente humano, tão profundo em
sua generosidade e tão cheio de ternura em meio à sua paixão pela
exploração aventureira, se ela não tivesse lhe revelado a verdadeira beleza
da beneficência, fazendo do bem o fim e o objetivo de sua ambição
crescente?
Sinto prazer extraordinário ao relembrar esses anos que antecederam os
infortúnios que mancharam minha mente e transformaram suas visões
brilhantes de ampla utilidade em reflexos soturnos e limitados sobre o eu.
Além disso, ao desenhar o panorama de meus dias primevos, também
registro os eventos que me conduziram insensivelmente à tristeza
profunda: porque, ao perceber o nascimento daquela paixão, que mais
tarde governou meu destino, descubro-a como um rio surgindo na
montanha, de fontes ignóbeis e quase esquecidas, que se avolumou aos
poucos e se tornou a torrente que, em seu curso, varreu todas as minhas
esperanças e alegrias.
A filosofia da natureza foi a esfera que regulou meu destino. Portanto,
desejo nesta narração expor os fatos que levaram à minha predileção por
essa ciência. Quando eu tinha treze anos, fomos a uma festa nas termas
próximo a Thonon: a inclemência do tempo nos obrigou a permanecer um
dia confinados na estalagem. Nesse lugar, encontrei por acaso um volume
das obras de Cornelius Agrippa. Abri o livro com apatia; porém, a teoria
que ele tentava demonstrar, aliada aos fatos maravilhosos ali relatados,
transformaram esse sentimento em entusiasmo. Uma nova luz pareceu
surgir em minha mente; pulando de alegria, comuniquei minha descoberta
ao meu pai. Ele olhou descuidadamente para o título do meu livro e disse:
– Ah! Cornelius Agrippa! Meu querido Victor, não perca seu tempo com
isso; é um lixo triste.
Se, em vez de tal observação, meu pai tivesse se empenhado em me
explicar que as teorias de Agrippa haviam sido totalmente desmentidas e
que um sistema científico moderno fora introduzido, ostentando poderes
muito maiores do que os antigos devido à sua aplicabilidade real e prática,
eu certamente teria abandonado Agrippa e satisfeito minha imaginação,
aquecida como estava, voltando com maior entusiasmo aos meus estudos
anteriores. Possivelmente, minhas ideias nunca teriam recebido o impulso
fatal que culminou na minha ruína. Porém, o olhar superficial que meu pai
dispensou ao tomo me assegurou de que ele estava familiarizado com seu
conteúdo; assim, continuei a lê-lo com tanto mais avidez.
Quando voltamos para casa, meu primeiro cuidado foi adquirir todas as
obras desse autor e, posteriormente, de Paracelso e Alberto Magno. Li e
estudei as fantasias selvagens desses escritores com prazer; eles me
pareciam tesouros conhecidos por poucos além de mim. Sempre me
descrevi como alguém com desejo ardente de penetrar nos segredos da
natureza. Apesar do trabalho intenso e das maravilhosas descobertas dos
filósofos modernos, sempre saía descontente e insatisfeito dos meus
estudos. Diz-se de Sir Isaac Newton que declarou se sentir como uma
criança pegando conchas no vasto e inexplorado oceano da verdade. Para
minha apreensão infantil, seus sucessores em cada ramo da filosofia
natural com o qual estava familiarizado também me pareceram pueris
nessa mesma busca.
O camponês iletrado vê os elementos ao seu redor e se familiariza com
seu uso prático. O filósofo mais instruído, por sua vez, sabe um pouco
mais: ele revela em parte o rosto da natureza, mas seus traços imortais
ainda se mantêm uma maravilha e um mistério. Ele pode dissecar,
anatomizar e atribuir nomes; contudo, não pode se aprofundar em uma
causa final, pois as causas em seus graus secundários e terciários ainda lhe
são totalmente desconhecidas. Contemplei as fortificações e os
impedimentos que pareciam tolher os seres humanos de entrar na cidadela
da natureza, e, na minha ignorância, os repudiei.
Mas aqui estavam os livros e os homens que penetraram mais fundo e
sabiam mais. Aceitei a palavra deles a respeito de tudo o que afirmavam e
me tornei discípulo. Pode parecer estranho que isso ocorra no século
XVIII, mas, enquanto seguia a rotina da educação nas escolas de Genebra,
eu era, em grande parte, autodidata em relação aos meus estudos
prediletos.
Meu pai não era um homem da ciência, de modo que tive de lutar com
uma cegueira infantil somada à sede de conhecimento de um aluno. Sob a
orientação de meus novos preceptores, entreguei-me com a maior
diligência à busca da pedra filosofal e do elixir da vida. O segundo, porém,
obteve minha atenção total. A riqueza era uma finalidade inferior, afinal,
que glória alcançaria se pudesse banir a doença da estrutura humana e
tornar o homem invulnerável à morte que não fosse violenta!
Essas não eram as minhas únicas visões. A criação de fantasmas ou
demônios era uma promessa concedida por meus autores favoritos, cujo
cumprimento eu mais desejava; e se meus encantamentos eram
malsucedidos, atribuía o fracasso à minha própria inexperiência do que à
falta de habilidade ou fidelidade de meus instrutores. E assim, durante
certo tempo, fui ocupado por sistemas falhos, misturando de maneira
destemida mil teorias contraditórias e debatendo-me desesperadamente
em um conhecimento bem vário, guiado por uma imaginação cálida e um
raciocínio infantil, até que um acidente mudou outra vez minhas ideias de
então.
Por volta dos meus quinze anos, nos retiramos para nossa casa nas
imediações de Belrive e testemunhamos uma tempestade violenta e
terrível. Ela avançou por trás das montanhas de Jura, e um trovão explodiu
de uma só vez com um ruído assustador em múltiplos quadrantes dos céus.
Durante a tempestade, fiquei observando seu progresso com curiosidade e
prazer.
Ao me posicionar próximo à porta, de repente vi uma língua de fogo
saindo de um carvalho velho e bonito a cerca de vinte metros de nossa
casa; assim que a luz deslumbrante foi embora, o carvalho desapareceu e
nada restou além de um toco. Na manhã seguinte, quando nos
aproximamos dele, encontramos a árvore quebrada de maneira singular.
Ela não fora fragmentada pelo choque, mas reduzida por completo a tiras
delgadas de madeira. Jamais vira algo tão inteiramente destruído.
Antes desse episódio, não conhecia as leis mais óbvias da eletricidade.
Nessa ocasião, um grande pesquisador de filosofia natural estava conosco
e, empolgado com a catástrofe, começou a explicar uma teoria que
formara sobre a questão da eletricidade e do galvanismo, que era ao
mesmo tempo nova e surpreendente para mim. Tudo o que ele dizia
lançava às sombras Cornelius Agrippa, Alberto Magno e Paracelso, então
senhores da minha imaginação. A derrubada desses homens me
desmotivou a prosseguir com meus estudos habituais. Pareceu-me que
nada poderia ser desvendado. Tudo o que por tanto tempo chamou minha
atenção de repente se tornou desprezível. Por um desses caprichos aos
quais talvez estejamos mais sujeitos na juventude, desisti de uma vez de
minhas ocupações anteriores, encarei a história natural e toda a sua prole
como invenções deformadas e abortadas e passei a alimentar desdém por
essa ciência que nunca poderia adentrar o limiar do conhecimento real.
Nesse estado de espírito, dediquei-me à matemática e aos ramos de estudo
pertencentes à ciência de saberes erigidos sobre fundamentos seguros e
dignos de minha consideração.
É desse modo estranho que nossas almas são construídas e estamos
sujeitos, por frágeis ligamentos, à prosperidade ou à ruína. Quando olho
para trás, sinto que essa mudança quase milagrosa de inclinação e vontade
foi uma sugestão imediata do meu anjo da guarda – o último esforço feito
pelo espírito de preservação a fim de evitar a tempestade que ainda
pairava no alto, pronta para me atingir. Sua vitória me rendeu uma
tranquilidade incomum e alegre, conquistada após o abandono de meus
estudos precedentes e atormentadores. Assim, aprendi a associar aquelas
pesquisas ao mal, enquanto seu desprezo significava felicidade.
Foi um esforço notável do espírito do bem, mas ineficaz. A potência do
destino e suas leis imutáveis decretaram minha destruição total e terrível.
CAPÍTULO III

AO COMPLETAR DEZESSETE ANOS, meus pais decidiram que eu deveria estudar


na Universidade de Ingolstadt.8 Até então, eu havia frequentado apenas as
escolas de Genebra, mas meu pai achou necessário, para a conclusão da
minha educação, que eu conhecesse outros costumes que não os do meu
país de origem. Minha partida foi marcada para logo; mas, antes que esse
dia chegasse, ocorreu o primeiro infortúnio da minha vida – um presságio,
por assim dizer, da minha infelicidade futura.
Elizabeth contraiu escarlatina; a doença era grave e ela estava em
grande perigo. Durante a enfermidade, usaram-se muitos argumentos para
persuadir minha mãe de não tratá-la pessoalmente. A princípio, ela cedeu
aos nossos pedidos; porém, quando soube que a vida de sua favorita estava
ameaçada, não conseguiu mais controlar a ansiedade. Ela cuidou da garota,
e suas atenções triunfaram sobre a malignidade da doença. Elizabeth foi
salva, mas as consequências dessa imprudência foram fatais para sua
cuidadora. No terceiro dia, minha mãe adoeceu; sua febre foi
acompanhada por sintomas alarmantes, fazendo com que os médicos
prognosticassem o pior. No leito de morte, a coragem e a bondade não
abandonaram a melhor dentre as mulheres. Ela uniu minhas mãos às de
Elizabeth.
– Minhas crianças, minhas esperanças mais firmes de felicidade futura
foram colocadas na perspectiva de sua união. Essa expectativa será agora o
consolo de vosso pai. Elizabeth, meu amor, você deve tomar meu lugar
junto aos meus filhos mais novos. Sinto muito! Lamento ser tirada de
você; e, feliz e amada como fui, é difícil deixar todos vocês. Mas tais
pensamentos não me convêm; esforçar-me-ei para resignar-me
alegremente à morte e me entregarei à esperança de vê-los em outro
mundo.
Ela morreu serenamente, e sua tez expressava afeto até na morte. Não
preciso descrever os sentimentos daqueles cujos queridos laços foram
rasgados pelo mais irreparável mal; na alma, estava o vazio; no rosto, o
desespero. A mente não conseguia se convencer de que ela, a quem víamos
todos os dias e cuja própria existência parecia parte da nossa, tinha partido
para sempre, que o brilho de seus olhos amados estava extinto, e o som de
sua voz, tão familiar e querido, fora abafado para nunca mais ser ouvido.
Esses foram nossos sentimentos nos primeiros dias. Contudo, quando o
lapso de tempo provou a extensão de nosso infortúnio, teve início a
amargura real do sofrimento. No entanto, de quem essa mão cruel nunca
afastou um ente querido? E por que devo descrever uma tristeza que todos
sentiram e devem sentir? Chega um momento em que a dor é mais
indulgência do que necessidade, e o sorriso que brinca nos lábios, embora
apto a ser considerado um sacrilégio, não é banido. Minha mãe estava
morta, mas ainda tínhamos deveres a cumprir, precisávamos dar sequência
a nosso curso e nos considerar afortunados por permanecermos vivos.
Minha partida para Ingolstadt, adiada em detrimento desses eventos, foi
novamente decidida. Obtive de meu pai um prazo de algumas semanas.
Pareceu-me sacrilégio abandonar tão cedo a tranquilidade, semelhante à
morte, de uma casa do luto, em direção ao olho do furacão da vida. A
tristeza era algo novo para mim. Eu não estava disposto a deixar de ver
aqueles que me restaram; e, acima de tudo, desejava ver minha doce
Elizabeth um pouco mais consolada.
Ela ocultava sua dor e se esforçava para consolar a todos. Elizabeth
olhava com firmeza para a vida e assumia seus deveres com coragem e
zelo. Dedicou-se àqueles a quem havia aprendido a chamar de tio e
primos. Nunca foi tão encantadora como naquela época, quando
recuperava a luz de seus sorrisos e a despejava sobre nós. Ela se esquecia
até mesmo da própria dor em seus esforços para nos fazer esquecer da
nossa.
Chegou, então, o dia de minha partida. Clerval passou a última noite
conosco. Ele tentara convencer seu pai a permitir que me acompanhasse e
se tornasse meu colega de escola; mas foi em vão. Seu pai era um
comerciante de mente fechada e enxergou ociosidade e ruína nas
aspirações e ambições do filho. Henry sentiu profundamente a adversidade
de ser privado de uma educação liberal. Ele falou pouco, mas, quando
falou, li uma determinação contida, mas sólida, em seus olhos ardentes e
em sua expressão animada: ele não se acorrentaria às minúcias miseráveis
do comércio.
Ficamos acordados até tarde. Não conseguíamos nos afastar um do
outro, nem nos convencer a dizer a palavra “Adeus!”. Retiramo-nos sob o
pretexto de descansar, cada um imaginando que enganara o outro; ao
amanhecer, desci à carruagem que me levaria embora. Todos estavam lá:
meu pai para me abençoar, Clerval para apertar minha mão mais uma vez,
e minha Elizabeth, tanto para renovar seus pedidos de que lhe escrevesse
com frequência como também para conceder suas últimas atenções
femininas ao companheiro de brincadeiras e amigo.
Eu me atirei dentro da carruagem que me levaria embora e me entreguei
às mais melancólicas reflexões. Eu, que já fora cercado por companheiros
amigáveis e estava continuamente empenhado em proporcionar prazer
mútuo, agora estava sozinho. Na universidade, deveria fazer novos amigos
e ser meu próprio protetor. Minha vida até então fora notavelmente isolada
e doméstica, e isso me suscitava repugnância invencível a novos rostos. Eu
amava meus irmãos, Elizabeth e Clerval; esses eram “velhos rostos
familiares”, e eu me considerava mesmo inadequado para a companhia de
estranhos. Essas foram as minhas reflexões ao iniciar a jornada;
entretanto, à medida que prossegui, meus ânimos e minhas esperanças
aumentaram. Eu desejava inflamadamente a aquisição de conhecimento.
Muitas vezes, em casa, considerava difícil permanecer durante a juventude
preso a um só lugar; eu desejava conhecer o mundo e assumir minha
posição junto aos demais seres humanos. Agora, meus desejos estavam
sendo satisfeitos e seria tolice se arrepender.
Tive tempo suficiente para essas e muitas outras reflexões durante
minha viagem a Ingolstadt, que foi longa e cansativa. Por fim, o alto
campanário branco da cidade encontrou meus olhos. Desci e fui conduzido
ao meu apartamento solitário, para passar a noite como quisesse.
Na manhã seguinte, entreguei minhas cartas de apresentação e visitei
alguns dos principais professores. O acaso – ou melhor, a influência
maligna do Anjo da Destruição, que exerceu poder sobre mim desde o
momento em que virei meus passos relutantes da porta do meu pai – me
levou primeiro ao sr. Krempe, professor de filosofia natural. Era um
homem rude, mas profundamente enraizado nos segredos de sua ciência.
Ele me direcionou várias perguntas acerca do meu progresso nos
diferentes ramos da ciência pertencentes à filosofia natural.
Descuidadamente e, em parte, com certo desdém, respondi mencionando
os nomes dos meus alquimistas como os principais autores que havia
estudado. O professor me encarou e disse:
– Você de fato gastou seu tempo estudando essas bobagens?
Respondi afirmativamente.
– Todo minuto – continuou o sr. Krempe com fervor – e todo instante
que você desperdiçou nesses livros estão completamente perdidos. Você
sobrecarregou sua memória com sistemas falhos e nomes inúteis. Meu
Deus! Em que terra do deserto você viveu, onde ninguém teve a gentileza
de informá-lo de que essas fantasias que com tamanha avidez absorveu
têm mil anos e são tão mofadas quanto antiquadas? Eu não esperava, nesta
era científica e esclarecida, encontrar um discípulo de Alberto Magno e de
Paracelso. Meu caro senhor, você deve recomeçar seus estudos do zero.
Dito isso, ele se afastou e escreveu uma lista com vários livros sobre
filosofia natural que desejava que eu adquirisse; antes de me dispensar,
mencionou que, no início da semana seguinte, ele pretendia iniciar uma
série de aulas sobre filosofia da natureza em suas relações gerais, e que o
sr. Waldman, um colega professor, apresentaria aulas sobre química nos
dias em que ele não estaria presente.
Não voltei decepcionado para casa, pois disse que há muito considerava
inúteis os autores que o professor reprovava; porém, de qualquer forma,
não me senti nem um pouco inclinado a retomar esses estudos. O sr.
Krempe era um homenzinho atarracado de voz rouca e tez repulsiva; logo,
o professor não me fisgou em favor de suas pesquisas. De um modo
demasiadamente filosófico, refleti sobre as conclusões a que chegara há
alguns anos. Quando criança, não me contentara com os resultados
prometidos pelos professores modernos de ciências naturais. Com uma
confusão de ideias que só podiam ser atribuídas à minha juventude
extrema e à falta de um guia para os assuntos em questão, eu havia
retrocedido os passos do conhecimento no caminho do tempo, trocando as
descobertas de pesquisadores recentes pelos sonhos de alquimistas
esquecidos. Além disso, eu desprezava os usos da filosofia natural
moderna. Era muito diferente quando os mestres da ciência buscavam
imortalidade e poder; tais ambições, embora fúteis, eram grandiosas.
Agora o cenário estava mudado. O interesse do pesquisador parecia
limitar-se à aniquilação das visões nas quais meu interesse pela ciência se
baseara. Fui obrigado a trocar quimeras de grandeza sem limites por
realidades de pouco valor.
Tais foram minhas reflexões durante os primeiros dois ou três dias de
residência em Ingolstadt, dedicados em especial a conhecer as localidades
e seus principais moradores. Todavia, no início da semana seguinte, pensei
nas informações que o sr. Krempe me dera sobre as aulas. E, embora não
pudesse consentir em ouvir aquele sujeito vaidoso proferindo sentenças no
púlpito, lembrei do que ele havia dito sobre o sr. Waldman, a quem não
tinha visto até então por estar fora da cidade.
Em parte por curiosidade e em parte pelo ócio, entrei na sala de aula, e
pouco depois o sr. Waldman também o fez. Esse professor era muito
diferente de seu colega. Ele aparentava ter cerca de cinquenta anos e
demonstrava um aspecto benevolente. Alguns cabelos grisalhos cobriam
suas têmporas, mas aqueles na parte de trás da cabeça eram quase pretos.
Era um homem de estatura baixa, mas notavelmente ereta; e sua voz era a
mais doce que já ouvi. Ele iniciou sua aula recapitulando a história da
química e as numerosas melhorias feitas por diferentes homens de
conhecimento, pronunciando com devoção os nomes dos mais ilustres
descobridores. Em seguida, apresentou uma visão superficial do estado
atual da ciência e explicou muitos de seus jargões mais básicos. Depois de
fazer algumas experiências preparatórias, ele concluiu a aula com um
discurso sobre a química moderna, cujos termos nunca esquecerei:
– Os antigos professores dessa ciência prometeram impossibilidades e
nada realizaram. Os mestres modernos prometem muito pouco; eles sabem
que os metais não podem ser transmutados e que o elixir da vida é uma
quimera. Mas esses filósofos, cujas mãos parecem feitas apenas para
mexer na sujeira, com seus olhos debruçados sobre o microscópio ou o
cadinho, de fato realizam milagres. Eles penetram nos recessos da
natureza e noticiam como ela trabalha em seus esconderijos. Eles almejam
os céus; descobriram como o sangue circula e a natureza do ar que
respiramos. Eles adquiriram poderes novos e quase ilimitados; podem
comandar os trovões do céu, imitar o terremoto e até zombar do mundo
invisível com suas próprias sombras.
Essas foram as palavras do professor – ou, se me permite dizer, as
palavras do destino, enunciadas para me destruir. Enquanto ele prosseguia,
eu sentia como se minha alma estivesse lutando contra um inimigo
palpável; uma a uma, várias peças foram deslocadas, formando o
mecanismo do meu ser. Logo, minha mente foi preenchida por um
pensamento, uma concepção, um propósito.
– Tanta coisa foi feita! – exclamou a alma de Frankenstein. – E farei
muito mais: seguindo os passos já trilhados, vou abrir um novo caminho,
explorar poderes desconhecidos e revelar ao mundo os mistérios mais
profundos da criação.
Não consegui fechar os olhos naquela noite. Meu ser interno estava em
estado de insurreição e turbulência; senti que a ordem surgiria daí, mas
não tinha poder para produzi-la. Aos poucos, depois do amanhecer, o sono
chegou. Quando acordei, os pensamentos do dia anterior soaram como um
sonho. Restava apenas uma resolução para retomar meus estudos antigos e
me dedicar a uma ciência para a qual acreditava possuir um talento
intrínseco. No mesmo dia, visitei o sr. Waldman. Suas maneiras na
intimidade eram ainda mais brandas e chamativas do que em público;
afinal, a dignidade de expressão manifesta durante a aula fora substituída
em casa por um semblante afável e bondoso. Ofereci-lhe praticamente o
mesmo relato sobre minhas atividades anteriores que eu dera ao seu colega
professor. Ele ouviu com atenção a pequena narração a respeito de meus
estudos e sorriu ante a menção a Cornelius Agrippa e Paracelso, mas sem
exibir o desprezo do sr. Krempe.
– Esses foram homens de zelo incansável a quem os filósofos modernos
devem a maior parte dos fundamentos de seu conhecimento – ele disse. –
Eles nos deixaram a tarefa mais fácil, de renomear e arranjar novas
classificações aos fatos que, em grande parte, eles trouxeram à luz. Os
trabalhos de homens sábios, ainda que direcionados de maneira errônea,
dificilmente representam uma desvantagem palpável para a humanidade.
Ouvi sua declaração, proferida sem qualquer presunção ou afetação, e
acrescentei que a aula acabara com meus preconceitos contra os químicos
modernos; expressei-me em termos comedidos, com a modéstia e a
deferência próprias de um jovem para com seu instrutor, sem deixar
escapar o entusiasmo que instigava os trabalhos que eu almejava executar.
Pedi, então, seu conselho sobre os livros que deveria adquirir.
– Estou feliz – anunciou o sr. Waldman – por ter conquistado um
discípulo; e se sua aplicação for igual à sua capacidade, não tenho dúvidas
de que obterá sucesso. Química é o ramo da filosofia natural em que
podem ser conduzidas as melhorias mais expressivas; é por isso que fiz
dela meu campo de estudo específico. Porém, não negligenciei os outros
ramos da ciência. Um químico seria muito triste se atendesse apenas a
essa área do conhecimento humano. Se o seu desejo é tornar-se realmente
um homem da ciência, e não apenas um experimentalista mesquinho,
recomendo que se aplique a todos os ramos da filosofia natural, incluindo
a matemática.
Ele me levou ao seu laboratório e falou sobre os usos de várias
máquinas, instruindo-me sobre o que deveria adquirir e prometendo-me o
uso de suas próprias quando eu alcançasse um nível avançado o suficiente
para não as estragar. Ele também me entregou a lista de livros que eu havia
solicitado, e então me despedi.
Assim terminou aquele dia memorável: o dia que determinou meu
futuro.
- Instituição de ensino fundada em 1472, situada na Alemanha. A
Universidade encerrou suas atividades em 1800. (N. E.)
CAPÍTULO IV

APARTIR DAQUELE DIA, a filosofia da natureza, e particularmente a química,


tornou-se minha ocupação quase exclusiva. Li com entusiasmo as obras
dos pesquisadores modernos sobre as referidas áreas, tão cheias de
genialidade e discernimento. Participei de palestras e cultivei relações
com cientistas da universidade, encontrando até no sr. Krempe grande
quantidade de bom senso e informações reais – associados, é verdade, a
uma fisionomia e maneiras repulsivas, mas nem por isso menos valiosos.
No sr. Waldman, encontrei um amigo de verdade. Sua gentileza nunca fora
afetada pelo dogmatismo, e suas instruções eram dadas com ar de
honestidade e boa natureza, que exilavam qualquer ideia de pedantismo.
De mil maneiras, ele facilitou o caminho do conhecimento para mim e
tornou mais claras e fáceis para minha apreensão aquelas perguntas
obscuras. Minha aplicação foi a princípio flutuante e incerta, ganhando
força à medida que prossegui. Logo me tornei tão apaixonado e ávido que
as estrelas desapareciam frequentemente à luz da manhã enquanto eu
ainda estava ocupado em meu laboratório.
Diante de tamanha aplicação, é fácil conceber a rapidez de meu
progresso. Minha exaltação espantava os colegas enquanto minha
proficiência atraía a atenção dos mestres. O professor Krempe com
frequência me perguntava, com um sorriso malicioso, “como estava
Cornelius Agrippa”, enquanto o sr. Waldman expressava o mais sincero
júbilo pelo meu desempenho. Dois anos se passaram dessa maneira,
durante os quais não visitei Genebra, mas estive lançado, de coração e
alma, à procura de algumas das descobertas que intentava fazer. Ninguém
é capaz de compreender as tentações da ciência senão aqueles que as
experimentaram. Em estudos de outra natureza, você não vai além dos
outros que chegaram antes de você, mas em uma busca científica há
espaço contínuo para descobertas. Uma mente de capacidade moderada,
que se dedica com afinco a um estudo, deve infalivelmente alcançar
notável proficiência. Eu melhorei tão sensivelmente nas minhas
investigações que, ao final de dois anos, fiz descobertas para o
aprimoramento de alguns instrumentos químicos, o que me fez conquistar
enorme estima e admiração na universidade. Quando cheguei a esse ponto
e me familiarizei tanto com a teoria quanto com a prática da filosofia da
natureza, percebi que as lições dos professores de Ingolstadt já não me
ofereciam mais quaisquer avanços. Pensei, então, em retornar a meus
amigos e à minha cidade natal, mas um incidente prolongou minha
estadia.
Um dos fenômenos que atraiu minha atenção de maneira peculiar foi o
da estrutura do corpo humano e, também, de qualquer animal dotado de
vida. Eu sempre me perguntava: qual era a origem do princípio da vida?
Era uma pergunta ousada, repleta de mistério; todavia, quantas coisas já
estivemos à beira de descobrir e, por covardia ou descuido, restringimos
nossas investigações? Ponderei sobre as circunstâncias e, então, decidi me
dedicar especialmente aos ramos da filosofia natural relacionados à
fisiologia. Se não estivesse animado por um entusiasmo quase
sobrenatural, minha aplicação ao estudo teria sido cansativa e quase
intolerável. Para examinar as causas da vida, precisamos primeiro recorrer
à morte. Eu me familiarizara com a ciência da anatomia, mas não era
suficiente; precisava também observar a decadência natural e a corrupção
do corpo humano. Na minha formação, meu pai tomou as maiores
precauções para que minha mente não fosse perturbada por horrores
sobrenaturais. Eu não me lembro de já ter tremido ao ouvir uma história
de superstição, ou de temer a aparição de um espírito. A escuridão não
tinha efeito sobre minha fantasia, e um cemitério para mim era apenas o
receptáculo de corpos privados de vida, que, antes dotados de beleza e
força, agora eram alimento para os vermes. Fui levado a examinar a causa
e o progresso dessa decadência, passando dias e noites em jazigos e casas
funerárias. Minha atenção concentrou-se nas deteriorações mais
insuportáveis à delicadeza dos sentimentos humanos. Vi como a forma do
homem era degradada e desperdiçada; vi a corrupção da morte pôr fim à
face florescente da vida; vi como o verme herda as maravilhas do olho e
do cérebro. Examinei e analisei todas as causalidades na mudança da vida
para a morte e da morte para a vida até que, no meio dessa escuridão, uma
luz repentina me invadiu – uma luz tão brilhante e simples que, ao mesmo
tempo que me sentia tonto pela imensidão da perspectiva que ela ilustrava,
me surpreendia com o fato de que, entre tantos gênios que haviam dirigido
suas investigações para a mesma ciência, eu fora designado para descobrir
tão surpreendente segredo.
Lembre-se: não estou relatando a visão de um louco. Tudo o que afirmo
é tão verdadeiro quanto o sol que brilha no céu. Algum milagre pode ter
produzido aquilo, mas os estágios da descoberta foram distintos e
prováveis. Após dias e noites de trabalho intenso e fadiga, consegui
descobrir a causa da geração e da vida. Mais ainda: tornei-me capaz de
animar a matéria sem vida.
O espanto que experimentei a respeito dessa descoberta logo deu lugar
ao deleite e ao êxtase. Depois de tanto tempo gasto em esforço doloroso,
alcançara o ápice dos meus desejos e consumara a mais gratificante das
minhas labutas. Entretanto, a descoberta era tão enorme e avassaladora
que todos os passos que me conduziram progressivamente até ela foram
obliterados, restando apenas seu resultado para minha contemplação. O
que havia sido o estudo e o desejo dos homens mais sábios desde a criação
do mundo chegara ao meu alcance. Não que, como em um passe de
mágica, tudo tenha se aberto para mim de uma só vez: as informações que
obtive foram conquistadas com um trabalho zeloso cujos avanços
apontavam em direção ao objeto de pesquisa em vez de exibi-lo à minha
disposição. Eu era como o árabe que, enterrado com os mortos, encontrou
uma passagem para a vida mediante o auxílio de uma luz cintilante e,
aparentemente, ineficaz.
Percebo pela sua ansiedade e pela esperança em seus olhos que você,
meu amigo, espera ser informado sobre o segredo com o qual estou
familiarizado. Isso não pode acontecer; ouça com paciência até o fim da
minha história, e você entenderá facilmente a minha reserva quanto a esse
assunto. Não vou guiá-lo, desprotegido e audacioso como fui naquela
época, à sua destruição e infelicidade extrema. Aprenda comigo, se não
pelos meus preceitos, pelo menos pelo meu exemplo, quão perigosa é a
aquisição de conhecimento e quão feliz é o homem que acredita que sua
cidade natal é o mundo e não aspira se tornar maior do que sua natureza
permite.
Quando encontrei tal poder, tão espantoso em minhas mãos, hesitei
muito sobre a maneira de empregá-lo. Embora eu possuísse a capacidade
de conceder animação, preparar uma moldura para sua recepção, com
todas as suas complexidades de fibras, músculos e veias, continuava sendo
um trabalho de dificuldade e dedicação inconcebíveis. A princípio, duvidei
se deveria arriscar a criação de um ser como eu, ou algo de estrutura mais
simples; porém, minha imaginação foi instigada demais pelo meu
primeiro sucesso para que eu duvidasse de minha capacidade de dar vida a
um animal tão complexo e maravilhoso quanto o homem. Os materiais à
minha disposição não pareciam adequados àquela tarefa tão árdua, mas eu
não duvidava de que seria bem-sucedido. Eu me preparei para uma
infinidade de reveses; minhas operações podiam se tornar incessantemente
confusas, e meu trabalho, imperfeito. Ainda assim, quando considerava as
melhorias que ocorrem todos os dias na ciência e na mecânica, fui
encorajado a esperar que minhas tentativas do momento fossem, ao
menos, as bases do sucesso futuro. Tampouco poderia considerar a
magnitude e a complexidade do meu plano como argumentos para sua
impraticabilidade. Foi com esses sentimentos que dei início à criação de
um ser humano. Como a minúcia das partes constituía um grande
obstáculo à minha velocidade, resolvi, contrariando minha primeira
intenção, criar um ser de estatura gigantesca; isto é, de aproximadamente
dois metros de altura e proporcionalmente largo. Depois de tal resolução e
de passar meses coletando e organizando meus materiais, eu comecei.
Ninguém pode compreender a variedade de sentimentos que me
impeliram adiante, como um furacão, nesse primeiro entusiasmo de
sucesso. A vida e a morte me pareciam barreiras ideais que eu precisava
romper a fim de derramar uma torrente de luz em nosso mundo sombrio.
Uma nova espécie me abençoaria como seu criador e fonte; muitas
naturezas felizes e excelentes deveriam seu ser a mim. Nenhum pai
poderia reivindicar a gratidão de seu filho com tanto merecimento quanto
eu. Perseguindo essas reflexões, imaginei que, se pudesse conferir
animação à matéria sem vida, poderia, com o tempo, embora agora eu
considere impossível, renovar a vida onde a morte aparentemente devotara
o corpo à corrupção.
Tais foram os pensamentos que apoiaram meu espírito enquanto eu
prosseguia meu compromisso com um ardor incessante. Minha bochecha
empalideceu com o estudo e minha figura se tornou emaciada no
confinamento. Dadas vezes, à beira da certeza, eu falhava; ainda assim, eu
me apegava à esperança do que poderia realizar no dia subsequente ou na
próxima hora. O segredo que eu possuía era a esperança à qual me
dedicava. A lua contemplava meus trabalhos da meia-noite, enquanto, com
ânsia tensa e sem fôlego, eu perseguia a natureza em seus esconderijos.
Quem poderia conceber os horrores da minha labuta secreta enquanto eu
me encontrava na umidade da sepultura ou torturava o animal vivo à
procura de animar o barro sem vida? Meus membros tremem ao passo que
meus olhos nadam nessas lembranças. Um impulso sem resistência e
quase frenético me levara adiante; e eu parecia ter perdido toda a alma ou
o sentimento pelo que havia além dessa busca. Foi, no fim, apenas um
transe passageiro, que só me fez sentir uma agudeza renovada quando
voltei aos meus velhos hábitos. Colecionei ossos de jazigos e perturbei,
com dedos profanos, os tremendos segredos da estrutura humana. Em uma
câmara solitária – ou melhor, uma cela – no topo de minha casa e separada
de todos os outros apartamentos por uma galeria e uma escada, mantive
minha oficina de criação imunda. Meus olhos saltam das órbitas quando
descrevo os detalhes do meu emprego. A sala de dissecação e o matadouro
forneciam muitos dos meus materiais; com frequência, minha natureza
humana se aborrecia com a minha ocupação, enquanto, ainda instigado por
uma ansiedade que aumentava perpetuamente, levava meu trabalho a uma
conclusão.
Os meses de verão se passaram enquanto eu estava envolvido, de corpo
e alma, em minha busca. Foi uma estação muito bonita; nunca os campos
renderam uma colheita mais abundante nem as videiras produziram uma
safra mais luxuriante. Meus olhos, no entanto, eram insensíveis aos
encantos da natureza. Os mesmos sentimentos que me impeliram a
negligenciar as cenas ao meu redor também me fizeram esquecer os
amigos que estavam a tantos quilômetros de distância e que eu não via há
muito tempo. Eu sabia que meu silêncio os inquietava; lembrei-me bem
das palavras do meu pai: Sei que, enquanto estiver satisfeito consigo
mesmo, pensará em nós com afeto e mandará frequentemente notícias
suas. Você deve me perdoar se considerar qualquer interrupção em sua
correspondência como uma prova de que seus outros deveres estão sendo
igualmente negligenciados.
Eu sabia bem, portanto, quais eram os sentimentos do meu pai; porém,
não conseguia desviar meus pensamentos da tarefa, repugnante por si só,
mas que tomara conta de minha imaginação de forma irresistível. Eu
queria procrastinar tudo o que se relacionava aos meus sentimentos de
afeição até completar o grande objeto, que engolia todos os hábitos da
minha natureza.
Pensava que meu pai seria injusto se atribuísse minha negligência ao
vício ou a defeitos de minha parte, mas agora estou convencido de que ele
tinha uma boa razão para me considerar culpável. Um ser humano perfeito
deve sempre preservar uma mente calma e pacífica e jamais permitir que a
paixão ou um desejo transitório perturbe sua tranquilidade. Não considero
a busca pelo conhecimento uma exceção à regra. Se o estudo a que se
aplica tem tendência a enfraquecer seus afetos e a destruir seu gosto por
prazeres simples, ele é certamente ilegal e não condizente com a mente
humana. Se essa regra fosse sempre obedecida e ninguém permitisse a
interferência de qualquer atividade na tranquilidade de seus afetos
domésticos, a Grécia não teria sido escravizada, César teria poupado sua
pátria, a América teria sido descoberta de forma mais gradual e os
impérios do México e do Peru não teriam sido destruídos.
Mas esqueço que estou aplicando lições de moral à parte mais
interessante da minha história, e a expressão em seu rosto me lembra de
prosseguir.
Meu pai não me censurou em suas cartas e apenas percebeu meu
silêncio ao investigar minhas ocupações com mais empenho do que antes.
O inverno, a primavera e o verão se passaram durante meus trabalhos, mas
não observei o florescer ou o verdejar – vistas que sempre me deram
supremo prazer –, tamanha a concentração em minha tarefa. As folhas
daquele ano murcharam antes que meu trabalho chegasse ao fim, e cada
dia delineava o avanço com clareza para mim. Meu entusiasmo, no
entanto, era controlado por minha ansiedade, e eu mais parecia um escravo
condenado a trabalhar nas minas, ou qualquer outra ocupação nociva, do
que um artista empenhado em seu trabalho favorito. Toda noite eu era
acometido por uma febre lenta e ficava extremamente nervoso. A queda de
uma folha era capaz de me assustar e eu evitava meus semelhantes como
se tivesse sido culpado de um crime. Às vezes, me sentia alarmado ao
perceber no que me tornara; apenas a energia do meu propósito me
sustentava. Meus trabalhos logo terminariam, e eu acreditava que
exercícios e diversão afastariam a doença incipiente. Prometi ambos a
mim mesmo quando a criação estivesse completa.
CAPÍTULO V

FOI EM UMA NOITE SOMBRIA de novembro que contemplei a realização de


meus esforços. Com uma ansiedade que beirou a agonia, coletei os
instrumentos da vida ao meu redor para que pudesse infundir uma centelha
de ser na coisa sem vida que jazia aos meus pés. Já era uma da manhã; a
chuva batia tristemente contra as vidraças e minha vela estava quase
derretida quando, pelo brilho da luz quase extinta, vi o olho amarelo opaco
da criatura aberto. Ela respirava com dificuldade e um movimento
convulsivo agitava seus membros.
Como posso descrever minhas emoções no que diz respeito a essa
catástrofe, ou retratar o infeliz que com tantas dores e cuidados infinitos
eu me empenhara em formar? Seus membros eram proporcionais, e eu o
dotara de traços bonitos. Bonitos! Meu Deus! Sua pele amarela mal cobria
os músculos e as artérias; seus cabelos eram esvoaçantes e de um preto
lustroso; os dentes eram de uma brancura perolada. Porém, essas
exuberâncias apenas contrastavam de forma horrível com seus olhos
lacrimejantes – que pareciam da mesma cor que as órbitas onde se
encontravam –, sua pele enrugada e seus lábios negros e lisos.
Os diversos acidentes da vida não são tão mutáveis quanto os
sentimentos da natureza humana. Eu trabalhara duro por quase dois anos
com o único objetivo de infundir vida em um corpo inanimado. Para tanto,
me privara de descanso e saúde. Eu desejara aquilo com um ardor que
excedia em muito a moderação. Entretanto, agora que eu tinha terminado,
a beleza do sonho desaparecera, dando lugar a horror e repulsa em meu
coração. Incapaz de suportar o aspecto do ser que eu havia criado, saí
correndo da sala e andei por muito tempo pelo meu quarto, incapaz de
recompor minha mente a fim de dormir. Por fim, a fadiga sucedeu o
alvoroço; me joguei na cama com minhas roupas, na tentativa de encontrar
alguns momentos de esquecimento. Foi em vão; dormi, mas fui perturbado
pelos sonhos mais loucos. Sonhei que vi Elizabeth, na flor da idade,
andando pelas ruas de Ingolstadt. Encantado e surpreso, eu a abracei; mas,
quando a beijei nos lábios, eles ficaram lívidos com o tom da morte. Suas
feições mudaram, e pensei segurar nos braços o cadáver de minha mãe.
Uma mortalha envolveu seu corpo, e vi minhocas se rastejarem nas dobras
do pano. Acordei horrorizado; um orvalho frio cobria minha testa, meus
dentes tremiam e todos os membros foram tomados pela convulsão. Então,
sob a luz fraca e amarela da lua que se impunha através das venezianas da
janela, vi o infeliz – o monstro desgraçado que eu criara. Ele levantou o
cortinado da cama. Seus olhos, se é que podem ser chamados assim,
estavam fixos em mim. Sua mandíbula se abriu e ele murmurou sons
desarticulados ao passo que um sorriso enrugava suas bochechas. É
possível que tenha falado, mas não ouvi; ele estendeu uma mão,
aparentemente para me deter, mas escapei e corri escada abaixo. Refugiei-
me no pátio pertencente à casa em que habitava e permaneci ali durante o
resto da noite. Caminhei para cima e para baixo sob forte agitação,
ouvindo com atenção e temendo cada som que pudesse anunciar a
aproximação do cadáver demoníaco a que eu tão miseravelmente dera
vida.
Ah! Nenhum mortal poderia suportar o horror daquela tez. Uma múmia
novamente possuída com a vida não poderia ser tão hedionda quanto
aquele infeliz. Eu o contemplara enquanto ainda estava inacabado; ele era
feio então. Mas, quando seus músculos e suas articulações assumiram a
capacidade de movimento, ele tornou-se algo que nem Dante poderia ter
concebido.
Passei uma noite miserável. Em dados momentos, meu pulso batia com
tanta rapidez e dificuldade que eu sentia a palpitação de cada artéria; em
outros, quase afundava no chão devido ao cansaço e à fraqueza extrema.
Junto a esse horror, senti a amargura da decepção; sonhos que tinham sido
minha comida e meu descanso por tanto tempo se tornaram um inferno. A
mudança fora rápida, e a derrocada, completa!
A manhã, soturna e úmida, enfim nasceu. Observei com meus olhos
insones e doloridos a igreja de Ingolstadt, sua torre branca e o relógio, que
marcava seis horas. O porteiro abriu os portões do pátio que naquela noite
tinha sido meu asilo, e saí pelas ruas a passos rápidos, como se tentasse
evitar o desgraçado que temia encontrar cada vez que virava uma rua. Não
ousei retornar ao apartamento onde morava, sentindo um impulso para me
apressar, embora estivesse encharcado pela chuva que caía de um céu
escuro e sem conforto.
Continuei caminhando dessa maneira por um período, à procura de, por
meio de exercícios corporais, aliviar a carga que pesava sobre minha
mente. Atravessei as ruas sem qualquer noção clara de onde estava ou o
que fazia. Meu coração palpitava ante a indisposição causada pelo medo à
medida que me apressava com passos irregulares sem me atrever a
observar ao redor:

Era eu como quem vai, com medo e com temor,


Por deserto lugar,
E, tendo olhado à pressa para trás, prossegue
Sem nunca mais olhar
Porque bem sabe que um demônio assustador
Pisa em seu calcanhar.9

Continuando assim, cheguei diante de uma estalagem em que várias


diligências e carruagens costumavam fazer ponto. Ali parei, sem saber o
porquê; fiquei alguns minutos com os olhos fixos numa carruagem que
vinha em minha direção, do outro lado da rua. À medida que se
aproximava, observei que era uma diligência suíça. Ela parou exatamente
onde eu estava; quando a porta se abriu, vi Henry Clerval, que, ao me ver,
saltou no mesmo instante.
– Meu caro Frankenstein! – exclamou ele. – Como estou feliz em vê-lo!
Que sorte te encontrar no exato momento de minha chegada!
Nada poderia igualar-se ao prazer de ver Clerval; sua presença trouxe de
volta aos meus pensamentos meu pai, Elizabeth e todas aquelas queridas
lembranças de casa. Agarrei sua mão e, por um momento, esqueci meu
horror e infortúnio. De repente, senti pela primeira vez em muitos meses
uma alegria calma e serena. Dei as boas-vindas ao meu amigo da maneira
mais cordial e caminhamos em direção à minha faculdade. Clerval
continuou conversando por um tempo sobre nossos amigos em comum e
sua própria sorte de poder vir a Ingolstadt.
– Você pode imaginar com facilidade o quanto foi difícil convencer meu
pai de que todo o conhecimento necessário não estava encerrado na
augusta arte da contabilidade. Na verdade, acredito que o deixei incrédulo
até o fim, pois sua frequente resposta às minhas súplicas incansáveis era a
mesma do professor holandês de O vigário de Wakefield: “Ganho dez mil
florins por ano sem o grego, e me alimento fartamente sem o grego”. Mas
o tamanho de sua afeição por mim acabou superando o da aversão pelo
aprendizado, e ele me permitiu fazer uma viagem de descoberta à terra do
conhecimento.
– Me dá o maior prazer vê-lo aqui. Mas diga-me: como estão meu pai,
meus irmãos e Elizabeth?
– Estão bem e felizes, apenas um pouco apreensivos por sua falta de
contato. A propósito, pretendo ralhar com você em nome deles… Mas,
meu caro Frankenstein – continuou ele, parando e olhando fixamente para
o meu rosto –, eu não havia percebido como você está com um aspecto
doente. Está tão magro e pálido, parece ter ficado acordado por noites.
– Você adivinhou certo. Nos últimos tempos, tenho estado tão
profundamente envolvido com uma atividade que não me permiti descanso
suficiente, como pode perceber. Espero, porém, que meus afazeres tenham
chegado ao fim e que eu esteja por fim livre.
Eu tremia em excesso; não suportava pensar e muito menos me referir
às ocorrências da noite anterior. Andamos em um ritmo rápido e logo
chegamos à minha faculdade. De repente, uma reflexão me fez estremecer;
a criatura que eu deixara em meu apartamento poderia ainda estar lá, viva
e circulando. Eu receava ver o monstro, mas temia mais ainda que Henry o
visse. Pedi, então, que ele permanecesse uns minutos ao pé da escada
enquanto eu corria para o meu quarto. Antes mesmo de eu me recobrar,
minha mão já estava na fechadura; então parei e um calafrio tomou conta
de mim. Abri a porta à força, como as crianças estão acostumadas a fazer
quando imaginam que um espectro jaz à sua espera do outro lado, mas
nada apareceu. Entrei com medo; o apartamento estava vazio e meu quarto
já não abrigava o hediondo hóspede. Eu mal podia acreditar na minha
sorte. Quando tive certeza de que meu inimigo havia realmente fugido,
bati palmas de alegria e corri até Clerval.
Subimos ao meu quarto e o criado trouxe o café da manhã. No entanto,
eu não conseguia me conter. Não era apenas a alegria que me possuía;
sentia minha carne formigar com o excesso de sensibilidade e meu pulso
bater rapidamente. Não era capaz de permanecer por um único instante no
mesmo lugar; pulava sobre as cadeiras, batia palmas e ria alto. A
princípio, Clerval atribuiu meus ânimos incomuns à alegria de sua
chegada; mas, quando me observou com mais atenção, identificou uma
selvageria em meus olhos que não podia explicar. Meu riso alto, irrestrito
e sem coração assustou-o e o surpreendeu.
– Meu querido Victor! – exclamou ele. – Qual é o problema, pelo amor
de Deus? Não ria dessa maneira. Você está doente! Qual é a causa de tudo
isso?
– Não me pergunte – repliquei ao colocar as mãos diante dos olhos, pois
pensava ter visto o assombroso espectro na sala. – Ele pode te dizer. Ah,
salve-me! Salve-me!
Imaginando que o monstro estivesse a me atacar, lutei furiosamente e
caí desfalecido.
Pobre Clerval! O que ele deve ter pensado? Um reencontro, que ele
previra com tanta alegria, havia se transformado em amargura. Mas eu não
fui testemunha de sua dor, pois não recuperei meus sentidos por um longo,
longo período.
Esse foi o começo de uma febre emocional que me deixou confinado
por vários meses. Durante todo o tempo, Henry foi meu único enfermeiro.
Mais tarde, compreendi que, considerando a idade avançada de meu pai e
sua inaptidão para uma jornada tão longa, além do quão desoladora seria
minha doença para Elizabeth, ele poupou-lhes dessa tristeza, ocultando a
extensão do meu distúrbio. Ele sabia que eu não poderia ter um enfermeiro
mais gentil e atencioso do que ele e, firme na esperança que depositava em
minha recuperação, não duvidava que, em vez de causar dano, exercia a
ação mais gentil que podia em relação a eles.
Na realidade, porém, eu estava bastante enfermo, e sem dúvida nada
além das atenções ilimitadas e incessantes de meu amigo poderiam ter me
restaurado à vida. A forma do monstro a quem eu concedera a existência
se prolongava eternamente diante dos meus olhos, e eu delirava
frequentemente com aquela imagem. Com certeza, minhas palavras
surpreenderam Henry; a princípio, ele acreditou que se tratava de
divagações da minha imaginação perturbada, mas a insistência contínua
com que eu recorria ao assunto o convenceu de que a origem de minha
condição se devia a alguma ocorrência incomum e terrível.
De modo lento e com frequentes recaídas que alarmaram e
entristeceram meu amigo, eu me recuperei. Lembro-me da primeira vez
que voltei a distinguir objetos com certo tipo de prazer: percebi que as
folhas caídas haviam desaparecido e que os brotos jovens surgiam nas
árvores que sombreavam minha janela. Foi uma primavera divina, e a
temporada contribuiu muito para a minha convalescença. Senti também
sentimentos de alegria e carinho reviverem em meu peito; minha tristeza
desapareceu e, em pouco tempo, fiquei tão alegre quanto era antes de ser
atacado pela paixão fatal.
– Querido Clerval! – exclamei. – Como você é bom para mim! Todo
esse inverno, em vez de ser aproveitado para seu estudo, como havia
prometido a si próprio, foi gasto comigo. Como posso retribuir? Sinto o
maior remorso pela decepção que causei, mas sei que me perdoará.
– Você vai me retribuir inteiramente se não se descompuser,
recuperando-se o mais rápido possível. E já que parece estar de bom
humor, posso falar com você sobre um assunto, não posso?
Tremi. Um assunto! O que poderia ser? Ele faria alusão a algo que eu
não ousava sequer pensar a respeito?
– Recomponha-se – advertiu Clerval, observando minha mudança de
cor. – Não mencionarei o assunto se lhe causar agitação, mas seu pai e sua
prima ficariam muito felizes se recebessem uma carta escrita com sua
própria caligrafia. Eles não sabem o quanto você ficou doente e se sentem
desconfortáveis com o longo silêncio.
– Isso é tudo, meu querido Henry? Como você poderia supor que meus
primeiros pensamentos não voam na direção daqueles a quem amo e que
são tão merecedores do meu amor?
– Se este é o seu temperamento atual, meu amigo, talvez fique feliz em
ver uma carta que está à sua espera há dias. Acredito que seja de sua
prima.
- Trecho de “A Balada do Velho Marinheiro”, de Samuel Taylor
Coleridge. Tradução de Adriano Scandolara. Disponível em:
<https://edisciplinas.usp.br/
pluginfile.php/2561399/mod_resource/content/4/A%20BALADA%20
DO%20VELHO%20MARINHEIRO.pdf>. Acesso em: 06 out. 2019. (N.
E.)
CAPÍTULO VI

