eBook o Apagao Das Liberdades

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Índice

INTRODUÇÃO

O APAGÃO DA LIBERDADE DE
EXPRESSÃO NO BRASIL

A VERDADE SOBRE A LAVA JATO

A INSEGURANÇA JURÍDICA E O
DESCRÉDITO DO SUPREMO

O “DIREITO PROCESSUAL
PENAL CRIATIVO” DO STF

UMA VINGANÇA PARA QUE TODOS


TEMAM OS PODEROSOS

SUPREMA CAMUFLAGEM

ALEXANDRE DE MORAES E O
JUDICIÁRIO “EDITOR” NAS ELEIÇÕES

O STF E A VINGANÇA DOS


CORRUPTOS

O STF REESCREVE O PASSADO, LIVRA


LULA E PREJUDICA O COMBATE À
CORRUPÇÃO
Introdução

O
editorial é a opinião de um jornal e sua
publicação é uma tradição de longa
data que a Gazeta do Povo fez questão
de manter diariamente mesmo após
concentrar sua operação no meio digital.

Todos dias, um assunto de grande


importância e repercussão é escolhido para
uma análise minuciosa, ponderada pelas
convicções que movem o trabalho da Gazeta.
O resultado dessa análise é uma opinião
que tem como objetivo enriquecer o debate
público na busca pelo bem comum.

O editorial também funciona como um


registro histórico. Uma narrativa sobre
acontecimentos, opiniões e opções que
estão diante da sociedade em determinado
momento.

Nos últimos anos, o Judiciário ganhou


bastante terreno como “assunto do dia”. É
um traço curioso da realidade brasileira e que
contrasta com o que ocorre em democracias
maduras. Decisões judiciais inesperadas,
revisões incessantes da jurisprudência,
politização das cortes e o ativismo judicial
são componentes que explicam a presença
constante do Judiciário em nossos editoriais.
O Apagão das Liberdades 3
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o índice
Está evidente para a Gazeta do Povo
que a sociedade precisa debater a fundo
essas questões para que haja respeito
à Constituição, estabilidade jurídica e
harmonia entre poderes.
Ao elaborarmos uma iniciativa que tem
como objetivo destacar a importância dessa
discussão, entendemos que alguns editoriais
publicados no último ano seriam uma fonte
importante de reflexão para nossos leitores.
Nosso objetivo não é apenas que a opinião do
jornal seja melhor conhecida, mas também
estimular que o debate público tenha
algumas características que procuramos
manter em nosso trabalho: equilíbrio,
visão histórica e a busca ininterrupta para
formarmos uma sociedade melhor.

Selecionamos uma pequena amostra de


textos. Alguns se complementam pelo andar
da história. Ao lamentarmos a decisão do
ministro do STF Edson Fachin que mudou
o foro onde tramitavam as ações contra o
ex-presidente Lula, acreditávamos que o
tribunal ainda poderia seguir a lógica de
dar como sem objeto a ação que pedia a
suspeição do ex-juiz Sergio Moro. Poucos
dias depois, infelizmente, o STF decidiu
andar com uma injustiça que jogou fora
anos de trabalho da Operação Lava Jato -
O Apagão das Liberdades 4
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que analisamos a fundo em outro editorial
selecionado aqui.

O tema da liberdade de expressão também


está presente em nossa observação do
trabalho do Judiciário. No ano passado,
publicamos um extenso texto sobre o que
acreditamos ser um “apagão” da liberdade
de expressão no Brasil. Um movimento que
é composto por diversas partes, incluindo
ações indevidas abertas pelo próprio STF.

Esse apagão é um dos sinais de alerta que


temos sobre as eleições deste ano. Ministros
do STF, como observamos em um dos
editoriais selecionados, não têm nenhuma
dificuldade em se colocarem na posição de
“editores” de toda a sociedade. Os riscos
para a liberdade de expressão são evidentes.

Esperamos que essas opiniões, ainda válidas


hoje, ajudem o leitor a compreender a
intensidade e abrangência dos fatos ligados
ao Judiciário que registramos recentemente.

Desejamos uma boa leitura!

O Apagão das Liberdades 5


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O apagão da
liberdade de
expressão no
Brasil
30/08/2021

Momento em que o país vivia as


repercussões da CPI da Covid e
dos inquéritos contra fake news
do STF. No momento, também se
organizavam manifestações para
o 7 de Setembro e a tensão entre
poderes estava muito alta.
O Apagão das Liberdades 6
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S
e é verdade que a liberdade de expressão já
viveu dias piores no Brasil, os tempos atuais
também são bastante desafiadores. Estamos
diante de um apagão doutrinal sem precedentes
quanto à sua importância e à sua natureza, o que se
torna especialmente grave dado o status especial
da liberdade de expressão entre as liberdades, tão
íntima é sua ligação com a democracia – onde falta
esta, aquela é uma das primeiras a desaparecer;
onde falta aquela, não se pode mais falar na
presença desta. Decisões recentes que atentam
claramente contra a liberdade de expressão – pois
não falamos de questões sobre as quais pairavam
relevantes dúvidas doutrinais ou sobre as quais
faltasse um razoável consenso entre os juristas,
mas de situações cujo caráter abusivo é cristalino –
estão sendo tomadas com a conivência de um sem-
número de atores políticos e sociais que sempre se
posicionaram incondicionalmente a favor dessa
liberdade – até agora. Um clima de regime de
exceção extremamente perigoso, que exige, mais do
que nunca, recordar onde se pode traçar a linha que
separa o lícito do ilícito, e como proceder nos casos
em que a liberdade de expressão é de fato abusada.

Diz a Constituição Federal, em seu artigo 5.º, que


“é livre a manifestação do pensamento, sendo
vedado o anonimato” e “é livre a expressão da
atividade intelectual, artística, científica e de
comunicação, independentemente de censura ou
licença”. Há, portanto, uma regra geral, que é a
O Apagão das Liberdades 7
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da ampla liberdade, mas que, obviamente, não é
absoluta. As restrições têm de ser necessariamente
pontuais e previstas implícita ou explicitamente
na Constituição, enquanto a legislação
infraconstitucional (como, por exemplo, os códigos
Penal e Civil) detalha e torna operacionalizáveis
essas restrições. Um dos limites à liberdade de
expressão, por exemplo, está no respeito a bens
personalíssimos, como a honra, a privacidade e
a imagem. Outro limite é a proibição do racismo,
exemplo paradigmático de atentado à dignidade
humana. Da mesma forma, o Brasil proíbe a apologia
ao crime – como forma de respeito à lei penal e,
em última instância, à vontade popular –, e mais
algumas poucas condutas. E é bom que seja assim.
São todas restrições bastante razoáveis, pontuais e
claramente delineadas.

No entanto, assim como um apagão energético


não se resume a um blecaute pontual, o “apagão
doutrinal” a respeito da liberdade de expressão
também é generalizado. É conceitual e formal.
Conceitual, porque perdeu-se completamente a
noção desses limites e até mesmo da diferenciação
necessária entre os diversos tipos de manifestação.
Sob o argumento correto de que “a liberdade
de expressão não é absoluta”, as manifestações
abusivas – pois elas existem – estão sendo coibidas
ao lado de outras que são claramente lícitas e de
um pequeno conjunto sobre o qual poderia haver
dúvidas, dependendo de um escrutínio judicial
O Apagão das Liberdades 8
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mais apurado. E, tanto naqueles casos em que a
manifestação é, de fato, ilícita (incitação à prática de
crimes, atentados a direitos personalíssimos, etc.),
quanto nos casos em que o Judiciário implantou
o “crime de opinião”, a repressão passou a ser
feita sem o respeito ao devido processo legal, ao
princípio do juiz natural, ao amplo contraditório, ao
princípio do in dubio pro libertate, caracterizando
o apagão formal de que falávamos. Um punhado
de maus exemplos que começaram justamente na
instituição que deveria ser a guardiã da Constituição
e das liberdades e garantias individuais, o Supremo
Tribunal Federal, e se espalha por outros tribunais
superiores e instâncias políticas.

Quanto aos erros conceituais, é surpreendente


a incapacidade de distinguir entre narração de
fatos, de um lado, e liberdade de opinião (crítica)
e exposição de ideias, de outro – uma distinção
fundamental para a correta qualificação jurídica
dos eventuais abusos. Quando se está diante
de opiniões e exposições de ideias, nunca cabe
ao Judiciário julgar acerca de sua veracidade ou
falsidade, correção ou incorreção. Não cabe ao
Judiciário, por exemplo, dar a palavra final sobre
temas científicos, históricos ou artísticos; a Justiça
não é nem nunca será o árbitro final da ciência ou
da história. Toda a tradição do Ocidente é a de não
deixar que esses temas sejam dirimidos por juízes,
mas por outras instâncias, como cada indivíduo
isoladamente, veículos de comunicação, academias,
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associações, etc., nunca com poder de proibir,
censurar ou responsabilizar. Quando o ministro do
STF Luís Roberto Barroso, que também é presidente
do TSE, afirma que “a difusão da desinformação,
incentivando (...) posições anticientíficas, que
levam à morte, isso não é neutro, não é protegido
pela liberdade de expressão”, equivoca-se
totalmente, demonstra desconhecer os princípios
que regem a liberdade de expressão e se coloca no
papel de árbitro de discussões científicas, ignorando
completamente a própria natureza da construção
do conhecimento, pois o que é “científico” hoje
nem sempre o foi, e parte do que hoje é considerado
“anticientífico” já foi consenso entre as mentes
mais brilhantes do passado. De uma forma ou de
outra, certo ou errado, não é o Judiciário o árbitro
dessas questões.

Nesta mesma linha, não faz sentido utilizar-se a


expressão “fake news” com referência a opiniões
críticas e exposição de ideias. Tornou-se, no
entanto, corrente utilizar essa expressão – pela
carga pejorativa que traz, e que a rigor deveria
reservar-se apenas a narrações de fatos falsas –
contra opiniões ou ideias das quais se discorde, o
que é absurdo. Não dizemos com isso, que fique
claro, que opiniões e ideias sejam sempre lícitas.
Podem configurar eventualmente ilícitos de injúria,
injúria racial, injúria qualificada, racismo, vilipêndio
de ato ou objeto religioso, propaganda, incitação
e apologia de crimes ou criminosos, hipóteses
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previstas como abusivas na lei brasileira, mas para
cuja constatação nunca se requer uma aferição de
sua veracidade (um exemplo seria o de alguém que
chama outra pessoa de “canalha”; o Judiciário não
avalia se o ofendido realmente é o que se diz dele,
mas se a afirmação constitui ofensa punível pela lei).
O Brasil não criminalizou nem mesmo a defesa de
ideias contrárias à democracia. Até poderia fazê-lo,
e a discussão sobre a “tolerância aos intolerantes”
já rendeu inúmeras páginas do melhor debate
acadêmico e político. Mas o legislador brasileiro
optou por crer que a democracia é mais forte quando
permite que mesmo ideias totalitárias (como
algumas defendidas por partidos de esquerda)
sejam toleradas.

