Lutas Memorias
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NO CAMPO BRASILEIRO
Conflitos, repressão e resistências
no passado e presente
Sérgio Sauer (org.)
1ª edição
Outras Expressões
São Paulo – 2020
Copyright © 2020 by Outras Expressões
Conselho editorial: Gaudêncio Frigotto, Luiz Carlos de Freitas, Maria Victória de Mesquita Benevides,
Paulo Ribeiro Cunha, Rafael Litvin Villas Bôas, Ricardo Antunes, Walnice Nogueira Galvão, Eliseu
Sposito e Juvelino Strozake.
OUTRAS EXPRESSÕES
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SUMÁRIO
1
Este texto retoma e atualiza algumas teses de um artigo a ser publicado em uma coletânea (em
processo de edição) do Arquivo Nacional, em comemoração aos dez anos do Projeto Memórias
Reveladas, completados em 2019.
2
Professora e pesquisadora do Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvol-
vimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/
UFRRJ). Coordenadora do Núcleo de Pesquisa, Documentação e Referência sobre Movimentos
Sociais e Políticas Públicas no Campo (NMSPP/CPDA/UFRRJ).
Leonilde Servolo de Medeiros
3
Ver, entre outros, Eckert (1984), Grynszpan (1987), Gomes (1987), Novaes (1997), Heller da
Silva (2006); Welch (2010), Priori (2011); Carneiro (2014). Martins (1981) e Medeiros (1989)
fazem uma síntese desses conflitos.
4
Ver em especial Camargo (1973) que fez sua tese pioneira sobre o tema fora do Brasil; Azevedo
(1982); Bastos (1984); Aued (1981), as três últimas, dissertações de mestrado, apresentadas em
diferentes instituições brasileiras e depois publicadas. Publicados no exterior, marcaram os de-
bates os trabalhos de Page (1972) e Forman (1975).
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Repressão e resistências no campo
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Leonilde Servolo de Medeiros
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Da mesma forma, há poucos estudos sobre as relações entre as entidades de representação dos
grandes e médios proprietários de terra e o golpe e sobre como elas se posicionaram ao longo do
período ditatorial.
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Repressão e resistências no campo
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Leonilde Servolo de Medeiros
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Repressão e resistências no campo
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Esses eventos foram gravados e parte deles se encontra disponível para consulta no Núcleo de
Pesquisa, Documentação e Referência sobre Movimentos Sociais e Políticas Públicas no Campo
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Repressão e resistências no campo
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vimento dos Pequenos Agricultores (MPA); Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
(MST); Sindicato Nacional dos Trabalhadores de Pesquisa e Desenvolvimento Agropecuário
(Sinpaf) e Via Campesina Brasil. Ou seja, a unidade proposta, enfatizando os Trabalhadores,
Trabalhadoras e Povos do Campo, das Águas e das Florestas era bem mais abrangente do que a
denominação campesinato e chamava a atenção para modos de vida e usos distintos dos terri-
tórios em que viviam.
11
Este não é o espaço para aprofundar a discussão sobre o processo político de identificação e
nomeação dos opositores dos trabalhadores e povos do campo. No entanto, cabe chamar a
atenção para o fato de que até os anos ,1990, o adversário era nomeado ou como “latifúndio”,
termo que se tornou sinônimo de opressão e exploração e não só de grande propriedade (Novaes,
1997), ou como “grileiro” (denotando a ilegitimidade legal do controle sobre vastas extensões
de terra). Progressivamente esses termos foram sendo substituídos por “agronegócio”, ou seja, a
grande empresa agropecuária, produtora para exportação, com alto uso de tecnologia e articu-
lada a grandes conglomerados quer produtores de insumos quer especializados na exportação
(tradings).
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Repressão e resistências no campo
ração aos seus familiares, com a criação de uma comissão camponesa pela
anistia, memória, verdade e justiça para incidir nos trabalhos da Comissão
Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, visando a inclusão de to-
dos afetados pela repressão. (Encontro Unitário, 20/06/2019, grifos meus)
12
A Contag, em sua sede, dispõe de espaço para hospedagem e alimentação de participantes das
atividades que ela promove, além de salas de reunião.
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O relatório final da CNV menciona a CCV. No entanto, o documento produzido por esta, ape-
sar de formalmente entregue à CNV, não consta da documentação oficial da Comissão. O es-
tudo foi depois publicado como livro pelo Senado Federal, graças ao apoio dos senadores Paulo
Paim e João Capiberibe, então presidente e vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos
e Legislação Participativa do Senado Federal, com o nome de Comissão Camponesa da Verdade.
Relatório final. Violações de Direitos no Campo. 1946-1988 (Sauer et al., 2015). Nele pode ser
encontrada a extensa lista de participantes da CCV. Encontra-se também disponível no site Me-
mória da Ditadura.
14
De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), a justiça de transição é o “conjunto
de processos e mecanismos relacionados com os esforços de uma sociedade para superar um
legado de graves violações de direitos humanos cometidos em larga escala no passado, a fim de
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Repressão e resistências no campo
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tentativas de expulsão, seja por proprietários, seja por grileiros, ou, no caso
de assalariados, em grande parte dos casos “moradores” de fazendas, o pro-
pósito de garantir direitos trabalhistas, legalmente instituídos, mas sistema-
ticamente violados pelos “patrões”. Nessa direção, uma linha importante de
pesquisa foi aberta por Teló (2019), quando procurou analisar as condições
da chegada das organizações de esquerda no campo, as formas e recursos
que se utilizaram para se aproximar e as diferentes reações dos camponeses,
mostrando a complexidade dessa relação.
A identificação das vítimas e das formas de repressão e, portanto, das
formas de reparação é outro tema de debate. O estudo coordenado por Gil
ney Viana (Brasil, Presidência da República, Secretaria de Direitos Huma-
no, 2013), levantamento mais completo de que se dispõe sobre as vítimas
da repressão no campo, aponta 1.196 casos de camponeses mortos ou desa-
parecidos entre 1961 e 1988. Observando-se a lista, percebe-se que muitos
aparecem como “não identificados”. Como foi discutido em diversas opor-
tunidades nas reuniões da CCV e confirmado pelas diversas experiências
individuais de pesquisa e mediação política, no plano da sociabilidade local
do meio rural, as pessoas são identificadas por apelidos, os sobrenomes fa-
miliares nem sempre são conhecidos. Muitas vezes, sequer dispunham de
documentação. Em pesquisa que coordenamos sobre a repressão no campo
no estado do Rio de Janeiro (Medeiros, 2018), alguns relatos mencionaram
conhecidos dos entrevistados cujo corpo aparecia num determinado local,
com marcas de violência. Somente os apelidos eram mencionados, pois des-
conheciam os nomes. Além disso, em situações de isolamento e risco, não é
difícil supor que, frente ao fato do desaparecimento de familiares, vizinhos,
companheiros de trabalho, muitas famílias sequer ousaram fazer denúncias,
com medo de represálias, o que indica que o número de desaparecidos sem
identificação pode ser ainda maior do que o apontado por Viana.
Além dessas formas mais conhecidas por quem pesquisa o meio rural, o
material sistematizado pela CCV ilustra ainda formas mais veladas de repres-
são. É o caso, por exemplo, de Aparecido Galdino Jacinto, participante de um
conflito por terra em Santa Fé do Sul, estado de São Paulo, nos anos 1970, e
que se tornou um líder místico. Ele foi preso e depois mandado para o mani-
cômio judiciário, pois seu silêncio e gestualidade sugeriram, aos seus juízes,
desequilíbrios mentais. O caso ganhou repercussão por ter sido acompanhado
e denunciado na imprensa por José de Souza Martins ( 2004).
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Repressão e resistências no campo
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O PIC Papucaia é objeto de estudo do doutorando Ricardo Braga Brito, no CPDA/UFRRJ.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
As constatações sobre o campo presentes no Relatório Final da Co-
missão Nacional da Verdade (Brasil. Comissão Nacional da Verdade, 2014)
representaram um avanço na medida em que jogaram luz sobre algumas
dimensões sobre as formas da repressão. No entanto, elas foram insuficien-
tes para dar conta da sua complexidade. A CCV, em seu relatório (Sauer et
al, 2015), trouxe uma importante contribuição ao debate, mostrando que
longe de serem localizadas e movidas por grupos da esquerda organizada,
as resistências no campo se disseminavam por diversos pontos do território
nacional e eram combatidas quer pelas forças policiais, quer em especial
pelo poder privado.
A experiência da CCV teve desdobramentos. Alguns de seus membros
participaram de pesquisas estimuladas por comissões estaduais da verda-
de.17 Várias teses e dissertações foram apresentadas ou estão em curso abor-
dando temáticas relacionadas às iniciativas da CCV. Além disso, algumas
iniciativas do governo federal que ocorreram na sequência estimularam a
16
Sem ter dados de pesquisa, arrisco-me a dizer que situação semelhante ocorre nas periferias ur-
banas e favelas.
17
Como exemplo, menciono a pesquisa que eu mesma coordenei, financiada pela Faperj, a partir
de um edital demandado a essa agência pela Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro
(Medeiros, 2014) e os estudos de Gabriel Teixeira, que publica neste livro um capítulo resultante
de trabalho junto à Comissão da Verdade do Estado de São Paulo.
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REFERÊNCIAS
AUED, Bernardeth W. A vitória dos vencidos. Partido Comunista Brasileiro – PCB e ligas
camponesas, 1955-1964. (Dissertação de Mestrado). Campina Grande: Universida-
de Federal da Paraíba, 1981.
AZEVEDO, Fernando Antonio, As Ligas Camponesas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
BARROS, Francisco Blaudes Sousa. Japuara. Um relato das entranhas do conflito. Brasí-
lia: Ministério do Desenvolvimento Agrário, 2013. Coleção Camponeses e Regime
Militar, vol. 2. Organização de Marta Cioccari e Djane Della Torre.
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BEZERRA, Gregório. Memórias. São Paulo: Boitempo, 2011. Ed. ampliada e atualizada.
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e desaparecidos: excluídos da justiça de transição. Brasília: Secretaria de Direitos Hu-
manos da Presidência da República, 2013.
BRASIL, Comissão Nacional da Verdade. Relatório: textos temáticos repressão/ Comissão
Nacional da Verdade. Brasília: CNV, 2014. 416 p. (Relatório da Comissão Nacional
da Verdade; v. 2)
CAMARANO, Marcia. João sem Terra. Veredas de uma luta. Brasília: Ministério do De-
senvolvimento Agrário, 2012. Coleção Camponeses e Regime Militar, vol. 1.
CAMARGO, Aspásia A. Mouvements paysans et crise populiste. (Thése de troisième cycle)
Paris: École des Hautes Études em Sciences Sociales, 1973
CARNEIRO, Ana; Cioccari, Marta. Retrato da repressão política no campo – Brasil, 1962-
1985. Camponeses torturados, mortos e desaparecidos. 2ª. ed. Brasília: Ministério
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CARNEIRO, Maria Esperança F. A revolta camponesa de Formoso e Trombas. São Paulo:
Anita Garibaldi/Fundação Maurício Grabois, 2014.
CEFAÏ, Daniel. Les cadres de l’action collective. Définitions et problèmes. In: CEFAÏ,
Daniel; TROM, Danny. Les formes de l’action collective. Mobilisations dans des arè-
nes publiques. Paris: École des Hautes Études en Sciences Sociales, 2001.
CONCEIÇÃO, Manuel da. Esta terra é nossa. Petrópolis: Vozes, 1980. Organização: Ana
Maria Galano.
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nesa no Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Consequência, 2018.
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Formoso e Trombas e a revolução brasileira (1950-1964). São Paulo: Editora da
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(1960-1964). (Dissertação de Mestrado). Seropédica: Curso de Pós-graduação em
Desenvolvimento Agrícola. Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, 1984.
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CAPÍTULO 1
Alessandra Gasparotto1
Aristeu Elisandro Machado Lopes2
Barbara de La Rosa Elia3
Clarice Gontarski Speranza4
Darlan de Farias Rodrigues5
Tiago Perinazzo Cassol6
1
Doutora em História pela UFRGS e Professora do Departamento e do Programa de Pós-Gra-
duação em História da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Prêmio de Pesquisa Memórias
Reveladas 2010.
2
Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor Asso-
ciado do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal
de Pelotas (UFPel).
3
Mestranda em História na Universidade Federal de Minas Gerais, na linha de pesquisa sobre
História e Culturas Políticas. Possui graduação em História pela Universidade Federal de Pelo-
tas (UFPel). É bolsista CAPES desde a graduação.
4
Professora do Depto. de História e do PPG em História da Universidade Federal do Rio Grande
do SUL (UFRGS), líder do Grupo de Pesquisa Trabalho, Resistência e Cultura do CNPq; prê-
mio de melhor tese da ANPUH/RS em 2014.
5
Mestre em História pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel); foi bolsista CAPES.
6
Mestre em História pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e professor de História no
Município de Rio Grande/RS.
Alessandra Gasparotto, Aristeu Elisandro Machado Lopes, Barbara de La Rosa Elia, Clarice
Gontarski Speranza, Darlan de Farias Rodrigues e Tiago Perinazzo Cassol
jornalista Rui Facó, enviado especial do jornal Novos Rumos ao Rio Grande
do Sul para acompanhar as mobilizações dos chamados sem-terra. O perió
dico, um veículo oficial do Partido Comunista Brasileiro (PCB), cobriu suas
páginas com uma densa narrativa sobre as lutas camponesas que emergiam
em todo o estado naquele início da década de 1960.7 Após percorrer dife-
rentes regiões, da campanha a serra, o jornalista descreveu a situação de
exploração experimentada por parte significativa da população que vivia no
meio rural, bem como tratou das crescentes mobilizações por terra, dentre
as quais se destacava a prática de acampamentos.
Inaugurada a partir da ocupação de uma área de mais de 24 mil hec-
tares de terra no norte do estado chamada Fazenda Sarandi, a prática de
acampamentos irrompeu no Rio Grande do Sul entre os anos de 1962 e
1964. Contam-se mais de 16 acampamentos, além de diversas mobilizações
que incluíram marchas, concentrações e ameaças de ocupações em diferen-
tes regiões, muitas das quais protagonizadas ou apoiadas pelo Movimento
dos Agricultores Sem Terra (Master) do Rio Grande do Sul.
O Movimento foi fundado em 1960 devido a um conflito fundiário
ocorrido no município de Encruzilhada do Sul, a partir da tentativa de um
proprietário de terras de retomar uma área de 1.800 hectares situada na lo-
calidade de Faxinal, que há 50 anos estava em poder de 300 famílias de pos-
seiros. Os posseiros resistiram à tentativa de expulsão – apoiados pelo então
prefeito de Encruzilhada, Milton Serres Rodrigues, e de outras lideranças
do PTB, como Paulo Schilling e Ruy Ramos – 8 e criaram o “Movimen-
to de Agricultores Sem Terra” de Encruzilhada do Sul. As mobilizações se
espalharam pelo estado, dando corpo a um movimento mais abrangente e
organizado, que agremiou dezenas de associações de sem-terra e promoveu
uma série de ações entre os anos de 1960 e 1964.
O Master emergiu em um contexto em que as disputas em torno da
terra, marcadas pelo surgimento de uma série de movimentos sociais no
campo, estiveram no centro de um amplo debate nacional. Naquele contex-
to, a bandeira da reforma agrária emergiu com grande intensidade. Segundo
Medeiros (1993, p. 7), o que se verificou
7
A reportagem integra uma série de cinco textos publicados entre março e abril de 1962, nas edi-
ções 161 a 165.
8
Schiling era um importante quadro do PTB gaúcho e na época ocupava o cargo de Superinten-
dente da Fronteira do Sudoeste; Ruy Ramos era deputado federal pelo PTB.
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Acampamentos abalaram a estância: conflitos sociais no campo e o MASTER
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Gontarski Speranza, Darlan de Farias Rodrigues e Tiago Perinazzo Cassol
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Acampamentos abalaram a estância: conflitos sociais no campo e o MASTER
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Um marco desta inflexão é o reconhecimento, por parte do governo, das associações vinculadas
ao Master como de interesse público (Eckert, 1984, p. 79).
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Alessandra Gasparotto, Aristeu Elisandro Machado Lopes, Barbara de La Rosa Elia, Clarice
Gontarski Speranza, Darlan de Farias Rodrigues e Tiago Perinazzo Cassol
Nota-se que nestes estatutos, que foram também uma referência para o
Master como entidade estadual, aparecem ressaltados o “estímulo à produti-
vidade” e “a valorização do homem do campo”, que se tornaram, para o mo-
vimento, bandeiras de luta e pautas econômicas vinculadas à crise agrícola
gaúcha. A entidade propunha um formato organizativo, através de “associa-
dos, sem discriminação de raça, nacionalidade, religião ou partido político”,
incluindo em suas fileiras, “aqueles agricultores ou pecuaristas, de ambos
os sexos, que, embora proprietários, aceitem os seus princípios e objetivos
e se proponham a defendê-los”, assim como “trabalhadores suburbanos e
marginais da cidade [...] e [que] pretendam dedicar-se à exploração da terra”
(Terra Livre, n. 98, março de 1961, p. 7). Suas propostas incluíam o alarga-
mento da sua base social e a inclusão, justamente, dos setores em crise na
agricultura gaúcha, fazendo a ressalva de que seriam incorporados desde que
“aceitem os seus princípios e objetivos” e mais, “se proponham a defendê-
-los”. Essa incorporação de amplos setores rurais será diferente em cada local
do estado, a depender da forma de mobilização, das lideranças locais e das
reivindicações expressadas.
Embora fundado em 1960 como uma associação local, desde o prin-
cípio as lideranças envolvidas na criação do Master projetavam um caráter
mais amplo ao movimento. Em junho de 1961, um encontro de associações
de sem-terra discutiu a criação de uma entidade estadual, bem como a rea-
lização de um encontro de agricultores do Rio Grande do Sul, previsto para
ocorrer em setembro de 1961.
O Master ganhou impulso a partir do final do ano de 1961, principal-
mente em função de sua participação no I Congresso Nacional de Lavrado-
res e Trabalhadores Agrícolas do Brasil, realizado em novembro, em Belo
Horizonte (MG).11 Com uma delegação composta por 33 delegados, repre-
11
O Congresso de Belo Horizonte, organizado pela União dos Lavradores e Trabalhadores Agrí-
colas do Brasil (Ultab), foi realizado em novembro de 1961, reunindo 1.600 delegados oriundos
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de diferentes regiões do país. Do encontro, resultou a Primeira proposta de Reforma Agrária Uni-
tária dos movimentos camponeses do Brasil.
12
Conforme noticiado na edição rio-grandense do jornal Última Hora: “Reforma agrária ime-
diata, com a liquidação do latifúndio, desapropriação de todas as propriedades acima de 500
hectares e sua venda aos camponeses, é a tese que o Primeiro Congresso dos Trabalhadores do
Campo, aprovou. [...] Última Hora, 20/11/ 1961, s/p.
13
Na reportagem de Facó, anteriormente citada, o jornalista indaga: “Teriam os acampados a
esperança de conseguir terra?” Ao passo que responde: “Sim, o acampamento é o nascer desta
esperança.”
14
O governo já havia declarado de utilidade pública, no dia 10 de janeiro, duas áreas para a efe-
tivação da Reforma Agrária: uma em São Jerônimo e outra em Canguçu. Contudo, essas áreas
eram menos expressivas em termos de tamanho se comparadas à Fazenda Sarandi e não conta-
ram com acampamentos de agricultores. Última Hora, 11 de janeiro de 1962, p.6.
15
Há divergências na historiografia sobre se os camponeses acamparam “na beira da estrada”,
configurando assim uma não “invasão”, ou se acamparam “dentro da área da fazenda” e, nesse
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Gontarski Speranza, Darlan de Farias Rodrigues e Tiago Perinazzo Cassol
sentido, “invadindo” o local. Rosa (2007), baseado em relatos orais, sustenta a tese de que os
camponeses “cortaram a cerca” da Fazenda.
16
A Fazenda Sarandi, “até 1903 pertencia ao Sr. João Vergueiro e ocupava pelo menos o dobro da
área a que estava reduzida em 1962. [...] Uma parcela de cerca de 16 mil hectares foi comprada
por Ernesto José Anoni que, em 1962, era prefeito de Carazinho pelo PTB. Outra parcela [...],
foi adquirida em 1903 pelo uruguaio Júlio Mailhos, industrial de fumo naquele país. Mais
tarde, e com a morte de Júlio, foi subdividida em três partes: Granadera Horácio Mailhos S/A,
Estância Júlio Mailhos S/A e Agropecuária Lucena S/C/A [...] Os Mailhos realizavam intensa
exploração de madeiras, através de três serrarias autorizadas [...] Além disso, arrendavam parce-
las a plantadores de trigo, milho, soja e criadores de gado. [...]” (Gehlen, 1983, p. 133).
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Rosa (2010), por exemplo, discorda da versão de que o primeiro acampamento de Sarandi tenha
sido obra do Master.
18
Na época, o governador Brizola afirmou que “[...] ‘Já assinamos o decreto de desapropriação da
Fazenda Sarandi e o Estado pedirá, ao Poder Judiciário, regime de urgência para a posse da ter-
ra. Esta área, dentro de três ou quatro dias será dos senhores’[...]”. (Última Hora, 16 de janeiro
de 1962, capa; p. 10-11).
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A desapropriação do Banhado do Colégio era de delicado litígio judicial à medida que se tratava
de um espaço onde os proprietários tinham sua legitimidade questionada. Deste modo, deter-
minadas glebas passaram a ser reivindicadas como devolutas, ou ainda, de interesse social, tendo
em vista a grande fertilidade das terras, que era principalmente advinda de obras públicas de
drenagem.
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Destaca-se que, convergindo com o acirramento das mobilizações e a emergência dos acampa-
mentos, em janeiro de 1962 foi criado o Programa Projetos Especiais de Reforma Agrária e De-
senvolvimento Econômico-social (Prade). A partir deste programa, o governo passou a abordar
a questão do associativismo como meio fundamental para se conseguir a inclusão dos assentados
no processo produtivo, auxiliando-os também para além da distribuição de terras. Desse modo,
incentivou intensamente a formação de novas associações de agricultores sem-terra e/ou com
pouca terra no estado.
21
A Comissão foi assim composta: presidente, Milton Serres Rodrigues, vice-presidente, Rosauro
Charlat; secretário, Euzébio França; tesoureiro, Mário Peres. Estas lideranças serão apresentadas
na próxima seção do presente texto.
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Em algumas fontes, tal evento é citado como I Congresso Gaúcho de Agricultores e Trabalha-
dores Rurais ou ainda I Congresso dos Agricultores Sem-Terra.
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contando com a presença de “mais de 100 pessoas, das quais 72 eram dele-
gadas, e os outros, representantes do Governo Estadual, Câmara Municipal,
sindicatos urbanos, estudantes, delegados de outros estados e Lindolpho Sil-
va como representante da Ultab” (Eckert, 1984, p. 149).