CLERVAL ENTÃO COLOCOU a seguinte carta em minhas mãos. Era da minha ró


ria Elizabeth:

Meu querido primo,


Você esteve doente, muito doente, e mesmo as cartas constantes do
querido Henry não foram suficientes para me tranquilizar. Você está
proibido de escrever, de segurar uma caneta; contudo, uma palavra sua é
necessária para acalmar nossas apreensões, querido Victor. Por muito
tempo esperei que cada vinda do correio traria uma mensagem sua, e
minha persuasão tem impedido meu tio de empreender uma viagem a
Ingolstadt. Não quero que ele se depare com os inconvenientes e talvez
perigos de uma jornada tão extensa; no entanto, quantas vezes me
entristeço por não poder fazê-la eu mesma! Imagino que a tarefa de cuidar
de sua enfermidade tenha recaído sobre uma velha enfermeira mercenária,
que nunca poderia adivinhar seus desejos ou ministrá-los com o cuidado e
o carinho de sua pobre prima. Felizmente, isso chegou ao fim: Clerval
disse que você está melhorando. Espero ansiosamente que você confirme
essas palavras em breve com sua própria caligrafia.
Fique bem e volte para nós. Você encontrará um lar feliz e amigos que
te amam muito. A saúde de seu pai é vigorosa e ele pede apenas para ser
assegurado de que você esteja bem, pois nada pode obscurecer suas
feições benevolentes. Como você ficaria satisfeito em observar o
crescimento de nosso Ernest! Ele agora tem dezesseis anos e está cheio de
vida e espírito. Ele deseja se tornar um verdadeiro suíço e entrar para o
serviço militar no estrangeiro, mas não podemos nos separar dele – pelo
menos não até que seu irmão mais velho volte para nós. Meu tio não está
satisfeito com a ideia de uma carreira militar em um país distante, mas
Ernest nunca teve seu poder de aplicação ao estudo. Ele vê o aprendizado
como um grilhão odioso; gasta seu tempo ao ar livre, escalando colinas ou
remando no lago. Temo que ele se torne ocioso, a menos que cedamos ao
seu desejo de ingressar na profissão que escolheu.
Poucas alterações, exceto o crescimento de nossas queridas crianças,
ocorreram desde que você nos deixou. O lago azul e as montanhas
cobertas de neve não mudaram, e acredito que nossa casa plácida e
corações contentes sejam regulados pelas mesmas leis imutáveis. Minhas
tarefas triviais ocupam meu tempo e me divertem, e sou recompensada por
qualquer esforço quando vejo apenas rostos felizes e gentis ao meu redor.
Desde que você nos deixou, apenas uma mudança ocorreu em nossa
pequena casa. Você se lembra de quando Justine Moritz entrou para a
família? Provavelmente não. Vou relatar sua história, portanto, em poucas
palavras: Madame Moritz, sua mãe, era uma viúva com quatro filhos, dos
quais Justine era a terceira. Essa garota sempre fora a favorita do pai;
porém, de forma estranhamente perversa, sua mãe não a suportava e, após
a morte do sr. Moritz, passou a tratá-la muito mal. Minha tia observou
isso; e, quando Justine completou doze anos, pediu que sua mãe a deixasse
morar em nossa casa. As instituições republicanas de nosso país
produziram maneiras mais simples e felizes do que aquelas que
prevalecem nas grandes monarquias ao redor. Logo, há menos distinção
entre as várias classes de seus habitantes, e as ordens inferiores, não
sendo tão pobres nem tão desprezadas, têm maneiras mais refinadas e
morais. Ser um criado em Genebra não tem o mesmo significado que ser
um criado na França ou na Inglaterra. Justine, assim recebida em nossa
família, aprendeu os deveres de uma criada; tal condição, em nosso país
afortunado, não inclui a ideia de ignorância e o sacrifício da dignidade do
ser humano.
Você deve se lembrar que nutria grande predileção por Justine; eu me
recordo de quando você comentou que, uma vez de mau humor, bastava
observar Justine para dissipá-lo, do mesmo jeito que Ariosto fazia em
relação à beleza de Angélica – afinal, ela parecia sincera e feliz. Minha
tia desenvolveu grande apego por ela, induzindo-a a uma educação
superior àquela pretendida a princípio. Esse benefício foi totalmente
recompensado; Justine era a criaturinha mais grata do mundo. Não que
ela já tenha professado a gratidão; nunca ouvi nada de seus lábios. Mas
você podia ver nos olhos de Justine que ela adorava sua protetora.
Embora sua disposição fosse alegre e, em muitos aspectos, imprudente, ela
prestava grande atenção a todos os gestos de minha tia. Justine a
considerava modelo de toda excelência e esforçou-se para imitar sua
fraseologia e trejeitos, de modo que mesmo agora ela assiduamente me faz
lembrar da minha querida tia.
Quando titia morreu, todos ficaram ocupados demais com a própria
tristeza para notar a pobre Justine, que a auxiliara durante a doença com
o mais afoito carinho. A pobre Justine ficou muito doente, mas outras
provações lhe foram reservadas.
Um por um, seus irmãos e irmã morreram; e sua mãe, à exceção da filha
negligenciada, ficou sem filhos. A consciência da mulher ficou perturbada,
começou a pensar que a morte de seus favoritos era um castigo divino por
sua parcialidade. Ela era católica, e creio que seu confessor tenha
confirmado a ideia que ela concebera. Assim, meses após sua partida para
Ingolstadt, Justine foi chamada ao lar por sua mãe arrependida. Pobre
menina! Ela chorou quando saiu de nossa casa. Ela estava muito mudada
desde a morte de minha tia; a dor lhe conferira moderação e brandura às
maneiras, que antes eram notáveis pela vivacidade.
A residência dela na casa da mãe também não colaborou para restaurar
sua alegria. A pobre mulher foi muito instável em seu arrependimento. Às
vezes, implorava a Justine que perdoasse sua crueldade, mas muitas vezes
a acusava de ter causado a morte de seus irmãos. A inquietação perpétua
levou madame Moritz a um declínio, o que a princípio aumentou sua
irritabilidade, mas agora ela descansa em paz para sempre. Ela morreu na
primeira aproximação do tempo frio, no início deste inverno último.
Justine voltou para nós, e garanto que a amo com ternura. É muito
inteligente, gentil e extremamente bonita; como mencionei antes, seus
modos me lembram continuamente de minha tia querida.
Devo também dizer algumas palavras, meu querido primo, sobre o
pequeno e adorável William. Eu gostaria que você pudesse vê-lo; ele é
bastante alto para a idade dele, tem doces olhos azuis, cílios escuros e
cabelos encaracolados. Quando sorri, duas pequenas covinhas aparecem
em suas bochechas rosadas de saúde. Ele já teve uma ou duas esposinhas,
mas Louisa Biron, uma menina bonita de cinco anos, é sua favorita.
Agora, querido Victor, ouso dizer que você deseja se deliciar com as
fofocas sobre as pessoas de Genebra. A bela senhorita Mansfield já
recebeu as visitas de congratulações por seu casamento com um jovem
inglês, John Melbourne. A irmã feia dela, Manon, casou--se com o sr.
Duvillard, o rico banqueiro, no outono passado. Seu colega de escola
favorito, Louis Manoir, sofreu vários infortúnios desde a partida de
Clerval de Genebra. No entanto, já recuperou os ânimos e diz-se que está
prestes a se casar com uma bela francesa muito animada chamada
madame Tavernier. Ela é viúva e bem mais velha do que Manoir, mas é
admirada e querida por todos.
Ao lhe escrever, querido primo, passei a me sentir melhor; minha
ansiedade, porém, volta enquanto concluo a carta. Escreva, querido
Victor. Uma linha ou uma palavra serão uma bênção para nós. Dez mil
agradecimentos a Henry por sua bondade, seu carinho e suas muitas
cartas: somos sinceramente gratos. Adieu, meu primo, cuide-se e escreva
de volta!

Elizabeth Lavenza
Genebra, 18 de março de 17—

– Querida, querida Elizabeth! – exclamei quando li a carta. – Escreverei


neste instantane para aliviá-los da ansiedade que os deve acometer.
Escrevi, e o esforço me deixou fatigado; minha convalescença, porém,
seguiu conforme esperado. Passada uma quinzena, já tinha condições de
deixar o quarto.
Um dos meus primeiros deveres após a recuperação foi apresentar
Clerval aos vários professores da universidade. Fiz isso a contragosto,
devido às feridas que minha mente sofrera. Desde a noite fatal, que
marcou o fim de meus trabalhos e o princípio de meus infortúnios,
desenvolvi violenta antipatia quanto à filosofia natural. Mesmo
completamente curado, a visão de um instrumento químico renovava toda
a agonia dos meus sintomas emocionais. Henry percebeu-o, e removeu
todos esses aparelhos do meu campo de vista. Ele também mudou meu
apartamento, pois notou que eu adquirira aversão ao cômodo que antes
dera lugar a meu laboratório. Mas os cuidados de Clerval foram inúteis
quando visitei os professores. O sr. Waldman infligiu-me tortura quando
elogiou, com gentileza e cordialidade, o espantoso progresso que eu havia
feito nas ciências. Ele logo percebeu que eu não gostava do assunto;
porém, sem adivinhar a causa real, atribuiu meus sentimentos à modéstia e
mudou o rumo da conversa para a ciência em si, com desejo evidente de
me envolver. O que eu poderia fazer? Ele quis agradar, mas me
atormentou. Senti como se ele tivesse colocado à minha vista, um por um,
os instrumentos que seriam usados para me assassinar de forma lenta e
cruel. Eu me contorci ante suas palavras, mas não ousei demonstrar a dor.
Clerval, cujos olhos e sentimentos sempre foram rápidos em discernir as
sensações dos demais, declinou o assunto, alegando como desculpa sua
total ignorância. A conversa, então, tomou outro rumo. Agradeci meu
amigo de coração, mas nada falei. Vi claramente que estava surpreso, mas
ele nunca tentou desvendar meu segredo. Embora eu o amasse com uma
mistura de afeto e reverência que não tinha limites, não podia me
convencer a confiar-lhe o evento que tantas vezes perpassou minha cabeça,
pois temia que seus detalhes soassem ainda mais perturbadores aos
ouvidos de outra pessoa.
O sr. Krempe não era dócil assim e, naquele momento de sensibilidade
quase insuportável, seus elogios bruscos me causavam ainda mais dor do
que a aprovação benevolente do sr. Waldman.
– Que homem dos diabos! – ele exclamou. – Sr. Clerval, garanto que ele
superou todos nós. Ah, espante-se o quanto quiser, mas é verdade. Um
jovem que, há alguns anos, acreditava em Cornelius Agrippa tão
firmemente quanto no Evangelho, agora se colocou à frente da
universidade e, se não for logo superado, seremos todos postos de lado.
Ah, sim – continuou ele, observando meu rosto estampado pela
consternação. – O sr. Frankenstein é modesto; uma excelente qualidade em
um jovem. Os jovens devem desconfiar de si mesmos, sr. Clerval; eu
desconfiava de mim quando jovem, mas isso durou muito pouco tempo.
O sr. Krempe passou a enaltecer a si próprio, o que felizmente desviou a
conversa de um assunto que, para mim, era francamente aborrecedor.
Clerval jamais partilhou do meu gosto pelas ciências naturais, e suas
atividades literárias diferiam totalmente daquelas que me haviam
ocupado. O objetivo de sua vinda à universidade era dominar as línguas
orientais e, assim, abrir um campo para o plano de vida que traçara para si.
Decidido a não seguir uma carreira inglória, ele direcionou sua visão para
o Oriente a fim de satisfazer seu espírito aventureiro. Os idiomas persa,
árabe e sânscrito atraíam sua atenção, e fui facilmente induzido a seguir os
mesmos estudos. A ociosidade já tinha se tornado cansativa para mim, e
agora que eu odiava meus estudos anteriores e desejava fugir da
ponderação, senti grande alívio por ser discípulo do meu amigo e
encontrar nas obras dos orientalistas não apenas instruções, mas consolo.
Eu não almejava, como ele, um conhecimento crítico dos dialetos, pois
não pensava em usá-los de outra forma que não para distrair-me. Eu lia
apenas para entender as implicações, que retribuíam bem o meu interesse.
Sua melancolia é calmante, e a alegria, elevadora a um nível que eu nunca
experimentara ao estudar os autores de qualquer outro país. Quando você
lê os escritos deles, a vida parece consistir em um jardim de rosas sob um
sol quente – nos sorrisos e nas carrancas de um inimigo justo e no fogo
que consome seu próprio coração. Quão diferente da poesia viril e heroica
da Grécia e de Roma!
Assim se passou o verão, e meu retorno a Genebra ficou marcado para o
fim do outono. No entanto, uma série de incidentes atrasou minha partida,
e com a chegada do inverno e da neve impossibilitando o trânsito nas
estradas, minha jornada foi postergada para a primavera seguinte.
Lamentei com amargor esse atraso, pois aspirava a visitar minha cidade
natal e meus amigos queridos. Meu retorno fora adiado por tanto tempo
em virtude de minha relutância em deixar Clerval em um lugar estranho
antes que conhecesse alguns de seus habitantes. O inverno, no entanto, foi
passado alegremente; e apesar da demora incomum da primavera, a beleza
de sua presença compensou a atraso.
O mês de maio já havia começado, e eu esperava diariamente a carta
que fixaria a data da minha partida quando Henry propôs uma excursão a
pé nos arredores de Ingolstadt visando que eu pudesse me despedir
pessoalmente da região que havia habitado por tanto tempo. Aceitei a
proposição com prazer: gostava de me exercitar, e Clerval sempre fora
meu companheiro favorito nas divagações pela natureza feitas em minha
terra natal.
Fizemos tais perambulações durante quinze dias; minha saúde e meus
ânimos, que estavam restaurados há um bom tempo, ganharam força
adicional com o ar salubre que respirei e a conversa de meu amigo. Antes,
o estudo me afastara da relação com meus semelhantes e me tornara
antissocial; Clerval, no entanto, despertou os melhores sentimentos do
meu coração. Ele me ensinou a novamente amar o aspecto da natureza e os
rostos alegres das crianças. Que excelente amigo! Quão sinceramente ele
me amou e se esforçou para alçar minha mente até que ela estivesse no
mesmo nível que a dele! Uma busca egoísta me estreitara até que sua
gentileza e afeição abriram meus sentidos; tornei-me o mesmo homem
alegre que, alguns anos antes, amado e querido por todos, não sentia
tristeza ou preocupação. Quando contente, a natureza inanimada tinha o
poder de me proporcionar as mais deliciosas sensações. Um céu sereno e
campos verdejantes me enchiam de êxtase. A estação atual era divina; as
flores da primavera desabrochavam nas sebes, enquanto alguns botões
prenunciavam o verão. Tornei-me alheio aos pensamentos opressores do
ano precedente, que ainda carregava como fardo invencível.
Henry rejubilava-se com minha alegria e simpatizava sinceramente com
meus sentimentos; ele se esforçou para me divertir enquanto expressava as
sensações que inundavam sua alma. À época, os recursos de sua mente
eram de fato surpreendentes. Sua conversa era repleta de imaginação;
muitas vezes, imitando escritores persas e árabes, ele inventava histórias
de fantasia e paixão maravilhosas. Outras vezes, repetia meus poemas
favoritos ou me instigava a participar de debates, os quais ele apoiava com
grande naturalidade.
Voltamos à nossa faculdade numa tarde de domingo. Os camponeses
dançavam e todos os que conhecíamos pareciam felizes. Meu próprio
ânimo estava elevado, e me uni a sentimentos de aprazimento desenfreado
e hilaridade.
CAPÍTULO VII

AO RETORNAR, ENCONTREI a seguinte carta de meu pai:

Meu querido Victor,


Você provavelmente esperou com impaciência por uma carta que fixasse
a data de seu retorno para nós. Fiquei tentado a escrever algumas linhas,
mencionando apenas o dia em que eu deveria esperar por você. Mas isso
seria um ato gentil e cruel, o qual não ouso fazer. Qual seria sua surpresa,
meu filho, ao esperar uma recepção feliz e encontrar em seu lugar apenas
desgraça e lágrimas? E como, Victor, posso relatar nosso infortúnio? Eu o
deixei à parte de nossas alegrias e sofrimentos, e como posso infligir dor a
um filho ausente há tempos? Desejo prepará-lo para boas notícias, mas é
impossível; mesmo agora, seu olho desliza pela página à procura das
palavras que devem transmitir a você as notícias horríveis.
William está morto! Aquela criança doce, cujos sorrisos encantaram e
aqueceram meu coração… Tão gentil e alegre! Victor, ele foi assassinado!
Não tentarei consolá-lo. Simplesmente narrarei as circunstâncias do
ocorrido.
Na quinta-feira passada (07 de maio), minha sobrinha, seus dois irmãos
e eu nos pusemos a caminhar em Plainpalais. A noite estava quente e
serena, e prolongamos o passeio além do habitual. Já estava anoitecendo
quando pensamos em voltar, e nos demos conta de que William e Ernest,
que tinham ido na frente, não estavam por perto. Assim, descansamos em
um assento à espera de seu retorno. Ernest, então, apareceu e perguntou
se tínhamos visto seu irmão. Ele disse que estivera brincando com
William, e que este fugira para se esconder. Ernest procurou o irmão por
um longo tempo, mas o garoto não apareceu.
Alarmados, saímos para procurá-lo até o cair da noite, quando
Elizabeth conjecturou que ele poderia ter voltado para casa. Contudo, ele
não estava lá. Voltamos novamente, dessa vez com tochas; eu não
conseguia descansar enquanto imaginava que meu doce menino estava
perdido e exposto a toda a umidade e ao orvalho da noite. Elizabeth
também sofria de extrema angústia. Por volta das cinco da manhã,
encontrei meu adorável menino, a quem na noite anterior vira cheio de
saúde, esticado na grama lívido e imóvel. Em seu pescoço viam-se as
marcas das mãos do assassino.
Ele foi transportado para casa, e a angústia visível em meu rosto
revelou o segredo para Elizabeth, que quis ver o cadáver. No começo,
tentei dissuadi-la, mas ela persistiu e entrou no quarto onde ele estava.
Ela examinou às pressas o pescoço da vítima e, apertando as mãos,
exclamou: “Oh, Deus! Matei meu menino querido!”.
Ela desmaiou e foi reanimada com extrema dificuldade. Quando voltou
a si, foi apenas para chorar e suspirar. Elizabeth me contou que, naquela
mesma noite, William lhe pediu que o deixasse usar um retrato em
miniatura muito valioso, em posse dela e que fora da mãe. Esse objeto
desapareceu, e foi sem dúvida a tentação que conduziu o assassino à ação.
Não temos qualquer pista dele no momento, embora nossos esforços para
descobri-lo sejam ininterruptos. Isso, porém, não trará meu amado
William de volta!
Venha, querido Victor; só você pode consolar Elizabeth. Ela chora sem
cessar e se acusa injustamente pela morte dele. Suas palavras perfuram
meu coração. Estamos todos infelizes, mas não será esse um motivo
adicional para você, meu filho, voltar e ser nosso consolador? Sua
querida mãe, Victor! Graças a Deus ela não viveu para testemunhar a
morte cruel e tenebrosa de seu caçula!
Victor, não venha com pensamentos de vingança contra o assassino, mas
com sentimentos de paz e gentileza que curarão, em vez de apodrecer,
nossas feridas mentais. Entre na casa do luto, meu amigo, mas com
bondade e carinho por aqueles que te amam, e não com ódio dos seus
inimigos.

Seu pai afetuoso e aflito,


Alphonse Frankenstein
Genebra, 12 de maio de 17—

Clerval, que observava meu semblante enquanto eu lia essa carta, ficou
surpreso ao perceber o desespero que se instalou após a alegria com que, a
princípio, recebi as notícias de meus amigos. Atirei a carta sobre a mesa e
cobri o rosto com as mãos.
– Meu caro Frankenstein! – exclamou Henry ao perceber meu choro de
amargura. – Por que sempre fica consternado? Meu caro amigo, o que
aconteceu?
Fiz um gesto para que ele pegasse a carta enquanto circulava de um lado
para o outro da sala com uma agitação vigorosa. As lágrimas também
jorraram dos olhos de Clerval ao ler o relato do meu infortúnio.
– Não posso oferecer consolo a você, meu amigo – ele falou. – Seu
desastre é irreparável. O que pretende fazer?
– Partir agora mesmo para Genebra. Venha comigo, Henry, para alugar
os cavalos.
Durante nossa caminhada, Clerval se esforçou para expressar palavras
de consolo. Ele só podia expressar sua profunda solidariedade.
– Pobre William! – ele disse. – Criança querida, que agora dorme com
sua mãe angelical! Quem o viu brilhante e feliz em sua beleza pueril agora
deve lamentar sua perda prematura! Morrer tão calamitosamente, sentir o
aperto do assassino! Como alguém pode destruir uma inocência tão
radiante? Pobre menino! Temos apenas um consolo; enquanto seus amigos
choram e choram, ele está em repouso. A aflição acabou, e seus
sofrimentos se foram para sempre. A grama cobre seu corpo delicado, e
ele não sente dor. Ele não pode mais ser motivo de piedade; devemos
reservá-la para os miseráveis sobreviventes.
Clerval assim falou enquanto corríamos pelas ruas; suas palavras
ficaram marcadas em minha mente, e mais tarde me lembrei delas na
solidão. Quando os cavalos chegaram, entrei rapidamente em um cabriolé
e me despedi de meu amigo.
Minha jornada foi muito melancólica. A princípio, quis me apressar,
pois desejava consolar e simpatizar com meus amigos amados e tristes;
todavia, ao passo que me aproximava da minha cidade natal, diminuía meu
ritmo. Eu mal conseguia sustentar a multidão de sentimentos que se
amontoava em minha mente. Passei por cenários conhecidos de minha
juventude, mas que não via há quase seis anos. Como as coisas mudaram
durante esse período! Uma mudança repentina e desoladora ocorreu, mas
milhares de pequenas circunstâncias causaram gradualmente outras
alterações que, embora mais tranquilas, podem não ter sido menos
decisivas. O medo me dominou; não me atrevi a avançar, temendo mil
males sem nome que me fizeram tremer, embora eu fosse incapaz de
defini-los.
Passei dois dias em Lausanne acometido por esse angustiante estado de
espírito. Contemplei o lago: as águas eram plácidas, tudo ao redor estava
calmo, e as montanhas nevadas – os “palácios da natureza” – não estavam
alteradas. Aos poucos, a cena calma e celestial me restaurou e continuei
minha jornada em direção a Genebra.
A estrada corria ao lado do lago, que se estreitou quando me aproximei
da minha cidade natal. Contemplei a silhueta do Jura e o cume brilhante
do Mont Blanc. Chorei feito uma criança.
– Queridas montanhas! Meu belo lago! Que boas-vindas ao seu
andarilho! Seus cumes são claros; o céu e o lago são azuis e plácidos. Isso
é um prognóstico de paz ou a zombaria de minha infelicidade?
Receio, meu amigo, que me torne entediante ao me debruçar sobre essas
circunstâncias preliminares, mas se trata de dias de relativa felicidade, e
penso a respeito deles com prazer. Meu país, meu país amado! Quem,
senão um nativo, pode descrever o prazer que senti ao contemplar suas
correntes, montanhas e, mais do que tudo, seu belo lago!
No entanto, quando me aproximei de casa, a dor e o medo novamente
me venceram. A noite também se fechou ao meu redor e, quando mal pude
ver as montanhas escuras, me senti ainda mais triste. A paisagem parecia
uma vasta e sombria visão do mal, e previ obscuramente que estava
destinado a me tornar o mais miserável dos seres humanos. Ai! Profetizei
a verdade, e falhei apenas em uma única circunstância: em toda a penúria
que imaginei e temi, não concebi a centésima parte da angústia que estava
destinado a suportar.
Estava totalmente escuro quando cheguei aos arredores de Genebra. Os
portões da cidade já estavam fechados e fui obrigado a passar a noite em
Secheron, uma vila a menos de três quilômetros de distância. O céu estava
sereno, e, como eu não conseguia descansar, resolvi visitar o local onde
meu pobre William fora abatido. Uma vez que eu não podia passar pela
cidade, fui obrigado a atravessar o lago em um barco a fim de chegar a
Plainpalais. Durante a curta viagem, vi os relâmpagos atingirem o cume de
Mont Blanc, delineando belas formas no céu. A tempestade parecia se
aproximar com agilidade. Ao desembarcar, subi uma ladeira baixa para
observar seu progresso. Ela avançou; os céus ficaram nublados e logo senti
a chuva cair devagar e em grandes pingos, mas sua violência aumentou
rapidamente.
Abandonei meu assento e segui em frente, embora a escuridão e a
tempestade aumentassem a cada minuto. Um trovão potente retumbou
sobre minha cabeça, ecoando no Salève, no Jura e nos Alpes da Saboia;
clarões vívidos de raios ofuscaram meus olhos, iluminando o lago e
fazendo-o parecer uma vasta extensão de fogo. Por um instante, tudo
pareceu escuridão sombria, até que os olhos se recuperaram do efeito da
luz. A tempestade, como sempre ocorre na Suíça, apareceu ao mesmo
tempo em inúmeras partes do céu. A mais violenta pairava com exatidão
ao norte da cidade, acima da parte do lago que liga o promontório de
Belrive à vila de Copêt. Uma tempestade iluminava o Jura com clarões
fracos; outra escurecia e, às vezes, revelava o Môle, uma montanha
pontiaguda a leste do lago.
Enquanto eu observava a tempestade, tão bonita e espantosa, seguia com
um passo apressado. Essa nobre guerra no céu elevou meu espírito; apertei
minhas mãos e exclamei em voz alta:
– William, querido anjo! Este é o seu funeral, seu hino fúnebre!
Ao proferir essas palavras, percebi na escuridão uma figura que se
esgueirava por trás de um grupo de árvores. Continuei imóvel, observando
com atenção: não podia estar errado. Um relâmpago iluminou a figura e
me mostrou claramente sua forma; a estatura gigantesca e a deformidade
de seu aspecto hediondo logo me revelaram que aquele era o desgraçado, o
imundo dæmon a quem eu dera vida. O que ele estava fazendo ali? Teria
sido ele – estremeci ante a ideia – o assassino do meu irmão? Assim que a
hipótese passou pela minha cabeça, fiquei convencido de sua verdade;
meus dentes rangeram e fui forçado a me apoiar em uma árvore. A figura
passou velozmente por mim, e eu a perdi na escuridão. Nenhum ser
humano poderia ter sido capaz de acabar com aquela criança. Ele era o
assassino! Eu não tinha dúvidas. A sua mera presença era uma
comprovação irrefutável do fato. Pensei em perseguir o diabo, mas teria
sido em vão; outro clarão o mostrou escalando as rochas na subida quase
perpendicular ao monte Salève, uma colina que circunda Plainpalais ao
sul. Ele logo alcançou o cume e desapareceu.
Permaneci imóvel. O trovão cessou, mas a chuva prosseguiu e o
ambiente foi tomado por uma escuridão impenetrável. Revivi em minha
mente as circunstâncias que até então quisera esquecer: todo o progresso
rumo à criação; a aparição da criatura que construí com as minhas próprias
mãos ao meu lado da cama; a sua partida. Fazia quase dois anos desde a
noite em que ele recebera a vida. Terá sido esse seu primeiro crime? Ai!
Eu lançara ao mundo um miserável depravado, cujo prazer residia na
carnificina e na desgraça.
Ninguém pode conceber a angústia que sofri ao longo do restante da
noite fria e úmida que passei ao ar livre. Não era capaz de sentir a
inconveniência do clima; minha imaginação estava ocupada com cenas de
maldade e desespero. Considerei aquele ser, a quem introduzi à
humanidade dotado de vontade própria e objetivos terríveis, à luz de meu
próprio espírito liberto do túmulo e forçado a destruir tudo o que me era
querido.
O dia amanheceu, e dirigi meus passos à cidade. Os portões estavam
abertos, e corri para a casa de meu pai. Meu primeiro pensamento foi
revelar o que eu sabia sobre o assassino e suscitar uma perseguição
instantânea. Contudo, desisti da ideia depois que refleti sobre a história
que precisaria contar. Um ser que eu mesmo havia formado e a quem havia
imbuído vida me encontrara à meia-noite entre os precipícios de uma
montanha inacessível. Lembrei-me também das febres emocionais que me
acometeram na época em que o construí, e que ampliariam o tom de
delírio a um relato tão improvável. Eu sabia muito bem que, se alguém me
dissesse tal coisa, eu mesmo consideraria a pessoa insana. Além disso,
ainda que conseguisse convencer meus familiares acerca de minha
história, sabia que a natureza estranha do animal frustraria qualquer
perseguição. Quem, afinal, poderia prender uma criatura capaz de escalar
os lados do monte Salève? Tais análises me fizeram optar pelo silêncio.
Eram cinco da manhã quando entrei na casa de meu pai. Orientei os
criados a não perturbarem a família e permaneci na biblioteca até a aurora.
Seis anos se passaram como um sonho – exceto por um traço indelével
–, e eu estava no mesmo lugar em que havia abraçado meu pai pela última
vez antes de partir para Ingolstadt. Querido e venerável pai! Ainda restava
ele para mim. Olhei o retrato de minha mãe sobre a lareira. Era de
temática histórica, pintado a desejo do meu pai, que representava Caroline
Beaufort em desespero enquanto se ajoelhava junto ao caixão de seu pai
morto. A roupa dela era rústica, e a bochecha, pálida, mas havia certo ar de
dignidade e beleza que dificilmente permitia o sentimento de piedade.
Abaixo da imagem havia uma miniatura da de William, e minhas lágrimas
escorreram quando a vislumbrei. Estava absorto quando Ernest entrou; ele
me ouviu chegar e se apressou em me receber, expressando um prazer
triste à minha vista.
– Bem-vindo, meu querido Victor – saudou ele. – Ah! Eu gostaria que
você tivesse vindo há três meses, pois teria nos encontrado felizes e
encantados. Você vem a nós agora para compartilhar uma tormenta que
nada é capaz de aliviar; ainda assim, espero que sua presença anime nosso
pai, que parece estar afundando sob suas aflições. Além disso, sua
persuasão induzirá a pobre Elizabeth a cessar suas autoacusações vãs e
atormentadoras. Pobre William! Ele era nosso amado e nosso orgulho!
Lágrimas desenfreadas caíram dos olhos de meu irmão, e uma sensação
de agonia mortal tomou conta do meu corpo. Antes, eu havia apenas
imaginado a angústia do meu lar desolado; a realidade veio a mim como
um novo desastre, e não menos terrível. Tentei acalmar Ernest
perguntando de forma mais minuciosa sobre meu pai e também sobre
minha prima.
– É ela quem mais precisa de conforto – contou Ernest. – Elizabeth se
culpou pela morte de nosso irmão, e isso a deixou profundamente infeliz.
Porém, agora que sabemos quem cometeu o crime…
– O assassino foi descoberto! Meu Deus! Como isso aconteceu? Quem
poderia tê-lo perseguido? É impossível, é mais fácil tentar ultrapassar os
ventos ou confinar um córrego da montanha a um canudo. Eu o vi; ele
estava livre ontem à noite!
– Não sei o que quer dizer – respondeu meu irmão com um ar admirado.
– Mas, para nós, a descoberta completa o sofrimento. Ninguém acreditou a
princípio, e mesmo agora Elizabeth não está convencida, apesar das
evidências. De fato, quem acreditaria que Justine Moritz, que era tão
amável e gostava de toda a nossa família, pudesse de repente dar cabo a
um crime tão horripilante e aterrador?
– Justine Moritz! Pobre garota! Ela é a acusada? Mas que injusto, todo o
mundo o sabe. Ninguém acredita nisso, não é, Ernest?
– Ninguém acreditava a princípio, mas muitas circunstâncias apontaram
para essa conclusão. Seu próprio comportamento tem sido confuso, o que
acrescenta às evidências um peso que, temo, não deixa esperanças de
dúvida. Mas ela será julgada hoje, e você poderá ouvir tudo.
Ele contou que, na manhã em que o assassinato do pobre William fora
descoberto, Justine havia ficado doente e confinada à sua cama por vários
dias. Durante esse intervalo, um dos empregados examinou as roupas
usadas na noite do assassinato e descobriu no bolso a miniatura de nossa
mãe, considerada a motivação do assassino. O criado mostrou-a
imediatamente a outro empregado que, sem dizer palavra a ninguém da
família, foi a um magistrado. Após o depoimento, Justine foi detida. Após
a acusação, a pobre menina confirmou a suspeita em grande parte por sua
extrema confusão de maneiras.
Tratava-se de uma história estranha, mas incapaz de abalar minha fé.
Respondi, então, de um jeito sério:
– Vocês todos estão enganados. Eu conheço o assassino. A boa e pobre
Justine é inocente.
Naquele instante, meu pai entrou. Avistei a infelicidade impregnada nas
profundezas de seu rosto, mas ele se esforçou para me receber com
alegria. Depois de termos trocado uma saudação pesarosa, ele teria
introduzido outro assunto além do desastre, não fosse a interferência de
Ernest, que exclamou:
– Meu Deus, papai! Victor diz que sabe quem foi o assassino do pobre
William.
– Nós também sabemos, infelizmente – respondeu meu pai. – De fato,
eu preferia ter permanecido ignorante à descoberta de tanta depravação e
ingratidão de uma pessoa a quem eu estimava muito.
– Meu querido pai, você está enganado. Justine é inocente.
– Se ela é, Deus proíba que seja punida injustamente. Ela será julgada
hoje, e torço, de verdade, para que seja absolvida.
Essas palavras me acalmaram. Eu estava plenamente convencido de que
Justine ou qualquer outro ser humano não tinham culpa do assassinato.
Não temia, portanto, que qualquer evidência circunstancial pudesse se
provar forte o suficiente para condená-la. Minha história não podia ser
anunciada em público; seu horror espantoso seria interpretado como
loucura pelas pessoas vulgares. Alguém poderia acreditar, a menos que
seus sentidos o convencessem, na existência do monumento vivo de
presunção e ignorância que eu havia libertado ao mundo?
Elizabeth, então, surgiu. O tempo a mudara desde a última vez em que
eu a vira; dera-lhe uma beleza que superava a graciosidade de seus anos
infantis. Havia a mesma franqueza e o mesmo vigor, mas aliadas a uma
expressão mais emotiva e intelectual. Ela me recebeu com enorme
carinho.
– Sua chegada, meu querido primo, me enche de esperança – disse ela. –
Talvez encontre meios de explicar a culpa da pobre Justine. Ai! Quem
estará seguro se ela for condenada? Confio na inocência dela com absoluta
certeza. Nossa desgraça é duplamente difícil; não apenas perdemos aquele
adorável garoto como também corremos o risco de ver essa pobre menina,
a quem honestamente amo, sofrer um destino ainda pior. Se ela for
condenada, nunca mais conhecerei a alegria. Mas ela não vai, tenho
certeza; então serei feliz de novo, mesmo após a triste morte do meu
pequeno William.
– Ela é inocente, minha Elizabeth – repliquei –, e isso será provado. Não
tema nada e deixe seu espírito ser animado com a garantia de sua
absolvição.
– Quão gentil e generoso você é! Todo o mundo acreditou em sua culpa,
e isso me deixou infeliz, porque sabia que era impossível. Ver os demais
tão convictos havia me deixado sem esperança e em desespero.
Ela chorou.
– Querida sobrinha – disse meu pai –, seque suas lágrimas. Se ela é
inocente, como você acredita, confie na justiça de nossas leis e na minha
atuação a fim de evitar a menor sombra de iniquidade.
CAPÍTULO VIII