Surpreende também, dentro da liberdade de


opinião, a incapacidade de distinguir entre injúria
e crítica legítima. Fora das hipóteses do insulto
puro e simples (que configuram a injúria), a crítica
inspirada pelo interesse público a instituições, a
pessoas públicas e até a nações é totalmente lícita
no direito brasileiro, por mais dura que seja, e por
mais infeliz que possa eventualmente parecer a
qualquer um de nós. Há situações em que é difícil
distinguir uma coisa de outra? Sim, e precisamente
por isso jamais poderia o próprio criticado ser o juiz
de tais expressões. É inaceitável que um ministro
do STF julgue as críticas a si mesmo e à instituição a
que pertence, pelo risco evidente de perder qualquer
objetividade em distinguir o que é injúria do que é
O Apagão das Liberdades 11
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crítica incisiva inspirada pelo interesse público.

E as narrações falsas de fatos, por sua vez, as


verdadeiras fake news, nem sempre são ilícitas.
Elas o são quando constituem uma calúnia ou uma
difamação (que são ilícitos penais e civis ao mesmo
tempo), ou quando causam um dano material ou
moral (mero ilícito civil). Fora destas hipóteses,
pode-se (e deve-se) condenar moralmente a
difusão de fake news, mas não criminalizá-la ou
puni-la amplamente – não existe, no Brasil, tipo
penal que contemple tal atitude. Isso não significa
que não se possa criar novos tipos penais, com
parcimônia e precisão, mas, enquanto isso não
ocorre, qualquer avanço do Judiciário sobre os
cidadãos por suas manifestações é completamente
abusivo.

São todas essas noções que parecem perdidas.


E, quando isso ocorre, um Judiciário que se
autoproclama defensor da verdade em um mundo
de fake news extrapola completamente sua missão
de punir os crimes reais que abusam da liberdade
de expressão. Juízes, especialmente nos tribunais
superiores, se arrogaram a missão de definir que
falsidades são puníveis ou não, que opinião é
correta ou incorreta, que teoria científica é válida
ou não. Como consequência dessa arrogância
fatal, inúmeras expressões legítimas, ainda que
eventualmente infelizes, estão sendo perseguidas,
em geral de um único lado do espectro ideológico,
O Apagão das Liberdades 12
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criando uma sensação kafkiana de injustiça, medo e
censura.

A esta altura, nosso leitor, com essa exposição de


teses fundamentais a respeito da liberdade de
expressão, já é capaz de perceber como ela tem sido
abusada e violada no Brasil recente, por tribunais e
colegiados políticos. A explicação dos princípios já
basta, mas ainda nos propomos, para contribuir com
o debate e ajudar a todos os que têm interesse mais
profundo pelo tema, a examinar casos concretos
– alguns deles hipotéticos; outros, infelizmente,
muito reais e recentes – para que não reste dúvida
alguma sobre a gravidade do momento atual.

Assim, por exemplo, a invasão do STF ou do


Congresso, obstruindo ou impedindo a atuação
regular dos integrantes desses poderes, configura
crime – pode tratar-se do novo artigo 359-L do
Código Penal, acrescentado pela recém-aprovada,
mas ainda não sancionada Lei de Defesa do Estado
Democrático de Direito; ou, ainda, dos artigos 17
e 18 da Lei de Segurança Nacional, prestes a ser
revogada. A incitação a essa prática, por sua vez,
configura o crime de incitação, previsto no artigo
286 do Código Penal.

A crítica incisiva ao STF, por sua vez – afirmar, por


exemplo, que o STF é “desqualificado”; que a corte
“está minando a democracia”; que a atuação de
alguns ministros ou de algum deles especificamente
O Apagão das Liberdades 13
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está “enviando uma mensagem de leniência com
a corrupção”; que a composição atual da corte é
“a pior da história”; que o STF é “uma vergonha”,
como afirmou certa vez um passageiro ao ministro
Ricardo Lewandowski durante um voo, sendo por
este ameaçado de prisão – é crítica legítima, pouco
importando se a opinião é sensata ou não. Se, no
entanto, alguém se referir a um ministro como
“canalha” ou “vagabundo”, estamos, em princípio,
no campo da injúria, mas a tradição jurisprudencial
brasileira tem sido benevolente com esse tipo de
vocabulário quando a vítima é um agente público.

De qualquer forma, cabe discussão; mas onde ela


deve ser feita? O ministro ofendido deve representar
ao Ministério Público, que deve promover em
primeira instância – ou em outra, se o réu tiver
foro privilegiado – a competente ação penal
ou civil. Nesse sentido, não é demais salientar a
aberração jurídica que representam inquéritos
abertos de ofício diretamente no Supremo, dentro
dos quais brasileiros com ou sem foro privilegiado
são investigados e presos sem que nem mesmo
seus advogados tenham acesso aos autos para que
saibam quais são os “crimes”
que lhes são atribuídos.

Todo o diagnóstico acima se aplica também à


perfeição quando analisamos as abusivas decisões
recentes de censura, prisão, remoção de conteúdos,
quebras de sigilo, desmonetização e eliminação
O Apagão das Liberdades 14
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de contas em mídias sociais, nos contextos da
pandemia de Covid-19, das críticas ao Supremo
Tribunal Federal e nas discussões sobre o processo
eleitoral brasileiro. Um exemplo evidente é a
discussão sobre o “tratamento precoce” ou sobre
eventuais riscos das vacinas contra a Covid-19.

Estamos aqui no campo da exposição de ideias,


de caráter científico. Por mais absurdas que
eventualmente sejam algumas teses sobre o uso
deste ou daquele medicamento, ou sobre efeitos
colaterais deste ou daquele imunizante, elas não são
ilícitas, nem civil nem penalmente. Neste sentido,
é absurda a qualificação de fake news atribuída a
sites ou produtores de conteúdo (todos, aliás, de um
único lado do espectro ideológico) que defendem
determinadas posições – e mais absurda ainda é sua
investigação, com quebra de sigilo bancário, como
fez recentemente a CPI da Covid. Se não há ilícito, tal
violação da privacidade é absolutamente abusiva,
mas os senadores, infelizmente com conivência do
STF e de boa parte dos formadores de opinião, pouco
se importam; tamanha é sua leviandade que nem
se dispõem a apresentar quais seriam os pretensos
ilícitos, bastando-lhes a alegação genérica.

Observe-se, porém, que afirmações factuais


concretas têm outra natureza e outra disciplina
jurídica. Assim, por exemplo, se alguém divulgasse
que não haverá vacinação em tal ou qual lugar,
sabendo que isso é falso, para levar algumas
O Apagão das Liberdades 15
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pessoas a não se vacinarem, poderia claramente ser
responsabilizado. Estaríamos no campo da narração
de fatos falsa, aferível pelo Judiciário, narração
que não configura crime, mas ilícito civil, passível
de condenação por dano moral e eventualmente
material. Compreenda-se, aqui, a diferença: no
primeiro caso, não é papel do Judiciário atestar a
veracidade científica da afirmação “o tratamento
precoce é a melhor maneira de tratar da Covid”, nem
assumir como obrigatória a orientação científica de
uma determinada instituição, por mais respeitável
que seja. Já no outro caso, da mentira sobre o local
ou data da vacinação, o Judiciário é, sim, o âmbito
apropriado para uma aferição de sua exatidão.

Da mesma forma, vale a pena examinar a


criminalização e a perseguição promovidas pelo
TSE contra diversos sites por presumível atentado à
higidez eleitoral. Diga-se, antes de mais nada, que
uma análise fica dificultada pelo fato sui generis
e abusivo de o TSE não ter apontado claramente
que textos ou expressões violaram alguma lei, nem
tampouco que lei ou norma e princípio legais foram
feridos. O que veio a público foi uma argumentação
genérica, apoiada em suposições também genéricas
ou em um relatório da Polícia Federal cujo conteúdo
permanece sob sigilo. Dada a relevância da liberdade
de expressão, que requer sempre um tratamento
cauteloso, o procedimento de exceção é um
escárnio. Tratemos, portanto, de hipóteses. Se os
textos expunham uma opinião contrária ao voto
O Apagão das Liberdades 16
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puramente digital, argumentando acerca de sua
fragilidade, ou defendiam o voto impresso, trata-
se de opinião e exposição de ideias de natureza
técnica (sistema de voto, software, cibersegurança,
exemplos de outros países que proibiram o voto
sem comprovante físico etc.), não passível de
incriminação em uma democracia e não passível de
arbitragem pelo Judiciário, pouco importando quão
sensata ou acertada possa nos parecer essa opinião.

Se, no entanto, há uma afirmação factual, de


natureza não técnica, dentro da margem de análise
do Judiciário, a leitura pode ser diferente. Assim,
por exemplo, a afirmação de que 40% das urnas
foram efetivamente violadas na última eleição, sem
qualquer comprovação, é ilícita. Não há previsão
legal como crime (o artigo 323 do Código Eleitoral
não se aplica aqui), mas há ilícito civil e eleitoral,
que pode ser investigado, gerar eventual obrigação
de indenizar e pode ser tolhido. Ainda assim, a
desmonetização tem um caráter de sanção, de pena,
de punição criminal, o que é inaceitável por não
haver crime. Caso tenha ocorrido uma narração de
fatos falsa (como a dos “40% de urnas” no exemplo
anterior), seria necessário antes comprová-la, para
só então aplicar alguma medida de inibição – e
mesmo assim esta medida teria de ser proporcional,
jamais com a gravidade da desmonetização, que
cerceia integralmente a viabilidade de exercício
da liberdade de expressão, mesmo daquelas
expressões não ilícitas desses sites. Uma aberração
O Apagão das Liberdades 17
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sem precedentes e totalitária, equivalente a uma
censura generalizada, completamente incompatível
com o ordenamento jurídico brasileiro.