Neste Congresso, também foi eleita a diretoria do movimento, consti-
tuída por: Milton Serres Rodrigues, presidente (Encruzilhada do Sul); Ro-
sauro Chalart de Souza, lº vice-presidente (Uruguaiana); Romeu Barleze, 2º
vice-presidente (Carazinho); Euzébio França Filho, secretário geral (Porto
Alegre); Ary Saldanha, lº secretário (Livramento); Nascimento Meirelles,
2º secretário (Entre-Ijuís / Santo Ângelo); Rodolfo Moeller, tesoureiro ge-
ral (São Leopoldo); Darcy Rosa, 1º tesoureiro (São Lourenço); Jesus Severo
Vieira, 2º tesoureiro (Pelotas). Com a diretoria foram eleitos e empossados
33 membros efetivos e 33 suplentes do Conselho Deliberativo, além de Flo-
riano Maia d’Ávila, Darcy Von Hoonholtz e Salomão Silva, da Consultoria
Jurídica (Novos Rumos, 18 a 24/1/1963, p.6).
Ao se observar os perfis socioprofissionais dos dirigentes eleitos, desta-
ca-se a sua atuação em cargos públicos, em detrimento da predominância
da agricultura como principal forma de sustento. Eram, sobretudo, pessoas
vinculadas aos quadros do estado e ao meio urbano – Serres era ex-delegado
e prefeito municipal; Barleze, funcionário da Secretaria de Agricultura; Eu-
zébio França, técnico rural e servidor do IGRA; Ary Saldanha atuava como
ativista pelo PCB. Com isso, dentre os nomes que compunham a direto-
ria eleita, somente Rosauro Chalart e Meirelles desempenhavam atividade
econômica diretamente vinculada ao campo; o primeiro era “tosquiador de
ovelhas no município” de Uruguaiana (O Semanário, 15 a 20/9/1961, s/p) e
o segundo, além de militar reformado, era “agricultor em pequena escala.”
(Apers, Processo administrativo de indenização número 4745-1200/98 refe-
rente a Nascimento Pereira Meirelles).
Outro elemento importante diz respeito à vinculação partidária dos
dirigentes eleitos: dentre os seis primeiros nomes que compunham os mais
altos cargos – presidência, vice-presidência e secretaria – quatro deles per-
tenciam ao PTB – Serres, Barleze, Euzébio França e Meirelles – e dois eram
vinculados ao PCB – Ary Saldanha e Rosauro Chalart.23
23
Nota-se que a diretoria eleita é praticamente a mesma que constituiu a Comissão Executiva Pro-
visória, em abril 1962.
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Trata-se do “Inquérito policial militar para apurar atividades subversivas nas localidades de En-
cruzilhada do Sul, Amaral Ferrador, Faxinal do Soturno, Dom Feliciano, e Porto Alegre RS”.
Fonte: Serviço Nacional de Informações. Agência Porto Alegre. Porto Alegre, 6 de abril de 1988.
Informação n.015842/88. Referência: BR DFANBSB V8.MIC, GNC.GGG.88015842, 11 pá-
ginas. Acervo: Arquivo Nacional. É fundamental considerar a ambiguidade de tal documento
uma vez que foi produzido a partir da “lógica da desconfiança” da ditadura e sob prováveis pres-
sões sobre os indiciados. (Kushnir, 2002, p. 578)
25
A transcrição de partes das cadernetas redigidas por Luiz Carlos Prestes, apreendidas pelos
agentes da repressão durante a ditadura, podem ser consultadas no Acervo do Projeto Brasil
Nunca Mais. Projeto A, Tomo 2, Volume 2 – BNM 279.
47
Alessandra Gasparotto, Aristeu Elisandro Machado Lopes, Barbara de La Rosa Elia, Clarice
Gontarski Speranza, Darlan de Farias Rodrigues e Tiago Perinazzo Cassol
consta a defesa “de preços mínimos justos para os produtos da terra”; efe-
tivação da assistência social; crédito rural simplificado para os pequenos e
médios agricultores; direito ao voto aos analfabetos, inclusive agricultores;
“apoio e ajuda à criação de sindicatos rurais e incentivo à sindicalização
dos trabalhadores rurais” e a “fundação e registro de novas Associações
de Agricultores Sem Terra, Pequenos e Médios Proprietários Rurais”, bem
como o “estímulo de novos sócios, pois essas associações são o tipo de or-
ganização que, em nosso estado, tem se revelado o mais adequado para a
luta dos camponeses por uma Reforma Agrária Radical”. A Carta defendia
ainda a “filiação de todas as Associações ao seu órgão dirigente estadual –
o Master” (Terra Livre, 1963).
Nesse sentido, revela-se um reconhecimento, por parte dos presentes
no Congresso, em relação à importância e necessidade de estímulo à criação
de novas associações, compreendidas como as responsáveis por organizar,
conduzir e mobilizar os sem-terra no Rio Grande do Sul.
O que se pode aferir sobre tais associações? Quantas foram criadas e
como se deu esse processo? Quais suas características organizativas? Inicial-
mente, é necessário ressaltar que não há dados exatos acerca do número de
entidades fundadas no período e se evidencia uma intensa diversidade em
relação às associações no que diz respeito a sua nomenclatura e composição,
contexto de criação, abrangência e tempo de vida.
Em relação ao número de associações, em reportagem do jornal Novos
Rumos do início de 1962, Rui Facó afirmava que havia um “[...] um total de
meia centena até meados de fevereiro” (Novos Rumos, 30/3 a 5/4/1962, p. 7.)
Chama a atenção, em seu relato, a disseminação de entidades pelo estado
e a existência de mais de uma associação em alguns municípios. Este dado
também foi apontado por Eckert, que constatou a existência de associações
de sem-terra em 74 municípios do estado, salientando que em alguns deles
havia mais de uma associação. No relato, Facó conta que
No dia de minha chegada a Uruguaiana havia sido fundada uma Associa-
ção de Camponeses Sem-Terra. Existiam, até começos de fevereiro, vários
núcleos locais. Esses núcleos resolveram unificar-se na Associação Uru-
guaiana dos Camponeses Sem-Terra. Mais de 300 pessoas compareceram
ao ato de fundação, que teve lugar no centro da cidade. Mais de 600 assi-
naturas foram coletadas reclamando a divisão dos latifúndios improdutivos
ou mal utilizados do Município. É uma reivindicação cada vez mais senti-
da. (Novos Rumos, 30/3 a 5/4, 1962, p. 7).
48
Acampamentos abalaram a estância: conflitos sociais no campo e o MASTER
49
Alessandra Gasparotto, Aristeu Elisandro Machado Lopes, Barbara de La Rosa Elia, Clarice
Gontarski Speranza, Darlan de Farias Rodrigues e Tiago Perinazzo Cassol
26
João Caruso Scuderi era apontado como um membro da chamada “ala radical” do PTB e fora
secretário da Agricultura do governo Brizola. Sua nomeação para a Supra foi duramente criti-
cada por entidades ruralistas. Caruso permaneceu poucos meses no cargo, demitindo-se em
junho de 1963 após alguns desentendimentos internos, especialmente após Jango nomear, à sua
revelia, diretores que não teriam “nenhuma vinculação com o problema dos trabalhadores do
campo” (Correio do Povo, 20/6/1963. p. 20).
50
Acampamentos abalaram a estância: conflitos sociais no campo e o MASTER
dos 157 municípios então existentes no Rio Grande do Sul. Além disso, se
percebem outras questões. Algumas associações que figuravam no início de
1962 na reportagem de Rui Facó não aparecem listadas no apedido. Teriam
essas associações sido desfeitas? Estariam elas afastadas da direção do Mas-
ter? Embora não se possa descartar alguma contingência (não terem sido
acionadas a tempo de assinar a nota, por exemplo), tal ausência pode sig-
nificar que algumas das associações tenham deixado de existir no período.
A listagem evidencia que algumas associações, além de sem-terra, agre-
gavam pequenos trabalhadores rurais, lavradores, trabalhadores agrícolas e
produtores autônomos em suas nomenclaturas, demonstrando uma preocu-
pação em marcar a existência de um perfil variado de associados no seu in-
terior. Além disso, chama a atenção o número de sindicatos com vinculação
ao Master listados no apedido.
No que diz respeito ao funcionamento destas associações e sua organi-
cidade, há uma série de lacunas derivadas da ausência de estudos acadêmicos
que tenham se debruçado sobre as mesmas e da dificuldade em encontrar
vestígios sobre sua atuação cotidiana nas fontes investigadas. Ao longo da
pesquisa, no entanto, nos deparamos com um livro de Atas da Associação
dos Trabalhadores Sem Terra de Alegrete, que compunha a documentação
de um processo administrativo de indenização, oriundo da Lei Estadual n.
11.042/1998,27 movido pela família de Timoteo Bombach, fundador e pre-
sidente da referida associação.
O livro registra as atas de número 10, do dia 6 de maio de 1962, até a
ata de número 44, de 8 de março de 1964, contemplando, portanto, quase
dois anos de atuação da entidade. Embora as atas apresentem uma lingua-
gem bastante burocrática e na qual constam informações pouco detalhadas,
é possível perceber alguns elementos acerca do funcionamento cotidiano da
Associação e de seus associados.
As atas revelam que as reuniões da Associação, realizadas geralmen-
te na “sede dos Sindicatos Reunidos” – o que indica que não possuía sede
própria – eram regulares, realizadas no mínimo uma vez por mês, mas com
períodos de maior intensidade. Em relação à pauta de tais reuniões, a maio-
27
Esta lei estabeleceu que o estado do Rio Grande do Sul reconhece a responsabilidade de ter cau-
sado danos físicos e psicológicos a pessoas presas por motivação política no período que vai do
ano de 1961 ao ano de 1979. Os processos oriundos desta lei estão salvaguardados no Arquivo
Público do Rio Grande do Sul (Apers), localizado em Porto Alegre.
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Alessandra Gasparotto, Aristeu Elisandro Machado Lopes, Barbara de La Rosa Elia, Clarice
Gontarski Speranza, Darlan de Farias Rodrigues e Tiago Perinazzo Cassol
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Acampamentos abalaram a estância: conflitos sociais no campo e o MASTER
quantos associados conseguiu, respondeu que durante os dois anos que luta
em prol de agricultores sem-terra lhes chegavam às mãos, e dali os nomes
eram lançados como associados e sua entidade chegou a cerca de quatrocen-
tos sócios” (Apers, Processo administrativo de indenização número 4745-
1200/98 referente a Nascimento Pereira Meirelles. Folha 62).
É provável que o número de associados e sua efetiva participação na
entidade variassem, a depender do período, da conjuntura, do tipo de ação
articulada pelas associações e da possibilidade efetiva de obtenção de um
pedaço de terra, mas esses dados apontam que havia um fluxo significativo
de camponeses orbitando em torno das associações. Ainda assim, a cifra de
100 mil camponeses organizados pode ter sido superestimada e precisa ser
melhor investigada.
A possibilidade de organizar e mobilizar um número tão expressivo de
pessoas garantiu um protagonismo ao Master no que se refere às disputas
em torno da questão agrária, especialmente durante o governo Brizola. No
entanto, com a posse de Meneghetti (PSD) em 1963, a trajetória do movi-
mento sofreu uma profunda inflexão, em um cenário marcado pelo recru-
descimento da repressão no campo e por uma radicalização nas disputas
vinculadas à reforma agrária, conforme veremos no próximo capítulo.
REFERÊNCIAS
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senvolvimento econômico do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Assembleia Legislativa,
n. 16, 196 (Boletim da Comissão de Desenvolvimento Econômico).
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Governo, Legislação e Mobilização. Dissertação (Mestrado), PPG em Desenvolvi-
mento, Agricultura e Sociedade, Rio de Janeiro: UFRRJ, 2010.
CARINI, Joel João; TEDESCO, João Carlos. Os conflitos agrários no norte gaúcho:
1960-1980. Porto Alegre: Edições Est., 2007.
CAMARANO, Marcia. João Sem Terra: Veredas de uma luta. Brasília: Ministério do De-
senvolvimento Agrário, 2012. Coleção Camponeses e o Regime Militar, v. 1.
CIOCCARI, Marta; CARNEIRO, Ana. Retrato da repressão política no campo: Brasil
(1962-1985). Camponeses torturados, mortos e desaparecidos. Brasília: Ministério
do Desenvolvimento Agrário, 2011, p. 320.
ECKERT, Córdula. Movimentos dos Agricultores Sem Terra no Rio Grande do Sul – 1960-
1964. Dissertação (Mestrado), Curso de Pós-Graduação em Ciências de Desenvol-
vimento Agrícola. Rio de Janeiro: UFRRJ, 1984.
53
Alessandra Gasparotto, Aristeu Elisandro Machado Lopes, Barbara de La Rosa Elia, Clarice
Gontarski Speranza, Darlan de Farias Rodrigues e Tiago Perinazzo Cassol
ECKERT, Córdula. O Master e as ocupações de terra no Rio Grande do Sul. In: FER-
NANDES, B. M.; MEDEIROS, L. S; PAULILO, M. I. Lutas camponesas contempo-
râneas: condições, dilemas e conquistas. São Paulo: Editora Unesp, 2009.
HARRES, Marluza Marques. Conflito e conciliação no processo de reforma agrária do ba-
nhado do colégio. Camaquã, RS. Tese (Doutorado), PPG em História, UFRGS, Por-
to Alegre, 2002.
KUSHNIR, Beatriz. Pelo buraco da fechadura: o acesso à informação e às fontes (os ar-
quivos do DOPS-RJ e SP). In: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (Org.). Minorias
silenciadas: história da censura no Brasil. São Paulo: Edusp; Imprensa Oficial do
Estado, 2002.
MEDEIROS, Leonilde Servolo de. Reforma agrária: concepções, controvérsias e ques-
tões. Rio de Janeiro, 1993.
REBELLO, Tiego Rocha. Governo Ildo Meneghetti e a Reforma Agrária (1963-1964): dis-
curso de governo e manutenção da ordem conservadora. Dissertação (Mestrado),
PPG em História, PUCRS, Porto Alegre, 2014.
ROSA, Marcelo C. Encruzilhadas: acampamentos e ocupações na Fazenda Sarandi, Rio
Grande do Sul (1962–1980). In: SIGAUD, Lygia; ERNANDEZ, Marcelo; ROSA,
Marcelo C. Ocupações e acampamentos: estudo comparado sobre a sociogênese das
mobilizações por reforma agrária no Brasil (Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e
Pernambuco) 1960-2000. Rio de Janeiro: Garamond, 2010.
54
CAPÍTULO 2
Alessandra Gasparotto1
Barbara De La Rosa Elia2
Darlan de Farias Rodrigues3
Tiago Perinazzo Cassol4
1
Doutora em História pela UFRGS e Professora do Departamento e do Programa de Pós-Gra-
duação em História da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Prêmio de Pesquisa Memórias
Reveladas 2010.
2
Mestranda em História na Universidade Federal de Minas Gerais, na linha de pesquisa sobre
História e Culturas Políticas. Possui graduação em História pela Universidade Federal de Pelo-
tas (UFPel). É bolsista CAPES desde a graduação.
3
Mestre em História pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel); foi bolsista CAPES.
4
Mestre em História pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e professor de História no
Município de Rio Grande/RS.
Alessandra Gasparotto, Barbara De La Rosa Elia,
Darlan de Farias Rodrigues e Tiago Perinazzo Cassol
56
“Ninguém foi preso pelo fato de ser agricultor sem-terra e sim por ser agitador”: a repressão
ao movimento dos agricultores sem-terra do Rio Grande do Sul no início dos anos 1960
57
Alessandra Gasparotto, Barbara De La Rosa Elia,
Darlan de Farias Rodrigues e Tiago Perinazzo Cassol
7
Sobre a política agrária e os diferentes órgãos criados na gestão Brizola, ver Harres (2002).
8
No Rio Grande do Sul, PTB e PCB resolveram apoiar o desenvolvimento do Master como
movimento hegemônico no Estado, ao contrário de outros locais nos quais o PCB optou pela
criação e apoio à Ligas Camponesas. Contudo, essa união foi atravessada por disputas internas,
desde a composição das diretorias do Movimento até a definição sobre quais as ações prioritárias
em relação à reforma agrária.
58
“Ninguém foi preso pelo fato de ser agricultor sem-terra e sim por ser agitador”: a repressão
ao movimento dos agricultores sem-terra do Rio Grande do Sul no início dos anos 1960
59
Alessandra Gasparotto, Barbara De La Rosa Elia,
Darlan de Farias Rodrigues e Tiago Perinazzo Cassol
do Master (Rebello, 2014, p. 94). O autor também pontua que, além des-
sa reestruturação administrativa dos órgãos estaduais vinculados à questão
agrária, não houve novas desapropriações de terras, tampouco avançaram as
distribuições de lotes para famílias já assentadas.
Como se caracterizaram as ações do Master a partir da posse de Mene-
ghetti? Quais elementos essa conjuntura introduziu na orientação política e
nas disputas travadas no interior do movimento?
As novas diretrizes do governo estadual impactaram de forma signifi-
cativa o movimento. Romeu Barleze, um de seus dirigentes, relata que após
o fim da gestão de Brizola a situação
Ficou cruel, a solução encontrada pelo nosso movimento foi o governo Jan-
go. Terminou o governo Brizola, estava instalado o do Jango. Se passou à
área federal. Tratando de passar a experiência aqui do Sul para a área fe-
deral. Então no governo do Jango entre as leis delegadas se criou a Supra,
Superintendência de Política e Reforma Agrária (Supra), que hoje é o Incra.
Mas a Supra entrou com a filosofia do Instituto Gaúcho de Reforma Agrá-
ria. (Alves, 2011, p. 14)
9
Vale ressaltar que vários quadros do primeiro escalão do Igra, ao fim do governo Brizola, pas-
saram a atuar na Supra, como Paulo Schilling, João Caruso, Paulo Schmidt e Romeu Barleze
(Alves, 2011, p. 14).
60
“Ninguém foi preso pelo fato de ser agricultor sem-terra e sim por ser agitador”: a repressão
ao movimento dos agricultores sem-terra do Rio Grande do Sul no início dos anos 1960
61
Alessandra Gasparotto, Barbara De La Rosa Elia,
Darlan de Farias Rodrigues e Tiago Perinazzo Cassol
10
A Fazenda Sarandi era uma propriedade de mais de 24 mil hectares, localizada no norte do es-
tado, e que pertencia à Agropecuária Júlio de Maílhos, um grupo de nacionalidade uruguaia. A
área foi ocupada em janeiro de 1962, durante a gestão de Leonel Brizola, constituindo o primei-
ro grande acampamento realizado por trabalhadores rurais no Rio Grande do Sul. Dias depois,
parte da área foi desapropriada pelo governo estadual.
62
“Ninguém foi preso pelo fato de ser agricultor sem-terra e sim por ser agitador”: a repressão
ao movimento dos agricultores sem-terra do Rio Grande do Sul no início dos anos 1960
11
As informações sobre os acampamentos foram extraídas de notícias do jornal Última Hora e da
obra de Eckert (1984).
12
Após sua libertação, João Sem-Terra viveu 25 anos na clandestinidade para escapar da repressão
que se intensificou a partir do Golpe de 1964. Foi somente em 1990, após tomar conhecimento
dos livros Por onde andará João Sem-Terra? (1987), e A saga de João Sem-Terra (1989), escritos
63
Alessandra Gasparotto, Barbara De La Rosa Elia,
Darlan de Farias Rodrigues e Tiago Perinazzo Cassol
por Carlos Wagner, que João Sem-Terra se sentiu seguro para retornar ao Rio Grande do Sul,
reassumindo sua identidade e contando sua experiência de exílio.
13
Sobre o episódio ver Weimer (2015).
14
Em Osório, por exemplo, técnicos da Supra foram impedidos de ingressar no acampamento, o
que evidencia as tensões entre os órgãos do governo estadual e federal, que ocorreram em muitos
momentos ao longo de 1963 e 1964. De acordo com Rebello, Eliseu Torres, diretor regional da
autarquia, solicitou o auxílio do Exército para garantir o trabalho da agência, “que vinha tendo
seus funcionários barrados pela ação da Brigada Militar no estado em vários acampamentos”
(Rebello, 2014, p. 74).
64
“Ninguém foi preso pelo fato de ser agricultor sem-terra e sim por ser agitador”: a repressão
ao movimento dos agricultores sem-terra do Rio Grande do Sul no início dos anos 1960
65
Alessandra Gasparotto, Barbara De La Rosa Elia,
Darlan de Farias Rodrigues e Tiago Perinazzo Cassol
dos Onze” para atividade subversivas. Disse que o movimento dos agricul-
tores sem-terra eram eminentemente subversivos e tinham financiamento da
Supra, que por sua vez financiava a Master. Ninguém foi preso pelo fato de ser
agricultor sem-terra e sim por agitador.” (Diário de Notícias, 8 de agosto de
1964, p. 5. Grifos nossos).
15
Durante as polêmicas em torno do episódio de Canoas, por exemplo, o então presidente da Far-
sul, Oscar Carneiro da Fontoura, apoiou “as atitudes assumidas pelo governo” e afirmou: “De-
vemos salientar a maneira correta como vem agindo as autoridades policiais do estado.” (Última
Hora, 7/3//1964, p. 3).
66
“Ninguém foi preso pelo fato de ser agricultor sem-terra e sim por ser agitador”: a repressão
ao movimento dos agricultores sem-terra do Rio Grande do Sul no início dos anos 1960
16
Bruno (2003) enfatiza que a violência como prática de classe é um dos principais traços que
marcam o perfil das classes e grupos dominantes no campo, juntamente com a defesa da pro-
priedade como direito absoluto.
17
Ferreira afirma que, a partir das evidências sobre as dificuldades da aprovação de um projeto
de reforma agrária via Congresso, Jango vislumbrou a possibilidade de um decreto presidencial,
67
Alessandra Gasparotto, Barbara De La Rosa Elia,
Darlan de Farias Rodrigues e Tiago Perinazzo Cassol
para efeito de desapropriação, imobilizando a terra (Ferreira, 2011, p. 385). A essência do decre-
to era considerar “de interesse social e, portanto, desapropriáveis, os imóveis de mais de 500 ha
situados nos 10 km à margem das rodovias, açudes e ferrovias” (Camargo, 1986, p. 221).
18
Em matéria veiculada no Diário de Notícias, no dia 13 de fevereiro de 1964, intitulada “Rura-
listas passaram Carnaval armados: reação contra a Supra”, é noticiado que entidades filiadas à
Confederação Rural Brasileira solicitavam à entidade que pedisse ao governo providências em
Governador Valadares (MG), onde os ruralistas teriam passado o carnaval “em reunião contínua,
armados”. Após o comício, nova reportagem intitulada “Ruralismo de São Paulo não se submete
à Supra”, afirmava que a Sociedade Rural Brasileira e a Federação das Associações Rurais do
Estado de São Paulo, após reunião conjunta, “ decidiram não reconhecer a legalidade do decreto
presidencial que desapropria terras”, por considerarem o decreto inconstitucional. Diário de No-
tícias (19/3/1964, p. 3).
68
“Ninguém foi preso pelo fato de ser agricultor sem-terra e sim por ser agitador”: a repressão
ao movimento dos agricultores sem-terra do Rio Grande do Sul no início dos anos 1960
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Alessandra Gasparotto, Barbara De La Rosa Elia,
Darlan de Farias Rodrigues e Tiago Perinazzo Cassol
20
Dados sistematizados por Gilney Amorim Viana a partir de fontes do Projeto Brasil Nunca
Mais, Comissão de Anistia/MJ, Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos/
DH-PR (Comissão Camponesa da Verdade, 2014, p. 408).