COMPARTILHAMOS HORAS TRISTES até as onze da manhã, quando o julgamento


deveria começar. Meu pai e o restante da família foram obrigados a
comparecer como testemunhas, e eu os acompanhei ao tribunal. Durante
toda a zombaria nefasta da justiça, eu me torturava. Seria decidido se o
resultado da minha curiosidade e dos meus instrumentos ilegais causaria a
morte de dois dos meus semelhantes: uma criança sorridente, cheia de
pureza e alegria; e uma mulher inocente, à beira de um destino brutal e
infame que tornaria o crime ainda mais memorável em seu horror. Justine
era uma garota de mérito e possuía qualidades que prometiam tornar sua
vida feliz; agora, porém, tudo seria perdido em uma cova ignominiosa por
minha culpa! Mil vezes eu teria me confessado culpado do crime atribuído
a Justine, mas eu estava ausente quando fora cometido. Minha declaração
seria considerada o delírio de um louco e não livraria a pessoa que sofria
em meu lugar.
A aparência de Justine era calma. Ela estava de luto; e seu rosto, sempre
envolvente, mostrava-se extraordinariamente belo pela solenidade
emocional. Ainda assim, ela parecia confiante em sua inocência e não
tremia, embora contemplada e execrada por milhares, pois toda a bondade
que sua beleza despertava era obliterada na mente dos espectadores pela
divagação quanto à grandiosidade que ela supostamente havia cometido.
Ela estava tranquila, mas sua tranquilidade era evidentemente restrita;
como sua confusão antes fora considerada prova de sua culpa, ela preparou
a mente para transmitir uma aparência de coragem. Ao entrar no tribunal,
Justine perscrutou ao redor e rapidamente descobriu onde estávamos
sentados. Lágrimas pareceram obscurecer seus olhos quando ela nos viu,
mas Justine se recuperou com rapidez, e seu triste olhar de aflição pareceu
atestar sua total ausência de culpa.
O julgamento começou e, uma vez que o promotor declarou a acusação,
várias testemunhas foram chamadas. Diversos acontecimentos estranhos
se articulavam contra a garota, o que poderia ter surpreendido qualquer um
que não detivesse a prova de sua inocência, como era o meu caso. Ela
estivera ausente durante a noite do assassinato e, pela manhã, fora vista
por uma vendedora do mercado não muito longe do local onde o corpo da
criança assassinada fora posteriormente encontrado. A mulher perguntou o
que ela fazia lá, mas Justine parecia estranha e deu apenas uma resposta
confusa e ininteligível. Ela voltou para casa por volta das oito horas, e,
quando alguém perguntou onde ela passara a noite, Justine respondeu que
estava à procura da criança e indagou se alguém havia ouvido algo a seu
respeito. Quando lhe foi mostrado o corpo, ela entrou em um estado de
histeria violenta, permanecendo acamada ao longo de vários dias. A
miniatura encontrada pelo criado no bolso de Justine foi então trazida às
evidências; e quando Elizabeth, com uma voz vacilante, provou que se
tratava da mesma peça que, uma hora antes de a criança ter sido perdida,
ela havia colocado em volta de seu pescoço, um murmúrio de horror e
indignação percorreu a corte.
Justine foi convocada para sua defesa. À medida que o julgamento
prosseguiu, seu semblante se alterou. Surpresa, horror e tormenta foram
fortemente expressos. Em determinados momentos, ela lutou contra as
lágrimas; mas, quando chegou seu momento de defesa, reuniu forças e se
expressou com voz audível, embora inconstante:
– Deus sabe que sou completamente inocente – ela disse. – Mas não
pretendo que meus protestos me absolvam: repouso minha inocência em
uma explicação clara e simples dos fatos que foram levantados contra
mim e espero que o caráter que sempre sustentei incline meus juízes a
uma interpretação favorável na qual qualquer circunstância pareça
duvidosa ou suspeita.
Ela então contou que, com a permissão de Elizabeth, passara o início da
noite do assassinato na casa de uma tia em Chêne, uma aldeia situada a
pouco mais de cinco quilômetros de Genebra. Quando de seu retorno, por
volta das nove horas da noite, ela encontrou um homem que perguntou se
ela havia descoberto alguma coisa sobre a criança desaparecida. Ela ficou
alarmada com esse relato e passou várias horas à sua procura, até que os
portões de Genebra se fecharam e ela se viu obrigada a permanecer por
muitas horas da noite em um celeiro pertencente a um chalé sem atrair a
atenção de seus habitantes, embora os conhecesse. Ela passou a maior
parte da noite em vigília; pela manhã, acreditou ter dormido durante uns
minutos até que foi acordada por passos. Era madrugada, e ela deixou seu
asilo para tentar outra vez encontrar meu irmão. Se ela chegou perto do
local onde o corpo dele estava, foi sem o seu conhecimento. O fato de ela
ter ficado perplexa ao ser interrogada pela vendedora do mercado não era
surpreendente, pois passara a noite sem dormir e o destino do pobre
William ainda era incerto. Em relação à miniatura, ela não sabia o que
dizer.
– Entendo – continuou a infeliz vítima – o peso fatal dessa circunstância
contra mim, mas não tenho o poder de explicá-la. Quando expressei minha
total ignorância, só me restou conjecturar sobre as possibilidades de
alguém ter colocado o objeto em meu bolso, mas quanto a isso também me
sinto confusa. Acredito não ter inimigos, e nenhum certamente teria sido
tão perverso a ponto de me destruir dessa forma. Teria o assassino
colocado a miniatura lá? Não me lembro de nenhuma oportunidade em que
ele poderia tê-lo feito. E, caso o tivesse, por que se separaria da joia logo
após roubá-la?
– Confio minha causa à justiça de meus juízes, mas não vejo espaço
para esperança. Peço permissão para que algumas testemunhas sejam
inquiridas sobre meu caráter; e se o testemunho delas não exceder a minha
suposta culpa, devo ser condenada, embora implore a salvação de minha
alma e a virtude de minha inocência.
Diversas testemunhas que a conheciam e a admiravam havia muitos
anos foram chamadas para argumentar em seu favor; contudo, o medo e o
ódio pelo crime do qual elas a julgavam culpada as fizeram desistir da
apresentação. Quando Elizabeth percebeu que esse último recurso,
relacionado às disposições excelentes da jovem e à sua conduta
irrepreensível, estava prestes a falhar, ela ficou violentamente agitada e
pediu permissão para dirigir-se ao tribunal.
– Sou prima da criança infeliz que foi assassinada, ou melhor, sua irmã,
pois vivi e fui educada por seus pais desde muito antes do nascimento do
menino – contou ela. – Portanto, pode-me ser considerado indecente
apresentar-me nesta ocasião, mas, quando vejo uma criatura prestes a
perecer por causa da covardia de seus amigos, me prontifico a falar o que
sei sobre seu caráter. Conheço bem a acusada. Moramos sob o mesmo teto
na primeira vez por cinco anos e, na segunda, por quase dois anos. Durante
todo esse período, ela me pareceu a mais amável e benevolente dentre as
criaturas humanas. Ela cuidou de madame Frankenstein, minha tia, com o
maior carinho e zelo em sua doença terminal. Depois, auxiliou a própria
mãe enquanto esta perecia de uma enfermidade tediosa, e o fez de tal
forma que suscitou a admiração de todos os que a conheciam. Ainda
depois disso, voltou a morar na casa de meu tio, onde era amada por toda a
família. Ela era calorosamente apegada à criança que está morta, e agia em
relação ao menino como uma mãe muito afetuosa. Da minha parte, não
hesito em dizer que, apesar de todas as evidências levantadas contra ela,
acredito e confio em sua perfeita inocência. Não acredito que houvesse
tentação alguma. Quanto à bugiganga sobre a qual repousa a prova
principal, se Justine a quisesse, eu lhe teria dado de bom grado, tamanha a
minha estima por ela.
Um murmúrio de aprovação se seguiu ao apelo simples e poderoso de
Elizabeth; todavia, ele aludia à sua generosa interferência, e não em favor
da pobre Justine, sobre quem a indignação pública recaiu com violência
renovada ao acusá-la da mais sombria ingratidão. Ela mesma chorou ante
as palavras de Elizabeth, mas não respondeu. Minha própria agitação e
minha angústia foram intensas durante todo o julgamento. Eu acreditava
na inocência dela, sabia que não tinha culpa. Poderia o dæmon, que
assassinou meu irmão (quanto a isso não tinha dúvida), também levar
inocentes à morte e à ignomínia como um esporte infernal? Eu não podia
suportar o horror da minha situação e, quando percebi que a voz popular e
os semblantes dos juízes já haviam condenado minha infeliz vítima, saí
correndo da corte em agonia. A tortura dos acusados não era igual à
minha, mas amparada pela inocência, enquanto as presas do remorso
rasgavam meu peito e não renunciavam ao seu domínio.
Passei uma noite de puro tormento. Pela manhã, fui ao tribunal; meus
lábios e minha garganta estavam ressecados. Não ousei fazer a pergunta
fatal; mas eu era conhecido, e o oficial de justiça adivinhou a causa da
minha visita. As cédulas de votação foram reveladas; por unanimidade,
todos condenaram Justine.
Não é possível descrever o que senti naquele momento. Eu já
experimentara sensações de horror; e me esforcei para descrevê-las de
modo adequado, mas as palavras não conseguem transmitir o desespero
doentio que então sofri. A pessoa a quem eu me dirigi acrescentou que
Justine já havia confessado sua culpa.
– Essa declaração – observou ele – foi praticamente desnecessária em
um caso tão flagrante, mas estou contente com isso; de fato, nenhum de
nossos juízes gosta de condenar um criminoso por evidências
circunstanciais, por mais determinantes que sejam.
Aquilo foi estranho e inesperado; o que poderia significar? Meus olhos
me enganaram? Eu estava realmente tão louco quanto o mundo inteiro
imaginaria que eu estaria se eu revelasse o objeto de minhas suspeitas?
Apressei-me a voltar para casa, e Elizabeth exigiu ansiosamente o
resultado.
– Minha prima – respondi –, foi decidido aquilo que era esperado; todos
os juízes preferem deixar dez inocentes sofrerem do que o culpado
escapar. Ela confessou.
Foi um duro golpe para a pobre Elizabeth, que confiava com firmeza na
inocência de Justine.
– Ai! – disse ela. – Como é que eu voltarei a acreditar na bondade
humana? Justine, a quem amei e estimei como irmã, escondia sua traição
por trás de sorrisos inocentes? Seus olhos suaves pareciam incapazes de
qualquer severidade ou dolo; e, no entanto, ela cometeu um assassinato.
Logo depois, soubemos que a pobre vítima expressara o desejo de ver
minha prima. Meu pai desejou que ela não fosse, mas disse que a decisão
final cabia a Elizabeth.
– Sim – ela concluiu. – Eu irei, embora ela seja culpada; e você, Victor,
me acompanhará: não posso ir sozinha.
A ideia dessa visita foi uma tortura para mim, mas não pude recusar.
Entramos na câmara sombria da prisão e avistamos Justine sentada na
palha, na outra extremidade; suas mãos estavam algemadas e sua cabeça
apoiada nos joelhos. Ela se levantou ao nos ver entrar e, quando ficamos
sozinhos, ela se jogou aos pés de Elizabeth, chorando com amargor. Minha
prima também chorou.
– Ah, Justine! – disse ela. – Por que você me roubou meu último
consolo? Confiei em sua inocência; e, embora estivesse muito infeliz, não
estava tanto como agora.
– E você também acredita que eu sou tão má? Você também se junta aos
meus inimigos para me esmagar, para me condenar como assassina? – sua
voz estava sufocada com soluços.
– Levante-se, minha pobre menina – pediu Elizabeth. – Por que ajoelha
se é inocente? Não sou sua inimiga; acreditei em você apesar de todas as
evidências, até que soube que você tinha declarado sua culpa. Mas agora
você me diz que essa informação é falsa. Tenha certeza, querida Justine, de
que nada pode abalar minha confiança em você por um momento, exceto
sua própria confissão.
– Eu confessei; no entanto, era uma mentira. Confessei para conquistar
a absolvição, mas agora essa falsidade pesa mais em meu coração do que
todos os meus outros pecados. Ah, meu Deus, me perdoe! Desde que fui
condenada, meu confessor tem me cercado; ele me ameaçou de tal forma
que quase passei a acreditar que eu era, de fato, um monstro. Ele me
ameaçou com a excomunhão e o fogo do inferno se eu permanecesse
obstinada. Cara senhora, não tive ninguém em quem me apoiar enquanto
todos me olhavam como uma miserável condenada à ignomínia e à
perdição. O que eu poderia fazer? Naquela hora terrível, declarei uma
mentira; e agora estou verdadeiramente infeliz. – Ela fez uma pausa e,
com a voz embargada, continuou: – Senti-me horrorizada, minha doce
dama, com a possibilidade de você acreditar que sua Justine, a quem sua
abençoada tia honrara muito e a quem você amava, seria uma criatura
capaz de um crime que ninguém mais do que o próprio diabo poderia ter
perpetrado. Querido William! Querida criança abençoada! Logo voltarei a
vê-lo no céu, onde todos seremos felizes; e isso me consola diante da
infâmia e da morte.
– Ah, Justine! Perdoe-me por desconfiar de você por um momento. Por
que você confessou? Mas não lamente, querida garota. Não tema. Vou
provar sua inocência. Derreterei o coração de pedra de seus inimigos com
minhas lágrimas e orações. Você não morrerá, minha companheira de
brincadeiras, amiga e irmã que perece no cadafalso! Não! Não! Eu nunca
poderia sobreviver a um infortúnio tão horrível.
Justine balançou a cabeça com tristeza.
– Não tenho medo de morrer agora – disse ela. – Essa dor já não existe.
Deus aumenta minha força e me dá coragem para suportar o pior. Deixo
um mundo triste e amargo; e, se você se lembrar de mim como uma
inocente, me resignarei ao destino que me aguarda. Aprenda comigo,
querida senhora, a submeter-se com paciência à vontade divina!
Durante a conversa, retirei-me para um canto a fim de esconder a
terrível angústia que me assolava. Desespero! Quem se atrevia a falar
sobre isso? A pobre vítima, que no dia seguinte atravessaria a fronteira
entre a vida e a morte, não sentia, como eu, uma agonia tão profunda e
amarga. Rangi meus dentes, soltando um gemido do fundo de minha alma.
Justine se sobressaltou. Ela se aproximou de mim e disse:
– Caro senhor, você é muito gentil por me visitar. Espero que não
acredite na minha culpa.
Não pude responder.
– Não, Justine – disse Elizabeth. – Ele está tão convencido de sua
inocência quanto eu. Mesmo quando soube que você havia confessado, ele
não deu crédito.
– Realmente agradeço a ele. Nestes últimos momentos, sinto a mais
sincera gratidão por aqueles que pensam em mim com bondade. Quão
doce é a afeição dos outros por uma desgraçada como eu! Isso alivia mais
da metade da minha tribulação. Sinto como se eu pudesse morrer em paz,
agora que minha inocência é reconhecida por você, querida senhora, e seu
primo.
Assim, a pobre sofredora tentou consolar os outros e a si própria. Ela
efetivamente obteve a resignação que desejava. Mas eu, o verdadeiro
assassino, sentia nas entranhas o verme invencível que me tirava as
esperanças e o consolo. Elizabeth também chorou e ficou deprimida;
porém, ela sentia uma infelicidade inocente, que, tal qual uma nuvem
diante de uma bela lua, tenta escondê-la, mas sem sucesso, pois não
consegue ocultar seu brilho. Angústia e desespero penetraram no meu
coração; eu carregava um inferno dentro de mim, algo que nada poderia
extinguir. Ficamos várias horas com Justine; e foi com grande dificuldade
que Elizabeth conseguiu se afastar.
– Gostaria de morrer ao seu lado – ela exclamou. – Não posso viver
neste mundo miserável.
Justine assumiu um ar de alegria enquanto reprimia com dificuldade
suas lágrimas amargas. Ela abraçou Elizabeth e disse, numa voz de
emoção incontida:
– Adeus, doce senhora. Querida Elizabeth, minha amada e única amiga;
que o Céu, em sua generosidade, abençoe e preserve você. Que este venha
a ser o último infortúnio de sua vida. Viva, seja feliz e faça os outros
felizes.
No dia seguinte, Justine morreu. A eloquência emocionante de Elizabeth
não conseguiu afastar os juízes de sua convicção sobre a culpa da virtuosa
sofredora. Meus apelos apaixonados e indignados foram em vão. E,
quando me deparei com as respostas frias e o raciocínio insensível desses
homens, minha promessa de confissão morreu nos meus lábios. Eu seria
proclamado louco, mas não seria capaz de revogar a sentença proferida
sobre minha vítima desventurada. Ela morreu no cadafalso como
assassina!
Das torturas do meu próprio coração, passei a contemplar o pesar
profundo e silencioso de minha Elizabeth; aquilo também era minha culpa.
A angústia de meu pai e a desolação daquela tarde tão sorridente eram
igualmente obra de minhas mãos três vezes malditas! Chorem, infelizes;
essas não serão suas últimas lágrimas! Uma vez mais vocês lidarão com o
lamento fúnebre, e o som de seus prantos será ouvido repetidas vezes! É
Frankenstein, seu filho, parente e amigo tão amado – aquele que gastaria
cada gota vital do próprio sangue por vocês; que não tem pensamentos ou
sentimentos de alegria a não ser que estejam refletidos também em seus
estimados semblantes; e que encheria o ar de bênçãos se passasse o resto
da vida a servi-los – que ordena que vocês chorem incontáveis lágrimas.
Feliz ele seria se, dessa forma, o destino inexorável se abrandasse e a
destruição fosse interrompida antes que a paz da sepultura sucedesse seus
tristes tormentos!
Assim falou minha alma profética, quando, dilacerado pelo remorso,
horror e desespero, vi aqueles que amava chorarem sobre os túmulos de
William e Justine, as primeiras vítimas infelizes de minhas artes profanas.
CAPÍTULO IX

NADA É MAIS DOLOROSO para a mente humana do que a inércia que se


instaura após uma rápida sucessão de eventos tempestuosos, privando a
alma da esperança e do medo. Justine estava morta; ela descansara,
enquanto eu permanecia vivo. O sangue corria livremente em minhas
veias, mas o peso do desespero e do remorso pressionava meu coração sem
que nada pudesse removê-lo. O sono fugiu dos meus olhos; vaguei como
um espírito maligno, pois havia cometido atos de malícia
inimaginavelmente horríveis, e mais, muito mais ainda estava por vir,
como me convenci. Ainda assim, meu coração transbordava de bondade e
amor à virtude. Eu tinha começado a vida com intenções benevolentes,
sedento pelo momento em que iria colocá-las em prática e me tornar útil
aos meus semelhantes. Agora tudo estava destruído: em vez daquela
serenidade de consciência, que me permitia olhar para o passado com
satisfação e de lá angariar promessas de novas esperanças, fui tomado pelo
remorso e pelo sentimento de culpa, que me lançaram a um inferno de
torturas intensas que nenhuma linguagem conseguiria descrever.
Esse estado de espírito tomou conta da minha saúde, que provavelmente
nunca se recuperou desde o primeiro choque que sofreu. Evitei o rosto das
pessoas; todo som de alegria ou complacência era tortura para mim. A
solidão, profunda e sombria como a morte, tornou-se minha única
consolação.
Meu pai sofria ao observar a alteração perceptível em minha disposição
e meus hábitos, e se empenhou com argumentos tirados de sua consciência
serena e vida sem culpa a me inspirar coragem para dissipar a nuvem
obscura que pairava sobre mim.
– Você acha, Victor – disse ele –, que também não sofro? Ninguém
poderia amar uma criança mais do que eu amava seu irmão. – As lágrimas
vieram aos seus olhos enquanto ele falava. – Mas é um dever dos
sobreviventes evitar que não apenas a infelicidade dos demais aumente
com uma aparência de tristeza imoderada, mas também a de nós mesmos.
A tristeza excessiva impede nosso crescimento, o prazer e até mesmo as
funções diárias, sem as quais nenhuma pessoa é adequada para a
sociedade.
Tal conselho, embora fosse bom, era totalmente inaplicável ao meu
caso; eu teria sido o primeiro a esconder minha aflição e consolar meus
amigos se o remorso amargo e o terror não tivessem se mesclado aos meus
outros sentimentos. Agora eu só podia responder a meu pai com um olhar
de desespero, e me esforçava para me esconder de sua vista.
Nessa época, retiramo-nos para nossa casa em Belrive; a mudança foi
particularmente agradável para mim. O fechamento dos portões
regularmente às dez horas e a impossibilidade de permanecer no lago
depois daquele horário tornavam nossa residência dentro dos muros de
Genebra muito penosa. Agora, eu estava livre. Muitas vezes, depois que o
restante da família se recolhia durante a noite, eu pegava um barco e
passava horas na água. Às vezes, com minhas velas a postos, eu era
carregado pelo vento; outras vezes, depois de remar até o meio do lago,
deixava o barco seguir seu próprio caminho e dava lugar às minhas
reflexões amargas. Muitas vezes, quando tudo estava em paz ao meu redor
e eu era a única coisa inquieta que vagava em um cenário tão bonito e
paradisíaco – exceto por algum morcego ou sapo, cujo coaxar áspero era
ouvido apenas quando eu me aproximava da costa – me sentia tentado a
mergulhar no lago silencioso para que as águas se fechassem sobre mim e
sobre minhas calamidades para sempre. Porém, continha-me quando
pensava na heroica e sofredora Elizabeth, a quem amava com ternura e
cuja existência estava ligada à minha. Pensava também no meu pai e no
meu irmão sobrevivente: poderia, em minha deserção, deixá-los expostos
e desprotegidos à malícia do demônio que eu soltara entre eles?
Nesses momentos, eu chorava amargamente e desejava que a paz
revisitasse minha mente apenas para que eu pudesse lhes fornecer consolo
e felicidade. Mas isso não era possível. O remorso extinguira toda a
esperança. Eu tinha sido o autor de males inalteráveis; e vivia com o medo
diário de que o monstro que eu havia criado perpetrasse uma nova
maldade. Eu tinha uma sensação obscura de que ele ainda não havia
acabado, e que cometeria algum crime cuja enormidade chegaria perto de
ofuscar a lembrança do passado. Havia sempre espaço para o medo, desde
que qualquer ser que eu amasse estivesse vivo. Logo, minha aversão a esse
demônio não podia ser concebida. Quando pensava nele, rangia os dentes,
inflamava os olhos e desejava com intensidade extinguir a vida que eu
havia lhe concedido tão impensadamente. Ao refletir sobre seus crimes e
sua malícia, meu ódio e meu desejo de vingança extrapolavam todos os
limites da moderação. Se eu pudesse, teria feito uma peregrinação ao mais
elevado pico dos Andes a fim de atirá-lo do alto. Eu queria vê-lo de novo
para que pudesse lhe causar o máximo de estrago e vingar as mortes de
William e Justine.
Nossa casa era o lar do luto. A saúde do meu pai ficou profundamente
abalada pelos horrores dos acontecimentos recentes. Elizabeth estava
desolada e inexpressiva. Ela já não se deleitava com suas ocupações
comuns; todo o prazer lhe parecia sacrilégio pelos mortos, e somente as
eternas angústias e lágrimas eram consideradas por ela um tributo justo à
inocência destruída. Ela não era mais aquela criatura feliz, que na
juventude passeava comigo às margens do lago e argumentava em êxtase
sobre nossas perspectivas futuras. A tristeza feita para nos afastar do
mundo a visitou, e sua influência sombria apagou seus mais queridos
sorrisos.
– Quando reflito, meu querido primo, sobre a morte miserável de
Justine Moritz, não vejo mais o mundo e suas obras como antes – disse
ela. – Antigamente, via os relatos de vício e injustiça, provenientes de
livros ou da conversa de outras pessoas, como contos dos tempos antigos
ou males imaginários. Para mim, eram coisas remotas e mais familiares à
razão do que à imaginação; agora, porém, a desgraça chegou à nossa
família, e os homens me parecem monstros sedentos pelo sangue uns dos
outros. No entanto, sei que sou injusta. Todo o mundo acreditava que a
pobre garota era culpada, e se ela tivesse cometido o crime pelo qual
pagou com a vida, sem dúvida teria sido a mais depravada das criaturas
humanas. Há maior perversão do que, pela cobiça de umas joias,
assassinar o filho de sua benfeitora e amiga, uma criança que ela havia
cuidado desde o nascimento e parecia amar como se fosse o próprio filho?
Eu não poderia consentir com a morte de nenhum ser humano, mas
certamente pensaria se tratar de uma criatura imprópria para permanecer
em sociedade. Contudo, ela era inocente. Eu sei, sinto que ela era inocente;
você é da mesma opinião, e isso me confirma. Ai, Victor, quando a
falsidade pode assemelhar-se tanto à verdade quem pode se assegurar da
felicidade? Sinto como se estivesse caminhando à beira de um precipício
para o qual milhares estão se aglomerando e tentando me mergulhar no
abismo. William e Justine foram assassinados, e o criminoso está à solta;
ele vaga pelo mundo livre, talvez até respeitado. Mas ainda que fosse
condenada a sofrer no cadafalso pelos mesmos crimes, eu não trocaria
meu lugar pelo desse miserável.
Ouvi o discurso com extrema agonia. Eu – não de fato, mas por efeito –
era o verdadeiro assassino. Elizabeth leu a angústia em minha tez e,
gentilmente, pegou minha mão.
– Meu querido amigo, você deve se acalmar. Esses eventos me afetaram
só Deus sabe o quão profundamente, mas não estou tão aflita quanto você.
Há uma expressão de desespero, e às vezes de vingança, em seu semblante
que me faz tremer. Querido Victor, esqueça essas paixões sombrias.
Lembre-se dos amigos ao seu redor, que centram todas as esperanças em
você. Será que perdemos o poder de fazê-lo feliz? Enquanto amarmos e
formos fiéis uns aos outros, aqui na sua terra natal de paz e beleza onde
podemos colher todas as bênçãos tranquilas, o que pode perturbar nossa
paz?
Por que essas palavras dela, que eu apreciava com mais carinho do que
qualquer outro presente, não eram suficientes para afugentar o demônio
que espreitava em meu coração? Enquanto Elizabeth falava, eu me
aproximei dela, aterrorizado pela ideia de que o destruidor estivesse por
perto com o intuito de me tirar dali.
Assim, nem a ternura da amizade nem a beleza do céu e da terra
puderam resgatar minha alma da angústia: os próprios acenos do amor
eram ineficazes. Eu estava cercado por uma nuvem na qual nenhuma
influência benéfica poderia penetrar. Eu era o cervo ferido que se arrasta
para um lugar afastado na mata a fim de contemplar a flechada sofrida e
morrer.
Às vezes, eu conseguia lidar com o desespero sombrio que me
dominava. Porém, em outros momentos, o turbilhão de paixões em minha
alma me levava a buscar, por meio do exercício físico e da mudança de
lugar, determinado alívio para minhas sensações intoleráveis. Foi durante
um desses acessos que saí de repente de casa e, indo na direção dos vales
alpinos, procurei na sua magnificência e eternidade esquecer de mim e de
minhas efêmeras, dado que humanas, mágoas. Minhas peregrinações me
direcionaram ao vale de Chamounix. Eu o visitava com frequência durante
a minha adolescência. Seis anos se passaram desde então; eu estava em
ruínas, mas nada havia mudado naqueles cenários selvagens e duradouros.
Realizei a primeira parte da minha jornada a cavalo. Depois, aluguei
uma mula, por se tratar do animal mais seguro e menos suscetível a sofrer
ferimentos nessas estradas acidentadas. O clima estava bom: em meados
de agosto, quase dois meses após a morte de Justine – aquela época
miserável marcada pela aflição. O peso sobre o meu espírito foi
sensivelmente aliviado quando mergulhei ainda mais fundo na ravina de
Arve. As imensas montanhas e os precipícios que pairavam por todos os
lados, bem como o som do rio furioso entre as rochas e o bater das
cachoeiras ao redor, falavam de um poder absoluto, Onipotente; e deixei
de temer ou de me curvar diante de qualquer ser menos poderoso do que
aquele que criara e governara os elementos, aqui exibidos em sua
aparência mais fantástica.
Ainda assim, quanto mais alto eu subia, mais o vale assumia um caráter
magnífico e surpreendente. Castelos em ruínas à beira de montanhas
pontiagudas; o impetuoso Arve e os chalés que aqui e ali espreitavam
entre as árvores formavam um cenário de singular beleza. Tudo, porém,
ficava ainda mais sublime com os poderosos Alpes, cujas pirâmides e
cúpulas brancas se elevavam acima de todas as coisas como se
pertencentes a outro mundo e habitadas por outra raça de seres.
Passei pela ponte de Pélissier, onde a ravina formada pelo rio se abria à
minha frente, e comecei a subir a montanha que pendia sobre ela. Logo
depois entrei no vale de Chamounix. O lugar era maravilhoso e sublime,
mas não tão bonito e pitoresco como aquele de Servox pelo qual eu
acabara de passar. As montanhas altas e nevadas eram seus limites
imediatos, mas não vi mais castelos em ruínas ou campos férteis. Geleiras
imensas se aproximavam da estrada, ouvi o trovão estrondoso da
avalanche caindo e avistei a nuvem de sua passagem. O Mont Blanc, o
supremo e magnífico Mont Blanc, ergueu-se entre as aiguilles
circundantes, com seu tremendo dôme dominando o vale.
Uma sensação de prazer há muito perdida formigou com frequência
durante essa jornada. Algumas curvas inesperadas no caminho e uns
objetos reconhecidos lembraram-me dos dias passados e associados à
alegria leve da infância. Os próprios ventos sussurravam de forma suave, e
a natureza materna não mais me fez chorar. Então, novamente, a influência
gentil deixou de agir, e me vi novamente preso ao pesar e cedendo a todo o
desespero da reflexão. Esporeei meu animal, tentando esquecer o mundo,
meus medos e, mais do que tudo, eu mesmo – e então, de maneira mais
desesperada, desci e me joguei na relva, sobrecarregado pelo horror e o
desespero.
Enfim cheguei à vila de Chamounix. Meu corpo e minha mente foram
tomados pelo maior cansaço que já havia experimentado. Por um breve
período, fiquei na janela observando os relâmpagos pálidos que pairavam
sobre Mont Blanc e ouvindo os sons do Arve, que seguia ruidosamente por
baixo. Os mesmos sons agiram como uma canção de ninar para minhas
sensações tão aguçadas; quando coloquei minha cabeça no travesseiro, o
sono logo se aproximou. Eu o senti assim que ele veio e abençoei-o pelo
esquecimento que me proporcionava.
CAPÍTULO X

PASSEI O DIA SEGUINTE vagando pelo vale. Fiquei ao lado das fontes do
Arveiron, que se erguem em uma geleira que desce lentamente do cume
das colinas para barricar o vale. Os lados abruptos das vastas montanhas
estavam diante de mim e a muralha da geleira erguia-se ao redor, enquanto
pinheiros despedaçados se espalhavam à minha volta. O silêncio solene
desse salão nobre da natureza era interrompido apenas pelas ondas
violentas, a queda de um vasto fragmento, o trovão de uma avalanche ou
pelo estalo dos blocos de gelo nas montanhas que, por meio do trabalho
silencioso das leis imutáveis, sempre se estilhaçavam em partículas, como
meros brinquedos em suas mãos. Essas cenas sublimes e magníficas me
proporcionaram maior consolo do que eu era capaz de receber. Elas me
elevaram de toda a pequenez dos sentimentos; e, embora não tenham
eliminado minha dor, elas a subjugaram e a tranquilizaram. Em certo grau,
também, tais cenas desviaram minha mente dos pensamentos sobre os
quais ponderara no último mês. Eu me retirei para descansar à noite; meus
sonos, por assim dizer, ministravam uma assembleia das grandes formas
que eu contemplara durante o dia. Elas se reuniam ao meu redor; o topo
nevado da montanha, o pináculo cintilante, a floresta de pinheiros, a ravina
nua e a águia, que voava entre as nuvens – todas à minha volta inspirando
a minha paz.
Para onde eles haviam fugido quando acordei na manhã seguinte? Todas
as inspirações da alma foram embora com o sono, e a melancolia sombria
obscureceu todos os meus pensamentos. A chuva caía em torrentes, e
névoas grossas escondiam os cumes das montanhas, de modo que não se
podiam ver os rostos daqueles amigos poderosos. Mesmo assim, iria
penetrar no véu enevoado para procurá-los em seus retiros nublados. O que
eram a chuva e a tempestade para mim? Minha mula foi trazida até a porta
e resolvi subir ao cume de Montanvert. Lembrei-me do efeito que a
imagem da enorme geleira produzira em minha mente quando a vi pela
primeira vez. Ela me encheu de um êxtase sublime, que deu asas à alma e
lhe permitiu voar do mundo obscuro em busca de luz e alegria. A visão da
natureza impressionante e majestosa sempre teve o efeito de solenizar
minha mente e me fazer esquecer as inquietações passageiras da vida.
Decidi partir sem um guia, pois conhecia bem o caminho, e a presença de
outra pessoa destruiria a grandeza solitária da cena.
A subida é íngreme, mas o caminho é sinuoso, o que permite superar a
perpendicularidade da montanha. A cena é terrivelmente desoladora. Os
vestígios da avalanche de inverno podem ser percebidos em mil pontos,
onde há árvores quebradas e espalhadas pelo chão: algumas,
completamente destruídas; outras, curvadas e inclinadas sobre as rochas
salientes da montanha ou caídas sobre as demais árvores. Conforme
avanço, observo o caminho cortado por ravinas de neve, pelas quais pedras
rolam continuamente de cima. Uma delas é em especial perigosa, pois o
menor som, como falar em voz alta, produz uma concussão de ar
suficiente para causar destruição sobre a cabeça do falante. Os pinheiros já
não se mostram altos ou luxuriantes, mas sombrios, o que confere à cena
um ar de severidade. Olhei para o vale abaixo; vastas névoas se erguiam
dos rios que corriam por ele e se enrolavam em grinaldas espessas ao
redor das montanhas em oposição, cujos cumes se escondiam entre as
nuvens uniformes enquanto a chuva caía do céu escuro e aumentava a
impressão melancólica dos objetos ao meu redor. Ai! Por que os homens
se vangloriam de sensibilidades superiores àquelas de nosso estado bruto,
se isso apenas os torna seres mais necessitados? Se nossos impulsos se
restringissem a fome, sede e desejo, poderíamos ser quase livres; porém,
somos movidos por todo vento que sopra, bem como por palavras e cenas
do acaso.

Um sonho envenena nosso dormir.


Um pensamento errante polui o acordar.
Sentir, conceber, raciocinar, chorar ou rir,
Abraçar a dor ou as preocupações, afastar;
É tudo igual: pois ainda era livre o caminho de partida,
Seja na tristeza ou na felicidade,
O ontem pode não ser como o amanhã na nossa vida;
Nada pode durar senão a mutabilidade!10
Era quase meio-dia quando cheguei ao topo da escalada. Por certo
tempo, sentei-me na rocha com vista para o mar de gelo. Uma névoa o
cobria e às montanhas circundantes. Naquele momento, uma brisa dissipou
a névoa e desci sobre a geleira. A superfície era muito irregular, elevada
como as ondas de um mar agitado e entremeada por fendas altamente
afundadas. O campo de gelo tinha mais de cinco quilômetros de largura,
mas passei quase duas horas cruzando-o. A montanha oposta era uma
rocha perpendicular desnuda. Do lado em que eu estava agora, Montanvert
ficava na direção contrária, à distância de cinco quilômetros e meio.
Acima, estava o Mont Blanc, com sua majestade impressionante.
Posicionei-me no recesso da rocha e contemplei o panorama maravilhoso
e estupendo. O mar, ou melhor, o vasto rio de gelo, serpenteava entre
montanhas dependentes, cujos cumes aéreos pairavam sobre seus recessos.
Seus picos gelados e brilhantes cintilavam à luz do sol sobre as nuvens.
Meu coração, que antes estava deprimido, encheu-se de algo que parecia
alegria. Eu exclamei:
– Espíritos errantes, se é que vagueiam e não descansam em suas camas
estreitas, permitam-me essa fraca felicidade, ou me levem, como seu
companheiro, para longe das alegrias da vida.
Ao dizer isso, de repente vi a figura de um homem, a certa distância,
avançando em minha direção com velocidade sobre-humana. Ele saltou
sobre as fendas no gelo, entre as quais eu havia andado com cautela;
conforme se aproximava, notava que sua estatura parecia exceder a de um
homem. Fiquei perturbado: uma névoa apareceu nos meus olhos e senti
uma fraqueza tomar conta de mim; mas fui rapidamente restaurado pelo
vendaval frio das montanhas. Percebi, à medida que a figura chegava perto
– visão tremenda e abominável! –, que se tratava do desgraçado que eu
havia criado. Tremi de raiva e horror, resolvendo esperar sua aproximação
para travar um combate mortal. Ele se aproximou; seu rosto expressava
uma angústia amarga, combinada com desdém e malignidade, enquanto
sua feiura sobrenatural o tornava quase horrível demais para os olhos
humanos. Mas eu mal observei isso; raiva e ódio haviam me privado da
fala, e eu me recuperei apenas para lhe despejar palavras expressivas de
desprezo furioso e repulsa.
– Diabo! – exclamei. – Como se atreve a se aproximar de mim? Não
teme a vingança feroz do meu braço em sua cabeça miserável? Vá embora,
inseto vil! Ou melhor, fique, para que eu possa pisar em você! Ah, se eu
pudesse, com a erradicação de sua existência miserável, restaurar aquelas
vítimas que você matou tão diabolicamente!
– Eu esperava essa recepção – disse o dæmon. – Todos os homens
odeiam os miseráveis; mas por que devo ser odiado se sou miserável para
além de todas as coisas vivas? Meu próprio criador detesta e rejeita sua
criatura, a quem está vinculado por laços apenas dissolúveis pela
aniquilação de um de nós. Você pretende me matar. Como se atreve a
brincar de tal forma com a vida? Cumpra seu dever para comigo, e
cumprirei o meu para com você e para com o restante da humanidade. Se
concordar com minhas condições, deixarei você em paz; mas, se recusar,
continuarei a alimentar a boca da morte até que ela seja saciada com o
sangue de seus amigos restantes.
– Monstro abominável! Demônio que é! As torturas do inferno são uma
vingança muito suave para seus crimes. Diabo miserável! Você me
condena por tê-lo criado. Venha, então, para que eu possa extinguir a
centelha que tão negligentemente lhe concedi.
Minha raiva não tinha limites. Saltei sobre ele, impelido por todos os
sentimentos que podem armar um ser contra a existência de outro.
Ele se desviou facilmente e disse:
– Fique calmo! Peço que me ouça antes de despejar seu ódio em minha
cabeça devotada. Já não sofri o suficiente para que você tente aumentar
minha tormenta? A vida, embora seja apenas um acúmulo de angústias, é
querida para mim, e irei defendê-la. Lembre-se: você me fez mais
poderoso do que a si próprio; minha altura é superior à sua e minhas
articulações são mais flexíveis. Não serei, porém, tentado a me colocar em
oposição a você. Sou sua criatura e serei suave e dócil ao meu senhor e rei
se você também desempenhar sua parte, a qual me deve. Ah, Frankenstein,
não seja justo com o outro e pise somente em mim, a quem você deve sua
justiça e até a sua clemência e afeição. Lembre-se de que sou sua criatura;
eu deveria ser seu Adão, mas sou o anjo caído, a quem você priva da
alegria sem que eu tenha culpa. Em todo lugar vejo felicidade, da qual sou
irrevogavelmente excluído. Eu era benevolente e bom; a infelicidade me
tornou um demônio. Faça-me feliz e voltarei a ser virtuoso.
– Desapareça! Não vou ouvir você. Não pode haver comunhão entre nós;
somos inimigos. Vá embora, ou vamos nos enfrentar em uma luta até que
um de nós caia.
– Como posso comover você? Não há pedido que o faça dispensar um
olhar favorável sobre a sua criatura, que implora a sua bondade e
compaixão? Acredite em mim, Frankenstein: eu era benevolente; minha
alma brilhava de amor e humanidade. Mas não estou sozinho,
miseravelmente sozinho? Você, meu criador, me abomina; que esperança
posso obter de seus semelhantes, que não me devem nada? Eles me
desprezam e me odeiam. As montanhas do deserto e as geleiras sombrias
são o meu refúgio. Tenho vagado aqui muitos dias; as cavernas de gelo, as
quais não temo, são uma morada para mim, a única que o homem não
inveja. Saúdo esses céus sombrios, pois eles são mais gentis comigo do
que seus semelhantes. Se toda a humanidade soubesse da minha
existência, eles fariam como você e se armariam para a minha destruição.
Não devo então odiar aqueles que me abominam? Não manterei acordo
com meus inimigos. Sou infeliz, e eles compartilharão minha desventura.
No entanto, está em seu poder me recompensar, libertando-os de um mal
que, diante de sua recusa, pode se estender não apenas a você e à sua
família, mas a milhares de outras pessoas que serão engolidas pelos
turbilhões da raiva. Deixe-me tocar sua compaixão e não me despreze.
Ouça a minha história e, só depois, decida se mereço o abandono ou a
clemência. Mas me ouça. Os culpados, por mais sangrentos que sejam,
têm permissão pelas leis humanas de falar em sua própria defesa antes de
serem condenados. Ouça-me, Frankenstein. Você me acusa de assassinato,
e, ainda assim, ameaça destruir sua própria criatura com a consciência
tranquila. Ah, louvada seja a eterna justiça do homem! No entanto, peço
que não me poupe: ouça-me. E então, se puder ou quiser, destrua o
trabalho de suas mãos.
– Por que você me recorda – disse eu – circunstâncias que me fazem
estremecer e cuja origem e autoria desafortunadas são minhas? Maldito
seja o dia, diabo abominável, em que você viu a luz pela primeira vez!
Amaldiçoadas sejam as mãos que o formaram! Você me deixou infeliz de
forma irreparável e sem o poder de decidir se sou justo com você ou não.
Vá embora! Alivie-me da visão de sua forma detestável.
– Assim eu o alivio, meu criador – disse ele, colocando suas mãos
odiadas diante dos meus olhos, as quais afastei com violência. – Retiro de
você a visão que abomina. Assim, pode me ouvir e me conceder sua
compaixão em nome das virtudes que já possuí. Ouça minha história: ela é
longa e estranha, e a temperatura deste lugar não é adequada às suas
refinadas sensações. Venha para a cabana na montanha. O sol ainda está
alto nos céus, e antes que ele desça para se esconder atrás dos precipícios
nevados e iluminar outro mundo, já terá ouvido minha história e poderá
fazer sua escolha. A você cabe decidir se deixo o convívio dos homens e
levo uma vida inofensiva, ou se me torno o flagelo de seus semelhantes e o
autor de sua própria ruína.
Enquanto ele dizia isso, liderava o caminho pelo gelo. Eu o seguia. Meu
coração estava cheio e eu não lhe respondia. Contudo, à medida que
prosseguimos, ponderei os vários argumentos que ele usara e decidi ao
menos escutar sua história. Fui parcialmente instigado pela curiosidade, e
a compaixão fortaleceu minha resolução. Até então, eu o tomara como o
assassino de meu irmão, e busquei ansiosamente a confirmação ou a
negação de tal acusação. Pela primeira vez, também vi quais eram os
deveres de um criador em relação à sua criatura, e que eu deveria ter lhe
dado felicidade antes de me queixar de sua maldade. Esses motivos me
fizeram cumprir sua exigência. Atravessamos o gelo, portanto, e subimos
o rochedo oposto. O ar estava frio e a chuva começava a cair novamente.
Entramos na cabana; o demônio com um ar de exultação e eu com o
coração pesado e os ânimos deprimidos. Mas eu consentira em ouvir e,
sentando-me junto ao fogo que meu odioso companheiro acendera, dei
ouvidos à sua história.
- Tradução livre de trecho do poema “Mutabilidade”, de Percy Bysshe
Shelley. (N. T.)
CAPÍTULO XI

‒ÉCOM CONSIDERÀVEL DIFICULDADE que me lembro da era original do meu


ser: todos os eventos daquele período parecem confusos e indistintos. Uma
estranha multiplicidade de sensações me assolou, e vi, senti, ouvi e cheirei
ao mesmo tempo; de fato, demorou muito tempo até que eu aprendesse a
distinguir entre as operações dos meus vários sentidos. Lembro-me
vagamente de uma claridade intensa pressionando meus nervos e me
obrigando a fechar os olhos. A escuridão subsequente me perturbou, de
modo que abri os olhos de novo e permiti que a luz voltasse a recair sobre
mim. Andei e, acredito, desci; então, em pouco tempo, deparei-me com
uma grande modificação em minhas sensações. Antes, corpos escuros e
opacos me cercavam, impermeáveis ao meu toque ou visão; agora,
entretanto, havia descoberto que podia perambular em liberdade, sem
obstáculos que me atrapalhassem. A luz tornou-se cada vez mais opressiva
e, com o calor que me cansava durante a caminhada, procurei um lugar
onde as sombras pudessem incidir sobre mim. Refugiei-me na floresta
perto de Ingolstadt; lá fiquei deitado ao lado de um riacho até me sentir
atormentado pela fome e pela sede. Isso me despertou de meu estado
quase adormecido, e então comi frutas que encontrei penduradas nas
árvores ou caídas no solo. Matei minha sede no riacho e me deitei outra
vez, vencido pelo sono.
Estava escuro quando acordei; senti frio e, por instinto, um pouco de
medo ao me encontrar tão desolado. Antes de deixar o seu apartamento,
me cobri com algumas roupas à procura de evitar o frio; todavia, foram
insuficientes para me proteger do orvalho da noite. Eu era um pobre
coitado, desamparado e sofrido; não sabia e não conseguia distinguir nada.
Mas, sentindo a dor me invadir por todos os lados, sentei-me e chorei.
Logo uma luz suave invadiu o céu e me conferiu uma sensação de
prazer. Mirei para cima e vislumbrei uma forma radiante surgir por entre
as árvores. Observei com uma espécie de admiração. Ela movia-se com
lentidão, mas iluminava meu caminho, e novamente saí em busca de
frutas. Ainda estava com frio quando, sob uma das árvores, encontrei uma
capa enorme com a qual me cobri e me sentei no chão. Nenhuma ideia
distinta ocupava minha mente; tudo estava confuso. Senti a claridade, a
fome, a sede e a escuridão; sons incontáveis soaram em meus ouvidos e,
de todos os lados, vários aromas me saudaram: o único objeto que eu
conseguia distinguir era a lua brilhante, e fixei meus olhos nela com
prazer.
Vários dias e noites se passaram, e o orbe da noite já havia mudado
bastante quando comecei a discernir as sensações umas das outras.
Gradativamente, passei a enxergar com clareza o riacho que me fornecia
bebida e as árvores cujas folhagens me faziam sombra. Fiquei encantado
quando descobri que um som agradável, que muitas vezes saudava meus
ouvidos, saía das gargantas dos pequenos animais alados que
constantemente interceptavam o esplendor dos meus olhos. Comecei
também a observar, com maior precisão, as formas que me cercavam e a
perceber os limites do radiante teto de luz que me cobria. Às vezes,
tentava imitar o canto deleitoso dos pássaros, mas não conseguia. Às
vezes, desejava expressar minhas sensações a meu próprio modo, mas os
sons rudes e desarticulados que surgiam de mim me assustavam e faziam-
me calar.
A lua desapareceu da noite e, mediante contorno diminuto, reapareceu
enquanto eu permanecia na floresta. As sensações, a essa altura, tornaram-
se díspares, e minha mente recebia ideias adicionais todos os dias. Meus
olhos se acostumaram à iluminação e percebi os objetos em suas formas
corretas; distingui o inseto da erva e, aos poucos, uma erva da outra.
Descobri que o pardal não emitia nada além de notas ásperas, ao passo que
as dos melros e dos tordos eram doces e atraentes.
Um dia, quando oprimido pelo frio, encontrei uma fogueira deixada por
mendigos errantes e fiquei estupefato com o calor delicioso que emanava
dela. Em meu regozijo, depositei a mão nas brasas vivas, mas a puxei sem
demora e com um lamento de dor. Que estranho, pensei, que a mesma
causa pudesse produzir efeitos tão opostos! Examinei os materiais do fogo
e, para minha alegria, descobri que este era composto de madeira. Recolhi
alguns galhos com agilidade, mas estavam molhados e não se consumiam
nas chamas. Fiquei chateado e me sentei para assistir ao desempenho do
fogo. A madeira umedecida que eu colocara perto do calor secou e
inflamou-se. Refleti sobre a questão e, tocando os numerosos galhos,
descobri a causa do fogo, ocupando-me em coletar grande quantidade de
madeira a fim de secá-la e dispor de um suprimento abundante de fogo.
Quando a noite chegou e trouxe consigo o sono, eu estava com muito
medo de que meu fogo se extinguisse. Cobri-o cuidadosamente com
madeira e folhas secas, ajeitando galhos molhados sobre elas. Então,
abrindo minha capa, deitei-me no chão e adormeci.
Era manhã quando acordei, e minha preocupação inicial foi verificar o
fogo. Remexi a fogueira, e uma brisa suave acresceu as chamas com
agilidade. Ao observar isso, inventei um leque de galhos que atiçava a
brasa quando estava quase consumida. Quando a noite voltou, descobri,
com prazer, que o calor do fogo também era útil para minha alimentação;
afinal, percebera que algumas das miudezas que os viajantes deixavam
para trás eram assadas e tinham um sabor muito mais gostoso do que o das
frutas que colhia das árvores. Tentei, portanto, preparar minha comida da
mesma maneira, colocando-a nas brasas vivas. Descobri que as frutas se
estragavam nesse processo, mas que as castanhas e raízes melhoravam
muito.
A comida, no entanto, tornou-se escassa, e muitas vezes passava o dia
inteiro procurando, em vão, bolotas em busca de aliviar as dores da fome.
Quando me dei conta disso, resolvi deixar o lugar em que habitara até
então a fim de procurar outro, onde as poucas necessidades que eu
experimentara pudessem ser facilmente satisfeitas. Em meio à emigração,
lamentei muito a perda do fogo obtido por acidente e que eu não sabia
como reproduzir. Dediquei várias horas à consideração de tal dificuldade,
mas fui obrigado a renunciar a toda tentativa de resolvê-la e, enrolando-
me na minha capa, avancei pela floresta em direção ao sol poente. Passei
três dias nessa caminhada e, enfim, descobri o campo aberto. Uma ampla
nevasca havia ocorrido na noite anterior e os campos exibiam um branco
uniforme; a aparência era desconsolada e senti meus pés gelados pela
substância úmida e fria que cobria o chão.
Eram sete horas da manhã e eu ansiava por comida e abrigo; por fim,
avistei uma cabaninha em um terreno elevado, sem dúvida construída para
a conveniência de um pastor. Era uma imagem inédita para mim, e
examinei a estrutura com enorme curiosidade. Ao encontrar a porta aberta,
adentrei. Um velho jazia sentado perto de uma fogueira, sobre a qual
preparava o café da manhã. Ele ouviu um barulho e, percebendo-me,
gritou alto e fugiu da cabana, atravessando os campos com uma velocidade
que sua forma debilitada dificilmente parecia capaz. Sua aparência,
diferente de tudo o que eu já vira, além de sua corrida, me surpreenderam
um tanto. Contudo, fiquei encantado com a aparência da cabana: ali, a
neve e a chuva não eram capazes de penetrar. Com o chão seco, o local se
apresentou como um retiro tão elegante e divino quanto o Pandæmonium11
pareceu aos dæmons do Inferno após o sofrimento no lago de fogo.
Devorei com avidez os restos do café da manhã do pastor, que consistia
em pão, queijo, leite e vinho – deste último, no entanto, não gostei. Então,
sobrepujado pelo cansaço, deitei-me em meio a um bocado de palha e
adormeci.
Era meio-dia quando acordei. Seduzido pelo calor do sol, que brilhava
intensamente no chão branco, decidi recomeçar minha viagem. Depositei
os restos do café da manhã do camponês num saco que encontrei e
prossegui pelo campo ao longo de várias horas até que, ao pôr do sol,
cheguei a uma vila. Que vista milagrosa! As choupanas, as cabanas mais
arrumadas e as casas senhoriais atraíam minha admiração uma após a
outra. Os vegetais nos jardins, o leite e o queijo que vislumbrei alocados
em janelas de chalés seduziram meu apetite. Entrei em um dos melhores;
porém, quando plantei os pés na soleira da porta, as crianças começaram a
gritar e uma das mulheres desmaiou. A vila inteira despertou; uns fugiram,
outros me atacaram, até que, gravemente machucado por pedras e muitos
outros tipos de armas, escapei para o campo aberto e me refugiei com
medo em um casebre baixo e bastante vazio que exibia uma aparência
miserável em comparação aos palácios que eu vira na aldeia. O casebre era
parte de uma choupana de compleição agradável e organizada; todavia,
depois de minha experiência recente, não ousei entrar. Meu lugar de
refúgio era amadeirado, tão baixo que eu mal podia me movimentar ali
dentro. Nenhuma madeira, no entanto, fora colocada sobre o chão, que era
de terra batida. Embora o vento se introduzisse por fendas numerosas, o
ambiente se tornou um abrigo deleitável contra a neve e a chuva.
Aqui, então, refugiei-me e deitei feliz por ter encontrado um
esconderijo que, por mais deplorável que fosse, me protegia das
inclemências da estação e, sobretudo, da barbárie humana.
Tão logo amanheceu, deixei o abrigo em busca de analisar a cabana
vizinha e descobrir se poderia permanecer naquela morada. Ela se situava
na parte de trás da choupana e era cercada por um chiqueiro e um
reservatório de água limpa. O casebre apresentava somente uma abertura,
através da qual entrei. Decidi, portanto, cobrir com pedras e madeira as
fendas pelas quais pudesse ser percebido, mas de maneira que fosse
possível movê-las de vez em quando para passar. Toda a luz de que eu
gozava vinha através do chiqueiro, e ela era suficiente para mim.
Tendo então arranjado meu refúgio e o acarpetado com palha limpa, me
escondi, pois avistei uma figura de homem à distância e lembrei-me muito
bem do tratamento recebido na noite anterior para me confiar ao seu poder.
Contudo, já havia provido meu sustento para o referido dia: um pedaço de
pão roubado e um copo com o qual eu poderia beber, mais
convenientemente do que com as minhas mãos, da água límpida que
perpassava meu retiro. O chão estava um pouco elevado, de modo a
manter-se perfeitamente seco, e a proximidade com a chaminé da casa
tornava o local razoavelmente quente.
Provido de tal modo, decidi morar nesse casebre até que algo pudesse
alterar minha determinação. Era de fato um paraíso se comparado à
floresta desolada, minha antiga residência de galhos chuvosos e terra
úmida. Tomei meu café da manhã com prazer e estava prestes a remover
uma tábua para conseguir um pouco de água quando ouvi passos. Espiando
por uma pequena fenda, avistei uma criatura jovem, com um balde na
cabeça, passando diante do meu casebre. A garota era nova e de
comportamento gentil, à diferença dos demais habitantes da vila com os
quais havia me deparado.
Ela estava vestida em farrapos e exibia apenas uma anágua azul grossa e
uma jaqueta de linho; seus cabelos louros eram trançados, mas sem
enfeites. Ela parecia paciente e triste. Eu a perdi de vista; entretanto, cerca
de quinze minutos depois ela voltou carregando o balde, que fora
parcialmente preenchido com leite. Enquanto ela se deslocava, parecia
incomodada com o fardo, e um jovem cujo rosto expressava desânimo
profundo a encontrou. Proferidos alguns sons permeados por um ar de
melancolia, o rapaz pegou o balde da cabeça dela e o carregou consigo até
a choupana. A menina o seguiu, ao que desapareceram. Pouco depois, vi
novamente o jovem com algumas ferramentas na mão enquanto
atravessava o campo atrás da choupana. A menina, por sua vez, se mostrou
atarefada, às vezes na casa, às vezes no quintal.
Ao examinar meu refúgio, descobri que uma de suas paredes de tábuas
ocultava o que antes fora uma janela da choupana. Entre as tábuas, havia
uma fissura quase imperceptível por onde o olhar podia se esgueirar. Ao
espiar, identifiquei uma sala modesta, branca, limpa e quase sem móveis.
Num canto, perto de uma fogueira diminuta, estava sentado um velho que
apoiava a cabeça nas mãos em atitude desconsolada. A jovem se ocupara
em arrumar a casa; porém, naquele momento, retirou algo de uma gaveta e
acomodou-se ao lado do velho, o qual, pegando um instrumento, começou
a tocar e a produzir sons mais aprazíveis do que a voz do tordo ou do
rouxinol. Tratava-se de uma cena adorável até para mim, um pobre coitado
que nunca se deparara com a beleza. Os cabelos prateados e o semblante
benevolente do idoso conquistaram minha reverência, ao passo que os
modos gentis da garota atraíram minha afeição. Ele soou uma ária
delicada e melancólica, arrancando sem perceber lágrimas dos olhos de
sua amável companheira, até ouvi-la chorar em voz alta. Ele pronunciou
determinados sons, e a bela criatura, abandonando sua tarefa, ajoelhou-se
aos seus pés. Ele a ergueu e sorriu com tamanha gentileza e tanto carinho
que fui acometido por sensações de natureza peculiar e avassaladora: uma
mistura de dor e prazer, como nunca havia experimentado por meio da
fome, frio, calor ou alimento. Assim, afastei-me da janela, inapto a
suportar tais emoções.
Logo depois, o jovem voltou, carregando toras de madeira sobre os
ombros. A garota o encontrou à porta, ajudou a aliviá-lo de sua carga e,
transportando um tanto do combustível para a choupana, juntou-o ao fogo.
Ambos, então, foram para um canto do chalé, e ele mostrou à garota um
grande pão e um pedaço de queijo. Ela pareceu satisfeita e foi ao jardim à
procura de raízes e plantas, que colocou na água e depois no fogo. Então
retomou a atividade que exercia antes, e o jovem, por sua vez, saiu para o
jardim e pareceu ocupado cavando e arrancando raízes. Depois de mais de
uma hora de trabalho, a jovem se juntou a ele e ambos entraram em casa
juntos.
O velho se manteve pensativo nesse meio-tempo, mas, na presença de
seus companheiros, adquiriu um ar mais alegre, então eles se sentaram
para comer. A refeição foi consumida com agilidade. A jovem voltou a
arrumar os aposentos, enquanto o velho caminhou diante do chalé, sob o
sol, por alguns minutos, apoiando-se no braço do rapaz. Nada podia
exceder em beleza o contraste entre esses dois excelentes seres. Um era
velho, com cabelos prateados e um rosto radiante de bondade e amor; o
outro era jovem e gracioso em sua figura, com traços bem desenhados e
um olhar que, em contrapartida, expressava ampla tristeza e desânimo. O
velho retornou à cabana, e o jovem, com ferramentas diferentes das que
usara pela manhã, dirigiu seus passos aos campos.
A noite chegou rapidamente, mas, para minha extrema admiração,
descobri que os habitantes da choupana tinham um meio de prolongar a
luz por meio do uso de velas. Fiquei, portanto, encantado ao ver que o pôr
do sol não acabaria com o prazer que sentia em observar meus vizinhos
humanos. À noite, a jovem e seu companheiro estavam ocupados com
várias tarefas que eu não entendia, e o velho pegou novamente o
instrumento que produzia os sons divinos que me encantaram pela manhã.
Tão logo ele terminou, o rapaz começou a emitir sons monótonos e nada
parecidos com a harmonia do instrumento do velho ou com o canto dos
pássaros. Posteriormente, descobri que ele lia em voz alta, mas naquela
época eu não sabia nada sobre a ciência das palavras ou letras.
A família, depois de assim se ocupar por um curto período, apagou as
luzes e retirou-se, como conjecturei, para descansar.
- A capital do Inferno no poema épico Paraíso perdido, de John Milton
(1608-1674). (N. T.)
CAPÍTULO XII