Compreende-se o temor que causa, por exemplo,


a difusão indiscriminada de notícias falsas ou
ideias errôneas, que podem induzir a população a
determinados comportamentos que seria muito
melhor evitar. Mas é justamente em momentos
como este que é preciso atestar a força da liberdade
de expressão, defendê-la e compreender que
a liberdade – qualquer liberdade – traz, sim,
consigo, os seus riscos, e que lidar com eles exige
sabedoria. Em vez disso, no entanto, o Brasil atual
foi absorvido em uma mistura de Orwell e Kafka:
STF, TSE e CPI da Covid, para nos atermos aos
exemplos mais evidentes, instauraram na prática
a “crimideia” de 1984, o crime de opinião, em que
as ideias consideradas desagradáveis por quem
detém o poder da caneta são combatidas não
pela exposição de fatos que as desmintam, ou por
ideias opostas, mas com o peso da mão estatal, que
prende, censura e multa. E as instituições o fazem
sem dar aos acusados a chance de saberem que
crimes cometeram (seja os crimes reais, previstos
na lei, ou os “crimes” inventados por tribunais e
parlamentares), e por quais de seus atos ou palavras
estão sendo investigados e punidos. A distopia
brasileira é real, e a liberdade de expressão é sua
grande vítima.

O Apagão das Liberdades 18


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A verdade sobre
a Lava Jato
16/03/2021

A pressão sobre a Lava estava


no ápice e o STF caminhava
para declarar a suspeição do
ex-juiz Sergio Moro.

O Apagão das Liberdades 19


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U
ma das páginas mais tristes da história do
país está terminando de ser escrita, sob o
olhar, de um lado, atônito e perplexo de
alguns e, de outro, desatento de uma multidão
de espectadores. Imensamente triste porque é a
refação, é o apagar e reescrever, de uma página
de especial beleza, portadora de uma história de
coragem e talento que empolgou e deu esperanças
à quase totalidade dos brasileiros. Referimo-nos,
obviamente, à história da Operação Lava Jato.

A desconstrução midiática e jurídica da mais


bem-sucedida operação de combate à corrupção
da história do Brasil entrou em uma fase
aguda. Princípios básicos do direito e garantias
constitucionais estão sendo ignorados para que
o trabalho da Lava Jato seja posto a perder e seus
protagonistas sejam transformados nos vilões
da história. Um movimento que foi iniciado
com narrativas vitimistas, com avaliações
desequilibradas, com confusões sutilmente
implantadas no seio da opinião pública pelos
detratores da operação, e que recorreu até mesmo
ao crime puro e simples, como na invasão de
celulares das autoridades que conduziram a Lava
Jato.

Mas como é possível que tal movimento esteja


tendo sucesso? Como tem sido possível tamanha
inversão de valores? Como entender que méritos
tão gigantescos estejam sendo tão ostensivamente
O Apagão das Liberdades 20
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distorcidos? Como compreender que algumas
pessoas de bem tenham ido do louvor e gratidão à
Lava Jato, passando pela dúvida e desconfiança, e,
por fim, manifestando desapreço e desprezo pela
operação?

A compreensão total passará necessariamente


por uma recordação desses méritos, nunca
suficientemente elogiados. O contraste entre a
grandeza da realidade e a pequenez da versão que
está se propagando facilita essa compreensão. Mas
isso fica para um outro momento. Por ora, basta
recordar que o que torna a Lava Jato tão notável
não é somente a dimensão do escândalo que ela
enfrentou, mas o fato de finalmente se romper um
ciclo de impunidade que levou operações anteriores
a naufragar, terminando em nulidade ou prescrição.
Isso seria impossível sem as pessoas certas,
empenhadas em combater a corrupção, nos locais
certos, no momento certo e fazendo a coisa certa,
não uma ou duas vezes, mas milhares de vezes,
durante dias, meses e anos, o que foi reconhecido
até mesmo internacionalmente, dado o volume
de colaborações realizadas com autoridades
estrangeiras, atestando a seriedade do trabalho.
E como se consegue desmontar um esquema
de corrupção tão intrincado, envolvendo gente
tão poderosa? Como se consegue levar tantos
para a cadeia, quando a impunidade sempre foi
a regra neste país? Em seu lamentável voto pela
suspeição do ex-juiz Sergio Moro, o ministro do
O Apagão das Liberdades 21
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STF Gilmar Mendes disse que “não se combate
o crime cometendo crimes”, afirmando (pois o
ministro foi muito além da simples insinuação) que
teriam sido cometidas ilegalidades ao longo desses
sete anos desde que a Lava Jato foi deflagrada. A
operação certamente trouxe novidades ao cenário
do combate à corrupção no Brasil, tanto do ponto
de vista legal – a Lava Jato foi a primeira operação a
usar amplamente a delação premiada, objeto de lei
sancionada em 2013 por Dilma Rousseff – quanto
do ponto de vista de estratégias. E haverá quem
pense ser humanamente impossível combater o
crime de colarinho branco sem cruzar, ao menos um
pouco, a linha que separa a legalidade da ilegalidade,
para que os agentes da lei tenham alguma chance
contra quem tudo pode ao não se julgar limitado
pelas regras do jogo. Mas aqui temos de lançar
um enfático “não” a quem quer imputar esses
comportamentos à Lava Jato, seja aos procuradores
ou policiais que realizaram as investigações, seja aos
juízes que julgaram os casos da operação.

Aos adversários da Lava Jato, assim, restavam


algumas poucas possibilidades se quisessem
promover uma inversão de valores. Uma delas
era fazer da mera opinião, da mera preferência, o
critério para se decidir o que é abusivo ou mesmo
ilegal. Os descontentes com determinada estratégia
adotada pela força-tarefa, ou com alguma atitude
dos magistrados que julgaram os réus da operação,
não se limitam a demonstrar sua discordância
O Apagão das Liberdades 22
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reconhecendo que se está no campo das escolhas
legítimas; eles desejavam e desejam impor a ideia
de que aquilo que criticam na Lava Jato é imoral,
“abusivo”, “excessivo” ou até mesmo contrário à lei.

Recorde-se, por exemplo, a crítica de Gilmar


Mendes à proximidade entre a Lava Jato e a
imprensa, que é apenas uma das dimensões da
estratégia da operação em relação à opinião pública.
Não nos referimos, obviamente, a vazamentos
de informações – que a lei e os códigos internos
do Ministério Público e da magistratura já vedam
e que precisam ser diligentemente investigados
–, mas à presença midiática frequente de alguns
dos responsáveis pela operação, bem como às
entrevistas coletivas concedidas a cada fase da Lava
Jato.

A opção pela publicidade total dos atos da operação


chamou a atenção por ser praticamente inédita,
mas é completamente lícita dentro daquilo que
se permite aos responsáveis pela investigação. O
que os críticos chamam de “espetacularização”
ou de “personalismo” é, na verdade, a intenção de
manter a sociedade informada a respeito de cada
passo da operação e sobre o funcionamento do
enorme esquema de corrupção então desvendado.
Esses críticos teriam de responder: onde está a
irregularidade? Que lei ou código interno proíbe a
força-tarefa de se comunicar com a sociedade da
forma escolhida pela Lava Jato? Desde quando a
O Apagão das Liberdades 23
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transparência passou a ser um mal a combater?

Compreendemos quem, nestes casos, julgue


ser melhor a ação mais discreta, que se dá
exclusivamente nos autos, mas a opção contrária
jamais – insista-se, jamais – poderia ser
considerada ilegal, ou abusiva, ou excessiva; ambas
são legítimas, e a escolha pode ser pautada por
questões estratégicas. No caso, além da convicção
de que era importante prestar contas aos brasileiros,
a Lava Jato também intuiu que deveria conquistar
o maior apoio popular possível, já antecipando
os movimentos que ocorreriam para desmontar
a operação, assim como ocorrera na Itália da
Operação Mãos Limpas.

Algo similar, nessa mesma linha de mera


preferência estratégica, reside na opção que a
Lava Jato fez de buscar cooperação com inúmeros
organismos públicos e da sociedade civil, nacionais e
internacionais, como recomendam as experiências
dos maiores especialistas em todo o mundo. A
opinião torta e interessada dos advogados dos
acusados, de que qualquer cooperação fora do
canal oficial é ilegal, passou pouco a pouco a
ser aceita acriticamente inclusive por meios de
comunicação sérios e comprometidos com a luta
contra a corrupção, sem se dar conta de que isso
pode, no futuro, minar por completo o combate
ao crime organizado de enormes proporções.
Uma pena, deixe-se registrado aqui, que pessoas
O Apagão das Liberdades 24
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de bem, por serem avessas a essas estratégias de
comunicação e de cooperação, tenham partido
dessas discordâncias (que são legítimas) para, sem
lógica alguma, chegar à conclusão de que havia
irregularidades. Dessa forma, como inocentes
úteis, sem distinguir uma coisa de outra, acabaram
engrossando o coro dos que querem sepultar a Lava
Jato.

Outro flanco escolhido pelos detratores da Lava


Jato está na avaliação sobre determinadas ações
ou decisões da força-tarefa ou da 13.ª Vara Federal
de Curitiba. Aqui, é preciso lembrar que sete anos
de trabalho incansável geraram uma infinitude de
atos jurídicos e processuais – mais precisamente, na
casa dos 60 mil, considerando-se o último balanço
da operação, que resultou em 130 denúncias contra
533 acusados, com 278 condenações atingindo
174 pessoas. A esmagadora maioria desses atos
foi convalidada pelas instâncias superiores do
Judiciário, que não viram nenhuma razão para
impugnar processos ou condenações devido a
irregularidades processuais.