70
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ao movimento dos agricultores sem-terra do Rio Grande do Sul no início dos anos 1960
21
O local onde funcionava a sede do Master pertencia ao Instituto de Previdência do estado;
segundo a nota oficial, os aluguéis não foram pagos, estando o movimento em dívida com o
Ipergs.
71
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Darlan de Farias Rodrigues e Tiago Perinazzo Cassol
22
Os processos estão salvaguardados no Arquivo Público do Rio Grande do Sul (APERS), locali-
zado em Porto Alegre. Para a pesquisa, utilizou-se o catálogo Resistência em Arquivo: Memórias
e Histórias da Ditadura no Brasil, um instrumento de busca constituído por verbetes correspon-
dentes aos 1704 processos. O formato geral dos verbetes inclui “Número do processo: Assunto:
Nome do ex-preso; Codinome/pseudônimo/alcunha; Naturalidade (quando/onde); profissão/
ocupação (que exercia na época dos fatos); vinculação partidária ou atuação política; prisões
(período e local); motivo da prisão; companheiros de prisão; testemunhas; sevícias, maus-tratos
e seus responsáveis; consequências da prisão; decisão da Comissão Especial de Indenização.
Observações: tipologias documentais e considerações (quando necessárias importantes sobre
grafias e nomes encontrados na capa do processo.” (p. 15). Inicialmente, fizemos a busca no
catálogo virtual a partir do termo “MASTER”, o que nos levou a dez verbetes/processos. O nú-
mero reduzido de citações fez com que modificássemos a busca, utilizando outros termos, como
“sem terra”, bem como pesquisássemos nomes de integrantes do movimento que apareceram em
outras fontes, especialmente nos jornais.
23
O fato de muitos camponeses e camponesas não terem solicitado pedidos de reparação pode ser
explicado por fatores diversos, seja pelo desconhecimento de seu direito, seja pela dificuldade de
acessar tais instâncias, ou por discordância política em relação às indenizações. Chama a aten-
ção que expoentes lideranças do MASTER, como Milton Serres Rodrigues e Ary Saldanha, não
foram localizadas em meio a estes processos. Em conversa com os filhos de Serres em junho de
2019, estes afirmaram que o pai optou por não ingressar com pedido de indenização junto ao
Estado.
72
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ao movimento dos agricultores sem-terra do Rio Grande do Sul no início dos anos 1960
dos 11.24 No interior do Rio Grande do Sul, a criação destes grupos este-
ve diretamente vinculada às lutas pela reforma agrária. Conforme Almeida
(2018), esses agrupamentos se constituíram na maioria dos municípios onde
atuavam associações de trabalhadores rurais sem terra e de pouca terra, “evi-
denciando a relação desses movimentos pela terra e a formação dos grupos.”
Em alguns inquéritos investigados, camponeses afirmaram que assinaram
a listagem e se filiaram por acreditarem que assim poderiam obter terras e
contribuir para a realização da reforma agrária. Nesse sentido, Brandalise e
Harres (2014) também indicam “que a distribuição de terras foi uma das
expectativas criadas pela atuação dos grupos e entre seus membros.”
Para além do vínculo que muitos agricultores sem-terra possam ter
mantido com o Grupo dos Onze, chama a atenção que nos processos en-
caminhadas para a Comissão, muitos tenham se apresentado enquanto ex-
-membros dos Grupos, em detrimento de indicar sua vinculação com o
movimento ou uma de suas associações. Um exemplo disso está no processo
do agricultor Osvaldo Bastos, cujo processo não menciona o MASTER e
pudemos identificá-lo como presidente da Associação de Agricultores Sem
Terra de Passo da Taquara somente através de outras fontes (APERS, Pro-
cesso administrativo de indenização número 6670-1200/98-0).
Nesse sentido, as ausências e lacunas em relação ao movimento nessa
documentação ainda carecem de mais investigações. Além disso, chama a
atenção que o MASTER não é citado no Relatório Final da Comissão Es-
tadual da Verdade do Rio Grande do Sul. A única referência aos sem-terra
no imediato pós-Golpe é vinculada ao caso de Bastos, no capítulo que trata
sobre os Grupos dos Onze.25
Durante a pesquisa, também se revelou que parte significativa dos pro-
cessos encaminhados por pessoas vinculadas ao MASTER ou a suas asso-
24
“Os Grupos de Onze Companheiros ou Comandos Nacionalistas foram articulados por Brizola
em fins de outubro de 1963, com o objetivo de pressionar pela implementação das Reformas de
Base. Conforme Rigui (2014): “Estima-se que mais de vinte mil Comandos Nacionalistas foram
formados em todo território brasileiro, entretanto esses números ainda não são confirmados. A
maior concentração dos Grupos foi no interior do Rio Grande do Sul”, tanto pela projeção de
Brizola como por “privilegiar a luta pela reforma agrária.” Os Grupos, de forma geral, não tive-
ram um funcionamento efetivo e foram duramente perseguidos após o Golpe de 1964.
25
O Relatório Final da Comissão Estadual da Verdade do Rio Grande do Sul foi publicado em
uma Edição Especial do Relatório Azul, publicado pela Assembleia Legislativa do Rio Grande
do Sul em 2014.
75
Alessandra Gasparotto, Barbara De La Rosa Elia,
Darlan de Farias Rodrigues e Tiago Perinazzo Cassol
ciações foi indeferida, totalizando 25% dos processos analisados (ou seja,
5 indeferidos em um universo de 20). Este fato deveu-se principalmente a
falta de provas por parte dos requerentes ou por não se enquadrarem nas
exigências da Lei.26 Um dos casos foi o do agricultor sem-terra Francisco
Budelon Rosales, que apresentou um atestado médico alegando que teve o
agravamento de uma hérnia em decorrência da violência sofrida no interro-
gatório. O fato, no entanto, não foi suficiente para deferir seu requerimento,
pois apesar de ser obrigado a apresentar-se ao DOPS para assinar um ponto
diariamente, não teve a prisão efetivada.
Mesmo um dos membros da diretoria do movimento, Eusébio França
Filho, teve seu pedido indeferido. Alega-se que as provas apresentadas fo-
ram insuficientes e seu caso não estaria enquadrado na Lei. Segundo sua
viúva, ele “não teve problemas físicos decorrentes da prisão”. Apesar disso,
ela aponta que “ele sofreu traumas, constrangimento e privação do conví-
vio familiar, bem como teve dificuldade em conseguir emprego” (APERS,
Processo administrativo de indenização número 6670-1200/98-0 referente
a Eusébio França Filho, Folha 27).
A questão dos indeferimentos revela outro impasse: a maior parte dos
camponeses e camponesas atingidos/as pelo arbítrio ditatorial não teve
acesso à reparação. Conforme a comparação realizada pela CCV entre
os números apontados pelo livro ‘Camponeses mortos e Desaparecidos:
Excluídos da Justiça de Transição’ (2013) e os da Comissão Especial so-
bre Mortos e Desaparecidos (CEDEMP), ambos da Secretaria de Direitos
Humanos da Presidência da República, o número de mortos e desapareci-
dos no campo chega a ser setenta vezes maior do que os reconhecidos pelo
Estado brasileiro.27 Esses dados apontam para a necessidade de ampliar as
pesquisas acerca do tema, que permitam constituir uma radiografia mais
precisa sobre a violação de direitos humanos no campo durante nossa úl-
tima ditadura.
26
A Lei Estadual nº 11.042/1998 explicita “que não visa a indenizar as arbitrariedades e persegui-
ções na ditadura militar, e sim aqueles que tenham sequelas por terem sido vítimas de torturas e
maus-tratos em mãos de órgãos estaduais.”
27
É importante destacar que tanto para os requerimentos junto à CEDEMP quanto junto à Co-
missão de Anistia, os casos que envolvem a violação de direitos humanos de camponeses encon-
tram algumas barreiras, que incluem a dificuldade de documentá-los e de evidenciar a militân-
cia política dos requerentes, bem como a não comprovação da participação de agentes do estado.
76
“Ninguém foi preso pelo fato de ser agricultor sem-terra e sim por ser agitador”: a repressão
ao movimento dos agricultores sem-terra do Rio Grande do Sul no início dos anos 1960
REFERÊNCIAS
BRASIL. Presidência da República. Secretaria de Direitos Humanos. Camponeses mortos
e desaparecidos: Excluídos da Justiça de Transição. Coordenador: Gilney Amorim
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GASPAROTTO, Alessandra. “Companheiros Ruralistas!”. Mobilização patronal e atuação
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77
Alessandra Gasparotto, Barbara De La Rosa Elia,
Darlan de Farias Rodrigues e Tiago Perinazzo Cassol
78
CAPÍTULO 3
era protagonista naquele cenário e, apesar disso, uma parcela dos estudos que
analisou o golpe de 1964 e aquele momento político tenderam a situar as Li-
gas Camponeses e seus personagens como simples coadjuvantes.
Outros textos buscaram localizar o movimento das Ligas Camponesas
no contexto internacional, com destaque para as políticas de governo dos Es-
tados Unidos na América Latina no início dos anos 1960, em plena Guerra
Fria. Joseph Page, estudante de direito estadunidense, que esteve no Brasil
neste período, foi um dos primeiros a estabelecer essa relação. No livro A
Revolução que nunca houve, publicado no Brasil em 1974, Page (1972) rela-
tou as suas experiências vividas no Nordeste, nos primeiros anos da década
de 1960 até o Golpe, cruzando suas memórias individuais com uma densa
pesquisa em jornais, revistas e relatórios de governo da época. Sobre as Ligas
Camponesas destacou a ascensão do movimento social no cenário político da
América Latina, composto pela Revolução Cubana de 1959 e pela Aliança
para o Progresso, programa criado pelo governo dos EUA, presidido por John
Kennedy, em 1961.
O historiador Antonio Montenegro (2004) retomou parte do debate
proposto por Joseph Page, no artigo Ligas Camponesas às vésperas do golpe de
1964. Em determinado trecho, o autor apresentou e analisou as reportagens
publicadas no The New York Times pelo jornalista Tad Szulc, que viajou
para o Nordeste do Brasil em 1961 e entrevistou alguns líderes das Ligas
Camponesas. Segundo Montenegro (2004), Szulc afirmava que a pobreza
da população e a ação desses líderes, inspirados pelo exemplo da Revolu-
ção Cubana, transformavam o Nordeste do Brasil em um barril de pólvora
pronto para explodir e faziam da região um novo território comunista na
América Latina. Para analisar as reportagens, veiculadas no The New York
Times, Antonio Montenegro (2004) levou em consideração o acontecimento
da Revolução em Cuba e a Guerra Fria. Para o autor, “[...] concorriam para
produzir a percepção, a compreensão e a representação que Szulc então des-
crevia no The New York Times” (Montenegro, 2004, p. 405). A perspectiva
de análise historiográfica do movimento das Ligas Camponesas a partir da
dinâmica da Guerra Fria era inovadora.
O historiador Carlos Fico, ao estudar os planos militares dos EUA para
apoiar o Golpe de 1964 no Brasil, refere-se também ao interesse, despertado
em parte da imprensa estadunidense, pelo movimento das Ligas Camponesas.
No livro O Grande Irmão – da Operação Brother Sam ao Anos de Chumbo, o
80
Uma história das Ligas Camponesas em Pernambuco: passado interditado
2
Este texto transita por debates que realizei em diversos outros trabalhos de pesquisa sobre as
Ligas Camponesas nos últimos anos. Alguns deles estão citados, ao final, nas referências.
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elite política e econômica nacional. Sobre este último tópico, no filme Bra-
zil – The Troubled Land, destaca-se a cena em que Constâncio Maranhão,
latifundiário e deputado estadual em Pernambuco, exibia-se com sua arma,
apontando e atirando para cima e para baixo, demostrando a forma como
tratava o trabalhador que exigisse mudanças. Helen Rogers, a diretora da
produção, revelava a ignorância da elite da terra, indicando a contribuição
desta no estado de revolta dos trabalhadores.
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O painel era assinado pelo artista plástico Aberlado da Hora.
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ele destacava o seu compromisso com as lutas dos trabalhadores rurais, en-
tretanto buscava afastar-se do passado das Ligas. Em entrevista concedida
para a revista Veja, em novembro de 1978, ao ser questionado sobre as Ligas
Camponesas, Julião afirmou:
A experiência das Ligas Camponesas está superada pelo próprio desenvol-
vimento do capitalismo no campo. Hoje eu trataria de fazer uma campa-
nha no sentido de estatizar as terras para que os camponeses pudessem se
organizar em grandes cooperativas, mas nunca reativaria as Ligas. (Veja,
1978, p. 4)
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REFERÊNCIAS
A LIGA. Experiência da greve geral em Pernambuco. 4/12/1963. p. 5.
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DIÁRIO DE PERNAMBUCO. A tragédia da Estreliana. 9/1/1963. 1ª página.
DIÁRIO DE PERNAMBUCO. O conflito da Estreliana. 9/1/ 1963. p. 7.
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ENTREVISTAS
Entrevista realizada com José Sebastião em 21 de julho de 2014, na cidade de Gameleira.
Entrevista realizada com Fernando Barbosa, em 18 de outubro de 2011, como parte do
acervo do Projeto Marcas da Memória, Recife. 2011, p. 18-19.
106
CAPÍTULO 4
1
Uma versão preliminar deste texto foi publicada nos anais do VIII Encontro da Rede de Estudos
Rurais, agosto de 2018, UFSC, Florianópolis/SC.
2
Professora adjunta da Universidade de Brasília, Campus Planaltina – FUP/UnB. Doutora em
Desenvolvimento Sustentável (CDS/UnB), professora da Universidade de Brasília (UnB), na
Faculdade UnB Planaltina (FUP), no Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente e De-
senvolvimento Rural (PPG-Mader).
3
O termo camponês é utilizado como categoria política, incorporando o arranjo social rural
vivido em Pernambuco (PE), no período em análise (1955 a 1984). Utiliza-se o termo genérico
camponês em referência às pessoas que atuaram naquele período, portanto, reconhecendo a
participação das mulheres camponesas na luta política.
Regina Coelly Fernandes Saraiva
4
Os Seminários Memórias Camponesas foram realizados em diversos estados brasileiros como
parte do Projeto Memória Camponesa, sob a coordenação de professores do Museu Nacional/
UFRJ e entidades sindicais. Como resultado foram gerados 17 DVDs que estão em fase de or-
ganização por professores, pesquisadores e técnicos do Museu Nacional/PPGAS/UFRJ. Para a
escrita deste texto, foi consultado o Seminário Memória Camponesa ocorrido em PE, em 2006.
Ao longo do texto, são trazidos relatos de participantes desse encontro.
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Homens do tempo de Arraes: narrativas de resistência à ditadura civil-militar no pós-1964
5
Para este texto, além do Seminário Memórias Camponesas, outras fontes (entrevistas e docu-
mentos) foram consultadas para complementar argumentos e questões abordadas nas narrativas
selecionadas. Entrevistas e documentos consultados fizeram parte da pesquisa realizada pela
autora no Núcleo de Pesquisa, Documentação e Referência sobre Movimentos Sociais e Políti-
cas Públicas no Campo (NMSPP/CPDA/UFRRJ), no Fundo Lygia Sigaud/SEMEAR/MN, no
Arquivo Nacional (Projeto Memórias Reveladas) e no Centro de Informação e Documentação
da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CID/CONTAG), durante Pós-
-Doutorado no CPDA/UFRRJ, em 2017 e 2018.
6
Francisco Julião Arruda de Paula foi deputado estadual em duas legislaturas (1954 e 1962) e
deputado federal por Pernambuco, entre 1962 e 1964, pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB).
7
As Ligas Camponesas, sob comando do PCB, foram perseguidas e fechadas, a partir de 1947,
quando o Partido foi colocado na ilegalidade. A organização da Liga de Galileia contou com a
ajuda do Partido, que a partir desse envolvimento organizou sua atuação no campo nos estados
de Pernambuco e, logo depois, na Paraíba (Koury, 2012).
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Homens do tempo de Arraes: narrativas de resistência à ditadura civil-militar no pós-1964
10
Medeiros (1989, p. 78-79), ao fazer um balanço das ações e organizações políticas dos trabalha-
dores do campo nos anos 1950 e 1960, chama a atenção para o fato de haver, ao nível das pro-
postas políticas mais gerais, grandes divergências (alterações na estrutura agrária, por exemplo);
no âmbito das lutas mais imediatas havia uma certa dose de convergência e muitos consensos.
Nesse sentido, cita a sindicalização como instrumento de organização também apontado por
Julião (Bença Mãe, 1963) e alianças conjunturais entre as Ligas, comunistas, sindicatos “dos
padres” na greve geral de 1963 em Pernambuco.
111
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11
Segundo Koury (2012, p. 115), a doutrina social lançada pela Igreja Católica, na época, defen-
dia, uma reforma agrária e direitos trabalhistas mediados por uma atuação moderada e conci-
liatória, baseada no respeito à ordem social, e não através de processos radicais de luta, como
defendido pelas Ligas Camponesas.
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12
A Ação Popular (AP) surgiu como resultado do afastamento dos movimentos leigos, principal-
mente estudantis, do clero conservador e passou a defender posições convergentes com as da Ultab
(Koury, 2012, p. 144-152). Abreu e Lima (2003, p.66) registra que a AP, em Pernambuco, pro-
curou influenciar a Fetape por meio de Manoel Gonçalo, seu presidente, que passou a ocupar a
vice-presidência da Confederação. A Fetape sinalizava outra visão política para além do Sorpe.
13
O Estatuto do Trabalhador Rural (Lei n. 4.214, sancionada por João Goulart, em 1963) esten-
deu os direitos dos trabalhadores urbanos para os trabalhadores rurais. A Superintendência de
Política Agrária (Supra/Ministério do Trabalho) foi criada para acompanhar o processo de sin-
dicalização no campo e a aplicação do Estatuto. Essas medidas faziam parte do programa das
reformas de base do governo Goulart (1961-1964), no qual se destacava a reforma agrária.
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14
Em 1963, os Engenhos Coqueiro, Serra e Gameleira (Vitória de Santo Antão) foram ocu-
pados por camponeses sem-terra vinculados às Ligas Camponesas (Abreu e Lima, 2003;
Galileia, 2016).
15
A visão de radicalidade e violência associada às Ligas Camponesas foi incorporada por latifun-
diários, políticos e pelo Exército. Ações de ocupação de terras contribuíram para a ampliação
da visão radical das Ligas (Silva, 2015), aumentando ações de repressão e violência no campo
(Koury, 2012).
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A violência ganhou tamanha dimensão pública que se criou, em 1961, uma Comissão Parlamen-
tar de Inquérito (CPI – Resolução N. 55, de julho de 1961) para investigar a violência em Per-
nambuco e em todo o Nordeste. Em 1962, o assassinato do líder das Ligas Camponesas de Sapé
(Paraíba), João Pedro Teixeira, revelava o ódio dos latifundiários pelo movimento camponês.
Elizabeth Teixeira, com o assassinato do marido, assumiu a luta e a liderança das Ligas Campo-
nesas de Sapé. Em 1964, com o golpe, Elizabeth foi obrigada a fugir e viver no anonimato por
dezesseis anos.
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José Rotta, da linha sindical cristã, dirigiu a entidade até 1968, numa gestão
tímida e pouco crítica ao regime (Medeiros, 1989). Com apenas um voto de
diferença, José Francisco da Silva, apoiado por sindicalistas comprometidos
com a resistência, conseguiu vencer as eleições para a entidade.19
Ao chegar no Rio de Janeiro, onde ficava a sede da Contag à época, me
aproximei dos companheiros de esquerda [...] me cerquei logo de compa-
nheiros de Pernambuco, além de realizar um trabalho cuidadoso. O pes-
soal foi se aproximando, viu que a linha era outra e começava a descobrir
forma de discutir com a gente. Quando não se podia de dia era à noite.
(Relato José Francisco da Silva, I PNRA)
19
José Francisco atuou em Pernambuco, no STR de Vicência. Foi secretário da Fetape e presidente
da Contag de 1968 a 1986. Para maiores detalhes, ver o verbete biográfico sobre José Francisco
da Silva (CPDOC FGV).
20
Abreu e Lima (2003), no Capítulo 3 de sua tese, As esquerdas no campo após 64, detalha a atuação
dos partidos de esquerda no campo em Pernambuco.
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tado marcou esse período (Koury, 2012). Sindicalistas que resistiam e não
se moldavam aos sindicatos subservientes eram duramente perseguidos e
taxados como “subversivos” e “comunistas”.
A violência contra os camponeses e a impunidade dos latifundiários to-
maram conta do meio rural nesse período. Em 1969, a morte de José Bene-
dito da Silva, trabalhador rural, filiado ao STR de Palmares, é emblemática
nesse sentido. Ele foi barbaramente morto a mando do dono do engenho
Fanal da Luz por solicitar os salários atrasados.22 O caso foi denunciado por
Sebastião Salgado, presidente do STR de Palmares que recebeu diversas “vi-
sitas” da polícia no Sindicato.
Outro caso emblemático ocorreu no engenho Matapiruma, em Esca-
da, 1972. Trabalhadores rurais foram atacados e José Inocêncio Barreto foi
assassinado por pistoleiros a mando do dono do engenho e por policiais da
Secretaria de Segurança de Pernambuco por exigirem o pagamento do 13º.
Salário e férias atrasados. O caso mobilizou a Fetape e a Contag que solicita-
ram providências às autoridades, mas o caso continuou sendo tratado como
“subversão da ordem” e se estendeu até 1987 (Montenegro, 2016).
Os enfrentamentos de STRs da Zona da Mata foram audaciosos diante
de uma realidade tão adversa. Resistiram pressionando os patrões, recla-
mando nas Delegacias Regionais do Trabalho (DRT) para fazer valer os
direitos trabalhistas no campo: “Massas de trabalhadores”, “paralisações”,
“sindicatos dando flagra nos patrões”, “sindicato, sindicato!”, registra Pal-
meira (Entrevista I PNRA, 2009) ao se referir à resistência que presenciou
em ações dos Sindicatos de Palmares, Carpina, Nazaré da Mata. Segundo
ele, foram “pequenos avanços” que iam demonstrando a força dos traba-
lhadores e como estavam fazendo política em plena ditadura, nos primei-
ros anos da década de 1970. Tudo isso em meio a “pequenas intervenções,
apreensões de material, prisões, depoimentos forçados”. Sobre a atuação da
Contag, lembra que foi a única entidade que se manifestou contra a Transa-
mazônica: “denunciou o negócio da colonização.”
Projetos de colonização também foram denunciados em Pernambuco.
A reforma agrária, prevista no Estatuto da Terra, e tão esperada pelos cam-
poneses não se realizou. “Com o golpe”, relembram os camponeses, “quem
ganhou foi o patronato, o usineiro, senhor de engenho.” (Relato José Fran-
22
Sobre o caso do Engenho Fanal da Luz, ver Carneiro e Ciocarri (2011).
123
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Para o aprofundamento do debate sobre Estatuto da Terra, em Pernambuco, ver Koury (2012)
p. 284-313.