DEITEI-ME SOBRE A MINHA PALHA, mas não consegui dormir. Refleti a respeito
das ocorrências do dia. O que mais me impressionou foram as maneiras
gentis dessas pessoas. Eu desejava me juntar a elas, mas não ousava. Eu
lembrava do tratamento recebido na noite anterior, em meio aos aldeões
bárbaros, e resolvi que, qualquer que fosse o curso de conduta que eu
julgasse oportuno seguir, permaneceria por ora quieto em meu casebre,
observando e tentando descobrir os motivos que guiavam suas ações.
Os moradores da choupana se levantaram antes do sol na manhã
seguinte. A moça arrumou a casa e preparou a comida, e o rapaz partiu
depois da primeira refeição.
O dia decorreu segundo a mesma rotina que o anterior. O jovem estava
constantemente ocupado ao ar livre, enquanto a garota assumia numerosas
ocupações dentro de casa. O velho, que logo percebi ser cego, empregava
suas horas de lazer em seu instrumento ou em contemplação. Nada excedia
o amor e o respeito que os moradores mais jovens devotavam ao venerável
companheiro. Eles dispensavam ao velho constantes atos de afeto e
atenção, sendo retribuídos com sorrisos benevolentes.
Eles não eram totalmente felizes. O jovem e sua companheira muitas
vezes se isolavam para chorar. Não via motivo para infelicidade, mas
fiquei profundamente afetado por isso. Se tais criaturas adoráveis eram
miseráveis, tornava-se menos estranho que eu, um ser imperfeito e
solitário, fosse infeliz. No entanto, por que esses seres gentis eram
infelizes? Eles possuíam uma casa encantadora (ao menos para os meus
olhos) e luxos, como o fogo para aquecê-los quando estavam com frio e
mantimentos deliciosos para quando sentiam fome. Eles também vestiam
roupas excelentes e, sobretudo, desfrutavam da companhia uns dos outros,
trocando dia após dia gestos de carinho e benignidade. O que suas
lágrimas implicavam? Elas expressavam mesmo dor? A princípio, não
consegui responder a essas questões; todavia, a atenção constante e o
tempo me explicaram muitas aparências que inicialmente foram
enigmáticas.
Um período considerável se passou até que eu descobrisse uma das
causas do desconforto dessa família amável: a pobreza, da qual sofriam
em um grau muito angustiante. Sua alimentação consistia inteiramente de
vegetais extraídos da horta, mais o leite de uma vaca, que produzia muito
pouco durante o inverno – época em que os donos mal conseguiam
comprar comida para sustentá-la. Acredito que muitas vezes eles sofreram
com as pontadas da fome, em particular os dois jovens; com frequência,
vi-os colocando comida no prato do velho sem reservar nada para si
próprios.
Essa demonstração de bondade me causou grande comoção. Eu estava
acostumado, durante a noite, a roubar parte de sua comida para me
alimentar; mas, quando descobri que, ao fazê-lo, eu infligia dor aos
moradores, abstive-me e passei a consumir frutas, castanhas e raízes que
colhia de um bosque vizinho.
Descobri também outro meio pelo qual podia ajudar no trabalho deles.
Percebi que os jovens passavam grande parte do dia coletando lenha para o
fogo da família. Assim, durante a noite, muitas vezes peguei suas
ferramentas – cujo manuseio descobri rapidamente – e trouxe à choupana
estoque suficiente para vários dias.
Lembro-me de que, na primeira vez que o fiz, a moça pareceu muito
espantada ao abrir a porta pela manhã e defrontar-se com uma enorme
pilha de madeira do lado externo. Ela pronunciou algumas palavras em
voz alta e o rapaz se juntou a ela, também expressando surpresa. Observei,
com prazer, que ele não foi à floresta naquele dia, mas aproveitou o tempo
consertando a choupana e cultivando o jardim.
Aos poucos, fiz uma descoberta ainda maior. Descobri que essas pessoas
tinham um método de comunicar suas experiências e sentimentos entre si
por meio de sons articulados. Percebi que as palavras proferidas incitavam
prazer, dor, sorrisos ou tristeza no íntimo e no semblante dos ouvintes. Era
de fato uma ciência divina, e eu desejava ardentemente me familiarizar
com ela. No entanto, fiquei perplexo em todas as tentativas que articulei à
procura de atingir esse fim. A pronúncia deles era rápida e, quando suas
palavras não tinham conexão aparente com objetos visíveis, eu não
conseguia descobrir pistas que pudessem desvendar o mistério de seus
significados.
Porém, mediante grande aplicação durante as várias transformações da
lua em que permaneci no casebre, descobri os nomes atribuídos a alguns
dos objetos mais familiares do dia a dia. Aprendi e passei a usar as
palavras fogo, leite, pão e madeira. Aprendi também os nomes dos
próprios moradores da choupana. O rapaz e sua companheira tinham
vários nomes, mas o velho, apenas um: pai. A garota se chamava irmã ou
Agatha; e o jovem Félix, irmão ou filho. Não consigo descrever o prazer
que senti ao aprender as ideias apropriadas para cada um desses sons, e
ante a habilidade de pronunciá-los. Distingui também várias outras
palavras, sem ainda poder entendê-las ou aplicá-las, como bom, querido e
infeliz.
Assim passei o inverno. As maneiras gentis e a beleza dos moradores da
choupana me tornaram muito afeiçoado a eles: quando estavam infelizes,
sentia-me deprimido; quando se alegravam, simpatizava com a felicidade
deles. Vi poucos seres humanos com eles; e, quando alguém diferente
entrava na choupana, suas maneiras duras e rudes só aumentavam minha
estima pelos modos superiores de meus amigos. O velho, como percebi,
esforçava-se frequentemente para incentivar os filhos, como às vezes eu
achava que ele os chamava, para que afastassem a melancolia. Ele falava
com uma entonação alegre, com uma expressão de bondade que conferia
prazer até para mim. Agatha ouvia com respeito, seus olhos às vezes
inundados por lágrimas que tentava limpar sem ser notada; mas eu
geralmente percebia que suas feições e seu tom assumiam maior grau de
contentamento depois de ouvir as exortações do pai. Não era assim com
Félix. Ele sempre foi o mais triste do grupo, e, mesmo para os meus
sentidos inexperientes, parecia sofrer com mais intensidade do que seus
familiares. Mas se sua face era a mais triste, sua voz era mais jocosa do
que a da irmã, especialmente quando ele se dirigia ao velho.
Posso mencionar infindáveis exemplos, que, embora simples, denotam
as disposições dessas amáveis pessoas. Em meio à pobreza e à
necessidade, Félix trouxe com prazer para sua irmã a primeira florzinha
branca que apareceu sob o chão nevado. De manhã, antes que ela se
levantasse, ele limpava a neve que atrapalhava o caminho da irmã até o
celeiro, tirava água do poço e trazia a madeira, que, para seu perpétuo
espanto, encontrava sempre reabastecida por uma mão invisível. Creio
que, durante o dia, ele trabalhava de quando em quando para um
fazendeiro vizinho, porque ao sair costumava retornar apenas na hora do
jantar, sem trazer madeira consigo. Outras vezes, ele cultivava o jardim,
mas, como havia pouco a se fazer na estação gelada, ele lia para Agatha e
para o velho.
O ato da leitura me intrigou profundamente no início; mas, aos poucos,
descobri que ele emitia no ato de ler os mesmos sons do ato de falar.
Supus, portanto, que ele encontrava no papel sinais decifráveis para falar,
e os quais eu também desejava intensamente entender. Mas como isso
seria possível quando eu sequer compreendia os sons representados pelos
sinais? Eu havia melhorado a olhos vistos na referida ciência, mas não o
suficiente para acompanhar qualquer tipo de conversa, embora tenha
aplicado a minha mente inteira a essa missão; afinal, percebi com
facilidade que, apesar de desejar sofregamente me revelar aos moradores
da choupana, eu não deveria pôr em prática qualquer tentativa antes de me
tornar mestre na língua deles. Tal conhecimento me tornaria apto a pedir
que relevassem a deformidade de minha figura, dado que também percebi
esse contraste perpetuamente trazido a meus olhos.
Eu admirava as formas perfeitas da família em questão – sua graça,
beleza e aparência delicada. E qual foi o terror que senti quando me vi
numa poça d’água! No começo, recuei, incapaz de acreditar que era
realmente eu a origem da imagem refletida no espelho. Quando me
convenci por completo de que eu era mesmo aquele monstro, fui tomado
pelas mais amargas sensações de desânimo e mortificação. Ai! Ainda não
conhecia por completo os efeitos fatais dessa desgraçada deformidade.
Quando o sol ficou mais quente e a luz do dia mais longa, a neve
desapareceu, revelando árvores nuas e terra. A partir desse momento, Félix
tornou-se mais ocupado, e os sinais de fome iminente desapareceram. A
comida deles, como descobri depois, era grosseira, mas saudável; e eles a
produziam em quantidade suficiente. Diversos tipos novos de plantas
surgiram no jardim, e esses sinais de conforto aumentavam todos os dias
acompanhando o avanço da estação.
O velho, apoiando-se no filho, caminhava diariamente ao meio-dia
quando não chovia – descobri ser esse o nome do movimento dos céus
derramando suas águas. Isso acontecia com frequência; porém, um vento
forte secava a terra sem demora, e a estação ficava muito mais agradável
do que antes.
Meu modo de vida no casebre era estável. Durante a manhã,
acompanhava os movimentos dos moradores da choupana. Enquanto eles
se dispersavam em várias tarefas, eu dormia. O restante do dia era
dedicado à observação de meus amigos. Quando se retiravam a fim de
descansar, se havia lua ou se a noite estava estrelada, eu ia para a floresta e
pegava minha própria comida e combustível para a choupana. Ao retornar,
conforme muitas vezes era necessário, limpava a neve do caminho deles e
realizava os trabalhos que vi serem feitos por Félix. Mais tarde, descobri
que essas tarefas executadas por uma mão invisível os surpreendiam
profusamente; e uma ou duas vezes os ouvi, em ocasiões tais, proferindo
as palavras bom espírito e maravilhoso. Não entendia, entretanto, o
significado dos termos.
Meus pensamentos haviam se tornado mais ativos, e eu desejava
descobrir os motivos e sentimentos por trás dessas criaturas adoráveis.
Fiquei curioso em saber por que Félix parecia tão desventurado, e Agatha,
tão abatida. Pensei (miserável tolo!) que poderia ser capaz de restaurar a
felicidade dessas pessoas merecedoras. Quando eu dormia, ou estava
ausente, as formas do venerável pai cego, da gentil Agatha e do excelente
Félix voavam à minha frente. Eu os via como seres superiores que seriam
árbitros de meu futuro destino. Imaginava milhares de modos de me
apresentar e como seria a recepção de sua parte. Presumi que sentiriam
nojo, até que, com meu comportamento gentil e palavras conciliadoras,
seria bem acolhido e, então, amado.
Esses pensamentos me emocionaram e me instigaram a conferir uma
paixão renovada com relação ao domínio da arte da linguagem. Meus
órgãos eram rudes, mas flexíveis; e, embora minha voz fosse muito
diferente da música suave de seus tons, ainda assim pronunciava as
palavras que entendia com relativa facilidade. Era como a história do
burro e do cachorrinho:12 o burro tinha intenções afetuosas a despeito de
suas maneiras rudes, e merecia um tratamento melhor do que golpes e
execração.
As chuvas agradáveis e o calor vivaz da primavera alteraram muito o
aspecto da terra. Homens, que antes dessa mudança pareciam estar
escondidos em cavernas, se dispersaram e se engajaram em várias artes de
cultivo. Os pássaros adotaram notas mais alegres em seu canto, e as folhas
brotavam nas árvores. Oh, terra feliz! Para os deuses, moradia adequada
que, há pouco tempo, era obscura, úmida e insalubre. Meu ânimo foi
elevado pela aparência encantadora da natureza; o passado foi apagado da
minha memória, o presente estava sereno e o futuro seria composto por
raios cintilantes de esperança e alegria.
- Referência à fábula “O Burro e o Cachorrinho”, do escritor grego
Esopo. Nessa história, o burro é punido por almejar a mesma vida do
cachorrinho, que, segundo ele, vive de maneira mais confortável. Ao fim,
o burro se dá conta do quão improdutivo é tentar levar uma vida que não é
a sua. (N. T.)
CAPÍTULO XIII

‒AGORA ME ADIANTO à parte mais tocante da minha história. Relatarei


eventos e os sentimentos que os acompanharam, tornando-me quem sou
hoje.
A primavera avançou rapidamente, o tempo ficou bom e o céu sem
nuvens. Surpreendeu-me a vista daquilo que antes era deserto e
melancólico e passara a florescer com as mais belas flores e o verde. Meus
sentidos foram gratificados e revigorados por mil aromas de prazer e mil
visões de beleza.
Foi em um desses dias, quando meus companheiros descansavam do
trabalho – o velho tocava violão e os filhos ouviam –, que notei uma
melancolia exacerbada no semblante de Félix. Ele suspirava com
frequência e, uma vez que seu pai parou a música, conjecturei com base
em suas maneiras que ele meditava sobre a motivação da tristeza do filho.
Félix respondeu com um tom alegre, e o velho estava prestes a recomeçar
sua música quando alguém bateu à porta.
Era uma dama a cavalo, acompanhada por um camponês que lhe servia
de guia. A senhora usava trajes escuros e estava coberta por um véu preto
e espesso. Agatha lhe direcionou uma pergunta, à qual a estranha
respondeu pronunciando, com doçura, o nome de Félix. A voz dela era
musical, mas diferente das que meus amigos possuíam. Ao ouvir essa
palavra, Félix aproximou-se às pressas da dama. Quando o viu, ela
levantou o véu e exibiu um semblante de beleza e expressão angelicais.
Seu cabelo era de um preto brilhante e curiosamente trançado; seus olhos
eram escuros e gentis, embora animados; as feições, por sua vez,
apresentavam proporção regular, associados a uma tez maravilhosamente
clara e cada bochecha tingida com um adorável cor-de-rosa.
Félix pareceu arrebatado de satisfação ao vê-la; todos os traços de pesar
desapareceram de seu semblante, dando lugar a uma expressão de alegria
extática, da qual eu dificilmente poderia acreditar que fosse capaz. Seus
olhos brilhavam, enquanto sua bochecha corava de júbilo. Naquele
momento, eu o achei tão bonito quanto estranho. Ela parecia afetada por
sentimentos diferentes; enxugando lágrimas dos olhos adoráveis, estendeu
a mão para Félix, que a beijou com entusiasmo e a chamou, como pude
distinguir, de sua doce árabe. Ela parecia não entendê-lo, mas sorriu. Félix
a ajudou a desmontar do cavalo e, dispensando o guia, conduziu-a para a
choupana. Dada conversa ocorreu entre ele e seu pai; e a jovem
desconhecida se ajoelhou aos pés do velho fazendo menção de beijar sua
mão, ao que o velho a ergueu e a abraçou carinhosamente.
Logo percebi que, embora a desconhecida pronunciasse sons articulados
e parecesse ter uma linguagem própria, ela não era compreendida e
tampouco assimilava o que diziam os habitantes da choupana. Eles
gesticularam muitos sinais que não entendi; mas notei que a presença dela
difundia alegria pela cabana, dissipando-lhes a tristeza como o sol dissipa
as brumas da manhã. Félix parecia particularmente feliz e, com sorrisos de
alegria, acolheu sua árabe. Agatha, a sempre gentil Agatha, beijou as mãos
da adorável estranha, e, apontando para o irmão, fez sinais que, para mim,
pareciam indicar que Félix estava triste até ela chegar. Horas se passaram
de tal maneira enquanto eles, por meio de suas expressões, demonstravam
uma alegria cuja causa eu não discernia. Mais tarde percebi, pela frequente
recorrência de sons que a estranha repetia depois deles, que ela estava
tentando aprender aquele idioma. A ideia, então, me ocorreu no mesmo
instante: eu deveria usar as mesmas instruções para o mesmo fim. A
desconhecida aprendeu cerca de vinte palavras na primeira lição – a
maioria delas eu já dominava, de modo que tirei proveito das demais.
Quando a noite chegou, Agatha e a árabe se retiraram cedo. Ao se
separarem, Félix beijou a mão da desconhecida e disse: “Boa noite, doce
Safie”. Ele permaneceu sentado por muito mais tempo dialogando com o
pai e, pela repetição constante do nome dela, imaginei que a adorável
convidada era o assunto da conversa. Desejei fervorosamente entendê-los
e investi toda habilidade em prol desse objetivo, mas foi mesmo
impossível.
Na manhã seguinte, Félix saiu para o trabalho e, depois que as
ocupações habituais de Agatha terminaram, a árabe sentou-se aos pés do
velho e, pegando seu violão, tocou árias fascinantemente belas a ponto de
tirar lágrimas de tristeza e deleite dos meus olhos. Ela cantou e sua voz
fluiu em uma cadência rica como a de um rouxinol da floresta.
Quando ela terminou, entregou o violão a Agatha, que a princípio o
recusou. A jovem, por fim, tocou uma ária simples e sua voz a
acompanhou com um tom sereno, mas diferente do alcance da estranha. O
velho pareceu extasiado e manifestou algumas palavras, as quais Agatha
se esforçou para explicar a Safie. Elas expressavam o deleite do homem
por sua música.
Os dias passavam tão pacificamente quanto antes, com a diferença de
que a alegria tomara o lugar da tristeza nas expressões de meus amigos.
Safie estava sempre alegre e feliz; ela e eu melhoramos rapidamente nosso
conhecimento sobre aquela linguagem, de modo que, em dois meses,
comecei a compreender a maioria das palavras verbalizadas por meus
protetores.
Nesse ínterim, o solo escuro também se cobriu de ervas, e as margens
verdes se resplandeceram de inúmeras flores, encantadoras para os
sentidos e cintilantes como estrelas de fulgor pálido entre os bosques
enluarados. O sol ficou mais quente, as noites, claras e agradáveis; minhas
caminhadas noturnas se tornaram um prazer extremo, embora
consideravelmente reduzidas pelo pôr do sol e o nascer do dia. Afinal,
nunca me aventurei do lado de fora durante o dia, por medo de me deparar
com o mesmo tratamento dispensado a mim na aldeia.
Meus dias transcorreram em grande concentração para que eu pudesse
dominar o idioma com mais rapidez. Posso me gabar de ter progredido
mais rapidamente do que a árabe, que compreendia bem pouco e
conversava de maneira truncada enquanto eu entendia e era capaz de
imitar quase todas as palavras proferidas.
Enquanto eu melhorava a pronúncia, também aprendia a ciência das
letras, tal como era ensinada à estrangeira. A ocasião abriu diante de mim
um amplo campo de admiração e deleite.
O livro que Félix usou para instruir Safie se chamava As ruínas, ou
meditação sobre as revoluções dos impérios, de Volney. Eu não teria
entendido o significado desse livro se Félix, ao lê-lo, não tivesse dado
elucidações muito minuciosas. Ele havia escolhido a obra em questão,
explicou, porque o estilo declamatório se inspirava nos autores orientais.
Por meio desse trabalho, obtive um conhecimento superficial da história e
uma visão dos vários impérios existentes no mundo atual. Isso me
forneceu uma perspectiva a respeito das maneiras, dos governos e das
religiões das múltiplas nações da Terra. Ouvi sobre a milenaridade dos
asiáticos, a genialidade estupenda e a atividade mental dos gregos, as
guerras e maravilhosas virtudes dos romanos – bem como a subsequente
degeneração e o declínio do poderoso império, as cavalarias, o
cristianismo e os reis. Ouvi falar da descoberta do hemisfério americano e
chorei com Safie pelo destino infeliz de seus habitantes originais.
Tais narrativas maravilhosas me inspiraram sentimentos estranhos. O
homem podia ser, ao mesmo tempo, poderoso, virtuoso, magnífico, cruel e
baixo? Ele apareceu certa vez como mero descendente do princípio do mal
e, em outra, como tudo o que pode ser concebido como nobre e divino. Ser
um homem grande e virtuoso representaria a maior honra que poderia
acontecer a um ser sensível; já ser baixo e cruel, como muitos haviam
sido, parecia a mais inferior degradação, uma condição mais abjeta do que
a da toupeira cega ou do verme inofensivo.
Durante muito tempo, não pude entender como um homem podia matar
seu semelhante, ou mesmo por que havia leis e governos; contudo, quando
ouvi detalhes sobre o vício e o derramamento de sangue, meu
encantamento foi substituído por nojo e repulsa.
Todas as conversas dos moradores da choupana agora me traziam novas
surpresas. Enquanto ouvia as instruções que Félix concedia à árabe, o
estranho sistema da sociedade humana me era explicado. Ouvi falar sobre
a divisão de propriedades, a imensa riqueza, a pobreza esquálida, a
hierarquia, a descendência e o sangue nobre.
As palavras que escutava me induziram a refletir. Aprendi que os bens
mais estimados por seus semelhantes eram a alta e imaculada
descendência unida às riquezas. Um homem podia ser respeitado com
apenas uma dessas vantagens; porém, sem nenhuma delas, era geralmente
considerado um vagabundo ou escravo, condenado a desperdiçar suas
habilidades em favor do lucro de poucos eleitos! E o que eu era? De minha
criação e criador, eu era absolutamente ignorante, mas eu sabia que não
possuía dinheiro, amigos ou qualquer tipo de propriedade. Além disso, eu
era dotado de uma aparência horrivelmente deformada e repugnante; eu
não era sequer pertencente à mesma natureza que o homem. Eu era mais
ágil do que eles e podia subsistir com uma dieta mais precária, suportava
os extremos do calor e do frio com menos danos à estrutura física, e minha
estatura em muito excedia a deles. Quando olhei à minha volta, percebi
que jamais ouvira falar de alguém como eu. Eu era, então, um monstro,
um borrão na terra do qual todos os homens fugiam e a quem todos os
homens renegavam?
Não posso lhe descrever a agonia que tais ponderações me infligiram.
Tentei dissipá-las, mas o conhecimento só aumentou a tristeza. Ah, se eu
tivesse permanecido para sempre na minha floresta nativa, sem conhecer
outro sentido além das sensações de fome, sede e calor!
Como é estranha a natureza do saber! Uma vez adquirido, ele se apega à
mente como líquen na rocha. Às vezes, desejava livrar-me de todos os
pensamentos e sentimentos, mas aprendi que o único meio de superar a
sensação de dor era por meio da morte – estado que eu temia por ainda não
entender. Admirava a virtude, os bons sentimentos, as maneiras gentis e as
qualidades amáveis de meus companheiros, mas era privado da interação
com eles, exceto por meios furtivos que aumentavam ao invés de
satisfazer meu desejo de tomar parte naquela família. As palavras gentis
de Agatha e os sorrisos animados da charmosa árabe não eram para mim.
As leves exortações do velho e a conversa espirituosa do amado Félix,
tampouco. Abatido, infeliz desgraçado!
Outras lições me impressionaram ainda mais profundamente. Ouvi
sobre a diferença dos sexos, sobre o nascimento e o crescimento dos
filhos. Ouvi sobre o prazer do pai diante do sorriso de um filho ou das
animadas brincadeiras de outro, a maneira como a vida e os cuidados
maternais giravam em torno de sua preciosa carga, como a mente da
juventude se expandia e adquiria conhecimento, e a noção de irmão, irmã e
todos os demais relacionamentos que unem um ser humano a outro em
laços correspondentes.
Mas onde estavam meus amigos e parentes? Nenhum pai assistiu aos
meus dias de infância e nenhuma mãe me abençoou com sorrisos e
carícias. E, mesmo se o tivessem feito, toda a minha vida precedente se
tornara uma mancha, uma cegueira na qual eu nada distinguia. Até onde
podia me lembrar, eu sempre ostentara a mesma altura e as mesmas
proporções. Nunca vira um ser parecido comigo, ou que reivindicasse
qualquer relação comigo. O que eu era? A pergunta voltava
constantemente à minha cabeça sem que houvesse resposta.
Em breve explicarei para onde esses sentimentos me impulsionaram;
mas me permita agora voltar aos habitantes da choupana, cuja história
despertou em mim sentimentos de indignação, deleite e admiração,
resultando em amor e reverência adicionais por meus protetores, conforme
eu os chamava de forma inocente e dolorosamente autoenganadora.
CAPÍTULO XIV

AGUM TEMPO PASSOU até que eu aprendesse a história de meus amigos. Foi
algo que não pôde deixar de me impressionar profundamente, dadas as
circunstâncias interessantes e surpreendentes em que seus eventos se
desenrolaram para alguém tão inexperiente quanto eu.
O nome do velho era De Lacey. Ele era descendente de uma boa família
da França, onde viveu por muitos anos em abundância, respeitado por seus
superiores e amado por seus pares. Seu filho fora instruído no serviço
militar do país, e Agatha convivera com damas da mais alta distinção.
Meses antes da minha chegada, eles moravam em uma cidade grande e
luxuosa chamada Paris, cercados por amigos e por todo o gozo que a
virtude, o refinamento do intelecto ou o gosto, acompanhado por uma
fortuna moderada, podiam pagar.
O pai de Safie foi a causa da ruína deles. Ele era um comerciante turco
que habitara Paris por muitos anos quando, por motivos que não consegui
descobrir, se tornou nocivo para o governo. Ele foi detido e lançado na
prisão no mesmo dia em que Safie chegou de Constantinopla para se juntar
a ele. O pai da garota foi julgado e condenado à morte. A injustiça de sua
sentença foi muito flagrante; toda Paris ficou indignada, e julgou-se que
sua religião e riqueza, em vez do crime alegado contra ele, tinham sido a
verdadeira causa de seu veredicto.
Félix esteve presente no julgamento por acidente; seu horror e sua
indignação foram incontroláveis quando ouviu a decisão do tribunal.
Naquele momento, ele fez um voto solene de libertá-lo e, em seguida,
procurou os meios. Depois de muitas tentativas infrutíferas de obter
acesso à prisão, ele encontrou uma janela com grade de ferro em uma
parte desprotegida do edifício que iluminava a masmorra do infeliz
mouro. Este, carregado de correntes, aguardava em desespero a execução
da sentença barbárica. Félix visitou o local à noite e informou-o de seus
planos. O turco, maravilhado e encantado, esforçou-se para instigar o zelo
de seu libertador com promessas de recompensas e riqueza. Félix rejeitou
suas ofertas com desprezo; todavia, quando viu a adorável Safie, que fora
autorizada a visitar o pai e expressava sua gratidão por meio de gestos, o
jovem não pôde deixar de reconhecer em sua mente que o cativo possuía
um tesouro que recompensaria totalmente sua labuta e o perigo.
O turco sem demora percebeu a impressão que sua filha havia causado
no coração de Félix e procurou, em nome de seus interesses, assegurá-lo
de que teria a mão da filha em casamento assim que ele fosse levado a um
local seguro. Félix era delicado demais para aceitar a oferta, mas pensou
na hipótese como a consumação de sua felicidade.
Nos dias que se seguiram, enquanto os preparativos avançavam em prol
da fuga do comerciante, o zelo de Félix foi aquecido por várias cartas que
recebeu dessa adorável garota, que encontrou meios de expressar seus
pensamentos na linguagem do amante com a ajuda de um velho servo do
pai que entendia francês. Ela agradecia nos termos mais ardentes pelos
serviços pretendidos para com seu pai e, ao mesmo tempo, deplorava
gentilmente seu destino.
Tenho cópias dessas cartas. Durante minha residência no casebre,
encontrei meios de obter instrumentos de escrita; e elas estavam sempre
nas mãos de Félix ou Agatha. Antes de partir, eu te darei essas cartas, que
provarão a autenticidade da minha história; todavia, como agora o sol já
está declinado, terei tempo de repetir apenas a essência delas para você.
Safie relatou que sua mãe era árabe cristã, apreendida e escravizada
pelos turcos. Pela sua beleza, conquistou o coração do pai de Safie, que se
casou com ela. A jovem falou em termos augustos e entusiasmados sobre
sua mãe, que, nascida em liberdade, desprezava a escravidão a que fora
reduzida. Ela instruiu a filha nos princípios de sua religião e a ensinou a
aspirar uma independência de espírito e um intelecto superior proibidos às
seguidoras de Maomé. Essa senhora morreu, mas suas lições continuaram
indelevelmente impressas na mente de Safie, que se enojou ante a
perspectiva de voltar para a Ásia e ser confinada às paredes de um harém,
autorizada apenas a ocupar-se com divertimentos infantis e inadequados
ao temperamento de sua alma, agora acostumada a grandes ideias e à
virtude. O pensamento de se casar com um cristão e permanecer em um
país onde as mulheres podiam desempenhar uma posição na sociedade lhe
era encantador.
O dia da execução do turco foi marcado, mas, na noite anterior a essa
data, ele deixou a prisão e, antes que amanhecesse, já estava muitos
quilômetros distante de Paris. Félix havia adquirido passaportes em nome
de seu pai, irmã e de si próprio. Ele comunicou seu plano ao primeiro, que
se prontificou a ajudar, deixando sua casa sob o pretexto de uma viagem e
se escondendo com a filha em uma parte obscura de Paris.
Félix conduziu os fugitivos pela França até Lyon e atravessou o Mont
Cenis em direção a Leghorn, onde o comerciante decidiu esperar uma
oportunidade favorável de passar para os domínios turcos.
Safie resolveu ficar com o pai até o momento da partida, e o turco
renovou sua promessa de que ela deveria unir-se ao seu libertador. Félix
permaneceu com eles na expectativa desse evento. Nesse meio-tempo, ele
desfrutou da sociedade árabe, que demonstrava por ele o carinho mais
simples e terno. Eles conversavam entre si por meio de um intérprete e, às
vezes, por gestos; e Safie cantava para ele as árias divinas de seu país
natal.
O turco permitiu essa intimidade entre os jovens e encorajou suas
esperanças enquanto, em seu coração, formava outros planos. Ele
detestava a ideia de que sua filha se unisse a um cristão; porém, temia o
ressentimento de Félix caso expressasse seu desagrado, pois sabia que
ainda estava sob o poder de seu libertador e podia ser entregue ao Estado
italiano, onde se encontravam. Ele elaborou mil planos para prolongar a
farsa até que pudesse, em segredo, levar a filha consigo ao partir. Seus
planos foram facilitados pelas notícias que chegaram de Paris.
O governo da França ficou muito enfurecido com a fuga de sua vítima e
não poupou esforços para detectar e punir seu libertador. A trama de Félix
foi rapidamente descoberta e De Lacey e Agatha foram submetidos à
prisão. As notícias chegaram a Félix e o despertaram de seu sonho de
prazer. Seu pai cego e idoso e a irmã gentil jaziam em uma masmorra
barulhenta enquanto ele desfrutava do ar livre e da sociedade daquela a
quem amava. Essa ideia foi uma tortura para ele. Félix rapidamente
combinou com os turcos que, se o homem encontrasse uma oportunidade
favorável de fuga antes que Félix pudesse retornar à Itália, Safie deveria
permanecer à sua espera num convento em Leghorn. Então, deixando sua
adorável árabe, ele se apressou rumo a Paris e entregou-se às autoridades,
na esperança de libertar De Lacey e Agatha.
Ele não teve sucesso. A família permaneceu confinada por cinco meses
antes do julgamento, que resultou na privação de sua fortuna e na
condenação a um exílio perpétuo de seu país natal.
Eles encontraram um asilo miserável numa choupana na Alemanha,
onde eu os descobri. Félix logo soube que o turco traiçoeiro, por quem ele
e sua família enfrentaram uma opressão tão desconhecida, descobriu que
seu libertador fora reduzido à ruína. Com isso, o turco tornou-se um
traidor de bom sentimento e honra, deixando a Itália com a filha e
enviando ofensivamente a Félix uma ninharia de dinheiro a fim de ajudá-
lo, como ele disse, em algum plano de manutenção futura.
Tais foram os eventos que acometeram o coração de Félix e o tornaram,
aos meus olhos, o mais soturno de sua família. Ele poderia ter suportado a
pobreza e não se penitenciava pela desgraça como prêmio por sua virtude.
Contudo, a ingratidão do turco e a perda de sua amada Safie eram
infortúnios muito mais amargos e irreparáveis. O reencontro com a árabe,
no entanto, impregnava uma nova vida à sua alma.
Quando as notícias sobre a ruína de Félix chegaram a Leghorn, o
comerciante mandou que a filha não pensasse mais em seu amante e se
preparasse para retornar ao seu país natal. A natureza generosa de Safie
ficou indignada com esse comando; ela tentou protestar, mas o pai se
enfureceu enquanto reiterava sua ordem tirânica.
Dias depois, o turco entrou nos aposentos da filha e lhe disse
apressadamente que tinha motivos para acreditar que sua residência em
Leghorn fora revelada, o que o levaria a ser entregue sem demora ao
governo francês. Por conseguinte, ele contratou uma embarcação que o
levaria a Constantinopla dentro de poucas horas, pretendendo deixar a
filha sob os cuidados de um servo de confiança para que, mais tarde, ela o
seguisse com grande parte de sua fortuna, que ainda não havia chegado a
Leghorn.
Quando sozinha, Safie traçou em sua mente um plano de fuga. A ideia
de residir na Turquia lhe era repugnante; sua religião e seus sentimentos
eram igualmente adversos a tal perspectiva. Em razão de determinadas
cartas do pai terem caído em suas mãos, ela soube do exílio de seu amante
e descobriu o nome do local onde ele residia. Hesitando um pouco, mas
por fim tomando a decisão, Safie pegou algumas joias e uma quantia em
dinheiro, deixou a Itália na companhia de uma criada – uma nativa de
Leghorn que entendia a língua da Turquia – e partiu para a Alemanha.
Ela chegou em segurança a uma cidade a cerca de cento e dez
quilômetros da choupana de De Lacey, quando sua criada ficou seriamente
doente. Safie cuidou dela com o carinho mais dedicado, mas a pobre
menina morreu e a árabe ficou sozinha, sem familiaridade com a língua do
país e totalmente ignorante acerca dos costumes do mundo. Ela caiu, no
entanto, em boas mãos. A italiana mencionara o nome do local para o qual
seguiam e, depois de sua morte, a mulher da casa em que se hospedaram
providenciou para que Safie chegasse em segurança à choupana de seu
amado.
CAPÍTULO XV