É evidente que, em conjunto tão monumental de


atos, haja alguns mais controversos, especialmente
quando se trata de navegar em águas ainda não
mapeadas – falamos, aqui, de decisões que exigem
interpretação da lei penal ou da lei processual,
em uma zona cinzenta na qual os limites ainda
não estavam perfeitamente delimitados. Mesmo
O Apagão das Liberdades 25
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o índice
quando a opção da Lava Jato foi a de usar as
ferramentas mais rigorosas, não há como imputar
a seus protagonistas nem a intenção dolosa, nem
um comportamento abusivo recorrente. Trata-
se de episódios pontuais em que as escolhas
feitas, mesmo quando consideradas inadequadas
a posteriori, se deram dentro da margem de
discricionariedade permitida a investigadores
ou julgadores, e jamais poderiam ser lidas como
indicadores de algum animus persecutório ou
condenatório, principalmente da parte de Sergio
Moro (o juiz, aliás, absolveu um quinto dos réus,
e ainda negou centenas de recursos do MPF, o
que afasta a tese de um conluio entre Moro e a
força-tarefa). Usar algumas poucas decisões
controvertidas, dentre dezenas de milhares, para
interpretar o todo é uma falácia construída para
estigmatizar a operação, que deveria ser julgada
pelo seu conjunto, e não por algumas poucas ações.

O “desmonte moral” da Lava Jato, nesta operação


que tenta transformar os verdadeiros bandidos
em santos enquanto os investigadores e juízes
terminam no banco dos réus, foi potencializado com
o circo midiático da “Vaza Jato”, com a divulgação
de mensagens atribuídas aos procuradores da força-
tarefa e ao então juiz Moro. Embora a invasão dos
aparelhos das autoridades seja um fato, nenhuma
perícia foi capaz de verificar a autenticidade dos
conteúdos divulgados; no entanto, isso não tem
impedido seu uso indiscriminado em processos
O Apagão das Liberdades 26
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o índice
e recursos na Justiça, mesmo que seu valor como
evidência nem tenha sido ainda devidamente
estabelecido. Gilmar Mendes bem o sabe, e por isso
afirmou que os diálogos nem seriam necessários
para caracterizar a suspeição de Moro – o que
não o impediu de, em flagrante contradição, citá-
los longamente em seu voto da semana passada.
Ocorre, no entanto, que o conteúdo divulgado, caso
seja autêntico, mostra uma interação entre juiz e
partes que foi considerada normal até mesmo por
ministros do Supremo. “Mantemos diálogos com
o MP. Nos 42 anos, mantive diálogo com membros
do Ministério Público e advogados de qualquer das
partes. Isso é normal”, afirmou Marco Aurélio Mello
na semana passada, em entrevista ao jornal O Globo.
Diagnóstico idêntico foi feito por inúmeros juristas
desde que os supostos diálogos vieram a público, em
meados de 2019.

Em resumo, qualquer adjetivo mais brando que


“heroico” para descrever o trabalho da Lava Jato
não lhe faria justiça. Procuradores, policiais e juízes
gastaram até sete anos de suas vidas dedicados à
missão de puxar até o último fio de um complexo
novelo de corrupção, apesar das inúmeras forças
que tentaram dificultar-lhes ao máximo esta
tarefa. Usaram com inteligência todas as armas
que a lei lhes facultava e tiveram diante de si
escolhas difíceis naquilo em que havia margem
para várias interpretações e linhas de atuação. E
é justamente por terem funcionado, por terem
O Apagão das Liberdades 27
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rompido o ciclo clássico da impunidade, com
resultados incomensuravelmente benéficos para
o país, que essas escolhas e estratégias estão sob
fogo cerrado no palco da opinião pública e nos
tribunais, como se fossem elas mais escandalosas
que o esquema desvendado. Primeiro transforma-
se o acerto em erro, em “abuso”, em “excesso”,
para depois avaliar-se o todo pela parte e, por
fim, aplicar-se o golpe de misericórdia sobre
procedimentos, dificultando-os ou proibindo-
os, e sobre as reputações daqueles que tanto
fizeram pelo país. Defender o legado da Lava Jato,
injustamente vilipendiado, é crucial para que o Brasil
siga sonhando com o fim da impunidade daqueles
que insistem em sangrar o país em nome do próprio
bem-estar ou de projetos de poder que fraudam a
jovem democracia brasileira.

O Apagão das Liberdades 28


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A insegurança
jurídica e o
descrédito do
Supremo
11/03/2021

Pede o respeito à
Constituição após decisões
que vão muito além da
aplicação estrita da lei - já
repercutindo a decisão do
ministro Edson Fachin que
mudou o foro das ações
contra o ex-presidente Lula.

O Apagão das Liberdades 29


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“O
nde não cabe interpretação, até as
máquinas podem sentenciar.” Por
mais que o então senador Roberto
Requião tivesse incluído essa frase em seu relatório
da Lei de Abuso de Autoridade para justificar uma
subjetividade total que colocaria uma verdadeira
mordaça em policiais, procuradores e juízes, há
alguma base de verdade aí. A Justiça não funciona
à base de máquinas, mas de seres humanos; e eles
são chamados a decidir, em um trabalho que exige,
sim, um certo grau de interpretação, já que a lei
está longe de dar conta de absolutamente todas as
realidades.

Do Judiciário se espera que julgue as demandas


apresentadas com celeridade, justiça e bom senso,
em profunda sintonia com a Constituição – tanto
com sua letra quanto com seu espírito, o que exige
profundo conhecimento também das ideias e
princípios que nortearam o constituinte –, mas isso
não é tudo. Como afirmamos, nem toda situação
encontrará resposta cristalina no texto legal, ou terá
similaridade com casos anteriores já julgados; onde
há espaço para interpretação e para mais de uma
solução compatível com a Constituição, impõe-se
a necessidade de estabelecer critérios claros, um
padrão que será seguido no futuro diante de casos
semelhantes. Por isso, é essencial que os tribunais
sejam garantidores de segurança jurídica, sem
reversões e reviravoltas que façam valer a máxima
segundo a qual “no Brasil,
O Apagão das Liberdades 30
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até o passado é incerto”.

Quando a Constituição, a lei, a jurisprudência, os


princípios legais e a coisa julgada são ignorados,
entra em ação o voluntarismo. Já não existe uma
única Constituição, mas tantas Constituições
quanto magistrados. Já não existe jurisprudência,
mas apenas as convicções e as conveniências de
cada julgador. E, no Brasil atual, poucas instituições
têm representado esse caos judicial de forma tão
intensa quanto aquela que deveria ser a principal
guardiã da Carta Magna e da segurança jurídica, o
Supremo Tribunal Federal.

Se reputamos como praticamente heroico um


voto como o de Rosa Weber, que, sendo contrária à
prisão após a condenação em segunda instância, se
opôs à concessão de um habeas corpus que livraria
Lula da cadeia em 2018, pois o entendimento
vigente era o de que essa prisão estava respaldada
pela jurisprudência do STF, é porque o que deveria
ser normal tornou-se a exceção. E as decisões
relativas à Operação Lava Jato no Supremo, embora
estejam longe de ser as únicas que fazem do atual
Supremo um promotor de insegurança jurídica,
mostram à perfeição como a desconstrução de
atos juridicamente irretocáveis se transformou na
prática usual da corte.

Um caso emblemático é o da anulação de sentenças


em processos envolvendo corréus delatores e
O Apagão das Liberdades 31
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delatados, sob a alegação de que estes últimos
deveriam entregar as alegações finais depois
daqueles, uma diferenciação que não existe no
Código de Processo Penal, embora a lei também
permita que um juiz alongue os prazos caso perceba
que as alegações finais dos delatores trazem
novidades das quais os delatados não tiveram como
se defender antes. Sob o pretexto de resguardar
a ampla defesa e o direito ao contraditório, o que
é correto, os ministros fecharam os olhos para o
fato de que, nos processos que lhes chegaram às
mãos, não houve prejuízo concreto a nenhum réu
delatado. Com isso, foram desfeitas condenações
em que houve completo respeito tanto à legislação
processual penal quanto aos direitos dos réus.
Esta aberração não passou despercebida a alguns
ministros, que ressaltaram a necessidade de se
estabelecer uma modulação que balizasse a análise
de casos semelhantes. Tal modulação, prometida
desde setembro de 2019, jamais chegou a ser feita.

Assim, não chega a ser surpresa completa que, com


uma canetada, Edson Fachin tenha decidido que a
13.ª Vara Federal de Curitiba não tem competência
para julgar os processos do ex-presidente Lula,
ainda que essa competência tenha sido questionada
e reafirmada inúmeras vezes na segunda, na terceira
e na última instância – o próprio Supremo. Nem
que, para isso, tenha alegado que os processos
não tinham relação com a Petrobras, apesar de
denúncias e sentenças deixarem clara a relação
O Apagão das Liberdades 32
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entre os crimes cometidos e a pilhagem na estatal
petrolífera. Por mais complexas que sejam as
questões ligadas à competência para se julgar
determinados casos, ainda mais uma investigação
com tantas ramificações quanto a Lava Jato, fato
é que havia um entendimento unânime a respeito
do papel da 13.ª Vara, longamente construído
com a participação do próprio Supremo, e que
foi simplesmente descartado por uma mudança
de caráter totalmente voluntarista. Além disso,
não escapa a nenhum leitor atento da decisão de
Fachin que as argumentações apresentadas podiam
perfeitamente ser usadas na hipótese inversa –
imagine o leitor que, por exemplo, a maior parte dos
processos da Lava Jato estivesse sendo conduzida
em Brasília, e um ministro decidisse anulá-los e
remetê-los à 13.ª Vara: ele poderia fazê-lo copiando
quase que na íntegra a decisão de Fachin, o que
apenas evidencia ainda mais seu caráter subjetivo,
sem amparo na realidade dos fatos.

Por fim, há de se lembrar do escandaloso caso em


que quatro ministros da Segunda Turma decidiram
seguir adiante com o julgamento da suspeição de
Sergio Moro, na última terça-feira. Pois aqui não
se tratou de desafiar apenas a Constituição, a lei
ou a jurisprudência, mas também a própria lógica.
Afinal, se o processo do tríplex do Guarujá havia sido
tornado nulo, mesmo que de forma ainda provisória,
todos os recursos a ele relacionados teriam o mesmo
destino, no que o jargão jurídico chama de “perda
O Apagão das Liberdades 33
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de objeto”. Ao criar um habeas corpus zumbificado,
pois mantido vivo apesar de o processo principal
ter sido eliminado, a Segunda Turma deixou de
lado qualquer resquício de bom senso e respeito
aos fatos para, como se depreendeu pela leitura do
voto de Gilmar Mendes, insistir na perseguição aos
protagonistas da Lava Jato.