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A questão da terra (vozes por terra e liberdade) fez parte da luta de re-
sistência e “sempre foi a reivindicação mais nobre do movimento, mesmo
começando pela campanha salarial”. Mas o contexto levou a realizar um
“trabalho dentro da lei e da justiça, afirmando a reforma agrária”. Para as li-
deranças, o projeto para a reforma agrária não funcionou “porque o governo
se apropriou de lutas e demandas e movimentos que já vinham acontecendo,
e incorporaram a reforma agrária, mas sabendo que não tinha condições de
fazer [...]”. Enfatizam que “a lógica da ditadura era a expansão da monocul-
tura no país, cana, café, e nada de distribuição de renda, reforma agrária”
(Relatos José Francisco da Silva, 2006).
Nos anos 1975-1978, o fracasso do Estatuto da Terra estava explícito.
Um relato rememora, de forma irônica, como a questão da terra foi tratada
pelos governos militares.
Por fim, surgiu o Estatuto da Terra, em 1964. Foram criados vários or-
ganismos e instituições pelos militares para tratar da questão da reforma
agrária: Ibra, Inda, Gera, Geram, Grupo Executivo da Racionalização da
Indústria Canavieira do NE, Proterra, Programa de Redistribuição de Ter-
ra, Incra, Mirad. O Inda não indou; o Gera não gerou; Geram abortou, o
Incra encrencou; reforma agrária não se aplicou. Mas a luta continuou, por
vários grupos (Relato Euclides Nascimento, 2006).
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Regina Coelly Fernandes Saraiva
24
A lista de ações e propostas foi produzida a partir de resoluções de seminários, encontros e con-
gressos realizados pela Contag e Fetape (1975 a 1979), disponíveis no acervo da Contag.
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cato e falavam isso. Aí saiu mais uma nota no jornal: ‘acordo não cumprido,
greve engatilhada’” (Relato Marcos Martins, 2006).
A greve de 1979 envolveu diretamente 20 mil e, indiretamente, 100 mil
trabalhadores rurais da cana e durou de 2 a 9 de outubro de 1979, envolven-
do 24 sindicatos de trabalhadores rurais, representando 28 municípios.25 A
incorporação dos clandestinos, antes excluídos dos sindicatos por não serem
fichados, foi decisiva na greve de 1979.
Os anos seguintes foram de muitos enfrentamentos. E 1981 foi o ano
dos “arranca rabos mais fortes”, com o governo tentando impedir a mobili-
zação de trabalhadores: “prendendo, batendo, matando, fazendo e aconte-
cendo o que costumavam fazer” (Relato Vicente Coelho, 2006). A luta cam-
ponesa se estendeu para o Agreste e o Sertão, diante dos conflitos e violência
gerados pela expulsão de camponeses com a construção de barragens e obras
promovidas pela modernização conservadora e excludente.
Em 1984, a Fetape lançou o documento Açúcar com gosto de sangue,
denunciando mais uma vez a violência no campo.
A resistência que se teceu pelos homens do tempo de Arraes foi marca-
da por muitos enfrentamentos, rebeldias, mobilizações e muitas estratégias,
ora avançando, ora recuando. Ela nos traz muitas lições. Ao rever o passado
autoritário, vemos a esperança da luta conduzida por lideranças e campo-
neses que não desistiram de ver outra condição para o homem do campo.
Dessa luta, são trazidas as dores vividas, muitas dores, de um tempo que
desejamos não se repita nunca mais.
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polis, Rio de Janeiro: Vozes, 2014.
25
Sobre a greve dos trabalhadores rurais das plantações de açúcar da Zona da Mata em 1979, ver
Sigaud (1980).
128
Homens do tempo de Arraes: narrativas de resistência à ditadura civil-militar no pós-1964
129
Regina Coelly Fernandes Saraiva
PORFÍRIO, Pablo. De pétalas e pedras: a trajetória política de Francisco Julião. 2013. Tese
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ENTREVISTAS
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buco. Versão em áudio e transcrição. Museu Nacional/Universidade Federal do Rio
de Janeiro; Federação dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Fami-
liares do Estado de Pernambuco, 2006. Versão digital disponível no PPGAS/UFRJ.
PALMEIRA, Moacir. Entrevistadora: Regina Ângela Landim Bruno. Entrevista concedi-
da ao Projeto de Cooperação BRA/IICA/NEAD – Proposta para a elaboração do I
Plano Nacional de Reforma Agrária da Nova República – I PNRA. 2009.
SILVA, José Francisco da. Entrevistadora: Regina Ângela Landim Bruno. Entrevista con-
cedida ao Projeto de Cooperação BRA/IICA/NEAD – Proposta para a elaboração
do I Plano Nacional de Reforma Agrária da Nova República – I PNRA. 2009.
130
CAPÍTULO 5
1
Doutor em História pela Duke University e professor de História do Brasil Contemporâneo na
Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). É líder do Grupo de Estudos sobre História
Social do Campo e professor no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Territorial
na América Latina e Caribe (UNESP) e no Doctorado en Estudios Sociales Agrarios da Univer-
sidad Nacional de Córdoba.
2
Concluindo o curso de História na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP); foi bolsista
no Projeto CNPq/MTIC nº 0166/2016 e membro do Grupo de Estudos de História Social do
Campo da UNIESP.
Clifford Andrew Welch e Leticia da Silva Rocha
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As Ligas Camponesas em São Paulo: mobilizações,
movimentos agrários e representações do pré-1964
133
Clifford Andrew Welch e Leticia da Silva Rocha
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As Ligas Camponesas em São Paulo: mobilizações,
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Estudiosos refletiram essa época em seus textos enfatizando cada vez mais a
presença do campesinato como força política entre 1959 e, no caso do Bra-
sil, o golpe de 1964 (Azevêdo, 1982; Pahnke, 2018).
No caso brasileiro, costuma-se acreditar que antes de 1959 os trabalhado-
res rurais eram uma massa inerte que não tinha nenhum impacto na socieda-
de. Um resumo típico desta época está contido em uma análise da política e
estrutura agrária do Brasil: “A falta de qualquer organização [dos trabalhado-
res rurais] até o final dos anos 1950 fazia com que os fazendeiros assumissem
uma posição de autoridade máxima em suas terras e tivessem controle quase
total da política local” (Huber e Stephens, 1995, p. 197). Este argumento está
ligado a uma teoria mais abrangente afirmando que, no decorrer da repú-
blica brasileira, a burguesia conspirou com os latifundiários para excluir os
camponeses dos benefícios da modernização (Azevêdo, 1982). Isto protegeu o
acesso dos fazendeiros ao trabalho “barato”, bem como seu controle sobre ele
e recebendo em contrapartida o apoio dos fazendeiros para o desenvolvimento
urbano e industrial. De acordo com esta teoria, diversos governos cooperavam
com este pacto, e até o orquestravam, ao ajudar a reprimir organizações de
trabalhadores rurais, ao mesmo tempo em que encorajavam a sindicalização
dos trabalhadores da cidade (Azevêdo, 1982; Martins, 1999). Segundo o ar-
gumento, o pacto subitamente começou a se desfazer no início dos anos 1960,
quando políticos populistas iniciaram a expansão do seu eleitorado incluindo
trabalhadores rurais, e o governo encorajou a sindicalização dos trabalhadores
rurais para melhor proveito do setor agrícola.
Uma consequência, em apresentar a mobilização dos trabalhadores
rurais como algo que apareceu só no final dos anos 1950, tem sido uma
tendência exagerando a importância das Ligas Camponesas de Julião, que
ganharam atenção até internacional com a desapropriação do engenho Gali-
leia. Esta tendência tem dois modos principais de expressão: ou o movimen-
to é culpado de ter criado uma atmosfera de anarquia, que acabou dando
razão aos conspiradores para o Golpe de 1964, justificando com a necessi-
dade de restaurar a ordem; ou é acusado de ser barulhento e exigente, mas
não suficientemente forte para resistir com sucesso à tomada de poder pelas
forças armadas (Galjart, 1964; Mourão Filho, 1978).
A Sociedade Rural Brasileira (SRB), uma poderosa associação de fazen-
deiros de café e de criadores de gado com sede em São Paulo, por exemplo,
relacionou o sindicalismo rural à anarquia. A SRB acusou o governo de
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Em 2000, Welch entrevistou Renaux (Duarte, 2000). Ele se apresentou como fundador da
primeira Liga Camponesa no Brasil, essa de Iputinga em 1946. Comentou que Julião era um
“grande amigo” e que juntos foram visitar a Liga do Engenho Galileia diversas vezes. Em seu
imaginário, em suas memórias, a associação com Julião, a proximidade com o grande líder, rea-
firma o lugar central do PCB na história.
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do pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), mas foi abertamente apoiado pe-
las publicações do PCB e, regularmente, consultava lideranças comunistas
pernambucanas, como Renaux e David Capistrano (Duarte, 2000; Porfírio,
2016). Durante todo período, considerando diversas fontes, Julião e outras
lideranças das Ligas foram tratados como iguais pelas entidades do PCB.
Apesar das evidências de vínculos entre o PCB e as Ligas de Julião, a
representação predominante é de uma relação que procura diminuir, eclip-
sar ou mesmo estabelecer disputas entre as duas organizações. A partir da
experiência histórica de São Paulo, é impossível ignorar como a maioria das
obras, na linha da “memória emblemática” de Julião, esconde o papel histó-
rico do PCB na luta camponesa. Como observa Sarzynski (2018), a Guerra
Fria teve responsabilidade parcial nisso. No Brasil, segundo as doutrinas
da situação de Segurança Nacional e Guerra Revolucionária, entre os anos
1964 a 1984, ser comunista ou ser associado a comunista significava perigo
existencial real para qualquer pessoa.
Na oposição ao regime militar, existia uma concorrência de ideologias
e estratégias, muitas delas críticas, se não abertamente opostas às linhas e
formas de atuação do PCB. Assim, a memória das Ligas de Julião é uma que
geralmente deixa fora o papel do PCB, ocultando parte da história na luta
camponesa, dando preferência ou ênfase às Ligas de Julião como uma novi-
dade, expressando vozes e atitudes mais autenticamente camponesas. Mas, é
fato que a história das mobilizações rurais e movimentos agrários no Brasil,
no período pré-golpe de 1964, não fazem sentido sem incluir a militância
(para o bem ou para o mal) do PCB.
A contribuição do livro de Aued (1986), divulgada em forma de disser-
tação cinco anos antes, merece consideração justamente por destacar a re-
lação entre o PCB e as Ligas de Julião, em um momento chave do processo
de redemocratização (Alves, 2014). O livro oferece uma crítica ferrenha às
teorias e ações do PCB frente à questão agrária. A versão representada pela
Aued depende muito na perspectiva do orientador dela, o sociólogo José
Claudio Barriguelli. Como estudante nos anos 1960, Barriguelli se alistou
na luta armada de Carlos Marighella, líder histórico do PCB que abando-
nou o Partido em 1966. Sua nova organização, a Ação Libertadora Nacional
(ALN), procurou coordenar todos os grupos da luta armada, todos opostos a
linha pacífica de resistência à ditadura do PCB. Barriguelli foi preso político
pela ditadura, sofrendo tortura por dois anos. Aued (1986) cita Barriguelli
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Ao todo foram analisados 45 periódicos do jornal A Liga, digitalizados pelo Centro de Docu-
mentação e Memória (Cedem) da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e disponibilizados
nas hemerotecas digitais do Cedem e do Centro de Referência Virtual – Luta Pela Terra do Ar-
mazém Memória. Disponíveis nos sites do Cedem e no Armazém da Memória. Nessa análise,
em torno de 12 periódicos não foram incluídos nos anos 1962 e 1963, por não constarem nos
acervos. Também não consta nos acervos nenhum exemplar dos 11 publicados em 1964.
6
As vezes foram casos da solidariedade entre associações cívicas e as Ligas. Em junho de 1962,
por exemplo, o jornal Terra Livre relatou o manifesto da solidariedade dos “moradores do muni-
cípio paulista de Guarulhos” com a família de João Pedro Teixeira e a causa de reforma agrária
radical. Assassinado em abril, Teixeira foi líder de uma Liga julianista em Sapé, Paraíba, que se
converteu em associação de lavradores ligada a Ultab.
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O consórcio era uma empresa rural, a Companhia Agrícola de Imigração e Colonização (Caic),
organizada nos anos 1930 pela Companhia Ferroviária Paulista (CFP), visando aumentar o co-
mércio entre as cidades conectadas por suas linhas, conforme registros em relatórios da diretoria
e arquivos da Caic, arquivados no Centro de Memórias, Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp). Sobre a propriedade de João Guerreiro Filho, vide Caic, Livro com informações
sobre lotes e proprietários de terra do núcleo Dumont, área de terras, Registro 3, no Centro de
Memórias, Unicamp.
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da guerra, notícias sobre o PCB de Luís Carlos Prestes, e seu apoio para as
leis trabalhistas e a distribuição das terras dos latifúndios (definidos como
propriedades improdutivas de mais que 1 mil hectares) para os trabalhadores
rurais. Em agosto de 1945, Prestes já estava em seu quarto mês de campanha
como candidato ao Senado, demonstrando como uma nova era política tinha
chegado ao Brasil, após oito anos de restrições autoritárias sob o regime do Es-
tado Novo (Diário da Manhã, 1945a). Em 26 de agosto, João Guerreiro Filho
foi comemorar seu aniversário em Ribeirão Preto, e viu uma notícia no Diário
da Manhã, anunciando a abertura de um comitê do PCB na sede da União
Geral dos Trabalhadores (UGT), na Rua José Bonifácio, número 4. Aprovei-
tou a ocasião para se filiar ao partido e se inscrever para votar, pela primeira
vez, aos 29 anos de idade. Ao sair do prédio, pelo grande portão, passou sob o
emblema internacional da solidariedade trabalhista, um relevo representando
as mãos unidas de trabalhadores urbanos e rurais (Guerreiro Filho, 1989).
Logo após sua filiação ao PCB, João Guerreiro Filho (1989) ajudou a
fundar a célula comunista de Dumont. Onze homens compareciam a en-
contros semanais, realizados em sua casa. Dentre estes camponeses partici-
pavam outras novas lideranças do campo, como Pedro Salla (1995), Nelson
Guindalini (1995), Miguel Bernard e Vitório Negre. A mãe de João, Dona
Catarina, e seus dois irmãos mais novos o incentivavam. Catarina abrigou as
reuniões do grupo em sua casa, fazendo pão e café para animar a conversa.
Visando aumentar o número de filiados, decidiram formar uma organização
pública. No final de 1945, alugaram o auditório do cinema, espalharam a
notícia e, junto com outras 50 pessoas, homens e mulheres, fundaram a Liga
Camponesa de Dumont (Notícias de Hoje, 1963). Guerreiro Filho tornou-se
secretário político da Liga, posto importante nesta associação política de si-
tiantes, colonos, trabalhadores rurais (“‘camaradas”, assalariados e diaristas),
arrendatários, parceiros, meeiros e sem terras. Juntos, fizeram exigências ao
governo municipal de Ribeirão Preto, sendo Dumont um distrito dele até
1948, demandando uma clínica médica, um posto dos correios, serviços de
ônibus urbano e pavimentação das ruas da cidade. Acabaram criando uma
cooperativa em Dumont para a compra e venda de produtos, que deveriam
ser mais baratos do que os oferecidos pelos comerciantes locais, que haviam
anteriormente gerenciado os mercadinhos das fazendas (Geraldo, 1990).
Apesar do apoio da mãe, essa militância criou uma rixa entre filho e
pai (Guerreiro Filho, 1989). O pai defendia que a Liga era desnecessária aos
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pequenos proprietários como eles, e determinou que seus filhos não deve-
riam participar da política do PCB. O filho mais velho adorava o trabalho
de militante. Visitava plantações e se manifestava em bailes e casamentos,
encontrando sentido na defesa dos interesses dos camponeses. “Vergonha é
ser bêbado, ladrão. Ser prisioneiro político”, diria quarenta anos depois, “a
defender os interesses da classe oprimida, não é. É uma honra, algo de que
se ter orgulho” (Guerreiro Filho, 1989).
Como já foi mencionado, a Liga Camponesa de Dumont foi o início do
movimento em direção à liberdade dos explorados do campo, unindo um
passado glorioso às mobilizações dos anos 1980, segundo interpretação de
Guerreiro Filho (1989). “A semente foi plantada”, comentou Guerreiro Filho
sobre o tempo que passou na Liga, “e agora, está germinando” (Guerreiro
Filho, 1989). Após a entrada do PCB na ilegalidade em 1947, no entanto, a
residência da família foi invadida e revistada pela polícia. O pai decidiu que
seria melhor o filho ir morar em outro lugar. Ainda comprometido com a
atividade política, João Guerreiro Filho (1989) instalou-se em Ribeirão Pre-
to, onde vivia um de seus irmãos. Também em 1947, casou-se, dando início
a sua própria família. Ironicamente, seu filho mais velho viria a ser, mais
tarde, oficial da polícia, encarregado de reprimir uma geração posterior de
radicais.
CONCLUSÃO
A história de João Guerreiro Filho levanta questões interessantes sobre a
estrutura da democracia e a construção da cidadania no Brasil rural. A Liga
Camponesa de Dumont era uma das numerosas organizações políticas cam-
ponesas que se formaram no país durante o período de democratização após
a Segunda Guerra Mundial. No entanto, são poucos os estudos que conside-
ram importante o papel e influência das Ligas comunistas (Medeiros, 1989;
Welch; Geraldo, 1992; Medeiros, 1995; Santos, 2005; Welch, 2010). Mas,
a grande maioria da literatura dá pouca atenção à agência dos camponeses
até 1959, quando o imaginário das Ligas Camponesas de Francisco Julião
começou a ter um impacto sobre a região nordeste e todo o Brasil. Para al-
guns intérpretes, os trabalhadores rurais eram meras peças no jogo da classe
proprietária dominante, ajudando a manter domínio e influência dela sobre
a política local (Shirley, 1971; Souza, 1972; Lewin, 1979; Forman, 1975).
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REFERÊNCIAS
ALVES, Juliana Ferreira. O documentário “Cabra marcado para morrer” e a construção da
história da Liga Camponesa de Sapé. Trabalho de Conclusão de Curso em História,
Universidade Estadual da Paraíba. 2014.
ARAÚJO, Maria Paula Nascimento. Prefácio. Em: PORFÍRIO, Pablo. Francisco Julião
em luta com seu mito: golpe de estado, exílio e redemocratização do Brasil, Jundiaí:
Paco Editorial, 2016, p.11-13.
AUED, Bernadete Wrublevski. A vitória dos vencidos (Partido Comunista Brasileiro –
PCB e Ligas Camponesas, 1955-64). Florianópolis: Editora da UFSC, 1986.
AZEVÊDO, Fernando Antônio. As ligas camponesas. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra,
1982.
BARRIGUELLI, José Cláudio (org.). Subsídios à história das lutas no campo em São Paulo
(1870-1956). Vol. 1. São Carlos, SP: Arquivo de História Contemporânea/ UFSCar,
1981.
BEZERRA, Gregório. Em: Dênis de MORAES. A esquerda e o golpe de 64. Rio de Janei-
ro: Espaço e Tempo, 1989, p.232-239.
BRASIL. Constituição Federal. 1946 e 1988.
CAMARGO, Aspásia de Alcântara. “A questão agrária: Crise de poder e reformas de base
(1930-1964)”. Em: FAUSTO, Boris (org.) História geral de civilização brasileira: O
Brasil republicano, Tomo III, vol. 3, Sociedade e política (1930-1964) 3˚ ed., p. 121-
224. São Paulo: Difel, 1986.
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ENTREVISTAS
DUARTE, Pedro Renaux. Transcrição de entrevista, conduzido pelo Clifford Andrew
Welch, Pindamonhangaba/SP, 13 de ago., 2000.
GUERREIRO FILHO, João. Transcrição de entrevista, conduzido por Sebastião Geral-
do e Clifford Andrew Welch, São Paulo/SP, 11 de jul., 1989. Arquivo Edgard Leu-
enroth, Universidade de Campinas (AEL/Unicamp).
GUINDALINI, Nelson Luis. Entrevistado pelo Clifford Andrew Welch. Dumont/SP.
13 maio 1995.
SALLA, Pedro. Entrevistado pelo Clifford Andrew Welch. Dumont/SP. 14 maio 1995.
ANEXO
Quadro 1. Matérias diretamente relacionadas à São Paulo no jornal A Liga
Ano Matéria Nº/pág.
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CAPÍTULO 6
Introdução
Ao longo deste texto pretendo apresentar e explorar um pequeno nú-
mero de casos e, a partir deles, tensionar alguns limites e controvérsias con-
ceituais – mas também políticas – que foram ficando claros ao longo dos
trabalhos na Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva (CEV).2 Sele-
cionei três casos, de uma mesma região do estado de São Paulo, unicamente
pelo fato de que permitem uma compreensão cronológica de dinâmicas,
atores e processos que nos pareceram importantes para o debate que aqui
pretendo sustentar. Mas poderiam ter sido outras regiões, em momentos di-
ferentes, inclusive de outros estados.
De modo geral, casos como os aqui listados – e que também se mos-
traram recorrentes em outros estados e regiões – nos permitem questionar
algumas limitações do processo de reparação conforme feito no país, com
fortes feições individualizantes, com expressivo apelo documental e focado
em conceitos que se mostraram bastante engessados durante os trabalhos,
como os de “violência de Estado” . Esses explicitam dificuldades para ver
1
Pesquisador do Grupo de Trabalho sobre a Repressão no Campo, da Comissão da Verdade do
Estado de São Paulo “Rubens Paiva” (CEV Rubens Paiva) e membro da Comissão Camponesa
da Verdade (CCV). É sociólogo, professor e atualmente é conselheiro da Associação Brasileira
de Reforma Agrária (ABRA-Núcleo SP).
2
É importante registrar a presença e atuação dos demais membros do GT Rural da CEV Rubens
Paiva, sem os quais este artigo sequer teria condições de existir, Ivan Seixas, Yamila Goldfarb,
Rafal Aroni, Osvaldo Aly Jr. e Danilo Valentin Pereira. É devido à natureza coletiva dos resulta-
dos do trabalho aqui parcialmente apresentado que, ao longo deste texto, utilizo uma narrativa
de escrita que varia da 1ª do singular para a 1ª pessoal do plural.
Gabriel da Silva Teixeira
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Muito embora houvesse certo alarde em seu relato, sobretudo pela “ofi-
cialidade” dos seus interlocutores, as informações relatadas por Nelson se
mostraram bastante confiáveis.
Adilson Vieira Alves, pequeno proprietário de Cajati, além de presiden-
te do Sindicato de Agricultores Familiares do município durante nossa vi-
sita, era criança quando aconteceu a Operação Registro. Afirmou que “ficou
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Gabriel da Silva Teixeira
com mais medo do Exército do que deles [os membros da VPR]” (Agência
Pública, 2014a). Durante as pesquisas de campo, era recorrente, entre os
entrevistados, relatos de que o Exército prendia, de modo indiscriminado,
qualquer pessoa que achassem que pudesse portar informações e/ou envol-
vimento com os guerrilheiros. Foram inúmeros os relatos de torturas, perse-
guições e ameaças destinadas a membros das comunidades rurais da região.
Valia tudo para achar os guerrilheiros.