ESSA FOI A HISTÓRIA dos meus amados companheiros. Ela me impressionou


profundamente. Aprendi, por meio das visões sobre a vida social nela
desenvolvidas, a admirar as virtudes e a desprezar os vícios da
humanidade.
Até o momento, eu via o crime como um mal distante; a benevolência e
a generosidade estavam sempre presentes diante de mim, incitando o
desejo de me tornar agente naquela cena movimentada em que tantas
qualidades admiráveis eram estimuladas e exibidas. Mas, ao relatar o
progresso do meu intelecto, não posso omitir uma circunstância que
ocorreu no início de agosto do mesmo ano.
Uma noite, durante minha visita costumeira ao bosque vizinho onde
colhia minha própria comida e levava madeira a meus protetores,
encontrei no chão uma bolsa de couro que continha várias peças de
vestuário e livros. Agarrei ansiosamente aquele achado e voltei para meu
casebre. Felizmente, os livros estavam escritos na língua que eu havia
aprendido com os moradores da choupana; eram eles: Paraíso perdido, um
volume de Vidas paralelas e Os sofrimentos do jovem Werther. A posse
desses tesouros me trazia deleite extremo; eu passara a continuamente
estudar e exercitar minha mente mediante tais histórias, enquanto meus
amigos executavam suas tarefas comuns.
Mal posso descrever a você o efeito desses livros. Eles produziram em
mim uma infinidade de novas imagens e sentimentos, que às vezes me
levavam ao êxtase, mas mais frequentemente me afundavam no mais
profundo desânimo. Em Os sofrimentos do jovem Werther, além do
interesse na história simples e comovente, tantas opiniões são examinadas
e tantas luzes são lançadas sobre o que até então eram assuntos obscuros
para mim que descobri nela uma fonte inesgotável de especulação e
espanto. As maneiras gentis e domésticas que descrevia, combinadas com
sensações e sentimentos elevados que tinham um objetivo transcendental,
estavam em concordância com minha experiência entre meus protetores e
com os desejos que habitavam meu próprio seio. Eu pensava que o próprio
Werther era o ser mais divino que eu já havia visto ou imaginado; sua
personagem não tinha pretensão, mas havia afundado profundamente. As
descrições do suicídio e da morte foram calculadas para me encher de
admiração. Não pretendia entrar no mérito do caso, mas me inclinei às
opiniões do herói, cuja extinção chorei sem entendê-la com exatidão.
Enquanto lia, aplicava muita coisa aos meus próprios sentimentos e às
minhas condições. Eu me via semelhante e, ao mesmo tempo,
estranhamente diferente dos seres sobre os quais lia e de cuja conversa eu
era ouvinte. Eu simpatizava com eles e entendia-os em parte, mas não
compartilhava de sua formação mental. Eu não dependia de ninguém e não
estava relacionado a nenhuma pessoa. “Era livre o caminho de partida”, e
não havia ninguém para lamentar minha aniquilação. Meu ser era
hediondo, e minha estatura, gigantesca. O que isso significava? Quem era
eu? O que eu era? De onde vim? Qual era o meu destino? Essas perguntas
me perseguiam, mas eu era incapaz de respondê-las.
O tomo de Vidas paralelas que eu possuía continha as histórias dos
primeiros fundadores das repúblicas antigas. O livro em questão exerceu
influência muito diferente sobre mim em comparação a Os sofrimentos do
jovem Werther. Aprendi o desânimo e a tristeza a partir da imaginação de
Werther; Plutarco, por sua vez, ensinou-me pensamentos magníficos; ele
me alçou para além da esfera desventurada de minhas reflexões para que
admirasse e amasse os heróis de eras passadas. Muitos relatos que li
superaram minha compreensão e experiência. Eu tinha um conhecimento
muito confuso de reinos, vastas extensões de terra, rios poderosos e mares
sem limites. Mas, quanto às cidades e grandes assembleias de homens,
nada sabia. A choupana dos meus protetores era a única escola em que eu
estudara a natureza humana, mas esse livro desenvolveu cenas de ação
novas e mais poderosas. Li sobre homens envolvidos em assuntos
públicos, governando ou massacrando sua espécie. Sentia crescer dentro
de mim o fervor a respeito da virtude e a aversão ao vício na medida em
que entendia o significado dos referidos termos, relativos como eram.
Induzido por esses sentimentos, fui levado a admirar legisladores
pacíficos como Numa Pompílio, Sólon e Licurgo em vez de homens como
Rômulo e Teseu. A vida patriarcal dos meus protetores fixou tais
impressões em minha mente; era possível que, se minha primeira
introdução à humanidade tivesse sido feita por um jovem soldado, ávido
por glória e matanças, eu teria sido imbuído de diferentes sensações.
Paraíso perdido, por sua vez, estimulou emoções diferentes e muito
mais profundas. Eu o li, tal qual lera os outros exemplares que me caíram
às mãos, como uma história verdadeira. A obra me despertou todo o
sentimento de admiração e temor que a imagem de um Deus onipotente
em guerra com suas criaturas era capaz de excitar. Com frequência, ficava
impressionado ao perceber o quanto as situações retratadas eram similares
às minhas. Como Adão, aparentemente eu não estava unido por nenhum
vínculo com qualquer outro ser existente, mas seu estado era muito
diferente do meu em todos os demais aspectos. Ele havia saído das mãos
de Deus como uma criatura perfeita, feliz e próspera, guardada com
cuidado especial pelo seu Criador. Além disso, era autorizado a conversar
e adquirir conhecimento acerca dos indivíduos de natureza superior. Eu, no
entanto, era desvalido, vulnerável e sozinho. Muitas vezes considerei
Satanás como o emblema mais adequado à minha condição; pois
constantemente, como ele, sentia o amargo fel da inveja crescer em meu
interior ao me deparar com a felicidade de meus protetores.
Outra circunstância fortaleceu e confirmou esses sentimentos. Logo
após minha chegada ao casebre, descobri alguns papéis no bolso da roupa
que havia tirado de seu laboratório. No começo eu os havia negligenciado;
mas agora que podia decifrar os caracteres em que foram escritos, comecei
a estudá-los com esmero. Foi o seu diário dos quatro meses que
precederam a minha criação. Você descreveu em pormenores nesses papéis
todas as etapas de seu trabalho, mesclando a narrativa a relatos de
ocorrências domésticas. Você, sem dúvida, se lembra desses papéis. Aqui
estão eles. Tudo o que se refere à minha maldita origem está aqui, todos os
detalhes da série de circunstâncias asquerosas que me produziram são
apresentados junto à mais minuciosa representação de minha pessoa
odiosa e repugnante, numa linguagem que retratou seus horrores conforme
tornou inextinguíveis os meus. Eu sentia asco ao ler. “Maldito o dia em
que recebi a vida!”, exclamei em agonia. Criador amaldiçoado! Por que
criou um monstro tão hediondo do qual você mesmo se afastou com nojo?
Deus, em sua piedade, tornou o homem bonito e encantador à sua própria
imagem; minha forma, porém, é uma versão imunda da sua, ainda mais
horrível pela semelhança em si. Satanás teve companheiros, demônios
como ele, para admirá-lo e encorajá-lo; mas eu sou solitário e detestável.
Assim eram minhas reflexões nas horas de desânimo e solidão; porém,
quando contemplava as virtudes dos moradores da choupana, suas
disposições amáveis e beatas, convencia-me de que, quando se
familiarizassem com minha admiração por eles, compadecer-se-iam,
menosprezando minha deformidade física. Poderiam eles fechar as portas
para alguém que, apesar de monstruoso, pedisse-lhes compaixão e
amizade? Resolvi, por fim, não me desesperar, mas em todos os sentidos
me preparar para um encontro com eles, um que decidisse meu destino.
Adiei a tentativa por mais meses, pois a importância atribuída ao seu
sucesso me inspirou o pavor de que eu incorresse em erros. Outrossim,
descobri que meu entendimento melhorava muito com a experiência do
dia a dia e não estava disposto a iniciar esse empreendimento até que mais
alguns meses pudessem aumentar minha sagacidade.
Nesse meio-tempo, várias mudanças se estabeleceram na choupana. A
presença de Safie trouxe felicidade a seus habitantes, e descobri que um
grau maior de abundância reinava ali. Félix e Agatha passavam mais
tempo conversando e entretidos enquanto eram ajudados em seus trabalhos
por criados. Eles não pareciam ricos, mas estavam satisfeitos e contentes;
seus sentimentos eram serenos e pacíficos, enquanto os meus se tornavam
todos os dias mais tumultuados. O aumento do conhecimento só revelara
com mais clareza como eu era um pária miserável. Eu acalentava a
esperança, é verdade; mas ela desaparecia quando eu vislumbrava minha
figura na água ou minha sombra sob o luar, ainda que fossem reflexos
frágeis e inconstantes.
Esforcei-me para sufocar esses medos e me fortalecer para o julgamento
ao qual me submeteria em poucos meses. Às vezes, permitia que meus
pensamentos, sem o controle da razão, divagassem nos campos do Paraíso;
ousava imaginar criaturas amigáveis e amáveis simpatizando com meus
sentimentos e me animando em minha melancolia, com seus semblantes
angelicais transbordando sorrisos de consolação. Mas era tudo um sonho;
nenhuma Eva acalmou minhas tristezas nem partilhou dos meus
pensamentos. Eu estava sozinho. Lembrei-me da súplica de Adão ao seu
Criador. Mas onde estava a minha? Ele me abandonou e, na amargura do
meu coração, eu o amaldiçoei.
Assim passou o outono. Testemunhei, com surpresa e pesar, as folhas se
decomporem e caírem, e a natureza novamente assumiu a aparência árida
e sombria que ostentava quando conheci a floresta e a adorável lua. No
entanto, não prestei atenção à tristeza do clima; eu estava mais bem
adaptado para resistir ao frio do que ao calor. Meu principal deleite,
porém, era a visão das flores, dos pássaros e de toda a aparência alegre do
verão; quando eles me abandonaram, voltei-me com mais atenção para os
habitantes da choupana. A felicidade deles não diminuiu com a ausência
do verão. Eles amavam e simpatizavam um com o outro; e suas alegrias,
dependendo uma da outra, não eram interrompidas pelo que acontecia ao
redor. Quanto mais eu os via, mais desejava reivindicar sua proteção e
generosidade; meu coração ansiava por ser conhecido e amado por essas
criaturas adoráveis. Perceber seu afável olhar voltado para mim com
carinho era o limite máximo de minha ambição. Não ousei cogitar que eles
se afastariam de mim com desdém e horror. Os pobres que paravam à sua
porta nunca eram expulsos. Eu demandaria, é verdade, tesouros maiores do
que um pouco de comida ou descanso: pediria bondade e simpatia, pois
não me considerava totalmente indigno desses sentimentos.
O inverno avançou e todo um ciclo das estações ocorreu desde que
despertei para a vida. Minha atenção naquele momento estava voltada
apenas para o plano de me apresentar aos meus protetores. Havia
elaborado muitos planos; mas decidi, por fim, entrar na habitação quando
o velho cego estivesse sozinho. Tive sagacidade o suficiente para perceber
que a antinaturalidade hedionda da minha figura era o principal motivo de
horror entre as pessoas. Minha voz, embora ríspida, não era terrível.
Assim, imaginei que, na ausência dos filhos, pudesse obter a boa vontade e
a mediação do velho De Lacey rumo à tolerância de meus protetores mais
jovens.
Certo dia, quando o sol reluzia nas folhas vermelhas que se espalhavam
pelo chão, difundindo alegria ao mesmo tempo que negava o calor, Safie,
Agatha e Félix partiram em uma longa caminhada pelo campo. O velho,
por sua própria vontade, foi deixado sozinho na choupana. Quando os
jovens partiram, ele pegou seu violão e tocou as árias mais doces e tristes
que eu já o ouvira tocar. No começo, seu semblante resplandecia de prazer;
no entanto, conforme ele tocava, a consideração e a tristeza se apoderavam
de sua expressão. Por fim, deixando o instrumento de lado, ele ficou
absorvido em pensamentos.
Meu coração batia rápido; era a hora e o momento da provação, que
ditaria minha esperança ou realizaria meu medo. Os criados tinham ido a
uma feira vizinha. Tudo estava quieto dentro e ao redor da choupana.
Tratava-se de uma excelente oportunidade. Todavia, quando procedi à
execução do meu plano, meus membros falharam e me afundei no chão.
Novamente, levantei-me e, exercendo toda a firmeza da qual era mestre,
removi as tábuas colocadas à frente de minha casa a fim de me ocultar. O
ar fresco me fortificou e, com renovada determinação, aproximei-me da
porta da choupana.
Bati à porta.
– Quem está aí? – perguntou o velho. – Pode entrar.
Entrei.
– Me perdoe pela intrusão – falei. – Sou um viajante à procura de
descanso; o senhor me faria um grande favor se me permitisse ficar uns
minutos diante do fogo.
– Entre – repetiu De Lacey – e tentarei da maneira que puder aliviar
seus desejos. Infelizmente, meus filhos não estão em casa e, como sou
cego, receio encontrar dificuldades para lhe conseguir comida.
– Não se preocupe, meu amável anfitrião. Tenho comida; é do calor e do
descanso que preciso.
Sentei-me e um silêncio se seguiu. Eu sabia que cada minuto era
precioso para mim, mas continuava indeciso quanto à maneira de iniciar a
conversa quando o velho me dirigiu a palavra.
– Por sua língua, estranho, suponho que seja meu compatriota. Você é
francês?
– Não, mas fui educado por uma família francesa e entendo apenas esse
idioma. Agora vou reivindicar a proteção de alguns amigos a quem eu
sinceramente amo, e de cujo favor nutro esperanças.
– Eles são alemães?
– Não, são franceses. Mas vamos mudar de assunto. Sou uma criatura
agourenta e sozinha; olho meu entorno e não tenho parentescos ou amigos
no mundo. Essas pessoas amáveis a quem recorro nunca me viram e sabem
pouco a meu respeito. Estou cheio de medos, pois, se falhar, serei um
proscrito no mundo para sempre.
– Não se desespere. Não ter amigos é, de fato, triste; mas o coração dos
homens, quando não afetado por interesses próprios, está cheio de amor
fraterno e caridade. Confie, portanto, em sua esperança. Se esses amigos
são bons e amáveis, não há razão para o desespero.
– Eles são gentis, as melhores criaturas do mundo; mas, infelizmente,
têm preconceito contra mim. Tenho bom ânimo; minha vida sempre foi
inofensiva e, até certo ponto, benéfica; mas um preconceito fatal turva sua
visão e, onde deveriam perceber um amigo gentil, veem apenas um
monstro detestável.
– Isso é realmente lamentável. Mas, se você é mesmo irrepreensível,
por que não os convence disso?
– Estou prestes a realizar essa tarefa, e é por isso que sinto tantos
terrores avassaladores. Amo esses amigos com ternura; nos últimos meses,
tenho praticado atos diários de bondade para com eles sem que me notem.
Eles, no entanto, acreditam que desejo feri-los, e é esse preconceito que
desejo superar.
– Onde esses amigos residem?
– Perto daqui.
O velho fez uma pausa e continuou:
– Se me confidenciar sem reserva os detalhes de sua história, talvez eu
possa interceder em seu favor. Sou cego e não posso julgar o seu
semblante, mas há algo em suas palavras que me convencem de que você é
sincero. Sou pobre e exilado, mas me proporcionará verdadeiro prazer ser
de alguma maneira útil a uma criatura humana.
– Que excelente homem! Agradeço e aceito sua oferta generosa. Você
me levanta do pó com tamanha bondade, e confio que, com sua ajuda, não
me será negado o convívio em sociedade e a simpatia de seus semelhantes.
– Deus nos livre! Mesmo que você fosse realmente criminoso, isso só
poderia levá-lo ao desespero, e não o instigar à virtude. Também sou
infeliz; minha família e eu fomos condenados, embora inocentes. Posso,
portanto, compreender os seus infortúnios.
– Como posso agradecer meu único e melhor benfeitor? De seus lábios
ouvi pela primeira vez a voz da bondade dirigida a mim. Serei
eternamente grato; sua humanidade me garante sucesso com aqueles
amigos a quem estou prestes a encontrar.
– Posso saber os nomes e a residência desses amigos?
Fiz uma pausa. Era o momento decisivo que traria a mim, ou levaria
embora para sempre a felicidade. Lutei em vão em busca de firmeza
suficiente para responder, mas o esforço destruiu toda a minha força
restante. Afundei na cadeira e chorei alto. No mesmo minuto, ouvi os
passos dos meus protetores mais jovens. Não tinha tempo a perder;
agarrando a mão do velho, exclamei:
– Agora é a hora! Proteja-me! Você e sua família são os amigos que
procuro. Não me abandone na hora da provação!
– Meu Deus! – bradou o velho. – Quem é você?
Naquele instante, a porta da casa foi aberta e Félix, Safie e Agatha
entraram. Quem poderia descrever o horror e a consternação daquelas
pessoas? Agatha desmaiou, Safie, incapaz de ajudar a sua amiga, saiu
correndo da choupana. Félix avançou e, com força sobrenatural, arrancou-
me de seu pai, a cujos joelhos eu havia me agarrado. Em uma onda de
fúria, ele me jogou no chão e me atingiu violentamente com um bastão. Eu
poderia tê-lo rasgado membro a membro, como o leão dilacera o antílope.
Mas meu coração afundou no peito repleto de amargura, e me contive. Eu
o vi a ponto de repetir o golpe quando, dominado pela dor e pela angústia,
deixei a choupana; em meio ao tumulto, escapei despercebido para o meu
casebre.
CAPÍTULO XVI

‒CIADOR AMALDIÇOADO! Por que sobrevivi? Por que, naquele nstante, não
apaguei a centelha de existência que você tão arbitrariamente me
concedeu? Não sei, o desespero ainda não havia se apossado de mim; meus
sentimentos eram de raiva e vingança. Eu poderia ter destruído a choupana
e seus habitantes com prazer, saciando-me com seus gritos e desastre.
Quando a noite chegou, saí do meu retiro e vaguei pela floresta; agora
não mais contido pelo medo da descoberta, exprimia minha angústia em
uivos assustadores. Eu era como um animal selvagem que havia se
libertado de uma armadilha, destruindo os objetos que me obstruíam e
atravessando a floresta de maneira veloz. Ah, que noite desgraçada passei!
As estrelas frias brilhavam em zombaria e as árvores nuas agitavam seus
galhos acima de mim. De vez em quando, a doce voz de um pássaro
irrompia em meio à quietude universal. Tudo, exceto eu, estava em
repouso ou deleite. Como o arquidemônio, sentia o inferno dentro de mim;
e, sem alguém que simpatizasse com minha situação, queria despedaçar as
árvores, espalhando o caos e a destruição ao redor para então me sentar e
contemplar a ruína.
Mas essa era uma sensação luxuosa a qual não podia suportar. Fiquei
fatigado com o excesso de esforço corporal e afundei na grama úmida com
a impotência doentia do desespero. Não havia entre as miríades de homens
alguém que pudesse se apiedar ou me ajudar. E ainda devia ser bom para
meus inimigos? Não: a partir daquele momento, declarei guerra eterna
contra a espécie e, sobretudo, contra aquele que me formou e me relegou a
essa infelicidade abominável.
O sol nasceu, ouvi as vozes dos homens e soube que seria impossível
retornar ao meu retiro durante o dia. Assim, me escondi em uma densa
vegetação rasteira, decidido a dedicar as horas conseguintes à reflexão
sobre minha situação.
O sol agradável e o ar puro do dia restauraram um pouco a minha
tranquilidade; quando pensei no acontecimento da choupana, não pude
deixar de acreditar que fora muito apressado em minhas conclusões. Eu
certamente tinha agido de forma imprudente. Era evidente que minha
conversa havia predisposto o pai ao meu favor, e eu agira como tolo na
exposição de minha pessoa para o horror de seus filhos.
Eu deveria ter me familiarizado com o velho De Lacey e, aos poucos,
me revelado para o restante de sua família, quando os jovens estivessem
mais preparados para a abordagem. Mas não acreditava que meus erros
fossem irrecuperáveis. Depois de muita consideração, resolvi voltar à
choupana, procurar o velho e reconquistar sua simpatia.
Esses pensamentos me acalmaram e, à tarde, afundei em um sono
profundo. Porém a febre em meu sangue não me permitiu ser visitado por
sonhos pacíficos. A cena horrível do dia anterior se repetia diante dos
meus olhos; as mulheres fugiam enquanto o enfurecido Félix me arrancava
dos pés de seu pai. Acordei exausto e, ao descobrir que já era noite, saí do
meu esconderijo em busca de comida.
Quando minha fome se apaziguou, dirigi meus passos rumo ao
conhecido caminho da choupana. Tudo estava em paz. Entrei em minha
casa e fiquei em expectativa silenciosa à espera da família. Uma hora se
passou, o sol subiu alto no céu, mas os habitantes da choupana não
apareceram. Tremi violentamente, receando uma desgraça terrível. O
interior da casa estava escuro e não se ouvia qualquer movimento. Não
poderia descrever a agonia de tal suspense.
Depois de certo tempo, dois camponeses passaram por ali. Eles pararam
diante da choupana e começaram a conversar, gesticulando de maneira
violenta. Não conseguia entender o que eles diziam, pois falavam a língua
do país, diferente da que eu havia aprendido. Logo depois, no entanto,
Félix se aproximou com outro homem. Fiquei surpreso, pois sabia que ele
não havia saído da choupana naquela manhã e esperava ansiosamente
descobrir, em sua fala, o que significava a presença incomum daquelas
pessoas.
– Devo lembrá-lo – disse seu companheiro – que você será obrigado a
pagar três meses de aluguel e perderá a produção do seu jardim. Não
desejo tirar vantagem injusta e imploro, portanto, que você pense por
alguns dias antes de tomar sua decisão.
– Isto é totalmente inútil – respondeu Félix. – Nunca mais poderemos
habitar sua casa. A vida do meu pai corre grande perigo devido à terrível
circunstância que relatei. Minha esposa e minha irmã nunca mais
esquecerão o horror daquela cena. Peço-lhe para não argumentar mais
comigo. Pegue sua posse de volta e me deixe sair rapidamente deste lugar.
Félix tremia violentamente enquanto falava. Ele e seu companheiro
entraram na cabana, onde permaneceram por alguns minutos antes de
partirem. Nunca mais vi ninguém da família De Lacey.
Continuei o resto do dia em meu casebre em estado de desespero
absoluto e estúpido. Meus protetores haviam partido e quebrado o único
elo que me prendia ao mundo. Pela primeira vez, os sentimentos de
vingança e ódio encheram meu peito e não me esforcei para controlá-los;
na verdade, inclinei meus pensamentos em direção ao dano e à morte. No
entanto, quando pensei nos meus amigos, na voz suave de De Lacey, nos
olhos gentis de Agatha e na beleza requintada da árabe, esses pensamentos
desapareceram e um jorro de lágrimas me acalmou. Contudo, quando me
dei conta de que eles haviam me desprezado e abandonado, fui possuído
pela ira. Incapaz de ferir um ser humano, voltei minha fúria a objetos
inanimados. À medida que a noite avançou, coloquei uma variedade de
combustíveis ao redor da casa; e, depois de ter destruído todo vestígio de
cultivo no jardim, esperei com impaciência até que a lua descesse, com o
intuito de principiar minhas operações.
Horas se passaram e um vento feroz surgiu da floresta, rapidamente
dispersando as nuvens que pairavam no céu: a ventania cresceu como uma
avalanche poderosa e produziu uma espécie de insanidade em meu ânimo,
o que rompeu todos os limites da razão e reflexão. Acendi o galho seco de
uma árvore e dancei em fúria ao redor da choupana, com os olhos ainda
fixos no horizonte, cuja borda quase tocava a lua. Uma parte do astro ainda
se escondia quando ergui minha tocha, e, com um grito, atirei-a na palha,
na urze e nos arbustos que eu havia juntado. O vento abanou o fogo e a
cabana foi envolvida com agilidade pelas chamas que a lambiam com
línguas bifurcadas e destruidoras.
Tão logo me convenci de que nada sobraria da habitação, saí do local e
procurei refúgio na floresta.
E então, com o mundo diante de mim, para onde deveria rumar? Resolvi
me distanciar do cenário dos meus infortúnios. Porém, para alguém odiado
e desprezado, todo país seria igualmente horrível. Por fim, a lembrança de
sua existência atravessou minha mente. Eu havia aprendido com seus
papéis que você era meu pai, meu criador; e a quem eu poderia dirigir-me
de maneira mais adequada senão àquele que me deu a vida? Dentre as
lições que Félix ofereceu a Safie, a geografia não havia sido omitida:
aprendi por meio dela as posições relativas dos diferentes países da Terra.
Você mencionou Genebra como o nome de sua cidade natal, de modo que
decidi seguir para lá.
Mas como poderia me orientar? Eu sabia que precisava viajar na direção
sudoeste para chegar ao meu destino; mas o sol era meu único guia. Eu
não sabia os nomes das cidades pelas quais passaria nem poderia pedir
informações a um único ser humano, mas não me desesperei. Somente de
você poderia esperar socorro, embora não sentisse nada senão ódio por seu
ser. Criador insensível e sem coração! Você me dotou de percepções e
paixões para depois me lançar ao mundo como um objeto de desprezo e
horror para a humanidade. No entanto, apenas de você poderia reivindicar
piedade e reparação, e de você decidi buscar a justiça que em vão tentava
obter de qualquer outro ser que usava a forma humana.
Minhas viagens foram longas, e os sofrimentos, intensos. O outono já
estava avançado quando abandonei o distrito onde residi durante tanto
tempo. Viajei apenas à noite, com medo de encontrar um rosto humano. A
natureza decaiu em volta, e o sol já não tinha calor. A chuva e a neve
caíam ao meu redor, poderosos rios se congelavam e a superfície da terra
era dura, fria e nua, privando-me de abrigo. Ah, quantas vezes amaldiçoei
meu ser! A brandura da minha natureza se esvaíra, e tudo dentro de mim
se transformou em fel e amargura. Quanto mais eu me aproximava de sua
morada, mais intensamente sentia o espírito de vingança incendiar meu
coração. A neve caiu e as águas foram endurecidas, mas não descansei.
Determinados incidentes de quando em quando me orientavam, e obtive
acesso a um mapa do país. Contudo, muitas vezes eu me afastava do meu
caminho. A agonia sentimental não me permitia trégua, e não havia nada
apto a apaziguar meu estado de fúria e infelicidade exacerbada. Houve, em
contrapartida, um episódio na minha chegada aos confins da Suíça, na
época em que o sol recuperava seu calor e o tom verde retornava à terra,
reforçando minha amargura e o horror das minhas emoções.
Eu geralmente descansava durante o dia e viajava apenas à noite,
protegido da visão do homem. Entretanto, certa manhã, ao descobrir uma
mata densa ao longo de meu caminho, arrisquei continuar minha jornada
após o nascer do sol. O dia, um dos primeiros da primavera, me animou
pela beleza do seu sol e pela fragrância do ar. Fui acometido por emoções
de brandura e prazer, há muito consideradas mortas, que reviviam dentro
de mim. Surpreso pela volta de tais sensações e ignorando minha solidão e
deformidade, me atrevi a ser feliz. Lágrimas suaves caíram outra vez em
minhas bochechas, e levantei meus olhos úmidos com gratidão pelo sol
abençoado que me oferecia tanta alegria.
Continuei a serpentear por entre os caminhos da floresta até chegar ao
seu limite, ladeado por um rio profundo e rápido no qual muitas árvores
curvavam seus galhos e exibiam o frescor da estação. Aqui parei, sem
saber exatamente qual caminho seguir, quando ouvi o som de vozes que
me fizeram buscar refúgio à sombra de um cipreste. Mal havia me
escondido quando uma jovem correu em direção ao local onde eu estava,
rindo como se fugisse de alguém por brincadeira. Ela continuou seu curso
ao longo das vertentes do rio, quando de repente escorregou e caiu nas
águas. Corri do meu esconderijo e, lutando com dificuldade contra a força
da corrente, salvei a garota e a arrastei para as margens. Ela estava
desmaiada, de modo que recorri a todos os meios em meu alcance para lhe
restaurar seus sentidos. Neste momento, fui bruscamente interrompido por
um homem de aspecto rústico, provavelmente a pessoa de quem ela fugia
de brincadeira. Ao me ver, ele disparou em minha direção e, arrancando a
garota dos meus braços, correu para as partes mais profundas da mata. Eu
o segui rapidamente, sem saber o porquê. Quando o homem me avistou,
apontou uma arma para o meu corpo e atirou. Caí ferido enquanto meu
agressor, com grande rapidez, fugia pela mata.
Esse foi o prêmio por minha benevolência! Eu salvara um ser humano
da destruição e, como recompensa, agora me contorcia sob a dor miserável
de uma ferida que despedaçava a carne e os ossos. Os sentimentos de
bondade e gentileza que eu havia sentido momentos antes deram lugar à
raiva infernal e ao ranger dos dentes. Inflamado pela dor, prometi ódio
eterno e vingança contra toda a humanidade. A agonia de minha ferida,
porém, me venceu; minha pulsação parou e eu desmaiei.
Durante semanas, conduzi uma vida desgraçada na floresta na tentativa
de recuperar-me do ferimento. A bala entrara no meu ombro e eu não sabia
se ela havia permanecido lá ou ido para outro lugar; de qualquer forma, eu
não tinha meios para removê-la. Meus sofrimentos foram intensificados
também pelo sentimento opressivo de injustiça e ingratidão por trás
daquela ferida. Dia após dia, eu renovava meus votos de vingança – uma
vingança profunda e mortal capaz de compensar os ultrajes e as angústias
dos quais eu era vítima.
Semanas depois, minha ferida sarou e continuei a jornada. As
dificuldades que sofri já não eram mais aliviadas pelo sol reluzente ou
pela brisa suave da primavera. Toda a alegria era apenas uma zombaria
que insultava meu estado desolado e me fazia sentir de maneira ainda mais
dolorosa por não ter sido concebido para desfrutar do prazer.
Mas o fim das minhas labutas se aproximava e, dentro de dois meses,
alcancei os arredores de Genebra.
Era noite quando cheguei e me escondi entre os campos que cercavam a
cidade a fim de meditar sobre a melhor maneira de me dirigir a você.
Sentia-me oprimido pelo cansaço e pela fome, e infeliz em demasia para
apreciar as brisas gentis da noite ou a perspectiva do pôr do sol além das
montanhas estupendas do Jura.
Naquele momento, um sono leve me aliviou da dor da reflexão, e
acordei com o barulho de uma criança linda que adentrava a área onde me
escondera com toda a esportividade da infância. De repente, enquanto a
olhava, me ocorreu que a pequena criatura não tinha preconceitos e era
jovem demais para se assustar com o horror da deformidade. Se, portanto,
eu pudesse pegá-lo e educá-lo como meu companheiro e amigo, não
ficaria tão desolado no mundo.
Instigado por esse impulso, agarrei o garoto quando ele passou por perto
e o aproximei de mim. Assim que viu minha forma, ele colocou as mãos
diante dos olhos e soltou um grito estridente. Afastei suas mãos do rosto e
disse:
– Criança, o que significa isso? Não pretendo machucá-lo. Ouça-me.
Ele lutou violentamente.
– Deixe-me ir! – gritou. – Monstro! Feio! Você quer me comer e me
despedaçar. Você é um ogro! Deixe-me ir, ou direi tudo ao meu pai.
– Rapaz, você nunca mais verá seu pai. Você deve vir comigo.
– Monstro horrível! Solte-me! Meu pai é importante! Ele é o sr.
Frankenstein e vai punir você. Não ouse me levar!
– Frankenstein! Então você pertence ao meu inimigo: aquele a quem
jurei eterna vingança. Você será minha primeira vítima.
A criança se debatia e me enchia de insultos que levavam desespero ao
meu coração. Segurei sua garganta para silenciá-lo e, momentos depois,
ele caiu morto aos meus pés.
Olhei para a minha vítima e meu coração se encheu de júbilo e triunfo
infernal. Batendo palmas, exclamei:
– Eu também posso criar desolação. Meu inimigo não é invulnerável;
esta morte trará desespero a ele, e mil outras tribulações o atormentarão e
o destruirão.
Quando fixei meus olhos na criança, vi algo brilhando em seu peito. Era
o retrato de uma mulher adorável. Apesar da minha malignidade, aquilo
me suavizou e me atraiu. Por alguns momentos, admirei prazerosamente
seus olhos escuros, cílios grandes e lábios adoráveis. Todavia minha raiva
retornou, à lembrança de que eu estaria para sempre privado dos deleites
que essas belas criaturas podiam proporcionar, e que aquela cuja aparência
eu contemplava não exibiria, em relação a mim, tal benignidade divina,
mas reações de desgosto e afronta.
Você se admira que tais pensamentos pudessem culminar em acessos de
fúria? O que me surpreende é não ter, no momento, deixado de exalar as
sensações em exclamações e dado vazão ao desejo de atacar a humanidade
e perecer na tentativa de destruí-la.
Dominado por esses sentimentos, deixei o local onde cometera o
assassinato e, procurando um esconderijo mais isolado, entrei em um
celeiro que parecia vazio. Uma mulher estava dormindo na palha. Ela era
jovem; não tão bonita quanto a mulher do retrato que carregava, mas seu
aspecto agradável provinha do frescor da juventude. Aqui, pensei comigo,
estava uma pessoa cujo sorriso jocoso era concedido a todos, exceto a
mim. Então, me inclinei sobre ela e sussurrei:
– Acorde, belíssima. Seu amante está próximo; aquele que daria a vida
para obter sua atenção afetuosa. Minha amada, acorde!
A garota se mexeu e um calafrio de terror me perpassou. Deveria ela de
fato acordar, me ver, me amaldiçoar e denunciar o assassinato? Essa seria
por certo sua reação caso seus olhos se abrissem e ela me vislumbrasse.
Então, uma ideia insana agitou o demônio dentro de mim: não eu, mas ela
deveria sofrer. Eu havia cometido o assassinato porque era privado de tudo
o que ela poderia me dar. O crime tinha origem nela. Portanto, a punição
deveria cair sobre ela! Graças às lições de Félix e às leis perversas do
homem, eu aprendera a causar ruína. Inclinei-me sobre ela e coloquei o
retrato em uma das dobras de seu vestido. Ela se moveu novamente e eu
fugi.
Durante dias visitei o local onde essas cenas tomaram parte; às vezes,
desejando vê-lo, outras vezes, decidido a abandonar o mundo e suas
desventuras para sempre. Por fim, vaguei em direção a essas montanhas e
percorri seus imensos recantos, consumido por uma paixão cálida que só
você poderia satisfazer. Nós não podemos nos separar até você prometer
que cumprirá o meu clamor. Estou sozinho e infeliz; o ser humano não se
associará a mim, mas um ser tão deformado e horrível quanto eu não se
negaria a tal. Minha companheira deve ser da mesma espécie e ter os
mesmos defeitos. Você precisa criar esse ser.
CAPÍTULO XVII

ACRIATURA PAROU DE FALAR e fixou seu olhar em mim, na expectativa de


uma resposta. Mas eu estava aturdido, perplexo e inapto a organizar
minhas ideias o bastante para entender toda a extensão de sua proposição.
Ele prosseguiu:
– Você deve criar uma fêmea para mim, com quem eu possa partilhar as
simpatias necessárias ao meu ser. Isso só você pode fazer; e eu o exijo
como um direito que você não deve recusar.
A última parte de sua história despertou novamente em mim a raiva que
desaparecera durante a narração da sua vida pacífica entre os habitantes da
choupana. Assim, não pude mais suprimir a raiva que queimava dentro de
mim.
– Eu me recuso – respondi –, e nenhuma tortura será capaz de extorquir
meu consentimento. Você pode me tornar o mais desventurado dos
homens, mas nunca poderá me degradar a tal ponto. Criar outro ser como
você, cuja maldade conjunta pode desolar o mundo? Suma daqui! Eu lhe
disse: você pode me torturar, mas nunca consentirei.
– Você está errado – respondeu o demônio. – E, em vez de ameaçar, me
satisfaço em argumentar com você. Sou malicioso porque sou infeliz. Não
sou evitado e odiado por toda a humanidade? Você, meu criador, seria
capaz de me despedaçar e sentir-se triunfante. Pense nisso e me diga por
que eu deveria ter pena do homem mais do que ele de mim? Você não
chamaria de assassinato se pudesse me empurrar em uma daquelas fendas
de gelo e destruir meu corpo, o trabalho de suas próprias mãos. Devo
respeitar o homem quando ele me despreza? Se ele vivesse comigo em
misericórdia, eu lhe traria benefícios com lágrimas de gratidão por sua
aceitação ao invés de feri-lo. Mas isso não é possível. Os sentidos
humanos são barreiras intransponíveis à nossa união. No entanto, não serei
submetido à abjeta escravidão. Vingarei meus ferimentos: se não puder
inspirar amor, causarei medo, principalmente em você, meu arqui-
inimigo, porque é o criador a quem juro um ódio inextinguível. Tome
cuidado: vou me empenhar em sua destruição e não descansarei até que
seu coração seja desmantelado e você amaldiçoe o dia em que nasceu.
Uma raiva diabólica o animou conforme proferia essas palavras. Seu
rosto estava enrugado em contorções horríveis demais para a visão
humana, mas, pouco depois, ele se acalmou e prosseguiu.
– Eu pretendia argumentar. Essa paixão é prejudicial para mim, pois
você não vê que você é a causa do excesso em questão. Se alguém
demonstrasse sentimentos de benevolência com relação a mim, eu os
devolveria cem vezes mais; por causa dessa criatura, eu faria as pazes com
toda a humanidade! Mas me entrego a sonhos de júbilo que não podem ser
concretizados. Meu pedido é razoável e moderado: exijo uma criatura do
sexo oposto que seja tão hedionda quanto eu; a gratificação é pequena,
mas me contentaria. Sim, seríamos monstros isolados de todo o mundo,
mas por esse motivo seríamos mais apegados um ao outro. Nossas vidas
não serão felizes, apesar de inofensivas e livres do desgosto que agora
sinto. Ah, meu criador, me faça feliz; deixe-me sentir gratidão por você!
Deixe-me perceber que sou capaz de provocar a simpatia de alguma coisa
existente! Não negue o meu pedido!
Eu estava comovido. Estremeci ao cogitar as consequências possíveis
do meu consentimento, mas senti que havia justiça em seu argumento. Sua
história e os sentimentos que ele agora expressava provavam que ele era
uma criatura deveras sensível; e não era meu dever como seu criador dar a
ele toda a porção de felicidade que estivesse ao meu alcance?
Ele notou minha mudança de sentimento e continuou:
– Se consentir, nem você nem qualquer outro ser humano voltará a nos
ver: iremos para as vastas florestas da América do Sul. Minha comida não
é a do homem; não destruo o gado para saciar meu apetite. Castanhas e
frutas são alimentos suficientes. Minha companheira será da mesma
natureza que eu e ficará satisfeita com esse sustento. Construiremos nosso
leito a partir de folhas secas, o sol brilhará sobre nós como brilha sobre o
homem, e amadurecerá nossa comida. O cenário que lhe apresento é
pacífico e humano, e você apenas o negaria se fosse corrupto e cruel.
Piedoso como tem sido com relação a mim, agora vejo compaixão em seus
olhos; aproveito o momento favorável para persuadi-lo a prometer o que
desejo com tamanha disposição.
– Você propõe – respondi – fugir das moradas do homem e viver nas
terras selvagens onde os animais do campo serão seus únicos
companheiros. Como você, que almeja o amor e a simpatia do homem,
conseguirá perseverar no exílio? Você voltará e novamente buscará a
misericórdia deles, encontrando o ódio em vez disso; suas paixões
maléficas serão renovadas e você terá uma companheira para ajudá-lo na
tarefa da destruição. Pare de argumentar, pois não posso consentir com
isso.
– Quão inconstantes são seus sentimentos! Instantes atrás você havia se
emocionado com minhas súplicas; por que endurece de novo ante minhas
queixas? Juro, pela terra onde vivo, e por você, meu criador, que deixarei a
vizinhança do homem com a companheira que conceder para mim e
habitarei os lugares mais selvagens. Minhas paixões malignas terão
fugido, pois terei simpatia! Minha vida fluirá em serenidade e, no leito de
morte, não o amaldiçoarei.
Suas palavras produziram um efeito estranho sobre mim. Eu sentia
compaixão e, às vezes, o desejo de consolá-lo; entretanto, quando o fitava,
via uma massa imunda se mexendo e falando. Então, meu coração adoecia
e meus sentimentos se alternavam entre o horror e o ódio. Tentei reprimir
essas sensações. Pensei que, como era incapaz de simpatizar com ele, não
tinha o direito de ocultar a pequena porção de felicidade que ainda estava
ao meu alcance lhe dar.
Eu disse:
– Você jura ser inofensivo, mas já não demonstrou certo grau de malícia
que deveria me fazer desconfiar de você, e com razão? Será que isto não é
apenas uma farsa para que eu aumente as chances do seu triunfo na busca
por vingança?
– Como poderia fazê-lo? Não devo me deixar enganar e exijo resposta.
Se não mantenho laços nem afetos, o ódio e o vício são tudo de que
disponho. O amor de outro indivíduo extinguirá a causa dos meus crimes e
devo tornar-me algo cuja existência todos desconhecem. Meus vícios são a
prole de uma solidão forçada que abomino, e minhas virtudes surgirão
quando eu viver em comunhão com um igual. Sentirei as afeições de um
ser sensível e estarei ligado a uma cadeia de eventos da qual estou
excluído agora.
Parei em busca de refletir sobre tudo o que ele havia relatado e os vários
argumentos que empregara. Ponderei a respeito da promessa de virtudes
que marcara o início de sua existência, e da subsequente destruição de seus
sentimentos pelo ódio e o desprezo que seus protetores haviam
manifestado em relação a ele. Seu poder e ameaça não foram omitidos em
minhas ponderações: uma criatura que podia viver em cavernas de gelo e
se esconder de uma perseguição entre os cumes de precipícios inacessíveis
era possuidora de faculdades com as quais seria inútil lidar. Após uma
longa pausa reflexiva, concluí que a justiça que meus semelhantes e eu lhe
devíamos exigia o cumprimento de seu pedido. Então, voltando-me para
ele, eu disse:
– Concordo com sua exigência, em seu juramento solene de deixar a
Europa para sempre e evitar qualquer outro lugar onde haja vida humana.
Entregarei em suas mãos uma mulher que o acompanhe em seu exílio.
– Juro! – exclamou ele. – Pelo sol, pelo azul do céu e pelo fogo do afeto
que queima meu coração, que se você atender à minha súplica, nunca mais
me verá enquanto eu existir. Vá para casa e comece seu trabalho:
observarei o progresso com uma ansiedade indescritível. Quando você
terminar, aparecerei.
Ao dizê-lo, ele desapareceu com rapidez, provavelmente com medo de
que eu mudasse de ideia. Eu o observei descer a montanha com velocidade
maior do que a do voo de uma águia e sem demora o perdi entre as
ondulações do mar gélido.
A história dele ocupara o dia inteiro e o sol estava à beira do horizonte
quando ele partiu. Eu sabia que deveria apressar minha descida até o vale,
pois logo estaria envolto em trevas. Todavia, meu coração estava pesado, e
meus passos, lentos. O esforço de serpentear entre os pequenos caminhos
das montanhas e de fixar meus pés com firmeza à medida que avançava
me deixou atônito, ocupado como estava pelas emoções que os eventos do
dia haviam produzido. A noite já estava bastante avançada quando cheguei
ao local de descanso na metade do caminho e me sentei ao lado da fonte.
As estrelas brilhavam em intervalos enquanto as nuvens passavam sobre
elas; os pinheiros escuros erguiam-se diante de mim e, à minha volta,
árvores quebradas jaziam no chão. Era uma cena de solenidade
maravilhosa que suscitava pensamentos estranhos dentro de mim. Chorei
com amargor e, apertando minhas mãos em agonia, exclamei:
– Ah! Estrelas, nuvens e ventos que estão prestes a zombar de mim: se
vocês realmente se apiedam, esmaguem minhas emoções e minha
memória. Tornem-me um nada. Do contrário, vão embora e me larguem à
escuridão.
Eram pensamentos selvagens e soturnos, mas não posso lhe descrever
como o cintilar perpétuo das estrelas pesava sobre mim e como ouvia cada
rajada de vento como um terrível siroco13 a caminho de me consumir.
O dia amanheceu antes que eu chegasse à vila de Chamounix. Não
descansei, voltando de imediato para Genebra. Mesmo em meu coração,
não conseguia expressar minhas sensações – elas pesavam sobre mim
como uma montanha, e aquele excesso exacerbava minha agonia. Assim,
voltei para casa e me apresentei à família. Minha aparência abatida e
selvagem despertou alarme intenso, mas não respondi às perguntas e me
limitei a poucas palavras. Senti como se tivesse sido banido, como se não
tivesse o direito de reivindicar sua simpatia e jamais pudesse desfrutar de
novo de sua companhia. Mesmo assim, eu os amava e, à procura de salvá-
los, resolvi me dedicar à tarefa mais abominável. A perspectiva de tal
ocupação transformou todas as outras circunstâncias de minha existência
numa espécie de sonho ao passo que a realidade se resumia àquela missão.
- Vento quente e carregado de poeira proveniente do deserto do Saara,
na África. (N. T.)
CAPÍTULO XVIII

DIAS E SEMANAS SE PASSARAM desde o meu retorno a Genebra, e eu não


conseguia reunir coragem para recomeçar meu trabalho. Eu temia a
vingança do demônio desapontado, mas não podia superar a repugnância à
tarefa que me foi imposta. Descobri que não conseguia compor uma
mulher sem dedicar outra vez vários meses a estudos complexos e
investigações laboriosas. Ouvi relatos de descobertas feitas por um
filósofo inglês, cujo conhecimento era importante para o meu sucesso, e
pensei até mesmo em obter o consentimento de meu pai para viajar à
Inglaterra e procurá-lo. Entretanto, apeguei-me a todo pretexto de atraso e
evitei dar o primeiro passo em um empreendimento cuja necessidade
imediata começou a parecer menos absoluta para mim. Uma mudança de
fato ocorrera em mim: minha saúde, até então fraca, encontrava-se agora
muito restaurada; e meu ânimo, quando não controlado pela lembrança da
infeliz promessa, aumentava proporcionalmente. Meu pai notou essa
mudança com prazer e direcionou seus pensamentos para o melhor método
de erradicar minha melancolia restante, que de vez em quando voltava aos
trancos como a escuridão devoradora que turva o sol mediante
aproximação. Nos referidos momentos, obtinha refúgio na mais perfeita
solidão. Passava dias inteiros sozinho no lago, em um pequeno barco,
observando as nuvens e escutando as ondas calmas e apáticas. Em poucas
ocasiões o ar fresco e o sol reluzente deixavam de me restaurar certo grau
de compostura e, quando de meu retorno, recebia as saudações de amigos
com um sorriso mais alegre e um coração mais bem-disposto.
Foi depois do meu retorno de uma dessas divagações que meu pai,
chamando-me de lado, assim me falou:
– Estou feliz em observar, meu querido filho, que você retomou seus
prazeres anteriores e parece estar voltando a si mesmo. Ainda assim, você
é infeliz e evita nossa sociedade. Por um tempo, fiquei perdido em
conjecturas quanto à causa disso, mas ontem uma ideia me ocorreu e, se
bem fundamentada, convoco-o a confessá-la. A reserva em tal ponto seria
não apenas inútil, mas também traria desgraças agudas a todos nós. –
Tremi violentamente ante o exórdio de meu pai, que prosseguiu: –
Confesso, meu filho, que sempre considerei seu casamento com a nossa
querida Elizabeth o laço de nossa estabilidade doméstica e o amparo de
minha velhice. Vocês se apegaram um ao outro desde a primeira infância,
estudaram juntos e aparentaram ser, em disposições e gostos,
absolutamente adequados um ao outro. Mas a experiência do homem é tão
cega que os aspectos que tomei como favoráveis ao meu plano podem ter
sido seu agente de destruição. Você possivelmente vê Elizabeth como
irmã, sem nenhum desejo de torná-la sua esposa. Talvez tenha até
encontrado outra a quem ama e, por considerar-se ligado a Elizabeth por
questão de honra, esteja imerso em tamanho pesar.
– Meu querido pai, tranquilize-se. Amo minha prima com ternura e
sinceridade. Nunca conheci uma mulher que instigasse, como Elizabeth,
minha mais calorosa admiração e afeto. Minhas esperanças e perspectivas
futuras estão inteiramente ligadas à expectativa de nossa união.
– A expressão de seus sentimentos sobre esse assunto, meu querido
Victor, me dá um prazer que há muito não sentia. Se você se sente assim,
certamente seremos felizes, por mais que os eventos atuais possam nos
deixar melancólicos. O que desejo dissipar é essa tristeza, que parece ter
tomado conta de sua mente com tanta força. Diga-me, portanto, se você se
opõe a uma solenização imediata do casamento. Temos sido infelizes, e os
acontecimentos recentes me tiraram a tranquilidade que convém à velhice
e às enfermidades. Você é jovem e dono de uma conveniente fortuna, de
modo que um casamento precoce não interferirá nos planos futuros de
honra e utilidade que porventura tenha formado. Não suponha, no entanto,
que desejo lhe ditar a felicidade, ou que um atraso da sua parte me cause
desconforto. Interprete minhas palavras com candura e me responda com
confiança e sinceridade.
Ouvi meu pai em silêncio e permaneci um tempo sendo incapaz de
responder. Revirei agilmente em minha cabeça uma infinidade de
ponderações, e me esforcei para chegar a alguma conclusão. Ai! Para mim,
a ideia de uma união imediata com minha Elizabeth era motivo de horror e
consternação. Estava preso a uma promessa solene ainda não cumprida e
não ousava quebrá-la. Se o fizesse, Deus sabe quantos infortúnios
recairiam sobre mim e minha família! Poderia participar de uma
cerimônia com esse peso mortal pendurado em meu pescoço e me
curvando ao chão? Precisava formalizar minha união e deixar que o
monstro partisse com sua companheira antes de me permitir o prazer de
um enlace do qual esperava paz.
Lembrei-me também da necessidade de viajar à Inglaterra ou iniciar
uma longa correspondência com os filósofos daquele país, cujos
conhecimentos e descobertas detinham uso indispensável para minha
ventura atual. O método mais recente de obter a inteligência desejada era
demorado e insatisfatório; além disso, eu tinha uma aversão insuperável à
ideia de desenvolver essa tarefa repugnante na casa de meu pai, no
convívio de meus entes queridos. Tinha ciência de que poderia
desencadear milhares de acidentes terríveis, o menor dos quais revelaria
uma história capaz de aterrorizar todos os que estavam conectados a mim.
Eu também sabia que, com frequência, perderia o autodomínio e a
capacidade de esconder as sensações angustiantes que me possuiriam
durante o progresso de minha ocupação sobrenatural. Deveria me ausentar
de tudo o que amava enquanto estivesse ocupado. Uma vez iniciada, a
tarefa seria cumprida com rapidez, e eu poderia ser restituído à minha
família em paz e felicidade. Com a promessa cumprida, o monstro partiria
para sempre. Ou, segundo minha fantasia, algum acidente ocorreria para
destruí-lo e pôr fim permanente à minha escravidão.
Esses sentimentos ditaram a resposta concedida a meu pai. Expressei o
desejo de visitar a Inglaterra, mas, ocultando as verdadeiras razões desse
pedido, encobri-o sob um disfarce que não gerava suspeitas, com tal
seriedade que facilmente induziu meu pai à concordância. Depois de certo
período de melancolia envolvente que se assemelhava à loucura em sua
intensidade e efeitos, ele ficou satisfeito ao descobrir que eu era capaz de
sentir prazer com a ideia da referida jornada, à espera de que a mudança de
ambiente e a diversão variada pudessem, antes do meu retorno, me
restaurar por completo.
A duração da viagem foi deixada ao meu critério; alguns meses ou, no
máximo, um ano foi o período contemplado. Uma precaução paterna que
ele tomara foi garantir que eu tivesse um companheiro. Sem me
comunicar previamente, meu pai e Elizabeth convocaram Clerval para se
juntar a mim em Estrasburgo. Isso interferiu na solidão que eu cobiçava
para a execução de minha tarefa; no entanto, no início de minha jornada, a
presença de meu amigo não poderia ser de modo algum um impedimento,
e realmente me alegrava a ideia de ser salvo de muitas horas de reflexão
solitária e enlouquecedora. Além disso, Henry representaria um obstáculo
para o meu inimigo. Afinal, se eu estivesse sozinho, não imporia ele sua
presença abominável para me lembrar de minha tarefa ou contemplar meu
progresso?
Para a Inglaterra, portanto, eu estava destinado, e combinou-se que meu
casamento com Elizabeth ocorreria logo após meu retorno. A idade do
meu pai o deixou extremamente avesso ao atraso. Para mim, no entanto,
havia a ideia de recompensa ao término dessas labutas detestáveis; um
consolo pelos meus sofrimentos ímpares era a perspectiva do dia em que,
enfraquecido pela escravidão lúgubre, eu poderia reivindicar Elizabeth e
esquecer o passado em minha união com ela.
Enquanto arranjava os preparativos de minha jornada, um sentimento
me assombrou, enchendo-me de pavor e agitação. Durante a minha
ausência, deixaria meus amigos ignorantes quanto à existência de meu
inimigo e desprotegidos de seus ataques, que provavelmente derivariam de
sua reação quanto à minha partida. Mas, como ele havia prometido me
seguir aonde quer que eu fosse, por que também não iria para a Inglaterra?
O pensamento era terrível por si só, mas reconfortante na medida em que
supunha a segurança de meus amigos. A possibilidade de que o contrário
ocorresse me provocava angústia. Porém, durante todo o período em que
fui escravo de minha criatura, me permiti ser governado pelos impulsos do
momento, e minhas sensações à época sugeriam fortemente que o demônio
me seguiria e eximiria minha família do perigo de suas maquinações.
Foi no final de setembro que deixei meu país natal novamente. A
jornada era um desejo de minha parte e Elizabeth, portanto, concordou,
mas demonstrava inquietação com a ideia do meu sofrimento, longe dela,
em novas incursões funestas e pesarosas. Foi o cuidado dela que me
proporcionou a companhia de Clerval – um homem, pois, é cego para mil
circunstâncias que chamam a atenção de uma mulher diligente. Ela
ansiava por apressar meu retorno, e suas emoções conflitantes a deixavam
muda ao passo que me dedicava um adeus quieto e sofrido.
Eu me atirei à carruagem que me levaria embora, mal sabendo aonde
estava indo e descuidado quanto aos acontecimentos circunvizinhos.
Lembrara-me apenas, e com uma angústia amarga, de ordenar que meus
instrumentos químicos fossem embalados para irem comigo. Dominado
por uma imaginação sombria, passei por muitas cenas belas e majestosas
que meus olhos fixos não observavam. Eu só conseguia pensar no objetivo
de minha viagem e no trabalho que iria me ocupar enquanto ela durasse.
Depois de dias em indolência apática, durante as quais atravessei muitos
quilômetros, cheguei a Estrasburgo e esperei dois dias por Clerval. Ele
veio. Como era notável o contraste entre nós! Ele demonstrava vivacidade
em todos os ambientes, ficava alegre ao se deparar com as belezas do sol
poente e contente ao vê-lo nascer no começo de um novo dia. Clerval
apontava para mim as cores inconstantes da paisagem e as aparências do
céu.
– Isso que é vida! – Clerval exclamava. – Agora gosto da existência!
Mas você, meu caro Frankenstein, por que está desanimado e triste?
Na verdade, eu estava ocupado com pensamentos sombrios e não
percebia a descida da estrela da tarde nem o nascer do sol dourado
refletido no Reno. E você, meu amigo, se divertiria muito mais com o
diário de Clerval, atento aos cenários munido de uma perspectiva de
sentimento e deleite, do que ouvindo as reflexões de um ser desgraçado e
assombrado por uma maldição que calava sua alegria.
Tínhamos concordado em descer o Reno em um barco de Estrasburgo a
Roterdã, de onde poderíamos embarcar para Londres. Durante a viagem,
passamos por muitas ilhas repletas de salgueiros e avistamos múltiplas
cidades bonitas. Ficamos um dia em Manheim e, no quinto dia de nossa
partida de Estrasburgo, chegamos a Mayence. O curso do Reno abaixo de
Mayence era muito mais pitoresco. A corrente do rio fluía com agilidade e
serpenteava entre colinas, não altas, mas íngremes e de belas formas.
Vimos numerosos castelos em ruínas às margens dos precipícios, cercados
por bosques negros, elevados e inacessíveis. Essa parte do Reno de fato
apresentava uma paisagem singularmente variada. Em determinado ponto,
via-se colinas escarpadas, castelos destruídos com vista para enormes
precipícios e o Reno escuro correndo por baixo; já de um local mais
elevado, havia a contemplação de vinhas florescentes, margens verdes
inclinadas e um rio sinuoso, além de cidades populosas ocupando a
paisagem.
Viajamos na época da colheita de uva e ouvimos a música dos
trabalhadores à medida que deslizávamos pelo riacho. Até eu, que estava
mentalmente deprimido e com o espírito agitado por sentimentos
sombrios, pude regozijar-me. Deitei-me no fundo do barco e, enquanto
mirava o céu azul e sem nuvens, parecia mergulhar numa tranquilidade há
muito estranha para mim. E se essas foram as minhas sensações, quem
pode descrever as de Henry? Ele sentiu como se tivesse sido transportado
para a Terra das Fadas, e desfrutava de um júbilo experimentado raras
vezes pelo homem.
Ele disse:
– Avistei as mais belas paisagens do meu país. Visitei os lagos de
Lucerna e Uri, onde as montanhas nevadas descem de modo quase
perpendicular com relação à água, delineando sombras negras e
impenetráveis que provocariam aparência sombria e triste, não fossem as
ilhas verdejantes que aliviam os olhos por sua configuração alegre. Vi o
Uri agitado por uma tempestade, quando o vento arrancou turbilhões de
água e nos deu ideia de como é uma tromba-d’água no grande oceano, vi
suas ondas correndo com fúria pela base da montanha, onde o padre e sua
amante foram atingidos por uma avalanche e onde ainda se diz que suas
vozes moribundas podem ser ouvidas em meio à pausa do vento noturno;
vi as montanhas de La Valais e do Pays de Vaud. No entanto, Victor, este
país me agrada mais do que todas as maravilhas a que me referi. As
montanhas da Suíça são mais majestosas e estranhas, todavia há um
encanto nas margens deste rio divino que eu nunca vi igual. Olhe para o
castelo que se projeta sobre o precipício, e também para aquele na ilha,
quase escondido entre a folhagem de árvores adoráveis. Agora, mire
aquele grupo de trabalhadores vindo de suas videiras e aldeia meio
escondida no recesso da montanha. Ah, sem dúvida o espírito que habita e
guarda este lugar tem uma alma em maior sintonia com a do homem do
que aqueles que empilham a geleira ou se retiram para os picos
montanhosos inacessíveis de nosso país.
Clerval! Amigo querido! Até hoje me agrada registrar suas palavras e
me debruçar sobre os elogios dos quais você era tão eminentemente
merecedor. Ele era um ser formado na “poesia da natureza”. Sua
imaginação selvagem e entusiasta era castigada pela sensibilidade de seu
coração. Sua alma transbordava de afetos ardentes, e sua amizade era de
uma natureza devotada e maravilhosa que as mentes mundanas nos
ensinam a buscar apenas na imaginação. Mas nem as simpatias humanas
eram suficientes para satisfazer sua mente voraz. Enquanto os outros se
limitavam a observar com admiração o cenário de natureza aberta, ele o
amava com fervor.
A catarata ruidosa
Assombrou-o como uma paixão: a pedra alta,
A montanha e a floresta profunda e sombria,
Eram para ele, em suas cores e formas,
Um apetite; um sentimento e um amor,
Que não exigia um charme remoto,
Pensamento ou qualquer interesse
Para além de sua vista14