A Lava Jato, como lembramos, é apenas o exemplo


mais evidente, mas também em vários outros
temas, como o papel do Estado, a liberdade
econômica e assuntos morais, o Supremo vem
exibindo uma desconsideração sistemática pela
Constituição, pelas leis, pela jurisprudência e
pelos fatos. Independentemente da intenção
que move os ministros em seus votos e decisões,
ainda que eles estejam sinceramente convictos
do acerto de seus atos, o resultado desse padrão
decisório é, ironicamente, o fim de qualquer outro
padrão, pois já não há regras fixas a que todos
devem se submeter, mas apenas a vontade dos
ministros, isoladamente ou em colegiado. Tamanha
inconstância, tamanha insegurança jurídica
leva a um perigoso descrédito do Judiciário, e
especialmente do Supremo.

Se a instituição para a qual muitos brasileiros um


dia olharam com esperança, como um porto seguro
em meio ao lamaçal da corrupção do mensalão, já
não desperta confiança, é porque seus membros
– intencionalmente ou não, pouco importa – se
O Apagão das Liberdades 34
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deixaram levar por um voluntarismo que, no fim, é
autodestrutivo.

O Apagão das Liberdades 35


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O “direito
processual
penal
criativo”
do STF
06/04/2022

Aborda situações em que o STF


criou punições não previstas na
Constituição e repercutindo o
caso de desrespeito à imunidade
parlamentar de Daniel Silveira.
O Apagão das Liberdades 36
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E
specialmente após a instauração do inquérito
das fake news, aquele em que o Supremo
Tribunal Federal assumiu o múltiplo papel
de vítima, investigador, acusador e julgador,
a sociedade brasileira tem percebido que a
Constituição, a lei e os regimentos internos são
detalhes que ministros da corte aprenderam a
contornar e ignorar quando lhes é conveniente,
sempre em nome de intenções consideradas
nobres, como o combate às chamadas fake news,
ou ao menos àquilo que os ministros consideram
como tal. A Constituição proíbe a censura prévia,
mas isso não impediu a censura da Crusoé. A
Constituição garante a liberdade de expressão, mas
ministros ameaçam banir aplicativos, ordenam a
eliminação de perfis em mídias sociais e endossam
quebras de sigilo de quem apresenta opiniões
divergentes sobre temas que estão (ou deveriam
estar) abertos ao debate. A Constituição protege a
imunidade parlamentar, mas ela foi abolida (com
a subserviência da Câmara, é preciso dizer) no caso
do deputado Daniel Silveira, o protagonista de novo
choque com a corte suprema.

E as recentes decisões do ministro relator Alexandre


de Moraes (designado a dedo em 2019 pelo então
presidente do STF Dias Toffoli, contornando
o tradicional sorteio de relatorias) são nova
demonstração de que um inquérito que nasce
eivado de erros é quase impossível de consertar – a
tendência é que os equívocos apenas se avolumem.
O Apagão das Liberdades 37
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No fim de março, Moraes considerou que Silveira
havia desobedecido determinações judiciais e
deveria voltar a usar uma tornozeleira eletrônica. O
pedido da Procuradoria-Geral da República alegou
três descumprimentos de determinações judiciais
anteriores, pois Silveira se encontrou com outro
investigado no inquérito das fake news, deu uma
entrevista e criticou Moraes durante evento em
Londrina (PR). Como Silveira se recusava a colocar
de volta o dispositivo, chegando a passar noites nas
dependências da Câmara dos Deputados, Moraes
determinou multa diária e bloqueio das contas do
parlamentar, que acabou cedendo.

Há uma série de aspectos que merecem crítica


em todo o episódio. A proibição de conceder
entrevistas, de imediato, já representa ataque
claro à liberdade de expressão do parlamentar,
como apontado por vários juristas ouvidos pela
Gazeta do Povo. E será muito difícil encontrar
algum crime real nas palavras do deputado durante
o evento na cidade paranaense. Afirmar que falta
“bússola moral” aos ministros, que Moraes está
cometendo “inconstitucionalidades” e que o
Judiciário está adotando “imposições” para uma
“tomada de poder” é simplesmente exercer um
direito de crítica que a Constituição garante a
todo brasileiro, independentemente de haver ou
não fundamento nas afirmações. Mesmo quando
Silveira diz que “está ficando complicado aqui para
o senhor [Moraes] continuar vivendo aqui, nem
O Apagão das Liberdades 38
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que seja juiz”, será preciso muito malabarismo
hermenêutico para se enxergar ali uma ameaça
concreta à vida ou à integridade física do relator.

Além disso, pode-se ainda questionar o recurso


à tornozeleira eletrônica como medida cautelar
imposta a membro do Congresso sem necessidade
de autorização do Legislativo. Em 2017, em um
caso envolvendo o então senador Aécio Neves,
o Supremo decidiu que medidas cautelares que
afetassem o exercício do mandato precisavam
ser referendadas pela casa a que pertencesse o
parlamentar, mas Moraes argumentou que o uso
de tornozeleira eletrônica não se encaixava nesta
situação. Por mais que já exista jurisprudência
apoiando esta alegação, ela nos parece incorreta.
Afinal, a tornozeleira deve monitorar se Silveira
está cumprindo outra determinação, que limita
sua circulação entre Brasília e Petrópolis (RJ), onde
tem domicílio registrado. E esta limitação, sim,
prejudica sua atividade parlamentar, impedindo-o,
por exemplo, de integrar missões oficiais ou visitar
outros locais onde sua presença seria importante.
Seria preciso, portanto, que todas essas medidas
fossem referendadas pela Câmara dos Deputados.

Mas é na forma usada por Moraes para levar Silveira


a colocar a tornozeleira que está a mais recente
inovação jurídica do relator. O Código de Processo
Penal (CPP) não prevê multa ou bloqueio de bens
– estas medidas são permitidas apenas na esfera
O Apagão das Liberdades 39
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cível, e em disputas entre particulares. Quando o
tema foi levado ao plenário do Supremo, de forma
virtual, apenas Nunes Marques e André Mendonça
foram capazes de apontar este grave erro. A multa,
afirmou Nunes Marques, “não tem qualquer arrimo
no ordenamento jurídico pátrio e caracteriza-se de
forma transversa em confisco dos bens do réu em
processo penal por decisão monocrática e cautelar
do relator em ação penal originária, sem o devido
processo legal, claramente incompatível com a
Constituição da República. Afinal, vivemos em uma
democracia, onde o Estado de Direito vige, não
sendo, portanto, admitida a imposição de qualquer
medida privativa e/ou restritiva de direito não
prevista no ordenamento jurídico legal e sobretudo
constitucional” – o ministro ainda criticou a
desproporcionalidade no valor cobrado, que em
dois dias consumiria toda a renda mensal de um
deputado, embora este nem seja o maior problema
da medida.

Nunes Marques identificou corretamente o


caminho jurídico usado por Moraes: já que tais
medidas existem, mas no Código de Processo
Civil, o relator resolvera aplicá-las por analogia ao
processo penal para conseguir que Silveira cedesse.
Este, no entanto, é um recurso que a boa doutrina
jurídica não admite. Como o direito penal lida com
a liberdade dos indivíduos, é ali que as garantias
do réu se fazem ainda mais necessárias que nos
outros ramos do direito. Não há possibilidade,
O Apagão das Liberdades 40
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portanto, de analogias ou aproximações: vale
única e exclusivamente o que está na lei; “não há
espaço para poder criativo por parte do Estado”,
como afirmou em recente palestra on-line o
juiz e professor Rodrigo Capez. “Ou você tem a
legalidade estrita ou vai cair numa generalização
de um poder geral da cautela, que é inadequado no
processo penal, porque não tem um poder geral
de punir”, alerta o professor Aury Lopes Jr., doutor
em Direito Processual Penal, ouvido pela Gazeta do
Povo. Mesmo assim, a medida foi referendada pela
maioria dos ministros, em uma ironia que retrata
muito bem o Supremo atual: a corte que age de
forma tão “garantista”, ao sempre escolher uma
interpretação possível da lei que acaba beneficiando
bandidos e corruptos, contra outra interpretação
igualmente possível e que penda para o lado do
bem público, fechou os olhos às garantias reais
existentes na lei e que protegem réus da vontade de
juízes interessados em inventar crimes ou medidas
que não estejam previstos no ordenamento jurídico.

E por que isso tem ocorrido de maneira tão acintosa


nos últimos tempos? Como a Constituição e as
demais leis se tornaram acessórios? Uma resposta
tão certeira quanto simples é: os ministros agem
dessa forma porque, cegos pela polarização
política que domina o país e convictos de seu papel
“iluminista” e “contramajoritário”, julgam poder
(e, dependendo do caso, até dever) fazê-lo. Aqueles
que o sistema de freios e contrapesos consagrou
O Apagão das Liberdades 41
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como os responsáveis por garantir que o Supremo
não extrapole suas funções, os senadores, vêm se
omitindo no seu papel de fiscais. E, como as decisões
do STF são tomadas dentro de uma moldura de
funcionamento normal do Judiciário, o arbítrio,
mesmo quando motivado pelas melhores intenções,
acaba revestido de um verniz de legalidade; mas
nem por isso deixa de ser arbítrio.

O Apagão das Liberdades 42


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Uma vingança
para que
todos temam os
poderosos
23/03/2022

A condenação de Deltan Dallagnol


pelo Superior Tribunal de Justiça em
ação movida pelo ex-presidente Lula
questionando o famoso slide usado
por Dallagnol em uma apresentação
da Lava Jato.
O Apagão das Liberdades 43
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A
Lava Jato é uma conquista do Brasil
reconhecida em todo o mundo. Em mais
de cinco anos de operação, a sociedade
brasileira teve acesso a um verdadeiro raio-x
dos meandros da corrupção no sistema político,
foram devolvidos aos cofres públicos bilhões de
reais desviados durante os governos petistas,
empresários e políticos corruptos foram presos e
condenados. Infelizmente, apesar desse passado
de conquistas, desde 2018 a L ava Jato vem
sofrendo derrotas sucessivas nos planos políticos
e institucional. Figuras influentes que foram
condenadas têm obtido vitórias espantosas nas
instâncias superiores da Justiça, não raro graças
a julgamentos repletos de falhas, baseados em
convenientes mudanças de jurisprudência, na
morosidade do sistema de justiça criminal ou em
provas obtidas de maneira fraudulenta. Em 2021,
a operação foi encerrada de forma melancólica e,
ao que parece, agora os corruptos partem para a
desforra.

