Uma História Que Começa Pelo Fim

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Uma histria que comea pelo fim, Manuel Antnio Pina in Histrias que me contaste tu Eram uma vez

um prncipe e uma princesa que se casaram e foram felizes para sempre. Mas para sempre muito tempo e, com o passar dos anos, a felicidade do prncipe e da princesa comeou a ter um sabor estranho e a tornar-se, como hei-de dizer?, um pouco aborrecida. - Que saudades eu tenho de quando era guardadora de patos!, dizia a princesa. - E eu que saudades tenho de quando era sapo, e esperava que tu chegasses e me beijasses para quebrar o feitio!, dizia melancolicamente o prncipe. (O prncipe e a princesa estavam j a ficar velhos e e confundiam frequentemente as coisas, misturando com a sua histria as histrias de outros prncipes e outras princesas de que tinham ouvido falar). Um dia, passeando nos jardins do palcio, de mos dadas, como sempre, concluram que eram felizes h tanto tempo que j nem sabiam bem o que era a felicidade, e que, se ao menos se lembrassem de alguma coisa infeliz, talvez pudessem de novo aperceber-se de como eram felizes. Chamaram ento os cortesos para que eles lhes falassem de coisas infelizes e tristes. Mas os cortesos, como j tinha passado muito tempo, tambm j no se lembravam. A nica coisa de que um deles, depois de um grande esforo, foi capaz de lembrar-se foi de que lhe parecia que estar triste era triste. Mas quando lhe perguntaram o que era estar triste ficou longos minutos em silncio, a puxar pelas recordaes, e no conseguiu lembrar-se de mais nada (a no ser, lembrou-se de repente, de que deixara as chaves de casa no bolso das calas que tinha mandado para a lavandaria!). - O que eu dava por um pouco, um pouco s, de tristeza! dizia o prncipe abanando a cabea. Assim nem sabemos se somos felizes ou no. Devemos ser, mas no temos a certeza Acrescentava a princesa. Pediram ajuda Fada Madrinha, que lhes fazia todas as vontades, mas a Fada Madrinha era uma Fada Boa e no podia fazer maldades nem provocar tristeza, e por isso no lhes pde valer. Passou mais muito, muito tempo, at que um dia, o Bobo, que tinha frequentemente ideias malucas, teve uma ideia maluca: e se tudo aquilo fosse uma grande maldade da Bruxa M? Se ela tivesse rodeado o prncipe e a princesa de felicidade por todos os lados e os tivesse aprisionado? Se todos, at ele, que tambm era (julgava que era, mas tambm j no tinha a certeza) feliz, fossem afinal prisioneiros da Bruxa M? Era uma ideia maluca, e o Bobo no se atreveu a falar a ningum. Mas, a partir desses dia, passou a procurar desesperadamente uma sada que desse para Qualquer-Stio, por onde pudesse passar para o outro lado da muralha da felicidade. At que, numa certa tarde, decidiu meter-se por um buraco que lhe pareceu apropriado para ir dar a Qualquer-Stio. Porm, ao longo de tantos e tantos anos de felicidade, o Bobo tinha engordado muito e, mal se enfiou no buraco, ficou preso pela barriga, sem poder continuar nem voltar para trs. O prncipe e a princesa deram pela falta do Bobo e ficaram muito aflitos, porque eram muito, muito amigos dele. Ajudados pelos cortesos, procuraram-no por toda a parte. Mas chegou a noite e o Bobo no apareceu. Ento, nessa noite, ao jantar, a princesa, olhando a cadeira vazia do Bobo mesa, sentiu uma impresso estranha: uma espcie de no sabia bem o qu, no sabia bem onde, como se o seu corao, de repente, se tivesse tornado mais pequeno. E o prncipe pegou-lhe na mo e sussurrou:

- Tambm eu. Ser que - a sua voz estremeceu ser que estamos tristes?! E ento, de repente, perceberam: - Estamos tristes, estamos tristes!, gritaram os dois, saltando alvoroados nos cadeires. Ficaram contentssimos por estarem tristes. Mas, ao mesmo tempo, ficaram tristes. Porque continuavam sem saber o que teria acontecido ao Bobo. - Que grande infelicidade, disse a princesa voltando a sentar-se. E se o Bobo morreu? E, pela primeira vez desde h muitos, muitos anos, dos seus olhos correram de novo, ligeirinhas, as lgrimas. Estavam to desabitadas, as lgrimas, que, primeiro, assomaram timidamente aos cantos dos olhos da princesa, espreitando, hesitantes, e s depois ganharam coragem e se decidiram a correr-lhe, duas a duas, pelas faces. - So salgadas, disse, surpreendida, a princesa. - As saladas?..., perguntou o prncipe sem compreender. - No, as lgrimas Nas semanas seguintes, como o Bobo continuava sem aparecer, o prncipe e a princesa passaram terrveis dias de tristeza e aflio. At que, como esteve muito tempo sem comer, metido no buraco, o Bobo emagreceu. E tanto emagreceu que, finalmente, conseguiu safar-se, e voltou, cheio de fome, ao Palcio, onde foi recebido com grandes festas. E voltaram todos a viver felizes para sempre. Retirado do livro Histrias que me contaste tu de Manuel Antnio Pina

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