E onde será que ele está hoje? Essa pessoa gentil e amável estará
perdida para sempre? Terá perecido sua mente, tão repleta de ideias e de
conjecturações fantasiosas e magníficas que formavam um mundo cuja
existência dependia da vida de seu criador? Agora ele existe apenas na
minha memória? Não, certamente, não. Sua forma tão divinamente forjada
e radiante de beleza pode ter decaído, mas seu espírito ainda visita e
consola seu amigo infeliz.
Perdoe essa torrente de aflição. Essas palavras ineficazes são apenas um
pequeno tributo ao valor inestimável de Henry, mas elas acalmam meu
coração, que transborda com a angústia criada por sua lembrança.
Prosseguirei com a minha história.
Depois de Colônia, descemos às planícies da Holanda e resolvemos
adiar o restante da viagem, pois o vento era adverso, e a corrente do rio,
suave em demasia para nos auxiliar.
Nossa jornada aqui não despertou o interesse paisagístico. Chegamos
em poucos dias a Roterdã, de onde seguimos pelo mar rumo à Inglaterra.
Foi em uma manhã clara, nos últimos dias de dezembro, que vislumbrei
pela primeira vez os penhascos brancos da Grã-Bretanha. As margens do
Tâmisa apresentavam uma paisagem inédita: eram planas, mas férteis, e
quase todas as cidades eram marcadas pela lembrança de alguma história.
Vimos o forte de Tilbury e lembramos da Armada Espanhola; nos
deparamos também com Gravesend, Woolwich e Greenwich, lugares dos
quais eu já ouvira falar quando em meu próprio país.
Por fim, deparamo-nos com os numerosos campanários de Londres, a
gigante Catedral de Saint-Paul e a célebre Torre da história inglesa.
- Tradução livre de trecho do poema “Linhas escritas algumas milhas
acima da Abadia de Tintern”, de William Wordsworth (1770-1850). (N. T.)
CAPÍTULO XIX

LONDRES, CIDADE MARAVILHOSA e celebrada, era nosso atual ponto de


descanso, em que decidimos permanecer vários meses. Clerval desejava
interagir com os homens de gênio e talento que floresciam à época, mas
esse era para mim um objetivo secundário. Eu estava ocupado em
particular com os meios de obter as informações necessárias para o
cumprimento de minha promessa e sem demora fiz bom proveito das
cartas de apresentação que trouxera comigo, endereçadas aos mais
distintos filósofos da natureza.
Se a jornada em questão tivesse ocorrido durante meus dias de estudo e
contentamento, teria me proporcionado prazer inexprimível. Mas o mal se
colocara em meu caminho, e agora eu só visitava essas pessoas em prol
das informações que poderiam me dar sobre um assunto acerca do qual eu
nutria profundo interesse. A companhia dos demais se tornara cansativa
para mim; quando sozinho, eu podia encher minha mente com as vistas do
céu e da terra. A voz de Henry me acalmava, e assim eu podia me iludir
com uma paz transitória. Mas os rostos alegres das pessoas
despreocupadas traziam de volta o desespero ao meu coração. Enxergava
uma barreira insuperável entre mim e meus semelhantes, selada com o
sangue de William e Justine, e refletir acerca dos eventos correlacionados
a eles inundava minha alma de angústia.
Mas em Clerval eu via a imagem do meu antigo eu; ele era curioso e
estava ávido por experiência e conhecimento. A diferença de maneiras
como observava representava, para ele, fonte inesgotável de instrução e
aprazimento. Ele também se lançara à perseguição de um objetivo em sua
vista há muito tempo. Sua meta era visitar a Índia, crente de que o
conhecimento que possuía de suas várias línguas e as opiniões que adotara
a respeito de sua sociedade o permitiriam compreender o progresso da
colonização e do comércio europeu. Na Grã-Bretanha, portanto,
encontrava um bom ponto de partida para a execução de seu plano. Ele
estava sempre em atividade e o único obstáculo para seus deleites era
minha mente pesarosa e abatida. Tentei esconder isso o máximo possível
visando não o impedir de aproveitar as delícias de sua nova fase da vida,
intocada por qualquer lembrança amarga. Recusei-me muitas vezes a
acompanhá-lo, alegando outro compromisso, apenas para ficar sozinho. Eu
havia começado a coletar os materiais necessários para a nova criação, e
isso era para mim como a tortura de gotas d’água caindo continuamente
sobre a cabeça. Todo pensamento dedicado à tarefa trazia angústia ao
extremo, e toda palavra que eu verbalizava em sua alusão fazia meus
lábios tremerem e meu coração palpitar.
Após uns meses em Londres, recebemos uma carta de um homem
escocês, que anteriormente fora visitante em Genebra. Ele mencionava as
belezas de seu país natal e perguntava se elas não eram atraentes o
suficiente para induzir-nos a prolongar nossa jornada ao norte até Perth,
onde ele residia. Clerval desejou com voracidade aceitar esse convite; eu,
embora detestasse a sociedade, desejava rever montanhas, riachos e todas
as maravilhosas obras com as quais a natureza adornava sua morada.
Havíamos chegado à Inglaterra no início de outubro e estávamos agora
em fevereiro. Decidimos, portanto, iniciar a jornada em direção ao norte
ao final do mês seguinte. Na referida expedição, não tínhamos intenção de
seguir a grande estrada para Edimburgo, mas visitar os lagos Windsor,
Oxford, Matlock e Cumberland, concluindo a excursão ao final de julho.
Arrumei meus instrumentos químicos e os materiais que havia coletado,
decidido a terminar meus trabalhos em algum recanto obscuro nas
montanhas do norte da Escócia.
Saímos de Londres em 27 de março e permanecemos alguns dias em
Windsor, divagando em sua bela floresta. Tratava-se de um cenário novo
para montanheses como nós; os majestosos carvalhos, a caça abundante e
os rebanhos de veados imponentes representavam grande novidade.
De lá, seguimos para Oxford. Quando entramos na cidade, nossas
mentes transbordaram com as lembranças dos eventos que ali ocorreram
havia mais de um século e meio. Fora ali que Carlos I reunira suas forças.
Essa cidade permaneceu fiel a ele ao passo que toda a nação abandonara
sua causa a fim de unir-se sob a bandeira do parlamento e da liberdade. A
lembrança daquele rei infeliz, seus companheiros, o amável Falkland, o
insolente Goring, sua rainha e seu filho conferia interesse peculiar a cada
pedaço da cidade onde eles supostamente se refugiaram. O espírito dos
tempos idos parecia ter encontrado lar na região, e nós nos deliciamos em
seguir seus passos. Se esses sentimentos não tivessem encontrado uma
gratificação imaginária, a aparência da cidade por si só ostentaria bastante
beleza para nos despertar a admiração. As universidades eram antigas e
pitorescas; as ruas, quase magníficas; e o adorável rio Ísis, que fluía nas
adjacências por meio de prados de vegetação requintada, espalhava-se em
uma extensão plácida de águas que refletiam sua majestosa aglomeração
de torres, pináculos e cúpulas entre árvores envelhecidas.
Eu gostava dessa paisagem. No entanto, meu prazer se amargurava tanto
pela lembrança do passado quanto pela antecipação do futuro. Eu havia
sido feito para uma felicidade pacífica. Nos meus dias de juventude, o
descontentamento nunca me ocorreu; e, se alguma vez fui tomado pelo
tédio, a visão do que era belo na natureza ou o estudo do que era excelente
e sublime nas produções do homem sempre despertava o interesse em meu
coração e conferia maleabilidade aos meus ânimos. Agora, contudo, eu era
uma árvore destruída; o raio entrara na minha alma e senti então que
sobreviveria para me tornar um espetáculo miserável da humanidade
destruída, lamentável para alguns e intolerável para mim mesmo.
Passamos um tempo considerável em Oxford, divagando entre seus
arredores e procurando identificar todos os pontos relacionados à época
mais animada da história inglesa. Nossas pequenas viagens de descoberta
eram muitas vezes prolongadas pelos sucessivos atrativos que se
apresentavam. Visitamos a tumba do ilustre Hampden e o campo em que o
patriota tombou. Por um momento, minha alma se elevou de seus medos
degradantes e desventurados para contemplar as ideias divinas de
liberdade e autossacrifício, das quais essas vistas eram os monumentos e
as lembranças. Por um instante, ousei me livrar dos grilhões e perscrutar
ao meu redor com espírito livre e elevado; porém, a infelicidade havia
penetrado minha carne. Deixei-me afundar novamente, tremendo e sem
esperança, em meu eu desafortunado.
Partimos de Oxford com pesar e seguimos para Matlock, que era nosso
próximo local de descanso. As regiões próximas a essa vila me remetiam
ao cenário da Suíça, embora em menor escala. Aqui, o verde das colinas
assumia o lugar da coroa branca dos distantes Alpes pontiagudos de minha
terra natal. Visitamos a maravilhosa caverna e os pequenos museus de
história natural, onde as curiosidades eram dispostas da mesma maneira
que nas coleções de Servox e Chamounix. O último nome me fez
estremecer quando pronunciado por Henry, e me apressei em busca de sair
de Matlock, lugar que associara de imediato àquele encontro terrível.
De Derby, ainda viajando em direção ao norte, fomos para Cumberland
e Westmorland e lá ficamos por dois meses. Em suas paisagens, eu quase
podia me imaginar entre as montanhas suíças. Os pequenos trechos de
neve que ainda permaneciam nas fronteiras ao norte das montanhas, os
lagos e as ondas dos riachos rochosos eram pontos turísticos familiares e
queridos para mim. Lá também fizemos alguns conhecidos, os quais quase
conseguiram me enganar de que poderia ser feliz. O deleite de Clerval era
proporcionalmente maior do que o meu; sua mente se expandia na
companhia de homens talentosos, e ele encontrava na própria natureza
capacidades e recursos maiores do que imaginava possuir enquanto estava
associado a mentes inferiores.
– Eu poderia passar minha vida aqui – confidenciou ele. – E entre essas
montanhas eu mal sentiria falta da Suíça e do Reno.
Clerval, no entanto, descobriu que a vida de um viajante também era
feita de dor em meio aos prazeres. Seus sentimentos estavam sempre à
mercê das circunstâncias e, quando encontrava repouso, via-se obrigado a
abandonar seu prazer por algo novo, que mais uma vez atraía sua atenção e
o fazia renunciar a outras novidades.
Mal tínhamos visitado os vários lagos de Cumberland e Westmorland e
concebido uma afeição por determinados habitantes quando o período de
nosso encontro com o amigo escocês se aproximou e tivemos de partir. De
minha parte, não lamentava. Eu havia negligenciado minha promessa por
um longo tempo e temia as reações de desapontamento do dæmon; ele
poderia permanecer na Suíça e se vingar contra meus parentes. A ideia me
perseguiu e atormentou por vários momentos, dos quais poderia ter obtido
repouso e paz. Esperava minhas cartas com impaciência febril: se elas
demoravam, eu ficava consternado e mil medos me acometiam;
entretanto, quando chegavam e eu vislumbrava a escrita de Elizabeth ou de
meu pai, quase não me atrevia a ler para atestar meu destino. Às vezes,
pensava que o demônio me seguia, nutrindo planos de matar meu
companheiro para acelerar minha tarefa. Quando tais pensamentos me
possuíam, eu não deixava Henry por um único momento, seguindo-o como
sua sombra a fim de protegê-lo da raiva imaginada do demônio. Sentia
como se tivesse cometido um crime enorme, e a consciência disso me
assombrava. Eu não tinha culpa, mas de fato havia trazido uma maldição
horrível sobre mim, tão mortal quanto a do crime.
Visitei Edimburgo com mente e olhos lânguidos. Porém, essa cidade
tinha o poder de interessar ao ser mais infeliz. Clerval não gostou dela
tanto quanto de Oxford: a antiguidade da última cidade era mais agradável
para ele. Mas a beleza e a constância da nova cidade de Edimburgo, seu
castelo romântico, seus arredores deliciosos, o Trono de Arthur, o Poço de
São Bernardo e as Colinas de Pentland o compensaram pela mudança e o
encheram de alegria e admiração. Eu, no entanto, estava impaciente para
chegar ao final da minha jornada.
Partimos de Edimburgo após uma semana, passando por Coupar, St.
Andrew e pelas margens do Tay em direção a Perth, onde nosso amigo nos
esperava. Eu não estava com disposição para rir e conversar com
estranhos, tampouco demonstrar o bom humor esperado de um hóspede;
logo, disse a Clerval que desejava percorrer a Escócia sozinho.
– Divirta-se e me encontre neste ponto – adverti. – Poderei me ausentar
durante um ou dois meses, mas peço-lhe que não se preocupe comigo.
Permita-me a paz e a solidão por um curto período de tempo. Quando eu
voltar, espero que seja com um coração mais leve e adequado ao seu
temperamento.
Henry queria me dissuadir; porém, vendo-me inclinado a esse plano,
deixou de protestar. Ele me pediu para escrever com frequência.
Clerval disse:
– Eu preferia estar com você em suas caminhadas solitárias do que com
esse povo escocês que não conheço. Apresse-se então, caro amigo, e volte
para que eu possa me sentir novamente em casa, o que não é possível na
sua ausência.
Tendo me separado do meu amigo, decidi visitar algum lugar remoto da
Escócia e concluir meu trabalho em solidão. Não duvidava que o monstro
me seguia; era provável que descobrisse por si próprio quando eu
terminasse a criação de sua companheira.
Assim decidido, atravessei as terras altas do norte e me fixei em uma
das regiões mais remotas das Órcades, paisagem dos meus trabalhos. Era
um local adequado para esse fim, sendo pouco mais do que um rochedo
cujos lados altos eram continuamente atingidos pelas ondas. O solo era
árido e fornecia pasto com escassez para as poucas vacas miseráveis e
farinha de aveia para os habitantes, que consistiam em cinco pessoas de
membros magros e ásperos que deixavam clara a sua miséria. Legumes e
pão – quando se permitiam tais luxos – e até água fresca eram adquiridos
em terra firme, a oito quilômetros de distância.
Em toda a ilha havia apenas três cabanas paupérrimas, dentre as quais
uma estava vazia quando cheguei. Aluguei-a. Ela continha apenas dois
quartos, que exibiam a mais alarmante penúria. A palha caíra, as paredes
não estavam rebocadas e a porta pendia das dobradiças. Requisitei os
devidos reparos, comprei móveis e tomei posse; um acontecimento que,
sem dúvida, teria ocasionado surpresa aos habitantes da área se eles não
estivessem ocupados demais com a própria pobreza esquálida. Assim,
consegui viver em discrição, quase sem receber agradecimentos pela
comida e pelas roupas que doava, tamanha a insensibilidade que a
privação causava aos sentimentos dos homens.
Nesse retiro, dedicava a manhã ao trabalho; mas à noite, quando o
tempo o permitia, andava na praia pedregosa à procura de ouvir as ondas
rugindo e correndo aos meus pés. Era uma cena monótona, mas em
constante mudança. Eu pensava na Suíça: tão diferente dessa paisagem
desolada e terrível. As colinas ficavam cobertas de trepadeiras e suas casas
ficavam espalhadas pelas planícies. Seus lindos lagos refletiam um céu
azul e suave e, quando perturbados pelo vento, o tumulto era apenas a
brincadeira de criança animada quando comparado com os rugidos do
oceano gigantesco.
Foi assim que distribuí minhas atividades quando cheguei. No entanto,
ao longo do meu trabalho, cada dia se tornou mais horrível e cansativo. Às
vezes, evitava entrar no laboratório por vários dias; em outras, trabalhava
dia e noite visando concluir minha tarefa. Estava, de fato, envolvido num
processo imundo. Durante meu primeiro experimento, uma espécie de
frenesi entusiasmado me cegou para a bestialidade do meu trabalho;
minha mente se concentrou na consumação do objetivo enquanto meus
olhos se fecharam para o horror dos procedimentos. Agora, porém, eu
executava tudo a sangue frio, e meu coração com frequência adoecia com
o trabalho das minhas mãos.
De tal maneira empregado na ocupação mais detestável e imerso em
solidão, nada sendo capaz de desviar minha atenção da realidade em que
estava envolvido, meu ânimo se tornou inconstante. Tornei-me cada vez
mais inquieto e nervoso, e a todo momento temia encontrar meu
perseguidor. Às vezes, eu me sentava com os olhos fixos no chão, com
medo de levantá-los e encontrar o objeto que tanto temia contemplar.
Também buscava permanecer à vista dos meus semelhantes para que ele
não me surpreendesse sozinho e reivindicasse sua companheira.
Nesse meio-tempo, trabalhei e alcancei avanços consideráveis. Ansiava
a conclusão da tarefa com uma esperança trêmula e ardente, mas
pressentia nela uma obscuridade que fazia meu coração adoecer.
CAPÍTULO XX

CERTO DIA, EM MEU LABORATÓRIO, pus-me a refletir. O sol já havia se posto e


a lua surgia do mar; não dispunha de luz suficiente para o meu trabalho e
permaneci ocioso, numa pausa de consideração se deveria deixar meu
trabalho durante a noite ou apressar sua conclusão com atenção incessante.
Assim, uma série de pensamentos me invadiram, o que me levou a
ponderar sobre os efeitos da atividade. Três anos antes, eu estava
envolvido no mesmo trabalho e criara um demônio cuja barbárie
incomparável desolara meu coração e o enchera para sempre com o mais
amargo remorso. Agora, estava prestes a formar outro ser, de cujas
disposições era igualmente ignorante; ela podia se tornar dez mil vezes
mais maligna do que seu companheiro e deleitar-se, por conta própria,
com assassinatos e desgraças. Ele jurara abandonar a vizinhança do
homem e exilar-se; ela, não. A vindoura criatura, que com toda a
probabilidade se tornaria um animal pensante e racional, poderia se
recusar a cumprir um pacto feito antes de sua criação. Eles poderiam até
se odiar; o demônio já vivente detestava sua própria deformidade, e não
poderia ele conceber uma aversão maior à nova criatura quando a visse na
forma feminina? Ela, por sua vez, também poderia olhá-lo com desgosto à
vista da beleza superior do homem, deixando-o outra vez sozinho e
exasperado pela provocação de ser abandonado por alguém de sua própria
espécie.
Mesmo que deixassem a Europa e habitassem as terras ermas do Novo
Mundo, ainda assim um dos primeiros resultados da união almejada pelo
dæmon seriam filhos. Assim, uma raça de demônios se propagaria sobre a
terra, criando condições precárias e cheias de horror para a espécie
humana. Eu tinha direito, para meu próprio benefício, de infligir essa
maldição às futuras gerações? Eu havia sido influenciado pelos sofismas
do ser que havia criado, ficara impressionado com suas ameaças
diabólicas. Mas agora, pela primeira vez, a maldade dessa promessa
explodia em mim. Eu estremecia ao pensar que as eras futuras me
amaldiçoariam como sua praga, cujo egoísmo não hesitou em comprar a
própria paz em troca da possível extinção da raça humana.
Tremi e senti o coração falhar dentro de mim quando, ao olhar para
cima, vi o dæmon na janela sob a luz da lua. Um sorriso medonho enrugou
seus lábios quando ele olhou para mim, sentado no lugar onde cumpria a
tarefa que ele designara para mim. Sim, ele me seguiu em minhas viagens;
o demônio se demorou nas florestas, escondeu-se em cavernas e refugiou-
se em charnecas vastas e desertas. Agora, ele vinha verificar meu
progresso e reivindicar o cumprimento da promessa.
Ao fitá-lo, notei em seu semblante uma expressão traiçoeira e
maliciosa. Pensei na minha promessa insana de conceber um ser igual a
ele e, tremendo de ardor, despedacei a criatura que estava criando. O
desgraçado me viu destruir a companheira de cuja futura existência ele
dependia para a felicidade e, com um uivo de desespero e vingança
diabólica, retirou-se.
Saí daquela sala e, trancando a porta, fiz um voto solene em meu
coração de nunca mais retomar tais trabalhos. Então, com passos trêmulos,
dirigi-me ao quarto. Eu estava sozinho; não havia ninguém por perto para
dissipar a escuridão e me aliviar da opressão doentia dos mais terríveis
devaneios.
Várias horas se sucederam e fiquei perto da janela olhando o mar, que
estava quase imóvel dado que os ventos calmos e toda a natureza
repousavam sob os olhos da quieta lua. Apenas uns navios de pesca
pontilhavam a água e, de quando em quando, a brisa suave soprava a voz
dos pescadores. Podia sentir o silêncio, embora pouco consciente de sua
extrema profundidade, até que meu ouvido foi surpreendido pelo barulho
de remos nas proximidades da costa. Em seguida, uma pessoa
desembarcou perto de minha choupana.
Minutos depois, ouvi o rangido da minha porta, como se alguém
tentasse abri-la com suavidade. Tremi da cabeça aos pés; tive um
pressentimento de quem era e quis despertar um dos camponeses que
moravam em uma choupana não muito distante da minha. Todavia, fui
dominado pela sensação de desamparo, tantas vezes sentida em sonhos
terríveis quando há o esforço para fugir de um perigo iminente, apesar de
congelado no lugar.
Ouvi o som de passos se aproximando, a porta se abriu e o infeliz que eu
temia apareceu. Fechando a porta, ele se aproximou de mim e disse com
uma voz sufocada:
– Você destruiu o trabalho que começou. O que pretende com isso?
Como se atreve a quebrar sua promessa? Sofri desventuras terríveis:
deixei a Suíça com você, rastejando pelas margens do Reno entre as ilhas e
sobre os cumes das colinas. Morei muitos meses nas charnecas da
Inglaterra e nos desertos da Escócia. Sofri fadiga incalculável, frio e fome.
Como ousa destruir minhas esperanças?
– Suma daqui! Quebro minha promessa; nunca mais criarei outro ser
como você, igual em deformação e maldade.
– Escravo, fui racional com você antes, mas você se mostrou indigno da
minha condescendência. Lembre-se de que eu tenho poder; você se
considera desafortunado, mas posso te fazer tão miserável que a luz do dia
lhe será odiosa. Você é meu criador, mas eu sou seu mestre… Obedeça!
– Já passou a hora da minha irresolução e chegou o período do seu
poder. Suas ameaças não podem me levar a concretizar um ato de maldade,
mas me confirmam a decisão de não criar uma companheira para seus
vícios. Devo, a sangue frio, soltar sobre a Terra um dæmon cujo prazer
está na morte e na desgraça? Vá embora! Já está decidido, e suas palavras
apenas exasperarão minha raiva.
O monstro viu a determinação em minha face e rangeu os dentes ante a
impotência da raiva.
– Será possível – exclamou ele – que cada homem encontre uma esposa
e cada animal tenha sua companheira enquanto fico sozinho? Eu tinha
sentimentos de afeição, mas eles foram retribuídos com ódio e desprezo.
Homem! Você pode odiar, mas cuidado: suas horas serão de pavor e
agonia, e logo cairá o raio destinado a arrebatar sua felicidade para
sempre. Por que você deveria ser feliz enquanto eu rastejo na intensidade
da minha lástima? Você pode explodir minhas outras paixões, mas a
vingança permanecerá; a vingança que, doravante, me será mais cara do
que a luz ou a comida! Posso morrer; mas você, meu tirano e
atormentador, antes amaldiçoará o sol que contempla seu sofrimento.
Cuidado, pois não tenho medo e sou, portanto, poderoso. Observarei com a
astúcia de uma cobra e picarei com seu veneno. Homem, você se
arrependerá dos danos que me infligiu.
– Diabo, pare. Não envenene o ar com esses sons de malícia. Declarei
minha decisão a você e não sou covarde para me curvar sob suas palavras.
Deixe-me; sou inexorável.
– Tudo bem. Eu irei, mas lembre-se: estarei com você na sua noite de
núpcias.
Avancei em um salto e exclamei:
– Vilão! Antes de assinar minha sentença de morte, assegure-se de que
você mesmo está seguro.
Eu o teria atacado se ele não tivesse se esquivado e se precipitado para
fora da casa. Instantes depois, vi-o em seu barco, que disparou sobre as
águas com a rapidez de uma flecha e logo se perdeu em meio às ondas.
Tudo pairou de novo em silêncio, mas suas palavras ressoavam em
meus ouvidos. Queimava de raiva pelo assassino da minha paz e desejava
persegui-lo em busca de jogá-lo no oceano. Andei de um lado para o outro
no quarto às pressas e perturbado, enquanto minha imaginação evocava
milhares de imagens para me atormentar. Por que eu não o seguia e
entrava em luta mortal contra ele? Eu o deixava partir, e ele se dirigia à
terra firme. Estremeci ao pensar em quem poderia ser a próxima vítima de
sua vingança insaciável. Então, pensei novamente em suas palavras:
Estarei com você na sua noite de núpcias. Esse foi então o período fixado
para o cumprimento do meu destino. Naquela hora, eu deveria morrer e, ao
mesmo tempo, satisfazer sua malícia. A perspectiva não me trouxe medo;
no entanto, quando pensei em minha amada Elizabeth e na sua tristeza
sem-fim quando encontrasse o amante tão barbaramente arrancado de si,
lágrimas – as primeiras em muitos meses – escorreram dos meus olhos.
Decidi, então, não tombar diante do meu inimigo sem travar uma luta
amarga.
A noite passou e o sol despontou do oceano; meus sentimentos se
apaziguaram, se é que se pode chamar de paz quando a violência da raiva
chafurda nas profundezas do desespero. Saí de casa, o horrível cenário de
confronto da noite anterior, e andei pela praia junto ao mar, o qual tomava
naquele momento como uma barreira insuperável entre mim e meus
semelhantes – ou melhor, desejava tomar. Eu queria poder passar o resto
da minha vida naquele rochedo que era estéril, de fato, mas ininterrupto
por qualquer choque repentino de adversidade. Se eu retornasse, era para
ser sacrificado ou para ver aqueles a quem mais amava morrerem sob o
punho de um dæmon que eu mesmo criara.
Andei pela ilha como um espectro inquieto, à parte de tudo o que amava
e amargurado. Quando bateu meio-dia e o sol ficou mais alto, deitei-me na
grama e fui dominado pelo sono profundo. Eu ficara acordado a noite
inteira, meus nervos estavam agitados e meus olhos inflamados pelo
tormento. O sono em que mergulhara me revigorou; quando acordei, senti
novamente como se pertencesse à raça humana e me pus a refletir com
maior compostura a respeito do que havia passado. Ainda assim, as
palavras do demônio ecoavam em meus ouvidos como um sinal de morte;
elas se assemelhavam a um sonho, ainda que distintas e opressivas como a
realidade.
O sol já havia descido e eu continuava sentado na praia, satisfazendo
minha fome com um bolo de aveia, quando vi um barco de pesca aportar
perto de mim e um de seus homens me entregar um pacote; ali, havia
cartas de Genebra e uma de Clerval, que pedia para me juntar a ele. Ele
disse que estava gastando seu tempo de modo infrutífero onde estava, e
que recebera cartas dos amigos de Londres desejando que ele voltasse a
fim de concluir as negociações que haviam firmado para sua empreitada
indiana. Ele já não podia mais atrasar sua partida e, como a jornada para
Londres poderia ser seguida de outra ainda mais longa, ele desejou minha
companhia pelo máximo possível de tempo. Ele me pediu, portanto, que
abandonasse minha ilha solitária e o encontrasse em Perth para que
prosseguíssemos juntos rumo ao sul. Em certa medida, a carta me
reanimou, e decidi deixar minha ilha ao cabo de dois dias.
No entanto, antes de partir, uma tarefa, cuja mera ideia me fazia
estremecer, tinha de ser executada: precisava arrumar meus utensílios
químicos e, para esse fim, devia entrar na sala que fora o cenário do meu
odioso trabalho e lidar com os objetos que me atormentavam a visão. No
dia seguinte, ao amanhecer, reuni coragem suficiente e destranquei a porta
do laboratório. Os restos da criatura semiacabada que eu havia destruído
jaziam espalhados pelo chão, e quase senti como se tivesse mutilado um
ser humano. Fiz uma pausa para me recompor e entrei na câmara. Com
mãos trêmulas, levei os instrumentos para fora da sala, mas refleti que não
deveria deixar vestígios do meu trabalho para excitar o horror e a suspeita
dos camponeses. Assim, coloquei-os em uma cesta com enorme
quantidade de pedras por cima visando jogá-los no mar naquela mesma
noite. Nesse ínterim, sentei-me na praia, dedicando-me à limpeza e
arrumação do meu aparato químico.
Nada poderia ser mais radical do que a alteração que ocorreu em meus
sentimentos desde a noite do aparecimento do dæmon. Eu lhe havia feito
aquela promessa com um desespero sombrio, como algo que,
independentemente das consequências, devia ser cumprido. Mas agora
sentia como se uma venda tivesse sido tirada dos meus olhos e, pela
primeira vez, pudesse ver com clareza. A ideia de renovar meus trabalhos
não me ocorrera por um instante. A ameaça que ouvi pesava em meus
pensamentos, mas não cogitava que um ato voluntário meu fosse capaz de
evitá-la. Na minha mente, dera-me conta de que criar outro ser à imagem
daquele demônio seria o mais baixo e atroz ato de egoísmo, e bani da
mente todo raciocínio que pudesse me levar a uma conclusão diferente.
Entre as duas e três da madrugada, quando a lua se encontrava bem no
alto, coloquei minha cesta a bordo de um barquinho e naveguei a cerca de
seis quilômetros da costa. O cenário era perfeitamente solitário: havia
barcos voltando para a terra, mas naveguei para longe deles. Sentia como
se cometesse um crime terrível e evitei, com um tremor de ansiedade,
qualquer encontro com meus pares. Em dado momento, a lua, antes nítida,
foi encoberta por uma nuvem densa. Aproveitei o momento de escuridão e
atirei minha cesta ao mar. Ouvi um som borbulhante enquanto ela
afundava e conduzi a embarcação para longe do local. O céu ficou
nublado, mas o ar estava puro, embora gelado pela brisa vinda da direção
nordeste. Isso me refrescou e me encheu de sensações tão agradáveis que
resolvi prolongar minha estadia na água. Fixando o leme em uma posição
direta, me estiquei no fundo do barco. As nuvens escondiam a lua, tudo
estava obscuro, e eu ouvia apenas o som do barco conforme sua quilha
cortava as ondas; o murmúrio me embalou e, em pouco tempo, dormi um
sono profundo.
Não sei por quanto tempo permaneci nessa situação, mas quando
acordei descobri que o sol já estava a pino consideravelmente. O vento
estava forte e as ondas ameaçavam de modo contínuo a segurança do meu
pequeno esquife. Descobri que o vento vinha da direção nordeste e devia
ter me levado para longe da costa de onde eu havia embarcado. Tentei
mudar de rumo, mas logo descobri que, se tentasse outra vez, o barco seria
invadido pela água. Assim situado, meu único recurso era deixar-me
conduzir pelo vento. Confesso que fui acometido por sensações de terror.
Eu não dispunha de bússola e conhecia bem pouco a geografia dessa parte
do mundo para a qual o sol me beneficiava. Eu poderia ser levado para a
vastidão do Atlântico e sentir todas as torturas da fome, ou ser engolido
pelas águas imensuráveis que rugiam ao meu redor. Eu já estava lá havia
muitas horas e sentia o tormento de uma sede veemente, um prelúdio para
meus outros sofrimentos. Fitei o céu, coberto por nuvens impulsionadas
pelo vento, e olhei para o mar, em vias de se tornar o meu túmulo.
– Demônio! – exclamei. – Sua tarefa já está cumprida!
Pensei em Elizabeth, no meu pai e em Clerval; todos ficaram para trás,
à mercê de um monstro ansioso por satisfazer suas paixões sanguinárias e
sem piedade. A ideia me transportou a um devaneio tão desesperador e
assustador que, mesmo agora, com a cortina prestes a se fechar diante de
mim para sempre, ainda estremeço ao lembrar.
Horas assim se passaram até que, aos poucos, quando o sol declinou no
horizonte, o vento se dissipou em uma brisa suave e o mar ficou isento de
ondas. Mas isso deu lugar a uma onda pesada: senti-me enjoado e mal
consegui segurar o leme, quando de repente vi uma linha de terra em
direção ao sul.
Esgotado pela fadiga e pelo suspense terrível que passara nas últimas
horas, essa súbita certeza de vida inundou meu coração com uma
felicidade calorosa, e lágrimas jorraram dos meus olhos.
Quão mutáveis são os nossos sentimentos, e quão estranho é o amor que
temos pela vida mesmo na mais profunda desgraça! Montei outra vela
com parte das minhas roupas e parti com avidez em direção à terra, cuja
aparência era selvagem e rochosa, mas, ao me aproximar, percebi
nitidamente os traços de cultivo. Notei embarcações perto da costa e, de
repente, vi-me transportado de volta à civilização. Aproximei-me com
cautela da encosta e avistei uma torre atrás de um pequeno promontório.
Como eu estava num estado de debilidade intensa, resolvi me locomover
na direção do centro da cidade, um lugar onde eu poderia facilmente obter
alimento. Por sorte, eu trazia dinheiro. Ao virar o promontório, deparei-me
com uma cidade pequena e organizada que tinha um bom porto, no qual
entrei com o coração pulando de alegria por minha salvação inesperada.
Como eu estava ocupado consertando o barco e arrumando as velas,
várias pessoas se aglomeraram na minha direção. Pareciam muito
surpresas com a minha aparência, mas, em vez de me oferecerem qualquer
ajuda, sussurravam com gestos que em qualquer outro momento poderiam
ter produzido em mim uma leve sensação de alarme. Observei que
falavam inglês; portanto, dirigi-me a elas nessa língua.
– Meus bons amigos – eu disse –, vocês fariam a gentileza de me dizer o
nome desta cidade e me informar onde estou?
– Você saberá em breve – respondeu um homem com uma voz rouca. –
Talvez você tenha chegado a um lugar que não será muito de seu gosto; e
garanto que não terá escolha quanto aos seus aposentos.
Fiquei extremamente surpreso ao receber uma resposta tão rude de um
estranho, e também desconcertado ao perceber o semblante franzido e
irritado de seus companheiros.
– Por que você me responde com tamanha grosseria? – indaguei. –
Certamente não é costume dos ingleses receber estrangeiros de maneira
tão hostil.
– Não sei qual é o costume dos ingleses – disse o homem. – Mas é
costume dos irlandeses odiar canalhas.
Enquanto o estranho diálogo continuava, percebia que a multidão
aumentava rapidamente. Seus rostos expressavam uma mistura de
curiosidade e raiva, o que me aborreceu e, de certa forma, assustou.
Perguntei o caminho para a estalagem, mas ninguém respondeu. Então,
segui em frente, e um som murmurante surgiu da multidão quando eles me
seguiram e me cercaram. Um homem de aparência abominável se
aproximou, me deu um tapinha no ombro e disse:
– Venha, senhor, você deve me seguir até o sr. Kirwin para prestar
contas de si mesmo.
– Quem é o sr. Kirwin? Por que devo prestar contas de mim mesmo?
Este país não é livre?
– Sim, senhor, livre o bastante para pessoas honestas. O sr. Kirwin é um
magistrado, e você deve depor sobre o assassinato de um cavalheiro
ocorrido ontem à noite.
A resposta me assustou, mas consegui me recompor. Eu era inocente;
isso podia ser provado com facilidade. Em silêncio, segui o homem e fui
levado a uma das melhores casas da cidade. Estava prestes a desmaiar de
fadiga e fome, todavia, cercado por uma multidão, julguei que seria
prudente manter minhas forças para que nenhuma debilidade física
pudesse ser interpretada como apreensão ou culpa. Mal podia imaginar
que a calamidade que estava prestes a me abater extinguiria com horror e
desespero o meu medo da ignomínia e da morte.
Devo fazer uma pausa aqui, pois preciso de toda a minha coragem para
relembrar as terríveis circunstâncias que estou prestes a detalhar.
CAPÍTULO XXI