Essa é a sensação que fica diante da recente


condenação de Deltan Dallagnol no Superior
Tribunal de Justiça (STJ). Numa decisão injusta e
equivocada, o ex-coordenador da Lava Jato, foi
condenado a pagar R$ 75 mil para o ex-presidente
Lula devido a uma apresentação de slides feita em
2016, na qual teria ocorrido “violação da imagem
e da honra”. Na ocasião, Deltan apresentou para a
imprensa a justificativa da primeira denúncia contra
O Apagão das Liberdades 44
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o petista na operação, por corrupção e lavagem
de dinheiro. O caso em questão era o do triplex do
Guarujá (SP). No slide principal da apresentação
que ficou amplamente conhecida, o nome de Lula
aparecia ao centro, rodeado de termos referentes
aos crimes dos quais ele estava sendo acusado ou
investigado. A defesa de Lula, que pede R$ 1 milhão
de indenização, alega que, na época da denúncia do
triplex, ele não era acusado do crime de organização
criminosa, objeto de outra investigação que então
tramitava na Justiça Federal, e que desaguaria na
absolvição do petista em 2019. Esse argumento foi
derrotado nas duas primeiras instâncias, mas saiu
vitorioso no STJ, que desconsiderou apontamentos
técnicos e a própria jurisprudência do tribunal.

Ainda que haja ressalvas provenientes de


competentes juristas a respeito daquela forma
de publicizar a investigação, dado o fato de que
apresentações como a de Deltan não eram usuais,
considerá-la ilícita é um absurdo. Além disso, é
preciso enfatizar que a estratégia de comunicação
usada pela Lava Jato sempre foi legítima e
necessária para o engajamento da população.
Não havia nenhum impedimento legal para
que o Ministério Público expusesse o panorama
geral sobre seu trabalho naquele momento. Na
apresentação, não havia factoides. Tudo se referia
a investigações efetivas e apresentá-las de forma
sistemática e ampla, explicando elementos ou
conceitos que poderiam ser de difícil compreensão
O Apagão das Liberdades 45
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para a imprensa, não constituía ilicitude alguma,
nem afetava o curso da operação, ainda que o
conteúdo fosse para além do que constaria nas
acusações propriamente ditas. A linguagem
usada era composta por descrições e adaptações
necessárias para a melhor prestação de contas por
parte de agentes públicos.

A exposição do procurador a respeito do papel de


Lula nos esquemas investigados foi clara, acessível
aos cidadãos e fundamentada em evidências
acumuladas em mais de dois anos de trabalho.
Só há e só houve “espetacularização do evento”,
como alega a defesa de Lula, para quem rechaça ou
rechaçava a Lava Jato como um todo, recusando-
se a acreditar, de modo pertinaz, nas inúmeras
revelações que a operação fez ao longo de sua
atividade e preferindo crer que tudo não passava
de invenção, a despeito das evidências. Para os
brasileiros comuns, dotados de bom senso, não
houve espetáculo algum. Na verdade, era apenas
uma explicação clara do que os procuradores haviam
encontrado. Algo objetivo, eficiente, mas até
simples em sua forma.

Há ainda o aspecto de que o envolvimento do


ex-presidente Lula, por si só, já atraía holofotes
espontaneamente, afinal, tratava-se da figura
política mais influente do país, o que obviamente
tornava ainda mais importante o apreço à
transparência por parte da Lava Jato, de modo a
O Apagão das Liberdades 46
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resguardar a própria legitimidade das investigações
e torná-la, na medida do possível, imune à pressão
de poderosos que se sentissem incomodados.

Essa publicização foi o que impediu – ao menos por


um tempo – que sabotagens políticas ocorressem
nas sombras, fazendo uso de nociva influência
para prejudicar a operação. Essa também era a
característica que permitia à sociedade saber das
negociatas que ocorriam no submundo da estrutura
estatal do Brasil, algo que não deixava de ser, de
certa forma, inédito em nossa história.

No momento em que uma figura como Lula é


denunciada, era impossível que o fato não tivesse
grande repercussão na imprensa. Foi isso o que
aconteceu e, na ocasião, mesmo que alguns
nomes do mundo jurídico tenham exposto certo
desconforto, não houve nenhuma reação relevante
na esfera pública apontando para a ilegalidade do
ato. Afinal, o caso não corria sob segredo de justiça
e não havia nenhum impedimento legal para a
coletiva de imprensa.

Agora, o que parece estar em curso é não só uma


retaliação contra os responsáveis pela operação,
mas a costura de um guarda-chuva de proteção dos
poderosos, de modo que nunca mais algum grupo
de procuradores tenha a “petulância” de repetir
o que fez a Lava Jato. Daqui em diante, agentes
públicos envolvidos em investigações de corrupção
O Apagão das Liberdades 47
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terão que avaliar bem as probabilidades de vingança
por parte daqueles que hoje estão sendo presos,
pois, lá na frente, em instâncias superiores, há
grandes chances de os punidos serem absolvidos,
independentemente da consistência das evidências.

Isso transforma o trabalho de combate ao crime


numa espécie de arena reservada apenas para
aqueles com disposição para o martírio, com
incentivos explícitos para que não se faça nada
contra quem possui recursos e poder. Diante dessa
infame caçada, quando aparecerão novamente
agentes públicos dotados da coragem e do senso
de missão que Deltan Dallagnol sempre teve?
Quantos estarão dispostos a trocar a comodidade
de uma atuação meramente burocrática por um
desempenho fora do comum, motivado unicamente
pelo desejo de fazer o que deve e o que o país precisa,
da melhor forma possível?

Por fim, a decisão é um golpe forte não só no


procurador, mas em todos os brasileiros que
vibravam, até poucos anos atrás, com um país
que parecia estar mudando, no qual políticos
poderosos enfim eram julgados com o mesmo
rigor que os cidadãos comuns. Em seu auge, a Lava
Jato conquistou amplo apoio popular porque era o
avanço concretizado do combate à corrupção, uma
agenda pública sonhada por gerações, mas que
infelizmente foi vivida por tempo curto demais.

O Apagão das Liberdades 48


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Suprema
camuflagem
04/02/2022

A respeito da “Carta Aberta Brasil


Mulheres” que teve, entre várias
signatárias, a ministra do STF
Cármen Lúcia. A carta defende de
forma velada a legalização do aborto,
tema que ainda será julgado pelo STF.
O Apagão das Liberdades 49
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J
á há muito tempo um truque comum dos
defensores da legalização do aborto, seja no
Brasil, seja em outros países, é simplesmente
evitar a palavra, especialmente nas nações onde a
população é majoritariamente contrária à prática.
Por isso, não é surpresa alguma que uma recém-
publicada “Carta Aberta Brasil Mulheres”, cujas
signatárias seriam “representativas de vários
segmentos e setores da sociedade” – embora todos
esses “segmentos e setores” estejam à esquerda e à
extrema-esquerda do espectro político –, defenda
claramente o direito ao aborto sem usar o termo
uma única vez.

A expressão que mascara a defesa do aborto é


“direitos sexuais e reprodutivos”, que começou
a ser usada no contexto das conferências das
Nações Unidas na década de 90 – especialmente a
conferência sobre população, em 1994, no Egito; e
a conferência sobre a mulher, em 1995, na China.
De início, muita gente de boa vontade acabou
iludida pelo palavreado, até porque o termo era
vendido também como a defesa de direitos reais das
mulheres, mas logo a farsa acabou desmascarada
graças a defensores da vida atentos, que souberam
ler nas entrelinhas e acompanharam os debates
internacionais e seus desdobramentos. Hoje,
praticamente ninguém familiarizado com a
discussão sobre o aborto ignora o real significado
do termo “direitos sexuais e reprodutivos”, mas
ele continua sendo empregado na falta de disfarce
O Apagão das Liberdades 50
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o índice
melhor e porque ainda há uma parcela da sociedade
que não percebeu o engodo.

É no décimo dos 19 itens da carta que se defende


a “manutenção e expansão dos direitos sexuais
e reprodutivos das mulheres”, pauta colocada ao
lado da “promoção da saúde integral da mulher
ao longo de todo o ciclo de vida, com especial
atenção à mulher idosa” e da “valorização e defesa
do SUS”, como se houvesse alguma equiparação
moral possível entre a necessária atenção à saúde
da mulher e um suposto direito de eliminar um ser
humano indefeso e inocente ainda no ventre da
mãe. Para que não fique nenhuma dúvida a respeito
do que realmente se pretende neste documento,
dirigido também aos candidatos nas eleições de
outubro, basta perceber a quantidade de signatárias
com histórico de defesa do aborto e ler o relato do
jornal Folha de S.Paulo, segundo o qual uma das
participantes da reunião teria dito que “a gente vive
um momento no Brasil em que a gente não pode
falar sobre o aborto, e isso é um grande problema.
A gente precisa falar sobre os nossos direitos
reprodutivos”.

Obviamente, a militante não está dizendo que há


alguma censura em curso sobre o tema, mas apenas
que deixar claras suas intenções é suicídio político
em um país onde a maioria da população defende
a vida por nascer, daí a necessidade de camuflar
o discurso. Na verdade, podemos e devemos falar
O Apagão das Liberdades 51
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sobre o aborto, sobre o que ele realmente é – a
eliminação, repetimos, de um ser humano indefeso
e inocente –, sobre os riscos envolvidos, sobre as
sequelas físicas e psicológicas que deixa. Tudo isso
é convenientemente escondido por aqueles que
propagam os tais “direitos sexuais e reprodutivos”
– aparentemente, um direito que eles pretendem
negar às mulheres é o de saber exatamente o que
está em jogo quando se trata do aborto.

A carta aberta ainda chama a atenção pelo nome


de uma de suas signatárias: a ministra Cármen
Lúcia, do Supremo Tribunal Federal. Apesar dos
relatos de que ela teria deixado a reunião de
elaboração do texto, ocorrida na casa da ex-ministra
e ex-senadora Marta Suplicy, por discordâncias
justamente sobre o tema do aborto, ela
aparentemente não se incomodou com a redação
final da carta a ponto de pedir que seu nome não
fosse incluído.