Fizeram disfeita com a gente. Humilhavam. Chamavam de vagabundo,
ladrão, bandido, ‘onde que estão os outros?’, ‘você é da raça’. Nós fomos
maltratados pela Polícia. Depois eles trataram bem, depois que decifraram
a coisa. (Agência Pública, 2014a)
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Gabriel da Silva Teixeira
Eles chegavam aqui no pátio, tudo rasgado, aí ponhavam eles no chão as-
sim algemado, com a cara no cascaio ali, ‘ó peguemos mais um aqui’. E
iam lá as polícias, pegavam sanduíche e vinham do lado do cara e falavam
pra ele, ‘quer um lanche?’, ele virava a cara, chacoalhava a cabeça assim, e
falavam ‘táqui o lanche docê’, e péeim com aquela botinona na cara dele.
Aí eles comiam o lanche. Dava dó. Era demais a judiação. Batiam demais.
Não sei se deram um fim nesse povo. (Agência Pública, 2014a)
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Gabriel da Silva Teixeira
do episódio – ainda que não tenha surtido os efeitos desejados pelos altos
escalões militares – pode ser depreendida a partir dos relatos das comunida-
des, sob a forma de medo em falar do passado.
A presença militar no Vale do Ribeira, durante a caçada aos militantes
comunistas deixou marcas ainda mais profundas, mesmo após o término da
operação. Em 1971, o Governo do estado de São Paulo criou a Superinten-
dência de Desenvolvimento do Litoral Paulista (Sudelpa). Isto materializou
toda uma lógica de ocupação e desenvolvimento litoral, alinhada à presença
propriamente militar, visando a prevenção de novos casos de guerrilha. Na
visão dos militares, lideranças comunistas se aproveitavam de regiões não
desenvolvidas para “espalhar” suas doutrinas e implantar focos de guerrilha.
Como veremos nas próximas sessões, se essa lógica de desenvolvimento
territorial cumpriu um papel estratégico de impedir os avanços da luta revo-
lucionária, serviu também de pretexto para a criação de novas fronteiras de
negócios para apoiadores do golpe e dos governos militares. Ainda que tais
dinâmicas tenham de ser mais bem conhecidas e descritas, os casos até agora
levantados são emblemáticos e prenhe de significados.
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Episódios de repressão numa área rural paulista: contribuições
desde o Vale do Ribeira para a história social da ditadura brasileira
casas, as plantas medicinais para a cura física e espiritual, a água para as ne-
cessidades cotidianas, a madeira para a construção, para fogueira e até mes-
mo o nome que denomina a estirpe negra da qual fazem parte. O território
de Mandira, hoje reconhecidamente um quilombo, fica no município de
Cananeia, porção sul do litoral de São Paulo, também no Vale do Ribeira.
Desde o século XVII a região recebeu africanos submetidos à escravi-
dão, explorados primeiramente na atividade de mineração e, mais tarde, em
pequenas glebas e fazendas, nos mais variados cultivos. Há relatos de que,
desde então, o local já servia como lócus de resistência, abrigando negros re-
fugiados. A origem territorial deste quilombo é remetida à figura de Francis-
co Mandira, patriarca da comunidade, oriundo de uma relação “amorosa”
entre um senhor branco e sua escrava, cujo nome não se sabe ao certo (Al-
meida, 2012). Este primeiro mandirano recebeu o território em 1868 de sua
meia irmã, Celestina Benícia de Andrade, tida como “filha legítima” de An-
tônio Florêncio de Andrade, a qual doou um antigo sítio, denominado Sítio
Mandira, a seu meio irmão, com uma área total de cerca de 2.900 hectares.
A decadência da mineração na região, somada ao pouco interesse dos herdei-
ros em continuar com o negócio agrícola fez com que a terra fosse doada ao
escravo bastardo. Com a morte de Francisco Mandira, décadas depois, seus
dois filhos, João Mandira e Antonio Mandira herdaram, cada um, metade
do território. Ao primeiro coube as terras altas, no topo da serra, enquanto,
ao segundo, coube as terras baixas, situadas entre os rios Aracaú e Cambu-
puçava (Almeida, 2012).
Antonio Mandira e seus descendentes, com o tempo, desfizeram-se de
sua porção do território, enquanto João Mandira se estabeleceu e criou raízes
na porção serrana. Décadas mais tarde, Mandira se tornaria palco de uma
escalada crescente de ameaças e violência em função da disputa territorial.
Em 1974, logo após a passagem da Operação Registro, num contexto
de proliferação dos projetos de desenvolvimento na região, um dos mandi-
ranos foi interpelado por dois empresários paulistanos. Eram Affonso Splen-
dore e Aluísio de Assis Buzaid, que passaram a persuadir os mandiranos a
se desfazerem do território. O Relatório Técnico Científico (RTC) produ-
zido por Maria Cecilia Turatti para o Itesp chega a nominar a presença de
prepostos subordinados aos empresários, um deles “corretor de imóveis de
Registro” e o outro “um policial florestal chamado Magalhães” (Turatti,
2002, p. 27). Consta também que ao tentar desistir do negócio, motivado
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O caso das grilagens feitas pelo filho do ministro e seu sócio, reme-
tem-nos também a discussões sobre reparação e a própria conceituação dos
conflitos considerados aptos a serem reparados e os que deveriam ficar “de
fora” de qualquer processo reparador. Se considerarmos a própria noção de
“violência de Estado”, conforme utilizada pela CNV, explicitado em seu
13º capítulo como atos de vigilância, perseguição e violência contra civis e
militantes políticos que tenham sido praticados por “agentes de segurança”
e demais “órgãos e instituições estatais” (CNV, 2014, p. 653-671), o debate
fica ainda mais controverso. O próprio relatório chega a caracterizar violên-
cia estatal como “contexto de um ataque estatal sistemático e generalizado
dos agentes do Estado contra a população brasileira” (CNV, 2014, p. 671).
Se, por um lado, a atuação direta de agentes estatais em episódios que
envolveram ações de vigilância, perseguição, intimidação e violência, são
mais fáceis de serem compreendidos como casos de violência de Estado,
porque ações como a que está em tela, que envolvem, por exemplo, o filho
do ministro da Justiça, não as seriam? Dito de outro modo, o estreitamento
das relações entre as oligarquias regionais e/ou grupos econômicos rurais,
centros de poder e as instituições estatais, a um ponto que os primeiros
sentiam-se protegidos contra qualquer sanção dos últimos apenas porque
eram amigos, familiares, apoiadores políticos ou conhecidos, não parece ter
sido a tônica e o substrato de inúmeras violações de direitos e crimes come-
tidos durante a ditadura militar? Já que se tratava de amigos, familiares dos
governantes ou de membros dos aparelhos do Estado, a impunidade não
estava garantida?
Se houve, contra o campesinato brasileiro, ações diretas de violência
e repressão cometidas por alguma instituição ou agente estatal, talvez até
maior tenha sido o número de casos em que o algoz seja uma liderança
ou quadro político regional desprovido de qualquer vínculo formal com
instituições estatais, mas por elas largamente amparado. Como vimos, nes-
ses casos, tais agentes tinham certeza da impunidade, quando não agiam à
mando, contando com a omissão ou anuência do próprio Estado.
Outro ponto que o caso ajuda a iluminar guarda relação com a dema-
siada individualização da própria noção de reparação, além do modo como
as especificidades das áreas rurais, na maioria dos casos, deixam de ser aten-
didas neste processo. A reparação é fortemente marcada por um viés docu-
mental-comprobatório cujo ônus recai, quase todo, sobre a própria vítima: é
167
Gabriel da Silva Teixeira
ela quem deve comprovar ter sofrido alguma violência, se possível a partir de
algum registro oficial que ateste a veracidade do fato alegado. Acontece que,
nas áreas rurais, além das dificuldades inerentes à própria dinâmica laboral
– marcada pela excessiva informalidade e pelo elevado número de relações
trabalhistas sem qualquer registro formal – parte importante dos conflitos
e violências tem natureza propriamente coletiva, como os casos de grilagens
insistem em apontar. E como vê-se acima, parte expressiva destes conflitos
passava ao largo de qualquer registro oficial/estatal.
Este, inclusive, era um ponto polêmico ao longo dos trabalhos da CEV
Rubens Paiva. Inúmeras propostas de reparação foram no sentido de que
constasse, dentre as recomendações, por exemplo, a exigência da revisão da
titularidade de diversas terras públicas estaduais e/ou federais, sabidamente
griladas por parceiros e apoiadores do golpe. Sem contar o elevado número
de registros e relatos em favor da apropriação de terras coletivas, como no
caso de quilombos e caiçaras expulsos de enormes parcelas territoriais ao
longo das décadas de 1970 e 1980, sobretudo na esteira de grandes empreen
dimentos. Afinal, como traduzir uma usurpação coletiva de um território
em indenizações individuais? Ou como comprovar, para fins reparatórios,
dinâmicas marcadas pela informalidade? Como atribuir ao Estado irregula-
ridades feitas a sua sombra?
Inúmeros casos de grilagem, como o ocorrido no território mandirano,
deram-se aos montes, tanto no Vale como fora dele. Contaram, quase sem-
pre, com a mediação de pessoas “próximas” aos governos municipais, esta-
dual e/ou federal. É o caso do exemplo trazido na próxima sessão.
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Episódios de repressão numa área rural paulista: contribuições
desde o Vale do Ribeira para a história social da ditadura brasileira
Jurídico (2012), citando uma ação rescisória efetuada pela Defensoria Pú-
blica de São Paulo, afirma que por diversas vezes, funcionários da empresa
teriam ido até Peropava para propor a compra de terras aos moradores locais.
Quiseram até colocar um portão na estrada e foram impedidos por um ad-
vogado amigo da família (Revista Consultor Jurídico, 2012).
Quando as negociações não davam certo, os funcionários da empresa
faziam uso da intimidação e violência. Maria, num depoimento prestado à
Comissão da Verdade, relatou um dos episódios:
Eu tinha uns 10 anos (...) eu nasci em 1959. Fomos expulsos, toda a minha
família. Só ficaram duas famílias.
– Qual o nome da mineradora?
– Socal, né... A Socal. Pegou a maior parte dos terrenos, está tudo na mão
dessa mineradora. Eu era criança, mas eu lembro que meu pai saía pra tra-
balhar com minha mãe. Eu ficava em casa com meus irmãos, e daí vinha
aqueles caminhões e paravam bem em frente à casa. Falavam que iam quei-
mar a casa, e eu pegava os meus irmãos e corria pro mato e ficava lá até o
pai e a mãe chegar, porque nós tinha medo. E eles pegaram a maior parte
do terreno. Nós ficamos com um pedacinho que não dá pra fazer nada.
(Comissão da Verdade Rubens Paiva, 2014)
169
Gabriel da Silva Teixeira
E também tem uns ‘terceiros’ que estão [hoje] no que é nosso. Meu avô
tinha uns impostos pra pagar e como ele não tinha dinheiro (...) falou para
ele [João Azar]: ‘você me dá uma parte eu pago o imposto.’ Aí ele vendeu
o pedaço. Esse homem que pagou o imposto foi vendendo. E quando ven-
dia pra outros eles iam aumentando [o tamanho da propriedade vendida].
E foi assim que eles pegaram quase tudo. (Comissão da Verdade Rubens
Paiva, 2014)
ALGUMAS CONCLUSÕES
Como afirmado no começo deste texto, os casos elencados, todos ocor-
ridos na mesma região do estado de São Paulo, são emblemáticos de dinâmi-
cas já há muito conhecidas das áreas rurais do Brasil. As especificidades do
campo, sobretudo ao longo das décadas de ditadura civil-militar, nos fazem
questionar alguns limites dos conceitos de violência de Estado e de repara-
ção conforme utilizados ao longo dos trabalhos da CNV. Trabalhos como
aqueles feitos em São Paulo, mas também em outros estados, relatados pela
Comissão Camponesa da Verdade, apontam que as violações e violências
cometidas no campo durante a ditadura nem sempre obedeciam à formula
“agentes do Estado”, muito menos seguiam ritos já amplamente documen-
tados no caso de agências como o Departamento de Ordem Política e Social
(Dops), por exemplo, que documentavam horários de entrada e permanên-
cia de militantes presos, início e término das sessões de tortura e interroga-
tórios, dentre outros. Contudo, a ausência de documentação não significa
170
Episódios de repressão numa área rural paulista: contribuições
desde o Vale do Ribeira para a história social da ditadura brasileira
171
Gabriel da Silva Teixeira
REFERÊNCIAS
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org/2014/08/napalm-no-vale-do-ribeira/ . Acesso em 10 out. 2014.
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http://apublica.org/2014/04/um-torturador-frances-na-ditadura-brasileira/. Acesso
em: 2 out de 2014.
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TEIXEIRA, Gabriel da Silva; GOLDFARB, Yamila; PEREIRA, Danilo Valentim; SOU-
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comunidade de quilombo de Mandira/Cananeia-SP. São Paulo: Fundação do Institu-
to de Terras de Estado de São Paulo “José Gomes da Silva” (ITESP), 2002.
172
CAPÍTULO 7
1
Doutor em Sociologia (UnB), professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal de
Goiás (UFG) e do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE/FE/UFG) (E-mail: jppie-
trafesa@gmail.com)
2
Doutora em Educação (PPGE/FE/UFG) e professora da Universidade Estadual de Goiás
(UEA). (E-mail: joycealbo@yahoo.com.br)
José Paulo Pietrafesa e Joyce de Almeida Borges
3
Nos relatos organizados por Frei Fernando se obteve um conjunto de informações sobre as ações
dos STR no período de 1980-1990, seja na organização de greve de canavieiros, na ocupação de
terras e na ação de oposição à estrutura sindical vigente.
4
Identificada como sendo uma articulação de sindicalistas surgida no decorrer da década de 1970
com objetivo de organizar grupos de base, retomar as direções sindicais que foram sendo impos-
tas pela ditadura militar no decorrer dos anos de 1960-1970.
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Organização política de âmbito nacional, fundada durante um congresso promovido pela Ju-
ventude Universitária Católica (JUC) em Belo Horizonte, entre 31 de maio e 3 de junho de
1962. Seu objetivo era formar quadros que pudessem “participar de uma transformação radical
da estrutura brasileira em sua passagem do capitalismo para o socialismo”.
9
Programa nacional nascido da experiência com escolas radiofônicas, lançada pelo bispo Eu-
gênio Sales em Natal (RN), em 1958. As atividades do MEB tinham como unidade básica de
organização o “sistema” (composto de professores, supervisores, locutores e pessoal de apoio),
encarregado da preparação dos programas e sua execução através da emissora da diocese local e
do contato com as classes de aula. O MEB, criado pelo Decreto nº 50.370, de 21 de março de
1961, deveria executar um plano quinquenal (1961-1965), que previa inicialmente 15 mil escolas
radiofônicas espalhadas pelo Brasil, [...] foi assinado no mesmo dia um convênio entre o Minis-
tério da Educação e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
10
Sobre a construção da estrada de ferro, ligando Goiás ao estado de São Paulo, ver Borges (1990).
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A Fago, criada em 1962 com o apoio da Arquidiocese de Goiânia, promovia investigações em
torno das questões agrárias do estado. Também promovia cursos de legislação agrária, escolas e
formação para líderes de sindicatos (Guimarães, 2014).
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Druck (2006) ressaltou que houve perda de centralidade nas pautas co-
letivas que reivindicavam direitos aos trabalhadores. Além disso, percebeu-
-se aumento da burocratização das estruturas sindicais, uma vez que parte
de sua direção foi cooptada para exercer funções estatais. O autor denomi-
nou de flexibilização dos modos de determinação do trabalho por meio da
estatização da organização dos trabalhadores:
[...] os sindicatos se transformaram num fim em si mesmos, e como tal,
atuaram, cada vez mais, dentro da legalidade do capital, deixando de ser
um meio para constituir uma legalidade própria da classe trabalhadora e
que alimentasse a construção de um projeto político alternativo à hegemo-
nia neoliberal. (Druck, 2006, p. 330)
191
José Paulo Pietrafesa e Joyce de Almeida Borges
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como visto no desenvolvimento deste capítulo, as relações entre expan-
são agropecuária no estado de Goiás, ações dos camponeses e trabalhadores
assalariados e construção de memórias são ordens constitutivas de uma mes-
ma natureza. Quanto mais um avança mais o outro conflita, quanto mais
conflito, mais se registra em narrativas as várias formas como se deram as
ações. A partir delas e das reflexões sobre elas, a construção e o desenvolvi-
mento de inúmeros sujeitos coletivos, construtores de saberes e alternativas
sociais (dos meios de sobrevivência, de novas culturas e relações).
O trabalho foi uma categoria que teve constância unificadora das ações
históricas pelo uso e posse da terra, identificados nas narrativas e na literatu-
192
Ações coletivas em territórios camponeses e movimentos sociais agrários no Estado de Goiás
ra, uma vez que o resultado esperado ao final dos conflitos estava na melho-
ria de suas condições, sejam elas frente à posse e uso da terra para sustento
familiar, seja nos contratos entre assalariados e empresas rurais.
Outro marco relevante, quase que um “padrão estatístico” foi identi-
ficado na estruturação e caminhos percorridos pelas organizações: ações
coletivas gerando consensos, estruturação organizativa, repressão e coerção
estatal e privada, cooptação de lideranças e fragmentação das organizações.
Os períodos históricos identificados no decorrer deste capítulo pude-
ram comprovar as reflexões acima (“marcha para o oeste do Brasil”, suas
contradições e golpe militar e, a experiência organizativa dos camponeses
a partir de 1970, até os anos 2000). Justamente a construção das memó-
rias nos territórios camponeses, sua formação e seu protagonismo forjou os
sujeitos e suas múltiplas formas de ações coletivas. Este estudo possibilitou
perceber a modelagem dos sindicatos de trabalhadores rurais no estado de
Goiás, identificando também suas contradições e desafios.
REFERÊNCIAS
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Terra – CPT. Itinerarius Reflectionis, Jataí, v. 1, n. 10, p. 91-101, 2011.
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do mundo do trabalho. 16ª ed. São Paulo: Cortez, 2015.
BARKER, Colin. O movimento como um todo: ondas e crises. In.: Revista Outubro, n.
22, 2º semestre de 2014. Disponível em: http://outubrorevista.com.br/wp-content/
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Acesso em: 16 nov. 2020.
BORGES, Elizabeth Maria de F. Itauçu: sonhos, utopias e frustrações no movimento cam-
ponês. 2005. 133 f. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Ciências
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de Goiás e seu papel nas transformações das estruturas regionais: 1909-1922. Ed.
Cegraf-UFG, Goiânia – GO, 1990.
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: Lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das
Letras, 1994.
CARNEIRO, Maria E. F. A revolta camponesa de Formoso e Trombas. Goiânia: UFG,
1988.
CARVALHO, Horácio Martins de. Camponeses e a necessária busca do tempo perdido.
Boletim Dataluta, Presidente Prudente, n. 100, abr. 2016.
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José Paulo Pietrafesa e Joyce de Almeida Borges
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CAPÍTULO 8
Antônio Canuto1
1
Graduado em Medicina, foi professor da Universidade Federal do Mato Grosso. Escritor e po-
lítico, é ex-deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores, partido que ajudou a criar. Atuou
na resistência à ditadura militar e acabou preso por treze anos, se dedicando a pesquisas sobre a
repressão e violações de direitos no regime militar.
Antônio Canuto
198
A política de desenvolvimento para a Amazônia promoveu expulsão,
expropriação e repressão no Araguaia durante os anos 1960 a 1990
Com a instalação desta política não se têm conta das inúmeras tran-
sações de terras que deram origem às empresas que se constituíram para
terem acesso aos incentivos oferecidos pelo governo federal. Com o discurso
de que estavam contribuindo para o desenvolvimento da Amazônia, o que
estas empresas procuravam de fato eram os recursos que o governo liberava
através de empréstimos (crédito subsidiado) e incentivos fiscais.5
Os dois municípios que formavam a região Nordeste de Mato Grosso,
Barra do Garças e Luciara,6 concentraram boa parte dos projetos aprova-
atividade agropecuária. Com a criação da Sudam, a agropecuária passou a ter projetos aprova-
dos, em maior número que os industriais.
4
Em 1963, no extremo norte do vale, o povoado de Mato Verde foi elevado à condição de muni-
cípio, passando a se chamar Luciara, junção dos nomes de Lúcio da Luz (um dos pioneiros que
se estabeleceu em 1934 às margens do Araguaia, próximo à Ilha do Bananal) e Araguaia. Em
1976, São Félix do Araguaia foi emancipado e, nas décadas de 1980 e 1990, foram sendo criados
os demais municípios.
5
Alguns estudos já demonstraram que parte dos recursos foram aplicados na região e outra foram
desviados para aplicações mais vantajosas no Sul e Sudeste.
6
O vale do Araguaia, no Mato Grosso, a partir da confluência dos rios Garças e Araguaia, cons-
tituía um único município, o Araguaia, criado em 8 de junho de 1913. Por sucessivas leis es-
taduais, o município passou a se chamar, em 1915, de Registro do Araguaia e Araguaiana, em
1932. Com a criação do município de Barra do Garças, em 1948, o município de Araguaiana
foi extinto, passando a ser um distrito de Barra do Garças (Prefeitura).
199
Antônio Canuto
dos pela Sudam sobretudo de 1967 a 1972. De 524 projetos que a Sudam
aprovou em toda a Amazônia, naquele período, 86 (16,5%), se localizavam
nestes dois municípios. O ano de 1970 foi o ano em que foram aprovados,
proporcionalmente, mais projetos para estes dois municípios. De 115 pro-
jetos aprovados naquele ano pela Sudam, 20 projetos, ou seja mais de 23%
do total, se localizavam nestes municípios. Em 1971, foram pouco mais de
19%. De 78 projetos aprovados, 15 foram nos municípios mato-grossenses
do Vale do Araguaia.
Os incentivos fiscais eram o grande atrativo e os recursos fartos. Além
do projeto inicial de instalação ou implantação, passado algum tempo eram
apresentados projetos de ampliação ou de reformulação, ou de reformula-
ção financeira. Para cada novo projeto, novos recursos eram liberados pela
Sudam. Foram criadas novas empresas, dentro de áreas já beneficiadas com
projetos, buscando mais crédito e novos incentivos, como veremos abaixo.
Um exemplo foi o do Grupo BCN (Banco de Crédito Nacional). Dian-
te da grande oportunidade de acessar recursos públicos, o BCN, na pessoa
de Armando Conde, um dos seus diretores, adquiriu de Michel Nasser, um
dos sócios da extinta Companhia Imobiliária do Vale do Araguaia (Civa),
370 mil hectares na região de Santa Terezinha, município de Luciara. Ar-
mando Conde nos informa o que significam estes 370 mil hectares “Do rio
Araguaia, onde a gleba começava, até o fim dela, eram 150 quilômetros. O
perímetro da Codeara, e nós fizemos a picada inteira, era de 524 quilôme-
tros” (CONDE, 2006, p. 108).
Santa Terezinha era um povoado que começou a ser ocupado ainda na
década de 1910. Em 1932, foi inaugurada o templo da Igreja Católica, que
ainda hoje está sobre o Morro de Arei, e uma casa, que seria usada para con-
vento. Nas imediações, uma centena de famílias cultivavam a terra, como
posseiros. Em 1964, foi fundada uma cooperativa formada pelos pequenos
agricultores, a Cooperativa Agrícola Mista do Araguaia (Camiar).