LOGO FUI APRESENTADO AO MAGISTRADO,um homem velho e benevolente de


maneiras calmas e brandas. Ele me analisou, no entanto, com certo grau de
severidade, e depois, voltando-se para meus condutores, perguntou quem
apareceu como testemunha na ocasião.
Cerca de meia dúzia de homens se adiantaram. Um deles, após ser
escolhido pelo magistrado, depôs que estava pescando na noite anterior
com seu filho e cunhado, Daniel Nugent, quando, por volta das dez horas,
observaram um forte vento que vinha do norte e retornaram em direção ao
porto. Era uma noite muito escura, sem luar; eles não desembarcaram no
porto, mas, como de praxe, em um riacho cerca de três quilômetros mais
para baixo. Ele caminhou primeiro, carregando parte do equipamento de
pesca, e seus companheiros o seguiram à distância. Enquanto caminhava
pela areia, bateu o pé em alguma coisa e caiu no chão. Seus companheiros
vieram para ajudá-lo e, sob a luz da lanterna, viram que ele caíra sobre o
corpo de um homem aparentemente morto. Sua primeira suposição foi de
que era o cadáver de alguém que se afogara e fora trazido à praia pelas
ondas. Entretanto, ao examiná-lo, descobriram que as roupas não estavam
molhadas e que o corpo não estava frio. Eles o carregaram imediatamente
para o chalé de uma velha que morava próximo ao local e tentaram, em
vão, reanimá-lo. Parecia um jovem bonito, com cerca de vinte e cinco
anos. Tudo indicava que fora estrangulado; não havia sinal de violência,
exceto pela marca negra dos dedos em seu pescoço.
A primeira parte do depoimento não havia me interessado; no entanto,
quando a marca dos dedos foi mencionada, lembrei-me do assassinato de
meu irmão e me senti extremamente agitado. Meus membros tremeram e
uma névoa surgiu à frente de meus olhos, o que me obrigou a buscar apoio
em uma cadeira. O magistrado me observou com atenção penetrante e, é
claro, enxergou na minha atitude um indício desfavorável.
O filho confirmou o relato do pai: mas quando Daniel Nugent foi
convocado, jurou que, pouco antes da queda de seu companheiro, vira um
barco com um único homem a uma curta distância da costa. E, tanto
quanto podia julgar pela luz das poucas estrelas, era o mesmo barco no
qual eu acabara de desembarcar.
Uma mulher, por sua vez, depôs que morava perto da praia e estava
parada à porta de sua cabana esperando do retorno dos pescadores, cerca
de uma hora antes de ouvir falar sobre a descoberta do corpo, quando
avistou um barco com apenas um homem se afastar daquela região da
costa onde o cadáver fora posteriormente encontrado.
Outra mulher confirmou o relato dos pescadores que trouxeram o corpo
para dentro de sua casa: ele não estava frio. Colocaram-no em uma cama e
lhe fizeram fricções; Daniel fora até mesmo à cidade buscar um
farmacêutico, mas a vida já estava há muito extinta.
Vários outros homens foram inquiridos quanto ao meu desembarque;
eles concordaram que, com o forte vento do norte que surgira durante a
noite, era bem provável que eu tivesse vagado por muitas horas e sido
obrigado a retornar quase ao mesmo local de onde havia partido. Além
disso, observaram que eu parecia ter trazido o corpo de outro lugar, e era
provável que, como não demonstrara conhecer a costa, tivesse chegado ao
porto ignorando a distância da cidade de * * * com relação ao local onde
havia depositado o cadáver.
O sr. Kirwin, ao ouvir essas evidências, desejou que eu fosse levado ao
local onde o corpo jazia exposto a fim de que se observasse o efeito que a
visão do morto produziria em mim. A ideia foi provavelmente sugerida
em virtude da extrema agitação que eu exibira diante da descrição do
crime. Fui, então, conduzido pelo magistrado e inúmeras outras pessoas à
estalagem. Não pude deixar de ficar impressionado com as estranhas
coincidências que ocorreram durante aquela noite agitada, mas, sabendo
estar na própria ilha onde morava conversando com várias pessoas no
momento em que o corpo fora encontrado, fiquei perfeitamente tranquilo
quanto às consequências do caso.
Entrei na sala onde estava o cadáver e fui levado até o caixão. Como
posso descrever minhas sensações ao vê-lo? Ainda me sinto ressecado
pelo horror, nem consigo refletir sobre aquele momento terrível sem
tremer em agonia. O exame e a presença do magistrado e das testemunhas
soaram como um sonho da minha memória quando vislumbrei a forma
sem vida de Henry Clerval estendida à minha frente. Eu estava sem fôlego.
Jogando-me sobre o corpo, exclamei:
– Minhas maquinações assassinas também o privaram da vida, meu
querido Henry?! Já havia destruído duas, e outras vítimas aguardam o seu
destino. Mas você, Clerval, meu amigo, meu benfeitor…
A estrutura humana não podia mais suportar as agonias que me
afligiam, e fui levado para fora da sala sob fortes convulsões.
Depois do episódio, fui acometido pela febre. Fiquei dois meses à beira
da morte. Meus delírios, como viria a saber mais tarde, foram
assustadores; eu dizia que era o assassino de William, Justine e Clerval.
Às vezes, pedia aos meus cuidadores que me ajudassem a destruir o
demônio por quem era atormentado e, em outros momentos, sentia os
dedos do monstro agarrando meu pescoço, o que me fazia gritar de
desespero e terror. Felizmente, como falava na minha própria língua
nativa, apenas o sr. Kirwin me entendia, mas meus gestos e gritos amargos
eram suficientes para assustar as testemunhas.
Por que não morri? Mais miserável do que o homem jamais foi antes,
por que não mergulhei no esquecimento e no descanso? A morte
arrebatava tantas crianças plenas de vida: quantas noivas e jovens amantes
já não estiveram um dia na flor da idade e da esperança e, no dia seguinte,
à mercê dos vermes e da deterioração da tumba? De que material eu era
feito para resistir a tantos choques que, como o giro da roda, renovavam
continuamente minha tortura?
Mas eu estava condenado a viver. Em dois meses, vi a mim desperto de
um sonho numa prisão, esticado em uma cama deplorável e cercado por
carcereiros, ferrolhos, parafusos e toda a aparelhagem desprezível de uma
masmorra. Era manhã, até onde me lembro; tinha esquecido os detalhes do
que havia acontecido e sentia como se um grande infortúnio tivesse
subitamente me dominado. Porém, quando olhei à minha volta e vi as
janelas gradeadas e a imundície da sala onde me encontrava, tudo
relampejou em minha memória e gemi amargamente.
O som perturbou uma velha que estava dormindo em uma cadeira ao
meu lado. Ela era uma enfermeira contratada, esposa de um dos
carcereiros, e seu semblante expressava todas as más qualidades que
frequentemente caracterizavam tal classe. As linhas de seu rosto eram
duras e rudes, como as de pessoas acostumadas a se deparar com imagens
do infortúnio sem demonstrar qualquer simpatia. Seu tom expressava toda
a sua indiferença. Ela se dirigiu a mim em inglês, e a voz me pareceu
familiar à ouvida durante meus sofrimentos:
– Está melhor agora, senhor? – indagou ela.
Respondi na mesma língua, com uma voz fraca:
– Acredito que sim, mas, se for verdade o que de fato não sonhei, sinto
muito por ainda estar vivo para sentir essa angústia e horror.
– Quanto a isso – respondeu a velha –, se você se refere ao cavalheiro
que matou, acredito que seria melhor para você se estivesse morto, pois
acho que as coisas não serão fáceis para o seu lado! No entanto, isso não é
da minha conta; estou aqui para cuidar de você e curá-lo. Cumpro meu
dever com uma consciência tranquila, e seria bom se todos fizessem o
mesmo.
Virei-me com ódio daquela mulher capaz de proferir um discurso tão
insensível a uma pessoa que acabara de escapar da morte, contudo me
senti lânguido e incapaz de ponderar sobre tudo o que havia passado. Toda
a minha vida me parecia um sonho ruim; às vezes duvidava que fosse tudo
verdade, pois nada se apresentava à minha mente com a força da realidade.
À medida que as imagens que flutuavam diante de mim ficavam mais
nítidas, tornava-me febril. Uma escuridão se apossou de mim; não havia
ninguém por perto que pudesse me acalmar com a voz suave do amor,
tampouco uma mão querida para me apoiar. O médico veio para receitar
remédios e a velha os preparou para mim. Mas ambos, respectivamente,
exibiam em seu rosto a indiferença e a brutalidade. Quem poderia estar
interessado no destino de um assassino senão o carrasco que obteria seu
pagamento?
Essas tinham sido minhas primeiras reflexões; porém, saberia mais
tarde que o sr. Kirwin havia me dispensado extrema bondade. Ele
providenciou para que o melhor quarto da prisão fosse preparado para
mim – e era, de fato, o melhor –, bem como forneceu um médico e uma
enfermeira. É verdade que ele raramente vinha me ver, pois, embora
desejasse com fervor o alívio dos sofrimentos de toda criatura humana,
não desejava estar presente nas agonias e delírios consternados de um
assassino. Mas ele vinha de qualquer maneira, em visitas curtas e
separadas por intervalos longos, à procura de verificar se eu não estava
sendo negligenciado.
Certo dia, enquanto eu me recuperava gradativamente, estava sentado
em uma cadeira com os olhos entreabertos e as bochechas lívidas como as
da morte. Fui possuído pela tristeza e pela tormenta, e refleti se não era
melhor procurar a morte do que desejar a permanência em um mundo
repleto de infortúnios. Assim, considerei se não deveria me declarar
culpado e sofrer a penalidade da lei, sendo menos inocente do que a pobre
Justine. Tais eram meus pensamentos quando a porta da minha cela se
abriu e o sr. Kirwin entrou. Seu semblante expressava simpatia e
compaixão; ele puxou uma cadeira perto da minha e se dirigiu a mim em
francês:
– Temo que este lugar seja muito chocante para você. Posso fazer
alguma coisa para torná-lo mais confortável?
– Agradeço. Mas o que você diz não representa nada para mim: em toda
a terra não há conforto que eu seja capaz de receber.
– Sei que a simpatia de um estranho pode ser de pouco alívio para
alguém que está sendo abatido por infortúnio tão estranho. Mas espero que
em breve abandone essa morada melancólica, afinal, estou certo de que
não será difícil apresentar evidências que o libertem da acusação criminal.
– Essa é a menor das minhas preocupações. Sou, por um curso de
eventos estranhos, o mais miserável dos mortais. Perseguido e torturado
como já fui e ainda sou, como a morte poderia me causar algum mal?
– Na verdade, nada poderia ser mais pesaroso e angustiante do que os
acasos estranhos que ocorreram recentemente. Você foi jogado, por algum
incidente, nesta costa conhecida por sua hospitalidade e apreendido no
mesmo instante, acusado de assassinato. A primeira imagem que
apresentada aos seus olhos foi o corpo do seu amigo, assassinado de
maneira inexplicável e ali colocado, por assim dizer, por algum demônio
em seu caminho.
Conforme o sr. Kirwin falava, apesar de agitar-me com a retrospectiva
de meus sofrimentos, também sentia surpresa considerável com o
conhecimento que ele parecia possuir a meu respeito. Suponho que algum
espanto tenha sido expresso em meu semblante, pois Kirwin se apressou
em dizer:
– Logo após sua enfermidade, todos os papéis que estavam em sua posse
foram levados para mim, e eu os examinei em busca de um meio de
contatar seus familiares para falar sobre sua desgraça e doença. Encontrei
várias cartas e, entre elas, uma que parecia ser proveniente de seu pai.
Escrevi instantaneamente para Genebra, e quase dois meses se passaram
desde a partida de minha carta. Você ainda está doente; mesmo agora,
treme. Não está em condições de lidar com qualquer tipo de agitação.
– Este suspense é mil vezes pior do que o evento mais horrível: diga-me
que novo crime foi realizado e quem é a vítima pela qual devo lamentar?
– Sua família está perfeitamente bem – disse Kirwin, com gentileza. – E
um amigo veio visitá-lo.
Não sei por que tamanha ideia me ocorreu, mas no mesmo momento
pensei que o assassino apareceria para zombar de minha desventura e me
provocar com a morte de Clerval a fim de me estimular a cumprir seus
desígnios infernais. Depositei minha mão diante dos meus olhos e gritei
em agonia:
– Ah! Leve-o embora! Não posso vê-lo; pelo amor de Deus, não o deixe
entrar!
O sr. Kirwin me fitou com uma expressão perturbada. Ele não pôde
deixar de considerar minha exclamação como uma presunção de culpa e
disse em tom bastante severo:
– Pensei, meu rapaz, que a presença de seu pai lhe seria bem-vinda em
vez de inspirar tal repugnância violenta.
– Meu pai! – exclamei, enquanto todos meus traços e músculos
relaxavam da angústia para o prazer. – Meu pai realmente veio? Que
gentil, que gentil! Mas onde ele está? E por que não se apressa em me ver?
Minha mudança de atitude surpreendeu e agradou o magistrado; talvez
ele pensasse que minha exclamação anterior tivesse sido um retorno
momentâneo do delírio, e agora retomava de imediato sua benevolência
habitual. Ele se levantou e deixou o quarto, acompanhado de minha
enfermeira. Instantes depois, meu pai entrou.
Nada, naquele momento, poderia ter me dado maior prazer do que a
chegada de meu pai. Estendi minha mão para ele e exclamei:
– Meu pai, você está bem? E Elizabeth? Ernest?
Meu pai me acalmou com garantias de seu bem-estar e esforçou-se,
desviando dos assuntos tão importantes ao meu coração, para elevar meus
ânimos deprimidos; tão logo, porém, sentiu que uma prisão não podia ser
uma morada alegre.
– Que lugar é esse onde você mora, meu filho? – perguntou ele enquanto
observava com tristeza as janelas gradeadas e a aparência miserável da
cela. – Você viajou para buscar o contentamento, mas a fatalidade parece
persegui-lo. E o pobre Clerval…
O nome do meu amigo infeliz e assassinado era uma agitação grande
demais para ser suportada no meu estado vulnerável. Derramei lágrimas.
– Sim, meu pai – respondi. – O mais horrível destino paira sobre mim, e
devo viver para cumpri-lo, o que me impediu de morrer sobre o caixão de
Henry.
Não nos permitiram conversar por um longo período, pois o estado
precário de minha saúde exigia todas as precauções necessárias para me
garantir tranquilidade. O sr. Kirwin entrou e insistiu para que minha força
não se esgotasse com tamanho esforço. Mas a presença de meu pai era
para mim como a de um bom anjo, e aos poucos recuperei a saúde.
Quando a doença me deixou, fui absorvido por uma melancolia
taciturna e obscura que nada era capaz de dissipar. A imagem de Clerval
estaria para sempre diante de mim, medonha e aniquilada. Mais de uma
vez a agitação na qual tais reflexões me jogaram suscitou o receio, por
parte de meus amigos, de que eu tivesse uma recaída perigosa. Ai! Por que
eles preservavam uma vida tão infeliz e detestável? Certamente para
cumprir meu destino, que estava chegando ao fim. Em breve! Ah, muito
em breve, a morte extinguirá as pulsações e me aliviará do poderoso peso
da angústia que me reduz ao pó, e, ao executar da sentença de justiça,
também vou descansar. À época, a ideia da morte estava presente em
minha mente. Vezes numerosas permaneci sentado, imóvel, por horas e
sem dizer qualquer palavra, desejando uma poderosa revolução que
pudesse enterrar a mim e a meu destruidor em suas ruínas.
A temporada do julgamento se aproximou. Eu já estava havia três meses
na prisão e, apesar de continuar fraco e em constante risco de recaída, fui
obrigado a viajar quase cem quilômetros até o tribunal. O sr. Kirwin se
encarregou cuidadosamente de coletar testemunhas e organizar minha
defesa. Fui poupado da vergonha de aparecer em público como criminoso,
posto que meu caso não fora trazido a uma corte que determinava penas
máximas. O grande júri rejeitou a acusação por ter sido provado que eu
estava nas Ilhas Órcades no momento em que o corpo do meu amigo foi
encontrado; quinze dias após minha absolvição, fui libertado do
encarceramento.
Meu pai ficou extasiado ao me ver livre dos aborrecimentos de uma
acusação criminal, o que me permitiria respirar de novo ar fresco e voltar
ao meu país natal. Não partilhei de seus sentimentos, pois, para mim, as
paredes de uma masmorra ou de um palácio eram igualmente odiosas. O
cálice da vida fora envenenado para sempre, embora o sol brilhasse sobre
mim como cintilava sobre aqueles de coração feliz, não via nada além de
uma escuridão densa e assustadora impenetrada pela luz, à exceção do
brilho de um par de olhos, que me observavam. Às vezes, eram os olhos
expressivos de Henry definhando na morte, com orbes escuros quase
cobertos pelas pálpebras e os longos cílios pretos que os cercavam; outras
vezes, eram os olhos lacrimejantes do monstro, tais como eu os vira pela
primeira vez na minha câmara em Ingolstadt.
Meu pai tentava despertar em mim sentimentos de afeto. Falava de
Genebra, que eu deveria visitar em breve, de Elizabeth e de Ernest. Tais
palavras, contudo, apenas suscitavam gemidos profundos em mim. Às
vezes, de fato, sentia um desejo de felicidade; pensava, com deleite
melancólico, na minha amada prima; ou ansiava, com uma devoradora
maladie du pays, ver mais uma vez o rio Ródano, que me fora tão querido
na infância. No entanto, meu estado geral de sentimento era um torpor, no
qual uma prisão se mostrava como residência tão bem-vinda quanto a mais
divina paisagem da natureza. Tal condição raramente mudava, exceto por
acessos de angústia e desespero, momentos em que, muitas vezes,
esforçava-me para pôr fim à existência detestável, o que exigia assistência
e vigilância incessantes para me impedir de cometer algum ato terrível de
violência.
Um dever permanecera para mim, cuja lembrança enfim triunfara sobre
meu desespero egoísta. Era necessário que eu voltasse sem demora para
Genebra a fim de guardar a vida daqueles a quem eu tanto amava, e
esperar pelo assassino, que, quer me levasse ao seu esconderijo ou ousasse
me atormentar em meu lar com sua presença, me daria a chance de pôr um
fim à sua monstruosa existência que eu dotara de uma alma ainda mais
nefasta. Meu pai ainda desejava adiar nossa partida, com medo de que eu
não suportasse a fadiga da jornada; afinal, eu estava destruído e parecia a
sombra de um ser humano. Minha força estava esgotada. Eu era um mero
esqueleto; e a febre, dia e noite, atacava minha estrutura abatida.
Ainda assim, quando pedi que deixássemos a Irlanda com inquietação e
impaciência, meu pai decidiu por bem ceder. Pegamos nossa passagem a
bordo de uma embarcação com destino a Havre-de-Grace e navegamos
com ventos bons ao longo das costas irlandesas. Era meia-noite. Deitei-me
no convés, mirando as estrelas e escutando o bater das ondas. Eu saudava a
escuridão que diluía a Irlanda diante de meus olhos e meu pulso batia com
alegria febril ao pensar que logo veria Genebra. O passado surgia em
minha mente como um sonho aterrador; no entanto, a embarcação onde eu
estava, o vento que soprava da costa detestável da Irlanda e o mar que me
cercava me diziam com firmeza que eu não fora enganado por nenhuma
visão, e que Clerval, meu amigo e companheiro mais querido, tornara-se
minha vítima e do monstro de minha criação. Repassei toda a minha vida
na memória, pensei na felicidade tranquila enquanto morava com minha
família em Genebra, na morte de minha mãe e na partida para Ingolstadt.
Lembrei-me, estremecendo, do entusiasmo louco que me levou à criação
do meu inimigo hediondo, e também da noite em que ele despertou para a
vida. Tornei-me incapaz de prosseguir; mil sentimentos me invadiram e
chorei com amargor.
Desde que me recuperara da febre, costumava tomar todas as noites uma
pequena quantidade de láudano,15 pois apenas por meio dessa droga eu era
capaz de obter o descanso necessário para a preservação de minha vida.
Porém, oprimido pela lembrança de meus vários infortúnios, tomei o
dobro da quantidade habitual para dormir profundamente. O sono não
proporcionou alívio para os meus pensamentos e tragédia, e meus sonhos
apresentaram mil objetos assustadores. Na manhã seguinte, fui tomado por
uma espécie de pesadelo, sentia o aperto do demônio no meu pescoço e
não conseguia me libertar enquanto gemidos e berros soavam em meus
ouvidos. Meu pai, que estava me vigiando, percebeu minha inquietação e
me acordou; as ondas estavam ao redor, o céu nublado pairava acima e o
demônio não estava lá. A sensação de segurança e a impressão de que uma
trégua fora estabelecida entre a hora presente e o futuro inexorável me
impeliram a um esquecimento sereno, ao qual a mente humana é, por sua
estrutura, particularmente suscetível.
- Remédio para dores e mal-estar à base de ópio. Foi desenvolvido pelo
alquimista Paracelso no século XVI e continuou popular até o início do
século XX. (N. T.)
CAPÍTULO XXII

A VIAGEM CHEGOU AO FIM. Desembarcamos e seguimos para Paris. Logo


descobri que havia abusado de minhas forças e que precisava descansar
antes de continuar a jornada. Os cuidados e as atenções de meu pai eram
incansáveis, mas ele não sabia a origem do meu sofrimento e buscava
métodos errôneos visando remediar uma enfermidade incurável. Ele
queria que eu buscasse diversão na sociedade, mas eu abominava o rosto
do homem. Ou melhor: não, não abominava. Eles eram meus irmãos, meus
semelhantes, e eu me sentia atraído até pelos mais repulsivos entre eles,
tanto quanto pelas criaturas de natureza angelical. Porém, sentia que não
tinha o direito de interagir com eles. Eu havia libertado entre eles um
inimigo cuja alegria era derramar sangue e deleitar-se com os lamentos
das vítimas. Como eles me odiariam se soubessem dos meus atos imorais
e dos crimes que tinham sua origem em mim!
Meu pai cedeu ao meu desejo de evitar a sociedade e se esforçou por
meio de vários argumentos para afastar meu desespero. Às vezes, ele
pensava que eu lamentava profundamente a degradação de ter sido
obrigado a responder a uma acusação de assassinato, e tentava me provar a
futilidade do orgulho.
– Ai, meu pai – eu disse. – Quão pouco você me conhece. Os seres
humanos, seus sentimentos e paixões de fato seriam degradados se um
desgraçado como eu sentisse orgulho. Justine, a pobre e infeliz Justine, era
tão inocente quanto eu e sofreu a mesma acusação; ela morreu por isso, e
eu fui a causa; eu a matei. William, Justine e Henry: todos eles morreram
pelas minhas mãos.
Durante minha prisão, meu pai me ouvia repetir a mesma afirmação.
Quando eu me acusava, ele às vezes parecia desejar explicação, enquanto
em outros momentos considerava minhas palavras decorrentes do delírio
que, durante a enfermidade, tinha se instaurado em minha imaginação,
preservando-se, ainda que dentro da memória, no período da
convalescença. Eu evitava explicações e mantinha um silêncio contínuo
sobre o desgraçado que criara. Eu mantinha a convicção de que seria
considerado louco; e isso já era razão o suficiente para prender minha
língua. Ademais, não podia revelar um segredo que encheria meu ouvinte
de consternação, convidando o medo e o horror a residir em seu peito.
Abri mão, portanto, de minha sede insaciável de simpatia e fiquei em
silêncio quando teria dado o mundo para revelar meu segredo fatal. Ainda
assim, palavras como aquelas irrompiam incontrolavelmente de mim. Eu
não podia oferecer nenhuma explicação sobre elas, mas a verdade é que
tais palavras aliviavam em parte o peso do meu sofrimento misterioso.
Nessa ocasião, meu pai disse com uma expressão de ilimitada surpresa:
– Meu querido Victor, que obstinação é essa? Meu filho, peço que nunca
mais faça essa afirmação.
– Não estou louco – falei energicamente. – O sol e o céu, que viram
meus trabalhos, podem testemunhar a verdade. Sou o assassino das mais
inocentes vítimas: elas morreram por minhas maquinações. Mil vezes eu
teria derramado meu próprio sangue, gota a gota, para salvar sua vida. Mas
eu não podia, meu pai, não podia sacrificar toda a raça humana.
A conclusão desse discurso convenceu meu pai de que minhas
faculdades estavam perturbadas, e ele mudou instantaneamente o assunto
da conversa a fim de tentar alterar o curso de meus pensamentos. Ele
desejava, tanto quanto possível, aniquilar de minha memória as cenas que
ocorreram na Irlanda, de modo que nunca aludia a elas ou me pedia para
falar de meus infortúnios.
Com o passar do tempo, fiquei mais calmo. A tormenta ainda habitava
meu coração, entretanto eu já não falava mais da mesma maneira
incoerente sobre meus crimes; ter consciência deles já era o suficiente
para mim. Como ato de autoflagelação, reprimi a voz imperiosa da
desgraça que às vezes desejava se declarar ao mundo inteiro, e minhas
maneiras se tornaram mais calmas e compostas do que jamais haviam sido
desde a jornada para o mar de gelo.
Dias antes de deixarmos Paris a caminho da Suíça, recebi a seguinte
carta de Elizabeth:
Meu caro amigo,
Foi um grande prazer receber uma carta do meu tio enviada de Paris.
Você não está mais a uma distância formidável, e espero vê-lo em menos
de duas semanas. Meu pobre primo, imagino o quanto deve ter sofrido!
Presumo que o verei ainda mais doente do que quando saiu de Genebra.
Foi um inverno muito infeliz, e me senti torturada pelo suspense; no
entanto, espero ver a paz em seu semblante e descobrir que seu coração
não está totalmente vazio de conforto e tranquilidade.
Temo, no entanto, que os mesmos sentimentos que o deixaram tão
descontente há um ano ainda estejam presentes, talvez até piorados pelo
tempo. Não o incomodaria nesse período, quando tantos infortúnios pesam
sobre você, mas uma conversa que tive com meu tio antes de sua partida
requer algumas explicações necessárias antes de nosso encontro.
Explicações! Você deve pensar: o que Elizabeth tem a explicar? Se você
realmente acreditar que não há necessidade para tal, minhas perguntas
estão respondidas, e minhas dúvidas, satisfeitas. Mas você está distante de
mim; é possível que tema e ao mesmo tempo se deleite com o que tenho a
dizer. Sendo assim, não ouso mais adiar a escrita daquilo que muitas vezes
desejei lhe expressar, mas nunca tive coragem para começar.
Você sabe bem, Victor, que nossa união era o plano favorito de seus pais
desde que éramos crianças. Fomos informados disso quando jovens e
ensinados a encarar essa união como algo que certamente aconteceria.
Fomos colegas afetuosos durante a infância e, creio eu, amigos queridos e
valorizados um pelo outro à medida que crescemos. Mas, como irmão e
irmã muitas vezes mantêm um afeto grande um pelo outro sem desejar uma
união mais íntima, esse também não será o nosso caso? Victor, querido,
responda com a verdade: eu lhe questiono, por nossa felicidade mútua:
você ama outra?
Você viajou muito e passou vários anos de sua vida em Ingolstadt.
Confesso a você, meu amigo, que quando o vi no outono passado, tão
infeliz, preferindo a solidão à sociedade, não pude deixar de supor que
poderia estar desapontado com nossa conexão, vendo-se atado a uma
obrigação que honrava o desejo dos pais, embora eles se opusessem aos
seus próprios. Mas essa foi uma falácia. Confesso-lhe, meu amigo, que
amo você e que, nos meus sonhos sobre o futuro, você é meu amigo e
companheiro constante. Mas é a sua felicidade que desejo, assim como a
minha, quando declaro que nosso casamento me tornaria eternamente
infeliz se não fosse ditado por sua livre escolha. Mesmo agora choro ao
pensar que, arrebatado pelos mais cruéis infortúnios, você poderia
sufocar pela honra toda a esperança de amor e felicidade que o pudesse
restaurar. Não seria eu, que nutro por você afeição tão grande, a
aumentar dez vezes mais seus desgostos ao me tornar obstáculo para suas
vontades. Ah, Victor, tenha certeza de que sua prima e companheira
mantém um amor sincero demais para não admitir tal hipótese. Seja feliz,
meu amigo; e se você me obedecer nesse pedido, esteja certo de que nada
na Terra terá o poder de interromper minha tranquilidade.
Não permita que esta carta o perturbe; não responda amanhã, no dia
seguinte ou até você chegar se isso lhe causa dor. Meu tio me enviará
notícias de sua saúde e, se eu vir apenas um sorriso nos seus lábios
quando nos encontrarmos, ocasionado por este ou qualquer outro esforço
meu, não precisarei de outra felicidade.

Elizabeth Lavenza
Genebra, 18 de maio de 17—

A carta reviveu em minha memória a ameaça do demônio: Estarei com


você na sua noite de núpcias. Essa era a minha sentença, e naquela noite o
dæmon empregaria todos os seus esforços para me destruir e tirar de mim
o vislumbre de felicidade que prometia consolar em parte meus
sofrimentos. Naquela noite, ele consumaria seus crimes com a minha
morte. Que assim fosse. Uma luta mortal aconteceria; se ele vencesse, eu
estaria em paz e seu poder sobre mim terminaria. Mas, se ele fosse
derrotado, eu seria um homem livre. Ah! Que liberdade era aquela? De que
um camponês desfruta quando sua família é massacrada diante de seus
olhos, sua casa queimada, suas terras devastadas e ele fica à deriva, sem
casa, sem dinheiro e sozinho, mas livre? Assim seria a minha liberdade,
exceto que nela o tesouro seria Elizabeth. Seria, porém, perseguido até a
morte pelos horrores do remorso e da culpa.
Doce e amada Elizabeth! Li e reli sua carta, e sentimentos delicados
invadiram meu coração. Ousei sussurrar sonhos paradisíacos de amor e
alegria, mas a maçã já estava comida e o braço do anjo arreganhava-se
para me afastar de toda esperança. No entanto, eu morreria para fazê-la
feliz. Se o monstro cumprisse sua ameaça, a morte era inevitável; logo,
ponderei se meu casamento aceleraria tal destino. Minha destruição
poderia chegar meses mais cedo, mas, se meu torturador suspeitasse do
adiamento em decorrência de suas ameaças, ele certamente encontraria
outros meios de vingança – talvez mais terríveis. Ele jurou estar comigo
na minha noite de núpcias, mas o meio-tempo não representou uma trégua
para o demônio; afinal, para me provar que ainda não estava saciado de
sangue, ele assassinou Clerval logo após a comunicação de suas ameaças.
Decidi, portanto, que se o casamento imediato com minha prima traria
felicidade a ela ou a meu pai, os desígnios de meu adversário contra a
minha vida não deveriam retardá-lo nem por uma hora.
Nesse estado de espírito, escrevi para Elizabeth. Minha carta era calma
e carinhosa. Eu disse:
Receio, minha amada menina, que haja pouca felicidade remanescente
para nós na Terra. No entanto, tudo aquilo de que eu venha a desfrutar
estará centrado em você. Afaste seus medos ociosos; consagro minha vida
e meus esforços de satisfação somente a você. Tenho um segredo,
Elizabeth. Um segredo terrível. Quando eu o revelar, você sentirá um
profundo horror e, longe de se surpreender com minha tragédia,
perguntará a si mesma apenas como sobrevivi por tanto tempo suportando
tal fardo. Vou contar-lhe esse relato de infortúnio e terror no dia seguinte
ao casamento, pois, minha doce prima, deve haver perfeita confiança entre
nós. Mas até lá peço-lhe que não toque no assunto. Imploro sinceramente
e sei que você concordará.

Cerca de uma semana após a chegada da carta de Elizabeth, retornamos


a Genebra. A doce menina me recebeu com carinho caloroso; no entanto,
lágrimas surgiram em seus olhos quando viu meu corpo emaciado e
minhas bochechas febris. Percebi uma mudança nela também: estava mais
magra e havia perdido grande parte da vivacidade celestial que antes me
encantara, no entanto, sua gentileza e olhar suave de compaixão a
tornavam a companheira mais apta para alguém maldito e desgraçado
como eu.
A tranquilidade da qual desfrutava agora não perdurou. A memória
trouxe consigo loucura e, quando pensei no que havia se passado, uma
verdadeira insanidade me possuiu. Às vezes, ficava furioso e queimava de
raiva; outras vezes, via-me triste e desanimado. Não falava nem olhava
para ninguém, apenas ficava imóvel, perplexo com a infinidade de
tormentos que haviam me vencido.
Só Elizabeth tinha o poder de me tirar dessas crises. Sua voz suave me
acalmava quando estava movido pela paixão e me inspirava com
sentimentos humanos quando afundava em torpor. Ela chorava comigo e
por mim. Quando a razão retornava, ela me advertia e tentava me infundir
a resignação. Ah! O infeliz tinha a opção de se resignar, mas para os
culpados não havia paz. As agonias do remorso podiam envenenar
qualquer tentativa de satisfazer o excesso de tristeza.
Logo após minha chegada, meu pai me abordou para falar sobre o
casamento com Elizabeth. Permaneci quieto.
– Então você tem um outro amor?
– Nenhum outro. Amo Elizabeth e aguardo com alegria a nossa união.
Permita que a data seja marcada, e eu me consagrarei, na vida ou na morte,
à felicidade de minha prima.
– Meu caro Victor, não fale assim. Fortes infortúnios nos atingiram, mas
vamos nos apegar mais ao que resta e transferir o amor por aqueles que
perdemos a quem ainda vive. Nosso círculo será pequeno, mas unido pelos
laços de afeição e também desventura mútua. Quando o tempo suavizar
seu desespero, novos e queridos entes nascerão para substituir aqueles do
qual fomos tão cruelmente privados.
Essas foram as lições do meu pai. Para mim, porém, a lembrança da
ameaça retornava. Onipotente como o demônio fora até então em suas
ações sanguinárias, eu quase o considerava invencível. Quando ele
pronunciou as palavras “estarei com você na sua noite de núpcias”,
considerei meu destino irremediavelmente determinado. Mas, se
comparada à perda de Elizabeth, a morte não era nada para mim. Portanto,
com uma tez contente, concordei com meu pai que, se minha prima
aprovasse, a cerimônia ocorreria em dez dias. Assim, como eu imaginava,
selei meu destino.
Meu Deus! Se por um instante eu tivesse ideia de qual era a intenção
infernal do meu adversário diabólico, teria me banido para sempre do meu
país natal e vagado como um pária sem amigos pela Terra em vez de
consentir com aquele casamento desafortunado. Mas, como se dotado de
poderes mágicos, o monstro me cegou para suas reais intenções e, quando
pensei que providenciara apenas minha própria morte, apressei a de uma
vítima muito mais querida.
Ante a aproximação do período estabelecido para o casamento, seja por
covardia ou sentimento profético, senti meu coração afundar em meu
interior. Contudo, escondia meus sentimentos com aparência de hilaridade,
que suscitava sorrisos e alegria ao semblante de meu pai, mas dificilmente
enganava o olhar sempre atento e agradável de Elizabeth. Ela ansiava por
nossa união com satisfação plácida, mas não livre de um pouco do medo
que as adversidades anteriores deixaram como rastro, causando a sensação
de que a felicidade certa e tangível poderia logo se dissipar em um sonho
vazio que não deixaria vestígios além de um pesar profundo e eterno.
Os preparativos foram arranjados para o evento, visitas de
congratulações foram recebidas e todos apresentavam uma expressão
sorridente. Calei a ansiedade que me assolava o melhor que pude no
próprio coração, e participei dos planos de meu pai com seriedade
simulada, embora eles só pudessem servir como decoração à minha
tragédia. Pelos esforços de meu pai, parte da herança de Elizabeth lhe fora
restaurada pelo governo austríaco. Uma pequena posse às margens do lago
de Como pertencia a ela. Ficou combinado que, após a nossa união,
deveríamos seguir para Villa Lavenza e passar os primeiros dias de
felicidade junto ao belo lago.
Nesse ínterim, tomei todas as precauções visando defender minha
pessoa caso o demônio me atacasse abertamente. Tornou-se comum eu
deter a posse de pistolas e de uma adaga, em vigília constante para evitar
artifícios. Tais meios me garantiram maior grau de tranquilidade. De fato,
à medida que o período se aproximava, a ameaça se assemelhava mais a
uma ilusão quase indigna de perturbar minha paz, ao passo que a
felicidade depositada por mim em meu casamento exibia aparência maior
de certeza, bem como sua própria concretização – um acontecimento que
nada se encontrava apto a impedir.
Elizabeth parecia feliz; meu comportamento tranquilo contribuiu muito
para lhe acalmar a mente. Todavia, no dia destinado a cumprir nossos
desejos e meu destino, ela estava melancólica. Um pressentimento
malévolo a invadira, possivelmente instigado pelo terrível segredo que eu
havia prometido lhe revelar no dia subsequente. Meu pai, por sua vez,
estava muito feliz e, na agitação dos preparativos, só identificou na
melancolia da sobrinha o acanhamento natural de uma noiva.
Ao fim da cerimônia, uma notável festa nos aguardava na casa de meu
pai; ficou acordado que Elizabeth e eu começaríamos nossa viagem pelas
águas, dormindo naquela noite em Evian e continuando a viagem no dia
seguinte. O dia estava bom, o vento favorável e tudo sorria durante nossa
jornada nupcial.
Foram os últimos momentos da minha vida em que desfrutei do
sentimento de felicidade. Viajávamos ligeiramente: o sol estava quente,
mas éramos protegidos de seus raios por uma espécie de marquise
enquanto apreciávamos a beleza da paisagem. De um lado do lago, víamos
o Mont Salève, as agradáveis margens do Montalègre e, à distância,
superando todos, o belo Mont Blanc e a assembleia de montanhas nevadas
que, em vão, tentavam imitá-lo. Às vezes, costeando as margens
contrárias, víamos o poderoso Jura opondo seu lado sombrio como uma
barreira capaz de desencorajar qualquer invasor.
Peguei a mão de Elizabeth.
– Você está triste, meu amor. Ah! Se soubesse o quanto sofri e o que
ainda devo suportar, se esforçaria para me deixar saborear a calma e a
liberdade que ao menos este dia me permite desfrutar.
– Seja feliz, meu caro Victor – respondeu Elizabeth. – Espero que não
haja nada para incomodá-lo; e esteja certo de que, se a alegria não está
expressa em meu rosto, certamente está em meu coração. Algo me diz
para não confiar muito na perspectiva que nos é apresentada, mas não
darei ouvidos a tal voz sinistra. Observe o quão rápido nos movemos e
como as nuvens, que às vezes obscurecem e às vezes se elevam acima da
cúpula do Mont Blanc, tornam essa paisagem de beleza ainda mais
interessante. Veja também os inúmeros peixes que nadam nas águas
límpidas, em que podemos distinguir todas as pedras que jazem no fundo.
Que dia divino! Como toda a natureza parece feliz e serena!
Assim, Elizabeth procurou desviar seus pensamentos e os meus de toda
reflexão sobre assuntos melancólicos. Mas seu temperamento estava
oscilando; a alegria brilhava em seus olhos por instantes, mas de maneira
contínua dava lugar à distração e aos devaneios.
O sol, enfim, se pusera. Passamos pelo rio Drance e observamos seu
curso em meio aos abismos dos montes distantes e dos vales das colinas
mais baixas. Os Alpes nesse ponto se aproximavam do lago, e ficamos
próximos ao anfiteatro de montanhas que formavam sua fronteira oriental.
O campanário de Evian reluzia entre os bosques que o cercavam, bem
como se destacava entre os montes.
O vento, que até então nos transportara com rapidez incrível, diminuiu
ao pôr do sol até tornar-se uma brisa leve; o ar suave sacudiu a água e
causou um movimento agradável entre as árvores quando nos
aproximamos da costa, que emanava o mais delicioso perfume de flores e
feno. O sol desceu no horizonte quando desembarcamos e, ao pisar nas
margens, senti o retorno dos medos que logo me abraçariam e se
agarrariam a mim para sempre.
CAPÍTULO XXIII

ERAM OITO HORAS quando desembarcamos. Andamos por um curto período


pela praia, apreciando a luz transitória antes de nos retirarmos para a
pousada, de onde contemplamos a adorável paisagem de águas, montanhas
e bosques sombreados pela escuridão, mas cujos contornos pretos
permaneciam à mostra.
O vento, que cessara no sul, passara a aumentar com grande violência
no oeste. A lua alcançara seu cume no céu e começava a descer; as nuvens
encobriram-na mais rapidamente do que o voo do abutre e diminuíram sua
luminosidade, enquanto o lago refletia a cena dos céus movimentados com
ondas igualmente inquietas que se punham a subir. De repente, uma forte
tempestade desabou.
Eu havia ficado calmo durante o dia, mas, tão logo a noite obscureceu as
formas dos objetos, mil medos surgiram em minha mente. Eu estava
ansioso e vigilante, e minha mão direita segurava uma pistola escondida
no peito. Todo som me apavorava, contudo estava decidido a lutar, sem me
afastar do conflito até que minha própria vida, ou a de meu adversário,
fosse extinta.
Elizabeth, imersa em silêncio tímido e medroso, observou minha
agitação por determinado tempo. Havia algo em meu olhar que lhe
comunicava terror e, tremendo, ela perguntou:
– O que o agita, meu querido Victor? O que você teme?
– Ah! Tenha calma, meu amor – respondi. – Depois desta noite, tudo
ficará bem. Mas esta noite é terrível, muito terrível.
Passei uma hora no referido estado de espírito, quando de súbito refleti
o quão horrendo seria para minha esposa o combate que eu esperava.
Implorei sinceramente que ela se recolhesse, decidido a não me juntar a
ela até obter informações sobre a contingência do meu inimigo.
Ela me deixou e continuei por um tempo subindo e descendo as
passagens da casa, inspecionando todos os cantos que pudessem dar
refúgio ao meu adversário. Porém, não descobri qualquer vestígio dele e
estava começando a supor que dado acaso afortunado intervira em busca
de impedir a execução de suas ameaças. Então, de repente, ouvi um grito
estridente e terrível. Ele viera do quarto em que Elizabeth se encontrava.
Ao ouvi-lo, toda a verdade surgiu à minha mente; meus braços
amoleceram e o movimento de cada músculo e fibra foi suspenso. Eu
podia sentir o sangue escorrendo em minhas veias e formigando nas
extremidades dos meus membros. Esse estado durou apenas um instante; o
grito foi repetido e corri para o quarto.
Meu Deus! Por que não morri naquele instante? Por que sobrevivi para
relatar a destruição da minha maior esperança e a mais pura criatura da
Terra? Ela estava lá, sem vida, jogada sobre a cama com a cabeça
pendurada e as feições pálidas e distorcidas, meio cobertas pelos cabelos.
Em todos os lugares que viro, enxergo a mesma imagem: seus braços sem
sangue e sua forma relaxada na cama nupcial que se tornara seu esquife.
Como poderia sobreviver a isso? Ai! A vida é obstinada e se apega com
mais força onde é mais odiada. Por um só momento, perdi os sentidos,
caindo no chão desfalecido.
Quando me recuperei, vi-me cercado pelas pessoas da estalagem; seus
semblantes expressavam um horror sem fôlego. Mas o horror dos demais
parecia apenas uma zombaria perto dos sentimentos que me oprimiam.
Escapei para a sala onde jazia o corpo de Elizabeth, meu amor, minha
esposa, tão querida, digna e que vivera tão pouco. Ela já não apresentava a
mesma posição em que a encontrara; agora, sua cabeça se apoiava em um
braço e um lenço cobria seu rosto e pescoço. Parecia adormecida. Corri em
direção a ela e a abracei com ardor; mas o langor mortal e a frieza dos
membros me informaram que o que eu agora segurava em meus braços
deixara de ser a Elizabeth a quem amava. A marca assassina do demônio
estava em seu pescoço, e a respiração deixou de ser expelida seus lábios.
Eu ainda pairava sobre ela na agonia do desespero quando olhei para
cima por acaso. As janelas da sala estavam escurecidas e senti uma
espécie de pânico ao notar a luz pálida e amarela da lua iluminando a
câmara. As persianas estavam jogadas para trás e, com uma sensação de
horror impossível de descrever, avistei na janela aberta a figura mais
hedionda e abominável. Um sorriso estampava o rosto do monstro; ele
parecia zombar, pois com o dedo diabólico apontava para o cadáver da
minha esposa. Corri em direção à janela e, puxando uma pistola do peito,
atirei; ele, por sua vez, saltou e, correndo com a rapidez de um raio,
mergulhou no lago.
O barulho da pistola atraiu uma multidão para o quarto. Apontei para o
local onde ele havia desaparecido e seguimos a trilha com barcos;
lançaram redes, mas em vão. Depois de múltiplas horas, voltamos sem
esperança. A maioria dos meus companheiros acreditava que o fugitivo era
obra da minha imaginação. Depois do desembarque, eles passaram a
vasculhar toda a região, partindo em direções variadas entre os bosques e
videiras.
Tentei acompanhá-los e me afastei a uma curta distância da casa;
porém, minha cabeça girava e meus passos eram como os de um homem
bêbado. Finalmente, caí em estado de exaustão total; uma névoa cobriu
meus olhos e minha pele ficou seca com o calor da febre. Nesse estado, fui
levado de volta e colocado em uma cama, quase inconsciente do que havia
acontecido; meus olhos vagavam pela sala, como se procurassem algo que
eu havia perdido.
Depois de um intervalo, levantei-me e, como que por instinto, rastejei
para a sala onde estava o cadáver da minha amada. Havia mulheres
chorando por ali, e eu me juntei ao lamento delas enquanto me debruçava
sobre o corpo de Elizabeth. Durante todo esse tempo, nenhuma ideia
distinta se apresentou à minha mente; meus pensamentos divagavam sobre
vários assuntos, refletindo de maneira confusa sobre meus infortúnios e
suas causas. Fiquei atônito em uma nuvem de espanto e horror.
A morte de William, a execução de Justine, o assassinato de Clerval e,
por fim, a aniquilação de minha esposa. Mesmo naquele momento, não
sabia se meus únicos amigos remanescentes estavam a salvo da
malignidade do demônio; meu pai, naquele mesmo instante, poderia estar
se contorcendo sob suas garras enquanto Ernest jazia morto aos seus pés.
A ideia me fez estremecer e me convocou para a ação. Decidi, portanto,
regressar a Genebra com toda a velocidade possível.
Não havia cavalos para serem alugados e eu precisava retornar pelo
lago, mas o vento era inclemente e a chuva era torrencial. No entanto, a
manhã ainda não se fizera e eu esperava chegar razoavelmente à noite.
Contratei homens para remar e eu mesmo peguei um remo, pois sempre
sentia o alívio do tormento mental durante os exercícios físicos. Mas a
desgraça transbordante que agora sentia e o excesso de agitação que me
acometeu tornaram-me incapaz de qualquer esforço. Atirei o remo para
longe e, apoiando a cabeça nas mãos, abri caminho para todas as ideias
sombrias que surgiram. Quando olhava para cima, vislumbrava paisagens
que me eram familiares aos momentos mais felizes do dia anterior na
companhia dela, que agora era apenas uma sombra e uma lembrança.
Lágrimas escorreram dos meus olhos. A chuva cessou por um momento e
vi os peixes brincarem nas águas, como haviam feito horas antes enquanto
eram observados por Elizabeth. Nada podia ser mais doloroso para a
mente humana do que uma mudança massiva e repentina. O sol podia
brilhar ou as nuvens podiam descer, mas nada conseguia ser igual ao dia
anterior. Um demônio arrancara de mim toda esperança de felicidade
futura. Nenhuma criatura jamais fora tão infeliz quanto eu, e nenhum
evento na história do homem fora tão assustador.
Mas por que devo me debruçar sobre os incidentes que se seguiram a
esse último evento avassalador? A minha história tem sido uma história de
horrores; cheguei ao seu auge, e o que devo relatar agora pode lhe soar
tedioso. Saiba que, um por um, meus amigos foram arrebatados. Fiquei
desolado. Minha própria força está exausta e devo relatar, em poucas
palavras, o que resta da minha hedionda narrativa.
Cheguei a Genebra. Meu pai e Ernest continuavam vivos, mas o
primeiro sucumbiu às notícias que eu carregava. Eu o vejo agora, velho
excelente e venerável! Seus olhos vagavam ao léu, pois haviam perdido o
encanto e o deleite – sua Elizabeth, sua mais do que filha, a quem se
dedicou com todo o carinho que um homem poderia sentir, em particular
no declínio da vida, quando o ser humano tende a se apegar ainda mais a
quem resta. Amaldiçoado seja o demônio que trouxe desastre aos seus
cabelos grisalhos e o condenou a viver em calamidade! Ele não podia
suportar os horrores que se acumulavam ao seu redor, e suas fontes de
existência de repente cederam. Ele não conseguiu se levantar mais da
cama e, em poucos dias, morreu em meus braços.
O que foi feito de mim? Não sei. Perdi as sensações e via apenas
grilhões e trevas à minha volta. Às vezes, de fato sonhava vagar por prados
floridos e vales agradáveis com os amigos da minha juventude; mas
acordava e me via em uma masmorra. A melancolia permaneceu, mas aos
poucos desenvolvi uma concepção clara de minha situação e fui libertado
de minha prisão. Fui chamado de louco e, durante muitos meses, conforme
compreendi, a cela solitária foi minha habitação.
A liberdade, no entanto, tinha sido um presente inútil para mim se eu
não tivesse despertado para a razão e, ao mesmo tempo, para a vingança. À
medida que a lembrança de infortúnios passados me pressionava,
começava a refletir sobre a causa deles – o monstro que eu havia criado, o
dæmon miserável que havia enviado ao mundo para a minha destruição.
Fiquei possuído por uma raiva enlouquecedora quando pensei nele, e
desejei fervorosamente que ele estivesse ao meu alcance para cravar a
vingança sobre sua cabeça amaldiçoada.
Meu ódio, no entanto, não se limitou a esse desejo. Comecei a refletir
sobre os melhores meios de capturá-lo e, para esse fim, cerca de um mês
após a minha libertação, compareci perante um juiz criminal da cidade e
lhe disse que tinha uma acusação a fazer. Afirmei que eu conhecia o
destruidor da minha família; e exigi que ele exercesse toda sua autoridade
para a apreensão do assassino.
O magistrado me ouviu com atenção e bondade.
– Tenha certeza, senhor – disse ele – de que nenhuma dor ou esforço de
minha parte será poupado para descobrir o criminoso.
– Agradeço – retorqui. – Ouça, portanto, o depoimento que tenho a
fazer. É de fato uma história estranha, e deveria temer que o senhor não
acreditasse nela se não fossem pelas circunstâncias que provam sua
veracidade. Ademais, a história é muito coesa para ser confundida com um
sonho, e não tenho motivo para falsidade.
Dirigi-me a ele de maneira imponente, mas calma; eu estava decidido a
perseguir meu destruidor até a morte, e diante desse propósito acalmava
minha agonia e me reconciliava por momentos com a vida. Relatei, então,
minha história; fui breve, mas firme e preciso, apontando as datas com
exatidão e evitando contradições.
A princípio, o magistrado pareceu perfeitamente incrédulo, mas,
conforme eu continuava, ele se tornou mais atento e interessado; em certos
momentos, eu o vi estremecer de horror; em outros, captava uma surpresa
autêntica em seu semblante.
Quando terminei minha narração, disse:
– Este é o ser a quem acuso e por cuja apreensão e punição exorto você
a exercer todo o seu poder. É seu dever como magistrado, e espero que
seus sentimentos como homem não se revoltem com a execução dessas
funções.
Minha fala causou uma mudança considerável na fisionomia de meu
auditor. Ele ouvira minha história com aquele tipo de crença dispensada a
uma história de espíritos e eventos sobrenaturais; porém, quando fora
convocado a agir, toda a maré de sua incredulidade retornou. Ele, no
entanto, respondeu de forma amena.
– Eu de bom grado lhe daria todo auxílio em sua busca, mas a criatura a
qual você se refere parece ter poderes que colocariam todos os meus
esforços em xeque. Quem é capaz de seguir um animal que pode
atravessar o mar de gelo e habitar cavernas e covas que ninguém se
atreveria a invadir? Além disso, meses se passaram desde a prática de seus
crimes, e ninguém pode conjecturar onde ele vagou ou em que região pode
estar agora.
– Não duvido que ele esteja perto do local em que habito. E, se ele se
refugiou nos Alpes, pode ser caçado como o antílope e destruído tal qual
um predador. Mas percebo seus pensamentos: você não dá crédito à minha
narrativa e não pretende perseguir meu inimigo para aplicar-lhe a punição
que merece.
Enquanto eu falava, a raiva brilhava nos meus olhos, o que intimidou o
magistrado.
– Você está enganado – disse ele. – Eu me esforçarei e, se estiver ao
meu alcance apreender o monstro, tenha certeza de que ele sofrerá uma
punição proporcional aos seus crimes. Só temo, pela descrição de seus
atributos, que isso seja impraticável. Portanto, embora possa te assegurar
de que adotarei as medidas necessárias, você deve se preparar para a
decepção.
– Essa não é uma escolha, mas tudo o que disser será de pouca utilidade.
Minha vingança não importa para você e, ainda que reconheça nela um
vício, confesso que é a única paixão da minha alma. Minha raiva é
indescritível quando penso que o assassino, a quem libertei entre os
homens, ainda existe. Você recusa minha exigência justa, de modo que
precisarei dedicar-me sozinho à sua destruição.
Tremi com o excesso de agitação ao comunicar tais palavras. Havia um
frenesi em minhas maneiras, e algo da altiva ferocidade que se atribuía aos
mártires da Antiguidade. Mas, para um magistrado de Genebra, cuja mente
estava ocupada por outras ideias além das de devoção e heroísmo, essa
elevação da mente tinha a aparência de loucura. Ele se esforçou para me
acalmar como uma enfermeira em relação a uma criança e tomou meu
relato como efeito do delírio.
– Homem! – exclamei. – Quão ignorante você é em sua pretensa
sabedoria! Silêncio, pois não sabe o que diz.
Saí do local zangado e perturbado e me retirei para meditar sobre outro
meio de ação.
CAPÍTULO XXIV