Cármen Lúcia defendeu-se das críticas por ter


assinado a carta afirmando que “no ofício, juiz
não tem amigos, tem obrigações”. Pois uma de
suas obrigações está no artigo 36 da Lei Orgânica
da Magistratura, pelo qual o juiz não pode
“manifestar, por qualquer meio de comunicação,
opinião sobre processo pendente de julgamento,
seu ou de outrem”. E o Supremo tem pendentes
de julgamento várias ações sobre a legalização
do aborto, das quais a principal é a ADPF 442. Ao
O Apagão das Liberdades 52
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o índice
assinar uma carta que pede a “expansão dos direitos
sexuais e reprodutivos das mulheres”, e quando
se sabe que a expressão nada mais é que uma
camuflagem para a defesa do aborto, a ministra
estaria deixando clara sua opinião sobre um tema
que ela pode vir a julgar se a ADPF for levada a
plenário.

Infelizmente, no caso do aborto boa parte dos


ministros do Supremo deixa de lado qualquer
pudor. Luís Roberto Barroso já “sequestrou” um
julgamento sobre um habeas corpus para decidir
que a proibição do aborto no primeiro trimestre de
gestação seria inconstitucional, no que foi seguido
por Edson Fachin e Rosa Weber. Esta última, por sua
vez, na relatoria da ADPF 442 promoveu audiências
públicas completamente enviesadas, em que o
número de palestrantes a favor da legalização
era muito maior que o de vozes contrárias; além
disso, muitos pró-vida convocados tinham alguma
ligação religiosa, em uma tentativa da relatora
de transformar o debate em uma controvérsia
religiosa, quando o aborto é, fundamentalmente,
uma discussão ética e científica. Regras processuais
e o dever de imparcialidade, ao que parece, nada
valem quando se trata de relativizar o mais
importante dos direitos, o direito à vida.

O Apagão das Liberdades 53


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Alexandre de
Moraes e o
Judiciário
“editor” nas
eleições
31/10/2021

Repercutindo a fala do ministro


Alexandre de Moraes no julgamento
que absolveu a chapa de Jair
Bolsonaro e Hamilton Mourão no
Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
O Apagão das Liberdades 54
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N
o mesmo julgamento em que o Tribunal
Superior Eleitoral (TSE) absolveu, por
unanimidade, a chapa formada por Jair
Bolsonaro e Hamilton Mourão em ações impetradas
pelo PT, um dos membros da corte, o ministro
Alexandre de Moraes, deu mais uma demonstração
que os tribunais superiores seguem bastante
dispostos a agir como “editores da sociedade”,
na infeliz expressão do ex-presidente do STF Dias
Toffoli. Moraes, que também é membro do Supremo
e se tornará presidente do TSE um mês antes
das eleições de 2022, prometeu cassar e prender
quem “repetir o que foi feito em 2018”, em alusão
a um suposto crime cujas provas, ou ao menos a
sua gravidade, nenhum ministro reconheceu no
julgamento de quinta-feira, 28 de outubro.

“Se houver repetição do que foi feito em 2018,


o registro será cassado. E as pessoas que assim
fizerem irão para a cadeia por atentar contra as
eleições e a democracia no Brasil (...) A Justiça é
cega, mas não pode ser tola. Não podemos criar
o precedente avestruz. Todo mundo sabe o que
ocorreu, o mecanismo usado nas eleições e depois
(...) Nós podemos absolver aqui, por falta de provas,
mas sabemos o que ocorreu. Sabemos o que vem
ocorrendo e não vamos permitir que isso ocorra.
Não podemos criar um precedente, olha tudo que
foi feito vamos passar o pano. Porque essas milícias
digitais continuam se preparando para disseminar
o ódio, para disseminar conspiração, medo, para
O Apagão das Liberdades 55
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influenciar eleições, para destruir a democracia (...)
Houve disparo em massa. Houve financiamento
não declarado para esses disparos. O lapso temporal
pode ser impeditivo de uma condenação, mas não
é impeditivo da absorção, pela Justiça Eleitoral,
do modus operandi que foi realizado, e que vai ser
combatido nas eleições 2022”, afirmou o ministro,
de quem se pode dizer, com toda a tranquilidade,
que é, hoje, um dos agentes políticos cujas ações
mais têm colaborado para erodir as liberdades
democráticas no Brasil, graças à sua condução
dos abusivos inquéritos das fake news, dos atos
antidemocráticos e das “milícias digitais”.

Ora, se não há provas, não há como um magistrado


afirmar de forma tão enfática que “sabemos o
que ocorreu”. Se há as provas, mas elas não foram
consideradas graves o suficiente para cassar uma
chapa, como é possível prometer que, no ano que
vem, o mesmo procedimento resultará em cassação
e até prisão? O que será considerado “disseminar
ódio”, “conspiração” ou “medo”? Espalhar
acusações contra candidatos pelo WhatsApp
renderá prisão? Que tipo de acusações? A esquerda
poderá chamar Jair Bolsonaro de “genocida” mesmo
se tal acusação, formalmente, jamais prosperar em
um tribunal brasileiro ou estrangeiro? Os usuários
do WhatsApp poderão se empenhar ao máximo para
lembrar todas as provas (ainda que agora inúteis em
um tribunal, graças aos contorcionismos jurídicos
do Supremo) dos crimes da “alma mais honesta da
O Apagão das Liberdades 56
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nação” e dos esquemas de seu partido para fraudar a
democracia brasileira?

O problema, aqui, não está em “passar pano”


para atos que sejam efetivamente fraudulentos,
como um gasto de campanha não declarado com
o objetivo de aumentar o alcance de publicações
em mídias sociais ou aplicativos de mensagens. É
para isso que servem os órgãos de fiscalização e
investigação, bem como a Justiça Eleitoral. Também
não se trata de aceitar pacificamente que as
campanhas eleitorais sejam conduzidas de maneira
sórdida – um hábito que, no Brasil, vem de muito
antes da existência das mídias sociais e não dispensa
o uso de marqueteiros pagos a peso de ouro
devidamente declarado nas prestações de contas,
como foi o caso de João Santana, que comandou
a campanha de Dilma Rousseff em 2014. Naquela
ocasião, a candidata Marina Silva foi vítima de todo
tipo de perfídia midiática – ficou célebre a peça
publicitária que associava a defesa da autonomia do
Banco Central ao sumiço de comida na mesa de uma
família pobre.

O verdadeiro problema, e que está implícito na fala


de Alexandre de Moraes, é que o Judiciário parece
disposto a se tornar o que não pode ser: árbitro do
que é manifestação de opinião ou do que é fake
news – às vezes classificando como tais mesmo
o que não é uma afirmação factual –, do que é
“ódio” ou “medo”, criminalizando muito do que
O Apagão das Liberdades 57
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não se encaixaria nas definições de calúnia, injúria,
difamação ou afirmações factuais falsas, e passando
a punir discursos, opiniões, análises e críticas feitas
por candidatos e cabos eleitorais pelo que acha
merecedor de punição, não pelo que realmente é
punível por lei. Em um país onde já se instaurou,
na prática, a existência de “crime de opinião”,
no qual a perseguição ocorre sob os aplausos de
parte expressiva da sociedade e de formadores de
opinião, e em que a repressão se dá apenas contra
um lado do espectro político-partidário-ideológico,
a carta branca para a Justiça Eleitoral agir como
promete Alexandre de Moraes será uma ameaça à
democracia muito maior que aquela que o ministro
diz querer combater.

A necessária exposição de características, opiniões


e feitos que tornam um candidato indigno do voto
popular, bem como a crítica ou a análise, mesmo
que contundentes, fazem parte da campanha e
ajudam o eleitor a definir seu voto. Coisa diferente
é o crime eleitoral, o abuso de poder, o caixa dois,
a calúnia, a injúria e a difamação, a divulgação
deliberada de informações factuais que se sabe
serem mentirosas – tudo isso pode e deve ser
investigado e punido pelo Estado. Por sua vez,
opiniões e avaliações (afirmações não factuais,
portanto) infundadas, feitas de forma desleal,
essas têm de ser avaliadas não pela Justiça, mas
pela sociedade, que decidirá se demonstra seu
repúdio a quem joga baixo na campanha. Misturar
O Apagão das Liberdades 58
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essas atribuições é caminho para uma confusão
perigosa e que pode fazer das eleições de 2022 um
pleito marcado pelo arbítrio, ainda mais que pela
polarização.

O Apagão das Liberdades 59


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O STF e a
vingança dos
corruptos
23/04/2021

Resume a indignação da Gazeta


diante da confirmação pelo STF
da suspeição do ex-juiz Sergio
Moro nas ações envolvendo o
ex-presidente Lula.
O Apagão das Liberdades 60
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“N
a Itália, a corrupção conquistou a
impunidade. Aqui, entre nós, ela
quer vingança. Quer ir atrás dos
procuradores e juízes que ousaram enfrentá-la.
Para que ninguém nunca mais tenha a coragem de
fazê-lo. No Brasil, hoje, temos os que não querem
ser punidos, o que é um sentimento humano e
compreensível. Mas temos um lote muito pior, dos
que não querem ficar honestos nem daqui para a
frente, e que gostariam que tudo continuasse como
sempre foi.” São palavras históricas do ministro
Luís Roberto Barroso, ditas durante a sessão
desta quinta-feira do Supremo Tribunal Federal.
Elas descrevem à exatidão o que aconteceu, está
acontecendo e ainda acontecerá no Brasil: a reação
dos corruptores e corruptos à maior e (até quinta-
feira, ao menos) mais bem-sucedida operação de
combate à ladroagem da história do país.

Em uma sessão que terminou com novas


demonstrações de destempero de Gilmar Mendes,
forçando seu encerramento sem que dois votos – o
do presidente Luiz Fux e do decano Marco Aurélio
–, fossem proferidos, o STF formou maioria para
decidir que o habeas corpus julgado pela Segunda
Turma e que resultou na declaração de suspeição
do ex-juiz Sergio Moro no caso do tríplex do
Guarujá não havia perdido seu objeto, isso apesar
de o mesmo plenário ter confirmado, na semana
anterior, a nulidade de todas as ações contra o ex-
presidente Lula em Curitiba. Se a decisão da semana
O Apagão das Liberdades 61
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passada já jogava de volta à estaca zero todos os
processos, a manutenção da suspeição piora a
situação, pois nem mesmo as provas colhidas pela
força-tarefa e aceitas por Moro poderão ser usadas
no novo julgamento. A impunidade, como se diz no
jargão futebolístico, colocou as duas mãos na taça.

Mas o que ocorreu nesta quinta-feira não é


apenas sobre Lula – antes fosse. A decisão não
apaga todo o “caminhão de provas”, na expressão
do procurador Roberto Livianu, que ligam o ex-
presidente à pilhagem da Petrobras. Elas podem
não ser novamente aceitas em um tribunal, Lula
provavelmente jamais voltará a pagar pelo que fez,
mas a verdade dos fatos está posta para qualquer
um que não esteja cego pela ideologia ou pela
adoração à alma mais mentirosa do país. O que vem
ocorrendo no Supremo – não apenas ontem, mas
ao longo de meses – tem uma dimensão histórica
que diz muito sobre as chances de o combate à
corrupção no Brasil prosperar ou fracassar.

Nunca – reforçamos: nunca – será demais repetir


o que a Operação Lava Jato fez pelo Brasil. Ela
desmontou o que foi o maior esquema de corrupção
da história do país e um autêntico ataque à
democracia brasileira, em que, na sequência do
mensalão, um governo se aliou a outros partidos e
empreiteiras para pilhar estatais e, assim, perpetuar
seu projeto de poder. Os corruptos haviam
aprendido com o escândalo anterior, e desta vez
O Apagão das Liberdades 62
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montaram uma rede muito mais intrincada, com
infinitos desdobramentos. Isso não desanimou
os investigadores, que, com esforço e dedicação
incansáveis ao longo de anos a fio, montaram o
quebra-cabeça, encaixando até mesmo as peças
principais, aquelas mesmas que faltaram em
investigações anteriores, não obstante os esforços
de outros agentes da lei que vieram antes da Lava
Jato. Tudo feito com rigor máximo, mas sempre
com todos os cuidados para não se cruzar a linha
que separa a legalidade da ilegalidade, inclusive nos
casos em que a legislação deixava mais espaço de
interpretação a investigadores e julgadores.

Pois o que o Supremo – ou ao menos a maioria


de seus ministros, já que sempre houve aqueles
bastante duros com a ladroagem – disse nesta
quinta-feira, e vem dizendo já há algum tempo,
é que todo o rigor, toda a dedicação, todo o
cuidado para cumprir a lei, podem até colocar
peixes pequenos atrás das grades, mas quando
se trata dos mais poderosos de nada servem. O
cumprimento dos prazos processuais previstos em
lei será transformado em cerceamento de defesa.
Atos e decisões que despertam indignação entre
os que discordam do rigor no combate à corrupção,
mas que ocorreram dentro da legalidade e daquela
margem de discricionariedade à qual nos referidos,
serão distorcidos e transformados em “abuso”,
“excesso” ou parcialidade, vontade de punir. A corte
passará a ver incompetências onde antes não via
O Apagão das Liberdades 63
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absolutamente nada de errado. Queiram ou não
os ministros (pois não nos cabe julgar as intenções
de cada um), o fato é que, hoje, objetivamente, o
Supremo Tribunal Federal é o principal promotor
da impunidade em crimes de colarinho branco no
Brasil. Não pune e não deixa punir. Deixa parados
os processos da ladroagem com foro privilegiado, e
desfaz o trabalho dos que investigaram e julgaram a
ladroagem sem foro privilegiado.

A próxima etapa, como afirmou Barroso, é a da


vingança. A bancada da impunidade no Congresso
Nacional aplainou o caminho aprovando a absurda
Lei de Abuso de Autoridade, a lei da retaliação
dos investigados, réus e condenados contra seus
investigadores e juízes. É questão de tempo até
que se tente enquadrar Sergio Moro nela. Afinal,
estamos no país em que um presidente de tribunal
superior usa “evidências” sem autenticidade
comprovada e obtidas por meio de crime para
instaurar inquérito contra procuradores da Lava
Jato, atropelando a Constituição. Em um ambiente
desses, que incentivo podem ter policiais,
procuradores, promotores e juízes para se dedicar
ao combate à corrupção? Que incentivo terão jovens
que sonham com essas carreiras para poder fazer
a diferença pelo bem do Brasil? Como dissemos,
o que está ocorrendo não é apenas sobre Lula,
nem mesmo apenas sobre a Lava Jato. É sobre um
sistema de Justiça feito para funcionar quando
convém, mas que tem brechas suficientes para frear
O Apagão das Liberdades 64
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tudo o que não convém.

Em uma cena célebre da série O Mecanismo, um


corrupto na cadeia recebe uma ligação telefônica
e, logo em seguida, grita a outros presos: “Vai todo
mundo embora! Foi pro Supremo”, despertando
uma onda de regozijo geral entre os ladrões da
ficção. Nesta quinta-feira, riram os corruptos da
vida real e seus apoiadores. Choraram os brasileiros
honestos, os que não têm bandido de estimação, os
que anseiam por justiça. Até quando será assim? Há
conserto possível? Disso trataremos em breve.

O Apagão das Liberdades 65


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O STF reescreve
o passado,
livra Lula
e prejudica
o combate à
corrupção
16/04/2021

Dia em que o plenário do


STF confirmou a canetada
do ministro Edson Fachin e
anulou os processos contra
o ex-presidente Lula que
tramitavam em Curitiba.
O Apagão das Liberdades 66
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O
plenário do Supremo Tribunal Federal,
mais uma vez, decidiu reescrever o
passado, apagando para isso toda uma
cadeia de decisões judiciais, para confirmar a liminar
do ministro Edson Fachin que anulou todos os
processos contra o ex-presidente Lula que estavam
na 13.ª Vara Federal de Curitiba. Prosperou, assim,
uma tese completamente desprovida de sentido e
cujas consequências vão muito além de tornar Lula
um ficha-limpa, apesar de todas as evidências dos
crimes cometidos no petrolão, podendo levar a uma
cascata de nulidades que colocaria a perder boa
parte dos sete anos de trabalho diligente e heroico
da Operação Lava Jato.

Sete ministros – Alexandre de Moraes, Rosa Weber,


Dias Toffoli, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski,
Luís Roberto Barroso e Cármen Lúcia – seguiram
Fachin ao considerar que os processos contra
Lula não deveriam ser julgados em Curitiba. Isso
apesar de vários tribunais e o próprio Supremo já
terem decidido, em ocasiões anteriores, que os
casos envolvendo a pilhagem da Petrobras eram
de competência da 13.ª Vara; e apesar de tanto
a denúncia apresentada pelo Ministério Público
Federal quanto as sentenças que condenaram ou
confirmaram a condenação de Lula apontarem
inequivocamente a ligação entre os crimes
cometidos e o saque à estatal petrolífera, como
ressaltou Nunes Marques, primeiro dos três votos
contrários à liminar de Fachin. E, quando se nega
O Apagão das Liberdades 67
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a verdade dos fatos de forma tão escancarada, o
resultado só pode ser a confusão, exemplificada aqui
no fato de os ministros não se entenderem sobre
onde, então, tais processos deveriam ser analisados
– enquanto Fachin afirmava que Brasília deveria ser
o foro adequado, Alexandre de Moraes afirmou que
eles deveriam ser remetidos para São Paulo, questão
que ficou pendente de resolução.

Tanto a tese absurda de Fachin quanto a divergência


aberta por Alexandre de Moraes mostram que
o sistema de Justiça, em casos de corrupção tão
intrincados e cheios de desdobramentos como
o petrolão, parece feito para não funcionar ao
permitir esse tipo de decisão, como bem lembrou o
procurador Deltan Dallagnol em manifestação nas
mídias sociais, e como a Gazeta do Povo também
explicou neste espaço. “Qualquer juízo federal
poderia ter julgado essas ações”, disse Marco
Aurélio Mello, outro dos votos contrários à liminar –
e acrescentamos: a julgar pelo comportamento da
maioria do plenário do STF, não seria absurdo que
os mesmos processos acabassem anulados onde
quer que tivessem sido realizados; poder-se-ia até
mesmo concluir que deveriam ter sido enviados a
Curitiba...

Por mais incorreta que seja a tese vencedora nesta


quinta-feira, não se pode descartar a possibilidade
de que tanto Fachin quanto alguns dos ministros
que o acompanharam – porque também houve os
O Apagão das Liberdades 68
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adversários declarados da Lava Jato entre a maioria
– tivessem a intenção de salvar o trabalho da
operação de um destino ainda pior. Isso porque, se
os processos tivessem sido mantidos em Curitiba e
prevalecesse o julgamento da Segunda Turma que
tornou o ex-juiz Sergio Moro suspeito, inúmeros
atos processuais e evidências seriam perdidos sem
chance de recuperação; no entanto, com a simples
anulação dos processos de Curitiba e seu envio a
outro foro, boa parte deles poderá ser reaproveitada.

Essa deveria ser uma conclusão automática:


extintos os processos de Curitiba, deixariam de
existir também todos os recursos a eles ligados,
inclusive o habeas corpus que pedia a suspeição
de Moro. Mas, neste Supremo Tribunal Federal, a
lógica não é o forte de seus integrantes, como se
viu no espetáculo deprimente protagonizado pela
Segunda Turma ao declarar Moro suspeito. Por isso,
será preciso que os ministros deixem explícito o que
é óbvio, podendo até mesmo negá-lo. Esta decisão
– se, uma vez confirmada a anulação dos processos,
também os recursos perdem seu objeto – ficou
para a próxima semana. E, caso os ministros mais
uma vez queiram desprezar a realidade em nome
de conveniências políticas, criando a bizarra figura
de um habeas corpus que segue vivo mesmo tendo
sido impetrado dentro de um processo inexistente,
qualquer boa intenção por trás do lance de Fachin
terá sido em vão.

O Apagão das Liberdades 69


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Se os ministros fizerem o certo e declararem a perda
de objeto do recurso que pedia a suspeição de Moro,
terão revertido uma enorme injustiça contra o ex-
juiz. Mas, ainda assim, o saldo da decisão desta
quinta-feira é amplamente negativo do ponto de
vista do combate à corrupção e da busca por justiça.
Com os processos de Lula recomeçando do ponto de
partida, ainda que o novo juízo possa reaproveitar
parte do trabalho efetuado em Curitiba, o risco de
prescrição aumentou exponencialmente. E, quando
não há punição em um caso no qual as evidências
são avassaladoras, a sociedade sempre perde
muito. Ao colaborar para que alguns dos processos
mais emblemáticos da Lava Jato tenham esse fim,
o Supremo se coloca não do lado do Brasil, mas
daqueles que o saqueiam.

O Apagão das Liberdades 70


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