A área que o grupo BCN adquiriu envolvia todas as terras ocupadas, in-
clusive a área urbana, como confessa o próprio Armando Conde: “Havia em
Santa Terezinha somente três casas. Uma era o hotelzinho do José Bonilha,
que mais tarde eu apelidaria de Bombril... porque ele fazia de tudo. Havia
um botequinho, pregado ao Bonilha, e o Mané Quitandeiro. Completava
a povoação a igreja e a casa da prelazia. Tudo isso ficava dentro da área que
estava sendo vendida pelo Michel Nasser” (Conde, 2006, p 104).
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Este caso de expulsão do Pe. Jentel está detalhado no Relatório da Comissão Camponesa da
Verdade (CNV, 2016, p. 152ss).
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ra, a fazenda derrubou o barracão que servia de escola e transferiu para sua
sede todo material escolar.
Duas pessoas foram contratadas pelo gerente, Plinio Ferraz, para dar uma
“surra no padre até o fim”. Tratava-se do padre Henrique Jacquemart, de San-
ta Terezinha, que orientava os posseiros sobre seus direitos. Um dos fiscais da
fazenda confessou a moradores que o gerente lhe dera ordens de envenenar as
cisternas.
Em 1972, a Frenova mandou levantar cercas que impediam o acesso aos
bebedouros usados pelos moradores para o gado e cortavam a estrada. Iniciou a
construção da sede da Fazenda Piraguassu a quatro quilômetros do povoado e
ameaçava construir retiro e armazém em Cedrolândia, núcleo original da ocu-
pação da região.
Os posseiros cortaram a cerca e a Frenova não podia tolerar esta desfaça-
tez. Conseguiu que um argento e um escrivão de polícia de Barra do Garças
viessem a Porto Alegre para intimar os posseiros. O povo rejeitou a intimação,
argumentando que o corte da cerca tinha sido uma ação de todos e exigiam
que o Incra resolvesse os problemas relacionados à disputa pela terra.
Ainda em 1972, em 12 de novembro, chegou em Porto Alegre uma figura
estranha que se apresentou como capitão do Exército, Ailson Loper. Intimidou
os moradores dizendo que, em poucas horas, podia ocupar o povoado com 360
homens sob seu comando e exigiu que o povo entregasse as armas. A quem
reclamava das ações da Frenova, respondia: “Disso eu já sabia”. Acusou alguns
posseiros de serem elementos perigosos e de terem ficha no SNI, declarando
Porto Alegre como foco de subversão.
A Frenova se tornou a sede de sua operação, para onde foram levados o pa-
dre Eugênio Cônsoli, que se encontrava em Porto Alegre naqueles dias, e mais
três posseiros. Foram submetidos a interrogatórios, vexames e humilhações por
mais de duas horas, sob a vigilância armada do empreiteiro geral da fazenda,
José Bens, e de outros capangas.
Todas as ações do Grupo Frenova foram executadas com recursos públi-
cos e incentivos ficais. As fazendas apresentaram seus projetos à Sudam, que os
aprovou. O primeiro projeto aprovado foi em 30 de junho de 1967, apresentado
em nome da Fazenda Tapiraguaia (recursos da ordem de Cr$ 2.519.404,00).
Cada uma das sete fazendas do grupo, acima mencionadas, apresentou
projetos à Sudam que os aprovou. Era dinheiro farto, recursos públicos ‘para
desenvolver a região’, mas que não chegou ao povo lá residente.
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Antônio Canuto
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O Proterra era um programa do governo militar, criado pelo Decreto-lei n. 1.179, de 6 de ju-
lho de 1971. O artigo 1º instituiu “...o Programa de Redistribuição de Terras e de Estímulo
à Agroindústria do Norte e do Nordeste (Proterra), com o objetivo de promover o mais fácil
acesso do homem à terra, criar melhores condições de emprego de mão de obra e fomentar a
agroindústria nas regiões compreendidas nas áreas de atuação da Sudam e da Sudene”. O Banco
do Brasil administrava os recursos deste programa. O latifundiário ou empresa apresentava um
projeto de colonização sobre uma determinada área de sua propriedade e buscava interessados
na compra de terras. O comprador deveria pagar ao proprietário 20% do valor, os outros 80%,
o Banco do Brasil os financiava ao comprador com carência de três anos e vinte anos para amor-
tizar o valor recebido. e repassava integral e imediatamente o valor ao proprietário do projeto.
Segundo analistas, o Programa foi criado para socorrer usineiros e latifundiários, em crise, do
Nordeste, pois estes apoiavam o governo.
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Em 1997, a Destilara Gameleira foi fiscalizada pelo grupo móvel de combate ao trabalho es-
cravo, quando determinou o pagamento das diárias aos trabalhadores, conforme havia sido
combinado no contrato; em 2001, segundo registros da CPT, a destilaria foi denunciada pela
existência de 105 trabalhadores submetidos a regime análogo ao de trabalho escravo, o grupo
móvel do Ministério do Trabalho libertou 76 pessoas; em 2003, nova fiscalização resgatou 272
trabalhadores e, em 2005, foram resgatados 1.003 trabalhadores, o maior resgate efetuado até
então nos dez anos de atuação do grupo no Brasil.
210
A política de desenvolvimento para a Amazônia promoveu expulsão,
expropriação e repressão no Araguaia durante os anos 1960 a 1990
que desde 1952 com eles viviam, acusando-as de serem as incentivadoras dos
índios contra as determinações do governo” (Alvorada, março/abril 1996).14
Os Tapirapé, porém, se mantiveram irredutíveis em sua demanda.
Diante da firmeza na resistência, o Governo Federal acabou homologando,
em 1983, a Terra Indígena Tapirapé/Karajá. O Decreto 88.194, de 24/ de
março de 1983 estabeleceu a TI com 66.166 hectares, à margem esquerda
do Araguaia, no município de Santa Terezinha.
Já no ano seguinte, a partir de 1984, os Tapirapé passaram a reivindicar
seu território tradicional, na região do Urubu Branco, ocupada por diversas
fazendas. Passou, porém, quase uma década para que fazendas e posseiros
que ocupavam o território fossem retirados. A desocupação começou no fi-
nal de 2002 e foi concluída em agosto de 2003.
14
As Irmãzinhas de Jesus, desde 1952, conviviam com os Tapirapé. Quando as irmãs chegaram,
os Tapirapé estavam em vias de extinção, então reduzidos a mais ou menos 50 pessoas.
211
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É importante destacar que, naquele tempo, devido às péssimas condições das estradas, eram
necessário mais que um dia de viagem para se chegar à Barra do Garças.
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A política de desenvolvimento para a Amazônia promoveu expulsão,
expropriação e repressão no Araguaia durante os anos 1960 a 1990
elas a malária e a fome, 21 famílias (umas 115 pessoas), com decisão e co-
ragem, realizaram a ocupação de “Nova União”. A Equipe de Pastoral se
incorporou ao grupo nos serviços de apoio, e os posseiros comunicaram
o fato ao Incra, solicitando apoio, mas o órgão fundiário não resolveu a
disputa pela terra na região.
A repressão não demorou em acontecer. Na madrugada de 4 de julho
de 1973, uns sessenta policiais militares, comandados pelo coronel Euro
Barbosa de Barros, secretário de Segurança do Estado, invadiram o povoa
do, anunciando a presença com uma grande descarga de tiros. As pessoas
foram tiradas com violência das redes onde dormiam e os barracos foram
todos vasculhados. A casa da Equipe de Pastoral não foi poupada. Lá foi
instalada a central de comunicação da repressão. Todo material escrito –
cartas, livros, revistas, documentos – foi apreendido. No final da tarde foi
dada ordem de prisão contra Edgar Serra, agente de pastoral que cuidava do
posto de saúde e Tereza Adão, moça do Rio de Janeiro que visitava a Prelazia
e naqueles dias se encontrava em Serra Nova. O padre Eugênio Cônsoli foi
interrogado durante mais de 1h30.
A operação militar visava assustar a população e quebrar a resistên-
cia. Mas, mesmo assustada, a maior parte continuou o trabalho em Nova
União. Nos primeiros dias de julho, nova investida das forças de repressão.
Conseguiu desta vez desmantelar a organização do povo e prenderam Lulu,
o líder dos posseiros, que foi levado para junto de outras pessoas aprisiona-
das, pois a ação militar se estendera a toda a região da Prelazia de São Félix.
Com estas ações, o surto de crescimento de Serra Nova parou. As famí-
lias foram desenvolvendo seu trabalho nas poucas áreas ainda não domina-
das pelo latifúndio. Muitos anos mais tarde estas áreas foram identificadas
como de domínio público (Alvorada, setembro/outubro, 1998).
A Fazenda Bordon S/A – Agropecuária da Amazônia apresentou à Su-
dam projeto que foi aprovado em março de 1972, recebendo de incenti-
vos Cr$ 8.962.693,00. (Em outubro de 1975, teve aprovado um projeto de
reformulação, de Cr$ 35.545.782,00 e em março de 1979, um projeto de
Atualização financeira liberou Cr$ 61.032.002,00.)
A Bordon, depois de ter causado tanto sofrimento e humilhação às fa-
mílias, como todas as demais empresas que investiram na agropecuária na
região, ao secar a fonte dos incentivos fiscais, abandonou a região. A área
acabou nas mãos da Açucareira Santa Rosa, uma empresa com um débito
213
Antônio Canuto
214
A política de desenvolvimento para a Amazônia promoveu expulsão,
expropriação e repressão no Araguaia durante os anos 1960 a 1990
215
Antônio Canuto
A MODO DE CONCLUSÃO
O que aconteceu nos cinco casos anteriormente relatados se repetiram
em praticamente todos os lugares que tiveram fazendas incentivadas pelo
governo federal com recursos aprovados pela Sudam na Microrregião Norte
Araguaia. O mesmo se reproduziu em outras regiões do estado, e em outros
estados, em especial no sul do estado do Pará.
Os incentivos fiscais, que no discurso eram para levar o desenvolvimen-
to e o progresso para a região, foram utilizados não para o desenvolvimento
local e regional e sim para beneficiar os donos do capital.
Onde estão os grandes desbravadores da Amazônia, implementadores
do progresso desta imensa região inóspita do Brasil? Onde se localizam as
grandes obras de desenvolvimento que trouxeram?
Quando a fonte dos incentivos fiscais secou, os “pioneiros”, um a um,
foram deixando a região. Quem afirma isso não é ninguém mais do que o
banqueiro Armando Conde, dono do Banco de Crédito Nacional e da Co-
deara. Ele, confessa:
De todos os que foram para o Araguaia nos tempos pioneiros, fui o último a
resistir. Todo mundo foi embora da Amazônia e eu fiquei, por quê? Minha
principal característica é a teimosia. [...] Meu sentimento, ao vender a Codeara
foi de missão cumprida.... Ainda fiquei no Araguaia com um pedaço de quase
2 mil hectares, onde está a sede da antiga Codeara. (Conde, 2006, p. 229)
Mas nem a sede da antiga Codeara resistiu. Ela também foi vendida.
Nada ficou do que foi proclamado aos quatro ventos como a redenção da
Amazônia feita pelos empresários, novos bandeirantes.
Perdão, ficou sim.
Ficou uma das maiores, possivelmente a maior, onda de desmatamento
que o Brasil conheceu.
Ficaram a indignação e a revolta de milhares de famílias pobres que
buscavam um pequeno pedaço de terra para viver e se reproduzir e que fo-
ram expulsas do chão por elas cultivado.
Ficou a luta dos povos indígenas obrigados a enfrentar, anos e anos, em-
presários, órgãos públicos, decisões judiciais para poderem recuperar uma
pequena parte do território livre onde viviam.
Ficou a marca indelével da exploração em regime análogo ao trabalho
escravo de milhares e milhares de trabalhadores braçais, peões, que conse-
guiram sobreviver às condições desumanas que lhes foram impostas.
216
A política de desenvolvimento para a Amazônia promoveu expulsão,
expropriação e repressão no Araguaia durante os anos 1960 a 1990
REFERÊNCIAS
BOLETIM ALVORADA, Prelazia de São Félix, São Félix do Araguaia, dezembro de
1983.
BOLETIM ALVORADA, Prelazia de São Félix, São Félix do Araguaia. Maio/junho de
2000, nº 216
BOLETIM ALVORADA, Prelazia de São Félix, São Félix do Araguaia. Julho/agosto
2000.
BOLETIM ALVORADA, Prelazia de São Félix, São Félix do Araguaia. Setembro/outu-
bro 2000.
CANUTO, Antônio. Resistência e luta conquistam território no Araguaia mato-grossense.
Outras Expressões, São Paulo, 2019.
CASALDÁLIGA, Pedro. Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a margi-
nalização social: Carta Pastoral de São Félix do Araguaia,1971.
CCV – Comissão Camponesa da Verdade. Relatório final: Violações de direitos no campo
– 1946 a 1988. Brasília, Comissão de Direitos Humanos, Senado Federal, 2016.
CONDE, Armando. A riqueza da vida: memórias de um banqueiro boêmio. Rio de Ja-
neiro: Editora Record, 2006.
MINISTÉRIO DO INTERIOR. Departamento de Administração de Incentivos (DPI).
Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). Relação de projetos
aprovados entre 1964 e 1982. Belém: Sudam, 1982.
PREFEITURA Municipal de Araguaiana. História de Araguaiana. Disponível em: ht-
tps://www.araguaiana.mt.gov.br/o-munic%C3%ADpio/hist%C3%B3ria. Acesso
em: 15 jul 2018.
217
CAPÍTULO 9
VIOLÊNCIA E GRILAGEM:
A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO
CAMPO NO ESTADO DO PARÁ (1964-2019)
1
Professor dos Cursos de Pós-Graduação e Graduação em Direito da Universidade Federal do
Pará (Belém-PA, Brasil). Doutor em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido pelo Nú-
cleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará. Advogado.
2
Mestra em Direitos Humanos e Meio Ambiente pelo PPGD/UFPa e Bacharel em Direito (ad-
vogada) pela Universidade Federal do Pará (2016). Voluntária da Clínica de Direitos Humanos
da Amazônia, vinculada ao projeto de pesquisa “Assassinatos por conflitos fundiários no estado
do Pará (1964-1988)”.
3
Formada em Direito pela Universidade Federal do Pará. Pós-graduanda em Direito Processual
pela PUC-MG. Voluntária da Clínica de Direitos Humanos da Amazônia, vinculada ao projeto
de pesquisa “Assassinatos por conflitos fundiários no estado do Pará (1964-1988)”.
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núncia nunca apurada pelas autoridades, alegando que a mesma era relativa
a vítimas “não identificadas”. A falta de qualquer providência pelo Poder
Público impediu o esclarecimento da denúncia.
Entretanto, o caso que possui maior evidência, que conta novamente
com o envolvimento de Sebastião da Terezona, foi a chacina do Castanhal
Ubá, em Marabá. O massacre teve início no dia 13 de junho de 1985, quan-
do os trabalhadores rurais João Evangelista Vilarins, Francisco Pereira Al-
ves, Luiz Carlos Pereira de Souza Januário Ferreira Lima e Francisca foram
mortos por grupo de pistoleiros.
Em 18 de junho de 1985, cinco dias após as primeiras mortes, os
mesmos pistoleiros retornaram ao local do crime para assassinar mais três
pessoas, entre as vítimas estava o líder comunitário José Pereira da Silva,
conhecido popularmente como Zé Pretinho. Após 26 anos, foram julga-
dos todos os réus dentro do processo criminal. O fazendeiro Edmundo
Ortiz Vergolino foi condenado como mandante do crime. Já Sebastião da
Terezona foi acusado de liderar as mortes, chegando a ser preso. Entretan-
to, este foi assassinado na cadeia em 2001, em uma rebelião (Guimarães,
Barp, 2011).
Também em Marabá, no dia 13 de agosto de 1987, na localidade Cas-
tanhal Pau Ferrado, foram assassinados Manoel Gonçalves de Souza, Fran-
cisco Vicente de Lima e Manoel P. do Nascimento. Estes foram vítimas no
contexto do conflito histórico registrado pelo menos desde 1983 na região,
quando 400 famílias ligadas à coleta de castanhas conflitavam com os inte-
resses da família Mutran (CPT, 2017).
Outro caso envolvendo assassinato em massa, cujo desfecho envolveu
condenação tardia, é o da chacina da Fazenda Princesa, ocorrida no dia 27
de setembro de 1985, no município de Marabá, na qual vários trabalhadores
assentados pelo Getat (Grupo Executivo das Terras do Araguaia-Tocantins)
foram massacrados depois de serem torturados por pistoleiros contratados
pelo fazendeiro Marlon Pidde. Os trabalhadores foram fuzilados dentro da
fazenda e seus corpos foram encontrados dias depois no Rio Itacaiunas com
várias perfurações de projéteis.
Destaca-se, também, a chacina ocorrida entre os dias 23 e 24 de ou-
tubro de 1987, em Goianésia, então município de Rondon do Pará. Na
ocasião, três pistoleiros assassinaram João Barbosa da Conceição (“João
Passarinho”) em frente à residência de Sebastião Ferreira de Souza, cuja
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das provas até mesmo nos casos de crimes de clamor público, em que auto-
res e mandantes sequer se preocupam em esconder as mais primárias evi-
dências materiais dos delitos que perpetram contra a sociedade. É a certeza
da impunidade, tão frequentemente denunciada. (grifo nosso)
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no campo no Estado do Pará (1964-2019)
CONCLUSÃO
O trabalho permitiu mostrar como a violência contra camponeses e
seus aliados na luta pela reforma agrária e a justiça no campo foi uma cons-
tante na história das últimas décadas no estado do Pará. Outro dado fun-
damental foi comprovar como mais de 96% dos casos não chegaram a ser
julgados. A impunidade é, sem dúvida, uma das causas de novas violências.
A defesa da vida dos camponeses, que na Amazônia assume a feição de
“posseiros”, “sindicalistas“ e, mais recentemente, “populações tradicionais”, em
2019 ganhou um destaque especial: a defesa da vida da floresta. As recentes
queimadas (aumento de 82% de janeiro a agosto) mostram a necessidade de
se debater de maneira mais acurada a regularização fundiária conjuntamen-
te com a regularidade ambiental, proibindo-se, por exemplo, regularizar as
terras desmatadas recentemente para evitar que o crime compense. É neces-
sário identificar os culpados que, segundo Falcão (2019, p. 3), seriam assim
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Girolamo Domenico Treccani, Maria Sebastiana Barbosa Pinheiro
e Halyme Ray Franco Antunes
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno. Carajás: A guerra dos Mapas. Belém: Falangola. 1994.
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno. Povos e comunidades tradicionais atingidos por con-
flitos de terra e atos de violência. In COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Con-
flitos de Terra no Brasil. Goiânia2009. São Paulo: CPT Nacional/Expressão Popular,
2010. p. 64-71.
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno. Rituais de passagem entre a chacina e o genocídio:
conflitos sociais na Amazônia. In ANDRADE, Maristela de Paula (Org.). Chacinas
e Massacre no Campo. São Luís: UFMA. 1997. p. 19-48.
ALVES, Luana Nunes Bandeira. Entrevista com Paulo Fonteles Filho realizada em 2014.
Arquivo CIDHA.
ANISTIA INTERNACIONAL. Brasil. Violência autorizada nas áreas rurais. London:
Amnesty International Publications, 1988.
BARATA, Ronaldo. Inventário da Violência. Crime e Impunidade no campo paraense
(1980-1989). 1a ed. Belém: CEJUP, 1995.
BARROS, Ciro. Dois anos do massacre de Pau D’Arco: mandantes impunes e ameaça de
despejo. Exame, 2019. Disponível em https://exame.abril.com.br/brasil/dois-anos-
-do-massacre-de-pau-darco-mandantes-impunes-e-ameaca-de-despejo/. Acesso em:
4 de setembro de 2019.
BRASIL. CPI da Violência no Campo. Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a in-
vestigar as origens, causas e consequências da violência no campo brasileiro. Diário do
Congresso Nacional. Câmara dos Deputados. Brasília 19 de maio de 1992.
BRASIL. CPI da Pistolagem. Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a continuar as
investigações de crimes de “pistolagem” nas regiões Centro-oeste e Norte, especifi-
camente na chamada área do “Bico do Papagaio”. Brasília 1992.
BRASIL. Incra nos Estados − Informações gerais sobre os assentamentos da Reforma Agrá-
ria. Disponível em: < http://painel.incra.gov.br/sistemas/index.php>. Acesso em: 7
de setembro de 2019.
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CAPÍTULO 10
Eduardo F. de Araújo1
Givânia Maria da Silva2
Selma dos Santos Dealdina3
1
Professor do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
Doutorando no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Membro no Núcleo de
Estudos e Pesquisas Afro-brasileiros e Indígenas da UFPB.
2
Professora, nascida no quilombo de Conceição das Crioulas em Pernambuco. Especialista em
Programas de Ensino (FACHUS/UPE) e em Desenvolvimento Local (EaD PNUD/Sevilha).
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Mestra em Políticas Públicas e
Gestão da Educação, da Universidade de Brasília (UnB), e integrante da Coordenação Nacional
de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).
3
Militante, ativista social e integrante da Secretaria Executiva da Conaq. Graduada em Serviço
Social – Prouni – Universidade de Anhanguera.
Eduardo F. de Araújo, Givânia Maria da Silva e Selma dos Santos Dealdina
4
Relatório publicado pela Organização Não Governamental (ONG) Terra de Direitos e pela Co-
ordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), em
parceria com o Coletivo de Assessoria Jurídica Popular “Joãozinho de Mangal” e a Associação
de Advogados(as) de Trabalhadores(as) Rurais da Bahia (AATR).
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Quilombos, memórias e justiça de transição camponesa:
direitos humanos, narrativas e verdades em disputa
5
Alcântara (MA), Monte Alegre (MA), Marambaia (RJ), Peropava (SP), Mandira (SP), Varzeão
(Paraná), Negros de Gilu (PE), Vale do Ribeira (SP), Rio do Macacos (BA) e a fundação da As-
sociação das Comunidades Negras Rurais do Maranhão (Aconeruq).
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direitos humanos, narrativas e verdades em disputa
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Quilombos, memórias e justiça de transição camponesa:
direitos humanos, narrativas e verdades em disputa
que tornava cada vez mais evidente que a animação das memórias coletivas
quilombolas possibilitarão um cruzamento de informações, de dados e de
narrativas que poderão ampliar as pesquisas sobre a questão campesina no
Brasil e nas Américas.
Ao constatarmos que era possível aproximar essa leitura clássica de
Clóvis Moura sobre os quilombos do Brasil com o trabalho do Projeto de
Pesquisa e as situações publicadas nos Relatórios da CCV e Quilombola,
caracterizando-os como memória coletiva quilombola, restou-nos elencar os
casos e algumas referências.
Os casos e referências no Relatório da CCV apontam as situações de
Alcântara (Maranhão), Monte Alegre (Maranhão) e Marambaia (Rio de
Janeiro) como emblemáticos da interação entre o período da ditadura civil-
-militar com os quilombos, ainda são citados episódios ocorridos no Qui-
lombo de Peropava (São Paulo), Mandira – São Pedro, Porto Velho (São
Paulo), Varzeão (Paraná), Negros de Gilú (Pernambuco), Vale do Ribeira
(São Paulo) e Rio do Macacos (Bahia), além da fundação da Associação das
Comunidades Negras Rurais do Maranhão (Aconeruq).