MINHA SITUAÇÃO ATUAL era aquela em que todo pensamento voluntário era
engolido e perdido. Fui apressado pela fúria. Somente a vingança me dava
força e compostura, o que moldou meus sentimentos e me permitiu ser
calculista e calmo em períodos em que, de outra forma, teria sido levado
ao delírio ou à morte.
A primeira decisão foi abandonar Genebra para sempre; meu país, que
me era querido quando eu era feliz e amado, agora, na adversidade,
tornara-se odioso. Abasteci-me com uma soma em dinheiro, juntamente a
algumas joias que pertenceram à minha mãe, e parti.
E assim começaram minhas peregrinações, que só deverão cessar com a
morte. Atravessei vasta porção da Terra e suportei todas as dificuldades
que os viajantes, nos desertos e países bárbaros, costumam enfrentar. Vivi
muito mal; muitas vezes, estendi meus membros defasados na planície
arenosa e pedi, em oração, pela morte. Mas a vingança me manteve vivo;
não ousei morrer para deixar o meu adversário no mundo.
Quando saí de Genebra, minha primeira tarefa foi obter uma pista a
partir da qual eu talvez poderia traçar os passos do meu inimigo diabólico.
Mas o plano era irregular e vaguei muitas horas pelos limites da cidade
sem saber qual caminho seguir. Ante a aproximação da noite, vi-me na
entrada do cemitério onde William, Elizabeth e meu pai repousavam.
Entrei e me aproximei da tumba que marcava suas sepulturas. Tudo estava
em silêncio, exceto pelas folhas das árvores, suavemente agitadas pelo
vento. A noite estava quase escura e a cena teria sido solene até mesmo
para um observador desinteressado. Os espíritos dos que partiam pareciam
voar e projetar uma sombra que era sentida, mas não vista, ao redor da
cabeça do enlutado.
O pesar profundo que o momento provocou-me, a princípio,
rapidamente deu lugar à raiva e ao desespero. Eles estavam mortos, e eu
vivia; o assassino deles também estava vivo e, para destruí-lo, eu
precisava arrastar meu corpo cansado pelo mundo. Ajoelhei-me na grama,
beijei a terra e, com os lábios trêmulos, exclamei:
– Pela terra sagrada em que me ajoelho, pelas sombras que vagam perto
de mim, pelo luto perpétuo e imenso que sinto, juro, e por você, ó Noite, e
os espíritos que lhe presidem: irei perseguir o dæmon que causou esse
infortúnio até que um de nós pereça em conflito mortal. Para esse fim,
preservarei minha vida; para executar essa cara vingança, contemplarei
novamente o sol e pisarei na pastagem verde da terra, que de outro modo
desapareceria dos meus olhos para sempre. E eu os chamo, espíritos dos
mortos, e a vocês, ministros errantes da vingança, para me ajudar e
conduzir o meu trabalho. Que o monstro amaldiçoado e infernal sorva
profundamente da agonia e sinta o desespero que me atormenta.
Eu começara minha adulação com tamanhos solenidade e espanto que
quase fui assegurado de que as sombras dos meus amigos assassinados
podiam ouvir e aprovar minha devoção. Mas a fúria me possuía quando
concluí, e a raiva sufocou minha expressão.
Fui respondido em meio à quietude da noite por uma risada alta e
diabólica. Ela soou aos meus ouvidos de modo longo e pesado; as
montanhas a ecoaram, e senti como se todo o inferno me cercasse de
zombaria e risadas. Naquele momento eu deveria ter sido tomado pelo
frenesi e destruído minha existência desgraçada, mas minha promessa fora
ouvida e eu estava destinado à vingança. O riso morreu quando uma voz
conhecida e abominável, aparentemente perto do meu ouvido, dirigiu-se a
mim em um sussurro audível:
– Estou satisfeito, desventurado maldito! Você decidiu viver, e estou
satisfeito.
Corri para o ponto de origem do som, mas o diabo escapou do meu
alcance. De repente, o amplo círculo da lua surgiu e iluminou sua forma
horrenda e distorcida enquanto ele fugia em meio a uma velocidade
mortal.
Eu o persegui, e por muitos meses essa tem sido minha tarefa. Guiado
por uma pequena pista, segui pelos meandros do Ródano, mas em vão.
Cheguei ao Mediterrâneo e, por um estranho acaso, vislumbrei o demônio
caminhar à noite e se esconder em uma embarcação com destino ao mar
Negro. Comprei uma passagem no mesmo navio, contudo ele conseguiu
escapar de alguma maneira.
Entre as terras selvagens da Tartária e da Rússia, embora ele ainda me
escapasse, nunca perdi sua trilha. Às vezes, os camponeses, assustados
com a horrível aparição, informavam-me acerca de seu caminho; outras
vezes ele próprio, que temia minha aflição e morte caso perdesse seu
rastro, deixava uma marca a fim de me guiar. A neve descia sobre minha
cabeça e eu enxergava suas pegadas enormes na planície branca. Para
você, que mal começou a vida, a quem a inquietação é algo novo e a
agonia é desconhecida, como pode entender o que senti e ainda sinto? O
frio, a fome e o cansaço eram as menores dores que eu estava destinado a
suportar; fui amaldiçoado por um demônio e carreguei comigo o meu
próprio inferno. Ainda assim, um espírito do bem seguiu e dirigiu meus
passos. Quando mais precisei, ele me livrou de dificuldades aparentemente
intransponíveis. Às vezes, quando a natureza, vencida pela fome, afundava
sob a exaustão, uma refeição era preparada para mim no deserto, que me
restaurava e animava. O alimento era, na verdade, grosseiro, como aquele
que os camponeses do país comiam, mas não duvido que tenha sido
colocado pelos espíritos que eu invocara para me ajudar. Muitas vezes,
quando tudo estava seco, sem nuvens e eu desidratado pela sede, uma leve
nuvem cobria o céu e derramava as poucas gotas que me reviviam para,
então, desaparecer.
Eu seguia, quando possível, o curso dos rios. Entretanto, em geral o
dæmon os evitava, pois era onde a população do país mais se reunia. Em
outros lugares, os seres humanos raramente eram vistos; e eu em geral
subsistia com animais selvagens que cruzavam meu caminho. Eu trazia
dinheiro comigo e ganhava a amizade dos aldeões ao distribuí-lo, bem
como lhes dava parte da minha caça quando era agraciado com fogo e
utensílios para cozinhar.
Minha vida, como se seguiu, fora realmente odiosa, e era apenas durante
o sono que eu podia me regozijar. Oh, sono abençoado! Muitas vezes,
quando me sentia completamente atribulado, deitava-me para descansar ao
passo que meus sonhos me embalavam até o êxtase. Os espíritos que me
protegiam haviam proporcionado esses momentos, ou melhor, horas de
júbilo, a fim de que eu pudesse reter forças para completar minha
peregrinação. Privado desses momentos, eu teria afundado sob minhas
dificuldades. Durante o dia, era sustentado e inspirado pela esperança da
noite, pois durante o sono via meus amigos, minha esposa e meu país
amado. Encontrava também o semblante benevolente de meu pai, os tons
prateados da voz de minha Elizabeth e Clerval desfrutando de saúde e
juventude. Com frequência, quando cansado de uma marcha cansativa, eu
me convencia de que estava sonhando até a noite chegar, em que poderia
desfrutar da visão dos meus queridos amigos. Que carinho agonizante eu
sentia por eles! Como me apeguei às suas formas queridas, pois às vezes
eles assombravam até minhas horas de vigília e me convenciam de que
permaneciam vivos! Em tais momentos, a vingança que queimava em meu
coração se esvanecia, e eu continuava meu caminho rumo à destruição do
demônio como se fosse um dever ordenado pelos céus, mais como o
impulso mecânico de algum poder acerca do qual eu não tinha consciência
do que pelo desejo fervoroso da minha alma.
Não sei determinar quais eram os sentimentos daquele a quem
perseguia. Às vezes, de fato, ele deixava mensagens nas cascas das
árvores, ou na superfície da pedra, que me guiavam e instigavam minha
fúria. “Meu reinado ainda não acabou”, dizia uma de suas inscrições.
“Você vive e meu poder está completo. Siga-me. Busco o eterno gelo do
norte, onde sentirá a atribulação do frio e a geada, com relação aos quais
sou impassível. Perto desse lugar você encontrará, se não seguir muito
tarde, uma lebre morta. Coma e se revigore. Vamos, inimigo: ainda temos
que lutar por nossas vidas. Você deve subsistir a muitas e penosas horas
até que esse período chegue.”
Diabo zombeteiro! Novamente, juro vingança; novamente o condeno,
demônio miserável, à tortura e à morte. Nunca desistirei de minha busca
até que um de nós pereça, e então, com que êxtase me juntarei à minha
Elizabeth e aos meus amigos que partiram e, mesmo agora, preparam para
mim a recompensa pelo meu trabalho tedioso e peregrinação horrível!
Enquanto eu continuava minha jornada para o norte, a neve se tornava
mais espessa e o frio aumentava em um grau quase severo demais para
suportar. Os camponeses se trancavam em suas choupanas, e apenas os
mais resistentes se aventuravam a capturar os animais que a fome forçara
a sair de seus esconderijos à procura de presas. Os rios estavam cobertos
de gelo e nenhum peixe podia ser pescado; dessa maneira, fui privado do
meu principal artigo de consumo.
As minhas dificuldades aumentavam o triunfo do meu inimigo. Uma de
suas inscrições dizia: “Prepare-se! Seus esforços apenas começaram.
Enrole-se em peles e se abasteça com comida, pois em breve iniciaremos
uma jornada em que seus sofrimentos satisfarão meu ódio perpétuo.”
Minha coragem e perseverança foram revigoradas por tais palavras de
escárnio. Resolvido a não falhar em meu propósito e convocando o Céu
para me apoiar, continuei com fervor inabalável a travessia de desertos
imensos até que o oceano surgiu à distância e formou o limite máximo do
horizonte. Ah, que diferença dos mares azuis do sul! Coberto de gelo, só
podia ser distinguido da terra por sua insurgência e protuberâncias
distintas. Os gregos choraram de alegria ao contemplar o Mediterrâneo das
colinas asiáticas e saudaram com êxtase o término de seus esforços. Não
chorei, mas me ajoelhei e, com o coração pesado, agradeci ao espírito-guia
por me conduzir em segurança ao lugar onde eu esperava, apesar da
chacota do meu adversário, encontrá-lo e lutar contra ele.
Algumas semanas antes do período em questão, eu arranjara um trenó e
alguns cachorros e, assim, atravessava a neve com velocidade
inconcebível. Não sei se o demônio possuía as mesmas vantagens, no
entanto, descobri que, se antes perdia terreno diariamente na busca, agora
ganhava. Tanto que, quando avistei o oceano pela primeira vez, ele estava
com apenas um dia de vantagem. Esperava, portanto, interceptá-lo antes
que ele chegasse às margens. Com a coragem renovada, segui em frente e,
em dois dias, alcancei uma aldeia desventurada à beira-mar. Perguntei aos
habitantes sobre o demônio e obtive informações precisas: contaram que
um monstro gigantesco chegara na noite anterior, munido de um revólver
e muitas pistolas, e posto em fuga os habitantes apavorados de uma cabana
solitária em virtude de sua aparência terrível. Ele levara o estoque de
comida do inverno e, depositando-o em um trenó que confiscara com um
grande número de cães treinados, partiu na mesma noite, para a alegria dos
aldeões horrorizados. Ele seguiu sua jornada através do mar em uma
direção que não levava a terra alguma; conjeturaram que ele deveria ser
rapidamente liquidado pela quebra do gelo ou congelado pelas geadas
infinitas.
Ao ouvir essas informações, sofri um acesso temporário de desespero.
Ele havia me escapado. Eu precisava iniciar uma viagem destrutiva e
quase interminável pelas montanhas gélidas do oceano em meio a um frio
que poucos habitantes aguentariam por muito tempo, e que eu, natural de
um clima ameno e ensolarado, não esperava sobreviver. No entanto, ante a
ideia de que o demônio viveria e triunfaria, minha raiva e vingança
retornaram e, como uma maré poderosa, dominaram todos os outros
sentimentos. Depois de um leve descanso, durante o qual os espíritos dos
mortos pairavam ao redor e me instigavam à retaliação, preparei-me para
a jornada.
Troquei meu trenó por um mais adequado às adversidades do oceano
gelado e, após adquirir estoque abundante de provisões, parti da terra.
Não posso imaginar quantos dias se passaram desde então; só sei que
enfrentei tamanha adversidade que nada além do sentimento perpétuo da
retribuição justa, que queimava em meu coração, poderia ter me permitido
suportar. Montanhas de gelo imensas e acidentadas barravam minha
passagem e, muitas vezes, ouvi o trovão do mar, que ameaçava minha
destruição. Mas novamente a geada vinha e tornava seguro os caminhos do
mar.
Pela quantidade de provisão que consumi, suponho que tenha passado
três semanas na referida travessia. Sua prolongação contínua oprimia meu
coração, e muitas vezes enxugava lágrimas amargas de desânimo e pesar
dos meus olhos. De fato, o desespero quase garantira sua presa, e eu logo
teria sucumbido a esse infortúnio. Certa vez, depois de os pobres animais
que me transportavam terem, com incrível esforço, atingido o cume de
uma montanha de gelo íngreme – o que levou um deles à morte pela
exaustão –, vislumbrei a extensão diante de mim com angústia, mas de
repente meu olhar percebeu um pontinho escuro sobre a planície escura.
Esforcei-me em prol de descobrir de que poderia se tratar e soltei um grito
selvagem de êxtase ao distinguir um trenó e as proporções distorcidas de
uma forma bem conhecida. Ah, que onda ardente de esperança revisitou
meu coração! Lágrimas quentes encheram meus olhos, as quais
rapidamente enxuguei para que não interceptassem a visão que eu tinha do
dæmon. Ainda assim, minha visão foi obscurecida pelas gotas ardentes,
até que, dando vazão às emoções que me oprimiam, chorei em voz alta.
O momento, porém, não permitia demora. Desatrelei o cão morto, dei
aos demais uma porção abundante de comida e, depois de uma hora de
descanso absolutamente necessária e amargamente penosa para mim,
continuei meu caminho. O trenó continuava visível. Não o perdia de vista,
exceto nos momentos em que, por um curto período, uma pedra de gelo o
ocultava. De fato, eu ganhava proximidade com rapidez e, ao cabo de
quase dois dias de viagem, avistei meu inimigo a menos de um quilômetro
de distância, o que fez meu coração saltar do peito.
Mas então, quando parecia quase ao alcance do meu adversário, minhas
esperanças foram subitamente extintas e perdi seu rastro, como jamais
havia acontecido. Ouvi o barulho do mar sob o gelo. O ruído de seu
progresso, à medida que as águas rolavam e cresciam abaixo, tornou-se a
cada momento mais ameaçador e terrível. Prossegui, mas em vão. O vento
surgiu, o mar rugiu e, como no poderoso choque de um terremoto, ele se
partiu e estalou com um som tremendo e avassalador. A obra estava
consumada: em poucos minutos, um mar tumultuoso atingiu a mim e ao
meu inimigo, e fiquei à deriva em um pedaço de gelo que não parava de
diminuir, preparando-me para uma morte horrível.
Foram horas tenebrosas. Vários dos meus cães morreram, e eu mesmo
estava prestes a afundar sob o acúmulo de angústia quando enxerguei sua
embarcação ancorada, o que me ofereceu esperanças de socorro e vida. Eu
não fazia ideia de que havia navios se aventurando tão ao norte, e fiquei
espantado com a visão. Destruí sem demora parte do meu trenó em busca
de criar remos e, com fadiga infinita, movi minha balsa de gelo na direção
de sua embarcação. Minha intenção, caso você rumasse para o sul, era me
confiar de novo aos mares em vez de abandonar meu objetivo. Eu esperava
induzi-lo a me conceder um barco com o qual eu pudesse perseguir meu
rival. Mas sua direção era o norte. Você me levou a bordo quando meu
vigor estava esgotado, e em breve eu teria sucumbido em minhas
dificuldades multiplicadas a uma morte que ainda temo, pois minha tarefa
não está cumprida.
Ah! Poderá meu espírito orientador conduzir-me ao dæmon e permitir o
descanso que tanto almejo, ou devo morrer para que ele viva? Se isso
acontecer, jure para mim, Walton, que ele não irá escapar; que você o
procurará e satisfará minha vingança em sua morte. É ousadia pedir-lhe
que realize minha peregrinação e suporte as dificuldades pelas quais
passei? Claro que sim. Eu não seria tão egoísta. No entanto, se eu morrer e
ele aparecer, permita que os ministros da vingança o conduzam e jure que
ele não viverá – jure que ele não triunfará sobre minhas desgraças
acumuladas e sobreviverá para aumentar sua lista de crimes obscuros. Ele
é eloquente e persuasivo; suas palavras já tiveram poder sobre meu
coração, mas não confie nele. Sua alma é tão infernal quanto sua forma,
repleta de perfídia e malícia demoníaca. Não o ouça. Invoque os nomes de
William, Justine, Clerval, Elizabeth, meu pai e o miserável Victor, e enfie
sua espada no coração dele. Estarei por perto para guiar o aço.
WALTON, em continuação.

26 de agosto de 17—

Ao ler essa história estranha e fantástica, Margaret, não sente seu


sangue congelar de horror, como aconteceu comigo? Às vezes, apreendido
por uma agonia repentina, ele não conseguia continuar sua história; em
outros momentos, sua voz débil, mas ainda penetrante, pronunciava com
dificuldade as palavras repletas de angústia. Seus olhos belos e adoráveis
estavam agora iluminados com indignação, subjugados à tristeza e às
infinitas tribulações. Às vezes, ele dominava seu semblante e sua voz,
relatando os incidentes mais horríveis com uma voz tranquila que
suprimia toda marca de agitação, então, como vulcão em erupção, seu
rosto mudava subitamente para uma expressão da mais selvagem raiva
enquanto gritava imprecações contra seu perseguidor.
Sua história é coesa e contada sob a aparência da mais pura verdade.
Contudo, confesso a você que as cartas de Félix e Safie, as quais me
mostrou, e a aparição do monstro à distância trouxeram-me uma
convicção maior acerca da verdade do que suas afirmações, por mais
sinceras e coesas que fossem. Um monstro assim realmente existia! Não
posso duvidar disso; no entanto, estou inundado de espanto e admiração.
Às vezes, tentava obter de Frankenstein os detalhes da formação de sua
criatura, mas nesse ponto ele era impenetrável:
“Você está louco, meu amigo?”, dizia ele. “Aonde pode levar sua
curiosidade sem sentido? Você também criaria para si e para o mundo um
inimigo demoníaco? Esqueça! Aprenda com minhas aflições e não procure
aumentar a sua.”
Frankenstein descobriu que fiz anotações sobre sua história: pediu para
vê-las e, em seguida, ele próprio as corrigiu e aumentou em muitos
pontos; conferindo sobretudo detalhes às conversas que mantinha com seu
inimigo. “Já que você registrou minha história”, disse ele, “não gostaria
que uma versão mutilada ficasse para a posteridade.”
Assim, uma semana se passou, enquanto eu ouvia a mais estranha
história jamais concebida pela imaginação. Meus pensamentos e todos os
sentimentos da minha alma foram embebedados pelo interesse dedicado a
meu convidado, interesse esse incitado por sua história e maneiras gentis.
Desejo acalmá-lo; todavia, como posso aconselhar alguém a viver, uma
pessoa tão infinitamente infeliz e destituído de toda esperança de consolo?
Não é possível! Ele só reencontrará a alegria quando seu espírito
despedaçado estiver na paz da morte. Ainda assim, ele desfruta de um
consolo que é fruto da solidão e do delírio; ele acredita que, quando
sonha com seus amigos, recebendo consolo por suas adversidades ou
sendo instigado à vingança, aquelas figuras não são criações de sua
fantasia, mas os próprios seres que o visitam das regiões de um mundo
remoto. Essa fé confere solenidade a seus devaneios, tornando-os quase
tão imponentes e interessantes quanto a verdade.
Nossas conversas nem sempre se limitam à sua própria história e
infortúnios. Ele exibe conhecimento ilimitado de todos os pontos da
literatura geral, e uma apreensão rápida e penetrante. Sua eloquência é
tocante. Quando ele relata um incidente comovente ou discorre sobre as
paixões da piedade ou do amor, é impossível ouvi-lo sem derramar
lágrimas. Que criatura gloriosa ele deve ter sido nos dias de
prosperidade, se é assim nobre e divino na ruína! Ele parece reconhecer
seu próprio valor e a grandeza de sua queda.
“Quando eu era mais jovem”, disse ele, “acreditava-me destinado a um
grande empreendimento. Apesar de minha natureza sentimental, possuía
uma frieza de julgamento que me proporcionava realizações ilustres. Esse
sentimento do valor da minha natureza me apoiou quando a outros teria
sido oprimido, pois eu considerava criminoso desperdiçar em mágoa os
talentos que poderiam ser úteis para meus semelhantes. Quando refleti
sobre o trabalho concluído, não menos do que a criação de um animal
sensível e racional, não consegui me classificar junto ao rebanho de
inventores comuns. Mas esse pensamento, que me apoiou no início da
carreira, agora servia apenas para me mergulhar na poeira. Todas as
minhas conjecturas e esperanças não significavam nada e, como o arcanjo
que aspira a onipotência, estou acorrentado a um inferno permanente.
Minha imaginação era vívida e meus poderes de análise e aplicação eram
intensos; através da união dessas qualidades concebi a ideia e executei a
criação de um homem. Mesmo agora, não consigo recordar, sem paixão,
dos meus devaneios enquanto o trabalho estava incompleto. Eu pisava nos
céus em meus pensamentos, ora exultando meus poderes, ora ardendo com
a ideia de seus efeitos. Desde a minha infância, fui imbuído de grandes
esperanças e de ambição elevada; mas como afundei desde então! Ah, meu
amigo, se soubesse como eu era antes, não me reconheceria nesse estado
de degradação. O desânimo raramente visitava meu coração, um destino
elevado parecia me aguardar até que caí para nunca, nunca mais me
levantar.”
Como posso perder esse ser admirável? Eu ansiava por um amigo,
procurava alguém que pudesse simpatizar comigo e me amar. Eis que
nesses mares desertos encontrei um; todavia, temo que o ganhei apenas
para conhecer seu valor e perdê-lo. Eu poderia reconciliá-lo com a vida,
mas ele repugna a ideia.
“Agradeço a você, Walton”, disse ele, “por suas boas intenções em
relação a um desgraçado infeliz, no entanto quando você fala de novos
laços e novos afetos, acha que alguém pode substituir aqueles que se
foram? Pode alguém ser como Clerval, ou existir outra mulher como
Elizabeth? Mesmo que seus afetos não tenham sido fortemente movidos
por qualquer excelência superior, os companheiros de nossa infância
sempre possuem certo poder sobre nossas mentes, que dificilmente um
amigo tardio pode igualar. Eles conhecem nossas disposições infantis que,
por mais modificadas que sejam mais tarde, nunca são erradicadas, bem
como podem julgar nossas atitudes com conclusões mais certeiras quanto
à integridade de motivos. Uma irmã ou um irmão nunca podem, à exceção
de sinais prévios, atribuir um ao outro ações fraudulentas, ao passo que
um amigo, por mais forte que seja a amizade, pode ser contemplado com a
suspeita. Mas eu desfrutei de amigos, queridos não apenas por hábitos e
associações, mas por seus próprios méritos. Onde quer que eu esteja, a
voz suave de minha Elizabeth e as palavras de Clerval serão sempre
sussurradas em meu ouvido. Eles estão mortos, e apenas um sentimento em
tal solidão pode me convencer a preservar minha vida. Se eu estivesse
envolvido em qualquer empreendimento ou projeto elevado, repleto de
grande utilidade para meus semelhantes, eu poderia viver para cumpri-lo.
Mas esse não é o meu destino; devo perseguir e destruir o ser a quem dei
existência. Só assim meu dever na Terra será cumprido e eu poderei
morrer.”

2 de setembro de 17—
Minha amada irmã,
Escrevo para você cercado de perigos e ignorante quanto à
possibilidade de ver novamente a querida Inglaterra e os amigos mais
queridos que a habitam. Estou cercado por montanhas de gelo que não
admitem escapatória e ameaçam a todo momento esmagar meu navio. Os
bravos companheiros, a quem persuadi a se tornarem meus tripulantes,
vêm a mim em busca de ajuda, mas não há nada que eu possa fazer. Há
algo terrivelmente apavorante em nossa situação, mas minha coragem e
esperança não me abandonam. No entanto, é terrível refletir que a vida de
todos esses homens esteja em perigo por minha causa. Se perdermo-nos,
meus planos loucos serão a causa.
E qual será o seu estado de espírito, Margaret? Você não ouvirá falar
da minha destruição e aguardará ansiosamente o meu retorno. Anos se
passarão e você terá crises de desespero, ainda torturada pela esperança.
Ah, minha amada irmã, a perspectiva de seu coração despedaçado é mais
terrível para mim do que a própria morte. Mas você tem um marido e
filhos adoráveis, você pode ser feliz. Que os Céus te abençoem e me
ouçam!
Meu infeliz hóspede me olha com a mais terna compaixão. Ele se
esforça para me encher de esperança, e fala como se a vida fosse um bem
que ele valorizasse. Ele me lembra das tantas vezes que as mesmas
dificuldades acometeram outros navegadores que passaram por este mar
e, a despeito do próprio desânimo, tenta me animar. Até mesmo os
marinheiros sentem o poder de sua eloquência: quando ele fala, o
desespero deles some. Ele desperta as energias da tripulação que,
enquanto ouve sua voz, acredita que essas vastas montanhas de gelo sejam
apenas pequeninos montes de toupeira que desaparecerão diante das
resoluções do homem. Tais sentimentos, no entanto, são transitórios; cada
dia de expectativa os enche de medo, e quase temo que um motim se
origine desse desespero.

5 de setembro de 17—

Acabo de presenciar uma cena inusitada. Embora seja altamente


provável que esses documentos nunca cheguem até você, ainda assim não
posso deixar de registrá-la.
Ainda estamos cercados por montanhas de gelo, em perigo iminente de
esmagamento. O frio é excessivo e muitos de meus desventurados
companheiros já encontraram sepultura em meio a essa cena de
desolação. Frankenstein diariamente regrediu em saúde; um fogo febril
ainda brilha em seus olhos, mas ele está exausto e, ao menor esforço,
rapidamente se afunda em sua aparente falta de vida.
Mencionei em minha última carta o medo que nutria de um motim. Hoje
de manhã, enquanto eu observava o semblante pálido de meu amigo – seus
olhos semicerrados e os membros pendendo apáticos –, fui surpreendido
por meia dúzia de marinheiros que exigiram falar comigo. Eles entraram
na cabine e o líder se dirigiu a mim, argumentando que aquele grupo
havia sido escolhido pelos outros marinheiros para me fazer uma
requisição que, em justiça, eu não podia recusar. Estávamos imersos no
gelo e provavelmente nunca iríamos escapar, mas eles temiam que o gelo
ainda pudesse se dissipar e abrir uma passagem que me permitiria dar
continuidade à jornada, levando-os a novos perigos depois da superação
daquele. Eles insistiam, portanto, que eu fizesse uma promessa solene de
que, se a embarcação fosse libertada, eu imediatamente direcionaria meu
curso para o sul.
Tal pronunciamento me incomodou. Eu não havia me desesperado,
tampouco concebido a ideia de voltar, se libertado. No entanto, como eu
poderia, em justiça ou mesmo em possibilidade, recusar essa demanda?
Hesitei antes de responder, ao que Frankenstein, que inicialmente se
calara e parecia não ter força suficiente sequer para escutar, despertou e,
com seus olhos cintilantes e bochechas coradas com o vigor momentâneo,
disse aos homens:
“O que vocês querem dizer? O que exigem do seu capitão? Você são tão
facilmente desviáveis de seu desígnio? Não chamaram isso de uma
expedição gloriosa? E por que ela é gloriosa? Não porque o caminho é
suave e tranquilo como um mar do sul, mas porque está cheia de perigos e
terror. A cada novo incidente, a força moral de vocês deveria ser
despertada, e a coragem, exibida. O perigo e a morte nos cercam, e são
eles que devemos enfrentar e vencer. Isso torna um empreendimento
honroso. Mais tarde, vocês serão saudados como benfeitores da espécie,
seus nomes serão adorados como pertencentes a homens corajosos que
encontraram a morte pela honra e o benefício da humanidade. E agora, eis
que, com a primeira imaginação do perigo, ou, se vocês preferirem, a
primeira e terrível prova de sua coragem, afastam-se e se contentam em
ser vistos como homens que não tiveram força suficiente para suportar o
frio e o perigo, como pobres almas friorentas que voltaram para o calor
de suas lareiras. Ora, vocês não chegaram tão longe para arrastar seu
capitão para a vergonha de uma derrota, provando-se covardes. Sejam
homens, ou mais do que homens. Sejam firmes em seus propósitos, firmes
como uma rocha. Esse gelo não é feito do mesmo material que seus
corações; ele é mutável e não pode resistir a vocês, se assim o
determinarem. Não voltem para suas famílias com o estigma da desgraça
marcado em suas testas. Voltem como heróis que lutaram e conquistaram,
sem saber o que é dar as costas ao inimigo.”
Ele falou com uma voz tão modulada à multiplicidade de sentimentos
expressos em seu discurso e com um olhar tão pleno de desígnio e
heroísmo que você pode imaginar como ele comoveu os homens. Eles se
entreolharam e foram incapazes de responder. Pedi-lhes que se retirassem
e considerassem o que fora dito, afirmei que não os levaria mais para o
norte se assim desejassem, mas que esperaria que, com reflexão, sua
coragem retornasse.
Eles se retiraram e eu me virei para meu amigo, mas ele estava
afundado na languidez, já quase privado de vida.
Como isso tudo terminará, eu não sei. Mas preferia morrer a voltar
vergonhosamente com meu objetivo incompleto. No entanto, temo que tal
seja o meu destino; sem o apoio de ideias de glória e honra, os homens
nunca poderão continuar de bom grado a suportar suas dificuldades
atuais.

7 de setembro de 17—

A sorte está lançada. Consenti em retornar, se não formos destruídos.


Minhas esperanças são assim atingidas pela covardia e pela indecisão.
Volto ignorante e decepcionado. Suportar esta injustiça com paciência
requer mais sabedoria do que tenho.
12 de setembro de 17—

Está tudo acabado. Estou voltando à Inglaterra. Perdi minhas


esperanças de utilidade e glória; perdi meu amigo. Mas tentarei detalhar
essas amargas circunstâncias para você, querida irmã. E, enquanto flutuo
em direção à Inglaterra e em sua direção, não me desanimarei.
No dia 9 de setembro, o gelo começou a se mover e rugidos, tais como
trovões, foram ouvidos à distância, enquanto as ilhas se dividiam e
rachavam em todas as direções. Estávamos no perigo mais iminente, mas,
como só podíamos permanecer passivos, minha atenção se concentrou no
meu infeliz hóspede, cuja doença piorou de tal forma que o confinou à
cama. O gelo se rompeu atrás de nós e foi empurrado com força em
direção ao norte; uma brisa brotou do oeste e, no dia 11, a passagem para
o sul tornou-se perfeitamente livre. Quando os marinheiros perceberam
que o retorno ao país de origem estava aparentemente garantido,
irromperam em gritos de alegria altos e prolongados. Frankenstein, que
estava cochilando, acordou e perguntou a causa do tumulto. “Eles
gritam”, eu disse, “porque em breve retornarão à Inglaterra.”
“Você realmente voltará?”
“Sim. Não posso suportar as demandas deles. Não posso levá-los a
contragosto ao perigo. Devo retornar.”
“Faça-o, se assim quiser, mas não irei. Você pode desistir de seu
propósito, mas o meu foi designado pelo Céu, e não ouso. Estou fraco, mas
certamente os espíritos que me ajudam na minha vingança me dotarão de
força suficiente.” Com essas palavras, Frankenstein tentou saltar da
cama, mas o esforço foi demasiado e ele desmaiou.
Muito tempo se passou até que ele acordasse. Por vezes, pensei que sua
vida já estivesse completamente extinta. Por fim, Frankenstein abriu os
olhos, respirou com dificuldade e não conseguiu falar. O médico de bordo
deu-lhe um remédio e ordenou que não o perturbássemos. Nesse ínterim,
ele me disse que sem dúvida meu amigo não tinha muitas horas de vida.
Sua sentença fora pronunciada; eu só podia sofrer e ser paciente.
Sentei-me na cama dele, observando-o; seus olhos estavam fechados e
pensei que ele dormia, contudo, naquele momento, meu amigo me chamou
com uma voz fraca e pediu que eu chegasse mais perto. E disse: “Ai! A
força que me apoiava se foi. Sinto que morrerei em breve, e ele, meu
inimigo e perseguidor, pode ainda estar vivo. Walton, não pense que, nos
últimos momentos da minha existência, sinto o ódio ardente e o desejo
forte de vingança que uma vez expressei; porém, sinto-me justificado em
desejar a morte do meu adversário. Durante os últimos dias, ocupei-me em
examinar minha conduta do passado, e não a considero culpável. Em um
ataque de loucura entusiástica, criei uma criatura racional e cabia-me,
tanto quanto possível, assegurar sua felicidade e bem-estar. Era o meu
dever, mas havia outro ainda mais primordial. Tratava-se de um dever
para com os seres de minha própria espécie, cujas reivindicações eram
maiores porque incluíam proporção maior de alegria ou infortúnios.
Instado por essa visão, recusei-me, com razão, a criar uma companheira
para a primeira criatura. O demônio demonstrou malignidade e egoísmo
incomparáveis: ele destruiu meus amigos e condenou à danação seres que
possuíam sensações delicadas, felicidade e sabedoria. Não sei até onde ele
pode chegar com tal sede de vingança. Miserável como é, deve morrer
para que não cause aflições a mais ninguém. Sua aniquilação era encargo
meu, mas falhei. Quando tomado por motivos egoístas e cruéis, pedi-lhe
que empreendesse meu trabalho inacabado; renovo esse pedido agora,
induzido apenas pela razão e pela virtude.
“No entanto, não posso pedir que você renuncie ao seu país e amigos
para cumprir essa tarefa. E, agora que está voltando à Inglaterra, terá
poucas chances de se encontrar com ele. Mas a consideração sobre o que
disse e seus deveres diante do que considera justo ficam ao seu critério.
Meu julgamento e ideias já estão perturbados pela aproximação da morte.
Não te peço que faça o que eu acho certo, pois ainda posso ser enganado
pela paixão.
“É perturbador pensar que ele pode viver para ser instrumento de
malícia; a despeito disso, a hora na qual espero encontrar libertação é a
única felicidade de que desfruto em anos. As formas dos amados mortos
voam diante de mim. Adeus, Walton! Busque o júbilo na tranquilidade e
evite a ambição, mesmo que seja apenas a aparente inocência de querer se
distinguir na ciência e nas descobertas. Mas por que digo isso? Eu mesmo
fui atingido por tais esperanças, e há quem possa ser bem-sucedido.”
Sua voz ficou mais fraca conforme ele falava; e finalmente, exausto por
seu esforço, afundou no silêncio. Cerca de meia hora depois, tentou falar
outra vez, mas não conseguiu. Ele apertou minha mão com debilidade, e
seus olhos se fecharam para sempre enquanto a irradiação de um sorriso
gentil passava por seus lábios.
Margaret, que comentário posso fazer sobre a extinção prematura desse
espírito glorioso? O que posso dizer que lhe permitirá entender a
profundidade de minha tristeza? Tudo o que eu venha a expressar será
inadequado e fraco. Minhas lágrimas fluem e minha mente é ofuscada por
uma nuvem de decepção. Mas viajo para a Inglaterra e aí poderei
encontrar consolo.
Nesse momento, sou interrompido. O que esses sons pressagiam? É
meia-noite; a brisa sopra razoavelmente e o relógio no convés mal se
mexe. De novo, ouço um som de voz humana, mas rouca; vem da cabine
onde ainda estão os restos mortais de Frankenstein. Devo me levantar e
verificar. Boa noite, minha irmã.
Meu Deus! Que cena acabou de ocorrer! Ainda estou tonto ante a
lembrança. Mal sei se terei o poder de detalhar; no entanto, a história que
registrei seria incompleta sem essa catástrofe final e espantosa.
Entrei na cabine onde jaziam os restos de meu amigo atribulado e
admirável. Sobre ele pendia uma forma que não consigo encontrar
palavras para descrever. Era gigantesco em estatura, mas rude e
distorcido nas proporções. Conforme pairava sobre o caixão, seu rosto se
escondia por trás dos longos cabelos desgrenhados; sua grande mão,
porém, estava à vista e estendida, em cor e textura semelhantes à de uma
múmia.
Quando ele percebeu o som da minha aproximação, parou de proferir
exclamações de pesar e horror e saltou em direção à janela. Nunca
contemplei uma visão tão horrível quanto a de seu rosto horrendo e
repugnante. Fechei os olhos involuntariamente e me lembrei quais eram
meus deveres em relação a esse destruidor. Então, pedi que ficasse.
Ele parou, olhando para mim com espanto; e, voltando-se novamente
para a forma inanimada de seu criador, pareceu esquecer minha presença.
Todos os seus traços e gestos pareciam instigados pela mais selvagem
fúria de uma paixão incontrolável.
“Essa também é minha vítima!”, ele exclamou. “Com seu assassinato,
meus crimes são consumados; e a jornada miserável de minha vida se liga
ao seu fim! Ah, Frankenstein! Ser generoso e devotado! De que serve
agora pedir que me perdoe? Eu o destruí irremediavelmente quando
acabei com tudo aquilo por que você nutria afeto. Ai! Agora você está frio
e não pode me responder.”
Sua voz parecia sufocada. Meus primeiros impulsos, que me sugeriam o
dever de obedecer ao pedido moribundo de meu amigo e destruir seu
nêmesis, estavam agora suspensos por uma mistura de curiosidade e
compaixão. Eu me aproximei desse ser medonho; não ousei, porém, erguer
os olhos para seu rosto, pois havia algo assustador e sobrenatural em sua
feiura. Tentei falar, mas as palavras morreram nos meus lábios. O monstro
continuou a expressar autocensuras selvagens e incoerentes. Por fim,
aproveitando uma pausa em seu acesso de paixão, decidi dirigir-me a ele.
“Seu arrependimento”, eu disse, “agora é supérfluo. Se você tivesse
ouvido a voz da consciência e prestado atenção às picadas do remorso
antes de insistir em levar sua vingança diabólica a esse extremo,
Frankenstein ainda estaria vivo.”
“Por acaso”, disse o dæmon, “você acha que eu estava imune à agonia
e ao remorso? Ele não sofreu na consumação da morte. Ah, não! Não
sentiu sequer uma pequena fração da angústia que senti durante o
demorado processo de execução. Um egoísmo assustador me impelia,
enquanto meu coração era envenenado pelo remorso. Você acha que os
gemidos de Clerval foram música para meus ouvidos? Meu coração foi
criado para ser suscetível ao amor e simpatia; quando forçado pela
miséria ao vício e ao ódio, ele não suportou a violência da mudança sem
tortura, algo que você é incapaz de imaginar.
“Após o assassinato de Clerval, voltei para a Suíça com o coração
partido. Senti pena de Frankenstein e horror de mim mesmo. Mas então
descobri que ele, o autor de minha existência e de meus indizíveis
tormentos, ousara ter esperança de felicidade. Descobri que, enquanto eu
acumulava aflições e desespero, ele buscava seu próprio prazer em
paixões e sentimentos dos quais eu estaria permanentemente privado.
Assim, a inveja impotente e a indignação amarga me encheram de uma
sede insaciável por vingança. Lembrei de minha ameaça e resolvi que ela
deveria ser cumprida. Eu sabia que estava me preparando para uma
tortura mortal; porém, eu era o escravo, não o mestre, de um impulso que
detestava e, ao mesmo tempo, não podia desobedecer. Quando ela morreu,
não fiquei infeliz. Eu havia rejeitado todo sentimento e subjugado toda
angústia. A partir de então, o mal se tornou meu bem. Não tive escolha a
não ser adaptar minha natureza a algo que eu havia voluntariamente
escolhido. A conclusão do meu projeto demoníaco tornou-se uma paixão
insaciável. E agora tudo acabou; aqui está minha última vítima!”
A princípio, fiquei comovido com o relato de sua desgraça; no entanto,
quando lembrei do que Frankenstein dissera sobre seus poderes de
eloquência e persuasão e voltei meus olhos para a forma sem vida de meu
amigo, a indignação foi reacendida dentro de mim. “Miserável!”, eu
disse, “é bom que esteja aqui para lamentar a desolação que causou. Você
jogou uma tocha em uma casa e agora que ela está consumida, você se
senta entre as ruínas e lamenta a queda. Demônio hipócrita! Se aquele a
quem você lamenta a morte ainda vivesse, continuaria a ser a presa de sua
vingança amaldiçoada. Não é pena o que você sente; você apenas lamenta
o fato de que a vítima da sua malignidade foi retirada do seu poder.”
“Não é isso!”, interrompeu o ser. “Essa é apenas a impressão que
minhas ações transmitem. Mas não procuro sentimento de
companheirismo na minha miséria. Não posso encontrar qualquer
simpatia. Quando a busquei pela primeira vez, foi pelo amor à virtude e
aos sentimentos de felicidade e carinho com os quais o meu ser
transbordava. Mas agora, tal virtude se tornou para mim uma sombra, e
essa felicidade e afeto se transformaram em desespero amargo e
repugnante. Por que, então, deveria procurar simpatia? Estou satisfeito
em sofrer sozinho. Quando eu morrer, sei que a aversão e a ignomínia irão
pesar sobre a minha memória. No passado, nutri sonhos de virtude, fama e
deleite. Certa vez, criei a ilusão de que viveria com seres que, perdoando
minha forma exterior, me amariam pelas excelentes qualidades que eu era
capaz de revelar. Eu me alimentara de pensamentos elevados de honra e
devoção. Mas agora o crime degradara a um nível abaixo do animal.
Nenhuma culpa, travessura, maldade ou desgraça pode ser comparável às
minhas. Quando penso no catálogo pavoroso dos meus pecados, não
consigo acreditar que sou a mesma criatura cujos pensamentos já foram
cheios de visões sublimes e transcendentes de beleza e bondade. Mas é
assim mesmo. O anjo caído se torna um diabo maligno. Porém, mesmo
aquele inimigo de Deus e do homem tinha amigos e associados em sua
desolação. Eu estou sozinho.
“Você, que chama Frankenstein de seu amigo, parece ter conhecimento
dos meus crimes e de seus infortúnios. Mas, nos detalhes que ele lhe deu,
não relatou as horas e os meses de tormenta que eu sofri, perdendo tempo
com paixões impotentes. Embora destruísse suas esperanças, não
satisfazia meus próprios desejos. Eu ainda almejava com fervor o amor e o
companheirismo, e ainda era desprezado. Não havia injustiça nisso? Devo
ser considerado o único criminoso quando toda a espécie humana pecou
contra mim? Por que você não odeia Félix, que expulsou o amigo de sua
casa com insolência? Por que você não execra o homem rústico que tentou
destruir o salvador de sua filha? Não, esses são seres virtuosos e
imaculados! Eu, junto aos miseráveis e abandonados, sou um aborto cujo
destino é ser desprezado, chutado e pisoteado. Mesmo agora meu sangue
ferve com a lembrança das injustiças.
“Mas é verdade que sou um miserável. Matei os amados e os indefesos,
agarrei até a morte a garganta de inocentes, que nunca machucaram a
mim ou qualquer outra coisa viva. Conduzi meu criador, o espécime seleto
de tudo o que é digno de afeto e admiração entre os homens, à miséria;
persegui-o até sua ruína irremediável. Ali está ele, exibindo a palidez e o
frio da morte. Você me odeia, contudo sua aversão não pode ser igual à
que sinto por mim mesmo. Observo as mãos que executaram tais ações e
penso no coração que as concebeu. Anseio, portanto, pelo momento em
que essas mãos encontrarão meus olhos e eu não seja mais assombrado
pelos referidos pensamentos.
“Não tema que eu seja o instrumento de maldades futuras. Meu
trabalho está quase completo. Nem a sua morte ou a de qualquer outro
homem é mais necessária. Só resta consumar meu destino. Não pense que
demorarei a realizar esse sacrifício, deixarei seu barco na balsa de gelo
que me trouxe até aqui e procurarei a extremidade mais setentrional do
globo. Criarei minha própria pira funerária e farei cinzas dessa estrutura
desventurada para que meus restos mortais não inspirem a imaginação a
qualquer infeliz curioso e imoral, que criaria outro indivíduo como eu.
Devo morrer. Assim, não sentirei mais a agonia que me consome, ou serei
presa de sentimentos de insatisfação. Quem me deu a vida está morto, e
quando eu não existir mais, a própria lembrança de nós dois desaparecerá
sem demora. Não mais verei o sol ou as estrelas nem sentirei o vento
resvalar minhas bochechas. Luz, sentimento e sentido se extinguirão, e
nessa condição devo encontrar a felicidade. Anos atrás, quando as
imagens que este mundo oferece se abriram a mim pela primeira vez, senti
o calor do verão e ouvi o farfalhar das folhas e o barulho dos pássaros.
Isso era tudo para mim. Eu deveria chorar pela morte, mas agora ela é
meu único consolo. Poluído por crimes e dilacerado pelo mais amargo
remorso, onde posso encontrar descanso, exceto nela?
“Adeus! Deixo você, o último de sua espécie humana a quem esses olhos
verão. Adeus, Frankenstein! Se você ainda estivesse vivo e acalentasse um
desejo de vingança contra mim, ele seria melhor saciado em minha vida do
que na minha destruição. Porém, você buscou a minha extinção para que
eu não causasse mais desastres; e se, ainda assim, de algum modo
desconhecido para mim, você não deixou de pensar e sentir, não desejaria
para mim sofrimento maior do que aquele que sinto. Por mais desgraçado
que tenha sido, minha agonia ainda era superior à sua, pois a picada
amarga do remorso não deixará de irritar minhas feridas até que a morte
as feche para sempre.”
“Mas logo!”, ele exclamou com um triste e solene entusiasmo,
“morrerei, e o que agora sinto não será mais sentido. Logo esses pesares
ardentes estarão extintos. Acenderei minha pira funerária em triunfo e
exultarei na agonia das chamas torturantes. A luz dessa conflagração
desaparecerá e minhas cinzas serão varridas até o mar pelos ventos. Meu
espírito, enfim, dormirá em paz. Adeus.”
Ele saltou da janela da cabine e se dirigiu até a balsa de gelo que
estava perto do navio. Logo foi levado pelas ondas, perdendo-se na
escuridão e na distância.

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