Os casos em destaque são das comunidades quilombolas de Alcântara
(MA) e Monte Alegre (MA) e Marambaia (RJ), de toda forma, a referência
aos quilombos aparecem 80 vezes no Relatório da CCV, destacando-se as
graves violações de direitos no que tange o acesso ao território via de regra
maculados por processos de grilagem de terras.
As perseguições contra lideranças, a destruição de casas, assassinatos
e uso de Napalm nos anos de 1969-1970, por parte de agentes do Estado
na região de Registo (Quilombo de Peropava, Mandira, São Pedro, Porto
Velho), em São Paulo, constam no Relatório da CCV. Fatos desta natureza
foram tabulados no Relatório Quilombola (2018, p.18):
Os dados apresentados registram a ocorrência de 18 assassinatos de qui-
lombolas em 2018, números alarmantes não só pela frequência (mais de
um assassinato por mês), como também pela extensão da violência [...] Para
além do fato de o número de assassinatos ser preocupante, quilombolas so-
freram processos múltiplos de violência em variadas intensidades: ameaças,
torturas, prisões ilegais, despejos e negação sistemática de acesso a bens e
serviços [...] parte permanente deste cenário, o racismo religioso e institu-
cional, bem como os conflitos em face de interesses políticos e econômicos
transnacionais que se expandem sobre os territórios. As várias situações de
violência mapeadas são reveladoras do estado de vulnerabilidade em que os
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Quilombos, memórias e justiça de transição camponesa:
direitos humanos, narrativas e verdades em disputa
REFERÊNCIAS
ARAÚJO, E. F. A. Agostinha Cabocla: por três léguas em quadra – a temática quilombola
na perspectiva global-local. 2008. 217f. Dissertação (Mestrado em Ciências Jurídi-
cas), Universidade Federal da Paraíba, Paraíba, 2008.
CIOCCARI, Marta e CARNEIRO, Ana. Retrato da Repressão Política no Campo – Brasil
1962-1985 – camponeses torturados, mortos e desaparecidos. Brasília, Secretaria de
Direitos Humanos da Presidência da República, 2010.
CONAQ e TERRA DE DIREITOS (Orgs). Racismo e Violência Contra Quilombos no
Brasil. Curitiba: Terra de Direitos, 2018.
DAVIS, Angela. Mulheres, Cultura e Política. [Trad. Heci Regina Candani]. São Paulo:
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DIAS, Vercilene Francisco. Os Kalungas, por uma Kalunga. In: WOLKMER, Antonio
Carlos; SOUZA Filho, Carlos F. Marés; TARREGA, Maria Cristina V. (coords.).
Os direitos territoriais quilombolas: além do marco territorial. Goiânia: Ed. da PUC
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DUARTE, Evandro Piza; SCOTTI, Guilherme. A Queima dos Arquivos da Escravidão e
a Memória dos Juristas: Os usos da história brasileira na (Des)construção dos Direi-
tos dos Negros. In: SOUSA Júnior, José Geraldo. O direito achado na rua: Introdu-
ção Crítica à Justiça de Transição na América Latina. Série Direito Achado na Rua,
vol. 7. Brasília, Editora UnB, 2015. p.79-90.
GOMES, Flávio dos Santos. Quilombos: Remanescentes de Quilombos. In: SCHWAR-
CZ, Lília Moritz; GOMES, Flávio dos Santos (Orgs.). Dicionário da Escravidão e
Liberdade: 50 textos críticos. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p. 367-376.
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. [Trad. Marta Lança]. Lisboa. Antígona,
2014.
259
Eduardo F. de Araújo, Givânia Maria da Silva e Selma dos Santos Dealdina
MOURA, Clóvis. Quilombos: Resistência ao escravismo. 3.ed. São Paulo: Editora Ática,
1993.
SAUER, Sérgio [et al.]. Projeto de Pesquisa sobre Mobilizações e Movimentos Agrários, Re-
pressão e Resistência do Pré-1964 à Ditadura Civil-Militar: As trajetórias do Master
no RS e das Ligas Camponesas em PE. Edital n.12/2015 da CAPES – Memórias
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SAUER, Sérgio [et al.] (Orgs). Relatório final da Comissão Camponesa da Verdade: vio-
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SOUSA Júnior, José Geraldo de e BICALHO SOUSA, Nair Heloísa. Justiça de Transi-
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Achado na Rua: Introdução Crítica à Justiça de Transição na América Latina. Série
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VIANA, Gilney. Camponeses mortos e desaparecidos: excluídos da Justiça de Transição.
Secretaria de Direitos Humanos, Presidência da República, 2013. Disponível em:
https://www12.senado.leg.br/noticias/videos/2016/03/relatorio-da-comissao-cam-
ponesa-da-verdade-mostra-. Acesso em: 16 nov. 2020.
260
CAPÍTULO 11
1
Mestra em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural pelo PPG-Mader, Faculdade UnB Planal-
tina (FUP) e diretora da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra).
2
Doutor em Ciências Sociais pelo CPDA/UFRRJ e pesquisador de Pós-doutorado na Freie Uni-
versität (Berlin).
3
Será utilizado a nomenclatura da Contag conforme era na época. A partir de 1998, o termo
“trabalhadora” foi incluído no nome da Contag, passando a Confederação Nacional dos Traba-
lhadores e Trabalhadoras na Agricultura, ressaltando a contribuição das mulheres nos processos
políticos do movimento sindical. Em 2016, a Contag passou por nova mudança sendo chamada
Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais e Agricultores e Agricultoras Familiares. Essa
alteração foi decorrência da “dissociação sindical”, por meio do qual a Contag se voltou exclu-
Cleia Anice da Mota Porto, Marco Antonio Teixeira
262
Ação e resistência da Contag na ditadura civil-militar no Brasil
4
A Ultab foi criada em 1955 com o objetivo de coordenar as lutas camponesas em âmbito nacio-
nal, como uma federação das associações de trabalhadores. Na prática, era o elo político entre o
PCB e os grupos mobilizados no campo (Sauer et. al., 2015)
5
A Ação Popular (AP) foi fundada em 1962 e era marcada por uma forte influência do huma-
nismo cristão. O movimento era formado por membros mais radicalizados das juventudes es-
pecializadas, principalmente da Juventude Universitária Católica (JUC), Juventude Operária
Católica (JOC) e Juventude Estudantil Católica (JEC). Após o golpe civil-militar de 1964, a AP
sofreu um processo de crise sobre os rumos da sua atuação. Por volta de 1967, a AP assumiu uma
postura marxista-maoísta, marcando a radicalização do movimento.
263
Cleia Anice da Mota Porto, Marco Antonio Teixeira
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Ação e resistência da Contag na ditadura civil-militar no Brasil
265
Cleia Anice da Mota Porto, Marco Antonio Teixeira
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Ação e resistência da Contag na ditadura civil-militar no Brasil
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Cleia Anice da Mota Porto, Marco Antonio Teixeira
268
Ação e resistência da Contag na ditadura civil-militar no Brasil
269
Cleia Anice da Mota Porto, Marco Antonio Teixeira
8
O Estatuto da Terra (Lei n. 4.504, de 30 de novembro de 1964) foi definida em seu artigo 1º
como “lei [que] regula os direitos e obrigações concernentes aos bens imóveis rurais, para os
fins de execução da Reforma Agrária e promoção da Política Agrícola”. De acordo com Me-
deiros (1989), era formada de duas partes bastante distintas: uma sobre reforma e outra de
desenvolvimento.
270
Ação e resistência da Contag na ditadura civil-militar no Brasil
A ELEIÇÃO DE 1967
Em 1967 aconteceriam novas eleições para a Contag e um grupo des-
contente com o domínio de José Rotta criou uma chapa para concorrer à
diretoria. De acordo com Ricci (2009), o mote da chapa de oposição foi
a crítica à corrupção na direção da Contag e a luta pelos direitos dos tra-
balhadores rurais inscritos na legislação. A chapa de oposição encabeçada
por José Francisco da Silva, dirigente oriundo de Pernambuco, venceu as
eleições, derrotando seu opositor por um voto. De acordo com José Gon-
çalves, ex-assessor da Contag, foi no contexto das atividades desenvolvidas
271
Cleia Anice da Mota Porto, Marco Antonio Teixeira
272
Ação e resistência da Contag na ditadura civil-militar no Brasil
273
Cleia Anice da Mota Porto, Marco Antonio Teixeira
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Ação e resistência da Contag na ditadura civil-militar no Brasil
275
Cleia Anice da Mota Porto, Marco Antonio Teixeira
to foi marcado pela tentativa dos militares de impedir o debate sobre o tema
da reforma agrária. De acordo com Josefa Reis, o Ministério do Trabalho,
na época sob a chefia do Ministro Júlio Barata, chegou a proibir a atividade.
Para lidar com a proibição, José Francisco reuniu os líderes das federações
já presentes em Brasília para o Congresso, e foi negociar com o Ministro.
Argumentou que muitos já estavam no Distrito Federal e outros a caminho
de Brasília, não sendo possível desmarcá-lo. E a partir disso se desenrolou
um diálogo entre o Ministro e José Francisco, relatado por José Gonçalves:
– Ok. Então, se há o congresso [em 1973], não há o tema reforma agrária.9
– Ministro, como um congresso de trabalhador rural não tem a reforma
agrária como tema?
– Bom, se vai ter congresso e vai ter reforma agrária, eu vou botar os nossos
companheiros lá. (O pessoal da repressão, não é?).
– O senhor pode fazer o que quiser, ministro. Agora, a gente não veio pedir
ao senhor para fazer o congresso, não. O congresso estava convocado. A
gente veio conversar com o senhor, que o congresso vai acontecer.
9
Era o contexto do governo Emílio Médici (1969-1973) e a questão da reforma agrária era as-
sociada a pautas comunistas, inimigos dos militares. Foi nesse governo que dois focos guerri-
lheiros no meio rural foram dissolvidos, um em Ribeira, no estado de São Paulo, e outro no
Araguaia, no Pará.
276
Ação e resistência da Contag na ditadura civil-militar no Brasil
277
Cleia Anice da Mota Porto, Marco Antonio Teixeira
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo deste capítulo procuramos narrar a trajetória de atuação da
Contag desde a sua criação até o período de redemocratização política do
país, no início dos anos 1980. Com isso, procuramos destacar, por um lado,
como a repressão iniciada com o golpe de 1964 atingiu a principal entidade
de representação dos trabalhadores rurais no país; e, por outro lado, como
dirigentes e assessores sindicais atuaram politicamente na defesa dos interes-
ses da classe trabalhadora rural durante a ditadura civil-militar (1964-1985).
Como demonstramos, a Contag não deixou de existir após o golpe e
a intervenção. Ao contrário, após derrotar o interventor militar em uma
eleição, a diretoria permaneceu atuando por meio de uma forma de ação
278
Ação e resistência da Contag na ditadura civil-militar no Brasil
REFERÊNCIAS
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em: 20 abr 2020.
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FREDERICO, C. A imprensa de esquerda e o movimento operário (1964-1984). São Paulo:
Expressão Popular, 2010.
279
Cleia Anice da Mota Porto, Marco Antonio Teixeira
Entrevistas
Acácio Fernandes dos Santos, concedida a Leonilde Sérvolo de Medeiros no dia
26/10/1982, disponível no NMSPP/CPDA/UFRRJ.
Francisco Urbano de Araújo Filho, concedida a Marco Antonio Teixeira, em 22/10/2015.
José Agostinho Neto, concedida a Leonilde Medeiros no dia 09/11/1982, disponível no
NMSPP/CPDA/UFRRJ.
280
Ação e resistência da Contag na ditadura civil-militar no Brasil
281
CAPÍTULO 12
CAMPONESES NA COMISSÃO
NACIONAL DA VERDADE
Gilney Viana1
2
O chamado “Pacote de Abril” foi uma iniciativa do ditador general Geisel que, usando dos
poderes delegados pelo Ato Institucional nº 5, de 13/12/1968, decretou o fechamento do Con-
gresso Nacional em abril de 1977 e emitiu emendas constitucionais e decretos leis que restringi-
ram a campanha política e alteraram a composição do colégio eleitoral, incluindo os chamados
“senadores biônicos” eleitos indiretamente, visando impossibilitar uma provável vitória da opo-
sição, MDB, nas eleições de 1978, e garantir antecipadamente a homologação do nome do seu
sucessor, o general João Figueiredo.
284
Camponeses na Comissão Nacional da Verdade
3
A lei 10.559 de 13/2/2002 adaptou o período de abrangência da anistia ao marco temporal fixado
pelo Art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988.
285
Gilney Viana
286
Camponeses na Comissão Nacional da Verdade
5
Os arquivos não abertos dizem respeito principalmente ao Centro de Informações do Exército
(CIE), ao Centro de Operações de Defesa Interna (Codi) e seus Destacamentos de Operações
de Informação (DOIs), conhecidos pela sigla DOI-Codi, e à campanha contra a Guerrilha do
Araguaia. O papel do CIE no sistema repressivo e sua prática de assassinatos de prisioneiros po-
líticos e desaparecimentos forçados, inclusive sobre as atividades da Casa da Morte de Petrópolis
como centro de extermínio foram confirmados por um dos seus membros, o Tenente Coronel
EB Paulo Malhães em depoimento à CNV.
287
Gilney Viana
meteram crimes políticos ou conexos”. Em seu artigo 3º, inciso II, fixa seus
objetivos “promover o esclarecimento circunstanciado dos casos de torturas,
mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria,
ainda que ocorridos no exterior”. Destaco desaparecimentos forçados que é
um conceito mais amplo e inclui os desaparecimentos políticos, embora o
Volume III do Relatório se refira a Desaparecidos Políticos, o que não seria
importante, se não houvesse exclusões.
Ao discorrer sobre os objetivos da CNV determinados na lei, a própria
CNV, em seu Relatório, os considerou “excessivamente restritivo e contrário
à interpretação dinâmica e progressiva dos direitos humanos” para concluir
que outras formas de violação devem ser investigadas e esclarecidas, como
“prisões ilegais e arbitrárias” e “prática de violência sexual”.6
Problemática também a fixação do período a ser investigado. En-
quanto a CFMDP examinou casos de 02/09/1961 a 15/08/1979, incorpo-
rando o período pré golpe e reduzindo o período real da ditadura militar;
a lei 12.528/2011 alargou o período de competência da CNV desde 18
de maio de 1946 até 5 de outubro de 1988, tentando diluir a referência à
ditadura militar.
Ao início dos trabalhos, a CNV tomou a importante decisão de fixar
sua competência para “examinar e esclarecer as graves violações de direitos
humanos praticadas no período fixado no art. 8º do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias, por agentes públicos, pessoas a seu serviço,
com apoio ou no interesse do Estado” (Resolução n. 2, da CNV, 2012).
Importante por duas razões. Primeiro, porque negou a possibilidade de ba-
sear seus trabalhos na chamada “teoria dos dois demônios” que dizia que
os dois lados cometeram graves violações dos direitos humanos e deveriam
ser igualmente investigados, ignorando o fato histórico de que os eventuais
“crimes” cometidos por opositores foram objeto de investigação e aprecia-
ção judicial nos termos da ditadura. Segundo, firmou o conceito de que as
graves violações de direitos humanos a serem investigados não se restringi-
riam àquelas praticadas por agentes públicos, mas também, “pessoas a seu
6
“A CNV entende que a violência sexual pode constituir uma forma de tortura quando cometi-
da por agente público, ou com sua aquiescência, consentimento ou instigação, com a intenção
de obter informação, castigar, intimidar, humilhar ou discriminar a vítima ou terceira pessoa”
(CNV, 2014, vol.1, parte II, p. 279).
288
Camponeses na Comissão Nacional da Verdade
7
A 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos de dezembro de 2008 incluiu o 7º Eixo Di-
reito à Memória e à Verdade no 3º Programa Nacional da Verdade, onde já se defendia a insti-
tuição de uma Comissão Nacional da Verdade.
8
Sentença da Corte IDH por unanimidade (depois de julgar duas preliminares): 3. As disposi-
ções da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de
direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos
e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso,
nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhan-
te impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na
Convenção Americana ocorridos no Brasil. 4. O Estado é responsável pelo desaparecimento
forçado e, portanto, pela violação dos direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica, à
vida, à integridade pessoal e à liberdade pessoal, estabelecidos nos artigos 3, 4, 5 e 7 da Con-
venção Americana sobre Direitos Humanos, em relação com o artigo 1.1 desse instrumento, em
prejuízo das pessoas indicadas no parágrafo 125 da presente Sentença, em conformidade com
o exposto nos parágrafos 101 a 125 da mesma. 5. O Estado descumpriu a obrigação de adequar
seu direito interno à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, contida em seu artigo 2,
em relação aos artigos 8.1, 25 e 1.1 do mesmo instrumento, como consequência da interpreta-
ção e aplicação que foi dada à Lei de Anistia a respeito de graves violações de direitos humanos
[...]”(Corte Americana de Direitos Humanos, 24/11/2010).
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290
Camponeses na Comissão Nacional da Verdade
Como não poderia deixar de ser, o período desde o golpe militar até a
anistia política, de 1º de abril de 1964 a 28 de agosto de 1979, concentra a
maior frequência de mortos e desaparecidos políticos reconhecidos, ou seja,
93,08% do total. Tanto a distribuição social, do quadro anterior, quanto a dis-
tribuição temporal do quadro seguinte, teriam outros demonstrativos, se se ti-
vesse reconhecido os mortos e desaparecidos indígenas e camponeses, conside-
rando apenas as informações dos respectivos Textos Temáticos (do tomo II).
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Gilney Viana
9
Trata-se de uma lista ampliada a partir da anteriormente elaborada pelo autor e apresentada à
CNV, em tempo hábil, com 1.196 casos de mortos e desaparecidos, sendo 1.175 camponeses, 14
advogados e sete religiosos; entre os camponeses 81 sindicalistas e 164 dos casos com participa-
ção de agentes do Estado (Viana, 2011).
292
Camponeses na Comissão Nacional da Verdade
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10
A lista dos 1.196 casos de camponeses e seus apoiadores mortos e desaparecidos foi remetida
inicialmente pelo autor à CNV, quando ocupava o cargo de gerente do Direito à Memória e à
Verdade, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Publicada no livro
Camponeses Mortos e Desaparecidos: Excluídos da Justiça de Transição, editado pela SEDH/PR,
em 2013.
294
Camponeses na Comissão Nacional da Verdade
Justiça de Transição que, ao ver do autor, deveriam ser extensivos aos cam-
poneses que sofreram semelhantes violações aos seus direitos humanos no
período estabelecido pelas leis.
Importante, também, porque os movimentos e organizações campo-
nesas são pouco estudadas e suas lideranças pouco conhecidas, não fazendo
justiça ao seu protagonismo político ao longo da história do Brasil, particu-
larmente quando da ditadura militar.
Por todas essas razões, reproduzimos a seguir notas sobre os 41 cam-
poneses reconhecidos pela CNV, em ordem cronológica dos assassinatos ou
desaparecimentos forçados.
1. JOÃO PEDRO TEIXEIRA. Vice-presidente e principal líder da
Liga Camponesa de Sapé, PB. Militante do Partido Comunista
Brasileiro (PCB). Assassinado na estrada entre Café do Vento e
Sapé (PB), no dia 2 de abril de 1962.
2. ALBERTINO JOSÉ DE FREITAS. Presidente da Liga Campo-
nesa de Vitória de Santo Antão (PE) (1963/1964). No dia do gol-
pe de Estado de 1964, mobilizou milhares de camponeses para a
resistência na cidade de Vitória de Santo Antão. Desaparecido em
29/04/1964, em Vitória de Santo Antão, PE.
3. BENEDITO PEREIRA SERRA. Presidente da União dos Lavra-
dores e Trabalhadores Agrícolas do estado do Pará (Ultap), ligada
à Ultab. Morreu em 16/05/1964 no Hospital Militar de Belém, ví-
tima de hepatite infecciosa viral, que fora contraída e agravada em
virtude de graves torturas e péssimas condições carcerárias.
4. JOÃO ALFREDO DIAS (“Nego Fuba”). Um dos líderes da Liga
Camponesa de Sapé, PB. Vereador. Militava no Partido Comunis-
ta Brasileiro (PCB). Desaparecido desde abril de 1964.
5. PEDRO INÁCIO DE ARAUJO (“Pedro Fazendeiro”). Vice-pre-
sidente da Liga Camponesa de Sapé (PB) e membro da Federação
das Ligas Camponesas. Militante do Partido Comunista Brasileiro
(PCB). Desaparecido desde abril de 1964.
6. ELVARISTO ALVES DA SILVA. Ligado ao Movimento Revo-
lucionário 26 de Março (MR-26). Preso após eclosão da chamada
Guerrilha de Três Passos, comandada pelo coronel Jeferson Car-
din. Morto em 10 de abril de 1965 no Regimento de Cavalaria
Motorizada de Santa Rosa de Três Passos, RS.
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11
O Texto Temático n. 3, referente à violação de direitos de camponeses, nomina sete membros da
Guerrilha Camponesa de Porecatu (PR): Francisco Bernardo dos Santos, Salvador Ambrósio,
Benedito dos Santos, João Japão, Benedito Barbudo, Cassiano Coelho e Pedro Vieira de Mora-
es; e onze assassinatos da Revolta de Pato Branco (PR): Pedro José da Silva (Pedrinho Barbeiro
– vereador do PTB, representante do distrito do Verê), Pedro Lauro Camargo, Rogério Viana,
Augusto da Silva, José Silvestre, família de João Saldanha, Eleutério Bello, Antônio Vargas, Ge-
nésio Machado, Manuel Paraguay e José Augusto Silveira (Kehl, 2014, p. 99,100, 107).
300
Camponeses na Comissão Nacional da Verdade
301
Gilney Viana
reconheceu um sequer além dos quatro citados, pode se concluir que a CNV
deu tratamento desigual a casos semelhantes. Consequentemente, excluiu a
grande maioria dos camponeses mortos e desaparecidos “do direito à memó-
ria e à verdade histórica”, cuja efetivação era o principal mandato da CNV.
302
Camponeses na Comissão Nacional da Verdade
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A CNV cumpriu um papel importante ao estabelecer a responsabili-
dade do Estado ditatorial brasileiro sobre as graves violações dos direitos
humanos, negando a tese de que se tratou de “excessos cometidos por al-
guns agentes do Estado” sem descurar da responsabilidade individual dos
agentes do Estado envolvidos como responsáveis diretos pelos crimes de lesa
humanidade.
Reconheceu historicamente o papel das variadas expressões de oposição
à ditadura militar e tirou do esquecimento muitos lutadores e lutadoras da
resistência à ditadura que sofreram cassações de mandatos eletivos e sindi-
cais e de direitos políticos, prisões arbitrárias, exílios, banimentos, torturas,
estupros, assassinatos, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáver e
outras violações dos seus direitos humanos.
As atividades da CNV e não apenas o seu Relatório estimularam um
crescente número de atividades sobre memória e verdade no país, tanto na
esfera da sociedade quanto do Estado. Na esfera da sociedade com a forma-
ção de dezenas de Comitês pela Verdade, Memória e Justiça, reportagens
na imprensa, publicação de livros e pesquisas acadêmicas e atividades várias
que chegaram a um público nunca antes alcançado na luta pela memória,
verdade e justiça. Na esfera do Estado, com a formação e suas múltiplas
atividades, de Comissões da Verdade Estaduais, Municipais, ou de institui-
ções como as Universidades Públicas que contribuíram para os trabalhos da
CNV e produziram seus próprios relatórios no sentido de formar consciên-
cia política para não se esquecer das graves violações dos direitos humanos
praticados pela ditadura militar.
A avaliação crítica expressa pelo autor neste artigo parte do reconhe-
cimento do papel positivo da CNV e avança no sentido de apontar suas
limitações e erros, porque este não é um evento que acontece todos os dias.
O relatório espelha as opções políticas da CNV. No caso dos campo-
neses, embora tenha firmado critérios justos só os aplicaram por exceção. O
exemplo mais evidente é a admissão da responsabilidade do Estado nos ca-
303
Gilney Viana
sos dos crimes de lesa humanidade praticados “por agentes públicos, pessoas
a seu serviço, com apoio ou no interesse do Estado” usado para reconhecer
alguns poucos casos e para não admitir centenas de outros. Se esses casos fo-
ram analisados, não foram relatados e quando relatados não foram assumi-
dos pela Comissão. A própria CNV reconhece que o número de 434 mortos
e desaparecidos políticos não corresponde à verdade histórica ao declarar na
apresentação do volume III do Relatório, em 10 de dezembro de 2014, que
“[...] o rol de vítimas aqui exposto não é definitivo [...] notadamente no que
se refere à repressão contra camponeses e indígenas, a produção de um qua-
dro mais consolidado de informações acarretará a identificação de número
maior de mortos e desaparecidos” (CNV, 2014, vol. III, p. 9).
Por essas e outras razões, as graves violações dos direitos humanos dos
militares, trabalhadores, camponeses, igrejas cristãs, povos indígenas, uni-
versidades e homossexualidades foram relegados a Textos Temáticos. Esses
foram “[...] produzidos sob a responsabilidade individual de alguns dos con-
selheiros da Comissão”, sobre os quais a CNV explicitamente não assume
as responsabilidades.
A própria Comissão, em seu Relatório admite ter se baseado no Livro-
-Relatório da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos e no
Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos, a partir de 1964, elaborado
pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos (CFMDP,
2009). Relembremos que, no caso da CEMDP, exigia se comprovação “de
participação ou acusação de participação em atividades políticas”. Já, no
caso da CFMDP, se trabalhava com o conceito de militante político. In-
fluenciados por estas duas visões, a CNV trabalhou com o conceito igual-
mente aceito de mortos e desaparecidos políticos e não o conceito mais am-
plo de mortos e desaparecidos forçados, como manda a lei 12.528 que criou
e mandatou a Comissão Nacional da Verdade.
Em função deste desvio, o principal indicador de efetividade do direito
à memória e à verdade foi subestimado ao se reconhecer apenas 434 casos de
mortos e desaparecidos forçados o que não corresponde à verdade histórica
que revela não apenas quatro centenas mas milhares de mortos e desapare-
cidos forçados durante a ditadura militar, entre os mais atingidos, os indí-
genas e os camponeses.
No caso dos camponeses há subestimação do número de mortos e de-
saparecidos forçados e não reconhecimento do caráter político da repres-
304
Camponeses na Comissão Nacional da Verdade
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COMISSÃO DE FAMILIARES DE MORTOS E DESAPARECIDOS POLÍTICOS,
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305
Gilney Viana
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VIANA, Gilney e CIPRIANO, Perly. Fome de Liberdade. São Paulo, Fundação Perseu
Abramo, 2009.
306
CAPÍTULO 13
Fabricio Teló1
1
Doutor em Ciências Sociais pelo CPDA, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
(UFRRJ).
2
A Justiça de Transição é formada por um conjunto de medidas por parte do Estado e da socie-
dade civil na busca pelo esclarecimento de fatos ocorridos em períodos autoritários, reparação
para vítimas de violações de direitos humanos, responsabilização de perpetradores e construção
de políticas públicas de não repetição dessas práticas (Teitel, 2003).
Fabricio Teló
308
A questão agrária nas Comissões Estaduais da Verdade
309
Fabricio Teló
310
A questão agrária nas Comissões Estaduais da Verdade
AS COMISSÕES DO SUDESTE
A Comissão da Verdade de Minas Gerais (Covemg) foi uma das que
mais investiu esforços na investigação das violações no campo e na explici-
tação dos fundamentos teóricos,5 para a possibilidade de considerar como
responsabilidade do Estado as práticas de violência ocorridas em função de
sua omissão, caso de boa parte dos despejos executados por grileiros contra
posseiros e indígenas. Assim como na comissão nacional não havia consen-
so em torno da incorporação dos camponeses entre as vítimas da ditadura,
tampouco em Minas Gerais essa ideia era unânime entre os comissionados.
De acordo com o relato de uma assessora, os comissionados chegaram à
decisão de incorporar essa temática nos trabalhos da Comissão depois de
5
A argumentação é baseada no documento denominado Responsabilidade do Estado por Atos In-
ternacionalmente Ilícitos, elaborado pela Comissão de Direitos Humanos da Organização das
Nações Unidas e aprovado em sua Assembleia Geral em 1983. O documento também é reco-
nhecido pela Corte Internacional de Justiça (Covemg, 2017).
311
Fabricio Teló
6
Professor da Faculdade de Direito da UFMG e pesquisador do Centro de Estudos sobre Justiça
de Transição (CJT), da mesma instituição.
312
A questão agrária nas Comissões Estaduais da Verdade
313
Fabricio Teló
314
A questão agrária nas Comissões Estaduais da Verdade
315
Fabricio Teló
AS COMISSÕES DO NORDESTE
A mesma centralidade ao campo foi dada pela Comissão da Verdade
e Preservação da Memória da Paraíba (CEVPM-PB), estado onde as Ligas
Camponesas tiveram forte atuação. O relatório deu destaque para diversos
depoimentos de camponeses e de familiares que sofreram violências. Nes-
tes relatos destacam-se as motivações políticas da repressão, em função do
envolvimento nas Ligas. Tais conflitos, embora motivados muitas vezes por
questões trabalhistas como o aumento do cambão,7 por exemplo, davam-se,
em última instância devido ao fato de tais camponeses não possuírem terra
própria. A CEVPM-PB também abordou a perseguição sofrida por lideran-
ças da Igreja Católica pelo apoio dado às lutas da população do campo e
sistematizou os documentos do SNI que evidenciam a vigilância do Estado
sob gestão militar sobre os camponeses e seus apoiadores. Não há, no en-
tanto, uma abordagem a respeito das populações indígenas, tampouco reco-
mendações ao governo paraibano no que se refere aos problemas fundiários
daquele estado.
De maneira semelhante, a Comissão Estadual da Memória e Verdade
Dom Helder Câmara (CEMVDHC), de Pernambuco, também tratou das
questões fundiárias tendo como base as biografias de trabalhadores rurais
integrantes das Ligas Camponesas. A partir das histórias de vida de três mi-
litantes assassinados, o relatório analisa não apenas as questões individuais,
mas contextualiza essas biografias na luta por terra e por valorização do tra-
balho, de modo a inserir no debate não apenas os direitos civis e políticos,
mas também os direitos socioeconômicos.
Dentro dessa perspectiva, uma particularidade da Comissão da Verda-
de pernambucana é a análise dos impactos do desmonte que o golpe causou
na Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), que pre-
via, dentre outras iniciativas, a ampliação da oferta de terras, com foco na-
quelas próximas aos centros urbanos, de modo a fortalecer o abastecimento
alimentar da região. Os funcionários perseguidos, presos e/ou exilados (com
exceção de Celso Furtado, que tinha sido da Força Expedicionária Brasi-
leira) foram substituídos por outros alinhados à nova perspectiva político-
-ideológica imposta pelo Golpe e os projetos foram redirecionados. Não há,
7
Dia de trabalho que os camponeses sem-terra eram obrigados a dar aos donos das terras onde
trabalhavam.
316
A questão agrária nas Comissões Estaduais da Verdade
contudo, uma análise sobre os impactos mais estruturais dessa medida, so-
bretudo para as questões fundiárias.
No capítulo referente à repressão no campo, a comissão de Pernambuco
chama atenção para a questão da terra como um problema de longa data no
país, cujas origens estão no período colonial, quando os povos indígenas en-
contravam dificuldade até mesmo “para se manterem vivos” (CEMVDHC,
2017, V. II, p. 151) e relata os diversos casos de violência, com ocorrências
mais frequentes nos engenhos. Não há, no entanto, recomendações referen-
tes a essa temática.
A Comissão da Verdade da Bahia (CEV-BA) deu menos centralidade
aos problemas da terra, dedicando apenas um subcapítulo ao tema, com
base fundamentalmente em entrevistas,8 com assessores jurídicos da Fede-
ração dos Trabalhadores na Agricultura da Bahia (Fetag-BA), e com alguns
documentos sindicais. A comissão havia inicialmente criado um eixo de
trabalho destinado à repressão ao movimento sindical e aos trabalhadores
rurais, urbanos e indígenas, porém posteriormente o suprimiu.
A despeito do pouco aprofundamento, merece destaque a ênfase dada
ao problema da violência estrutural, sendo a privação do acesso à terra uma
expressão dessa violência. Como exemplos, o relatório cita a construção da
Barragem do Sobradinho, que deslocou cerca de 70 mil famílias, e a Lei
de Terras da Bahia, promulgada em 1972 pelo governador Antônio Carlos
Magalhães, que possibilitou a apropriação por parte de agentes privados de
milhares de hectares de terras devolutas e o aumento da violência provocado
por essa lei. A CEV-BA não dedicou capítulo específico para os povos in-
dígenas, nem elaborou recomendações referentes aos problemas fundiários
do estado.
No Maranhão, a Comissão Parlamentar Especial da Verdade da As-
sembleia Legislativa do (CPEV-MA) não elaborou um relatório organizado
por temáticas, tal como as demais, mas de acordo com suas atividades. Por
dispor de pouco tempo e poucos pesquisadores, a Comissão apontou a ne-
cessidade de um aprofundamento dos casos de violência apontados. Sobre a
repressão no campo, a CPEV-MA anexou uma síntese dos conflitos agrários
no Maranhão, na qual destacam-se os efeitos da modernização conserva-
dora estimulada especialmente pelo governo Sarney, que incentivou a vin-
8
Tais entrevistas foram disponibilizadas na íntegra como anexo do relatório.
317
Fabricio Teló
AS COMISSÕES DO SUL
A Comissão do Paraná (CEV-PR) criou um Grupo de Trabalho inti-
tulado Violações no Campo e Povos Indígenas. No capítulo sobre os povos
indígenas, o relatório destaca que as violações reportadas são apenas uma
parte ínfima do que foram as práticas repressoras que ocorreram durante a
ditadura, restando muita pesquisa a ser desenvolvida para se ter mais clareza
sobre esse processo. Um elemento diferenciador no relatório da comissão
paranaense é uma tabela com a lista das violações e os nomes dos violadores
de direitos humanos dos povos indígenas, com destaque para o esbulho ter-
ritorial, sequestro de crianças e assassinatos. Dentre os povos afetados estão
os Xetá, os Kaigang e os Guarani. De acordo com a CEV-PR, os primeiros
foram vítimas de um genocídio (CEV-PR, 2014).
O relatório aponta ainda que a expulsão de muitos indígenas de seus
territórios está relacionada aos grandes empreendimentos conduzidos pelo
Estado, como a colonização na esteira da “Marcha para o Oeste”, estimu-
lada especialmente pelos governos Vargas, e a construção de barragens. A
318
A questão agrária nas Comissões Estaduais da Verdade
319
Fabricio Teló
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nas regiões Norte e Centro-Oeste, a única Comissão oficialmente ins-
taurada que concluiu seu relatório foi a do Amapá. Embora Holanda (2018)
aponte essa Comissão como uma das que mais abordou a questão indígena,
não foi apresentada uma sistematização sobre o tema. A questão agrária,
9
Os Grupos dos Onze (ou Comandos Nacionalistas) foram uma iniciativa liderada pelo então
deputado federal pela Guanabara, Leonel de Moura Brizola, no fim de 1963, a fim de pressionar
o presidente João Goulart a implantar as Reformas de Base, principalmente a reforma agrária.
Por meio da rádio Mayrink Veiga, Brizola mobilizava a sociedade a formar os grupos. Os estados
onde houve maior adesão foram o Rio Grande do Sul e o Rio de Janeiro. Tiveram vida curta pois
foram destruídos completamente após o Golpe de 1964 (Ferreira, 2004).
320
A questão agrária nas Comissões Estaduais da Verdade
10
No Amazonas, o Comitê da Verdade daquele estado produziu um relatório específico sobre a re-
pressão sofrida pelos Waimiri-Atroari, porém não se constituiu enquanto Comissão da Verdade
com mandato.
11
A CEV-RS possuía um site, mas foi desativado pelo governo de José Ivo Sartori em 2016. Ver
mais em Weissheimer, 2016. Como alternativa, os comissionados foram obrigados a disponibi-
lizar o relatório em partes em forma de postagens da página da comissão na rede social Facebook
da Comissão Estadual da Verdade RS.
12
No caso de São Paulo, o resultado dos embates foi uma maior centralidade às terras indígenas
e uma secundarização das terras expropriadas de camponeses. Já as discussões ocorridas nas
Comissões de Minas Gerais e do Rio de Janeiro resultaram em um consenso em torno da cen-
tralidade das terras tanto indígenas como camponesas.
321
Fabricio Teló
322
A questão agrária nas Comissões Estaduais da Verdade
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APÊNDICE
Comissões estaduais criadas a partir do trabalho da CNV
Comissão Criação Encerramento Poder
Amapá Lei 1.756/2013 2017 Executivo
Bahia Decreto 14.227/2012 2016 Executivo
Espírito Santo Lei 9.911/2012 Não produziu relatório Executivo
Goiás Decreto 8.101/2014 Não produziu relatório Executivo
Maranhão Resolução Alema 675/2012 2013 Legislativo
Minas Gerais Lei 20.765 /2013 2017 Executivo
Pará Lei 7.802/2014 Em funcionamento Executivo
Paraíba Decreto 33.426/2012 2017 Executivo
Paraná Lei 17.362/2012 2014 Executivo
Pernambuco Lei 14.688 /2012 2017 Executivo
Rio de Janeiro Lei 6.335/2012 2015 Executivo
Rio Grande do Sul Decreto 49.380/2012 2014 Executivo
Santa Catarina Decreto 1.415/2013 2014 Executivo
São Paulo Resolução Alesp 879/2012 2015 Legislativo
Sergipe Decreto 30030/2015 Em funcionamento Executivo
Fonte: Elaboração própria.
326
CAPÍTULO 14
Sérgio Sauer1
1
Doutor em Sociologia, professor da Universidade de Brasília na Faculdade UnB Planaltina
(FUP) – Programas de Pós-Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural (Mader) –
e no Centro de Desenvolvimento Sustentável (CDS) e bolsista do CNPq.
Sérgio Sauer
328
Lutas, memórias e violações no campo: notas históricas e reflexões prospectivas
(Bosi, 2003). Ser sujeito histórico, ser camponês, é ter as memórias, inclusive
as de violações e violências, reconhecidas e não esquecidas.
A CNV – assim como as pesquisas relacionadas ao projeto – não traba-
lhou com uma noção de memória, no sentido restrito de lembranças (indi-
vidualizadas) das pessoas, em contraposição à história, aos fatos, mas com a
noção da memória como a arte de narrar (Benjamin, 1987), portanto, como
possibilidade, capacidade e ação de sujeitos históricos. A memória é, portan-
to, expressão de protagonismo histórico de sujeitos políticos na luta contra a
ditadura civil-militar (Sauer e Saraiva, 2015), as quais não podem ser esque-
cidas, o que avalizaria a negação da história (CCV, 2015). Investigações (ver
Viana, 2014) revelam que há um processo político e social de invisibilização,
tanto no que se refere à luta e resistência camponesas (retirada ou esqueci-
mento de protagonistas), quanto aos processos de reparação (CCV, 2015).
De acordo com Gagnebin (1993), Benjamin evoca a memória na arte
de narrar, reafirmando que a (re)construção não se reduz a relatar, pura e
simplesmente, o passado. O resgate “[...] fazer emergir esperanças não rea-
lizadas desse passado, inscrever em nosso presente seu apelo por um futuro
diferente” (Gagnebin, 1993, p. 58). A presentificação da memória é parte da
experiência histórica de sujeitos, portanto deve ser “[...] capaz de estabelecer
uma ligação entre esse passado submerso e o presente” (Gagnebin, 1993, p.
58). Esta ligação é condição fundamental para a construção histórica de su-
jeitos políticos e para a resistência contra a invisibilização e o esquecimento
(CCV, 2015).
Essa compreensão do alcance político da memória é parte do necessário
reconhecimento de lutas e resistências como classe e sujeito político (CCV,
2015). Ser sujeito, e ser reconhecido como tal, requer que memória, futuro
e justiça se somem, constituindo a memória coletiva (Meneses, 1984). Essa
memória coletiva dá suporte à construção de identidade, identidade de gru-
pos sociais, pois se constitui no “[...] mecanismo de retenção de informação,
conhecimento, experiência individual ou social, constituindo-se em um eixo
de atribuições que articula, categoriza os aspectos multiformes de realidade,
dando-lhes lógica e inteligibilidade” (Meneses, 1984, p. 33).
Presentificar memórias é tornar realidades vividas elementos presen-
tes, socializando lembranças e construindo identidade social e política. A
memória social é sempre vinculada à consciência, portanto, também uma
construção social. Presentificar (como ato de lembrar) estabelece a condição
329
Sérgio Sauer
330
Lutas, memórias e violações no campo: notas históricas e reflexões prospectivas
2
Apesar das dificuldades conceituais, o termo camponês e/ou campesinato foi adotado na CCV
e é usado de forma ampla, em referência a todas as pessoas que vivem, dependem ou tiram o seu
sustento do trabalho na terra, incluindo várias identidades sociais como, por exemplo, posseiros,
sem-terra, quilombolas, caiçaras, assalariados, agricultores familiares, ribeirinhos, extrativistas,
populações tradicionais, entre outros grupos sociais do campo (Sauer, 2013).
3
Detalhes sobre resoluções, pesquisas, investigações e relatórios da Comissão Nacional da Verda-
de (CNV), ver o site do Arquivo Nacional Memórias Reveladas, especialmente o volume 2 onde
“[...] foram reunidos textos que enfocam as graves violações sob a perspectiva de sua incidência
em diferentes segmentos sociais – militares, trabalhadores urbanos, camponeses, povos indíge-
nas, membros de igrejas cristãs, LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e trans-
gêneros), professores e estudantes universitários” (Dias et al, 2015). Sobre limites e problemas da
CNV, ver Viana (2020).
4
Apesar de não ser uma especialista da área, Maria Rita Kehl assumiu a tarefa de investigar as
violações no campo motivada por seus compromissos políticos com o Movimento dos Trabalha-
dores Rurais Sem Terra (MST).
331
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Lutas, memórias e violações no campo: notas históricas e reflexões prospectivas
7
Em agosto de 2013, um grupo de entidades composto pela Articulação dos Povos Indígenas do
Brasil (APIB), Instituto Socioambiental (ISA), Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e o
Centro de Trabalho Indigenista (CTI) criou a Comissão Indígena da Verdade e Justiça, para
subsidiar a CNV e elaborar seu próprio relatório. Maiores detalhes sobre a violação de direitos
indígenas, ver Comissão (2012) e Valente (2017).
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Lutas, memórias e violações no campo: notas históricas e reflexões prospectivas
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Pesquisas resgataram e (re)construíram violações dos direitos econômicos, sociais e culturais,
não restringindo às violações dos direitos civis e políticos individuais, resultando em muitos re-
latos de “casos emblemáticos” (CCV, 2015, p. 259-569). Para mais detalhes, ver Canuto (2020)
e Treccani, Pinheiro e Antunes (2020) sobre a Amazônia, também em outras fronteiras, ver
Pietrafesa e Borges (2020) e Teixeira (2020).
11
De acordo com seus membros, a lei havia definido “objetivos específicos” à CNV, portanto,
competia à Comissão apurar a verdade e “[...] esclarecer os fatos e as circunstâncias das graves
violações de direitos humanos – tortura, execuções, desaparecimentos forçados e ocultação de
cadáveres” (Dias et al, 2014).
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Lutas, memórias e violações no campo: notas históricas e reflexões prospectivas
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13
A CNV decidiu (como dinâmica dos trabalhos de conclusão das investigações) que os relatórios
de seus GTs deveriam ter, no máximo, 40 páginas (restrição feita para adequar a versão impressa
dos mesmos). Além do espaço limitado para narrar as violações, houve muitas restrições políti-
cas para influenciar na redação desses relatórios, portanto, (re)construir a memória tanto para
fazer parte da história oficial (Saraiva e Sauer, 2014) como para vislumbrar outro futuro, nos
termos de Walter Benjamin (1987), foram inviabilizadas.
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Lutas, memórias e violações no campo: notas históricas e reflexões prospectivas
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15
A equipe organizou dois seminários nacionais, em 2017 e 2018 na UnB, um seminário regional
na UFPel em 2019, e o seminário final, realizado também em 2019, quando foram debatidos re-
sultados das pesquisas, mas a importância da memória e do protagonismo camponês nas lutas e
resistências à ditadura e a incomoda falta de reconhecimento das violações e, consequentemente,
nenhum tipo de reparação e justiça – ver os capítulos deste livro, mas especialmente Medeiros
(2020) e Saraiva (2020).
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Lutas, memórias e violações no campo: notas históricas e reflexões prospectivas
16
Sobre lutas, resistências e ações coletivas – além das pesquisas sobre o Movimento de Agricul-
tores Sem Terra (Master) no Rio Grande do Sul (Gasparotto et al, 2020), as Ligas Camponesas
em Pernambuco (Porfírio, 2020; Saraiva, 2020), em São Paulo (Welch e Rocha, 2020; Teixeira,
2020) e lutas sindicais em Goiás (Pietrafesa e Borges, 2020) –, as pesquisas e reflexões sobre o
movimento sindical e a Contag são emblemáticos (ver Porto e Teixeira, 2020).
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17
Assim como a violência física, historicamente, outro mecanismo (violência simbólica) para ne-
gar direitos e reprimir reivindicações é a criminalização. Essa significa a utilização da lei (porte
ilegal de armas; formação de quadrilha; esbulho possessório, entre outros crimes) e das ferra-
mentas legais e democráticas (fiscalização pelo Tribunal de Contas da União – TCU; Con-
troladoria Geral da União – CGU e Ministério Público) para acusar bandeiras, movimentos e
lideranças de crimes. mais
342
Lutas, memórias e violações no campo: notas históricas e reflexões prospectivas
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Além da dar visibilidade pública, a CCV procurou internalizar, ou seja, dar visibilidade e impor-
tância à reconstrução de violações e resistências como parte da própria trajetória dos movimen-
tos sociais e entidades do campo, como parte de (re)construções da memória coletiva (Meneses,
1984) e da identidade social (Halbwachs, 2004) desses movimentos, entidades e lideranças.
344
Lutas, memórias e violações no campo: notas históricas e reflexões prospectivas
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Alternative Proxies: